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MARIA CONCEIÇÃO COSTA
RELAÇÕES RACIAIS E AÇÕES AFIRMATIVAS EM TEXTOS
JORNALÍSTICOS DA CIDADE DE RECIFE
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal de Pernambuco, como
requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestra em Psicologia.
Recife, 26 de agosto de 2010.
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Costa, Maria Conceição
Relações raciais e ações afirmativas em textos
jornalísticos da cidade do Recife / Maria Conceição
Costa. -- Recife: O Autor, 2010.
130 folhas.
Dissertação (mestrado)
Universidade Federal
de Pernambuco. CFCH. Psicologia, 2010.
Inclui: bibliografia
1. Psicologia Social. 2. Relações raciais –
Cotas. 3.
Discurso. 4. Ações afirmativas. I. Título.
159.9
150
CDU (2. ed.)
CDD (22. ed.)
BCFCH2010/149
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3
4
SUMÁRIO
Introdução ............................................................................................................. 12
1 Ações Afirmativas ............................................................................................ 15
1. 1 Introduzindo o tema racial no debate ............................................. 24
1.2 Democracia racial - a retórica do mito ............................................. 28
1.3 Ações afirmativas - da retórica à desconstrução do mito ................ 34
1.4 As cotas: políticas de ações afirmativas como ................................ 40
1.5 Experiências locais .......................................................................... 45
2 Abordagem Teórico-Metodológica: O Discurso e Linguagem Na Psicologia
Social Discursiva
................................................................................................. 53
2. 1 O giro linguístico ............................................................................. 55
2.2 A Psicologia Social Discursiva.......................................................... 57
2.2.1 A noção de discurso na psicologia social discursiva .................... 57
2.2.2 Função .......................................................................................... 58
2.2.3 Construção ................................................................................... 59
2.2.4 Variabilidade ............................................................................... 59
2.2.5 Retórica ........................................................................................ 60
3 Da Metodologia Da Pesquisa ......................................................................... 66
3.1 O “Corpus de pesquisa” ................................................................. 68
3.2 A análise ......................................................................................... 78
4 As Análises do Material Discursivo – Posicionamentos sobre as Cotas em
Artigos de Opinião ............................................................................................. 74
4.1 Construindo os posicionamentos favoráveis ................................. 74
4. 2 Construindo os posicionamentos contrários ................................ 79
4. 3 Ambiguidade .................................................................................. 93
5 As Análises do Material Discursivo em Reportagens: O Que elas trazem
sobre as Relações Raciais a partir do Discurso sobre as Cotas ................. 99
Considerações Finais ......................................................................................... 120
Referências .......................................................................................................... 123
5
DEDICATÓRIA
Aos que se foram, memória e ancestralidade, mas estarão sempre por
perto:
Mainha – Maria José Costa
Joás Costa – nosso menino
Vovó Mida - (Emídia)
Lígia Tavares – a que me colocava nos eixos
Este é o meu ponto de partida..da...
6
DEDICATÓRIA
Às que estão presentes e sempre por perto:
Esta dissertação pertence à irmandade do Observatório Negro (Oneg)
de Pernambuco:
Rebeca, Ana Paula, Mônica,
Ciani, Mércia, Jesus,
Elizabete, Claudia, Rivane,
Ângela e Girlana.
7
AGRADECIMENTOS
Pedro de Oliveira: mestre, sua crença foi fundamental, seu apoio, sua e
dedicação são exemplos para mim.
Sem você isto não seria possível.
Ao seu Luiz (Painho/ meu Pai/), meu primeiro exemplo inspirador, primeiro
pesquisador, curioso e fuçador de coisas novas que me guiou pelo mundo
dos livros e das descobertas.
Inspirou minha ama a ser livre, justa, guerreira e inquieta.
Ao meu amor e companheiro, grande incentivador de vida, parceiro branco
que instigou minha alma a ser mais preta: Antonio de Campos.
Raimundo/Munga, Ana e Ramon, família e força presentes sempre.
Zé Costa, Jairo, Washington, nossa infância está presente sempre, nas
minhas melhores lembranças da família. Grata por me tornarem “bendita” entre os
homens.
Ao Observatório Negro: inspiração na luta pelo reconhecimento de minha
negritude e força para combater os racismos.
À minha “chefe”, parceira e amiga Elizabete Godinho, pessoa com a qual
aprendo a cada dia o significado da luta pelos direitos humanos.
Às professoras e aos professores do mestrado: Bendito, Aécio, Fátima
Santos, Isabel Pedrosa, Jaileila, Rosineide, Raimundo, que confirmaram que
a psicologia social faz parte de um processo Ético-Político de ação.
À Fátima Cruz, pois sabemos onde tudo isto começou e por você acreditar,
há muito, em mim.
À Liana Lewis, suas dicas teórico-metodológicas foram preciosas, desde o
pré-projeto, amiga.
Aos professores da banca examinadora: Ronaldo Sales e Luis Felipe Rios:
com certeza aprenderei (continuarei, pois já aprendi muito) muito com vocês!
Rebeca Duarte e Ronaldo Sales: militantes-intelectuais que me mostraram
que é possível pensar com a teoria racial, criticamente.
Alda, agradeço o carinho e dedicação com que sempre cuidou de mim e das
minhas dificuldades. João, a secretaria ganhou com sua chegada.
8
Às amigas – irmãs: Tadzia parceira-amiga de sofrimentos, estudos e
conquistas no mestrado e na vida. Cássia, minha inspiração intelectual e
de idéias sobre o mundo, nosso encontro não foi por acaso, pelas
trocas, sou muito grata. Silvana e Alessandra, grata pelas forças que
vocês me deram. Ceça Leite, sabemos pelo que passamos juntas, a nº 1
do meu fã clube: onde você é a única.
Aos colegas de turma três:
1. Normando José Queiroz Viana
2. Juliana Maria Ferreira de Lucena
3. Ellen Dias Nicácio da Cruz
4. Fernanda Cristina Nunes Simião
5. José Orlando Carneiro Campello Rabelo
6. Pedro Paulo Viana Figueiredo
7. Rafaella Botelho Cursino
8. Rodrigo Pontes de Mello
9. Jullyane Chagas Barboza Brasilino
10. Gabriela Lima Marques – você deve voltar, o mestrado lhe pertence!
11. Ludmila Martins de Sousa
12. Paula Priscilla Houly Lopes
13. Tadzia Assunção Negromonte de Oliveira
14. Laura Maria Monteiro Maravilha
15. Larissa Raposo Diniz
16. Ana Flavia Leite Cortez
17 Juliana Catarine Barbosa da Silva
18. Patricia Bleuel Amazonas
19. Tathyane Gleice da Silva
20. Etiane Cristina de Oliveira
. Esta foi uma caminhada partilhada.
9
RESUMO
O presente trabalho procurou abordar o significado das relações raciais no Brasil, a
partir as ações afirmativas para negros. Interessou-nos observar como os discursos
presentes em textos jornalísticos na cidade do Recife foram construídos, bem como
quais os principais argumentos mobilizados para defender ou combater a política de
cotas raciais. Deste modo, analisamos as estratégias discursivas presentes na
construção da imagem do negro e das relações raciais no Brasil. Tratou-se de um
estudo de pesquisa qualitativa, embasado no referencial da Análise do Discurso,
tendo como perspectiva teórico-metodológica na psicologia social denominada de
Psicologia Social Discursiva, desenvolvida nos últimos 25 anos por um grupo de
psicólogos sociais ingleses, a saber, Potter (1987), Wetherell (1992), Billig (1988),
Dereck (1990). Optamos por pesquisar em textos jornalísticos impressos, do
período de janeiro de 2008 a dezembro de 2009, nos dois principais jornais locais,
ou seja, no Diário de Pernambuco e no Jornal do Comercio, nos quais analisamos
textos exclusivamente referentes às cotas raciais. Foram colhidos 25 textos como
amostra. O recorte temporal não se deu ao acaso, mas devido ao amplo debate
sobre o tema nesse período, ganhando cada vez mais visibilidade nos últimos
tempos, sem que passasse um período sequer nos últimos dois anos em que não
tenha saído algo sobre o tema das cotas raciais na mídia. Os textos analisados
foram as reportagens e os artigos de opinião. Um ponto a considerar que a
proposição das cotas raciais para o ingresso de jovens negros à universidade
possibilitou que o debate sobre raça, racismo e, portanto, sobre as relações raciais
brasileiras ganhassem um destaque público tanto na mídia quanto na sociedade
fortalecendo-se como uma questão nacional importante.
Palavras-chave: Discurso; Psicologia Social Discursiva, Ações Afirmativas;
Cotas; Relações Raciais.
10
ABSTRACT
This study sought to address the meaning of race relations in Brazil, from affirmative
action for blacks. Interested in observing how the speeches in newspaper articles in
Recife were built and what the main arguments deployed to defend or fight the policy
of racial quotas. Thus we analyze the discursive strategies present in the
construction of the image of black and racial relations in Brazil. It was a study in
qualitative research, based on the framework of discourse analysis, with the
theoretical-methodological perspective in social psychology called a discursive social
psychology, developed over the past 25 years by a group of British social
psychologists, that is Potter ( 1987), Wetherell (1992), Billig (1988), Dereck (1990).
We opted to search through newspaper articles printed, from January 2008 to
December 2009, the two main local newspapers, ie the Diario de Pernambuco and in
the Journal of Commerce, where we were analyzing texts exclusively relating to
racial quotas. Thus, there were 25 texts collected as a sample. The time frame has
not taken the chance, but due to extensive debate on the subject during this period,
gaining visibility in recent times, not even having spent a period in the last two years
that have not left something on the issue of quotas race in the media. In the texts
analyzed were the stories and opinion articles. A point to consider the proposition of
racial quotas for the entry of young blacks to the university allowed the debate about
race, racism and so on Brazilian race relations to gain a high public profile in both the
media and society is strengthened as a matter national importance.
Keywords: discourse, discursive social psychology, affirmative action quotas,
racial relations.
11
APRESENTAÇÃO
Sou total e absolutamente parcial. Tomo partido. Assim, sou com Brecht,
odeio os indiferentes e não vejo nada como natural. O tema desta pesquisa é
totalmente atravessado pelas minhas concepções político-filosóficas: o país
vê a questão racial como uma não questão. Eu sou uma questão racial!
Não creio em pesquisa “pura e aplicada”, creio em pesquisa
heterogênea, misturada e atravessada pelo que somos, pensamos e falamos.
Pesquisa Ação? Teoria Racial Crítica? o metodologias e teorias que
podem me contaminar, o vírus bem vindos, a crítica é sempre a melhor
ação política. Sou crítica! Mas, para alívio de tantas e tantos a crítica nos
obriga a autocrítica. Deste modo, neste trabalho encontrarão furos, lapso e
incongruências, assim me defino na pesquisa: uma pesquisadora tocada.
Este é o meu ponto de partida; nunca de chegada. Terei muitas pesquisas e
trajetórias a percorrer até pensar numa parada. São passos iniciais como os
de uma criança que, após meses de engatinhar no mestrado, os primeiros
passos rumo ao caminhar, acelerada e sem coordenação motora, às vezes,
titubeando, mas num caminho sem volta: um andar firme em frente é o
destino!
Ceça, dia Xangô - Menino, junho, 2010
Agradeço a Gloria Ladson-Billings (2006)
pelo artigo inspirador.
12
INTRODUÇÃO
Não quero lhe falar meu grande amor
das coisas que aprendi nos discos, quero
lhe contar de tudo que aconteceu comigo...
Belchior
Soa estapafúrdia a dúvida sobre
quem é negro no Brasil (...)
Silva, 2002
(...) Como sabe todo negro revistado no
ônibus, enquanto vê os brancos
serem ignorados pela PM.
Fernando Fucs, 2002
O presente trabalho tem por objetivo analisar o significado das relações
raciais no Brasil, a partir de textos jornalísticos sobre as cotas para negros nas
universidades. Interessa-nos observar como estes discursos foram construídos, os
argumentos mobilizados para defender ou combater a política de cotas raciais, as
estratégias discursivas presentes na construção da imagem do negro e das relações
raciais no Brasil.
Trata-se de um estudo, embasado na Análise do Discurso (AD), que pretende
dar visibilidade ao debate travado acerca da política de cotas nos dois maiores
jornais da cidade de Recife, Diário de Pernambuco e Jornal do Commercio,
analisando, em termos retóricos e ideológicos, os posicionamentos discursivos sobre
a questão racial brasileira. Assim, foram avaliados discursos de pessoas com
visibilidade na mídia, de pessoas comuns, de professores universitários, de
jornalistas, de agentes políticos, entre outros, numa busca por detectar conteúdos e
formas de organização nos discursos mobilizados para apoiar ou combater a
implantação de cotas nas universidades.
13
A escolha do tema se deu não por sua relevância dentro do debate racial
brasileiro, nem tão somente menos por ser um tema visceral para os movimentos
negros brasileiros, que do movimento negro local faço parte. Minha pesquisa me
atravessa também, assim, não saberia definir quando apareceu “o tema” deste
trabalho. Se fosse defini-lo diria que desde minha adolescência quando ao olhar-me
no espelho me convenci que era negra e passei a entender as diferenças de olhares
sobre mim, embora até hoje quase todos insistam em me chamar de “morena”, para
não me ofender ou amenizar a questão problema. Ou talvez evitando um problema!
Problema para quem? Na minha militância problematizar, mais que um problema,
aparece muitas vezes como um caminho em busca de soluções. Quanto a ser
morena, confesso, até gosto do termo, por ter vindo (acho eu) do termo mouro,
negros árabes, que “dominarama península ibérica por mais de oito (08) séculos.
Assim, sou também árabe, não por acaso, povo que também sofre discriminação e
preconceito raciais. Sou qualquer um/uma, quando discriminado.
Como uma proposta de políticas públicas, a política de cotas se dá pela
colocação da discussão do significado das relações raciais no Brasil, num espaço
importante como espaço da mídia (seja em que nível for), que não forma opinião,
como também reforça estereótipos e ideologiza as questões ali colocadas, além de
criar identidades. Assim, o alerta de Roso et al (2002) é bem vindo ao afirmar que a
ideologia pode ser algo presente nas regras semânticas, ao referir-se à propaganda,
mas também por estar contida no nível de organização da mensagem que se quer
passar, devendo-se observar o somente o que é dito, mas modo como é dito (ou
poderia ser dito). Essa autora ainda do papel que nós psicólogas(os) sociais, bem
como de profissionais das ciências sociais, deveríamos ter, ou seja:
“[...] olhar com olhos críticos e questionar as formas simbólicas para
que seus conteúdos não sejam massificadores e reforçadores de
relações de dominação de gênero, raça, classe ou qualquer outro
tipo de dominação que possa ser veiculado e reificado através dos
meios de comunicação de massa” (ROSO et al, 2002, p. 90).
A autora aponta ainda que sem olhos críticos pode-se pisar em falso, quando
então seremos engolidos/as pelo próprio sistema.
Deste modo, este estudo busca contribuir com a reflexão sobre as relações
de poder que estruturam a sociedade, a partir das relações raciais-étnicas entre
negros e brancos e seus reflexos na mídia. Pretendemos, assim, compreender,
14
como, partindo da discussão sobre a adoção das cotas nas universidades públicas,
foram construídos os discursos sobre raça/racismo em textos jornalísticos.
Abordamos, em nossa análise, o papel do discurso, que, como meio orientado
à ação, é em si mesmo ação, entendendo que o discurso e a linguagem não são
simples comentários sobre o mundo, constituem o próprio mundo, são capazes de
fazer coisas, como sugeriu iguez (2004). Trazemos, dessa forma, a ideia de que
as desigualdades raciais definem os papéis e lugares para diferentes grupos, a
saber, negros e brancos brasileiros. Por isso, nos últimos tempos vem ganhando
fôlego a ideia de que as políticas públicas precisavam se voltar para os grupos
diferenciados por conta desta condição, considerando-se um discurso que era (e
ainda é) muito difundido na sociedade brasileira, o discurso de que as relações entre
negros e brancos aqui foram construídas sem tensões. Afinal, diferentemente de
outros países não existiria no Brasil uma questão racial a ser pensada ou
problematizada (fato que abordaremos melhor no capítulo 1).
Em contraposição a esse último discurso, alguns estudiosos do tema afirmam
que a discriminação contra o negro em todos os campos da vida social é,
incontestavelmente, um fato (BENTO, 2000; BERNARDINO, 2002; FERNANDES,
1965; HASENBALG, 1979; IPEA, 2008; MAGGIE, 2004,2005; OLIVEIRA FILHO,
2004; PAIXÃO, 2003; ROSEMBEG, 2002; SALES, 2006; SANTOS, 2002; SILVA,
2003,2008; TELLES, 2003). Esse conflito atualiza-se de maneira evidente na
discussão sobre a implantação de cotas para negros nas universidades, que no
mundo acadêmico, no meio político e na mídia este tema tem sido motivo de um
debate acirrado, veiculado em diferentes jornais, indicando, de maneira inequívoca,
o grau de tensão associado a essa questão no Brasil.
Este trabalho está organizado da seguinte maneira:
No capítulo 1 discorremos sobre as ações afirmativas tema fundamental para
a compreensão do debate que segue, onde as relações raciais estarão refletidas.
Nele, abordamos o tema das relações raciais no Brasil situando-o no contexto
histórico em que se desenvolveu no país a ideia da miscigenação como algo sem
tensão, quando éramos então vistos pelo mundo, especialmente no pós-Segunda
Guerra, como o laboratório de integração racial, exemplo a ser seguido pelo mundo.
Com o Projeto UNESCO (1950), consegue-se parar e refletir que não era, afinal, tão
democrática assim a relação entre as raças no Brasil, dado que, como apontavam
as análises de desigualdades demonstradas por estudiosos e denunciadas pelo
15
movimento negro, desde pelo menos a década de 1930 as relações eram bastante
diferenciadas. Começa-se então a pensar as questões que se seguem,
especialmente da democracia racial brasileira. Assim, entramos no debate sobre o
significado e a importância das ações afirmativas como aquelas que possibilitariam
passar-se da retórica à desconstrução do mito, bem como no significado do discurso
sobre as cotas, entendidas aqui como uma das formas de políticas de ações
afirmativas, embora não a única. Finalizando o capítulo, foram relatadas
experiências locais brasileiras e regionais (de Pernambuco) sobre a implantação (ou
não) de ações afirmativas e das cotas raciais como mecanismo de ingresso à
universidade.
No capítulo 2, traremos a abordagem teórico-metodológica da Psicologia
Social Discursiva, entendida não como uma metodologia no sentido estrito, mas
como uma abordagem teórica (e metodológica) que nos ajudou na interpretação e
reflexão sobre os discursos analisados em nossa pesquisa. Neste momento,
refletimos sobre as mudanças na visão do fazer ciência nas últimas quatro décadas,
a partir da percepção crescente sobre a importância da linguagem (e portanto do
discurso) com o “giro linguístico” (GRACIA, 2004; IÑIGUEZ, 2004; NOGUEIRA,
2001). Deste modo, trouxemos a Psicologia Social Discursiva apresentando seus
principais conceitos que são: Construção, Retórica, Função e Variabilidade,
lembrando que não são conceitos estanques, mas complementares e nem sempre
de fácil separação na hora da análise. Ainda considerando outros conceitos também
importantes para sua compreensão enquanto abordagem analítica, discorremos
sobre o conceito de Discurso, considerado aqui, como sugere Potter (2003), como
meio primário da ação, bem como, das interações humanas, tal como entendido pela
Psicologia Social Discursiva.
Em seguida, entramos no capítulo da metodologia, ou seja, no quarto
capítulo, em que apresentamos e descrevemos o material discursivo analisado, os
procedimentos de coleta de dados e os procedimentos de análise.
Nos dois últimos capítulos, 4 e 5, apresentamos as análises e interpretações
produzidas a partir de leituras exaustivas do material discursivo. Por fim, passamos
às considerações finais em que destacamos os principais achados do nosso
trabalho.
16
1 AÇÕES AFIRMATIVAS
Existo porque nós existimos – Ubuntu
Ditado Africano
Os temas das relações raciais e da desigualdade estão intimamente
associados ao longo da história, sendo motivo de reflexão para os estudiosos e em
especial para os ativistas do movimento negro que, desde pelo menos a década de
1930 do século passado, reivindicam políticas públicas e/ou ações dos governos que
dessem conta da situação. As ações a que se referem esses estudiosos e ativistas
podem ser comparadas, grosso modo, àquelas que foram postas como necessárias
ao longo da história por grupos minoritários ao redor do mundo, bem como às
reivindicações e/ou ações dos movimentos afro-americanos (ou negros norte-
americanos), desde as décadas de 50/60 do século passado.
No entanto, a luta interna por políticas de reparação compensatórias ou de
reconhecimento das desigualdades não tem sido fácil no Brasil. Onde as ações para
os grupos minoritários de poder (e/ou em desvantagens sociais) foram
implementadas, partiu-se do pressuposto do reconhecimento dessas diferenças ou
desvantagens. No país, há uma grande dificuldade em aceitar que tais
configurações existem e que requerem soluções, diferentemente de países
europeus, em que, para compensar situações desvantajosas os estados, adotaram
muito o Welfare State
1
, ou estado de bem estar social
2
, fato incomum em países
em desenvolvimento como o nosso.
1
No estudo de Wieczynski (S/D) sobre o surgimento do Welfare State, observa-se que alguns
autores (DRAIBE, 1988; ESPING-ANDERSEN, 1980; FLEURY, 1994; ARRETCH, 1995; O’CONNOR, 1977;
WILEMSKI, 1975) vão caracterizá-lo a partir do surgimento nos países europeus devido à expansão do
capitalismo após a Revolução Industrial e o Movimento de um Estado Nacional visando a democracia como uma
medida de proteção social, a partir do desenvolvimento da sociedade industrial; é fruto das lutas de classes, bem
como de uma ampla articulação das políticas de redistribuição de renda e que mesmo sendo reprodução de uma
ordem social de proteção mínima, em níveis básicos de renda, deve ser visto como direito e não como caridade.
2
Gomes (2006, p. 2) assim define: O “[...] welfare state pode ser compreendida como um
conjunto de serviços e benefícios sociais de alcance universal promovidos pelo Estado com a finalidade de
garantir uma certa ‘harmonia’ entre o avanço das forças de mercado e uma relativa estabilidade social, suprindo
a sociedade de benefícios sociais que significam segurança aos indivíduos para manterem um mínimo de base
material e níveis de padrão de vida, que possam enfrentar os efeitos deletérios de uma estrutura de produção
capitalista desenvolvida e excludente”
17
Como apontado acima, desde pelos menos 1930, o movimento negro
reivindica políticas de promoção de igualdade de oportunidades. Nos idos dos anos
de 1940 e1950, com a frente negra brasileira, o ativista Abdias do Nascimento, bem
como Guerreiro Ramos, já colocava na pauta das políticas públicas o tema da
desigualdade racial como uma necessidade (GUIMARÃES, 2005).
Estudiosos da sociologia viram-se às voltas com o tema a partir dos estudos
da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO),
em que se propunha, com o Projeto UNESCO (1950), que fossem organizados
estudos sobre relações raciais após a Segunda Guerra Mundial, escolhendo o Brasil
por ser considerado então um “laboratório” de boas práticas nas tais relações
raciais. Maio (1999) descreve o Projeto UNESCO como um agente catalisador, ao
patrocinar uma série de pesquisas sobre as relações raciais no Brasil entre os anos
1951 e 1952, trazendo para a agenda internacional o que Arthur Ramos
3
entendia
ser o "laboratório de civilização" (aspas do original), referindo-se à experiência
brasileira. Para Ramos (apud MAIO, 1999, p. 143),
O tema das relações raciais assumia um lugar privilegiado para a
percepção e análise dos desafios da transição do tradicional para o
moderno, do cenário de significativas desigualdades sociais e raciais,
da diversidade regional e da busca em conformar, em definitivo, uma
identidade nacional.
Desta forma, o Brasil poderia ser um “laboratório” de experiências capaz de
orientar as estratégias de integração das raças, pois existiam desde o século XIX
observações sobre “relatos de viajantes, cientistas, jornalistas, políticos europeus e
norte-americanos que registraram uma certa surpresa com a convivência pacífica
entre as raças e etnias (brancos, negros e índios) no Brasil” (MAIO, 1999, p. 143,
grifo nosso). Passávamos, assim, a imagem de um "paraíso racial", o que, em
comparação com a experiência norte-americana, sul- africana no contexto após a
Segunda Guerra Mundial, justificava a escolha do Brasil como local a ser
3
Arthur Ramos finalizou o delineamento de um plano de trabalho no qual estava previsto o
incremento de investigações sociológicas e antropológicas no Brasil
,
assumindo em 1949 a direção do
Departamento de Ciências Sociais da UNESCO. Neste período, finalizou o delineamento de um plano de
trabalho no qual estava previsto o incremento de investigações sociológicas e antropológicas no Brasil. Em junho
de 1950, a sessão da Conferência Geral da UNESCO, realizada em Florença, aprovou a realização de uma
pesquisa sobre as relações raciais no Brasil, mas Arthur Ramos, seu idealizador, havia falecido oito meses
antes, sem chegar a definir com maiores detalhes o tipo de estudo que tinha em mente. No entanto, é notável
que, mesmo sem sua participação no desenho definitivo da investigação, suas preocupações a respeito do Brasil
estavam presentes tanto na versão final do Projeto UNESCO quanto nos resultados das diversas pesquisas
realizadas em seu âmbito (MAIO, 1999).
18
pesquisado. Tal possibilidade partia da crença “numa democracia racial à brasileira”
que teve em Gilberto Freyre, sociólogo pernambucano “a mais refinada
interpretação”, tornando-se assim um dos principais alicerces ideológicos da
integração racial e do desenvolvimento do país, fato mais suficientemente
substantivo para atrair a atenção internacional sobre nós.
O mundo ainda estava sob os efeitos “catastróficos da Segunda Guerra
Mundial” (MAIO, 1999, p. 143) e estarrecido com o Holocausto nazista. A UNESCO
(1945) fora criada neste momento com o objetivo de tornar compreensível e
inteligível o conflito internacional e suas consequências para a humanidade,
pensando o combate à intolerância racial, bem como estudos que debatessem “o
estatuto científico do conceito de raça”. Neste momento, maio de 1950, ocasião da
Sessão da Conferência Geral da UNESCO, publica-se a primeira Declaração
sobre Raça (Statement on race), primeiro documento com apoio deste órgão que
tinha ampla atuação internacional, negando toda e qualquer associação
determinista entre características físicas, comportamentos sociais, bem como
atributos morais que ainda vigorassem ou estimulassem problemas raciais (MAIO,
1999).
Maio (1999) ressalta a importância da influência do movimento negro em
pesquisadores que participaram do Projeto UNESCO, pois antes mesmo das
pesquisas começarem ainda em 1950, ocorrera o Congresso do Negro Brasileiro.
Tal influência se deu também porque o Teatro Experimental do Negro (TEN),
organizador do evento acima, “procurou mudar a natureza do projeto, atribuindo-lhe
um caráter nitidamente político” (MAIO, 1999, p. 145). Coube então a Guerreiro
Ramos, sociólogo e militante do TEN, sugerir ao governo brasileiro que patrocinasse
um Congresso Internacional de Relações de Raça. Embora reconhecendo a
importância do papel da UNESCO, especialmente num debate pós-guerra que
visava integrar minorias raciais de diversos países, Guerreiro Ramos preocupava-se
em garantir que estes debates e estudos do órgão da Organização das Nações
Unidas (ONU) não ficassem apenas no campo acadêmico, apontando que houvesse
sugestões práticas que evitassem uma falsa consciência da discriminação (racial).
O Congresso do TEN tentou oferecer uma alternativa à Unesco no
que tange ao perfil do trabalho a ser desenvolvido no Brasil.
Contudo, a proposta de Guerreiro Ramos contemplava em parte
os interesses da agência internacional. Se, por um lado, no terreno
da ação política contra o racismo, a idéia de um Congresso
19
Internacional de Relações de Raça poderia estar mais próxima de
uma proposta de impacto político, por outro, a sugestão do TEN não
incluía a proposta de uma investigação-piloto, de natureza
acadêmica, adotada pela Conferência da Unesco em Florença
(MAIO, 1999, p. 146).
4
As posições de Guerreiro Ramos revelavam um momento de disputas com
relação à proposta de projeto da agência internacional, tanto de natureza política
quanto acadêmica. Participaram do Congresso do TEN dois cientistas sociais,
Charles Wagley e Costa Pinto, que estavam em plena articulação com a UNESCO,
operacionalizando a pesquisa no Brasil. Além deles, estava presente Roger Bastide,
que foi em seguida contactado por Alfred Métraux (então diretor do recém-criado
Setor de Relações Raciais do Departamento de Ciências Sociais da UNESCO) para
participar da mesma pesquisa. Pode-se considerar aqui uma certa influência
(nascente) do movimento negro, que através do Congresso do Negro Brasileiro de
1950, teria também um certo impacto sobre esses três sociólogos que vieram a
participar do Projeto UNESCO. Assim, é de se observar, como pontuado, que, de
fato, era importante para o movimento negro que a ação da UNESCO no país se
revertesse de fato numa atividade de natureza com “um caráter nitidamente político”
(MAIO, 1999, p. 150).
Embora estes estudos estivessem a princípio voltados à Bahia,
desenvolveram-se em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e por fim no Sul (Santa
Catarina), tendo durado dois anos, mas ainda assim a polêmica sobre racismo
brasileiro manteve-se. O Projeto UNESCO demonstrou entre “surpresas,
ambiguidades, imprecisões e otimismo” que existia uma “tensa relação entre
racismo e mito da democracia racial brasileira”. Tensão que se manteve ao longo do
próprio Projeto UNESCO e, porque não dizer, até hoje nas ciências sociais e na vida
social brasileira
.
Ainda assim, a influência dos intelectuais manteve-se, em especial
de Florestan Fernandes, Donald Pierson e Gilberto Freyre.
Destas influências, duas permanecerão no discurso intelectual prevalente a
então, sobre as relações de mestiçagem e cordialidade, entre as raças no Brasil:
Freyre (pernambucano) e Pierson (norte-americano radicado em São Paulo). Quanto
às relações raciais brasileiras, afirmariam ambos que
4
Essa dissertação foi escrita de acordo com o Novo Acordo Ortográfico. Entretanto, foi mantida
a grafia de todos os textos citados escritos em diferentes normas gramaticais.
20
[...] a ordem estamental pertencia ao passado escravista, e que as
diferenças sociais existentes entre brancos e negros poderiam ser
atribuídas, quase que exclusivamente, à seletividade de classe,
barreira encontrada por todas as minorias étnicas que emigraram
para o Novo Mundo (GUIMARÃES, 2005, p. 89).
Guimarães (2005, p. 90) aponta que sociólogos ligados ao Projeto UNESCO
romperam com tal consenso ainda nos anos 50, “[...] afirmando a confluência de
barreira de classe e de cor à mobilidade social e à integração do negro na nova
ordem competitiva”. São eles: Costa Pinto, Thales de Azevedo, Florestan Fernandes
e Oracy Nogueira, sendo esses dois últimos ideologicamente mais ligados ou
próximos aos intelectuais negros, daí a possibilidade de serem também mais
reconhecidos que os outros dois.
Assim, o debate sobre raças continuou no Brasil sem que se fechasse um
consenso sobre o tema. Nos meios acadêmicos, em especial nas ciências sociais
(Sociologia), houve uma espécie de cisão entre as escolas paulista e nordestina (ou
do resto do país) acerca do caráter, no aspecto racial, da sociedade brasileira.
Quanto a isto, Guimarães (2005) observa que a “escola paulista” demonstraria “a
importância crescente do racismo no Brasil” enquanto os representantes da “escola
do nordeste ou resto do país” teriam se apegado à crença na “democracia racial
brasileira”, crença essa influenciada por Freyre e Pierson, ainda que seja
notadamente em Freyre que as teorias modernas se aportam para definir uma
relação cordial entre as raças brasileiras.
No meio destes debates estava o movimento negro que, através de sua
intelectualidade e militância com figuras como Guerreiro Ramos, Abdias do
Nascimento e Correia Leite, discordava frontalmente da corrente majoritária (ou
mainstream, no dizer de GUIMARÃES, 2005) da intelectualidade brasileira quanto
ao tema raça, tanto no aspecto sociológico quanto na interpretação ideológica. O
movimento negro de então afirmava a existência, no plano sociológico, de uma
formação racial e o de classe. no plano ideológico, apresentava a perspectiva
da identidade negra e não apenas mestiça, sendo tal identidade o âmago da
identidade nacional (GUIMARÃES, 2005). Neste aspecto, Guerreiro Ramos definiu,
segundo Guimarães (2005), o negro como povo brasileiro no sentido de
contraposição à elite branca. Esta seria uma ideia pioneira formulada por ele que
orientou politicamente o movimento negro, propondo assim uma integração nacional,
21
além de colocar a questão como uma discussão maior (mais de caráter popular que
racial), portanto, de caráter nacional.
O debate acadêmico sobre a questão racial continuou nos anos 60 e 70 entre
as “escolas brasileiras”. Intelectuais e romancistas também participavam desse
debate, destacando-se entre eles Abdias do Nascimento (1968), Donald Pierson
(1971), Florestan Fernandes (1965), Peter Fry, (1991), Rachel de Queiroz (1968),
entre outros, mas a questão racial só passou a fazer parte da agenda governamental
muito tardiamente. Embora também fizessem parte da agenda dos movimentos
negros, como visto acima, havia muito tempo (décadas de 30 com a Frente Negra
e décadas de 40 e 50 com o TEN), as lutas antirracistas só foram de fato ampliadas,
transformando-se numa agenda oficial na década de 90, após o período da ditadura
militar.
Esta agenda, ainda como bandeira de luta, fortalece-se nos anos 70 e 80, a
partir do surgimento do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978. A luta amplia
as reivindicações das décadas passadas que se pautavam, em verdade, na “luta
contra a segregação e a discriminação racial” e na “luta pela recuperação da auto-
estima negra” (GUIMARÃES, 2005, p. 227). Neste momento, o movimento abre uma
outra pauta que luta contra as desigualdades raciais e o faz com reivindicações mais
ideológicas, voltadas à população negra, buscando assim “políticas corretivas,
compensatórias ou afirmativas” (GUIMARÃES, 2005, p. 228).
Segundo Guimarães (2005, p. 228), essa agenda concentra-se em três
frentes, que ele assim descreve:
a) Recuperação do auto-estima negra, por meio de
modificação de valores estéticos, da reapropriação de valores
culturais, da recuperação de seu papel na história nacional e
do avivamento do orgulho racial e cultural;
b) Combate à discriminação racial, por meio da
universalização da garantia dos direitos e das liberdades
individuais, incluindo os negros, mestiços e pobres;
c) Combate às desigualdades raciais, por meio de políticas
públicas que estabeleçam, a curto e médio prazo, um maior
equilíbrio de riqueza, prestígio social e poder entre brancos e
negros.
Entendemos aqui que está chamando de “políticas corretivas, compensatórias
ou afirmativas” as políticas de ações afirmativas no seu sentido lato. Como foi
22
observado, estas políticas entraram na agenda das políticas públicas
governamentais muito recentemente, na década de 90 do século passado,
quando “[...] o Estado brasileiro começou a reconhecer a existência do racismo e a
implementar reformas raciais” (TELLES, 2003, p. 64), por influência reinvidicatória
dos movimentos sociais negros. Ater-nos-emos aqui às políticas de ações
afirmativas por serem estas as que continuariam ou entrariam na pauta das
reivindicações com mais força desde então.
A pauta dos anos 90 deveu-se ao processo de não discussão do tema,
obrigatoriamente imposto pela ditadura militar nos anos de sua duração, entre 1964
e 1985, posto que os militares trariam a democracia racial como um dogma,
proibindo-se assim que o tema fosse discutido. Mencionar o tema da raça ou
racismo resultaria então em sanções impostas e a acusação de ser racista, o que
demonstrava a visão dos militares que também viam perigo no movimento
reivindicatório negro. Assim,
Se as sanções não fossem o bastante (para a não discussão de
raça), havia sempre o poder de repressão e a vontade do governo
militar de utilizá-lo. No contexto dos protestos dos negros nos
Estados Unidos, o governo militar do Brasil via no movimento negro
uma ameaça de peso à segurança nacional. Pra limitar ou evitar seu
crescimento, os militares promoveram ainda mais a ideologia da
democracia racial, enquanto reprimiam qualquer sinal do movimento
negro e exilavam os principais acadêmicos brasileiros da área das
relações raciais, que se tornavam cada mais críticos da ideologia da
democracia racial (TELLES, 2003. p. 57, grifo nosso)
Neste meio tempo, os militares também se esforçavam para dissipar as
acusações de ser um “governo racista” (TELLES, 2003), sem propor ações
concretas que provassem o contrário.
Com a “queda” da ditadura militar e a democratização do país (1985)
ocorreram movimentos reivindicatórios importantes, como a luta por direitos que
incluem ativistas do movimento negro. Nessa década, foram criados os primeiros
conselhos que discutiriam a condição especial da população negra, sendo São
Paulo o pioneiro (1984). É anunciado também, em 13 de maio de 1988 pelo governo
Sarney, a criação do Instituto Fundação Cultural Palmares. Na Constituição, são
incluídos textos de leis antidiscriminatórias/antirracistas. Em 1989, cria-se a Lei Caó,
definindo a prática de racismo como crime (TELLES, 2003). Ainda nos 80, surgiram
os grupos de mulheres negras, entre os quais Sales Júnior (2006, p.190) destacou:
23
[...] o Coletivo de Mulheres de São Paulo (1983), o Grupo de
Mulheres Negras Mãe Andresa do Maranhão (1986), Centro de
Mulheres de Favela e Periferia do Rio de Janeiro (1986), Maria
Mulher no Rio Grande do Sul (1987), Coletivo de Mulheres Negras
de Belo Horizonte (1987), Geledés Instituto da Mulher Negra de
São Paulo (1988).
Estes grupos compunham deste modo os diversos movimentos sociais,
dentre os quais estavam todas as vertentes dos movimentos sociais negros que
reivindicavam as bandeiras políticas do momento referentes à anistia política ampla
e irrestrita para os cassados e exilados políticos, bem como as liberdades sindical e
partidária, fechando com a reivindicação de eleições diretas para todos os cargos
políticos, associada à liberdade de imprensa (SALES JÚNIOR, 2006).
Mas foi nos anos 1990 que surgiram as várias instituições negras com ações
voltadas ao tema das relações raciais especificamente, a exemplo do Geledés
(1989/1990), Centro de Estudos das Relações Raciais e do Trabalho (CEERT)
(1990) e SOS Racismos, esta última uma ação que aconteceu em vários estados,
tendo sua origem no Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN) do Rio de
Janeiro (1992). Dos estados (Rio de Janeiro, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe),
Pernambuco foi um dos que se destacou, tendo sua experiência durado cerca de
dois anos, de 2000 a 2002, desenvolvida pela ONG D’jumbay (embora o projeto
fosse financiado pelo Ministério da Justiça), uma entidade de militância que luta em
defesa da organização e pelo desenvolvimento da arte e cultura negras (SALES
JÚNIOR, 2006).
Toda esta historiografia nos leva a pensar que as lutas demonstravam a
necessidade da consolidação de políticas públicas para a população negra. Assim,
em 1995, com a celebração dos 300 anos da morte do líder negro Zumbi, ocorre um
processo de mobilização nacional, com a Marcha para Brasília denominada “Marcha
Zumbi dos Palmares contra o racismo pela Cidadania e a Vida”. Neste momento, o
movimento negro cobra do então presidente Fernando Henrique Cardoso “medidas
concretas de combate à discriminação racial” (TELLES, 2003, p. 77), que se
comprometeu a criar o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI). Telles (2003, p. 77)
diz que
[...] pela primeira vez, oder do governo brasileiro reconhecia a
existência de racismo no país e anunciava a possibilidade de
medidas de promoção da justiça racial, rompendo assim com
décadas de negativa formal do racismo.
24
Mas será num seminário em 1996 o que o presidente Fernando Henrique
admitirá a existência de discriminação no Brasil, abrindo, assim, espaço para se
pensar ações no combate a tal situação. Durante o seminário em sua fala, ele indica
que
A discriminação se consolida como alguma coisa que se repete, que
se reproduz. E não dá, para hipócritas também dizerem: "Não, o
nosso jeito não é esse". Não, o nosso jeito está errado mesmo.
uma repetição de discriminações. Isso tem que ser desmascarado.
Tem que ser, realmente, contra atacado, não em termos verbais,
mas também em termos de mecanismos e de processos que possam
levar a uma transformação na direção de uma relação mais
democrática entre as raças, entre os grupos sociais, entre as
classes. Tudo isso tem que ser feito.” (SEMINÁRIO..., 1996 , p. 03).
Bernardino (2002) aponta que o presidente FHC neste momento reconhece o
país como racista, dando um passo para que daí a pouco se discuta no Plano
Nacional de Direitos Humanos (PNDH) a inclusão de ações afirmativas para as os
negros, bem como a criação de grupo de trabalho interministerial de valorização da
pessoa negra e eliminação de discriminação no local de trabalho, ainda no mesmo
ano do seminário. Entretanto, mesmo o presidente assumindo que a existência do
racismo, a implantação de ações políticas no seu combate não foi tarefa fácil, dado
que o próprio presidente pouco lutou pela sua implantação numa análise de ativista
do próprio movimento negro.
A crença da militância era de que, por ter sido um aluno de Florestan
Fernandes e ter estudado tal tema décadas antes, sendo inclusive contemporâneo
(e participante, num certo sentido) do Projeto UNESCO, o então presidente
Fernando Henrique priorizaria em seu governo o tema das relações (desiguais)
raciais. Mas sua própria equipe pouca atenção deu ao fato e as expectativas do
movimento negro foram frustradas (TELLES, 2003). no segundo mandato, em
2001, o governo FHC voltou a listar o tema como prioridade, no debate sobre
Durban, ainda sob pressão do movimento negro.
Telles comenta que após lutas e desconfianças dos ativistas do movimento
negro, comprova-se, nos anos 1990, que o governo tinha discurso e prática
diferentes, pois as implantações de ações que beneficiassem os negros por parte do
poder público avançaram pouco nesta área. O autor diz também que “o apoio do
governo aos direitos humanos e o combate ao racismo foi em grande parte pura
25
retórica, uma vez que o governo fez pouco para tentar honrar seus compromissos
internacionais dentro do país” (TELLES, 2003, p. 90), numa referência à participação
do estado em ações internacionais em que se comprometia a rever a realidade de
desigualdade racial brasileira.
Assim, por pressão do movimento negro, o governo comprometeu-se em
pensar ações de combate à discriminação e exclusão, mas as iniciativas mais
proeminentes seriam de entidades negras de setores não ligados diretamente ao
executivo, com mostraremos abaixo, a exemplo dos cursinhos pré-vestibulares.
Ainda assim, continuamos a observar a falsa ideia de que no Brasil, por não haver
grandes tensões raciais “oficializadas”, não haveria preconceito racial. Tais ideias
persistiriam mesmo após ter se iniciado o debate sobre cotas no país.
Ao não racializarmos as relações não existiria uma questão, como se
racializar fosse uma opção ou questão individual não o fato de como as relações
entre as raças foram construídas ao longo dos anos no país. Um dos responsáveis
por esta crença apontado por Bernardino (2002) foi, sem dúvida, o mito da
democracia racial, que nos levou a crer que os brasileiros tinham construído uma
sociedade cordial onde todos podiam ascender socialmente, visto que a convivência
pacífica se dava por conta da miscigenação, fator de democracia e convivência
pacífica entre raças tão diferentes. Aliás, tal crença sequer admitia a existência de
raça, pois que a miscigenação tornou-nos numa raça só. Isto, na verdade, acabou
mascarando a situação do racismo e da exclusão. Entretanto, sem dúvida, com
sugere Rosemberg (2006) a despeito deste “mascarar da realidade”, após o Projeto
UNESCO o Brasil não foi o mesmo, pois foi o “[...] projeto que abalou o mito da
democracia racial brasileiro.” (ROSEMBERG, 2006, p. 16).
1. 1 Introduzindo o tema racial no debate
As relações raciais no Brasil foram construídas aparentemente sem
tensionamento social, apontando-se, neste sentido, para a não existência de uma
questão racial a ser pensada. O problema racial foi assumidamente colocado como
questão em nações em que o processo de colonização definiu posições
diferenciadas para negros e brancos, como por exemplo, África do Sul, Austrália e
EUA. Aqui, ao contrário, o processo de miscigenação foi declarado como sem
tensão a partir do mito da democracia racial, o qual advoga que a miscigenação
26
eliminou o conflito entre os grupos raciais, não havendo problema e nem diferenças
entre estes. No entanto, a realidade hoje demonstra que tal argumentação mostra-se
falaciosa, pois os lugares destinados a negros e brancos são diferentes também
aqui no Brasil, embora, muitas vezes, não assumidamente.
Estudos recentes (IPEA, 2008; PAIXÃO, 2003; TELLES, 2003) definem com
bastante clareza a natureza dessa diferenciação. Segundo o IPEA (2008), uma
parcela significativa da população, aquela composta por negros, hoje estimada em
47% da população brasileira, é justamente a que mais sofre com o processo de
exclusão, configurando-se como marginalizada. A população negra aqui é
caracterizada como aquela formada por pretos e pardos, dada a conceituação do
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), modo como faremos referência
à população negra de agora em diante. Como entende Osório (2004, p. 86), a
população negra pode ser aqui definida também como sendo aquela em que a
“classificação racial” seria “entendida como um conjunto de categorias em que os
sujeitos da classificação podem ser enquadrados, e os todos de identificação
com a forma pela qual se define a pertença dos indivíduos aos grupos raciais”.
No tocante aos dados educacionais apontados pelos estudos acima, o aceso
à educação (ou anos de escolaridade) é indicado como uma das formas de
ascensão social. Contudo, observando-se as condições socioeducacionais entre
pessoas negras e brancas, percebe-se que a escolaridade da população negra
ainda é insuficiente se comparada à do sujeito branco.
Os dados do último estudo do IPEA, publicados em 2008, por exemplo,
indicam que as diferenças nos anos de estudo configuram-se como importante
apanhado da desigualdade entre tais populações. As taxas de analfabetismo
demonstram desníveis significativos, visto que, em 2007, dos 14 milhões de
analfabetos pesquisados pelo IBGE (2008), cerca de 9 milhões eram negros,
compondo algo em torno de 70% da população analfabeta do país, mais que o
dobro dos brancos (cerca de 5 milhões). Para os pesquisadores do IPEA (2008), são
estes dados, os referentes à educação, que apontam quão desiguais são as
possibilidades de construção de oportunidades sociais para os diferentes grupos
raciais.
Observando os anos de escolaridade entre estudantes na faixa etária de 15 e
17 anos, os dados demonstraram ainda que 85,2% dos brancos estavam estudando,
sendo que, deste percentual, 58,7% frequentavam o Nível Médio, adequado à idade.
27
entre os negros, 79,8% frequentavam a escola, mas apenas 39,4% estavam no
Nível Médio, o que expressa uma inadequação que representaria uma taxa de
jovens no Ensino Médio muito aquém da desejada. Embora os dados apontem os
anos de estudo referentes aos Ensinos Médio e Fundamental, observa-se que no
Ensino Superior tal diferença se mantém, apresentando índices muito mais gritantes.
Nos cursos universitários, por exemplo, encontramos a mesma relação de
desigualdade perversa em anos de estudos e acesso ao Ensino Superior entre
pessoas brancas e negras. Nesses cursos, a desigualdade racial ainda é marcante
no tocante aos anos de estudos entre grupos racializados. Podemos observar, a
partir dos estudos de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) entre negros e
brancos promovido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento -
PNUD (2005), que por quase uma década, ou seja, de 1991 a 2000, o sistema de
ensino universitário dobrou, passando de 1,4 para 3 milhões de alunos matriculados.
Porém, a despeito deste crescimento, o mero de alunos negros não
cresceu de modo significativo. Nos cursos universitários, como apontamos,
encontra-se a mesma relação de desigualdade em anos de estudos entre pessoas
brancas e negras. Se compararmos estudantes com média de 17 anos de
frequência aos bancos escolares, incluindo-se os que concluíram o Ensino
Superior, teremos uma população em torno de 2,5% de estudantes negros
(afrodescendentes) com ensino de graduação (e pós-graduação), enquanto que os
brancos chegam a 10%, numa taxa quatro vezes mais elevada (DOSSIÊ..., 2003).
As desigualdades não param por aí; revelam-se noutros espaços, como o
mercado de trabalho, pouco acesso a postos de comando e gerenciamento no
emprego, acesso à saúde, condições de moradia, entre outros. Para efeito
comparativo, observamos que uma relação entre mercado de trabalho, anos de
estudos, qualificação e colocação profissionais. Nesse espaço, a relação entre
negros e brancos também é de desigualdade. Estudos
5
apontam que a entrada da
pessoa negra no mercado de trabalho se muito cedo, em torno de 10 anos de
idade e a saída muito mais tarde, por volta do 60 anos ou mais. Estas mesmas
pesquisas encontraram a pessoa negra ocupada em situações precárias, sem
5
Por exemplo: Retrato das desigualdades de gênero e raça – 3ª edição – Análise preliminar dos
dados. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/>. Acesso em: 24 set. 2008; PAIXÃO, Marcelo. Desenvolvimento
Humano e Relações Raciais. Rio de Janeiro: DP & A, 2003; Síntese de Indicadores Sociais - Uma Análise das
Condições de Vida da População Brasileira 2008. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/>. Acesso em: 5 out.
2008.
28
condições de trabalho, tendo como consequência a dificuldade de acesso à
aposentadoria. Outro dado relevante é que uma pessoa negra com as mesmas
condições que uma branca, tendo a mesma escolaridade (com nível superior e/ou
pós-graduação), ocupando o mesmo posto de serviço, recebe em média 50% menos
do salário (sendo um homem negro), se for uma mulher branca receberá cerca de
70% e se for uma negra receberá 30% do que recebe um homem branco
(comparativos a partir dos dados do IPEA, 2008).
Os dados supracitados nos permitem concluir que a população negra, além
de ser sub-representada nos espaços de poder, de elaboração e reflexão teórica,
apresentar a maior taxa de analfabetismo, ter os piores índices de escolaridade
especialmente nos bancos universitários−, ser a maior vítima do desemprego e da
violência, também está ausente nos espaços de pesquisa da academia. Diante
deste quadro, intelectuais ligados ao movimento negro passaram a reivindicar a
implantação de ações afirmativas, a partir da adoção das cotas como forma de
combate à desigualdade racial, despertando opiniões contrárias.
Estes intelectuais nos apontam que pensar a realidade social da pessoa
negra no Brasil é fazer um resgate histórico do processo de exclusão a que foram
submetidos os herdeiros do s-abolição, que os negros não tiveram um projeto
que os incluísse socialmente desde então. Aqueles que aboliram escravidão não se
preocuparam em elaborar ação ou política inclusiva para os ex-escravos, sendo
estes deixados à própria sorte, passando assim a compor uma classe alijada dos
bens e serviços sociais então oferecidos (SANTOS, 2002). De fato, essa é uma
discussão que leva a repensar questões outras como a estruturação das relações
sociais e econômicas neste país, a partir de então. Quanto a isto, Bento (2002, p.
36) diz que os negros foram vítimas “da violência física e simbólica durante quase
quatro séculos”, através da escravização, referindo-se ao legado deixado aos
negros, assim como ao fato de o Brasil ter sido o último país a abolir a escravidão.
Fato que veio a ocorrer em junho 1850 por pressão dos ingleses, portanto quase
três séculos após o início do comércio de escravos.
Para Florestan Fernandes o pós-abolição permitiu que o negro ficasse
exposto a um mundo que não se preparou para recebê-lo ou sequer incluí-lo
humanamente, um mundo organizado para a raça então dominante, ou seja, a raça
branca. Quanto a isto, Santos (2002, p. 34) complementa o pensamento anterior ao
falar sobre os “dois brasis existentes” e suas diferenças, refletindo sobre o que
29
denomina de “arquitetura social e política do País”. Para tal, a arquitetura está
projetada de forma a existirem “dois países dentro do mesmo espaço territorial”. O
autor comenta ainda que no pós-abolição foram jogados à rua (e à própria sorte)
cerca de 700 mil pessoas negras, todas ex-escravas, sem que houvesse política de
inclusão (ou assistencial) em qualquer âmbito, fosse educacional, habitacional, de
acesso à terra, de saúde ou emprego.
De acordo com Fernandes (2007, p.33, grifo nosso), “O negro permaneceu
sempre condenado a um mundo que não se organizou para tratá-lo como ser
humano e como igual’” ao branco. Para participar deste mundo, o negro precisou
adaptar-se, saindo de sua pele identificando-se com o padrão de “branqueamento
psicossocial e moral” (FERNANDES, 2007, p. 34) proposto tempos depois pela
ideologia do embranquecimento. As desigualdades sociais a que estão submetidos
os negros até hoje são atribuídas, segundo Rosemberg (2006, p. 25)
[...] à herança do passado escravista, à política de branqueamento
na passagem do século XIX para o XX (com o estímulo à imigração
européia), à histórica condescendência das elites brasileiras com
desigualdades sociais e ao racismo estrutural e simbólico
contemporâneo.
Sobre o processo de integração do negro na sociedade neste período (pós-
abolição), Fernandes diz que esse processo foi dificultado também pela ideia de
“democracia racial” (aspas do texto original), que serviu para o não enfretamento do
problema proveniente da destituição e espoliação do escravo e uma acomodação
desta população, denominada de cor, às piores condições de desemprego, miséria e
desorganização da social permanente, sendo estes problemas do negro e não do
branco (FERNANDES, 2007). Apesar de não ser recente, o texto supracitado
remete-nos a pensar que o tema em voga propicia a reflexão sobre as relações
dentro da sociedade, ainda eivada pelos ventos do escravismo e da apartação. Isto
dificulta a discussão dentro da própria universidade sobre a política de ação
afirmativa que possibilite aos negros terem acesso ao Ensino Superior.
1.2 Democracia racial - a retórica do mito
30
Apesar de o termo democracia racial não ser uma criação de Gilberto Freyre,
a ele se deve sua divulgação. Segundo Telles (2003), foi em 1962 que Freyre
cunhou o termo pela primeira vez, o se sabendo ao certo sua origem, embora tal
termo fosse utilizado desde 1950 por ativistas e estudiosos do tema que o
contestavam. Guimarães (apoiando-se em CAMPOS, 2002) aponta que fora
provavelmente ainda em 1941 que tal termo tenha sido usado pela primeira vez,
numa referência a autoria de Arthur Ramos durante um seminário de discussão
sobre a democracia no mundo pós-fascista ou pós Segunda Guerra (GUIMARÃES,
2003). Telles (2003) refere que a ideia de democracia racial era justificada tanto por
estudiosos norte-americanos como por brasileiros desde 1933 (e até antes disto).
Para ele, Freyre polarizou e desenvolveu a ideia de democracia racial, dando-lhe um
status científico, o que justificava que aqui não haveria racismo. Portanto, mesmo
antes de Freyre citá-la como nomenclatura, a ideia de uma democracia racial
existiria, visto que ele a divulgara muito antes ao descrever o modo como as
relações étnicas e raciais foram harmonicamente construídas no Brasil,
diferentemente da América. Assim, diz ele: “Desde logo salientamos a doçura nas
relações de senhores com escravos domésticos, talvez maior no Brasil do que em
qualquer outra parte da América” (FREYRE, 1970, p. 377).
Freyre nos remete, em seu livro Casa Grande & Senzala (publicado em
1933), ao pensamento da integração das raças, ao mito da democracia racial que se
consolidaria nessas linhas, quando nos descreve misturados de modo adocicado
sem trazer o modo real de como as coisas se deram. Mesmo quando aceita que
houve violência e flagelo nesta relação, marcadamente entre senhores e escravos (e
indígenas), Freyre nos sugere que isto perde importância por termos todo(as) os(as)
brasileiros(as) o caldo da mistura do indígena e do negro. Apresenta a colonização
com algo até certo ponto positiva para os colonizados (!) parecendo que ganharam
mais com a miscigenação do que perderam negros e indígenas com o desterro e o
massacre a que foram submetidos pela colonização branca.
Por vezes, em sua obra, tem-se a impressão que os negros vieram da África
para serem escravos numa atitude “voluntária” e não à força. Ao referir-se à
influência do negro, Freyre diz que o processo de africanização “sofrido por brancos
e indígenas” teria assim, como fato, amaciado “para os africanos os efeitos
perturbadores da transplantação(FREYRE, 1970, p. 315). Deste modo, para ele,
“Uma vez no Brasil, os negros tornaram-se, em certo sentido, verdadeiros donos da
31
terra: dominaram a cozinha. Conservando sua dieta [...]” (FREYRE, 1970, p. 315).
Parece aqui que Freyre por alguns momentos “esquece-se” que toda a história de
negros e índios não foi construída de modo tranquilo, havendo inclusive processos
de resistências pouco registradas pela historiografia oficial. Assim, ele sugere que os
negros foram donos de terra e não vítimas de muita violência física e simbólica,
esquecendo de registrar que após a “abolição da escravatura” estes “donos das
terras” a que se refere, foram os mesmos negros que não podiam comprá-las sendo
dela (da terra) também expulsos, passando a vagar elas ruas das cidades como
ociosos e vagabundos, sendo punidos pelo “ócio” involuntário onde foram jogados.
Gilberto Freyre inicia sua obra Casa Grande & Senzala dizendo que “Todo
brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no
corpo [...] a sombra, ou pelos menos a pinta, do indígena ou do negro” (FREYRE,
1970, p. 309). Isto significa não pensar numa raça, mas na miscigenação (ou
mistura) de raças. Esta ideia fortalece a crença da democracia e convivência
pacífica entre raças. A democracia racial parece tão mitológica em Freyre que ele
chega a falar de uma “colonização africana” no Brasil, como se os negros aqui
tivessem optado por se colocar para o outro como senhor, o colonizante/colonizado
que neste caso seriam o branco e índio.
Ao referir-se à atitude de Rui Barbosa, de queima dos arquivos sobre a
escravidão após a abolição, o sociólogo fala de uma certa “migração do escravo”
(FREYRE, 1970, p. 325) negro para o Brasil. No entanto, o que ele chama de
colonização e migração negras os ativistas negros, além de historiadores, chamam
de sequestro de um povo, ou seja dos negros africanos. Nesta mesma obra, ao se
referir à revolta dos escravos (ou a Revolta dos Malês de 1835)
6
, bem como sobre
suas origens, cita uma certa aristocracia das senzalas de origem maometana que
saberia ler e escrever, o que os tornava aristocratas. Não lembra Freyre que
continuavam escravos mesmo assim e sua revolta fora massacrada, seus líderes
punidos, tendo durando menos de um dia.
O sociólogo pernambucano chega a sugerir que, longe de ser um local de
mazelas “As senzalas foram uma escola prática do abrasileiramento” (FREYRE,
6
A rebelião de 1835 estava planejada para acontecer no amanhecer de um domingo, 25 de janeiro, dia de
Nossa Senhora da Guia [...] um bom dia para os escravos se rebelarem, já que estariam livres da vigilância senhorial. A escolha
de dias santos, domingos e feriados para o exercício da rebeldia fazia parte do modelo de movimentação política dos escravos
na Bahia e no mundo. Ao contrário dos rebeldes
modernos, que concentram seus protestos nos dias de trabalho a greve
sendo o modelo típico -, os rebeldes escravos agiam tipicamente durante o tempo de lazer” (REIS, 2003, p. 125).
32
1970, p. 382). Falando nesta “escola de abrasileiramento”, é importante lembrar que
foram os escravos “libertos” após a abolição também impedidos de estudar.
Referendamos deste modo a observação de Rosemberg (2006) que faz referência à
interdição a escravos e pretos livres de frequentarem a escola, fato que acarretou
visivelmente, para esta autora, uma desvantagem histórica aos descendentes de
escravos e pretos livres, a qual o foi devidamente compensada pela abolição. Por
conta disto, graças ao que a autora denomina de processo lento de expansão do
ensino público no país e de processos políticos discriminatórios, os negros foram
submetidos a um processo de analfabetismo, o que para Telles (2002, apud
ROSEMBERG, 2006) teria definido o fato de que na década de 1960.
Voltando a Freyre, que insistiu em desconhecer o pós-abolição e a realidade
dos libertos então, sua obra é toda marcada por um suavizar das mazelas, um
adocicar da violência, especialmente quando compara a colonização daqui com a de
outras partes do mundo. Ele defende também que trouxemos da África o que se
tinha de melhor, justificando assim sua percepção:
O Brasil não se limitou a recolher da África a lama de gente preta
que lhe fecundou os canaviais e os cafezais; que lhe amaciou a terra
seca; que lhe completou a riqueza das manchas de massapê.
Vieram-lhe da África “donas de casa” para seus colonos sem mulher
branca; técnicos sem minas; artífices em ferro; negros entendidos na
criação de gado e na indústria pastoril; comerciantes de panos e
sabão; mestres, sacerdotes e tiradores de reza maometanos. Por
outro lado a proximidade da Bahia e Pernambuco da Costa de África
atuou o sentido de dar às relações entre Brasil e o continente negro
um caráter todo especial de intimidades. Uma intimidade mais
fraternal que com as colônias inglesas (FREYRE, 1970, p. 333, grifo
nosso).
Numa tentativa de ressaltar as relações cordiais existentes entre os dois
países, Freyre mascara que houve uma retirada de pessoas à força de seu
continente
7
. Mesmo sendo vendidos, os negros eram, na linguagem dos ativistas
dos movimentos negros e estudiosos do tema, sequestrados de sua vida e família e
trazidos a uma outra terra em condições indignas, inclusive muitos morriam nessa
travessia oceânica nada romântica. Ao suavizar a situação, óbvio que Freyre
ameniza também suas consequências, demonstrando em sua obra que as relações
7
Nesta ideia comete-se um erro crasso, além de outros tantos sugeridos, ao considerar a
África um país, ela é continente tendo vários países que não ofertaram, mas perderam pessoas que aqui
“transformaram-se” em escravas ao construíram a riqueza deste país Brasil.
33
foram cordiais, fortalecendo a ideia de uma relação desde cedo “construída” e não
imposta, relação fraterna e não de chicotes e açoites.
Contrariando a expectativa freyriana, Helio Santos aponta que uma das
primeiras formas de violência da qual o negro foi vítima direta, sem dúvida alguma,
fora a violência do rapto. Ou seja, o negro foi retirado de sua terra (África) e “trazido”
a outra (América) para ser escravo. Ao falar dos dois brasis existentes, Santos
(2003, p. 32, grifo nosso) nos diz que “Cerca de 4 milhões de africanos foram
recebidos aqui; o que representa cerca de 40% do total de negros raptados pelo
escravismo colonial. [...] Por mais três séculos o tráfico negreiro campeou solto”.
Tais fatos seriam comprovados pelos relatos da destruição de documentos
que registravam a origem dos negros que aqui chegaram, tentativa de Rui Barbosa
de apagar esta “mancha” do país chamada de escravidão, através do registro
histórico, esquecendo-se que este registro ficou no sangue, na pele e imaginário dos
negros “libertos”, até hoje. Isto fica evidenciado na forma como estão estruturadas
as camadas sociais, em classe, portanto, em “[...] razão de seu desenvolvimento
histórico particular [...] que produz padrões diferentes de interação social” (DAVIS,
2000, p. 30) entre negros e brancos.
As ideias de Freyre ainda permeiam o pensamento de muitos estudiosos que
justificam as relações raciais cordiais no Brasil. Alguns utilizam seu argumento ainda
hoje no combate à proposição de políticas afirmativas para os negros, como o faz
Maggie (2005), para quem o Brasil lutou muito ao longo do século XX na tentativa de
extinguir a marca que o racismo do século XIX imprimiu sobre o nosso povo. Essa
autora afirma que a ideia de raça trará acirramento nas relações raciais
especialmente entre negros e bancos pobres, a partir da adoção das cotas nas
universidades.
A despeito disto, no entanto, para Paixão
8
(2003), pesquisador das relações
raciais da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o fato de os(as)
negros(as) brasileiros(as) continuarem vivendo em condições marcadas pela
exclusão social tantos anos após a abolição da escravidão faz cair por terra o mito
de que no país, a despeito das peculiaridades existentes, não diferença entre as
pessoas por conta de sua cor ou raça. Ao saber deste fato, questiona-se o tipo de
orientação das políticas públicas e das agendas de pesquisas sociais no Brasil que,
8
Coordenador do LAESER - Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e
Estatísticas das Relações Raciais da UFRJ.
34
não obstante esta realidade, insistem em ignorar os efeitos dos problemas
experienciados pelos afrodescendentes e negros brasileiros que vivenciam deste
modo situação de exclusão e perdas há anos.
Para esse pesquisador, as políticas públicas às quais se refere são aquelas
que poderão/deverão responder ao desafio de, a despeito do mito, fomentar ações
de combate à desigualdade.
Assim, o grande o desafio que se apresenta para a presente década
e para o presente século é a construção de roteiros de
investigação cientifica e acadêmica e de políticas públicas que
tenham por objetivo central a superação deste quadro de
desigualdade racial, cerne das injustiças sociais do país mais injusto
do mundo que é o Brasil (PAIXÃO, 2003, p. 95).
Ainda para este autor, é importante refletir a respeito da influência dos
afrodescendentes e negros no Brasil, ponderando que, apesar desta influência na
forma de organização social brasileira se manifestar através da arte, tendo a música
como um dos grandes expoentes, assim como nos esportes, na cultura popular
como fonte de resistência à dominação e na religiosidade sincrética, sua importância
não transparece de fato. Ele aponta que “Tamanha importância, contudo,
historicamente não vem se expressando no plano dos direitos sociais” (PAIXÃO,
2003, p. 94). Mesmo empiricamente, o autor observa que facilmente se contesta a
situação de vida dos negros brasileiros, visto que estão ainda visivelmente
confinados aos piores empregos, situação precária de escolaridade e condições de
habitação, estando assim especialmente expostos à violência. Tais evidências,
quanto postas sob a fria luz dos indicadores e dados estatísticos, ficam
absolutamente confirmadas. “Deste modo, é importante frisar que, atualmente, frente
às evidências, não existe margem de dúvida quanto às nefastas sequelas do
racismo e do preconceito de cor sobre a esmagadora maioria dos afrodescendentes
brasileiros” (PAIXÃO, 2003, p. 95).
Vale salientar aqui que nossas críticas ao termo democracia racial, cunhado
por Freyre como algo real no país surgem no sentido de pensá-la ainda como uma
falácia discursiva. No entanto, tais críticas o negam que o alvo de todos e todas
que sonham com uma nação verdadeiramente democrática é ter de fato um país
com democracia racial. Isto posto, advogamos o que sugere Rosemberg (2006) para
que mais que uma ação de vontade ou desejo, a democracia racial seja de fato uma
35
meta. Meta esta concretizável e concretizada num futuro não muito distante. Para a
autora, as ações afirmativas são também um meio para isto.
1.3 Ações afirmativas - da retórica à desconstrução do mito
Embora as Ações Afirmativas pareçam compor um debate “novo” nos últimos
anos, no tocante ao ingresso jovens estudantes pretos e pardos negros no
Ensino Superior público, Camargo (2005) sugere ser esta uma problemática antiga.
Referindo-se ao episódio dos moços pardos da Bahia, a autora relata que o
problema era o ingresso, já naquela época, destes jovens negros aos espaços
acadêmicos. Assim, ela aponta, que tal situação fora problematizada em fins do
século XVII, quando o tema aparece ao se tratar da proibição do ingresso de “moços
pardos” ao Ensino Superior, onde, antes já eram admitidos. No trabalho de sua tese,
esta autora sugere também que outras situações existiram, sendo o tema do acesso
a um Ensino Superior aparente, mesmo num tempo em que era negado aos
escravizados o acesso à educação, para jovens pardos e/ou mestiços, libertos
(“forros”). Tal fato se insurge quando os moços brancos apontam a necessidade de
não ter mistura (de raça) dentro dos bancos escolares superiores. Deste modo,
podemos estar voltando a um tema nem tão “novo” assim na história do Brasil.
As ações afirmativas como estratégia de combate às diferenças
socioeconômicas entre grupos racializados são uma tendência crescente das
políticas blicas nos últimos anos, sendo frequentemente combatida com base em
argumentos universalistas, como observa Oliveira Filho (2003), num estudo feito na
cidade de Campinas/São Paulo. O estudo fora realizado observando sujeitos
brancos de diferentes classes sociais e níveis de escolaridade, demonstrando como
estes sujeitos combateram as cotas para negros nas universidades com uso de
argumentos universalistas. O autor aponta que tais argumentos são utilizados
também, tanto no campo discursivo do racismo quanto do antirracismo,
demonstrando assim uma dificuldade do brasileiro em lidar com a questão. Embora
o tema das ações afirmativas tenha surgido para nós, pesquisadores(ras)
acadêmicos(as), como um problema de dentro da academia, nos últimos dez anos
ele ganhou força na sociedade e a mídia teve papel importante nisso.
O presente trabalho, apontando isto, observa que a luta por igualdade racial
não é nova no Brasil. Falando ainda em ação afirmativa, que se levar em conta a
36
proposta universalizante de política pública, o que segundo Bernardino (2004, p.
263), significaria que:
As ações afirmativas são concebidas como instrumentos eficazes de
correção de problemas relativos à redistribuição de bens econômicos
e cargos de poder a curto e médio prazo. Sem estas políticas
estaremos adiando a modificação da composição da elite brasileira
para futuras gerações. Por outro lado, defender a implantação de
ações afirmativas também não significa que elas não devam ser
conjugadas com políticas públicas universalistas, tais como:
ampliação do acesso da população brasileira em geral à educação
pública, à assistência médica, ao mercado de trabalho, à habitação,
enfim, ao desenvolvimento social.
Embora as políticas universalistas sejam pautas mais frequentes nas ações
de políticas públicas, de fato, são as pautas específicas que definem quais grupos
serão contemplados por elas, a exemplo das políticas de ações afirmativas, nas
quais se leva em conta os critérios da equidade e da vulnerabilidade social. No
entanto, não nos aprofundaremos neste tema, por não ter sido a pauta central deste
trabalho.
Entende-se melhor o termo “ação afirmativa”, remontando suas origens
histórico-políticas aos Estados Unidos, quando, em 1955, com a luta dos negros
pelos direitos civis e contra a segregação racial a eles imposta, passaram a lutar por
seus direitos. Os direitos à educação e ao emprego surgem na pauta reivindicatória
como os mais importantes para esta população. Neste caso, políticas de ações
afirmativas são pensadas com caráter inclusivo e de reparação a grupos vulneráveis
em situação de desigualdade ou desvantagem. Sua aplicabilidade ali se efetiva nos
anos 1960 quando vários governos (KENNEDY, 1960; JOHNSON, 1964; NIXON,
1969) sancionam, na prática, leis que procuravam reparar tais distorções,
especialmente referentes à raça negra, a partir da constatação da desigualdade
entre negros e brancos naquele país (WALTERS, 1995; MEDEIROS, 2004).
As ações acima se referiam, então, ao tema da desigualdade de emprego,
como resposta à luta dos negros norte-americanos pelos direitos civis. De fato, ali se
instituiu uma ação política qualificada, mas não única. dados comprovando que,
enquanto políticas compensatórias, valeria sua ação, visto que foi a partir “[...] do
reconhecimento da situação de desigualdade vivida pelas pessoas negras na
sociedade norte-americana, onde nasceu a necessidade de fazer algo para mudar
aquele estado de coisas” (SILVA, 2002, p. 107), sendo utilizado o mecanismo das
37
cotas. “Surgiu, então, a idéia de afirmar, de tomar uma medida positiva, ao invés
de permanecer na atitude passiva de declarar a igualdade entre as pessoas ou de
apenas condenar a discriminação racial” (SILVA, 2002, p. 107, grifo nosso).
Dentro do debate sobre as cotas como ações afirmativas, a questão racial
traz como pano de fundo a possibilidade de ter na universidade, de fato, a
diversidade de pensamento e ação no espaço de saber da academia, possibilitando
a esta instituição rever o seu papel de estruturadora importante na formulação de
políticas públicas inclusivas. É dentro do espaço acadêmico da pesquisa que se
pode pensar sobre este outro, diferente, o diverso, aqui exemplificado na figura do
negro brasileiro. Embora o trabalho verse sobre discurso na mídia, a universidade é
vista aqui como um importante espaço de produção de argumentos para o debate.
Entende-se que a relevância do tema da política de cotas se dê pela
colocação da discussão do significado das relações raciais no Brasil, num espaço
importante como espaço da mídia (seja em que nível for), que não forma opinião,
como também reforça estereótipos e ideologiza as questões ali colocadas. Desta
feita, o alerta de Roso et al (2002), é bem vindo ao situar que ideologia pode ser
algo presente nas regras semânticas, ao referir-se à propaganda, mas também por
estar contida num nível de organização da mensagem que se quer passar, devendo-
se observar não somente o que é dito, mas o como é dito (ou poderia ser dito). A
autora alerta para o papel “[...] dos(as) psicólogos(as) sociais e de profissionais das
ciências sociais” observando que:
[...] ao “olhar com olhos críticos e questionar as formas simbólicas
para que seus conteúdos não sejam massificadores e reforçadores
de relações de dominação de gênero, raça, classe ou qualquer outro
tipo de dominação que possa ser veiculado e reificado através dos
meios de comunicação de massa” (ROSO et al, 2002, p. 90).
Aponta a autora ainda que sem olhos críticos pode-se pisar em falso, sendo
então engolidos(as) pelo próprio sistema. Assim, ela sugere a urgência de se parar
de pensar unicamente como se pensa no modo capitalista. Desta feita, se avançaria
no que ela chama de um pensamento “ético-crítico” (ROSO et al, 2002, p. 90).
Mesmo o governo brasileiro não colocando como ação políticas afirmativas,
ainda nos anos 1990 algumas iniciativas foram consolidadas por setores da
sociedade brasileira. Tais iniciativas eram de ONGs (Organizações Não
Governamentais), universidades, governos estaduais e municipais, igrejas, partidos
38
políticos e empresas privadas (TELLES, 2003). Destas, destacam-se as que são
voltadas a promover e apoiar os negros nas universidades. Tais iniciativas
dedicaram-se a promover o ingresso de jovens “negros e carentes”, como as dos
cursos pré-vestibulares, a exemplo da iniciativa do Frei David no Rio de Janeiro em
1994 e do Geledés em São Paulo, além de iniciativas de universidades, entre outras.
Quando há grupos minoritários de poder numa realidade de exclusão social, o
Estado precisa pensar em uma posição de responsabilidade, devendo proporcionar
políticas de compensação. Assim, discutem-se as políticas compensatórias como
forma de diminuir ou mesmo eliminar as desigualdades políticas, estas agora
denominadas de ações afirmativas. Por grupos minoritários de poder denomina-se
no presente trabalho aqueles que, longe de serem minorias numéricas, o são ao não
exercerem o poder equitativamente na sociedade brasileira e nem usufruírem dos
bens construídos socialmente, assim como os negros e afrodescendentes, citando-
se também como exemplo as mulheres, que são maioria da população.
Faz-se necessário, no entanto, explicitar que ação afirmativa e cotas não são
sinônimas, mas complementares. Está posto que nem toda ação afirmativa
necessariamente se pela aplicação das cotas unicamente, mas toda medida de
cotas é, em princípio, uma ação afirmativa para benefício de alguns que são
discriminados e/ou preteridos. Por ação afirmativa entende-se práticas que
possibilitem ascensão de quem possa sair de uma situação de desigualdade. Em
Walters (1995, p. 131), encontra-se uma definição do termo ação afirmativa quando
diz que
[...] é um conceito que indica que, a fim de compensar os negros,
outras minorias em desvantagem e as mulheres pela discriminação
sofrida no passado, devem ser distribuídos recursos sociais como
empregos, educação, moradias etc., de forma tal a promover o
objetivo social final da igualdade.
A ideia compreendida aqui é que são ações postas pelas políticas públicas a
fim de possibilitar que grupos minoritários de poder possam usufruir bens públicos,
portanto, assumidos como ações do Estado. Como bem aponta Walters (1995),
ação afirmativa, mais que uma obrigação moral para alguns em situação de
vantagem ou de poder, é um modo de corrigir um balanço histórico. Trata-se de um
debate nada fácil de ser promovido, vindo quase sempre com um discurso de que a
adoção das ações afirmativas ignoraria o processo de qualificação, fato associado
ao também discurso sobre os negros como os desqualificados. O autor afirma ainda
39
que o pressuposto que traz a desqualificação de negro como mote é um
pressuposto racista.
Diferente do Brasil, nos Estados Unidos uma trajetória nos últimos
cinquenta anos na qual as ações afirmativas trouxeram uma relação de vantagem
para negros antes em desvantagem frente aos brancos. Embora ainda em número
menor, é fato que cerca de 25% das famílias negras que têm membros com
Educação Superior são aquelas que mais se aproximam da renda média da famílias
de classe média branca. Tal constatação foi feita por Ronald Walters em seus
estudos sobre a situação do negro em relação às ações afirmativas ainda na década
de 90.
Medida nem sempre fácil de ser explicada, as políticas de ações afirmativas
buscam um trabalho diferenciado para promover a equidade entre os que compõem
a sociedade, ou seja, oferecem um tratamento diferenciado, mas temporário,
visando acabar com desigualdade no futuro (BERNARDINO, 2002), sendo sua base
a política pública para corrigir desigualdades socioeconômicas. Portanto, é uma
medida (ou conjunto delas) que visa tornar alcançável quem as políticas blicas
geralmente não alcançam. Sem dúvida, uma experiência importante quando se fala
em ações afirmativas é a do movimento feminista, que, após anos lutas para tornar
as mulheres sujeitos de direitos e não cidadãs de segunda classe, conseguiu
vislumbrar espaços de discussão política, com adoção de cotas, por exemplo, em
espaços de disputa a cargos públicos e de ação afirmativa em cargos de direção (e
de empregos) nas empresas privadas.
Segundo Bernardino (2004), trata-se de ações concebidas como instrumentos
eficazes de correção de problemas relativos à redistribuição de bens econômicos e
cargos de poder. Tanto a curto quanto a médio prazo, sem estas políticas, a
resolução dos problemas das desigualdades estará sendo adiada. Deste modo, sem
as ações afirmativas, a “modificação da composição da elite brasileira para futuras
gerações” (BERNARDINO, 2002, p. 263) demoraria muito mais tempo a ser
concretizada. O autor aponta ainda que defender a implantação de ações afirmativas
não significa que elas não devam ser conjugadas com políticas públicas
universalistas (como apontado acima), a exemplo da ampliação do acesso da
maioria população brasileira à educação pública (de modo geral, precária), à saúde,
ao mercado de trabalho, à habitação, enfim, ao desenvolvimento social, entre outros
direitos.
40
Silva (2002, 2003), uma estudiosa do tema e militante no movimento negro
paulista, aponta que as ações afirmativas não são uma novidade em outros lugares
do mundo. Embora sua divulgação com força política apareça a partir das luta dos
negros pelos diretos civis nos Estados Unidos, sua adoção se faz sempre em que há
grupos sendo preteridos em nome de outros com privilégios.
Ao referir-se, através de exemplos, à situação vivenciada em outros lugares
(países), ela nos mostra onde as cotas surgem como forma de possibilitar que
populações ou grupos excluídos tenham acesso à igualdade de oportunidades, a
exemplo da Índia. Nesse país, desde a primeira Constituição, de 1948, previam-se
medidas especiais de promoção do dalits ou intocáveis no Parlamento, no Ensino
Superior e no funcionalismo público. Lembra também da Malásia, onde foram
adotadas medidas de promoção da etnia numericamente majoritária, os biniputra,
sufocados pelo poder econômico de chineses e indianos. Na Antiga União Soviética,
a Universidade de Moscou adotou uma cota de 4% de vagas para os(as) habitantes
da atrasada Sibéria. em Israel, ela informa que são adotadas medidas especiais
para acolher os falashas, judeus de origem etíope, enquanto que na Nigéria e na
Alemanha ações afirmativas para as mulheres; na Colômbia, para os(as)
indígenas; no Canadá, para indígenas e mulheres, além de negros(as), como na
África do Sul (SILVA, 2002, 2003).
O tema ganha força no mundo com a luta pelos direitos civis, quando os
negros norte-americanos se insurgem contra uma realidade de opressão e
discriminação declarada. A ação afirmativa é definida como uma iniciativa de
promover igualdade (SILVA, 2002). O presidente norte americano John Kennedy
instituiu a ação afirmativa a partir da constatação da desigualdade entre negros e
brancos naquele país. Referia-se então ao tema da desigualdade de emprego, numa
resposta a luta dos negros norte-americanos. De fato, ali se instituiu uma ação
política qualificada, mas não única. dados comprovando que, enquanto políticas
compensatórias, a ação foi válida visto que foi a partir do reconhecimento da
situação de desigualdade vivida pelas pessoas negras na sociedade norte-
americana que nasceu a necessidade de fazer algo para mudar aquele estado de
coisas, sendo utilizado o mecanismo das cotas. Surgiu, então, a ideia de afirmar, de
tomar uma medida positiva, ao invés de permanecer na atitude passiva de
declarar a igualdade entre as pessoas ou de apenas condenar a discriminação racial
(SILVA, 2002).
41
Guimarães que lembra que no Brasil tal tema é pensado em torno dos anos
80 e 90, período em que mobilizações lembravam tanto os 300 anos da morte de
Zumbi, líder e herói negro (relembrada com mobilização em 1995), quanto o
centenário da Abolição da Escravatura brasileira (ocorrida em 1988). Estes seriam
momentos que possibilitaram a mobilizações em torno do racismo à brasileira, tendo
como mote o diagnóstico sobre as desigualdades raciais, possibilitando que o tema
fosse amplamente discutido na imprensa. Especialmente porque, a partir da
regulamentação das disposições transitórias da Constituição de 1988, que tornou
crime a prática de preconceitos de raça, passou a haver uma grande movimentação
das ONGs negras em torno da denúncia e da perseguição legal contra atos de
discriminação. Foi justamente o esgotamento da estratégia de combater as
desigualdades, punindo a discriminação racial que levou as entidades negras a
demandarem políticas de ação afirmativa (GUIMARÃES, 1998).
1.4 As cotas: políticas de ações afirmativas
Pelos menos três momentos foram cruciais nas últimas décadas do século XX
e início deste século para que o Movimento Negro brasileiro tivesse grande motivo
de impulsionar sua luta histórica por reivindicações: a luta por democracia no país,
com a promulgação Constituição Federal de 1988; a comemoração do Centenário
da Abolição, também em 1988; e, no início deste século, constituindo-se no evento
mais recente, a III Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em Durban, em
2001 (ROSEMBERG, 2006). A autora denomina estes momentos como aqueles
atravessados por três eventos significativos. Ela diz que, como sempre acontece,
“Grandes eventos estimulam a realização de outros eventos, a produção de textos e
ganham a mídia numa bola de neve” (ROSEMBERG, 2006, p. 13). No entanto,
nunca é demais a lembrança da morte do líder Zumbi como um marco também
importante, celebrado no ano de 1995, como já apontado acima.
Assim, Bernardino (2002, p. 30) diz que
Embora o movimento negro e pesquisadores de relações raciais
muito tempo venham denunciando a relevância da raça nos
processos de mobilidade social, somente na década de 1990 é que
surgiram as primeiras propostas concretas de ação afirmativa.
Acreditamos que o divisor de águas para que as ações afirmativas
42
entrassem na agenda pública brasileira foi a marcha em homenagem
aos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares, que aconteceu em
Brasília, no dia 20 de novembro de 1995.
Isto posto, o autor diz que é o momento, o ano de 1996, em que o governo
assume criar ações de fato (com dissemos anteriormente) pensando ações
afirmativas como políticas públicas, apontado que o governo o fez em meados de
1996, mas ainda de modo tímido (GUIMARÃES, 1999, 2005). Entretanto, é
importante retomar que o tema das cotas toma fôlego no Brasil a partir de 2000,
durante o processo de preparação da III Conferência Mundial contra o Racismo,
Xenofobia e Intolerâncias Correlatas que ocorreria em 2001 em Durban/África do
Sul, quando o governo brasileiro prepara um relatório proponde adoção de cotas
(após pressão do movimento, da militância e intelectualidade negra) para estudantes
negros em universidades públicas. A polêmica está instalada e nos anos seguintes
(2001 2003) o debate se acirra. A partir de então, os trabalhos ou ações
governamentais voltados para igualdade racial eram na maioria propostas para a
área de educação, a exemplo da Lei 10.639/2003, que institui a obrigatoriedade do
ensino da história da África nos currículos escolares.
Além de intelectuais de renome, jornalistas e artistas entraram no debate, em
defesa de suas opiniões, alguns com discursos inflamados, irados e fatalistas,
prevendo um acirramento entre estudantes negros e brancos, falando de um
apartheid brasileiro. Dentre estes, destaca-se a antropóloga da UFRJ, Ivonne
Maggie, que, preocupada com tal tema, questiona o então ministro da educação
Tarso Genro sobre a implantação das cotas nas universidades, perguntado se ele
sabia ser este “[...] um passo muito grande para a criação de um país dividido entre
brancos e negros”. Não por acaso, o debate se trava no Rio de Janeiro, primeiro
estado brasileiro a adotar as cotas como política pública a partir da Lei 3708, de 9
de novembro de 2001, por -las instituído como política pública para as
universidades estaduais, sendo adotadas já no Vestibular da UERJ (Universidade do
Estado do Rio de Janeiro) e UENF (Universidade Estadual do Norte Fluminense) em
2003, com 40 % de vagas destinada aos negros, aqui também considerados como a
população formada por pretos e pardos. Grande parte deste debate ocorrerá fora
das universidades, tendo grande repercussão em jornais de circulação nacional.
Assim, para nós é importante um estudo que focalize as estratégias discursivas
presentes nos textos jornalísticos contrários ou favoráveis às cotas.
43
Discutir o tema das cotas leva-nos a pensar nas relações raciais
estabelecidas desde, pelo menos, a abolição da escravatura. Tal debate traz à tona
questões como raça, racismo, embranquecimento, entre outros; um debate que não
foge, como já apontado acima, ao tema das desigualdades raciais. Sobre este
debate, Rosemberg (2006) aponta que são relações atribuídas à herança
escravocrata ainda do passado brasileiro.
Bem com também à política de branqueamento na passagem do
século XIX para o XX (com o estímulo à imigração européia), à
histórica condescendência das elites brasileiras com desigualdades
sociais e ao racismo estrutural e simbólico contemporâneo
(ROSEMBERG, 2006, p. 3)
A autora aponta também para o processo de desigualdades que levaram à
convivência com intensa miscigenação e relações raciais informais que, em
determinados espaços sociais e, obviamente, sob determinadas circunstâncias,
poderiam ser relações amistosas. Deste modo, ela aponta também para o processo
de “racismo à brasileira”, (tema presente em GUIMARÃES, 2002 e em TELLES,
2003), como diferentes modos de configuração das relações raciais, dizendo que
podem ser relações tanto verticais quanto horizontais (ROSEMBERG, 2003). Mas,
para ela, é relevante que as mobilizações em torno das ações afirmativas no Ensino
Superior abalaram a situação “[...] reabrindo o debate público sobre desigualdade
étnico-racial no país” (ROSEMBERG, 2003, p. 4).
No debate sobre acesso ao Ensino Superior, as ações afirmativas são
pensadas na forma de cotas raciais como um modo de combate à exclusão, sendo,
evidentemente, uma forma de política compensatória ou reparatória que não resolve
por si o problema da descriminação ou da exclusão, sendo uma possibilidade de
redução destes problemas e construção de outras ações de fortalecimento para
quem está na situação de discriminado(a). Neste trabalho, falamos do tema a partir
da situação da população negra brasileira.
Silva (2002) lembra que política de ação afirmativa da forma de cota também
é aplicada no Brasil algum tempo em relação às mulheres e às pessoas com
deficiências físicas (necessidades especiais), sem provocar grandes debates nem
ferindo interesses. A autora lembra ainda (em outro trabalho) que as ações
afirmativas nos fazem reconhecer as desigualdades existentes entre populações
negras e brancas (SILVA, 2003). Aliás, que se perguntar quem ousaria dizer que
44
pessoas alcançadas pelas cotas na condição de deficiente ou para as mulheres, na
condição de candidatas a cargos públicos, seriam pessoas incapazes? É mais
facilmente aceitável, por exemplo, a Lei nº 8.112/90 que prevê que sejam reservadas
20% das vagas em concursos públicos para pessoas com deficiências, assim como
a Lei Eleitoral de 9.504/97 que estabelece cota mínima de 30% para participação
das mulheres nas candidaturas partidárias, estabelecendo também o máximo de
70% para presença de um dos sexos neste mesmo processo eleitoral. O fato
gritante surge quando se trava um debate público sobre a proposta de cotas raciais
para as universidades.
No entanto, vale lembrar o que os estudiosos e ativistas dos movimentos
negros (como a estudiosa do tema das ações afirmativas Cidinha Silva) apontam
que, não por acaso, a luta por Ação Afirmativa é um legado daqueles que enfrentam
o problema da discriminação de frente, como o Movimento Negro (MN) e o
Movimento de Mulheres Negras (MMN). Mesmo quando os governos assumem tais
necessidades de implantarem política de equidade, não significa que com isto
estejam convencidos de sua necessidade e/ou importância, mas tão somente que
sofrem pressões e que a estas respondem, em alguns momentos (SILVA, 2003).
Antes mesmos destes fatos, no entanto, existiam ações de reserva de vagas ou
cotas pelos menos desde o governo Vargas com a Lei dos 2/3, como veremos mais
abaixo.
No estudo do tema, um dos argumentos utilizados em alguns discursos sobre
a adoção ou não das cotas pelo viés a cor e da raça é o argumento contrário, a partir
da justificativa de não se saber quem é de fato negro no Brasil. Fomenta-se assim
outra polêmica: surge o debate da miscigenação, apontado anteriormente pelo
discurso da democracia racial, o que dificultaria qualquer mecanismo de definição de
quem é ou não negro e branco de fato no país. A miscigenação, além de provar a
convivência pacífica, portanto democrática, com a mistura das raças, impossibilitaria
definir quem é de fato negro ou branco ao se pleitear ações afirmativas, através de
reserva de vagas ou cotas. Argumentando contra as cotas, utilizam-se justificativas
de que a ideia de adotá-las causaria um acirramento nas relações entre brancos e
negros.
Ali Kamel (2006), no seu livro que combate a ideia de o Brasil ser um país
racista, nega a possibilidade de utilização da metodologia norte-americana para
pensar quem é ou não negro no país, a partir da sociologia, que, segundo ele,
45
dividiu o país em brancos e negros, através de “uma metodologia racista para
analisar o racismo” (KAMEL, 2006, p. 19). Mas, novamente Bernardino (2002) nos
auxiliará contra-argumentando que há de fato uma dificuldade em se classificar
negro ou raça, mas há um critério inquestionável para saber quem é negro no Brasil.
Este critério nada científico é apontado por Oliveira (apud BERNARDINO 2002, p.
198), ao afirmar como agentes policiais sabem disto, quando paralisam os jovens
negros das periferias nas abordagens nada tranquilas, bem como quando os
assassinam como suspeitos conforme dados da UNICEF (2009).
A cor/raça da vítima é uma das variáveis determinantes da violência
policial, e o biótipo “negro” é o alvo predileto e, ao que tudo indica, de
fácil identificação pela polícia. Fica evidente que os negros e seus
descendentes no Brasil são assassinados pela polícia três vezes
mais que os brancos, ou seja, se no plano biológico, o da mistura
racial, ou sociológico, a identificação parece ser simples, na maioria
das vezes, fatal para os negros [...] ela é categoria social de
homicídio (OLIVEIRA apud BERNARDINO, 2002, p. 252).
O autor conclui lembrando que negativamente se reconhece quem é negro,
mas positivamente não. Dessa forma, ser negro ou não, pode se tornar uma questão
fluida, que depende do contexto ou de quem o descreva (BERNARDINO, 2002).
Pode-se perguntar o porquê da adoção de medidas compensatórias para negros?
que se buscar nos índices da desigualdade social onde, tanto aqui quanto nos
Estados Unidos, a situação dos negros é de inferioridade, mesmo quando este
atinge o que teoricamente seria a igualdade de oportunidades, como um curso
superior ou um bom emprego. O fato é que ser negro(a) a significa ainda ganhar os
piores salários e ter pouco sucesso ascendendo no trabalho, vivendo em condições
piores (PAIXÃO, 2003). Observa-se que, quando estão aptos a “competir” em
condições de igualdade, os negros não ascendem em função de sua raça/cor e não
por sua qualidade ou falta dela. Silva (2003, p. 24) diz que “No Brasil universaliza-se
apenas a concorrência, mas não as condições para competir”. Daí sua defesa em
prol das cotas nas universidades, porque, para ela, “Universidade produz
conhecimento e é espaço de poder” (SILVA, 2003, p. 24) e esta luta é a “A essência
do trabalho e o fazer político para o MN e MMN” (SILVA, 2003, p. 41).
1.5 Experiências locais
46
As ações afirmativas são experiências que ocorrem em muitos lugares no
mundo, mas no Brasil ainda temos dificuldades de discuti-las como ações possíveis,
especialmente se forem associadas às questões raciais. Ao debater sobre essas
ações, nos deparamos com a realidade que “pouco ou nenhum consenso tem
havido em torno”, especialmente quando se pensa a população negra neste debate.
Este fato é definido por Bernardino (2004, p. 15) da seguinte maneira:
A fonte deste dissenso não está no desenvolvimento de políticas
particularistas em si, mas no uso da categoria raça como critério
classificatório para efeito de eliminação de desigualdades atuais ou
históricas experienciadas por algum segmento da população
brasileira especialmente a população negra.
Assim, em 2001, ainda sob o processo da Conferência Mundial contra o
Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlatas, realizada em
Durban/África do Sul, o debate se acirra quando o governo do Rio de Janeiro cria a
Lei 3.708/2001, que adota cota mínima de até 40% para as populações negra e
parda no preenchimento das vagas relativas aos cursos de graduação tanto na
UERJ com na UENF. Entretanto, tal ação foi efetivada no vestibular de 2003, ano
em que o debate fica ainda mais acirrado, com a criação da Lei Federal 10.639/03,
que se institui como obrigatório ensino da historia da África (e cultura afro-brasileira)
nos Ensinos Fundamental e Médio, público e particular.
Ainda em 2003, a UNB entra na polêmica por ser a primeira Universidade
Federal a adotar também a política de cotas dentro das ações afirmativas como
acesso aos seus cursos, reservando 20% das vagas para afrodescendentes,
embora entrasse em vigor no o vestibular de 2004. Em Recife, a Fundação
Joaquim Nabuco vai além, propondo para seu mestrado 40% para candidatos
negros. No mesmo ano, é criada em São Paulo a Universidade Zumbi do Palmares
com reserva de 50% de suas vagas para negros, além de um valor de mensalidade
baixíssima. Outras faculdades aderem ao programa ainda nesse ano, mesmo que
sob outra modalidade de apoio (bolsa auxílio, etc.).
os anos entre 2004 e 2007 são períodos em que a polêmica toma força ou
arrefecerá, sem, contudo deixar de aparecer como um tema instigante, com ocorreu
na UNB, quando dois irmãos gêmeos tiveram resultados diferentes ao tentar
ingressar no vestibular daquele ano pelo sistema de cotas, em 2007. Naquela
47
ocasião, foi publicada a seguinte manchete de uma reportagem: “Cotas na UnB
[Universidade de Brasília]: gêmeo idêntico é barrado”
9
, gerando uma polêmica sobre
o tema na qual muitas vozes aproveitaram tal falha para justificar o combate às
cotas raciais, utilizando tal argumento com mais veemência. Neste momento, a fala
de pessoas que formam ou influenciam a opinião pública veio a público em defesa
ou combate à política de cotas raciais para o ingresso de jovens estudantes negros
ao Ensino Superior.
Ao analisar a questão racial a partir de propostas governamentais de cotas e
ações afirmativas, Pereira (2003) lembra o processo de reserva de vaga no mercado
trabalho brasileiro, determinado pela chamada Lei dos 2/3, em que, a cada três
trabalhadores, dois teriam que ser obrigatoriamente trabalhadores nacionais, ação
adotada no período Vargas na Constituição de 1934. Essa lei, segundo o autor,
atendeu reclamos nacionalistas e proibiu a imigração de pessoas de “3ª classe”,
referindo-se aos europeus pobres, com intensa e eficaz campanha parlamentar,
procurando impedir a imigração regular de africanos e asiáticos. Também no texto
dessa lei, o referência à raça, mas o indicador de que alguns seriam
preteridos em relação a outros por serem considerados inferiores.
Apoiando esta reflexão, podemos lembrar que não é uma novidade no país tal
ação definindo as situações conhecidas por todos, desenvolvidas no Brasil como
a citada Lei dos 2/3 (1943); a Lei do Boi (1968), com 50% das vagas nas escolas
agrícolas e/ou universitárias (via de regra universidades rurais), nas áreas de
agricultura e veterinária tanto para os agricultores ou como para os seus filhos; a lei
que prescreve cotas para portadores de necessidades especiais/deficiência física,
em concursos públicos (1990); a lei que prescreve cotas para mulheres na
candidatura partidária (1997), além de outras experiências (BERNARDINO, 2004).
Aqui, que observar que, de fato, existe um dissenso, mas “[...] não porque se
trata de políticas particularistas, mas porque se propõe a desenvolver políticas
sensíveis à raça” (BERNARDINO, 2004, p. 16), mais especificamente à raça negra,
quando então afloram os preconceitos “que até então estavam velados”.
A dificuldade em lidar com tal debate será pontuada em três situações que
justificariam assim o dissenso em se tratando da categoria raça, uma categoria que,
para ser sustentada, esbarra no mito da democracia racial, fortemente articulado na
9
Matéria do dia 29 de maio de 2007. Disponível em:
<http://g1.globo.com/Noticias/Vestibular/0,,MUL43786-5604-619,00.html. 20/05/2008
48
noção de que somos uma nação na qual o critério racial na busca de oportunidades
não tem a menor importância. A primeira justificativa seria que o fato de que
conhecermos problemas de hostilidade entre os grupos raciais no Brasil facilitaria a
sustentação das relações raciais pela cordialidade, sem conflitos. Se isto ocorresse
seria um problema individual de falta de boa educação. Em seguida, que o mito da
democracia racial apóia-se na crença de que, no país, não é a raça, mas o problema
da classe social que explica a atribuição do status, definindo as oportunidades de
vida dos indivíduos, o que nos levaria a crer que “[...] a raça é neutralizada pela
classe tanto para explicar os obstáculos para a mobilidade social dos indivíduos
quanto para a elaboração de políticas públicas” (BERNARDINO, 2004, p. 16). Por
último, por sermos um país miscigenado, seria absolutamente irrelevante distinguir
quem são as pessoas brancas e quem seriam as negras. Por esses motivos,
passava-se a ideia de que no Brasil havia da integração das raças (BERNARDINO,
2004).
No entanto, os argumentos contrários à reserva de vagas, especialmente em
relação às cotas para as universidades, trouxeram elementos importantes, como os
de Kamel que chega a dizer que no “pós-Abolição” (com “A” maiúsculo no original)
jamais em nosso país existiram barreiras institucionais que impedissem a ascensão
social do negro, sendo os acessos tanto aos empregos públicos quanto às vagas em
instituições de ensino público todos assegurados apenas pelo critério do mérito. O
autor justifica seu argumento contrário às cotas dizendo que no Brasil existem “19
milhões de brancos que são pobres e enfrentam as mesmas agruras dos negros
pobres” e a instituição de políticas que dessem preferência racial ao negro, longe de
garantir a todos os pobres as mesmas oportunidades com uma educação boa e de
qualidade para assim superarem a pobreza, contando, para isto, com os critérios de
seus próprios méritos, na verdade estão construindo uma possibilidade de “eclosão
entre nós do ódio racial, coisa que, até aqui, não conhecíamos”. Ele finaliza seus
argumentos afirmando que “A nação que sempre se orgulhou de sua miscigenação
não merece isto” (KAMEL, 2006, p. 35).
No Brasil, falar de medidas compensatórias para negros e afrodescendentes
significa falar da hipocrisia de um país que se diz constituído por uma sociedade
sem preconceito e sem racismo, embora possa ser percebida nos índices de
desenvolvimento humano a ausência dessa população, ou, quando presente,
49
apresenta os piores indicadores apontando assim para a sua situação de
sobrevivência.
Mais que um problema moral ou de benesse, para os estudiosos do tema, a
vantagem da “ação afirmativa não é meramente o resultado de uma obrigação
moral, mas uma questão de corrigir ‘também um balanço histórico” (WALTERS,
1995, p. 131), resgatando uma história de exclusão e apontado saídas para esta
questão. O que ficará das marcas do nosso racismo são as “[...] características do
racismo brasileiro que nega sua própria existência, desobrigando-nos, portanto, de
enfrentá-lo” (SILVA, 2003, p. 64). Assim, lembramos que se trata, sobretudo, de
ações conjunturais no combate ao racismo e à discriminação, como apontam os
estudiosos, mas que também são mediadas preventivas.
Ações afirmativas são um conjunto de ações e orientações do
governo para proteger minorias e grupos que tenham sido
discriminados no passado. Em termos práticos, as organizações
devem agir positiva, afirmativa e agressivamente para remover todas
as barreiras, mesmo que informais ou sutis. Como as leis
antidiscriminação que oferecem possibilidades de recursos a, por
exemplo, trabalhadores que sofreram discriminação-, as políticas de
ação afirmativa têm por objetivo fazer realidade o princípio de
igualdade de oportunidade. E, diferentemente dessas leis, as
políticas de ação afirmativa têm por objetivo prevenir a ocorrência de
discriminação (SILVÉRIO, 2002, p. 91)
Estudiosos do tema dizem que no Brasil a raça é uma “não questão”
quando se pensa nos benefícios para aqueles considerados como “membros de
grupos de menos status” (BERNARDINO, 2002, p. 255). O autor diz que, mesmo
sem considerar a raça como uma condição biológica, isso não significa que ela não
esteja separada com uma condição social. Desta feita, ele afirma que advoga a
existência da raça, “[...] não como uma categoria biológica, mas com uma categoria
social” (BERNARDINO, 2002, p. 255).
O tema da raça ficou enviesado a partir do mito da democracia racial, visto
que desde então se pensava o país como aquele paraíso multicor das raças. Quanto
a isto, Bernardino diz que aliado ao mito da benevolência do senhor de escravo e da
teoria do embranquecimento e democracia racial também como mitos, portanto,
construções sociais, a ideia de democracia racial traz consequências práticas para o
Brasil, como, por exemplo, pensar na não existência de raça no país, a partir da
miscigenação. Falar de raça, portanto, seria então uma imitação de ideias
50
alienígenas (estrangeiras) numa importação de ideais não originais. Chega-se ao
absurdo de querer transformar em racistas aqueles que trazem a racismo (ou a
“racialização”) como um tema necessário a pensar as diferenças raciais existentes
entre pessoas brancas e negras aqui. Assim, para Bernardino (2002, p. 256), “[...] o
movimento social negro é acusado de racista uma vez que diferencia os negros dos
brancos” numa inversão de valores e alvo de combate.
Como resultado inegável da o discussão de raças, concebe-se o tema
como um “falso problema” significando que
[...] o mito da democracia racial e o ideal de embranquecimento
deram origem a uma realidade social em que a discussão sobre a
situação da população negra foi identificada como indesejável e, até
mesmo, perigosa. A recusa de reconhecer a realidade da categoria
raça, tanto num sentido analítico quanto de intervenção pública, fez
do regime de relações racial brasileiro um dos mais nefastos e
estáveis do mundo ocidental (BERNARDINO, 2002, p. 256).
O autor acima traz à tona o fato de que as ações afirmativas têm um
significado para a população negra, a partir do texto citado. Para ele, ações
afirmativas são, sobretudo, políticas públicas que trazem em si a pretensão de
corrigir distorções das desigualdades socioeconômicas, fruto de anos de
discriminação e desvantagem, podendo ser atual ou histórica. Desvantagens estas
sofridas por alguns grupos de pessoas a exemplo dos negros, das mulheres, dos
indígenas. Para tanto, ocorre a concessão de algum tipo de vantagens competitivas
para membros desses grupos, ou seja, aqueles e aquelas que vivenciam uma
situação de inferioridade, visando, assim, que num tempo estipulado a situação
desvantajosa seja revertida. Desta forma, Bernardino (2002, p. 256) diz que “[...] as
políticas de ação afirmativa buscam, por meio de um tratamento temporariamente
diferenciado, promover a eqüidade entre os grupos que compõem a sociedade”.
Rosemberg (2006) nos mostra ainda que existem hoje no país algumas
experiências de ações afirmativas que são pensadas para que os/as estudantes
possam ter, além do acesso ao ensino público, possibilidades de permanência ali.
São elas:
a) Aulas ou cursos preparatórios para acesso ao Ensino Superior e
de reforço (melhoria do desempenho acadêmico), apesar de serem ainda
ações individuais (mesmo que no plano institucional);
51
b) Ações que financiariam os custos para acesso e possibilitariam a
permanência destes jovens no ensino (inclusive no pagamento a taxas
para o vestibular) e permanência no Ensino Superior;
c) Mudanças no sistema de ingresso nas instituições de Ensino
Superior via metas, cotas, pontuação complementar, etc;
d) Criação de cursos específicos para estes segmentos raciais, tais
como a licenciatura para professores indígenas da Universidade Federal de
Roraima.
Tais experiências são evidentes em cursos pré-vestibulares, como o Pré-
Vestibular para Negros e Carentes (PVNC, criado entre 1993/1994) e a Educação
para Afrodescendentes e Carentes (EDUCAFRO, criado em 1997), visando o
ingresso de estudantes negros às universidades, de acordo com Justino (2003).
Silva (2003) destaca a importância do o Projeto Geração XXI (GXXI, iniciado em
1999) uma parceria do Geledés e Bank Boston, ações envolvendo iniciativas de
ativistas do movimento negro, entidades sociais, ONGs, igrejas, setor privado. Além
destas iniciativas, a UERJ, a Universidade Estadual da Bahia (UEBA) e em
seguida e a UNB adotaram entre 2001 e 2004 a política de cotas raciais para negros
e índios.
Segundo dados da Fundação Cultural Palmares do Ministério da Cultural
(2010)
10
, cerca de 77 universidades brasileiras adotaram o sistema de cotas raciais,
beneficiando mais de 400 mil estudantes negros (afrodescendentes). Tais dados
foram disponibilizados no auge do debate sobre a constitucionalidade das cotas com
recursos ao Supremo Tribunal Federal (STF), que optou por realizar uma audiência
pública de 3 a 5 de março de 2010, antes mesmo de julgar o tema. A concorrência
para assistir a tal audiência provou que longe de ser um tema resolvido, tranquilo e
desinteressante, o debate está no olho do furacão da polêmica política sobre ações
afirmativas no país. Sua ação, embora legal, foi toda polemizada num terreno
político ideológico, sustentado pelos discursos baseados em argumentos de estudos
e pesquisas acadêmicas
11
.
10
Embora tais dados variassem na semana de debate no Supremo Tribunal Federal entre 67 e
77 universidades, optamos por adotá-los por serem números disponibilizados num sítio oficial do governo e
devido a escassez de dados de outras fontes. Disponível em:
<http://www.palmares.gov.br/003/00301009.jsp?ttCD_CHAVE=2802>. Acesso em: 1 abr. 2010.
11
Entre cerca de 40 pessoas que foram ouvidas na audiência, 22 tinham ligação com a
academia, incluindo-se os assessores do MEC. Audiência Pública sobre a Constitucionalidade de Políticas de
Ação Afirmativa de Acesso ao Ensino Superior (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 186 e
52
As experiências de ações afirmativas nos sugerem que o assunto em si não
seria o problema; as cotas não o a questão de fato. Elas apenas revelariam parte
de um problema que seria a negação do tema racial brasileiro. Assim, o surgimento
do tema das cotas sociais na mídia e na sociedade nos últimos anos expôs a
possibilidade de pensar a questão racial como uma problemática importante de fato.
O fato de dizer que as cotas não são o problema revela aqui uma compreensão
maior do fenômeno, visto que no país existem políticas de cotas anos, com
citamos acima, mas em nenhuma delas a polêmica fora instalada como no caso das
cotas raciais e para o acesso ao Ensino Superior. Os exemplos de cotas sem
polêmica são:
a) Lei do Boi (Lei 5.465/1968), criada para beneficiar filhos de fazendeiros,
para os quais a educação era mais acessível;
b) proteção especial de trabalho à mulher, na própria Constituição Federal de
1988, que estabelece em seu Art. 7, XX, fundamentando, desse modo; o conteúdo
da Lei 9.504-97, que em seu Art. 10, § 2º, cria cotas para mulheres nas
candidaturas partidárias;
c) Também na Constituição Federal, o Art. 37, VIII, que determina percentual
de cargos para portadores de deficiência física.
Outros casos que podem se aqui apontados são os Programas de Ação
Afirmativa do Instituto Rio Branco e Ministério da Justiça, todos coincidente (e
ironicamente) sem questionamentos. Verifica-se que em nenhum desses casos a
igualdade, a razoabilidade e a proporcionalidade foram tão questionadas como no
caso da UERJ que, mais uma vez, enseja arguição de inconstitucionalidade perante
o Supremo Tribunal Federal. Não nos esqueçamos da Lei dos 2/3 que atendeu
reclamos nacionalistas proibindo de europeus pobres, que intensa e eficaz
campanha parlamentar procurava impedir a imigração regular de africanos e
asiáticos. Também no texto dessa lei não há referência à raça (PEREIRA, 2003).
Assim, é possível concordar com Silvério (2002) quando diz que no Brasil,
existiu e existe uma tentativa de negar a importância da raça como fator gerador de
desigualdades sociais por uma parcela significativa dos setores dominantes. Só
muito recentemente vozes dissonantes têm chamado a atenção sobre a
Recurso Extraordinário 597.285/RS). Realizada entre os dias 3 e 5 de março de 2010 em Brasília/DF. Disponível
em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaAcaoAfirmativa>. Acesso
em: 3 mar. 2010.
53
singularidade de nossas relações raciais. Pode-se ver, deste modo, o quanto o tema
das cotas é ainda espinhosos para alguns, por ser um tema que toca profundamente
na percepção de como foram construídas, no país, as relações raciais.
54
2 ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA: O DISCURSO E A LINGUAGEM
NA PSICOLOGIA SOCIAL DISCURSIVA
“Minha concepção de mim
mesmo é constitutiva
daquilo que sou”.
IBÁÑEZ GRACIA, 2004
Bakhtin (1930], p.1) diz que “Toda expressão lingüística é sempre orientada
em direção ao outro, em direção ao ouvinte, mesmo quando este outro se encontra
fisicamente ausente, sugerindo que a linguagem “é um produto da vida social, a qual
não é fixa e nem petrificada”. Essa afirmação nos passa a ideia de que linguagem
encontra-se em um eterno devir, desenvolvendo-se também na evolução da vida
social”. Para o linguista, a progressão da linguagem se concretizará de fato na
relação social de comunicação que cada indivíduo mantém com o outro, com seus
semelhantes, numa relação que existe não apenas no nível de produção, mas
também no nível do discurso e de diferentes modos de variação destes discursos,
sem ser imóvel. Deste modo, ele conclui que
É na comunicação verbal, como um dos elementos do vasto conjunto
formado pelas relações de comunicação social, que se elaboram os
diferentes tipos de enunciados, correspondendo, cada um deles, a
um diferente tipo de comunicação social (BAKHTIN, 1930, p. 01).
Nessa perspectiva, entendendo a linguagem como sendo orientada ao outro,
num processo de dialogia, apresentaremos no presente capítulo a abordagem
utilizada por s na pesquisa sobre cotas e relações raciais, tendo como base
teórica a perspectiva discursiva. Nossa caminhada, iniciada em 2008, nos levou ao
encontro de autores/autoras que procuravam compreender o discurso, a
linguagem em uso, como algo além de uma simples expressão de entidades mentais
subjacentes.
Neste trabalho, utilizamos a Análise do Discurso como ferramenta adequada
para o estudo das argumentações sobre as ações afirmativas e as cotas, buscando
compreender o modo como os argumentos são construídos e quais os repertórios
utilizados. Desta feita, entendemos que a Análise do Discurso como uma
55
perspectiva teórico-metodológica, sempre reforçada por seus expoentes como
sendo algo mais que um simples método, proporcionará aqui um amplo panorama
de estudo e pesquisa sobre o discurso. Com esse fim, adotamos uma perspectiva
teórico-metodológica na psicologia social denominada de psicologia social
discursiva, desenvolvida nos últimos 25 anos por um grupo de psicólogos sociais
ingleses, a saber, Potter (1987), Wetherell (1992), Billig (1988) e Dereck (1990).
Potter (2003), um dos principais expoentes teóricos desta corrente, define a
psicologia social discursiva como a aplicação das ideias da Análise do Discurso para
questões em psicologia, sugerindo que o seu foco primário estaria na análise da
interação considerada em detalhe fino, sendo sua força ou maior ambição a
possibilidade de “[...] proporcionar uma nova perspectiva em quase toda a extensão
do fenômeno psicológico”. A partir desse ponto ele completa que não se trata de um
método como tal, mas de uma “perspectiva que inclui princípios meta-teóricos,
teóricos e analíticos” (POTTER, 2003, p. 73).
A psicologia social discursiva se desenvolve num contexto de mudanças
produzidas nas ciências dos anos 70 e 80 que influenciaram todo pensamento
ocidental, provocando uma ruptura no modo de pensar a própria ciência a partir da
concepção neopositivista, o que provocou também um debate sobre os fundamentos
do fazer e do chamado conhecimento científico. Vários enfoques vão constituir, a
partir de então, concepções pós-modernas da psicologia social, a saber: o
construcionismo social de Gergen (988), o enfoque ontogênico de Harré (1979), o
enfoque retórico de Billig (1991); bem como a análise de conversação de vários
autores, entre eles, Sacks (1989), Heritage (1990) e iguez (1996); a Análise do
Discurso de Potter e Wetherell (1992, 1996), enfoques que partilham algumas
características comuns entre si. (ÁLVARO; GARRIDO, 2003).
Nas abordagens supracitadas, repudia-se a concepção representacional do
conhecimento, para a qual a validade e a objetividade poderiam ser alcançadas
mediante processos de verificação empírica, buscando simetrias entre o mundo e a
representação que fazemos dele. Assim, rechaça-se tanto uma noção explicativa
como causalística do conhecimento, junto também com a noção de acumulatividade
e progresso científico. Para os autores acima, sea rejeição a um modelo filosófico
racionalista ou realista, substituído por uma perspectiva relativista, assim como o
abandono das noções tradicionais de validade e objetividade (ÁLVARO; GARRIDO,
2003).
56
Neste contexto, pensar as práticas discursivas remete-nos a autores que
fazem referência à linguagem a partir de um olhar que antes era voltado ao mundo
interior e privado das entidades mentais. Este olhar volta-se agora, no entanto, para
o mundo possível de ser objetivado, bem como tornado público, das produções
discursivas (GRACIA, 2004). Quanto a isto, Gracia (2004, p. 33) diz que “Nosso
conhecimento do mundo não se radica na idéias que dele fazemos; ele se abriga,
sim, nos enunciados que a linguagem nos permite construir para representar o
mundo”. Baseando-se nos filósofos de Oxford, que à época discorreram sobre a
importância da linguagem, esse autor diz ainda que a linguagem faz muito mais do
que simplesmente representar o mundo, visto que esta é basicamente um
instrumento para “fazer coisas” e não para descrevê-las apenas. Concluindo, ele
afirma que a linguagem não “faz pensamento” como também “faz realidades”
(GRACIA, 2004, p. 33).
2. 1 O giro linguístico
Para entender tal debate é preciso compreender que as ciências sofreram
mudanças no culo XX (como nos referimos acima, falando dos anos 70 e 80),
saindo da lógica cartesiana, do dualismo corpo-mente em que se objetivava uma
ciência pura e aplicada. Esta mudança no pensamento foi importante porque trouxe
a linguagem para um lugar também de importância nas ciências sociais. Tal
processo, denominado por alguns de “giro linguístico”, nos remete à ideia de
mudanças mais profundas no fazer científico. Por isto, apoiando-nos no pensamento
de Gracia (2004, p. 39), podemos concordar que “A linguagem não nos diz como
é o mundo, ela também o institui e não se limita a refletir as coisas do mundo,
também atua sobre elas, participando de sua constituição”.
“O giro linguístico” privilegiou o papel que a linguagem desempenha na
dinâmica da interpretação, enfatizando a centralidade das práticas discursivas no
processo hermenêutico
12
. Por este motivo, neste trabalho, entendemos (e adotamos
tal postura) a Análise do Discurso não como um método, como uma fórmula pronta
12
De Hermenêutica: ciência, técnica que tem por objeto a interpretação de textos religiosos ou
filosóficos, num sentido mais estrito ou teológico' interpretação das escrituras agradas. Mas podemos dizer
também que é a arte de descobrir o sentido exato de um texto ou a interpretação do que é simbólico. (HOUAISS;
VILLAR, 2009.)
57
de pesquisar, mas, sobretudo, como uma “[...] perspectiva sobre a natureza da
linguagem e sua relação com as questões culturais das ciências sociais”
(NOGUEIRA, 2001, p. 4).
Gracia (2004, p. 25) diz que “O giro lingüístico não é um fato preciso e sim
um fenômeno que vai se transformar progressivamente e que adota várias
modalidades ao longo de seu desenvolvimento”. Complementando tal afirmativa, o
autor diz que, para sabermos o que pensamos, devemos “olhar” para nossos
discursos antes de qualquer coisa. Para ele, a linguagem é a própria condição do
pensamento, constituindo-se, deste modo, como instrumento importante e poderoso
para fazer coisas.
De acordo com Iñiguez (2004), a Análise do Discurso surge do “giro
linguístico”, rótulo empregado para definir vários métodos empíricos também
utilizados para o estudo de uma variedade de temas, importante para analisar as
interações cotidianas, incluindo os problemas sociais como o racismo, a exclusão, a
discriminação, o sexismo, entre outros. Mais que um método, reforçamos, a Análise
do Discurso é uma perspectiva teórica a partir da qual podemos estudar e analisar
os processos sociais.
O giro linguístico possibilitou que a ação científica fosse considerada como
prática social, portanto, também como ação social, fugindo ao estatuto de ciência
aplicada na realidade racional, que contrapunha a linguagem cotidiana à linguagem
científica especializada e formal, trazendo perguntas sobre a necessidade de se ter
elaborado uma linguagem própria que fosse capaz de explicar como seria de fato o
mundo. Assim, segundo Iñiguez (2004, p. 55), o “giro linguístico foi um giro no
sentido de ter sido uma mudança radical” no pensamento filosófico científico, devido
ao fato de seu questionamento sobre a linguagem cotidiana ter sido suficiente para
explicar o mundo.
2.2 A Psicologia Social Discursiva
Para melhor entendimento da complexidade desta abordagem teórico-
metodológica, é importante fazer referência, em primeiro lugar, aos seus
pressupostos epistemológicos, em seguida, à sua concepção de “linguagem” e,
finalmente, às suas diferentes definições e concepções (NOGUEIRA, 2001). Este
estudo utilizou-se da Psicologia Social Discursiva como abordagem teórico-
58
metodológica a partir da qual o material discursivo foi analisado, uma vez que essa
abordagem utiliza um tipo de Análise de Discurso que destaca o modo como a fala e
os textos são utilizados para executar ações. A Psicologia Social Discursiva tem
como principais conceitos os seguintes: construção, retórica, função e variabilidade.
Esses conceitos importantes para a compreensão da nossa abordagem analítica são
complementares, o que dificultará algumas vezes uma separação entre eles. Mas,
antes de abordar esses conceitos, abordaremos o conceito de discurso tal como
entendido pela Psicologia Social Discursiva.
2.2.1 A noção de discurso na Psicologia Social Discursiva
Na Psicologia Social Discursiva, discursos (ou repertórios interpretativos) são
específicos a circunstâncias particulares. Deste modo, esta abordagem compreende
a linguagem como situada dentro de um contexto social e cultural, não apenas nas
interações, como ação discursiva “construtiva já que cria aquilo a que se refere”. Isto
aproxima tal abordagem da etnometodologia (NOGUEIRA, 2001) que os
significados sempre definidos a partir dos textos em que estão inseridos (AZEVEDO,
S/D). Baseando-se em Potter & Wheterell (1987), Nogueira (2001) sugere ainda que
os repertórios interpretativos o recursos discursivos gerais, podendo ser usados
para construir versões tanto de acontecimentos, como de ações e processos
internos, entre outros, além de justificações de certas práticas. Esses repertórios são
encarados como conjuntos de termos relacionados entre si, usados com certa
coerência gramatical e estilística, organizando-se em torno de uma ou mais
metáforas centrais.
Nesta perspectiva, não se pressupõe a existência de conteúdos internos que
comandem os comportamentos dos indivíduos. Os repertórios interpretativos são
ferramentas, mas não estariam localizadas apenas nos indivíduos, mesmo que estes
indivíduos as utilizassem para os seus próprios fins, em conformidade com os
recursos tanto sociais quanto culturais disponíveis, (NOGUEIRA, 2001, p. 25).
Potter & Wetherell (1987, apud NOGUEIRA, 2001) dão uma versão da
amplitude do termo “discurso”, sugerindo sua utilização num sentido amplo que
cobrirá todas as formas de interação, tanto verbais (independente de serem formais
ou informais), como em textos escritos, a exemplo da nossa pesquisa, na qual os
discursos analisados foram escritos em textos de jornais impressos, quanto não
59
verbais. Potter (2003, p. 3) diz que “[...] o discurso é o meio primário da ação e da
interação humanas”, ações estas que não são soltas, mas incrustadas em grandes
práticas, sendo algumas delas genéricas, como fazer convites, e outras próprias de
ambientes específicos, como, por exemplo, em gerência de controle de tráfego
aéreo da tripulação de voo.
2.2.2 Função
O termo função diz respeito à natureza do discurso como um meio orientado
à ação e aos resultados, contrapondo-se desta forma à ideia da linguagem como
sistema abstrato e essencialmente referencial, prevalecente na teoria e prática
psicológica (POTTER, 1990). Deste modo, o conceito nos leva a pensar o uso da
linguagem orientada a um fim ou a uma ação, em que as pessoas ao fazerem coisa
com seus discursos estão lhes dando funções variadas, que podem ser função
acusatória, inquisitória, justificativa. Ou seja, as pessoas usam o discurso de modo
performático, numa maneira própria de exercitar e atuar com suas falas para
justificar uma determinada ação discursiva.
A
Análise do Discurso visa, neste caso,
estudar as variações no conteúdo do discurso ao realizar diferentes funções
(POTTER; WHETERELL, 1996).
O conceito de função, em Potter & Wheterell (1987), será definido ainda,
segundo Nogueira (2001), como aquele que remete ao conceito de ação, o que
significa dizer que na Psicologia Social Discursiva importa saber o que as pessoas
estão fazendo com o texto ou fala, ou seja, como estão agindo. O termo função
como aquele que enfatiza a natureza orientada à ação dos discursos não pode ser
compreendido como um termo mecânico. Billig (apud POTTER, 1990) sugere que o
discurso é organizado retoricamente e para ele mesmo técnicas eficazes de
atribuição de culpa podem ser contrariadas por outras técnicas igualmente eficazes
no abrandamento desta culpa. Finalizando, o autor diz que, um estudo de um
discurso será também uma análise do debate retórico presente neste discurso
(POTTER, 1990).
2.2.3 Construção
A ideia de construção passa pela concepção de fabricação do discurso, qual
seja a de pensar o que está sendo feito naquele momento, que o discurso é
60
fabricado a partir de recursos linguísticos pré-existentes. Serão as práticas da
linguagem que oferecerão os termos, bem como as formas narrativas, as metáforas
e os lugares comuns a partir dos quais os relatos particulares poderão também ser
montados. Tal montagem envolve escolhas ou seleção de possibilidades. De fato,
neste processo, o que se destaca em uma conversa depende muito da orientação e
dos interesses do orador (POTTER, 1990). Está posto, assim, o que lembrará a
Potter a metáfora construcionista, que em grande parte do tempo, ao lidarmos com o
mundo, o fazemos em termos de construções discursivas ou versões deste. Os
acessos que temos aos eventos mundiais, às descobertas da ciência ou de como
deve ser avaliado um determinado filme, tudo isto se faz por meio das construções
de textos e falas. Neste sentido, continua o autor, reforçando a ideia de construção:
“textos e falas constroem o nosso mundo [...]” (POTTER, 1990, p. 3).
Enfim, a construção, forma pela qual é possível referendar a ideia da
fabricação do discurso, diz respeito ao modo como toda a atividade simbólica
precisa se apoiar em recursos culturais para que, de tal modo, as relações
interpessoais façam sentido. Como os indivíduos não podem inventar os símbolos,
lançam mãos dos que têm, usando aqueles que estão disponíveis (POTTER;
WHETERELL, 1987). Neste processo, podemos dizer que os significados não são
produzidos no interior dos indivíduos, não sendo processos mentais individuais, nem
serão transmitidos de uma "cabeça" para a outra “[...] mas, segundo Potter e
Wetherell, o produzidos no discurso à medida que as pessoas constroem novos
textos” (NOGUEIRA, 2001, p. 31).
2.2.4 Variabilidade
Quanto ao conceito variabilidade, Potter (1990) aponta que este provém dos
termos função e construção. Para ele, “[...] dado que o discurso é uma construção
orientada para ação [...]” (POTTER, 1990, p. 3), seria de se esperar que diferentes
tipos de atividades produzissem diferentes tipos de discursos também. O autor
continua, sugerindo que os mais variados relatos (ou modos de variação) descritivos
num discurso de um mesmo fenômeno ou na prática anatica podem ser
surpreendentes, como apontam alguns autores citados pelo próprio Potter
(GILBERT; MULKAY, 1984; POTTER; WETHERELL, 1987).
61
Deste modo, o conceito de variabilidade implica o reconhecimento de que a
fala constrói diferentes versões do mundo, portanto, a orientará por diferentes
funções. É de se esperar, ainda, que exista variabilidade tanto no discurso produzido
pela mesma pessoa quanto entre os discursos produzidos por diferentes pessoas
(WOOD; KROEGER, 2000 apud NOGUEIRA, 2001). Novamente Potter, com base
em outros autores (GILBERT; MULKAY, 1984; POTTER; MULKAY, 1985; POTTER;
WETHERELL, 1988), definirá assim o termo em questão. Para ele, a variabilidade é
fundamental para a análise por sua relação com a orientação funcional. Do mesmo
modo que esta orientação leva à variação, será a presença desta que poderá ser
usada como pista analítica para retornar à orientação funcional. Desta feita,
podemos prever que certos tipos de orientação funcional levarão a certos tipos de
variações sistemáticas, o que levará a procurar detectar a presença destas
variações no discurso. Para Potter (1990, p. 4), “A análise do discurso afirma que as
pessoas usam a linguagem (incluindo declarações tipo atitudes) de modo que varia
de acordo com o contexto discursivo”.
É importante também agregaremos aqui o conceito de retórica, trazido por
Billig como aquele que nos fará, aos psicólogos sociais, compreender a importância
de utilizar a argumentação, dentro do contexto discursivo, bem como compreender
como nossos discursos são organizados, como veremos a seguir.
2.2.5 Retórica
É importante frisar que a Análise do Discurso, tal como entendida pela
Psicologia Social Discursiva, caminha numa construção retórica da argumentação.
O discurso (logos) aqui tomado sempre como meio orientado à ação é o que
constituirá a base retórica da argumentação. A retórica pode ser definida, grosso
modo, como a arte de falar bem. Desenvolvida na Grécia, no século V (a.C.), época
atravessada por um período de grande efervescência no pensamento filosófico,
político-econômico e intelectual, a retórica teve Atenas como base. Lugar importante
onde ocorriam tais mudanças, também se observava uma ligação entre mudança
social e intelectual, dando origem a uma limitada democracia (BILLIG, 1991). Talvez
seja importante refletir como o pensamento político moderno do mundo ocidental é
atravessado pela retórica da democracia ali surgida.
62
Billig aponta para a importância da retórica dado seu caráter moderno, visto
que “o estudo antigo da retórica pode ser considerado como precursor da psicologia
moderna”, pois, naquele período, os retóricos estavam interessados em
problemas que são ainda hoje a preocupação dos psicólogos modernos. Mais do
que falar bem em termos estéticos, o estudo da retórica proposto por este autor
sugere pensar os efeitos que este falar (ou discursar) terá sobre os ouvintes. Por
isto, ele sugere que
[...] O bom discurso é aquele que obtém êxito no seu objetivo de
persuadir a audiência, independente do fato da mensagem ter sido
transmitida com gosto ou não. É este último aspecto da retórica o
persuasivo, mais do que o estético que possui a maior afinidade
com a psicologia moderna (BILLIG, 1991, p. 03).
Nessa discussão, prevalecerá a ideia enfatizada por Billig em suas obras de
1987 e 1989, em que o “discurso é organizado retoricamente”, sendo que tanto
técnicas eficazes de acusação ou atribuição de culpa de alguém podem ser
contrariadas ou refutadas por técnicas igualmente eficazes de suavização ou
abrandamento desta culpa, presentes num mesmo discurso.
O recurso da retórica é descrito ainda por Billig como aquele importante aos
psicólogos sociais por ser algo que nos dará uma ideia da boa oratória, embora
reconheça que muito esta arte perdeu sua importância, tendo modernamente,
para alguns, mais um caráter de enganação ou de palavras vazias que mesmo uma
fonte rica de argumentação. Esta fonte que seria rica de uma “[...] tradição intelectual
estabelecida que oferecia técnicas práticas de expressão articuladas e de visões
teóricas da natureza da comunicação.” (BILLIG, 2008, p. 84). Seus principais
expoentes na Grécia Antiga foram Aristóteles, Cícero, Quintiliano, Protágoras; no
Renascimento, figuras como Erasmos, Melanchton e Francis Bacon; no século XVII
Thomas Hobbes, e mais à frente Adam Smith e Thomas de Quincey (BILLIG, 2008).
Caindo num certo desuso, a retórica passou a ser vista, por alguns, como uma falsa
oratória, falácia na sua essência ou até com um falso recurso discursivo.
Esta “arte” recebeu críticas de Platão por ser, para ele, mais um estilo bonito e
agradável de apresentar um discurso do que mesmo o próprio discurso bem
elaborado. No entanto, embora reconheça a pertinência de algumas reticências
quanto ao termo retórica, Billig (2008) reforça que a importância deste recurso para
63
a psicologia social se faz presente quando nos apoiamos num dos seus elementos
mais importantes: o elemento da argumentação.
O autor irá, assim, resgatar também Protágoras, um sofista importante que teve
como papel relevante o de ser o precursor de um princípio psicológico que
expressará “o espírito argumentativo da retórica” (BILLIG, 2008, p. 88). Ele reforça,
portanto, sua intenção nos estudos da retórica como um princípio a ser resgatado
pelos psicólogos sociais, no sentido de “estimular uma retórica argumentativa”,
fugindo assim de uma retórica de adornos com aqueles discursos criticados no
princípio, por Platão.
A origem da retórica, descrita por Billig (2008), nos chega como uma experiência
vinda da sociedade e dos tribunais, onde o povo (grego/Atenas, à época) precisava
argumentar em defesa dos seus direitos, fato que lhe exigia uma forma de organizar
o discurso em sua defesa, da qual eles (os que compunham o povo) não teriam o
menor domínio. Então, dois bons oradores ofereciam seus serviços para a
construção de argumentos que favorecesse este povo. É deste modo que Tísias e
Corax, os bons oradores sicilianos, ofereciam seus serviços, sendo considerados os
primeiros retóricos profissionais, seguidos por outros, que Atenas era o local ideal
para o surgimento de bons oradores, devido aos grandes debates públicos que
ocorriam.
Protágoras foi um dos sofistas que ajudou na construção de um pensamento
argumentativo importante à época. Entretanto, os sofistas também gozavam de
fama, assim como os retóricos, porque podiam utilizar de sua oratória para discorrer
sobre qualquer assunto, derrubando todos os argumentos, fazendo construções
retóricas que poderiam deturpar ou modificar um pensamento mesmo num sisudo
tribunal. Eles sofistas podiam também fazer com que o pior argumento vencesse o
melhor. Cícero, o grande orador romano (jurista e estadista) dizia que estes, os
sofistas, poderiam também transformar a pior causa (jurídica) na melhor, dado sua
força argumentativa.
Há, num determinado período, um longo debate entre o próprio Sócrates e
Protágoras, sendo o primeiro também um crítico feroz dos sofistas, além de gostar
de um debate como o segundo, evolvendo-se em rixas e tumultos (dos debates,
claro). O debate contido nos diálogos platônicos estabelecido entre ambos indica
que não há uma disputa entre o filósofo que usa a lógica pura, no caso, Sócrates e o
embusteiro, no caso, Protágoras, que usaria métodos clandestinos. Os dois
64
defendiam seus argumentos com energia, usando todas as técnicas de
argumentação. Vez por outra, os dois podem até ter ultrapassado os limites da
propriedade perdendo-se em escárnios ou em mau humor. A esse respeito,
Sócrates, “[...] o filósofo puro, não é moralmente superior a Protágoras, o retórico
profissional” (BILLIG, 2008, p. 93).
Protágoras foi o primeiro a dizer que em todas as questões sempre dois
lados de um argumento e estes lados estão em oposição um do outro, diz Diógenes
Laertius referindo-se à importância dele, de acordo com Billig (2008, p. 93). O
mesmo Protágoras sugeriu que as questões humanas são de natureza tal que
sempre se poderá encontrar argumentos prós e contras. “No tribunal haverá coisas a
serem ditas tanto a favor da acusação quanto a favor da defesa”; oradores
profissionais devem acreditar que “há sempre algo a ser dito a favor de seu caso”
(BILLIG, 2008, p. 93). O próprio Billig conclui dizendo que, se na máxima de
Protágoras existe a possibilidade de dois lados numa mesma questão, então haverá
a possibilidade de contradição presente sempre. Pode-se firmar, portanto, que para
toda argumentação há possibilidade de uma contra-argumentação.
Ainda assim, a retórica neste trabalho terá como importância a tarefa de nos
ajudar a compreender como os argumentos são construídos quando uma certa
disputa (“peleja”) discursiva. No caso em questão, o debate sobre as cotas, em que
as pessoas fazem defesas apaixonadas a partir de diferentes pontos de vista, dado
o caráter conflitivo da questão, será a retórica que nos levará a compreender estes
caminhos argumentativos percorridos.
Podemos parafrasear Potter dizendo, então, que não é incomum que, quando
alguém argumenta por vezes não ser algo acrescentando reticências na sua fala,
pode-se ter certeza que algo desagradável virá em seguida. Como exemplo
presente no nosso estudo, quando alguém diz Não sou racista, mas...” algo a ser
ponderado se segue: Não sou contra as cotas. mas... os negros podem ser
privilegiados numa atitude que poderá ser injusta com alguém que estudou mais e
não está nas cotas, o que não deixa de ser um privilegio para quem passou no
vestibular por conta das cotas.”
Na nossa pesquisa, no entanto, observamos que este argumento só valeu para
as cotas raciais. Quando houve o ingresso por conta das cotas sociais, não houve
nenhum tipo de questionamento, a exemplo do recente caso do jovem canavieiro
aprovado no vestibular de Medicina em Pernambuco, sem que nenhuma voz se
65
levantasse contra o fato. Para nós, trata-se de uma atitude louvável, mas que
demonstra o quanto a polêmica pode revelar o problema racial brasileiro. Aqui, outro
argumento aparecerá de pronto: o problema do negro não é racial, mas social, como
se a questão racial não fosse uma questão social e vice versa.
O caráter conflito apontado por Billig na retórica argumentativa sugere que
numa questão haverá sempre dois lados a serem considerados. Para Protágoras
(apud BILLIG, 2008), se sempre existem dois lados possíveis em todas as questões,
então sempre a possibilidade de contradição. Para nós, por exemplo, o
contraditório em alguns argumentos contra as cotas é o fato de se considerar a
inexistência de um problema racial a ser enfrentado no país, considerando-se os
índices de desigualdades, mas ainda assim justificando que as cotas não servem
para colocar a questão racial. Pois, mesmo os negros não tendo as mesmas
condições de vida que um branco, justifica-se que, ao utilizar as cotas, fasurgir
privilégios para eles (negros), não resolvendo o problema.
Considerando o caráter conflitivo, continua Billig (2008) referindo-se a
Protágoras, apontando que, para aquele retórico, “A importância da contradição
potencial é expressa pela ambigüidade da palavra argumento”. Deste modo, Billig
(2008) sugere que a palavra tem tanto um significado individual, quanto social,
sendo aquele significado referente a qualquer um dos trechos de um discurso
racional.
Na medida em que estamos articulando um ponto de vista, pode-se
dizer que estamos desenvolvendo um argumento. A retórica, neste
sentido, tem com objetivo ajudar o pensador individual a desenvolver
uma cadeia de raciocínios, a fim de construir um argumento
convincente. Além disto, o significado social de argumento”
(BILLIG, 2008, p. 101).
Aqui, a palavra argumento o se refere a uma cadeia de raciocínio de um
indivíduo e sim a uma disputa entre pessoas. Opiniões ou cadeias individuais de
raciocínio entram em conflito no contexto de um argumento social.
Voltando a Protágoras, considerado o pai da retórica, portanto da ideia da
argumentação, este sugere também uma ligação entre os significados dos
argumentos tanto no aspecto individual quanto no social, sugerindo que sempre
haverá dois lados da questão numa única opinião, denominando isto como um
“argumento individual”, que ocorrerá tanto na realidade quanto numa situação
66
potencialmente controversa (BILLIG, 2008). O sofista grego continua a discussão,
sugerindo que qualquer discurso pode ser oposto por um contradiscurso, ou seja,
podemos dizer por um contra-argumento. Assim, o argumento do privilégio das cotas
poderá ser contra-argumentado pela ideia que há, sim, uma situação de privilégio,
mas para aqueles que não são negros, ou seja, os brancos, para quem existem
100% de cotas, visto que o acesso à universidade para estes últimos não aparece
como um problema, mas como possibilidade.
Ao discorrer, ainda, sobre a importância da retórica, Billig refere-se à
importância do logos como aquele termo que será descrito, num sentido plural,
definido por Protágoras como algo mais do que palavra, mas um modo do fazer
destas palavras. Neste caso, pode ser sinônimo de discurso, da fala ou de
conversa, sugerindo então que qualquer logos poderá ser contraposto pelo que ele
chama uma contra-afirmação, sendo denominada então de antílogo, que é também
“uma forma de discurso” e também de logos, só que num sentido mais amplo. Dessa
forma, é dado o sentido não apenas de oposição não verbal ao próprio discurso,
mas de um argumento individual se contrapondo a uma visão, em um argumento
social. Billig (2008, p. 102) finaliza dizendo que para Protágoras “a arte de
contradição parece ter sido um técnica importante da retórica”.
Podemos pensar, então, que, porque as pessoas estão se contradizendo o
tempo todo, é impossível estabelecer uma contradição que seja uma verdade
incontestável ou absoluta. De fato, não existirá uma refutação absoluta, visto que
todo antílogo poderá se tornar um logos a ser contradito ainda por outro antílogo.
Deste modo, para Protágoras (sugere ainda Billig) a rejeição filosófica da
contradição terá como base a premissa sociopsicológica de que as pessoas
possuem com frequência a capacidade de contradizer o logos, ou seja, as pessoas
constroem um discurso e um contradiscurso; um argumento e um contra argumento,
portanto.
67
3 DA METODOLOGIA DA PESQUISA
Minha pesquisa faz parte
da minha vida ,
e minha vida faz parte
da minha pesquisa.
Ladson-Bllins, 2006
O presente trabalho discute as relações raciais a partir da Análise do
Discurso, pesquisando nos dois maiores jornais de Pernambuco, Diário de
Pernambuco e Jornal do Commercio, textos (artigos de opinião e reportagens) que
abordam as propostas de adoção das cotas raciais para o ingresso de jovens negros
ao Ensino Superior. Essas produções discursivas são discutidas a partir do
referencial da Psicologia Social Discursiva. Tal abordagem, na pesquisa qualitativa,
ajudou-nos a refletir em termos teóricos e metodológicos sobre o tema, dando-nos
assim o aporte necessário para as análises e reflexões produzidas.
A Psicologia Social Discursiva insere-se aqui o como um método,
tradicionalmente descrito, mas como uma perspectiva teórico-analítica, sendo “[...]
uma abordagem incrustada numa teia de assunções teóricas e meta-teóricas.”
(POTTER, 2003, p. 02). Como apontaram Potter e Wetherell (1987), na Análise do
Discurso, temos um amplo quadro teórico sobre a natureza do discurso e seu papel
na vida social. Assim é que se pensou tal pesquisa, dentro da pesquisa qualitativa.
Sendo esse tipo de pesquisa, pesquisa qualitativa na perspectiva da
Psicologia Social Discursiva, insere-se, em si mesma, um campo de investigação e
de práticas interpretativas, não privilegiando nenhuma prática metodológica em
relação a outras, dizem Denzin e Lincoln (2006). Deste modo, será difícil defini-la
como um terreno de discussão ou de discurso, visto que não possui uma teoria, um
paradigma ou mesmo um conjunto de métodos ou práticas inteiramente seus.
Assim, continuam autores acima a dizer que
68
A pesquisa qualitativa é um campo interdisciplinar, transdisciplinar e
às vezes, contradisciplinar que atravessa as humanidades, as
ciências sociais e as ciências físicas. A pesquisa qualitativa é muitas
coisas ao mesmo tempo. Tem um foco paradigmático. Seus
praticantes são suscetíveis ao valor da abordagem de múltiplos
métodos, tendo um compromisso com perspectiva naturalista e a
compreensão interpretativa da experiência humana. Ao mesmo
tempo, trata-se de um campo inerentemente político e influenciado
por múltiplas posturas éticas e políticas (
DENZIN; LINCOLN, 2006,
p. 21).
A Psicologia Social Discursiva insere-se, portanto, não como um método
tradicional, como vimos acima, mas dentro da Análise do Discurso, como uma forma
de análise centrada em temas de psicologia. Sua metodologia faz com que os
pesquisadores do discurso façam perguntas diferentes daquelas comumente feitas
na própria psicologia. Uma vez que “Tais perguntas refletem o entendimento da
interação encarnada em seus princípios teóricos [...] o trabalho do discurso não é
feito para responder perguntas” (POTTER, 2003, p. 5), mas para formulá-las.
Para tal pesquisa, utilizamos a Análise do Discurso como ferramenta teórica e
analítica disponível dentro da pesquisa qualitativa. Apoiando-nos em Denzin e
Lincoln (2006), pensamos que a pesquisa qualitativa é, em si mesma, um campo de
investigação, atravessando tanto disciplinas como campos e temas os mais
diversos. Trata-se, portanto, de um termo complexo e interligado a tanto outros
termos, conceitos e suposições, entre os quais estariam as tradições
[...] associadas ao fundacionismo, ao positivismo, ao pós-
fundacionalismo, ao pós-positivismo, ao pós-estruturalismo e às
diversas perspectivas e/ou métodos de pesquisa qualitativa
relacionados aos estudos culturais e interpretativos. (
DENZIN;
LINCOLN, 2006
, p. 16).
Por ser a pesquisa qualitativa aberta a um conjunto de atividades
interpretativas, não poderia privilegiar nenhuma prática metodológica. Entretanto,
isto o significa um vale tudo metodológico, mas tão somente uma abertura a um
campo maior de possibilidades destas práticas metodológicas.
69
3.1 O “Corpus da Pesquisa”
Neste trabalho, pensamos a pesquisa qualitativa como aquela em que, muito
mais que ser interpretados, os dados da análise poderiam ser vistos como a maneira
pela qual a realidade social foi representada por determinado grupo, no caso, seus
autores (BAUER; GASKELL, 2008). A partir de então, pensamos que a realidade
social pode ser representada de maneiras variadas, podendo ser tanto informais
quanto formais, “[...] prevenindo-nos que o meio de comunicação a ser analisado
poderia também ser composto de textos, imagens ou materiais sonoros” (BAUER;
GASKELL, 2008, p. 22). Desta feita, optamos por textos jornalísticos impressos do
período de janeiro de 2008 a dezembro de 2009, sendo todo esse material
importante nessa pesquisa, embora optássemos pelas análises de textos referentes
exclusivamente às cotas raciais, num total de 25 textos colhidos como amostra. O
recorte temporal escolhido não se deu ao acaso, mas devido ao amplo debate sobre
o tema nesse período, ganhando cada vez mais visibilidade nos últimos tempos,
sem que se passasse um período sequer nos últimos dois anos em que não tenha
saído algo sobre o tema das cotas raciais na mídia.
Nos textos analisados, reportagens e artigos de opinião, os autores discorriam
sobre os temas das cotas, posicionando-se discursivamente neste debate. As
reportagens se apresentaram como textos mais informativos, em que quase sempre
não se tinha um autor nomeado ou que assinasse tal texto. São textos, por sua
própria natureza, construídos de modo a posicionar os seus autores numa posição
de neutralidade. O posicionamento é predominantemente tácito, implícito, não
declarado.
os textos de opinião foram aqueles com autoria assinada e reconhecida,
trazendo sempre uma posição definida, mesmo que de modo ambíguo. É importante
observar que a responsabilidade é sempre de quem assina, não necessariamente
traduzindo a posição do jornal. Nestes artigos, diversamente das reportagens,
observamos os caminhos discursivos mais variados, ora trazendo conteúdos
“puramente” descritivos, ora narrativos.
Observamos ainda textos em que o(a) autor(a) descrevera o tema numa
narrativa descritiva de fatos históricos, justificando ou negando a possibilidade de
adoção da cotas. Por uma questão metodológica, foram analisados os textos em
70
que o tema das cotas apareceu claramente no corpo do texto descrito (e, portanto,
analisado). Como exemplo, descreveremos alguns trechos melhor explicitados nos
capítulos das análises:
- “Conquista: Sempre que surgem polêmicas sobre o sistema de cotas
raciais nas universidades, penso no verso...”;
- “Porque as raças humanas não existem e porque o governo estaria criando
‘um sistema que concede privilégios para candidatos de classe média
arbitrariamente classificados como negros’, um grupo de intelectuais, sindicalistas,
empresários e ativistas de movimentos negros e outros movimentos sociais pediu
hoje (30) ao STF que considere inconstitucionais as cotas raciais instituídas para
a seleção de candidatos nas universidades”;
- E por que este privilégio de "cotados"? Por serem negros, índios, pobres?
Assim, optamos por jornais locais, buscado observar como “as vozes
pernambucanas” posicionavam-se sobre as relações raciais brasileiras a partir do
tema das cotas raciais. Deste modo, nossa questão era buscar compreender como,
partindo da discussão sobre a adoção das cotas nas universidades blicas, foram
construídos os discursos locais sobre as relações, discorrendo também sobre os
temas relativos à questão racial.
Um dos locais onde pudemos pesquisar e colher os dados dos jornais foi o
Arquivo Público de Pernambuco/APE, criado em 1945 e que desde a década de
1970 vem sendo chamado Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciando (APEJE).
O Arquivo Público funciona na Rua do Imperador, número 371, no bairro de Santo
Antônio, no Recife, sendo de responsabilidade da Secretaria Estadual de Educação.
O outro local onde pesquisamos foi na Biblioteca Estadual Presidente Castelo
Branco, situada na Rua João Lira, Parque Treze de Maio Santo Amaro, Recife,
também de responsabilidade da Secretaria Estadual de Educação.
13
Vale a pena registrar aqui algumas dificuldades do campo que foram
encontradas. Uma dificuldade diz respeito ao processo de digitalização dos jornais
publicados no estado, pois ainda não um processo de digitalização disponível
para jornais recentes, podendo-se conseguir jornais digitalizados, para pesquisas,
de um período anterior a cinco anos, conforme informações obtidas, via contato, na
13
VAINSENCHER, Semira Adler. Arquivo Público Estadual de Pernambuco. Pesquisa Escolar
On-Line, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: <http://www.fundaj.gov.br>. Acesso em: 26 jun.
2010
71
Fundaj e no Diário de Pernambuco, neste último há possibilidade de pesquisas
manuais, com autorização especial.
Nos espaços acessíveis, Arquivo e Biblioteca Públicos existem jornais
impressos. Embora existam dados neste sistema (digital), eles estão nos
jornais/instituições que os publicam, não sendo permitido o acesso a pessoas
estranhas àqueles veículos de comunicação. O local mais adequado a esta pesquisa
seria a Fundaj que recentemente iniciou, em parceria com o Diário de
Pernambuco, um processo de digitalização completo para as publicações mais
recentes, incluindo o período escolhido por nós dos dois últimos anos. Assim, foi
necessário pesquisar o ano de 2008, por exemplo, lendo os jornais dia por dia.
Outros problemas encontrados, tanto no Arquivo Público quanto na Biblioteca
foram: jornais faltando, páginas rasgadas ou edições incompletas. Os locais eram
insalubres e os jornais em mau estado de conservação. O Arquivo Público, local
mais organizado (na nossa opinião) para “captação” dos dados, entrou em reforma
em novembro/2009, ficando até o início os primeiros meses deste ano sem funcionar
por problemas estruturais.
recentemente, em dezembro de 2009, a Biblioteca iniciou seu processo de
encadernação dos jornais, o que facilitará, sem dúvida, pesquisas futuras. Também,
mês de dezembro é que disponibilizou um local mais adequado (mas ainda
improvisado) para quem ali pesquisava. No entanto, com todos os contratempos
enfrentados, o processo de pesquisa, mostrou-se rico dado que foi possível observar
nos jornais os “modos” como as falas, ao referirem-se aos pensamentos,
sentimentos, memórias, planos e discussões das pessoas, podem ser “lugares” que
“nos dizem mais” do que seus autores e autoras possam sequer imaginam (BAUER,
2008).
Do lugar de onde falamos, ou seja, das matérias encontradas e pesquisadas
(artigos de opinião e reportagens), observamos que os posicionamentos vinham com
argumentos variados, contra-argumentos, posicionamentos fechados,
posicionamentos ambíguos e sutis. Os repertórios também foram os mais variados,
desde o acirramento de uma luta racial, a lógica da meritocracia, o discurso do
privilégio, da pobreza de um debate sobre este tema, até o debate polêmico como
um caminho quase sempre presente, associado a outros grandes temas também
polêmicos, a exemplo do aborto e da homofobia. Desta maneira, o que pudemos
observar nos textos pesquisados, como diria Billig (2008), foi que a força retórica da
72
linguagem fora tal que a própria escolha de alguns termos nos dera também uma
posição daqueles discursos uma vez que a escolha de termos, mesmo que neutros,
já implicou numa tomada de posição.
Embora não existisse um roteiro prévio de análise, pensamos que o material
analisado nos guiaria ao caminho que deveríamos melhor seguir, caminhando assim
num roteiro construindo passo a passo, num processo de “fazer fazendo”. Afinal, tal
como o discurso é construído se construindo (e se constituindo), construímos um
caminho metodológico vivo, cambiante.
Criamos, para melhor organizar a análise dos textos, três categorias de
análise, assim distribuídas: a) textos favoráveis às cotas; b) textos contrários às
cotas; c) textos ambíguos. Tais definições estiveram presentes nos artigos
opinativos, em que seus autores declaradamente se mostravam no discurso sobre o
tema, diversamente das reportagens em que não havia uma autoria definida, textos
estes tidos comumente como mais “neutros” ou objetivos.
O percurso que se pretendeu seguir foi sendo construído,
metodologicamente, à medida que realizávamos a pesquisa e analisávamos os
textos jornalísticos, bem como do aprofundamento no estudo do tema, ora proposto.
Assim, a cada leitura de jornal, não sem surpresa, observamos que poucos escritos
foram produzidos por pessoas do Estado de Pernambuco, desta feita, as vozes
locais foram minoritárias. as falas (escritas) de fora do estado foram aquelas em
encontramos mais consistência na análise, fosse para defender fosse para refutar as
cotas, enriquecendo assim a nossa análise.
Os jornais cujos textos analisamos, Diário de Pernambuco e Jornal do
Commercio, exercem influência significativa nos públicos mais diversificados ao
tocar em temas polêmicos, a exemplo do estudo proposto pela pesquisa. Deste
modo, optamos por pesquisar períodos mais recentes visto que o tema ganhava as
páginas dos jornais, tanto locais quanto de circulação nacional, à medida que fatos
relevantes ao tema tinham destaques, a exemplo do caso em que um dos irmãos
gêmeos foi preterido num mesmo processo de seleção por cotas (na UNB, três
anos, e mais recentemente a na UFMA Universidade Federal do Maranhão, em
2008, caso das irmãs) tendo resultados diferenciados, gerando assim grande debate
na mídia. Mais recentemente, o debate sobre a polêmica da aprovação do estatuto
da igualdade racial no qual o tema das cotas raciais para acesso de jovens negros
73
ao Ensino Superior apareceu como um dos pontos nevrálgicos, fato que chegou a
dificultar sua aprovação.
3.2 A análise
O processo de análise se iniciou com um mapeamento dos jornais a serem
analisados, a partir do período escolhido. Ao todo, foram 25 textos contendo o tema
das cotas. As informações destacadas nessa análise foram as seguintes: a) textos
referentes às cotas raciais; b) data da publicação contendo temas das cotas no
corpo do texto ou no titulo; c) título da matéria ou opinião; d) identificação da
autoria quando se tratou de artigo opinativo. Foram destacados os textos onde
apareceram os argumentos que chamaram nossa a atenção durante o processo de
análise, dados os recursos discursivos presentes, o repertório interpretativo e a
construção retórica.
Neste trabalho, foram coletados e analisados 25 textos de jornais,
constituindo-se na amostra análise, porém, apresentamos aqui os textos mais
representativos da amostra, aqueles que melhor representam o conjunto de
argumentos e formas de organização discursiva presentes nos 25 textos.
Conforme descrito acima, para melhor organizar as análises dos textos,
dividimos os artigos, num primeiro momento, em três categorias amplas: artigos de
opinião favoráveis às cotas; artigos de opinião contrários às cotas; artigos ambíguos.
No caso das reportagens, não foi possível encontrar, pela própria natureza desses
textos, posicionamentos explícitos contrários ou favoráveis às cotas. De qualquer
forma, o modo como foram organizados produzem determinados efeitos retóricos e
ideológicos, muitas vezes não intencionais, que marcam um posicionamento, ainda
que cito, em relação ao tema abordado. Afinal, como sugere Gill (2006, p. 249),
“Até mesmo a descrição sonora aparentemente mais direta e neutra pode estar
implicada em um conjunto completo de diferentes atividades, dependendo do
contexto interpretativo.”
Embora nossa amostra esteja definida nos 25 textos jornalísticos analisados,
compreendemos, como sugerem Potter e Wetherell (1987), que o sucesso de um
estudo não dependerá do tamanho da amostra, mas das questões específicas desta
pesquisa. Assim, como intentamos observar os posicionamentos sobre as relações
raciais, o debate sobre as cotas foi um mote importante para pensar os modos como
74
tais discursos se revelavam, construindo-se na realidade social brasileira em que
muitas vezes o discurso sobre raça aparece de ambíguo ou mascarado.
Observamos percursos argumentativos que utilizaram da retórica da negação
do racismo, da inexistência das raças, da miscigenação do país, entre outros.
Reconhecemos, assim, que a questão racial hoje está na sociedade e que a
proposição das cotas raciais foi importante para que tal debate ganhasse um
destaque público a partir da mídia (no geral) e dos jornais (em particular)
fortalecendo-se como uma questão importante.
75
4 AS ANÁLISES DO MATERIAL DISCURSIVO – POSICIONAMENTOS SOBRE AS
COTAS EM ARTIGOS DE OPINIÃO
A análise dos artigos de opinião partiu num primeiro momento de categorias
amplas que classificavam os discursos presentes nos textos levando-se em
consideração o posicionamento dos autores sobre as cotas. Tais posicionamentos
consistiram em ser favoráveis ou contrários à política de ação afirmativa,
especificamente as cotas, embora o principal interesse desta pesquisa não fossem
os posicionamentos favoráveis ou contrários (às cotas) em si, mas como foram
construídos os argumentos presentes nesses textos e quais os repertórios
interpretativos utilizados. Na apresentação a seguir constam nove artigos, sendo um
de opinião favorável, seis contrários e um categorizado como ambíguo.
4. 1 Construindo os posicionamentos favoráveis
A análise abaixo discorre sobre um texto de opinião em que a autora,
posicionando-se a favor das cotas raciais, nos traça um caminho a partir de relatos
históricos. Referimo-nos a um artigo de opinião extraído do Diário de Pernambuco
de 25 de maio de 2008, único artigo de opinião em nossa amostra francamente
favorável às cotas, em que a autora inicia sua argumentação adotando um tom um
tanto quanto ufanista, ao discorrer sobre os fatos ocorridos desde o processo da
abolição da escravatura. A jornalista de prestígio adota uma linha argumentativa
convincente ao relacionar fatos históricos com a realidade atual do negro. O título, a
principio, não nos sugere o debate que se segue, início de um trecho de um poema
de Olavo Bilac
14
, em que o poeta fala da sensação de ser tachado de tresloucado
porque diz que ouve as estrelas.
14
Via Láctea
"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso"! E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...E conversamos toda a noite, enquanto
A via láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora! "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"
E eu vos direi: "Amai para entendê-las:
76
Ora, direis!
A luta contra a escravidão foi um movimento cívico de envergadura.
Misturou povo e intelectuais, negros e brancos, republicanos e
monarquistas. Foi uma resistência que durou anos. Houve passeatas
de estudantes e lutas nos quilombos. Houve batalhas parlamentares
memoráveis e disputas judiciais inesperadas. Os contra a abolição
reagiram nos clubes da lavoura, na chantagem econômica e nos
sofismas. O país se dividiu e lutou. Venceu a melhor tese. Pena o
país ter feito o reducionismo que fixou na memória coletiva apenas o
instante da assinatura da lei pela Princesa. Tudo foi varrido. Do povo
em frente ao Paço à persistência para se aprovar a lei que tornou
extinta a escravidão no Brasil.
Foram seis anos de lutas parlamentares para libertar os não-
nascidos, após quedas de gabinetes, avanços e retrocessos. Mais
luta de vários anos para libertar os idosos. Por fim, a maior das
batalhas: a libertação de todos.
Será mais rápida se o país não acreditar nas falsas ameaças de que
tocar no assunto nos trará o inferno da divisão por raças.
O artigo inicia apontando que na “luta contra a escravidão”, evento de grande
envergadura, houve a participação de diferentes grupos da sociedade, “povo e
intelectuais, negros e brancos, republicanos e monarquistas”, construindo a imagem
de um Brasil irmanado pela mesma causa naquele momento de sua história, um
Brasil que conseguiu fazer a junção de setores opostos da sociedade.
O texto destaca o fato de todo o processo ter se dado através de retrocessos
e avanços, que, ao final, levaria à libertação de todos (abolição da escravatura). Em
seguida, argumenta-se contra a ideia de que tocar no assunto das raças produziria
um acirramento do conflito entre estas. A autora, na verdade, faz alusão a um velho
medo das elites nacionais. Sabe-se que desde a Revolta dos Malês permanecia na
elite um temor de uma revolta dos escravos contra os senhores, o que hoje
podemos dizer que ainda permanece no medo (das elites) de que o morro desça até
o asfalto.
Lutou-se com a poesia e o jornalismo. Com a política e o Direito.
Lutou-se na Justiça com as Ações de Liberdade, incríveis processos
que escravos moviam contra seus donos. Os negros lutaram de
forma variada: com a greve negra em Salvador, com rebeliões e
quilombos. Os escravocratas adiaram o inevitável, ameaçaram com a
derrota econômica, assombraram com todos os fantasmas nacionais.
Pareciam vencer até que perderam.
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".
Olavo Bilac
77
Para ela, os modos de lutar contra a escravidão foram os mais variados, no
entanto em algum momento parecia que a vitória seria dos escravocratas, que
ameaçaram, com seu poder econômico, adiar o inevitável”, parecendo em alguns
momentos que venceriam, embora no final tenham perdido, a “abolição” se
concretizou.
Fica em quem revisita a história a constatação de um erro: os
abolicionistas se dispersaram cedo demais. Era a hora de reduzir a
imensa distância que a centenária ordem escravagista havia criado
no país. Venceu a idéia de que, deixado ao seu ritmo, o país faria
naturalmente a transição da escravidão negra para um outro país,
sem divisões raciais. Idéia poderosa esta da inércia salvacionista. Ela
construiu o imaginário de um país sem racismo por natureza, que
teria eliminado o preconceito naturalmente, como se as marcas
deixadas por 350 anos de escravidão fossem varridas por um ato,
uma lei de duas linhas. Ainda quem negue, hoje, que haja algo
estranho numa sociedade de tantas diferenças.
Observa-se que a luta dos abolicionistas não se esgotaria ali naquele
momento, tendo todos se dispersado cedo demais, afinal haveria mais a fazer até os
dias de hoje. No seu argumento, a ideia que venceu foi aquela segundo a qual no
país a transição da escravidão para um país sem divisão racial se daria
naturalmente. Essa inércia salvacionista teria construído a mentalidade de que
seriamos um país sem racismo, onde o preconceito seria eliminado naturalmente.
A autora cita fatos históricos que ressaltam a capacidade organizativo-política
dos negros escravos, da “greve negra em Salvador” e de “rebeliões e quilombos”.
A
“greve negra” a que se refere é a famosa Revolta dos Malês ocorrida em Salvador,
revolta dos africanos mulçumanos, que promoveram um levante, da noite de 24 para
25 de janeiro de 1835, ocupando as ruas da cidade baiana (REIS, 2003).
Para a jornalista, após a abolição seria a hora de reduzir a imensa distância
que a centenária ordem escravagista havia criado no país. Pode-se pensar, assim,
que a partir deste momento haveria outras tarefas a serem desenvolvidas que
apontassem para a melhoria da vida dos ex-escravos ou outras lutas viriam? Ela
aponta que havia uma distância a ser superada no país, referindo-se à distância que
se estabeleceu socialmente entre os grupos raciais desde então e que permanece
até hoje.
78
O manifesto contra as cotas tem alguns intelectuais respeitáveis.
Mais os respeitaria se estivessem pedindo avaliações e estudos
sobre o desempenho de política tão recente; primeira e única
tentativa em 120 anos de fazer algo mais vigoroso que deixar tudo
como está para ver como é que fica. O status quo nos trouxe até
aqui: a uma sociedade de desigualdades raciais tão vergonhosas de
ruborizar qualquer um que não tenha se deixado anestesiar pela
cena e pelas estatísticas brasileiras.
Reconhecendo que no manifesto contra as cotas existe a presença de
intelectuais respeitáveis, a jornalista sugere que estes poderiam pedir a avaliação da
política, ao contrário de criticá-la. que este é o momento em que se fez algo
depois muito tempo, ou seja, após 120 anos da abolição (“comemorado” em 2008).
Seu argumento apela para um sentimento (e/ou uma consciência) moral em que a
sensibilidade (qualquer um que não tenha se deixado anestesiar) e a inquietação
estejam presentes (de fazer ruborizar qualquer um que não tenha se deixado
anestesiar pela cena e pelas estatísticas brasileiras).
A jornalista afirma, com ironia, que mais os respeitaria (aos intelectuais) se
estivessem pedindo avaliações e estudos sobre o desempenho de política tão
recente, reforçando ser esta a primeira e única tentativa em 120 anos de fazer algo
mais vigoroso que deixar tudo como está para ver como é que fica. Ou seja, uma
atitude foi tomada, algo mais do que deixar as coisas como estão ou seguir seu
próprio rumo. A autora do texto está criticando a atitude de desresponsabilização
das elites brasileiras (lavar as mãos) para a qual chama (ao seu modo) a atenção.
Ora, direis: o que tem o glorioso abolicionismo com uma política
tópica - para tantos, equivocada - de se reservar vagas a pretos e
pardos nas universidades públicas?
Ora, a cota não é a questão. Ela é apenas o momento revelador, em
que reaparece com força o maior dos erros nacionais: negar o
problema para fugir dele. Os "negacionistas" - expressão da
professora Maria Luiza Tucci Carneiro, da USP - sustentam que o
país não é racista, mas que se tornará caso alguns estudantes pretos
e pardos tenham desobstruído seu ingresso na universidade. Erros
surgiram na aplicação das cotas. Os gêmeos de Brasília, por
exemplo. Episódios isolados foram tratados como o todo. Tiveram
mais destaque do que a análise dos resultados da política. Os
cotistas subverteram mesmo o princípio do mérito acadêmico?
Reduziram a qualidade do ensino universitário? Produziram o ódio
racial? Não vi até agora nenhum estudo robusto que comprovasse a
tese manifesta de que uma única política pública, uma breve
experiência, pudesse produzir tão devastadoras conseqüências. Os
órgãos de comunicação têm feito uma enviesada cobertura do
debate. Melhor faria o jornalismo se deixasse fluir a discussão, sem
tanta ansiedade para, em cada reportagem, firmar a posição que
79
está explícita nos editoriais. A mensagem implícita em certas
coberturas só engana os que não têm olhos treinados.
Ela sugere também que o tema em si não seria o problema, as cotas não são
a questão de fato. A reação às cotas seria uma tentativa de impedir a discussão da
questão racial, a negação do problema racial brasileiro, sendo esta negativa “o maior
dos erros nacionais: negar o problema para fugir dele”. Os "negacionistas" seriam
aqueles que sustentam a ideia de um país o racista, que negariam a realidade.
Estes negariam o racismo no Brasil e contra-atacariam alardeando que o país se
tornará racista, dividido em termos raciais, se as cotas forem adotadas e que as
cotas reduziriam o rito acadêmico.
O primeiro é
um dos argumentos mais
recorrentes dos anticotistas. A ideia de uma ominosa divisão entre as raças marcada
por conflitos violentos e abertos como nos Estados Unidos dos anos 60 do século
passado é, de maneira implícita ou explícita, sempre atualizada em discursos
contrários às cotas. A autora sabe disso, e sabe da força desse discurso na
sociedade brasileira, profundamente antidiferencialista. Ela autora combate os dois
argumentos usando o poderoso repertório empirista: “Não vi até agora nenhum
estudo robusto que comprovasse a tese manifesta de que uma única política
pública, uma breve experiência, pudesse produzir tão devastadoras conseqüências”.
É uma outra maneira de perguntar: onde está a evidência empírica?
Ora, direis, que vantagens podem ter políticas que atuam apenas no
topo da escala educacional? Ter mais pretos e pardos junto aos
brancos, nas universidades públicas, permite a saudável convivência
no mesmo vel social. Na minha UnB, não havia negros; na atual,
mais de dois mil. Isso é um começo num país com o histórico do
Brasil.
Melhorar a educação pública sempre será fundamental para construir
o país futuro, mas isso não conflita com outras políticas desenhadas
diretamente para derrubar as barreiras artificiais e dissimuladas que
impedem a ascensão de pretos e pardos. O vestibular não mede a
real capacidade do aluno de estar numa universidade, mas, sim,
quem aprendeu melhor os truques dos cursinhos. muito a fazer
pelo muito não feito neste longo tempo em que se esperou que,
deixando tudo como está, tudo se resolveria. Ajudaria se intelectuais,
ou não, quisessem avaliar as políticas de ação afirmativa, em vez de
ter medo delas.
O racismo brasileiro é ardiloso e dissimulado. A luta contra ele será
longa e difícil. Será mais eficiente se unir brancos e negros. Será
mais rápida se o país não acreditar nas falsas ameaças de que tocar
no assunto nos trará o inferno da divisão por raças. Ora, a divisão
existe; sempre existiu. O que precisam ser construídos são os
caminhos do reencontro.
80
As cotas não produziriam ódio racial, segundo a autora. Diferentemente do
que dizem os críticos, as cotas proporcionam convivência saudável entre grupos
raciais e/ou de cores diferentes, possibilitando a convivência da diferença ou
diversidade. Ela cita como exemplo o caso da UNB, onde no seu tempo de
estudante não havia a presença de negros. Para ela, ali se estabeleceu a política de
inclusão para negros com as cotas raciais, o que permitiu uma convivência saudável
e não um acirramento racial como apontaram alguns, quebrando assim o argumento
presente nos discursos daqueles que combatem as cotas alegando que elas
provocariam um acirramento racial.
O texto volta a questionar os intelectuais contrários às cotas dizendo que
estes ajudariam mais se quisessem avaliar uma proposta que está posta em lugar
de colocar-se contra esta ou temê-la. Para a autora o processo do vestibular é
questionável, colocando-o como uma forma de medir o a capacidade de
aprendizagem do aluno, mas do que ela denomina de “truques dos cursinhos”.
Por fim, afirma-se que o racismo brasileiro é ardiloso e dissimulado e que há
um longo e difícil caminho a percorrer para sua superação. A jornalista conclui
retomando o combate do argumento de que a discussão da questão racial “nos tra
o inferno da divisão por raças”, uma vez que, para ela o Brasil é e sempre foi um
país dividido racialmente. Implicitamente, ela sugere que falar sobre a questão racial
e criar políticas afirmativas como as cotas seriam pedras nos “caminhos do
reencontro”.
4. 2 Construindo os posicionamentos contrários
Esta análise realiza-se sobre um artigo de opinião extraído do Jornal do
Commercio, publicado em 11 de dezembro 2008, de um professor de Ciências
Humanas da UFPE, que se apresenta com o seguinte título: Um tremendo
equívoco. No título, o autor sugere um posicionamento negativo em relação a
algum objeto que o leitor só vai conhecer quando inicia a leitura do texto, pois o título
não explicita o tema abordado:
Um tremendo equívoco
alguns anos está se discutindo sobre cotas para ingresso nas
universidades brasileiras. A Lei de Diretrizes e Bases da educação
nacional não exige mais o clássico vestibular para o acesso ao
ensino superior, apenas fala em processo seletivo. Esta seleção
81
depende de cada instituição superior, desde que tenha o aval do
MEC. Como se trata de aprendizagem, é de se supor que o processo
seletivo deva ocorrer com base em níveis de conhecimentos, ou em
capacidade de aprendizagem. Por isto, em algumas universidades e
faculdades a seleção de seus estudantes toma em consideração
os resultados do Enem, ou simplesmente o resultado dos estudantes
no grau médio. Isto é perfeitamente aceitável. Inclusive porque
existem países, e países altamente desenvolvidos, que admitem
seus estudantes ao ensino superior apenas considerando seu
rendimento no nível médio.
No Brasil, estranhamente se começou a falar, nos últimos anos, em
estabelecer cotas raciais e/ou sociais para o acesso ao ensino
superior. Argumenta-se que são necessárias ações afirmativas em
relação aos afro-descendentes, aos índios, aos cidadãos de baixa
renda, aos egressos de escolas públicas. Argumenta-se também que
nos Estados Unidos as ações afirmativas, neste sentido, melhoraram
a proporção de negros nas universidades, o que era uma exigência
da democracia. Vou fazer algumas considerações sobre esta onda
pró-cotas.
Primeiramente quanto aos Estados Unidos. A situação nos Estados
Unidos era muito diversa da existente no Brasil. se constatou que
os cidadãos negros não tinham o mesmo acesso aos bens sociais e
culturais como os brancos. Por exemplo, médicos, dentistas brancos
não atendiam às comunidades negras suficientemente, havia
insuficiência de professores para as escolas nos bairros negros. Os
brancos não se misturavam com os negros... E isto foi considerado
como incompatível com a sociedade democrática dos Estados
Unidos. Por isso, ações afirmativas para que mais negros se
tornassem médicos, dentistas, professores e fossem atender às
comunidades negras na mesma proporção em que eram atendidos
os cidadãos brancos.
O autor inicia o artigo abordando diretamente aquilo que de fato é o tema do
seu artigo, mas subitamente parece mudar de assunto, passando a falar sobre as
formas de acesso ao Ensino Superior no país. Saberemos depois que esse desvio
faz parte do argumento que irá se desenvolver para combater às cotas.
O autor afirma que a seleção para ingresso à universidade deve ocorrer com
base no nível de conhecimento ou capacidade de aprendizagem do aluno, que
isto ocorre em países altamente desenvolvidos. O autor está mobilizando
tacitamente o argumento do rito, segundo o qual aqueles com capacidade,
inteligência, conhecimento, ou seja, que tenham ritos para estarem nas
universidades, devem de fato estar lá. Segundo Maristela Guimarães (2008) são os
argumentos da meritocracia, aos quais tanto Guimarães (1999) quanto Carvalho
(2005) se referem, apontando como presentes no combate às cotas. Para Maristela
Guimarães (2008), que pesquisou no orkut o tema das cotas raciais, o Prof.
Carvalho (da UNB) sugere que a ideia da meritocracia é resultante de
82
comportamentos e pensamentos individualistas, práticas comuns presentes em
sociedades democráticas (GUIMARÃES, 2008). A afirmação do autor do artigo de
opinião de que “Países altamente desenvolvidos” adotam processos de seleção
baseados no mérito carrega a sugestão implícita, não necessariamente intencional,
de que aqueles que supostamente defendem outros critérios o atrasados e
subdesenvolvidos (como veremos, para o autor, as cotas não levariam em conta o
mérito, por serem privilégios).
Ele acha estanho falar-se em estabelecer as cotas raciais e/ou sociais para o
acesso ao ensino superior no Brasil. Neste trecho, o autor traz o argumento
comparativo entre Brasil e EUA, mas apontando que lá, diferentemente daqui, houve
de fato uma necessidade pela segregação imposta aos negros, justificando-se ter o
sistema de cotas, mesmo que por um período. Aqui não houve segregação, portanto
não haveria justificativa para a adoção do sistema de cotas.
No Brasil é diferente. Num debate sobre cotas, perguntei aos
representantes afros se, caso entrassem na universidade por cotas,
depois de formados, estavam dispostos a voltar para suas
comunidades de predominância negra, a fim de atender melhor a
esta população. A resposta foi unânime: não! Pois se considerariam
cidadãos livres, numa sociedade democrática, com liberdade de
trabalhar onde julgassem mais proveitoso. Portanto, o argumento dos
Estados Unidos para ações afirmativas não tem sentido no Brasil.
Inclusive porque aqui não temos o apartheid, com bairros, favelas,
submundos exclusivamente com populações de afro-descendentes
ou de índios. A nossa população é mista. No Sul do Brasil, por
exemplo, as favelas são predominantemente de populações brancas.
Mas e os nossos argumentos em favor de cotas?
Sim, o Brasil tem uma dívida enorme em relação aos afro-
descendentes, aos remanescentes indígenas e em relação aos
cidadãos de baixa renda. Mas esta dívida não se remediará com
cotas. Pois afro-descendentes, descendentes indígenas e cidadãos
de baixa renda, uma vez formados, não necessariamente voltarão
para suas comunidades. Nem se poderá exigir isto deles, pois em
nossa democracia capitalista o cidadão é livre, e é estimulado a
assumir a profissão onde ele vai ter maior proveito. E isto não
acontecerá no meio da miséria ou da pobreza. Portanto, desde ,
pode-se dizer que o Brasil não melhorará suas condições
simplesmente porque alguns cidadãos foram privilegiados com cotas
para acesso às universidades.
O texto prossegue dizendo que nos EUA os negros não tiveram acesso aos
bens sociais e culturais como os brancos, o que justificaria a política de cotas,
que, após formados, os que estiveram utilizando das cotas, voltavam aos seus
lugares de origem para atender aos outros de sua própria cor, os quais não eram
83
atendidos pelos profissionais brancos, como um pagamento pela benesse das cotas.
no Brasil isto não ocorreria, pois os negros aqui não passariam pelas mesmas
dificuldades que marcaram o regime de segregação nos Estados Unidos. Assim, não
fariam como fizeram os negros norte-americanos, retornando ao seu grupo para
ajudar os que não conseguiram.
O autor afirma que no Brasil é diferente e não faz sentido falar de cotas aqui
até porque aqui o temos apartheid. O argumento nos sugere uma relação de
igualdade no Brasil, fato desdito pelos índices de desenvolvimento humano
(conforme apontando no capítulo 1). A retórica da igualdade entre negros e brancos
é uma das mais utilizadas no país para fortalecer a ideia de que a política de cotas
não se justificaria aqui, porque não haveria aqui uma relação diferenciada no nível
daquela encontrada no apartheid institucionalizado na África do Sul e determinado
socialmente nos Estados Unidos.
Outro argumento comum no debate é trazido à tona, aquele que fala da
dificuldade em diferenciar quem é de fato negro ou branco no Brasil, em decorrência
da miscigenação, aliando-se a isto o problema dos pobres brancos, argumento
mobilizado por autores tais como Kamel (2006) e Maggie (2005). Kamel (2006)
chega a sugerir que utilizar a metodologia dos defensores das cotas seria utilização
da metodologia norte-americana para pensar quem é ou não negro no país, o que
segundo ele, seria utilizar também uma sociologia que dividiria o país entre brancos
e negros, recorrendo-se, para isto, a uma metodologia racista para analisar o
racismo (!).
Enquanto isto, vejamos o que diz o autor de nossa análise: A nossa
população é mista. No Sul do Brasil, por exemplo, as favelas são
predominantemente de populações brancas. Mas e os nossos argumentos em favor
de cotas? Para ele, a população brasileira é mista trazendo deste modo ideia da
mestiçagem (e miscigenação) ao debate. Tais crenças são reflexos da ideologia aqui
construída de igualdade entre as raças a partir do mito da “democracia racial
brasileira”, crenças essas influenciadas por autores como Freyre e Pierson (apud
MAIO, 2009).
Nosso autor continua, reconhecendo que o Brasil tem uma dívida com
aqueles que seriam alcançados por uma política de adoção das cotas, a saber,
negros, indígenas e pobres (cidadãos de baixa renda), mas sustenta que as cotas
84
não são adequadas para pagar essa dívida. Então,, que se perguntar: o que
pagaria?
E por que este privilégio de "cotados"? Por serem negros, índios,
pobres? Ora, ora, na civilização ocidental iluminista, cristã e
democrática, as pessoas, séculos, não devem ser mais
classificadas e valoradas por critérios raciais, étnicos e sociais.
Ninguém entre nós é pária por nascimento, todos somos iguais
perante a lei. Todos os homens são igualmente dignos... Se as
escolas públicas não prestam, se existe miséria, se populações
inteiras, seja desta ou daquela origem, não têm acesso a um ensino
de qualidade, isto não depende de sua cor ou de sua etnia. É uma
questão de política, de corrupção da verdadeira política, de leis
injustas. E a função de políticos justos, honestos e dignos seria
discutir e remediar as causas de tais situações, e não criarem
discriminações raciais, étnicas e sociais numa sociedade
democrática, onde todos são iguais por lei, e têm o direito ao ensino
de qualidade, seja em escolas públicas ou particulares. E isto é uma
questão política, com princípios democráticos do século 21. Da forma
como o Congresso Nacional quer estabelecer as cotas, no meu
entender, é um tremendo equívoco e democraticamente
inconstitucional. Se muito, pode se admitir um sistema temporário de
cotas, jamais perene e impositivo.
Como podemos ver, para ele, os cotados seriam privilegiados. Um discurso
muito difundido por aqui é o que afirma que políticas de ações afirmativas, como as
cotas, criam privilégios, que todos somos iguais perante a lei. Outro argumento
presente em sua análise é da escola pública que é ruim e que precisa ser
melhorada, isto após sugerir que numa sociedade civilizada e iluminista não caberia
mais tratar os homens como párias, pois todos são iguais, não devendo ser
valorados por etnia ou cor.
O artigo é finalizado de maneira um tanto quanto contraditória, se levarmos
em conta sua argumentação anterior radicalmente contrária às cotas, que, se muito,
pode-se admitir um sistema temporário de cotas, jamais perene e impositivo”, sem
ter citado qualquer declaração ou texto em que se defendesse um sistema de cotas
“perene”.
O artigo a seguir consiste numa carta de um leitor que escreve com
frequência no Jornal do Comercio. Tal opinião foi publicada neste jornal em 29 de
maio de 2008.
Raças
De tanto ouvir falar em cotas para negros em universidades, em
terras para quilombolas e em demarcação de reservas indígenas
onde o branco não pode entrar, comecei a imaginar que nosso País
85
está realmente mudando e para pior. Vejamos: não se luta para que
o pobre, independentemente da cor, tenha estudo garantido. Com a
criação das quilombolas e as famosas reservas indígenas, procura-
se segregar essas duas raças em seus bolsões, para que não
entrem em terra de branco. Sinceramente, quem assim pensa, está
esquecido que aprendeu nos bancos escolares que a nacionalidade
brasileira se deu nos Montes Guararapes, com a união do branco
com o negro e o índio. Está na hora de botarmos a cabeça no lugar e
lembrarmos que nossa raça vem se amalgamando desde 1500. É
raro encontrar um brasileiro que não tenha em seu sangue a mistura
das três raças. Vamos lutar por nossas melhorias,
independentemente de cor e credo religioso, pois todos somos iguais
perante as leis, conforme atesta nossa Carta Magna.
O autor sugere que o país está mudando para pior, a partir do que ouve sobre
as cotas para negros em universidades, assim como sobre as terras para
quilombolas e a demarcação de reservas indígenas. Ele sugere que nestes espaços
o branco não pode entrar e que isto soa como a luta por privilégios, pois não se luta
para que o pobre, independentemente da cor, tenha estudo garantido. Supondo um
privilégio, é passada a ideia de que as políticas universalistas podem resolver os
problemas mais que simples ações específicas. Afinal, o argumento é que as cotas
piorariam o país.
O texto manifesta ainda que a tentativa de defesa das terras indígenas e
quilombolas seria uma busca de segregar as duas raças num bolsão para que o
branco não entre, o racismo seria das raças negras, no caso dos quilombolas, e
indígenas que segregariam o branco, ressalta a miscigenação das três raças visto
que “a nacionalidade brasileira se deu nos Montes Guararapes, com a união do
branco com o negro e o índio”. Utilizando um argumento muito comum, o da
miscigenação, segundo o qual não saberíamos quem de fato é negro no país, visto
que somos um país misturado, portanto miscigenado, ressalta-se que esta tal raça
miscigenada vem “se amalgamando desde 1500”, sendo raro encontrar um brasileiro
que não tenha em seu sangue a mistura das três raças. Esse trecho lembra Gilberto
Freyre (1970) quando diz que todo brasileiro, mesmo o branco, traria a sombra da
mistura das raças. Assim, pode se observar novamente como é significativa a
influência do pensamento freyreano para sustentar a ideia da miscigenação, como
algo forte em nosso Estado. Ressaltando a nossa igualdade, o autor desse artigo
traz para sua escrita a ideia da igualdade constitucional.
O artigo a seguir, datado de 18 de maio de 2008, publicado no Jornal do
Commercio é de autoria de uma advogada, docente universitária, que discorre sobre
86
as cotas a partir de sua experiência com a lei, que é da área do direito e também
por conta de seu contato com negros norte-americanos, ainda no período de luta
destes naquele país, pelos direitos civis. Mas que se considerar que o título
sugere um posicionamento, embora quem o leia ainda não saiba, a princípio, o teor
do texto abaixo. O uso do termo “intolerantes”, no título, tem um forte apelo no
Brasil. É sabido que no nosso imaginário o brasileiro é considerado um povo
tolerante, assim, a ideia da intolerância não nos seria, inicialmente, uma coisa
agradável.
Os intolerantes
A intolerância surge, na atualidade, como palavra de ordem. Do latim
tolerantia, a palavra deu origem aos vocábulos tolerância em
português, tolérance em francês, Toleranz em alemão e tolerance e
toleration em inglês. Tolerance com o significado de indulgência com
pessoas que pensam, agem e sentem de forma diferente e toleration
como tolerância religiosa imposta pelo direito positivo.
Os antigos costumavam repetir o brocardo inter arma silent leges (a
lei não tem voz perante as armas). Essa idéia ainda está muito viva
em nosso tempo. Até porque o Estado atual de compromisso é um
Estado de cooptação com as associações de interesses. Quando
choque entre os grupos, vence aquele detentor de maior poder. E é
justamente nesse instante que a lei passa por uma fase de
reinterpretação por meio de mecanismos astuciosos e inteligentes.
Refiro-me, entre outros exemplos, à lei de cotas para as minorias,
especialmente para os negros.
O artigo inicia definindo a palavra intolerância e sugerindo a seguir que
quando choque de interesse a lei perde voz perante as armas. É um artigo com
tom alarmista e ominoso e sugere que o Estado atual sem forças é um Estado de
cooptação com as associações de interesses”. Para a advogada, choque de
interesses e, na discussão da política de cotas, havendo interesses, usa-se o que
chama de reinterpretação da lei, isto no debate sobre as cotas raciais, as quais são
denominadas de “cotas para as minorias”.
Quando morei nos EUA, mais de duas décadas, participei,
voluntariamente, de encontros com grupos ativistas negros. Lutavam,
ainda inspirados nas idéias de Luther King, pela afirmação dos
grupos minoritários. Nessa época, o governo estava investindo,
maciçamente, no programa "educação compensatória". Entendiam
os educadores norte-americanos que a igualdade racial não
erradicaria a desigualdade social existente. Indispensável seria a
reestruturação do sistema educacional com a finalidade de
contrabalançar - numa perspectiva de ressarcimento social - as
deficiências visíveis entre brancos e negros, máxime no plano das
aquisições culturais. O programa acabaria por somar mais críticas
negativas do que positivas. O ponto nevrálgico foi a desconsideração
87
pela cultura negra e a conversão do programa numa experiência de
segregação social pela via do sistema escolar. Houve, de fato, uma
ampla reforma do ensino e investimentos financeiros maciços -
sobretudo naquelas escolas localizadas em bairros operários negros
- mas os resultados alcançados foram insatisfatórios. Disso tinha
consciência uma líder comunitária negra quando, em conversa
comigo, afirmou que matriculara os filhos numa escola de brancos.
assim, a emulação
15
ocorreria num contexto de realidade. A
concorrência não artificial tornaria factível, no futuro, a igualdade de
condições para ingresso dos filhos no mercado de trabalho.
A autora do artigo sugere que mesmo com avanços os Estados Unidos não
conseguiram minorar a situação do negro, posicionando-se como alguém que
conhece de perto a realidade da luta racial nos EUA. Sua fala, assim, ganha mais
legitimidade, afinal teria vivido de perto a situação daquele país e, além disso,
participava das lutas dos negros contra a discriminação. Ao acentuar sua intimidade
com o movimento negro norte-americano, a autora vacina-se preventivamente
contra acusações de que sua argumentação é motivada por ser ideologicamente
contrária ao discurso do movimento negro ou mesmo por racismo puro e simples. O
argumento da autora é muito consistente quando sugere que, mesmo com os
avanços nos EUA, a vida dos negros lá não está ainda de todo satisfatória.
É muito eficiente num debate no qual se defende uma posição colocar-se
como alguém que conhece por experiência própria aquilo de que fala, então o “eu
vi”, “eu estava lá”, tem bastante força argumentativa. Assim, ela vai referir-se a sua
experiência o tempo todo para argumentar, fazendo menção ao fato dos educadores
norte-americanos compreenderem que a tal “igualdade racial não erradicaria a
desigualdade social existente”.
Um argumento universalista contrapõe-se a uma política específica, mas
contraditoriamente não leva em conta a cultura própria dos negros, como a própria
autora aponta no artigo. Ora, se a cultura negra é algo específico a ser considerado,
assim, se ela deve ser considerada, deve também, por conseguinte, ser pensada
numa política específica a considerá-la. Do contrário, uma política universalista a
diluiria noutras culturas, a cultura branca, a hispânica, entre outras. Por outro lado,
mesmo com as dificuldades apontadas pela autora deste artigo, se compararmos
15
Substantivo feminino: ato ou efeito de emular; sentimento que leva o indivíduo a tentar igualar-se a ou superar
outrem; competição, disputa, concorrência (ger. em sentido moralmente sadio, sem sentimentos baixos ou
violência). HOUAISS, 2009.
88
Brasil e EUA, veremos o quanto as condições dos negros de lá são diferentes
daquelas dos negros daqui, considerando-se anos de estudos, a renda, entre outras
conquistas socioeconômicas ali sugeridas.
Faço esses comentários porque o mimetismo cultural sempre foi um
dos nossos traços marcantes. O sistema de quotas é o exemplo.
Há, contudo, uma especificidade no caso brasileiro: os pobres estão
na escola pública gratuita, mal equipada e com um padrão de ensino
inconsistente. Grosso modo, as unidades de ensino público têm
docentes despreparados e que aceitam salários aviltantes como
última alternativa de sobrevivência. Esse tipo de escola é que deve
ser banida porque se revela fator preponderante de exclusão social.
Crianças e adolescentes mal alimentados, portadores de um
vocabulário indigente e com fracas experiências de leitura em geral
têm pouca ou nenhuma possibilidade de receberem aprovação no
vestibular para as universidades públicas. Nesse aspecto, o sistema
de cotas serviria para oficializar e reforçar o racismo. A lógica é
fácil de entender: é a condição social do negro - e não a cor da pele -
que promove e estimula a discriminação
.
Um argumento utilizado no combate às cotas é que, ao querer impor a nossa
sociedade uma ideia de segregação que não houve aqui (no que ela chama de
mimetismo cultural), imitaríamos os EUA. Seríamos, portanto, aqueles que importam
ideias exóticas e impatrióticas vindas de fora, como sugere Martins, prefaciado no
livro de Medeiros (2004). Esse autor lembra que tais termos foram utilizados quando,
ainda nos idos de 1940 do século passado, todos os que falavam do nosso racismo
eram acusados de trazer artificialmente para o Brasil questões inexistentes aqui.
Isso era a experiência da Europa antissemita e EUA segregador.
Nós, ao contrário, éramos o laboratório de convivência entre as raças. É
importante lembra o que diz Maio (1999) ao referir-se ao que ocorria desde o século
XIX, onde os viajantes, cientistas, jornalistas, políticos europeus, bem como norte-
americanos relatavam em seus registros “uma certa surpresa com a convivência
pacífica entre as raças e etnias (brancos, negros e índios) no Brasil” (MAIO, 1999, p.
114). Segundo essa ideia, tínhamos essa imagem de um “paraíso racial” em
comparação com a turbulenta experiência norte-americana, isto posto como
contradição interna, visto que nossas elites mantinham um receoso contrastante
com que pensavam aqueles lá de fora. Isso porque, após a tardia abolição da
escravidão e a fundação da República, concebiam, os daqui, que a grande presença
negra aliada à intensa miscigenação, características visíveis do compósito racial
89
brasileiro, “seriam na verdade obstáculos à inserção do país na modernidade” (!)
(MAIO, 1999, p. 144).
Mas, o autor lembra ainda, para “nosso consolo” que nas primeiras décadas
do século XX, particularmente entre os anos 20 e 40, devido às transformações
econômicas, sociais e políticas ocorridas no Brasil e à centralidade do debate
intelectual acerca de uma versão definitiva da identidade nacional, esta visão
pessimista da contribuição das raças formadoras da sociedade brasileira será
substituída por um enfoque positivo. Assim, o intercurso racial transformou-se no
principal indicador de tolerância e harmonia de convivência, pois a “controvertida”
crença numa democracia racial à brasileira, que teve em Gilberto Freyre a mais
refinada interpretação, tornando-se desta feita um dos “principais alicerces
ideológicos da integração racial e do desenvolvimento do país e foi suficientemente
substantiva para atrair a atenção internacional” (MAIO, 1999, p. 144).
Voltando ao argumento da autora, também é possível encontrar base em
Kamel (2006) quando este se refere a uma chave metodológica encontrada por uma
certa sociologia, sugerida, segundo ele, por autores como Florestan Fernandes,
Fernando Henrique Cardoso, Oracy Nogueira e Carlos Hasenbalg, para os quais
“fazer ciência” (aspas no original) resultaria numa ciência engajada, mas sempre
apontando para a problemática dos negros explorados contra brancos racistas
(KAMEL, 2006, p. 15). Kamel (2006) sugere ainda que tais ideias foram sim
importadas dos Estados Unidos, com uma terminologia que não era a nossa,
revestindo-a de uma nova roupagem. O mesmo argumento da autora do mimetismo
cultural.
Outro argumento exposto, também muito comum aos que combatem as
cotas, é o de que as cotas reforçariam o racismo ao invés de diminuí-lo, assim
com sugere a autora que o sistema de cotas serviria para oficializar e reforçar o
racismo”. Mas à frente ela continua: “A lógica é fácil de entender: é a condição social
do negro - e não a cor da pele - que promove e estimula a discriminação”. A
condição social, e não a raça, aparece como o determinante da desigualdade e da
discriminação. Todos os pobres são discriminados não só os negros.
Algumas alternativas existem para solucionar o problema. Uma delas
é a implementação de políticas públicas corretas e, notadamente, o
cumprimento, no setor educação, dos percentuais previstos na
constituição.
90
Nos EUA, a Suprema Corte declarou inconstitucional qualquer
política educacional baseada na aplicação de rótulos raciais às
pessoas. Bem analisada a questão, é possível que o nosso STF siga,
futuramente, caminho semelhante. Movimentos insurgentes negros já
se mobilizam com tal finalidade. Questionam, no fundo, o mito de
uma democracia racial. Afinal, democracia é avessa a adjetivos. Que
assim entendam os governantes e, notadamente, os nossos
operadores do direito e a opinião pública.
A autora do arquivo conclui sua argumentação reafirmando a crença na
eficácia das políticas universalistas para combater a desigualdade entre os grupos
raciais. São ações universalistas que poderiam resolver os problemas raciais e não
políticas específicas que se transformariam em políticas de privilégios. Reforçamos
que a autora, embora reconheça a existência do racismo, fará uma inversão de
valores ao afirmar que o sistema de cotas, uma forma de combate ao racismo, seria
para ela o reforço do racismo. não se explica como algo que venha para apontar
a existência de um problema, neste caso do racismo, como a política de cotas,
possa ser utilizado para reforçá-lo e não para combatê-lo.
O artigo a seguir é de autoria de um membro da Academia Brasileira de
Letras. Sua publicação se deu no Jornal do Commercio do dia 30 de dezembro de
2008.
A crise na educação
Temos 14 milhões de analfabetos e uma pós-graduação de Primeiro
Mundo. O ensino fundamental foi praticamente universalizado, mas a
qualidade deixa muito a desejar. A educação profissional e o ensino
médio ainda não encontraram o caminho certo. Os cursos de
formação de professores são lamentáveis, como são lamentáveis os
salários pagos aos quadros do magistério.
Aqui, vemos a reflexão sobre a contradição de sermos a um tempo um
país com muitos analfabetos, 14 milhões, mas com cursos de pós-graduação de
primeiro mundo. Argumenta-se que apesar da universalização do ensino
fundamental a qualidade deixa a desejar.
Veja-se o sistema de cotas. A reserva de 50% de vagas, nas
universidades federais, para alunos egressos das escolas públicas
onde tenham estudado todo o ensino médio, apresenta preferências
étnicas que são rigorosamente inconstitucionais. Vagas serão
preenchidas por descendentes de negros, pardos, indígenas, na
proporção da população de cada Estado. Cotas raciais não têm
amparo legal e, na verdade, camuflam a leniência oficial em relação
à qualidade do ensino público, este sim a merecer toda espécie
inadiável de apoio. E tem mais: é uma agressão à autonomia
91
universitária. Haverá ainda a reserva de metade das vagas para os
estudantes de famílias com renda igual ou inferior a um salário
mínimo e meio per capita.
Se a Carta Magna proíbe a discriminação por motivo de raça, não é
defensável o argumento de que se deve impor o movimento
contrário.
O argumento utilizado é o de que a política de cotas, baseada na raça,
revelaria uma postura discriminatória. Para isto, utiliza-se a constituição como mote
para falar de igualdade, apresentando o discurso da inconstitucionalidade para
versar sobre preferências raciais, para o autor, rigorosamente inconstitucionais.
O artigo abaixo se constitui de uma opinião contrária às cotas e foi publicado
no Diário de Pernambuco em 26 de junho de 2009. Seu autor é descrito como um
psicoterapeuta de Jovens, que, nesta análise, utiliza-se de recursos predominantemente
narrativos para justificar sua posição contrária às cotas, diferentemente dos outros
artigos analisados aqui. Ele começa a construir seu argumento a partir da história de
uma pessoa negra que “conseguiu” por méritos individuas tornar-se médico.
Cotas raciais
Quando estudante de Medicina, ele foi apelidado de Chá Preto. Era
filho de um guarda de tráfego e residia com a família em um barraco,
perto do lixão da Muribeca. Apesar de a faculdade ser gratuita, seu
pai jamais poderia sustentá-lo no curso de Medicina, se não fosse
por um extra que ganhava, dando aulas particulares de direção e
atuando como despachante. Quando chegou o quarto ano da
faculdade, todos nós começamos a disputar um lugar de estagiário
em serviços especializados. Residência Médica ainda não existia. E,
para Chá Preto, jamais haveria vaga porque ele não possuía um
"pistolão", não tinha um importante nome de família, e era preto e
pobre. O rapaz, entretanto, estudou muito, e foi aprovado em um
concurso para acadêmico estagiário da Maternidade da
Encruzilhada. Lá, ele aprendeu a fazer partos, curetagens, fórceps,
entre outros. Por outro lado, tornou-se amigo de um obstetra - o Dr.
Aprígio - que lhe conseguiu um contrato de médico na prefeitura de
uma pequena cidade. Chá Preto era, agora, o Dr. Alcebíades
Bezerra. Quando chegou à tal cidadezinha, foi chamado às pressas
para atender uma parturiente em um barraco. Rapidamente, pegou
as colheres do fórceps e conseguiu retirar a criança, ainda com vida.
Do lado de fora, a multidão dava vivas ao doutor. A popularidade de
Chá Preto foi crescendo tanto, que ele foi convidado para entrar na
política. Sua vocação, porém, era a Medicina. Apesar do parco
salário que a prefeitura lhe pagava, ele procurou frequentar
congressos médicos e assinar revistas estrangeiras.
92
A narrativa traz desde o início a realidade do racismo, a partir do apelido do
médico, Chá Preto. Seu nome aparece mais à frente na narrativa, quando então
se revela que ele é o “Dr. Alcebíades Bezerra”. Trata-se de uma história de
superação, de alguém que mesmo sendo “preto e pobre”, sem “pistolão”, contraria o
destino e, com esforço e dedicação, consegue se formar em medicina e alcançar
respeitabilidade social.
Casou com a filha de um comerciante local, uma moça branca,
bonita, e educada em colégio de freira. A vida passava, nasceram-
lhe dois filhos e morreu seu sogro. Ele vendeu as terras do falecido
e, com o dinheiro da herança da esposa, mudou-se com a família
para o Recife, montou o consultório, comprou a casa de um usineiro,
constituiu uma vasta clientela, e adquiriu um automóvel - uma
"limusine" - que era dirigido por um motorista alto,branco e de olhos
azuis. Certa tarde, o carro estancou em plena Rua Nova. E, havia
pressa para chegar à maternidade, porque uma das grávidas tinha
entrado em trabalho de parto. Desceram do automóvel, nervosos, o
motorista e o profissional de Saúde. Nisto, passou pela rua um
mecânico. Ao que o médico falou: acho que o defeito é o motor de
arranque. O mecânico levantou o capô do carro e percebeu que o
cabo da bateria estava frouxo. Porém, ao ouvir o comentário do
médico, ele ficou aborrecido e, dirigindo-se ao motorista, disse com
raiva: se não mandar esse nego calar a boca, eu deixo o senhor ir a
pé! Quem se viu um nego dar pitaco em assunto de branco? Na
hora, fez-se um silêncio constrangedor. Apertado o cabo da bateria,
o carro pegou na primeira tentativa. Pensativo, o Dr. Alcebíades
concluiu: não diploma no mundo que vença o preconceito! Agora,
eu pergunto: as tais cotas raciais, que estão sendo apregoadas, não
contribuem para aumentar o racismo? E lembrei o sacrifício dos pais
de Chá Preto para formá-lo em Medicina. Quando dei por mim,
estava com os olhos cheios de lágrimas. E os esforços que meus
próprios pais fizeram para me formar? Ah! Que saudade danada eu
tenho dos meus velhos!
“Casa-se com uma moça branca, bonita, e educada em colégio de freira”,
qualidades ideais para uma esposa de um médico... negro. Num episódio que
envolve seu empregado branco (o motorista), ele é tratado como se fosse o
empregado e é tima de um comentário racista. O autor do artigo toma este
incidente para vaticinar, num tom fatalista, que o diploma não seria suficiente para
combater o racismo. O racismo o será vencido pelas pessoas negras que tiverem
ascendido a um curso universitário.
O argumento não formulado explicitamente aqui pode ser aquele que de que
não adiantam as cotas, visto que mesmo um médico poderá ser discriminado por ser
negro. Assim, nem as cotas ou o acesso a um curso universitário, no dizer dele, ou
93
seja, nenhum diploma venceria o racismo ou o preconceito, sendo inócuo seu efeito
no combate ao racismo.
A história é toda contada num fôlego só, narrando-se a trajetória de uma
pessoa negra de sucesso profissional. O argumento é do esforço pessoal, portanto
meritocrático, em que o esforço individual é visto como forma de conseguir sucesso.
Mas esse sucesso é relativizado porque a pessoa em questão é apresentada como
vítima eterna de um fenômeno que é naturalizado, sendo o racismo apresentado
como um mal invencível. Quando o autor diz que não diploma no mundo que
vença o preconceito, o diploma aparece como símbolo de poder e prestígio. Se
esses atributos não imunizam os membros de determinados grupos contra
manifestações racistas, nada mais o fará.
O texto a seguir, que tem como título “Conquista”, é uma carta de um leitor do
dia 28 de novembro de 2009, publicada no Diário de Pernambuco. O autor mobiliza
argumentos recorrentes entre os anticotistas.
Conquista
Sempre que surgem polêmicas sobre o sistema de cotas raciais nas
universidades, penso no verso "uma esmola, para um homem que é
são, ou lhe mata de vergonha, ou vicia o cidadão...". Se em todos os
países a inclusão dos negros nos mais diversos segmentos sociais
reservados aos brancos, foi conquistada através de uma intensa e
sacrificada militância, por que no Brasil ela deve vir como um
"presente"? Será que nossos legisladores acham que os nossos
negros são menos capazes, menos inteligentes do que os negros
norteamericanos? Afinal, nos EUA, onde a luta pela inclusão social
dos negros, mesmo sem a "ajudinha" de instrumentos deprimentes
como esse sistema de cotas do Brasil, chegou-se a uma situação em
que, com sacrifícios e perseverança, os negros galgaram status
antes eram absolutamente inimagináveis, como: (Barack Obama), o
líder da oposição no Congresso (Michael Steele), a mulher mais
influente da mídia (Oprah Winfrey), o esportista mais rico (Tiger
Woods), as melhores jogadoras de tênis (Serena e Vênus Williams) o
ator mais popular (Will Smith). Inclusão racial não se faz por decreto.
O autor, no título do artigo, fala em conquista, mas logo abaixo sugere que
as cotas equivaleriam a esmola. Se é uma esmola, pode-se inferir que as cotas
inferiorizariam os negros ainda mais. Uso o recurso de comparar o Brasil com os
Estados Unidos, recurso usado intensamente tanto pelos que apoiam quanto pelos
que são contrários a elas, afirmando, equivocadamente, que os negros não sido
contemplados pelas políticas de cotas. Se eles melhoraram de vida sem as cotas,
porque nossos negros, que são tão inteligentes quanto eles, não fariam o mesmo?
Claro que, enaltecendo as qualidades intelectuais dos nossos negros, esse autor,
94
assim como vários outros anticotistas, posiciona-se favoravelmente se a sua posição
for acusada de ser motivada por sentimentos ou crenças racistas. Trata-se de um
texto contraditório, pois, em certo momento, associa a inclusão dos negros dos
Estados Unidos à militância (processo eminentemente grupal) e em outro momento
parece associar essa inclusão à luta individual, ao citar casos de negros famosos
que venceram na vida.
4.3 Ambiguidade
Neste item, analisamos um artigo que não tem um posicionamento claro,
marcado pela ambiguidade e pela tentativa do autor de se apresentar como alguém
que está acima da controvérsia. Este pode ser um daqueles momentos em que,
mesmo quando escolhendo termos neutros, considera-se que a neutralidade em si
indica uma posição. Isto significa que, tendo em vista que a neutralidade em meio
a um conflito é uma tomada de posição, trata-se de uma posição polêmica, ainda por
cima por ser aquela que não se diferenciaria “em nada do partidarismo” (BILIG,
2008).
Trata-se de um autor que tem experiência com tema das ações afirmativas,
por ser professor de uma instituição universitária que foi noticiada como um dos
modelos, tanto por equívocos metodológicos, quanto por acertos, quando da
implantação do sistema de cotas no país. Além de sua inserção no meio
universitário, trata-se de um político em cuja retórica discursiva de campanha
eleitoral se apresenta o tema da educação. O texto foi publicado no Jornal do
Commercio de 12 de dezembro de 2008:
Pobre debate
Não faz muito, o Brasil era um país divido pelo debate entre idéias:
economia aberta ou fechada, privatização ou estatização,
democracia ou autoritarismo, socialismo ou capitalismo. Hoje, o
debate ideológico no Brasil se limita a cotas e bolsas. Nos últimos
anos, o Brasil sofreu um grande retrocesso ideológico: os intelectuais
em silêncio reverente, os sindicados acomodados, os estudantes
quietos, o pobre debate se dá entre cotas, bolsas e meia-entrada.
O autor inicia o artigo dando-nos a entender que antes havia no país debates
mais qualificados, grandiosos, debates sobre ideias. Ao contrário de antes, hoje
temos um debate menor que se limita ao tema da bolsa e das cotas nas
95
universidades, não priorizando grandes questões. Isto representaria, para ele, que “o
Brasil sofreu um grande retrocesso ideológico”, reinando um silêncio dos
intelectuais, associado à acomodação sindical e a quietude dos estudantes. Este
retrocesso, pressupomos por sua fala, teria trazido o que ele denomina de o pobre
debate que se trava hoje, versando sobre cotas, bolsas e meia-entrada. Para o
autor o tema das cotas e das bolsas não teria uma importância significativa na
sociedade para ganhar o espaço de destaque tem recebido. Assim, a polêmica das
cotas, apesar do espaço que ganhou nos últimos meses, especialmente com debate
ocorrido no STF em março passado, ainda não pode ser considerado um grande
tema nacional apesar de várias reportagens (como veremos logo abaixo) trazê-la
sempre como tema polêmico. Vejamos, então, o exemplo do debate no Supremo:
Parte da opinião pública é contra a distribuição de bolsas para
pobres, parte considera que a distribuição de bolsas é um grande
salto na luta pela justiça social. O mesmo acontece com as cotas.
Parte é contra usá-las como instrumento para ajudar a quebrar o
absurdo predomínio branco que caracteriza a elite brasileira, outra
parte comemora as cotas como se fossem a solução para todos os
problemas que pesam sobre os negros brasileiros.
Há uma razão que unifica os dois lados do nosso medíocre debate: o
desprezo dos formadores de opinião quanto aos pobres e excluídos
do Brasil. Tanto entre os que defendem quanto entre os que criticam
bolsas e cotas.
Aqueles que hoje são contra as bolsas nunca defenderam, no
passado, a revolução que teria feito as bolsas desnecessárias. E os
que comemoram as bolsas como o grande mérito do governo atual
contentam-se com elas, sem defender a revolução que permitirá
abolir a necessidade delas.
No caso das cotas é ainda mais grave. Os que são contra nunca se
sensibilizaram com a exclusão de negros em nossa elite. Os que são
a favor lutam pela reserva de vagas na universidade, mas não para
que todos terminem o ensino médio em escolas de qualidade.
Procura-se a inclusão no topo da pirâmide social, mas não a
subversão da pirâmide, dando-lhe uma geometria mais igualitária.
Aqui o acima assume atitude de defesa tanto das bolsas quanto das cotas,
opondo-se àqueles que lhes são contrários por nunca terem se atido ao tema. Deste
modo, continua o autor do texto do jornal a dizer que:
No Brasil, os dois grupos, a favor e contra, lutam para manter
privilégios ou incorporar os privilegiados, não para eliminar os
privilégios. A crítica correta às bolsas e cotas está na defesa da
igualdade educacional: em vez de impedi-las, torná-las
desnecessárias.
96
A seleção de futebol não precisa de cotas, porque a bola é redonda
para todos, chegam os mais talentosos e persistentes. uma
escola "redonda" para todos permitiria abolir a necessidade de cotas
e de bolsas. Isso exige uma revolução na educação de base. Mas os
defensores e opositores de bolsas e cotas desprezam o radicalismo
da solução definitiva: a igualdade de oportunidades para abolir todos
os privilégios.
Em um país com ânsia de justiça, bolsas e cotas são necessárias
como paliativos, distribuindo pequenas ajudas aos pobres e pingando
negros na universidade. Não devemos recusar esses instrumentos,
mas tampouco comemorar a necessidade deles.
Ao afirmar que nem se pode recusar nem comemorar a necessidade das
bolsas e cotas, visto que são somente paliativos, ambiguamente, o autor coloca-se
de modo a não ter que escolher uma posição, mas apostando que as duas
possibilidades têm sentido. Pode assim, safar-se de uma armadilha discursiva de
posicionar-se, colocando-se com alvo de críticas. Aqui, as críticas não se
justificariam, afinal, não fechou questão por lado nenhum, criticando as duas
possibilidades, tanto as bolsas como as cotas, mas justificando-as como paliativos,
no momento, porém necessárias.
O Brasil é um país dividido, com uma sociedade partida. Bolsas e
cotas são migalhas necessárias, jogadas de um lado para o outro do
muro que nos divide, mas não levam à revolução que permitirá aos
pobres e aos negros serem donos de seus destinos, viverem sem
necessidade delas. O caminho para isso é a escola igual para todos,
capaz de quebrar privilégios, eliminar necessidades, levando o Brasil
a um salto civilizatório.
Diante da pobreza de idéias, presas à superficialidade e ao
simplismo de bolsas e cotas, o debate hoje impossível. A prova é que
um artigo como este será certamente recusado pelos que defendem
e pelos que se opõem a cotas e bolsas. Acostumados a defender ou
condenar migalhas e pingos, lutam para manter os privilégios, sem
buscar soluções que permitam dispensar as bolsas e as cotas.
Embora o autor se coloque, em alguns momentos, firmemente contrário às
cotas, em seguida corrige sua fala colocando-se a favor por ser este um paliativo.
Vai de uma posição a uma não posição num minuto, o que pode ser uma
estratégia discursiva que evitaria ser tachado de preconceituoso ou a
conservador. Poderia ser também acusado de racista, o que seria um prejuízo
político e intelectual importante, viso ser um intelectual de referência em questões
educacionais, além de ser um político de renome. Fica, assim, “num vai e vem
retórico” de defesa e crítica, mas ao final demonstra um posicionamento criticando
97
aqueles que ele chama de os que “defendem” e os que “se opõem a cotas e
bolsas”.
Dessa forma, o autor define que o debate se dá “diante da pobreza de idéias,
presas à superficialidade e ao simplismo”, o que o torna um debate hoje
impossível. O texto é finalizado sugerindo que os defensores das cotas lutam, na
verdade, por migalhas e pingos, lutando também para manter os privilégios, sem
buscar soluções reais que possibilitem abrir mão, das dispensáveis “bolsas e as
cotas”.
Nos artigos de opinião, os autores se permitem ficar mais à vontade nas
análises, colocando sua argumentação sobre o tema, quando então se posicionaram
sobre as cotas. Nos artigos analisados pudemos observar ainda que se construíram
percursos argumentativos variados, usando, muitas vezes, os mesmos argumentos
para se posicionarem sobre as cotas. Algumas construções retóricas consistiram em
repetir discursos usados comumente na mídia; outros, embora repetitivos, trouxeram
uma construção nova, como por exemplo aquele que define o tema das cotas, entre
tantos, como um tema que empobrece o debate acadêmico.
Ou seja, o debate se daria diante de uma pobreza de ideias que ficam presas
à superficialidade e ao simplismo (conforme o artigo Pobre Debate de Cristovam).
Assim, os que lutam por cotas lutam por migalhas e pingos. Tal argumento nos
sugere que o debate sobre as raças ou relações raciais é um debate superficial,
sendo mais rico discutir, por exemplo, sobre o modo como poderemos combater a
pobreza por meio da educação, distanciando-se do (pobre) debate das cotas raciais.
Nega-se, desta feita, que tal debate também é sobre pobreza e educação, sobre o
modo como a educação dos negros, ou falta desta, permite que as pessoas
categorizadas como negras permaneçam numa situação de pobreza e
desigualdade.
A meritocracia segue sendo utilizada como um argumento associado à
qualidade do Ensino Superior. Tal possibilidade, ou seja, do ingresso de jovens
negros às universidades via cotas, geraria uma situação de desqualificação. Embora
este último seja um argumento quase em desuso, ele ainda traz a ideia da
desqualificação dos negros, o que faria cair também a qualidade do ensino onde as
cotas fossem aprovadas (Vide capítulo 5, reportagem 7 -“ Coordenador é acusado
de racismo por baianos”, sobre curso de medicina na Bahia).
98
Neste processo de análise dos artigos de opinião, pudemos observar também
que por se tratar de opiniões as pessoas colocaram-se mais à vontade para uma
tomada de posição; algumas delas com argumentos bem posicionados, outros numa
possibilidade de ambiguidade, findando por uma posição contrária às cotas. Como
pontuado acima, encontramos um único artigo favorável às cotas, em que a autora
traz no seu argumento a presença do racismo dissimulado e sutil. Entretanto, é
preciso refletir se argumentos racistas presentes em alguns outros artigos não
seriam uma mostra que o racismo brasileiro o é nem sutil e nem tão dissimulado
assim.
Foram encontrados ainda sete artigos declaradamente contrários à política de
cotas raciais e um o autor que não se posicionou claramente, categorizado aqui
como um artigo ambíguo. Os principais temas presentes nesses argumentos foram o
da meritocracia como possibilidade justa e democrática para que todos os jovens
pudessem ter acesso ao Ensino Superior.
Aqui, aliou-se o argumento de políticas universalistas, visto que a pobreza das
pessoas e não a raça apareceu como um motivo para se adotar as políticas
afirmativas. Tais políticas poderiam até contemplar a política de cotas, mas de cotas
sociais, contemplando pobres e alunos de escolas públicas. Além disso, utilizou-se
também o argumento da segregação, colocando que o obstáculo para a integração
das raças seria justamente a adoção das cotas.
A segregação, se é que existe no país, voltando ao argumento acima,
também seria do ponto de vista social e não racial. Assim, poderíamos também
entrar noutro discurso sobre quem é ou não negro no Brasil. Daqui passamos para o
debate sobre a existência de raça, pois um dos argumentos mais utilizados para
combater as cotas raciais é saber quem de fato é negro no Brasil (?), especialmente,
alegam, porque na sociedade brasileira a ideia de raça não existe, sendo este um
argumento importado. Ainda sobre a miscigenação, onde a democracia racial é
preciso ser pontuada, estará presente, surgindo como um forte discurso contra a
ideia de raça e na defesa da nossa mistura racial.
Nos argumentos encontrados, o país é tido como tolerante, mas observamos
que cada vez que se traz o tema das cotas raciais, tais argumentos que contemplam
a ideia da tolerância tornam-se intolerantes. É, neste sentido, a partir do debate
sobre as cotas, que pudemos observar como se estruturam, partindo destes
discursos, as relações raciais. Observamos que a visão sobre (e do) o negro será
99
“tranquila”, desde que este não se fale em direitos. Do contrário, a tranquilidade e a
tolerância em relação a raça darão lugar a uma gama variada de visões, sendo o
negro considerado o responsável pelos seus próprios problemas, acusado muitas
vezes de racista às avessas, que luta por privilégios, sendo considerado um “não-
sujeito”, e não um sujeito de direitos.
100
5 AS ANÁLISES DAS REPORTAGENS: O QUE ELAS TRAZEM SOBRE AS
RELAÇÕES RACIAIS A PARTIR DO DISCURSO SOBRE AS COTAS
Em nossa sociedade a idéia de reportagem é muito frequentemente
associada a uma posição de neutralidade e distanciamento. Simplesmente
descrevem o mundo como ele é. Porém, tal neutralidade discursiva nem sempre
esteve presente nos textos. Como sugerido por Spink (2006), ao falar sobre imagem
e texto, a linguagem verbal, especialmente quando escrita, como esta dos jornais,
tende a apresentar-se como racional e discursiva. Deste modo, entendemos que os
textos jornalísticos caracterizados aqui como reportagens serão aqueles em que não
poderemos detectar um posicionamento direto sobre um tema, mas tão somente
uma tentativa de descrevê-lo objetivamente. No entanto, sabe-se que nenhum texto
ou discurso deverá ser caracterizado numa situação de neutralidade que todo o
texto trará um caráter argumentativo sobre algo, mesmo que o faça de modo sutil ou
despretensioso.
Buscou-se, portanto, observar se em tais textos haveria posicionamentos a
serem considerados, levando em consideração o modo como foram elaborados,
construídos e organizados, assim como os repertórios interpretativos utilizados neste
percurso.
Reportagem - 1
Este texto refere-se à polêmica declaração do coordenador da
faculdade de Medicina da UFBA, em que ele associa a baixa qualificação no
desempenho dos alunos baianos no ENADE (Exame Nacional de Desempenho de
Estudantes ao baixo QI dos mesmos. Desta feita, o coordenador associa também
este desempenho ruim à contaminação pelo sistema de cotas estabelecido naquela
universidade. Segundo ele, os baianos conseguiriam realizar tarefas fáceis e que
não exigissem muita qualificação. O texto é do Diário de Pernambuco e tem sua
publicação a data de 1 de maio de 2008.
Coordenador é acusado de racismo por baianos
101
Declarações de Antônio Dantas, atribuindo o mau
desempenho da Faculdade de Medicina da Bahia no Enade ao
“baixo QI” dos conterrâneos, revoltaram comunidade acadêmica e
Movimento Negro.
SALVADOR As declarações do coordenador do curso de
medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Antônio Natalino
Dantas, segundo as quais “o baixo QI (quociente de inteligência) dos
baianos” explicaria a nota baixa (2) atingida pela faculdade no Exame
Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) de 2007 causaram
forte reação. A comunidade acadêmica e representantes de
entidades do Movimento Negro do Estado viram racismo nas
palavras do professor, tachado também de “nazista”.
A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC),
ligada ao Ministério Público Federal na Bahia (MPF-BA), declarou
que vai apurar as declarações de Dantas. O procurador da República
Vladimir Aras entende que as afirmações do professor sugerem
conteúdo discriminatório.
Uma das frases que causaram maior revolta foi a de que “os
baianos só conseguem tocar berimbau porque tem uma corda só. Se
tivesse mais, não conseguiriam”. Ele também insinuou que a política
de cotas para negros pode ter contaminado” o resultado da
faculdade no Enade e citou o grupo Olodum como um exemplo de
primarismo musical da Bahia. O presidente do Olodum, João Jorge
Santos, comparou o professor a Adolf Hitler, disse que a pregação
dele é “nazista” e anunciou que vai processá-lo.
A afirmação mais agressivamente sugerida na análise do texto apresentado é
o posicionamento racista presente no discurso do coordenador do curso de
medicina, que é o da incapacidade intelectual dos baianos, sugerido também em sua
afirmação de que o QI destes, e, portanto dos negros, é baixo. Sabe-se que, em
relação às questões raciais, a Bahia é considerada uma “pequena África” no Brasil.
Ali, a identidade racial transparece nas ações cotidianas, no jeito de falar, nas
músicas, nos penteados afros, na religiosidade, enfim. Assim, o texto aponta para
um tipo de tipo de argumentação, que ao referir-se ao baiano em geral e aos
estudantes de medicina, em particular, como aqueles que seriam cotistas, é
logicamente associado a um discurso racista, como fez a reportagem desde o seu
título. Para complicar o argumento do coordenador, sugere o autor da reportagem,
que este associa tal dificuldade ao uso do berimbau, outro elemento importante
nesta identidade afrodescendente dos baianos. Seu discurso preconceituoso, como
nos sugere a ideia proposta nesta reportagem (e pelo jornalista), atingiu várias
categorias diferentes, porém todas associadas aos negros: baianos, cotistas,
tocadores de berimbau. O autor da reportagem sugere que seu discurso sequer fora
sutil. Pelo contrário, foi declaradamente racista e até mesmo “nazista” como apontou
102
o presidente do bloco Olodum, João Jorge Santos, chegando a compará-lo a Adolf
Hitler, conforme texto jornalístico.
No que diz respeito às cotas, seu argumento, se levarmos em conta as suas
outras declarações e o contexto (no estado da Bahia), parece sugerir que a raça dos
beneficiados pelas cotas estaria determinando a baixa qualidade do ensino.
Não é de se estranhar que a manifestação do professor causasse tamanha
celeuma, afinal a identidade afrodescendente ali se manifestaria com mais vigor. Os
movimentos sociais negros advogam que a identidade racial, como construção
individual e do grupo é algo muito caro ao debate sobre racismo no Brasil. Uma das
frases descritas nas reportagens e que causou maior revolta foi a de que “os
baianos só conseguem tocar berimbau porque tem uma corda só. Se tivesse mais,
não conseguiriam”. O berimbau, assim, como a capoeira são símbolos de uma
brasilidade advinda da herança escrava, sendo símbolo de uma identidade negra.
A argumentação do médico baiano lembra o modo de argumentação dos
eugenistas, segundo o texto jornalístico. Este tipo de discurso estivera presente no
processo de formação da identidade nacional brasileira em que se recorreu aos
métodos eugenistas, visando o embranquecimento da sociedade brasileira, como
nos lembra Munanga (2004).
Para o autor acima, tais métodos levaram-nos a crer que o ideal branco era
aquele a ser seguido por toda a sociedade brasileira, o ideal do branqueamento, que
ficou ainda inculcado no inconsciente coletivo brasileiro. Como sugere a reportagem,
ainda no discurso do professor baiano, há um componente racista que demonstra
uma mentalidade sobre os negros no país, embora seja considerado que o
coordenador fora corajoso ao expressar um discurso muitas vezes mascarado por
outros argumentos, como aqueles da falta de condições em acompanhar o processo
de formação num curso, como por exemplo, o de medicina.
Apoiando-nos em Munanga (2004), podemos refletir sobre tema apontando a
dificuldade de construirmos uma identidade negra brasileira porque nos
estruturamos ainda na ideologia aqui plantada que caracteriza o negro pelo ideário
do embranquecimento. Algo possível de ser identificado na fala do professor,
que ataca símbolos de uma baianidade e negritude.
O reitor da UFBA, Naomar Almeida, fez coro, qualificando a
posição de Dantas de “racista e ignorante”, além de atingir “todas a
103
propostas de avanços e inclusão da nossa instituição”. Para Almeida,
“o teor dos argumentos, é abominável e lamentável”.
Em reunião com José Tavares Neto, diretor da Faculdade de
Medicina a mais antiga do País –, o reitor pediu o afastamento do
coordenador do cargo. “Não posso demiti-lo porque ele foi eleito
pelos professores. Mas estou requerendo ao colegiado seu
afastamento do cargo”, disse Tavares Neto.
Em nota oficial, o diretório acadêmico da Faculdade de
Medicina da UFBA (Damed) assinalou que “as declarações do
coordenador do curso embasam-se nas idéias de ‘contaminação’
racial, determinismo genético e inferioridade dos povos, as quais
legitimaram a escravidão e os campos de concentração nazistas.
Além de racista, o professor se mostrou tecnicamente incapaz de
exercer seu cargo”. Segunda-feira, os estudantes pretendem fazer
um ato público, em repúdio às declarações para reforçar o pedido de
afastamento do coordenador.
Assustado com a reação, Dantas procurou contemporizar.
“Não sou racista, se fosse diria. Sou médico e boa parte das pessoas
que atendo são ‘gente de cor’. Minha secretária também é. Se fosse
racista não a escolheria”, tentou explicar.
A reportagem traz um contra argumento do reitor da UFBA que se coloca
contrário àquele do coordenador do curso de medicina, o reitor passa uma ideia de
que o coordenador é na verdade um ignorante e racista. Tal argumento desacredita
e desautorizaria citado coordenador. Os discursos “não sou racista que me
relaciono com gente de cor”, “tenho amigos negros”, entre outros, são argumentos
que tentam suavizar atitudes preconceituosas contra negros quando alguém é
flagrado nesta posição. Para explicar sua atitude como um mal entendido utiliza-se
deste recurso retórico da proximidade com o negro para defender-se da acusação
de racismo.
O professor acha que as reações às suas declarações são
exageradas. “Parece até que eu cometi um crime. Não sou obrigado a
gostar de berimbau. O que disse é que é um instrumento primitivo, que
toca uma nota”, diz.
As declarações de Dantas também provocaram uma série de
protestos no Senado Federal. Com apoio dos integrantes da Comissão de
Direitos Humanos da Casa e do presidente da instituição, Garibaldi Alves
(PMDB-RN), a bancada baiana propôs um voto de censura contra Dantas.
“Esse tipo de declaração ofende os baianos, os brasileiros e todos
os que querem um país igualitário do ponto de vista social e racial,
principalmente. Consideramos impossível a permanência no cargo de
alguém que entenda dessa forma a má performance do curso de medicina”,
lamentou o senador César Borges (PR-BA).
A reportagem sobre o dico baiano, de maneira intencional ou não, associa
o posicionamento de oposição às cotas a um tipo de racismo visceral, violento,
104
aberto, que poderia ter sido evitado. Afinal, a observação do professor sobre as
cotas poderia simplesmente ter sido obliterada, apagada, como se fosse algo
irrelevante, como tantas vezes fazemos (nós e as pessoas que organizam textos
midiáticos) quando produzimos um relato sobre qualquer evento, quando contamos
uma história e omitimos alguns de episódios ou ressaltamos outros que poderiam
parecer irrelevantes para terceiros.
Esse racista destemperado (desequilibrado), como parece sugerir o texto da
reportagem, pode ser visto por determinados leitores como um representante típico
do grupo de pessoas que combatem as cotas. O anticotismo, portanto, pode passar
a ser visto como símbolo de atraso, arcaísmo, boçalidade.
Reportagem 2
esta reportagem foi publicada no Caderno Vida Urbana do Diário de
Pernambuco no 26 de setembro de 2008. Ela traz como pano de fundo a realidade
de desigualdade entre brancos e negros nas universidades, apontando que a
experiências de cotas ainda não foi suficiente para diminuir as diferenças existentes,
que nos últimos dez anos estas diferenças aumentaram. Os dados apontados
são do IBGE (1997-2007), apontando também que tais diferenças acentuaram-se no
Nordeste, com os piores índices e que nosso estado, Pernambuco, segue a
tendência da região. O título da matéria já aponta para o texto que se segue.
Poucos negros na universidade
DESIGUALDADES // Segundo dados do IBGE, pouco adiantou a
adoção do sistema de cotas raciais no território nacional
Aos 20 anos, a universitária Simone Bispo está matriculada no
período do curso de ciências ambientais da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE). Dos 35 alunos da classe, apenas quatro são negros
ou pardos. Para estar entre eles, Simone "ralou". Trocou um expediente de
trabalho diário por uma bolsa de estudos numa escola particular. E assim
tornou-se um dos poucos negros a assegurar vaga no ensino superior do
país. A pernambucana representa a exceção dos números divulgados nesta
semana pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Segundo o
IBGE, as desigualdades de acesso entre brancos e negros às
universidades aumentaram de 1997 a 2007. A região Nordeste apresenta
os piores índices nacionais e Pernambuco segue a tendência regional.
De acordo com o estudo, 58% dos brancos de 18 a 24 anos estão
na faculdade. Contra 25% dos negros ou pardos. No Nordeste, os
resultados são alarmantes. Apenas um em cada cinco estudantes negros
105
ou pardos cursam o ensino superior. O abismo racial observado no ano
passado é superior ao registrado em 1997, quando um a cada dez brancos
(9,6%) possuía nível superior completo. Essa proporção era de nada menos
que um para cada 50 (2,2%) entre os de cor negra e parda. No estado,
10,1% dos brancos com mais de 25 anos têm diploma, contra 3,1% dos
negros. Em Recife, a situação é um pouco melhor. Cerca de 16% dos
brancos são formados contra 4,6% dos negros/pardos. "O que mais chama
a atenção é que a situação do país continua a mesma por anos seguidos. A
distância entre negros e brancos permanece igual ou pior", analisou o
pesquisador José Luís Petruccelli, um dos responsáveis pelo estudo do
IBGE.
Conselheira de ONG crê que resultados surjam em 10 anos
O pesquisador acredita que os números recentes põem em dúvida a
eficácia das políticas afirmativas adotada por 60 instituições de ensino
superior no Brasil. Entre elas a adoção do sistema de cotas. "A maioria dos
estudantes do país estuda em faculdades particulares. E, se pegarmos os
dados recentes, percebemos que a maioria dos jovens de baixa renda são
negros. Então eles não têm condições de pagar mensalidades. Como as
cotas nas universidades públicas são pequenas e o ProUni (programa
federal que bolsas de estudos a alunos carentes) atinge uma parcela
pequena, percebemos essa crescente disparidade entre negros e brancos",
justificou Petruccelli.
A conselheira da ONG pernambucana Observatório Negro, Ana Paula
Maravalho, discorda. "Os resultados das cotas devem aparecer nos
próximos dez anos. A primeira universidade a implantar o sistema no Brasil
fez isso em 2003. Não é possível mudar um cenário de 200 anos de
desigualdades raciais em menos de dez. Sem as cotas, a política
universalista vai causar abismos entre brancos e negros ainda maiores. Em
todos os setores da vida, não apenas na educação” opinou.
Cotas - Não existem cotas raciais nas universidades
pernambucanas. Tanto UFPE quanto Universidade de Pernambuco (UPE)
oferecem benefícios apenas aos alunos oriundos da rede pública. Sejam
eles de qualquer cor. Apesar dos apelos de alguns movimentos sociais, a
pró-reitora acadêmica da UFPE, Ana Cabral, afirmou que a instituição não
pensa em adotar cotas raciais. "A cor da pele, o necessariamente, diz a
raça da pessoa. Quando incluímos os alunos de escolas públicas, através
de bônus de 10% nas notas do vestibular, englobamos um universo maior
de pessoas beneficiadas”, explicou.
O texto aponta nas primeiras linhas para a ineficiência de um sistema que
ainda não foi testado: Segundo dados do IBGE, pouco adiantou a adoção do
sistema de cotas raciais no território nacional”. A princípio, o argumento utilizado
é o mais “neutro” possível, pois que tão somente busca demonstrar as realidades
das desigualdades, “De acordo com o estudo, 58% dos brancos de 18 a 24 anos
estão na faculdade. Contra 25% dos negros ou pardos”. O texto apresenta os dados
de maneira descritiva e objetiva. Mas, por ser um dado oficial, justamente do IBGE
106
que, tanto o Movimento Negro quanto ativistas negros e pesquisadores(ras)
negros(as) brasileiros utilizam com aporte de dados fidedignos, corremos o risco de
avaliar uma parte como se fosse o todo. Ora, se a política é recentíssima não
caberia o argumento do pesquisador do IBGE, que ao apontar as diferenças
delimita também que a política de cotas é sem sucesso.
Sendo um pesquisador de uma instituição da qual todos utilizam os estudos
para definir posições, sua fala ganha postura de seriedade e verdade quase que
incontestáveis. A política de cotas aparece aí como um insucesso (ou fracasso).
Mas o autor da reportagem apresenta, logo em seguida, uma voz que
discorda dessa avaliação, adotando na construção do texto a máxima de Protágoras
(o sofista grego), segundo a qual em toda questão sempre dois lados opostos,
conforme Billig (2008). Uma ativista do movimento negro local é citada contestando
o movimento, sugerindo que é cedo para tal avaliação, visto que seria necessário
um período de dez anos (no mínimo) para uma melhor avaliação dos resultados da
política de cotas. Ela sugere que as políticas universalistas aumentariam as
desigualdades apontadas nos estudos em vários setores, não o da educação,
longe de amenizá-las, dando uma ideia de que políticas específicas seriam
necessárias.
Ao final da reportagem, no entanto, uma fala da pró-reitora acadêmica da
UFPE, argumentando contra as cotas, mas usando de um argumento diferente
daquele usado pelo técnico do IBGE. Ela afirma que "A cor da pele, não
necessariamente, diz a raça da pessoa”. Argumento que poderia ser contestado
pelos estudos antigos que apontam para um preconceito contra negros(as)
fundamentado na marca e não na origem. É sabido que no Brasil determinamos as
pessoas pela cor de sua pele e pelas demais características físicas, definido-as
como negras ou não.
No formato final da reportagem, o argumento favorável às cotas fica
localizado no meio de dois argumentos que levantam dúvidas sobre elas. Esses dois
argumentos ficam em lugares privilegiados: no início e no fim do texto; a primeira e a
última palavra. Um fala simplesmente da ineficácia das cotas. Outro afirma que elas
não são necessárias, que outros meios, que "A cor da pele, não
necessariamente, diz a raça da pessoa”, para atingir os mesmos objetivos. Para este
último argumento, a reportagem não apresenta um contraponto, não apresenta o
outro lado da questão.
107
Reportagem 3
A reportagem a seguir é a única da amostra que aponta inequivocamente
para a possibilidade de sucesso da política de cotas. O texto é de uma reportagem
que avaliou a situação dos cotistas, publicada no Jornal do commercio em 16 de
novembro de 2008:
EDUCAÇÃO
Cotistas superam o preconceito
Apesar das dificuldades e da resistência que sofrem por parte
dos alunos convencionais, beneficiados por cotas em universidades
obtêm bom desempenho.
RIO Jocelene de Assis Ignácio, 37 anos, ainda lembra com
tristeza do dia em que, 13 anos, entrou no banheiro da Pontifícia
Universidade Católica (PUC), universidade de elite na Zona Sul do
Rio, e viu símbolos nazistas desenhados na parede ao lado da frase:
“Os alunos da Baixada vão baixar o coeficiente de notas da PUC”.
“Eles, brancos de classe média, eram os filhos da PUC. Nós
éramos os bastardos”, compara. Mas eles se deram mal. Ninguém
ia sair lá do pé da Serra de Petrópolis, gastar quatro horas por dia no
trem e no ônibus, para tirar nota 5. A gente sempre estudou muito e
perseguiu notas altas.
Negra, caçula dos sete filhos de uma servente, órfã de pai
desde os 9 meses e moradora de Mesquita, na Baixada Fluminense,
Jocelene integrou a primeira turma de alunos pobres a entrar na
PUC, em 1995, num programa que precedeu a discussão sobre
cotas nas universidades brasileiras. Foi um acordo entre frei David
Santos, fundador do Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC),
e a PUC, que garantiu a bolsa para os alunos que passassem no
vestibular.
A discussão sobre a política de cotas nas universidades
brasileiras ainda está longe de acabar. Tramita no Congresso
Nacional nove anos um projeto que reserva 50% das vagas nas
universidades federais para alunos da rede pública. De um lado, fala-
se em racismo e justiça social. De outro, argumenta-se que a reserva
de cotas pode baixar o nível do ensino. Mesmo nas 35 instituições
que já aderiram às cotas para inclusão de alunos pobres, ainda não
há estudos suficientes sobre a eficácia do sistema.
no título,
Cotistas superam o preconceito”, as cotas são apresentadas de
forma favorável. A seguir, fala-se do bom desempenho dos cotistas nas
universidades, afirmação retoricamente muito poderosa no debate quando se sabe
que um dos principais argumentos dos anticotistas é a suposta incapacidade dos
beneficiados por cotas para acompanhar de maneira satisfatória os cursos
108
universitários. Essa afirmação é ilustrada narrando a história de dificuldades, mas
também de determinação e sucesso de Jocelene na universidade carioca de elite
(história de muito sucesso como se verá mais adiante), narrativa que tem um efeito
muito poderoso no sentido de sensibilizar as pessoas para a necessidade das cotas.
A reportagem prossegue afirmando que o debate sobre o tema ainda está
longe de acabar, visto que um projeto de cotas tramita no Congresso Nacional
nove anos, em seria reservado 50% das vagas nas universidades federais para
alunos da rede pública. O texto aponta ainda para o debate sobre as possibilidades
das cotas, tanto a racial quanto a social, pois “De um lado, fala-se em racismo e
justiça social” e “De outro, argumenta-se que a reserva de cotas pode baixar o nível
do ensino”. Esse último argumento é dos mais utilizados pelos anticotistas, mas o
próprio teor da reportagem, ao dar um lugar de destaque ao bom desempenho de
alunos cotistas, termina por enfraquecê-lo.
Nas duas universidades cariocas que têm sistema de cotas
cinco anos, PUC-Rio e Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(Uerj), alguns sinais do resultado da convivência entre alunos
pobres, de classe média e da elite carioca. As taxas de aprovação
nas disciplinas e de evasão dos alunos pobres são iguais às dos
outros alunos. A convivência dentro da universidade entre bolsistas
ou cotistas, de um lado, e professores e alunos tradicionais, de outro,
ainda é conflituosa.
Andréia Clapp Salvador, professora de serviço social da PUC-
Rio, acabou de apresentar sua tese de doutorado sobre o assunto.
Em Estudo da política de inserção de alunos pobres e negros na
PUC-Rio, ela conta como foi a passagem pela universidade e o que
aconteceu com os jovens que entraram pelo sistema de bolsas entre
1993 e 2001.
“Eles passaram por muitas dificuldades, sobretudo
econômicas, e sofreram o que eles chamam de preconceito de nota,
pois achavam que alguns professores não confiavam em sua
capacidade de aprendizado. Mas formaram-se no prazo normal e
saíram daqui trabalhando nas profissões que escolheram”, diz.
“Chama a atenção também o fato de eles serem muito
politizados e extremamente solidários entre si.
Os primeiros bolsistas da PUC, todos da área social ou de
humanas, formaram uma espécie de rede de proteção. Quem tinha
dinheiro comprava um prato no bandejão, que era dividido com mais
dois amigos. Quem era chamado para um estágio levava junto outro
bolsista. Um lia o trabalho do outro.
Alugavam uma quitinete de 30 metros quadrados no Edifício
Minhocão, ao lado da PUC, onde dormiam até nove alunos que não
tinham dinheiro para passagem.
Andavam sempre juntos. Organizaram a Semana de
Consciência Negra, despertando manifestações dos alunos
tradicionais, que ameaçaram fazer a Semana de Consciência
109
Branca. Jocelene é uma das lideranças dessa rede. Entrou para o
curso de serviço social, assim como a maioria dos alunos bolsistas
daquele ano. “Só duas alunas na turma não eram bolsistas”, lembra.
Depois fez especialização, mestrado e agora cursa
doutorado. Passou no concurso da Prefeitura do Rio para assistente
social. Ganha algo em torno de R$ 2.500, um salário inimaginável
para todas as suas amigas de infância. Umas são empregadas
domésticas. Outras, caixas de farmácia. A maioria está
desempregada. Jocelene, que agora vive num apartamento alugado
na Lapa, Centro do Rio, convenceu duas irmãs a fazerem faculdade.
Sonha ainda em fazer pós-doutorado na França e comprar um
apartamento. Mas acha que nunca vai parar de brigar. “Não tenho
paz nunca. O tempo todo eu tenho de provar que sou capaz. Foi
assim na PUC. É assim no mercado de trabalho.”
A vida não é mais fácil na Uerj. Mariana Ferreira, aluna de
direito da primeira turma de cotistas, lembra dos embates em sala.
“As aulas eram muito efervescentes. A gente chegou com o na
porta. Não entramos pedindo licença”, lembra. “Em algumas turmas
no curso de direito ainda hoje existe uma divisão. De um lado da sala
ficam os cotistas, do outro os não-cotistas. É muito triste”.
O texto traz um breve relato da situação de alunos bolsista da PUC que
precederam a proposta das cotas, ainda na década de 1990, no Rio, local em que a
política fora aplicada pela primeira vez no país. Apontado as dificuldades, o texto
narra a trajetória de jovens, com as principais problemáticas enfrentadas por eles.
As dificuldades são parecidas com aquelas pelas quais passam os alunos que hoje
e estão na política de cotas, ressaltando que a bolsa para alunos(as) carentes
precedeu as cotas, historicizando como tudo começou e as dificuldades então
encontradas.
Sim, estes são exemplos que apontariam para a necessidade de apoio para
que alunos carentes ao entrarem na universidade, com estes da PUC/RJ (Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro), em que além da possibilidade de ingresso
necessitariam também permanecer nas universidades. Mas, ainda assim, deixa-se
transparecer, de modo sutil, um argumento envolvendo a ideia do mérito individual
como o que possibilitou a estes jovens estarem e, permanecerem, portanto, ali.
Outra proposição apresentada no final é da aluna de direito da UERJ que fala de
uma certa altivez dos alunos cotistas dizendo que entraram sem pedir licença, (“Não
entramos pedindo licença”), mas, apesar desta atitude, finaliza dizendo ser triste o
processo de divisão ali estabelecida onde sentam de um lado da sala os alunos
cotistas e de outro os não cotistas.
Essa última parte da reportagem, num tom um pouco pessimista, apresenta
um fenômeno, ainda em estado embrionário, que, segundo os anticotistas,
110
aconteceria em larga escala com a implementação das cotas: o acirramento da
divisão e dos conflitos raciais.
Reportagem 4
A matéria abaixo foi publicada no Jornal do Commercio do dia 22 de
novembro de 2008. O caderno traz como tema a realidade das universidades
federais locais em que não política de cotas. A reportagem não cita o caso da
universidade estadual, também pública, que adota o sistema de cotas sociais para
alunos oriundos de escola púbica e com baixa renda, desde 2004.
» EDUCAÇÃO
Federais do Estado ainda não possuem o sistema de
cotas
Nenhuma das três universidades federais existentes em Pernambuco
(UFPE, UFRPE e Univasf) adota o sistema de cotas no vestibular. Na
UFPE há um bônus de 10% para alunos que estudaram todo o
ensino médio em escola pública, caso sejam candidatos a cursos do
Recife. Para os concorrentes às vagas das unidades acadêmicas de
Vitória de Santo Antão, na Zona da Mata, e Caruaru, no Agreste, o
benefício é concedido a quem estudou o ensino médio em escola
pública ou particular que não esteja situada no Grande Recife.
Anteontem, a Câmara Federal, em Brasília, aprovou, a
reserva de 50% das vagas nas universidades federais para alunos
oriundos da rede pública. Dentro desse quantitativo uma reserva
para cota racial. O projeto precisa passar pelo Senado e ser
sancionado pelo presidente Lula para virar lei.
O reitor da Universidade Federal Rural de Pernambuco,
Valmar Correa, diz que o assunto nunca foi debatido na instituição.
Ele não demonstra interesse em adotar cotas na Rural. “Se o
governo aprovar, vamos aplicar a lei. Mas a reserva de vagas precisa
ser bastante analisada. Acho que vale discutir as cotas
socioeconômicas. Não considero uma boa as que tratam de
questões raciais”, observa Valmar Correa.
Pelo texto aprovado na Câmara Federal, a quantidade de
vagas para a cota racial levará em conta a população negra, parda e
indígena de cada Estado. “Como será no caso da nossa
universidade, que tem câmpus em Pernambuco, Bahia e Piauí?”,
questiona o vice-reitor em exercício da Univasf, Paulo César da Silva
Lima.
Depois de mencionar a ausência de cotas nas universidades federais
pernambucanas, a reportagem abruptamente passa a falar da aprovação na câmara
federal da “reserva de 50% das vagas nas universidades federais para alunos
111
oriundos da rede pública”, destacando que “dentro desse quantitativo uma
reserva para cota racial”.
Fazendo isso, coloca o estado de Pernambuco na
contramão de um movimento mais amplo em nível federal.
Logo a seguir apresenta falas muito breves de representantes dessas
instituições: o reitor da Universidade Federal Rural de Pernambuco e o vice-reitor da
Univasf. Suas falas tentam justificar esse descompasso entre as universidades do
estado e a lei aprovada na câmara. A fala do reitor da rural, tal como aparece,
chama a atenção por fazer uma afirmação vaga sem uma argumentação que possa
torná-la justificável para os leitores: “Acho que vale discutir as cotas
socioeconômicas. o considero uma boa as que tratam de questões raciais”. As
cotas raciais aparecem nessa fala como algo negativo, mas não são apresentadas
razões para essa avaliação.
Não é possível saber se a fala do reitor foi propositalmente abreviada ou se
ele foi realmente econômico. De qualquer forma, embora a afirmação do reitor não
venha acompanhada de razões, o apoio a cotas socioeconômicas (universalistas) e
o combate a cotas raciais (diferencialistas) é bem próprio do nosso discurso da
democracia racial.
Reportagem 5
A reportagem abaixo foi publicada no Jornal do Commercio do dia 27 de
janeiro de 2008. O caderno traz o tema do racismo e o título aponta para a questão
racial como geradora de polêmica.
RACISMO
Projetos de inclusão racial geram polêmica
Movimento negro pressiona Congresso a aprovar o Estatuto
da Igualdade Racial e o sistema de cotas para todas as
universidades federais. Críticos, porém, acham que propostas
incentivarão ódio racial
BRASÍLIA Às vésperas da celebração dos 120 anos da Lei Áurea,
em maio, intelectuais e ativistas do movimento negro preparam uma
série de manifestações para pressionar o Congresso a decidir sobre
dois projetos polêmicos: o Estatuto da Igualdade Racial e a lei que
institui o sistema de cotas em todas as universidades federais. A
mobilização é apoiada pelo governo, que promete convencer sua
base na Câmara a aprovar as propostas antes das eleições
municipais.
112
O primeiro passo foi dado em novembro passado, quando o
presidente da Casa, Arlindo Chinaglia (PT-SP), criou uma comissão
especial para acelerar a discussão do Estatuto. Em fevereiro, após o
fim do recesso parlamentar, o tema deve ser retomado numa série
de reuniões entre deres partidários e os ministros José Múcio
Monteiro, das Relações Institucionais, e Matilde Ribeiro, da
Secretaria da Igualdade Racial (Seppir).
“Vamos cobrar do Congresso o compromisso de pagar a
dívida histórica que o Estado brasileiro tem com a população negra”,
diz o secretário-adjunto da Seppir, Martvs das Chagas.
A reportagem traz a ideia da ação mobilizadora, tendo a política de cotas
como reparação de uma dívida histórica reivindicada pelo movimento negro
brasileiro. São dois temas polêmicos, tanto o Estatuto da Igualdade Racial como a
lei que institui o sistema de cotas em todas as universidades federais do país.
Entre os itens mais controvertidos do Estatuto estão a
inclusão obrigatória da cor da pele em documentos oficiais, a
concessão de vantagens em licitações para empresas que
contratarem mais negros e a criação de cotas de 20% para atores e
figurantes negros nos programas de TV. Para a antropóloga Yvonne
Maggie, do Instituto de Filosofia de Ciências Sociais da UFRJ, o
projeto pode incentivar o ódio racial: “Em vez de reduzir as
desigualdades, a aprovação do Estatuto pode criar um racismo de
Estado”, afirma.
O item mais polêmico seria o da obrigatoriedade da definição da cor da pele
nos documento oficiais, uma vez que estamos falando de raça, também, a partir da
auto declaração. Para a antropóloga Yvonne Maggie, tais propostas, longe de
resolver o problema, como ela diz em alguns textos, estimulará o acirramento de um
suposto ódio entre as raças, criando deste modo o racismo. O argumento segue o
sentido contrário às pesquisas e dados oficiais do próprio estado brasileiro (vide
IBGE, IPEA, SEPPIR), que apontam para a desigualdade entre negros e brancos,
consequência do nosso racismo nada declarado (muitas vezes), mas nem por isto
menos nocivo, como diz Carone (2002), entre tantos(as) outros(as) estudiosos(as)
do tema.
Presidente da ONG Afrobrás, o sociólogo José Vicente
reforça o discurso da necessidade de reparação histórica para os
descendentes dos escravos: “Um estatuto como esse deveria ter sido
aprovado logo após a Abolição, para garantir a sobrevivência e a
inclusão dos negros na sociedade”.
Signatária do manifesto contra as cotas em 2006, a
antropóloga Yvonne Maggie argumenta que o texto pode anular outra
113
conquista histórica brasileira: uma legislação universalista, que prevê
direitos iguais a todos e não faz distinções com base em crenças ou
da cor da pele: “O Brasil propôs ao mundo uma sociedade
miscigenada. Temos desigualdades enormes, uma violência
crescente, mas não uma tradição de conflitos étnicos. Como o
Estado poderá escolher entre um pobre branco e um pobre negro?”.
Líder da ONG Educafro, que defende as cotas nas
universidades, o frade David dos Santos afirma que o estatuto pode
tornar mais plural o perfil da elite brasileira. Ele ainda lamenta que a
reserva de vagas no ensino superior tenha sido retirada da proposta
original, num acordo que garantiu sua aprovação no Senado em
2005: “Hoje as etnias estão integradas no futebol. Queremos que
isso também aconteça na engenharia, no direito e em outros ramos
profissionais que exigem qualificação de ponta”.
A oposição aos projetos conta com o apoio do Movimento
Negro Socialista, dirigido por militantes da esquerda do PT em São
Paulo. O líder do grupo, José Carlos Miranda, afirma que as
propostas não reduzem as desigualdades sociais, já que não
prevêem a criação de novos empregos ou o aumento do
investimento público em educação.
Lembrando que no pós-abolição seria necessário um estatuto como
este, reforça-se a história da reparação e de inclusão. Neste texto são apresentadas
posições favoráveis e contrárias às cotas e ao estatuto da igualdade racial. Duas
pessoas, uma de renome, a pesquisadora Yvonne Maggie e outra de menor
expressão, José Carlos Miranda (do Mov. Negro Socialista do PT), mas com
argumento político de esquerda, apontam problemas se o Estatuto for aprovado,
considerando o modelo de adoção das cotas raciais, pois que isto acirraria um ódio
racial inexistente no país, por um lado. Por outro lado, argumenta-se, não diminuiria
as desigualdades sociais, já que estas propostas não trazem esta solução.
Para a antropóloga Yvonne Maggie o projeto pode incentivar o ódio racial,
não reduzindo as desigualdades, mas criando um racismo de Estado. Outros
argumentos utilizados pela antropóloga em seus discursos versam sobre a
universalidade da legislação brasileira, uma legislação universalista, “que prevê
direitos iguais a todos”, não fazendo distinção. Mais um argumento, reforçado em
tantos outro textos contrários às cotas raciais neste trabalho, o da miscigenação, alia
a falta de conflitos entre raças, o que poderá ocorrer caso tal sistema seja adotado
pelo Estado brasileiro. Assim, ela diz que a “legislação universalista [...] não faz
distinções com base em crenças ou da cor da pele: ‘O Brasil propôs ao mundo uma
sociedade miscigenada’. Temos desigualdades enormes, uma violência crescente,
mas não uma tradição de conflitos étnicos”. Por fim, pergunta retoricamente:
“Como o Estado poderá escolher entre um pobre branco e um pobre negro?”.
114
Quanto ao seu argumento sobre a “criação” de “um racismo de Estado”,
apoiando-nos em Billig (2008), pensamos que “uma declaração polêmica seria
capaz de provocar argumento em número variado de direções e o faz não contendo
um significado argumentativo simples...” (p. 216). Ora, por outro lado, os ativistas
negros apontam em pesquisas e estudos, que o Racismo Institucional contra os
negros, que existe, é largamente praticado por instituições públicas tais como
hospitais, escolas, polícias, entre outra, há tempos.
Por Racismo Institucional, entende-se aqui, o que define o PCRI (Programa
de Combate ao Racismo Institucional) que é quando o ocorre o fracasso das
instituições e organizações em prover um serviço profissional que atenda
adequadamente as necessidades das pessoas por conta de sua cor, cultura, origem
étnico-racial, manifestando-se em normas práticas e/ou comportamentos
discriminatórios adotados no cotidiano do trabalho. Tal fracasso coloca as pessoas
em situação de desvantagem, quando do acesso aos serviços oferecidos pelo
Estado (AMMA, 2006).
Reportagem 6
A matéria abaixo foi publicada no dia 12 de fevereiro de 2008 no Jornal do
Commercio e traz um título em que apontará para o equívoco da política de cotas ao
favorecer uma irmã e preterir a outra.
UFMA discrimina irmãs dando cota só para uma
MARANHÃO // Mãe das jovens promete processar a universidade
por danos morais
São Luís - Ana Paula e Ana Caroline Ribeiro Fonseca foram
aprovadas na primeira etapa do vestibular da Universidade Federal
do Maranhão (UFMA). A primeira, para o curso de Direito noturno,
dentro do programa de cotas para negros. A outra, para o curso de
Comunicação Social, mas na categoria universal, que seu pedido
para ingressar nas cotas foi recusado. A situação não despertaria
maior interesse se não fosse por um detalhe: Ana Paula e Ana
Caroline são irmãs.
O caso delas não é único. Durante o processo de seleção das cotas
no Maranhão, foram negadas 343 solicitações. Ana Caroline, que
tenta o primeiro vestibular, se disse indignada. "Sempre achei que o
sistema de cotas era válido, mas que os critérios eram
questionáveis", avaliou. Ana Paula, por sua vez, resumiu a situação.
"Eu acho que foi um erro”.
115
O artigo inicia chamando a atenção para o fato da política de cotas aceitar a
inscrição de uma irmã pelo sistema de cotas e a da outra não. Acentuando ainda
que outros casos, neste vestibular, foram negados, num total de 343 pedidos, para
lembrar que caso delas não é único. Acentua-se a fala de uma das irmãs que se diz
indignada. Nas palavras dela: “Sempre achei que o sistema de cotas era válido, mas
que os critérios eram questionáveis", avaliou, resumindo que a situação foi um erro”.
A partir de hoje, a mãe pretende dar entrada numa ação contra a
UFMA, por danos morais, e recorrer ao Ministério Público para
garantir às duas filhas o direito às cotas. Inquirida sobre o assunto, a
UFMA não descartou a possibilidade de falha humana no processo
de seleção.
O presidente da Comissão de Validação das Cotas para Negros,
professor Carlos Benedito Rodrigues da Silva, se prontificou a
verificar a entrevista das duas candidatas. Segundo ele, pode ter
havido até mesmo erro na hora de transcrever o resultado da
entrevista.
No domingo, pouco mais de sete mil candidatos fizeram as provas da
segunda etapa do vestibular da UFMA. Desses, 1,2 mil estava nas
cotas para afrodescendentes.
Trazendo o número de pedidos de cotas negados, a reportagem reforça a
ideia de uma possível falha no sistema, numa demonstração que esta negativa seja
em si mesma um erro, visto que elas são irmãs. Tal fato pode sim ser um indicativo
de falha no processo, porém, não considera a política de cotas para o ingresso de
jovens pretos e pardos ao Ensino Superior, como um processo em construção.
Quem fez a reportagem preferiu apontar o problema para a possibilidade de falha
humana, o que também é argumento utilizado pela mãe das jovens, que noutra
reportagem
16
sugere que entrará na justiça, por danos morais e para a que as filhas
tenham direito às cotas”.
Este episódio lembrará outro também muito debatido na mídia, em que os
jornais noticiaram alguns anos como grande momento de falha do processo de
cotas. Referimo-nos ao que ocorreu na UNB em 2007, citado aqui, de dois irmãos
gêmeos que tiveram resultados diferentes ao tentar ingressa no vestibular daquele
ano pelo sistema de cotas. Neste episódio, como naquele da UFMA, o sistema fora
questionado prontamente, não se possibilitando que fosse avaliado como algo em
16
Seleção para cotas diferencia irmãs. Jornal do Commercio, 12 fev. 2008.
116
construção, portanto sujeito a ajustes e reajustes. Nos dois episódios, ao serem
procurados a dar explicações sobre os fatos, os responsáveis ficaram numa posição
defensiva, dando explicações pouco convincentes dos fatos. No episódio acima, o
presidente da Comissão de organização do vestibular pelas Cotas para Negros da
UFMA, justificou que poderia haver erro na “hora de transcrever o resultado da
entrevista”, como se este fosse o problema mais complexo. Afinal, que se
considerar o todo do problema.
Discorre-se neste momento não sobre as cotas em si, mas sobre o modo
como as relações raciais aqui foram estabelecidas, a partir da identidade negra
brasileira. É preciso pontuar que o critério das cotas utilizado, o da auto
identificação, passa pelo processo de autorreconhecimento racial, debate complexo
ainda na sociedade brasileira. A falha no processo poderia ser indício de que a
própria instituição sequer aprendera a lidar com tema, sendo um processo novo,
complexo e aberto a ajustes e reajustes, com as falhas surgidas.
Reportagem 7
Este texto versa sobre um abaixo-assinado contra as cotas, organizado por
diversos setores da sociedade civil. Esses setores usam dois argumentos principais:
um deles é muito utilizado por aqueles contrários à política de cotas raciais, a de que
“raças não existem” (MAGNOLI, 2008); outro é o argumento segundo o qual as
cotas privilegiariam candidatos de classe média
arbitrariamente classificados como
negros".
Sua publicação data de 1º de maio de 2008 no Diário de Pernambuco.
Universidades // Grupo pede ao STF fim das cotas
Brasília - Porque as raças humanas não existem e porque o governo
estaria criando "um sistema que concede privilégios para candidatos
de classe média arbitrariamente classificados como negros", um
grupo de intelectuais, sindicalistas, empresários e ativistas de
movimentos negros e outros movimentos sociais pediu hoje (30) ao
Supremo Tribunal Federal (STF) que considere inconstitucionais as
cotas raciais instituídas para a seleção de candidatos nas
universidades. O pedido foi feito em um abaixo-assinado entregue ao
presidente do STF, ministro Gilmar Mendes.
A reportagem adota um tom fervorosamente anticotista. É interessante
observar que o autor da reportagem não se preocupa em aspear a afirmação
“porque as raças humanas não existemque teria sido usada pelos organizadores
117
do abaixo-assinado. As aspas, como se sabe, servem para marcar um
distanciamento daquele que fala em relação àquilo que fala. É uma maneira de dizer
para o leitor que ele não se compromete com o trecho aspeado. Ao não usar as
aspas ou outro recurso de distanciamento em relação ao trecho em questão, a
reportagem (que como toda reportagem pretende simplesmente descrever o mundo
como ele é) apresenta a afirmação de que as raças não existem como um fato, e
não como uma versão de um determinado grupo.
Uma informação retoricamente eficaz na reportagem é a de que o movimento
em questão é formado por “intelectuais, sindicalistas, empresários e ativistas de
movimentos negros e outros movimentos sociais”. Ou seja, setores da esquerda, da
intelectualidade e até militantes de movimentos negros fariam parte da ação.
Implicitamente se afirma: esse movimento o é formado grupos interessados em
manter privilégios raciais para os brancos.
O documento, intitulado Cento e Treze Cidadãos Anti-Racistas
Contras as Leis Raciais, diz que o governo e as universidades
públicas e privadas que instituíram as cotas estão desrespeitando a
Constituição, que proíbe União, estados e municípios de criar
"distinções entre brasileiros ou preferências entre si (Artigo 19).
O texto segue com a justificativa da igualdade entre as pessoas como algo
garantido por lei, visto que a constituição proíbe a distinção entre as pessoas
(brasileiros). Tal documento assinado por “Treze Cidadãos Anti-Racistas Contras as
Leis Raciais” coloca-se neste momento contrário às cotas.
Reportagem 8
Como observado no texto acima, o tema da inconstitucionalidade do
sistema cotas raciais continua rendendo matéria nos jornais no ano de 2008. Aquele
fora publicado em maio com este argumento legal. Este agora é datado de 21 de
novembro 2008.
EDUCAÇÃO
Para Andifes, texto é inconstitucional
Reunido em Macapá para discutir a evasão e a retenção nas
universidades federais, o Conselho Pleno da Associação Nacional
dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes)
vai debater hoje o projeto das cotas aprovado ontem pela Câmara.
118
Mas o presidente da Andifes, o reitor da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), Amaro Lins, adiantou que a entidade vai se
posicionar contra a proposta, com o argumento de que ela é
inconstitucional.
Nos artigos de opinião, algumas vozes locais foram encontradas no debate
sobre as cotas, embora todas contrárias. Nas reportagens, seguindo a mesma linha,
as vozes encontradas foram também no sentido de posicionar-se contra, pelos mais
variados argumentos. Neste caso utiliza-se o da inconstitucionalidade, semelhante
aquele encontrado na Reportagem 7 (Universidades // Grupo pede ao STF fim
das cotas). Aqui, a curiosidade se por serem posições do reitor da UFPE, em
nome de outra instituição, a Associação Nacional dos dirigentes das Instituições
Federais de Ensino Superior (ANDIFES). Supõe-se que a opinião de um dirigente
desta instituição possa ser “porta voz” de opiniões de outros reitores, aos quais
representaria.
“O projeto de lei vai de encontro à Constituição, que determina a
autonomia das instituições federais de ensino superior. Somos contrários à
definição de números de vagas pela lei, porque isso é inconstitucional.
Vamos discutir isso amanhã (hoje)”, disse Lins, por telefone.
Segundo Lins, a Andifes não é contra o estabelecimento de políticas
afirmativas nas universidades federais. “Estamos de acordo com a política
de inclusão. Os diferentes têm de ser tratados de maneira diferente. É claro
que sabemos que para quem vem de escola pública o acesso à
universidade é muito mais difícil do que quem é oriundo da rede privada”,
afirma o reitor da UFPE.
Mas, para Lins, a maneira de facilitar esse acesso deve ser definido
pelas próprias instituições e não pelo Congresso. “As universidades vêm
implantando, ao seu modo, diversas políticas de inclusão. as que
oferecem cursos preparatórios para o vestibular, outras que estabelecem
cotas, tanto raciais quanto sociais, e aquelas que também implantaram
diferenciais e acréscimos na nota do vestibular de quem é da escola
pública”, defende Lins.
A argumentação de Amaro Lins também salienta a realidade distinta
de cada universidade e das regiões em que elas se encontram. “Sabemos
que cada instituição tem que se preparar para dar apoio a esses alunos,
seja por intermédio da concessão de bolsas, construção de restaurantes e
aumento dos acervos das bibliotecas. E isso pode ser feito via
autonomia de cada uma. Não se pode ter um modelo único”, justifica.
“Vamos conversar com os parlamentares para mostrar os nossos pontos de
vista e tenho certeza de que eles se sensibilizarão”.
O argumento da inconstitucionalidade é justificado partindo-se da ideia de que
a imposição da adoção das cotas, mesmo que pela imposição da lei, fere a
autonomia universitária. Segundo ele, “O projeto de lei vai de encontro à
Constituição, que determina a autonomia das instituições federais de ensino
119
superior. Essa reportagem assemelha-se à 4, por trazer a defesa das cotas sociais,
de políticas universalistas, portanto.
Nas análises das reportagens, algumas considerações e ponderações são
necessárias. Embora de modo sutil, o que diferencia as reportagens dos artigos de
opinião é a ideia de posicionamentos trazida pelos artigos, apesar de nem sempre
claros de se observar. Isto foi surpreendente porque a ideia que tínhamos era de
reportagens trazendo uma mera descrição de um fato. Mesmo numa descrição, os
argumentos encontrados assemelharam-se àqueles expostos nos artigos de opinião,
mas de modo mais equitativo na distribuição dos argumentos, onde observamos
mais reportagens com argumentos e posicionamentos favoráveis às cotas.
A diferença é que haveria um certo “filtro” na opinião do autor (jornalista)
quando observamos a sutileza dos posicionamentos favoráveis ou desfavoráveis,
apesar de haver ainda quase os mesmos argumentos encontrados nos artigos de
opinião. O que os diferenciam são os modos como os argumentos foram construídos
e posicionados. As reportagens são mais descritivas, trazendo fatos que
envolveriam a polêmica do debate sobre as ações afirmativas, notadamente sobre
as cotas raciais, como o fazem nas reportagens 1, 6 e 7 (1 - UFMA discrimina
irmãs dando cota só para uma; 6 - Universidades // Grupo pede ao STF fim das
cotas e 7 - Coordenador é acusado de racismo por baianos), respectivamente,
onde é possível observar um certo posicionamento.
Vários argumentos foram utilizados para falar sobre as cotas, mas os
principais foram aqueles que trouxeram a avaliação (precipitada) das cotas, que de
pouco adiantou o sistema de cotas onde este fora implantado, recaindo sobre a
qualidade do ensino o questionamento sobre a existência do tema da raça.
Apareceu também o argumento da possibilidade de acirramento das relações entre
negros e brancos, com o surgimento do racismo a partir de então. Neste momento,
até a possibilidade de um racismo de Estado foi colocado num dos argumentos
encontrados. Do privilégio das cotas surge o racismo às avessas. Embora com todos
estes argumentos que se considerar que nas reportagens houve a possibilidade
de uma análise mais equitativa, onde encontramos mais textos favoráveis às cotas
que nos artigos de opinião.
120
CONSIDERAÇÕES FINAIS...
Concluir, verbo inacabado, pois se este trabalho é um ponto de partida, como
afirmamos no início, sua conclusão nos levará a iniciar outras jornadas. Assim, não
temos a pretensão aqui, de esgotar o nosso estudo sobre o modo como estão
estruturadas as relações raciais brasileiras, especialmente se pensadas a partir da
reflexão sobre as cotas raciais. Pensamos, no entanto, que estas, como políticas de
ações afirmativas, ao serem pensadas como forma de acesso às universidades,
bem como ao ganharem espaço na mídia, tornaram-se importantes modos de
pensar como tais relações se estruturaram.
Entre os artigos de opinião analisados por nós, apenas um apoia
inequivocamente as cotas. Isto nos leva a refletir, na pesquisa, que poucas
personalidades locais posicionaram-se sobre o tema, levando-nos também a
ponderar que, talvez, os posicionamentos contrários às cotas raciais ainda
encontram mais espaço que os favoráveis. Supomos que uma falta de espaço
nos jornais locais para as pessoas favoráveis às cotas. O fato de estarmos no berço
do “pai da ideia de democracia racial”, onde o pensamento freyreano ainda é muito
reverenciado, dificultaria que pessoas se manifestassem? Afinal, das falas locais,
em sua maioria ligada à academia, todas se posicionaram contra as cotas.
nas reportagens, onde encontramos um maior equilíbrio, não encontramos
tanta diferença em termos quantitativos como no caso dos artigos. Algumas são
organizadas por seus autores de tal modo que as cotas o retratadas de forma
negativa. Outras, no entanto, tendem a apresentá-las de forma bastante favorável ou
então constroem um retrato desagradável daqueles que as combatem, como no
caso do médico baiano racista que faz declarações negativas em relação às cotas.
Nesta pesquisa, observamos que, nas matérias sobre as cotas, os chamados
ou títulos das reportagens e artigos eram construídos de tal forma a atrair a atenção
do leitor, mesmo sem deixar claro, em alguns casos, o tema que seria abordado no
texto. Atraiam a atenção, pelo chamado, que “naturaliza” a ideia do debate sobre as
cotas como algo polêmico, problemático, conflitivo ou duvidoso.
Os títulos nos trouxeram o desafio de lermos as reportagens e artigos soltos,
legando-nos também a ideia que tais títulos expunham uma opinião ou
posicionamento sobre o tema, tornando, para nós, impossível fazer uma leitura
apenas do corpo da reportagem, o que nos levou a refletir que o discurso estava
121
posicionado, impresso e expresso no título do texto. Podemos dizer, como Spink
(2006), que foi impossível ler o jornal prestando atenção apenas no texto escrito,
tendo que nos ater, antes de qualquer coisa, aos chamados, dados os títulos das
reportagens e dos artigos por s pesquisados: Um tremendo equívoco”,
Polêmica não termina”, “UFMA discrimina irmãs dando cota para uma”,
“Pobre debate”, “A crise na educação”, “Os intolerantes”, entre outros.
Contudo, foi preciso abandoná-los um pouco e nos ater aos efeitos
preconizados pelos chamados dos textos com seu conteúdo notadamente
ideológico. Assim, parafraseando Spink (2006), podemos dizer que pressupõe-se
que haja uma relação de dominância entre títulos e textos, considerando-se os
processos de naturalização que o poder destes títulos trazem de cara, como
produção dos efeitos ideológicos que a eles se somam.
Observamos que nos textos tentava-se passar a ideia que no Brasil o
“normal” é não haver um problema racial. Isto seria um tema somente para os
movimentos negros e ativistas da causa, como exceção à maioria. Estes dois grupos
tentariam nos impor uma questão inconsistente. Problematizam uma não questão ou
um algo não problematizável em sua essência. Assim, o “problema” racial, se é que
existiria algum, seria de fato, um problema colocado com as cotas, a partir do
momento em que tal debate veio à tona, sendo este último de fato um problema, o
problema em si. “Querem nos impor um problema alienígena”, dirão alguns. Ou
ainda “... Até porque... nossa sociedade não comporta isso (esse tipo de coisa)!” ,
complementarão outros.
Como pontuamos durante a análise, a fala única, favorável à política de
cotas raciais fora de uma jornalista de nome respeitável. Tal texto, assinado por ela
seria suficiente para qualquer jornal pelo simples fato de ser uma jornalista que faz
análise em sobre temas variados em muitos veículos de comunicação (imprensa:
jornal, rádio e TV, além da internet), o que por si gera espaço de discussão.
Assim, ela poderia falar de temas polêmicos sem ser desautorizada, tendo, portanto,
o espaço garantido, posicionado-se a favor ou contra as cotas. A despeito disto, não
encontramos nenhuma escrita local que sequer apontasse um posicionamento
favorável. Embora no estado conheçamos posicionamentos favoráveis, são
personalidades que não teriam mesmo “peso” para ocupar os espaços da mídia.
Os textos de opinião dos jornais trazem construções retóricas importantes.
Os argumentos contrários o marcados pela variedade. Encontramos o argumento
122
de que as cotas são um privilégio, que isto poderia gerar um acirramento racial, que
não seria compatível com nosso espírito democrático e cordial. Outro tema
recorrente é o da negação da existência de grupos racializados na sociedade
brasileira a partir da mobilização da nossa imagem como um povo mestiço. Afinal,
questionam recorrentemente, apontando que raças não existem e, se existissem,
quem de fato é negro no Brasil miscigenado?
O discurso do mérito é também bastante aceito. Somos um país em que
esforço pessoal é altamente valorizado. Deste modo, não conseguir alcançar certo
sucesso passa pelo esforço individual e não pelas condições objetivas. Alguém
aceitar o sistema de cotas equivaleria assim a aceitar um sistema de privilégios,
como dito no artigo Um tremendo equívoco: E por que este privilégio de
"cotados"? Por serem negros, índios, pobres?”. Este argumento aparece também
noutro artigo intitulado Pobre Debate: “Acostumados a defender ou condenar
migalhas e pingos, lutam para manter os privilégios, sem buscar soluções que
permitam dispensar as bolsas e as cotas”. O que poderíamos denominar de
argumento universalista apresenta-se de diferentes maneiras nos discursos
contrários às cotas.
O argumento das dificuldades apontadas quando se pensa a adoção das
cotas raciais aparece em muitas falas pesquisadas, tanto as contrárias quanto
aquelas a favor. Mas, para o movimento negro, não se trata de facilitar ou dificultar
as coisas, senão de pensar, segundo Silva (2003), que “As cotas são um aspecto ou
possibilidade da ação afirmativa que, em muitos casos tem um efeito pedagógico e
político importante” (SILVA, 2003, p. 22). Para a autora o que está posto de
importante é também forçar o reconhecimento do problema da desigualdade, sendo
que a implementação das cotas significaria também uma ação concreta que garanta
direitos, colocando-se aqui amplamente o direito ao trabalho, à educação bem como
à promoção profissional para as pessoas que encontram-se, muito tempo, em
situação de inferioridade social (SILVA, 2003).
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