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por objetivo unir a comunidade e reafirmar os valores sociais e religiosos. No passado era
comum que o corpo morto fosse velado nas residências, que eram “armadas”, ou seja,
decoradas com símbolos de luto, que atuavam como signos que indicavam o óbito. O morto
era velado em companhia de parentes e amigos. Nessas cerimônias de despedida, aconteciam
vigílias em que eram oferecidas comidas e bebidas para os presentes. Esses rituais de
descompressão distraíam os participantes da dor da perda, ao mesmo tempo em que os
convidavam a participar do momento de dor (REIS, 1991, p. 138).
Enquanto o morto era “guardado”, a sua alma era encomendada aos céus através de
orações cantadas ou recitadas, num hábito conhecido como “sentinela”, que compreendia uma
missa laica que os mais pobres realizavam na impossibilidade de financeira de obter a liturgia
católica romana (ARAÚJO, 1964, p. 406). As orações recitadas e cantadas eram conhecidas
como excelências (incelênças) ou benditos
. As excelências eram orações entoadas aos pés do
defunto, enquanto os benditos eram cantados à cabeceira do morto
.
Segundo César (1975, p.173), “bendito” se origina do termo latino benedictus, que significa “louvar,
abençoar”. São versos de louvor a determinados santos, engrandecendo as suas vidas e as suas obras; também
são considerados como cânticos de súplica, que são entoados em novenas, procissões, festas, missas e velórios.
Um bendito pernambucano incentiva o moribundo a deixar o mundo dos vivos: “Pecadô repara. Que hás de
morrê. Chama por Jesus. Que ele há de valê [...]. Não conhece os teus. Que contigo estão. Com ânsia tão grande.
No seu coração?” (REIS, 1997, p. 107-108). Araújo (1964, p. 406) destaca outros benditos: “Nos domingo e dia
santo, que as igreja tão chamano, que nós no nosso batuque, é tu é que Jesus crama. É tu é que deu a morte, tanta
morte arrependida, tanto castigo que vorta. Castigo havemo te, raio, corisco e trovão, tudo isso é de se vê. Essa
arma que morreu, não se salvaro nenhuma, selada este mistério, talvez que salvasse alguma. Valei-me Santa
Teresa, Valei-me Santa Isabé, Valei-me meu anjo da Guarda, Me acuda São Gabrié. Quem reza este bendito,
com toda sua famia, as portas do céu se abre, e o inferno treme de dia, que nos livre do inferno pra sempre.
Amém Jesus.” Em seguida, cantavam-se as orações de despedida, como se fosse o defunto que estivesse se
despedindo: “Sua bençã mãi, nos queira butá, os anju me chama, não posso esperá. Não posso espera, esta
dispidida, hoje é o dia, da minha partida. Meus irmão não chore, que eu não posso, peço que me reze, outro
padre-nosso. Si forim rezado, de bom coração, peço que me ofereça, em minh‟intenção. Dê a ismola aos cego, e
aos filho sem pai, quem faz pra Jesuis Cristo, merecemo mais. Adeus minha mãi, meu povo também, eu vô pra
eternidade, para sempre. Amém.” (ARAÚJO, 1964, p. 406)
Em Araújo (1964, p. 406) podemos apreciar algumas incelências recitadas: “Hoje, os tempos mudaram, uma
incelência ô mãe amorosa, seu filhinho vai morto, na vida saudosa. Duas incelências, etc.” No momento em que
as incelências eram cantadas, caso passasse alguma pessoa próximo à residência, uma das pessoas que
acompanhavam o velório chamava o passante: “Chegai irmão das alma!”. Sendo pequeno o número de
participantes do velório, as rezas eram cantadas com o objetivo de aumentar o número de guardadores do
defunto, tal como: “Chegai pecadô que há de morrê, chama por Jesuis para te valê. Chama por Jesuis enquanto é
tempo, quando a morte vem, mata de repente. Quando a morte vem calada, sozinha, dizendo consigo, esta hora é
minha. Chama por Jesuis que Ele mandará, um anju da guarda para te ajudá. Torna a chamá, que ele vem
também, com o seu ao lado, para sempre. Amém. Eu ofereço esta reza ao sinhô que tá na cruz, que nos livre do
inferno pra sempre. Amém Jesuis.” Em certas ocasiões, como alguns velórios eram acompanhados por bebidas
alcoólicas, as excelências cantadas ao tardar da noite eram totalmente jocosas, tal como: “uma incelência que
veio da laia, morresse corno morresse, nós vamos corta-te a gaia”. (Excelência entoada em um velório na zona
da mata pernambucana, por volta do ano de 1947, segundo relato de Severino Urbano Ferreira, em entrevista
realizada em 2006, para o trabalho final da disciplina “Família e Gênero”, ministrada pelos Professores Parry
Scott e Marion Quadros, no curso de Doutorado no PPGA da UFPE, que teve como objetivo perceber como os
ritos de morte eram realizados na sociedade do passado na zona da mata pernambucana, quando ainda se tinha
um modelo de morte familiar e domada).