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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA PORTUGUESA
SÔNIA MARIA DE ARAÚJO CINTRA
Relações espaciotemporais na obra poética de Cesário Verde:
fragmentação e busca de totalidade
São Paulo
2009
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2
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA PORTUGUESA
Relações espaciotemporais na obra poética de Cesário Verde:
fragmentação e busca de totalidade
Sônia Maria de Araújo Cintra
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Literatura Portuguesa do
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, para a
obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientadora: Profa. Dra. Raquel de Sousa Ribeiro
São Paulo
2009
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SÔNIA MARIA DE ARAÚJO CINTRA
Relações espaciotemporais na obra poética de Cesário Verde:
fragmentação e busca de totalidade
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Literatura Portuguesa do
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, para obtenção do
título de Mestre em Letras.
Aprovada em _________________________________________
Banca Examinadora
MEMBROS TITULARES
Orientadora: Profa. Dra. Raquel de Sousa Ribeiro
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas - FFLCH/USP ---------------------------
Interno: Profa. Dra. Lílian Lopondo
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas - FFLCH/USP ---------------------------
Externo: Prof. Dr. José Renato Nalini
Professor Titular de Ética – DIREITO/FAAP ---------------------------
MEMBROS SUPLENTES
Interno: Profa. Dra. Guaraciaba Micheletti
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas - FFLCH/USP ----------------------------
Interno: Profa. Dra. Maria Adélia Aparecida de Souza
Departamento de Geografia Humana – FFLCH/USP ----------------------------
Externo: Prof. Dr. Manoel Francisco Guaranha
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas – UNICSUL ---------------------------
4
DEDICATÓRIA
Dedicamos esta dissertação aos
leitores e admiradores, estudiosos e
pesquisadores da obra poética de
Cesário Verde.
Ao Poeta, in memoriam
5
AGRADECIMENTOS
Agradecemos, em especial,
à Profa. Dra. Raquel de Sousa Ribeiro, porque sempre nos orientou com
muita dedicação e empenho;
ao Prof. Dr. Massaud Moisés, porque despertou em nós o interesse pela
poesia cesariana;
às Profas. Dras. Lilian Lopondo e Guaraciaba Micheletti, porque
abordaram questões instigantes durante o exame para qualificação;
aos Profs. Drs. Maria Adélia Aparecida de Souza, Carlos Augusto de
Figueiredo Monteiro e Michel Rochefort, porque nos incentivaram e
esclareceram a compreensão do espaço geográfico;
aos Profs. Joaquina Elisa Ribeiro Sampaio de Melo Serrano e Carlos de
Aquino Pereira, porque nos iniciaram nos estudos literários, na Pontifícia
Universidade Católica de Campinas;
à Prof. Dra. Claudia Amigo Pino e àqueles professores e teóricos que, ao
longo da existência, contribuíram para nossa formação humanista e
elaboração deste trabalho;
à Universidade de São Paulo, funcionários e colegas de cursos e
seminários, porque nos ajudaram no transcorrer deste percurso;
àqueles familiares, amigos, colegas de magistério, alunos que fortaleceram
a busca e partilha deste conhecimento; dentre eles, Eneida Ramalho de
Paula, Ivanira de Souza Lima Dadalt e Solange Campos Bocchino;
a meus avós Carlos e Luzia, Mercedes e Herculano; pais, Maria e Roberto;
a Sandra e Fernando, filhos; e ao Araken, companheiro de caminho, sem os
quais não teríamos chegado até aqui, com gratidão e afeto.
6
RESUMO
Relações espaciotemporais na obra poética de Cesário Verde:
fragmentação e busca de totalidade
A partir da análise das relações espaciotemporais no poema O Sentimento dum
Ocidental queremos demonstrar que a obra poética de Cesário Verde se constitui num
incessante processo de fragmentação e busca de totalidade. Sua coesão mostra, de modo
sintético, uma visão de mundo e constitui um sumário da problemática cesariana, não
apenas dos poemas dessa fase ou ciclo específico, mas do conjunto de sua poesia. Essas
duas funções, a coesão e a problemática, revelam a prevalência da unidade poética de
Cesário, a despeito de sua aparente diversidade temática e originalidade de estilo o qual
apresenta traços impressionistas. Consideradas as diferenças de contexto, o processo acima
mencionado reflete a crise que vivemos nos dias atuais. Embora a crise contemporânea se
apresente de modo diferente, podemos perceber algumas de suas raízes já expressas nos
versos de Cesário, o que admite uma aproximação entre Literatura e Geografia.
Palavras-chave: poesia, sujeito, espaço, tempo, linguagem.
7
ABSTRACT
Space-time relations in the poetic work of Cesário Verde:
fragmentation and search for totality
From the analysis of the space-time relations en the poem O Sentimento dum
Ocidental we want to demonstrate that the poetic work of Cesário Verde is constructed by
an incessant process of fragmentation and search for totality. Its cohesion shows, in a
synthetic way, a world view and it constitutes a summary of the cesarian problematic,
considering not only the poems of this phase or specific cycle, but the whole of his poetry.
These two functions, cohesion and problematic, reveal the prevalence of the poetic unity of
Cesário, despite its apparent thematic diversity and originality of style which presents some
impressionist traces. Taking into consideration the differences of context, the process above
mentioned reflects the crisis we live nowadays. Even though the contemporary crisis shows
itself in a different manner, we can perceive some of its roots already expressed in
Cesário’s verses, what admits an approaching between Literature and Geography
Key words: poetry, subject, space, time, language.
8
LISTA DE ANEXOS
ANEXO A - Poema O Sentimento dum Ocidental, Cesário Verde ------------------p. 10
ANEXO B - Poema Em Lisboa com Cesário Verde, Eugénio de Andrade --------- p. 34
ANEXO C - Poema Cesário Verde, Sophia de M. B. Andersen --------------------- p. 34
ANEXO D - Poema Improviso, Manuel Bandeira-------------------------------------- p. 34
ANEXO E - Poema O sim contra o sim, João Cabral de Melo Neto------------------p. 34
ANEXO F - Sumário da produção poética de Cesário Verde, Joel Serão-----------p. 36
ANEXO G - Poema Ficções de Interlúdio/ III, Alberto Caeiro-----------------------p. 125
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 - Reprodução gráfica do “Retrato de Cesário Verde, Columbano--------p. 28
FIGURA 2 - Reprodução gráfica da Capa de “O Livro de Cesário Verde ------------p. 29
FIGURA 3 – Reprodução gráfica da pintura “O Chora”, Rafael Bordalo Pinheiro----p. 40
FIGURA 4 - Reprodução gráfica da demarcação da área do incêndio em Lisboa------p. 41
FIGURA 5 - Reprodução gráfica de textos descritivos de terremoto de 1755----------p. 41
FIGURA 6 - Reprodução gráfica do plano de Lisboa, Eugénio dos Santos-------------p. 41
FIGURA 7 – Reprodução gráfica da planta parcial de Lisboa----------------------------p. 44
FIGURA 8 – Reprodução gráfica do maremoto de Lisboa, 1755-------------------------p. 46
FIGURA 9 - Reprodução gráfica do painel de azulejos de Lisboa------------------------p. 46
FIGURA 10 – Reprodução gráfica da “Gare de Saint Lazare”, Claude Monet---------p.116
FIGURA 11 - Reprodução gráfica de foto aérea de Lisboa--------------------------------p.124
FIGURA 12 – Reprodução gráfica do “Zé-Povinho”, de Bordalo Pinheiro-------------p.125
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................10
CONTEXTUALIZAÇÃO
À GUISA DE BIOGRAFIA
FORTUNA CRÍTICA
CAPÍTULO I – SUJEITO POÉTICO .......................................................................37
O SUJEITO E A CIDADE
O SUJEITO E O TEMPO
O SUJEITO E O MUNDO
CAPÍTULO II – ESPAÇO FÍSICO E ESPAÇO DA EMOÇÃO .............................67
COTIDIANO E PERCURSO
ANTINOMIAS DIALÉTICAS
CAMINHAR E ESCREVER
CAPÍTULO III – LEITURAS DE MUNDO E FORMAS DE EXPRESSÃO ........97
ARTE E REALIDADE
RELAÇÕES SOCIOESPACIAIS NA OBRA POÉTICA
IMAGENS IMPRESSIONISTAS NA EXPRESSÃO VERBAL
CONCLUSÃO .............................................................................................................120
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................131
SITES CONSULTADOS ............................................................................................140
ÍNDICE GERAL .........................................................................................................141
.
ANEXOS – A, B, C, D, E, F, G
FIGURAS – 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11,12
10
INTRODUÇÃO
Fisicamente habitamos um espaço; sentimentalmente,
uma memória. O espaço físico é a cidade, o espaço
sentimental é a memória.”
1
(José Saramago)
A obra poética de Cesário Verde tem suscitado ao longo do tempo várias
possibilidades de interpretação tanto do leitor comum quanto do estudioso. Essas
interpretações contemplam as remissões que o poeta faz ao passado, ao presente e ao futuro.
Por outro lado, alguns pesquisadores têm-se dedicado com afinco ao levantamento da
biografia, incluindo os pseudônimos de que Cesário se valeu como Cláudio e Margarida, para
tornar públicas suas composições, omitindo a identidade. Outros ainda, como Joel Serrão,
têm-se dedicado à contextualização da época em que o poeta viveu e escreveu seus versos e à
fortuna crítica, bem como ao estudo sistemático em constante expansão e aprofundamento de
sua poesia. A obra poética de Cesário mostra-se reveladora da crise portuguesa oitocentista e
expressa, simultaneamente, a busca de esperança por dias melhores. Nesse sentido, no que se
refere à crise oitocentista, remete o leitor à visão aristotélica da arte enquanto
verossimilhança, e, em outro, enquanto busca de esperança de um mundo ideal, sugere a
concepção platônica. Tanto em um caso como em outro, as imagens poéticas se manifestam
como expressão da fragmentação do sujeito e do mundo e como forma de recompor uma
totalidade, através da linguagem verbal escrita do poema.
Esta dissertação
2
se propõe a partir da análise do poema o Sentimento dum Ocidental
(ANEXO-A) estender-se a toda obra poética cesariana, levando em consideração estudos já
realizados sobre o “Livro de Cesário Verde”, cuja edição primeira data de 1887. Propõe-se,
também, na medida em que sua peculiaridade poética aponta para horizontes que vão além
1
José Saramago. 17 de Setembro de /2008. Inauguração do Blog. – RTP.
2
Primamos em usar as Normas da ABNT e do Novo Acordo Ortográfico (2008) nesta dissertação.
11
dos propostos pelo Realismo e Naturalismo, compreender o autor e sua época e, guardadas as
devidas aproximações e distanciamentos, refletir sobre ela e sobre o nosso próprio tempo
presente. Tendo em vista as relações sujeito-tempo-espaço, que evidenciam o movimento
constante de fragmentação e busca de totalidade dessas relações, buscamos nesta dissertação
analisar os procedimentos estilísticos de que Cesário lança mão para recriar-se, enquanto
poeta, e recriar o mundo, enquanto poesia. Isto posto, cabe apresentarmos a seguir o tema,
justificativa, objetivos e metodologia a que recorremos neste trabalho.
A ideia central aqui desenvolvida diz respeito ao papel representado pelo poema O
Sentimento dum Ocidental, no conjunto da obra de Cesário Verde. Em primeiro lugar, por
sua coesão que sintetiza uma visão de mundo, em segundo lugar, em decorrência, por
constituir uma súmula da problemática cesariana, não só dos poemas dessa fase ou ciclo
específico, mas do conjunto da obra poética do criador de O Sentimento dum Ocidental
(OSO)
3
. A análise deste poema, verso a verso, imagem a imagem, somada a releituras sem
conta de toda a poesia de Cesário, tem apontado para essa confirmação, por se tratar de um
poema que concentra as grandes linhas de força e os núcleos essenciais de sua poesia,
como veremos a seguir. Justificamos, também, tal escolha, por sua obra dialogar com a de
vários escritores portugueses de sua época e posteriores a ela, ao inaugurar linhas diferentes
em relação à tradição. A lírica, voltada para o cotidiano e prosaísmo, faz com que Cesário
Verde seja eleito por gerações futuras como referência. Sua importância na medida em que
é seguido significa que imaginou linhas de força e formas de expressão que vão além de
seu tempo, presentes em escritores posteriores a ele, até mesmo nos dias de hoje, como
podemos observar nos poemas de autores brasileiros e portugueses, transcritos nos anexos
citados ao longo da dissertação. De início, a análise enfocará OSO e, em seguida, a
propósito de alguns temas, chamaremos outros poemas. Isso implica a ideia de prevalência
3
Critérios adotados para análise deste poema e da obra constam do primeiro e segundo parágrafos da p.19
12
da unidade poética de Cesário, a despeito de sua aparente diversidade temática. Neste
sentido, sobre a oposição cidade/campo, Margarida Vieira Mendes pondera: “Este é o
aspecto temático mais constantemente abordado pelos leitores de Cesário, ao longo do
século XX”. E adverte: “Convém lembrar que, no século passado, afora umas Farpas que
Ramalho Ortigão dedicou à moda poética baudelairiana a propósito de Esplêndida, não há
a assinalar nenhum estudo sobre a poesia de C. V.”
4
. David Mourão Ferreira trata essa
dicotomia como essencialmente imagística, quando diz que, mesmo nos poemas citadinos,
aparecem “fugas” para imagens campestres. Helder Macedo a considera presente na raiz
alimentadora de toda a obra de Cesário.
A questão social é outro aspecto temático que contribui naquele mesmo sentido se
entendido como raiz “que atravessa geneticamente grande parte da poesia de Cesário e tem
sido freqüentemente tratada, por vezes de um modo um tanto impressionista.”
5
Entretanto,
não é nosso propósito primordial discutir especificamente essa questão, embora ela esteja
presente ao longo da dissertação e, principalmente, no capítulo três. Se como pretendemos,
o poema O Sentimento dum Ocidental é uma síntese da problemática cesariana, isso já
mostra a unidade fundamental da obra. Seria, por assim dizer, a chave de toda a sua poesia.
Para comprová-lo, percorremos um caminho de ida e volta: de um lado, o Sentimento dum
Ocidental, entendido como ponto de partida, núcleo gerador do restante dessa poesia; de
outro, concebido como ponto de chegada. De um lado, portanto, temos a disseminação das
perspectivas que a partir dele se observam na obra; de outro, temos a recolha da
diversidade de elementos que estão ali disseminados. Porém, não é uma leitura diacrônica
ou uma relação antecedente-consequente que buscamos e, sim, é conceber tal poema como
irradiador e síntese de várias características da obra de Cesário. Foi adotado, então, critério
4
MENDES, Margarida Vieira. Poesias de Cesário Verde. Lisboa: Editorial Comunicação, 1987, p. 20.
5
Idem. ibidem, p. 21.
13
da sincronia, que, ao contrário, permitiu uma visão simultânea de algumas características
disseminadas e do núcleo gerador delas, como veremos mais adiante.
Inicialmente, foram adotados dois procedimentos: um, analítico, que adere ao
poema, a fim de lhe explorar as particularidades, procedimento embasado nos conceitos
teóricos que fundamentam a análise e interpretação do texto; e, outro, sintético, que se
afasta do poema, para generalizar e estender ao conjunto da obra de Cesário os resultados
obtidos dessa análise e interpretação. Ambos os procedimentos foram planejados para
cumprir o objetivo da dissertação, que é a análise das relações espaciotemporais da obra
poética de C V a partir do poema O Sentimento dum Ocidental.
Das linhas de força, duas foram escolhidas por serem mais evidentes no poema O
Sentimento dum Ocidental e por perpassarem a obra como um todo. São elas: subjetividade
e objetividade, cotidiano e existência. Ambas relacionadas entre si pela tensão sujeito-
mundo, presente na obra poética como um todo, o que revela a visão de desconcerto de
mundo do poeta ante a ordem então estabelecida. Sobre subjetividade e objetividade,
podemos dizer, em decorrência das reflexões sobre OSO, que ela estabelece a articulação a
partir da situação “entre”: entre a objetividade do mundo físico, material, geográfico,
cotidiano, que remete ao gênero da epopeia tradicional, no sentido objetivo da busca nas
narrativas de percurso; e a subjetividade do sujeito lírico, ou seja, a projeção da emoção, da
memória, do imaginário, na expressão lírica. Quanto a isso, temos por base o precedente
em Massaud Moisés, quando ele afirma sobre o poema em causa: “[...] lirismo “realista”,
porém não-fotográfico nem frio: o poeta emociona-se, e muito, e é sua emoção perante o
real cotidiano que procura transmitir ao leitor.” E, em seguida: “E sua emoção revela existir
no seu espírito uma ambivalência, quer dizer, a paisagem citadina o seduz como um visgo,
e ao mesmo tempo o repele, tornando-o um estranho a vagar sem rumo...”
6
. Quanto à
6
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa através dos textos. 4ª. ed. São Paulo. Editora Cultrix,
1971, p.313.
14
segunda linha de força, cotidiano e existência, acima mencionados, valemo-nos a princípio
da obra “A Invenção do Cotidiano”, de Michel de Certeau, porém outras leituras, tais como
“O Cotidiano e a História”, de Agnes Heller, “Psicanálise do Quotidiano”, de Fábio
Hermann complementaram ou dialogaram com ela no decorrer da dissertação. Acerca da
existência, os conceitos de Sartre e Heidegger no que se referem a “ser” e “ser-no-mundo”
foram evocados, conforme o aprofundamento da análise o demandou.
A dissertação está organizada em três capítulos articulados entre si e com a
Introdução e a Conclusão. São eles: Capítulo I – O sujeito poético; Capítulo II – Espaço
físico e espaço da emoção; Capítulo III – Leitura de mundo e forma de expressão.
Entretanto os assuntos tratados em cada capítulo não se limitam a ele e, sempre que
necessário à análise da obra poética de Cesário, foram evocados em seus diferentes
aspectos, sentidos e perspectivas, nos outros capítulos. Se por um lado tal procedimento
causa a impressão de que a dissertação se alongou, por outro lado o movimento de retomar
ou adiantar os assuntos trouxe certo grau de organização das ideias, mais próximo da
poesia. Assim, cada parte só pode ser apreendida na relação com o todo.
No Capítulo I a atenção se volta ao sujeito poético, cuja fragmentação, para fins
exclusivos de análise, em sujeito observador e sujeito lírico, quer evidenciar que o diálogo
entre eles é uma constante busca de totalidade do ser. Se o sujeito observador, ao longo do
percurso a pé pelas ruas de Lisboa, vai captando o espaço fragmentado através dos
sentidos, o sujeito lírico vai recompondo a totalidade do espaço pelo olhar. Coube aqui
recorrer ao “Seminário 11”, de Lacan, para maior entendimento da distinção entre olho e
olhar, partindo do pressuposto que olho é a perspectiva, o ponto do qual o sujeito vê; e
olhar corresponderia à visão, ou seja, às formas de percepção do simbólico e da cultura,
incluindo aí a dimensão temporal expressa em OSO, que é reiterada em outros poemas.
Consideramos, com pretensões a maior compreensão da verossimilhança, para fins de
15
análise do poema e reconhecimento da visão de mundo do poeta, necessários os estudos
sobre o espaço e recorremos às obras “Temas Oitocentistas”, de Joel Serrão; “A Natureza
do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção”, de Milton Santos; e “A Cidade em Portugal”,
de Teresa Barata Salgueiro.
No Capítulo II, que diz respeito ao cotidiano e ao percurso, buscamos refletir sobre
o dia a dia e o caminhar, à luz de alguns conceitos que possibilitaram a melhor
interpretação das relações espaciotemporais pelo movimento de fragmentação e totalidade
depreendido do poema, como é o caso das noções de próximo e distante, dentro e fora,
horizontalidade e verticalidade. Consultamos as obras de Gaston de Bachelard e Iuri
Lotman, dentre outras, para análise e interpretação das antinomias dialéticas que tornam
visível o invisível. Abordamos a relação campo-cidade em OSO, para melhor compreensão
do uso do espaço na obra como um todo. Os grandes motivos de inspiração, Cesário
aprendeu-os na escola da vida e do dia a dia, nas relações comerciais e de vizinhança, entre
outras, em Lisboa e seus arredores. Seus passeios e trajetórias pelas ruas da cidade
proporcionaram-lhe, como observador arguto da realidade que demonstrou ser, o cotidiano
da vida lisboeta, o qual registrou com verossimilhança nas suas composições. Partimos,
então, da reflexão de que Lisboa, no poema, é recriada pelo poeta em sua complexidade
dinâmica de “território usado”, à verossimilhança de sua realidade geográfica. Para
efetuarmos a análise por esse viés, valemo-nos, também, das obras “Técnica, Espaço,
Tempo: Globalização e Meio Técnico-Científico-Informacional” e “Pensando o Espaço do
Homem”, de Milton Santos
7
, as quais nos possibilitaram, por transposição disciplinar,
salvaguardadas as diferenças entre elas, identificar no poema a fragmentação espacial,
7
SANTOS, Milton. A Natureza do espaço: técnica e tempo; razão e emoção. S P: Hucitec, 1999.
_________Técnica, Espaço e,Tempo: Globalização e Meio Técnico Científico Informacional. SP:
Hucitec, 1998.
_________ Pensando o Espaço do Homem. São Paulo: Edusp, 2007.
16
segundo os conceitos de paisagem, lugar e rugosidade; e verificar a totalidade do território
usado, recriado pelo sujeito lírico.
No Capítulo III, para maior compreensão das relações espaciotemporais no poema
OSO e na obra como um todo, no que diz respeito ao instantâneo e ao circunstancial,
captados pelos sentidos do sujeito, que registra com fidelidade quadros da vida urbana e
campestre, lançamos mão de uma abordagem do Impressionismo, enquanto arte pictórica, e
depreendemos sua tradução verbal dos versos de Cesário Verde. Embora não faltem ali
imagens que remetam à audição, ao olfato, paladar e tato, são predominantes as sensações
da vista, logicamente acrescentadas e animadas pelos sons característicos e pela ideia de
movimento e intenso colorido. As obras “Impressionismo”, de Pierrre Francastel; “A
História da Arte”, de Ernst Gombrich; “História Social da Arte e da Literatura”, de Arnold
Hauser; “Cores, Forma, Luz, Movimento: A Poesia de Cesário Verde”, de Jorge L. Antonio
nortearam esses estudos.
De modo geral, compreendemos que se trata a obra de poesia descritiva, embora
identifiquemos nela elementos esparsos, característicos da narração e até mesmo da
dissertação. A partir da descrição, questões como luz, cor, contorno, movimento, dentre
outras, foram abordadas como recursos linguísticos que expressam a relação sujeito-
mundo, ora em extensão, ora em contraposição, através da atmosfera criada nos poemas.
Metáfora, parataxe e sinestesia são alguns deles, bem como o ponto de exclamação, cujo
uso indica ora a indignação e rebeldia, ora a comiseração e compaixão do sujeito em
relação ao outro, à nação e à existência. Ainda no campo da estilística, verificamos que um
dos traços mais pertinentes em toda sua poesia é a predominância do assíndeto,
significando a organização e a lógica compositiva por justaposição de imagens. Pares
dialéticos, frases nominais e dêiticos de que Cesário lança mão para expressar sua lírica são
reveladores das relações socioespaciais na obra poética, bem como da visão de mundo do
17
autor. Questões de ordem estéticoestrutural como estrofação, rima, ritmo, cesura,
enjambement, sem se olvidar atenção à camada fônica, morfossintática e semântica, sempre
que a análise do poema o demandou foram consideradas. Entretanto, vale ressaltar que “A
interpretação separa em partes distintas o que em sua origem é enigmaticamente uma coisa
só. Além disso, ela não pode nunca desvendar todo o mistério da obra lírica.”
8
A metodologia foi se constituindo da leitura de obras conforme a análise exigiu,
sempre em contínuo diálogo com o texto poético em questão; às vezes, em consonância
com ele; outras, em discordância dele.Alguns dos principais conceitos, que fundamentaram
teoricamente a análise e as reflexões inerentes a cada capítulo, já se encontram inseridos
neles; outros necessitaram do uso do destaque como citação, ou porque a precisão com que
foram expressos era essencial à compreensão do texto, ou porque a fragmentação ou
adaptação lhes comprometeria o sentido. Tanto em um caso como em outro, a coesão e a
coerência pautaram sua incorporação ao texto dissertativo. Nesse sentido, obras tais:
“Estrutura da Lírica Moderna”, de Hugo Friederich; “Conceitos Fundamentais da Poética”,
de Emil Steiger; “Versificação Portuguesa”, de Said Ali; “Estilística da Língua
Portuguesa”, de Rodrigues Lapa; “O Estilo nos Textos”, de Norma Discini, “Filologia e
Lingüística Portuguesa”, de Guaraciaba Micheletti; “Dialogia na Literatura Portuguesa”, de
Lílian Lopondo, estão entre os principais consultados; e “Elementos de análise do
discurso”, de José Luiz Fiorin, “Estrutura do discurso da poesia e da narrativa”, de
Maurice-Jean Lefebve”; “Inútil Poesia”, de Leyla Perrone-Moisés; “Charles Baudelaire:
um lírico no auge do capitalismo”, de Walter Benjamin, entre os complementares. Outros
mais tiveram leitura pontual, como é o caso de: “Um ramalhete para Cesário”, de Stephen
Rechert; “Subconsciência e afetividade na língua portuguesa”, de Jesus Bello Galvão.
Todos eles constam das obras relacionadas nas Referências Bibliográficas. Quanto aos
8
STEIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. 3ª. ed: RJ: Tempo Brasileiro, 1997, p.21.
18
anexos e às figuras utilizadas, procuramos selecionar os mais significativos para esclarecer
as relações texto-contexto, arte-realidade, tempo-espaço e biografia-poesia. Assim, retratos
da obra e do autor, mapas, foto e desenho de Lisboa e pintura impressionista foram aqui
reproduzidos de sites da internet
9
, para elucidar questões abordadas nos capítulos.
Constam, também, anexos alguns textos de autores da época e posteriores, que interagem
com a poesia de Cesário Verde, o que denota a importância crescente de sua obra no
panorama literário até nossos dias.
Este trabalho se propõe ser uma pequena contribuição para análise e interpretação
das relações espaciotemporais na obra poética de Cesário Verde, a partir do poema O
Sentimento dum Ocidental, ao que consta não haver igual, justificando com isso sua razão
de existir. Cumpre ressaltar que seu intuito não se limita a uma visão interior do texto, mas
propõe um diálogo com o mundo do presente do autor e de nossos dias, se contempladas as
similitudes e diferenças entre eles. O processo de fragmentação espacial depreendido da
análise do poema muito se aproxima em alguns aspectos, salvaguardadas as devidas
diferenças, do resultante da globalização do final do século XX e início do século XXI.
Não só um novo modo de produção, mas, principalmente, outro modo de vida, ditado pela
aceleração, fragmentação socioespacial e valoração de “progresso” técnico acima do
humano, que já se faziam sentir na poética de Cesário como angústia existencial e busca de
esperança, intensificam-se nos dias atuais, de outra maneira.
Isto posto, cumpre primeiramente apresentar a contextualização da obra, os dados
biográficos do autor e a fortuna crítica, na medida em que lançam luzes sobre a
compreensão das relações espaciotemporais em sua poesia. Em seguida, apresentamos cada
capítulo articulado com o todo e de modo a evitar que o excesso de subtítulos ou
subdivisões possa intervir negativamente na inteireza da dissertação, a qual, longe de
9
Sites consultados, após as referências bibliográficas, no final.
19
pretender a uma completude sobre o assunto, quer ser a continuidade dos estudos existentes
sobre o autor e sua obra poética. Neste sentido, o que aqui apresentamos revela não apenas
a ideia do que propomos defender, mas a dimensão do trabalho que temos ainda por
realizar, no futuro.
Os estudos e as citações de O Sentimento dum Ocidental têm por base a versão
publicada em Portugal a Camões (1880), que consta de “Obra Completa de Cesário
Verde”, 8ª. edição, organizada por Joel Serrão
10
, cujo prefácio e notas foram de grande
valia, por trazerem expressas as várias fontes e os critérios utilizados por ele, o que norteou
a pesquisa. Outras edições do poema foram convocadas sempre que a análise assim o
exigiu, para cotejamento ou elucidação de algum aspecto pontual. Os demais poemas
constam da referida obra de Serrão. Dados biográficos e da fortuna crítica foram extraídos
dessas e de outras obras. Para procedimentos de contextualização foram pesquisadas obras
que concernem aos dados sobre Lisboa, à época do poeta, e aos estudos sobre o Realismo e
Naturalismo português. Outras tantas foram consultadas para elaboração da biografia do
poeta e da fortuna crítica.
Cabe, ainda, esclarecer que em relação ao poema O Sentimento dum Ocidental, cuja
análise foi mais minuciosa, adotamos o critério de assinalar com algarismo romano a Parte
(do poema) e com algarismo arábico, a Estrofe (da Parte) em que se insere o fragmento
citado. Exemplo; (III-15) = (Parte III- Estrofe 15). Em relação aos outros poemas, optamos
por indicar apenas o número da Estrofe (E-7). Tal procedimento só foi possível por se tratar
de quartetos ou quintetos a maioria dos poemas de que Humilhações (1887) e Nós (1884),
Num Bairro Moderno (1877) e Provincianas (1887) são exemplos; alguns tercetos, como é
o caso de Cinismos (1874) e Ele (1874), alguns sonetos, a exemplo de A Forca (1873) e
Lágrimas (1874), e sextetos de que Manhãs Brumosas (1877) é exemplar único.
10
SERRÃO, Joel. Obra Completa de Cesário Verde. 8ª. ed. Lisboa: Livros Horizonte, 2003.
20
CONTEXTUALIZAÇÃO
A começar pela época em que viveu Cesário Verde (1855-1886), segunda metade
do século XIX, cumpre dizer que, com a consolidação do Liberalismo em Portugal, a noção
de “progresso” (identificado como os melhoramentos materiais), na esteira da Revolução
Industrial, ganha uma força de ideologia oficial. A comunicação técnica, econômica e
cultural com o exterior torna-se mais intensa. Em 1864, Coimbra liga-se à Europa pelo
caminho de ferro, que logo se estende até Lisboa. Pelo caminho de ferro, cultura, moda e
técnica chegam à metrópole “aos caixotes”, alterando o modo de produção e modo de vida
da sociedade. Tais condições foram propícias à criação intelectual e artística, a qual
substituía a cultura clérico-formal por uma cultura liberal e laica. Disto resulta que: “As
novas instituições encarapuçavam uma sociedade que sob o ponto de vista tecnológico,
econômico e mesmo social estagnava comparativamente.”
E, assim, “A intensificação da
comunicação com o exterior tornava cada vez mais patente, por contraste, a esta situação
porque o atraso de Portugal em relação aos países mais adiantados da Europa ia-se
acentuando.”
11
Um surto das ciências genéticas e de pensadores como Darwin, Comte, Hegel e
Proudhon influencia cada vez mais autores portugueses da segunda metade do século XIX.
A Associação Internacional dos Trabalhadores lança raízes em Portugal com a cooperação
de Antero. O projeto das Conferências do Cassino Lisbonense (1871) integra-se num
ambicioso e largo projeto de reforma da sociedade portuguesa. Seu programa impresso e
distribuído denota as intenções consoantes à Comuna de Paris (1871) ali difundidas:
11
LOPES, Oscar e Antônio José Saraiva. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora Ltda
5ª. edição, p.837.
21
Abrir uma tribuna onde tenham voz as idéias e os trabalhos
quecaracterizam esse movimento do século, preocupando-se, sobretudo,
com a transformação social, moral e política dos povos;
ligar Portugal com
o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de
que vive a humanidade civilizada;
procurar adquirir a consciência dos
factos que nos rodeiam na Europa;
agitar na opinião pública as grandes
questões da Filosofia e da Ciência moderna;
estudar as condições da
transformação política, econômica e religiosa da sociedade portuguesa.
12
Na literatura européia deste período, a publicação em 1857 de “As Flores do Mal”
de Baudelaire trouxe um frisson nouveau à poesia, opondo, principalmente, à teologia
moralista cristã uma teologia amoral do vício, desarticulando o sentimento da realidade
cotidiana pela sugestão de suas correspondências secretas, do domínio da percepção e do
raciocínio. Com a derrocada do Segundo Império e a repressão da Comuna Parisiense,
declara-se em crise a ideologia progressista e aflora um sentimento de frustração social.
Caminhando para o Decadentismo, os poetas sentem-se mais isoladamente artistas e
videntes. Assim, Verlaine através da “música antes de tudo”, Rimbaud do “longo, imenso e
irracional desregramento de todos os sentidos”, e da “purificação do sentido das palavras”
(palavras de tribo), prática iluminista dos lugares-comuns da linguagem, de Mallarmé,
surgem as poesias panfletárias.
A poesia portuguesa de 1870-80 transcende o moralismo caritativo e o progresso
vago da pequena burguesia e, influenciada por Victor Hugo e pelo Parnasianismo
descritivo, narrativo e doutrinário, de versificação mais rígida e discursiva, contrasta com a
plasticidade e versilibrismo de Verlaine e Rimbaud. As “Odes Modernas” de Antero e os
poemas satânicos do pseudo Fradique salientam esta influência.
Nesse contexto, merece atenção especial Cesário Verde a quem se devem, além da
expressão poética superior da pequena burguesia lisboeta irreligiosa e republicana, os
12
Idem, ibidem: p. 843.
22
versos mais representativos do cotidiano urbano e rural da década de oitenta. Conseguindo
superar a herança romântica com seu tom natural, como se lê no comentário a seguir:
Era uma poesia original, sem dúvida; mas ornavam-na decorações
plebéias, grosseiras, então só vistas em romances dum realismo frenético.
O talento de Cesário Verde conseguiu esfumar castamente os aspectos
desprezíveis ou repulsivos destes assuntos, refinando-os em cores vivazes,
gratíssimas, e orquestrando-os em ritmos apropriados à idéia expressa. O
Sentimento dum Ocidental, por exemplo, há retalhos dum impressionismo
incomparável, onde as palavras têm sugestões pictóricas, e é íntima a
concordância musical entre a idéia e a forma.
13
Quase sem precedentes este poeta descobre a beleza enérgica dos trabalhadores,
como as vendedoras ambulantes de peixe e os operários da construção civil; vibra com o
tinir de utensílios dos ofícios manuais, como a forja e os parafusos, sente simpatia pela
cidade viva. Por vezes é acometido dum “desejo absurdo de sofrer”, como expressa através
dos versos de OSO, no enjoo do gás extravasado, ao chorar do piano das burguesinhas, ao
toque das grades das cadeias, aos focos infecciosos da febre amarela, por exemplo. Mundo
do cotidiano até então desconhecido da poesia, embora já descoberto pela prosa de
Tolentino e Eça, entre outros autores da época. Em carta a Silva Pinto escreveu Cesário
sobre uns versos que lhe remetia: “lembram um poliedro de cristal”. Compreende-se por
isso uma poética translúcida, multifacetada, nítida qual diamante polido. Em outras
palavras, a representação da fragmentação de mundo que, pela escrita, busca totalizar está
expressando o antigo desejo humano de totalidade, universalização, de Cosmos, que ressoa
a eterna busca humana da perfeição das coisas e a rejeição da morte. Consoante Margarida
Vieira Mendes: “O que constitui essa poesia, toda ela narrativa, é uma incessante luta de
13
FERREIRA, Joaquim. História da Literatura Portuguesa. 4ª ed. Porto: Editorial Domingos
Barreira, 1971, p.952.
23
resistência a qualquer princípio maligno e desagregador, derivado da morte.”
14
. Ao longo
de cada poema o sujeito vai sendo engendrado nesse combate, ao tentar ganhar identidade e
consistência, que a princípio lhe faltam, através da escrita que possibilita sua sobrevivência.
Exemplo claro está no poema O Sentimento dum Ocidental: “Se eu não morresse nunca! E
eternamente/Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!” (IV-4)
Depreendemos daí que Cesário renovou a lírica tradicional portuguesa, valorizando
poeticamente o vocabulário e o tom coloquial da linguagem urbana, adotando um ritmo que
ondulava entre a degradação que oprime o ser humano e a beleza que o expande. Neste
sentido, a visão da cidade como metáfora do Ocidente (civilização industrial do século
XIX) corresponde ao sentimento do ocidental que permeia a poesia cesariana e que se opõe
ao campo, onde o trabalho e o ar puro garantem a vitalidade, sem, entretanto, impedir a
doença e a morte, como bem demonstra a análise do poema Nós, mais adiante.
À GUISA DE BIOGRAFIA
Sobre sua vida, cumpre lembrar que José Joaquim Cesário Verde nasceu em 25 de
fevereiro de 1855, foi batizado a 2 de junho na igreja paroquial da freguesia lisboeta de
Santa Madalena. O segundo de cinco filhos – duas meninas e três meninos - do casal José
Anastácio Verde e Maria da Piedade dos Santos. Os pais, além de um estabelecimento
comercial de ferragens na Rua dos Fanqueiros, no.9, onde também habitavam, no terceiro
andar, dedicavam-se aos trabalhos agrícolas na propriedade rural de Linda-a-Pastora, cuja
produção de uvas era também usada na fabricação de vinho para consumo interno e
exportação. Exportavam frutas para a Inglaterra, França, Brasil e Estados Unidos. Em 1860
a família muda-se para a Rua do Salitre, 107 (hoje 5), onde permanece até 1877, quando se
14
Idem, ibidem., p.29.
24
instala na Rua das Trinas do Mocambo, 50 (hoje 36). Era o primeiro dos três varões e
nascido entre duas irmãs, Adelaide Eugênia e Maria Júlia, que morreram precocemente,
aquela aos três e esta aos 19 anos, vítimas de epidemias que assolaram Lisboa, mesmo
tendo a família se refugiado em Linda-a-Pastora. Ele perdeu, também, o irmão Joaquim
Tomás, quando este tinha 24 anos, nas mesmas circunstâncias, em 1882, restando apenas
Jorge Verde, o único que sobreviveria ao poeta. Aos dez anos, Cesário faz o exame de
instrução primária em escola e, depois, dedica-se ao auxílio dos negócios da família, quer
na cidade ou no campo. Sabe-se que em 1873 ingressou e frequentou, sem, entretanto,
concluir o Curso Superior de Letras, onde conheceu o amigo Silva Pinto. Neste ano começa
a publicar poemas no Diário de Notícias e, mais tarde, em outros periódicos de Lisboa, de
Coimbra e do Porto. Algumas de suas poesias suscitaram polêmica veemente, em virtude
de Cesário, sendo um inovador da lírica portuguesa, não ser bem compreendido em seu
tempo, como veremos mais adiante, ao tratarmos da fortuna crítica. Comerciante, Cesário
viaja a Paris a negócios em 1883, encontra-se com amigos portugueses que lá residem e
tem contato direto com as obras dos pintores impressionistas, artistas que Portugal não
possuía notórios.
Filho de burgueses abastados e inconformado com as injustiças sociais de seu
tempo, Cesário viveu entre a poesia e os negócios do pai, entre a cidade e o campo, entre a
realidade objetiva do mundo e o lirismo subjetivo, entre o patrão e o empregado, entre o
operário e o camponês, entre a luta por sobrevivência e a perda dos irmãos, entre a angústia
e a esperança, entre o dia e a noite. Essa relação entre fragmentos opostos transparece na
totalidade de seus poemas, através de imagens do cotidiano e da existência. Morreu
tuberculoso, precocemente, com 31 anos e quase oito meses, no dia 19 de julho de 1881.
Seu único livro intitulado “O Livro de Cesário Verde” (1887) foi coligido e editado por
Silva Pinto, em abril do ano seguinte, com uma tiragem de 200 exemplares, que foram
25
distribuídos pelo editor e pelo irmão Jorge aos familiares e amigos do poeta. A segunda
edição – e a primeira lançada a público - data de 1901, com a informação de que se tratava
de uma reimpressão textual da primeira. A terceira edição, impressa em 1910, vem à luz
em 1911. Outras se sucederam até nossos dias, algumas corrigidas, outras ampliadas e
outras acompanhadas de notas e pareceres sobre estudos dedicados a elas por pessoas de
vários lugares, como veremos a seguir.
FORTUNA CRÍTICA
Salvo raras exceções, Cesário Verde não foi bem acolhido pelos escritores e
literatos de seu tempo, entretanto seu valor foi reconhecido posteriormente e a fortuna
crítica de sua obra tem sido constantemente enriquecida em Portugal e no Brasil. Mesmo
autores como Ramalho Ortigão, Fialho de Almeida e Teófilo Braga, com quem o poeta
viria a se relacionar depois, fustigaram e arranharam seus escritos iniciais. Ramalho, n’As
Farpas (1874) pede-lhe que “seja menos verde e mais cesário”; e, na opinião de Teófilo,
“um poeta amante e moderno devia ser trabalhador, forte e digno e não devia rebaixar-se
assim”, referindo-se ao considerado “baudelairianismo” de Esplêndida (1874).
15
, poema
em que o sujeito lírico “poeta solitário” se propõe a ser “truão” de uma aristocrata. A
resposta ferina de Cesário se fez através do poema satírico Ele (Ao Diário Ilustrado),
impresso em folha avulsa e distribuído em Lisboa (1874)
16
, em cujo último verso se lê: -
“Nascera o Ilustrado – um vômito real.”
Angelina Vidal, sob o pseudônimo de Juvenal Pigmeu, minimiza o talento de
Cesário ao afirmar no jornal Tributo do Povo (1879): “[...]Fernando Leal e Bettencourt
Rodrigues, dos quais um só cabelo vale mais que todos os verdes presentes, futuros,
15
Apud SERRÃO. 2003. Op. cit. , p.13.
16
Apud SERRÃO. Joel, 2003. Idem, ibiden, p. 50.
26
prováveis e possíveis. ”
17
O Diário Ilustrado (4 de outubro de 1879) critica cada verso de
Em Petiz, publicado no Diário de Notícias (29 de setembro 1879), como “um vomitório, e
onde em cada recordação se revela de sobejo os maus instintos da criança, e presentemente
o desamor do homem já feito pela desgraça e miséria alheias”.
18
O “retrato” do poeta que Fialho nos legou é pintado, entre outras, com tintas de
ironia, como se nota no tom de algumas expressões: “ingênua arrogância”, “pele de fêmea
loira” e “olhos amarelo-pardos de estátua”, como se lê:
“[...] alto e mui grave, vestido de azul e com um colarinho voltado sobre uma
gravata escarlate, tinha bem a figura do caráter, e não se podia mirá-lo sem logo lhe
ver, na ingênua arrogância, o querer que fosse do ser filtrado misteriosamente por
uma estranha seleção. O tipo era seco, com uma ossatura poderosa, a pele de fêmea
loira, rosada de bom sangue, a cabeça pequena e grega, com uma testa magnífica, e
feições redondas, onde os olhos amarelo-pardos de estátua, ligeiramente míopes,
tinham a expressão profunda, retilínea, longínqua, que a gente nota nos dos
marítimos acostumados a interrogar o oceano por dilatadas extensões.”
19
Na antologia “Parnaso Português Moderno” (1877), organizada, prefaciada e
publicada por Teófilo Braga, não há referência a Cesário. Neste mesmo ano, Jaime Vitor
traça o perfil de Cesário em um soneto publicado em O Contemporâneo, no qual relaciona
seu “entusiasmo” à Taine e Proudhon como mera cópia. Já em 1873, Eduardo Coelho que o
batiza de “Um poeta negociante” descreve-o assim: “é um moço quase imberbe, ingênuo,
rosto e alma serena, fronte espaçosa, olhar perscrutador, cheio de aspirações elevadas.”
20
,
sem referência a sua poesia.
No decorrer do tempo alguns buscaram rever suas opiniões. Tal é o caso de
Henrique Lopes de Mendonça que havia comentado, quando da morte do poeta, em 1886:
17
Apud SERRÃO. Idem, ibidem, p.16.
18
Apud SERRÃO. Idem, ibidem, p.16.
19
CUNHA, Teresa Sobral. Cânticos de Realismo e outros poemas. 32 cartas. Lisboa: Relógio D’Água
Editores, 2006, p. 44.
20
Diário de Notícias, 12 de novembro, 1873. Apud. SERRÃO, op.cit., p.13.
27
“[...] a tua obra, pequena e dispersa, não é daquelas que se impõe à admiração
incondicional da posteridade”, esboça no Jornal de Domingo do ano seguinte sua atitude
crítica ante a poesia do falecido amigo:
“[...] na obra do poeta, me choca por vezes a procura intencional de
originalidade, que destrói a espontânea e brilhante factura dos versos; a
excêntrica invasão do prosaísmo, que perverte e corrói a poesia na sua
própria essência; a substituição das estafadas metáforas do lirismo
romântico por outras, sem dúvida mais extravagantes, mas com certeza
menos racionais e compreensíveis; a adjetivação imprevista e abstrusa, que
freqüentemente dirime, enquanto a mim, a poética singeleza do
pensamento.”
21
Ante o não reconhecimento de sua poesia Cesário lamenta o descaso e demonstra
certa mágoa, como é o caso da carta enviada a Macedo Papança, por ocasião da publicação
de O Sentimento dum Ocidental, no Jornal de Viagens (Porto, 10 de junho de 1880): “Uma
poesia minha, recente, publicada numa folha bem impressa, comemorativa de Camões, não
obteve um olhar, um sorriso, um desdém, uma observação.”
22
Em carta a Silva Pinto
(1879), já confidenciava seu desânimo em relação ao fazer poético e sua dedicação à
gerência da firma familiar: “Eu por aqui me afasto da literatura; amando-a muitíssimo, não
penso exclusivamente nela.” Neste mesmo ano, desabafa em carta a Bettencourt Rodrigues,
então estudando em Paris: “Ah! Meu amigo, se tu me tirasses desta apatia, deste
enervamento, como seria bom! Seria impossível, completamente, numa formidável capital
de trabalho, de inteligência, de febre, arranjar um cantinho para mim? Um ano, um ano só
para me desemburrar!”
23
21
Jornal de Domingo, Lisboa, 31 de julho de 1887. Apud. SERRÃO, op. cit. p.20
22
Carta datada de 29 de agosto de 1880. Apud. CUNHA, Teresa Sobral. op. cit., p. 212.
23
Linda-a-Pastora, 16 de novembro de 1879. Apud. CUNHA, op.cit. p.208
28
Do encontro com Cesário, Bettencourt Rodrigues e os pintores Antônio Ramalho e
Artur Loureiro, em Paris, em 1883, Mariano Pina testemunha: “Ele bem queria me
convencer que o poeta tinha morrido, e que hoje só pensava numa vida laboriosa e activa
de negociante, conhecendo a fundo a sua especialidade.”
24
A fotografia aos 16 anos na Calçada do Duque, em frente ao portão da escola, e o
retrato pintado por Columbano posteriormente (FIGURA 1) indicam que era pessoa
conhecida em seu meio. Entretanto, nos jornais que noticiaram a morte de Cesário, há
alguns desencontros de opiniões quanto a seu reconhecimento como poeta: “Poeta
apreciável” (Diário de Notícias); e A Revolução de Setembro
25
sobre os “enterramentos”
de 20 de julho de1886 limita-se à notícia “José Joaquim Cesário Verde, 32 anos, solteiro.”
Já o Jornal do Comércio declarava: “Cesário Verde morre quase ignorado. Circunstâncias
especiais da sua vida fizeram talvez com que ele não pudesse apurar as suas faculdades,
nem aperfeiçoar os seus processos artísticos;” e conclui, “mas o que dele fica basta para
revelar uma decidida vocação poética, original e independente como poucas.”
26
E Mariano
Pina, em A Ilustração, Paris, ponderava: “A minha geração perde em Cesário Verde um dos
seus espíritos mais originais e mais nobres. Não foi um grande artista que morreu.” E
lamenta: “Morreu o embrião dum grande artista, cujo talento estava destinado a marcar
uma época, a triunfar ruidosamente de tudo e de todos.”
27
Nos jornais Correio da Manhã e
A Imprensa são estampadas notícias desenvolvidas sobre a morte do poeta, denotando sua
notoriedade. Segundo Ricardo Daunt, em 1886: “O Grupo Vida Nova realiza o primeiro
encontro no Hotel Bragança, no Chiado, e a morte de Cesário passa quase inteiramente
despercebida nos meios literários e jornalísticos.”
28
. Entretanto, em Joel Serrão leem-se,
24
Apud: SERRÃO, op. cit. p. 18
25
22 de julho de 1886. Apud: SERRÃO, op.cit., 20.
26
Apud: SERRÃO op. cit. p. 20.
27
Apud. SERRÃO, op.cit., p.20.
28
DAUNT, Ricardo. Obra Poética Integral de Cesário Verde. (1855-86). Org. e Apres. Tábua
Cronológica e Cartas reunidas por Ricardo Daunt. São Paulo: Landy Editora, 2006, p.44.
29
sobre a roda de amigos de Cesário, os testemunhos de Mariano Pina, Silva Pinto, Henrique
Lopes Mendonça que averbam a publicação dispersa do poeta nas colunas dos jornais e
revistas de Lisboa. António Capão assim a organiza, a título meramente informativo: “De
Lisboa: Diário de Notícias, A Tribuna, Ocidente, Ilustração. Do Porto: Harpa,
Renascença, Jornal de Viagens (Portugal a Camões, edição extaordinária), O Porto,
Jornal da Tarde. De Coimbra: Mosaico, Evolução, Revista de Coimbra, Correspondência
de Coimbra.”
29
Em abril de 1887, duzentos exemplares de “O Livro de Cesário Verde” (FIGURA
2), publicado por Silva Pinto, são distribuídos pelo editor, pelo irmão Jorge Verde e “pelos
parentes”, pelos amigos e pelos admiradores privados do poeta. Conforme noticiado por
Silva Pinto, no Correio da Manhã, Lisboa, 14 de abril de 1887, dá a lume uma recensão de
“O Livro de Cesário Verde”. Somente a segunda edição de “O Livro de Cesário Verde”
(1901), e (a primeira dada ao público) continha a ressalva de que tratava da “reimpressão
textual da primeira edição feita pelo amigo do poeta Silva Pinto.” A terceira edição de
OLCV, impressa em outubro de 1910, vem a público em 1911, ano da morte de Silva
Pinto. Com o incêndio em Linda-a Pastora, que destruiu a ala onde se encontrava o material
escrito, o espólio de Cesário fica comprometido, restando ao leitor o que fora dado a lume
de sua obra em livro e jornais ou o que, quiçá, ainda se encontra perdido dentro das páginas
de algum tomo, fora do alcance de nossas vistas, como foi o caso do poema A débil,
encontrado por sorte e empenho de Joel Serrão, na biblioteca de Alberto de Monsaraz; e de
Nós, recentemente revelado. Nas palavras de Joel Serrão: “tudo indica que esteja
inteiramente perdido o ‘original’ para a tipografia, preparado por Silva Pinto; se ainda
existe, não se sabe por onde parará um exemplar da 1ª. edição, anotado por Silva Pinto, ao
qual Cabral do Nascimento se referiu por esse modo (na “Advertência” à 9ª. edição de “O
29
CAPÃO. António. O Livro de Cesário Verde. Texto original e Estudo da obra por António Capão.
Porto: Paisagem Editora Ltda., 1982. In: Ficha bibliográfica, s/n.
30
Livro de Cesário Verde”. Lisboa: Minerva, p.12)
30
: “É voz corrente [...] que há um
exemplar da edição princeps emendado por Silva Pinto. Ignoramos onde pára.”
31
Das relações literárias e sociais de Cesário, fora o que revelam suas cartas, há pouca
referência, a não ser a algumas tertúlias e encontros com escritores e jornalistas que
frequentavam Cafés e a Cervejaria Leão de Ouro, como se lê no fragmento:
Como João de Deus e Guerra Junqueiro, Guilherme de Azevedo
professava por Cesário Verde uma simpatia verdadeira e ampla; por
muitas vezes naquela cervejaria do Leão, que veio a adquirir tão notável
celebridade no nosso mundo artístico, vi o autor da Alma Nova insistindo
com o moço poeta para que ele emoldurasse alguns dos seus versos nas
páginas do Ocidente.
32
.
Ao que consta, não pertenceu Cesário às coteries da época, que viviam de se
injuriar umas às outras. Sabe-se, isto sim, que além de poeta ele era um homem dedicado
aos negócios de família, tanto na cidade, na loja de ferragens do pai, José Anastácio Verde,
à Rua dos Fanqueiros; como no campo, na quinta Linda-a-Pastora, nos arredores de Lisboa,
onde se cultivavam, para consumo interno e exportação, cítricos e vinho, entre outros
produtos hortifrutigranjeiros. Este mesmo local, que também abrigou a família Verde
durante as epidemias de cólera e febre amarela, as quais assaltaram a capital em 1856 e
1857 respectivamente, não impediu o luto familiar pela morte de Adelaide Eugênia, irmã
do poeta, em 1859.
Ao que consta Cesário era dado a casos amorosos, sem, contudo, haver casado. Se
as atividades comerciais aproximaram Cesário de França, Inglaterra e Brasil, sua poesia
também dialogou com as tendências européias da época. Exemplo disso é o que o poeta
explica a Gaudino Gomes: “não publicaria senão um livro que pela rigorosa seleção e pelo
30
Parêntesis nosso
31
SERRÃO. 2003. Op.cit., p.26.
32
CUNHA, Teresa Sobral, op. cit. , p.16.
31
paciente trabalho da forma pudesse, como “As Flores do Mal” de Baudelaire impor-se,
através da aparente descontinuidade das composições, pela unidade cerrada da forma e pela
unidade essencial do fundo poético.”
33
Lembrando o que dele disseram Fialho de Almeida e Fernando Pessoa, percebemos
o prenúncio de sua importância na literatura ocidental, pela aparente descontinuidade das
imagens, labor da forma e unidade poética. Fialho conviveu com Cesário a tempo de o
amar na vida e na escrita, conforme dão testemunho suas páginas; Pessoa conheceu Fialho,
sendo provável que nas tertúlias do Martinho, frequentadas por ambos, pairasse o nome
daquele que por suas experiências estéticas e estranha diversidade já era pressentido como
“precursor inconsciente” do que viria a ser o Modernismo. A começar pela carta de Fialho
de Almeida anteposta ao Prefácio no In Memoriam, organizado por António Barradas e
Alberto Saavedra, Porto, Tipografia da Renascença Portuguesa, 1917, onde ele referencia o
poeta:
Se te disser, meu caro Gomes, que ao começar escrever dele
[Cesário] a mão me treme, e o espírito me divaga sob a cor de um medo
religioso; se te contar que há quatro noites redijo notas para elucidar este
prefácio, sem que até agora nenhum me explique cientificamente o sonho
por onde eu visionava o seu talento, farás idéia talvez da fascinação que
esse extraordinário rapaz lançou em meu juízo, e da angústia rude que o teu
pedido derrama, amigo, num infeliz prosternado e a dizer como na missa
Senhor! Senhor! eu não sou digno...
34
E, depois, pinçando alguns fragmentos do referido Prefácio que ao mesmo tempo
descobrem o poeta, a cidade e vida literária da época, a partir da publicação de Um Bairro
Moderno (Brinde aos Senhores Assinantes do Diário de Notícias em 1877), comenta que
ele foi vítima de críticas contundentes estampadas no Diário de Portugal e na
33
BOURBON E MENESES. Pedras Soltas, Diário de Notícias, 4 de out. 1929. Apud. Cunha, op. cit., p.15.
34
ALMEIDA, Fialho de. Prefácio (notas) . Apud. CUNHA, op. cit., p. 39.
32
Correspondência de Coimbra.
35
Sobre Um Bairro Moderno, poema da maturidade, a que
Cesário empresta, ao lado de Cristalizações e de O Sentimento dum Ocidental “o ponto de
vista de um sujeito observador transeunte, que se exprime através de um lirismo
antideclamatório, embora envolvido pela atmosfera que busca captar”
36
, Fialho pondera
que foi decisivo para clarear o entusiasmo que sentia pelo poeta:
[...] fazendo passo a um sentimento de surpresa, e à fé profunda de haver
nesse ainda incompleto fraseado a eclosão dum artista único no apercebi
mento das exterioridades pitorescas, com o simbolismo elíseo dos
infinitamente secretos da alma coletiva, amando os simples, buscando a
locução com dor parturiente, traduzindo impressões diretas e pungitivas,
como quem só é capaz de criar vocábulo para o que vê, sofre ou medita –
uma alma de verdade enfim, como diz Shakespeare, uma alma estranha e
com a virgindade feroz de escrever poesia semelhando pela nitidez, à bela
prosa. A fantasia é hoje familiar entre os artistas, e na parte descritiva, pela
instantaneidade evocadora, inigualável, assunto que retomaremos adiante,
quando abordarmos o impressionismo em “O Sentimento dum Ocidental.
37
Ao descrever a cidade de Lisboa, Fialho situa cartograficamente o bairro moderno a
que se refere Cesário no poema homônimo, historicizando-o:
Ao tempo quase nenhum dos novos bairros estava sequer na planta
camarária: apenas o Estefânia começava a esquadrinhar desencontradamente,
a cavaleiro da Bemposta, a Quinta Velha, e Lisboa mantinha ainda
matroniciamente o seu feitio antigo, a vida concentrada na Baixa, a gente rica
habitando casas de azulejo e esses desamparados casarões do século XVII e
sáculo XVIII, que são hoje fábricas, colégios, hospícios ou quartéis, para os
lados de Santa Apolônia, Costa do Castelo, Campos de Sant’Ana e Santa
Clara, Alcântara e outros pontos há doze anos ainda considerados arrabaldes.
O bairro moderno, o bairro luxuoso da colônia estrangeira e dalguns
35
SERRÃO, op. cit., p 16.
36
DAUNT, Ricardo, op.cit., p.13.
37
CUNHA, Teresa Sobral, op. cit., p.42. In: Prefácio de Fialho de Almeida.
33
indígenas de gosto, era, pois Buenos-Aires; esse que inspira os versos trás
citados, e por onde Cesário, como mais longe direi, cruzava muita vez.
38
Ao se referir à vida literária de Portugal, Fialho diz que era naquele tempo o que
tem sido sempre, relevando a originalidade da poesia de Cesário, que excedia tudo o que eu
lera em poesia impressionista, referindo-se a Num Bairro Moderno
39
Fernando Pessoa, que dos três mestres de língua portuguesa que elegeu (Antero de
Quental, Cesário Verde e Camilo Pessanha), foi ao cantor de OSO, como ele transeunte das
ruas de Lisboa e espectador desencantado do fim do império, que ele dedicou a lição do
Estudo Crítico sobre o gênio poético, a originalidade e o lusitanismo de Cesário. Datando
alguns dos fragmentos do estudo crítico de 1911 e outros de 1923, ambos os manuscritos
na maioria das páginas em português e inglês encontram-se os dois reunidos na obra
“Cânticos do Realismo e Outros Poemas – 32 Cartas”, Edição de Teresa Sobral Cunha.
Sobre o gênio poético, Pessoa enfatiza:
Com Antero de Quental se fundou entre nós a poesia metafísica, até ali não
só ausente, mas organicamente ausente, da nossa literatura. Com Cesário se
fundou entre nós a poesia objetiva, igualmente ignorada entre nós. Com
Camilo Pessanha a poesia do vago e do impressivo tomou forma
portuguesa. Qualquer dos três, porque qualquer é um homem de gênio, é
grande não só adentro de Portugal, mas em absoluto. [...]Cesário foi um
revolucionário da literatura. A sua obra foi uma revelação não grande, mas
radical. Como todas as revoluções que são radicais sem ser grandes, a obra
de Cesário está cheia de defeitos, especialmente de defeitos produzidos
pelas próprias qualidades em cuja substituição a outras está o radicalismo.
40
Sobre a originalidade da poesia de Cesário, Fernando Pessoa pondera:
38
Idem, ibidem, p. 44.
39
Idem, ibidem, p. 44.
40
Idem, ibidem, pp. 225 e ss.
34
Quem ler a obra de Cesário /admira-se/ da admiração que a muitos
causa e que lida desprendidamente, e com a expectativa de encontrar
grandeza, a obra de Cesário Verde com o que revela de nula imaginação,
de nula inteligência, de sentimento circunscrito e até da falta de sentimento
estético, assombra pelo que não tem de grande. O segredo está em que essa
obra, pobre como é de quase tudo quanto constitui a grandeza poética,
possui soberanamente e absorventemente uma qualidade constitutiva da
grandeza – a originalidade.
41
E sobre o sentimento de Cesário, Pessoa elucida:
O sentimento estético não é grande em Cesário. O sentimento é
forte e sincero, mas reprimido: e é nisto que Cesário é curioso. É um
português que reprime o sentimento. Tem-no, porque é um português, e um
português sem sentimento é cousa que não se concebe.
42
No centenário de sua morte, a revista Colóquio/Letras, da Fundação Calouste
Gulbenkian publica poemas de vários autores contemporâneos que versam sobre Cesário.
Dentre eles, os de Eugénio de Andrade (ANEXO-B) e Sophia de Mello Brayner Andersen
(ANEXO-C). Segundo Carlos Felipe Moisés, Cesário só chega até nós, no Brasil, no início
do século XX: “O primeiro a se dar conta é Felipe D’Oliveira. Seu Vida extinta (1911)
inclui um longo poema que principia: Eu hoje estou com as crises de Cesário”.
43
Manuel
Bandeira coloca seu nome no rol dos poetas portugueses glorificados no poema
“Improviso” (ANEXO-D): Glória ao sempre Verde Cesário, contrariando o tom irônico
adotado por Ortigão em “As Farpas”; e João Cabral de Melo Neto rende a ele sua
homenagem no poema O sim contra o sim (ANEXO-E).
41
Idem, ibidem, pp. 225 e ss.
42
Idem, ibidem, pp. 225 e ss.
43
MOISÉS, Carlos Felipe. Modernidade. In: O Desconcerto do Mundo: Do Renascimento ao
Surrealismo. São Paulo: Escrituras. Editora. Coleção Ensaios Transversais. 2001. p. 201.
35
Tal presença de Cesário se constata não só em poesia, como alguns textos acima
demonstram, mas em prosa. O conto Saudades para Dona Genciana
44
, de José Rodrigues
Miguéis, bem o exemplifica, pela citação nominal do referido poeta e incorporação no texto
de elementos da cidade de Lisboa presentes nas imagens de sua poesia, tal a iluminação a
gás, o silêncio noturno, a exploração do trabalhador urbano, entre outros: “O luar
encharcava a noite, entrava em cascata pelas janelas, vinha ter conosco à cama. As luzes
eram raras e mortiças, de gás incandescente. Pairava no ar um resto de Cesário.” No conto,
a referência aos habitantes do campo e da cidade, tão presentes na obra de Cesário, se faz
representada pelos carroceiros e hortaliceiras a caminho do mercado; pelas costureiras,
rumo às oficinas da moda, e a patrulha a rondar pela Avenida e ruas escuras, pelos boêmios
e fêmeas a madrugar nos becos e tavernas. A acuidade das imagens auditivas está presente
na comparação que se segue: em O Sentimento dum Ocidental, à noite fechada: “Um
parafuso cai nas lajes, às escuras”; em Saudades para Dona Genciana: “Pela meia-noite
podia-se ouvir cair um alfinete nas pedrinhas da calçada.” Ambas as imagens conotam o
silêncio da hora e a acurada percepção do sujeito que a expressa. Também o som de uma
longínqua flauta e um fado ao bandolim remetem ao efeito sonoro da música nos dois
textos. Os costumes são tratados com ironia através de imagens sinestésicas. No poema de
Cesário moças burguesas querubins do lar flutuam nas sacadas; no conto de Miguéis, as
meninas pensativas dedilhavam pianos lânguidos. Imagens femininas que remetem à
idealização da fragilidade romântica em oposição às obreiras do Realismo e Naturalismo.
Outro exemplo da presença de Cesário em obras posteriores a ele encontramos no
romance “As Naus”, de Lobo Antunes (1988), no que concerne à justaposição de duas
cosmovisões que, segundo Raquel de Sousa Ribeiro, “tanto se opõem como se sucedem no
tempo. Ambas, entretanto, fazendo parte do mesmo processo: o das grandes navegações.”
44
In: MIGUÉIS, J. Rodrigues. Léah e outras histórias. Lisboa: Editora Estúdios Cor Ltda, 1968, p. 200.
36
De um lado, personagens com nomes de Pedro Álvares Cabral, Vasco da Gama e Camões,
dentre outros, “sugerem a representação da utopia renascentista, antropocêntrica. Ao lado
dessa visão de mundo, a mais recente, que reconhece o direito de todos à autonomia, à
autodeterminação.”
45
Entre estas duas mundividências estão os “retornados”, presos à
primeira por descendência, à segunda, por nascimento, mas rejeitados por ambas. Tal
remete a situação de Cesário e de sua obra poética, na medida em que o homem
oitocentista, fragmentado entre a cidade e o campo, busca a totalidade através do trabalho;
e o sujeito poético, dividido entre o presente (espaço físico) e a memória (espaço do
sentimento) busca a unidade através da poesia.
Como já foi mencionado anteriormente, não se pretende com este breve inventário
esgotar a Fortuna Crítica de Cesário Verde. Nossa pesquisa consultou inúmeras obras
existentes sobre o assunto, como é, entre outros, o quadro cronológico
46
das publicações
dos poemas com a devida reserva em que Luís Amaro d’Oliveira aponta discordâncias
entre as datas de publicação em jornais e revistas, pela primeira vez, no livro organizado
por Silva Pinto. Consultamos, também, o sumário ou quadro completo da obra do autor
organizado por Joel Serrão. (ANEXO-F).
45
RIBEIRO, Raquel de Sousa. A justaposição n’ As Naus, de Lobo Antunes: o silenciado em busca da
forma. In: Literatura Portuguesa: História, memória e perspectivas. Aparecida de Fátima
Bueno ... [Et Al.]. SP: Alameda, 2007, pp. 337 e 338.
46
OLIVEIRA, Luís Amaro d’. Cesário Verde (Novos subsídios para o estudo da sua personalidade).
Coimbra: Nobel, 1944, pp. 75 e 76.
37
I - O SUJEITO POÉTICO
“O que diz tem o calor das coisas proferidas pelo próprio,
saídas diretamente do coração.”
(Rodrigues Lapa)
47
Este primeiro capítulo busca refletir sobre a questão do sujeito poético no poema O
Sentimento dum Ocidental e dele para a obra como um todo, a partir das relações
espaciotemporais do cotidiano e do percurso. Partimos do princípio analítico de que a
constituição do sujeito poético, no caso, realiza-se através de duas vertentes distintas que
dialogam entre si e com o mundo. São elas: a observação e captação do mundo exterior,
através dos sentidos, e o sentimento decorrente dessa percepção, expresso no poema. Se na
Introdução abordamos questões de ordem biográfica, de contextualização e fortuna crítica
que possam lançar luzes sobre a análise do referido poema e do restante da obra poética, a
título de orientação de leitura, temos em mente que, por mais original que seja o artista, ele
reflete em sua obra o mundo a que pertence, como se lê na breve exposição que se segue:
E Cesário Verde viveu e escreveu em uma época em que as teorias
científicas procuravam estudar o homem independentemente das
explicações religiosas. Além disso, sua família pouco tinha a ver com a
religião. Tudo isso parece ter marcado fundo o poeta: sua literatura volta-
se para a realidade objetiva, material. Sua temática é realista. Em outras
palavras, o que lhe interessa é o mundo que o rodeia, é o homem situado
na vida terrena. O homem palpável, vivendo num espaço social, que é
apreendido pela razão, mas, basicamente, pelos sentidos. São comuns em
sua obra versos que descrevem sensações – visuais, auditivas, táteis,
47
LAPA, M. Rodrigues. Estilística da Língua Portuguesa. 6ª.ed. RJ: Livraria Acadêmica, 1870, p.124.
38
olfativas e gustativas. O mundo de seus poemas é o mundo lisboeta,
ocidental.
48
Buscamos, a partir daí, enfocar as relações entre espaço físico (geográfico) e espaço
da emoção (sentimento), num primeiro momento, para, em seguida, analisar os aspectos
básicos da relação sujeito-tempo-espaço que, embora se apresentem aqui separados para
fins de análise, pertencem a um só texto-contexto.
Cumpre, a título de orientação da leitura, ressaltar que as expressões “sujeito lírico”
e “sujeito observador” distinguem-se apenas para efeitos analíticos, tendo a expressão
“sujeito poético” o sentido equivalente ao sujeito que compõe e se expressa através dos
versos no poema, sendo justificado o uso da variação linguística para evitar repetições
vocabulares.
O SUJEITO E A CIDADE
Na obra poética de Cesário Verde há um jogo de interação constante entre espaço
físico e espaço da emoção, do sentimento. Não são raras as expressões em seus versos que
denotam sua inspiração a partir do território vivido, seja ele representado por Lisboa ou por
seus arredores: “Triste cidade!” e “Quisera que o real e a análise mo dessem” são exemplos
referentes a Lisboa (OSO); “No campo, eu acho nele a musa que me anima” (De Verão,
E.1) é referente a seus arredores. Lá, na obra como um todo, pela referência geográfica ao
Tejo, equipamentos urbanos da cidade, seus locais e monumentos que a identificam; aqui,
pelos contrastes do homem e da terra portuguesa com o solo e os farmers dos países do
Norte, que os singularizam. Analisar, portanto, a relação entre espaço físico (geográfico) e
espaço do sentimento (emoção), buscando evidenciar o diálogo deles na poesia de Cesário
48
PASCHOALIN, Maria Aparecida. Cesário Verde. (Seleção de textos, notas, estudos biográfico,
histórico e crítico e exercícios). São Paulo: Abril Educação, 1982, p.98.
39
Verde, parece-nos importante neste momento, embora saibamos que tal assunto demande
aprofundamento maior.
Partindo da análise do poema OSO, que sinteticamente expressa as relações
espaciotemporais de Lisboa, nossa análise buscou interpretá-las na obra como um todo.
Para tanto recorremos a dados biográficos do poeta e da cidade em que ele viveu como
base da realidade recriada em sua poesia pelo sujeito poético. Em outras palavras, Cesário
viveu e trabalhou em Lisboa e em seus arrebaldes, por conta da loja de ferragens de seu pai,
à Rua dos Fanqueiros, e da quinta Linda-a Pastora, não muito distante dali. Esse espaço
inspirou seus poemas. Predomina em sua poesia o movimento do sujeito que, a partir da
observação da realidade percebe o sentimento que ela deflagra e o expressa através dos
versos, criando, assim, uma nova realidade: a do poema. A partir daí, pareceu-nos essencial
à análise e interpretação da obra poética compreender a relação entre o espaço físico e o
espaço sentimental dele decorrente, expresso em seus versos. Recorremos, então, a uma
série de estudos sobre a situação geográfica de Lisboa à época do autor. Cabe, entretanto,
ressaltar que compreendemos essa realidade dentro das limitações que a linguagem impõe e
que esses estudos que se seguem decorrem de pretensões a uma maior verossimilhança,
mais próximo possível do espaço real, para bem interpretar o desejo que as próprias
palavras recorrentes do poeta expressam: “E eu, que medito um livro que exacerbe, /
Quisera que o real e a análise mo dessem;/ Casas de confecções e modas resplandecem; /
pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe”. (OSO, III-5).
Em princípios do século XIX, a cidade de Lisboa ocupava uma área de 9.47 km².
Em meados do século (1852) assiste-se ao alargamento do território da cidade que passa a
12.24 km², ficando limitada pela Estrada da Circunvalação. O comprimento máximo no
sentido E-O era de 5.6 km, contra 3.3 km no sentido N-S. Segundo Teresa Barata
Salgueiro: “No último quartel do século XIX a abertura da Avenida da Liberdade e a
40
urbanização dos territórios adjacentes alterou a forma tradicional da cidade, que desde
então começou a crescer para o norte, em direção ao planalto.”
49
Algumas indústrias se
concentravam próximos à zona ribeirinha do Tejo, dotada de maior acessibilidade, pois
dispunha de linha de “americanos”, transporte coletivo de tração animal, do tradicional
“Chora” (FIGURA-3), do caminho de ferro (linhas Norte e Leste), e do porto, onde foram
efetuadas importantes obras nos anos oitenta. O Inquérito Industrial de 1881, por exemplo,
aponta para maior concentração de emprego industrial nessa região. Para lá da área
construída, em continuação, estendiam-se os territórios que abasteciam a cidade de víveres
ou matérias-primas, e as que eram utilizadas para lazer dos lisboetas, quintas e praias,
desde o fim do século XIX: “As aldeias da região saloia eram sedes de territórios agrícolas
que forneciam os produtos das suas hortas, ou o vinho [...] aos mercados da capital.”
50
As
estâncias de veraneio e os núcleos industriais mais distantes foram desenvolvidos depois
das instalações da linha férrea e, assim, completaram o quadro da periferia de Lisboa já no
século XX.
Ao analisar o desenvolvimento urbano em Portugal, Teresa Barata Salgueiro
distingue três períodos: o período medieval, o período pombalino e as fases de crescimento
mais recentes, cuja origem se situa no século XIX e alcança nossos dias. O primeiro
período tem seu início marcado pelas fundações de povoação no princípio da nacionalidade
(século XII). Nos séculos XV a XVII, com a criação de cidades além-oceanos como reflexo
dos Descobrimentos, a economia essencialmente agrícola afirma-se como vocação
marítima e comercial, proporcionando o desenvolvimento de Lisboa, que se trona a capital.
Ali, as construções se sucedem sem obedecer a um plano conjunto, e a acumulação de
riqueza permite edificações luxuosas, com produtos importados, a gosto da moda européia,
e com elementos exóticos que o mundo tropical revelava. Dessa síntese, resultou o estilo
49
SALGUEIRO, Teresa Barata. A Cidade em Portugal: Uma geografia Urbana. Coleção Cidade em
Questão/8. Porto: Edições Afrontamento, 1992, p. 83.
50
Idem,ibidem, p. 84.
41
manuelino. Após o terremoto de 1755, cuja área incendiada está demarcada (FIGURA-4), e
cuja descrição lemos nos textos (FIGURA-5), a reconstrução da Baixa lisboeta seguiu
orientação segundo rigor militar e funcionalidade, respeitados os conceitos de saúde
pública. Dentre eles, ar fresco e luz aparecem como valores novos, ruas mais largas e
praças. Há busca de formosura de conjunto e simetria em portas, janelas e alturas. O
engenheiro-mor do reino Manuel da Maia é encarregado pelo Marquês de Pombal, o
poderoso ministro de D. José, a estudar uma solução para a cidade em ruínas. Das três
hipóteses apresentadas foi escolhido o projeto de Eugénio dos Santos (FIGURA-6),
inovador, que bem acordava com o pensamento político de Pombal. Prático e racional, o
plano contava com malha ortogonal de quarteirões retangulares, com praças
quadrangulares, edificações estruturadas em “gaiolas”, com elementos de madeira travados
entre si e em separado da argamassa, estuque e cantaria, por segurança e medida de
prevenção a novos abalos sísmicos. Deveriam ser seguidos o projeto-tipo das fachadas, as
normas de construção e a organização interior. Rede de esgoto, janelas com vidro e pias de
cozinha obrigatórias são alguns exemplos.
Em continuidade, a vida portuguesa da primeira metade do século XIX é bastante
conturbada. As invasões francesas contribuem para a desorganização econômica e,
politicamente, Portugal, cada vez mais sujeito aos interesses ingleses, do ponto de vista da
técnica, atrasa-se em relação a outros países europeus. As manufaturas haviam sido quase
todas desativadas. A Baixa pombalina não era considerada zona chique no século XIX,
sendo preterida pelo Chiado, onde se construía a Estação da Ferrovia, que daria origem à
Avenida da Estação e aos bairros modernos, com palacetes da alta burguesia.
Ao estilo vitoriano, no final de 80, iniciou-se a planificação do Bairro Alto, para
onde se mudariam aqueles que consideravam a Baixa demasiado buliçosa e acanhada. A
cidade, a exemplo de Paris, adere aos boulevards, jardins. O Estrela, desenhado em 1842, e
42
o Passeio Público, cercado por grade de ferro, depois da reforma por que passou em 1835,
eram partes integrantes da vida social de Lisboa. Iniciam-se, a seguir, as obras da Av. da
Liberdade e do Parque Eduardo VII, inicialmente chamado Liberdade. Arranjam-se,
também, pequenos jardins municipais, por todo lado, com cercas de buxo e exíguos
canteiros com flores. Nesse contexto, a árvore se distingue como elemento ornamental,
cujo significado é diminuir a distância da natureza, e representa a preocupação em minorar
os efeitos da poluição. Com o Liberalismo e a extinção das ordens religiosas, ocorrem
alterações na titularidade e ocupação dos imóveis. Edifícios conventuais entram na posse
do Estado, que aí instala prisões, quartéis, escolas, museus, repartições públicas, hospitais.
No último quartel do século XIX, período decisivo para o urbanismo de Lisboa, há forte
crescimento populacional e aumento de área do município. Aparecem fábricas, oficinas,
transportes coletivos, grandes negócios e respectivas riquezas. O desenvolvimento urbano
volta-se para o norte, dando as costas para o rio, como é vulgar dizer-se. Surgem, também,
as primeiras habitações operárias em Lisboa, de pessoas que vêm do campo à cidade em
busca de trabalho industrial. Vítimas da especulação imobiliária, vão acumular-se em
edificações precárias nas zonas de baixa salubridade. Na época de Cesário, portanto, Lisboa
se encontrava em grandes transformações físicas e sociais, as quais não escaparam ao olhar
sensível do poeta, que não só as descreve detalhadamente, como expressa o sentimento
delas decorrente, em seus versos. É o caso dos poemas onde predomina o cenário urbano.
Por exemplo:
Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada. (Num Bairro Moderno, E.1-2)
43
Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,
Vibra uma imensa claridade crua.
De cócoras, em linha, os calceteiros,
Com lentidão, terrosos e grosseiros,
Calçam de lado a lado a longa rua. (Cristalizações, E.1-2)
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício do Tejo, a maresia
Despertam um desejo absurdo de sofrer. (OSO, E.1-2)
Nos três fragmentos de poema acima transcritos, a supremacia do mundo exterior e
da materialidade dos objetos urbanos impõe o real concreto. No primeiro, através da
situação espaciotemporal “dez horas da manhã”, das cenas descritas no exterior e interior
das “casas apalaçadas”, “pelos jardins”, “na rua macadamizada”, “os transparentes”, “as
persianas”, “os quartos estucados’, “papéis pintados”, “porcelanas’, que conotam o luxo e o
ócio nos bairros aburguesados. No segundo, em oposição a isso, a dureza do trabalho dos
calceteiros, a longa rua e a casaria, trazem aos olhos do leitor detalhes da cidade em
transformação física e a exploração da força de trabalho. E, no terceiro, o anoitecer nas ruas
da cidade, o rio, o gás, os edifícios, a turba despertam a melancolia e o desejo de sofrer
expresso pelo sujeito lírico. Nos três poemas o cotidiano é expresso em tempo presente,
revelando o espaço urbano percorrido pelo poeta que se empenha em captar o real em sua
deambulação, porém sua visão subjetiva e seu sentimento decorrente, são marcantes, como
podemos ver nas expressões: “fere a vista”, “tal soturnidade’, “tal melancolia”. Os verbos
dos poemas citados ora traduzem movimento “matizam”, ”abriram-se”, “reluzem”; ora
inércia: “estancam-se”, “repousam”, “parece”, criando um ritmo pulsante; ao passo que as
locuções adverbiais refletem estados e situações variadas: “dez horas da manhã”, “com
lentidão”,“ao anoitecer”. Os substantivos denotam elementos do mundo urbano, recorrentes
na obra de Cesário:“rua”, “gás”, “casaria”, “turba”, os adjetivos conotam a valoração a eles
44
atribuída pelo sujeito lírico; “casa apalaçada”, “molhada casaria” e “cor monótona e
londrina” são exemplos de descrição detalhada que traz a cidade aos olhos do leitor, através
das imagens físicas e sentimentais que o sujeito poético cria.
Embora não seja o caso de uma análise topográfica minuciosa, neste momento, vale
dizer que, através dos elementos espaciais descritos pelo sujeito lírico em O Sentimento
dum Ocidental, pode-se ter uma ideia do percurso enquanto que aleatório “a vagar sem
rumo”. Tendo iniciado seu caminhar, ao anoitecer, pelo Chiado, o sujeito lírico desce para
a Ribeira, retorna ao Chiado, passa pelo Largo de Camões e, pela Baixa, segue rumo ao
Castelo de São Jorge, terminando seu percurso na Alfama, na madrugada do dia seguinte.
Seus passos percorrem tanto a parte da cidade medieval, de becos e ruelas tortuosas que
causam surpresa a cada curva, quanto a parte nova da capital, reconstruída a mando do
Marquês de Pombal, após o terremoto de 1755, de ruas retas e avenidas largas (FIGURA-
7). Opõe-se aqui a emoção angustiante do traçado medieval à razão geométrica da cidade
pombalina. Lá são evocados pela memória o enriquecimento de Portugal com o comércio
gerado pelas Grandes Navegações e o processo de Colonização do além-mar, entre outros
triunfos históricos, bem como as desgraças representadas pela Inquisição, o terremoto, a
febre amarela, o cólera. Aqui são evocados o saneamento das avenidas, a iluminação e o
transporte trazidos pela técnica, bem como o estrangeirismo da moda e dos costumes, que
provocam o sentimento opressivo e de o solidão, situando-se o sujeito lírico entre ambos.
Segundo Milton Santos: “o espaço não pode ser estudado como se os objetos materiais que
formam a paisagem trouxessem neles mesmos sua própria explicação. Isso seria adotar uma
metodologia puramente formal, espacista, ignorando os processos que ocasionaram as
formas.”
51
Depreendemos daí, portanto, a necessidade de incluir a noção temporal do
processo histórico na leitura do espaço.
51
SANTOS, Milton. 2007. Op. Cit., p. 58
45
O percurso descrito no poema, ora em foco, ora em perspectiva, permite uma visão
das relações espaciotemporais na totalidade da cidade. Nesse contexto, a presença da
modernidade se faz sentir pelo uso da técnica industrial, recém-chegada à metrópole
portuguesa, no século XIX, que o ato de caminhar e de escrever presentifica e perpetua
num continuum que possibilita ao leitor tanto uma reflexão sobre aquele mundo, quanto
sobre o mundo atual. Isso permite cotejá-los no que têm de próximo e distante, para melhor
compreensão de ambos.
No poema OSO o espaço vai sendo construído a partir do olhar do sujeito lírico,
sobre formas relacionadas à cidade e ao campo, que influenciam as determinações sociais
do presente, levando em conta as heranças do passado. Por exemplo: “Duas igrejas, num
saudoso largo, / Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero;/ Nelas esfumo um ermo
inquisidor severo, / Assim que pela História eu me aventuro e alargo.” (II-4). Sem deixar
de reconhecer a contribuição que a Igreja emprestou à ética, à cultura, à arte, à história do
mundo, o autor condena, com elegância, os abusos da Inquisição. Tal dinâmica presente-
passado se repete em outros poemas, como é o caso de Provincianas: “Olá! Bons dias! Em
março / Que mocetona e que jovem / A terra! Que amor esparso / Correm os trigos, que se
movem / Às vagas dum verde garço.” (E.1). A idéia do tempo cíclico da natureza é dada
pela expressão “Bons dias!”, indicativa do período matutino; pelo substantivo “março”, que
traz a conotação da nova estação do ano, e pelas expressões nominais “jovem a terra e
verde garço”, que reforçam o sentido da renovação trazido pela primavera, transformando a
paisagem física e sentimental do sujeito lírico. As exclamações denotam seu entusiasmo
ante a estação presente, criadora, ao mesmo tempo em que sugerem o final do inverno,
estação que deixou grãos e sementes.
Daí, o breve estudo da topografia lisboeta permitir um diálogo com a visão que o
sujeito tem do espaço. Em poucas palavras, o traçado urbano de Lisboa, a primeira cidade
46
em escala da Europa, após o terremoto de 1º de novembro de 1755, foi planejado e
executado a mando do Marquês de Pombal, para que rapidamente se reconstruísse o espaço
destruído por aquele abalo sísmico, que foi seguido de maremoto (FIGURA-8) e de um
incêndio que durou vários dias, destruindo parcialmente a cidade antiga, da qual podemos
ter uma idéia a partir de um painel de azulejos da época (FIGURA-9). As ruas tortuosas da
Lisboa medieval, em algumas áreas, foram reconstruídas com base em um plano racional
de traçado geométrico, que seguiam um padrão construtivo de casarões, janelas, fachadas,
chaminés, azulejos iguais, visando à rapidez de se reconstruir a cidade que, como estava,
era presa fácil de outros impérios. Alguns bairros foram totalmente reformulados e, outros,
menos prejudicados, permaneceram como eram. Caso destes últimos é a Alfama, bairro ao
lado do Castelo de São Jorge, cujas vielas à direita deram origem à cidade. Alguns
edifícios permaneceram em escombros, como o Grande Teatro de Ópera, inaugurado
aquele ano por D. João V, que nunca foi reconstruído. Já o antigo Terreiro do Paço, no
reinado de D. José I, passa, depois de reconstruído, a ser a atual Praça do Comércio,
evidenciando a vocação da cidade portuária do final do século XIX, num outro momento
histórico, o liberal. Sobre a Revolução Liberal de 1820 lê-se:
Progressos agrícolas e técnicos, caminhos de ferro, abertura de
novos mercados, desarmonização, promulgação do Código Civil, sufrágio
censitário, desaparecimento de direitos senhoriais... quantas modificações
não ocorreram em Portugal ao longo do século XIX desde o triunfo da
revolução liberal de 1820! As suas repercussões são na sociedade portuguesa
– evolução, comportamentos e atitudes dos diversos grupos sociais. – são
ainda, no estado actual da investigação histórica no nosso país, difíceis de
apreciar em toda a sua extensão.
52
52
VAQUINHAS, Irene M. e Rui Cascão História de Portugal. Org. José Mattoso.Vol. V. O Liberalismo
(1807-1890) e Evolução da sociedade em Portugal: a lenta e complexa afirmação de uma
civilização burguesa. Lisboa: Editorial Estampa, 1975, p.441.
47
Isso nos leva a refletir sobre o processo de metropolização oitocentista em cidades
européias periféricas do então chamado mundo moderno, industrializado, da época, como
Londres e Paris; e cotejá-lo com nosso mundo do presente, globalizado pela técnica, mas
ainda de modernidade incompleta pelas injustiças socioespaciais que comporta. Nas
palavras de Milton Santos, A chamada “aldeia global” não existe. É apenas uma
construção, pois falta sentido a esse conceito.
53
No poema, a Lisboa do século XIX é trazida aos olhos do leitor de OSO em toda
sua complexidade dinâmica, matizes realistas e profundidade histórico-emocional pelo
sujeito lírico em contínuo diálogo com o sujeito observador, a partir das relações
espaciotemporais. Se o herói épico do passado era nacional, ou seja, o nobre ou burguês
que empreendia conquistas marítimas para Portugal renascentista, no presente lírico este
herói é o indivíduo comum que vive no cotidiano sua epopéia de sobrevivência e busca sua
identidade perdida em uma cidade moderna, em transformação. Ao expressar sua angústia
em relação ao meio, o sujeito poético revela objetos e situações da realidade exterior
(espaço físico) captados pelos sentidos e transmutados em sentimento subjetivo, que é
expresso em sua poesia como um todo. O espaço físico e o espaço da emoção, através das
palavras, dialogam no processo criativo dos poemas, como verificaremos mais adiante, no
capítulo dois.
O SUJEITO E O TEMPO
No poema OSO o sujeito poético, movido pela angústia existencial, perambula
pelas ruas da cidade, enquanto indivíduo e enquanto cidadão, do anoitecer ao amanhecer do
dia seguinte. Em seu percurso aleatório e noite adentro, depara-se com elementos espaciais
do seu cotidiano presente (século XIX), os quais atualizam diferentes experiências e
53
VEJA. São Paulo. Entrevista: Milton de Almeida Santos. 16 de novembro de 1994, pp. 7 a 10.
48
acontecimentos do passado da nação portuguesa, que vão do heroísmo, da esperança, das
Grandes Navegações ao terror da Inquisição. Enquanto perambula pelas ruas da cidade, o
sujeito vai captando a realidade lisboeta através dos sentidos e com aguçada percepção de
mundo a recria através de palavras. Embora nesse processo estejam envolvidos todos os
sentidos do sujeito, há predominância da visão e do olhar na poesia de Cesário. Acerca da
diferença existente entre visão e olhar, Lacan explicita: “O olhar só se nos apresenta na
forma de uma estranha contingência, simbólica do que encontramos no horizonte e como
ponto de chegada de nossa experiência, isto é, a falta constitutiva da angústia da
castração.”
54
E mais adiante: “Em nossa relação às coisas, tal como constituída pela via da
visão e ordenada nas figuras da representação, algo escorrega, passa, se transmite, de piso
para piso, para ser sempre nisso em certo grau elidido – é isso que se chama o olhar.“
55
.
Para fins de análise, adotamos a fragmentação do sujeito poético em: sujeito-observador, ao
que se refere a olho, e sujeito-lírico, ao que se refere a olhar, evidenciando com isso a
problemática que contrapõe a reprodução fiel da realidade exterior em sua objetividade
meramente descritiva à subjetividade lírica expressa nos poemas através das imagens
poéticas, que resgatam o tempo passado, no presente, por sobreposição. Acerca do tempo,
Milton Santos pondera: “A noção de tempo é fundamental. A sociedade é atual, mas a
paisagem, pelas suas formas, é composta de atualidades de hoje e do passado.” E, em
seguida, adverte: “A noção de escala é igualmente importante, pois, se o espaço é total, a
paisagem não o é. Não se pode falar de paisagem total, pois o processo social de produção
é especialmente seletivo.”
56
. Ambas as noções de tempo e de escala contribuem
significativamente para a interpretação da obra poética de Cesário, como a estrofe que se
segue exemplifica bem, na medida em que evoca as “crônicas navais” e a tudo ressuscita:
54
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964).
Trad. M.G. Magno. 2ª edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p.74.
55
Idem, ibidem, p.74.
56
Idem, ibidem, p. 60.
49
“E evoco, então, as crônicas navais; / Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!/ Luta
Camões no Sul, salvando um livro, a nado! / Singram soberbas naus que eu não verei
jamais!" (OSO, I-6)
Concebido inicialmente para homenagear Camões, o poema OSO remete, até certo
ponto, ao épico e a sua obra “Os Lusíadas, num contexto muito posterior e diferente, mas
originado nele, num outro momento do desenvolvimento do “projeto iluminista”, do
progresso, do sonho do futuro, da esperança daquele momento que, no entanto, longe de
confirmar sua plenitude, revela a angústia existencial.
Nesta inter-relação entre a objetividade do que foi (do que temos notícias) e do que
é (vivência e criação) para o sujeito poético, suas emoções, imaginação e memória, bem
como as deformações propiciadas por elas, e pela ilusão de ótica, pela noite, entre outras
coisas, instaura-se um diálogo onde outro espaço-tempo se insinua, ainda que sem forma
acabada, com características simultaneamente semelhantes e diferentes, que revela ao leitor
a constituição do sujeito lírico em busca da identidade. Por exemplo, nos versos: “Ou erro
pelo cais a que se atracam botes.” (I-5),/ “Assim que pela história me aventuro e alargo”
(II-4), “E, eu, que medito um livro que exacerbe,” (III-5), “Buscasse e conseguisse a
perfeição das coisas” (IV-4), em que os verbos na primeira pessoa do singular “erro”,
“aventuro”, “medito” e “buscasse” denotam tal esforço subjetivo.
Para reconhecimento e interpretação do sujeito lírico, consideramos o seguinte:
Em síntese, o “eu poético” define-se como um “eu” que se auto-
expressa para se conhecer e para se comunicar ao leitor. [...] tentar
compreender o fenômeno poético no âmbito da voz que fala no poema, que
fala para exprimir-se e comunicar-se; que fala em seu próprio nome,
embora pretenda ser universalmente ouvida e, quiçá, espelhar o sentimento
vago e inconfortável que agita o leitor de poesia.
57
.
57
MASSAUD, Moisés. A Criação Literária: Poesia. 16ª ed. São Paulo: Cultrix, 2003, p.146.
50
A partir daí, analisamos o sujeito lírico de OSO ao longo das quatro partes do
poema, que, embora independentes graficamente, formam no conjunto quatro movimentos
de uma mesma sinfonia que tem por tema o cotidiano da Lisboa oitocentista, assim
descritos por Helder Macedo em sua simetria estrutural e funcional:
A progressão da noite, desde o crepúsculo e o acender das luzes, até
a completa escuridão das "horas mortas”, é acompanhada, num complexo
contraponto, por um correspondente aprofundamento dos sentimentos e
percepções do caminhante solitário nas ruas da cidade. O melancólico
“desejo absurdo de sofrer” despertado pelo anoitecer é justaposto com uma
nostálgica evocação visionária do passado; a mórbida exacerbação da
angústia ao acender das luzes é justaposta com as alucinações febris de um
presente fantasmagórico; a intensificada amargura provocada pela
crescente escuridão é justaposta com a presença espectral dos seres reais
que se movem na cidade; finalmente, na escuridão total das horas mortas, a
evocação ansiosa de um futuro gerado pela própria noite, como a sua
necessária negação num novo dia, é justaposta com a culminante visão
desesperada da dor humana como um sinistro mar de fel em busca dos seus
amplos horizontes bloqueados.
58
Coincidindo com o início da Parte I do poema o percurso do sujeito lírico começa
“ao anoitecer”, horário em que – ironicamente - a comunidade católica religiosa se
organiza em torno do ritual da Ave-Maria, e, contrariamente a isso, mostra-se um ser
solitário, tomado pela angústia, que deambula pelas ruas familiares, “as nossas ruas” (I-1),
sensível aos múltiplos impactos sensoriais que a cidade lhe oferece. À medida que as
sombras se acentuam, com o passar das horas marcadas pelo decorrer do tempo
cronológico, dificultando a visão clara das coisas, os ruídos abafados e o cheiro a maresia
se sobressaem, alcançando o sujeito lírico, que reage psicologicamente a isso, com “um
desejo absurdo de sofrer” (I-4). Conforme as sombras se acentuam, outros sentidos vão se
58
MACEDO, Helder. Nós: uma leitura de Cesário Verde. Lisboa: Editorial Presença, 1999, p.166.
51
aguçando e os ruídos abafados “ao fundo” (I-3), o cheiro a maresia exalado pelo rio, bem
como o do gás extravasado pelos canos “enjoa e perturba”. Na relação sujeito-mundo,
longe de haver um sentimento de continuidade, há uma contrariedade entre sujeito lírico e
cidade que o sentimento de “soturnidade” e “melancolia” revela, em oposição ao bem-estar
que a natureza campestre oferece, como é o caso em De Verão: “No campo; eu acho nele a
musa que me anima;/ A claridade, a robustez, acção.” (E.1), só para exemplificar, posto
que a contraposição cidade-campo na obra cesariana é tema que exploraremos adiante.
A crescente escuridão do descer da noite vem como uma barreira opressiva
enclausurar de cima a cidade, a qual, aos olhos do sujeito lírico, torna-se massa irregular de
coisas e seres indistintamente fundidos, como se lê nos versos: “E os edifícios, com as
chaminés e a turba/Toldam-se duma cor monótona e londrina” (II-3-4).
Diferentemente de Baudelaire “que não descreve nem a população nem a cidade. E
é exatamente esta renúncia que lhe permitiu evocar uma na imagem da outra. A sua
multidão é sempre a das metrópoles; a sua Paris é sempre superpovoada.”
59
, o sujeito lírico
de O Sentimento dum Ocidental coloca-se em contrariedade à cidade e partilha da “Dor
humana” de seus cidadãos, principalmente dos trabalhadores e dos miseráveis: “O que me
rodeia é o que me preocupa”, segreda o poeta em carta a Silva Pinto.
60
A associação a
Londres, pela cor sombria, expande a imagem da grande capital mercantil industrializada e
se contrapõe à opressiva Lisboa do século XIX, explorada pela sociedade industrial, onde a
multidão de pessoas não passa de uma “turba”, à voz do sujeito poético, de timbre realista.
Aqui, também, a oposição do campo se faz presente em De Verão: “Que aldeias tão
lavadas! Bons ares! Boa luz! Bons alimentos! Olha: os saloios vivos, corpulentos,” (E.4),
expressa, principalmente, pelos adjetivos “lavadas, “Boa”, “Bons”, “vivos”, corpulentos”,
59
BENJAMIN, Walter. Sobre Alguns Temas em Baudelaire, em W. Benjamin et alii, Textos Escolhidas.
2ªed. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os Pensadores).. p. 37.
60
Conforme se lê em nota referente à epígrafe do terceiro capítulo.
52
que conotam claridade e o vigor, em contrariedade à cor sombria da opressiva Lisboa de O
Sentimento dum Ocidental.
O efeito aprisionador da cidade, intensificado pelo escurecer (tempo), pelo cheiro
do gás extravasado que se alastra (espaço) e pelo movimento dos caros “de aluguer” que
levam “à via-férrea os que se vão. Felizes!”, provoca no sujeito lírico uma ânsia de fugir
para outro lugar (espaço), onde a totalidade do mundo extrapola a fragmentação das
cidades. Entretanto a realidade do presente o chama de volta ao cotidiano. Em seu percurso
solitário, as atividades crepusculares dos carpinteiros surgem ante seus olhos como
“morcegos ao cair das badaladas”, ao mesmo tempo em que, emergindo dos “becos” e
“boqueirões” do cais, “calafates” abatidos pelo cansaço e escurecidos de fuligem retornam
do trabalho em grupos. As descrições, acentuadamente naturalistas, rebaixam o ser humano
à condição de animal, como é o caso da conotação de criatura das sombras em “morcegos”.
Embora nefastos, eles são alados e capacitados a ver no escuro, como os obreiros.
As pequenas embarcações ancoradas no rio voltam a despertar no sujeito lírico a
ânsia de fuga (no tempo), e ele ressuscita o passado heróico: da memória, “crônicas
navais”; da história, “Mouros, baixeis, heróis, tudo ressuscitado!”; no presente imaginário,
“Os Lusíadas”: “Luta Camões no sul, salvando um livro, a nado!”. Lemos em H. Macedo:
De par com seu valor metafórico, a referência a Camões serve também
para tornar o todo do poema, onde funcionalmente se integra na
homenagem que Cesário lhe quis prestar, ao escrevê-lo: a seguir, o poema,
originalmente publicado numa folha intitulada Portugal a Camões, editada
pelo “Jornal de Viagens”, em 10 de Junho de 1880, foi escrito como uma
contribuição para as comemorações do tricentenário da morte de Camões.
61
Na quinta estrofe, exatamente a do meio da Parte I do poema, o sujeito lírico
momentaneamente sai da atmosfera opressiva da cidade e busca um curto respiro no
61
MACEDO, op. cit., p. 172.
53
passado de “soberbas naus” que a dupla negativa “não verei jamais” traz de volta a
realidade do presente no poema.
Ao deparar-se com elementos espaciais como “couraçado inglês” e “hotéis da
moda” que representam simbolicamente a alta-burguesia citadina, o sujeito poético passa a
descrever várias personagens que começam a surgir ante seus olhos como figuras
degeneradas em atividades vagas e vazias da vida burguesa citadina: “Num trem de praça
arengam dois dentistas; / Um trôpego arlequim braceja numas andas / Os querubins do lar
flutuam nas varandas; / Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!” (Parte I-8). E,
contrastando com isso, sua visão capta o cinético e o visual tableau vivant das massas
trabalhadoras que “vazam” dos “arsenais“ e “oficinas”, como que a preparar a entrada
triunfal das “varinas”. Acerca deste episódio, vários estudiosos se manifestaram, dentre
eles, Jorge de Sena: “A “épica” entrada das varinas não tem par nem mesmo em Camões.
62
, atribuindo-lhe a dimensão heróica do passado, no cotidiano do presente; o que Helder
Macedo reforça ao ponderar: “A associação implícita entre essas mulheres “hercúleas” e o
mundo épico das “crônicas navais” é subtilmente reforçada na relação, que dinamicamente
aproxima o passado e o presente, entre a imagem do naufrágio de Camões: “no Sul,
salvando um livro, a nado”, com a imagem dos filhos das varinas “que depois naufragam
nas tormentas” (I-10)
63
. Ante o quadro de miséria da vida dessas mulheres, “Descalças!
Nas descargas de carvão”, ou seja, usadas como animais de carga até a noite, quando se
amontoam nos bairros infectados, que simbolizam a degradação material, o sujeito poético
manifesta sua revolta social, reforçada pelo ponto de exclamação: “E o peixe podre gera
focos de infecção!”
Como se lê no fragmento a seguir, o contraste das varinas com “querubins do lar”,
no poema, é revelador da inversão de valores onde o componente romântico de “lânguidos”
62
SENA, Jorge de. A Linguagem de Cesário Verde. ESTRADA LARGA I. Porto: Porto Editora, 1958,
p. 412.
63
MACEDO, Op. Cit. , p.172.
54
se opõe ao realista de “ancas opulentas”. Se aquele está associado ao modelo feminino do
ócio e da fragilidade da burguesa do Romantismo, este se associa ao modelo de força de
trabalho das mulheres do povo, na luta por sobrevivência, inscrevendo o poema na
temática da estética realista da segunda metade do século XIX:
[...] o contraste entre a visão etérea dos lânguidos “querubins do lar” com a
descrição da firmeza opulenta das varinas – as mães dos náufragos futuros
que, no entanto são os perpetuadores e os herdeiros da aventura do passado
– constitui um comentário poderoso, porque objectivamente representado
na realidade social observada, sobre a inversão dos valores naturais nas
situações respectivas das suas classes sociais.
64
Tal característica também é observada no poema Nós, em que a doença da irmã,
prenunciada como “alvor romântico de miss” (E.42) se opõe ao “pano das camponesas”
(E.43), vigorosas e plebéias. (E.42).
No segundo movimento do poema, ao acender das luzes a gás nas ruas, acentua-se
no sujeito lírico o sentimento de melancolia a ponto de ele suspeitar de um mal físico,
como expressam os versos: “E eu desconfio, até, de um aneurisma / Tão mórbido me sinto,
ao acender das luzes; / À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes, / Chora-me o coração
que se enche e que se abisma.” (OSO, II-2), em oposição a; “Ah! Que aspectos benignos e
rurais / Nesta localidade tudo tinha. / Ao ires, com o banco de palhinha, / para a sombra que
faz nos parreirais!” (Nós, E.31).
64
Idem, ibidem, p.172.
55
O SUJEITO E O MUNDO
No poema OSO, durante o percurso solitário pelas ruas da cidade, à luz
fantasmagórica da iluminação a gás, a percepção sensorial do sujeito lírico funde-se à
projeção psicológica da imaginação, assim que ele se aventura e alarga pela história. O
sentimento individual passa a expressar o sentimento da nação através dos elementos
espaciotemporais que representam as instituições urbanas: os monumentos e as tragédias,
sem olvidar do populesco. Assim, o épico de outrora, o som às grades nas cadeias, a visão
do aljube, das prisões e igrejas representam o poder; a parte que abateu o terremoto e as
epidemias que assolaram Lisboa, a tragédia; e as varinas representam o populesco, dando
continuidade do passado no presente. Aqueles o fazem sofrer: “Chora-me o coração que se
enche e que se abisma.” (II-2); e estas, sonhar: “Ah! Como a raça ruiva do porvir”, pois
alguns navegantes eram filhos do povo, das varinas. A memória das torturas da Inquisição,
das epidemias de febre amarela e cólera que dizimaram a população provocam o
sentimento de tristeza, que é projetado na cidade em que convivem, lado a lado, um palácio
iluminado, símbolo da riqueza, do poder estabelecido, e um casebre, símbolo da extrema
pobreza. Às formas de repressão do passado, simbolizadas pelos soldados, seguem-se as do
presente lírico: “Partem patrulhas de cavalaria / Dos arcos dos quartéis que foram já
conventos;” (OSO, II-9). E ante a visão do presente que resgata a memória da cidade, o
sujeito poético expressa o sentimento de nação pela metonímia da cidade de Lisboa: "Triste
cidade! Eu temo que me avives uma paixão defunta!” (idem); em oposição ao campo, “No
país montanhoso, com relevo!” (Nós, E.35) , onde o substantivo “país” evidencia o sentido.
Simultaneamente ao mundo do baixo sugerido pela perseguição religiosa e prisões,
o sujeito lírico percebe um mundo sublime “Com bancos de namoro e exíguas
pimenteiras”, onde “Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras, / Um épico de
56
outrora ascende, num pilar!” (II-6), representa sua mais alta expressão. Embora o namoro
remeta ao mundo individual burguês, ele sugere o amor em sentido platônico mais elevado,
e, nesse sentido, provoca no leitor um sentimento que mais se aproxima do amor sublime.
Embora o épico se apresente ao lado do individual e burguês representado por "bancos de
namoro”, e, neste sentido, se apresente rebaixado, vulgarizado, as expressões “brônzeo” (de
metal nobre), “monumental” (de grandeza histórica), "de proporções guerreiras” remetem
ao mundo superior de conotação nacional, de renúncia ao individual em favor de uma causa
coletiva. Sublime, também, é a visão que ele tem da lua, a qual remete à natureza, que, ao
contrário da visão fragmentada dos edifícios que “A espaços, iluminam-se os andares,/ E as
tascas, os cafés, as tendas, os estancos”, lembra a totalidade do “circo e os jogos
malabares”. (II-3). Em ambos os casos, a expressão artística associada à natureza, como
designam os substantivos concretos “pimenteiras” e “lua”, se contrapõe à realidade
grotesca da nação, que se deixa levar pela idéia de “progresso” materialista, como forma de
resgatar a origem dupla do ser humano: pés fincados na terra e espírito elevado aos céus,
entendido como transcendente à matéria, de ordem espiritual. Aqui o sujeito não se
deixando enganar, reage: “Eleva-me a quimera azul de transmigrar.” (IV-1)
Os lampiões distantes, que “alvejam” as elegantes do mundo artificial da moda,
contrapõem-se às tradicionais costureiras e floristas que “enlutam” o sujeito, solidário a
elas, que protesta contra a sobrecarga de trabalho que lhes é imposta:
[...] o notável poder sincrético do oxímoro nas formas verbais
justapostas enlutam-me” – que prolonga a imagística de morte dos versos
anteriores – e “alvejando” – com toda a sua riqueza de sugestões luminosas
– dá a esta passagem uma extraordinária tensão dinâmica.” O contraponto
entre as figuras (elegante e costureiras/floristas) expressa a consciência
revoltada do sujeito lírico, que solitário entra na brasserie e observa que,
57
contrariamente à sua solidão, “às mesas de emigrados/ Joga-se,
alegremente e ao gás o dominó!”
65
O contraste irônico nesta última estrofe da Parte II do poema ressalta a inquietação
do sujeito lírico pertinente à nação portuguesa e a aparente despreocupação dos
estrangeiros foragidos que se dedicam ao lúdico, que o ponto de exclamação final reforça.
Nesse sentido, Jorge Luiz Antonio aponta: “A visão particular (ora eu, ora nós, ora ele) vai
ampliando o círculo de ação (simbolização da realidade por meio das palavras) e torna-se
geral, se universaliza num sentimento nacional e se torna o sentimento de um ocidental.”
66
Diferentemente do Oriente, Ocidente era compreendido como mundo industrializado, da
técnica e do progresso, no século XIX.
67
.
O movimento de saída do sujeito lírico da brasserie dá início à terceira parte do
poema. Intensificado pela noite, o sentimento de opressão da cidade aumenta: “E saio. A
noite pesa, esmaga.” A atmosfera de alucinação funde a realidade externa da cidade às
impressões que dela tem o sujeito lírico: “Ó moles hospitais! Sai das embocaduras / Um
sopro que arrepia os ombros quase nus. // Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso / Ver
círios laterais, ver filas de capelas,” (III-2) são exemplos da alucinação que consome o
sujeito lírico, contribuindo para sua despersonalização ante a cidade que reflete o caos da
nação. Aqui, o autor explora a funcionalidade da imagem dos candeeiros que iluminavam
algumas poucas ruas de Lisboa e o efeito literário deles “círios”, através de uma
sobreposição de espaços: real (rua) e psicológico (catedral). O espaço físico interage com o
espaço emocional humano. Ironicamente as prostitutas que se “arrastam” nos passeios são
associadas aos “moles” hospitais, e o comércio “lojas tépidas” à igreja “círios de capelas”,
conotando a decadência ético-moral que mina a capital da nação, que a metáfora mulher
65
ANTONIO, Jorge Luiz. Cores, Forma, Luz, Movimento: A Poesia de Cesário Verde. São Paulo:
Musa Editora/FAPESP, 2002, pp. 264-265.
66
Idem, ibidem, pp. 264-265.
67
A questão Oriente/Ocidente no século XIX merece estudo aprofundado em uma outra ocasião, que
não esta, por não ser ela, aqui, o principal enfoque do trabalho.
58
representa na obra como um todo. Por exemplo, os poemas Vaidosa, Esplêndida e Frígida,
nos quais a mulher citadina arrasta o sujeito para a morte, que os versos a seguir bem
elucidam: “E eu vou acompanhando-a, corcovado, / No trottoir, como um doido, em
convulsões,/ Febril, de colarinho amarrotado,” (Esplêndida, E.7). A diversidade dos perfis
femininos, encontrada, principalmente, nos poemas Deslumbramentos, A Débil e Manhãs
Brumosas, evidencia a atração que o sujeito lírico sente pelo tipo de mulher nórdica, vamp
e aristocrática, a senhora, enfim, a quem rende louvores e ameaças: “Mas cuidado, milady,
não se afoite, / Que hão-de acabar os bárbaros reais; /E os povos humilhados, pela noite,/
Para vingança aguçam os punhais.” (Deslumbramentos, E.9), com a lucidez socialista, que
é peculiar a Cesário.
Somando-se a isso os versos: “As burguesinhas do catolicismo / Resvalam pelo
chão minado pelos canos, / E lembram-me, ao chorar doente dos pianos, / As freiras que os
jejuns matavam de histerismo.” (OSO, III-3) exemplificam o anticlericalismo de Cesário,
em moldes realistas, sem, contudo, espelhar-se no exemplo cáustico dos romances mais
sarcásticos de Eça.
Os detalhes do cotidiano descritos pelo sujeito poético ao longo do percurso
adquirem tons impressionistas, sem contornos nítidos, ambíguos, revelando a falta da
identidade da nação que se confunde com os hábitos e moda estrangeira. Nesse ambiente,
os “xales com debuxo”, a “traine que imita um leque antigo”, os “mecklemburgueses”, os
“tecidos estrangeiros” chamam a atenção dos comerciantes; ao passo que “um homenzinho
idoso”, a esmolar nas esquinas, desperta a compaixão do sujeito lírico: “Dó da miséria! –
Compaixão de mim! - / E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso, / Pede-nos sempre
esmola um homenzinho idoso, / Meu velho professor nas aulas de latim! “ Nesse sentido,
cabe, a título de enriquecer a análise, o comentário que se segue:
59
A caracterização do mendigo como “eterno, sem repouso” vem
acentuar no poema um elemento simbólico já subliminalmente sugerido
na descrição do ambiente: o percurso do poeta pelas ruas nocturnas da
cidade é também uma viagem simbólica por um mundo de fantasmas
onde, como Dante, no Inferno, encontra o seu “velho professor”. Mas em
Cesário, como sempre, o símbolo está na própria realidade objectiva, e
neste seu encontro há uma alusão literal ausente do encontro imaginário
de Dante deambulando com Virgílio no Inferno: no tempo de Cesário,
havia efectivamente um professor de Latim – que acabou a vida a
esmolar nas ruas de Lisboa.
68
Por outro lado, os ofícios manuais como “Um cuteleiro, de avental, ao torno, / Um
forjador maneja um malho, rubramente, / E de uma padaria exala-se ainda quente, / Um
cheiro salutar e honesto a pão de forno”. que conotam espaço de iluminação e elevação
moral pelas imagens de luz e calor que evocam, em contraposição à doença e hipocrisia da
sociedade, animam momentaneamente o sujeito poético que enuncia a escrita como forma
de recompor a totalidade fragmentada: "E eu, que medito um livro que exacerbe, / Quisera
que o real e a análise mo dessem,” (OSO, III-5).
As composições poéticas de Cesário anteriores a 1875 revelam a indecisão entre o
campo e a cidade. A partir de A Débil, há uma busca da integração urbana, marcada,
principalmente pelos poemas Num Bairro Moderno e Cristalizações. A partir de 1880, sua
poesia é cognitivamente citadina, como se observa em OSO. Entretanto, a intensidade de
tal vivência, segundo Joel Serrão, sem par em nossa poesia, é substituída novamente pelo
campo, como bem exemplifica o poema Nós (1884). Não se falava ainda, nessa altura, de
ecologia ou meio ambiente, mas Cesário já nos dá conta disso ao apresentar-nos quadros de
poluição e degradação ambiental, com funestos resultados, como depreendemos dos versos
a seguir: “Foi quando em dois verões seguidamente a Febre/ E o Cólera também andaram
68
MACEDO, op. cit., pp. 184-185.
60
na cidade, / Que esta população, com um terror de lebre, / Fugiu da capital como da
tempestade. (Nós – E.1). Segundo António Capão:
Se os quadros da vida quotidiano da cidade de Lisboa têm para
Cesário um valor essencial na sua produção poética, também é verdade
que os quadros da vida campestre, ainda que aqui e além se encontrem
maculados por um ou outro aspecto negativo, tornam-se como que o
grande motivo da descrição e o salutar fim a atingir, espécie de evasão
purgativa da vida citadina.
69
A relação cidade-campo, na obra poética de Cesário, passa por algumas
transformações de significado. Inicialmente, o tempo-espaço definido em seus poemas é a
cidade, a realidade presente, confinadora e destrutiva, em contraste com o campo,
representado pela metáfora antinômica de liberdade. Exemplo é o poema Cantos da
Tristeza (1874), que no Livro organizado por Silva Pinto aparece com o título Setentrional.
Do ponto de vista pessoal, de um lado a cidade significa ausência, perversão ou
impossibilidade amorosa; de outro, o campo significa idílio. Do ponto de vista social, a
cidade significa opressão e o campo, possibilidade de libertação. Para escapar dessa dupla
limitação, o poeta recorre a uma identificação com o trabalhador rural. O campo, então,
despe-se de sua conotação idílica, tornando-se uma realidade concreta, observada em seus
múltiplos detalhes e descrita tão minuciosamente quanto a cidade. Nas palavras de Helder
Macedo: “[...] um campo de que o trabalho e os trabalhadores são parte integrante, um
campo útil onde o poeta se identifica com o povo e de cujas actividades participa.”
70
Tal
reformulação expande o contraste cidade-campo para a sociedade agrária-sociedade
industrial, esta representada pelas nações do Norte, aquela, pelas nações do Sul, dentre as
quais encontramos Portugal. Desta tensão emerge a percepção das injustiças socioespaciais
69
Op, Cit. P. 14.
70
Op. Cit, p. 46.
61
e o protesto do autor nelas implícito, o que revela sua visão de mundo desconcertado. O
poema Provincianas (1887), incompleto e, ao que se saiba derradeiro, é exemplo disso.
Contrapondo a “branca fidalga” às lavradoras, o sujeito poético indaga exclamando: “Não é
caso que a comova / Ver as irmãs de leite, / Quer faça frio, quer chova, / Sem uma mamã
que as deite / Na tepidez duma alcova?!”. Contudo, longe de reduzir a obra de Cesário
Verde e o contexto em que ela se insere a coordenadas estéticas e ideológicas, tal
interpretação, segundo Helder Macedo, vem a iluminar o processo de “transformação
qualitativa de uma matéria-prima convencionalmente não poética no que é porventura a
visão poética mais original da moderna literatura portuguesa.”
71
A análise do sujeito poético de OSO, a partir das relações espaciotemporais,
demonstra que pari e passu com o percurso pelas ruas de Lisboa está a escrita. Movido pela
angústia existencial, decorrente da fragmentação do eu e da nação, seu olhar é atraído pelos
elementos espaciais e situações urbanas, do anoitecer ao amanhecer. O ato de escrever para
o sujeito poético, em todo o seu percurso angustiante de criação, caótico e indefinido ao
início, busca recompor a realidade pela imaginação, desconcertando-a. Segundo Wellek:
Parece possível, contudo, aceitar uma visão que constitui qualquer
atividade humana particular como a “iniciadora” de todas as outras, seja
ela a teoria de Taine, que explica a criação humana por meio de uma
combinação de fatores climáticos, biológicos e sociais, seja a de Hegel e
dos helegianos, que consideram o “espírito” a única força motriz da
história, seja a dos marxistas, que derivam tudo dos modos de produção.
Nenhuma mudança tecnológica radical ocorreu nos muitos séculos entre
a Idade Média e a ascensão do capitalismo, ao passo que a vida cultural,
e a literatura em particular, sofreram as mais profundas transformações.
Tampouco a literatura demonstra sempre, pelo menos imediatamente,
consciência das mudanças tecnológicas de uma época: a Revolução
Industrial penetrou nos romances ingleses apenas na década de quarenta
71
Idem, ibidem, p.49.
62
do século XIX [...], muito depois que os seus sintomas fossem
claramente visíveis para os economistas e pensadores sociais.
72
Cesário expressa no poema sua relação de contrariedade com o mundo em que
viveu. É ele dessas exceções em que a consciência das mudanças tecnológicas de sua época
(Lisboa oitocentista) ocorrem imediatamente em sua lírica. Não se submeteu ao mundo
concertado pela técnica que prometia o progresso científico como garantia da felicidade
humana no século XIX, conforme atesta o poema analisado. Em vários momentos, ao
longo das quatro partes, ou melhor, dos quatro movimentos do poema OSO, o sujeito
expressa a angústia provocada pela opressão da sociedade urbana e busca na arte um modo
de desconcertar a realidade que oprime e faz sofrer. Se o primeiro movimento se constitui
da relação entre realidade exterior e mundo interior, no segundo ela se desconstrói. No
terceiro, acontece a transfiguração do sujeito, que volta a si no quarto movimento. As
variações citadas permitiram a análise do particular para o geral.
Entretanto cabe notar que o diálogo contínuo entre olho e olhar é uma das linhas de
força do poema: se o olho permite a visão do exterior, o olhar compreende a visão interior
em sua experiência acumulada. Num primeiro momento, a partir da origem no passado e
ordem do presente, o passado histórico e da memória dialogam com o mito e com a
realidade do presente no poema. No segundo momento, a análise da relação indivíduo-
nação, através dos monumentos nacionais mencionados, permitiu verificar a expansão do
individual ao coletivo, o que me rodeia é o que me preocupa. E no terceiro momento, as
relações arte-realidade introduzem uma reflexão sobre a questão da criação literária no
(des)concerto do mundo. Citando Carlos Felipe Moisés: “Concerto é o endosso da
72
WELLEK, René; Austin Warren. Teoria da literatura e metodologia dos estudos literários. Trad.:
Luís Carlos Borges. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda., 2003, p. 130.
63
acumulação reiterada, vezes sem conta; já quando se trata de desconcerto, cada vez é a
primeira vez.”
73
.
Outro aspecto que nos pareceu importante analisar na obra de Cesário Verde foi a relação
campo-cidade, a partir do ambiente criado pelo sujeito poético. Aparecendo
ocasionalmente em diversos lugares e épocas, é no século XIX que a ambientação alcança
seu florescimento, perdurando até nossos dias. Osman Lins atenta que: “Por ambientação
entenderíamos o conjunto de processos conhecidos ou possíveis, destinados a provocar, na
narrativa, a noção de um determinado ambiente.”
74
Com os devidos cuidados de
transposição para o texto poético de Cesário Verde, podemos depreender que em OSO os
passos do sujeito e os versos fluem como que simultaneamente: “Embrenho-me, a cismar,
por boqueirões, por becos, / Ou erro pelos cais a que se atracam botes.” (I-5) São, dentre
outros, versos que exemplificam essa simultaneidade. Entretanto, lê-se em Leon Sumerlian,
que não pode existir pure action in a vacuum (pura ação no vazio)
75
: “a moderna história
realista é ação e cenários.”
76
. Descrição e aparente narração alternam-se ou mesclam-se
para dissimular o contraste entre motivos dinâmicos e motivos estáticos que o poema
oferece. O silêncio e o ruído, a intensidade do vento, o odor e a fumaça, etc., são doações
de imagem, de aquisição imediata e satisfatória, que, no poema, expressam a ambientação.
O sujeito, ao referir-se a “gás extravasado”, às “chaminés”, “fim de tarde”, tinir de
louça e talheres”, “peixe podre”, (Parte I) expressa o ambiente da cidade, em seu cotidiano,
durante seu percurso pelas ruas de Lisboa, do anoitecer à madrugada do dia seguinte. Na
Parte II, a ambientação é acentuada, como, por exemplo, “som que mortifica”, “esfumo um
ermo”, “tanger monástico e devoto”, “capital, que esfria”. Na Parte III, a ambientação
noturna é intensificada por “a noite pesa”, “um sopro que arrepia”, “lojas, tépidas”,
73
MOISÉS, Carlos Felipe, 2001, op. cit. p. 16.
74
LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976, p. 79.
75
Tradução nossa.
76
Apud LINS, op. cit., p.79
64
“revérberos” e “lunar”. O silêncio e a escuridão prenunciam a madrugada na cidade: “teto
fundo de oxigênio, de ar”, “um parafuso cai nas lajes”, “ringem as fechaduras”, “sobem no
silêncio”, “na treva”, “nebulosos corredores”, “gritos de socorro”, “dúbios caminhantes”.
Falta a visibilidade: “Amareladamente, os cães parecem lobos” e “prédios... com dimensão
de montes” expressam a falta de visão de futuro do sujeito lírico na cidade opressiva. Na
parte IV delineia-se a esperança no horizonte.
Às vezes, há introdução pura e simples do sujeito para reforçar a franqueza, o perfil
cultural do campônio ou do citadino. Ao observar o mundo exterior ele verbaliza o
sentimento dele depreendido, introduzindo na ação um hiato. Por exemplo, as imagens
“nossas ruas, ao anoitecer”, “sombras”, “bulício”, “maresia” (elementos da observação
exterior), ao serem interiorizadas criam um hiato exterior-interior: “Despertam um desejo
absurdo de sofrer” que traduz o sentimento por elas deflagrado. O espaço é provocador de
sentimento no sujeito; em consequência, ele configura um sujeito como diferente dessa
experiência. Altera a realidade pela linguagem; imagens poéticas e seu ser se transformam
ao experimentarem sentimentos que lhe eram desconhecidos. Os dois se alteram, portanto:
homem e espaço; e os versos são a expressão dessa alteração dupla, mútua ou oposta.
Na relação campo-cidade há uma contrariedade que se manifesta nos versos e vai
perdurar ao longo das quatro partes do poema OSO, intensificando-se no decurso da noite
até a madrugada, na IV. Nessa hora tardia, seres espectrais vagam sem rumo, sem
identidade, provocando diferentes sentimentos no sujeito lírico: “os olhos dum caleche
espantam-me”, “tristes bebedores”, “dúbios caminhantes”, “cães parecem lobos”. A
presença desses elementos espaciais, assim como o sujeito que deambula pelas ruas da
cidade, denota, por metonímia, a própria crise de identidade da nação portuguesa
oitocentista em transformação para acompanhar o progresso técnico de outras capitais
européias de seu tempo, representada por Lisboa “massa irregular de prédios sepulcrais,
65
com dimensões de montes.” (OSO, última estrofe). Outro valor se dá em relação ao campo,
que na percepção do sujeito lírico, fornecia produtos que abasteciam banquetes da Europa
do Norte: “Oh! Ricos primeurs da nossa terra/ E as tuas frutas ácidas, tardias, / No azedo
amonical das queijarias, / Dos flegmáticos farmers de Inglaterra!... // Ó cidades fabris,
industriais,/ De nevoeiros, poeiradas de bulha, / Que pensais do país que vos atulha / Com a
fruta que sai de seus quintais?” (Nós, 45-46). Um outro valor, que as cidades fabris não
têm, estabelece uma forma de equilíbrio na relação Portugal e Europa do Norte. A ironia
reverte a ordem da primazia da civilização que se baseia na técnica, no culto ao
cientificismo, opondo a ela a ordem da natureza em movimento, expressa na palavra
primeurs.
Ao descrever alguns elementos espaciais da cidade ou do campo, o sujeito atribui-
lhes um texto ficcional, transformando, deste modo, a temática vazia (estática) em uma
temática plena (dinâmica). Por exemplo, em OSO: “as edificações somente emadeiradas”
(descrição), são dotadas de movimento à comparação de “morcegos” aos mestres
carpinteiros que “saltam de viga em viga”. Conjugam-se aí fatores de ordem física
“edificações” e psicológica (ironia) pelo rebaixamento social dos operários. A partir do
texto, podemos encontrar outros casos de ambientação. Tal corresponde a – “Pobres
campônios – eram uns heróis”, por negociarem com espertos, “entre os mais da sua laia.”
(Nós, E.83).
Referindo-se à ambientação, Osman Lins coloca: “A ambientação dissimulada (ou
oblíqua) exige a personagem ativa: o que a identifica é o enlace entre o espaço e a ação.”
77
.
Leon Surmelian designa-a como “método dramático”; e George Lukács sobre ela adverte
não se deter na reconstituição do ambiente pela pura descrição e, sim, “quase sempre
traduzida em ações”
78
. No poema “O Sentimento dum Ocidental”, podemos observar a
77
Idem, ibidem, p. 83.
78
Idem, ibidem, p. 83.
66
ambientação oblíqua a partir dos passos do sujeito lírico pelas ruas da cidade. O caminhar
faz surgir o espaço que o cerca, como que se ele nascesse desse gesto. Assim, a carga
concedida nos versos às emoções do sujeito lírico, dominantes na estrofe, faz parecer
casual o elemento espacial, na reconstrução da identidade do “eu”e da nação. Por exemplo:
Triste cidade! Eu temo que me avives /Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,/
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes/ Curvadas a sorrir às montras dos ourives. (II-9)
Os verbos estão impregnados de energia “avives” (positiva), “enlutam-me” (negativa). O
movimento das “elegantes” compensa a imobilidade dos “lampiões”, criando o contraste
ligado a um momento crucial da vida do sujeito lírico, a crise existencial. A carga
concedida à emoção faz passar corriqueiras as ações de “curvar e sorrir às montras dos
ourives”. O sujeito caminha e compõe. Como lembra Osman Lins: “[...] a ambientação
revela complexidade e engenho na medida em que o narrador [sujeito lírico] recusando a
descrição pura e simples tece ordenadamente espaço, personagem e ação. Corresponde
melhor um mundo móvel, ou, se imóvel, animado por uma força interior.”
79
Tal bem se
aplica à poesia de Cesário, de aparente simplicidade coloquial no trato do cotidiano, mas
complexa ao desvendar a existência humana. Nesse sentido, o tempo possui um sentido, é
um perpétuo andar para frente, um permanente transcender. Nas palavras de Otávio Paz
80
:
“A temporalidade – que é do próprio homem e que, por conseguinte, dá sentido a tudo em
que toca – é anterior à presentificação e é o que a faz possível.” A partir do poema OSO
verificamos que o ritmo do caminhar e do escrever ao longo das obras de Cesário Verde
atribui sentido novo sentido ao sentido do existir. Depreendemos daí que a simplicidade
aparente é efeito da sua construção poética, processo complexo que a partir da
fragmentação do sujeito e do mundo busca a totalidade pela dialética compreendida na obra
como um todo.
79
Idem, ibidem, p. 85.
80
PAZ, Otavio. O Arco e a Lira. Tradução de Olga Savary. 2ª.. Ed. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1982. p.69. Título original: El Arco y La Lira.
67
II - ESPAÇO FÍSICO E ESPAÇO DA EMOÇÀO
“... o espaço é a acumulação desigual de tempos”
(Milton Santos)
81
Viver no cotidiano a epopeia da existência é um processo que muito se assemelha à
realidade que vivemos em nossos dias. A vida humana, na concepção de Martin Heidegger,
compõe-se de três aspectos: a facticidade, a existencialidade e a ruína. Viver é um fato
natural; existir depende daquilo que se faz com a vida. Ruína é o estágio do que não faz por
viver na existência, ser no mundo. O mundo de hoje, globalizado, em sua complexidade
dinâmica, de aceleração contínua, transformação do cotidiano determinada pelo valor
atribuído ao uso da técnica e pelo sentimento daí decorrente, é, também, consequência da
Europa oitocentista. Compreender essa relação pode esclarecer conflitos e, quem sabe,
apontar caminhos. O texto que se segue, modesto exercício em direção a isso, pretende ser
a busca de um caminho, ou melhor, de um movimento que revele a união inseparável
(totalidade) de dois espaços (fragmentação), que se sobrepõem e interagem como corpo e
alma: o espaço geográfico e o espaço poético, já mencionados anteriormente no Capítulo I
como espaço físico e espaço da emoção. Partindo da reflexão que a essência ou a verdade
do mundo transcende à interpretação de dados coligidos por geógrafos, historiadores e
sociólogos, Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro propõe retirar da Literatura novos
aspectos de “interpretação”, para enriquecimento da noção de realidade geográfica:
O sustentáculo dessa concepção aparentemente estranha (ou anticientífica),
advinda daquilo que se atribui à “revelação literária”, é a natureza holística
identificável quando a literatura atinge foros de “universalidade”, ou seja,
81
SANTOS, Milton. 2007. Op. Cit., Epígrafe de abertura.
68
quando ela transcende a um caso particular de uma dada região –
fisicamente vária – para falar da “condição humana” – basicamente una.
82
Nesse mesmo sentido, Antônio Cândido apresenta dois aspectos básicos do texto
literário: acessório e essencial. Citando:
O primeiro é a sua realidade material (aspecto, papel, caligrafia,
tipo, estado do texto, etc.), mais a sua história (por quem, como, onde,
quando, em que condições foi escrito). É, por assim dizer, o corpo da obra
literária e a história deste corpo. O segundo é a sua realidade íntima e
finalidade verdadeira: natureza, significado, alcance artístico e humano. É,
de certo modo, a sua alma.
83
Ambos os autores, parece-nos, a princípio, buscam a totalidade. Carlos Augusto
pela “natureza holística” da literatura; Antônio Cândido, pela união “realidade externa” e
“realidade interna”. Para fins de análise do poema, agregamos o sentido da primeira
(corpo), espaço geográfico, ao da segunda (alma), o espaço do sentimento.
Em “O mundo desfeito e refeito”, Antônio Cândido ressalta que, pelo discurso, o
autor reforça ou atenua a semelhança do texto literário com o mundo real. Em suas
palavras: “o autor pode manipular a palavra em dois sentidos principais: reforçando ou
atenuando a sua semelhança com o mundo real.”
84
No poema OSO, a cidade em transformação é acompanhada pelo movimento do
sujeito no espaço, o que reforça a semelhança com o mundo real: “E eu sigo, como as
linhas de uma pauta/a dupla correnteza augusta das fachadas;”, criando sempre novos
contrapontos, o que insere um corte transversal no tempo, ao elevar ao plano da emoção a
história e a memória, bem como ao projetar, no presente, o futuro mítico. Mais adiante
82
MONTEIRO, Carlos Augusto de Figueiredo. O mapa e a trama: Ensaios sobre o conteúdo
geográfico em criações romanescas. Florianópolis: Editora da UFSC, 2002, p.15.
83
CÂNDIDO, Antônio. Noções de análise histórico-literária. SP: Ass. Editorial Humanitas. 2005, p. 13.
84
CÂNDIDO, Antônio e J. A. Castello. Presença da Literatura Brasileira. Modernismo. Rio de
Janeiro: Bertrand, 1992.p.30.
69
veremos exemplos disso. No que tange à escrita e à criação, também se percebe o
movimento: “E eu, de luneta de uma lente só,/ Eu acho sempre assunto a quadros
revoltados”, que busca na composição dos versos uma saída da situação de angústia em que
se encontra, provocando no leitor um deslocamento espaciotemporal que pode fazê-lo
refletir criticamente sobre o espaço em que vive.
Acerca da mobilidade no espaço, Antônio Cândido lembra que “Goethe acertou ao
incluir a mobilidade no espaço entre as prendas dignas de serem oferecidas por
Mefistófeles à ambição de Fausto”
85
. E justifica dizendo que foi graças a ela que a
civilização burguesa pode se expandir e firmar. Se, em “Fausto”, a mobilidade é
representada por seis cavalos, no alvorecer da modernidade no século XIX, ela é
representada pelo uso do vapor, da máquina, do telégrafo, entre outros meios técnicos para
“palmilhar o mundo e esquadrinhá-lo, na procura verdadeiramente fáustica do
enriquecimento pessoal” (idem), hoje intensificado pela globalização, aqui entendida do
ponto de vista hegemônico da economia. Diferente disso, no poema em causa, é o percurso
a pé pelas ruas de Lisboa, em OSO, que conota a valorização da dimensão humana no
espaço geográfico.
Ao tratar o espaço como uma totalidade em movimento, o sujeito poético nos
permite uma abordagem geográfica do espaço no poema, como território vivido, ou seja,
território praticado. Por este prisma, o espaço do sentimento no texto talvez possa ser
compreendido à luz dos conceitos da geografia, tais: território usado, paisagem, rugosidade
e lugar. Como fundamento a essa compreensão, a leitura da obra do geógrafo brasileiro
Milton Santos, “A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção”, é bem
elucidativa:
Os movimentos da sociedade, atribuindo novas funções às formas
85
CÂNDIDO, Antônio. Entre Campo e Cidade. In: Tese e Antítese. São Paulo. Companhia Editora Nacional,
1964. p.38.
70
geográficas, transformam a organização do espaço, criam novas situações
de equilíbrio e ao mesmo tempo novos pontos de partida para um novo
movimento. Por adquirirem uma vida, sempre renovada pelo movimento
social, as formas – tornadas assim formas-conteúdo – podem participar de
uma dialética com a própria sociedade e assim fazer parte da própria
evolução do espaço.
86
Tendo em vista a verossimilhança entre espaço poético e espaço geográfico,
buscamos uma aproximação de ambos, para melhor interpretarmos, de um lado, o mundo
em que o poeta viveu; e, de outro, o mundo representado no poema, para verificar a relação
entre eles, e daí depreendermos a visão de mundo do autor. Ocorreu-nos tal procedimento
não só pelos próprios cânones do Realismo e Naturalismo, que se propõem a ser fiéis à
descrição da realidade consoante ao espírito de observação resgatado do cartesianismo,
portanto, racional; mas, sobretudo, pela peculiaridade da poesia cesariana que conota
frustração e busca de alternativa quando em tal impossibilidade. Por exemplo: “Longas
descidas! Não poder pintar / Com versos magistrais, salubres e sinceros, / A esguia difusão
dos vossos revérberos, / E a vossa palidez romântica e lunar!” (OSO, III-6). Na estrofe
transcrita, se os pontos de exclamação expressam o sentimento de frustração do sujeito ante
tal impossibilidade, outros recursos verbais remetem ao impressionismo pictórico, pelas
imagens fugidias, sem contorno definido, que as palavras “difusão”, ”revérbero”, “palidez”
e “lunar” evocam, propondo outra saída, que transponha o interdito representado pelo
advérbio “não”, seguido dos infinitivos “poder pintar”, o que revela a complexidade da
poesia de Cesário ao se propor expressar a realidade cotidiana. Tal remete a Hauser
87
,
quando diz: “De qualquer modo é mais conveniente chamar de naturalismo a todo
movimento artístico em discussão aqui e reservar o conceito de realismo para a filosofia
oposta ao romantismo e seu idealismo”.E, em seguida, sintetiza: “O realismo seria a atitude
86
SANTOS, Milton. 1999, Op, Cit., p.86.
87
HOUSER, História Social da Arte e da Literatura. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Livraria
Martins Fontes Editora Ltda. 2003 (Paidéia), p. 791.
71
filosófica, o naturalismo, o estilo artístico.” Em outras palavras, a aplicação das ciências
exatas à descrição artística dos fatos. Daí a riqueza de detalhes e a importância atribuída ao
circunstancial, por mais trivial que seja. Refletindo sobre isso, podemos dizer que mais do
que um estilo, a poesia de Cesário reflete uma causa real. E que realidade seria essa? Para
responder a essa pergunta, valemo-nos dos conceitos de território usado, paisagem,
rugosidade e lugar encontrados na obra de Milton Santos, na medida em que a análise do
texto assim o demandou, conforme exporemos a seguir, com as devidas ressalvas.
Considerando realidade aquilo que a linguagem é capaz de expressar, nossos
estudos pretenderam buscar fundamento em alguns conceitos referentes ao espaço
geográfico para melhor compreender a questão da verossimilhança na poesia de Cesário
Verde. Embora o poeta localize em Lisboa o espaço em seu poema, a cidade adquire
conotação universal pelo tratamento lírico a ela destinado desde o título, O Sentimento dum
Ocidental, ou seja, a manifestação subjetiva de um indivíduo qualquer do Ocidente. Neste
espaço, que, no presente do sujeito poético é a cidade de Lisboa e a expressão exclamativa
“Triste cidade!” bem revela seu sentimento, lê-se um conjunto de objetos e de ações, que,
no tempo, remontam à memória, ao passado histórico e ao futuro, a partir do mito. Por
exemplo: “Num cardume negro assomam as varinas” (presente); “Luta Camões ao sul,
salvando um livro a nado” (história/memória); “A raça ruiva do porvir” (futuro mítico). No
primeiro verso o movimento das peixeiras ambulantes pelas ruas que o sujeito observador
percorre; no segundo verso, a recuperação do passado pela memória; e, no terceiro verso, a
projeção do herói do passado na construção do futuro (filho dos navegantes portugueses e
das ninfas de Tétis, que remete à narrativa épica). Daí depreendemos, a partir do texto, que
Cesário trabalha no referido poema a complexidade dinâmica do território usado, “um
conjunto indissociável de sistema de ações e sistema de objetos.”
88
. O sujeito, imerso na
88
Idem, ibidem: p.267.
72
cidade, depreende dela as relações espaciotemporais que vai sobrepondo enquanto caminha
pelas ruas. Se as descrições generosas de formas e das relações sociais dão o tom
naturalista e realista ao poema, as imagens de cor e movimento tecem as nuanças
impressionistas que se fazem presentes pelo efeito da luz, no detalhe do cotidiano,
acurando as percepções sensoriais do tempo, entre outros elementos compositivos, que
abordaremos no Capítulo III, ao tratarmos de traços da pintura impressionista na poesia de
Cesário. Ainda refletindo o território usado, também o campo se apresenta na obra poética
como “um conjunto indissociável de sistema de ações e sistema de objetos”, que se opõe à
cidade, conforme vimos expondo ao longo da dissertação. Nesse sentido, a presença da
natureza, por vezes, é marcada pela exiguidade de sua existência ou mesmo ausência na
cidade. Por exemplo, as expressões “exíguas pimenteiras” e “sem árvores”, em OSO,
conotam a preocupação do autor com sua extinção no meio urbano.
A paisagem é um elemento do espaço, é a materialidade visível, até onde a vista
alcança: “conjunto de formas, que num dado momento, exprime as heranças que
representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza."
89
. No caso de
OSO, em vários momentos o olhar panorâmico do sujeito divisa a paisagem a distância e,
em relação ao foco, ao que é próximo, ressaltando a importância do espaço na lírica. São
exemplos disso: “Em uma catedral de um comprimento imenso”, vista à perspectiva da rua
iluminada, a céu aberto; e o “ventre das tabernas”, visto de perto, pelo passante.
O movimento entre o olhar panorâmico, que capta a dimensão do geral, e o olhar de
foco, que examina o detalhe, faz valer para o leitor o contraste entre ambas as situações
criadas pelo sujeito. A ausência de limite entre o fora e o dentro, em algumas situações por
que passa o sujeito, revelam, de certo modo, a visão de mundo do autor, que é de
insatisfação com a ordem estabelecida. Ao dispor dos contrários em sua lírica, o autor
89
Idem, ibidem: p.83.
73
prenuncia o Modernismo. Explicando melhor: se o efeito da iluminação, de um lado,
transmuta a rua (espaço aberto) em catedral (espaço fechado); de outro lado, ele expõe o
espaço fechado “ventre” como espaço aberto “tabernas”, invertendo a ordem espacial
tradicional do dentro e fora absolutos. Ao romper os limites dentro-fora, instaura-se a
relatividade, moderna.
No campo, a paisagem natural se mescla à transformada pela mão do homem ou
pelo meio técnico, como nos versos que se seguem: “Na ribeira abundam as ramagens /
Dos olivais escuros. Onde irás? / Regressam os rebanhos das pastagens; / Ondeiam milhos,
nuvens e miragens, / E, silencioso, eu fico para trás.” (De Verão, E.5). Entre o olhar a
paisagem e o conversar com a prima, imagens cotidianas do campo se sucedem na visão do
sujeito. Com predomínio dos substantivos, “ribeira”, “ramagens”, “olivais”, “rebanhos”,
“nuvens” e “miragens” o espaço se constitui por justaposição de cenas. A idéia de
movimento advém dos verbos no presente, “regressam”, “ondeiam”, em oposição a
“abundam” e ”fico”, que denotam estaticidade. As expressões “na ribeira” e “para trás”,
reforçadas pelo advérbio “onde”, posicionam o sujeito em relação à paisagem e à
companheira de passeio. Os adjetivos “escuros” e “silencioso” conotam um ambiente de
calma e frescor compatível com a natureza. Em Nós, a paisagem do campo vem por vezes
carregada de contrariedades relacionadas à lavoura e à comercialização de produtos
agrícolas; “É o pulgão, a lagarta, os caracóis, / E há inda, além do mais com que se ateima,
/ As intempéries, o granizo, a queima, e a concorrência com os espanhóis”. (E. 95), que lhe
atribuem valor negativo. O positivo e o negativo depreendidos da paisagem urbana e rural
se alternam na obra poética de Cesário, denotando que o campo e a cidade, longe de serem
paraísos idealizados, são lugares de trabalho e desafios que o homem pela técnica procura
vencer, para deles extrair o próprio sustento e, somado a ele, quiçá, o lucro, em uma
sociedade capitalista.
74
Ao longo do percurso do sujeito pelas ruas de Lisboa do século XIX, ele observa
algumas cristalizações espaciotemporais. Restos do passado e cicatrizes da decadência são
exibidos no cotidiano, ao longo desse percurso, o que remete ao conceito de ruína, de
Heidegger, estágio de que não faz por ser na existência. Ao que fica do passado como
forma, paisagem, Milton Santos chama de rugosidade. Vistas individualmente ou em seus
padrões, as rugosidades revelam combinações possíveis de um dado tempo e lugar. Neste
sentido, alguns versos do poema em questão podem conotar rugosidade. A título de
exemplo: “Na parte que abateu o terremoto”. O vazio e os destroços resultantes do
cataclismo que abateu Lisboa em meados do século XVIII permanecem na paisagem,
revelando o que ali existiu e já não mais tem a mesma função. Tal reflexão talvez possa se
aplicar, de certo modo, à natureza e, ao contrário do romance realista e naturalista de Eça
de Queirós, “A Cidade e as Serras”, em que a oposição cidade/campo conduz à salvação do
homem pelo convívio com a natureza; em OSO, quando ela raramente aparece, lembra uma
rugosidade, ou seja, sua existência em dado tempo e lugar. A expressão “exíguas
pimenteiras” é exemplo do remanescente empobrecido da natureza na paisagem da cidade e
de sua desvalorização ante a construção civil, bem como remete ao comércio de especiarias
do século XVI, que enriqueceu Portugal no passado histórico.
No campo, a partir da análise do texto, a rugosidade pode ser sinônima de
estagnação e morte, como se lê nos versos que se seguem: “Como em paul em que nem
cresça a junca / Sei de almas estagnadas! Nós absortos, / Temos ainda o culto pelos mortos,
/ esses ausentes que não voltam nunca mais!” (Nós, E.120) Ao sobrepor as imagens de paul
estéril e almas estagnadas, o sujeito lírico sobrepõe ao espaço físico, representado pelo
substantivo concreto paul, o espaço do sentimento, representado pela expressão “almas
estagnadas!”.A tradição do culto pelos mortos, com a conotação religiosa, perde sua função
original, tornando-se uma rugosidade, pois “mortos”, no caso, é metáfora de seres ausentes.
75
Na obra poética de Cesário Verde, há criação de vários lugares. Entendemos por
lugar o espaço do acontecer solidário. Citando Milton Santos: “Lugar é o espaço do
acontecer solidário. A noção, aqui, de solidariedade, é aquela encontrada em Durkheim e
não tem conotação moral, chamando a atenção para a realização compulsória de tarefas
comuns, mesmo que o projeto não seja comum.”
90
. É no lugar que acontece o cotidiano.
Em “O Sentimento dum Ocidental”, o cotidiano se dá nas ruas, largos, quadras, bairros e
outros elementos espaciais que compõem a cidade. Por exemplo: “O gás extravasado enjoa-
me, perturba,” (I-2) e “Voltam os calafates, aos magotes,/ De jaquetão ao ombro,
enfarruscados, secos;” (I-5). Durante seu percurso aleatório pelas ruas de Lisboa, ao
perceber os variados lugares, sendo que “cada lugar é, à sua maneira, o mundo”, ou, como
afirma Maria Adélia Aparecida de Souza “todos os lugares são virtualmente mundiais”
91
, o
sujeito poético revela o momento de sua emergência e pressupõe sua intersubjetividade. Do
texto: “Como morcegos, ao cair das badaladas,/ Saltam de viga em viga os mestres
carpinteiros.”(I-4e5) ou “ E de uma padaria exala-se, inda quente, / Um cheiro salutar e
honesto a pão no forno.” (III-4), como exemplos de lugares de trabalho que não passaram
despercebidos ao sujeito: de um lado, a animalização do homem pelo excesso do trabalho
“morcegos ao cair das badaladas”, e, de outro, a valorização do trabalho humano “cheiro
salutar e honesto a pão no forno”. Por sua vez, o campo como lugar de trabalho está
presente em outros poemas: De Verão e Nós, de que os versos seguintes são respectivos
excertos: “Quanto me alegra a calma das debulhas!” (E.3); “Tu cortavas os bagos que não
prestam / Com a tua tesoura de bordar!” (E.35).
Como lugar de lazer, na cidade, predomina o do estrangeiro e o do alienado, de que
“emigrados” e “tristes bebedores” são representantes nos versos a seguir: “Entro na
brasserie; às mesas de emigrados / Joga-se, alegremente e ao gás, o dominó!(II-11). E, na
90
Idem, ibidem: p. 132.
91
In: idem, ibidem, p.252.
76
referência à boêmia: “... aos bordos sobre as pernas, / Cantam de braço dado, uns tristes
bebedores.” (IV-8). No campo, o lugar de lazer configura-se pela presença de elementos
estranhos a ele. Por exemplo, a da prima citadina, observadora da natureza em “lírica
excursão”, no poema De Verão; e pela presença da companheira, hóspede que se assusta
com as bezerrinhas e vaca, num ”giro pelo vale”.
No campo, o lugar é o espaço do abrigo àqueles que fogem das epidemias da cidade
e de solidariedade: “Foi quando em dois verões seguidamente a febre/e o Cólera também
andaram na cidade.” (Nós, E.1). É, também, o lugar de solidariedade que se opõe à solidão
da cidade: “Ele, dum lado, viu os filhos achacados, / Um lívido flagelo e uma moléstia
horrenda! / E via, do outro lado, eiras, lezírias, prados,/ E um salutar refúgio e um lucro na
vivenda!”(Nós, E. 11) O verbo ver no pretérito perfeito (viu) indica uma ação acabada,
denotando as desgraças vividas no ambiente urbano, lugar de flagelo e moléstia; e o mesmo
verbo, no pretérito imperfeito (via), denota a continuidade de ação benéfica do meio rural,
lugar de refúgio e lucro, projetado no presente do sujeito poético. Se aquele tem a
conotação negativa, como os adjetivos achacados, lívido e horrendo expressam; este conota
a esperança de vida profícua que o adjetivo salutar reforça. Ao longo da obra poética de
Cesário Verde pode se constatar lugares que se opõem, formando pares dialéticos, que dão
a visão da harmonização das diferenças de seus componentes. Por exemplo: morte e vida;
mulher angelical e mulher satânica, operário e patrão, calceteiro e lavrador, camponesa e
aristocrata, entre outros que estão disseminados na obra e podem ser recolhidos no poema
O Sentimento dum Ocidental ou vice-versa, indicando, de um lado a fragmentação do
espaço e, de outro, a busca da totalidade pela harmonização da composição poética. Vale
ressaltar o uso da ironia, forma dada às antinomias e contradições específicas do lavrador e
comerciante burguês, ambas as atividades presentes na vida do poeta, evidenciando o
antagonismo essencial entre propriedade e trabalho, que sua lírica busca conciliar.
77
COTIDIANO E PERCURSO
Este segundo capítulo, articulado ao anterior, busca desenvolver a questão do
cotidiano e do percurso do sujeito no poema OSO, de Cesário Verde. A abordagem do
cotidiano, entendido como: “aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha),
nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente.”
92
. O dia a
dia de um indivíduo, na metrópole portuguesa do século XIX, mostra através das relações
espaciotemporais: a situação interna de Lisboa, uma cidade em transformação pelo uso da
técnica industrial, em seus aspectos positivos e negativos; e a situação de Lisboa no cenário
europeu da época. Evocadas pelo sujeito poético, que expressa seu sentimento de
ocidental, a história e memória são presentificadas pelo caminhar e escrever, ao mesmo
tempo em que um outro futuro é almejado. A dificuldade de viver nesta condição denota
ora a fadiga, ora o desejo de uma outra condição. Visto por este prisma, “o cotidiano é
aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a meio-caminho de
nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada.”
93
No que diz respeito ao percurso, compreendemos que ele introduz a organização
territorial e o dinamismo dos lugares no texto, pelo caminhar. Compreendemos, também,
que no conceito de Michel de Certeau cada passo é entendido como algo qualitativo, de
apreensão táctil, de apropriação cinética: Os jogos dos passos moldam espaços. Tecem
lugares. Os passos do sujeito traçam um percurso aleatório pelas ruas de Lisboa,
transcrevendo a cidade em traços (aqui mais densos, ali mais leves) e prescrevendo
trajetórias (passando por aqui e não por lá), que revelam a escolha do que é observado e o
92
CERTEAU, Michel de; Luce Giard; Piere Mayol. A Invenção do cotidiano: 2. Trad. de Ephraim F.
Alves e Lucia E. Orth. 6ª. ed. Petrópolis RJ: Vozes, 2005, p.31.
93
Idem, ibidem, p. 31.
78
sentimento decorrente. O próprio ato de ir, vagar, olhar manifesta um modo de estar no
mundo, representado pelas imagens concebidas.
Diferentemente da tradição lírico-sentimental, em que o sujeito que fala nos poemas
se apresenta como entidade mística, situada num plano em elevação (púlpito, palanque ou
palco), acima dos pobres mortais, a voz presente na poesia de Cesário Verde expressa o
“eu” que desceu ao nível pedestre e fala com a voz comum do dia a dia. Ao tomarmos por
base o conceito de cotidiano: “Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é
o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta
fadiga, com este desejo.”
94
Seus versos impregnados da realidade contingente apreendida e
fixada pelo olhar penetrante do poeta que se imiscui entre as coisas e situações cotidianas,
as quais, por serem comuns, passam despercebidas aos menos atentos, causaram
estranhamento em muitos de seus contemporâneos que preconceituosamente acusaram sua
lírica de antipoética e de “mau-gosto”. Entretanto, como se lê no fragmento seguinte:
Cesário não tenta exorcizar fantasmas, não foge do Romantismo,
com ataques furiosos, apaixonadamente românticos, mas enfrenta-o com
naturalidade, adota-lhe is temas e motivos mais convencionais, para raspar
com certeira ironia a camada de agitação e teatralidade que os recobre.
Pare ele, o debate não se trava entre uma “escola” romântica e uma
“escola” realista, mas entre um sujeito real, pés na terra (e espírito um
pouco nas nuvens, sem dúvida, caso contrário...), e as coisas em redor:
formas, cores e cheiros do ambiente urbano ou rural; pessoas e objetos
palpáveis; idéias; sentimentos e aspirações enraizadas nas reais
circunstâncias de vida.
95
Essa naturalidade se expressa pelo coloquialismo e pela oralidade do sujeito
poético, dando tom natural à composição que começa como uma conversa espontânea:
94
Idem, ibidem, p.31.
95
MOISÉS, Carlos Felipe. 2001, op.cit. , p. 209.
79
“Nas nossas ruas, ao anoitecer”, incluindo na primeira pessoa do plural seus interlocutores
e nós, leitores, a um só tempo. Se o tom coloquial presentifica o cotidiano, a oralidade
instaura o aqui e o agora no presente constante da lírica. atribuindo-lhe espontaneidade
popular: “Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia”, elementos comuns do anoitecer
em Lisboa, “Despertam um desejo absurdo de sofrer.” (I-1)
O cotidiano pulsante em sua obra faz de Cesário “um poeta do seu tempo, como
raros outros o conseguiram ser, um tempo de burguesia e capitalismo em crise, um tempo
em que a própria Arte, em crise, sai do ateliê e “baixa” às ruas. Um tempo, em suma, que
em muito se assemelha ao atual, herdeiros que somos das mesmas crises.”
96
. Rompendo
com a tradição do exótico e do grandioso, é nos elementos urbanos e nas situações
vivenciadas no cotidiano que o poeta busca sua inspiração. Na sequência aos versos
iniciais, ainda na Parte I do poema, é à vista dos elementos espaciais do presente: gás,
turba, carros de aluguer, via férrea, edificações, cais, que o sujeito lírico, por um instante,
evoca o passado dos heróis, contido nas crônicas navais, a epopéia portuguesa “Os
Lusíadas”, buscando a tudo ressuscitar: “E evoco, então, as crônicas navais;/Mouros,
baixéis, heróis, tudo ressuscitado!/ Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!/
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!” Logo em seguida, a realidade do presente
o atrai de volta ao cotidiano que ele passa a descrever nas três estrofes seguintes, de forma
fragmentada: “E o fim de tarde inspira-me e incomoda! / De um couraçado inglês vogam os
escaleres; E em terra num tinir de louças e talheres / Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da
moda.”, conotando a forte presença estrangeira na “frágil” capital lisboeta.
E, entre as atividades que encerram o dia de trabalho, opondo-se a imagem da
predominância estrangeira na cidade, aparecem as varinas, vendedoras ambulantes, que, ao
longo do cais da Ribeira, estridentemente comercializam o pescado. Representam, no
96
“Cesário Verde. Poesia completa e cartas escolhidas. Edição organizada, prefaciada e anotada por
Carlos Felipe Moisés. SP: Cultrix, 1982, p.7.
80
contexto da cidade, a tradição portuguesa no presente, no dia a dia, mesmo em condições
miseráveis de vida, conforme a sucessão de imagens da pequena narrativa inserida nos
versos que encerram a Parte I. São elas as obreiras do presente: “Seus troncos varonis
recordam-me pilastras”, trabalhadoras tenazes de pé no chão, da terra, que “à cabeça,
embalam nas canastras / Os filhos que depois naufragam nas tormentas.”, como
naufragaram os antigos navegadores lusitanos. A expressão “à cabeça”, de suma
importância para a interpretação da décima estrofe, conota dois sentidos, o físico, sobre a
qual carregam as canastras com os filhos pequenos, e o do sonho que lhes embala o
futuro, sem saída. “Descalças! Nas descargas de carvão, / Desde manhã à noite, a bordo das
fragatas;/ E apinham-se num bairro aonde miam gatas, / E o peixe podre gera focos de
infecção!”, estrofe final da Parte I que expressa com força naturalista o cotidiano sub-
humano de suas vidas miseráveis.
Oscilando entre a opressão citadina do cotidiano e a busca de um respiro na
existência, os versos decassílabos e alexandrinos expressam a busca da totalidade da vida
ante a fragmentação do dia a dia. Esta toante é permanente até o final: “E, enorme, nesta
massa irregular / De prédios sepulcrais, com dimensões de montes, / A Dor humana busca
os amplos horizontes, / E tem marés de fel, como um sinistro mar!” (IV-11). Ao
emocionar-se ante o real cotidiano, o poeta, dividido entre o que vê e o que sente, busca na
composição dos versos uma conciliação com a existência. Nas palavras de Massaud
Moisés, que bem nos esclarecem, entendemos melhor esse conflito: “E sua emoção revela
existir no seu espírito uma ambivalência, quer dizer, a paisagem citadina o seduz como um
visgo, e ao mesmo tempo o repele, tornando-o um estranho a vagar sem rumo “no vale
escuro das muralhas!”
97
97
MOISÉS, Massaud. 1971. Op. Cit., p. 313.
81
O caminhar aleatório do sujeito pelas ruas de Lisboa, ao mesmo tempo em que
compõe os versos de OSO, pode ser considerado como os dois lados de uma mesma
moeda. Em sua superfície presente projeta-se o passado opaco e o futuro incerto, havendo
uma sobreposição temporal. O sujeito poético, em sua deambulação do anoitecer ao
amanhecer do dia seguinte, vai tecendo traços e trajetórias (passando aqui e não por lá)
como uma maneira de estar no mundo. A partir da rua, em movimento contínuo, o sujeito
observa a realidade que o comove. Citando:
De qualquer forma, o dia-a-dia da cidade de Lisboa adentra pela
primeira vez o privilegiado território poético: ruas, praças e becos; a
Baixa pombalina, o Bairro Alto; os bairros modernos, de traçado amplo e
arejados, e a zona portuária, sombria e malcheirosa; os mais variados
tipos humanos, com predomínio dos humilhados e ofendidos, e assim por
diante.
98
Lisboa oitocentista, uma cidade de pequenos burgueses, operários, comerciantes,
indivíduos em atividades ainda dependentes da vida rural, situações coletivas de trabalho e
angústia existencial por ignorarem seu destino ao ingressar na era industrial, adentra o
território poético. E, neste caso, a geografia possibilita, através da verossimilhança,
enxergar, de um lado, a realidade de que partiu o poeta, ou seja, o “território usado”,
segundo Milton Santos; e, de outro, remete à reconstrução do sujeito e da nação, no poema.
Por exemplo, em OSO, Cesário não cita nome de ruas, de bairros, logradouros ou casas de
comércio que nos deem referência toponímica. Não obstante, elementos espaciais no
poema permitem uma ideia do percurso do sujeito lírico pela cidade, que buscamos a
seguir, em largos traços, descrever.
98
MOISÉS, Carlos Felipe. 1982, op. Cit., p.5.
82
Iniciando sua caminhada pelo bairro Chiado, de onde a via férrea leva “os que se
vão, felizes!” (I-3), ele desce à Ribeira “cais a que se atracam botes” (I-5); e, passando
pelos edifícios do antigo Aljube, “das prisões, da velha Sé, das Cruzes” (II-2) e pela “parte
que abateu o terremoto” (II-5), sobe novamente pelo Chiado até o Largo de Camões,
“recinto público e vulgar”, “um épico doutrora ascende, num pilar!”. Pelo Bairro Alto
segue em direção à Baixa por “Longas descidas” (III-6), iluminadas a gás; o bairro
comercial elegante da cidade onde “desdobram-se tecidos estrangeiros” e “flocos de pó de
arroz pairam sufocadores” é revisto, antes de se apagarem “nas frentes / Os candelabros” e
de tornarem-se “mausoléus as armações fulgentes.” (III-10), que indicam a noite fechada.
Daí, pelas vielas medievais atrás do Castelo “ao meio das trapeiras”, “às escuras” (IV-1/2),
sem iluminação artificial, o sujeito lírico prossegue “[...] como as linhas duma pauta” pelos
“nebulosos corredores”, até que da Alfama, de madrugada, tem a visão da cidade “De
prédios sepulcrais, com dimensões de montes”. A oposição cidade medieval (originária) e
cidade pombalina (moderna) se faz pela dialética noite natural e noite técnica, cabendo aqui
notar que é do ponto original (Alfama) que o olhar do sujeito lírico busca o amanhecer no
mar, conotando a visão de futuro. O mar, que representa o perigo do desconhecido e a
busca de superação, aqui remete à ideia do movimento, ritmo natural da maré, com sentido
negativo, de fel, amargura, no sentido oposto de origem da vida. Remete, também, às
antigas naus dos descobrimentos, símbolo da aventura grandiosa do povo português, que
antes o percorriam e são, no poema, substituídas por botes e barcos estrangeiros “couraçado
inglês”(I-7). Embora escassa, a imagem do mar pode ser observada em outros poemas de
Cesário, com sentido positivo, de vida e alegria, associada à natureza campestre: “E o mar
um prado verde e florescente.” (De Verão, E.15); ou conotando a experiência da fusão
amorosa no campo, acentuada pela palavra “ondas”: “Eu contigo, abraçados como heras, /
Escondidos nas ondas dos trigais”; ou, ainda, como imagens espaciais de ausência de
83
limites para o sentimento amoroso: “unidos ambos / Num amor grande como o mar sem
praias.” (Setentrional E. 8-9). Segundo Helder Macedo, ao retomar a “iconografia
romântica do mar”, na expressão de W.H.Auden, mar e cidade são símbolos opostos:
O mar, como símbolo de uma desconfinada amplidão, e o campo
são, portanto, metáforas sinônimas: a cidade limitadora é contrastada não
com o campo real, mas com o amor sem limites que o campo, como uma
metáfora da ausência de todos os limites (pura paisagem esvaziada não só
de outras presenças humanas mas também de quaisquer construções que a
pudessem aproximar da cidade), serve para significar.
99
No poema Meridional, o símbolo da sensualidade feminina, “longos cabelos”, é
associado ao mar: “Ó vagas de cabelo esparsas longamente, / Que sois o vasto espelho
onde me vou mirar,” (Cabelos - E.1) Esta complexa imagem, onde o mar é ao mesmo
tempo espelho, remete a Narciso, ou seja, ser no outro, o que implica um desdobramento
por distorção do sujeito.
É comum, na obra, o autor se valer de expressões aquáticas, como é o caso no
poema Capricho, do qual foram extraídas as expressões que se seguem: “vestidos
afogados”, “praias rumorosas”, “sussurro do mar”, ”náufragos aflitos”, “mergulha-se em
angústias”, que remetem à imagem abstrata de imensidão do mar; assim como são
frequentes as imagens mais voltadas para a realidade concreta, como é o caso do verso “Na
muralha dos cais de cantaria” (Noitada, E. 22), em que os substantivos concretos
“muralha”, “cais” e “cantaria” expressam a ideia de fortaleza relacionada à pedra, a qual,
no caso, tem valor negativo, pois demarca a frustração amorosa prenunciada no verso
inicial da estrofe: “E ali começaria o meu desterro!...” (idem).
99
MACEDO. Op. cit. p. 52.
84
ANTINOMIAS DIALÉTICAS
Se o caminhar do sujeito poético pelas ruas da cidade denota a horizontalidade do
percurso, os elementos espaciais descritos por ele conferem, ao longo da obra,
significativas oposições de verticalidade, como é o caso da expressão “céu baixo”, no início
da segunda estrofe do poema OSO, em que o adjetivo “baixo” inverte o valor tradicional de
altitude ou infinitude do céu, atribuindo-lhe nova conotação, ou seja, a de opressão “O céu
parece baixo e de neblina.” Acerca dos eixos alto/baixo, Lotman elucida:
Os modelos do mundo sociais, religiosos, políticos, morais, os mais
variados, com a ajuda dos quais o homem, nas diferentes etapas da sua
história espiritual, confere sentido à vida que o rodeia, encontram-se
invariavelmente providos de características espaciais, que sob a forma da
oposição “céu – terra” ou “terra” reino subterrâneo” (estrutura vertical de
três termos, ordenada segundo o eixo alto – baixo), quer sob a forma de
uma certa hierarquia político-social com uma oposição marcada dos “altos
“aos “baixos”, noutro momento.
100
As longas subidas, por exemplo, representam, neste contexto, as dificuldades que
demandam um sobre-esforço de elevação no caminhar. O subir até o alto busca uma visão
em perspectiva da cidade abaixo, livre, portanto, da opressão. O sujeito lírico, nesta
situação, coloca-se como voyeur, a distância, e passa a ter o mundo, que o enfeitiçava,
diante de si. Estabelece-se, a partir daí, uma outra relação com o mundo, que permite lê-lo
em vez de ser possuído por ele. Entretanto, essa leitura, diferentemente da que Baudelaire
faz da metrópole francesa em “As Flores do Mal”, de predominante temática satânica, é de
oposição crítica a Lisboa, em seu estado caótico, e solidária à dor de seus habitantes, a
100
LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Trad.: Maria do Carmo V. Raposo e Alberto Raposo.
Lisboa: Editorial Estampa, 1978, p.360.
85
partir de Num Bairro Moderno (1877); e quando Cesário alcança sua própria originalidade
e coloquialismo, ao colocar diante de nossos olhos e ouvidos a realidade injusta da morte
de um operário caído de um andaime em Desastre (1875). Outro exemplo encontramos na
Parte II do poema OSO, quando, após vencer as “íngremes subidas”, do alto de um “recinto
público e vulgar”, à vista dos “lampiões distantes”, o sujeito poético expressa sua revolta
ante a cidade do presente e a da memória, representada pelas imagens naturalistas, que
evocam de um lado as epidemias de cólera e febre amarela do passado: “Nesta acumulação
de corpos enfezados” (II-7), a cidade do passado histórico, da memória; e, de outro, ante as
imagens de sobrecarga de trabalho, o que deixa exaustas as floristas/coristas, a cidade do
presente: “custa-lhes a elevar os seus pescoços altos” (II-10). Ambas as cidades, do
presente e do passado, justapostas no tempo, como descrevem os versos “Dos arcos dos
quartéis que já foram conventos; / Idade Média! A pé, outras, a passos lentos, / Derramam-
se por toda a capital, que esfria.” (III-8), provocam sua revolta contida: “E eu, de luneta de
uma lente só, / Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:” (II-11). Em seguida, o
sujeito poético anuncia sua atitude imediata: “entro na brasserie”, e a proximidade dos
emigrados que às mesas jogam “alegremente e ao gás, o dominó” provoca nele nova
atitude, cujas palavras iniciam a Parte III do poema: “E saio. A noite pesa, esmaga”. Cabe
aqui notar que o enjambement do primeiro verso: “Nos / Passeios de lajedo arrastam-se as
impuras.” (III-1) dá forma ao sentido de continuar o caminhar do sujeito lírico, ao mesmo
tempo em que, dialeticamente, os canos dão a ideia de obstáculo em: “As burguesinhas do
catolicismo / Resvalam pelo chão minado pelos canos.” (III-3).
Em oposição à expressão “íngremes subidas (II-5), formando com ela o par
dialético “Longas descidas” (III-6), do alto, enfim, o sujeito lírico eleva-se ao desejo
poético que a visão da cidade inspira e, simultaneamente, reconhece o interdito: “Não
poder pintar / Com versos magistrais, salubres e sinceros. / A esguia difusão dos vossos
86
revérberos. /E a vossa palidez romântica e lunar!”, que o faz cair na realidade.
Ironicamente, a lua, longe de conotar o idílio amoroso romântico, tem sua luz natural
ofuscada pela iluminação artificial, um dos índices do progresso técnico da realidade.
A incessante troca que existe no imaginário, entre as pulsões subjetivas e
assimiladoras e as intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social, é
representada espacialmente no poema pelas relações dentro-fora. O olhar do sujeito lírico é
atraído pelos elementos e situações do cotidiano da cidade que percorre e descreve:
“lúbrica pessoa”, "Sua excelência”, “velha, de bandós”, “caixeiros”, que, “ao longo dos
balcões de mogno”, “plantas ornamentais” e “nuvens de cetins”, dão o tom do elegante nos
estabelecimentos comerciais, em suas atividades internas, não sem uma nuança de ironia:
“Mas tudo cansa!”. Na sequência dos passos perdidos, aos poucos, o olhar do sujeito lírico
se volta para o exterior: os candelabros se apagam, as construções fulgentes se tornam
mausoléus, a solidão e o silêncio se ouvem “Da solidão regouga um cauteleiro rouco”; e a
presença da noite traz consigo o sentimento que o sujeito poético expressa ao encerrar a
Parte III do poema: “Dó da miséria!... Compaixão de mim!”, conotando a compaixão
humana ante a solidão e a miséria do mestre que já muito trabalhou e, a despeito disso,
precisa esmolar para sobreviver em idade avançada.
Segundo Bachelard, “[...] o de dentro e o de fora não recebem de igual maneira os
qualificativos, esses qualificativos que são a medida de nossa adesão às coisas. Não se pode
viver da mesma maneira os qualificativos que correspondem ao de dentro e ao de fora.
Tudo, inclusive a grandeza, é valor humano.”
101
. O mundo exterior colhido pelos sentidos
provoca sentimentos diversos no sujeito, que os expressa, no caso, através da lírica. No
poema, da rua (fora) o sujeito ouve o ruído que vem do espaço interior (dentro) dos hotéis
da moda, “um tinir de louças e talheres” (I-7), que ultrapassa os limites do dentro e do fora,
101
BACHELARD, Gaston. La Poética del Espacio. México: Breviários del Fondo de Cultura
Económica, 1965, p.254. (Tradução nossa)
87
e cria uma atmosfera de final do dia. A varanda, espaço intermediário entre o “céu” e a
“terra”, onde “flutuam” os “querubins do lar”, conota a elevação social pelo fausto e pela
moda francesa, cuja imitação era "chic" na época. No mesmo plano físico, “as imorais”
“Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.” (IV- 10) conota elevação dessas criaturas,
que são equiparadas aos “querubins do lar” por estarem “sobre a pedra das sacadas”,
espaço de elevação e intermediário entre o dentro e o fora. Opõem-se aos “tristes
bebedores” que “Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas” (IV-8), a autoridade,
representada pelos “guardas que revistam as escadas”, transitando no plano intermediário
entre o alto e o baixo (escadas). Depreende-se daí que, se num primeiro momento parece
haver oposição ente “querubins do lar” e “imorais”, “tristes bebedores” e “guardas”, num
segundo momento a reflexão analítica ressalta a compaixão do sujeito poético que os
coloca em pé de igualdade, pelo próprio ser humano que são.
Opressiva no cotidiano, “muralhas”, “céu baixo”, a cidade como um todo para o
sujeito significa o dentro em relação aos “novos horizontes”, que significam o fora, na
existência. Reside aí, talvez, a grande diferença entre Cesário e Baudelaire. Diferente do
flâneur francês, nosso poeta lisboeta partilha da dor humana: “Essa humanidade lisboeta
não é a “multidão” moderna da metrópole baudelairiana, é apenas a “turba” de uma cidade
portuária à margem da Europa, “à beira-mágoa”, como diria mais tarde Pessoa.”
102
O elemento acústico traz noções espaciais ora de vazio: “Um parafuso cai nas lajes,
às escuras” (IV-2), conotando o silêncio da cidade pelo adiantado da hora; ora traz a noção
de distância: “As notas pastoris de uma longínqua flauta”(IV-3). Às vezes, durante o seu
caminhar a pé pelas ruas, o sujeito lírico se sente tão próximo do espaço da cidade que
chega a fazer parte dela; outras vezes, afasta-se a ponto de ir buscar na distância a visão dos
astros ou do mar. São exemplos disso no poema OSO, no primeiro caso, de proximidade:
102
PERRONE-MOISÉS. Cesário Verde. Melhores Poemas. (Seleção .e Prefácio de Leyla Perrone-
Moisés). S P.:Global, p.13.
88
“[...] as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia “ (I-1), elementos espaciais locais,
“Despertam-me um desejo absurdo de sofrer” (I-1), o anoitecer na cidade corresponde à
melancolia no poeta, confundindo-se nos dois a relação de sujeito-objeto, indissociável, e a
relação de causa-efeito.
Outras vezes, para tentar se libertar da angústia existencial, o sujeito busca na
distância física ou temporal (da história /memória/futuro) um respiro ou uma saída. Da
distância física, exemplificada com o texto, é: “Batem carros de aluguer, ao fundo” (I-3),
ou seja, distante, não em primeiro plano em relação ao sujeito que fala, mas longe dele. Da
distância espaciotemporal, o exemplo significativo da Parte I do poema é a sexta estrofe:
“E evoco, então, as crônicas navais: / Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado! / Luta
Camões no Sul
103
, salvando um livro, a nado! / Singram soberbas naus que eu não verei
jamais!”. Ante a angústia do presente, aceleradamente movido para frente pelo progresso,
determinado pela ciência e técnica, cujo uso Portugal está defasado em relação a outras
metrópoles da Europa e, por isso, sem saber muito bem qual o papel a desempenhar no
futuro pela nação, o sujeito lírico busca, na história das conquistas “mouros”, nas grandes
navegações “baixéis” e na memória “crônicas navais” e no mito “heróis”, a origem passada
da existência humana em sua plenitude. Daí, o futuro (distante) ser projetado no presente
(próximo). Além da referência aos filhos, que trarão nitidez às vidas, o sujeito lírico
idealiza as mães e as filhas “Numas habitações translúcidas e frágeis”. Na estrofe seguinte,
o componente mítico: “Ah! Como a raça do porvir, / e as frotas dos avós, e os nômades
ardentes, / Nós vamos explorar todos os continentes / E pelas vastidões aquáticas seguir!”
(IV-4/5) e, em alusão ao episódio de “Os Lusíadas”, no qual os navegantes portugueses e as
ninfas de Tétis se entregam “aos afagos tão suaves, que ira honesta”, na Ilha dos Amores,
103
Apud: SERRÃO, 2003. Conforme a publicação em Portugal a Camões (1880), versão que adotamos
para este trabalho.
Na edição de Silva Pinto: Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado! (1887)
Na segunda (1901) e terceira edição (1911): Luta Camões no mar, salvando um livro , a nado!
89
recompensa de Vênus pelo êxito da Viagem às Índias, de que resultará um povo heróico,
filho de homens e entidades divinas, que remete ao sagrado. Segundo Mircea Eliade:
O passado assim revelado é mais que o antecedente do presente: é a
sua fonte. Ao remontar a ele, a rememoração procura não situar os eventos
num quadro temporal, mas atingir as profundezas do ser, descobrir o
original, a realidade primordial da qual proveio o cosmo, e que permite
compreender o devir em sua totalidade.
104
No poema OSO, o mito representa de um lado a direção ao futuro com base no
passado de glória do povo português; de outro, a busca de totalidade do ser humano,
fragmentado entre o presente materialista, da ciência e da técnica, e a espiritualidade
original divina, de outro, representa, também, o poder criador: “Graças ao modelo
exemplar revelado pelo mito cosmogônico, o homem se torna, por sua vez, criador.”
105
As cores resplandecentes e fulvas, que predominam nessas duas estrofes (IV-4/5)
“translúcidas”, “ruivas”, “ardentes”, trazem a conotação do sol que ilumina e aquece a vida,
e do fogo, elemento de purificação, no sagrado. Tal se repete nas imagens de “Um forjador
maneja um malho, rubramente; / [...] / Um cheiro salutar e honesto a pão no forno(III-4),
nas quais a força do trabalho (que forja o ferro e assa o pão), no cotidiano, remete ao mito
de Prometeu, Titã que roubou dos deuses o segredo do fogo e o entregou aos mortais,
dotando, assim, a humanidade da luz da razão para criar as ciências e desenvolver a
técnica, transformando deste modo o impossível no possível.
Se quanto à proximidade o caminhar a passos perdidos pelas ruas e becos lembra o
labirinto, de que o escrever é o fio condutor de Ariadne; a distância dos “astros com
olheiras”, para os quais o sujeito ergue seu olhar, remete ao mito de Dédalo, em que a
idealização e criação de asas permitiram sair das muralhas da cidade que o aprisionavam e
104
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006, p. 108.
105
Idem, ibidem, p. 124
90
buscar novos horizontes. Em ambos os mitos as alegorias de transcendência da realidade
pela imaginação são evidentes.
Se de um lado “À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,” (II-2), símbolos da
ordem e da religião, do poder instituído pela Monarquia e pela Igreja, portanto, provocam
no sujeito lírico o sentimento de tristeza: “Chora-me o coração que se enche e que se
abisma.(idem), à lembrança das atrocidades cometidas por eles contra o ser humano, no
passado histórico; de outro lado, os recintos populares “E as tascas, os cafés, as tendas, os
estancos, / Alastram em lençóis os seus reflexos brancos; / E a lua lembra o circo e os jogos
malabares.” (II-3) remetem à descontração e ao lúdico. A cor e a dialética do claro-escuro
têm função preponderante nesse contexto: à “nódoa escura e fúnebre do clero” (II-4), que
remete ao sofrimento e à condenação à morte pela Inquisição, contrapõem-se os “reflexos
brancos” (II-3) dos iluminados locais de diversão, de conotação pagã (divindade-lua) e
circense (jogos malabares).
A análise das relações espaciais de alto-baixo, dentro–fora, próximo-distante,
bem como da dialética do claro-escuro, som-silêncio, sombra-luz põe em evidência a
ideologia liberal de origem burguesa e moral cristã, predominante à época de Cesário, e a
expressão contrária a isso é consoante aos temas realistas antiburgueses e anticlericais, que
poeta o imprime nos versos de OSO.
Entretanto cabe aqui notar que a noção temporal de duração (do anoitecer à
madrugada do dia seguinte), além de possibilitar a idéia de verossimilhança pela mudança
de iluminação e das atividades no cotidiano da cidade de Lisboa, observadas e sentidas pelo
sujeito lírico ao longo do percurso, permite a analogia com o momento histórico vivido por
Portugal, no cenário ocidental. Citando Antônio Cândido:
Mas a visão realista só se completa graças ao registro das alterações
trazidas ao pormenor pelo tempo, que pode ir de algumas horas até um
91
século – e ao introduzir a duração introduz a história no cerne da
representação da realidade. As coisas, os seres, as relações existentes na
medida em que duram; por isso muito da sua especificação realista consiste
em mostrar o efeito do tempo sobre os detalhes, mesmo porque a suprema
especificação pode ser essa marca temporal.
106
.
Se entendido a partir daí, o poema revela aquele instante vivido pelos portugueses,
em que o ingresso na era industrial, cuja técnica prometia o progresso (e a felicidade dele
decorrente), já presente em outros países europeus, é ali tardio e nebuloso. Sem que ainda
se realize ou se saiba com clareza o que de favorável ao individuo e à nação essa
transformação propiciaria, tudo é indefinidamente noturno. Daí, o sentimento de angústia
existencial expresso pelo poeta em “Dor humana”. Longe, portanto, de conotar a liberdade
do espaço aberto das ruas e praças, a cidade é prisão, como atestam os versos: “Muram-me
as construções rectas, iguais, crescidas” (II-5), o que leva o sujeito a buscar, através do
caminhar e do escrever, “novos horizontes” (IV-11), nova aurora. Nesse sentido, o tempo
cronológico do poema OSO, do anoitecer à madrugada do dia seguinte, pode ser entendido
como metáfora de Portugal, que, na obscuridade do presente vivido, anseia e busca a luz de
um novo amanhecer.
CAMINHAR E ESCREVER
Na medida em que, se definido como enunciação, o ato de caminhar permite
entender sua tríplice função enunciativa: apropriação, realização e relação ao ato de
escrever, e considerando as três características que as distinguem do sistema espacial, o
presente, o descontínuo e o fático, podemos compreender melhor esta questão. O sujeito
caminhante do poema atualiza a ordem espacial e, ao mesmo tempo, desloca-a e inverte
106
CÂNDIDO, Antônio. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.124.
92
com variações e improvisações da caminhada, a qual deixa de lado alguns elementos
espaciais, enquanto privilegia outros. Visto por este prisma, o sujeito seleciona fragmentos
espaciais, criando um descontínuo na trajetória da existência e moldando um percurso que
passa a ser o presente espacial em relação ao sujeito, que se emociona a partir dele. Se, ao
caminhar, o sujeito reorganiza o espaço, suas referências, modelos sociais, usos culturais e
situações observadas no cotidiano; ao escrever, ele expressa sua emoção daí decorrente.
Há, portanto, uma aproximação das formações linguísticas e processos caminhatórios. Em
Certeau lemos:
Caminhar é ter falta de lugar. "É o processo indefinido de estar
ausente e à procura de um próprio. A errância, multiplicada e reunida pela
cidade, faz dela uma imensa experiência social da privação do lugar – uma
experiência, é verdade, esfarelada em deportações inumeráveis e ínfimas
(deslocamentos e caminhadas), compensada pelas relações e os
cruzamentos desses êxodos que se entrelaçam, criando um tecido urbano, e
posta sob o signo do que deveria ser, enfim, o lugar, mas é apenas um
nome, a Cidade.
107
Ao analisarmos o poema OSO, verificamos que o sujeito, ao observar, durante seu
caminhar, trabalhadores braçais e burgueses, vendedoras de peixe e compradoras elegantes,
ventre das tavernas e hotéis da moda, cais português e embarcações inglesas, monumento
nacional e moda francesa, dentre outras situações, que vai apreendendo pelos sentidos,
revela, através de pares dialéticos, modelos sociais e usos culturais, seu sentimento de
revolta e sua angústia existencial. Se as sinédoques e os assíndetos expressam a
fragmentação do espaço e o ritmo dos versos expressa o descontínuo no tempo, o caminhar
e o escrever revelam a busca da totalidade. No que diz respeito à sinédoque, que consiste
em designar o todo pela parte, através dela o poeta expressa a fragmentação. Por exemplo,
107
CERTEAU, op. cit., Vol. 1, p. 183.
93
a expressa pela gradação: “Madrid, Berlim, São Petersburgo, o mundo!” (I-3), capitais que
“ocorrem em revista” para o sujeito lírico como mundo industrializado, para onde os
“felizes”, os que podem se livrar da opressão da cidade que sofridamente ingressa na era
Industrial, se vão pela via “férrea”. Em contraposição ao sentido de progresso pelo uso da
técnica na indústria, está Lisboa, capital do país “atrasado” em relação aos citados, pelo uso
da mão-de-obra, do trabalho braçal dos “mestres carpinteiros” rebaixados a “morcegos”, ou
seja, à condição animal, pela exploração da força de trabalho e outras humilhações, como,
por exemplo, o maltrato do criado da casa à vendedeira de frutas e legumes no poema Num
Bairro Moderno, dentre outros. A emoção expressa pelo ponto de exclamação “o mundo!"
conota o desejo de evasão da angustiante Lisboa e a busca de novos horizontes (outros
países). Vale aqui notar uma dupla fragmentação: do mundo em capitais e dos países em
categorias de atrasados e adiantados com relação ao uso da técnica – promessa, então, de
felicidade. Para melhor entender o sentimento do sujeito lírico, recorremos a Sartre:
[...] há emoção quando o mundo dos utensílios desaparece bruscamente e o
mundo mágico aparece em seu lugar. Portanto não se deve ver na emoção
uma desordem passageira do organismo ao espírito que viria perturbar de
fora a vida psíquica. Ao contrário, trata-se do retorno da consciência à
atitude mágica, uma das grandes atitudes que lhe são essenciais, com o
aparecimento de um mundo correlativo, o mundo mágico. A emoção não é
um acidente, é um modo de existência da consciência, uma das maneiras
como ela compreende (no sentido heideggeriano de “verstehen”) seu “ser-
no-mundo”.
108
Na medida em que o sujeito colhe, através dos sentidos, elementos da realidade
externa, ele os elabora emocionalmente ao expressar seu sentimento. Para expressá-lo,
lança mão do descontínuo (versos) e do fático (pontos de exclamação), entre outros
108
SARTRE, Jean-Paul. Esboço para uma teoria das emoções. Trad. de Paulo Neves. Porto Alegre:
LPM, 2007, p. 90.
94
recursos de linguagem. No descontínuo, o sentido figurado da metáfora, do símbolo e da
metonímia preenche vazios; no fático, a gesta ambulatória expressa as surpresas,
imprevistos e reflexões. Por exemplo, a realidade externa “lojas tépidas” (III-2) colhidas
pelo sujeito poético, através da visão e do tato, é expressa através da sinestesia, que funde
os dois sentidos. A imagem de “filas de capelas” e “catedral imensa”, iluminadas por
“círios laterais” sugere uma atmosfera solene da catedral imaginada, onde a iluminação é a
círios e não a gás, diferente da realidade presente no poema, na qual “o gás extravasado
enjoa e perturba”, conforme já vimos anteriormente. Em contraposição a essa imagem
solene, o verso “o chão minado pelos canos” (III-3) descreve a realidade pedestre da cidade
em transformação. O adjetivo “minado” atribui a “chão” a conotação de degradação do
espaço físico da Lisboa percorrida pelo sujeito e a consequente tristeza dele: “Triste
cidade!". A exclamação reforça faticamente a reflexão “mundo-eu” e “eu-mundo” no
poema, conotando a não submissão do homem ao meio.
Quanto ao assíndeto, a supressão de conjunções e advérbios que são termos de
ligação, corresponde, no ato de caminhar à prática da elipse de lugares conjuntivos, criando
ausências. Se a sinédoque substitui a totalidade (cidade/mundo) por fragmentos (ruas,
becos, edifícios, etc.), o assíndeto desfaz a continuidade e transforma o espaço contínuo em
ilhotas separadas. Deste modo, o conjuntivo é substituído pelo detalhe: “balcões de
mogno”, “xale com debuxo” são exemplos de detalhes que conotam luxo; em
contraposição a detalhes que conotam escassez ou excesso de trabalho. Exemplo de
escassez é “um trôpego arlequim braceja numas andas” (I-8) indivíduo que se movimenta
no espaço urbano sem ter o que fazer; e de excesso de trabalho, as “costureiras e floristas”
a quem “custa-lhes elevar os seus pescoços altos”, quase imobilizados pelo cansaço.
Contrapõe-se, aqui, também o componente estrangeiro ao nacional, com desvalorização
deste ante aquele: “mogno” e “debuxo” (madeira nobre do estilo inglês em uso e imitação
95
da moda francesa no vestuário, características da riqueza da burguesia da época), e as
“costureiras e floristas” (mão de obra explorada pelo capitalismo). Se àquele acompanha a
expressão “entre luxo”, estas são “quadros revoltados” (II-10). Tal revela uma visão de
mundo contrária à ordem estabelecida.
É seu dom chegar a percepções refinadas como: “um parafuso cai nas lajes, às
escuras” ou “os olhos de um caleche espantam-me sangrentos”, conotando o silêncio da
cidade despovoada noite adentro e o esforço e cansaço do animal ao fim do dia.
“Diferenciando-se da cidade baudelairiana, Lisboa, na poesia de Cesário, ganha dimensões
históricas. Por exemplo, nos versos: “ao tocar doente dos pianos” “o poeta adivinha nas
burguesinhas solteiras que tocam piano o mesmo histerismo das antigas freiras"
109
. Não se
pode deixar de ler aí a crítica social ao confinamento referente a estas e à ausência de
noivos socialmente idôneos para casar com aquelas. Outro exemplo é perceber nas
sombras de um templo o peso secular das tradições clericais e no trabalho dos mestres
carpinteiros a denúncia da exploração da mão-de-obra dos operários urbanos. Na expressão
“exíguas pimenteiras”, o adjetivo “exíguas” traz a conotação de míngua da natureza – em
suas origens rurais - na capital voltada para o progresso técnico; e o substantivo
“pimenteiras” remete às especiarias do oriente, cujo comércio enriqueceu Portugal no
passado, idéia que não se estende ao presente do sujeito. Tal ironia ante a perda se faz
presente na lírica de Cesário, como podemos observar, nos poemas de temática campestre,
a exemplo de Flores Velhas, no qual o sujeito lírico, no início, ao se recordar do
“jardinzinho agreste,/Aonde tanta vez a lua nos beijou”, vale-se da natureza farta, expressa
em “flórido passado”, que conota a presença da amada “Soberba como um sol, serena
como um vôo”, descrita através de imagens de luz e vida “sol”, e de elevação “vôo”, em
oposição a “duas saudades roxas”, flores que simbolizam a tristeza e ausência no presente,
109
LOPES: op. cit. , p.965.
96
expressas pelo substantivo concreto “saudade”, que remete ao próprio sentimento abstrato
saudade. O adjetivo “roxo”, cor que simboliza, na iconografia cristã, a Paixão, união
completa de Deus com os homens, mediante sofrimento e morte, e nos costumes e canções
populares muitas vezes simboliza a fidelidade, segundo Herder Lexikon
110
, e pelo numeral
“duas”, que perfaz o par amoroso desfeito no presente lírico, descrito como “vida triste e
má”, da qual “Os goivos, a baunilha e as rosas-de-toucar” são lembranças do “bom
romance”, e “As dálias a chorar nos braços dos jasmins” são imagens de tristeza e solidão.
Aqui a ironia consiste na alteração de sentido atribuído às flores: de exuberância pretérita
“flórido passado” à exiguidade presente representada por “duas saudades roxas”, flores
funéreas. Ainda, nessa mesma linha, o uso da ironia, expressa o sentimento de perda do
sujeito, como se pode observar no poema Nós em que as imagens de fartura “montões de
malva” predominam na imagem de ausência dos irmãos.
Entre a percepção das coisas e o sentido das coisas há traços e marcas sociais, da
cultura e da história portuguesa, há índice da própria natureza humana em busca da
transcendência de sua condição: “E eu que medito um livro que exacerbe, / Quisera que o
real e a análise mo dessem” (II-5) são versos que expressam o desejo de transcender a
realidade presente através da criação poética. As antinomias dialéticas revelam a
fragmentação espaciotemporal, que, através do caminhar e do escrever, o sujeito busca
totalizar, harmonizando em versos os contrastes dos ultrajes e glórias marcados pela
história e pelas grandes narrativas com a transitoriedade da vida presente. Pelo percurso o
sujeito, ao incluir a quarta dimensão, a do tempo, na descrição do espaço, expressa na
poesia a dinâmica do olhar presente estendido ao passado e ao futuro. O cotidiano e o
prosaico ganham força na lírica. Segundo Massaud Moisés, “Pela primeira vez, o lirismo
tentava, com a força própria das novidades, lançar a atenção sobre o prosaico diário [..]”
111
110
LEXIKON, Herder, Dicionário de Símbolos. São Paulo: Cultrix, 1999, p. 208.
111
MOISÉS., Massaud. A literatura portuguesa. 35ª. Edição. São Paulo: Cultrix, 2008, p .240.
97
III – LEITURAS DE MUNDO E FORMAS DE EXPRESSÀO
A mim o que me rodeia é o que me preocupa...”
(Cesário Verde)
112
Articulado com os demais e com o eixo pelas escolhas temáticas e elementos
estilísticos de que Cesário lança mão para compor sua obra poética, este capítulo é
dedicado à análise de características impressionistas, enquanto expressão do cotidiano em
relação com a existência, na obra de Cesário, a partir do poema O Sentimento dum
Ocidental.
A epígrafe desse capítulo remete a Ortega y Gasset quando ele afirma que a vida é
uma dialética entre o eu e a situação em que ele se encontra – “eu sou eu mesmo e minhas
circunstâncias”. Sua negação de uma natureza humana fixa e seu foco na liberdade
individual lembram o Existencialismo de que Sartre seria o maior expoente no após-guerra.
Neste sentido, a poesia de Cesário Verde, ao expressar o cotidiano, sugere instantâneos do
dia a dia na existência, através de imagens de luz, cor e movimento, que são características
da pintura impressionista. Segundo Hauser, o impressionismo é uma arte urbana, e não só
porque descreve a qualidade paisagística da cidade e traz a pintura de volta do campo para
a cidade, mas porque vê o mundo através dos olhos do cidadão e reage às impressões
externas com os nervos tensos do moderno homem técnico. A percepção sensorial de
Cesário capta os efeitos da luz, do ar, da atmosfera de Lisboa, que expressa com palavras
que pintam o fugaz, o dinâmico, o fragmentado, dando primazia ao momento e ao acaso.
No poema OSO, a luz natural do anoitecer cede vez à iluminação artificial dos candeeiros e
os encontros do sujeito poético com caminhantes, trabalhadores, boêmios, dentre outras
figuras passantes, ao longo do percurso, reforçam as imagens do movimento e do efêmero.
112
In: Carta a Silva Pinto, 1875. Apud: SERRÃO, 2003, op. cit., p. 203.
98
Desse modo, o aqui e agora também serão critério de verdade do indivíduo; a ênfase no
passageiro submete ao próprio domínio do estado de ânimo do sujeito as qualidades
permanentes da vida. No poema OSO o estado de ânimo do sujeito “desejo absurdo de
sofrer” vai se intensificando na medida em que a noite se aproxima. Assim, do sentimento
individual ele se expande à “dor humana” expressa nos versos finais do poema. Também se
observa esse movimento no poema Nós em que a dor da perda dos irmãos transborda e se
constitui na dor provocada à população pelos males das epidemias.
O jogo de luz refletida e sombra iluminada representado na pintura pela técnica do
pontilhismo é transposto à poesia pela descrição aparentemente descuidada, em versos
justapostos que compõem os poemas. Exemplificamos com os versos: “Toda a maré luzia
como escamas,/ Como alguidar de prateados peixes.” (Noitada, E. 23).
Resultante de uma análise o Impressionismo constrói seus temas do cotidiano a
partir dos sentidos, e na busca de uma imagem do todo, oferece-nos as partes de que é
composto. Para Oscar Lopes, a dimensão realista e concreta não é mero descritivismo, mas
uma visão crítica da sociedade, uma profunda reflexão sobre as condições sociais e
psicológicas da produção econômica e a denúncia das frustrações históricas portuguesas: o
sofrimento citadino n’O Sentimento dum Ocidental é histórico e não meramente decadente
e literário.
113
Retomam-se, portanto, aqui, o cotidiano e a existência; a objetividade e
subjetividade, como linhas de força nas relações espaciotemporais, que se irradiam na obra.
Com o desenvolvimento do capitalismo e industrialismo de 1850 em diante, a vida
cotidiana, os lares, os meios de transporte, as técnicas de iluminação, alimentação e
vestuário sofrem transformações radicais. Aumenta a demanda de luxo e a mania de
divertimento é generalizada. A boêmia, ponto de contato entre a intelligentzia e o
proletariado, ganha a simpatia geral.Nesse contexto, o Naturalismo, que é estilo de pequena
113
Apud. MENDES, Margarida Vieira: Op. Cit, p. 25.
99
minoria, sofre ataques da Academia, da Universidade e dos críticos e torna-se mais hostil
na medida em que o Realismo como atitude filosófica oposta ao idealismo romântico a ele
se agrega. No plano estilístico o Impressionismo torna-se autônomo e faz sua primeira
aparição coletiva, nas salas do fotógrafo Nadar, em Paris, em abril de 1874, e a existência
ganha vida, cor e movimento nas telas a partir da perspectiva de um presente cotidiano. O
tempo bergsoniano se constitui em seu elemento vital para captar o instante em sua
experiência básica. No cerne da filosofia de Henri Bergson está a noção de duração, o
tempo como imediatamente experimentado, em contraposição ao tempo objetivo, medido
pelo relógio. Para ele, o movimento de duração é impelido por uma força vital, ou seja,
criativa, que deriva mais da intuição que do intelecto, tornando cada momento
qualitativamente único. Por este viés, depreendemos da poesia de Cesário que tudo
contribui para a sugestão do instante, expresso como uma “pintura com palavras”.
Na relação campo-cidade, as cores do campo podem ser outras, o ritmo de vida,
mais lento. Mas, como afirma Maria A. Paschoalin ao se referir à poesia do autor:
Mas o campo, real, está incluído no mesmo sistema social que
produz a cidade sem cores. Uma cidade onde a iluminação a gás se
sobrepõe à luz das estrelas; onde a liberdade de movimentos foi contida
pela geometrização do espaço; onde não se ouvem mais as notas pastoris
longínquas, abafadas pela nova harmonia de sons de ferro e da pedra.
Mesmo diferentes cidade e campo estão intimamente ligados, compõem a
mesma sociedade.
114
Acompanhando a crise do Positivismo e do Materialismo, o Naturalismo, ao longo
da década de 80, entra em declínio e cede espaço a uma crescente reação idealista, de
humanismo e misticismo. Desenvolve-se, então, um novo estilo, comum às diversas artes,
que predominaria em toda Europa na última década do século XIX, com sobrepujança da
114
PASCOALIN, op. cit., p.99.
100
pintura, que emprestou às demais artes elementos e características que lhe eram próprios: a
luz, a cor, o ar. Como fenômeno literário o Impressionismo é resultante do Realismo e
Naturalismo. Entretanto, para o impressionista, importam mais as sensações e emoções que
o objeto desperta no sujeito, num dado momento. Ao contrário do Realismo, no
Impressionismo há colaboração da subjetividade. Citando: “O mais importante no
Impressionismo é o instantâneo e único, tal como aparece ao olho do observador. Não é o
objeto, mas as sensações e emoções que ele desperta, num dado instante, no espírito do
observador, que é por ele reproduzido caprichosa e vagamente.” E, em continuação: “Não
se trata de apresentar o objeto tal como visto, mas como é visto e sentido num dado
momento.”
115
. E, mais adiante: “No Impressionismo, o real é visto através de um
temperamento, pelas sensações e impressões que desperta, num singular momento que
passa. Ao transferir o registro das relações externas para o das internas, isto é, das
impressões despertadas no espírito pelo contato com as coisas, cenas, paisagens ou pessoas,
os impressionistas introduziram um novo mundo na literatura.”
116
À luz dessa concepção, como exemplo, depreendemos dos poemas Cristalizações e
Num Bairro Moderno o seguinte: poema publicado em 1878, “Cristalizações” confirma a
capacidade de ver e comunicar quadros urbanos de modo impressionista. A expressão
inicial do poema “faz frio” registra o banal e se desloca em imagens que traduzem
sensações captadas de todos os sentidos: tato, visão, audição, paladar e olfato. Por exemplo,
as expressões que remetem à luz “imensa claridade”, “chão vidrento”, “molhada casaria”,
em contraste com os quintais que “negrejam sob o céu subitamente aberto. O grito das
peixeiras, os cheiros com sabor de campo a que remetem as parreiras no último verso da
terceira estrofe, os “choques rijos, ásperos, cantantes” das pedras quebradas pelos robustos
calceteiros, que contrastam com a frágil “atrizita” de “pezinhos rápidos, de cabra”. Tudo
115
COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. 5a. ed. Rio de Janeiro: Editora
Distribuidora de Livros Escolares, 1968, p.223.
116
Idem, ibidem, p.223.
101
anima o instante da cidade e da percepção que dela nos oferece o poeta nessas vinte
quintilhas compostas de alexandrinos iniciais e decassílabos que reforçam a ideia do
caminhar do sujeito lírico pelas ruas da cidade. Até as cores têm movimento de luz, como
se lê na nona estrofe, indicando o instante que passa: “Negrejam os quintais; enxuga a
alvenaria;/ Em arco, sem as nuvens flutuantes,/ o céu renova a tinta corredia;/ E os charcos
brilham tanto que eu diria/ Ter ante mim lagoas de brilhantes!” Mesmo nos poemas
citadinos há fugas para imagens campestres, ainda que pela ausência da existência delas na
cidade, a exemplo do que se lê no início da quarta estrofe: “Não se ouvem aves! Nem o
choro duma nora”, o que remete à lavoura arcaica.
Nesse poema, cujo título plural “Cristalizações” remete a imagens fragmentadas
pelo efeito da luz e da água, o realismo, longe de ser documental e pitoresco a registrar
tipos curiosos da cidade, ou o realismo objetivo, doutrinário desse movimento, é um
realismo lírico, um sentimento do real, um sentimento coletivo assumido como pessoal.
Os verbos, colocados no início dos versos, destacam o dinamismo das ações, assim
como a profusão adverbial e a colocação sintática dos complementos circunstanciais antes
dos núcleos nominais, por exemplo, “calceteiros” e verbal “calçam” causam a impressão do
instante presente. A abundância das frases nominais e enumerativas, com predomínio da
coordenação acentua a idéia de fragmentação e, por vezes, estabelece contraste entre elas.
Por exemplo, os calceteiros “bovinos, másculos, ossudos” e a actrizita “que vacila, hesita,
impaciente”. Naqueles, evidenciam-se os traços épicos de força heróica “másculos”; nesta,
os diminutivos "botinhas” e “pezinhos” remetem ao lírico. Constatamos, a partir daí, que
aquilo que se costuma chamar “efeitos do real” concretiza a pequena narrativa – temporal e
espacial – da aparição e atuação da atrizita no cenário da rua, como que a desempenhar
papel numa peça. O ritmo dos versos finais do poema traduz a rapidez dos passos curtos
saltitantes a atravessar “Covas e entulhos, lamaçais, depressa/ Com seus pezinhos rápidos,
102
de cabra!”. A metáfora “cabra”– animal do campo - contrasta com a cidade evocada na
imagem “sítios suburbanos, reles!” rebaixando, por um lado, tanto eles “bovinos” como
ela, “cabra”, à condição de animais rurais, como a cidade à insignificância “reles”; e, por
outro lado, denunciando a sobrecarga e exploração do trabalho na urbe: eles “homens de
carga”, ironicamente tratados por “bons trabalhadores”, na estrofe dezessete, e ela “a tiritar
em suas peles”, ou seja, com carência de agasalho ante o frio do inverno “dezembro
enérgico”. Ambas as imagens de reforço do sacrifício e da luta do povo português, com
quem o poeta se mostra solidário, sintetizadas na décima quarta estrofe: “Povo! No pano
cru rasgado das camisas/ Uma bandeira penso que transluz!/ Com ela sofres, bebes,
agonizas:/ Listrões de vinho lançam-lhe divisas, / E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!”
No poema Num Bairro Moderno (1877), o cotidiano e o percurso descritos pelo
sujeito lírico a caminho de casa para o trabalho trazem o dia a dia lisboeta aos olhos do
leitor através de imagens verbais, que traduzem a estética impressionista por palavras e
expressões conotativas da incidência da luz, da cor, do movimento e da forma, quais
impressões da realidade captadas num determinado momento. Por exemplo: os
decassílabos da quintilha inicial do referido poema “Dez horas da manhã; os transparentes/
Matizam uma casa apalaçada;/ Pelos jardins estancam-se as nascentes,/ E fere a vista, com
brancuras quentes,/ A larga rua macadamizada.” dão a impressão do real de uma cena da
vida cotidiana, a plein air. Nessa estrofe, a menção do horário matutino pela locução
adverbial “dez horas da manhã” remete à claridade natural do dia; os substantivos
“transparente, nascentes e brancuras” nominam o efeito da intensidade da cor branca, que,
ao mesmo tempo em que busca mostrar os objetos (interior da casa apalaçada e larga rua),
esconde sua forma, pois aqueles “matizam” e o brilho destas “fere a vista”, impedindo de
ver bem as coisas. Os verbos matizar e ferir conotam a ação do movimento da luz solar que
causa efeito tanto na vista do sujeito lírico “fere” quanto no detalhe do objeto observado
103
rua macadamizada”. Assemelha-se, aqui, a descrição do sujeito poético à técnica do
pontilhismo, desenvolvida pelos pintores impressionistas, ou seja, a um conjunto de
pinceladas que súbito se organiza e ganha vida diante dos olhos do espectador. No poema,
tal efeito é traduzido em imagens verbais pelas sinestesias fere a vista e brancuras quentes
(visão e tato) que sugerem o brilho e o calor, atributos do sol, elementos naturais
incontroláveis, em oposição aos jardins e à casa apalaçada, artificialmente projetados para
serem controlados pelo ser humano em sua ânsia de organizar o bairro e a cidade para fins
administrativos e segundo a ideia de “progresso”, a exemplo de outras capitais européias da
época. Para tanto, as “nascentes”, cuja água representa a fonte emanente e continua de vida,
“estancam-se”, cessam. Nesse sentido o poema Num Bairro Moderno remete à ideia de
desnaturalização do meio ambiente pelo urbano, bem como à de desvitalização pela
artificialidade da técnica, temática recorrente na obra poética de Cesário Verde.
RELAÇÃO ARTE-REALIDADE
O desejo de se livrar da opressão da cidade em processo de metropolização, em que
se encontra Lisboa, fragmentada, no presente do sujeito lírico de OSO e no restante da obra
como um todo, leva-o a buscar saída de diversos modos: pelo espaço geográfico
representado por outros países “Madrid, Paris, São Petersburgo, o mundo!” (I-3) ou pelo
campo; pelo espaço mental e físico “a cismar” e “erro pelo cais” (I-5); no tempo histórico,
representado pelas “crônicas navais” (I-6); na literatura, pela alusão a “Os Lusíadas” (I-6);
no sonho, que se torna pesadelo “Cólera e Febre” (II-7); no mito, que se refere à “raça ruiva
do porvir” (IV-6). Entretanto, é através do processo de criação artística que o sujeito lírico
reitera várias vezes o desejo de libertação, saída da opressão citadina: “E eu, de luneta de
uma lente só, / Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:” (II-11). Essa tensão, que no
104
poema analisado se configura entre opressão e desejo de libertação do sujeito poético, é um
dos traços da poesia moderna, que segundo Hugo Friedrich:
Essa tensão dissonante da poesia moderna exprime-se ainda em outro
aspecto. Assim, traços de origem arcaica, mística e oculta, contrastam
com uma aguda intelectualidade, a simplicidade da exposição com a
complexidade daquilo que é expresso, o arredondamento lingüístico com
a inextricabilidade do conteúdo, a precisão com a absurdidade, a
tenuidade do motivo com o mais impetuoso movimento estilístico. São,
em parte, tensões formais e querem, freqüentemente, ser entendidas
somente como tais. Entretanto, elas aparecem também nos conteúdos.
117
Tal é o caso, para fins exclusivos de análise, sabendo-se indissociável no universo
artístico a forma-conteúdo, da alucinação (conteúdo) que o sujeito lírico expressa em OSO,
através dos quartetos mistos, um verso decassílabo e três alexandrinos, (forma) que
mantêm a isometria ao longo de todo poema. Na Parte I do poema, a busca de saída pela
literatura parece frustrar-se ante a impossibilidade de imaginar, contida no verso: “Singram
soberbas naus que eu não verei jamais!” (I6). Na Parte II, o sujeito lírico parece insinuar a
expressão pictórica ao observar “de luneta de uma lente só”, ou seja, examinar
microscopicamente, ao gosto do cientificismo da época que, segundo A. Moles
118
inaugurou a crença na ciência, em oposição à fé, “ciência do certo”, a própria realidade:
“Eu acho sempre assunto a quadros revoltados”. Na Parte III, ele enuncia o desejo de
escrever: “E eu, que medito um livro que exacerbe, / Quisera que o real e a análise mo
dessem;” (III-5). Na Parte IV, a busca de uma saída do ambiente urbano que o oprime dá-se
no plano existencial: “Enleva-me a quimera azul de transmigrar”, verso que conota
devaneio pelo verbo “enleva”, e criação literária, pela “quimera azul”, referência à tinta de
117
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna: da metade do século XIX a meados do século
XX. Trad.: Marise M. Curioni. São Paulo: Duas Cidades, 1978, p.16.
118
MOLES, Abrahão. A Criação Científica.
105
escrever, ou seja, "de compor versos no papel." (IV-1). Em seguida, a associação das
“linhas de uma pauta” à “dupla correnteza das fachadas”, também remete ao ato de
escrever as notas musicais na pauta, e aos “círios de capela”, pela ordenação paralela que
sugerem. E, finalmente, ante a realidade concreta e penosa da cidade, representada como
“massa irregular de prédios sepulcrais, com dimensão de montes”, que aprisiona, a
abstração dos “amplos horizontes” remete à idéia de liberdade, embora haja a consciência
do sujeito poético que “a dor humana busca / E tem marés de fel, como um sinistro mar.”
Lembrando que “Na criação lírica, ao contrário [da épica], metro, rima e ritmo
surgem em uníssono com as frases. Não se distinguem entre si, e assim não existe forma
aqui e conteúdo lá.”
119
, cabe aqui, a partir de uma visão panorâmica da métrica cesariana,
que prima pelo rigor parnasiano, que tende à procura da confecção perfeita dos versos, pela
regularidade métrica, estrófica e rítmica, ressaltar dois poemas, cuja análise estilística
denota um processo de maturação da lírica cesariana. A avaliação estilística das opções
métricas de Cesário denota a diversidade combinatória dos dois metros, alexandrino e
decassílabo, sendo os poemas Humilhações e De Verão importantes exemplos do momento
de maturação da modernidade poética de Cesário, em que o casamento forma-conteúdo dá
o tom de cada poema. Naquele, os três primeiros versos dos quartetos são alexandrinos, e o
último, decassílabo; neste a relação se inverte, sendo o primeiro verso dos quintetos
alexandrino e os quatro seguintes decassílabos, contribuindo, assim, a irregularidade
métrica para o efeito de sentido singular de cada poema, um dos traços marcantes da
modernidade. Tal indício já pode ser observado no poema Cristalizações (1879), composto
por vinte estrofes de cinco versos cada, com a rima ABAAB, sendo o primeiro verso
alexandrino e os outros quatro decassílabos. Esta introdução às quintilhas, feita por um
verso de doze sílabas, atribui ao poema um ritmo especial, que ora se concilia com a
119
STEIGER. Op. Cit. p. 26.
106
condição climática e a situação do tempo, ora se quebra em frases exclamativas que
introduzem aspectos particulares dos trabalhadores: “A sua barba agreste! A lã dos seus
barretes!”; “Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!” E nesse “dia frio, de imensa
claridade crua” vão aparecendo os “calceteiros terrosos e grosseiros”, “as peixeiras
descalças” “a dar com os rins”, “os rapagões” ”que partem penedos”, os “valadores” que
atiram terra com largas pás”. E estes homens, “filhos das lezírias, dos montados”, “filhos
da planície” ou “das montanhas”, do campo, portanto, com saúde de ferro e atitudes de
macho, opõem-se à fragilidade da “actrizita”, uma figura feminina delicada, citadina, com
rostinho estreito, friorento, que passa por ali vacilante para seu ensaio, atravessando
“covas, entulhos e lamaçais”, num casaco à russa e botinas de tacões agudos, semelhantes
“a pés de cabra”. Tanto em um caso como em outro, os verbos de ação conotam o
movimento necessário para vencer o frio. O mesmo se dá com as peixeiras que marcham
agitando os quadris e gritam. No tempo presente os verbos descrevem a ação e o som
perpassa nítido através do ritmo das estrofes, às vezes pela contraposição ausência-
presença dele, como por exemplo: “Não se ouvem aves; nem o choro duma nora!/ Tomam
por outra parte os viandantes;/ E o ferro e a pedra – que união sonora! /Retinem alto pelo
espaço fora, / Com choques rijos, ásperos, cantantes.” (E.4)
Sobre o ritmo, valemo-nos de Otávio Paz, quando diz: “O poeta encanta a
linguagem por meio do ritmo. Uma imagem suscita outra. [...] O poema é um conjunto de
frases, uma ordem verbal, fundados no ritmo.“
120
. Se a fragmentação em estrofes e versos
é elemento constituinte do poema, o ritmo, ao provocar uma expectativa, produz um anelo.
As imagens verbais expressam o movimento alternado entre opressão e desejo de liberdade
no cotidiano, representando o contínuo na existência. Neste caso, o movimento de retração
e expansão do sujeito lírico equivale à semelhança de sístole e diástole à pulsão da vida. No
120
PAZ, 1982, op. cit., p.68.
107
poema OSO, o ritmo se altera na fusão dos sextetos nos alexandrinos e à cesura variada dos
decassílabos de que é constituído. Ao heroísmo comum da oitava rima de herança clássica
substituem os quartetos populares, em que o cotidiano e a oralidade, num jogo temático,
transformam o herói épico daquela no homem ordinário, sobrevivente ao dia a dia destes.
Não há repetições em vão. As variações do andamento expressam intensidades do sentir
diferentes da regularidade dos passos, o que, de certo modo, possibilita ao leitor a noção do
espaço físico e do espaço da emoção, do sentimento. Citando Óssip:
O ritmo como termo científico significa uma apresentação
particular dos processos motores. É uma apresentação convencional que
nada tem a ver com a alternância natural nos movimentos astronômicos,
biológicos, mecânicos, etc. O ritmo é um movimento apresentado de uma
maneira particular.
121
O ritmo marcado pela luz e sombra do dia e da noite marca o ciclo solar natural em
OSO. O ritmo dos passos na cidade ou no campo marca o continuar na existência. Nesse
sentido, verbos no presente do indicativo reforçam a idéia de movimento do sujeito no
espaço. Por exemplo: “saio”, “erro”, “embrenho-me”, “sigo”, denotam um deslocamento
físico, uma ação. Por outro lado, os verbos “ocorrem-me”, “chora-me”, “lembram-me”,
“enleva-me”, “julgo”, remetem a uma atitude interior do sujeito. Do mesmo modo, o ritmo
da natureza está presente em outros poemas, como é o caso de Provincianas, como
observamos nas expressões: “Como amanhecer”, “Nessa manhã”, “Bom sol!”, “ao meio-
dia”, denotando período do diurno, ou “inverno”’e “outono”, designando as estações do
ano, com suas paisagens “vagas dum verde garço” e atividades características: os grãos e as
sementes “acordam”, “cresce o relevo dos montes”, “fartam-se as vacas”, “produz as novas
121
BRICK, Óssip. Ritmo e sintaxe. Teoria da literatura – formalistas russos. Trad. Bras.Ana Mariza R.
Filipouski e outros. Porto Alegre: Globo, p. 132.
108
manteigas”, referindo-se ao trabalho humano. Se o anoitecer na cidade desperta o
sentimento de melancolia no sujeito, o amanhecer no campo deflagra sua alegria. A
claridade do sol, mesmo nos poemas de temática citadina, dá tom de vigor aos versos. Por
exemplo, Num Bairro Moderno, em que o sol é “o intenso colorista” (E.7) , capaz de
transformar vegetais em ser humano, na visão de artista do sujeito lírico. E, no mesmo
poema: “E o sol estende, pelas frontarias, / Seus raios de laranja destilada.” (E.18), as
imagens de alto teor impressionista contribuem para os efeitos da luz nos elementos
espaciais da cidade.
Diversamente do meio natural, de farta insolação, o meio técnico sofria de
precariedade. Segundo Joel Serrão, em 1848, são acesos em Lisboa os primeiros candeeiros
a gás. Em 1871, no Concelho de Lisboa, havia já 3080 candeeiros. “Mas a noite, a antiga e
persistente noite, só será vencida de vez pela luz elétrica, o que levará seu tempo. A
princípio (1878), só na via pública, [...]. Levará tempo a sobrepor-se à iluminação a gás,
cujos restos ainda hoje existem nos bairros velhos de Lisboa.
122
Em 1878, Cesário nos dá
o “Quadro dum que à candeia / Ensina o filho a ler...?”, documento histórico de
excepcional valor de que a candeia de azeite continuava a iluminar a noite. A luz do gás
torna-se obsessão em sua poesia. Por exemplo, nos versos a seguir: “E em breve ao quente
sol e ao gás alvejará!” (Ironias do desgosto, 1875. E.7); “Nas ruas a que o gás dá noites de
balada” (Merina, 1878. E.1); “Entre um saudoso gás amarelado” (Noitada, 1879. E.1); “O
gás extravasado enjoa e perturba,” (OSO, 1880. E.2).
O próprio som da palavra gás sugere algo que escapa; e a sequência de sons a e l
nas palavras balada e amarelado, bem como as vogais que intercalam as sibilantes em
extravasado, sugerem lentidão e monotonia. Um ritmo lento. Valendo-nos aqui, por
transposição, das expressões com que Milton Santos se refere à má distribuição do uso da
122
SERRÃO, Temas Oitocentistas. Vol. I. Lisboa: Livros Horizonte, 1978 p. 149.
109
técnica no mundo atual, podemos dizer que a precariedade da iluminação técnica da Lisboa
de Cesário também fazia dessa capital um espaço opaco em relação ao espaço luminoso de
outras capitais europeias da época, o que se reflete na angústia do sujeito, no texto.
RELAÇÕES SOCIOESPACIAIS NA OBRA POÉTICA
À luz da ideia de Heráclito, como sugere Arnold Hauser, o homem não mergulha
duas vezes no rio da vida, em eterno movimento para diante. O sujeito lírico de O
Sentimento dum Ocidental vai captando ao longo do percurso a pé pelas ruas de Lisboa as
diversas cenas do cotidiano, em momentos diversos do anoitecer ao amanhecer, que o
remetem a um outro espaço-tempo. Através da iluminação da cidade, o tempo cronológico
pode ser observado: na Parte I, o fim de tarde e anoitecer; na parte II, o acender dos
lampiões, na Parte III, as avenidas e as casas comerciais iluminadas opõem a noite natural à
noite técnica; e, na Parte IV, a escuridão dos becos e corredores denota o adiantado da
madrugada silenciosa e vazia. São recortes da realidade, difusos e detalhados, quase sempre
sem contorno nítido que o sujeito vai captando com os sentidos apurados por onde passa, à
semelhança das pinturas impressionistas, que buscam captar o instante e o impreciso da luz
em seu contraste com a sombra. O uso dos substantivos que nominam formas e dos
adjetivos indicadores de cores, associados aos advérbios de tempo, expressa nos versos
cesarianos vestígios do real e da imaginação. Ruas, casas, pessoas, campo, cidade,
trabalhadores, deambulantes, ao serem descritos em sua realidade exterior, significam,
conforme o grau de luminosidade, os efeitos que causam no sujeito poético. Os versos “E o
fim da tarde inspira-me; e incomoda! (OSO I-7), e “Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as
obreiras” (idem, E. 9) são exemplos de sombra (fim da tarde) e claridade (reluz) que
expressam a impressão fugaz.
110
Entretanto, diferentemente do pintor que, de um ponto fixo trabalha com o
movimento da luz, Cesário, no poema em causa, trabalha com duplo movimento, ou seja,
movimento dos passos e movimento da luz. Simultaneamente, o espaço a partir da rua, por
onde caminha o sujeito lírico, e a transformação da luminosidade natural (do sol que se
põe, cedendo lugar ao anoitecer) em luminosidade artificial (iluminação a gás, noite
adentro) são percebidos e evocam a natureza ímpar do momento.
Ao registrar a passagem da noite natural à noite técnica, há uma alusão ao indício
do processo de modernidade em que Portugal ingressava atrasado e lentamente. A partir
daí, torna-se mais clara a compreensão de que o percurso do sujeito, do anoitecer à
madrugada do dia seguinte, é uma alegoria da nação portuguesa, que vive entre a
decadência em que se encontra (anoitecer) e a busca da esperança idealista que a move
(amanhecer). No contexto, o individual cede espaço ao coletivo e ao existencial.
Com o declínio do Naturalismo, acompanhando a crise do Positivismo e do
Materialismo ao longo da década de 1880, o Impressionismo adquire importância nas artes
ocidentais e a pintura acaba por emprestar suas próprias características e elementos, o ar, a
luz, a cor. Como fenômeno literário, sua gênese dá-se no Realismo e Naturalismo, pela
reprodução da realidade, entretanto, ao contrário do realista-naturalista para quem o
objetivo, exato, minucioso e impessoal constituía a norma, para o impressionista importa a
impressão que a realidade provoca no espírito do artista, no momento em que se dá a
impressão. Citando: “O mais importante no Impressionismo é o instantâneo e único, tal
como aparece ao olho do observador.” E, continuando: “Não é o objeto, mas as sensações e
emoções que ele desperta, num dado instante, no espírito do observador, que é por ele
reproduzido caprichosa e vagamente. Não se trata de apresentar o objeto tal como visto,
mas como é visto e sentido num dado momento”
123
. Há colaboração do subjetivismo e esse
123
COUTINHO, 1968, op. cit., p.223.
111
é um dos elementos que os diferenciam. Importam as impressões despertadas no espírito do
sujeito pelo contato com as coisas, cenas, paisagens, pessoas, num dado instante. Daí: “A
técnica impressionista, “pontilhismo”, ou pintura com palavras, captando a realidade não
em estado de repouso, mas nas impressões e no conhecimento afetivo de aspectos e partes
do real.”
124
As exposições de pintura impressionista foram entre 1874 e1886, embora
viessem de mais longe os sinais dessa renovação na arte. Pissarro (1830-1903), Manet
(1832-1883), Degas (1834-1917), Monet (1840-1926), Renoir (1841-1919); Rodin (1840-
1917) na escultura; Debussy (1862-1918) e Ravel (1875-1937) na música.
IMAGENS IMPRESSIONISTAS NA EXPRESSÃO VERBAL
Dos 40 poemas de Cesário Verde, 20 têm características impressionistas marcantes.
Tal referência ao pictórico se apresenta pelo uso metafórico de palavras como pintor,
pintura, quadro, cores, disseminadas na obra, conotando uma relação entre escrever e
pintar, enquanto criação, como os versos seguintes demonstram: “Pinto quadros por letras,
por sinais”, (Nós, E.29); “Em todo o caso dava uma aguarela. (De Tarde, E.1); “Eu acho
sempre assuntos a quadros revoltados:” (OSO, II-22); “Achava os tons e as formas.” (Num
Bairro Moderno, E.9); “urdia estes fáceis esbocetos" (A Débil, E.12). Ou, ainda, pela
estrofe que se segue: “[...] Eu mal esboço o quadro /Da lírica excursão, de intimidade. /Não
pinto a velha ermida com seu adro;/ Sei só desenho de compasso e esquadro,” (De Verão,
E.2), na qual as palavras esboço, pinto e desenho remetem diretamente ao pictórico.
Apresenta-se, também, por meio dos substantivos e adjetivos na descrição de
imagens visuais, da parataxe e da própria simetria de composição dos poemas. O número
de versos, de imagens, quantidade de estrofes, de forma geral, é equilibrado na obra como
124
Idem, ibidem: p. 224.
112
um todo, revelando que Cesário geometriza seus poemas, dando preferência ao número par
de estrofes, o que pode significar a busca de equilíbrio sugerida pelo número 2. Acerca
disso, Jorge Luiz Antonio procedeu ao levantamento, adotando a numeração utilizada na
obra “Obra Completa de Cesário Verde”, organizada por Joel Serrão, que nos auxilia
conferir o total de seis sonetos, dois poemas em tercetos, vinte e sete poemas em variados
números de quadras, seis poemas em quintetos e um poema em sexteto. Constitui exceção
um poema de 24 estrofes compostas de quadras e dueto.
Nessa mesma linha, há preferência por um determinado número de sílabas métricas
no poema. Metro e sintaxe vão colaborar para uma expressão sóbria, calculada e
antioratória. O próprio conteúdo do poema se apresenta como quadros, cenas,
recortes/imagens. Por exemplo, em Cristalizações, conferimos 45 imagens-versos ou
imagens-frase justapostas, em planos, como uma pintura das inúmeras facetas da realidade
urbana portuguesa de seu tempo: “Faz frio. Mas depois duns dias de aguaceiros,/ Vibra
uma imensa claridade crua. / De cócoras, em linha, os calceteiros, / com lentidão, terrosos e
grosseiros, / Calçam de lado a lado a longa rua.” (Cristalizações, E.1). A descrição da rua
pobre, no dia frio, enquanto caminha, contextualiza os homens inseridos no ambiente, no
cotidiano. A aliteração e assonância do último verso, pela repetição de sons consonantais (l,
m, n) e vocálicos (a, o) reforçam a lentidão do gesto dos calceteiros e do movimento do
sujeito que os observa trabalhar. Compreendemos daí que a poesia de Cesário busca o
efeito da pintura impressionista de captar o instantâneo na luz e no movimento. Jorge de
Sena, sobre as concentrações expressivas de Cesário, considera:
Efectivamente, os seus poemas, como poemas, não são
impressionistas, segundo é costume considerar-se que o seja qualquer
notação, subjetivamente adjetivada, de um pormenor ou de um aspecto da
realidade objetiva. Impressionistas são (numa acepção distinta, ainda que
paralela, da que se aplica ao impressionismo-escola-de-pintura) as suas
113
imagens, ou mais exactamente, a descrição sintética dos “instantâneos” que
ele distribui pela composição rigorosamente parnasiana de seus quadros”
125
No poema Contrariedades, publicado em “O Livro de Cesário Verde” (1887), com
17 quadras, 68 versos (de 12 sílabas métricas do primeiro ao terceiro e de 5 o último de
cada estrofe) encontram-se múltiplas imagens que se apresentam como num filme. Em cada
estrofe, à exposição contida nos três primeiros versos (longos), segue-se uma breve
conclusão, emitida no quarto verso. Por exemplo: “Sentei-me à secretária. Ali defronte
mora/ Uma infeliz, sem peito, dos dois pulmões doentes; / Sofre de faltas de ar, morreram-
lhe os parentes/ E engoma para fora.” Se, num primeiro momento, sujeito se aproxima da
engomadeira tísica pela desventura, pelo desgosto da não publicação de seus versos, em
seguida, dela se afasta, ao projetar no futuro a possibilidade de encontrar algum editor que
pague todas as suas obras. Ao longo do poema, há uma alternância entre o sujeito e a
engomadeira, a rua, a raiva, a crítica literária e a metalinguagem, uma explosão de
sensações que resulta na crítica objetiva e no julgamento moral da sociedade
contemporânea, sintetizada no último verso do poema: “Que mundo! Coitadinha!”. O
próprio título do poema Contrariedades remete às impressões fragmentadas sobre um fato
do cotidiano: a rejeição de um folhetim à publicação dos versos do poeta.
Em Manhãs Brumosas ((1877), poema composto de cinco sextetos com versos de
12 sílabas métricas, a descrição de um retrato de mulher é construída com imagens
pictóricas impressionistas. As cores percorrem o poema como se ele fosse uma pintura do
instantâneo. O gesto da mulher “Põe o chapéu ao lado, abre o cabelo à banda” provoca no
sujeito uma impressão “Lembra-me uma pastora audaz da religiosa Irlanda”. A voz da
mulher evoca sensações sinestésicas, confusas, que a presença da mulher traz ao sujeito,
como identificamos através das expressões difusas: “névoa azul”, “a caça”, “as pescas”, “os
125
Apud: ANTONIO, Jorge Luiz. Op. Cit., p.68.
114
rebanhos”. A presença das brumas na manhã é descrita pelo olhar do sujeito e pelas
sensações que ele provoca em seu íntimo, como expressam os versos: “Uma pastora audaz
da religiosa Irlanda”, “cujo amor me causa tanta pena.” (E.5). As frases entrecortadas
produzem um efeito que lembra o pontilhismo. A abundância dos substantivos demonstra a
preocupação com a síntese: “E as redes, a manteiga, os queijos, as choupanas.” (E.1):
aparecem intercalados com cores na segunda estrofe, sugeridas pelo azul e prata da
“névoa” e “pescas”, e pelo marrom sugerido por “caça” e “rebanhos”, suscitando o diálogo
da terra (marrom, opaca, inferior) com o céu (azul, luminoso, superior). Desse modo, as
imagens do cotidiano rural são construídas verbalmente no poema pelo sujeito que expressa
através das palavras as cenas em movimento que passam por sua mente, através de
metáforas, uma situação onírica: “O meu desejo nada em época de banhos, / Se as minhas
mágoas são, mansíssimas ovelhas, / Correm os seus desdéns, como vitelos brancos.” (E.4).
Cesário nos revela em seus poemas o que vê e o que sente. Tal nos remete a Jorge Luiz
Antonio, quando ele pondera: “Não foi à toa que Fernando Pessoa o considerou um dos três
mestres da Modernidade, ao lado de Antero de Quental e Camilo Pessanha, com os quais
Cesário Verde mostra algumas semelhanças.”. E, a seguir, complementa: “Nessa
construção sintética, e nesse apoio nas artes plásticas, é que parece residir o aspecto
inovador e prenunciador da poesia modernista, razão por que até hoje Cesário é lembrado,
citado, seguido e lido.”
126
A própria temática explorada na obra poética como um todo se compara à da obra
pictórica impressionista, quando esta busca captar os movimentos, como, por exemplo,
sugerem os poemas: os retratos femininos emergentes (A Forca, Merina, Lúbrica,
Esplendida); a crítica social (Desastre, Cristalizações) e a sátira (Heroísmos); as paisagens
urbanas instantâneas (Num Bairro Moderno, Esplêndida, O Sentimento dum Ocidental,
126
ANTONIO. Op. Cit. p., 288.
115
Contrariedades); as paisagens rurais movediças (De Tarde, De Verão, Nós), para citar
alguns entre outros poemas.
Acerca do Impressionismo Sir Ernst Gombrich lembra: “As novas teorias não
diziam respeito somente ao tratamento de cores ao ar livre (teen haver), mas também ao
das formas em movimento.”
127
Tal mobilidade é evidente nos versos: “Com seus passinhos
curtos e em suas lãs forrada.” (Merina, E.2); “Carros de mão que chiam carregados”
(Cristalizações, E.8); “No seu dorso feroz vou blasonar,” (Heroísmos, E.3); “Sobem a trote
a Rua do Alecrim” (Esplêndida, E.2); “Regressam os rebanhos das pastagens,” (De Verão,
E.5).
Sobre os artistas do impressionismo pictórico, Pierre Francastel pondera:
[...] a sua originalidade faz-se sentir na descoberta de novas atitudes
psicológicas e estética, mais do que na invenção de não se sabe que
misteriosa receita. É, portanto, indispensável tentar fazer um estudo
precioso das relações existentes entre os pintores impressionistas e o meio
literário e filosófico de seu tempo.
128
É nessa linha que o Impressionismo acontece na poesia realista de Cesário. Para
tanto, além dos autores citados, recorremos às características da literatura impressionista,
que, segundo Addison Hibbard, em seu livro “Writers of the Western World
129
podem ser
resumidas do seguinte modo, para fins de análise comparativa com a poesia de Cesário:
- registro de impressões, emoções, sentimentos despertados no artista, através dos
sentidos, pelas cenas, incidentes, caracteres. Em vez da coisa, a sensação da coisa;
- ênfase na revelação do momento. Importa a essência do momento, do
127
GOMBRICH, Ernst.. Revolução Permanente: O século XIX. A História da Arte Trad. Álvaro
Cabral. 16ª. ed. RJ; LTC, 1999, pp. 517.
128
FRANCASTEL, Pierre. O Impressionismo. Trad. Maria do Sameiro Mendonça (até p.80) e Rosa
Carreira (a partira da p. 80). São Paulo: Martins Fontes, 1988. p.113. Original:L’Impressionisme.
Paris, Éditions Denoël, 1974,
129
In: COUTINHO, Op. Cit., p. 225.
116
incidente ou da paisagem interpretada pela alma do artista;
- valorização da cor, dos efeitos tonais, a atmosfera. Fragmentação e detalhamento.
Percepção visual do instante;
- reprodução de emoções, sentimentos, atitudes individuais. É a vida interior em
seus variados matizes que interessa pintar (descrever);
- a verdade do impressionista é a sua verdade num determinado momento. A vida
em mudança constante, a captação do instantâneo;
Em suma, importam mais que os acontecimentos o deleite das sensações e emoções
criadas. A atmosfera, qualidades tonais, impressão do vago, difuso, obscuro, sem sentido,
começo ou fim. Efeito. E, ao cotejarmos com a análise da obra de Cesário, tendo por
núcleo o poema OSO, verificamos os traços preferenciais de estilo, sintaxe, figuras, cuja
constelação e não o uso isolado caracteriza o Impressionismo, os quais resumimos abaixo:
- impassibilidade e impersonalidade, mesmo nas notações subjetivas, visando à
captação objetiva das percepções sensoriais e instantâneas;
- sintaxe esquemática, oposta à estruturada, clássica, abandono da estrutura regular
e lógica, das ligações conjuntivas subordinadas e coordenadas. Uso do anacoluto;
- uso do modo imperfeito, que visa a dar ao leitor a impressão de que assiste ou
testemunha os fatos descritos: linguagem imaginativa, de animação constante;
- uso da metáfora e do símile, da linguagem expressiva, colorida e sonora;
Na captação de um mundo de aparências efêmeras, o impressionista inventa
paisagens que parecem mais autênticas que a realidade. A Estação de St. Lazare (FIGURA
10) de Claude Monet nos dá uma impressão real de uma cena da vida cotidiana da Europa
oitocentista, em Paris. Neste quadro, que pertence à série de doze telas em que Monet
pintou a Gare de Saint Lazare em vários momentos, está representado o valor atribuído ao
progresso material da técnica pelo agigantamento da locomotiva a vapor, em primeiro
117
plano, e pelas figuras humanas mal delineadas no seu entorno. A atmosfera nebulosa onde
predomina a cor azul do céu que transparece pelo vidro da cobertura da estação dá o tom
diurno e solar, refletindo tons amarelos e claros no ambiente, que demarcam bem as
sombras contrastantes. As pinceladas coloridas (pontilhismo) que compõem o chão e
demais elementos espaciais dão a impressão do movimento; e os edifícios laterais, em
perspectiva, e estáticos, reforçam a idéia que Monet, nesse quadro (e nos outros que
compõem a série de pinturas sobre Gare) capta, mais que o instante da partida e da chegada
dos que pela via férrea viajam, em meio ao burburinho e ruídos típicos da estação de trens,
a impressão da luz natural que se mistura ao vapor exalado pela locomotiva, numa
composição harmônica entre natureza e técnica. É um espaço onde o limite do dentro e do
fora não existe. Existe apenas a representação dele pela cor preta da estrutura de ferro e
pela transparência dos vidros que delineiam a estação. Tudo remete à fugacidade do
instante que passa e não volta mais. Tudo é efeito da luz.
Gombrich observa: “Monet não está interessado na estação ferroviária como um
lugar onde seres humanos se encontram ou se despedem; está fascinado pelo efeito da luz,
que escore através do telhado de vidro e se mistura às nuvens de vapor, e pela forma da
locomotiva e carruagens que emergem da confusão”
130
. Não difere disso, pelo efeito
movimento, de luz e nebulosidade, de ausência de contornos nítidos, na descrição que o
sujeito poético faz da atmosfera da movimentada Lisboa ao anoitecer, nas estrofes iniciais
da Parte I de OSO. A neblina a tudo mistura “edifícios, com as chaminés, e a turba” (I-2),
fazendo-se perder a nitidez dos contornos; e o movimento cria a confusão: Os versos
“Batem os carros de aluguer ao fundo, / Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!” (I-3),
são exemplos disso. A partir da fragmentação das imagens do cotidiano o sujeito poético, à
semelhança do pintor impressionista, que com rápidas pinceladas busca no expressar dos
130
GOMBRICH, op. cit., p.520.
118
momentos do dia a dia a harmonia da existência, possibilitada pela arte: “um livro que
exacerbe”. Neste sentido, os versos de João Cabral de Melo Neto acerca da poesia
cesariana são precisos: “Cesário Verde usava a tinta / de forma singular: / não para colorir,
/ apesar da cor que nele há. [...] Assim chegou aos tons opostos / das maçãs que contou; /
rubras dentro da cesta / de quem no rosto as tem sem cor.” , num jogo de palavras e cores
que reverenciam o “poeta-pintor”.
Em 1986, Helena de Carvalhão Buescu
131
, a propósito da visualidade e
espacialidade na poesia de Cesário Verde, aponta três gestos fundamentais: “a pintura
como atitude”, “a pintura como metáfora”, “a pintura como processo”. A pintura como
atitude é definida pela atividade de deambulação, que rompe com o imobilismo e a pose
dos ateliês, de que Num Bairro Moderno e OSO são exemplos de percursos exteriores
(espaço físico) e interiores (espaço da emoção): Deslumbramentos, Esplêndida e A Débil,
são exemplos de contemplação (apenas aparente), posto que, ao descrever com o olhar
móvel, o sujeito tece os fragmentos do espaço, revelando a visão de mundo do autor,
contrária às injustiças socioespaciais, como depreendemos do poema Cristalizações. Neste
sentido, deambular significa uma nova atitude para com a poesia, descritiva do movimento,
diferente da tradicional, de posição fixa, ou narrativa de percurso que remete à Divina
Comédia de Dante.
Pinturas como metáfora são expressões que indicam a atividade de transformação,
ou seja, a “poetização de um real à primeira vista aparecendo como prosaico”, duas
composições justapostas, uma percebida pelos sentidos, outra do sentimento decorrente,
como já vimos no Capitulo I, na movimentação das varinas, calceteiros, camponeses, entre
outros, ou pela “visão de artista”, em Num Bairro Moderno, a qual sobrepõe “dois quadros”
em uma mesma moldura, a da vendedeira e da criatura recomposta a partir das hortaliças e
131
Apud: ANTONIO, Jorge Luiz, op. cit., p.312-315.
119
legumes de que ela dispunha em sua “giga”. Remete, também, ao interseccionismo, na
medida em que a fusão das duas visões é assumida conscientemente, “enquanto modo de
produção poética”.
A pintura como processo aponta para o modo como a atividade pictórica e a
transformação, vistas anteriormente, põem em evidência o sujeito poético, ao fragmentar-se
em olhos e olhares, como também de si dirá Pessoa mais tarde de forma obsessiva. Quem
vê?, quem sente?, quem transforma?, quem compõe? O sujeito esboça-se como onipotente,
“mas uma plenitude institui sempre um vazio”, lembra-nos a autora, ao concluir: “Desta
poesia poderemos dizer que utiliza o mundo da sua referência como processo de
circunscrição, não de um sujeito, mas de uma atitude (interrogação) de sujeito.” A
concepção estética da espacialidade nos três gestos (pintura como atitude, pintura como
metáfora e pintura como processo) reflete, correspondentemente, a atitude do sujeito para
com o mundo (da sua poesia e do “real” do qual emana), a atitude do sujeito para com seu
universo poético e a atitude do sujeito consigo próprio nas relações arte-realidade.
120
CONCLUSÃO
Mais no sentido de finalizar esse trabalho que no de concluir algo, retomamos a
ideia inicial de que, no período em que viveu Cesário Verde (1855-1886), Portugal estava
em profunda transformação, após o longo período da crise provocada pelas invasões
napoleônicas, pelas lutas liberais, pela perda da colônia brasileira, pela ascensão da
burguesia ao poder e pela instabilidade política e governativa. Sob a égide do partido
regenerador, introduzido pelo levante militar de Saldanha (1851), que encaminhou sua
atuação para melhoramentos materiais, difundindo confiança e progresso, há uma aparente
estabilidade política. Entretanto a especulação desenfreada leva à queda do governo
regenerador, pela Revolta da Janeirinha (1868), e conduz à crise econômica de 1876,
quando surge o partido progressista, que irá alterar o poder com o regenerador até o fim da
monarquia. Com o regresso de Fontes Pereira de Melo (1871-1877) ao poder, o Fontismo
Regenerador traz grandes transformações na produção industrial, fomento agrícola,
comercialização de produtos, aumento do consumo e das classes trabalhadoras assalariadas,
multiplicação dos meios de transporte e comunicação, favorecendo a economia.
Paralelamente, como sintoma da dificuldade da vida no campo, há enorme emigração para
as cidades e para o Brasil. Lisboa conhece os problemas peculiares do rápido
desenvolvimento a que o poder não sabe dar resposta, principalmente no que diz respeito
ao caos urbano e à salubridade pública. Tuberculose, febre amarela e peste dizimam a
capital. Assim, o desenvolvimento capitalista ali se revela caótico.
Sensível a essas transformações, poeta da cidade, sobretudo que era, Cesário Verde
se deixa influenciar por elas em sua poesia, que ao mesmo tempo as descortina ao leitor.
Poeta genuíno e original, conhecedor dos recursos estilísticos de rigor formal, ele trabalha
com temas que exploram as causas do sofrimento humano, como a angústia e as injustiças
121
socioespacias. Considerado renovador da lírica portuguesa pela exploração do cotidiano,
Cesário Verde, ao descrever os tipos e quadros citadinos e rurais, revela atitudes subjetivas
provocadas por essa vida exterior. Sua escrita lapidar, antirromântica, pela reserva irônica e
rigor compositivo de seus versos, dá-nos a ver, através de sua imaginação transfiguradora,
a cidade e o campo. Aquela, em seus vícios, misérias e sofrimentos; este, em sua vitalidade,
saúde e liberdade. Em contraposição à pulsão da morte, existente na cidade, local de
humilhação dos que nela buscam trabalho ou amor, Cesário identifica-se com a pulsão da
vida característica do campo, local de trabalho, onde acontecem alegrias e tristezas. Por
exemplo: “No campo; eu acho nele a musa que me anima”: (De Verão, E.1), em oposição
à: “Triste cidade! Eu temo que me avives uma paixão defunta!”(OSO, II-9), imagem do
medo, da desolação e da morte.
A expressividade verbal, adjetivação abundante e rica, a precisão vocabular, o
colorido da linguagem, frases curtas e acumulativas, justapostas, exclamações e reticências,
quadras em versos decassílabos ou alexandrinos dos poemas deixam transparecer a
problemática de sua obra: o desconcerto de mundo que, através da escrita, o poeta busca
recompor. Assim, o processo de análise e interpretação das relações espaciotemporais em
O Sentimento dum Ocidental permitiu-nos uma compreensão maior da poesia de Cesário
Verde como um todo, pelo movimento sincrônico de recolha e disseminação dos elementos
poéticos que a caracterizam. O poema, entendido como ponto de partida e de chegada da
problemática cesariana e núcleo irradiador de uma visão de mundo, possibilitou, também,
uma releitura de nossos dias a partir dela. Ante a fragmentação do sujeito e do mundo, o
caminhar e o escrever criam novas relações de dimensão poética que envolvem também o
leitor nesse processo.
Mais que a dicotomia campo-cidade, que contrapõe o espaço urbano ao espaço
rural, comum em algumas obras realistas mencionadas ao longo da dissertação, é evidente
122
que sua poesia expressa o sentimento de contrariedade às injustiças socioespaciais e à
desumanização do homem pelo modo de uso da técnica, antecipando o que seria uma das
preocupações de Ortega y Gasset: “Uno de los temas que en los próximos años se va a
debatir com maior brio es el sentido, ventajas, daños y limites de la técnica”
132
, o que
denota a sensibilidade extraordinária do poeta e sua preocupação autêntica com o indivíduo
e com a nação, com o ser e com mundo.
Sem querer aqui, neste momento, aprofundar a questão geográfica a que Milton
Santos denomina Período-Técnico-Científico-Informacional e Período Popular da História,
seu estudo nos leva a compreender que vivemos hoje de modo intensificado a problemática
do século XIX, ou seja, os desdobramentos da Revolução Industrial e Liberal. A
fragmentação do cotidiano pelo uso do modo de produção (eletrônica), decorrente do meio
técnico-informacional(fibra ótica), à semelhança do século XIX, gera a angústia existencial
e consequências funestas das desigualdades socioespaciais, como a violência e a fome no
mundo, que bem merecem reflexão aprofundada. A poesia de Cesário, na medida em que
remete ao cotidiano, lembra, nesta situação, o homem pós-moderno, “em que as grandes
narrativas, segundo Lyotard, os sistemas de valores vigentes entraram em colapso, porque
todos decepcionaram quando aplicados, devida à ação do tempo, das circunstâncias e às
limitações dos indivíduos”
133
. E, na concepção de Linda Hutcheon a propósito da arte pós-
modernista, ela “pode ser capaz de dramatizar e até provocar a mudança a partir de
dentro”
134
. Entretanto, por ser outro o enfoque aqui, adiaremos a reflexão sobre tal assunto.
Nos versos de Cesário, a partir do diálogo que o leitor estabelece com o texto, há o
espaço da enunciação, do subentendido, que se alia ao sujeito poético, tornando visível o
que no poema é invisível: por exemplo, a angústia existencial e as desigualdades
132
GASSET, Ortega y. Meditación de La Técnica. In: Obras Completas. 3ª. Ed. Madri: Revista do
Ocidente, 1955, Vol V, p 319. Um dos temas que nos próximos anos se vai debater com maior
brio é o de sentido, vantagens, danos e limites da técnica. (Tradução nossa)
133
Apud. RIBEIRO, Raquel de Sousa. Op. Cit., p. 339.
134
Idem, ibidem. P. 340.
123
socioespaciais; a angústia do sujeito proveniente do não-saber do futuro, dele, enquanto
indivíduo, e da nação, enquanto coletivo. Embora já se apresente como promessa de
progresso na Europa do século XIX, Portugal vive ainda a opacidade, a incerteza da sua
concretização, como os versos “tal soturnidade, tal melancolia” e “o céu parece baixo e de
neblina” bem expressam e, também, as desigualdades socioespaciais pela divisão
internacional de trabalho que relegou à nação portuguesa no século XIX a mão-de-obra,
nas poucas indústrias existentes, de capital estrangeiro. Tal fato não passa despercebido ao
poeta que expressa seu descontentamento através da lírica: “De um couraçado inglês
vogam escaleres”; e "Chora-me o coração que se enche e que se abisma.” A predominância
de naus estrangeiras no porto torna evidente a defasagem de Portugal em relação a outras
metrópoles européias, bem como traduz a angústia do poeta ante tal realidade presente.
Se vista como um todo, a cidade sugere opressão e confinamento. Transcrevendo:
“mas se vivemos, os emparedados,”, o caminhar e a escritura são meios de sair, livrar-se da
opressão e buscar novos horizontes. Se, nesse contexto, escrever é um modo de libertar-se
interiormente: “E eu, que medito um livro que exacerbe, / Quisera que o real e a análise mo
dessem” (III-5), viajar para metrópoles européias industrializadas, “São Petesburgo,
Londres, Paris, o Mundo” (I-3), é modo de o sujeito lírico se libertar exteriormente.
Cesário Verde, poeta português do século XIX, em O Sentimento dum Ocidental,
longo poema em quatro tempos (do anoitecer ao amanhecer) – uma alegoria da nação
portuguesa que sofridamente ingressava na Era Industrial, publicado no Jornal de Viagens,
Edição Especial: Portugal a Camões, Porto, (1880), trata de questões relativas ao uso da
técnica, de suas consequências e do sentimento que tal uso pode desencadear, antecipando,
assim, uma problemática, que não só afligia ocidentais de seu tempo, como alcançaria
proporções mundiais com a chamada globalização do final de século XX e início do XXI.
Ao enviar o poema, versado em quartetos de longos decassílabos e alexandrinos, para o
124
jornal do Porto, acompanhou-o de uma carta, que dentre outras coisas, dizia o seguinte:
“[...] mas julgo que fiz notar menos mal o estado presente desta grande Lisboa, que em
relação ao seu glorioso passado, parece um cadáver de cidade.”
135
. Parece que a lucidez de
Cesário, longe de descartar a imagem anterior de nação, aumenta-lhe a significação pela
dialética presente/passado; a bem entender, passado heróico, nos moldes clássicos, e
presente heróico, nos moldes modernos de cotidiano, revelando sua permanente
transformação.
Vivemos, hoje, segundo Milton Santos, o final do que ele define como Período
Técnico-Cientifico-Informacional da História, que tem suas raízes fincadas na Revolução
Industrial e seus desdobramentos, mas já vislumbramos no horizonte a emergência de um
novo período: o Período Popular da História, onde e quando os aconteceres solidários do
lugar determinam as novas relações socioespaciais. Verificamos que, apesar do traçado das
ruas de Lisboa de hoje guardarem características da cidade medieval e da cidade
pombalina, sua expansão, densidade populacional e transformação urbana se fazem notar,
como confirma na foto aérea (FIGURA 11).
Daí podermos dizer, a um primeiro e modesto estudo da obra poética de Cesário
Verde, do enriquecimento que traz à análise literária a aproximação entre espaço
geográfico e espaço poético. Tendo em vista este “corpo-alma” que as relações
espaciotemporais em O Sentimento dum Ocidental sugerem (e que a obra como um todo
reafirma), acentua-se a possibilidade de diálogo com o mundo do presente, pela
fragmentação socioespacial, verdade emocional, natureza dos conflitos e sentido de busca
incessante do sujeito/nação, que, a despeito de tudo, não desiste da esperança, conforme se
lê nos versos finais do poema: “A Dor humana busca novos horizontes/e tem marés de fel
como em sinistro mar.” (OSO, estrofe final do poema).
135
ANTONIO. Op. Cit. , p.267.
125
Campo e cidade representam na obra poética um todo que passa a ser metáfora da
existência, a exemplo do poema de Caeiro (ANEXO G), o que possibilita, a partir das
relações espaciotemporais, estabelecer um diálogo com O Caminho do Campo, de
Heidegger, cujo fragmento transcrevemos a seguir e que merece uma reflexão aprofundada,
em outro momento:
Quando os enigmas se acotovelavam e nenhuma saída se
anunciava, o caminho do campo oferecia boa ajuda: silenciosamente
acompanha nossos passos pela sinuosa vereda, através da amplidão da terra
agreste. O pensamento sempre de novo às voltas com os mesmos textos ou
com seus próprios problemas retorna à vereda que o caminho estira através
da campina. Sob os pés, ele permanece tão próximo daquele que pensa
quanto do camponês que de madrugada caminha para a ceifa.
136
Em contraposição à fragmentação e à pulsão de morte latente em seus versos, dos
quais “marés de fel” é a síntese, há, com igual intensidade, a pulsão de vida pelo
movimento de busca que a expressão “amplos horizontes” sintetiza. Tal nos permite
depreender da obra a visão de mundo do autor: um mundo desconcertado que ele busca
através da lírica concertar. Ante a fragmentação do sujeito e do mundo, no século XIX,
pela perda de identidade do indivíduo e da nação, Portugal já não se reconhece mais como
costumava no passado histórico renascentista das grandes navegações. Nesse sentido,
Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905), desenhador, caricaturista, jornalista, professor e
ceramista, já havia criado em 1875 a personagem “Zé-Povinho” (FIG. 12), representando o
homem do povo, esperto e atento, que se tornou símbolo nacional. A aceleração da vida
pelo meio técnico nas cidades grandes européias que passavam por transformações de toda
sorte, entre outros fatores, traz ao homem ocidental o sentimento de angústia e solidão.
136
HEIDEGGER, Martin. O caminho do campo. Trad. Ernildo Stein. SP: Duas cidades, 1969, p.67.
126
Cesário Verde, através de sua lírica, descreve as relações espaciotemporais de Lisboa
(campo-cidade) oitocentista nesse contexto e propõe a esperança como saída. Nessa busca
do sujeito poético, o percurso e o cotidiano, o caminhar e o escrever, o físico e a emoção
vão sendo chamados a compor uma nova realidade que se consagra na obra poética.
Relacionar, portanto, os elementos conteudístico-formais de sua poesia com contexto
histórico-geográfico em que viveu, dá-nos a leitura da problemática da obra e visão de
mundo do autor. A atualização disso em nossos dias pode propiciar reflexões acerca do
espaço-tempo em que vivemos e instigar novas atitudes conciliadoras do homem com o
mundo. Após anos de estudo dedicados à análise das relações espaciotemporais na
literatura, foi na obra de Cesário Verde que tivemos mais claramente vistas ao processo de
busca de totalização (harmônica) ante a fragmentação do sujeito, do mundo e da existência,
através do fazer poético. Na sua “lírica deambulatória”, na expressão de David Mourão-
Ferreira, ou “poesia de transeunte”, na observação de Jacinto do Prado Coelho, como
ressalta Carlos Felipe Moisés, é imediato surpreender nesse aspecto, não só o
“correspondente literário da pintura ao vivo dos impressionistas, mas o prenúncio da
tendência à dispersão e à despersonalização, característica de boa parte da poesia
moderna.” Concluindo, mais adiante, “[...] avaliado sem preconceitos (ou à luz da também
preconceituosa modernidade?), Cesário se revela, mais de cem anos depois,
indiscutivelmente nosso contemporâneo.”
137
Dentro dos limites a que se propôs este trabalho, buscamos, também, reforçar a
ideia de que, se a seu tempo a obra não teve o reconhecimento que o poeta esperava, com o
passar dos anos os admiradores e estudiosos, leitores e pesquisadores a colocaram em
posição de destaque, na lírica de língua portuguesa, e Cesário, precursor primeiro dos
rumos que a literatura ocidental iria tomar no início do século XX em diante. O próprio
137
MOISÉS, Carlos Felipe. 2001. Op. Cit., p. 217.
127
título do conto de Miguéis Saudades para Dona Genciana (1968), mencionado na Fortuna
Crítica, evoca o verso de Cesário “Eu trouxe do jardim duas saudades roxas” (Melodias
Vulgares, E.21) e aproxima ambos os textos pela imagem de morte que esta flor sugere.
A partir da análise das relações espaciotemporais no poema O Sentimento dum
Ocidental, foi constatado um permanente processo de fragmentação e busca de totalidade
presente na obra poética de Cesário Verde como um todo. Este processo foi verificado em
três aspectos indissociáveis e interagentes, a saber: em relação ao sujeito, em relação ao
espaço e em relação à linguagem, que na dissertação aparecem separados por razões de
ordem analítica.
Em relação ao sujeito, depreendemos que a totalidade do “eu” é representada pelo
diálogo entre sujeito observador, que capta a realidade exterior através dos sentidos (visão,
olfato, tato, audição, paladar), e sujeito lírico, que transmuta em sentimento (angústia e
desejo de esperança, por exemplo) aquilo que foi observado. Ambos, sujeito observador e
sujeito lírico, compreendem o sujeito poético que configura a totalidade do que é
representado pelo diálogo, o qual expressa o sentimento de busca de harmonização pela
poesia. O efeito poético resultante da construção proveniente da fragmentação e busca de
totalidade denuncia a visão de mundo marcada pela instabilidade e movimento. Ante o
desconcerto de mundo e o sentimento de angústia dele decorrente, o poeta busca uma nova
realidade que expressa no poema. Ao compor, o sujeito poético busca perfazer a totalidade
a partir da fragmentação sujeito observador (sentidos) e sujeito lírico (sentimento),
evidenciando no diálogo entre eles a busca da harmonia na poesia. Neste processo, a
relação entre olho, perspectiva de onde o sujeito vê, e olhar, formas de percepção do
simbólico e da cultura, deixa transparecer a visão de mundo do autor que, ao denunciar a
fragmentação, (des)ordem do mundo em que vive e que o inspira, busca recriar nova
ordem, ou seja, nova totalidade.
128
Em relação ao espaço, dialogam na obra poética de Cesário o espaço físico
(objetivo, Lisboa oitocentista) e o espaço da emoção (subjetivo, lírico sentimental). No dia
a dia e no caminhar do sujeito afloram as injustiças socioespacias na relação campo-cidade-
mundo, a visão em foco e em perspectiva, que traduzem a fragmentação do espaço em
paisagens e lugares, como, por exemplo, paisagem urbana e paisagem rural, lugar de
trabalho e lugar de lazer, que as antinomias dialéticas e outros recursos expressivos, entre
os quais, substantivos, verbos, adjetivos, locuções adverbiais, que buscam recriar como
totalidade do “território vivido”, ou seja, do território usado, espaço banal, espaço de todos.
O cotidiano e o percurso do sujeito na Lisboa oitocentista, bem como sua memória e
história, e o sentimento daí decorrente, possibilitam ao leitor visualizar a época do poeta e
aproximá-la do mundo em que vive, refletindo sobre suas semelhanças e diferenças.
Em relação à linguagem, que no sentido de totalidade do poema se apresenta
fragmentada em episódios e cenas, como, por exemplo, o episódio da vendedeira de frutas
e legumes em Num Bairro Moderno e a cena dos calceteiros na rua macadamizada de
Cristalizações, o autor lança mão de recursos poéticos, sendo que alguns remetem às
características da pintura impressionista, sugeridos pelos adjetivos, verbos e outros que
configuram o campo semântico, para expressar verbalmente o instantâneo, a luz, o
movimento que busca traduzir através da poesia.
Em resumo, a relação do sujeito com a linguagem escrita, o processo de
fragmentação e busca de totalidade se configuram no fazer poético. Do ponto de vista do
espaço, ele ocorre no cotidiano e através do percurso. E do ponto de vista da linguagem, tal
processo se dá, através de imagens verbais, na própria composição poética como um todo.
A partir dos três aspectos abordados nesta dissertação, queremos demonstrar que é
evidente o processo de fragmentação ou (des)ordem e a busca de nova ordem, totalidade,
que, entretanto, nunca chega a realizar-se. O sujeito busca a esperança na relação consigo,
129
com o outro e com o mundo, ou seja, busca “novos horizontes”, através do processo de
harmonização pela arte de “compor com versos magistrais”. Isso remete à verossimilhança,
na concepção aristotélica, que distingue verdadeiro de verossímil. Lembrando as palavras
de Ricardo Marques de Azevedo:
Remontando à distinção aristotélica entre verdadeiro e verossímil,
estima-se que, pelas operações da Arte que o Espírito esteja aparelhado
para conceber excelências que a natureza por si só seria incapaz de
produzir. E isso se credita não apenas às operações seletivas, corretivas e
reunitivas: o gênio imaginativo, diz-se, é dotado de certo poder entusiástico
pelo qual prodigaliza uma força peculiar e uma expansão expressiva que
arrebatam.
138
Entendendo-se, aqui, verdadeiro como espaço físico e verossimilhante como espaço
poético, remete, também, por isso, à concepção platônica, da qual se aproxima no sentido
de plenitude. Neste movimento de aproximação e distanciamento do mundo ideal, o ser
humano, representado pelo sujeito poético, constrói-se e se desconstrói através da poesia, a
qual, por sua vez, suscita no leitor o mesmo processo de fragmentação e busca de totalidade
em relação a ela e à vida, ao mundo em ele que vive, estabelecendo, de certo modo, um
diálogo contínuo entre o verdadeiro e o verossimilhante, entre o eu e o outro.
Considerando totalidade como organicidade e interação das partes com todo e entre
si, numa harmonia dos fragmentos entre si e em relação ao todo, podemos dizer que a
busca de totalidade no poema O Sentimento dum Ocidental e na obra poética de Cesário,
ante a fragmentação do sujeito, do espaço, do tempo e da linguagem, é representada,
sobretudo, pelo seguinte:
138
AZEVEDO, Ricardo Marques de. Antigos e Modernos: Contribuição ao estudo das doutrinas
Arquitetônicas (Séculos XVII e XVIII), p.18. Tese de Livre-Docência. Departamento de
História da Arquitetura e Estética do Projeto. FAU-USP, 2007.
130
- aspiração à evasão do emparedamento individual e nacional,para viver livremente;
- resgatar a memória da nação em sua grandeza perdida pelas injustiças, crueldades,
prisões, perseguições, que “enlutam” e possibilidade de vislumbrar “novos horizontes”;
- esperança de superação à dor física, moral e existencial, para bem se relacionar
consigo, com o outro e com o mundo, guardado o respeito entre classes reais e imaginárias,
entre empregados, empregados que se fazem de patrões e patrões;
- vontade de harmonização socioespacial, seja ela na cidade ou no campo, visando
à busca de equilíbrio entre civilização e natureza, pela consciência da diferença entre valor
de troca e valor de uso, confundidos na sociedade industrial capitalista, cuja economia visa
ao lucro monetário em detrimento de bens naturais;
- desejo de alcançar a realização amorosa e não desencontro dos pares, representado
pelo cômico ou pelo rebaixamento que desmontam a construção idealizada do amor;
- anseio, em termos artísticos, de “compor versos magistrais” presos ao real,
entendidos no plano da linguagem como rima, ritmo, métrica e outros recursos estilísticos,
que encontram na leitura sua complementação, ainda que provisória, pois, lembrando
Schopenhauer, também para o leitor o prazer da leitura é momentâneo e logo se desfaz;
Em suma, a análise da obra poética de Cesário Verde, tendo por ponto de partida e
de chegada o poema O Sentimento dum Ocidental, quer indicar que o poeta foi bem-
sucedido em seu intento de provocar nova busca, novo enigma, como mistério e desafio
para cada leitor, que por mimese presentifica a emoção que o autor sentiu ao escrever seus
versos. Entendida como superação de tudo e complemento do que falta ao ser humano, a
totalidade é também a parte do outro que o completa. Assim compreendidas, fragmentação
e busca de totalidade, ao se alterarem em sua poesia, num processo que nunca encontra a
plenitude absoluta e logo cede à nova fragmentação, remetem ao processo contínuo de
construção e desconstrução que constitui a essência da própria vida.
131
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http://museubordalopinheiro.pt
141
ÍNDICE GERAL
Capa Interna............................................................................................................................1
Folha de Rosto............................................................................................................. ..........2
Folha de Aprovação....................................................................................................... ........3
Dedicatória..................................................................................................................... ........4
Agradecimentos.............................................................................................................. .......5
Resumo em Vernáculo.................................................................................................... .......6
Resumo em Inglês - Abstract.................................................................................... .............7
Lista de Anexos e Lista de Figuras.......................................................................... ..............8
Sumário.................................................................................................................. ................9
Introdução....................................................................................................................... .....10
Contextualização................................................................................................. .....20
À guisa de biografia............................................................................................ .....23
Fortuna crítica..................................................................................................... .....25
Capítulo I – O Sujeito Poético..............................................................................................37
O sujeito e a cidade.......................................................................................... ........38
O sujeito e o tempo......................................................................................... .........47
O sujeito e o mundo...................................................................................... ...........55
Capítulo II – Espaço Físico e Espaço da Emoção................................................................67
Cotidiano e percurso......................................................................................... .......77
Antinomias dialéticas.......................................................................................... .....84
Caminhar e escrever............................................................................................ .....91
Capítulo III – Leitura de Mundo e Formas de Expressão............................................. .......97
Relação arte-realidade.............................................................................................103
Relações socioespaciais na obra poética.................................................................109
Imagens impressionistas na expressão verbal.........................................................111
Conclusão...........................................................................................................................120
Bibliografia.........................................................................................................................131
Sites consultados................................................................................................................140
Índice Geral........................................................................................................................141
Anexos – A, B, C, D, E, F, G..............................................................................................S/P
Figuras – 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12.........................................................................S/P
ANEXO - B
EM LISBOA, COM CESÁRIO VERDE *
(Eugénio de Andrade)
Nesta cidade, agora me sinto
mais estrangeiro do que os gatos persas;
nesta Lisboa, onde mansos e lisos
os dias passam a ver gaivotas,
e a cor dos jacarandás floridos
se mistura à do Tejo, em flor também,
só o Cesário vem ao meu encontro,
me faz companhia, quando de rua
em rua procuro um rumor distante
de passos ou aves, nem eu sei já bem.
Só ele ajusta a luz feliz dos seus
versos aos olhos ardidos que são
os meus agora; só ele traz a sombra
de um verão muito antigo, com corvetas
lentas ainda no rio, e a música,
o sumo do sol a escorrer da boca,
ó minha infância, meu jardim fechado,
ó meu poeta, talvez fosse contigo
que aprendi a pesar sílaba a sílaba
cada palavra, essas que tu levaste
quase sempre, como poucos mais,
à suprema perfeição da língua.
* ANDRADE, Eugénio de (1986). Em Lisboa, com Cesário Verde, em David Mourão-
Ferreira (dir.), Colóquio/Letras, revista, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,
no. 93, p. 97.
ANEXO - C
CESÁRIO VERDE *
(Sophia de Mello Breyner Andresen)
Quis chamente dizer o mais corrente
Com precisão em lúcida esquadria
Ser e dizer na justa luz do dia
Falar claro falar limpo falar rente
Porém nas roucas ruas da cidade
A nítida pupila se alucina
Cães se miram no vidro da retina
E ele vai naufragando como um barco
Amou vinhas cearas e campinas
Horizontes honestos e lavados
Mas bebeu a cidade a longos tragos
Deambulou por praças por esquinas
Fugiu da peste e da melancolia
Livre se quis e não servo dos fados
Diurno se quis – porém a luzidia
Noite assombrou os olhos dilatados
Reflectindo o tremor da luz nas margens
Entre ruelas vê-se ao fundo o rio
Ele o viu com seus olhos de navio
Atentos à surpresa das imagens
*ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner (1986). Cesário Verde, em David Mourão Ferreira
(dir.), Colóquio/Letras, revista, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, no. 93, p.94.
ANEXO - D
IMPROVISO *
(Manuel Bandeira)
Glória aos poetas de Portugal
Glória a D. Dinis. Glória a Gil
Vicente. Glória a Camões. Glória
a Bocage, a Garett, a João
de Deus (mas todos são de Deus,
e há um santo; Antero de Quental).
Glória a Junqueiro. Glória ao sempre
Verde Cesário. Glória a António
Nobre. Glória a Eugênio de Castro.
A Pessoa e suas heterônimos.
A Camilo Pessanha. Glória
A tantos mais, a todos mais.
- Glória a Teixeira de Pascoais.
* BANDEIRA, Manoel. Estrela da Vida Inteira. 12ª. Edição. Rio de Janeiro: José Olímpio
Editora, 1986, p, 321.
ANEXO – E
O SIM CONTRA O SIM
(a Felix de Athayde)
(João Cabral de Melo Neto) *
Cesário Verde usava a tinta
de forma singular
não para colorir
apesar na cor que nele há.
talvez que nem usasse tinta,
somente água clara,
aquela água de vidro
que se vê percorrer a Arcádia.
Certo, não escrevia com ela,
ou escrevia lavando:
revelava, enxaguava
seu mundo em Sábado de banho.
Assim chegou aos tons opostos
das maçãs que contou:
rubras dentro da cesta
de que no rosto as tem sem cor.
NETO, João Cabral. (Recife PE 1920 – Rio de janeiro RJ 1999).
Poesia Completa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1986.
ANEXO - G
FICÇÕES DE INTERLÚDIO *
III
Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde
Que pena tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É de quem olha para árvores, e de quem desce os olhos pela
[estada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos...
Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E por plantas em jarros...
PESSOA, Fernando. Ficções de Interlúdio/1: Poemas Completos de Alberto Caeiro, 6ª Ed.
RJ: Nova Fronteira, 1980, p. 140
.
FIGURA - 1
Reprodução do “Retrato de Cesário Verde” , pintado por Columbano Bordalo Pinheiro.
www.e-cultura.pt/images; consultado em 2 de Julho de 2008.
FIGURA - 2
Reprodução da capa de “ O Livro de Cesário Verde”, editado por Silva Pinto – 1887.
www.e-cultura.pt/images; consultado em 2 de julho de 2008.
FIGURA - 3
Reprodução da pintura “O Chora” - Óleo sobre tela, Rafael Bordalo Pinheiro.
www.e-cultura.pt/images; consultado em 21 de setembro de 2008.
FIGURA - 4
Reprodução do Mapa de Lisboa, limite do incêndio de 1755 – Manuel da Maia.
http//webcarta.net.cart/mapas; consultado em 7 de setembro de 2008
FIGURA – 5
Reprodução de Textos diversos sobre o terremoto de Lisboa de 1755.
webserver.com.lisboa.pt; consultado em 8 de dezembro de 2008.
FIGURA - 6
Reprodução do Plano de Reconstrução de Lisboa, 1756 – Eugénio dos Santos Carvalho
webserver.com.lisboa.pt; consultado em 7 de setembro de 2008.
FIGURA - 7
Reprodução da Planta do centro da cidade de Lisboa antes do terremoto de 1755 e com
os projetos dos novos arruamentos. Eugénio dos Santos Carvalho e Carlos Mardel (?)
(circa 1760) CA354 – Instituto Geográfico Português - www.igeo.pt/images
; consultado
em 7 de setembro de 2008.
FIGURA - 8
Reprodução de pintura do “Maremoto de Lisboa de 1º. de. Novembro de 1755” . Autor
desconhecido. www.vanillanist.com ; bloguehistorico.wordpress; consultado em 21 de
setembro de 2008.
FIGURA - 9
Reprodução do Painel de Azulejos, Lisboa antes do terremoto de 1755 –– Autor
desconhecido. www.e-cultura.pt/images; consultado em 2 de julho de 2008.
FIGURA - 10
Reprodução da pintura “Gare de Saint Lazare” (1876) – Claude Monet – Musèe d’
Orsay, Paris. www.museedorsay.paris; consultado em 21 de setembro de 2008.
FIGURA - 11
Reprodução de Foto aérea da Lisboa – www.skyserapercity.com
; consultado em 7 de
setembro de 2008.
FIGURA – 12
Zé Povinho (1875), Bordalo Pinheiro.
www.museubordalo pinheiro.pt – consultado em 23.02.2009
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