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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC – SP
Ana Carolina Schmidt
Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático
sobre o lugar do jovem nos círculos restaurativos
MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
SÃO PAULO
2010
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC – SP
Ana Carolina Schmidt
Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático
sobre o lugar do jovem nos círculos restaurativos
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de
MESTRE em Psicologia Social, sob a
orientação da Prof
a
. Dr
a
. Maria Cristina
Gonçalves Vicentin.
SÃO PAULO
2010
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Banca Examinadora
________________________________________
________________________________________
________________________________________
Aos meus pais, Delmar e Regina, aos
meus irmãos, Patrícia e Carlos, ao meu
sobrinho Leo: pelo amor, por me fazerem
acreditar e querer sempre mais.
E aos jovens que me trouxeram até aqui,
em especial, Kléber.
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora Prof
a
. Dr
a
. Maria Cristina Gonçalves Vicentin. Por acolher
este projeto de pesquisa. Por me acompanhar nos caminhos e descaminhos desta
pesquisa, com dedicação, cuidado e carinho. Pelo respeito aos momentos difíceis e
por perceber e valorizar os momentos produtivos. Por me ajudar a compreender que,
para chegar aos nossos objetivos, podemos seguir por diversos caminhos, buscar a
mudança por outros meios e não apenas desempenhando os conservados
Personagens “denunciantes”, porém, nunca nos esquecendo de quem somos, de
onde viemos e o que nos vez vir até aqui.
À Prof
a
. Dr
a
Marília Josefina Marino, pela intensidade de cada encontro e por
ser sempre essa presença apaixonante. Por estar presente em tantos momentos
desta pesquisa. Por acolhê-la como “nosso projeto” para a monografia do curso de
formação em Psicodrama. Pelas constantes contribuições e discussões, indicando
leituras, lendo e relendo meus textos, escutando minhas angústias em relação ao
campo e me fazendo ver novas alternativas. Por acompanhar e me ajudar nas tantas
mudanças necessárias ao “nosso projeto”.
À Prof
a
. Dr
a
Patrícia Junqueira Grandino, por fazer parte desta banca e pelas
contribuições fundamentais que trouxe a este trabalho desde o momento da
qualificação. Pelas indicações de leitura e dos caminhos possíveis a seguir.
Ao grupo de práticas restaurativas de São Caetano do Sul: aos facilitadores
comunitários, à equipe de capacitação e, em especial, ao Juiz Dr. Eduardo Melo,
pela confiança de todos neste trabalho, pela disponibilidade e por nos possibilitar a
vivência dos círculos restaurativos.
Aos professores do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia
Social da PUC-SP, pelo constante aprendizado que me proporcionaram.
À minha família. Meus pais Delmar e Regina, meus irmãos Patrícia e Carlos e
meu sobrinho Leo. Fontes e exemplos de coragem, força ética e esperança. Pelo
amor, apoio e cuidado constantes. Por todo investimento feito. Por me fazerem
acreditar e lutar pelos meus e nossos sonhos.
Aos meus “dindos” Eurico e Nita, pelo amor e por lutarem com as armas que
têm.
Ao Nuclíssimo, Suzana, Ana Lúcia, Gabriela, Adriana, Carla e Fernando,
pelas inquietações e resistências. Pelas longas discussões apaixonantes, e pelas
comemorações.
À Gabriela Gramkow, a Gabi, por novamente me ajudar a realizar meus
sonhos profissionais e por me apoiar desde os primeiros passos desta conquista.
À Ana Lúcia Prado Catão, pelo apoio e ajuda essenciais nos momentos finais.
À Carla Carolina Anunciação, a Carlota, por dividirmos as angústias de um
campo novo e as dificuldades de nossas pesquisas. E por tentarmos construir um
lar, mesmo longe de nossas famílias.
À Elisabeth Maria Sene-Costa, a Beth, por me buscar de onde eu me perdia.
Por sua doçura, dedicação, amor e cuidado. A Zizi, Miguel e Márcia, companheiros
desta jornada.
À Sociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP) por me proporcionar
esse Encontro com o Psicodrama. Em especial à Marília Marino, Luis Russo, Sérgio
Perazzo e Gisela Castanho pelos momentos de crescimento e deste “vir a ser
psicodramatista”. E, ainda, à Maria Célia Malaquias, Izilda, Camila, Mary e Janaína
pelo acolhimento e carinho.
À turma Mexpresso 2222, pela possibilidade de pegar o bonde na hora certa,
e ter vivido momentos tão espetaculares e transformadores com vocês. Por me
acolherem nesta terra e nos desafios que ela me trazia. Por me ajudarem a construir
e a me sentir em casa.
Às amigas Carla, Bianca, Fabi, Tamara, Camila e Carol, e aos amigos Kléber,
Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa vida
paulistana.
Às amigas Renata, Paty, Marcela, Manu e Dani, e os amigos André, Marcelo,
Vini e Pedro pelo incentivo à busca pelos meus sonhos e por me deixarem partir
nesta busca.
Ao Núcleo de Estudos e Atenção à Exclusão Social (NATEX) por me
proporcionar os primeiros espaços de prática e de discussões críticas.
Aos jovens que encontrei por estes caminhos. Kléber, Carlos Eduardo, Pedro
Henrique, Rafael, Paulo Henrique, Edenezer, Paulo, Galeno e tantos outros que
resistiram como foi possível e para além de seus limites.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
pelo investimento nesta pesquisa.
RESUMO
SCHMIDT, Ana Carolina. Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar
psicodramático sobre o lugar do jovem nos círculos restaurativos.
As práticas restaurativas são consideradas, em relação ao Sistema de Justiça
Tradicional, uma nova alternativa para a resolução de conflitos e a restauração das
relações que foram afetadas. Nesse trabalho investigamos estas práticas no
contexto comunitário do município de São Caetano do Sul, SP, e, em específico, o
lugar atribuído ao jovem e à sua participação no contexto do círculo restaurativo.
O aporte teórico e metodológico é o Psicodrama, com foco na Teoria de
Papéis e nos conceitos de Papel Social e Personagem.
Os dados desta pesquisa referem-se ao acompanhamento dos círculos
restaurativos e realização de entrevistas com facilitadores, que conduzem os
círculos restaurativos. Todas as situações de conflito que acompanhamos ocorreram
no contexto escolar.
Os dados foram tratados por meio de cenas, ou passagens de cenas,
ocorridas no próprio contexto do círculo restaurativo ou nos contextos onde
ocorreram e se desdobraram os conflitos. Os papéis sociais que identificamos no
contexto do conflito são vinculados a Personagens estereotipados, que são
atribuídos aos jovens. Nos círculos restaurativos, esses Personagens se evidenciam
e dificultam ou impossibilitam o diálogo entre as partes do conflito. Dessa forma, a
participação dos jovens nos círculos restaurativos é comprometida e, na maioria dos
casos, compromete, também, a mudança da relação que está em conflito e a
vivência de Personagens menos conservados.
Palavras-chave: Justiça Restaurativa, Psicodrama, Adolescente, Conflito na
escola.
ABSTRACT
SCHMIDT, Ana Carolina. Restorative Practices Community: a psychodramatic
look about the place of youth in restorative circles.
The restorative practices are considered a new alternative for resolving
conflicts and restoring the affected relationships in conflict, in opposition to the
traditional justice system. In this research we have considered (acrescentei e mudei
o tempo verbal) these practices inside the community of the city of São Caetano do
Sul SP. Particularly, ponder about the place given to the youth and their
participation in the restorative circle.
The theoretical framework and the methodology is psychodrama, with a
specific focus on the Theory of Roles and in the concepts of Social Role and
Character.
The research data refers to the monitoring of restorative circles and the
interviews with facilitators, who lead the restorative circles. All the conflicts, that we
accompanied, occurred in the school context.
The data was processed through scenes or pieces of scenes, which took
place in the actual context of the restorative circle or in the context in which the
conflicts occurred. The social roles that are involved in the conflict are bound to
stereotyped characters, which are attributed to young people. In the restorative
circles these characters become evident and they make the dialogue between the
parties involved difficult or impossible. Therefore, youth participation in restorative
circles is compromised. Moreover, in most cases, it is impossible to change the
relationships that is in conflict and experience a character less conserved.
Keywords: Restorative Justice, Psychodrama, Adolescent, Conflict in school.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................................12
1. Da chegada ao tema .......................................................................................12
2. Dos caminhos e dos procedimentos de pesquisa............................................16
3. Das partes que compõem este trabalho ..........................................................20
CAPÍTULO 1 – DAS PRÁTICAS RESTAURATIVAS ................................................22
I - Justiça Restaurativa: aspectos filosóficos, jurídicos e históricos.....................22
1. No mundo...................................................................................................29
2. No Brasil.....................................................................................................30
3. Em São Caetano do Sul.............................................................................31
II - As práticas e metodologias da Justiça Restaurativa.......................................33
1. Diferentes práticas e metodologias ............................................................33
2. No contexto de São Caetano do Sul...........................................................35
3. No contexto comunitário: o modelo Zwelethemba......................................35
4. A formação dos facilitadores em São Caetano do Sul................................42
III - Justiça Restaurativa e Juventude..................................................................44
CAPÍTULO 2 DAS FERRAMENTAS CONCEITUAIS PARA PENSAR AS
PRÁTICAS RESTAURATIVAS: UM OLHAR DESDE O PSICODRAMA...................47
I - Vida e obra de J. L. Moreno ...........................................................................47
II - A teoria socionômica: psicodrama..................................................................49
III - Dimensões individual e relacional: A microssociologia moreniana................51
1. Tele.............................................................................................................55
2. Encontro .....................................................................................................56
IV - Teoria de papéis e o conceito de Papel ........................................................58
V - Personagem .................................................................................................61
VI - Do Psicodrama no contexto de pesquisa......................................................66
CAPÍTULO 3 OLHANDO PARA OS CÍRCULOS RESTAURATIVOS
COMUNITÁRIOS: OS CONFLITOS NO CONTEXTO ESCOLAR.............................72
I - Dos procedimentos de análise.........................................................................72
II - Dos círculos que acompanhamos...................................................................74
1. Estrutura de desenvolvimento do círculo....................................................75
2. Sinopses dos círculos.................................................................................76
2.1. Círculo 1.............................................................................................77
2.2. Círculo 2.............................................................................................78
2.3. Círculo 3.............................................................................................79
2.4. Círculo 4.............................................................................................80
III - Dos conflitos e seus encaminhamentos.........................................................81
1. Dos tipos de conflito ...................................................................................81
1.1. Conflito aluno-aluno ...........................................................................82
1.2. Conflito professor-aluno.....................................................................82
2. Rotas institucionais do conflito ...................................................................85
3. Das ausências ...........................................................................................88
3.1. Das partes do conflito.........................................................................88
3.2. Da escola ...........................................................................................90
3.3. Dos facilitadores.................................................................................92
IV - Alguns aspectos problemáticos do manejo do círculo...................................94
1. Buscar a verdade ou construir responsabilização? ...................................94
2. A complexidade do Papel de facilitador......................................................97
CAPÍTULO 4 – QUANTO AO LUGAR DO JOVEM NOS CÍRCULOS.......................99
I - Dos modos pelos quais os jovens são referidos..............................................99
1. O Personagem aluno “problema” ...............................................................99
2. O Personagem jovem “violento” ...............................................................102
3. O Personagem “homossexual”.................................................................105
II - De quando o jovem tem voz e de como ele se apresenta............................106
III - Do lugar do jovem no acordo ......................................................................113
1. O acordo forçado......................................................................................113
2. Acordo entre adolescentes.......................................................................118
3. Acordo encobridor ....................................................................................118
4. “Fazer-se de tonto”...................................................................................119
IV - De como o jovem é afetado pela atribuição de Personagens .....................119
V - Do lugar da família .......................................................................................121
1. Família como causa do conflito ................................................................121
2. Pai silenciado, passivo .............................................................................122
3. Família em defesa do jovem.....................................................................123
4. A família surpreendida e a escola que não fala........................................125
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................127
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................133
ANEXO....................................................................................................................137
12
INTRODUÇÃO
1. Da chegada ao tema
As interfaces da Psicologia com a Justiça constituíram-se em interesse desde
a graduação em Psicologia na Universidade Católica de Brasília – UCB, em especial
o campo dos adolescentes autores de ato infracional. Ainda na graduação tive a
oportunidade de realizar estágios e a monografia de final de curso nessas
interfaces.
1
Nos estágios trabalhava com grupos de jovens numa abordagem
psicodramática.
Depois de formada, trabalhei em uma instituição de semiliberdade em
Brasília, sempre com a escuta e o olhar psicodramático. No decurso do processo de
graduação e nos primeiros passos como profissional, fui voluntária no Núcleo de
Estudos e Atenção à Exclusão Social (NATEX), uma Organização Não-
governamental (ONG) que desenvolvia projetos sociais junto à população em
situação de rua e às instituições que aplicavam as medidas cio-educativas aos
jovens autores de atos infracionais, no contexto do Distrito Federal. O NATEX
proporcionava um espaço de intervenção psicossocial e política com forte
embasamento psicodramático e, além disso, um espaço de discussão crítica em
relação às políticas públicas aplicadas a essas populações.
A partir desses trabalhos que estava realizando, surge a necessidade de
aprofundar meus estudos, tanto da teoria e prática psicodramática, quanto das
discussões críticas a respeito dos modelos institucionais de atendimento aos jovens
autores de atos infracionais. Visto que, dentro da unidade de semiliberdade, senti-
me violentada como profissional, desacreditada por ser “jovem demais”, “cheia de
ideologias”, que “não sabe do que esta falando”, “não sabe como o mundo é na
realidade”, “não o que esses adolescentes fizeram” e forçada a ver fotos em
processos de homicídios para “encarar a realidade dos fatos”. Sem muitas
alternativas e possibilidades de mudanças, a não ser enquadrar-me na forma
institucionalizada de trabalhar, no modo “sempre foi assim”. A valorização
profissional era dada pelos juízes, promotores e defensores da Vara da Infância e
Juventude, pois levavam em consideração os relatórios feitos, valendo-se de seus
argumentos técnicos para dar seu parecer quanto à permanência ou não do
1
Schmidt, A.C. Construindo mudanças: adolescentes em conflito com a lei e redes sociais. Trabalho final de
curso, UCB, 2004.
13
adolescente encarcerado, fato que incomodava profundamente os funcionários não-
técnicos da unidade. Negando-me a assumir estes Personagens profissionais, da
psicóloga que “faz relatórios adequados”, para a unidade ou para o sistema judicial,
e da psicóloga que “acalma jovens que se rebelam”, peço demissão!
Vir para São Paulo torna-se um desejo profissional e pessoal, que em poucos
meses se concretiza. Paralelamente a esta pesquisa, realizo a especialização em
Psicodrama
2
e desta forma, as bases filosóficas, teóricas e metodológicas desse
campo são atravessamentos ainda mais marcados e constantes nos estudos e
escutas que realizo. Ainda relevante, considera-se que o referencial teórico-
metodológico do Psicodrama potencializa a discussão das interações indivíduo-
grupo-sociedade nas práticas restaurativas, que são interesses desta dissertação.
A Justiça Restaurativa atravessa minha prática profissional quando, ainda
trabalhando na semiliberdade em Brasília, os profissionais de diversas unidades de
atendimento aos jovens infratores são “convidados” a assistir uma palestra sobre o
tema. Apresentam-nos, então, as práticas de Justiça Restaurativa que estavam se
iniciando no Núcleo Bandeirante DF. O encantamento imediato com as
possibilidades dessa prática, desse novo paradigma, infelizmente, se esvai no
cotidiano do trabalho.
Voltemos aos aspectos relativamente mais formais desta introdução, para
apresentar a Justiça Restaurativa, a pesquisa do Núcleo de Estudos Violências:
Sujeito e Política (NEVIS) e esta dissertação em particular.
As práticas restaurativas m sido difundidas em diversos países desde a
década de 70 do culo XX. A Nova Zelândia, pioneira na implantação de práticas
restaurativas, inspiradas em costumes dos aborígenes Maoris, reformulou, em 1995,
seu Sistema de Justiça da infância e juventude e teve grande sucesso na prevenção
e reincidência de atos infracionais. Atualmente, projetos similares estão sendo
desenvolvidos no Canadá, Austrália, África do Sul, Reino Unido e Argentina. Em
2002 o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas recomendou a aplicação
da Justiça Restaurativa aos Estados-Parte das Nações Unidas.
No ano de 2005, no Brasil, foram implementados três projetos-piloto de
Justiça Restaurativa: nas cidades de o Caetano do Sul (SP), Núcleo Bandeirante
2
Convênio entre a Sociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP) e a Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP).
14
(DF) e Porto Alegre (RS)
3
. Desde então, outras cidades estão aderindo a essas
práticas restaurativas, buscando, com esse meio alternativo às formas tradicionais
de justiça, dita Retributiva, uma mudança paradigmática na forma de resolução de
conflitos.
Essas práticas restaurativas ocorrem nos chamados círculos restaurativos
4
,
que, reunindo voluntariamente as partes
5
de um conflito, familiares, pessoas da
comunidade afetadas pelo conflito e facilitadores
6
, buscam, através do diálogo, a
pacificação e, na medida do possível, a restauração das relações afetadas pelo
conflito.
7
O círculo restaurativo visa ser um espaço de poder compartilhado, sem
julgamentos ou culpabilização, em que os participantes são estimulados a discutir,
de forma organizada, o que motivou o conflito e suas conseqüências. O objetivo é
conseguir superar o conflito e chegar, de forma cooperativa e autônoma, a um
acordo e a um plano de ação, que deve ser factível, preciso e válido para todos os
envolvidos.
Por meio do protagonismo de cada um dos envolvidos, buscam a reparação
das conseqüências de um conflito ou infração, humanizando e trazendo para o
campo da afetividade as relações atingidas, de forma a gerar maior coesão social na
sua resolução e maior compromisso na responsabilização do infrator e no seu
projeto de ajustar socialmente seus comportamentos futuros.
Parte-se do pressuposto de que o conflito, crime ou o ato infracional causa
danos às pessoas e aos relacionamentos. Entende-se que não a vítima e o
transgressor são afetados, mas também toda comunidade sofre as conseqüências
do ato danoso. Desta forma, o se trata mais apenas de concentrar-se na
determinação da culpa e na punição aos transgressores, como ocorre no modelo
retributivo, com fraco potencial de transformação positiva do agressor, mas de
permitir a compreensão das razões de seus atos e das conseqüências deles
advindas.
8
3
Com apoio do Ministério da Justiça, através da Secretaria da Reforma do Judiciário, em parceria com o PNUD
– Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
4
Alguns autores também os denominam como círculos de paz ou câmaras restaurativas, fato que causa algumas
confusões, pois se referem a metodologias diferentes, como veremos no item II deste capítulo.
5
Chamados de vítima e agressor no modelo de Justiça Tradicional, Retributiva.
6
Inicialmente o facilitador era chamado de conciliador, porém outros termos também são utilizados, como
mediador e pacificador. Melo (2008) define o facilitador como alguém que conhece as dinâmicas dos processos
restaurativos.
7
Abordaremos mais profundamente a Justiça Restaurativa, suas práticas, contextos e metodologias no Capítulo 1
deste trabalho.
8
Melo, 2004, 2005; Konzen, 2007 apud NEVIS, 2008.
15
Especificamente no município de São Caetano do Sul, contexto desta
pesquisa, sob a coordenação do Juiz titular daquela comarca, a capacitação dos
facilitadores inicia-se com professores e técnicos do Fórum, que passam a aplicar as
práticas restaurativas nas escolas e no Fórum, com a metodologia da Comunicação
Não-Violenta. Posteriormente, as práticas restaurativas são expandidas também
para a comunidade e a capacitação dos facilitadores passa a incluir uma nova
técnica, baseada no modelo de Zwelethemba
9
, da África do Sul. Ampliam-se, assim,
os contextos de atuação, o número de facilitadores capacitados e a diversidade de
conflitos e situações em que podem atuar. Posteriormente, o projeto é ampliado para
capacitar os chamados derivadores
10
, atores sociais que, por sua função,
constantemente recebem encaminhamentos de casos de conflito e/ou de atos
infracionais. Esses têm a função de acolher e encaminhar os casos às diferentes
alternativas de resolução de conflito, Restaurativas ou Retributivas, informando
sobre as conseqüências de cada opção e respeitando a voluntariedade da
participação dos envolvidos.
11
A pesquisa que resulta nesta dissertação é parte integrante da pesquisa
“Práticas de Justiça Restaurativa: subjetividade e legalidade jurídica”, desenvolvida
pelo núcleo de pesquisa Violências: sujeito e política (NEVIS) do Programa de
Estudos Pós-graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUCSP), em parceria com a 1ª. Vara Criminal e de Crimes contra a
Criança e o Adolescente de São Caetano do Sul (SCS), que desenvolve o Projeto de
Prevenção e Resolução de Conflitos nesse município.
O referido projeto do NEVIS pretende investigar, a pedido da equipe de
práticas restaurativas de SCS, as articulações justiça e produção de subjetividade
em novas práticas de justiça os círculos restaurativos, no âmbito do trabalho junto
ao adolescente em conflito com a lei, visando contribuir para a implantação e
qualificação dessas práticas no Sistema de Justiça e de Socioeducação juvenil.
12
9
Este modelo enfatiza menos as necessidades e responsabilidades individuais, de cada parte do conflito,
mudando o foco de atuação para a mudança comunitária e democracia deliberativa (Melo, 2008).
10
Juiz, promotores de justiça, diretores de escolas, assistentes sociais, policiais, agentes comunitários,
conselheiros tutelares, advogados e grupos de suporte a minorias e de atendimento a drogadição e alcoolismo.
11
Melo, 2008.
12
NEVIS, 2008.
16
No decurso desta pesquisa, dois outros projetos a ela vinculados estavam
trabalhando os sentidos de justiça para os jovens participantes dos círculos
restaurativos e a construção do laço social no círculo restaurativo.
13
A presente pesquisa propõe-se a problematizar, a partir do referencial do
Psicodrama, as práticas restaurativas no contexto comunitário de São Caetano do
Sul, com foco nos modos pelos quais se desenha o lugar do jovem nos círculos
restaurativos e nos conflitos ali trabalhados.
2. Dos caminhos e dos procedimentos de pesquisa
Neste item temos por objetivo apresentar o desenho desta pesquisa,
explicitando seus objetivos, os procedimentos adotados, além das mudanças de
trajetória que se mostraram importantes.
Quando formulamos o objetivo desta pesquisa, entendíamos que, ainda que a
metodologia restaurativa propusesse uma maior horizontalidade das relações nos
círculos, a relação adulto-jovem merecia ser analisada, dada a persistente relação
de dominação de que essa se reveste. Ou seja, entendíamos, a partir das
formulações de Rosemberg (1985), que podemos falar de uma relação de idade, tal
como a relação de classe, enquanto relação de dominação.
No entanto, precisávamos conhecer inicialmente a metodologia utilizada na
facilitação dos círculos. Assim, começamos tomando conhecimento do material
disponibilizado, principalmente o relatório das práticas restaurativas de São Caetano
do Sul
14
e o vídeo que acompanha este relatório, que apresenta e avalia a prática
naquele município. Foram-nos disponibilizados, também, pela equipe de capacitação
dos facilitadores, outros dois vídeos que se referem às práticas do Rio Grande do
Sul e Heliópolis-Guarulhos.
Nesse momento inicial, ainda visando uma primeira aproximação das práticas
restaurativas, mantivemos um olhar ampliado para as demandas que emergissem.
Assim, chamaram-nos a atenção, também, o papel e o lugar institucional dos
facilitadores, conforme explicitaremos mais à frente.
Iniciamos, então, o contato com a equipe de capacitação e com os
facilitadores de um bairro em São Caetano do Sul, o que nos permitiu acompanhar e
13
Anunciação, C.C.P. Figuras de justiça: trajetórias de jovens em práticas de Justiça Restaurativa e Lainetti, M.
Justiça Restaurativa e Transformação do Laço Social: adolescência e autoria do ato infracional. Ambas
realizaram entrevistas com os jovens participantes dos círculos restaurativos em São Caetano do Sul.
14
Melo, 2008.
17
observar círculos restaurativos realizados naquela comunidade. Considerávamos
fundamental, antes de iniciarmos uma abordagem direta com os facilitadores,
compreendermos e nos apropriarmos da metodologia de trabalho nos círculos
restaurativos e do cotidiano da prática dos facilitadores. A possibilidade de
observação dos círculos restaurativos mostrou-se fundamental para tal objetivo.
Inicialmente realizamos uma conversa com a coordenadora das práticas
restaurativas e com uma facilitadora que atua naquela comunidade, buscando
compreender o campo em que estávamos nos inserindo. Nesse momento, o
cotidiano dos facilitadores, suas demandas e suas dificuldades na realização do seu
trabalho ganharam a cena. Já no primeiro contato afirmaram que os facilitadores que
continuavam atuando sentiam-se sozinhos e sobrecarregados, pois muitas das
pessoas que tinham sido capacitadas nas técnicas restaurativas estavam afastadas
da prática na comunidade, além do que, o afastamento da equipe responsável pelo
Projeto JR deixava-os inseguros, pois afirmavam ser essa uma prática de muita
responsabilidade.
Tínhamos desenhado uma proposta de pesquisa junto aos facilitadores com
base nas técnicas psicodramáticas e pretendíamos realizar, inicialmente, três
encontros com o grupo de facilitadores, prevendo a possibilidade de ampliação do
número de encontros. O foco era a participação dos jovens nos círculos
restaurativos e a relação de idade, considerando-se as práticas cotidianas dos
facilitadores nos círculos restaurativos.
Nessa primeira conversa, a proposta do grupo psicodramático
15
com os
facilitadores foi apresentada e bem aceita. Cogitamos a possibilidade de um trabalho
conjunto com os facilitadores da escola, entretanto, essas facilitadoras preferiram,
inicialmente, um trabalho apenas com os facilitadores da comunidade, incluindo-se
os facilitadores que estavam afastados da prática, buscando o fortalecimento do
grupo. Concordaram em, posteriormente, incluirmos facilitadores das escolas.
A partir das conversas que se sucederam com as facilitadoras e da escuta de
suas demandas, começou a se configurar a necessidade de olharmos para o grupo
de facilitadores, visto que, para além do objetivo desta pesquisa, evidenciaram-se as
necessidades, por parte do grupo de facilitadores, de supervisão e de participação
15
Não apresentamos neste texto o desenho do grupo em detalhes, na medida em que não foi realizado, mas
pretende-se dar seqüência ao procedimento, num desdobramento desta pesquisa, para a monografia final de
formação em Psicodrama.
18
de atores externos, pois sentiam necessidade de compartilhar sua prática e avaliá-la
criticamente. Na fala das facilitadoras, ficou evidente que o afastamento de vários
membros e a falta de acompanhamento e supervisão de suas práticas, tornava o
grupo fragilizado e reduzia sua capacidade de atuação.
Concomitantemente, iniciamos a observação dos círculos restaurativos com o
objetivo de nos aproximarmos de suas práticas e formas de condução do trabalho,
observando inclusive a circulação da fala, principalmente no tocante à participação
dos jovens. Inicialmente, propusemo-nos a uma observação buscando interferir o
mínimo possível no desenrolar do círculo, mesmo sabendo que nossa presença
configurava um fator interveniente. Assim mesmo, o mero fato de observar em
silêncio o círculo restaurativo configurava uma situação de tensão e de
estranhamento para os participantes e facilitadores, visto que todos eram
convocados a manifestar-se em relação à situação de conflito de que se tratava.
ao final da observação do primeiro círculo, foi solicitado pelos facilitadores que a
pesquisadora participasse dos mesmos, pois consideravam importante que todos os
presentes buscassem participar na resolução do conflito.
No transcorrer das observações dos círculos restaurativos, paralelamente,
buscamos construir a possibilidade de realização do grupo com todos os
facilitadores daquela comunidade, buscando, com o apoio dos facilitadores
que estavam atuando, a participação dos que se tinham afastado. Fizemos uma
primeira tentativa de realização do grupo em um período em que não haveria
círculos restaurativos, escolhendo dias e horários em que a maioria teria
disponibilidade. Entretanto, apesar desse período ter sido apontado como o mais
adequado para a realização dos encontros com o grupo, não foi possível realizá-los,
tendo em vista a afirmação dos facilitadores de que não teriam disponibilidade de
tempo, pois resolveriam problemas pessoais nesses dias sem círculos restaurativos.
Resolvemos, assim, seguir por outro caminho, realizando inicialmente
entrevistas psicodramáticas individuais
16
com os facilitadores, visto que tínhamos um
prazo para a realização deste grupo que se tornou inviável dentro dos limites
temporais desta pesquisa. Porém, ainda haveria a possibilidade de realizarmos os
encontros com o grupo de facilitadores mais ao fim da pesquisa.
16
Houve a preparação de roteiros para sua realização. Entretanto, não serão detalhados nesta dissertação, visto
que não forneceram o material central aqui analisado, como veremos a seguir. Esse material será trabalhado em
pesquisa subseqüente.
19
Fizemos um convite aos facilitadores por e-mail, apresentando a proposta da
pesquisa e convidando-os a participar de entrevistas individuais e anunciando a
possibilidade de realização de alguns encontros em grupo. No entanto, apenas uma
facilitadora respondeu ao e-mail, disponibilizando-se a participar da entrevista. Com
ela, fizemos vários contatos telefônicos, chegando a marcar algumas vezes a
entrevista, a qual foi reiteradamente desmarcada por motivos pessoais da
facilitadora.
Passamos a uma nova estratégia e por telefone buscamos entrar em contato
com os facilitadores. Contudo, alguns dados estavam incompletos e alguns telefones
não existiam mais, as ligações não se completavam.
17
Desses contatos, obtivemos êxito em apenas um contato e a entrevista foi
realizada. Esse facilitador disponibilizou-se e achou interessante a realização dos
encontros em grupo, buscando um retorno dos facilitadores que se afastaram da
prática. Após diversos contatos telefônicos, conseguimos realizar uma segunda
entrevista, desta vez com a outra facilitadora que se havia disponibilizado.
Paralelamente às entrevistas, continuávamos acompanhando os círculos
restaurativos realizados na comunidade. Em um desses círculos restaurativos
(Círculo 4),
18
fui solicitada a participar mais ativamente, pois a facilitadora estava
sozinha e o círculo incluía grande número de participantes. Essas demandas de
participação dirigidas à pesquisadora repetiram-se em outros momentos e serão
analisadas no Capítulo 3.
Após acompanharmos a realização de quatro círculos e realizar duas
entrevistas, dois caminhos de pesquisa se evidenciaram: continuar as entrevistas
com os facilitadores, com o risco de seguir enfrentando as mesmas resistências que
se evidenciaram no primeiro momento ou voltar o olhar para a riqueza de dados
fornecidos pelos círculos restaurativos acompanhados. Assim, decidimos trabalhar
fundamentalmente com o material oriundo das observações dos círculos,
considerando, então, como participantes desta pesquisa todos os presentes nos
círculos, voltando nosso olhar fundamentalmente para o lugar e o papel atribuídos
ao jovem e à sua participação nesse contexto restaurativo.
Sintetizando, os dados desta pesquisa abrangem:
17
Fato que também dificultou as pesquisas anteriores desenvolvidas pelo NEVIS, porém em relação à
localização dos adolescentes que seriam entrevistados.
18
Ver análises no subitem “Ausência dos facilitadores”, no Capítulo 3.
20
1- Observação de quatro círculos restaurativos conduzidos por facilitadores
comunitários no contexto de um bairro de São Caetano do Sul. Não houve
um critério de escolha dos círculos restaurativos que acompanhamos,
visto que a pesquisadora compareceu a todos os plantões restaurativos
19
aos quais foi convidada. Não tínhamos acesso a nenhuma informação
referente a esses encontros antes de sua realização, apenas nos era
informado que haveria plantão restaurativo.
2- Realização de entrevistas com dois facilitadores.
3- Escrita de diário de campo no transcorrer de toda pesquisa.
Cabe esclarecer, ainda, que, desde o início, este projeto foi submetido ao
Comitê de Ética. Os participantes (incluindo-se as partes em conflito, seus
acompanhantes e os facilitadores) autorizaram verbalmente a gravação do círculo
restaurativo e foram esclarecidos quantos aos seus direitos. Os facilitadores
comunitários de Justiça Restaurativa assinaram o termo de consentimento livre e
esclarecido.
20
3. Das partes que compõem esse trabalho
No primeiro capítulo desta dissertação apresentamos os aspectos filosóficos,
jurídicos e históricos da Justiça Restaurativa, nos contextos mundial, brasileiro e de
São Caetano do Sul; abordamos as práticas e metodologias da Justiça Restaurativa,
destacando as diferentes metodologias (em especial o modelo Zwelethemba, que é
o mais utilizado no contexto comunitário de São Caetano do Sul); apresentamos
rapidamente o processo de capacitação dos facilitadores de São Caetano do Sul; e
problematizamos a aplicação da Justiça Restaurativa no contexto da juventude.
No segundo capítulo, apresentamos a filosofia, teoria e metodologia
psicodramática como ferramenta conceitual e metodológica para olhar e
problematizar os círculos restaurativos.
No terceiro e quarto capítulos, apresentamos os dados da pesquisa e
desenvolvemos a análise dos mesmos, articulando-os com o aparato conceitual e
metodológico do psicodrama.
19
O Plantão Restaurativo refere-se a dois dias da semana disponibilizados pelos facilitadores comunitários nos
quais recebem pessoas da comunidade que as procuram espontaneamente ou pessoas encaminhadas diretamente
pelo Fórum. Pode ocorrer apenas o pré-círculo (caso uma das partes não compareça), o círculo restaurativo
propriamente dito (quando a presença das duas partes do conflito e um acordo) ou o pós-círculo (com a
presença de uma das partes ou ambas e o cumprimento do acordo é confirmado).
20
Termos de Consentimento em anexo.
21
Por fim, tecemos nossas considerações finais desta pesquisa e destacamos
aspectos que ganhariam em ser mais especificamente tratados em novas pesquisas.
22
CAPÍTULO 1 – DAS PRÁTICAS RESTAURATIVAS
Iniciaremos, neste capítulo, pela apresentação de alguns aspectos históricos,
jurídicos e filosóficos das práticas de Justiça Restaurativa, considerando como
surgem no contexto mundial, para depois caracterizá-las no Brasil, no estado de São
Paulo e, em específico, no município de São Caetano do Sul.
Na seqüência, ainda com o propósito de caracterizar essas práticas no
contexto de São Caetano do Sul, apresentamos as diferentes metodologias e o
processo de formação dos facilitadores comunitários.
Finalmente, problematizaremos a Justiça Restaurativa no contexto da
juventude e da Justiça Juvenil.
I - Justiça Restaurativa: aspectos filosóficos, jurídicos e históricos
A Justiça Restaurativa surge, no âmbito do sistema judicial, como um novo
paradigma, um novo olhar para os conflitos, atos infracionais e crimes, uma ruptura
com a tradicional forma do “fazer justiça”, a chamada Justiça Retributiva. Diversos
autores
21
destacam essa oposição entre o Sistema de Justiça Retributivo e o
Restaurativo, destacando as diferenças entre os dois modelos, no que se refere aos
seus aspectos filosóficos e de procedimento jurídico, principalmente aspectos como:
a relação com o Estado, o entendimento de crime ou infração, o papel da tima, do
ofensor e dos envolvidos, dentre outros.
Por exemplo, Pinto faz um quadro comparativo entre a Justiça Retributiva e a
Justiça Restaurativa, destacando as diferenças de valores, procedimentos,
resultados e efeitos para a vítima e para o infrator
22
. Afirma que a mudança de
paradigma da Justiça Restaurativa afeta a todos os profissionais envolvidos nessas
práticas, indicando que precisam mudar o olhar sobre sua atuação, pois estarão
“trabalhando com uma concepção ampliada de justiça, que não é mais estritamente
jurídica, mas interdisciplinar.”
23
Benedetti afirma que muitos autores, por uma mobilização militante ou por
descrever experiências pontuais, acabam por fazer esta confrontação direta entre a
Justiça Retributiva e Restaurativa, por meio de uma comparação negativa, o que
21
Melo (2005), Konsen (2007), Pinto (2005 e 2006), Scuro (2008).
22
Estas diferenças serão destacadas no transcorrer do capítulo.
23
Pinto, p.3, 2006.
23
limita o desenvolvimento conceitual e a fundamentação teórica da Justiça
Restaurativa.
24
Para além dessas diferenças, alguns autores
25
afirmam que, no que
se refere à prática do Sistema Judicial, a Justiça Restaurativa é complementar à
Retributiva, e não substitutiva.
Segundo Pinto
26
, a expressão Justiça Restaurativa é atribuída a Albert
Eglash, que em 1977 afirmou que havia três possibilidades de respostas a um crime,
a Retributiva (punição), a Distributiva (reeducação) e a Restaurativa (reparação).
Além disso, considera que apesar de a expressão “Justiça Restaurativa” prevalecer
na língua portuguesa, a tradução mais adequada de Restorative Justice seria
“Justiça Reparadora”.
Analisando os aspectos contemporâneos do Sistema Judiciário, Neto destaca
que a Justiça Restaurativa conforma-se à reforma do Judiciário
27
e é uma alternativa
para solucionar a paralisia desse Poder Público. Refere-se a três interseções da
relação da Justiça Restaurativa com o Sistema Judiciário: facilitando o acesso de
pessoas desprivilegiadas aos serviços de Justiça principalmente em casos de
família, infância e juventude e crimes de menor potencial ofensivo; reafirmando o
poder estatal e desfazendo o desencanto das pessoas comuns com o Judiciário; e
identificando momentos durante o processo legal em que a Justiça Restaurativa
pode ser inserida.
28
Neto afirma que os Juizados Especiais, também conhecidos como de
“pequenas causas”, ao trocarem penas por outras medidas têm passado, de forma
geral, a imagem de impunidade à população. Aponta que as práticas de Justiça
Restaurativa seriam uma alternativa para mudar essa percepção, restaurando a
imagem da Justiça no Brasil, ao mesmo tempo em que a Justiça Restaurativa se
beneficiaria por estar sob “supervisão competente” do Poder Judiciário.
29
Outro aspecto constantemente destacado pelos autores
30
e usado como
argumento para enfatizar as vantagens da Justiça Restaurativa é o de que as
práticas de Justiça Restaurativa e Retributiva devem ser conjugadas, possibilitando
que crimes ou atos infracionais considerados como de menor gravidade e que
24
Benedetti (2009).
25
Melo (2005) e Konsen (2007), por exemplo.
26
Idem.
27
Aprofundaremos esta discussão no item 2 deste capítulo, referente à implementação da Justiça Restaurativa no
Brasil.
28
Neto (2004).
29
Idem.
30
Melo (2005) e Konsen (2007).
24
envolvem conflitos em relações interpessoais prolongadas no tempo possam ser
atendidos em seus contextos de origem, comunitários e escolares. Essas medidas
visam não sobrecarregar o Sistema Judicial com esses processos e, amesmo,
possibilitar que esses conflitos, que muitas vezes seriam encaminhados para o
Sistema Judicial, sejam resolvidos nos seus contextos de origem.
Neste novo paradigma, o crime ou infração é compreendido de forma diversa
do que na Justiça Tradicional. O crime é entendido como uma “violação nas relações
entre o infrator, a vítima e a comunidade.”.
31
Jaccould sustenta que: “O crime não é mais concebido como uma violação
contra o Estado ou como uma transgressão a uma norma jurídica, mas como um
evento causador de prejuízos e conseqüências.”.
32
Em consonância com essas afirmações, Konsen acrescenta a relevância do
dano causado:
Delito, não mais como uma violação contra o Estado ou como uma
transgressão à norma jurídica, mas como um evento causador de prejuízos e
conseqüências, dimensões que não se anulam, mas que se somam no
propósito de reparar os danos vividos, na abrangência das “dimensões
simbólicas, psicológicas e materiais”.
33
No modelo de Justiça Restaurativa entende-se que as relações entre as
pessoas envolvidas são afetadas pelo crime, ato infracional ou conflito, pois os
envolvidos não conseguem perceber o outro e colocar-se no papel do outro. Konzen
observa que a Justiça Restaurativa possibilita a “emergência do relacional, locus de
instituição de uma ética em que o outro conta como absolutamente outro.”.
34
Para Konzen, a responsabilidade, as dores e as culpas intrínsecas a um
conflito são das partes envolvidas, entretanto, no modelo de Justiça Tradicional, o
Estado retira delas a possibilidade de buscar uma solução. Considera esse fato
como outra forma de violência.
35
De forma geral, e ainda sem adentrar nas controvérsias da literatura de
Justiça Restaurativa, podemos afirmar que o modelo busca resolver um conflito/ato
31
Pinto, p. 5, 2006.
32
Jaccould, M, p.7, 2005, In: Achutti, p.72, 2006.
33
Konzen, p. 15, 2008.
34
Idem.
35
O autor aborda o conceito de alteridade e seu paradigma filosófico (Levinas) para desenvolver uma visão
crítica no que se refere à Justiça Retributiva. Considera que o autor de ato infracional deve ser considerado como
um “ente” e, dessa forma, não ser reduzido a um conceito ou a uma definição. Evitando, assim, totalizações em
que o adolescente “é” o infrator, o outro, passivo, uma categoria, onde se dá “a lógica do separar para apurar
melhor, para estudar melhor, para compreender melhor, para julgar melhor [...] para tratar melhor, para educar
melhor.” (Konzen, p. 16, 2008).
25
infracional/crime através da participação voluntária das pessoas envolvidas e da
construção de uma decisão consensual, com o objetivo de reparar o dano causado,
restaurar as relações e a harmonia, com um olhar para o futuro dessas relações e da
comunidade. Um novo paradigma, em que o conflito/ato infracional/crime é visto
como um ato que afeta não apenas as partes diretamente envolvidas (vítima e
ofensor), mas, também, suas famílias e a comunidade.
Apesar desses valores serem comuns aos pesquisadores e atores da Justiça
Restaurativa, diversos são os seus olhares e outros os embasamentos filosóficos.
Além disso, os variados campos de aplicação da Justiça Restaurativa e diferenças
culturais e sócio-econômicas entre os países e mesmo, no Brasil, os vários projetos-
piloto também influenciam e possibilitam que diversas metodologias sejam
utilizadas.
36
De forma geral, pode-se afirmar que a Justiça Restaurativa é passível de
aplicação em dois contextos:
- no contexto judiciário: uma valorização, entre alguns autores,
37
da
participação da vítima durante o processo, em um papel central, destacando a
importância da reparação do dano causado pelo ofensor, que deve arrepender-se
verdadeiramente de seu ato, sendo capaz de perceber o prejuízo que causou à
vítima e responsabilizar-se por ele. Entre esses autores, defende-se que a
participação da vítima possibilita um enfrentamento do crime ao qual foi submetida e
pode evitar traumas decorrentes do mesmo.
- no contexto comunitário e educacional: percebe-se que o foco é a
restauração da relação que foi afetada, buscando cessar o conflito, a pacificação e a
construção de relações mais harmoniosas entre os envolvidos. Tem um caráter
preventivo, visando evitar que os conflitos se agravem e cheguem ao contexto
judiciário. Busca empoderar a comunidade e a escola para a resolução dos seus
conflitos e tem por objetivo um esvaziamento do Sistema Judicial, visto que muitos
casos encaminhados aos Fóruns poderiam ser resolvidos por estes meios nos
próprios contextos de origem.
38
36
As diferentes metodologias serão tratadas na parte II deste capítulo.
37
Pesquisadores da abordagem da Vitimologia, campo multidisciplinar que inicialmente estava vinculado a
Criminologia, e que busca, atualmente, constituir interfaces com as áreas de Direitos Humanos e Justiça
Restaurativa, como, por exemplo, Walgrave, que esteve presente no 1º Seminário Internacional de Justiça
Restaurativa, organizado pela ABMP e Uniabc.
38
Melo (2008).
26
Durante o Seminário Internacional de Justiça Restaurativa, realizado no
Brasil
39
, esses diferentes contextos ficam explícitos nas falas dos diversos
palestrantes
40
, principalmente na posição de Walgrave, que afirma que não podemos
nomear como Justiça Restaurativa as intervenções que estão sendo realizadas nos
contextos comunitários e escolares, visto que o termo define as práticas do
Judiciário, e não se trata de um conflito, mas de um crime (ou ato infracional) que
deve ser incluído nos trâmites legais. Afirma, ainda, ser necessário definir
claramente os conceitos da Justiça Restaurativa para que confusões ou usos
inadequados não sejam feitos.
41
Pinto também nos aponta que, devido ao movimento emergente da Justiça
Restaurativa, “o conceito de Justiça Restaurativa ainda é algo inconcluso”.
42
Vejamos como, no Brasil, demais autores têm se posicionado. Para
apresentar sua concepção de Justiça Restaurativa, Melo reporta-se aos escritos de
Van Ness e Strong que afirmam que a Justiça Restaurativa é composta de três eixos
gerais: reparação de danos; envolvimento dos afetados e de seus suportes; e
transformação do papel governamental e da comunidade em mudanças sistêmicas.
43
Melo afirma ainda que:
Seus valores regentes são empoderamento, participação, autonomia,
respeito, busca de sentido e de pertencimento na responsabilização pelos
danos causados, mas também a satisfação das necessidades surgidas da
situação de conflito.
44
Um dos aspectos importantes, destacados por alguns autores
45
, é que a
Justiça Restaurativa tem o foco no futuro e na restauração das relações
interpessoais, principalmente quando os conflitos ocorrem entre pessoas que
convivem, seja na comunidade, na família ou em instituições, como escola, igreja,
associações.
Outro aspecto destacado está vinculado à importância da responsabilização
do causador do dano e da participação das vítimas dos crimes ou atos infracionais.
De acordo com Pinto, as pessoas, ao se inserirem nas práticas de Justiça
39
1º. Seminário Internacional de Justiça Restaurativa. Realizado entre 30 de setembro e 2 de outubro de 2009
organizado pela ABMP e Uniabc.
40
Lode Walgrave, Pedro Scuro, Leonardo Sica, Egberto Penido e Afonso Konsen.
41
Walgrave, 2009.
42
Pinto, p.21, 2005.
43
Van Ness e Strong, 1997 In: Melo (2006).
44
Melo, p. 65, 2006.
45
Por exemplo, Melo (2006 e 2008), Froestad e Shearing (2005) e Konsen (2008).
27
Restaurativa participam coletiva e ativamente da construção de soluções, buscando
a superação dos traumas e a reparação das perdas causadas pelo crime.
46
A Justiça Restaurativa enfatiza a importância de se elevar o papel das vítimas
e membros da comunidade ao mesmo tempo em que os ofensores (réus,
acusados, indiciados ou autores do fato) são efetivamente responsabilizados
perante as pessoas que foram vitimizadas, restaurando as perdas materiais e
morais das vítimas e providenciando uma gama de oportunidades para
diálogo, negociação e resolução de questões.
47
Aprofundando este aspecto da responsabilização e restituição, Achutti afirma
que os objetivos da Justiça Restaurativa seriam “restituir à vítima a segurança, o
auto-respeito, a dignidade e, mais importante, o senso de controle”, e atribuir “[...]
aos infratores a responsabilidade por seu crime e respectivas conseqüências;
restaurar o sentimento de que eles podem corrigir aquilo que fizeram e restaurar a
crença de que o processo e seus resultados foram leais e justos”.
48
Em relação ao papel do Juiz na Justiça Restaurativa, comparando-o ao
modelo tradicional de Justiça, Konzen estabelece que o Juiz deveria abrir mão de
seu poder real e simbólico e dar ao adolescente, antes de ser interrogado, a
possibilidade da palavra genuína. Isto não significa deslegitimar o Estado, nem
sugerir um modelo abolicionista ou de desinstitucionalização, pois observa que “há
necessidade de instituições que arbitrem e uma autoridade política que a sustente”.
49
Apresentaremos, na seqüência, alguns aspectos referentes às práticas da
Justiça Restaurativa, visando um primeiro delineamento do funcionamento deste
modelo.
50
Esse novo paradigma que apresentamos até então, o da Justiça Restaurativa,
é concretizado, principalmente, nos chamados círculos restaurativos. Melo afirma
que o círculo restaurativo divide-se em três etapas que visam restaurar, reparar e
reintegrar as relações: compreensão mútua, reconhecimento das responsabilidades
e acordo. Os resultados dos círculos podem ser: pedido de desculpas, reparação,
restituição e prestação de serviços comunitários.
51
Este mesmo autor afirma que o ambiente onde ocorrem os círculos deve ser
informal, estruturado, tranqüilo e seguro. Deve ser observado se há tensão ou
46
Pinto (2006)
47
Azevedo, p.6, 2005 In: Achutti, p.100, 2006.
48
Morris, p.3, 2005 In: Achutti, p.71, 2006.
49
Levinas, p. 248, 2005 In: Konzen, p. 19, 2008.
50
Aprofundaremos os aspectos teóricos referentes às práticas e metodologias restaurativas na parte II desse
capítulo.
51
Melo (2008).
28
ameaça, buscando evitar a re-vitimização do ofendido ou a vitimização do infrator.
Define o círculo restaurativo como:
Um espaço onde as partes envolvidas em um conflito, apoiadas por alguém
com conhecimento das dinâmicas próprias ao processo (um Conciliador
52
), se
encontram com a intenção de se expressarem e de se ouvirem uns aos
outros, de reconhecerem suas escolhas e responsabilidades e chegarem a
um acordo concreto e relevante em relação ao ato transgressor, que possa
cuidar de todos os envolvidos.
53
O processo restaurativo é estritamente voluntário para todos os envolvidos e
não pode ser imposto, direta ou indiretamente. Alguns autores
54
afirmam a
relevância da participação da vítima, sendo ela o centro de todo o processo
restaurativo, no qual o principal objetivo é a reparação do dano material ou
psicológico causado. O infrator tem, então, a possibilidade de responsabilizar-se
pelo ato e de desculpar-se com a vítima. Ambos devem participar ativamente,
interagir entre si e ter suas necessidades atendidas.
Um aspecto considerado importante durante o processo restaurativo refere-se
à expressão dos sentimentos e expectativas das partes. As pessoas devem ser
francas e claras em relação a isso. A expressão dos sentimentos será usada na
construção do acordo restaurativo, que contempla a restituição e a restauração das
relações.
55
Segundo Pinto, as práticas restaurativas podem ocorrer nos moldes da
mediação vítima-infrator, reuniões coletivas ou círculos decisórios. Para ele, todos
esses modelos buscam “o diálogo sobre as origens e conseqüências do conflito
criminal e construção de um acordo e um plano restaurativo.”.
56
Entretanto, na
reunião coletiva e no círculo decisório as ações são mais coletivas e comunitárias do
que na mediação vítima-infrator, que é mais individualizada.
Pinto afirma que um dos aspectos mais importantes é que os núcleos de
Justiça Restaurativa trabalhem em rede, encaminhando tanto vítima quanto infrator
para os serviços públicos ou privados necessários para o cumprimento do acordo.
57
52
Chamado também de facilitador ou pacificador.
53
Melo, p. 13, 2008.
54
Pinto, (2006) e Walgrave (2009).
55
Sócrates (2006) In: Pinto (2006) e Rolim (2004) In: Achutti, 2006.
56
Pinto, p. 4, 2006.
57
Idem.
29
1. No mundo
Diversos autores
58
afirmam que a Justiça Restaurativa tem suas bases no
método de resolução de conflitos de tribos indígenas, as quais, quando havia um
conflito interno, buscavam resolvê-lo em uma roda de discussão, com a participação
de todos. Porém, quando se tratava de um conflito com outra tribo, a solução era a
guerra, a vingança, pois não era mais um conflito entre iguais, mas com o diferente,
o externo à comunidade.
Melo afirma que, na década de 70 do século passado, no contexto judiciário
de diversos países, resgatam-se essas formas de resolução de conflitos, pois, nos
moldes dos processos judiciais tradicionais, era pequena a participação das
vítimas.
59
Afirma ainda que, em 1989, com base no modo aborígene (tribo maoris) de
resolver conflitos, a Nova Zelândia tornou-se pioneira em adotar a Justiça
Restaurativa nos tribunais e escolas como forma de resolução de conflitos e como
principal modo de atuação frente aos atos infracionais de adolescentes.
Segundo afirma Pinto, seguiram-se outros países, dentre eles a Colômbia,
que também já incluiu a prática na legislação.
60
Mas é em 2002 que o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas
recomenda a aplicação da Justiça Restaurativa nos Estados-Parte das Nações
Unidas.
61
58
Melo (2005 e 2008), Konsen (2007), Pinto (2005 e 2006), Scuro (2008).
59
Melo 2008.
60
Pinto, (2006).
61
Programa de Justiça Restaurativa significa qualquer programa que use processos restaurativos e objetive
atingir resultados restaurativos.
Processo restaurativo significa qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer
outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime, participam ativamente da resolução das
questões oriundas do crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. Os processos restaurativos podem incluir
a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária (conferencing) e círculos decisórios (sentencing
circles).
Resultado restaurativo significa um acordo construído no processo restaurativo. Resultados restaurativos
incluem respostas e programas tais como reparação, restituição e serviço comunitário, objetivando atender as
necessidades individuais e coletivas e definir as responsabilidades das partes, bem assim, promover a
reintegração da vítima e do ofensor.
Partes significa a vítima, o ofensor e quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um
crime que podem estar envolvidos em um processo restaurativo.
Facilitador significa uma pessoa cujo papel é facilitar, de maneira justa e imparcial, a participação das pessoas
afetadas e envolvidas num processo restaurativo. (In: Pinto, p. 6, 2006).
30
2. No Brasil
Desde o final do século XX, tem-se discutido e implementado no Brasil
reformas no Sistema Judiciário, visto que as formas até então vigentes de “fazer
justiça” não têm surtido o efeito desejado no que se refere ao controle do aumento
da criminalidade e violência, principalmente no que se refere às políticas voltadas à
infância e juventude.
62
No Brasil, as primeiras experiências com práticas restaurativas iniciam-se
em 1998, no Projeto Jundiaí, que se estabelece em escolas públicas. Pesquisadores
e funcionários das escolas envolvidas no projeto delineavam e executavam as
práticas, visando à prevenção de desordem, violência e criminalidade no contexto
escolar. Buscavam, através da transformação institucional, possibilitar o
protagonismo e a co-responsabilidade dos atores, capacitando-os a transformar a
realidade, por meio de um sistema diferenciado para a resolução de conflitos e
problemas disciplinares.
63
A partir desse projeto e das recomendações da ONU, alguns setores do
Sistema Judicial, principalmente os vinculados à Reforma do Judiciário, passam a
replicar e ampliar essas práticas para as políticas blicas destinadas aos jovens
infratores. As práticas restaurativas passam a ser articuladas e supervisionadas pelo
Sistema Judiciário e passam a ter papel estratégico, visando resguardar a ordem
social e viabilizar mudanças, tornando o processo legal mais apropriado às atuais
demandas individuais e sociais.
64
No ano de 2004, através do Ministério da Justiça e da Secretaria de Reforma
do Judiciário, formalizam-se no contexto judiciário brasileiro três projetos-piloto de
Justiça Restaurativa que começam a ser implementados: no Núcleo Bandeirante
DF, em Porto Alegre – RS e em São Caetano do Sul – SP.
65
Apesar de não haver, na legislação brasileira, aparato legal que estabeleça o
uso da Justiça Restaurativa,
66
a legislação atual permite o encaminhamento de
casos para a Justiça Restaurativa. Atualmente, conforme nos descreve Pinto, após o
parecer do Ministério Público, o caso é encaminhado para os núcleos de Justiça
62
Melo (2008).
63
Scuro (2008).
64
Idem.
65
Desses projetos, os de São Caetano do Sul e de Porto Alegre abordam a atos infracionais praticados por
adolescentes e o do Núcleo Bandeirante, crimes praticados por adultos. Neste último, os casos indicados para a
Justiça Restaurativa envolvem crimes de menor potencial ofensivo e contravenções penais.
66
Existe um projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados, PL 7006/2006, propondo alterações visando
regular o uso da Justiça Restaurativa.
31
Restaurativa para avaliação multidisciplinar e só então, verificada a viabilidade,
inicia-se o processo restaurativo. Concluído o processo, o caso retorna ao Ministério
Público com relatório do acordo firmado entre as partes e a Promotoria inclui as
cláusulas para homologação do Juiz. Passa-se então à execução e, posteriormente,
à avaliação do cumprimento do acordo.
67
Em relação ao uso da Justiça Restaurativa no Brasil, Pinto afirma ainda ser
importante a construção de metodologias adequadas à nossa realidade, afirmando
que “nossa criminalidade retrata mais uma reação social, inclusive organizada, a
uma ordem injusta, cruel, violenta e, por que não, também criminosa.”.
68
Fazendo referência, ainda, a esses aspectos da realidade brasileira, Pinto
afirma que o empoderamento comunitário, proposto pela Justiça Restaurativa, pode
ser um risco, pois a desjudicialização do processo pode significar “um abandono das
pessoas, principalmente pobres, à própria sorte na resolução de conflitos de
natureza penal, sob pretexto de estarem “empoderados” para operarem micro-
sistemas de justiça criminal da ‘comunidade’.”.
69
3. Em São Caetano do Sul
70
O processo de implementação da Justiça Restaurativa em São Caetano do
Sul abrange, de forma geral, dois momentos. Inicialmente, o projeto-piloto “Justiça e
Educação: parceria para a cidadania” contempla os contextos judiciário e escolar.
Posteriormente, um novo projeto é implementado, “Restaurando justiça na família e
na vizinhança: Justiça Restaurativa e comunitária no bairro de Nova Gerty”,
ampliando o projeto inicial para o contexto comunitário e incluindo-se novas
metodologias.
71
Os objetivos centrais que motivaram a implantação do primeiro projeto foram:
evitar o encaminhamento de conflitos escolares ao sistema judicial, buscando
resolvê-los no próprio contexto escolar; resolver conflitos caracterizados como atos
infracionais com uma nova forma de práticas judiciárias, a Justiça Restaurativa; e o
fortalecimento da rede de atendimento a crianças e adolescentes no município.
72
67
Pinto (2005).
68
Pinto, p. 17, 2006.
69
Idem.
70
Os dados contidos neste tópico referem-se ao relatório da implantação da Justiça Restaurativa no município de
São Caetano do Sul, produzido por Melo (2008).
71
As técnicas e metodologias utilizadas em São Caetano do Sul serão expostas na parte II deste capítulo.
72
Melo (2008).
32
No primeiro momento, três escolas foram inseridas no projeto e alguns
professores foram capacitados nas técnicas de Comunicação Não-Violenta. Visando
formar uma rede de encaminhamento com base na lógica restaurativa, outros
profissionais das escolas envolvidas foram convidados a participar, formando-se
assim lideranças educacionais.
Outro espaço onde a Justiça Restaurativa foi disseminada desde o começo foi
o Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, envolvendo além da
educação, os contextos da saúde, assistência social e segurança. O Conselho
Tutelar também foi um espaço de realização de círculos restaurativos desde o
começo do projeto, especialmente quando envolvia situações de risco e
vulnerabilidade de crianças e adolescentes.
Inicialmente, como não havia círculos restaurativos na comunidade, nos
casos em que não havia uma relação contínua entre os envolvidos no conflito, os
círculos eram realizados no Fórum.
Em 2006 ocorre uma expansão do projeto-piloto, com a inclusão de todas as
escolas estaduais de São Caetano do Sul.
73
Após avaliação do trabalho realizado a o momento, destaca-se a
necessidade de um trabalho no contexto comunitário. Capacitam-se então
facilitadores para intervir em conflitos familiares e de vizinhança. Um novo projeto-
piloto foi estabelecido “Restaurando justiça na família e na vizinhança: Justiça
Restaurativa e comunitária no bairro de Nova Gerty”.
74
No novo contexto de intervenção, torna-se necessário o uso de uma nova
metodologia, pois o foco principal passa das necessidades e responsabilidades
individuais para a mudança comunitária. O novo modelo é trazido da África do Sul, o
modelo Zwelethemba e, inicialmente, 20 facilitadores são capacitados. Possui um
código de atuação (base ética e legal)
75
que serve de parâmetro aos facilitadores e
aos participantes.
Em 2007 o financiamento foi interrompido, sendo necessário rever o projeto e
traçar caminhos para efetivar sua implantação, buscando diversificar as técnicas
utilizadas e fazer uma maior articulação entre os diferentes contextos (Escola,
73
Destaca-se que, também em 2006 a Justiça Restaurativa foi expandida para outras cidades do estado de São
Paulo, como as cidades de Guarulhos e São Paulo (bairro de Heliópolis). E, em 2008, a cidade de Campinas
também iniciou a implantação do projeto.
74
Essa comunidade foi escolhida para a implementação do novo projeto, pois é considerada um dos bairros com
maior índice de violência do município de São Caetano do Sul.
75
Nomeado Código de Boas Práticas que será exposto a seguir.
33
Justiça e Comunidade). Com novo financiamento surge um novo projeto, mais
amplo, e que abrange os dois projetos-piloto anteriores: “Justiça Restaurativa e
Comunitária em São Caetano do Sul: parceria pela cidadania.”
II - As práticas e metodologias da Justiça Restaurativa
A partir deste momento, abordaremos os aspectos metodológicos das
práticas de Justiça Restaurativa, considerando-se as diferentes técnicas utilizadas e
os diferentes contextos de atuação dos facilitadores, atribuindo destaque para as
técnicas utilizadas no município de São Caetano do Sul e, em específico, em seu
contexto comunitário. Na seqüência, apontamos o processo de formação dos
facilitadores, com suas etapas metodológicas.
1. Diferentes práticas e metodologias
As práticas restaurativas têm um vasto campo de atuação: contextos jurídico,
educacional ou comunitário. Diversas demandas são por elas atendidas: crimes
graves que são encaminhados ao Sistema Judiciário; conflitos do cotidiano que
ocorrem no contexto comunitário ou escolar e que, muitas vezes, também são
encaminhados ao Sistema Judiciário; e conflitos que são tratados no próprio
contexto em que ocorrem, seja escolar ou comunitário.
As práticas restaurativas o bastante diversas no que se refere aos modelos
e técnicas restaurativas utilizadas nos diferentes países e contextos. Desde práticas
mais voltadas para conflitos particulares, com menor participação comunitária com
foco na relação entre as partes envolvidas no conflito e nas conseqüências do
conflito para elas; até práticas mais abrangentes, com maior participação
comunitária, nas quais o foco do processo restaurativo vai além do conflito concreto
entre as partes, pois inclui a comunidade como um todo e busca as origens
comunitárias dos conflitos, identificando os mais recorrentes e construindo uma
cultura de diálogo e de pacificação.
76
Além disso, essas diferentes práticas restaurativas, apesar de todas
buscarem o diálogo entre as partes e chegarem a um acordo justo para todos, têm
por referências diferentes bases filosóficas. Algumas têm o foco no atendimento às
necessidades da vítima e à reparação do dano material e/ou moral causado, por
76
Froestad e Shearing (2005) e Neto (2004).
34
parte do ofensor; nessas costuma-se buscar que o ofensor explique-se e demonstre
arrependimento. Outras têm o foco na relação de forma mais ampla: são
consideradas as necessidades de todos participantes e, principalmente, dos
diretamente envolvidos. Outras, ainda mais amplas, têm o foco na pacificação da
comunidade e na construção de uma cultura de paz.
Froestad e Shearing diferenciam as práticas restaurativas em mediação
vítima-infrator, reconciliação vítima-infrator, reunião restaurativa e círculo de emissão
de sentença.
77
Neto diferencia as práticas restaurativas apenas entre mediação
vítima-infrator e câmaras restaurativas.
78
Devido à diversidade de práticas vinculadas ao termo “Justiça Restaurativa”,
Froestad e Shearing afirmam ser importante definir os valores fundamentais da
Justiça Restaurativa, que o para estes autores, essencialmente, a não-dominação
e o diálogo respeitoso.
79
Apesar disso, podemos perceber que Neto, ao detalhar as diferentes práticas,
ressalta a importância do arrependimento e mudança de comportamento do
infrator.
80
Além disso, percebemos que alguns autores que têm por base a
Vitimologia, apesar de valorizarem o espaço de diálogo e a interação pró-ativa das
partes, destacam a importância dos efeitos normativos dos grupos na
responsabilização do infrator.
Neto destaca que essas práticas são meios de “conferir às famílias e às
comunidades autoridade suficiente para decidir o que fazer com seus jovens
infratores, contando para isso com a participação das vítimas e de grupos de
apoio.”.
81
Destaca, ainda, que o práticas indicadas para casos de crianças e
adolescentes com problemas de conduta, em que se visa autorizar a família,
colocando-a em uma posição de poder e de condição de intervenção junto aos
filhos, assim como as autoridades e os profissionais.
Contrapondo-se a esses aspectos, Froestad e Shearing ressaltam que os
elementos relevantes para avaliar a capacidade restaurativa das práticas são: o grau
de inclusão e engajamento dos interessados e a pluralidade de vozes; a ampliação
77
Froestad e Shearing (2005).
78
Neto (2004).
79
Froestad e Shearing (2005).
80
Neto (2004)
81
Neto, p.12, 2004
35
do olhar sobre o conflito, tratando de questões referentes à desigualdade social; e a
redistribuição do poder e da tomada de decisão, do Estado para a comunidade.
82
Concluindo, Froestad e Shearing destacam que a Justiça Restaurativa precisa
de novas estratégias: focar a atenção na paz futura, mais do que na restauração ou
re-integração; receber indicações de casos não somente pelo sistema criminal;
estabelecer uma maior vinculação entre o atendimento de conflitos individuais e de
problemas genéricos; possibilitar às comunidades as responsabilidades, os recursos
e o controle das práticas restaurativas; e estabelecer regras e mecanismos de
avaliação que garantam o respeito aos valores centrais da Justiça Restaurativa.
Para estes autores, o modelo Zwelethemba de resolução de conflitos, que
abordaremos a seguir, está de acordo com estes princípios e valores da Justiça
Restaurativa.
83
2. No contexto de São Caetano do Sul
Inicialmente, a técnica utilizada nos contextos jurídico e escolar em São
Caetano do Sul teve por base a metodologia da Comunicação Não-Violenta.
Entretanto, os profissionais responsáveis pelo projeto-piloto perceberam a
necessidade de ampliar as práticas para o contexto comunitário e de incluir outras
metodologias, pois a experiência lhes mostrou que diversos aspectos precisariam
ser considerados (contexto, tipo de conflito, relações entre os envolvidos, etc.) para
que o círculo restaurativo cumprisse sua função de restaurar as relações e de
construção da paz. Os facilitadores foram, então, capacitados no modelo
Zwelethemba sul-africano e começaram a utilizá-lo, principalmente no contexto
comunitário.
84
3. No contexto comunitário: o modelo Zwelethemba
Para Melo, os conflitos familiares e de vizinhança têm um aspecto cultural e
estrutural que se destaca e, por isso, as soluções dos conflitos devem ser
82
Froestad e Shearing (2005) utilizam-se de argumentos de McCold (2000), Digman (2005), Van Ness (2002) e
Mika e Zehr (2003).
83
Froestad e Shearing (2005).
84
No caso do conflito ocorrer no contexto escolar, mas o círculo restaurativo ser realizado pelos facilitadores
comunitários deve-se avaliar a necessidade da presença de algum representante da escola, além dos pais
(juridicamente essencial nos casos que envolvem menores de 18 anos).
36
construídas no contexto comunitário, com um olhar sistêmico e de co-
responsabilidade.
85
As práticas restaurativas no contexto comunitário buscam incentivar o diálogo
em âmbito mais amplo: são processos de construção mais coletiva e de rede, não
são individuais ou da relação específica de conflito. Devem incluir horizontalidade e
equilíbrio das relações de poder
86
e buscar a expressão das singularidades de
diferentes grupos, em especial os que são considerados minoritários ou que
historicamente são excluídos socialmente, problematizando, assim, os valores das
comunidades.
87
As práticas restaurativas no contexto comunitário visam construir mudanças
na dinâmica social da comunidade através do empoderamento da mesma. Para isso,
é essencial que seus membros se percebam capazes e com habilidades para lidar
com os conflitos surgidos, acionando os recursos governamentais e não-
governamentais no auxílio da resolução dos conflitos e na construção de vínculos e
redes importantes.
88
Para Melo, a articulação entre a comunidade e essas instituições, unindo
forças, tem se mostrado mais eficaz no que se refere à segurança pública e
promoção de justiça social e cidadania. Desta forma, os espaços comunitários
podem ser mais adequados para a promoção da segurança pública, evitando-se
processos de exclusão social.
89
Afirma ainda que, para que essas perspectivas sejam fomentadas na
comunidade, é importante que as instituições comunitárias e organizações não-
governamentais proporcionem um movimento de passagem do olhar individual para
o coletivo, reforçando, com isso, a identidade individual e comunitária; bem como
possibilitem a autonomia e gerem liberdade e responsabilidade da comunidade,
85
Melo (2008).
86
Com o modelo Zwelethemba, insere-se o facilitador secretário nas práticas de Justiça Restaurativa. Jovens e
alunos recém capacitados podem ser inseridos como facilitadores nos círculos restaurativos, sendo possível uma
horizontalização das relações de poder com os adultos, potencializando-se o protagonismo juvenil.
87
Conforme destaca Melo (2006), visando estes objetivos, o projeto de São Caetano do Sul busca inserir nas
práticas restaurativas comunitárias, quando necessário, grupos organizados de mulheres, idosos, negros e
homossexuais, sendo que esta participação depende da autorização das partes e sempre em número menor que os
demais participantes, visando manter um ambiente de caráter não profissional e não militante. Quando se
considera necessário, pode haver também a participação de profissionais estatais, visando garantir a segurança e
não re-vitimização dos participantes dos círculos restaurativos.
88
Nessa perspectiva, as instituições governamentais e não-governamentais m a função, tanto de assegurar a
participação comunitária, como de fomentá-la, por meio de suporte a esses projetos.
89
Melo, 2008.
37
tornando-a relativamente independente dos serviços públicos para a resolução de
seus conflitos.
90
Desta forma, o empoderamento comunitário precisa ser construído articulado
à Justiça, Segurança, Sistema de Saúde e de Desenvolvimento Social, e por meio
do esforço conjunto de suas instituições governamentais, sempre com os olhares
voltados para a perspectiva comunitária. Melo afirma que se pode perceber esse
movimento nas práticas da Justiça Restaurativa, da Polícia da Comunidade
91
e do
Programa de Saúde da Família,
92
e, para isso, buscam-se mudanças no foco de
atuação dessas instituições.
93
Nesta nova perspectiva de ação, as instituições governamentais e seus
agentes têm um papel fundamental para o encaminhamento dos casos, buscando a
resolução dos conflitos no contexto comunitário e soluções não punitivas para o
conflito.
A Justiça Restaurativa volta-se para a comunidade e potencializa nela a
capacidade de resolução de seus conflitos, não havendo necessidade de um Juiz
que determine o certo, o bom, nem como aquela situação será resolvida. O papel do
Juiz passa a ser o de retornar à comunidade os seus conflitos, encaminhando-os
para círculos comunitários de Justiça Restaurativa. Entretanto, caso as pessoas
envolvidas mesmo assim julguem necessário, elas podem recorrer às instâncias
judiciais.
94
Percebe-se que grande parte dos casos atendidos pela Justiça Restaurativa é
oriunda do próprio contexto escolar. Melo afirma que cerca de 25% dos conflitos
escolares estão sendo criminalizados no estado de São Paulo. Afirma que a Justiça
Restaurativa é uma quebra do controle estatal sobre os conflitos, mas questiona a
que ponto esse controle não está sendo exercido nas escolas e comunidades.
90
Idem.
91
A Polícia Comunitária volta-se para a comunidade como um todo e para seus conflitos, não apenas atuando em
casos de criminalidade, como também em uma intervenção mais abrangentes e preventivos. Deve buscar o bem-
estar de seus cidadãos e estar estreitamente vinculada à comunidade, num trabalho em conjunto, como cidadãos
que fazem parte dela. O projeto de Justiça Restaurativa possibilita aos agentes de polícia que, mesmo nos casos
em que os envolvidos decidem por não encaminhar a denúncia, o agente possa fazer o encaminhamento a Justiça
Restaurativa.
92
Melo (2006) afirma, ainda, que o Programa de Saúde da Família atende, por meio de equipes
multiprofissionais a um número determinado de famílias de uma mesma região. Seu desafio é integrar o
atendimento e conhecimento da comunidade ao sistema mais amplo de saúde. Seus agentes têm uma relação de
confiança e proximidade com as famílias e a comunidade e, devido a esse vínculo, identificam situações de
violência, porém a denúncia pode ocasionar a descontinuidade do seu atendimento. Donde, a importância de sua
vinculação a um projeto de Justiça Restaurativa, com foco na responsabilização e não na punição.
93
Melo (2006).
94
Idem.
38
Afirma que as escolas trabalham, de forma geral, na lógica da racionalização e
mudança de atitudes dos alunos, deixando de valorizar os afetos e relações
envolvidas, que são pilares da Justiça Restaurativa.
95
Pelo fato do modelo Zwelethemba
96
ser o modelo de resolução de conflitos
mais utilizado no contexto comunitário de São Caetano do Sul, vamos detalhá-lo
mais especificamente, destacando seus valores e aspectos metodológicos.
97
Este modelo busca a Construção da Paz
98
partindo-se do conflito inter-
pessoal. Alguns autores também o chamam de Pacificação, visto que têm por
objetivo comum: “reduzir a probabilidade de que o conflito específico continue.”.
99
São formados Comitês de Paz por pacificadores locais que realizam Reuniões
de Pacificação onde comparecem pessoas da comunidade. Os Comitês têm o
objetivo de devolver o conflito a seus donos legítimos, pois consideram que as
pessoas da própria comunidade m mais conhecimento e capacidade para
contribuir instrumentalmente para a solução e diminuição dos conflitos.
100
O conflito é entendido de forma mais ampla, no contexto comunitário, e
considera-se que os papéis de vítima e infrator
101
podem ser alternados,
principalmente quando se trata de uma relação familiar ou de vizinhança, em que a
historicidade do conflito deve ser levada em consideração.
Desta forma, a Pacificação reporta à origem dos conflitos, sua história, a série
de eventos que contribuíram para seu desenvolvimento, mas sem julgar,
envergonhar ou culpar qualquer uma das partes. Reporta-se ao passado, ao
histórico do conflito, porém privilegia o olhar para o futuro, para a resolução dos
95
No 1º. Seminário Internacional de Justiça Restaurativa, 2009.
96
Modelo que surge em 1997, com o início da democratização da África do Sul, na comunidade de
Zwelethemba, próxima a Cidade do Cabo. O termo significa, no dialeto Xhosa, um lugar de esperança.
Inicialmente surge como uma forma de controle e como política de segurança pública, buscando a participação
da população no controle de manifestações públicas durante o período eleitoral. Em relação às mudanças que
aconteciam no período, a população não estava satisfeita nem com o que ocorria nos “fóruns populares”, formas
disfarçadas de controle do Estado, nem com a lentidão dessas mudanças. Vários experimentos para a resolução
de conflitos passaram a ocorrer até que no ano 2000 um novo modelo toma forma e é aplicado em cerca de vinte
comunidades sul-africanas.
97
Com base, principalmente, nos textos de Melo (2008) e Froestad e Shearing (2005). Entretanto, é importante
destacar que este modelo foi adaptado para São Caetano do Sul.
98
Ao contrário do processo de Pacificação, a Construção da Paz “conduz freqüentemente para longe das
questões da segurança para preocupações de desenvolvimento mais amplas, como saúde pública, higiene,
alimentação, abrigo, coleta de lixo, educação e oportunidades recreativas. Assim, a construção da paz amplia o
escopo para a realização de valores restaurativos para além da segurança.” (Froestad e Shearing, p. 112, 2005).
99
Froestad e Shearing, p. 94, 2005.
100
La Prairie, p. 80, 1995 In: Froestad e Shearing, p. 93, 2005
101
Entende-se que as pessoas que estão diretamente envolvidas no conflito não são vítima e infrator, pois estes
termos trazem em si um julgamento. Utiliza-se o termo “partes” ou “participantes”. Uso que também fazemos
nesta dissertação.
39
conflitos e a construção de uma Cultura de Paz. Para este processo, considera-se a
importância de se trabalhar com o tempo, pois entende-se que soluções rápidas
podem ser superficiais.
Durante o processo de Pacificação, busca-se construir um consenso quanto
ao acordo e todos os participantes são convocados a expressar-se. Apesar de
ocorrer, a expressão emocional não é o foco do encontro, a meta é instrumental, de
construção de passos e estabelecimento de combinados que contribuam para um
futuro “melhor”. O objetivo principal não é a restauração das relações, mas sim a
pacificação dos conflitos.
102
O processo de chegar a um acordo é considerado muito importante, mas é o
seu cumprimento que diz da Pacificação que ocorre, sua meta principal. Percebe-se,
portanto, a relevância da construção do acordo pelas partes envolvidas, aumentando
a probabilidade de honrá-lo. Ao final da Reunião, pergunta-se a todos os
participantes se acreditam que o acordo poderá ser cumprido e como podem
comprometer-se com isso, sendo que se tornam responsáveis por acompanhar o
cumprimento ou não do acordo.
Nas Reuniões de Pacificação, a participação de todos é voluntária: tanto das
pessoas diretamente envolvidas no conflito, dos participantes convidados da
comunidade, como dos pacificadores.
Por ser relevante o conhecimento dos conflitos locais, os pacificadores são
pessoas da própria comunidade que recebem uma capacitação rápida da
metodologia de condução do encontro e de resolução de conflitos. O objetivo é que
o conhecimento de cada um seja valorizado e que possam adaptar a metodologia ao
contexto e à comunidade em que estão inseridos. Froestad e Shearing consideram
que este é um papel que deve ser aprendido na prática, o que garante a adequação
da metodologia à especificidade de cada comunidade, sua cultura, estilo de vida e
aos seus conflitos. Afirmam ainda que a religião é um elemento de conhecimento
compartilhado que, em algumas Reuniões, pode ser utilizado no processo de
Pacificação.
103
102
No contexto sul-africano, o termo “restauração”, assim como o termo “reintegração”, não são adequados aos
processos de Pacificação, visto que esta não é a meta central, porém podem ocorrer como resultado das Reuniões
de Pacificação. Froestad e Shearing (2005) sustentam que em alguns casos, a melhor opção de Pacificação pode
ser o afastamento ou evitar o encontro entre as partes do conflito, e todos que estão na Reunião buscam assegurar
que isso aconteça.
103
Froestad e Shearing, 2005.
40
Referendados nesses aspectos, identificam algumas características
importantes para desempenhar o papel de pacificador, como confiança, habilidade
com a fala e compreensão intuitiva e implícita de vida.
Apesar da valorização do aprendizado no exercício cotidiano do papel de
pacificador, é relevante destacar que, com a prática, os pacificadores podem
desenvolver habilidades de condução das reuniões de forma a se tornarem
“especialistas locais”. Essa situação pode promover uma tensão em relação aos
valores centrais do modelo, visto que pode causar uma hierarquia comunitária no
que se refere ao conhecimento e capacidade de facilitar as reuniões de pacificação,
indo contra a idéia inicial de democracia deliberativa do modelo. Por esse motivo,
Froestad e Shearing advertem sobre a necessidade de monitoramento para que o
afastamento dos valores centrais não ocorra. A capacidade e conhecimento dos
pacificadores não podem se tornar mais importantes do que as vozes e experiências
dos participantes da reunião, visto que eles o as pessoas cruciais do processo de
pacificação.
No que se refere ao desempenho do papel de pacificador, algumas
particularidades podem ocorrer. Assim mesmo, para que estas práticas não se
afastem por demais dos aspectos filosóficos e metodológicos, a pacificação é
regulada pelo Código de Boas Práticas
104
que as guiam e limitam, desenhando aos
pacificadores um repertório de perguntas a seguir para possibilitar a mobilização e
participação de todos os envolvidos no conflito. O Código estabelece os passos,
organiza e estrutura as ações dos pacificadores.
A respeito do Código de Boas Práticas, Froestad e Shearing (2005) apontam
que: “há vantagens e desvantagens a se considerar o quanto as regras devem ser
explícitas. [...] por serem embutidas, permite-se que as regras tornem-se parte da
‘arquitetura’ e, desta forma, úteis para criar um ‘hábito que estrutura o
comportamento.”
105
Outra questão relevante destacada por Froestad e Shearing diz respeito ao
pagamento dos pacificadores, visto que este elemento estabeleceria uma distinção e
uma classe de “peritos” na comunidade. Visando a não segmentação nos grupos
104
Este Código foi adaptado para o contexto da prática restaurativa em São Caetano do Sul e esta adaptação será
exposta mais adiante.
105
Froestad e Shearing, p. 104, 2005.
41
uma estratégia foi traçada.
106
Cada Reunião tem uma ajuda de custo e parte desse
recurso é dividido entre os Pacificadores e outra parte é destinada a projetos locais
de desenvolvimento, que ajudam no desenvolvimento a comunidade e na criação de
empregos. Para os pacificadores, o pagamento não chega a ser uma renda que
sustente uma família, mas é uma boa contribuição para seus gastos, sendo visto
como um reconhecimento de sua capacidade e da importância de seu trabalho.
No Brasil, o modelo de Zwelethemba está sendo utilizado no contexto
comunitário do município de São Caetano do Sul SP, sendo que o modelo original
foi adaptado ao contexto dessa comunidade e aos seus conflitos específicos.
Nesse projeto-piloto, o embasamento teórico do construcionismo social
107
do
modelo de Zwetethemba tem destaque, buscando potencializar a autonomia do
sujeito e empoderar a comunidade, tornando-os capazes da resolução de seus
conflitos. Busca quebrar paradigmas no que se refere à resolução de conflitos e a
atos de violência.
Um dos aspectos que se torna prioritário neste projeto é atingir a auto-
sustentabilidade, por dois motivos principais: para potencializar a autonomia da
comunidade em relação a sua aprendizagem e sua prática; e devido à dificuldade de
disponibilizar e acessar recursos financeiros, governamentais ou não-
governamentais.
108
No que se refere à relevância da autonomia da comunidade, esta é
possibilitada, assim como no contexto sul-africano, pelo Código de Boas Práticas,
adaptado ao contexto de São Caetano do Sul. O Código é o parâmetro central que
delineia a prática restaurativa nesse contexto e é lido no início de cada círculo
restaurativo:
109
106
Esta estratégia não é utilizada em São Caetano do Sul, visto que, atualmente, nem os rculos restaurativos,
nem mesmo os facilitadores recebem qualquer ajuda de custo.
107
“O construcionismo social, com múltiplos recursos conversacionais e com um olhar que valoriza
positivamente o potencial criativo do inesperado e do novo, beneficia um projeto piloto que busca a descoberta
de caminhos ainda não trilhados.” (Melo, p.143, 2008).
108
Melo (2008).
109
Ajudamos a criar um ambiente seguro e de confiança na nossa Comunidade; Respeitamos a Constituição do
Brasil e as leis; Não usamos força ou violência; Não tomamos partido em disputas; Trabalhamos na comunidade
como uma equipe cooperativa, não como indivíduos; Seguimos com transparência as regras para a resolução de
conflitos, comuns a todos os membros da comunidade; o espalhamos boatos ou mexericos acerca do nosso
trabalho ou de outras pessoas; Nós assumimos compromisso com aquilo que fazemos; O nosso objetivo é
restaurar, não ferir. (Melo, p.146-7, 2008).
42
4. A formação dos facilitadores em São Caetano do Sul
As práticas restaurativas no contexto comunitário de São Caetano do Sul são
atravessadas pelo processo de formação e capacitação dos facilitadores
110
que
atuam. Por isso, torna-se relevante destacarmos alguns aspectos dessa formação,
visto que é por meio dela que os atores sociais entram em contato com esse novo
paradigma e metodologia, a Justiça Restaurativa.
Com base em informações contidas no relatório do projeto-piloto de São
Caetano do Sul,
111
buscaremos destacar elementos relevantes no processo de
formação dos facilitadores daquele município, com especial atenção para os que
atuam no contexto comunitário.
Como destacamos anteriormente, a capacitação dos primeiros facilitadores
restaurativos para atuaram nas escolas, Fórum e Conselho Tutelar de São Caetano
do Sul ocorre em 2005 e é ministrada por Dominic Barter, com base na metodologia
da Comunicação Não-Violenta.
Em 2006, constatou-se que a técnica, apesar de eficiente, não comportava os
diferentes contextos, com sua diversidade de instituições, conflitos e relações.
Assim, foram convidados os especialistas John Cartwright e Madeleine Jenneker e o
oficial de polícia Ganief Daniels da África do Sul que, baseados no modelo
Zwelethemba, formaram os capacitadores do Instituto Familiae
112
e os facilitadores
para atuarem no contexto comunitário de um bairro de São Caetano do Sul.
A partir daí, as complementações da capacitação dos facilitadores foram
feitas visando instrumentalizá-los para atender às diversas demandas que recebem
e, inclusive, para atender casos de infrações cometidas por adolescentes, tendo por
fim a substituição do processo judicial que atribuiria uma medida sócio-educativa
pelo processo restaurativo. Um novo programa de capacitação foi estruturado
ouvindo-se a opinião e necessidades apresentadas pelos facilitadores, que
emergiam de sua prática. Os capacitadores buscaram identificar não só a satisfação
dos facilitadores quanto ao resultado das práticas e os recursos utilizados, como
também os aspectos em que percebiam a necessidade de serem
instrumentalizados.
110
Até então utilizamos o termo “pacificadores”, entretanto, no contexto brasileiro e em específico em São
Caetano do Sul o termo utilizado é “facilitadores”.
111
As informações contidas neste tópico foram extraídas de Melo (2008).
112
A posterior adaptação do modelo sul-africano para o contexto brasileiro foi feita por Vânia Curi Yazbek do
Instituto Familiae (Justiça em Círculo).
43
Visando-se a auto-sustentabilidade do projeto e a autonomia das
comunidades, estabelecem-se coordenadores locais que têm a função de oferecer
apoio contínuo aos demais facilitadores e, eventualmente, capacitar novos
facilitadores.
O papel do coordenador [...] é ser um interlocutor para os demais
facilitadores; é ser alguém com mais experiência que servirá como fonte de
referência das práticas em uso na comunidade para os demais facilitadores
recém capacitados.
113
Em 2008 a técnica da Comunicação Não-Violenta também foi apresentada
aos facilitadores do contexto comunitário. A formação passa a incluir, portanto,
técnicas diversas. Desta forma, os facilitadores passam a poder utilizar uma técnica
ou outra, de acordo com o caso, considerando a diversidade dos conflitos, dos
contextos e dos envolvidos.
114
Os facilitadores de círculos comunitários priorizam a
técnica Zwelethemba, porém analisam cada caso e avaliam a possibilidade do uso
de outras técnicas restaurativas.
Nesses encontros de capacitação são realizados exercícios e simulações de
círculos restaurativos, por meio da técnica psicodramática de role playing. São
trabalhados três eixos temáticos: conversação como ferramenta, violência doméstica
e de vizinhança e justiça como proposta de intervenção. Cada tema é tratado
considerando-se como o facilitador se relaciona com o tema, através de exercícios
de auto-conhecimento e levantamento dos recursos dos próprios facilitadores.
Num segundo momento da capacitação, encontros são realizados visando
possibilitar a auto-sustentabilidade do projeto, por meio de supervisão,
empoderamento do grupo, reflexão, gerenciamento de seu treinamento, busca de
apoio no grupo e sua autonomia como facilitador.
Ainda tendo em vista a sustentabilidade, num terceiro momento, foram
implementadas oficinas de acompanhamento e supervisão, utilizando-se de modelos
de conversação, troca de experiências e ajuda mútua, visando o desenvolvimento e
aprimoramento da prática, sem o acompanhamento dos capacitadores.
115
Foram capacitados, aproximadamente 30 facilitadores comunitários de
práticas restaurativas comunitárias em São Caetano do Sul, sendo a maioria do sexo
113
Melo, p.155, 2008.
114
É importante destacar que diversos professores e profissionais escolares também foram capacitados nas
diferentes técnicas e modelos, o que possibilita que atuem como facilitadores nos conflitos que ocorrem no
contexto escolar.
115
Melo (2008)
44
feminino. Os facilitadores foram selecionados na própria comunidade. Fazem parte
de organizações religiosas, associação de pais e mestres e clubes da terceira idade.
São voluntários que, inicialmente, durante a capacitação, recebem recursos
financeiros apenas para seus custos diretos na ação.
116
III Justiça Restaurativa e Juventude
Konzen problematiza a idéia de que a Justiça Juvenil age em nome do “bem”,
fato confirmado quando se comparam as práticas e discursos da Justiça Penal
adulta com as da Juvenil. Nos casos de delito adulto, a neutralidade e imparcialidade
para o julgamento devem-se à possível retirada da liberdade, um mal pelo mal
causado, baseado no razoável e no adequado a determinado delito. A pena,
portanto, como uma medida contra a vingança e a garantia de prevenir os delitos e
as punições injustas.
117
no que se refere à Justiça Juvenil, Konzen destaca que a “Medida” vem
adjetivada do termo “Socioeducativa”, o que garantiria a satisfação de necessidades
desses jovens, por isso uma ação do “bem”. Aliando-se às religiões e intervenções
científicas e curativas, vinculando-se às políticas de saúde e assistência, duas
alternativas: são produzidos laudos patológicos sem crítica ou adota-se uma visão
protecionista de que o jovem foi prejudicado socialmente. São argumentos que
caminham junto às Medidas, visando seu bem-estar e sua proteção. O jovem
“incapaz de responsabilidades e de exercer o direito à palavra.”
118
Konzen questiona se seria aceita a prisão de um adulto visando satisfazer
suas necessidades, argumento recorrente para os jovens, questionando a
sustentabilidade da restrição ou da privação de liberdade como método de alguma
teoria pedagógica.
Ancorada nos entulhos institucionais de bem-estar, navega a Justiça Juvenil
por enredos escandalosamente arbitrários, em que o fim justifica o meio,
mesmo que esse meio sacrifique bem jurídico indisponível, condição de
dignidade de toda pessoa humana somente autorizada a sacrifícios em
determinadas circunstâncias objetiva e previamente estabelecidas.
119
116
Está em discussão a possibilidade das empresas disponibilizarem horas de trabalho de seus funcionários que
são facilitadores, tendo como contrapartida o abatimento fiscal, pois é considerada uma contribuição ao Fundo
Municipal da Criança e do Adolescente. Um plano de carreira para o facilitador também está sendo discutido na
Secretaria de Justiça e da Educação, onde estão sendo definidos requisitos que lhe permitem capacitar e
coordenar outros facilitadores.
117
Konzen (2008).
118
Konzen, p. 7, 2008.
119
Idem, p. 8.
45
O rompimento com o paradigma da Situação Irregular e do Bem-estar do
menor, a partir da Convenção dos Direitos da Criança e do Adolescente, estabelece
uma nova doutrina: a da Proteção Integral. O adolescente, sujeito de direitos, deve
ser protegido de perdas pela imposição de restrição da liberdade, o que, segundo
Konzen, está em alinhamento com as conquistas da Justiça Penal adulta.
120
Para Konzen, os jovens têm uma inclinação a transgredir a Lei Penal, pois
testam os limites da convivência. Afirma que os atos de violência dos jovens
assemelham-se aos do adulto, principalmente no modo de agir e nos resultados.
Entretanto, o jovem deve ser considerado em sua condição peculiar de
desenvolvimento. Por isso, deve-se reconhecer mais suas capacidades
diferenciadas do que focar suas incapacidades.
121
A responsabilidade por seus atos é um elemento importante no processo
pedagógico previsto pelas Medidas, considerada como a condição subjetiva de
responder. Responsabilidade que, segundo Konzen, é diferente da responsabilidade
penal adulta ou da culpabilidade. É o adolescente como tendo condições de
“perceber as conseqüências do comportamento e de assumir o sentido da
resposta.”
122
A Medida é
Fruto de uma relação constituída pela verticalidade, em que o poder
jurisdicional impõe a sua percepção da realidade; em que o adolescente
acusado é chamado a comparecer e a exercer a sua fala por interposta
pessoa; em que a busca do resultado e a resistência é desenvolvida em jogos
de interesses liderados por Personagens estranhos ao conflito-sede do ato
infracional.
123
As alternativas judiciais até então existentes desconsideram a participação
das pessoas direta ou indiretamente envolvidas no conflito. O que se é “o uso da
força, o poder da ordem, o controle, a segurança, o respeito ditado pela norma,
valores sociais desejados pelo jurídico e, por isso, confiados ao Estado-Juiz.”
124
A Justiça Restaurativa surge nesse contexto como uma possibilidade de
resolução de conflitos, com possível restauração das relações entre as partes
envolvidas no conflito. As pessoas envolvidas retomam a possibilidade de resolver
seus conflitos, com um compromisso com o processo, que busca horizontalizar e
120
Konsen (2008).
121
Idem.
122
Vicentin, p.330, 2005 In: Konzen, p. 10, 2008.
123
Konzen, p. 13, 2008.
124
Idem.
46
pluralizar as relações. A Justiça Restaurativa tem o olhar centrado nos sujeitos da
relação, nos grupos e nas comunidades.
O que se percebe nas práticas restaurativas, e em especifico nas de São
Caetano do Sul, é que os propósitos da legislação infanto-juvenil se articulam com
os da educação.
[...] assegurar às crianças e adolescentes todas as oportunidades e
facilidades para lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral,
espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade (art. 3º. do ECA)
[...] e o papel formativo a que se atribui à educação (art. 1º. da LDB)[...] tendo
por finalidade (art. 2º. da mesma legislação) o pleno desenvolvimento do
educando e seu preparo ao exercício da cidadania e qualificação para o
trabalho.
125
Importante destacar que essas são responsabilidades da família, da
sociedade como um todo e das instituições governamentais. Assim, evidencia-se
nas práticas de Justiça Restaurativa o foco na juventude, e em uma certa concepção
de juventude, como ser em desenvolvimento, em formação. Processo de formação
que se refere à ética das relações com o Outro, com a sociedade, onde se incluem
os jovens como agentes de transformação da história.
126
Konsen destaca essa pedagogia para a responsabilidade, que se constrói por
meio da linguagem dialogal; e para a ética da alteridade, da possibilidade humana
de dar prioridade ao Outro e ao sentido construído na relação. Ambas presentes nas
práticas de Justiça Restaurativa.
127
Adorno afirma que “o objetivo da escola deve ser a desbarbarização da
humanidade.”
128
Melo utiliza-se dessa problematização para afirmar que esse
objetivo aproxima-se dos da Justiça Restaurativa de “desbarbarizar a resposta
coercitiva e punitiva.”
129
125
Melo, p. 69, 2005.
126
Melo (2005).
127
Konsen (2008).
128
Adorno, p. 117, 1995 In: Melo, p. 71, 2005.
129
Melo, p. 71, 2005.
47
CAPÍTULO 2 DAS FERRAMENTAS CONCEITUAIS PARA PENSAR AS
PRÁTICAS RESTAURATIVAS: UM OLHAR DESDE O PSICODRAMA
Assim nosso silêncio se serve até das coisas mais comuns
e nosso encontro é meta livre:
O lugar indeterminado, em um momento indefinido,
a palavra ilimitada para o homem não cerceado.
Moreno
Neste capítulo, faremos inicialmente um rápido percurso pelos aspectos mais
relevantes da biografia de J. L. Moreno, criador do Psicodrama, visto que sua
história singular, seus embasamentos filosóficos e o desenvolvimento de sua teoria
estão intrinsecamente ligados.
130
Em seguida, apresentaremos os delineamentos
teóricos gerais do Psicodrama e, por fim, aprofundaremos as teorias e conceitos
centrais para esta pesquisa: as Teorias do Encontro e de Papéis e os conceitos de
Papel e de Personagem.
I - Vida e obra de J. L. Moreno
Jacob Levy Moreno (1889-1974), criador do Psicodrama, nasceu em
Bucareste e foi criado em Viena. Procuramos destacar alguns de seus momentos
vivenciais e de construção do psicodrama, pois Moreno constrói sua prática e teoria
mobilizado pelos desafios que vivencia.
Gonçalves e Marino focalizam quatro momentos criativos da produção de
Moreno: o religioso e filosófico; o teatral e terapêutico; o sociológico e grupal; e o de
organização e consolidação. Os dois momentos iniciais referem-se a sua vida e
criação ainda em Viena e os outros dois momentos ocorrem posteriormente, com
sua mudança para os EUA.
131
No momento religioso e filosófico (até 1920), ainda na Europa, Moreno é
influenciado principalmente pela religião (Hassidismo) e pelos filósofos Kierkegaard
e Bergson. Trabalhava com crianças, prostitutas e refugiados de guerra,
principalmente com um viés religioso.
No momento teatral e terapêutico (de 1921 a 1924) cria o Teatro da
Espontaneidade, o Teatro Terapêutico e o Psicodrama. Ao fundar o Teatro da
Espontaneidade, em 1921, no qual atores espontâneos junto com a própria platéia
130
Para maior aprofundamento de sua história pessoal, consultar Marineau (1992) e a autobiografia de Moreno
(1997).
131
Gonçalves (1988) e Marino (1992 e 2002). Utilizaremos a análise destas autoras para esta breve introdução.
Entretanto, é importante destacar que outros estudos analisam a trajetória e a produção de Moreno. Para maior
aprofundamento ver Marineau (1992) e Fonseca (1980).
48
participavam e construíam cenas. Nele, cada ator era também autor do drama e as
pessoas que assistiam ao teatro não acreditavam que as cenas eram construídas no
aqui-agora, que o havia nem textos nem ensaios. Deste teatro, cria o Jornal Vivo,
metodologia psicodramática em que notícias do dia eram encenadas
espontaneamente pelos atores e pela qual se evidenciava a construção das cenas
no aqui-agora.
Fazendo teatro espontâneo, Moreno começa a perceber seu potencial
terapêutico quando as criações dos atores são espontâneas e não estão atreladas
ao texto. Essa percepção ocorre com o caso Bárbara,
132
pois percebe que os atores
se transformam depois de dramatizarem suas histórias. Surge, então, o Teatro
Terapêutico e, a partir deste, o Psicodrama.
Quando emigra para os Estados Unidos e preocupa-se com questões grupais
e sociais, tem lugar o terceiro momento de seu trabalho: o sociológico e grupal (1925
a 1941). Fortalece seu interesse pelas relações interpessoais e seu trabalho com
psicoterapia de grupo toma força. Continua fazendo suas sessões de psicodrama e
faz estudos com diferentes grupos, a partir dos quais fundamenta a sociometria,
destacando sua importância para trabalhos em comunidades. Além disso, retoma
seus primeiros estudos realizados em Viena nos campos de refugiados, e busca
uma interlocução com a comunidade universitária. Vinha da Europa, influenciado
pela fenomenologia e o existencialismo, e encontra nos Estados Unidos o
behaviorismo e o pragmatismo, que o influenciam na criação da sociometria.
No quarto momento, de organização e consolidação teórica (1942 a 1974),
Moreno sistematiza sua produção e conceitos, validando seu método psicoterápico
no meio acadêmico e convalidando o psicodrama com o todo fenomenológico-
existencial.
No transcorrer de toda sua prática e obra, o hassidismo influencia e
permanece implícito, além de ser uma influência em toda sua vivência. No
hassidismo
133
, a relação vertical com Deus é substituída pela relação horizontal, com
132
Bárbara é atriz do Teatro da Espontaneidade, desempenhando constantemente papéis românticos. George
freqüentava o teatro e se apaixona pela atriz. Eles se casam, porém, no convívio familiar, Bárbara se mostra
intransigente e agressiva. A partir das queixas de George a Moreno, este faz um trabalho com Bárbara, onde ela
passa a desempenhar, no palco, papéis mais agressivos, possibilitando esta vivência a ela, e incluindo o marido.
Esse fato, conforme conta George posteriormente, possibilitou que ela, na sua relação matrimonial, não
desempenhasse o papel de esposa de forma tão agressiva.
133
Ao contrário do judaísmo tradicional, no hassidismo não há a figura onipotente do rabino, mas do “tzaddik”,
um homem de virtude, que tem uma relação próxima, capacidade empática e que serve de modelo para os
demais. Fonseca (1980) compara o “tzaddik” ao diretor de psicodrama.
49
um Deus próximo dos homens, que falam diretamente com Ele, sem intermediários,
pois considera que todo homem contém uma centelha divina.
Além da influência hassídica, compartilha da filosofia do encontro de Martin
Buber e do existencialismo. Desenvolveremos rapidamente estes aspectos das
bases filosóficas de Moreno, considerando-a relevante para a problematização que
será feita a seguir, no item VI deste capítulo, sobre a epistemologia e pesquisa em
psicodrama.
134
Moreno traz contribuições ao campo do existencialismo, pois estrutura o
existencialismo em três períodos: o profético (dos filósofos frustrados), o heróico
(dos que vão para a ação) e o intelectual (dos filósofos acadêmicos).
135
Essa
diferenciação é relevante, visto que é a partir dela que Moreno afirma seu
posicionamento: enfatizando o “ser” como um homem de ação. Um posicionamento
existencial que se caracteriza pela busca do fluxo natural e espontâneo da
existência no aqui-agora. Ressalta que os “homens de ação”, do período heróico,
dão um passo a mais, assegurando que existência e conhecimento ser e conhecer
o inseparáveis; compõem uma mesma dinâmica. Em relação ao existencialismo
intelectual, Moreno é bastante crítico, pois considera que o existencialismo se torna
“lugar comum” e seus pensadores deixam de lado a existência, a vivência do “ser”.
136
II - A teoria socionômica: psicodrama
Procuramos traçar um quadro geral da teoria psicodramática, visando uma
compreensão do todo da obra de J.L. Moreno, para depois aprofundarmos os
aspectos filosóficos, teóricos e técnicos que aqui nos interessam. A importância
desse delineamento está no fato de que a teoria moreniana é constituída de
princípios e conceitos que se articulam e compõe um todo, que não pode ser
considerado em partes, sob o risco de segmentação e uso inadequado destes.
137
Ao conjunto de sua produção, Moreno denomina socionomia, mais conhecida
como psicodrama.
134
Para aprofundamentos referentes ao embasamento e influências filosóficas e do hassidismo na vida e obra de
Moreno, ver o livro de FONSECA, J.S. Psicodrama da Loucura. Ed. Agora, São Paulo, 1980.
135
Moreno (1983)
136
Para um maior aprofundamento, ver Moreno (1983)
137
No transcorrer desta pesquisa, em alguns momentos, será necessário colocarmos em foco algum aspecto da
teoria moreniana, porém os demais continuam em cena, no palco desta pesquisa.
50
O termo socionomia refere-se ao “estudo das leis que regem o
comportamento social e grupal”.
138
Socius, do latim, significa companheiro, grupo, e
nomos, do grego, regra, lei.
A socionomia abrange três áreas: a sociodinâmica; a sociometria e a
sociatria.
- Sociodinâmica: estuda a dinâmica das relações interpessoais nos grupos
por meio do teatro espontâneo e do role-playing. Como jogo de papéis, possibilita ao
indivíduo atuar dramaticamente e desenvolver diversos papéis. Esse
desenvolvimento segue três passos: inicialmente, o indivíduo toma o papel (role-
taking); depois, joga e desempenha este papel (role-playing); e em seguida, recria e
desempenha o papel de forma singular (role-creating).
- Sociometria: é o estudo qualitativo e quantitativo das relações interpessoais
por meio do teste sociométrico e do átomo social. O teste sociométrico busca medir
as relações entre as pessoas de um grupo, em que cada uma faz escolhas positivas,
negativas e indiferentes para uma determinada ação, entre os participantes, seguida
da justificativa das escolhas. Das escolhas, é construído o sociograma, que é um
gráfico das congruências e incongruências das mesmas.
139
O átomo social é o
conjunto das relações afetivas mais importantes e próximas de um indivíduo em um
determinado momento. Ele pode ser explorado vivencialmente na dramatização,
partindo-se ou não de uma representação gráfica das relações. A partir de diversos
átomos sociais entre pessoas que se relacionam é possível observar as redes
sociométricas que se estabelecem entre elas.
Moreno propõe que a sociedade deve ser compreendida pelo estudo
(sociometria) da dinâmica dos pequenos grupos, que reunidos formam uma grande
rede entre os átomos sociais, inter-individuais e inter-pessoais.
140
- Sociatria: é o tratamento dos sistemas sociais, envolvendo pequenos e
grandes grupos, tendo em vista uma sociedade saudável. Moreno visava uma cura
extensiva a toda humanidade. Portanto, é a terapêutica das relações interpessoais,
por meio do psicodrama, da psicoterapia de grupo, do sociodrama e do axiodrama.
138
Gonçalves, p. 41, 1988.
139
Gonçalves, 1988. Para um maior aprofundamento ver capítulo O teste sociométrico de Kaufman. In:
Monteiro, R.F. Técnicas Fundamentais do Psicodrama. São Paulo: Agora, 1998.
140
Moreno In: Fonseca (1980).
51
O psicodrama caracteriza-se como o tratamento da pessoa no grupo. De
emergente grupal a protagonista, a pessoa em foco é representante do tema
protagônico.
141
O psicodrama, portanto, articula o desenvolvimento da espontaneidade
criativa por meio da ação dramática num contexto de psicoterapia grupal, no
qual se levam em conta as inter-relações dos participantes e o desempenho
de seus diversos papéis.
142
O termo drama vem do grego e significa ação/acontecimento
143
. Psicodrama
poderia ser definido como o método que busca a verdade mediante a ação. “Em
Psicodrama, falamos da tomada de consciência pela ação, da aprendizagem pela
ação ou da catarse pela ação”.
144
A psicoterapia de grupo é o tratamento das relações interpessoais, entre
pessoas que estão inseridas em um grupo, fundamentado na idéia de que a
interação entre estas pessoas é terapêutica e, à medida que interagem, conseguem
perceber-se e colocar-se no lugar do outro.
O sociodrama tem como protagonista o próprio grupo e caracteriza-se como
método de ação profunda que investiga ideologias coletivas e conflitos inter-grupais.
O axiodrama pode ser considerado um sociodrama tematizado, onde o foco
são os valores.
145
Todos os métodos da socionomia configuram a “passagem da psicoterapia de
gabinete, de confessionário, de sigilo, de voz baixa, de controle das condições para
a psicoterapia do atuar, do contato, da relação, da verdade, da vida.”.
146
Do mesmo modo, quando focadas as relações sócio-educacionais,
distanciamo-nos do ensino tradicional, das relações verticalizadas e conteudistas e
valorizamos uma perspectiva de co-construção do saber.
III - Dimensões individual e relacional: A microssociologia
147
moreniana:
Martin afirma que a visão de homem de Moreno tem uma dupla dimensão, a
individual e a relacional. No nível individual, espontaneidade-criatividade são os
conceitos centrais, os mais substanciais ao homem. no nível relacional, os
141
O tema protagônico refere-se às questões e conflitos daquele grupo, naquele momento.
142
Sene-Costa, p.87, 2006 In: Antônio, p.22, 2007.
143
Para um maior aprofundamento ver Marino (2002).
144
Zerka Moreno, 1975 In: Fonseca, p. 13, 1980.
145
Para um maior aprofundamento ver Psicoterapia de grupo e Psicodrama de Moreno (1974), Marino (2002) e
Mezher (2002).
146
Fonseca, p. 6, 1980. Sigilo aqui no sentido de silenciamento.
147
“A ‘microssociologia’ é a sociologia dos grupos pequenos, de sua estrutura atômica (‘microscopia social’).”
Moreno, p. 34, 1974.
52
conceitos centrais são grupo-sujeito e tele-estrutura. Essas dimensões, individual e
relacional, articulam-se na teoria de papéis (do eu-tangível), como nos afirma Martin:
“Dois eixos polarizam a teoria de Moreno relativa à pessoa humana: a
espontaneidade em sua dimensão individual, e o fator tele em sua projeção social.
Ambos se conjugam no eu-tangível, o que fundamenta sua teoria de papel.”.
148
A espontaneidade, do latim sua sponte (de livre vontade) é uma possibilidade
da condição humana e é ela que garante a transformação de situações antigas ou
novas.
149
Espontaneidade, um dos conceitos chave da obra de Moreno, é considerada
a base de todo o desenvolvimento humano. É ela quem garante a livre atuação dos
indivíduos e é buscada, nas práticas psicodramáticas, através do aquecimento e
preparação para a ação psicodramática. A ausência de espontaneidade é
considerada um dos aspectos que compromete a saúde do ser humano.
150
Desta
forma, os processos terapêuticos e sócio-educacionais psicodramáticos buscam
devolver a espontaneidade dos indivíduos.
Apesar de muitas vezes vinculada ao tratamento do indivíduo, é atribuída por
Moreno ao potencial humano de constante criação e evolução, vinculado a sua
fundamentação hassídica da “constante criação divina”. A espontaneidade é
percebida, portanto, como um pequeno deus, inerente a todo homem.
151
O inverso da espontaneidade é a conserva cultural, aspecto que cristaliza as
criações espontâneas, tornando-as obras/produtos. Moreno afirma que o processo
de criação é mais importante do que a obra, pois na criação a espontaneidade está
atuando, em ação, enquanto que a obra é conserva cultural, está finalizada.
152
Para
que a espontaneidade se manifeste, a conserva cultural deve ser ponto de partida
para novas ações, novas criações.
153
Retomando os aspectos referentes à microssociologia moreniana, Fonseca
afirma: “A teoria moreniana é basicamente dialógica. Nunca o Eu poderá encontrar-
se através de si mesmo, só poderá encontrar-se através de um outro, do Tu.”
154
148
Martin, p.119, 1996.
149
Antônio, 2007.
150
Entende-se, no Psicodrama, que a espontaneidade apesar de inata a todo ser humano, pode se perder nos
processos de adaptação social, tornando os atos conservados.
151
In: Martin, 1996.
152
In: Martin, 1996.
153
Gonçalves (1988).
154
Fonseca, p.6, 1980.
53
A teoria moreniana, portanto, surge em oposição às teorias individualistas do
ser humano, considerando que o homem nasce em um contexto grupal – a família
– que representa o contexto social e que, desde o nascimento, possibilita sua
socialização. Essa vinculação inicial da criança com a sociedade é encarnada pela
mãe/cuidadora, ou pessoa que desempenhe este papel, primeiro ego-auxiliar da
criança. Desta forma, para a teoria moreniana, “o social é constituinte da própria
personalidade”.
155
Fonseca destaca quatro dimensões para pensar o homem: os papéis que
representa na vida; as suas relações; seu átomo social; e seu status sociométrico.
156
Portanto, o homem é percebido em seus aspectos psicossociológicos,
considerando-se os elementos individuais e grupais que constituem, conjuntamente,
o indivíduo e o grupo. O grupo, portanto, é uma interação de sujeitos e não a
simples soma dos mesmos.
Desta forma, o conflito o é entendido como pertencente a um membro do
grupo, mas refere-se às inter-relações, se origina nas relações entre os homens.
157
Além disso, um conflito que parecia inicialmente privado e individual, ao ser
compartilhado em um grupo, durante práticas psicodramáticas, por exemplo,
encontra respaldo entre os demais, pois “cada indivíduo se relaciona com os demais
através de redes que se vão tornando cada vez mais complexas.”.
158
O grupo não pode ser confundido com um aglomerado de pessoas, pois
pode ser considerado um grupo se as pessoas reunidas têm objetivos, valores ou
normas comuns, e se visam ou realizam uma ação conjunta e estão em interação.
Moreno afirma que o grupo tem uma dupla dimensão, a horizontal e a vertical.
A horizontalidade se na inter-relação, no equilíbrio de papéis entre indivíduos de
um grupo. A verticalidade refere-se à distribuição de papéis dentro de um grupo, que
tende a ocorrer no transcurso do tempo de constituição de qualquer grupo, quando
tarefas são distribuídas aos seus membros e surgem líderes e subordinados. As
diferenças entre os membros de um grupo podem ser analisadas por meio da
sociometria. Considerando essa dupla dimensão, para Moreno, o anarquismo é
insustentável, pois mesmo que um grupo se constitua por relações horizontais, com
155
Martin, p. 164, 1996.
156
Ancelin-Schützenberger, 1970 In: Fonseca, 1980.
157
Martin (1996).
158
Martin, p. 171, 1996.
54
o passar do tempo as relações verticais emergirão, visto que se dão num processo
continuum de desenvolvimento.
159
As relações horizontais e verticais também ocorrem entre grupos, nas
relações inter-grupais. Martin afirma ainda que, de forma geral, o grupo, depois de
organizar-se na direção vertical, tem uma tendência ao conservadorismo e opõe-se
às tentativas de mudança.
160
Moreno faz uma leitura das relações sociais através da conceituação de
tricotomia social. Considera o universo social dividido em três dimensões: sociedade
externa, matriz sociométrica e realidade social. A sociedade externa é formada por
agrupamentos visíveis e identificáveis; a matriz sociométrica refere-se às relações
afetivas de atração, rejeição e indiferença, invisíveis inicialmente, mas que podem
tornar-se visíveis pela análise sociométrica; e a realidade social, que é a síntese
dinâmica das duas anteriores, produz o processo de vivência social.
161
Entretanto, Moreno afirma que “a sociedade oficial (externa) e a matriz
sociométrica (interna) não o idênticas”.
162
Afirma ainda que, quanto maior a
diferença, maior são o conflito e a tensão social.
Almeida, no prólogo da nova edição,
163
faz uma importante contribuição, pois
esquematiza um quadro em que distingue três planos de aprofundamento dos
estudos e práticas no Psicodrama. A cada um atribui diferentes conceitos
psicodramáticos: o Encontro refere-se ao plano filosófico; a Tele ao plano teórico; e
a Inversão de papéis ao plano técnico. Afirma ainda que: “Tele é o elo legítimo entre
o encontro preconizado pela filosofia e a cnica da inversão de papéis, específica
do psicodrama.”.
164
Assim, evidencia-se que o conceito de Tele possibilita uma
conexão teórica entre os planos filosófico e prático do Psicodrama. Essa
categorização de Almeida auxiliou-nos a eleger alguns elementos conceituais e
teóricos do psicodrama para compor este momento de apresentação geral: Tele e
Encontro. Feita essa apresentação, aprofundaremos a Teoria de Papéis e os
conceitos de Papel e Personagem, relevantes para entrarem em cena na
problematizarão a que nos propomos nesta pesquisa, pois permitirão pensar o
círculo em suas trocas relacionais.
159
Moreno (1992) In: Martin (1996).
160
Martin (1996).
161
Moreno (1992).
162
Moreno, p.182, vol.1, 1992.
163
Almeida (2006).
164
Almeida, p. 14, 2006.
55
1. Tele
Representa o conjunto de fenômenos que constitui uma relação, todas as
operações que ocorrem num vínculo entre duas pessoas, em ambos os sentidos. Ao
contrário da transferência
165
e contra-transferência freudianas, a Tele é constituída
no paradigma vincular do psicodrama, que não se constitui à partir da instância
individualizante ou patológica do homem.
Conforme definição de Moreno é um “sentir recíproco de um no outro”.
166
Inclui reciprocidade e mutualidade relacional e possibilita o encontro. A percepção
télica está intimamente vinculada à capacidade das pessoas de realizar a inversão
de papéis, de se colocar uma no lugar da outra e, por isso, é considerada
responsável pela coesão e pela potencial integração grupal. Gonçalves destaca a
importância da capacidade télica para a comunicação, pois toda comunicação é
possível com a percepção do outro.
167
Tele ocorre em duplo sentido e, para Moreno, “o fenômeno Tele é a empatia
ocorrendo em duas direções.”.
168
Apesar da semelhança, Tele e empatia são fenômenos diferentes, pois a
empatia é em um único sentido, a percepção por uma pessoa, de sentimentos de
outra pessoa ou até mesmo de um objeto. Entretanto, Fonseca destaca que a
empatia pode, até mesmo, ser usada como forma de manipulação e controle do
outro.
169
De forma geral, poderíamos afirmar que o psicodrama tem como um de seus
objetivos a busca por relações télicas, e não as transferenciais. As relações licas
fazem fluir mais espontaneamente a comunicação e possibilitam o verdadeiro
encontro, no aqui-agora, e a vivência de relações transformadoras, com diálogo e
compreensão mútua.
Diversos psicodramatistas pós-morenianos
170
revisaram o conceito de Tele.
Perazzo faz uma revisão histórica das diversas contribuições ao conceito e afirma
165
Inicialmente, Moreno define a transferência como a patologia da Tele, a distorção da Tele e a incapacidade
dos sujeitos de perceberem-se um ao outro, por isso um pseudo-relacionamento, não o verdadeiro encontro, que
acontece em relações télicas. Esta definição foi revista e Moreno (1983) afirma que as transferências ocorrem
em direção aos papéis. Autores contemporâneos, Perazzo (1994 e 2009) e Bustos (1992), por exemplo, também
revisaram o conceito e afirmam que, nas relações interpessoais, transferência e Tele estão sempre presentes e se
alternam, estão em movimento, como uma balança, e são constituintes do trabalho psicodramático.
166
Moreno, p.21, 1983.
167
Gonçalves (1988).
168
In: Gonçalves, p. 49, 1988.
169
Fonseca (1980).
170
No Brasil, Perazzo (2009) destaca: Paiva (1980), Almeida (1982) e Aguiar (1986).
56
que seu uso deve ser atualizado. Considera que a definição a seguir o é um
esgotamento do conceito, mas é uma importante síntese das contribuições dos
diversos autores do Psicodrama:
Tele é um fenômeno da interação, viabilizado entre seres humanos,
abrangendo mutualidade, coesão, globalidade vivencial e polimorfismo de
desempenho de papéis, incluindo a percepção, mas não se limitando a ela,
guardando correlações com posições sociométricas nos átomos sociais,
também dependente dos processos intrapsíquicos que envolvem qualquer
relação, caracterizada principalmente por um movimento de cocriação que
constrói, viabiliza e reformula um projeto ou projetos dramáticos através de
uma complementaridade de papéis dentro de um campo sociométrico.
171
2. Encontro
A idéia de Encontro está presente na obra de Moreno desde seus primeiros
trabalhos e é considerada um conceito chave da teoria psicodramática.
Encontro significa mais do que uma vaga relação interpessoal (Zwischen
Mensschliche Beziehung). Significa que duas pessoas se encontram, mas
não somente para se enfrentarem, e sim para viverem e experimentarem-se
mutuamente. [...] Em um Encontro as duas pessoas estão ali, com todas as
forças e debilidades, dois atores humanos explodindo de espontaneidade,
apenas em parte conscientes de seus fins comuns.
172
Conforme destacamos anteriormente, o encontro, no sentido moreniano, é
possível entre duas pessoas que estão em uma relação télica, de real percepção
mútua. Desta forma, mesmo que entre duas pessoas não haja o Encontro
moreniano, os processos psicodramáticos buscam o aprimoramento das percepções
mútuas entre as pessoas. Moreno assim define Encontro: “dois indivíduos com
experiências pregressas diversas, com expectativas e papéis diferentes, encarando
um ao outro, um terapeuta em potencial de frente para outro terapeuta em
potencial.”.
173
Nessa passagem, Moreno discute o Encontro e as relações de saber-poder
atribuídas aos coordenadores de um grupo, sejam eles médicos, conselheiros ou
sacerdotes, afirmando que o status profissional pode afastar o indivíduo do real
Encontro com o outro.
Moreno amplia essas afirmações referentes às relações de poder em um
grupo com os seguintes postulados: “(a) o grupo está em primeiro plano e o
terapeuta encontra-se subordinado a ele; (b) o terapeuta, antes de emergir na
171
Perazzo, p.35, 2009.
172
Moreno, p. 336, 1966 In: Bustos, p. 39, 1992.
173
Moreno, p. 20, 1983.
57
qualidade de líder terapêutico, é simplesmente outro membro do grupo; (c) ‘cada
homem é o agente terapêutico do outro.’”.
174
Bustos afirma que, em relações marcadamente assimétricas (professor-aluno,
pai-filho, empregador-empregado, terapeuta-paciente) existem papéis e condutas
específicos, que remetem a direitos, obrigações e responsabilidades diferentes e, se
as diferenças são quebradas, as disposições se confundem.
175
Apesar da assimetria,
Bustos, afirma ainda que o Encontro entre as pessoas nesses papéis é possível e
que as responsabilidades o proporcionais aos papéis. Nas relações simétricas as
responsabilidades são as mesmas. Nas relações assimétricas um “contrato” que
estabelece os papéis que estão em jogo. A quebra do “contrato” pode impossibilitar
o encontro, o que não significa que não possa haver profunda interação emocional
entre as pessoas nos papéis. “Moreno disse que o Encontro não inclui apenas a
aceitação, mas também a resposta, a recusa, ‘a soma total de aspectos emocionais
de uma relação.’”.
176
Portanto, Bustos afirma que em relações entre papéis assimétricos certa
verticalização é necessária e saudável, devendo ser evitada a tentativa de
horizontalização “artificial”, pois gera uma situação de anarquismo e,
conseqüentemente, de autoritarismo. Isto ocorre porque, na tentativa de escapar de
regras rígidas, as mesmas são desconstruídas. Porém a pessoa que está no papel
complementar tem expectativas em relação às regras pertinentes a essa relação e
sente-se desorientada sem elas. Assim, ciclicamente, volta-se ao autoritarismo.
177
Se um vínculo vertical se horizontaliza, é impossível fazê-lo sem uma
profunda modificação do código. Caso essa modificação ocorra, o novo
código assumirá o comando do vínculo. Logo, não é possível sobrepor o
código gerado no vínculo vertical até um horizontal. Isso só cria confusão e
caos.
178
Desta forma, a assimetria das relações, que implica verticalidade, por remeter
a Papéis sociais e âmbitos diferentes de responsabilidade, não significa que a
horizontalidade das relações não possa ocorrer, uma possibilidade, sempre, para as
relações humanas compartilhadas.
174
Moreno, p. 24, 1983.
175
Bustos (1992).
176
Bustos, p. 43, 1992.
177
Bustos (1992).
178
Idem, p. 49.
58
IV - Teoria de papéis e o conceito de papel
A palavra papel (role, rotulus) tem origem grega e romana e refere-se aos
“rolos” em que eram escritas as peças de teatro. Com o teatro moderno retomou-se
a prática, sendo os rolos de peças lidos para os atores decorarem seus papéis.
Cada parte cênica passou a ser chamada de papel ou role. Naffah faz este estudo
etimológico da palavra papel (rotulus, role, rótulo) e afirma que “na medida exata em
que o rótulo aumenta, diminui nosso contato com a substância que ele envolve”.
179
Moreno destaca que o Papel é:
A forma de funcionamento que o indivíduo assume no momento específico
em que reage a uma situação específica, na qual outras pessoas ou objetos
estão envolvidos. [...] A função do papel é penetrar no inconsciente, desde o
mundo social, para dar-lhe forma e ordem.
180
Martin afirma que, para Moreno, o homem tem consciência de si
experimentando um Papel. Fazendo referência à tese de Moreno, afirma: “uma
criança nunca poderá ter consciência do seu eu, se não começar a desempenhar
Papéis. O primeiro que existe é o Papel e dele surge o eu.”
181
Moreno faz a distinção entre três diferentes categorias de Papéis vivenciadas
pelo sujeito: psicossomáticos, psicodramáticos e sociais.
182
É importante destacar
que essa formulação teórica está pautada na Matriz de Identidade,
183
em que
Moreno discorre sobre o desenvolvimento humano desde seu nascimento: um
momento inicial de indiferenciação do “ser” em relação ao outro (fase do duplo); em
seguida, o “ser” passa a se diferenciar (fase do espelho); e, depois de perceber o
outro, pode atuar como outro (fase da inversão de papéis). Retomemos sua
diferenciação dos Papéis:
Papéis Psicossomáticos Papéis iniciais da infância, vinculados às
necessidades fisiológicas iniciais e de sobrevivência, como ingeridor, eliminador e
dormidor.
Papéis Psicodramáticos - Papéis imaginados, vinculados à fantasia, podem
ou não ser vivenciados no palco psicodramático ou no contexto social.
Papéis Sociais – Papéis reais de pai, mãe, filho, professor.
Os papéis psicossomáticos, ao serem desempenhados, ajudam a criança a
experimentar o que chamamos “corpo”; [...] os papéis psicodramáticos a
ajudam a experimentar o que denominamos “psique”; e [...] os papéis sociais
179
Naffah, p. 170, 1979.
180
Moreno, p. 27-8, 1984.
181
Martin, p. 213, 1996.
182
Moreno (1984).
183
Para maior aprofundamento de Matriz de Identidade ver Moreno (1984).
59
contribuem para fazer surgir o que chamamos sociedade”. Corpo, psique e
sociedade são, portanto, as partes intermediárias do eu total.
184
Assim, Moreno destaca que a criança começa a atuar desde o nascimento,
desempenhando Papéis psicossomáticos. Inicialmente, a criança integra-se na
sociedade familiar, para através dela integrar-se no ambiente sócio-cultural. “O
desempenho de Papéis é anterior ao surgimento do ego. Os Papéis não decorrem
do eu, mas o eu pode emergir dos Papéis.”.
185
Além disso, Moreno verificou que a representação de um Papel não significa
capacidade de percebê-lo, assim como percebê-lo o significa conseguir
representá-lo.
186
A teoria psicodramática aponta, além disso, para a frágil delimitação entre as
três categorias de Papéis, visto que elas se entrelaçam quando o ser está
desempenhando os diferentes Papéis.
Alguns autores
187
retomaram as proposições de Moreno e problematizaram a
conceituação dos diferentes Papéis. Exporemos a seguir essas contribuições, visto
que são importantes revisões e aprofundamentos da teoria de Papéis de Moreno.
Ao definir Papel como “um conjunto de atos, segundo o modelo prescrito por
uma determinada sociedade, na interação entre seres humanos”.
188
, Mezher
questiona a própria existência dos Papéis psicossomáticos, visto que, neles essa
interação o seria possível e propõe a substituição do conceito de Papel
psicossomático por “zona corporal em ação”.
189
Perazzo, estudando os Papéis imaginários e psicodramáticos, afirma que
Moreno não os diferenciava, pois ambos incluem fantasia e imaginação,
independentemente do locus.
190
Essa diferenciação foi feita por Naffah, ao considerar que psicodramático é o
Papel atuado no palco psicodramático e imaginário é o Papel não atuado, que
permanece na imaginação e fantasia do sujeito, não é inter-relacional.
191
A partir das proposições de Mezher e Naffah, Bustos e Perazzo aprofundam a
problematização referente à Teoria de Papéis moreniana e, em específico, sobre
184
Moreno (1984) In: Martin, pp. 214, 1996.
185
Moreno, p. 210, 1984.
186
Moreno (1984).
187
Naffah (1979), Mezher (1980), Gonçalves (1988) e Perazzo (1994 e 2009).
188
Mezher, p. 221, 1980.
189
Mezher, p. 223, 1980.
190
Perazzo (1994).
191
Naffah (1979).
60
Papel psicossomático. Para eles, o que Moreno havia definido como Papel
psicossomático, refere-se a funções vitais essenciais ao desempenho do Papel
social de filho.
192
Segundo Bustos,
Para que uma ação tenha categoria de papel, deve preencher alguns
requisitos básicos, sendo o mais importante a consciência possível sem a
qual não se pode admitir esse comportamento como sendo unidade de
conduta.
193
.
Com base nisso, considera que em relação à criança não é adequado usar
um conceito de interação social como o conceito de Papel, pois ainda está no
período de Matriz de Identidade, tem uma precária maturação psicofísica, e o
desempenho deste Papel social de filho tem a função de internalizar as regras
trazidas pela mãe, convertendo-as em estruturas do eu.
194
Perazzo desenvolve essas discussões e cria uma categoria que nomeia como
Papéis de fantasia os quais, apesar de serem do âmbito imaginário, são livres de
transferências e podem ser jogados fora do contexto psicodramático.
195
Moreno define o Papel social como “uma unidade de experiência sintética em
que se fundiram elementos privados, sociais e culturais [...] uma experiência inter-
pessoal que necessita, usualmente, de dois ou mais indivíduos para ser
realizada”.
196
Para Bustos os Papéis sociais são “os que correspondem às generalizações
convencionais de acordo com determinantes culturais”.
197
Destaca que, segundo
Moreno, cada Papel social é formado por fatores individuais e coletivos. Outra
característica dos Papéis sociais é que eles são complementares,
198
papel e contra-
papel e como o indivíduo estabelece diversas relações, forma-se o Cacho de Papéis,
ou clusters.
199
Esses Papéis complementares trazem vínculos de dinâmica passiva
(filho-mãe), ativa (filho-pai) ou interativa (irmão-irmão).
192
Bustos (1990) e Perazzo (1994 e 1999).
193
Bustos, p. 72, 1990.
194
Bustos (1990).
195
Perazzo (1994 e 1999).
196
Moreno, p. 238, 1974.
197
Bustos, p. 73, 1990.
198
Por papel ser um conceito inter-relacional, qualquer papel possui um contra-papel, o papel complementar, que
completa a relação formando um vínculo. Por exemplo, ao papel de mãe corresponde o complementar filho.
Cada papel existente tem seu complementar. (Bustos, 1990).
199
Cachos de papéis, também conhecido como agrupamento de papéis ou ainda clusters. Bustos (1990)
desenvolve a teoria dos clusters. Os papéis se agrupam segundo sua dinâmica, configurando três clusters, a partir
da Matriz de Identidade. O cluster um está relacionado aos papéis mais passivos; o cluster dois aos papéis mais
61
Perazzo define Papel social como “um atributo do indivíduo, conferido
consensualmente pela sociedade”.
200
Conforme afirma Martin, os indivíduos podem, de certa forma, escolher o
Papel social que querem desempenhar, mas em alguns casos têm de aceitar o que
lhes é imposto. Em ambos os casos, os Papéis assumidos exigem uma conduta
socialmente determinada.
201
Moreno afirma ainda conclui que é uma vantagem metodológica estudar
Papéis, visto que é mais concreto que personalidade ou ego. Se considerarmos os
Papéis que o indivíduo desempenha podemos observar o “eu” que experimenta, são
os aspectos tangíveis e operacionais do “eu”.
202
Levando-se em consideração as contribuições contemporâneas ao conceito
de Papel e suas diferentes classificações, tomaremos por base de análise a
classificação adotada por Perazzo:
- Papéis sociais: designa todos os papéis da vida cotidiana, vivenciados nas
relações mais diversas (papel de pai, de médico, de amigo, de filho, de marido, etc.)
- Papéis psicodramáticos: jogados apenas no cenário psicodramático,
servindo de elo de ligação entre os Papéis sociais e os Papéis imaginários.
- Papéis imaginários: Papéis conservados dentro do sujeito (encapsulado) e
não atuados (conservados ou não pela transferência). Expressão conservada do
desejo.
- Papéis de fantasia: não atuados e não conservados necessariamente pela
transferência, podendo ser jogados dentro ou fora do cenário psicodramático.
- Papéis dramáticos: desempenhados por atores.
203
V - Personagem
Como pudemos perceber, o conceito de Papel foi bastante aprofundado e
teorizado, desde seu fundador (Moreno) até os psicodramatistas contemporâneos.
em relação ao conceito de Personagem, como evidencia Perazzo, pouca
discussão e escritos. Segundo ele, uma incorporação desses termos por parte
dos psicodramatistas devido ao seu constante uso, considerando-os muitas vezes
ativos, e o cluster três refere-se aos papéis interativos, que são os mais simétricos. As três dinâmicas são
possibilidades alternativas no desempenho de todos os papéis. (Bustos, 1990).
200
Perazzo, p. 83, 1986.
201
Martin (1996).
202
In: Martin, 1996.
203
Perazzo (2009).
62
como sinônimos, ambos referidos “a uma representação de um ser humano e
sempre produto da imaginação.”.
204
Entretanto, como o psicodrama tem suas bases nas cnicas de ação,
derivadas do teatro, consideramos importante aprofundar a discussão do conceito
de Personagem para além de seus aspectos práticos, visto que abre uma chave
conceitual para a discussão que nos propomos nesta pesquisa.
Aguiar contribui afirmando que os Personagens podem ser não-humanos e
trabalha o conceito de Personagem vinculado às práticas do teatro espontâneo.
Afirma que, de forma geral, o Personagem possui um conflito, o qual não
necessariamente pertence ao ator. No teatro espontâneo psicoterápico é freqüente
que esse conflito pertença ao ator e ao Personagem, assim, é preciso que seja
definido para construir o Personagem e trabalhado.
205
Calvente desenvolve o conceito de Personagem paralelamente à Teoria de
Papéis de Moreno, ampliando-a.
206
Outros autores psicodramáticos contemporâneos
aprofundaram também a Teoria de Papéis, como foi visto anteriormente, visto que,
em sua origem, Moreno não diferenciava especificamente Papel de Personagem,
principalmente em relação aos Papéis psicodramáticos.
Para Calvente, “o Personagem não nasce da natureza e, sim, da imaginação.
Sua origem é a subjetividade.”.
207
O Personagem integra aspectos relacionais e está
entre a elementariedade do Papel e a complexidade da Identidade. Afirma que é
pelo Personagem que se revela e é colocada em evidência a subjetividade. Diz ele:
“suspeito que seja um híbrido, um produto transicional, um mestiço. [...] está ligado à
fantasia e à imaginação, e também ao ambiente. Contém aspectos conscientes e
inconscientes”.
208
Um Personagem rígido (conservado) pode tomar grande parte da
subjetividade de uma pessoa, fazendo com que se relacione, nos diferentes
contextos, sempre através daquele mesmo Personagem, com pouca ou nenhuma
espontaneidade.
Fazendo uma análise comparativa entre Personagens e Papéis, Calvente
afirma que o Personagem não se constitui especificamente enquanto aspecto
204
Perazzo, p. 55, 2009.
205
Aguiar (1998).
206
Calvente (2002).
207
Calvente, p. 26, 2002.
208
Calvente, p. 26, 2002.
63
vincular, ele possui uma intencionalidade e roteiro próprios, estabelecidos na sua
origem, no status nascendi e, por isso, é mais independente do aspecto relacional
no aqui-agora. Enquanto isso, o Papel é um conceito com a lógica e coerência
relacional, delimitado pelo contra-papel e pelo efeito Cacho de Papéis.
209
É nessa lógica da complementaridade de Papéis e Cacho de Papéis que “um
mesmo Personagem aparece representando papéis diferentes, mas com uma
coerência e uma lógica próprias do Personagem.”.
210
Lógicas conservadas e
vivenciadas pelo ator social nos diferentes Papéis. A função do Personagem está
vinculada, de acordo com Calvente, à sua origem, ao seu processo de formação e
ao contexto em que se insere. “A origem é a fantasia e a imaginação que,
modeladas pelas relações, geram Personagens mais ou menos expressivos e úteis,
que permanecem ou vão sendo abandonados.”.
211
Calvente afirma que os Personagens podem ter origem recente ou ser muito
antigos na história do sujeito e, normalmente, têm a função de auxiliá-lo em
momentos de dificuldade e em situações em que o sujeito sente-se ameaçado,
ocasiões em que surgem como ato criativo. Entretanto, o próprio Personagem pode,
no seu processo de estabelecimento, tornar-se uma ameaça para o sujeito e para as
inter-relações, enrijecendo-as e tornando-as pouco espontâneas, pois são as formas
de comportar-se deste Personagem que se repetem nas diferentes relações e
contextos, configurando uma “resposta velha às situações novas”.
212
Em relação à formação do Personagem, Calvente afirma haver três diferentes
formas,
213
conforme segue:
- Personagem assumido (equivalente ao role-taking): em parte elaborado e
em parte imposto ao sujeito, com pouca espontaneidade. São Personagens rígidos,
têm característica defensiva e estão vinculados a situações de rejeição.
- Personagem representado (equivalente ao role-playing): é menos rígido e
tem mais espontaneidade. Aparece em situações novas, e busca dar conta da
ansiedade nessas situações. Aos poucos, ao se sentir seguro, a pessoa por detrás
do Personagem pode ir se despindo e revelando-se.
209
Calvente (2002).
210
Calvente, p. 27-8, 2002.
211
Calvente, p. 29-30, 2002.
212
Calvente, p. 31, 2002.
213
Calvente (2002).
64
- Personagem criativo (equivalente ao role-creating): com maior
espontaneidade, Personagem e pessoa quase se confundem, um está incluído no
outro. Ainda assim, a subjetividade “cria” o Personagem que, em sua criação, foi
espontâneo.
Para Calvente, o Personagem é um recurso que a pessoa possui e pode ou
não utilizar. Podem ser generalizações sociais, de âmbito coletivo, que aludem a
características das pessoas, por exemplo, católicos, provincianos e marginais.
Nesses casos, refere-se a um pré-juízo, geralmente utilizado de forma depreciativa e
pode personificar-se em apenas uma pessoa, que se torna representante daqueles
que se identificam com o mesmo. Em instituições, esses Personagens podem
apresentar-se como estereótipos institucionais e referir-se propriamente àquele
contexto ou expandir-se para outros contextos vivenciais.
214
Segundo Perazzo,
A contribuição notável de Calvente é a de nos chamar a atenção para
determinadas formas repetitivas de comportamento em papéis sociais
diferentes como que configurando um Personagem conservado que se repete
em situações e contextos diversos.
215
Perazzo acrescenta que o Personagem estereotipado, conservado, “migra
através do efeito cacho ou feixe de papéis em múltiplas complementaridades dos
mais diferentes papéis sociais.”
216
Calvente e Perazzo privilegiam em suas práticas o contexto psicoterápico e é
a partir desse olhar que teorizam e fazem uso do conceito de Personagem. Para
Perazzo, interessa identificar qual Personagem interno dos vínculos primários
potencializa a co-construção de transferências
217
em seu status nascendi.
218
Buscando integrar as contribuições teóricas dos autores
219
que tem por base, propõe
que:
A transferência e seu status nascendi representam um conjunto em que, em
um vínculo primário, através de uma complementaridade de papéis sociais se
estrutura um Personagem conservado pelo poder simbólico atribuído ao
outro, tendo como pauta uma lógica afetiva de conduta.
220
214
Calvente (2002).
215
Perazzo, p. 55, 2009.
216
Perazzo, p.55, 2009.
217
Transferência entendida aqui como transferência de papéis.
218
Perazzo (2009).
219
Calvente (2002), Nery (2003), Baiocchi (2003).
220
Perazzo, p. 56, 2009.
65
No contexto psicoterápico, a função do trabalho psicodramático é desvendar,
desmontar, desmascarar e desconstruir os aspetos transferenciais do Personagem e
possibilitar a construção de novas formas relacionais, mais espontâneas.
221
Perazzo
222
destaca a importância dessas discussões para trabalhar
psicodramaticamente com repetições, heranças e destinos intergeracionais, que são
cumpridos passivamente pelo sujeito. Buscando, dessa maneira, romper com o
poder simbólico do contra-papel no status nascendi e esta conserva, possibilitando
um insight dramático que aciona um impulso de transformação e a ação dramática e
vivencial espontâneo-criativa.
Calvente afirma ainda que, em relação ao Papel complementar: “Temos
constatado que o complementar pode ser o verdadeiro gerador desse
Personagem”
223
Podemos afirmar, assim, que, apesar do Papel estar mais vinculado ao inter-
relacional e à complementaridade de Papéis, o Personagem pode ser atribuído e
imposto ao sujeito pelo Papel complementar. Sendo que o sujeito poderá
desempenhá-lo com comportamentos reiterados e estereotipados.
224
Calvente define o Personagem como “aquele que nos habita, que
construímos, que nos foi imposto e aceito.”
225
Também encontramos, nesta
pesquisa, Personagens impostos pelos papéis complementares, porém, em muitos
casos, estes não são aceitos e atuados pelo ser, afirmando os movimentos de
resistência e espontaneidade como potenciais deste ser, em sua singularidade e em
seus aspectos inter-relacionais.
Perazzo nos chama atenção, no entanto, para o fato de que “o papel é um
roteiro agido por um ator ou atriz através de um Personagem”.
226
Podemos afirmar que os conceitos de Papel e Personagem pertencem ao
mesmo território da co-existência: trazem a marca de como o “ser” se percebe e é
percebido. Entretanto, Papel é o roteiro de conduta na ação, e o Personagem
aglutina, num “modo de ser”, aspectos e dimensões desses roteiros de conduta.
221
Perazzo, 2009.
222
Fazendo referência ao artigo de Naffah (1980) O drama da família pequeno-burguesa e à dissertação de
mestrado de Márcia Almeida (1995) Valorizando os avós na matriz de identidade.
223
Calvente, p. 41, 2002.
224
Calvente (2002) afirma que este Personagem estereotipado, conservado, emerge por metáforas, conforme foi
destacado por Contro,
224
e, por estar no contexto figurado, pode ser atravessado por diversos sentidos.
225
Calvente, p. 63, 2002.
226
Perazzo, p. 55, 2009.
66
Do lugar da Psicologia Social, o conceito de Personagem nos ajuda a
identificar, nos contextos das instituições, os Personagens estereotipados atribuídos
ao ser, e suas resistências a essas imposições. Do lugar de quem se preocupa com
a possibilidade de transformação do outro, o drama se dá quando o ator social
incorpora o Personagem atribuído ou vive a agonia de lutar contra ele e resistir.
VI - Do Psicodrama no contexto de pesquisa
Propomos, inicialmente, uma problematização do psicodrama como
metodologia de pesquisa, sua inserção na pesquisa acadêmica, para além de
técnicas de intervenção, destacando seus referenciais epistemológicos e as
contradições existentes desde seu fundador (J.L.Moreno) até os psicodramatistas
contemporâneos. Na seqüência, esclarecemos o modelo de pesquisa desta
dissertação, evidenciando o seu embasamento filosófico e teórico no Psicodrama.
Seguimos a partir da pergunta de Brito: “O que o psicodrama tem a oferecer
no âmbito da pesquisa universitária?”.
227
Sua resposta: um método de pesquisa
qualitativo (pesquisa-ação) e a máxima moreniana: “sê espontâneo!” Ora, como a
Espontaneidade e a Criatividade podem auxiliar o trabalho do pesquisador-
psicodramatista no contexto da pesquisa acadêmica?
Buscando esclarecimentos, recorremos aos textos de Moreno e de
psicodramatistas que analisam, em uma perspectiva histórica, o desenvolvimento do
psicodrama e discutem sua inserção no meio acadêmico, como metodologia de
pesquisa, sua epistemologia e bases teóricas
228
.
Retomemos, inicialmente, os quatro momentos, apresentados anteriormente,
que caracterizam o desenvolvimento da filosofia e cnicas de Moreno: religioso e
filosófico; teatral e terapêutico; sociológico e grupal; e de organização e
consolidação.
229
Conforme destacamos anteriormente, os dois primeiros momentos, ainda
na Europa, são fortemente influenciados pelo hassidismo, fenomenologia,
existencialismo, e pelos filósofos Kierkegaard e Bergson. A partir de 1925, quando
Moreno emigra para os EUA, é convidado ao diálogo com intelectuais da época no
227
Brito (2006).
228
Gonçalves (1990) destaca que muitos psicodramatistas buscam complementar suas práticas e pesquisas em
outras teorias e em outras bases epistemológicas. Perazzo (1994) enfatiza que, no Brasil, o psicodrama foi
bastante influenciado pela psicanálise, antipsiquiatria, etologia e teoria da comunicação, fato que lhe confere
uma diversidade de pensamentos e formas de atuação.
229
Segundo Gonçalves (1988) e Marino (2002).
67
contexto acadêmico e, influenciado pelo behaviorismo e pragmatismo, cria a
Sociometria. Posteriormente sistematiza sua produção e conceitos e convalida o
psicodrama com o método fenomenológico-existencial.
Desde podemos perceber a diversidade no desenvolvimento do
pensamento e das práticas de Moreno ao buscar um novo modo de ver e conceituar
o homem e a sociedade. De certa forma, os psicodramatistas contemporâneos
também trilham esses caminhos e buscam articular o psicodrama com outras
filiações: fenomenológico-existencial, construtivista, comportamental, psicanalítica
230
.
A teoria psicodramática foi sendo construída a partir de práticas e intervenções de
Moreno, que, por ser um homem de ação, aprofunda a fundamentação teórica do
psicodrama nos seus últimos trabalhos, revendo e sistematizando seus escritos
anteriores. Caminho este também percorrido por diversos psicodramatistas pós-
morenianos.
231
Brito afirma que “o legado de Moreno é menos um legado de mandatos do
que de escolhas”,
232
fato que se evidencia pelas diferentes articulações teóricas de
muitos psicodramatistas. Contudo, Moreno percebe a necessidade de validação
científica e de seus pares para a teoria que estava em construção.
Ao descrever processos experimentais para desenvolver sua teoria, métodos
e cnicas, Moreno afirma haver três diferentes formas de validação de um
fenômeno: a científica, a existencial e a estética.
233
A validação científica refere-se aos processos acadêmicos de verificação dos
fenômenos estudados, com o rigor metodológico da pesquisa científica. A validação
estética refere-se à forma dos fenômenos, sua beleza artística.
A validação existencial pertence ao “ser” que a vivenciou, “in situ, no aqui e no
agora, sem qualquer tentativa de confirmar o passado ou de predizer o futuro”.
234
Portanto, uma vivência pode ser satisfatória no momento de sua consumação, no
aqui-agora, mas não pode ser generalizada porque a validação é para quem a viveu.
Em relação a essas validações, existencial e estética, um dos aspectos
técnicos e metodológicos destacados por Moreno refere-se ao fato do psicodrama
criar um espaço, o palco psicodramático, para o comportamento “desviante” realizar-
230
Gonçalves, 1990.
231
Por exemplo: Naffah (1979), Gonçalves (1990), Fonseca (1980), Perazzo (1994, 1999 e 2009), Almeida
(2006), Contro (2009), dentre outros.
232
Brito, p. 17, 2006.
233
Moreno (1983).
234
Moreno, p. 105, 1983.
68
se e transformar-se. Moreno sustenta que este é um método que inclui a associação
livre da Psicanálise, porém pela ação, fenômeno que torna a subjetividade
revelada.
235
Isolando, esclarecendo e utilizando o mais irritante dos aspectos da terapia, o
da atuação, conseguiu, talvez, a mais original e mais profunda das mudanças
na literatura e na técnica da psicoterapia desde os começos.
236
Mudança essa que não se restringe ao contexto psicoterápico, pois expande-
se para os contextos sócio-educacionais, inclusive o da pesquisa acadêmica. Martin
acrescenta:
Interessa-lhe o atuar e não o resultado da atuação, não a conduta. Quer a
atuação em seu estado nascendi e quer conhecê-la de maneira científica. A
solução para objetivar o subjetivo a novidade de seu método dá-se ao
conseguir que o ator seja ao mesmo tempo experimentador, e que o
observador seja ao mesmo tempo ator.
237
A diferenciação entre as validações feita por Moreno busca clarificar o estudo
dos fenômenos em suas diferentes dimensões, problematizando a cientificidade dos
métodos qualitativos e principalmente da metodologia psicodramática, tendo por
referência uma concepção positivista de ciência.
238
O movimento de busca por validação científica também é percebido entre
alguns psicodramatistas inseridos no contexto acadêmico que procuram, através do
estudo epistemológico e metodológico, desenvolver os conceitos e métodos do
psicodrama, principalmente no que se refere ao seu uso em pesquisas acadêmicas.
Por ser essencialmente um método de ação e, desse modo, de intervenção
individual e social, o processo de inserção do psicodrama na academia é bastante
complexo e muitas vezes questionado. Enquanto método de levantamento de dados
para a pesquisa, o psicodrama é considerado uma alternativa interessante, desde
que com critérios bem especificados. Entretanto, no que se refere à teorização, em
diferentes focos de pesquisa, a validade de seu aparato teórico e conceitual é
bastante questionado e percebe-se a necessidade, entre alguns pesquisadores, de
buscar fundamentação teórica em outras abordagens.
235
Moreno (1983).
236
Comentário de Lynn Smith a respeito da revisão conceitual, realizada por Moreno, do acting out e o seu uso
no psicodrama (Moreno, p.124, 1983).
237
Martin, p.39, 1996.
238
Deve-se considerar o momento histórico no qual Moreno busca a concretização e o reconhecimento
científico/acadêmico de sua teoria e método. Um contexto acadêmico ainda bastante carregado de elementos
positivistas.
69
É fato que, desde seu criador, o psicodrama tem múltiplas faces, teorias e
práticas, principalmente pelas diferentes influências filosóficas e teóricas de Moreno
e, sobretudo, dos psicodramatistas pós-morenianos. Por isso, retomamos a questão
de Brito: “Que psicodrama?”
239
A necessidade de associar a teoria moreniana com
outras abordagens, principalmente na pesquisa acadêmica com metodologia
psicodramática, abre brecha para que essas vinculações sejam falhas e faz com que
seus métodos e cnicas sejam, de certa maneira, usados de forma dissociada da
teorização.
Moreno postula que essas validações (científica, existencial e estética) não se
excluem, são complementares, e devem ser construídas num continuum. Pode-se
apreender de seus escritos que, na teoria e metodologia psicodramáticas, essas três
validações atuam dinamicamente, constituindo assim, uma forma estética (teatro),
científica (sociometria) e existencial (psicodrama) de percepção do fenômeno. E,
podemos acrescentar:
240
estética/filosófica (teatro e encontro); teórica/científica (tele
e sociometria); e existencial/técnica (psicodrama, inversão de papéis e demais
técnicas).
Brito, questionando o que o psicodrama tem a oferecer à Universidade e
como pode se inserir neste contexto, salienta que: “temos a oferecer à pesquisa
universitária um modelo próprio de investigação, uma metodologia de pesquisa
fundamentada na co-criação, na categoria do momento, na criatividade-
espontaneidade”.
241
Além disso, os referenciais teóricos e filosóficos do Psicodrama permitem, por
meio de seus métodos, compreender os emaranhados entre os planos real e
imaginário, do social e do psíquico, tencionando e problematizando os nós desse
emaranhado, pois o Psicodrama aborda as relações interpessoais e intergrupais, e
inclusive as ideologias coletivas. Portanto, percebe-se que o psicodrama, enquanto
metodologia de pesquisa qualitativa, da ordem da pesquisa-ação crítica e da
pesquisa-intervenção, tem amplo alcance como método de pesquisa e de
intervenção social e política.
Contro aprofunda essa problematização afirmando que o psicodrama pode
ser articulado à pesquisa-ação crítica, assim como à pesquisa-intervenção, visto
239
Brito (2006)
240
Conjugando as disposições de Moreno (1983) e Almeida (2006)
241
Brito, p. 23, 2006
70
que, em ambas o potencial de transformação político-social está presente, pois
questionam os jogos de interesse e as relações de poder, e não se constituem como
um modo de re-estabelecimento da ordem vigente.
242
Segundo ele, devemos considerar a pesquisa-ação e a pesquisa-intervenção
“não como métodos, mas como estratégias gerais ou correntes de pesquisa que
podem agregar diversos métodos e técnicas e delinear um instrumento coletivo e
participativo de intervenção.”.
243
Apesar disso, o autor ressalta que existem múltiplas diferenças entre as
estratégias gerais de pesquisa, destacando, principalmente, como elementos da
pesquisa-intervenção, aqueles referentes à análise da demanda (encomenda) e da
implicação.
Entendendo, portanto, as validações científica, existencial e estética,
postuladas por Moreno como complementares e construídas num continuum,
podemos afirmar que o uso da teoria, filosofia e técnicas psicodramáticas possibilita
olharmos, de uma maneira diferenciada para o fenômeno que pesquisamos. Olhar
para as cenas, Papéis e Personagens que se apresentam nas práticas restaurativas
possibilita a problematização do lugar do jovem nos círculos restaurativos.
Com base na teoria e metodologia do Psicodrama, esta pesquisa inclui-se no
modelo de pesquisa qualitativa, a pesquisa-ação crítica. Entende-se que essa
fundamentação filosófica e teórica estabelece que a pesquisa e a prática estão
visceralmente ligadas, pois o pesquisador é co-participante, é parte do objeto de
estudo e está implicado em seus processos ao mesmo tempo em que busca
dispositivos analisadores e processos de mudança grupal, social e política, durante
toda a pesquisa. Aqui, a relação entre pesquisador e pesquisado é entendida como
constitutiva da pesquisa, e não como um aspecto interveniente que deve ser
controlado.
Isso o impede que entendamos que a demanda (avaliação das práticas
restaurativas naquele contexto) trazida pelos solicitantes, no caso, a equipe
responsável pela implantação das práticas restaurativas naquele município estão
sendo colocadas em análise, gradualmente, ao longo da realização desta pesquisa e
do conjunto de pesquisas que compõem o projeto maior. Um exemplo bem
ilustrativo é o caso do lugar institucional pouco legitimado do facilitador, cuja
242
Contro (2009).
243
Contro, p. 22, 2009 (grifos do autor).
71
resistência em participar nos permitiu analisar o mal-estar do grupo e ao mesmo
tempo o desejo de serem acompanhados e vistos.
72
CAPÍTULO 3 OLHANDO PARA OS CÍRCULOS RESTAURATIVOS
COMUNITÁRIOS: OS CONFLITOS NO CONTEXTO ESCOLAR
Este capítulo tem por objetivo apresentar e problematizar a estrutura geral
dos círculos restaurativos e suas etapas de desenvolvimento, tendo por base os
círculos restaurativos que acompanhamos no contexto comunitário de São Caetano
do Sul. Para isso, inicialmente, apresentaremos os procedimentos de análise dos
dados. Em seguida, apresentaremos uma sinopse de cada círculo restaurativo
acompanhado para que o leitor possa apreender o contexto das falas, cenas e
passagens de cenas que serão destacadas. Num terceiro momento,
problematizaremos os tipos de conflito que se apresentam e suas rotas institucionais
até chegar ao círculo restaurativo, tendo em conta os modos como são trabalhados;
momento em que também problematizaremos as ausências de alguns participantes
importantes para o processo restaurativo. Num quarto momento, problematizaremos
as práticas restaurativas no contexto comunitário de São Caetano do Sul e o papel
do facilitador.
I - Dos procedimentos de análise
Os círculos restaurativos foram gravados e transcritos integralmente.
244
As
gravações dos círculos foram escutadas atentamente durante o processo de
transcrição e, após a transcrição, foram lidos diversas vezes. Deste modo,
anotações e observações feitas durante os círculos foram acrescentadas à
transcrição, buscando associar as falas com seus aspectos cênicos, de gesticulação,
troca de olhares e expressões faciais e corporais. Além disso, tanto durante a
observação, como na transcrição e processo de análise, fizemos algumas anotações
de percepções e sensações com base nas técnicas psicodramáticas do Duplo,
Tomada de Papel e Solilóquio.
245
Essas técnicas visam uma aproximação e
aprofundamento, por parte do pesquisador-psicodramatista, dos elementos afetivos
e relacionais dos participantes. Visa ampliar a percepção do pesquisador quanto aos
244
Com exceção do Círculo 1, pois ainda não havia autorização para gravação, apenas para observação do
mesmo e anotações.
245
No contexto desta pesquisa: a técnica do Duplo refere-se à expressão, por parte do pesquisador, do que o
participante do círculo restaurativo, por diversos motivos, não consegue ou não pode expressar; a Tomada de
Papel é o movimento do pesquisador de colocar-se no lugar do participante do círculo; e o Solilóquio é a
expressão, por parte do pesquisador, de percepções referentes aos participantes ou ao círculo restaurativo como
um todo.
73
elementos trazidos pelos participantes e serão considerados de diferentes modos na
análise dos dados. Nos poucos momentos em que essas percepções foram
expressas verbalmente nos círculos restaurativos, elas aparecem nas transcrições;
quando as percepções da pesquisadora não foram verbalizadas nos círculos
restaurativos, aparecem nas transcrições, mas entre parêntesis. Por auxiliarem o
processo de análise, essas expressões se evidenciam no texto que antecede ou
vêm logo após cada cena ou passagem de cena.
O primeiro passo de tratamento dos dados, foi a identificação de cenas,
passagens de cenas ou falas significativas para esta pesquisa: as que evidenciam o
manejo dos círculos e, principalmente, o lugar do jovem nos círculos restaurativos.
Em algumas situações, a relevância do conteúdo apresenta-se pela força de uma
fala, em outras, pela força de um gesto, olhar ou postura corporal. Esses elementos
foram nomeados com títulos que destacam seus principais núcleos de sentido,
processo que nos possibilitou iniciar a construção de dois eixos temáticos:
- Estrutura de desenvolvimento do círculo: tipos de conflitos; rotas
institucionais do conflito; ausências nos processos restaurativos; e algumas
situações problemáticas no manejo dos círculos restaurativos.
- O lugar do jovem nos círculos restaurativos: modos pelos quais os jovens
são referidos e modos pelos quais se apresentam.
Importante destacar que esses eixos temáticos emergem das próprias
passagens destacadas nas transcrições. E, a partir daí, tornam possível mesclar
cenas e passagens, dos diferentes círculos. O corpo do texto de análise passa,
então, a ser organizado o mais no seu aspecto cronológico de acompanhamento
dos círculos, mas sim, em função dos eixos temáticos.
No primeiro grande eixo, focalizaremos o contexto cênico dos círculos
restaurativos e os conflitos de que tratam. Nos círculos, Papéis sociais determinados
são desempenhados: o facilitador, as partes (a que fez o Boletim de Ocorrência e a
outra que recebeu a intimação), seus responsáveis (pai, mãe, irmã, avó) e
convidados (colega, amigo). Transpostos do contexto escolar para o do círculo
restaurativo, estão presentes, também, os Papéis de professor e aluno.
no segundo grande eixo,
246
interessa-nos problematizar o lugar do jovem
no círculo restaurativo e, para isso, focalizaremos na análise os Personagens
246
Este eixo temático será tratado no próximo capítulo.
74
atribuídos aos jovens e/ou desempenhados pelos mesmos. As cenas em que
aparecem são o pano de fundo para esta discussão, visto que, os Personagens
surgem em diferentes contextos: escolar, social e no próprio círculo restaurativo.
É importante destacar que, além dos relatos de cenas conflitivas que deram
origem ao círculo restaurativo, emergem cenas conflitivas vividas no aqui-agora, no
contexto do próprio rculo restaurativo. Cabe frisar também que, nessas cenas,
emergem Personagens outros, que não apenas os Papéis sociais jogados nos
respectivos contextos, Personagens mais ou menos conservados, que tornam mais
complexas as relações nos diversos contextos (escola e sociedade) e no próprio
círculo restaurativo. Aprofundaremos essas discussões, com a análise de cenas e
passagens de cenas que colocam em questão os diferentes Papéis sociais do
jovem: aluno, filho, irmão e seus desdobramentos estereotipados, identificados pelos
Personagens.
Além disso, sempre que pertinente, serão pontuados alguns elementos das
entrevistas realizadas com os facilitadores, sobretudo no que se refere às
perspectivas de continuação das práticas restaurativas naquela comunidade e à
ausência, nas práticas dos círculos restaurativos, de diversos facilitadores
capacitados.
Passamos agora à análise dos círculos restaurativos que acompanhamos.
II - Dos círculos que acompanhamos
As análises referem-se a quatro círculos restaurativos que acompanhamos e
que ocorreram em plantões restaurativos numa escola pública de um bairro de São
Caetano do Sul. Nesses plantões, que continuam acontecendo, os facilitadores
recebem a população da comunidade em busca da resolução de um conflito. Os
casos atendidos podem ser encaminhados pelo Fórum, os quais incluem registro de
Boletim de Ocorrência, ou decorrentes de uma procura espontânea, sem nenhuma
relação com o Poder Judiciário. Todos os círculos restaurativos que acompanhamos
referem-se a conflitos encaminhados pelo Fórum.
Desses quatro círculos que acompanhamos, em apenas dois deles estavam
presentes as duas partes do conflito e pôde-se realizar o pré-círculo e o círculo,
sendo que, em um destes círculos, acompanhamos também o pós-círculo. Nos
outros dois círculos, compareceu apenas uma das partes, que foi ouvida, relatou o
conflito e foi realizado o pré-círculo. Os facilitadores afirmam ser importante acolher
75
as pessoas que vão ao plantão e realizar o pré-círculo, mesmo que a outra parte não
compareça. Não sabemos qual foi o desdobramento de nenhum desses dois casos:
se o círculo foi realizado em momento posterior com a presença das duas partes do
conflito, se o houve mais procura pelo círculo ou se o caso resultou em processo
judicial.
Em um dos círculos que acompanhamos (Círculo 3) havia um grande número
de pessoas presentes, conforme veremos a seguir. compareceu uma das partes
do conflito, constituída por três pessoas, entretanto havia a presença de quatro
facilitadores e três pesquisadoras. Além disso, no início do círculo, uma das
facilitadoras apresentou as pesquisadoras como parte do projeto Justiça
Restaurativa e pontuou novamente que as falas estavam sendo gravadas, sendo
que anteriormente isso havia sido informado aos participantes e eles haviam
autorizado a gravação. Essa mesma facilitadora fez uma longa explicação dos
procedimentos, em postura formal, leu o Código de Boas Práticas, detalhando-o.
Situou a relevância e o histórico do projeto como um todo e, em específico, em o
Caetano do Sul. Essas explicações, ao contrário do que ocorreu nos demais
círculos, foram longas, criando um ambiente mais formal, relativamente aos outros
círculos que acompanhamos.
1. Estrutura de desenvolvimento do círculo
Podemos afirmar que, de forma geral, os círculos restaurativos seguem um
protocolo no qual confluem elementos teóricos aprendidos durante a formação dos
facilitadores e elementos que os mesmos trazem de sua prática, da experiência de
conduzir diversos círculos.
É importante destacar que, independentemente de sua origem encaminhado
pelo rum ou resultante de uma busca espontânea da comunidade o chamado
círculo restaurativo é divido em três grandes momentos: pré-círculo, círculo e s-
círculo.
1- Pré-círculo. Apresentação: Todos os participantes entram na sala, o
facilitador explica o que estão fazendo ali, o que é a Justiça Restaurativa, como
acontece o círculo e as normas de seu funcionamento são lidas.
247
As facilitadoras
248
coletam os dados dos participantes como nome, idade, endereço, telefone e
247
Código de Boas Práticas, apresentado no capítulo 1, parte II.
248
De forma geral, utilizaremos o termo no feminino, visto que este é o gênero predominante.
76
profissão e registram no documento que será encaminhado ao Fórum juntamente
com o eventual acordo firmado no transcorrer do círculo restaurativo. Além disso, as
facilitadoras identificam qual das partes registrou o Boletim de Ocorrência, explicam
que ouvirão cada parte em separado para depois ouvi-las juntas e construírem todos
em conjunto um acordo.
2- Círculo. Com a concordância de todos, -se início ao círculo restaurativo
propriamente dito, que inclui quatro etapas:
- Escuta da parte que registrou o Boletim de Ocorrência, incluindo-se aí a
pessoa diretamente envolvida no conflito e seus acompanhantes.
- Escuta da outra parte, acompanhada das pessoas que convidou.
- Reunião de todas as partes novamente, normalmente acompanhadas dos
responsáveis ou dos convidados. Aqui, primeiro fala a parte que registrou o Boletim
de Ocorrência, depois a outra parte. Nesta etapa, o círculo é conduzido visando o
esclarecimento e o entendimento da natureza do conflito. Nos círculos que
acompanhamos em que estavam presentes as duas partes, as versões do conflito
não coincidiam e as facilitadoras afirmavam que era importante falar a verdade, que
ninguém estava ali para julgar ou ser julgado, mas que seria pela verdade que
poderiam chegar ao acordo.
249
- Construção do acordo, o qual deverá ser elaborado de tal modo que possa
ser cumprido por ambas as partes e satisfazê-las mutuamente. O acordo precisa
abranger a compensação dos danos provocados pelo conflito e ser uma solução
para o conflito, pensando-se em como as partes se relacionarão dali em diante.
Chegando ao acordo, o pós-círculo é agendado pela facilitadora para acompanhar o
cumprimento do mesmo.
6- Pós-círculo. Este acontece após um determinado período, normalmente
algumas semanas. As partes devem comparecer novamente ao círculo restaurativo
para avaliar se foi encerrado o conflito e se foi cumprido o acordo. Caso isso tenha
acontecido, novo relatório é encaminhado ao Fórum e o processo arquivado.
2. Sinopses dos círculos
Cenário dos círculos: biblioteca de uma escola estadual. A biblioteca é uma
sala ampla e bem iluminada, com muitas mesas redondas, cada uma com várias
249
Apresentaremos estas análises a seguir.
77
cadeiras. Tem prateleiras cheias de livros, muitos dos quais são novos. A porta é
dupla, com uma porta comum de madeira e outra de ferro, gradeada e com cadeado.
2.1. Círculo 1:
250
Comparecem as duas partes do conflito. Uma das partes é constituída por um
adolescente de 14 anos e sua mãe. A outra parte é constituída por uma adolescente
também de 14 anos, sua e e a irmã, de aproximadamente 7 anos. Fazem parte
do círculo restaurativo, também, duas facilitadoras e a pesquisadora.
O conflito refere-se à agressão, em sala de aula, do adolescente, que deu um
tapa/soco na cabeça da adolescente, apesar de ambos afirmarem que sempre
tiveram um bom relacionamento. Quem fez o Boletim de Ocorrência foi a
adolescente, pois o tio a levou ao hospital e o médico que a atendeu afirmou que
deveriam fazer o Boletim de Ocorrência. A professora estava em sala, mas os
adolescentes não sabem se ela viu o que ocorreu.
O adolescente afirma que fez isso porque ele estava copiando a matéria do
quadro e ela ficou na frente e, apesar de pedir licença, ela não saiu. Ele é tido na
escola como aluno “de inclusão”.
251
A adolescente conta que ele não tem
dificuldades de relacionamento com os outros adolescentes e que ele mexe com
as meninas, pois tem medo dos meninos. Conta que ele é “ignorante e excluído”.
Ele a havia seguido, a ela e a uma amiga, com uma tesoura na mão, na
saída da escola, momento em que pediram ajuda a policiais que estavam por perto.
A mãe está bastante apreensiva e preocupada com a possibilidade desse conflito se
agravar.
No acordo, realizado sem a presença das mães, ele afirma que poderia pedir
licença a ela com mais educação. A proposta dele de acordo é que ela não fique na
frente do quadro e que ela saia quando ele pedir. A adolescente diz que sairá da
frente do quadro e respeitá-lo.
As mães o convidadas a entrar na sala novamente e as facilitadoras
contam para elas o acordo que foi feito entre os adolescentes.
250
É importante destacar que este círculo não foi gravado, pois os facilitadores ainda não haviam assinado o
Termo de Consentimento (anexo). Entretanto, o uso das anotações feitas foi permitido verbalmente pelos
facilitadores e pelos participantes. Os círculos que se seguiram foram gravados com autorização dos facilitadores
e dos participantes dos círculos.
251
A expressão “de inclusão” refere-se ao processo de inclusão, em salas regulares de ensino, de alunos tidos
anteriormente como “de classe especial”, que incluíam alunos com necessidades especiais de ensino, desde
dificuldades de aprendizagem até diferentes síndromes e deficiências físicas ou mentais.
78
O adolescente pede desculpas à menina e ela diz que não tinha a intenção de
prejudicá-lo, fez o Boletim de Ocorrência porque o médico disse que deveria fazer. O
pós-círculo é marcado para dali a 15 dias.
Depois de 15 dias, comparecem para o pós-círculo. A adolescente e sua mãe
chegam no horário e são ouvidas, confirmam que o acordo foi cumprido e o conflito
cessado, que o relacionamento está melhor. Assinam o documento que será
encaminhado ao fórum e são dispensadas. Quando o adolescente e sua mãe
chegam está em andamento a realização de outro círculo e lhes é pedido que
aguardem um pouco. Depois de alguns minutos, a facilitadora que conduzia o círculo
pede que eu ao local onde os dois estão aguardando, confirme se o acordo foi
cumprido e o se o conflito cessou e, em caso positivo, colha suas assinaturas. Assim
faço. As partes não se encontram no espaço do pós-círculo, mas relatam que se
encontraram nos corredores da escola.
2.2. Círculo 2:
252
Comparecem ao plantão restaurativo o adolescente de 17 anos e sua irmã de
34 anos. Estão presentes também duas facilitadoras e a pesquisadora. Apesar de
ter afirmado em audiência no Fórum que compareceria, a professora (que constitui a
outra parte do conflito) o foi ao círculo. Trata-se de um conflito prolongado entre
professor e aluno, em que o jovem se sente constantemente agredido pela
professora, com insultos verbais. Entretanto, quem registra o Boletim de Ocorrência
é a professora, pois afirma ter sido agredida fisicamente pelo jovem em episódio que
foi por ele relatado no círculo. Após o registro desse Boletim de Ocorrência, o jovem
e sua família também registraram ocorrências de bullying junto à escola e às
autoridades de ensino.
É importante destacar que os fatos relatados no círculo restaurativo referem-
se ao olhar do jovem e da sua irmã, visto que a professora não compareceu. Foi
realizado o pré-círculo com o jovem, onde ele pôde expressar-se porém, o círculo
propriamente dito não ocorreu nesse dia, pois, ultrapassado em pouco mais de 1h o
horário marcado para a sua realização sem o comparecimento da professora, a
atividade foi encerrada pela facilitadora. Não temos informações da continuidade
desse círculo.
252
Apesar de utilizarmos o termo círculo, o que de fato ocorre é o pré-círculo, pois apenas uma das partes do
conflito comparece.
79
2.3. Círculo 3:
253
Presentes ao círculo restaurativo uma jovem de 16 anos, acompanhada de
sua mãe, seu pai e seu irmão de aproximadamente 10 anos, que fica numa mesa ao
lado e não participa, apenas escuta. Além disso, estão presentes quatro
facilitadores, um deles que estava havia bastante tempo afastado da prática e
estava retornando. Ainda estão presentes duas pesquisadoras de mestrado e uma
de graduação, colega de uma facilitadora.
O círculo restaurativo refere-se a um conflito entre a jovem e um rapaz (23
anos), colegas de sala. O conflito inicial entre os jovens se desdobra num conflito
com os pais da jovem, principalmente o pai. Desta forma, inclui dois processos: um
da Vara da Infância e Juventude, que se refere ao conflito entre a jovem e o rapaz e
cujo Boletim de Ocorrência de agressão foi feito pela jovem; o outro, do Juizado
Especial Criminal (JECrim), que se refere a uma ameaça do pai da jovem ao rapaz,
que, por sua vez, faz o respectivo Boletim de Ocorrência, que destacaremos mais
adiante.
Comparece ao círculo restaurativo apenas uma parte do conflito, o rapaz não
comparece. Os relatos são da jovem e de sua família. Percebemos no transcorrer do
círculo restaurativo que o pai fala em poucos momentos. Além disso, ocorre uma
discussão bastante acalorada sobre o conflito entre a jovem e o rapaz, que apesar
de não estar presente, é “representado” por um dos facilitadores que toma seu papel
em alguns momentos. Durante boa parte do círculo ocorrem muitos olhares e falas
paralelas.
Em linhas gerais, a jovem afirma ter sido agredida física e verbalmente pelo
rapaz, que achava que ela tinha feito algum comentário sobre a sexualidade dele.
Ao sair da escola o rapaz foi agredido por outros jovens que “tomaram as dores” da
adolescente. O rapaz chamou a polícia, que aborda a jovem no caminho de casa,
afirmando que ela teria mandado agredi-lo. Ela vai para a delegacia com seus pais,
assim como o rapaz. Lá, o conflito se desdobra e inclui os pais, pois, o jovem sente-
se intimidado pelos olhares e comentários deles em relação a ele. O conflito se
intensifica e se prolonga até o dia seguinte. A jovem passa a não ir mais para a
escola.
253
Também refere-se ao pré-círculo, pois uma das partes do conflito não comparece.
80
2.4. Círculo 4:
Constituem o círculo restaurativo as duas partes do conflito: um jovem de 16
anos com sua avó; e um professor acompanhado de uma professora, que trabalha
na mesma escola. Está presente também uma facilitadora, que está sozinha. As
facilitadoras normalmente trabalham em dupla, porém neste dia as outras não
puderam comparecer. Desta forma, sou convidada a agir como facilitadora. Ela pede
a mim que a ajude se eu achar que é necessário, se eu achar que ela “tá se
perdendo”, afirmando: “você conhece como funciona”. Além disso, no decorrer do
círculo, outra pesquisadora (mestrado na UFSCAR) chega de surpresa e, com
autorização da facilitadora, observa o círculo.
O círculo restaurativo refere-se ao conflito entre o jovem e o professor, que
fez o Boletim de Ocorrência de ameaça. Entretanto, visando resolver um problema
da escola com um grupo de jovens que fazem ameaças, agressões físicas e verbais
e com comportamentos que geram danos patrimoniais, outros 19 adolescentes são
convidados a comparecer ao círculo, juntamente com seus responsáveis. Desses
jovens, apenas um (de 15 anos) e seu pai comparecem, mas participam da parte
inicial de apresentação do círculo, pois não estavam vinculados diretamente ao
conflito entre o professor e o aluno. A facilitadora decide privilegiar a realização do
círculo restaurativo do conflito específico professor-aluno e realizar posteriormente
um círculo restaurativo na escola com a presença dos demais alunos e
responsáveis. De forma geral, este círculo restaurativo se divide nas seguintes
etapas:
1- Apresentação: com a presença de todos, não apresentação do Código
de Boas Práticas como normalmente é feito, apenas a explicação de que serão
ouvidos separadamente primeiro e depois todos juntos.
2- Escuta dos professores.
3- Escuta do jovem com a avó.
4- Reunião das partes novamente. O jovem fala primeiro, depois o professor.
Há uma segunda versão do conflito.
5- O jovem é convocado a assumir seus atos, ser verdadeiro. Fica
evidenciado, neste momento, que a verdade dos fatos precisa aparecer. A avó
questiona professores e escola por não ter conhecimento dos fatos e dos
comportamentos do jovem que estão relatando. Nesse meio tempo, o outro jovem e
81
seu pai, que aguardavam do lado de fora, o liberados, pois participarão do círculo
na escola com todos os envolvidos.
6- Acordo.
Este círculo restaurativo, comparando-se aos anteriores, é mais complexo,
pois estão presentes as duas partes do conflito, que têm versões diferentes dos
fatos e versões que se contradizem e se alteram no desenrolar do círculo. Além
disso, neste círculo fica mais evidente as questões relativa à relação de idade, objeto
desta pesquisa e que será mais profundamente analisada no capítulo a seguir.
Passamos agora a olhar para cada cena ou passagem de cena dos círculos
restaurativos. Entretanto, é importante destacar que, visando preservar a identidade
dos participantes desta pesquisa, seguimos a legenda, abaixo, para as transcrições
de todos os círculos.
III - Dos conflitos e seus encaminhamentos
Após explanação dos aspectos mais estruturais e formais dos rculos
restaurativos e de uma visão geral de cada círculo, por meio das sinopses,
propomos a partir de agora analisar os tipos de conflitos e seus desdobramentos.
Essa análise se faz importante, pois, não nos traz alguns elementos relativos ao
objetivo mais geral deste projeto de pesquisa, que se propõe a problematizar as
práticas restaurativas, como também situa o lugar do jovem em função do tipo de
conflito que o círculo circunscreve.
1. Dos tipos de conflito
Os quatro círculos restaurativos que acompanhamos referem-se a conflitos
ocorridos no contexto escolar, sendo dois deles entre alunos e os outros dois, entre
professores e alunos. Vejamos primeiramente os conflitos, para na seqüência
problematizá-los.
- F1, F2, F3 e F4: Facilitadores
- Ad: Adolescentes ou jovens
- Prof: Professor
- Profa: Professora
- M: Mãe
- P: Pai
- Av: Avó
- I: Irmã
- Pesq: Pesquisadora
82
1.1. Conflito aluno-aluno
No Círculo 1, a adolescente conta que estava na sala de aula durante o
intervalo e que o adolescente passou e deu um soco na sua cabeça, o qual doeu
muito. Relata que a professora estava em sala, mas não sabe se ela viu. Ela e sua
mãe ficaram com medo, pois o adolescente havia seguido a adolescente e uma
amiga, com uma tesoura na mão, na saída da escola, momento em que pediram
ajuda a policiais que estavam por perto e nada aconteceu.
O adolescente relata que deu um tapa na cabeça dela porque ele estava
copiando a matéria do quadro e ela ficou na frente. Ele pediu licença e ela não saiu.
Conta que além deste fato não aconteceu mais nenhum problema entre eles e que a
mãe nunca foi chamada na escola por seu comportamento.
No Círculo 3, o conflito também ocorreu em sala de aula, conforme relata a
jovem:
Ad “Eu liguei pro meu namorado pra desejar boa noite pra ele. ele (rapaz) pegou e me
chamou de vagabunda. Falei: se eu fosse vagabunda eu teria dado pro pai dele. Ele pegou uma
cadeira e falou que ia arrebentar em mim. Eu falei que não era pra ele passar vontade. ele pegou
uma lata de coca cheia e arremessou na minha cara e começou a me xingar de puta, de vadia,
rasgadeira. a professora falou pra mim que ele tinha problema e que o era pra mim ligar. Na
hora da saída os meninos bateram nele e ele falou que fui eu que mandei. (Círculo3)
Este conflito se estende e acaba incluindo a família da jovem, pois o rapaz
afirma ter sido ameaçado por eles enquanto prestava depoimento na delegacia. A
jovem registra Boletim de Ocorrência pela agressão do rapaz e este registra Boletim
de Ocorrência de ameaça do pai da jovem. A agressão ao rapaz por parte de outros
alunos da escola não foi registrada na delegacia.
Percebemos, à primeira vista, nesses conflitos uma relação horizontalizada,
visto que os Papéis sociais de aluno o desempenhados com uma
complementaridade de Papéis simétrica, não hierárquica. Entretanto, olhando mais
de perto, percebemos que em ambos os casos uma verticalização da relação
pelo lugar atribuído ao jovem que, no contexto escolar (o mesmo onde ocorre o
conflito), é considerado de “inclusão” e “com problemas.”.
254
1.2. Conflito professor-aluno
Seguindo a mesma linha de problematização, podemos perceber que os
conflitos a seguir referem-se à complementaridade de papéis professor-aluno, porém
254
Termos usados por educadores, trazidos ao círculo pela fala dos jovens. Veremos que, além de “ter
problemas” e ser “de inclusão” também lhes é atribuído o qualificativo “homossexual,” tanto ao adolescente do
Círculo 1 como ao rapaz do Círculo 3. Discutiremos mais detidamente estes aspectos no Capítulo 4.
83
assimétrica e hierárquica. Aos jovens também são atribuídos Personagens
estereotipados, como: “problema”, “silenciado”, “violento”, dentre outros.
No Círculo 2, percebe-se que há um conflito que vem se prolongando entre a
professora e o aluno. Por diversas vezes o aluno foi colocado para fora de sala e ele
se sente agredido pela professora, pois ela não percebe suas mudanças em relação
ao papel de aluno.
255
No momento em que o aluno nega-se a sair da sala a professora afirma ter
sido agredida física e verbalmente por ele e registra Boletim de Ocorrência. Vejamos
como o jovem relata o episódio:
Ad Ela (professora) falou: O A (jovem) é igualzinho a eles. Educadamente, no meio de todo
mundo, levantei a o, falei: Professora a senhora falando ao meu respeito ou a senhora errou
meu nome? Não. É você mesmo. E me apontou com o dedo. Aí eu fiquei nervoso e falei, mas não em
relação a ela, que eu só tava me f... na mão dela. Eu já tava alterado. [...] Não vou descer que eu não
sou bobo de ficar subindo e descendo toda hora, por motivo besta. [...] Quando eu passei na porta a
professora começou a apontar como se eu fosse cachorro: Vai, vai, vai!!!! eu comecei a me alterar
mais. Aí a tia veio querer me puxar também e falou: Calma A (jovem)! (Círculo 2)
Ao tomar conhecimento das supostas agressões sofridas pelo jovem em sala
de aula, a família registra a ocorrência na regional de ensino.
No Círculo 4, apresentam-se dois conflitos interligados. Um, mais amplo, inclui
a escola como um todo, conforme relata do professor:
Prof Nós estamos tendo um período muito difícil da escola, a direção no período da tarde
perdeu totalmente o controle, qualquer hora que você chega lá à tarde o pátio está sempre lotado. [...]
eles agem em grupo, eles fazem arrastões, depredam a escola, queimam carteiras, a sala de
troféus quebraram os vidros essa semana, jogaram os troféus em cima do teatro, e ele está sempre
nesses grupos. [...] eu fiz o Boletim de Ocorrência. Preciso fazer o Boletim de Ocorrência e quem
sabe a partir daí a gente consiga com o Conselho Tutelar, ou sei com quem, tentar reverter um
pouco, porque a tarde essem controle algum. Professor não consegue dar aula, a própria direção
não consegue mais controlar, porque no início eram sete alunos, parece que agora 18. [...] Depois eu
até gostaria de saber como é que a gente vai fazer pra ajudar a escola nesse sentido, porque a gente
não pode contar muito com a direção.
F1 Se a gente fosse até a escola, pra fazer o trabalho lá, será que a direção da escola
permitiria?
Prof Permite, porque sem controle. Eu acredito que permite. [...] Claro que tem todo um
problema todo de direção, essa direção nova, de 2000 pra cá, você vai entender porque tudo isso,
passaram 9 diretores por lá. Porque as direções efetivas elas tem cargos na Prefeitura ou no
Estado, não ficam lá, então cada ano muda de direção. E a diretora que hoje tá lá, teve um
problema na escola e ela chamou os pais, que não deveria chamar, chamou pra uma reunião, porque
a gente sempre resolveu, a gente sempre teve problema . [...] Ela chamou todo mundo e ainda
chamou os pais pra vir ajudar, na madrugada, tudo... Aí foi um desastre, de lá pra cá perdeu
totalmente o controle. quem sofre? Os professores que estão na sala de aula, os inspetores, essa
inspetora, por exemplo, não sei se vocês ficaram sabendo, jogaram vidro na cara da professora, ela
fez até um Boletim de Ocorrência, depois ela entrou em depressão e não voltou também mais, no dia
da audiência ela nem foi porque estava doente. Ela ficou com um calombo, então essa é a situação
na escola. O que a gente precisa agora é socorro, que vocês ajudem a gente. Eu acredito que não
haverá empecilho da direção. [...] Porque muitos professores não são efetivos, estão o primeiro ano
na escola, pronto, ficam apavorados, ou faltam, faltam, ou vêm e não conseguem ministrar aula.
255
Discutiremos este aspecto mais detidamente no eixo temático referente ao Personagem aluno “problema e
silenciado”, no Capítulo 4.
84
[...] Nós tivemos reunião na diretoria de ensino, protocolamos, pedimos audiência, mas não
nos atendeu, mas mandou a supervisora, ficamos um dia das 9 da manhã aas 4 da tarde. A gente
fez tudo que podia, eu sou efetivo desde 2000. E a gente sempre lutou lá, muda a direção a gente
acompanhando. Teve um episódio com a inspetora que um dos alunos, [...] jogou manteiga na
cara dela. De lá pra ela perdeu a moral totalmente: ó fulana, ó na sua testa tem manteiga. Então
acabou com a vida dela, acabaram com a vida dela.
F1 – Antes tinha lá o trabalho de Justiça Restaurativa?
Prof Tem o pessoal que fez o curso, mas não pratica, precisa do apoio da direção, se não
tem apoio aí... Se a escola o abre espaço, então, buscar outro espaço que possa chamar esses
alunos, porque como eles foram listados, se não acontece nada, aí pronto.
F1 Porque eu junto o outro grupo de facilitadores e a gente vai até a escola e conversa.
(Círculo 4)
Chama atenção o abandono em que se encontram os profissionais desta
escola, onde não conseguem desempenhar seu papel social de professor, visto que
têm de se desdobrar na tentativa de controle dos atos de vandalismo ou violentos no
interior da escola, sem terem formação nem recursos estruturais para isso. A
constante mudança da diretoria da escola parece resultar numa “falta de direção”, no
sentido de que não linha de resolução dos conflitos escolares, apesar de haver
um grupo de facilitadores dentro da própria escola.
Com o agravamento desses conflitos, o único caminho encontrado pelos
professores é recorrer à polícia, através do registro de ocorrência e,
conseqüentemente, à Justiça, onde são encaminhados à Justiça Restaurativa.
Depositam no grupo de facilitadores comunitários suas esperanças de que
algo seja feito.
Essas demandas da escola, representada pelos professores, incluem um
conflito entre um dos professores e um dos alunos, identificado como integrante do
grupo de alunos que depredam a escola. O professor afirma que o jovem o ameaçou
e registra Boletim de Ocorrência. Vejamos:
Prof Na verdade no dia não houve xingamento, votava com a lâmpada, pedi a lâmpada,
naquele momento não teve xingamento, você não me xingou, e eu também não. Uma semana
depois, [...] falei que esse era o menino que estava com a lâmpada. Foi a partir daí que você foi
agressivo comigo. Quando você foi pra ante-sala que você me chamou pra porrada. Eu fui pra
sala dos professores, quando eu saí você estava em cima do muro.
Ad – Eu? Não teve nada disso.
Prof – Isso, estava lá em cima do muro você começou novamente chamar pra porrada. Foi a
partir daí, uma semana depois, que eu abri o Boletim de Ocorrência. Nos tumultos você estava
sempre presente. (Círculo 4)
Importante destacar que um conflito geral na escola é singularizado no conflito
com o jovem, da mesma forma, esse jovem passa a representar as ações daquele
grupo como um todo. Torna-se bode-expiatório de toda uma relação conflituosa
existente na escola, entre professores e alunos. Todavia, esta situação abre a
85
possibilidade de trabalhar o conflito mais amplo, no âmbito da escola, por meio da
Justiça Restaurativa.
Voltando a problematizar os conflitos de uma forma geral, chama a atenção
que os conflitos acontecem em espaços escolares, na presença ou com a
participação de educadores, os quais não intervêm para buscar uma solução do
conflito no próprio contexto escolar. O mesmo acontece com os demais funcionários
da escola, como a equipe de direção, que também não costuma intervir nos
conflitos. Os conflitos se agravam e tomam outras rotas institucionais, como veremos
no próximo item.
Essas constatações reforçam análises feitas anteriormente,
256
de que os
conflitos referem-se a “incivilidades”, conflitos do cotidiano que, neste caso do
contexto escolar, poderiam ser resolvidos por mecanismos da própria escola, em
seu espaço institucional. No entanto, isentando-se de sua parcela de
responsabilidade, a escola transfere o problema para o sistema judicial.
Correndo o risco de se judicializar questões escolares cotidianas, colocando a
indisciplina e as turbulências escolares no mesmo patamar do ato infracional.
Se o outro efeito bastante importante de redução do encaminhamento
das situações de conflito escolar ao sistema de justiça propriamente (e, nesse
sentido, uma desjudicialização”), trata-se de argüir e pensar esses outros
efeitos.
257
2. Rotas institucionais do conflito
Neste momento, dando continuidade à análise dos conflitos, tratamos de expor
os caminhos institucionais que percorrem. Consideramos importante destacar esses
percursos, visto que os conflitos acompanhados nos círculos ocorreram no contexto
escolar e, na maioria das vezes, em escolas onde existem professores ou
funcionários capacitados em Justiça Restaurativa. Entretanto, apesar de poderem
ser trabalhados no próprio contexto escolar, tanto pela coordenação escolar quanto
pelos facilitadores de Justiça Restaurativa, acabam sendo encaminhados às
delegacias e ao Sistema de Justiça.
No Círculo 1, a adolescente afirma que, após o tapa/soco sentiu muita dor, que
chorou muito e seu tio foi buscá-la na escola e, por esse motivo levou-a ao hospital.
O médico que a atendeu afirmou que eles deveriam fazer um Boletim de Ocorrência.
Assim fizeram, foram à delegacia e registraram a queixa, que foi encaminhada ao
Fórum e, após audiência, à Justiça Restaurativa. A escola não tomou nenhuma
256
Vicentin e Rosa, 2010.
257
Vicentin e Rosa, p.12, 2010.
86
providência em relação ao conflito, não chamou os alunos para uma conversa e,
nem mesmo suas famílias.
No Círculo 2, foi a professora que decidiu fazer o Boletim de Ocorrência, que
desencadeou a audiência no Fórum e o círculo restaurativo:
Ad A diretora não teve nem tempo de... quer dizer, ela o podia parar ela (a professora),
era um direito dela. Ela foi direto pra delegacia fazer um Boletim de Ocorrência, nem a diretora
sabia o que era. No outro dia, ela veio com o boletim. (Círculo 2)
A escola não pôde construir nenhuma alternativa para a resolução do conflito,
visto que a professora não abriu a possibilidade de diálogo, procurou os meios
legais.
Apesar disso, nesse caso houve comunicação entre a direção da escola e a
família, que percebeu interesse da diretora em buscar soluções e apoiá-los. Porém,
não houve uma conversa entre todas as pessoas envolvidas, apenas uma conversa
particular entre o jovem e a professora.
258
O conflito desencadeou, ainda, denúncias
da família junto às autoridades de ensino. A respeito dessas denúncias não temos
informações acerca de seus encaminhamentos, tampouco a família.
No Círculo 3, é o rapaz quem toma as providências, procurando a polícia e,
novamente, a escola não toma nenhuma atitude:
Ad – Aí ele chamou a polícia pra mim, aí eu chamei meu pai, como eu sou de menor.
Chegando na delegacia fomos fazer corpo de delito. Voltamos e conversamos com o delegado e ele
acusou meu pai de ter ameaçado ele, só que meu pai não fez nada. (Círculo 3)
A família da jovem descreve em detalhes as cenas da delegacia e do Fórum,
tem conhecimento de cada papel desempenhado (delegado, escrivão, Juiz,
promotor, advogado) e dos procedimentos. A e da jovem conta que o policial a
chamou e aconselhou a não fazer a ocorrência, que “é melhor deixar passar”, mas
ela insistiu que, se foi aali, queria que escutassem os jovens, pois não estava ali
para perder tempo.
Além disso, a mãe da jovem relata como foi a ida até o hospital, para fazer
exame de corpo de delito. A recepcionista as encaminha para a assistente social,
que faz perguntas referentes à relação dos pais da jovem e pergunta se a jovem
sofre violências no contexto familiar. Não sabemos o contexto nem os termos dessas
intervenções da assistente social, mas parecem indicar uma busca de causas
familiares para o conflito.
259
258
Como veremos no próximo capítulo.
259
Trabalharemos este relato completo no próximo capítulo, no item referente à família.
87
Além disso, contam como foi a audiência no Fórum e o encaminhamento para
a Justiça Restaurativa:
M – Aí a promotora disse, que ele (adolescente) agrediu ela, ela passou a ofendê-lo, o negócio
da sexualidade dele e que meu marido ameaçou ele com o olhar. Mas meu marido nem recebeu
intimação. [...] Ele (rapaz) começou a se abanar e dizer: vamos resolver logo isso, que eu não tenho
tempo a perder. E começou a debochar da cara da promotora.
Ad a promotora perguntou: o senhor (rapaz) quer dar como encerrado o caso e levar pro
conselho restaurativo ou prolongar aqui. ele falou assim: Não, não quero nenhum dos dois. ela
falou: você não tem que querer alguma coisa aqui, você tem que escolher: conselho restaurativo ou
levar adiante? Ele: conselho restaurativo (com ar de deboche). (Círculo 3)
Percebemos, pela fala da jovem e sua família, um descaso do rapaz envolvido
no conflito. Relatam que ele não foi à primeira audiência, atrasou na segunda e não
foi ao círculo restaurativo, o que causa incômodo à família. Além disso, com base no
relato, podemos supor pelo modo como a promotora solicita a “escolha” do rapaz,
que não não houve uma escolha consciente pelas práticas restaurativas como
não se buscou engajar as partes do conflito no diálogo e na resolução do conflito.
No Círculo 4, o professor decide registrar o Boletim de Ocorrência, após
conversar com outros funcionários da escola e estes confirmarem que o jovem não é
bom aluno e que faz parte do grupo que depreda a escola.
Quanto à participação dos outros alunos que fazem parte do grupo,
percebemos, durante o círculo restaurativo, duas falas bastante diferentes:
Ad O Juiz falou pra eu chamar meus amigos que tavam do lado. que chegou na
diretora, ela mandou eu dar os nomes. os nomes que eu dei bateu com a lista dela, que ela já
aproveitou pra entrar no acordo com a escola. O nome que eu dei, duas meninas, na hora que
eu fui falar com a diretora, aí a professora puxou a folha, aí um monte de nome. Ué porque tudo isso?
Ah eu já vou aproveitar que abriu esse negócio aí pra conversar, eu já vou aproveitar e já vou mandar
todo mundo pra ouvir e não aprontar mais na escola
Prof O Juiz pediu: A (jovem) você sabe quais são os alunos? Ele: sei. Então você vai na
direção, conversa e vai dar os nomes, até tem um aluno aqui que ficamos sabendo até o ameaçou,
fiquei pensando, nossa o Juiz falou isso! Porque é um problema. O Juiz pediu pra aqueles alunos que
estivessem dando problema na escola que comparecessem hoje aqui. Razão pela qual a direção
convidou todos aqueles alunos que de uma forma ou de outra se envolvem em pichação, etc., que
viessem hoje aqui. (Círculo 4)
Podemos perceber que o “convite dos amigos” e a “convocação dos alunos
‘problema’” se confundem nas falas e, claramente, referem-se a práticas com
objetivos opostos: ao que parece os jovens, inicialmente, se vêem convidados ao
diálogo, entretanto, os relatos evidenciam que, para os adultos, eles são convocam
ao interrogatório. Registre-se que em um momento do círculo, faço a seguinte
intervenção:
Pesq – E todos esses foram convocados pra audiência?
Prof Pra hoje, com o Juiz, só foi com esse. O Juiz disse A (jovem) você sabe quem são os
outros alunos? Ele disse, sei. Então você conversa com eles pra comparecer no dia 24.
Pesq – Aí foi a própria escola que fez a convocação pra esses outros alunos?
Profa – Fez o convite. (Círculo 4)
88
Faço questão, neste momento, de usar o termo “convocação”, para marcá-lo e
problematizá-lo, pois é de fato isso que ocorre nesse contexto. Entretanto, a
professora presente me corrige.
De forma geral, podemos afirmar que o roteiro institucional seguido pelo
conflito inicia-se na escola, em um dos casos passa pelo hospital, e em todos chega
à delegacia. Dali é encaminhado ao Fórum e posteriormente ao plantão de Justiça
Restaurativa.
O que pudemos observar é que, a partir do momento em que o Boletim de
Ocorrência é registrado, a rota entre as instituições não pode mais ser interrompida.
Afirmamos isso porque a professora do Círculo 2, por exemplo, afirma que iria tentar
reverter o processo, mas não consegue. Além disso, também no Círculo 1, a
adolescente arrepende-se de ter registrado o Boletim de Ocorrência, afirma que não
queria prejudicar o adolescente, mas não sabia das conseqüências do registro da
ocorrência.
3. Das ausências
Passamos a problematizar, neste momento, as ausências nos círculos
restaurativos. Participantes que, convidados, faltaram e outros que deveriam ter sido
convidados, mas não foram. Além dos facilitadores que se afastaram da prática logo
no início, em momentos de conflito no grupo ou aos poucos, no cotidiano da prática.
3.1. Das partes do conflito
Conforme foi exposto, em dois dos círculos que acompanhamos uma das
partes do conflito não compareceu ao plantão restaurativo. Apesar disso, as pessoas
que compareceram foram acolhidas pelos facilitadores e, enquanto aguardavam a
chegada da outra parte, passaram mais de uma hora fazendo o pré-círculo, expondo
o conflito, nisso, suposições para as faltas iam sendo feitas:
F1 – Ficou certo que ela viria aqui hoje?
Ad – Ficou certo. Ela confirmou.
F2 – De certo ela ta dando aula, né?
F1 – Tá tendo aula hoje?
I – Então, achei estranho porque o Juiz marcou...
Ad E ela falou que era melhor aqui, às 2hs de bado. Como ela marcou nesse sábado é
porque ela não tem compromisso, né? Aí eu já não sei... onde ela tá, né?.
F1 – É. Às vezes atrasou.
F2 – Rhum!! (vou fazer de conta que acredito!!! E muda de assunto...)
Depois de aproximadamente uma hora de conversa com o jovem e sua irmã:
89
F1 Como ela não chegou, então, vou dar um tempo ainda, pode ser que ela atrasou por
algum motivo. A gente um tempinho, quem sabe ela ainda aparece... às vezes ela ainda tendo
aula...
F2 – Sei lá... uma reunião...
F1 – Tá tendo aula?
Ad É, aula de manhã vai até 12:30, se ela tiver alguma aula à tarde pra repor, eu
não...
F2 – Só se ela dá aula em outra escola também, né?
Ad – É não sei acho que é meio difícil...
F1 – A gente aguarda um pouco pra ver se ela vem, porque se ela vier a gente já faz tudo hoje,
senão eu vou entrar em contato com ela e ver o dia que ela possa vir até aqui e eu peço para vocês
voltarem novamente.
F1 – É, se ela dá aula à noite... tem alguma reposição pra dar... Ou às vezes atrasou por algum
motivo também, né?
Ad - É, não sei.
F1 – A gente não sabe, mas a gente vai aguardar um pouco. (Círculo 2)
Neste pré-círculo, evidencia-se a tentativa de encontrar justificativas para a
falta da professora. Uma das facilitadoras faz este papel, enquanto a outra alterna
entre as justificativas e o deboche em relação às desculpas imaginadas.
No Círculo 3, o rapaz não comparece e a família, após mais de uma hora
relatando o conflito, afirma:
P Porque a pessoa que fala que não tem tempo a perder, ele teria que aqui no momento,
como vocês que tão aqui. Se ele tá levantando o problema ele teria que tá aqui junto com nós.
M Vocês podem chamar, ouçam ele e eu venho na conclusão. Não quero, não vou me
sentir bem, porque o que ele falar... eu não gosto disso. Chamá-lo, esclarecer o que ele fez, pronto e
acabou. Agora eu não sei o que a justiça vai...
F4 O Juiz deu uma chance pra que vocês entrassem num acordo, então eu acho que, se
tivesse uma outra vez, vocês teriam que vir, pra coisa não atravessar o ano...
M – Pára e pensa junto comigo, na primeira audiência ele não foi, na segunda....
F4 – Mas você tá fazendo a sua obrigação que é vir... é mais fácil você ficar na frente do Juiz?
M – Eu, como não tenho nada a temer, então na frente do Juiz...
F1 – O que funciona aqui... o que eu vou relatar? Que vocês vieram, vocês vão assinar que é a
prova que vocês estiveram aqui. Segunda-feira eu vou entrar em contato com o Fórum avisando que
o rapaz não veio, pegar o telefone eu vou conversar com este rapaz. Ele vai ter que vir até aqui.
Ele não vai ter muita escolha não. A gente vai ouvir o lado dele como estamos ouvindo o de vocês.
Posso ouvir o lado dele e depois ligar pra vocês pra virem fechar aqui. Pode ser assim?
Ad – Pode.
M – Pode. Se eu tiver um compromisso não vou adiar
F1 Um horário que pra todo mundo, que vai ter que acontecer. Mas que o Juiz vai ter
ciência que vocês estiveram aqui e ele não... pode ficar tranqüila que é documentado. Qualquer
atitude que nos percebemos que ele zombando, nós não vamos permitir isso, porque ele também
zombando da gente que aqui trabalhando. Nós vamos respeitá-lo e ele vai respeitar a gente
também. Pode ficar tranqüila, a gente vai manter a ordem aqui. Da mesma maneira que a gente não
vai discriminá-lo ele também tem que respeitar a gente aqui. (Círculo 3)
A família, inicialmente, não aceita retornar ao plantão restaurativo, pois percebe
descaso na atitude do rapaz. Sentem-se desrespeitados por suas constantes faltas e
atrasos e se mostram desgostosos com isso. Além disso, relatam cansaço por
estarem ali relatando o conflito depois de trabalhar a manhã toda, em pleno sábado.
Desagrada-lhes o fato de que, depois de mais de uma hora de conversa, nada foi
90
resolvido e deverão voltar ao plantão restaurativo porque o rapaz o compareceu.
A situação parece agravar o conflito, conforme vimos na fala da mãe.
Nos dois casos, a pessoa que fez o Boletim de Ocorrência não comparece. O
pré-círculo é realizado com os presentes, pois os facilitadores afirmam ser
importante acolher quem comparece. Entretanto, o pré-círculo desgasta as pessoas,
é muito longo, e parece criar um clima mais conflituoso entre as partes, pois as
“vítimas”
260
, que seriam as interessadas, não estão presentes. Nas pesquisas
realizadas anteriormente,
261
um dos jovens entrevistados também relata a ausência
da “vítima”.
Mostra-se relevante pesquisar o motivo das ausências. Medo, resistência a
enfrentar o conflito ou o “agressor”? Não podemos afirmar com certeza, não foi esse
o objeto de nossa pesquisa, mas assim mesmo parecem-nos motivos prováveis.
3.2. Da escola
Em todos os círculos que acompanhamos, apesar da origem dos conflitos
situar-se invariavelmente no âmbito escolar, a escola como instituição esteve
ausente, sobretudo a equipe de direção. O único círculo em que profissionais da
escola estiveram presentes, representando-a, foi o Círculo 4, no qual dois
professores compareceram, sendo que um deles era parte diretamente envolvida no
conflito e a outra foi acompanhá-lo. Eles trazem as demandas dos funcionários da
escola em relação à equipe de direção e ao comportamento dos alunos, conforme
vimos anteriormente:
F1 – E da parte da direção você sabe me dizer se vem alguém?
Prof – Não, não vem. (Círculo 4)
Nos conflitos dos círculos 1 e 3, que não incluíam diretamente funcionários da
escola, pois eram conflitos entre jovens, percebe-se que havia, no momento do
conflito, professores presentes na sala de aula. Entretanto, esses professores não
foram convidados a participar do círculo restaurativo, tampouco a equipe de direção.
No Círculo 3, a família da jovem está preocupada com a possibilidade de
agravamento do conflito. Como não encontram ninguém que se responsabilize por
solucioná-lo, desempenham seu Papel de pais e buscam a única solução que lhes
parece possível:
260
Usamos aqui o termo “vítima” apenas para diferenciar o autor do Boletim de Ocorrência da pessoa que foi
intimada (agressor). Entretanto, temos o entendimento, como na Justiça Restaurativa, que ambos fazem parte do
conflito, que é inter-relacional.
261
Vicentin e Rosa, 2010
91
P Eu penso assim, o rapaz tem 23 anos e ela tem 16. Por mim eu taria pegando aula junto
com ela porque à noite eu não faço nada no momento...
Ad – Mas a promotora falou que isso não é...
P- Eu como pai qual é a saída que você tem? Você vai esperar o cara terminar de matar o seu
filho ali dentro da escola? Tirei fora. Tá com falta justificada.
M – A promotora falou que não é pra nós acompanhar, que a escola que é responsável.
P –Aí eu vou falar uma coisa pra vocês. Eu estudei numa época, que vocês estudaram, que
quem resolvia o problema era o professor da escola. Na minha época pegava os dois, expulsava da
escola e cada um pro seu lado. Como hoje em dia estamos numa situação em que o governo não
nem aí, a parte de policial também não preocupado, a alternativa que nós tivemos no momento,
pegar ela e tirar ela um pouco da escola, mesmo porque, ela com problema no joelho. Você se
afasta pra evitar os problemas. Esse menino ele não em consciência, vão me desculpar.
(Círculo 3)
A facilitadora intervém e afirma que poderá entrar em contato com a escola
para mudar a sala da jovem, procurando separar os jovens que estão em conflito,
pois já fizeram isso nesta mesma escola, não é a primeira vez:
P Se não é o primeiro caso, onde a direção pra resolver os problemas? fica difícil,
porque se acontecendo direto problema dentro da escola, a direção não tomando as devidas... a
escola não faz nada, vai pra fórum e a gente vai ficar nisso aqui. Vocês não acham que a escola
não tá fazendo a parte dela? Como é que é? (Círculo 3)
A mãe da jovem é professora, sabe que diversos professores foram
capacitados como facilitadores e questiona o motivo do círculo restaurativo não ser
realizado na própria escola onde ocorreu o conflito. A facilitadora explica o
remanejamento de professores que fizeram a capacitação, fato que dificulta o
trabalho, além da direção afirmar que falta respaldo. Por isso, muitas escolas têm
professores capacitados, mas que não realizam o círculo. Afirma que a própria
escola onde são realizados os círculos restaurativos da comunidade tem
facilitadores, os quais, no entanto, não fazem os círculos e encaminham para o
grupo que atende a comunidade.
Da ausência da escola na resolução dos conflitos, podemos problematizar
alguns aspectos:
As escolas se eximiram de resolver o conflito no próprio contexto escolar pelos
“mecanismos e digos de gestão da própria escola (conselhos, orientação
pedagógica e inclusão de temas relacionados à justiça e cidadania em seu
currículo).”;
262
Muitos conflitos escolares são encaminhados ao plantão comunitário de Justiça
Restaurativa por escolas que têm educadores capacitados na metodologia
restaurativa. Nesses casos, apesar de terem à disposição esta outra metodologia de
resolução de conflitos, as escolas não a utilizam;
262
Vicentin e Rosa, 2010.
92
A ausência de participação de um representante da escola nos círculos
referentes aos conflitos que ocorreram dentro de sua instituição impossibilita uma
mudança de olhar a respeito do conflito e das pessoas envolvidas. Dessa forma,
professores, diretores e coordenadores continuam estranhando os registros de
Boletim de Ocorrência e os jovens envolvidos continuam com o estigma dos
Personagens que desempenham ou lhes são atribuídos, como veremos no próximo
eixo temático.
Percebe-se, portanto, que a deserção da escola na resolução dos conflitos
possibilita a criminalização de conflitos ou, conforme destacamos anteriormente,
de incivilidades que, ao invés de serem trabalhados no próprio contexto escolar,
seguem o mesmo caminho dos atos infracionais, postos no mesmo patamar.
263
3.3. Dos facilitadores
Pudemos constatar no transcorrer da pesquisa
264
que os facilitadores que
ainda estão atuantes na prática de Justiça Restaurativa na comunidade estão
sobrecarregados. Isso em função do afastamento de muitos dos quase 30
facilitadores que foram formados. De modo geral, apenas estas três facilitadoras
conduzem o trabalho que ocorre às quartas-feiras à noite e bados durante o dia
todo, na comunidade. Uma delas está sempre presente e as outras duas se alternam
para acompanhá-la. Além delas, apenas uma outra facilitadora que comparece
algumas vezes e um facilitador que está retornando à prática após um longo
afastamento. A demanda de trabalho é grande e essas facilitadoras, principalmente
a que coordena o trabalho, estão visivelmente sobrecarregadas.
No Círculo 4, fui convidada a participar como facilitadora. Isso porque as
facilitadoras sempre trabalham em dupla e naquela ocasião apenas uma delas
estava presente. A facilitadora presente afirma que eu já sei como funciona a Justiça
Restaurativa e pede que eu a ajude, caso perceba que ela está com dificuldades. A
situação se complica porque esse foi um círculo bastante complexo, com muitos
participantes e uma nova pesquisadora chegando de surpresa (os facilitadores são
sabiam do seu encaminhamento, por parte do Fórum, para observar os círculos).
263
Vicentin e Rosa, 2010.
264
Incluímos aqui, para esta análise, alguns dados das conversas e entrevistas feitas com os facilitadores, visto
que problematizam a atuação destes e a continuidade das práticas no contexto comunitário de São Caetano do
Sul.
93
Outro fator que parece influenciar na falta de facilitadores é o progressivo
estreitamento do campo da prática após o processo de capacitação para os
facilitadores que tinham menor disponibilidade de tempo e participação. Como os
facilitadores devem acompanhar cada processo restaurativo do começo ao fim,
muitas vezes compareciam ao plantão restaurativo e o podiam participar, pois o
circulo em andamento se referia a um processo restaurativo em curso. Outro fator,
ainda, refere-se, por exemplo, a necessidade de limitar o número de facilitadores
presentes em cada círculo restaurativo, que eram muitos no começo.
De acordo com os facilitadores, contribuíram também para seu afastamento
problemas pessoais, de saúde e a ausência de remuneração. Em relação à
remuneração, alguns facilitadores afirmaram precisar escolher entre as práticas
restaurativas e um trabalho que lhes rendesse o sustento financeiro, atividades que,
em algum momento, tornaram-se incompatíveis.
Houve falas também que destacaram a necessidade de reconhecimento do
trabalho realizado pelo facilitador, por parte da família, comunidade e outras
instituições, como o próprio Fórum e equipe de capacitação.
Um aspecto também bastante destacado pelos facilitadores foram as
divergências dentro do grupo de facilitadores. Alguns desejavam a constituição de
uma Organização Não-governamental responsável pelas práticas e que pudesse
buscar recursos financeiros, além do reconhecimento das instituições.
Outra divergência destacada foi na condução dos círculos restaurativos, tanto
em relação às particularidades das inter-relações como em relação à condução do
próprio círculo restaurativo. Assim, os facilitadores que se afastaram da prática
afirmam perceber uma apropriação do campo da prática por parte dos que
permaneceram, e se sentem, em certa medida, excluídos das práticas.
O que pudemos perceber desses encontros e conversas com os facilitadores é
que estes se sentem abandonados pela equipe responsável pelo projeto, apesar de
compreenderem a necessidade do afastamento.
Além disso, percebe-se também entre os facilitadores a atribuição de
Personagens e estereótipos, assim como aos outros participantes dos círculos
restaurativos. Fato este que interfere nos movimentos de olharem-se para além
destes Personagens de facilitador “coordenador”, “evangélico”, “jovem”, “doente”,
“sem tempo”, “que coloca lenha no conflito”.
94
De forma geral, o que podemos problematizar em relação aos afastamentos
dos facilitadores é que entre eles houve um conflito e que as partes desse conflito
não puderam utilizar os recursos das práticas restaurativas para cuidarem de seus
próprios relacionamentos, construírem acordos e modos de funcionamento que
incluíssem o respeito e a participação de cada parte. O caminho foi o afastamento,
com prejuízo afetivo nas inter-relações e para a implementação das práticas
restaurativas nessa comunidade de São Caetano do Sul.
IV - Alguns aspectos problemáticos do manejo do círculo
1. Buscar a verdade ou construir responsabilização?
Um dos aspectos relevantes percebido nos círculos em que estavam presentes
as duas partes do conflito foi a necessidade de encontrar uma verdade sobre o
conflito. Nos dois casos em que estavam presentes as duas partes, cada parte
apresentou uma versão e uma não foi confirmada pela outra.
No Círculo 1, uma das facilitadoras afirma que precisa falar a verdade, é mais
rápido”. O foco do círculo permanece na intenção de encontrar a verdade e não no
diálogo entre as partes, inclusive com as mães, visto que na maior parte do círculo
elas não estavam presentes, apenas foram comunicadas, ao final do círculo, do
acordo que foi estabelecido.
Neste círculo, podemos considerar que a diferença entre as versões do conflito
ocorre em função dos diferentes olhares para o fato. Não necessariamente um deles
está mentindo ou distorcendo os fatos, cada um olha para o conflito do seu ponto de
vista, com o seu olhar.
Uma alternativa para resolver esse problema é apresentada pela facilitadora:
F1 – O problema tem que ser resolvido por partes. Então eu vou colocar agora o professor aqui
e a professora que aqui também. Ele vai falar o lado dele, você vai ouvir, a mesma coisa depois,
você vai falar o seu lado, ele vai ouvir, vocês vão tentar esclarecer o que aconteceu, e pra ver
como é que pode ser feito a partir de hoje pra que não aconteça isso novamente, tanto da sua parte,
quanto da parte dele. Você se colocar no lugar dele e ele se colocar no seu, tá bom? (Círculo 4)
Nesta passagem, percebemos a intenção da facilitadora de possibilitar que os
participantes coloquem-se no lugar do outro. Essa metodologia, apresentada pela
facilitadora, aproxima-se da técnica psicodramática de inversão de papel. A técnica
poderia auxiliar no diálogo entre os participantes, na problematização do conflito e
numa possível mudança relacional, pois cada participante poderia colocar-se
emocionalmente no lugar do outro e perceber seus afetos, a relação e o conflito de
95
uma forma mais ampla. Mas o que percebemos, no transcorrer do círculo, é que este
você se coloca no lugar dele e ele se colocar no seunão se configura como uma
real inversão de papéis, pois é racionalizada, não permite uma aproximação afetiva
do outro. O que de fato acontece é um entender o que o outro está dizendo,
perceber as conseqüências dos fatos para o outro, mas não é de fato uma inversão
de papéis, em que um se coloca afetivamente no lugar do outro.
Este mesmo aspecto também é percebido no transcorrer do rculo 4,
destacado anteriormente, em que cada participante (professor e aluno) continua
olhando para o conflito do seu ponto de vista, sem considerar os afetos do outro.
Fica a questão da dificuldade do foco do círculo restaurativo deixar de ser a verdade
dos fatos e passar a ser o diálogo e a compreensão do conflito e como ele afeta as
pessoas e relações envolvidas e, até mesmo, a família e a comunidade.
Em apenas um círculo restaurativo pudemos acompanhar um facilitador que
problematizou o conflito, procurando aprofundar a discussão a respeito do conflito,
antes que o acordo fosse realizado. Vejamos:
F4 A (jovem), posso fazer uma pergunta? É bem simples o que eu vou perguntar pra você.
Reflita na hora de responder. O garoto foi agredido por alguém que é do seu conhecimento, alguém
que você conhece.
Ad – Não, olha, não! É...
F4 A (jovem), presta atenção! Alguém que você conhece... tanto é que essa pessoa (rapaz)
disse que iria ser agredido novamente. Pode até ser mentira, mas a priori ele foi agredido por um
grupo de pessoas ao qual você conhece.
Ad – Foi o grupo da sala....
F4 no outro dia de aula essas pessoas devem ter comentado. Você sabe mais ou menos
quem são essas pessoas. Tem que ter pelo menos uma idéia...
Ad Não, duas pessoas eu sei que foram da minha sala, que ele até chamou a polícia para
essas duas pessoas. (a jovem se exalta, começa a falar mais alto e interrompe a fala do facilitador)
F4 – Ah bom...
Ad – A polícia até perguntou: por que você bateu nele? Porque ele agrediu a menina e isso não
é certo, homem bater numa mulher.
F4 – Perfeito! Então tá...
M – Não, a direção sabe quem foi, não foi omitido...
F4 – A priori a A (jovem) disse assim: eu não sei quem foi...
(M e A falam junto com F4, todos falam alto, se exaltam.)
F4 Essa pessoa vai ficar com essa mágoa... como ela disse. E ele vai ficar perseguindo ela.
Agora vocês não têm que tirar ela da escola de forma nenhuma!
P – Tem duas soluções, ou eu tiro ela ou vai acontecer coisa pior.
F4 Não, eu acho que você tem uma solução, sua filha tem que continuar indo a aula e você
acompanhando, seu papel de pai é esse.
P – Não, sempre foi meu papel de pai que eu tava levando e buscando ela. Agora, você é pai?
F4 – Sou avô.
P – Se o cara fosse bater na sua filha você ia sentir como? Chega numa situação...
F3 – Um de cada vez...
(o posicionamento mais assertivo do facilitador incomoda Ad e a família) (Círculo 3)
As intervenções do facilitador neste caso são bastante interessantes, pois
podemos problematizar alguns aspectos referentes à condução do círculo
96
restaurativo. Esta cena acontece quase ao final do círculo e até este momento a
jovem afirmava não saber quem havia agredido o rapaz. Entretanto, parecia aos
participantes do círculo que ela conhecia os “agressores” do rapaz. Esta intervenção
do facilitador, apesar de ter a intenção de chegar à verdade, como discutimos
anteriormente, possibilita, principalmente, a problematização do conflito. Visto que os
jovens que agrediram o rapaz fazem parte desse conflito, porém, não estão
presentes no círculo restaurativo e, em nenhum momento, foi questionada a
necessidade de suas presenças.
Outro aspecto relevante nesta cena refere-se ao fato do facilitador convocar os
pais em sua responsabilidade de garantir o estudo e a segurança da filha. Isto
porque a solução encontrada pela família foi retirar a jovem da escola, usando como
argumento o fato de que ela precisa fazer uma cirurgia, como veremos mais a frente.
Entretanto, esta não é considerada a melhor solução para o conflito, visto que a
jovem ficaria sem estudar e o conflito permaneceria apenas adormecido, silenciado.
Parece, durante o círculo, que o facilitador está dificultando o processo
restaurativo, pois, aparentemente, o atua buscando a pacificação do conflito, ao
contrário, problematiza-o. Isso causa um mal-estar nos presentes, inclusive nos
facilitadores que buscam intervir acalmando os ânimos que se exaltaram. No
entanto, nosso entendimento é que, de fato, quando segue o caminho de
problematizar o conflito, o facilitador está agindo de acordo com atribuições relativas
ao seu papel. Em nenhum outro momento que acompanhamos pudemos perceber
intervenções como esta, que problematizam o conflito e ampliam o olhar de todos
sobre a natureza e as características do conflito.
Na maioria das vezes, pudemos perceber que os conflitos são silenciados pela
intervenção dos facilitadores, com a intenção de apaziguar os ânimos e chegar ao
acordo e à pacificação, evitando-se assim o confronto direto entre as partes, aspecto
que, porém, reputamos como essencial para o processo de diálogo, explicitação do
conflito e restabelecimento da relação. Entendemos que somente depois dessa
problematização do conflito e de sua análise será possível mudar realmente as inter-
relações e formalizar-se um acordo genuíno e aplicável.
É o que também não acontece, por exemplo, no Círculo 4, onde o jovem é
silenciado nas suas pontuações referentes ao funcionamento da escola e
comportamento dos professores. Suas queixas e as questões que lhe incomodam no
97
contexto escolar não são ouvidas ou problematizadas, conforme veremos mais à
frente.
Este aspecto foi destacado nas pesquisas anteriores realizadas pelo NEVIS.
A ansiedade às vezes percebida em buscar a pacificação das relações e o
estabelecimento de um acordo pode, muitas vezes, mascarar os conflitos. Nosso
posicionamento é de que a paz não significa ausência de conflitos.
E o conflito não pode ser analisado apenas pelo lado negativo, mas sim como
um aspecto fundamental das relações, que desestabiliza a ordem, que
quebra valores, normas, leis e, com isso, permite a transformação da
sociedade.”
265
Além disso, em diversos momentos dos círculos restaurativos, os facilitadores
têm falas em que afirmam seu propósito de não julgar os comportamentos das
pessoas envolvidas.
F1 Senhora, a questão não é nem pagar, aqui não... pena, nada, o que a gente quer é que
ele (jovem) se conscientize do que ele fez e daqui pra frente não faça mais. Pra mim não tem certo,
não tem errado, não tem nada disso, passado a gente não apaga, não tem borracha pra apagar,
aconteceu, aconteceu. (Círculo 4)
Entretanto, por maior que seja o esforço de ser imparcial, conforme a filosofia e
metodologia da Justiça Restaurativa, sabemos que esta é uma ação bastante
complexa, pois, de fato, os facilitadores expressam dimensões morais nem sempre
congruentes com o lugar de imparcialidade dele exigido, como veremos a seguir.
2. A complexidade do papel de facilitador:
Em alguns momentos, percebe-se a facilitadora influenciada pelo seu Papel
social de mãe e educadora.
F1 – [...] Então evitar, porque a escola é de vocês mesmo, é um patrimônio de vocês, vocês tão
pra aproveitar, fazer as coisas. Então tudo que acontece, quebrar uma porta, escrever na parede,
tudo é prejuízo pra vocês mesmo. Os funcionários tão lá pra limpar, merecem respeito, porque não é
um trabalho fácil, os professores também, da mesma maneira que respeita o pai, a mãe, tem que
respeitar também, como você é como aluno também merece respeito. [...] O prejudicado nessa
escola é você mesmo. Que nem, a sua mãe trabalha pra sustentar você tudo. Você tá se
prejudicando e você tá dando prejuízo pra sua mãe, na sua mãe. (Círculo 4)
Na passagem que veremos a seguir, percebe-se uma série de perguntas feitas
em seqüência ao jovem, logo no início do círculo. A cada pergunta da facilitadora o
jovem responde “não”.
266
F1 Como é que você é como aluno na escola? Vai sempre nas aulas, não falta muito? Tem
problema de disciplina, da mãe ser chamada de vez em quando? teve algum incidente com outro
professor na escola? Você costuma responder, trata com educação, como é que é o seu
265
Vicentin e Rosa, p. 10, 2010.
266
Veremos esta cena de forma completa no capítulo seguinte, entretanto torna-se relevante trazer, neste
momento, alguns elementos referentes ao posicionamento do facilitador.
98
comportamento? Em momento nenhum você ameaçou o professor? Nunca aconteceu de pegar você
pichando? Porque você não precisa ter medo, aqui é informal, tudo aquilo que acontece é bom você
falar, e sempre procura falar a verdade porque vai te ajudar e vai esclarecer a situação. Então o
teve nenhum incidente, nenhum episódio? Depois que aconteceu isso, não teve outro incidente com
esse professor que fora? E como é que você se porta na aula de Educação Física? o tem
problema com o professor? Nunca teve problema de disciplina? Nunca teve problema com os
menores da quinta, sexta série, assim? Então fora o incidente da lâmpada dentro do banheiro, depois
disso não aconteceu mais nada? Então fora isso não aconteceu nada? (Círculo 4)
O que podemos perceber, aqui, é uma sobreposição de Papéis, onde o
facilitador identifica-se com os professores, no que se refere aos comportamentos do
aluno. Pelo efeito Cacho de Papéis,
267
elementos dos demais Papéis sociais, no
caso o de professor, são carregados para o Papel de facilitador. Além disso, essa
identificação da facilitadora com o Papel social de professor possibilita a ela olhar
apenas para o papel complementar desta relação, o de aluno. Não possibilita,
portanto, o encontro entre a facilitadora e o jovem como parte do conflito.
267
Termo do Psicodrama que estabelece que características, comportamentos e afetos de um papel social são
transferidos para outro papel social.
99
CAPÍTULO 4 - QUANTO AO LUGAR DO JOVEM NOS CÍRCULOS
Passamos agora à análise do lugar do jovem no círculo restaurativo. Para
tanto, organizamos o capítulo buscando apresentar, inicialmente, os modos pelos
quais os jovens são referidos nos círculos restaurativos, utilizando-nos neste
momento, principalmente do conceito psicodramático de Personagem. O jovem,
portanto, olhado pelas scaras de Personagens nos diversos contextos: escolar,
familiar e do círculo restaurativo. Posteriormente, seguimos nos utilizando do
conceito de Personagem para problematizar os momentos em que o jovem é
convidado ao diálogo no contexto escolar ou do próprio círculo restaurativo e a sua
participação no processo de construção do acordo restaurativo.
Em seguida, problematizamos como o jovem é afetado pelo conflito e pelos
Personagens que lhe são atribuídos. Ao final, problematizamos o lugar atribuído à
família em relação ao conflito, nos contextos escolar e do círculo restaurativo e como
ela se posiciona em relação ao jovem e demais participantes dos círculos
restaurativos.
Entendemos que o conceito psicodramático de Personagem mostra-se uma
interessante chave conceitual para problematizar os aspectos relacionados ao
estereótipo do jovem, para além dos papéis sociais que estão em jogo. Os
Personagens que trazemos aqui são os que se evidenciam no contexto escolar,
onde ocorreram os conflitos, e no próprio contexto do círculo restaurativo. Os papéis
sociais de aluno, filho, irmão e neto são adjetivados pelos termos “problema”,
“violento”, “homossexual”, “silenciado”, “excluído” e “de inclusão”. Em algumas
situações, são Personagens aceitos e desempenhados pelos jovens, em outros não,
são atribuídos ou impostos aos mesmos.
I - Dos modos pelos quais os jovens são referidos
1. O Personagem aluno “problema”
Percebe-se que este Personagem, este aluno “problema”, seja por ser
“repetente”, “excluído” ou “de inclusão” é evidenciado nos quatro círculos
restaurativos que acompanhamos. Este Personagem, desempenhado ou atribuído a
aos jovens, justifica cada ação deles ou contra eles. Uma boa definição deste
Personagem é dada por um professor no círculo restaurativo:
100
Prof Mas ele é um aluno retido (repetente), dava problema desde o ano passado, entra
na sala de aula quando quer, sai quando quer, não tem limite algum, ele já tem 191 faltas. Ó, a ficha
dele, olha as notas. [...] Então, eu conversei com os professores, e os professores relataram o
comportamento, que ele faz isso o tempo todo, ele tumultua a sala de aula, ele enfrenta professor...
(Círculo 4)
No Círculo 1, a diretora afirma à família da adolescente que foi agredida, que o
adolescente “é de inclusão”, mas a adolescente diz que não nada de diferente
nele. Apesar de afirmar que ele é “ignorante e excluído”. Interessante observar que o
uso destes dois termos “de inclusão” e “excluído” para referir-se ao mesmo
adolescente problematiza os modos pelos quais a política educacional de inserção
dos alunos das antigas “classes especiais” nas salas de ensino regular tem ocorrido.
Esta atribuição, por parte da diretora, do termo “de inclusão” ao adolescente
evidencia esse aspecto e é utilizado para justificar comportamentos do adolescente,
que é o primeiro a entrar e o último a sair da sala de aula, pois demora muito para
copiar a matéria do quadro e, por isso, os outros alunos ficam “mexendo com ele”.
O Personagem aluno “problema” evidencia-se também no próprio círculo
restaurativo quando, por exemplo, uma das questões relevantes a ser feita no círculo
restaurativo é a seguinte:
F1 – Esse ano você acha que tem as notas? Vai dar pra passar?
Ad No que depender de mim vai. (risos de todos) Minha disciplina não era muito boa, mas
esse ano mudou, bem responsável, me aplicando bastante e eu faço o máximo pra o tomar
ocorrência. Até agora só tenho 3 ocorrências, que é dela. dela. Três ou quatro esse ano.
(Círculo 2)
Podemos perceber que este Personagem pode se tornar conservado de tal
forma que permanece enraizado no jovem, estende-se para outras relações
escolares e no próprio círculo restaurativo. Assim, em diferentes contextos, este
jovem é visto por esta mesma lente, por este Personagem:
Ad – Eu não era um aluno disciplinado na classe.
F1 Reconhece que era um aluno bagunceiro? De... (pensa e recoloca a questão) bagunceiro
na classe?
Ad – De falar na classe.
F1 – Conversa muito?
Ad – Conversava.
F1 – Atrapalhava?
Ad – Atrapalh... Aquele que tá conversando comigo. Isso eu reconheço. (Círculo 2)
Essas questões podem ter relevância para compreender o contexto do conflito,
visto que, neste caso, refere-se à relação professor-aluno. Mas qual o sentido do
jovem “reconhecer”, no sentido de confessar, num círculo restaurativo, este
Personagem que lhe é atribuído no contexto escolar?
101
Mesmo quando procuram recriar mais espontaneamente este Personagem,
adjetivar o Papel social de aluno com outros aspectos, percebe-se que o
Personagem aluno “problema” já apresenta um grau bastante elevado de conserva:
F1 – “Pode falar... o que ela falava pra você?”
Ad “Que eu sou um idiota, burro, não entende, vai querer repetir de novo? Eu nunca reagi.”
Ela (professora) chama aos alunos de irresponsável, repetente, que não tem jeito, era, que
desistiu desses alunos, se abrirem o bico na sala de aula vai mandar pra baixo pra tomar advertência,
suspensão, que não quer ver mais a cara de ninguém. Eu não entendo a reação dela (professora). Eu
não dou motivo pra ela me tratar assim. Eu dei sim... o ano passado, esse ano não. Minha irmã
falava: mostra que você é uma pessoa diferente. Mas não dá, não dá!! Depois de três meses a
pessoa não reconhecer a outra, não teve jeito né? Porque todos os professores falavam comigo: Não
é porque você é repetente que você não tem capacidade. E isso me incentivou, menos ela. (Círculo
2)
A complementaridade de papéis, no caso da relação professor-aluno, mantém
o jovem preso a uma relação assimétrica e hierárquica na qual as mudanças
conquistadas pelo jovem no Papel de aluno não são percebidas. Permanece
atrelado ao seu Personagem, no qual não mais se reconhece. Curioso, é que essa
conserva não ocorre na relação entre o jovem e outros funcionários da escola:
Ad Não falando que a escola não teve atitude contra mim... teve. Eu fiz um ato errado. Eles
tiveram atitude, ligaram pra minha mãe, conversaram, eu fui repreendido pela escola, mas as
professoras todas falaram: Nossa! O Jonathan? A escola tratou a imprudência minha e dela com
delicadeza. Sabendo que eu não sou um aluno problemático, de desrespeitar um professor. (Círculo
2)
Em um dos círculos (Círculo 4), o único em que professores presentes,
relatórios e documentos de desempenho escolar foram apresentados para fortalecer
os argumentos dos professores a respeito do Personagem aluno “problema”.
Prof Olha o que eu sei aqui no relatório, as notas, as faltas, olha, ele tem 191 faltas, é
muita falta. [...] estou aqui com o relatório do professor de Educação Física, você jogou 3 bolas pra
fora da escola. A senhora é avó? Olha as notas dele? Ele tem uma nota azul em Educação Física
que é fácil mesmo. (Círculo 4)
Em outro círculo (Círculo 2), apesar da professora não estar presente, o jovem
também comenta o mecanismo documental para o controle da disciplina do aluno
“problema”.
Ad Ai que me revoltava mais ainda porque essa anotação você fala... não é advertência, não
é suspensão... mas chega no final do ano, no conselho isso pesa. Se ficar de três matérias eles faz
dois conselhos pra cada aluno, e puxa a ficha, e as minhas anotações, conversou, de tititi,
levantou sem permissão... (Círculo 2)
“Ser excluído” por outros alunos também é destacado nas narrativas dos
jovens:
F3 – Ele te agrediu sem nada?
Ad – repete a versão anterior.
F4 – A (jovem), você tem que voltar um pouco no tempo... deve ter tido algum atrito entre vocês
dois que você deixou despercebido ou que você não prestou atenção, alguma coisa deve ter
acontecido...
102
(Conversas paralelas entre facilitadores e olhares entre eles)
M A professora me relatou que ele é excluído, a turminha ali e ele na dele. quando ele
pediu silêncio a menina lá da frente falou alguma coisa e ele achou que foi ela.
F4 – É, é o que eu falei. Uma coisa gratuita assim... é impossível acontecer....
(Todos falam juntos)
Ad – não tem o que eu tenha feito, mesmo sendo despercebido. Eu sento com a pessoa e peço
desculpas.
F4 Dona F3 e dona F1 (facilitadoras), o que o eu vejo é assim, ele é uma pessoa isolada,
ela tem o grupinho dela, tem os amigos, então é isso aí que tá incomodando, pelo menos, a priori, é o
que eu tô vendo e sentindo. (Círculo 3)
É interessante perceber nessa fala de um dos facilitadores (F4) que ele busca
colocar-se no lugar do rapaz que não está presente, fazendo uma Tomada de
Papel
268
e tentando aproximar-se afetivamente do rapaz ausente e problematizar o
conflito.
Percebe-se também que o rapaz, além de ser considerado “excluído” no
contexto escolar, exclui-se do círculo restaurativo, ou é excluído por elementos que
podemos supor, como destacamos anteriormente, por medo ou por não valorizar ou
compreender a importância do processo restaurativo.
É importante destacar que, em ambos os casos em que a exclusão se
evidencia, ela aparece vinculada à homossexualidade do adolescente. Isto fica
explícito na fala dos participantes do Círculo 3, enquanto no Círculo 1 nada é
explicitamente comentado, apenas perpassa os entreolhares e os não-ditos dos
participantes. Aprofundaremos esta análise no tópico sobre o Personagem
“homossexual”.
2. O Personagem jovem “violento”
O único círculo em que o jovem não é apresentado por este Personagem
“violento” é o Círculo 2, vinculado diretamente ao Personagem anterior, do aluno
“problema”. É possível que ele realmente não desempenhe este Personagem ou,
simplesmente, que não lhe seja atribuído. Até por que, a professora que fez o
Boletim de Ocorrência de agressão física o estava presente no círculo. Se ela
estivesse talvez o Personagem “violento” também fosse atribuído ao jovem.
Nos demais círculos, este Personagem é atribuído aos jovens pelos adultos,
como familiares das “vítimas,” professores, facilitadores e polícia.
No Círculo 1, percebemos a mãe da adolescente bastante apreensiva com o
conflito entre os adolescentes. Está preocupada com a possibilidade dele continuar
268
Técnica Psicodramática.
103
e se agravar, pois antes do conflito o adolescente a havia seguido a ela e uma
amiga com uma tesoura na mão.
A facilitadora pergunta se a adolescente tem receio dele, ela afirma que não,
que sempre tiveram um bom relacionamento e parece não identificá-lo com este
Personagem, apesar das preocupações da mãe e da facilitadora.
A cena a seguir evidencia os Personagens “violentos” e apresenta os aspectos
cíclicos da violência e os desdobramentos do conflito:
Ad Ele falou que eu que falei (algo em relação à sexualidade do rapaz), que eu tava no
celular. Por isso que os meninos se revoltaram. Foi que bateu nele e ele falou que foi eu que
mandei. Sendo que...
F1 – Os meninos que bateram são da sua sala?
Ad Então ele falou que fui eu que mandei, que foi meu namorado, sendo que meu namorado
nem tava lá.
F4 – As pessoas que tomaram as suas dores? Quem são essas pessoas?
Ad – Foi da escola, que eu não sei... porque eu não tava na hora que bateram nele, eu tava
indo embora. [...] a polícia veio e falou: ei mocinha, foi você que bateu nele? Foi você que
mandou? Foi a sua gang que bateu nele?” Aí eu falei assim; “eu não tenho gang nenhuma senhor.” Aí
ele pegou e falou assim: “ah, você bateu nele”. “Não, não bati [...] quem me bateu mesmo na sala foi
ele”. Aí ele já começou: “Eu não agredi ninguém, eu não agredi ninguém!” Aí eu fiquei alterada: “Claro
que você me bateu. Você arrebentou uma lata na minha cara.” Eu o tenho porque mentir. (Círculo
3)
E na seqüência retoma:
Ad Então, eu conheço as duas pessoas, mas o resto eu não... eu não podia generalizar “eu
conheço o grupo”. E a escola falou que pode dar uma advertência verbal, que cada ação tem uma
reação.
M – Os meninos vieram conversar com a gente, eles não admitem isso lá no grupo, de bater...
Ad o querendo... generalizar e ofend... (ela interrompe) mas é periferia ali, tem pessoal
da periferia lá. Imagina um... um bandido vê o cara batendo... bandido que é bandido não aceita!
F4 Não, eu já não vejo assim. Você está muito extremada! As pessoas da periferia o
pessoas do bem! (facilitador se exalta com o comentário preconceituoso da jovem)
Ad – Não, eu não tô... não... (os dois falam alto juntos)
F1 – É porque ele tem um outro.... (tenta amenizar)
F4 – É... uma visão diferente...
M – Eu entendo o que você tá querendo dizer, hoje os alunos não vão pra escola pra estudar, a
gente sabe disso... eu sou educadora.... os meninos falaram: não foi ela que provocou. Então os
meninos tomaram as dores por ela. Ela sabe quem tava ali, mas chegar e indicar... ela vai
comprando briga... quer dizer, nós fomos pra defender e a filha da mãe nos entregando. Ela sabe,
foi o grupo, ela o mandou. [...] Porque ele também sabe... porque ele que foi o causador da
situação, toda ação tem uma reação, provocou... (Círculo 3)
Os jovens que agridem o rapaz (da gang, como é afirmado pelo policial),
desempenham este Personagem “violento” e são identificados por ele, são
Personagens rígidos, conservados, ficam presos a ele e precisam desempenhá-lo,
são os responsáveis por garantir que um ato violento seja cobrado com mais
violência.
A família reforça que a jovem não deve identificar quem agrediu o rapaz, pois o
que reina é a lei da vingança, de que toda ação tem uma reação.”. Quando a jovem
destaca que ali é periferia” reforça este Personagem, tão atrelado ao jovem de
104
periferia, onde os conflitos são resolvidos pela violência e devem ser silenciados
para as autoridades (escola, polícia, família). As pessoas por detrás do Personagem
“violento” devem, neste caso, ficar ocultas.
Os jovens “da gang” estão atrelados, para além do Personagem “violento”, ao
Personagem “bandido”, que diz de sua maior vinculação com a violência. Parecem
mais estruturalmente identificados ao Personagem “violento” e, portanto, um
Personagem aceito e, possivelmente, valorizado, apesar do ocultamento
proporcionado pela jovem. o rapaz tem uma atitude violenta que, como veremos
adiante, está atrelada ao seu Personagem “homossexual”, aparentando, desta
forma, ser muito mais uma atitude defensiva dele.
Podemos perceber, inclusive, certa hierarquia entre os Personagens “violento”
e “bandido”, entre o rapaz e a “gang”. Possivelmente porque, para os jovens da
“gang” o Personagem “bandido” parece ser aceito, desempenhado, e, em certa
medida, valorizado, portanto, é um Personagem que, por ser mais estrutural, repete-
se em outras relações e Papéis sociais desses jovens. O mesmo não ocorre com o
rapaz. Outro aspecto é que uma organização de grupo, que potencializa a ação,
ao contrário do rapaz, que agiu sozinho e, de forma geral, lhe é mais atribuído o
Personagem jovem “excluído” e “homossexual” do que o “violento”.
Vejamos como as marcas do Personagem “violento” aparecem na fala da irmã
de um jovem que não se identifica com o Personagem:
I A gente não sabia se ela tinha feito mesmo o ato (registrar o Boletim de Ocorrência). Então
a gente ficou nessa, esperando. E foi uma semana muito difícil, que ele entrou em depressão, ficou
sem comer, ficou sem nada ele ficou muito mal. Tanto que tinha até conversado com a coordenadora
e ela queria que ele fizesse acompanhamento com psicóloga, tudo mais... que ela ia encaminhar e
queria trocar ele de horário e ele chegou ao ponto de dizer que não queria mais ver a cara da
professora. Isso ficou quase uma semana, que ele queria mudar de escola, queria mudar de escola e
eu forçava ele a ir à escola, falei: “Não! Você vai pra escola! Você não é o errado!” E ele falava assim:
“Agora eu sou fichado! Eu sou um marginal! Agora qualquer coisa que eu vou fazer eu tenho um BO
lá”. Era isso que ele falava e ainda hoje fala. Que por causa dela ele tem um BO sem ter feito
praticamente nada. (Círculo 2)
Chama atenção o fato de esta marca, ter um Boletim de Ocorrência”, jogar
imediatamente o jovem no estereótipo do Personagem “violento”. Atua como uma
máscara, que não permite o relacionamento com o jovem por detrás dela, definindo,
assim, a forma pela qual muitas pessoas se relacionarão com ele a partir de agora.
O fato deste Personagem ser tão negativamente olhado pela sociedade pode, em
situações futuras, servir até mesmo de motivo e “justificar” ações violentas contra
ele, como em intervenções policiais, por exemplo. Assim, muitos jovens preferem e
buscam manter esta marca em segredo.
105
3. O Personagem “homossexual”
Em dois dos círculos restaurativos que acompanhamos, pode-se perceber que
são atravessados por aspectos vinculados a sexualidade dos jovens participantes.
Ambos referem-se a conflitos entre colegas de sala de aula e são marcados pela
exclusão desde aluno, ao qual é atribuído o Personagem “homossexual” e pelo qual
os jovens são identificados por seus colegas.
No Círculo 1, apesar de não ficar explícito nas falas dos participantes, percebe-
se que este aspecto fica como não-dito, nos olhares trocados entre os participantes.
Percebem no adolescente alguns “trejeitos”, como gestos e maneira de se expressar
atribuídos ao Personagem “homossexual”. Não podemos afirmar até que ponto este
Personagem é conservado e transferido, pelo efeito Cacho de Papéis, para outros
Papéis sociais deste adolescente. Entretanto, fica evidente que no contexto escolar,
em seu Papel social de aluno, este Personagem se destaca e é um dos motivos de
sua exclusão pelos demais adolescentes da sala.
Ao final deste círculo, as facilitadoras acreditam que seria necessário
encaminhar o adolescente para atendimento psicológico. Apesar de não explicitarem
claramente o motivo do encaminhamento, parece que o mesmo está vinculado ao
Personagem “homossexual”, atribuído ao adolescente.
No Círculo 3, as falas referentes a este Personagem “homossexual” ficam mais
evidentes:
F1 – Ele alguma vez já demonstrou algum tipo de interesse por você? Que você tenha
percebido?
Ad – Teve uma vez que ele falou que eu era linda e que minha pele era bonita. Só isso.
(longo silêncio) (tosse)
F1 – Tem namorada esse menino?
Ad – Ele? Não.
F1 – Nunca se insinuou pra você?
Ad – Só essa vez.
F2 – Por que você acha que ele fez essa agressão em palavras pra você?
Ad Então, ele disse que eu ofendi a sexualidade dele. que quem falou foi a minha colega
e foi ai que ele começou a me xingar, porque ele pensou que eu que tinha falado, que eu não
tenho porque falar porque eu tenho homossexuais na minha família, então eu não sou desse tipo de
pessoa, porque minha mãe me deu educação. (silêncio)
F1 – Ele é... ele tem algum... (trejeito)
Ad – Boatos que correm na escola... que ele é homossexual. (Círculo 3)
Novamente a atribuição deste Personagem é dada pelos “trejeitos”, ou seja,
formas de se comportar, gestos, aspectos cênicos deste Personagem. Inicialmente,
questionam o interesse do rapaz pela adolescente, para depois ela esclarecer que o
Personagem “homossexual” é atribuído ao rapaz pelos colegas, através de boatos
que circulam na escola.
106
Outro aspecto referente à sexualidade é destacado no círculo desta mesma
adolescente:
Ad Eu acho assim, ele pode ter raiva de mim por algum motivo, eu o fiz nada, sou na
minha, sou quieta. que ele começou a me xingar do nada. Dele ter me tratado mal assim, meu,
machuca, claro, mas o pior é ser ofendida com palavras que você não é. E a escola inteira olhar pra
sua cara e: olha a vagabunda, rasgadeira. (Círculo 3)
Os ataques a sua reputação são percebidos pela adolescente como violências
mais graves que a própria agressão física que sofreu, pois é atribuído a ela um
Personagem com o qual não se identifica e que não aceita.
II - De quando o jovem tem voz e de como ele se apresenta:
Apresentamos, inicialmente, o ocorrido no Círculo 1, visto que, se comparado
aos outros círculos que acompanhamos, este se diferencia por uma maior
participação dos adolescentes. É importante destacar que, num primeiro olhar,
que este foi o primeiro círculo restaurativo que acompanhamos, impressionou-nos
positivamente perceber que, na prática, o método da Justiça Restaurativa estava
sendo aplicado. Isto porque, neste círculo, o foco foi potencializar e dar voz aos
adolescentes, como participantes ativos na explicitação e na resolução do conflito,
buscando melhorar o relacionamento inter-pessoal e cessar o conflito. No entanto, já
naquele momento, questionamo-nos acerca do porquê da não participação das
mães no estabelecimento do acordo.
Um dos argumentos utilizados pelas facilitadoras é o de que, pelo que
percebem na prática, entre os adolescentes o conflito é muito mais rapidamente
resolvido do que com a presença das mães.
Quando os dois ficaram sozinhos na sala, apenas com as facilitadoras, eles se
olharam e sorriram de maneira aparentemente afetuosa. A adolescente caminhou
para se sentar ao lado do adolescente, mas a facilitadora interrompeu e pediu que
ela se sentasse de frente para o mesmo. Esta colocação visou um afastamento
físico dos dois, evitando possíveis agressões, mas principalmente, fazer com que
eles se olhassem nos olhos enquanto conversavam.
Problematizando como a participação dos jovens se nos círculos
restaurativos, foco desta pesquisa Veremos que em outros círculos que
acompanhamos esse foco no diálogo entre as partes não apareceu o fortemente
como aqui. Além disso, fica evidente que a participação dos jovens é atravessada,
tanto no contexto escolar como do próprio círculo, pelos Personagens atribuídos a
107
eles ou por eles desempenhados. Na cena a seguir, descrita por um jovem no
círculo restaurativo, ele é convidado a uma conversa reservada com a professora no
dia seguinte ao conflito:
Ad Eu falei que eu não ia, que eu ia acabar me revoltando de novo e acabar me
prejudicando, piorando minha situação. De tanto ela (inspetora) insistir acabei indo. que eu não
sabia que ía eu e ela. Sentei, abaixei minha cabeça e ela começou a falar, falar... que não
queria ter tido aquela atitude, que nunca me viu daquele jeito. eu expliquei pra ela porque eu reagi
daquele jeito, que eu tava tentando mostrar pra ela o máximo de mim, que eu mudei, não é porque eu
sou repetente que vocês vão ter que ficar me zoando, me dando esporro na sala. Ela me pediu
desculpas, disse que a intenção não foi essa, o que eu precisar ela esta ali pra me ajudar. Veio
querer me abraçar, essas coisas... Não sei porque ela teve essa reação, porque ninguém muda de
opinião assim de um dia pro outro, o rápido assim. Disse que ía fazer o máximo pra retirar esse
Boletim de Ocorrência”. (Círculo 2)
Fica evidente neste relato que o jovem foi convocado a um conversa com a
professora e ele assume, imediatamente, a postura do Personagem que lhe cabe
nesta complementaridade de Papéis (professor-aluno), o de aluno “silenciado”:
abaixar a cabeça e ouvir. Este é o Personagem que é convocado para esta conversa
com o Personagem da professora “autoritária”, que impõe o respeito pela submissão
e silêncio do aluno.
Mas algo acontece no contexto privado:
Ad – A atitude dela mudou 100%.
F1 – Talvez também ela fez uma atitude impensada né?
Pesq – Porque você acha que ela mudou? (busco problematizar a mudança)
Ad Não sei, até hoje não sei o que aconteceu com ela, não sei se ela viu que ela foi um
pouco prejudicada... não sei! Não sei!
F1 Talvez ela fez isso numa atitude impensada mesmo, e depois percebeu... porque na
realidade ela também se prejudicou. Então... vai saber... às vezes...
Ad – É, eu não sei, eu não vou julgar porque eu não sei...
F1 – Então você tem que conversar com ela pra ver o porquê...
Ad – Se ela tá fazendo isso de propósito eu não sei, só sei que o meu ambiente na sala dela
melhorando muito, é isso que eu quero. Se ela gosta de mim... ela não é obrigada a gostar de mim e
nem eu dela. Ela tá trabalhando e minha obrigação é estudar. Então... eu entendendo o que ela tá me
passando e ela entendendo que eu me esforçando é o que importa! Dificuldade na matéria dela eu
tinha... a explicação dela é boa, é boa. que... eu não sei te explicar... aquele... entre eu e ela...
ela... não dá! (Círculo 2)
Chama atenção a clareza do jovem em relação aos Papéis sociais que estão
em jogo na relação, assim como os afetos que a perpassam. Fatos que até então
interferiam prejudicando a relação.
Com a conversa, os dois conseguem rever a complementaridade de papéis da
relação aluno-professor e transformá-la, reconstruí-la mais espontaneamente, sem o
peso nem a interferência dos Personagens desempenhados até então. Para o jovem
não fica claro, ele não entende o que aconteceu, mas percebe a mudança na
postura da professora, e consegue atribuí-la à possibilidade de ela ter se
prejudicado de alguma forma por sua atitude. A professora, retirando a máscara do
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Personagem professor “autoritário”, possibilita que o aluno, no contra-papel, possa
mudar e não desempenhar o Personagem do aluno “silenciado”. Assim, pode
expressar-se e dizer a ela que agora está ouvindo que não desempenha mais o
Personagem aluno “problema”, máscara pela qual era olhado pela professora e que
impedia olharem-se para além das máscaras.
Interessante que esta mudança inter-relacional possa ocorrer numa
conversa reservada. Parece que os demais alunos não podem ver a professora fora
deste Personagem “autoritário”, pois é o meio que ela encontrou de garantir e não
perder o respeito deles.
O jovem estende, durante algum tempo, elementos do Personagem
“silenciado”, para as relações familiares:
Ad – A professora tava me tirando do sério e eu não tava com cabeça de ir pra aula dela.
I – Ele dizia: “Me tira da escola, não quero estudar lá”. Eu não entendia o porquê.
Ad – Porque eu nunca quis levar o conflito, lidar com ela.
I – Eu não entendia que era porque ele tava se sentindo agredido pela professora.
Ad É que eu não levava o problema pra casa porque eu sabia que ela (irmã) ia querer
conversar, e eu conheço, ia acabar me prejudicando. (Círculo 2)
A partir daí, no círculo, começa a se evidenciar que, para deixar de
desempenhar este Personagem aluno “silenciado”, a única solução é a intervenção
de alguém com mais autoridade que ele, com voz perante a professora, pois ele,
sem voz, não pode colocar-se contra um professor:
F1 – Talvez se você tivesse descido na hora que ela mandou, talvez não tivesse... (ela pensa e
recoloca a questão) você acha que talvez não tivesse chegado nesse ponto?
Ad Ah, eu acho que não. Porque se tivesse descido acho que a coordenadora ia chamar ela
e ver o que tava acontecendo. Mas também eu acho que depois de um tempo ela ia continuar
igualzinho. Ela não ia ter... porque é um aluno contra um professor. Acho que a coordenadora ia
conversar com ela e só. (Círculo 2)
Ele percebe que, mesmo assim, ele continuaria sendo visto pela máscara do
aluno “problema” que precisa ser “silenciado”. Como ele afirma: “Ela não ia ter...”
Poderíamos acrescentar à sua fala: “me olhado verdadeiramente”.
A – E outra, ela nunca relatou (pra diretora). Então era tipo na sala, entre eu e ela. O
engraçado é que quando ela entrava na sala todo mundo sentava, não de respeito, de medo. Mas
sempre 3 ou 4 alunos desciam, por implicância dela, achava coisa onde não tinha. O engraçado que
a sala inteira quieta, tipo aquela autoridade, mas sempre saia alguém, sempre. (Círculo 2)
Percebemos aqui o mecanismo de imposição de respeito muito utilizado por
adultos para o controle de crianças e jovens, o medo:
I Nem a escola sabia porque ele o descia pra falar com a coordenadora, ele tomava tudo
pra si e acabou. Ele tentava resolver ele mesmo, entendeu? Uma coisa que é errada. E ele falava
que com todos os alunos ela descia, ele não, simplesmente mandava sair da sala...
Ad Como se eu fosse... Eu ficava enrolando, conversava, fingia que ía na biblioteca,
disfarçava.
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I – Ela nem fazia ocorrência nem nada, ele tinha que se retirar da sala de aula, ficar pra fora, e
às vezes ele tomava advertência por estar fora da aula.
F1 – E agora o que você percebe, quando acontecer alguma coisa? Você tem que fazer o quê?
Procurar alguém. Não tem?
Ad – Procurar alguém... mais... superior a...
F1 Então, no caso sempre tem que descer e falar com o coordenador, direção, alguém.
Porque talvez se tivesse falado desde o começo como você se sentia, o que acontecia, a maneira
que ela te tratava, talvez não tivesse chegado aqui onde chegou. Às vezes a gente por achar que
pode resolver tudo sozinho... às vezes complica, né?
Ad Eu tinha medo! Porque ela fala na sala de aula que não adianta chamar ninguém, que a
gente é uma peste na sala de aula, que quem mandava ali era ela, que podia chamar qualquer um
que ninguém ia passar por cima dela. (Círculo 2)
O medo reforça e mantém o silêncio do jovem, silenciando inclusive qualquer
movimento seu de resistência em relação ao conflito e às agressões sofridas. Além
disso, fica evidente que o sair de sala acaba por reforçar o Personagem aluno
“problema” para os demais professores e profissionais.
O jovem busca evitar o confronto com a professara, silenciando-se por medo,
mas também acreditando que isso apaziguaria o conflito. O que podemos ver é que,
antes da conversa reservada com a professora, ele não encontrou mecanismos para
a resolução deste conflito, pois a evitação do conflito, seja pelo silenciamento, seja
pelo apaziguamento ou distanciamento, não é capaz de cessar um conflito numa
inter-relação.
A prática restaurativa propõe um espaço onde o diálogo sem julgamentos deve
ser privilegiado, onde o jovem tenha voz, assim como todos os participantes,
possibilitando uma mudança relacional e a resolução do conflito.
Vejamos, entretanto, como foi conduzida a escuta inicial
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de um jovem no
círculo restaurativo, contrapondo-se aos círculos que problematizamos
anteriormente neste tópico:
F1 Vamos lá. O que aconteceu? Você levou um Boletim de Ocorrência né? Você sabe que é
complicado né. O primeiro não é pra assustar, é pra alertar. Primeiro o Juiz deu a oportunidade pra vir
pra cá. Se você arruma outra confusão, ou seja, na escola ou com alguma outra coisa que tenha um
outro Boletim de Ocorrência, então a situação pode complicar pra você, bom? Então fala pra mim,
o que aconteceu pra você ter que vir aqui?
Ad Então, foi assim, tinha uma lâmpada lá no banheiro, os meninos tiraram e colocaram de
lado, eu fui no banheiro. os meninos, ah vamo quebrar, eu falei: não quebra. Peguei a
lâmpada, fui entregar pra diretora, ele, eu nem sabia que ele era professor, só sabia que ele ficava
regando as plantas. ele não sei o que, começou a xingar minha mãe, começou me xingar, eu
não agüentei e comecei a xingar ele. Nisso, eu xinguei ele tão pido, mas tão rápido que ele pensou
que eu tinha ameaçado ele, só que eu não tinha ameaçado ele, aí os meninos me pegou, as meninas
me puxaram de lado, eu fui lá e conversei com a diretora, a diretora mandou pedir desculpa pra
ele, tudo, aí depois eu não vi mais ele. Aí depois foi o dia que ele abriu o negócio contra mim.
F1 – Como é que você como aluno é na escola?
269
Esta foi uma cena que ocorreu no início do círculo restaurativo, onde estava presente apenas o jovem e sua
avó. Os professores haviam sido escutados e estavam do lado de fora da sala. Este é o momento em que o
jovem pode expor, por seu olhar, o que aconteceu, o conflito e seus desdobramentos, inclusive afetivos e de
prejuízo da relação em questão.
110
Ad – Regular.
F1 – Vai sempre nas aulas, não falta muito?
Ad – Não.
F1 – Tem problema de disciplina, da mãe ser chamada de vez em quando?
Ad – Não.
(perguntas sobre a lista de alunos e sobre a família não ter sido chamada na escola)
F1 – Já teve algum incidente com outro professor na escola?
Ad – Não.
F1 – Você costuma responder, trata com educação, como é que é o seu comportamento?
Ad É regular como eu disse pra senhora. que assim, quando eu quieto, eu faço tudo
direitinho, quando os outros me provocam, aí, se os professores me xingar, xingar minha mãe, eu
vou responder, não pra xingar assim, só vou discutir, mas não xingar mãe e pai.
F1 – Em momento nenhum você ameaçou o professor?
Ad – Não, em momento nenhum, não ameacei ninguém.
Av – Ele (professor) falou que ameaçou.
Ad Tava no papelzinho do Fórum, ameaça, mas sendo que nem eu ameacei, os meninos
sabem que nem eu ameacei.
F1 Nunca aconteceu de pegar você pichando? Porque você o precisa ter medo, aqui é
informal, tudo aquilo que acontece é bom você falar, e sempre procura falar a verdade porque vai te
ajudar e vai esclarecer a situação.
Ad – Claro.
F1 Então não teve nenhum incidente, nenhum episódio? Depois que aconteceu isso, não
teve outro incidente com esse professor que tá aí fora?
Ad – Não, se teve eu falo.
Av Não, não teve, pelo que ele falou não teve mesmo. Ele não sabia nem porque tinha sido
chamado, ele não sabia.
F1 – E como é que você se porta na aula de Educação Física?
Ad – Normal, jogo bola, tudo.
F1 – Não tem problema com o professor? Nunca teve problema de disciplina?
Ad – Não, de disciplina não.
F1 – Nunca teve problema com os menores da quinta, sexta série, assim.
Ad – Não, também não.
F1 Então fora o incidente da lâmpada dentro do banheiro, depois disso não aconteceu mais
nada?
Ad – Mais nada.
F1 – Então fora isso não aconteceu nada?
Ad – Nada, nem piche, nem nada.
Av Olha, ele apronta se for dentro da escola, se for dentro que eu não vendo.
(Círculo 4)
Ao entrar na sala do rculo, o jovem é percebido pelo Personagem, o aluno
“problema” e “violento” e, como ele não assume os atos que lhe são atribuídos, nega
todos, o interrogatório segue para ver se em algum momento cai em contradição e
este Personagem e a verdade aparecem.
O que percebemos é que a facilitadora, por ter escutado primeiro os
professores que detalharam o Personagem, busca confirmar os fatos relatos pelos
professores, por uma escuta pouco imparcial, que dificulta olhar para o jovem sem
ser por este Personagem. Nesse momento, assim como a facilitadora, sinto minha
escuta e olhar também contaminados pelo Personagem apresentado, apesar de
permanecer em silêncio.
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270
Importante destacar que é neste círculo que sou convidada a atuar como facilitadora. Inicialmente me
identifico, em certa medida, com este Papel. Entretanto, nesse momento não posso fazer nenhuma intervenção,
111
O que se evidencia é que o jovem esconde-se na máscara de “bom moço” que
veste para negar as afirmações do professor, no intuito de camuflar ou mesmo negar
e resistir ao Personagem que lhe é atribuído.
Até esse momento, a avó não conhece o Personagem aluno “problema”, pois
não é jogado no contexto familiar. Mas, após o relato dos professores, no transcorrer
do círculo, é surpreendida pelo Personagem que é atribuído ao jovem.
O “interrogatório” do jovem continua, até o fim do círculo, agora com a
presença de todos participantes:
Prof Então A (jovem), acho que você precisa assumir, eu o estou aqui para, até falei pra
ela, o compromisso que eu quero aqui é de não depredar a escola e mudar de comportamento, ou
seja você vai pra escola pra estudar, pra se promover na vida, porque você este ano já esfazendo
a oitava pela segunda vez. Então você vai pra escola pra estudar, eu acredito que seus pais te
coloquem na escola pra estudar, esse é objetivo. O objetivo não é pra você ficar fora da sala de aula,
não é pra ficar no pátio, no banheiro, é estudar. É isso que a gente quer de você. Se você não
assume isso A (jovem), você que se prejudica A (jovem). Porque olha a escola pra você é passageiro,
nós vamos continuar na escola, você vai ficar um tempo, depois seus pais é que vão tomar conta de
você. Então na escola você vai ficar um tempo e a vida? Na escola você o é xingado, todo mundo
tenta conversar. Professor tem que ser profissional, eu não xinguei você. Eu simplesmente pedi a
lâmpada, eu levei lá, e quando você me chamou pras porradas, primeiro eu conversei com os
professores, se fosse aquilo ali, ficaria por ali, mas você vem fazendo isso desde o começo do
ano, então precisa abrir um Boletim de Ocorrência porque não pode ficar assim. A (jovem) não mente,
você não tava no muro?
Ad – Não.
Av – Você não tava? Então prova pra ele que você não tava. Quem é sua prova?
Ad – Os meninos.
Prof – Ele estava em cima do muro.
F1 A (jovem), lembra que a gente falou, quanto melhor falar a verdade, melhor é pra todo
mundo aqui. Que nem você falou, aula vaga. Aula vaga não conta. Então ele tá dizendo que você
tava em cima do muro, vodiz que não tava, você disse que chamou as meninas pra vir aqui, não
compareceram. Então, mesmo que fosse aula vaga, tem 191 faltas, então é sinal que de algumas
aulas você não participa. O prejudicado nessa escola é você mesmo. Que nem, a sua mãe trabalha
pra sustentar você tudo. Você tá se prejudicando e você tá dando prejuízo pra sua mãe, na sua mãe.
Av E muito, teve o dia do Fórum, ela teve arritmia por causa dessa história, ela tá mal pra
caramba.
Prof Porque você faz isso A (jovem), porque que você não melhora. Você faz a sua parte
olha...
Av Eu perguntando que tem escola que xinga, tem professores que xinga sim, eu to só
perguntando, o senhor não xingou ele?
Prof – Não, se a senhora quiser uma prova, a senhora pode conversar com os alunos...
Av – Eu tô só perguntando pro senhor. O senhor não xingou?
Prof – Não, de modo algum.
Ad – Eu conversei com a diretora e ela falou que você outro dia tinha xingado um aluno.
Av A (jovem), você não tem nada que ver com os outros, nós tamos falando é com você.
(silencia o jovem)
tão confusa que estou pela sobreposição dos Papéis que estão em jogo (pesquisadora-psicodramatista e
facilitadora). Aos poucos, no transcorrer do círculo, posso me distanciar desses lugares, me utilizando da técnica
psicodramática do Espelho, e buscar o Papel que de fato devo desempenhar, o de pesquisadora. Naquele
momento, esta escolha, que me parecia a mais adequada, me distanciou da possibilidade de qualquer
intervenção, pois assumo o Personagem de pesquisadora “positivista”, em silêncio e observando o desenrolar do
círculo. Posteriormente, com a possibilidade de um maior afastamento do campo, avalio que deveria ter atuado
ou o Papel ao qual fui convidada, o de facilitadora, ou o Papel de pesquisadora-psicodramatista, pois ambos me
possibilitariam potencializar a voz de todos e a real problematização do conflito e das relações que estavam em
cena.
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Ad – Ué, se ele xingou um, ele pode xingar dois.
Av – Não interessa. (silencia o jovem novamente)
Prof – Isso pode fazer acareação, pode colocar a diretora na minha frente e ela vai provar isso,
ela terá que provar, eu estou disposto a fazer a acareação.
F1 – Olha nem vale falar essas coisas...
Prof – É.
F1 – Então, e aí o que ele falou que não bate pra você?
Ad – A grade.
Prof – Precisa assumir, ninguém vai punir você porque você está assumindo
F1 – Senhora a questão não é nem pagar, aqui não... pena, nada, o que a gente quer é que ele
se conscientize do que ele fez e daqui pra frente não faça mais. Pra mim o tem certo, não tem
errado, não tem nada disso, passado a gente não apaga, não tem borracha pra apagar, aconteceu,
acontece. (toma a versão do professor)
Ad – Ah um monte de coisa.
F1 – Que coisas?
Av – Fala, você já é grande.
Ad Colocar mais segurança no corredor pra ver mesmo quem apronta e quem não apronta
então, só isso. (fala desconsiderada)
F1 Dessas coisas que o professor falou você acha que não fez nada disso, não
relacionado com nada disso, não estava em cima do muro, não cortou a rede?
Ad – Não, em momento nenhum. (Círculo 4)
Na dinâmica desse momento do círculo, podemos perceber que a facilitadora e
os professores atuam buscando a verdade dos fatos e o movimento, por parte do
jovem, de “assumir” e mudar seu comportamento. A avó tem uma postura neutra,
não se posiciona ao lado de nenhuma das partes, é até mesmo bruta com o jovem,
silenciando-o. O jovem está sozinho, tentando manter um espaço para sua fala, ao
mesmo tempo em que procura escapar da imposição de “assumir” seus
comportamentos e os Personagens impostos. Sua fala é considerada falsa.
É importante destacar que neste círculo, o jovem é representante de um grupo
de alunos que “perturbam” a escola. Não podemos saber por que motivo este jovem
é tomado como protagonista (no sentido de bode expiatório) deste grupo, porém
muitos comportamentos do grupo são generalizados para este jovem. Não podemos,
portanto, perceber com clareza o limite entre o jovem, em sua subjetividade, e o
Personagem aluno “problema” e “violento” associado às generalizações dos
comportamentos do grupo de jovens. Mas de fato, parece não atuar o Personagem
“silenciado” nos diversos contextos, inclusive o escolar, no qual busca resistir. Assim
mesmo, no contexto do círculo restaurativo acaba sendo “silenciadoquando, por
exemplo, questiona o comportamento do professor e quando, mais ao final da cena,
é convocado a falar, por “já ser grande”, mas sua proposta de acordo é
desconsiderada, como veremos a seguir mais detalhadamente.
113
III - Do lugar do jovem no acordo
Olharemos agora para a participação das partes do conflito na construção dos
acordos, principalmente a participação do jovem neste momento do círculo
restaurativo. Entendemos, assim como na metodologia da Justiça Restaurativa que
os acordos devem ser co-construídos, com a participação de todos.
1. O acordo forçado
Iniciamos pelo acordo feito no Círculo 4, continuando a discussão que
vínhamos fazendo, pois esta cena ocorre na seqüência da que trabalhamos
anteriormente. É uma cena longa, porém essencial para a problematização que
propomos: a do lugar do jovem no círculo restaurativo, em especial na resolução do
conflito e realização do acordo. No seu transcorrer destacamos algumas passagens
e fazemos pequenos comentários, que serão aprofundados ao final.
F1 – Então, como é que você acha que pode ser resolvido?
Ad – Ah, não sei. (silêncio) (está acuado)
Av – Fala A (jovem)! Tá esperando!
Ad – Ah se ele quiser continuar, ele que sabe. (eu não sei)
F1 – Continuar o quê?
Ad – O processo.
F1 – Por quê? Você sabe a conseqüência de um processo?
Ad Porque, que nem, ele falando de arrastão e tudo, eu não envolvido em nenhum, que
a diretora sabe.
Av – Isso nós vamos saber depois, isso é outra coisa, tamo falando agora.
Ad – O negócio da grade também não
F1 – Tudo bem. Então vamos por partes.
Prof Posso dar uma sugestão? A (jovem), que você, a partir de agora, seja respeitoso com
todos que estão na escola que ninguém pra ser desrespeitado, com os professores, com os
inspetores, com o pessoal da limpeza, que limpa a sala pra você ter uma escola decente pra você
estudar. Primeira coisa, o respeito que você terá que ter, a sugestão que eu to dando pra você: (1)
ser respeitoso com todo mundo lá. A segunda sugestão: (2) que você pra sala de aula pra
estudar, não ficar lá no pátio, nu da cintura pra cima, que eu vejo, ali não é o espaço pra isso, ali não
é espaço pra isso, a escola é espaço de estudo. Então você vai pra escola, pra sala de aula, fazer as
lições que os professores propõem pra você fazer, sair da sala quando você precisa realmente e não
na hora você bem quer e entende, nem pede licença e sai. Isso é o seu papel como aluno, se você se
compromete com isso, da minha parte, eu... morre por aqui. Agora, precisa respeitar os outros, assim
como você quer ser respeitado, você precisa aprender a respeitar os outros. Os funcionários que
estão lá estão lá pra fazer um trabalho de educação, educativo, pra ajudar você a aprender, e
estudar, não é pra ser desrespeitado por você, nem pra ser xingado, então essa é a segunda
sugestão. A terceira é (3) que você não agrida mais o patrimônio que está lá, ou seja, na hora da
Educação Física, você vai, na hora que não é, você vai ficar na sala de aula, não precisa ficar
cortando nada, subindo em muro, etc., danificando o que tem na escola. isso, (4) sai desses
grupos que não vão te ajudar a crescer. Esses grupos que tem na escola, porque a gente vai
resolver esse problema, porque a partir daqui abre-se um espaço pra gente resolver esses problemas
que estão acontecendo na escola. A gente quer uma escola alegre, uma escola que seja acolhedora
pro aluno, agora do jeito que está o ensino fundamental, os alunos, eles mesmo saem da escola
por causa do que está acontecendo. Então você tem que se comprometer a isso.
Av Aliás, eles nem saem, né, eles fazem tudo que não presta na escola mesmo, então tem
que ver tudo isso, né.
Prof Depois da audiência com o Juiz ele aprontou, ontem com o professor, jogando as
bolas, pra que isso A (jovem)?
114
Ad – Ontem eu não joguei bola nenhuma.
Prof – Tá aqui o relatório do professor.
Ad – Jogar vôlei forte, a bola vai.
Prof – Você jogou propositalmente.
F1- E essa bola não é devolvida?
Prof- Não.
Ad – Tem a sala de aula e a quadra do meio, então se alguém chuta a bola ela fica em cima do
telhado. Quando o professor que faltando muita bola, ele manda o cara que mora subir e
pegar as bolas, normal.
Prof que essas bolas, propositadamente, segundo professor, é a quarta bola, são caras,
são jogadas pra fora da escola. Quem está do outro lado pra pegar essas bolas a gente não sabe, a
gente suspeita.
Av Suspeita não, tem que, quando a gente fala tem que ir atrás. (pela primeira vez a avó se
posiciona ao lado do jovem)
Prof A gente suspeita que tem alguém pra receber. Mas por que que ele joga
propositadamente essas bolas?
Av – Quem falou isso, foi o professor? Então eu quero ir lá falar com ele.
Ad - Só que como que o professor que falou...
Prof (interrompe) Só estou citando um dos casos, estou pedindo pra você se
comprometer. (repete as sugestões anteriores) sugerindo que você assuma essas
responsabilidades que na verdade são suas, como aluno, como você não tá cumprindo, então você
cumpra daqui pra frente. (não está fazendo uma citação, mas uma acusação)
Ad como o professor viu eu jogando... Se são dois professores, um fica na sala e o outro
fica dentro da sala de aula.
Prof – Mas você vai se comprometer daqui pra frente? (repete as sugestões novamente)
Ad – Vou.
Prof É isso que eu estou sugerindo que você faça, que, aliás, é seu papel como aluno em
sala de aula.
Ad Mas no mesmo dia que aconteceu esse negócio da lâmpada, vi o senhor regando, não
foi? Peguei a mangueira reguei e o senhor foi e perguntou meu nome, não foi? Aquele dia eu
faltei com o respeito com o senhor?
Prof – (interrompe a fala) Não tô falando aquele dia.
Pesq Mas é importante ele falar um pouco também. (tento manter um espaço para a voz do
jovem)
Prof – Sim , sim.
Ad – Aí sendo que quarta-feira eu não desrespeitei ninguém, peguei um monte de florzinha, dei
pra fulana, dei pra todos os tios, elas deram beijinho em mim tudo. Mas que como o professor
falou, sendo que não dá pra ver se sou eu que jogo a bola, se o menino joga a bola aí o professor fala
que é eu? fica colocando meu nome no meio aí? Joga... eu joguei uma, eu ia até pegar, mas o
professor falou: “Não, deixa que depois o fulano vai e pega”. eu falei: bom professor, mas se
o senhor quiser que eu pague outra, eu pago. O professor tá até de prova...
F1 O que aconteceu não pra voltar atrás, mas daqui pra frente você acha que pra
melhorar, que pra não se envolver? Às vezes também os outros tão no meio e entra junto?
Então quando perceber que tem alguém depredando, fazendo alguma coisa, procura não tá junto.
Porque às vezes tem casos que acontece, a pessoa entra, não sabe nem porque entrando, mas
no meio.
Ad – Uhum.
F1 Então evitar, porque a escola é de vocês mesmo, é um patrimônio de vocês, vocês tão
pra aproveitar, fazer as coisas. Então tudo que acontece, quebrar uma porta, escrever na parede,
tudo é prejuízo pra vocês mesmo. Os funcionários tão lá pra limpar, merecem respeito, porque não é
um trabalho fácil, os professores também, da mesma maneira que respeita o pai, a mãe, tem que
respeitar também, como você é como aluno também merece respeito. (silêncio) E você acha que
dá pra fazer o que o professor sugeriu? (toma a versão dos professores como verdadeira,
desconsidera as negativas do jovem)
Ad – Dá.
F1 – Mas da boca pra fora ou porque eu acho que deve ser feito?
Ad – Eu vou fazer porque eu acho que tem que ser feito. (não parece estar comprometido)
F1 Eu vou tá acompanhando bom, eu vou em contato com a escola, em contato com a
sua família, pra saber como é que as coisas, se você fazendo, se não vai mais seu nome
envolvido na direção, procurar assistir as aulas mesmo o gostando de um ou outro professor que
115
às vezes fica pega no pé, mas procurar freqüentar as aulas, entrar na sala de aula, evitar ficar no
pátio. Dá pra fazer isso?
Ad – Uhum
Profa Me permite uma perguntinha? Que aquele passeio do Play Center, eu não sei, eu
não fui, mas parece que houve alguma coisa lá que você também tava envolvido. (outra acusação ao
jovem, novamente de furto, nos momentos finais do círculo)
Ad – Não, já foi esclarecido já.
Profa- Ah tá.
Av - O que foi? O que aconteceu? (novamente avó não foi informada)
Ad É que tinha um menino que tinha roubado um discplay, falaram que tava 4, 5
moleques junto, nisso eles chamaram tudo, conversaram, mas ninguém sabia que menino que
tinha roubado. eu cheguei perto pra perguntar, aí perguntaram se eu era da mesma escola,
conversaram com nós, chegou na escola, a diretora conversou com nós e falou que não deu nada.
Av Engraçado, isso a gente não fica sabendo nada, é inacreditável! Eu vou atrás dessas
coisas tudo, (bate na mesa) porque é inadmissível uma coisa dessas. As coisas que acontece com
ele dentro da escola, no passeio... ah, isso é inadmissível! (bate na mesa) Vai A (jovem) decide logo,
que eu tenho que trabalhar, fala logo.
Ad – Tá bom.
F1 – Você acha que tem que pedir desculpas? Você se arrepende de alguma coisa que você
fez, ou você acha que tudo que você fez foi correto?
Ad – Não, desculpa.
F1 – Desculpa pra quem?
Ad – Pro professor.
F1 – Mas você pede desculpa é de dentro pra fora? Desculpa do que? Do que você
realmente acha que tem que pedir desculpa?
Ad – Do que eu fiz com ele.
F1 - E o que você fez com ele?
Ad – O negócio da lâmpada. (conflito não está claro)
F1 – Então fala pra ele, não pra mim.
Ad – Desculpa professor.
Prof Tudo bem, eu quero que daqui pra frente seja o que eu acabei de falar: respeito com
os professores, funcionários, não deprede mais o patrimônio, freqüente as aulas, faça as
lições...(silêncio)
F1 Você se compromete a fazer tudo isso que o professor falou? (acordo unilateral que
desconsidera o pouco que o jovem conseguiu falar)
Ad – Comprometo. (quase não se entende o que diz)
F1- Compromete? (jovem confirma com a cabeça)
Pesq – E vai dar pra fazer?
Ad – Dá.
Pesq - Dá?
F1 Mas vai fazer com convicção, ou vai fazer porque todo mundo aqui perguntando a
mesma coisa pra você? Porque é bem isso, fala que vai fazer porque tão falando tanto.
Ad – Não, eu vou fazer. (solilóquio: Não vai fazer. Busca apenas sair desta situação do círculo,
ninguém parece acreditar que ele cumprirá o “acordo”)
Pesq – É. A importância você sabe, o professor sabe, tá todo mundo dizendo né. (silêncio)
F1 Vou pôr que você se compromete a freqüentar as aulas, respeitar os professores, os
funcionários, evitar qualquer tipo de arruaça na escola, bom? (silêncio) Quando tiver algum
problema A (jovem), procurar esclarecer, ir no coordenador pedagógico. É que a escola também
deixando uma falha porque ela teria que chamar os responsáveis.
Av Agora, quando o pai dele vir, porque o pai dele é caminhoneiro, quando ele vim ele vai
resolver tudo isso, porque tem que resolver, eu acho errado, a escola tem que comunicar, seja o
que for, ou é bom, ou é ruim, ou não presta não vale nada, ela tem que comunicar, é obrigação dela!
Prof – Mas por parte da escola, deve ter... porque... ela tem relatório de cada ocorrência...
Av – Não, não foi nada...
Prof Eu também não sei... Deve ter as ocorrências, assim como essa que o professor
entregou, deve ter outras. Eu aceito a acareação tranquilamente, quando ele disse que a diretora
disse que eu tinha xingado um aluno. Pode chamar, que a gente pode fazer a acareação.
Pesq – É que é importante também a família ficar sabendo, porque parece que não
sabendo...
Av – Não sabe nada, nada minha filha, nada.
116
Pesq Mas tem coisas talvez que você não contando o que acontece, quando você é
chamado na diretoria...
Av Quando foi que ele comentou a e dele foi lá. É a única coisa, do resto nada, tem
telefone, tem tudo, manda uma comunicação, dá uma suspensão. Tem que ter. Vamos supor que ele
não deu, que ele não desse então, não compareceu, a mãe não veio (bate na mesa), qual a
obrigação da escola? Não vai entrar na escola, eu quero sua mãe e seu pai aqui. (bate várias vezes
na mesa) Não tem nada disso. (família disponível)
Ad – Mas esse ano eu não tomei nenhuma suspensão não, nem advertência.
Av – Bom, você pediu desculpa pra ele não pediu? E vai fazer o que ele falou não vai?
Ad – Uhum. (quase não se ouve)
Av – Então o resto você deixa. (duplo: chega!)
F1 – Eu vou aparecer lá na escola, aí provavelmente eu vou chamar todos vocês.
Av – Pode chamar, qualquer hora, qualquer minuto.
F1 tem uma coisinha que eu queria te falar: Cuidado pra não no meio de depredação,
pichação, porque eu atendi alunos de outra escola, que coordenador, inspetor abriu o BOLETIM
DE OCORRÊNCIA e o adolescente fica enrolado, toma cuidado, tá? Evita, se você ver tumulto, sai do
outro lado, porque a coisa pode complicar pra vocês também. É o que eu falei no começo, você
tem um Boletim de Ocorrência, toma muito cuidado pra o se envolver em outro, porque o Juiz
pediu pra vir pra cá, é uma Justiça informal, não é que não tem valor, tem valor sim, porque tudo
isso vai ser documentado e vai ser juntado no processo que no Fórum. Mas evita se envolver
num outro boletim, porque o Juiz puxa a ficha, vê que tem um processo lá, ele vai entender
se é caso de você vir de novo pra Justiça Restaurativa ou se é uma pena legal, uma coisa que você
tem que fazer um trabalho voluntário, ou a família pagar uma cesta, fica a critério do Juiz. E pra
você mesmo, porque a experiência não deve ter sido boa, você ter ido na frente do Juiz, no Fórum,
desgasta a família inteira, você é menor de idade, tem que ser seu responsável. Então daqui pra
frente tenta seguir com responsabilidade, sempre procurando fazer as coisas da maneira mais certa
tá? Aí pra semana a gente vai ver o que faz esse outro problema da escola bom? Eu vou pedir pra
vocês assinarem aqui. Eu vou pedir pra vocês voltarem mais uma vez aqui tá? Daqui uns 20 dias, pra
ver como ele tá se portando.
Av – Aí o pai dele vem.
F1 – Ou senhora também, um responsável... fica a critério. Vou marcar pro dia 14, tá?
(conversas paralelas)
Av Se ele o vir eu venho... que independentemente disso... meu filho pode ir e tomar
as providências. (buscar a parte do acordo que cabe ao professor e não é feito no círculo)
F1 – Pode.
Prof – Ver se tem relatório, se não tem...
Av – Ah, porque é isso que eu quero, é isso que eu queria saber.
F1 A senhora tem todo direito, de ver o histórico dele, relatórios dele, as notas. Olha vão te
perguntar o que aconteceu aqui dentro, então o que aconteceu aqui dentro A (jovem), você não
precisa falar o que foi falado, o que não foi, você conta a experiência e fala: vamos procurar não
fazer isso. tudo bem, a gente acertou. Evita escutar muito buchicho que isso é a melhor coisa,
tá? Aí eu vou lá depois pra gente conversar com o restante, tá bom?
Ad – Tá bom. (Círculo 4)
Percebe-se, no início desta cena, que o jovem não consegue fazer uma
sugestão de acordo, está acuado, pois lhe fizeram tantas acusações que acredita
que o processo possa ter que dar continuidade no Sistema de Justiça Tradicional.
Quem sugere o acordo é o professor, que o repete diversas vezes e que
posteriormente é confirmado pela facilitadora. Não há, em nenhum momento a
participação do jovem ou de sua avó. É um acordo unilateral, não se refere à relação
professor-aluno, mas sim às atitudes do jovem. o feitas quatro sugestões pelo
professor que visam mudar os comportamentos do jovem, que deve aceitá-las.
117
Podemos entender a colocação da avó, ao final do círculo, em relação à ida
dela e do pai à escola, para além do fato de confirmar os comportamentos do jovem.
Parece-nos que a avó busca também uma comunicação com a escola e informações
quanto às acusações de furto feitas ao jovem ao final do círculo. Além disso,
confirmar se o professor xingou ou não o jovem, visto que o professor negou o
xingamento e é tomado, no contexto do círculo, como uma verdade, pois novamente
o jovem é silenciado, suas afirmações a este respeito foram desconsideradas.
Além disso, para além dessas confirmações dos fatos, podemos perceber no
movimento da avó, uma busca, de certa forma, pela outra parte do acordo, uma
discussão, também, dos comportamentos do professor em relação ao aluno. Além
do jovem, apenas a avó o questionou, mesmo assim com muito cuidado para não
fazer acusações.
As falas do jovem, em que nega todas as acusações feitas, são
desconsideradas e ele é tomado pelos Personagens que não aceita, do aluno
“problema” e “violento”. Os elementos levados pelos professores evidenciam, para
todos, e para a surpresa da avó, que ele os desempenha. Suas tentativas de
justificar as acusações, ao contrário, parecem confirmar o Personagem.
As novas acusações, feitas ao final do círculo, deixam no imaginário dos
participantes, a possibilidade de envolvimento do jovem com aqueles atos, com os
furtos/roubos. A avó, que até então aparentava imparcialidade, pela primeira vez se
posiciona e passa a defender o jovem, que até esse momento estava sozinho. Fica
indignada com o fato da família não saber o que acontece, mesmo estando sempre
disponível e presente na escola.
O círculo o ocorre como um espaço onde se privilegiou o diálogo livre de
pré-conceitos e julgamentos, onde o foco é a relação que está em conflito e não os
comportamentos de um ou outro. Podemos perceber que, nos momentos em que o
jovem começa a “aceitar” o acordo que lhe está sendo imposto, não de fato um
comprometimento, mesmo porque, fica muito evidente a sua intenção de fugir
daquela situação do círculo. Depois das acusações feitas ao jovem, sua avó também
se posiciona dessa maneira. O que lhes cabe, naquele contexto, é aceitar as
imposições e sugestões; e ao jovem: pedir desculpas.
Parece que no imaginário dos professores e da escola as ações atribuídas ao
jovem, para além dos Personagens aluno “problema” e “violento”, aproximam-se do
Personagem jovem “infrator”. Isso parece influir no fato de, no contexto escolar, as
118
ações da direção da escola e dos professores aparentemente não incluírem o
diálogo com o jovem e sua família. Supomos que se trate de outro nível de resolução
dos conflitos/infrações: com imposições ao jovem de mudança do comportamento e,
se ineficazes, com a alternativa de acionar a polícia e encaminhar para o Sistema de
Justiça Tradicional.
2. Acordo entre adolescentes
No Círculo 1, no momento da construção do acordo, o adolescente sugere que
a sala precisa ser mais quieta e que ele poderia pedir licença a sua colega com mais
educação. A proposta dele de acordo é que ela não fique na frente do quadro e que
ela saia quando ele pedir. A adolescente concorda e diz que sairá da frente do
quadro e o respeitará. O adolescente diz que eles têm um bom relacionamento.
As mães são convidadas a entrar na sala novamente e as facilitadoras relatam
para elas o acordo que foi feito entre os adolescentes.
O adolescente, voluntariamente, pede desculpas à adolescente e ela diz que
não tinha a intenção de prejudicá-lo ao fazer o Boletim de Ocorrência.
Chama-nos atenção o fato do acordo ser realizado entre os adolescentes, sem
a participação das mães, que apenas garantem a legalidade (autorização) da
conversa entre os jovens.
271
Apesar de ser interessante, por garantir que os
adolescentes sejam protagonistas na resolução de seu conflito e no acordo,
questionamo-nos sobre os motivos do círculo ser conduzido desta forma. Seria mais
interessante que as es tivessem participado desse processo, onde se evidencia
que os adolescentes têm recursos para resolver seus próprios conflitos.
3. Acordo encobridor
No Círculo 3, o acordo não foi realizado pois uma das partes não estava
presente, entretanto algumas sugestões foram feitas:
M Eu não vejo assim. Eu! Ele (pai) tem a opinião dele eu tenho a minha. Eu não vejo que é
um caso de envolvimento de polícia, de jornal. Tem que colocar os dois juntos, o que ocorreu,
você me ofendeu, eu te ofendi, ele segue a vida dele ela segue a dela.
Ad Porque eu acho que a mágoa o passa assim, nem da parte dele e nem da minha.
Então eu acho que uma desculpa é o mais correto. (Círculo 3)
E mais ao final do círculo retomam algumas possibilidades pra cessar o conflito:
F1 E o que vocês gostariam que fosse feito pra que não acontecesse mais isso e não
prejudicasse mais ela também? (dirigindo-se ao pai)
271
As facilitadoras pedem autorização às mães para conversarem a s com os adolescentes, fato que remete aos
procedimentos policiais e judiciais de escuta de menores de 18 anos, mas de fato não sabemos ao certo da
necessidade de acompanhamento ou autorização de responsáveis nos círculos restaurativos.
119
P – Que apaziguasse. Separa, cada um num canto, ficou insustentável.
M – Eles que têm que amenizar entre eles.
F1 – A gente pode intervir pra mudar a classe, já aconteceu nessa mesma escola...
Ad Eu acho que uma desculpa vai ficar bom pros dois, vai reconfortar os dois, a amizade
acho que não vai ter como, vai ser sempre colega.
F1 Independente, a gente pode também ir na escola e ver uma possibilidade da situação ser
diferente. (Círculo 3)
Apesar da jovem e sua mãe acharem que eles precisam conversar e pedir
desculpas, ainda assim o pai, principalmente, mas também a facilitadora, acham
necessário silenciar o conflito, apaziguá-lo, com a separação dos jovens. A mãe
tenta trazer o lugar dos jovens na resolução do conflito, no processo de construir um
acordo.
Parece-nos que o mero distanciamento não implica a possibilidade de um
perceber o outro, rever a relação e os Personagens atribuídos a cada um, e o
próprio conflito. A nosso ver, esse distanciamento precisaria vir acompanhado de
uma reflexão acerca dos lugares ocupados no conflito.
4. “Fazer-se de tonto”
No Círculo 2, também não um acordo, pois uma das partes do conflito não
estava presente. Entretanto, uma sugestão é feita pela facilitadora para que o jovem
evite novos conflitos:
F1 – Tem que pensar duas vezes pra não entrar em outra fria, porque às vezes a gente perde a
cabeça, é difícil às vezes controlar, mas a gente tem que... tem coisas que a gente tem que engolir,
se fazer de tonta, pra não se prejudicar, né. Porque isso é transtorno pra todo mundo. Você é menor
de idade, a família tem que ir junto porque tem que ir um responsável. passou dos 18, você que
vai ter que responder pelos seus atos, também é complicado porque muda toda a sua vida. Então
procurar sempre... pensar direitinho... respirar. Tem as vezes que é melhor a gente fingir que não
ouviu, passar por bobo do que responder, né? Que tem casos que às vezes a gente acaba se
prejudicando. (Círculo 2)
Evidencia a importância de se “silenciar”, e desconsidera o movimento de
resistência do jovem. Entretanto, é importante lembrar a situação de violência a que
o jovem estava submetido na relação professor-aluno, onde se manteve, por
bastante tempo, “silenciado”. Vitimiza o jovem, despotencializando seu movimento
de reagir às agressões, potencializando o Personagem que até então
desempenhava, de aluno “silenciado”.
IV - De como o jovem é afetado pela atribuição de Personagens
Pudemos perceber, nos quatro círculos que acompanhamos, como foram
atribuídos aos jovens Personagens pelos quais são identificados. Essa atribuição,
em certa medida, foi co-construída nas relações em jogo. Preocupa-nos perceber
120
que, em alguns casos, os Personagens são impostos aos jovens e eles são olhados
pelos estereótipos, com pouca ou nenhuma possibilidade de serem percebidos em
sua subjetividade, o que reduz muito a possibilidade de mudança nas inter-relações.
Isso fica bastante evidente nas falas do jovem e sua irmã, presentes no Círculo
2, onde podemos olhar com mais atenção como o jovem foi afetado pelos conflitos e
pela imposição dos Personagens aluno “problema”, “silenciado” e jovem “violento”.
I – Eu só o vi nervoso uma vez na vida, bravo dessa forma. [...] E pra ele se alterar dessa forma
pra agredir uma pessoa, porque não deixa de ser uma agressão, verbal, ele chegou ao extremo dele.
Ad – Eu tava tremendo muito, até me levou pro hospital.
I É verdade, ele quase desmaiou lá de tão alterado que ele tava. A coordenadora até ligou
pra casa pra alguém levar ele pro pronto-socorro porque tava passando mal. (Círculo 2)
A irmã do jovem relata seu desejo de proteger o irmão das agressões da
professora, tomando para si a responsabilidade de ir em defesa de um jovem que foi
silenciado, que não tem o direito a voz na relação professor-aluno e não consegue,
sozinho, proteger-se destas agressões:
I Eu queria conversar com ela, ele que não quis. Porque... eu gosto de pôr todos os pingos
nos is, preto no branco, eu ia conversar diretamente com ela, mas ele o quis porque achou que eu
ia brigar, falar alguma coisa, o que eu sou uma pessoa agressiva, que vai bater, nada disso. É que
verbalmente ele sabe que eu sei falar muito bem e chego até a colocar uma pessoa no lugar com
uma simples palavra. Mas ele não queria que eu falasse nada porque ele pensou que eu poderia
prejudicá-lo com ela. Então falei com a coordenadora mesmo, ela me aconselhou. Como o BO
foi pra frente... que o mínimo que ia acontecer era isso, uma reunião restaurativa entre os dois. Como
a gente nunca lidou com esse tipo de coisa, nunca lidou com advogado, com polícia, nada disso, a
gente nem sabia como agir, mas ela deu bastante assistência pra gente, aconselhou... até pra ele
mesmo, que ele ficou mal, foi uma semana muito ruim, tanto pra ele como pra gente ver como ele
ficou deprimido, que nem computador... adolescente é computador, televisão, vídeo game... ele não
fazia nada, dormia o dia inteeeiro, queria fica dormindo. Então foi uma semana muito difícil, depois
também a gente conversou novamente. Não é bem assim, que não podia ficar desse jeito, que a vida
continua, mesmo que tenha um BO, foi que ele começou a voltar a ser o Jonathan que ele era,
computador, vídeo game, som alto, tudo... (risos de todos).
F1 – É que pra ele foi...
Ad – É. Nunca aconteceu isso comigo, aí fica meio que abatido, né? Porque... nossa tá
acontecendo mesmo? E no momento eu fiquei mais nervoso porque eu sempre me prejudiquei por
causa dela. E agora prejudicar de novo, caramba! (Círculo 2)
Podemos perceber, na fala da irmã, um Personagem que se opõe ao
Personagem aluno “silenciado”, destacando suas característica que diz de um
Personagem “articulado”, contrário ao assujeitamento imposto ao jovem/aluno.
Entretanto, o jovem consegue identificar aspectos positivos no
encaminhamento do conflito para a Justiça, no caso a Justiça Restaurativa, como
segue:
F1 – Quando você recebeu a intimação, como é que você se sentiu?
Ad – Ah, no momento me senti meio que prejudicado, né? Pela minha ação, né? Fiquei
arrependido de ter feito aquilo. E... pensei que eu podia ter mudado a situação e ter escutado o que
ela tinha falado e descer, falar com a coordenadora, ela falar com os meus responsáveis. E no
momento, não é que eu fiquei feliz, né, mas eu fiquei meio que ah, pelo menos vai pro Fórum e ela
vai ver que eu tenho família, que ela pensava que eu não tinha, sei lá, ela pensava que eu era um
bobo, achou que ia ficar pisando em mim toda hora.
121
F1 – Você acha que pra ela você não tinha ninguém, que ninguém se incomodava com você.
Ad – Acho que ela pensou que ia continuar pisando em mim e eu ia ficar quieto. Achei até bom
porque ai pelo menos resolve civilizadamente, né, não com... porque eu sei que se eu fosse reclamar
na superior dela ia continuar a mesma coisa. Porque um aluno contra um professor é meio difícil a
palavra do aluno. (Círculo 2)
O jovem deixa de ser o aluno “problema”, porém não é reconhecido na
mudança. Silenciado, chega a ser identificado como jovem “violento”, Personagem
que não desempenha e com o qual não se identifica, mas, assim mesmo, é nele
enquadrado, pois agora é um jovem “fichado”. Ver-se nesse Personagem assusta o
jovem, afeta sua subjetividade e mesmo a percepção que tem de si, pois sabe que
ser “fichado” significa arcar com uma carga emocional bastante forte e de muito
preconceito.
O jovem reforça a idéia de que, no contexto escolar, o aluno não tem voz
quando diz de um conflito na relação professor-aluno. É preciso que a família
reafirme e dê potência a sua queixa.
Na seqüência, aprofundaremos a discussão referente à família, no contexto
dos círculos restaurativos.
V - Do lugar da família
A família e cada um de seus membros aparecem, nos diferentes contextos, por
diversos Personagens, atribuídos ou desempenhados. De forma geral, assim como
aos jovens, também às famílias são atribuídos alguns Personagens estereotipados e
conservados, como veremos a seguir. Além disso, podemos identificar o
desempenho de alguns Personagens por pessoas da família que dizem de sua
função em relação ao jovem: como causa dos comportamentos dos jovens, como
defensoras e capazes de dar voz ao jovem, como quem não sabe o que acontece e
como quem não tem voz.
1. Família como causa do conflito
No Círculo 2, a conversa reservada entre professor e aluno que discutimos
anteriormente traz outros elementos, como poderemos ver a seguir. A irmã do
jovem, quase no final do círculo restaurativo, insiste para que ele relate este
trecho da conversa que havia ficado de fora anteriormente:
I Fala pra ela (F1) o que a professora falou pra você no dia que vocês sentaram juntos... que
a coordenadora achou ruim... que tinha que ter chamado eu...
Ad – Ela falou pra mim... porque eu falei que eu tô fazendo o máximo... pra mostrar pra ela que
eu não era aquilo que ela pensava...
122
I – O que ela falou da tua família...
Ad – Calma! Porque eu tô cansado de tentar mostrar pras pessoas, porque eu quero passar de
ano, que eu melhorando e que ela ta prejudicando... ela falou que não sei o que, que se eu
tava com um problema familiar, que ela ia me ajudar... eu falei: “Olha! Familiar... não tenho
nenhum problema familiar, graças a Deus, eu quero é resolver o meu problema é com você, não
bota minha família no meio”. Ela falou: “Nossa! Não precisa ficar assim!” ela até falou: “Você não
quer que eu procure um psicólogo pra você, a gente aqui pra te ajudar”. Eu falei que não tinha
necessidade. ela até comentou que adolescente... começou a distorcer... “que você tem um
problema em casa, vem e desconta aqui na escola, eu sei que vocês adolescente é assim mesmo”.
eu falei: “se você sabe então porque você não ajuda... e outra, eu não tenho nenhum problema,
acho que quem deve ter algum problema acho que é você, porque todo dia você vem revoltada...”
(Círculo 2)
A professora, tentando ajudar o aluno “problema” que está na sua frente, intui
que o problema deve ser familiar, algo que acontece em casa e que ele traz para a
escola, prejudicando a relação de ensino professor-aluno.
No Círculo 3, a família como possível causa dos conflitos também aparece:
M Chegando (hospital) a recepcionista perguntou: “tá machucada?” Eu falei:
“aparentemente não, mas acredito que por dentro ela esteja machucada. Porque você imagina, você
nunca apanhou dos pais, de repente uma pessoa que aparece do nada, você nunca viu, nunca
conviveu, te atira uma latinha”. Aí fomos pra assistente social e ela perguntando se ela sofria
agressão dentro de casa, como era a relação minha com o meu marido... e eu na escuta. (Círculo
3)
Nesse círculo, conforme discutimos anteriormente, pudemos perceber a
mesma preocupação da assistente social que atende a jovem no hospital. Ela
preocupa-se em identificar a existência de conflitos ou violência familiar.
Sabe-se que se tornou conserva, entre diferentes profissionais, atribuir a
causa de “desvios de comportamento” de crianças, adolescentes e jovens a
possíveis causas familiares como violência doméstica, abusos e separação dos pais.
2. Pai silenciado, passivo
No único círculo em que um pai esteve presente (Círculo 3), pudemos perceber
que ele se expressou pouco e, muitas vezes, foi necessário que os facilitadores
interviessem para que o mesmo conseguisse falar, mesmo sendo parte do conflito:
P – Eu posso falar a minha parte agora?
F4 – Claro! Com certeza!
F1 – Tanto pode como deve!
Ad Calma pai, deixa eu complementar... ele falou que a minha voz incomoda ele, a minha
risada.
M – Não é culpa dela. O grupo exclui ele. Por que será?
F2 – Agora eu vou dar a palavra pro pai.
O pai retoma a versão da jovem e da mãe e acrescenta:
P – Eu vou agredir com o cara aqui dentro? Dentro da delegacia. Eu falei: Ela tem que
continuar estudando. Ela pode continuar na escola? Acabou aqui. eu e a mãe dela indo buscar
todo dia na escola, pra evitar esse tipo de problema... (Círculo 3)
123
O pai é interrompido pela esposa e pela filha e, em outros momentos, quando é
feita uma pergunta a ele, quem responde é sua esposa ou a filha. É preciso que os
facilitadores garantam espaço para ele falar. Ele não participa das discussões, nem
verbalmente, nem com olhares ou expressões. Apenas acompanha as discussões,
com uma postura que parece, por vezes, arrogante, por outras, dando pouca
importância ao trabalho que está sendo feito no círculo restaurativo.
3. Família em defesa do jovem
Podemos notar, em todos os círculos acompanhados, o desempenho de
Personagens que vêm em defesa dos jovens, nos diferentes contextos. Essa defesa
aparece na situação de conflito ou no círculo restaurativo.
No Círculo 1, a mãe da adolescente, que estava envolvida no conflito,
preocupa-se com a segurança da filha em relação ao adolescente que a agrediu.
Procura defendê-la de futuras agressões.
No Círculo 2, fica evidente que, antes de saber do conflito entre o jovem e a
professora, a família do jovem não podia protegê-lo das agressões que sofria da
professora. Depois de saber do jovem o que estava acontecendo, as constantes
agressões, a família toma providências, conforme conta a irmã:
I Mas isso já havia acontecendo, de ele não entrar na aula dela antes desse ocorrido porque
ele se sentia agredido por ela verbalmente. Tanto que depois eu fiz uma ocorrência na delegacia
de ensino, de bullying. que a gente ficou sabendo de outros fatos de agressão a outros alunos.
(Círculo 2)
No Círculo 3, a mãe da jovem descreve sua preocupação e incômodo ao saber
que sua filha foi agredida:
M Tinha uma viatura da polícia de SCS com ela, e ela estava chorando, ela estava alterada.
Ela falou: o moleque me bateu. Como e, tanto eu quanto ele, nós nunca batemos nela, nem de
criança e nem de adolescente, sempre procuramos conversar. (Círculo 3)
Essa mãe percebe também que sua família, como um todo, foi exposta a uma
situação de violência com a qual não costuma lidar:
M Não quero ficar indo em delegacia, em fórum, porque eu tenho um filho homem, o que
acontece dentro do meu lar é retrato pra ele, pra ela não, que ela é mulher, mas pro meu filho vai
retratar pra ele na frente. Eu entrei na escola às 7hs, aqui sem almoço, sem banho e ele não
aqui. Então tá bom, se ela é um fardo pra ele na escola, ele não tem mais ela.
F1 – E ela não vai perder o ano?
M – Não, porque entramos com o pedido médico, já conversei com a direção.
F4 – cochicha com F1
F1 – O ideal seria ele vir?
M – Eu não virei mais, como eu respondo por ela, eu acredito que ela não virá mais, porque eu
tô expondo meu filho, tô tirando ele do lazer dele.
P – Eu vou falar sinceramente, pra mim encerrou aqui, se ele quiser... (Círculo 3)
124
Percebe que a jovem ficou exposta durante o registro de Boletim de
Ocorrência, conforme discutimos no eixo temático rota do conflito, e demonstra
preocupação em relação ao filho, de aproximadamente 10 anos, que está presente
no círculo, porém sem participar.
Explicita que também se sente desrespeitada ao comparecer no rculo, pois
está ali por mais de 1 hora, expondo a si e a sua família, e é informada que precisará
voltar para finalizar o círculo. Nesse momento, prefere não dar continuidade ao
círculo restaurativo, sente que o rapaz está debochando deles. Visando sua
proteção e de sua família, prefere que, nesse momento, a filha fique afastada da
escola para fazer uma cirurgia que é necessária. O pai apóia a decisão da esposa,
desejando que o círculo não tenha continuidade.
No relato que segue, podemos perceber o Personagem da mãe “defensora de
sua cria”, não aceita a agressão sofrida por sua filha e enfrenta o rapaz:
M Ele entrou. Ele encarava nós. Ele olhava pra nós e nós olhava pra ele. o delegado saiu
da sala. eu falei pra ele: Bata nela agora! Mas não que eu fosse pra cima dele, eu queria ver ele
batendo nela, porque se ele bateu nela na sala, queria ver ali, no meio dos pais, dos policias, num
ambiente de segurança... ele ficou com cara de deboche, tirando sarro com a minha cara. Ele
estava sentado bem de frente e ele encarava nós, não tinha outro ambiente. Eu ia desviar meu olhar
por quê? Eu não matei, eu não roubei, eu não fiz nada contra ele. Ele dava depoimento e olhava pra
mim. Mas ele dizia: elas que estão olhando pra mim. Quando eu converso com a pessoa eu olho nos
olhos, então não tinha onde eu colocar meu olhar. (Círculo 3)
Apesar de afirmar que não agrediria o rapaz, percebe-se que o Personagem da
mãe “defensora da cria” tem uma função clara: defender sua filha e família e evitar
outras agressões à jovem.
Apesar de estar tomada pelo Personagem, podemos perceber que essa mãe é
capaz de afastar-se dele e tentar se colocar no lugar do rapaz, olhar para ele
tomando o seu papel e buscando compreender os motivos da agressão:
M Pagar com serviços, eu não queria isso. Colocar os dois frente a frente pra ver o que
aconteceu. Esclarecer pra mim, pro pai dela o porquê da agressão. Eu cheguei a uma conclusão que
alguma coisa nela incomoda ele. Alguma coisa aconteceu, alguma coisa ela pode ter feito,
inconscientemente ou conscientemente, que machucou ele e que foi o momento pra ele atirar ali e se
defender. Eu, como mãe, como educadora, como sociedade, eu vejo assim, alguma coisa nela o
incomoda. E o que é? ele pode dizer, eu não posso dizer, ela não pode dizer, ninguém, ele.
Então por que ele não aqui? Se ele não veio, futuramente eles não podem freqüentar a mesma
sala. Tanto é que agora elaafastada porque voltou o problema no joelho, a gente tá correndo atrás
de cirurgia. (Círculo 3)
Apesar de continuar sem compreender os motivos da agressão, um não-dito
paira no ar, inveja, mas ninguém pode afirmar ser esse o motivo da agressão, o
rapaz não está presente. Um facilitador verbaliza esse motivo quando faz uma
tomada do papel do rapaz e a família parece acreditar ser esse o motivo do conflito,
mas é preciso ouvi-lo diretamente do rapaz.
125
Outro aspecto importante é perceber como a mãe, mesmo tomada pelos afetos
de seu Personagem “defensor”, pode despir-se dele e tentar aproximar-se
afetivamente do rapaz para compreender sua motivação. Sabe-se que a capacidade
e disponibilidade de sair do Papel e Personagem que desempenha e experimentar-
se no contra-papel, no lugar do outro, é saudável e possibilita a empatia e percepção
dos afetos desta inter-relação. Este é um importante caminho para co-construção e a
mudança de relações que estão em conflito.
No Círculo 4, podemos perceber a emergência de um Personagem que vem
em defesa do jovem, a avó “que bate na mesa”.
Av – Se ele (professor) xingou também a mãe dele, por sua vez, piorou, ele não tem que xingar
ninguém, entendeu? Porque professor que xinga e fala, ofende os outros... Então, tem um monte de
coisa aí que tem que ser apurada, né.
Entretanto, a emergência deste Personagem da avó, “que bate na mesa”, não
faz uma defesa irrestrita do jovem, mas busca perceber o conflito em seu aspecto
mais amplo, considerando a fala de todos e, durante a maior parte do círculo fica
imparcial, passando a defender o neto apenas quando percebe que ele pode ter sido
agredido também e quando lhe são feitas acusações mais graves, conforme vimos
anteriormente.
4. A família surpreendida e a escola que não fala
Em todos os círculos acompanhados existe algum elemento que surpreende a
família, seja pelo Personagem desempenhado ou atribuído ao jovem na escola, que
não conheciam, seja pelo próprio conflito, que não foi informado à família.
No primeiro círculo, a mãe do adolescente é surpreendida pela convocação
para a audiência, pois não havia sido informada pela escola do conflito que ocorrera
envolvendo seu filho. Fica surpresa com o fato da escola não a ter chamado para
uma conversa.
No Círculo 2, tanto a família quanto a escola são surpreendidos pelo conflito,
pois nem o jovem e nem a professora relatavam as agressões ocorridas entre eles.
A irmã, que não conhecia o Personagem aluno “silenciado”, cobra que o irmão
deveria ter contado antes, para que pudessem tomar providências e que a situação
não se agravasse.
No Círculo 3, o elemento surpresa refere-se à intimação do pai para audiência,
visto que nem ele nem sua família sabia, até o dia da audiência, que o rapaz havia
feito um Boletim de Ocorrência de ameaça contra ele.
126
Entretanto, é no Círculo 4 que os elementos surpresas estão mais presentes.
Em relação aos Personagens aluno “problema” e aluno “violento”, atribuídos ao
jovem e que a família não conhece; e em relação ao conflito entre o jovem e o
professor, de que a família não tinha sido comunicada pela escola.
Av Não teve um comunicado, que eu acho errado, porque a obrigação da escola era chamar
a mãe, o pai, tem que comparecer, vamos ver o que é. Não foi comunicado, quando eu vi veio pra
ir na audiência, até o Juiz falou, tem que comunicar, ele achou errado, a escola tem que comunicar,
ninguém sabia, foi de supetão. Porque ele trabalha, ele trabalha com meu marido, chegou ele até
assustou, meu marido ficou que quase dá um troço nele.
E completa em outro momento do círculo:
Av Tem uma coisinha que eu quero saber, não quero nem pensar em defender ele, eu
quero... por que que tudo que ele fez, como o senhor falando, não é comunicado aos pais, por que
não chama a mãe? Vamos conversar, ele fazendo isso? Então vai expulsar, vamos fazer qualquer
coisa, porque que não é chamado? A e foi chamada pras reuniões, ela foi. Mas essas coisas que
o senhor falando não falou não. eles mandam ela assinar na hora. A escola também tem
muito erro. Aliás, eles nem saem, né, eles fazem tudo que não presta na escola, então tem que ver
tudo isso.
Em relação aos Personagens aluno “problema” e aluno “violento” que são
apresentados à avó, ela não reconhece nele essas características, pois o jovem que
ela conhece é o que trabalha, não sai de casa e é esse que ela tenta proteger de
influências negativas, como segue:
Av – Olha, ele apronta só se for dentro da escola, se for dentro que eu não to vendo. Mas
ele não sai pra nada, ele trabalha, ele não tem nem lazer, porque ele fica dentro de casa mesmo
de tanto medo que eu tenho, que eu que cuido, eu tenho medo dele sair por aí, droga que mais rola
na porta de escola, isso eu sei, eu morro de medo é disso, a coisa que eu mais peço pra ele é isso,
droga. Então eu falo pra ele, você não vai brincar, na festa não deixo, quer ir aqui, não deixo, até o
Juiz falou, ele não pode, ele tem que ter lazer também, mas o meu medo dele sair e aprontar. Se ele
apronta édentro da escola. Porque fora dali até o caminho de escola, eu vou levar, eu vou buscar,
os 4, tem mais 3. Eu cuido dele, vou levar na escola e busco. Ele não faz nada? Eu não sei, só se for
na escola, ele não sai de casa.
Ao ser surpreendida pelos Personagens atribuídos ao jovem pela escola, a avó
sente-se ofendida e cobrada no seu papel de responsável pelo jovem, porém
também percebe suas limitações e as da escola, que não se comunica com a
família.
Av A família dele é decente, não é pilantra, não é sem vergonha, a gente educa ele, não vou
passar a mão na cabeça dele não, nem vou dizer que ele é santo, mas a escola devia ter informado a
gente, é obrigação, ele dentro, ele o tava na rua, ele tava dentro, tinha que comunicar a
gente.
127
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não admito, minha esperança é imortal.
Eu repito, ouviram?
Imortal!
Sei que não dá para mudar o começo
Mas, se a gente quiser,
Vai dar para mudar o final!
Elisa Lucinda
De forma geral, os jovens constroem suas identidades com base no que está
estabelecido no mundo adulto, com suas normas e formas socialmente adequadas
de comportar-se. Entretanto, uma parcela dos jovens questiona as normas impostas
das mais diferentes formas e nos mais diferentes espaços. Muitas vezes, esses atos
de resistência e de manutenção de sua dignidade, da sua subjetividade, são
criminalizados pela sociedade, como se pode perceber em muitos dos casos
encaminhados à Justiça Restaurativa, em que conflitos relacionais escolares, entre
jovens ou entre jovens e adultos, são encaminhados à Justiça. Tornam-se, portanto,
objetos de intervenção policial e legal, ao invés de se buscar a construção de
soluções no próprio contexto escolar.
O que pudemos perceber é que o conflito segue os caminhos institucionais
até chegar ao círculo restaurativo. Mesmo nesse contexto percebemos, por parte da
escola, uma falta de envolvimento na resolução dos conflitos, pois, de forma geral,
não comparecem ao círculo.
“Assujeitados”, os professores têm demonstrado atitude defensiva e acuada
diante de situações em que o se percebem capazes de enfrentar a relação
pessoal com seus alunos, sobretudo se eles são adolescentes e transgridem
a norma. [...] mecanismos defensivos de uma ameaça ao não
reconhecimento do profissional da educação como “sujeito” ativo na condição
educativa.
272
A escola, apesar de resistir, tem a função de socialização de crianças e
jovens na contemporaneidade, visto que os outros espaços de socialização foram se
restringindo, produzindo um afastamento destes da “vida real”, em sociedade. O que
se vê é que os impasses e conflitos de convivência passam a ser mais freqüentes no
contexto escolar.
273
272
Grandino, p. 149, 2001.
273
Castro e Correa (2005).
128
Conflitos e divergências são, em geral, contidos e abafados, visto que geram
dispersão em relação ao que deve ser alcançado: a reprodução dos conteúdos
escolares do mestre para o aluno e a internalização das regras de conduta.
274
O que se percebe, inclusive nos conflitos que chegam aos círculos
restaurativos, é a dificuldade de lidar com os conflitos no próprio contexto escolar.
Pudemos perceber que muitos facilitadores capacitados se afastaram da
prática. Este fator sobrecarrega os facilitadores que estão atuando e enfraquece a
possibilidade de transformação comunitária por meio da Justiça Restaurativa.
Destacamos que, se não houver um investimento, com novas capacitações, e,
principalmente, com valorização dos facilitadores, a continuidade e potência das
práticas podem ser afetadas.
Além das ausências da escola e de facilitadores nos círculos restaurativos,
pudemos perceber, também, que algumas pessoas diretamente ligadas ao conflito
não estiveram presentes, em especial a pessoa que registrou o Boletim de
Ocorrência, identificada como “vítima” no Sistema Judicial Tradicional. Por isso,
consideramos essencial desenvolver estratégias que possam favorecer a
participação da “vítima”, visto que as pesquisas até então realizadas parecem
apontar certa resistência destas em participar dos processos restaurativos. Além
disso, no transcorrer dos círculos, ficou evidente a necessidade da presença de
outras pessoas relacionadas ao conflito, que, porém, não foram convidadas. Essas
ausências dificultaram a condução dos círculos e a real problematização dos
conflitos.
Castro e Correa, ao analisarem processos participativos de jovens no
contexto escolar, observaram a dificuldade de ouvir e ser ouvido pelo outro, pelo
colega:
Ao se propiciar aos jovens um espaço livre de fala e reflexão, parece vir à
tona” uma massa virulenta de emoções que entope as vias de comunicação:
são queixas, ódios e ressentimentos, desconfianças e hostilidades.
275
As pesquisadoras consideram ainda importante, antes da construção de
ações coletivas, “construírem uma sentimentalidade propícia à troca de idéias.”
Afirmando, ainda, a importância dos adultos propiciarem esse movimento.
O suporte institucional da escola é fundamental nesse processo, quando
professores e a direção acreditam na capacidade dos alunos e lhes dão
274
Castro e Correa, p.20, 2005.
275
Castro e Correa, p. 21, 2005.
129
crédito. Significa um investimento paciente nas tentativas que os jovens
ensaiam, tímida e canhestramente, de assumir responsabilidades de sentir e
dizer.
276
Destacamos esses processos essenciais também nos processos
restaurativos, onde a percepção do outro e a possibilidade de colocar-se no lugar do
outro, para além de racionalizações, potencializam os processos de mudança inter-
relacional a que se propõem as práticas restaurativas.
Outro aspecto relevante é que o círculo, de forma geral, é conduzido visando
a explicitação dos fatos, a verdade concreta e racionalizada do fato. O que pudemos
perceber é que não uma condução visando uma aproximação afetiva entre os
participantes, para que se possam colocar emocionalmente no lugar do outro. Tal
tarefa exigiria maiores investimentos no tocante à formação dos facilitadores.
Em relação à imparcialidade do facilitador no processo restaurativo, pudemos
perceber que este é um processo complexo, visto que os facilitadores estão
atravessados por outros Papéis sociais e, deixá-los de lado para desempenhar
apenas o Papel de facilitador, requer capacitação e prática. O que percebemos é
que, em diversos momentos, a atuação do facilitador dizia de outro Papel social, de
mãe ou de educadora, principalmente em momentos de aconselhamento aos jovens.
O que percebemos é o estereótipo do jovem se estender desde as relações
nos contextos escolares e comunitários até o do círculo restaurativo, até porque se
dá como um desdobramento desses contextos. Assim, aos jovens que estiveram nos
círculos restaurativos foram atribuídos Personagens, estereótipos de
comportamentos que perpassavam, principalmente, a relação professor-aluno. Seja
no contexto do conflito ou no próprio círculo, foram-lhes atribuídos Personagens:
“problemático”, “silenciado”, “violento”, “homossexual”. Todos com forte carga de
pré-conceito. Em alguns momentos, pudemos perceber que os jovens aceitam o
Personagem, em outros, que o rejeitam e têm movimentos de não assujeitamento,
de resistência. Do lugar de quem se preocupa com a transformação do outro, o
drama se quando o jovem incorpora o Personagem atribuído ou vive a agonia de
lutar contra, de resistir.
Nesse sentido, as ações consideradas violentas, no interior dos espaços
escolares, podem ser compreendidas como sinais de alerta, como
manifestações pouco elaboradas, mas contundentes, de alunos pretendendo
ser ouvidos e pleiteando, de alguma maneira, esse pertencimento nas
agências de socialização e o reconhecimento de sua condição de sujeitos.
277
276
Castro e Correa, p. 21, 2005
277
Grandino, p. 145, 2001.
130
A participação dos jovens nos círculos restaurativos mostrou-se como um
aspecto que deve ser problematizado pelas práticas restaurativas, pois visa, muitas
vezes, a confissão do jovem, seu pedido de desculpas e a promessa de que mudará
seus comportamentos.
Em relação aos acordos, percebe-se uma forte condução por parte dos
adultos presentes no círculo, sejam eles professores, facilitadores ou familiares.
Acordos feitos sem a efetiva problematização do conflito e de seus desdobramentos
para as pessoas e relações envolvidas. Acordos unilaterais, impostos aos jovens.
Acordos que visaram o afastamento das partes e que buscaram silenciar o conflito.
Em apenas um dos círculos o acordo foi realizado entre os jovens, pois estavam
presentes as duas partes do conflito e a relação entre eles era, a princípio,
horizontalizada; referia-se a um conflito entre colegas de sala.
As famílias aparecem em algumas situações como causa do conflito ou dos
comportamentos dos jovens. Muitas vezes são surpreendidas pelos Personagens
atribuídos aos seus filhos, irmãos ou netos, afirmando que a escola não comunica a
elas fatos que ocorrem no contexto escolar. Nos círculos que acompanhamos, em
sua maioria, são as mulheres da família (mães, avós e irmãs) que acompanham os
jovens nos círculos.
De forma geral, o aspecto protetor e defensor da família em relação ao jovem
se destaca. Porém, pudemos ver, por exemplo, uma avó que busca ser imparcial no
círculo, não desempenhando imediatamente a função de proteção e defesa do
jovem, mas, ao perceber que o mesmo estava sofrendo acusações e sendo
assujeitado, revolta-se e passa a defendê-lo, buscando encerrar a situação de
sujeição.
Os círculos restaurativos, se comparados ao Sistema Judicial Tradicional,
possibilitam um espaço de diálogo. Entretanto, não deixam de ser fortemente
atravessados pelas relações de poder adulto-jovem e, em específico, pela relação
professor-aluno. Relações verticalizadas e de dominação, onde os jovens são
objetos da ação e proteção dos adultos. Dessa forma, repetem-se no contexto do
círculo as práticas e mecanismos utilizados em diversos contextos para a sua
educação, controle e formação pois, também nesse espaço, o foco prioritário é a
mudança dos comportamentos “inadequados” dos jovens
Com isso, vemo-nos diante de um dos numerosos paradoxos da atualidade:
quanto mais se alargam e se reconhecem as especificidades do ciclo vital da
infância, dos direitos a ela assegurados em leis e documentos, tanto mais se
131
criam práticas de coerção e controle, sob argumento de proteção, e tanto
mais, também, se acirram os conflitos entre adultos e crianças e as situações
de violência a que os mais jovens estão expostos.
278
Pudemos perceber que a proposta restaurativa de proporcionar um espaço
diferenciado, valorizando a participação de todas as pessoas não consegue, ainda,
possibilitar a participação efetiva do jovem para além dos Personagens que lhe são
atribuídos. No espaço dos círculos são reproduzidos os modos sociais dos adultos
relacionarem-se com os jovens. Ora, essas mudanças devem ocorrer no cotidiano
das diversas instituições vinculadas ao atendimento aos jovens, além da reflexão
dos adultos de seu Papel frente aos jovens contemporâneos.
Na sociedade contemporânea democrática, a nova concepção de crianças e
adolescentes como sujeitos de direito, convocados à participação em relações
simétricas e bidirecionais, esbarra nos limites de recursos dos adultos para
reconhecê-los como tal.
As gerações anteriores se constituíram como sujeitos em uma ordem e
referências distintas das atuais, em que direitos individuais e civis não eram
reconhecidos, tanto pela condição menorizada que crianças e adolescentes
viviam antes, como também, de maneira mais ampla, durante o período do
regime autoritário.
279
Destaca-se a importância da desconstrução dos Papéis conservados dos
adultos, pois são convocados a relacionarem-se com o jovem contemporâneo. Neste
novo contexto, de diálogo e de relações horizontalizadas, exigem-se modificações e
maior espontaneidade no desempenho dos Papéis. “Fortalecer os adultos pode
significar o fortalecimento das ações que devem tomar nos lugares de referência,
tais como a família, a escola e a comunidade em geral.”
280
Sabe-se que este é um processo complexo e que inclui toda uma mudança
nos relacionamentos entre jovens e adultos, visto que, no contexto brasileiro, por se
terem constituídos como sujeitos em um contexto ditatorial, muitos adultos de hoje
têm dificuldades de acolher as mudanças que ocorreram nos últimos anos nas
relações entre adultos e jovens. Vivenciaram tão fortemente, inclusive nas relações
jovem-adulto, aspectos punitivos e de assujeitamento, que a reconstrução dos
Papéis sociais adultos e dos modos de relacionar-se com as novas gerações exigem
esforço.
278
Grandino, p. 98, 2007.
279
Grandino, p. 46, 2007.
280
Grandino, p. 108, 2006.
132
São evidentes e destacados, por diversos autores, os ganhos que têm sido
proporcionados pelas práticas restaurativas em relação às da Justiça Retributiva,
inclusive destacado em pesquisas anteriores do NEVIS.
281
Entretanto, buscamos
aprofundar as discussões em relação às práticas restaurativas e como têm se dado
no contexto comunitário, principalmente no que refere à participação dos jovens nos
círculos restaurativos, visto que se propõem a um “acertamento horizontal do justo,
de um modo pluralista e participativo, mas também crítico e com um chamamento
pessoal à responsabilidade.”
282
Do lugar de quem se preocupa com a transformação social e do outro, se as
práticas restaurativas apontam para a experimentação de formas jurídicas com base
na co-responsabilização e na consideração da alteridade, é importante que essas
práticas possam ser problematizadas sempre que produzam a normalização dos
conflitos e a heteronomia dos jovens. É importante garantirmos espaços de
expressão, autonomia e não assujeitamento aos jovens.
281
Anunciação, C.C.P. Figuras de justiça: trajetórias de jovens em práticas de Justiça Restaurativa, 2009.
282
Melo, p. 56, 2005.
133
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NETO, P. S. Por uma Justiça Restaurativa “real e possível”. Apresentação ao
Seminário Internacional Justiça Restaurativa. Um caminho para os direitos
humanos? Instituto de acesso a Justiça (Brasil/Inglaterra), Porto Alegre, 29-30
outubro, 2004.
NEVIS (Núcleo de estudos Violências: sujeito e política) PEPGPSP, PUC-SP.
Projeto de pesquisa Subjetividade e legalidade jurídica: a justiça restaurativa no
âmbito do sistema de justiça juvenil, 2008.
____________________ Relatório analítico das pesquisas realizadas juntos à
experiência de Justiça Restaurativa em São Caetano do Sul pelo PEPGPSO da
PUC-SP no período de agosto/2008 a março de 2010, Mimeo, 2010.
OXHORN, P. e SLAKMON C. Micro-justiça, desigualdade e cidadania democrática.
A construção da sociedade civil através da justiça restaurativa no Brasil. In:
Slakmon, C., R. De Vitto e R. Gomes Pinto (org). Justiça Restaurativa, Ministério da
Justiça, Brasília, 2005.
PERAZZO, S. Ainda e sempre psicodrama. São Paulo: Ed. Agora, 1994.
____________________ Descansem em paz os nossos mortos dentro de mim. Rio
de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1986.
____________________ Fragmentos de um olhar psicodramático. São Paulo: Ed.
Agora, 1999.
136
____________________ Psicodrama: o forro e o avesso. No prelo, 2009.
PINTO, R.S.G. A construção da Justiça Restaurativa no Brasil: o impacto no sistema
de justiça criminal, Revista do MP-GO, Goiânia, 2006.
____________________ Justiça Restaurativa é possível no Brasil? In: Slakmon, C.,
R. De Vitto e R. Gomes Pinto (org). Justiça Restaurativa, Ministério da Justiça,
Brasília, 2005.
ROSEMBERG, F. Literatura infantil e ideologia. São Paulo: Ed. Global, 1985.
SCHMIDT, A.C. Construindo mudanças: adolescentes em conflito com a lei e redes
sociais. Trabalho final de curso, Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2004.
SCURO, N.P.; PRUDENTE, N.M. Justiça Restaurativa, um novo olhar. Revista Visão
Jurídica, Ed. Escalada, n. 24, p. 38-40, abril, 2008.
VICENTIN, M.C.G e ROSA, M.D. Relatório analítico das pesquisas realizadas juntos
à experiência de Justiça Restaurativa em São Caetano do Sul pelo PEPGPSO da
PUC-SP no período de agosto/2008 a março de 2010, Mimeo, 2010.
WALGRAVE, L. Apresentações ao 1º. Seminário Internacional de Justiça
Restaurativa. Organização UniABC e ABMP, São Caetano do Sul, 30 de setembro a
2 de outubro, 2004.
137
ANEXOS
Pesquisa: Práticas de justiça restaurativa: subjetividade e legalidade jurídica
Coordenação da pesquisa: Profa. Miriam Debieux Rosa e Profa. Maria Cristina G. Vicentin, do
Programa de Estudos s-graduados em Psicologia Social da PUC-SP - Núcleo de estudos e
pesquisa: Violências: sujeito e política (NEVIS).
Pesquisadora: Ana Carolina Schmidt
Endereço: Rua Ministro de Godoy, 969 – Perdizes – São Paulo.
Telefone: (11) 3670-8520 \ 8646-6623
E-mail: pssoc[email protected] e caroland[email protected].br
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Você está sendo convidado(a) a participar, como voluntário, em uma pesquisa. Após receber
as Informações sobre a pesquisa, no caso de aceitar fazer parte do estudo, assine ao final deste
documento o Consentimento Livre e Esclarecido. Você tem total liberdade para recusar-se a
participar da pesquisa.
I. Informações sobre a pesquisa
Sua participação fará parte da pesquisa Práticas de Justiça Restaurativa: subjetividade e
legalidade jurídica, sob orientação das Professoras. Dra. Maria Cristina Vicentin e Miriam Debieux
Rosa do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, e de uma equipe de pesquisadores, como requisitos para obtenção do título
de Mestrado/Doutorado em Psicologia Social.
Nesse sentido, esta pesquisa tem por objetivo: investigar os sentidos de justiça,
responsabilidade e conflito para os participantes do Projeto de Prevenção e Resolução de conflitos
desenvolvido em São Caetano do Sul; investigar os impactos subjetivos experimentados na
participação dos círculos restaurativos; analisar as práticas de Justiça Restaurativa no tocante à sua
implantação (atores envolvidos, construção de redes) e à construção de uma cultura diferenciada de
resolução de conflitos.
Se aceitar participar da pesquisa, você será entrevistado(a) pelo pesquisador individualmente
e/ou em grupo sobre sua experiência e conhecimentos da Justiça Restaurativa. Participar da
entrevista não o(a) obriga a participar do grupo. A entrevista e o grupo serão gravados e transcritos.
As gravações de voz e outros elementos resultantes das atividades serão de uso restrito da equipe
de pesquisa, assegurando que, na análise e divulgação de quaisquer dados sua identidade será
preservada.
Em qualquer momento você poderá se recusar a participar ou retirar o seu consentimento de
participação da pesquisa, sem qualquer tipo de penalização ou prejuízo para você. O sigilo será
garantido, assegurando sua privacidade quanto a eventuais dados confidenciais envolvidos na
pesquisa. O pesquisador estará à disposição para esclarecimentos sobre qualquer aspecto da
pesquisa, sempre que você considerar necessário. Os resultados finais da pesquisa serão
disponibilizados e, caso seja de seu interesse, discutidos com você. O pesquisador compromete-se a
e zelar pelas garantias de sigilo e segurança mencionadas.
II - Declaração do participante:
Este termo, em duas vias, é para certificar que eu,
____________________________________________________, abaixo assinado, declaro ter sido
esclarecido sobre os objetivos de pesquisa e que concordo em participar desta pesquisa acadêmica
de acordo com os seguintes princípios:
- Considero preservada minha participação como voluntário(a), sem coerção pessoal e institucional,
dando minha permissão para ser entrevistado e para essa entrevista e minha participação no grupo
ser gravada.
- Estou ciente de que sou livre para recusar a dar respostas a determinadas questões, retirar minha
autorização e terminar minha participação a qualquer momento, bem como terei a oportunidade de
perguntar sobre qualquer questão que eu desejar.
- Sei que, além do pesquisador, colegas pesquisadores e especialistas da área poderão conhecer
trechos do conteúdo para discussão dos resultados, mas meu nome será omitido e estas pessoas
estarão sempre submetidas às normas do sigilo profissional. A pesquisa estará disponível para todos
quando estiver concluído o estudo, inclusive para apresentação em encontros científicos e
publicação, podendo conter citações, mas sempre de modo a garantir o anonimato.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
-
GRADUADOS EM PSICOLOGIA SOCIAL
138
- Compreendo, também, que não haverá benefícios diretos ou imediatos a mim enquanto participante
desta pesquisa, além das reflexões por falar e trocar idéias sobre o assunto tratado, bem como
nenhuma remuneração.
- Fui informado ainda de que não existem riscos ou desconfortos associados com este projeto.
Considero-me suficientemente informado e para certificar que concordo livremente em
participar dessa pesquisa, assino esse termo em duas vias.
São Paulo, ___ de ____________ de 200__.
_______________________________________
Assinatura do participante.
_______________________________________
Assinatura do pesquisador
_______________________________________
Assinatura da orientadora
Pesquisa: Práticas de Justiça Restaurativa: subjetividade e legalidade
Coordenação da pesquisa: Profa. Miriam Debieux Rosa e Profa. Maria Cristina G. Vicentin, do
Programa de Estudos s-graduados em Psicologia Social da PUC-SP - Núcleo de estudos e
pesquisa: Violências: sujeito e política (NEVIS).
Pesquisadora: Ana Carolina Schmidt
Endereço: Rua Ministro de Godoy, 969 – Perdizes – São Paulo.
Telefone: (11) 3670-8520 \ 8646-6623
E-mail: pssoc[email protected] e caroland[email protected].br
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Você está sendo convidado(a) a participar, como voluntário, em uma pesquisa. Após receber
as Informações sobre a pesquisa, no caso de aceitar fazer parte do estudo, assine ao final deste
documento o Consentimento Livre e Esclarecido. Você tem total liberdade para recusar-se a
participar da pesquisa.
I. Informações sobre a pesquisa
Título: Práticas de Justiça Restaurativa: subjetividade e legalidade jurídica.
Sua participação fará parte desta pesquisa, sob orientação das Professoras. Dra. Maria
Cristina Vicentin e Miriam Debieux Rosa do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia
Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e de uma equipe de pesquisadores, como
requisitos para obtenção do título de Mestrado/Doutorado em Psicologia Social.
Nesse sentido esta pesquisa tem por objetivo: investigar os sentidos de justiça,
responsabilidade e conflito para os participantes do Projeto de Prevenção e Resolução de conflitos
desenvolvido em São Caetano do Sul; investigar os impactos subjetivos experimentados na
participação dos círculos restaurativos; analisar as práticas de Justiça Restaurativa no tocante à sua
implantação (atores envolvidos, construção de redes) e à construção de uma cultura diferenciada de
resolução de conflitos.
Se aceitar participar da pesquisa, os círculos restaurativos que você facilitar serão gravados e
transcritos. As gravações de voz e outros elementos resultantes das atividades serão de uso restrito
da equipe de pesquisa, assegurando que, na análise e divulgação de quaisquer dados, sua
identidade e a dos participantes do círculo restaurativo serão preservadas.
Em qualquer momento você poderá se recusar a participar ou retirar o seu consentimento de
participação da pesquisa, sem qualquer tipo de penalização ou prejuízo para você ou para os
participantes. O sigilo será garantido, assegurando sua privacidade e a dos participantes dos círculos
restaurativos quanto a eventuais dados confidenciais envolvidos na pesquisa. Os pesquisadores
estarão à disposição para esclarecimentos sobre qualquer aspecto da pesquisa, sempre que você ou
os participantes dos círculos restaurativos considerarem necessário. Os resultados finais da pesquisa
serão disponibilizados e discutidos, caso seja de seu interesse ou dos participantes dos círculos
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
-
GRADUADOS E
M PSICOLOGIA SOCIAL
139
restaurativos. Os pesquisadores comprometem-se zelar pelas garantias de sigilo e segurança
mencionadas.
II - Declaração do participante:
Este termo, em duas vias, é para certificar que eu, _________________
_________________________________________________, abaixo assinado, declaro que os
participantes dos círculos restaurativos estão de acordo com a gravação e transcrição dos círculos
restaurativos e declaro ter sido esclarecido sobre os objetivos de pesquisa e que concordo em
participar desta pesquisa acadêmica de acordo com os seguintes princípios:
- Considero preservada minha participação como voluntário(a), sem coerção pessoal e institucional,
dando minha permissão para que os círculos restaurativos que eu facilitar sejam gravados e
transcritos.
- Estou ciente de que sou livre para retirar minha autorização e terminar minha participação a
qualquer momento, bem como terei a oportunidade de perguntar sobre qualquer questão que eu
desejar.
- Sei que, além do pesquisador, colegas pesquisadores e especialistas da área poderão conhecer
trechos do conteúdo para discussão dos resultados, mas meu nome será omitido e estas pessoas
estarão sempre submetidas às normas do sigilo profissional. A pesquisa estará disponível para todos
quando estiver concluído o estudo, inclusive para apresentação em encontros científicos e
publicação, podendo conter citações, mas sempre de modo a garantir o anonimato.
- Compreendo, também, que não haverá benefícios diretos ou imediatos a mim enquanto participante
desta pesquisa, bem como nenhuma remuneração.
- Fui informado ainda de que não existem riscos ou desconfortos associados com este projeto.
Considero-me suficientemente informado e para certificar que concordo livremente em
participar dessa pesquisa, assino esse termo em duas vias.
São Paulo, ___ de ____________ de 2009.
_______________________________________
Assinatura do facilitador
_______________________________________
Assinatura do pesquisador
_______________________________________
Assinatura da orientadora
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