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RECORDAÇÕES DE UM REMOVEDOR
DE
MOFO NO ITAMARATY
RELATOS
DE POLÍTICA EXTERNA DE
1948 À ATUALIDADE
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MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES
Ministro de Estado Embaixador Celso Amorim
Secretário-Geral Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães
FUNDAÇÃO A LEXANDRE DE GUSMÃO
Presidente Embaixador Jeronimo Moscardo
Instituto de Pesquisa de
Relações Internacionais
Diretor Embaixador Carlos Henrique Cardim
A Fundação Alexandre de Gusmão, instituída em 1971, é uma fundação pública vinculada ao
Ministério das Relações Exteriores e tem a finalidade de levar à sociedade civil informações
sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomática brasileira. Sua missão é
promover a sensibilização da opinião pública nacional para os temas de relações internacionais
e para a política externa brasileira.
Ministério das Relações Exteriores
Esplanada dos Ministérios, Bloco H
Anexo II, Térreo, Sala 1
70170-900 Brasília, DF
Telefones: (61) 3411-6033/6034/6847
Fax: (61) 3411-9125
Site: www.funag.gov.br
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Brasília, 2009
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
EMBAIXADOR APOSENTADO
Recordações de um
Removedor de mofo no Itamaraty
Relatos de política externa de 1948 à atualidade
Dedico este livro à Ivony, minha
companheira há sessenta anos.
E a todos os diplomatas brasileiros que
também tratam de remover mofo, para
arejar bem nossa política externa.
Política externa depende do povo e por
isso tem de ser muito arejada.
Copyright ©, Fundação Alexandre de Gusmão
Fundação Alexandre de Gusmão
Ministério das Relações Exteriores
Esplanada dos Ministérios, Bloco H
Anexo II, Térreo
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Fax: (61) 3411 9125
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Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional conforme
Lei n° 10.994, de 14/12/2004.
Equipe Técnica:
Eliane Miranda Paiva
Maria Marta Cezar Lopes
Cíntia Rejane Sousa Araújo Gonçalves
Erika Silva Nascimento
Juliana Corrêa de Freitas
Julia Lima Thomaz de Godoy
Programação Visual e Diagramação:
Juliana Orem e Maria Loureiro
Impresso no Brasil 2009
Melo, Ovídio de Andrade.
Recordações de um removedor de mofo no
Itamaraty : (relatos de política externa de 1948 à
atualidade) / Ovídio de Andrade Melo. — Brasília :
Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.
192p.
ISBN: 978.85.7631.175-5
1. Melo, Ovídio de Andrade – Biografia. 2. Política externa
– Brasil. I. Título. II. Título : Relatos de política externa
de 1948 à atualidade.
CDU 92Melo, O.A.
CDU 327(81)
Prefácio, Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, 9
Introdução, 13
Primeira Parte: De onde vim, quando entrei para o Instituto Rio Branco. O
que fiz no Itamaraty até 1975. No Canadá, no Japão, na fronteira com a
Bolívia, na Organização dos Estados Americanos, em Argel, na Divisão da
ONU cuidando da Descolonização na África e do Desarmamento Nuclear,
tal como este foi urdido em Genebra para ser imposto ao mundo inteiro, ou
tal como foi arduamente negociado em Tlatelolco, no México, para garantir a
invulnerabilidade da América Latina., 17
Segunda Parte: A Representação Especial em Luanda e o Reconhecimento
da Independência de Angola, exatamente no momento em que surgiu o novo
país, no primeiro segundo do dia 11 de novembro de 1975. Repercussões
internacionais. Repercussões no Brasil. Desavença entre o Ministro da Guerra
Silvio Frota e o Presidente Ernesto Geisel, 85
Terceira Parte: Servindo em Bangkok e Jamaica, mas sem esquecer a África.
Evolução da África Austral depois da Independência das colônias europeias
serviam como carapaça de proteção da África do Sul. Fim do apartheid e o
American Way of Life numa versão africana, 157
Quarta Parte: Aposentado, mas continuando como removedor de mofo. A
base de Alcântara e o acordo gorado na greve. O empréstimo de bases
colombianas aos Estados Unidos. A reativação da Quarta Frota Americana.
Violação da Desnuclearização prometida à América do Sul pelo TNP e pelo
Tratado de Tlatelolco, 177
Anexo: Discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em Angola, em 3 de
novembro de 2003, 181
Sumário
9
Prefácio
Celso Amorim
Ministro das Relações Exteriores
Apresentar o livro de memórias do Embaixador Ovídio de Andrade Melo
guarda, para mim, especial significado, tanto de ordem profissional como
pessoal. O início de nossa amizade remonta a 1969, quando estive sob
orientação dele em Londres, em meu primeiro posto diplomático.
Dotado de inteligência crítica e visão humanista, Ovídio Melo é dos
diplomatas mais lúcidos e comprometidos com o nosso País. Com ele – e
com outros de sua geração, como Paulo Nogueira Batista e Ítalo Zappa –,
aprendi lições de patriotismo e de coragem. Além do convívio profissional,
tive o privilégio de manter longa correspondência com Ovídio ao fio dos
anos, embora com menos regularidade do que desejássemos. Pude, dessa
forma, usufruir, nas muitas missivas que trocamos, da prosa elegante que está
refletida nessas memórias.
Ovídio Melo ocupou funções importantes no Itamaraty. Esteve à
frente da Divisão das Nações Unidas e foi Chefe do Gabinete do
Embaixador Sérgio Corrêa da Costa quando este ocupou o cargo de
Secretário-Geral das Relações Exteriores. Na função, esteve envolvido
na decisão de não assinar o Tratado de Não-Proliferação, julgado,
naquele momento, como discriminatório para os países não-nucleares.
Participou também das negociações do Tratado de Tlatelolco, que viria
a fazer da América Latina e Caribe uma Zona Livre de Armas Nucleares.
Como Cônsul-Geral em Londres, prestou grande apoio aos brasileiros,
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
10
preocupando-se, em particular, com os exilados pelo regime de exceção
que vigorava à época.
Em fins de 1974, foi convidado pelo Chanceler Antônio Azeredo da Silveira
e pelo então Chefe do Departamento de África, Ásia e Oceania, seu amigo e
conterrâneo Ítalo Zappa, para representar o Brasil junto ao Governo de Transição
que conduziria Angola à independência. Ao deslocar-se para o continente africano,
Ovídio de Andrade Melo tornou-se protagonista de momento dos mais
interessantes e importantes da história da nossa política externa recente: o
reconhecimento da independência angolana antes de qualquer outro país.
A intenção por trás do gesto era encerrar o histórico de ambiguidade
quanto à manutenção do regime colonial português e, dessa forma, iniciar um
novo capítulo no relacionamento do Brasil com a África. A decisão revelava
grande autonomia e altivez da nossa diplomacia.
Ovídio permaneceu em Luanda durante quase todo o ano de 1975,
marcado pela guerra civil entre as três forças locais (MPLA, FNLA e Unita)
que disputavam, pelas armas, a hegemonia política no país. Presente às
festividades em que o povo angolano hasteou a bandeira de país independente
pela primeira vez, o representante brasileiro transmitiu aos novos líderes a
mensagem de que o Brasil desejava estabelecer relações bilaterais
imediatamente e criar uma representação diplomática permanente no país.
Por força das circunstâncias que acometiam a política nacional naquele
momento, Ovídio não recebeu o crédito merecido pela ousadia e pela coragem
de sua missão – e mesmo pela obediência com que cumpriu as instruções
oriundas de Brasília. É verdade que, antes de aposentar-se, seria designado
nosso Embaixador em Bancoc e Kingston, mas só alcançaria o topo da carreira
diplomática – a promoção a Ministro de Primeira Classe –, com o advento
da redemocratização. Na verdade, como ele próprio tem orgulho de dizer,
foi o primeiro Embaixador da Nova República.
Em visita que fiz a Luanda, em 2003, o Ministro do Exterior angolano,
João Bernardo Miranda, relatou-me o impacto que teve o reconhecimento
pioneiro pelo Brasil. A notícia gerou grande entusiasmo entre os novos
dirigentes e contribuiu, de forma direta, para a consolidação do governo do
MPLA – o movimento de Agostinho Neto que havia prevalecido na capital
do país. A atitude desassombrada credenciou o Brasil como um interlocutor
especial para os angolanos, inaugurando uma amizade que perdura até nossos
dias. Ciente da importância do reconhecimento, o Presidente Lula batizou o
Centro Cultural Brasil-Angola em homenagem a Ovídio Melo.
PREFÁCIO
11
Ovídio sempre foi homem de ideias próprias, originais, por vezes,
polêmicas, por vezes provocativas. Em “Recordações de um removedor de
mofo no Itamaraty”, faz um relato franco – e pouco usual em biografias
diplomáticas – sobre episódios que marcaram a sua carreira. O autor relata,
com desprendimento e sabor, intimidades da rotina diplomática, bem como
passagens importantes da história da nossa política externa. Atribui,
naturalmente, maior atenção à aventura do reconhecimento da independência
angolana, mas não pára por aí. Continua preocupado com a evolução das
relações internacionais e, sobretudo, com a inserção do Brasil no mundo.
Este livro é uma valiosa contribuição do Instituto de Pesquisa de Relações
Internacionais e da Fundação Alexandre de Gusmão para a preservação e
divulgação da memória diplomática brasileira. O lançamento das memórias
do Embaixador Ovídio de Andrade Melo é, acima de tudo, um reconhecimento
de que política externa também é feita por homens que são capazes de romper
preconceitos e enxergar além dos muros das convenções.
13
Introdução
Neste livro, que tratará principalmente do Reconhecimento da
Independência de Angola em 1975 e da missão que eu, na época,
desempenhava em Luanda quando muito contribuí para aquela histórica
decisão, creio ser útil ao leitor que, sem falsa modéstia, eu me revele melhor,
como um típico brasileiro de classe média, que se tornou um diplomata
combativo, sempre disposto a repelir abusos e imposições que pudessem
prejudicar o Brasil no mundo. Talvez por conhecer essa minha tendência, o
Itamaraty designou-me para Angola naquela ocasião, pois as forças
colonialistas que ainda subjugavam os países africanos eram as mesmas com
as quais o Brasil sempre teve de lutar. Certamente foi por isso que aceitei, de
bom grado, a designação e julguei muito bom e produtivo o ano de guerra
que passei em Luanda.
Tendo nascido em 1925, no primeiro quarto do século XX, no Vale do
Paraíba, também denominado Vale do Café, cheguei a conhecer alguns negros
muito idosos, escravos libertos das fazendas da região. Na minha família,
considerada como branca, mas certamente com algum sangue misturado,
bem como na companhia de muitos amigos que sempre se orgulharam de ser
afrodescendentes, muito cedo aprendi a ser grato a Angola, por tudo que
perdeu de população, no tempo em que fornecia trabalho forçado e cultura
ao Brasil. Assim também, na escola primária de minha cidade natal, já nutria
a maior admiração por Tiradentes, combinada com a maior antipatia por
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
14
Dona Maria I, a Louca, que mandou enforcar e esquartejar nosso herói. Da
mesma forma, em meus prediletos estudos de história, pela vida afora e até
hoje, jamais me conformei com o fato de que Pedro I pagou três milhões de
libras ao pai para ter reconhecida a Independência, mesmo depois que o
gesto teatral do Ipiranga já havia sido confirmado pelas armas na Bahia.
Mais ainda, nunca tive admiração por Pedro II, que manteve o trono por
tanto tempo, enfeitando e valorizando sua fazenda de Petrópolis à custa da
venda de títulos de nobreza aos fazendeiros do Vale do Paraíba, assim
contemporizando com a escravidão e levando o Brasil a conquistar o triste
título de ser “o último país do Ocidente a ter escravos”.
Quanto às atuações minhas em alguns problemas diplomáticos importantes,
uns bastante complicados, outros arriscados, prepararam-me para passar
dificuldades e perigos naquele ano de 75, em Angola, dadas as condições
novas de guerra que o Tratado de Alvor criou, quando, desastradamente,
concentrou em Luanda, as tropas dos três Movimentos guerrilheiros que
disputavam o poder. A proximidade diuturna em que estas forças passaram a
conviver produziu escaramuças e batalhas quase incessantes, pois a
Independência estava prometida em um prazo curto, chegaria no 11 de
Novembro. Os portugueses assim intensificaram, em vez de apaziguar, a luta
armada entre os partidos que, também segundo o Tratado, deveriam, naquele
prazo, pacificamente elaborar uma constituição para o novo país.
Geralmente, quando há guerras, declaradas ou não, os diplomatas são
os primeiros a sair, ou logo são cerimoniosamente trocados, entre os países
beligerantes. No caso de Angola, ocorreu o contrário. Justamente porque
havia uma guerra previsível e iminente, o Itamaraty, que desperdiçara tanto
tempo acobertando a ganância dos colonialistas portugueses e ignorando as
aspirações do povo angolano, precisava urgentemente ter em Luanda um
representante perante os três Movimentos guerrilheiros, para melhor conhecê-
los e planejar as relações futuras. Como o Brasil era neutro entre eles, tinha
uma política que se poderia definir como Machadiana: “Ao vencedor, as
batatas.” Assim, entre os partidos disputantes, aquele que fosse vencedor,
seria reconhecido como governo futuro. Ainda mais, podíamos presumir que
a presença de um representante brasileiro em Luanda contribuiria para
comprometer Portugal com as promessas que fizera, de libertar Angola, com
prazo fixado. Isso era importante porque a promessa era da Revolução dos
Cravos. E revoluções podem tomar os rumos mais inesperados, inclusive
renegando compromissos.
INTRODUÇÃO
15
De bom grado, aceitei servir em Angola, embora além dos riscos de
guerra previsíveis, pudesse temer também um risco adicional: o Brasil
proclamava ser neutro, equânime, capaz de aceitar a vitória final de qualquer
dos três Movimentos guerrilheiros que lutavam em Luanda. Mas era facílimo
supor, desde o início, que se o MPLA, de Agostinho Neto, apoiado, entre
outros países, pela URSS, fosse o movimento afinal vencedor, os Estados
Unidos e certos países europeus não reconheceriam Angola independente.
Nesta mesma hipótese, os partidos da direita, a grande imprensa, a televisão,
os brasileiros lusófilos, os portugueses salazaristas no Brasil, fariam tudo, do
possível ao absurdo, para impedir que também o Brasil reconhecesse o novo
país. Assim, se depois da independência Angola não fosse reconhecida pelo
Brasil, imenso seria o fiasco da nossa política, não só nos países africanos de
língua portuguesa, mas em toda a África.
Só não era possível prever que divergências a respeito pudessem adiante
surgir entre o Presidente e seu Ministro do Exército. Afinal, ambos eram
militares, um escolhera o outro como colaborador, serviam à mesma ditadura,
era de supor que tivessem os mesmos gostos e critérios.
Em toda a história da diplomacia, desde que o general Charles Martel,
na França, derrubou reis pretextando simplesmente que eles eram
“vagabundos”, sempre que o Rei e o Exército desentendem-se, por motivos
sérios ou fúteis, os mensageiros do soberano ou diplomatas, gente muito
esperta, ficam ao lado do Exército, que é o tutano do Estado. No caso
do reconhecimento de Angola, felizmente, os diplomatas brasileiros
escolheram o lado contrário. O Itamaraty ficou com o Rei, ou seja, com
o Presidente Geisel – e assim correu perigo, por estar em contradição
com o Ministro do Exército, até que este foi finalmente vencido, quando
tentou derrubar o Presidente em 78, alegando, num manifesto ao povo,
que Geisel, ao reconhecer Angola, estava levando o Brasil para... o
comunismo...
Por tudo que fiz, então, na minha carreira antes de Angola e depois,
durante minha permanência num ano de guerra em Luanda, posso reivindicar
um cognome, que também pode ser o título deste livro: assim como um ilustre
colega que chegou a Chanceler, ao publicar sua autobiografia, intitulou-a
modestamente como “Memórias de um Empregado do Itamaraty”, eu, que
nunca alcancei tais alturas na hierarquia, serei mais modesto ainda. Intitularei
estas lembranças de meus sucessos e fracassos na carreira como “Memórias
de um Removedor de Mofo no Itamaraty”.
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
16
Pois o Itamaraty, como todas as instituições vetustas, pode criar e
acumular mofo. E este bolor, por vezes muito incômodo, aqui deve ser
entendido como excesso de burocracia, amor demasiado à tradição,
preconceitos aristocráticos e ideias antiquadas que ainda atrapalham a
formulação da política externa do país. Ou como atitudes subservientes que
naquela época em que eu estava em atividade, principalmente durante a
ditadura, o Brasil ainda mantinha, por sentimentalismo, em relação à sua antiga
metrópole, ou por complexo de inferioridade e subordinação por menor
esforço, quando defrontava imposições de potências imperiais. Hoje essas
potências estão desmoralizadas ou enfraquecidas e qualquer submissão tornou-
se absurda porque o Brasil agora começa a assumir, não só sua independência
já bastante antiga e até agora pouco usada, mas também a maturidade e
importância que o país já alcançou entre as grandes nações do mundo.
Devo aqui ressalvar meu mais profundo respeito e gratidão ao Barão do
Rio Branco, que por suas aptidões únicas para colecionar mapas e fatos
históricos e geográficos, resolveu, absolutamente sozinho, graças ao esforço
de toda uma vida e ao seu especialíssimo talento, todos os problemas de
fronteiras que o Império descuidara ou não conseguira solucionar. Por mais
que alguns diplomatas brasileiros desejem partilhar tanta glória, nunca o
Itamaraty poderá reivindicar para si nem uma parcela ínfima do grande feito
de Juca Paranhos na negociação de fronteiras para o Brasil.
Em sua outra atividade como diplomata, o Barão, ao criar a reluzente
Chancelaria, imitada do Foreign Office inglês e do Quai d’Orsay francês,
tinha um propósito político, que o Itamaraty de hoje bem pode partilhar.
Queria fazer política externa de verdade, afastando o Brasil da submissão em
que vivia com relação ao imperialismo inglês, já então bastante enfraquecido.
Queria sacudir a letargia da política externa que a República tinha herdado
do Império. Ao agir assim, o Barão também removia mofo da República. De
tempos em tempos, imperialismos, antes muito fortes e intimidantes, decaem.
E o Barão fazia boa política porque quando as pressões externas tornam-se
mais fracas, diversas gradações de desobediência e rebeldia passam a ser,
mais do que cabíveis e toleráveis, apenas necessárias.
A seguir, começo o relato do que fiz na carreira, quando ainda não sabia
que tudo de valioso que conseguisse fazer, serviria apenas como um imperfeito
treinamento para as dificuldades enormes que depois defrontei em Luanda.
17
1
a
Parte
De onde vim, quando entrei para o Itamaraty
Nasci em 1925, em Barra do Pirai, cidade que só havia sido reconhecida
como tal por decreto, depois da República, e que, em consequência, não
tinha pretensões aristocráticas, nem havia enriquecido e se embelezado no
Império, como as cidades vizinhas do Vale do Café. A estrada de ferro chegara
ao povoado na foz do Piraí em 1864. Desde então, o lugarejo, com sua
estação e seu grande depósito mecânico, começou a atrair escravos libertados
e até fugidos, pois tinha empregos para eles, como guarda-freios, ou foguistas
de trens, ou como assentadores de dormentes e trilhos na construção
ferroviária que prosseguia para outras províncias.
O depósito mecânico também atraía alguns estrangeiros de países já
industrializados. Isso porque, durante toda a escravidão, os brasileiros livres
não trabalhavam com as mãos. E, depois da Abolição, os negros libertados
ainda não podiam entender muito de mecânica. Tornando-se, assim, um
povoado com uma população de origem mais variada, e ao mesmo tempo,
um entroncamento importante e um ponto de baldeação entre as linhas que
ligavam o Rio de Janeiro a São Paulo e Minas Gerais, Barra do Piraí cresceu
muito, ainda mais porque, após a Abolição, grandes levas de imigrantes
italianos, portugueses, árabes e judeus, que tinham receio das epidemias no
Rio de Janeiro, também a escolheram como residência. A cidade então
prosperava, com casas de comércio e indústrias nascentes, ao longo da
ferrovia, enquanto a decadência do café deprimia a economia e quase
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
18
paralisava a vida de todas as outras cidades do vale do Paraíba. Assim,
enquanto os moradores de cidades vizinhas apenas sobreviviam, sentindo
saudades do próspero passado, os habitantes de Barra do Piraí tinham um ar
de satisfação com o presente e confiança no futuro... Creio ter-me impregnado
desse otimismo, desde pequeno, e por isso tornei-me um rapaz empreendedor.
Talvez por essa razão, aos vinte e dois anos de idade, depois de uma
tentativa falhada, consegui ser aprovado no concurso para a carreira
diplomática e comecei o curso no Instituto Rio Branco, tendo escolhido a
profissão, não porque soubesse bem o que ela fazia, mas apenas porque
pretendia correr o mundo levando minha bonita namorada, a Ivony, também
de Barra do Piraí, com quem felizmente estou casado até hoje. Agora, com
sessenta anos de matrimônio e após quarenta anos de peregrinação na
diplomacia, o casal sente que, se ganhou experiência e cultura viajando tanto,
perdeu muito da vida simples e da convivência com os bons amigos
remanescentes na cidade natal.
Primeira atitude tomada no Itamaraty
Já no início do curso do Rio Branco, muito cioso que eu era de minha
maioridade e independência financeira, (pois havia trabalhado para meu
sustento desde os dezoito anos) tive de tomar uma atitude que, certamente,
discrepava da pose diplomática, mas era útil para todos meus colegas e
candidatos à diplomacia, moradores pelo país afora. O Itamaraty, ao criar o
IRB, acostumado que estava a sempre lidar com gente abastada e importante,
não havia sequer contemplado a concessão de bolsas de estudo para os
estudantes, porque, como é bem sabido,o uso do cachimbo faz a boca torta.
Parecia então acreditar que todos os alunos passados naquele concurso,
quando a seguir frequentassem o curso que durava dois anos, pudessem
sustentar-se com fortuna própria ou vivessem com prazer à custa de família
rica. Derruindo essa crença infundada, apresentei ao Instituto dois
documentos, (que fiz questão de intitular como “atestados de pobreza”) nos
quais o Prefeito e o Bispo de Barra do Piraí afirmavam que “o novo aluno do
IRB, residente naquela cidade, não dispunha de recursos próprios para
manter-se e estudar no Rio de Janeiro. Que o novo aluno era maior e não
queria viver às custas da família, pelo que necessitava de bolsa de estudos”.
Desde então o Instituto passou a conceder bolsas, inicialmente para quem
vinha do interior, depois até para os alunos que, antes de passarem no
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
19
concurso, já moravam no Rio de Janeiro. Só então o ingresso no IRB tornou-
se não só teoricamente possível, mas verdadeiramente praticável para os
brasileiros comuns, provindos de qualquer recanto do país. Foi esse, sem
dúvida, o primeiro e não pequeno mofo que removi do Itamaraty.
Em meus estágios de serviço pelo mundo afora, morei em Toronto, Lima,
Kobe, Washington, Buenos Aires, Argel, Londres, Luanda, Bangkok, e
Kingston, a Jamaica. Nos dois últimos postos, tive também representações
cumulativas em países vizinhos, tais como Malásia e Cingapura com relação
a Bangkok, ou Bahamas, Belize, Antígua e Barbuda com relação à Jamaica.
Contando todas as mudanças feitas em quatro décadas, minha família e eu
moramos em 21 diferentes casas, algumas delas bem precárias, pois situadas
em países que acabavam de sofrer, ou ainda estavam sofrendo guerras para
serem independentes como Argélia e Angola. Tendo vivido em capitais e
cidades ultramodernas e confortáveis, em países importantes do primeiro
mundo, o autor também se aventurou em postos menos pacíficos e pouco
desejados, mas temporariamente de interesse para o Brasil.
Na frígida Toronto, eu e minha mulher, já com uma filha de seis meses,
vivemos pela primeira vez no exterior. O trabalho era simples e rotineiro, num
Consulado minúsculo e mortiço, criado apenas para atender às necessidades
da companhia canadense Light & Power, que atuava no Brasil. Em Toronto,
aprendi que a iluminação e o transporte públicos podem ser geridos
magnificamente pela Província e até pela Municipalidade. No Brasil, a Light
& Power apregoava que só uma empresa privada poderia prestar com
eficiência aqueles serviços, enquanto os bondes caiam aos pedaços e a luz
faltava com muita frequência, até na capital. Para gerar mais eletricidade, a
companhia canadense pedira o aval do Governo brasileiro na obtenção de
um empréstimo, destinado a construir uma nova barragem no rio Paraíba. E
com a barragem, exatamente em minha cidade natal, transformou o caudaloso
Paraíba, num conjunto de canaletas paralelas com água suja ou esgoto, como
está até hoje.
Logo ao chegar a Toronto, resolvi um problema que havia encontrado
na Divisão de Comunicações do Itamaraty e que era o seguinte: desde o
tempo do Barão, o Itamaraty tinha apenas dois tipos de correspondência
com os postos no exterior – os ofícios recebidos e os despachos que eram
enviados ao exterior, correspondência formalíssima, cerimoniosa, que sempre
começava com um “tenho a honra de levar ao conhecimento de Vossa
Excelência” e terminava com várias gradações de respeito como “Aproveito
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
20
a oportunidade para renovar a Vossa Excelência (ou Vossa Senhoria) os
votos de consideração etc... com que me subscrevo...”.
Esse tipo de correspondência, que ainda rescendia ao século XIX, só
podia ser evitada quando a urgência do assunto tratado fosse indubitavelmente
urgente e requeresse telegrama. Mas o telegrafo era caro, as verbas eram
curtas, a pressa de um assunto era sempre discutível e nenhum diplomata
gostava de ser acusado de estar estourando as verbas com futilidades Não
havia meio termo entre os dois tipos de correspondência, até que um diplomata
tido como um gênio burocrático, o Embaixador Maurício Nabuco, inventou
um novo tipo de correspondência intermediária, a chamada Carta-Telegrama.
Neste novo tipo de mensagem, talvez copiada dos Estados Unidos, o redator
esquecia as formulas cediças do cerimonial e entrava diretamente no assunto
a tratar. Assim, também terminava a mensagem dispensado de formular votos
quaisquer, bastando assinar o nome.
A Carta-Telegrama passou então a ser moda irresistível para a
correspondência entre a Secretaria de Estado e os postos. Não podia
ultrapassar duas páginas. O tempo gasto com a redação era poupado. Mas
tempo do transporte, porém, era o mesmo dos antigos ofícios. Se o assunto
não era confidencial, seguia pelo correio aéreo comum. Se era algo que
requeresse resguardo, tinha de esperar a próxima valise diplomática, também
transportada por avião.
Mas o pior não era isso. Chegada ao Itamaraty, a Carta-Telegrama tinha
de ser reproduzida tantas vezes quanto fossem as diversas divisões a que se
destinasse. Por vezes, o número dessas divisões tinha de ser ainda aumentado
com a inclusão de outros setores que também pudessem ter interesse pelo
assunto tratado. Assim, discutindo-se a distribuição, perdia-se tempo. E depois
a correspondência chegada do exterior tinha de ser copiada à máquina de
escrever, com dez, doze cópias carbono – dado que, na época, no Brasil
ainda não havia xerox.
Eu que havia sido revisor de cartas-telegramas na Divisão de
Comunicações do Itamaraty, não me conformava com a tarefa idiota que me
haviam dado, de chefiar um batalhão de datilógrafas, revisar todas as cópias
que faziam e muitas vezes ordenar-lhes que tudo fosse refeito. Assim que
cheguei a Toronto, procurei e encontrei uma certa firma que fazia máquinas
precursoras do que depois veio a ser a Xerox. Com a nova máquina, o
remetente da Carta-Telegrama datilografava uma cópia em papel comum
para seu próprio arquivo, juntamente com outra cópia em papel especial,
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
21
que era uma espécie de negativo, para ser enviado ao destinatário e por este
copiada também no mesmo tipo de máquina, tantas vezes quanto fossem
necessárias. Comuniquei minha descoberta ao Itamaraty, que, logo depois,
comprou as máquinas para mecanizar totalmente as Cartas-Telegramas.
Recebi do Itamaraty um elogio do meu zelo funcional, pensei que iria
partilhar a glória do Embaixador Maurício Nabuco como inventor das Cartas-
Telegramas – mas logo depois a utilização mundial das Xerox, do telex, dos
computadores, tudo isso em rápida sucessão, invalidou totalmente as minhas
esperanças de alcançar celebridade.
No segundo posto, em Lima, Peru, encontramos uma Embaixada muito
festiva, um Embaixador simpático que se tornou amigo e conhecemos um
país lindo, com uma história fascinante, mas que na época era governado por
uma ditadura militar caricaturalmente latino-americana, algo que ainda não
conhecíamos de perto e só viemos a experimentar muito tempo depois no
Brasil.
Duas iniciativas que tomei no Japão
Em Kobe, no sul do Japão, numa cidade ainda bastante destruída por
bombardeios, (cidade que se salvou de virar pó e continuou a existir apenas
porque a guerra acabou a tempo, dado que estava programada para ganhar
a próxima bomba atômica depois de Nagasaki), assumi um Consulado-Geral
que era a terceira repartição coletora de emolumentos que o Itamaraty tinha
no mundo, depois dos Consulados- Gerais em Nova York e Hamburgo. Isso
porque, na época, a imigração japonesa para o Brasil era intensa, cerca de
dez mil pessoas por ano. O trabalho tornava-se pesado e varava a noite,
com a legalização de documentos e emissão de vistos permanentes apenas
quando havia algum navio de imigrantes zarpando para o Brasil, o que ocorria
duas vezes ao mês.
O recrutamento dos imigrantes era feito pelo governo japonês, entre
agricultores, no sul do Japão e Okinawa. Vinham eles depois para a Casa
dos Imigrantes, em Kobe, chefiada por um diplomata japonês, e ali hospedados
por uma quinzena, tinham aulas de português e aprendiam um pouco a respeito
do Brasil e de nossos “exóticos” costumes. Finalmente, dois ou três dias
antes do embarque, o Cônsul brasileiro, com um intérprete, visitava a
hospedaria e, muito superficialmente, trocava algumas palavras simpáticas
com cada um dos candidatos a visto. Essa visita parecia-me uma mera
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
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formalidade, sem conteúdo sério, apenas para fingir que o Brasil também
selecionava imigrantes. Certa vez, resolvi então fugir da rotina e fiz a vários
candidatos uma pergunta única, perfeitamente pertinente, mas que nunca havia
ocorrido a meus antecessores: indaguei quanto haviam pago à Sociedade
Nipo-Brasileira (uma entidade privada que vivia entre a Casa dos Imigrantes
e o Consulado-Geral) pela obtenção no Brasil da Carta de Chamada, ou
seja, do contrato de trabalho necessário para conseguir o visto permanente.
As respostas a esta pergunta foram surpreendentes. Quantias mais ou menos
vultosas, às vezes uns poucos milhares de dólares, eram cobradas para
conseguir os tais contratos, dependendo do tamanho da família. E isso indicava
que alguns membros da referida Sociedade, estabelecidos com fazendas ou
sítios no Brasil, ao emitirem numerosos contratos de trabalho, mais até do
que permitiria a extensão de suas terras, faziam disso um lucrativo negócio.
Tentando impedir, ou pelo menos diminuir, a ganância daquela sociedade
privada que assim explorava pobres candidatos à emigração, o Consulado-
Geral colocou vários anúncios nos jornais, para informar ao público que aquela
intermediação não seria em todos os casos indispensável; que o Brasil não
restringia a imigração japonesa somente a agricultores, que técnicos e
profissionais de todos os tipos também seriam bem recebidos no Brasil e que
o Consulado-Geral poderia ajudar gratuitamente os candidatos à emigração
a obterem emprego no Brasil. Nos referidos anúncios salientei, outrossim,
que a expedição de um visto permanente custava apenas cinco dólares, para
que os interessados não pensassem que o Consulado-Geral explorava os
imigrantes. Era essa a forma de pelo menos ressalvar a posição do Brasil,
num sistema de emigração que começara em 1908 e que, até por amor à
tradição, o governo japonês não tinha interesse em reformar ou simplificar.
Os anúncios, portanto, não surtiram qualquer resultado. Na verdade, desde
sempre, só o Japão selecionava os imigrantes. Nessa atividade, cuidava apenas
de exportar agricultores desempregados ou pobres demais, estômagos vazios
que o Estado não se dispunha a encher. E o Brasil ainda importava só braços
para a lavoura, exatamente como fizera com a imigração europeia, no tempo
do Império, com as experiências do grande fazendeiro Senador Vergueiro
para tentar acabar com a escravidão.
Desse período guardo ainda, após tantas décadas, uma lembrança
inapagável, que era o da saída dos navios transportadores de imigrantes
para o Brasil, cerca de quinhentas pessoas a cada quinzena. Encostado o
navio no porto, serpentinas eram trocadas entre os viajantes alinhados no
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
23
tombadilho e a multidão de amigos, parentes e curiosos que os contemplavam
e os despediam, acenando no cais. Autoridades da Prefeitura de Kobe, da
Casa dos Imigrantes, do Consulado-Geral do Brasil compareciam a essa
cerimônia. Uma banda de musica tocava canções tradicionais japonesas,
entremeadas com algumas canções italianas que falavam de separações
amorosas, músicas tristes que a multidão sabia cantar. As serpentinas
continuavam a ser trocadas, de cima para baixo e vice-versa, até que
formavam uma espécie de toldo, ou rampa colorida, que unia a grade do
tombadilho ao cais. De repente, o navio apitava demoradamente e a banda
depois tocava o belo hino japonês, anunciando a partida. O navio começava
a ser puxado por rebocadores e ia lentamente descolando-se do cais,
arrebentando as serpentinas pouco a pouco, o que bem simbolizava a
angustiante sensação dos imigrantes, ao se separarem, talvez para sempre,
de sua pátria. A comoção dos viajantes, da multidão no cais, acabava
contagiando também as autoridades presentes. Era difícil conter uma discreta
lágrima naquela emocionante despedida.
Outro assunto que prendeu minha atenção em Kobe foi a compra de
petroleiros que o Brasil naquela época fazia num único estaleiro japonês. Os
navios comprados eram pagos em vultosas prestações mensais, que
começavam na data da assinatura do contrato. Mas como a construção só
iria começar cerca de um ano depois, pois havia fila para a produção dos
estaleiros, antes mesmo que os navios começassem a ser construídos já
estavam totalmente pagos. O pagamento, assim efetuado pelo Brasil, era
praticamente à vista.
Em chocante contraste com estas aquisições brasileiras, outros
compradores de embarcações idênticas, tais como o milionário armador grego
Onassis, usando qualquer outro estaleiro japonês, pagavam, na assinatura do
contrato, durante a espera na fila e depois em todo o tempo que durasse a
construção do navio, prestações que perfaziam, no máximo, apenas trinta
por cento do valor total da encomenda. Recebiam, afinal, o petroleiro, pronto
para navegar. E só então, ao usá-lo, com o lucro obtido, quitavam em módicas
e espaçadas parcelas os setenta por cento restantes da dívida. Isso, sim, era
quitação da dívida a prestações.
Pelo sistema de pagamento que o Brasil sugerira, ou aceitara, e que era
totalmente anômalo no Japão, o estaleiro que construía navios para o Brasil
já havia sido excluído de qualquer financiamento pelo Export Bank daquele
país, segundo alentada notícia publicada anos antes, nos principais jornais,
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
24
no sentido de que aquela firma não precisava de qualquer subsídio ou crédito
do governo japonês, pois era totalmente financiada pelo Brasil.
Comuniquei tudo isso ao Itamaraty e assim causei um grande alvoroço,
que chegou até à Presidência, no tempo de Juscelino. Ao que eu saiba,
nenhuma correção houve para a forma de pagamento. Outro fato que não
posso deixar de relacionar com a informação que enviei, foi que, um mês
depois da minha iniciativa, o prazo de permanência no exterior para diplomatas
que já estivessem fora do Brasil por mais de cinco anos foi encurtado, sem
razão qualquer, por uma anódina portaria. Somente dois diplomatas, eu e
um amigo meu que servia no Paraguai, fomos atingidos pela curiosa medida e
tivemos de voltar à Secretaria de Estado. Meu amigo já estava cansado de
Assunção e pedira para voltar. Eu, muito ao contrário, despedi-me com tristeza
do Japão e das boas amizades que lá fizera em menos de dois anos.
No Japão, ao tentar modificar ligeiramente a forma de seleção de
imigrantes, ou o sistema de pagamento das construções de petroleiros, estava
eu mexendo em sistemas antigos muito mofados, sem mesmo de início suspeitar
que neles pudesse haver corrupção. Por esta razão, tentando ser removedor,
quem acabou removido fui eu.
De volta ao Brasil para estágio, revisando os Acordos Roboré,
que haviam causado um estremecimento entre o Itamaraty e setores
das Forças
De volta ao Brasil, fui designado para a Divisão Política e alguns meses
depois para uma Comissão dos Acordos com a Bolívia, criada especificamente
para remediar uma delicada situação em que o Itamaraty se desentendera
com setores ditos “nacionalistas” das forças armadas, por motivo dos acordos
de Roboré negociados no ano anterior com a Bolívia. Parte do exército, que
defendia ferrenhamente o monopólio da Petrobrás, na exploração de petróleo
no território nacional, não podia, por mínima coerência, aceitar que a
companhia enfraquecesse sua posição patriótica, indo explorar petróleo em
territórios alheios, ainda mais em países vizinhos. Assim também, outros
militares “nacionalistas”, alguns bem exacerbados, não concordavam com
retoques, pequenos recuos ou avanços, que os tratados de Roboré haviam
feito em certos trechos da fronteira com a Bolívia, para corrigir traçados ou
demarcações anteriores que tinham erros, por insuficiências de conhecimento
geográfico de regiões ínvias entre os dois países, no começo do século, ao
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
25
tempo do Barão do Rio Branco, quando Brasil e Bolívia assinaram o Tratado
de Petrópolis.
Atuando na Comissão dos Acordos com a Bolívia tive, inúmeras vezes,
de deslocar-me à fronteira, tentando encontrar soluções para problemas de
contrabando ou de violações de tratados que previam livre trânsito em
território brasileiro de mercadorias compradas pela Bolívia. Alguns desses
problemas consegui solucionar, outros não. Todos implicavam algum risco,
até de vida, para quem tentasse resolvê-los e alguns precisaram requerer até
colaboração do Exército.
Dois casos que muito poderiam afetar as relações com o país vizinho e
que tiveram solução satisfatória, merecem menção. No primeiro, o Inspetor-
Chefe da Alfândega em Corumbá acabou preso e cumpriu longa pena, por
assassinato e contrabandos vários, o último dos quais introduziu no Brasil um
valiosíssimo rebanho de zebus indianos, que o Ministério da Agricultura julgava
possíveis portadores de uma peste bovina asiática, extremamente perigosa
para a pecuária brasileira. Nada disso aconteceu até hoje, com a entrada do
rebanho, ao qual a Bolívia atribuía o valor de um terço do seu orçamento
anual.
No segundo episódio, a apreensão e o leilão judicial em Guajará- Mirim
de um frigorífico que transitava por território brasileiro, a caminho da Bolívia,
foram objetos de protestos do Governo de La Paz. Considerando que se
tratava de uma violação do Tratado de Petrópolis, o Itamaraty me destacou
para ir a Guajará-Mirim examinar o assunto. Fui, e depois de uma semana de
árduas e perigosas investigações, apurei graves irregularidades havidas na
apreensão e no leilão do frigorífico. Voltando ao Rio com as provas obtidas,
consegui que o Tribunal de Justiça, com jurisdição sobre todos os territórios,
simplesmente pedisse ao Exército para apreender o frigorífico por uma
segunda vez, mas desta feita para colocá-lo, são e salvo em definitivo, na
outra margem do Guaporé, em solo boliviano, nas mãos de seu legítimo
comprador.
Ainda neste estágio na Secretaria de Estado, fui designado para ser
representante do Itamaraty, no curso matutino do Instituto Superior de Estudos
Brasileiros. Minha tese no ISEB abordou o tema da imigração japonesa,
considerando-a muito benéfica para o Brasil, contrariamente a muitas opiniões
que, na época, ainda estavam influídas, por assim dizer, envenenadas, pela
propaganda americana depois de Pearl Harbour, sobre o chamado “perigo
amarelo”.
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
26
Muitos anos depois, ao assistir o belo filme High Noon, em que Gary
Cooper representa um xerife que corre perigo, num vilarejo infestado por
alguns bandidos, com uma população honesta, mas totalmente intimidada e
por isso inerme – revivi algumas das piores aventuras que tive na fronteira, a
serviço do Itamaraty, garantindo o cumprimento de tratados pacificamente
negociados pelo Barão, mas para isso, tendo eu de portar um revolver à
cinta.
Cuidando das relações com a URSS, que começaram em 1826,
foram rompidas desde 1917, reatadas somente por dois anos após a
Segunda Guerra Mundial
Quando havia servido no Peru, por não ter muito trabalho, fiz uma aposta
numa conversa regada a uísque com meu amigo Coronel Celestino Correia
da Costa, Adido Militar. Dizia ele, muito enfaticamente, ser o russo um idioma
que “adultos não conseguem aprender.” Contestei essa afirmativa tola e daí
surgiu a aposta. Em troca de uma coleção de discos para ensino de russo que
ele me daria de presente, eu aprenderia o suficiente para ler um jornal e para
manter uma conversação sobre assunto não especializado. Ao fim de um
ano, perante uma banca examinadora por ambos escolhida, a aposta renderia
quinhentos dólares a quem ganhasse. Como saí vencedor a duras penas e
achava meu russo ainda muito imperfeito, fui generoso com o amigo e dispensei
o pagamento.
Vim a ser compensado muitos anos depois, quando, de volta no Brasil,
em fins de 59, por saber aquele idioma, fui incluído pelo Chanceler Horácio
Lafer na primeira missão comercial que, depois do rompimento de relações
em 46, foi a Moscou, com o propósito de apenas restabelecer comércio
com a URSS. No relatório final dessa missão, o Embaixador Barbosa da
Silva, que a chefiava, elogiou-me por meus conhecimentos linguísticos, que
haviam sido de utilidade para todos os brasileiros que compunham a missão,
num momento em que não tínhamos embaixada, nem intérpretes brasileiros
em Moscou. Já então não podia eu conceber que o Brasil precisasse, devesse
ou se deixasse constranger a evitar intercâmbio comercial, por motivações
políticas que para o comércio eram irrelevantes, tais como a forma de governo
que outros países tivessem. Não obstante, tão grande era a aversão do
governo brasileiro ao comunismo, ou o receio de desagradar os Estados
Unidos, nas condições da Guerra Fria, que para minimizar a finalidade da
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
27
missão enviada à URSS, o título que foi dado ao resultado das super
meticulosas e desconfiadas negociações, foi indefinido, um tanto vago demais.
Por sugestão do Brasil, o documento final foi intitulado, em vez de acordo ou
tratado comercial, apenas “Termos de Entendimento”. A meu ver, acordo ou
tratado comercial seria algo muito inocente e sobretudo delimitado. “Termos
de entendimento”, ao contrário, era uma expressão de alcance vastíssimo,
ilimitado, que poderia conter até plena concordância com a URSS em todas
as questões da Guerra Fria... Assim, dando um tímido passo inicial, reatamos
relações comerciais que havíamos tido com a Rússia desde Pedro I, mas
continuamos sem ter relações diplomáticas com a URSS, nos governos de
Juscelino e Jânio Quadros, até o Governo Goulart.
Depois de estabelecidas também as relações diplomáticas, ainda participei
de outras negociações com a URSS, desta vez para ter um comércio mais
amplo, com base num formal e apropriado Acordo Comercial. Nessas
segundas negociações, feitas no Brasil, o chefe da Delegação soviética foi o
Ministro Shevarnadze, que depois participou da Perestroika com Gorbatchev
e foi Presidente da Geórgia.
Em Washington, na Organização dos Estados Americanos (OEA)
A crise cubana e o panamericanismo de fancaria
No começo de 1960, fui removido para a OEA em Washington. Fidel
Castro já estava no governo em Cuba e as relações dos Estados Unidos com
a ilha começavam a deteriorar-se rapidamente. Com frequência quase diária,
nas sessões do Conselho da OEA, presenciávamos exacerbada troca de
acusações, sempre com os mesmos contendores. Tentarei aqui reproduzir a
cena: de um lado, o representante cubano, (recém-chegado da ilha porque
seu antecessor desertara em troca de um bom emprego da CIA) gaguejava
reclamações seríssimas, de sabotagens feitas na véspera em Havana por
presumidos agentes americanos, ou exilados provindos de Miami. De outro
lado da sala, os representantes dos ditadores Somoza, Trujillo e outros, apenas
esperavam o cubano terminar suas queixas e tomavam logo a palavra. Esses
embaixadores, excessivamente espertos e com alguns dotes oratórios,
pareciam ter instruções de seus maiorais para lançarem-se prestimosamente
à liça, sempre em ardorosa defesa dos Estados Unidos. Em longos e agressivos
discursos, simplesmente acusavam Fidel Castro de ser comunista e de estar
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
28
inventando histórias para “destruir a democracia no continente.” Somente
depois de ouvir muito desaforo o cubano recebia então a imprescindível e
definitiva resposta do delegado americano que, laconicamente, com calculada
frieza, apenas lamentava a discussão que durara toda a manhã “em torno de
acontecimentos que, se de fato ocorreram, muito provavelmente foram
causados somente pela oposição que Fidel já encontrava em sua própria
ilha...”. A sessão então chegava a seu término. Era hora do almoço.
Tais debates, repetidos com monótona e enjoativa frequência, foram
engrossando, até que redundaram na invasão fracassada da ilha, na irritada e
desafiante declaração de Fidel Castro, de que afinal sempre fora marxista
leninista, na aproximação ostensiva de Cuba com a União Soviética e,
finalmente, na expulsão de Cuba da OEA, após duas Reuniões de Consulta
da OEA, na Costa Rica e em Punta del Este, reuniões estas às quais também
compareci, como participante da Delegação brasileira.
Em todo este período de imensa confusão na OEA, o Brasil teve uma
política externa que me parecia muito equilibrada e justa, pois a Carta da
OEA , até então, jamais previra a expulsão de um membro da Organização
por motivo da forma de governo que adotasse. Tanto assim que ditadores
repelentes, mas serviçais aos Estados Unidos, como Somoza e Trujillo entre
muitos outros, sempre haviam participado tranquilamente do convívio
panamericano.
Na conferência de Punta del Este, depois da expulsão de Cuba, em
conversa com o Chanceler Santiago Dantas manifestei-lhe o desejo de ir
servir na Embaixada em Buenos Aires. Perguntou-me ele porque eu tinha
pressa de sair da OEA. Respondi-lhe que, depois da expulsão de Cuba, a
OEA iria ficar cataléptica durante muitos anos e, com certa petulância ainda
restante da juventude, previ que um golpe de estado dos militares argentinos
tiraria Frondizi, muito em breve, da Casa Rosada. Santiago teve um leve
sobressalto, talvez porque tivesse pensado também na estabilidade de Goulart.
Mas, quando o golpe logo depois ocorreu na Argentina, fui chamado em
Ouro Preto, onde estava em férias, para ser transferido com urgência para
Buenos Aires, mandado embarcar imediatamente e com instruções para servir
no setor político da Embaixada.
A pressa desta remoção foi-me depois explicada porque na véspera do
golpe havido a Embaixada dera-se ao trabalho de comunicar ao Itamaraty,
numa curta mensagem, que “Frondizi estava mais firme do que nunca no
governo e que não haveria golpe algum”.
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
29
Na Argentina. O muito durável peronismo
Em meu novo posto, durante os dois primeiros anos, com insistência
informei ao Itamaraty, já então sem arriscar profecias mas com fundamentados
argumentos, que o problema da recuperação da democracia na Argentina da
época era o de que, em qualquer eleição livre e decente que fosse realizada,
Perón, ou quem ele designasse, sairia vencedor com larga vantagem sobre
quaisquer outros competidores. Tal previsão era muito mais óbvia e certamente
muitos observadores a fizeram também, naquela época e depois, no correr
dos anos e das sucessivas ditaduras militares, pois o Peronismo provou ser
muito durável e até hoje governa o país vizinho, com o simpático casal Kirchner,
ao passo que a oposição principal é outra facção... também do mesmo partido
Peronista.
A grande Conferência do Comércio e Desenvolvimento.
Preparativos do Brasil
No começo de 1963 fui indicado para assessorar o Ministro do
Planejamento, Celso Furtado, numa reunião da CEPAL que se realizaria em
Mar del Plata, para tratar da futura Conferência das Nações Unidas sobre
Comércio e Desenvolvimento. Na referida reunião, verificando que muitos
dos países latino-americanos não estavam minimamente informados dos vitais
problemas de comércio que seriam tratados na vindoura conferência da
UNCTAD, sugeri que a ONU organizasse um seminário para preparar todos
os países subdesenvolvidos do mundo a respeito das importantíssimas
questões a serem tratadas em breve. O governo brasileiro gostou muito da
ideia, ofereceu Brasília para ser a sede do planejado seminário, que foi
aprovado unanimemente em Mar del Plata.
Ainda em 63, fui chamado ao Itamaraty pelo Embaixador Jaime de
Azevedo Rodrigues, Chefe do Departamento Econômico, para cuidar da
criação de uma nova Divisão de Política Comercial, naquele Departamento,
destinada a cuidar da grande conferência vindoura. Passei então dois meses,
sem a família, no Rio de Janeiro, para planejar e montar a nova Divisão.
Finalmente, regressei a Buenos Aires onde ficara a família, pois as minhas
filhas estavam em período de estudos. Retornar ao Rio, para chefiar por dois
anos a nova Divisão seria para mim impossível, por não ter feito as economias
necessárias. Melhor então era esquecer meu interesse pela Conferência do
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
30
Comércio e Desenvolvimento e recuperar meu posto em Buenos Aires antes
que algum aventureiro o ocupasse.
Mais difícil seria prever, mesmo nos fins de 1963, o que estava para
acontecer no Brasil. O imprevisto golpe militar de abril de 64 ocorreu três
meses depois que eu já havia retornado a meu posto na Argentina. Depois
das cassações iniciais de cinco diplomatas, entre os quais meus amigos Jaime
de Azevedo Rodrigues e Antônio Houaiss, o Itamaraty montou um inquérito
por correspondência que foi respondido por cerca de quarenta outros
diplomatas ao redor do mundo. Fui também inquirido nesta ocasião, mas saí
aparentemente absolvido, pois me deixaram permanecer na carreira e no
posto. Apenas o Embaixador julgou conveniente que eu fosse trocado de
setor, passando do setor político para o setor econômico da Embaixada, o
que também julguei prudente nas novas circunstâncias da ditadura instalada
no Brasil.
O Tratado do Trigo e o pão que o diabo amassou
Foi, no entanto, no setor econômico da Embaixada, que julgo ter melhor
empregado o tempo que passei em Buenos Aires, pois ali prestei um serviço
que até hoje talvez ainda seja importante nas relações comerciais entre o
Brasil e a Argentina. Descobri que o Tratado do Trigo, base do intercâmbio
entre os dois países – documento que datava do começo da década e já
tinha tido sua vigência automaticamente renovada algumas vezes, sem qualquer
alteração – era um tratado sem eira nem beira, aleijado, perneta, desprovido
de qualquer equilíbrio. Obrigava o Brasil, draconianamente, em cada ano, a
comprar no mínimo um milhão de toneladas de trigo argentino. Mas esquecia-
se de mencionar, em qualquer uma de suas cláusulas, como qualquer tratado
da espécie teria de fazer, que o cereal argentino a ser vendido para o Brasil
precisava ter: 1) boa qualidade e 2) melhor preço, ou pelo menos ser
comparável ao do trigo de qualquer outra procedência.
Ainda mais, a Argentina não se obrigava, em contrapartida, nem a ter a
mercadoria sempre disponível para vendê-la ao Brasil todos os anos. Se em
qualquer ano tivesse má colheita, ou encontrasse outros compradores que
pagassem melhor preço, simplesmente deixaria o Brasil sem pão. Preço maior,
pago por outro eventual comprador, seria difícil, ou impossível encontrar.
Pois o trigo argentino vendido ao Brasil custava muito mais do que o mesmo
cereal de qualquer outra procedência.
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
31
Mais incrível e absurdo ainda era o fato de que o trigo argentino, quando
comprado pelo Brasil em Buenos Aires, custava bem mais caro do que o
mesmo trigo argentino cotado e comprado no mercado de Rotterdam. Da
Holanda ao Brasil a distância é bem maior do que da Argentina ao Brasil.
Teríamos, então, nesta alternativa hipotética, de considerar também o frete.
Seria um frete muito mais caro?
Por mais estapafúrdio que pareça, não. Trazendo o trigo da Europa, o
frete seria mais barato. Pois o trigo argentino que vinha de Buenos Aires para
o Brasil tinha também o preço de transporte subsidiado pelo governo
comprador.
Outras indagações, então, impunham-se: o Tratado do Trigo prescrevia
algo sobre o subsídio ao transporte? O subsídio era pago pelo Brasil somente
aos navios brasileiros que carregassem o cereal? A resposta era negativa
para as duas indagações. O Tratado simplesmente não cuidava de fretes. E o
Brasil pagava subsídios tanto à marinha mercante brasileira quanto à argentina.
Ou seja, além de ganhar muito no preço do cereal, a Argentina ainda lucrava
em demasia também no frete. E assim, a Argentina saía mais beneficiada,
transportando mais da metade do trigo que vinha para o Brasil, pois não
havia sequer qualquer regra para divisão igualitária do frete.
Tudo isso foi comunicado ao Embaixador que ia sair em férias. Depois,
estando eu Encarregado de Negócios, julguei meu dever levar tudo também
ao conhecimento do Itamaraty, pois o Tratado do Trigo, já próximo do prazo
de expiração, iria ser renovado automaticamente. O Itamaraty, assim que
tomou conhecimento dos absurdos do Tratado, exigiu da Argentina que novas
negociações fossem feitas. A Argentina, com relutância, acedeu. Mas os
negociadores que do Rio de Janeiro vieram a Buenos Aires pareceram-me
frouxos. Apenas remendaram o Tratado, acrescentando à primeira cláusula
do documento que o trigo argentino a ser comprado, na mesma quantidade,
obrigatoriamente, a cada ano, pelo Brasil, “deveria ter boa qualidade e preço
internacionalmente competitivo”. Somente isto foi emendado... mas já era
alguma coisa.
Tendo sido acintosamente deixado fora das negociações, compreendi
que essa pequena alteração era o máximo que poderíamos conseguir. Pois
nessa questão da compra obrigatória do trigo argentino, havia uma força
oculta, que não aparecia porque, então, causaria constrangimento ainda maior
para o Brasil. Tudo começara com a decisão americana de vender-nos
excedentes de trigo em troca de pagamentos em moeda brasileira, segundo a
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
32
Public Law 480. A Argentina protestou fortemente contra essas vendas
americanas, alegando que era dumping, que o Brasil era seu freguês tradicional,
consumidor de trigo argentino desde priscas eras. Mostrando então muito
apreço pelas relações com a Argentina, o governo americano entrou num
conluio com Buenos Aires. Informou que só venderia trigo americano ao
Brasil, para ser pago em cruzeiros, depois que, a cada ano, já tivéssemos
comprado em Buenos Aires tanto trigo quanto a Argentina pudesse
regularmente produzir para o consumo brasileiro. A Argentina, então, fixou
em um milhão de toneladas o trigo que anualmente teria para vender ao vizinho,
considerado freguês cativo. E essa compra compulsória (inevitável, se depois
quiséssemos também receber qualquer quantidade de trigo americano para
ser pago em cruzeiros) passou a ser objeto de um tratado leonino, que
obviamente não comportava discussões sobre qualidade do cereal ou preços
competitivos. A velha expressão “comer o pão que o diabo amassou” ganhou,
então, um novo sentido...
Enquanto isso ocorria com o trigo, a Argentina não comprava nenhum
café do Brasil. Preferia importar café colombiano, embora o IBC gastasse
cerca de cinco milhões de dólares anualmente com publicidade em Buenos
Aires.
Hoje é público e notório que no governo Goulart os cruzeiros que
pagamos pelo trigo americano haviam servido para que a Embaixada dos
Estados Unidos financiasse governadores oposicionistas e organismos
conspiratórios como o IBAD, que iriam preparar o golpe de estado de 64. O
golpe, afinal desfechado, tivera pleno sucesso. Como seria então possível
que, depois do golpe, Brasil e Argentina, ambos sob regimes militares que
contavam com a simpatia dos Estados Unidos, pudessem sequer pensar em
reabrir o assunto do trigo ou em modificar um acordo que, mesmo sendo um
acinte comercial, “tão bons resultados políticos havia produzido, para o
perfeito entendimento entre as duas ditaduras? E para o bom entendimento
das duas ditaduras, a um só tempo, com os Estados Unidos?”. O acordo
tornara-se, então, intocável. Perdurou enquanto regimes militares governaram
os dois países. E o Brasil continuou a pagar caro pelo trigo argentino, mesmo
depois que os Estados Unidos já não tinham excedentes do cereal para vender
em moeda inconversível. Segundo o Embaixador Pio Correia, que foi
Embaixador em Buenos Aires, muito mais tarde, no fim da década de 60, e
que defendia com ardor o Acordo, “o Brasil tinha de pagar um preço político
para consumir trigo argentino”.
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
33
Argel. Uma embaixada nova, administrativamente mofadíssima
De Buenos Aires, em 1965, fui removido para Argel. O novo posto,
bastante inconfortável porque o país ficara independente em cruenta guerra,
travada principalmente na capital, poucos anos antes, foi por mim aceito de
bom grado porque não tinha economias para voltar à Secretaria de Estado e
com elas complementar o parco salário que ganharia em cruzeiros.
Logo depois de minha chegada ao novo posto, o Presidente Ben Bela
foi derrubado pelo General Boumedienne num golpe de estado que, por não
ter qualquer pretexto nem objetivo declarado, muito intrigou todas as
Embaixadas no local e todas as Chancelarias do mundo. Não tive tempo
nem vontade para me interessar por esse enigmático acontecimento, porque
já estava convencido de que não poderia permanecer naquele posto. Isso
porque o Embaixador comissionado em Argel administrava a Embaixada
depositando vultosas dotações públicas que recebia do Itamaraty, em suas
contas particulares. Essa prática, obviamente ilegal, já fora denunciada no
ano anterior por um secretário que era amigo do Embaixador e por isso
aceitara vir servir em Argel. O Embaixador tirara férias, o secretário e amigo
ficou como Encarregado de Negócios – mas estrilou quando descobriu estar
totalmente desprovido de recursos públicos, pois a Embaixada não tinha sequer
contas próprias, abertas em qualquer banco.
Recebendo aquela denúncia, o Departamento de Administração ficou
atarantado. Não ousava investigar o Embaixador, porque este, como todo o
Itamaraty sabia, era mui amigo do ditador General Castello Branco, com
quem trabalhara na Escola Superior de Guerra. Nesse impasse, entre
processar o Embaixador e deixar em Argel o Secretário denunciante, a
Administração resolveu manter o Embaixador no posto, remover o
denunciante, e, em substituição a este, ir fazendo um rodízio de outros
secretários por aquele posto, até que, finalmente, num futuro indeterminado,
algum deles, de caráter mais elástico, se adaptasse à bossa nova administrativa
que aquele chefe de missão, amigo do Presidente da República, pusera em
prática na diplomacia brasileira...
Como nesse ínterim apareci eu no Departamento de Administração
solicitando um terceiro posto, depois de haver servido em Washington e
Buenos Aires, muito matreiramente, o chefe do Departamento empurrou-me
para Argel, ainda mais salientando que “era uma cidade de vida muito barata,
onde economias poderiam ser feitas”.
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
34
Quando me convenci de que a Embaixada estava à matroca, fiquei
também numa dúvida: denunciar o Embaixador, mais uma vez, reiterando a
acusação que ele já sofrera no ano anterior, seria inútil, Ou pior, poderia ser
até perigoso nas condições da ditadura, tal como a Administração havia temido,
pois o homem era amigo do Chefe Supremo. Para comprovar e exibir essa
amizade, o Embaixador estava pensando em tirar férias, ansioso por ir ao
Rio de Janeiro. E não tinha segredos: nas férias iria procurar seu protetor e
obter, com a maior certeza, a promoção para chegar ao último degrau da
Carrière.
Resolvi, então, usar outra tática, diferente da simples denúncia, mas muito
mais eficaz. Quando o Embaixador começou a preparar as malas para sair
de férias, muito serenamente, eu lhe disse que não assumiria a Encarregatura
de Negócios se a Embaixada não me fosse passada formalmente, com todas
as escriturações em dia e com o saldo das dotações do trimestre corrente
depositado em conta oficial no Banco.
As discussões que se seguiram foram acaloradas. Por nada no mundo eu
abriria mão de minhas exigências. O Embaixador comunicou ao Departamento
de Administração a rebelião do subordinado. O Chefe do Departamento de
Administração telefonou-me para insistir em que assumisse o posto, sem
prestações de contas...
Como nada conseguiu, tentou logo tirar-me da jogada oferecendo-me
outros postos, alguns tentadores. Recusei de uma só vez todos os postos
oferecidos e disse-lhe que só aceitaria remoção para o Brasil. Quanto a essa
remoção, se não pudesse ser paga oficialmente, por não ter eu ainda um ano
em Argel, eu pagaria as passagens, nem que tivesse de vender meu
apartamento no Rio.
Frente ao impasse, a Administração afinal instruiu o Cônsul-Geral em
Barcelona para ir com dois auxiliares a Argel, a fim de assumir a Embaixada,
permitindo, assim, que o Embaixador logo entrasse em férias e que, dias
depois, eu também embarcasse de volta para o Brasil. Quando o Cônsul-
Geral chegou a Argel, logo sentiu, também, que não deveria assumir a
Embaixada sem um exame prévio da contabilidade. A prestação de contas
foi demorada, pois a desordem era total. A Embaixada nem tinha Livro de
Inventário e desde que fora criada, um par de anos antes, além das dotações
normais, já havia gasto cerca de noventa mil dólares com obras e instalações.
Ao fim, o Embaixador estava devendo à Embaixada uma meia dúzia de
milhares de dólares, soma pequena pois era apenas o resto da dotação do
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
35
trimestre, desfalque que teve de repor, em uma nova conta bancária que foi
aberta exclusivamente para uso da missão.
Ao fim da fiscalização, que para ser rápida abrangeu só o trimestre, o
Cônsul-Geral telegrafou ao Ministro de Estado, informando-o de que eu tinha
carradas de razão, quando não quis assumir a Embaixada sem uma prestação
formal de contas. Fiquei, então, pronto para voltar ao Brasil com passagens
que já comprara com meus parcos recursos.
Logo que repôs o desfalque, apenas do trimestre, o Embaixador
atabalhoadamente embarcou para o Brasil. No Brasil, imediatamente procurou
seu amigo Castello Branco, que o convidou a jantar em palácio. Dias depois,
entre outras promoções feitas, saiu aquela que ele tanto esperava e que o
transformava num “full Ambassador”, como ele dizia, pomposamente. Não
seria mais apropriado considerá-lo um “fool Ambassador”?
Toda esta estória, que é uma peripécia da copa e cozinha do Itamaraty e
não tem nada a ver com política externa, merece aqui tão longo relato, com
todas suas sórdidas minúcias, porque causou uma mudança nos regulamentos
e nos costumes da Casa. Desde a minha rebelião em Argel, nenhum outro
diplomata, em qualquer lugar no exterior, tem de assumir às cegas a
responsabilidade da encarregatura do posto, com uma venda nos olhos, sem
direito a uma verificação prévia das contas do chefe que não lhe mereça
confiança, quando este apressadamente sair removido, ou em férias. Ninguém
pode mais ser obrigado a parecer cúmplice, ou ter seu bom nome envolvido
com erros ou falcatruas alheias, numa transmissão de cargo informal, sem
boas contas prestadas. Assim também, desde então, os chefes de todos os
postos ficaram notificados de que, ao afastar-se do cargo, mesmo
temporariamente, podem ter de prestar contas a um subordinado, ainda que
o considerem antipático ou inimigo. Por todas essas novidades quero acreditar
que todas as contas, em todos os postos, devem, agora, estar sendo
escrituradas com muito mais cuidado, até com algum capricho. Essa novíssima
situação, que eu criei, acabou com uma era de poder absoluto dos chefes de
missão, que antes administravam seus postos como se fossem reis com poder
absoluto, ungidos por direito divino, servidos por cortesões e vassalos
humildes, e com o indiscutível poder de decapitá-los por qualquer deslize de
etiqueta, ou falta de respeito ao sagrado soberano...
Chegando de volta ao Itamaraty, para um novo estágio no Brasil, verifiquei,
com agradável surpresa, que minha atitude desassombrada e firme com o
Embaixador em Argel, e subsidiariamente, com a Administração, tinha sido
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
36
muito aplaudida pelos colegas, principalmente por aqueles que o amigo do
Presidente havia preterido na recente promoção. O Itamaraty inteiro sempre
o considerara muito antipático. Seu nome de família rimava com seu principal
defeito e por isso, em sua ausência, chamavam-no “Embaixador Presunção”.
Uma Comissão de três honestos e incorruptíveis Embaixadores, (Boulitreau,
Navarro da Costa e Donatelo Grieco) foi a Argel, examinou as contas da
Embaixada, sem aprofundar muito a pesquisa, mas ainda assim concluiu em
relatório que o titular do posto havia cometido cinco irregularidades, das
quais duas eram crimes, que justificariam demissão imediata. Boulitreau, que
havia sido meu chefe e amigo em Buenos Aires, mostrou-me o relatório que
propunha tão severa penalidade. Mas as condições do Brasil de então não
pareciam permitir que um amigo do ditador pudesse ser demitido. Foi por
isso que o assunto arrastou-se ainda por um par de anos, até que, sem qualquer
punição, o indigitado criminoso foi designado, ainda na durável ditadura, como
Embaixador num país longínquo, ao qual o Brasil da época não dava
importância alguma. Naquele exílio dourado permaneceu ele por mais de
uma década, brigando com sucessivos secretários e subordinados que não
podiam suportá-lo, até que foi aposentado por limite de idade.
Chefia da Divisão das Nações Unidas. Luta contra o colonialismo
português na ONU
Quanto a mim, depois dessa peripécia sumamente desagradável, nos
seis meses de interregno em Argel, senti-me recompensado com a chefia de
uma Divisão tida como importante no Itamaraty, pois proporcionava viagens,
tratava de todas as relações multilaterais centradas nas Nações Unidas, em
Nova York e Genebra, a DNU. O Ministro das Relações Exteriores era
Juracy Magalhães, que já se notabilizara por ter entusiasticamente proclamado,
em várias e importantes solenidades oficiais, que “o que era bom para os
Estados Unidos era bom para o Brasil.” Levando a sério este lema (e outra
coisa não poderia eu fazer, para preservar o emprego), comecei minha gestão
na DNU tentando ajustar o voto brasileiro ao voto americano, nas mais graves
questões que a Organização das Nações Unidas tratava na época: o processo
de descolonização e o até hoje inalcançável desarmamento nuclear.
Os Estados Unidos, que precisavam das bases nos Açores, depois de,
por muitos anos consecutivos, votarem favoravelmente ao governo de Lisboa
– sempre que a imensa maioria, quase a unanimidade das Nações Unidas
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
37
pretendia aplicar sanções econômicas a Portugal por sua política colonial –
haviam afinal perdido a paciência com a obtusa teimosia colonialista portuguesa
e já estavam, então, abstendo-se nessas votações anuais da Assembleia-
Geral. Continuavam ainda votando a favor de Portugal, naquela candente
questão, a África do Sul do apartheid e o Brasil, tão somente. A única
companhia que, assim, acabamos tendo naquela votação anual era péssima,
principalmente aos olhos dos povos africanos que tinham sobejas razões para
odiar o apartheid. Mais ainda, os povos africanos certamente podiam tomar
como um acinte, como uma ofensa imperdoável, o arrazoado que
apresentávamos, em cada Assembleia, para justificar nosso voto contrario a
sanções. Alegávamos “não poder votar contra Portugal por puro
sentimentalismo, porque era nosso vovozinho, nosso ancestral”. Frente a esta
desculpa canhestra, os africanos podiam, com toda razão, enfurecer-se e
indagar: “E a África, com o imenso contingente de afrodescendentes que
existe no Brasil, mais de metade da população total, não é também
considerada pelos diplomatas brasileiros como vovozinha, uma simpática
velhota ancestral?”.
Por todos esses motivos, devendo preparar a agenda para a vindoura
Assembleia da ONU, então sugeri, muito formalmente, por memorando, que
o Brasil seguisse o bom exemplo dos Estados Unidos e simplesmente se
abstivesse, quando o problema das sanções contra Portugal viesse de novo a
ser considerado pelos membros da ONU.
Quanto às justificativas para esse voto de abstenção, nenhuma precisava
ser apresentada. Mas se quiséssemos explicar a mudança de voto, pelo menos
não deveríamos relembrar a irritante desculpa de que Portugal era nosso
querido ancestral. Muito melhor seria que declarássemos ser contra a
aplicação de sanções econômicas nos problemas da descolonização por uma
questão de princípio, de pura lógica político-econômica.
E então, eu meticulosamente explicava: sanções podem ferir a economia
da metrópole, mas são sempre transferíveis. A metrópole pode empurrá-las
para baixo, transferí-las até agravadas para as colônias. Pior ainda: sempre
que submetida a sanções, a metrópole passa a explorar suas colônias mais
ferozmente, sem piedade alguma, para compensar os prejuízos que lhe foram
impostos. Se as colônias, por sua vez, forem ainda mais exploradas, hão de
intensificar, com mais ardor, até com desespero suicida, as lutas que já travam
pela independência. O Brasil e, supostamente, o mundo inteiro querem que o
processo de descolonização transcorra sem lutas, ou com lutas decrescentes,
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
38
de forma tal que antigas metrópoles colonialistas e suas colônias libertadas
possam no futuro conviver em paz, sem lembranças de um passado infernal,
de conflitos incessantes e ódios eternos. Se assim é, o Brasil não pode votar
favoravelmente à imposição de sanções, que só agravarão as guerras pela
libertação das colônias. E é por este motivo que rejeitamos sanções nestes
casos. O remédio das sanções é contraindicado para os males do
colonialismo...
O memorando com estas considerações não passou da Secretaria- Geral,
chefiada na época por um lusófilo incondicional, o Embaixador Pio Correia.
Deve ter ido para o lixo e não para os arquivos.
Não obstante, anos depois, tive o prazer de ver os mesmos argumentos
especiosos que inventei contra sanções, usados por ninguém menos do que
Margareth Thatcher, quando a Inglaterra recusou-se a punir a África do Sul
pela prática do apartheid.
A única diferença entre os dois casos era que eu havia criado a duras
penas tais raciocínios sinuosos, reconhecendo-os como hipócritas, porque,
com o objetivo de proteger Portugal (como o governo brasileiro queria e de
qualquer maneira iria fazer) certamente não precisaríamos ofender a África,
também nossa parente. Quanto ao uso de tais argumentos pela Primeira-
Ministra britânica, era apenas mais uma falsidade de Albion para acobertar o
governo de Pretória, pois o apartheid não lhe parecia tão absurdo, enquanto
os lucros da Anglo American, com suas minas de diamantes, continuassem
sendo opíparos.
Ainda na Divisão das Nações Unidas. O Tratado de Não Proliferação
Nuclear, em contraste com o Tratado de Tlatelolco. Armas atômicas e
artefatos nucleares explosivos para “engenharia geográfica
Outro assunto que na Divisão das Nações Unidas ocupava-me
intensamente era a questão do desarmamento nuclear, que vinha sendo tratada
por uma comissão da ONU em Genebra. Na referida comissão, as cinco
potências nucleares (que não por acaso são também os países que ocupam
os cinco lugares permanentes no Conselho de Segurança) ditavam as regras,
o andamento, as pausas, a linguagem, até os gestos das negociações,
parecendo imitar os fabulistas da Antiguidade quando estes registravam
encontros imaginários de lobos e cordeiros falantes. Os países fortes, já
armados com bombas atômicas, queriam simplesmente desarmar os países
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
39
fracos, possuidores só de armas convencionais, no sentido de vedarem a
estes, todo e qualquer avanço científico e tecnológico que os pudesse levar,
mesmo em futuro remoto, a ter armas nucleares.
“Responsáveis”, afirmavam os autoritários cinco grandes, são somente
os países curtidos em guerras, nuclearmente armados. Quanto aos países
desarmados, são “irresponsáveis”, trêfegos, estados verdadeiramente
perigosos, que não podem sequer sonhar em ter armas nucleares. Devem,
isto sim, aprender a viver intimidados com as armas nucleares dos poucos
que já as têm e ameaçadoramente as exibem pelo mundo afora. Assim,
muito aterrorizados, quando ouvirem falar em desarmamento geral, que na
verdade só a eles próprios se aplica, devem acorrer sôfregos, dispostos a
assinar qualquer papel que lhes seja posto à frente e que prometa uma paz
eterna que nunca virá...
Isto tudo dizia respeito às negociações que tinham curso em Genebra,
nas quais o Brasil estava representado pelo Embaixador Silveira, que fazia
alentados discursos humanitários. Mas no Brasil, que estava numa ditadura
militar, a questão do desarmamento nuclear começava a ser vista de forma
diferente. O Chanceler Juracy Magalhães, por exemplo, proclamava: “o que
é bom para os Estados Unidos, é bom para o Brasil”. As bombas de Hiroshima
e Nagasaki, sem sombra de dúvida, haviam sido muito boas para os Estados
Unidos. Logo, seriam boas também para o Brasil, se este as possuísse. E o
Brasil era visto pela ditadura como “um país que ninguém segura,” como uma
potência emergente, que sempre, desde a Liga das Nações, desde a última
guerra mundial, sempre aspirou a um lugar no Conselho de Segurança. O
Presidente Castello Branco, por sua vez, quando afirmou em sua última
mensagem ao Congresso que “o Brasil concorda com os Estados Unidos em
tudo... menos na questão da energia nuclear”, pode ter aparentado valentia,
mas não foi totalmente verdadeiro. Na verdade, até na questão nuclear havia
concordância. Assim como os Estados Unidos, o Brasil também queria ter
bombas atômicas. E o novo Presidente Costa e Silva assumia o poder com
um discurso ainda mais claro: “o Brasil concorda com a proscrição de armas
nucleares, mas reserva-se o direito de fabricar seus próprios explosivos
nucleares para uso pacífico”. Como não havia diferença entre bomba e
explosivo para fim pacífico, todas essas retumbantes frases podiam ser
interpretadas como quiséssemos.
Ao assumir a DNU e cuidar de estabelecer uma linha política da
diplomacia brasileira, no tocante ao tratado de desarmamento que ia sendo
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
40
urdido só entre as potências nucleares em Genebra, eu teria necessariamente
de levar em conta a atitude que os militares brasileiros, donos únicos do
poder, tinham com relação a armas atômicas. Militares, desde a juventude,
como cadetes, já andam com granadas penduradas no cinturão. Por vocação,
para serem minimamente respeitados e intimidantes, na paz ou na guerra, não
podem temer, nem podem parecer que temem, explosivos grandes ou
pequenos. Para ganhar eventuais conflitos, sonham sempre ter bombas mais
eficientes, atômicas, se possível. Em 1963, antes da ditadura, o jornal “Última
Hora” havia feito uma enquete entre todos os generais brasileiros comandantes
de tropas. Oitenta por cento deles queria que o Brasil desenvolvesse armas
nucleares.
A história recente do Brasil também registrava esse desejo dos militares
na Marinha. O Almirante Álvaro Alberto, quando dirigia a Comissão Nacional
de Energia Nuclear, não encomendou na Alemanha centrifugadoras para
enriquecer urânio, sem que ficasse bem clara a necessidade que teríamos de
urânio enriquecido, se ainda não tínhamos grandes reatores? Importante era
também lembrar a reação do governo americano, com respeito àquela
encomenda do Almirante. As tropas americanas, que ainda ocupavam a
Alemanha depois da guerra, simplesmente embargaram o despacho das
centrifugadoras para o Brasil. E logo o governo brasileiro, muito
apressadamente, despediu o Almirante da direção da CNEN sem explicar
bem os motivos da demissão.
Mas como civil que sou, não poderia desprezar a opinião que também
os civis possam ter sobre explosivos comuns e explosivos nucleares. Desde
a mais remota antiguidade, o primeiro machado de pedra inventado, tanto
era instrumento de trabalho como arma de guerra. Ainda hoje, dinamite tanto
é usada nas lutas civis bolivianas, como na construção civil, em todo o mundo.
Trabalhadores em minas usam explosões, assim como militares espargem
bombas sobre inimigos. Não parece uma incongruência que o escandinavo
inventor da dinamite possa ter criado o Prêmio Nobel da Paz? Pois essa
mesma dualidade de aplicações é característica também dos explosivos
nucleares. Depois de jogar as bombas em Hiroshima e Nagasaki os
americanos, com medo de se tornarem odiados na história futura por terem
cometido aquelas monstruosidades, começaram a fazer grande publicidade
dos explosivos atômicos também para finalidades civis, inteiramente pacíficas,
como seriam a abertura de canais, baias golfos, a construção de lagos, a
regularização de cursos fluviais, a abertura de estradas, remoção de montanhas,
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
41
perfurações de túneis, e dezenas de outras finalidades que passaram a chamar
de “Engenharia Geográfica”.
O tratado que estava sendo elaborado em Genebra não levava em conta
nada a respeito de finalidades pacíficas para as explosões nucleares. Não
contemplava a possibilidade de que países pudessem querer fabricar seus
próprios explosivos nucleares para fins exclusivamente pacíficos. Podíamos
aceitar essa restrição ao nosso desenvolvimento, à nossa soberania? A meu
ver, não. Principalmente um país enorme como o Brasil, precisaria no futuro
de engenharia nuclear. O grande escritor Graciliano Ramos, em tom de
brincadeira, havia dito que precisávamos de um golfo, se quiséssemos que o
Brasil chegasse a ser potência, pois todas as potências têm pelo menos um
golfo. Os militares sonhavam com o Brasil potência. Para isso, precisariam
abrir um golfo. Iriam construí-lo no vasto estado do Piauí – como Graciliano
recomendava – com bananinhas de dinamite? Ou com futuras bombas
nucleares, daquelas que são “pacíficas”?
O tratado elaborado em Genebra também não me parecia ter somente a
finalidade que proclamava de “desarmar o mundo”. Tinha outra finalidade
oculta, mais importante para os países já possuidores da bomba atômica:
visava a preservar e, se possível, eternizar, o monopólio da fabricação de
quaisquer explosivos nucleares, bélicos ou pacíficos, para as cinco potencias
já existentes e reconhecidas como tal. Se essa pretensão prosperasse, todos
os países desarmados teriam de conformar-se em limitar, ou mesmo
abandonar, pesquisas sobre energia atômica. E a impressão que eu tinha das
negociações de Genebra, segundo telegramas e relatórios que seguidamente
recebia na minha mesa de trabalho, era que as potências nucleares, ao
pretenderem criar em proveito próprio tal monopólio, estavam apenas
sonhando com privilégios fantasiosos e historicamente insustentáveis. Alguém
poderia imaginar que a China, por ter descoberto a pólvora, pudesse ter o
direito de manter a exclusividade da produção de fogos de artifício até hoje?
Alguém pode conceber a Suécia ainda hoje preservando o monopólio da
fabricação da dinamite, só porque que Nobel foi o inventor? As potências
nucleares estavam pretendendo absurdos monopólios, que o mundo nunca
respeitou, em benefício do avanço da ciência e do progresso da civilização.
Outro aspecto que tínhamos de levar muito em conta era que as potências
nucleares, sem cessar, aumentavam seus arsenais atômicos, ameaçando-se
umas às outras, intimidando também todos os povos com a capacidade que
proclamavam ter, de destruir o planeta repetidas vezes seguidas. Não obstante,
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
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superarmadas que já estavam, consideravam-se pacifistas e muito
“responsáveis”.
Quanto aos países desarmados, muitos dos quais não tinham
competência, nem recursos, nem tecnologia, sequer para fazer fogos de
artifício, eram “irresponsáveis”, se apenas sonhassem em fabricar explosivos
nucleares, num futuro remoto, ainda para fins exclusivamente pacíficos. Mas
esses países tinham pelo menos o direito soberano de sonhar com o futuro.
Deste direito soberano, as grandes potências não poderiam privá-los,
impondo-lhes um tratado que, na verdade, estabeleceria uma espécie de
“colonato nuclear sobre o mundo”.
A simples proposição do tema “desarmamento” de forma tão
discriminatória, como era imposto pelas potências nucleares, era hipócrita e
até ofensiva. E por certo, desrespeitava profundamente a igualdade jurídica
das nações, pela qual o Brasil sempre lutou desde os tempos do Barão do
Rio Branco e de Rui Barbosa, em Haia. Poderíamos, então, aturar e assinar
um tratado que pretendesse impor e eternizar tanta desigualdade entre as
nações? Era essa a, aparentemente ingênua, indagação que fiz a meus
superiores no Itamaraty quando primeiro deparei o assunto, em fins de 1965,
ao assumir a Divisão da ONU.
Estava eu, muito discretamente, convencido de que o problema para
o Brasil colocava-se ainda com mais nitidez e agudeza, porque estávamos
numa ditadura militar, que se instalara no poder num golpe de estado
fomentado e apoiado pelos Estados Unidos. A frase de Juracy ressoava
pelos corredores do Itamaraty. Aplicava-se ela também às armas
nucleares? As bombas atômicas seriam para o Brasil tão convenientes e
benéficas quanto pareciam ser para o nosso Bom Irmão do Norte? Ao
proclamar tal frase, Juracy poderia pretender agradar aos Estados Unidos.
Mas sua célebre frase, aplicada ao assunto, tinha também um outro sentido,
bem desagradável para os ianques. Se a bomba atômica era boa para
eles, seria boa também para o Brasil... Castello Branco, Costa e Silva,
outros militares que viessem mais adiante, não poderiam então aceitar o
tratado leonino, discriminatório e humilhante que vinha sendo urdido pelas
grandes potências, pretensiosas “donas do mundo”, em Genebra. E se
assim procedessem os nossos ditadores, não seriam considerados
ingratos, irresponsáveis, até inimigos, não perderiam instantaneamente
todas as simpatias com que contavam em Washington, e esta discordância
não abreviaria a duração da ditadura? Como vemos, os golpistas fardados
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
43
de 64 pareciam estar metidos em uma grande enrascada, da qual ainda
não haviam percebido coisa alguma.
Por parte dos militares americanos, os sentimentos que demonstravam
com respeito ao armamento atômico não me pareciam menos confusos. A
brutalidade com que haviam bombardeado o Japão chocara e amedrontara
o mundo inteiro, com intensidade dramática nunca antes vista na História.
Eisenhower, então, com um pouco mais de tino político do que o rústico
Truman, começou a temer que a inaudita violência cometida contra o Japão
tornasse os Estados Unidos um país para sempre maldito, por certo muito
temido, mas também odiado por toda a humanidade, até o fim dos tempos,
como os vândalos ou os hunos conseguiram ser até hoje. A corrida
armamentista que depois da guerra logo iniciou-se com a URSS, e que era
escandalosa no exibicionismo das experiências nucleares que os Estados
Unidos faziam, removendo a população para destruir ilhas como Bikini, no
Pacífico, fabricando e testando na atmosfera bombas atômicas e de hidrogênio
cada vez mais temíveis – agravava ainda mais a péssima fama de incontida
brutalidade que os americanos haviam adquirido. Por tudo isso, para o velho
guerreiro Eisenhower, alguma coisa teria de ser feita para disfarçar, com alguma
publicidade positiva, os explosivos nucleares com que Washington queria
dominar o mundo.
O Departamento de Estado começou então a divulgar noticias sobre “o
grande avanço tecnológico que o domínio do átomo – alcançado em Los
Alamos pelos Estados Unidos – poderia trazer para o desenvolvimento
econômico e, portanto, para o mundo”. Segundo essa otimista nova linha de
propaganda dos “átomo para a paz”, o muito desejado desenvolvimento
econômico de países pobres e atrasados, só depois deste grande avanço
cientifico americano, poderia ser acelerado e alcançado graças ao inocente e
benéfico “átomo pacífico”. Como toda publicidade americana destina-se a
impressionar o mundo inteiro, logo uma enxurrada de artigos, reportagens,
panfletos e livros bem atraentes começou a circular a terra para anunciar “as
benesses que os artefatos nucleares explosivos trariam para o desenvolvimento
econômico de todos os países”, inclusive sendo usados para um novo tipo de
arrojada engenharia, que seria denominada “Engenharia Geográfica”.
Mais do que simples propaganda da possibilidade futura de modificar a
geografia para acelerar o desenvolvimento econômico, a publicidade
americana em torno do átomo pacífico logo tornou-se bastante imediatista e
passou a ter conotações de anúncio comercial, em busca de bons negócios.
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
44
Assim, se “um país amigo estivesse precisando de ter uma baia, ou golfo, ou
canal”, os americanos ofereciam artefatos nucleares explosivos capazes de
construí-los em muito menos tempo e “por preço oito vezes mais barato” do
que seria gasto com explosivos convencionais. Como exemplo, para superar
as deficiências do Canal do Panamá, os Estados Unidos já apresentavam
planos, segundo diziam em fase avançada, para construir um novo e amplíssimo
canal na Nicarágua, com artefatos nucleares explosivos “colocados em linha”,
conforme as informações meticulosas dos estreantes “engenheiros
geográficos”... Ainda mais: com os benfazejos e utilíssimos artefatos nucleares
explosivos, montanhas incômodas que atrapalhassem a construção de estradas
poderiam ser removidas num piscar de olhos; lindos lagos ou providenciais
açudes poderiam ser colocados em regiões semidesérticas; túneis poderiam
ser abertos sem dificuldades; rios poderiam ter seus cursos regularizados;
aquavias seriam de fácil construção e proveriam transportes baratíssimos para
mercadorias pesadas e pouco perecíveis; poços de petróleo esgotados seriam
revitalizados; minas de cobre, zinco, alumínio, diamantes, iriam ser exploradas
com menos despesas, menores esforços e maiores lucros – tudo isso graças
à nova tecnologia conquistada pelos Estados Unidos e agora gentilmente
posta a serviço da humanidade (naturalmente mediante módico pagamento).
Essa face simpática de Dr. Jekyll que o Governo americano apresentava,
quando oferecia ao mundo “explosivos nucleares para a paz e
desenvolvimento”, em nada alterava o ímpeto e a carranca com que o Mr.
Hyde, alter-ego do mesmo governo em Genebra, pretendia ter o monopólio
de todas as pesquisas com explosivos nucleares, bélicos ou pacíficos.
Quaisquer experiências científicas que os países desarmados pudessem
pretender fazer com energia nuclear teriam de ser contidas, drasticamente
limitadas, ou sumariamente abandonadas, jamais poderiam chegar ao ponto
em que eles começassem a pensar em produzir, para próprio uso, explosivos
atômicos. Mas se esses mesmos países precisassem de “engenharia
geográfica”, bastava que contratassem a obra com companhias americanas
que estariam dispostas a levá-la adiante. Ou então, poderiam fazer essas
mesmas obras com organizações internacionais que os Estados Unidos
prometiam criar e orientar tecnicamente. Ainda nesses oferecimentos
aparentemente generosos havia algo suspeito. Explosões atômicas, de qualquer
espécie, sempre produziram nociva radiação. Não era então prudente para
os Estados Unidos ensaiarem os primeiros passos da “engenharia nuclear
geográfica” em territórios distantes e alheios? A verdade é que até hoje os
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
45
americanos nunca usaram essa avançada engenharia em seus vastos territórios.
E a URSS, que tentou fazê-lo, com muito segredo nas lonjuras da Sibéria,
não obteve bons resultados. Quanto às atividades com energia nuclear que
não envolvessem explosivos, tais como a produção de eletricidade, o uso de
radioisótopos na agricultura e na medicina, os Estados Unidos também
venderiam reatores de potência para a produção de eletricidade, reatores de
pesquisas e laboratórios inteiramente montados para pesquisas médicas e
agrícolas, tudo a muito bom preço, o que dispensaria qualquer pesquisa de
outros países naquele ramo da ciência.
Esperavam então que o mundo, voluntariamente, se submetesse a um
novo regime de contenção compulsória de avanço das pesquisas científicas,
a uma espécie de irresponsável aceitação de um novo “colonato nuclear”.
Como eu havia servido em Washington quando essa onda de publicidade
começou, durante o governo Eisenhower, logo solicitei que nossa Embaixada
naquela capital recolhesse todo o material publicitário ou cientifico disponível
sobre artefatos nucleares explosivos para fins pacíficos e para “engenharia
geográfica” e enviasse tais publicações para a biblioteca do Itamaraty. Ainda
com o mesmo propósito de aparelhar a Chancelaria para a discussão que
tinha curso em Genebra, sugeri ao Embaixador Sérgio Corrêa da Costa,
homem lúcido e patriota, com grande tirocínio diplomático e visão política,
Chefe do Departamento político a que minha Divisão da ONU estava
subordinada, que aproveitássemos declarações feitas pelo Presidente Costa
e Silva, ao tempo em que era ainda Ministro da Guerra no governo Castello
Branco, quando convidou a voltarem ao Brasil todos os cientistas brasileiros
que, fugindo a perseguições em 1964, se haviam exilado. Lembrei também a
meu chefe a conveniência de que o Itamaraty procurasse entrar em contato
com todos os cientistas brasileiros no exterior, para incentivá-los a voltar e
contribuir para o avanço da ciência brasileira. E, para instruir de imediato o
Itamaraty com noções básicas sobre os benefícios que a energia nuclear
poderia trazer ao desenvolvimento do Brasil, propus que utilizássemos os
cientistas brasileiros que houvessem permanecido no Brasil, mais aqueles
que estivessem dispostos a retornar do exílio, para fazer conferências sobre
suas especialidades aos diplomatas que se interessassem pelo assunto. Tais
sugestões, que foram postas em prática e surtiram bom resultado, sempre
encontraram apoio, estímulo e aperfeiçoamento por parte do Embaixador
Corrêa da Costa – o que serviu para aumentar nosso entendimento político e
cimentar uma grande e duradoura amizade.
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
46
A convivência do Itamaraty com a direção e os cientistas da Comissão
Nacional de Energia Nuclear assim tornou-se frequente e o Brasil passou a
ter diplomatas melhor preparados para a discussão internacional sobre
desarmamento nuclear. Das aulas que cientistas da CNEN passaram a dar a
diplomatas, apostilas foram publicadas e distribuídas a todos os postos
diplomáticos brasileiros no mundo.
Devo aqui relembrar que, nas negociações de Genebra, o Brasil e alguns
outros países então chamados de “subdesenvolvidos” participavam mas como
simples espectadores, embora usassem o título de “mediadores”, apenas, ao
que parecia, para a hipótese de que os representantes das grandes potências
nucleares se desentendessem e precisassem ser contidos pelos circunstantes.
Os subdesenvolvidos desarmados tinham então a palavra livre, mas para
falar a ouvidos moucos. E assim, o Brasil em Genebra, pela voz do Embaixador
Silveira, até então ia fazendo discursos humanitários... para uso das paredes.
Quem verdadeiramente influía no resultado dos debates, os únicos que
substancialmente podiam contribuir para o andamento e o resultado final dos
trabalhos, eram as potências atômicas. E, entre estas, ainda tinham precedência
as maiores, as duas superpotências, Estados Unidos e URSS, com imensos
arsenais de bombas que, já então, segundo anunciavam com frequência, seriam
capazes de destruir a terra inteira por cinco vezes seguidas.” Era essa a
capacidade de que se orgulhavam e que chamavam de “overkill”, muito
embora tal ameaça, frequentemente proclamada ao mundo, fosse uma idiotice
enorme. Se a terra inteira fosse explodida, as grandes potências iriam também
para o espaço. E que terror poderia inspirar a capacidade destrutiva das
bombas atômicas, depois que a terra inteira fosse destruída pela primeira
vez? Quem gostaria de ficar vivo, com tanta radiação circundante, para
presenciar o segundo, ou o terceiro turno do fim do mundo?
Os longos e “xaroposos” discursos que os representantes do Brasil e de
outros países “mediadores” faziam, com muita frequência, na Conferência do
Desarmamento, em Genebra, por certo impacientavam as grandes potências
nucleares. Mas serviam, pelo menos, para estender o tempo que o Brasil
necessitava para chegar a decisões. Podíamos perfeitamente presumir que,
depois de um par de anos de gestação muito lenta, a Conferência de Genebra
iria dar à luz um monstrengo de Tratado, que seria enviado à ONU, para ser
aprovado, de afogadilho, por todos os países membros.
Podemos aqui deter-nos um pouco e examinar mais detalhadamente, o
tratado de Não Proliferação Nuclear, que, de acordo com nossas previsões,
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
47
uns poucos anos depois, acabou ficando pronto e foi apresentado ao mundo,
não mais para comentários e apreciações, menos ainda para encontrar
relutâncias ou recusas, mas para assinatura imediata, quase compulsória.
Em primeiro lugar, poderíamos indagar: essa “proliferação que o Tratado
pretendia deter, que sentido tinha, que rumo tomava? Pretendia deter a
proliferação vertical, ou seja, o empilhamento para estocagem de bombas
nos arsenais já repletos das potências nucleares?”.
Certamente não. Os países nuclearmente superarmados nunca pensariam
em parar de fabricar bombas e de aperfeiçoá-las, descartando aquelas que
ficassem antiquadas, ou que tivessem menor poder destrutivo, para substituí-
las por outras novas, mais potentes, aumentando assim, verticalmente, as
imensas pirâmides de seus mortíferos arsenais. Tanto é assim que as mais
recentes estimativas sobre armas atômicas no mundo, já agora, em 2009,
indicam ainda a existência de 5.400 ogivas nucleares em poder dos Estados
Unidos e 14.000 na posse da ex-União Soviética. Estes números puros e
simples têm menos significação do que o poder destrutivo das ogivas atuais,
que, sem dúvida alguma, agora é bem maior do que era o das bombas dos
anos sessenta no século passado. Neste sentido de proliferação vertical, como
então é notório, o TNP nunca funcionou até hoje. Os Estados Unidos, mesmo
depois de terem se tornado a única superpotência, depois do desmantelamento
da URSS, continuam aperfeiçoando suas armas atômicas, instalando-as em
satélites artificiais, cuidando de fazer guerra sem arriscar tropas, atacando
inimigos a partir do espaço, como fazem no Iraque e no Afeganistão atualmente.
É a chamada “Guerra nas Estrelas”, que Reagan inventou e que vem sendo
aperfeiçoada com pouca publicidade, talvez para surpreender o mundo, em
compensação pelos muitos fracassos dos americanos em guerras terrestres,
desde o Vietnam. Lembremos que pouca publicidade também teve a bomba
atômica original, mesmo depois que foi experimentada no deserto de Nevada,
até que foi lançada sobre Hiroshima.
O Tratado em Genebra, ia sendo elaborado, então, somente para coibir
a proliferação horizontal isto é, evitar que a fabricação de bombas atômicas
se espalhasse. Somente para proibir que novos países viessem a possuir
essas armas. Neste sentido, o tratado funcionou desde o primeiro momento,
pois essa era sua verdadeira destinação. Exercendo pressão sobre todos os
membros da ONU, as potencias nucleares conseguiram logo algumas adesões
isoladas ou coletivas, antes mesmo que as negociações em Genebra
terminassem.
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
48
A África inteira, pressionada devidamente, logo deu uma prova de ingênuo
pacifismo, declarando-se “desnuclearizada”. A inocência desta declaração
era ainda mais notável porque a África do Sul, na mesma época, no auge da
brutalidade insana do sistema do apartheid, ia recebendo de Israel, com a
permissão dos Estados Unidos, algumas bombas nucleares táticas
secretamente emprestadas, para intimidar a grande maioria da população
negra, cada dia mais revoltada, por isso mesmo removida e concentrada em
bairros pobres, prudentemente distantes das cidades brancas. Assim também,
no Oriente Médio, Israel, com tecnologia própria e muito dinheiro emprestado
pelos americanos, podia continuar discretamente a fabricar bombas nucleares,
para aterrorizar e conter os seus vizinhos árabes. Mas estes, os árabes, não
poderiam sequer pensar em ter armas nucleares, até que o Paquistão,
defrontando sempre a Índia, burlou o Tratado de Não Proliferação e conseguiu
fabricar armas nucleares, através de um físico paquistanês que havia contribuído
também para o desenvolvimento nuclear de outros países asiáticos. Quanto à
Índia, que na época aproximava-se da URSS, tinha problemas de vizinhança
com a China e, talvez por estes motivos, teve a coragem de não assinar o
Tratado de Não Proliferação e fabricar bombas nucleares com tecnologia
própria. Vemos assim que, mesmo depois da entrada em vigor do Tratado de
Não Proliferação, quatro novas potências nucleares surgiram no mundo, ora
com o beneplácito americano (Israel e África do Sul), ora como a Índia e o
Paquistão que burlaram a fiscalização da Agencia de Viena (AIEA) e do
TNP. Uma nova potência nuclear por década, desde que o TNP foi
apresentado ao mundo...
Muitos países pequenos e pobres, com desenvolvimento aparentemente
inviável, em grupos ou isoladamente, logo declararam-se também
“desnuclearizados”, para agradar às potências que haviam urdido o Tratado.
Mas outros países de porte médio, com recursos próprios, com maior nível
de cultura e de avanço científico, ciosos de sua independência, não podiam
aceitar o Tratado que era draconiano e, pior que tudo, nos termos em que foi
concebido pelas potências nucleares, constituía uma verdadeira ofensa, ao
pôr em dúvida a responsabilidade do resto da humanidade. Na verdade, o
que o tratado fazia era discriminar os países, dividindo-os numa minoria que
poderia ter e aperfeiçoar as armas nucleares e uma grande maioria que não
teria nem o direito de sonhar com tais armamentos. Assim, o colonialismo
ressurgia com mais força. A nós, brasileiros, fazia lembrar a política de Dona
Maria I, a Louca, rainha portuguesa que proibiu ao Brasil colonial ter fundições
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
49
de ferro... Pois no tocante ao átomo, esta proibição ficou muito clara, desde
que o TNP foi apresentado ao mundo, através da ONU, para colher adesões.
Mas na América Latina, como foi o desarmamento nuclear encarado, mesmo
antes que o tratado de Genebra ficasse pronto para assinaturas? De três
maneiras diferentes, como enumero a seguir:
1) Pelo México, que por proximidade geográfica com os Estados Unidos,
será inevitavelmente atingido, se a qualquer tempo, a Guerra Fria tornar-se
guerra atômica, simplesmente não fazia sentido pensar em desenvolver defesas
atômicas próprias, nem no presente, nem para o futuro mais remoto. Assim,
era bom negócio fazer logo uma cortesia ao poderoso vizinho, proclamando-
se líder pacifista de uma América Latina ingênua, pronta para desnuclearizar-
se, tal como a África já se havia declarado.
2) Para Brasil e Argentina, bem como para outros países latino-
americanos que estivessem geograficamente bem distantes dos Estados
Unidos, o TNP era inaceitável e, na forma em que o México pretendia dele
tornar-se propagandista, era uma novidade que tenderia a dividir a América
Latina.
3) Para outros países latino-americanos em nível muito baixo de
desenvolvimento, com convulsões políticas internas, alguns simplesmente
governados por títeres de Washington, o melhor era seguir o México e agradar
aos Estados Unidos. Se possível, obtendo em troca da assinatura do TNP
alguma compensação ou ajuda...
Assim, enquanto as negociações do Tratado mundial ainda arrastavam-
se em Genebra, o Chanceler mexicano Garcia Robles logo inventou um
Tratado regional de desnuclearização, que seria negociado em sua
Chancelaria, em Tlatelolco, para que todos os países latino-americanos
aceitassem rapidamente, sem hesitações, a abdicação da tecnologia nuclear
mais avançada que pudesse levar a explosivos.
Brasil e Argentina viram-se, assim, antecipadamente constrangidos pelo
México a logo começar a discutir, numa conferência exclusivamente latino-
americana, um projeto mexicano de desnuclearização da América Latina,
que seria uma espécie de balão de ensaio para a aceitação do TNP de
Genebra. Lembremos que tanto a Argentina como o Brasil já tinham se
pronunciado no passado a respeito de armas atômicas. A Argentina, em 1950,
em sensacional discurso de Perón, alegremente havia proclamado ao mundo
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
50
que um cientista alemão refugiado havia fabricado em Buenos Aires a primeira
bomba de hidrogênio. A noticia não se confirmou, mas desde então, a vontade
argentina de ter armas desta espécie ficou universalmente registrada e
patenteada. O Brasil, mais modesto e pacifista, nunca teve ostensivamente
tais ímpetos armamentistas. Pretendeu apenas enriquecer urânio por conta
própria e para isso comprou centrifugadoras alemãs que os americanos não
permitiram que fossem exportadas da Alemanha ainda ocupada. Bem mais
tarde, buscando evitar um confronto atômico entre as superpotências, na
ocasião da crise dos mísseis em Cuba, o Brasil havia proposto que toda a
América Latina se desnuclearizasse, o que permitiria que as armas atômicas
emprestadas pela União Soviética fossem retiradas da ilha, sem desdouro
para o governo cubano e sem uma terceira guerra mundial.
A diplomacia mexicana, muito habilmente, lembrou-se daquele gesto
pacifista do Brasil na questão de Cuba, tentando usá-lo como precedente
para a conferência de Tlatelolco, mas de 1961 a l965 muita coisa já havia
acontecido no Brasil. Com o governo militar, o país já não era tão pacifista,
quanto fora na crise dos mísseis no Caribe.
Montado todo esse confuso panorama, podemos agora ver como era
complicada a situação do Itamaraty. O Brasil passou a defrontar a questão
do desarmamento nuclear em duas frentes simultâneas. Em Genebra e no
México. As negociações em Genebra eram lentas, como já vimos. As
negociações em Tlatelolco, convocadas pelo México, com aplausos e
incentivos americanos, eram intencionadas para serem rápidas, de forma tal
que quando o tratado de Genebra afinal estivesse pronto, toda a América
Latina a ele aderisse automaticamente, com presteza, muita alegria e música
mariachi, dando ao mundo um exemplo de pacifismo para uso de outros
continentes.
Para o Brasil, as negociações no México eram também incômodas, pela
aparente liderança que Garcia Robles e o México nela pretendiam exercer;
e, mais ainda, pelo fato de que os americanos observariam muito de perto as
resistências que países latino-americanos pudessem ter em relação ao TNP e
também porque o Brasil não queria ser acusado de belicista, mas já previa
que qualquer tratado de desarmamento nuclear que viesse a tolher nosso
desenvolvimento científico e nossa soberania não poderia ser por nós aprovado.
Nem em Genebra, nem no México.
Quem de início representava o Brasil no México era o Embaixador
José Sette Câmara, diplomata inteligente, simpático e persuasivo, apropriado
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
51
adversário para a velha raposa diplomática que era o Embaixador e
Chanceler mexicano Garcia Robles, anfitrião e por isso Presidente da Reunião
em Tlatelolco. O processo dos trabalhos começou com muitas indagações
que o Brasil desejava fazer, a respeito do desarmamento nuclear pretendido.
Essas indagações sucessivas, aparentemente inocentes, lembrando o método
socrático, renderiam respostas insatisfatórias, que suscitariam novas
perguntas. E assim, o Brasil iria evidenciando aos demais países latino-
americanos que a América Latina devia preservar o direito de desenvolver
todas as pesquisas nucleares que pudessem servir ao progresso e à
independência de cada um de seus países, bem como, deveria examinar a
desnuclearização sob seus dois aspectos: 1) o de desarmamento dos
desarmados e 2) o da necessidade que os desarmados teriam de garantir
que nunca mais seriam intimidados com ameaças de aniquilação nuclear. O
aspecto da invulnerabilidade era verdadeiramente importante em qualquer
projeto de desnuclearização. A América Latina não ameaçava ninguém. Ela
é que podia ser ameaçada, se tivesse algum desentendimento com potencias
nucleares, que também possuíam colônias e portanto, interesses neste
continente.
A verdade é que a simples posse de armas atômicas por um país qualquer
é intimidante. E a posse de centenas ou milhares de armas atômicas, como as
potências proclamam ter, é simplesmente aterrorizadora.
Indagações que o Brasil fez em Tlatelolco
A primeira das indagações que o Brasil tinha a fazer em Tlatelolco,
naturalmente formulada em linguagem diplomática e macia, consistia,
basicamente, em verificar se o termo “desnuclearização” significava
simplesmente uma abdicação unilateral muito virtuosa de possuir armas
nucleares, uma espécie de mutilação voluntária da soberania, por altos motivos
humanitários – ou se também era necessário obter uma garantia de que as
potências nucleares jamais atacariam ou ameaçariam os países da América
Latina com as referidas armas. Se as potências nucleares estivessem dispostas
a dar essa garantia de não agressão, como seria ela incluída no tratado latino-
americano? Depois de longas discussões a respeito destas questões de fundo
e forma, ficou assentado pela Conferência que todas as potências nucleares
seriam chamadas a formular essa garantia num Protocolo que seria anexado
ao Tratado.
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
52
Resolvido isso, a mesma questão envolvia outro aspecto que ainda estava
nebuloso: e se surgissem novas potencias nucleares que ainda não tivessem
garantido a não agressão à América Latina? O Tratado continuaria em vigor
enquanto essas novas potências não assinassem o Protocolo de Não Agressão
aos nossos países? Não seria esta situação ainda mais perigosa, pois justamente
no surgimento de alguma rebelde nova potência atômica o mundo inteiro
estaria em risco de novas guerras? Não seria mais cauteloso suspender a
vigência do tratado até que o Protocolo de Não Agressão fosse devidamente
firmado também pelas potencias nucleares que fossem surgindo, com o
disfarçado beneplácito ou com a intolerância do TNP? Neste caso, como
poderíamos imaginar, a vigência do tratado seria infelizmente sincopada, num
eterno acende e apaga suspendida sempre que novas Potências nucleares
repontassem no panorama mundial.
A segunda indagação brasileira era sobre o âmbito geográfico do
pretendido Tratado. O México ficaria desnuclearizado, ou seja, o limite norte
da área do tratado correria ao longo do Rio Grande, fronteira com os Estados
Unidos. Da foz do mesmo rio, no Atlântico, um paralelo seria traçado,
avançando pelo oceano, para delimitar perfeitamente as ilhas e territórios
que ficariam ao sul, submetidos, por conseguinte, ao tratado. Cuba ficava
abaixo deste paralelo. Mas já estava desnuclearizada, em troca da garantia
de não mais ser invadida, por acordo direto das duas maiores potências
nucleares. Quanto à base americana de Guantánamo, poderia ela continuar a
estocar bombas nucleares, ou a abrigar embarcações ou aeronaves que
transportassem as mesmas armas? O mesmo problema surgiria com respeito
a Porto Rico, às Ilhas Virgens e, da mesma forma, à faixa militarizada que os
Estados Unidos tinham, como colônia, ao longo do Canal do Panamá.
Washington aceitaria desnuclearizar todas essas áreas coloniais? Seria também
necessária a concordância expressa dos Estados Unidos nesse sentido, talvez
num outro Protocolo adicional ao Tratado... Caberia, evidentemente, ao
México obter o assentimento norte-americano para essa desnuclearização
das suas colônias na área do futuro tratado latino-americano.
Ao tratar destas colônias norte-americanas, logo tínhamos de lembrar,
ainda com mais razão, as colônias europeias na América Latina. Não seriam
necessários dois outros Protocolos Adicionais ao Tratado, para que a Inglaterra
e a França consentissem em desnuclearizar suas colônias remanescentes no
Caribe e na América do Sul? Isso parecia essencial ao governo brasileiro,
pois se esses territórios dependentes contivessem bases e ogivas nucleares,
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
53
o continente continuaria ameaçado e em perigo. O que achavam a respeito
os outros países latino-americanos? O que achavam a Venezuela e a Argentina
se as Guianas e as Malvinas viessem a ter bases de ogivas nucleares francesas
ou inglesas? Anos depois, a guerra da Inglaterra com a Argentina mostrou
que essa preocupação brasileira tinha muito cabimento.
Também para os países que tinham colônias no continente o problema
seria resolvido com a assinatura de um outro Protocolo adicional ao Tratado.
Outra questão, que ao Brasil parecia de muita importância mas que não
tinha ainda solução visível, era a necessidade de que toda a América Latina
precisaria assinar o tratado em bloco, pois o documento só poderia entrar
em vigor quando todos os países latino-americanos o tivessem assinado, sem
exceção. Poderia o Brasil, que tem fronteiras com dez vizinhos, acreditar que
o tratado lhe garantiria a desnuclearização pretendida – no sentido de
invulnerabilidade de todo seu território – se qualquer um de seus vizinhos
fosse avesso ao Tratado e num rompante militarista começasse a tentar obter,
de qualquer forma, por meios próprios ou empréstimo secreto, armas
nucleares? E se algum vizinho do Brasil alugasse trechos de seu território,
para que alguma potência nuclear instalasse bases militares, onde pudessem
ser estocadas bombas atômicas?
Todas essas questões ocuparam a Conferência que se reunia em Tlatelolco
durante todo o primeiro período programado de sessões. Com vista aos
problemas levantados pelo Brasil, novos contatos o México teve de fazer
com as potências nucleares e com as metrópoles coloniais que tinham territórios
no continente, pois delas dependia a obtenção das garantias necessárias para
o tratado futuro, se a América Latina fosse ficar verdadeiramente
“desnuclearizada”, ou seja, não intimidada, menos ainda ameaçada por armas
atômicas alheias.
Retomados os trabalhos da Conferência poucos meses depois, claras
respostas ainda não tinham sido conseguidas para as dúvidas que o Brasil
levantara. Nem o Brasil esperava que em pouco tempo, nem talvez em tempo
algum, tais respostas pudessem ser encontradas. Desejávamos apenas que,
no projeto inicialmente apresentado pelo México, constassem menções a
essas garantias que, já então, eram essenciais não só para o Brasil, mas para
outros países latino-americanos, inclusive para a Argentina que, taciturnamente,
sem querer que Perón e sua imaginária bomba de hidrogênio fossem
lembrados, apenas acompanhava o Brasil nessas complicadas indagações,
que, muito possivelmente, para o México e para Garcia Robles, fariam lembrar
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
54
as enroladíssimas conversas do inesquecível ator mexicano Mario Moreno,
o Cantinflas.
No segundo período de trabalhos em Tlatelolco, as dúvidas que o Brasil
começou a apresentar à Conferência tocavam o âmago da questão do
desarmamento, em toda a história da humanidade. Desde que o primeiro
machado de pedra foi inventado na pré-história, teve ele duas utilizações: era
ferramenta útil e pacífica, mas também arma perigosa. A pólvora tanto servia
para fogos de artifício como para munição de canhões. A dinamite servia
para construir e destruir, era usado na paz e na guerra. Assim também, os
explosivos nucleares, como bem salientavam os próprios Estados Unidos,
que os haviam inventado, poderiam ser usados não só na guerra, mas também
para promover o desenvolvimento econômico, na engenharia geográfica que
estava nascendo.
Virávamos, assim, a propaganda americana do átomo pacífico contra a
ideia de não proliferação castradora, que instituía no mundo um colonato
nuclear. Derramávamos sobre a Conferência de Tlatelolco toda a publicidade
que os Estados Unidos haviam feito em torno do átomo pacífico para o
desenvolvimento econômico. Mostrávamos que o Brasil, um país muito vasto,
tinha enorme interesse pela engenharia geográfica. Mais adiante, com
explosões nucleares pacíficas, poderíamos realizar projetos gigantescos que
beneficiariam também países vizinhos, como seria, por exemplo, uma ligação
da bacia do Prata com a bacia do Amazonas. Nossos vizinhos do sul e
sudoeste que hoje navegam na bacia do Prata teriam também acesso à livre
navegação da bacia do Amazonas. E assim, circundando todo o território
brasileiro, navegando por grandes rios e curtos canais, teriam os vizinhos a
possibilidade de comércio intenso, com transporte barato, não só com todo
o Brasil, mas também com toda a América do Sul. Era isso, por enquanto,
um sonho futuro? Certamente sim. Mas tão pronto pudesse ser solucionado
o problema das radiações causadas pelas explosões, esse sonho seria
realizável.
O Brasil, assim, no futuro, poderia aceitar, de muito bom grado, que os
Estados Unidos se oferecessem para fazer obras de engenharia geográfica e
até poderia no futuro contratar tais obras com companhias norte-americanas,
quando estivesse satisfatoriamente resolvida a questão das radiações
remanescentes.
Assim também o Brasil aceitaria a ideia de que novas organizações
internacionais, orientadas tecnicamente pelos Estados Unidos ou por outras
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
55
potências nucleares, pudessem no futuro se encarregar dessas obras de
engenharia geográfica, que precisássemos fazer em nosso território.
Mas nenhuma das concordâncias acima significaria que o Brasil pudesse
aceitar a revogação do seu direito soberano de fabricar seus próprios
explosivos nucleares, para fazer em seu território obras legítimas e pacíficas
de engenharia geográfica. Isso já fora até decidido pelo Presidente Costa e
Silva, quando no seu discurso de posse, disse que: “ao Brasil reserva-se o
direito de fabricar os seus próprios explosivos nucleares, para fins pacíficos
de engenharia nuclear”.
A essa altura das negociações em Tlatelolco, o projeto de tratado
apresentado originalmente por Garcia Robles já estava bastante emendado,
graças às intervenções brasileiras que, desde o início, haviam sido apoiadas
pela Argentina. Outros países iam pouco a pouco sendo convencidos dos
pontos de vista muito práticos e realistas que o Brasil defendia. E, se preciso
fosse, para que mais se compenetrassem da justeza de nossa posição, ainda
teríamos outros argumentos para usar: poderíamos, por exemplo, trazer à
baila a questão do tráfego de armas atômicas por nossos céus, por nossos
mares territoriais, a presença perigosa de aeronaves e navios nuclearmente
armados em nossos aeroportos e portos... Nada disso havíamos abordado
ainda. Mas o projeto de tratado já havia abrigado todas as nossas dúvidas e
cautelas acima mencionadas. O projeto de tratado, então, já distinguia bem
explosivos nucleares pacíficos de bombas nucleares. Os primeiros, agora
favorecidos pela publicidade comercial que os Estados Unidos fizeram, eram
claramente permitidos, aprovados, até louvados pela América Latina. Mas
explosivos nucleares destinados à guerra eram proscritos. Assim, se o Tratado
de Genebra era de Desnuclearização tanto bélica quanto pacífica – o Tratado
de Tlatelolco passara a ser algo diametralmente diferente: proscrevia apenas
armas nucleares. Mas admitia desenvolvimento nacional de pesquisas para
fabricar explosivos pacíficos para fins de engenharia geográfica. Podia assim
até ser denominado como um tratado “de nuclearização pacífica para a América
Latina”, como o Embaixador Corrêa da Costa já havia salientado.
Virando o Tratado do México pelo avesso
No mais, o projeto de tratado mexicano, pelo Brasil transformado pouco
a pouco, já havia também adotado várias das cautelas iniciais que o Brasil
mencionara: exigia uma delimitação nítida da área desnuclearizada; determinava
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
56
que o tratado só poderia entrar em vigor com garantias firmes de não agressão
nuclear por parte das potências armadas; estipulava que, no caso do
surgimento de novas potências nucleares, o tratado teria sua vigência suspensa
até que as novas potências dessem garantias de não agressão; lembrava que
o tratado deveria ser assinado simultaneamente por todos os países latino-
americanos, pois a contiguidade da área do tratado era essencial, dado que
ninguém poderia considerar-se desnuclearizado se algum vizinho estivesse
preparando-se para guerra atômica, com bombas próprias ou emprestadas.
Era também essencial que todas as potências nucleares que dispunham de
colônias no continente pusessem essas colônias sob o regime do futuro tratado.
As negociações do TNP em Genebra não estavam ainda terminadas,
mas poderiam agora ser concluídas rapidamente, dado que já tínhamos o
tratado do México feito a nosso gosto. Bastaria haver entendimento entre as
superpotências, para que o tratado de Genebra fosse terminado de um dia a
outro e apresentado à ONU para coleta de assinaturas.
Quanto ao tratado de Tlatelolco, já havíamos conseguido incorporar ao
texto todas as cautelas enumeradas acima, para que o termo desnuclearização
não tivesse apenas o sentido de desarmamento, mas também o de segurança
contra eventuais ameaças ou agressões nucleares feitas aos países latino-
americanos. Nem todos os países presentes às negociações no México
incomodavam-se com a própria segurança frente às ameaças hipotéticas de
agressão atômica. Mas no tocante ao Brasil, o tratado mexicano já parecia
seguro, pois com a inclusão no corpo do projeto de todas as cautelas que
havíamos sugerido, nossa segurança ficaria bem preservada.
O segundo período de sessões do pretendido tratado latino-americano
havia terminado com o projeto ainda inconcluso, numa situação de virtual
impasse. O México, que tinha pressa em concluir o Tratado, para agradar o
poderoso vizinho, sabia muito bem que um tratado latino-americano não teria
significado se não contasse pelo menos com a adesão do Brasil, da Argentina
e de outros países grandes que eventualmente nos acompanhassem na votação.
Quanto ao Brasil, que tinha sido de início atraído a contragosto às negociações
em Tlatelolco, depois que conseguiu incluir no projeto mexicano todos os
seus pontos de vista sobre o que deveria ser um tratado justo e equitativo de
desarmamento nuclear, tinha agora interesse em usar o tratado do México
como uma espécie de trincheira ou casamata invulnerável, para simplesmente
recusar o tratado leonino que, mais dia menos dia, sairia de Genebra com
pretensões a impor-se a todos os países do mundo. Podíamos então negociar
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
57
a nossa simples assinatura no tratado latino-americano, em troca da finalização
do instrumento, que o México tanto queria.
Foi assim que, entre o fim do segundo e o começo do terceiro período
de sessões em Tlatelolco, como chefe da DNU, submeti um memorando ao
Embaixador Sérgio Corrêa da Costa, sugerindo que “virássemos pelo avesso
as negociações no México”. Minha ideia era a de contar com a sofreguidão
do Chanceler mexicano para terminar logo o tratado. Com a pressa que
demonstrava, seria ele capaz de aceitar que todas as cautelas que o Brasil
conseguira incluir no projeto fossem transformadas de exceções em regras?
Isto é, para todos os países latino-americanos signatários do tratado as cautelas
que o Brasil havia manifestado (e que já constavam do projeto por terem
sido reconhecidas como válidas e importantes para a segurança da América
Latina) passariam a ser condições essenciais para a entrada em vigor do
mesmo tratado.
Quanto aos países que não considerassem algumas, ou todas essas cautelas,
como essenciais para a entrada em vigor do tratado (no que lhes dizia respeito)
– poderiam dispensá-las expressamente, quando assinassem o tratado.
Ainda ao apresentar por memorando tal formula aos meus superiores no
Itamaraty, salientei que, desta maneira, o Brasil poderia assinar e depois
ratificar o tratado de Tlatelolco, sem fazer qualquer reserva (demonstrando
assim sua índole pacifista) – mas o referido tratado, embora assinado e
ratificado por nós, não nos comprometeria com nenhuma obrigação, nem
teria para o Brasil qualquer validade, senão como comprovante de nossa
índole pacífica, até que todas as cláusulas cautelares que havíamos
acrescentado ao projeto inicial fossem total e perfeitamente satisfeitas, a nosso
único critério, pelos países detentores de armas atômicas, pelos países
detentores de colônias na área do tratado e, finalmente, pelos países do
continente, principalmente nossos vizinhos, que a um só tempo deviam fazer
parte do tratado. Como todas estas condições me pareciam dificílimas de
serem obtidas a um só tempo, teríamos assinado e ratificado um documento
internacional que para o Brasil, na prática, nem existiria. E com isso poderíamos
recusar a assinar o TNP de Genebra, quando ficasse pronto, alegando que a
América Latina já tinha um tratado excelente, que proscrevia o uso bélico da
energia nuclear mas que até prescrevia e regulava a fabricação própria e o
uso de artefatos explosivos pacíficos, na engenharia geográfica.
Poderíamos, assim, com mais facilidade proclamar ao mundo que o
Tratado latino-americano era muito mais completo e que o continente para
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
58
nada precisava do TNP de Genebra. E diríamos isto com muita razão,
enquanto esperaríamos que todas as cláusulas de segurança que inserimos
no tratado regional fossem perfeitamente satisfeitas, segundo nosso único e
muito rigoroso critério... o que provavelmente aconteceria só no dia de
São Nunca, de tarde...
Minha proposta foi aceita pelo Embaixador Corrêa da Costa e ele próprio
se entendeu com o Chanceler mexicano Embaixador Garcia Robles, a respeito
desta fórmula rápida para concluir o Tratado. Garcia Robles, diplomata
sumamente experiente, aceitou nossa sugestão e assim o terceiro período de
sessões em Tlatelolco foi curto e exitoso. O Tratado do mesmo nome foi
assinado por todos os países latino- americanos, inclusive Brasil e Argentina
e veio a servir como uma prova de nosso ânimo pacifista, forte bastante para
que pudéssemos recusar in limine o draconiano tratado de não Proliferação,
que meses depois foi terminado em Genebra.
O Chanceler do México, Embaixador Garcia Robles, com a finalização
do tratado e a suposta grande contribuição que trouxe para “a paz do mundo”,
foi candidato ao Prêmio Nobel, que lhe foi concedido um par de anos depois.
Quanto ao Brasil, conseguiu assim recusar o Tratado de Não Proliferação,
quando este ficou pronto em Genebra.
Minha colaboração com o Embaixador Corrêa da Costa, quando eu
chefiava a Divisão das Nações Unidas e ele o Departamento Político, fez
com que ficássemos bons amigos. Outro diplomata de quem me aproximei
foi Paulo Nogueira Batista, que havia servido com Corrêa da Costa no Canadá
e que, depois, ao mesmo tempo na Secretaria de Estado, acompanhava com
muito interesse o que estávamos fazendo a respeito dos tratados de Genebra
e do México.
Ao fim do governo Castello Branco, quando assumiu Costa e Silva,
Corrêa da Costa veio a ser escolhido como Secretário-Geral do Ministério.
O novo Chanceler seria Magalhães Pinto, político mineiro, civil, ex-governador
de Minas que, por ambição de ser Presidente, iniciou o golpe de estado de
1964.
Corrêa da Costa, que já me havia promovido a Conselheiro e depois a
Ministro, convidou-me para ser chefe de seu gabinete na Secretaria-Geral.
Aceitei com alegria. Paulo Nogueira Batista, também muito amigo de Corrêa
da Costa, foi chefiar um novo Departamento recém-criado, o de Planejamento,
que era uma novidade essencial para o Itamaraty e não poderia ter ficado em
melhores mãos.
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
59
Um outro grande amigo meu, Ministro Celso Diniz, mineiro, tinha relações
de família com Magalhães Pinto e foi chamado para chefiar o gabinete do
Chanceler. Ainda outro amigo, o Conselheiro Cyro Cardoso, de uma família
ilustre de militares, foi convidado para trabalhar na Casa Civil da Presidência.
Com estes colegas combinei algo que era de todo novo no Itamaraty.
Evitaríamos o que sempre foi desastroso, não só no Brasil mas em outras
Chancelarias pelo mundo: a rivalidade e a disputa que acaba surgindo entre
um Chanceler político e um Secretário-Geral da Carreira diplomática,
rivalidade esta que sempre vai repercutir com variadas intrigas , nos contatos
de ambos com a Presidência da República, até que um dos dois seja destituído.
Com esta coligação de amigos em postos-chaves do segundo escalão,
fortificávamos tanto o Chanceler quanto o Secretário-Geral. E permitíamos
que o Itamaraty tivesse uma só voz perante a Presidência, o que era importante
nas condições facilmente mutáveis e sempre instáveis de qualquer ditadura.
No discurso de posse de Costa e Silva já havíamos conquistado algo:
aquela referência muito positiva, sobre o direito que o Brasil reservava, de
fabricar seus próprios explosivos nucleares para finalidades pacíficas, de
engenharia geográfica. Costa e Silva era militar, estava mais afeito a
explosivos. Mas Magalhães Pinto, civil e político conciliador, como iria
entender e aceitar a política que defendíamos, de recusar o Tratado de Não
Proliferação nuclear negociado em Genebra? Caberia a seu chefe de Gabinete,
Ministro Celso Diniz, explicar-lhe bem tudo que já havíamos feito com o
Tratado de Tlatelolco, no sentido de transformá-lo numa espécie de antídoto
contra o Tratado de Genebra. E foi isso o que Celso Diniz fez, com grande
eficácia. Tanto assim que, como pode-se ver numa ata do Conselho de
Segurança que só recentemente veio a público, quando os militares na reunião
queriam pura e simplesmente recusar o Tratado de Não Proliferação de
Genebra, Magalhães Pinto lembrou que melhor seria usar o Tratado de
Tlatelolco para, da mesma forma, recusar o TNP, mas sem ser taxado de
irresponsável ou belicista.
Na propaganda que fazíamos para que o público entendesse também
nossa política nuclear, Corrêa da Costa ia com frequência à televisão, para
explicar aos espectadores, com muita eloquência e simpatia, as aplicações
pacíficas da energia atômica na medicina, na conservação de alimentos e,
mesmo sob a forma de explosivos, como os americanos já programavam, na
engenharia dita geográfica. O Chanceler Magalhães Pinto também resolveu
assumir a defesa da política, mas o fez de maneira mais formal, convidando
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
60
cientistas para almoços no Itamaraty, assegurando-lhes o apoio do governo
para suas pesquisas em todos os ramos da ciência, inclusive energia nuclear.
Tudo parecia favorecer a nova política do Itamaraty, até mesmo um
convite que o Secretário-Geral, Embaixador Corrêa da Costa teve dos
Estados Unidos, para encontrar-se em Washington com a mais alta autoridade
das atividades nucleares norte-americanas, um cientista famoso, ganhador
do Prêmio Nobel, a fim de conhecer formas de cooperação possíveis entre
os dois países. Nessa viagem, Corrêa da Costa levou dois colaboradores.
Paulo Nogueira Batista, Chefe do Departamento de Planejamento e eu, Chefe
de Gabinete da Secretaria-Geral. Entre visitas que fizemos a estabelecimentos
científicos, tivemos em Washington um cerimonioso almoço, com a máxima
autoridade em energia nuclear e muitos outros cientistas americanos.
Na grande mesa em forma de U e com lugares marcados, sentei-me
tendo à direita um indivíduo que a mim apresentou-se gentilmente e logo
esclareceu que era Conselheiro sobre energia nuclear da Casa Branca.
Conversamos sobre variados assuntos, fez ele questão de dizer que conhecia
e admirava o Brasil, até que começaram os discursos. Quando leu o discurso
que havia preparado para a ocasião, o Embaixador Corrêa da Costa agradeceu
o convite que tivera para visitar os Estados Unidos e, depois, tão
simpaticamente quanto possível, salientou o pacifismo que caracterizou a
história do Brasil, bem como a posição afirmativa que o Brasil havia tomado
com respeito aos esforços mundiais para a proscrição de armas nucleares. A
respeito de armas, o Brasil tinha clara opinião no sentido de que deveriam ser
proscritas. Mas no tocante a explosivos nucleares para finalidades de
engenharia geográfica, “o Brasil aceitava de bom grado que os Estados Unidos
propusessem ao mundo os serviços que poderiam prestar diretamente a outros
países; aceitava também que tais serviços no futuro pudessem ser prestados
por organizações internacionais orientadas tecnicamente pelos Estados Unidos,
mas também reservava-se o direito soberano de, no futuro, construir seus
próprios explosivos nucleares para finalidades pacíficas de engenharia
geográfica”. A seguir, falou da vastidão do Brasil e das necessidades que
poderíamos ter de alterar algumas características geográficas a fim de acelerar
nosso desenvolvimento.
À medida que Corrêa da Costa avançava em seu discurso, eu sondava
discretamente o semblante dos convivas e percebia surpresa ou má vontade.
Ao final, quando já nos aprestávamos para levantar do almoço, o conselheiro
da Casa Branca que estava a meu lado não aguentou ficar quieto e despejou
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
61
sobre mim, ameaças que certamente eram feitas para chegar aos ouvidos de
Sérgio Corrêa da Costa. Inopinadamente, perguntou-me ele, já então nada
simpático: “O embaixador brasileiro está aqui falando seriamente?”.
Respondi-lhe que o Embaixador, obviamente, estava falando bem a sério
e que a reserva do direito de o Brasil eventualmente fabricar seus próprios
explosivos nucleares explosivos, exclusivamente para finalidades pacíficas
de engenharia geográfica, era apenas a repetição de uma frase do discurso
com que o Presidente da República, General Costa e Silva, tomara posse do
cargo.
Meu interlocutor então me disse: “Isto tudo me parece com aquela situação
que é muito comum nas famílias que têm filhos adolescentes. O adolescente
resmunga contra os conselhos ou imposições do pai, e a cada dia ameaça: –
‘Não aguento, Vou sair de casa...Vou embora...’. O pai vai suportando os
resmungos e ameaças do filho malcriado e continua a sustentá-lo, dia após
dia, mês após mês, até que, num rompante, o rapaz deixa mesmo a casa
paterna”.
“Sabe então o que acontece?”, perguntou-me o consultor nuclear da
Casa Branca, “o que ocorre é que o pai, até então cheio de paciência com o
filho, perde toda a calma... e se antes o sustentava, corta relações e já não lhe
dá nem água.”
Agradeci a meu vizinho de mesa a historieta contada, disse-lhe que não
via semelhança da situação política que nos ocupava com a historieta que
ouvira, mas que, de qualquer forma, a passaria adiante a meus superiores,
para ver se eles a achavam engraçada...
De volta ao Brasil, continuamos nossos esforços para “nuclearizar o Brasil
para fins pacíficos”. Desejávamos que o Brasil desenvolvesse pesquisas
científicas, mas também tomasse medidas práticas como seria a compra de
um reator de potência para produção de eletricidade. As relações do Itamaraty
com a Comissão Nacional de Energia Nuclear nunca haviam sido tão profícuas.
Mas a CNEN não estava vinculada ao Itamaraty, era subordinada ao
Ministério de Minas e Energia. E foi este o Ministério, chefiado pelo Coronel
Costa Cavalcanti, um militar-político do tipo Juracy Magalhães, bem dócil
aos Estados Unidos, que começou a solapar as iniciativas do Itamaraty,
principalmente no que dizia respeito à compra do reator.
Os americanos logo prontificaram-se a vender um reator da
Westinghouse. E o Coronel Costa Cavalcanti imediatamente tomou a proposta
muito a sério, disposto a comprá-lo. A grande imprensa também logo
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
62
considerou a aquisição do novo reator, inteiramente construído pelos
americanos, como “um passo gigantesco do desenvolvimento e do avanço
científico e tecnológico brasileiro” e aplaudiu a disposição de Costa Cavalcanti.
O diretor da Comissão de Energia Nuclear, General Uriel, um militar cientista
que já estava bem entrosado com o Itamaraty, foi trocado por um físico civil,
que era totalmente avesso à ideia de que o Brasil pudesse sequer cogitar de
resguardar seu direito para em futuro remoto produzir qualquer geringonça
nuclear, ainda mais se esta fosse “horrorosamente explosiva”. Com essa nova
situação, o novo reator a ser comprado, as condições de compra, a localização
em que seria instalado, passaram a ocupar toda a atenção pública. E o
Itamaraty – que se intrometera em fazer propaganda de energia nuclear,
obviamente seara alheia, apenas para evitar que tratados internacionais
submetessem o Brasil a uma situação de colonato ou castração da soberania
– foi totalmente marginalizado.
Coincidiu com esta marginalização do Itamaraty no assunto de energia
nuclear o fato de que o Embaixador Corrêa da Costa ficou doente, teve o
que de início pareceu ser um infarto. Depois de um par de semanas de
resguardo e tratamento, o diagnóstico foi trocado por hérnia de esôfago –
mas, de qualquer forma, por precaução, Corrêa da Costa resolveu deixar a
estafante atividade da Secretaria-Geral por um posto no exterior. Para mim
e para Paulo Nogueira Batista, a decisão de nosso chefe era oportuna também.
Já tínhamos completado o prazo de nosso estágio no Brasil. Pelo menos em
meu caso, uma rápida saída para o exterior se impunha. Já não tinha qualquer
economia, o salário que recebia era insuficiente para sustentar a família.
Preocupava-me também a atividade política estudantil de minha filha mais
velha, ainda estudante secundária, que já desejava tornar-se “camponesa em
luta de guerrilha pela reforma agrária”. Tal projeto da menina fez com que eu
apressasse a saída da família para o exterior.
Nestas novas condições, com a saída de Corrêa da Costa, também Paulo
Nogueira Batista e eu iríamos para o exterior. Para onde? Foi muito fácil
escolher posto. Corrêa da Costa ganhou a Embaixada em Londres. Paulo
escolheu ser Ministro- Conselheiro em Bonn, na Alemanha. Quanto a mim,
contando com a boa vontade do chefe de Gabinete do Ministro e do próprio
Chanceler Magalhães Pinto, os postos oferecidos foram vários e esplêndidos:
Consulados-Gerais em Londres, Paris, e Nova York. Corrêa da Costa já
me havia convidado para ser Ministro na Embaixada em Londres. Mas preferi
o Consulado-Geral na mesma cidade, porque assim, se ocupássemos os
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
63
dois postos em Londres a um só tempo, pelo menos em uma das capitais do
Circuito Elizabeth Arden, com Corrêa da Costa na Embaixada e eu no
Consulado-Geral, os exilados brasileiros que lá estivessem ou por lá passassem
não seriam perseguidos pela ditadura. Isso era importante porque em Paris
os exilados vinham sendo muito maltratados e já haviam até invadido e
lapidado o Consulado- Geral, em protesto contra um diplomata policial chefe
da repartição.
Remoção para a Inglaterra
Quando fui removido para Londres, em meados de 1968, não podia
imaginar que residiria por tanto tempo naquela capital. Ao todo fiquei como
titular do Consulado-Geral por oito anos, tirando um ano de serviço provisório
que aceitei em Luanda, em 1975, como representante especial do Brasil
perante os movimentos guerrilheiros que formavam, ainda com Portugal, o
Governo de Transição de Angola para a Independência. Depois que cumpri
totalmente minha aventurosa missão, pois Angola foi reconhecida e teve
relações com o Brasil desde o momento da independência, à meia-noite de
10 de novembro de 75, voltei em começo de 76 para Londres e ainda lá
passei meio ano, antes de ser removido para Bangkok, segundo minha escolha.
Tinha curiosidade de conhecer a Tailândia e o Sudeste da Ásia e queria
presenciar os rescaldos da derrota que o heroico Vietnam impôs aos Estados
Unidos.
Durante minha longa estada em Londres, recebi a boa notícia de que o
Brasil, estando Gibson como Chanceler, havia recusado assinatura ao Tratado
de Não Proliferação Nuclear, afinal concluído pelas grandes potências, em
Genebra. Com alegria vi que a recusa do Brasil em assinar tão discriminatório
documento foi fundada no fato de que, muito antes, o Brasil já havia assinado
e ratificado o Tratado de Tlatelolco, que garantia o desarmamento nuclear
brasileiro, mas também assegurava o direito que todos os países têm, de
desenvolver pesquisas científicas e nucleares por conta própria, mesmo aquelas
que possam levar à produção de explosivos nucleares para fins legítimos e
pacíficos, tal como o da muito anunciada Engenharia Geográfica, que poderá
ser útil ao desenvolvimento econômico quando o problema da radiação
remanescente a explosões puder ser evitado.
Em Londres também, enquanto Corrêa da Costa e eu lá estávamos em
funções, Paulo Nogueira Batista passava vez por outra em suas idas ao Brasil
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
64
e nos dava noção do que estava fazendo em Bonn. Perfeccionista como
diplomata, Paulo até aprendera alemão, para melhor poder desempenhar
funções. E procurava aproximar-se dos meios governamentais alemães que
cuidavam de energia nuclear, bem como das grandes companhias que
produziam reatores, pois acreditava que a Alemanha poderia ajudar nosso
desenvolvimento econômico e científico, para atividades sempre pacíficas.
Com o governo de Geisel, a importância da Alemanha para o Brasil
certamente aumentou e a Embaixada em Bonn passou a ser mais frequentada
por ministros de Estado que buscavam cooperação alemã para suas respectivas
pastas. A importância de Paulo Nogueira Batista nesse novo contexto político
também aumentou, quando fez boa amizade com Shigeaki Ueki, um ministro
descendente de japoneses, que era amigo e dileto colaborador civil do
Presidente, desde os tempos em que Geisel dirigira a Petrobras. Os dois,
Paulo e Ueki, assim encaminharam o natural interesse de Geisel pela
cooperação com a Alemanha, para o campo da energia nuclear. E foi assim
que, com a necessária discrição, Brasil e Alemanha negociaram um gigantesco
acordo de cooperação, pelo qual o Brasil compraria oito reatores alemães,
bem como receberia colaboração para enriquecimento de urânio por um
novo método chamado Jet Nozzle, inventado pelos alemães.
Já estava eu em Angola, em meados de 1975, quando o referido acordo
foi assinado, com grande repercussão mundial, em Bonn. O signatário, pelo
Brasil, foi o Chanceler Silveira. Suspendi minhas atividades em meio às
conturbações e tiroteios em Angola para passar um telegrama de
congratulações a Silveira, no dia da assinatura, pois bem sabia o quanto ele
deveria estar com medo da reação dos americanos, quando assinasse o
acordo. Meu telegrama dizia mais ou menos isto: “Congratulo Vossência,
grande Chanceler e meu estimado Chefe, pela assinatura do tratado sobre
energia nuclear com a Alemanha. Considero este Tratado como uma
confirmação necessária do grito do Ipiranga”. Meu telegrama, se chegou a
Bonn, nunca teve qualquer resposta. Deve ter apavorado o Chanceler, que
estava assinando um tratado da lavra de Paulo Nogueira Batista
Por tudo isso, passei a considerar meu bom amigo Paulo Nogueira Batista,
infelizmente já falecido, como o diplomata brasileiro que mais coragem teve
em levar a ditadura a cortar por dentro o galho da árvore em que ela se
empoleirara, em 1964. Já estávamos em 75, onze duros anos haviam passado.
Mas depois daquele tratado com a Alemanha, o governo Geisel já não teria
apoio norte-americano. Passou então, muito injustamente, a ser considerado
DE ONDE VIM, QUANDO ENTREI PARA O ITAMARATY
65
por Carter como culpado por todos os crimes e torturas que a ditadura havia
cometido desde sua instalação.
Além daquele acordo com a Alemanha, Geisel ainda ousou desagradar
Washington com o reconhecimento de Angola, com a revogação de acordos
militares para compra de armas obsoletas nos Estados Unidos, com a votação
da resolução da ONU que equiparava sionismo a racismo e assim irritava Israel.
O resultado desta insubordinação geral foi que Geisel terminou o governo falando
na necessidade de terminar a ditadura e de encaminhar o Brasil de novo para a
democracia. E para isso escolheu o rústico e autoritário Figueiredo, que levou
seis anos na tarefa de redemocratização – mas em momento algum ousou adotar
qualquer medida de governo que pudesse contrariar Tio Sam. Figueiredo já
subiu ao poder, ao que me parece, com a disposição de ir desmantelando,
entre outros feitos da política externa de Geisel, tudo que Paulo Nogueira Batista
havia construído na colaboração do Brasil com a Alemanha. E assim acabou
destituindo o próprio Paulo de todas as funções que este havia assumido, para
dar eficiente execução aos acordos com a Alemanha
Depois de alguns governos democráticos que não ficarão muito bem em
nossa história, Fernando Henrique Cardoso, com seu Chanceler Lampreia,
resolveram, talvez sob maior pressão de Washington, abandonar toda uma
política de muita esperança e dignidade e assinar, submissamente, o Tratado
de Não Proliferação Nuclear. Com o TNP assinado, o Tratado de Tlatelolco
já para nada serve, perdeu utilidade e sentido. Curioso é que Lampreia foi
colaborador de Silveira, deveria assim melhor perceber o erro que iria cometer,
quando rompeu uma política que o Itamaraty havia adotado, com muito
esforço, desde 1965.
A despeito deste mau passo diplomático, com a maior diligência, os
militares brasileiros continuam a ter planos de construir um submarino nuclear,
agora com assistência técnica francesa. Assim também, com centrifugadoras
no Brasil produzidas, enriquecem urânio, para fins exclusivamente pacíficos.
Assim também o governo pensa em comprar e construir seis reatores de
potência para produzir eletricidade em diferentes pontos do país. Estaremos
retomando os rumos de outrora no governo Lula?
Ante a verdadeira histeria que os americanos hoje demonstram com
respeito aos planos nucleares iranianos e coreanos do norte, pergunto-me
como um dia acomodar-se-ão a ter um país latino-americano nuclearizado,
até mesmo para fins militares, neste continente que, erroneamente, ainda
consideram como seu “quintal”...
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
66
Enfim, há mais de vinte anos estou aposentado na diplomacia, vou
completar oitenta e quatro anos em breve, a saúde começa a falhar, deixo
para outros menos velhos e para os jovens o presente documento para que
melhor entendam o que fizemos, no Itamaraty da ditadura, em favor da
independência brasileira, nesta questão tão importante para a humanidade,
como o uso da energia nuclear, não monopolizada pelas grandes potências.
Entender bem o passado é o primeiro passo para melhor traçar o futuro.
Acredito que num mundo em que existem, a cada década que passa, mais
potências nucleares, ser desnuclearizado é uma forma de automutilação que
nada contribuirá para o progresso do Brasil, nem para boas e pacíficas relações
internacionais e que porá em risco a conservação das riquezas naturais com
que o Brasil foi dotado.
67
7 de Setembro na Embaixada em Lima, 1955
68
Embarcando para o Japão, 1956
69
Acompanhando Sua Alteza o Príncipe Mikasa, irmão do Imperador, em visita
ao Brasil
No conselho da OEA, assessorando o Embaixador Fernando Lobo
70
Bogotá 1960 - em uma das reuniões da OEA
Em Buenos Aires 1963 - 7 setembro
71
Apresentação de credenciais do Embaixador
Corrêa da Costa em Londres, 1968
72
Festa Anual da Anglo - Brazilian Society em Londres, 1973
73
Com o amigo Jorge Amado na Bahia
Chegada de Agostinho Neto a Angola, de volta do exílio, em 4 de fevereiro
de 1975
74
Na Chancelaria em Angola, 1975
No porto de Luanda, despachando para o Brasil os brasileiros que o navio
Cabo de Orange transportou
75
Despedida do Navio Cabo de Orange que transportou os refugiados
brasileiros da guerra em Luanda
76
Retirada das estátuas portuguesas (Camões) na véspera do dia da
Independência de Angola, 11 de novembro de 1975
77
Apresentação de credenciais na Tailândia, 1976
Apresentação de Credenciais na Malásia em 1977
78
Revista de tropas na apresentação de credenciais em Cingapura ,1977
79
Entrevista na Televisão Tailandesa, em 7 de setembro 1978
80
Fazendo conferência em Cingapura, dezembro de 1978
Foto da Ivony recebendo condecoração da Rainha da Tailândia por serviços
à Cruz Vermelha em 1980
81
Em um desfile militar – Bangkok
Passeando no rio Chao Praya em Bangkok, 1978
82
Aposentados afinal
83
Em casa, no Rio, em 1996
84
Reunião recente da família
85
2
a
parte
O reconhecimento de Angola pelo Brasil em
1975
I. Retrospectiva da política africana do Brasil antes de 1975
Para divulgar a um público mais vasto o presente documento,
primeiramente apresentado a um seminário organizado pela Universidade de
São Paulo e pela Fundação Alexandre de Gusmão e destinado a colher
depoimentos para uma coletânea que se intitulará “Sessenta anos de política
externa brasileira” – julgo conveniente traçar para o leitor um panorama mais
amplo sobre as limitações que o Itamaraty defrontou durante o período da
ditadura militar, bem como sobre constrangimentos pelos quais alguns
diplomatas, individualmente, passaram, durante o mesmo período, em suas
respectivas carreiras.
Com essa finalidade, é imprescindível fazer um retrospecto ao ano do
golpe de 64, para que melhor situemos o reconhecimento de Angola como
uma surpreendente exceção nas limitações que a ditadura impôs à política
externa brasileira durante longo período. O mesmo regime militar que endividou
o Brasil muito rapidamente, sem jamais consultar o Itamaraty sobre as
consequências que o endividamento teria sobre a soberania, desejava passar
ao mundo uma visão do Brasil bastante fictícia, a de que o Brasil já era uma
potência, a de que “ninguém segura este país”. Objetivos tão contraditórios
levaram o Brasil, durante o Governo Geisel, a adotar algumas atitudes
altaneiras e insólitas, entre as quais o pronto reconhecimento de Angola -
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
86
atitudes que fugiam completamente ao padrão de política externa do início da
ditadura (“o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”) e que
mais se assemelhavam aos válidos rompantes da Política Externa
Independente de Jânio Quadros. Devemos lembrar, a respeito, que Geisel
foi promovido a General por Jânio Quadros e serviu à Casa Militar durante
aquela presidência.
Voltemos, então, rapidamente, ao ano de 1964, para ver em que medida
a política externa brasileira foi encurtada e encolhida, também no que diz
respeito às relações com a África, no começo da ditadura.
A ruptura do sistema democrático em 64 deixou o Itamaraty quase
intocado numericamente. Enquanto extensos expurgos foram feitos em outros
Ministérios, apenas cinco cassações foram feitas no Itamaraty. Das cinco,
apenas três tiveram, não direi fundamento, mas vagas motivações político-
ideológicas. A mais notória destas foi a do então Ministro Antônio Houaiss,
um dos melhores funcionários que o Itamaraty já teve em todos os tempos.
Houaiss empenhava-se na Comissão de Descolonização na ONU, esforçava-
se para entender-se com os representantes de países da África negra, buscava
convencer o Itamaraty a modificar sua posição de apoio ao colonialismo
português – e tanto bastou para que fosse sumariamente expulso da Carreira,
incrivelmente considerado como “inimigo de Portugal”...
Numericamente, o Itamaraty ficou, então, quase inalterado. Mas nem
por isso foi menos intimidado. Conseguiu assumir a responsabilidade pelas
investigações que o novo Governo exigia fossem feitas em cada Ministério, à
caça de esquerdistas. E foi assim que cerca de quarenta diplomatas foram
inquiridos por uma comissão especial formada por diplomatas e militares,
destinada a apurar as motivações ideológicas que os inquiridos pudessem ter
tido em sua atuação na política externa. Foram, assim, constrangidos e
intimidados todos os que se haviam distinguido por alguma eficiência e
entusiasmo na Operação Panamericana de Juscelino, na política independente,
inaugurada por Jânio Quadros, na política externa de Goulart-Santiago Dantas,
que estabeleceu relações com o mundo socialista, procurou manter Cuba no
Panamericanismo, tratou, na Conferência das Nações Unidas para o
Comércio e Desenvolvimento, de obter formas de comércio exterior mais
justas, para melhorar as condições de vida do povo brasileiro.
Nenhuma outra cassação decorreu da devassa feita intramuros. Mas a
política externa brasileira murchou. Já não mais podia presumir-se
independente. Assim também, o mundo como que encolheu. Relações com
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
87
países socialistas, com o Terceiro Mundo, com os Não Alinhados, com
representantes de povos que estivessem em luta contra o colonialismo
tornaram-se altamente suspeitas. Nesse contexto, o Brasil voltava a votar
solidariamente ao lado de Portugal na ONU – ainda que Portugal estivesse
usando mão de obra praticamente escrava para ampliar suas plantações de
café em Angola e competir com o Brasil nos mercados internacionais. Nem
utilitária a política externa poderia ser nessas condições. Fui um dos diplomatas
inquiridos naquela ocasião e posso bem aquilatar a intensidade do desalento
que tal retrocesso em nossa política externa causou.
Em 1965, regressando de um posto no exterior, ainda na gestão de Vasco
Leitão da Cunha, fui nomeado Chefe da Divisão das Nações Unidas. Pouco
tempo depois, houve mudanças ministeriais no Governo Castello Branco, e
assumiu um novo Chanceler, Juracy Magalhães, que se notabilizou por uma
frase, que pretendia ser a súmula de sua política: “o que é bom para os Estados
Unidos, é bom para o Brasil”.
Como Chefe da Divisão das Nações Unidas, cabia-me elaborar as
instruções para a Delegação do Brasil na Assembleia-Geral da Organização.
Tentei aplicar a frase do novo Chanceler especificamente ao item da agenda
que dizia respeito à descolonização na África. Os Estados Unidos já se
abstinham nessa votação. Mas o Brasil, mais do que nunca, tendia a votar
contra sanções aplicadas a Portugal. Propus, então, que apenas seguíssemos
o voto americano na questão. Que nos abstivéssemos também. Quanto à
justificação desse voto, sugeri uma única modificação: não deveríamos
continuar a explicar nossa posição por motivos sentimentais, sob a alegação
de que não podíamos condenar ancestrais. “Portugal vovozinho”. Isso era
sobremaneira ofensivo para a África, que também era ancestral nossa e que
muito contribuíra para nossa história e nossa cultura. Sugeri, então, que
adotássemos uma rationale político-econômica, apenas mais lógica, embora
ainda cínica: não apoiaríamos sanções contra Portugal, porque seriam
contraproducentes. Se aplicadas à Metrópole, seriam imediatamente
repassadas por esta às colônias sob a forma de exploração mais intensa. A
exploração mais intensa endureceria também certamente a resistência dos
povos colonizados. Assim, se estávamos desejando a solução do problema
por meios pacíficos, não poderíamos votar a favor de medidas que terminariam
por acirrar a guerra.
A sugestão acima, apresentada por memorando, não ultrapassou a
Secretaria- Geral, à época chefiada por Pio Correia. De lá foi para o arquivo,
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
88
senão para a cesta de lixo. Continuamos a votar a favor de Portugal ainda
por muitos anos, com alegações sentimentais ou sem alegação alguma, embora,
alguns anos depois, eu tivesse a surpresa de ver meus argumentos usados de
novo por ninguém menos do que Margareth Thatcher, quando recusou-se a
aplicar sanções ao regime da apartheid na África do Sul.
Na gestão de Juracy Magalhães havia sido criada uma Comissão de
Coordenação com os Estados Unidos, para reunir-se anualmente e examinar,
por antecipação, os pontos mais importantes da agenda da Assembleia-Geral.
Terminado o Governo Castello Branco, já no Governo Costa e Silva em
1967, como Chefe de Gabinete da Secretaria-Geral, acompanhei o novo
Secretário-Geral Sérgio Corrêa da Costa a uma dessas reuniões anuais. Entre
dezenas de assuntos que constavam da agenda, pude nitidamente sentir que
os Estados Unidos estavam muito preocupados com a obstinação portuguesa
em manter suas colônias. Julgavam Portugal débil demais para tamanha
empresa. Consideravam a própria empresa anacrônica. E, a cada passo,
perguntavam o que o Brasil poderia fazer no sentido de tentar dissuadir Portugal
da vanglória de ser metrópole colonial. Talvez porque no Governo Jânio
Quadros essa tentativa já houvesse sido feita por Afonso Arinos - aliás, com
péssimos resultados - o Itamaraty não se dispôs a renovar tais démarches.
Os Estados Unidos não pretendiam fazê-lo, pois precisavam de bases militares
nos Açores. A guerra na África então prosseguiria cada vez mais cruenta
enquanto que na ONU, a cada ano, continuaríamos a votar negativamente,
ou, no máximo, a abster-nos, enquanto o mundo quase inteiro tratava de
aplicar sanções a Portugal.
Outros assuntos mais prementes ocuparam, então, minhas atenções.
Depois, fui servir como Cônsul-Geral em Londres. Costa e Silva terminou
seu período de governo tristemente, com o AI5. Mais quinze cassações foram
feitas no Itamaraty, não caracterizadamente políticas, mas de qualquer forma
brutais, sem dar aos diplomatas expulsos qualquer direito de defesa. Médici
assume o poder. Gibson vem a ser Chanceler. O Brasil começa a endividar-
se aceleradamente. A repressão policial da ditadura não mais tem limites. No
próprio Itamaraty já se formara um corpo de diplomatas-policiais, a serviço
da repressão. O Itamaraty muda-se para Brasília, cidade pequena, onde os
diplomatas conviverão também nos blocos de moradia e, nas condições de
competição por promoções e postos, hão de exacerbar-se, não só na
maledicência, que sempre caracterizou o ambiente interno do Itamaraty antigo,
“o Butantã da Rua Larga”, mas nas denúncias aos órgãos de repressão.
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
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Começam os sequestros de aviões, os sequestros de Embaixadores, os
assaltos a bancos, a luta armada em Xambioá. E, de outra parte, a polícia
política tortura e assassina os opositores do regime. Tudo isso acaba
repercutindo no exterior, embora não comova os banqueiros que oferecem
empréstimos ao Brasil, em condições cada vez mais escorchantes.
Contra o endividamento acelerado que virá comprometer a soberania –
o Itamaraty não ousa alertar o Governo. Volta-se, então, para a promoção
comercial no exterior, que é complementar ao endividamento, pois, sem saldos
na balança de comércio, nem os juros da dívida poderão ser pagos. E
preocupa-se com as repercussões que os desmandos policiais da ditadura
têm, sobre o bom nome do país no exterior. Uma nova comissão policial de
inquérito percorre o mundo para perguntar aos diplomatas brasileiros em
seus postos, se acreditam que “haja torturas no Brasil”. A imagem do país
que o Itamaraty quer projetar no exterior é a do “Brasil-Potência”, do
“Ninguém segura este país”, do “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Mais uma vez,
sendo Cônsul-Geral em Londres, sou inquirido.
Mas a crise do petróleo causa-nos crescentes dificuldades. Em busca de
saldos comerciais, é imprescindível que ampliemos nosso intercâmbio, inclusive
com países árabes, com países da África negra, antes negligenciados. Para
ter relações normais com uns e outros, teremos, necessariamente, de rever
algumas posições políticas que vínhamos assumindo desde 1964, de irrestrito
apoio a Israel e a Portugal. Gibson organiza, então, uma missão à África
negra já independente, Nigéria, Gana, Senegal, etc., missão que certamente
seria a cada passo chamada a pronunciar-se sobre a posição brasileira com
relação às colônias portuguesas naquele continente. De Londres,
acompanhando com curiosidade os resultados daquela missão, podia eu
pressentir que nada de positivo resultaria. De fato, anos mais tarde, em
entrevista com Marcelino dos Santos, da FRELIMO, essa missão foi por ele
lembrada com incontida irritação. Disse-me que “Gibson, de começo, havia
suscitado muitas esperanças para depois causar ainda maiores decepções,
pois viera à África para reiterar as posições brasileiras tradicionais, favoráveis
ao colonialismo português”.
Estava eu ainda em Londres, quando sobreveio a Revolução dos Cravos
em Portugal. Mais do que uma revolução, parecia um desabamento. Um
desabamento das esperanças que os militares portugueses ainda pudessem
nutrir, já não mais de ganhar, mas apenas de manter, por tempo indefinido, a
guerra que há catorze anos levavam na África. Spínola, até então um ilustre
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
90
comandante militar colonial, assumiu o poder. Líderes portugueses
oposicionistas no exílio, como Mário Soares, foram apanhados de surpresa
pelos acontecimentos em Lisboa. De início, acreditaram que se tratava de
um simples golpe militar, continuador da ditadura salazarista. Depois, às
apalpadelas, juntaram-se ao processo revolucionário, que era muito mais do
que um simples golpe de estado. Mário Soares vem a ser o Chanceler de
Spínola. E é, então, que o novo governo português começa a definir melhor
suas intenções, entre as quais a de conceder independência a suas colônias
africanas.
Conceder independência era por certo um louvável propósito, que o
mundo podia aplaudir. Mas como fazê-lo? Para certos países amigos de
Portugal, o modus faciendi dessa concessão de independência é que era
importante. Poderia Portugal simplesmente retirar-se da África, deixando suas
ex-colônias entregues aos movimentos guerrilheiros predominantes, que,
durante catorze anos de guerra, haviam sido ajudados pelo mundo socialista?
No documento que passaremos a examinar, aponto como importantes as
dúvidas expressadas num seminário da OTAN (NATO), sobre os propósitos
portugueses, em fins de junho de 74. Os Estados Unidos e as potências
europeias acreditavam que, da Guiné-Bissau e de Moçambique, Portugal
poderia retirar-se a qualquer momento, sem problemas. Mas de Angola,
colônia rica onde três movimentos guerrilheiros digladiavam-se pelo poder,
Portugal, mesmo que quisesse, segundo os cálculos da OTAN, não se poderia
desvencilhar em menor prazo do que cinco anos, aproximadamente.
Foi certamente com o propósito de estabelecer um modus faciendi
para esse desvencilhamento de Angola, evitando o que alguns políticos do
mundo ocidental denominavam “uma descompressão demasiado rápida das
colônias portuguesas no acesso à independência”, que o Presidente Nixon,
de volta de uma viagem à Europa, fez uma rápida escala na Ilha do Sal,
onde encontrou-se com Spínola e Mobutu, este há muito ditador do Zaire
(atual Congo). Mobutu era o protetor de Holden Roberto, da FNLA, a
quem os Estados Unidos favoreciam como futuro governo de Angola. Desse
encontro secreto parece ter saído o delineamento básico inicial do que viria
depois a ser consubstanciado nos chamados Acordos de Alvor. Segundo
estes, três seriam os movimentos guerrilheiros reconhecidos em Angola: a
FNLA, de Holden Roberto; a UNITA de Savimbi, oriunda de uma cisão
da FNLA, e depois colaboradora das tropas portuguesas nos combates
contra o MPLA; e, finalmente, o MPLA de Agostinho Neto, apoiado por
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
91
países do mundo socialista. Com este alinhamento de forças podia-se, então,
presumir, na Ilha do Sal e em Alvor, que nas eleições previstas para a
independência de Angola, ou em lutas que sobreviessem entre os
movimentos, FNLA e UNITA acabariam unidas. E o Ocidente teria 2/3 de
chances de predominar no novo país – o que permitia prefixar a data da
independência para 11 de novembro de 75. O que não se levou em conta,
nem talvez fosse possível calcular, na Ilha do Sal, ou em Alvor, era o apoio
popular que os movimentos guerrilheiros verdadeiramente tivessem, ou a
experiência de luta que, na prática, houvessem adquirido em 14 anos de
guerra anticolonial. E foi isto que invalidou todos os cálculos de Nixon, da
OTAN, de Spínola e de Mobutu.
Como já vimos, no Itamaraty havia setores que há muito vinham tentando
demover Portugal de sua obstinação colonialista, que mais não fosse porque
o colonialismo parecia démodé. Outros setores estariam interessados em
ampliar nosso comércio com Angola, que Portugal tolhia. Angola também
tinha petróleo, o que nos interessava. O novo presidente brasileiro, Geisel,
era de origem alemã, não estava influído pelo luso-tropicalismo de Gilberto
Freyre, que Portugal tão bem usara para seus fins políticos. Ítalo Zappa,
então Chefe do Departamento da África, era de origem italiana, tampouco
sofria tais influências. Mário Soares, como Chanceler de Spínola, entendeu-
se então com Silveira, no sentido de que o Brasil, mais uma vez, poderia
demonstrar sua amizade por Portugal, de alguma forma participando daquele
processo de independência que deveria, necessariamente, ser curto, pois
Portugal não poderia continuar uma guerra colonial, ao mesmo tempo em
que tinha uma revolução social em casa.
Surgiu, então, no recesso do Gabinete de Silveira, por iniciativa de Zappa,
a ideia, bastante inteligente e original, de criar Representações Especiais,
com o status de Embaixadas antecipadas, em Moçambique e Angola. Com
nossa simples presença antecipada e neutra, dávamos maior credibilidade
internacional aos Acordos de Alvor. Ajudávamos, assim, Portugal a
desvencilhar-se das colônias. E ajudávamos as colônias a desvencilhar-se de
Portugal – o que satisfazia a “Deus e ao diabo na Terra do Sol”.
Foi nessa aventura, de resultados muito incertos e imprevisíveis, que fui
convidado a tomar parte. Aceitei o convite, perfeitamente consciente dessa
incerteza e imprevisibilidade. E o documento que ora apresento é a súmula
da experiência diplomática que tive na África, naquele ano de 1975, para
mim mais valiosa do que tudo que aprendi em 40 anos de carreira.
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
92
II. Depoimentos de variadas fontes sobre Angola em 1975
O presente depoimento sobre o reconhecimento de Angola pelo Brasil,
em 1975, – um dos acontecimentos mais surpreendentes e controvertidos
na política externa brasileira, dadas as condições da época – não é, por
certo, um estudo acadêmico, que entre em digressões políticas, que se
fundamente em dados econômicos, que cite precedentes históricos e
diplomáticos, que se escore em vasta bibliografia. É apenas o relato de um
diplomata brasileiro que, no exercício de funções, durante um ano, viveu
em Luanda circunstâncias dramáticas, prenhes de consequências políticas,
capazes de definir o futuro das relações do Brasil não só com Angola, mas
com toda a África negra.
O presente documento é também resultado de anotações que comecei a
fazer em Bangkok, em 1976, quando as impressões trazidas de Angola, do
ano anterior, ainda estavam bem vivas em minha memória. E que continuei a
escrever em cinco anos subsequentes de permanência na Ásia, tão somente
porque o reconhecimento de Angola – em boa hora feito e com dificuldades
mantido pelo Governo brasileiro – continuava a sofrer persistentes pressões
internacionais e a ser motivo de acalorada discussão na imprensa brasileira,
com reflexos muito graves até na composição de nosso Governo. Devemos
lembrar que, em 1978, o Ministro do Exército Sílvio Coelho Frota, ao ser
demitido inopinadamente, lançou uma proclamação. E nesta, em primeiro
lugar, citava o reconhecimento de Angola como um indício da crescente
“comunização” que via na política brasileira.
No curso de todos esses anos, desde 1975, minha carreira foi truncada
- o que não é assunto de maior importância – como consequência do papel
que tive como executor fiel de uma política traçada pela Presidência e pelo
Itamaraty. Frente às acirradas e passionais discussões que essa política suscitou
de início e vez por outra ainda suscita, o Itamaraty omitiu-se na minha defesa,
embora haja mantido as relações com Angola – que me pareciam essenciais.
A bem destas relações, que de início eram tênues e estavam ameaçadas por
pressões internas e externas de todo tipo, calei-me. Nem teria meios eficazes
para defender-me, nas condições de censura e intimidação do regime político
em que vivíamos. Hoje as condições do mundo, do Brasil e de Angola são
outras e as relações já se consolidaram. É o que me leva a tentar esclarecer
melhor o público sobre esse obscuro e controvertido episódio de nossa história
diplomática.
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
93
Meu presente depoimento deverá ser no futuro confrontado com
memórias outras, dos altos personagens da República que traçaram a política
para com Angola em 1974 – e depois escolheram a mim para executá-la em
Luanda. O então Chanceler Antônio Azeredo da Silveira, recentemente
falecido, deixou gravado no CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas, em 1979,
um longo relatório de toda sua gestão, na qual o reconhecimento de Angola
foi um dos passos de maior importância e merecerá estudo. Assim também,
espero que o ex-presidente Geisel digne-se deixar seu testemunho sobre a
política externa de ampla e longa visão que firmemente adotou com respeito
à África - para que a História faça-lhe justiça.
Quanto aos depoimentos outros sobre aquele ano de guerra,
recomendaria aos estudiosos o livro de Robert Stockwell, “In search of
enemies”. Stockwell foi por muitos anos graduado funcionário da CIA. De
Kinshasa, no Zaire, chefiou as operações da Agência em Angola, em 1975/
6, mas depois, em 1978, desgostoso com o emprego, aposentou-se e escreveu
esse livro, que teve repercussões na imprensa brasileira, embora até hoje não
haja sido traduzido para o português, como bem merecia.
Fernando Câmara Cascudo, jornalista brasileiro, que em 1975 trabalhou
em Luanda para a FNLA como assessor político de Holden Roberto e
orientador do mais importante jornal da ex-colônia portuguesa, o “Província
de Angola”, escreveu também um livro, intitulado “Angola, a Guerra dos
Traídos”. Câmara Cascudo teve de deixar Luanda apressadamente em agosto
de 1975 quando a FNLA foi expulsa da Capital e por isto seu livro não
reflete as condições de vida, nem o ânimo de resistência daquela cidade ante
as invasões estrangeiras que sobrevieram. Reflete antes o que se pensava
sobre Luanda nas hostes da FNLA, em Kinshasa e no norte de Angola.
Do outro lado do espectro político, há dois depoimentos, também sob a
forma de livros, de jornalistas do leste europeu.
Oleg Ignatiev, do “Pravda”, publicou em 1978 a obra que foi traduzida
para o espanhol, sob o título “El Arma Secreta en África (Editorial Progresso-
Moscou), na qual faz interessantes observações sobre as relações de seu
país com o MPLA. Em certa passagem, revela planos do próprio Presidente
do MPLA, Agostinho Neto, no sentido de antecipar a proclamação de
independência se, ao tomar a cidade de Benguela, – como de fato tomou – o
exército invasor sul-africano tivesse revelado força, eficiência e, sobretudo,
mobilidade suficiente para chegar a Luanda antes de 11 de novembro, data
prevista para a Independência nos Acordos de Alvor.
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
94
Ryszard Kapuscinski, da Agência Polonesa de Notícias, também publicou
em 1976, traduzido para o inglês em 1987 nos Estados Unidos e com grande
sucesso da crítica americana, seu livro intitulado “Another Day of Life. Nele,
conta as peripécias da guerra em Angola, desde setembro, quando chegou a
Luanda, até pouco depois da independência, quando retornou a seu país.
Merece especial referência a viagem que Kapuscinski fez, levado pelo MPLA,
em começo de outubro, de Luanda até um posto isolado de vanguarda, na
fronteira com a Namíbia. O exército sul-africano já estava do outro lado da
fronteira, esquentando os motores dos tanques, para a blitzkrieg que
empreenderia, destinada a atingir a capital de Angola antes do dia 11 de
novembro. Foi Kapuscinski quem trouxe para o MPLA em Luanda e de lá
para o mundo a notícia daquela invasão iniciada.
Ao contrário desses dois livros, escritos por experimentados
comentaristas internacionais, de países que tinham uma linha política muito
nítida e haviam ostensivamente auxiliado o MPLA durante 14 anos de guerra
anticolonial”, meu depoimento revelará alguns aspectos de nossa política
externa que até agora passaram despercebidos. A escassez e insuficiência
dos conhecimentos que tínhamos sobre a África negra e especialmente sobre
Angola; a desconfiança que tanto o MPLA quanto a Frelimo naturalmente
sentiam para com a política brasileira, por força do apoio que antes havíamos,
durante tantos anos, não muito veladamente, dado Portugal; as vacilações de
rumo a que esteve sujeita a nova política de isenção e neutralidade, adotada
em 1975, quando a guerra intensificou-se, e, mais ainda, quando definiu-se,
com a vitória do MPLA. Finalmente, revelarei também alguns pequenos
desentendimentos e desacertos ocorridos em certos momentos entre o
Itamaraty e a Representação Especial em Luanda, bem como entre a
Representação Especial e o MPLA – até mesmo quando as relações já haviam
sido oficialmente estabelecidas e Angola parecia entender-se perfeitamente
bem com o Brasil. As relações não começaram plácidas, mas desconfiadas,
por força da nossa política pregressa.
Creio que, mesmo com os defeitos que possa conter, meu depoimento
virá contribuir para o aperfeiçoamento da política externa brasileira. Angola
foi apenas um exemplo de situação política complexa, com amplos
envolvimentos internacionais, em que a posição assumida pelo Brasil tinha
bastante peso e imediata influência.
Outras situações semelhantes podem ocorrer. Precisamos então começar
a traçar política externa com mais transparência, para obter maior apoio da
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
95
imprensa e da opinião pública brasileiras. Devemos ser capazes de agilizar
decisões políticas e eficientemente instrumentar a execução das mesmas,
sempre que surjam situações de emergência e perigo como foi a de Angola
em 75. Mais do que tudo, precisamos estar conscientes de que fazer
diplomacia não é só tentar vender produtos manufaturados no exterior, para
obter saldos com que pagar a dívida externa.
Fazer política externa é assumir atitudes condizentes com o interesse
nacional a curto, médio e longo prazo, afrontar riscos se preciso for; ter, não
somente uma vaga soberania teórica, mas uma definida e verdadeira
personalidade internacional. Foi o que o Brasil teve com respeito a Angola
em 1975 e por isso orgulho-me de haver servido como Representante Especial
em Luanda naquela decisiva ocasião.
III. Como surgiu a concepção das Representações Especiais
Em 1974, estava eu em Londres, no desempenho da função de Cônsul-
Geral, quando o Governo Geisel instalou-se no Brasil. Pouco depois, ocorreu
a Revolução dos Cravos em Portugal. Não conhecia o General Geisel senão
pelo papel moderador contra torturas que tivera no Governo Castello Branco.
Conhecia superficialmente o novo Chanceler, Silveira, como colega do
Itamaraty, mais pelas atividades que desempenhara como Chefe da
Administração no Itamaraty e pelas posições que assumira, a meu ver de um
vago e generoso terceiro-mundismo, na Representação do Brasil junto à
ONU, em Genebra. Por isso, não podia esperar que meu nome viesse a ser
lembrado para desempenhar qualquer função outra, que o novo governo
julgasse importante. Menos ainda esperava ser chamado para participar da
elaboração de quaisquer planos ou linhas de ação que dissessem respeito à
política externa. Li, então, os pronunciamentos do governo que se inaugurava,
como todos os diplomatas da época devem ter feito, com a dose de ceticismo
que a leitura de tais documentos sempre inspira. Lembrava-me da Política
Externa Independente de Jânio Quadros. Pode haver política externa que
não seja independente? Assim também: pode haver política externa que não
seja pragmática, ecumênica e, sobretudo, responsável? A simples adjetivação
que Silveira dera à sua política parecia-me constituir crítica à estreita,
preconceituosa e rotineira política que o Itamaraty vinha adotando desde 64.
Mas não garantia que na nova gestão fosse haver alguma mudança substancial
de rumos, senão alguns retoques meramente cosméticos.
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
96
Enquanto no Brasil nada parecia mudar, a fermentação revolucionária
em Portugal, ainda que no princípio fosse muito confusa, prometia substanciais
mudanças de orientação política, suscitava esperanças em todos os setores
da opinião pública mundial que se haviam oposto à ditadura de Salazar e aos
seus propósitos colonialistas na África. Marcelo Caetano havia visitado
Londres pouco tempo antes. Sua visita coincidira com as denúncias feitas
por Adrian Hastings, no “Times” de Londres, sobre um massacre perpetrado
pelas tropas portuguesas na aldeia moçambicana de Wyriamu. O Governo
português desmentiu a notícia simplesmente negando que tal aldeia sequer
existisse. Foi preciso então que o “Times” recorresse a geógrafos para provar
que a aldeia existia, sim, na Província de Tete e que Hastings publicasse
novas reportagens, com fotos impressionantes, para comprovar que o
massacre de fato ocorrera. Como resultado, a visita de Marcelo Caetano
transcorreu muito agitada, em meio a veementes protestos na imprensa e nas
ruas.
A Revolução dos Cravos veio logo depois. E começava por prometer a
descolonização da chamada África portuguesa. Era uma boa promessa, sem
dúvida. Mas como poderia ser levada a termo por generais tão ligados ao
passado colonial como Antônio Spínola? Cumpria esperar, para ver.
Em junho daquele ano recebi uma designação para acompanhar, como
observador do Instituto Rio Branco, um seminário da OTAN (NATO) que
se realizaria na Universidade de Oxford. No seminário, todos os problemas
políticos do mundo foram repassados, em discussões muito francas e informais,
com opiniões muito díspares, por observadores das Chancelarias europeias,
por jornalistas de grandes órgãos da imprensa mundial, por professores
universitários de renome. Só num assunto parecia haver consenso total: a
pretendida descolonização portuguesa. No que dizia respeito a Moçambique,
seria fácil. Afinal, em Moçambique, colônia muito pobre, economicamente
dependente da mão de obra barata que exportava para as minas da África
do Sul, só havia um movimento nativista que se apresentava para receber o
poder na independência: a Frelimo. Mas no tocante a Angola, colônia muito
rica, a situação seria bastante diferente: três movimentos, chefiados por Holden
Roberto, Savimbi e Agostinho Neto disputavam o poder na independência
prometida. E como essa disputa seria muito acirrada, segundo os prognósticos
da OTAN, mesmo que os militares portugueses tivessem o maior empenho
por desvencilhar-se de Angola, nada menos do que cinco anos seriam
necessários para que aquela independência se concretizasse.
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
97
Por isso, Portugal já estava cuidando de desqualificar outros pretensos
“movimentos angolanos”, de brancos e mestiços “assimilados”, que antes
haviam vivido em Angola em perfeita concordância com o sistema colonial,
mas que agora, à undécima hora, tentavam criar um partido, para disputar as
eleições com os negros, ou para receber a independência de mão beijada da
direita portuguesa e fazer de Angola algo parecido com a Rodésia da época
ou a África do Sul ainda dos tempos do apartheid. Para mostrar vitalidade,
para marcar presença, tais agrupamentos políticos de índole neocolonialista,
encorajados pelos remanescentes da PIDE e por militares “duros” das forças
coloniais em Angola, recorriam também a práticas intimidatórias contra a
população negra. Foi assim que em setembro daquele ano de 74, os
musseques, ou favelas de Luanda, viram-se invadidos e depredados por
bandos armados de colonos brancos e seus asseclas mestiços ou negros, em
pogroms que logo ganharam manchetes na imprensa internacional, numa
tentativa de avisar ao mundo que aquele processo de independência seria
necessariamente violento, se Angola desde logo não se encaminhasse para a
independência levada por “boas e alvas mãos”.
Em novembro daquele ano de 74, tirei dois meses de férias no Brasil.
Monotonizado com o serviço consular em Londres, eu pensava em trocar o
posto por uma Embaixada qualquer em comissão, mas não havia ainda cuidado
do assunto com as chefias do Itamaraty, quando o Chefe do Departamento
da África, Ítalo Zappa, meu conterrâneo de Barra do Piraí e amigo desde a
juventude, abordou-me com uma proposta bastante curiosa: Silveira pretendia
antecipar o relacionamento político do Brasil com as colônias portuguesas
que se encaminhavam para a independência. E para isso, ainda no período
de transição, pensava em abrir em Lourenço Marques e Luanda uma espécie
de embrião de Embaixada, para tratar com os movimentos negros que Portugal
qualificasse como candidatos ao poder. Segundo Zappa, Silveira já se
entendera a respeito com Mario Soares, Ministro das Relações Exteriores
de Portugal. Mas seria essencial que os próprios movimentos africanos
também aceitassem de bom grado essa antecipação de suas relações com o
Brasil.
Para fazer tal proposta aos movimentos nativistas angolanos Silveira
pensara em meu nome. Num primeiro tempo, ele, Zappa, como Chefe do
Departamento, iria à África, visitar os líderes daqueles movimentos, apenas
para “quebrar o gelo de eventuais ressentimentos” que pudessem ter com a
pregressa política brasileira de apoio velado ao colonialismo português. Depois,
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
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eu iria – especificamente para fazer a proposta da criação de duas
Representações Especiais, uma em Lourenço Marques, outra em Luanda. E,
se as propostas fossem aceitas, poderia escolher a chefia de uma delas, o
que corresponderia em tudo ao comissionamento como Embaixador que eu
pretendia. O convite vinha de Silveira – como Zappa fazia questão de frisar.
Interessava-me?
Pedi alguns dias para pensar no assunto. Mas desde logo fiz a Zappa
algumas indagações que me permitiriam avaliar melhor o sentido da missão
que Silveira (ou o próprio Zappa) me propunha. Por que o Ministro fora
primeiro entender-se com Mario Soares, antes de tratar com os próprios
líderes dos movimentos negros? Haveria nisso algum propósito de ainda ajeitar
a independência prometida a eventuais intuitos neocolonialistas portugueses?
Estaria o Brasil buscando influenciar o processo de independência em Angola,
tentando de algum modo favorecer a um ou outro movimento negro naquele
processo de independência que se antevia complicado? Como tínhamos
Consulados, tanto em Luanda quanto em Lourenço Marques, desde os
tempos da Política Externa Independente de Jânio Quadros, por que aqueles
cônsules simplesmente não contatavam os líderes dos movimentos negros
sobre a criação das Representações Especiais do Brasil pretendidas durante
a transição para a Independência?
Zappa foi categórico nas respostas à minhas primeiras dúvidas: o Brasil
não tinha intenção alguma de moldar Angola independente a desígnios da
antiga metrópole. Nem tinha qualquer propósito de favorecer a um ou outro
dos movimentos negros que em Angola disputariam o poder. Seria isento,
absolutamente isento, absolutamente equânime e neutro entre todos eles e
estaria pronto a reconhecer aquele que, sobrevinda a Independência, tivesse
alcançado o poder. Assim também, quanto aos Cônsules existentes nas
colônias portuguesas tinham sido credenciados exclusivamente perante o
Governo português. Eram homens que lá já estavam há muito, funcionários
sem especial percepção política, desgastados por uma longa convivência com
as autoridades e a sociedade coloniais e, por tudo isso, seriam removidos
daqueles postos, o mais rapidamente possível. Os Consulados mesmos seriam
extintos, passariam a meros setores das Representações a serem criadas.
Pois o que o Brasil verdadeiramente pretendia com a criação antecipada de
missões diplomáticas nas colônias portuguesas, era ir planejando desde logo
um relacionamento intenso com Angola e Moçambique. E para tal finalidade
seria imprescindível buscar como que o denominador comum entre as
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
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aspirações que os três Movimentos angolanos e a Frelimo em Moçambique
pudessem ter, desde o início, para as relações futuras com o Brasil.
Da mesma forma, Zappa esclarecia-me, a intenção do Governo brasileiro
era correta ao buscar o assentimento do Governo português para a criação
das Representações Especiais. Tratava, assim, de dar como que um endosso,
uma homologação internacional aos bons propósitos que Portugal agora
manifestava, quando prometia independência a suas colônias. A Revolução
dos Cravos, como todos os processos revolucionários, poderia desandar,
regredir, tomar rumos inesperados, tentar até voltar atrás em suas promessas.
O endosso público do Brasil à independência prometida não viria então
dificultar essa possibilidade de recuo?
Nos dias subsequentes voltei a conversar com Zappa, procurando mais
esclarecimentos. E se o processo de independência em Angola viesse a ser
conflituoso e demorado – como os observadores da OTAN previam? E se,
ao fim de um período de campanha eleitoral, ou de lutas, predominasse
justamente aquele movimento, o MPLA, que as potências ocidentais julgavam
inaceitável, como agiria o Brasil? E mais: como ficaria eu mesmo, perante
uma possibilidade como essa, se aceitasse a empreitada de caiação da nossa
política africana anterior, largando um posto em Londres e dando praticamente
um salto no escuro, em direção a outro posto que talvez nem pudesse ser
criado? Não ficaria eu pendurado na brocha, enquanto o próprio Silveira,
premido pela reação externa e interna, tiraria-me dos pés a escada?
Já então Zappa não pôde ser tão categórico. Ele próprio tinha dúvidas a
respeito dessas questões. Mas alegava: se a isenção, a equanimidade entre
os movimentos angolanos fosse desde o início o declarado intento, a marca
registrada de nossa política, e se, para sermos isentos e equânimes,
chegássemos antecipadamente a Luanda com uma Representação Especial,
desde o começo do processo de transição à Independência - mais difícil se
tornaria uma guinada súbita de nossa política em 11 de novembro, quando a
independência se concretizasse, ainda que não saísse a gosto de alguns setores
da opinião pública internacional ou brasileira. Assim também, segundo ele, o
que Silveira me propunha não era um salto no vazio. Não se tratava de uma
remoção de Londres para qualquer das duas Representações Especiais ainda
a serem criadas. Tratava-se de serviço provisório. Meu posto continuaria a
ser Londres. Iria à África, primeiro numa missão especial para propor as
Representações, depois em serviço provisório, por seis meses, período
prorrogável, segundo as coisas andassem. Se fosse então um salto, havia
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
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uma rede prevista. Se tudo em Angola desandasse e eu precisasse de lá sair,
teria um alçapão de escape, uma válvula de ejeção: retornaria a meu posto
em Londres, à espera de outra designação.
À vista desses argumentos de Zappa, que me pareciam interpretar
acuradamente as intenções de Silveira (ou dele mesmo, Zappa), aceitei a
incumbência. Zappa logo partiu para a África, na sua missão que seria apenas
para “quebrar o gelo”, pois uma missão anterior, já feita na gestão de Silveira,
por Luis Bastian Pinto, então Embaixador no Cairo, não surtira resultados
positivos, na apreciação do próprio Bastian. Zappa iria e voltaria, eu ainda
estaria em férias no Brasil, para escutá-lo e aprender da experiência adquirida
nos contatos iniciais que fizesse. Depois, ao fim das férias, eu regressaria a
Londres, onde aguardaria instruções de partida para Nairóbi, na missão que
teria de propor a criação das Missões Especiais. Nairóbi era o posto
diplomático que tínhamos mais perto de Dar-es-Salaam, na Tanzânia, onde
se sediavam tanto a Frelimo de Moçambique quanto o MPLA de Angola,
ambos ainda no exílio naquele período de transição.
No entretempo, enquanto em férias no Brasil, busquei informar-me sobre
os movimentos negros africanos, sobre a guerra que mantiveram contra
Portugal durante quase três lustros. Os arquivos do Itamaraty eram
paupérrimos a respeito. Tudo que continham eram as informações, ou
desinformações já superadas, que o próprio Governo português passara às
autoridades brasileiras sobre aquelas lutas na África. De outra parte, contatos
diretos com líderes ou dirigentes daqueles movimentos africanos haviam sido
cuidadosamente evitados desde 1964 pela diplomacia brasileira em todos os
postos do mundo, pois poderiam ser tidos como subversivos, adversos a
Portugal. Assim também, as livrarias do Rio de Janeiro só ousavam ostentar
nas prateleiras livros sobre o assunto que, com maior ou menor entusiasmo,
tratassem da “missão civilizatória de Portugal na África”.
Preferi então voltar a Londres via Lisboa, onde tais informações seriam
disponíveis, pois todos os movimentos africanos tratavam de fazer-se
conhecidos e aceitos por Portugal. De fato, as livrarias de Lisboa regurgitavam
de novas publicações sobre a África, sobre os programas e propósitos dos
movimentos africanos. E em Londres, enquanto aguardava instruções de
partida, pude ler publicações inglesas sobre a guerra colonial que Portugal
travara durante 14 anos em suas possessões africanas, bem como procurar
alguns portugueses e ingleses que conheciam bem o assunto, alguns dos quais
haviam tido contatos pessoais com os líderes de Angola e Moçambique.
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
101
IV - Missão à África para propor as Representações Especiais
Minha missão à África, destinada a propor a criação das Representações
Especiais em Lourenço Marques e Luanda, começou então em meados de
janeiro, com os contatos que, de Nairóbi, no Quênia, com a cooperação do
Embaixador Frank Mesquita, consegui estabelecer na Tanzânia, em Dar-es-
Salaam, com a Frelimo de Moçambique, e com o MPLA de Angola.
Agostinho Neto estava ausente de Dar-es-Salaam. Samora Machel, que
recebera Zappa um mês e meio antes, designou para receber-me Marcelino
dos Santos, Vice-Presidente, encarregado de Relações Exteriores da Frelimo.
A primeira entrevista que então tive, com Marcelino dos Santos, no
acampamento militar da Frelimo em Kurasini, nas imediações de Dar-es-
Salaam, foi plácida. Expus-lhe os bons propósitos do Governo brasileiro e
sua nova política para com a África. Propus-lhe a criação de uma
Representação Especial em Lourenço Marques e salientei, da maneira mais
convincente possível, as vantagens que tal missão permanente antecipada
traria, para as relações com o Brasil e para reforço dos Acordos de Alvor,
pelos quais Portugal prometia a independência de Moçambique em julho de
75.
Segundo instruções, disse-lhe também que o Brasil estava desde logo
disposto a dar alguma ajuda humanitária a Moçambique, ainda na fase de
transição à independência, para aliviar os efeitos da guerra recém-terminada.
Mas para isso, o Itamaraty solicitou que a Frelimo elaborasse uma lista de
prioridades, a fim de melhor orientar o Governo brasileiro na doação oferecida.
Marcelino dos Santos respondeu-me cortesmente, dizendo que estava a
par das mudanças de intenção política do Governo brasileiro, tal como
explicadas por Zappa a Samora Machel e por mim a ele e que só poderia
louvá-las; que a criação de uma Representação Especial em Lourenço
Marques era assunto novo, e por isso demandava estudos e decisão coletiva,
pelo que teria de ser submetido ao Bureau Político da Frelimo; que qualquer
ajuda dada pelo Brasil ao povo moçambicano, para aliviar as agruras causadas
pela guerra, seria recebida com gratidão, mas que a Frelimo já não mais
usava elaborar listas de prioridades em busca de ajuda externa. Era isto um
exercício que, na maioria das vezes, redundava em perda de tempo e
frustração. Assim, bastava ao Governo brasileiro ter em mente que a ajuda a
Moçambique devastado pela guerra poderia ser em tudo semelhante àquela
que Brasília costuma dar ao Nordeste do Brasil, em períodos de seca e
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
102
calamidade pública. Em três palavras, poderia indicar as necessidades mais
prementes de Moçambique: caminhões, alimentos, remédios. Quanto à decisão
que deveria ser tomada coletivamente, sobre a proposta de criação de uma
Representação Especial, Marcelino dos Santos propôs que tivéssemos uma
nova reunião, dentro de vinte dias aproximadamente.
Como me encontrava em Dar-es-Salaam, mesmo sabendo que Agostinho
Neto estava viajando, procurei o escritório do MPLA. Entrei então em contato
com André Petrov, chefe daquele escritório, negro de Cabinda que estudara
na Bulgária e que havia recebido o patronímico eslavo por ter um sobrenome
muito arrevezado para os búlgaros. Petrov, que já então sabia da proposta
feita à Frelimo, sobre a criação de uma Representação Especial em Lourenço
Marques, informou-me que Agostinho Neto retornaria a Dar-es-Salaam em
breves dias e teria prazer em receber-me, tal como recebera Zappa. Ficou
de telefonar-me a Nairóbi para marcar a entrevista com o chefe do MPLA.
Voltei a Nairóbi para reportar ao Itamaraty a entrevista com Marcelino e
fiquei aguardando o telefonema de Petrov, que demorava. Finalmente, depois
de insistentes chamadas telefônicas, consegui reencontrá-lo no escritório do
MPLA. Estava muito ocupado. Agostinho Neto regressara a Dar-es-Salaam,
mas se aprestava para viajar de novo, logo em seguida. Passaria na manhã
seguinte por Nairóbi, onde faria uma rápida escala. Se eu quisesse, dizia
Petrov, poderia encontrá-lo no aeroporto, mas a entrevista teria de ser muito
curta, apenas o tempo necessário para a troca de aviões.
Estudei naquela mesma noite os horários e as rotas das poucas
companhias de aviação que serviam Nairóbi e Dar-es-Salaam. Cheguei à
conclusão de que Agostinho Neto, na manhã seguinte, só poderia embarcar
em Dar-es-Salaam num voo da East African Airways, no retorno de uma
aeronave daquela companhia, que vinha de Roma e passaria de madrugada
por Nairóbi. Na mesma madrugada fui para a Tanzânia, naquele voo. Cheguei
a Dar-es-Salaam e esperei no aeroporto, para voltar no mesmo avião. Contatei
o chefe de segurança do aeroporto, pedi-lhe que encaminhasse um cartão
meu a Petrov, tão pronto Agostinho Neto chegasse para embarque.
O resultado de meu deslocamento foi positivo. Voltei de Dar-es-Salaam
sentado ao lado de Agostinho Neto, na primeira classe do avião que estava
inteiramente ocupada por dirigentes do MPLA. Iniciava-se, naquele voo de
uma hora e pouco até Nairóbi, a primeira etapa do retorno do MPLA a
Luanda, para participar do Governo de Transição para a Independência.
Agostinho Neto tencionava chegar a Luanda, depois de algumas escalas, em
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
103
Nairóbi e outras cidades africanas, exatamente no dia 4 de fevereiro. Pois
fora naquela data, 14 anos antes, que o MPLA se sublevara na capital da
colônia e pela primeira vez atacara as prisões e quartéis portugueses.
A conversa com Agostinho Neto foi simpática, naquele ambiente de
contida excitação, num momento que, para ele e seus correligionários do
MPLA, era de grande significado político e histórico. Ouvi mais do que falei.
O líder do MPLA mostrou-se contente com a nova orientação da política
externa brasileira com relação à África. Concordou com a abertura de uma
Representação Especial em Luanda. Revelou-se muito interessado pela
cooperação de todo tipo que o Governo brasileiro pudesse dispensar a Angola,
antes, durante, depois da independência que viria em 11 de novembro.
Discorreu, de maneira muito comedida, sobre a situação política em Angola,
sobre os demais Movimentos, sobre as relações que o MPLA poderia ter,
especialmente com a UNITA, de Savimbi, com vistas à eleição programada.
Sobremodo impressionou-me a visão ampla e compreensiva que Agostinho
Neto tinha da situação do Brasil e de Angola no mundo, da cooperação
intensa que poderia haver entre dois países irmanados pela cultura, pelas
etnias e mestiçagem, tão complementares para o estabelecimento de relações
comerciais, econômicas, técnicas, culturais, relações de todo tipo. Agostinho
Neto, em 14 anos de guerra, não se tornara hostil a Portugal: era adversário,
sim, do colonialismo português. Mas parecia ver as relações com o Brasil
como muito mais promissoras do que as relações que Angola pudesse ter no
futuro com Portugal. Pois Portugal não era um país tropical, mestiço, com
grande território e amplos recursos naturais, com uma grande população que
tivesse que lutar para superar o atraso colonial, para alcançar o
desenvolvimento, para industrializar-se. Portugal era europeu, e cada vez
mais se aproximaria da Europa, distanciando-se da África e do Brasil. Já o
Brasil era diferente, um país verdadeiramente parecido com Angola, segundo
suas impressões.
Depois de Nairóbi fui a Angola. Visitei o Alto Comissário português, os
três Primeiros-Ministros, um de cada Movimento, que constituíam o Governo
de Transição para a Independência, recém-instalado, segundo os Acordos
de Alvor. O Alto Comissário português, Silva Cardoso, era um general da
aviação. Pareceu-me um tanto inadequado para as funções, porque não
poderia ter uma liderança muito forte sobre as tropas do exército português,
força majoritária em Angola. Tampouco demonstrava, como político, bastante
isenção entre os três Movimentos: na rápida e afável conversa que tivemos,
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
104
acusou Holden Roberto de estar trazendo para Luanda tropas zairenses
emprestadas por Mobuto; acusou o MPLA de não se esforçar para desarmar
os moradores das favelas ou musseques de Luanda, o que a seu ver constituía
grande perigo; finalmente, deu-me a entender que dos três dirigentes de
partidos que ambicionavam o governo de Angola independente, Savimbi era
“o menos ruim para os portugueses”.
Quanto aos três Primeiros-Ministros, Lopo do Nascimento, do MPLA,
recebeu-me muito simpaticamente, declarando que a abertura de uma
Representação Especial em Luanda era excelente ideia e revelando conhecer
bem o Brasil e a potencialidade de uma cooperação brasileira com Angola;
José N’Dele, da UNITA, foi também cordial e agradável, mas evitou fazer
qualquer declaração política sobre os demais partidos pois a UNITA à época
ainda funcionava como uma espécie de pêndulo entre Holden Roberto e
Agostinho Neto. Finalmente, Pinnock Eduardo, da FNLA de Holden
Roberto, manifestou-me grande temor de seu partido frente ao fato de que
os musseques (as favelas planas, a “cidade de barro” que cercava Luanda)
estavam armados e nem os portugueses, nem o MPLA, faziam coisa alguma
para desarmá-los. A FNLA, seu partido, teria então de tomar a iniciativa. E
para isso estava trazendo mais tropas, do Zaire a Luanda.
Lembrava-me eu dos acontecimentos de setembro do ano anterior,
quando os colonos brancos, insatisfeitos com a Revolução dos Cravos, haviam
promovido expedições punitivas, verdadeiros pogroms, contra os musseques
de Luanda. Não teria sido como decorrência desses ataques, não teria sido
para defrontar novas investidas da mesma espécie que os negros dos bairros
pobres armaram-se? Na conversa com Lopo do Nascimento chegara a fazer-
lhe esta pergunta. Confirmou-me a suposição. E adiantou-me uma confidência
que era mais do que simples desculpa para a inação do MPLA a respeito:
aquele armamento disponível nos musseques era inconveniente também para
o MPLA. Não porque temesse com ele ser atacado, mas porque o MPLA
lutara contra Portugal durante 14 anos, principalmente no interior de Angola
e no exílio. Seus quadros regulares, que só agora chegavam à capital, vinham
certamente armados, mas politicamente eram quadros conscientes,
disciplinados. Já o povo dos musseques não tinha ainda uma consciência
política definida e uniforme. Reagia aos acontecimentos de maneira espontânea,
um tanto anarquicamente. E começava a constituir um poder aliado ao MPLA,
o chamado Poder Popular, mas não perfeitamente controlado pelo MPLA.
Tinha suas próprias lideranças de bairro e agora que o MPLA, pela primeira
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
105
vez, se instalava em Luanda, sempre que ousasse desarmar o povo, sempre
que tentasse selecionar quem poderia ou não ter armas nos musseques, todas
as armas seriam escondidas, desapareciam como que por encanto. Assim, se
o MPLA nada podia fazer para esse desarmamento, se as tropas portuguesas
não conseguiriam fazê-lo sem criar grandes conflitos, os musseques
continuariam armados, exatamente como as favelas e guetos das grandes
cidades do mundo inteiro que sempre tiveram muitas armas e lideranças às
vezes provindas da marginalidade. Pior ainda: se a FNLA mais adiante tentasse
desarmar os musseques, como tencionava, acabaria por contribuir para que
aquele povaréu ainda mais se armasse, capturando armas da própria FNLA.
Até as crianças dos bairros pobres de Luanda estavam armadas. Construíam
suas espingardinhas de brinquedo, com pedaços de cano, pregos e elásticos,
mas eram brinquedos letais, pois podiam disparar balas de verdade. E balas
e armas de todos os calibres iam sendo furtadas às tropas portuguesas, às
tropas de Holden e Savimbi em Luanda, ao próprio MPLA. Isto é: na medida
em que Luanda se enchia com tropas dos três Movimentos, o chamado “Poder
Popular”, sediado nos musseques, também se punha em pé de guerra.
Através do Primeiro-Ministro José N’Dele, combinei uma entrevista com
Savimbi em Silva Porto, pequena cidade do planalto, terra natal do líder da
UNITA. Fui de avião até Nova Lisboa (atual Huambo) e de lá de carro,
acompanhado por um funcionário do Consulado que fora sargento das tropas
de comando portuguesas e por um engenheiro português de Nova Lisboa
que fora militar e combatera contra as guerrilhas em Angola com o posto de
capitão. A viagem de carro foi demorada. E percorrendo aquela região onde
em passado recente haviam lutado contra o MPLA e a UNITA, os dois
portugueses não podiam deixar de rememorar suas aventuras guerreiras. O
MPLA era levado a sério em todos os encontros bélicos que ambos
rememoravam. Mas quanto à UNITA a conversa dos dois assumia um tom
frascário, como se Savimbi fosse um inimigo para não ser levado em conta,
nem a sério. Diziam galhofeiramente que Savimbi jamais enfrentara os
portugueses, apenas “andara em correrias pela região, lutando de raro em
raro, sempre contra o MPLA”.
Em Silva Porto encontrei Savimbi num hotelzinho de província. À frente
do hotel, a escada que conduzia ao segundo andar e a sala em que Savimbi
me recebeu estavam apinhadas de guerrilheiros pesadamente armados. Para
que aquele aparato bélico, na cidadezinha pacata de interior, que ademais
era sua terra natal? Zappa não fora recebido por Agostinho Neto, sozinho,
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
106
num escritório, num sobrado do centro de Dar-es-Salaam? Os dirigentes da
FNLA de Holden não moravam no Hotel Trópico em Luanda, não circulavam
pela cidade grande, armada até os dentes, com discreta segurança, se tanto?
Por que Savimbi precisava daquele aparato guerreiro à sua volta? Só poderia
ser para impressionar quem o procurasse. Talvez aquela fosse a totalidade
das forças de que dispunha. Quanto à conversa que com ele tive, à vista de
vários guardas armados postados à volta da sala foi, se assim pode-se dizer,
bastante descontraída. Declarei-lhe qual era a nova política brasileira. Não
teve críticas à política pregressa, nem elogiou a atual. Propus-lhe a criação
de uma Representação Especial em Luanda. Nem bem começara a expôr as
razões que levavam o Brasil a sugerir tal medida Savimbi já havia dado sua
concordância. Tentei interessar o líder da UNITA na cooperação que o Brasil
poderia dispensar a Angola, mas tive a nítida impressão de que Savimbi pouco
ou nada sabia do Brasil, nem jamais pensara em qualquer cooperação do
Brasil com Angola. Disse-me apenas, mornamente, que a UNITA “poderia
estudar o assunto”. Pairava então no ar uma vaga expectativa... O que Savimbi
gostaria de escutar eu não poderia dizer. O Brasil só se propunha a ser isento,
equânime, ficar sentado no muro, vendo a disputa pelo poder entre os três
Movimentos angolanos. E Savimbi também. Já não estava ele aboletado no
mesmo muro, colocando a UNITA numa espécie de leilão entre a FNLA e o
MPLA? Não era ele o homem que os colonialistas brancos preferiam, porque
nunca combatera verdadeiramente Portugal, mas sempre lutara contra o
MPLA? Se eu tivesse apoio publicitário a dar à UNITA, dinheiro, armas,
Savimbi certamente interessar-se-ia. Mas isenção? Equanimidade? Savimbi
parecia-me um político do proveito imediato, do toma lá dá cá, do já, do
agora. Aceitaria até o diabo como aliado para alcançar logo o poder, como
de fato depois ocorreu, quando se juntou à África do Sul. Mas quanto ao
Brasil, que não tinha vantagens a lhe oferecer, não se podia interessar.
Despedi-me logo, porque minha missão fora cumprida totalmente: tinha
o consentimento de Savimbi para a Representação Especial. Voltei então a
Luanda. E enquanto esperava notícia sobre uma entrevista que solicitara a
Holden Roberto, em Kinshasa, no Zaire, aproveitei para fazer algumas visitas
a Ministérios de Estado do novo Governo de Transição, aos titulares das
pastas de Planejamento (MPLA), Saidy Mingas, Saúde (FNLA), Dr. Samuel
Abrigada, e Educação (UNITA) Professor Jerônimo Wanga. Eram esses os
Ministérios que mais podiam interessar-se por uma cooperação brasileira de
cunho apolítico, não partidário.
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
107
Dr. Abrigada, da Saúde, foi quem primeiro me recebeu. Logo de início
declarou-me que estava ansioso à minha procura, que iria visitar-me, se eu
não viesse, pois desejava um convite para ir ao Brasil. Queria ajuda brasileira
imediata, médicos brasileiros em Angola. Os médicos portugueses estavam
saindo, pretendia trazer do Brasil cerca de trezentos profissionais para lotar
todos os postos de saúde e hospitais que seu Ministério iria construir na
fronteira entre Angola e o Zaire, por onde necessariamente passariam os
refugiados angolanos que retornassem do país vizinho para votar na FNLA
nas eleições vindouras. Queria médicos de todas as especialidades. Já tinha
uma lista com os números e especialidades requeridas. E ia mostrando num
mapa de parede os pontos remotos da fronteira norte de Angola, onde
alfinetes de cabeças coloridas indicavam os postos de saúde e hospitais a
serem criados. Prometi ao Dr. Abrigada que cuidaria de sua pretendida viagem
ao Brasil e tratei de escapar dos seus imaginosos e inexequíveis planos de
saúde, que revelavam a anemia eleitoral de seu partido.
Em seguida, visitei o Professor Jerônimo Wanga, Ministro da Educação,
da UNITA. Contei-lhe a visita que fizera a Savimbi em Silva Porto. Falei dos
esforços que o Mobral vinha fazendo no Brasil para erradicar o analfabetismo;
aventei a possibilidade de que universidades brasileiras pudessem fazer
convênios com a Universidade de Luanda, que já se estava esvaziando de
professores portugueses, mas nada disso tirou Wanga de seu hieratismo
ministerial. Resolvi então aplicar-lhe tratamento de choque. Disse-lhe que
Portugal sempre tivera acordos com o Brasil, para permitir a ilimitada
circulação de livros, publicados em português, entre os dois países. Mas
que, no tocante a Angola, a despeito da grande curiosidade por leituras que
a independência suscitara – as poucas livrarias andavam apinhadas de gente
– Portugal ainda impunha uma cota rígida para a importação de todos os
tipos de livros brasileiros. Não mais de 80.000 (oitenta mil) dólares por ano
eram permitidos para pagar as publicações que Angola pudesse importar do
Brasil – o que ainda deixava a ex-colônia culturalmente atada à ex-metrópole,
mesmo na transição para a independência. Wanga, um educador, não se
comoveu nem com isto. Prometeu-me apenas vagamente “estudar a questão”,
como se estivesse me fazendo algum favor comercial. Despedi-me, tão
cordialmente quanto possível, e saí decepcionado.
Visitei também, no dia imediato, o Ministro do Planejamento, Saidy
Mingas, que era do MPLA. Jovem, culto, economista, de conceituada família
de Luanda, irmão de um conhecido compositor e cantor angolano, Mingas
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
108
deu-me a mesma boa impressão que Lopo do Nascimento e Agostinho Neto
já me haviam dado. Conhecia bastante o Brasil, esperava muito das
possibilidades de cooperação entre Angola e o Brasil e acreditava que, com
a Representação Especial estabelecida em Luanda, desde logo essa
cooperação pudesse frutificar. Com Mingas, um bom diálogo de planejamento
poderia ser estabelecido pelas autoridades competentes brasileiras. Valia a
pena convidá-lo ao Brasil.
Restava-me ir a Kinshasa, para entrevistar-me com Holden Roberto.
Mas como a data marcada para a entrevista ainda permitia, fui novamente
visitar Agostinho Neto, que chegara a Luanda em 4 de fevereiro, em meio a
grandes manifestações de júbilo popular. Agostinho Neto estava hospedado
numa das casas oficiais que antes serviam como moradia de funcionários
coloniais, perto do Palácio de Governo. Marquei a entrevista por telefone,
fui recebido na mesma tarde. Encontrei dois guardas no jardinzinho em frente,
que me deixaram passar. Toquei a campainha, o próprio Agostinho Neto
assomou à porta, em camisa esporte, e me convidou a entrar. Ofereceu-me
um cafezinho, sentamo-nos a conversar. Cumprimentei-o pela recepção que
tivera em Luanda, e que eu presenciara, num dia de trabalho normal que se
transformara em feriado não-oficial, apenas devido à sua chegada. Depois
resolvi testar as impressões que tivera das entrevistas com os Ministros da
Saúde e da Educação. Comecei muito maciamente, lembrando que Agostinho
Neto era médico, por abordar problemas de saúde pública em Angola, e
mencionar os planos que o Dr. Abrigada tinha para uma intensa e imediata
cooperação brasileira, agora que os médicos portugueses iam abandonando
a ex-colônia. Mas Agostinho Neto nem permitiu que eu fosse adiante. Disse-
me francamente que os planos de Abrigada, que nem era médico, mas doutor
em teologia, eram simplesmente alucinados. Conhecia bem tais planos, pois
os médicos que ainda permaneciam em Angola, que trabalhavam nos hospitais,
no Ministério da Saúde, eram, em grande maioria, partidários do MPLA. E
salientou, com muito cabimento: se o Brasil pudesse dispor da vida de trezentos
médicos para enviá-los a Angola, com mais razão os enviaria ao Amazonas,
dado que o Governo brasileiro estava construindo uma estrada naquela região,
a Transamazônica.
Quanto ao êxodo de médicos portugueses, lastimava-o, julgava-o
desnecessário, mas não acreditava que fosse tão dramático, nem viesse a
prejudicar muito o povo angolano. As poucas cidades grandes de Angola,
onde esses médicos se concentravam, com suas boas e rendosas clientelas
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
109
de gente branca, certamente sentiriam o êxodo. Mas os negros angolanos,
mesmo nas cidades, por serem pobres, não podiam pagar consultas. No
interior, muitas vezes, por não falarem ainda português, nem chegariam a
entender-se com médicos que os atendessem por caridade. Tratavam-se então
como podiam, com a curanderia nativa de ervas variadas, ou morriam à míngua
de qualquer assistência. Quanto aos planos de Abrigada, salientou, “não são
destinados à saúde pública de Angola. São destinados à saúde eleitoral de
seu partido”. E não se concretizariam, porque nem os profissionais portugueses
que ficassem em Angola tomariam parte em tais projetos, prestando-se a
morar nos cafundós da fronteira. A respeito da medicina que o MPLA
preconizaria para Angola, Agostinho Neto disse-me que seria eminentemente
preventiva. Os serviços de saúde pública seriam ampliados, enfermeiros seriam
bem treinados, médicos novos seriam formados, uns e outros provenientes
das várias regiões do país, capazes de conversar com os pacientes em suas
línguas nativas, e a própria medicina africana, que com suas ervas e chás às
vezes curava, seria estudada, revalorizada naquilo que pudesse ter de
verdadeiramente científico. Nisso tudo, na formação de médicos e
enfermeiros, na fabricação de remédios e vacinas, na construção e
gerenciamento de hospitais e postos de saúde, o Brasil poderia cooperar,
ensinar muito a Angola. E talvez até aprender algo nessa cooperação...
Lembrei a Agostinho Neto a escassez de livros brasileiros em Angola,
inclusive livros de medicina. E adiantei-lhe que o Governo português ainda
estava impondo uma cota de apenas 80.000 (oitenta mil) dólares anuais para
a importação de livros de qualquer espécie impressos no Brasil. Bastou essa
rápida menção para que Agostinho Neto se mexesse na cadeira, percebendo
o absurdo da limitação, e pedisse mais informações a respeito. Prometeu-me
que o MPLA cuidaria do assunto na primeira oportunidade, para logo abolir
tal restrição discriminatória, caracterizadamente colonial.
Na mesma noite embarquei para Kinshasa, onde teria a entrevista
com Holden Roberto dois dias depois. Fui visitá-lo num quartel da FNLA
no centro da capital zairense, e levei comigo o Embaixador do Brasil no
Zaire, Braulino Botelho Barbosa. Braulino já havia tido alguns rápidos
contatos com Holden, nos circuitos sociais e oficiais de Kinshasa. Holden
recebeu-nos cordial e informalmente, pareceu-me muito mais simpático e
vivaz do que Savimbi, mas a tal ponto loquaz que só com certa dificuldade
pude expor-lhe em poucas palavras a nova política brasileira para com
Angola e a conveniência que o Governo brasileiro sentia, de ter uma
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
110
representação política, uma espécie de Embaixada antecipada, em Luanda.
Holden concordou imediatamente com a ideia da Representação Especial,
louvou sumariamente a nova política brasileira, sem dar qualquer mostra
de que pudesse a qualquer tempo ter tido ressentimentos com nossa antiga
política e retomou logo a palavra, reencentando um relato narcisista das
atividades da FNLA, em que ele, Holden, a cada instante, aparecia como
o libertador único de Angola, como o maior inimigo dos portugueses,
principalmente dos comunistas portugueses que estavam pretendendo
entregar Angola a Agostinho Neto. Considerava-se paladino da civilização
ocidental, da democracia e dos princípios cristãos na África, e assim por
diante. Tal discurso, para mim surpreendente, terminou com Holden
agitando um folheto no ar, o Tratado de Alvor, e dizendo-nos, com o
olhar jubilante de glória: “Quem fez este tratado fui eu! Os portugueses
queriam simplesmente entregar Angola a Agostinho Neto. Savimbi tinha
medo de envolver-se na negociação de um tratado e perder Angola para
Agostinho Neto. Foi então que eu mostrei a Savimbi que se estivéssemos
juntos, se apresentássemos nossos pontos de vista em perfeita
consonância, a uma só voz, nem os comunistas portugueses, nem Agostinho
Neto prevaleceriam. E foi assim que eu, sozinho, redigi todos os artigos
deste tratado!”, afirmou Holden.
De Kinshasa voltei diretamente a Nairóbi. Mais de vinte dias haviam
passado desde que estivera com Marcelino dos Santos e logo ao chegar
busquei saber se o Brasil já havia encaminhado alguma doação a Moçambique,
como prometera. Não. Nenhuma doação fora feita, apenas o Itamaraty
persistia na ideia de que, antes, a Frelimo deveria apresentar uma lista de
prioridades, uma espécie de petição de ajuda. Entrei em contato telefônico
com Zappa, aconselhei que desistisse de vez por todas da lista, e que me
desse logo instruções para ir revisitar a Frelimo e saber sobre a Representação
Especial. Zappa disse-me que esperasse novas instruções. Passaram-se vários
dias, até que as instruções chegaram: já não era mais necessário pedir a lista,
já não se oferecia doação alguma, mas em vez disso deveria eu apresentar a
Marcelino dos Santos a sugestão de que a Escola Superior de Guerra, em
viagem à África, visitasse Lourenço Marques. A ESG fora convidada a visitar
a África do Sul, mas recusara. Mas a Moçambique queria ir. Telefonei de
novo a Zappa, para reclamar das instruções recebidas. Disse-me ele que
nada poderia fazer no sentido de alterá-las. Era minha obrigação então cumprí-
las, ainda que pudessem acarretar desastres.
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
111
Embarquei então para Dar-es-Salaam, para conhecer a resposta que
Marcelino dos Santos teria sobre a criação da Representação Especial em
Lourenço Marques e fazer a gestão recomendada sobre a ESG, tendo
consciência de que minha segunda entrevista com Marcelino dos Santos já
não poderia ser tão plácida quanto a primeira. Comecei por dar-lhe
conhecimento do fato de que os líderes dos três Movimentos angolanos já
haviam concordado com o Brasil no sentido da criação de uma Representação
Especial em Angola. A todos parecera uma boa ideia, pelas perspectivas que
criava para cooperação mais intensa e entendimento político melhor, entre
Angola e o Brasil, na fase de transição que se inaugurava. Terminei por indagar
qual a resposta que os órgãos competentes da Frelimo haviam dado à mesma
proposta feita pelo Brasil, com respeito a Moçambique.
Marcelino dos Santos respondeu-me lentamente, frisando as palavras,
quase escandindo sílabas, como que para transmitir melhor a decisão coletiva
de que era porta-voz: “A Frelimo não poderia aceitar a proposta brasileira,
concedendo ao Brasil um status especial na criação antecipada de relações
diplomáticas com Moçambique, porque as mentes e os corações
moçambicanos, depois de sofrerem 14 anos de guerra, depois de verem
durante todo esse tempo o Brasil apoiando Portugal, não estavam
acostumadas a considerar o Brasil como um país amigo”. “Assim sendo,
concluía, o Brasil deveria esperar que a independência de Moçambique se
concretizasse e então formalizar a proposta de relações diplomáticas ao nível
conveniente”.
Respondi a Marcelino dos Santos que acatava a resolução da Frelimo e
a levaria ao conhecimento de meu governo, mas não podia deixar de lastimar
que tal decisão houvesse sido tomada com base numa suposição, a meu ver
infundada, a de que o Brasil “não fosse amigo de Moçambique”. Salientei
então que o Brasil era distante, muito introvertido em sua política, dados os
seus problemas de desenvolvimento; que o Brasil recebia escassas e
deturpadas notícias da guerra em Moçambique, porque as metrópoles
costumam ocultar do mundo as lutas havidas em suas possessões e os nacionais
portugueses eram muito numerosos e influentes no Brasil mas que, a despeito
de todas essas limitações ou deturpações da informação que tínhamos sobre
Moçambique, sobre a guerra que o povo moçambicano travava contra as
tropas portuguesas, o Brasil, por princípio, nunca foi favorável ao colonialismo;
sempre manifestou seu desejo de que a guerra em Moçambique terminasse o
quanto antes; que Portugal encontrasse uma solução pacífica para a
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
112
descolonização na África. Por isso o voto do Brasil na ONU tendera sempre
para a abstenção e irritava o salazarismo, embora não pudesse, de outro
lado, satisfazer a Frelimo. Ademais, cabia-nos considerar, há gradações de
amizade e inimizade. Amigos de Moçambique não poderiam ser considerados
aqueles países que haviam votado sempre a favor do colonialismo português,
como a África do Sul, por exemplo; amigos de Moçambique não poderiam
ser considerados, tampouco, os países da OTAN, que muitas vezes foram
internacionalmente acusados pela Frelimo de fornecerem armas a Portugal.
Isto, o Brasil nunca fizera.
Mas não deixava de merecer atenção o fato de que agora, apenas
terminada a guerra, entrando Moçambique numa fase de transição para a
independência, com Portugal, que fora o inimigo principal, a Frelimo teria
necessariamente de tratar todos os dias, antes, durante, depois da
Independência. Com a África do Sul, também, dados os vínculos econômicos
que sempre existiram entre os dois países. E com os principais países da
OTAN, eu presumia, Moçambique também não poderia deixar de ter relações
políticas o quanto antes, ainda no período de transição para a independência,
ou tão pronto ficasse independente.
Ainda mais: se mentes e corações moçambicanos pudessem ter a errônea
impressão de que o Brasil não fosse país amigo, a melhor maneira de dissipar
tal impressão, de convencê-los do contrário, era permitir que o Brasil desde
logo estivesse presente em Lourenço Marques, prestando cooperação a
Moçambique. Era justamente para isto que havíamos proposto a criação da
Representação Especial.
Marcelino dos Santos retomou a palavra então, para dizer-me que minhas
observações eram cabíveis, de um ponto de vista exclusivamente brasileiro,
mas que não era assim que os moçambicanos podiam ver a questão. Em
1963, justamente para dar a conhecer ao público brasileiro o drama da guerra
anticolonial, a Frelimo havia aberto um escritório no Rio. Aquela representação
diplomática oficiosa de um país ainda não independente, correspondia, em
sentido inverso, à representação diplomática formal que agora queríamos
abrir num país cuja independência ainda não estava completa. Mas em 1964,
o escritório da Frelimo no Rio foi varejado pela polícia, e seus funcionários
presos e seviciados. Mais: foram ameaçados de expulsão para Portugal, onde
iriam cair nas masmorras da PIDE. E tão desastrosa expulsão só não se
consumou porque Leopold Senghor, Presidente do Senegal, intercedeu junto
ao Brasil, em favor da Frelimo. Assim também, a valoração que eu atribuía
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
113
aos votos de abstenção do Brasil na ONU poderia ser defensável de um
ponto de vista puramente processual, jurídico, até político. Mas em política
não podia ser eliminado um fator sentimental, decorrente de afinidades maiores
e expectativas históricas. O Brasil fora colônia também. O Brasil, na Bahia,
lutara bravamente por sua independência; tivera Tiradentes e Tomás Antônio
Gonzaga, este exilado em Moçambique. O Brasil, por sua origem e cultura, é
um país meio africano e deve muito à África. Por tudo isso, Moçambique
sempre havia esperado o apoio do Brasil que, moralmente, valeria muito
perante Portugal, perante o mundo. Assim, o voto de abstenção do Brasil
nunca foi bastante. Um voto afirmativo do Brasil em favor de Moçambique
provavelmente teria paralisado o braço armado português, poderia talvez ter
permitido que Moçambique em menos tempo visse a guerra terminar e
ganhasse a independência.
Continuei a entrevista, então, apenas porque minha missão não estava
ainda totalmente cumprida. Lembrei que após termos procurado, com três
sucessivas missões, Bastian Pinto, Zappa e eu, ter contatos continuados com
a Frelimo, esses contatos iriam se interromper numa fase muito importante,
dado que a Representação Especial não era aceita e o Consulado-Geral em
Lourenço Marques, em breve ficaria sem titular, dado que o atual já fora
removido. Não seriam convenientes fórmulas outras, para evitar essa
interrupção de contatos políticos? Não seria aconselhável, por exemplo, que
personalidades brasileiras, ou instituições brasileiras, com influência no traçado
de nossa política, pudessem visitar Moçambique no período de transição
para a Independência? Lembrei então a visita que a Escola Superior de Guerra
faria a vários países da África em futuro próximo. Fora convidada também
pela África do Sul, mas recusara. Não seria conveniente que agora viesse a
conhecer Moçambique, de tal forma que mais tarde pudesse influir
positivamente nas relações formais que eventualmente fossem estabelecidas?
Marcelino dos Santos já então me respondeu com frases curtas, até com
certa brusquidão. Disse-me que os contatos com o Consulado-Geral nunca
existiram. O Consulado-Geral era credenciado perante Portugal, tratava com
a sociedade colonial, entendia-se a bem dizer com a PIDE. Assim, fechado,
não faria falta à Frelimo. Quanto à sugestão da visita da ESG, a resposta era
absolutamente negativa. Para qualquer outra visita de personalidade ou
instituição brasileira em caráter oficial a Moçambique, no período de transição,
para ter contatos com a Frelimo, seria necessário solicitar o encontro e tê-lo
previamente aprovado pela própria Frelimo.
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
114
Despedi-me, então. Marcelino e seus assessores foram levar-me até a
porta do edifício. Minha missão estava encerrada.
Voltei a Nairóbi, informei pormenorizadamente o Itamaraty sobre os
resultados das conversações com a Frelimo e em seguida retornei a Londres.
Para mim, a posição, por demais ressentida e pouco coerente de Moçambique
era eminentemente política: a Frelimo queria primeiro ver como o Brasil iria
se comportar em Angola, agora que lá abriríamos uma Representação
Especial. As relações com Moçambique dependeriam certamente do que
fizéssemos em Angola. E relações de confiança com a África Negra, a mais
longo prazo, o Brasil só poderia ter caso se entendesse bem com os novos
países que falam português naquele continente. A Representação Especial
em Luanda assim ganharia uma dimensão maior e uma importância decisiva
nas relações futuras com a África. Passava a ser o laboratório experimental
para as relações com todo um continente.
V - A missão Scarabôtolo
Em Londres, dediquei-me a sugerir ao Itamaraty algumas medidas práticas
que seriam necessárias para facilitar o desempenho da futura Representação
Especial em Angola. Prevendo o êxodo, deveríamos dispensar de visto, em
Luanda, os portugueses que saíssem para o Brasil. Sairiam como turistas,
sem visto algum, como a legislação já permitia. Vistos permanentes lhes seriam
concedidos à chegada no Rio, para que depois recebessem bagagem.
Não só o Cônsul em Luanda deveria ser removido, como o Itamaraty já
decidira. Funcionários portugueses do Consulado, alguns muito ligados aos
antigos interesses coloniais, deveriam sair para outros postos e ser substituídos
por brasileiros.
A Residência do Consulado em Luanda precisaria de um automóvel
oficial. E o prédio necessitava de ligeiras alterações, tais como um muro no
jardim, caixa d’água, gerador elétrico, para dar-lhe mínimas condições de
segurança em situações de emigração pânica e de luta armada que poderiam
sobrevir.
Nada disso foi atendido prontamente pelo Itamaraty, com exceção do
automóvel. Estava eu ainda em Londres, já designado para partir e assumir a
Representação Especial, que fora criada com grande publicidade na imprensa
brasileira, quando soube, com surpresa, que o Ministro Hélio Scarabôtolo,
Chefe do Cerimonial, faria uma quarta missão à África, “para credenciar-me,
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
115
a mim, perante o Governo de Transição”. Scarabôtolo foi rapidamente a
Luanda, entrevistou-se com o Alto Comissário Português, talvez tenha visitado
os três primeiros-ministros e comprou um dos automóveis usados do Cônsul
brasileiro que saía, para uso da Representação Especial. Esse veículo era
idêntico, no modelo e na cor berrante, ao do Cônsul do Zaire, representante
de Mobutu, parceiro de Holden Roberto. E como as bandeiras do Brasil e
do Zaire são ambas auriverdes, o veículo traria mais riscos do que facilidades
à condução do representante brasileiro, na luta que logo se desencadeou em
Luanda.
A viagem de Scarabôtolo, com a finalidade que foi divulgada, de “apresentar
credenciais de outro representante” era protocolarmente tão esdrúxula quanto
à própria Representação Especial com “status de Embaixada” que o Brasil iria
criar em Luanda: Embaixadores sempre apresentaram suas próprias credenciais.
Ante os resultados negativos das conversações com a Frelimo, o Itamaraty
poderia até ter demorado a criar a Representação em Luanda ou simplesmente
desistido de criá-la, e isto teria passado despercebido no Brasil, na África, no
mundo. Preferiu, a meu ver acertadamente, enfrentar o desafio e abrir a
Representação em Luanda, para a qual me designou. Mas toda a publicidade
que deu no Brasil à abertura da Representação foi montada em torno da “Missão
Scarabôtolo”, pois assim os setores da opinião pública nacional que eram
indiferentes ou avessos à independência de Angola acreditariam que o Brasil
estava indo para Luanda, não para ser isento entre os três movimentos angolanos,
como proclamava o Itamaraty, mas para ajudar Portugal. Isso porque
Scarabôtolo era diplomata com renome conservador, tinha excelentes relações
com Portugal, onde servira, e notabilizara-se como Chefe de Gabinete do
Ministro Gama e Silva, no Ministério da Justiça, ao tempo do Ato Institucional
nº 5. Por tudo isso, seria inconcebível imaginar que aceitasse contribuir para
uma política brasileira na África em que um movimento de esquerda tivesse
qualquer chance de alcançar o poder.
Aliás, o Acordo de Alvor, desde sua concepção (e por isso Holden
Roberto podia estar tão ufano, atribuindo-se exclusiva paternidade do
documento) parecia-me ser um jogo de cartas marcadas. Se a UNITA e a
FNLA se coligassem, contando ambas com apoio e recursos norte-
americanos, ingleses, sul-africanos, poderiam ganhar eleições. E se Angola
entrasse em guerra civil, contando com os mesmos recursos externos, e ainda
mais com ajuda militar da África do Sul e do Zaire nas vizinhanças, o MPLA
também teria poucas chances de alcançar o poder.
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
116
A isenção entre os três movimentos angolanos, que era a política
proclamada pelo Itamaraty quando abriu a Representação Especial, agradava,
portanto, a todos os lados, em Angola, no Brasil, no mundo, e de início não
suscitaria quaisquer críticas, porque parecia bastante irreal. Mas desde logo
nos envolveria num processo que se iria complicando, na medida em que a
situação em Angola pudesse pender em favor do MPLA. Então sim, as opções
que tivéssemos de tomar poderiam ser bastante problemáticas no mundo e
no Brasil mesmo.
Fui, então, para Angola, com instruções para ficar neutro, sem favorecer
qualquer partido, em eleições ou lutas que ocorressem, como executor de
uma política que era bem nacional, apenas porque parecia inspirada em
Machado de Assis: “Ao vencedor, as batatas!”. E a estrada a seguir nessa
política começava ampla e asfaltada, mas afunilava-se logo num caminho de
terra esburacado, sem sinalização alguma, para terminar talvez num verdadeiro
beco sem saída...
VI - A Representação Especial em Luanda convulsionada
Cheguei a Luanda, para permanecer como Representante Especial do
Brasil perante o Governo de Transição, num fim de semana, em 22 de março
de 1975. Meu único colaborador, por mim convidado, o Conselheiro Cyro
Espírito Santo Cardoso, vindo de Brasília, chegaria no início da semana
seguinte, trazendo dois auxiliares, Ivete Vargas e Paulo Andrade Pinto, que
pela primeira vez serviriam no exterior.
Mal havia desfeito as malas, recebi um telefonema. Era do próprio hotel,
outro brasileiro recém-chegado, o jornalista Fernando Câmara Cascudo.
Queria visitar-me. Encontramo-nos logo. Câmara Cascudo era de “O Globo”.
Vinha para Luanda prestar assistência à campanha eleitoral de Holden Roberto,
para orientar e modernizar o jornal da FNLA, que era a “Província de Angola”.
O próprio nome do jornal parecia-me impróprio, num país que já se
encaminhava para a independência: cheirava ainda a colonialismo, à ficção
das “Províncias Ultramarinas”... Mas não era isso que Câmara Cascudo vinha
modernizar. Estava interessado em sondar-me. Não podia acreditar de forma
alguma que o Brasil pudesse ter vindo para Angola para ser isento, equânime,
neutro. Insistia que, no fundo, o Brasil deveria ter preferências, pois “o MPLA
era comunista”; “a UNITA era um movimento insignificante, criado pelos
próprios portugueses, para combater o MPLA”. Por eliminação, o jornalista
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
117
adivinhava, por conta própria, e externava a opinião de que o Brasil só poderia
estar apoiando Holden Roberto e o FNLA, ainda que eu não quisesse revelar
tal preferência.
Para desfazer quaisquer ilusões que Câmara Cascudo pudesse manter a
respeito da missão que eu trazia, disse-lhe que as declarações feitas pelo
Itamaraty à imprensa, sobre a isenção e a equanimidade do Brasil, perante
os três movimentos angolanos, eram absolutamente sérias. E que eu e meus
colaboradores as levaríamos ao pé da letra, durante todo o curso de minha
missão. Quanto à minha convicção pessoal, disse-lhe que todos nós,
brasileiros, éramos, antes de tudo, mal informados sobre a África, sobre as
forças que disputariam o poder em Angola. Assim, não vínhamos a Luanda
para ganhar eleições, nem para vencer lutas civis. Vínhamos para começar a
ter relações de todo corretas com as colônias portuguesas que se
independizavam, para ter boas relações com a África em geral, a longo prazo.
Para isto, não podíamos começar por “apostar num ou noutro partido”. Era
imprescindível equanimidade, não envolvimento em disputas eleitorais ou lutas
que sobreviessem. Por esta mesma razão, preocupava-me o papel que ele,
jornalista brasileiro, passaria a ter a serviço da FNLA. Deveria limitar-se a
dar a seu empregador orientação técnica, especializada, mas não conviria
jamais que se envolvesse em atividades partidárias. Menos ainda seria cabível
que sua atuação, como brasileiro, pudesse ser a qualquer tempo confundida
com a dos funcionários que ali estavam em missão oficial, pois isto poria a
Representação Especial em confronto com os outros partidos angolanos e
frustraria a política brasileira.
Cyro Cardoso e os dois auxiliares que trazia chegaram na segunda-feira
imediata. Hospedados todos no mesmo hotel, o Trópico, podíamos desde
logo começar a trabalhar. Manteríamos a chancelaria da Representação
Especial ali mesmo no hotel, dado que o Cônsul do Brasil em Luanda, já
removido para outro posto, demorava a partir e ainda ocupava a residência
no prédio do Consulado. Precisávamos então de material de escritório, de
máquinas de escrever, de dotações maiores para o Consulado, cujas verbas
não comportavam sequer as despesas de expedição de telegramas. E mais
adiante precisaríamos vitalizar, dinamizar aquela modorrenta repartição, tão
logo o Cônsul partisse, para atender com eficiência mínima ao êxodo de
portugueses que se podia prever, bem como para cumprir a contento nossa
missão política, que era manter o Itamaraty diariamente informado sobre a
evolução da política angolana. Precisávamos, mais que nunca, de um telex.
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
118
Provisoriamente, usaríamos o do hotel, em competição diuturna com alguns
jornalistas estrangeiros hospedados no Trópico. Mas cumpria-nos instalar
um telex no Consulado, e já não havia mais aparelhos disponíveis no comércio
de Luanda. Teríamos então de importar um da Europa, se quiséssemos ter
contato constante com o Itamaraty. Assim também, se o Brasil vinha para
Angola para permanecer – antes, durante e depois da Independência –
cumpria-nos começar a pensar na instalação da futura Embaixada. Com a
saída dos portugueses, a oferta de casas para vender ou alugar era abundante,
e os preços baratíssimos. Não seria oportuno cogitar logo da instalação da
futura Embaixada, em situação tão favorável?
Foi assim, então, que começamos a nos entrosar na vida prática da cidade
de Luanda, lidando com o comércio local, com ricos proprietários de imóveis,
com engenheiros, arquitetos e mestres de obras que pudessem planejar e
depois executar ocasionais adaptações em prédios tentativamente escolhidos
para a futura Embaixada. Pareceria fútil tal atividade, numa cidade que
visivelmente se preparava para entrar em guerra. Mas trazia imensas vantagens:
sentíamos o pulso, as tendências, o ânimo da população. E dávamos a esta
ainda uma esperança, por tênue que fosse, de que a situação não ficaria tão
feia quanto muitos esperavam: se o Brasil ali estava, preparando-se para
abrir uma Embaixada, para fazer obras, para permanecer, por que os
portugueses precisariam sair desabaladamente?
Na realidade, estávamos também conscientes de que tudo deteriorava-
se a olhos vistos. O hotel que eu conhecera em fevereiro, já não era o mesmo
em março. Faltavam mantimentos. Faltavam empregados. Os antigos,
portugueses, embarcavam de volta a Lisboa. Aprendizes, angolanos negros,
ficavam por dias a fio impedidos de sair de casa para vir trabalhar, pelas lutas
que começavam a travar-se nos musseques. O comércio, pelos mesmos
motivos, ia-se paralisando. A construção civil também. O porto já estava
quase desativado. Substanciais reforços militares começavam a chegar do
Zaire, para permitir que as tropas da FNLA de Holden Roberto
empreendessem afinal esforços para desarmar o Poder Popular. E a cada
passo, nas fímbrias da cidade, a FNLA e o MPLA confrontavam-se em
escaramuças rápidas e sangrentas, que contribuíram para acirrar cada vez
mais os ânimos, ao mesmo tempo em que criavam os primeiros “deslocados”
ou refugiados de guerra, que escapavam em pânico para o centro da capital.
A UNITA de Savimbi procurava ficar neutra nesses conflitos, dada à tática
pendular que adotara, como partido político. Sem forças militares que
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
119
equivalessem às dos demais partidos, Savimbi apelava para um pretenso
pacifismo. De fato, só na paz, em eleições que se realizassem, poderia
verdadeiramente influir, juntando-se a um ou outro de seus oponentes, para
ter uma fatia de poder.
Mas não eram somente essas as forças que atuavam naquela cidade
confusa, em começo de conflagração. Portugal tinha cerca de 30 mil homens
do exército em Angola. A Revolução dos Cravos seguia seu vacilante curso
em Portugal e as cisões militares que surgiam em Lisboa de imediato
repercutiam em Luanda. Iriam dividir-se mais adiante as forças militares
portuguesas em Angola? Assim também a PIDE, a famigerada polícia secreta
portuguesa. Em Lisboa, fora extinta e perseguida, seus dirigentes curtiam
cadeia. Mas em Angola, fora apenas abolida por decreto. Perdera os
escritórios, tornara-se peripatética. Antes, fora ajudada a subsistir em Angola
como “força anticomunista” pelos grupamentos de colonialistas brancos que
tentaram se organizar em partidos depois da Revolução dos Cravos, mas
que não foram reconhecidos como candidatos ao governo de Angola
independente, pelo próprio governo português. Agora, com os primeiros
conflitos em Luanda, com o surgimento de “deslocados”, de gente
desesperada pelo súbito desalojamento das casas que tinham na periferia da
cidade, a PIDE começava a contar com uma multidão revoltada, que
perambulava pelas ruas, disponível para participar de provocações urdidas
contra os movimentos negros angolanos, ou mesmo contra o Governo de
Lisboa e seus propósitos de conceder independência para Angola.
Eram então cinco, pelo menos, as forças que se digladiavam naquela
confusão inicial de Luanda, se pudéssemos continuar a considerar o exército,
a aviação e a marinha portuguesas como uma só força, coesa e disciplinada,
sob as ordens do Alto Comissário. Os conflitos armados, quase diários,
espocavam ali e acolá, circundavam a cidade. Começavam longe, nos
musseques, e ninguém poderia dizer com certeza quem os iniciara. Da “cidade
do barro”, como um círculo de fogo, pouco a pouco se aproximavam da
“cidade do asfalto”, e em breve atingiriam o centro de Luanda. Era nessa
cidade em começo de pânico, nesse verdadeiro arsenal, que o jornal “Província
de Angola”, orientado por Câmara Cascudo, começava a imitar “O Globo”,
com inflamados editoriais pró-FNLA que o jornalista escrevia e estampava
na primeira página e com o uso requentado dos mesmos slogans que o
Governo Médici havia usado no Brasil alguns anos antes, em ambiente
incomparavelmente mais calmo: “Angola, ame-a ou deixe-a!”
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
120
Enquanto essas lutas periféricas com tendências centrípetas desenvolviam-
se, tínhamos também de cumprir outras obrigações formais de representação
do Brasil. Devíamos visitar as autoridades, o Alto Comissário, os Primeiros-
Ministros dos três Movimentos angolanos, alguns outros Ministros que
cuidassem de pastas como Saúde, Educação, Planejamento, com os quais
procurávamos coordenar o possível início de uma cooperação apolítica do
Brasil com Angola. Era-nos necessário também visitar protocolarmente o
Corpo Consular em Luanda, conversar com aqueles estrangeiros que há muito
moravam na cidade e poderiam ter observações interessantes a transmitir-
nos. Tais visitas, a cada dia, tornavam-se mais perigosas, dados os conflitos
nas ruas.
Ivony, minha mulher, afinal, chegou de Londres. Mal desembarcou, com
a experiência que já havíamos tido em outros postos convulsionados, resolveu
fazer suprimentos e montar na residência do Consulado, já então disponível,
uma espécie de armazém, com sacos de mantimentos, latas de conserva e
tudo mais que fosse essencial para uma longa permanência em Luanda, caso
o comércio se esvaziasse de vez e a guerra se agravasse. Correu riscos de
toda ordem nessas compras, mas graças a suas providências pudemos nós,
funcionários brasileiros, sobreviver o resto do ano em Luanda, quando a
guerra de fato agravou-se.
O pouco que pedíamos ao Itamaraty, em providências administrativas,
era atendido com demora e imperfeitamente. Nossos pedidos e sugestões
pareciam cair nas moendas burocráticas usuais, na rotina dos trâmites entre
divisões, departamentos, Secretaria-Geral, Gabinete do Ministro, como se
estivéssemos funcionando em condições normais e a prioridade da
Representação fosse a mesma do antigo e mortiço Consulado. A imprensa
internacional e a própria imprensa brasileira davam destaque diário aos
conflitos havidos em Luanda, até com certo exagero, pois havia interesse em
comover o mundo com os acontecimentos de Angola e jogar todas as culpas
sobre o MPLA. O Departamento da África logo então se agitava, Zappa
telegrafava-nos, telefonava, queria saber como havíamos saído das últimas
refregas. Mas se o Departamento da África, às vezes, até preocupava-se
demais, outros demoravam providências que eram imprescindíveis à nossa
segurança, arrastavam pés, até esqueciam nossos pedidos e sugestões, sem
dar-lhes sequer resposta.
Na verdade, como um todo, o Itamaraty não estava preparado para
enfrentar aquelas novas circunstâncias, nem para instrumentar-nos na
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
121
execução de uma nova política traçada nas alturas da Presidência e do
Gabinete do Ministro. Na mesma época, por exemplo, o Líbano entrava
em guerra civil. Mas no Líbano, não tínhamos política alguma, nada de
especial a fazer. Nem as forças libanesas em combate esperavam do Brasil
qualquer definição, qualquer ajuda. O Embaixador poderia tirar férias, a
Embaixada paralisar-se, ser até fechada, entregue ao jardineiro libanês,
que não faria diferença. Em Angola era totalmente diferente. Vínhamos
para fincar pé, permanecer a todo custo. E todas as partes em conflito,
portugueses e angolanos, esperavam algo do Brasil. Apoio moral, apoio
político, ajuda econômica, ou mesmo militar. Quando nada esperavam,
queriam pelo menos um visto permanente às pressas, para escapar da
guerra o quanto antes e emigrar para o Rio, já que Lisboa lhes parecia
estar-se tornando “comunista”...
O mínimo que o Itamaraty poderia ter feito para ajudar-nos – e dou aqui
o conselho para situações semelhantes que no futuro se apresentem – teria
sido criar uma força-tarefa interdepartamental, dedicada a apressar a solução
dos problemas logísticos e administrativos da Representação Especial. Como
isso não foi feito, durante todo aquele período, foi com muita falta de pessoal,
com recursos muito reduzidos, com riscos aumentados que tivemos de levar
às costas a Representação Especial (uma incrível missão diplomática neutra,
simultaneamente credenciada perante três movimentos políticos armados e
absolutamente antagônicos) mais um Consulado que, quando se ativou, chegou
a conceder cinco mil vistos permanentes por mês, talvez um recorde no
Itamaraty de todos os tempos. E, como se tudo isso não bastasse, ainda nos
cabia a tarefa de montar uma Embaixada que ficou pronta, muito modesta,
despojada de enfeites, mas aparelhada para funcionar plenamente, no mesmo
dia em que Angola afinal ficou independente.
Em abril e maio a luta agravou-se, como era de todo previsível, e veio
atingir o centro da cidade. Os serviços de limpeza pública cessaram. A luz
volta e meia faltava porque uma linha ou outra de transmissão fora atingida. A
água da cidade deixara de ser tratada, por falta de cloro. O feriado do Primeiro
de Maio, que o MPLA pensava pela primeira vez comemorar em Luanda,
serviu como pretexto para a intensificação e generalização dos combates,
que já então se travavam num ou noutro bairro da própria cidade do asfalto.
Luanda vivia em sobressaltos de dia e o toque de recolher passou a ser
antecipado, das nove da noite para as seis da tarde. O porto, já paralisado,
começava a encher-se com imensas pilhas de caixotes. E o aeroporto estava
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
122
sempre repleto com refugiados, que dormiam pelo chão, com seus trastes,
aguardando um voo qualquer que os retirasse de Angola.
Comunicados radiofônicos contraditórios eram divulgados pelo Alto
Comissário e por todos os partidos, pondo a culpa dos últimos conflitos num
ou noutro dos movimentos angolanos. Tais comunicados também, com
frequência, apontavam a ação de provocadores brancos interessados em
fazer com que os movimentos se chocassem. Quando as lutas do dia cessavam,
quando as armas pesadas dos movimentos angolanos se calavam, nos bairros
mais ricos começavam tiroteios de armas leves, tiros de revólver dados a
esmo, no escuro, nos desvãos das janelas e dos terraços dos prédios de
luxo, destinados a provocar os movimentos angolanos a continuarem a peleja,
na esperança de que se destruíssem reciprocamente, ou que atraíssem para
Angola uma intervenção de paz da ONU ou de potências estrangeiras. Foi
assim que numa noite relativamente calma, sem conflito algum nas mediações,
uma fachada lateral do Consulado do Brasil foi atingida, de alto a baixo, em
toda sua extensão, por uma rajada de metralhadora. Outro tanto já acontecera
ao Consulado da Itália, na imediata vizinhança. Tivemos então de mandar
colocar tapumes blindados de aço nas janelas mais expostas do prédio.
A generalização e o acirramento das lutas em Luanda começaram a afetar
o resto do país. As cidades antes pacatas do interior recebiam as ondas
sísmicas daquele terremoto político, cujo epicentro era a capital. Em cada
uma daquelas cidadezinhas um ou outro dos movimentos era mais forte, e
expulsava então seus adversários à bala. Foi assim que a FNLA de Holden
Roberto ocupou sozinha algumas vilas e cidades ao norte, perto da fronteira
do Zaire, e a UNITA expulsou de alguns vilarejos o MPLA, nas alturas do
planalto central, na fronteira com a Zâmbia, enquanto o MPLA ficou a dominar
todas as cidades da costa, com a única exceção de Luanda, onde a luta era
mais complicada e indefinida, dada a maciça presença de tropas portuguesas,
e de refugiados, que agora também provinham das cidades pequenas do
interior onde houvera lutas. O porto paralisado, o aeroporto entupido de
refugiados, a presença das tropas portuguesas manietavam o MPLA para
receber qualquer ajuda de seus notórios aliados, os países socialistas. Mas o
Congresso americano continuava a votar dotações de ajuda para a FNLA
de Holden Roberto, disfarçadas como doações ao governo do Zaire. E a
África do Sul começava a ajudar Savimbi, a partir da fronteira com a Namíbia,
enviando a Angola alguns “mercenários” que, quando capturados, logo
confessavam ser militares do exército regular sul-africano.
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
123
As lutas incessantes em Luanda e a ameaça de internacionalização do
conflito preocupavam não só o Governo português, mas também alguns
governos africanos. Foi assim que, numa tentativa de restabelecer a paz, em
junho, no Quênia, sob o patrocínio de Jomo Kenyata, os Movimentos
angolanos se reuniram na Conferência de Nakuru. No documento final de
Nakuru alguns assuntos concretos foram tentativamente resolvidos: os
elementos da PIDE que ainda permaneciam em Angola e provocavam
conflitos seriam definitivamente expulsos do país; seria criada uma polícia
conjunta, dos três movimentos, para substituir a antiga polícia portuguesa já
debandada. No mais, a Conferência de Nakuru apenas podia fazer algumas
recomendações, no sentido de que tivessem encaminhamento, afinal, os
dispositivos dos Acordos de Alvor, que previam a elaboração de uma lei
eleitoral, de uma Constituição, para a independência prevista em 11 de
novembro.
As decisões dos três partidos tomadas no Quênia começaram a ter
execução, no tocante à expulsão da PIDE de Angola e à formação da polícia
conjunta, para a qual o Brasil vendeu os uniformes, mas ficaram a meio
caminho. Os ânimos já estavam por demais exaltados. A luta recomeçou em
Luanda, em meados de julho entre a FNLA e o MPLA, e já então não se
interrompia, como de outras vezes, por cansaço dos guerreiros ou falta de
munições. Travavam-se batalhas em todos os bairros, simultaneamente. Armas
pesadas, bazucas, morteiros, até canhões chegaram a ser usados de parte a
parte, dia e noite. Muitos quartéis da FNLA, eufemisticamente chamados
Casas do Povo, acabaram arrasados até os alicerces, ou incendiados. E a
FNLA foi expulsa de Luanda após semana e meia de luta ininterrupta. Em
seguida foi expulsa em uma hora de luta a UNITA de Savimbi, muito embora
alguns ministros, tanto da FNLA quanto da UNITA, ainda demorassem na
Capital, aparentemente participando do já agora fictício Governo tripartite,
presidido pelo Alto Comissário português. As tropas da FNLA que de começo
haviam tomado cidadezinhas ao norte de Angola, na fronteira com o Zaire,
também haviam avançado em direção a Luanda, e encontravam-se em Caxito,
localidade estratégica, bifurcação de todas as estradas que se dirigiam para o
norte, ameaçando a localidade de Quifangondo, onde se situavam as
instalações para o abastecimento de água da Capital. Com frequência, a
cidade ficava então sem água por dias seguidos.
O MPLA assim passava a dominar completamente Luanda, mas tinha
ainda de conviver com as tropas portuguesas sob o comando do Alto
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
124
Comissário. Entrávamos então num período em que o curso dos
acontecimentos políticos em Lisboa seria determinante de acontecimentos
em Angola. Colocava-se esta questão: o Alto Comissário Silva Cardoso,
que em fase anterior havia estado muito preocupado com o armamento nos
musseques e, por isto, na prática, incompatibilizara-se com o MPLA e
aproximara-se da FNLA poderia ainda permanecer no posto, ao lado do
MPLA?
Os Acordos de Alvor, por sua vez, já pareciam completamente
inexequíveis, em tudo aquilo que dizia respeito à elaboração de uma lei eleitoral
ou de uma constituição pelos três partidos angolanos. Cabia então perguntar:
persistiria ainda o Governo português no propósito de retirar suas tropas de
Angola, no dia marcado para a independência, mesmo que isto significasse
deixar Luanda em poder do MPLA?
Entrávamos, assim, num período de indefinição e expectativa política,
que alguns governos estrangeiros logo procuraram influenciar. Tão pronto
cessaram as lutas em Luanda com a vitória do MPLA, o Governo britânico
retirou seus nacionais de Angola e subitamente, em seguida, fechou o
Consulado-Geral. Todos os demais países, inclusive o Brasil, de acordo
com sugestão minha, julgaram essa atitude precipitada e resolveram manter
suas representações em Luanda. A intensidade da luta havida no período
anterior, no entanto, recomendava cautelas. E todas as representações
estrangeiras trataram de retirar de Angola, através de Luanda, todos os
seus cidadãos que não tivessem função oficial. Foi o que também fizemos,
para isto utilizando um navio do Lóide, o Cabo de Orange, que havia três
meses estava ancorado no porto, sem poder atracar no cais paralisado e
atravancado de navios e caixotes. O Cabo de Orange levou para o Brasil
todos os brasileiros que moravam em Angola e se dispuseram a sair. Umas
três dezenas de compatriotas e as duas funcionárias portuguesas do
Consulado, que haviam ficado “desalojadas” de seus apartamentos nas
lutas havidas na capital.
Com a expulsão da FNLA e da UNITA, com a cessação dos combates
diuturnos, a vida na cidade foi se acalmando, embora o êxodo dos portugueses
se tornasse frenético, já agora com a ajuda do Governo de Lisboa, que muito
aumentou as frequências de voos da TAP e passou a enviar a Luanda grandes
navios fretados para retirar os colonos, seus pertences e veículos. A VARIG
também aumentou a frequência de seus voos para Luanda, acabou com a
primeira classe para comprimir mais passageiros dentro de seus aviões. Nesse
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
125
período atingimos o auge das atividades do Consulado do Brasil, com a
concessão de cinco mil vistos permanentes num só mês.
Dono da cidade, o MPLA passou a ter também preocupações
administrativas. Ao mesmo tempo em que enfrentava ainda as tropas da FNLA
nas proximidades de Caxito, a uns trinta quilômetros ao norte de Luanda,
tratava de mobilizar a população para promover uma limpeza da cidade.
Viria a Angola uma missão da Organização da Unidade Africana para verificar
qual dos partidos angolanos de fato tinha popularidade e condições para
governar o país que se tornaria independente. A missão da OUA visitaria
Luanda, visitaria Ambriz, a capital improvisada que Holden Roberto havia
estabelecido no norte, visitaria Nova Lisboa (atual Huambo) no planalto,
onde se concentravam forças da UNITA e da FNLA e ao fim daria seu
parecer. Para isso, a população de Luanda ativou-se. E quando a missão da
OUA afinal chegou, encontrou uma capital bem menos suja, tendo sido
recebida com dois grandes comícios simultâneos do MPLA, um no aeroporto,
logo à chegada; outro em frente ao Palácio de Governo, onde o Alto
Comissário português e o Primeiro-Ministro do MPLA, Lopo do Nascimento,
receberam os delegados africanos para um coquetel, ao qual compareci.
Também passou por Luanda nessa fase de relativa paz na cidade o Chefe
do Departamento da África, Ítalo Zappa, que voltava de uma conferência em
Kampala, em Uganda. Chegou numa tarde, embarcaria de volta ao Brasil, via
África do Sul, na manhã seguinte. Encontrou-nos a mim, minha mulher, Cyro
Cardoso e demais brasileiros da Representação Especial, muito macerados e
emagrecidos pelas privações passadas e pelo excesso de trabalho. Penalizado
com nossas condições físicas, ou influenciado pelo pessimismo de uma rápida
conversa que teve com o primeiro-ministro da UNITA, (que ainda figurava
nominalmente no já inexistente Governo tripartite, mas se preparava para sair
de Luanda no dia seguinte), Zappa propôs-nos simplesmente o fechamento da
Representação Especial, tal como os ingleses haviam feito com seu Consulado-
Geral. Opus-me firmemente a essa sugestão, pois embora reconhecesse a
habilidade e a capacidade de improvisação política de Zappa, não podia esperar
que nos dois meses que ainda nos separavam da independência de Angola
pudesse ele encontrar outras fórmulas capazes de nos compatibilizar com as
colônias portuguesas que se independizavam, como fora a da Representação
Especial. Ademais, se em março havíamos chegado a Luanda com promessas
de isenção, equanimidade, neutralidade entre os movimentos angolanos que se
disputavam o poder como poderíamos em agosto voltar atrás e retirar a
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
126
Representação Especial, agora que o MPLA saíra nitidamente vencedor e se
aprestava, com indiscutível e amplo apoio popular, a assumir o poder? Se nos
retirássemos, estaríamos rompendo toda uma política, sem ter qualquer outra
para substituí-la. E não seríamos perdoados tão cedo por essa defecção. Zappa
aceitou nossos argumentos e embarcou no dia imediato para a África do Sul e
para o Brasil. Mas com o intuito de que descansássemos dos vários meses de
guerra sugeriu então a conveniência de que fôssemos todos ao Brasil, enquanto
Gil Ouro Preto, vindo de Paris, e Sérgio Telles, vindo de Brasília, substituiriam
a mim e ao Cyro em Angola.
Fui então ao Brasil, em fim de agosto, “chamado a consultas”. E ao chegar
a Brasília, para minha surpresa, verifiquei que nada havia sido ainda decidido
sobre a permanência da Representação Especial em Luanda. O Ministro Silveira
evitava-me, não queria sequer ouvir meus argumentos favoráveis à manutenção
da Representação Especial. Finalmente, a situação decidiu-se sozinha quando
Portugal, principal interessado no assunto, tomou sua esperada decisão: trocou
o Alto Comissário em Luanda por um General, depois por um Almirante, que
se entenderiam melhor com o MPLA; e renovou formalmente as promessas do
Acordo de Alvor, no sentido de que, em 11 de novembro, Angola ficaria
independente. As tropas portuguesas até aquela data seriam retiradas totalmente
e o partido angolano que estivesse em Luanda assumiria o poder.
Regressei, então, do Rio a Angola com Ivony, em meados de setembro,
para a etapa final que nos levaria até a data da independência. De Cape
Town (Cidade do Cabo) a Luanda éramos os únicos passageiros do Boeing
da VARIG. Ia perfeitamente consciente de que o MPLA, já sozinho no
governo de Angola, assumiria o poder tão pronto os portugueses partissem.
E consciente também de que todas as forças que se opunham ao MPLA em
Angola e no mundo tratariam de se esforçar ao máximo para desalojá-lo da
capital antes que o 11 de novembro chegasse. Cyro Cardoso foi retido pelo
Itamaraty no Brasil. Gil Ouro Preto voltou a Paris de onde viera e Sérgio
Telles regressou a Brasília. Passei a ter como colaborador apenas o Terceiro-
Secretário Raul Taunay, que logo chegou a Luanda e comigo ficaria por muitos
meses, prestando excelentes serviços.
VII - Novos aspectos da guerra
A guerra então mudava completamente de aspecto. Se antes tínhamos
presenciado diuturnamente na Capital uma cruenta luta civil, com veladas
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
127
ajudas estrangeiras, o que teríamos nessa nova fase era imprevisível,
possivelmente invasões estrangeiras. Mas de onde viriam? Os Estados Unidos
em abril daquele ano haviam saído derrotados do Vietnam. Iriam agora
empenhar-se numa outra guerra em Angola? Não me parecia isto provável,
dada a crescente impaciência do Congresso americano em votar dotações
para ajuda à FNLA, via Zaire. O Zaire, por sua vez, desde o começo estivera
discretamente envolvido na luta, a favor de Holden Roberto. Mas o MPLA,
em três meses de conflitos, já não havia mostrado de sobra que podia conter
o avanço de Holden em direção a Luanda, ainda que este contasse com
reforço de tropas zairenses e mercenários da CIA? E a África do Sul, com
os problemas que já encontrava internamente na imposição da apartheid, na
ocupação ilegal da Namíbia, ousaria exacerbar ainda mais a opinião pública
mundial empreendendo uma invasão de Angola?
Foi exatamente esta última hipótese que se concretizou em outubro,
quando forças sul-africanas consideráveis, com tanques modernos e carros
de assalto, com blindagem e poder de fogo que não poderiam ser enfrentados
por simples guerrilheiros munidos apenas de bazucas, morteiros, fuzis
kalashnikov entraram pela fronteira sul de Angola em Pereira d’Eça e foram
conquistando cidade após cidade em poder do MPLA, até alcançarem a
costa, na altura de Moçâmedes. De Moçâmedes, pelo litoral, começaram
então a avançar sobre Luanda. Era terreno plano, ideal para o suposto
“passeio” motorizado e blindado que empreendiam e por isso, contavam
chegar a Luanda antes do 11 de novembro, mas, pelo caminho, encontravam
crescentes e inesperadas resistências, à medida que o MPLA recuava e refluía
para Luanda, deixando Lobito, Benguela, destruía depósitos de combustíveis,
derrubava pontes, o que tornava mais difícil o avanço dos tanques sul-africanos
pelo distanciamento em que ficavam de suas fontes de suprimento na Namíbia.
Em Luanda, o avanço sul-africano excitava os portugueses. Mas não
parecia atemorizar o MPLA e seus partidários. As tropas portuguesas
lentamente embarcavam de volta a Portugal. Os caixotes, os automóveis e
seus alvoroçados donos embarcavam também. O aeroporto esvaziava-se
com a saída dos portugueses. O trânsito da cidade, antes tumultuado e confuso,
tornara-se ralo. O comércio esvaziara-se para encher os caixotes que os
portugueses levavam. Em Luanda inteira só duas casas estavam em obras e
pintura, para esperar a Independência: a sede da Diamang, da British-
American Co., produtora de diamantes que se entendera com o MPLA
para permanecer, e o prédio do Consulado do Brasil. Por isso, minha mulher
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
128
e eu mudamo-nos da Residência precária do Consulado para o Hotel Trópico.
E minha atividade agora era bem menor, desde que tudo ficara em paz na
cidade, desde que o Consulado parara, dado que ninguém mais saía para o
Brasil. De um lado, como atividade política, cabia-me reportar ao Itamaraty,
com as minúcias disponíveis, o cada dia mais lento avanço sul-africano sobre
Luanda que muitos jornalistas internacionais ainda se compraziam em noticiar
como se fosse uma fulminante ofensiva da UNITA e da FNLA “apenas
ajudadas pela África do Sul”.
De outro lado, tinha eu mesmo de supervisionar as obras e pinturas que
se ultimavam no prédio do Consulado e acompanhar Ivony na busca de uns
poucos móveis que pudessem servir à futura Embaixada, nas raríssimas lojas
que ainda tivessem meia porta aberta, ou nos depósitos de fábricas já
paralisadas, nas cercanias da cidade. Com isso, nós dois e meus poucos
colaboradores percorríamos diariamente a cidade inteira. E assim verificávamos
o ânimo de resistência do povo, que não se intimidava ante a possibilidade de
que os sul-africanos pudessem chegar a Luanda. Se chegassem, parecia-nos
que a luta seria de rua em rua, de casa em casa e, para isso tanques não
teriam grande serventia.
O Corpo Consular em Luanda, desde a saída prematura e intempestiva
dos ingleses, foi-se rarefazendo. Uns titulares saíram “em férias”. Outros, já
removidos, preparavam as malas, para partir de vez. Permaneceram até as
vésperas da Independência apenas os Cônsules-Gerais alemão ocidental e
norte-americano, se não contarmos três ou quatro negociantes estrangeiros
que eram “adidos comerciais” ou “Vice-Cônsules honorários” de seus
respectivos países e por isto permaneceram em Angola, zelando pelos prédios
daquelas repartições vazias e por seus próprios negócios.
Também ia ficando vazio o Hotel Trópico, onde nos hospedávamos,
desde que o prédio do Consulado entrara em obras. Mais vazio ainda ficaria,
fantasmagoricamente vazio, na semana que precedeu a Independência, porque
todos os quartos foram requisitados pelo Governo, para hospedar as setenta
delegações esperadas pelo MPLA para as festas de 11 de novembro. Meus
colaboradores, que lá moravam, mudaram-se para o prédio do Consulado.
Quanto a mim, não podia deixar o hotel, quando as delegações estavam por
chegar, pois isso seria interpretado imediatamente como um sinal de que eu
mesmo não acreditava na possibilidade de que o Brasil fosse reconhecer o
novo Governo de Angola. Ivony e eu então ficamos por uma semana
absolutamente sozinhos naquele prédio de trezentos quartos, que de todo
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
129
esvaziou-se à espera dos representantes de países que iriam reconhecer
Angola.
O Cônsul-Geral alemão ocidental veio procurar-me. Tinha um problema
político-protocolar a expor-me. Pressentia que a República Federal Alemã
não estaria entre os primeiros países a reconhecer a independência. E presumia
que, não reconhecendo o novo Governo, no dia 11 de novembro, não seria
convidado para as festas da Independência. Pretendia, então, sair de Luanda
antes da Independência. Indagou-me sobre o que eu iria fazer. Respondi-lhe
que ainda aguardava instruções do Itamaraty. De fato, o Itamaraty vinha
demorando uma decisão a respeito e queria saber de antemão quantos países
reconheceriam. O número de setenta reconhecimentos imediatos que o MPLA
esperava, não seria exagerado, se muitos dos países africanos logo se
decidissem a reconhecer. Mas isto dependia muito da orientação da OUA
com respeito a Angola. E a OUA naquele ano estava presidida e desorientada
por Idi Amim, o imprevisível ditador de Uganda. De outra parte, os Estados
Unidos, o Reino Unido, e outros países europeus, vinham fazendo pressões
sobre a OUA e os países africanos para que retivessem o reconhecimento,
mesmo diante da revulsão que a invasão sul-africana estava causando na
África inteira. Para isto também, as agências noticiosas norte-americanas
tentavam ainda disfarçar a blitzkrieg sul-africana com as bandeiras de Savimbi
e de Holden.
Era possível, portanto, que o número de reconhecimentos de primeira
hora fosse menor do que o MPLA esperava. Mas, para o Brasil, parecia-
me essencial reconhecer. Se desde março quiséramos estar presentes; se
havíamos antecipado as relações com os três movimentos angolanos,
quando criamos a Representação Especial; se durante todo aquele ano
havíamos declarado isenção, equanimidade e prometido ter relações com
qualquer dos partidos que ao fim predominasse como poderíamos agora
recuar, num momento em que o MPLA já era vencedor e se via ameaçado
apenas por uma invasão estrangeira e logo uma invasão da África do Sul,
que enojava a África inteira?
Coloquei então minha opinião muito claramente para o Itamaraty:
não havia como, nem deveríamos tergiversar. Ou reconhecíamos na
primeira hora, ou me davam instruções para retirar-me imediatamente de
Angola com a Representação Especial e todos os funcionários brasileiros.
Não haveria a possibilidade de adotar meios termos, de usar fórmulas e
soluções intermédias e jeitosas no dilema em que estávamos. Não seria
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
130
cabível errar de novo, como fora tentado em Lourenço Marques, onde o
Consulado-Geral fora mantido absurdamente em funcionamento, mesmo
depois que Moçambique ficou independente em julho e a Frelimo assumiu
o poder. Se ainda não tínhamos relações com Moçambique, a Frelimo só
poderia mesmo convidar o encarregado do Consulado a retirar-se do
país, como de fato fez. Em Angola tínhamos então de adotar uma atitude
nítida e firme: reconhecer logo, ou imediatamente tirar o time de campo.
E se optássemos pela segunda solução, eu bem esclarecia, o MPLA não
nos perdoaria as falhadas promessas de isenção e durante muito tempo
poderíamos esquecer as relações com Angola, com Moçambique, e
provavelmente com toda a África negra. Seria um fiasco com repercussões
continentais, bastante sérias e duráveis.
No começo da semana que precedeu a Independência, o Cônsul-
Geral norte-americano telefonou-me, para despedir-se. Perguntou-me
sobre a decisão brasileira. Informei-o de que ainda estava indefinida. Mas
adiantei-lhe ser minha opinião pessoal que o Brasil iria reconhecer. Ele,
que servira no Brasil e falava o português brasileiro, afirmou-me
compreender nossa posição. Finalmente, dois dias antes das festas
programadas, recebi a decisão do Itamaraty, para ser comunicada ao
governo local. O Brasil reconheceria o Governo de Luanda por declaração
a ser dada à imprensa em Brasília, às oito horas do dia 10 de novembro,
dado que, pela diferença de fusos horários, naquele momento seria meia-
noite em Angola, exatamente quando os últimos representantes coloniais
de Portugal estariam partindo para sempre e o MPLA estaria assumindo
o poder. Na mesma data, informava-me o Itamaraty, seria assinado o
decreto que criava a Embaixada do Brasil em Luanda.
Transmiti a comunicação ao Primeiro-Ministro do MPLA, Lopo do
Nascimento, e na mesma tarde recebi os convites para a festa da
Independência, que estavam começando a ser distribuídos. A notícia
causou grande impacto e alegria no MPLA. No dia seguinte, quando
Ivony e eu estávamos almoçando sozinhos no restaurante do Hotel
Trópico, a primeira Delegação estrangeira, recém-chegada para a festa
da Independência, apareceu também para almoçar. Era a de Moçambique,
chefiada por Marcelino dos Santos. Marcelino viu-me, veio em minha
direção afavelmente, manifestou contentamento pela decisão do Brasil e
informou-me que dali por diante as relações do Brasil com Moçambique
seriam de amizade.
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
131
VIII - As festas da Independência
Começaram então as festas da Independência em Luanda assediada.
Todos os portos do sul do país estavam ocupados pelos sul-africanos,
secundados pela UNITA e pela FNLA. Os tanques sul-africanos já haviam
chegado a Novo Redondo, a uns duzentos quilômetros da Capital. Ao norte,
a FNLA e seus mercenários, com assistência e cooperação da CIA,
ocupavam Caxito, a uns trinta quilômetros de distância e podiam
frequentemente danificar as instalações de Quifangondo, privando de água
toda a cidade. As duas forças, ao norte e ao sul, certamente estavam
ultimando preparativos para convergir sobre Luanda, antes das festas, ou
no dia da Independência. O Alto Comissário português, acompanhado das
poucas tropas restantes, retirar-se-ia de Luanda, por mar, à meia-noite do
dia 10 de novembro. E para aquela mesma noite, o MPLA havia convocado
a população inteira para comparecer a um comício em praça pública, onde
Agostinho Neto proclamaria a Independência e assumiria o poder em nome
do MPLA, à meia-noite.
Tão pronto soube que o Brasil iria reconhecer o novo governo pedi ao
Itamaraty que mandasse uma delegação especial como outros países fariam,
se possível chefiada por Zappa, Chefe do Departamento da África. O
Itamaraty recusou tal solicitação, designou-me Embaixador Especial para a
solenidade, concordou apenas com a sugestão que eu também fizera, no
sentido de que o Conselheiro Cyro Cardoso, que passara seis meses em
Luanda, durante o período pior das lutas, pudesse estar presente àquelas
cerimônias. Cyro deveria chegar às dez da noite, procedente de Lisboa, já
que a VARIG havia suspendido seus voos para Angola, logo que terminou o
êxodo de portugueses, ainda que estivéssemos às vésperas da Independência.
Mandei que um auxiliar português do Consulado, fosse então ao aeroporto
esperar Cyro e o levasse diretamente ao comício em praça pública onde eu,
Ivony e Taunay já estaríamos.
À meia-noite em ponto, enquanto o Alto Comissário, Almirante Leonel
Cardoso, recolhia a última bandeira portuguesa e embarcava, sem despedidas,
no porto escuro, a nova bandeira angolana foi hasteada na praça festiva,
frente à imensa multidão que ali se aglomerara. E Agostinho Neto, em rápidas
palavras proclamou a Independência de Angola, comemorada com nutridos
tiros para o ar porque os fogos de artifício encomendados de Lisboa não
haviam chegado a tempo.
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
132
Cyro também chegou. O avião em que vinha sobrevoou Luanda, mas foi
mandado regressar a Lisboa, provavelmente porque todas as armas de Luanda
estavam sendo disparadas para o ar, comemorando a chegada da
Independência e isso era perigoso para aviões. De volta ao Hotel, às duas da
manhã, preocupado com a ausência de Cyro, encontrei o auxiliar português
do Consulado incumbido de recebê-lo. Estava muito aflito. No aeroporto,
escutara muitos tiros, certamente os mesmos da cidade em festa. E vislumbrara,
mais do que vira, alguma agitação, ao longe, algum movimento de caminhões
militares nas pistas escuras. Com o nervosismo que caracterizava os
portugueses ante a iminência de invasão da cidade, concluiu logo meu auxiliar:
os sul-africanos já haviam invadido Luanda, começando pelo aeroporto, e
por isto o avião recebera ordem de voltar a Lisboa. Tive então de acalmá-lo,
explicando a natureza festiva do tiroteio que escutara e assegurando-lhe que
a cerimônia em praça pública transcorrera na mais absoluta paz, pois os sul-
africanos não estavam em Luanda, ainda encontravam-se em Novo Redondo.
E teriam dificuldades para avançar sobre Luanda, porque o MPLA já havia
tido tempo para tomar medidas que demorassem ou impedissem o avanço
contra a Capital, segundo notícia que eu tivera naquela noite. No dia imediato,
a festa continuava e a ela eu deveria comparecer, acompanhado apenas de
Ivony e Taunay. A parte da manhã foi ocupada com a posse de Agostinho
Neto, como Presidente da nova República. A parte da tarde foi dedicada a
uma parada em que desfilaram algumas organizações populares do MPLA e
em que as FAPLAS (forças armadas do MPLA) compareceram com uns
poucos carros blindados, jipes e ambulâncias, que me pareciam prontos para
ir a depósitos de ferro velho, e as mesmas metralhadoras, fuzis kalashnikov,
morteiros e bazucas que havíamos visto em uso intenso durante o ano inteiro.
A parte da noite foi dedicada a uma festa, no Palácio, para comemorar a
Independência.
Cyro Cardoso só conseguiu descer em Luanda ao fim desse segundo
dia festivo, cansadíssimo por certo. No mesmo avião, vieram muitas das
delegações estrangeiras dos trinta e poucos países que na primeira hora haviam
reconhecido o novo Governo. Para todos esses retardatários o MPLA resolveu
continuar a festa, levando todas as delegações a um circuito turístico de visita
aos musseques e aos pontos da cidade em que a luta durante o ano fora mais
acirrada. Juntei-me à excursão com Cyro, não para relembrarmos as
peripécias do ano, que bem conhecíamos, mas para rever a cidade inteira
num só dia e sentir o ânimo da população. E isso porque nas festas da véspera
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
133
eu havia tido a vaga notícia de que o MPLA alcançara duas vitórias, nas
frentes norte e sul. Ao norte, a FNLA havia tentado avançar reunindo todas
suas forças, de Caxito para Luanda, para chegar no dia 11 de novembro e
tomar posse do governo. Mas fora repelida com enormes perdas, praticamente
destroçada. Assim também, em Novo Redondo, os sul-africanos haviam
tentado uma arrancada final para Luanda, mas foram paralisados, com
pesadas perdas, pois o MPLA, pela primeira vez, pudera defrontá-los com
novas armas capazes de perfurar a blindagem da coluna de tanques.
Algo de novo havia, pois, acontecido nas frentes de batalha que
ameaçavam aquela capital festiva, mas isolada do mundo. O desassombro
do MPLA perante seus inimigos havia visivelmente aumentado. O júbilo da
população com a Independência crescia também, com o alívio das primeiras
vitórias alcançadas.
Nossa falta de notícias sobre o que acontecia fora de Luanda era
remediada apenas pela escuta do rádio de ondas curtas. A VARIG já havia
semanas não vinha mais a Angola, já não mais trazia jornais, nem mala
diplomática. O telex ficara mudo desde que o Itamaraty dera o ousado passo
do reconhecimento. Cyro, recém-chegado, mas saído do Brasil antes da
Independência, só podia informar-me o que eu, mesmo à distância,
perfeitamente podia prever: o reconhecimento de Angola pelo Brasil, em meio
a trinta e poucos reconhecimentos outros, de países socialistas e do Terceiro
Mundo, causaria verdadeiro estupor aos setores mais conservadores no Brasil.
Dali por diante o Itamaraty teria de enfrentar pressões da direita brasileira e
das chancelarias americana e europeias que eram contrárias ao
reconhecimento.
Dois dias depois da Independência, captei pelo rádio as primeiras notícias
de que Henry Kissinger denunciava a presença de tropas cubanas em Angola,
lutando ao lado do MPLA. E, afinal, o telex, depois de longo silêncio, trepidou
de novo com uma interpelação do Itamaraty, que serve como título do capítulo
seguinte.
IX - Onde estão os cubanos?
Respondi ao Itamaraty que eu e meus colaboradores há vários dias não
fazíamos outra coisa senão comparecer a festas em praças públicas, em meio
às autoridades, ou perambulávamos por toda a cidade rememorando as lutas
havidas durante o ano, mas não tínhamos visto cubano algum em parte alguma,
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
134
ninguém que sequer falasse espanhol. E não podia deixar de lembrar que
durante todo o ano, sempre que o MPLA conseguiu alguma vitória sobre o
FNLA e a UNITA, tal vitória era impreterivelmente atribuída à presença em
Angola de russos, cubanos, alemães orientais, nunca ao próprio MPLA. Assim,
a denúncia de Kissinger podia ser recebida com alguma dúvida. Talvez fosse
uma escalada do mesmo tipo de desinformação publicitária que se espalhara
pelo mundo durante o ano inteiro, agora destinada especificamente a travar
os reconhecimentos que o novo Governo em Angola ia recebendo. Em todo
caso, redobraríamos em Luanda nossa vigilância perambulatória,
especificamente em busca da presença de cubanos, prontos a imediatamente
informar o que pudéssemos descobrir a respeito.
Intrigava-me demais a denúncia de Kissinger. A CIA então não vira, não
percebera os deslocamentos de tropas cubanas de Havana até Angola? Só teria
localizado cubanos, como se fossem fantasmas materializados em Angola, agora,
quando, pela primeira vez, os sul-africanos tinham sido vencidos, na arrancada
final para chegar à Capital? E o Itamaraty, que tem postos no Caribe, nos países
socialistas, em Portugal, nos países vizinhos da África, a despeito de seus reduzidos
recursos, também ele não pressentira coisa alguma, não percebera, mesmo de
longe, os cubanos a caminho de Angola? Aliás, como os cubanos poderiam ter
vindo? Como poderiam ter desembarcado em Angola, se todos os portos e
aeroportos do país estavam em mãos dos sul-africanos, da FNLA e da UNITA,
e em Luanda, as últimas tropas portuguesas saíram à meia-noite do dia 10 de
novembro, junto com o Alto Comissário? Poderíamos acreditar que os próprios
portugueses tivessem dado entrada em Luanda aos cubanos, antes da
Independência, a tempo e hora para que defrontassem, longe da capital, a
arrancada final dos sul-africanos e de Holden? Tudo isso me parecia incoerente,
inconcebível, inacreditável. Mas as denúncias de Kissinger perduravam. E pouco
a pouco a presença de tropas cubanas em Angola ia começando a ser admitida,
primeiro por Cuba, depois pelos países socialistas, finalmente por meus
interlocutores do MPLA. E até hoje as circunstâncias e o momento exato do
desembarque cubano em Angola continuam cercados de mistério.
Um diplomata brasileiro colaborador do “Jornal do Brasil” informou
solenemente ao público brasileiro, em artigo publicado em 26/09/1991, que
“os cubanos desembarcaram em Angola três dias depois da data da
Independência”. Quanto a mim, só três anos depois dos acontecimentos,
ouvi de fonte segura a explicação do mistério. No momento em que o Alto
Comissário português embarcava sem despedidas no porto às escuras, no
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
135
exato instante da meia-noite quando, em praça pública, Agostinho Neto
proclamava a Independência e assumia o poder para o MPLA, aviões cubanos
desembarcavam armas e soldados, um batalhão de seiscentos homens, na
base militar aérea de Grafanil, que fica nas imediações do aeroporto civil. E o
MPLA os encaminhou imediatamente para as frentes de batalha, nas
imediações, ao norte e sul de Luanda. Por isso, cubanos não podiam mesmo
ser vistos na cidade assediada. Por isso também, o avião que trazia Cyro e
várias delegações estrangeiras para as festas da Independência, não pudera
descer em Luanda naquela noite festiva. Por isso, ainda, o auxiliar português
por mim encarregado de buscar Cyro no aeroporto, voltara assustado com
certa movimentação de caminhões militares que percebera à distância, nas
pistas escuras. Ele acreditou que eram os sul-africanos que invadiam Luanda,
ainda mais porque ouvia tiros à distância. Mas era a vanguarda das tropas
cubanas que chegava, para logo embrenhar-se no mato, envolver-se na luta
e repelir a invasão sul-africana.
A presença cubana em Angola dava imediatamente àquela guerra uma
nova dimensão. O que começara como luta civil financiada e estimulada do
exterior e continuara como pura e simples invasão estrangeira disfarçada por
todos os meios publicitários, transformava-se agora, cruamente, em mais um
episódio da Guerra Fria. As pressões internacionais e internas sobre o Itamaraty
certamente aumentariam. E eu estava sobremaneira curioso para saber como
a África inteira encararia a presença cubana em Angola para ajudar o MPLA
a vencer a invasão sul-africana. A atitude da África nessa questão seria decisiva
para que a Independência de Angola se consolidasse e fosse
internacionalmente aceita, com um Governo do MPLA apoiado por tropas
cubanas.
Agora, a Representação Especial já não existia e não requeria minha
presença em Angola. Caberia ao Itamaraty decidir, frente ao fato novo, se
mantinha ou retirava o reconhecimento feito na hora exata. O Itamaraty
certamente hesitaria ante imensas pressões internas e externas. De Angola,
sem notícias do Brasil, apenas ouvindo pelo rádio a BBC, em nada poderia
eu ajudar Silveira ou Zappa a resistir às pressões que se desencadeariam.
Precisaria voltar ao Brasil. Nem protocolarmente poderia ficar mais tempo
em Angola: depois de ter sido Representante Especial, com a categoria
explícita de Embaixador, depois de ter sido Embaixador Especial para as
festas da Independência, não poderia ser rebaixado a Encarregado de
Negócios na Embaixada que fora aberta no dia 11 de novembro.
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
136
Além disso, eu estava com um problema de saúde. Em fins de setembro,
acordara uma noite com tremenda dor no ombro e no braço esquerdo. A
princípio pensei fosse infarto. Depois verifiquei ser um problema na coluna
cervical. A dor cruciante passara, ao fim de uns dias. Mas havia ficado um
formigamento no braço e uma insensibilidade no dedo indicador da mão
esquerda. Isto requeria tratamento médio. Mas eu já não podia encontrar
médicos em Luanda, nem recorrer aos poucos hospitais cheios de feridos
para solicitar fisioterapias.
Precisava então ir ao Brasil, ainda que me dispusesse a voltar para Angola
mais adiante, como Embaixador propriamente designado, caso o Itamaraty
assim quisesse. Sugeri que Cyro Cardoso ficasse em Luanda como
Encarregado de Negócios em meu lugar. O Itamaraty recusou. Cyro então
voltou ao Brasil e fiquei em Luanda por quase dois meses mais, após a
Independência, sem ter notícias do mundo, senão pelas ondas curtas e por
precárias comunicações telefônicas com Zappa, sem estar completamente
informado sobre o que ia acontecendo no Brasil.
X - Repercussões do Reconhecimento de Angola no Brasil e no mundo
No Brasil, tão pronto foi anunciado o reconhecimento de Angola, e ainda
mais quando em seguida se confirmou a presença cubana naquele país, os
setores mais conservadores da opinião pública logo se agitaram. Não podiam
aceitar o alinhamento ocasional em que nossa política para com Angola
colocara-nos ao lado dos países socialistas e de Cuba, dessintonizados dos
Estados Unidos. Nem faltavam às críticas que logo surgiram nos principais
jornais do país, em editoriais e artigos variados, uma bem orquestrada ajuda
estrangeira, que se fazia notar até no estilo e no linguajar utilizados: não se
criticava a política em português do Brasil, mas em português de Portugal...
Zappa, no exercício de suas funções e com uma visão lúcida da
importância da imprensa nas relações internacionais, procurava explicar ao
público brasileiro, através de jornalistas que diariamente o procuravam, o
sentido da posição de equanimidade que o Brasil havia adotado, a necessidade
de manter firmemente aquela política se quiséssemos ter relações corretas e
frutuosas, em longo prazo, com o vizinho Continente. Mas no próprio
Itamaraty encontrava críticas ao diálogo que procurava manter com jornalistas,
para informar o público brasileiro. Acusavam-no de estar buscando
notoriedade, de estar cuidando de sua projeção pessoal.
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
137
O Itamaraty, assim, tendia a fechar-se em copas, a calar-se, sem
contraditar a campanha que forças nacionais e estrangeiras moviam contra o
reconhecimento de Angola. E as Embaixadas dos países socialistas sediadas
em Brasília não podiam deixar de observar a timidez, a hesitação com que
nossa Chancelaria defrontava as críticas que sofria, o que parecia indicar que
a posição brasileira ainda poderia ser revista. Certamente alertavam o MPLA,
em Angola, para esta possibilidade.
Assim também, o próprio MPLA tinha meios para acompanhar a
hesitação do Itamaraty. Lia os jornais brasileiros, que recebia via Lisboa.
E, na prática, podia sentir também outros indícios da vacilação de nosso
Governo. O Brasil havia desejado chegar primeiro a Luanda, havia querido
ser o primeiro a reconhecer, havia vendido a Angola, com excepcional
presteza, os uniformes para a polícia conjunta criada pelos acordos de
Nakuru, havia enviado a Angola representantes de seus estaleiros para
vender barcos de pesca, mas, depois da Independência, agora que a
Embaixada do Brasil já estava montada, enquanto todas as demais ainda
levariam meses para instalar-se, o Itamaraty parecia abúlico até para fazer
comércio com Angola. Angola precisava de tudo. Alimentos, remédios,
equipamentos, oferecia-se para pagar à vista, em dólares, adiantadamente,
mas as consultas feitas à Embaixada, encaminhadas ao Itamaraty, não
obtinham qualquer resposta.
Com a ajuda e o reforço trazido por Cuba, o MPLA agora ia gradualmente
expulsando a FNLA para o Zaire e os sul-africanos para a Namíbia, de tal
forma que a guerra já não era mais sua preocupação exclusiva. Os novos
Ministérios começavam então a ativar-se, a formular seus primeiros planos
de governo, e alguns deles requeriam desde o início colaboração externa.
Para isto, Ministros, funcionários do segundo escalão, procuravam a nova
Embaixada do Brasil, cujo titular conheciam há muito, pois passara toda a
guerra em Luanda, participara das cerimônias da Independência, tornara-se
pessoa conhecida na cidade. O Ministro do Planejamento queria, por exemplo,
que o Brasil entregasse equipamento hospitalar que já estava pago, que já
estivera no porto de Luanda sem poder ser desembarcado durante a guerra,
e que acabara voltando para o Brasil no Cabo de Orange, o mesmo navio
que levara os brasileiros repatriados. O primeiro-ministro Lopo do Nascimento
desejava saber que andamento ia tendo um pedido que há muito fizera, de
cadeiras de rodas, que pretendia doar a alguns mutilados heróis de guerra do
MPLA. Nem os negócios e pedidos que tinham assim nítido caráter
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
138
humanitário recebiam resposta do Itamaraty. Tudo ficava paralisado. O
Itamaraty estava em crise cataléptica.
Criava-se, então, um hiato, um estado de suspensão sumamente perigoso
para as relações apenas iniciadas. O Itamaraty julgava poder esperar, deixar
passar o tempo, para ver se a vitória final do MPLA contra seus inimigos, se
a expulsão dos invasores de Angola, se os novos reconhecimentos que Angola
ia recebendo, da Comunidade Europeia, de países africanos conservadores
acabariam por fazer cessar a campanha da imprensa contra o reconhecimento
brasileiro. Mas, de outra parte, Angola, que ainda estava em guerra, com a
economia arrasada, não podia esperar. E o MPLA só tendia a impacientar-
se se o Brasil não encontrasse logo alguma forma de reafirmar a posição
assumida, fosse com declarações políticas de alto nível, fosse somente pela
discreta ativação do comércio.
A maioria dos países que haviam reconhecido Angola era do mundo
socialista. Adotavam então uma prática processual diferente no
reconhecimento de Estados e na abertura de Embaixadas. O reconhecimento
inicial, obviamente não acarretava de forma automática a abertura de
Embaixadas, o que requer recursos financeiros. A abertura de Embaixadas
era, então, objeto de uma Declaração Conjunta especial, separada, publicada
nos jornais de ambos os países que assim quisessem se relacionar. Sugeriram
então ao novo governo angolano a emissão de Declarações Conjuntas para
as aberturas de suas Embaixadas. E dia a dia essas publicações de
documentos internacionais muito simples e sumários, iam sendo feitas,
rotineiramente, nos poucos jornais de Luanda à medida que novas missões
chegavam para iniciar suas instalações. A prática mais tradicional do Direito
Internacional adotada pelo Brasil era outra, menos formal: também o
reconhecimento não acarretava, automaticamente, a abertura de Embaixadas.
Mas o simples ato do reconhecimento, para o Brasil, já trazia implícita a
opção da abertura de Embaixada. E para isso bastava um decreto do Governo
que iria abrir uma missão no país que já reconhecera como membro da
comunidade internacional. Por isso, conforme me fora comunicado pelo
Itamaraty, às vésperas do reconhecimento feito pelo Brasil, naquela mesma
ocasião do reconhecimento seria assinado o decreto brasileiro que abria a
Embaixada em Angola. E também por isso a Embaixada do Brasil depois da
Independência fora aberta, com tabuleta na porta, com papel timbrado,
enquanto o Itamaraty passou oficialmente a me designar como “Encarregado
de Negócios” o que era, repitamos, absurdo, depois que eu fora apresentado
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
139
a Angola como Embaixador. Por conversas que tive com um recém-designado
diplomata angolano, previ e adiantei ao Itamaraty que o Brasil também seria
convidado a assinar em futuro próximo, uma Declaração Conjunta, nos moldes
daqueles sumários documentos diplomáticos que os jornais locais iam
publicando a cada dia. E então, para minha total surpresa, no Itamaraty se
desencadeou uma tempestade em copo d’água. Silveira me passou um longo
e desaforado telegrama particular. Alegava que o Brasil não usava fazer
declarações conjuntas com aquela finalidade (o que era inexato, pois sempre
as fez com todos os países socialistas com que travou relações); que ele,
Silveira, estava sob fortes pressões no Brasil pela atitude que tomara no
reconhecimento de Angola; que o Decreto brasileiro abrindo a Embaixada
em Luanda ainda não fora sequer levado à assinatura do Presidente Geisel (o
que para mim era motivo de verdadeiro pasmo, dada a comunicação anterior,
de que o Decreto seria assinado no mesmo dia do reconhecimento); que eu,
com “essa invenção de Declaração Conjunta” estava atrapalhando as relações
com Angola; que eu deveria imobilizar-me em Angola, não ver ninguém –
nem mesmo se chamado pelo Ministro das Relações Exteriores deveria
comparecer – o que era de todo incrível, pois o novo Ministro das Relações
Exteriores que havia assumido dias antes, era José Eduardo dos Santos
(político de grande prestígio que depois veio a ser o Presidente de Angola
com a morte de Agostinho Neto) e naquela época estava convidando a
entrevistas, rotineiramente, todos os representantes estrangeiros em Luanda,
para conhecê-los, e também para sugerir a publicação das tais Declarações
Conjuntas.
Respondi a Silveira na mesma noite em que seu telegrama particular
chegou, e no mesmo tom. Comecei por mostrar-lhe minha discordância: eu
que aguentara um ano de guerra em Luanda, para ter relações com Angola,
não poderia de forma alguma estar agora “atrapalhando” as mesmas relações.
Quanto à “invenção” das Declarações Conjuntas, tampouco fora minha. Era
uma prática processualística internacional como outra qualquer, adotada pelos
angolanos, adotada também pelo Brasil com os países socialistas e se recusada
agora pelo Brasil, só viria a confirmar as fundamentadas e crescentes suspeitas
que eles tinham de que o Itamaraty paralisara-se, de que o Itamaraty recuava
por não ousar afrontar as críticas ao reconhecimento que estava sofrendo... e
poderia eventualmente até rever esse reconhecimento. Assim, também, eu só
abrira oficialmente a Embaixada em Luanda, e comunicara a abertura ao
Itamaraty, porque o Itamaraty oficialmente me informara de que o decreto
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
140
respectivo fora assinado na mesma data do reconhecimento. Ademais, como
poderia o Itamaraty intitular-me Encarregado de Negócios se a Embaixada
era ainda oficialmente inexistente? Teria tido o Itamaraty o intuito de ludibriar-
me, pretendendo fazer-me representante oficioso em uma Embaixada ainda
não criada? Quanto às pressões que ele, Silveira, vinha enfrentando no Brasil,
exortava-o a defrontá-las com a mesma disposição com que eu enfrentara
um ano de guerra em Angola. Pois, segundo diziam os angolanos, as relações
com Moçambique e até com a África dependiam da atitude firme que o
Brasil agora tivesse na sustentação do reconhecimento de Angola independente.
Finalmente, relembrando que eu desde setembro estava com um problema
de saúde e que logo após a Independência e o reconhecimento já deveria ter
sido retirado de Luanda, pois não poderia ser Encarregado de Negócios no
mesmo posto em que dias antes levava o título de Embaixador, disse a Silveira
que se não estivesse contente com a minha atuação em Luanda, bastava-lhe
enviar outro para substituir-me e dar-me ordem de regresso ao Rio ou a meu
posto efetivo em Londres.
Silveira ainda respondeu-me, esquecendo as reprimendas anteriores que
provei descabidas, mas ainda abespinhado, salientando ser absurdo “o que
eu afirmara no sentido de que as relações com Moçambique e com a África
dependiam da atitude que tivéssemos para com Angola”. E continuou
declarando muito ufano, que ele próprio, Silveira, em entendimento havido
com Samora Machel, na ONU, já havia estabelecido relações com
Moçambique (sem esclarecer se tais entendimentos haviam sido antes ou
depois do reconhecimento de Angola).
Como, por motivos óbvios, não me interessava continuar aquela discussão
muito desigual com o Ministro de Estado, pedi-lhe apenas que relesse e
verificasse meu telegrama anterior: não era eu quem afirmava que as relações
com Moçambique dependeriam de nossa atitude para com Angola. Eram os
próprios angolanos que não me ocultavam o perfeito entendimento com a
Frelimo e isto declaravam. E terminei por fazer uma barretada à vaidade de
Silveira, elogiando a política africana que ele verdadeiramente iniciara e à
qual eu me orgulhava de ter servido, na medida de minhas forças.
Dias depois recebi, afinal, instruções para deixar Luanda. Viria substituir-
me Affonso Celso de Ouro Preto, Primeiro-Secretário, colaborador de Zappa
no Departamento da África. Ouro Preto conhecia bem os assuntos do posto,
era uma excelente designação para Encarregado de Negócios (se fosse
possível usar tal título numa Embaixada inexistente, enquanto o Decreto que
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
141
criaria a Embaixada não fosse assinado no Brasil e a Declaração Conjunta
dos dois Governos não fosse publicada em Luanda). Enfim, não me caberia
credenciar Ouro Preto perante as autoridades locais, pois Encarregado de
Negócios não credencia outro Encarregado de Negócios. Cumpria ao próprio
Silveira, como Ministro de Estado, apresentar Ouro Preto ao Ministro das
Relações Exteriores de Angola, por telegrama direto.
Aguardei que Ouro Preto chegasse, passei-lhe o serviço, e embarquei
com Ivony para o Brasil, via Lisboa.
Na chegada a Lisboa, o Ministro-Conselheiro Leite Ribeiro esperava-
me à porta do avião com um recado de Zappa e de Silveira: queriam que eu
voltasse imediatamente a Luanda, para assumir de novo a missão, dado que
o novo Encarregado de Negócios não fora aceito. Relutei muito em voltar.
Tive uma longa e irritada conversa telefônica com Zappa, no Brasil, outra
com Silveira, que se encontrava em Paris. Finalmente aceitei retornar apenas
por mais uns dias, somente para esclarecer de vez qual a razão pela qual o
nome de Affonso Celso Ouro Preto, uma excelente indicação para o posto,
havia sido recusado.
De volta a Luanda, logo pude apurar: Affonso Celso tinha um meio irmão
bem mais velho, Carlos Silvestre, que fora Embaixador em Portugal, ao tempo
de Salazar. Este irmão, no meio da década de 1960, havia visitado oficialmente
Angola e fizera um destemperado discurso pró-Portugal, de cunho nitidamente
colonialista. O MPLA confundira os dois irmãos. E o discurso fora tão
traumático que mais de dez anos depois servia como motivo para recusar o
novo Encarregado de Negócios designado por Silveira. Tratava-se de mera
confusão de sobrenome. Mas a decisão de recusa fora do Bureau Político
do MPLA, que só se reuniria de novo, dadas as festas de fim de ano, no
último dia de 75. Cabia ao Bureau Político reconsiderar a questão e desfazer
o equívoco.
E só por isso, tive de permanecer em Luanda até 6 de janeiro de 1976,
data em que de novo embarquei para o Brasil, já então em definitivo. Na
virada do ano de 1975 para 1976, o decreto criando a Embaixada em Luanda
foi então assinado pelo Presidente do Brasil. Assim também o reconhecimento
das ex-colônias portuguesas, inclusive Angola, foi mencionado num parágrafo
do discurso de fim de ano feito pelo Presidente Geisel. De outra parte, em
meio às festas, o Bureau Político do MPLA corrigiu o equívoco quanto ao
nome de Affonso Celso Ouro Preto e aceitou-o como Encarregado de
Negócios em Luanda. Compareci então à festa de fim de ano no Palácio do
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
142
Governo, acompanhado de Ouro Preto e Taunay, pude apresentar o novo
Encarregado de Negócios a todos os meus conhecidos do MPLA, ao mesmo
tempo em que me despedia e tive o prazer de ouvir do Presidente Agostinho
Neto elogios à isenção que eu havia demonstrado durante aquele ano inteiro
de lutas em Luanda e agradecimentos pelo reconhecimento, que o Brasil foi
o primeiro país a conceder a Angola.
Meu depoimento sobre o reconhecimento de Angola poderia ser
naturalmente terminado, no dia em que deixei Luanda. Mas as repercussões
desse reconhecimento foram de tal forma intensas, duraram tanto tempo no
Brasil e no exterior, trouxeram tantas lições novas para o Brasil, para o Itamaraty
e para mim que valem a pena relacioná-las nas páginas que seguem.
Às vésperas do Natal de 75, quando eu ainda estava em Luanda, um
artigo publicado por Carlos Chagas no “Estado de São Paulo”, fundado
apenas em rumores provenientes de Brasília, provavelmente originados no
Itamaraty (conforme Zappa depois informou-me), atribuía o reconhecimento
de Angola à minha pura e simples iniciativa e alta recreação. Tal artigo logo
foi transcrito e amplamente divulgado por jornais do Rio e de Brasília. E a
acusação que trazia, mais que absurda - pois o reconhecimento fora feito por
declarações do Itamaraty diretamente à própria imprensa brasileira, em 10
de novembro, era acintosa para nossa Chancelaria por conter implícita a
noção de que sequer controlava seus funcionários no exterior, mesmo na
tomada de decisões dessa magnitude.
Os mesmos rumores assim tão escandalosamente divulgados afirmavam
que esta era a razão de minha saída de Luanda. E especulavam sobre o fato
de que a menor graduação hierárquica de Ouro Preto era sinal de que “o
Itamaraty começava a rever sua política de reconhecimento do Brasil a
Angola”.
O Itamaraty, colhido de surpresa por tais afirmações afrontosas, nos
maiores órgãos da imprensa do país, emitiu um comunicado no dia seguinte,
informando apenas que eu havia cumprido “com competência e dedicação”
minhas funções em Luanda. E que estava “sendo chamado a Brasília” por
razões de ordem puramente administrativas, porque “necessitava de cuidados
médicos urgentes”. E por esta razão seria “substituído, provisoriamente, pelo
Primeiro-Secretário Ouro Preto”.
Tal comunicado do Itamaraty, de que tive conhecimento ainda em Luanda,
pareceu-me tímido e insuficiente. Não contestava o ponto principal da
acusação, no sentido de assumir plena e exclusiva responsabilidade pelo
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
143
reconhecimento. Explicava apenas minha saída de Angola pela necessidade
de tratamento médico, sem esclarecer que tratamento seria e obscurecia o
fato óbvio de que, segundo as praxes diplomáticas, não poderia eu ser
Encarregado de Negócios no mesmo posto em que acabava de ser
Embaixador. Ou seja: o desmentido do Itamaraty não desmentia o essencial.
E continuava a deixar-me exposto às especulações da imprensa, que passou
a perseguir-me quando cheguei ao Brasil para saber se eu estava
verdadeiramente enfermo. Não evitei a imprensa, mas também, quando fui
encontrado, não quis fazer declarações quaisquer, pois bem sabia quanto às
relações com Angola eram ainda frágeis.
Nos dias subsequentes, a campanha mudou de tom, mas ainda me
manteve como alvo: segundo artigos saídos nos principais jornais do Rio,
São Paulo e Brasília, fora eu “o culpado pela decisão que o Itamaraty tomara
ao reconhecer Angola, por ter informado de forma errônea
(subentendidamente, facciosa) sobre as perspectivas de que o MPLA pudesse
prevalecer sobre os demais partidos e vir a governar Angola independente”.
O Itamaraty não julgou necessário desmentir tais acusações, nem a meu
ver precisaria fazê-lo, tão absurdas eram: todas as notícias de Angola que ao
mesmo tempo saíam nas primeiras páginas dos mesmos jornais brasileiros,
em janeiro e fevereiro de 76, já evidenciavam que o MPLA, agora
ostensivamente ajudado pelas tropas cubanas, expulsava do país as forças
da FNLA, os invasores sul-africanos, ajudados por Savimbi, prendia e fuzilava
uns tantos mercenários ingleses e gregos notoriamente contratados pela CIA
e, ao mesmo tempo, ia sendo reconhecido como legítimo governo de Angola
por todos os países da Europa e da África que, em novembro do ano anterior,
haviam relutado em dar-lhe reconhecimento. Angola entrava para a
Organização da Unidade Africana, aprestava-se para ingressar na ONU e
até Portugal concedeu reconhecimento a Angola, em fevereiro de 76. De
qualquer forma, o fato incontestável é que, embora não tenha recebido o
reconhecimento formal dos Estados Unidos até hoje, embora haja enfrentado
várias outras invasões sul-africanas, embora tenha sofrido, em dificílimas
condições econômicas, mais 16 anos de guerra depois da Independência, o
MPLA ainda hoje governa Angola...
Em 1978, o Ministro do Exército no Brasil foi demitido pelo Presidente
Geisel. Lançou uma proclamação. E a primeira acusação que fez no referido
documento divulgado pela imprensa, ao apontar uma suposta “comunização”
do Brasil, foi a de que Geisel havia reconhecido Angola.
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
144
A partir de 1978, o Itamaraty pôde então sentir-se mais aliviado para
desenvolver o comércio com Angola, que cresceu vertiginosamente. Mas
então, também, Silveira começou a valorizar em declarações públicas, a meu
ver com alguma demasia, o fato de que o Brasil fora o primeiro, o primeiríssimo
país a reconhecer o Governo de Luanda, o único país a “acertar” seus
prognósticos em meio à confusão em que Angola estava no ano de 1975.
Tais declarações do Chanceler brasileiro, pareciam-me inconvenientes pois
certamente suscitariam ciúmes em outras Chancelarias igualmente interessadas
em ter boas relações com Angola.
Mais ou menos coincidiu com essa euforia de Silveira, a respeito de sua
primazia em reconhecer Angola, o livro que Robert Stockwell escreveu e
publicou nos Estados Unidos, com grande repercussão na imprensa mundial.
Stockwell despedia-se descontente da CIA, fora Chefe da Operação Angola,
em Kinshasa, no ano de 75, e tinha muito a contar. No tocante ao papel que
o Brasil desempenhara naquela ocasião e naquelas circunstâncias, fez algumas
observações bastante curiosas. Não podia compreender como o Brasil, ao
mesmo tempo em que tinha uma Representação Especial em Luanda, com
boas, cordiais, senão amistosas relações com o MPLA, (que, afinal, já era o
único governo existente em Angola) permitia que alguns brasileiros, alguns
até fardados com o uniforme do exército, aparecessem como “conselheiros”
de Holden Roberto, em Kinshasa, e depois na invasão de Angola, que a
FNLA empreendeu, quando tentou chegar a Luanda antes da Independência.
Assim também, Stockwell revelava: as relações oficiais que o Brasil mantinha
com o MPLA em Luanda incomodavam a CIA. E por isso, a Agência fez
pressões sobre o Governo brasileiro, para de lá tirar seu Representante.
A primeira dessas revelações de Stockwell foi logo recolhida pela
imprensa mundial e chegou ao meu conhecimento em Bangkok, com a
interpretação maliciosa que logo correu mundo, de que o Brasil havia de fato
sido o primeiro país a reconhecer Angola independente... Mas que, na verdade,
teria feito um jogo duplo, apoiando também, ao mesmo tempo, Holden
Roberto.
Essa acusação de duplicidade em nossa política externa era o que me
parecia importante e valeria à pena contestar, pelos danos que poderia causar
às nossas relações com Angola. Comprei então o livro de Stockwell, enviei-
o a Silveira, com alguns comentários, e fiquei esperando um desmentido do
Itamaraty, que nunca saiu. E nunca saiu, obviamente, porque Silveira não
julgou prudente tentar identificar aqueles outros brasileiros militares ou civis,
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
145
que, como o jornalista Câmara Cascudo, por iniciativa pessoal ou
oficiosamente, faziam na África uma política externa contrária à política oficial
do Brasil.
Quanto à imprensa brasileira, tampouco atribuiu grande importância às
afirmações de Stockwell, a respeito da suposta duplicidade da política brasileira
no caso de Angola. Era algo que requereria algum jornalismo investigativo,
talvez perigoso à época. Mas deu relevo à afirmação do ex-agente da CIA,
no sentido de que a Agência havia pressionado o Governo brasileiro para
que retirasse seu representante em Luanda... E aí, então, o Itamaraty
aborreceu-se, como se pode ver, no “Jornal de Brasília”, de 22 de agosto de
1978.
O porta-voz da Chancelaria prontamente afirmou: “Nunca recebemos
pressão nesse sentido e nem aceitaríamos que isto ocorresse. De nenhuma
agência estrangeira e de nenhum país”. Ainda mais: sobre as afirmações de
Stockwell, no sentido de que “o diplomata brasileiro apoiava abertamente a
facção de Agostinho Neto, o que contrariava os interesses dos Estados
Unidos, que apoiavam Holden Roberto” e sobre a observação, também de
Stockwell, de que “os fatos mostraram que o diplomata brasileiro estava
certo”, o Itamaraty, através de seu porta-voz, fez as seguintes observações:
“um diplomata não tem opinião pessoal. Ele cumpre instruções do Governo
brasileiro. E o Governo do Brasil era neutro no problema interno de Angola”.
O mínimo bom senso nos levaria a crer que pressões da CIA não são
feitas por requerimento com firma reconhecida, formalmente protocoladas
em repartições estrangeiras. Não são ostensivas, mas sub-reptícias. Não se
trata, então, de “recebê-las” ou não. Nem de “aceitá-las”, ou não. Trata-se
de a elas ceder, ou não. E, de fato, o Itamaraty não cedeu, pois me manteve
em Angola, até janeiro de 76, pagou-me para representar o Brasil em Angola,
perante o único governo que Angola de fato tinha, pelo menos desde agosto
de 1975, que era o MPLA. Isto explica também a observação de Stockwell,
no sentido de que “o diplomata brasileiro apoiava abertamente a facção de
Agostinho Neto”. Minha simples presença em Luanda e as relações
diplomáticas que mantinha com o único governo local, que o Itamaraty depois
reconheceu na Independência, eram obviamente abertas, completamente
ostensivas e oficiais, porque esta era a política brasileira traçada pelo Itamaraty.
Para o Brasil, já o MPLA não era uma “facção”. Era o Governo de Angola.
Quanto à afirmação do porta-voz do Itamaraty, no sentido de que “um
diplomata brasileiro não tem opinião pessoal”, é para mim até hoje totalmente
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
146
abstrusa e inexplicável. Se diplomatas brasileiros não tivessem opinião pessoal
como poderiam interpretar complicados acontecimentos políticos, fazer
prognósticos, informar o Itamaraty para o traçado da política externa?
Quanto ao tratamento que o Itamaraty me dispensou a partir de 1976
merece aqui referência apenas porque se caracterizou pela mesma
ambiguidade, pela mesma secretividade evasiva, pela mesma relutância que
a Chancelaria sempre demonstrou em discutir sua política, pela mesma timidez
que sempre teve em defrontar as forças internas e externas que se
contrapunham ao reconhecimento de Angola. Em 1976 Silveira incluiu-me
no quadro de acesso para promoções, o que parecia significar a aprovação
plena de meu desempenho em Angola. Em 1977, espontaneamente, sem que
eu nada lhe pedisse, prometeu-me promoção. Mas não cumpriu a promessa
até o fim de sua gestão, provavelmente porque ainda encontrou resistências
daquelas forças que se haviam oposto ao reconhecimento de Angola e que
me queriam ter como bode expiatório de uma política. Substituiu Silveira na
pasta de Relações Exteriores Ramiro Saraiva Guerreiro, que era Secretário-
Geral do Itamaraty em 1975 e acompanhou pari passu meu desempenho
daquele ano na África. Saraiva Guerreiro tampouco ousou arrostar as forças
que se opunham à minha promoção e por isso passei ao todo dez anos no
topo do quadro de acesso, na inconfortável evidência de um condenado ao
pelourinho. Isto numa década em que sucessivas reformas foram feitas no
Itamaraty, e o quadro de Embaixadores foi ampliado com exagero, tornando-
se absurdamente maior do que o quadro de Terceiros-Secretários, iniciantes
na Carreira. Acumulei assim, em dez anos, cerca de noventa preterições.
Só vim, então, a ser promovido em 1986, a primeira promoção feita
pela Nova República, o que compõe melhor meu curriculum vitae.
A mesma dubiedade do Itamaraty manifestou-se também nos postos
que me concedeu, desde 1976. Depois de Angola, servi como Embaixador
comissionado na Tailândia e na Jamaica, postos confortáveis, de atrativos
turísticos, mas certamente de menor importância política para o Brasil. Em
ambas as designações, o Itamaraty, nas gestões Silveira e Guerreiro, procurou
isentar-me do comparecimento à Comissão de Relações Exteriores do
Senado, para que eu não fosse submetido à chamada “sabatina” que precede
à aprovação senatorial dos Embaixadores. Dou aqui a palavra ao Assessor
Parlamentar do Gabinete de Silveira, que em artigo no “Jornal do Brasil”, em
08/10/91, revelou; muito francamente, os motivos pelos quais Silveira se deu
a esse trabalho:
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
147
“A pedido do Chanceler Silveira combinei com o Senador Daniel Krieger
evitar que Ovídio de Melo fosse sabatinado. Sempre que havia um tema
quente nas sessões secretas da Comissão de Relações Exteriores do Senado,
informações acabavam chegando aos jornais. Ora, eventual sabatina de Ovídio
Melo ia começar pela Tailândia e terminaria em Angola. Com prováveis danos
para o Governo Geisel, para o Itamaraty e para o próprio diplomata. Tivemos
de esperar algumas semanas até que fossem submetidas ao Senado mensagens
de novos Embaixadores para postos importantes. Quando isto sucedeu, fui
autorizado por Krieger a colher as assinaturas dos demais membros da
Comissão, utilizando o argumento de que não parecia haver interesse em
ouvir um cônsul que seria comissionado embaixador em Bangkok. Os
senadores concordaram logo e nossa tática funcionou bem. Esclareço,
entretanto, que tal procedimento no Senado ocorria com frequência, em se
tratando de embaixadores designados para países de menor importância para
o Brasil. Aliviado, Silveira abraçou-me efusivamente”.
Devo aqui salientar que tais manobras evasivas de Silveira e Guerreiro,
mantendo-me marginalizado, proscrito e distante, para evitar que o assunto
do reconhecimento de Angola voltasse à tona e fosse discutido de forma a
esclarecer a opinião pública brasileira, nunca tiveram de minha parte a menor
aceitação, menos ainda qualquer colaboração. Pelo contrário, acredito que a
política externa deve ser amplamente discutida e aprovada pela nação, através
de seus representantes legítimos, pois só assim pode ser firme, durável e
atender plenamente aos interesses nacionais. Política externa não pode ser
feita em gabinetes, escondida do povo.
Enfim, nas condições em que o Brasil viveu durante o regime autoritário,
o reconhecimento de Angola, feito sob duras dificuldades, a meu ver, sobressai
como o gesto mais desassombrado da política externa brasileira em todos os
tempos. Não lastimo então o truncamento de minha carreira. Valeu a pena,
para algo tão importante. Afinal, não entrei no Itamaraty para fazer carreira.
A função do Itamaraty é fazer política externa. E foi o que fiz como diplomata
para que hoje possa sentir-me razoavelmente sereno e bastante realizado na
aposentadoria e na velhice.
Quanto às relações do Brasil com Angola, hoje firmes e consolidadas,
são de mútuo respeito e crescente confiança recíproca, como seria esperável
entre países tão irmanados pela história, pela raça e pela cultura. Cuba retirou
suas tropas de Angola. A Namíbia e a Rodésia tornaram-se independentes. A
África do Sul volta-se, necessariamente, para a solução de seus imensos
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
148
problemas internos. Esperemos, então, que, após 31 anos ininterruptos de
guerra, Angola possa afinal viver em paz e desenvolver-se, com todas suas
potencialidades. Pois quanto mais desenvolver-se, mais afinidades encontrará
com o Brasil. As relações entre o Brasil e Angola poderão, assim, no futuro,
constituir-se num modelar exemplo, para as relações que a América Latina
terá com o vizinho Continente Africano.
Vassouras, R.J. 21/06/1992.
Vacilação de Zappa
Retorno, agora em 2006, a este documento escrito em 1992, para a ele
acrescentar dois telegramas que foram secretos, mas que o próprio Ministro
Silveira tornou públicos, quando os anexou a seu depoimento no CPDOC
da Fundação Getúlio Vargas.
Os telegramas referidos vieram ao meu conhecimento, trazidos por um
professor americano, Jerry Davila, que presentemente estagia na PUC/RJ,
escreve um livro sobre política externa brasileira e está pesquisando sobre o
tema no CPDOC.
A seguir, transcrevo os telegramas referidos, que dizem respeito às poucas
horas que Zappa gastou em Luanda no ano de 75 (Vide último parágrafo da
página 125 deste livro).
De representação especial em Luanda
Em 5/8/75
Secreto Exclusivo Urgentíssimo
Particular para Ministro de Estado
Transmito: “Em cumprimento aa missão recebida, cheguei hoje à Luanda
a fim de pessoalmente fazer uma avaliação da situação local PT a cidade
estah tranquila na aparência PT comparada com a que vi em dezembro
passado vg eh irreconhecível: lixo nas ruas, tráfego escasso, ausência de
policiamento ostensivo, sinais, enfim, de que vive num intervalo da luta PT
esta, pelo que observei, foi intensa e indiscriminada PT estou convencido
de que a qualquer momento a luta serah reiniciada, desta vez com caráter
muito mais grave, por que antecedida de período para preparação logística
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
149
nos dois lados: MPLA e FNLA PT em companhia do Ministro Ovídio
Melo, acabo de entrevistar-me com o primeiro-ministro José N’Dele PT
decorridos três dias desde nossa última entrevista, realizada em Kampala,
encontrei-o desta vez num estado de espírito que não hesito em classificar
de desesperado e desesperador PT não me ficou a menor dúvida de que
José N’Dele quis avisar ser iminente ou mesmo jah ter ocorrido decisão da
UNITA de somar-se aa FNLA, esta jah proscrita virtualmente do governo
e afastada da cidade PT aconselhou reiteradamente a evacuação do corpo
consular e disse ter reformado seu parecer sobre a retirada da população
portuguesa, pois “não se pode pedir das pessoas sacrifícios dessa natureza.
P T Zappa”
Ovídio Melo
De representação especial em Luanda
Em 5/8/75
Secreto Exclusivo Urgentíssimo
Segunda e Última Parte - Tel particular para Ministro de Estado
Dessa natureza. “Contra a opinião do Ministro Ovídio Melo, sou levado,
por tudo quanto vi e ouvi, a solicitar a Vossência considerar a decisão de
ordenar a imediata retirada dos três funcionários do Itamaraty que
permanecem neste posto PT sua permanência aqui jah não serviria a nenhum
objetivo, pois estah claramente desboroada a situação constitucional que a
justificava PT ao contrário, poderah essa permanência ser contraproducente
a partir do momento em que pudesse ser interpretada como apoio a um dos
movimentos, não equidistância em relação aos três PT repito que foi o
representante máximo de um dos três movimentos que reiteradamente
aconselhou a evacuação do pessoal do corpo diplomático PT hoje de manhã,
cerca de três mil postulantes de visto colocaram-se, em desespero, frente ao
consulado a fim de exigir concessão de vistos PT o Ministro Ovídio Melo
acalmou-os com vagas palavras sobre a cooperação do Brasil com Angola
PT a tendência eh que essa pressão sobre o consulado aumente e que venha
a ocasionar incidentes de consequencias imprevisíveis PT se o consulado
ficar provisoriamente confiado aa guarda de funcionários locais, mais facilmente
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
150
poderão estes opor-se aa pressão de todo o tipo, pois se tornarah mais
compreensível que a decisão não eh do cônsul ou do representante especial,
mas das autoridades competentes do Governo brasileiro PT Zappa”.
Ovídio Melo
MINUTA DE TELEGRAMA
Representação Especial em Luanda
Caráter secreto-exclusivo (Urgentíssimo)
PARTICULAR PARA O MINISTRO ÍTALO ZAPPA
Em resposta ao seu particular de hoje, devo dizer a você, em primeiro
lugar, que nunca tive dúvida de que deveríamos, eventualmente, pagar um
preço por termos criado a Representação Especial junto ao Governo de
Transição de Angola. Esse ato político consciente que praticamos leva-me, e
o digo com absoluta franqueza, a concordar com a posição do Ovídio. Nossa
posição de estrita não-intervenção nos assuntos internos de Angola, posição
que manteremos, não nos levará a qualquer apoio ostensivo a qualquer dos
três Movimentos, mas não me impede tampouco de acreditar que, seja para
o Brasil, seja para o universo ocidental a que pertencemos, uma eventual
derrocada do MPLA no confronto com a aliança FNLA/UNITA seja uma
solução melhor do que o prevalecimento puro e simples do MPLA, de notória
orientação marxista. Nada disso quer dizer que o Ovídio poderá deixar de
contar, a qualquer momento e em qualquer circunstância, com o meu apoio
integral. Estão sendo estudados, com a Marinha e a Aeronáutica, esquemas
de emergência. Por outro lado, além de se guiar pelos termos do despacho-
telegráfico n
o
220, especialmente sua parte final, que contem as instruções
gerais, disponho-me a, de imediato, de modo a caracterizar a posição que
antes esbocei, enviar funcionário diplomático, em serviço provisório, para
substituir o Cyro e reforçar, com dois agentes de segurança, a parte de
proteção física do Chefe da Representação Especial, no entendimento de
que aí permaneciam apenas tais funcionários, uma vez que já devem ter sido
evacuados os familiares de brasileiros lotados na Representação Especial.
Creio que tanto você, quanto o Ovídio, me concedem o crédito de ser um
chefe acima de tudo humano. O que acabo de dizer representa, pois, o
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
151
somatório de minhas convicções honestas e de minha avaliação do quadro,
olhado quer do ponto de vista do interesse nacional brasileiro, quer de
considerações essencialmente humanas. Leia e destrua este telegrama, inclusive
a fita respectiva. Um abraço muito afetuoso para Cyro, Ovídio e você do
SILVEIRA
Comentários meus aos textos telegráficos precedentes
Voltando de uma viagem a Kampala, Uganda, por motivo de uma
conferência da OUA, Zappa passou em Luanda umas poucas horas, das 16
horas de 4 de agosto até as 10 horas da manhã do dia imediato.
Cyro e eu fomos esperá-lo no aeroporto. Veio com ele o Conselheiro
Affonso Celso Ouro Preto que trabalhava sob sua chefia no Departamento
da África. Procediam os dois de Cape Town, na África do Sul, pois não
havia linha aérea direta de Kampala a Luanda.
Zappa pediu-nos que lhe mostrássemos alguns dos estragos que os
combates entre os Movimentos haviam causado à cidade. Isto era fácil, pois
os maiores confrontos haviam ocorrido a uns dois quilômetros do Consulado.
Num rápido detour mostramos aos recém-chegados três arruinados edifícios
da Avenida Brasil que antes abrigavam forças da FNLA, e que haviam sido
atacados com bazucas e canhões pelo MPLA.
Zappa e Affonso Celso impressionaram-se com tão vastos estragos.
Fomos depois para o Consulado e instalamo-nos no terraço, para lanchar
e conversar. Em frente, na entrada da linda baía de Luanda, o tanque de
gasolina de aviação da “Shell” queimava. Estava vazio do combustível,
felizmente. Mas continha ainda gases que o levaram a incendiar-se por
semanas consecutivas, sem explodir. Ao longe, em terra, certamente em
Quifangondo, troavam canhões. E esses tiros eram escutados
perfeitamente no Consulado. Para Cyro, eu e Ivony, o incêndio e o troar
da artilharia já eram rotina diária. Mas para Zappa e Affonso eram novidade
incômoda.
Zappa, por volta das 6 horas da tarde perguntou-me se ainda seria
possível ser recebido por algum membro do governo. O governo já era
de um só Movimento, o MPLA. Telefonei para Lopo do Nascimento,
primeiro-ministro do único Movimento no poder. Já havia saído do palácio.
Telefonei então para José N’Dele, que fora primeiro-ministro da UNITA,
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
152
mas que continuava no palácio, apenas porque o MPLA tinha ainda
esperanças de que aderisse ao vencedor. N’Dele estava e nos recebeu.
Fomos imediatamente vê-lo. E, ao entrarmos em sua sala mostrou fingido
espanto e exclamou dramaticamente: “por que os brasileiros ainda estão em
Luanda, na Representação Especial? Por que não saíram, seguindo o exemplo
dos ingleses?”. Depois, nos informou que ele próprio, N’Dele, deixaria Luanda
no dia seguinte. E que compreendia agora a fuga dos portugueses de Angola.
Sofreram muito, disse ele.
N’Dele, que passara todo o ano sem definir-se, usando seu partido como
um pêndulo entre o MPLA e a FNLA, agora definia-se de vez, explosivamente,
porque tanto as forças militares da FNLA, quanto as da UNITA, tinham sido
expulsas da capital. Não havia mais governo tripartite algum. O governo,
agora, era só o MPLA.
Para mim, a explosão de N’Dele era irrelevante. Tinha eu em conta que
a UNITA já se revelara insignificante como força militar nas lutas havidas e
não tinha mesmo de participar do governo. O MPLA levara uma semana de
acirrado conflito para expulsar as tropas do Zaire de Luanda e os guerrilheiros
que seguiam Holden. A UNITA fora expulsa em uma hora, alguns dias depois,
e fugira de Luanda sem tempo para vertir-se, com os sapatos nas mãos,
segundo voz corrente na cidade.
Zappa, no entanto, impressionou-se muito com o alarme e o pânico de
N’Dele. E, quando voltamos ao Consulado, depois de um longo período de
silêncio, postou-se no meio da sala, pediu-nos que o escutássemos com
atenção e declarou que já achava o sacrifício que fazíamos em Luanda,
completamente desnecessário. Por isso, queria passar um telegrama para
Silveira sugerindo que a Representação fosse fechada, e que nos retirássemos
com urgência para o Brasil.
Opus-me imediatamente a esta determinação do chefe do Departamento.
Disse-lhe que, pelas funções que exercia, poderia ele utilizar nosso telex para
sugerir o que bem quisesse ao Ministro de Estado, até mesmo o fechamento
da Representação, mas que imediatamente depois do telegrama dele, seguiria
um telegrama meu, explicando porque eu insistia em que a Representação
perdurasse em Luanda.
Evidentemente, se em março havíamos chegado a Luanda proclamando
isenção, equanimidade, neutralidade, entre os três movimentos; declarando que
aceitaríamos qualquer deles como vencedor na data para a independência,
agora, em agosto, não poderíamos nos retirar. Vencedor, já havia: o MPLA. E
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
153
se nos retirássemos a esta altura do ano nada poderia assegurar-nos que o
Brasil reconheceria a tempo e hora, em novembro, Angola independente. Se
não reconhecêssemos Angola independente prontamente teríamos perdido todo
o nosso sacrifício em Luanda durante oito meses de luta incessante. Moçambique
ficaria ainda mais decepcionado conosco. E a África inteira diria que o Brasil
não era confiável, nem no trato com os africanos que falam português.
Cyro tomou a palavra e apoiou-me integralmente. E o surpreendente foi
que até Affonso Celso Ouro Preto, que acompanhava Zappa, também
discordou de seu chefe e se manifestou de imediato.
A discussão, nestes termos, e com quatro debatedores, três de um lado,
Zappa sozinho em posição oposta, durou até três horas da manhã, quando
fomos dormir.
No dia imediato, ao despertar às 7 horas, telefonei para a residência de
Petrov, Chefe de Polícia do MPLA e pedi que viesse ao Consulado tomar
café com o Zappa, a quem ele conhecera na visita que meu amigo fizera, no
ano anterior, a Agostinho Neto, em Dar-es-Salaam. Expliquei-lhe
antecipadamente que Zappa ouvira opiniões de N’Dele, ainda em palácio,
no dia anterior, e eu queria que Petrov lhe desse naquela manhã, antes que
ele embarcasse de volta ao Brasil, uma descrição da situação de Angola, tal
como vista pelo MPLA.
Petrov aceitou o convite e, minuciosamente, expôs a visão do MPLA
sobre a derrota imposta aos outros movimentos. Derrota rotunda, que dava
o poder a Agostinho Neto. E que só se poderia alterar mais adiante, se os
movimentos vencidos fossem buscar aliados estrangeiros para invadir Angola.
Mas, já então, se novas invasões estrangeiras viessem, a luta em Angola seria
um episódio da guerra fria e o MPLA poderia ter aliados também.
Zappa embarcou para Cape Town às 10 horas da manhã. Levei-o ao
aeroporto. Fez questão de dizer-me que havia repensado a sugestão do fechamento
da Representação, objeto da discussão da véspera. E no dia seguinte, já na
África do Sul, telefonou-me para dizer que desistira de fechar a Representação,
mas pediu que eu fosse ao Brasil para “consultas”. Assenti, mesmo porque
precisávamos todos de descanso das privações da guerra em Luanda.
Muitos anos depois desses acontecimentos, quando Zappa foi nomeado
Embaixador em Cuba, encontrei Affonso Celso Ouro Preto, por acaso, no
Itamaraty. Os jornais estampavam a designação de meu amigo para Havana,
com grandes elogios, pois tinha ele boa imprensa. Ouro Preto e eu
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
154
conversamos sobre as relações do Brasil com Cuba e coincidimos em elogiar
a designação de Zappa para aquele posto. Depois rememoramos aquela
noite de discussões em Luanda, quando contestamos o súbito desejo que
Zappa teve, de simplesmente encerrar a Representação do Brasil em Angola.
Ouro Preto então me interrogou: “Você chegou a acreditar que Zappa
houvesse mesmo desistido de passar um telegrama a Silveira, propondo o
fechamento da Representação?”.
Respondi que sim. Que acreditara nas declarações que o próprio Zappa
havia feito a mim, no fim daquela noite de discussões, e depois porque, da
África do Sul, ele me telefonara especialmente para dizer que havia desistido
do fechamento da Representação.
Então, Ouro Preto, rindo, disse-me: “Pois fique sabendo que ao chegar
à África do Sul, ele logo passou um telegrama pessoal a Silveira propondo o
encerramento da Representação. E Silveira imediatamente respondeu dizendo
que isto era descabido e que ele, Zappa, deveria destruir os telegramas pessoais
trocados sobre o assunto”.
Cobrei do Zappa dias depois o que Ouro Preto contara-me.
Fez ele cara de surpresa e exclamou: “O que Ouro Preto tem contra
mim?”.
Os dois telegramas que me vieram às mãos recentemente, por meio do
professor Jerry Davila, confirmaram plenamente o que Ouro Preto havia
adiantado naquela conversa.
Muito curiosamente, Zappa, no referido telegrama registra como local
de expedição a Representação em Angola, quando na verdade expediu o
telegrama para o Ministro de Estado, a partir da África do Sul, de Cape
Town. Da Representação em Luanda não poderia tê-lo expedido porque o
telex estava fechado, e a chave encontrava-se em meu poder.
A resposta de Silveira também “secreta”, “urgentíssima” e “particular”
para Zappa foi erradamente expedida para Representação Especial, em
Luanda. A verdade é que Zappa deve ter se entendido com a Divisão de
Comunicações, pedindo que a resposta de Silveira fosse redirecionada para
a África do Sul, onde ele já estava. Se houvesse sido expedido para Luanda,
já não teria encontrado Zappa, e eu, da resposta de Silveira, teria tido
conhecimento no mesmo instante.
Curioso é que Silveira, muito preocupado que Zappa destruísse os textos
e as fitas desses telegramas particulares, secretos e urgentíssimos, tenha sido
O RECONHECIMENTO DE ANGOLA PELO BRASIL EM 1975
155
a mesma pessoa que os guardou por muitos anos e tornou-os públicos, ao
deixá-los no CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, quando lá fez o
depoimento de sua gestão no Itamaraty.
As razões que Zappa apresenta a Silveira para o fechamento da
Representação são exageradas quanto ao perigo que correríamos dali por
diante em Luanda, pois as lutas entre os movimentos já haviam acabado em
julho com a vitória decisiva do MPLA, que ficou no governo desde então até
hoje, mesmo quando a UNITA teve mais adiante o apoio escandaloso da
África do Sul do apartheid.
O fechamento da Representação, a retirada dos diplomatas brasileiros
de Luanda e a entrega do Consulado a dois funcionários portugueses
contratados, algo que Zappa sugeriu a Silveira ao mesmo tempo em que
pedia a retirada dos brasileiros, seria um desastre completo. O português
que era Vice-Cônsul interino há muitos anos, era confessadamente salazarista
e colonialista convicto, favorável ao FNLA e informante da PIDE, segundo
muitas pessoas me disseram. E, o outro funcionário que se “agregou” ao
consulado, com o apoio relutante do Vice-Cônsul interino, depois da
revolução em Portugal, era sargento de tropas especiais, talvez um fiscal do
exército português no Consulado.
Quanto aos “três mil postulantes a visto” que teriam permanecido na
frente do Consulado, naquela mesma manhã de 5 de agosto, em desespero,
a fim de exigir concessão de vistos, foi uma invenção dramática de Zappa. O
que lhe contei, quando chegou à Luanda, foi que uns duzentos portugueses
desalojados de suas casas, logo depois do auge das pelejas entre MPLA
versus FNLA, em julho, um mês antes, e não na mesma manhã da chegada
de Zappa a Luanda, haviam feito uma passeata num domingo pacato, e parado
na frente de minha residência no prédio do Consulado para pedir a ajuda do
Brasil.
Fiz, então, um pequeno discurso da varanda, dizendo à multidão que o
Brasil, embora não incentivasse o êxodo, estava ajudando os portugueses,
concedendo-lhes visto e amiudando os voos da VARIG para Luanda. Mas o
procedimento certo seria eles recorrerem às suas autoridades, ao Alto
Comissário. A manifestação não era ameaçadora. Era totalmente pacífica,
começava a dispersar-se quando a polícia chegou.
Nem eu acreditava que essas manifestações pacíficas seriam repetidas,
porque Portugal já estava enviando aviões e navios, com grande frequência,
para retirar todos os seus nacionais (com respectivos pertences, carros de
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
156
passeio inclusive) que quisessem ir para Lisboa. E quase já não havia nacionais
que o governo português ainda não houvesse retirado. De agosto em diante,
previa eu, as manifestações ocorreriam em Portugal, não em Luanda, como
de fato ocorreu.
Enfim, anos depois da troca de telegramas entre Zappa e Silveira, devo
dizer que a atitude de Zappa não me espantou, nem me decepcionou, porque
nós ambos, desde o início da aventura, muito bem sabíamos que a direita
militar brasileira e a imprensa lusófila ficariam atentas aos acontecimentos do
outro lado do Atlântico e dificultariam o reconhecimento brasileiro ao novo
governo africano, se fosse um governo do MPLA.
Silveira em seu telegrama a Zappa também manifestou tais receios, quando
disse “nunca tive dúvida de que deveríamos pagar um preço por termos criado
a Representação Especial”.
Mais adiante, Silveira também vacilou quando, por ocasião da
independência, verificou que, talvez pela primeira vez na História do Brasil, o
Itamaraty e o Ministério da Guerra, então ocupado por Sílvio Frota,
discordavam sobre Angola. Foi isso que fez Zappa e Silveira esquecerem-se
de criar a nova Embaixada no mesmo dia do reconhecimento, como me
haviam informado antes da Independência. E formalmente me ludibriaram,
quando passaram a me intitular de “Encarregado de Negócios” de uma
Embaixada não existente. Assim também, mais adiante, depois da
Independência, Silveira insistiu para que eu ficasse em Angola sem ter contato
com o Governo. Respondi-lhe que achava isso totalmente absurdo e que, se
quisesse, me removesse de Angola para o Rio ou para meu posto em Londres.
Por tudo que precede, creio que foi o Presidente Geisel quem, com sua
conhecida firmeza, exigiu de Silveira e de Zappa uma posição mais destemida
com relação ao reconhecimento de Angola, mesmo depois que os cubanos
desembarcaram, exatamente na noite em que Agostinho Neto proclamou a
Independência.
Afinal, coragem é a qualidade essencial do militar. Diplomatas
caracterizam-se pela prudência. E as dificuldades havidas no reconhecimento
de Angola nunca foram causadas pelo governo de Luanda após a
Independência. Foram causadas no Brasil mesmo pelas correntes militares
direitistas que em 1978 chegaram a tentar derrubar Geisel, acusando-o, entre
outras motivações, de ter reconhecido Angola.
Rio de Janeiro, 30 de maio de 2006.
157
3
a
Parte
Servindo em Bangkok e Jamaica
Depois de Angola e de todo o escarcéu político que o reconhecimento
imediato daquele governo suscitou da parte de uma extrema direita brasileira,
que via a política externa de Geisel com crescente desconfiança, escolhi a
Tailândia e depois de bom grado aceitei a Jamaica como meus postos seguintes,
porque tinha vinte e oito anos de serviços prestados ao Itamaraty e ao Brasil
e não queria, nem podia arriscar, não direi a carreira, já bem arriscada, mas
o simples emprego. Para sobreviver, devia, então, adaptar-me a postos mais
distantes, onde o Brasil não tivesse grandes interesses imediatos, nem políticos,
nem comerciais, postos do terceiro mundo, com atrativos turísticos, que pelo
menos tivessem uma história importante e simpática que o Itamaraty devesse
conhecer, pois, devidamente analisada, ensinaria alguma coisa útil para ser
eventualmente utilizada pelo Brasil.
A Tailândia estava há muito tempo nesta categoria de país bonito e
interessante, que desde o começo de minha carreira, quando servi no Japão,
já me atraia. Com uma população que emigrou do sul da China, trazendo
uma cultura antiquíssima, e se espalhou num território plano e muito fértil,
aproximadamente do tamanho da França, o então chamado Reino do Sião
venceu a civilização Khmer, do Cambódia, combateu e repeliu muitas invasões
provindas da Birmânia, transferiu a capital do país sempre que ela foi destruída
por inimigos, até que afinal a sediou em Bangkok. Assim, na realidade,
Bangkok, que para os nativos chama-se Krungthep, é uma cidade menos
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
158
antiga do que o Rio de Janeiro. Os magníficos templos que ostenta e atraem
turistas do mundo inteiro, só parecem antigos porque são exatas reproduções
de prédios que outrora existiram, mas foram destruídos pelos birmaneses,
em Ayuthia, a precedente capital do país.
Entre duas imensas e riquíssimas civilizações asiáticas, como a da China
e a da Índia, a Tailândia cresceu culturalmente, mas preservou sua
personalidade nacional própria. Assim também, quando o imperialismo
europeu dominou toda a Ásia, o antigo Reino do Sião, com habilidade
diplomática, conservou sua independência entre colônias inglesas na Índia e
na Birmânia e colônias francesas no Laos, no Cambódia e no Vietnam. E
quando Inglaterra e França juntavam-se para ameaçá-la, a Tailândia recorria
ao socorro do Tzar russo.
Outro atrativo que Bangkok oferecia, naquela ocasião, era importante
para mim, mas não preocupava muito ao Itamaraty. A guerra do Vietnam
terminara em abril de 1975. Eu, que desde quando servi em Washington, ao
tempo de Kennedy, acompanhava com muito interesse aquela guerra,
principalmente através de notícias que a imprensa americana ocultava, mas
que jornalistas corajosos como I.F.Stone publicavam, iria agora acompanhar
bem de perto os rescaldos da fragorosa derrota americana no sudeste da
Ásia. A China, ali nas imediações, como se comportaria? O Vietnam vitorioso
se expandiria para o Cambódia e o Laos? Como o Vietnam unificaria seu
território? Na Tailândia, os efeitos daquela guerra terminada seriam grandes.
As tropas americanas, que num constante rodízio de grandes contingentes,
descansavam da guerra embebedando-se, drogando-se e frequentando
bordeis em Bangkok, da noite ao dia haviam cessado aquele turismo de
desesperados condenados à morte. O intenso comércio fronteiriço que a
Tailândia tinha com o Laos e o Cambódia e que, para certos produtos
alcançava também o Vietnam, único e exclusivo comércio que o Vietnam do
Sul ainda podia ter nos anos finais da guerra, de repente também desaparecia,
porque já então os portos daqueles países vizinhos estariam abertos ao mundo.
Era isto tudo que eu queria ver de perto, em matéria de trabalho, quando
pedi posto em Bangkok.
Quando cinco anos depois aceitei a Jamaica como o posto de que eu
precisava para ficar mais perto do Brasil, mas ao mesmo tempo para ter
também mais fácil acesso aos Estados Unidos, pois Ivony e eu estávamos
cuidando de dar a melhor assistência médica possível a uma filha doente, já
operada no Brasil e com boa recuperação, mas ainda com perigo de recidiva
159
SERVINDO EM BANGKOK E JAMAICA
— acreditei desde logo que o único propósito de trabalho que eu naquele
posto poderia ter era complementar meus estudos sobre a história da
escravidão naquela ilha, para comparação com a escravidão no Vale do
Paraíba, ao tempo do café. Interessava-me também a surda e feroz
competição que sempre houve entre a Inglaterra e os Estados Unidos pela
predominância naquela ilha, competição esta que, através da história, utilizou-
se: 1) do contrabando e da pirataria, da qual a Jamaica foi o maior centro
e o entreposto mais próspero no Caribe. 2) da religião, confrontando a
pompa e formalismo da rica e oficial religião anglicana, instalada em catedrais
e palácios, com a simplicidade e a informalidade iniciais das seitas
protestantes americanas, que fundavam igrejas onde até a véspera haviam
funcionado pobres moradias ou modestos pontos comerciais. A confusão
causada por este entrechoque religioso acabou na Jamaica com um
curiosíssimo acontecimento, que foi a criação de uma religião nova, o
Rastafarianismo. Pode-se salientar que a Jamaica foi o único país que, nos
tempos modernos, criou uma religião totalmente original, que se está
expandindo por outros países e continentes, desde então. E 3) Competição
na exploração da mão de obra barata da Jamaica, não só em todos os
trabalhos pesados de engenharia feitos pela Inglaterra e pelos Estados
Unidos em seus próprios territórios e pelo mundo (metrôs, túneis, pontes,
canais, etc.), mas também num tipo novo de agricultura que se instalou na
própria ilha, para o plantio intensivo de bananas, tal como feito pela United
Fruit, empresa de triste memória em todo o Caribe e América Central. Este
uso de trabalhadores negros fez com que metade da atual população
jamaicana hoje viva longe da ilha, na Inglaterra, nos Estados Unidos e no
Canadá.
Devo aqui mencionar muito brevemente todos esses assuntos que faziam
parte de meus estudos e das informações que eu enviava ao Itamaraty quando
servi na Tailândia e em seguida na Jamaica, mas considero que tais informações
apenas serviam para alimentar os arquivos, pois a única coisa que de mim
legitimamente esperavam era que eu comentasse os acontecimentos miúdos
da política interna ou da política regional, do país e da área em que eu servia,
acontecimentos que merecessem alcançar circulação internacional. Isto
também eu fazia, com a máxima regularidade, mas também não sabia se
meus comentários haviam sido aproveitados, com alguma consequência para
um mínimo planejamento político que o Itamaraty devesse ter para as relações
do Brasil com aqueles países ou aquelas regiões.
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
160
Por tudo isto, prefiro declarar ao leitor que nada fiz de importante naqueles
dois postos, em que passei cerca de nove anos, até voltar para o Brasil para
aposentar-me. Nada fiz de novo, nada criativo, tudo era simples rotina. Com
o passar dos anos, até o grande feito do reconhecimento de Angola ia-se
esfumando na distância, gradativamente perdendo importância. A rigor, só
tinha maior significado e grandeza pelo fato de que o Brasil estava subjugado
por uma ditadura, da qual não se podia esperar um gesto como aquele.Na
verdade, um simples gesto. Valentia autêntica e persistente fora a de Cuba,
que ano após ano, com imenso sacrifício para um pequeno e pobre pais,
vinha ajudando Angola a repelir todas as invasões da África do Sul em seu
território,
Enfim a ditadura vinha ingloriamente terminando no Brasil, já bem
apodrecida embora ainda insepulta no governo Figueiredo No primeiro
governo democrático que surgiu após o regime militar, graças à bondosa
iniciativa de amigos meus que haviam acompanhado tudo que vivi em Angola
em 1975, foi corrigida a injustiça que me fizeram,quando, no topo do Quadro
de Acesso, desde 1976, sofri cerca de noventa preterições nas promoções a
Embaixador. Minha promoção, feita a pedido de Ulysses Guimarães, foi a
primeira no Itamaraty,após a democracia restaurada, o que enfeita melhor o
meu curriculum vitae. Assim também, num gesto generoso, a Comissão de
Relações Exteriores da Câmara dos Deputados numa sessão solene
homenageou a mim e a Ítalo Zappa, com placas comemorativas em que destaca
os bons serviços que prestamos ao Brasil
Longe da África, mas sem esquecê-la
No decorrer dos nove anos que passei bem longe de Angola, na Ásia e
no Caribe, a África austral foi passando por interessantes transformações de
seu panorama político. Tais transformações eram em grande parte decorrência
da independência que as antigas colônias portuguesas haviam alcançado em
1975. Eram também resultado de um desgaste cada vez maior do regime do
Apartheid entre todos os demais povos africanos, principalmente aqueles
que por serem vizinhos, mais ameaçados estavam pelo odioso regime. Ou
seja, depois de 75, os países que formavam como que uma carapaça protetora
para a África do Sul, iam alcançando a independência e pouco a pouco
passavam a constituir potencial ameaça ao governo de Pretória que antes
protegiam . A antiga Rodésia, uma ditadura branca montada sobre noventa e
161
SERVINDO EM BANGKOK E JAMAICA
nove por cento da população negra do país, veio a tornar-se o Zimbábue
sob a chefia do Presidente Mugabe.A Namíbia, ocupada ilegalmente pela
África do Sul, também se tornou independente. Angola ajudada pelos cubanos
não só repelira todas as invasões de seu território, mas agora passava a
ajudar os novos países que se tornavam independentes na região.
No mundo inteiro também o regime do apartheid chegara ao máximo da
desmoralização. As sanções aplicadas pela ONU começavam a surtir profundo
efeito na África do Sul. Mais de mil grandes companhias de capitais ingleses
e americanos, que estavam há muitas décadas instaladas naquele pais,
retiravam-se precipitadamente com receio de serem contaminadas com a
impopularidade que o regime racista inspirava ao mundo inteiro.
Só então, quando a desmoralização do regime chegou ao ponto de levá-
lo a iminente desmoronamento, os ingleses e americanos conseguiram de um
novo Primeiro Ministro de origem holandesa , De Klerk, que fosse tirar
Mandela do cárcere a fim de com ele negociar um acordo, capaz de montar
um novo governo da imensa maioria negra, já sem a legislação do apartheid...
mas que,ainda assim, pudesse preservar a economia nas mãos dos brancos
nacionais ou estrangeiros.
Foi assim que, num passe de mágica, da noite ao dia, com entusiásticos
elogios da imprensa mundial, a África do Sul passou a viver com um governo
negro pobre e uma economia branca riquíssima, num equilíbrio por certo
muito instável, porque a miséria em que a imensa maioria negra da população
até hoje vive não foi aliviada, porque as insatisfações populares crescem
incessantemente e o governo se escora, ainda, somente no endosso que
Mandela lhe dê. Quando Mandela se for, todas as insatisfações do povo
estarão livres para se manifestar, a um só tempo,Todas as leis do apartheid
foram revogadas e isto certamente foi um progresso considerável que Mandela
conseguiu, como resultado de seu heroismo. Mas as leis de segurança nacional
que sustentavam o odioso regime racista permaneceram intocadas. São estas
as únicas comportas que tentarão conter um tsunami de insatisfações
perfeitamente previsível, embora sem prazo marcado.
Dirão alguns críticos que estou sendo pessimista demais, ao prever
grandes turbulências na África austral e na África do Sul em particular, pois
esse descolamento entre governo e necessidades do povo pode existir e de
fato existe em muitos países, principalmente naquelas ditaduras em que a
população não é homogênea, e que uma situação destas pode durar por
tempo indefinido. Eu bem sei isto. Mas estou atento a números, nesta
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
162
heterogeneidade da população. Se Barak Obama nada fizer para melhorar a
situação do negro americano, decepcionará só doze por cento da população
dos Estados Unidos. Esta proporção de insatisfeitos é contível. No caso da
África do Sul, a decepção será de noventa e cinco por cento da população.È
nesta proporção que está o problema...e o eventual desastre para castelos
que sejam construídos sem sólidos alicerces.
No ano .2.000 , estando eu já aposentado, a convite de um bom amigo,
participei de um seminário do Instituto de Pesquisas sobre Relações
Internacionais (IPRI) a respeito das perspectivas nas relações entre o Brasil
e a África do Sul. Minha contribuição ao Seminário constará das páginas que
seguem e não me parece estar desatualizada pelo tempo. Parece-me até ser
mais acurada, por alguns fatos que aconteceram no decorrer dos últimos
anos. Thabo Mbequi, com todas as boas credenciais inglesas que tinha para
governar o país, estava desgastado e com muito baixa popularidade no fim
de seu governo. O novo Primeiro Ministro assumiu o poder menos pela
importância que pudesse ter no partido de Mandela do que por ser chefe dos
zulus, tribo a que pertence. Durante todos estes últimos anos, o problema de
controle da AIDS não foi resolvido e as condições de vida nos guetos da
África do Sul não tiveram qualquer melhoria significativa.
Documento que apresentei a um Seminário do Instituto de Pesquisa
de Relações Internacionais em 2000
Uma Tentativa de Visão Política Realista das Relações entre o
Brasil e a África do Sul
Em 1975, estava eu como representante especial do Brasil em Luanda,
Angola, ao tempo em que uma invasão de tanques sul-africanos,
acompanhados por tropas da Unita e da FNLA, esforçava-se para chegar
àquela capital antes da data marcada para a independência, a fim de desalojar
o MPLA do poder e instalar Savimbi e/ou Holden Roberto como governantes
do novo país liberado de Portugal.
De 1975 até hoje, o MPLA continua como governo de Angola
independente, Angola sofreu várias outras intervenções sul-africanas que foram
repelidas, até certo momento, com a ajuda militar cubana - mas não teve, no
decorrer de todos esses anos, um só dia de paz. E isto porque a África do
Sul continuou a apoiar as guerrilhas de Savimbi contra o governo do MPLA,
163
SERVINDO EM BANGKOK E JAMAICA
fornecendo-lhe tropas e armas e, sobretudo, sustentando-o financeiramente
mediante a compra de diamantes das áreas que Savimbi assalta em Angola.
No dia 8 de outubro de 1999, os jornais publicavam que Savimbi, depois de
ter, durante anos, causado inúmeras dificuldades e prejuízos aos interesses
da cooperação do Brasil com Angola “declarou guerra ao Brasil e elegeu
instalações brasileiras em Angola como alvos de seus ataques”. No dia
seguinte, (9 de outubro), dizem os jornais que a De Beers, uma multinacional
que atua principalmente na África do Sul, mas também no Brasil, e que detém
o monopólio da compra de diamantes no mundo, afinal decidiu-se “a não
mais comprar diamantes de Savimbi”. É isto a confissão de culpa daquilo que
sempre foi um segredo de polichinelo. Mas como diamantes não têm
certificado de origem, a declaração não é conclusiva: Savimbi pode vender
diamantes por intermediários.
Começo este documento apontando essa contradição latente que já dura
24 anos, entre a África do Sul e o Brasil, em seus respectivos interesses na
África Meridional, porque é surpreendente que a África do Sul, tendo passado
por tantas transformações internas desde que aboliu o apartheid, haja
prosseguido, direta ou indiretamente, através da De Beers, uma política externa
de desestabilização de países vizinhos. Mais surpreendente ainda é esta
situação, se considerarmos que o MPLA sempre foi contra o apartheid,
tendo ajudado o Congresso Nacional Africano em sua luta, enquanto Savimbi,
ao contrário, já sob sanções da ONU, tornou--se nacional e internacionalmente
inaceitável como possível governo para Angola, justamente por ter-se aliado
aos racistas brancos que impunham o apartheid na África do Sul,
provavelmente com a intenção também de estender seu regime de
discriminação racial a Angola, como já haviam feito na Namíbia, que, então,
ilegalmente ocupavam.
Tal incongruência entre a política interna e a política externa da África do
Sul só pode ser explicada se levarmos em conta o curto prazo transcorrido
desde que Mandela assumiu o poder e a probabilidade das seguintes hipóteses:
1. A política externa que o partido de Mandela, lógica e
coerentemente deveria fazer - a de não ajudar Savimbi -ainda não é adotada
pelo Ministério de Relações Exteriores da África do Sul, onde remanescem
vestígios, influências e até personalidades do apartheid; ou
2. A política externa da África do Sul, seja no regime do apartheid,
seja na democratização decorrente dos entendimentos entre Mandela e De
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
164
Klerk é uma política intervencionista traçada pelas multinacionais, influenciada
pela Europa e pelos Estados Unidos - que no governo Reagan apoiaram
abertamente Savimbi - e tende a desestabilizar a África Meridional, em busca
de uma hegemonia da África do Sul que assegure maiores lucros aos capitais
europeus e americanos em toda aquela região.
Com a admiração que nutro pela personalidade de Mandela e pela
persistente luta do Congresso Nacional Africano contra o racismo e a
exploração dos negros na África do Sul, prefiro crer na primeira hipótese: a
de que o tempo do governo de Mandela foi curto e ainda insuficiente para
controlar verdadeiramente o país e apagar os últimos vestígios do apartheid,
principalmente nos reflexos que estes têm na política externa.
No entanto, tampouco posso descartar inteiramente a segunda hipótese
- a de que a África do Sul democratizada foi criada para ficar postada na
África Meridional como uma guardiã dos interesses capitalistas europeus e
americanos - porque pode ter sido esta a base dos cálculos dos racistas
brancos quando fizeram as concessões que levaram ao fim do apartheid. O
crescente conflito interno na África do Sul durante os últimos anos do
apartheid havia transformado a África do Sul em um pária internacional,
incapaz de influir pacificamente em países outros, sobretudo no continente
africano. Em sentido contrário, a atenuação do conflito interno e a concessão
de uma democracia formal, com toda a bombástica publicidade favorável
que mereceu na mídia internacional, teoricamente inverteria esta situação e
tornaria a África do Sul um foco de influência e atração para todo o continente
africano.
Na verdade, parece-me que é em torno dessas duas hipóteses que a
política interna e externa da África do Sul se entrechocam numa dificílima e
precária fase de transição. A simples concessão de votos aos negros, sem
uma distribuição mais eqüitativa de oportunidades de saúde, moradia,
educação e riqueza, permitiu que se formasse um governo de maioria negra.
Govemos de maioria negra existem em muitos outros países que foram antigas
colônias européias na África, sem que nenhum deles possa arvorar-se em
modelo para seus congêneres do continente africano. O que distingue a África
do Sul é a autenticidade provada em longa luta do governo de maioria negra
que lá se instalou, em confronto com a numerosa colônia de racistas brancos
que, até bem pouco, impunham, pela força, o regime do apartheid, em
proveito das multinacionais. É deste embate que continua entre o governo
negro e, de outra parte, os colonialistas e racistas brancos, que apóiam e
165
SERVINDO EM BANGKOK E JAMAICA
serão apoiados pelas multinacionais, que sairá uma África do Sul
verdadeiramente democrática. Porém, isto requer tempo. Pode-se dizer que
a África do Sul é um país recém-nascido. Mas ainda longe de livrar--se do
colonialismo. E isto porque o colonialismo lá era interno, explorava os negros
estando embutido no próprio cerne das estruturas governamentais. Esta era
a característica essencial do apartheid e o que o diferenciava do colonialismo
clássico.
Desde que a África do Sul se livrou do apartheid, estudiosos das relações
internacionais tendem a encontrar grandes similaridades daquele país com o
Brasil e a augurar relações muito promissoras entre ambos. A meu ver, tais
similaridades se caracterizam por abordar aspectos negativos da atualidade
dos dois países, tais como o desamparo e a miséria em que vivem as populações
negras em ambos os países, o vulto de suas respectivas economias em
desequilíbrio com as de seus vizinhos imediatos, a péssima distribuição de
renda que ambos os países apresentam, o analfabetismo de grande parte de
suas respectivas populações, e assim por diante. Tais similaridades não me
parecem contribuir para relações internacionais promissoras, mas sim para a
crescente ameaça de grandes turbulências internas em cada um dos dois
países. Com mais urgência na África do Sul.
A meu ver, muito mais importantes e significativas seriam as diferenças
que existem entre a África do Sul e o Brasil.
Desde 1822 o Brasil é um país com uma participação independente na
vida internacional, ainda que, por longos períodos, tenha sido submetido a
influências neocoloniais da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos. Em contraste,
a África do Sul foi colônia holandesa, depois inglesa, em ambos os casos colônia
não só de exploração, mas também de emigração para cidadãos daquelas
nacionalidades e, como a história registra, holandeses e ingleses lá nunca se
entenderam e disputaram preponderância até em guerras. Foi na África do Sul,
lutando contra os bôeres, que o general inglês Kitchener inventou os campos
de concentração e a política de terra arrasada que outras nações belicosas
vieram a adotar posteriormente. Na realidade, na África do Sul independente,
a disputa entre holandeses e ingleses continua até hoje. Tanto uns quanto outros,
em seus propósitos colonizadores, defrontaram a aguerrida resistência de tribos
negras, como a dos Zulus, numerosíssima e ainda hoje caracterizada por sua
belicosidade. Embora, ao deixar de ser colônia, a África do Sul tenha passado
a ser membro do Commonwealth, com vida internacional independente, com a
vitória eleitoral dos descendentes de holandeses que instauraram o regime do
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
166
apartheid, o país logo saiu do Commonwealth. Com o apartheid, a África do
Sul foi tendo suas relações internacionais cada vez mais restritas: tornou-se
objeto de sanções internacionais, veio a ser um Estado-pária, até que se
entendeu, afinal, com a maioria de seu povo, que não é nem holandês, nem
inglês, mas africano. Só a partir desse momento, pode ter, verdadeiramente,
vivência internacional. A bem dizer, começa a ser país agora. Antes era um
entreposto colonial na África, protegido por uma carapaça, também colonial,
imposta a seus países vizinhos.
Assim, nisso tudo, a África do Sul é radicalmente diferente do Brasil. E o
é, também, de outros membros do próprio Commonwealth, como o Canadá,
a Austrália e a Nova Zelândia. Foi uma colônia turbulenta. Foi um membro
rebelde do Commonwealth. Foi um país pária na comunidade internacional
devido ao apartheid. Com uma história desta, ninguém pode assegurar-nos
agora de que sua democratização recente não venha a produzir novas
confusões e grandes conflitos. Com a democratização formal alcançada, a
África do Sul apenas começa a engatinhar para uma democratização
verdadeira. E não é certo que alcançará uma democracia verdadeira sem
lutas acirradas.
O Brasil foi o último país do mundo ocidental a abolir a escravidão que,
na sua prática, corresponderia ao regime do apartheid, ressuscitado e
modernizado, quase um século depois, na África do Sul. Ao abolir a
escravidão, o Brasil nada fez no sentido de soerguer o nível de vida dos
escravos. Deixou os libertos ao Deus dará, e tratou de importar imigrantes
europeus para ter mão-de-obra na agricultura. Durante quase um século,
deixou-se influenciar pelas teorias racistas que os países colonizadores da
África e da Ásia criaram como desculpa de consciência pelos crimes que
cometeram no mundo. Mas, pouco a pouco, a realidade se impôs no Brasil
mestiçado. Criou-se, então, no Brasil, a teoria de que o português era o
“colonizador ideal” nos trópicos, porque miscigenava. Criou-se, também, a
teoria de que a miscigenação era benéfica porque “embranquecia a raça”.
Embora não fundamentadas por dados estatísticos e contendo uma grande
dose de racismo, essas balelas tiveram um efeito colateral não intencional
mas útil, que foi o de atenuar barreiras raciais, de até incentivar a mistura de
raças criando, assim, uma nacionalidade mestiça unificada que fala uma só
língua e tem como símbolo máximo sexual a mulata Globeleza.
Na África do Sul, a tendência foi diametralmente oposta. Do racismo
colonialista europeu, os sul africanos brancos saltaram diretamente para as
167
SERVINDO EM BANGKOK E JAMAICA
teorias de raça superior pregadas pelo nazismo e assim buscaram
fundamentação para a criação do apartheid. O resultado é que a África do
Sul é hoje um país dividido por etnias conflitantes, que usam dez línguas
oficiais. Mesmo depois de formalmente abolido o apartheid, mesmo depois
de instaurado o governo de Mandela, no interior do país, em áreas onde
predominam os bôeres, brasileiros de passagem relatam-me terem encontrado
em pleno uso vestígios da separação racial, tais como mictórios separados
para brancos e para negros. Os primeiros, bem construídos e impecavelmente
limpos. Os segundos em insólitos cubículos de zinco, simples fossas sujas,
verdadeiras pocilgas. É também notório que no interior da África do Sul
assassinatos de negros vão sendo benevolentemente tratados pela polícia e
pela justiça brancas.
A África do Sul, com uma população de quase 40 milhões de habitantes,
tem um contingente enorme de imigrantes recentes, legais ou ilegais.
l
Entre
esses imigrantes, existe uma parcela numerosa de portugueses, que os
propugnadores do intercâmbio Brasil-África do Sul apontam como
intermediários ideais para que negócios sejam entabulados entre os dois países.
De minha experiência da guerra e do êxodo de brancos que houve em Angola,
devo esclarecer que essa imigração portuguesa recebida pela África do Sul
é, em grande parte, a fina flor do colonialismo mais renitente do mundo, que
foi o de Portugal na África. Brancos e mestiços assimilados que não podiam
- ou não tolerariam - sobreviver em Angola depois da independência, sob um
governo negro, fugiram para a África do Sul. E a mesma coisa aconteceu na
antiga Rodésia, em Moçambique, em todos os vizinhos da África do Sul que
se tornaram independentes. Ainda sob o regime do apartheid, a África do
Sul parecia a esses insistentes colonialistas e racistas um refúgio seguro. Na
medida em que a África do Sul agora se modifique, sob um governo também
negro, tais imigrantes refugiados tenderão novamente a levantar acampamento
e partir para destinos que lhes pareçam mais seguros. Se lhes dermos
oportunidade, talvez até para o Brasil. No entanto, por sua visão colonialista
e racista, é evidente que esses portugueses não poderão ser bons
1
Segundo dados do censo de 1996, da população total de 39.806.598, aproximadamente I
milhão de pessoas que não nasceram na África do Sul. residem no país. Destas, caca de 530 mil
vieram de países do SADC e pouco mais de 20 mil dos demais países africanos. Sendo oficiais,
esses dados certamente não incluirão os contingentes de imigrantes ilegais de países vizinhos.
(Censo populacional de 1996 na Internet www.statssa.gov.zalc.ensus96).
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
168
intermediários em qualquer comércio entre o Brasil e a África do Sul, pois
sequer serão capazes de entender a realidade brasileira.
O modelo de civilização que, nas condições de um mundo unipolar, com
regras ditadas pelos Estados Unidos, foi aplicado na África do Sul - foi o
modelo do American way of life.
2
As cidades sul-africanas, que nos tempos
do apartheid expulsavam os negros do centro urbano para as periferias
longínquas, tão pronto o sol se punha - vêem, hoje em dia, o centro da urbes
ocupado por negros a qualquer hora do dia ou da noite. Os brancos é que
agora se retiram da cidade à noite, rumando velozmente de carro para seus
subúrbios ainda exclusivos. Os negros que agora se aventuram como pioneiros
na cidade à noite são, por certo, aqueles que foram mais rebeldes ante o
apartheid, e que, por isto mesmo, tenderam a ser desempregados, meliantes
ou prostitutas. O mesmo aconteceu em Nairóbi no Quênia, que se libertou
dos ingleses, ou em Kinshasa, no Congo, que se libertou da Bélgica. Tornaram-
se cidades violentíssimas, tão pronto o sol se põe. É isso que agora acontece
subitamente em Joanesburgo, Pretória, na África do Sul, e afugenta, ainda,
as multinacionais. É uma violência racialmente direcionada, contra o branco,
como não poderia deixar de ser. E tal como aconteceu nos Estados Unidos,
é uma violência que tenderá a aumentar quando uma burguesia negra em
surgimento, com o fim do apartheid, começar a querer morar nos mesmos
subúrbios exclusivos onde, hoje, os brancos se trancam e retrancam.
Reproduz-se, na África do Sul, o conflito racial do American way of life.
A violência e a criminalidade brasileiras têm origem diversa e vêm dos
tempos do Brasil ainda colonial. Os escravos citadinos, os chamados negros
de ganho, reuniam-se à volta dos chafarizes da cidade, para suas tertúlias de
vagabundagem. Saíam arruaças, de negros contra negros. A polícia intervinha.
A capoeiragem era a forma pela qual os arruaceiros resistiam à polícia. Mas a
luta conhecida como capoeira não era exclusiva dos negros. Os negros
ensinavam-na aos brancos, nas brincadeiras infantis das casas Grandes. Como
curiosidade, basta lembrar que José Maria da Silva Paranhos, o barão do Rio
Branco, na sua juventude, em fins do século XIX, foi exímio capoeirista. E a
capoeira é hoje ensinada em academias de artes marciais, por todo o país.
2
Sobre o American way of life vide entrevista concedida pelo consagrado historiador John Hope
Franklin ao Jornal do Brasil em 23 de outubro de 1999 intitulada “Tente ser negro e pegar um
táxi em Nova York” Como o título sugere. a entrevista revela o quanto de discriminação racial
ainda persiste na vida norte.americana.
169
SERVINDO EM BANGKOK E JAMAICA
Veio depois a abolição, e o abandono dos negros ao Deus dará. O maior
contingente de escravos no Brasil habitava as plantações de café no Vale do
Paraíba. Deixados ao léu depois da abolição, muitos tomaram o caminho do
Rio de Janeiro, pelos trens da Central. O primeiro morro onde assentaram
seus barracos foi o Morro da Providência, na ponta final dos trilhos da via
férrea, no centro da capital. Soldados que voltavam da Guerra de Canudos e
também lá foram morar, puseram o nome de favela no morro; que lhes
lembrava a vegetação existente no acampamento militar que defrontava a
destruída cidade sertaneja. Dali, com a chegada de novos contingentes de
pobres, na maioria pretos, desocupados da agricultura, as favelas se
espalharam por todos os morros do Rio de Janeiro, e hoje são mil e vinte,
entremeadas com os bairros de ricos.
É de se notar a grande diferença entre o habitat dos negros nas cidades
brasileiras e nas sul-africanas. Aqui, desde o começo, os negros moravam no
centro da urbes em formação, misturavam-se e conviviam com brancos
pobres (soldados, imigrantes, etc.) e com mestiços de toda espécie. A miséria
em que vivia esse povaréu recentemente instalado na cidade, em favelas e
cortiços, gerava violência, por certo. Mas não era uma violência racialmente
direcionada. O povo das favelas tinha livre trânsito na cidade a qualquer hora
do dia ou da noite e, nessa convivência com os brancos, a favela foi até
idealizada na música popular: “Favela de meus amores, Favela pertinho do
céu, Barracão de zinco, com um teto esburacado que espalha estrelas pelo
chão”. Seria imaginável tal idealização em Sharpeville ou Soweto? Por certo,
não.
Na África do Sul, o processo foi diferente. Os negros foram concentrados
em bairros só de negros, distantes quarenta, cinqüenta quilômetros da cidade
branca. Tinham direito de ir à cidade branca só para trabalhar. Terminado o
trabalho, ao anoitecer, tinham de voltar a seus tugúrios de SharpevilIe, de
Soweto, onde a polícia branca, a qualquer sinal de tumulto ou de rebelião,
promovia massacres de repercussão mundial. Pior ainda, o governo tudo fez
para privar os negros da nacionalidade sul-africana e confiná-los nos
bantustans conforme a tribo a que pertencessem. Com o fim do apartheid,
os negros agora, subitamente e em massa, fluem para as cidades. É certo que
a violência na África do Sul tem motivos subjacentes semelhantes à violência
brasileira: a pobreza, a miséria. Mas tem também um ingrediente novo que
mais se assemelha à violência nas grandes cidades americanas: é racialmente
direcionada. É como a violência de Watts em Los Angeles, ou do Harlem em
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
170
Nova York. Nisto a África do Sul seguirá o American way of life. O Brasil
precisa apenas melhor distribuição de renda para eliminar a pobreza de grande
parte de sua população negra, miscigenada ou branca. Convenhamos que é
tarefa ingente, embora menos difícil.
Outro ingrediente cultural que muito distingue o negro sul-africano do
negro brasileiro é a religião. A religião católica que herdamos de Portugal é
uma religião campesina, iletrada, de tradição oral, interpretada pelos padres,
que não obriga - antes desaconselha - a leitura da Bíblia. As religiões
protestantes que foram incutidas aos negros na África do Sul obrigam a ler a
Bíblia. Há nisso uma importância essencial, pois a leitura que o negro faz da
Bíblia é diferente da que o branco faz: os judeus brancos foram escravos no
Egito dos faraós. Esses últimos, com todo seu poder e grandeza, eram negros.
Salomão deslumbrou-se com a beleza e as riquezas da rainha de Sabá, que
era etíope. Houve então, em certo momento histórico, uma inversão de valores,
uma espoliação dos negros pelos brancos, espoliação essa que tem de ser
revertida ou compensada, segundo os negros protestantes.
Essa leitura diferente da Bíblia, que redunda numa mitificação da Etiópia,
perfeitamente caracterizada na Jamaica dos rastafarianos
3
, é o traço comum
que existe entre todos os negros protestantes de língua inglesa, seja nas revoltas
negras do Caribe anglófono, seja nos esforços para a dignificação dos negros
americanos e ingleses, seja nas antigas colônias inglesas na África. A biografia
de Marcus Garvey reflete isso: expulso da Jamaica, onde pregava resistência
ao branco, foi para Nova York, onde continuou sua pregação. Expulso
também de Nova York, foi parar na Inglaterra, onde tornou-se mentor e
inspirador de Nkrumah, Nyerere, Kaunda e outros líderes africanos que
promoveram a libertação de seus países. Na África do Sul, a própria Igreja
Anglicana que, nos Estados Unidos e no Caribe, nunca teve maior relevância
política, por ser participante na antiga rivalidade entre colonos ingleses e
holandeses, muito contribuiu para o fim do apartheid, com as lideranças do
bispo Tutu e do reverendo Alan Boesak.
3
Quando o ras (duque) Tafari foi elevado ao trono da Etiópia sob o nome de Haile Selassie. com
os títulos de rei dos reis. leão de Judah. ele., os negros jamaicanos viram nisso a confirmação da
profecia bíblica da vinda de um Messias - “que salvaria a raça negra”. Saudaram, então, o novo
imperador da Etiópia como Deus, e por mais que os ingleses reprimissem esta crença. uma nova
religião se formou e até hoje cresce vertiginosamente no Caribe anglófono, com enorme influência
também na música e na cultura caribenhas.
171
SERVINDO EM BANGKOK E JAMAICA
A África do Sul é, assim, um país que nasceu tardiamente para a
convivência internacional e nasceu traumatizado como nenhum outro. O
apartheid era insustentável e De Klerk teve o bom senso político de terminá-
lo em tratativas pacíficas com os líderes negros. Teve a sabedoria de perceber
que quando a corda se estica demais, arrebenta. Mas as cicatrizes deixadas
pelo apartheid estão ainda muito abertas. E as reivindicações dos negros
por melhores condições de vida serão bem mais fortes e aceleradas do que
aquelas que o mundo já viu nos Estados Unidos, no Caribe, e em todos os
países onde o colonialismo disseminou a escravidão, tendo o cuidado de
dosar meticulosamente os contingentes de escravos em números e origens
tribais, de tal forma que os brancos não corressem maiores riscos. E tais
reivindicações serão mais fortes e aceleradas porque existe identidade de
línguas nos Estados Unidos, no Caribe e nas antigas colônias inglesas africanas,
enquanto as comunicações do mundo se aceleram com a televisão, com a
Internet, com a globalização.
As tratativas entre o bom senso de De Klerk e o heroísmo de Mandela,
a subseqüente eleição de Mandela à Presidência, a criação de um governo
de união nacional, a instituição de um tribunal presidido pelo bispo Tutu para
rever os crimes do apartheid e perdoá-los desde que confessados, tudo
isso criou um clima de euforia exageradamente saudado pela mídia internacional
como prenúncio do surgimento de um país pacificado, onde as multinacionais
pudessem funcionar em segurança. O imenso carisma de Mandela também
contribuiu muito para que isto ocorresse. No entanto, os esgarçamentos desses
cuidadosos remendos já começam a aparecer. De Klerk e seus partidários já
se retiraram do Governo de União Nacional. Sindicatos e comunistas, de
outro lado, já começam a afastar-se do CN A, acusando-o de inoperância
ante os graves problemas de desigualdade econômica entre brancos ricos e
negros miseráveis. Com isto, desgasta-se o carisma de Mandela, que, de
qualquer forma, está velho, sai de cena e já tem sucessor: Thabo Mbeki,
designado, eleito e empossado.
Passa a governar o país, então, Thabo Mbeki, líder incontestável do
CNA, designado por Mandela para presidente, mas sem o renome e o carisma
de seu antecessor. Se os confrontos que culminaram no fim pacífico do
apartheid fizeram com que 100 mil brancos emigrassem da África do Sul e
mil companhias multinacionais saíssem daquele país, as incertezas dessa nova
transição dentro de outra transição podem causar um êxodo maior, caso
Mbeki resolva, de fato, combater a pobreza que afeta a grande maioria da
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
172
população e abandonar a política neoliberal até agora prescrita pelo FMI e
seguida pela África do Sul.
A África do Sul ainda é, pois, uma incógnita, quanto à evolução de sua
política econômica e social. Temos de esperar para ver. Mas enquanto
esperamos, temos de conviver e comerciar com ela sempre levando em conta
que nossa política para com a África não precisa de intermediários, que a
África do Sul, com seus problemas internos não tem condições para
desempenhar tal papel e, sobretudo, que nosso ponto principal de intercâmbio
com a África é Angola, e não uma África do Sul que há 24 anos ajuda Savimbi
- que agora, em desespero, sancionado pela ONU, aparentemente
abandonado pela De Beers, “declara guerra ao Brasil”. Devemos estar atentos
a este fato, que em nada contribui para relações plácidas entre o Brasil e a
África do Sul.
Temos de estar também alertados para o fato de que as multinacionais
anglo-americanas propiciaram e aplaudiram as transformações pelas quais
passa a África do Sul, mas pretendem controlá-las, dosá-las segundo um
modelo específico. Esse modelo já não é o do Commonwealth britânico,
senão para questões de cerimonial. É o modelo americano. A democratização
puramente eleitoral de “um homem, um voto” é um passo gigantesco se
comparado ao racismo arcaico e excludente do apartheid. É preciso lembrar,
no entanto, que, em teoria, desde Lincoln os negros americanos também
podiam votar. Mas para a melhoria de suas vidas isso nada significou na
prática, até que os movimentos negros de fundo religioso se impusessem
como uma força política, já no governo Kennedy, um século depois. Na
África do Sul, o Congresso Nacional Africano foi criado em 1912 e tem seu
braço armado. Além disso, as proporções entre negros e brancos são
totalmente diferentes, as forças remanescentes do apartheid não terão
condições para transformar-se numa nova Klu-Klux-Klan. Tudo isto faz supor
que as transformações por que passa a África do Sul são incontíveis e serão
muito mais violentas e rápidas do que aquelas por que passaram os Estados
Unidos desde a Guerra de Secessão.
No entanto, tal como aconteceu nos Estados Unidos, as transformações,
num sentido de crescente e verdadeira democratização interna, podem deixar
de refletir-se na política externa e em nada impedem que os grandes interesses
das multinacionais conduzam a África do Sul a uma política imperialista em
relação a seus vizinhos africanos. Já não me refiro aos falsos países, os
bantustans que a própria África do Sul criou e que dela naturalmente
173
SERVINDO EM BANGKOK E JAMAICA
dependem para tudo, mas sim aos demais países que surgiram da
descolonização da África Meridional, Namíbia, Angola, Zâmbia, Zimbábue,
Moçambique. Na Namíbia, a África do Sul tentou falcatruar eleições e até o
último momento procurou manter sob domínio sul-africano o único porto de
águas profundas pelo qual a Namíbia poderia ter comércio internacional,
Walvis Bay. O intercâmbio da Zâmbia com o mundo, passa hoje,
necessariamente, pela África do Sul, porque a estrada de ferro de Benguela
foi sucateada pela guerrilha de Savimbi em Angola. O mesmo aconteceu com
o Zimbábue, dado que a estrada de ferro de Beira foi tornada imprestável
também pelas guerrilhas da Renamo que a África do Sul apoiava. Quanto a
Moçambique, esse vive, em grande parte, da mão-de-obra que fornece às
minas de ouro da África do Sul e agora essa última pretende fazer do porto
de Maputo, antiga Lourenço Marques, o escoadouro para a produção
industrial da área circunjacente a Joanesburgo. Tudo isso significa maior
dependência dos países vizinhos para com a África do Sul. Será esta uma
política a ser continuada após o apartheid? Conseguirão as multinacionais
incutir nos negros sul-africanos as mesmas noções de nação predestinada a
dominar outras - enfermidade de que sofrem os Estados Unidos desde que
começaram a intervir no Caribe, no México e na América Central?
Outra questão que merece referência e reflexão é a da criação de uma
zona de segurança do Atlântico Sul, proposta levantada pela África do Sul na
época do apartheid, aceita em princípio pela Argentina, mas repudiada pelo
Brasil. O propósito visível desse projeto, na formulação original sul-africana,
seria garantir a segurança da navegação na rota do Cabo, principalmente
para o suprimento de petróleo proveniente do Oriente Médio. O fim do
apartheid invalidará essa iniciativa sul-africana que principalmente servia para
atenuar o isolamento da África do Sul, sob sanções da ONU? Ou essa iniciativa
da África do Sul se insere numa estratégia mais ampla que também possa
interessar à África do Sul pós-apartheid? A meu ver, nesse período de
expectativas sobre a política interna e externa da África do Sul, tal projeto
deve ser mantido em congelamento. A Guerra Fria acabou, nenhuma ameaça
pesa atualmente sobre a segurança da rota do Cabo. A Guerra do Golfo
contra o Iraque provou que ameaças de interrupção de suprimento de petróleo
podem ser resolvidas no próprio Oriente Médio. O que mais nos interessa
atualmente é o suprimento de petróleo de Angola. É pois uma incongruência
que cuidemos da passagem de petróleo do Oriente Médio pelo Cabo, ao
mesmo tempo em que a África do Sul, mesmo democratizada internamente,
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
174
continua a ajudar Savimbi a desestabilizar Angola, enquanto Savimbi “declara
guerra ao Brasil”.
Em suma, enquanto esperamos que a África do Sul evolua e se defina
em sua política interna e externa, temos é de cultivar nossas relações com
Angola. Angola tem o petróleo que falta à África do Sul. E o petróleo tanto
serve como mercadoria como para meio de pagamento do incipiente comércio
que temos com a África Meridional. Deixemos, pois, com cuidado, que o
comércio com a África do Sul se faça, como tem sido feito em todos os
tempos, pelas multinacionais. Mas política comercial devemos ter para
incrementar o comércio com os vizinhos da África do Sul. Inclusive para
fortificá-los perante um país que se mostra agressivo na África, mesmo nesta
fase pós-apartheid.
Como indício dessa agressividade, que em certos momentos poderá servir
para atenuar contradições internas, temos o fato de que a África do Sul está
se armando. O programa de governo, adotado por Mandela e continuado
por Mbeki, prevê crescimento, emprego e redistribuição de riquezas e se
chama GEAR, de acordo com as iniciais em inglês de Growth, Employment
and Redistribution. Mas a África do Sul segue estritamente os ditames do
FMI, cuida da moeda, do déficit fiscal, do enxugamento da economia, de
privatizações. Nessas condições, não tem recursos para atender com a
necessária urgência às necessidades prementes de saúde, moradia, educação
e emprego da grande maioria de seu povo negro, até bem pouco tempo
humilhado, ofendido e excluído pelo apartheid.
É, então, surpreendente e até alarmante a notícia publicada na revista
New African (novembro de 1999), que cita também o Washington Post,
divulgando o fato de que a África do Sul contratou a compra de três
submarinos e quatro corvetas na Alemanha; quarenta helicópteros de último
tipo na Itália; e 28 aviões de caça na Inglaterra, tudo perfazendo uma despesa
gigantesca de 5 bilhões de dólares.
Para que servirão essas armas? Contra quem serão eventualmente usadas,
quando o próprio ministro da Defesa da África do Sul, Mosilloa Lekota,
quando interpelado na Assembléia, não conseguiu identificar qualquer ameaça
que pese sobre a segurança do país, nem nomear qualquer país como possível
agressor da África do Sul?
Enfim, tenhamos em vista um fato indiscutível: a África do Sul é um país
novo, que dá os primeiros passos na democracia e na convivência internacional.
Ninguém pode prever aonde esses primeiros passos conduzirão. E enquanto
175
SERVINDO EM BANGKOK E JAMAICA
esperamos para ver em que a África do Sul se transforma, cuidemos
rapidamente da melhoria das condições de vida de nosso grande povo
mestiçado e pobre. Mas este é um outro problema, que não diz respeito às
relações com a África do Sul e, portanto, não se enquadra no âmbito deste
estudo.
Se fosse necessário acrescentar algo ao artigo acima, escrito em 2000,
creio apenas conveniente lembrar o que está acontecendo no Zimbábue em
tempos mais recentes, com a reeleição de Mugabe. A minoria branca da
antiga Rodésia cedeu o poder a Mugabe e permitiu que o novo Zimbábue
tivesse um governo negro, apenas porque adotou a mesma fórmula de
conciliação e fim do apartheid que fora usada na África do Sul: a economia
do novo pais ficaria intocada, em mãos dos brancos, proprietários das
prósperas fazendas da antiga Rodésia. Envelhecendo no poder e respeitando
este contrato não escrito, Mugabe se desgastou em todos estes anos de
continuado governo, perdeu popularidade com seu eleitorado negro. Para
reconquistar popularidade, em tempos recentes, Mugabe mexeu na economia
do pais, exatamente onde antes não ousava tocar: fez uma reforma agrária,
tomou terras dos proprietários brancos. Bastou isto para que a mais recente
reeleição de Mugabe fosse considerada uma grosseira falcatrua e para que o
mundo anglo-saxão começasse a tentar derrubar aquele governo. No
passado, esta derrubada já teria sido tentada, pela violência. No presente,
vem sendo tentada através do Conselho de Segurança, sem grande sucesso.
E um dos empecilhos que mais incomodam aos inimigos de Mugabe é a
irresolução da África do Sul. O governo negro da África do Sul já começa a
ver na situação do Zimbábue o que pode ser o dilema da África do Sul
quando adiante começar a satisfazer as necessidades de seu povo, ainda que
em prejuizo dos capitais brancos do neo-colonialismo na África.
177
4
a
Parte
Continuando minha sina de Diplomata
removedor de mofo
Depois de aposentado, fui procurado por amigos do Ministério de Ciência
e Tecnologia, que me trouxeram um acordo negociado com os Estados Unidos,
acordo pelo qual a base de Alcântara, no Maranhão, destinada a atividades
espaciais do Brasil e, naturalmente, de países com os quais o Brasil tivesse
cooperação técnica programada – era praticamente cedida para uso exclusivo
dos americanos.
Pelo incrível acordo que iria à aprovação do Congresso, o governo
americano começaria por ter voz ativa na escolha dos países com os quais o
Brasil pudesse ter cooperação técnica em atividades espaciais. Em seguida,
sucessivas cláusulas, meticulosamente suprimiam qualquer pretensão de
autoridade do governo brasileiro sobre as atividades que os americanos
tivessem no território que lhes seria cedido na base de Alcântara.
Os containers que trouxessem ao Brasil o material americano a ser usado
na base americana incrustada na base brasileira de Alcântara, não poderiam
ser vistoriados pela alfândega brasileira. O transporte dos “containers” para
a base americana só poderia ser feito pelos americanos. A base americana
seria bem delimitada. As autoridades brasileiras lá não poderiam entrar. Se
na área delimitada ocorresse um crime, só a polícia americana poderia intervir.
Se ocorresse um desastre em qualquer lançamento e um foguete caísse sobre
a própria cidade de Alcântara, a polícia ou os bombeiros brasileiros não
poderiam cuidar do necessário socorro. Nem a imprensa poderia fotografar
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
178
as ruínas fumegantes... Para cúmulo de submissão, os americanos passariam
a ter direito de veto sobre as atividades espaciais que, na base de Alcântara,
o Brasil pretendesse ter com outros países.
Tudo isto me parecia simplesmente aberrante. Redigi um parecer,
apontando todos estes despautérios, entreguei o documento a meus amigos
do Ministério de Ciência e Tecnologia, que, com sucesso, conseguiram
fazer com que o miserável acordo fosse rejeitado pelo Congresso. Foi
esta, espero, minha última atuação como removedor de mofo. Mas a
quantidade de mofo-corrrupção, de mofo –subordinação, direi mesmo de
mofo- traição da pátria era assombrosa naquele acordo que foi para o lixo
da história.
Após tudo isto, só tive notícias ruins sobre a Base de Alcântara.
Primeiro, num lançamento de foguete, um desastre que matou duas
dezenas de cientistas especializados em atividades espaciais. Depois,
uma disputa de terras entre a Base, tal como planejada e instituída, e
reivindicações de organizações quilombolas. Como parece que os
quilombolas vão ganhando a questão, a Base já esta pensando em ter
outra localização.
Neste momento em que o Governo de Uribe está cedendo bases
para os americanos dentro de sete bases militares colombianas, ainda
que todos os demais países sul americanos se manifestem contra esta
concessão, o acordo que foi tentado com o Brasil e que assim foi
rejeitado, retorna à cena como um péssimo precedente. Uribe alega
que a concessão de bases aos americanos é feita “dentro de bases
colombianas” e que, desta maneira, haverá sempre como controlar o
que os americanos façam. Mas o fato é que se a concessão de bases
tiver as mesmas cláusulas que tentaram impingir ao Brasil, em Alcântara,
o que estará sendo cedido é soberania sobre o território nacional, e os
americanos assim terão obtido um estribo para utilizar a Colômbia em
qualquer aventura que pretendam na América do Sul. Devemos também
lembrar que a IV Frota americana, recentemente ressurrecta depois da
Segunda Guerra Mundial, está em busca de uma boa base naval em
que livremente atue nesta parte do Continente.
Estes empréstimos de bases militares a potências nucleares interessam
também ao TNP e ao Tratado de Tlatelolco.
O país que é desnuclearizado e empresta bases a potências nucleares
não pode garantir que o inquilino não use a base para estocar armas nucleares.
CONTINUANDO MINHA SINA DE DIPLOMATA REMOVEDOR DE MOFO
179
A UNASUL, organização de defesa dos países da América do Sul, teve
recentemente um encontro com o Presidente Uribe da Colômbia em Bariloche,
para ter melhor conhecimento do acordo em que as bases americanas serão
incrustadas em bases colombianas. Os acordos em apreço não foram
revelados , em meio a acaloradas discussões havidas no referido encontro.
Assim também, no mesmo certame, o Presidente Lula propôs que a UNASUL
se encontre com o Presidente Obama para melhor esclarecer este assunto.
Até o momento não vimos uma resposta do governo americano a esta
sugestão, que me parece acertada.
Algumas sérias dúvidas então persistem para a UNASUL. Uribe só repete
que as bases estrangeiras serão incrustadas em bases colombianas. Mas a
luta que estas tropas americanas vão travar em território colombiano, contra
as FARC e contra narcotraficantes, é um guerra de muito movimento, de
grandes correrias e perseguições, que por vezes até extravasam para o
território de países vizinhos, como ocorreu ainda recentemente na fronteira
com o Equador. Ainda mais , se nos acordos para a instalação das bases
constarem cláusulas que se assemelhem àquelas que os Estados Unidos
insistiram em ter, no acordo negociado mas não aceito pelo Brasil, para uso
da base espacial em Alcântara, cláusulas que negam totalmente ao pais
hospedeiro qualquer conhecimento do que pretende fazer o pais inquilino na
área que lhe é emprestada, alugada, ou cedida, a Colômbia — pais
desnuclearizado — não terá controle algum sobre as atividades guerreiras
que os Estados Unidos — a maior potência nuclear do mundo — exercerão
em território colombiano e áreas fronteiriças.
Nestas condições, a UNASUL terá de se lembrar que a América Latina,
ao assinar o Tratado de Tlatelolco e o TNP, insistiu em que a invulnerabilidade
nuclear é a única vantagem que a América Latina tem em ser desnuclearizada.
Por isto, como ficou claramente instituído em Tlatelolco, potências nucleares
que possuem colônias na área do tratado não podem ter armas atômicas em
suas dependências coloniais. Assim também, todos os países latino-
americanos, a um só tempo, devem fazer parte do tratado, pois se um deles
começar a construir, ou a ter bombas atômicas emprestadas, todos os seus
vizinhos estarão intimidados ou em perigo.
Por tudo isto, parece-me inevitável que este projeto de atuação militar
dos Estados Unidos, numa guerra de muito movimento em todo o território
da Colômbia, bem como a reativação da IV Frota americana, singrando
nossos mares , freqüentando nossos portos, com todas as armas atômicas
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
180
de que os americanos dispõem, com as munições radiadas de urânio ou
plutônio que já vão usando em outras guerras de outros continentes, venham
a reabrir todas as questões e dificuldades que os principais países latino-
americanos tiveram com os tratados de desarmamento nuclear Ou esses
solenes documentos servem à nossa invulnerabilidade, ou para nada nos
servem. E se já não nos servem, passarão a ser, como direi? Simplesmente
um monturo de bolor radioativo que deve ser removido com urgência, não
por mim porque já estou velho e aposentado, mas pelos novos e mais eficientes
removedores de mofo do Itamaraty.
181
Discurso do presidente da República, Luiz
Inácio Lula da Silva, na Assembléia Nacional de
Angola
Angola, 03 de novembro de 2003
Minhas primeiras palavras são de agradecimento a esta Casa, pelo convite
que tanto me emocionou, e ao povo que ela representa, pela acolhida carinhosa
com que me distinguiu.
Esta é a primeira vez que venho a Angola. Mas me sinto em casa, dadas as
semelhanças de nossas culturas.
Senhor Presidente,
Senhores e senhoras parlamentares,
O Atlântico nos une. Suas poderosas correntes tornam mais fácil navegar
entre a África e o Brasil.
Durante três séculos e meio, houve mais naus viajando de Luanda ou Benguela
ao Rio de Janeiro, Salvador ou Recife do que em qualquer outra rota.
Essas naus, no entanto, carregavam tristeza, violência e medo. O primeiro
elo entre meu país e este Continente não foi a liberdade, mas a escravidão. Esse
fato deixou cicatrizes profundas em nossas sociedades.
Para obter o reconhecimento de sua independência, o Brasil aceitou desfazer
todos os vínculos políticos que o ligavam à África portuguesa. Décadas mais
tarde, com o fim do tráfico de escravos, desfizeram-se também os laços
econômicos.
No século que se seguiu, posso dizer que o Brasil voltou as costas para a
África. Não apenas para o continente, mas também para o que há de africano no
país.
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
182
Somente em décadas mais recentes, quando a África dava seu grito de
independência, é que o Brasil voltou a despertar para este Continente irmão.
Meu país soube reconhecer os anseios de liberdade e autodeterminação dos
povos africanos, sua enorme riqueza humana e seu potencial político e econômico.
Apoiamos a descolonização e o fim do apartheid. Tornamo-nos importantes
parceiros da África nos organismos multilaterais, na luta pelo desenvolvimento e
no comércio internacional.
Contudo, manchamos esse capítulo ao mantermos, por tantos anos, o apoio
ao indefensável regime salazarista e à sua política nas então colônias ultramarinas.
Mas, de todos os episódios que marcaram aquele período, um, em especial,
é motivo de profunda alegria e orgulho para todos nós brasileiros: o reconhecimento
da independência de Angola.
Talvez seja essa a mais feliz das ironias de nossa história comum: ligados
inicialmente pela opressão, distantes um do outro durante um século,
reencontramo-nos naquele heróico 11 de novembro de 1975.
Ter sido o primeiro país a reconhecer a independência angolana é, sem dúvida,
a mais bela página da diplomacia brasileira em nossas relações com o continente
africano.
Gostaria de fazer um reconhecimento público ao nosso representante em
Luanda à época, Ovídio de Andrade Melo que, naqueles tempos de dificuldades
e incertezas, de guerra em Angola e ditadura no Brasil, soube aliar com sabedoria
os valores e os interesses de ambos os países. O Centro de Estudos, cuja sede
provisória inaugurarei amanhã aqui em Luanda, levará seu nome.
Também o nome de Ítalo Zappa, então chefe do Departamento da África no
Itamaraty, merece ser lembrado nesse contexto.
Senhores e senhoras,
Ainda hoje sentimos os benefícios da aproximação com a África nos primeiros
anos de independência. Mas precisamos avançar mais.
Ao tomar posse como Presidente do Brasil, no início deste ano, determinei
que fosse dada prioridade ao aprofundamento de nossas relações com o continente
africano e, em particular, com os países de expressão portuguesa. Essa firmeza
de convicção decorre de moral e de uma necessidade estratégica.
Normalmente, a diplomacia é vista como o exercício de um cálculo racional
e frio. Mas, no meu modo de ver, a política externa também se faz com o coração.
E o coração nos une profundamente à África.
O Brasil é o país com a segunda maior população negra no mundo. Meu
governo tem plena consciência da obrigação que tem o Brasil de resgatar a dívida
ANEXO
183
histórica e moral para com os grupos sociais que mais sofreram e sofrem,
ainda, com a violência, a injustiça e a humilhação. Entre eles, estão os
afrodescendentes.
Por isso, pela primeira vez na nossa história, temos uma Secretaria
Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, com atuação nas
mais diversas áreas. Também, pela primeira vez, estamos incorporando
aos currículos escolares o ensino da história da África e da história e cultura
afro-brasileiras.
Estamos, assim, incorporando a África e a cultura afro-brasileira à realidade
e à vivência de milhões de crianças brasileiras para que, desde os bancos escolares,
possam conhecer e orgulhar-se destes elementos essenciais da formação de nosso
país.
Muitos têm dito que o Brasil precisa encontrar a África para encontrar-se
consigo mesmo. Esta é também minha convicção. E, por meio de Angola, estamos
encontrando a África.
Esse grande encontro não deve limitar-se aos governos. Deve aproximar as
sociedades.
Estou seguro de que, no que depender do Brasil, nada poderá dar mais
solidez às nossas relações com a África e Angola, em particular, do que o
reconhecimento do legado africano e angolano na nossa cultura, no nosso modo
de ser.
Mas, na minha visão, ter uma parceria privilegiada com Angola é um interesse
estratégico do Brasil. O imenso desafio de promover a inclusão social nos
aproxima. Podemos compartilhar experiências e desenvolver soluções para
problemas comuns.
O combate à fome e à pobreza é tarefa inadiável, que passa pela construção
de uma nova aliança mundial contra a exclusão social.
Nossos países e nossos continentes deverão desempenhar papel de
protagonistas nesta luta.
Tenho levado aos líderes dos países em desenvolvimento a mensagem de
que precisamos melhor coordenar nossa atuação internacional, inclusive nos foros
mundiais. Devemos lutar para revigorar o multilateralismo, pois ele é o garantidor
último do convívio pacífico entre nações e do respeito e tolerância mútuos entre
povos.
Não tenho dúvidas de que o comércio internacional tem grande potencial
para gerar a riqueza de que nossas nações necessitam para se desenvolver
econômica e socialmente.
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
184
Mas é inadmissível que os setores em que os países em desenvolvimento são
mais competitivos sofram o protecionismo dos países industrializados ou, também,
tenham de enfrentar a concorrência desleal dos subsídios milionários.
É mais do que evidente que o protecionismo agrícola, sob todas as suas
formas, causa grande prejuízo a nossos países, dificultando o combate à pobreza
rural, a promoção da segurança alimentar e a busca do desenvolvimento
sustentável.
A verdadeira incorporação dos países em desenvolvimento à economia global
passa, necessariamente, pelo acesso sem discriminação aos mercados dos países
ricos.
Mas tenho reiterado, meus senhores e minhas senhoras, que não nos basta
cobrar atitudes dos países desenvolvidos.
Os países em desenvolvimento devem assumir novo papel, mais afirmativo e
realizador. Os que dispõem de maior capacidade podem, e devem, ter políticas
solidárias em favor das nações mais necessitadas, explorando todas as
possibilidades de cooperação.
Apesar de nossas dificuldades, no Brasil estamos preparados para oferecer
aos nossos parceiros africanos e, em especial, a Angola, capacitação para formular
e executar políticas públicas nas mais diversas áreas, assim como tecnologias
compatíveis com suas necessidades específicas.
Estamos também dispostos a ampliar o acesso dos países africanos a nosso
mercado.
Vamos estudar fórmulas compatíveis com as regras da OMC, que permitam
aos produtos dos países mais pobres a entrada desimpedida no mercado brasileiro.
Creio que já dispomos de um arcabouço jurídico para tanto, no Sistema
Geral de Preferências entre Países em Desenvolvimento. Temos que nos valer
dele, com pleno reconhecimento das diferenças de nível de desenvolvimento.
Senhoras e senhores,
Prezados amigos,
Em Angola, como no Brasil, a esperança venceu o medo. Em nome do povo
brasileiro, congratulo-me com o povo angolano pela extraordinária paz alcançada.
Esta Casa é a melhor metáfora para a paz. Um parlamento multipartidário e
pluralista simboliza a sociedade em busca da conciliação de interesses por meio
do diálogo.
No Brasil, aprendemos essa lição ao longo de vinte anos de luta contra o
arbítrio e a ditadura. Na minha carreira como líder sindical e, depois, ao fundar
em 1980 o Partido dos Trabalhadores apostei, junto com meus companheiros,
ANEXO
185
na democracia como o único método que realmente nos permitiria transformar o
Brasil.
Foi com esse mesmo espírito que participei, como deputado constituinte,
do grande espetáculo de democracia que foi a elaboração da Constituição
Federal de 1988. Compreendi, com aquela experiência, o papel e os desafios
que se colocam ao Parlamento. Casa da democracia, o Parlamento é, por
excelência, local de diálogo dos partidos entre si, destes com a sociedade, e
dele com o governo.
É motivo de satisfação ver todas as forças políticas participando
ativamente da vida institucional angolana. Isto é motivo de esperança para a
democracia angolana e de confiança da comunidade internacional no futuro
desta nação.
Felicito todos os partidos angolanos por estarem conduzindo este país
grandioso no caminho da paz e da democracia.
Os angolanos, melhor que ninguém, sabem que não há desenvolvimento
sem paz. Angola tem diante de si o grande desafio da reconstrução nacional,
que exige a união de todo o país.
Volto a cumprimentar o povo angolano, que, mesmo nos momentos
de maior dificuldade, mostrou notável otimismo e vitalidade. Sabemos
que as qualidades do povo angolano, provadas nas horas de maior
dificuldade, e as riquezas com as quais o país é abençoado proverão a
energia necessária para a caminhada em direção à prosperidade e ao
desenvolvimento.
Brasil e Angola manterão e aprofundarão sua parceria estratégica. Não
economizarei esforços para apoiar nossos irmãos angolanos nesse desafiante
período de reconstrução. Incentivaremos os fluxos de cooperação, de
comércio e de investimentos brasileiros.
A educação é um instrumento essencial para o progresso humano, social
e econômico. Estamos colocando a experiência brasileira à disposição do
governo angolano para a implementação do programa Educação para Todos.
Queremos fazê-lo no quadro de um profundo respeito pela identidade
cultural e pelas tradições do povo angolano.
Senhores e senhoras,
Permitam-me uma referência especial ao nosso idioma comum, o
português de Agostinho Neto e Amílcar Cabral, de Luandino Vieira e
Machado de Assis, de Pepetela e Chico Buarque, entre tantos outros que
admiramos.
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
186
Nós, brasileiros, sentimo-nos atraídos por outros povos que falam a
mesma língua, quem sabe até por sermos o único país das Américas a falar o
português. Hoje, graças ao novo espírito de cooperação que nos irmana,
temos a grata experiência de descobrir a singularidade de cada país de língua
portuguesa, ao mesmo tempo em que celebramos nossa identidade coletiva.
Esse sentido de família e unidade está na base da Comunidade dos Países
de Língua Portuguesa, cuja presidência tenho a honra de exercer, neste momento.
Assim como aqui temos importante colônia brasileira, há no Brasil numerosa
comunidade angolana, que o povo brasileiro acolhe com muita alegria.
Está tramitando no Congresso brasileiro projeto de emenda à Constituição,
no qual estou empenhado, que estenderá aos cidadãos dos demais países da
CPLP as facilidades hoje garantidas aos cidadãos portugueses para a obtenção
da nacionalidade brasileira.
Como sabem perfeitamente, o Parlamento tem também responsabilidades
sobre a política externa, especialmente quando se trata da aprovação de tratados
ou destinação de recursos a certos programas.
Nesse sentido, gostaria de registrar o grande apoio que tenho recebido do
Parlamento brasileiro na política de fortalecimento das relações com a África e,
em especial, com Angola e os demais países de língua portuguesa. Foi, para mim,
motivo de grande satisfação o recente relançamento do Grupo Parlamentar Brasil-
Angola.
O Brasil sediará, proximamente, o Fórum dos Parlamentos dos Países de
Língua Portuguesa, no qual se discutirá, entre outros temas, uma proposta inovadora
de criação de um Parlamento dos Países de Língua Portuguesa.
Senhoras e Senhores,
Queremos ser aliados dos africanos na construção de um mundo mais justo,
seguro e solidário. Para tanto, estamos empenhados não só no diálogo no âmbito
dos organismos multilaterais de caráter universal mas, também, na aproximação
com a União Africana.
A cooperação da CPLP com organismos regionais ou sub-regionais africanos,
em situações de crise, demonstra a utilidade de estreitarmos este relacionamento.
Interessa-nos aumentar o comércio com a África, nos dois sentidos, e
investir no Continente, apoiando o esforço de recuperação continental que a
NEPAD representa. Quero deixar aqui a semente de uma idéia que poderá
prosperar. Gostaríamos de ampliar nosso intercâmbio também no plano
regional, por meio de um diálogo e aproximação da América do Sul com o
sul da África. O ponto de partida para essa iniciativa poderia ser um encontro
ANEXO
187
de cúpula com o Mercosul, que conta com valiosa experiência no terreno da
integração.
Nessa África ainda, por vezes, tão distante e pouco conhecida do Brasil, e,
aliás, da América do Sul, Angola é o nosso pouso seguro, a casa do amigo, a
referência do coração.
Cada vez mais, porém, este é o país de grandes potencialidades e dinamismo,
das oportunidades de negócios, de investimentos e, também, de novas parcerias
sociais e culturais.
Estivemos juntos durante a guerra, juntos permaneceremos sob o signo da
paz.
Essa é a minha expectativa, essa é a minha convicção e esse é o propósito de
meu governo.
Meus amigos e minhas amigas,
Nesta primeira visita que faço a Angola, e tenho reiterado em vários momento
da minha vida política – antes, durante e depois das eleições – que nosso querido
Brasil tem uma dívida histórica com o continente africano e, sobretudo, com
Angola. Entre os sinais que quero passar nesta minha visita é que estamos dando
os passos mais apressados para o pagamento desta dívida. Por isso, disse em
meu discurso que não medirei nenhum esforço, em nenhum momento do meu
mandato, para que possamos fazer tudo que for possível fazer para que a relação
entre Brasil e Angola seja a mais perfeita relação entre dois países e duas
sociedades.
E sinto mais emoção ainda de estar neste Congresso. Este Congresso, para
mim, simboliza muito. Eu perdi três eleições para Presidente da República e já
tinha perdido em 1982 uma eleição para o governo do estado de São Paulo.
Entretanto, em nenhum momento da minha trajetória política, eu deixei de acreditar
que fora da democracia eu pudesse encontrar os meios para chegar ao poder no
meu país.
A cada derrota tirávamos lição para que pudéssemos continuar crescendo e
nos organizando. Por conta disso, criamos o mais importante partido político de
esquerda da América do Sul. E quando estou numa Casa como esta, sabendo
que aqui neste país tem 126 partidos políticos, sabendo que aqui neste país, esta
Casa está representada por parlamentares de 126 partidos políticos, eu acho
isso excepcional, porque é humanamente impossível a construção de uma
sociedade justa e solidária, que todos nós sonhamos construir, se não aprendermos
antes a conviver democraticamente na diversidade, se não aprendermos antes
que a relação humana perfeita não é aquela em que o ser humano se subordina ou
OVÍDIO DE ANDRADE MELO
188
aquela em que o ser humano é obrigado a ser igual ao outro para poder ser
entendido.
A verdadeira democracia passa por um comportamento humano que, ao
invés de tentarmos querer que as pessoas sejam iguais a nós, a gente poderia ser
muito mais simples e apenas entender a diferença entre dois seres humanos, deixar
de lado aquilo que é divergente e trabalhar as convergências para construir o
consenso que a sociedade tanto espera de nós.
Eu penso que, no mundo, não existe nenhum país que tenha mais autoridade
moral para falar em guerra do que Angola. Foram muitos anos, primeiro numa
guerra contra Portugal e depois, muitos anos numa guerra interna. Eu acho que
qualquer historiador do mundo que queira escrever alguma coisa sobre guerra
terá que escrever sobre Angola.
Agora, um apelo de um Presidente da República que, antes de ser Presidente
da República e amigo de Angola, tem um profundo respeito pelo povo deste país:
se durante décadas vocês ensinaram ao mundo a guerra, eu queria pedir a vocês
que ensinem agora, ao mundo, a paz.
Obrigado.
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