A aplicação de novos sentidos resulta no nascimento de um novo corpo, que é marcado
pela subjetivação, pela perda de organicidade e, metamorfoseado, difere daquele corpo que se
acreditava integral e sublimado, independente da imposição dos aparelhos de coerção e dos
aparatos culturais como a moda e a mídia. Essas são constituídas segundo as normas e os
interesses da sociedade à qual pertencem, que impõe suas marcas na matéria corporal, e cuja
capacidade de sugestionar está sendo questionada no decorrer dos últimos anos.
Hoje, portanto, não se tem mais uma única maneira certa de fazer e ver as coisas,
admitindo-se outras verdades e modos de vida. Dessa forma, a arte, incorporada à circulação
maior dos bens culturais, por meio dos aparatos tecnológicos de comunicação de massa, nega
tudo o que se conceituava como obra: é o fim das narrativas artísticas.
1.3 O que nos olha, o que vemos
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Na atualidade, uma análise do olhar do espectador quanto à representação do feminino
requer uma investigação objetiva e historicamente determinada. Trata-se de definir o contexto
histórico-social que dá suporte para tal entendimento, o que significa pensar também por um
viés da semiótica e da psicanálise
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Deve-se, assim, compreender que as imagens de representação do corpo feminino são
construídas, cotidianamente, por meio de inúmeros aparatos e são produzidas para certos fins.
. A representação é um substituto a algo, um representante
de alguma coisa para uma realidade ausente. Em relação ao corpo, a referência não se constrói
em cima de um objeto original - a mulher, no caso -, mas em oposição a outras cadeias de
significações. As questões referentes ao tema inserem-se nas problemáticas da recepção e da
conduta de quem as recebe, daí o espectador e a imagem produzida interferirem-se e se
construírem um no outro. Já a relação entre o espectador e a imagem não se estabelece apenas
por meio da percepção visual: nessa troca, são consideradas as crenças, as emoções, os afetos
e a cultura, temas ligados a códigos sociais e ideológicos.
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No subtítulo fez-se jogo de linguagem a partir do título O que vemos, o que nos olha do livro de Didi-
Huberman. O que nos olha, o que vemos remete de maneira simplificada à construção do olhar da mulher diante
da imagem que ela vê de si, imagem essa que, de certo modo, remete à imagem que o olhar masculino construiu
da mulher. Essa analogia com o título de Didi-Huberman tem origem na análise feita por este autor dos escritos
de Joyce, em Ulisses: “[...] eis que surge a obsedante questão: quando vemos o que está diante de nós, porque
outra coisa sempre nos olha, impondo um em, um dentro?” (HUMERMAN, 2005, p. 30). Em outra passagem
Huberman conclui: “devemos fechar os olhos pra ver quando o ato de ver nos remete, nos abre a um vazio que
nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos constitui”. Ainda, Stephen Dedalus, personagem de Joyce,
questiona: “quem escolheu esta cara para mim?” (apud HUBERMAN, 2005, p. 32).
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A respeito dessas analises, ver especialmente o artigo “Prazer visual e cinema narrativo” de 1975, da cineasta e
feminista Laura Mulvey, no qual ela relata como os filmes holydianos tornaram o corpo feminino objeto de
prazer do espectador masculino. Seu relato é historicamente importante para um entendimento da construção do
olhar sobre o corpo da mulher.