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(...) Fizemos nossa reunião sem acta, sem assembléia, só de palavra e
disciplina, hierarquia: primeiro ele; eu depois; ele, na conclusão.
Então:
Ele: – Kene Vua! você camarada, está longe, longínquo desse mar,
estás fora, como queres voltar no nome?...
(e que isso não tinha problema, não era mais caso de demanda, inquérito
ou comissão para ouvir de relator, não tinha azar, o mar do Mussulo seria
sempre dentro de mim, portanto que, concluindo: kene divuua, não havia
azar, meu nome era de ficar)
Eu: – Camarada Comandante, licença?! É por isso mesmo, Kapapa
eu sou, desde essa areia do mar... Kapapa eu quero ser, revoltar...
(mostrei meus pés, largos, estreitos, chatos, de ângulos agudos muito
fechados, as puras asas da raia voadora e meu avô Kinhoka Nzaji, o que
brilhou seus relâmpagos de quinjango nas cabeças das colunas de
pacificação se ria os dentes inteiros dele, seus únicos octogenários – ele
despejou a água da cabaça-múcua do fundo da canoa em minha
carapinhas salariadas, me bombeou, disse: “Kapapinha, meu neto!”, gabava
a primeira raia que eu atravessava com ela, em meu arpão de prego-e-
bordão desde sempre)
Ele: – Kene Vua, Kalunga também é mar, por exemplo...
(só que eu fituquei: certo, correcto, dacordo, narmal: Kalunga eu até seria
se; cadavez, um dia outro, outra vida; mas meu mar ainda estava morar é
dentro de mim, marulho secreto; mesmo que em verde mata sofro de maré-
vazia de saudade, ainda tenho meus ocos, buracos e pedras – são sombras
vivas de mais; para Kalunga precisava ainda, para lhe merecer, encher
esses ecos de muitas mortes e muitas noites, muita luta, mais mar, tudo o
que esse nome esconde e homem vivo só encontra no pambo final da sua
estrada: “...a quarta não a conheço: o caminho do homem na morte...”)
Eu: – Então, eu espero. Para cobra, um dia são seus seis meses de
mudar a pele... (Idem, pp. 123 - 124)
Entre permanecer “sem azar” e “voltar a ser mar”, o protagonista d’O livro dos
rios demonstra estar convencido de que o percurso a ser traçado, visando à
renovação da sua identidade, está imerso em águas salgadas. Não aquelas que se
perdem no horizonte, tornando-se o último abrigo dos mortos – Kalunga –, mas
aquelas que roçam a margem, que se misturam à areia, reaprendendo, a cada dia, o
seu sabor.
Ao reinventar-se, enquanto Kapapa, a voz narrante do romance de Luandino
defende a aceitação da pluralidade. A imagem de Ndiki Ndia é tão cara à articulação