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CANDIDA FORTUNATA PALLADINO
O YÔGA E O TAI CHI CHUAN: DO TREINO PESSOAL
À COMPOSIÇÃO DA PARTITURA CÊNICA DO ATOR
TESE APRESENTADA À ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES DA
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, COMO EXIGÊNCIA PARCIAL DO CURSO DE
PÓS-GRADUAÇÃO, PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE DOUTOR EM ARTES.
ORIENTADOR: PROF. DR. ARMANDO SÉRGIO DA SILVA
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES
CURSO DE ARTES CÊNICAS
2009
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II
TERMO DE APROVAÇÃO
Comissão Julgadora:
Orientador:
Prof. Dr. Armando Sérgio da Silva
Examinador (a):
Examinador (a):
Examinador (a):
Examinador (a):
São Paulo, de de .
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III
A todos aqueles que acreditaram na composição e
realização deste trabalho.
IV
Agradeço ao meu mestre e orientador Prof. Armando Sérgio,
por sua sensibilidade ao me conduzir neste processo me
encorajando a abrir o meu coração à criação.
E também
a todas as pessoas que participaram e
contribuíram com este desenho cênico.
V
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo descrever a metodologia do Yôga e do Tai Chi
Chuan na composição da partitura cênica do ator, ao relatar a aplicação das duas
técnicas orientais nos exercícios de improvisação. Desta forma, foi possível provar a
qualidade cênica ao experimentar o método numa livre adaptação do texto “Hamlet”
de Shakespeare. O método, resultado das improvisações com os ásanas do Yôga e
os movimentos básicos do Tai Chi Chuan, levou à criação do espetáculo “Agora já
era...Hamlet!”.
Palavras-chave:
Yôga, Tai Chi Chuan, Ásana, Movimentos Básicos, Mudrãs e Mantras.
ABSTRACT
The aim of this work is to describe the methodology of Yoga and Tai Chi Chuan to
build the actor’s theatrical piece while reporting the usage of these eastern
techniques in exercises of improvisation. This way, it was possible to prove the
theatrical quality when experimenting the method in a free adaptation of the text
Hamlet by Shakespeare. This method resulted from improvisations with yoga
positions (asanas) and basic Tai Chi Chuan movements, which led to the creation of
the play “Agora já era...Hamlet!” .
Key words:
Yoga, Tai Chi Chuan, Yoga Positions (asana), Basic Movements, Mudras and
Mantras.
VI
SUMÁRIO
Introdução 1
I. Lecionar: Uma experiência 33
Hamlet na quadra 33
Inspetor Geral 35
Fausto Zero 37
Frankenstein de Mary Shelly 39
Medéia Uma Tragédia Anunciada 40
Dibuk 41
Asilo Arkham 42
II. As Técnicas Orientais – Conceitos, Práticas e Escolhas 44
Objetivos do Yôga 44
Os Estágios do Yôga 45
O Significado do Yôga 45
Os Ásanas como Ferramentas 47
Hatha-Yôga 49
Os Oito Membros 50
Ásana, Pranayama e Pratyahara 51
Trabalho com os Chakras 53
O Significado dos Chakras 54
O que são Mudrãs e Mantras 55
Mantras 59
Tipos de Mantras 62
Origem do Tai Chi Chuan 63
Os Primeiros Mestres do Tai Chi Chuan 67
Chen Wang e o Estilo Chen de Tai Chi Chuan 68
Prática nas Técnicas 69
O Primeiro Contato com o Yôga 69
O Contato com o Tai Chi Chuan 70
Como a Técnica Oriental entrou na Montagem 71
Foi quando surgiu a primeira proposta 72
O Experimento-Exercícios Específicos para o Treinamento do Ator I 78
A primeira cena 78
A Improvisação com as Posturas 79
III. Estímulo Shakespeare e Hamlet 83
Resumo de Hamlet 87
A “Adaptação Livre” de Hamlet 90
IV. Enfim, os Estímulos 98
Do Treino Pessoal 98
Encadeamento dos Movimentos 100
Som, Voz, Corpo 102
Treino da Voz 104
Quais foram os Estímulos 108
VII
V. Descrição dos processos improvisacionais 112
Construindo a Cena 112
O Galo Canta 112
Configuração do Personagem à Cena 114
Como o Galo se Transformou no Rei Fantasma 114
Apertar as Têmporas me levou ao Elmo 115
O Guarda no Terraço, Reza 115
O Cavalo Configura o Medo do Guarda 116
Hamlet na Árvore 116
A Improvisação Abre Espaço, o Príncipe em Cima da Árvore 118
Horácio Comunica 120
Partindo das Costas de Hamlet 121
Horácio se Expressa 122
Decidi, Partiria do Abraço 123
Hamlet pede silêncio 124
O Som Encarna as Vestes de um Mantra 126
Surge o Narrador 127
A Chegada e a Partida: mais do que um diálogo entre os Navios que
Ancoram no Porto 130
Hamlet se Dirige para o Encontro 132
O Fantasma do Rei Aparece 133
O Juramento com a Espada 136
O Lago de Ofélia 136
A Dedução de Polônio 139
O Rei Manifesta 140
O Narrador Introduz os Amigos de Infância 143
O Rei Interroga Guildenstern e Rosencrantz 144
Guildenstern e Rosencrantz 145
Encontro com Hamlet 146
Pressionados, Eles Respondem 147
A Cavalgada 147
Como o Coringa Entrou na Jogada 148
O Que Fazer? 150
VIII
Hamlet Canta Carinhoso 151
A Devolução 152
Tai Chi Chuan no Rap 153
Gungroo 155
A Difícil Composição de Gertrudes 155
Polônio Estava 160
Narrador 160
Era o Início do Meu Drama 162
O Coveiro Que Não Aparece 100
VI. Conclusão 165
Bibliografia 168
Anexos 171
1
INTRODUÇÃO
Este trabalho é o resultado de minha pesquisa de doutorado na qual utilizei as
técnicas de Yôga e Tai Chi Chuan como estímulo para a composição de
personagens em uma cena, cujo resultado pôde ser verificado na montagem do
espetáculo Agora já era... Hamlet!
COMO TUDO COMEÇOU
Ao ingressar no Doutorado na Escola de Arte Cênicas da Universidade de São
Paulo, tinha por objetivo analisar os três espetáculos: “O Paraíso Perdido”, “O Livro
de Jó” e “O Apocalipse 1, 11”, que compõem a Trilogia Bíblica do grupo paulista
Teatro da Vertigem, porém alguns acontecimentos foram decisivos, e acabaram
conduzindo a minha pesquisa para outra direção, ocasionando outra investigação e
como conseqüência um outro tema: “O Yôga e o Tai Chi Chuan: do Treino Pessoal à
Composição da Partitura Cênica do Ator”.
O meu interesse em trabalhar com essas duas técnicas corporais do Oriente, na
composição de uma cena para o ator, tornava-se mais significativo e presente na
minha vida, o que me impulsionou a mudar o meu tema de Doutorado.
Após muitas conversas com o meu Orientador, Prof. Dr. Armando Sérgio da Silva,
que vinha, e vem, acompanhando de perto o desenvolvimento e a transformação do
meu projeto: “O Yôga e o Tai Chi Chuan: do Treino Pessoal à Composição da
Partitura Cênica do Ator”, mudei o objeto de minha pesquisa.
Dois cursos oferecidos pelo Departamento de Pós-Graduação da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo foram fundamentais para a
transformação e pela mudança radical do meu tema: Exercícios Específicos para o
Treinamento do Ator I – O Método e Exercícios Específicos para o Treinamento do
Ator II – O Espetáculo.
2
Matriculei-me no curso Exercícios Específicos para o Treinamento do Ator I – O
Método oferecido no primeiro semestre pelo Departamento da Pós-Graduação da
Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, por alguns motivos:
- O curso seria ministrado por um profissional que admiro muito.
- Sempre tive muito interesse pelo tema que seria trabalhado no curso.
- O curso seria ministrado pelo meu Orientador, cujo interesse pela pesquisa
metodológica do trabalho do ator é instigante.
No entanto, não imaginava que esse curso proporcionaria e provocaria grandes
transformações em mim, e como conseqüência também mudaria minha pesquisa.
No primeiro dia de aula, o professor foi muito claro quanto aos objetivos do curso.
Todos os matriculados no curso Exercícios Específicos para o Treinamento do Ator I
– O Método deveriam aplicar a sua metodologia numa cena de dez minutos.
Não esperava por aquilo. Naquele momento senti que algo renascia em mim e
aceitei o desafio. Após o término da aula, saí da sala pressentindo que grandes
transformações modificariam o rumo de minha vida.
Foram estabelecidas algumas tarefas para a aula seguinte:
- Falar sobre o projeto.
- Quais seriam os atores com quem você iria trabalhar.
- Qual a metodologia que iria ser aplicada.
- Qual seria o um tema comum a todos os integrantes do grupo.
3
Fui surpreendida e senti-me desafiada pela proposta lançada. Até aquele momento
a minha pesquisa era teórica. Mas como mencionado anteriormente, sofreria
grandes transformações a partir do momento que começaram as minhas
investigações práticas.
UMA HIPÓTESE
Trabalho, já faz algum tempo, com duas técnicas orientais: o Yôga e o Tai Chi
Chuan na construção de uma partitura cênica para o ator.
Durante todos esses anos que venho aplicando esta metodologia nos espetáculos
montados com os meus alunos na Escola de Teatro Macunaíma, e nas próprias
cenas que apresentei como exercício no Departamento de Artes Cênicas da
Universidade de São Paulo; pude perceber que a aplicação dessas duas técnicas
confere à cena um trabalho orgânico, de qualidade cênica, tendo como estímulo um
texto.
Os resultados obtidos ao aplicar as posturas do Yôga e os movimentos do Tai Chi
Chuan na criação de uma cena, exemplificam e comprovam a eficiência desse
método, que foi utilizado nos trabalhos desenvolvidos na disciplina Exercícios
Específicos para o Treinamento do Ator, confirmando assim a seriedade da
aplicação das duas técnicas corporais.
Ao descrever os processos improvisacionais das cenas “A Conquista da América",
O Homem Velho" e do espetáculo "Agora já era... Hamlet!", procurei demonstrar
como a escolha de determinada postura trabalhada durante o exercício de
improvisação foi fundamental para reforçar e comprovar a qualidade cênica
conferida pelo método.
Acredito que ao optar pelas duas técnicas, escolho também o poder que as mesmas
têm em configurar cenicamente o trabalho do ator num espetáculo.
4
A decisão de fazer “Hamlet” partiu de um estímulo lançado pelo nosso Coordenador
Prof. Dr. Armando Sérgio para o grupo todo, e que no meu caso, em particular,
acabou despertando o interesse e a vontade de aplicar a minha metodologia do
Yôga e do Tai Chi Chuan numa dramaturgia que me oferecia confiança para
desenvolver um trabalho o qual envolveria os ásanas, e os movimentos básicos dos
pés e das mãos nos exercícios de improvisação.
A configuração do espetáculo “Agora já era... Hamlet!” no Yôga e no Tai Chi Chuan
num espaço cênico pretende comprovar que, com as duas técnicas orientais é
possível criar qualquer personagem com qualidade cênica para o trabalho do ator.
NA MEMÓRIA, PÁGINAS DE UM DIÁRIO DE ALGUNS ANOS ATRÁS
Como mencionei anteriormente há alguns anos venho desenvolvendo uma
metodologia na qual utilizo o Yôga e o Tai Chi Chuan em cena, aplicando alguns dos
princípios das duas artes orientais no trabalho com os meus alunos de interpretação
e nas montagens de espetáculos teatrais.
Sou praticante das duas técnicas corporais do Oriente e, à medida em que me abri
para essas duas artes, elas foram se abrindo para mim. Percebi, na minha prática,
que as duas técnicas poderiam ser utilizadas no trabalho de interpretação do ator
em cena, por serem teatrais, além de exigirem do praticante concentração, equilíbrio
e consciência corporal.
Expus o meu projeto que seria desenvolvido no curso Exercícios Específicos para o
Treinamento do Ator I O Método para alguns alunos, na esperança de aplicar
neles a minha metodologia. A intenção era a de trabalhar a profundidade de algo
que em sala de aula, devido a urgência de se montar um espetáculo
semestralmente, era praticado com um fino pincel de três fios.
Expliquei a necessidade, a urgência do trabalho, e o comprometimento com a
pesquisa que estava desenvolvendo. O semestre seria curto, e os ensaios teriam de
5
ser mais freqüentes do que eles estavam acostumados a realizar. Era imprescindível
ter disponibilidade, disciplina e aplicação.
O grupo de alunos convidados escutou com atenção a proposta, e emitiu suas
impressões a respeito do projeto, falando do interesse em participar uma vez que já
conheciam o meu trabalho, porém como a maioria das pessoas, eles já tinham
outros compromissos e decidiram que não seria possível conciliar mais uma
atividade que exigiria dedicação.
Após ouvir todas as explicações dos meus alunos, resolvi que aplicaria o método em
mim mesma.
Na segunda aula do curso, falei sobre o projeto que pretendia desenvolver.
Utilizando o tema “América Latina”, aplicaria o método em mim por meio da
metodologia: Yôga (Mantras e Mudrãs) e Tai Chi Chuan.
A escolha do tema foi estabelecida após serem ouvidas muitas sugestões.
Percebemos que a maioria dos integrantes do curso trazia, de uma forma ou de
outra, a vontade de pensar na América Latina.
Reli o resumo do trabalho de Livre Docência do profissional responsável pelo curso,
no qual encontrei, de forma objetiva e clara, as etapas de sua metodologia aplicada
num espetáculo experimental.
Como o tema era “América Latina”, iniciei a pesquisa buscando autores, filmes,
pinturas e músicas relacionados ao tema.
Em meio a tantos estímulos, tive a oportunidade de ler o livro de Todorov “A
Conquista da América”. Um livro apaixonante que meu deu um grande estímulo.
Lendo os relatos dos conquistadores espanhóis na América, fiquei conhecendo com
mais detalhes a figura do conquistador espanhol Cortez e do conquistado
Montezuma III, rei asteca. Fiquei fascinada por esses dois personagens. A minha
6
cena seria sobre essas duas figuras da conquista espanhola no México. Estava
decidido, trabalharia com esses dois personagens. Mas havia um grande desafio:
como contar essa história utilizando o Yôga e o Tai Chi Chuan?
Não desejava trabalhar com um texto pronto. A intenção era criar um texto a partir
das posturas do Yôga e dos Movimentos básicos dos pés e das mãos do Tai Chi
Chuan.
Criei uma partitura de ações físicas com ásanas de Yôga (mudrãs e mantras) e
Movimentos básicos dos pés e das mãos do Tai Chi Chuan, e partindo das posturas
tentei criar uma frase do personagem extraído do relato dos livros “A Conquista da
América”, “A Morte de Montezuma, e a “Conquista do México”.
COMO APRESENTEI O PRIMEIRO EXERCÍCIO
A primeira apresentação da minha proposta, o trabalho que pretendia realizar na
cena, foi tão rápida e emergente, que ninguém viu nada. Devido à velocidade com
que apresentei o meu projeto, recebi a tarefa de reapresentar na próxima aula. Esta
cairia numa terça-feira, depois de um feriado prolongado. Alguns alunos do curso
avisaram que não compareceriam neste dia devido ao feriado prolongado. A
sugestão foi que se alguém tivesse alguma dúvida referente à sua pesquisa, viria à
aula. Exceção feita ao meu processo que, além das dúvidas, apresentava o
problema de ter sido apresentado numa estranha rapidez.
No dia da reapresentação, compareceram alguns colegas que pretendiam esclarecer
algumas dúvidas, e como a aula foi programada para esse fim, foi muito proveitosa
para todos aqueles que compareceram.
Para minha felicidade, e para todos que estavam presentes naquele dia, consegui
apresentar e executar com mais tranqüilidade a partitura de ações físicas e a
pequena dramaturgia que começava a surgir. Mas isso era só o principio de um
7
processo que começava a despontar; restava muito trabalho a ser pesquisado e
executado.
Antes da apresentação do exercício prático, apresentei sucintamente a proposta do
meu projeto. Falei a respeito do método do Yôga e do Tai Chi Chuan, e de que
maneira pretendia aplicá-lo na cena e na história de Hernán Cortez, conquistador
espanhol, e de Montezuma III, rei asteca, que pretendia contar. Empolgada, fiz um
breve resumo da história da conquista do México pelos espanhóis. Existia uma lenda
que o deus voltaria pelo mar para tomar seu reino. Quando os espanhóis chegaram,
os nativos acreditaram que eles eram deuses, e deixaram ser dominados pelos
conquistadores, que acabaram exterminando toda uma civilização. Entre outros
detalhes, expus a lenda. Após a apresentação do exercício, ouvi os comentários dos
colegas e do professor, que me alertaram para a escassez de informações sobre a
própria história que pretendia contar.
Surgiram inúmeras dúvidas e muitas dificuldades. Como contar essa história
utilizando o método Yôga e Tai Chi Chuan? Como contar essa história num tempo
de dez minutos? Quais os momentos-chave para o entendimento do público? O que
era mais interessante de ser colocado em cena? Como realizar o trabalho pretendido
com uma única atriz? Como trabalhar comigo? Como trabalhar com uma história tão
cheia de detalhes?
Seguindo a orientação recebida por todos que estavam presentes, e que assistiram
à pequena exposição, incluí na cena outro personagem: o Narrador. Este informaria
ao público partes ocultas da história da conquista do México que não estavam
presentes no discurso dos outros dois personagens, Hernán Cortez e Montezuma III.
Iniciei o trabalho compondo uma partitura de ações físicas com posturas de Yôga
(mudrãs e mantras) e movimentos básicos dos pés e das mãos do Tai Chi Chuan,
proporcionando, dessa maneira, a criação de uma dramaturgia. Ou seja, a postura e
o movimento básico escolhidos contribuiriam com a criação de um texto cênico, com
a malha da dramaturgia e com a palavra articulada que seria expressa em cena no
exercício específico do ator.
8
Aconselharam-me a leitura de algum dos livros do diretor dinamarquês Eugenio
Barba. Acabei relendo o livro “A Arte Secreta do Ator”, o que possibilitou
compreender e ampliar os conceitos referentes ao corpo e a voz, trabalhados pelo
diretor.
Não se trabalha no corpo ou na voz, trabalha-se na energia. Assim não há ação
vocal que não seja também ação física, não há ação física que não seja também
vocal.”
1
Barba direciona e esclarece os conceitos referentes ao trabalho do ator em seu livro
A Arte Secreta do Ator” ao se referir sobre a transformação ou modificação sofrida
pelo exercício específico de treinamento, ao colocar que:
“Os exercícios físicos de treinamento permitem desenvolver um novo
comportamento, um novo modo de se adquirir uma habilidade específica.”
2
Reconhecendo que ao nos utilizarmos da “habilidade específica” se não nos
munirmos de uma verticalização procurando a raiz dessa “habilidade específica”,
esta se tornará algo estável, não contribuindo muito, às vezes em nada, como o
processo criativo do ator.
Antes de esclarecer o que pretendo dizer com a “verticalização” das “habilidades
específicas”, recorri à definição da palavra em dois dicionários da Língua
Portuguesa:
vertical. Adj. 2 g. 1. Perpendicular ao plano horizontal. 2. Que segue a direção o fio
a prumo; aprumado. 3. Situado por cima da cabeça. 4. Diz-se da caligrafia em que
as hastes das letras são perpendiculares à linha. 5. Linha vertical. 6. Direção ou
posição vertical.”
3
1
“A Arte secreta do Ator”. p.55. Editora Hucitec, 2001.
2
Ibidem, p.55.
3
Dicionário Básico da Língua Portuguesa. Aurélio Buarque. p.671.
9
vertical. adj m+f (lat verticale) 1. Que sai ou parte do vértice; que está colocado no
vértice. 2. Que é perpendicular ao plano horizontal, que segue a direção da linha de
prumo. 3. Direito, aprumado. sf A linha vertical ou perpendicular.
verticalidade. sf. (vertical+i+dade) 1. Qualidade, posição ou estado do que é vertical.
2. Aprumo.
verticalização. sf. (verticalizar+cão) Ato ou efeito de verticalizar.
verticalizar. (vertical+ izar) vtd Dar posição vertical a: Verticalizar um poste.
vértice. SM (lat vértice) 1. Ponto, oposto à base, onde se reúnem os dois lados de
um triângulo. 2. Ponto em que se encontram as linhas que formam o ângulo. 3. O
ponto onde se juntam as faces de uma pirâmide. 4. Sumidade, ápice, cume,
pináculo, o ponto mais culminante. 5. O ponto mais elevado de uma abóbada
craniana.
4
Diante dos resultados apresentados durante o processo, percebi que, verticalizar as
habilidades específicas” é encontrar o “ponto onde elas se juntam”, os seus vetores
de oposição; é o ato ou efeito de aprumá-las durante o processo; dando liberdade
para que sejam únicas ou exclusivas daquele momento específico, que seja um
mergulho ou aprofundamento, encontrando o ponto oposto à sua base,
reconhecendo que ir as últimas conseqüências é o ápice proposto por fazer uso de
suas bases, impedindo o vício na própria forma.
essa habilidade se estagna e se torna unidimensional se não se aprofundar, se não
consegue chegar ao fundo da pessoa, constituída do seu processo mental, de sua
esfera psíquica, seu sistema nervoso. A ponte entre o físico e o mental provoca uma
ligeira mudança de consciência que permite vencer a inércia monótona da
repetição.”
5
4
Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Michaelis 2000. p.2195.
5
“A Arte Secreta do Ator”. p.58.
10
À medida em que executava e repetia a cena, utilizando as duas técnicas orientais,
procurava torná-las orgânicas.
A intenção, e a opção, ao trabalhar com uma seqüência pura, ou seja, uma
seqüência que manteria a forma original dos ásanas do Yôga e dos movimentos
básicos dos pés e das mãos do Tai Chi Chuan, eram de trabalhar a organicidade
proporcionada pelas posturas de forma íntegral, construindo em cima dessa
seqüência uma cena de dez minutos.
“... duelo, lutas, até batalhas entre tropas armadas não são somente base do
treinamento do ator, mas também elementos do espetáculo misturados às formas
originais e apresentados com a mais elevada e refinada técnica corporal
extracotidiano”.
6
O objetivo era criar uma partitura de ações e não uma partitura de posturas de Yôga
e movimentos básicos dos pés e das mãos do Tai Chi Chuan. Uma partitura de
ações que também resultasse em uma ação vocal (palavra sonoramente articulada),
e na criação de uma dramaturgia, que tiveram como estímulo o livro “A Conquista da
América” de Tzvetan Todorov.
O impulso proporcionado, produzido, exercitado pelo movimento corporal provocado
pelas posturas do Yôga e pelos movimentos básicos dos pés e das mãos do Tai Chi
Chuan criou uma pequena cena, onde se pôde observar parte de uma história. O
resultado da seqüência e da íntegração das duas técnicas corporais proporcionou a
criação de um trabalho intenso, com a energia configurada nas ações físicas vocais.
A partitura de um ator é o resultado da dramaturgia e montagem, trabalhada
primeiro pelo ator e depois, pelo diretor, isto é, ela é o resultado do trabalho baseado
em desmantelamento e reconstrução. Cada ação é analisada de acordo com seus
impulsos e detalhes individuais e é, posteriormente, reconstruída numa seqüência
cujos fragmentos iniciais podem agora ser ampliados ou movidos para uma nova
posição, sobreposta ou simplificada.
7
6
Ibidem. p.56
7
Ibidem. p.57.
11
O objetivo do trabalho era o de criar uma cena utilizando uma seqüência de ações
do Yôga (e também, incluindo na mesma, alguns Mudrãs e Mantras) e movimentos
básicos dos pés e das mãos do Tai Chi Chuan, as quais provocariam e
proporcionariam por meio do impulso corporal uma voz corporal e a criação de uma
dramaturgia não só de ações, mas, também, de palavras articuladas.
O tempo de duração da cena era de dez minutos. Esta apresentava em sua
composição os seguintes personagens: o Narrador, que foi construído da mistura de
algumas posturas de Yôga e de Tai Chi Chuan; o conquistador espanhol, Hernán
Cortez, que foi construído em cima dos movimentos básicos dos pés e das mãos do
Tai Chi Chuan e o rei asteca, Montezuma III, construído em cima das posturas do
Yôga e de alguns Mantras e Mudrãs.
As apresentações de todos os projetos aconteciam de forma rotativa, para que todos
os integrantes do curso pudessem participar de maneira passiva e ativa, observando
e sendo observado, analisando e sendo analisado, criticando e sendo criticado de
forma positiva, por meio de debates que eram abertos logo após as apresentações
das cenas.
Todas as pesquisas foram apresentadas numa aula pública no Departamento de
Artes Cênicas na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo,
no encerramento do primeiro semestre de 2006. Como foi programado no início do
curso, todos os integrantes apresentariam de modo expositivo a sua metodologia ao
público. Em seguida, aconteceriam apresentações práticas nas quais o pesquisador
mostraria a aplicação de sua metodologia numa cena e ao término desta seriam
abertos debates.
A experiência foi interessante, contribuindo com o crescimento da pesquisa ao
redimensionar o grau de consciência do que é aplicar o próprio método numa cena.
Após as apresentações de todas as pesquisas e suas respectivas cenas na aula
pública, fizemos uma reunião na qual estavam presentes todos os integrantes do
12
curso, ocasião que possibilitou aos participantes exporem, abertamente, as suas
impressões sobre a experiência vivida durante o curso.
Era do conhecimento de todos aqueles que tivessem interesse em continuar suas
pesquisas de que haveria O Exercício Prático Para o Ator II – O Espetáculo, no qual
se pretendia fazer um espetáculo em que fossem aplicadas as metodologias dos
pesquisadores.
As tarefas foram estabelecidas para aqueles que pretendiam continuar no segundo
módulo que seria oferecido no curso. Os interessados deveriam pesquisar o tema
América Latina, para que este se tornasse um tema de interesse comum, pois
estávamos visando à montagem de um espetáculo.
Ao deixar a reunião naquele dia final do semestre, refleti a respeito deste processo e
repensei as suas etapas e as transformações, relembrando algumas frases,
sugestões, a orientação e os estímulos recebidos durante aquele semestre.
Percebi que à medida em que repetia nos ensaios a seqüência das posturas do
Yôga e do Tai Chi Chuan, a dramaturgia da cena ia se transformando, se tornando
mais clara, criando caminhos para a tecedura dramatúrgica, ampliando e
corporificando o som da palavra articulada em comunhão com cada postura ou
movimento. Cada vez que repetia a seqüência, a postura, a palavra articulada e os
gestos iam compondo a cena, iam “deixando” de ser a forma e tornando-se
essência. Sentia que a palavra se “desmineralizava” na forma para se tornar som,
corpo sonoro da voz, sendo o aquilo que nasceu para ser. A “voz” lembrava um tubo
aberto, figura semelhante a um chafariz, que ao invés de água, lançava um fluxo
energético branco.
Exemplificando: quando o conquistador espanhol falava: “Heresia! Professa por um
selvagem... na postura do guerreiro que monta o cavalo do Tai Chi Chuan, essa voz
na postura transformava ou transmutava no som vocal que me remetia ao som da
voz de um padre da inquisição. Sentia como se o som vocal da inquisição vibrasse
13
dentro de mim, assumindo, descaradamente o todo corporal naquele momento da
cena, onde eu vibrava como o som de Cortez.
Notei que o personagem Hernán Cortez, o grande conquistador espanhol,
corporificava nos movimentos básicos dos pés e das mãos do Tai Chi Chuan, e o
personagem Montezuma III, o grande rei asteca, corporificava nas posturas do Yôga.
Compreendi a diferença entre os dois personagens depois de apresentar o
exercício, no dia dois de maio, para algumas pessoas que estavam presentes. Foi
sugerida uma distinção entre os personagens por intermédio das práticas do Yôga e
do Tai Chi Chuan e a inserção de um Narrador .
Ao repensar o processo criativo da construção dos personagens: Hernán Cortez,
Montezuma III e o Narrador, percebi que ao ásanas do Yôga e os movimentos
básicos do Tai Chi Chuan teciam” um “texto corpóreo”, cuja reação de resposta
aparecia num tipo diferente de voz, que foi “tecido” junto às linhas seqüenciais das
posturas.
A palavra texto, antes de se referir a um texto escrito ou falado, impresso ou
manuscrito, significa tecendo junto”. Neste sentido, não há representação que não
tenha texto”. Aquilo que diz respeito ao texto (a tecedura) da representação pode
ser definido como dramaturgia, isto é, drama-ergon, o trabalho das ações na
representação.
8
Munindo-me dos dados históricos apresentados no livro “A Conquista da América”,
de Todorov, “teci”, usando o termo do diretor Eugenio Barba, as ações em trabalho,
a dramaturgia da cena, a palavra articulada dos personagens (Cortez, Narrador e
Montezuma III ), a partir dos estímulos proporcionados pela seqüência dos ásanas
do Yôga e dos Movimentos básicos dos pés e das mãos do Tai Chi Chuan; o “texto
corpóreo”.
8
A Arte Secreta do Ator”. p.68.
14
Dentro do meu processo criativo o significado de “texto corpóreo” está ancorado ao
texto produzido pelo corpo em reação aos estímulos recebidos das posturas das
duas técnicas.
Ao experimentar a seqüência, composta pelas duas técnicas corporais pertencentes
ao mundo oriental, vivenciei o impulso corporal, que possibilitou a criação de uma
partitura de ações sonoras.
Neste processo, pude perceber que o “texto corpóreo” encontra na forma orgânica o
ato de ser, de personificar-se em cena, porque ele é a palavra encarnada no verbo,
é o corpo em ação, que desafiado pela seqüência de posturas do Yôga e do Tai Chi
Chuan, possibilita ações em (e na) cena.
COMO INICIEI OUTRO PROCESSO APLICANDO A MESMA METODOLOGIA
Mencionei anteriormente que havia me inscrito no segundo módulo do curso
Exercícios Específicos para o Treinamento do Ator II – O Espetáculo, oferecido pela
Pós-Graduação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
Desejosa de continuar com a minha pesquisa a respeito do Yôga e do Tai Chi
Chuan como uma metodologia para o trabalho do ator de construir a sua cena,
matriculei-me no curso. Havia feito o primeiro módulo, cujo valor e proveito se
mostraram evidentes ao despertarem em mim o desejo de querer continuar a
pesquisar essa metodologia.
Aproveitei o período de recesso escolar e pesquisei sobre a Conquista da América
Portuguesa e Espanhola. Li alguns relatos a respeito da conquista portuguesa.
Livros de história que tratavam de maneira extremamente interessante este assunto,
tais como: “Visão do Paraíso”, e “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Hollanda;
História da América Portuguesa”, de Rocha Pita; “A terra dos brasis”, de Paulo de
Assunção; “Os Vivos e os Mortos na América Portuguesa”, de Glória Kok; “O Império
15
Marítimo português”, de Charles Boxer; “A Viagem do Descobrimento e “Náufragos,
Traficantes e Degredados”; de Eduardo Bueno.
A vontade de continuar investigando crescia e se tornava mais forte. Trabalhar com
os ásanas do Yôga e com os movimentos básicos dos pés e das mãos do Tai Chi
Chuan era a minha certeza e o meu objetivo e, mais uma vez, seria a minha
pesquisa na segunda parte do curso. Percebi que me identificava cada vez mais
com as duas técnicas do Oriente e que elas tinham muito a oferecer para a atriz
tecer a sua cena. Mas o desafio estava apenas começando. O trapézio seria
montado sem a rede de segurança. Estavam conduzidos, todos integrantes deste
módulo, ao crescimento.
Cheguei ao primeiro dia de aula com muitas informações sobre os conquistadores
portugueses e entusiasmada com as possibilidades que iriam surgir. Queria relatar
as “Visões do Paraíso”, as confissões dos jesuítas, a transformação dos indígenas,
as trapaças dos traficantes, os náufragos que aportaram nas areias da nossa terra
chamada Brasil... Estava pronta para contar muitas histórias do descobrimento, da
destruição de um povo e do início de uma civilização.
Mas ao iniciarmos, no segundo semestre de 2006, o curso da Pós-Graduação
coordenado pelo Prof. Dr. Armando Sérgio da Silva, Exercícios Específicos para o
Treinamento do Ator II – O Espetáculo, recebi a notícia que o tema proposto não
seria mais a “América dos Conquistadores espanhóis e portugueses”, mas
Shakespeare. Escolheríamos uma de suas peças, e cada integrante do curso ficaria
responsável por uma parte da estória para contar utilizando a sua metodologia. A
idéia me entusiasmou muito, sempre tive interesse na dramaturgia shakespeariana,
mas como éramos um grupo, nem todos tiveram a mesma reação. Precisávamos
encontrar um tema em comum, algo que desse prazer a todos. Muitas foram as
propostas sugeridas, mas nenhuma das sugestões apresentava-se como a campeã.
Não podíamos perder tempo. Sabíamos que o tema deveria ser escolhido neste
primeiro dia de aula.
16
Entre as discussões e as sugestões, comentou-se algo a respeito de um livro lido
nas férias, “Contos Latino-Americanos Eternos” escrito por autores consagrados da
literatura latino-americana, entre eles o escritor colombiano Gabriel García Márquez.
Por sugestão, um dos contos do livro foi lido durante a reunião. Não me recordo do
nome do conto escolhido, mas lembro que a história escolhida narrava com muita
crueza os acontecimentos do protagonista envolvido em situações de extrema
violência. Ao término da leitura era visível a satisfação da maioria dos integrantes do
grupo. A violência descrita pelo autor em sua narrativa despertou a vontade de
trabalhar com esse tema tão presente em nosso cotidiano.
Foi perguntado a cada integrante o que mais os incomodava na sociedade
contemporânea. Respondi que uma das coisas que mais me incomodava era não
estar aberto ao outro, não ouvir o que o outro tem a dizer. O depoimento de cada um
foi ouvido por todos que estavam na roda. Não me recordo a conversa nos seus
detalhes, mas lembro que a maioria expressou indignação ao ser abordado por um
assaltante, ao saber que os filhos planejaram, quando não, eles mesmos
executaram seus próprios pais, e também o contrário, quando estes matam seus
filhos, da corrupção deslavada do governo, dos prisioneiros que mandam de dentro
das penitenciárias.
Os depoimentos giravam em torno da violência do mundo contemporâneo. À medida
em que a discussão prosseguia, os acontecimentos narrados traziam um peso
negativo a todos os que estavam presentes na roda. Até que um dos integrantes do
grupo propôs aos participantes trabalhar com contos infantis; a aceitação foi
unânime e imediata de todos os integrantes.
A GRANDE PROPOSTA DE UM CONTO
A proposta era utilizar o conto infantil para refletir sobre a violência urbana da cidade
de São Paulo e procurar trabalhar na dramaturgia os aspectos melodramáticos da
vida.
17
Foi sugerida a leitura de alguns livros sobre o melodrama, tais como: “O
Melodrama, de Jean Marie Thomasseau e “Melodrama”, de Ivete Huppes.
Algumas regras foram estabelecidas antes de iniciarmos o processo de pesquisa
pessoal:
- Todos deveriam escolher um conto infantil.
- Todos deveriam contar a história escolhida de uma forma sintética e que não fosse
identificada pelos integrantes do grupo.
- Todos deveriam contemporanizar a história escolhida.
- Todos não deveriam revelar o seu conto para o público.
- Todos deveriam trabalhar a dramaturgia escrita de sua cena.
- Todos deveriam aplicar o seu método pessoal no trabalho de interpretação do ator
na feitura da cena.
- As cenas deveriam ter dez minutos cada.
- As cenas seriam ligadas com o objetivo de criar um espetáculo sob a coordenação
e direção geral do Prof. Dr. Armando Sérgio da Silva.
Não sabíamos aonde o projeto nos levaria, mas a vontade de continuar pesquisando
a própria metodologia nos impulsionava a prosseguir nesse caminho desconhecido
que o destino estava nos oferecendo. Seriam meses de intenso trabalho em que
todos os integrantes, com propostas metodológicas tão diferentes, se propuseram a
realizar.
18
A ESCOLHA DO CONTO
Escolhi trabalhar com o conto “A Espada era a Lei”, que fala sobre a lenda do Rei
Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda. O filho recém-nascido de Uther de
Pendragon e da rainha Igraine foi entregue a Merlin como pagamento por uma noite
de amor. Segundo a lenda, ao receber o bebê dos pais, o poderoso mago entrega a
criança a um casal de origem humilde. Aos quinze anos Arthur acompanha o seu pai
e seu irmão de criação a um torneio. O cavaleiro que ganhasse a competição teria o
direito de tentar tirar a espada Excalibur, que foi encravada na pedra pelo Rei Uther,
minutos antes de ser morto numa emboscada. Quando o pai pede a espada do
irmão para Arthur, este percebe que esqueceu a espada em casa e, desesperado,
corre por toda a região à procura de uma espada para o irmão. Corre tanto que
acaba se afastando um pouco do local onde seria realizado o torneio. De repente, vê
uma espada enfiada numa pedra. Aproxima-se e com facilidade retira a espada. Sai
correndo e a entrega para o irmão. Todos percebem que é Excalibur e perguntam de
onde ele tirou aquela espada. O menino conta de onde tirou a espada e ninguém
acredita. Todos vão até o local e a espada não estava na pedra. Um sacerdote
recoloca a espada na pedra e um dos grandes cavaleiros se sente no direito de
tentar tirar a espada da pedra, visto que até aquele momento era o vencedor do
torneio. O Cavaleiro tentou, mas a espada nenhum milímetro se moveu. Todos
gritavam que o menino deveria tentar retirar Excalibur da grande pedra. Arthur se
aproximou do grande mineral e sem precisar fazer força retirou a espada da pedra,
sendo proclamado rei.
OS PROBLEMAS QUE APARECEM COM A ESCOLHA
Neste momento, começava a minha grande dificuldade deste semestre: como trazer
a lenda, o mito para o mundo moderno, mais precisamente, para a cidade violenta
de São Paulo?
Iniciei o trabalho de dramaturgia, mas como trazer o conto para o cotidiano da
cidade de São Paulo? Como transformar as imagens tão fortes da Idade Média em
19
imagens do mundo contemporâneo? E constantemente me perguntava: “Quem é
esse rei Arthur hoje?” Não conseguia associar nenhuma figura, nenhuma pessoa do
mundo contemporâneo com o lendário Rei Arthur.
Não conseguia me desligar do conto tantas vezes revisto na minha infância. Do
personagem lendário que conseguiu retirar a espada da pedra e por direito se tornou
rei. Não conseguia identificar a figura do rei bretão com ninguém.
Quem, no mundo contemporâneo, reunia no coração as qualidades daquele rei
idealizado na infância? Como transformar o mito? Não conseguia me libertar do rei
Arthur da minha infância.
Fiquei preocupada! Talvez o caso valesse uma sessão de psicanálise! Confesso que
foi difícil transpor o conto para o mundo modernamente conturbado de São Paulo.
Escrevia e não conseguia transformar a história para os dias atuais. O rei Arthur
ainda estava presente na minha dramaturgia, a figura do rei que não era de carne e
que não tinha ossos. A imagem do rei da Idade Média que difundiu o Cristianismo e
exterminou com o paganismo.
Escrevi e reescrevi muitos textos, apresentei alguns, outros foram registrados no
meu caderno de anotações. Mas, por mais que tentasse, não conseguia trazer o Rei
Arthur para o mundo moderno. Não conseguia enxergar quem poderia ser o grande
rei no mundo violento da cidade de São Paulo.
Retomei algumas leituras referentes ao conto escolhido, muitos escritores anônimos
relataram acontecimentos ocorridos na Idade Média: “A Demanda do Santo Graal”,
Histórias de Cavalarias”, Os Cavaleiros da Távola Redonda”, “Percival”, “Lancelot”,
Galaaz”, “A morte do Rei Athur”,“Merlin”, “Camelot 2000”(HQ), “A volta de Merlin”,
entre outros. As informações encontradas nesse material mostravam o rei como um
homem, um homem violento, um homem ganancioso, um homem vaidoso, um
homem que precisou matar muitos indivíduos para conseguir unir um reino, um
homem que precisou passar por situações difíceis e complicadas para ser o grande
Rei Arthur. Enxergando o rei sem a capa da fantasia, consegui finalmente ver o
20
homem moderno, o homem contemporâneo, o homem violento, o homem da cidade
de São Paulo. Os elementos que comporiam a dramaturgia estavam começando a
aparecer, a história que seria configurada numa cena.
Reconhecer no rei Arthur a figura do conquistador, de certa maneira, trazia a figura
do assassino, aquele que mata ao impor a lei. Tirando dos olhos o brilho colorido da
fantasia, consegui humanizar a figura do rei. Um homem que duelou e matou o
próprio filho, porque não queria que este o sucedesse no poder.
A figura da fantasia era desmistificada a cada informação colhida nas pesquisas dos
livros. Observando a cidade de São Paulo e seu cotidiano, os grandes impérios,
acabei reconhecendo o rei na figura de um grande empresário. Encontrara o meu
personagem, o Rei do Aço, cujo filho bastardo, fruto de um relacionamento
incestuoso, era viciado em cocaína, e deseja a qualquer preço o lugar do pai.
Mesmo que para isso tenha que matá-lo num confronto final. O encontro fatídico, no
qual o filho mata o pai, e o pai mata o filho.
Escolhi a cena com a qual iria trabalhar a minha metodologia. O encontro final entre
pai e filho. Inúmeras referências visitavam o meu pensamento na intenção de
colaborar na estrutura dramática. Lembraram-me de um crime ocorrido em São
Paulo alguns anos atrás na rua Cuba, onde o filho mais velho do casal foi
considerado suspeito de ter assassinado os pais, mas nada ficou provado. Usaria o
nome da rua como referência e parte do crime entraria na história com a qual iria
trabalhar.
21
OS ESTÍMULOS
Assisti a alguns filmes que foram indicados: “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick,
Blade Runner”, de Ridley Scott, e “Crash”, de Paul Haggis.
Li e reli alguns poetas, porque estes muitas vezes sintetizam de maneira fabulosa o
sentir humano. Precisávamos ser sintéticos. Era necessário dizer, mostrar num curto
espaço de tempo toda uma situação.
Assisti a alguns documentários sobre a música popular brasileira, entre os quais: “A
era dos Grandes Festivais da TV Record”, “Tropicália”, “Doces Bárbaros” e “As letras
de Chico Buarque de Hollanda. No documentário que tratava especificamente dos
festivais da TV Record, assisti a performance do cantor Jair Rodrigues, cantando a
música “Disparada” de Geraldo Vandré, que me motivou a escrever um texto
baseado na história contada na letra da música. O texto não foi utilizado na íntegra,
mas serviu como um estímulo para o texto final. Também assisti ao “acústico da
MTV” do grupo “Legião Urbana” no qual o cantor Renato Russo interpreta várias
composições de sua autoria entre as quais uma que me chamou muito a atenção
Metal Contra as Nuvens”, e que acabou também me estimulando no momento em
que estava escrevendo o texto com o qual iria trabalhar. Assisti também ao DVD de
um show do grupo “Queen”, no qual o vocalista Freddie Mercury canta a música
Who Wants to Live Forever?”, cuja letra, também contribuiu com a feitura do texto
ao perguntar muitas vezes: “Who Wants to Live Forever?”.
A DURA TAREFA DE TECER UM TEXTO
Iniciei o esboço dos personagens: o Narrador; o Anjo da Morte, o Rei do Aço e o
Filho Bastardo.
Havia escolhido três momentos da vida do Rei Arthur para contar, após ter optado
por começar a narrativa descrevendo o fim da vida de um homem que percebe que
não fez nada de proveitoso e deseja, nos últimos minutos que lhe restam, salvar a
22
sua alma. Dentro deste contexto surgiram personagens chaves como: a Rainha
Guinevére, esposa do Rei que ama o seu fiel escudeiro Lancelot; o filho bastardo,
fruto de um amor incestuoso com Morgana, irmã por parte de mãe de Arthur; que
busca pelo Santo Graal.
Mas havia a necessidade de sermos sintéticos, e contar toda a história do Rei
Arthur, o que demandaria um tempo que não se encaixava no projeto. Seguindo a
orientação e tendo claramente os objetivos estabelecidos logo no início do projeto,
optei em narrar o confronto do pai com o filho, no qual ambos acabam morrendo na
disputa pelo poder. O texto revelava três personagens: o Narrador, o Homem-Velho
e o Filho Bastardo. Trabalhar a figura do Narrador, foi um dos caminhos sugeridos
pelo professor para o desenvolvimento da ação física e dramática da cena.
O TEXTO ENCARNA E INCORPORA A POSTURA DO YÔGA E OS MOVIMENTOS
DO TAI CHI CHUAN CRIANDO UMA PARTITURA DE AÇÕES FÍSICAS PARA O
ATOR EM CENA
O texto estava pronto. Depois de experimentar e aplicar a metodologia que estou
pesquisando, comecei a improvisar o texto nos ásanas do Yôga (Mudrãs e Mantras)
e nos movimentos de Tai Chi Chuan a construção de uma partitura cênica para o
ator.
Ao apresentar a aplicação da metodologia no exercício cênico para o professor e
para os integrantes do curso, algumas orientações foram dadas para que
trabalhasse junto a postura, o movimento, a sonoridade e o corpo vocal.
Após alguns ensaios, improvisações, posturas, mantras, movimentos dos pés
conjugados com os movimentos básicos das mãos; percebi que estava começando
a trabalhar a postura com a voz, e na medida em que intensificava determinadas
posturas de Yôga e movimentos do Tai Chi Chuan, abriam-se interessantes canais
sonoros no instrumento corporal.
23
Acredito que esses canais sonoros que comecei a perceber durante as
improvisações com as Técnicas Orientais, sinalizavam o início do diálogo com o que
estava descobrindo no meu interior. Pareciam ser a voz do órgão aplicado durante
as improvisações com as posturas, apontando diretrizes para o desenvolvimento de
uma conversa honesta estimulada por determinadas posturas que acordavam
determinadas partes do corpo que estavam “adormecidas” ou simplesmente,
“esquecidas” dentro da complexa organização do corpo humano.
Posso dizer que esses canais sonoros abriam-se na medida em que eu me permitia
ser o som daquele instante durante os exercícios de improvisação. Ser o som na
palavra, e não a palavra no som. A voz era o som intencional, som físico expresso
nas vestes da palavra. Compreendendo, dessa maneira, uma estruturação
verdadeira, o comprometimento testemunhal da postura, onde é o seu som que se
manifesta na configuração da cena.
Exemplificando: Ao “chegar” na “postura” do Narrador, que é o Anjo da Morte, com
as pernas flexionadas, cruzadas, quase de cócoras, os braços erguidos e
flexionados sobre a cabeça, comecei a falar o texto
9
procurando trabalhar na voz o
som do trovão, as explosões manifestadas pela boca, pretendia, no momento, uma
evocação sonora expressa pela voz e configurada pela palavra, sendo que esta
acabou resultando na abertura de meus braços, que passaram a ser o par de asas
do meu Anjo.
A MONTAGEM – A COSTURA CÊNICA
“Montagem é uma palavra que substitui hoje o antigo termo composição. Compor
(colocar com) também significa montar, juntar, tecer ações junto: criar a peça (cf.
Dramaturgia). A composição é uma nova síntese de materiais e fragmentos retirados
de seus contextos originais. É uma síntese que é equivalente ao fenômeno a aos
relacionamentos reais que ela sugere ou representa.”
10
9
Essa passagem será descrita com mais detalhes adiante.
10
Eugenio Barba. “A Arte Secreta do Ator”. p.158.
24
A cena inteira do “O Homem Velho” estava pronta. Dez minutos como foi
estabelecido no início do projeto. Agora a cena do “Homem Velho” seria dividida em
três outras pequenas cenas, que seriam acrescentadas, ou melhor, intercaladas no
meio de outras cenas, que também passaram pelo mesmo processo, fazendo parte
do corpo cênico, da dramaturgia do espetáculo, uma cena costurada na outra,
compondo a criação de um espetáculo com metodologias, interpretações e direções
totalmente diversas, concretizando um dos objetivos propostos pelo curso.
“Se as ações do ator podem consideradas ser análogas à seqüência de filme que é
já o resultado de uma montagem, é possível usar essa montagem não como
resultado final, mas como material para uma montagem posterior. Esta é geralmente
a tarefa do diretor, que pode tecer as ações de vários atores numa sucessão na qual
uma ação parece responder a outra, ou numa reunião simultânea em que os
significados de ambas as ações derivam diretamente do fato de eles estarem co-
presentes.”
11
Sob a coordenação geral do Prof. Dr. Armando Sérgio, começamos um outro
processo: o de criação do espetáculo “UM ÔNIBUS CHAMADO S...P...”, no qual
foram “inseridas” todas as sete cenas desenvolvidas durante o curso, já com as
devidas divisões, e que comporiam a dramaturgia do espetáculo.
Responsável pela tecedura dramatúrgica da cena, e pelo roteiro geral do espetáculo,
o nosso coordenador decidiu que todas as histórias aconteceriam dentro e fora de
um ônibus que circularia por uma cidade de intenso movimento como a cidade de
São Paulo.
Como o processo foi resultado do curso da Pós-Graduação, Exercícios Específicos
para o Treinamento do Ator II – O Espetáculo, achamos que seria interessante
mostrar para a comunidade, conseguindo duas apresentações públicas nos dias 25
e 26 de novembro de 2006, no TUSP.
11
Ibidem. p.160.
25
A concepção cenográfica do espetáculo foi proposta pelo professor e por um dos
integrantes do curso, Eliezer Carvalho.
A feitura do espetáculo fez com que percebêssemos a viabilidade de trabalhar com
metodologias diferentes, propostas e desenvolvidas por integrantes de um grupo
com interesses diversos referentes ao método de interpretação para o ator.
No decorrer do percurso, percebi que o meu processo foi inverso ao do primeiro
semestre do curso Exercícios Específicos para o Treinamento do Ator I, no qual criei
uma partitura de ações físicas compostas por ásanas de Yôga (Mudrãs e Mantras) e
movimentos básicos dos pés e das mãos do Tai Chi Chuan, que proporcionaram a
criação de um texto cênico, cujo estímulo foi o livro de Todorov, “A Conquista da
América”, trabalhando três personagens: Narrador, o rei asteca, Montezuma III, e o
grande conquistador espanhol, Hernán Cortez, compondo uma cena de dez minutos
que seria apresentada numa aula aberta.
Na segunda parte do curso Exercícios Específicos para o Treinamento do Ator II – O
Espetáculo, o percurso, como mencionei no parágrafo acima, seria o inverso. Após a
escolha de um tema comum a todos integrantes do curso, iniciamos o processo. A
opção pelos Contos Infantis parecia ter agradado a todos, e depois de alguns
encontros, as regras foram estabelecidas. Escolhi trabalhar com a história do Rei
Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda. Desafiados pelo coordenador,
começamos, cada integrante com sua pesquisa metodológica, a trabalhar a própria
dramaturgia da cena. Teríamos que criar uma dramaturgia cênica a partir do conto
escolhido. Graças à Oficina de Dramaturgia, consegui escrever um texto cênico, que
seria trabalhado cenicamente na prática do método da minha pesquisa com as duas
técnicas corporais do Oriente, Yôga e Tai Chi Chuan.
No primeiro semestre criei uma partitura de ações físicas com posturas do Yôga e do
Tai Chi Chuan, e esta deu origem a um texto. No segundo semestre, criei um texto,
e este, através de muitas improvisações com as posturas do Yôga e do Tai Chi
Chuan, possibilitou a criação de uma partitura de ações físicas. O método
pesquisado, com as duas artes corporais Yôga e Tai Chi Chuan, mostrou-se, na
26
prática metodológica, positivamente interessante na construção de uma partitura de
ações físicas para o trabalho do ator.
Percebi, no desenvolvimento do processo, a linha de construção, a ação corporal, a
ação vocal e a possibilidade de criar uma partitura rica em elementos instigantes,
fios reveladores, que incitam, que provocam, que levam o ator a verticalizar a cena;
revelando o interesse no ator de escrever a própria cena. Trazendo à tona, tornando
possível, o verbo em e na ação física e vocal, um só corpo, um só pensamento, que
se ergue e mostra por inteiro o ator criador, consciente de sua própria cena.
Tocar nesse ponto, ou seja, perceber a inter-relação da ação física na ação vocal,
sendo um só corpo, tornando possível a atitude do verbo em ser “ação”; leva a
pensar, que nesse momento, em que o ator criador é verbo através da “forma”
sonora revelada pela voz, como sendo a “potencialização” do verbo, que é
transformado em ato para que possa existir em nosso mundo “real”, ou se
preferirmos, agir do lado de fora. Sendo o som uma manifestação física, trabalhada
internamente pelo ator criador em vibrações ondulatórias, um sinal de movimento
que passa através da matéria, modificando-a e inscrevendo nela, o “desenho da
voz” expresso na cena.
A oportunidade de verificar a aplicação de várias metodologias em único espetáculo
foi uma experiência interessante, um aprendizado para o grupo de pesquisadores.
CONVERSAS, PONTO E VÍRGULAS INSINUAM OUTRA PROPOSTA:
UM NOVO PROJETO?
Após o espetáculo, o professor Armando Sérgio marcou uma reunião, durante a qual
buscamos avaliar o processo como um todo, porém, as impressões eram recentes
para que pudéssemos analisar objetivamente o que havia acontecido.
Expusemos as nossas impressões. Falamos o que funcionou e o que não funcionou
como espetáculo e o que poderia ser re-trabalhado, caso se quisesse continuar com
27
o espetáculo. Percebemos que um semestre é pouco tempo para estruturar
pesquisas tão diferentes num único espetáculo. Era necessário mais tempo para se
fazer as ligações entre os personagens, e entre as cenas, para que o espetáculo
tivesse um rosto, independente de metodologia, uma linha que conseguisse realizar
as costuras necessárias nesse projeto “Frankenstein”.
Saímos da reunião com a tarefa de repensar o espetáculo. O que deveria ser
modificado? O que deveria ser trabalhado na sua cena? Como o seu ou os seus
personagens poderiam contribuir com a montagem do espetáculo? Quem desejaria
continuar com o espetáculo e com a pesquisa?
Percebi que após as duas apresentações do espetáculo “UM ÔNIBUS CHAMADO
S...P...” no TUSP, surgiu o interesse de se formar um Centro de Pesquisa, cujo
objetivo principal era o de reunir, em grupo de estudos práticos sobre interpretação,
professores, alunos de Pós-Graduação e de Graduação.
Não tinha dúvidas, queria continuar no grupo de pesquisa, investigar a minha
metodologia com o Yôga e o Tai Chi Chuan. E o espaço criado pelo professor
possibilitava essa experiência a todos os integrantes, proporcionava o retorno
daqueles que assistiam, assim como a discussão em torno dos métodos aplicados
às cenas.
UM ANO NOVO DE PROJETO
Apesar de minha ausência nas primeiras reuniões de fevereiro, o grupo, por meio de
e-mails, mantinha os faltosos informados. Não continuaríamos com o espetáculo do
ano anterior. A sugestão era que lêssemos textos de Shakespeare. Expressei o meu
contentamento por meio do e-mail do grupo pela feliz escolha. Comuniquei que iria
ler e reler alguns dos textos de Shakespeare. Reli: “Hamlet”, “Macbeth” e li “Tito
Andrônico”. Os três textos são interessantes e poderíamos trabalhar tranqüilos com
a qualidade do material oferecido pela dramaturgia. Após uma votação, a escolha de
Hamlet” foi unânime. Achei ótima a escolha.
28
Algumas regras foram estabelecidas:
- Escolher uma cena do texto que deseja trabalhar na sua pesquisa.
- Não se poderia trabalhar o tema sobre o filho que tem que vingar a morte do pai.
- Atualizar a história.
- Cada um deveria aplicar o seu método de pesquisa.
- Montar um espetáculo com todas as cenas.
Lembrei da dificuldade experimentada no processo anterior, “O Homem Velho”, ao
atualizar a História do Rei Arthur. Pensei: “Vai começar tudo de novo”, como
atualizar “Hamlet”? Como Hamlet deixará de ser Hamlet, tendo que ser Hamlet? Não
importava a dificuldade, queria continuar pesquisando. Abracei a idéia. Aceitei mais
uma vez o desafio proposto pelo professor.
Iniciei uma releitura do texto shakespeariano. Escolhi para trabalhar a primeira cena
da peça teatral Hamlet, quando o príncipe da Dinamarca encontra e conversa com o
fantasma do Rei e este revela que foi assassinado pelo próprio irmão.
Escolhi a cena do fantasma porque sinto certa afinidade com o sobrenatural. A cena
é fantástica, o espírito do rei aparece e exige que o seu filho o vingue.
Com a cena escolhida, passei para a etapa seguinte: trazê-la para a
contemporaneidade e não tratar do tema do filho obrigado a vingar a morte do pai.
Pensei na história e tive a idéia de escrever um conto no qual o personagem
principal percebe que coisas estranhas estão acontecendo na sua vida e é
informado por um amigo que um espírito que baixou no terreiro que ele freqüenta
deseja falar com ele. Porém, depois de muito hesitar, acaba indo ao terreiro de
29
Candomblé e a entidade fala que fizeram um trabalho para ele, e se ele quiser
continuar vivo terá que desfazer o trabalho.
Li o conto na sala de aula. Lembro que um dos comentários referentes ao texto foi:
“É um conto rico em imagens.”. Também, lembro da primeira questão feita pelo
coordenador: “Mas como pretende trabalhar com ele? Pretende trabalhar com
projeções de imagem que identificariam os lugares por onde passa o personagem?”
Não sabia como trabalhar. Mas não queria utilizar de multimídia na criação da cena.
Como passar o conto para cena? Como trabalhar o conto com a metodologia do
Yôga e do Tai Chi Chuan? Essas perguntas estavam, e ainda continuam na minha
cabeça.
Escrito o conto, comecei a trabalhá-lo nos ásanas do Yôga e nos movimentos
básicos dos pés e das mãos do Tai Chi Chuan. Escolhi algumas passagens do texto
com as quais desejava trabalhar, transformando-as para o discurso direto, enquanto
outras permaneceram na forma indireta.
A palavra Yôga, na maioria das vezes, remete aqueles que a ouvem, à “imobilidade”,
“permanecer imóvel na postura”, “ficar parado”; por este motivo o professor Armando
Sérgio me perguntou: “Não tem como você trabalhar o ato de caminhar nas posturas
do Yôga e do Tai Chi Chuan? Porque o personagem descrito por você no conto que
leu, é um personagem que anda pelas ruas, um personagem que está procurando
alguma coisa, é um personagem que caminha?” Após esse comentário, a professora
Sandra Carezzato de Souza, também pesquisadora pertencente ao CEPECA
12
,
disse: ”O Tai Chi Chuan tem todo um jeito especial no andar, acho que você poderia
trabalhar com esse elemento.” Procurando seguir as sugestões recebidas, iniciei a
pesquisa, procurando desenvolver as diversas formas de andar trabalhadas no Tai
Chi Chuan.
12
CEPECA – Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica do Ator
30
Relendo o conto e a peça de Shakespeare, percebi a figura do galo no texto original
e, achei muito interessante pois no conto “Aquele que Caminha”
13
a figura também
aparece como o animal do Exu, a entidade com que o personagem irá se encontrar.
Vendo um documentário a respeito da Tropicália, vi o Gilberto Gil cantando uma
música que é cantada em roda de capoeira, que tem um refrão, “Cocorocó camará”.
No mesmo instante pensei é o galo! E comecei a trabalhar a palavra “cocorocó” na
boca e nas posturas do Yôga, principalmente no ásana conhecido como Utkatásana
e nos movimentos do Tai Chi Chuan, especialmente com a Postura do Cavalo
Chinês, e percebi que da junção das duas estava aparecendo um Galo. E era um
Galo mesmo. Lógico era o meu Galo, que surgia na composição da cena.
As improvisações com as posturas, os movimentos básicos, o andar, e o conto,
apesar de serem freqüentes, e apresentarem resultados interessantes no meu
processo criativo; se mostravam relativamente lentas em relação ao andamento das
pesquisas dos outros pesquisadores do grupo. Isto se devia ao fato de que eu
improvisava a cada frase do conto, utilizando as duas artes orientais, até encontrar
aquela que corresponderia ao que pretendia dizer na integralidade da cena.
AS TRANSFORMAÇÕES E A PROMESSA DE MONTAR HAMLET
O objetivo desta tese de Doutorado é o de aplicar os ásanas, mudrãs e mantras do
Yôga e os movimentos básicos dos pés e das mãos do Tai Chi Chuan, comprovando
a organicidade da junção destas duas artes corporais do Oriente, na composição e
elaboração do trabalho interpretativo do ator numa cena.
A intenção é a de criar uma cena orgânica e não uma seqüência de posturas entre
as duas artes orientais. Demonstrar de que maneira o Yôga e o Tai Chi Chuan
podem auxiliar no trabalho criativo do ator.
13
O conto “Aquele que Caminha” está nos anexos deste trabalho.
31
Como atriz e pesquisadora, ao experimentar o Yôga e o Tai Chi Chuan na
composição da cena, acredito na colaboração positiva que as duas técnicas
corporais do Oriente podem oferecer à criação, não só do personagem, mas da
própria dramaturgia de um espetáculo.
Trazendo e transformando como objeto da minha pesquisa de Doutorado a
aplicação dessas duas artes corporais do Oriente na montagem de “Hamlet de
modo sintético, que resultou no espetáculo “Agora já era...Hamlet!”.
O objetivo é o de contar a trajetória de Hamlet nos ásanas do Yôga (Mantras,
Mudrãs) e nos movimentos básicos dos pés e das mãos do Tai Chi Chuan,
exercitando as duas técnicas corporais do Oriente, em todos os personagens que
estão presentes nesta peça teatral, procurando reconhecer a relação entre a figura
do Narrador e a do Narrado.
A eficiência dessas duas artes corporais do Oriente, em que acredito, poderá ser
observada na montagem de “Hamlet”, à medida em que o trabalho se mostrará
evidente na aplicação prática, ocasião em que a dramaturgia shakespeariana deverá
ser experimentada nas posturas.
Pretendo com este trabalho provar a organicidade da aplicação do Yôga e do Tai
Chi Chuan no trabalho interpretativo do ator, o texto articulado tecido na própria
cena.
O processo criativo deste trabalho, que resultou no espetáculo “Agora já era...
Hamlet!”, será descrito em cinco capítulos:
No primeiro capítulo, pretendo contar a minha experiência enquanto professora de
interpretação em cursos profissionalizantes, descrevendo alguns procedimentos
aplicados nos processos criativos de algumas montagens.
No segundo capítulo, a intenção é contar como aconteceu o encontro com as duas
Técnicas do Oriente, falar sobre a origem do Yôga e do Tai Chi Chuan e justificar o
interesse nas duas técnicas para o treino e para a composição de cena.
32
No terceiro capítulo, o objetivo é explicar o motivo de ter escolhido um autor como
Shakespeare, e o texto “Hamlet”.
No quarto capítulo, pretendo descrever os estímulos utilizados das duas técnicas do
Oriente: os sonoros, as iconografias e o texto.
No quinto capítulo, pretendo descrever o processo criativo e como os estímulos
acabaram sendo configurados na cena.
Na conclusão, pretendo provar como consegui contar a história de Hamlet, o
príncipe da Dinamarca, utilizando uma metodologia pessoal que compreende o Yôga
e o Tai Chi Chuan.
33
I – LECIONAR: UMA EXPERIÊNCIA
O objetivo deste capítulo é falar sobre a minha experiência como professora de
interpretação teatral nos cursos técnicos de duas escolas: Marza, na cidade de
Santos, e Teatro Escola Macunaíma, na cidade de São Paulo.
HAMLET NA QUADRA
Quando fui convidada para lecionar “Voz do Ator e História do Teatro”, no curso
Técnico de Ator oferecido pela escola Marza, em Santos, tive uma experiência
interessante.
Era a primeira turma do curso e propus trabalhar com eles o texto “Hamlet”, de
Shakespeare.
Nossos encontros aconteciam na quadra de jogos esportivos às sextas-feiras à
noite.
No aquecimento com os alunos, trabalhava o ásana Tadásana, (A Montanha) (fig.1),
explorando a respiração, propondo, em seguida, andar pelo espaço, procurando o
contato direto da pele com o chão. Sugeria que trabalhassem durante o passeio pela
quadra a sonoridade das vogais, inserindo aos exercícios algumas consoantes.
fig.1
34
As improvisações eram tão intensas que, numa sexta-feira quando estávamos no
meio do trabalho, olhei e percebi que a quadra estava rodeada por alunos dos outros
cursos que estavam assistindo à improvisação. De repente, surgiu a diretora da
escola que queria saber o que estava acontecendo, porque a vizinhança havia
chamado a polícia, por causa de um assalto. Expliquei que estávamos trabalhando
com uma livre adaptação de “Hamlet” e que não sabíamos de nenhum assalto.
Após um tempo, percebi que nós é que estávamos emitindo sonoramente a palavra
assalto”.
A proposta do exercício era: que o grupo de alunos-atores corressem pelo espaço
da quadra esportiva, e só parassem de correr quando ouvissem uma indicação da
minha parte, a qual deveriam expressar alguma reação. Eles começaram a correr
pela quadra. Quando percebi que eles estavam exaustos, gritei de repente a
palavra: “assalto”. Eles pararam de correr e cada aluno respondeu de modo diferente
ao estímulo recebido.
Partindo do material fornecido por eles durante a execução do exercício, sugeri que
trouxessem para a quadra esportiva uma resposta corporal que se relacionasse à
palavra “assalto” e com o texto de Shakespeare, “Hamlet.
Após improvisarem procurando trazer à quadra uma reação ao estímulo recebido da
palavra “assalto”, eles compuseram um círculo no centro da quadra e iniciaram um
trabalho intenso em cima da respiração, o que provocou um som que lembrava a
explosão de uma bomba, proporcionando um afastamento dos corpos do centro do
círculo. Após a explosão sonora realizada pela boca, eles se espalharam pelo
espaço da quadra com o objetivo de atingir o outro, somente parando quando
alguém do grupo gritasse: “assalto”. Ao escutarem essa palavra todos paravam,
flexionavam os joelhos e colocavam as mãos para cima. No meio do grupo em que
todos estavam ajoelhados, um entre eles se levantava e saía correndo, ia até o
portão de ferro e batia com força, e alguém do grupo perguntava: “Quem vem lá?” e
alguém do grupo respondia: “É o guarda que veio te render.
35
INSPETOR GERAL
Fui contratada para lecionar Interpretação no curso Técnico da Escola Teatro
Macunaíma.
O tema da Mostra daquele semestre seria “O Riso”. Fiquei apavorada. Teria que
montar um texto de um autor conhecido. O que sugerir para os alunos? Era a
pergunta que me fazia todos os dias. E nos intervalos lia “O Riso de Bérgson, para
tentar entender um pouco mais desse universo.
Primeiro dia de aula. Conheci a turma. Enorme. Fiquei sem respirar por alguns
instantes. O que montar com essa turma? Entre tantas sugestões, optamos por
trabalhar com o texto de Gógol, “O Inspetor Geral”.
Depois de fazer a adaptação do texto, conhecer um pouco a turma por meio dos
jogos propostos em sala de aula, iniciou-se o meu drama. Quem faria que papel?
Todos querem fazer o “papel principal”, aquele que “fala mais”. Ninguém queria ficar
de fora. E como trabalhar com essa questão, fazer o aluno entender que o fato dele
não fazer o “papel X” não quer dizer que ele não tenha condições de fazer, e o que
importa realmente é o “fazer” teatral e estar participando do jogo teatral proposto
pela cena.
Acreditando ser possível o ator fazer tudo em cena, sugeri que todos estariam em
cena o tempo todo, tentando desmistificar o papel principal.
A proposta era que os alunos-atores não estariam fazendo somente um
personagem, mas comporiam a cena, ou seja, seriam as janelas, as portas, os
vasos, etc. Os alunos fariam tudo na cena, compondo o jogo teatral.
Devido às exigências da montagem pretendida pelo grupo: não queriam dividir o
papel com outro aluno-ator, porque desejavam experimentar construir um
personagem, somada à minha proposta de que todos estariam em cena o tempo
todo, dessa forma, pude aplicar as Técnicas do Oriente, com os meus alunos.
36
O falso inspetor e o seu criado estavam no quarto de hotel, impossibilitados de sair
do recinto porque não queriam encontrar com o dono do estabelecimento e serem
obrigados a saldar as dívidas contraídas durante a hospedagem nesse lugar. Ao
perceber que o corredor do hotel estava vazio, o falso inspetor aproveita para sair do
quarto. Vendo-se sozinho, o criado sobe na cama do quarto e, começa a sonhar
com uma mesa farta de alimentos. A proposta era fazer com que a cama fosse feita
pelos alunos. Para realizar esse objetivo, sugeri a quatro alunos que executassem o
ásana da criança (fig.2). A repetição desse ásana acabou trazendo um molejo aos
quatro corpos que estavam compondo a figura, o que acabou sugerindo um colchão.
Indiquei ao aluno que fazia o papel do criado, que experimentasse fazer a postura
do cavaleiro (fig.3). De pé na cama (em cima do colchão composto pelos alunos)
executou o ásana. Quando olhei fiquei espantada ao ver que aquela postura originou
um surfista.
fig. 2 fig. 3
37
FAUSTO ZERO
Iniciei o segundo semestre querendo montar “Hamlet” de Shakespeare. No primeiro
encontro com a turma, falei a respeito das intenções de montar esse texto com eles.
Mas a vontade era solitária, os alunos foram sinceros e falaram que não
compartilhavam da mesma idéia.
A opção em trabalhar com o texto de Goethe veio atrelada à idéia de trabalhar o
ritual.
Prossegui, com outra turma, com a proposta de trabalhar com todos os alunos-
atores em cena. Comecei a trabalhar com a idéia de grupo. Freqüentemente,
lembrava das aulas do Prof. Dr. Antonio Januzelli, quando repetia que o artista de
circo se lançava ao “perigo” porque ele confiava no companheiro que estava
executando com ele o número; ele se lança porque confia que o seu companheiro
estará lá para apará-lo.
Por meio de vários exercícios intercalados com alguns jogos
14
, procurei trabalhar a
confiança neles e entre eles.
Visando desenvolver a idéia de grupo, a idéia de que um é a extensão do outro, de
que todos precisam estar presentes para que a cena aconteça, procurei aplicar
alguns aspectos da forma circular contidos na dança de roda, que depende de uma
participação total, de uma devota mudança de direção do ser humano.
A forma da dança de roda é um símbolo para a boa ordem do mundo e reflete uma
imagem do ser humano em sua totalidade. Ela se enraíza na crença de que a alma,
antes de seu nascimento corporal, sabe do sentido e do objetivo de sua existência
na terra e que esse conhecimento absoluto é deixado para trás, para ser novamente
descoberto na vida terrestre.
14
Tendo como base um jogo tradicional (exemplo Pega-Pega), aplicava sobre o mesmo novas regras
que eram aceitas pelos jogadores.
38
Danças de roda se orientam no percurso das constelações, mas são também ligadas
com concepções labirínticas, que recusam aos ritos da terra e do crescimento. Sua
expressão simbólica reflete assim tanto a regularidade terrestre quanto a celeste.
15
Utilizamos nessa montagem as paredes. A aluna que fazia o Mefisto trabalhou com
alguns ásanas: parada de mão (fig.4) e, a ponte (fig.5). Ao executar repetidas vezes
a parada de mão, ela acabou criando um “andar” diferenciado pelas paredes, que ao
percorrer o espaço correndo, devido à velocidade alcançada pelo movimento,
proporcionava, às vezes, a invasão de seu corpo no espaço da parede, dando a
ilusão que ela estava “voando” de uma parede à outra.
fig.4 fig. 5
15
Danças Sagradas. Wosien Marie-Gabriele. p.23,São Paulo, Trion , 2002.
39
FRANKENSTEIN DE MARY SHELLEY
Tornava-se cada vez mais interessante o trabalho de grupo. Ao aplicar os exercícios
de aquecimento procurava trabalhar a idéia de grupo, a resistência, a vontade de se
lançar, o ser criativo.
Com essa turma decidi trabalhar com o Mantra OM, um som que é considerado
“neutro” e, que poderia ser executado sem nenhum receio de provocar algum mal-
estar entre os alunos, este seria desenvolvido dentro de uma Mandala, caracterizada
por uma forma circular. Estabelecemos que iniciaríamos as aulas formando um
círculo no centro da sala. Sentados com as pernas cruzadas, ao redor do círculo,
entoávamos o Mantra OM, o som universal, iniciando um trabalho em cima da
concentração por meio da respiração.
A pesquisa dos alunos durante o processo foi intensa, motivando a criatividade do
grupo. Não apenas na montagem com essa turma, mas, também com as outras, fui
testemunha da colaboração efetiva, era compensador observar como todos se
juntavam para realizarem o que estava sendo proposto.
Numa das aulas, após os exercícios de aquecimento, dei início às improvisações.
Dividi a turma em dois grupos e pedi que improvisassem um navio. Cada turma
executou a tarefa, apresentando resultados diferentes. Após a apresentação dos
dois grupos, pedi para que as duas turmas se juntassem e que fizessem um navio a
partir dos dois existentes. Quando apresentaram o resultado do que haviam
acabado de improvisar, foi espantoso ver um navio ser formado dentro daquela
pequena sala.
Apesar de um semestre ser um tempo curto para uma montagem, onde se pretende
trabalhar a interpretação, percebi que o grupo havia amadurecido e que esse
aspecto apresentava resultados significativos na formação do indivíduo.
40
MEDÉIA – UMA TRAGÉDIA ANUNCIADA
A vontade de trabalhar o grupo se renovava a cada turma. Preparar o ator para
trabalhar o improviso na cena era um desafio para todos.
Incluindo as Técnicas do Oriente, à medida em que a turma se abria para essa
experiência, procurava explorar o que de essencial existia no grupo.
Trabalhei com uma livre adaptação do texto “Medéia”, de Eurípedes, e com a poesia
musical de Renato Russo, “Eu sou metal”, ao som do atabaque, que tocado ao vivo,
proporcionava a exploração sonora na improvisação.
Ao optar em trabalhar com a forma circular, aproveitando e desenvolvendo nos
exercícios de improvisação alguns movimentos básicos do Tai Chi Chuan, o grupo
de alunos-atores percebeu e compreendeu que o círculo possibilitava o trabalho de
alguns aspectos da capoeira no trânsito energético proporcionado pela dança dos
Orixás e, que alguns passos das danças sagradas, estimulava as transformações
dos ásanas do Yôga e dos movimentos básicos do Tai Chi Chuan.
Percebia que a “mistura” proporcionava um tempero diferenciado, era visível o
prazer com que os alunos respondiam aos estímulos propostos e a consciência
desenvolvida por eles em cena.
Devido aos resultados obtidos durante os exercícios de improvisação com os meus
alunos, procurei trabalhar cada vez mais, não só com as qualidades cênicas
proporcionadas pelas duas Técnicas do Oriente, mas, também, com a abertura que
esta duas técnicas apresentavam ao serem jogadas na roda durante o processo
criativo.
Percebi que ao trabalhar a idéia de grupo, foram desenvolvidas entre os alunos
qualidades como a participação, a interação, a criatividade, a confiança, a vontade
de fazer, a vontade de estar em cena e a cooperação.
41
Compreendendo que a resistência é algo que surge para assombrar o ambiente por
um período curto de tempo, devendo ser trabalhada apenas como uma parte do todo
que o grupo se propôs a desenvolver.
Todas as pessoas são capazes de atuar no palco. Todas as pessoas são capazes
de improvisar. As pessoas que desejarem são capazes de jogar e aprender a ter
valor no palco.”
16
Tive a oportunidade de aplicar alguns fundamentos do Yôga e do Tai Chi Chuan
com os meus alunos. A dificuldade se apresentava logo no início do processo devido
ao não conhecimento dessas duas técnicas corporais do Oriente. Ao se abrirem
para o aprendizado, o processo criativo fluía.
DIBUK
Lembro que ao iniciar o processo criativo que resultou na montagem do espetáculo
Dibuk”, de Sch. Na-Ski, propus aos meus alunos que trabalhássemos apoiados no
ásana Salamba Sirshásana, a escolha por esta determinada postura foi determinada
porque ela sugeria o “nascimento” de algo, e isto era algo que havíamos decidido
trabalhar. Esta escolha acabou gerando um grande alvoroço da parte de alguns,
devido às dificuldades propostas pela postura que é feita com a cabeça para baixo.
Nesta outra turma, e isso contribuiu muito para a realização do trabalho, um dos
alunos era de circo e, o seu trabalho corporal, a segurança com que ele se
entregava às propostas lançadas durante o processo, acabou encorajando os outros
a se entregarem, também, às improvisações, os alunos se propuseram à desafiar os
próprios limites impostos pelo “medo”, sombra desencorajadora comum a qualquer
ser humano.
“Eu também sinto medo, você pode não acreditar.”
16
Improvisação para o Teatro. Viola Spolin. p.3. Editora Perspectiva, 1987.
42
O personagem Sidy, que é um bicho preguiça, fala para o seu companheiro Diego,
que é um tigre, na animação “A Era do Gelo II”, para que este se encoraje e trabalhe
o medo que tem de água, porque o gelo está derretendo, e se ele quiser sobreviver
à próxima inundação terá que saber nadar.
A partir do momento em que os alunos-atores resolveram trabalhar os seus “medos”
o trabalho fluiu, houve uma integração maior, possibilitando desenvolver e criar
formas elaboradas de aspectos difíceis com o corpo, resultado da confiança entre os
integrantes do grupo.
ASILO ARKHAM
Resolvemos que iríamos trabalhar naquele segundo semestre de 2005 com uma
história em quadrinhos. Lemos várias HQs. Optamos por trabalhar com “Asilo
Arkham”, escrito por Grant Morrison e ilustrado por Dave Mckean, que conta a
passagem da vida do Batman num manicômio, onde ele reencontra, além de seus
inimigos internos, seus inimigos externos, entre eles, Coringa, Espantalho, Duas
Caras, etc.
Ao lermos a história descobrimos porque o personagem Batman privilegia a figura do
morcego em suas performances. Estimulada por esse “gosto especial” do
personagem, sugeri aos meus alunos que improvisassem partindo do ásana
Saudação ao Sol.
Após compreenderem as indicações, iniciaram o exercício em pé, com o corpo ereto
e os pés juntos. Juntaram as palmas das mãos na frente do peito. Fecharam os
olhos e respiraram normalmente entoando o mantra OM. Inspirando e estirando as
mãos, deixando-as paralelas ao solo. Em seguida erguendo as mãos sobre a
cabeça, aproximaram os ombros de encontro com as orelhas, e arquearam as
costas para trás. Inspirando, sugeri que estendessem a perna direita para trás,
colocando ambas as palmas das mãos no solo nos lados da perna esquerda.
Estenderam o corpo para trás e arquearam o máximo possível. Expirando, levaram a
43
perna direita para trás, formando uma linha reta da cabeça à ponta dos pés,
apoiando o peso do corpo na ponta dos pés e nas palmas das mãos. Sugeri que
retivessem a respiração por alguns segundos e apoiassem os joelhos no solo. Em
seguida dobraram os cotovelos, pressionando o peito e a testa sobre o solo.
Inspirando enquanto alongavam a parte superior do corpo para cima, desdobram os
cotovelos, arquearam as costas e olharam para o alto. Expirando, ergueram o
quadril o mais alto possível, contraíram o queixo para dentro, em direção ao peito,
olhando para o umbigo, mantendo os calcanhares juntos sobre o solo. Em seguida,
inspiraram e levaram a perna esquerda para a frente, arqueando as costas para trás.
Numa expiração, trouxeram as duas pernas para frente. Inspirando, levantaram as
mãos sobre a cabeça e se curvaram para trás e, numa expiração, ergueram o corpo.
Após trabalharem várias possibilidades entre esses ásanas, sugeri que eles
aproveitassem mais o Tadásana, procurando atingir o chão amortecendo a queda
utilizando os braços como suporte, erguendo o corpo o mais rápido que eles
pudessem. Ao executarem a sugestão, eles começaram a reproduzir um som
interessante, que sugeria o bater de asas de morcegos; este som acabou sendo
configurando na cena inicial do espetáculo.
Apesar de ocorrer a dispersão entre os integrantes de uma turma após o término do
semestre, o trabalho exercitado enquanto individualidade permanece, e este,
provavelmente, é composto de energia a ser propagada durante a existência de
cada um, como um sinal de movimento que passa através da matéria, modificando-a
e inscrevendo nela o seu desenho.
Apesar de não ter sido possível aplicar de maneira mais intensiva os ásanas do
Yôga e os movimentos básicos dos pés e das mãos do Tai Chi Chuan em minhas
aulas de interpretação e montagem de espetáculos, devido ao limite corporal dos
alunos-atores, o mínimo que consegui experimentar ao aplicar as duas técnicas
corporais do Oriente nos meus alunos, possibilitou verificar a qualidade cênica
proporcionada por este método nos espetáculos com cada turma.
44
II – AS TÉCNICAS ORIENTAIS - CONCEITOS, PRÁTICAS E ESCOLHAS
Conceituar essas duas técnicas requer uma visita na história do Oriente. Neste
breve relato, pretendo falar sobre a origem das mesmas e sobre suas ligações com
o desenvolvimento espiritual do homo sapiens. A importância não só como técnicas
corporais, mas, também, como treinamento que tem por objetivo condicionar o ser
humano de modo completo.
OBJETIVOS DO YÔGA
Corpo e mente estão em constante interação. A ciência do Yôga não demarca o
limite entre o corpo e a mente, mas aborda-os como uma entidade única e integrada.
Embora pareçam dirigir-se apenas ao corpo físico, os ásanas do Yôga influenciam o
equilíbrio químico do cérebro, o que, por sua vez, melhora o estado mental da
pessoa.
Os obstáculos ao equilíbrio perfeito foram descritos pelo sábio Patanjali, há cerca de
2000 anos, em seu “Yoga Sutras”. Embora haja divergências quanto à data exata,
sabe-se que os sutras, ou aforismos, sobre a filosofia e a prática do Yôga foram
compilados entre 300 a.C. e 300 d.C. e o conjunto completo da obra foi chamado
Patanjala Yoga Darshana”.
Na primeira parte do “Yoga Sutras”, intitulada “Samadhi Pada”, Patanjali, ao tratar os
distúrbios dos homens, afirma que estes estariam na base do sofrimento. De acordo
com o sábio, vyadhi, ou os transtornos físicos, criam um tumulto emocional e o Yôga
poderia trabalhar com esses transtornos.
As posturas do Yôga, ou ásanas, podem curar os transtornos físicos – vyadhi - e
diminuir os desequilíbrios corporais – angamejayatva – além de harmonizar a
respiração irregular – shvasa-prashvasa - indicadora do estresse. Os ásanas
tonificam o corpo todo, fortalecem os ossos e músculos, corrigem a postura,
melhoram a respiração e aumentam a energia.
45
Os ásanas trabalham partes específicas do corpo. Os ásanas invertidos, por
exemplo, ativam as glândulas e os órgãos vitais, proporcionando um suprimento
maior de sangue arterial ao cérebro, o que ao mesmo tempo acalma e estimula.
O Yôga tem a capacidade única de acalmar os nervos, que funcionam como meios
de comunicação entre o corpo fisiológico e o psicológico. A prática do Yôga tem um
impacto holístico, relaxando o corpo e acalmando a mente.
OS ESTÁGIOS DO YÔGA
As posturas do Yôga integram o corpo, a mente, a inteligência e o “Si Mesmo” em
quatro estágios. O primeiro estágio, arambhavastha, é praticado no nível do corpo
físico. O segundo estágio, ghatavastha, é aquele em que a mente aprende a se
movimentar em harmonia com o corpo. O terceiro estágio, parichyavastha, ocorre
quando a inteligência e o corpo se tornam um só. O estágio final, nishpattyavastha, é
o estado da perfeição.
A consciência espiritual flui no praticante do Yôga de acordo com esses estágios.
Desaparece duhkha – a dor ou a infelicidade – e concretiza-se a arte de viver na paz
e na simplicidade.
O SIGNIFICADO DO YÔGA
Os sábios antigos, que meditaram sobre a condição humana há 2000 anos,
delinearam quatro maneiras de se atingir a auto-realização: jnana marg, o caminho
do conhecimento, em que se aprende a discriminar o real do irreal; karma marg, o
caminho do serviço altruísta, livre da preocupação com recompensas; bhakti marg, o
caminho do amor e da devoção; e, finalmente, yoga mang, o caminho pelo qual a
mente e suas ações são controladas. Todos esses caminhos levam ao mesmo fim:
samadhi.
46
O termo Yôga, em sânscrito, deriva do radical yui, que significa “unir” ou “juntar”;
sentidos correlatos são “focalizar a visão em” e “usar”. Em termos filosóficos, a união
do ser individual, jivatma, com o Ser Universal, paramatma, é Yôga. Essa união
resulta num estado de consciência puro e perfeito, no qual a sensação do “eu”
simplesmente não existe. Antes dessa, há a união de corpo e mente e a da mente
com o “Si Mesmo”. Assim, o Yôga é uma experiência interna dinâmica, que íntegra o
corpo, os sentidos, a mente e a inteligência com “Si Mesmo”.
O sábio Patanjali foi um mestre do Yôga e uma alma plenamente evoluída, que teve
a habilidade de solidarizar-se com as alegrias e os padecimentos das pessoas
comuns. Suas reflexões sobre os caminhos que todos poderiam percorrer para
realizar o pleno potencial humano foram condensadas nos cento e noventa e seis
aforismos do Yoga Sutras.
De acordo com Patanjali, o objetivo do Yôga é acalmar o caos dos impulsos dos
pensamentos conflitantes. Responsável por nossos pensamentos e impulsos, a
mente tem uma inclinação natural para o egoísmo – asmita – do qual brotam as
distorções e os preconceitos causadores das aflições que vivemos no dia-a-dia. A
ciência do Yôga vê a inteligência em duas áreas: o coração e a cabeça. A
inteligência do coração, às vezes chamada também de “mente-raiz”, é o verdadeiro
agente do ahankara, ou falso orgulho, que perturba a inteligência da cabeça,
causando oscilações no corpo e na mente.
Patanjali descreve essas aflições como vyadhi, ou transtornos físicos; styana, ou a
relutância em trabalhar; samshaya, ou dúvida; pramada, ou indiferença; alasya, ou
preguiça; avirati, ou desejo de satisfação sensual; bharanti darshana, ou falso
conhecimento; alabdha bhumikatva, ou indisposição; angamejayatva, ou disfunções
corporais; e, por fim, shvasa-prashvasa, ou respiração irregular. Apenas a prática do
Yôga pode erradicar estes transtornos e aflições, disciplinando a mente, as
emoções, o intelecto e a razão.
O Yôga também é conhecido como Astanga Yôga. Astanga significa “oito membros”
ou “passos” e divide-se em três disciplinas: a disciplina bahiranga-sadhana abrange
47
yama, ou princípios éticos gerais; niyama, que é a autocontenção, e as práticas
físicas, na forma de ásanas e pranayama.
A segunda, antaranga-sadhana, é a disciplina emocional ou mental elevada à
maturidade pelo pranayama e por pratyahara, ou desapego mental. A última delas,
antaratma-sadhana, é a busca bem-sucedida da alma por intermédio de dharana,
dhyana e samadhi.
Nessa busca espiritual, é importante lembrar o papel do corpo. Um antigo texto,
compilado entre 300 e 400 a.C. e intitulado “Kathopanishad”, compara o corpo à
uma carruagem, os sentidos aos cavalos e a mente às rédeas. O intelecto é o
condutor, e a alma, o dono da carruagem. Se alguma coisa der errado com a
carruagem, os cavalos, as rédeas, ou o condutor, tanto quanto a própria carruagem,
sofrerão conseqüências e, da mesma maneira, também sofrerá o dono da
carruagem.
Mas como escreve Patanjali no “Yoga Sutra”: “a prática do yoga destrói impurezas
do corpo e da mente, permitindo que a maturidade da inteligência e a sabedoria
irradiem-se do cerne do ser para funcionar em harmonia com o corpo, os sentidos, a
mente, a inteligência e a consciência.
17
A palavra ásana, do sânscrito pode ser traduzida como “postura” ou “posição”, mas a
tradução será sempre inexata, pois esses termos não contêm o elemento de
consciência, ou pensamento, que deve fazer parte de cada movimento do “ásana”. A
posição final de um ásana só é alcançada quando todas as partes do corpo estão
corretamente posicionadas, com inteligência e plena consciência de cada elemento
da postura. Para chegar a isso, é preciso pensar sobre a estrutura do ásana,
compreender seus pontos fundamentais e ajustar cada parte do corpo,
especialmente os membros, em certos movimentos.
Molda-se o corpo para que ele corresponda à estrutura do ásana, assegurando-se
que haja um equilíbrio perfeito entre os seus dois lados, até que tenha desaparecido
17
Yoga, Imortalidade e Liberdade”. Mircea Eliade. p.21. Editora Palas Athenas, 2001.
48
qualquer pressão indevida sobre os órgãos, os músculos, os ossos ou as
articulações.
OS ÁSANAS COMO FERRAMENTAS
Os ásanas são uma das principais “ferramentas” do Yôga, e seus benefícios vão do
nível físico ao espiritual. É por isso que se chama Yôga de sarvaanga sadhana, ou
prática holística. Ásanas são posturas corporais com total envolvimento da mente e
do “Si Mesmo”, pelas quais se estabelece uma comunicação entre os âmbitos
internos e externos do indivíduo.
Segundo a filosofia do Yôga, o corpo compõe-se de três camadas e cinco invólucros.
As camadas são karana sharira, o corpo causal; suksma sharira, o corpo sutil; e
karya sharira, ou corpo denso. A mente, a matéria, a energia e a consciência pura de
cada indivíduo são regidas por intermédio de cinco invólucros: annamaya kosha, o
invólucro anatômico, trabalhado diretamente pelos ásanas; pranamaya kosha, o
invólucro da força vital, trabalhado pelo pranamaya; manomaya kosha, o invólucro
psicológico trabalhado pela meditação; e vijnanamaya kosha, o invólucro intelectual,
que é trabalhado pelo estudo das escrituras, numa atitude de sinceridade e
discernimento. Quando atinge esses objetivos, o praticante atinge anandamaya
kosha, os invólucros da bem-aventurança.
Pela integração das três camadas com os cinco invólucros, o Yôga permite que a
pessoa se desenvolva como um ser total. Conforme se encaminham os planos para
se fundirem em um só, desaparecem as separações entre corpo e mente e entre
mente e alma. Assim, os ásanas ajudam a transformar o indivíduo, na medida em
que o levam da percepção consciente do corpo à consciência da alma.
49
HATHA-YÔGA
O Hatha-Yôga é um tratado prático sobre o Yôga, que supostamente foi compilado
no século XV. Seu autor, Svatmarama, dá algumas instruções práticas aos
principiantes sobre a viagem que devem empreender partindo da cultura do corpo
para chegar à visão da alma.
Diferentemente de Patanjali, que discute a visão da alma a partir da contenção da
consciência, ou chitta, Svatmarama começa seu tratado com a contenção da
energia, ou prana. O processo de se vislumbrar a alma pode ocorrer com o Hata-
Yôga por meio da contenção de energia, ou com o Raja-Yôga, pela contenção da
consciência.
No “Hatha-Yôga Pradipika” 4.29, diz o autor que, se a mente é a rainha dos
sentidos, o senhor da mente é a respiração. Se a respiração acontece de modo
rítmico, com um som controlado e estável, a mente se acalma. Nessa calma, a
rainha da mente (a alma), se torna comandante suprema dos sentidos, da mente, da
respiração e também da consciência. Quando se aprende a focalizar a atenção na
inspiração e na expiração, experimenta-se um efeito pacificador sobre a mente. Essa
reação levou Svatmarama a concluir que o controle do prana é a chave para a
consciência expandida, ou samadhi.
No capítulo “Samadhi Prakarana” do Hatha-Yôga, Svatmarama fala sobre sua
experiência de samadhi. Diz ele: “Se uma pessoa aprende a não pensar em coisas
externas e, simultaneamente, mantém afastados seus pensamentos internos, ela
conhece o samadhi. Quando a mente se dissolve no mar da alma, a pessoa alcança
o estado absoluto de existir. Isto é kaivalya, a liberdade da emancipação.
18
O objetivo do Yôga é produzir um estado de equilíbrio e paz, mas Patanjali adverte o
estudioso de Yôga a não se deixar enganar por essa quietude, que pode levar a um
estado de yogabhrastha, ou “a perda do estado de graça do Yôga”, e diz ainda que:
a prática do Yôga deve continuar, pois ela culmina com o vislumbre da alma.”
19
.
18
Ibidem. p.43.
19
Ibidem. p.46.
50
Nesse estágio, que é chamado nirbija (sem semente) samadhi, a pessoa se unifica
com a essência de seu ser.
No terceiro capítulo do Yoga Sutras, intitulado “Vibhuti Pada”, Patanjali fala dos
efeitos do Yôga que indicam o potencial dos poderes da natureza humana. Esses
poderes e dádivas espirituais devem ser conquistados, caso contrário tornam-se
armadilhas, desviando o praticante do verdadeiro objetivo do Yôga. Quando a alma
está livre da sujeição ao corpo, à mente, ao poder e ao orgulho pelo sucesso, atinge
o estado chamado de kaivalya, que significa liberdade. Esse aspecto é tratado no
Kaivalya Pada”, o quarto capítulo do Yoga Sutras, que discute a liberdade absoluta.
OS OITO MEMBROS
Patanjali refletiu sobre a natureza do homem e as normas da sociedade em sua
época e sistematizou suas observações em aforismos, começando com um código
de conduta correta e terminando com o objetivo final – a emancipação e a liberdade.
Esses aforismos delineiam os princípios fundamentais do Yôga conhecidos com os
oito membros, ou astanga.
Oito membros ou passos são estágios seqüenciais, na jornada da vida, que se vão
alcançando por intermédio do Yôga: yama, niyama, ásana, pranayama, pratyahara,
dharana, dhyana e samadhi. Para se atingir o objetivo último do Astanga Yôga que é
a emancipação do ser, cada passo deve ser bem compreendido e executado. Yama,
os princípios éticos gerais, e niyama, o autocomedimento, prescrevem um código de
conduta que pauta o comportamento e a moralidade do indivíduo. Os ásanas – as
posturas do Yôga – e pranayama, que é o controle da respiração, disciplinam o
corpo e a mente proporcionando saúde física, fisiológica, psicológica e mental. O
pranayama controla a mente, enquanto pratyahara, o desapego em relação ao
mundo externo, restringe a incessante estimulação dos sentidos afastando os
órgãos da percepção e da ação dos prazeres seculares. Dharana, a concentração,
guia a consciência para que se focalize rigorosamente num só ponto. Dhyana, a
concentração prolongada, satura a mente até que esta penetre na fonte da
51
existência e a energia intelectual e consciente dissolva-se na sede da alma. É então
que se atinge o samadhi, o estado em que se perde a noção de se ter uma
existência isolada.
Yama e niyama exigem uma enorme disciplina interior. Yama explica os códigos do
comportamento éticos que devem ser cumpridos e seguidos na vida cotidiana,
lembrando-nos de nossas responsabilidades como seres sociais. Yama tem cinco
princípios: ahimsa, a não-violência; satya, a veracidade; asteya, a ausência da
avareza; brahmacharya, a castidade; e aparigraha, a ausência de desejos. Ahimsa
requer introspecção, para que se substituam os pensamentos e atos negativos e
destrutivos por outros positivos e construtivos. A raiva, a crueldade e o ato de
atormentar os outros são facetas da violência latente em todos nós. Esses
sentimentos contradizem o princípio de ahimsa, ao passo que mentir, enganar ou
ludibriar viola o princípio de satya.
Brahmacharya não significa a abstinência sexual, mas uma sexualidade disciplinada,
capaz de promover o contentamento e a força interior.
Parigraha significa “posse” ou “cobiça” e refere-se ao instinto interior que nos
mantém presos ao ciclo cármico de reencarnações. Mas, mesmo que a pessoa abra
mão de suas posses materiais, o que acontece com sua possessividade emocional
ou intelectual? O Astanga Yôga ajuda a disciplinar a mente, libertando-a do desejo
de possuir e levando-a a um estado de aparigraha a ausência de desejos, e de
asteya, a ausência de cobiça e avareza.
Niyama é a corrente positiva que proporciona disciplina, remove a inércia e dá forma
ao desejo de se trilhar o caminho do Yôga. Os princípios de niyama são saucha, ou
limpeza; santosha, ou contentamento; tapas, ou austeridade e svadhyaya, ou o
estudo de si mesmo, o que inclui corpo, mente, intelecto e ego.
O princípio final do niyama é isvara pranidhana, ou devoção a Deus. O
contentamento, ou santosha, ajuda a domar o desejo, a raiva, a ambição e a cobiça;
enquanto tapas, a austeridade, envolve a autodisciplina e o desejo de purificar o
52
corpo, os sentidos e a mente. O estudo e a prática do Yôga com atenção devocional
a si mesmo e a Deus é tapas.
ÁSANA, PRANAYAMA E PRATYAHARA
Fazer um ásana ajuda a criar e gerar energia. Permanecer num ásana organiza e
distribui essa energia, ao passo que sair da postura protege essa energia, impedindo
que ela se dissipe.
No Yoga Sutra III. 47”, Patanjali explica os efeitos de um ásana, enquanto se pratica
um ásana, deve-se focalizar a atenção no corpo interior, direcionando a mente para
dentro, a fim de aguçar a inteligência.
O ásana deixa de ser um esforço na medida em que se eliminam as nódoas do
corpo denso e do corpo sutil. O momento decisivo na prática dos ásanas é aquele
em que se unem o corpo, a mente e o “Si Mesmo”. Nesse estado tem início isvara
pranidhana, ou devoção a Deus. Os ásanas e o pranayama estão estritamente
interligados e, segundo Patanjali, só se experimenta o pranayama após o domínio
dos ásanas. Prana é “energia vital” e inclui a força e a ambição; ayama significa
“alongar, expandir e estender”.
O pranayama pode ser descrito como a “expansão e a extensão da energia ou força
vital”. Patanjali começa o pranayama com um simples movimento de respiração,
levando-nos cada vez mais fundo, dentro de nós mesmos, ensinando-nos a observar
nosso próprio ato da respiração. O pranayama tem três movimentos, que devem ser
executados com precisão: a inspiração prolongada, a expiração profunda e uma
retenção estável e prolongada. Pranayama é o processo concreto de se direcionar
energia para dentro, tornando a mente apta para o pratyahara, ou o desapego em
relação aos sentidos decorrentes do pranayama. Quando os sentidos se afastam
dos objetos de desejo, a mente fica livre dessa forma de poder e se torna dócil.
Então, volta-se para dentro e fica livre da tirania dos sentidos. Isto é pratyahara.
53
Patanjali reúne dharana, dhyana e samadhi sob o termo samyama, a íntegração de
corpo, respiração, mente, intelecto e “Si Mesmo”. Não é fácil explicar os três últimos
aspectos do Yôga como entidades separadas. A mente controlada, que se alcança
no pratyahara, é levada, no dharana, a intensificar sua atenção num único
pensamento. Quando se prolonga essa concentração torna-se dyana, estado em
que se vivencia a libertação, expansão, quietude e paz. Esse estado prolongado
libera o praticante de seus apegos, resultando em indiferença às alegrias do prazer
e aos padecimentos da dor. A experiência do samadhi é alcançada quando se
unificam o conhecedor, o cognoscível e o conhecido. Quando o objeto da meditação
absorve completamente aquele que medita e se torna o próprio sujeito, perde-se o
estado de autoconsciência. Isso é samadhi, o estado de absorção total. Sama quer
dizer “nível” ou “semelhante” e adhi “acima” e “sobre”. Também denota a
manutenção da inteligência num estado de equilíbrio. Embora samadhi possa ser
explicado no nível intelectual, só pode ser experimentado no nível do coração.
O TRABALHO COM OS CHAKRAS
Os grandes mestres do Yôga acreditam que a saúde espiritual é ativada por um
sistema de Chakras ou centros “nervosos” situados ao longo da coluna vertebral e,
que a energia cósmica encontra-se adormecida nesses Chakras e deve ser
despertada pela auto-realização. Eles afirmam, também, que a moderna tecnologia
pode fazer minuciosos exames no corpo físico, mas em nada contribuiu para o
discernimento do caráter, da personalidade ou do potencial para o bem. Para eles a
parte mais importante de um ser humano é a que está entre a epiderme e o mais
íntimo recesso da alma, o shakti, que inclui a mente, o intelecto, as emoções, a
energia vital, a noção do “Si Mesmo”, as forças da vontade e do discernimento e a
consciência. Sendo diferente em cada um, o shakti é o que torna as pessoas
individualmente misteriosas e únicas. Na terminologia do Yôga, a alma é purusha
shakti, e prakriti shakti, ou a energia da natureza que, acabou sendo chamada de
kundalini pelos antigos praticantes do Yôga.
54
Kundalini é a energia cósmica, divina, que existe com força latente em todas as
pessoas. Quando despertada, prakriti shakti ruma ao próprio centro da alma,
purusha shakti.
A energia cósmica e divina é ativada por Yôga-Agni, o fogo do Yôga que, quando
coberto por cinzas, se extingue. Da mesma forma, se os sentidos estão inertes ou se
são motivados pelo orgulho, pela auto-indulgência ou pela inveja, kundalini mantém-
se em estado latente. Se a pessoa permite que esses sentimentos negativos
dominem o pensamento por períodos muito prolongados, a evolução espiritual não
só fica comprometida, como também pode ser efetivamente interrompida.
Os antigos sábios do Oriente concluíram que, para alcançar a saúde física perfeita,
deve-se ativar os Chakras, centros que estão localizados na coluna do cérebro até o
cóccix. Enquanto a coluna vertebral é uma estrutura física, os Chakras não se
compõem de material mas, mesmo assim, governam todos os elementos do corpo.
O SIGNIFICADO DOS CHAKRAS
Chakras, em sânscrito, significa “roda” ou “anel”. Os Chakras pessoais contêm
energia adormecida e são encruzilhadas críticas, que determinam o estado do corpo
e da mente. Assim como o cérebro controla as células nervosas – os neurônios -, os
Chakras sintonizam o prana – energia cósmica -, que existe em todos os seres
vivos, e a transformam em energia espiritual, que se difunde pelo corpo através dos
nadis, ou canais.
Invisíveis, os Chakras só são perceptíveis por seus efeitos. Podem ser acessados
quando o praticante tiver cumprido todos os oito passos do Yôga, tendo-se fundido o
“eu” humano com o “Ser Divino”.
Há onze Chakras, dos quais sete são cruciais, e quatro, secundários. O mais
“importante” de todos é o Sahasrara, onde prakriti shakti, ou a energia, se une com
purusha shakti, ou alma.
55
A prática do Yôga visa despertar a energia divina existente em todo ser humano. Os
ásanas e o pranayama despertam os Chakras: ativam-se os nadis, o que faz
vibrarem os Chakras , que geram uma energia que circula pelo corpo através dos
nadis. As emoções baseadas nos Chakras são transformadas à medida em que a
energia divina desperta e circula.
O QUE SÃO MUDRÃS E MANTRAS
Mudrãs, uma palavra com muitos significados, é caracterizada como gesto,
posicionamento místico das mãos, como selo ou também como símbolo. Estas
posturas simbólicas dos dedos ou do corpo podem representar plasticamente
determinados estados ou processos da consciência. Mas as posturas determinadas
podem também, ao contrário, levar aos estados de consciência que simbolizam.
Parece que os Mudrãs se originaram na dança indiana, que é considerada
expressão da mais elevada religiosidade. A dança, uma dádiva do Deus Brahma, é,
segundo os hindus, uma forma de canto com o corpo. Graças ao fundo poético e
musical, o dançarino consegue concentrar-se inteiramente em seu corpo, mãos, pés
e olhos. A dança indiana revela-nos uma espécie de metafísica do gesto, uma
linguagem do corpo na qual pensamentos e sentimentos são expressos
simbolicamente.
O movimento de todo o corpo, a postura da cabeça e do tronco, a posição dos
braços e a modulação das mãos assumem o lugar da palavra. Alegria, triunfo,
solicitação de amor, saudade, resignação, ira, medo, e assim por diante, ganham
expressão através de gestos estabelecidos (Mudrãs) precisos. A dança indiana é
vista como manifestação física do ritmo cósmico. Shiva Nataraja, o rei da dança, é o
deus do ritmo. Sua dança personifica não apenas sua grandeza divina, mas também
o eterno movimento do universo.
O significado espiritual dos Mudrãs encontra sua expressão perfeita na arte indiana.
Os gestos das divindades representados na arte hinduísta e budista e os atributos
56
que os acompanham simbolizam suas funções ou aludem a determinados
acontecimentos mitológicos.
Graças a várias tendências e peculiaridades regionais, a arte indiana, especialmente
a escultura, viveu uma fase de pronunciada riqueza formal do século II até o início
do século IV. Há muitas obras dessa época que se inspiram tanto no hinduísmo
como no budismo. Devido à sua rica iconografia e ao grande número de obras
preservadas, a arte budista, nessa época, encontra-se em primeiro plano.
Das representações plásticas do Gautama Buda são conhecidas seis Mudrãs que
estão em estreita relação com sua vida e ensinamentos. As duas correntes do
budismo, Hinayana (o “pequeno veículo”) e Mahayana (o “grande veículo”),
encarnam as representações do Buda como meio para promover a interiorização e
criar uma profunda atmosfera de crença.
Os Mudrãs estão também intimamente ligados aos rituais do tantrismo. No ritual
tântrico, que consiste em Mudrãs, Mantras e visualizações, o crente corteja
amorosamente a divindade adorada com o objetivo de realizá-la em “Si Mesmo”.
O tantrismo tornou-se um fenômeno pan-indiano no século VIII a.C. e influenciou
fortemente muitos setores da vida indiana, sobretudo a arte.
Os primeiros fundamentos literários do tantrismo hinduísta encontram-se nos tantras
Shiva do shivaísmo Pashupata, que foi cunhado pelos ensinamentos da filosofia
Samkhia. Nestes primeiros tantras do período que vai do século VII ao IX,
encontram-se textos sagrados, ritos para adoração de Shiva, bem como técnicas de
Yôga.
O budismo também passou por um grande movimento tântrico, cujo significado
ultrapassaria muito as fronteiras da Índia e que permanece vivo até hoje no budismo
tibetano e na seita shingon do Japão. Para a corrente tântrica do budismo foi
cunhado o conceito ”budismo esotérico”, pois todos os ensinamentos ligados aos
tantras e seus conhecimentos secretos foram revestidos pela linguagem, simbolismo
57
e iconografia esotéricos. O tantrismo budista desenvolveu-se a partir do século IV
aproximadamente, e atingiu seu esplendor cultural e espiritual na Índia entre os
séculos VI e XII. Os recursos mais importantes do tantrismo budista para o
progresso no caminho espiritual são a recitação dos Mantras, a iniciação nas
Mandalas secretas, as técnicas yogues de visualização e concentração e a utilização
dos Mudrãs, os gestos manuais simbólicos. Conhecemos alguns dos gestos mais
importantes através das estátuas do Buda e do Bodhisattva. Nos Mudrãs tântricos,
trata-se da imitação dos gestos do Buda, cujo auxílio tem como objetivo realizar em
si a natureza do Buda.
No Hatha-Yôga, que tem suas raízes no tantrismo, a palavra Mudrãs designa tanto
posturas das mãos quanto do corpo.
A Gheranda-Samhita
20
, que trata do Hatha-Yôga, descreve vinte e cinco Mudrãs que
não apenas atuam de maneira positiva sobre o corpo e a mente mas também
despertam forças espirituais. Os Mudrãs sensibilizam o praticante a perceber de
forma mais intensiva as mensagens de seu corpo e a comunicar-se com este. Ao
executar um Mudrã, o yogue permite que sua consciência penetre em todas as fibras
de seu corpo e se abandona às energias sutis que o percorrem.
No Hatha-Yôga, que contém elementos tipicamente tântricos, os Mudrãs são
caracterizados por posições da mão e dos dedos e também do corpo, sendo
utilizadas para colocar-se num determinado estado de consciência. É sabido que o
corpo expressa em seus gestos as emoções psíquicas tais como alegria, tristeza, ira
e assim por diante. Entretanto, é menos conhecido que o contrário também é
verdadeiro: os movimentos e as posturas corporais exercem influência sobre a
psique. Segundo o ponto de vista dos yogues, determinadas posturas corporais e
gestos (Mudrãs) influenciam nossa psique e podem agir conscientemente sobre ela.
Por meio da utilização dos Mudrãs e das bhandas (contrações) pode-se também
dominar a respiração e os músculos bem como os nervos da região genital. O
20
Os tratados de Hatha-Yôga tais como o Hatayoga-Pradipka do século XV a.C., o Shiva-Samhita e o
Gheranda-Samhita estão provavelmente baseados na literatura de Gorakhnath. Ele é tido como o
autor de um tratado sobre o Hatha-Yoga, hoje perdido, que descreve um número de disciplinas e
técnicas tradicionais por meio das quais pode se conseguir o perfeito domínio do corpo.
58
controle da respiração (Pranayama) e da região genital produz uma paralisação dos
pensamentos perturbadores, “imobilizando” o estado de consciência. O Hatha-yogue
que domina esta técnica não é mais perturbado pela incessante atividade de seu
espírito, mas encontra-se num estado de profunda concentração e vivencia calma e
paz perfeitas.
Algumas escolas tântricas combinaram os Mudrãs com práticas sexuais para
acelerar a ascensão da Kundalini. Kundalini é a energia primordial semelhante a
uma serpente enrolada que se encontra na extremidade do canal que atravessa a
coluna vertebral. Com a ajuda de determinados Mudrãs, ela se eleva até o Chackra
superior, até o centro da luz pura. O caminho da Kundalini deve levar à grande
experiência da liberdade que está na união dos contrários e, com isso, em sua
suspensão.
O nome Hatha indica a doutrina tântrica sobre a qual o Hatha-Yôga foi construído.
No tantrismo, “Ha” simboliza a energia positiva, o sol e “Tha” a negativa, a lua. Com
isso Hatha é a expressão do equilíbrio entre as correntes positiva e negativa no ser
humano. A unidade de sol e lua corresponde a fusão de Shiva e Shakti. Esta
dialética dos contrários é o tema favorito dos tântricos, que têm por objetivo a união
dos contrários, para com isso retornar à unidade original. A união dos contrários é
chamada de Maithuna (união) nos textos tântricos. Esta união, que tradicionalmente
é preparada por um guru, realiza-se hoje geralmente através da sublimação em
planos espirituais e é representada pelo casal de deuses ou símbolos
correspondentes. Por toda parte, na arte hinduísta da Índia e na arte budista,
especialmente do Tibete e do Nepal, encontra-se o casal divino ligado pela união
mística.
59
MANTRAS
A palavra Mantra provém do sânscrito e tem muitas diferenças sutis de significado:
“instrumento da mente”, “linguagem divina” e “linguagem da filosofia espiritual
humana” são apenas algumas de suas conotações.
Os estudiosos modernos e os sacerdotes védicos divergem quanto à época em que
os mantras foram registrados por escrito. Alguns eruditos datam os primeiros
registros por escrito das quatro escrituras védicas em 1000 a.C., embora a versão
mais antiga existente do Rig Veda seja datada só no século XIV da nossa era. No
entanto, em “The Principal Upanishads”, o respeitado sábio S. Radhakrishnan,
citando “The Religion of the Vedas”, de Bloomfield, afirma: “Os Vedas não apenas
constituem o mais antigo monumento literário da Índia, mas também a mais antiga
literatura dos povos indo-europeus, anterior à da Grécia ou de Israel.”
21
Os mais
antigos hinos e Mantras contidos no Rig Veda são tradicionalmente datados como
sendo de 1500 a.C. e possivelmente até mesmo antes de 4000 a.C.
Os sacerdotes hindus afirmam categoricamente que os registros por escrito dos
Mantras são muito mais antigos do que acreditam as autoridades acadêmicas. A
história popularmente aceita dos Mantras, que até hoje é transmitida por uma
tradição oral ensinada nos templos hinduístas, situa o primeiro escrito na época do
Mahabharata”, cerca de um milênio antes de Cristo. E os Mantras sanscríticos já
existiam pelo menos dois mil anos antes nos mitos, fábulas e lendas.
Os ensinamentos védicos eram originalmente reservados à classe dos sacerdotes e
seus rituais, assim como os próprios Vedas e os Mantras contidos neles, foram
transmitidos oralmente por milhares de anos. Depois de passados oralmente de
geração em geração, os Mantras foram pela primeira vez escritos em sânscrito
sobre folhas de palmeira, para que pudessem ser preservados. Os primeiros
“bibliotecários” eram famílias que se dedicavam à preservação desses Mantras por
escrito. Catalogados por assunto, utilidade e efeito, os Mantras eram
21
Apesar de “The religion of the Vedas”, de Bloomfield, publicado em 1908, ser mencionado três
vezes ao longo desse volumoso livro, não aparece seu primeiro nome nem outras informações
referentes à publicação do livro.
60
meticulosamente guardados e protegidos da ação dos elementos. Quando as folhas
de palmeira ficavam quebradiças ou mofadas, os Mantras eram recompilados em
folhas novas enquanto ainda legíveis.
Com o aumento do número de Mantras compilados nem mesmo famílias inteiras
conseguiam dar conta da necessidade de recopiá-los para preservar a biblioteca.
Para dar conta do crescente acúmulo de novos Mantras, foram feitos resumos de
algumas partes. Esses resumos condensavam estantes inteiras de informações em
um punhado de folhas. Isso funcionou por muitos séculos até o acúmulo voltar a ficar
excessivo. Então, os conteúdos eram novamente sumarizados.
Esses ensinamentos hindus de inspiração e introvisão seguiam um percurso
semelhante ao da transmissão oral para a transcrição em sânscrito. Os Upanishades
são os resumos dos resumos dos resumos dos ensinamentos criados há muitos
milhares de anos. Os Upanishades contêm os Cantos da Floresta, ou Aranyakas, e
os Brahmanas, que são fragmentos de obras maiores, extraviadas. Os quatro
Vedas, Yajur Veda e Sama Veda. Em certo sentido, os Vedas e os Upanishades são
todos coletâneas de Mantras sanscríticos reunidos com a intenção de transmitir
idéias atemporais a respeito de uma variedade de assuntos.
Os Mantras, ou cantos simples, são frases curtas repletas de energia e sentido
especialmente destinadas a gerar ondas poderosas de som que promovem a cura, a
visão intuitiva, a criatividade e o crescimento espiritual.
O poder transformador do som foi transmitido do passado para o presente pelos
sábios da Índia, pelos cientistas clássicos da Grécia antiga e pelos monges
medievais da Europa, muito embora, a ciência e disciplina do canto e da oração
formal sejam praticadas em todas as religiões para todo o mundo.
Os Mantras são sons falados ou cantados durante total concentração. A palavra
Mantra significa: fórmula sagrada.
Mantra pode ser qualquer som, sílaba, palavra, frase ou texto que detenha um poder
específico.
61
Essas palavras, comumente tiradas de livros sagrados, contêm vibrações vocais que
mantém meios de despertar efeitos ocultos de elevação espiritual a quem as
pronuncia. Contudo, é fundamental que pertençam a uma língua morta, na qual os
significados e as pronúncias não sofram alterações, como acontece com as línguas
vivas, sempre em evolução.
Mantras pode-se traduzir como vocalização compõe-se do radical man (pensar) mais
a partícula tra (instrumento). É significativa tal construção semântica, já que o Mantra
é muito utilizado para alcançar a “supressão da instabilidade da consciência
denominada meditação.
Os Mantras servem para facilitar a concentração e a meditação, para serenar, para
energizar, para adormecer, para despertar, para o aumento do fôlego, para educar a
dicção, para desenvolver os Chakras, para despertar a kundalini, para melhorar a
saúde, e para manter em casos extremos de auto-preservação do yogue, quando
atacado.
O Mantra pode ter duas características distintas: o que não vibra, chamado
impronunciável, e que provavelmente só poderá ser sentido pelo praticante do Yôga
cujos sentidos estão voltados apenas para o seu interior; e o que vibra e pode ser
sentido e praticado por qualquer pessoa.
O Mantra pode ser individual ou coletivo. No primeiro caso, ele será transmitido de
mestre para discípulo, dentro de um sistema de iniciação todo especial e secreto,
não podendo, em nenhuma circunstância, ser transmitido à nenhuma outra pessoa.
No segundo caso, será praticado de diversas formas por uma ou mais pessoas,
podendo ser praticado em qualquer hora e a qualquer momento, ao contrário do
individual.
Os praticantes do Tantra-Yôga recomendam que eles sejam repetidos 108 vezes, ou
um número múltiplo deste. Mas há também uma alternativa menos radical, que
62
recomenda a repetição do Mantra durante um tempo que pode variar de três minutos
até o máximo que o praticante desejar.
Há duas “espécies” de Mantras: os naturais, que brotam espontaneamente durante
profundas meditações, vindos com objetivos específicos, ou aqueles que se
relacionam com o som semente, bíja mantra, de alguma coisa, Chackra, os
elementos da natureza, mestres, etc, e os mentais, que são criados a partir de
palavras existentes ou não, e suas finalidades são direcionadas para quem os criou.
Esse processo dá-se através de comando de mentalização e visualização.
TIPOS DE MANTRAS
Kirtan – significa cântico. Kirtan é o Mantra que possui várias notas musicais, várias
palavras e possui tradução.
Japa – significa repetição. Japa ideal tem uma só nota musical, uma só palavra, uma
só sílaba e, de preferência, não tem tradução.
Bíja – significa semente. É um tipo de Mantra com função específica,
desenvolvimento dos Chakras. Cada Chakra tem seu som-semente, seu bíja Mantra,
que desencadeia a ativação por ressonância, mediante à exaustiva repetição.
Vai kharí – significa vocalizado, verbalizado, pronunciado.
Manasika – significa mental. Provém do termo manas, mente. É a mais poderosa
modalidade de Mantra.
Saguna – significa aquele que tem um atributo e que pode ser visualizado.
Nirguna – significa aquele que não tem atributo, ele é um Mantra abstrato.
Likhita – significa escrito, grafado.
63
ORIGEM DO TAI CHI CHUAN
O termo “tai chi” significa “o cosmo”, tem a sua origem no Yi jing (I Ching), o “Livro
das Mutações”, e está intimamente relacionado com a filosofia taoísta. Mas não se
tem certeza a respeito da origem do Tai Chi Chuan, ainda que várias teorias tenham
sido postuladas a esse respeito. Alguns registros indicam que, durante a dinastia
Tang (618 d.C. – 906 d.C.), um eremita chamado Xu Xuan Ping praticava uma arte
conhecida como “Os 37 Estilos do Tai Chi”. Também foi chamada de Changquan ou
Punho Longo e, mais tarde, de “Rio Longo em referência ao Yang-Tzé-Kiang, rio
mais extenso da China, porque a sua extensão deveria ser longa e contínua como
um rio.
Por volta da mesma época, no monte Wudong, um sacerdote taoísta chamado Li
Lao Zi praticava uma arte denominada “Punho Longo Primordial”, que era
semelhante aos “37 Estilos do Tai Chi”.
O documento mais antigo a usar o termo “Tai Chi Chuan é um texto clássico
chamado de “Método para se alcançar o Esclarecimento através da Observação da
Escritura” (Guan Jing Wu Hui Fa), que foi escrito por Cheng Ling Xi, que viveu
durante o período da dinastia Lianag (907 d.C. – 923 d.C.). Cheng Ling Xi estudou
com Han Gong Yue, que chamava a sua arte de “Os 14 Estilos do Treinamento de
Tai Chi”.
A teoria mais popular sobre a origem do Tai Chi Chuan, todavia, cabe ao sacerdote
taoísta Zhang San Feng, que viveu por volta do final da dinastia Song, no século
XIII. Depois de se formar no conhecido Mosteiro Shaolin, o berço do Kung-fu shaolin,
do chi kung e do zen, Zhang San Feng, continuou a praticar artes marciais e o
desenvolvimento espiritual no Templo do Pico Perpétuo, no monte Wudang, que é
um dos mais importantes montes do Taoísmo.
Um dia, Zhang San Feng testemunhou uma briga entre uma serpente e um grou
22
, e
isso o inspirou a modificar o seu Kung-fu shaolin, relativamente rude, para um estilo
22
Alguns documentos dizem que se tratava de um pardal.
64
mais suave que passou a ser conhecido como “Os 32 Estilos do Wudang do Punho
Longo”. Este, mais tarde, desenvolveu-se no Tai Chi Chuan. Zhang San Feng foi o
primeiro mestre a descartar os métodos de treinamento exterior, como golpear sacos
de areia, pressionar as mãos em grãos, treinar com pesos; e a estimular os métodos
interiores, como o controle da respiração, o fluxo do chi e a visualização. Por esse
motivo, ele ficou conhecido como o primeiro patriarca do Kung-fu interior, arte que
abrange o Tai Chi Chuan, o Kung-fu Pakua e o Kung-fu Hsing Yi. A maioria das
escolas de Tai Chi Chuan, reconhece hoje Zhang San Feng como o fundador do Tai
Chi Chuan, com exceção do estilo Chen de Tai Chi Chuan.
A “Canção do Sentar Silêncioso” reproduzida abaixo foi extraída de “O Segredo de
Treinar a Quintessência Interior na Arte do Tai Chi Chuan”, que, segundo se dizia,
fora escrito por Zhang San Feng. Essa canção mostra que o objetivo original do Tai
Chi Chuan era o enriquecimento espiritual.
“Sentado em silêncio, exercita a meditação;
O impulso esta no yuanguan.
Contínua e suavemente regula a respiração;
Um yin e um yang fermentam no caldeirão interior.
A natureza precisa ser iluminada; a vida, preservada.
Não te apresses, deixa o fogo queimar lentamente.
Fecha os olhos e contempla o teu âmago,
Deixa que a tranqüilidade e a espontaneidade sejam a fonte.
Em cem dias, verá o resultado:
Uma gota de quintessência brota do kan,
A parteira é quem promove a união,
O bebê e a mulher são perfeitos.
A beleza é ilimitada e inexplicável,
Por todo corpo, a energia vital emerge.
Quem pode viver uma experiência tão maravilhosa?
É como uma pessoa muda que tem um sonho lindo.
Capta prontamente a essência do primordial;
A quintessência avança sobre os três obstáculos,
65
Subindo do dantian para o topo do niyuan,
Para então submergir no zhongyuan.
Água e fogo combinam para formar o verdadeiro mercúrio,
Sem o wu e o ji não há quintessência.
Deixa que a mente seja tranqüila e a vida seja vigorosa,
O espírito irradia através de três mil mundos.
Um galo dourado canta num bosque sombrio,
A flor de lótus floresce no meio da noite.
O inverno chega, o sol torna a brilhar,
Um rugido atroador irrompe no céu e na terra.
Dragões gritam, tigres brincam;
A música celeste inunda o céu de harmonia plena,
Na nebulosa mistura tudo é vazio,
Os fenômenos infinitos estão todos aqui.
Maravilhoso em seu mistério: misterioso em seu prodígio.
A circulação da corrente irrompe através dos três obstáculos;
Todos os fenômenos nascem da união do céu e da terra.
Sorve o orvalho da natureza, doce como mel,
Os santos são budas, os budas são santos.
Quando a realidade última se revela, o dualismo desaparece,
Então, eu compreendo: todas as religiões são iguais!
Come, se faminto; dorme, se cansado,
Faze oferendas e pratica a meditação.
O grande Tao está bem diante dos teus olhos,
Se estiveres iludido, perderás a oportunidade.
Uma vez perdida a forma humana, podes ter de esperar um milhão de eras.
O sonho ignorante da subida aos céus,
O cego adentra a floresta profunda para praticar.
O segredo supremo é maravilhoso além do profano,
Descartar o segredo supremo é um grave pecado.
Os quatro verdadeiros princípios, tu os tens de cultivar,
Romper o portal do mistério para alcançar o maravilhoso.
Cultiva o dia e a noite incansavelmente,
66
Consiga logo um mestre que devolva tua quintessência.
Alguns sabem que o verdadeiro mercúrio
É a quintessência da longevidade e da imortalidade;
Consagra-te ao dia; persevera cada dia mais;
Não faça do cultivo espiritual uma tarefa imediata:
O cultivo tarda, para o êxito, três anos, nove anos,
Até que uma pérola de quintessência amadureça.
Se queres saber quem compôs esta canção,
Foi o sacerdote taoísta da Pureza e do Vazio, o santo San Feng.”
23
Este texto foi escrito em linguagem simbólica para proteger o seu conteúdo
misterioso daqueles que não eram iniciados. Essa canção representa tanto a
filosofia quanto o método para alcançar a meta suprema do taoísmo do Tai Chi
Chuan, ou em qualquer outra disciplina espiritual.
Yuanguan, dantian, niyuan e zhongyua, são diferentes campos de energia no corpo.
Kan refere-se ao abdômen; wu e ji referem-se, respectivamente, à circulação de
energia vital em volta do corpo, numa arte do chi kung conhecida como “O Pequeno
Universo”. A parteira, o bebê, a mulher, os dragões, os tigres e o galo dourado são
termos simbólicos que descrevem a aplicação de mente e energia, unidas em
harmonia com a finalidade de produzir uma “pérola” da quintessência ou uma
luminosidade íntima. O bosque sombrio é uma alusão à frase de Hui Neng: “Bodhi
não é uma árvore”, uma maneira zen de dizer que a realidade suprema não tem
forma; os quatro princípios verdadeiros são as “Quatro Verdades Nobres”, que
compõem os alicerces dos ensinamentos de Buda. Essas duas referências, assim
com outros conceitos apresentados na canção, refletem os ensinamentos shaolin de
Zhang San Feng.
As provas de existência de Zhang San Feng são impressionantes, embora alguns
estudiosos digam que ele foi um mito. Nas alturas do monte Wudang há duas
enormes placas de pedras que lhe prestam homenagem como a um santo: uma
23
Zhang San Feng, “The Secret of Training the Internal Elixir in the Tai Chi Art”, preservado por Taiyi
Shanren, reimpresso a partir de um antigo texto de Anhua Publications, “Hong Kong”, sem data,
pp.68-9.
67
delas, foi colocada lá por decreto do imperador Ying Zong, também da Dinastia
Ming.
A “História Imperial da Dinastia Ming” registra que Zhang San Feng nasceu em 1247,
aprendeu os preceitos do taoísmo com um mestre taoísta chamado Dragão de Fogo
no monte Nanshan em Shenxi; cultivou seu espírito por nove anos no monte
Wudang; era conhecido pelo título de “O Santo da Conquista Espiritual Infinita” e foi
o patriarca das artes marciais interiores.
Os Anais do Grande Pico da Montanha da Paz Eterna” mencionam que ele estudou
o yin-yang do cosmo, observou o princípio da longevidade das tartarugas e dos
grous e obteve resultados notáveis.
A obra Collections and Water o descreve carregando alaúde e espada nas costas,
cantando canções taoístas, trabalhando nas montanhas e estudando os
maravilhosos segredos do cosmo.
24
OS PRIMEIROS MESTRES DO TAI CHI CHUAN
O sucessor de Zhang San Feng foi o monge taoísta Taiyi Zhenren, muito conhecido
por causa da sua espada de Wudang. No final da Dinastia Ming, o kung-fu Wudang,
que fora ensinado originalmente aos monges taoístas no templo Pico Purpúreo, foi
difundido entre os discípulos seculares. O monge taoísta Ma Yun Cheng transmitiu
a arte ao seu famoso discípulo secular Wang Zong Yue, que denominou essa arte
de Tai Chi Chuan Wudang e cujo “Tratado de Tai Chi Chuan” continua um clássico
até os dias de hoje.
Outros dois, entre os célebres discípulos de Ma Yun Cheng, eram Mi Deng Xia e
Guo Ji Yuan, popularmente conhecidos como “os dois santos”. Há algumas
indicações de que eles ensinaram o kung-fu Wudang para Dong Hai Chuan e o
24
Citado em Pei Xi Rong e Li Chun Sheng (org.), Wudang Martial Arts, Human Science and
Technology Publications, Changsa City, 1984, p.2.
68
kung-fu Pakua. Se isso é verdade, então o Tai Chi Chuan e o kung-fu Pakua (ou
Baguazhang em chinês românico) tem a mesma origem: o kung-fu Wudang.
Wang Zong Yue transmitiu a arte a outro mestre secular famoso, Zhang Song Xi,
que depois ensinou a Dan Si Nan. O discípulo de Dan era Wang Zheng Nan, que
particularmente se referia ao kung-fu Wudang como uma arte interior distinta do
kung-fu shaolin, que ele chamava de exterior. É sabido que Wang Zong Yue ou
Zhang Song Xi ensinou a arte do Wudang para a família Chen em Chen Jia Gou, ou
no povoado da família Chen, no distrito de Wen, na província de Henan, onde a arte
era conhecida como Tai Chi Chuan.
Contudo a família Chen, fundadora do estilo Chen de Tai Chi Chuan, afirmava que o
Tai Chi Chuan fora desenvolvido no século XVII por um ancestral da nona geração
da sua família, Chen Wang Ting, um general da Dinastia Ming e que Wang Zong
Yue de fato aprendeu essa arte com a família Chen.
CHEN WANG E O ESTILO CHEN DE TAI CHI CHUAN
Quando a Dinastia Ming foi substituída pela Dinastia Quing, Chen Wang Ting retirou-
se na aldeia da família Chen para passar o tempo estudando literatura e artes
marciais, desenvolvendo subseqüentemente o Tai Chi Chuan.
Não há registros preciosos sobre onde Chen Wang Ting aprendeu originalmente as
artes marciais, mas há duas teorias bem populares de como o estilo Chen do Tai Chi
Chuan se desenvolveu. A primeira delas diz que o kung-fu Wudang de Wang Zong
Yue, ou Tai Chi Chuan Wudang como é mais conhecido nos dias de hoje, é o
fundamento no qual esse estilo se baseia, porque Wang Zong Yue ficou muitos anos
na aldeia da família Chen e também porque o “Tratado de Tai Chi Chuan”, que ele
escreveu, descreve a filosofia e as técnicas de Tai Chi Chuan. A segunda diz que
Che Wang Ting aprendeu sua arte no exército, como um legado de Qi Ji Guang, o
grande general da Dinastia Ming, que no século XVI evitou a invasão naval
69
japonesa, uma vez que a obra-prima de Qi,O Clássico de Kung-fu”, estabelece os
princípios fundamentais do estilo Che de Tai Chi Chuan.
Algumas pessoas sugerem que Che Wang Ting poderia ter sido influenciado
diretamente pelo kung-fu shaolin, uma vez que a aldeia da família Chen não ficava
longe do Mosteiro Shaolin da mesma província, e que praticamente todas as
posturas e princípios do Tai Chi Chuan, exceto aqueles que dizem respeito à filosofia
taoísta, também estão presentes no kung-fu shaolin.
Examinando o desenvolvimento histórico do Tai Chi Chuan desde o tempo de Zhang
San Feng até os dias de hoje, poderemos observar que existem três estágios
característicos no seu “desenvolvimento”, que são mais bem representados no Tai
Chi Chuan Wudang, no estilo Chen de Tai Chi Chuan e no estilo Yang de Tai Chi
Chuan. O propósito do Tai Chi Chuan Wudang é grandioso e sublime; não se
resume ao mergulho no cosmo. No tempo do estilo Chen de Tai Chi Chuan, o
propósito inicial deixou de ser o espiritual e passou a ser a maestria no combate.
Mas, no tempo do Yang de Tai Chi Chuan, a dimensão marcial quase desapareceu.
A maioria dos estudantes de Tai Chi Chuan, hoje em dia, pratica essa arte marcial
devido ao seu aspecto saudável, sendo que muitos nem se dão conta de que é uma
arte marcial e muito menos de que é também um caminho para o desenvolvimento
espiritual.
PRÁTICA NAS TÉCNICAS
PRIMEIRO CONTATO COM O YÔGA
Foi através de dois livros: “Yôga Para a Coluna”, e “Respiração na Yôga”, que
ilustravam com fotos algumas posturas básicas do Yôga, e alguns exercícios no
pranayama, que comecei a praticar a Hatha Yôga com objetivo de obter da técnica
um condicionamento físico.
70
A identificação com o Yôga aconteceu no dia em que abri o livro “Yôga Para a
Coluna” e observei cuidadosamente as ilustrações das posturas que estavam no
livro. Procurando aprender mais a respeito dessa técnica, iniciei uma jornada em
busca de informações, pesquisando outros livros, procurando ir a palestras
relacionadas com esse tema, fazendo alguns cursos oferecidos por alguns
instrutores, praticando o Yôga com alguns mestres indianos praticantes do Iyengar
Yôga, e do Ashatanga Yôga oferecido pela Sociedade Brasileira de Yôga. À medida
em que praticava o Yôga percebia que estava me tornando íntima da técnica
trabalhada por meio dos ásanas no meu corpo. Começava a ter consciência de que
a forma experimentada durante a prática guardava o segredo de um mundo que eu
desejava conhecer e experimentar.
Buscando aperfeiçoar-me cada vez mais na técnica, passei a ter aulas particulares
com alguns professores nas modalidades descritas no parágrafo anterior. Devido ao
meu grande interesse pela técnica, fui convidada, por alguns instrutores,
especialmente pela professora Elza Santana, discípula do Mestre Iyengar na Índia, a
dar algumas aulas de Yôga nesses espaços.
Durante a prática, percebi que a técnica me proporcionava um equilíbrio, um estado
de atenção, e que a mesma, dependendo da postura, transmitia um princípio cênico,
ou seja, um estado cênico que deveria ser aplicado numa cena conferindo a
validade do que estava percebendo.
O CONTATO COM O TAI CHI CHUAN
O meu primeiro contato com o Tai Chi Chuan não foi através de um livro a respeito
dessa técnica, como o ocorrido com o Yôga, mas, numa aula de capoeira.
Na época praticava “Capoeira Angola” na Casa de Angola” com o Mestre Sombra,
angolano residente na cidade de Santos. Na primeira aula de capoeira conduzida
pelo professor, após ensinar “a ginga”, que é um dos elementos básicos da
movimentação em pé, ele pediu para que nós executássemos o movimento. Ao
71
executar “a ginga”, o professor se aproximou e me pediu que parasse de fazer
aquela movimentação “estranha”. Em seguida me perguntou, se estava aprendendo,
ao mesmo tempo, alguma luta de técnica marcial do Oriente, porque ao executar “a
ginga”, a movimentação dos meus braços lembravam um dos movimentos dos
braços trabalhados no Tai Chi Chuan.
Achando interessante a observação, procurei informação a respeito da técnica
chinesa. Comecei a ter aula de Tai Chi Chuan com o Mestre Lee, também professor
do Kung Fu.
Por ser uma prática, como o Yôga, requer disciplina, um exercitar constante.
Trabalha, assim como no Yôga, a concentração, o equilíbrio, a respiração e a
harmonia.
O Tai Chi Chuan tem no movimento da natureza a sua melhor imagem. O processo
básico do movimento é uma sensação de tornar presente e uma sensação de ser.
Assim como na prática do Yôga, percebi que os movimentos básicos do Tai Chi
Chuan provocavam um estado cênico, talvez porque a técnica oriental trabalhe o
estar presente no praticante.
Observava que ao executar cada movimento, despertava um estado de alerta e este
trazia um vasto conteúdo que poderia ser aplicado no exercício específico para o
ator.
Sendo praticante das duas técnicas corporais, pensei na possibilidade de utilizá-las
na construção de uma partitura cênica para o ator.
COMO A TÉCNICA ORIENTAL ENTROU NA MONTAGEM
Sendo professora de Interpretação e Montagem da Escola Teatro Macunaíma, tenho
que montar um espetáculo por semestre.
72
A turma escolheu encenar o “Inspetor Geral”, de Gógol, que foi apresentado no
Teatro Três, na 58
a
. Mostra do Teatro Escola Macunaíma nos dias 4,5 e 6 de julho
de 2003. Um texto longo. Um texto difícil. Uma comédia.
Li o texto, pensando nas soluções que poderia dar às cenas: como montar uma cena
onde os atores pudessem ser, a cadeira, a mesa, a porta, o espelho, etc.? Pensei:
por que não experimentar as Técnicas do Oriente com este grupo de alunos-atores
nessa montagem?
FOI QUANDO SURGIU A PRIMEIRA PROPOSTA
Em uma das cenas da peça, o governador convoca uma reunião com os seus
secretários para discutir como receber o Inspetor. Nessa cena, em que alguns
alunos queriam fazer em torno de uma mesa com cadeiras, propus uma postura do
Yôga que é a Árvore (Vrishásana), (fig.6) e que parece uma cadeira. O ásana entra
na cena na íntegra.
fig. 6 fig. 7
Ao experimentar a postura na cena percebi a sua funcionalidade. Surtia o resultado
desejado. Os alunos estavam sentados e compunham, no espaço cênico, um
círculo. O ásana de Yôga contribuiu para organicidade a da cena.
73
Nesta mesma montagem, propus para o aluno que faria o papel do criado do falso
Inspetor que improvisasse, partindo da postura Utthita Trikonásana (triângulo
estendido), o monólogo no qual ele apresentava ao público o caráter do seu patrão.
Por meio da improvisação e da repetição em cima da postura, o trabalho do aluno
resultou na imagem de um surfista.
Pedi para o meu aluno que iniciasse a improvisação partindo do ásana Tadásana
para chegar a Utthita Trikonásana (fig.7), ou seja, que em pé distribuísse o peso
igualmente entre as duas pernas, procurando repousar no centro dos arcos dos pés
que procurasse manter os calcanhares firmes, estendendo os dedos dos pés. Pedi
que encostasse as bordas internas dos dois pés, mantendo o corpo reto e
respirando tranqüilamente. Comecei a dar indicações para que ele iniciasse o
processo de improvisação em cima da postura. Pedi em sucessivas repetições que
inspirasse profundamente e saltasse afastando os pés. Queria que percebesse
como o seu corpo respondia positivamente às minhas indicações; sugeri então que
ele desenhasse um triângulo com o corpo. Ao executar esse movimento, ele perdeu
o equilíbrio e, tentando resistir à queda, acabou desenhando na postura do triângulo,
que ele não desmanchou, uma ondulação no corpo, que me lembrou um surfista
procurando se equilibrar em cima da prancha.
A minha prática e aplicação da Técnica Oriental em sala de aula com os meus
alunos reafirmavam que a técnica do Yôga proporciona:
Aos executores
- Equilíbrio
- Concentração
- Tônus
À cena
- Organicidade
- Qualidade
74
A aplicação, nesta montagem, ainda era tímida, mas, acreditava na possibilidade
devido às sensações vivenciadas na prática ao executar os ásanas. Porém, a
técnica não foi aplicada no espetáculo inteiro. Experimentei em alguns momentos e
a configuração foi positiva, apesar do despreparo dos alunos em relação às duas
técnicas orientais.
Devido aos resultados obtidos, resolvi pesquisar as possibilidades na aplicação das
posturas nas montagens semestrais.
Aos poucos fui incorporando as técnicas do Oriente nas montagens, nas oficinas e
nas aulas de interpretação. As duas técnicas comprovavam uma qualidade cênica.
Trabalhávamos com um tema proposto pela escola. Escolhíamos um texto e
iniciávamos as improvisações.
Ao tomar conhecimento que o tema escolhido para o semestre seria “Realidade e
Utopia”, pensei em montar “Frankenstein” de Mary Shelley, que foi apresentado no
Teatro Três, na 60
a
. Mostra do Teatro Escola Macunaíma, nos dias 25, 26, e 27 de
junho de 2004. Sugeri que trabalhássemos com o famoso conto da autora inglesa, e
o grupo se interessou pelo processo.
Iniciamos os workshops, nos quais procurava trabalhar o mínimo de condição física
para que pudesse aplicar as duas técnicas orientais.
Propus ao grupo que trabalhássemos com o ásana Siddhásana (fig.8), cujo
significado da palavra Siddha remete a um ser semidivino, um sábio inspirado, um
vidente ou um profeta. Começamos o primeiro exercício com todos sentados no
chão, com as pernas esticadas para frente, pedi a eles que dobrassem a perna
esquerda e que segurassem o pé esquerdo com as mãos, colocando o calcanhar
perto do períneo e que descansassem a sola do pé esquerdo contra a coxa direita.
Em seguida, pedi para que dobrassem a perna direita e que colocassem o pé direito
sobre o tornozelo esquerdo, mantendo o calcanhar direito contra o osso púbico,
colocando a sola do pé direito entre a coxa e a perna esquerda. Adverti para que
75
não descansassem o corpo sobre os calcanhares. Orientei para que estendessem
os braços para a frente e descansassem as costas das mãos nos joelhos, de modo
que as palmas ficassem para cima, juntando os polegares e indicadores, mantendo
os outros dedos estendidos. Insisti para que procurassem manter firmeza durante
esse ásana, incluindo a vocalização do bíja Mantra OM nas repetições do
Siddhásana durante a execução do exercício de improvisação.
fig. 8
Notei que o grupo após várias repetições apossou-se do ásana que havia sido
proposto na aula e, durante uma improvisação acabaram por configurá-lo à primeira
cena da montagem. Utilizamos este ásana, na sua forma original na primeira cena
da montagem, ele não foi desconstruído durante os exercícios de improvisação
propostos em sala de aula durante o processo criativo com essa turma.
Nessa mesma montagem, observando as propostas dos alunos, sugeri outro ásana,
e este foi utilizado na cena do cemitério, quando Victor Frankenstein vai até o campo
sagrado desenterrar alguns cadáveres para utilizar em suas experiências.
Nesse período, não propunha com freqüência a desconstrução das posturas das
duas técnicas por meio da improvisação: na maioria das vezes, essas eram
incorporadas à cena com objetivo estético, porque dentro da escola existia um prazo
para se montar um espetáculo e apresentar.
Observando o uso das duas posturas nas montagens seguintes, mesmo só tendo
por objetivo a forma estética, percebi que as mesmas traziam um estado vivo no ator
76
dentro do espaço cênico e poderia fornecer possibilidades para o trabalho do
intérprete criador.
Quando montei com meus alunos o Asilo Arkham”, história em quadrinhos escrita
por Grant Morrison, ilustrada por Dave Mckean, apresentada no Teatro Três, na 63ª.
Mostra do Teatro Escola Macunaíma, nos dias 3,4 e 5 de dezembro de 2005;
apliquei as duas técnicas do Oriente em algumas cenas do espetáculo.
Trabalhamos com um ásana do Yôga, “Saudação ao Sol” (fig.9), logo no início da
peça. Mas essa postura foi sendo desconstruída nas improvisações elaboradas pelo
aluno.
Sugeri a postura, “Saudação ao Sol” aos alunos e pedi que trabalhassem em grupos
de cinco pessoas a desconstrução da mesma. A postura, que é uma reverência à luz
da vida, acabou compondo com o grupo a forma circular e posturas dos penitentes.
fig. 9 fig. 9
fig. 9 fig. 9
77
fig. 9
fig. 9 fig. 9
78
O EXPERIMENTO – EXERCÍCIOS ESPECÍFICOS PARA O TREINAMENTO DO
ATOR I
Ao trabalhar dois personagens históricos da conquista do México, Cortez e
Montezuma III, pude aplicar, de modo não tão tímido, o Yôga e o Tai Chi Chuan, nos
workshops a serem apresentados em sala de aula.
Assumindo a postura de atriz-pesquisadora, escolhi o trecho da história que iria
trabalhar: a chegada do conquistador espanhol Hernán Cortez no Império Asteca.
A PRIMEIRA CENA
Capitão Hernán Cortez está na nau. Temendo o fracasso de sua expedição e tendo
fortes raízes cristãs, pede a Deus sucesso em sua missão.
CORTEZ – Quero ver e descobrir tudo o que existe.
Senhor escutai as nossas preces.
Quero os louros de cada vitória.
Senhor escutai as nossas preces.
Quero evangelizar, batizar, pregar em nome de nosso senhor Jesus Cristo.
Senhor escutai as nossas preces.
Quero encontrar e conquistar a cidade do Sol e me apoderar de todo ouro
escondido.
Senhor escutai as nossas preces.
Terra.
Per ipsum, et cum ipso, et in ipso.
Per ipsum, et cum ipso, et in ipso.
Per ipsum, et cum ipso, et in ipso.
25
25
Texto utilizado na cena.
79
A IMPROVISAÇÃO COM AS POSTURAS
Improvisei essas palavras em cima de uma postura que havia sido escolhida antes
de escrever o texto.
A postura era um dos movimentos básicos de Tai Chi Chuan, “Montar o Cavalo”.
Neste movimento, as pernas ficam afastadas e os joelhos levemente flexionados. Os
braços podem estar levemente flexionados ou ao longo do corpo. A partir dessa
postura comecei a flexionar o abdômen. Juntei as mãos e com os braços estendidos
acompanhava o movimento de flexão. Ia para cima e para baixo. Como o pêndulo de
um sino. Essa era uma das imagens que a forma projetava na minha cabeça.
Comecei a repetir o texto. Era Cortez pedindo a Deus. Senti vontade de aumentar a
velocidade do movimento. Com o aumento da velocidade, senti o desespero do
personagem. As imagens eram: Cortez rezando num lugar escuro, o sino da nau
tocando, uma tempestade, não se vê nada além do mar, de repente avistam a terra;
nesse momento, gritam “TERRA!”, os braços se tornam a âncora da nau.
Técnica Oriental – Tai Chi Chuan
Movimento – Montar o Cavalo
Material utilizado na Improvisação – Postura junto com o texto.
Imagens sugeridas a partir das transformações provocadas pela improvisação –
Pêndulo de sino; Tempestade em alto mar; Terra, Âncora; Cortez.
Improvisando em cima da postura foi possível a desconstrução da mesma e a
construção de um momento da cena.
Num outro momento, quando surge em cena o personagem do rei asteca,
Montezuma III, utilizei uma postura do Yôga íntegra e original.
MONTEZUMA – Cataeh maheh dô
Enfim eles chegaram
Pedra, areia, pó
Ponto final
80
Bendito seja o Novo Mundo!
MONTEZUMADê a eles o ouro.
Dê a eles as mulheres.
Dê a eles tudo.
Dê a eles tudo o que quiserem.
Mas lembre ao invasor:
Montezuma é o Rei!
26
Técnica Oriental – Yôga
Postura – Árvore
Material utilizado na Improvisação – o ásana na íntegra com o texto, Mudrãs e
Mantras.
Imagens sugeridas – O rei asteca do alto de seu trono falando para os seus
ministros.
O texto foi improvisado com os Mudrãs e Mantras, mas sem a desconstrução do
ásana do Yôga.
Na cena, apliquei a metodologia das Técnicas do Oriente de duas maneiras:
improvisando a partir da desconstrução da postura e improvisando o texto em cima
da postura.
Os resultados obtidos ao aplicar o Yôga e o Tai Chi Chuan na construção da cena
no primeiro módulo, motivou a vontade de continuar com a pesquisa com o referido
método.
Após ter escolhido a lenda do Rei Arthur e os Cavaleiros da Távora Redonda,
tornando contemporânea a figura do rei bretão, iniciei as improvisações partindo do
texto que acabara de escrever. Trabalharia três personagens: o Narrador, o Rei do
Aço, e o Filho Bastardo. O personagem do Narrador caracterizava a figura do Anjo
da Morte.
26
Texto utilizado na cena. Fotos anexas.
81
Partindo do texto do Narrador, no início da cena, escolhi uma postura de Yôga, uma
das variações de Uthitta e improvisei com o texto, com a fala do Narrador.
NARRADOR – Arrependei-vos porque está próximo o fim.
Arrependei-vos porque o pecado mora em vosso coração
Deus em sua infinita misericórdia
Sete dias nos concedeu
E estes já se mostram sem cores
Quem deseja viver para sempre
Quem deseja a salvação
Que dê o testemunho na forma de coragem
E três cruzes no peito, o homem terá que desenhar
E nunca
Jamais
Deve esquecer de rezar
Eu sou o Anjo de categoria
Eu sou o Anjo de feições escuras
Eu sou o quarto cavaleiro do Apocalipse
E tenho nas mãos o dom da cura
27
Nesta postura, os pés permanecem unidos com as duas pernas bem flexionadas,
quase de cócoras. Os braços podem estar agarrados aos joelhos, estendidos ou
flexionados com as mãos unidas. Pescoço reto, olhando para frente.
Montei a postura e comecei a falar o texto. Repetindo diversas vezes a mesma
postura e o mesmo texto. À medida em que repetia, sentia a vontade de olhar para
baixo. Tentei resistir a esse desejo, mas acabei cedendo, e o olhar foi direcionado
para o chão. Quanto mais repetia, sentia que precisava soltar os braços, afinal
estava fazendo o Anjo da Morte e este parecia ter um par de asas bem grande.
Libertei os braços, mas não soltei o quanto devia.
27
Texto utilizado no espetáculo. Fotos anexas.
82
Após uma visita do lado de fora do cemitério da Consolação, em São Paulo, as
figuras de alguns anjos agradaram aos meus olhos, possibilitando maior liberdade
na improvisação.
Munida da postura do Yôga já desconstruída, junto com o texto, e com algumas
imagens quebradas de anjo, dei início novamente à improvisação, e na repetição da
postura-textual o personagem do Anjo da Morte foi erguendo, abrindo, à medida em
que esticava o corpo, um enorme par de asas, que eram os braços que desde o
começo queriam se soltar.
Técnica Oriental – Yôga
Postura – Uthitta (variação)
Material utilizado na improvisação – desconstrução do ásana com o texto definido,
Mudrãs e imagens de anjo de cemitério.
Imagens sugeridas – O Anjo da Morte está sentado sobre uma pedra espacial e está
olhando para os habitantes da Terra.
À medida em que aplicava as técnicas orientais nas improvisações das micro-cenas
percebia que as duas poderiam ser misturadas nos exercícios da improvisação; a
configuração cênica exemplificava a qualidade cênica proporcionada pela maneira
como o Yôga e o Tai Chi Chuan interagiam na feitura da cena.
A transformação provocada na voz por meio das posturas ou da desconstrução
delas, mostrou ser eficaz na composição das duas cenas trabalhadas nos Exercícios
Específicos Para o Treinamento do Ator, mas foi evidenciada no trabalho
desenvolvido na cena do segundo módulo.
83
III – ESTÍMULO – SHAKESPEARE E HAMLET
“A História é um modo de ver as coisas, mas não me interessa muito. Estou
interessado no presente. Shakespeare não pertence ao passado. Se sua obra é
válida, é válida agora.”
28
“Para mim, o conjunto da obra de Shakespeare é como um conjunto sistemático de
códigos que, a cada cifra, despertam em nós vibrações e impulsos que tentamos
imediatamente tornar coerentes. Se adotarmos este modo de encarar a dramaturgia
shakespeariana, veremos que a consciência contemporânea é nossa melhor arma.
Esta consciência na qual imergimos possui naturalmente suas próprias florestas
negras, seus próprios subterrâneos, sua própria estratosfera. Os estranhos desvãos
da obra de Shakespeare, que à primeira vista parecem arcaicos ou remotos, podem,
se deixarmos, revelar nossas próprias zonas secretas. É esta abordagem que pode
ajudar a descobrir um sentido por trás das brutalidades aparentemente
absurdas...”
29
Pensando na dramaturgia shakespeariana, não sendo nenhuma especialista, e não
tendo a pretensão de ser, a obra de Shakespeare parece ser uma potência
adormecida dentro de nós, a qual um estímulo desperta, configurando a ação.
A escolha de “Hamlet” está ligada, em primeiro lugar, à confiança na dramaturgia
shakespeariana, por se um texto que proporciona um excelente exercício de
interpretação, com personagens complexos e múltiplas interpretações. Em segundo
lugar, porque o mesmo foi o estímulo para o grupo de pesquisa, mencionado na
Introdução, que faço parte no Departamento de Artes Cênicas da Universidade de
São Paulo.
Reconhecendo a inviabilidade de encenar “Hamlet” na íntegra, e não pretendendo
realizar tal feito, embora alguns diretores, como por exemplo, José Celso Martinez
Correa, o tenham realizado com sucesso; aceitei o texto como um desafio de
28
Ponto de Mudança”. Peter Brook. p.134. Editora Civilização Brasileira, 1995.
29
Ibidem, p. 135.
84
encontrar e contar um “outro” “Hamlet”, um “Hamlet” que existe dentro de cada um
de nós um “Hamlet Contemporâneo”.
Hamlet não pode ser encenado integralmente, pois a representação duraria cerca
de seis horas. É preciso escolher, resumir, cortar. Podemos representar apenas um
dos Hamlets latentes nesse superdrama. Será sempre um Hamlet mais pobre que o
de Shakespeare, mas pode ser igualmente um Hamlet enriquecido de todo nosso
tempo. Pode ser assim, mais prefiro dizer: dever ser assim.”
30
Ao reler o texto “Hamlet”, de Shakespeare, percebi que os personagens nos
informam do estado de “vigia” existente na Dinamarca, nas seguintes frases: “
algo de podre no reino da Dinamarca.”,“A Dinamarca é uma prisão”, “ nós dois
poderemos ouvir atentamente essa conversa escondidos atrás de uma tapeçaria.”,
bom será que algum outro ouvinte, além de sua mãe (já que a natural ternura as faz
parciais), escute em condições vantajosas a conversação.
31
, todos, sem exceção,
são vigiados constantemente no reino.
Interesso-me por este estado de vigiar, de prestar atenção no outro, de olhar o outro,
pretendo trabalhar com esse estado de vigia, mas de um vigiar ativo, um vigiar que
se apresenta para punir. Um vigiar vivido no nosso mundo. E esse estado está
presente em todas as cenas desse texto shakespeariano.
No castelo de Elsenor, um vigia o outro, tem sempre alguém observando o outro,
atrás de uma cortina, de uma parede, de um jardim, de uma janela, de uma porta;
ninguém confia em ninguém. E esse estado de “vigiar”, de observar o outro é algo
que nós “Homens Contemporâneos” temos em comum com o texto de Shakespeare.
O importante é chegar, por intermédio do texto de Shakespeare, à nossa
experiência contemporânea, à nossa angústia e a nossa sensibilidade.
Hamlet comporta muitos temas: a política, a violência e a moral, a discussão sobre a
divergência entre a teoria e prática, sobre fins últimos e o sentido da vida; é uma
30
“Shakespeare Nosso Contemporâneo”. Jan Kott.p.70. Editora Cosac&Naify, 2003.
31
Hamlet”.William Shakespeare.Tradução de Millôr Fernandes. Editora L&PM POCKET, 2002.
85
tragédia de amor, bem como um drama familiar, nacional, filosófico, escatológico e
metafísico. Tudo o que quisermos! E, além do mais, inclui uma profunda análise
psicológica, uma intriga sangrenta, um duelo, uma grande carnificina. Pode-se
escolher. Mas é preciso saber o que escolher, e por quê.
32
O objetivo é trabalhar a história do príncipe dinamarquês utilizando as duas técnicas
do Oriente. Demonstrar como o Yôga e o Tai Chi Chuan podem ser aplicados na
configuração dessa história, na qual a palavra mais ouvida em cena é o verbo
“vigiar”, para poder punir como uma forma de vingar. Parece que no texto
shakespeariano, a palavra “vigiar” é seguida pela palavra “punir”. Os mesmos que
vigiam parecem ser aqueles que serão punidos.
Recorri ao livro de Michel Focault, “Vigiar e Punir” cujo tema é a criminalidade e a
delinqüência em confronto com a punição e a repressão. O livro apresenta um
estudo científico sobre a legislação penal e os métodos adotados pelos poderes
públicos para punir os que praticam alguma modalidade de crime, desde os séculos
passados até os tempos modernos. Mostra que cada época criou suas próprias leis
penais, utilizando os mais variados métodos de punição. Poderíamos dizer, então,
que Hamlet ao punir o tio estaria cometendo uma vingança pessoal?
A elaboração do roteiro foi estabelecida após ter sido concluída a adaptação do
texto, utilizado no exercício de aplicação das duas técnicas orientais.
Escolhi os acontecimentos que iriam contar a história do ponto de vista do
personagem Hamlet.
Estabeleci o seguinte roteiro:
I – O Canto do Galo
II – O Gemido
32
Ibidem, p.70 e 71.
86
III – O Guarda
IV – Hamlet na árvore
V – A revelação de Horácio
VI – O Narrador
VII – Hamlet caminha
VIII – O Fantasma
IX – O Juramento
X – O choro de Ofélia
XI – A descoberta de Polônio
XII – O Narrador
XIII – Chegada dos amigos
XIV – Encontro de confissão
XV – Why so serious?
XVI – Carinhoso
XVII – Narrador
XVIII – Os artistas
XIX – Gertrudes
87
XX – Narrador
XXI – A morte de Ofélia
XXII – Coveiro
XXIII – Narrador
XXIV – Amistoso duelo
XXV – O fim é silêncio
RESUMO DE HAMLET
Hamlet recebe a notícia da morte de seu pai. Volta para Dinamarca. No funeral do
pai é informado do casamento de sua mãe com o seu tio, Cláudio. Horácio conta que
o antigo rei anda rondando o castelo. Hamlet conversa com o fantasma do pai. Este
revela que foi assassinado pelo irmão. Hamlet pede que ninguém comente o
acontecido. E segreda a Horácio que fingirá estar louco. Aparecendo sob aparência
fantasmagórica para Ofélia, que assustada conta para seu pai, Polônio. Este diz ao
rei que descobriu a causa da doença de Hamlet: o príncipe enlouqueceu porque
proibiu o namoro com minha filha, Ofélia. Para certificar-se disso, armam um
encontro de Hamlet com Ofélia, onde pai e rei escutariam a conversa atrás da
cortina. No encontro o príncipe é extremamente ofensivo e bruto. Mas o encontro
não convence o rei, que acha melhor enviar o sobrinho para a Inglaterra, com dois
amigos de infância. Estes foram chamados ao reino pelos reis para descobrirem a
causa do estranhamento repentino do velho amigo. Hamlet desconfia da presença
dos dois, percebe que estão ali a serviço do rei. Não se pode confiar em ninguém na
Dinamarca. Hamlet contrata uma companhia de teatro para encenar a peça “A
Ratoeira”, onde coloca em cena a verdadeira causa da morte do seu pai;
certificando-se de que a revelação do fantasma é verdadeira. Aguarda e observa a
reação do tio. Este reage positivamente à cena representada pelos atores. Cláudio
88
sai correndo. Quando Hamlet ia matar o assassino do pai, este está rezando, se o
matasse neste momento de confissão, ele iria para o céu. Polônio avisa Hamlet que
a rainha, sua mãe, o espera no quarto. Polônio se esconde atrás da cortina para
ouvir a conversa. Hamlet entra no quarto e discute com a sua mãe. Escuta um ruído
atrás da cortina. Pega a espada e mata o ministro. Some com o corpo. A corte fica
num alvoroço. Hamlet parte para a Inglaterra acompanhado pelos amigos de
infância, que levam uma carta de Cláudio para o rei da Inglaterra. Laertes, filho de
Polônio, retorna ao reino querendo vingar a morte do pai. Encontra Ofélia num
estado lastimável. Cláudio fala que o culpado de tudo isso é Hamlet, mas esse terá o
fim que merece na Inglaterra. Ofélia morre afogada. Hamlet volta no dia do enterro.
Discute com Laertes. Os dois duelam. Na ponta da espada e na taça de vinho há
veneno, idéia de Cláudio. A rainha toma da taça envenenada e morre. Laertes é
ferido, e fere Hamlet, mas antes de morrer revela que a idéia foi do rei. Hamlet mata
o rei.
A intenção era contar, utilizando o Yôga e o Tai Chi Chuan, a trajetória de Hamlet
numa montagem que resultou num espetáculo de sessenta minutos, comprovando,
dessa maneira, a organicidade das duas Técnicas do Oriente na composição do
trabalho do ator. A tragédia do príncipe dinamarquês acabou sendo contada de
maneira sintética e objetiva.
Para realizar a adaptação procurei entre as traduções escolhidas aquelas que
despertavam em mim algum tipo de interesse como: o nome da obra, o autor, a
tradução, o material que foi utilizado para confeccionar a capa, a ilustração da capa.
Entre eles estão: “William Shakespeare, Obras Completas Volume I da editora Nova
Aguilar, nova versão anotada de Almeida Cunha Medeiro e Oscar Mendes; “Hamlet
Poema Ilimitado”, de Harold Bloom; “Hamlet”, de Shakespeare, tradução de Anna
Amélia de Queiroz de Mendonça; “Hamlet”, tradução de Péricles Eugenio da Silva
Ramos; “Hamlet a difícil arte de decidir”, de Mário Amora; “Hamlet” de W.
Shakespeare, tradução de Millôr Fernandes; e o HQ Classics Illustrated, William
Shakespeare, “Hamlet”, adaptação Steven Grant e Tom Mandrake.
89
No período utilizado durante o processo para realizar a adaptação do texto, lembrei
do curso ministrado pela Prof. Dra. Maria Lúcia Pupo, da Pós-Graduação no
Departamento de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo; onde tivemos a
oportunidade de trabalhar o texto literário no teatro, por meio de um interessante
“jogo de palavras”.
Nossas propostas com narradores que intervêm no jogo, por exemplo, traduzem um
desejo de conhecimento dos significados que a articulação entre o relato e a ação
presente pode engendrar.
33
Pensando nas aulas e nas criações que surgiram desses encontros entre o “jogo
teatral com o texto dramático”, fui estimulada a fazer a adaptação do texto
shakespeariano evocando a figura do Narrador para contar no espaço teatral a
história do príncipe dinamarquês.
“O contador é visto como produtor de uma narrativa oral teatralizada; ele cria entre si
mesmo e os múltiplos personagens que traz à tona, uma relação de exterioridade,
senão de estranheza. Seu papel é o de trazer ao público a palavra de um outro. O
fato de ser uma testemunha que não se identifica com os personagens mostrados,
no entanto, não o condena irremediavelmente a um estilo ‘neutro’ ou ‘objetivo’; ele
manifesta suas simpatias, faz comparações, tece conjecturas.
34
A intenção era realizar uma “adaptação tradicional”, não iria trabalhar, como no
curso Intersecção entre Jogo e Texto Aprendizagem e Perspectivas
Contemporâneas, o “recorte e a colagem, o jogo a partir de fragmentos diversos “
35
,
mas com um único texto, no caso, Hamlet de William Shakespeare. Embora possa
ser verificado na criação dramatológica do espetáculo final, frases ou letras de
música inteira, frases de filmes, que surgiram durante os exercícios de improvisação
e foram incorporadas à construção da cena. Esse acréscimo a dramaturgia não foi,
como no curso da professora, uma escolha anterior, mas surgiu nas sessões de
improvisação com as posturas das técnicas orientais mais o texto shakespeariano.
33
“Entre o Mediterrâneo e o Atlântico”. Maria Lúcia Pupo. p.29. Editora Perspectiva, 2005.
34
Ibidem, p.29.
35
“Encenação em Jogo”. Marcos Bulhões. p.109. Editora Hucitec, 2004.
90
Realizei uma “adaptação tradicional”, mas essa se mostrou ineficaz no decorrer do
processo criativo
36
, e ao dar inicio aos exercícios de improvisação foi transformada
numa “adaptação livre”, onde as “palavras do autor inglês acabaram por se misturar
as minhas”.
A “ADAPTAÇÃO LIVRE” DE HAMLET
HAMLET – Recebi notícias da morte do meu pai, o rei da Dinamarca, numa quarta-
feira de cinzas. Voltei ao castelo de Elsenor para os rituais de sepultamento. Jardim
abandonado, reduto de ervas daninhas. Morto não faz nem dois meses e minha mãe
resolveu casar como meu tio. É preciso lembrar irmão de meu pai.
HAMLET – Horácio! O que é que você faz tão distante de Witemberg?
HORÁCIO – Senhor contenha o seu espanto e ouça o que eu tenho para lhe contar.
Há duas noites seguidas, na hora sepulcral da meia-noite, Marcelo e Bernardo
estavam de vigia na esplanada sul, quando viram figura semelhante a seu pai,
armado como era. Passou três vezes tão perto que quase chegou a tocá-los. Eles
me contaram em absoluto segredo. Juntei-me a eles na terceira noite. A aparição
surgiu na hora e na forma como eles haviam narrado. Reconheci a figura de seu pai.
Tentei me comunicar com ele, mas a sombra se encolheu toda e subitamente
desapareceu. Achamos que deveríamos informá-lo.
HAMLET – Estranho... Muito estranho... O espírito de meu pai? Armado?
Manteremos isso em absoluto segredo. Hoje, antes da meia-noite estarei com vocês
na vigia noturna.
NARRADOR – O reino em extrema vigia passou a observar que o príncipe passava
boa parte do tempo ao lado de Ofélia, e que essa o recebia de forma generosa. Com
a partida de seu irmão Laertes para a França, seu pai Polônio decretou:
36
Tratarei esse problema no capítulo V, onde irei descrever como os estímulos foram transformados
em cena.
91
POLÔNIO – De hoje em diante você está proibida de conversar com o príncipe.
Entendeu? Isso é uma ordem!
NARRADOR – E Ofélia obedeceu.
HAMLET – Silenciosamente deixei o salão. Noitada de orgia promovida pelo atual rei
da Dinamarca para agradar aqueles que antes não o suportavam. Cambada de
bêbados. O passo me afastava do deboche brutal. Uma gota de sangue. Uma
simples suspeita transforma o leite bondoso no lodo da infâmia. Era quase meia
noite quando cheguei à plataforma. Horácio e Marcelo haviam rendido Bernardo na
vigia noturna. Juntei-me a eles. Ouvimos o som da ave noturna. Olhamos na mesma
direção.
FANTASMA – Eu sou o espírito de seu pai condenado a vagar nas trevas até que
todos os crimes cometidos por mim em vida sejam perdoados. Mas ouça, se um dia
você amou realmente seu pai vinga esse assassinato infame que mancha o leito da
Dinamarca!
FANTASMA – Ouça eu não tenho muito tempo disseram por aí que eu fui mordido
por uma serpente enquanto dormia no meu jardim. A serpente cuja mordida tirou a
vida de teu pai hoje usa a nossa coroa! Seu tio! Aproveitou meu estado sonolento e
derramou suco de ébano na minha orelha. E foi assim que perdi a coroa, a rainha e
a vida.
HAMLET – Jurem! Jurem! Que jamais falarão o que se passou aqui essa noite. Nos
dias de hoje o meu comportamento será estranho e singular. E todos vocês se
mostraram perplexos com o meu modo de agir.
OFÉLIA – Eu estava costurando no meu quarto, quando o príncipe Hamlet me surgiu
com o gibão todo aberto. Com o olhar espantado de quem fugiu do inferno para
contar o que viu por lá. Me pegou pelo pulso e apertou com força. Olhando o meu
rosto com intensidade como se quisesse gravá-lo. Aí soltou um gemido tão doloroso
e profundo que eu pensei que fosse estourar seu corpo. Então ele me soltou! Com a
92
cabeça voltada para trás, e andando pra frente, como um cego atravessou a porta
sem enxergar, até o fim com os olhos fixos em mim.
NARRADOR – Polônio numa velocidade estonteante, foi correndo contar para o rei a
sua grande descoberta.
POLÔNIO – O príncipe está louco, porque Ofélia recusou o seu amor. Ofélia recusou
o seu amor, por isso o príncipe ficou louco. Percebam! Há lógica nessa loucura.
CLAUDIO – Se isso for verdade, que se prove.
POLÔNIO – Eu já vi! O príncipe tem por hábito caminhar por esta galeria. Numa
ocasião dessas, eu posso soltar a minha filha e nós dois escutaremos essa conversa
escondidos atrás de uma tapeçaria.
NARRADOR – Por precaução o rei chamou ao reino dois amigos de infância do
príncipe.
GUILDENSTERN – Guildenstern.
ROSENCRANTZ – Rosencrantz.
CLÁUDIO – Nada! Nenhuma palavra! E se usassem de algum subterfúgio, algo que
o fizesse confessar o motivo de tal comportamento.
GUILDENSTERN – O príncipe se recusa a revelar o motivo. Apenas diz que está
perturbado. E quando pressionado...
ROSENCRANTZ – Foge com uma loucura esperta.
HAMLET – Não venham me dizer que vocês estão aqui por livre e espontânea
vontade. Que o bondoso rei e a virtuosa rainha não pediram que viessem.
ROSENCRANTZ – Com que intuito senhor?
93
HAMLET – É isso que vocês vão me dizer. Em nome de uma amizade jamais
interrompida, vocês foram ou não foram chamados?
GUILDENSTERN – Fomos!
HAMLET – Fomos. Somos. Ser ou não ser. Why so serious? Será mais fácil levar
porrada de um destino cruel ou pegar em arma contra um mar de fúria e acabar com
tudo? Morrer? Dormir? Só isso? Agora silêncio, eis que surge a bela Ofélia.
HAMLET – Ninfa! Coloque em tuas preces todos os meus pecados.
OFÉLIA – Meu bom senhor, como tem passado?
HAMLET – Bem. Bem. Bem.
OFÉLIA – Meu senhor tenho comigo lembranças suas que gostaria de devolver.
HAMLET – Eu? Não. Eu nunca te dei nada.
OFÉLIA – Deu sim!
HAMLET – És honesta? E bela. A honestidade não deveria andar junto com a
beleza, porque num piscar de olhos a beleza atira na sarjeta. Onde está seu pai?
OFÉLIA – Em casa senhor.
HAMLET – Pois que todas as portas se fechem sobre ele, para que faça o papel de
bobo somente lá.
HAMLET – Quer saber de uma coisa: vai pra Tonga da mironga do cabuletê.
NARRADOR – Aproveitando da passagem de um grupo de artistas, o príncipe
resolveu provar as palavras do espírito.
94
CLÁUDIO – Como passa o nosso sobrinho?
HAMLET – Magnífico, eu como o ar cheio de promessas.
GERTRUDES – Vem cá Hamlet! Senta a meu lado.
HAMLET – Fala sério! Tenho aqui um imã mais atraente.
RAPPER-MR – Eu sei que vou partir
E muito em breve
Sossegado eu vou
Deixo a mulher que amo
Com irmão do peito.
RAPPER-MG – Não eu não aceito
Outro homem no meu peito
Outro homem no meu leito
Porque só pode ter o segundo
Quem mata o primeiro.
RAPPERR-MR – Que juramento solene.
Agora vá
Me deixa em paz!
RAPPER-C – Murucututu sai de cima do telhado
Deixa esse rei dormir sossegado.
RAPPER-AS – Pensamentos negros
Invadem a cabeça
Daquele cujo trono quer tomar
Tá pronto o veneno?
Pronto está.
Então derrama
Derrama o veneno
95
Ninguém tá olhando.
CLÁUDIO – Luz! Quero luz!
GERTRUDES – Hamlet, ofendeste muito o seu pai.
HAMLET – Mãe, a senhora ofendeu muito meu pai!
GERTRUDES – Como? Esqueceste quem eu sou?
HAMLET – Epa Heyi Oya!
37
Esqueci não! És a rainha, esposa do irmão do seu
marido. E antes não fosse é a minha mãe. Não vai sair daqui antes de ouvir tudo
que tenho pra dizer.
GERTRUDES – O que pretendes fazer? Vai me matar?
GERTRUDES – O que fizeste?
HAMLET – Não sei? Quem era? Era o rei?
HAMLET – Maldito idiota! Agora aceita o seu destino.
GERTRUDES – O que foi que eu te fiz, pra vibrar tua língua com esse ódio todo?
HAMLET – Este homem era o seu marido. Agora o outro. Que de tão podre que é
anda contaminando tudo por onde passa. A senhora é cega? Como pode traçar isso
por isso? Não venha me dizer que isso é amor, na sua idade. Como teve coragem,
um rei de retalhos e remendos. Não sente vergonha de ir para cama com um
covarde assassino, um usurpador do trono!
GERTRUDES – Chega Hamlet! Basta! Suas palavras como punhais ferem meus
ouvidos!
37
Saudação feita pelos fiéis a Iansã.
96
NARRADOR – Com as mãos sujas de sangue Hamlet parte para a Inglaterra com
seus dois amigos de infância. Desconfiando das intenções do rei, abre a carta e
descobre que a intenção era de matá-lo nessa viagem. Troca a carta e deixa que
seus dois amigos cumpram o destino ao qual eles se propuseram. De volta à
Dinamarca, encontra Laertes querendo vingar a morte do pai e o trágico acidente
que tirou a vida de sua irmã.
COVEIRO – Cavo, cavo, cavo. Yorik! Ainda tem cabelos, depois de tantos anos
enterrado!
HAMLET – Yorik! O que fizeram com você? Pobre Yorik. Mil vezes subi nas suas
costas. Onde estão as suas histórias? E as suas piadas? E a sua gargalhada, para
onde foi tudo isso?
HAMLET – De quem é essa cova?
COVEIRO – Minha.
HAMLET – Para que homem está cavando essa sepultura?
COVEIRO – Para homem nenhum.
HAMLET – Para que mulher?
COVEIRO – Para nenhuma.
HAMLET – Então o que é que vai enterrar aí?
COVEIRO – Alguém que já foi mulher, senhor, mas paz à sua alma, já morreu.
Aquela que encurtou a própria vida chegou.
97
NARRADOR – Ofélia foi enterrada sem nenhum ritual religioso. Inconformado com a
perda de sua amada, Hamlet enfrenta Laertes no cemitério. Para desculpar-se da
atitude violenta, o príncipe aceita lutar amistosamente com Laertes.
CLAUDIO – Um toque! Uma pérola para Hamlet.
Embora a intenção seja descrever no capítulo cinco como cheguei a essa
adaptação, gostaria de dizer que esta composição dramatúrgica aconteceu durante
as improvisações que configuraram as cenas do espetáculo, ou seja, a “livre
adaptação de Hamlet” foi “recriada” nos exercícios de improvisação onde apliquei as
posturas das duas Técnicas do Oriente.
98
IV – ENFIM, OS ESTÍMULOS
“O treino não lida com um objetivo, mas com o espírito humano e com as emoções.
O treino é um condicionamento psicológico e fisiológico de um indivíduo que se
prepara para reações neurais e musculares intensas. Envolve disciplina mental,
força e resistência física. Significa habilidade. Tudo isso trabalhando junto, em
harmonia.
Treinar não significa apenas ter conhecimento do que irá estruturar o corpo, mas
também conhecer o que irá ferir o corpo. ”
38
DO TREINO PESSOAL
No meu treino pessoal de Yôga estão incluídas as seguintes ásanas:
Tadasana
Utthita Trikonasana
Utthita Pardvakonasana
Virabhadrasana I e II
Parsvottanasana
Prasarita Padottanasana
Ustrasana
Padangushthasana
Pada Hastasana
Uttanasana
Salabhasana
Dhanurasana
Chaturanga Dandasana
Bhujangasana
Urdhva Mukha Svanasana
Adho Mukha Svanasana
38
“ O Tao Do Jeet Kune Do”. Bruce Lee. p. 41. Editora Conrad Livros, 2005.
99
Dandasana
Paripurna Navasana
Ardha Navasana
Siddhasana
Virasana
Supta Virasana
Baddha Konasana
Padmasana
Parvatanasa
Matsyasana
Baddha Padmasana
Yôga Madrasana
Mahamudra
Janu Sirshasana
Ardha Baddha Padma Paschimottasana
Trianga Mukhaikadada
Marichyasana I
Upavishtha Konasana
Paschimottanasana
Salamba Sirshasana
Urdhva Dandasana
Salamba Sarvangasana
Halasana
Karnapidasana
Supta Konasana
Parsva Halasana
Eka Pada Sarvangasana
Parsvaika Pada Sarvangasana
Setu Bhanda Sarvangasana
Urdhva Padmasana na Sarvangasana
Pindasana na Sarvangasana
Parsva Pindasana em Sarvangasana
Jathara Parivartasana
100
Supta Padangushtasana
Bharadvajasana
Marichyasana II
Ardha Matsyendrasana
Urdhva Dhanurasana
Savasana
No meu treino pessoal do Tai Chi Chuan incluí: “As treze técnicas do Tai Chi Chuan
e nesta “Os oito movimentos fundamentais de mãos das treze técnicas” são eles:
peng, aparar
lu, rebater
qi , pressionar
an, empurrar
lie, estender
cai, agarrar
zhou, golpear com o cotovelo
kao, inclinar-se
Os cinco movimentos fundamentais de pernas nas treze técnicas são:
jin, avançar
tui, recuar
ku, ir para a esquerda
pan, ir para a direita
ding, permanecer no centro
ENCADEAMENTO DOS MOVIMENTOS
Com os pés paralelos, separados um do outro por uma distância igual à largura dos
ombros, os braços caídos ao longo do corpo, as palmas dirigidas para trás, olhe
diretamente à sua frente.
101
Início – qishi
Agarrar a cauda do pássaro à direita – yuo lan quewei
Agarrar a cauda do pássaro à esquerda – zuolan quewei
Aparar – peng
Puxar para trás – lü
Pressionar para frente – ji
Repelir – na
O chicote simples – danbian
Erguer as mãos – tishou shangshi
A cegonha abre as asas – bai-e liang chi
Passo para a frente com a roçadura do joelho e torção do tronco – lou xi ao bu
Tocar a “pipa” – shou hui pipa
Golpear com o punho à direita – pen shen chui
Avançar, desviar, dar um soco – jin bu ban lan chui
Fechamento aparente – ru feng si bi
Levar o tigre para a montanha – bao hu gui shan
O punho sob o cotovelo – zhoudi chui
Recuar e repelir o macaco – dão nian hou
O vôo oblíquo – xie fei shi
A agulha no fundo do mar – haidi zhen
Leque – shan tong bei
Voltar-se e dar um soco – zhun Chen pie shen chui
Mover as mãos como nuvens – yun shou
Acariciar o cavalo – gao tan ma
Afastar o pé direito – you fen jiao
Afastar o pé esquerdo – zou fen jiao
Virar-se e dar um golpe de calcanhar – zhuan sheng jiao
Avançar um passo e desferir um soco de cima para baixo – jin bu cai chui
Voltar-se e dar um soco – zhuan shen pie shen chui
Dar um pontapé para cima com o pé direito – yuo ti jiao
Golpear o tigre à esquerda – zuo da hu
Golpear o tigre à direita – yuo da hu
Golpear as orelhas do adversário com os punhos – shuangfeng guan er
102
Separar a crina do cavalo à direita – yema fen zong
A donzela de jade tece e empurra a naveta – yunü chuan suo
A serpente que rasteja – sheshen xia shi
O faisão dourado apóia-se numa pata – jinji Du li
A serpente branca dardeja a língua – baishe tu xin
Mãos cruzadas – shizi shou
Voltar-se e cruzar as pernas – zhuan shen shizi tui
Roçar o joelho e dar um soco na região púbica do adversário – Lou xi zhi dang chui
Dar um passo à frente e formar o sete-estrelo – iri shangbu qising
Recuar e cavalgar o tigre – iei tui bu kua hu
Voltar-se e varrer o lótus – zhuan shen bai lian
Atirar no tigre com um arco – wan gong she hu
SOM, VOZ, CORPO
39
Sabemos que o som é onda, produzido por movimentos vibratórios, e que essa
vibração se transmite para a atmosfera sob a forma de uma propagação ondulatória.
Nosso ouvido é capaz de captá-la e nosso cérebro capaz de interpretá-la, dando-
lhes configurações e sentidos.
A emissão da voz é um fenômeno que comporta grandes variações, além de
consideráveis diferenças de uma pessoa para outra. A voz se apresenta em um
indivíduo sob múltiplos aspectos.
De acordo com François Le Huche e André Allali, fonoaudiólogos autores do livro “A
Voz”: “Uma maneira de tornar mais clara essa multitude de formas pode ser a de
classificar as manifestações vocais de acordo com quatro pontos de vista centrados,
respectivamente, no instrumento vocal, na expressividade da voz, nas circunstâncias
de sua utilização e por fim na intencionalidade do sujeito e no tipo de ação
empreendida vocalmente por ele, com o grau de consciência.”
40
39
Aqui a palavra corpo tem como definição a estrutura física do homem.
40
A Voz. p.17.Françoisnle Huche e André Allali. Editora ArtMed, 1999.
103
No instrumento vocal distinguimos emissões vocais como: voz falada, voz cantada,
voz gritada, voz alta, voz baixa, voz de registro agudo, voz de registro grave, voz
feminina, voz masculina, voz infantil, voz de soprano, voz de tenor, voz de contralto,
voz de barítono, voz forte, voz fraca, voz inspiratória, voz clara, voz velada, voz
surda, voz bem-timbrada, voz rouca, etc.
O aspecto expressivo da voz permite distinguir outro grupo de “espécies vocais”,
referindo-se aos diversos estados emocionais passíveis de conferir à voz uma
tonalidade afetiva específica. Por exemplo: voz suplicante, voz humilde, voz tímida,
voz entrecortada, voz trêmula, voz decidida, voz firme, voz agressiva, voz seca, voz
insinuante, voz sarcástica, voz melosa, voz enfática, voz falsa, voz convencional, voz
apressada, voz quente, voz atraente, voz comovente, voz sedutora, voz sexy, etc.
As circunstâncias de utilização da voz revelam o papel desempenhado pelo sujeito
que emite essas realizações vocais, por exemplo: voz de discurso público, vozes de
conversação, vozes de conversa espontânea, voz de recitação, voz salmodiada, voz
de leitura em voz alta, vozes ao ar livre, vozes ao microfone, vozes na rua, vozes em
um salão, voz de professor, voz de orador, voz de camelo, voz de ator, voz de
cantor, etc.
A voz projetada ou direcionada corresponde a um comportamento por meio do qual
o sujeito procura agir sobre o outro. Seu interlocutor ou seu público encontra-se
evidentemente no primeiro plano de suas preocupações, a intenção de ser ouvido,
em todos os sentidos do termo, é clara. Desse modo voz é um instrumento de ação
sobre o outro nos seguintes atos: chamar alguém, dar uma ordem, afirmar, informar,
interrogar ou realizar uma produção vocal em público.
O comportamento de projeção vocal que normalmente é posto em prática resulta da
conjunção de quatro elementos:
- o primeiro elemento é o mental que é constituído pela intenção de atuar
eficazmente sobre o outro por meio da voz.
- o segundo elemento é o olhar que se orienta para o local, próximo ou distante, da
ação vocal empreendida.
104
- o terceiro elemento é o soerguimento do corpo, o qual, mesmo quando nos
encontramos na posição sentada, se verticaliza em grau variável.
- o quarto elemento é a ação da respiração.
A voz não-projetada ou voz de ação simples é aquela na qual o interlocutor não
ocupa o primeiro plano das preocupações daquele que fala
41
. A maneira pela qual o
locutor se comporta, os interlocutores compreendem sem hesitação pois não são
obrigados a ficar atentos. É o que geralmente acontece nos seguintes exemplos:
relatar algo que acaba de acontecer, evocar uma recordação, relatar impressões,
falar do tempo, falar sozinho ou exprimir descontentamento.
A voz de alerta ou de insistência corresponde a um comportamento que ocorre
quando o locutor tem o sentimento de que a ação vocal que está empreendendo tem
caráter de urgência, ou quando sente que vai atingir o objetivo buscado, ou ainda
quando vai corrigir algo em que fracassou. A mecânica da voz de alerta ou de
insistência não se produz somente em situações desagradáveis ou dramáticas, mas
em todos os tipos de situações em que os sentimentos das pessoas parecem
transbordar.
TREINO DA VOZ
A intenção do treino era a de juntar a voz aos ásanas do Yôga e aos movimentos do
Tai Chi Chuan.
Iniciei os trabalhos unindo os Mantras bíja com os Chakras:
Lam – é o som seminal do Chakra Muladhara (básico ou raiz), localizado na base da
coluna. Ele é regido pelo elemento terra e tem a qualidade do olfato. As glândulas
41
Não no caso específico do ator que tem a preocupação de chamar para si a atenção daquele que
ouve, e que poderia fazer uso expressivo da “voz não-projetada” na composição da personagem.
105
associadas são as supra-renais e a coccígea
42
. Nota musical . A sua cor de
vibração é o vermelho e a sua vogal é o U.
Vam – é o som seminal do Chakra Swadhisthasana (sacro, ou esplênico
43
, ou hara),
localizado no centro genital. Seu elemento é a água e sua qualidade o paladar. As
glândulas associadas são as gônadas
44
. Nota musical . A sua cor de vibração é a
laranja e a sua vogal é O.
Ram – é o som seminal do Chakra Manipura, localizado no plexo solar. É regido pelo
elemento fogo e a sua qualidade é a forma. A glândula associada é o pâncreas.
Nota musical Mi. A sua cor de vibração é a amarela e a sua vogal é O.
Yam – é o som do Chakra Anahat (cardíaco), situado no centro do coração. O seu
elemento é o ar e sua qualidade predominante é o tato. A glândula associada é o
timo
45
. Nota musical . As suas cores de vibração predominantes são o verde e o
rosa e a sua vogal é A.
Hum – é o som seminal do Chakra Vishuddha (laríngeo), situado na região da
garganta. Seu elemento é o éter e sua qualidade o som. As glândulas associadas
são a tireóide e a paratireóide. Nota musical Sol. A sua cor de vibração
predominante é o azul-claro e a sua vogal é E.
Om – é o som seminal do Chakra Ajna (frontal), localizado no centro da terceira
visão. As energias masculina e feminina encontram-se no centro da terceira visão,
portanto, este som seminal contém o princípio da unidade. A glândula associada é a
hipófise (pituitárias
46
). Nota musical . A sua cor de vibração predominante é a
índigo e a sua vogal é I.
42
Essa glândula foi descrita pela primeira vez pelo anatomista Luschkas (1820 – 1875), porém sua
função não está ainda bem documentada. No âmbito etérico, relaciona-se com a pineal, pois está
ligada intrinsecamente ao chakra coronário.
43
Referente ao baço.
44
Designação genérica das glândulas sexuais.
45
Pequena glândula situada no tórax, em frente à traquéia, cuja função é produzir linfócitos, de
grande importância para o sistema imunológico do organismo. A partir da puberdade, o timo involui e
desenvolve importante papel na transmissão neuromuscular.
46
Glândula endócrina, de secreção interna, situada sob a face inferior do cérebro.
106
Om – é o som seminal, também do Chakra Coronário. A glândula associada é a
pineal (epífise
47
). Nota musical Si. Suas cores de vibração predominante são a
violeta e a branca e a sua vogal é I.
A princípio comecei a aplicar os sons seminais aos ásanas e aos movimentos
básicos. A experimentação se mostrou positiva. Como o resultado foi favorável,
comecei a trabalhar com algumas palavras do texto aplicadas às posturas, como
será descrito no próximo capítulo. Aglutinei à improvisação: sons-ásanas-
movimentos básicos; palavras-ásanas-movimentos básicos.
Percebi que as composições desses cruzamentos possibilitavam a abertura de
canais internos, trazendo para o exterior resultados vocais interessantes, os quais
foram explorados e incorporados na configuração do personagem que estava sendo
composto para determinada cena.
“O som é um objeto subjetivo, que está dentro e fora, não pode ser tocado
diretamente, mas nos toca com tamanha precisão. As suas propriedades ditas
dinamogênicas tornam-se, assim, demoníacas (o seu poder, invasivo e às vezes
incontrolável, é envolvente, apaixonante e aterrorizante).
48
O som parece ser a ligação comunicante entre o mundo material com o mundo
espiritual e invisível. O poder da voz e da relevância da respiração parece ser
atribuído à proferição da sílaba sagrada, o poder de ressoar a gênese do mundo.
Ao trabalhar a palavra articulada junto com a postura tinha a impressão que
encarnava o verbo”, a ligação ia se ajustando, se tornava mais clara, precisa,
durante as improvisações, onde a proposta era trabalhar: os ásanas com os
movimentos básicos e com as palavras articuladas do texto com o qual estava
trabalhando, no caso “Hamlet”, de Shakespeare.
Pensava constantemente nas descobertas do diretor polonês, Jerzy Grotowski,
quando se referia ao processo do conhecimento vocal.
47
A glândula pineal é definida como um corpúsculo oval ao qual se atribuem funções endócrinas.
48
O som e o sentido”. José Miguel Wisnik. p. 28. Editora Companhia das Letras, 2002.
107
Atualmente sei muito mais o que não deveria fazer com a voz, do que sobre o que
deveriam fazer. Mas essa ciência: o que não deveria fazer é, a meu ver, muito mais
importante; quer dizer que não devem fazer exercícios vocais, mas devem usar a
voz em exercícios que envolvam todo o ser e nos quais a voz irá se liberar sozinha.
Talvez devam trabalhar falando, cantando, mas não devem trabalhar a voz, devem
trabalhar com todo o seu ser; com todo o corpo.
49
Procurava não pensar, e não fazer determinado exercício vocal junto às posturas
das duas Técnicas do Oriente, experimentava na conjunção o som que nascia da
união das duas posturas.
Não pensem nos vibradores quando iniciarem um processo de criação. Quando
estamos criando, há todos os outros problemas: da confissão, do nosso ‘corpo-
memória’, mas não esse problema técnico. Se vocês estão procurando diferentes
efeitos formais, podem, em plena consciência, utilizar vários vibradores. Mas
somente para criar um efeito estudado que seja a exceção no fluxo da nossa criação
da atuação orgânica. Estou seguro que é preferível todos esses problemas no
trabalho criativo.
50
Abria o meu ser ao acontecimento criativo proporcionado pelos estímulos fornecidos
pelas bases, no caso o Yôga e o Tai Chi Chuan, com as quais estava trabalhando.
Percebi que esse “abrir-se” para a criação, possibilitava o surgimento, às vezes, de
outros estímulos, e não só os princípios fornecidos pelas duas técnicas orientais,
descobrindo e trazendo a experimentação o que Grotowski apontava com “um fluxo
de impulsos vivos”.
49
O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969”. Jerzy Grotowski e Ludwik Flaszen, com um
escrito de Eugenio Barba. p,158. Editora Perspectiva, Edições SESCSP e Fondazione Pontedera
Teatro, 2007.
50
Ibidem, p.161.
108
QUAIS FORAM OS ESTÍMULOS
No quadro abaixo foram escritos os respectivos estímulos utilizados na improvisação
e que acabaram sendo configurados nas cenas do espetáculo.
Antes de passar para o quadro, gostaria de esclarecer que alguns estímulos
nomeados por “memória visual” surgiram internamente durante as improvisações,
quero dizer que alguns estímulos surgiram durante as improvisações, como o caso
do “elmo do rei-fantasma”; não procurei uma iconografia no mundo exterior porque
queria trabalhar esse “capacete”, mas ele surgiu naquilo que estou chamando aqui
como “memória visual”, durante a improvisação com o Mudrã.
Para o neurologista António Damásio: “as imagens são construídas quando mobiliza
os objetos (pessoas, coisas, lugares, etc.), de fora do cérebro para dentro e também
quando reconstruímos objetos a partir da memória e da imaginação, ou seja, de
dentro pra fora.
51
Posso dizer que o que chamei de “memória visual” é, de acordo com o neurologista,
a reconstrução de objetos a partir da memória e da imaginação”, ou seja, a
reconstrução de “dentro pra fora” que surgiu nos exercícios de improvisação.
51
O Corpo, Pistas Para Estudos Indisciplinares.Christine Greiner. p.72. Editora AnnaBlume, 2005.
109
ESTÍMULO
SENTIDO YÔGA TAI CHI
CHUAN
IDÉIA
Música
Parabolicamará
Gilberto Gil
Audição
Utthita
Galo
Memória Visual Visão
Mudrãs:
Shikhara
A Ponte
Galo Dourado Elmo do
Fantasma do
Rei
Sonorização
junto com o
ásana
Audição
VirabhadrásanaII
Lamento do
Fantasma do
rei
Batidas de
coração
Audição
Mudrãs:
Montar o
cavalo
Guarda no
terraço, vigia
As palavras do
príncipe
Audição
Tadásana ,
Trikonásana,
Vrksásana
Hamlet na
árvore
Abraço Tato
Trikonásana ,
Navásana
Horácio
comunica
Queda Tato
Adumuka
Mudrãs:
Samputa
(O cofre)
Ardhachandra
(meia lua)
Pataka
(estandarte)
Vaso cheio Hamlet pede
segredo
Mantra Gayatri Audição
Trikonásana
Vigia noturna
Mantra OM Audição
VirabhadrásanaII
Farol da barra
Movimentos
Básicos
Visão
VirabhadrasanaII
Passo do
arqueiro
Hamlet
caminha para
plataforma
110
Ásana
respiração
palavras do
Fantasma do
rei
Visão
Audição
Olfato
Adumuka (uma
das variações)
Aparecimento
do Fantasma
do Rei
Pim
(instrumento
musical)
Audição
Postura do
Guerreiro
O vôo da
Grua
Ofélia bate na
porta
Respiração
Ásanas
Movimentos
básicos
Olfato
Visão
Chaturanga
Dandásana
Wu Chi
Vaso cheio
Aparar
Desviar
A grande
descoberta
de Polônio
Voz do Jack
Nicholson
Audição
Chaturanga
Dandásana
Bhujangásana
Mudrã
Cabeça de
serpente
Rei Claudio
Respiração
Alteração da
voz
Papagaio
Olfato
Audição
Tadásana
A serpente
que rasteja
Os amigos de
infância
Rodar pião
Lutas marciais
Tato Visão
Vasisthásana
A serpente
branca
dardeja a
língua
Hamlet
encontra com
os amigos de
infância
Coringa
Gargalhada
Voz e postura
do ator Heath
Ledger
Visão
Audição
Tadásana
VirabhadrásanaI
Galo dourado
Recuar e
cavalgar o
tigre Voltar a
varrer o lótus
Ser ou Não
ser
111
Música
Carinhoso
Vozes Orlando
Silva
Elis Regina
Audição
Virabhadrásana I
Uttanasána
Pie shen Chuí
(golpear com
o punho)
Shou hui pipa
(tocar a
“pipa”)
Hamlet
encontra com
Ofélia
Rap Audição
Visão
Agarrar a
cauda do
pássaro
Lü(puxar para
trás)
O chicote
simples
Os artistas se
apresentam
na corte
Gungroo
Audição
Trikonásana
Árvore
Shiva
Recuar e
cavalgar o
tigre atirar no
tigre com o
arco
Gertrudes
Esses foram os estímulos utilizados nas improvisações e que foram configurados
nas cenas a serem descritas no próximo capítulo.
112
V – DESCRIÇÃO DOS PROCESSOS IMPROVISACIONAIS
Neste capítulo, pretendo descrever os processos improvisacionais, explicando como
escolhi cada postura e quais aparatos conduziram a essas escolhas. Descreverei
também como cada postura oriental foi escolhida para expressar determinado
momento e como cada postura trabalhou o conteúdo dramático destes momentos.
CONSTRUINDO A CENA
Antes de descrever como aconteceu a configuração das cenas, gostaria de
mencionar que, não era minha intenção trazer a figura do Galo para este processo,
porque esse personagem pertencia a outro processo, que não havia chegado ao fim,
mas que havia dado como encerrado, pelo menos naquele momento de minha vida.
Porém, ao iniciar as improvisações com o texto de Shakespeare, a imagem do Galo
veio tão forte, que não pude evitá-lo. Trouxe a ave cujo canto abre as portas para os
espíritos desencarnados realizarem suas visitas no mundo dos encarnados.
O GALO CANTA
Depois de muita resistência, resolvi aceitar que a primeira cena do espetáculo
Agora Já Era...Hamlet!” seria “O Galo Canta”. Como disse anteriormente, a
resistência era porque a construção desse personagem estava relacionada ao
projeto anterior a este. Esta figura era um dos personagens de um conto com o qual
estava trabalhando em um outro processo. Embora o conto “Aquele Que Caminha
tivesse sido inspirado na primeira cena de “Hamlet”, de William Shakespeare. O
problema é que eu não queria misturar processos, e nem personagens, desejava
iniciar outro processo, não trazendo nada do anterior. Mas isso não estava
acontecendo, a presença deste personagem era muito forte, e só consegui dar
prosseguimento ao processo após ter permitido a esta figura assumir a forma em
meu corpo. Talvez a minha recusa estivesse relacionada à frustração de não ter
conseguido concluir o processo criativo anterior.
113
Como disse anteriormente, o personagem do Galo nasceu de um estímulo sonoro,
de uma música de Gilberto Gil, “Parabolicamará”, que escutei quando estava
assistindo o documentário sobre o Movimento da Tropicália, de nome “Tropicália”.
Quando ouvi o cantor, Gilberto Gil, cantar essa música, ao pronunciar
melodicamente a seguinte frase: “o mundo da volta camará, cocorocó camará.”, no
mesmo instante identifiquei no som entoado pelo cantor o cocorocó do Galo. Havia
encontrado o Galo que anuncia a chegada da meia-noite, que dá sinal verde para
que as almas penadas apareçam para expiar suas penas neste mundo.
Estimulada pela música, iniciei os exercícios de improvisações, escolhi trabalhar
com o estímulo sonoro e com o ásana, Utthita (fig.10). A opção por trabalhar com
este ásana está relacionada com a forma que esta postura assume no corpo uma
ave. Ao repetir muitas vezes este ásana durante os exercícios de improvisação o
meu Galo surgiu, após torcer o tronco, para direita e esquerda, mantendo como base
a postura original, que acabou sendo desfeita, desconstruída em uma das
repetições, dando origem e forma corporal ao meu Galo.
fig. 10
114
CONFIGURAÇÃO DO PERSONAGEM À CENA
De costas, flexionei os joelhos e os braços, torci o braço direito, posicionando no
meio das costas, com os punhos cerrados de ambas as mãos. Lentamente, comecei
a virar para a direita até ficar de frente. Com os joelhos e os braços ainda
flexionados, olhando para frente, senti a vontade de virar o pescoço para o lado
esquerdo, e olhar de maneira aguda, para o horizonte à minha frente. Em seguida,
num movimento lento, virei o pescoço para o lado direito. Após percorrer ambos os
lados, voltei o centro. Olhei para frente. Ergui o tronco, meus braços se
transformaram em um par de asas, bati os cotovelos nas laterais do tronco e com a
boca voltada para cima “cocoriquei”.
COMO O GALO SE TRANSFORMOU NO FANTASMA DO REI
Isto era claro, o Galo teria que ser transformado no Fantasma do Rei. O problema
era como realizar esta transformação.
Comecei a improvisar em cima da imagem do Galo. Acrescentei alguns Mudrãs.
Foram muitos, não saberia dizer com precisão quais, lembro de um específico,
Shikhara (A Ponte) (fig.11), que originou o elmo do Fantasma do Rei.
fig. 11 fig. 11
115
APERTAR AS TÊMPORAS ME LEVOU AO ELMO
Com os punhos das mãos fechados, com exceção dos polegares que estavam
erguidos, e com os cotovelos flexionados, erguidos para cima, na altura dos olhos;
pressionei os polegares nas respectivas têmporas. Após diversas improvisações,
tendo como matriz este Mudrã, na qual aperta-se com força as têmporas, a posição
me levou à exaustão: os dedos das mãos se abriram e caíram sobre meu rosto
transformando-se no elmo do Fantasma do Rei. Logo em seguida, flexionei a perna
direita e ergui na altura da cintura, como um guerreiro, como se fosse marchar.
Estendi a perna para frente, dando um chute no ar, caindo com a mesma para
frente, agora com o joelho flexionado sustentando o tronco. Com o rosto para baixo,
e com as palmas das mãos cobrindo os olhos, comecei a respirar, dando movimento
ao tronco, aos braços e às mãos. Acompanhando a dança da respiração, os braços
foram se esticando, e as mãos, na forma de conchas voltadas para cima, lentamente
se afastavam do meu rosto, provocando um gemido que na medida em que era
repetido, preenchia o tórax, até que num impulso fiz com as mãos um cone e o
gemido se transformou num grito dilacerado de uma sirene.
Ao abrir a boca e gemer como uma sirene surgiu uma imagem interior e, como uma
máscara, ela fazia da minha face o seu rosto, “O Grito”, de Munch, a figura se
instalava debaixo de minha pele. Era um estímulo provocado pela improvisação.
Uma experiência nova, porque até o momento os estímulos com os quais havia
escolhido trabalhar eram fatores externos, que nas improvisações se tornariam
internos.
O GUARDA NO TERRAÇO, REZA
Escolhi um movimento do Tai Chi Chuan, “Montar o Cavalo” (fig.12), para trabalhar o
personagem do Guarda. O movimento resistiu às sessões de improvisações, apesar
de não permanecer na forma original, pois incluí num dos momentos dos exercícios
improvisacionais alguns Mudrãs, que trabalhassem a proteção, o medo, afinal de
contas, o Guarda estava diante de uma aparição.
116
fig. 12
O CAVALO CONFIGURA O MEDO DO GUARDA
Com as pernas afastadas, e com os joelhos um pouco flexionados, com as palmas
das mãos unidas diante do peito, dei início ao exercício. Pulando de um lado para o
outro. Às vezes, andando ou mesmo correndo, tentando me desviar de alguns
obstáculos, vassouras, baldes, bolas, cadeiras, utilizados somente durante o
exercício. Resolvi limpar o espaço. Iniciei o jogo. Utilizando o mesmo movimento,
com as mãos unidas diante do peito, comecei a bater com força, percebi que um
som oco causava a sensação de batidas aceleradas de um coração assustado,
parecendo um tremor de medo. Incorporei a feitura deste achado ao personagem,
que diante de uma explosão, do encontro dos lábios com o ar, pergunta “Quem está
aí?
HAMLET NA ÁRVORE
Antes de descrever a composição desta construção, sinto necessidade de contar
sobre a adaptação do texto shakespeariano.
117
Como disse anteriormente, não era a minha intenção montar o texto na íntegra.
Procurei fazer uma adaptação. Li algumas traduções, entre elas, a de Millôr
Fernandes, que se aproximava da minha realidade e circunstância, inserindo-me no
universo de Hamlet.
Fiz uma adaptação com dor no peito. Literalmente, usei a tesoura, cortei o texto.
Uma crise de consciência me acompanhou nesse período, porque ao ler as falas dos
personagens, tudo parecia importante, tudo precisava ser dito, mas esse tudo era
impossível dentro da minha montagem, a opção pelo monólogo descartava de
imediato o texto na íntegra.
Um questionamento terrível me assombrava, me perseguia. Sentia todos os
personagens atrás de mim, exigindo a permanência de suas falas, garantindo a
própria existência. Sabia que isso era inviável. Os fatos deveriam ser contados de
outra maneira. Mas e se cortasse o essencial? Como o público entenderia os
acontecimentos da vida do príncipe dinamarquês? O que tirar? O que é essencial
permanecer para que possa ocorrer a compreensão? Depois de uma longa batalha
com os personagens, concluí uma adaptação, que pensava usar nas improvisações
com as posturas de Yôga e os movimentos de Tai Chi Chuan.
As improvisações com as posturas e os movimentos das técnicas Orientais
digladiavam com a adaptação externa.
O exercício de improvisação proposto era em cima da cena na qual o Rei Cláudio
discursa sobre a morte do antigo monarca seu irmão, e do recente casamento com a
rainha viúva. Todos estão muito contentes, exceção feita ao filho do falecido rei.
Com essas indicações dei início aos exercícios em cima de algumas posturas de
Yôga, Tadásana (fig.13), Trikonásana (fig.14) e outra que não lembro. Tentava
inserir o texto adaptado, as palavras dos personagens nas posturas, trabalhando,
como já havia feito anteriormente, através da repetição e chegando, às vezes, à
desconstrução da postura original. Mas acabou acontecendo algo desesperador e
estranho: as improvisações não estavam acontecendo. O texto estava num conflito
118
aberto com as posturas. Elas se recusavam a dialogar com aquela adaptação
imposta por mim.
fig. 13 fig. 14
Parei o exercício. De cócoras chorei. Perguntava-me: Como executar essa
improvisação? Como contar essa estória? Como aplicar as técnicas orientais na
configuração deste momento cênico? Neste instante tive consciência: não poderia
trabalhar com aquela adaptação, com aquela imposição externa. Os ásanas
estavam me dizendo algo, era preciso ouvi-los, e eles queriam que a palavra
articulada brotasse no ato improvisacional. Como eles, se fosse preciso, seriam
transformados em outra coisa diferente da forma original, as palavras também
seriam generosas, a tal ponto de serem sacrificadas, deixando o essencial delas ser.
Acredito que neste momento comecei a compreender o sentido da voz do ator, que
parecia vir na forma de Mantra, vestindo as vestes de um texto próprio.
A IMPROVISAÇÃO ABRE ESPAÇO, O PRÍNCIPE EM CIMA DA ÁRVORE
Escolhi a Árvore (fig.15), uma postura do Yôga, para dar início às improvisações. Era
preciso apresentar o personagem, quem era, porque estava naquele lugar e o que
119
estava acontecendo. Trabalhar com informações básicas, essenciais, que
precisavam ser colocadas para fora.
fig. 15
Iniciando o exercício de improvisação no ásana a Árvore, uma frase surgiu, insistiu e
permaneceu na minha cabeça durante todo exercício de improvisação. A insistente
frase era: “Recebi notícias da morte de meu pai, o rei da Dinamarca, numa quarta-
feira de cinzas.” A frase não era do texto original do autor inglês. Tentei resistir e
continuei realizando o exercício de improvisação junto à postura. Como se isso fosse
possível, a cada início de movimento, a frase surgia com mais força. Ignorei as
palavras que desfilavam em variados tons sonoros dentro de meu ouvido e, sem dar
crédito ao que ouvia, prossegui compondo o ásana. Até que em uma das repetições
em cima do ásana a Árvore, percebi que a minha perna direita estava dobrada e
apoiada na perna esquerda, e para conseguir manter estabilidade na postura,
apertava com muita força o meu pé direito na parte interna da minha perna
esquerda. Ao inclinar o tronco um pouco para frente, procurei manter os braços
firmes, neste instante a frase insistente veio como uma bola de fogo e explodiu de
minha boca se misturando ao texto de Shakespeare:
Recebi notícias da morte do meu pai, o Rei da Dinamarca, numa quarta-feira de
cinzas. Voltei ao castelo de Elsenor para os rituais de sepultamento. Jardim
abandonado, reduto de ervas daninhas. Morto! Não faz nem dois meses e minha
mãe resolveu casar com o meu tio. É preciso lembrar, irmão de meu pai.”
120
Percebi, ao terminar o exercício, que o texto criado continha as informações
necessárias expressas pela boca do personagem. Agora deveria prosseguir nesse
processo, que apresentava uma característica distinta das vivenciadas nos trabalhos
anteriores, a palavra articulada estava sendo tecida, transformada na improvisação,
junto com as duas técnicas orientais.
O objetivo ao trabalhar com as duas Técnicas do Oriente, utilizando a postura
original ou desconstruindo a postura original num exercício de improvisação,
assemelha-se à peças coladas de um quebra-cabeça, imagens justapostas, formas
superpostas ou mesmo uma peça estrutural, uma montagem.
Montagem seria a justaposição de duas tomadas distintas que, se unidas, resultam
em mais do que uma simples soma de uma tomada mais a outra.”
52
HORÁCIO COMUNICA
A partir do momento que o texto foi introduzido como mais um elemento na
elaboração da cena, homeopaticamente começou a minha tortura. Porque me
confrontaria num espaço aberto com um texto não escrito, trabalharia com as
informações dadas pelo autor inglês, diferente dos outros processos, nos quais
havia trabalhado com textos prontos.
Nos exercícios de improvisação sentia uma vontade muito forte que uma postura
original ou desconstruída desse origem à outra, outro movimento e, talvez, outro
personagem. Um encadeamento de posturas, uma máquina de movimentos que
comporiam uma cena.
Era necessário que Horácio entrasse em cena. Ele contaria a Hamlet, que o Espírito
do Rei andava rondando o castelo de Elsenor. Ele foi à esplanada certificar-se a
respeito da veracidade da estória narrada pelos Guardas. Ele reconheceu o antigo
Rei em suas vestes.
52
Gesto Inacabado”. Cecília Salles. p.111. Editora AnnaBlume, 2004.
121
PARTINDO DAS COSTAS DE HAMLET
Propus iniciar o exercício saindo da Trikonásana, caindo no chão, levantando e
procurando andar normalmente, outras vezes, caindo e levantando rapidamente,
para andar lentamente, tentando variar os ritmos, implicando diretamente na
respiração; mas na medida em que as repetições iam acontecendo senti um
impulso: desejava abraçar o ar. Abracei e senti conforto. Incorporando o abraço
confortável ao exercício, percebi que os braços queriam ir mais longe. Como
sempre, resisti ao desejo de deixá-los livres. Até que soltei os braços, que movidos
pelo impulso começaram a balançar. De repente eles se cruzaram com muita força,
e as mãos bateram nos ombros produzindo uma reverberação interna. A
velocidade produzida pelo movimento me fez girar. Perdi o equilíbrio. Cai no chão e
quase sem fôlego expressei:
Senhor, contenha o seu espanto e ouça o que eu tenho para lhe dizer.
Essas palavras foram saindo da minha boca. Elas saiam com uma escassez de ar.
O som vocal exigido para que elas fossem devidamente preenchidas era
insuficiente. Senti como se estivesse enchendo um balão de gás, aqueles utilizados
como enfeites comemorativos. As palavras surgiam em solavancos. Não falei de
maneira corrente, mas em solavancos.
O mais importante é que a história do príncipe dinamarquês surgia das
improvisações com as palavras do texto e com as posturas e os movimentos das
duas técnicas orientais. Na configuração da cena “A revelação de Horácio”,
podemos observar que na “formalização” permaneceu: o movimento básico do Tai
Chi Chuan, “Varrer o Vento” (fig.16), e o ásana do ga, Navásana (fig.17). Estas
duas posturas das duas técnicas orientais, não foram escolhidas quando dei início
ao exercício de improvisação dessa cena, mas elas surgiram durante o exercício de
improvisação, como um caminho possível para configurar este momento da cena.
122
fig. 16 fig. 17
HORÁCIO SE EXPRESSA
A intenção era de que este personagem ao narrar o acontecimento vivido na
plataforma sul do castelo, mostrasse o assombro por ter visto o Fantasma do Rei. O
medo precisava estar presente. O meu Horácio sentia medo da aparição. Isto ficou
claro durante a realização do exercício, porque ao contar o episódio da plataforma,
lembrei de alguns filmes de terror, especialmente os de Drácula e a sensação
proporcionada por aquele tipo de película produzia em mim medo do sobrenatural.
Um acontecimento interessante foi que, uma semana antes de dar início a esse
exercício de improvisação, estava passando pela Praça da Sé, em São Paulo, e um
contador de estórias chamou, não só a minha atenção, mas de muitas pessoas que
estavam no mesmo local. Rodeado de gente narrava os fatos com delírio,
impressionando a todos os ouvintes o modo como juntava o som da palavra ao
movimento do corpo. Contava para quem quisesse ouvir, como veio parar na cidade
de São Paulo. E ao narrar os acontecimentos levava todos os ouvintes a viver a sua
história.
Retornando as improvisações em cima da narrativa feita por Horácio a respeito do
Fantasma do Rei, procurei trabalhar as posturas no plano baixo, porque a vontade
123
de ficar próxima ao chão era forte. Tentava subir, ir para outra postura que pudesse
ser executada em outro plano, mas a gravidade era mais forte e acabava me
levando novamente para o chão.
Lembrei do Narrador da Praça da Sé, que descrevia os fatos com um olhar quase
hipnótico em cima do olhar do ouvinte. Até aquele momento nunca tinha visto algo
semelhante. As estórias contadas pelos pais, tios, avós e professores, surpreendiam
com outro tom, diferiam muito do narrador da Sé.
A palavra contada não é simplesmente fala. Ela é carregada dos significados que
lhe atribuem, o gestual, o ritmo, a entonação, a expressão facial e até o silêncio que,
entremeando-se ao discurso, integra-se a ela.
53
Algo importante que percebi ao improvisar este trecho, é que a cena deveria ser feita
no chão. Denominei este momento de o Abraço dos Amigos. O Abraço deu origem à
queda. Horácio inicia a sua narrativa, mas antes pede a Hamlet que contenha o
espanto, porque seria surpreendido por um acontecimento muito maior.
Após uma sessão composta por algumas torções que acabaram resultando o ásana
Navásana, senti a presença do Galo, mas este ainda não estava inteiro, ele estava
presente, mas ainda não aparecia completo na improvisação.
Respirei. Queria improvisar novamente. Os elementos trabalhados no exercício
poderiam oferecer muito mais do que o resultado que insistentemente aparecia. Não
estava satisfeita. A queda originada do Abraço queria dizer muito mais do que o
resultado que estava sendo apresentado. Percebi que precisava continuar insistindo.
DECIDI, PARTIRIA DO ABRAÇO
Após tentativas frustradas, lancei lentamente o corpo ao chão. Com os braços
estendidos aparei a queda com as mãos. Instantaneamente, flexionei a perna direita,
e mantive a perna esquerda estendida, que junto com o braço esquerdo davam
53
“O Oficio do Contador de Histórias. Gislayne Avelar Matos e Inno Sorsy. p. 2. Editora Martins
Fontes, 2005.
124
apoio ao corpo. Com o braço direito estendido para frente, pedia para o príncipe
conter o seu espanto. E com o movimento básico das Mãos do Tai Chi Chuan,
Varrer o vento”, comecei a falar o que havia acontecido naquela madrugada. E no
momento que ia falar que o “Galo Cantou e o espírito se encolheu todo e
subitamente desapareceu”, o Galo veio numa fúria e cantou em Navásana.
HAMLET PEDE SEGREDO
A passagem descrita anteriormente finalizava a ação no plano baixo. Pensei que
poderia ser interessante iniciar a improvisação do momento seguinte, repatriando a
postura ou o movimento, que influíram na configuração daquele trecho, ao estado
original.
Apliquei a postura original, no caso Navásana, no exercício de improvisação. Mas
comecei a me questionar se era isso o que realmente queria realizar. Percebi, ao
realizar o exercício, que a idéia era interessante, possibilitava caminhos. Mas não
era este o objetivo do meu projeto, porque ao iniciar uma improvisação, utilizando a
postura ou o movimento original da ação anterior, passaria a trabalhar sempre com a
mesma postura ou movimento. O que não deixa de ser interessante, mas este não
era o objetivo do meu processo. A intenção era trabalhar na improvisação de alguns
ásanas do Yôga e alguns movimentos básicos do Tai Chi Chuan.
Sentada no chão, iniciei a improvisação. Como sair daquela situação? Pensei em
várias possibilidades, tentando utilizar das duas Técnicas do Oriente na execução do
exercício, na medida em que elas se tornavam verdades para mim durante a sua
realização.
Insistentemente o ásana, Adumuka (fig.18), e o movimento básico, “O Vaso Cheio”
(fig.19), reapareciam com mais freqüência que os outros, que acabaram por
desaparecer durante as improvisações.
125
Experimentei sair do chão executando o ásana Adumuka, este, apesar de
apresentar um resultado interessante, não era a resposta e nem o motivo que iriam
fazer com que eu me erguesse do chão. Ao tentar experimentar, durante o exercício
de improvisação, um dos movimentos básicos do Tai Chi Chuan, “O Vaso Cheio”, o
príncipe dinamarquês se ergueu do solo como um “O Vaso Cheio”. Inspirei o ar.
Com as pernas unidas, com os pés apoiados no chão, subi lentamente, na
proporção em que o ar entrava no meu corpo, preenchendo a forma carnal. E
utilizando ambas as mãos, partindo de um Mudrã, Samputa (o Cofre), quando os
dedos de Chakra-Mudrã estão curvados para dentro e os dedos mínimos estão
esticados, com a mão direita sobre a esquerda diante do peito, fui levantando a mão
direita até a palma ficar estendida e voltada para frente, aproximando um pouco
mais a mão esquerda do plexo solar. Auxiliada por esta seqüência de Mudrãs,
Samputa (fig.20), Ardhachandra (A Meia-Lua) (fig.21), Pataka (O Estandarte)
(fig.22); pedi segredo sobre o que acabava de ser revelado.
Ao finalizar o exercício, repensei nos estímulos que conduziram a experimentação.
Lembrei que o Mudrã, Samputa ao ser utilizado numa meditação significa um cofre,
algo secreto, uma caixa redonda, até mesmo o ato de jogar dados.
fig. 18 fig. 19
126
fig. 20 fig. 21
fig. 22
O SOM ENCARNA AS VESTES DE UM MANTRA
Certa vez fui à uma apresentação de Ratnabi Adhikari, uma cantora indiana, e neste
dia ela nos presenteou com o Kirtan conhecido como Gayatri Mantra. No dia
seguinte ao da apresentação, procurei saber o significado daquelas palavras
entoadas pela artista, que como uma névoa fina, lentamente, se infiltraram em minha
pele, provocando uma sensação agradável. Mas esta sensação veio acompanhada
de algo muito estranho. Aconteceu no momento que ouvia aquela canção. Senti,
rapidamente, aquilo que denominamos “indivíduo” desfazer-se por completo dentro
daquele espaço. Por alguns segundos, o que reconhecia como indivíduo desfez-se
em mim, era como se eu fosse uma porta, ou melhor, fizesse parte de uma grande
127
porta. Um portão. Ao descobrir o significado das palavras proferidas compreendi o
motivo da estranha sensação. O Gayatri Mantra está voltado à inteligência universal
e procura orientar a consciência do homem para a sua natureza divina.
Todas as vezes que terminava os exercícios de improvisações, onde Hamlet pede
segredo, cantava esse Mantra. Talvez a vontade de cantar o Gayatri estivesse
relacionada à sonoridade e à sensação agradável proporcionada por aquelas
palavras, que acabaram sendo incorporadas ao final da cena.
Om Bhuh, Om Bhuvaha,Om Swaha
Om Maha, Om Janaha, Om Tapaha,
Om Satyam, Om Tat Savitur Varenyam
Bhargo Devasya Dhimahi
Dhiyo Yonaha Prachodayat
Oh espírito infinito, energia divina
Que o universo ilumina com a luz do criador
Oriente-nos a mente no caminho do uno
E do bem
Dilapide a ignorância
Assim como o Sol, à distância,
Dilapida as trevas também
54
SURGE O NARRADOR
Encontrar outra vez com este personagem conhecido como Narrador, não era uma
surpresa, mas um desafio. Precisaria da veste dessa personagem se quisesse
contar a trajetória do príncipe dinamarquês.
Pensei nas palavras de Walter Benjamin no ensaio “O narrador. Considerações
sobre a obra de Nikolai Leskov”:
54
Tradução de Ratnabali Adhikari.
128
Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as
histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece
enquanto ouve a história.Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais
profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se
apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o
dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo.”
55
Parece que para “tecer a rede em que está guardado o dom narrativo”, aquele que
pretende contar uma história precisa ser um ouvinte dessa natureza, ou seja, o
Narrador antes de tudo precisar ser um bom ouvinte. Somente aquele que ouve é
capaz de narrar.
Isso ficou muito evidente antes de cada exercício de improvisação, onde me
colocava no papel de uma ouvinte silenciosa do texto de Shakespeare. Escutava
com a devida atenção a história que estava sendo contada. À medida que era
repetido o contar interno, os acontecimentos foram sendo gravados, e ao serem
evocados durante as sessões de improvisações eles surgiam diante da necessidade
do contar. As minhas palavras junto às do texto original acabaram tecendo a história
que seria contada.
Uma das minhas preocupações era como deveria aplicar o Yôga e o Tai Chi Chuan
ao tecer narrativo, nos exercícios de improvisação. Como iria desconstruir um texto e
recriá-lo, quer dizer, como contá-lo novamente de forma orgânica.
Em seu livro, “O Ofício do Contador de Histórias”, Gislayne Avelar de Matos e Inno
Sorsy, reconhecem que o segredo do contador está na assimilação do que se
deseja contar.
O grande segredo dos bons contadores está na perfeita assimilação daquilo que
pretende contar. Assimilação no sentido de apropriação. Apropriar-se de uma
história é processá-la no interior de si mesmo. É deixar-se impregnar de tal forma
por ela que todos os sentidos possam ser aguçados e que todo o corpo possa
55
Magia e Técnica, Arte e Política”. Walter Benjamin. p.205. Editora Brasiliense, 1996.
129
naturalmente comunicá-la pelos gestos, expressões faciais e corporais, entonação
de voz, ritmo etc.”
56
A apropriação acontecia ao repetir a leitura, ao destacar o acontecimento chave que
antecedia o exercício de improvisação.
A opção pelo Narrador surgiu da necessidade de contar a história de maneira
sucinta. Estava decidida, trabalharia somente com o que fosse necessário informar.
Diante dessa escolha, percebi que muitas palavras do texto original poderiam ser
descartadas sem o peso de ter que “cortar” o texto shakespeariano. Esta
personagem era a figura perfeita para encarar essa tarefa difícil.
Era o momento de informar que Laertes, irmão de Ofélia havia partido para a
França, e que o pai de ambos, Polônio proibiu a filha de conversar com o príncipe,
porque toda corte estava comentando que eles passavam muito tempo juntos.
Relendo “Hamlet, pensei, novamente, que seria impossível trabalhar esse momento
na íntegra, mesmo fazendo uso de uma adaptação, devido às inúmeras informações
fornecidas pelo texto. Mas estas precisavam ser inseridas o quanto antes nas
improvisações.
Após cantar o Gayatri numa das improvisações, desfazendo o ásana Trikonásana
(fig.23) surgiram algumas frases na minha cabeça, estas foram expelidas da minha
boca, que assumia, naquele momento, o bico de um pássaro. Aproveitando o som
produzido pela forma dos lábios, busquei o equilíbrio e me apoiei na perna
esquerda, dobrei o tronco para frente, mantendo a perna direita reta e erguida.
Surgia a figura do Narrador, que plainava sobre o castelo de Elsenor. As frases não
apareceram de uma só vez, mas em partes, em pedaços, depois de improvisar em
cima dos dados junto com as técnicas orientais.
56
“O Ofício do Contador de Histórias. Gislayne Avelar e Inno Sorsy.p.9.Editora Martins Fontes,2005.
130
fig. 23
O reino em intensa vigia passou a observar que o príncipe passava muito tempo ao
lado de Ofélia e que essa o acolhia de forma generosamente liberal.
Ao trabalhar com as duas Técnicas do Oriente, este personagem surgia como uma
maneira de contar de novo a história de Hamlet. Tendo em mãos muitas informações
fornecidas pelo dramaturgo inglês no texto, repetindo o que foi dito, era inviável
contar a história na íntegra. Este não era o meu objetivo. Ansiava pela adaptação.
Optei por contar o essencial, aquilo que precisava ser revelado para que o ouvinte
pudesse compreender. Criar este personagem era a resposta do modo como seria
narrada a história. Ele assumiria o papel da linha utilizada pela minha agulha para
costurar as cenas.
A CHEGADA E A PARTIDA: MAIS DO QUE UM DIÁLOGO ENTRE OS NAVIOS
QUE ANCORAM NO PORTO
A proposta desse exercício era trabalhar o som. A sonorização teria como ponto de
partida o Mantra OM. Nesse momento o objetivo não era trabalhar com a palavra.
Na tentativa improvisacional exploraria as possibilidades sonoras do OM junto ao
corpo. Interessava experimentar as formas expressas no corpo através do OM.
131
Juntei o OM aos passos lentos do Tai Chi Chuan, dando início a uma caminhada,
onde trabalhei exaustivamente a lentidão. Tentava mudar o ritmo, mas acabava
travando, sendo obrigada a retornar à proposta original.
A condução do exercício pelo OM acabou provocando imagens interessantes, entre
elas o farol da barra, a água escura do mar, madrugada, o som de um navio noturno
e o som do mar de madrugada.
Acrescentando as imagens descobertas aos dois estímulos, dei início a outro
exercício de improvisação, onde trabalharia com as imagens do farol, o som do
navio noturno, o OM, e o caminhar lento. A imagem do farol se mostrou muito
presente durante a realização do exercício. Trabalhar com a sonorização do OM
possibilitou o surgimento de um tubo acústico, como se a minha garganta tivesse
aumentado de tamanho, estes fatores me levaram a unir as mãos na forma de
concha, aproximando-as da boca, produzindo o OM dentro da concha.
Imediatamente o som produzido me remeteu ao diálogo dos navios ao chegarem ao
porto.
Após o cântico da embarcação, separei as mãos e comecei a balançar os braços, e
o impulso provocado pelo movimento permitia o encontro entre elas no ar, e deste
resultou um som abafado e oco.
Ao aumentar a velocidade durante a execução, percebi que repetia a seqüência
respeitando uma circunferência imaginária no chão. Impulsionada pelos braços,
surgiram os giros cada vez mais rápidos. Continuava a reproduzir o OM. Até que o
OM foi “cortado” por um movimento acelerado da língua, uma espécie de som
produzido pela língua das mulheres das sociedades tribais. O som fez com que eu
estancasse o movimento, e estendesse o braço direito para frente, reproduzindo o
movimento sonoro com a língua.
132
HAMLET SE DIRIGE PARA O ENCONTRO
Resolvi iniciar o exercício com o ásana,O Guerreiro (fig.24), com as pernas
afastadas, a perna direita flexionada, a esquerda estendida e, o braço direito
estendido, apontando para frente, senti o equilíbrio fornecido pela postura. Inspirei
lentamente o ar e dei um giro. O movimento brusco provocou a mudança de direção.
Ao repetir a mesma seqüência, sentia uma leve tontura, em seguida perdia o
equilíbrio, o tronco dobrava e caía para a frente. Incorporei o desequilíbrio aos
passos trabalhados no Tai Chi Chuan, começando a caminhar explorando a lentidão
do movimento das pernas, o apoio destas, o levantar, estendendo a perna o mais
longe possível, puxando, arrastando e erguendo. O ato de caminhar lentamente
acabou favorecendo o surgimento das palavras. As variações foram experimentadas
em ambas as pernas. Comecei a falar e sem pensar muito, as palavras foram
saindo, assumindo a conjunção proposta por aquela realização. A mistura das
minhas palavras com as do texto de Shakespeare pareciam fluir neste instante.
Respirava. Iniciava a caminhada falando:
Silenciosamente deixei o salão. Noitada promovida pelo atual rei, para agradar
aqueles que antes não o suportavam. Cambada de bêbados!
Em passos lentos e cuidadosos, refletindo sobre a fragilidade do segundo
transformador, Hamlet chega à esplanada sul do castelo de Elsenor.
Era quase meia-noite quando cheguei à plataforma. Horácio e Marcelo haviam
rendido Bernardo na vigia noturna. Juntei-me a eles. Ouvimos o som da ave noturna,
olhamos na mesma direção.
fig. 24
133
O FANTASMA DO REI APARECE
A proposta era trabalhar no exercício de improvisação o personagem do Fantasma
do Rei. Lembrei de todos os Fantasmas dos Reis que tinha assistido no teatro ou em
filme. Consegui rever algumas filmagens de “Hamlet”, especialmente a cena da
Aparição do Espectro.
Vi, em São Paulo, a montagem do “Hamlet de Peter Brook, presenciei no decorrer
do espetáculo o decifrar de códigos shakespearianos, sobre um palco limpo,
contados de maneira simples. Interessante que o Fantasma do Rei trazia uma
comicidade freqüentemente verificada nos jogos infantis. Infelizmente não foi
possível ver novamente a peça, pois os ingressos haviam se esgotado. Queria ter
assistido à outra apresentação para apreender a grande lição que estava sendo
passada no palco. Não tive acesso a nenhuma gravação do espetáculo em DVD.
Apesar de saber que, o fenômeno teatral deve ser visto ao vivo, seria interessante
rever alguns momentos daquela experiência. Infelizmente a disponibilidade de
materiais dessa espécie não é muito fácil. Mas guardo momentos incríveis do
espetáculo na memória.
Resisti muito em ver as películas novamente. Temia a influência da imagem no
processo de construção do personagem, mas a tentação foi maior e acabei
assistindo a todos “Hamlet que tive acesso: com Laurence Olivier, Mel Gibson,
Kenneth Braganth e Ethan Hawke. Confesso, vi somente a cena do Espectro. O
personagem do Fantasma do Rei apresentado nas diferentes filmagens não me
serviu de fonte de inspiração.
Relendo o texto pensei: o Fantasma é um espírito atormentado. Ao contar para o
filho que foi assassinado pelo irmão transborda um ódio pestilento. Ele, o rei da
Dinamarca, detentor de um poder absoluto, e que agora se encontra submetido às
leis do inferno, quais seriam os seus sentimentos? Aquele que comandou seu
exército em várias batalhas, agora era obrigado a obedecer, tendo que guardar
segredo das profundezas onde é prisioneiro. Subjugado ao canto de um galo à
meia-noite, que é o guardião de sua porta. Um sinal que informa quando pode sair e
134
quando deve voltar. Ele mesmo confessa que se pudesse contar como é o lugar
onde fica a luz do dia, aquele que ouvisse não conseguiria mais dormir.
Narrar os segredos das profundas,
Eu te revelaria uma história cuja palavra mais leve
Arrancaria as raízes da tua alma.
E gelaria o sangue da tua juventude,
Fazendo teus dois olhos abandonarem as órbitas
Como estrelas perdidas; enquanto teus cabelos,
Separados em tufos, ficariam com os fios em pé:
Cerdas na pele de um porco-espinho.
Mas esses segredos do sobrenatural
Não são pra ouvidos feitos de carne e sangue. ”
57
Analisando as circunstâncias dos acontecimentos que antecederam a morte do pai
de Hamlet, não tive dúvidas em achar que esse Fantasma estava com muito ódio e
queria ser vingado. Afinal, ele foi assassinado pelo próprio irmão, que acabou
roubando a coroa e a rainha. Só podia estar furioso, perdeu tudo: “a coroa, a rainha
e a vida”.
Antes dos exercícios de improvisações, aquecia o corpo com uma caminhada, uma
leve corrida, conjugando com alguns ásanas de Yôga ou movimentos básicos do Tai
Chi Chuan. Interessante que o andar para trás me atraía, andar com o tronco
flexionado, segurando com as mãos os tornozelos permitia um interessante trabalho
respiratório. Essa forma trabalhada no aquecimento me lembrava os caranguejos
andando pela areia.
Escolhi uma variação do ásana Adumuka (fig.25), “Cão Olhando para Baixo”, porque
me lembrava a figura do caranguejo. Havia executado essa postura diversas vezes
nos meus treinos no Yôga e nunca associei esse ásana com esse crustáceo. Mas ao
fazer a postura depois de um aquecimento, achei a semelhança incrível e acabei
incorporando-a ao exercício. De cócoras, com as palmas no chão alinhadas com os
57
Hamlet”. William Shakespeare. p.30 e 31. Tradução de Millôr Fernades. Editora L&PM Pocket,
2002.
135
ombros, entre os pés, que estão afastados e flexionadas, encontrei o princípio ativo
que traria o meu o Fantasma do Rei das profundezas do inferno. E este veio com
tudo.
fig. 25
A postura adotada do Caranguejo trouxe ao exercício de improvisação o Caranguejo
do manguezal. Os vendedores de caranguejos de beira de estrada. Os crustáceos
ficam amarrados num pedaço de madeira para não fugirem, andando um sobre o
outro, lutando para se libertarem, mas não conseguem. E quase sempre acabam
numa panela de água fervente.
O Caranguejo era o Fantasma do Rei que, revoltado, tentava se libertar daquela
tortura, mas não conseguia; todo o seu esforço era em vão, estava condenado.
Foi nessa forma de Caranguejo que comecei a improvisar. Jogando o tronco para
frente e para trás, cada vez mais rápido, chegando a erguer o quadril a uma altura
que tirava as pernas do chão. E quando falei pela primeira vez “Eu sou”, tive vontade
de repetir essa afirmação como um “Mantra”, muitas vezes. E foi o que fiz, repeti a
mesma frase: “Eu sou o espírito do seu pai. ’’
Voltei a improvisar partindo da chegada de Hamlet à plataforma. Após a fala
Ouvimos o som da ave noturna. Olhamos na mesma direção”, o Galo aparece e
canta. Sabia que o Fantasma teria que sair do Galo. Direcionei o trabalho para que
isso acontecesse. Ao som do canto da ave fui desmanchando lentamente a postura
até assumir a forma do Caranguejo, pernas flexionadas e afastadas, e as mãos
136
entrelaçadas para desenhar o elmo do rei no meu rosto. Começava a balançar a
cabeça, e repetir as frases que revelariam a sua natureza.
Ao dizer “Vinga esse assassinato infame que mancha o leito da Dinamarca!”, senti
uma vontade de girar. Girava ao mesmo tempo em que reproduzia na boca uma
sonoridade primitiva, voltando em seguida à forma de Caranguejo contando como fui
assassinado.
O JURAMENTO COM A ESPADA
O Galo canta e o Fantasma do Rei tem que retornar de onde veio. No canto do Galo
começo a me erguer do chão e com os dedos das mãos entrelaçados, como se
estivesse segurando uma espada, estico os braços para frente. Começo a girar,
junto com o cocorocó que vai se transformando num grito de ódio exigindo de todos
ali presentes o juramento sob a espada.
O LAGO DE OFÉLIA
O desafio seria trabalhar aspectos suaves da personagem, mais precisamente o
lado feminino. Até o momento, havia explorado o masculino, logo, buscar o
contraponto era o que impulsionaria os exercícios.
Comecei a trabalhar com os braços em movimentos ondulares. Como ondas de um
lago, que ao receberem uma pedrada, acolhem carinhosamente no leito, produzindo
ondas sonoras. Busquei trabalhar a propagação de ondas através dos braços.
Trouxe à improvisação o Pim, instrumento musical utilizado em exercícios de
meditação. O som do Pim seria a pedra que quebraria o silêncio. A onda do lago de
Ofélia.
137
A proposta era improvisar utilizando o Pim, este traria Ofélia para a cena. Coloquei o
Pim no chão e me afastei. Respirei e executei um dos tipos de “andar” praticados no
Tai Chi Chuan e me aproximei do instrumento sonoro. Abaixei e peguei o Pim com
as duas mãos e procurei tocar com lentidão o instrumento sonoro. Percebi que havia
criado um “ritual”, e que esse “ritual” era uma exigência do próprio instrumento.
Procurei repetir esse “ritual” muitas vezes durante os exercícios de improvisação e
percebi que ao tocar o Pim, o som reproduzido me causava um estado melancólico.
À medida em que a improvisação foi se tornando mais intensa, a melancolia que eu
estava sentido transformou-se em tristeza, e esta sensação foi se tornando mais
clara enquanto caminhava tocando o instrumento e executando os movimentos
básicos do Tai Chi Chuan.
Manipulei o Pim junto com a prática do Tai Chi Chuan, até que os movimentos
básicos foram se transformando em algo distinto da Técnica do Oriente. Comecei a
cantarolar uma cantiga judaica, “Et Dodim”, que significa “O quarto dos amantes” a
cantiga narra um dos episódios da vida do Rei Salomão em que a amante convida o
amado para ir ao campo realizar a colheita de uvas.
Prolongando, no exercício, sonoramente o “Eh”, com as pernas esticadas, dobrei o
tronco, tocando as palmas das mãos no chão. À medida em que cantava o “Eh
deslizava as mãos no chão, trazendo-as para junto do corpo, andando para atrás.
Parei. Afastei as pernas, flexionando a perna direita. Executava nesse momento a
postura do guerreiro. Aproximando e abrindo os braços, comecei a trabalhar o
movimento ondulatório na altura do peito, enquanto cantava a música. Depois de
cantar a música, estendi o braço esquerdo, dobrei o direito, e com a mão direita
batia na palma da esquerda, trazendo para a improvisação um dos movimentos
básicos do Tai Chi Chuan, O Vôo da Grua (fig.26). Depois de repetir muitas vezes, o
movimento acabou sendo transformado numa batida de mãos na porta.
Depois de bater na porta do quarto do pai, na postura do guerreiro, dobrava o tronco
e ia contando que Hamlet havia entrado no meu quarto. Conforme narrava,
procurava contorcer o corpo girando para o lado direito desenhando uma
circunferência.
138
Quando apresentei o resultado do exercício para o Grupo, alguém sugeriu que
fechasse um pouco mais as pernas, talvez isso me ajudasse a encontrar o feminino
pedido pela personagem.
fig. 26 fig. 26
Experimentando o que havia sido sugerido, incluí ao meu banco de informações que
Ofélia devia estar desesperada ao ver o homem que ela amava naquele estado,
parecendo ter perdido o juízo ao entrar no seu quarto. Ao repetir o exercício
incluindo esses novos elementos, a respiração foi alterada e surgiu o choro de
Ofélia, desaparecendo a postura do guerreiro. Agora sentia a necessidade de um
encolhimento. À medida em que ia falando, as pernas iam se juntando, trabalhando
a torção do tronco, ia girando e descrevendo para o meu pai o que havia
acontecido.
Percebi que o acerto da postura proporcionava a emoção correta. O resultado obtido
veio confirmar uma das afirmações de Meyerhold, onde a forma justifica o conteúdo,
se a postura for correta a emoção também será.
Meyerhold exigia a racionalização de cada movimento dos atores. Queria que os
seus gestos e a posição do corpo assumissem um desenho preciso. Se a forma é
justa, dizia, o conteúdo, as entonações e as emoções também serão, pois que
139
determinados pela posição do corpo, na condição de que o ator possua reflexos
facilmente excitáveis, isto é, que os estímulos que lhe são propostos do exterior
saiba responder pela sensação, o movimento e a palavra. O jogo do ator não é outra
coisa que a coordenação das manifestações de sua excitabilidade. Por exemplo: ao
representar o medo, o ator não deve começar por sentir medo (viver o medo) e
depois correr; não, ele deve de início começar a correr (reflexo) e sentir medo
depois, pois ele se viu correr. Em linguagem do teatro atual, isto significa: ‘Não é
necessário viver o medo, mas exprimí-lo por uma ação física’.”
58
Com o objetivo de enriquecer sonoramente esse “choro de Ofélia”, aceitei a
sugestão e procurei ouvir Janis Joplin. Escutei o som emitido por aquela voz e
utilizei-o nas improvisações seguintes. Acabei incorporando ao personagem e depois
à cena.
A DEDUÇÃO DE POLÔNIO
O Narrador sempre surgia após os exercícios de improvisação do Lago de Ofélia.
Isto foi uma constante durante este processo. Desta vez ele apareceu de um dos
movimentos básicos do Tai Chi Chuan, o vaso cheio ou aquele que segura o pote.
Com o braço esquerdo flexionado, a palma em concha virada para cima, o mesmo
desenho feito com o braço direito, mas no sentido contrário. Afastava a mão direita
da esquerda, erguia na proporção que falava “Polônio”, enchendo este nome com ar.
Polônio numa velocidade estonteante foi correndo contar para o Rei a sua grande
descoberta.”
Após dizer essa frase, caía com o corpo estendido, fazendo das mãos suporte para
que o corpo não encostasse no chão. Trazendo à tona a dedução que o príncipe
estava louco porque a minha filha havia recusado o seu amor.
58
O Teatro de Meyerhold”. p.157 e 156.Tradução, apresentação e organização de Aldomar Conrado.
Editora Civilização Brasileira, 1969.
140
Mantendo o corpo paralelo ao chão, dobrei os cotovelos, e coloquei as palmas ao
lado do tórax, me equilibrando sobre as mãos e os artelhos. Gradualmente estendi
todo o corpo para frente, de modo que os meus pés repousassem no chão com a
sua parte frontal. Estes dois ásanas que apareceram nos exercícios de
improvisação, não foram escolhidos previamente. Este ásana é conhecido no Yôga
como Chaturanga Dandásana (fig.27). Chatur significa quatro, Anga significa
membro ou parte dele e Danda quer dizer bengala.
fig. 27
Iniciava a improvisação após uma queda, ficava de bruços no chão e aplicava o
peso do corpo sobre as palmas e os artelhos. Expirava e erguia o corpo
paralelamente ao chão, rígido como um tronco. Inflexível como o personagem.
Nesse exercício mantive um ásana Chaturanga Dandásana, desmanchando no
momento que feita a conclusão de Polônio, deixo o corpo cair e tocar o chão,
apoiando os cotovelos no solo, em seguida mantenho o braço esquerdo no chão,
fecho o punho da mão direita e, batendo na minha testa, falo: “Há lógica nessa
loucura!
O REI MANIFESTA
A intenção era a de trabalhar o aspecto demoníaco do personagem de Claudio.
Procurei no texto de Shakespeare, “Hamlet”, informações sobre o personagem e
descobri que o próprio Fantasma do Rei chama o irmão de “serpente”.
141
Disseram por aí que eu fui picado por uma serpente enquanto dormia no jardim. A
serpente cuja mordida tirou a vida do seu pai, hoje usa a nossa coroa, seu tio...”
Busquei em alguns personagens de filmes de terror ou suspense, atores que haviam
trabalhado esse aspecto demoníaco, entre muitos, aqueles que apresentaram em
suas performance o que eu desejava trabalhar foram: Robert de Niro, em “Coração
Satânico”; Al Pacino, em “Advogado do Diabo”; Jack Nicholson, em “O Iluminado”, e
As Bruxas de Eastwick”.
Assisti aos filmes e constatei: Robert de Niro trabalha a ética no diabo; Al Pacino
trabalha uma sedução maldosa e maliciosa no personagem e Jack Nicholson com
um diabo sedutor romântico, com fortes traços demoníacos.
Escolhi como estímulo trabalhar a sonoridade da voz do ator Jack Nicholson no meu
personagem do Rei Claudio. Apesar de ser um assassino frio, ele é um conquistador
romântico. Podemos observar lendo a história que o casal se mostra apaixonado,
um par romântico. Inclusive Harold Bloom em seu livro “Hamlet, poema ilimitado”,
refere-se ao casal com muita clareza.
Gertrudes e Claudio são, certamente, um dos casais mais felizes da dramaturgia
shakespeariana, até o Fantasma incitar o jovem Hamlet à sua hesitante sede de
vingança.”
59
Além da voz sedutora do ator americano, a minha intenção era trabalhar com as
características da serpente, devido a algumas semelhanças com o personagem.
Logo de início, juntei ao exercício de improvisação dois ásanas Chaturanga
Dandásana e Bhujangásana (fig.28), Serpente. Estas duas posturas fazem parte da
seqüência conhecida por Saudação ao Sol.
Utilizei durante os exercícios de improvisação de uma das variações do Chaturanga.
A repetição desses ásana acabou configurando na cena, a “queda” de Polônio. Esta
cena é o momento em que o pai de Ofélia irá revelar o motivo da loucura de Hamlet
59
Hamlet, poema ilimitado”. Harold Bloom. p. 45. Editora Objetiva, 2005.
142
para o Rei e para a Rainha. Neste momento, eu estava de bruços no chão.
Agradava-me a idéia de dobrar o braço esquerdo, e fechar o punho da mão direita,
como se quisesse golpear o ar com socos. Olhei para o punho da mão direita
cerrado e falei: “Há lógica nessa loucura!”.
Lentamente vou abrindo a mão direita e junto com a mão esquerda vou deslizando-
as no chão. Nesse deslizamento das mãos, comecei a trabalhar com a respiração,
que acabou se transformado numa espécie de rugir. Com esse rugido fui
vagarosamente montando a Serpente. Continuava de bruços no chão e com o rosto
para baixo, comecei a erguer o corpo a partir da cintura e inclinei a cabeça para trás,
como uma Serpente pronta para dar o bote. O trabalho intenso com a respiração
provocou alteração no rugido que estava fazendo com a boca. E na medida em que
o som produzido pela boca se tornava mais forte comecei a erguer o corpo do chão,
até ser possível flexionar os joelhos e sentar sobre as minhas coxas. Mantive os
braços flexionados, sendo que o braço esquerdo estava situado um pouco mais
abaixo do que o braço direito. Procurei nesse momento dar destaque para as mãos
ao executar o Mudrã Pataka-Mudrã (fig.29), “Cabeça de Serpente”. Ao compor essa
forma corporal, o rugido, de tão forte, acabou colocando a minha língua para fora da
boca. Com a língua para fora da boca, virei o pescoço para o lado direito, olhei para
o Pataka-Mudrã, e falei:
Se isso for verdade que se prove, que se prove se isso for verdade.
Ao falar essas palavras, carregando-me no estímulo com os quais estava
trabalhando, comecei a perceber que o som vocal produzido provocava um som
estonteante. O resultado da experiência trouxe à memória um desenho “Mogli, O
Menino Lobo”, no qual um dos personagens é uma serpente, Casca, e em uma das
cenas ela tenta seduzir o menino, hipnotizando-o através da fala e do olhar.
143
fig. 28 fig. 28 fig. 29
O NARRADOR INTRODUZ OS AMIGOS DE INFÂNCIA
Apesar de já ter feito esta observação, notei que durante o processo a cada final dos
exercícios, surgia a presença do Narrador. Interessante porque ele se apresentava
com a fala quase pronta, um resumo, um esclarecimento da situação para o
espectador. Parecia que o personagem do Narrador aproveitava do final da
respiração do personagem que o antecedia para surgir, assumindo um ásana ou um
dos movimentos básicos para desenvolver a cena improvisada. Isto ficou muito claro
ao finalizar a improvisação da cena, em que o personagem de Polônio propõe ao
Rei Claudio, que, ambos, escutem escondidos atrás de uma tapeçaria, a conversa
entre sua filha e o príncipe Hamlet. Ao concluir o plano, no qual vigiaríamos a
conversa dos dois amantes, não lembro quais foram as posturas das duas técnicas,
mas recordo que a soma das duas resultaram numa outra postura que acabou
introduzindo o personagem do Narrador informando da chegada dos dois amigos de
infância do príncipe.
Por precaução o Rei chamou ao reino dois amigos de infância do príncipe,
Guildenstern e Rosencrantz.”
A presença do Narrador era o bálsamo esclarecedor. Uma figura neutra? Não sei
dizer. Às vezes o Narrador me parecia ser o próprio Hamlet, mas a maneira como
expunha a situação diante da platéia me levava a não acreditar que um era o outro,
e os dois eram um só.
144
O REI INTERROGA GUILDENSTERN E ROSENCRANTZ
A proposta do exercício de improvisação era a de trabalhar com as duas técnicas
orientais o momento em que o Rei Claudio pergunta aos dois amigos de infância do
príncipe Hamlet se eles conseguiram descobrir o motivo de um comportamento tão
estranho por parte de seu sobrinho. A minha intenção era a de que, ao responderem
a pergunta feita pelo Rei, os dois amigos se lembrariam da maneira como o velho
amigo os recebeu em Elsenor.
Mas estava difícil desenvolver o exercício de improvisação, porque não conseguia
visualizar os dois amigos de Hamlet como calhordas. Não entendia por que não
conseguia enxergar o mau-caratismo. Não entendia o porquê da traição por parte
destes, da falta de honestidade. Talvez não quisesse aceitar que os antigos
companheiros se venderam em troca de alguns favores.
Relendo o texto, compreendi que a falta de caráter dos dois amigos se mostrava
visível já no primeiro encontro com o atual soberano, quando a Rainha menciona
que ambos serão recompensados devidamente pelo Rei. Acho que foi difícil aceitar
que “amigos de infância” se vendam por tão pouco. Talvez isso fosse um tipo de
preconceito referente aos personagens, algo que não nos é permitido sentir.
Acertei os ponteiros com os dois personagens. Tentei reiniciar os exercícios de
improvisações. Propus começar por um aquecimento ondulatório nos braços. O
movimento ondular proporcionou uma sensação agradável e interessante. Resolvi
experimentá-lo num ásana, objetivava chegar à Serpente como parte característica
do Rei.
Executei um dos movimentos básicos para interferir na cena como Narrador.
Levantei, procurando trabalhar a forma circular com o corpo. Erguia-me na medida
em que falava: “Por precaução, o Rei chamou ao reino dois amigos de infância do
príncipe.”
Esse movimento proporcionou a abertura dos meus braços. Senti vontade de
estendê-los, deixei que ficasse por algum tempo na linha do horizonte, até que a
145
forma foi desabada pela exaustão do músculo. Esperei alguns minutos para repetir o
exercício.
Ao abrir meus braços, rapidamente as minhas mãos fizeram o Pataka-Mudrã. O meu
pescoço começou a mexer sinuosamente, e este movimento sinuoso foi sendo
estendido para os ombros, depois braços, até chegarem às mãos, que mantinham a
Cabeça de Serpente. Comecei a repetir de modo abafado a palavra “Nada”,
causando intensa salivação na boca. Ondulatoriamente fui dobrando os braços,
aproximando as mãos, sem encostar no plexo solar. Incorporei um “Ah” junto às
palavras da fala, como um aquecimento vocal, trabalhado pelos Mantras.
Nada! Nenhuma palavra. E se usassem de algum subterfúgio, algo que o fizesse
revelar o motivo de tal comportamento.”
GUILDENSTERN E ROSENCRANTZ
Ao concluir a indignação e o inconformismo do Rei perante o fracasso noticiado
pelos dois amigos, executei o movimento básico, A Serpente que rasteja. Mas ao
utilizar desse movimento do Tai Chi Chuan durante a improvisação este foi
totalmente desfeito originando outra forma. Mantinha a perna esquerda estendida, a
perna direita flexionada, erguia a mão direita, depois ia abaixando até encosta-lá no
chão, e com a mão direita aberta traçava um risco, puxando-a na minha direção e
falando:
Ele se recusa a revelar o motivo. Diz que se sente perturbado. E quando
pressionado foge com uma loucura esperta.”
Repetindo a frase “Foge com uma loucura esperta”, levantei-me do chão e comecei
a girar com o braço estendido para frente, apontando com o dedo da mão direita o
que estivesse na frente.
146
ENCONTRO COM HAMLET
Devido à ligação de amizades que Hamlet tinha com Guildenstern e Rosencrantz,
propus trabalhar com algum jogo do público masculino. Pensei no pião. Não tinha a
intenção de fazer uso do objeto em si. Interessava-me o movimento, a trajetória do
brinquedo. Ao trabalhar com as características do pião junto as Técnicas do Oriente,
surgiram durante o exercício de improvisação algumas situações que se
assemelhavam muito com algumas posturas de lutas marciais. A gama de
possibilidades apresentadas durante as improvisações correspondiam à algumas
situações dos jogos de meninos. E foi da intersecção desses estímulos, numa
sessão composta por exercícios improvisacionais, que inesperadamente surgiu
como resultado o ásana Vasisthásana (fig.30), que acabou configurando Hamlet ao
encontrar com os amigos.
fig. 30
Com o braço esquerdo estendido, apoiando-me na palma da mão esquerda,
mantenho a perna esquerda esticada e por cima da direita, que também está
esticada, me apoio na borda do pé direito. A imagem é semelhante ao triângulo
eqüilátero. Ao executar esse ásana Vasisthásana comecei a girar, tendo a mão
como eixo, ora em sentido horário e ora em sentido anti-horário. À medida em que
falava ia aumentando o movimento giratório e em alguns momentos com o braço
que estava livre, dobrava levemente como se tivesse abraçando um amigo.
147
Não me venham dizer que estão aqui por livre e espontânea vontade. Que o
bondoso rei e a virtuosa rainha não têm nada haver com isso. Vamos, em nome de
uma amizade sincera que mais foi interrompida, foram ou não foram chamados?
PRESSIONADOS, ELES RESPONDEM
Repetia a frase: “Foram ou não foram chamados?”, com fúria e aumentando a
velocidade do giro. De repente retirei o braço que mantinha o corpo na diagonal,
acabei rolando pelo chão como um quadrado quebrado, falando repetidas vezes:
Somos. Fomos.”. Resolvi incorporar a conjugação à cena.
A CAVALGADA
Após a resposta dos amigos, experimentei entrar direto no “Ser ou não ser”, porém,
não pretendia falar na íntegra o solilóquio. Mas consultei muitas vezes o conjunto de
palavras proferidas por Hamlet, vivendo o antigo dilema de fazer o ‘corte’ necessário.
Rolar como um quadrado quebrado no final do exercício foi uma alavanca, um
impulso, aproveitei o giro e subi. Ergui o corpo e iniciei um movimento ondulatório na
região abdominal. O movimento que começou pequeno foi estendido pelo corpo.
Acrescentando ao mesmo um dos movimentos básicos, o Galo que levanta (fig.31),
aumentei a velocidade da execução, e senti que as amarras que seguravam as
minhas pernas foram cortadas, podendo dessa maneira cavalgar, trabalhando a
forma ondular que se iniciou do abdômen, repetindo convulsivamente “Ser ou não
ser”.
Na verdade buscava no “Ser ou não ser” o “transe”, o estado daquele que está
“incorporado” ou “incorporando”, pois, é nesse momento em que Hamlet se
transforma no Coringa. Durante as sessões de improvisações com os ásanas, e
com os movimentos básicos, acabei incluindo e introduzindo, a dança de um Orixá, e
a escolhida foi a “Dança de Xangó”.
148
COMO O CORINGA ENTROU NA JOGADA
Seguindo a orientação de que deveria trabalhar o lado cômico do personagem
Hamlet, me perguntei: “Como trabalhar o cômico? Com quais ferramentas? Como
tratar esse cômico com as Técnicas do Oriente?” Essas questões me provocaram
certa ansiedade. Em verdade, tinha medo de enfrentar o meu lado cômico.
Sabia que seria um desafio, devido à minha dificuldade em trabalhar com a
comicidade. Mas tive que enfrentar os jogos propostos pelo personagem
shakespeariano. Estava num beco e até o momento não conseguia enxergar
nenhuma saída. O que fazer?
Relendo cuidadosamente as palavras articuladas pelo príncipe, notei com mais
clareza a sagacidade expressa em seus pensamentos. Após mais uma análise
cuidadosa, percebi certa semelhança com o Coringa do Batman. Havia encontrado a
ponte que me ligaria ao cômico.
Li algumas Histórias em Quadrinhos onde pudesse encontrar o Coringa, “O
Cavaleiro das Trevas”; “Asilo Arkhan”, “A Piada Mortal”; e encontrei características
interessantes desse personagem com o qual pretendia trabalhar o meu Hamlet.
Assisti a alguns dos filmes do famoso herói, dentre eles, filmagens antigas que
traziam no papel do Coringa o ator Cezar Romero, que alguns especialistas afirmam
ser a melhor performance do personagem. Vi a película na qual o ator Jack
Nicholson é o Coringa e a recente filmagem na qual o ator Heath Ledger encarna o
lado sombrio do personagem.
Antes da estréia de “O Cavaleiro das Trevas”, pude ver no site oficial do Super
Herói, Batman, pequenos trechos do filme. Como estava atrás do cômico, e estava
procurando mais informações sobre o “vilão”, foi surpreendente ver o rosto branco e
os cabelos verdes do Coringa perguntando para o Batman: “Why so serious?” A
pergunta ficou na minha cabeça. Acabei levando-a para o exercício de improvisação
no qual pretendia desenvolver as características desse personagem no Hamlet.
149
Juntando a frase com as duas técnicas orientais, não saberei afirmar com precisão
quais foram os ásanas e movimentos básicos utilizados no desenrolar da
improvisação, mas a forma apareceu após a Cavalgada do Ser ou Não Ser, apesar
de o resultado do movimento remeter aos vôos das pernas trabalhados pelo Tai Chi
Chuan. Ao erguer a perna esquerda, chutando o ar com força, com uma voz grave,
indagava: “Why so serious?”
Constatei que o Hamlet ainda apresentava aspectos sombrios. Não existia nada de
cômico. Decepcionada, comecei a achar que não conseguiria trabalhar esse
aspecto. Restabelecida, voltei-me para o personagem do Coringa. Reli “A Piada
Mortal”, de Alan Moore, ilustrado por Brian Bolland, que conta a origem desse
personagem.
O Coringa é um palhaço que não consegue emprego como comediante. Ele está
desesperado porque não consegue emprego e sua esposa está grávida. Resolve
participar de um assalto na indústria química onde trabalhou. Na noite do assalto,
recebe a notícia que sua esposa morreu. Não vê sentido em prosseguir com o plano,
mas é obrigado, pelos os outros dois, a ir até o fim com o que fora combinado. Antes
de entrarem no local, colocam uma “máscara” no rosto do Coringa, para que o
bandido da máscara leve a culpa do delito. Só que esta dificulta a sua visão. Os
bandidos são surpreendidos pelo vigias e por Batman. Os dois assaltantes
conseguem escapar. O Coringa acaba enfrentando Batman. O primeiro cai num
tanque com uma substância química. Consegue escapar com algumas seqüelas,
cabelo verde e a forma do sorriso na boca.
Comecei a trabalhar o personagem do Coringa buscando o estímulo na sonoridade
da “gargalhada” produzida nas performances dos atores que interpretaram esse
personagem no cinema. Verificava que os resultados obtidos durante os exercícios
de improvisação não estavam me conduzindo para o “cômico” que pretendia
trabalhar na cena, pelo contrário, a “gargalhada” se mostrava, ainda, muito sombria.
150
O QUE FAZER?
Lembrei das aulas de Clown com o Prof. Dr. Eduardo Coutinho. Especialmente de
como trabalhamos com os pés. Como andar. E do resultado dessas onde pude
aplicar algumas das características descobertas nessas oficinas de criação. Três
personagens, especialmente, três jogadores de baseball, foram construídos a partir
do jeito de caminhar. Um era o lançador, ele flutuava, trabalhava na ponta dos pés,
este movimento proporcionava um estado alegre. Outro, era o batedor, era o
equilíbrio, a coerência, os pés apoiados em todos os pontos, o vento cíclico, o que
mascava chiclete. O terceiro era o apanhador, era pesado, mantinha os pés no
chão, o andar era apoiado nas bordas externas dos pés.
Consultando o livro do Prof. Dr. Luis Otávio Burnier, “A arte de ator – Da técnica à
representação”, entrei em contato com alguns exercícios desenvolvidos:
No contexto do treinamento para o clown, desenvolvemos os seguintes exercícios.
Antes de enumerá-los, devo esclarecer que muitos deles são exercícios clássicos de
clown, todos porém recriados e adaptados à nossa metodologia, por mim e pelo ator
Ricardo Puccetti, ao longo de assessorias técnicas sobre o trabalho do clown a
alunos de diversas partes do Brasil.
60
Apliquei alguns dos exercícios sugeridos para aquecimento, como:
- Andar nas pontas dos pés, com as bordas externas, bordas internas
- Andar rapidamente
- Andar devagar
- Dançar
- Executar uma ação, parar e olhar
- Cantar
Estava acabando de trabalhar a Cavalgada do Ser ou Não Ser, após dizer, “Morrer
Dormir Só isso!” Comecei a rir com o corpo todo, a gargalhada do Coringa tinha
60
A arte de ator – Da técnica à representação”. Luis Otávio Burnier. p. 213. Editora UNICAMP, 2001.
151
início na boca, provocava um tremor no tronco, que percorria a região abdominal,
chegando até a ponta dos pés. À medida que ria, chacoalhava, dobrando o tronco,
soltava as mãos e essas iam tocar os pés. Subia novamente e repetia o movimento.
Gargalhando. Parecia aqueles palhaços de caixas de surpresa, que tem uma mola
como corpo interno e ao serem libertos da caixa aparecem e ficam balançando para
frente e para trás. O Coringa surgia de sua própria risada.
Esse balanço, para frente e para trás, veio de um dos movimentos básicos do Tai
Chi Chuan, utilizado nos aquecimentos antes do início de uma aula.
HAMLET CANTA CARINHOSO
Procurando à medida do possível trabalhar com o cômico na figura do Hamlet
estimulada pelo personagem do Coringa, no exercício de improvisação, olhava por
entre as pernas e rapidamente voltava a olhar para frente e pedia silêncio porque a
bela Ofélia” se aproximava. Repeti o experimento mais algumas vezes, e depois
que dei o aviso da chegada da filha de Polônio, de repente, comecei a cantar
Carinhoso”. Enquanto, repetia a canção, experimentava modos diferentes de
expressá-la aplicando as duas Técnicas do Oriente.
Busquei como referência dois intérpretes da música de Pixinguinha: Orlando Silva e
Elis Regina. Ouvi várias vezes, não conseguia parar de escutar as vozes dos dois
cantores.
Quando terminei de cantar, fiz uma reverência, dobrei o tronco sobre os joelhos, e
com uma voz grave, inspirada no cantor Tom Waits, falei olhando para baixo:
Ninfa coloque em tuas preces todos os meus pecados.”
152
A DEVOLUÇÃO
Cantar “Carinhoso” me mostrou uma reação que até então não havia percebido:
Ofélia acha engraçada a atitude de Hamlet. Isso ficou claro para mim após a prática
do exercício de improvisação.
Escolhi levar para a improvisação o movimento básico, “o Mover as mãos como
nuvens” (Yun Shou) (fig.32), com os pés afastados na largura dos ombros, descrevi
com o braço direito um círculo no sentido horário junto com um movimento giratório
do peito para a direita, enquanto abaixava o braço esquerdo lentamente em
movimento circular.
fig.32
153
Enquanto aproximava o pé direito do esquerdo, continuava o movimento circular
com o braço direito até estendê-lo para a direita, no mesmo instante em que
reconduzo o braço esquerdo à frente do peito.
Afastei o pé esquerdo paralelamente ao direito na direção da esquerda, até atingir
uma distância igual à largura dos ombros. No sentido anti-horário, continuo com a
mão esquerda o movimento circular, ficando diante do rosto, com a palma voltada
para dentro; continuo com o braço direito o movimento circular no sentido horário até
o nível do abdômen.
Ao repetir, intensifiquei o movimento giratório da cintura na direção do braço em
extensão. Girei a cabeça acompanhando o movimento do corpo e os meus olhos
seguiam os movimentos circulares dos braços, assumindo a posição do Cavaleiro na
sela.
Desenvolvia as seqüências, procurando trabalhar a lentidão proporcionada pela
execução do movimento, intercalando o diálogo improvisado entre Hamlet e Ofélia,
quando esta vem devolver os presentes que o príncipe jura nunca ter oferecido.
Ofélia – Senhor, tenho umas lembranças suas que gostaria de devolver.
Hamlet – Eu? Eu não. Eu nunca te dei nada.”
TAI CHI CHUAN NO RAP
A chegada de um grupo de artistas na cidade possibilitou a Hamlet provar a
veracidade da história revelada pelo Fantasma, que combina com os artistas
introduzirem um número diferente na apresentação.
Nunca havia visto ao vivo uma apresentação de rap. Após assistir a algumas
performance de grupos de rap, achei que deveria experimentar o estilo musical. Eles
seriam o grupo de artistas que encenariam a história do rei assassinado.
154
Observei os movimentos desenvolvidos pelos dançarinos, a manipulação das mãos
dos cantores e achei que poderia aproximar alguns movimentos do Tai Chi Chuan
com a linguagem corporal trabalhada pelos rappers. Interessava a maneira como
esses artistas urbanos contavam as histórias em suas letras.
Comecei o exercício de improvisação colocando uma máscara no rosto. Havia
trocado o grupo de atores por um grupo de cantores de rap. Mas desejava reafirmar
que aquilo era uma encenação.
Experimentei fazer o exercício com o movimento básico, “A serpente que rasteja
(sheshen xia shi) (fig.33). Virei a ponta do pé direito para fora, apoiei o peso do
corpo sobre esse pé e, com o joelho flexionado, agachei sobre a perna direita,
estendendo a esquerda. Estendi o braço direito com a mão em gancho, e abaixei a
mão esquerda, com a palma voltada para fora, aproximando da perna esquerda.
fig. 33
Após muitas repetições de “A serpente que rasteja”, a postura acabou se
desmanchando para dar origem a um outro movimento, que foi incorporado no
trabalho final.
Durante as improvisações, procurei criar uma letra com as características do rap
junto com os movimentos do Tai Chi Chuan.
155
Sei que vou partir
Em muito breve
Sossegado eu vou
Deixo a mulher que amo
Com irmão do peito
Nos exercícios busquei trabalhar as mãos utilizando os giros aplicados no Tai Chi
Chuan e os Mudrãs, misturados à linguagem das mãos dos cantores de rap.
GUNGROO
O gungroo é um instrumento de percussão utilizado por dançarinos do Oriente, em
especial na Índia.
Comecei a treinar alguns ásanas e movimentos básicos vestindo o gungroo e os
resultados foram interessantes. Resolvi incorporá-los às improvisações na
composição do personagem da Rainha Gertrudes.
A DIFÍCIL COMPOSIÇÃO DE GERTRUDES
Foi difícil a aproximação com o personagem da Rainha. As características da Mãe
de Hamlet são tênues. Em nenhum momento do texto, Shakespeare expõe
claramente a posição de Gertrudes com relação a morte do marido. Os fios da
cumplicidade com o assassino do rei surgiam como uma charada a ser desvendada
devido ao comportamento apaixonado do casal. Ao reler as passagens em que o
personagem estava presente na cena, pensava numa cumplicidade cega, aquela em
que não se quer refletir sobre o acontecimento em si. “É melhor não mexer.”; “É
preferível não saber.”; “É bom não questionar.”.
É muito estranho como ela aceita a morte do marido. Aparentemente, parece não
sentir a perda. Talvez tenha sido um favor ele ter morrido. Talvez ela não amasse o
156
rei, e sim o irmão. Talvez o casal mantivesse um relacionamento extraconjugal. O
pai de Hamlet era um guerreiro, passando grande parte do tempo nos campos de
batalha e encontrava companhia nos braços do irmão. Mas em momento algum o
autor nos esclarece essa dúvida, se ela realmente sabia que Claudio havia posto um
fim na vida do irmão.
Pensando a respeito das palavras do Fantasma do Rei, assumi que, Gertrudes lá no
fundo da alma sabia, mas estava tão feliz com seu novo marido, que nem ousava
questionar sobre as verdadeiras causas da morte do rei.
Não faça nada contra a tua mãe: entrega-a
Aos céus; e que os espinhos que ela guarda
No seio a firam de remorso.”
61
Esclarecida a situação da personagem, dei início às improvisações.
Havia decidido trabalhar com o gungroo. Como mencionei, experimentava durante o
meu treino com as técnicas orientais o instrumento de percussão.
Analisei o teor do que deveria ser improvisado na cena em que Hamlet enfrenta a
mãe, o que pretendia falar nesse momento fazendo uso do material escolhido para
trabalhar.
Foram várias improvisações para chegar a estabelecer contato com a personagem.
Queria trabalhar o poder expresso pela personagem durante a cena onde ela exige
respeito por parte do filho. Nesse momento ela é a mãe autoritária, ela é a rainha.
Impondo o seu poder ao perguntar para o filho: “Esqueceste quem eu sou?
Munida desses elementos, sentia que faltava uma imagem que ancorasse a força
que desejava imprimir na personagem. Não podia esquecer que o próprio Polônio
exige dela firmeza ao falar com o filho que está ultrapassando o limite. “Seja dura
com ele”. Não podia esquecer que a cena era a discussão entre a mãe e o filho, na
61
Hamlet”. William Shakespeare. p.33. Editora L&PM,2002.
157
qual ela chama a sua atenção. Não queria uma Gertrudes indefesa, mas uma mulher
que tem ciência do seu poder, que ama o atual marido e manda o filho parar com a
brincadeira que anda provocando delírio em Elsenor.
Desejando trabalhar o caráter forte na personagem, foi sugerido por alguém do
grupo, a figura da atriz Bette Davis. Procurei rever alguns filmes, entre eles, “A
Malvada”, que me serviu de inspiração, por mostrar uma personagem madura, mas
que tem alguns problemas com a idade.
Iniciei um dos exercícios propondo trabalhar um ásana de Shiva (fig.34), utilizado por
algumas correntes na introdução da meditação feita de pé, também em algumas
danças, como uma das variações do ásana da “Árvore” e rituais sagrados.
fig. 34
Inseri no exercício o uso do gungroo. Apoiada na perna esquerda ergui a direita, e
comecei a bater com essa no chão, suspendendo o movimento em tempos
diferentes, dando início às batidas com o pé. Após erguer a perna, estendi o braço,
flexionando o joelho direito colocando na frente da perna esquerda, quase na altura
do quadril, torci levemente o tronco e os braços. E suavemente toquei, com o
polegar, o dedo médio, executando o Mudrã Bhramara (fig.35), este é um gesto cuja
aplicação tem como objetivo trabalhar a tolerância no indivíduo. Respirei,
158
executando com ambas as mãos o Mudrã Bhramara, ao mesmo tempo em que
sonorizava o Mantra OM para fora, aguardando a entrada de Hamlet no quarto.
fig. 35
Hamlet, seu pai está muito ofendido com você!”
Mas sentia que a forma, como pensava Meyerhold, não estava correta e por este
motivo a emoção não era a correta.
Repeti o exercício. De costas, coloquei a máscara no chão. Como estava com os
joelhos flexionados, subi lentamente, ainda de costas. Conforme me erguia ia
flexionando os cotovelos. Com os pés fixos fui torcendo o tronco com os cotovelos
flexionados e os braços para cima na altura do peito. Olho para o par de gungroo e
vou até eles. Visto as tornozeleiras de guizos. Apoiada na perna esquerda, ergo a
direita, batendo-a com força no chão. A batida vai sendo refletida no tronco. Fico
ereta. Flexiono o joelho direito, coloco na altura do quadril, torço levemente tronco e
braços, e desenho o Mudrã. Respiro e exalo o ar no Mantra OM. Desço com firmeza
a perna direita no chão. Com a mão direita começo a me abanar. Flexiono o cotovelo
esquerdo, ergo o braço um pouco acima da região dos olhos, como um retrovisor de
carro, e falo quando o meu filho entra.
159
Busquei trabalhar não apenas o sentimento de ódio contra a mãe, mas a
irreverência, o humor ácido característico do Coringa. Jogando com as duas
Técnicas do Oriente e a situação envolvendo mãe e filho.
Após certa resistência como experimento, passei a conjugar os ásanas e os
movimentos básicos e com as palavras inspiradas pela cena shakespeariana.
Utilizando de algumas torções, próprias do Yôga, e de alguns movimentos do Tai Chi
Chuan, resolvi acrescentar ao exercício de improvisação alguns movimentos da
Dança de Iansã (fig.36), que foram trabalhados intensamente durante as
improvisações. Após algumas repetições experimentei incluir durante o exercício de
improvisação algumas palavras da Rainha: “Como? Esqueceste quem eu sou?
fig. 36
Inclino o corpo para o lado direito, com os braços para trás, seguro a mão esquerda
com a direita, e começo a chicotear circularmente o corpo, perguntando como um
ditador: “Esqueceste quem eu sou?
No decorrer do exercício sentia que o deboche queria tomar as rédeas do meu corpo
auxiliado pelas duas técnicas orientais, percebi que Hamlet em alguns momentos
debochava da mãe.
160
Dobrando o tronco, apoiando na perna esquerda, trabalhando o giro, fui descendo
lentamente a perna, falando: “É a Rainha, esposa do irmão do seu marido. E antes
não fosse a minha mãe.”
À medida em que o exercício de improvisação avançava, percebia como os ásanas
e os movimentos básicos se relacionavam proporcionando novas situações no
desenvolvimento da cena. Permanecendo traços, ou não, das Técnicas do Oriente
na composição que resultaria no espetáculo.
POLÔNIO ESTAVA LÁ!
Como foi complicado colocar esse fofoqueiro no quarto, e ainda ter que tirar a sua
vida na frente de todo mundo. Era preciso registrar algum som para que Hamlet
descobrisse que havia uma terceira pessoa escondida no quarto. Improvisei com os
braços os modos de olhar.
NARRADOR
Tinha consciência de que seria necessário um ritual para retirar os gungroo de meus
tornozelos, mas essa passagem, que desenharia no espaço a remoção do
instrumento, ainda não estava clara. Lembro, que durante os exercícios de
improvisação, no qual estava trabalhando a personagem da Rainha Gertrudes
discutindo com filho, experimentava retirar o par de gungroo dos tornozelos, mas
sem sucesso. Retirava o instrumento, mas o resultado não era satisfatório. Após a
remoção do gungroo, experimentava introduzir a figura do Narrador, que informaria
os acontecimentos da história. Mas sentia que o que estava acontecendo não estava
conseguindo expressar tudo aquilo que deveria ser expresso na cena.
Inconformada com os resultados obtidos durante os exercícios de improvisação,
voltei a improvisar a retirada dos gungroo. Conforme trabalhava com esses
elementos, o ritual de retirar proporcionava algumas frases na boca do Narrador:
161
Com as mãos sujas de sangue, Hamlet parte para a Inglaterra com seus dois
amigos de infância.
Ao término de sucessivas sessões de improvisações com os gungroo, lembrei do
curso Teatralidades Contemporâneas, ministrado pela Prof. Dra. Silvia Telesi, no
segundo semestre de dois mil e seis na Pós-Graduação no Departamento de Artes
Cênicas da Universidade de São Paulo. Neste curso, tive a oportunidade de
“conhecer o pensamento” crítico-analítico-reflexivo de nomes como: Jean Pierre
Sarrazac; Hans-Thies Lehmann, entre outros. Lembrando das aulas e dos
seminários que foram apresentados pelos participantes, e dos convidados que
vieram a compor o corpo do curso, comecei a fazer um paralelo entre as
Teatralidades Contemporâneas apresentadas pelos grupos de teatro na atualidade e
entre trabalho que estava desenvolvendo com Yôga e o Tai Chi Chuan e percebi
que havia muitos pontos em comum com essa “teatralidade contemporânea”. Entre
eles, a figura do Narrador.
Lehmann, em seu livro “Teatro pós-dramático”, afirma que:
Um traço essencial do teatro pós-moderno é o princípio da narração: o teatro se
torna o lugar de um ato de contar.
62
Compreendi a importância do personagem do “Narrador” no nosso mundo. Um
personagem que vem contribuindo ao longo da História do Teatro, e que hoje se
recoloca no espaço cênico nas vestes diáfanas ou não de relatos, muitas vezes,
pessoais.
A narração que se perde no mundo das mídias, encontra um novo lugar no
teatro.”
63
Percebi que os exercícios de improvisação, no qual fui incorporando a remoção do
par de gungroo dos meus tornozelos, contribuíram para que o texto do Narrador
62
“Teatro pós-dramático” Hans-Thies Lehmann.p.185 Editora Cosac Naif, 2007.
63
Ibidem. p. 186.
162
fosse tecido durante a experimentação, resultando algo completamente diferente
daquilo que eu estava tentando conduzir.
Quando decidi trabalhar com “Hamlet”, havia decidido que não faria a cena da
morte de Ofélia”, portanto, a cena em que o Narrador informa a respeito da partida
do príncipe para a Inglaterra seria a penúltima cena do espetáculo, e a última cena
seria a morte de quatro personagens, inclusive a de “Hamlet”. Mas ao apresentar
parte do resultado do meu processo no CEPECA, algumas pessoas do grupo,
comentaram sobre a exclusão da cena da “morte de Ofélia”, e sugeriram que eu
fizesse a cena dos coveiros, já que eu me recusava a fazer a cena da “morte de
Ofélia”.
ERA O INÍCIO DO MEU DRAMA
Decidi que iria trabalhar a cena dos coveiros. Mas como fazer essa cena? Como
aplicar o Yôga e o Tai Chi Chuan nesse personagem? E com um agravante: o
Coveiro é um personagem cômico, e o único que enfrenta com muita inteligência o
príncipe Hamlet.
Comecei a improvisar a cena dos coveiros aplicando posturas das duas técnicas
orientais. Mas o resultado do trabalho não apresentava nada muito estimulante. Foi
devido à falta de entusiasmo que surgiu a idéia de experimentar durante os
exercícios de improvisação, retirar o par de gungroo na cena do Narrador e o
inesperado acabou acontecendo: a cena da “morte de Ofélia” se configurava na
retirada ritualizada do par de gungroo.
O COVEIRO QUE NÃO APARECE
Gostaria de explicar porque a cena do Coveiro ainda não foi concluída. A não
conclusão desta cena está relacionada ao tipo de condução do meu processo de
criação. Estou, no momento, trabalhando nos exercícios de improvisação,
163
experimentando os ásanas do Yôga e os movimentos básicos do Tai Chi Chuan
para encontrar esse personagem.
Relendo o texto “Hamlet”, procurei, através das palavras, compreender e me
aproximar do personagem do Coveiro. Analisando o personagem, procurei no ofício
praticado pela figura do Coveiro, fazer algumas associações com alguns animais,
entre eles: cachorro, que tem como características enterrar e desenterrar ossos; o
gato, que tem como característica enterrar as suas fezes; e o tatu, que tem como
característica cavar túneis. Optei por trabalhar com o cachorro, porque além de
enterrar e desenterrar os ossos, ele é um “guardião” característica que me
interessava e com as quais pretendia trabalhar o personagem.
Mas não está sendo fácil tal composição, às vezes, durante os exercícios de
improvisação com as duas Técnicas do Oriente, experimentar das duas técnicas
aplicadas às improvisações parece não ser suficiente. Procurando entender o que
está acontecendo comigo em relação ao meu processo, lembrei de uma oficina com
a atriz italiana Carla Pollastrelli da Fondazione Pontedera Teatro, na qual ela ao se
referir ao Processo Criativo do Ator, disse aos participantes: “às vezes é preciso
permanecer horas parado, numa mesma posição, para se encontrar um mínimo
movimento.
64
Para não entrar em desespero, lembrava das palavras da atriz nos
momentos em que “nada” acontecia durante os exercícios de improvisações.
Insistentemente voltei a improvisar e, no momento, estou experimentando trabalhar
nas improvisações, com as variações do ásana Adho Mukha Svanásana, mas os
resultados que estão surgindo, ainda, não apresentam aquilo que eu quero como
verdade e com a qual pretendo trabalhar.
O problema que estou vivendo no meu processo criativo desse personagem, é que
ao experimentar a aplicação das duas técnicas repetidas vezes nos exercícios de
improvisação não estou conseguindo encontrar o Coveiro que quero e com quem
desejo trabalhar. Posso dizer: ele ainda não apareceu. Mas a experimentação
continua.
64
Oficina patrocinada pela Funarte, realizada na cidade de São Paulo em 2004.
164
Inclui durante os exercícios de improvisação com os ásanas, o “faro” do cachorro, o
latido, a respiração de fôlego, com a boca aberta e com a língua para fora da boca, e
a dificuldade de enxergar, ou a sensibilidade à luz, característica adquirida por
aqueles que passam muito tempo “embaixo da terra”.
Durante um dos exercícios de improvisação, experimentei “andar de quatro” e, a
esse andar, acrescentei o ato de farejar o ar. Cheirei o chão procurando reconhecer
em que lugar deveria ser enterrada “aquela que tirou a própria vida”. Reconhecendo
através do cheiro o osso de quem estava sendo desenterrado. E foi num desses
exercícios de improvisação, com as duas técnicas orientais, que surgiu uma fala do
Coveiro: Avisa que é para enterrar!
E é neste ponto em que o processo do Coveiro se encontra, ainda não consegui
transformar o latido em fala, o farejar em respiração, a pata em mão, a mão em pá.
Continuo “farejando” as pistas deixadas pelo personagem do Coveiro, no percurso
por onde caminho ao realizar os exercícios de improvisação, mas, o personagem,
ainda, não se mostrou por inteiro. A terra ainda está cobrindo boa parte do corpo e
metade da alma.
Esse é o meu processo, que na sua “mecânica” funciona experimentando as duas
técnicas orientais repetidas vezes nos exercícios de improvisação até chegar à
verdade do personagem que eu quero mostrar.
Embora faltando ainda duas cenas, “Coveiro e “As quatro mortes”, procurei
descrever nesse capítulo como os estímulos, por meio das improvisações, foram
configurados em cenas que resultaram no espetáculo, comprovando a organicidade
das duas Técnicas Orientais no meu trabalho.
165
VI – CONCLUSÃO
Refletir sobre o resultado obtido da aplicação do Yôga e do Tai Chi Chuan no texto
shakespeariano, no caso específico “Hamlet”, traz à memória aspectos que
deveriam ser retomados.
O objetivo do processo era comprovar a organicidade das duas técnicas orientais e,
ao mesmo tempo em que lembro me questiono nesse momento se este foi
alcançado com o resultado obtido do espetáculo, “Agora já era... Hamlet!
Como venho fazendo desde o início dessa investigação, reafirmo, que ao utilizar das
duas Técnicas do Oriente no meu treino pessoal, na aplicação junto aos meus
alunos, e nos exercícios específicos para o treinamento do ator, pude perceber a
organicidade apresentada na composição cênica do ator.
Ao criar uma metodologia pessoal, utilizando dessas duas bases orientais, aplicadas
às improvisações, e estas configuradas em cena, pude comprovar a organicidade
desenvolvida por meio da aplicação dos ásanas do Yôga e dos movimentos básicos
do Tai Chi Chuan ao trabalho do ator na composição dos personagens.
No decorrer desse processo, como relatei nas páginas anteriores, várias questões
surgiram, ainda bem que apareceram, contribuindo, ainda mais, para a evolução
desta metodologia.
Aplicar o ásanas do Yôga e os movimentos básicos do Tai Chi Chuan no texto
shakespeariano contribuiu para o “nascimento da dramaturgia” durante os exercícios
de improvisação junto com as duas técnicas orientais, diferente das minhas
experiências anteriores, como o conquistador espanhol, Cortez, o rei asteca,
Montezuma III e o O Homem Velho.
Ao aplicar as duas técnicas orientais na construção de uma partitura cênica,
estimulada pelos personagens existentes no livro “A Conquista da América”, criei
uma partitura de ações que na repetição resultaram num texto, cujo resultado
166
prático, foi apresentado junho de 2006, numa aula pública no Departamento de Artes
Cênicas da Universidade de São Paulo. A criação do “O Homem Velho” ocorreu de
forma diferente, partindo da Lenda de Rei Artur. Escrevi, primeiro a dramaturgia e
depois, criei uma partitura composta de ações com os ásanas e com os movimentos
básicos, que depois de “pronto” foi incorporada no espetáculo “Um Ônibus Chamado
S...P...”, apresentado em novembro de 2006 no TUSP.
Finalmente, em 2007, fui surpreendida pela escolha feita pelo grupo: a peça
Hamlet”, de Shakespeare. A proposta era a de que cada membro da equipe do
Centro de Pesquisa de Experimentação Cênica do Ator, coordenado pelo Prof. Dr.
Armando Sérgio da Silva, deveria fazer a associação das referidas cenas da peça,
com objetos artísticos contemporâneos, sejam eles do próprio teatro, literatura, artes
plásticas, cinema etc. O estímulo foi tão forte que senti nas veias o desafio de aplicar
as Técnicas do Oriente ao texto do dramaturgo inglês. Decidi, contaria a história do
príncipe dinamarquês por meio do Yôga e do Tai Chi Chuan, e o resultado, como
pode ser observado, comprova a eficiência do método:
- a hipótese de que as duas Técnicas do Oriente aplicadas num texto conferem ao
mesmo organicidade, qualidade cênica ao trabalho do ator e ao espetáculo.
- a qualidade cênica no processo de criação ao estruturar as duas posturas orientais
em cada momento, confere a estes um conteúdo dramático.
- por meio da descrição e análise dos procedimentos aplicados nas etapas de
criação do espetáculo “Agora já era...Hamlet!”, a viabilidade ao utilizar as duas
técnicas do Oriente em uma montagem teatral.
- a qualidade cênica apresentada no corpo e na voz ao aplicar nas improvisações
posturas das duas técnicas do Oriente.
- que por meio das duas técnicas orientais, Yôga e Tai Chi Chuan, aplicadas durante
processos improvisacionais consegui estruturar com qualidade as cenas de um
espetáculo, tendo com estímulo um texto.
167
- que a metodologia do Yôga e do Tai Chi Chuan pode ser aplicada em qualquer
processo criativo pelo ator.
Respondendo a minha pergunta no início deste capítulo, posso afirmar, sem sombra
de dúvida, que comprovei a organicidade cênica do Yôga e do Tai Chi Chuan ao
criar uma metodologia particular tendo como base essas duas Técnicas do Oriente
que podem ser utilizadas pelos atores em seu processo criativo.
168
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171
ANEXOS
Textos:
AQUELE QUE CAMINHA.
O HOMEM VELHO.
A CONQUISTA DO MÉXICO.
Fotos:
ESPETÁCULO FRANKENSTEIN
ESPETÁCULO MEDÉIA
PROCESSO DE CRIAÇÃO DA CONQUISTA DO MÉXICO
ESPETÁCULO UM ÔNIBUS CHAMADO... SP
172
AQUELE QUE CAMINHA
Era quase meia-noite quando saí de casa. Disseram-me para que fosse assim. Que
não fizesse muitas perguntas. Que apenas seguisse as recomendações recebidas.
Não era preciso levar nada. Era necessário que ninguém soubesse. Pediram para
que fosse sozinho. Afinal, naquele exato momento de minha vida, em quem confiar?
Estava padecendo. Momentos terríveis assumiam formas catastróficas no meu
cotidiano.
Parti. Fechei a porta de casa. Olhei para o pequeno pedaço de papel, e novamente
não acreditei que estivesse fazendo aquilo. Olhei para o papel com uma atenção
indevida. Olhei e vi o mapa. Li o endereço escrito em letras garrafais.
Lembrei das indicações de Jeremias, ontem no final da tarde, fim de expediente,
restara somente eu e ele na velha sala do escritório central, quando ele aproximou-
se e disse tudo aquilo de uma forma corrente e desajustada. Os nomes. As
avenidas. Como chegar ao local indicado.
Era imprescindível que eu fosse. Jeremias foi categórico ao sussurrar o segredo na
minha orelha esquerda. Esperavam por mim. A minha presença era necessária.
Alguém tinha algo muito importante para me dizer...
Os passos largos e pesados mostravam o meu desconforto ao passar por aquelas
vielas escuras e fedorentas. Quase identificáveis pelos nomes. Placas descascadas.
Placas sem nomes. Placas com pedaços de nomes. Um monte de nomes
incompletos impedia a identificação.
Sem nenhum juízo de valor. Não sabia onde estava. Apenas, de modo discreto,
seguia as indicações descritas no papel. Não reconhecia o lugar. E pensar que boa
parte de minha infância vivi nessas pequenas estreitas ruas. Talvez não quisesse
lembrar. Por isso apagar. Esquecer. Desmemorizar. Tirar da memória o que hoje
173
não passa de um beco sujo, fedido, sem nome, um não-lugar, um canto esquecido,
perdido, um lugar escondido.
O que estava acontecendo era o que me provocava medo! Era tudo o que não
sabia. Aquilo que estava oculto. Uma poeira no ar. Alguma coisa errada estava se
passando comigo. Tudo parecia muito estranho. Tudo parecia chegar tão perto do
nada... E eu já sentia a queda próxima, o abismo.
Cheguei à rua de nome indicado no papel amarelado e amassado. Um cheiro de
suor incomodava as narinas. Uma rua estreita. Uma rua comprida. Uma rua de terra.
Iluminação precária. Quase não enxergava nada. Uma rua sem casa. Uma rua no
centro. Uma rua no meio do nada. Parece que a colocaram ali. Para que eu pudesse
ver. Para que o encontro fosse efetivamente concretizado. Imposição de algum
segredo que demorava a descobrir. Algo que continha uma urgência explicativa.
Precisava se revelar. Nunca estive ali. Nem nos meus mais absortos sonhos.
Entrei na rua. Pisei firme na terra. Nenhum som quebrava o extenso silêncio. Todas
as vozes se calaram. Todos os pensamentos sumiram como o apagar de uma
chama. Entrei receoso de que algo de repente me surpreendesse. Que quisesse
correr e fosse impedido por uma misteriosa força.
Cautelosamente um pé acompanhava o outro. Aproximava-me cada vez mais do
meu destino, que alguém indevidamente resolveu traçar para mim. Mesmo que não
aceitasse. Mesmo que me rebelasse. Não era possível não estar ali. O local da
minha chegada. Da minha tão aguardada presença.
Parei em frente da casa. Só podia ser aquela com uma pequena luz próxima da
janela. Como Jeremias me avisou. “Ela aparecerá! Não se preocupe! Ela aparecerá!”
Uma pequena casa pintada de branco, que apresentava rachaduras e sinais de seu
envelhecimento.
Entrei com passo firme e decidido. No meio de alguns rostos, reconheci o de
Jeremias, que com as faces empalidecidas se aproximou.
174
- Chegou bem na hora. Disse aliviado, após ouvirmos o som do canto do galo. Olhou
para mim e pediu que o acompanhasse em silêncio.
O lugar, por dentro, parecia ser muito grande. Passamos alguns corredores. Alguns
cômodos. Alguns mantinham as portas fechadas. Jeremias possuído por uma
velocidade incomum, entrou num pátio, um jardim interno. Olhou na direção de uma
Amoeira. Aproximou-se. Ajoelhou-se. Encostou a cabeça na terra. Colocou as mãos
sobre a cabeça. Levantou-se. E sem dar explicação seguiu pelo lado esquerdo da
planta.
Entramos numa sala grande. Um espaço com janelas e portas grandes, onde
algumas pessoas trajando branco aguardavam num círculo. Indicaram uma cadeira
de encosto duro. Sentei. Jeremias entrou na roda. De onde estava vi um indivíduo
que chamou minha atenção. Vestia uma roupa estranha. E as cores eram vermelhas
e pretas. A desconfiança tomou conta de mim. A todo instante me perguntava: “o
que estava fazendo ali? Eu, um descrente completo, passara a acreditar em alma,
em espírito de outro mundo.” Mas fui informado que era necessário que ali eu
estivesse. Que algo muito estranho estava acontecendo comigo.
O meu corpo começou a tremer. Não conseguia controlar a carne. Quando os
tambores começaram a cantar, todos na roda iniciaram uma dança ritualística. Senti
vontade de participar daquela consagração. Na verdade o corpo desejava o
movimento. A vibração se apossava de mim. Não pude entender nenhuma palavra
pronunciada pelas bocas na entoação dos cantos. A fúria da batida dos instrumentos
excitava o movimento frenético da dança na roda, e das manifestações vocais.
Um grito horripilante produzido pelo indivíduo de preto e vermelho provocou a
paralisação de todos os íntegrantes da roda, que se olharam, e em pequenos giros
foram abrindo o espaço, proporcionando o ressurgimento da figura bicolor no meio
do enorme salão. De modo sinistro olhou ao redor. Uma respiração ofegante urgiu
como uma fera cabalística, olhou, apontou na minha direção. Num gesto largo, fez
sinal para que eu me aproximasse. Fui encorajado por todos os presentes a ir até o
centro onde o indivíduo se encontrava.
175
Levantei-me da cadeira com uma estranha vontade de fazer o sinal da cruz.... Me
aproximei. Três batidas no chão. Três batidas na mão. Um escarro. Uma cuspida.
Uma fumaça. Três charutos. Engole seco a cachaça. Olhos nos olhos. Voz
embargada disse:
- Tá tudo errado na tua vida! Trabalho forte fizeram. Encomenda perigosa.
Encruzilhada do Rio Doce. Facão do Negro puseram no pescoço da ave. Cortaram a
cabeça do bode, meu fio. Sangue no broto da pele. Cabelo inocente trouxeram.
Ancestralidade é amiga da entidade que zela por você. Viu fio... Ele quer falar. Ele
quer bater. Mas aqui língua vermelha não fala. Não pronuncia. Fica sossegado. Não
vai acontecer. Diz que vai acabar com o maldito. E o maldito é você. Filho de Sião.
Disse que vai tirar tudo. Porque tudo era dele. Numa outra carne. E tudo você
roubou. Isso não tem perdão! O cavalo vai padecer secar, morrer!
E num tom diferente. Olhou com ódio e sem piscar falou:
- Cala boca bicho do inferno. Peste, alma sem luz. Vá limpar tudo o que fez! A
entidade abaixou a cabeça num súbito-repente levantou-se, e olhando nos meus
olhos falou:
- Tudo foi combinado. Tudo acertado. Recebemos em taxa o valor. O fim está
marcado. Em hora e horror. Por todos os filhos desta estreita linha. O maldito gritará
de dor.
A figura vestida de preto e vermelho deu três giros, e novamente, na minha frente
parou, olhou e disse:
- Preste atenção no que vou dizer: Tem feito grave para você. Viu meu fio. Tem
coisa feita. A sua morte sem sossego espera. Aguarda a sua volta. O seu retorno...
Em silêncio... Na esquina. Demanda de nome de linha terá que fazer! Na décima
quinta encruzilhada. O ovo terá que bater. Num prato de barro. A figura da vela seca.
E com um punhal afiado, três cortes! Teu braço esquerdo deve ter! Tomar do
primeiro corte, o perfeito, o sangue vermelho que irá aparecer, o fio deve beber!
176
Após beber o líquido por inteiro, desenhar uma cruz de lado a lado do peito, no
sentido contrário do que é feito. Tomar bebida bem forte. Uma que arda e amorteça
a língua. Tirar a ponta e acender o charuto. Feito o feito de tudo isso. Colocar o tudo
no prato de barro branco. Vira e não olha! Dá as costas! Não olhar para trás!
Entendeu? Não põe o olho atrás!
Essas foram as últimas palavras da entidade para mim. E numa forte respiração,
assim como a fumaça, sumiu. O indivíduo que tinha falado tudo aquilo, de repente,
desapareceu. Algumas pessoas se aproximaram e seguraram o corpo cansado do
sujeito de duas cores. Conduzindo-o para uma cadeira próxima da porta. Com olhos
esbugalhados, ainda olhou para mim e disse: “Aqui é o meu lugar. Onde pode me
encontrar.”
Jeremias se aproximou e me conduziu para fora da casa. Minha presença já não era
necessária. Informando que não me acompanharia porque era preciso ficar mais um
pouco dando guarda no lugar.
Após ser deixado por Jeremias na porta que dava para a rua, ouvi, novamente, o
galo cantar. Olhei para o céu, ainda estava escuro, e pela terceira vez, escutei o
canto da ave causando arrepios. Olhei para a terra vermelha e seca. Pisei. Não tão
livre com gostaria que fosse... Mas meus pensamentos multiplicados foram por mil.
Olhei. O que fazer? Queria alcançar o infinito. Sair correndo dali. Depois de ouvir
tudo o que ouvi. Sentir tudo se desmanchar. Pensar no sentido íntimo das coisas.
Naquilo em que devemos acreditar. Se é que existe algo para se acreditar...
177
O HOMEM VELHO
NARRADOR – Arrependei-vos porque está próximo o fim.
Arrependei-vos porque o pecado mora em vosso coração
Deus em sua infinita misericórdia
Sete dias nos concedeu
E estes já se mostram sem cores
Quem deseja viver para sempre
Quem deseja a salvação
Que dê o testemunho na forma de coragem
E três cruzes no peito, o homem terá que desenhar
E nunca
Jamais
Deve esquecer de rezar
Eu sou o Anjo de categoria
Eu sou o Anjo de feições escuras
Eu sou o quarto cavaleiro do Apocalipse
E tenho nas mãos o dom da cura
Aproximem-se
Não tenham medo
O dia já se despede
Dessa tola fantasia
É chegado o momento
Alguém deve partir
Aproximem-se
Para que todos possam entender
O que realmente aconteceu
No meio daquela esquina
No meio daquela noite
No meio daquele nome
No meio daquela rua
Conhecida como Cuba
E dentro da grande cidade
178
Chovia, ventava, escurecia,
Passava, movia, corria
Ninguém via
Ninguém percebia
Mas tudo parecia
Estar fora do lugar
E o Homem-Velho da janela da torre
Visionário como era
Olhava o tempo imóvel
Descolorido das cores
Impaciente
Ele sabia que a sua hora chegaria
E tentando perdão
Segurando um cordão
E se pôs a rezar
Mas na porta, insistentemente a Morte batia
E avisava “Eu vou entrar”
E um estranho pressentimento o possuiu
Que seria exatamente nesta noite o seu dia
Antes que todos os relógios marcassem meia-noite
O negro vulto o carregaria para outro lugar
E as notícias ouvidas pelo rádio
E as imagens vistas pela televisão
Aumentavam, contribuíam
Mais e mais
Com a largura do seu desespero
Com os instantes finais de sua dor e agonia
E as gotas de sangue
Rapidamente corriam
Levando a lavada alegria
E o grande empresário
Que havia feito muito mal a muita gente
Reconheceu a desgraça que fora a sua vida
179
E com as mãos em sinal de prece
Chorou
Implorou a Deus
Que uma chance de salvar a sua alma
Este grande ser lhe desse
E mais uma vez o Homem-Velho pressentiu
Que se quisesse realmente a sua alma salvar
O filho Bastardo teria que enfrentar
Quando a porta da sala foi aberta
O Rei-do-Aço, O grande Empresário, O Espírito cansado
Sabia quem era
Conhecendo tudo o que iria acontecer
Pois fazia muitos anos que estava ali
Esperando, aguardando, espreitando
Aquela visita
Um pretenso sucessor
Devido às evidências dos fatos
Tinha plena consciência
Que ali seria o fim
E quando a figura sinistra entrou
Toda vestida de preto
E prontamente
Sem reservas disse o que queria
E as suas intenções logo mostrou
Veio tomar o seu lugar
Veio tomar o seu poder
Não existindo o não-querer
Mas como todo filho
Quer ser filho
E chamou o nome do Pai
Mas o Homem-Velho esperto como era
Afinal muita gente matou
Fingiu, como todo ator
180
Estar quase sem forças
E cambaleando
Da grande poltrona
O peso do corpo tirou
Olhou nos olhos
Daquele não reconhecido como filho
E o chamou de traidor
E com a ponta da lança
Com a língua em ardente chama
Bradou
“Bastardo!
Eu o Rei-do-Aço
Não darei o meu lugar
A um viciado
Traidor”
Mas o Bastardo
Figura negra que era
Com os olhos feito água
E com a mão trêmula
Puxou, sem hesitar
O revólver do bolso esquerdo
E para o Pai
O Bastardo apontou
O Homem-Velho apesar de sabido
Foi finalmente surpreendido
E os olhos arregalou
E num espanto
E num terror
Em desespero, em pranto
Com a rapidez do relâmpago
Pegou com força o punhal
Que descansava a hora cheia
Sobre a mesa
181
E o primeiro tiro, no ombro, de raspão passou
E forte como ainda era
Num grito de guerra
Foi para cima do filho
E o apunhalou, o apunhalou, o apunhalou
Um golpe certeiro
Bem no fundo do peito
Nenhum sentido escondido
Nenhuma culpa
Criou no coração
E num movimento convulso
De modo agitado, confuso
Com a arma em punho
Três tiros o velho levou
E Pai e Filho
Envoltos do branco
Cobertos de sangue
Num forte abraço apertado
O Anjo da Morte os levou
Luzes, buzinas, faróis de milha, neblina
Polícia, sirene, ambulância perdida
Olharam
Viram
Sangue na pele
Sangue no pêlo
Sangue em espécie
Sangue no espelho
Sangue no bolso
Sangue na mão
Sangue que no tapete
Rouba a vida do chão
182
A CONQUISTA DO MÉXICO – CORTEZ E MONTEZUMA
CORTEZ – Quero ver e descobrir tudo o que existe.
Senhor escutai as nossas preces.
Quero os louros de cada vitórias.
Senhor escutai as nossas preces.
Quero evangelizar, batizar, pregar em nome de nosso senhor Jesus Cristo.
Senhor escutai as nossas preces.
Quero encontrar e conquistar a cidade do Sol e me apoderar de todo ouro
escondido.
Senhor escutai as nossas preces.
Terra.
Per ipsum, et cum ipso, et in ipso.
Per ipsum, et cum ipso, et in ipso.
Per ipsum, et cum ipso, et in ipso.
Eu sou aquele que será reconhecido como o Sangrento Conquistador.
Por que estão olhando?
O quê estão olhando?
Os astecas acreditavam que os espanhóis eram deuses.
NARRADOR - A derrota tem por causa
A lenda...
A profecia que se ouvia
Que pelo mar salgado
Numa enorme bola de fogo
Quetzalcoatl
Antigo deus-rei voltaria
Para tomar posse de tudo aquilo que por direito lhe pertencia
E de todos se vingaria.
O povo temendo a crença
Correu desnorteado para tudo quanto foi lado
Lançando desesperados gritos de horror e sofrimento.
183
Quanta dor...
E nenhuma resistência ofereceu
Ao poderoso conquistador
Que ali apareceu.
Os astecas acreditavam que os espanhóis eram deuses.
CORTEZ – Direi ao Rei de Espanha
É preciso conquistar a simpatia dos índios.
É preciso aprender os idiomas de todas as tribos.
É preciso saber qual espécie de gente habita esta região
É preciso conhecer os seus ritos, e a sua religião
Informo a Vossa Majestade, que neste momento a língua e a nação formam o corpo
histórico de toda paixão religiosa.
Senhores! Compreender esta civilização, tomar e destruir.
Compreender, tomar e destruir.
Heresia! Professa por um selvagem.
Impondo um Deus Pagão
Em gênero, em número, em grau
E modo
Ao lado
De um Deus Cristão!
(Não sei de quem é essa voz) – Cataeh maheh dô
Enfim eles chegaram
Pedra, areia, pó
Ponto final
Bendito seja o Novo Mundo!
MONTEZUMA – Dê a eles o ouro.
Dê a eles as mulheres.
Dê a eles tudo.
Dê a eles tudo o que quiserem
Mas lembre ao invasor
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Montezuma é o Rei!
PADRE – O grande rei asteca foi feito prisioneiro
Vestindo em hora cheia
A roupagem do refém
Em breve verá e sentirá o seu destino
Aquele que ousou um dia ser Deus.
NARRADOR – Em silêncio
Quando cai a noite
Guardando a distância
Os passos do colossal capitão
Pedro de Alvarado
Sob a luz da covardia
Massacrou um grupo de índios
Durante uma festa pagã
E a guerra começou.
MONTEZUMA – Eu não sou cristão!
É mentira o que dizem!
Eu não pedi o batismo.
Na minha cabeça, água eles jogaram
Amaram-me os pulsos
Em finos cortes recebi as mãos do meu povo
Velho costume dos portadores de bandeira branca
Cujo símbolo é a cruz
Assim eram tratados os prisioneiros
Não sou o traidor
Malinche foi quem provocou a maldição!
Não trago sal na boca
Não trago azeite na cruz
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(Ainda não sei de quem é esta voz. Não sei se é de Deus, de Montezuma ou da
consciência do Cortez)
VOZ – Cortez! Cortez! Cortez!
O que fizeste?
Assassino é quem priva o pobre do pão da vida.
Acorda Cortez! Acorda!
Para quê tanto ouro, Cortez?
Em qual gaveta esqueceste as tuas glórias?
Cortez!
Tudo isto fizeste em nome do teu Deus?
Cortez!
Poderoso foi Santo Agostinho
Que na escrita
Com tanta filosofia
Limpou o sangue da lâmina fria
Eximindo de ti, a culpa
Dando como escolha certa
A morte de inúmeras vítimas
Para salvar
Por meio do batismo
Pelo menos a alma de uma.
Cortez
O mundo é pequeno.
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FOTOS DO ESPETÁCULO FRANKENSTEIN
Fotos: Paulo Sene e Mariana Nogueira
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FOTOS DO ESPETÁCULO FRANKENSTEIN
Fotos: Paulo Sene e Mariana Nogueira
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FOTOS DO PROCESSO DE CRIAÇÃO DA CONQUISTA DO MÉXICO.
FOTOS: ATHEA A. PALLADINO
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FOTOS DO ESPETÁCULO UM ÔNIBUS CHAMADO... SP
FOTOS: ATHEA A. PALLADINO
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