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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO INTERUNIDADES EM ESTÉTICA E
HISTÓRIA DA ARTE
LUCIANE BONACE LOPES FERNANDES
Professor-artista-propositor: arte e vida em sala de aula
São Paulo
2009
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LUCIANE BONACE LOPES FERNANDES
Professor-artista-propositor: arte e vida em sala de aula
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
Interunidades em Estética e Hisria da Arte da Universidade
de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Estética e
História da Arte.
Linha de Pesquisa: Teoria e Crítica de Arte
Orientadora: Profa. Dra. Katia Canton
São Paulo
2009
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AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL
DESTE TRABALHO POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU
ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE
CITADA A FONTE.
Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de
São Paulo
Fernandes, Luciane Bonace Lopes.
Professor-artista-propositor: arte e vida em sala de aula / Luciane Bonace
Lopes Fernandes; orientadora Katia Canton. o Paulo, 2009.
224 f.; il.
Dissertação (Mestrado Programa de Pós-Graduação Interunidades em
Estética e Hisria da Arte. Linha de Pesquisa: Teoria e Crítica de Arte) ECA
FAU - FFLCH.
1. Arte Arte-educação. 2. Artistas brasileiros Lygia Clark lio
Oiticica Rivane Neuenschwander Rosana Palazyan. 3. Marcel Duchamp. 4.
s-Modernidade.
FOLHA DE APROVAÇÃO
Luciane Bonace Lopes Fernandes
Professor-artista-propositor: arte e vida em sala de aula
Dissertação apresentada ao Programa de s-Graduação
Interunidades em Estética e História da Arte da
Universidade de São Paulo para obtenção do tulo de
Mestre.
Linha de Pesquisa: Teoria e Crítica de Arte
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr.__________________________________________________________
Instituição:________________________ Assinatura: ______________________
Prof. Dr.__________________________________________________________
Instituição:________________________ Assinatura: ______________________
Prof. Dr.__________________________________________________________
Instituição:________________________ Assinatura: ______________________
Prof. Dr.__________________________________________________________
Instituição:________________________ Assinatura: ______________________
Prof. Dr.__________________________________________________________
Instituição:________________________ Assinatura: ______________________
DEDICATÓRIA
Aos heróis modernos... todos aqueles que, de uma forma ou de outra, lutam pela vida e pela
esperança.
Em especial, dedico este trabalho ao meu querido cunhado Abrão Vannunccini: que possamos
um dia nos encontrar longe das dores deste mundo e, com toda nossa família, sermos felizes
para toda eternidade.
AGRADECIMENTOS
São muitos os que merecem minha sincera gratio, aqui estão apenas alguns:
Katia Canton pela oportunidade e por ter inspirado toda esta pesquisa;
Lucia Gouvêa Pimentel pelo carinho, atenção e dedicação;
Lida Hrynko pela coragem de compartilhar um pouco de sua vida;
Rosana Palazyan pela artista e pessoa maravilhosa que é;
minha mãe por nunca medir esforços para que meus sonhos pudessem se realizar;
ao meu querido marido por sempre me incentivar em todas as coisas e me fazer acreditar que
tudo é possível quando se tem o desejo de vencer;
e a meus amados filhos, fonte da minha alegria e da vontade de esboçar uma outra história,
de inventar o presente.
Nenhum sucesso na vida compensa o fracasso no lar”.
David O‟ Mckay
RESUMO
FERNANDES, L. B. L. Professor-artista-propositor: arte e vida em sala de aula. 2009. 224 f.
Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte
da Universidade de São Paulo, o Paulo, 2009.
Este estudo é o desenvolvimento teórico de um conceito relacionado ao ensino da arte e intitulado
Professor-artista-propositor. As bases tricas pesquisadas para a crião desse novo conceito
foram fundamentadas em cinco artistas, quatro deles brasileiros. A partir da teoria, surgiram três
trabalhos práticos realizados por uma turma de estudantes de arte de uma escola pública do
município de Osasco, São Paulo. Estes trabalhos, desenvolvidos em 2007 a partir de temáticas
contemporâneas utilizadas e discutidas por artistas brasileiros da geração 1990/2000, o corpo ao
estudo de caso da pesquisa que segue e sugerem aproximações com obras de três artistas brasileiras.
Palavras-chave: Arte. Arte-educação. Artistas brasileiros.
ABSTRACT
FERNANDES, L. B. L. Professor-artista-propositor: art and life in the classroom. 2009. 224 f.
Dissertation (Masters) Graduate Program of Interunities in Esthetics and Art History from the
University of São Paulo, São Paulo, 2009.
This study is the theoretic development of a concept related to art education and entitled Professor-
artista-propositor. The theoretic principles researched for the creation of this new concept were
based on five artists, four of them Brazilians. Three practical works emerged from this theory. They
were carried out by a group of art students from a public school in Osasco, São Paulo. These works,
developed in 2007, from contemporaneous themes that were used and discussed by Brazilian artists
from the 1990/2000 generation, embody the study of this research by following and suggesting the
closeness of three works by Brazilian artists.
Keywords: Art. Art education. Brazilian artists.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO………………………………………………………………………….
11
CAPÍTULO 1 O PROFESSOR-ARTISTA-PROPOSITOR: UM CONCEITO............
13
1.1. O artista-propositor e a relação da arte com a vida................................................
13
1.1.1. Marcel Duchamp: a arte é iia......................................................................
14
1.1.2. Movimento Neoconcreto: a ruptura...............................................................
16
1.1.3. Lygia Clark: o molde......................................................................................
18
1.1.4. Hélio Oiticica: o corpo é o motor...................................................................
22
1.1.5. Rivane Neuenschwander: vasculhando memórias.........................................
26
1.1.6. Rosana Palazyan : o lugar do sonho...............................................................
30
1.2. A pós-modernidade: condições da arte e da vida...................................................
35
1.3. O professor-artista-propositor: outras considerações.............................................
41
CAPÍTULO 2 DA SALA DE AULA À EXPOSIÇÃO: QUESTÕES
METODOLÓGICAS..........................................................................................................
44
2.1. Escola de Artes César Antonio Salvi: aspectos físicos e sociais............................
45
2.2. Alunos do curso de Estudos sobre arte contemporânea: perfil ............................
49
2.3. Construindo a torre, Memória apropriada: lembranças de guerra e Auto-
retrato: (des) construções de identidades: o processo.......................................................
50
CAPÍTULO 3 CONSTRUINDO A TORRE..................................................................
65
3.1. Construindo a torre: análise dos trabalhos..........................................................
72
3.2. Construindo a torre e Ici là-bas aqui acolá: aproximações...................................
89
CAPÍTULO 4 MEMÓRIA APROPRIADA: LEMBRANÇAS DE GUERRA...................
91
4.1. Memória e testemunho: Lida na era das catástrofes............................................
92
4.2. Memória apropriada: lembranças de guerra: análise dos trabalhos....................
95
4.3. Memória apropriada: lembranças de guerra: outras considerações.....................
118
4.4. Memória apropriada: lembranças de guerra e ...uma história que você nunca
mais esqueceu?: aproximações........................................................................................
119
CAPÍTULO 5 AUTO-RETRATO: (DES) CONSTRUÇÕES DE IDENTIDADES..........
127
5.1. Identidade e pós-modernidade: breve contextualização......................................
127
5.2. A arte contemporânea e a questão da identidade.................................................
132
5.3. Auto-retrato: (des) construções de identidades e Madonnas históricas:
aproximações...............................................................................................................
133
5.4. Auto-retrato: (des) construções de identidades: análise dos trabalhos.................
138
5.4.1. Auto-retrato: (des) construções de identidades: os figurantes.......................
14
5.4.1.1. Aplaudindo a dança no Moulin Rouge...............................................
141
5.4.1.2. E. S. G. F. na ilha da Grande-Jatte.......................................................
144
5.4.1.3. Na barca de Giverny............................................................................
147
5.4.2. Auto-retrato: (des) construções de identidades: os coadjuvantes.................
149
5.4.2.1. A virgem dos rochedos........................................................................
150
5.4.2.2. Escutando... na estrada de Versailles a Louveciennes...........................
152
5.4.2.3. Três bailarinas no palco......................................................................
155
5.4.2.4. Retrato de Félix Fénéon e G. M. A. A. .................................................
157
5.4.2.5. Damas com arminho...........................................................................
160
5.4.2.6. Jeanne Hébuterne a mulher do artista e... ......................................
162
5.4.2.7. Força lavadeira, força!.........................................................................
165
5.4.2.8. A dança de Friederike Maria Beer e D. S..............................................
167
5.4.2.9. Auto-retrato com ídolo........................................................................
171
5.4.3. Auto-retrato: (des) construções de identidades: protagonistas?....................
175
5.4.3.1. Eu mesmo e mais alguém: retrato-paisagem.........................................
177
5.4.3.2. Menina com espigas menina com flores menina com mãe? ...........
179
5.4.3.3. Três jovens.............................................................................................
182
5.4.3.4. Retrato com paisagem outonal com uma vista de Het Steen.................
184
5.4.3.5. N. Lisa.................................................................................................
186
5.5. Auto-retrato: (des) construções de identidades: outras considerações..................
189
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................
192
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................................
198
ANEXOS
INTRODUÇÃO
Este estudo é o desenvolvimento teórico e pratico de um conceito. O conceito, intitulado nesta
dissertação como professor-artista-propositor, foi elaborado pensando-se nas possibilidades de
atuação do professor de artes dentro da sala de aula. Parte de um contexto particular da
pesquisadora.
A necessidade de se trabalhar em sala de aula temáticas contemporâneas impulsionou a
pesquisa. Essa necessidade foi percebida por mim quando freqüentei a disciplina Poéticas
Contemporâneas, de março a junho de 2007, ministrada pela professora Dra. Katia Canton dentro
do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de
São Paulo.
Comparando as temáticas abordadas por 70 artistas brasileiros da geração 1990/2000,
levantadas na pesquisa Tendências Contemporâneas realizada por Canton no Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de São Paulo MAC USP , de abril de 1996 a abril de 2000, com
os exercícios propostos aos alunos, pude verificar o distanciamento entre o que foi e é produzido
por esses artistas e o que eu, enquanto docente de uma escola blica de artes do município de
Osasco, estava trabalhando naquela ocasião.
No desenvolvimento do conceito do professor-artista-propositor, pode ser observada a
relevância de cinco artistas. Esses artistas buscaram, e ainda buscam, novas e diversificadas formas
de integração com blico, o que foi chamado por Lygia Clark e é um termo apropriado por mim
para esta pesquisa de artista-propositor.
Este pequeno mas relevante grupo de artistas brasileiros Lygia Clark, Hélio Oiticica, Rivane
Neuenschwander e Rosana Palazyan fundamenta os princípios teóricos do novo conceito. Essa
base teórica foi extraída analisando-se apenas uma obra de cada um dos artistas citados. O que pode
ser observado é que tanto Lygia Clark e Hélio Oiticica quanto Rivane Neuenschwander e Rosana
Palazyan, (re)apresentam em suas obras alguns conceitos desenvolvidos e praticados pelo francês
Marcel Duchamp. A partir da idéia do artista como um propositor e na relação estabelecida por ele
entre a arte e a vida, o conceito do professor-artista-propositor toma corpo e obtém meios de ser
praticado.
A prática do conceito se deu na mesma escola pública citada anteriormente. Dessa prática,
surgiram, além de outros, três trabalhos artísticos que sustentam a aplicação da teoria, o que foi
chamado nesta dissertação de estudo de caso. Desses três trabalhos, dois abordaram o tema
memória e um o tema identidade, encontrados na pesquisa feita por Canton.
O primeiro capítulo narra o desenvolvimento teórico do conceito do professor-artista-
propositor. O capítulo dois transcorre sobre a metodologia desenvolvida para a aplicação desse
conceito. Os capítulos três, quatro e cinco analisam todos os trabalhos obtidos através das
proposições Construindo a torre, Memória apropriada: lembranças de guerra e Auto-retrato: (des)
construções de identidades.
Para cada uma dessas proposições foram sugeridas aproximações com um trabalho de três
artistas brasileiras: Ici là-bas aqui acolá de Rivane Neuenschwander, a série ...uma história que
você nunca mais esqueceu? de Rosana Palazyan e a série Madonnas históricas de Gisela Benatti,
respectivamente.
CAPÍTULO 1 O PROFESSOR-ARTISTA-PROPOSITOR:
UM CONCEITO
Somos os propositores: somos o molde; a vocês cabe o sopro (...)
Lygia Clark
O conceito e, conseqüentemente, a expressão professor-artista-propositor surgiu a partir de
reflexões sobre a prática do ensino da arte em contrapartida com pressupostos teóricos enxergados
nos escritos e obras dos artistas Marcel Duchamp, Lygia Clark, Hélio Oiticica, Rivane
Neuenschwander e Rosana Palazyan. Em suma, este conceito se fundamenta em um tripé: a
interação efetiva do público com a arte, a relação da arte com a vida e a pós-modernidade.
O professor-artista-propositor, ao praticar esse conceito, assume o papel de artista-propositor,
que, por sua vez, formula propostas artísticas cujo desenvolvimento depende da participação do
público. No caso do professor-artista-propositor essa participação é feita pelos alunos. Este mesmo
professor enxerga na vida de seus alunos subsídios para compor suas propostas.
Vários são os pressupostos teóricos que serviram de base para a construção deste conceito. A
seguir serão feitas considerações sobre eles.
1.1. O artista-propositor e a relão da arte com a vida
A escolha dos artistas selecionados se deu pela percepção de características comuns entre eles
e que serão discutidas neste capítulo. Cada um dos cinco artistas pode ser chamado de artista-
propositor por não apenas apresentar seu trabalho ao público, mas por interagir com este desde o
planejamento, que é feito pensando-se nas possibilidades dessa integração, até sua concepção final,
considerando-se, assim, de extrema importância e necessidade a participação efetiva do público na
obra, estabelecendo co-autorias do artista com o espectador. Segundo Lygia Clark, artista-
propositor seria o nome dado à pessoa que disponibilizaria os meios para que o público pudesse ser
co-autor da obra de arte.
Serão destacados agora obras e pensamentos de cada um dos cinco artistas que auxiliaram na
construção deste conceito.
1.1.1. Marcel Duchamp: a arte é idéia
Marcel Duchamp, artista francês nascido em 1887 e falecido em 1968, foi, segundo Octavio
Paz, um dos mais influentes e importantes artistas do século passado. Até hoje, aspectos do
pensamento duchampiano são discutidos e reinventados nos trabalhos de diversos artistas, dentre
eles alguns brasileiros. 1
No desenvolvimento de sua nova estética, Duchamp pretendeu reconciliar arte e vida, obra e
espectador. Haveria, segundo Paz (2007), a necessidade do artista em transformar seu espectador
em um artista também:
Arte fundida à vida é arte socializada, o arte social nem socialista e ainda
menos atividade dedicada à produção de belos objetos ou simplesmente
decorativos. Arte fundida à vida quer dizer: a arte mais difícil. A arte que
obriga o espectador e o leitor a converter-se em um artista e em um poeta
(PAZ, 2007, p.61).
1 Artistas como Carmela Gross, Cildo Meireles, Félix Bressan, Regina Silveira, Nelson Leirner. Mais detalhes
sobre a relação de Duchamp com artistas brasileiros consultar: RIBENBOIM, Ricardo (org.). Por que
Duchamp? Leituras duchampianas por artistas e críticos brasileiros. São Paulo: Itaú Cultural: Paço das Artes:
1999.
Para Duchamp, assim como para outros que vieram após ele, a arte que não interage com o
público, que o se integra ao espectador e que não provoca reflexões, discussões e sensações é
uma atividade dedicada à produção de belos objetos ou simplesmente decorativos. (PAZ, 2007,
p.61).
Para Duchamp a arte é um meio de liberação, contemplação ou conhecimento, uma aventura
ou uma paixão, não é uma categoria à parte da vida e nisto começamos a perceber o quanto o
conceito do artista-propositor está interligado com a relação da arte com a vida. O artista que se
propõe a ter o espectador como um co-autor da obra está tão ou mais preocupado com as
transformações afetivas, culturais, sociais ou comportamentais que o culminar desse processo,
dessa experiência, do que apenas com o resultado estético da obra propriamente dito.
Creio que a arte é a única forma de atividade pela qual o homem se manifesta
como indivíduo. por ela pode superar o estado animal, porque a arte
desemboca em regiões quem nem o tempo nem o espaço dominam (PAZ, 2007,
p. 63).
Duchamp atribui ao espectador a conclusão da obra. tanta importância a essa participação
que declara que a criação artística se dá por doislos, o artista e o público.
Consideremos dois importantes fatores, os dois pólos da criação artística: de
um lado o artista, do outro, o público que mais tarde se transforma na
posteridade. (...) o ato criador não é executado pelo artista sozinho; o público
estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e
interpretando suas qualidades intrínsecas e, desta forma, acrescenta sua
contribuição ao ato criador (BATTOCK, 2004, p.71-72,74).
Figura 1. Fotografia de R. Mutt, Duchamp foi à fonte, 1917
Para Paz (2007), Marcel Duchamp ampliou os limites da arte evidenciando o vazio existente
em propostas anteriores, vazio este atribuído à não existência de um estreitamento entre público e
obra. Apresentou a neutralidade com o propósito da reflexão sobre o fato estético. Orientou o
pensamento artístico de toda uma geração posterior, a os nossos dias, substituindo o que ele
próprio denominava de pintura retiniana por uma reflexão sobre a arte.
Duchamp tornou-se uma espécie de fundador de uma tradição do pensar artístico de maneira
que aspectos duchampianos são retomados, adaptados e comentados por outros artistas. Seu
pensamento ressoou de forma profunda ao longo do século XX. Sua obra contém em germe
desenvolvimentos que os artistas que vieram depois dele impulsionaram, em um sentido ou em
outro. É possível perceber aspectos da obra de Duchamp rediscutidos e reinventados em trabalhos
de artistas brasileiros como Cildo Meirelles, Carmela Gross, Nelson Leirner, Regina Silveira, dentre
outros. Dentre os já citados anteriormente, Lygia Clark, lio Oiticica, Rivane Neuenschwander e
Rosana Palazyan, os dois primeiros são pioneiros no Brasil na busca de um outro tipo de fazer
artístico, uma nova concepção de obra, uma arte preocupada com as relações existentes com o
público, com a vida. Essa ruptura se deu a partir da década de 1960 com o grupo neoconcretista do
Rio de Janeiro.
1.1.2. Movimento Neoconcreto: a ruptura
A ruptura promovida por Hélio Oiticica e Lygia Clark foi de grande importância para a arte
brasileira.
As influências que culminaram no Concretismo chegam ao Brasil na década de 1930 com o
Construtivismo Russo e a formação da moderna arquitetura brasileira. A formação de uma
vanguarda artística geométrica no Rio de Janeiro e quase simultâneamente em São Paulo, no início
dos anos 1950, deu-se, sobretudo, pelo entusiasmo, por parte dos artistas, da crítica e do público,
pelas recentes exposições de Max Bill, Calder e Mondrian, principalmente a obra Unidade
Tripartida exposta na primeira Bienal Internacional de São Paulo, em 1951.
Tratava-se de levar à frente o trabalho de Malêvitch, Mondrian, Max Bill e dos concretistas
suiços. Essa tradição construtiva tinha como representante internacional máximo Max Bill e suas
obras, uma das formulações construtivas mais importantes da primeira metade do século.
A arte concreta pretendia duas transformações: a incorporação radical de processos
matemáticos à produção artística e a integração da arte na sociedade industrial.
Figura 2. Luiz Sacilotto, Concreção 5942, 1959, Coleção Adolpho Leirner, Museum of Fine Arts, Houston
O termo arte concreta foi criado por Theo Van Doesburg que declarou:
Pintura concreta e não abstrata, porque já passamos o período das pesquisas e
experiências especulativas. Em busca da pureza eram os artistas obrigados a
abstrair as formas naturais que escondem os elementos plásticos... Pintura
concreta e não abstrata, porque nada mais concreto, mais real que uma linha,
uma cor, uma superfície (BRITO, 1985, p.37-38).
Tendo como ponto de vista as produções artísticas realizadas nesse momento por artistas
estrangeiros, entendemos que optar pela arte concreta no início dos anos 1950 significava optar por
uma estratégia cultural universalista e evolucionista.
No final dos anos 1950, o projeto construtivo brasileiro entra em crise. Em 1959, ao perceber
significativas diferenças entre o grupo concretista de São Paulo (Grupo Ruptura) e os concretistas
do Rio de Janeiro (Grupo Frente), Ferreira Gullar, poeta e escritor do grupo carioca, escreve e
publica no Jornal do Brasil Suplemento Dominical, o seu Manifesto Neoconcreto. Diante dessas
diferenças, o Manisfesto Neoconcreto formaliza a cisão entre os dois grupos e novo nome à
vertente do Rio de Janeiro: neoconcretos.
A atitude neoconcreta, que desconhece a existência a priori dos elementos
constitutivos da expressão, implica uma descida à fonte mesma da
experiência, donde a obra de arte brotará impregnada daquele sentido não-
tético, emotivo, existencial (BRITO, 1985, p.76).
Essa assepsia promovida pelo concretismo produziu a limpeza necessária ao aparecimento de
um novo pensamento plástico no Brasil. O início da década de 1960 apresenta a continuidade das
propostas concretas e neoconcretas. Artistas desdobram suas propostas em direção ao pop e ao
experimental. Saem do plano bidimensional para o tridimensional, o ambiental, vivencial.
São intensas as discussões sobre o engajamento político nas mais variadas expressões
artísticas, na crença de que a arte, alargando o seu público, contribuirá para a transformação social.
A arte se constitui como o território da liberdade possível.
1.1.3. Lygia Clark: o molde
É dentro desse quadro de transformações poticas, econômicas, culturais e sociais que a obra
de Lygia Clark toma corpo. Suas obras denunciam a raiz construtiva e permanecem contrárias ao
exibicionismo característico da cultura de massa.
Tanto para Duchamp como para Lygia, o ponto de partida foi a superação do quadro de
cavalete para a entrada no domínio do tridimensional e, daí em diante, estabelecer relações da arte
com o público e com a vida. A grande invenção de Lygia está em construir estruturas móveis que
incitam ao toque, o à contemplação. A obra transita do escultórico ao arquitetônico e ao
cinético. (RIBENBOIM, 1999).
Lygia Clark, artista mineira nacional e internacionalmente conhecida, nascida em Belo
Horizonte em 1920 e falecida no Rio de Janeiro de 1988, propõe questões fundamentais que
inquietam a arte desse século, entre elas: uma crítica à própria arte, a problemática da relação
tempo/espaço, a negação da obra, a disfunção do artista e a fusão arte/vida. Na prática da arte, no
fazer artístico, derivam-se reflexões revertidas para a vida. E são justamente essas reflexões que
partem da obra de Lygia que são interessantes para investigação: como ocorre essa fusão entre a
arte e a vida e como a arte passa a ser proposta artística. Para tanto, será analisada a proposição
Caminhando como um recorte dentro da imensidão de propostas artísticas deixadas como herança
pela artista.
Caminhando, criada em 1964, é o ponto de tangência entre duas fases de Lygia: a primeira é a
fase de realização das obras, a segunda da poética; é um momento de irreversibilidade, quando para
a artista fica evidente, assim como para Duchamp, a importância absoluta do ato que integra sujeito
ao observador. A obra deixa de ser a materialidade do objeto para ser o ato de fazer a obra, o que
tornam sujeito e objeto totalmente indissociáveis. É a passagem da arte para a não-arte. Assinala o
início de uma fase que se estende até a morte da artista em que o espaço se amplia para o social.
Neste ponto de sua trajetória, Lygia e Duchamp aproximam-se no desejo de converter” o
espectador em um novo espectador. Duchamp, em seus escritos, fala da morte do espectador, mas
será realmente a morte? O fim? Considero que a palavra morte, neste caso utilizada, pode ser
entendida como renascimento, ou seja, quando Duchamp fala da morte do espectador propõe o
nascimento de um novo espectador: o participador.
Caminhando é o nome que dei à minha última proposição. Daqui em diante
atribuo uma importância absoluta ao ato imanente realizado pelo participante.
(CLARK, 1980, p.25)
Caminhando é um recorte de fita Moebius 2 (ANEXO 1) praticado pelo participante. A
escolha da fita de Moebius não é ingênua; cortá-la é percorrer um espaço contínuo sem avesso nem
direito, sem frente nem verso.
Figura 3. Lygia Clark, Caminhando, 1964
É a passagem literal do espaço bidimensional para o tridimensional. Caminhando oferece ao
participante aquilo que o trabalho alienante embrutece: a capacidade de, pela experimentação,
recuperar o lúdico e o prazer do ato.
2 Fita de Moebius (Möbius, no original) é um espaço topológico obtido pela colagem das duas extremidades de
uma fita, após efetuar meia volta numa delas. É o mais conhecido dos trabalhos de topologia realizados pelo
matemático alemão August Ferdinand bius, nascido em 1790 e que a desenvolveu em 1858. Diz respeito à
flexibilidade do material e à passagem do bidimensional para o tridimensional (fonte:
www.profcardy.com/matematicos. Acesso em novembro/2008).
Nessa proposta estética, Lygia pretende levar os participantes, através da gratuidade do gesto,
a “aprender o absoluto pelo ato de fazer”, o que possibilitaria ao homem contemporâneo redescobrir
no fazer uma nova significação e permitir que seu ato seja nutrido de pensamento, já que seu
trabalho, cada vez mais mecanizado, perdeu toda a expressividade. (MILLIET, 1992, p.52).
Figura 4. Lygia Clark, Caminhando, 1964
Interessante pensar na idéia de obra como trajeto, processo e não apenas produto final,
conceito que tem muita relação com as idéias de John Dewey sobre experiência estética. Para
Dewey (1859-1952), o que se aprende, se agrega, está também no percurso, na vincia subjetiva. A
experiência é um conceito identificado com a existência individual e social. Para ambos, Lygia e
Dewey, a experiência é determinante para a concepção e fruição artística, o que é, também, ponto
fundamental no sentido e existência dos Parangolés de Hélio Oiticica.
1.1.4. lio Oiticica: o corpo é o motor
Hélio Oiticica nasceu no Rio de Janeiro em 1937, onde faleceu em 1980. Participou do Grupo
Frente e posteriormente integrou o Movimento Neoconcreto juntamente com Lygia Clark, Ferreira
Gullar, Lygia Pape e Amílcar Castro.
A partir da exposição Nova Objetividade, ocorrida no Rio de Janeiro em 1967, Oiticica afirma
que a estrutura da obra mudou, não são mais pinturas nem esculturas, são ordens ambientais. Essas
ordens, por sua vez, passam a abranger o sensorial e o espectador torna-se um participador. Propõe,
então, que se busque a totalidade; em outras palavras, que se busque a dissolução das fronteiras
entre a obra e a vida, posicionamento semelhante às idéias desenvolvidas por Lygia Clark e Marcel
Duchamp.
Penetráveis, Núcleo, Bólides e Parangolés foram o caminho para a
descoberta do que chamo de “estado de invenção”. Daí é impossível haver
diluição. Não se trata de ficar nas idéias. Não existe idéia separada do objeto,
nunca existiu, o que existe é invenção (FAVARETTO, 1992, p.47).
Parangolé é a proposição com que Oiticica formula sua arte ambiental. Aqui as cores já não
estão mais contidas, mas soltas, envolvendo o corpo que as faz fulgurar no espaço por evoluções de
dança. A cor passa do campo do sensível para integrar o da técnica e expressão. E o corpo, por sua
vez, antes resumido à posição de receptor da obra, de espectador, passa agora a ser o gerador da
mesma. 3
3 Fonte:
www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3653&l
st_palavras=&cd_idioma=28555&cd_item=8. Acesso em maio/2008.
Figura 5. Foto de Geraldo Viola, Caetano Veloso veste Parangolé P4 Capa1, de Hélio Oiticica, 1967
Os Parangolés são capas, estandartes ou bandeiras para serem vestidas ou carregadas pelo
participante, agora pólo estrutural do sistema, de um happening. As capas são feitas com panos
coloridos (que podem levar reproduções de palavras e fotos) interligados, revelados apenas quando
a pessoa se movimenta. A cor ganha um dinamismo no espaço através da associação com a dança e
a música. A obra existe plenamente, assim como em Caminhando, com a participação corporal:
a estrutura depende da ação. A cor assume, desse modo, um caráter literal de vivência, reunindo
sensação visual, tátil e rítmica.
O Parangolé é concebido a partir da experiência do próprio artista com a dança, em
particular o samba, ao integrar uma escola de samba, a Mangueira. Oiticica acredita que através da
dança pode-se entender plenamente a relação existente entre espaço/tempo, relação essa que, com a
dança, qualquer pessoa pode perceber. A dança leva o participante a uma imersão no ritmo, na
verdade, a uma identificação completa e vital do ato com o ritmo. Para Oiticica, essa experiência
pode ser chamada de lucidez expressiva da imanência.
O crítico Mário Pedrosa comenta a origem da crião do Parangolé por Oiticica:
Foi durante a iniciação ao samba, que o artista passou da experiência visual,
em sua pureza, para a experiência de tato, do movimento, da fruição sensual
dos materiais, em que o corpo inteiro, antes resumido na aristocracia distante
do visual, entra como fonte total da sensorialidade. 4
Assim como Duchamp, atribui o ato criador também ao espectador, Oiticica afirma que o
Parangolé é a “incorporação do corpo na obra e da obra no corpo”, com o objetivo de dar ao
público a chance de deixar de ser apenas blico espectador para ser participante da ação criadora.
(FAVARETTO, 1992, p.107).
Figura 6. Nildo da Mangueira veste “Parangolé P4 Capa 1”, de Hélio Oiticica, 1964
Agora, em lugar de meramente contemplar a cor, Oiticica propicia a oportunidade de vestir-se
nela, fazendo com que o participante tenha uma vivência total. Transfere a experiência artística do
campo exclusivamente intelectual para também vivencial.
Oiticica concorda com Duchamp e Lygia na idéia da morte do espectador e o nascimento do
participante, que, ora completa a obra, ora é o motor propulsor da própria obra, gerando assim uma
experiência artística vivencial. O Parangolé necessita de uma ação, de um ato expressivo, que
4 Fonte: www.fig.br/edart/0/jardel.htm. Acesso em maio/2008.
revela a inventividade e improvisação do participante, tal qual acontece no samba. A ação é pura
manifestação expressiva da obra.
Sobre o objetivo da participação do público, Oiticica declara:
é dar ao homem, ao indivíduo de hoje, a possibilidade de 'experimentar a
criação', de descobrir pela participação, esta de diversas ordens, algo que para
ele possua significado. 5
Duchamp e Oiticica aproximam-se também no questionamento do estatuto da arte: a obra de
arte é apenas o ato artístico mumificado em um museu”, diz Duchamp. 6
Parangolé, portanto, não é uma obra, mas o lugar no qual a experiência artística se funda. Seu
objetivo é uma intensificação da vida, da agitação do pulso e da batida do coração, levando o
indivíduo a trocar a percepção artística pela expressão artística.
O que Oiticica nos propõe é uma estética da existência e não dos objetos, das formas de vida e
o das formas de arte, sendo a obra apenas o ato de fazer a obra. Com o objetivo de superar a
distância entre arte e vida, propõe a experiência como eixo condutor do ato artístico. O objetivo é
tirar o indivíduo da atitude meramente contemplativa e submergi-lo na sensibilidade ativa.
E essa estética da existência descrita por Oiticica tem estreito relacionamento com as
concepções de sua colega e contemporânea Lygia Clark que propõe práticas artísticas que derivam
reflexões para a vida. Nas palavras de Hélio,
Para mim, toda a arte chega a isto: transformar os processos de arte em
sensações de vida. 7
5 Fonte: www.fig.br/edart/0/jardel.htm. Acesso em maio/2008.
6 Ibid. Acesso em maio/2008.
7 Declaração delio Oiticica retirada do vídeo H. O. Supra Sensorial, de 1998, realizado por Katia Maciel.
Pode-se perceber que os meios utilizados por Lygia em Caminhando e por Oiticica em seus
Parangolés são muito semelhantes. Ambos se utilizam do participador como agente para suas
propostas, ou seja, como a força para realizar o ato artístico através do molde proposto por eles. O
produto final não é o mais importante e sim as vivências do processo.
Os dois trabalhos tamm têm propósitos semelhantes; ambos, Lygia e Oiticica pretendem
dar ao participante a oportunidade de passar por uma experiência artística. Lygia se utiliza da
manipulação da fita de Moebius para proporcionar uma reflexão sobre o ato, tirando o participante,
por um momento talvez, da mecanização imposta pela vida moderna. Oiticica propicia não
apenas a contemplação, mas a vivência artistíca através da dança e da cor.
Ambos introduzem esse novo espectador que efetivamente manipula o objeto, retirando daí,
como pretendem os dois artistas, sua experiência estética. para Duchamp, a participação do
espectador se no envolvimento, na descoberta, no decifrar da obra, nas relações estabelecidas
entre a obra e seu próprio mundo, na reflexão sobre o fato estético, e não especificamente na
manipulação da mesma: o público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior,
decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas (...) (BATTOCK, 2004, p.74).
1.1.5. Rivane Neuenschwander: vasculhando memórias
Rivane nasceu em 1967 e vive em Belo Horizonte. Fez inúmeras exposições individuais e
coletivas no Brasil e em países como França, Estados Unidos, Inglaterra, Espanha e Suécia, entre
outros.
Um tema por diversas vezes tratado pela artista é memória, tema este que será discutido
posteriormente. Rivane desempenha o trabalho de vasculhar memórias pessoais, o que configura
uma tentativa insistente contra a apatia e a amnésia geradas por uma panorama de excessos visuais e
de informação, fruto de nossa cultura.
Canton (2001), em pesquisa feita com jovens artistas brasileiros que atuaram de 1990 à 2000
Tendências Contemporâneas , descreve um pouco da artista:
Munida de afeto, lirismo e de uma certa melancolia, Rivane Neuenschwander
(Belo Horizonte, MG, 1967) articula a memória perene das coisas da vida.
Detalhes cotidianos se ampliam e se dignificam nas construções da artista,
que tem o dom desconcertante de criar beleza em tudo o que organiza.
(CANTON, 2001, p.43).
Rivane, assim como Duchamp, Lygia e Oiticica pode ser considerada uma artista-propositora
ao passo que também lança ao público propostas artísticas, estabelendo assim co-autorias.
Diferentemente dos dois últimos que se utilizam dos processos estéticos para despertar em seus
participantes sensações através da ação, Rivane procura, em seu trabalho Ici là-bas aqui acolá, de
2002, vasculhar memórias.
Ici là-bas aqui acolá é uma instalação que foi exposta na galeria Palais de Tokyo, em Paris no
ano de 2002. Nesse trabalho Rivane coleta e expõe 130 desenhos da Torre Eiffel representados
mentalmente por cidadãos de Belo Horizonte, ou seja, traduzidos por suas memórias. Em seguida,
disponibiliza aos espectadores uma escada que dá acesso à uma janela com vista para a Torre.
Figura 7. Vista da instalação Ici là-bas aqui acolá de Rivane Neuenschwander, 2002, galeria Palais de Tokyo
O que é notado nessa instalação é que a maioria das pessoas é capaz de imaginar mentalmente
a Torre Eiffel e muitas vezes chegar bem perto de seu formato. Isso ocorre devido ao
desenvolvimento da tecnologia de informação que permite acessos globalizados. Atesta a
reprodução sem fim da imagem da torre em souveniers, cartões postais etc. Em outras palavras, os
moradores de Belo Horizonte que participaram da proposta o tiveram a oportunidade de ter uma
experiência real em Paris, segundo a artista, mas a imagem da torre foi gerada em suas mentes a
partir de fontes secundárias.
As pias da Torre Eiffel circulavam em larga escala mesmo na época de sua construção.
Desde então um número considerável de souveniers tem espalhado sua imagem pelo globo. Ou seja,
a imagem da Torre na mente dos brasileiros pode não ter vindo da experiência real, mas foi antes
derivada, ou parcialmente influenciada, por essas imagens secundárias que foram muitas vezes
exageradas ou deformadas, ou criadas em função de memórias incertas (NEUENSCHWANDER,
2005).
A Torre Eiffel pode ser vista, naturalmente, da Palais de Tokyo que é rodeada de janelas de
vidro fosco com exceção de uma única vidraça transparente, por onde a torre pode ser enxergada.
Subir a escada afixada à parede não corresponde subir a Torre: o propósito de subir a Torre é para
ver Paris e não a Torre Eiffel propriamente dita; diferentemente disto, os visitantes que sobem a
escada não têm apenas uma visão mais ampla no exterior da galeria, como também uma vista
diferenciada de toda a exposição, mas principalmente, podem conferir e atestar as memórias
registradas no andar inferior a partir da visão privilegiada da Torre Eiffel.
Figura 8. Vista da instalação Ici là-bas aqui acolá de Rivane Neuenschwander, 2002, Galeria Palais de Tokyo
Sobre a relação existente entre a arte e a vida, Rivane afirma:
Arte: esde tal forma atrelada à vida que tudo, ou quase tudo, é alimento.
Assim, por exemplo, a casa se transforma em um grande laboratório onde
observo e sou observada por toda sorte de acontecimentos; dentro dessa
pequena esfera tento entender o mundo e o tempo em que vivo; nada muito
original, procuro bem ao meu redor as coisas que me ajudam a dizer a
respeito da dúvida (CANTON, 2001, p.187).
Observa-se que, mesmo mais de quatro décadas após as proposições Caminhando e
Parangolés, a integração da arte com o público e sua relação com a vida tornam-se características
presentes na arte contemporânea. Essa relação pode também ser percebida em outros artistas como
Rosana Palazyan, que discutiremos a seguir, Patrícia Franca, Hélio Melo, Tonico Lemos, Gisela
Benatti, Sandra Cinto, Rosana Paulino, entre outros 8; concluindo-se então que, Lygia Clark [e
Hélio Oiticica] inauguraram em seu sentido mais profundo a era da arte contemporânea no Brasil”,
mesmo vivendo num período moderno de nossa História, ao levantarem questões que ressoaram nas
gerações futuras de artistas, deixando assim heranças incontestáveis. (CANTON, 2001, p.142).
1.1.6. Rosana Palazyan: o lugar do sonho
Rosana Palazyan, artista carioca nascida em 1963, assume ter sofrido inflncias de Arthur
Bispo do Rosário. Após ver uma exposição do artista em 1989 no Parque Lage, local onde ela
estudou, começou a fazer alguns trabalhos com bordados e impressão por transferência a partir de
fotos ou cópias de fotos e também de imagens de jornais sobre tecido. Neste momento, a artista
estava abandonando a tela em busca de suportes mais maleáveis que pudessem ficar soltos. Assim
como Leonilson que, num reencontro com o ofício do pai, vendedor de tecidos, parte para o
bordado e a costura, Palazyan herda da avó uma tradição familiar: o bordado.
O trabalho de Rosana carrega forte inflncia de seus antepassados. Três de seus avós,
cristãos de origem armênia, nascidos em território turco, sobreviveram ao genocídio perpetuado
pelo Império Otomano fundamentalista que exterminou um milhão e meio de armênios entre 1915 e
1920. Cada um deles viveu em um acampamento da Cruz Vermelha. Depois do exílio na Grécia,
parte da família veio para o Brasil nos anos 1920. A artista conheceu a avó materna de quem ouvia
8 Para saber mais como Lygia Clark e lio Oiticica foram e são referência para diversos artistas brasileiros
consultar: CANTON, Katia. Novíssima arte brasileira: um guia de tendências. São Paulo: Iluminuras, 2001.
todas as histórias trágicas. Órfã de pai e sem recursos, a avó se tornou importante professora de
bordado na Grécia. (PALAZYAN, 2004).
Quando adolescente, minha avó sempre quis me ensinar a bordar e eu nunca
quis. Achava um ofício de mulheres do passado. Nunca aprendi, não sei
bordar. Afinal, nos trabalhos fui criando ponto a ponto o meu próprio
bordado, como se estivesse desenhando ou pintando (PALAZYAN, 2004,
p.12).
Algumas transformações radicais na obra de Rosana, como é o caso do bordado, no final de
1989, foram fruto de um duplo diálogo com a origem: a Armênia como matriz familiar, étnica e
religiosa e a a bordadeira. Inicialmente seu bordado configurava cruzes armênias, com seu
simbolismo de permanência da fé e aspectos sagrados e curativos. Segundo Paulo Herkenhoff, para
Rosana, “bordar testemunharia dois genocídios: o dos armênios e a decorrência do permanente
estado social de beligerância no Brasil”. Segundo a artista, em seu trabalho esses dois mundos se
unem através da arte. (PALAZYAN, 2004, p.13).
Em 1992 Rosana viveu o fato mais trágico de sua vida: Ricardo, seu único irmão, morreu
atingido por uma bala. Até hoje não se sabe se por bala perdida ou se foi atingido erroneamente em
perseguição policial a um automóvel semelhante ao seu.
A partir desse momento, a artista passa a operar uma correlação entre as timas de violência
e projetos sobre perda e dor. Entre 1992 e 1994, desenvolveu uma instalação com 3.000 hóstias que
recebiam a impressão do retrato de timas inocentes da violência, inclusive de seu iro.
Depois de realizar alguns trabalhos com bordado sobre Ricardo em tecidos e peças de roupas
que pertenciam a ele quando bebê e foram guardadas pela mãe, Rosana parte para a superação do
luto trabalhando em obras que abrangem problemas sociais. Denuncia a violência sexual, a exclusão
social, propondo assim, com seus bordados, uma “redescrição do mundo”. (PALAZYAN, 2004,
p.18).
Durante aproximadamente três anos, de 2000 a 2003, o desejo de aprofundar sua pesquisa, e
talvez romper o ciclo fechado das histórias que invariavelmente tinham um desfecho trágico, levou
Rosana a visitar o Instituto-Escola João Luiz Alves, na Ilha do Governador, Zona Norte do Rio de
Janeiro. Lá, ela conversou em visitas diárias, nos primeiros seis meses, e depois semanais, por
cerca de dois anos com mais de cem menores infratores, entre 12 e 17 anos, individualmente,
resultando em cerca de 80 horas de deo.
Logo no início, Rosana passou a sentir que não estava mais apenas por seu trabalho. Os
primeiros encontros eram marcados não somente pela conversa mas por outras atividades. A artista
ficou no Instituto-Escola até que o último menino que havia conhecido fosse posto em liberdade,
pois, segundo ela, não podia fazer com eles o que havia ouvido deles próprios: no início alguns
meninos não queriam conversar pois diziam que as pessoas iam até entrevistá-los e, no máximo,
em uma semana sumiam.
A artista entendeu que se fizesse a mesma coisa poderia contribuir com mais uma perda para
eles. Rosana acredita que tudo o que fez foi muito intuitivo e que seguiu suas sensações. Mas uma
certeza tem: em uma semana você não consegue conhecer tantos meninos, gerar trocas, criar
vínculos e encontrar respostas reais e sensíveis. E isso era tudo o que ela queria.
Depois desta instituição, Rosana percorreu outra que recebia jovens infratores em regime de
semi-liberdade (2003) chamada CRIAM. Durante estes anos, surgiram novas respostas para antigos
trabalhos e a artista ainda realizou mais um trabalho inédito para o Centro Cultural Banco do Brasil
de São Paulo chamado Medo. Com este trabalho voluntário também surgiu o projeto Roupa de
Marca, realizado entre 2000 e 2002.
Interessante ressaltar que o tipo de abordagem que a artista teve inicialmente com os meninos
e depois com os outros personagens de outros trabalhos, passou a ser utilizado pelas assistentes
sociais das instituições por onde ela passou e trabalhou. Estas assistentes consideraram a abordagem
de Rosana diferente e interessante para o procedimento de seu trabalho.
...um pedido para estrela cadente... foi fruto das respostas obtidas por Rosana à pergunta “Se
você visse uma estrela cadente, qual seria o seu pedido?”, feita aos menores do Instituto-Escola. Em
meio a uma realidade brutal e marginalizada, muitos o crêem em estrela cadente. Outros, entre o
desespero e a fantasia, revelam sonhos.
Este foi o trabalho que levou Rosana à instituão, e o último a ser realizado. Traz um
questionamento sobre o lugar do sonho junto a uma realidade tão violenta quanto a daqueles
meninos. A artista diz ter ido até a instituição em busca de respostas sobre os sonhos, se existiam ou
o dentro daquela realidade.
Apresentada na exposição O lugar do sonho realizada em 2004 no Centro Cutural Banco do
Brasil de São Paulo, ...um pedido para estrela cadente... consiste em uma sala escura com balões de
gás suspensos no teto e desenhados com tinta fluorescente o número de balões dependerá do
espaço onde a instalação for apresentada. Brilham sob luz negra, tal como o chão de pedriscos
brancos sobre o qual caminhamos. O balões podem ser lidos puxando-se para baixo os cordões
amarrados nas pontas. Cada balão contém um pedido feito à uma estrela cadente revelado à artista
durante as conversas.
Aqui, Rosana captura sonhos e desejos de crianças e adolescentes sem muitas perspectivas
favoráveis e lança-os ao teto, fazendo o caminho contrário da estrela cadente: o visitante puxa o
balão para ler o pedido e depois deixa-o “voltar ao céu”.
A artista trabalha ainda suas próprias memórias da infância, quando ficava deitada na grama
do jardim de sua casa e adorava observar o u estrelado durante muito tempo, a procura de
desenhos nas constelações e também a espera de uma estrela cadente para um pedido.
Assim como Rivane, Rosana capta mais do que o olhar do seu espectador. Através de “um
fazer parte”, estabelece um relacionamento de empatia com o público, que ora produz, ora
contempla, ora completa, quebrando, assim como Duchamp, o status do artista e democratizando a
arte.
Ici là-bas aqui acolá é memória; ...um pedido para estrela cadente... é desejo, ambos criados
a partir de cada pessoa a quem foi destinada a proposição moradores de Belo Horizonte ou
meninos do Instituto-Escola mas expostos ao público saem do privado e revelam-se ao espectador
sem cortinas: a realidade. Rosana pede ao espectador gestos simbólicos de solidariedade e
deslocamento para a perspectiva do outro: [...] manipular os balões como processo de comunicação
(...)”; é um pedido de aproximação. (PALAZYAN, 2004, p.21).
Rosana diz aquilo que parece socialmente indizível: o sonho do menor marginal ou
marginalizado? Quem quer ouvir? Ninguém? Mas são ouvidos, ou melhor, lidos.Traz à luz o que
ninguém, ou quase ninguém, quer saber que existe a miséria, a violência, o medo, o desespero.
No catálogo da exposição O lugar do sonho, lançado em 2004, Heloísa Buarque de Hollanda
diz que ao analisar Rosana “não pensou em Leonilson ou Bispo, mas em Clark e Oiticica que não
hesitaram ao deslizar da tela para o corpo, da performance para a atuação no espaço social, vivendo
a arte como percurso para entendimento do universo do outro‟ ”. (PALAZYAN, 2004, p.77).
Esse trecho de Heloísa Buarque de Hollanda comprova ainda mais a relação da arte com a
vida existente nas propostas de Lygia, Oiticica e Rosana. Somam-se aqui as contribuições de
Rivane ao investigar memórias alheias dando também à esta artista a oportunidade de “(viver) a arte
como percurso para entendimento do universo do outro”. (PALAZYAN, 2004, p.77).
1.2. A pós-modernidade: condições da arte e da vida
A relação arte/vida pretendida nessa dissertação é justamente aquela que corpo à arte
contemporânea. É falar de nossas vidas enquanto pessoas que vivem um momento pós-moderno ou
como disse Jean-François Lyotard (1924-1998), em uma condição s-moderna. Pessoas que estão
mergulhadas em instabilidades geradas por uma sociedade marcada pela informação virtual, pelo
consumo exagerado, pelo preconceito, por novos e mortais rus, uma eminente falta de água, a
falta de afeto, de densidade, aprofundamento nas relações, o achatamento da experiência, pelo fake;
por um tempo difuso, fragmentado, desplugado, que já não é mais cronológico, ou seja, que não tem
mais começo-meio-fim, mas que nos parece um eterno recomeço, um eterno presente, uma
experiência sempre superficial.
O termos-modernismo é polêmico; alguns autores consideram o fato de que a modernidade
ainda não acabou. Influenciada pelos escritos de Canton com relação à pós-modernidade a autora
sofreu inflncias do pensamento e formação intelectual norte-americanas assumo para a pesquisa
a “...pós-modernidade como um termo organizacional legítimo que facilita a percepção de
mudanças estruturais profundas que geram um novo pensamento e atitude por parte de artistas...e
outros nichos da população. (CANTON, 2001, p.156).
Como, então, entender o momento pós-moderno que vivemos e quais as diferenças concretas
e primordiais que o diferenciam e interferem na produção artística?
Façamos o exercício de voltar ao passado para compreender o presente:
Assim como o Expressionismo Abstrato marcou a arte moderna dos Estados Unidos, a Arte
Concreta tornou-se um importante marco no Brasil. O desejo de se reconstruir uma Europa
destruída pela guerra estabelece um paralelo com o desejo de um novo Brasil, que nesse momento
passa por um período de grandes promessas de desenvolvimento econômico. Os projetos de Lucio
Costa e Oscar Niemeyer transferem a capital federal para a nova cidade de Brasília, fundada em
abril de 1960. O concretismo espelha essas novas realidades e irradia modernidade e
internacionalismo. O resultado do crescimento da arte abstrata no Brasil foi marcante e, no início
dos anos 1950 o país viu surgir, sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro, movimentos de arte
concreta e neoconcreta.
Os anos 1960/1970 ganham novos contornos com a arte conceitual. Materiais precários e
muitas vezes efêmeros anunciam a possibilidade da arte se desgrudar de seus aspectos mais
objetuais, coisificados, mercadológicos para assumir papéis sociais e poticos. Atuando sob o
regime militar, artistas criaram estratégias simbólicas e metafóricas para penetrar o cerco à
liberdade de expressão, acusar a mercantilização da arte, apontar para a necessidade da interação
público/espectador, entre outras problemáticas enxergadas por eles. A forte repressão da década de
1970 provocou um solo comum de contestação política nas expressões culturais. Um bom exemplo
desse período é a obra Inserções em circuitos ideológicos do brasileiro Cildo Meireles e que se
caracteriza por esse espírito contestario, de denúncia e de interação com a sociedade. (CANTON,
2001).
Figura 9. Cildo Meireles, Inserções em circuitos ideológicos, 1970, colão do artista
Os anos 1980, segundo Canton (2001), marcam a transição da era moderna para a s-
moderna e configuram-se por profundas mudanças poticas. A derrocada do comunismo, a
conseqüente queda do muro de Berlin, que gerou a reunificação das duas Alemanhas, e a reforma da
China, que a coloca na economia de mercado, são fatores que contribuem para a passagem rumo à
pós-modernidade.
No Brasil, o fim do regime militar em 1984 com as eleições indiretas, a eleição de Tancredo
Neves, sendo este, por conta de seu falecimento, sucedido por José Sarney, marcam a abertura
política e a transição democrática.
Esse período também é marcado por um forte desemprego e a crescente oferta de consumo
relativa à industria cultural e tecnológica. Proliferam exposições de arte de grande porte,
espetáculos de teatro e balés.
A enorme força exercida por parte dos meios de comunicação influencia jovens artistas, que
formam a Geração 80.
As grandes telas e pinturas vigorosas que caracterizam a produção desta
Geração 80 incitam um reencontro com o prazer e com a emoção provocados
pelos gestos das pinceladas e pela cor, combatendo um certo tédio provocado
pela linguagem considerada hermética ou cifrada, que caracterizava o projeto
da arte concreta ou conceitual. Ao mesmo tempo, essas obras se nutrem de
comentários e questionamentos fora do âmbito da arte, que se referem à
realidade cotidiana e social brasileira (CANTON, 2001, p.24).
Podemos citar como importantes artistas que integraram a Geração 80 Leda Catunda, Daniel
Senise e Leonilson. Suas pinturas são marcadas pela comunicação direta com o espectador. Os
grandes formatos se relacionam a essa necessidade rápida e instantânea de chamar a atenção do
público, substituindo características sistematizadas da arte concreta e a agenda potica que movia a
arte conceitual. A Geração 80 inclui comentários sociais de forma bastante individual. São pintores
jovens e talentosos que produzem telas comerciáveis e se integram novamente ao sistema
mercadológico.
Figura 10. Daniel Senise, Sem título, 1985, coleção James Lisboa
Os anos 1990 anunciam novas transformações políticas, econômicas, culturais e sociais que
desnorteiam a ordem, inquietam e instigam. Essas mudanças ocorridas no panorama internacional
têm grande impacto sobre a produção artística da nova geração e passam a compor as bases para um
novo mundo. Entre essas transformações podemos citar o consumo desenfreado, a busca pela fama,
a importância excessiva dada à moda e à aparência, que encontra soluções próprias na tecnologia, o
crescimento de poluentes; o consumo máximo de informação em um mínimo tempo gerando um
estado de constante ansiedade na tentativa compulsiva de acompanhar o estado mutante das coisas:
um mundo que anestesia nossos sentidos.
O final do comunismo, a descoberta de novos e fatais rus, a internet, o pós-feminismo, as
guerras, o fluxo geográfico que instaura uma nova noção de identidade e nacionalidade, a
globalização, a redefinição da noção de tempo/espaço através dos clipes da MTV e as massas de
automóveis estagnadas no trânsito caótico das grandes cidades, tudo isso costura-se à produção dos
artistas da geração 1990/2000.
Ao nos defrontarmos com com essas transformações cada vez mais aceleradas e seus
desdobramentos, o novo ritmo faz-se sentir nas relações sociais, nos padrões de comportamento e
na mentalidade de seus sujeitos influindo nas suas formas de pensar e de expressar-se (CANTON,
2008).
Na contra-mão, alguns artistas contemporâneos adotam posturas indissoluvelmente ligadas às
amarras da vida. Clamam por um sentido, sentido que pode estar alicerçado nas preocupações
formais intrínsecas à arte, mas que finca seus valores na compreensão (e apreensão) da realidade,
infiltrada nos meandros da política, da economia, da ecologia, da educação, da cultura, da fantasia,
da afetividade. Esses artistas se engajam em tentativas de restabelecer na arte uma mensagem, uma
conexão com o observador para nele incitar algum tipo de postura diante do mundo e da vida. Arte
como potencializadora de uma visão mais crítica do mundo (CANTON, 2001).
O autor Zygmunt Bauman em sua obra O mal-estar da pós-modernidade (1998) traz algumas
reflexões que justificarão a produção dos artistas contemporâneos. No catulo O significado da
arte, Bauman diz que a arte contemporânea em vez de apenas refletir a vida, soma-se a seus
conteúdos.
Afirma que as imagens contemporâneas não representam, mas simulam; a arte cria não apenas
as imagens, mas também os seus significados: um significado ou sentido de identidade a algo
que não é significativo e que não tem identidade”; como, por exemplo, a apropriação de objetos,
ex-restos” como descreve Canton (2001), por parte da artista Rivane Neuenschwander para
compor suas obras. (BAUMAN, 1998, p.135).
A artista [...] trama exercícios de subjetividade que se iniciam no ambiente
doméstico e dele ecoam, [...] clamam aconchego e buscam o significado mais
pleno de nossa existência transitória no mundo (CANTON, 2001, p.44).
Em sua pesquisa Tendências Contemporâneas, Canton conclui que a produção e a atitude
desses artistas abarcam uma série de conceitos que “espelhados e refletidos na arte, também
espelham e refletem a vida contemporânea cotidiana em seus aspectos sociais, poticos, culturais,
econômicos”. (CANTON, 2001, p.13).
Desses conceitos emergem assuntos relacionados à realidade brutal brasileira e internacional e
que darão corpo à produção desses artistas. Os temas relacionados pela pesquisa são, entre outros:
herança e referência, narrativa, o aspecto literário da arte, da cultura e da comunicação, a
memória, o corpo, a efemeridade da vida e degradação dos corpos físicos, identidade, anonimato,
estranhamento, auto-imagem, política, solidão, abandono.
1.3. O professor-artista-propositor: outras considerações
A questão do artista-propositor, exemplificada e discutida através de Marcel Duchamp, Lygia
Clark, lio Oiticica, Rivane Neuenschwander e Rosana Palazyan, é essencial para que o conceito
possa ser praticado. Sem isso, o ato criador, citado por Duchamp, torna-se individual, ou seja,
apenas do artista, apenas do professor ou apenas do aluno. Para que haja criação e diálogo de ambas
as partes, a idéia ou conceito de artista-propositor deve ser praticada pelo professor-artista-
propositor.
Trazendo à prática, o professor-artista-propositor, em sua interação efetiva com seu público,
no caso os alunos, assume também o papel de artista ao formular uma obra ou uma proposta de
obra, uma proposição, e sugeri-la à sala. Desse modo, o aluno participa da ação artística planejada
pelo professor, algumas vezes mais delimitada, outras mais aberta.
A definição de artista-propositor foi imortalizada nas palavras de Lygia Clark. Em seu texto
de 1968 Nós somos os propositores, a artista diz:
Somos os propositores: somos o molde; a vocês cabe o sopro, no interior
desse molde: o sentido de nossa existência. Somos os propositores: nossa
proposição é o diálogo. s, não existimos; estamos a vosso dispor. Somos
os propositores: enterramos a obra de arte como tal e solicitamos a vos para
que o pensamento viva pela ação. Somos os propositores: não lhes propomos
nem o passado nem o futuro, mas o agora (CLARK, 1980, p.31).
Como Lygia declara em seu texto, o artista é um molde que precisa ser soprado pelo público e
coloca no mesmo a responsabilidade de completar a obra a partir do molde proposto, dando assim
sentido à existência do artista idéias bastante duchampianas. Sem essa integração, segundo ela, a
arte perde seu sentido, se distancia do público, assim como o professor-artista-propositor que
necessita da ação do aluno para o êxito de sua prática.
A proposição é o diálogo com a perspectiva de ambos agregarem experiências durante o
percurso. Lygia diz que enterra a obra de arte como tal para que o pensamento viva pela ação, o
apenas pela contemplação. Na sala de aula, o professor-artista-propositor busca, através de
estratégias metodológicas diversificadas, que as experiências, o percurso do ensino, possam agregar
conhecimentos e acredita que o pensamento do aluno advém também, e não somente, com o ato, a
ação. Uma discussão mais substancial sobre a prática do ensino, neste caso, seencontrada no
Capítulo 2 desta dissertação.
Hélio Oiticica também escreve um texto ao qual intitula Proposição do participador. Nele
comprova a semelhança entre suas iias e as de Lygia:
Para mim, na minha evolução, o objeto foi uma passagem para experiências
cada vez mais comprometidas com o comportamento individual de cada
participante; faço questão de afirmar que nãoa procura, aqui, de um novo
condicionamento para o participador, mas sim a derrubada de todo
condicionamento para a procura da liberdade individual, através de
proposições cada vez mais abertas visando fazer com que cada um encontre
em si mesmo, pela disponibilidade, pelo improviso, sua liberdade interior, a
pista para o estado criador - seria o que Mário Pedrosa definiu profeticamente
como 'exercício experimental da liberdade‟[...] (OITICICA, 1986, p.102-
104).
A citação acima: “o objeto foi uma passsagem para experiências cada vez mais
comprometidas com o comportamento individual de cada participante”, tem estreito relacionamento
com o que Heloísa Buarque de Hollanda escreve sobre Rosana Palazyan: “vivendo a arte como
percurso para entendimento do universo do outro”. Essa preocupação com o outro é o que aqui
chamo de relação da arte com a vida, o segundo item do tripé teórico. (PALAZYAN, 2004, p.77).
Como visto na pesquisa realizada sobre Marcel Duchamp, Lygia Clark, Hélio Oiticica, Rivane
Neuenschwander e Rosana Palazyan, a relação arte/vida levantada se baseia em extrair de nossa
própria existência subsídios que irão compor a proposta artística. Sendo assim, essa relação torna-se
indissoluvelmente presa à nossa condição pós-moderna.
Agora, é visto que todos os cinco artistas citados estabalecem também, cada um a sua época e
a sua maneira, uma relação com a vida do participante. Retiram de suas resignações, desejos,
sonhos, frustrações, memórias subsídios para elaborar suas propostas artísticas. Da mesma forma, o
professor-artista-propositor investiga e, a partir da realidade de seus alunos, procura meios de
penetrar e comentar a vida.
Como esses comentários não podem estar desplugados do momento pós-moderno vivido por
todos nós, visto que a arte reflete e comenta seu pprio tempo, o professor-artista-propositor deve
conhecer as transformações sociais, políticas, econômicas, culturais e comportamentais advindas
deste fenômeno e estar ciente da produção dos artistas contemporâneos para que suas propostas
tenham embasamento tanto na produção contemporânea como no mundo atual.
Quanto às estratégias metodológicas, serão escolhidas por ele de acordo com as necessidades
de sua turma, como pode ser percebido no estudo de caso. Algumas propostas poderão ser mais
livres como cita Oiticica ao dizer que a proposição é dar liberdade ao participante ou mais
direcionadas.
CAPÍTULO 2 DA SALA DE AULA À EXPOSIÇÃO:
QUESTÕES METODOLÓGICAS
Através das artes é possível desenvolver a percepção e a imaginação, apreender a realidade do meio ambiente,
desenvolver a capacidade crítica, permitindo analisar a realidade percebida e desenvolver a criatividade de
maneira a mudar a realidade que foi analisada (...) Uma das funções da arte-educação é fazer a mediação
entre a arte e o público.
Ana Mae Barbosa
Este capítulo narra as experiências práticas ocorridas com a aplicação do conceito do
professor-artista-propositor. Essas experiências ocorreram em uma escola pública de artes
localizada no município de Osasco, São Paulo.
A metodologia desenvolvida para a prática do conceito do professor-artista-propositor foi
elaborada e aplicada por mim a um grupo de adolescentes e adultos através do curso Estudos sobre
arte contemporânea. O desenvolvimento da metodologia foi baseado na Proposta Triangular para
o Ensino da Arte, idealizada por Ana Mae Barbosa, quando era diretora do Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de São Paulo MAC USP.
Foi pelo desejo e no esforço de encontrar uma proposta para o ensino/aprendizagem da arte
que satisfizesse tanto o discurso dito pós-moderno quanto o processo de diferenciação cultural,
também s-moderno, que, entre 1987 e 1993, a Proposta Triangular foi desenvolvida. A Proposta
Triangular deriva de um simples mas eficiente tripé de componentes do ensino/aprendizagem: o
fazer artístico, a leitura da obra e a contextualização, que não necessitam seguir essa ordem. 1
1 Mais detalhes sobre a Proposta Triangular consultar BARBOSA, Ana.Mae. A imagem no ensino da arte: anos
oitenta e novos tempos. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005 e Tópicos utópicos. Belo Horizonte: C/Arte, 1998.
2.1. Escola de Artes César Antonio Salvi: aspectos físicos e sociais
Antes de partir para as questões metodológicas, que são o foco principal deste capítulo,
gostaria de fazer uma breve descrição dos aspectos físicos e alguns aspectos sociais da Escola de
Artes César Antonio Salvi, cenário do estudo de caso, ou seja, local onde o curso de Estudos sobre
arte contemporânea foi ministrado.
A Escola de Artes César Antonio Salvi é uma instituição da rede pública municipal vinculada
e mantida pela Secretaria da Cultura de Osasco, com cursos livres voltados exclusivamente para o
ensino, aprendizagem, aprimoramento e divulgação das artes (Artes Plásticas, Artes nicas e
Música) na cidade e região 2. Relatarei um breve histórico sobre a instituição.
Figura 11. Vista da Escola de Artes César Antonio Salvi
2 A nova sede, localizada à rua Tenente Avelar Pires de Azevedo, n. 360, Centro, Osasco, foi construída em um
terreno de exatos 9.767,30 metros quadrados, com 1.600 metros quadrados de área construída. O arquiteto
responsável pelo projeto foi o sr. Luís Domingues de Castro Filho e o engenheiro o sr. Roberto Alves Batista.
A primeira Escola de Arte Infantil de Osasco foi criada em 17 de agosto de 1968 por
iniciativa do artista plástico e professor Joel de Godoy que, naquela ocasião, trouxe da Fundação
Armando Álvares Penteado - FAAP, instituição onde estudava e atualmente leciona, desenhos e
pinturas produzidos por crianças.
Em 1982, a Escola de Artes, até então chamada de “Escola de Artes da Prefeitura” ou
Escolinha de Artes”, recebe o nome de Escola de Artes César Antonio Salvi, em homenagem ao
músico e compositor da cidade, César Antonio Salvi, que há pouco havia falecido num acidente.
A Escola continuou crescendo, multiplicando-se e transformando-se. Em setembro de 2004
foi inaugurada sua nova sede.
A Escola, que conta com um direito de 3,5 metros de altura, está estruturada da seguinte
maneira: possui na parte inferior interna um hall expositivo (ANEXO 2), uma secretaria, um
depósito de alimentos, dois vestiários para funcionários, uma sala de direção com banheiro, uma
sala de apoio administrativo com banheiro, uma sala de vídeo, uma sala de escultura, uma cozinha,
uma cenografia com dois vestiários para os atores, um banheiro masculino, um banheiro feminino,
um banheiro para deficientes físicos, um teatro (ANEXO 3) e uma bilheteria.
O segundo piso está assim dividido: um almoxarifado, um espaço livre para pintura (ANEXO
4), duas salas de aula para os cursos de Artes Cênicas, uma sala de aula para os cursos de Música,
cinco salas de aula para os cursos de Artes Plásticas (ANEXO 5), um banheiro feminino (ANEXO
6), um banheiro masculino, um banheiro para deficientes físicos, que foi transformado em depósito
de material de limpeza, uma sala para os professores (ANEXO 7) e uma biblioteca (ANEXO 8).
Atualmente a Escola não conta com elevadores, apenas com uma escada que acesso ao andar
superior, impossibilitando o acesso de deficientes físicos. Segundo o projeto original, a Escola
deveria ter elevadores e mais um andar onde seria construído o anfiteatro, mas, por queses
políticas, partes do projeto foram abolidas, diminuindo a capacidade da Escola e impossibilitando
portadores de cadeiras de rodas ou outras deficiências sicas de frequentarem a maioria dos cursos
de Artes Plásticas, Teatro e Música e a biblioteca. Infelizmente essas pessoas têm apenas acesso aos
cursos de Escultura 1 e 2, Modelagem 1 e 2, Cerâmica 1 e 2, Ateliê Livre de Escultura e alguns
módulos de História da Arte.
Como é um orgão público e depende de recursos da Secretaria da Cultura, que nem sempre
estão dispoveis, a Escola também está privada de coordenadores para os cursos e um bibliotecário
por falta de verba.
A parte externa da Escola é formada por um grande jardim e um estacionamento com
capacidade para mais ou menos 80 vculos (ANEXO 9).
A Escola é de fácil acesso tanto para os moradores locais quanto aqueles vindos de regiões
circunvizinhas. Fica no centro da cidade, próxima a rios pontos de ônibus, inclusive próxima às
estações rodoviária e ferroviária.
A Escola, no início de 2008, contou com 2.800 alunos matriculados, sendo que
aproximadamente 1.900 matrículas foram feitas para os cursos da área de Artes Plásticas.
Importante esclarecer que a Escola aceita alunos de nove anos em diante, sem limite de idade, sendo
que a grande maioria que procura a Escola é formada por criaas e adolescentes entre nove e 18
anos.
Com relação ao poder aquisitivo, a maioria dos alunos é de classe economicamente
desfavorecida, moradores da periferia e que ainda encontram, na própria Escola de Artes, auxílio
para adquirir os materiais, que, na maioria das vezes, são comprados no início das aulas e
emprestados aos alunos carentes durante o ano.
Sobre os cursos, é possível dizer que a Escola possui uma grande variedade de módulos livres
anuais ou semestrais. Dentro das áreas de Artes Cênicas e Música, os módulos oferecidos em 2008
foram: Teatro, Dança/Teatro, Balé Clássico, Violão, Flauta, Percussão, Musicalização e
Canto/Coral.
Neste trabalho o foco o as informações referentes aos alunos de Artes Plásticas
matriculados em 2008. Estes são também matriculados a partir dos nove anos de idade e
distribuídos em módulos com duração de um semestre, nos períodos da manhã, tarde e noite. A
carga horária é de 3 horas/semana, correspondente a uma aula, com, aproximadamente, 16 aulas por
semestre.
A Escola, em 2008, ofereceu os seguintes módulos de estudo: Desenho 1 e 2, Estudos da
Paisagem 1 e 2, Figura Humana 1 e 2, Composição e Cor, Arte Abstrata, Pintura 1 e 2, Orientação
de Projeto Pessoal , Estudos sobre Arte Contemporânea, Caricatura, Atelê Livre: Modelo Vivo,
Ateliê Livre de Pintura, História da Arte no Brasil, História Geral da Arte 1 e 2, Hisria da Arte no
Século XX, Historinha da Arte (só para crianças), Iniciação Artística (só para crianças), Modelagem
1 e 2, Escultura 1 e 2, Cerâmica 1 e 2 e Ateliê Livre de Escultura. A Escola conta com 3
professores de Música, 5 de Artes Cênicas e 12 de Artes Plásticas.
Importante ressaltar que a prática do conceito do professor-artista-propositor se deu tamm
graças a visão da diretora da Escola de Artes, a Sra. Lilian Fernandes, e da coordenadora dos cursos
de Artes Plásticas (que atualmente não trabalha mais na Escola) que aceitaram e apoiaram o projeto,
fazendo assim da escola pública um local de experimentação e pesquisa, o que deve ser um
incentivo à outras instituições.
2.2. Alunos do curso Estudos sobre arte contemporânea: perfil
Na abertura das matrículas, em julho de 2007, o curso Estudos sobre arte contemporânea,
teve uma procura razoável e 22 alunos foram matriculados, sendo que o número máximo de alunos
permitido por sala é 30, por questões de espaço. Dentre os 22 alunos, quatro são homens e 18
mulheres; três adolescentes e o restante adultos.
Foi solicitado na primeira aula que os alunos preenchessem um questiorio com alguns
dados básicos (ANEXO 10).
Os dados contidos no ANEXO 11 refletem os resultados coletados através do preenchimento
deste questionário. Vale ressaltar que na primeira aula apenas 18 alunos compareceram e
preencheram o questionário.
É possível perceber com o resultado da pesquisa que as idades e as profissões são variadas e
que a renda familiar média é de R$ 2.375,00, o que não correponde à realidade econômica dos
demais alunos da Escola.
Um dado importante é que grande parte das instituições de arte visitadas por eles e dos cursos
realizados foram promovidos pela Escola de Artes, sendo que todos os alunos que responderam à
pesquisa fizeram pelo menos um curso na Escola. Dos 18 entrevistados, 13 realizaram cursos de
desenho e 17 fizeram cursos relacionados à pintura, como é o caso dos módulos Pintura 1 e 2, Arte
Abstrata e Orientação de Projeto Pessoal 1 e 2. Outros cursos citados pelos alunos, como por
exemplo, Composão e Cor, Estudos da Paisagem e Figura Humana englobam tanto o estudo do
desenho quanto da pintura. Sendo assim, é possível dizer que todos os alunos tiveram uma
experiência com o aprendizado da arte, por menor que tenha sido.
O que é percebido também, com base na análise dos programas dos cursos da Escola, é que
existe uma concentração de estudo e desenvolvimento de atividades, por parte dos professores,
sobre artistas modernos, e raramente os contemporâneos são citados. Conseqüentemente, durante o
curso de Estudos sobre arte contemporânea, o contato que os alunos tiveram com estes artistas
deixou a turma bastante surpresa.
Com relação à pergunta: Você sabe o que é arte contemporânea?, 14 alunos responderam que
o, e o restante respondeu que sim, mas nenhum deles citou algo sobre a relação da arte com a
vida ou algo referente à pós-modernidade, mostrando que esses são conceitos que foram
introduzidos como novos para a turma.
Outro dado relevante é que a aplicação do conceito do professor-artista-propositor pôde ser
feita para uma turma com idades distintas sem que houvesse problemas.
2.3. Construindo a torre, Memória apropriada: lembranças de guerra
e Auto-retrato: (des)construções de identidades: o processo
Faz-se necessária uma narração detalhada desta primeira parte do curso pois foi parte do
embasamento teórico que os alunos tiveram para executar as propostas feitas pela professora
(professora-artista-propositora). Iniciamos nosso curso no dia 31 de julho de 2007, uma terça-feira,
fazendo uma breve retrospectiva histórica, que durou 2 aulas 6 horas , acerca dos movimentos e
manisfestações artísticas do século XX: artistas e obras relevantes. Na verdade, partimos um pouco
antes, esclarecendo os movimentos do Realismo e Romantismo, ocorridos no século XIX, bases
para a discussão do século XX.
Essa abordagem histórica fez-se necessária porque verificou-se, em conversa com os alunos,
que muitos sentiam a necessidade de conhecer mais sobre os movimentos do século XX, que foram
de grande importância e “prepararam o terreno” para o que viria posteriormente.
A abordagem histórica se deu através de uma simples contextualização cronológica das
manifestações artísticas e seus principais representantes. Os ítens apresentados e discutidos em sala
de aula foram: Pré-Impressionismo através das obras de Degas, Impressionismo com obras de
Monet e Renoir, Pós-Impressionismo com obras de Van Gogh, Seurat e Schiele, Simbolismo com
obras de Gustav Klimt, Fauvismo analisando obras de Matisse e Gauguin e Expressionismo com
obras de Munch e Modigliani (ANEXO 12).
Ainda na primeira aula, para começarmos a discutir sobre arte contemporânea, nos
deslocamos do início do século XX até a atualidade. Aqui introduzimos algumas iias sobre arte
contemporânea, questões relativas à relação existente entre a arte e a vida, que corpo ao trabalho
de muitos artistas, a necessidade da arte dar conta das diferenças, das pluralidades,
multiculturalidades, inovações, renovações, angústias, desafios, a possibilidade de usar todos os
materiais, suportes e técnicas, sejam eles artísticos ou não, a diversidade de possibilidades artísticas:
o objeto, a performance, o deo, a instalação, o desenho, a gravura, a pintura, fotografia etc; e
também a liberdade que a arte contemporânea teria de referenciar outros movimentos ou
vanguardas.
Foram mostrados catálogos de alguns artistas brasileiros e livros escritos sobre os mesmos e,
em seguida, proposta uma discussão sobre o que cada um desses artistas pretendia com seus
trabalhos, que tipo de “inovações”, diferenças significativas os alunos poderiam encontrar nas
obras, que discurso estava implícito (ou explícito) nos trabalhos, enfim, o que era captado,
percebido por eles.
Cada um dos artistas discutidos havia sido escolhido com um propósito. Por exemplo, quando
um catálogo contendo trabalhos da Leda Catunda foi levado à sala de aula, o intuito principal era
mostrar aos alunos como a artista “abraçavaem suas produções materiais e técnicas alheios, no
pré-conceitodos próprios alunos, à arte por exemplo, a utilização de diversos tecidos. Abaixo,
uma tabela explicativa cruzando artistas e referências bibliográficas (fontes) com os interesses
pedagógicos do professor.
Artista
Catálogo ou livro
Interesse pedagógico
Leda Catunda
CHIARELLLI, Tadeu(org).
Leda Catunda. São Paulo: Cosac
& Naify, 1998.
Expor e discutir novos suportes,
materiais e técnicas até então
desconhecidos pelos alunos.
Shirley Paes Leme
LEME, Shirley Paes. Shirley
Paes Leme
Objetos/Instalações. Suíça:
Bienal Internacional de
Lausanne, 1992.
Apresentar aos alunos
instalações e tentar explicitar
seus conceitos.
Vários artistas
HUG, Alfons. Alegoria barroca
na arte contemporânea. Rio de
Janeiro: CCBB, 2005.
Demonstar, através do trabalho
de alguns artistas brasileiros
expostos por ocasião da mostra
ocorrida no Centro Cultural
Banco do Brasil do Rio de
Janeiro, a possibilidade de
artistas contemporâneos
referenciarem-se a outros
movimentos artísticos através de
suas obras.
Farnese de Andrade
ANDRADE, Farnese. Farnese
de Andrade. São Paulo: Galeria
de Arte de São Paulo, 1985.
A possibilidade da apropriação
de objetos para constituição da
obra de arte.
Fernando Velloso
VELLOSO, Fernando. Fernando
Velloso e a poética da matéria.
Paraná: Museu de Arte
Contemporânea do Paraná, 2001.
Explicitar, através de artistas
atuantes, que a pintura não foi
abandonada.
Josely Carvalho
Não foi trabalhado qualquer
livro ou catálogo
especificamente.
Uso da fotografia como
possibilidade de produção
artística.
Alex Flemming
CANTON, Katia. Alex
Flemming, uma poética... São
Paulo: Metalivros, 2002.
Mostrar a diversidade na
produção de um mesmo artista.
Tabela 1. Relação de artistas apresentados aos alunos e interesses pedagógicos da professora
Depois da discussão acerca desses artistas e temas, uma breve cronologia (ANEXO 13)
montada por mim foi entregue aos alunos e discutida. Assim terminou a primeira aula teórica.
No próximo encontro, uma semana depois, continuamos nosso percurso histórico através do
século XX. Partimos então do Cubismo, analisando as obras de Pablo Picasso e Juan Gris,
Futurismo com obras de Boccioni, Abstração discutindo sobre os trabalhos de Malevitch,
Kandinsky, Macke e Mondrian, Dadaísmo sendo colocado através das obras de Marcel Duchamp, a
Pintura Metafísica com Rousseau, Surrealismo com as obras de Salvador Dalí e Mi,
Expressionismo Abstrato através das obras de Pollock, De Kooning, Mark Rotko e Barnett
Newman e a PopArt sendo representada por trabalhos de Andy Warhol. Por último, foi feita uma
breve explanação cronológica sobre os movimentos artísticos do século XX no Brasil e a
importância de cada um deles. A linha histórica iniciou-se na Semana de 22 e passou pela Arte
Concreta e Neoconcreta, a Pop no Brasil, Arte Conceitual, Geração 80 e a Geração 90/2000
(ANEXO 14). É valido lembrar que o curso de Estudos sobre arte contemporânea é um módulo
teórico/prático e por isso os conteúdos teóricos, nesse momento, foram apenas “pincelados”, visto
que, no decorrer das propostas práticas, outros temas e conceitos seriam gradualmente
desenvolvidos.
Na aula seguinte, 14 de agosto de 2007, foi feita a primeira proposta prática, que também é
um dos três tópicos do estudo de caso desta dissertação: Construindo a torre.
Antes da proposta de trabalho ser lançada, os alunos tiveram um outro embasamento teórico,
que, neste caso, como trabalharíamos o tema memória, discutimos um pouco sobre o assunto
através de escritos de alguns autores e artistas.
Começamos então lendo trechos do livro Obra incompleta Vik Muniz 3. Em um dos
capítulos do livro intitulado O melhor da life 1988-1995, Vik Muniz relata uma experiência onde
ele perdera um livro com fotografias históricas e marcantes do século XX e, a partir desse
acontecimento, decide criar uma série de desenhos onde tenta, pela memória, se aproximar ao
máximo da fotografia. Depois compara, no próprio trabalho, as imagens criadas a partir da memória
com as fotografias originais.
Seguindo, foi citado um trecho do Manifesto Neoconcreto onde Ferreira Gullar explicita a
intenção dos artistas ligados ao grupo de “introduzir como prioritário”, entre outras coisas, “a
relação entre arte e vida”. (BRITO, 1985, p.29-30).
Depois dessas colocações e tendo como tema central da criação a memória, a atividade foi
proposta aos alunos. Partimos, primeiramente, da leitura, análise e contextualização de um grupo de
trabalhos desenvolvidos por uma artista brasileira que continham a temática memória como vértice
do desenvolvimento das obras.
Começamos discutindo as obras do catálogo Aquilo que se esvai da artista paulista Adriana
Rocha. O catálogo foi desenvolvido por ocasião da exposição de mesmo nome realizada na
Galeria Nara Roesler, em São Paulo, de abril a maio de 2003. Essa série foi produzida pela artista
em 2002. São cerca de 20 trabalhos: oito pinturas em grandes formatos (até 200x300cm), seis
pequenas (148X60cm), uma plotagem sobre adesivo aplicada à parede e uma série de seis imagens
3 ANJOS, Moacir dos. Vik Muniz obra incompleta. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2004, p.89-
99.
em transfer decorrentes do processo de impressão com o qual produz as figuras dos quadros. As
obras de Adriana resultam da associação de técnicas tradicionais, como a veladura, a outras
estranhas à tradição da pintura como a fotografia, o transfer, a estamparia e o lixamento.
Em primeiro lugar discutimos o nome da série criada pela artista e tudo aquilo que se esvaiu e
se esvaía da vida (escoa, desaparece, evapora) e da experiência dos próprios alunos. A partir dessa
discussão, o tema foi introduzido no universo particular de cada um. Em seguida foi solicitado à
turma que apontasse os motivos, os propósitos pelos quais a artista havia produzido a série: o que se
, por que as imagens são apagadas, quais técnicas utilizou, o porquê da utilização de outras
técnicas além da pintura, quais as impressões que causam.
Figura 12. Adriana Rocha, da série “Aquilo que se esvai”, 2002, Galeria Nara Roesler
Depois de levantadas todas as hipóteses dos alunos sobre as obras, foram apresentados trechos
do texto escrito pela curadora da exposão, Maria Alice Milliet que, de uma forma bastante
poética, interpretou o trabalho de Adriana:
Com estes recursos, Adriana transforma telas em espaços impregnados de
densa atmosfera poética, onde imagem e cor conduzem o espectador aos
vestígios da efêmera existência.
[...] Mais do que a aparência evanescente das figuras, o que perturba o
observador é o ter onde ancorá-las: os meninos, a jovem, os rostos surgem
soltos, isolados, sem quaisquer referências ambientais. São personagens
desconectados da narrativa que a pintura tradicional habitualmene sugere;
figuras ensimesmadas, imobilizadas no tempo, como que encantadas. Nas
vistas, os barcos parados junto à linha do horizonte, a galeria vazia, tudo
parece estar sob igual encantamento. Ao flagrar pessoas e cenas que flutuam
fora da história, Adriana propõe a suspensão dos nexos, um não lugar, uma
espécie de limbo onde as figuras surgem como farrapos da memória
(MILLIET, 2003, p.2-3).
A partir daí, comparamos as hipóteses dos alunos com os propósitos da artista e chegamos a
alguns pontos comuns. Um deles é de que o trabalho dialogava com questões relativas a memória e
sua permanência ou efemeridade. A discussão então tomou esse rumo e entramos de fato no tema
que iria ser proposto. Depois de todos os alunos terem colocado suas iias e opiniões sobre o tema,
na efervesncia do momento, é que Construindo a torre foi proposto.
Construindo a torre tem a intenção de verificar as lembranças dos alunos referentes à imagem
da Torre Eiffel, imagem essa que seria revelada na segunda etapa da proposição. Pretendeu também
a prática do desenho de pia, o que raramente ocorre nos cursos da Escola de Artes, segundo o
programa dos módulos.
Foi inspirado na instalação Ici--bas aqui acolá, citada no Capítulo 1. A escolha da Torre
Eiffel não é innua e nem aleatória: a Torre é um símbolo universal, enquanto qualquer outro
monumento que, talvez, fizesse mais parte da vida dos alunos por estar próximo a eles, como
alguma escultura ou obra da própria cidade de Osasco, perderia o caráter universalizante da
experiência. Outro ponto importante é que nenhum aluno conhecia pessoalmente a Torre Eiffel, o
que tornou mais interessante o exercício de tentar (re)construir algo que nunca foi visto
pessoalmente.
A proposta foi a seguinte: os alunos dobrariam suas folhas ao meio, na primeira metade
desenhariam a Torre utilizando apenas a memória. Na segunda metade desenhariam novamente a
Torre, desta vez a partir de uma reprodução.
Depois de concluídos, os desenhos, feitos sob papel Canson tamanho A3 e com material
solicitado no início das aulas lápis grafite, lápis de cor, caneta hidrográfica, giz pastel seco e
oleoso, nanquim e tinta acrílica e a óleo , foram expostos na própria sala de aula para os alunos
terem a oportunidade de apreciar suas produções e as dos colegas. Foi também um importante
momento onde pudemos verificar suas memórias, levantando pontos semelhantes e outros distintos
da reprodução da Torre, tanto no desenho de meria quanto no desenho de cópia.
O segundo caso discutido nesta dissertação foi proposto na aula seguinte, dia 21 de agosto de
2007, e também direcionado para o tema memória. Foi proposto logo após o primeiro trabalho para
o perder-se o espírito da discussão.
Para tanto, iniciamos a aula também com algumas reflexões teóricas; nesse caso, trechos do
texto Memória, história e testemunho, de Jeanne Marie Gagnebin 4. Nesse artigo, Jeanne fala da
perda da experiência que acarreta um outro desaparecimento, o das formas tradicionais de narração,
que m sua fonte na memória comum e em seu poder de transmissibilidade. Cita Walter Benjamin
e seu texto Experiência e pobreza, o qual diz que as razões dessa desaparição provêm de fatores
hisricos que culminaram com as atrocidades da Grande Guerra. Para Benjamin, a Primeira Guerra
Mundial somente foi o começo desse processo. “Os sobreviventes que voltaram das trincheiras” -
observa o autor - “voltaram mudos. Por quê? Porque aquilo que vivenciaram não podia mais ser
assimilado por palavras” (GAGNEBIN, 2004).
4 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória, história, testemunho. In.
www.comciencia.br/reportagens/memoria/09.shtml. Acesso em abril/2007.
Memória apropriada: lembranças de guerra foi um profundo desejo de trabalhar um tema
forte, pesado e perturbador que, ao momento, nos parecia bastante distante e próprio apenas para
o cinema: a guerra.
A proposta consistia em trabalharmos a memória de outra pessoa. O fruto de nosso estudo: as
lembranças de Lida Hrynko, uma senhora ucraniana de 70 anos sobrevivente da Segunda Guerra
Mundial que se dispôs a contar suas experiências aos alunos "...mas não tudo, só aquilo que eu
puder dizer, tem coisas que eu não quero me lembrar...", alertou Lida antes de começarmos. 5
Dona Lida, aluna da Escola há vários anos e colega ou conhecida de todos os alunos da turma,
foi trazida e apresentada (ou reapresentada) à sala e, assim, a nova proposta foi lançada aos alunos:
criarmos ou recriarmos as memórias de Lida através do desenho.
A narração então começou. As lembranças da infância demoraram um pouco a chegar, afinal
de contas, segundo Bosi, "[...]uma lembrança é diamante bruto que precisa ser lapidado pelo
espírito. Sem o trabalho da reflexão e localização, seria uma imagem fugidia, o sentimento também
precisa acompanhá-la para que ela não seja uma repetição do estado antigo, mas uma reaparição".
(BOSI, 2006, p.81).
Lida se confundia, as imagens se misturavam, por diversas vezes ela chegou a se corrigir - "...
o, o, não, isso não aconteceu com meu pai, foi com o meu tio...", ou "...isso aconteceu na
Polônia, não na Áustria...".
A narração, ocorrida de forma tradicional, todos sentados em seus banquinhos de estudantes
de arte, um silêncio profundo, um imenso respeito pela narradora, dona de lembranças doloridas,
personagem real de uma guerra.
5 As frases que seguem entre aspas foram proferidas por Lida Hrynko em entrevista a pesquisadora em 21 de
agosto de 2007.
Interessante ressaltar que quando as perseguições começaram de forma mais sistetica e,
posteriormente, quando a guerra explodiu, Lida era apenas uma criança e hoje relata tudo
novamente com olhar de criança. Realidade e fantasia se misturam e formam um todo belo, poético,
interessante, triste. As lágrimas foram inevitáveis, afinal de contas a memória, quando se reconstitui
no presente, não traz apenas imagens, mas também sensações, sentimento, emoção; é um
(res)sentimento, um sentir de novo.
Lida nos contou, entre outras coisas, sobre uma floresta rodeada por montanhas na Áustria,
depois que ela e sua família haviam conseguido ir para um campo de refugiados. Um dia, ela
resolveu ir a esse local e apareceram dois animais que Lida descreve como cachorros do tamanho
de ursos”. Lida começou a correr pelas árvores em direção às montanhas, caiu e se machucou na
tentativa enlouquecida de fugir da morte. Afinal de contas, quem já havia se salvado de duas quedas
de cima da ponte, vários bombardeios, meses com pouquísima comida e três semanas em um dos
mais cruéis campos de concentração alemão não poderia agora morrer devorada por dois animais
que ela nem sabia, e ainda o sabe, o que eram! Surpreendentemente, no momento em que sua
vida estava por acabar, “...aparece um príncipe e me salva”, como ela mesmo conta.
Realidade ou fantasia? Não digo que a história de Lida é uma mentira, mas também não posso
afirmar que seja toda verdadeira, pois, segundo Bergson (1859-1941), existem muitas possibilidades
para uma realidade. Se pensarmos que para uma criança cachorros selvagens poderiam ter o
tamanho de ursos e que seu dono ou adestrador poderia ter a beleza e o esplendor de um príncipe,
podemos ter uma resposta adequada.
O que é fantasia e o que é realidade na história de Lida? Nunca saberemos. Até porque a
versão oficial, aquela que se lê nos livros, é diferente da recriação do passado feita por cada um dos
sobreviventes.
Segundo a autora Annette Wieviorka, citada por Márcio Seligmann-Silva (2003) 6, a história
ideal seria a narração individualizada de todos os mortos e sobreviventes.
São vários os fatores dessas desassociações com a realidade. A desorganização do espaço, a
perda do lar, a busca de um novo lar, os traumas e as perdas familiares arrancam de cada um de nós
o significado da vida, perde-se o sentido.
Lida contou-nos a respeito de Auschwitz, um dos mais terríveis campos de concentração
alemães e sua estadia juntamente com os pais e o irmão menor. Descreve o local, com poucos
detalhes, e, apesar de parecer-nos apenas um conto fantasioso impossível imaginar pessoas
vivendo em tais condições infelizmente não é. Tudo chega a soar como uma grande mentira.
Descreve-nos as razões das perseguições, as fugas, todo o pavor, a fome, a esperança. Relata
sua chegada milagrosa ao Rio de Janeiro e nas mãos a possibilidade de ser novamente feliz.
Depois das narrações feitas, do passado retomado pela condição presente e esse novo tecido
reconstruído, chegou a hora dos ouvintes transmitirem, produzirem suas sensações, sentimentos,
idéias, percepções, as imagens que formaram acerca das memórias de Lida.
Os alunos, então, se concentram e executam seus trabalhos a partir das imagens que formaram
em suas mentes. Os trabalhos também foram feitos sob papel Canson tamanho A3 e os materiais
utilizados foram lápis grafite, lápis de cor, giz pastel seco e oleoso, caneta hidrográfica e nanquim.
Terminam e todos os desenhos são expostos na sala de aula. Os alunos comentam, admiram,
trocam informações entre si, encontram os trechos das narrações nos trabalhos dos colegas.
6 Márcio Seligmann-Silva é professor na Unicamp. O trecho citado nesta dissertação foi retirado da obra História,
memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas:Unicamp, 2003, p. 80.
O mais interessante é que Lida volta para ver os trabalhos, olha com calma e os reconhece,
um a um, provando que a verdade existente em cada um deles, a “verdade” atestada por Lida e
apreendida por cada um dos alunos é uma qualidade que não de ser sucumbida pela fantasia. Os
tijolos foram recolocados, mas a arquitetura já estava edificada há muito tempo.
Na semana seguinte, dia 28 de agosto, os alunos foram levados ao Paço das Artes,
Universidade de São Paulo, para visitarem a exposão The Beatiful Earth do artista brasileiro Vik
Muniz. Ficaram bastante impressionados com as obras e tiveram a oportunidade de conversar com a
monitoria e tirar todas as dúvidas sobre o trabalho do artista.
Outra terceira atividade a ser analisada nesta dissertão foi iniciada no dia 4 de setembro de
2007. Esse trabalho levou duas aulas para ser produzido 6 horas e abordou uma nova temática:
identidade. Essa proposta foi elaborada pensando nas possibilidades de se trabalhar com questões
relativas à identidade dentro da sala de aula.
Como das vezes anteriores, comamos a aula refletindo alguns escritos sobre o assunto.
Neste caso, abordamos trechos do texto Corpo, identidade e política, de Richard Miskolci 7. Os
trechos estudados encontram-se no ANEXO 15.
Depois dos alunos terem colocado suas opiniões relativas à identidade, continuamos a
discussão antes da proposição. O projeto se estruturou de forma bastante semelhante aos anteriores:
leitura, contextualização e fazer artístico, nessa ordem.
Desta vez, tivemos como ponto de partida os trabalhos da artista norte-americana Cindy
Sherman, mas poderíamos ter trabalhado com artistas brasileiros também. Cindy Sherman pratica
7 Fonte: www.ufscar.br/richardmiskolci/paginas/academico/cientificos/corpo.htm. Acesso maio/2007.
em suas obras uma autêntica profusão de imagens, um grande mix de informações com referências
hisricas e sociais.
A opção pela artista norte-americana se deu por dois motivos: primeira, pela oportunidade dos
alunos conhecerem a artista e seu trabalho, uma vez que ela era completamente desconhecida pela
turma. Segundo, as propostas implícitas na produção de Cindy Sherman têm grande proximidade
com o trabalho que seria proposto logo em seguida, fazendo assim com que os alunos tivessem a
oportunidade de estabelecer um número maior de relações entre as obras da artista e suas próprias
produções.
Começamos, então, a partir dos trabalhos da artista encontrados no livro Cindy Sherman:
retrospective 8. Esse livro apresenta, entre outras obras, uma série onde Cindy Sherman representa
rios personagens. Sua identidade é alterada em vários momentos que são registrados através da
fotografia. Essa aparente mudança da artista é facilmente percebida nas fotos e se através da
composição do cenário, figurino e de sua atitude ao ser fotografada; é também um trabalho de
interpretação.
Figura 13. Cindy Sherman, 1978, Metro Picture Gallery & Cindy Sherman
8 SHERMAN, Cindy. Cindy Sherman restrospective. New York: Thames & Hudson, 1998.
As leitura e discussão sobre os trabalhos de Cindy Sherman, continuamos a debater sobre o
tema identidade. Refletimos sobre a origem e o significado da palavra e contextualizamos, ou seja,
trouxemos para os nossos dias, as idéias e conceitos levantados, na vida de cada um dos presentes.
E, novamente, no fervilhar de muitas iias surgindo, a proposta de um novo exercício foi
feita. Relativamente semelhante a alguns trabalhos de Cindy Sherman, a proposta foi a seguinte: os
alunos assumiriam uma nova identidade, à escolha de cada um deles, através do papel, ou seja,
seriam atores no papel”.
Como isso poderia ser feito? Em Auto-retrato os alunos escolheriam uma cena para inserirem-
se, ou seja, entrariam em uma pintura pré-selecionada por eles mesmos como um outro personagem
da cena, criado também por eles.
As a proposição, que causou muita euforia na sala (eles realmente gostaram da idéia),
foram distribuídas cerca de 100 reproduções em tamanho A3 de pinturas de Gustav Klimt,
Leonardo Da Vinci, Degas, Seurat, Toulouse-Lautrec, Vermeer, Velázquez, Rousseau, Picasso,
Modigliani, Gauguin, Pissarro entre outros, bastante conhecidas na história da arte e que estavam
disponíveis na biblioteca da Escola. Poderiam ter sido utilizadas reproduções de artistas brasileiros,
mas a biblioteca não dispunha de tais cópias.
Foi então proposto que cada aluno escolhesse uma reprodução e, conseqüentemente, um lugar
para estar. Em seguida, foi solicitado aos alunos que elaborassem um personagem que pudesse fazer
parte do contexto da cena escolhida. O exercício começara desde o momento em que os alunos
escolheram suas reproduções porque, a partir daí, eles decidiram quem gostariam de ser e onde
desejavam estar.
Vencida essa etapa, passamos então para a fotografia. Os alunos foram fotogrados da forma
como eles decidiram que se apresentariam na cena, dialogando direta ou indiretamente com os
demais personagens. As fotografias foram impressas, cada qual no tamanho adequado à sua cena, e
coladas nas reproduções.
Feito isso, pegamos materiais como tinta acrílica e a óleo, caneta hidrográfica de várias cores,
naquim, giz pastel seco e oleoso e lápis de cor aquarelado e começamos a trabalhar sobre a
fotografia que havia sido colada no papel, na tentativa de adequá-la, caracterizá-la ao máximo no
contexto da imagem original e do personagem criado.
Essa parte do processo foi muito interessante e produtiva; os alunos criaram e inventaram
diversas técnicas próprias para conseguirem harmonizar a fotografia com o restante da pintura. Por
último, para que as obras não fossem apresentadas com recortes à vista já que a iia era produzir
simulacros , fizemos uma fotocópia de cada trabalho em tamanho A3.
As três séries descritas foram as três primeiras propostas feitas para a turma de Estudos sobre
arte contemporânea. A decisão da escolha desses trabalhos deu-se por serem mais interessantes e
ricos para a discussão que se segue. Vale lembrar que além destas três séries, durante os oito meses
que se seguiram de curso, diversos outros trabalhos foram criados: trabalhos em papel, fotografias,
uma instalação, umdeo, colagens, pinturas, objetos e esculturas. Os temas abordados nesses
trabalhos foram memória, genealogia, identidade, a cidade, entre outros.
CAPÍTULO 3 CONSTRUINDO A TORRE
Murmuro para mim mesma: é tudo imaginação! Mas sei que é tudo memória...
Cecília Meireles
Desde tempos mais remotos, o homem vem utilizando a torre como meio de comunicação. Um
exemplo disso encontra-se no velho testamento, mais precisamente no livro de Gênesis onde é narrada a
construção da Torre de Babel 1.
Figura 14. Pieter Brueghel, o velho, A Torre de Babel, 1563, Museu Kunsthistorisches, Viena
Outra importante torre e um dos pontos turísticos mais visitados da Europa situa-se na cidade de Pisa,
na Itália. O formato cilíndrico e, principalmente, a inclinação em função do afundamento do terreno,
caracterizam essa torre bastante conhecida.
1 Babel era a capital da Babilônia e foi fundada por Ninrode, sendo uma das cidades mais antigas da
Mesopotâmia. Mais tarde, Babilônia tornou-se capital do reino de Nabucodonosor. Ele construiu uma cidade
enorme da qual ainda existem rnas.
Foi projetada para abrigar os sinos da catedral da cidade 2.
Figura 15. Torre de Pisa, Itália
Outra torre que se destaca na história da humanidade é a Torre Eiffel. Construída no centro de Paris,
França, entre 1887 e 1889, a Torre Eiffel tem mais de 300 metros de altura e atualmente é utilizada como
torre de transmissão de rádio e como ponto turístico, além de ser um dos mais famosos cares postais do
mundo.
2 Torre de Pisa, começou a ser construída em 1174. Quando três dos oito andares estavam prontos, notou-se uma
ligeira inclinação, em razão de um afundamento do terreno. Tentou-se compensar a falha fazendo os outros
andares um pouco maiores do lado mais baixo. que a estrutura afundou ainda mais pelo excesso de peso. A
torre acabou de ser erguida, inclinada, em 1350, atingindo 56 metros de altura. Hoje sua inclinação chega a cinco
graus (ela aumenta uma média de 20 milímetros por ano). Em determinadas épocas se pode subir de noite e ter
uma bela visão da Praça dos Milagres, onde está a torre.
É possível ver toda sua estrutura, projetada por Gustave Eiffel, visto que a Torre tem armação vazada
3.
Figura 16. Vista da base da Torre Eiffel, França
Interessante pensar no caráter comunicativo implícito nas torres de Babel e Eiffel: na primeira isso foi
motivo de sua destruição e na segunda de salvação.
A Torre Eiffel foi construída para ser vista por toda Paris, mas quem sobe a Torre tem uma vista
privilegiada da cidade e não da própria Torre. Subir a Torre possibilita ver o mundo em outra perspectiva,
outra dimensão.
3 A Torre Eiffel foi construída para a Exibição Universal de 1889, em comemoração ao centenário da Revolução
Francesa, e logo depois seria demolida. Quando o contrato de vinte anos do terreno da Exposição de 1889
expirou, em 1909, a Torre Eiffel seria demolida, mas o seu valor como antena de transmissão de rádio e sua
importância histórica a salvaram. Possui 15 mil peças de aço e 1652 degraus até o topo. Felizmente, um sistema
de elevadores também foi instalado. A Torre possui três plataformas, a primeira com um restaurante e lojas. Do
topo, o ponto mais alto de Paris, tem-se uma vista panorâmica da cidade.
Configura-se também como um lugar de encontro, um não-lugar 4, ou para muitos, um espaço na alma
com fontes afetivas extraídas da memória. Estar na Torre Eiffel não é pertencer à Torre, é apenas um lugar
de passagem onde muitas pessoas de todo o mundo se encontram, se cruzam, e, como disse Augé, no
anonimato do não-lugar que se experimenta solitariamente a comunhão dos destinos humanos”. (AUGÉ,
1994, p.110).
Os alunos que participaram da proposição Construindo a torre nunca tiveram uma experiência real em
Paris, como dito anteriormente. Então, para eles, a Torre Eiffel se configura apenas como um lugar ficcional
formado pela conjugação da memória advinda de reproduções da Torre e da vida cotidiana de cada um deles.
O que se nota em Construindo a torre é que todos os alunos foram capazes de construir uma torre, seja
ela semelhante ou não com a reprodução fotográfica da Torre Eiffel, mas algumas características
prevaleceram na grande maioria dos desenhos: a forma verticalizada e antropomórfica, a trama da estrutura,
os arcos da base, as plataformas e a antena, sugerindo que seu “poder de comunicação”, ou seja, a
reprodutibilidade infinita de sua imagem proporcionada pelos meios de comunicação e souveniers, ultrapassa
seu caráter funcional de ponto de transmissão.
Mas por que os alunos não conseguiram desenhar uma torre exatamente semelhante à reprodução,
visto que este era o desafio, chegar o mais próximo possível disso? A leitura que Bosi (2006) faz de
Nietzsche (1844-1900) talvez possa apontar uma resposta. Segundo Bosi, Nietzsche sustenta a hipótese de
que a memória não é um atributo isolado de um indivíduo, mas uma construção social, sendo assim, para ele
toda memória é memória social. E esse mesmo homem provido dessa memória social teria o
esquecimento como uma força imprescindível para a
4 Para Marc Augé, não-lugares são espaços físicos por onde circulam pessoas e bens - aeroportos, vias expressas,
salas de espera, centros comerciais, estações de metrô, campos de refugiados, supermercados etc -, bastante
comuns na pós-modernidade.
existência saudável e plena em alegrias e afirmões.
Ainda segundo Bosi, para Nietzsche, o esquecer é uma força positiva que possibilita uma espécie de
descanso, momento através do qual a consciência libera o que fora vivenciado, experimentado, para que o
novo possa também ser vivido. Portanto, a memória e o esquecimento funcionam naturalmente em uma
dinâmica em que ambos são igualmente necessários à vida. E diz ainda que é preciso que o corpo aprenda a
esquecer as vivências do passado, pois o excesso de memória envenena a vida.
Para Izquierdo (1937), cujo trabalho de pesquisa gira em torno do tema memória mais de 40 anos,
“o ser humano é feito de memória, mas é sobretudo feito daquilo que ele esquece” 5. O homem, cuja história
de vida é escrita por sua memória, tem no esquecimento um mecanismo que o molda, selecionando
inconscientemente aquilo que o formará.
Pensando nesse esquecimento como processo inconsciente do corpo e vital à vida, fica lógico então
supormos que os alunos apresentaram aquilo que se lembraram da Torre, e que, em alguns casos, houve mais
lembranças e menos esquecimento e em outros mais esquecimento do que lembrança. E o que completou o
restante do desenho?
De acordo com Bosi, “lembrar não é re-viver, mas re-fazer. É reflexão, compreensão do agora a partir
do outrora, reaparição do feito e do ido, não sua mera repetição”, pois a memória não está no passado e sim
no presente. (BOSI, 2006, p.20).
5 Fonte: www.serprofessoruniversitario.pro.br. Acesso em abril/2007.
Sendo assim, aquele que busca as lembranças guardadas na memória as reconstrói de acordo com seu
aqui e agora, e essa reconstrução pode assumir aspectos diferentes de acordo com a situação presente,
podendo assim, como disse Bergson 6, haver muitas possibilidades para uma mesma realidade. Ao criarem
diferentes desenhos atras da memória, cada aluno apresentou sua vio, seu aqui e agora sobre a imagem
pretendida.
A memória é que faz com que trabalhe minhas lembranças e forme
objetos materiais. Portanto, a memória é algo capaz de trazer ao presente
todas as lembranças para que esse possa ser construído. As lembranças
vão caminhar para organizar o presente e revelar o futuro (BOSI, 2006,
p.88).
Lembranças são imagens que, sem o trabalho da refleo e da localização seriam fugidias. Muitas
vezes ainda faltarão partes da imagem, ela não ficará totalmente clara e um bom exemplo disso é o trabalho
de Adriana Rocha, apresentado nas páginas 54 a 56 desta dissertação.
Figura 17. Vista da exposição Aquilo que se esvai, de Adriana Rocha, 2003, Galeria Nara Roesler
Nota-se que nos trabalhos de Adriana Rocha, assim como em Construindo a torre, é possível perceber
do que se tratam as imagens, por mais que elas pareçam ainda distantes do real. O que faltava, no caso da
exposição de Adriana, foi completado pelo público; em Construindo a torre, os próprios alunos fizeram isso
através de outras imagens advindas também da memória.
Essa outra memória” pode ser entendida como as lembraas de outras vivências e que se misturam
com a realidade do momento; são frutos do nosso próprio cotidiano.
Tenho medo de faltar com a verdade, às vezes a fantasia atrapalha, mas
tenho idéia que alguém me tirou da cama de madrugada para me mostrar
uma espécie de nebulosa de fogo no céu. Era o cometa Halley que
apareceu em 1908 (BOSI, 2006, p.298).
Talvez a imagem da Torre o seja tão clara para os participantes, como veremos a seguir na análise
dos trabalhos, porque lembranças muitas vezes o guardadas por repetição e, por não terem realizado
desenhos bastante próximos à reprodução fotogfica da Torre, supõe-se que os alunos não tiveram contato
visual suficiente ou tiveram dificuldades em representar a imagem mental da Torre é impossível saber
quantas vezes cada aluno viu a imagem da Torre Eiffel.
Bosi descreve dois tipos de memória, que têm grande afinidade com as idéias de Bergson sobre o
assunto. A primeira é a memória-hábito que adquire-se pelo esforço da atenção e pela repetição de gestos ou
palavras. Trata-se de um exercício que transforma-se num hábito e faz parte de nosso adestramento cultural,
como por exemplo, alguns dos entrevistados citados no livro de Bosi (todos os entrevistados têm mais de 70
anos) o capazes de se lembrarem de cantigas de roda cantadas na infância. A segunda é a imagem-
lembrança que refere-se a uma situação definida, individualizada, que traz à tona da consciência um
momento único, singular, da vida. “(...) Daí, também, o caráter não mecânico, mas evocativo, do seu
aparecimento por via da memória”. (BOSI, 2006, p.49).
Bosi cita um trecho da obra Dom Casmurro de Machado de Assis onde o autor, através de seu
personagem, interpreta os dois tipos de memórias em uma citação:
Não, não, a minha memória não é boa. É compavel a alguém que
tivesse vivido por hospedarias, sem guardar delas nem caras, nem nomes,
e somente raras circunstâcias. A quem passe a vida na mesma casa de
família com os seus eternos móveis e costumes, pessoas e afeições, é que
se lhe grava tudo pela continuidade e repetição (BOSI, 2006, p.441-442).
A memória da Torre Eiffel caracteriza-se como imagem-lembrança e Construindo a torre como sua
evocação. Talvez só a arte possua os mecanismos necessários para despertar nas pessoas memórias
escondidas.
Veremos a seguir na análise dos trabalhos quais foram essas raras circunstâncias preservadas pela
memória dos alunos.
3.1. Construindo a torre: análise dos trabalhos
Gombrich (1909-2001) cita uma anedota para ilustrar o fato de que cada artista representa a realidade
à sua maneira e à sua época. Uma senhora decidiu visitar o ateliê do pintor Henri Matisse e se pôs a olhar
para um de seus retratos. A certa altura, comentou com o artista o que a incomodava naquela imagem: o
braço da mulher era comprido demais disse ela. Matisse respondeu-lhe com muita sinceridade: “A senhora
está enganada, madame. Isto não é uma mulher. Isto é um quadro.”
Gombrich nos deixa em sua obra muitas perguntas que se abrem em longos e novos leques de
questões, algumas vezes sem resposta. Afinal de contas o artista pinta aquilo que ou o que conhece? Essa
é a grande pergunta do livro. Afirma que as representações se baseiam em ilusão, cujas regras de
convencimento mudam com o tempo e que aquilo que o artista reproduz não é de natureza exterior, mas sua
própria natureza.
Os desenhos obtidos em Construindo a torre mostram que tanto as imagens feitas a partir da memória
quanto aquelas obtidas a partir da reprodução exprimem um contexto bastante pessoal do aluno.
É possível observar também, como dito anteriormente, que a estrutura básica da Torre é encontrada
nos desenhos: o formato antropomórfico, verticalizado, afunilado, as tramas, as plataformas e a antena do
topo. Mas outros detalhes alheios à Torre Eiffel completaram essa estrutura.
Figura 18. Reprodução da Torre Eiffel exibida aos alunos por ocasião do exercício
Foram, no total, 16 desenhos, pois seis dos 22 alunos matriculados começaram a frequentar as aulas na
semana seguinte. Destes, 11 foram feitos apenas com lápis grafite, quatro com lápis grafite e lápis de cor e
um com lápis grafite e giz pastel seco.
Dos 16 desenhos de memória, dez não apresentam perspectiva, nem ao menos sugerem um espaço
tridimensional, enquanto que os seis restantes o fazem; três estão “flutuando no ar”. Esses últimos parecem
imagens advindas de um estado de sonho, que flutuam sem ter porto, que vagam na incerteza implícita em
suas próprias representações os alunos, de forma geral, não tinham conhecimento de todas as
características da Torre Eiffel. os seus correspondentes, os desenhos de cópia da reprodução da Torre,
apresentam linha de base, como pode ser visto a seguir. O padrão proposto pela professora para a confecção
do trabalho foi o seguinte: à esquerda a representação de memória e à direita a cópia da reprodução.
Infelizmente, nem todos os alunos lembraram-se de seguir o padrão, portanto, durante a análise dos trabalhos
teremos duas situações, a primeira, de acordo com a explicação acima, e a segunda com ordem invertida de
apresentação. Os desenhos a seguir possuem o padrão proposto em sala de aula.
Figura 19. V. R. S., da série Construindo a torre, 2007
Figura 20. D. S., da série Construindo a torre, 2007
Figura 21. C. L. S., da série Construindo a torre, 2007
Os arcos inferiores que formam a base da Torre Eiffel foram representados no desenho de memória de
V. R. S. e de C. L. S., assim como em vários outros, porém cada aluno os colocou à sua maneira. De
qualquer forma, o fato de terem sido lembrados dá indícios de que esse elemento permeia o imaginário deles.
Os quatro trabalhos a seguir são exemplos de como os arcos da base da Torre Eiffel foram representados.
Apenas os dois primeiros possuem ordem diferente do padrão estabelecido.
Figura 22. E. F. L., da série Construindo a torre, 2007
Figura 23. G. M. A. A., da série Construindo a torre, 2007
Figura 24. N. R. S., da série Construindo a torre, 2007
Figura 25. M. V. D., da série Construindo a torre, 2007
Estes alunos, entre outros oito, recordaram que a base da Torre Eiffel possui uma espécie de abertura,
vão, sendo que quatro desenhos não registraram esse elemento, como pode ser visto abaixo.
Figura 26. N. R. C., da série Construindo a torre, 2007
Figura 27. C. O. G. C., da série Construindo a torre, 2007
Figura 28. V. R. S., da série Construindo a torre, 2007
Os trabalhos seguintes, de M. S. P. um dos quatro que não apresenta abertura na parte inferior e S.
D. respectivamente, possuem ordem de representação invertida à esquerda a pia da imagem impressa e à
direita o desenho de memória.
Figura 29. M. S. P., da série Construindo a torre, 2007
Interessante perceber que dos 16 trabalhos, quatro deles de memória de G. M. A. A. (página 77), V.
R. S. (página 80), M. S. P. (página 80) e de S. D. abaixo possuem uma espécie de porta ou portas de
entrada para a torre, obviamente construídas imaginando-se que o interior da Torre Eiffel é para ser visitado.
Percebemos também que seis desenhos possuem uma espécie de observatório ou plataformas, o que também
existe na Torre Eiffel. O desenho de G. M. A. A. é um deles, com janelas redondas no topo da torre.
Figura 30. S. D., da série Construindo a torre, 2007
O desenho de memória de S. D. apresenta cinco plataformas com portas por onde, teoricamente, Paris
pode ser vista. Nenhuma das portas acesso a algum tipo de varanda ou espaço onde as pessoas possam
circular, mas fica claro na representação que são meios criados pela aluna para os visitantes verem a cidade.
no desenho de E. F. L. (página 76) podem ser vistas cinco plataformas, mas a aluna também não sugere
qualquer tipo de espaço de observação.
No trabalho de M. S. P., página 80, é representado um espaço no meio da torre onde supõe-se ser um
observatório. É difícil imaginar o formato da torre neste caso (pode ser cilíndrica, quadrada, retangular), mas
o interessante é que a aluna se preocupou em fazer uma entrada e um espaço para observar a cidade. As 11
retas horizontais colocadas no desenho sugerem 11 plataformas que formam a estrutura da torre.
O desenho de memória de M. V. D., apresentado na página 78, também pressupõe quatro plataformas
por onde a cidade pode ser vista. A diferença mais marcante entre o desenho e a Torre Eiffel é que aqui a
aluna sugere um formato cilíndrico e uma trama toda detalhada por pontos.
Com relação à trama da estrutura, as representações variam muito, como pode ser visto nos desenhos.
Umas mais abertas, como é o caso do desenho de M. S. G. (próxima gina), outras mais fechadas; umas
provenientes apenas do cruzamento de duas linhas, outras elaboradas com mais complexidade. Mas um
desenho chama a atenção em especial. Apesar do formato externo ser bem diferente da reprodução da Torre
Eiffel, a trama feita por T. B. O., em seu desenho de memória, chegou próximo do que pode ser enxergado
na imagem impressa, e, percebendo isso, T. B. O. a repetiu em seu desenho de cópia.
O trabalho de T. B. O. também apresenta uma plataforma com pessoas.
Figura 31. T. B. O., da série Construindo a torre, 2007
Figura 32. M. S. G., da série Construindo a torre, 2007
Podemos elencar, além de T. B. O., os trabalhos de G. M. A. A. (pagina 77) e de C. L. S. (página 75)
como aqueles que contêm maior elaboração no tramado. O desenho de G. M. A. A., apesar da imprecisão
dos traços, sugere uma trama simétrica porém heterogênea. o desenho de memória de C. L. S. que se
assemelha bastante a um foguete caracteriza-se pela trama ser uma abstração, talvez não muito propícia
para um monumento de mais de 300 metros de altura. O único desenho de memória que não apresenta tramas
na sua construção é de V. R. S. (página 80).
Na verdade, o desenho de V. R. S. não se parece com a Torre Eiffel, sugere-nos mais a mencionada
Torre de Pisa.
Figura 33. Torre de Pisa, Itália
O formato cilíndrico com redução de diâmetro de acordo com a altura, ou no topo, e a falta de tramas
na construção são características comuns das duas torres, a de Pisa e a de V. R. S. O que se nota aqui é que
quando solicitado à turma um desenho de memória da Torre Eiffel, parte dos alunos não tinha a referência
clara em suas mentes, por mais que todos tenham afirmado conhecê-la. Houve casos em que a Torre Eiffel
foi confundida com uma espécie de torre de transmissão de rádio ou de energia, como podemos notar nos
desenhos de D. S. (página 75), S. D. (página 81) e R. R., abaixo.
Figura 34. R. R., da série Construindo a torre, 2007
São essas percepções que dão indícios de que os registros mentais da imagem da Torre Eiffel foram
misturados, combinados com outras lembranças advindas das vivências do cotidiano pessoal. Como
anteriormente citado, como nosso corpo não dá conta de guardar todas as lembranças, se utiliza dessas outras
memórias para completar tudo aquilo que falta.
A imagem da Torre formada em nossas mentes é reconstruída e à essa reconstrução o adicionados
elementos de nosso cotidiano: torres de transmissão vistas pela cidade, um monumento aqui, uma torre de
igreja ali uma das representações, a de N. R. S. (página 77) leva uma cruz no topo. N. R. S. é
extremamente religiosa e tem o hábito de viajar e visitar igrejas. Não teria sido a cruz no alto de uma torre
uma das imagens vistas por N. R. S. em suas viagens?
O desenho que mais surpreendeu a sala foi o de N. S. L.
Figura 35. N. S. L., da série Construindo a torre, 2007
Possui formato verticalizado, afunilado, arcos na construção da base, plataformas, bem como a trama
da estrutura, mas está longe de ser a Torre Eiffel, é uma abstração da Torre construída a partir das referências
da memória da aluna que, muito além do que o exercício solicitava, construiu sua própria Torre Eiffel, e,
apesar de não ser a representação do monumento, contém os mesmos elementos que foram enxergados em
todos os desenhos de memória relatados nesta pesquisa.
É percebido que o desenho de memória de N. S. L. apresenta certa transparência. É possível ver a
cidade, ou a abstração da cidade através do desenho. N. S. L. colore sua torre, sua Paris, seu céu com cores
alheias à realidade, mas comprometidas com sua própria realidade. Diferentemente da própria Torre Eiffel,
no desenho de N. S. L. não é preciso subir a torre para ver Paris, a aluna nos dá esse privilégio gratuitamente.
No entanto, ao nos depararmos com o desenho de N. S. L. produzido a partir da observação da
reprodução, percebemos uma construção simplificada, quase infantil. A aluna sucumbiu o topo da torre e
ignorou as tramas, aliás é o único desenho feito a partir da reprodução que não leva tramas. As linhas
horizontais ao fundo compõem um céu e amenizam a verticalidade da torre. Desse céu cai uma espécie de
foguete anunciando uma nova descoberta ou uma catástrofe. Diferentemente do seu desenho de memória, o
desenho de cópia não leva esse olhar através da torre em considerão.
Mas todos os desenhos a partir da reprodução se distanciam da mesma? Alguns mais, outros menos, o
interessante é que todos os alunos se esforçaram por chegar perto do que consideraram ser a imagem da
Torre. E, comparando os desenhos de memória com aqueles feitos a partir da cópia, fica claro que a imagem
impressa da Torre propiciou aos participantes de Constuindo a torre uma importante referência visual para as
composições.
Um ponto presente em dois trabalhos de M. V. D. (página 78) e V. R. S. (página 80) é o fato de
que os desenhos feitos a partir da reprodução apresentam a torre em cima de uma espécie de monte,
semelhantemente às aquarelas feitas por Antoine de Saint-Exupéry para seu livro O pequeno príncipe
apesar delas não terem sido mostradas em sala de aula , que sugere o isolamento da mesma em seu próprio
mundo; um símbolo, ícone.
Figura 36. Aquarela de Antoine Saint-Exupery
O trabalho de N. R. S. (página 77) traz outro ponto interessante. O fato dela ter colocado uma cruz no
topo da torre do desenho de memória é bem compreensível, pois foi feito somente com a referência da
memória. Porém, colocar a cruz no topo de seu desenho a partir da reprodução abre a discussão para, no
mínimo, dois caminhos: ou N. R. S. é religiosa ao ponto de criar propositadamente uma espécie de marco
cristão sobre a Torre Eiffel, ou a construção da aluna reforça a pergunta de Gombrich: o artista pinta aquilo
que vê ou aquilo que conhece?
3.2. Construindo a torre e Ici là-bas aqui acolá: aproximações
A obra de Rivane Neuenschwander costuma provocar merias e lembranças. Com a incorporação
da Torre Eiffel em seu projeto, o nome de Neuenschwander foi acrescido à longa lista de poetas e artistas do
século XIX em diante que têm utilizado o monumento como motivo em seu trabalho, entre eles Apollinaire,
Cocteau, Seurat, Delaunay, Dufy, Léger, Chagall, Pol Bury, Le Corbusier [entre outros]”. Rivane diz que a
Torre é um símbolo semiótico que possui uma aura especial à sua volta. (NEUENSCHWANDER, 2005,
p.44).
Como mencionado no Capítulo 1, página 27 desta dissertação, a instalação Ici là-bas que em francês
significa aqui acolá foi apresentada em 2002 na galeria Palais de Tokyo, em Paris.
Os dois trabalhos, Constuindo a torre e Ici là-bas aqui acolá são semelhantes em um ponto: ambos
são formados por desenhos da Torre feitos a partir das memórias de pessoas que não tiveram uma
experiência real em Paris.
Construindo a torre propõe verificar as memórias retidas pelos alunos da imagem da Torre Eiffel
através do desenho, e Ici là-bas aqui acolá não preocupa-se em oferecer um comentário mais direto sobre a
memória, especialmente sobre sua nebulosidade. Construindo a torre também concedeu aos alunos a
oportunidade de praticarem o desenho de cópia através da referência da imagem da Torre, o que não é
praticado em Ici là-bas.
Ambos confirmam o fato de que a maioria das pessoas é capaz de imaginar a Torre mentalmente por
conta, acredita Rivane, da reprodução infinita de sua imagem. Segundo ela, os diversos desenhos [...]
imaginativos feitos por brasileiros anônimos [...] transmitem um vívido sentido do destino de símbolos que
tomam uma vida independente para am do objeto original que representam”. (NEUENSCHWANDER,
2005, p.45).
A diferença crucial entre os dois é o lugar: os visitantes de Ici -bas têm o privilégio de ver
pessoalmente a Torre, enquanto que os alunos aproximam-se dela apenas por intermédio de uma reprodução.
Os visitantes da Palais de Tokyo têm a oportunidade de verificar as relações existentes entre os desenhos e a
própria Torre Eiffel. No caso dos espectadores da exposição Vida Arte Vida 6, a única referência que se
tinha eram os próprios desenhos dos alunos feitos a partir da cópia, que se distanciam da Torre propriamente
dita.
6 Vida Arte Vida foi como a exposição dos trabalhos da turma de Estudos sobre arte contemporânea foi chamada.
Ela aconteceu em junho de 2008, na própria Escola de Artessar Antonio Salvi.
CAPÍTULO 4 MEMÓRIA APROPRIADA: LEMBRANÇAS
DE GUERRA
A beleza não está na pobreza, mas na coragem de ainda sorrir e ter esperanças apesar de tudo.
Madre Teresa de Calcutá 1
É redundante dizer que as duas grandes guerras Primeira e Segunda Guerra Mundial
foram catástrofes que criaram trágicas rupturas na História da humanidade. Mais ainda, foram
acontecimentos tenebrosos que marcaram a vida e a morte de milhões de pessoas.
É possível dizer que em uma guerra não se mata milhares ou milhões de pessoas. Em uma
guerra morre alguém que vai se casar, outro que tem muitos filhos, mais alguém que cozinha bem.
Uma guerra destrói memórias, sonhos, esperanças. A proposta Memória apropriada conseguiu tirar
a discussão do tema guerra apenas dos filmes e livros e trazê-lo um pouco mais perto dos alunos,
através de alguém que testemunhou seus horrores, alguém que sobreviveu a tudo isso.
Lida Hrynko, sobrevivente da Segunda Guerra Mundial, traz consigo o peso do testemunho 2.
Esse peso, que recai sobre o sobrevivente dia após dia pode ser aliviado através da narração,
segundo o autor Seligmann-Silva (2003). Mas por que é tão dicil livrar-se dos “fantasmas do
campo de concentração” e simplesmente contar o que ocorreu? Seligmann-Silva e Jeanne Marie
Gagnebin (2004) pretendem responder a essa mesma pergunta, como é possível ver em suas obras.
1 Frase proferida em julho de 1979 e publicada na Revista Veja Especial Mulher, Editora Abril, em maio de 2008, p.
95.
2 Testemunho: do latim testis e supertes. O primeiro significa depoimento de um terceiro em um processo. E o
segundo, pessoa que atravessou uma provação, o sobrevivente, sendo que o conceito de sobrevivente está muito
próximo ao de mártir, que é uma palavra que vem do grego, e ao de testemunha.
4.1. Memória e testemunho: Lida na era das catástrofes
Há dois anos, durante os primeiros dias que sucederam ao nosso retorno,
estávamos todos, eu creio, tomados por um delírio.s queríamos falar,
finalmente ser ouvidos. Diziam-nos que a nossa aparência física era
suficientemente eloqüente por ela mesma. Mas nós justamente voltávamos,
nós trazíamos conosco nossa memória, nossa experiência totalmente viva e
nós sentíamos um desejo frenético de a contar tal qual. E desde os primeiros
dias, no entanto, parecia-nos impossível preencher a distância que nós
descobrimos entre a linguagem de que dispúnhamos e essa experiência que,
em sua maior parte, nos ocupávamos ainda em perceber em nossos corpos.
Como nos resignar a não tentar explicar como nós havíamos chegado lá? Nós
ainda estávamos lá. E, no entanto, era impossível. Mal começávamos a contar
e sufocávamos. A mesmos, aquilo que tínhamos a dizer começava então a
parecer inimaginável (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.45-46). 3
Nos primórdios das sociedades antigas na antigüidade grega com Heródoto, no século V a.c.
a História se iniciou como uma narração daquele indivíduo que podia dizer “eu vi”, “eu senti”.
Nesse sentido, a narração feita por alguém que viveu os fatos pode ser chamada de testemunho. O
testemunho pode ser compreendido ainda como o discurso de um sobrevivente, que precisa narrar
sua experiência para recompor os fragmentos de seu “eu”. Desse modo, ele visa também a um
consolo por meio do fluxo na narrativa que carrega a dor para um porto distante.
O trecho citado acima foi escrito por Robert Antelme, e abre o relato de sua experiência nos
campos de concentração nazistas. Fica claro, a partir dele, que o sobrevivente encontra-se num
campo cerrado entre duas forças: de um lado, a necessidade vital de narrar a experiência vivida, e
de outro, a percepção da insuficiência de linguagem diante dos fatos e do caráter inimaginável tão
absurdo que ninguém poderia acreditar dos mesmos e sua conseqüente inverossimilhança.
3 Trecho da obra de ANTELME, R. L’espèce humaine. Paris: Gallimard, 1957, p. 9, citado na obra de
SELIGMANN-SILVA (2003).
Sobre a inverosimilhança dos fatos, Seligmann-Silva (2003) cita um trecho do autor Aharon
Appelfeld (1932): tudo o que ocorreu foi tão gigantesco, tão inconcebível, que a própria
testemunha se via como uma inventora. O sentimento que a sua experiência não pode ser contada,
que ninguém pode entendê-la, talvez seja um dos piores que foram sentidos pelos sobreviventes
após a guerra”. É justamente nessa encruzilhada que encontra-se Lida. (SELIGMANN-SILVA,
2003, p.57).
Além da perseguição por conta da guerra, Lida também sobreviveu a um dos mais cruéis
campos de concentração nazistas e é testemunha de seus horrores. Sobreviver seria um termo
empregado ao sujeito que passou por um evento-limite, cujo percurso foi um “atravessar a morte”, o
que problematiza a relação entre a linguagem e o real vivido: por isso ser tão difícil a construção de
um discurso nessas condições.
Este elemento testemunhal encontrado pode ser facilmente percebido, segundo Seligmann-
Silva (2003), na literatura do século XX era das catástrofes e genocídios. Foi a partir dos horrores
da guerra, como citado no Capítulo 2 desta dissertação, que ocorreu o desaparecimento das formas
tradicionais de narração, onde, segundo Benjamin, os sobreviventes voltaram mudos porque aquilo
que viveram não podia ser assimilado por palavras. Esse embate entre o absurdo vivido e a
impossibilidade de transformá-lo em um discurso, é que corpo ao testemunho de Lida:
fragmentado, incompleto, falho, distorcido; sofrido.
Para Appelfeld (1932), “a característica principal da literatura de testemunho é que o
sobrevivente, ao contar e revelar, está, ao mesmo tempo, escondendo”. Aquele que testemunha
apresenta a história da perda; é o testemunho de um desaparecimento (SELIGMANN-SILVA, 2003,
p.20).
O sobrevivente encontra no esquecimento, que tamm foi estudado por Nietzsche, um certo
afastameto da dor, por isso o discurso proveniente do trauma (em grego ferida) ser repleto de
lacunas. E o que seriam essas lacunas ou sobras dentro de um testemunho?
Em primeiro lugar o sofrimento, o sofrimento indizível que a Segunda Guerra
devia levar ao seu cume na crueldade dos campos de concentração [...]. E
segundo lugar, aquilo que não tem nome, aqueles que não têm nome, o
anônimo, aquilo que não deixa nenhum rastro, aquilo que foi tão bem
apagado que mesmo a memória de sua existência o subsiste [...]
(GAGNEBIN, 2004).
Esses foram dados que Lida não nos contou, mas as lacunas provenientes de sua hisria
também foram apreendidas e representadas pelos alunos, como será visto mais adiante.
Para a Gagnebin (2004), “somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do
sofrimento indizível, somente esta retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo
infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente”.
O sobrevivente vive o drama do testemunho, como coloca Seligmann-Silva, que está
irremediavelmente ligado à um processo dialético e complexo no qual recordar e esquecer são dois
fatores dinâmicos e inseparáveis: a pessoa, em certa medida, recorda para se esquecer e porque não
consegue esquecer-se precisa narrar. É uma “trama de [esquecer e recordar], passado e presente,
perder-se e encontrar-se” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.29).
Lida pensou bastante antes de aceitar o convite, afinal de contas, relembrar o passado é trazê-
lo novamente ao presente, é uma forma de (re)vivê-lo. Mas a necessidade de aliviar o fardo, pesado
demais, fez com que ela compartilhasse conosco sua experiência.
Para Gagnebin (2004), “testemunha não seria somente aquele que viu com seus próprios olhos
[...]. Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração
insuportável do outro e que aceita que suas palavras revezam a história do outro[...]”. Desse modo,
todos os que participaram de Memória apropriada são também testemunhas, testemunhas
secundárias termo utilizado por Seligmann-Silva (2003) das atrocidades da guerra.
4.2. Memória apropriada: lembranças de guerra: análise dos
trabalhos
Assim como Gagnebin e Benjamin (1892-1940) comparam a figura do historiador-narrador à
do trapeiro, que encontra (ou deveria encontrar) nas sobras da cidade tudo aquilo que falta para
compor seu discurso histórico, comparo, pensando especificamente na proposição Memória
apropriada, os alunos à essa figura: eles recolherame registraram o sofrimento de Lida. Mas por
que Gagnebin (2004) chama esse sofrimento de indizível? Lida fez sua narração, ela foi ouvida por
todos nós. Indizível porque o silêncio, ouvido em alguns momentos de sua fala, e seu choro, falaram
mais alto que suas palavras. Ela mesmo deixa isso claro quando começa sua história: "...mas não
tudo, só aquilo que eu puder dizer, tem coisas que eu não quero me lembrar...". 4
A proposição Memória apropriada foi uma tentativa de traduzir algo não visto, mas sentido e
imaginado pelos alunos, cujo conteúdo corresponde, em diferentes aspectos, à essa memória
fragmentada e falha proveniente de uma situação-limite, combinada com outras lembranças
pessoais dos próprios alunos.
A questão da inverossimilhança, levantada na pesquisa realizada, pode ser exemplificada no
discurso de Lida através do episódio dos chuveiros sem água”. Durante sua narração, Lida nos
contou, bastante inconformada ainda, que ela, a família e os demais prisioneiros do campo, eram
levados todas as semanas para um galpão cheio de chuveiros todos juntos e nus onde pretendia-
4 Declaração de Lida retirada da entrevista concedida à pesquisadora em 21/08/2007.
se, pelo que Lida até hoje imagina, dar uma espécie de banho coletivo em todos. O mais
interessante e incomodo é que Lida ainda não entende por que nunca saiu água daqueles chuveiros.
“Apenas a passagem pela a imaginação poderia dar conta daquilo que escapa ao conceito”.
Segundo o autor, aquilo que para o sobrevivente transcende a verossimilhança, ou seja, aquilo que
se entende por mundo, exige uma reformulação artística, através da imaginação, para sua
transmissão. (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.380).
Para Lida, estar numa sala com “chuveiros”, como ela assim descreve, podia ser uma
tentativa frustrada de banhar-se.
O que é enxergado por nossa aluna-historiadora”, M. S. P., que recolheu os fragmentos de
Lida e tentou arranjá-los para que fizessem sentido, é que Lida passou, diversas vezes, por
experiências na mara de gás inconcebível para Lida acreditar que os alemães estavam tentando
matar uma família inocente, ainda mais com duas crianças, ela e o irmão.
Figura 37. M. S. P., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
Este foi um dos compromissos assumidos pelos alunos participantes da proposição Memória
apropriada: representar aquilo que Lida revela e esconde através do desenho. Reconstruir,
através de suas próprias memórias, as lembranças de uma outra pessoa. Essa reconstrução, em
paralelo com a afirmação de Benjamin sobre o trabalho do historiador, assume os contornos de um
trabalho artesanal, no qual o aluno, neste caso, deixa as marcas digitais em sua obra”; é bastante
autobiográfico. (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.390).
M. S. P. que depois da narração de Lida me chama num canto da sala e conta sua descoberta
representa os prisoneiros na câmara de gás e os grandes fornos que Lida acredita destinarem-se a
cozinhar para os prisioneiros, apesar de nunca ter provado a comida.
A representação de M. S. P., feita apenas com lápis grafite, é fria, sem cor, dura. Mostra o
vazio sentido pelos prisioneiros, a perda do lar, dos amigos, e quase da vida. As construções são
planificadas, vazias, refletindo a morte advinda desse lugar. A falta de detalhes denuncia a narração
de Lida: ela não pôde e nem quis se lembrar mais de Auschwitz. De todos os personagens
representados por M. S. P. dentro da mara de gás, apenas um conserva-se “em pé”, disposto a
lutar, a continuar. Esse personagem, segundo descreve a própria aluna, representa Lida e todos
aqueles que, como ela, acreditaram na liberdade.
Mas a história de Lida, ao contrário do que todos imaginavam, o é sobre as mortes geradas
pela guerra. A história de Lida é, acima de tudo, sobre a vida e o desejo de mantê-la, o desejo de
sobreviver, de lutar; é sobre a esperança. Lida em momento algum cita os mortos, apenas narra
como seu desejo de viver a impulsionou em sua jornada rumo ao Brasil. É que a história de Lida
encontra beleza: na esperança.
Figura 38. N. S. R., da série Memória apropriada: lembranças e guerra, 2007
O desenho N. S. R., construído com lápis de cor, é estranhamente alegre: as pessoas sorriem
de mãos dadas, como que posando para uma foto. Do grande galpão, representado pela aluna,
nenhum murmúrio de morte ou sofrimento pode ser ouvido. Apenas as grades denunciam que é uma
prisão. Mas também não poderia ser uma escola?
Considero três hiteses para o fato: a aluna foi ingênua ao ponto de não captar as entrelinhas
do discurso de Lida o sofrimento indizível ; ela não acreditou na gravidade dos fatos como
aconteceu com pessoas em outros contextos que também ouviram sobreviventes dos campos de
concentração ; ou, a certeza de que sobreviveria era algo tão forte na história de Lida que N. R. S.
a captou.
O que foi solicitado em sala de aula é que cada aluno encontrasse no trecho da narração de
Lida que mais lhe chamasse a atenção, subsídios para compor seu trabalho. O que pode ser
percebido nos trabalhos da série Memória apropriada, é que as cenas representadas pelos alunos
foram bem variadas, ou seja, rias partes do depoimento de Lida foram significativas para eles.
O desenho de C. L. S. remonta vários momentos em uma mesma cena.
Figura 39. C. L. S., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
Conjuga partes da narração de Lida com trechos de seu próprio imaginário, pois Lida em
momento algum citou os cemitérios ou valas utilizados para enterrar os corpos, soldados mortos
ou aviões. Ela contou sobre muitas bombas que explodiram próximas a ela, mas nunca que vinham
de aviões. C. L. S. representa a casa de Lida em chamas que também não foi citado por Lida, mas
imaginado pela aluna e sua família sendo levada até o campo de concentração. No primeiro plano,
à esquerda, um soldado estirado ao chão nos conta que todos foram timas da guerra.
Lida nos disse que seus avós paternos eram muito ricos e que por isso sua família foi
perseguida pelos alemães e colocada em Auschwitz. Isso foi o mais perturbador para C. L. S., então
foi o que a aluna representou. Aqui, Auschwitz tem portões muito mais altos do que nas
representações de N. R. S. e de M. S. P. O desenho do campo de concentração foi feito com giz
pastel oleoso, onde a aluna “esfumaça” as grades sugerindo que o que aconteceu lá dentro nunca
poderá ser esclarecido.
Lida, juntamente com os pais, é escoltada por um soldado armado que vai a frente da família.
Em certo momento os dois param e fitam o espectador. De alguma maneira C. L. S. tenta nos
mostrar uma garotinha de apenas seis anos de idade em meio a um mundo repleto de atrocidades.
Lida nos contou que, em sua jornada rumo ao campo de regufiados, na Áustria, atravessou
diversas pontes. Uma delas, no momento da travessia, foi bombardeada e Lida caiu em um rio logo
abaixo e quase se afogou.
A ponte foi uma questão que permeou o trabalho de quatro alunas, cada qual a sua maneira.
C. O. G. C. retratou um outro momento da história de Lida. Ela nos contou que depois de ter
resistido a este bombardeio, isso tudo após ter saído de Auschwitz e ido para a Polônia, seus pais
encontraram um tanque de guerra pertencente aos aliados inimigos da Alemanha ela o soube
dizer de qual país. Eles se ofereceram para escoltá-los até a fronteira da Polônia com a Aústria.
Nesse caminho o tanque foi atacado muitas vezes, e Lida e sua família seguiam atrás na esperança
de que nada os atingisse. É o que mostra o desenho de C. O. G. C.
Figura 40. C. O. G. C., darie Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
Em sua representação, realizada com giz pastel oleoso, a aluna vai mais longe: apresenta uma
ponte coberta por sangue e muitos mortos no caminho, o que não foi mencionado por Lida. Ela nos
contou sobre como a sorte, na sua visão, estava do seu lado. No momento em que ela, os pais e o
irmão entraram na ponte, uma bomba foi lançada a frente do tanque, fazendo com que a ponte fosse
totalmente destruída. Por pouco ela e toda família não foi morta e C. O. G. C. representou
justamente esse momento.
C. O. G. C. utilizou-se da imagem da ponte para compor seu trabalho, que narra, através do
desenho, um trecho específico da história de Lida. no trabalho de D. S. isso não acontece dessa
forma.
Figura 41. D. S., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
Uma ponte também pode ser vista no desenho de D. S. feito com giz pastel oloeoso ,
que nesse caso ela é uma construção muito mais simbólica do que narrativa: representa a dura
passagem de Lida pelo “inferno”. Os braços erguidos do personagem, que representa Lida e todos
os que, como ela, atravessaram a Europa em busca de liberdade, denunciam o desespero de milhares
de pessoas. A cor vermelha utilizada no chão e que atinge um grande olho que “tudo vê”,
rememoram os mortos que, literalmente, lavaram o chão europeu com seu sangue. E esse olho, que
observa tudo de muito perto, simboliza a justa, reivindicada por todos nós. Acima, um avião
sobrevoa a cena e atrás da ponte é possível ver algumas árvores em chamas.
A representação de D. S. é forte. As cores sugerem a violência da guerra e o tratamento
pictórico esfumaçado, misturado, confuso confirma aquilo que Lida não disse, mas foi
apreendido por todos: a incerteza em meio a calamidade.
B. S. foi outra aluna que utilizou a imagem da ponte em sua representação. Aqui, a ponte
também assume um papel simbólico, um instrumento de passagem, visto que o que Lida mais
desejava quando criança, segundo suas próprias palavras, é que tudo aquilo que ela estava vivendo
ficasse do outro lado”.
Figura 42. B. S., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
B. S. ressalta, através de seu desenho, um ponto importante da narração de Lida: as flores no
caminho para a Áustria. Lida, uma criança de apenas seis anos sobrevivendo em meio a guerra,
reparou nas flores que enfeitavam sua rota de fuga. Não seria apenas uma criança, talvez não muito
consciente do que estava acontecendo, capaz de perceber tais coisas, de apreender essas
lembranças?
B. S. não se esqueceu disso e registrou com giz pastel em seu desenho, que apesar das flores,
carrega também outros elementos. Novamente uma ponte vermelha, colorida pelo sangue dos
mortos, foi representada. É como se a narração de Lida suscitasse nos alunos um sentimento de
inconformismo perante as vidas que foram tiradas. É aquela lembrança reinvincada por Gagnebin
(2004), é “[...]aquilo que não tem nome, aqueles que não têm nome, o anônimo [...]”.
O trabalho de B. S. está dividido em duas partes, dois mundos: um trágico, representado pelas
cores vermelho e preto e, contrapondo-se a esse primeiro, um calmo, colorido de azul e verde.
O trabalho de W. T. pretende mostrar com clareza a travessia de Lida pela fronteira austríaca.
A aluna representou a passagem de Lida da guerra para o campo de refugiados através da figura
ponte.
Figura 43. W. T., da série Memória apropriada: lembraas de guerra, 2007
Lida nos contou sobre o campo de refugiados, na Áustria. Disse que, de um ponto alto do
local, era possível ver as casinhas cedidas a todos aqueles que conseguiam chegar até lá. Era um
lugar muito bonito onde ela, que sempre teve esperanças de que tudo aquilo teria fim, começou a ter
certeza disso. Lida se lembra de uma fábrica não consegue recordar o que era fabricado lá
muito grande que empregava todos os refugiados, inclusive seu pai. Lida costumava brincar pelas
redondezas, repletas de florestas e montanhas. Essa fábrica pode ser enxergada no desenho de W. T.
abaixo à direita , que utilizou lápis de cor e caneta esferográfica preta para com-lo.
Com relação ao campo de refugiados, W. T. foi fiel à narração de Lida, sua representação está
próxima ao que foi descrito. O interessante é como a aluna descreveu, através do desenho, a
passagem de Lida “do inferno para o céu”, podemos assim dizer. Lida conta que ao conseguirem
atravessar a fronteira, os refugiados estavam, literalmente, salvos. Essa literalidade pode ser vista no
desenho da aluna.
A idéia da ponte como instrumento de passagem de um lugar para outro foi absorvida por W.
T. que a representou numa divisão simbólica: “entre o céu e o inferno”, como ela chama. As cores
laranja e vermelho representam a guerra e o fogo que destruíu a vida de muitas pessoas.
Lida e sua família caminham pela ponte, deixando para traz os horrores vividos, observando o
futuro que os espera. A representação da Áustria feita por W. T., diferentemente de algumas
representações feitas pelos alunos referentes aos cenários de guerra descritos por Lida que
remetem ao fato de que numa guerra nada pode ser compreendido , é clara, ordenada e limpa.
N. R. C. o conseguiu selecionar um momento ou um tema da narração de Lida que tenha
lhe chamado mais atenção: tudo pareceu absurdamente irreal. Então ela representou algumas coisas
que, segundo a própria aluna, não poderiam deixar de ser “ditas”.
Figura 44. N. R. C., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
Em meio a profusão de imagens que caracteriza o trabalho de N. R. C., não é difícil perceber
que todas elas estão providas de significados próprios. O preto utilizado ao fundo representa a
confusão, a incerteza, a falta de clareza e lógica dos fatos. O vermelho, recobre o chão onde os
mortos se encontram. Mais acima, à direita, N. R. C. não se esquece que o resultado físico de uma
guerra não são só os mortos e os edifícios destrdos: muitos voltaram para casa com a memória
corporal da guerra, uma escritura do corpo, a mutilação isso Lida também não nos contou.
Em meio a fumaça, surgem algumas armas, no canto superior direito, e, mais abaixo, uma
o que carrega um coração despedaçado simbolizando a destruição de muitas vidas, pela morte
e pela certeza de que nada mais voltaria a ser como era antes. À esquerda, gotas de sangue juntam-
se a lágrimas, simbolizando a dor e a tristeza das timas. Através da transparência de uma dessas
gotas, N. R. C. revela o caminho para a Áustria. Segundo Lida, panelas de barro eram penduradas
nas cercas das casas no caminho para a Áustria elas foram representadas por N. R. C. Lida
contou-nos que era uma cena muito bonita: a estrada toda repleta por panelas.
Mas, no centro do desenho, duas mãs e duas bananas registram um momento muito feliz
pelo qual Lida passou: ao chegar ao Brasil, depois de meses com pouquíssima comida, tudo o que
ela mais desejava era poder comer maçã e banana, frutas que não se via pela Europa, segundo a
narradora, há muito tempo. Esse momento foi muito importante, pois no hospital onde Lida ficou
internada alguns dias, no Rio de Janeiro, começou a se dar conta de que a guerra tinha realmente
ficado do outro lado do mundo.
V. R. S. parece seguir a mesma idéia de N. R. C.: a representação de um discurso
fragmentado, através do desenho, só pode ocorrer com os próprios fragmentos deste discurso.
Figura 45. V. R. S., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
V. R. S. (re)conta-nos alguns trechos da narração de Lida. Faz suas próprias interpretações
sobre a história da narradora. É um trabalho bastante significativo que aglutina e repassa ao
espectador trechos importantes da história de Lida. Acima, à esquerda, é possível ver o episódio em
que a ponte é bombardeada, local onde Lida e sua família atravessavam. Mais ao centro, ainda na
parte superior do desenho, as casas no caminho da Áustria, com as panelas de barro apoiadas nas
cercas.
À direita, V. R. S. reproduziu com clareza a história do “príncipe encantado” que salvou Lida
dos “cachorros gigantes”. Nota-se que V. R. S. representou o “herói” de Lida tal como ela o
descreveu: um príncipe. Logo acima, V. R. S. fez sua interpretação do campo de refugiados, com as
casinhas e a fábrica.
Abaixo, Lida e sua família antes das perseguições começarem. Ao lado, uma cena que V. R.
S. coms a partir de suas próprias conclusões sobre o assunto. Lida nos contou sobre um tio, irmão
de seu pai, o qual ela amava demais e que na ocasião das perseguições desapareceu
misteriosamente. Até aquele dia, Lida não sabia do paradeiro do tio. V. R. S. compreende aquilo
que ouviu e colocou sua própria interpretação: o tio, que era um homem de muitas posses,
possivelmente foi morto pelos alemães. Como a aluna o tem certeza dos fato, faz seu desenho em
preto, apenas as silhuetas do tio e de um soldado que reafirmam essa incerteza.
Junto a isso, um garoto que chora. É o iro de Lida que sentiu profundamente a falta de seu
tio predileto e chamava por ele, dia após dia. Suas lágrimas o de sangue, sugerindo a imensidão
da dor sentida por aquela criança.
A centro, uma bomba que é lançada e sugere destruir tudo que está a sua volta. Podem existir
rias hipóteses para essa representação; considero o fato de que a bomba representada por V. R. S.
simboliza o fim de todo o sofrimento descrito por Lida.
Lida citou, por várias vezes, o caminho para a Áustria. Segundo ela, era muito bonito e
parecia estar alheio a tudo o que acontecia na Ucrânia e na Polônia. Três alunos basearam seus
trabalhos nesse tema: o caminho para a Áustria. Cada um deles, à sua maneira, tentou reconstruir a
paisagem do caminho recolhendo fragmentos da história de Lida.
Figura 46. N. R. S., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
Como dito anteriormente, um ponto na história de Lida chamou a atenção dos alunos: o
caminho para a Áustria estava preservado, era como se a guerra não tivesse chegado até lá. Depois
de Lida e sua família terem sido libertados de Auschwitz milagrosamente um suposto acusador
que os teria denunciado como inimigos teria retirado a queixa , de terem caminhado meses
tentando fugir da Polônia, finalmente conseguem chegar até uma espécie de rota para fugitivos de
guerra.
Nessa rota, o ritmo da vida continuava intocado. É o que pode ser visto no desenho feito com
pis de cor de N. R. S. Um ambiente calmo, um homem cuidando de seus animais e três crianças
brincando no campo. Pelo tema escolhido por N. R. S., percebe-se que a aluna não suportou
transmitir a dor, preferiu os momentos de mais pura esperança, sim, porque a estrada para Áustria
estava, segundo Lida, repleta de esperança.
S. D. preferiu representar essa mesma estrada para Áustria através de um caminho entre as
árvores por onde Lida, segundo a aluna, caminhou em segurança. A aluna também utilizou lápis de
cor no desenho.
Figura 47. S. D., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
M. V. D. seguiu a mesma idéia de sua colega e representou seu próprio caminho para a
Áustria, através do lápis de cor também. Mas a auncia da figura humana causa um certo
desconforto e torna o trabalho da aluna perturbador. Ao mesmo tempo que reflete paz e
tranqüilidade, leva-nos a pensar que ninguém mais vive lá, está deserto. Foram todos mortos ou
capturados? Resta essa dúvida.
Figura 48. M. V. D., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
O trabalho de G. M. A. A. tem um esplendor surpreendente: após a história terrível ouvida
por ele, o aluno foi capaz de retirar da narração de Lida toda a alegria, percebida por ele, no trajeto
para Áustria.
Figura 49. G. M. A. A., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
A falta de perspectiva e a planificação dos elementos compositivos do desenho são aspectos
irrelevantes comparados ao colorido criado por G. M. A. A. Aqui, o aluno, que se desculpou muito
por não saber desenhar, transmite a alegria, imaginada por ele, de todos aqueles que passaram pelo
caminho na certeza de que encontrariam a paz do outro lado da fronteira. O aluno alcança isso
através da variedade de cores vermelho, azul, amarelo, verde, marron e preto , principalmente
com o contraste criado pelas complementares (vermelho e verde) e na intensidade pictórica
promovida pelo uso do giz pastel oleoso, misturado no próprio suporte.
As casas desenhadas, uma a uma, e sem aparentes estragos, refletem uma parte da Europa que
o passou pela guerra; por sorte, Lida encontra este caminho. As panelas também foram
representadas nas cercas criadas por G. M. A. A.; acompanham as mesmas cores utilizadas pelo
aluno no restante do desenho.
No centro, uma espécie de carruagem Lida citou uma carroça guiada por um cavalo que
conduz a família. As casinhas a grande maioria em vermelho misturam-se à paisagem local
formada por florestas que rodeavam as cidades. Acima da carruagem, um sol que parece estar
brilhando apenas para Lida, acompanhando seu trajeto, iluminando seu caminho.
A hisria de Lida, assim como todos os testemunhos advindos do trauma, é uma narração da
perda, como já citado anteriormente nesta pesquisa. Em sua narração, Lida deixa claro que durante
a guerra, ela e sua família buscavam a liberdade, a paz e a felicidade, coisas que haviam perdido.
Trechos de seu depoimento relatam algumas perdas, pensando-se apenas no aspecto físico da
questão: a casa, membros da família, amigos, alimentos, entre outras coisas. O desenho de M. S. G.
é uma tentativa de transmitir o básico que para Lida era muito para a sobrivência de qualquer
ser humano: casa e comida.
Figura 50. M. S. G., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
A representação de M. S. G. é bastante simplificada, mas com significados importantes para
Lida e para a aluna: ter um lar novamente e o que comer; são desejos não declarados pela narradora,
mas subentendidos pela aluna.
A escuridão do céu lugar à uma pequena casa, desenhada com tinta nanquim preta. O
desenho limpo e o fundo branco sugerem que a paisagem fica a critério de Lida ela pode sonhar
com qualquer lugar.
Por cima da casa, pedaços de pão foram colados por M. S. G., que mais do que representar a
comida, apresenta-a ao espectador. O céu escuro, nebuloso, indícios de que a guerra ainda está
, mas que é possível sonhar com um lar mesmo assim Lida sonhou e conseguiu.
Depois de certo tempo trabalhando e morando no campo de refugiados, os pais de Lida
descobriram que o Brasil aceitava refugiados de guerra e imediatamente embarcaram em um navio.
A chegada ao Rio de Janeiro foi narrada com muita alegria por Lida. Ela se lembrou deste dia com
muito carinho. Foi aqui, no Brasil, que pôde novamente ser feliz.
Figura 51. N. R. S., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
N. R. S. relembra este dia através de seu desenho com lápis de cor. Representa um navio,
prestes a aportar em território nacional. A família de Lida está toda representada nele: eles acenam
para as pessoas no porto, que parecem aguardá-los. A bandeira brasileira asteada em pleno navio
europeu dá indícios que mesmo antes de chegar ao destino, a tripulação já reconhecia a nova pátria-
e.
A cidade do Rio de Janeiro também é representada por N. R. S. As cores claras e o desenho
ordenado explicitam as diferenças que podem ser encontradas entre as representações de momentos
de guerra e paz da história de Lida.
De todos os alunos que participaram de Memória apropriada, dois fizeram uma representação
abstrata. Um deles foi R. R., que chamou seu trabalho de A trajetória de Lida (apenas R. R. colocou
nome no trabalho).
Figura 52. R. R., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
A idéia de que o sobrevivente não encontra palavras que possam descrever o que ele viveu
tem íntima relação com o trabalho de R. R., que, por sua vez, não encontrou elementos figurativos
para representar a dor apreendida com a narração.
O trabalho de R. R. se difere dos demais por ser pintura e não desenho. Sua pintura, que deve
ser lida da direita para esquerda, conforme explica o aluno, apresenta, simbolicamente, quatro
momentos narrados por Lida que lhe chamaram mais a atenção e resumiram, na visão de R. R., sua
trajetória durante a guerra.
R. R. representa estes momentos através de quatro partes verticalmente divididas, cada qual
simbolizando determinado trecho da narração de Lida.
O primeiro, em verde, azul e marron, localizado à direita, é o que R. R. chama de Lida antes
da guerra. Aqui, o aluno representa com tinta acrílica a paisagem ucraniana antes da guerra
explodir. Os desenhos em marrom simbolizam as árvores deste lugar, imaginado por R. R. A
segunda parte representa o campo de concentração onde Lida esteve por três semanas. O vermelho
simboliza o sangue advindo daquele local; as cruzes em azul repetidas inúmeras vezes simbolizam
os mortos. Os pontos, também em azul, representam os prisioneiros e as linhas pretas as grades de
Auschwitz.
A terceira parte, com fundo preto, simboliza a travessia de Lida rumo à Áustria. Aqui,
manchas em azul representam as bombas narradas por ela, e as manchas em laranja as explosões
advindas dessas bombas.
A quarta e última parte da pintura de R. R., feita sobre fundo laranja, simboliza o campo de
refugiados. As formas geométricas pintadas em marrom e espalhadas sobre esse fundo colorido
representam as casas dos refugiados e os pontos brancos simbolizam todos os que conseguiram
chegar até lá. Nota-se que no primeiro quadrado, quando se olha as figuras geométricas de baixo
para cima, há, ao invés de apenas pontos brancos, um retângulo branco. É possível notar esse
mesmo retângulo atravessando todo o trabalho de R. R. Essa foi a forma que o aluno encontrou para
representar Lida cumprindo sua trajetória.
O último trabalho da série Memória apropriada também é uma representação abstrata.
Figura 53. N. S. L., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
N. S. L. preferiu utilizar-se de elementos abstratos para sua composição, assim como R. R.
Semelhantemente ao trabalho de R. R., a composição de N. S. L. feita com lápis de cor e canetas
hidrográficas coloridas simboliza pontos do discurso de Lida, que no caso de R. R., a maioria
dos pontos destacados através de seu trabalho foram declarados pela narradora. No caso de N. S. L.,
sua representação é pautada em elementos subentendidos no discurso de Lida.
Quando Lida contou sua história ela não foi específica quanto ao tempo cronológico das
perseguições, mas imagina-se que tenha sido por mais de um ano, pela quantidade de coisas que
aconteceram. Através do verde, amarelo, violeta e azul colocados ao fundo N. S. L. simbolizou
todas as estações do ano, acreditando que Lida tenha sido perseguida em todas elas. Os pontos
representam os mortos, que foram lembrados por N. S. L., um a um.
No lado superior direito observa-se uma espécie de eclipse: prenúncio do fim do mundo
descrito no livro de Apocalipse, na Bíblia a aluna também é bastante religiosa. Abaixo, à
esquerda, um livro, que segundo N. S. L., queima. Esse livro seria a Bíblia, representando a
perseguição aos judeus por parte dos nazistas.
A cruz foi o mbolo encontrado por N. S. L. para representar o sacrifício humano imposto
pelo nazismo. No topo da cruz encontramos o mesmo elemento representado por D. S. em seu
desenho: o olho que tudo vê”. Interessante que N. S. L. também o coloca numa tentativa de
simbolizar a justiça, que um dia, acredita ela, recairá sobre todos.
3.3. Memória apropriada: lembranças de guerra: outras
considerações
Memória apropriada: lembranças de guerra vai na contra-mão das atrocidas cometidas
durante a Segunda Guerra Mundial. Enquanto esta foi um grande memoricídio, ou seja, uma
tentativa potente de extermínio total das memórias, principalmente através dos campos de
concentração, Memória apropriada tem a intenção justamente de reter essas memórias, para assim
como disse Gagnebin (2004), “[...] ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente”.
O que é percebido em Memória apropriada: lembranças de guerra é que todos os alunos
foram capazes de representar passagens da história de Lida. Alguns descreveram, através dos
trabalhos, passagens explícitas da vida da narradora, já outros captaram mensagens das entrelinhas
do discurso, que se caracteriza pelas lacunas da memória da narradora, portanto é fragmentado e
incerto.
A esperança, que foi o tema principal de sua históra, pôde ser captada, mostrando que a beleza
da história de Lida não está no medo, ou na pobreza, como cita Madre Teresa de Calcutá, mas na
coragem de ainda sorrir e ter esperanças apesar de tudo.
3.4. Memória apropriada: lembranças de guerra e ...uma história
que você nunca mais esqueceu?: aproximações
Memória apropriada e ...uma história que você nunca mais esqueceu? encontram-se unidos
pelo trauma: vivido por Lida, pelos garotos do Instituto-Escola João Luiz Alves e por Rosana
Palazyan. Tanto um quanto outroo produto do testemunho de uma situação-limite.
Também existem diferenças entre as duas séries, uma delas é o fato de que em Memória
apropriada encontramos apenas uma narradora. em ...uma história que você nunca mais
esqueceu? são vários os narradores.
Em ...uma história que você nunca mais esqueceu?, realizada entre 2000 e 2004, Rosana
centra o horizonte temporal no passado: a memória, o trauma, o desencanto e retorno do reprimido.
A artista montou sobre travesseiros cenas que para jovens de 12 a 17 anos eram impossíveis de
serem esquecidas, “pois esse esquecimento seria o esquecimento do próprio ser”. Esses jovens
narradores, em conversas com a artista entre 2000 e 2001, não sobreviveram a nenhuma guerra
oficialmente conhecida pela História, mas participam, diariamente, da luta pela sobrevivência e
liberdade, onde quer que estejam. (PALAZYAN, 2004, p.20).
Figura 54. Vista da instalação ...uma história que você nunca mais esqueceu?, apresentada no Centro Cultural
Banco do Brasil, Rio de Janeiro, 2002, colão da artista
Figura 55. Vista da instalação ...uma história que você nunca mais esqueceu?, apresentada no Centro Cultural
Banco do Brasil, Rio de Janeiro, 2002, colão da artista
A dependência das drogas, o tráfico, as condições precárias de vida, a violência e a morte
geram uma memória do trauma que, assim como no caso de Lida, precisa ser narrada. As cenas
presenciadas por eles e narradas à artista são fortes e muito próximas àquelas vistas no cinema, mas
infelizmente, assim como na história de Lida, são bastante reais.
Rosana afirma que ... uma história que você nunca mais esqueceu? também é fruto de suas
próprias memórias. Segundo a artista, o jogo de sombras na parede remete à sua infância, quando
havia falta de luz e brincava de contar histórias ou imitação de formas feitas com as mãos e
projetadas na parede com o auxílio de velas.
Neste caso, este não foi o trabalho que levou Rosana a instituição. A pergunta Você tem uma
hisria que nunca mais esqueceu? surgiu durante as conversas com os meninos na tentativa de
aproximação, na possibilidade de uma troca. “Na verdade não pedia uma história ruim, poderia ser
uma boa história , mas...” 5
A artista tinha uma história que nunca mais se esqueceu. “Achava que eles
tinham tantas que talvez não se lembrassem de uma”. Ouviu histórias de
agressão pela mãe e da mãe pelo pai [...] (PALAZYAN, 2004:20).
Diferentemente de Memória apropriada, onde a construção dos trabalhos se no plano
bidimensional, em ...uma história que você nunca mais esqueceu? Rosana parte para o plano
tridimensional, utilizando-se de materiais como travesseiros, algodão, arame, meia de poliamida e
objetos plásticos. O impasse no qual Rosana ergue sua obra está na desterritorialização social: o
travesseiro é o terririo das memórias.
...uma história que você nunca mais esqueceu? reúne travesseiros bordados, onde se sobrepõe
uma cena com pequenos bonecos. Suspensos, e com iluminação especial, essas peças projetam
sombras nas paredes, espectros de agressão infantil, assassinato e violência contra a mulher.
Ao espectador, ao observar a instalação de Rosana, é requerido mais que um olhar: para
conseguir ler as histórias bordadas nos travesseiros, é preciso abaixar-se ou esforçar-se em
levantar, pois os travesseiros são dispostos de modo que o público deve se aproximar.
4 Trecho proferido pela artista em entrevista a pesquisadora, em fevereiro de 2009.
Assim como em ...um pedido para estrela cadente..., em que o público puxa os balões para
conseguir ler as mensagens, Rosana novamente faz esse pedido de aproximação. A artista opera
uma relação com suas próprias memórias, pois relembra que, ao visitar os alojamentos dos meninos,
no Intituto-Escola, precisou abaixar-se ou levantar-se para vê-los em suas beliches improvisadas em
concreto: ela solicita o mesmo esforço, o mesmo cuidado.
Figura 56. Rosana Palazyan, ...antes só pensava em maconha e roupa e marca, mas vi minha e indo presa
junto comigo. Agora quero parar..., da rie ...uma história que você nunca mais esqueceu?, 2001, coleção da artista
Para cada uma dessas histórias ouvidas, é recriada, pela artista, uma cena marcante para o
narrador e trechos desta narração intitulam a obra. Sendo assim, além da imagem, Rosana confere
ao espectador trechos do testemunho do sobrevivente no título e nos bordados dos travesseiro. Os
textos bordados em linha branca nos travesseiros exigem do espectador mais um gesto de
aproximação: ele deve circundar a obra para ler as inscrições.
A instalação de Rosana agrupa representações que para esses meninos fazem parte do
cotidiano. O que é percebido é que a morte e a agressão permeiam o mundo em que vivem; e
Rosana denuncia esse fato.
Figura 57. Rosana Palazyan, ...eu tinha 11 anos quando mataram minha mãe e eu entrei para o crime..., da série
...uma história que você nunca mais esqueceu?, 2000, coleção da artista
(...) eu tinha 11 anos quando mataram minha mãe e eu entrei para o crime, ela
tava vindo do trabalho, era enfermeira. A polícia tava em guerra com o morro
e quando ela disse que morava deram um tiro. Ela era inocente. Odeio a
polícia. Eu pego quem fez (...) (PALAZYAN, 2004, p.34).
O que é notado, comparando a instalação de Rosana com a proposição Memória apropriada é
que em ambos os casos os narradores passaram por situações que causaram grandes perdas e
rupturas em suas vidas. Situações que transformaram seu relacionamento com o mundo. Pode o
parecer coerente comparar a Segunda Guerra Mundial com o que é vivido nos morros do Rio de
Janeiro e outras comunidades do Brasil, mas algumas características de uma guerra também podem
ser encontradas nestes locais: fome, medo, violência, injustiça e morte. Tanto Lida quanto estes
garotos que participaram da proposição de Rosana, eram muito novos quando presenciaram estes
acontecimentos e isto é outro ponto que os une: o trauma na infância.
Um menino dizia a Palazyan que tem que ser sozinho”, porque quem se
aproxima dele acaba morto. Muitos dizem que gostariam de sair dessa
vida”, mas não têm como, não sabem como (PALAZYAN, 2004, p.20).
Figura 58. Rosana Palazyan, ... meu amigo morreu no meu lugar, nessa vida tenho que ser sozinho. Andou
comigo, mesmo se não for bandido, tá morto..., da série ...uma história que você nunca mais esqueceu?, 2001, colão
da artista
A violência que sufoca e permeia estas histórias, encontra na vingança um certo equilíbrio
para que o narrador consiga viver.
(...) quando eu era pequeno meu pai batia muito na minha mãe. Eu não podia
fazer nada, ficava olhando. Agora se eu ficar sabendo que meu pai
encostou na minha mãe, eu mato ele (...) (PALAZYAN, 2004, p.35).
Figura 59. Rosana Palazyan, ...agora se eu ficar sabendo que meu pai encostou na minha mãe, eu mato ele..., da
série ...uma história que você nunca mais esqueceu?, 2000, colão da artista
Figura 60. Rosana Palazyan, ... quando eu sair daqui, vou morar com meu pai, não quero mais saber da minha
mãe..., da série ... uma história que você nunca mais esqueceu?, 2000, coleção da artista
Na narração de Lida esse elemento não é encontrado. Por mais que ela tenha passado por
perseguições sem motivo aparente, Lida o expressa em momento algum o desejo de vingança ou
ódio. Por mais que sua narração tenha sido comovente, o tema principal de seu discurso foi a
esperança em uma vida melhor. Coincidentemente, para Rosana seus trabalhos também permeiam o
campo da esperança: sempre que penso no meu trabalho desde o início até a partir da dor que tive,
sempre penso primeiro no sonho, na esperança, por isso o lugar do sonho é a busca deste lugar
dentro de realidades tão distintas e sem perspectivas”. 6
Mas, apesar das diferenças e das semelhanças, considero o fato de que os dois trabalhos
convergem para aquilo que Gagnebin (2004) escreveu: “somente a transmissão simlica, [...] por
causa do sofrimento indizível, somente esta retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não
repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra hisria, a inventar o presente”.
5 Trecho proferido pela artista em entrevista a pesquisadora, em fevereiro de 2009.
CAPÍTULO 4 MEMÓRIA APROPRIADA: LEMBRANÇAS
DE GUERRA
A beleza não está na pobreza, mas na coragem de ainda sorrir e ter esperanças apesar de tudo.
Madre Teresa de Calcutá 1
É redundante dizer que as duas grandes guerras Primeira e Segunda Guerra Mundial
foram catástrofes que criaram trágicas rupturas na História da humanidade. Mais ainda, foram
acontecimentos tenebrosos que marcaram a vida e a morte de milhões de pessoas.
É possível dizer que em uma guerra não se mata milhares ou milhões de pessoas. Em uma
guerra morre alguém que vai se casar, outro que tem muitos filhos, mais alguém que cozinha bem.
Uma guerra destrói memórias, sonhos, esperanças. A proposta Memória apropriada conseguiu tirar
a discussão do tema guerra apenas dos filmes e livros e trazê-lo um pouco mais perto dos alunos,
através de alguém que testemunhou seus horrores, alguém que sobreviveu a tudo isso.
Lida Hrynko, sobrevivente da Segunda Guerra Mundial, traz consigo o peso do testemunho 2.
Esse peso, que recai sobre o sobrevivente dia após dia pode ser aliviado através da narração,
segundo o autor Seligmann-Silva (2003). Mas por que é tão difícil livrar-se dos “fantasmas do
campo de concentração” e simplesmente contar o que ocorreu? Seligmann-Silva e Jeanne Marie
Gagnebin (2004) pretendem responder a essa mesma pergunta, como é possível ver em suas obras.
6 Frase proferida em julho de 1979 e publicada na Revista Veja Especial Mulher, Editora Abril, em maio de 2008, p.
95.
7 Testemunho: do latim testis e supertes. O primeiro significa depoimento de um terceiro em um processo. E o
segundo, pessoa que atravessou uma provação, o sobrevivente, sendo que o conceito de sobrevivente esmuito
próximo ao de mártir, que é uma palavra que vem do grego, e ao de testemunha.
4.1. Memória e testemunho: Lida na era das catástrofes
Há dois anos, durante os primeiros dias que sucederam ao nosso retorno,
estávamos todos, eu creio, tomados por um delírio. Nós queríamos falar,
finalmente ser ouvidos. Diziam-nos que a nossa aparência física era
suficientemente eloqüente por ela mesma. Mas nós justamente voltávamos,
nós trazíamos conosco nossa memória, nossa experiência totalmente viva e
nós sentíamos um desejo frenético de a contar tal qual. E desde os primeiros
dias, no entanto, parecia-nos impossível preencher a distância que nós
descobrimos entre a linguagem de que dispúnhamos e essa experiência que,
em sua maior parte, nos ocupávamos ainda em perceber em nossos corpos.
Como nos resignar a não tentar explicar como nós havíamos chegado lá? Nós
ainda estávamos lá. E, no entanto, era impossível. Mal começávamos a contar
e sufocávamos. A mesmos, aquilo que tínhamos a dizer começava então a
parecer inimaginável (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.45-46). 3
Nos primórdios das sociedades antigas na antigüidade grega com Heródoto, no século V a.c.
a História se iniciou como uma narração daquele indivíduo que podia dizer “eu vi”, “eu senti”.
Nesse sentido, a narração feita por alguém que viveu os fatos pode ser chamada de testemunho. O
testemunho pode ser compreendido ainda como o discurso de um sobrevivente, que precisa narrar
sua experiência para recompor os fragmentos de seu eu”. Desse modo, ele visa também a um
consolo por meio do fluxo na narrativa que carrega a dor para um porto distante.
O trecho citado acima foi escrito por Robert Antelme, e abre o relato de sua experiência nos
campos de concentração nazistas. Fica claro, a partir dele, que o sobrevivente encontra-se num
campo cerrado entre duas forças: de um lado, a necessidade vital de narrar a experiência vivida, e
de outro, a percepção da insuficiência de linguagem diante dos fatos e do caráter inimaginável tão
absurdo que ninguém poderia acreditar dos mesmos e sua conseqüente inverossimilhança.
8 Trecho da obra de ANTELME, R. L’espèce humaine. Paris: Gallimard, 1957, p. 9, citado na obra de
SELIGMANN-SILVA (2003).
Sobre a inverosimilhança dos fatos, Seligmann-Silva (2003) cita um trecho do autor Aharon
Appelfeld (1932): tudo o que ocorreu foi tão gigantesco, tão inconcebível, que a própria
testemunha se via como uma inventora. O sentimento que a sua experiência não pode ser contada,
que ninguém pode entendê-la, talvez seja um dos piores que foram sentidos pelos sobreviventes
após a guerra”. É justamente nessa encruzilhada que encontra-se Lida. (SELIGMANN-SILVA,
2003, p.57).
Além da perseguição por conta da guerra, Lida também sobreviveu a um dos mais cruéis
campos de concentração nazistas e é testemunha de seus horrores. Sobreviver seria um termo
empregado ao sujeito que passou por um evento-limite, cujo percurso foi um “atravessar a morte”, o
que problematiza a relação entre a linguagem e o real vivido: por isso ser tão difícil a construção de
um discurso nessas condições.
Este elemento testemunhal encontrado pode ser facilmente percebido, segundo Seligmann-
Silva (2003), na literatura do século XX era das catástrofes e genocídios. Foi a partir dos horrores
da guerra, como citado no Capítulo 2 desta dissertação, que ocorreu o desaparecimento das formas
tradicionais de narração, onde, segundo Benjamin, os sobreviventes voltaram mudos porque aquilo
que viveram não podia ser assimilado por palavras. Esse embate entre o absurdo vivido e a
impossibilidade de transformá-lo em um discurso, é que corpo ao testemunho de Lida:
fragmentado, incompleto, falho, distorcido; sofrido.
Para Appelfeld (1932), “a característica principal da literatura de testemunho é que o
sobrevivente, ao contar e revelar, está, ao mesmo tempo, escondendo”. Aquele que testemunha
apresenta a história da perda; é o testemunho de um desaparecimento (SELIGMANN-SILVA, 2003,
p.20).
O sobrevivente encontra no esquecimento, que também foi estudado por Nietzsche, um certo
afastameto da dor, por isso o discurso proveniente do trauma (em grego ferida) ser repleto de
lacunas. E o que seriam essas lacunas ou sobras dentro de um testemunho?
Em primeiro lugar o sofrimento, o sofrimento indizível que a Segunda Guerra
devia levar ao seu cume na crueldade dos campos de concentração [...]. E
segundo lugar, aquilo que não tem nome, aqueles que não têm nome, o
anônimo, aquilo que não deixa nenhum rastro, aquilo que foi tão bem
apagado que mesmo a memória de sua existência não subsiste [...]
(GAGNEBIN, 2004).
Esses foram dados que Lida não nos contou, mas as lacunas provenientes de sua hisria
também foram apreendidas e representadas pelos alunos, como será visto mais adiante.
Para a Gagnebin (2004), “somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do
sofrimento indizível, somente esta retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo
infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente”.
O sobrevivente vive o drama do testemunho, como coloca Seligmann-Silva, que está
irremediavelmente ligado à um processo dialético e complexo no qual recordar e esquecer são dois
fatores dinâmicos e inseparáveis: a pessoa, em certa medida, recorda para se esquecer e porque não
consegue esquecer-se precisa narrar. É uma “trama de [esquecer e recordar], passado e presente,
perder-se e encontrar-se” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.29).
Lida pensou bastante antes de aceitar o convite, afinal de contas, relembrar o passado é trazê-
lo novamente ao presente, é uma forma de (re)vivê-lo. Mas a necessidade de aliviar o fardo, pesado
demais, fez com que ela compartilhasse conosco sua experiência.
Para Gagnebin (2004), “testemunha não seria somente aquele que viu com seus próprios olhos
[...]. Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração
insuportável do outro e que aceita que suas palavras revezam a história do outro[...]”. Desse modo,
todos os que participaram de Memória apropriada são também testemunhas, testemunhas
secundárias termo utilizado por Seligmann-Silva (2003) das atrocidades da guerra.
4.2. Memória apropriada: lembranças de guerra: análise dos
trabalhos
Assim como Gagnebin e Benjamin (1892-1940) comparam a figura do historiador-narrador à
do trapeiro, que encontra (ou deveria encontrar) nas sobras da cidade tudo aquilo que falta para
compor seu discurso histórico, comparo, pensando especificamente na proposição Memória
apropriada, os alunos à essa figura: eles recolherame registraram o sofrimento de Lida. Mas por
que Gagnebin (2004) chama esse sofrimento de indizível? Lida fez sua narração, ela foi ouvida por
todos nós. Indizível porque o silêncio, ouvido em alguns momentos de sua fala, e seu choro, falaram
mais alto que suas palavras. Ela mesmo deixa isso claro quando começa sua história: "...mas não
tudo, só aquilo que eu puder dizer, tem coisas que eu não quero me lembrar...". 4
A proposição Memória apropriada foi uma tentativa de traduzir algo não visto, mas sentido e
imaginado pelos alunos, cujo conteúdo corresponde, em diferentes aspectos, à essa memória
fragmentada e falha proveniente de uma situação-limite, combinada com outras lembranças
pessoais dos próprios alunos.
A questão da inverossimilhança, levantada na pesquisa realizada, pode ser exemplificada no
discurso de Lida através do episódio dos chuveiros sem água”. Durante sua narração, Lida nos
contou, bastante inconformada ainda, que ela, a família e os demais prisioneiros do campo, eram
levados todas as semanas para um galpão cheio de chuveiros todos juntos e nus onde pretendia-
4 Declaração de Lida retirada da entrevista concedida à pesquisadora em 21/08/2007.
se, pelo que Lida até hoje imagina, dar uma espécie de banho coletivo em todos. O mais
interessante e incomodo é que Lida ainda não entende por que nunca saiu água daqueles chuveiros.
“Apenas a passagem pela a imaginação poderia dar conta daquilo que escapa ao conceito”.
Segundo o autor, aquilo que para o sobrevivente transcende a verossimilhança, ou seja, aquilo que
se entende por mundo, exige uma reformulação artística, através da imaginação, para sua
transmissão. (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.380).
Para Lida, estar numa sala com “chuveiros”, como ela assim descreve, podia ser uma
tentativa frustrada de banhar-se.
O que é enxergado por nossa aluna-historiadora”, M. S. P., que recolheu os fragmentos de
Lida e tentou arranjá-los para que fizessem sentido, é que Lida passou, diversas vezes, por
experiências na mara de gás inconcebível para Lida acreditar que os alees estavam tentando
matar uma família inocente, ainda mais com duas crianças, ela e o irmão.
Figura 37. M. S. P., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
Este foi um dos compromissos assumidos pelos alunos participantes da proposição Memória
apropriada: representar aquilo que Lida revela e esconde através do desenho. Reconstruir,
através de suas próprias memórias, as lembranças de uma outra pessoa. Essa reconstrução, em
paralelo com a afirmação de Benjamin sobre o trabalho do historiador, assume os contornos de um
trabalho artesanal, no qual o aluno, neste caso, deixa as marcas digitais em sua obra”; é bastante
autobiográfico. (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.390).
M. S. P. que depois da narração de Lida me chama num canto da sala e conta sua descoberta
representa os prisoneiros na câmara de gás e os grandes fornos que Lida acredita destinarem-se a
cozinhar para os prisioneiros, apesar de nunca ter provado a comida.
A representação de M. S. P., feita apenas com lápis grafite, é fria, sem cor, dura. Mostra o
vazio sentido pelos prisioneiros, a perda do lar, dos amigos, e quase da vida. As construções são
planificadas, vazias, refletindo a morte advinda desse lugar. A falta de detalhes denuncia a narração
de Lida: ela não pôde e nem quis se lembrar mais de Auschwitz. De todos os personagens
representados por M. S. P. dentro da mara de gás, apenas um conserva-se “em pé”, disposto a
lutar, a continuar. Esse personagem, segundo descreve a própria aluna, representa Lida e todos
aqueles que, como ela, acreditaram na liberdade.
Mas a história de Lida, ao contrário do que todos imaginavam, o é sobre as mortes geradas
pela guerra. A história de Lida é, acima de tudo, sobre a vida e o desejo de mantê-la, o desejo de
sobreviver, de lutar; é sobre a esperança. Lida em momento algum cita os mortos, apenas narra
como seu desejo de viver a impulsionou em sua jornada rumo ao Brasil. É que a história de Lida
encontra beleza: na esperança.
Figura 38. N. S. R., da série Memória apropriada: lembranças e guerra, 2007
O desenho N. S. R., construído com lápis de cor, é estranhamente alegre: as pessoas sorriem
de mãos dadas, como que posando para uma foto. Do grande galpão, representado pela aluna,
nenhum murmúrio de morte ou sofrimento pode ser ouvido. Apenas as grades denunciam que é uma
prisão. Mas também não poderia ser uma escola?
Considero três hiteses para o fato: a aluna foi ingênua ao ponto de não captar as entrelinhas
do discurso de Lida o sofrimento indizível ; ela não acreditou na gravidade dos fatos como
aconteceu com pessoas em outros contextos que também ouviram sobreviventes dos campos de
concentração ; ou, a certeza de que sobreviveria era algo tão forte na história de Lida que N. R. S.
a captou.
O que foi solicitado em sala de aula é que cada aluno encontrasse no trecho da narração de
Lida que mais lhe chamasse a atenção, subsídios para compor seu trabalho. O que pode ser
percebido nos trabalhos da série Memória apropriada, é que as cenas representadas pelos alunos
foram bem variadas, ou seja, rias partes do depoimento de Lida foram significativas para eles.
O desenho de C. L. S. remonta vários momentos em uma mesma cena.
Figura 39. C. L. S., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
Conjuga partes da narração de Lida com trechos de seu próprio imaginário, pois Lida em
momento algum citou os cemitérios ou valas utilizados para enterrar os corpos, soldados mortos
ou aviões. Ela contou sobre muitas bombas que explodiram próximas a ela, mas nunca que vinham
de aviões. C. L. S. representa a casa de Lida em chamas que também não foi citado por Lida, mas
imaginado pela aluna e sua família sendo levada até o campo de concentração. No primeiro plano,
à esquerda, um soldado estirado ao chão nos conta que todos foram timas da guerra.
Lida nos disse que seus avós paternos eram muito ricos e que por isso sua família foi
perseguida pelos alemães e colocada em Auschwitz. Isso foi o mais perturbador para C. L. S., então
foi o que a aluna representou. Aqui, Auschwitz tem portões muito mais altos do que nas
representações de N. R. S. e de M. S. P. O desenho do campo de concentração foi feito com giz
pastel oleoso, onde a aluna “esfumaça” as grades sugerindo que o que aconteceu lá dentro nunca
poderá ser esclarecido.
Lida, juntamente com os pais, é escoltada por um soldado armado que vai a frente da família.
Em certo momento os dois param e fitam o espectador. De alguma maneira C. L. S. tenta nos
mostrar uma garotinha de apenas seis anos de idade em meio a um mundo repleto de atrocidades.
Lida nos contou que, em sua jornada rumo ao campo de regufiados, na Áustria, atravessou
diversas pontes. Uma delas, no momento da travessia, foi bombardeada e Lida caiu em um rio logo
abaixo e quase se afogou.
A ponte foi uma questão que permeou o trabalho de quatro alunas, cada qual a sua maneira.
C. O. G. C. retratou um outro momento da história de Lida. Ela nos contou que depois de ter
resistido a este bombardeio, isso tudo após ter saído de Auschwitz e ido para a Polônia, seus pais
encontraram um tanque de guerra pertencente aos aliados inimigos da Alemanha ela não soube
dizer de qual país. Eles se ofereceram para escoltá-los até a fronteira da Polônia com a Aústria.
Nesse caminho o tanque foi atacado muitas vezes, e Lida e sua família seguiam atrás na esperança
de que nada os atingisse. É o que mostra o desenho de C. O. G. C.
Figura 40. C. O. G. C., darie Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
Em sua representação, realizada com giz pastel oleoso, a aluna vai mais longe: apresenta uma
ponte coberta por sangue e muitos mortos no caminho, o que o foi mencionado por Lida. Ela nos
contou sobre como a sorte, na sua visão, estava do seu lado. No momento em que ela, os pais e o
irmão entraram na ponte, uma bomba foi lançada a frente do tanque, fazendo com que a ponte fosse
totalmente destruída. Por pouco ela e toda família não foi morta e C. O. G. C. representou
justamente esse momento.
C. O. G. C. utilizou-se da imagem da ponte para compor seu trabalho, que narra, através do
desenho, um trecho específico da história de Lida. no trabalho de D. S. isso não acontece dessa
forma.
Figura 41. D. S., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
Uma ponte também pode ser vista no desenho de D. S. feito com giz pastel oloeoso ,
que nesse caso ela é uma construção muito mais simbólica do que narrativa: representa a dura
passagem de Lida pelo “inferno”. Os braços erguidos do personagem, que representa Lida e todos
os que, como ela, atravessaram a Europa em busca de liberdade, denunciam o desespero de milhares
de pessoas. A cor vermelha utilizada no chão e que atinge um grande olho que “tudo vê”,
rememoram os mortos que, literalmente, lavaram o chão europeu com seu sangue. E esse olho, que
observa tudo de muito perto, simboliza a justiça, reivindicada por todos nós. Acima, um avião
sobrevoa a cena e atrás da ponte é possível ver algumas árvores em chamas.
A representação de D. S. é forte. As cores sugerem a violência da guerra e o tratamento
pictórico esfumaçado, misturado, confuso confirma aquilo que Lida não disse, mas foi
apreendido por todos: a incerteza em meio a calamidade.
B. S. foi outra aluna que utilizou a imagem da ponte em sua representação. Aqui, a ponte
também assume um papel simlico, um instrumento de passagem, visto que o que Lida mais
desejava quando criança, segundo suas próprias palavras, é que tudo aquilo que ela estava vivendo
ficasse do outro lado”.
Figura 42. B. S., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
B. S. ressalta, através de seu desenho, um ponto importante da narração de Lida: as flores no
caminho para a Áustria. Lida, uma criança de apenas seis anos sobrevivendo em meio a guerra,
reparou nas flores que enfeitavam sua rota de fuga. Não seria apenas uma criança, talvez não muito
consciente do que estava acontecendo, capaz de perceber tais coisas, de apreender essas
lembranças?
B. S. não se esqueceu disso e registrou com giz pastel em seu desenho, que apesar das flores,
carrega também outros elementos. Novamente uma ponte vermelha, colorida pelo sangue dos
mortos, foi representada. É como se a narração de Lida suscitasse nos alunos um sentimento de
inconformismo perante as vidas que foram tiradas. É aquela lembrança reinvincada por Gagnebin
(2004), é “[...]aquilo que não tem nome, aqueles que não têm nome, o anônimo [...]”.
O trabalho de B. S. está dividido em duas partes, dois mundos: um trágico, representado pelas
cores vermelho e preto e, contrapondo-se a esse primeiro, um calmo, colorido de azul e verde.
O trabalho de W. T. pretende mostrar com clareza a travessia de Lida pela fronteira austríaca.
A aluna representou a passagem de Lida da guerra para o campo de refugiados através da figura
ponte.
Figura 43. W. T., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
Lida nos contou sobre o campo de refugiados, na Áustria. Disse que, de um ponto alto do
local, era possível ver as casinhas cedidas a todos aqueles que conseguiam chegar até lá. Era um
lugar muito bonito onde ela, que sempre teve esperanças de que tudo aquilo teria fim, começou a ter
certeza disso. Lida se lembra de uma fábrica não consegue recordar o que era fabricado lá
muito grande que empregava todos os refugiados, inclusive seu pai. Lida costumava brincar pelas
redondezas, repletas de florestas e montanhas. Essa fábrica pode ser enxergada no desenho de W. T.
abaixo à direita , que utilizou lápis de cor e caneta esferográfica preta para com-lo.
Com relação ao campo de refugiados, W. T. foi fiel à narração de Lida, sua representação está
próxima ao que foi descrito. O interessante é como a aluna descreveu, através do desenho, a
passagem de Lida “do inferno para o céu”, podemos assim dizer. Lida conta que ao conseguirem
atravessar a fronteira, os refugiados estavam, literalmente, salvos. Essa literalidade pode ser vista no
desenho da aluna.
A idéia da ponte como instrumento de passagem de um lugar para outro foi absorvida por W.
T. que a representou numa divisão simbólica: “entre o céu e o inferno”, como ela chama. As cores
laranja e vermelho representam a guerra e o fogo que destruíu a vida de muitas pessoas.
Lida e sua família caminham pela ponte, deixando para traz os horrores vividos, observando o
futuro que os espera. A representação da Áustria feita por W. T., diferentemente de algumas
representações feitas pelos alunos referentes aos cenários de guerra descritos por Lida que
remetem ao fato de que numa guerra nada pode ser compreendido , é clara, ordenada e limpa.
N. R. C. o conseguiu selecionar um momento ou um tema da narração de Lida que tenha
lhe chamado mais atenção: tudo pareceu absurdamente irreal. Então ela representou algumas coisas
que, segundo a própria aluna, não poderiam deixar de ser “ditas”.
Figura 44. N. R. C., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
Em meio a profusão de imagens que caracteriza o trabalho de N. R. C., não é difícil perceber
que todas elas estão providas de significados próprios. O preto utilizado ao fundo representa a
confusão, a incerteza, a falta de clareza e lógica dos fatos. O vermelho, recobre o co onde os
mortos se encontram. Mais acima, à direita, N. R. C. não se esquece que o resultado físico de uma
guerra não são só os mortos e os edifícios destrdos: muitos voltaram para casa com a memória
corporal da guerra, uma escritura do corpo, a mutilação isso Lida também não nos contou.
Em meio a fumaça, surgem algumas armas, no canto superior direito, e, mais abaixo, uma
o que carrega um coração despedaçado simbolizando a destruição de muitas vidas, pela morte
e pela certeza de que nada mais voltaria a ser como era antes. À esquerda, gotas de sangue juntam-
se a lágrimas, simbolizando a dor e a tristeza das timas. Através da transparência de uma dessas
gotas, N. R. C. revela o caminho para a Áustria. Segundo Lida, panelas de barro eram penduradas
nas cercas das casas no caminho para a Áustria elas foram representadas por N. R. C. Lida
contou-nos que era uma cena muito bonita: a estrada toda repleta por panelas.
Mas, no centro do desenho, duas maçãs e duas bananas registram um momento muito feliz
pelo qual Lida passou: ao chegar ao Brasil, depois de meses com pouquíssima comida, tudo o que
ela mais desejava era poder comer maçã e banana, frutas que não se via pela Europa, segundo a
narradora, muito tempo. Esse momento foi muito importante, pois no hospital onde Lida ficou
internada alguns dias, no Rio de Janeiro, começou a se dar conta de que a guerra tinha realmente
ficado do outro lado do mundo.
V. R. S. parece seguir a mesma idéia de N. R. C.: a representação de um discurso
fragmentado, através do desenho, só pode ocorrer com os próprios fragmentos deste discurso.
Figura 45. V. R. S., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
V. R. S. (re)conta-nos alguns trechos da narração de Lida. Faz suas próprias interpretações
sobre a história da narradora. É um trabalho bastante significativo que aglutina e repassa ao
espectador trechos importantes da história de Lida. Acima, à esquerda, é possível ver o episódio em
que a ponte é bombardeada, local onde Lida e sua família atravessavam. Mais ao centro, ainda na
parte superior do desenho, as casas no caminho da Áustria, com as panelas de barro apoiadas nas
cercas.
À direita, V. R. S. reproduziu com clareza a história do “príncipe encantadoque salvou Lida
dos “cachorros gigantes”. Nota-se que V. R. S. representou o “hei” de Lida tal como ela o
descreveu: um príncipe. Logo acima, V. R. S. fez sua interpretação do campo de refugiados, com as
casinhas e a fábrica.
Abaixo, Lida e sua família antes das perseguições começarem. Ao lado, uma cena que V. R.
S. coms a partir de suas próprias conclusões sobre o assunto. Lida nos contou sobre um tio, irmão
de seu pai, o qual ela amava demais e que na ocasião das perseguições desapareceu
misteriosamente. Aaquele dia, Lida não sabia do paradeiro do tio. V. R. S. compreende aquilo
que ouviu e colocou sua própria interpretação: o tio, que era um homem de muitas posses,
possivelmente foi morto pelos alemães. Como a aluna o tem certeza dos fato, faz seu desenho em
preto, apenas as silhuetas do tio e de um soldado que reafirmam essa incerteza.
Junto a isso, um garoto que chora. É o iro de Lida que sentiu profundamente a falta de seu
tio predileto e chamava por ele, dia após dia. Suas lágrimas são de sangue, sugerindo a imensidão
da dor sentida por aquela criança.
A centro, uma bomba que é lançada e sugere destruir tudo que está a sua volta. Podem existir
rias hipóteses para essa representação; considero o fato de que a bomba representada por V. R. S.
simboliza o fim de todo o sofrimento descrito por Lida.
Lida citou, por várias vezes, o caminho para a Áustria. Segundo ela, era muito bonito e
parecia estar alheio a tudo o que acontecia na Ucrânia e na Polônia. Três alunos basearam seus
trabalhos nesse tema: o caminho para a Áustria. Cada um deles, à sua maneira, tentou reconstruir a
paisagem do caminho recolhendo fragmentos da história de Lida.
Figura 46. N. R. S., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
Como dito anteriormente, um ponto na história de Lida chamou a atenção dos alunos: o
caminho para a Áustria estava preservado, era como se a guerra não tivesse chegado até lá. Depois
de Lida e sua família terem sido libertados de Auschwitz milagrosamente um suposto acusador
que os teria denunciado como inimigos teria retirado a queixa , de terem caminhado meses
tentando fugir da Polônia, finalmente conseguem chegar até uma espécie de rota para fugitivos de
guerra.
Nessa rota, o ritmo da vida continuava intocado. É o que pode ser visto no desenho feito com
pis de cor de N. R. S. Um ambiente calmo, um homem cuidando de seus animais e três crianças
brincando no campo. Pelo tema escolhido por N. R. S., percebe-se que a aluna não suportou
transmitir a dor, preferiu os momentos de mais pura esperança, sim, porque a estrada para Áustria
estava, segundo Lida, repleta de esperança.
S. D. preferiu representar essa mesma estrada para Áustria através de um caminho entre as
árvores por onde Lida, segundo a aluna, caminhou em segurança. A aluna também utilizou lápis de
cor no desenho.
Figura 47. S. D., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
M. V. D. seguiu a mesma idéia de sua colega e representou seu próprio caminho para a
Áustria, através do lápis de cor também. Mas a ausência da figura humana causa um certo
desconforto e torna o trabalho da aluna perturbador. Ao mesmo tempo que reflete paz e
tranqüilidade, leva-nos a pensar que ninguém mais vive lá, está deserto. Foram todos mortos ou
capturados? Resta essa dúvida.
Figura 48. M. V. D., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
O trabalho de G. M. A. A. tem um esplendor surpreendente: após a história terrível ouvida
por ele, o aluno foi capaz de retirar da narração de Lida toda a alegria, percebida por ele, no trajeto
para Áustria.
Figura 49. G. M. A. A., da rie Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
A falta de perspectiva e a planificação dos elementos compositivos do desenho são aspectos
irrelevantes comparados ao colorido criado por G. M. A. A. Aqui, o aluno, que se desculpou muito
por não saber desenhar, transmite a alegria, imaginada por ele, de todos aqueles que passaram pelo
caminho na certeza de que encontrariam a paz do outro lado da fronteira. O aluno alcança isso
através da variedade de cores vermelho, azul, amarelo, verde, marron e preto , principalmente
com o contraste criado pelas complementares (vermelho e verde) e na intensidade pictórica
promovida pelo uso do giz pastel oleoso, misturado no próprio suporte.
As casas desenhadas, uma a uma, e sem aparentes estragos, refletem uma parte da Europa que
o passou pela guerra; por sorte, Lida encontra este caminho. As panelas também foram
representadas nas cercas criadas por G. M. A. A.; acompanham as mesmas cores utilizadas pelo
aluno no restante do desenho.
No centro, uma espécie de carruagem Lida citou uma carroça guiada por um cavalo que
conduz a família. As casinhas a grande maioria em vermelho misturam-se à paisagem local
formada por florestas que rodeavam as cidades. Acima da carruagem, um sol que parece estar
brilhando apenas para Lida, acompanhando seu trajeto, iluminando seu caminho.
A hisria de Lida, assim como todos os testemunhos advindos do trauma, é uma narração da
perda, como já citado anteriormente nesta pesquisa. Em sua narração, Lida deixa claro que durante
a guerra, ela e sua família buscavam a liberdade, a paz e a felicidade, coisas que haviam perdido.
Trechos de seu depoimento relatam algumas perdas, pensando-se apenas no aspecto físico da
questão: a casa, membros da família, amigos, alimentos, entre outras coisas. O desenho de M. S. G.
é uma tentativa de transmitir o básico que para Lida era muito para a sobrivência de qualquer
ser humano: casa e comida.
Figura 50. M. S. G., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
A representação de M. S. G. é bastante simplificada, mas com significados importantes para
Lida e para a aluna: ter um lar novamente e o que comer; são desejos não declarados pela narradora,
mas subentendidos pela aluna.
A escuridão do céu lugar à uma pequena casa, desenhada com tinta nanquim preta. O
desenho limpo e o fundo branco sugerem que a paisagem fica a critério de Lida ela pode sonhar
com qualquer lugar.
Por cima da casa, pedaços de pão foram colados por M. S. G., que mais do que representar a
comida, apresenta-a ao espectador. O céu escuro, nebuloso, indícios de que a guerra ainda está
, mas que é possível sonhar com um lar mesmo assim Lida sonhou e conseguiu.
Depois de certo tempo trabalhando e morando no campo de refugiados, os pais de Lida
descobriram que o Brasil aceitava refugiados de guerra e imediatamente embarcaram em um navio.
A chegada ao Rio de Janeiro foi narrada com muita alegria por Lida. Ela se lembrou deste dia com
muito carinho. Foi aqui, no Brasil, que pôde novamente ser feliz.
Figura 51. N. R. S., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
N. R. S. relembra este dia através de seu desenho com lápis de cor. Representa um navio,
prestes a aportar em território nacional. A família de Lida está toda representada nele: eles acenam
para as pessoas no porto, que parecem aguardá-los. A bandeira brasileira asteada em pleno navio
europeu dá indícios que mesmo antes de chegar ao destino, a tripulação já reconhecia a nova pátria-
e.
A cidade do Rio de Janeiro também é representada por N. R. S. As cores claras e o desenho
ordenado explicitam as diferenças que podem ser encontradas entre as representações de momentos
de guerra e paz da história de Lida.
De todos os alunos que participaram de Memória apropriada, dois fizeram uma representação
abstrata. Um deles foi R. R., que chamou seu trabalho de A trajetória de Lida (apenas R. R. colocou
nome no trabalho).
Figura 52. R. R., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
A idéia de que o sobrevivente não encontra palavras que possam descrever o que ele viveu
tem íntima relação com o trabalho de R. R., que, por sua vez, não encontrou elementos figurativos
para representar a dor apreendida com a narração.
O trabalho de R. R. se difere dos demais por ser pintura e não desenho. Sua pintura, que deve
ser lida da direita para esquerda, conforme explica o aluno, apresenta, simbolicamente, quatro
momentos narrados por Lida que lhe chamaram mais a atenção e resumiram, na visão de R. R., sua
trajetória durante a guerra.
R. R. representa estes momentos através de quatro partes verticalmente divididas, cada qual
simbolizando determinado trecho da narração de Lida.
O primeiro, em verde, azul e marron, localizado à direita, é o que R. R. chama de Lida antes
da guerra. Aqui, o aluno representa com tinta acrílica a paisagem ucraniana antes da guerra
explodir. Os desenhos em marrom simbolizam as árvores deste lugar, imaginado por R. R. A
segunda parte representa o campo de concentração onde Lida esteve por três semanas. O vermelho
simboliza o sangue advindo daquele local; as cruzes em azul repetidas inúmeras vezes simbolizam
os mortos. Os pontos, também em azul, representam os prisioneiros e as linhas pretas as grades de
Auschwitz.
A terceira parte, com fundo preto, simboliza a travessia de Lida rumo à Áustria. Aqui,
manchas em azul representam as bombas narradas por ela, e as manchas em laranja as explosões
advindas dessas bombas.
A quarta e última parte da pintura de R. R., feita sobre fundo laranja, simboliza o campo de
refugiados. As formas geométricas pintadas em marrom e espalhadas sobre esse fundo colorido
representam as casas dos refugiados e os pontos brancos simbolizam todos os que conseguiram
chegar até lá. Nota-se que no primeiro quadrado, quando se olha as figuras geométricas de baixo
para cima, há, ao invés de apenas pontos brancos, um retângulo branco. É possível notar esse
mesmo retângulo atravessando todo o trabalho de R. R. Essa foi a forma que o aluno encontrou para
representar Lida cumprindo sua trajetória.
O último trabalho da série Memória apropriada também é uma representação abstrata.
Figura 53. N. S. L., da série Memória apropriada: lembranças de guerra, 2007
N. S. L. preferiu utilizar-se de elementos abstratos para sua composão, assim como R. R.
Semelhantemente ao trabalho de R. R., a composição de N. S. L. feita com lápis de cor e canetas
hidrográficas coloridas simboliza pontos do discurso de Lida, que no caso de R. R., a maioria
dos pontos destacados através de seu trabalho foram declarados pela narradora. No caso de N. S. L.,
sua representação é pautada em elementos subentendidos no discurso de Lida.
Quando Lida contou sua história ela não foi específica quanto ao tempo cronológico das
perseguições, mas imagina-se que tenha sido por mais de um ano, pela quantidade de coisas que
aconteceram. Através do verde, amarelo, violeta e azul colocados ao fundo N. S. L. simbolizou
todas as estações do ano, acreditando que Lida tenha sido perseguida em todas elas. Os pontos
representam os mortos, que foram lembrados por N. S. L., um a um.
No lado superior direito observa-se uma espécie de eclipse: prenúncio do fim do mundo
descrito no livro de Apocalipse, na Bíblia a aluna também é bastante religiosa. Abaixo, à
esquerda, um livro, que segundo N. S. L., queima. Esse livro seria a Bíblia, representando a
perseguição aos judeus por parte dos nazistas.
A cruz foi o mbolo encontrado por N. S. L. para representar o sacrifício humano imposto
pelo nazismo. No topo da cruz encontramos o mesmo elemento representado por D. S. em seu
desenho: o olho que tudo vê”. Interessante que N. S. L. também o coloca numa tentativa de
simbolizar a justiça, que um dia, acredita ela, recairá sobre todos.
8.3. Memória apropriada: lembranças de guerra: outras
considerações
Memória apropriada: lembranças de guerra vai na contra-mão das atrocidas cometidas
durante a Segunda Guerra Mundial. Enquanto esta foi um grande memoricídio, ou seja, uma
tentativa potente de extermínio total das memórias, principalmente através dos campos de
concentração, Memória apropriada tem a intenção justamente de reter essas memórias, para assim
como disse Gagnebin (2004), “[...] ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente”.
O que é percebido em Memória apropriada: lembranças de guerra é que todos os alunos
foram capazes de representar passagens da história de Lida. Alguns descreveram, através dos
trabalhos, passagens explícitas da vida da narradora, já outros captaram mensagens das entrelinhas
do discurso, que se caracteriza pelas lacunas da memória da narradora, portanto é fragmentado e
incerto.
A esperança, que foi o tema principal de sua históra, pôde ser captada, mostrando que a beleza
da história de Lida não está no medo, ou na pobreza, como cita Madre Teresa de Calcutá, mas na
coragem de ainda sorrir e ter esperanças apesar de tudo.
8.4. Memória apropriada: lembranças de guerra e ...uma história
que você nunca mais esqueceu?: aproximações
Memória apropriada e ...uma história que você nunca mais esqueceu? encontram-se unidos
pelo trauma: vivido por Lida, pelos garotos do Instituto-Escola João Luiz Alves e por Rosana
Palazyan. Tanto um quanto outroo produto do testemunho de uma situação-limite.
Também existem diferenças entre as duas séries, uma delas é o fato de que em Memória
apropriada encontramos apenas uma narradora. Já em ...uma história que você nunca mais
esqueceu? são vários os narradores.
Em ...uma história que você nunca mais esqueceu?, realizada entre 2000 e 2004, Rosana
centra o horizonte temporal no passado: a memória, o trauma, o desencanto e retorno do reprimido.
A artista montou sobre travesseiros cenas que para jovens de 12 a 17 anos eram impossíveis de
serem esquecidas, “pois esse esquecimento seria o esquecimento do próprio ser”. Esses jovens
narradores, em conversas com a artista entre 2000 e 2001, não sobreviveram a nenhuma guerra
oficialmente conhecida pela História, mas participam, diariamente, da luta pela sobrevivência e
liberdade, onde quer que estejam. (PALAZYAN, 2004, p.20).
Figura 54. Vista da instalação ...uma história que você nunca mais esqueceu?, apresentada no Centro Cultural
Banco do Brasil, Rio de Janeiro, 2002, colão da artista
Figura 55. Vista da instalação ...uma história que você nunca mais esqueceu?, apresentada no Centro Cultural
Banco do Brasil, Rio de Janeiro, 2002, coleção da artista
A dependência das drogas, o tráfico, as condições precárias de vida, a violência e a morte
geram uma memória do trauma que, assim como no caso de Lida, precisa ser narrada. As cenas
presenciadas por eles e narradas à artista são fortes e muito próximas àquelas vistas no cinema, mas
infelizmente, assim como na história de Lida, são bastante reais.
Rosana afirma que ... uma história que você nunca mais esqueceu? também é fruto de suas
próprias memórias. Segundo a artista, o jogo de sombras na parede remete à sua infância, quando
havia falta de luz e brincava de contar histórias ou imitação de formas feitas com as mãos e
projetadas na parede com o auxílio de velas.
Neste caso, este não foi o trabalho que levou Rosana a instituição. A pergunta “Você tem uma
hisria que nunca mais esqueceu? surgiu durante as conversas com os meninos na tentativa de
aproximação, na possibilidade de uma troca. “Na verdade não pedia uma história ruim, poderia ser
uma boa história , mas...” 5
A artista tinha uma história que nunca mais se esqueceu. “Achava que eles
tinham tantas que talvez não se lembrassem de uma”. Ouviu histórias de
agressão pela mãe e da mãe pelo pai [...] (PALAZYAN, 2004:20).
Diferentemente de Memória apropriada, onde a construção dos trabalhos se no plano
bidimensional, em ...uma história que você nunca mais esqueceu? Rosana parte para o plano
tridimensional, utilizando-se de materiais como travesseiros, algodão, arame, meia de poliamida e
objetos plásticos. O impasse no qual Rosana ergue sua obra está na desterritorialização social: o
travesseiro é o terririo das memórias.
...uma história que você nunca mais esqueceu? reúne travesseiros bordados, onde se sobrepõe
uma cena com pequenos bonecos. Suspensos, e com iluminação especial, essas peças projetam
sombras nas paredes, espectros de agressão infantil, assassinato e violência contra a mulher.
Ao espectador, ao observar a instalação de Rosana, é requerido mais que um olhar: para
conseguir ler as histórias bordadas nos travesseiros, é preciso abaixar-se ou esforçar-se em
levantar, pois os travesseiros são dispostos de modo que o público deve se aproximar.
9 Trecho proferido pela artista em entrevista a pesquisadora, em fevereiro de 2009.
Assim como em ...um pedido para estrela cadente..., em que o público puxa os balões para
conseguir ler as mensagens, Rosana novamente faz esse pedido de aproximação. A artista opera
uma relação com suas próprias memórias, pois relembra que, ao visitar os alojamentos dos meninos,
no Intituto-Escola, precisou abaixar-se ou levantar-se para vê-los em suas beliches improvisadas em
concreto: ela solicita o mesmo esforço, o mesmo cuidado.
Figura 56. Rosana Palazyan, ...antes só pensava em maconha e roupa e marca, mas vi minha e indo presa
junto comigo. Agora quero parar..., da rie ...uma história que você nunca mais esqueceu?, 2001, coleção da artista
Para cada uma dessas histórias ouvidas, é recriada, pela artista, uma cena marcante para o
narrador e trechos desta narração intitulam a obra. Sendo assim, além da imagem, Rosana confere
ao espectador trechos do testemunho do sobrevivente no título e nos bordados dos travesseiro. Os
textos bordados em linha branca nos travesseiros exigem do espectador mais um gesto de
aproximação: ele deve circundar a obra para ler as inscrições.
A instalação de Rosana agrupa representações que para esses meninos fazem parte do
cotidiano. O que é percebido é que a morte e a agressão permeiam o mundo em que vivem; e
Rosana denuncia esse fato.
Figura 57. Rosana Palazyan, ...eu tinha 11 anos quando mataram minha mãe e eu entrei para o crime..., da série
...uma história que você nunca mais esqueceu?, 2000, coleção da artista
(...) eu tinha 11 anos quando mataram minha mãe e eu entrei para o crime, ela
tava vindo do trabalho, era enfermeira. A polícia tava em guerra com o morro
e quando ela disse que morava deram um tiro. Ela era inocente. Odeio a
polícia. Eu pego quem fez (...) (PALAZYAN, 2004, p.34).
O que é notado, comparando a instalação de Rosana com a proposição Memória apropriada é
que em ambos os casos os narradores passaram por situações que causaram grandes perdas e
rupturas em suas vidas. Situações que transformaram seu relacionamento com o mundo. Pode não
parecer coerente comparar a Segunda Guerra Mundial com o que é vivido nos morros do Rio de
Janeiro e outras comunidades do Brasil, mas algumas características de uma guerra também podem
ser encontradas nestes locais: fome, medo, violência, injustiça e morte. Tanto Lida quanto estes
garotos que participaram da proposição de Rosana, eram muito novos quando presenciaram estes
acontecimentos e isto é outro ponto que os une: o trauma na infância.
Um menino dizia a Palazyan que tem que ser sozinho”, porque quem se
aproxima dele acaba morto. Muitos dizem que gostariam de “sair dessa
vida”, mas não têm como, não sabem como (PALAZYAN, 2004, p.20).
Figura 58. Rosana Palazyan, ... meu amigo morreu no meu lugar, nessa vida tenho que ser sozinho. Andou
comigo, mesmo se não for bandido, tá morto..., da série ...uma história que você nunca mais esqueceu?, 2001, coleção
da artista
A violência que sufoca e permeia estas histórias, encontra na vingança um certo equilíbrio
para que o narrador consiga viver.
(...) quando eu era pequeno meu pai batia muito na minha mãe. Eu não podia
fazer nada, ficava olhando. Agora se eu ficar sabendo que meu pai
encostou na minha mãe, eu mato ele (...) (PALAZYAN, 2004, p.35).
Figura 59. Rosana Palazyan, ...agora se eu ficar sabendo que meu pai encostou na minha mãe, eu mato ele..., da
série ...uma história que você nunca mais esqueceu?, 2000, colão da artista
Figura 60. Rosana Palazyan, ... quando eu sair daqui, vou morar com meu pai, não quero mais saber da minha
mãe..., da série ... uma história que você nunca mais esqueceu?, 2000, coleção da artista
Na narração de Lida esse elemento não é encontrado. Por mais que ela tenha passado por
perseguições sem motivo aparente, Lida o expressa em momento algum o desejo de vingança ou
ódio. Por mais que sua narração tenha sido comovente, o tema principal de seu discurso foi a
esperança em uma vida melhor. Coincidentemente, para Rosana seus trabalhos também permeiam o
campo da esperança: sempre que penso no meu trabalho desde o início até a partir da dor que tive,
sempre penso primeiro no sonho, na esperança, por isso o lugar do sonho é a busca deste lugar
dentro de realidades tão distintas e sem perspectivas”. 6
Mas, apesar das diferenças e das semelhanças, considero o fato de que os dois trabalhos
convergem para aquilo que Gagnebin (2004) escreveu: “somente a transmissão simbólica, [...] por
causa do sofrimento indizível, somente esta retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não
repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra hisria, a inventar o presente”.
10 Trecho proferido pela artista em entrevista a pesquisadora, em fevereiro de 2009.
CAPÍTULO 5 - AUTO-RETRATO: (DES) CONSTRUÇÕES
DE IDENTIDADES
... a casa subjetiva dissolveu-se, desmoronou, desapareceu? onde está a identidade? como recompor uma
identidade neste mundo(...)? como reorganizar algum sentido?...
Suely Rolnik 1
No dicionário Priberam da Língua Portuguesa 2, uma das definições encontradas para o termo
identidade é: conjunto de elementos que permitem saber quem uma pessoa é. Auto-retrato: (des)
construções de identidades pretendeu levar à sala de aula essa discussão no âmbito da arte. Mais
ainda, deu a cada aluno a oportunidade de construir uma nova identidade ou desconstruir a própria
através de um simulacro criado pela fotografia, pintura e fotocópia. Quem os alunos gostariam de
ser e onde pretendiam estar: o exercício permeou essas duas questões.
5.1. Identidade e pós-modernidade: breve contextualização
Em seu texto Subjetividade antrofágica, Suely Rolnik descreve o mundo hoje, e essa
descrição de mundo explica e reafirma a nova noção de sujeito na s-modernidade defendida por
Stuart Hall que utilizarei como base teórica.
1 Trecho retirado do texto Subjetividade antropofágica, de Suely Rolnik. Publicado em
www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Subjantropof.pdf. Acesso em abril/2007.
2 Dicionário priberam da Língua Portuguesa. Fonte: www. priberam.pt. Acesso em janeiro/2009.
Mundo hoje: oceano infinito, agitado por ondas turbilhonares fluxos
variáveis sem totalização possível, sem fronteiras estáveis, em constantes
rearranjos. De acordo com alguns, um segundo dilúvio que desta vez as
águas nunca mais irão baixar, nunca mais haverá terra à vista, as arcas são
muitas e flutuam para sempre, lotadas de noés também muitos e de toda
espécie. Nunca mais os pés pousarão na paisagem estável de uma terra firme:
habituar-se a “navegar é preciso, sem um norte fixo, ponto de vista geral
sobre esta superfície tumultuada e movente. Não há mais apenas uma forma
de realidade com seu respectivo mapa de possíveis. Os possíveis agora se
reinventam e se redistribuem o tempo todo, ao sabor de ondas de fluxos, que
desmancham formas de realidade e geram outras, que acabam igualmente
dispersando-se no oceano, levadas pelo movimento de novas ondas. 3
Em sua obra A identidade cultural na s-modernidade 4, Stuart Hall sustenta a idéia de que
no final do século XX o livro foi publicado pela primeira vez em 1992 a identidade do homem
entra em crise devido às constantes mudanças ocorridas no mundo principalmente em relação às
sociedades Essas mudanças instauram uma perda da noção do indivíduo, do seu lugar, do seu lar, ou
como bem descreve Suely Rolnik, nesse mundo oceano infinito, agitado por ondas turbilhonares
fluxos variáveis sem totalização possível, sem fronteiras estáveis, em constantes rearranjos.
Esses rearranjos, advindos principalmente da alteração da noção de tempo/espaço, da
tecnologia e da globalização, provocam uma nova ordem que compromete a condição humana. “As
distâncias se encurtam, o tempo se acelera, idéias e nocias difundem-se numa velocidade
espantosa, investimentos são transferidos de um local para o outro (...). Os acontecimentos não
ocorrem mais acolá e sim aqui”. (PROCHET, 2007).
A obra de Stuart Hall se baseia no fato de que as identidades modernas estão sendo
descentradas, isto é, deslocadas, fragmentadas:
3 Trecho retirado do texto Subjetividade antropofágica, de Suely Rolnik. Publicado em
www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Subjantropof.pdf. Acesso em abril/2007.
4 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2000.
Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades
modernas no final do culo XX. Isso es fragmentando as paisagens
culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no
passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais.
Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais,
abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta
perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de
deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento
descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural
quanto de si mesmos constitui uma “crise de identidade para o indivíduo
(HALL, 2000, p.9).
Para o autor, estamos todos compelidos a nos perguntar se nós próprios não estamos sendo
transformados junto com a modernidade que, assim como foi chamada de pós, nossa condição hoje
também é pós a qualquer concepção essencialista ou fixa de identidade algo que, desde o
Iluminismo, se supõe definido como o próprio núcleo ou essência de nosso ser e fundamenta nossa
existência.
Hall nos apresenta três tipos de identidade na hisria da humanidade: o sujeito do
Iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno.
O sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana
como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades
de razão, de consciência e de ação, cujo centro consistia num núcleo
interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se
desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo connuo ou
“idênticoa ele ao longo da existência do indivíduo. O centro essencial do
eu era a identidade de uma pessoa (HALL, 2000, p.10).
Aqui a identidade era construída a fim de acomodar as diferenças sociais. O sujeito nascia e
sabia que morreria no mesmo patamar social sem a possibilidade de qualquer mudança, o que não
ocorre nos nossos dias.
A não de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo
moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era
autônomo e auto-suficiente, mas era formado na relação com “outras pessoas
importantes para ele”, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e
símbolos a cultura dos mundos que ele/ela habitava. (...) a identidade é
formada na interação entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um
núcleo ou essência interior que é o “eu real”, mas este é formado e
modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as
identidades que esses mundos oferecem. A identidade, nessa concepção
sociológica, preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior” entre o
mundo pessoal e o mundo público. (...) A identidade, então, costura o sujeito
à estrutura (HALL, 2000, p.11-12).
Este modelo de sujeito sociológico é, em grande parte, um produto da primeira metade do
século XX. “Encontramos, aqui, a figura do indivíduo isolado, exilado ou alienado, colocado contra
o pano-de-fundo da (...) metpole anônima e impessoal”, como também descreveu Baudelaire em
seus ensaios. (HALL, 2000, p.32).
Antes da concepção de identidade social ou histórica pós-moderna , acreditava-se, como
mostra o texto de Richard Miskolci 5, que alguém nascia pré-determinado por sua natureza. Por
exemplo, filhos de “maus casamentos”, ou seja, casamentos entre pessoas de classes sociais ou
raças diferentes, iriam revelar-se seres degenerados, propensos à doença e comportamentos sociais
perigosos. Aqueles cujo comportamento fugisse às normas sociais estariam fadados ao crime e à
degenaração sexual. Por isso, seus comportamentos ou práticas passaram a ser vistos como o cerne
deles, suas essências, ou seja, o que definia suas identidades.
no final do século XIX, ramos da psiquiatria enquadraram alguns comportamentos como
identidades, em categorias como o homossexual, a prostituta, o criminoso nato, o alcoólatra,
atribuindo uma identidade fixa, ou uma essência corrompida, a todos que se desviassem das normas
socialmente hegemônicas. Logo, todos, normais ou desviantes, podiam compreender a si
próprios como produto inelutável de uma suposta “natureza”.
no final da década de 1940 houve um progressivo avanço na compreensão das identidades
que enfatiza os fatores sociais e históricos como os mais importantes.
5 MISKOLCI, Richard. Corpo, identidade e política. Publicado em
www.ufscar.br/richarmiskolci/paginas/academico/cientificos/corpo.htm. Acesso em maio/2007.
É exatamente a estabilidade formada na relação do sujeito com o mundo que está mudando na
pós-modernidade. O sujeito, antes tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando
fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias
ou não-resolvidas”. O processo que produz o sujeito pós-moderno é o processo de identificação,
através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais e que tornou-se mais provisório,
variável e problemático; isso acarretou a perda de uma identidade fixa, essencial ou permanente.
(HALL, 2000, p.12).
A identidade passa a ser “transformada continuamente em relação às formas pelas quais
somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida
historicamente, e não biologicamente”, como também esclarece Richard Miskolci. O indivíduo
assume apenas a casca” de várias identidades, muitas vezes pela necessidade de fazer parte de um
grupo. (HALL, 2000, p.13).
Hall atribui a complexidade dos processos de identificação do sujeito com o mundo à
multiplicação dos sistemas de significação e representação cultural, o que faz com que o homem
seja constantesmente confrontado por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de
identidades possíveis, pelas quais o sujeito s-moderno poderia se identificar, ao menos por um
tempo.
Para o autor, a concepção de identidade pós-moderna é muito mais diferente, pertubadora e
provisória do que as duas anteriores, mas isso não deve desencorajar-nos, pois esse deslocamento
desarticula as identidades estáveis do passado, “mas também abre a possibilidade de novas
articulações: a criação de novas identidades, a produção de novos sujeitos”. (HALL, 2000, p.17-18).
Essa abertura para a “criação de novas identidades”, como fala Hall, deu corpo ao trabalho
Auto-retrato: (des)construções de identidades. Os alunos tiveram a oportunidade de experimentar,
através da arte, outras identidades, assumir novos comportamentos, posturas, tendo como pano-de-
fundo não mais seus “ocenanos infinitos”, mas lugares com tempo e espaço definidos, em
suspensão, imortalizados pela pintura.
5.2. A arte contemporânea e a questão da identidade
Dentro da arte contemporânea, alguns artistas se apropriam dessa concepção de identidade
cambiante, que emerge de uma realidade de constantes deslocamentos e que define o momento
contemporâneo , para articularem suas obras. Tornam público o que é privado, oferecendo ao
espectador um grau íntimo de relacionamento, ao mesmo tempo que operam o anonimato
avassalador das relações humanas.
Outra estratégia utilizada por alguns artistas desta geração na produção de sentidos é a
recriação da tradição do auto-retrato.
(...) a partir do Renascimento, o ser humano passa a ser o grande foco das
preocupações da vida e do imaginário dos artistas. O retrato, então, torna-se
um dos gêneros mais populares da pintura, utilizado, na ausência da
fotografia, no registro de pessoas e famílias nobres e burguesas. (...) Dentro
do universo de imagens humanas, o auto-retrato se estabelece como um sub-
gênero repleto de peculiaridades. Nele, o artista se retrata e se expressa, numa
tentativa de leitura e transmissão de suas características físicas e de sua
interioridade emocional. O auto-retrato é o espelho do artista. Ali se reflete a
própria imagem, assim como a imagem da arte e de um determinado contexto
em que a obra se inscreve. Pois a auto-imagem contemporânea não se
constrói como mera representação narcísica. Ao contrário, se ela se mantém
como uma forma de reivindicar identidade, seu foco está na produção de um
estranhamento, uma sensação de inmodo aquela reminiscente à sensação
de se olhar no espelho e não se reconhecer. Essas emoções estão ligadas à
situação do ser humano contemporâneo, inserido numa sociedade de
informação eletrônica e virtual, pressionado pela mídia, sufocado pelas
imposições velozes do tempo e espaço que se configuram na realidade
cotidiana das cidades (CANTON, 2001, p.68).
Esse novo conceito de auto-retrato, embuído de discussões acerca do sujeito s-moderno,
corpo à produção de artistas brasileiros como Keila Alaver, Efrain Almeida, Sandra Cinto, Lourdes
Colombo, Edouard Fraipont, entre outros 6. Cada um deles, à sua maneira, traz à tona comentários a
respeito do estranhamento e da sensação de solidão, do artificialismo e do distanciamento que a
sociedade contemporânea impõe a cada um de nós. Sugere um jogo de papéis onde o artista encarna
personas de diferentes tempos, culturas e em diferentes situações.
5.3. Auto-retrato: des(construções) de identidades e Madonnas
históricas: aproximações
Outra artista que trabalha o auto-retrato é a paulista Gisela Benatti. Nascida em São José do
Rio Preto, em 1960, Gisela trabalha aspectos históricos da pintura, inserindo sua própria imagem
em representações femininas feitas a partir do Renascimento. Sua série Madonnas históricas,
realizada entre 1996 e 1997 e composta por sete obras, onde em quatro delas a artista utilizou
também fotocópia e colagem além da pintura, apresenta Gisela sempre no mesmo papel, de mãe,
como é possível notar em A mãe rainha, de 1996.
6 Mais detalhes consultar: CANTON, Katia. Novíssima arte brasileira: um guia de tendências. São Paulo:
Iluminuras, 2001.
Figura 61. Gisela Benatti, A mãe rainha, da série Madonnas históricas, 1996, coleção da artista
Gisela recontextualiza a cena ao inserir seu rosto no corpo de uma personagem, previamente
retirada de outra obra e inserida em seu trabalho através de fotocópia e colagem, modificando assim
sua expressão e alterando as cores de seu manto, substituindo-as pelo verde e amarelo da bandeira
brasileira.
Segundo Gisela, sua relação com essas imagens renascentistas é autobiográfica: a própria
artista, por afinidades físicas, era apelidada de Mona Lisa. Essa analogia fez com que Gisela
perseguisse registros dessa imagem, de Leonardo Da Vinci, e outras interpretões, ampliando-se
em séries que universalizam a representação feminina em diferentes aspectos.
Figura 62. Gisela Benatti, Três gerações, da série Madonnas históricas, 1996, coleção da artista
O tema principal da série da artista é a relação afetiva entre mãe e filho. Gisela, que nutre
grande apreciação pela maternidade, transmite esse fato nitidamente em suas obras, tanto na
representação quanto no título, como é o caso de O que nem Deus, nem homens, nem anjos podem
fazer..., de 1996.
Figura 63. Gisela Benatti, O que nem Deus, nem homens, nem anjos podem fazer..., da série Madonnas
históricas, 1996, coleção da artista
Sobre a representação da figura humana, Gisela diz ter um interesse particular pelo retrato e
auto-retrato. Acredita que o auto-retrato é uma maneira de investigar a si mesma, apesar de,
segundo a artista, não ser fácil olhar para dentro. A maioria dos auto-retratos feitos por Gisela foram
produzidos com o auxílio de um espelho: é um exercício diferente: ver como quem está de fora te
enxerga. Nem sempre nossa imagem externa corresponde à imagem interna”, disse Gisela em
entrevista a pesquisadora, em janeiro de 2009.
O que causou a aproximação entre as duas séries, Madonnas e Auto-retrato, foi, além das
semelhanças na técnica e da utilização de pinturas consagradas da história da arte, o fato de em
ambos os trabalhos, o retratado buscar ser alguém que não é. Gisela, assim como na proposição
feita em sala de aula, busca encarnar a figura da mãe, presente em algumas representações
renascentistas das quais ela se apropria.
Apesar disso, a artista afirma não questionar sua identidade, mas a identidade da pintura. Na
mesma entrevista, Gisela afirma: em primeiro lugar, eu sou apenas uma canal para a discussão,
para este transporte temporal. Através da madonna posso questionar os valores deteriorados que são
por vezes designados aos princípios femininos o feminino subjetivo, a intuição, no sentido que os
surrealistas atribuem ao termo , que por sua vez, talvez tivessem um valor mais glorificado
naquela época. Quando me coloco no trabalho eu pessoalizo a relação com a arte, que é tão distante
e impessoal, quebro a distância e a barreira com a arte européia".
Figura 64. Gisela Benatti, Gestação, da série Madonnas históricas, 1996, coleção da artista
Nem sempre a fotocópia e a colagem são utilizadas, como é caso da pintura Gestação, de
1996, mas aspectos renascentistas perspectiva, tratamento do fundo, postura e roupas de Gisela
são introduzidos em seu trabalho, proporcionando um resgate da história da arte que Auto-retrato
também fez.
Na proposição Auto-retrato, isso não foi algo com que os alunos se preocuparam. O que foi
proposto, e alcançado, é que eles pudessem inserir-se em uma cena, assim como faz Gisela, mas,
nesse caso, criando, cada qual, seu personagem. Gisela, por sua vez, persegue sempre a mesma
figura feminina.
Segundo Gisela, a inserção em outro cenário é fruto de um romantismo próprio: voltar ao
tempo onde a pintura tinha força poética. A artista afirma que quando se pinta naquele contexto
volta ao tempo. De certa forma, trata-se de uma operação conceitual, de questionar o valor da
figura humana, do retrato e do mito da madonna.
Figura 65. Gisela Benatti, Madonna dos trópicos, da série Madonnas históricas, 1996, coleção da artista
Apesar de algumas diferenças, é interessante notar que, mesmo as duas séries tendo objetivos
diferentes com relação à inserção do auto-retrato, em ambas, como será notado no decorrer das
análises, os trabalhos exercem uma força autobiográfica imensa ao representarem ou
apresentarem ao público quem o artista/aluno é; ou sonha ser.
5.4. Auto-retrato: des(construções) de identidades: análise dos
trabalhos
O que é arte? Essa é uma pergunta que para muitos o tem resposta. Em ocasião da palestra
Muitas belezas proferida pela professora Dra. Ana Mae Barbosa no auditório da Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo em março de 2007, essa mesma pergunta foi
feita a ela. Imediatamente a mesma respondeu: não sei, quem define isso são os críticos e curadores.
Apenas representar o próprio retrato não traria à proposição a dimensão que Auto-retrato
trouxe. Além de apresentarem a própria imagem, os alunos a colocaram num espaço já designado
como arte, o que provocou uma aura, um estranhamento e um interesse maior por parte deles
mesmos e pelo público. O público que visitou a exposição ficou intrigado e, em alguns casos, as
pessoas não conseguiram distinguir se alguém estava inserido na pintura ou não.
Além de discutir a questão da identidade, Auto-retrato também resgatou a memória da arte ao
(re)apresentar pinturas consagradas da história ocidental.
Foram ao total 18 trabalhos realizados em sala de aula, sendo que não tenho registro de um
deles, pois um aluno, por motivos particulares, precisou se ausentar do curso levando consigo sua
produção. o conseguimos mais contato. Destes 18, as reproduções escolhidas permearam
momentos diferentes da história da arte, como o Renascimento, o Barroco e o Modernismo. Os
artistas selecionados pelos alunos foram: Renoir, Leonardo Da Vinci, Paul Gauguin, Rubens, Henri
de Toulouse-Lautrec, Georges Seurat, Egon Schiele, Henri Rousseau, Edgar Degas, Paul Signac,
Amedeo Modigliani, Claude Monet e Camille Pissarro.
Para a análise, as produções foram divididas em três grupos: trabalhos onde o “novo
personagem”, no caso o aluno, interage indiretamente com os demais representados na pintura;
trabalhos onde o aluno interage diretamente com os outros personagens; e trabalhos em que o aluno
apresenta-se disputando, por assim dizer, como figura principal da obra. Em outras palavras, ou em
termos cinematográficos, os grupos seriam, respectivamente, os figurantes 7, os coadjuvantes 8. Por
último, aqueles que concorrem como protagonistas 9. Como se nota, a análise foi feita a partir da
7 Figurante pessoa que, sem falar, entra numa representação;comparsa.Fonte: www.priberam.pt.Acesso jan/2009.
8 Coadjuvante que a coadjuva. Coadjuvar auxiliar; ajudar; trabalhar com; colaborar; cooperar. Fonte:
www.priberam.pt. Acesso jan/2009.
9 Protagonista Principal personagem de uma peça dramática. Pessoa que, de qualquer acontecimento ou qualquer
obra literária, desempenha ou ocupa o primeiro lugar. Fonte: www.priberam.pt. Acesso jan/2009.
relação e do nível de interação aluno/obra.
Como bem disse Canton (2001), o auto-retrato é o espelho do artista, ou seja, como ele
próprio se . Partindo disso, Auto-retrato traz, consciente ou inconscientemente, o olhar do aluno
sobre si mesmo, ou como desejaria ser visto.
A proposição Auto-retrato começou na escolha das pinturas a serem utilizadas: o aluno já
decidira quem gostaria de ser e onde desejaria estar. Considero que cada escolha, cada personagem
tem algo a dizer, algo que talvez possa ser traduzido em palavras, mas que existe, de fato, através da
imagem.
5.4.1. Auto-retrato: des(construções) de identidades: os figurantes
De todos os trabalhos produzidos, três se encaixam no grupo dos que apenas “fazem parte da
hisria”, daqueles que figuram na obra, ou seja, é o grupo dos que participam da cena, mas sem
fala, os figurantes. Nesse caso, esses três alunos escolheram estar em meio a um grupo de pessoas
apenas fazendo parte da situação estabelecida, não afetando nem modificando o contexto da obra.
Suas fotografias foram tiradas com o único intuito, definido pelos próprios alunos, de compor
a cena sem interferir na mesma. Sendo assim, suas novas e artificiais identidades foram projetadas
pela fotografia para acordarem com o contexto da cena. É o processo de identificação, descrito por
Hall (2000), que come nossas identidades, que nesse caso, a identificação foi fabricada e não
processada naturalmente.
Roland Barthes disse que no momento em que sente-se olhado pela objetiva, tudo muda: “[...]
ponho-me a „posar‟, fabrico-me instantaneamente em um outro corpo, metamorfoseio-me
antecipadamente em imagem [...]” (BARTHES, 1984, p.22).
[...] uma imagem minha imagem vai nascer: vão me fazer nascer de um
indivíduo antipático ou de um “sujeito distinto”? Se eu pudesse “sair” sobre o
papel como sobre uma tela clássica, dotado de um ar nobre, pensativo,
inteligente, etc (BARTHES, 1984, p.22).
Barthes afirma que o ato de “fabricar-se” numa nova pessoa já é inerente à fotografia;
portanto, Auto-retrato, além de simular novas identidades traz nas fotografias um “novo eu”
fabricado pelo conjunto fotógrafo que tem suas intenções particulares , fotografado que tenta
apresentar-se da forma como gostaria de ser visto e espectador, que procurará decifrar as
intencões do fotógrafo e do fotografado.
5.4.1.1. Aplaudindo a dança no Moulin Rouge
A Dança no Moulin Rouge transmite a alegria do local e a paixão que o artista nutria pelo
cabaré. Imortalizado pelas mãos de Lautrec 10, o cabaré passaria à história consagrado também por
suas atrações musicais, bailes e suas estonteantes bailarinas.
10 Toulouse-Lautrec nasceu em Albi, França, em 1864. De família aristocrática, recebeu educação artística e
praticou esportes até os 14 anos, quando sofreu um acidente e quebrou o fêmur esquerdo e posteriormente o
direito. Nunca pôde se restabelecer e suas pernas atrofiadas e disformes dificultavam-lhe a locomoção. Dedicou
então cada vez mais tempo à pintura. Retratou a vida parisiense através da pintura, do desenho e da litografia. As
prostitutas, dançarinas de cancã dos cabarés e outros personagens da vida noturna parisiense da década de 1890
eram seus modelos prediletos. Henri de Toulouse-Lautrec morreu no castelo de Malromé, Gironde, França, em
1901. Apesar da excepcional popularidade de seus cartazes publicitários, além das numerosas litografias,
posteriormente reconheceu-se a importância de sua obra, que prefigurou revolucionários movimentos artísticos
do século XX, como o Fauvismo, o Cubismo e o Expressionismo. Mais detalhes consultar DENVIR, Bernard.
Toulouse-Lautrec. New York: Thames and Hudson, 1991.
Figura 66. Henri de Toulouse-Lautrec, A dança no Moulin Rouge, 1889-1890, Museu de Arte da Filadélfia,
Estados Unidos
Nessa cena é possível identificar figuras conhecidas da época como o magérrimo Valentin le
Désossé e La Goulue, que dançam no segundo plano. Ao fundo, o artista representou seus amigos
usando cartolas e no primeiro plano observa-se duas mulheres de perfil e a silhueta cortada de um
homem influência da fotografia, muito comum naquele tempo, depois de Degas ter lançado a
moda.
Em sua escolha para a série Auto-retrato, M. S. G. diz querer estar num local onde possa se
divertir, com música e pessoas felizes ao seu redor. A escolha por A dança no Moulin Rouge, então,
parece ser perfeita. Aqui a aluna apresenta-se integrada ao grupo, apesar de não estar acompanhada,
aplaudindo a dança apresentada por Valentin e La Goulue.
Figura 67. M. S. G., da série Auto-retrato: (des) constuções de identidades, 2007
A expressão extremamente alegre de seu rosto, diferente das expressões do restante dos
personagens da cena, chama a atenção à sua figura. Problemas na representação da personagem
advindos da falta de proporção procia para o segundo plano mas colocada à frente, ou em
cima”, de uma das figuras do primeiro plano e de diferenças nas técnicas e características
pictóricas empregadas pela aluna e pelo artista, causam desconforto e estranhamento. M. S. G.
parece flutuar e denuncia uma das técnicas: a colagem.
Seus cabelos são modificados, mas não comem nenhum penteado ou corte da época, pelo
que se nota em relação às demais figuras femininas do quadro. Suas roupas simulam as de uma
mulher do século XIX: M. S. G. tenta ao máximo fazer parte do grupo.
Mesmo estando sorrindo, sua figura, consciente ou inconscientemente, leva o espectador a
pensar naquela solidão descrita por Baudelaire 11, onde o homem “se torna um único corpo com a
multidão” que vageia pela metrópole observando seu passageiro espetáculo (HALL, 2000, p.33). O
sujeito representado em A dança no Moulin Rouge, pela época em que foi pintado, é o sujeito
11 Mais detalhes consultar BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da vida moderna. Lisboa: Vega, 1993.
sociológico. Para Walter Benjamin, o sujeito descrito por Baudelaire e que emerge junto a
modernidade, tem relação, na modernidade tardia, provavelmente com a figura do turista: M. S. G.
passeia pelo Moulin Rouge, mas o faz parte dele.
5.4.1.2. E. S. G. F. na ilha da Grande Jatte
Outro trabalho que traz significados muito próximos aos que M. S. G. nos revela foi realizado
pela aluna E. S. G. F. A obra escolhida para inserir-se foi Uma tarde de domingo na Ilha da Gande
Jatte, de Georges Seurat 12.
Figura 68. Georges Seurat, Uma tarde de domingo na Ilha da Grande Jatte, 1884-1886, Instituto de Arte de
Chicago, Estados Unidos
12 O pintor Georges Seraut nasceu em Paris, em 1859. Dedicou-se ao Impressionismo bem como aos estudos de cor
e óptica. Seurat contribuiu, juntamente com Paul Signac, para a pintura ao introduzir uma técnica mais
sistemática e científica, chamada divisionismo ou pontilhismo a que ele chamou pintura óptica. Acnica
consiste em separar as cores nas suas componentes, de maneira que, em vez de serem misturadas como
pigmentos e aplicadas à tela, são, desde que as vejamos à distância certa, misturadas pelo olhar. A técnica do
pontilhismo utilizada por Seurat foi extensivamente utilizada na arte do século XX. Pode-se dizer que esta teoria
foi precursora da televisão e da imagem digital e, no final do século XX e com características peculiares, foi
reintroduzida, por artistas contemporâneos, como é o caso de Vik Muniz. Mais detalhes consultar RUSSELL,
John. Seurat. London: Thames and Hudson, 1965.
Em sua obra, Seurat apresenta uma temática que não era nova para a ápoca: um grupo de
excursionistas das mais variadas camadas sociais num domingo de sol. O estupor causado não foi
pelo tema proposto pelo artista e sim pela técnica. Outros pintores, entre eles Pissarro e Signac,
mostraram-se empolgados com a nova técnica, que no entanto não era simples.
Contudo, para E. S. G. F. isso passa despercebido. A aluna apresenta-se com os pontinhos
característicos da pintura de Seurat, mas aqui eles têm uma função diferente: não produzem efeitos
ópticos, apenas enfeitam seu traje.
Figura 69. E. S. G. F., da série Auto-retrato: (des)construções de identidades, 2007
A proposta de uma nova técnica que traz à tona discussões sobre cor e óptica são colocados de
lado por E. S. G. F., que se atenta à beleza que os pontos possam trazer à sua representação.
Novamente, assim como no caso de M. S. G., a aluna mistura-se ao grupo silenciosamente, numa
espécie de “eu faço parte”; os pontos em sua roupa buscam essa homogeneização.
Aqui, a nova personagem apresenta-se com estranhamento: não há sombras em seu corpo,
assim como existem nos demais personagens. As cores de seu vestido destoam do restante da
composição e sua figura sobrepõe, como pode ser visto comparando o trabalho de E. S. G. F. com a
pintura original, um cão que corre no gramado, um macaquinho que passeia com os donos e uma
moça sentada no chão com flores nas mãos. Interessante que todas as figuras da obra de Seurat
parecem estar acompanhadas, ou formam grupos de pessoas, mesmo o homem deitado no primeiro
plano que parece estar acompanhado por seu cachimbo e seu cachorro.
Quando E. S. G. F. coloca-se sobre a moça sentada ao chão, no segundo plano, cria dois
efeitos: o primeiro, a mão da moça confunde-se com a mão direita de E. S. G. F.; segundo, ao
apagar” definitivamente aquela personagem do quadro, E. S. G. F. encontra” alguém para estar
sozinha como ela; a senhora, também sentada ao chão, que segura sua sombrinha fica agora sem
par.
E. S. G. F. tenta colocar-se no chão, pelo que se pode perceber com a sombra criada embaixo
do seu vestido, mas não consegue fugir do fato de que sua imagem também parece flutuar. É como
se a inserção de sua figura no contexto proposto fosse fruto de um estado de sonho, algo que o
tem fundamento ou lógica, mas a sombra confirma o esforço da aluna em fazer parte da trama.
E. S. G. F., assim como no trabalho de M. S. G., apresenta-se sozinha e não interage com
outro figurante, sendo que sua representação não altera a função dos demais personagens.
Diferentemente de outros trabalhos da série Auto-retrato, como veremos mais adiante, Eloísa não
fita o “fotógrafo”, o pintor, aquele que iimortalizá-la; apenas passeia e tenta ser como os outros.
Apresenta chapéu, roupas e modos da época, esforçando-se, silenciosamente, em assumir alguém
que não é, num lugar onde nunca esteve e que, talvez, gostaria de estar.
5.4.1.3. Na barca de Giverny
A água, para Monet 13, ocuparia um papel fundamental, não apenas pelo seu movimento, mas
por refletir paisagens de maneira quase abstrata, onde as formas são diluídas. Justamente seu reflexo
na água é que denuncia o trabalho de B. S.: é quase fantasmagórico. A escolha por Barca de
Giverny, do pintor francês Claude Monet, também não é despropositada: Beatriz queria estar num
local tranilo onde pudesse descansar e esquecer dos problemas, “fugir do mundo”.
Figura 70. Claude Monet, Barca de Giverny, 1887, Museu d‟Orsay, França
Barca de Giverny retrata três moças aparentando pescar no rio Epte, localizado na cidade de
Giverny, norte da França. O conjunto de cores e luzes traz ao espectador a sensação de paz e
relaxamento. Os reflexos esboçados na água apontam a técnica do pintor que insiste em não mostrar
13 Oscar-Claude Monet nasceu em Paris, França, em novembro de 1840 e morreu em Giverny, em dezembro
1926. Foi um dos mais célebres pintores e o grande nome do Impressionismo.O termo Impressionismo surgiu
devido a um de seus primeiros quadros, Impressão, sol nascente, que recebeu uma crítica do pintor e escritor
Louis Leroy. A expressão impressionistas foi usada originalmente de forma pejorativa, mas Monet e seus
colegas adotaram o título, sabendo da revolução que estavam iniciando na pintura. Mais detalhes consultar
VENTURI, Lionello. Impressionists and symbolists : Manet, Degas, Monet, Pissarro, Sisley, Renoir, Cezanne,
Seurat, Gauguin, Van Gogh, Toulouse-Lautrec. New York: Scribner, 1950.
a forma exata, mas por meio de pinceladas firmes e fragmentadas, delineá-las na supercie. B. S.
tenta acompanhar a técnica no seu próprio reflexo.
As moças sentadas no barco olham para a água como se estivessem vendo suas imagens
refletidas lá. Sorriem e parecem estar divertindo-se. Harmonizando-se à essa postura, B. S. foca seu
olhar na água buscando encontrar-se nela, por mais que possa imaginar e desejar observar a beleza
da paisagem de Giverny; procura resignadamente seu reflexo na água também na tentativa de fazer
parte da obra, deixando de lado seus próprios anseios. Acha seu reflexo, mas aqui ele é apenas um
vulto pintado em branco que ignora o colorido de suas roupas.
Figura 71. B. S., da série Auto-retrato: (des) construções de identidades, 2007
B. S. também procura acompanhar o branco, o azul e o violeta característicos da pintura, mas
o os encontra exatamente. Cria suas roupas, chapéu e os modos que são bem proporcionais ao
restante da composição: as mãos colocadas sobre o colo, os cabelos escuros, o modelo do vestido;
B. S. parece conseguir, com sucesso, harmonizar-se à cena. Se encaixa tão bem no espaço que
existia entre as moças originais da pintura, que a terceira figura feminina representada em no
barco e com um vestido todo branco parece mais “descolada” do contexto que a própria figura de B.
S.
B. S. simplesmente “copia” um personagem que já está pronto e foi apresentado a ela.
5.4.2. Auto-retrato: des(construções) de identidades: os coadjuvantes
Os alunos deste grupo, ao serem fotografados, buscaram mais do que apenas estar na obra,
procuraram um tipo de relacionamento mais estreito com os outros personagens.
O ato de fotografar não é assim tão simples, nem tão ingênuo, mas o ato de ser fotografado
também exige um certo jogo. Segundo Barthes, a foto-retrato é um campo cerrado de forças onde
quatro imaginários se cruzam, se afrontam e se deformam. Diz Barthes que, diante da objetiva, sou
ao mesmo tempo: aquele que eu me julgo, aquele que eu gostaria que me julgassem, aquele que o
fotógrafo me julga e aquele de que ele se serve para exibir sua arte”. (BARTHES, 1984, p.27).
Em Auto-retrato, os alunos não puderam fugir desse jogo, mas colocaram acima de qualquer
outro interesse o desejo de dialogar com mais alguém da obra. A partir da fotografia, novas,
esperadas e inesperadas características são imortalizadas pela objetiva, transformando, consciente e
inconscientemente as identidades dos participantes.
5.4.2.1. A virgem dos rochedos
C. L. S. escolheu fazer parte de uma cena sagrada. A virgem dos rochedos foi encomendada a
Leonardo Da Vinci 14 em 1483 pela Irmandade da Imaculada Conceição.
Figura 72. Leonardo Da Vinci, A virgem dos rochedos, 1483-1486, Museu do Louvre, França
A obra apresenta quatro personagens que dialogam em íntima relação: a virgem que, olhando
com ternura para João Batista, ainda criança, estende a mão direita sobre seu ombro e a esquerda
eleva-se sobre a figura do menino Jesus. Ao lado de Maria, o anjo Uriel aponta com a mão direita
em direção a João Batista, que mantém as mãos juntas em sinal de oração e adoração, sendo
abençoado por Jesus. Ao fundo observam-se os rochedos, elementos bastante comuns nas obras de
Leonardo.
14 Leonardo Da Vinci, nascido em 1452 foi um dos maiores homens de nossa história. Artista plástico, cientista,
escritor italiano, anatomista, engenheiro, matemático, naturalista, destaca-se por ser reconhecidamente um dos
grandes pintores do Renascimento e, possivelmente seu maior gênio. Além de pintor, Leonardo da Vinci, foi
grande inventor. Dentre as suas invenções estão “Parafuso reo”, primitiva versão do helicóptero, a ponte
elevadiça, o escafandro e um modelo de asa-delta. Mais detalhes consultar ARGAN, Giulio Carlo.
Renacimiento y barroco. Madrid: Ediciones Akal, 1987.
A reprodução dessa obra utilizada por C. L. S. estava mais escura do que a original, o que
acarretou um efeito: a aluna parece surgir em meio à escuridão do fundo.
Figura 73. C. L. S., da série Auto-retrato: (des) construções de identidades, 2007
É possível ver seu colo e o rosto, mas seu corpo fica subentendido, principalmente fazendo-se
um paralelo com as roupas escuras da virgem. A proporção de sua fotografia é praticamente
perfeita, levando o espectador a acreditar que ela realmente fa parte da cena, o fossem as
diferenças entre a luz refletida nos demais personagens e a luz criada por C. L. S.
A mão direita da virgem Maria confunde-se com a de C. L. S.: seu corpo está mais próximo
da criança do que o corpo de Maria, fazendo com que seja fácil supor que é C. L. S. quem abraça
João Batista. Os olhos voltados para baixo reafirmam o ato de reverência e respeito pelo menino
Jesus. A expressão de seu rosto também é terna e serena, assim como dos demais personagens,
harmonizando-se à cena.
C. L. S. poderia facilmente ser confundida com uma importante figura bíblica, Isabel, a mãe
de João Batista. O espectador poderia supor que, assim como a virgem Maria suspende sua mão
esquerda sobre o filho, Isabel abraçaria João Batista num ato de amor e proteção.
Mas, mesmo que a fotografia de C. L. S. tenha causado outras posssíveis reinterpretações para
essa pintura, o contexto da obra não foi alterado radicalmente, o que, para essa análise, caracteriza
os trabalhos desse segundo grupo: sugerir novas interpretações, mas sem alterar totalmente as
existentes.
5.4.2.2. Escutando...na estrada de Versailles a Louveciennes
Para o trabalho seguinte, o artista escolhido foi Pissarro 15. Pissarro foi um pintor que retratou
a paisagem com paixão. Infelizmente não vendia muito, o que deixou sua família na mais absoluta
pobreza. Assim como Monet, também se interessava pelos efeitos atmosféricos que a observação
da natureza poderia oferecer. Em A estrada de Versailles a Louveciennes, de 1870, Pissarro retratou
a família, em sua casa em Louveciennes, a vizinha, e o pequeno jardim cheio de flores e plantas que
possuía. À direita, a estrada que ligava (ou ainda liga) Versailles a Louveciennes.
15 Jacob Camille Pissarro nasceu na ilha de o Tomás , nas Índias Ocidentais Dinamarquesas, hoje Ilhas Virgens
Americanas, em 1830 . Foi um fundadores do impressionismo, e o único que participou nas oito exposições do
grupo (1874-1886). A oportunidade de concretizar seu sonho em ser pintor surgiu com um convite para
acompanhar uma expedição de Fritz Melbye, enviado pelo governo das Antilhas Dinamarquesas, para estudar
a fauna e a flora da Venezuela, onde passou dois anos.Em 1855 Pissarro estava em Paris com ajuda de
Melbye, tentando iniciar sua carreira. O jovem antilhano fascinou-se com as telas de Camille Corot e travou
amizade com Paul Cézanne, Claude Monet, Charles-François Daubigny, entre outros pintores. Com Monet
passou a sair para pintar ao ar livre, em Pontoise e Louvenciennes. No decorrer da guerra franco-prussiana
(1870-1871), na qual praticamente todos os seus quadros foram destruídos, residiu em Inglaterra. Quando
voltou, começou a pintar na companhia de Cézanne. Com o objetivo de descobrir novas formas de expressão,
Pissarro foi um dos primeiros impressionistas a recorrer à técnica da divisão das cores através da utilização de
manchas isoladas. A obra de Pissarro se caracterizou por uma paleta de cores cálidas e pela firmeza com que
consegue captar a atmosfera, por meio de um trabalho preciso da luz. Seu material predileto foi o óleo, mas
também fez experiências com aquarelas e pastel. Mais detalhes consultar VENTURI, Lionello. Impressionists
and symbolists : Manet, Degas, Monet, Pissarro, Sisley, Renoir, Cezanne, Seurat, Gauguin, Van Gogh,
Toulouse-Lautrec. New York: Scribner, 1950.
Figura 74. Camille Pissarro, A estrada de Versailles a Louveciennes, 1870, Fundação Coleção E. G. Bührle,
Suiça
W. T. intrigou-se com o diálogo das vizinhas: o que será que as duas tanto conversam? E quis
escutá-lo. Sua inserção na obra é engraçada e provoca curiosidade: o que ela está tão
interessadamente ouvindo? Será que ninguém pôde percebê-la? A garotinha que olha diretamente
para o espectador e o envolvimento das duas vizinhas sugerem que W. T. não foi notada e causam
um certo estranhamento.
Figura 75. W. T., da série Auto-retrato: (des) construções de identidades, 2007
Seu penteado, roupas e o tratamento dado à sua imagem as sombras do rosto e a perda dos
detalhes, característicos do Impressionismo , colocam W. T. dentro do contexto histórico da obra,
mas a forma como ela quis inserir-se provoca desconforto. Impossível não se ater a seu olhar
curioso, a mão direita no ouvido num esforço absoluto por ouvir o que está sendo dito. Quem W. T.
quis ser? Uma outra vizinha, uma amiga, inimiga, apenas alguém que passa pela rua e não consegue
refrear a curiosidade? Se ela apenas passeasse pela estrada com certeza estaria no primeiro grupo de
análise.
A questão, novamente, é que a figura de W. T. não modifica de todo a interpretação da obra:
ainda é um diálogo entre vizinhas, ou amigas, com a paisagem de Louveciennes ao fundo; mas W.
T. consegue criar uma nova personagem que constrói ou reconstrói novos significados e levanta
outras possibilidades de análise da situação, como um novo personagem de uma telenovela, cuja
trama já está praticamente desenvolvida, e que surge para criar novos contornos, outros caminhos.
5.4.2.3. Três bailarinas no palco
O sonho de ser bailarina parece não ter se perdido com o tempo: N. R. C. consegue
materializá-lo em seu trabalho. A escolha por Degas 16 foi rápida e certa.
Figura 76. Edgar Degas, Duas bailarinas no palco, 1874, Samuel Courtauld Collection, Inglaterra
16 Edgar Degas foi dos mais influentes artistas no desenvolvimento do Impressionismo e na eclosão das
vanguardas que marcariam as primeira décadas do século XX. Viveu o paradoxo do século XX que tinha como
referência dois grandes artistas: Ingres e Delacroix. Participou de sete das oito exposições impressionistas,
porém, destacou-se do grupo por não seguir certos preceitos impressionistas, como a pintura ao ar livre e dar
importância ao desenho sem prejuízo da cor. Seus quadros mostraram o espírito de um novo momento da
modernidade. Fascinado pela fotografia, explorou-a como técnica e linguagem. Segundo Paul Valery, “foi um
dos primeiros a entender o que a fotografia poderia ensinar ao pintor, e o que o pintor deveria tomaremprestado
dela”. Sua pintura, muitas vezes, revela a percepção do olhar fotográfico, o flagrante do instante e o
enquadramento do espaço e das figuras. Mais detalhes consultar VENTURI, Lionello. Impressionists and
symbolists : Manet, Degas, Monet, Pissarro, Sisley, Renoir, Cezanne, Seurat, Gauguin, Van Gogh, Toulouse-
Lautrec. New York: Scribner, 1950.
Ao contrário das primeiras bailarinas imortalizadas por Degas, Duas bailarinas no palco
apresenta o caminhar do artista rumo à abstração. A silhueta das moças, que dançam alegremente
no palco, surge em meio a um alvoroço cromático e de traços soltos.
A imagem de N. R. C. é colocada a frente das outras duas bailarinas, que ocupam agora o
segundo plano da cena. Sua figura não a credibilidade necessária à sua inserção: representa, mas
o simula, o que a torna um tanto quanto “descolada em relação às outras bailarinas.
Semelhantemente aos trabalhos de M. S. G. e de E. S. G. F., diferenças no tratamento pictórico
denunciam a inserção.
Figura 77. N. R. C., da série Auto-retrato: (des) construções de identidades, 2007
Interessante pensar sobre a pose das três bailarinas: N. R. C. parece congelada em meio a
apresentação de dança, enquanto que as bailarinas de Degas não perderam o movimento em
momento algum. Outro ponto é que as duas bailarinas pintadas por Degas naturalmente parecem
observar e reverenciar N. R. C., que posa mais do que dança, conferindo a mesma um papel
diferenciado dentro desse esquema.
É visto que o movimento atribuído por Degas aos personagens de suas pinturas não de se
captado por N. R. C. Por mais que ela, que se auto-denomina “bailarina aposentada” por ter
abandonado a carreira, sonhasse com a profissão, apresenta-se sobre o palco não como uma
dançarina, mas como uma estátua, como se o importante para ela não fosse o prazer da dança, mas o
desejo de encarnar a personagem.
Sua expressão séria e o olhar atento, preocupado, sugerem a responsabilidade atribuída pela
aluna em ser mais uma bailarina de Degas.
5.4.2.4. Retrato de Félix Fénéon e G. M. A. A.
Criando suas próprias interpretações para as obras que escolheram, os alunos do curso de
Estudos sobre arte contemporânea seguiram em frente na busca de novas experimentações
artísticas. G. M. A. A. foi uma dessas pessoas. Impressionado com as cores de Signac 17, o aluno as
coloca sobre o corpo propondo, assim, que seu retrato também faça parte do pano-de-fundo da
pintura.
17 Paul Victor Jules Signac nasceu em 1863 numa abastada família de um comerciante parisiense. Aos 18 anos
abandonou os estudos de Arquitetura para dedicar-se a pintura. Em 1884 expôs no primeiro Salão dos
Independentes de Paris, onde conheceu Georges Seurat que iniciava-se no pontilhismo. Ambos, ele e Seurat,
haviam sido influenciados pelo Impressionismo pela importância que a escola dava à luz, mas queriam algo
mais. A idéia do pontilhismo era que o pontos representados na tela se misturassem nos olhos do observador,
formando as nuances desejadas. Após a morte de Seurat, Signac continuou divulgando o pontilhismo. Mais
detalhes consultar CACHIN, Francoise. Paul Signac: catalogue raisonne de l'oeuvre peint. Paris: Gallimard,
2000.
Figura 78. Paul Signac, Retrato de Félix Fénéon, 1890, Museu de Arte Moderna, Estados Unidos
Em Retrato de Félix Fénéon, G. M. A. A., assim como outras pessoas que possivelmente
analisaram a obra, deve ter percebido que o retratado, Félix Féneón procura um interlocutor: alguém
que possa aceitar sua oferta. on foi crítico de arte e escritor ligado ao grupo dos simbolistas,
além de amigo de Signac. Foi responsável pela difusão do termo neo-impressionismo, com o qual
foi batizado o novo estilo de Seurat e Signac. Ao retratá-lo com uma flor na mão, Signac fazia
alusão à corrente simbolista à qual o amigo pertencia.
O retrato traz ao fundo um cuidadoso desenho espiralado retirado de uma estampa japonesa
anônima. O interesse de Signac pelas cores se deu, em parte, pela colaboração do artista ao amigo
Charles Henry, então diretor da biblioteca da Sorbonne, produzindo ilustrações para as teorias de
cor. As tonalidades se encontam perfeitamente calculadas e a figura de Fénéon, apesar das cores ao
fundo, não desaparece nem perde sua importância.
Justamente o destaque dado a figura de néon que perde-se na representação de G. M. A. A.
Aqui, o aluno parece esconder-se em meio à profusão de cores, acompanhando a abstração do fundo
numa técnica própria de pontilhados. Estabelece um diálogo efetivo com Fénéon, mas preservando
os privilégios da representação do outro.
Figura 79. G. M. A. A., da rie Auto-retrato: (des) construções de identidades, 2007
A inserção de G. M. A. A. na reprodução tensiona-se num jogo de “esconder/revelar” onde
seu rosto, quase que desfigurado pelas sombras, revela sua figura e seu corpo, propositamente
harmonizado com o fundo, esconde sua presença.
Mas o gesto de G. M. A. A. parece sincero. Quer realmente receber a oferta de Fénéon como
que num ato de piedade: alguém precisa ouvi-lo. Mostra generosidade e humildade, qualidades
essas que fazem parte da identidade de Gil e que não puderam ser sucumbidas pela nova persona
criada por ele. Considero o fato de que, por mais que Gil se esforçou por “deixar o próprio corpo à
procura de outro”, sua sinceridade falou mais alto e não se calou na interpretação: Gil quis ser
alguém que já é. Talvez só o tempo cronológico tenha sido alterado.
5.4.2.5. Damas com arminho
Figura 80. Leonardo Da Vinci, Dama com arminho, 1485-1490, Museu Czartoryski, Polônia
Dama com arminho foi pintado por Leonardo Da Vinci entre 1485 e 1490. É provável que a
modelo para esse quadro tenha sido Cecilia Gallerani, considerada uma das muitas amantes do
duque Ludovico Sforza, governante de Milão na época. Cecilia era uma mulher famosa e bastante
admirada. Vinha de boa família, falava latim, escrevia poemas e cantava. Era muito determinada,
característica revelada pelo artista na expressão enérgica de seu rosto. O quadro chama atenção por
sua extrema originalidade não apenas na pose, mas no olhar da dama que insiste em “ver” alguma
coisa e na inclusão de um animal, cuja ferocidade é o contraponto ideal à serenidade de Cecilia.
A inserção da fotografia de C. O. G. C. reafirma esse contraste: sua figura atribui ao conjunto
serenidade ainda maior da já existente.
Figura 81. C. O. G. C., da série Auto-retrato: (des) construções de identidades, 2007
C. O. G. C. repousa sutilmente sobre a dama que, além de mostrar-se apta a domesticar um
animal, oferece seu ombro e causa um certo estranhamento na relação das duas mulheres com o
animal. O escurecer das cores acarretado pela fotocópia fazem com que a mão direita da dama
confunda-se com a mão de C. O. G. C., propondo ser a aluna quem acaricia o animal e não Cecilia.
Ela pinta-se como uma dama da corte do século XV, semelhantemente à dama que a recebe
sem parecer importunar-se. Ambas, além do arminho, fixam o olhar num ponto longínquo externo
ao quadro, o que propõe mais ainda a integração de C. O. G. C. no contexto da cena, apesar do olhar
de C. O. G. C. não fitar o mesmo ponto da dama. Se a aluna estivesse olhando para o espectador,
provavelmente a serenidade da composição seria quebrada e ela disputaria as atenções com a dama,
pois, segundo Barthes (1984), o foto-retrato que fita o espectador nos olhos tem um certo poder. Ele
diz: “Ah, se houvesse apenas um olhar, o olhar de um sujeito, se alguém, na foto, me olhasse! Pois a
fotografia tem esse poder [...] de me olhar direto nos olhos. (BARTHES, 1984, p.163-164).
Infelizmente, a representação de C. O. G. C. não simula muito bem os contrastes de luz
criados por Leonardo, fazendo com que se perceba facilmente a farsa. Mesmo assim e, apesar do
incômodo causado pela relação entre os três personagens talvez a composição faça mais sentido
sem a presença do arminho , as diferenças existentes nas direções dos olhares da dama, de Claudia
e do arminho esses dois últimos parecem fixar o mesmo ponto conferem à trama novas
interpretações e reforçam a pergunta: a dama está ou não olhando para alguma coisa?
5.4.2.6. Jeanne Hébuterne a mulher do artista e ...
As expressões tristes ou a falta delas e os olhares vazios são características comuns nos
retratos de Modigliani 18 e Jeanne Hébuterne, mulher do artista, não poderia ter sido representada de
forma diferente. Companheira leal até sua morte, Jeanne foi uma das modelos favoritas de
Modigliani em seus últimos dias.
18 Amedeo Clemente Modigliani nasceu em 12 de julho de 1884, em Livorno, na Toscana. A família pertencia à
burguesia judaica mais secularizada. Devido a uma crise econômica na Itália, a empresa da família abre falência
e, para ajudar as despesas da casa, a mãe de Modigliani começa a dar lições particulares e a fazer traduções.
Modigliani cresce num ambiente com interesses literários e filosóficos. Seus quadros revelam uma forte
influência dos modelos Simbolistas e dos quadros de Toulouse-Lautrec e de Edvard Munch. Além de inúmeras
pinturas, desenhos e esculturas realizados anteriormente pelo artista, em 1917 executa uma série de cerca de
trinta pinturas de nus. Em abril, Modigliani conhece uma jovem de dezenove anos, Jeanne buterne, que será
sua companheira e modelo até o final de seus dias. Em 3 de dezembro, é inaugurada a sua primeira exposição
individual na Galeria de Berthe Weill. Dada a ameaça de invasão pelas tropas alemãs em 1918, Modigliani e
Jeanne abandonam Paris na primavera e vão para a costa mediterrânica. Em Nice e nos seus arredores,
Modigliani pinta muitos retratos que manda para Paris para serem vendidos por seu amigo Zborovski. Em 1920
Modigliani morre no Charité de Paris. Jeanne, grávida do segundo filho do casal, suicida-se no dia seguinte.
Mais detalhes consultar WERNER, Alfred. Modigliani, Utrillo, Soutine. New York: Tudor Pub. Co, 1969.
Figura 82. Amedeo Modigliani, Jeanne Hébuterne a mulher do artista, 1918, Fundação de Arte Norton Simon,
Estados Unidos
Em Jeanne Hébuterne a mulher do artista, a figura e o rosto da modelo aparecem
modelados em tons quentes e harmoniosos. Ela descansa tranqüila sobre uma cadeira. Do ponto de
vista da composição, trata-se de um retrato de meio corpo no estilo cssico. Dois planos dividem o
corpo: o inferior, em vermelho amarronzado e o superior em negro. Ao fundo, a divisão em dois
planos verticais, e das mesmas cores do corpo vermelho e preto , conferem à composão um
efeito de equilíbrio em relação às linhas horizontais do corpo e da cadeira.
O longo pescoço e o rosto pálido quase uma máscara marcam a tradução de Modigliani
para o Modernismo. Diferentemente de Dama com arminho, que fixa o olhar para outro ponto que
o seja o espectador, Jeanne sugere um fito olhar para o espectador mesmo sem olhos. Esse
efeito criado por Modigliani se deve principalmente pela diminuição do tamanho da órbita, o que
confere ao retrato a sensação de mirar alguma coisa.
M. S. G. F. suspeitou que o retrato pertencia à alguém triste demais e que precisava de ajuda:
essa foi a interpretação da aluna para a pintura de Modigliani. Decidiu inserir-se num ato de apoio e
compaixão por aquela figura, que M. S. G. F. julgou sem esperanças.
Figura 83. M. S. G. F., da série Auto-retrato: (des) construções de identidades, 2007
M. S. G. F. surge atrás de Jeanne com um caloroso sorriso. Abaixa levemente o corpo e fita a
modelo diretamente, como quem pergunta: precisa de ajuda? O retrato quase inexpressivo e de
sensação melancólica de uma mulher de meia idade, ganha novas conotações com a figura de M. S.
G. F. agora ela não está mais sozinha e seu suave sorriso parece ganhar novas propoões.
A roupa de M. S. G. F. harmoniza-se perfeitamente com a de Jeanne e as cores de seus
cabelos e o rosto acompanham a obra do artista. Os dentes extremamente brancos e os lábios em
rosa uma tonalidade de rosa mais frio do que quente quebram a totalidade absoluta de preto,
marrons, vermelhos e amarelos da obra e chamam a atenção do espectador por dois motivos: pela
cor e pela alegria que desconcerta a composição do pintor.
O corpo de M. S. G. F. torna-se uma incógnita: apresenta a parte superior à cintura, mas a
inferior confunde-se com a porta ao fundo que, agora, desaparece.
M. S. G. F. coloca-se ao lado na tentativa de “resgatar” a figura da mulher, mas em momento
algum a toca: mesmo estando na cena com o intuito de ajudá-la, M. S. G. F. não retira do retrato sua
totalidade, ele continua perfeito, intocado, em ambas as conotações.
5.4.2.7. Força lavadeira, força!
A intenção de Toulouse-Lautrec em representar as classes operárias toma corpo com a pintura
A lavadeira, realizada entre 1884 e 1886. Com esse retrato, Lautrec junta-se à pintura realista de
Courbet e Daumier, seguindo o rastro de seu amigo Degas. As mãos calejadas, o aspecto cansado da
fisionomia e certo ar de aborrecimento da ma representam com maestria a classe severamente
explorada.
Figura 84. Toulouse-Lautrec, A lavadeira, 1884-1886, colão particular, França
Supõe-se que Lautrec tenha usado como modelo Carmen Gaudi, a favorita do artista na época,
identificada pelo cabelo ruivo e a madeixa que cai sobre o rosto, encobrindo-lhe os olhos. Mesmo a
representação dos olhos estando encoberta, não é difícil supor que Carmen esteja olhando pela
janela; apóia-se na mesa como quem descansa e ao mesmo tempo pensa sobre o fardo que carrega.
As linhas são firmes e seguras, ressaltando o volume e a força do corpo e da postura de Carmen.
A figura se destaca na parede escura do fundo, produzindo um fantástico contraste com a
roupa branca, cujas sombras foram coloridas à maneira impressionista. A pincelada é curta e
ligeiramente empastada e a iluminação, que vem da janela e resvala o corpo da modelo, é um
importante elemento da composição.
Ela parece desesperada!”, foram as palavras de S. D. para a pintura. Essa interpretação,
advinda muito mais pela expressão corporal e pela sensação de um olhar distante, do que pela
expressão do rosto da modelo, levou Sônia a ter o desejo de ajudá-la.
Figura 85. S. D., darie Auto-retrato: (des) construções de identidades, 2007
Força lavadeira, força!, parecem ser as palavras que ecoam do trabalho de S. D., que vai mais
além do que M. S. G. F. e interage corporalmente com o retrato. S. D. segura seu braço esquerdo
numa tentativa desesperada de ajudar-lhe, de alertá-la para novas perspectivas, de mostrar a
esperança. Mas a lavadeira parece o importar-se com as palavras de S. D., e permanece, como
que encantada, na mesma condição de desânimo e cansaço.
O olhar baixo de S. D. denuncia uma verdade: ela, após inúmeras tentativas, desiste de seu
papel e percebe que aquilo de nada valeu.
Obviamente que a figura de S. D. não pode ser confundida como uma nova personagem na
pintura de Lautrec. A disparidade das técnicas empregadas denunciam a colagem, que perde seu
efeito de simulação, o que poderia, semvida, conferir mais veracidade ao trabalho de S. D. Mas o
corte fotográfico do seu corpo muito utilizado na época por Lautrec e Degas e sua postura,
costuram-se com perfeição ao contexto proposto por Lautrec: ela precisa de ajuda e S. D.
completa esse pensamento.
5.4.2.8. A dança de Friederike Maria Beer e D. S.
Friederike Maria Beer nasceu em Viena no dia 27 de janeiro de 1891 e, desde criança,
conviveu com o cenário artístico da capital austaca. Era filha do dono de dois bares badalados de
Viena e sua família pertencia à mais antiga aristocracia judia da cidade.
Era uma mulher rica e independente que pretendia imortalizar-se posando para pintores da
época como Kokoschka, Klimt e Schiele. Depois do término de seu matrimônio, em 1931,
Friederike seguiu para Nova York onde fundou a Artist‟s Gallery com Hugo Stix.
Em 1914, Egon Schiele 19 pintou seu monumental quadro Retrato de Friederike Maria Beer,
resumindo suas principais características técnicas: pose estudada, forma geométrica, contraponto de
tonalidades fortes e monocromáticas e perspectivas singulares.
Figura 86. Egon Schiele, Retrato de Friederike Maria Beer, 1914, coleção particular
19 Egon Schiele, nascido em junho de 1890 e falecido em outubro de 1918, foi pintor austríaco ligado ao
movimento expressionista. Nasceu no seio de uma família humilde, sendo que seu pai era um trabalhador do
caminhos de ferro. Em 1905, com quinze anos, Schiele perdeu o pai e a partir dessa data ficou aos cuidados de
um tio materno que reconheceu o seu valor artístico e o apoiou. No ano seguinte ingressou na Akademie der
Bildenden nste, em Viena, onde estudou desenho e pintura. Em 1907, Schiele conheceu Gustav Klimt que,
interessado no seu trabalho, ajudou-o comprando os seus trabalhos, apresentando-o a pessoas influentes e
arranjando-lhe modelos. Insatisfeito com o caracter conservador da academia, Schiele abandonou os estudos e,
juntamente com outros colegas que partilhavam a mesma insatifação, criou o grupo Neukunstgruppe ("Grupo
nova arte"). Liberto do conservadorismo, começou a explorar mais a forma humana e também a sexualidade.
Este grande representante do expressionismo austríaco deixou trabalhos onde estavam representados seres
humanos transfigurados por sentimentos fortes implícitos no seu traço, amantes revirados em amontoados de
lençóis brancos, diversas mulheres posando para ele e auto-retratos provocantes, assim como também algumas
paisagens e residências burguesas, nos quais exibe um estilo cuidadoso e elegante, de traços bordados, com
fortes contrastes entre ocres e cores primárias. Mais detalhes consultar COMINI, Alessandra. Egon Schiele.
Londres: Thames and Hudson, 1986.
Schiele, para compor seu retrato, acomodou Friederike sob uma manta mais parecida com
uma fantasia de arlequim no chão de seu estúdio.
A jovem fita o obervador diretamente nos olhos como sugere Barthes (1984) numa
expressão um tanto quanto melancólica. A junção da manta, do penteado e os lábios bem
demarcados de Friederike sugerem intensamente a fantasia.
Ela parece dançar, muito mais do que estar deitada no chão, seus pés e os movimentos dos
braços e mãos parecem obedecer a algum tipo de música ou ritmo.
D. S. utilizou-se exatamente dessa interpretação para compor seu trabalho.
Figura 87. D. S., darie Auto-retrato: (des) construções de identidades, 2007
Munida de um desejo imenso de fazer parte da obra, D. S. que utiliza-se de todas as
estratégias possíveis para incorporar uma bailarina tal como imagina Friedrerike ser formula uma
dança onde ela e Friederike compartilham a experiência mutuamente. A figura pintada por Schiele
que, até então, tinha mais por fatos históricos do que pelas interpretações sugeridas pela obra
pose horizontalizada, passa, a partir da inserção de D. S., a assumir um formato verticalizado. As
sombras pintadas abaixo dos pés de Friederike sugerem que há um chão sob sua figura, assim como
as sombras que envolvem seu corpo, que passam agora a refletir-se numa espécie de parede criada
simbolicamente.
O corpo de D. S.mistura-se ao de Friederike formando uma composão onde ambas
compartilham o mesmo espaço determinado pelo pintor Friederike o empresta à D. S.
generosamente em mútua cumplicidade. A estampa de seu traje, seus cabelos envoltos por uma
espécie de touca, o tratamento do rosto as sombrancelhas unidas, os lábios e as bochechas
marcadas , além da expressão da aluna que procura acompanhar a expressão de Friederike
conferem à figura de D. S. veracidade surpreendente: ela realmente faz parte daquele momento.
Os braços abertos da aluna em contraposição com os braços levantados de Friederike,
sugerem uma sintonia onde ambas compartilham do mesmo prazer. Ainda mais, Friederike parece
abraçar a parceira com seu braço direito criando um envolvimento corporal entre as duas.
Novamente, encontramos nesse trabalho, assim como na representação de M. S. G. F., uma
tensão advinda dos olhares. O jogo proposto pelas duas personagens causa desconforto e atrai o
observador para esse fato: D. S. olha fixamente para Friederike, enquanto esta fita o obervador
pertubadoramente.
Ao ver novamente a obra original de Schiele depois de apreciar o trabalho de D. S., o
incômodo é inevitável: agora, a sensação que se tem é aquela advinda do olhar e o reconhecer;
está faltando alguém na obra.
5.4.2.9. Auto-retrato com ídolo
Auto-retrato com ídolo foi pintado por Paul Gauguin 20 em 1893. Neste quadro, Gauguin
aparece em primeiro plano num gesto pensativo, tentando imaginar o que encontrará na Europa.
Veste uma camiseta com listras pretas e vermelhas e um casaco bem à moda dos pintores da época.
No segundo plano, vê-se um ídolo maori, cultura presente em todos os quadros do artista pintados
no Taiti, desde os títulos até os personagens e costumes retratados. O plano pictórico mostra a
influência da fotografia, e as cores puras a influência da estampa japonesa.
Nas linhas de contornos o predomínio do preto. O lenço no pescoço, em branco e azul,
contrapõe-se às cores escuras que predominam no fundo, nas roupas e no cabelo do artista.
20 Paul Gauguin nasceu em Paris, em junho de 1848. Aos 17 anos, Paul Gauguin entrou para a Marinha
Mercante. Em seus cinco anos no mar, elevou-se ao posto de segundo-tenente e visitou o Panamá e o Pacífico,
os lugares tropicais que sempre acompanharam seus pensamentos. Trabalhando arduamente durante suas horas
de folga, Gauguin adotou a técnica impressionista de pintar paisagens no próprio local, utilizando pinceladas
curtas de pura cor para capturar os efeitos atmosricos. Como seus grandes contemporâneos Cézanne e Van
Gogh, considerava o Impressionismo um agente liberador, embora tenha acabado por dar origem a um estilo
muito diferente. Em 1887, Gauguin fez sua primeira turnê artística nos trópicos, passando alguns meses no
Panamá e na Martinica. Forçado de volta à França pela malária e por pobreza, ele levou consigo telas vivas
com cores novas e libertas de qualquer movimento artístico antecedente. Contudo, o progresso artístico de
Gauguin foi ainda mais marcante durante suas visitas à Bretanha nos derradeiros anos da década de 1880,
mostrando-se, nessa época, ainda remota e estimulantemente primitivo. Lá, ele começou a desenvolver seus
estilo peculiar, com suas formas nitidamente delineadas e cores fortes. Seu estilo estava definido em 1888,
quando foi passear dois meses desastrosos em Arles em companhia de Vincent Van Gogh. Mais detalhes
consultar AQUINO, Sonia de Barros. Degas, Van Gogh, Gauguin. São Paulo: FAU, 1974.
Figura 88. Paul Gauguin, Auto-retrato com ídolo, 1893, The Marion Koogler McNay Art Institute, Estados
Unidos
Como na obra de Schiele, o observador é “observado” pela pintura, aqui com um ar também
desconfiado, além de pensativo. Barthes (1984) sugere que o olhar fotográfico insiste, perdura,
atravessa o tempo, tem um efeito de verdade. Barthes exemplifica isso através da fotografia de um
menino pobre que tem nas mãos um cachorrinho recém-nascido e que inclina o rosto para o
fotógrafo (Kertész, 1928) e olha a objetiva com olhos tristes, ciumentos, medrosos, inspirando no
observador uma pena dilacerante. Para quem ou o que o menino olha? A resposta é dada por
Barthes logo em seguida: “De fato, ele não olha nada; ele retém para dentro seu amor e seu medo: é
isto o olhar”. Então, mais do que qualquer outra coisa, a pintura de Gauguin retém para dentro de si
sua desconfiança e sua preocupação, assim, elas podem ser enxergadas em seu olhar (BARTHES,
1984, p.167).
Figura 89. Foto de A. Kertész, O cãozinho, 1928, Paris
A inserção de V. S. G. F. propõe impreterivelmente dois novos contextos para a pintura de
Gauguin: primeiro, a tensão dos olhares existentes nos trabalhos de D. S. e M. S. G. F., também foi
criada aqui V. S. G. F. observa Gauguin que, por sua vez, observa quem o observa. Vo
observa se permitir ser observado. Segundo, o nome da obra, agora, sugere que V. S. G. F. seja o
ídolo, que “rouba” da suposta estátua pintada ao fundo seus significados.
Figura 90. V. S. G. F., da série Auto-retrato: (des) construções de identidades, 2007
V. S. G. F. assume uma identidade pré-concebida pelo tulo da obra que o deixa vidas:
ele é o ídolo. A representação de V. S. G. F., que veste-se à maneira do pintor, sugere que Gauguin
tenha retirado de V. S. G. F. já que este é seu ídolo subsídios para compor seu visual também.
V. S. G. F. coloca-se ao fundo da pintura de Gauguin, mas seu olhar atento ao pintor e sua
representação, que não permite apagar-se com a figura do artista no primeiro plano, sugerem a
importância dada ao aluno, que encaixa-se na obra perfeitamente: espaço para sua figura, o jogo
de olhares atrai e sua imagem é declarada pelo autor no título da obra.
Até então, de todas as obras selecionadas pelos alunos para a proposição Auto-retrato:
(des)construções de identidades, Auto-retrato com ídolo foi o primeiro auto-retrato escolhido. É
visto que a inserção de uma segunda pessoa dentro de um auto-retrato “dissolve” em grande parte a
idéia pretendia pelo pintor. Sem esquecer das palavras de Canton (2001), “o auto-retrato é o espelho
do artista”, esta inserção transfigura a imagem de si mesmo pretendida pelo artista, cria novas
conotações, outros significados; gera um novo sentido.
5.4.3. Auto-retrato: des(construções) de identidades: protagonistas?
A pesquisa realizada forneceu dados que comprovam a utilização da fotografia por parte de
alguns artistas modernos, sendo que essa apropriação estende-se até nossos dias. O próprio Barthes
(1984) afirma que a pintura se assemelha à fotografia no enquadramento e perspectiva e que o olhar
tem função primordial no que tange a compreensão dos significados e símbolos propostos pelo
fotógrafo e pelo fotografado.
O terceiro grupo de análise pode ser chamado de grupo dos pretensos protagonistas da obra.
Aqui o impacto da inserção é tão profundo que faz com que o espectador transite o foco de sua
atenção entre a figura inserida e o personagem original da obra.
Nesse grupo, os alunos ousaram mais do que os anteriores, rejeitando qualquer tipo de
significado pré-estabelecido da obra e priorizando suas próprias convenções e representações acima
de qualquer coisa.
Outro diferencial desse grupo encontra-se novamente na questão do olhar. Dos cinco
trabalhos do grupo, em quatro o aluno olha fixamente para o espectador, transmitindo assim, como
sugerido por Barthes, um conjunto de sentimentos retidos dentro de si.
Percebe-se que a representação cuja figura retratada fita o espectador possui um poder, uma
tensão interior incorporada na obra, maior do que aquela cuja figura observa outro ponto “se
alguém, na foto, me olhasse!” (BARTHES, 1984, p.163-164).
Barthes afirma que esse tipo de olhar tem algo que encontramos na vida: quem nunca sentiu-
se incomodado por estar sendo observado? Este tipo de retrato tem esse poder; é um certo
estranhamento, desconforto.
Uma das pinturas mais famosas da arte ocidental, por conta do romance escrito por Tracy
Chevalier e reproduzido no cinema, e por seu olhar perturbador, é Moça com brinco de pérola, de
Vemeer 21.
Figura 91. Johannes Vermeer, Moça com brinco de pérola, 1665, Museu Mauritshuis, Holanda
21 Johannes Vermeer, nas cido em Delft, em outubro de 1632 e falecido no mesmo local em dezembro de 1675, foi
um pintor holandês, que também é conhecido como Vermeer de Delft ou Johannes van der Meer.Viveu toda a
sua vida na sua terra natal, onde está sepultado na Igreja Velha (Oude Kerk) de Delft.É o segundo pintor
holandês mais famoso do século XVII (um período que é conhecido por Idade de Ouro Holandesa, devido às
espantosas conquistas culturais e artísticas do país nessa época), depois de Rembrandt. Os seus quadros são
admirados pelas suas cores transparentes, composições inteligentes e brilhante uso da luz. Conhecem-se hoje
muito poucos quadros de Vermeer. sobrevivem 35 a 40 trabalhos atribuídos ao pintor holandês. opiniões
contraditórias quanto à autenticidade de alguns quadros. Mais detalhes consultar WHEELOCK, Arthur K. Jan
Vermeer. New York: Abrams, 1981.
Os olhos da simples empregada, que usa os brincos de pérola da ciumenta patroa e esposa de
Vermeer, são retratados pelo artista que não pôde esconder a inocência e o medo da moça. "Você
olhou dentro de mim" (Moça com brinco de pérola, 2003, dir. Peter Webber), afirma Griet,
personagem interpretada por Scarlett Johansson, quando seu retrato acabado.
É desse olhar confrontante que “olha” para dentro do persongem que esse terceiro grupo
também trata.
5.4.3.1. Eu mesmo e mais alguém: retrato-paisagem
Henri Rousseau 22 ilustra sua vida e seu pensamento artístico na obra Eu mesmo: retrato-
paisagem, de 1890.
Aqui, o artista apresenta-se em primeiro plano e atrás de si um cenário familiar para o pintor:
um porto, onde o artista trabalhou boa parte da vida, e a cidade de Paris. Com reverência, um barco
a suas bandeiras para homenagear o criador das imagens. Rousseau retrata-se engrandecido,
vestido de um preto solene e com a paleta na mão, onde estão gravados os nomes de suas duas
esposas: Clémence e Joséphine.
22 Henri Rousseau foi um artista que prenunciou a idéia surrealista de fantasia com uma visão innua (ou näif) e
diferente do mundo. Trabalhou boa parte da vida como funcionário da alfândega municipal de Paris. Rousseau é
um exemplo perfeito do tipo de attista no qual os surrealistas acreditavam: um gênio sem instrução cujo olhar
enxergava bem mais do que o do artista instruído. Embora su maior desejo fosse pintar num estilo acadêmico, e
ele acreditasse criar obras absolutamente reais e convincentes, o que o mundo adorou em seu trabalho foi a
estilização emotiva, a visão direta e as imagens fantásticas. Mais detalhes consultar BECKETT, Wendy. História
da pintura. São Paulo: Ática, 2002.
Figura 92. Henri Rousseau, Eu mesmo: retrato-paisagem, 1890, Národní Galerie, República Tcheca
O ar engrandecido de Rousseau é posto abaixo pela inserção inica de R. R.
Figura 93. R. R., da série Auto-retrato: (des) construções de identidades, 2007
R. R., que diz incomodar-se com a postura séria demais de Rousseau, propõe uma nova
construção para a obra: “alguma coisa mais divertida, descontrda”, como ele mesmo diz.
Nessa nova obra, proposta por R. R., a figura de Rousseau é ridicularizada pela brincadeira do
aluno que, numa espécie de “eu quero ser filmado”, mostra-se muito semelhante àquelas pessoas
que gesticulam incessantemente atrás dos repórteres televisivos numa busca louca pelos seus cinco
minutos de fama.
R. R., que veste-se tal como o pintor, fita o espectador com grande sorriso, braços abertos, os
pés que flutuam ele pode estar pulando alegria incontestável, pondo abaixo toda seriedade com
a qual Rousseau pretendeu ser retratado: ele quis estar assim, ele se vê assim, esse é seu espelho.
Ao inserir-se, R. R. transforma Rousseau num sujeito bobo, que olha para o lado como quem
o percebe a brincadeira atrás de si. Junto a tudo isso costura-se outro aspecto da inserção: é como
se R. R. ironizasse também a obra do artista, pois Rousseau apresenta-se aqui como pintor e não
apenas como homem.
5.4.3.2. Menina com espigas menina com flores menina com mãe?
No verão de 1888 Renoir 23 foi trabalhar em Argenteuil onde entregou-se às paisagens e suas
figuras. Foi nesse mesmo ano que pintou Menina com espigas menina com flores. Nessa fase, o
23 Renoir nasceu em Limonges, em fevereiro de 1841. O pai era um alfaiate que se mudou para Paris onde o jovem
artista, aos quatorze anos, entrou como aprendiz numa firma de pintores de porcelana. Seu talento natural para as
cores recbeu nova direção quando ele passou nos exames para a Ecole des Beux-Arts, ingressando no atel
Charles Gleyre, onde conheceu outros jovens pintores que, mais tarde, seriam rotulados impressionistas.
Juntamente com Monet, amigo pessoal, formou o núcleo do grupo impressionista. Nos seus últimos anos de
vida, também dedicou-se à escultura, com o auxílio de assistentes, devido à suas condições de saúde. Mais
detalhes consultar ANDERSON, Janice.Vida e obra de Renoir. Rio de Janeiro: Ediouro, 1995.
pintor não aprofunda-se tanto no desenho, como em seus trabalhos anteriores, preferiu envolver
suas composições em um halo atmosrico que esfuma os contornos.
Figura 94. Auguste Renoir, Menina com flores menina com espigas, 1888, Museu de Arte de São Paulo, Brasil
A luz natural ilumina a paisagem ao fundo, característica que o aproxima mais ainda da
corrente impressionista da época. Os tons de alaranjado, verde e amarelo dominam o quadro,
carregado em seu conjunto de harmonia, alegria e felicidade. A menina, com semblante sereno e
feliz, fita o observador satisfeita em ser retratada.
Essa serenidade é quebrada pela inserção de M. S. P. Nela M. S. P., que abraça a menina e
sorri grandemente, fita o observador tão profundamente quanto a menina, o que causa uma tensão
entre os dois olhares e o espectador: é dicil decidir para quem olhar, se para M. S. P. ou para a
menina.
Figura 95. M. S. P., da série Auto-retrato: (des) construções de identidades, 2007
M. S. P. tenta representar-se tal como Renoir o fez, mas a disparidade de técnicas novamente
compromente o simulacro. Mesmo assim, a figura da aluna é intensa e perturbadora: olhos fitos,
boca vermelha, cabelos louros, pele amarelada e uma mão feita a partir de um desenho praticamente
infantil.
Mas quem é essa personagem que surge para abraçar a menina num gesto íntimo de carinho e
afeição? A composição, originalmente, era perfeita e harmoniosa, mas M. S. P. estabelece, assim
como outros colegas, novos padrões para a leitura. O que ela está fazendo ali? Por que
simplesmente abraça a menina e não ajuda a carregar suas espigas ou flores? Será sua mãe? Uma
amiga? Alguém que quer lhe fazer mal? É difícil decifrar as intenções de M. S. P. Mas resta uma
pergunta, depois de conhecê-la mais profundamente: quem precisa de companhia, a menina ou M.
S. P.?
5.4.3.3. Três jovens
O quadro Duas jovens foi pintado por Renoir um pouco antes de Menina com espigas
menina com flores, em 1881.
Figura 96. Auguste Renoir, Duas jovens, 1881, Museu Pushkin, Federação Russa
Nessa pintura, duas jovens dominam a cena em um café lotado onde são sugeridos inúmeros
personagens ao fundo, destacados pela fumaça dos fumantes e a tênue luz artificial. Poucos artistas
recriaram com tanto realismo a vida parisiense daqueles anos. Em alguns trabalhos de Renoir, vê-se
uma cidade alegre, dinâmica, longe dos conflitos sociais e poticos. Nessa cena, uma das modelos,
aquela sentada em uma cadeira e que dirige seu doce e inocente olhar para o espectador, viria a ser
mais tarde esposa do artista. A outra, apoiada sobre uma mesa onde há uma laranja e um copo de
cristal, observa a primeira com atenção.
Nesse trabalho como em outros, também é possível perceber a relação de olhares estabelecida
entre os personagens e o observador: alguém que observa o espectador também é observado,
formando um ciclo o espectador que observa um personagem, que observa outro personagem, que
observa o espectador.
Em meio à essa profusão de olhares surge a figura intrigante de M. V. D. Aparece no fundo
predominantemente escuro onde é possível apenas enxergar seu rosto e supor seus trajes.
Figura 97. M. V. D., da série Auto-retrato: (des) construções de identidades, 2007
O olhar fixo em direção ao fotógrafo” e o sorriso denunciam M. V. D.: ela quer ser retratada,
sabe que está sendo pintada. Agora, os vultos sugeridos por Renoir tomam corpo em uma figura que
posa no segundo plano: M. V. D.
As jovens não percebem e nem podem perceber a figura de M. V. D. que “rouba” a cena
numa tentativa de apresentar-se num retrato único: sua expressão reluzente e feliz a “transporta” ao
primeiro plano da cena, deixando as outras moças como meras coadjuvantes. M. V. D. grita
silenciosamente: “eu estou aqui, também faço parte”.
Seu sorriso não é innuo, ao contrário, é inico. Ela sorri como quem percebe as intenções
de Renoir com relação à jovem sentada. Inconscientemente a expressão de M. V. D. denuncia o fato
de que o pintor sustenta um outro tipo de interesse pela moça.
5.4.3.4. Retrato com paisagem outonal com uma vista de Het Steen
Em 1635 Rubens 24 comprou a propriedade campestre de Het Steen, próximo a Malines,
Alemanha. Ali passou os últimos cinco anos de sua vida, cercado de belas paisagens naturais.
Figura 98. Pieter Paul Rubens, Paisagem outonal com uma vista para Het Steen, 1636, National Gallery,
Inglaterra
24 Rubens nasceu na cidade de Siegen, na Vestfália (atualmente uma região da Alemanha), onde seus pais se
encontravam exilados por apoiarem a luta dos Países Baixos pela indepenncia da Espanha. Rubens passou
a maior parte de sua vida em Flandres (hoje parte da lgica). Com a derrota dos separatistas em Flandres e a
morte de seus pais, Peter Paul retornou a Antuérpia em 1587. Interessado em arte, Rubens tornou-se, aos 15
anos, aprendiz de Adam van Noort. Ingressou depois no ateliê de Tobias Verhaeght e finalmente passou a
trabalhar com Otto van Veen, o que lhe despertou a admiração pela Itália e pela cultura latina clássica.Quando
alcançou o título de mestre pela Corporação dos Pintores da Antuérpia, Rubens seguiu para Veneza e depois para
Mântua, onde o Duque Vicenzo Gonzaga o empregou como seu pintor oficial. Rubens viajou e estudou em
Milão, Gênova, Florença e Roma, onde observou as pinturas de Michelangelo na Capela Sistina. Depois de
receber sua primeira encomendada, feita pelo cardeal da Áustria, Rubens foi solicitado a realizar diversas outras
obras, principalmente pinturas para igrejas e retratos da aristocracia. Além de excelente pintor, Rubens era uma
pessoa de bom relacionamento e grande simpatia. Rubens morreu rico e bem-sucedido em tudo o que fez e
deixou um imenso legado de arte barroca. Mais detalhes consultar HELD, Julius S. Peter Paul Rubens. New
York: Harry N. Abrams: Pocket Book, 1954.
Em Paisagem outonal com uma vista de Het Steen, de 1636, os diferentes elementos que
formam a obra destacam-se individualmente, ao mesmo tempo que, juntos, produzem um efeito
indissolúvel. Inspirado pelo ar bucólico de Het Steen, Rubens pintou diversos quadros como este,
mostrando sua casa e os arredores. Em Paisagem outonal com uma vista de Het Steen, em-se os
primeiros raios de sol iluminando a casa e a carroça que segue para o mercado; no primeiro plano,
um caçador que espreita algumas perdizes; mais ao fundo, animais que pastam e uma mulher.
N. R. S. surge fantasmagoricamente ao lado da carroça e passa a ser mais um elemento
isolado da pintura de Rubens. Ela, assim como os supostos empregados da casa que conduzem a
carroça, olha para o observador, que, neste caso, com uma função diferente dos demais
personagens , que realizam suas ocupações rotineiras. Ela apenas posa para a pintura, essa é sua
função.
Figura 99. N. R. S., da série Auto-retrato: (des) construções de identidades, 2007
Enquanto todos os outros personagens que compõem esse quadro ocupam-se com seus
afazeres diários alguém cuida dos animais, o caçador, as pessoas rumo ao mercado, a suposta
família do pintor ao fundo à esquerda N. R. S. posa para ser “pintada”, “descolando-se” do
contexto geral da obra.
A diferença no tratamento da figura de N. R. S. com relação às demais, a luz, a falta de
sombras sobre seu corpo e seu imenso sorriso, denunciam a farsa. Por mais que N. R. S. se esforce
por vestir-se de acordo com a época, fica claro que não faz parte da composição, principalmente
pela contradição de expressões colocadas lado a lado: N. R. S. e os empregados.
Quem é ela? Por que estar nesse lugar? Nessa época? Qual identidade pretendeu assumir? N.
R. S. gosta muito de viajar, conhecer lugares novos; talvez sua postura revele que ela, como a
turista descrita por Benjamin, apenas parou para ser fotografada em algum lugar novo que acaba de
conhecer.
5.4.3.5. N. Lisa
A Mona Lisa de Leonardo da Vinci é antes de tudo a expressão máxima da popularização, em
escala mundial, de uma obra de arte. O retrato mais comentado de todos os tempos tem muitas
características peculiares. A pose é incomum; a expressão indecifrável, e o sorriso já foi classificado
como cruel, impiedoso, amável ou sereno. Acredita-se que a dama retratada seja Lisa Gherardini, a
jovem esposa de um grande mercador. Apesar de ser retratada numa pose nobre e altiva, ela está
vestida de maneira simples demais para a esposa de um homem rico. Existem muitas teorias a
respeito da identidade da Mona Lisa. Algumas vertentes apontam que o retrato seria do próprio Da
Vinci.
Figura 100. Leonardo Da Vinci, Mona Lisa, 1503-1505, Museu do Louvre, França
Colocar-se à frente do maior símbolo da arte ocidental seria no mínimo uma ousadia, mas as
palavras que ressoam da inserção de N. S. conhecendo a aluna com mais profundidade são
claras: “eu sou importante”.
N. S. não foi a única a reinventar a obra de Da Vinci. Um exemplo disso é o trabalho
Mona...smiles, de 1998, do brasileiro Nelson Leirner. Nelson reproduz incansavelmente a figura
deformada da Mona Lisa propondo uma discussão sobre o status da arte e sua reprodutibilidade.
Figura 101. Nelson Leirner, Mona...Smiles?(detalhes), 1998, Colão Roberto Cipolla
O trabalho de N. S. também provoca, pondo abaixo, assim como Leirner, as convenções com
respeito a obra prima de Da Vinci. Aqui a aluna coloca-se à frente da Mona Lisa, e mais, cria com
giz pastel uma nova camada por cima da pintura para que o retrato de Da Vinci possa incorporar-se
ao seu auto-retrato.
Figura 102. N. S., da série Auto-retrato: (des) construções de identidades, 2007
A pintura, antes fria e absolutamente gida, ganha um certo movimento: N. S. parece estar
virando-se para olhar o retrato atrás de si que olha fixamente o espectador quando é “flagrada
pela fotografia”.
Agora, a Mona Lisa torna-se paisagem para N. S., que declara: eu sou a figura principal da
obra (será mesmo?). Os cabelos escuros partidos ao meio, a expressão enigmática e o sorriso
cerrado demonstram que N. S. também esforçou-se por seguir o modelo, mas, em momento algum,
permitiu que “o modelo sobrepuja-se o mestre”. N. S. recria a Mona Lisa e, mais do que colocar sua
assinatura na obra, ela coloca sua identidade: essa é N. S., simplesmente ela mesma que, apesar do
desafio proposto por Auto-retrato, considerou impossível deixar de ser quem é, mas mandou seu
recado ela também é importante.
5.5. Auto-retrato: des(construções) de identidades: outras
considerações
Segundo Susan Sontag (2004), a imagem fotográfica operou profundas mudanças em nossa
maneira de enxergar o mundo e a nós mesmos. A autora cita o prefácio à segunda edição de A
essência do Cristianismo (1843), onde Feuerbach observa a respeito da “nossa era” que, segundo
ele “prefere a imagem à coisa, a pia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser
ao mesmo tempo que tem perfeita consciência disso”.(SONTAG, 2004, p.169).
Essas palavras, por mais que tenham sido escritas mais de 150 anos atrás, refletem nossa
realidade pós-moderna. Ver a própria imagem representada em um trabalho artístico revelou ser um
exercício fascinante para os alunos. Talvez, assim como fez Gisela Benatti, colocar-se num local
designado como arte tenha causado um interesse ainda maior e uma verdadeira obsessão dos alunos
por Auto-retrato com relação às outras proposições. De todos os trabalhos, esse foi o mais esperado,
comentado e desejado ser visto na exposição. Os alunos queriam muito mostrar suas fotos inseridas
nas obras. Esse tipo de inserção deu ao exercício de sala de aula uma importância bem diferente dos
demais.
O interessante é que a proposição Auto-retrato pretendeu apenas recriar as identidades dos
alunos, de forma lúdica e através de técnicas comuns a todos os participantes. O que não se podia
imaginar é que Auto-retrato proporia rediscutir também as identidades das demais figuras contidas
nas obras, até então identidades fixadas pela história.
Como observado através da pesquisa realizada, algumas das construções identitárias propostas
pelos alunos culminaram na rediscussão das identidades dos personagens originais da obra, como
são os casos dos trabalhos de R. R., D. S. e N. S. os trabalhos de V. S. G. F., C. L. S., W. T., S.
D., M. S. P., C. O. G. C., G. M. A. A., N. R. C. e M. S. G. F. não interferiram nas características
principais dos personagens da obra, pelo contrário, reforçaram alguns aspectos propostos pelos
artistas. E os trabalhos de E. S. G. F., B. S., M. S. G., N. R. S. e M. V. D. não tiveram a intenção de
modificar o contexto da obra ou dos personagens.
O mais importante a ser observado nessa proposição é como os alunos trabalharam a questão
da criação de uma nova identidade. O que é percebido é que, na maioria dos casos, os alunos
tentaram se inserir ao máximo no contexto da obra, foi sugerido pela professora; mas o tipo de
personagem que iriam representar ficou absolutamente livre.
O interessante é que na maioria dos casos eles não deixaram de ser eles mesmos, apesar das
roupas de época e dos modos. É possível claramente enxergar, depois de algum tempo de
convivência, características dos próprios alunos refletidas nos personagens que eles criaram. Por
exemplo, pode-se perceber o desejo de ser bailarina, que nunca morreu, na inserção de N. R. C.; a
timidez de E. S. G. F. e B. S. ao mal mostrarem o rosto em suas composições; o ar extremamente
brincalhão que faz parte da natureza de R. R.; a luta de G. M. A. A. em ajudar seus alunos G. M.
A. A. é professor de uma escola pública de Osasco a aprenderem o inglês, sempre estendendo sua
o ao próximo; o carinho e a proteção que M. S. G. F. exerce sobre seus filhos, também alunos do
curso de Estudos sobre arte contemporânea; o descanso de C. O. G. C., o que é reivindicado em
toda aula que a aluna assiste está sempre cansada ; a alegria de D. S. e o amor por todas as artes;
a caridade de S. D. que presta-se a ajudar muitas pessoas de sua convivência; a necessidade de M.
S. P. em aproximar-se; e, talvez por último, o grito de N. S. que sofre profundos problemas
familiares.
Por mais que o desafio fosse transformar-se em outra pessoa, as palavras de Canton (2001)
apenas confirmam o que Auto-retrato trouxe à tona: “o auto-retrato é o espelho do artista”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como dito anteriormente, o conceito do professor-artista-propositor surgiu de uma
conjugação entre a prática e a teoria. Ao formular o curso de Estudos sobre arte contemporânea, no
primeiro semestre de 2007, não tinha intenção, inicialmente, de desenvolver um novo conceito. A
idéia de introduzir o estudo da arte contemporânea na Escola de Artes César Antonio Salvi era forte
e essencial para a continuidade de minha prática docente.
Nesse mesmo período, ao estudar mais profundamente diversos artistas brasileiros, além de
Marcel Duchamp, e as rupturas ocorridas na história da arte, como é o caso do Movimento
Neoconcreto, comecei a relacionar a prática, ou seja, o desejo de desenvolver em sala de aula as
temáticas levantadas por Canton na pesquisa Tendências Contemporâneas, com a idéia do artista
como um propositor que estabelece uma relação indissolúvel com o público e com a vida.
Pensando nestas questões, juntamente com o curso que se iniciava, comecei a estabelecer
relações entre teoria e prática e, com o tempo, o conceito se materializou dando corpo ao Capítulo 1
desta dissertação.
O que pode ser notado, tanto nas três proposições que fazem parte do estudo de caso, quanto
nos outros trabalhos desenvolvidos até junho de 2008 dentro do curso de Estudos sobre arte
contemporânea, é que o tripé teórico que fundamenta o conceito permeia toda a produção. Esse fato
revela que o conceito do professor-artista-propositor pôde e pode ser praticado pelo professor de
artes visuais em sala de aula.
Outro ponto a ser ressaltado é que as temáticas contemporâneas levantadas por Canton pelo
menos duas delas: memória e identidade puderam ser utilizadas como temáticas para exercícios
artísticos, o que propõe aproximar a arte e seu ensino, ambos pensados e discutidos na pós-
modernidade. Além disso, os alunos do curso de Estudos sobre arte contemporânea tiveram a
oportunidade de conhecer artistas contemporâneos e suas obras, o que foi introduzido como novo na
Escola de Artes, que tem um ensino pautado principalmente no estudo da história da arte até o
Modernismo. Além disso, eles também puderam refletir, do ponto de vista da arte, os temas
propostos.
Nos três trabalhos que comem o estudo de caso é possível enxergar elementos da teoria no
produto final. As lacunas causadas pelo esquecimento e as composições formadas pela diversidade
de lembranças que comem nossas memórias caracterizam as produções de Construindo a torre.
De todos os trabalhos, Construindo a torre foi o que apresentou maior dificuldade de análise.
É praticamente impossível saber o que os alunos têm guardado na memória, quais imagens foram
retidas e se conseguiram ou o traduzir essas lembranças para o papel de modo satisfatório. A
memória, nesse caso, é um campo bastante subjetivo e impossível de ser comparado: não para
avaliar quem fez um desenho mais próximo da reprodução ou o, é impossível saber quantas vezes
uma pessoa viu uma reprodução da Torre Eiffel e como, biologicamente, esse registro foi
preservado. Portanto, a análise foi feita mediante os aspectos formais dos desenhos.
As falhas irremediáveis do testemunho de Lida uma sobrevivente e a esperança de um
futuro dão corpo às produções de Memória apropriada: lembranças de guerra. É possível observar
o jogo revelar/esconder da narradora nos trabalhos dos alunos que, por sua vez, completaram as
cenas com as imagens que permeavam seu imaginário no momento da proposição. Em Memória
apropriada, apenas o exercício de ouvir e imaginar as histórias de Lida foi bastante válido.
E, por último, as palavras de Canton o auto-retrato é o espelho do artista” “gritaram”
através dos trabalhos da série Auto-retrato: (des) construções de identidades. O fato de se poder
assumir identidades diferentes, pelo menos no papel, aguçou a imaginação e o interesse dos alunos.
(CANTON, 2001, p.71).
A questão do auto-retrato é bastante interessante e complexa. Considero o fato de que outra
pesquisa deva ser realizada sobre a inserção do foto-retrato em obras de arte e as possíveis e novas
contextualizações e identidades advindas destas inserções. Uma pesquisa mais profunda sobre o
assunto o fez-se necessária para esta dissertação.
Considero também o fato de que uma pesquisa sobre o artista como um propositor deva ser
realizada com mais acuidade, pesquisando-se uma gama maior de artistas que se encaixam neste
perfil e todos os níveis e meios de interação com o público.
É visto que o conceito do professor-artista-propositor pôde ser aplicado à uma turma
heterogênea: várias idades adultos e adolescentes , várias profissões, rias faixas salariais e
rios níveis de instrução. Considero o fato de que outra pesquisa deva analisar o conceito quando
aplicado à turma de crianças.
Considero também o fato de que, assim como Duchamp questiona o lugar da arte,
poderíamos nós, pesquisadores e professores, utilizarmos espaços alternativos para pesquisas
como é caso das escolas públicas que contribuam com a área.
Fechando o ciclo do professor-artista-propositor que começa na sala de aula e termina na
exposição dos trabalhos , a exposição Vida Arte Vida, citada no Capítulo 3 desta dissertação,
trouxe a tona alguns pontos interessantes. Primeiro, as três séries apresentadas aqui foram recebidas
com entusiasmo e consideradas novidade perante o restante da produção da Escola.
O que pode comprovar isto são os comentários escritos num painel colocado ao lado dos
trabalhos com a inscrão “Deixe sua opinião sobre a exposição”. O que chamou bastante a atenção
foi o fato de, na maioria das frases, os visitantes terem escolhido a palavra diferente para qualificar
as produções. Isto mostra como a exposição foi recebida pelo público: diferente daquilo que
estavam acostumados a ver.
Outro ponto é que todos que deixaram um recado no painel disseram ter gostado muito dos
trabalhos, principalmente de Auto-retrato. Um dos visitantes da exposição escrevou o seguinte
sobre Auto-retrato: “tudo o que eu sonhava ser era uma obra de arte”. Depois da exposição a
procura pelo curso aumentou também pelo fato de muitas pessoas terem agora conhecimento
deste módulo , e o mesmo foi mantido pela Escola.
Um ponto que considero extremamente importante nesta pesquisa é a relação arte/vida
proposta tanto por Lygia Clark e lio Oiticica, quanto por Rivane Neuenschwander e Rosana
Palazyan; uma relação que transcende o espaço da arte pensando-se em seus aspectos formais e
objetuais e penetra em outros campos, principalmente o das relações humanas. Como visto no
Capítulo 1, cada um dos quatro artistas propõe um arte voltada para “[...] atuação no espaço social,
vivendo[-a] [...] como percurso para entendimento do universo do outro”. (PALAZYAN, 2004,
p.77).
Sendo assim, o professor-artista-propositor absorve esta forma de pensar a arte e a aplica
através de sua prática pedagógica e artística, que está indissoluvelmente ligada à vida de seus
alunos.
O conceito do professor-artista-propositor pretende mais do que expor noções, conceitos ou
principios sobre arte contemporânea, acima de tudo pretende vivê-los, propõe que os alunos
aprendam pela experiência advinda da discussão e produção de trabalhos embasados nas temáticas
contemporâneas.
Ou seja, assim como os artistas citados nesta dissertação, que não hesitaram ao lançar sua arte
ao público de forma integrada e efetiva, o professor-artista-propositor dá ao aluno a oportunidade de
também, assim como a proposição Caminhando, “aprender o absoluto pelo ato de fazer”.
(MILLIET, 1992, p.52).
E este fazer não é totalmente livre, o ato criador do aluno parte de algumas perspectivas do
professor. Não é a total liberdade, mas antes de tudo, “é soprar dentro do molde”, como disse Lygia
Clark.
O novo conceito desenvolvido através desta pesquisa não modifica apenas o relacionamento
do professor para com o aluno, mas do aluno em relação ao professor também. Lygia Clark propõe
um novo artista, o artista-propositor, e Duchamp sugere um novo espectador, o participador.
Aproximando esses conceitos criados por Lygia e Duchamp com o ensino da arte, propõe-se o
surgimento de um novo professor, o professor-artista-propositor, e um novo aluno, que participa
intensamente das propostas e, assim como o professor-artista-propositor, faça parte do ato criador.
Percebeu-se ao final do curso de Estudos sobre arte contemporânea que parte dos alunos o
considerou os exercícios artísticos realizados em sala tão interessantes quanto aqueles onde se
pratica a pintura e o desenho exercícios mais técnicos. Considero o fato de que nem todos os
alunos estavam preparados para, assim como disse Duchamp, uma reflexão sobre o fato estético.
Este “pensar a arte” vem com o tempo e um curso de aproximadamente dez meses foi insuficiente
para que eles percebessem a importância destas experiências.
Apesar dos desafios encontrados durante esta pesquisa e no decorrer do curso de Estudos
sobre arte contemporânea, não posso negar a imensa alegria que senti ao realizá-la. Assim como
Heloísa Buarque do Hollanda afirma que Rosana Palazyan vive “[...] a arte como percurso para
entendimento do universo do outro”, considero o fato de que o professor-artista-propositor também
trabalha a arte em sala de aula pensando sempre no universo do seu aluno; vivendo a arte e
inventando a vida. (PALAZYAN, 2004, p.77).
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www. Priberam.pt. Acesso jan/2009.
ANEXO 1
ANEXO 2
ANEXO 3
ANEXO 4
ANEXO 5
ANEXO 6
ANEXO 7
ANEXO 8
ANEXO 9
ANEXO 10
Cadastro de Aluno
Curso de Estudos sobre Arte Contemporânea 1”
Idade: _______________________________________________________________________________________
Cidade natal: _______________________________________________________________________________
Cidade onde reside: ________________________________________________________________________
Ocupação: ___________________________________________________________________________________
Escolaridade: _______________________________________________________________________________
Renda familiar: _____________________________________________________________________________
Quais cursos relacionados à arte você cursou?
_____________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
Você já visitou alguma exposição de artes visuais? Qual?
_____________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
Você conhece:
( ) MAM ( ) MAC ( ) Paço das Artes
( ) MASP ( ) Pinacoteca ( ) Bienal
( ) Espaço Cultural Tomie Othake ( ) Oca
( ) Centro Cultural Banco do Brasil
( ) Centro Cultural Itaú
( ) Museu Lasar Segall
Você tem acesso fácil à Internet? _________________________________________________________
É assinante de alguma revista? Qual?
_____________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
ANEXO 10 (cont.)
É assinante de algum jornal? Qual?
_____________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________________________
Com suas palavras, diga o que é arte.
_____________________________________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________
Você sabe o que significa o termo “Arte Contemporânea”? Se sim, explique com suas
palavras.
_____________________________________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________
O que você espera do curso?
_____________________________________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________________________________
_________________________________________________________________
ANEXO 11 Tabela descritiva com dados dos alunos obtidos através de questionário
Idade
Renda
familiar
Residência
Ocupação
Formação
Cursos
específicos
da área de
artes
Visitas à
instituições de
arte
Acesso à
internet
Assinante de revista ou
jornal
45
1.500,00
Osasco
Professor
Superior
completo
Composição
e Cor,
Pintura 1 e 2,
História da
Arte no
Brasil
MASP
MAM
MAC/Ibirapuera
Centro Cultural
Itaú
Sim
Não
38
2.500,00
Osasco
Dona-de-casa
Ensino
médio
completo
História da
Arte do
Século XX,
Arte
Abstrata
Pinacoteca
MASP
MAC/Ibirapuera
OCA
Espaço Cultural
Tomie Othake
Sim
Não
27
800,00
Osasco
Dona-de-casa
Ensino
médio
completo
Desenho 1,
Pintura 1,
Arte
Abstrata
Pinacoteca
Sim
Não
57
4.000,00
Osasco
Aposentado
Ensino
médio
completo
Composição
e Cor,
Desenho 1
Arte
Abstrata
MAC USP
MAC/Ibirapuera
MASP
Sim
Não
14
1.500,00
Osasco
Estudante
Ensino
fundamental
incompleto
Desenho 1 e
2,
Caricatura,
Paisagem 1 e
2,
Composição
e Cor,
Pintura 1 e 2
MASP
MAC/Ibirapuera
Museu de arte da
FAAP
MAM
Pinacoteca
OCA
Sim
Não
12
1.500,00
Osasco
Estudante
Ensino
fundamental
incompleto
Desenho 1,
Pintura 1 e 2,
Estudos da
Paisagem 1
MASP
MAC/Ibirapuera
Museu de arte da
FAAP
MAM
Pinacoteca
OCA
Sim
Não
45
4.000,00
Osasco
Dona-de-casa
Superior
completo
Desenho 1 e
2,
História da
Arte, Pintura
1 e 2,
Orientação
de Projeto
Pessoal 1
MASP
Espaço Cultural
Tomie Othake
MAC/Ibirapuera
Sim
Sim Revista Época
30
624,00
Carapicuíba
Analista de
Ensino
médio
Desenho
Pinacoteca
Sim
Não
atendimento
completo
Básico,
Desenho
Publicitário,
Desenho 1,
Pintura 1
MAC/Ibirapuera
52
1.000,00
Osasco
Dona-de-casa
Ensino
médio
completo
Arte
Abstrata
OCA
MASP
MAC/Ibirapuera
Sim
Sim Revistas Veja e
Manequim
14
1.000,00
Osasco
Estudante
Ensino
fundamental
incompleto
Desenho 1
MASP
MAM
OCA
Espaço Cultural
Caixa Econômica
Pinacoteca
Centro Cultural
Banco do Brasil
Sim
Sim Revista Caras
41
3.000,00
Osasco
Desempregada
Superior
completo
Desenho 1,
Figura
Humana 1,
Pintura 1,
Orientação
de Projeto
Pessoal 1
MAC/Ibirapuera
OCA
Pinacoteca
Sim
Não
63
2.400,00
Osasco
Aposentada
Superior
incompleto
Teatro,
Desenho 1,
Pintura 1
Museu de arte da
FAAP
MASP
MAC/Ibirapuera
OCA
Espaço Cultural
Tomie Othake
Museu Lasar
Segall
Sim
Não
54
2.000,00
Osasco
Dona-de-casa
Ensino
fundamental
completo
Pintura em
Tecido,
Desenho,
Pintura 1
Museu de arte da
FAAP
MASP
Pinacoteca
MAC/Ibirapuera
Sim
Não
65
3.000,00
Osasco
Dona-de-casa
Ensino
médio
completo
Estudos da
Paisagem 1,
História
Geral da Arte
Museu de arte da
FAAP
MASP
Pinacoteca
MAC/Ibirapuera
Espaço Cultural
Tomie Othake
Centro Cultural
Banco do Brasil
Centro Cultural
Itaú
Museu Lasar
Segall
Sim
Não
26
2.000,00
Osasco
Desempregado
Ensino
médio
completo
Arte
Acadêmica,
Figura
Humana 1,
Desenho 1,
Arte
Abstrata
MASP
Sim
Sim Folha de São
Paulo
56
960,00
Osasco
Don-de-casa
Ensino
médio
completo
Pintura em
Cerâmica,
Desenho 1 e
2,
Pintura 1 e 2
FIESP
Pinacoteca
MASP
OCA
Não
Sim Estado de São
Paulo
56
6.000,00
Osasco
Artesã
Ensino
fundamental
incompleto
Desenho 1,
Estudos da
Paisagem 1,
Arte
Abstrata
Sim
Sim Revistas Bons
Fluídos, Cláudia e Veja
Jornal Folha de São
Paulo
49
5.000,00
Osasco
Desempregada
Superior
completo
História da
Arte,
Figura
Humana,
Desenho,
Pintura
MAM
MASP
Sim
Sim Revista DBO Rural
Jornal da Tarde
ANEXO 12
Coleção Caras “Pinturas mais valiosas do mundo”, vol. 21
Edgar Degas “Duas Bailarinas no palco”
“Café – concerto Les Ambassadeurs”
“Bailarina em frente da janela”
Coleção Caras “Pinturas mais valiosas do mundo”, vol. 16
Claude Monet “Barca em Giverny”
“Ninféias”
“Campo de papoulas em Argenteuil”
Coleção Caras “Pinturas mais valiosas do mundo”, vol. 8
Pierre Auguste Renoir “Le moulin de la Galette”
“Duas jovens”
“Menina com espigas-Menina com flores”
Coleção Caras “Pinturas mais valiosas do mundo”, vol. 3
Van Gogh Retrato do Doutor Paul Gachet”
“Os girassóis”
“Retrato do artista sem barba”
Coleção Caras “Pinturas mais valiosas do mundo”, vol. 14
George Seurat “O circo”
“Uma tarde de domingo na ilha da Grande Jatte”
“As modelos”
ANEXO 12 (cont.)
Coleção Caras “Pinturas mais valiosas do mundo”, vol. 20
Egon Schiele Duas mulheres enlaçadas”
“Mulher reclinada com meia verde”
“Retrato de Friederike Maria Beer”
Coleção Caras “Pinturas mais valiosas do mundo”, vol. 1
Gustav Klimt “Retrato de Adéle Bloch – Bauer I”
“O beijo”
“A virgem”
Coleção Folha “Grandes Mestres da Pintura”, vol. 8 Henri Matisse
Coleção Caras “Pinturas mais valiosas do mundo”, vol. 19
Gauguin “Passatempo”
“Auto-retrato com ídolo”
“Dança das quatro camponesas da Bretanha”
Coleção Folha “Grandes Mestres da Pintura”, vol. 15 Edvard Munch
Coleção Caras “Pinturas mais valiosas do mundo”, vol.4
Amedeo Modigliani “Nu em pé - Elvira”
“Paisagem”
“Jeanne Hébuterne a mulher do artista”
ANEXO 13
Do moderno ao contemporâneo Brasil
Fevereiro/1922 Semana de Arte Moderna no Brasil
Auge do Modernismo no Brasil
Artistas participantes: Mario de Andrade, Anita Malfatti, Di Cavalcanti,
Oswald de Andrade, Brecheret entre outros.
1950 1980
Expressionismo Abstrato marca a arte nos Estados Unidos
Arte Concreta marco no Brasil paralelamente ao desejo de se construir
uma nova Europa destruída pela guerra, há um desejo de se construir um novo
Brasil (promessas de desenvolvimento econômico “Milagre Econômico”
presidente Juscelino Kubitchev).
Construção de Brasília nova capital federal.
Arte Concreta brasileira (abstração geométrica) espelha essas novas
realidades, irradia modernidade, promessa de uma nova visualidade para um
novo país.
1947 MASP
1948 MAM de São Paulo
1949 MAM do Rio de Janeiro
Impulsionar a arte abstrata
1951 1° Bienal de São Paulo organizada nos moldes da Bienal de Veneza.
Concretismo/Neoconcretismo promessa do novo, busca uma identidade
brasileira.
ANEXO 13 (cont.)
1960/1970 Arte Conceitual materiais precários anunciam a possibilidade
de a arte se desgrudar de seus aspectos, principalmente mercadológicos,
para exercer papéis sociais e políticos.
Regime militar artistas criam estratégias simbólicas e metafóricas para
penetrar o cerco à liberdade de expressão, apontar a necessidade da
interação da obra de arte com o público, comentar a vida.
1980 transição entre a era moderna e pós moderna ou contemporânea no
Brasil.
1984 fim do regime militar diretas já. Cresce no país a oferta de bens
de consumo relativa à indústria cultural e tecnológica (CD’s, canais de TV
a cabo, exposições de grande porte, espetáculos de teatro e balé e etc).
Geração 80 a enorme força dos meios de comunicação de massa influencia
fortemente jovens artistas que formam a chamada “Geração 80”. Se
caracteriza pela produção de grandes telas e pinturas vigorosas
diferentemente das obras Concretas e Conceituais. Essas obras se nutrem de
comentários e questionamentos fora do âmbito da arte e se referem à
realidade cotidiana e social brasileira, mas se estruturam de forma
individual. Artistas: Leda Catunda, Daniel Senise.
1990/2000 uma enorme gama de suportes e materiais se abre para os
artistas, que substituem a preocupação com o material por outra ligada ao
sentido.”A pintura não morreu, tampouco a escultura. Juntaram-se a elas
instalações, objetos, textos, Internet e outros meios”.
Artistas contemporâneos buscam sentido. Um sentido que pode estar ligado
tanto nas preocupações formais da obra de arte que se sofisticaram durante
o século 20, mas que principalmente finca seus valores na compreensão e
apreensão da realidade (política, economia, ecologia, educação, cultura,
fantasia, afetividade).
ANEXO 13 (cont.)
Arte contemporânea recebe heranças do Modernismo e soma à elas uma relação
de sentido, significado ou mensagem, criando várias possibilidades de
leitura.
Sem ser impulsionada por um projeto sócio-político, movimento ou manifesto,
a ação contemporânea é prioritariamente individual, baseadas em formas de
expressão pessoal e íntima.
“Fazer arte é materializar sua experiência e percepção sobre o mundo,
transformando o fluxo de momentos em alguma coisa visual, textual ou
musical. Arte cria um tipo de comentário” (Bárbara Kruger).
“Arte contemporânea é (...) um conhecimento que se abre ao observador como
um estranho livro, em que a narrativa contida se assume de acordo com seu
próprio olhar”.
ANEXO 14
Coleção Folha “Grandes Mestres da Pintura”, vol. 6 Pablo Picasso
Coleção Caras “Pinturas mais valiosas do mundo”, vol. 2
Pablo Picasso Menino com cachimbo
Guernica
O sonho
Coleção Caras “Pinturas mais valiosas do mundo”, vol. 7
Juan Gris Copo de cerveja e cartas de baralho
Fruteira, copo e jornal
Vista da baía
Coleção Caras “Pinturas mais valiosas do mundo”, vol. 6
Umberto Boccioni Rixa na galeria
Estados de ânino II os adeuses
Elasticidade
BECKETT, Wendy. História da pintura. 1.ed.São Paulo: Ática, 2002.
KANDINSKY, Wassily. Hajo Düchting. Alemanha: Taschen, 2005.
Coleção Caras “Pinturas mais valiosas do mundo”, vol. 10
Auguste Macke Nu com colar de coral
Composição colorida (homenagem a Johann Sebastian Bach
Formas coloridas I
ANEXO 14 (cont.)
Coleção Caras “Pinturas mais valiosas do mundo”, vol. 12
Rousseau Eu mesmo: retrato-paisagem
A cigana adormecida
Os jogadores de rúgbi
Coleção Folha “Grandes Mestres da Pintura”, vol. 11 Mi
Coleção Folha “Grandes Mestres da Pintura”, vol. 13 Dalí
HUG, Alfons. 26. Bienal de SP Representações nacionais. o Paulo: Fundação Bienal de
São Paulo, 2004.
HUG, Alfons. 26. Bienal de SP Artistas convidados. São Paulo: Fundação Bienal de São
Paulo, 2004.
ANEXO 15
(...) Acreditava-se que alguém nascia predeterminado por sua natureza”, herdeiro
dos tributos positivos e negativos de seus ancestrais. Pior do que isso, acreditava-se
na herança de caractesticas adquiridas, portanto filhos de maus casamentos, leia-se
casamentos entre pessoas de classes sociais ou raças diferentes, iriam se revelar
seres degenerados, propensos a doenças e comportamentos sociais perigosos
(Stepan, 1996). Aqueles cujo comportamento fugisse às normas sociais estariam
fadados ao crime e à degeneração social. Por isso, seus comportamentos ou prática
passaram a ser vistos como o cerne deles, suas essências, ou mais claramente, o que
passou a ser compreendido como o que definia suas identidades.
A tranformação de comportamentos em identidades se deu no terço final do século
XIX. (...) Ramos da psiquiatria como a sexologia e a criminologia enquadraram
esses comportamentos-identidades em categorias sociais como o homossexual, a
prostituta, o criminoso nato, o alcoólatra, portanto, atribuindo uma identidade fixa,
mais especificamente uma essência “corrompida”, a todos os que se desviassem das
normas socialmente hegemônicas (Foucault, 2001; Miskolc, 2003).
Entre fins do século XIX e as primeiras décadas do século XX (...) toda identidade
era vista como produto de condições fixas e irremediáveis. Tais idéias legaram-nos
políticas públicas voltadas para o controle populacional, a segregação racial e,
também, nos momentos mais sombrios do últimoculo, processos de limpeza
étnica, internamento dos indivíduos considerados perigosos ou ainda os campos de
concentração (Stepan, 1996; Ordover, 2003).
(...) Logo, todos, normais ou desviantes, só podiam compreender a si próprios como
produto inelutável de uma suposta “natureza”, um termo que ocultava, sob a
aparência de neutralidade, relações de poder.
A superação dessa forma biológica, ou essencialista, de compreender as identidades
não se deu por completo e basta observar jornais, programas televisivos e a
notícias sobre novas teorias genéticas, sobre identidades e comportamentos para
constatar que ainda é forte a associação entre identidade e natureza. (...) Desde o
final da década de 1940 houve um progressivo avanço de um paradigma de
compreensão das identidades que enfatiza os fatores sociais e históricos como os
mais importantes.
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