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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO RURAL
Luciana Conceição Lemos da Silveira
RELAÇÕES DE RECIPROCIDADE QUILOMBOLA: PEIXOTO DOS BOTINHAS
E CANTÃO DAS LOMBAS – MUNICÍPIO DE VIAMÃO/RS
Porto Alegre
2010
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LUCIANA CONCEIÇÃO LEMOS DA SILVEIRA
RELAÇÕES DE RECIPROCIDADE QUILOMBOLA: PEIXOTO DOS BOTINHAS
E CANTÃO DAS LOMBAS – MUNICÍPIO DE VIAMÃO/RS
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da
Faculdade de Ciências Econômicas da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
como requisito parcial para obtenção do título
de mestre em Desenvolvimento Rural.
Orientador: Prof. Dr. José Carlos Gomes dos Anjos
Série PGDR – Dissertação nº XX
Porto Alegre
2010
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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
Responsável: Biblioteca Gládis W. do Amaral, Faculdade de Ciências Econômicas da
UFRGS.
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LUCIANA CONCEIÇÃO LEMOS DA SILVEIRA
RELAÇÕES DE RECIPROCIDADE QUILOMBOLA: PEIXOTO DOS BOTINHAS
E CANTÃO DAS LOMBAS – MUNICÍPIO DE VIAMÃO/RS
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da
Faculdade de Ciências Econômicas da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
como requisito parcial para obtenção do título
de mestre em Desenvolvimento Rural.
Aprovada em: Porto Alegre, XX de XXXXXX de XXXX.
Prof. Dr. Ivaldo Gehlen - Presidente
PGDR/PPGS – UFRGS
Dra. Lúcia Regina Brito Pereira
PPGH/PUCRS
Dra. Laura Cecília Lopez
PPGSC/ UNISINOS
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A minha mãe pelo amor incondicional, ao
meu companheiro e aos quilombolas do
Cantão das Lombas e Peixoto dos Botinhas.
6
AGRADECIMENTOS
Agradeço a minha família, principalmente a minha mãe Gelci e meu
companheiro Jeferson pelo apoio, incentivo e a insistência para que eu não
desistisse desta etapa tão importante que é um curso de pós-graduação. Seus
gestos e palavras foram o que me deram forças para prosseguir, vocês foram
fundamentais nos momentos mais difíceis desta trajetória.
À minha amiga Ieda, pela convivência que mantivemos nas disciplinas do
PGDR e por dividir comigo alegrias, tristezas e frustrações. À amiga Luísa pela
sua parceria e serenidade. Ao amigo Cristian pelos momentos de troca,
conhecimento e pela sua alegria contagiante.
As secretárias do PGDR, Lisiane e Marilene pela ótima receptividade que
tive ao chegar ao Programa e por terem me auxiliado a caminhar e me apropriar
de normas e regras de uma Universidade Pública.
Meu respeito e agradecimento em especial ao Orientador, Prof. Dr. José
Carlos Gomes dos Anjos por toda serenidade que manteve ao longo do processo
de elaboração e construção da dissertação frente as minhas dificuldades e
limitações.
As famílias quilombolas que abriram à porta de suas casas e me
acolheram com muito carinho e respeito. Compartilhamos muitos momentos de
reciprocidade e dádivas. Os vínculos de amizade foram fortalecidos e nunca
serão esquecidos e sim mantidos ao longo de nossas vidas.
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ENCONTREI MINHAS ORIGENS
Oliveira Silveira
Encontrei minhas origens
em velhos arquivos
....... livros
encontrei
em malditos objetos
troncos e grilhetas
encontrei minhas origens
no leste
no mar em imundos tumbeiros
encontrei
em doces palavras
...... cantos
em furiosos tambores
....... ritos
encontrei minhas origens
na cor de minha pele
nos lanhos de minha alma
em mim
em minha gente escura
em meus heróis altivos
encontrei
encontrei-as enfim
me encontrei
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RESUMO
O presente trabalho pretende analisar as
relações de reciprocidade entre duas
comunidades tradicionais negras, remanescentes de quilombos, localizadas na
zona rural do município de Viamão/RS.
Serão problematizados dados
etnográficos e teorias sociais quanto ao encontro entre determinadas formas de
sociabilidade ancoradas no parentesco, na reciprocidade e na amizade e o que
faz com que essas comunidades estejam em condições de reivindicar na pauta da
agenda quilombola. O objetivo deste trabalho reside não em certificar a condição
quilombola da comunidade, mas sim, em evidenciar como a reciprocidade no
parentesco se configura como condição de raridade da enunciação enquanto um
coletivo quilombola. E concluo, retomando o modo como os conceitos de
contraste étnico e reciprocidade podem ser conjugados na problemática
quilombola.
Palavras-chave: Reciprocidade. Parentesco. Quilombos. Etnicidade. Território.
9
ABSTRACT
This study intends to analyze the reciprocity relations between two traditional black
communities, remnants of Quilombo, located in the rural area of the municipality of
Viamão / RS. In this study shall be problematized ethnographic data and social
theories about the encounter between certain forms of sociability anchored on
kinship, reciprocity and friendship and which makes these communities able to
claim in the Quilombola agenda.The objective of this work lies not in making sure
the condition of the Quilombola community, but, in evidence as the reciprocal
relationship is configured as a condition of rarity of enunciation as a collective
Quilombola. And I conclude by reiterating how the concepts of reciprocity and
ethnic contrast may be combined in Quilombola problem.
Keywords: Reciprocity. Kinship. Quilombo. Ethnicity. Territory
10
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1: Localização do município de Viamão, RS..................................................17
FIGURA 2: Localização das Comunidades Quilombolas.............................................18
FIGURA 3: Conjunto de Cantores e dançarinos “Os Botinhas” década de 40.............38
FIGURA 4: Confraternização de natal no Salão Princesa Isabel em 1983..................39
FIGURA 5: Celebração de casamento entre quilombolas do Cantão e Peixoto dos
Botinhas no Salão Princesa Isabel em 1948................................................................42
FIGURA 6: Conjunto “Os Botinhas” terno de reis........................................................48
FIGURA 7: Cantão das Lombas – Residência de Alvina..............................................59
FIGURA 8: Quilombolas do Cantão das Lombas e dos Botinhas em reunião com o
Prefeito de Viamão.......................................................................................................48
FIGURA 9: Família Moren Peixoto – Quilombo Peixoto dos Botinhas ........................66
FIGURA 10: Família do Sr. Afonso Silva – Quilombo Peixoto dos Botinhas................68
FIGURA 11: Quintal da residência do Sr. Arno Gomes “Tio Cai Cai” – Quilombo Cantão
das Lombas......................................................................................................72
FIGURA 12: Sr. Arno Gomes “Tio Cai Cai” – Quilombo Cantão das Lombas............75
FIGURA 13: Quilombo Cantão das Lombas – Reunião com poder público
municipal.......................................................................................................................82
FIGURA 14: Quilombo Cantão das Lombas................................................................84
FIGURA 15: Sr. Bento – Comunidade Negra de Tapumes.........................................95
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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ADCT Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
CF – Constituição Federal
FCP – Fundação Cultural Palmares
IACOREQ – Instituto de Apoio às Comunidades Remanescentes de Quilombos
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IN – Instrução Normativa
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
MINC – Ministério da Cultura
MPF – Ministério Público Federal
OIT – Organização Internacional do Trabalho
UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos
UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO:......................................................................................... 13
2. REFERENCIAL TEÓRICO: Dádiva, reciprocidade e territorialização.. 23
2.1 Dádiva..................................................................................................... 23
2.2. Reciprocidade........................................................................................ 28
2.2.1 Reciprocidade, campesinato e relações de parentesco....................... 29
3. A RECIPROCIDADE SIMÉTRICA NO INTERIOR DAS COMUNIDADES .. 32
3.1 O mito fundador ...................................................................................... 32
3.2 As festividades quilombolas.................................................................... 37
3.3 Religiosidade e território ......................................................................... 51
4. RELAÇÕES DE RECIPROCIDADE ASSIMÉTRICAS COM AGENTES DO
PODER PÚBLICO E FAZENDEIROS LOCAIS............................................... 54
4.2 Assimetrias com os fazendeiros locais ................................................... 54
5. INTER-RELAÇÃO COM OUTRAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS ...... 65
5.1. Inter-relação com a Comunidade Remanescente de Quilombos Cantão das
Lombas......................................................................................................... 66
5.2. Dádivas ancestrais e a política inter-comunidades................................ 79
5.3. Cotidiano e a trama de parentesco de uma liderança quilombola ......... 87
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS:...................................................................... 101
REFERÊNCIAS.............................................................................................. 104
13
1. INTRODUÇÃO:
O tema central do trabalho refere-se a relações de reciprocidade entre
duas comunidades tradicionais negras, remanescentes de quilombos, localizadas
na zona rural do município de Viamão/RS. A idéia, ao propor um estudo sobre as
relações de reciprocidade entre duas comunidades quilombolas, atende a um
propósito teórico e visa também responder a uma problemática que se instalou na
mídia. Por um lado, teoricamente os estudos sobre comunidades tradicionais
enfatizam o contraste com o entorno diminuindo a pertinência das especificidades
das relações internas às comunidades. Nesse ponto, o desafio teórico é
responder quanto ao que nas relações internas ao grupo sustenta a possibilidade
de um contraste étnico com o entorno. Por outro lado, a mídia ataca a
autodeclaração, numa associação com a idéia de que o contraste é manipulável
pelo grupo.
Na esteira de Barth, para Antonio Carlos Diegues (2000), por exemplo,
comunidades tradicionais são aquelas que apresentam traços culturais que a
diferenciam da população que está em seu entorno. o comunidades que se
auto-identificam ou são identificadas pelos “outros” como pertencendo a culturas
distintas. Outro traço ressaltado é o fato da moradia e ocupação do território se
dar por várias gerações, ainda que alguns membros individuais possam ter-se
deslocado para os centros urbanos e voltado para a terra de seus antepassados.
São comunidades tradicionais os "povos indígenas", as comunidades
"remanescentes de quilombos", os "caboclos ribeirinhos", as "populações
tradicionais marítimas", que se subdividem em "pescadores artesanais" e os
"caiçaras", entre outras. As descrições internas que se seguem a esse tipo de
definição tendem a fundamentar sub-repticiamente o contrastivismo numa
modalidade culturalista de primordialismo.
Não se discutiu ainda o quanto, esse tipo de análise das condições de
existência das comunidades tradicionais oferece flancos à mídia associada aos
grandes interesses no agronegócio, e que nos últimos anos vêm propagando a
14
idéia de um grande risco associado à idéia de que o dispositivo da auto-atribuição
étnica estaria na base das invenções “antropológicas” de comunidades
tradicionais.
Em contraposição ao senso estabelecido pela mídia, neste estudo,
pergunto pelas condições de raridade da afirmação étnica enquanto comunidade
quilombola. Mais concretamente, problematizo dados etnográficos e teorias
sociais quanto ao encontro entre determinadas formas de sociabilidade ancoradas
no parentesco, na reciprocidade e na amizade e o que faz com que essas
comunidades estejam em condições de reivindicar na pauta da agenda
quilombola.
As comunidades remanescentes de quilombos de Viamão se auto-
identificaram como quilombolas entre 2002 e 2004. Por uma cadeia de mediações
acadêmicas e militantes, a auto-afirmação, em Viamão, traduz de certo modo os
estudos históricos e antropológicos que evidenciam os quilombos como espaços
de construção de uma espécie de sociedade paralela, baseada em princípios de
convivência e formas de reprodução diferenciadas das arroladas pela sociedade
“oficial”, ou seja, em que o isolamento tem o significado de manutenção das
fronteiras simbólicas.
Seria de todo interessante, um estudo sobre o modo como nas
comunidades quilombolas atuais se o processo de reinterpretação do termo
quilombo. Em sua conceituação colonial foi definido pelo Conselho Ultramarino
em 1740, como:
...toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em
parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e
nem se achem pilões nele. (ALMEIDA, 2002, p.47)
Esta primeira definição sofreu ajustes no transcorrer do período colonial e
imperial, de acordo com regiões e épocas, tendo sido objeto de referência para
elaboração de legislações provinciais. Poder-se-ia colocar as atuais
transformações constantes nas instruções normativas (IN’s) do Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária - INCRA na esteira de transformações na
15
categorização de populações negras marginalizadas e que representam
resistências e enquadramento.
As comunidades hoje identificadas como quilombolas se formaram a partir
da ocupação de áreas consideradas devolutas e impróprias às atividades
produtivas dominantes, ou se constituíram através da compra de uma área, cujo
pagamento se deu através do trabalho. Estas distintas formas de territorialização
não estão excluídas da categoria mais geral de processos de resistência
continuada ao aprisionamento da força do trabalho negro através de múltiplas
formas de territorialização. Em Viamão, a aquisição de terras, na comunidade
Cantão das Lombas se deu através de herança de uma fazendeira chamada Nica
Gomes e na comunidade Peixoto dos Botinhas a constituição do território se deu
através da ocupação de terras devolutas por duas africanas que desembarcaram
na Lagoa dos Patos e ergueram ranchos na localidade chamada Valos em
Viamão. As relações entre passado e presente nestas comunidades são latentes,
pois a herança deixada pelos antepassados reflete-se na importância atribuída à
família e à reciprocidade ligada ao parentesco.
O objetivo deste trabalho reside não em certificar a condição quilombola
da comunidade, mas sim, em evidenciar como a reciprocidade no parentesco se
configura como condição de raridade da enunciação enquanto um coletivo
quilombola. Ao apontar para a constatação da raridade relativa das comunidades
quilombolas, me afasto da perseguição das condições necessárias para que se
defina uma comunidade como quilombola. Limito-me a constatar que em um
município com a história da Viamão, o fato de a ao momento apenas duas
comunidades terem se afirmado como quilombola indica o peso das exigências
que sustentam tal enunciação enquanto um coletivo negro.
Se tomarmos os indícios da história oficial do município, percebemos que
a presença negra é uma constante a partir da colonização do Estado. A partir de
1732, o Rio Grande de São Pedro - como era conhecido o que viria a ser o Rio
Grande do Sul - passou a atrair colonizadores que se radicaram na região de
Viamão. O município, portanto, foi um dos primeiros núcleos de povoamento do
Estado, formado por lagunenses, paulistas, africanos escravizados e portugueses.
a partir de 1752 chegaram os primeiros casais de imigrantes açorianos, que
16
desembarcaram na região de Itapuã. Esses açorianos o os mesmos que
colonizaram a região do Porto dos Casais, atual capital do Estado. Além de Porto
Alegre, a população de Viamão originou, cidades no Rio Grande do Sul, como
Santo Amaro, Triunfo, Rio Pardo, Taquari e as cidades do litoral norte. A
influência indígena do município é originária dos mbyá-guaranis e kaingangs.
O município de Viamão, segundo dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística - IBGE (2002), possui o maior índice populacional de
negros da região metropolitana de Porto Alegre. No município três comunidades
negras auto identificaram-se como sendo remanescentes de quilombos.
indícios de que existam mais comunidades do que foi auto-identificado, até o
presente momento.
Além de o município possuir o maior índice populacional de negros da
região metropolitana atualmente é o maior em extensão territorial da grande Porto
Alegre. Na agricultura destaca-se a produção de arroz e caqui e na pecuária a
criação de bois, ovelhas e suínos.
De acordo com Silva (2006), os dados estatísticos de 1870 fazem
referência que para uma população de 1028 brancos havia 749 negros no
município, algo em torno de 70% do contingente populacional. Se tomado como
um dado significativo, abre-se a possibilidade de diversas formas de organização
que respondam à presença negra no município. Os dados sobre Viamão dão
conta de uma cidade histórica, por ter sido a capital do Rio Grande do Sul, e
por ter em seu patrimônio histórico reconhecido pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, uma das Igrejas mais antigas do Estado. A
Igreja Matriz, que está localizada no centro do município e abriga documentações
que remetem à época da colonização portuguesa.
Atualmente a população total do município de acordo com dados do IBGE
é de 227.062 mil habitantes, sendo que 211.250 mil encontram-se na área urbana
e, 15.812 mil, na área rural. As comunidades quilombolas estudadas localizam-se
na área rural.
A área total do município de Viamão é de 1494,2 km², sendo 192,3 km² de
área urbana e 1301,9 km² de área rural.
17
A área rural possui regiões de minifúndios, sítios de lazer, grandes
cultivos de arroz, fazendas de criação de gado e áreas extensas de banhados. O
município possui áreas acidentadas e áreas planas o que enriquece o aspecto da
diversidade ambiental.
Os recursos hídricos do município fazem parte de três bacias
hidrográficas: Rio Gravataí, Lago Guaíba e Laguna dos Patos.
FIGURA 1 Localização do município de Viamão, RS
Fonte: Prefeitura Municipal de Viamão
As comunidades quilombolas Cantão das Lombas e Peixoto dos Botinhas
localizam-se no nordeste do município sob as coordenadas geográficas
30º01'09"74S e 50º42'27"69W, ambas estão inseridas na Área de Proteção
Ambiental - APA do Banhado Grande, Bacia Hidrográfica do Rio Gravataí. As
paisagens caracterizam-se por um relevo coxilhado de uma feição regional
denominada “Coxilha das Lombas”, delimitada por planícies e várzeas do
Banhado Grande, ao norte (NE-SW) e lagoas e terrenos da Planície Costeira (E-
S). Os arroios são contornados por mata ciliar e pontilhada por alguns capões de
18
vegetação arbórea de Mata Atlântica associada a pioneiras arbustivas com
influência marinha e fluvio-marinha (restinga/mangue).
FIGURA 2: Localização das comunidades quilombolas
Fonte: Prefeitura Municipal de Viamão
As possibilidades de acesso até a comunidade Cantão das Lombas se
dão através de transporte coletivo duas vezes ao dia uma pela mane outra no
final da tarde, ou de carro pela Rodovia RS 040 cruzando pelo bairro Morro
Grande às condições desta estrada são precárias, o solo é arenoso e não
placas de identificação a o quilombo. A comunidade localiza-se na divisa de
Viamão com a Comunidade de Tapumes 6
o
. Distrito de Santo Antônio da
Patrulha. É uma comunidade com deficiências de saneamento básico
principalmente, energia elétrica e moradias. A comunidade é constituída por 32
famílias. Em ambos os acessos o cenário paisagístico são de grandiosas
Cantão das
Lombas
Peixoto dos
Botinhas
19
fazendas e poucos resquícios de mata atlântica, resquícios esses que o vistos
quando se chega à comunidade.
A comunidade foi à segunda no município de Viamão a solicitar abertura
de processo administrativo junto ao INCRA, para reconhecimento e titulação de
terras. A certidão de reconhecimento, que é emitida pela Fundação Cultural
Palmares FCP, foi entregue em 2004 com uma grande festa de comemoração
na casa de uma das famílias da comunidade, contou com a presença de
representantes do Ministério da Cultura (MinC), Fundação Cultural Palmares,
Movimento Negro e da Prefeitura Municipal de Viamão que organizou a festa.
A comunidade Peixoto dos Botinhas localiza-se próximo a Rodovia RS
040, parada 128, Bairro Capão da Porteira no Beco dos Botinhas. O acesso à
comunidade é fácil, pois o transporte coletivo atende em sete horários distribuídos
entre, manhã tarde e noite e o poucas as famílias pertencentes ao quilombo
que residem em local de difícil acesso. O território da comunidade é extenso e
também faz divisa com a Comunidade de Tapumes 6
o
. Distrito de Santo Antônio
da Patrulha.
O quilombo Peixoto dos Botinhas, é constituído por 48 famílias e abriu
processo administrativo de reconhecimento e titulação de terras junto ao INCRA
em 2005. De acordo com dados do Instituto, foi à terceira comunidade a se auto
declarar no município de Viamão como remanescentes de quilombos, solicitando
assim reconhecimento e titulação de terras.
A minha inserção em campo iniciou em meados de 2004, nesta época
cursava graduação em Ciências Sociais
1
e coletava dados para o trabalho de
conclusão. Esse trabalho anterior visava um estudo sobre solidariedade
socioeconômica em Comunidades Remanescentes de Quilombos. Nele foram
identificadas situações nas quais as duas comunidades buscavam ter acesso a
políticas públicas tais como: Programa Luz para todos. Ambas as comunidades
possuíam necessidades básicas como saneamento básico e energia elétrica e ao
se dirigir a órgãos públicos municipais eram questionadas, sobre a legitimidade da
reivindicação enquanto população tradicional para terem acesso a projetos e
1
Pela Universidade do Vale dos Sinos – UNISINOS.
20
políticas públicas destinadas a quilombolas. Segundo estes órgãos as
comunidades deveriam apresentar documentos emitidos pelo Governo Federal e
formar uma associação legalizada para terem acesso às políticas públicas
específicas.
Em vários momentos da inserção em campo o meu papel de
pesquisadora era confundido com o de mediadora política, pois a cada ida as
comunidades eu retornava para a cidade com demandas ao poder público e a
entidades do movimento social. As comunidades me conhecem por ser integrante
de uma instituição denominada Instituto de Assessoria a Comunidades
Remanescentes de Quilombos - IACOREQ, que realiza atividades nas
comunidades desde 2004. Primeiramente minha reação foi tentar desconstruir o
meu papel de mediadora, tentando fazer com que as famílias das comunidades
entendessem que a atuação era sob forma de pesquisa, uma mediação visando a
uma política de conhecimento científico e, portanto menos imediata.
Contudo, as exigências de reciprocidade fizeram com que eu
despendesse enormes esforços em busca de acordos com a prefeitura como
forma de ajuda mútua. Mas a modalidade de reciprocidade que conformou melhor
o esteio da pesquisa é quando a comunidade exigiu de mim a elaboração de uma
genealogia. Esses acordos se deram, quando ao realizar uma reunião onde
estavam presentes integrantes das duas comunidades, questionaram se seria
possível “investigar” suas primeiras origens através da pesquisa de parentesco.
Indagaram que:
...somos todos parentes, a gente sabe disso, não sabemos
bem quem é de que lado, porque chegou uma hora que todo
mundo se misturou...”. “Vai ser muito bom esse trabalho, porque
quando a gente quando tiver a associação pronta a gente vai
poder passar nossa história dos nosso avô pros nossos netos, e
nossos neto, pros netos dos nosso netos... (DécioPresidente da
Associação Peixoto dos Botinhas)
Essa exigência acordada no trabalho de campo me permitiria justamente
cotejar a minha hipótese inicial de que a reciprocidade simétrica baseada em
21
parentesco e pertencimento étnico sustentam a enunciação da territorialidade
tradicional quilombola.
Embora, atualmente, ambas comunidades possuam certificação de
reconhecimento pela Fundação Cultural Palmares que está ligada ao Ministério
da Cultura, minha argumentação será a de que não é a oficialização que torna as
comunidades quilombolas, mas o substrato que sustenta essa enunciação
coletiva: o modo como a reciprocidade que territorializa o parentesco. Em
princípio, a certificação é o primeiro passo para a demarcação e titulação de
terras pelo INCRA, como reconhecimento de que a comunidade existe, baseada
em sua história, costumes e, principalmente, sua cultura. A partir da certificação
as comunidades passam a ser beneficiadas com políticas públicas, como Luz
para todos, Bolsa Família, Escola na própria comunidade e atenção à Saúde.
Além disso, se supõe, estatutariamente, que o certificado permita que a Fundação
Cultural Palmares defenda juridicamente as comunidades.
A dissertação se estrutura em um primeiro capítulo de introdução, no
segundo faço a construção do referencial teórico; no terceiro capítulo debruço-me
sobre as relações de reciprocidade simétrica no interior das comunidades. No
quarto capítulo trato de relações de reciprocidade assimétricas entre os
quilombolas e os agentes do poder público e fazendeiros; em lugar de uma
relação reduzida à exibição de símbolos culturais diacríticos que caracterizaria o
contraste entre um “nós”, constituído pelas comunidades em processo de
enunciação coletiva e “eles”, os brancos do entorno, mostro a complexidade das
relações de poder que constituem a supremacia racial. No quinto capítulo busco
desconstruir a noção simplista de um contraste étnico com o entrono, mostrando
como uma comunidade quilombola se faz pela inter-relação com comunidades
igualmente quilombolas do entorno e outras relativamente distantes. Concluo,
retomando o modo como os conceitos de contraste étnico e reciprocidade podem
ser conjugados na problemática quilombola.
Minha estratégia de escritura recompõe de forma narrativa minha
inserção em campo e visa produzir um tipo de ficção que ilustra as dimensões do
tema de pesquisa e permite refletir se fazendo acompanhar pelo leitor. Salvo no
seguinte capítulo, a reflexão teórica fica diluída na estrutura narrativa e por
22
evocação do “ter estado lá”, se abre a uma multiplicidade de leituras “aqui”.
Pontuo algumas dessas possibilidades de leituras, sem a pretensão de
sistematizá-las.
23
2. REFERENCIAL TEÓRICO: Dádiva, reciprocidade e territorialização.
se fez muita discussão sobre o conceito de reciprocidade, mas poucas
literaturas têm associado às discussões inauguradas por Mauss (1974) às
discussões sobre o território étnico. Por um lado, exploro neste capítulo a
possibilidade de que o conceito permita estabelecer superar a oposição entre
abordagens primordialistas e contrastivas da etnicidade. Sem cair na busca de
uma substância cultural interna ao grupo, o foco na reciprocidade permitiria
perceber a etnicidade como construção relacional cotidiana interna ao grupo, com
algumas dimensões relativamente reguladas e outras relegadas a coordenações
improvisadas de ações recíprocas.
Por outro lado, as relações com o mundo das políticas públicas e com as
forças mais poderosas do entorno não é feito apenas de símbolos diacríticos de
etnicidade, mas também de laços baseados em endividamentos morais,
característicos dos contratos implícitos de reciprocidade. O que diferencia a
reciprocidade interna da externa é a maior frugalidade do vínculo com os atores
externos, como as relações com o mediador de políticas públicas e com os
“brancos” do entorno de forma geral. Internamente, em contraste, a linguagem do
parentesco pereniza as relações, simetriza e regulariza as trocas de modo a
conformar fronteiras com o mundo exterior.
2.1 Dádiva
A teorização que deu origem à discussão sobre a dádiva foi formulada
inicialmente por Marcel Mauss (1974), no seu Ensaio sobre a Dádiva, publicado
originalmente em 1924. Para Mauss, a dádiva assumia um caráter bastante
amplo, incluindo festas, casamentos, patrimônio, esmolas, troca de presentes e
até mesmo os tributos pagos pelos grupos a um poder centralizador (LANNA,
24
2000). É sobre este conceito multidimensional de reciprocidade que se estende
sobre um conjunto de práticas multiformes, que pretendo erguer o referencial
teórico da dissertação.
Assim, a dimensão principal da organização social deve ser pensada
como um constante dar-e-receber, a partir das prestações assumidas na dádiva,
que podem inclusive ser de caráter “agonístico”
2
. Se a organização da dádiva
pode assumir diferentes características, de acordo com a época e o lugar em que
é posto em prática, o caráter improvisado e imponderável do tempo das
contraprestações não pode ser subestimado em relação às trocas regradas por
uma estrutura inconsciente. Essa reafirmação da leitura original de Mauss, em
contraposição às “correções” de Levi-Strauss é importante aqui no sentido de
afastar as tentações de se definir a priori que regularidades na reciprocidade
definiriam as comunidades tradicionais. Longe de buscar a definição das
condições necessárias para que uma comunidade se defina como tradicional,
busco aqui as condições raras, mas suficientes, para que uma comunidade possa
participar e contribuir no espaço público de sua enunciação enquanto comunidade
quilombola.
O principal aspecto social envolvido em todos os atos de dádiva que cabe
ressaltar é que sempre numa contratualização implícita há prova de que tais
manifestações tinham muito mais a mostrar do que apenas fatores religiosos e
culturais presentes nas sociedades “arcaicas” estudadas (MAUSS, 1974).
Nesta dissertação, sigo Mauss quando, este autor separa, na noção de
dádiva, os três momentos de obrigação moral: dar, receber e retribuir. Seguindo
Bourdieu (1996), estou, na etnografia, igualmente atenta ao tempo que transcorre
entre o dom e o contra-dom, enquanto gerador de vínculo social. Mas em lugar de
uma perspectiva estratégica da reciprocidade, tendo a deixar teoricamente em
aberto o que Boltanski (1999) denomina de “paradoxo da dádiva”: ou seja, se a
ênfase é colocada sobre o dom, a gratuidade do presente dado é reforçada, e a
2
Como nos rituais indígenas que consistiam nas demonstrações públicas de rivalidade de
despesas e destruição de riquezas. (MAUSS, 1999)
25
troca perde seu sentido
3
. Ao contrário, se a ênfase é colocada sobre as relações
de troca, não existiria gratuidade do dom, que significaria uma ilusão ou um
engano. Em suma, em lugar da resolução teórica do paradoxo, estive
empiricamente atenta às dimensões de gratuidade e nas dimensões estratégicas
do dom, no modo como elas são enfatizadas pelos atores sociais.
Para Mauss (1974), o que estaria no âmago da obrigação de retribuir um
presente recebido seria o espírito da dádiva
4
, presente no próprio objeto que foi
inserido na relação, e que levaria necessariamente ao retorno e à retribuição do
presente dado. Nesse sentido, a razão máxima que levava ao complexo ato da
dádiva, dividido em três partes distintas, era justamente uma força interna à
relação estabelecida, e que estaria impulsionando as obrigações entre os
participantes da dádiva. Ao mesmo tempo, a razão de dar não estaria em um ato
desinteressado, mas pressupunha um certo interesse em constituir relações e
ligações sociais centradas justamente na obrigação de retribuir. Assim, o ato de
dar seria, simultaneamente, obrigatório e espontâneo (LANNA, 2000), que não
existe dádiva sem expectativa da retribuição por parte de quem recebe.
No entanto, Lévi-Strauss (1974), na introdução que escreveu ao trabalho
de Mauss, publicada pela primeira vez em 1947, desata o paradoxo da dádiva por
um outro lado, ao afirmar que, o que Mauss definiu como o espírito da dádiva (o
hau), poderia ser visto enquanto um princípio de troca simétrica. Em outro
momento, vi-Strauss (1967) mostrou que as estruturas elementares de
parentesco eram orientadas pelo princípio da reciprocidade e pela aliança, mas
vendo a razão elementar da dádiva na noção de troca, obedecendo a regras
específicas, interiorizadas pelos indivíduos e presentes, de forma inconsciente, na
própria estrutura das relações constituídas. Essa postura estruturalista reduz a
reprodução da dádiva (isto é, o princípio da reciprocidade) à noção mais
elementar de intercâmbio, configurando dessa forma uma visão extremamente
objetivista desse processo.
3
Afinal, se a doação tem um caráter gratuito, não haveria porque se esperar uma retribuição.
(BOLTANSKI, 1999)
4
O hau, na cultura maori neozelandesa (MAUSS, 1974).
26
Todavia, o objetivismo de Lévi-Strauss foi questionado por outros autores,
como Claude Lefort, em um artigo de 1951, que se apoiava sobre a
fenomenologia para buscar o significado da dádiva (BOLTANSKI, 1999). Para
Lefort, a redução da dádiva à troca pura e simples não explicava a obrigação
expressa no primeiro dom, o ato inicial de dar. De uma perspectiva
fenomenológica, a dádiva seria uma manifestação da subjetividade, visto que ao
dar e receber, as pessoas confirmam umas às outras que são sujeitos, e não
coisas. A retribuição é uma prova da ação semelhante de um igual, ou seja, um
ser humano reafirmado em sua condição pelo ato triplo de dar, receber e retribuir.
Uma saída para a contraposição entre fenomenólogos e estruturalistas
reside na análise da tensão gerada pelo intervalo de tempo entre o ato de dar e o
ato de retribuir, conforme o mesmo seja mais curto, mais longo ou sujeito a
atrasos. Os atores podem, conforme as circunstâncias conferir sentido
estratégico, ritualístico ou puramente gratuito à sua prática e o ignoram
completamente os esquemas organizativos de seus intercâmbios.
Recusamos aqui a análise objetivista de Lévi-Strauss (1974) quando
afirmava o caráter estruturado de parte das práticas de reciprocidade, enfatizando
que as regras não são necessariamente inconscientes, os atores podem não
cumpri-las em sua totalidade e até mesmo podem modificá-las, constituindo
ações estratégicas a partir da situação que vivenciam.
Sobretudo, devo atentar-me para o fato de que a dádiva instaura relações
de poder quando deixa os indivíduos que recebem o dom em dívida com os que
doam. A ênfase na dívida e no poder é importante na percepção das assimetrias
étnicas no caso das relações entre quilombolas e fazendeiros vizinhos e com
relação aos agentes do poder público.
Em uma outra direção, autores como Caillé (1998) destacam a dádiva
como aspecto fundante de um novo paradigma nas Ciências Sociais, moldando
as relações sociais entre os indivíduos, e questiona Bourdieu, principalmente a
partir da noção de gratuidade do ato da dádiva. Para o autor supracitado, que
não uma coação social explícita nem regras inconscientemente incorporadas
nas pessoas para obrigá-las a iniciar a dádiva, existe uma dimensão de
27
gratuidade no gesto de dar, porém os valores e os aspectos morais das relações
sociais também fazem com que as pessoas se sintam pressionadas a realizar a
retribuição. Nesse sentido, a dádiva comportaria as noções de gratuidade e de
liberdade, ao mesmo tempo em que traria inseridos aspectos relacionados ao
poder, à obrigação e ao interesse, e dessa maneira o paradoxo da dádiva seria
permanente.
Godbout (1998) complementa a teorização de Caillé afirmando que a
dádiva é tudo o que circula em prol ou em nome do laço social. A diva circula
entre amigos, entre vizinhos, entre parentes, sob a forma de presentes, de
hospitalidade e de serviços. Na sociedade moderna, a dádiva circula também
entre desconhecidos: doações de sangue, de órgãos, filantropia, doações
humanitárias, benevolência etc. A dádiva se baseia na dívida, que pode ser
positiva ou negativa. o é uma noção contábil é um estado no qual cada um
considera que, em termos gerais, recebe mais do que dá. Uma dádiva feita por
obrigação, por obediência a uma norma, é considerada de qualidade inferior. A
moral do dever não se aplica à dádiva segundo Godbout. Os membros de um
sistema de dádiva possuem uma relação muito particular com as regras. Antes de
tudo, as regras devem estar implícitas. Portanto a liberdade na dádiva, não é do
mesmo tipo da gerada no mercado ou na socioeconômica. A liberdade não se
realiza na liquidação da dívida e o consiste em gerar condições para facilitem a
saída da relação, mas consiste em tornar o próprio laço mais livre, multiplicando
os rituais que visam diminuir, para o outro, o peso da obrigação da relação. A
dádiva é um jogo constante entre liberdade e obrigação. A maior parte das
características da dádiva torna-se compreensível quando se as interpreta
segundo o princípio da liberdade dos atores.
28
2.2. Reciprocidade
Segundo Sabourin (2008), Mauss reuniu as principais peças de uma
teoria da reciprocidade: a dádiva, a obrigação de retribuir, o prestígio e a
presença do terceiro elemento, seja ele uma pessoa ou um símbolo. A
reciprocidade não se limita à dádiva entre pares, ela rege o princípio das relações
entre grupos. Mauss diferencia assim a reciprocidade direta, prestações materiais
ou simbólicas devolvidas entre dois indivíduos ou dois grupos da reciprocidade
indireta, quando os bens simbólicos recebidos não são devolvidos a quem os deu,
mas a outro grupo que, por sua vez, terá que devolvê-los a um outro grupo. O
modelo dessa reciprocidade indireta é precisamente aquele da circulação dos
bens entre as gerações. aquilo que seu pai fez para você que você pode
devolver ao seu filho" (MAUSS, 2001, p.58)
Sabourin (2005) observa que ninguém dá algo sem motivo, por isso
ocorre a reciprocidade, pois a dádiva não é desinteressada, mas motivada pelo
interesse com o outro e pelo reconhecimento dele. Entende que reciprocidade
não é uma troca como o intercâmbio, pois:
[...] a operação de intercâmbio corresponde a uma permutação de
objetos, enquanto a estrutura de reciprocidade constitui uma
relação reversível entre sujeitos. (SABOURIN, 2005, p.01)
.
Assim, tem-se que reciprocidade não é um ato humano pré-existente,
dado. Ela é construída no processo da relação social, seja em comunidades
abertas ou fechadas. A reciprocidade provém das relações de parentesco, de
amizade, de compadrio. A demonstração material da reciprocidade é a troca de
presentes, a prestação de serviços, a ajuda mútua, o consolo, o ato de ensinar e
as demais formas de expressar uma amizade emocional, a qual se caracteriza
pela forte troca afetiva entre os membros, além da troca de recursos materiais
(WOLF, 2003), comuns nas sociedades fechadas.
29
Também aflora a reciprocidade das relações de vizinhança, que no meio
rural muitas vezes se transforma em relações de compadrio com um vizinho,
apadrinhando o filho de outro e vice-versa, materializando-se por meio da troca de
serviços, presentes, oferendas de festas, características da forma de amizade
emocional. Entretanto, nessas relações também aparece à amizade institucional
ou instrumental, definida por Wolf (2003) como aquela que se caracteriza pela
possibilidade do indivíduo ascender socialmente através das trocas de recursos
materiais e apoios políticos. Por sua vez, numa situação de assimetria
(desigualdade e desequilíbrio) entre os membros, o clientelismo pode se tornar
uma amizade de patrono-cliente, geralmente mais comum nos grupos abertos.
2.2.1 Reciprocidade, campesinato e relações de parentesco
Wolf (2003) fornece uma tipificação de camponeses, dividindo em dois
tipos de sociedades camponesas: comunidade camponesa corporada, fechada e
comunidade camponesa aberta. A comunidade corporada se caracteriza pela
localização em terras marginais mais isoladas e menos valorizadas pelo capital, o
que, por vezes leva a um isolamento. Na medida em que um grupo social se
estabelece em terras marginais para os interesses do capital, tende
simultaneamente a utilizar um baixo nível de tecnologias, com baixa produção, e
grande esforço de trabalho manual, o que implica na manutenção de famílias
extensas em um território. Por terem pouco excedente, estas comunidades
tendem a poucas possibilidades de trocas no mercado, se fechando
comercialmente para o restante da sociedade, sendo por isso não bem vindo a
compra de terras por forasteiros. O baixo volume de excedente é direcionado à
aquisição de bens necessários para a produção e consumo doméstico, que os
leva a um baixo nível de relacionamento com o mercado externo. Quando
aumenta a população interna da família ou comunidade, tende a ocorrer duas
situações: ou aumenta o trabalho extra, tanto dentro como fora da família e da
30
comunidade; ou ocorre a diminuição do consumo per capita (WOLF, 2003, p.
129).
Na perspectiva de Wolf (1976) a família camponesa não é apenas uma
unidade produtiva capitalista, mas também faz parte de uma unidade de consumo
enquanto família e de uma unidade reprodutiva que se constitui como uma rede
de família, que em um território reproduz e socializa novos membros em uma
forma de vida cultural. Assim a conduta econômica está ligada a uma lógica
afetiva de produção, que omite os custos dos trabalhos paralelos despendidos na
produção agrícola.
Desta perspectiva de Wolf, sobre as famílias camponesas, a família
extensa, por oposição a família nuclear, é o tipo mais comum de família
camponesa. A família extensa é considerada como aquela que se estende para
além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, é formada também por
parentes próximos com os quais se pode conviver e manter nculos de afinidade
e afetividade. De acordo com o autor neste tipo de família, o mercado
matrimonial, as regras produtivas e reprodutivas e de descendência tendem a
ficarem submetidas a uma lógica parental, tornando mais fracas as estratégias
baseadas em interesses individuais. Sob esse esquema teórico, os territórios de
famílias camponesas extensas, regulados por relações de reciprocidade, seriam
mais comuns em situações de escassez de terras.
Wortmann (1994) aponta a trilha teórica por onde se pode manter a
análise que relaciona o campesinato e a economia da reciprocidade fundada no
parentesco, mas rompendo com o ecologismo cultural de Wolf, quando o autor
associa grupos corporados territorializados e a escassez de terras. Para
Wortmann o que se sobressai tanto nos grupos de colonos do sul como dos nos
dos sitiantes do nordeste, que estudou é a autonomia para traçar suas estratégias
reprodutivas, ao mesmo tempo em que ela afirma ser comum a ocorrência de
famílias extensas mesmo em situações de abundância de terras. A autora afirma
que como forma de manter a propriedade da terra no grupo familiar o utilizados
pelos camponeses estratégias sociais de reprodução e de manutenção que não
31
são propriamente econômicas. São estratégias voltadas para herança,
casamentos e parentesco que se inserem nas lógicas de reprodução ampliada.
Os grupos a serem estudados funcionam sob uma lógica de famílias
extensas territorializadas, que ocupavam no passado terras marginais e isoladas
que hoje são valorizadas pelo agronegócio por sua localização próxima a uma
grande capital e potencialidades para a produção de arroz e criação de gado. A
exploração da terra era realizada no passado pelos quilombolas em regime de
comunalidade familiar o que, no esquema analítico de Wolf, discutido acima,
explica a grande preferência por uniões endogâmicas. A união com certas
famílias, de uma comunidade para outra, foi mais frequente, dando a entender de
que essas uniões apresentariam certas vantagens estratégicas em relação ao
território.
32
3. A RECIPROCIDADE SIMÉTRICA NO INTERIOR DAS COMUNIDADES
Neste capítulo irei evidenciar como se deu minha atuação em campo,
bem como as formas de reciprocidade como um princípio de base para as
obrigações sociais voluntárias ou não, nas relações que são consideradas íntimas
e ao mesmo tempo distantes num misto de valores éticos e estruturas sociais
como, por exemplo, as estruturas de parentesco entre as duas comunidades.
3.1 O mito fundador
O primeiro contato que tive com a comunidade Peixoto dos Botinhas foi
em junho de 2003. Fui levada até por um vereador do município no intuito de
esclarecer dúvidas sobre a questão quilombola e repassar informações sobre os
procedimentos de auto identificação
5
, o artigo 68
6
EMATER
e os direitos das
comunidades tradicionais. Entre 2003 e 2005 minhas idas a comunidade ficaram
mais frequentes, e a interlocução da comunidade com o poder público e com o
movimento negro também. No final do ano de 2004 após algumas atividades e
oficinas que foram planejadas de acordo com demandas da comunidade, tais
como: debates e discussões em torno do artigo 68 do ADCT da Constituição,
5
A auto identificação ou atribuição é incorporada ao procedimento de regularização fundiária de
território étnico no Brasil, a partir de 2003 quando é instituído o Decreto Presidencial nº 4887/2003.
Esse dispositivo legal está em consonância com a Convenção 169 da Organização Internacional
do Trabalho OIT. Mais detalhamento a respeito da elaboração e implementação desse
instrumento, pode ser visto em Ramos (2009, p.34; 37-41), ainda a mesma autora, destaca que
uma vertente teórica de discussões sobre etnicidade que assenta ênfase na dimensão
interacional das identidades étnicas e no fato de que as fronteiras étnicas se constituem em atos
públicos de autodefinição identitária.” (ANJOS et. al., 2006).
6
O artigo 68 do ADCT da Constituição Federal diz: “Aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
33
troca de experiências com lideranças de outras comunidades quilombolas
7
. A
territorialidade, na trama de relações de parentesco que lhe é constitutiva, investiu
e suportou a intensidade quilombola que aflorava no debate e se configurou como
um modo singular de presença quilombola. Na mesma época iniciei o projeto de
conclusão de curso de graduação com a temática quilombola viamonense.
Na comunidade Cantão das Lombas, as idas a campo iniciaram no final
do mês de maio de 2009, se intensificaram em agosto, dezembro e janeiro de
2010. Mas o inicio da minha inserção em campo ocorreu desde 2005 quando fui
apresentada para a comunidade através de uma professora municipal da escola
que atende as crianças quilombolas do Cantão. Fui levada até para tentar
auxiliar a comunidade a obter acesso às políticas públicas que haviam chegado
ao município e prestar assessoria na constituição da Associação. Naquela época,
a comunidade estava tentando entender se o único benefício que receberam o
RS Rural Quilombola
8
estava correto. Pois da forma que o benefício foi
distribuído eles não estavam satisfeitos. Passei então a ir à comunidade com mais
freqüência, acompanhada de uma colega, psicóloga Eliana Costa Xavier, que faz
parte do IACOREQ. A partir daí começamos a perceber que além das dúvidas
sobre o RS Rural Quilombola, a comunidade tinha sede de saber, de se informar
sobre seus direitos. Na medida em que, as informações permitiram perceber que
os resultados em termos de políticas públicas estavam cada vez mais distantes,
as reuniões foram perdendo o interesse. O esvaziamento chegou ao ponto das
reuniões ficarem resumidas em apenas 4 pessoas da comunidade. Só foi possível
reunir a comunidade num montante razoável às vezes em que possibilitávamos
um almoço ou um lanche. Desde 2005 a comunidade se empenha para constituir
uma associação formalmente.
No primeiro mês de realização da pesquisa de campo para esta
dissertação de mestrado, ocorrido em 09 de maio 2009, estive em ambas as
comunidades, apresentando o trabalho que seria desenvolvido. No Cantão das
7
Principalmente das comunidades localizadas no Litoral Norte como as de Palmares do Sul,
Mostardas e Tavares.
8
O RS Rural foi um projeto elaborado e implementado pela EMATER/RS com o objetivo de
promover a cidadania e a busca da superação da pobreza, além da elevação da qualidade de vida
e inclusão social através de melhorias construtivas e incentivos para aquisição de animais para
criação ou reprodução.
34
Lombas foi realizada uma reunião com as lideranças, Edson Silva, Indiajara
Gomes e Rosa Silva da Rosa, expliquei o objetivo da pesquisa, eles
disponibilizaram suas casas e se disponibilizaram em me acompanhar nas
“caminhadas” e me apresentar para as famílias que eu ainda não conhecia. Nos
momentos em que me hospedei em casas de lideranças fui solicitada
informalmente a ajudá-los na constituição da Associação, com elaboração e
explicações sobre estatuto e funções de cada cargo e, isso se dava sempre após
as refeições da noite.
Na comunidade Peixoto dos Botinhas conversei com as duas lideranças
da comunidade, o Décio e a sua prima Edegi Gomes. Informei-os que o trabalho
tem o objetivo de fazer um estudo sobre as relações entre as duas comunidades,
tanto de parentesco, quanto de reciprocidade. Receberam-me muito bem e
trataram logo de informar-me da constituição da Associação. A preocupação
residia no fato de que a associação estava na segunda gestão, e demandavam
a re-elaboração do estatuto. Neste dia estavam organizando uma festa para
arrecadar fundos para a compra de um terreno, onde seria construída a sede
física da Associação. Após eles me deixarem a par dos acontecimentos e dos
festejos locais, expliquei melhor o objetivo do meu trabalho. Percebi que eles não
tinham entendido muito bem como o trabalho iria beneficiar a comunidade.
Edegi pediu que juntamente com à pesquisa eles gostariam que eu os
auxiliasse a construir uma genealogia, pois pretendiam deixar esse tipo de
registro como documentos da associação. Essa demanda nascia da percepção de
que o vínculo de parentesco entre as duas comunidades é constitutivo de suas
identidades. Ela evidenciava essa compreensão enfatizando que foi “nascida e
criada” no Cantão das Lombas, saiu de casa aos nove anos para trabalhar numa
casa de fazendeiros, depois se casou e saiu de Viamão. Retornou em 2007
quando se aposentou e construiu uma casa nos Botinhas, pois seus tios e primos
mais chegados moram . À noite Edegi e Décio confraternizaram um jantar com
mais dois núcleos familiares e, então, eles combinaram de me levar até a casa
dos mais velhos para conhecê-los, ouvir “causos” e ver fotos antigas. Foi dessa
forma que se iniciou então minha inserção em campo.
35
Segundo Cardoso de Oliveira (2000) essa aproximação, ou seja, o estar
em campo, envolto de uma trama de evocações e representações, faz com que
entre o pesquisador e os sujeitos pesquisados haja uma abertura, um canal de
diálogo para uma fusão de horizontes. É esse horizonte negociado entre uma
comunidade que demanda uma genealogia e as minhas urgências de
conhecimentos que se plasmam neste trabalho.
No dia seguinte, 10 de maio, Edegi e Décio mudaram os planos e levaram
até a casa da Edegi, Tia Pequena e Seu Afonso para “espichar as pernas”, tomar
um chimarrão e contar estórias. Assim, em meio aos causos, tive acesso imediato
ao que se poderia chamar de mito de fundação da comunidade. Uma dessas
estórias que me foram ali contadas era da narrativa do grupo, sua origem e
constituição como quilombo:
Pouco antes da abolição chegava a Três Passos
9
, um grupo de
negros fugidos de um barco que ancorou na Lagoa dos Patos.
Neste barco haviam muitos negros vindos da África para serem
vendidos aos senhores de Engenho e Estancieiros da região de
Palmares do Sul, Capivari, Mostardas e Viamão. No desembarque
os negros se revoltaram e travaram ali uma luta sangrenta. Muitos
deles morreram e na confusão alguns conseguiram fugir,
formaram pequenos grupos, dividiram-se e se embrenharam num
banhado pros lados de Palmares do Sul. A vegetação alta e a
agilidade dos negros facilitou a fuga. Um desses grupos veio em
direção as Lombas
10
, isso porque enquanto eles caminhavam e
procuravam um lugar pra se esconder eles avistavam de longe o
morro das lombas. E depois de dias e dias de caminhadas
chegaram a Três Passos.
Era o lugar ideal porque do alto das Lombas eles podiam ver a
mata e o banhado e fácil pra avistar alguém de longe,
principalmente os feitores e os capitães do mato. O grupo que
chegou em Três Passos construiu ranchos de barro e galhos para
se abrigarem. Então nascia ali um quilombo.
Junto com esse grupo vieram as irmãs Pelônia Maria da
Conceição, Fortunata Maria da Conceição e Antônia. Um tempo
depois as irmãs casaram e foram demarcando lotes de terras para
o seu sustento, como era o costume da região na época. As terras
não tinham registro nem dono. Cada casal usava a área que
queriam.
9
O bairro viamonense Capão da Porteira era chamado, antigamente, de Três Passos.
10
Lombas é o bairro vizinho ao Capão da Porteira, onde localiza-se atualmente outra comunidade
quilombola chamada Cantão das Lombas.
36
Fortunata casou-se com Vitorino Cardoso e foram morar nas
Lombas. Terras que hoje pertencem a Família Fagundes
aqueles do Galpão Crioulo, que aparecem na TV. Esse casal teve
muitos filhos, entre eles José Vitorino que casou com Liberalina
Conceição pais dos botinhas. Esse apelido, Botinhas, é porque
os filhos do finado José Vitorino, tinham um conjunto musical
chamado Os Botinhas e o nome do Beco onde moravam aqui
no Capão da Porteira ganhou esse nome por causa deles.
E a família Peixoto começa com Arzimiro Peixoto, filho da negra
Pelônia que se casou com Manoela Jesus e foram pais de muitos
filhos entre eles Otávio Jesus Peixoto que casou-se com com
Olavia Lídia de Jesus, pais de Avandir, Moacir e Ana Jesus
Peixoto que foi a nossa primeira presidente do quilombo dos
Peixoto dos Botinhas.(Relato do Seu Afonso, Tia Pequena, Edegi
e Décio)
Neste mesmo dia foi possível resgatar, através dos mais antigos, a
seguinte narrativa sobre a história da Comunidade Cantão das Lombas:
...Viúva de Anápio Gomes, a Fazendeira Nica Gomes, que se
chamava Antônia, quando alforriou os escravos, ordenou que eles
ficassem no Canto da Lagoa da Capororoca. Ordenou que eles
cercassem a área com valos e nas barrancas plantassem Maricas.
Depois que eles fizeram o que a dona Nica mandou ela deu a
terra que eles tinhas cercado pra eles. Ela mandou que fizessem
isso porque ficava fácil de saber onde era a terra dela e onde era
a terra deles pela divisa da Lagoa, que ficava bem no meio.
Depois com o tempo as terras começaram a se chamar valos do
Cantão e hoje a gente chama Cantão das Lombas. A dona Nica
então levou até o Cantão um escrivão que registrou todos os seus
ex-escravos, dando o seu sobrenome Gomes pra todos. Não se
sabe se a sede da fazenda ficava em Viamão ou em Santo
Antônio da Patrulha porque as terras ficam bem na divisa. Até
hoje existe os valos que os negros construíram pra demarcar a
sua área. (Relato do Seu Afonso, Tia Pequena, Edegi e Décio)
A possibilidade deste tipo relato é parte do que chamo de condição de
suportabilidade da enunciação quilombola, mesmo que o seja uma condição
necessária. Pude inclusive verificar durante a conversa subseqüente
proporcionada pela roda de chimarrão, que muitas pessoas da comunidade dos
Botinhas não conheciam o relato. O fato permite perceber que esse tipo de relato
tem uma dinâmica de transformação que inclui a possibilidade da desaparição,
mutação e retomadas. De todo o modo à possibilidade desse tipo de narrativa é
37
suportada pela trama de relações de reciprocidade em que a circulação do
chimarrão sustenta uma intensidade tão próxima do continente africano, mesmo
quando gera alguma surpresa entre os ouvintes da comunidade.
3.2 As festividades quilombolas
O Beco dos Botinhas, onde está localizado o quilombo, é muito conhecido
no município de Viamão, por suas festas. O conjunto musical “Os Botinhas”, era
requisitado para animar festas tanto no centro do município como em residências
de granjeiros, estancieiros e donos de alambiques, bem como em outras
comunidades negras de Palmares do Sul, Capivari e Mostardas. As relações de
reciprocidade podem fundamentar a vida social, mas ela é também reconstruída
social e historicamente em práticas quotidianas que reconfiguram os sujeitos das
trocas.
É assim que o caráter das festas internas como intensos momentos de
dádivas constituem sujeitos para a reciprocidade, diferentes daqueles que se
estabelecem nas idas festivas ao entorno. O que pretendo demonstrar é que o
vínculo social com outras comunidades próximas, mas em especial com a
comunidade Cantão das Lombas, faz a felicidade da reciprocidade de modo
diferente dos “Botinhas” animando as festas dos fazendeiros brancos.
38
FIGURA 3: Conjunto de cantores e dançarinos “Os Botinhas” década de 40.
Fonte: Acervo da Associação Quilombola Peixoto dos Botinhas
Como linha metodológica à utilização de uma etnografia não distanciada,
mas imersa na relação etnógrafa/interlocutor, se mostrou valiosa, sendo possível
captar o ponto de vista do outro, em um exercício de escuta atenta (CARDOSO
DE OLIVEIRA, 2000). E foi captando e ouvindo que foi possível construir um
canal dialógico marcado pela observação participante como técnica de pesquisa.
No momento deste resgate histórico oral, foi possível perceber outros
aspectos relacionais que envolviam a formação de redes de reciprocidade entre a
comunidade dos Botinhas e seus arranjos familiares que foram se dissipando
para a comunidade Cantão das Lombas.
No dia 10 de maio de 2009, pela manhã, fui até o salão do Nilson, que
tem grande importância na comunidade, pois foi construído na década de 1930,
para que os negros pudessem realizar suas festas e celebrar os resultados dos
jogos de futebol. Ainda hoje é o ponto de encontro e o local de realizações de
eventos. A arquitetura do local se mantém, desde as telhas, as madeiras, o
recipiente para tomar água acompanhado de uma canequinha, os troféus,
medalhas, porta-retratos com os principais atletas da comunidade e a placa de
identificação com o nome do salão “Princesa Isabel”. No pátio do salão um
grande campo de futebol com marcação e goleiras.
39
FIGURA 4: Confraternização de natal no Salão Princesa Isabel em 1983.
Fonte: Acervo da Associação Quilombola Peixoto dos Botinhas
Como a comunidade era razoavelmente grande, foi construído na década
de 1910, esse pequeno clube social, para realização de torneios de futebol, festas
juninas, natalinas, casamentos e aniversários. Este clube existe ahoje, mas é
conhecido como o salão do Nilson. Atualmente o local é de um morador
quilombola, que vende bebidas e também possui mesas de jogos. E este morador
quilombola cede o local para realização das reuniões da associação quilombola.
Vale salientar que grande parte dos moradores do Capão da Porteira, quilombolas
e não quilombolas freqüentam o salão e participam das atividades que são
realizadas no local. Ainda são realizados campeonatos de futebol, bingos,
aniversários e outras confraternizações da associação quilombola. E em quase
todas as fotos que me foram cedidas pela comunidade, sempre tem como fundo o
salão do Nilson.
40
No salão se cristaliza a territorialidade quilombola, como lugar de
confluência dos rituais, das festividades e dos momentos mais ostentatórios do
quotidiano de ações de trocas. É nesse espaço que atualiza de forma mais visível
o pertencimento simultaneamente territorial e de parentesco dos corpos que ali se
reúnem.
No final do mês de maio, Os Botinhas realizaram uma pequena
confraternização para comemorar o faturamento do galeto dançante que foi
realizado em março para arrecadar verbas para a aquisição de um terreno para a
associação. A confraternização aconteceu no Salão Princesa Isabel, as lideranças
da comunidade, divulgaram o evento na Comunidade do Cantão das Lombas e
entre os quilombolas botinhas. No dia 30 de maio de 2009, às 08h iniciaram os
preparativos do almoço. Foram assados galeto e carne de porco pelos homens da
comunidade. As saladas e os doces foram feitos pelas mulheres, o salão estava
todo decorado com papel TNT vermelho, preto e amarelo. Os refrigerantes e
cervejas foram vendidos pela associação e não pela copa do salão. Isso se deu
com a autorização do seu Nilson. Esteve presente somente uma pessoa do
Cantão das Lombas, a Tia Filinha, que é tia de praticamente metade da
comunidade dos Botinhas. Durante o almoço foram vendidos números das rifas
sob a responsabilidade dos adolescentes quilombolas, que transformaram a
venda de números numa festa, com muita responsabilidade. Após o almoço e a
infinidade de doces que foram servidos, as pessoas brincavam e riam muito. Ao
mesmo tempo fiscalizavam os “tios” e “tias” diabéticas para não exagerarem nos
doces e confeitos.
O ser quilombola da comunidade se apresenta assim percorrendo os
corpos em festa, como uma intensidade que pode ser suportada por muitas
décadas de convívios similares. De acordo com Deleuze (2001, p.62):
O que define um corpo é esta relação entre forças dominantes e
forças dominadas. Qualquer relação de forças constitui um corpo:
químico, biológico, social, político. Duas forças quaisquer, sendo
desiguais, constituem um corpo a partir do momento em que
entrem em relação: é por isso que o corpo é sempre fruto do
acaso.
41
Sobretudo, é a trama de trocas quotidianas que sustenta a liberdade
festiva que faz acontecer o momento quilombola como efervescência. É em nome
da associação quilombola que os corpos se agregam de modo festivo e
intencionam a retomada de um território de pertencimento. A entrega celebrativa
havia sido costurada em décadas de trocas intensas que fazem o devir do grupo.
As mulheres foram as responsáveis por arrumar e decorar o salão, os
homens em assar e servir as pessoas. A todo o momento vinha um assador aa
mesa onde eu estava sentada com espetos e mais espetos de carne e galeto.
Pois para eles eu era visita e visita tem que ser bem servida. Certamente a festa é
uma auto-apresentação e uma definição de presença enquanto grupo, para “os de
fora”, na forma de atos de generosidade ostensiva. É, sobretudo um momento
interno, de dobra sobre si mesmo, para uma subjetivação quilombola.
A entrega extraordinária aos trabalhos implicados pela festividade
testemunha outras dádivas ordinárias que constitui o dia-a-dia de uma
comunidade tradicional. As mulheres limparam e lavaram a louça organizando o
salão para a reunião de prestação de contas do galeto dançante que ocorreu em
março. Diante disso, perguntei as lideranças se eu poderia permanecer presente
e fui autorizada acompanhar. Na reunião o tesoureiro expôs os gastos, os lucros
inclusive as sobras de comida e também foi prestado conta das bebidas e das
jantas que foram destinadas aos músicos do baile que vieram de Palmares do
Sul. Inclusive neste conjunto haviam pessoas da comunidade quilombola de
Limoeiro.
Na confraternização para prestação de contas do galeto dançante, o
tesoureiro explicou que a confraternização só foi possível, pois sobrou muito
galeto congelado, refrigerantes e cervejas, e achou mais do que justo
proporcionar o almoço para a comunidade que se empenhou para a realização do
galeto dançante em março.
O sentido de comunidade, que raramente se ratifica na forma escrita, é
confirmado assim através da circulação de coisas pelo território. Esta
confraternização demonstra que as relações de proximidade se constituem nas
mais importantes formas para a sociabilidade, sendo elas tanto de parentesco
como de amizade. Mas as diferentes comunidades apresentam distintas maneiras
42
de manter as sociabilidades, o interconhecimento e preservar os atos de
reciprocidade e a intensidade da vida comunitária.
Ressaltarei no quarto capítulo a importância da relação entre
comunidades na celebração da identidade quilombola. O que cabe aqui ressaltar
é o passado das relações de parentesco que convoca a presença de membros de
outras territorialidades quilombolas e os insere no mesmo evento comemorativo.
É assim que membros da comunidade do Cantão das Lombas também se
faziam naturalmente presentes. Considerando a densa trama de laços
matrimoniais a presença da Tia Filinha, que mora nas Lombas, simbolizava a
unidade de condição quilombola das duas comunidades. Se, segundo eles depois
que casam se tornam mais parentes ainda, as próprias comunidades se
confirmam na condição de quilombolas na atualização festiva do parentesco.
FIGURA 5: Celebração de casamento entre quilombolas do Cantão e Peixoto dos
Botinhas no Salão Princesa Isabel em 1948.
Fonte: Acervo da Associação Quilombola Peixoto dos Botinhas
43
A existência deste salão traz a tona as fortes redes de reciprocidade e
amizades já estabelecidas com os quilombolas do Cantão das Lombas, pois
desde os tempos da inauguração do Salão os principais freqüentadores do local
eram pessoas de ambas comunidades. Essa presença não apenas localiza a
celebração do parentesco das duas comunidades, pois consideram de
fundamental importância tais laços de parentesco, mas confirma e centraliza as
percepções sobre as condições similares em que estão colocados.
Os Botinhas estabelecem também relações de reciprocidade com os não
quilombolas e não negros da região. Trataremos mais detidamente dessa relação
no próximo capítulo. Por ora, cabe apontar que foram convidados para a
confraternização os patrões do Centro de Tradições Gaúcha (CTG) do bairro que
cederam o espaço gratuitamente para a realização do galeto dançante. Fizeram
questão de fazer uma fala na confraternização, dizendo que a cedência do
espaço se deu pelo fato da comunidade sempre ajudar nas festas do CTG e,
principalmente nas épocas de rodeios. A comunidade faz parte das frentes de
trabalho responsáveis pela preparação da comida, decoração do galpão e
limpeza ao final das festas. E sempre que precisarem do galpão para realizar
festas é avisar antecipadamente que se houver data disponível na agenda o
salão será disponibilizado para a comunidade. A relação com o CTG, pode-se
dizer que faz parte de uma aliança local em um sistema de reciprocidade
percebido como sendo um plano exterior com relação ao pertencimento
comunitário.
A retribuição do CTG teve um tom de parecer de “obrigatoriedade”. Ceder
o espaço para os quilombolas, em reconhecimento ao fato de que eles trabalham
praticamente de graça nas épocas de festas e rodeios, é diferente da
reciprocidade no interior da comunidade. É como se nesse caso a liberdade de
não reciprocidade e a obrigação fossem injunções contraditórias mais visíveis,
ostensivas. Esta é exatamente a interpretação que Godbout (1998) para a
dádiva: a medida em que se concebe a dádiva como obrigação, ela se realiza
na prática quando existe a liberdade da não retribuição. Mas a possibilidade de
escolher a retribuição segue a intuição de que algo de “obrigatório”
44
(imperativo), que é justamente o sentimento da necessidade de se agir
reciprocamente.
Talvez esteja exatamente aqui a gênese da diferença entre reciprocidade
interna ao grupo e a externa. Pode-se entender a reciprocidade externa como
sendo os atos generosos dirigidos ao grupo local. A obrigação de se ser livre para
retribuir soa como muito mais “espontâneo”, no interior da comunidade. Portanto a
formação de alianças nas comunidades é também uma forma de controle social
sobre os atos que indicam pertencimento.
No estabelecimento de relações de dádiva, Lévi-Strauss (1974) afirma
que são trocados não somente objetos ou coisas, mas inclusive pessoas. Aqui
cabe ressaltar que no dom se constitui a pessoa para a relação. A pessoa da
troca entre quilombolas é diferente daquela pessoa quilombola que se relaciona
com o seu exterior. Isso faz a exterioridade da relação não quilombola.
As coisas ou as pessoas trocadas não carregam necessariamente um
espírito do dom, tal como Mauss o concebia, mas a relação entre as pessoas ou
entre as coletividades se configura em sistemáticas tensões de obrigações e
liberdades. A coletividade é constituída socialmente pelas pessoas e coisas em
circulação que sedimenta a manutenção da sociabilidade.
Nesse sentido o salão, antecipa a associação quilombola, como
cristalização de uma sociabilidade que configura a identidade étnica, como
totalizável em uma expressão político-cultural. Suportado por essa sociabilidade
festiva, o salão tem grande influência e importância na reconstrução e
fortalecimento desses laços. Foi construído sob a intenção de que a comunidade
pudesse realizar as festas “deles”. As fronteiras de um “nós” versus “eles” se
constituía sobre a dimensão festiva.
Embora o conjunto musical “Os Botinhas” fosse convidado para animar
também as festas dos granjeiros, mas as fronteiras entre o espaço de
sociabilidade interno e externo à comunidade ficaram instituídas até pelo menos a
década de 50. Conta-se na comunidade que os negros não podiam entrar em
festas de brancos, e cronometram a década de 1950 como data ainda recente,
vívida na memória coletiva. Essa proibição os motivou para a construção do
Salão, pois tiveram um espaço para dançar, se divertir e poder jogar aos finais de
45
semana. Segundo Nilson Peixoto, atual responsável pelo Salão, assim como os
negros sabiam o seu lugar, os brancos também, pois não freqüentavam as festas
que eram realizadas no Salão Princesa Isabel. Mas com o passar do tempo e com
as relações de empregados e patrões, que foram se criando com os granjeiros,
fazendeiros e estancieiros essa relação foi se quebrando.
As pessoas dos Botinhas começaram a ser contratadas informalmente
para trabalhar em granjas e fazendas, sem carteira assinada. Nas festas
realizadas no Salão Princesa Isabel os granjeiros mandavam funcionários não
negros para observar o comportamento de seus funcionários quilombolas. E,
mesmo estes funcionários freqüentando o local, segundo Nilson dono do salão,
eles sempre souberam respeitar.
A comunidade é muito festeira e é muito conhecida pelas boas festas que
realizava. Numa visita que fiz em junho de 2009 na casa de uma das viúvas do
conjunto musical “Os Botinhas”, foi possível analisar primeiramente a tristeza pela
falta do principal músico e cantor. A viúva é chamada por todos de Tia Jota e tem
uma irmã gêmea. Tia Jota casou com o Bota que foi o precursor do conjunto
musical. O mesmo também tinha um irmão gêmeo que casou com a irmã da Tia
Jota, a Preta. O mais curioso de tudo é que são todos primos, nascidos e criados
no Capão da Porteira e descentes da escrava Pelônia.
Na casa da Tia Jota, a sala é repleta de lembranças das décadas de fama
do conjunto musical, fotos dos Ternos de Reis, das apresentações de Quicumbi,
das coreografias com facas e dos trajes muito bem alinhados e sinos na barra das
calças. Eles aprenderam a dançar em uma festa que foram no Bacopari
11
, e de
tempos em tempos o grupo do Bacopari participava de bailes nos Botinhas e os
dois grupos dançavam.
Com freqüência o assunto em campo eram as festas. Na comunidade
Cantão das Lombas, onde convivi com as pessoas durante dois meses, foi
possível conhecer o outro lado das festividades quilombolas. Dona Francisca
“nascida e criada” nos Valos e mais conhecida por “Tia Chica relembrou os
famosos bailes da Dona Joana. Dona Joana é avó materna de “criação” da Tia
11
A localidade do Bacopari faz parte do território quilombola de Limoeiro em Palmares do Sul.
46
Chica. Joana gostava muito de fazer bailes tanto é que possuía duas casas, uma
para morar e outra para fazer bailes. A casa de bailes era de chão batido e
quem ajudou a construir foram às mulheres da comunidade. Como a casa era de
chão batido levantava muita poeira quando o baile começava, mas isso não era
empecilho para as pessoas permanecerem dançando ao som do gaiteiro Velúcio,
pois o chão era borrifado com água, e o baile seguia.
Já o Terno de Reis no Cantão das Lombas, Chica não acompanhava a
todas as cerimônias, com seu ex marido que era mestre, como também
trabalhava nos preparativos da alimentação "...eu fazia sopa de osso e de
guisado". Chica relata que os brancos também participavam das cerimônias
religiosas no Cantão, porém os Botinhas o, pois eles tinham o seu próprio
grupo de Terno de Reis. Só havia interação entre os ternos quando havia
necessidade de ajuda para preparar as refeições que eram distribuídas.
Sobre esta atuação entre os Ternos de Reis Tia Chica comenta:
"a irmã da minha avó casou com Estevão que era botinha e foi
morar lá, mas quase nunca a gente visitava ela e ela também foi
deixando de visitar a gente. O meu marido ficou doente e foi
deixando de lado o Terno, quando ele morreu acabou tudo
mesmo. E a vó eu fui ver quando ela morreu." (FRANCISCA –
Cantão das Lombas)
47
Como visto em Silva (2006)
12
, o Terno de Reis tem grande semelhança
com o que era realizado na mesma época de 60 no quilombo da Anastácia
13
. A
única diferença é que ao invés de uma dupla cantando e tocando instrumentos
com melodias católicas, era o conjunto musical dos Botinhas constituído por
aproximadamente 15 pessoas, que comandavam as celebrações. No Cantão das
Lombas também havia um grupo de cantores e sicos como o gaiteiro Estevão
mas em menor número. E ao término de cada cantoria pelas casas que passavam
eram oferecidos café, bolo, cucas, sopas, lingüiça e diversas guloseimas. Após
passarem em todas as casas da comunidade quilombola a festa começava no
Salão Princesa Isabel.
Tia Jota se emociona ao relembrar dos tempos em que os Botinhas
cantavam e dançavam. Tempo esse que se foi, mas as lembranças ficaram e as
amizades não foram esquecidas. Neste dia ela fez questão de chamar as filhas e
netos para ouvirem o que ela tinha pra contar e fazia questão de dizer que “os
verdadeiros Botas” são a família dela. Pois o Beco onde moram leva o nome de
Botinhas por conta do conjunto musical que foi criado pelo seu esposo. E aos
poucos a casa da Tia Jota foi enchendo de gente, que faltaram até cadeiras. A
grande maioria eram os adolescentes, com sede de saber sobre a história do
conjunto que originou o nome do beco onde moram.
12
Os acontecimentos relacionados a realização do Terno de Reis nas comunidades quilombolas
tem sido destacado o como um evento festivo, mas como um evento que marca a saudade
dos momentos de lazer e descontração e a importância desses espaços de sociabilidade, que as
vezes, nesses grupos familiares é uma das poucas formas de manifestação. Podemos ver isso na
etnografia realizada por Silva (2006) no Quilombo da Anastácia, também localizado no município
de Viamão: “O terno de Reis, os bailes e as festas religiosas encerram assim significados
partilhados de uma memória individual que se conjuga com uma memória coletiva dentro do viver
comunitario, assim encadeiam-se as observacoes dos interlocutores sobre esse periodo das suas
vidas e de suas familias. Falam de “saudade” de um tempo que se foi “terminado”, mas nao
esquecem das amizades e dos casamentos ocorridos [...], dos tocadores que vinham de todos os
lados, culminando assim em traços marcantes dos laços estabelecidos.
O coletivo denota a marca maior do que é apreendido com o entorno, pois na interação com o
“outro”, evidencia-se a fronteira que realiza os papeis sociais, as normas, condutas e olhares. Na
lembrança desses homens e mulheres, ocorrem rupturas e encontros que ora os aproximam do
todo, ora os conformam na parte, naquilo que entendem como parte de si, da sua história e assim
o é com as lembranças nunca esquecidas, sempre revividas em relação a ancestral fundadora
“Anastácia”.(SILVA, 2006, p.103). Outros trabalhos relacionados com comunidades negras
também destacam essa prática religiosa e festiva como em FERNANDES (1999), BITTENCOURT
JR. (2006), CABEDA (2010) entre outros.
13
O quilombo da Anastácia foi o primeiro a se autodeclarar enquanto comunidade remanescente
de quilombo em Viamão/RS e está localizado no bairro Estância Grande.
48
FIGURA 6: Conjunto “Os Botinhas” terno de reis.
Fonte: Acervo da associação quilombola Peixoto dos Botinhas
pelo fato do resgate histórico, oral e fotográfico das origens do
conjunto musical e o interesse dos mais novos, a todo momento as irmãs Jota e
Preta colocavam as crianças no comprometimento de levar a diante as origens
dos Botinhas e quem sabe criar um novo grupo. Ao mesmo tempo em que se
queixavam dos jovens não querem mais saber de nada, Tia Jota dizia: mas seria
um sonho ver o conjunto constituído novamente”.
Os vínculos que foram estreitados pelas redes de parentesco encontram
nos bailes um espaço de exercício de sociabilidade, com representações coletivas
que atribuem significados e reconhecimento. E faz com que a reconstrução do
passado, ou seja, o rememorar os bailes, as perdas, os conflitos, evoca um leque
de possibilidades de interpretações dessas marcas. Dessa forma se faz
necessário destacar o papel que esses eventos festivos consagram na construção
de alteridade desse espaço:
49
...são as grandes festividades na comunidade que inscrevem a
memória coletiva nos corpos. No ritual festivo, tanto nos profanos
como nos religiosos, a cadência ritmada dos corpos compassa a
liberdade de se possuir um território para percorrer, ocupar,
dançar (...) É por essa história incorporada através dos rituais
festivos que a unidade da comunidade se faz território. (ANJOS;
ALMEIDA, 2002/2003, p.56)
Na realização de eventos, como os bailes, eles revezavam com a
comunidade Cantão das Lombas, que foi a pioneira em realização de festas. Que
são lembradas até hoje como as festas da “Dona Joana”. Esse revezamento se
dava da seguinte forma: Peixoto dos Botinhas quando realizava as festas no
salão, providenciava o conjunto musical, bebida e alimentação (essa alimentação
variava, as vezes serviam um grande ca com leite, bolos, pães e cucas ou
churrasco, galeto, sopão, mocotó) e a comunidade do Cantão era convidada,
então não precisavam pagar nada nem contribuir. E dessa forma quando as
festas eram realizadas no Cantão das Lombas era recíproco, ou seja, os
convidados eram convidados e não precisavam contribuir com bebidas e
alimentos, mas o conjunto musical “Os Botinhas” sempre tocava uma ou duas
músicas para retribuir o convite. Assim essas festividades trazem elementos de
um cotidiano passado que fez parte de um território, fortaleceu os laços de
parentesco e está sendo resgatado novamente.
Para Mendras (1978), os camponeses se caracterizam por estabelecerem
relações sociais bastante próximas no interior das comunidades rurais, nas quais
o parentesco e as coletividades locais são instituições marcantes. Além do
interconhecimento, o autor salienta ainda outras características das comunidades
camponesas, como a autonomia relativa frente às sociedades envolventes, a
importância estrutural do grupo doméstico, a indistinção entre consumo e
produção e a função decisiva dos mediadores e dos notáveis da comunidade. Por
isso constituem grupos sociais de interconhecimento, pois as comunidades
possuem certa homogeneidade cultural e fortes laços de sociabilidade baseados
no parentesco e nos laços de amizade e neste caso na etnicidade.
No dia 25 de julho de 2009, a comunidade dos Botinhas realizou mais
uma festa, um mocotó dançante. Nas semanas que antecederam a festa, a
comunidade se reuniu para definir o destino dos lucros e organizar a lista de
50
compras de ingredientes para o mocotó. Na última reunião, definiram que o
dinheiro arrecadado seria usado para a compra do terreno da Associação. A festa
ocorreu no CTG do Capão da Porteira e contou com a presença da maioria da
comunidade negra e não negra das imediações. Muitas pessoas do Cantão das
Lombas foram somente para o baile. Mais uma vez o salão estava decorado com
TNT vermelho, verde, amarelo e preto. A festa foi bem divulgada e, por estar
muito frio, algumas pessoas optaram por levar o mocopara comer em casa e
voltar somente na hora do baile. O conjunto musical que animou a festa é do filho
de uma moradora quilombola que não cobrou o cachê. Para os que não gostam
de mocotó, as mulheres preparam pastéis com recheios variados, quentão para
os convidados se aquecerem do frio que fazia e muitos tipos de sobremesas.
Após todos terem se servido do mocotó, o conjunto começou a preparar o salão
para o baile, teve jogo de luzes, mesa de som e muitos instrumentos musicais,
como gaita, guitarra, bateria e violão. O baile teve início e a partir daí começaram
a chegar algumas famílias do Cantão das Lombas e vizinhos convidados. Na
recepção do baile, estavam dois adolescentes quilombolas vendendo os
ingressos e conferindo o dinheiro do caixa para prestar contas ao tesoureiro.
No final do baile, o tesoureiro se reuniu com as pessoas que ficaram
responsáveis pela copa, bilheteria e equipe de limpeza constituído por
mulheres, homens, crianças e adolescentes e providenciou a organização do
galpão para entrega aos Patrões do CTG.
Verifiquei assim que o mito do isolamento não se configura aqui, tal como
nas sociedades camponesas, como enfatiza Woortmann (1995, p. 49)
[...] as famílias nucleares não são isoladas; pelo contrário, existem
no interior de relações de parentesco e/ou vizinhança, em
comunidades onde a troca de trabalho é um dos componentes
centrais do padrão de reciprocidade [...].
Minha tese mais geral é de que, por um lado, a reciprocidade em
momentos festivos é a superfície de suporte da identidade quilombola. Por outro
51
lado, essa festividade se sustenta sobre a reciprocidade cotidiana entre as
famílias nucleares.
3.3 Religiosidade e território
Alicerçar a identidade nas práticas cotidianas e extraordinárias pareceu-
me uma estratégia de pesquisa que permitiria complementar as investigações
sobrecarregadas que associam os processos identitários às representações
mentais.
Não dissociar o plano das representações do plano das práticas e ver as
pessoas aferradas ao modo e ao espaço onde as coisas circulam, é um outro
modo de associar o território tradicional e a identidade quilombola. Mesmo
quando se trata da relação entre a religiosidade e o território, é através das
práticas de reciprocidade que se pode perceber como uma comunidade
historicamente reprimida em sua expressão religiosa, se mantém vinculando
terras, homens e mulheres através da circulação de ervas e corpos inseridos em
sistemas de cura.
A religiosidade da comunidade se apresentou de forma atípica.
Primeiramente quando a comunidade se reporta ao conjunto musical dos
Botinhas, que eles eram muito atuantes nos festejos católicos e inclusive
organizavam o Terno de Reis. Fui surpreendida ao entrar em algumas casas e
verificar pequenas casinhas vermelhas em frente de algumas casas, espada de
São Jorge em vasilhas com água atrás de portas, linhas de segurança amarradas
nos braços e colares de contas coloridas “guias”.
Numa noite em que fui convidada para jantar na casa da Dona Laci
quilombola dos Peixoto dos Botinhas -, ela me mostrou várias ervas que eram
utilizadas para fazer benzeduras. Entre um assunto e outro ela perguntou-me qual
era a minha religião e o que significava a guia vermelha no espelho do meu carro.
Expliquei que a guia vermelha era minha segurança e que freqüentava terreiros
52
de umbanda e batuque. Neste momento Décio, levantou de onde estava sentado
e me conduziu até o quarto de santo no quintal da casa dele. Um quarto de santo
de Nação, com várias vasilhas de barro e flores. Além de ser um quarto de santo
é também o reduto dos gatos da casa dele que gostam muito de dormir. Décio
diz que eles são os zeladores do quarto de santo.
No dia seguinte, comecei a perceber o porque de a comunidade procurar
tanto a casa do Décio. Durante o dia algumas mulheres se dirigiam a casa dele
acompanhadas de crianças, se dirigiam até o fundo da casa e voltavam com uma
garrafa pet cheia de uma mistura de ervas. Exatamente três dias depois, descobri
que o Décio além de adepto da religião de matriz africana é benzedor. Uma
prática que foi herdada por ele através de uma tia, moradora do quilombo do
Cantão das Lombas que faleceu tempos. Inclusive as rezas que fazem parte
deste ritual estão todas registradas em uma caderneta que ele considera como
sendo um livro sagrado. Após essa situação ficar mais explícita pra mim de que
ele é o benzedor de ambas as comunidades, entendi nos seus gestos e atitudes
que são fatos que ele faz questão de preservar no anonimato.
No que se refere à liberdade religiosa, as famílias se auto intitulam
católicas, e por motivos óbvios, históricos e sociais junto ao entorno não
quilombola, não assumem a religião de matriz africana. Décio não realiza sessões
lá em sua casa. Ele freqüenta uma casa de religião na zona urbana de Viamão.
Chagas (2001) em seu artigo sobre a política do reconhecimento dos
"remanescentes das comunidades dos quilombos”, aponta que questões como
essas fazem com que:
O modo como essas famílias "guardam" sua memória nessas
estruturas narrativas, inscritas sobre o território, está intimamente
relacionado com a sua capacidade de imaginar o futuro, a partir
da sua própria condição de existência. Neste sentido, de fato, é
importante considerar que dispor deste território representa
apropriar-se da própria história do grupo, das relações de lealdade
e solidariedade, do parentesco, da religiosidade, da ritualidade
festiva e das expectativas futuras projetadas sobre ele.”
(CHAGAS, 2001, p. 212)
53
Esse conceito de que as estruturas narrativas de uma comunidade tradicional
estão inscritas no território é fundamental no sentido de que a história do território
vai sendo construída através de práticas localizadas que se asseguram de
recursos locais para reproduzirem tramas contínuas de relações de
reciprocidade.
54
4. RELAÇÕES DE RECIPROCIDADE ASSIMÉTRICAS COM AGENTES DO
PODER PÚBLICO E FAZENDEIROS LOCAIS
Tendo tratado das relações de reciprocidade no interior da comunidade,
discuto neste capítulo, as relações raciais entre quilombolas e brancos, como
relações, simultaneamente, racializadas e dissimuladas através da reciprocidade
assimétrica.
Busco demonstrar neste capítulo como através de estratégias de
condescendência, os agentes mais poderosos do entrono buscam regular as
relações de assimetria com os quilombolas de modo a fazer prevalecer os
interesses, em tramas de relações fundadas em reciprocidade.
4.2 Assimetrias com os fazendeiros locais
Seguindo a solicitação das lideranças da comunidade Peixoto dos
Botinhas, durante o final do s de junho de 2009, procurei pelo comerciante
mais antigo da região, a quem os quilombolas citam com alguém que sabe de
muitas histórias e sempre os ajudou quando precisaram. O comerciante chama-se
Pedro Felipe, tem 94 anos e encontra-se ainda lúcido. Ele mora no Beco do Pedro
Felipe ao lado do Beco dos Botinhas. Recebeu-me muito bem em seu comércio e
fez questão de ressaltar que o beco onde mora leva o seu nome, pois ele sempre
foi muito bem quisto pelas pessoas da região.
A arquitetura do comércio não mudou, ele preserva as balanças de
décadas passadas e atualmente ele e a esposa vendem somente bebidas e
possuem mesa de jogos. Mas no mesmo beco os seus filhos construíram duas
modernas lojas, sendo uma agropecuária e a outra um mini mercado que é
franquia de uma rede de supermercados espalhados pelo Rio Grande do Sul.
Pedro Felipe sempre é citado pela comunidade, por conta da sua
participação nos bailes nas duas comunidades e segundo suas narrativas ele
55
“sabia muito bem quando não era bem vindo nas festas”, mas nunca foi impedido
pelos “morenos” de entrar nas festas. A sua família era totalmente contra sua
relação de amizade com os “morenos”. Quando ele assumiu o comércio da
família, proporcionou crédito para as famílias quilombolas, o chamado “caderno”.
Os quilombolas do Peixoto dos Botinhas “sempre pagaram em dia suas
despesas”. Mas os quilombolas do Cantão das Lombas, segundo ele, tinham
dificuldade em pagar, dessa forma ele sempre aceitava como pagamento, vacas,
terneiros, galinhas, porcos e terras. Inclusive ele mostrou que boa parte das terras
que possui se deve ao pessoal do Cantão. Quando as terras acabaram, as
pessoas trabalhavam para ele no mercado ou em suas lavouras.
Relatou ainda, que quando os quilombolas do Cantão conseguiram quitar
suas dívidas no mercado. Começaram a pedir comida e roupas, nas casas dos
granjeiros e fazendeiros da região, o que segundo ele se perpetua. E quando sua
esposa os vê chegando próximo ao comércio ela grita: “... lá vem os pedichões do
Cantão!”. A esposa acompanhou toda nossa conversa durante os três dias em
que visitei Pedro Felipe. O seu semblante mudava sempre que ele falava das
terras e dos apelidos que foram dados aos quilombolas. Em alguns momentos o
desconforto dela era tamanho que se retirava dos locais onde estávamos.
O Beco do Pedro Felipe é uma via de melhor acesso para a Comunidade
Cantão das Lombas. Em frente ao comércio do Pedro Felipe existe uma figueira
centenária, que foi cenário de muitas situações. Quando a comunidade se
deslocava para compras ou festas sempre passavam pelo comércio do Pedro
Felipe e descansavam a sombra da figueira. Foram providenciados coxos para
dar de beber aos cavalos, cravados pequenos tocos para amarrá-los e ainda
construíram bancos para que as pessoas pudessem descansar a sombra da
árvore antes da longa jornada e foi o principal local em que parávamos após as
caminhadas pelas terras do comerciante.
Nos três dias que mantive contato com o Pedro Felipe, percebi um certo
desconforto entre os demais comerciantes do local, principalmente pelos políticos
locais. A todo o momento que me viam junto a ele, perguntavam de onde eu era,
o que fazia por lá, quais os meus interesses com os “morenos” dos Botinhas ou
se eu possuía algum parentesco com a comunidade. E eu fui respondendo a
56
todas as perguntas, informando que sou pesquisadora da Universidade, sem
vínculos de parentesco etc.
A partir deste contato foi possível perceber que as relações de patrões e
empregados se perpetuam em modalidades de relações assimétricas de
reciprocidade. Até hoje, quando o comerciante precisa de força de trabalho para
as suas lavouras é nas comunidades que ele busca mão de obra barata. A
conformação das identidades de patrões e empregados, nesse caso aqui exposto,
dos fazendeiros e dos quilombolas, não destoa do que Brandão discorre sobre
identidades:
[...] as identidades são representações inevitavelmente marcadas
pelo confronto com o outro; por se ter de estar em contacto, por
ser obrigado a se opor, a dominar ou ser dominado
14
, a tornar-se
mais ou menos livre, a poder ou não construir por conta própria o
seu mundo de símbolos e, no seu interior, aqueles que qualificam
e identificam a pessoa, o grupo, a minoria, a raça, o povo.
Identidades são, mais do que isto, não apenas o produto inevitável
da oposição contraste, mas o próprio reconhecimento social da
diferença. (BRANDÃO, 1986, p.42).
E, nesse “reconhecimento social da diferença” em regiões onde se
localizam as comunidades quilombolas essa relação social é composta por uma
relação assimétrica, marcada por uma estrutura de dominação, como está bem
delimitado na região do Cantão.
Quando os “pedichões do Cantão” batem a sua porta em busca de sobra
de alimentos e roupas ele os “ajuda”, mas há troca de favores. Ou seja, a troca se
sob forma de trabalho na casa dele, no comércio ou na lida com os animais.
Considero essa relação como uma forma de reciprocidade negativa. Cardoso de
Oliveira (2003) destaca no conceito de reciprocidade negativa, o fato de que pode
ser plenamente traduzida em evidências materiais, refletindo um desequilíbrio
acentuado no valor dos bens trocados. a negação da dádiva se expressa em
14
E essa relação de dominantes e dominados, também podemos nos apoiar em Deleuze quando
ele diz: “O que define um corpo é esta relação entre forças dominantes e forças dominadas.
Qualquer relação de forças constitui um corpo: químico, biológico, social, político. Duas forças
quaisquer, sendo desiguais, constituem um corpo a partir do momento em que entrem em relação:
é por isso que o corpo é sempre fruto do acaso”. (2001, p.62).
57
uma ausência de deferência ostensiva, percebida como um insulto ou ato de
desconsideração, que frequentemente não pode ser traduzida em evidências
materiais. É pela recusa a negação da dádiva que a relação de supremacia racial,
como modalidade de violência doce, pode passar se não dissimulada, pelo menos
inquestionável.
Outro comerciante chamado Valdivino (87 anos), anos era o mascate da
região. Sua família levantou um rancho próximo do território fundado pelas
primeiras africanas que chegaram à região. Segundo ele, seus avós contavam,
que as africanas levaram muito tempo para casar e constituir família mas tiveram
filhos antes de casamento. Como as africanas e seus filhos o possuíam
dinheiro para adquirir os produtos que vendiam, eles utilizavam a mão de obra
como moeda de troca. Valdivino relata que “Seu Afonso” do quilombo dos
Botinhas era muito bom na confecção de cercas de taipa:
[...] o Seu Afonso fazia uma cerca como ninguém, ele fez cerca
pra todo mundo aqui da nossa região, e ainda ensinou o pessoal
do Cantão, tanto é que quando começaram o pessoal das
sesmaria começou a pegar a terra aqui, o Seu Afonso mais o
pessoal do Cantão pegaram um dinheirinho bom fazendo cerca.
(VALDIVÍNO, Fazendeiro e ex-comerciante da região do Capão da
Porteira)
Meu contato com o seu Valdivino, se deu também por intermédio da
comunidade dos Botinhas e do seu Pedro Felipe. A casa do ex-mascate fica
localizada na divisa das duas comunidades. Fui recebida por ele, nas duas vezes
que estive lá, na rua, mais precisamente do lado de fora da porta da cozinha. A
comunidade conta que a única pessoa “morena” que entrava na casa dele era a
Tia Pretinha, que faleceu no final do ano de 2008. A mesma faleceu com 89 anos
e trabalhou a vida inteira para ele, foi seu primeiro e único emprego. Enquanto eu
conversava com ele, Décio que me acompanhava, foi “convidado” por seu
Valdivíno a ir até a roça colher aipim, abóbora e caqui. Décio se dirigiu aa roça
e o mascate comentou que toda vez que ele precisa de ajuda, pois está velho
demais pra fazer o trabalho da roça, conta com a ajuda do Décio para colher e
58
plantar. Mas infelizmente não presenciei nenhum tipo de agradecimento verbal
nem sob forma de troca de produtos que foram colhidos.
É essa supremacia baseada em reciprocidade que possibilita um padrão
de relações raciais em que os fazendeiros simultaneamente se apresentam como
protetores condescendentes e guardiões de uma moralidade local. Sob esse
padrão de relações a criação de uma associação de moradores é altamente
improvável, o que faz com que sua emergência seja efetivamente um
acontecimento.
Em outra ocasião de campo pude perceber que esse padrão de relações
de reciprocidade se estendia do exterior ao interior das relações entre as famílias
das comunidades quilombolas. Após a janta, em uma das casas em que estava
hospedada, de Zilda e Maia no Cantão das Lombas, fomos surpreendidos pela
Alvina. Ela é uma senhora de 64 anos, quilombola do Cantão, a sua casa é a
mais humilde de todas na comunidade e fica a margem de uma sanga. Todas as
vezes que tentei ir até para conversar e conhecê-la, ela sempre tinha
compromisso e não podia me atender. Por não pagar mais passagem de ônibus
ela sai diariamente com as filhas ou com o esposo para arrecadar alimentos e
roupas para a família nas redondezas e no centro do município. Costumo
encontrá-la com freqüência no ponto de ônibus no centro de Viamão, sempre com
muitas sacolas e sacos, embarcando para o quilombo.
59
FIGURA 7: Cantão das Lombas – Residência de Alvina
Alvina bateu palmas e foi chamando os donos da casa do lado de fora da
porteira perguntando se havia sobrado janta. Zilda e Maia pediram que ela
entrasse, pois ainda tinha janta. Alvina entrou jantou e trouxe um pote plástico
para levar as sobras para casa. Ela é casada com o irmão mais velho de Maia. E
os seus filhos, o esposo e ela são conhecidos como os “pedichões do Cantão”.
Alvina jantou, tomou café e chimarrão, se despediu de todos, levou as sobras,
agradeceu e foi embora.
Maia foi dormir e as mulheres organizaram a cozinha que também era o
meu local de descanso. Ficamos conversando sobre a Alvina e Zilda me disse
que a conheceu quando ela tinha 20 anos. Alvina saia pelas casas e pelo
comércio, pedindo roupas e comida,
“... ela pedia tudo que via, se ela via uma banana em cima da
mesa ela pedia! A finada mãe dela era igualzinha. Saia da
60
Barrocada onde moravam e ia di a no Tapumes pedir, ela
aprendeu assim e eu acho que faz até hoje porque já veio da mãe
dela isso. que aí todo mundo acha que é nós tudo aqui do
quilombo que somo assim. Mas com a gente é diferente. A gente
ganha muita coisa das pessoa e o que a gente não quer a gente
pra quem precisa. Mas a Alvina não divide nada, se não serve
ela guarda até estragá só pra não dá pros outro.”
Segundo Maia e Zilda, Alvina e a família moravam na Barrocada
conhecido antigamente como Capão Alto, localizado entre os Botinhas e Cantão
das Lombas. A mãe de Alvina era doente e não tinha como sustentar os filhos
pequenos e pedia comida nas fazendas e na casa dos quilombolas do cantão e
dos Botinhas. Quando casou com o irmão do Tio Maia, trouxe a mãe para morar
com eles no Cantão. Nas caminhadas que fiz pela comunidade pude ver que no
terreno onde Alvina mora representa espacialmente uma outra ilha localizada no
território da comunidade, há 4 casas distribuídas geograficamente que formam um
círculo. Nessas casas moram duas filhas da Alvina que são casadas com os filhos
de um irmão do Maia e em outra casa mora uma prima com 87 anos. Dois filhos
da Alvina são peões em uma cabanha, que se localiza próximo, a Capivari e final
de semana visitam os pais. Na casa da Alvina 12 crianças com idade entre
zero e 14 anos. Das 12 crianças sete tem distúrbios mentais. Não horta nem
plantações e pelo que me informaram eles não plantam na terra de ninguém nem
prestam serviço em fazendas ou para os vizinhos. Alvina e o esposo recebem
aposentadoria de agricultores rurais e em época de colheita Zilda e outros
parentes mandam batatas, milho, feijão e aipim para a família, pois todos sabem
que eles não plantam.
A naturalização desse padrão de relações se constituiu nas metamorfoses
escravo em regimes de servidão mais ou menos encobertos. A exemplo disso
pude presenciar em uma outra ocasião num almoço na casa da Zilda. Enquanto
preparava o almoço para esperar uma prima que ia visitá-la, matou duas galinhas,
fritou na panela de ferro e preparou macarrão. Entre uma tarefa e outra as Zilda
conversava sobre as suas lembranças de uma infância difícil em que começou a
trabalhar cedo. Aos seis anos ela cuidava de outras crianças “...eu reparava os
nenês no berço, pras mãe trabalhar e passar roupa, arrumar a casa e descansar.”
Este seu primeiro trabalho foi na fazenda Luciana que fica na divisa do quilombo
61
do Cantão das Lombas com Santo Antônio da Patrulha. Trabalhou nesta fazenda
até completar 13 anos, depois foi trabalhar em Porto Alegre na casa da filha da
dona da Fazenda ficou, até aos 16 anos. Foi quando decidiu voltar para cuidar
da mãe que estava muito doente. Começou a namorar Maia, a sua mãe faleceu e
continuaram morando na casa, foram aumentando com o tempo, pois a família
cresceu com a vinda dos quatro filhos. Zilda diz nunca ter recebido dinheiro em
troca do trabalho que desempenhou na fazenda, ganhava apenas roupas, comida
e um lugar para dormir. Sua mãe também ganhava roupa e comida pelo fato de
Zilda trabalhar lá. Na sua narrativa ela reflete como conseguia dar conta do
trabalho com tão pouca idade,
...Luciana, as coisa era ansim mesmo naquela época, hoje a
gente diz que explorava nós tudo né. Tu eu era uma criança
que cuidava de outra criança. E ainda apanhava quando os nenê
chorava. (ZILDA – Cantão das Lombas)
Nesse dia enquanto preparava o almoço Zilda reclamou de dor de
cabeça, quis tomar um chá antes do almoço, começou a demonstrar cansaço
físico e um olhar vago. Optou por encerrar a conversa sobre a sua vida de
trabalho na infância. Percebi que certas lembranças, principalmente as de quando
apanhava de seus patrões não havia lhe feito bem.
4.3. Das redes de assimetria à organização corporada
Esse padrão de reciprocidade assimétrica, ao mesmo tempo em que
fragiliza a autonomização das comunidades reforça as fronteiras raciais. Pude
presenciar algumas vezes o fato de que os granjeiros e fazendeiros se sentem à
vontade em freqüentar reuniões da Associação dos Botinhas com o INCRA.
Atualmente o Salão Princesa Isabel é onde ocorrem às reuniões da Associação
quilombola é bem freqüentado por granjeiros e fazendeiros. Quando
62
representantes da comunidade realizam reuniões para tratar de questões
relacionadas ao quilombo, como o salão é, em princípio aberto a todos e tem
características de comércio, eles sentem-se à vontade para freqüentá-las.
Em uma reunião que ocorreu com a presença do INCRA, havia mais
granjeiros e fazendeiros do que os quilombolas. Causou enorme desconforto
entre os dois lados e os efeitos desta reunião se deu sob forma de desemprego
em massa entre os quilombolas. Desde esta reunião os quilombolas que
trabalhavam como efetivos nas fazendas, só atuam na região sob forma de
empreitada em épocas de colheita ou plantio. E foram empurrados para a zona de
urbana de Viamão e Porto Alegre em busca de emprego.
Apesar do constrangimento físico e, sobretudo moral, a comunidade
continua se mobilizando e tem tido possibilidades de acessar as políticas públicas
do município. No mês de agosto de 2009, eles acionaram o poder público
municipal por duas vezes, pois o único Posto de Saúde da comunidade estava
sem médico. Também o acionaram quando seus adolescentes estavam prestes a
perder o auxílio concedido pelo governo - Bolsa Família por erro no cadastro da
Prefeitura Municipal. Convocaram também a Comunidade do Cantão das Lombas
para irem juntos até a Prefeitura reivindicar por melhorias em ambas as
comunidades. Foram recebidos pelo Prefeito, e o mesmo se responsabilizou em
levar um ônibus da Secretaria da Saúde a cada 15 dias com dicos e
enfermeiros para atender as comunidades.
63
FIGURA 8: Quilombolas do Cantão das Lombas e dos Botinhas em reunião com o
Prefeito de Viamão.
Fonte: http://www.viamao.rs.gov.br/viamao/visualizacao_noticias.php?idnoticia=433
A exigência que o Prefeito fez foi a de que o ônibus iria atender as duas
comunidades em frente ao Salão Princesa Isabel no Beco dos Botinhas. Para isso
o Cantão das Lombas deveria se deslocar até lá para obter atendimento. Após as
comunidades marcaram uma reunião interna para decidir como o deslocamento
do Cantão das Lombas seria feito nos dias de atendimento do ônibus da saúde. E
ficou decidido que duas carroças de boi dos Botinhas seriam cedidas para fazer o
transporte das pessoas. Em uma seguiriam os mais velhos e na outra as crianças
e os jovens. Esta iniciativa do transporte em carroça de bois teve êxito somente
uma vez, pois na segunda vez, além do ônibus da Prefeitura não comparecer no
local combinado às pessoas do Cantão tiveram dificuldade em se deslocar por
questões climáticas.
Fora o ocorrido, é importante pontuar que no mês de junho de 2009, fui
convidada pela comunidade dos Botinhas a participar de uma reunião na
comunidade do Cantão. Essa reunião era de apresentação da nova equipe da
prefeitura responsável por atender as demandas das comunidades. A reunião
contou com a presença da prefeitura de Viamão e decorreu de poucas falas
64
quilombolas, as pessoas que faziam parte da comunidade Cantão, não se
pronunciaram, apenas ouviram e os quilombolas dos Botinhas, solicitaram
intervenção apenas na sua comunidade.
Desde 2004 que as reuniões da comunidade Cantão das Lombas são
realizadas no espaço da Igreja de cunho católico -, que localiza-se dentro do
território quilombola, e é chamada de “Igrejinha”. Em 2006 o Pároco de Tapumes,
proibiu a comunidade de se reunir no espaço, ele alegava que o local era
destinado a orações, missas, batizados e casamentos não para reuniões
quilombolas. Com a troca de pároco, a Igreja ficou fechada e atualmente é
administrado pela liderança quilombola Edson. E quando lhe é perguntado sobre
a realização de reuniões no espaço da “Igrejinha” ele responde: “...só vamo fazê
reunião na Igrejinha quando vié argúem importante nos visitá”. Pois quer manter o
lugar bonito e tranqüilo, considera que a Igreja não seja o local para discussões.
Considera também que quando se encontram para reunião muita “gritaria” e
Jesus Cristo pode não gostar.
Com o fato da comunidade do Cantão das Lombas realizar reuniões em
seu espaço, considerado para receber as visitas, convidando os “de fora” ali
representados pelo poder público e pesquisadores -, e os “de dentro”
integrantes das comunidades dos Botinhas e do Cantão o estabelecimento de
relações de reciprocidade simétrica entre os “de dentro” é evidente. Pois a
reciprocidade é o princípio pelo qual a produção é dada a outros num espírito de
solidariedade, quer dizer no marco de uma relação entre pessoas tendo
consciência de uma comunidade de interesses que leva a uma obrigação moral
de apoiar os outros. E por meio da reprodução das dádivas entre pessoas ou
formas simétricas da organização social, a produção dada é valorizada pelo seu
valor de uso ou seu valor simbólico. (CASTEL, 2006).
65
5. INTER-RELAÇÃO COM OUTRAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS
Percebe-se pelo inventário do capítulo anterior, sob que obstáculos uma
comunidade se impõe diante de seu entorno racializado como remanescente de
quilombos. Neste capítulo, devo explicitar que as associações, como espaços de
reivindicação territorial, se sustentam não apenas graças ao histórico de relações
de reciprocidade que aferram as pessoas ao espaço, mas também graças às
relações de dádivas políticas entre as comunidades que já se apresentaram
nesse espaço de emergências.
Já discuti as relações internas, no terceiro capítulo, apoiando-me em
autores como Woortmann (1995) que trabalharam a reciprocidade entre famílias
camponesas. Verifiquei tal como nesses estudos a importância do parentesco
para a manutenção das famílias rurais em um território tradicional comum. Cabe
neste tópico analisar como na relação entre os troncos familiares de
descendência dos Botinhas e do Cantão, inseridos em territórios diferentes, as
alianças possibilitam o acesso a políticas públicas.
A intensidade da sociabilidade é justificada nas falas por ser entre
territórios vizinhos e que além de vizinhos o parentes. Ao teorizarem sobre a
relação entre as duas comunidades, os moradores não deixam de levar em
consideração a importância da rede que se criou e se fortaleceu com o passar
dos tempos e que também gerou confiança entre os participantes. É essa
confiança que sustenta as atuais ações políticas conjuntas.
66
5.1. Inter-relação com a Comunidade Remanescente de Quilombos Cantão
das Lombas
As relações de parentesco entre membros dos Botinhas com a
Comunidade do Cantão das Lombas são grandes. Uma das lideranças
quilombolas dos Botinhas é o responsável pelo único cemitério da região, e
possui em casa muitas certidões de óbitos. A partir da verificação de algumas
certidões de óbito e uma tentativa de montar a genealogia para ver a ligação de
parentesco com o Cantão das Lombas, foi possível identificar que os sobrenomes
mais comuns nos Botinhas são: Moren Peixoto e Cardoso Lopes. No Cantão das
Lombas são Gomes e Rosa. Inclusive foi possível identificar a certidão de óbito de
uma filha da africana Pelônia
15
.
FIGURA 9: Família Moren Peixoto – Quilombo Peixoto dos Botinhas
Fonte: Acervo da Associação Peixoto dos Botinhas
Na comunidade dos Botinhas, perpetua-se o hábito da lida com gado e da
utilização de carretas de boi para se locomoverem de uma comunidade a outra. E
15
Ver anexo.
67
foi nesse meio de transporte que me levaram para visitar o Seu Afonso, figura
ilustre na comunidade dos Botinhas. Ele mora a aproximadamente 35 km do
vilarejo, onde residem grande parte das famílias, o local faz divisa com Santo
Antônio da Patrulha e com o Cantão das Lombas e a paisagem é de mata
atlântica. Neste local existem três casas, uma do Seu Afonso que mora com a
filha, uma do neto e a outra da sobrinha do Seu Afonso. Este cleo familiar teve
acesso à energia elétrica apenas em 2007, no local não saneamento básico, a
água é coletada há séculos numa vertente que fica localizada no terreno da
família, mas já faz parte de Santo Antônio da Patrulha. Para chegar até a vertente
é preciso caminhar aproximadamente 1 Km, nem a carreta de boi passa pelo
caminho que leva ao local. A casa do Seu Afonso foi construída em cima de uma
pedreira, como ele está com 89 anos e tem dificuldade de se locomover, quase
nunca sai de casa. Ele sai para ir à Igreja Universal, inclusive ele exibe os
diplomas de membro da Igreja, dele e da filha na parede da sala da casa. Bem
como a televisão que sempre foi o seu sonho de consumo e conseguiu conquistá-
la com a chegada da luz. A chegada da luz se deve ao Programa Luz Para Todos
do Governo Federal, por iniciativa da comunidade que exigiu do poder público luz
para as três famílias que residem com o Seu Afonso. Seu Afonso disponibiliza
pequenos pedaços de terras, para que as famílias quilombolas dos Botinhas que
moram no vilarejo e não tem espaço pra plantar, plantem na sua terra. Quem
planta lá, sabe bem onde é o seu espaço e ajuda no plantio e na colheita dos
demais.
68
FIGURA 10: Família do Sr. Afonso Silva – Quilombo Peixoto dos Botinhas
Fonte: Dados da pesquisa empírica realizada em junho/2009.
Seu Afonso confirmou as histórias do Seu Valdivino o mascate - e fez
questão de dizer que nunca trabalhou de graça para ninguém e sempre foi muito
respeitado por todos da região, sejam brancos, negros, do Cantão ou dos
Botinhas. Seu Afonso não sabe direito das suas origens. sabe que ele foi
“dado” quando pequeno, para ser criado para um casal de granjeiros de Águas
Claras (outro bairro de Viamão) e quando cresceu e se casou com uma
quilombola dos Botinhas, escolheu ir morar no quilombo e criar sua família
próximo aos parentes da esposa. A escolha do local para morar se deu também
segundo ele: “... as festas que eram muito boas ..., então é melhor morar perto
das festas do que ter viajar sempre e ir embora cedo.”
Seu Afonso está muito debilitado devido à idade e os anos de trabalho na
construção de taipas. Em suas narrativas ele se emociona ao falar da esposa e
sente muito sua falta, Dona Felicidade faleceu 8 anos e ele gosta de relembrar
os bons momentos em que passaram juntos e das histórias que ela contava da
Africana Pelônia. Quando a esposa dele era viva eles realizavam muitas festas lá,
inclusive tinham um galpão pra fazer festa, e quando as pessoas iam pra lá,
69
tinham que ir pra ficar. Não tinham como voltar pra casa e ao amanhecer a festa
continuava. Ao ser indagado por mim, o que tanto festejavam, ele me respondeu
com um olhar sério:
[...] ora, a gente festejava a vida, a gente festejava quando
acabava alguma empreitada, quando acabava uma cerca na terra
dos granjeiros e quando recebia uns pila também né... risos. (SEU
AFONSO – Comunidade Peixoto dos Botinhas)
Ao cair da noite, Seu Afonso me contou que quando não tinha luz, era
com lampião que o povo se “virava”. Agora que possui luz ele até estranha, mas
na hora das novelas ele exige silêncio. Ninguém pode conversar e todas as luzes
têm que ficar apagadas pra economizar energia. Nesta noite antes de nos
recolhermos pra dormir a filha do Seu Afonso fez uma corrente de orações
agradecendo minha presença, após comemos angu com leite e todos se
recolheram. No dia seguinte, Seu Afonso me mostrou os macacos Bugios-
Ruivo - que segundo ele são uma família e o bugio mais velho tem a idade dele,
depois me mostrou fotos, muitas fotos e fez questão de dizer que não
participou do conjunto musical dos Botinhas porque não tinha ritmo.
Ao procurar conhecer os mais antigos da comunidade dos Botinhas,
conheci a Tia Pequena. Tia Pequena foi à mulher que revolucionou a
comunidade, pois ela casou aos 46 anos com o Seu Jones que na época tinha 18
anos. Se conheceram num baile na Comunidade dos Botinhas, Jones é
quilombola do Cantão das Lombas e trabalhava na mesma fazenda que Tia
Pequena. Ela é chamada assim, pois é muito pequena deve ter menos de 1,50m
de altura. O casal não teve filhos, mas possuem mais de 20 afilhados que
consideram como filhos. A casa do casal é toda decorada com símbolos
tradicionalistas, chapéus de rodeio, ferraduras, guampa de boi, cabeça de boi,
tapete com pele de boi. Seu Jones e Tia Pequena gostam muito dos festejos da
semana farroupilha e de rodeios. Possuem quatro cavalos e participaram anos
das cavalgadas tradicionalistas. Tia Pequena atualmente sofre de dores crônicas
nas costas e nas pernas e quando tem muita dor ela chama o Décio pra fazer
70
rezas e benzeduras nos locais das dores. Ela acredita muito nas rezas do Décio
que também é afilhado dela e tem grande estima e respeito por ela.
As relações de afetividade e sentimento de pertença ampliam cada vez
mais a ligação com a Comunidade do Cantão das Lombas o que possibilita o
fortalecimento do pertencimento do grupo com base nas relações de
consangüinidade, que com o aprofundamento da genealogia e a distinção dos
troncos irá facilitar o entendimento parental de ambas comunidades.
Nestas falas e no convívio que tive durante dois meses e meio no intuito
de intensificar a proposta etnográfica, foi possível perceber os vínculos entre as
comunidades. Além dessa troca de ensinamentos como é o caso da construção
de cerca de taipa, as festas e as lutas para melhores condições de vida e acesso
a saúde.
Sobre a troca de ensinamentos no Cantão das Lombas há uma pessoa de
fundamental significância que sempre é citado nas narrativas dos Botinhas, Seu
Arno Gomes que é primo da Edegi Gomes que mora nos Botinhas e Irmão de
Nilza Gomes que mora na Comunidade de Limoeiro em Palmares do Sul portanto
é um tronco importante de ser estudado genealogicamente. Seu Arno é conhecido
por todos pelo apelido “Tio Cai-Cai”, aos 70 anos de idade ele é detentor de
conhecimentos sobre o que é considerado agroecologia, ervas medicinais, cultivo
de plantas e de hortas. Em 2005, quando do meu primeiro contato com a
comunidade ele foi à primeira pessoa com sede reivindicar pelos os direitos da
comunidade quilombola. Todas as vezes que foi preciso se dirigir ao Ministério
Público Federal - MPF para exigir direitos e cumprimento da lei, eu acompanhei o
receio que ele tinha por ser analfabeto. Ele achava que não podia falar com
outras autoridades de fora da comunidade por não saber se expressar e não ter o
dom da leitura.
Cai-Cai mantém contato diário com seus irmãos, pois todos moram na
comunidade com exceção da sua irmã viúva que mora em Palmares do Sul na
comunidade quilombola de Limoeiro. E como ela mora sozinha e está muito longe
da família, irá se mudar e morar ao lado da casa do Cai-Cai, onde morava a mãe
deles que faleceu recentemente. Ele demonstrou ser bastante sensível a
questões de saúde e disponibilidade para ajudar sempre que solicitado, preocupa-
71
se em auxiliar e fazer o bem para as pessoas, para também ser merecedor de
auxílio, quando necessário. Tem medo de ficar mais velho e não ter alguém para
cuidar dele e acabar tendo o mesmo fim do seu Tio Fortunato e acabar num asilo.
Sua fala é carregada de humildade, uma mistura de sentimentos como
alegria e orgulho por ser mantenedor de muitos saberes, desde conhecimentos
específicos rurais que aprendeu sozinho- sobre a terra até a sabedoria de como
viver bem e em paz com a natureza, sempre respeitando os seus limites. Quando
o assunto é terra ele expressa grande preocupação em relação ao
reconhecimento e legalização das terras, teme em perder o rancho onde é
morador tantos anos, pois o tio Fortunato permitiu que ele morasse com a
família “de boca”, não deixou papéis documentados sobre isso. Alega que se tiver
que sair da casa não tem para onde ir. A todo o momento se diz ser analfabeto e
demonstra medo ao pensar que se alguém bater a porta dele e pedir
apresentação de documentos ele não tem como provar o seu direito. Pois sabe
que nada se comprova apenas verbalmente, em especial na questão das terras.
Segundo Tio Cai-Cai são todos parentes, mas mesmo assim fizeram
questão de separar seus lotes de terra para se precaver da apropriação indevida
por parte de estranhos. Em 2005 lembro que a comunidade era cercada de muita
mata nativa e agora em 2009 o que se o apenas campos limpos. Isso se
deve a apropriação indébita de forasteiros que arrendaram terras de uma prima
do Tio Cai-Cai para plantar eucalipto. E ele juntamente com as lideranças
conseguiu embargar o plantio e impediram que continuassem desmatando e
utilizando venenos na terra. Mas o resultado é que hoje a área que começou a ser
modificada sofreu as conseqüências e o Tio Cai-Cai diz que agora onde eles
mexeram vai ser difícil nascer mais alguma planta.
72
FIGURA 11: Quintal da residência do Sr. Arno Gomes “Tio Cai Cai” – Quilombo
Cantão das Lombas
Fonte: Dados da pesquisa empírica realizada em junho/2009.
No pátio da casa dele possui vários tipos de ervas medicinais, flores,
árvores frutíferas e animais de pequeno porte como porcos, galinhas e cabritos.
Ele guarda com muito orgulho ferramentas e uma carreta antiga feita de aço, que
foi herança do pai dele. Com aquela carreta ele se deslocava para os bailes na
comunidade dos Botinhas, inclusive o apelido se deu por conta de uma música
que era tocada pelo conjunto e tinha no refrão a melodia “Cai Cai, vai Cai Cai”.
Ele conta que o Bota tocava só pra ele essa música.
Mas em meio a uma conversa e outra sempre vinha a tona a sua
preocupação com o futuro da comunidade. O seu desejo é de que a comunidade
tenha uma associação como forma de proteção aos seus direitos sobre o
território. Durante o tempo em que convivi com ele e a família, foi possível
conhecer de perto as deficiências do local. A extensão territorial que permeia a
comunidade é grande, são muitos hectares. Ele conta que apouco tempo não
havia necessidade de possuir cerca nas casas. O gado era criado solto e eles
tinham o cuidado com os barrancos, para o gado não se perder nos campos. Mas
com o passar dos tempos muitas famílias foram vendendo pequenas porções de
terras para pessoas “de dinheiro” e eles se viram obrigados a construir cercas
73
para proteger o que é seu no caso aqui as terras. Fomos até a lagoa dos
Tapumes que faz divisa com Viamão separando os dois municípios. E ele me
mostrou a precariedade da água que abastece a comunidade. Os exames
laboratoriais realizados pela secretaria da saúde apontam altos índices de
contaminação. São poucas as casas que possuem banheiro completo, 70% ainda
utilizam latrinas o que aumenta a proliferação de coliformes fecais na água que é
consumida.
A casa do Tio Cai-Cai está situada em um local muito agradável, em
especial o quintal, onde uma plantação de taquareiras que balançam com
soprar do vento que além de oferecer um pouco de frescor no ar, também
oferecem um suave som, ruídos produzidos pelo toque de uma taquara batendo
na outra. Ele possui um rancho onde guarda as ferramentas, ao no lado de fora
existem grandes recipientes de plástico os quais coletam água da chuva. Ele
assistiu em programa de tv como era o procedimento de uma cisterna, como não
tinha condições financeiras para construir uma, adaptou os recipientes plásticos.
A grande preocupação da família é ter água limpa para consumir.
Tio Cai-Cai quando criança morava com a sua mãe Maria Luiza Gomes, e
suas cinco irmãs: Vilma Gomes, Nilza Gomes, Jorge Gomes, Claudio Gomes, e
Ismael Gomes, apelidado de Maia. cem anos atrás a grande maioria das
crianças da comunidade, não recebiam o sobrenome paterno. Mesmo quando
cientes da paternidade, como forma de evitar conflitos entre as mulheres, os pais
evitavam registrar os filhos. Seu Arno diz que o pai dele se chamava Francisco
Alves e era considerado "riuno", o que significa ter pelo menos um filho em cada
família.
As terras, onde morava sua falecida mãe, foram ganhas "de boca", de
uma mulher negra conhecida como Maria Grande. Tio Cai-Cai me levou até o
local das terras, passamos por 2 banhados e 2 córregos. No caminho até o local,
ele parava a todo o momento mostrando a importância de ter a área do córrego
com vegetação. Ele diz que quando se desmata um córrego a água vem atrás do
que é dela e é por isso que as tragédias estão acontecendo. A natureza está
querendo de volta o que a gente tirou dela e não devorveu”. Mostrou-me a
diferença do solo quando nos aproximávamos dos banhados sempre apontando o
74
que é bom para plantar em cada tipo de solo.
Chegando ao local visualizei uma belíssima fazenda, muito bem equipada
e cercada, inclusive cerca elétrica. Ao avistar o local Tio Cai-Cai disse: aqui que
a gente morava e era feliz... a gente tinha terra pra plantar. Minha mãe gostava
muito de plantar”.Ele conta que quando era criança por volta de 13, 14 anos,
foram surpreendidos por um fazendeiro que começou a cercar as terras vizinhas,
até que a família ficou sem ter onde plantar. A mãe dele pediu permissão para
Maria grande, vendeu as terras para o fazendeiro e dividiu o dinheiro entre ela e a
amiga.
Tio Cai-Cai não tem idéia de quanto foi o valor das terras que foram
vendidas, mas lembra que a e não tinha mais o que fazer para sustentar o lar.
Foi neste momento que ela começou a ceder os filhos para trabalhar nas
fazendas em troca de casa, comida e alguns trocados. Ele foi cedido para
Fazenda de Marina Abreu e Osório Campos, fazendeiros do Morro Grande em
Viamão. Neste local ele era responsável por cuidar da roça, lavoura e do gado. Ao
ser questionado por mim sobre como aprendeu a lidar com essas práticas, ele
respondeu que aprendeu tudo com a “experimentação”. Podemos considerar que
ele seja um autodidata quando ele se refere aos experimentos que realizava.
Na roça ele aprendeu muita coisa com a mãe dele, mas, segundo suas
palavras: “... a experimentação foi o que muito me salvou”. Ele ia experimentando
novas formas de plantar, novas formas de colher até dar certo. Durante este
período em que trabalhou na fazenda até os 24 anos, vivenciou respingos da
escravização, sofria agressões físicas "...eles me batiam muito de relho!" cada vez
que os experimentos não davam certo. Neste momento em que as recordações
vinham à tona ele se emocionava a ponto de não conseguir falar. Nos dez anos
em que viveu na fazenda ele acumulou conhecimentos sobre adubagem, cuidado
com as plantas, de como plantá-las, cultivá-las, conservá-las, e também o
conhecimento sobre ervas medicinais, pois a dona da fazenda exigia tomar chás
e ele tinha a obrigação de plantar as ervas que a fazendeira ordenava e ainda
tinha que descobrir meios para cultivar cada tipo de chá. Ele considera que a
forma como aprendeu as lidas da roça e da lavoura são a melhor forma de não
prejudicar a natureza.
75
A casa do Tio Cai-Cai, localiza-se ao centro de 3 casas quilombolas, duas
delas são da sua prima, Tia Chica Francisca da Rosa Rodrigues que cedeu as
duas casas para duas outras primas que não tinham casa morar. A terceira casa
é ocupada por “Tavinho” Otávio Rodrigues, que é irmão do falecido esposo da
Tia Chica. No pátio da casa de Cai-Cai um grande lote de terra de
aproximadamente 3 hectares. Para me levar para conhecer a lavoura ele teve que
pedir para o Seu Tavinho a chave da porteira. O que ocorre é que o lote de terra
não é dele, ele planta para o Tavinho, pois na divisão de terras que Tia Chica
realizou “de bocaela entregou metade das terras que faziam parte do terreno do
Cai-Cai para Tavinho. Mas como Tavinho está debilitado para trabalhar na terra,
ele permite que Cai-Cai adube, compre as sementes, plante, colha e a metade da
colheita é entregue para Tavinho comercializar. Assim Cai-Cai cuida das terras
como se fosse dele, “gosto muito da lida com a terra, como eu não tenho eu
planto na dele. Eu sei que não é justo, porque pra mim ele é igual aos branco que
usam os nego pra trabalhar.”
FIGURA 12: Sr. Arno Gomes “Tio Cai Cai” – Quilombo Cantão das Lombas
Fonte: Dados da pesquisa empírica realizada em junho/2009.
De acordo com o Tio Cai-Cai, o local que ele mora atualmente pertenciam
a sogra e o sogro da Tia Chica, que chamavam-se Saturna Maria da Conceição e
Juvenal José Rodrigues. As terras em questão foram cedidas aos Tios maternos
do Tio Cai-Cai, que eram solteiros. E quando o tio mais velho Fortunato Damião
76
da Silva adoeceu, Tio Cai-Cai havia voltado da fazenda onde trabalhava desde
a infância. Como a mãe dele morava num pequeno rancho ao lado da casa do
Fortunato, o mesmo pediu ao sobrinho que morasse com ele para cuidá-lo. Cai-
Cai se “acuierou”
16
com a Dona Eneida Gomes que é sua esposa até hoje e sua
prima em primeiro grau e a levou para morar na casa do Fortunato. Quando
Fortunado completou 93 anos, ele pediu pra ser levado ao Asilo de Cidreira. Pois
sempre que podia ele passava as tardes por e era bem quisto por todos.
Segundo Cai-Cai, ele tinha acertado com o dono do Asilo sobre a sua
aposentadoria para pagar as despesas que fossem necessárias.
Fortunato pediu para Mario Flor, um homem branco e seu ex-patrão para
receber sua aposentadoria e pagar o asilo, o que sobrasse era para o funeral.
Quando Fortunado veio a falecer, quem cuidou do enterro e pagou as despesas
foi à família Malta (amigos de infância do Tio Cai-Cai). Tio Cai-Cai ficou muito
grato aos Malta e torna-se visível, através de sua fala, a admiração que sente
pelos mesmos.
Desde o falecimento de Fortunato, Cai-Cai vive em um pequeno pedaço
destas terras. Após a morte do seu tio parte destas terras haviam sido doadas,
em vida, para pessoas brancas, pelos seus tios que eram solteiros e que não
tinham herdeiros. Vem ainda sofrendo diversas tentativas de expulsão das terras,
por parte de um vizinho, porém ele deixa claro que irá se retirar quando
receber um outro terreno de "papel passado" em troca.
Tio Cai-Cai com seus 70 anos é aposentado, não possui bloco de
produtor rural. Além de plantar nos fundos da sua casa ele recebeu permissão de
um fazendeiro para plantar em suas terras. Nas terras deste fazendeiro ele planta
eucaliptos e pinos para ter lenha durante o inverno e para o que for necessário no
decorrer no ano, arrumar o galpão ou fazer uma cerca. Para se chegar a essa
fazenda, onde lhe cederam um pequeno lote de terra para plantar, levamos duas
horas a pra ir e duas horas pra voltar. Esta fazenda está localizada em terras
que eram da ado Tio Cai-Cai. Para poder plantar nestas terras, em troca ele
16
Acuierou” termo muito utilizado pelos mais antigos da Comunidade Cantão das Lombas para
designar os casamentos informais, ou seja, sem registro oficial em cartório e sem cerimônia
religiosa.
77
aduba toda a terra da fazenda, ou seja, prepara o solo para o plantio e cuida das
pragas que assolam as plantações com seus chás e ervas que cultiva em casa.
Cai-Cai é uma pessoa muito comunicativa, é acolhedor e receptivo.
Apesar de toda a sua comunicação fala pouco de sua família - esposa e filhos.
Demonstra um pouco de resistência quando questionado sobre o grau de
parentesco com a sua esposa (segundo seu relato, são primos, porém não e
primeiro grau). Traçando uma pequena genealogia verifiquei que são parentes
bem próximos, pois o Maia é irmão do Cai-Cai por parte de mãe, Dona Eneida é
Irmã do Maia por parte de pai e a mãe dela é irmã da mãe do Cai-Cai. Isso quer
dizer que são primos em primeiro grau. Para Woortmann (1994), as uniões
endogâmicas intrafamiliares, isto é, uniões que preferencialmente envolvem
primos em variados graus, servem ao fortalecimento de laços parentais, sendo a
aliança o fundamento do parentesco. Estudos sobre populações camponesas no
Brasil têm demonstrado a importância da relação entre território e parentesco.
Inspiro-me aqui nas análises como as de Woortmann (1994) que tratam da
relação entre as alianças matrimoniais e as estratégias de manutenção do
território. Porém, em vez de objetivar essas relações em sua dimensão
instrumentalista, percebo o território como lugar de evocação de um conjunto de
alianças. Não separo o espaço físico das evocações que se cristalizam nele. As
evocações festivas e religiosas são também o modo de acontecer do território.
Passei três dias com Tio Cai-Cai e foram três dias de muitos conflitos. A
comunidade está passando por uma fase de transição de lideranças. Onde a
lideranças atuais não querem deixar o cargo e novas lideranças querem se
empoderar e também estar à frente representando a comunidade. E essas novas
lideranças fazem parte do núcleo familiar do Tio Cai-Cai, sua filha Maria Jussara a
Irmã que veio de Palmares passar uns tempos em sua casa. Foram três dias
tentando desconstruir o papel de mediadora política, pois eu estava sendo vista
como a pessoa que havia me posicionado a favor do grupo de lideranças do
núcleo familiar do Tio Cai-Cai, pelo outro lado da comunidade. Foram três dias
que a comunidade tentou se reunir para definir novas lideranças. E nos três dias
foi impossível o diálogo entre eles, devido a desavenças pessoais. No último dia,
a esposa do Tio Cai-Cai fez um almoço na casa dela e convidou seu Maneca do
78
quilombo de Limoeiro, e as lideranças dos Botinhas para que juntos pudessem
ajudar no pleito. Seu Maneca trouxe de Limoeiro queijo e carne, os Botinhas
trouxeram abóboras e aipins e eu colaborei com as bebidas. Após o almoço nos
dirigimos ao salão paroquial que existe na comunidade para a reunião.
Seu Maneca enriqueceu a reunião, com seus relatos sobre a constituição
da associação de Limoeiro. Os Botinhas reforçaram a necessidade de estarem
unidos para constituição de um grupo coeso de pessoas para liderar e representar
a comunidade. Mas quando ambos grupos de lideranças do Cantão foram expor
seus argumentos em torno de quem deveria ficar ou não na liderança, ofensas
pessoais vieram à tona e foi necessário encerrar a reunião. As duas lideranças
estão sem se falar até hoje.
Tio Cai-Cai ficou muito envergonhado pelo ocorrido e saiu da reunião se
desculpando com todos. Chegando em casa, ele desabafou dizendo que até
gostaria de estar à frente para poder representar o grupo, mas se sente impotente
pois o sabe ler nem escrever. Seu Maneca o consolou dizendo que mesmo
sendo analfabeto nada o impede de liderar o grupo e que se isso ocorresse
certamente às discussões não ocorreriam, pois ele é muito respeitado na
comunidade.
No quarto dia em que estive lá, Tio Cai-Cai me levou pra conhecer de
perto as deficiências do local. A extensão territorial que permeia a comunidade é
grande são muitos hectares. Ele conta que até pouco tempo não havia
necessidade de se ter cerca. O gado era criado solto e eles tinham o cuidado
com barrancos para o gado não se perder nos campos. Mas com o passar dos
tempos muitas famílias foram vendendo as terras para pessoas “de dinheiro” e
eles se viram obrigados a construir cercas para proteger o que é seu no caso
aqui as terras. Fomos até a lagoa dos Tapumes que faz divisa com Viamão
separando os dois municípios. E ele me mostrou a precariedade da água que
abastece a comunidade. Os exames laboratoriais realizados pela secretaria da
saúde apontam altos índices de contaminação e infelizmente nenhuma
providência foi tomada. Inclusive o próprio Tio Cai-Cai encaminhou a demanda
para o Ministério Público Federal mas o retorno até o momento não chegou. São
poucas as casas que possuem banheiro completo. 70% das casas ainda utilizam
79
as “casinhaso que aumenta a proliferação de coliformes fecais na água que é
consumida.
Poder-se-ia ver o Tio Cai-Cai inserido na trama de relações de
solidariedade e ajuda mútua entre vizinhos e parentes como alguém que busca
uma espécie de seguro de vida de longo prazo e espera que a extensão de bens
e serviços prestados aos outros em qualquer momento, produza resultados no
futuro, na forma de ajuda em caso de ameaça. Alternativamente, vejo trama de
relações de reciprocidade atravessando os sujeitos de um território e os
constituindo naquelas práticas.
5.2. Dádivas ancestrais e a política inter-comunidades
A comunidade Cantão das Lombas é liderada atualmente por um grupo
de pessoas jovens, todas as decisões que precisam ser tomadas em nome do
quilombo o Tio Cai-Cai é procurado para dar um parecer. No dia que estávamos
indo a a fazenda onde ele planta e cuida da lavoura. Fomos abordados pelo
Edson, presidente da associação quilombola. Ele pediu para o Cai-Cai ir a a
casa dele para definirem quem iria participar de uma reunião chamada pela
Prefeitura e EMATER. Cai-Cai disse que na volta da fazenda passaríamos para
conversar.
E foi o que ocorreu, na volta passamos na casa do Edson e estavam a
esposa chamada Rosa Maria que é sobrinha do Cai-Cai. Eles nos aguardavam
com chimarrão e biscoitos de polvilho. E queriam a opinião do Cai-Cai sobre quais
pessoas deveriam ir a reunião com a Prefeitura e EMATER, pois a intenção era ir
para a reunião cobrar a assistência médica e a construção dos poços. A conversa
se deu em torno de quem deveria receber os poços e quem não deveria. Pois
Edson e Rosa questionavam que das 32 famílias quilombolas apenas 15
participam e atuam das atividades que são propostas pela associação. Então Cai-
Cai expôs a seguinte pergunta: essas outras 16 famílias quem são? São tudo
80
nosso parente não são? Então se vié poço pra um tem que vim pra todos, se vié
médico pra um, tem q vim pra todos!” Edson e Rosa não levantaram mais
questionamentos e anotaram nos papéis que foram levados para EMATER e
Prefeitura os dados das 32 famílias.
Após a reunião voltamos pra casa do Cai-Cai e no caminho ele foi
contando que agora lhe chamam pra ouvir a opinião dele sobre decisões a
serem tomadas. Pois o que ele queria mesmo era poder trocar o nome do
quilombo para Quilombo dos Valos. Pois antigamente o nome do local chamava-
se Valos devido a construção de valos que separavam um espaço do outro
(terras), onde não era necessário a utilização de cercas, pois as pessoas
respeitavam as terras, umas das outras, bem como suas plantações e suas
criações (gado, galinha, etc), utilizava-se apenas plantações de maricás nas
barrancas dos valos. E era na região de Viamão que se fazia dessa forma. Ao
ser questionado de como obteve essa informação rapidamente respondeu: “... foi
meu ex-patrão que me contou essa história”. Mas as jovens lideranças optaram
em comum acordo em colocar o nome que é conhecido atualmente.
Neste mesmo dia, a Prefeitura de Viamão entrou em contato para
informar que iriam até a comunidade fazer o cadastro do Bolsa Família e passar
de casa em casa. E quem foi avisar o Tio Cai-Cai foi a Indiajara Gomes que tem
24 anos. Ela é a mediadora das minhas idas a campo, juntamente com alguns
quilombolas do Peixoto dos Botinhas que possuem vínculo de parentesco com o
Cantão das Lombas. Me dirigi para casa dela e fomos conversando sobre essa
atividade da Prefeitura. Ela então me informou que alguns de seus parentes que
também levam o sobrenome Gomes e tem casa no distrito de Tapumes viriam
para comunidade no dia seguinte fazer o cadastro do Bolsa Família e
principalmente conversar comigo.
As 7h00 da manhã do dia seguinte chegaram seis pessoas de Tapumes
na casa onde eu estava para me conhecer e conversar. Tomamos café juntos e a
primeira pergunta que me fizeram foi a seguinte: “...Nós podemos ser quilombola
também?!”, fiquei muito surpresa e questionei o porque da pergunta. Então Onira
Gomes me questionou:
81
“... Luciana, temos muito interesse em saber se temos direito dos
quilombolas daqui do Cantão, porque nós somos todos parentes.
Olha só, eu sou filha da Vilma que é irmã do Tio Cai-Cai, sou
pretinha que nem eles, mas eu moro no Tapumes. Porque eu
casei com uma pessoa do Tapumes, entendeu? Quando a gente
pergunta pra eles aqui se a gente pode ou não fazer dos
quilombolas daqui eles não sabem nos responder.” (ONIRA,
moradora da Comunidade negra de Tapumes)
Após nossa conversa, a Prefeitura chegou para realização do cadastro
das famílias quilombolas. Cadastraram 32 famílias, batendo de porta em porta e
perguntando se a família era quilombola ou não. Quando as três famílias do
distrito de Tapumes foram fazer o cadastro foram barrados, pois a assistente
social que realizava o preenchimento de fichas cadastrais informou-os que eles
não eram quilombolas, por morarem em outro município. A partir dessa negativa
por parte da Prefeitura, eles pediram mais uma vez que eu explicasse o que era
ser quilombola e propuseram uma votação para decidir se eles fariam ou não
parte do quilombo. A aceitação não foi unânime, mas as famílias de Tapumes se
consideram pertencentes ao grupo e com os mesmos direitos. uma
conscientização coletiva das origens das famílias de Tapumes pelo resgate da
história de seus antepassados.
82
FIGURA 13: Quilombo Cantão das Lombas – Reunião com poder público municipal.
Fonte: Dados da pesquisa empírica realizada em junho/2009.
No final do dia Indiajara e a sua mãe dona Zilda, proporcionaram um
jantar para todos. No meio do jantar, fomos avisados que no dia seguinte a
comunidade receberia o INCRA, que viria com o intuito de discutir sobre as terras.
Nenhuma das pessoas presentes sabia quem tinha chamado o INCRA. A casa
da dona Zilda é bem humilde, não piso é chão batido e a casa é de madeira.
a casa onde eles dormem e recebem as visitas e a cozinha está localizada
bem ao fundo do terreno, com uma geladeira, um fogão de barro, uma cama e um
outro fogão a gás. Não mesa somente prateleiras. Para o jantar montamos
uma mesa no pátio da casa, alguns tocos de madeira serviram de bancos. Após a
janta, Indiajara me colocou a par das dificuldades que vem encontrando para se
manter à frente como liderança da comunidade e pediu minha colaboração na
organização.
Na manhã do dia seguinte, tomamos café e a ansiedade por parte da
Zilda e da Indiajara era grande a espera do INCRA. Questionaram o que INCRA
ia fazer lá, se a maior parte das pessoas que vendeu terra, não pegou papel
nenhum. Simplesmente vendeu e pronto. E o que iam fazer com os fazendeiros
83
que compraram terras e geraram empregos para eles. Elas poderiam correr o
risco de ficar sem emprego. Dessa forma, nos dirigimos para o salão paroquial da
comunidade para aguardar a presença do INCRA que infelizmente não
compareceu. Voltamos para casa da dona Zilda no final da manhã para preparar
o almoço, quando colocamos as panelas no fogo, chegou na casa dela um carro
do Sindicato dos Servidores Federais - SINDISERF com algumas pessoas que
atuam no INCRA. Saíram do veículo, se apresentaram e se desculparam pelo
atraso. Mas que foram chamados a estar na comunidade para ajudá-los no
processo de construção da associação quilombola.
Zilda os convidou para almoçar e após todos se dirigiram novamente para
o salão paroquial. Neste momento os dois grupos de lideranças que há na
comunidade se confrontaram e a discussão foi acirrada, não houve tempo para as
apresentações. O grupo de pessoas do SINDISERF tentou amenizar os conflitos
sem sucesso. Decidiram deixar telefones para contato e cópias de estatutos de
associações quilombolas para que eles pudessem ler e estudar as formas de
constituir uma associação.
Nesta mesma tarde, após a despedida do grupo do SINDISERF, a
comunidade recebeu a visita de um vereador que distribui roupas e verduras
gratuitamente no quilombo. Neste momento foi possível visualizar as quase 200
pessoas que compõem a comunidade. O vereador estava dirigindo um caminhão
cheio de donativos, ele e sua equipe distribuíram senhas por família quilombola. E
ele sabia quem era quem, pois tinha um documento com o nome de todos os
núcleos familiares quilombolas. E então foi chamando senha por senha e
distribuindo verduras, sacolas com roupas e cestas básicas. Essa distribuição
durou cerca de 3 horas.
84
FIGURA 14: Quilombo Cantão das Lombas
Fonte: Dados da pesquisa empírica realizada em julho/2009.
Zilda ficou muito animada com a vinda do vereador, ele separou roupas
tamanho grande para ela e tamanho médio para Indiajara, calçados e casacos
também tinham na sacola delas. A cesta básica tinha arroz, feijão enlatados,
produtos de higiene e limpeza. Segundo elas, o vereador vai à comunidade a
cada três meses.
O contraste entre os dois momentos políticos é interessante na medida
em que permite entender como de múltiplas formas a comunidade aceita a
reciprocidade assimétrica que configura o clientelismo tradicional e resiste a
reconfiguração das relações internas por forças externas. Devo aqui ressaltar que
mesmo que o vereador distribuía cestas básicas e verduras, fala-se na
comunidade que grande parte não vota nele em época de eleição.
Ao amanhecer recebemos a notícia de que a e do Tio Cai-Cai e tia da
Zilda havia falecido durante a noite. Nos deslocamos todos até a casa do Tio Cai-
Cai. O velório ocorreu na casa dele, pois ela morava por estar com 102 anos e
precisava muito de cuidados. Por esse motivo que a irmã dele veio de Palmares
do Sul, para cuidar da mãe. Durante o velório muitos parentes do quilombo dos
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Botinhas se fizeram presentes, bem como, os núcleos familiares que saíram do
quilombo e moram espalhados pela região metropolitana e pelas imediações de
Viamão foram para se despedir do tronco mais antigo da comunidade. Esse ritual
de passagem teve suas especificidades, vestiram a falecida com roupas pretas,
amarraram um lenço entre a mandíbula e a cabeça. As mulheres todas foram
chamadas para que ficassem em e próximo ao corpo para rezar o terço. Após,
as mulheres saíram e os homens entraram entoaram cantos e algumas rezas que
foram conduzidas pelo Décio do quilombo dos Botinhas. A esposa do Tio Cai-Cai
e as suas filhas foram para a cozinha preparar café, pão e biscoitos para as
pessoas. E cada família que chegava trazia um alimento pronto e chimarrão.
O velório durou 24h, o enterro ocorreu no outro dia, no único cemitério da
região, que se localiza no Capão da Porteira sob os cuidados de Décio
quilombola dos Botinhas. A saída do corpo foi acompanhada por uma caravana
de carros e carroças de boi até o cemitério. Alguns políticos, comerciantes,
granjeiros e fazendeiros se fizeram presentes e durante o enterro o discurso
dessas pessoas se baseava na grande estima que tinham pela falecida, pois ela
havia sido ama de leite e babá de muitos dele, acompanhando a juventude, os
casamentos e a ascensão social. Foram aplaudidos pelas comunidades que se
emocionaram diante os discursos. Ninguém das comunidades discursou. Antes
de enterrarem, um pastor da Igreja Universal fez uma prece e as despedidas se
encerraram. E a comunidade do Cantão decretou três semanas de luto que
também foi acatado pelo quilombo dos Botinhas.
Após as três semanas de luto voltei para a comunidade do Cantão das
Lombas a convite da liderança Edson para participar da reunião da Associação
que estava em fase de ajuste do estatuto. A reunião foi marcada na casa do
Edson e da Rosa que são casados e fazem parte da associação. Seleza que é
prima do casal e sobrinha do Cai-Cai, me acompanhou, pois ela é do conselho
fiscal. Chegamos antes do horário previsto, após chegaram duas famílias do
Distrito de Tapumes e mais três famílias da comunidade do Cantão, entre eles o
Tio Cai-Cai. A pauta da reunião era decidir sobre a participação ou não das três
famílias de Tapumes. Uns consideravam que não deveriam participar, mas, a
maioria considerou que deveriam pelos fortes laços de parentesco os unem.
86
Resolveram que todas as famílias que tiverem parentesco e que morarem em
Tapumes farão parte da associação quilombola do Cantão. Neste dia Onira
Gomes moradora de Tapumes, filha de Wilma Gomes que é irmã do Cai-Cai, me
convidou para conhecer o lugar e marcamos para o dia seguinte.
Após a reunião continuei na casa com Edson, Rosa e a filha Vanessa que
tem 9 anos. Jantamos e fomos pra baixo de uma figueira conversar. O terreno
que eles moram é cercado e relativamente pequeno visto que a maioria dos
moradores quilombolas tem área maior, inclusive Cai-Cai. Possuem uma horta
relativamente pequena, três cães e algumas galinhas. O local onde vivem foi
cedido pela mãe da Rosa que se chama Ana Silva da Rosa conhecida como Tia
Nica. As terras da Tia Nica e do esposo seu Antônio da Rosa localizam-se nas
delimitações do quilombo que fazem divisa com Santo Antonio da Patrulha.
Em nossa conversa a sombra de uma figueira, me fizeram
questionamentos em relação a presidência do Edson na associação. Rosa
afirmou que está sendo questionada sobre a legitimidade dele ser presidente, pois
ele vem de outro quilombo, ou seja, nasceu em outro quilombo e se criou no
bairro Águas Claras. Se conheceram num baile, casaram tiveram uma filha e a
Tia Nica deu de presente de casamento um pedaço de terra pra eles construírem
e morarem. Edson então, relata sobre seu parentesco com a Maria Grande (a
mulher que emprestou terras para a mãe de Cai-Cai morar) e se considera sendo
quilombola da “terra”, pois sua bisavó morava no quilombo do Cantão.
Assim Edson expôs que todas as famílias que moram no quilombo hoje e
são parentes farão parte da associação. Na mesma noite em que conversava com
Edson e Rosa sobre a associação eles informaram que iriam ao dia seguinte no
quilombo dos Botinhas para pedir ajuda com a elaboração do estatuto e agendar
uma ida até a prefeitura para tratar junto ao prefeito sobre o percurso do
transporte coletivo municipal, pois as demanda é que o transporte atenda as
comunidades.
87
5.3. Cotidiano e a trama de parentesco de uma liderança quilombola
O modo de organização socioespacial na comunidade do Cantão é
semelhante ao da comunidade dos Botinhas. Em torno da casa do representante
mais velho da família, os descendentes vão construindo as suas, formando
pequenas “ilhas” de vizinhança entre parentes consangüíneos. Pude observar
pelo menos quatro destas pequenas ilhas na comunidade do Cantão.
Tive a oportunidade de conviver em três dessas ilhas. A segunda foi a da
Tia Chica, onde fiquei por três dias. Tia Chica é a segunda pessoa mais antiga na
comunidade depois do Tio Cai-Cai. Nascida e criada na região dos Valos seu
nome de registro é Francisca da Rosa Rodrigues, filha de Satorninha da Rosa.
Não tem lembranças do seu pai, nem mesmo do nome, pois ele faleceu quando
ela tinha apenas dois anos de idade, além de não ter sido registrada pelo mesmo.
Conforme o seu relato "naquela época era assim alguns eram registrados no
nome da mãe ou no nome do pai". A única informação que tem a respeito de
seu falecido pai é que o mesmo trabalhou junto com seus tios no Passo do Feijó
em Viamão. Trabalhavam na lida dos campos de leite.
A casa da Tia Chica é uma das únicas casas com acabamento
construtivo. A casa é toda de alvenaria, com quatro quartos amplos, piso
cerâmico, sala de visitas, banheiro dentro de casa. A pintura da casa tanto por
fora quanto por dentro é de cores bem vibrantes, por fora verde escuro e por
dentro amarelo com rosa. muitas fotografias distribuídas pela casa, são fotos
da sua família filhos, netas, afilhadas e amigos. Também, fazem parte de sua
decoração quadros da Santa Ceia e uma imagem da Nossa Senhora Aparecida.
A casa fica localizada na entrada da comunidade e é possível avistá-la ao longe
pela boa localização e pela cor vibrante.
Tia Chica não foi alfabetizada e aos 10 anos foi adotada pela Dona
Joana, a quilombola conhecida pelas festas que realizava na comunidade. Não
lembra muito bem dos bailes, pois era criança e o lugar das crianças nas festas
era em casa dormindo.
88
Ela é viúva, mora sozinha, mas está rodeada de filhos e parentes. Em
frente da sua casa mora uma filha chamada Seleza, ao lado uma neta e nos
fundos um sobrinho. A todo o momento eles aparecem para pedir a benção e
saber se a Tia Chica precisa de alguma coisa. Quando completou os 15 anos foi
apresentada para um casal de fazendeiros para trabalhar como doméstica.
Trabalhou durante muito tempo na fazenda do “Dr.” Dreher. Era responsável pela
organização da casa e das refeições. Casou-se com o capataz da mesma
fazenda, chamado Ciro Jo Rodrigues, filho de Saturna Conceição conhecida
como "Satuca" e de Juvenal José Rodrigues um "mulato", assim definido por ela.
A Satuca era moradora do Cantão, e era dona de grande parte das terras, o
Juvenal era quilombola dos Botinhas e foi morar no Cantão das Lombas logo
após esta união. Seu Juvenal levantou o rancho nos Valos e adquiriu mais alguns
lotes de terras. A Satuca dividiu parte de suas terras com uma irmã. O restante,
somada as terras compradas pelo seu marido, ficou de herança para a Tica
Chica.
No segundo dia em que estava na casa da Tia Chica, Seleza sua filha me
levou para conhecer os parentes da “parte dela”. Caminhamos muito, mas a
maioria das pessoas não estava em casa. Então ela me levou para tomar café na
casa dela. A casa da Seleza é de madeira, o possui piso, dois quartos e
uma sala conjugada com a cozinha. Seleza é solteira, desempregada, possui
duas filhas, uma com 9 anos e outra com 12. As terras que possui hoje, recebeu
da mãe após o falecimento do pai. Não planta, pois não gosta: “...eu sei plantar.
Tudo da lida na roça eu sei... mais é muito trabalho Luciana? E eu não tenho
muita paciência.” Atualmente tem ajudado a mãe na pequena lavoura, pois ela
esta com a saúde debilitada. É atuante na associação do quilombo e representa a
comunidade no conselho municipal da cidade de Viamão.
5.4. Os vários “lados” do território
89
Sobre as terras quilombolas do Cantão das Lombas, Seleza afirma que
um percentual pequeno que a Tia Chica tem é onde o Tio Cai-Cai reside.
Segundo ela o terreno foi apenas "emprestado para o tio Dadá (Fortunato - Tio do
Cai-Cai) morar". Quando o Tio Cai-Cai casou o mesmo não tinha onde morar com
sua família, então pediu ao seu tio, Fortunato, para construir uma casa no rancho
que havia sido emprestado ao mesmo. Desde então o Tio Cai-Cai é morador
deste espaço "aí, ele se adonou da casa do Tio Dadá, não quis mais sair e o Tio
Dadá ficou sem lugar para morar". Segundo ela, o Tio Dadá "rolou muito",
depois que adoeceu e estava muito velho é que foi encaminhado ao Asilo da
cidade de Cidreira.
Seleza afirma que uma disputa “oficial” em relação a essas terras.
Oficial que ela considera é que o Tavinho que é irmão do falecido Ciro (ex-marido
da Chica), que por sua vez é vizinho do Tio Cai-Cai são "inimigos de morte",
devido a uma briga que tiveram por causa das terras. Isso ocorreu em uma
reunião da associação em 2005. Estive presente, mas não entendi do que se
tratava, e ninguém falou comigo sobre o ocorrido. A reunião era para tratar da
construção da associação. Debatia-se sobre o local ideal para a construção e se
alguém ia doar um pedaço de terras para isso. Tio Cai-Cai sugeriu que fosse nas
terras do Tavinho que se negou em doar as terras e ameaçou Cai-Cai de morte
se construísse a associação em suas terras. Desde então, segundo Seleza, Cai-
Cai trabalha para Tavinho com medo de ser expulso do local onde mora.
Seleza assim como a maioria das pessoas da comunidade que conversei,
tem latente a consideração de que todos que moram na comunidade são
parentes, mas cada família tem o seu lado. Entendo que o lado significa os
núcleos ou arranjos familiares. Como ela me explicou:
...eu, minha mãe, minhas irmãs, meu sobrinhos e o Tio Tavinho
somos um lado. o Tio Cai-Cai, o Edson, a Rosa, a tia mãe da
Rosa são outro lado, mas a gente é tudo parente.” (SELEZA,
Cantão das Lombas).
Neste dia perguntei onde estavam as meninas, pois a casa estava um
90
silêncio. As meninas tinham ido passar a semana na casa da prima que mora no
município de Tapumes, bem ao lado da comunidade. Elas foram até lá, pois na
época fazia muito calor e na casa da prima tem riacho e outras crianças da
mesma idade para se divertirem. O passeio foi uma forma de recompensa, pois
era época de rias e as meninas tinham sido aprovadas na escola. Um dia antes
das meninas partirem, Seleza e Tia Chica preparam uma cesta de guloseimas
com queijo, biscoito, bolo e carnearam um porco para as meninas levarem para a
casa da prima. Quem levou as meninas foi o sobrinho da Tia Chica que tem um
carro e só pode dirigir pelas redondezas, pois não possui habilitação.
No último dia que passei na casa da Tia Chica, ela acordou com mal estar
e muita tontura. Foi até os fundos da casa tirar leite e voltou me dizendo que
havia esquecido o que ia fazer. Sentou-se e esperou até vir à memória, saiu
novamente e voltou com várias espigas de milho, até que eu a lembrei que ela
tinha saído pra tirar leite. Tomamos café, organizamos a cozinha e ela se queixou
que acha que está ficando “caduca”, pois gosta de sair, ir a bingos e salas de
jogos e um certo dia precisou ir até a zona urbana de Viamão, pegou o ônibus
desceu na parada correta, foi ao banco e na volta para casa não lembrava mais o
nome do ônibus. Segundo ela, se não fosse o Décio, morador do quilombo dos
Botinhas, entrar com ela no ônibus ela tinha ficado no centro Viamão até o outro
dia.
Fizemos um chá de ervas colhidas no pátio da casa e ela descansou pela
manhã, ao meio dia quando Seleza veio fazer o almoço, Tia Chica fez como se
nada tivesse acontecido. E começou a falar das terras da “finada” Nica Gomes,
...a minha mãe contava que as terras que a finada Nica Gomes
deixou pros escravo ficava no Tapumes. Aquilo que é Tapumes
hoje era tudo da finada Nica antes. Aquilo era tudo dela. Ela
deu um pouco pros escravo e o resto ficou pro filho dela o
Candinho Gomes." (FRANCISCA – Cantão das Lombas).
Seleza e Tia Chica sugeriram que eu fosse até o Tapumes pra conhecer a
91
cidade onde um dia fez parte de Viamão e também conhecer os parentes que
residem. Despedimos-nos e me desloquei para outra ilha onde reside a família da
Zilda mãe da Indiajara conhecida como Jarinha.
Zilda da Silva Gomes tem 57 anos de idade, a sua mãe chama-se
Celanira da Conceição Rodrigues e seu pai Osvaldo Gomes da Silva. O casal
teve nove filhos, apenas dois deles conseguiram romper a barreira escolar, são
eles: Alzira e Valdir, os demais Eva, Ilda, Osmar, Osnardo, Valter, Valdeci, e a
própria Zilda não tiveram a mesma oportunidade, pois as escolas mais próximas
localizavam-se na centro do município de Viamão e Santo Antônio, e, no entanto,
não tinham acesso a meio de transporte para o deslocamento entre o quilombo e
a escola. Os irmãos que são alfabetizados tiveram oportunidade de aprender, pois
a mãe os colocou numa fazenda, quando crianças, para serem criados e
trabalhar.
Zilda é muito carinhosa, receptiva e acolhedora sempre me recebe com
muito afeto (abraços). Gosta de conversar e receber visitas. Nos dois dias em que
fiquei na casa da Zilda, fui acomodada na peça que fica do lado de fora da casa
que é utilizada como cozinha, o local é bem humilde, a construção é de madeira,
deteriorada pelo ação do vento e da chuva. Na peça um fogão de barro feito
pelo Tio Maia, esposo da Zilda, não forro no teto, e o piso é de “Chão batido”
que esteve sempre muito bem varrido e organizado. uma mesa grande,
geladeira e uma cama de solteiro que é utilizada em volta da mesa, que não
bancos nem cadeiras, para realizar as refeições e descansar.
Pela manhã fui acordada para o café às 5h30, pois Tio Maia estava
trabalhando numa granja naquela semana e precisava sair cedo. Então toda
família acorda cedo para acompanhá-lo no café. Sentamos a beira da cama eu,
Zilda e Indiajara, Tio Maia ficou em pé. Logo após Zilda preparou a marmita para
ele levar de almoço, Maia se despediu dizendo que a tarde iria esperar carona do
Décio, dos Botinhas, que o deixaria mais perto de casa. Ficamos conversando e
tomando chimarrão até as 08h, quando Zilda saiu para dar café a sua irmã que
mora ao lado da casa dela e é cega.
Celanira irmã da Zilda tem 77 anos, está com catarata nos dois olhos, é
muito amável e acariciou todo meu rosto antes de me permitir que entrasse na
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sua casa. Zilda e eu levamos, biscoitos, café com leite e rosca de polvilho para
Celanira. A casa possui apenas uma peça, sem cozinha, o local é muito escuro.
Não paredes, a cama é bem próximo a porta, uma mesa e apenas um
banco, não há forro, nem piso no chão, Celanira vive sozinha, suas 3 filhas
casaram e moram em Porto Alegre. O banheiro é o mesmo utilizado pela família
da Zilda e todas as refeições são levadas até ela. Celanira diz que fica em casa
fazendo fuxico e rezando “...fico fuxicando e rezando o dia inteiro, Deus me
acompanha”. Após o café da Celanira voltamos pra casa da Zilda.
Onira chegou às 10h para ajudar com o almoço. Ela é uma pessoa bem
alegre, tem uma gargalhada com tom alto e alegra o ambiente. Trouxe queijo e
farinha de milho para fazer polenta como acompanhamento do almoço Após o
almoço eu e Onira fomos até Tapumes numa carroça de boi. Levamos 2h e
30minutos até chegar, pois íamos parando e apreciando a natureza. O caminho
até Tapumes é feito pelos campos, por dentro da comunidade do cantão, que são
praticamente de mata atlântica. A estrada é precária e só carro de boi ou um carro
com tração consegue passar. Chegamos em Tapumes e Onira me levou na
Igreja, depois no único comércio que existe no local. A Igreja tem arquitetura
açoriana e o comércio pertence a um casal que tem parentesco distante com a
falecida Fazendeira Nica Gomes.
Conheci as casas onde moram cinco famílias negras e fui até a casa da
Onira. Ela me apresentou ao esposo e ao filho. Onira está no segundo
casamento, ela e o esposo tem o desejo de adotar uma criança, pois os filhos
dela do primeiro casamento estão crescidos e o esposo atual não pode ter filhos.
Por isso o desejo de adotarem uma criança. Me levaram para conhecer as terras
que possuem e os locais onde plantam, arroz, milho, batata e aipim. Da janela da
cozinha é possível avistar a Lagoa do Pontal que faz parte de Santo Antônio da
Patrulha. Antônio sugeriu que Onira me levasse na casa do Tio Bento, a pessoa
mais antiga dos Tapumes para conhecê-lo e conhecer a fazenda da “finada” Nica
Gomes. Ele disse que a fazenda não foi destruída completamente e era possível
ver as “Tafonas” (local onde se produzia farinha) e era nas Tafonas” que os
funcionários dormiam quando trabalhavam lá.
Combinamos esta saída para o dia seguinte, pois Zilda e a família me
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esperavam para o jantar e não tinha como avisá-los que eu iria ficar em Tapumes,
pois telefone celular o tem sinal de antena no local que estávamos. Onira
resolveu me levar de moto e chegamos em uma hora no Cantão das Lombas.
Quando cheguei à família da Zilda já me aguardava para servir o jantar.
Ismael Gomes, conhecido como “Tio Maia” é irmão do Tio Cai-Cai, ele
estava muito com contente com a casa movimentada e queria me contar como
conheceu Zilda. Ele a conheceu ainda na infância “...nós se criemo junto aqui nos
valo, fui o primeiro namorado dela e tamo junto há 35 anos”. Quando namoravam,
gostavam muito de ir às festas dos Botinhas juntos, onde comiam
"churrasquiadas", e retornavam a pé, os dois de pés descalços cansados de tanto
dançar. Zilda parecia mais alegre com essas recordações, lembra que gostavam
de ir aos bailes nos Botinhas, pois era mais longe e eles podiam namorar no
caminho, mas sempre em companhia de algum parente preferencialmente mais
velho.
Tio Maia lembra que a sua mãe freqüentava as festas na casa da Dona
Joana, no Cantão das Lombas e depois que ela faleceu os bailes continuaram,
mas com menos freqüência, até que acabaram. Os bailes duravam de dois a três
dias com muita música tocada pelo gaiteiro de boca “Carlinho”, havia muita
comida como carne de porco assada, pão de milho, café e sopão de guisado.
Esses momentos, segundo Tio Maia, eram apreciados por todos, mesmo aqueles
que moravam longe da casa de Dona Joana vinham se divertir nos bailes "...até
os pais da Dejinha vinham de baixo", lembrou a Tia Zilda, se referindo da
Edegi que mora atualmente no quilombo dos Botinhas.
Nos Tapumes haviam festas também, só que, segundo Tio Maia, os
brancos expulsavam os negros para poder dançar. Mais tarde um delegado
colocou uma lei que obrigava a todos a participarem do mesmo baile, que uma
fita era colocada no meio do salão e separava os negros dos brancos: "ninguém
passava a fita, e quem passasse levava uma lambada dos soldados que ficavam
cuidando do baile". No entanto, as bebidas eram igualmente pagas e compradas
no mesmo local para ambos "o dinheiro não era separado...(risos)".
No dia seguinte me preparei e aguardei a chegada da Onira para me
dirigir a Tapumes. Despedi-me de todos do Cantão e seguimos no meu carro para
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Tapumes por uma estrada que possibilitou melhor acesso e reduziu o tempo de
deslocamento. Levamos 45 minutos para chegar e fomos direto para a casa da
Teresa Gomes, prima da Onira. Teresa casou com Alcides Rosa que é natural de
Tapumes e nasceu na fazenda de Nica Gomes. Teresa e Onira comentaram que
apenas as duas são naturais do Cantão das Lombas, as outras famílias negras
que moram são, segundo elas, naturais da antiga sede da fazenda da Nica
Gomes. Indagaram sobre a história que Tio Cai-cai falou sobre o Cantão,
consideram que o quilombo começou em Tapumes e que as pessoas foram se
“espalhando”.
Fui levada para conhecer seu Bento, um dos mais antigos de Tapumes.
No caminho para lá, Onira falava a todo momento que Seu Bento “é bem pretinho,
quase azul de tão pretinho” e Teresa reforçava “é bem pretinho mesmo, mas é um
homem de bem, que pessoa bem boa que ele é!”. Percorremos 8 km de carro
pela estrada de Tapumes em direção a Santo Antônio da Patrulha até chegar na
porteira que acesso a casa do seu Bento estacionamos e fizemos o trajeto
restante a pé, pois o carro o passava pela porteira. Caminhamos
aproximadamente mais 3 km até chegar à casa do Seu Bento. na entrada da
porteira fomos recepcionadas por dois cães muito simpáticos que sem perceber
nos levaram até a casa do Seu Bento.
No caminho encontramos pequenos cercados com gado, plantações de
eucaliptos, depois campos abertos com muitas figueiras. Ao longe era possível
avistar uma casa branca, pequena e de madeira, com muitas plantas árvores e
hortas cercada e as margens de um banhado. Quando chegamos os cães fizeram
uma festa maior do que quando nos encontraram na porteira. E o Seu Bento
timidamente veio ao nosso encontro.
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FIGURA 15: Sr. Bento – Comunidade Negra de Tapumes
Fonte: Dados da pesquisa empírica realizada em setembro/2009.
Seu Bento é negro (tem a pele bem escura), cabelos brancos, olhos
estalados, com uma pele muito bonita, magro, usa uma bengala e é muito
observador. Fomos apresentados e então ele nos convidou para entrar. Como os
cães estavam muito excitados ele deu um comando com sua bengala e eles
sentaram quietos perto da porta. Sentamos na sala e ele foi perguntando pelos
familiares da Teresa e da Onira, até que me perguntou se eu não era parente
pessoal da Barrocada, pois eu era bem parecida com a irmã da Alvina. Seu Bento
é uma pessoa que transmite serenidade, tem uma fala calma, e gosta de observar
e pensar muito antes de falar. Na sala há muitas fotos dele e da mãe pregadas na
parede e em ordem cronológica, a última foto da parede é uma foto da mãe dele
antes de morrer com uma enxada na mão. Seu Bento tem mais três irmãos que
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moram em Viamão, Gravataí e Porto Alegre e são casados.
Tio Bento como popularmente é conhecido em Tapumes, tem 77 anos e
foi criado pela sua mãe, a Sra. Francilina Laurinda, chamada de "Tia França Véia"
na fazenda da Nica Gomes, onde a mesma trabalhou por muito tempo. De acordo
com Seu Bento, Tia França Véia foi levada á fazenda por Inácio Gomes, esposo
de Nica Gomes, para a lida na terra em sua fazenda, Tia França era boa
“carpideira”
17
, segundo tio Bento a dona da fazenda não tinha escravos, apenas
mandava buscar mulheres e homens negras e negros para trabalharem em suas
terras. Já, sua avó materna chamada de Dona Rola foi escravizada. Ele recorda
que a sua amorou primeiro no Cantão das Lombas depois ela foi levada para
Sarandi com o intuito de trabalhar.
Tia França Veia faleceu com 115 anos, Seu Bento foi o filho que ficou ao
lado dela para cuidá-la até os últimos dias. Ele conta que a mãe já estava
“caducando”. Ele saia cedo para trabalhar na lida da roça e os cães sempre o
alertavam quando alguma coisa não estava bem com a mãe,
... teve um dia que eu tava aqui perto na lida da roça, os
cachorro chegaram me chamando, eu larguei e saí correndo pra
casa. Quando eu cheguei mamãe tava toda machucada presa na
cerca de arame. Ela gritava me chamando, mas quem é que ia
ouvir nessa lonjura que é as coisa. eu tirei a mamãe da cerca,
limpei as machucadura tudo dela e tive que deixa de trabalha
longe pra cuida dela. Porque as vez ela saia de casa sem rumo,
se perdia e os conhecido vinham trazer ela pra casa. (BENTO
Comunidade de Tapumes).
Tio Bento também trabalhou na fazenda da Nica Gomes plantando rosas
e capinando, conhecimento que adquiriu com a sua e desde pequeno. Por
esse motivo ganhou o sobrenome da sua patroa. Quando Nica Gomes faleceu,
Tio Bento permaneceu na mesma casa, onde morava com sua mãe. E relata
que irá sair quando estiver muito velho sem condições de trabalhar.
planejou ir para o Asilo Santo Antônio, onde faz algumas doações de frutas e
legumes da sua própria plantação, que fica nos fundos da sua casa,
17
Entende-se por carpideira a pessoa que sabe lidar bem com a enxada.
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Sempre que eu posso eu pego ônibus e vou lá no asilo ver as
velhinhas. tenho que ir me acostumando aos pouquinhos,
porque quando eu não puder mais cuidar das minhas coisas eu
deixo essas terra pros meus sobrinhos e vou pra lá. É bom que
eles dão comida, tem baile, é tudo bem limpinho e as dotora
cuidam bem dos veio lá. (BENTO – Comunidade de Tapumes).
Ao ser perguntado se ele cuidava sozinho da casa e da plantação, ele
respondeu com muito orgulho que não, os cães o ajudam e nos levou para
conhecer as dependências da casa e da lavoura. A casa tem quatro peças, sala,
cozinha, banheiro e um quarto. Todas as peças levam a um mesmo local que é a
cozinha. Próximo à porta da cozinha um fogão feito de barro por ele mesmo.
Da porta ele dá um comando para os cães “Carrasco traz a lenha, Guitarra traz
também” e os cães surgem do meio do pátio com lenha na boca pra ele colocar
no fogão. Seu Bento contou que treinou os cães para ajudá-lo nas pequenas lidas
da casa, como buscar lenha, avisar quando chega visita e zelar pelas galinhas.
A casa tem piso de madeira e forro, as panelas de alumínio são muito
bem “ariadas”, ao ser elogiado por Teresa e Onira sobre suas panelas, ele disse
que aprendeu com a mãe como deixar as panelas como “espelho” o segredo é
deixar no sol depois que lava. No pequeno espaço de terra que faz parte do seu
quintal, nos mostrou os mais diversos tipos de rosas que cultiva e o seu orgulho é
o pequeno parreiral. Ele conta que é o único da região que tem uvas, pois ele
sabe o segredo do solo para plantar. Nos deu um saco de uvas maduras para
levar pra casa. Além das rosas e do parreiral, ele cultiva tomate, cebola, batatas,
aipim, maracujá, laranja, limão, cana de açúcar, abóbora, melancia, melão,
ameixas, bananas. Uma infinidade de espécies num mínimo espaço de terra que
dividem o espaço com um galinheiro, um galpão para guardar ferramentas e um
pequeno cercado que está à espera de meia dúzia de ovelhas. Ele comprou as
ovelhas em Santo Antônio da Patrulha e aguarda o dono fazer a entrega na
sua casa. Inclusive está treinando os cães para ajudá-lo na lida com as
ovelhas.
Da porta da frente da sua casa Seu Bento apontou em direção as terras
98
da falecida Nica Gomes, a fazenda era tão extensa que se tornou impossível
enxergar tudo da pequena porta e seu Bento dizia:
...daqui até a Barrocada nos Tapumes era dela e a Lagoa Pontal
também. Lá na frente da porteira ainda tem as Tafona que a gente
fazia os baile. Dona Nica era muita boa pra nós que trabaiava pra
ela. Nunca me esqueço um dia que ela fez uma festa na casa
dela, nós tudo ajudamo. Quando a festa acabou ela deu tudo que
sobrou pra nós e deixou a gente usa a Tafona pra faze o nosso
baile. Até o gaitero que tocou na festa dela foi toca pra nós. A
festa durou até o outro dia. E depois, sempre que a gente queria
fazer uma festa ela nos emprestava a Tafona. (BENTO
Comunidade de Tapumes).
O local onde mora atualmente foi doado pela Nica Gomes, e quando ela
faleceu os herdeiros foram movidos por interesses financeiros, e cercaram toda a
casa do Seu Bento, ficando limitado ao espaço demarcado pelos herdeiros,
segundo ele isso ocorreu "por causa da ganância". Ele recorda que antigamente
as terras não precisavam de cerca e que todos sabiam os seus limites. Após o
cercamento
18
, passaram-se 20 anos e a terceira geração de herdeiros tentou
expulsá-lo da casa. Ele conta que a noite os cães o acordaram e quando levantou
haviam colocado fogo na sua plantação. Uma semana depois, arrancaram toda a
cerca
... Nesse dia eu decidi ir na polícia, saí daqui a e dei parte. A
policia me mandou embora pra casa e me disse que era eu
melhor eu ir pra não me incomodar. Aí, eu sabia quem tinha feito
18
A angústia e o descontentamento perante o cercamento de suas terras se assemelham ao que
se constata em outras comunidades, conforme poder ser visto em Ramos (2009, p.64-65): Do
encontro entre o território marcado, a interpelação dos pesquisadores e o mal-estar dos
moradores de Cambará, emerge um senso de justiça que considera por demais degradante a
impossibilidade de usufruir dos recursos naturais do território. O cercamento das áreas impede o
acesso às dádivas da natureza, ao gozo das riquezas naturais.”. De acordo com Castilho appud
Ramos), “o termo ‘cercamento’, se constituiu para abordar o processo de expropriação e
territorialização das comunidades quilombolas de Parateca e Pau d’Arco, situadas na Bahia [...]” .
De acordo com Castilho (cf.), “no início da década de 1970 o uso comum da terra sofreu rude
golpe com o ritmo acelerado do cercamento das passagens comunais, depois com o cercamento
das lagoas. Com o cercamento das terras, os quilombolas passaram a se sujeitar às normas de
fazendeiros e comerciantes, tornando-se dependentes e vulneráveis” (48-49). O cercamento,
portanto, corresponde à privatização das áreas comuns, que exauriu os recursos naturais e
colocou em risco a sobrevivência das comunidades; [...]”.
99
isso aqui pra mim. Fui lá no bolicho e falei pra todo mundo que eu
tinha comprado uma arma e ia corre a tiro quem me tirasse daqui.
Todo mundo no bolicho pediu pra mim me acalmar. eu fui
embora e nunca mais mexeram comigo. o que eu não gosto
hoje, é que eles plantam até aqui na entrada da minha porteira.
(BENTO – Comunidade de Tapumes).
Enquanto conversava e nos mostrava a localização geográfica da
fazenda, resolveu fazer um chimarrão, lavou algumas frutas que havia colhido e
arrumou a mesa da sala com as frutas, a garrafa térmica e o chimarrão. Me
perguntou quem eu conhecia dos Botinhas. Falei o nome das pessoas que são
lideranças atualmente, Décio, Edegi, Nico, Negrinho e ele foi contando que os
avós deles moravam no Cantão, mas agora que eles casaram com o pessoal dos
“bota” eles tinham é que ficar lá mesmo. Perguntei porque e ele me disse que nos
Bota é bem melhor, pois é mais perto da “faixa”, ou seja, é mais perto da RS 040,
segundo ele:
...pra eles fica mais fácil até de ir no médico, tem mais ônibus e
tudo. Se eu tivesse casado com alguém de que tivesse um
pedacinho de terra assim que nem eu, eu também tinha largado
tudo aqui e tinha ido morar lá. Acho até que ia ser melhor.
(BENTO – Comunidade de Tapumes).
Ao ser indagado do porque que ele não casou e porque não teve filhos,
ele foi contando que antigamente era muito festeiro. Além de participar das festas
na fazenda, também freqüentava as festas da vizinhança, em Santo Antônio,
Viamão, Botinhas e Cantão. Sobre os bailes nos Botinhas, tio Bento falara que as
mulheres de não gostavam dele, nem da sua turma, não revelou o motivo, mas
sutilmente deixou escapar que:
...acho que elas não gostavam de nós porque a gente era bem
preto e elas tudo clarinha. Nunca vi elas dançando com nego
preto, quando a gente ia tirar elas pra dança, nem levantavam da
cadeira ou viravam as costa pra nós. (BENTO Comunidade de
Tapumes).
100
Como não tem filhos, Tio Bento novamente expressou a vontade de que
algum parente seu, de Viamão, Gravataí ou Porto Alegre morar em sua casa
quando tiver que partir para o asilo, ele diz "quem não vai querer uma vida
dessas" referindo-se as belezas das paisagens naturais que rodeiam a sua casa.
A noite começou a cair e Tio Bento se preocupou conosco, cortou o
assunto e nos pediu que fôssemos embora antes do cair da noite. Não identifiquei
rede elétrica nas imediações da casa, mas avistei muitos lampiões, um rádio
portátil e pilhas dentro de um pote o que leva a pensar que não energia
elétrica. Tio Bento gosta do contato com a natureza, com os animais, com as
plantas, das frutas, legumes e verduras que cultiva, faz planos para ir para um
asilo, mas antes deseja criar ovelhas. Demonstrou ter medo de morrer sozinho,
quer ter alguém ao seu lado e na sua fala deixa claro que quer ir para o asilo.
Despedimos-nos dele e retornamos para a casa da Onira.
Onira e Teresa ficaram surpresas com as histórias do Tio Bento, alegaram
não saber das tentativas de expulsão, nem do medo que ele tem de morrer
sozinho. E em seguida alegaram que se tivessem condições o levariam para
morar com elas. Consideram que o asilo pode cuidar melhor dele quando ficar
mais velho. Infelizmente não foi possível conhecer as outras famílias negras que
residem na região. Mas segundo Tio Bento, Onira e Teresa, as famílias negras
que moram em Tapumes, não são parentes deles do Cantão, “são tudo nascido e
criado no Tapumes”.
Assim, meus percursos trilharam as linhas de reciprocidade entre as
famílias quilombolas de Viamão e pude perceber como uma trama de relações
quotidianas sustenta a possibilidade da enunciação quilombola em três territórios
descontínuos, mas inseridos em um mesmo processo de subjetivação que hoje
suporta se anunciar como quilombola, apesar do clientelismo político.
101
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Segundo dados do IBGE (2002) 53,3% da população viamonense é
negra, ou seja, Viamão é um dos maiores municípios da região metropolitana de
Porto Alegre em extensão territorial e o maior município habitado pela população
negra. A história viamonense nos remete a confirmação destes dados, pois em
1870 a população negra era algo em torno de 70% do contingente populacional.
Com este contingente de população negra no município, três comunidades
remanescentes quilombos, todas localizadas na zona rural do município, abriram
processo para demarcação e titulação de terras junto ao INCRA.
As discussões pós-coloniais (HALL, 2003; ESCOBAR, 1999) sobre
identidade étnica e racial têm enfatizado o caráter duplo das experiências desse
tipo de afirmação de pertencimento: por um lado à identidade é concebida como
se estivesse enraizada em práticas culturais; por outro lado, conscientemente ela
ganha dimensões de posicionamentos políticos, em que pensada como um vir-a-
ser, ela não é tomada em dimensões essencialistas, mas sim politizadas. Neste
estudo, através da atenção às correlações entre identidade e reciprocidade, pude
perceber que afirmações primordialistas e politizadas o sustentadas igualmente
por relações quotidianas de confiança e conflitos derivados dos vínculos de
endividamento moral mútuo.
As comunidades aqui estudadas possuem relações de reciprocidade que
atravessam gerações. É nas festas que essas relações ficam mais bem
cristalizadas. As relações de parentesco, amizade, compadrio e afinidade estão
relacionados a normas sociais que regulam a vida das comunidades o que faz
surgir um forte sentimento de pertença relacionado aos direitos sobre o território.
As relações de reciprocidade e dádiva, nas Comunidades Cantão das
Lombas, Peixoto dos Botinhas e das ramificações que habitam o Distrito de
Tapumes, o fundadas no parentesco, em compadrios, e por relações de
afinidade. A tese defendida nesta dissertação é que a reciprocidade interna se
constitui como um fator de formação de uma identidade étnica, sendo o
102
sustentáculo dos marcos e processos diferenciadores em relação aos moradores
do entorno. Essas relações compõem uma teia que interliga os que atualmente,
vivem nas comunidades e os interligam aos seus antepassados, configurando o
território como modalidade de subjetivação diferenciada da individualização. O
território acaba interligando não os que possuem uma territorialidade comum,
mas também os que estão distantes geograficamente. Essa teia utiliza como
matéria-prima laços de reciprocidade que atravessaram gerações e estão
relacionadas a normas sociais que regulam a vida das Comunidades.
Em ambas as comunidades existem famílias que vivem na zona urbana
de Viamão, Porto Alegre e Gravataí. Isso o representa uma fragmentação da
comunidade, mas sim uma dispersão diaspórica, o que só se configura para
modos de subjetivação fortemente territorializados. Esta emigração se deu em
grande parte à busca de oportunidades de trabalho, melhores condições de vida e
acesso facilitado a escolas. Mas este distanciamento não rompeu com a unidade
do grupo uma vez que estas famílias continuam participando da vida social dos
grupos familiares aos quais pertencem, tencionando a manutenção do território.
Uma vez que saíram do território, não se desfizeram das terras e tiveram, pelos
parentes que ficaram a aceitação para voltarem quando quiserem e continuar com
seus títulos de "parentes".
As teias de reciprocidade que unem as comunidades proporcionam uma
conexão das comunidades que vem sustentando a manutenção dos grupos em
seus territórios. As relações baseadas em dádivas recíprocas podem ser
codificadas no registro da identificação étnica porque estão territorializadas e o
espaço é o lugar de inscrição de uma parte das dívidas entre as famílias. As
experiências de um passado histórico comum e as vivencias de um presente de
precariedades enquadram as tramas que proporcionaram alianças de parentesco
como regularidades que tacitamente garantem o território para o grupo.
O cuidado com o meio ambiente, codificação atual, das relações práticas
constitutivas do território também podem ser tomadas como práticas de
reciprocidade. Trata-se de uma relação como o passado e um modo de perceber
o espaço como o lugar em que vivem e a garantia de uma forma de
sobrevivência. Seu Cai-Cai aprendeu com a mãe e a aque para a água estar
103
própria para o consumo era necessário sempre ter árvores e bambus próximos a
vertentes, rios e riachos e manter os animais longe. Mas a diminuição dos
territórios quilombolas fez com que o desmatamento em margens de riachos e
vertentes que atendem as comunidades tornasse a água imprópria para o
consumo. O que fez com que Seu Cai-Cai do Cantão das Lombas juntamente
com seus parentes que residem no quilombo Peixoto dos Botinhas Décio, Edegi,
Nico e Laci reflorestassem novamente as áreas que foram devastadas
indevidamente pelos fazendeiros. Esta determinação de desapropriação indevida
por parte de alguns fazendeiros da região se deu por solicitação do Ministério
Público Federal que atendeu a demanda das comunidades. As lideranças mais
respeitadas pelas comunidades, se uniram para construir uma cerca de “Valos” e
“Taipas” para delimitar os territórios quilombolas e lançar sementes e mudas de
plantas nativas da região como de bambu e cipó imbira para o reflorestamento.
Como possuem o conhecimento de quais árvores podem ou não cortar, se
mobilizaram também para plantar algumas acácias e eucaliptos para o próprio
consumo. Sistematicamente evitam a derrubada de árvores raras como a figueira
e a canela.
Estas séries de prestações de serviços têm como pano de fundo uma
dívida em comum para com o território. E é essa grande dívida que faz com que
esses grupos familiares habitem territórios diferentes, mas mantenham uma
relação intensa de ajuda tua entre si. O emprego da força de trabalho comum
entre os membros das comunidades revela o quanto às relações estão
embasadas neste princípio de ação que é a compensação da dívida para com o
território.
As comunidades remanescentes de quilombos que se auto-declararam e
solicitaram abertura de processo de titulação junto ao INCRA, resistem em seus
territórios não por estarem isolados e a margem da sociedade, mas sim por se
relacionarem intensamente entre si e assimetricamente com “os de fora”. O que
diferencia uma comunidade quilombola são as formas de se relacionarem com os
espaços de uso familiar, as relações e prestações entre gerações e as alianças
entre famílias e, portanto não apenas o simples fato de erguerem marcadores
simbólicos contrastivos.
104
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