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Em O Barão, o primeiro procedimento verifica-se no episódio da Tuna. As rubricas
procuram estabelecer uma relação entre o desenvolvimento da ação e a fala do narrador, por
serem elementos que dão coesão ao texto.
Branquinho da Fonseca Sttau Monteiro
Não sei onde queria ir ou o que tencionava fazer, por
que neste momento ouvimos ao fundo do corredor,
ainda longe, um barulho como o rolar de um trovão
que se aproxima. Ele estacou com um sorriso
satisfeito. Eu fiquei atônito e imóvel. Recuou de
repente e, puxando-me, levou-me arrastado até ao
outro extremo da sala de jantar. Eu não sabia que
barulho era aquele nem percebia estes vaivéns em que
o Barão me trazia. O ruído aumentava como uma
grande trovoada que desabasse sobre nós. Não tive
medo, mas perguntei-lhe o que era. Como viu que eu
estava surpreendido (assustado não estava), não me
explicou nada. Mas logo percebi que era um
matraquear de tamancos. Tínhamos recuado e
estávamos encostados à parede, calados, à espera do
que ia entrar por ali dentro. Até que surgiu, num passo
lento, um indivíduo magro, com um pano preto sobre
o olho esquerdo, embuçado num grande capote negro,
semelhante ao do Barão. Este fez-lhe um sinal brusco,
apontando a testa, e o homem pôs a carapuça que
tinha tirado da cabeça; trazia-a na mão, debaixo do
varino. Logo entraram mais homens, uns cobertos
com aqueles longos capotes, outros embrulhados em
mantas. Percebi que o Barão não queria que tirassem
os barretes nem os chapéus. Não sei por quê. Talvez
para dar àquilo tudo um aspecto ainda mais estranho.
Eles já sabiam deste capricho. Iam entrando um a um,
em fila, embrulhados, embuçados, com um ar
friorento e estremunhado. Que vinha fazer ali aquela
gente toda, àquela hora, sei lá que horas da noite? Eu
estava um pouco embriagado e fazia um esforço inútil
para compreender o que via. E entravam, um a um,
lentos, sonolentos, de todos os tamanhos, uns magros,
outros gordos, uns de grandes bigodes tártaros, outros
de barba à passa-piolho, dois ou três de grande barbas,
como profetas, envolvidos nas mais variadas mantas e
capotes. Parecia-me um pesadelo aquele desfile de
figuras tão estranhas, que formavam um friso diante
de mim e continuavam a passar interminavelmente,
fazendo uma vênia te ao chão.
Os tamancos soltos nos pés faziam-nos caminhar
balançando como ursos. Alguns tinham, na verdade, a
cara coberta de pêlos hirsutos. Eram ursos. Olhei para
o Barão como quem implora uma palavra
tranqüilizadora. Estava com o olhar distante e a
expressão parada. O barulho dos socos ensurdecia-me.
Já não sabia o que devia pensar daquilo. O salão
estava cheio de homens, que se iam arrumando em
filas, diante de nós. A alguns mal se lhes via a cara,
porque tinham a cabeça metida dentro de enormes
capuzes, como frades. Procurei ler qualquer coisa na
fisionomia do Barão. Por fim olhou-me e sorriu, com
Um ruído violento – matraquear de tamancos – que se
aproxima. Ao ouvir o ruído, o Barão estaca, dá meia
volta, encaminha-se rapidamente para o Inspector,
pega-lhe o braço, e empurra-o para a extremidade
esquerda do palco, falando ao mesmo tempo [...]
Entra pela direita do palco um grupo de indivíduos
disformes, cobertos com mantas e capotes, todos de
chapéu ou barrete. Uns usam barba e outros bigode.
Uns vêm caiados e outros pintados de negro e de cor
laranja, mas todos parecem ter saído dum pesadelo.
Avançam em silêncio, num ritmo certo, como se tudo
aquilo fizesse parte dum ritual previamente
estabelecido e sagrado. Idalina sai e volta
imediatamente, com alguns copos enormes de vinho,
duas facas e três broas que coloca sobre a mesa.
Depois enche os copos dum garrafão. Os
componentes da Tuna dispõem-se em alas desiguais
em frente e em torno da mesa, enquanto o chefe se
destaca – um indivíduo magro, com um gorro preto
sobre o olho esquerdo, embuçado num capote negro
semelhante ao do Barão – e fica parado em frente do
Inspector. [...]
O sr. Alçada volta-se para os componentes da Tuna e
levanta o braço. Todos eles, como se isto fosse um
ordem, tiram vários instrumentos que trazem debaixo
dos capotes. O Inspector não consegue dominar uma
gargalhada e o Barão, depois de lhe deitar um olhar
de censura, ordena ao sr.Alçada:
O Verde-Gaio!
O sr. Alçada vira-se para a Tuna, que rompe a tocar
o Verde-Gaio. Depois dum instante, o Barão salta
para o meio da sala e começa a cantar um cântico
rouco e selvagem. Uma voz longínqua começa a
cantar num tom melodioso. Os instrumentos calam-se
gradualmente e ficam apenas os tambores e os
violões. Ao longe ouve-se um coros de baixos.
Sùbitamente, o Barão levanta os braços e pára tudo.
Um dos tocadores dirige-se à mesa, pega numa broa,
corta uma fatia e passa-a a um vizinho, que faz o
mesmo. Enquanto a broa e o vinho andam de mão em
mão, o Barão e o Inspector, que também bebem do
copo comum, conversam. [...]
– Então? Que me dizer da Tuna?
A orquestra rompe a tocar o tum-tum e de súbito,
irresistivelmente atraídos pelo ritmo, Idalina, o Barão
e o Inspector, começam a dançar desenfreadamente
no meio da sala. Por fim, Idalina cai no chão e fica
com a saia levantada, mostrando as coxas, sem nunca
parar de cantar.
O barão cai em seguida e o Inspector, tomado dum
riso nervoso e histérico, deixa-se escorregar ao longo
da mesa e fica sentado no chão, com a cabeça entre