Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
ANA CARNEIRO CERQUEIRA
O “POVO” PARENTE DOS BURACOS:
mexida de prosa e cozinha no cerrado mineiro
RIO DE JANEIRO
2010
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
ii
ANA CARNEIRO CERQUEIRA
O “POVO” PARENTE DOS BURACOS:
mexida de prosa e cozinha no cerrado mineiro
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como requisito parcial à obtenção do título do
Doutor em Antropologia Social
Orientador: Marcio Goldman
RIO DE JANEIRO
2010
ads:
iii
Cerqueira, Ana Carneiro.
O “Povo” Parente dos Buracos: mexida de prosa e
cozinha no cerrado mineiro/ Ana Carneiro Cerqueira. –
2010.
362 f.:il.
Tese (Doutorado em Antropologia Social) –
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu
Nacional, Rio de Janeiro, 2010.
Orientador: Marcio Goldman
1. Sertão Mineiro. 2. Socialidade. 3. Conceito Nativo –
Teses.
I. Goldman, Marcio (Orient.). II. Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social. III. Título.
iv
ANA CARNEIRO CERQUEIRA
O “POVO” PARENTE DOS BURACOS:
mexida de prosa e cozinha no cerrado mineiro
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como requisito parcial à obtenção do título do
Doutor em Antropologia Social
Aprovada em:
____________________________________
Marcio Goldman, Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro
(orientador)
____________________________________
Moacir Gracindo Palmeira, Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro
_____________________________________
Eduardo Batalha Viveiros de Castro, Doutor, Universidade Federal do Rio de
Janeiro
_____________________________________
Ana Luisa Borralho Martins, Doutora, Programa de Estudos em Filosofia Antiga
_____________________________________
Mauro William Barbosa de Almeida, Doutor, Universidade Estadual de
Campinas
v
Ao povo dos Buracos e
À família Campos
vi
AGRADECIMENTOS
Infelizmente não é possível imaginar uma tese escrita por rios autores, mas
como se o fosse - aproveito para agradecer aos que tornaram possível a empreitada e
reforçar a importância determinante de suas presenças nos rumos deste trabalho.
Primeiramente, à turma do mestrado de 2004 e de seus agregados, que veio me
ensinando a encontrar alegria nesse ofício por vezes árido e solitário. Alguns
participaram direta e intensamente do processo criativo cujo resultado aqui se apresenta.
Camila Medeiros - presente antes, durante e depois do trabalho de campo - não poderia
ter sido mais generosa e amiga em todas as formas de ajuda que me deu; por tudo e
sempre, é “mesmo que irmã”, como se diz na roça. Paula Siqueira também participou
‘desde sempre’, além de ter feito o trabalho de revisão de texto que, por tão minucioso e
preciso, espero ter conseguido ao menos em parte incorporar. Cecília Mello socorreu-
me nos momentos de maior aperto com o aconchego da vizinhança em Laranjeiras e me
influenciou no mais crucial: a escuta atenta de nossas utopias. Na reta final, Marina
Vanzolini e Nicolas Viotti transformaram o duro processo de escrita em uma troca mais
do que prazerosa - nunca vou esquecer nossos momentos sãopedrinos. E também com
apreço será sempre lembrada a convivência proporcionada nesses últimos anos por
Antônia Walford, Luciana França, Júlia Sauma e Salvador Schavelzon, bem como por
André Démarche, André Guedes, Bruno Marques, Clara Flaksman, Edgar Barbosa
Neto, Felipe Evangelista, Felipe Sussekind, Flávio Gordon, Francisco Araújo, Gabriel
Banaggia, Indira Nahomi, José Renato Baptista, Levindo Jr., Luiz Felipe Benites,
Márcia Nóbrega, Maria da Consolação Lucinda, Marina Vieira, Patrícia Mafra, Thiago
de Niemeyer e Vanessa Vicka Pereira. Em especial, Julieta Quirós, Suiá Omim e Virna
Plastino.
Em Chapada Gaúcha-MG, é impossível nomear todas as pessoas que me
ajudaram e me influenciaram das mais diversas maneiras. Quis a sorte que eu
encontrasse ali as melhores condições que se pode esperar para se construir uma vida
“longe de casa”, o que foi feito graças às famílias que me fizeram “sentir em casa”. O
encontro com a família Campos é neste sentido um verdadeiro acontecimento. A
Manoel Ferreira Campos, bem como Vera Lúcia, Damiana, Diana, Daiana e Lucas
Souza Campos, devo meu amor incondicional. Igualmente, registro aqui a gratidão e
carinho incomensuráveis para com minha “vizinhança buraqueira”, sobretudo Rosa
vii
Gomes, Joaquim Pereira Gomes, Lúcia Pereira Gomes, Paulo Pereira Gomes, Santana
Pereira Gomes, Edivaldo Pereira Gomes (Nêgo), Damásio Pereira Gomes, Maria
Gomes Pereira (Rica), Damásio Pereira Gomes, Adagilza Pereira Gomes (Tutty), Maria
Pereira Gomes (Titia) e os filhos desta, Warlo e Antônio. O espaço aqui seria
pequeno para uma listagem completa, mas cabe mencionar as famílias de Zefa Carneiro,
Anésia, Cipriano, Guilherme, Zefa-de-Félix, Silu-de-Bastião, Juca, Dona Neném,
Nicolau, Jilvaldo, José de Eurotides e Joaquina. Em Ceilândia-DF, Edinalva Gomes
Pereira foi particularmente importante para que eu me sentisse bem.
Ao meu orientador Marcio Goldman, agradeço a maneira instigante e
apaixonada de conduzir seu trabalho, o que não orientou como “contaminou”
positivamente - com perspicácia e humor - todo meu trajeto de aprendiz em
antropologia. Ainda no Museu Nacional, tive o privilégio de conviver com professores
que nunca cessaram de alargar os limites de meu entusiasmo no exercício do
pensamento. Destaque-se neste ponto a presença de Eduardo Viveiros de Castro em
seus cursos e nas atividades do NanSi. Moacir Palmeira e seu grupo de pesquisadores
estiveram sempre por perto e me forneceram um material de reflexão fundamental.
Gilberto Velho foi figura chave no início de minha caminhada antropológica e devo a
ele decerto algumas de minhas inspirações mais primordiais, bem como os efeitos de
seus conselhos sempre atenciosos. Antonádia Borges desempenhou papel determinante
quando fui sua aluna no mestrado. Nos cursos de Luiz Fernando Dias Duarte e Lygia
Sigaud (in memoriam), tive a oportunidade de aprender perspectivas diversas e
igualmente estimulantes.
A Ana Luiza Martins Costa, agradeço pela ajuda no planejamento da viagem de
campo e pela participação nesta banca. Por este último motivo, agradeço também a
Mauro William Barbosa de Almeida.
O quadro de funcionários e prestadores de serviço do PPGAS-MN viabilizou
esta pesquisa da melhor maneira possível. Destaque-se o trabalho das “meninas da
biblioteca” por sua gentileza e eficiência, e do pessoal da xérox, Dona Carmem e
Fabiano. Ao CNPq, que me concedeu a bolsa de doutoramento, e às outras agências
financiadoras da pesquisa acadêmica no Brasil, devo igual reconhecimento.
Mariana M. Vale emprestou-me o Niva para a primeira viagem de campo. Não
bastasse ter sido o carro um personagem central em toda essa estória, ainda estava
protegido de São Jorge. Salve Jorge e nossa velha amizade!
viii
Sem esgotar a lista, cabe nomear ainda algumas das pessoas as quais, em
Chapada Gaúcha ou no Rio de Janeiro, me deram apoio de espécies variadas, o que
me resta fazer por ordem alfabética. Agradeço assim a Ambrosina, Ângela Rodrigues,
Barbara Manfroni, Bergs e Vitória, Carmem Andriolli, Gelma Ribeiro Gomes, Geraldo
Pereira Jr., Joana D’arc, Joana Cabral, Fábia Schnoor, Flávia Franco, Marcelo
Ernandez, Marcus Reis, Wagner Chaves. Ao grupo das “professorinhas”, agradeço no
nome de Antônia Farias, Marcia Pena e Marilene Pereira Lima. Ao “povo da Funatura”,
por sua gentil acolhida logo de nossa chegada em campo e por todas as parcerias em
andamento desde então, agradeço nos nomes de Cesar Victor do Espírito Santo,
Fernando Rodrigues Lima e Ernane Faria. À Prefeitura de Chapada, agradeço na pessoa
de José Raimundo Ribeiro Gomes e de Miguel Rodrigues Ribeiro. Aos funcionários do
então IBAMA, agradeço no nome de Kolbe Wombral Soares.
Last but not least, devo obrigado à minha família, especialmente minha mãe,
Maria José Carneiro. Pelo acolhimento, a convivência amorosa e as condições materiais
necessárias, qualquer palavra de reconhecimento seria pouca. Agradeço ainda ao meu
pai Rui Cerqueira Silva e aos “pais tortos” Alexandre Malta Rossi e Judith T. Fiszon. À
minha irmã Júlia Carneiro Rossi, que desenhou as genealogias no computador e me
socorreu em assuntos tecnológicos em geral, agradeço com especial ternura. Aos meus
irmãos Maria, Luiza, Pedro e André, agradeço pela presença de sempre.
ix
‘A espécie humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina ou
lógica, mas algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente’
(Guimarães Rosa)
Que tudo é desse mundo
Surpresa também
Espinho é bem mais fundo
Destino também
(Sérgio Sampaio)
x
RESUMO
Esta tese baseia-se em pesquisa etnográfica realizada no Sertão de Minas Gerais
(norte do estado), tendo como foco os modos de vida dos habitantes do Vão dos
Buracos, situado no município de Chapada Gaúcha-MG. Nosso ponto de partida traduz-
se na questão: como descrever o “povo dos Buracos” lançando mão do que seriam seus
próprios procedimentos descritivos? A descrição organiza-se a partir dos “modos” de
comer e de conversar deste “povo”, pois assim é ali vivida e elaborada sua diferença em
relação a “outros povos”. Por este caminho, busca-se traduzir um determinado
conhecimento sobre a sociedade buraqueira, o que se faz no movimento entre uma
‘tradição da escrita disciplinar’ e uma ‘tradição da oralidade popular’, no que a primeira
se deixa de algum modo afetar pela segunda. Considerando-se que se trata de uma
tradução entre línguas iguais, mas diferentes, ressalta-se o esforço em, diante das
homonímias e analogias, não supor uma semelhança de pressupostos. Alguns contrastes
entre os termos dos Buracos e os da antropologia fazem-se neste sentido fundamentais à
análise, guiando a exposição da economia conceitual buraqueira por meio de uma
espécie de sintaxe buraqueira. São eles: “povo”/‘sociedade’; “causo”/‘mito’;
“sorte”/‘sorte’; “sangue”/‘sangue’; “parenteza”/‘parentesco’; “família”/‘família’. Ao
longo da tese, cada um desses pares se desdobrará em outras relações conceituais.
Palavras-chaves: 1. Sertão Mineiro. 2. Socialidade. 3. Conceito Nativo
xi
ABSTRACT
This dissertation is based on an ethnographic research carried out in the
community of Vão dos Buracos, located in Chapada Gaúcha, municipality of Minas
Gerais’ Northern Sertão. It focuses on the livelihoods of its residents and aims to
describe the “povo dos Buracos”, using their own descriptive and conceptual
procedures. The present ethnographic description is built on this “people’s ways” of
eating and talking, practices in which their difference in relation to “other peoples” is
experienced and created. This dissertation aims to translate a certain knowledge about
the buraqueira society by letting the “tradition of anthropological writing” be affected
by the “tradition of popular orality”. Considering this is a translation between similar
yet different languages, one should not presuppose similarities in homonym terms or
analogies. Some contrasts between Buraco’s terms and Anthropological terms are
specially important for the present analysis, and have a crucial role in the description of
buraqueira’s conceptual economy. These are: “povo”/ ‘society’; “causo”/ ‘myth’;
“sorte”/ ‘fate’; “sangue”/ ‘blood’; “parenteza”/ ‘kinship’; “família”/ ‘family’. Each one
of these conceptual pairs will unfold other conceptual relations throughout this
dissertation.
Key-words: 1. Sertão mineiro. 2. Sociality. 3. Native Concept.
xii
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figuras no corpo do texto:
1) Mapa dos Buracos
2) A família de Quincas
3) A família dos Gomes Pereira Gomes
3.1) Esboço de genealogia completa do povo dos Buracos
3.2) Causo dos chegantes chegados
4) Causo do povo de Diva
5) Causo da Falecida Juçu
6 ) Os casamentos originários
7) Os Pereira Gomes que permaneceram nos Buracos
8) O povo do Ribeirão que veio dos Buracos
9 ) O causo do casamento cruzado com uma tola
10) O povo do Falecido Velho Sinésio
Anexos:
1) Tabela dos períodos de trabalho de campo e migrações observadas nestes
períodos
2) Fotos
3) Localização do município de Chapada Gaúcha-MG
xiii
LISTA DAS MARCAÇÕES GRÁFICAS
Termos ‘nativos’ efetuando articulações
conceituais.
“ ”
Palavras e trechos extraídos de autores
citados ou termos de uso ‘consensual’ na
antropologia.
‘ ’
Ênfase ou termo estrangeiro.
itálico
Inserções sobre ‘geografia’ e “parenteza”.
Book Antiqua
Trechos transcritos de falas gravadas.
Arrial Narrow
Subtração de trecho transcrito.
(...)
Interrupções na fala em trechos transcritos
/
xiv
SUMÁRIO
O “Povo” Parente dos Buracos:
mexida de prosa e cozinha no cerrado mineiro
Introdução – Palavra e parentesco ........................................................... 16
Prólogo – Primeiro deslocamento ............................................................. 28
Primeira Parte – Estudo de causo ............................................................. 46
Capítulo 1 – O rumo da prosa
1.1 – Chegantes chegados ............................................................................ 49
1.2 – O que é um causo? .............................................................................. 54
1.3 – O que é uma visita? ............................................................................. 72
1.3.1 – Duas visitas: análises de causos .................................................... 83
1.3.2 – Conversa de homem ...................................................................... 94
Capítulo 2 – Quem sabe contar?
2.1 – Aproximações: quem não caminha não conhece ................................ 106
2.2 – Saber a pinta pelo sangue (misturas) ................................................... 119
2.3 – A boa distância (em família) ............................................................... 135
2.4 – Sistema antigo: terra e palavra ............................................................ 138
2.5 – Quem sabe contar? .............................................................................. 150
Capítulo 3 – Conhecer de dentro da casa
3.1 – Pessoal, visitas e vizinhos .................................................................... 160
3.2 – Vizinhança gaúcha ............................................................................... 178
3.3 – Vila e Buracos: trânsito pessoal ........................................................... 193
3.4 – A roça da gente ou Modos de chamar .................................................. 209
3.5 – O modo da pessoa (cercas e opiniões) ................................................. 218
xv
Segunda Parte – Mexida de cozinha ........................................................ 230
Capítulo 4 – Sobre comer e ser comida
4.1 - Modo de comer (criação) ...................................................................... 231
4.2 - De mães e de tias .................................................................................. 240
4.3 - A farinha fofoqueira: folia, destino e sorte ........................................... 252
4.4 - Caçando rumo: diploma, TV e Brasília ................................................ 267
Capítulo 5 – Mulher é trem ruim
5.1 - Dois causos de diferença ....................................................................... 278
5.2 - Do amor e da dor (ruindades) ................................................................ 288
5.3 - Viagem ao curador ................................................................................. 293
5.4 - O doutor e o benzedor: saúde feminina ................................................. 308
5.5 - Praga de mãe pega (influências) ............................................................ 329
Terceira Parte – Considerações finais
Capítulo 6 – No tempo da política
6.1 – Política é uma festa .............................................................................. 338
6.2 - Rosa e Sertão (nota final) ..................................................................... 350
Referência Bibliográfica ............................................................................... 355
Anexos .......................................................................................................... 363
16
Introdução
Palavra e parentesco
A idéia de que determinadas palavras podem se tornar, pelo registro,
independentes do ‘contexto’ gerado por elas parece assustadora aos habitantes do “povo
dos Buracos”. Note-se que não me refiro a qualquer palavra, mas justamente àquelas
que criam seus próprios contextos de sentido, não raro na intimidade da casa. Ali o que
se diz não se encerra no verbalizado; mas é reconhecido na imagem da relação criada -
no momento da prosa - entre quem fala e quem escuta. Ali a conversa é movida por um
“cálculo” particular. Tomei nota desta idéia quando, em trabalho de campo, precisei
‘digerir’ o fracasso recorrente em minhas tentativas de entrevista gravada nos Buracos.
Para o bom entendimento da conversa cotidiana, é necessário certo “cálculo” dos
interlocutores, observei então. Nos Buracos, é recorrente a rmula estava de cálculo
de ir, mas não deu certo”. O mesmo ocorre com o fluxo da palavra; por exemplo
quando, Fulano disse isso no cálculo que eu dissesse aquilo”. Talvez por isto, nas
ocasiões de entrevista gravada, minhas conversas até ali fluentes se interrompiam no
momento em que eu ligasse o gravador, transformando-se automaticamente em
silêncios constrangedores ou respostas monossilábicas. O que me falavam na prosa
diária não se repetia diante do aparelho.
Não que o registro da palavra se mostrasse ali uma tarefa perigosa em si; minhas
gravações audiovisuais das Festas de Folia, por exemplo incluindo as “palestras”,
“versos” e “rezas” que tais ocasiões demandam - nunca se mostraram problemáticas. Ao
contrário, eram-me solicitadas por pessoas que, diante da câmera de vídeo ou do
gravador sonoro, passavam a “conversar” com mais entusiasmo do que antes. Nestes
casos, o gosto era por registrar conversas nas quais os “modos” já se consideravam mais
ou menos previsíveis, ‘ritualizados’; tornavam-se “cultura”. Na circulação rotineira de
palavras, por sua vez, o receio de imaginar a si mesmo sendo ouvido alhures parecia
consistir no medo de abandonar o “cálculo” dos efeitos do que se diz e,
simultaneamente, se deixa de dizer; seja para ocultar, seja para comunicar de outra
forma, seja para ‘jogar’ com a reação de quem ouve. Procurarei adiante etnografar tanto
o que ‘eu’ denominei aqui ‘efeitos’ quanto o que ‘eles’ costumam chamar “cálculo”.
17
A “conversa” de uma pessoa indica, no vocabulário buraqueiro, o “modo”
particular com que se fala, isto é, a sonoridade, a velocidade e o tom de voz, bem como
a informação que se a ouvido alheio. Afirmar não gostar da “conversa” de uma
pessoa é maldizer o próprio “modo” com que esta se relaciona com os outros, assim
como quando se diz não se lhe apreciar o “sangue”. Um sujeito “sangue ruim”, como
um “prosa ruim”, é alguém de quem se desgosta, “o modo não dá bem”. Cada povo tem
seu “sistema de prosa”, explicam-me os buraqueiros. O “povo dos Buracos”, o “povo
mineiro”, “o povo baiano” ou o “povo gaúcho”, cada qual tem o “sistema”, diferindo-se
ou se identificando por uns em relação aos outros. Mas o que é “sistema”?, pergunto.
Ah... é o “modo de comer, o modo de conversar”, respondem-me imediatamente.
Assim, a definição do “sistema” ou o “modo” - como a do “sangue” e da “prosa’ - diz
respeito às formas particulares assumidas por “pessoas” ou “povos”. Nos próximos
capítulos explorarei essas maneiras buraqueiras de conceituar sobre tais operadores
distintivos. O “povo dos Buracos” constitui-se majoritariamente por relações de
descendência e/ou aliança que se assumem ali conforme o “sistema” reconhecido nas
maneiras pelas quais a comida “puxa” a prosa, que por sua vez “puxa” a comida e daí
por diante. Por esta circulação, se cria intimidade”, como dizem os buraqueiros na
expressão que pode ser entendida como a da matriz relacional da “parenteza”, no
sentido de esta é o fenômeno pelo qual umas pessoas “puxam” outras (capítulos 1, 2 e
3) quanto no de que se caracteriza pela rotina de dar e receber o de-comer (capítulos 4 e
5).
Por tal “sistema”, a concepção buraqueira de “parenteza” reveste-se de um
“conhecimento” sobre o “povo” fundado antes nos modos de combinação que o
constituem do que nas fronteiras que se supõem defini-lo, sendo estas, por definição,
provisórias
1
. Neste sentido, cabe aqui justificar meu próprio uso da idéia de “povo
buraqueiro”. Farei aqui referência a esta designação não para delimitar suas atribuições
como exclusivas. Ao contrário, dizer “buraqueiro” muitas vezes é o mesmo que dizer
“povo mineiro” ou “povo da roça”, veremos, mas esta indefinição não é aqui um
1
O alargamento da noção de conhecimento É possibilitad pela idéia de ‘parentesco’ como ‘prática de
conhecimento’, conforme alguns desenvolvimentos da antropologia que se pode chamar ‘pós-
schneideriana’ (cf., entre outros, Carsten, 2000). Pensar o processo de seleção das relações incluídas na
definição do povo d’Os Buracos é neste sentido pensar uma espécie particular de interconectividade.
Imagino este processo algo à maneira formulada por Edwards (2000), isto é, como um conjunto de
práticas de diferenciação contínua, onde certas coisas são selecionadas e conectadas de determinados
modos sendo que, para isto, outras sejam necessariamente ignoradas. Traduzir (na ‘mesma língua’) os
‘conceitos’ (ou conjuntos) envolvidos nas definições deste povo pode ser resumido, portanto, como o
esforço em entender o que é ali selecionado e como isto é feito.
18
problema, se não um traço da própria concepção de “povo”. Até que ponto o que
identifico como particularmente buraqueiro pode ou não se estendido a uma área
maior ou menor é uma questão a ser enfrentada com atenção, mas não será nossa tarefa
aqui.
Meu ponto de partida traduz-se na questão: como descrever o “povo dos
Buracos” lançando mão do que seriam seus próprios procedimentos descritivos? Digo
seriamporque a preocupação em conceituar o “povo” é ‘minha’, ou ‘nossa’, e não
‘deles’. Mas isto não a impede de reverberar do ‘lado de lá’, mobilizando um conjunto
de “conhecimentos” que os buraqueiros me transmitem e elaboram como
particularmente seus. Esta tese organiza-se pela descrição do “modo de comer e de
conversar” do “povo dos Buracos”, pois assim é ali definida sua diferença em relação a
“outros povos”, o que nos fornece uma via de investigação interessante, a de descrever
este “povo” conforme seus próprios modos de organizar suas descrições. Poder-se-á
notar que o “conversar” assume primeiro plano na presente análise: o “comer”,
veremos, interessa à medida que aparece como espécie de zona sombria do primeiro,
alargando-lhe o sentido. Se minha reflexão vantagem à prosa em detrimento do de-
comer, decerto pesa o fato de que nela se fundam os modos descritivos da própria
antropologia; mas é importante notar que isto não tenha me impedido de chegar
justamente aonde o sentido não conta de ser verbalizado. Como na “mexida de
cozinha”, as prescrições de um ‘saber fazer’ não encerram a totalidade de seus efeitos,
seja na comunicação ou no de-comer degustado. E é que o esforço em descrever o
“modo de conversarburaqueiro não se separa do que se define ali por seu “modo de
comer”. A segunda parte desta tese buscará dar alguma amostra desta área de
indiscernibilidade notando como, na comida ou na prosa, podemos reconhecer um
determinado “modo de fazer”.
Voltemos portanto ao “cálculo”. A noção tal qual empregada pelos buraqueiros
pode ser parcialmente traduzida pelo que nomeamos ‘conhecimento’. Contudo, ressalte-
se desde o perigo desta tradução entre duas ‘línguas’ iguais, mas diferentes: a dos
Buracos e a da antropologia. O “cálculo” de também se conecta com o que ‘eles’
chamam “conhecimento”, conquanto este seja, entre nós, menos indicador do que
‘nós’ costumamos chamar ‘conhecimento’, aproximando-se, por outro lado, do que
reconhecemos em geral na idéia de ‘relação pessoal’. O ‘cálculo’ de cá, por sua vez,
também é por nós associado ao que chamamos ‘conhecimento’, porém de maneira
completamente distinta da primeira associação: não devemos, pela analogia entre os
19
pares de homônimos, supor uma semelhança evidente entre seus pressupostos. Se o
conhecimento ‘deles’ se traduz por uma relação de amizade, os efeitos de seu cálculo
não são, como o termo nos sugeriria, elementos previstos por um jogo de estratégia, mas
antes ofertas de confiança em um jogo de astúcia, um jeu de ruse
2
.
Ressalte-se por que a tradução desta ‘outra’ ngua, a do povo buraqueiro, é
antes uma traição à ‘nossa’ própria língua, conforme sugere Viveiros de Castro (2005:
147) ‘parafraseando Walter Benjamin (ou antes, Rudolf Pannwitz)’. E se é necessário
resgatar um conjunto de autores para pensarmos sobre as vias de compreensão do que se
diz ‘do lado de lá’ (da ‘língua traduzida’ e não da escrita de destino a que ora me remeto
como ‘nossa’), é porque o procedimento de ‘tradução’ se executa aqui como um
‘agenciamento’
3
. Neste sentido, deve-se aliás estender a cadeia de autores: Goldman
(1999b: 80) também observara que ‘A boa tradução seria aquela capaz de “trair” seu
próprio idioma, no sentido de contaminá-la com uma “fecundante corrupção”’, no que a
idéia se vincula ao que escreveu Guimarães Rosa (1956: XXV-XXVI apud Goldman,
1999b) sobre o resultado um tanto abrasileirado’ da tradução de Paulo Rónai para a
edição da Antologia do conto húngaro, organizada também por este. No prefácio ao
livro, Rosa confessa que teria apreciado ‘um arranjo temperado à húngara (...). Mesmo à
custa de, ou franco e melhor falando mesmo para haver um pouco de fecundante
corrupção das nossas formas idiomáticas de escrever’. É curioso, acrescenta Goldman
(1999b: 82), que anos depois Asad (1986) tenha ‘aparentemente reinventado a posição
de Rosa a respeito da tradução’ a coincidência compreende-se na relação entre a
prática da tradução e a da antropologia.
‘Ora, se levarmos em conta que o trabalho antropológico é freqüentemente
assimilado a uma forma de tradução cultural, o modelo de Rosa poderia ser
legitimamente ampliado: expandir e aprofundar uma língua através de outra,
estrangeira, pode significar também expandir e aprofundar uma experiência
cultural através de outra, igualmente estrangeira’. (Goldman, 1999b: 80)
Tal trabalho de ‘traição’ será realizado aqui por meio de traços comparativos -
relações estabelecidas com base em criações de analogias, diferenças e toscas
aproximações, tanto entre o que existe ‘cá’ e ‘lá’ quanto internamente às criações
conceituais ‘nossas’ e ‘deles’. A idéia é produzir, como formula Viveiros de Castro
(2002c: 119). ‘a mútua implicação, a comum alteração dos discursos em jogo, pois não
2
A expressão é usada por De Certeau (1990: 42-51) em sua reflexão sobre a noção de « cálculo » algo
aproximada às de Guattari (1989), Lévy (1987) e Stengers (2005; 2003).
3
Sobre a noção de ‘agenciamento’, ver Deleuze e Guattari (1975: 112) e Zourabichvili (2004: 20).
20
se trata de chegar ao consenso, mas ao conceito (grifo meu). Saliento que os
movimentos aproximativos devem ser entendidos como identificações apenas parciais.
As menções à literatura antropológica ao longo do texto raramente intentam indicar um
sentido comum entre a conversa buraqueira e o que de homonímia entre esta e a
produção acadêmica. Inversamente, o que se busca é dar abertura e visibilidade aos
equívocos em que esta última poderia decorrer diante do vocabulário homônimo
oferecido pela primeira. O confronto visa deslindar aproximações e distâncias para, na
escrita, deixar intervirem ‘variáveis que não estão imediatamente dadas, que não são
precisamente “atuais”, mas, como “virtuais-reais”, podem ser acionadas e agenciadas’
(Goldman, 1999b: 80)
4
.
A descrição aqui buscará um intermezzo criado por pequenos deslocamentos de
sentido; no movimento entre uma ‘tradição da escrita disciplinar’ e uma ‘tradição da
oralidade popular’, no que a primeira se deixa ‘afetar’ pela segunda. De um lado, a
‘oralidade buraqueira’ surge como discurso singular, criado no encontro proporcionado
pela situação etnográfica. De outro, a ‘tradição escrita’ assume uma forma tão ampla
quanto vaga, à maneira do que imagina Sahlins ([1996] 2004: 564) ao propor ‘uma
“arqueologia” do “discurso” dominante nas ciências sociais’. É ‘na condição de turista
antropológico’, recolhendo ‘aqui uma genealogia intelectual e, ali, um fragmento do
folclore acadêmico’, que o autor constrói um quadro genérico da produção intelectual
do Ocidente. Este ‘quadro’ é aqui um pano de fundo - na maior parte do tempo,
eclipsado pelo vocabulário ‘buraqueiro’. Quando apontada por meio de um e outro autor
citado, ‘a teoria’ será explicitada como contraste, para atualizar virtualidades de ‘nosso’
pensamento. Ao apresentar um “povoque fala a ‘nossalíngua, a oposição ‘nós/eles’
faz-se especialmente trabalhosa. Nem sempre convém esquecer que o objeto de estudo
em questão ‘vem do Ocidente’. Porém, em linhas gerais, é a diferença que se pretende
aqui colocar em primeiro plano. Afinal, de que se trata a ‘diferença’? Certamente, nesta
tese, não imagino encontrá-la como um conjunto de propriedades a serem localizadas
alhures, conforme seria uma investigação calcada no modelo da ‘diversidade cultural’
ou da ‘biodiversidade’. A exemplo do que formulou Ingold
5
, não compreendo que a
antropologia possa enxergar a ‘diferença’ a não ser por meio do próprio gesto da
4
O conceito de ‘virtual-real’ utilizado por Goldman provém do elaborado por Deleuze e Guattari (1980:
126).
5
Trata-se de uma intervenção feita por Ingold na ocasião de um debate exposto por Corry, Wilson Jean-
Klein e Hutnyk (1999: 47), no departamento de antropologia da universidade de Manchester, em torno da
moção ‘The Right to Difference is a Fundamental Human Right’.
21
comparação: é preciso haver alguma forma de relacionalidade comparativa, construída,
para que se tenha o contraste da diferença. Por este procedimento, notaremos
eventualmente como a própria produção acadêmica se constitui de singularidades,
diferenciações internas produzidas na sinergia entre criações conceituais dos povos
estudiosos e dos povos estudados. O “povo” dos Buracos, portanto, não pode ser
compreendido como um ‘ente’ separado de ‘nós’ por uma distância mensurável de
antemão.
Contar causo, prosear, conversar, falar, maldizer, fofocar, dar dois dedos de
prosa, dar um plá, palestrar, contar mentira, bestar, barulhar. A diversidade de
expressões existentes nos Buracos para definir a circulação rotineira de palavras dá-nos
uma idéia de como a prática da “conversa” é uma questão de interesse para o povo dos
Buracos. A gente conversa e nem o tempo passar! A gente conversa e até perde o
sentido!, dizem os buraqueiros a respeito de seu gosto pela prosa. Uma pessoa que “não
sabe prosear” é uma pessoa que vive algo à revelia da socialidade buraqueira, conforme
ocorre com os “tolos” e os “doidos”. Todavia, não se deve inferir disto que a palavra
necessariamente conecta’. As possibilidades de ruptura estão mais ou menos previstas
em uma determinada interlocução, e a quantidade de pequenos “cálculos”, como em um
jogo de especulação - ou de astúcia depende de um conjunto de elementos
situacionais. A relação entre falantes vai sendo posta em ação à medida que
combinações de palavras e gestos silenciosos se sucedem, cada qual “colhendo o que
plantou”. Às vezes o “cálculo” não funciona, e as palavras se tornam, no dizer
buraqueiro, “o mesmo que dar veneno”; os falantes conflitam-se e eventualmente disto
decorre a suspensão definitiva de suas trocas verbais. Às vezes, o ardil é uma ofensa
sutil, por exemplo um “desdizer” uma briga pregressa; e seu efeito dependerá da tática
do outro. Como conta Bailey (1974: 13) sobre os habitantes de uma pequena aldeia nos
Alpes franceses, o ‘uso tático das pistas que comunicam uma impressão, administram
uma situação (...) gera uma formidável sofisticação e complexidade’ na conversa entre
aqueles que são ‘mestres da mesma linguagem’. Gifts também carregam poisons,
escreve o autor, para mostrar em seguida o poder de eloqüência do laconismo entre
aldeões franceses.
Esta ambigüidade própria à linguagem oral de modo geral não constitui uma
forma vaga de dizer as coisas, mas sim uma rica gestão da multiplicidade de sentidos
dada por certas prosas, abrindo-se espaço ao jogo da prosa, à brincadeira de cálculo. A
preocupação em evitar que a palavra verbalizada se transforme em “veneno” reveste-se
22
de esforços deliberados para torná-la aprazível, um trabalho cujo gosto se cria à medida
que afasta o perigo de uma palavra ‘mal-dita’. A primeira parte desta tese dedica-se a
descrever este prazeroso esforço buraqueiro; a segunda fornece alguns elementos sobre
o que aparece neste como um ‘pressuposto’, o do perigo latente em qualquer palavra
verbalizada. Segundo me foi certa vez formulado, a pior guerra que se pode fazer a
alguém é a guerra verbal. A fofoca é prima do feitiço, disseram-me noutra feita.
Falei acima em línguas iguais, mas diferentes’. Caberia ser mais precisa e
reconhecer uma diferença não de ‘línguas’, mas de ‘linguagem’; o equívoco entretanto
foi proposital: é preciso carregar a distinção para que, ao ‘produzir a mútua implicação’,
os povos de ‘cá’ e de ‘lá’ nos possam mover à reflexão. A possibilidade de nos
deslocarmos no interior de nossa própria ‘língua’ mobiliza assim o artifício de
linguagem calcado em um trajeto particular em direção à alteridade. E a distinção entre
‘nós’ e ‘eles’ é por certo a criação primordial deste procedimento discursivo. Podemos
mesmo imaginá-la como fundamental ao ofício antropológico chamando-a ‘invenção da
cultura’, a exemplo de Roy Wagner (1979)
6
. Mas se aqui inicio por explicitá-la é para
adiantar que, ao longo deste trabalho, ela será ao contrário apenas um personagem
coadjuvante. Em aparições aqui e ali, a cada vez que o texto chegar a ponto de ‘cuidar
da bibliografia’ será com o intuito de explicitar - pela relação entre criações conceituais
- diferenças internas e externas às palavras buraqueiras, e não com vistas a definir ou
sobrecodificar estas lançando mão daquela. As referências à bibliografia pretendem-se
aqui pequenas paradas no “rumo da prosa”; interrupções tais quais os comentários entre
parênteses que se fazem para situar o ouvinte em um detalhe ou outro do causo que se
conta. No mais das vezes, entretanto, imagino que o leitor poderá encontrar-se indeciso
quanto ao uso da linguagem, entre a ‘análise da antropóloga’ e a ‘fala dos nativos’.
Trata-se de uma intenção deliberada da escrita e aqui nos convêm algumas justificativas
e esclarecimentos a este respeito.
Primeiramente, note-se que algumas palavras e nomes próprios poderão aparecer
aqui e ali com algumas variações. “Chapada”, por exemplo, será em geral empregada
em referência à cidade de “Chapada Gaúcha”, sede do município homônimo onde se
encontra o povo dos Buracos, mas poderá ser substituída pelo termo “Vila”, pois assim
ela é às vezes ali denominada, numa corruptela à “Vila dos Gaúchos”, como se chamava
6
Conforme destaca Strathern (1999), não se pode absolutamente confundir esta oposição ‘nós/eles’ com
uma imagem essencialista da diferença, o que se passa aqui é, ao contrário, um artifício descritivo
deliberado; um procedimento puramente metodológico, poderíamos dizer.
23
a cidade antes de sua emancipação municipal. Estas variações dizem respeito portanto a
um processo de transformações. Nessas diferentes designações, notam-se diferentes
relações entre pessoas e lugares no transcurso de um determinado tempo. O mesmo
ocorre nos modos diversos de chamar uma pessoa, seja o apelido, o nome completo ou o
nome alterado por uma pronúncia singular (como “Orotides” no lugar de “Eurotides”).
Ainda sobre as deliberações da escrita, a mais delicada foi a de não substituir os nomes
próprios por nomes fictícios. Neste caso, não se trata de uma escolha fundada, mas
simplesmente de uma intuição. Primeiro, julguei que a maioria dos buraqueiros,
sobretudo os mais “chegados” meus, iriam se sentir decepcionados caso vissem que o
‘livro sobre os Buracos’ não os mencionasse pessoalmente. Segundo, mudar os nomes
parecia-me abrir mão de uma beleza própria àquele campo; seria como mudar a sorte
daquele encontro. Afinal, não é à toa que existem Marias e Joãos em profusão, bem
como Reis, Antônios e outros tantos nomes de santo. Os nomes próprios têm sua
gravidade própria; por que não dizer uma poesia própria, como a do acaso corriqueiro,
da sorte que nos ‘faz fazer’ rima, como no caso da “prosa de rosa”, ou em imaginar
homonímias insuspeitas, como [Dona] Rosa e [Instituto] Rosa, para não falar no
reputado [Guimarães] Rosa. Assim, incorporo as variações criadas na profusão de
modos de chamar uma mesma pessoa nos Buracos como “Dos Reis” que se torna
“Deyse”; “Anísio” que se chama “Nísio” ou “Joaquim”, o “Quinca”, “Quincas” ou
“Quinca-Branco”.
Não pretendo aqui absolutamente buscar uma grafia ‘adequada’ aos fonemas
correspondentes, mas sim jogar com a sonoridade diversa tal qual fazem os próprios
buraqueiros ao notarem as diferentes pronúncias entre jovens e velhos, gaúchos e
mineiros, povo de roça e de cidade, dpor diante. As diferenças são explicitadas, por
exemplo, no hábito dos adolescentes em escrever seus nomes próprios e os de seus
parentes nas paredes de suas casas. Quando observadas numa conversa, as
caracterizações assumem uma dimensão reflexiva, em geral bem humorada, e são
eloqüentes sobretudo quando envolvem as distâncias entre quem parte para morar na
“cidade” e quem fica na “roça”. Certa vez, provoquei a gargalhada geral ao procurar
imitar o modo de conversar buraqueiro usando a fórmula Diz’quecomo expressão de
algo que eu sabia “de ouvir falar”. O que é dich-que?, imitaram-me os outros por seu
turno, emendando, É Disque-Denúncia? E caíram na risada de novo. Depois disto, o
episódio tornou-se piada recorrente entre mim e Tutty, vizinha buraqueira e então
também minha afilhada de crisma. Ela afirmava que seu povo não usava tal expressão e,
24
à custa de minha insistente observação ao participarmos das conversas buraqueiras,
argumentou que, na verdade, estavam dizendo dizem que”. Seria talvez correto,
portanto, que eu optasse aqui em escrever o verbo no plural, o que não faço. Opto pela
grafia Diz’que. Se isto indica uma deficiência de meu próprio ouvido, está o ponto de
interesse, pois assim é o procedimento dos jovens buraqueiros, por exemplo, quando
riem do modo de conversar do “povo antigo”: “muié”, e não mulher; “enterter”, e não
entreter; dore, e não dor, reparam eles. Não abusarei dessas variações, mas lanço o
delas eventualmente com um objetivo algo imitado dos buraqueiros, o objetivo da
“brincadeira”. Veremos que a comicidade é, nos Buracos, um recurso tão reflexivo
quanto criativo, e neste sentido a alteração da grafia ‘correta’ visa chamar atenção para
a maneira com que o uso de certos termos, ao estabelecerem uma cadeia de associações,
guarda um ‘efeito de conceito’.
Por que tomar a fala buraqueira por ‘criação conceitual’? Importante dizer que
não se trata absolutamente de um esforço em ‘promover’ a narrativa ‘nativa’ à posição
de um privilegiado e suposto saber, o do ‘conceito teórico’. O que se quer é
simplesmente atribuir ao pensamento do outro o efeito que ‘nós’ damos ao conceito, e
não ao que julgamos por ‘crença’. Esta última é uma atribuição de valor que reduz a
diferença à mera curiosidade, ao folclore, impedindo-nos de imaginá-la como produção
de um pensamento outro; e é justamente sobre este que pretendemos lançar foco.
Alinhar os procedimentos intelectuais ‘deles’ ao ‘nossos’ é portanto a condição dada por
minha própria deficiência, pois que se trata do único plano do qual disponho para
pensar. Mesmo que seja para pensar o pensamento alheio, afinal, conforme ressalta
Viveiros de Castro:
‘Meu ponto de vista não pode ser o do nativo, mas o de minha relação com
o ponto de vista nativo. O que envolve uma dimensão essencial de ficção, pois se
trata de pôr em ressonância interna dois pontos de vista completamente
heterogêneos’. (Viveiros de Castro, 2002c: 123)
Tal brecha criativa, em certo sentido ‘ficcional’, permite que a rigor qualquer
palavra ou expressão observada como particularmente buraqueira possa aqui ser feita
‘conceito’. Porém, nem todas se prestam ao nosso esforço com a mesma desenvoltura.
Cabe listar aquelas que assumirão lugar determinante em nossa exposição da economia
conceitual buraqueira, todas elas de algum modo relacionadas a um conceito análogo de
nossa ‘tradição’: “povo”/‘sociedade’; “causo”/‘mito’; “sorte”/‘sorte’; “sangue”/‘sangue’
25
; “parenteza”/‘parentesco’; “família”/‘família’. Note-se que cada um desses pares se
desdobra em outras relações conceituais. Ao lado de ‘sociedade’, por exemplo, estão as
idéias ‘comunidade’, ‘estrutura’ e mesmo ‘povo’. Ao lado do outro “povo”, estão
“parenteza”, “terra”, “família”, “pessoa”, “sistema”, “sangue” e daí por diante. Entre
homônimos, o desdobramento pode ser ainda mais interessante: o “sangue” deles é o
‘sangue’ nosso, mas é também a “prosa” deles; e assim o que para nós é ‘palavra’,
oposto da ‘matéria’, é “sangue”, evidência da mesma. Minha descrição orienta-se
como explanação desses arranjos conceituais tornados a ver no encontro com o “povo”
de lá. Esta operação teórica está algo inspirada no tratamento que Deleuze e Guattari
(1980: 634) fazem, por exemplo, dos conceitos de ‘desterritorialização’ e ‘território’: ‘a
função de desterritorialização: D é o movimento pelo qual ‘se’ deixa o território’,
escrevem os autores, de modo que um termo se define na relação com o outro.
Zourrabichvili (2004: 45) chama atenção para isto ao notar que o termo
desterritorialização ‘não forma por si um conceito’; sua significação, diz o autor,
depende de três outros elementos: território, terra e reterritorialização, ‘o conjunto
formando em sua versão acabada o conceito ritornelo’. O conceito povo vê-se aqui
como artifício central desta criação conjuntos, reunindo em sua própria composição
todos os termos de nossa lista de ‘conceitos nativos’. O que “puxa” o povo para cá e
para lá? O que o anima, lhe dá ‘vida’?
Os elementos buraqueiros que me ajudam a encontrar respostas associam-se ao
modo do que Malinowski (1935) chamou ‘teoria etnográfica’, isto é, um modelo de
compreensão que, embora criado no e para um contexto particular, possa dar
inteligibilidade a outros contextos pesquisados. A “conversa” dos buraqueiros,
explicam-me estes, é constitutiva do próprio “modo” de seu “povo”, isto é, antes de
produzir informação, produz o próprio plano da socialidade, dando forma à relação que
então se cria. Assim, na atenção cuidadosa ao gosto da prosa”, os buraqueiros nos
ajudam a refletir sobre a questão geral das formações coletivas. Não à toa o potencial
articulador da noção povo evidenciara-se diante de mim de saída: parecia-me
impossível descrever o “povo dos Buracos” como unidade definível pela “terra” que lhe
nome, a terra dos Buracos. Como descrevê-la? A maneira como ali o deslocamento
humano participa do modo de vida cotidiano impedia-me de enumerar os moradores
daquele espaço, obrigando-me a qualificar a descrição com detalhes sobre os
deslocamentos pessoais e familiares, marcados pela contingência da “sorte”. O “povo
dos Buracos” é o “povo parente”, “os da família dos Gomes Pereira”, explicam-me os
26
buraqueiros. Identificando-se com a “parenteza”, o “povo” se espraia pelas “cidades
grandes” para as quais migraram os “aparentados”, mas imediatamente se reconduz a
uma noção mais fisicamente restrita ao se dizer que os Gomes Pereira todos moram nos
Buracos, à beira do rio Calengue. Ou então ao se afirmar que, do povo dos Buracos,
existem uns poucos que não são parentes. O movimento humano tornou-se então, em
minha análise, elemento prioritário na definição do espaço que eu descrevia. Tal
movimento não se reduz aos deslocamentos realizados nas estradas que levam até
Chapada cada vez mais transitadas desde o surgimento de Brasília -, também envolve
telefonemas e outros modos de comunicação (ou de circulação de “modos”). Assim a
“terra” dos Buracos, os contornos do espaço no qual se ordenam seus modos de viver e
se relacionar, movem-se conforme a circulação de palavras e pessoas, seja nas estradas
que levam longe os parentes, nos telefonemas entre os que foram e os que ficaram ou
nos causos que trazem ao lugar atual as marcas do “tempo de primeiro”. Analogamente
à idéia de ‘território’ deleuzeguattariana, o território buraqueiro não se limita ao lugar
geográfico, pois é ‘existencial’: ‘não é primeiro em relação à marca qualitativa, é a
marca que faz o território. As funções num território não são primeiras; elas supõem,
antes de tudo, uma expressividade que faz território’ (Deleuze e Guattari, 1980: 388).
Nos Buracos, quando se faz menção ao termo “povo”, pode-se estar referindo
seja a todos os que se incluem nas duas linhas de descendência buraqueiras, seja a uma
determinada “família” composta por uma linhagem específica (‘núcleos familiares’ dos
avós, filhos e netos), seja às pessoas que moram em uma única casa (o ‘núcleo
familiar’). A expressão “povo de Fulano” indica não descendentes como alguns
parentes por afinidade, em geral noras e esposas, um modo de inclusão portanto. Por
outro lado, a expressão “o povo está falando” dá ao termo uma idéia de alteridade, sua
fórmula equivalente é “os outros estão falando”. Esta labilidade do ‘objeto’ “povo” é
assumida na tese como opção narrativa. Neste sentido, é importante notar que toda vez
que me refiro a “povo dos Buracos”, ou “os buraqueiros”, é para me referir àqueles que
estou nomeando como tal, o que pode ser aplicável ora exclusivamente àqueles que
vivem nos Buracos, ora à “família de aparentados” que se expande até Brasília e São
Paulo, ora a todos os habitantes do município de Chapada Gaúcha-MG, ora aos que
moram na área rural ao norte do estado de Minas Gerais, reconhecidos ali como
“mineiros da região”. Ressalte-se que - a exemplo do que afirmei sobre o emprego da
desginação “os buraqueiros” a área geográfica de aplicabilidade dos dados específicos
de ser vagamente inferida de acordo com os elementos fornecidos no texto, mas não
27
será pré-estabelecida. A que ponto um e outro dado etnográfico, apresentado aqui
como particularmente “buraqueiro”, se estende a outras “terras” é ainda uma questão em
aberto, a ser por certo enfrentada futuramente, noutra ocasião. Aqui, interessa saber
apenas como, no espaço delimitado por minhas notas de campo, o conceito povo se
atualiza em formas particulares.
Vale observar que, quando os buraqueiros dizem “o povo de Fulano”, por
exemplo para contar quem estava em determinado lugar, não se importam em
quantificar os “sujeitos” - um ou vários, será “o povo”. O “povo” é então uma
‘multiplicidade’, no sentido de Deleuze e Guattari (1968: 236): o uno e o múltiplo não
são alternativas em questão
7
. Por outro lado, em ocasiões como a da Festa do Encontro
dos Povos do Grande Sertão, organizada pela Prefeitura local e por ONG’s, o povo dos
Buracos se auto-nomeia “comunidade dos Buracos” e se organiza como um todo auto-
suficiente que se reparte em grupos como os de ‘gênero’ e ‘geração’, apresentando-se
em subgrupos que sobem ao palco para mostrar cantos e danças, sua “tradição”, “a
cultura dos homens e a das mulheres”. Tal dispositivo de homogeneização do coletivo é
contudo algo instável, pois, como afirmam freqüentemente os buraqueiros, “o povo é
desunido”, e assim a recriação de “povosem suas múltiplas dimensões é tão constante
quanto a circulação do vocábulo “povo” pela terra dos Buracos
8
.
A idéia de explorar esta variação contínua das significações dadas pelo ‘conceito
nativo’ de “povo” abre oportunidade de re-imaginar alguns dos problemas trazidos pelo
debate sobre o conceito de ‘sociedade’ (cf. Strathern e Toren, 1996). De um lado, os
movimentos de aproximação e afastamento, conectividade e ruptura, acionados pela
idéia de “povo” nos remetem à noção de ‘socialidade’. De outro, não se pode perder de
vista que o termo é em muitas ocasiões utilizado no sentido do que chamamos
‘sociabilidade’, isto é, evoca o elemento moral que se faz ora e outra aparente: que o
“povo” seja “unido” é um dever ser explicitado em inúmeras ocasiões pelos buraqueiros
(capítulo 5)
9
. Os termos ‘socialidade’ e ‘sociabilidade’ tornam visíveis diferenças
internas ao conceito de ‘sociedade’, que deve ser aqui entendido como operador de
contraste fundamental à noção de “povo” que pretendo expor. Não me caberá adentrar
7
‘A multiplicidade não deve designar uma combinação de múltiplo e de um, mas, ao contrário, uma
organização própria do múltiplo enquanto tal, que não tem necessidade alguma da unidade para formar
um sistema’ (Deleuze e Guattari, 1968: 236).
8
Nos processos de homogeneização interna, o “povo” não parece corresponder à idéia de
‘multiplicidade’, mas antes evocaria a de ‘segmentaridade’.
9
Sobre os termos socialidade’ e ‘sociabilidade’, ver, entre outros, Viveiros de Castro (2002b) e
McCallum (1998).
28
as alentadas controvérsias a respeito deste construto conceitual, mas convém fazer
duas considerações iniciais a respeito de sua relação com o conceito “povo”. Tal
explanação dará ao leitor uma idéia dos ‘bastidores’ (cf. Strathern, 1987) - a “mexida de
cozinha” - que me conduziram ao estágio de reflexão apresentado no corpo da tese.
Em primeiro lugar, meu interesse na idéia de ‘sociedade’ encerra-se no exato
momento em que ela evoca a idéia de “povo”, a partir da qual efetivamente crio as bases
da descrição que segue. Portanto, ao longo da tese não estarei preocupada em traçar
identificações entre os dois termos ou tampouco retomar discussões sobre a validade de
um para falar do outro. Não se trata de conceituar “povo” como substituto da noção de
‘sociedade’, que eles ‘não possuem’, ou tampouco colocar em debate uma pontual
inaplicabilidade do conceito antropológico (cf. Wagner, 1974). Este me interessa como
pano de fundo da ‘equação antropológica entre as atividades coletivas e a sociedade do
discurso ocidental’ (Strathern, 2006 [1988]: 130). A oposição stratherniana justifica-se
em minha intenção de evocar aqui um conceito que se fará oculto ao longo do texto: a
idéia de sociedade é o ponto de partida para a imaginação de outros possíveis
procedimentos conceituais a respeito das formas de coletividade. Note-se que a opção
em lidar com, digamos, ‘criações conceituais’ dos buraqueiros não implica abrir mão da
observação de sua ‘realidade concreta’ (sua ‘sociologia’), mas, ao contrário, visa
observar suas próprias formas organizacionais, criadoras do mundo particular aqui
observado. Tais formas se dão a ver na linguagem tanto quanto na divisão sexual do
trabalho, para ficar apenas em dois exemplos. O contraste entre as idéias de ‘sociedade’
e “povo” é uma ‘ficção’ como aquela entre ‘nós’ e ‘eles’. Conforme escreve Strathern
sobre o impasse na antropologia comparativa da Melanésia, trata-se de uma ‘prescrição’
que se assume enquanto tal para poder chegar a refletir sobre o mundo de outras
maneiras:
‘Que maneiras se revelarão proveitosas é algo que depende de nosso
propósito. A idéia de “sociedade” parece um bom ponto de partida, simplesmente
porque ela própria, como uma metáfora para organização, organiza muito da
maneira pela qual os antropólogos pensam’ (Strathern, 2006 [1988]: 37)
Por pressuposto, este trabalho entende “povo” como ‘conceito’, eqüalizando-o
em certa medida com a idéia de ‘sociedade’, mas - é importante notar - o que se alinha
em tal operação é o estatuto de procedimento conceitual de ambos, e não o resultado de
seus arranjos descritivos. Minha segunda consideração concerne a esta questão. Cabe
lembrar que nosso objeto é em última análise o ‘pensamento social’ buraqueiro (seu
29
conceito ‘sociedade’), e que com isto pretendemos em certa medida nos deixar afetar
por suas práticas de “conhecimento” particulares. Estas envolvem uma “criação de
intimidade”, vimos, e, neste sentido, vale aqui operar algumas aproximações. É
necessário definir em meu próprio procedimento o que se efetua como identificação. O
“povo dos Buracos”, como afirmei, às vezes assume a forma de uma “comunidade”,
formando uma ‘entidade integrada’, como nas palavras de Redfield (1965). Iguala-se
por à idéia de ‘sociedade’, tanto quanto às de ‘pessoa’, ‘Estado’, ‘povo’ ou
‘civilização’.
Ao chamar atenção para o vigor desta forma humana de descrever unidades
como ‘partes’ compondo um ‘todo’ autônomo, Redfield (1965: 143) apresenta como
problema a permeabilidade das comunidades, até então imaginadas como isoladas, às
transformações urbanas dos ‘tempos modernos’. E coloca o impasse diante do próprio
critério de qualidade das monografias etnográficas, uma vez que estas se organizavam
então sob o ideal holista. Conquanto hoje (ultrapassados os ‘tempos [pós] modernos’)
não estejamos em condições de criar etnografias representando unidades totalizantes (cf.
Latour, 2005), e mesmo que o modelo hierárquico das partes tenha em geral sucumbido
ao ideal da ‘rede’, esta tese mantém algo do antigo estilo; aquilo que se convencionou
identificar por ‘estudos de comunidade’. A identificação se à medida que busco
descrever, segundo um ideal de integração, diversos aspectos da vida coletiva. Não me
remeto com isto à idéia de uma totalidade encerrada na exaustão do que se descreve (e
esta etnografia é, aliás, diante daquelas, bastante pobre em detalhes), mas ao que, nos
‘estudos de comunidade’, aparece como ‘modo de vida’, isto é, um conjunto particular
de práticas cotidianas
10
.
A reflexão que pretendo engajar pode ser nomeada como um ‘estudo de caso’ no
sentido formulado por Palmeira (1977: xi) no prefácio a O Vapor do Diabo, de Leite
Lopes (1976), isto é, uma monografia alimentada por problemas teóricos que se
impõem à análise à medida que “puxados” por uma experiência etnográfica concreta. E
não uma ‘teoria geral’ em que ‘a teoria’ de um ou outro autor se coloque como
obrigatória. Sobre o estudo prefaciado, Palmeira escreve:
10
Para uma análise sobre os ‘estudos de comunidade’ no Brasil, ver Wagley (1954) e Guidi (1962).
Dentre os trabalhos aos quais me refiro, vale destacar a produção brasileira representada por Albersheim
(1962), Cândido (1977); Galvão (1955); Kottak (1983) Pierson (1972); Shirley (1977); Silva (1961);
Wagley (1977) e Willems (1961)
30
‘O que temos é o trabalho de transformação de uma experiência singular de um
grupo singular de operários numa variante (e portanto num conceito) da
combinação de estruturas que permitem a existência daquela situação única (como
qualquer situação empiricamente analisada por um cientista social), estruturas que
podem ser reveladas pela ida ao caso que se está querendo analisar’. (Palmeira,
1976: xii)
No presente trabalho, esta ida ao caso’ é, como vimos, um esforço de contraste
capaz de agenciar ‘virtuais-reais’; os quais, sem isto, não imaginaríamos fazer parte de
nosso universo cognitivo. Neste sentido, cabe destacar que a ‘diferença’ a nos “puxar”
para além das fronteiras estabelecidas por nossas convenções de linguagem cria-se no
confronto com o expressivo silêncio buraqueiro, bem como outras formas não
verbalizadas de comunicar. Inerentes ao próprio “modo de conversar” buraqueiro, essas
maneiras ‘entreditas’ funcionam como o espaço vazio, o do ‘equívoco’, que imagino em
alguma medida poder habitar, mobiliar com os instrumentos da descrição etnográfica. A
quem tem por ofício transformar as relações de diferença em descrição, o silêncio
mostra-se, de um lado, especialmente instigante; de outro, um tanto fora do lugar: como
e por que falar, ou pior escrever, justamente sobre aquilo que se recusa ao uso da
palavra? Os limites da própria linguagem acadêmica vêem-se então como questão de
interesse. O caminho pelo qual busco me virar é o de ‘jogar’, na escrita, com certos
elementos do “modo de conversar” buraqueiro. Daí a intencional indiscernibilidade
entre as ‘vozes’ da ‘autora’ e de seu ‘objeto’. Esta introdução pode ser lida como uma
nota prévia, um pedido de atenção, a esta forma de escrita na qual reside parte
significativa de seu conteúdo. Por esta abordagem, a incorporação do estilo oral talvez
até force ultrapassar os limites da convenção acadêmica, mas apenas até onde vai a
comunicação com seus leitores. Como não dispomos aqui dos recursos empregados
numa “prosa de cozinha”, algumas marcações gráficas (os tipos de letra) buscarão em
certos momentos do texto dar conta de variáveis discursivas; por exemplo as locuções
que se fazem por meio da pausa na narrativa para localizar uma pessoa ou um espaço
físico, ou a diferença da sonoridade da fala, que aqui se traduz numa diferença entre
falas transcritas e o discurso direto ‘criado’ por mim mesma a partir do que ouvi e tomei
nota.
Ainda quanto à forma’, vale dizer que o leitor não encontrará ‘revisão
bibliográfica’ de nenhuma ordem. Neste sentido, destaque-se a ausência de uma
exposição do que se produziu sobre ‘a região’, o que deverá por certo ser feito no
futuro. Seria ainda importante a explicitação de uma literatura específica envolvendo
31
‘questões de gênero’. Mas aí talvez o caso seja outro: ressalve-se a maneira indireta com
que tal reflexão nos afeta aqui. Primeiramente, deve-se considerar que ela é de algum
modo ‘subsumida’ (para usar um termo da própria autora) pela leitura do trabalho de
Strathern, particularmente The Gender of the Gift
11
. Em segundo lugar, note-se que os
problemas trazidos pelo ‘discurso feminista’, integrados à produção antropológica sobre
‘gênero’, fazem-se aqui presentes à medida que, algo sorrateiramente, informam os
pressupostos de minha própria prática etnográfica. Noutras palavras, não é
insignificante o fato de que sou uma autora, no feminino, e que tenha sido nascida mais
ou menos na época em que tais problemas se configuravam e se estabeleciam. Mesmo
que de modo passageiro, a ‘potência’ deste discurso se faz nesta tese uma ‘questão’
quando a etnografia nos traz o conceito neste caso, nativo de “empoderamento das
mulheres”, que passou a ser usado como palavra-chave nos “projetos culturais” e
“sócio-ambientais” nos quais me envolvi enquanto ‘fazia campo’ (cf. capítulo 6).
Ainda a respeito do que extravasa a exposição da escrita, é importante
mencionar que as visitas e causos descritos a seguir não pretendem esgotar o amplo
repertório de visitas e causos que fiz e ouvi nos Buracos; ou seja, os que entram na
análise aqui não se pretendem ‘típicos’, no sentido que não representam todos os outros
que não foram descritos. Eles foram escolhidos por mim sob o critério deliberado de
colocar em foco certo caminho de reflexão. Neste sentido, são ‘exemplares’. Contudo, o
excesso de detalhes permitido pela descrição etnográfica visa criar possíveis conexões
não ‘analisadas’, dando ao leitor a chance de traçar suas próprias relações. Mas o corte
aqui é importante. Não só porque, como vimos, ele é no “cálculo” buraqueiro um
elemento particularmente eloqüente, também porque me utilizo dele como recurso
descritivo: a descrição de situações etnográficas que se apresentam como cenas
delimitadas, pretende nos permitir entrever a dimensão cotidiana da palavra, do efêmero
em seus detalhes.
Na primeira parte da tese, forneço algumas pistas para a leitura desta sintaxe tão
rica em palavra quanto em silêncio. Para além da forma textual, espero que o objeto de
descrição ali ganhando consistência à medida que se apreendam os principais
acompanhantes das palavras buraqueiras, a saber, os diversos gestos e intenções que se
observam e se inferem na prática da “mexida de cozinha”. Estes são explorados na
segunda parte da tese, onde o comer e o dar de comer delineiam a própria prosa. Através
11
Mencione-se aqui o grupo de leitura integrado em 2007 por mim, Antônia Walford, Luciana França,
Marina Vanzolini e Paula Siqueira, às quais – por estas e outras - devo meu profundo reconhecimento.
32
das informações sobre o de-comer”, os buraqueiros mapeiam as relações nas quais se
vêem enredados. As elaborações sobre os sinais que a alimentação emite a respeito das
relações humanas estendem-se nas idéias sobre como o “de-comer” interfere no corpo
das pessoas. E assim o ‘não-dizer’, ou o ‘entredito’, encontra na cozinha um vocabulário
especialmente rico, pois que fala, a um tempo, de relações familiares e de
acontecimentos corpóreos pessoais. Entre estes, o amor e a doença aparecem como
temas obrigatórios nas conversas buraqueiras; quando ‘não’ ditos, valem-se
freqüentemente da polifonia disponibilizada por metáforas culinárias. Nos capítulos 4 e
5, que compõem a segunda parte da tese, buscarei explorar esta relação entre a palavra e
os eventos do amor e da doença. Sendo esta correlata da morte, e o primeiro, do
casamento, trata-se de uma “mexida” envolvendo aquilo que os buraqueiros chamam
“sorte”, veremos.
Quincas, o senhor em cuja casa me hospedei durante a pesquisa de campo, é
narrador privilegiado da primeira parte. É ele quem efetivamente nos ‘apresenta’ ao
“povo dos Buracos”. Sobre esta perspectiva de apresentação, impõe-se a questão do que
define uma “pessoa” ‘pertencente’ ao “povo” por ela narrado. Até que ponto a primeira
corresponde ao ‘indivíduo’ e a segunda à ‘sociedade’, trata-se de um assunto ao qual
não conseguimos escapar facilmente, e no capítulo 3 procuro dar conta minimamente do
debate em vigor. Na segunda parte desta tese, porém, desvencilho-me desta pauta
partindo do princípio (justificado primeiramente) de que, nos Buracos, pessoa é, em
certo sentido, “o mesmo que” povo. Assim, optei por não acionar a teoria’ nos
capítulos sobre a “mexida de cozinha”. Calculo que as explicitações teóricas da primeira
parte sejam suficientes para o intuito acima apresentado. Sendo a tese uma ‘construção’,
à medida que ela progride pode-se lhe retirar seus andaimes, isto é, as teorias que lhe
deram suporte.
Em meu benefício, tive a “sorte” de encontrar em campo práticas narrativas
especialmente criativas e deliberadamente elaboradas. Se aqui me inspiro nelas para
criar um recurso estilístico próprio, em certa medida ‘autoral’, é importante notar que
não se trata de uma opção ‘estilosa’, mas antes de um esforço de precisão descritiva
12
. O
12
Para ficar apenas nos autores mais notórios, liste-se Guimarães Rosa e Mario Palmério como autores
que souberam extrair da narrativa local desta região a inspiração para uma criação literária profícua.
Conforme observa Goldman (comunicação pessoal) sobre o romance Grande Sertão: Veredas, ali o texto
se desenrola ‘como seo personagem Riobaldo escrevesse caso fosse um escritor. A operação que se
coloca aqui é mais ou menos esta, isto é: Como um buraqueiro descreveria aquilo que ‘nós’ antropólogos
buscamos descrever? Ressalte-se contudo que o presente trabalho não pretende se aproximar da obra
rosiana a não ser por este ponto de partida específico.
33
conhecimento sobre o “sistema de prosa” do povo buraqueiro depende aqui de alguma
relação de “intimidade”, o que - entre palavras, silêncios e entreditos - implica
“contaminação”. O empenho discursivo em me aproximar desta outra linguagem
encontrar-se-á no estilo do texto e também na maneira como estes se organizam e se
apresentam, sendo “puxados” uns aos outros, como ocorre na prática de “contar causo”
(cf. capítulo 1). A cada ‘análise nossa’, os temas se impõem como repetição em novos
arranjos.
No capítulo 1, busco seguir a maneira como os “causos” são encadeados uns nos
outros. Em seguida, no segundo capítulo, guio meu texto a partir da seqüência “puxada
por um único causo. Minha intenção é a de descrever relações (“conhecimentos”)
implicadas em determinados instantes de fala, dos quais tomei parte também como
‘relação’, posto que como “conhecida”, “chegante” e “chegada”. Aprender a escutar’
os silêncios e os entreditos buraqueiros foi parte do trabalho de campo, e veremos como
tal processo se conduziu à medida que eu fui “criando conhecimento”, ou “pegando
intimidade”, com as “pessoas” e “casas” dos Buracos (capítulo 3). Os silêncios
buraqueiros são diversos - pausas demasiado longas, pausas esperadas, silêncio por
tensão, por gosto ou para assuntar o ruído que vem de fora, silêncio como sinal de
vergonha ou de raiva e daí por diante; bem como são muitos os outros modos de não
verbalizar o que se comunica - a risada, o modo do cumprimentar, o tempo de estada e o
gosto ou desgosto pela comida. Os “causos” aparecem como artifício específico no jogo
do entredito: dizem para não dizer, quando ocupam o espaço de uma incômoda situação
de silêncio, entretendo os presentes à distância do que não se quer por perto. Mas os
causos também trazem para perto, puxam o assunto sem verbalizar o que contudo se
comunica de outro modo - posicionamentos e comentários ao que se infere
silenciosamente da relação entre interlocutores. Aqui, o sentido pode estar no próprio
corte do que se conta ou deixa de contar, ou ainda na relação do que se conta em vista
do que se acaba de ouvir. Os buraqueiros verbalizam tais sentidos, mas apenas quando
especulam sobre o “rumo da prosa” de outrem, ou quando narram seus próprios cálculos
ao relatar uma conversa já passada. Tal explanação é ‘contextual’ não porque seu
sentido remete a um quadro transcendente ao dito, mas, ao contrário, porque o sentido
dado é imanente ao próprio gesto do dizer, e deve ser observado conforme a ‘análise’
buraqueira, isto é, no seu modo próprio de mapear e deslindar relações seja entre
narrados ou entre narradores e narrados, ou narradores e ouvintes.
34
Tal idéia de ‘análise’ não supõe separação absoluta entre narrador e objeto
narrado; faz-se, ao contrário, por meio de um gesto descritivo de traçar relações entre
ambos, aproximando-os, bem como entre estes e os ouvintes. Por vezes, o ocorrido e o
causo se colapsam por ume recurso narrativo fabulador, evidenciado na descrição que
os buraqueiros fazem de seu “povo”, de sua família”, sua “parenteza” (cf. capítulo 2).
Quando levados a contar um “causo do povo antigo” a uma antropóloga interessada em
‘pesquisar o povo’, meus interlocutores freqüentemente situam os narrados por meio de
seus próprios vínculos pessoais (capítulo 2). Como é que começa? Como é que puxa?
Onde é que toca?, perguntam-se à guisa de localização. É preciso portanto reforçar a
importância dos mapas genealógicos representados mais adiante para que se possa
compreender os causos narrados aos quais correspondem. Com exceção da reprodução
genealogia desenhada por meu próprio punho, utilizada durante o trabalho de campo
(Figura 3.1), e daquelas representando a “família” de Quincas (Figuras 2 e 3), os
diagramas que se seguem não apresentam os dados completos de cada família. Os dados
sobre filiação, germanidade e matrimônio estarão representados à medida que forem
relatados nos causos aos quais se referem - que o leitor não espere encontrar ali a
totalidade dos dados de parentesco de cada uma das pessoas representadas. Mesmo
assim, os mapas servirão de guia para localizar os nomes de quaisquer dos personagens
mencionados, pois todos estão localizados em relação a Quincas e sua família. Na
primeira parte da tese, onde me esforço e construir uma ‘apresentação’ do “povo dos
Buracos”, é Quincas quem a rigor “conta o causo”.
A expressão “tocar parenteza” aponta para o próprio método pelo qual os
buraqueiros buscam construir essas descrições sobre seu “povo”. A pergunta sobre
quem toca parenteza com quem - “onde o sangue encontra” - explicita-se ali como via
de “conhecimento”; de ‘análise’. Analisar é, conforme a expressão dos sertanejos de
Pernambuco estudados por Marques (2002: 7), destrinchar’: ‘esclarecer os laços de
parentesco que ligam dois indivíduos, que se sabe de antemão serem aparentados’. Nos
Buracos, o termo genérico “primo” é destrinchado de modo a traçar, por uma seqüência
de relações de aliança e filiação, o caminho pelo qual se podem conectar duas pessoas.
Por esta ‘rede’, meus ‘informantes’ “puxam” os “causos” que contam “a história do
povo”, “os causos dos antigos”. Um pouco disto é o que pretendo apresentar nos três
primeiros capítulos compondo a primeira parte desta tese: a ocupação atual ordenada na
distribuição das famílias sobre uma terra marcada por deslocamentos (capítulo 1); a
história e os mecanismos desta organização interna (capítulo 2); e as formas de
35
ordenação atual - vizinhança e atividade econômica (capítulo 3). Esta apresentação será
decerto útil às referências algo fragmentadas que se faz na segunda parte a pessoas e
famílias buraqueiras. Se na primeira parte apresentamos o “povo” de acordo com os
problemas que a idéia de ‘sociedadecostuma colocar, nos dois capítulos da segunda
parte os problemas da ‘sociedade’ buraqueira, de seus modos de viver coletivamente,
são recolocados segundo questões trazidas pelo que ‘eles’ chamam “modo de comer e
de conversar”, a saber, questões ligadas aos acontecimentos do corpo, os
acontecimentos da sorte que sintetizei aqui sob os ‘temas’ do amor e da doença. Por
meio deles, a sorte se expõe ao conhecimento. Assim, na sua relação delicada com a
palavra, as zonas de silêncio e ambigüidade entram em foco, afirmando-se como
constitutivas do “povo” e de suas “pessoas”.
O silêncio diante de meu gravador parecia-me mais grave à medida que eu
explorava, nos questionamentos que fazia a quem entrevistava, alguns traçados
específicos do que então escolhera como ‘objeto de investigação’, o ‘parentesco’. Tais
episódios de constrangimento contrapunham-se ao fato de que os buraqueiros sempre
reagiam com naturalidade ao me ouvir contar sobre o motivo de minha presença entre
eles: pesquisar a parenteza do povo, dizia eu, buscando com esta formulação
aproximações entre as vagas idéias de minhas intenções e uma linguagem que eu
reconhecia como ‘deles’. É verdade!, respondiam-me, aqui nos Buracos é tudo casado
primo-com-primo! Também ao chegar pela primeira vez à Secretaria de Educação e
Cultura do Município de Chapada Gaúcha-MG (Semec), a reação da Secretária ao
anúncio de meu interesse dizia respeito à ‘endogamia’ daquele povo. Afirmou-me então
que minha pesquisa era de interesse para o município, uma vez os problemas de
nascença dos filhos gerados por casamentos entre “gente do mesmo sangue” era um
problema de saúde: doenças mentais, surdez e manchas na pele, as chamadas “pintas”
que marcam a “família” do povo dos Buracos. Uma funcionária ali presente reagiu à
afirmação da Secretária explicando que as “pintas” não eram “doença”, mas “manchas
de nascença”. Aquela associação entre “doença” e “sangue” antecipava assim as pistas
para entender o silêncio de minhas futuras entrevistas. Estas haveriam de ser realizadas
durante minha terceira ida a campo, quando, após uma ‘sistematização inicial dos
‘dados’ até então recolhidos, decidira me concentrar no tema do “sangue”
como forma
de falar sobre as relações de “parenteza”
13
. Conforme as conexões que eu ouvira dos
13
A pesquisa de campo durou dezesseis meses e meio ao longo de três anos, divididos em quatro estadias
com períodos variados (cf. Anexo 1).
36
próprios buraqueiros durante os trabalhos de campo anteriores, imaginava poder extrair,
do vasto repertório de elaborações e conhecimentos ligados ao funcionamento
sanguíneo, as diversas elaborações que desaguavam nas formas assumidas por relações
de filiação e aliança noutras palavras, o ‘parentesco’ (cf. Dumont, 1971).
Ingenuamente, julguei que tais associações me ajudariam a conduzir entrevistas nas
quais os outros falariam ‘mais objetivamente’ sobre o que eu julgava de meu interesse.
Minha intenção era inventariar um repertório temático que incluía desde doenças e
heranças do corpo’ até doenças e heranças do espírito’, passando por temas como o
amor, a loucura e - como possível e medonho sinal destes - o “feitiço”. Mas se o
“sangue” conectava todos esses assuntos era justamente porque, ao acionar um
determinado significado, podia deixar outros em aberto, oferecendo ao ouvinte sua
própria possibilidade de cálculo. Falando sobre muitas coisas como se estivesse dizendo
apenas uma, o vocabulário do sangue podia manter entreditas palavras mais perigosas.
As associações que tal ‘conceito’ implica não se prestam a certas verbalizações, embora
sejam “sabidas” por aqueles que se comunicam sobre o assunto. A prática do “cálculo”
dá-se, neste caso, na criação de arranjos significativos, mobilizados pelo conhecimento
dos interlocutores sobre o “sangue” de que se fala. Pode-se dizer que esta pesquisa
consistiu no processo de aprendizagem desta maneira um tanto buraqueira de ‘não’
dizer o que se quer dizer - uma maneira de fornecer, com uma única palavra, muitas
possibilidades de significação. Algo por fim é ‘dito’. A segunda parte da tese busca
descrever o que julgo estar implicado no cuidado com certos temas e palavras, o que
posso grosso modo resumir como modos de associação entre o “sangue” e a “prosa”.
Adiante-se que as mulheres são nestes termos protagonistas. Primeiramente
porque dizem respeito à própria ‘natureza’ do “assunto”, ‘delicado’ tal qual se supõe
serem as mulheres em geral (tanto no sentido de serem mais frágeis do que os homens,
como no de serem mais perigosas do que estes). No dizer buraqueiro, “mulher é cabeça
fraca”. “Fraca” porque ‘suscetível’. Em segundo lugar, a prerrogativa feminina na
descrição dos temas ‘delicados’ está justamente no conhecimento podemos dizer ‘de
gênero’ sobre o ciclo reprodutivo observado nas elaborações sobre o “sangue”
(capítulo 5). E se isto implica algum privilégio no que se sabe do corpo humano em
geral, a vantagem se acresce da pratica propriamente feminina da “mexida de cozinha”.
Exploraremos adiante as analogias buraqueiras entre os procedimentos culinários e os
acontecimentos da circulação sanguínea, que se reveste em um conhecimento sobre o
“corpo” e sobre a “pessoa” (capítulos 4 e 5). A importância do que se ingere e do que se
37
fala para a “saúde” das pessoas ganha força na atividade doméstica das mulheres, e não
é à toa que, sobre os “remédios do mato” e os “benzimentos de cura”, “mulher é quem
sabe”. Como diz uma expressão buraqueira, “pobre se desespera quando a mulher
está doente ou quando a roça não foi queimada”. Por “pobre”, referem-se ao “povo da
roça”: o desespero é causado quando, sem ter sido “queimada”, a lavoura não está
pronta para o plantio, podendo ser surpreendida pela chuva e se tornando imprópria à
produção do de-comer. Igualmente, a mulher adoecida interrompe a ordem desta
produção, não apenas porque não pode cozinhar como também porque deixa de ser a
própria fonte de saúde. E aqui não apenas a dos corpos como também a das relações
sociais, uma vez que na cozinha é que o povo proseia- a comida “puxa” a prosa.
Ocorre ainda que os acontecimentos do corpo costumam se desenvolver na intimidade
da “casa”, de modo que as mulheres, “donas da casa”, guardam sobre ambos uma
margem de manobra - ou “mexida” - em geral reconhecida como mais eficaz do que a
ação masculina. É significativo que tais assuntos sejam freqüentemente alheios ao
pronunciamento verbal, tendo em vista que, como se diz nos Buracos, “o homem é quem
dá a palavra”. A fórmula volta-se assim contra seu sentido mais evidente, à medida que
nos remete aqui à força daquilo que, nos Buracos, sabe-se comunicar apenas pelo
‘entredito’.
É interessante que os assuntos ‘entreditos’ nos Buracos possam ser
genericamente reconhecidos como “assunto de mulher”. Ferreira (2008), ao confrontar
sua pesquisa etnográfica à produção do que nomeia ‘Texto Brasileiro sobre o
campesinato’, também nos a ver como o que denominou ‘indizível’ se coloca como
questão a partir de um olhar sobre o ‘gênero’ (no caso dele, o de homens que transam
com homens). A coincidência não é fortuita. Em ambas as pesquisas, observavam-se
idéias (ou ‘conceitos’) nativas baseadas em acontecimentos do ‘corpo’ evidenciado em
suas produções distintivas. O fato de que, com isto, sejamos ambos levados a refletir
sobre o silêncio - mais do que sobre a divisão sexual do trabalho, por exemplo - resulta
decerto de leituras similares. Refiro-me à perspectiva de análise empenhada pela
etnologia ameríndia dos últimos anos
14
, que aqui se estende em seus elos com a
14
Esta caracterização pode ser definida pelos termos inaugurados no Seminário A Construção da pessoa
nas sociedades indígenas, realizado no Museu Nacional em 1979 (cf. Seeger, Da Matta e Viveiros de
Castro, 1979 e Carneiro da Cunha, 1979). Ressalte-se neste sentido a influência das discussões geradas
sob coordenação de Eduardo Viveiros de Castro e Marcio Goldman no contexto do NanSi (Núcleo de
Antropologia Simétrica, PPGAS-MN/UFRJ), ao qual estou vinculada.
38
etnografia melasianista de Strathern
15
. Precisamente, ao esforço teórico de observar a
‘ação social’ colada a uma dimensão que se poderia dizer ‘cosmológica’, no primeiro
caso, ou ‘simbólica’, no segundo
16
.
Ferreira (2008) chama atenção para o não-dito da literatura antropológica sobre
o camponês, a saber, seu corpo desejante, não redutível à sua função como força de
trabalho. O ‘mal-dito’ da produção acadêmica é, no trabalho deste autor, contrastado
aos comportamentos ‘malditosque ele observa entre seus informantes. Conquanto soe
um tanto injusto com a ‘literatura’, este contraste -nos a ver uma deficiência
interessante: nosso estilo acadêmico, o ‘Texto’, imagina-se capaz de traduzir qualquer
‘fato social’ por palavras, como se as descrições nativas, quando já não limitadas ao que
é verbalizado, pudessem sempre ser decodificadas em palavras. Como escrever sobre o
que não pode ser verbalizado?, questiona-se o autor. Aqui, a pergunta sofre um pequeno
deslocamento: como escrever sobre o que não como ser verbalizado? Diversamente
ao que descreve Rogers Ferreira, o ‘entredito’ buraqueiro não se caracteriza por ser
‘maldito’, e sim por não ser apreensível pela palavra. Precisamente, os buraqueiros
falam sobre o “destino”, a “sorte”, aquilo que “só Deus sabe”, para falarem do que não
pode ser verbalizado, pois que se define justamente como aquilo que se deixa por saber
no futuro. Isto não impede, entretanto, que algum “cálculo” seja feito. Veremos adiante
que os “causos” tratam disto, e por isto dizem sempre mais do que os seus relatos
contam (capítulo 1).
Embora o “conhecimento” previamente estabelecido por quem fala seja também
determinante no jogo, o cálculo da prosa buraqueira nunca se descola do risco implicado
na necessária volatilidade da palavra: se esta “fica no ar”, ela será retransmitida a
despeito do modo com que foi enunciada, ecoando, na boca de quem ouviu, a própria
relação posta em cena no ato da fala. A maneira com que os causos circulam pelas casas
15
Também sob viés stratherniano, trabalhos recentes sobre as chamadas ‘novas tecnologias reprodutivas’
têm intensificado a reflexão sobre ‘corpo’ e ‘pessoa’ nas ‘sociedades ocidentais’, ou ‘euro-americanas’,
conforme trataremos rapidamente no capítulo 3. Mas é preciso ainda mencionar uma importante
bibliografia com abordagens diferenciadas sobre o ‘corpo’, onde o ‘sangue’ ou o ‘comer’ – tal qual ocorre
aqui - aparecem como dimensões fundamentais. Quanto a isto, ver, entre outros, Duarte, 1986; Foster,
1976; Ibañez-Novión, 1978; Peirano, 1975; Porto, 1974; Steinmetz, 1988.
16
A aproximação com a reflexão baseada em povos localizados do outro lado do ‘Grande Divisor(cf.
Goldman e Stolze, 1999) justifica-se na anunciada intenção de nos deslocarmos de nossas convenções
teóricas, mas não se deve aqui menosprezar a importância de um fundo comparativo com a chamada
literatura sobre ‘campesinato’, mesmo que - tal qual ocorre aqui em relação à ‘literatura téorica’ em geral
- esta nem sempre esteja devidamente explicitada. Mesmo assim, é importante destacar a oportunidade de
ter participado de alguns cursos e discussões no contexto das atividades do Nuap (Núcleo de
Antropologia da Política, PPGAS-MN/UFRJ), coordenado por Moacir Palmeira, e observar a presença,
em meu trabalho, das reflexões ali engajadas.
39
dos Buracos, gerando via de regra uma mais ou menos sutil guerra de versões, evidencia
o modo cambiante com que ali os “conhecimentos” mobilizam os “cálculos”. Quando
ocorre a circulação de um causo controverso envolvendo gente dos Buracos, a
legitimidade de uma versão é testada segundo a qualidade da explanação feita pelo
narrador. Este deve recompor a posição de comentários, pessoas e espaços para provar
que determinado “cálculo” era ou não o que se arvora ter sido: as palavras e causos
retransmitidos são criveis se posicionadas em uma determinada seqüência de
deslocamentos e discursos. Por esta via, o falante reconstitui os rastros que indicaram “a
sorte” de um instante, de quando se deu “o ocorrido”. O sentido de um causo, sua
‘moral da história’, não se apresenta como síntese, mas no próprio encadeamento dos
fatos descritos e em sua relação com quem narra, quem ouve e quem é narrado.
A dimensão do tempo presente assume assim especial interesse no que se refere
às elaborações buraqueiras sobre a palavra, precisamente naquilo que concerne à força
particular atribuída à palavra oral, a saber, as implicações de sua fugacidade. Com a
presença relativamente recente da escola nos Buracos, apenas as gerações mais novas
sabem ler e escrever, de modo que a diferença entre a “conversa” e o “escrito” é
constantemente evidenciada pelos argumentos buraqueiros. A um sujeito que não
cumpriu compromisso de encontro, deixando um bilhete de desculpas em lugar de seu
comparecimento, o outro reclamou: roubar a presença no papel não pode! Tem que
conversar! Por outro lado, fui certa vez conduzida a me comunicar com uma
determinada pessoa em segredo, mas com a ressalva de que não o fizesse por escrito: é
melhor conversar, disseram-me, porque a palavra fica no ar! Este caráter efêmero da
palavra oral resulta na idéia de que a produção de sentido é nestes casos
necessariamente relacional. Conforme me explicou um eloqüente senhor buraqueiro a
respeito dos cuidados que se deve tomar em uma prosa, o tio de um é irmão de outro,
deve-se portanto “assuntar bem” para “saber” a quem se está dizendo o quê.
Quando Bailey (1971: 11) propõe que a linguagem de um outro povo seja
aprendida em seu sentido amplo - incluindo aspectos não-verbais, como o sinal de
pressa emitido pelos aventais das mulheres em trânsito - aproxima-se certamente desta
noção buraqueira do que podemos chamamos aqui ‘linguagem oral’. O autor refere-se
ainda ao ‘fundo de conhecimento’ necessário à compreensão de uma mensagem
qualquer, e também limitador da mesma. Este ‘fundo’, diz ele, é feito de ‘reputações’,
isto é, não qualidades possuídas por alguém, mas opiniões que dependem de interações
entre várias pessoas (Bailey, 1971: 4). Tal idéia de conhecimento também se aproxima
40
do que reconhecemos aqui nos termos buraqueiros do “conhecimento” e, por seu
aspecto relacional, envolve o que o autor chama de small politcs. Similarmente,
portanto, poderíamos mesmo variar a noção buraqueira de “cálculo” para o termo
‘pequenos cálculos’. Contudo, é importante que as duas práticas sejam aqui
diferenciadas em um ponto crucial: o “cálculo” buraqueiro não parece sustentar-se sobre
um ‘fundo’; mas sim realizado em uma espécie de variação contínua implicada na
própria relação entre falantes e ouvintes. Assim, não me preocuparei em fazer um
‘glossário’ dos termos buraqueiros, e serão poucas as ocasiões em que elaborarei uma
síntese definidora de algum termo do vocabulário abrangido. Em geral, o sentido de
uma determinada palavra será ‘dado’ por meio de suas relações com outras palavras.
As aspas simples marcam eventuais explicitações dos conceitos ‘de cá’ à medida
que que eles possam gerar contrastes interessantes como os conceitos ‘de lá’. As aspas
duplas marcam os momentos em que os termos de lá’ assumem posição em uma rede
de associações conceituais, de agenciamentos, e incluem um repertório vocabular bem
mais vasto do que a lista apresentada anteriormente com os palavras-chaves (“povo”;
“causo”; “sorte”; “sangue”; “parenteza”; “família”). O ‘conceitos’ tratam-se em suma
de conjuntos abertos. Utilizo as aspas duplas para destacar os vocábulos que, em
determinado ‘contexto’, implicam-se mutuamente, produzindo sentido. Por este
caminho, as aspas duplas aparecem para marcar um termo buraqueiro como expressão
relevante ao argumento posto em ação; ao longo do texto, elas nem sempre se
encontrarão em uma mesma palavra. Por outro lado, um mesmo termo aspeado poderá
assumir sentidos variáveis conforme sua posição na rede de conexões estabelecida pelo
texto. Tais associações - tanto entre os termos buraqueiros quanto entre estes e aqueles
retirados da bibliografia citada - visam acurar os contornos de uma expressão particular,
e não ampliar sua área de aplicação. A diferença entre os usos das aspas duplas e das
aspas simples (para termos citados de outros autores) não constitui - forçoso repetir -
uma diferença de estatuto. Assim, estamos aqui longe de pretender um empenho
etimológico, à procura de um ‘sentido original’. Aqui, saber que o termo cálculo em
latim significa pedrinhas, e que os pitagóricos as usavam antes da invenção dos
números, não nos ajuda a entender a álgebra (por sinal, sequer nos interessa aqui
aprender álgebra). A liberdade pressuposta nos traçados realizados aqui entre os termos
– sejam estes homônimos ou suponham eles alguma sinonímia – pretende-se um esforço
de criação, o que exige certa mobilidade dos sentidos. Espero conseguir transmitir nesta
escrita os caminhos que me possibilitaram, em campo, chegar ao ponto de compreensão
41
que ora apresento. Os movimentos de aproximação e distanciamento do texto em
relação à fala buraqueira são informados pelas variações de um estilo narrativo que, por
este motivo, dá-se ao direito de flanar por tempos verbais diversos. Para criar os
momentos de indistinção entre narradora e narrados, não isolei com aspas as falas
nativas; elas são marcadas por vírgula seguida de uma letra maiúscula iniciando a
frase
17
.
*
Estes esclarecimentos buscam responder à pergunta colocada inicialmente sobre
como trazer para a escrita um movimento próprio à língua buraqueira, recuperando em
alguma medida sua dimensão não textualizável. Contudo, resta-nos ainda perguntar, não
como, mas por que expor os sentidos daquilo que os buraqueiros freqüentemente não
tornam explícitos. Por que escrever sobre temas que devem ser por bom tom
silenciados? A tarefa provocou-me alguns momentos de desconforto e cheguei a me ver
paralisada a cada vez que os limites de minha própria linguagem pareciam me conduzir
a dizer o que meus informantes se esforçaram em segredar. Mas avançar tornou-se, por
isto mesmo, um desafio. Não para contar o que os outros me segredaram, o que procuro
não fazer aqui, mas porque ali um recurso descritivo particularmente outro’. Como
no conto de Poe (1974), a paralisia mostrou-se, pela própria matéria que a suscitara,
justamente o que me moveu adiante. Ao narrar o momento exato em que um gigantesco
turbilhão de água ameaça dragá-lo, o personagem sobrevivente de Poe conta:
‘(...) senti-me possuído pela curiosidade mais ardente em relação ao próprio
turbilhão. Senti positivamente o desejo de explorar as suas profundezas, (...)
minha preocupação principal era pensar que jamais poderia contar aos meus
velhos camaradas os mistérios que ia conhecer’ (Poe, 1974: 391).
Encarar o ‘turbilhão’ da experiência da alteridade é, numa medida,
matar o que se é, o que se foi; é, neste sentido, envelhecer, como ocorreu com o
personagem de Poe, encarquilhado para além do que a idade biológica faria supor. Nos
Buracos ou no conto de Poe, contar um causo implica ter envelhecido, o que sobrevive
do narrador é, em ambos os casos, o desejo de explorar os ‘afetos’ que sua experiência o
permite explorar. A experiência de campo, por sua vez, costuma esperar ser amainada
17
Trata-se de um recurso literário inspirado no trabalho de Quirós (2006) em sua etnografia realizada em
um bairro da Grande Buenos Aires.
42
pelo tempo e a distância que a escrita lhe reserva. Para ser retraçada, é freqüentemente
desconectada dos afetos que se lhe tornaram possível, que fizeram dela, em suma, uma
experiência de ‘conhecimento’. Este não é o caso aqui, o que me coloca certos riscos
inevitáveis. Se, nos Buracos, é possível circunscrever os modos entreditos à força da
oralidade presente - e por isto em alguma medida calculável -, na escrita o artifício
depende de um cálculo algo ‘às cegas’. Neste caso, restam-me o esforço e o desejo de
acertar nos pequenos cálculos; mesmo sem poder jogar com seus resultados, que, ao
contrário da “conversa”, a prosa escrita só mostra seus próprios efeitos depois de
encerrada. Àqueles diretamente envolvidos em tal narrativa, cabe-me um pedido de
desculpa adiantado, ao modo da praxe entre anfitriões mineiros diante de seus
visitantes: “desculpe se saiu algo fora de seu gosto”. As escusas aqui não são uma forma
de se livrar da responsabilidade; são antes uma homenagem.
43
Prólogo
Primeiro deslocamento
Chegamos à Serra das Araras em um jipe - um traçado!, definiriam mais tarde
meus informantes buraqueiros. Por ali ficamos durante dois dias e duas noites, buscando
dar sentido à viagem com o pouco que sabíamos sobre a cidade. O que trouxe vocês pra
longe? Caçando rumo, teriam dito meus amigos buraqueiros. Em casos de deslocamento
prolongado, ou bem a sorte se abre ou bem devemos caçar nosso próprio rumo. Era bem
isto: eu e Camila Medeiros, recém doutorandas em antropologia, saíramos do Rio de
Janeiro em direção ao município de Chapada Gaúcha, situado no que identificávamos
vagamente como ‘sertão mineiro’. Esperávamos que o acontecimento da viagem nos
apontasse os rumos de nossas futuras ‘pesquisas de campo’. Após a primeira sondagem
em Serra das Araras, pretendíamos nos destinar à festa de chegada da Folia de São
Miguel, que seria realizada dali a poucos dias pelo povo dos Bois, do rio dos Bois, onde
este logo alcança o Carinhanha e podemos passar para o lado das terras baianas (cf.
Anexo 2). O local da festa era de difícil acesso; uma estreita estrada arenosa cortando o
cerrado, explicara-nos, dias antes, Wagner Chaves, também doutorando do PPGAS-
MN. Ele cumpria àquela altura sua última etapa de trabalho de campo acompanhando o
“giro” dos foliões do povo dos Bois, uma Folia para São Miguel.
Ainda no Rio de Janeiro, Wagner indicara-nos uma pessoa para nos ajudar a
chegar onde ele então se encontrava. Deveríamos seguir 40 km de Serra até Chapada
Gaúcha, sede do município homônimo, ao qual também pertence o distrito de Serra das
Araras
18
. Nossa guia nos esperaria na sede da Prefeitura, onde trabalhava como
empregada da Divisão de Cultura da Secretaria Municipal de Educação e Cultura
(SEMEC). Chamava-se Damiana Campos e por seu intermédio eu viria a conhecer
Lúcia Gomes, que mais tarde me levaria a conhecer sua gente, habitante da área rural de
Chapada Gaúcha, o povo dos Buracos, objeto desta tese. Mas isto foi depois.
18
Deixarei explícito toda vez em que estiver me referindo ao município. Quando mencionar “Chapada
Gaúcha”, ou simplesmente “Chapada”, como se costuma dizer ali, estarei me referindo à cidade-sede
municipal. Os mesmos procedimentos servirão para nomear o distrito e a cidade de “Serra das Araras”, ou
simplesmente “Serra”.
44
Na Serra, apenas deixávamos o tempo passar, esperando assim dar espaço a
algum acontecimento ‘de interesse etnográfico’, antes de seguir o que do destino
havíamos planejado. As duas longas e morosas tardes que precederam o encontro com
Damiana e a viagem aos Bois passaram-se no bar em frente à Igreja de Santo Antônio
da Serra, cuja notícia da cerimônia de casamento coletivo, na festa do santo, havia ainda
no Rio de Janeiro me despertado certo interesse. Era o tempo da política. Mas não é a
política “forte”!, explicaram-nos, pois não eram eleições locais. Desanimado...,
lamentaram. No bar, víamos venderem café e cachaça. E se transmitiam os recados
vindos pelo telefone público. O bar era comandado por Maria de Luiz, a primeira pessoa
que conhecemos em Serra das Araras, a pessoa que procuramos ao chegar. Chegamos
ali levando uma sacola com presentes enviados por Ana Luiza Costa, que no Rio me
recebera em sua casa com mapas e dicas necessárias. Ana Luiza conhecia Maria de Luiz
“de muitos tempos” e foi em nome dela que eu cheguei e me paresentei a esta última.
Com exceção de um ou dois bêbados, os que animavam o bar era quem vinha de
passagem, rumo a Chapada Gaúcha ou partindo desta em direção às cidades maiores:
Januária, São Francisco, Montes Claros ou até a capital Belo Horizonte (cf. Anexo 3).
Qualquer carro, ônibus ou moto que passasse por ali parava diante de nós para
descarregar ou fazer embarcar pessoas, coisas e recados; um fluxo que me pareceu
contrastar brutalmente com a ausência de movimento na praça central, a da igreja no
fundo da qual nos posicionávamos. Serra é muito parado, explicam os “chapadenses”.
Logo que cheguei, portanto, senti o medo precipitado de não encontrar nada “animado”
para ‘objeto de estudo’. Tomei nota ali sobre a possibilidade de etnografar o trânsito que
observara do bar. De fato, o presente trabalho findou-se por se ver às voltas com
questões de deslocamento. Mas se aquela primeira idéia era observar a matéria
circulante para traçar um espaço ausente, desvelado apenas na presença efêmera de
quem está sempre partindo, agora o movimento surge como via narrativa de um povo
integrado no próprio deslocar-se. Não à distância de um ponto qualquer, mas nos
encontros que as distâncias percorridas, ao se fazerem, colocam em marcha. Não uma
etnografia sobre pessoas e contextos ‘desterritorializados’, como seria um rio sem chão
ou uma gente sem terra. Muito pelo contrário, boa parte do meu esforço está em
descrever satisfatoriamente a ‘consistência’ de uma terra onde a mobilidade - no espaço
ou no tempo; interna ou externa; física ou existencial - forma e sentido ao “povo dos
Buracos”.
Noutras palavras, uma “terra” que existe no movimento de sua “gente”.
Esta terra é movimento não por efeito de metáfora, mas porque, no dizer buraqueiro,
45
“quem não caminha, não conhece” - assim eles contam. Para aprender, a pessoa precisa
ter “influência”, explicam-me. O conjunto de pessoas e informações mobilizadas
naquele início de viagem nos dava já alguma pista sobre isto. De como o deslocamento,
quando se faz prática de conhecimento, é também um agenciamento coletivo.
46
Primeira Parte
Estudo de causo
47
Figura 1 – Mapa dos Buracos desenhado por seus moradores (gentilmente cedido por Funatura e Tríade Consultoria)
48
Figura 2 – A “família” de Quincas e os que moram na casa onde me hospedei.
Figura 3 – A “família” de Quincas “puxada” por seus ascendentes.
49
Capítulo 1 – O rumo da prosa
Sabe? Hoje, penso que a arte de viver deve ser apenas tática; toda
estratégia, nessa matéria particular, é culposa
(Guimarães Rosa)
1.1 – Chegantes chegados
Trouxe um presente pro senhor!, grita o primo a Joaquim Branco, chamado
Quincas. Quando o primo se aproxima da porteira acompanhado de outro, alguém
dentro da casa enxerga e avisa, É Manelão que é vem com ele! Da varanda, Quincas
então abre um sorriso levantando as mãos em gesto de súplica para em seguida levantar-
se da cadeira, interrompendo a madorna de pouco. Manoel chega barulhando, Ê,
Joaquim-Branco-Velho! Entrevou ou será que criou raiz nos Buracos?! O chegante
tem o modo barulhento. E como todo alarde é tanto maior quanto maior se quer o prazer
da visita, Quincas reage também em alto volume, devolvendo a piada. Diz estar mesmo
entrevado e ri de si. E você, veio caçar mulher na Folia dos Buracos?! A barulhada
anima o ambiente; Rosa, a esposa de Quincas, vem à varanda seguida do filho Paulo
Gomes. As risadas estendem-se entre os demais com risos abertos e braços levantados.
Manelão, o mais efusivo com sua voz fanhosa e entrecortada, tira o chapéu e abraça os
que vêm lhe apertar a mão na área. Naquela ocasião entendi pouco do que disse
Manelão, mas julguei compreender o sentido da zoada: havia alegria.
Manoel é primo de Quincas, como aquele que o trouxera, mas além disto, fora
casado com a irmã deste, Maria, chamada Titia. Antes daquela tarde, eu já havia ouvido
sobre Seo Manelão, “o ex de Titia”. A conversa dele é difícil de entender, mas é boa
pessoa demais!, avisaram-me. Naquele encontro, Quincas foi quem o apresentou a mim
pessoalmente, Somos cunhados!, ao que Rosa, esposa deste, emendou, E também
primos! Nisto, o marido Quincas volta os olhos para a esposa, franze uma sobrancelha e
torna a lhe virar as costas em silêncio, tornando à conversa com os outros. Em troca,
Rosa grunhiu uma ou duas palavras que não pude identificar, mas que ressaltava por
contraste a cordialidade de Quincas para com seus visitantes. Era de bom tom que se
afirmassem cunhados, imaginei; a barulhada efusiva falava também sobre isto. Mais
tarde, ainda ali, eu testemunharia a conversa rumar justamente para os “causos” de
separação entre casais, “assunto” no qual Seo Quincas mostrava-se inflexível, Tem que
50
ter opinião!, dizia ele sobre a gravidade do divórcio. Eu sou de opinião! Não deu certo,
tudo bem, mas aí separou-separou, repetiria Quincas sobre as relações rompidas.
De Seo Manoel, pode-se dizer que é um buraqueiro; sua terra é onde mora “o
povo dos Buracos”, seus parentes. muitos anos não vive mais ali, onde nasceu e se
casou. Hoje, está no Rio Preto, cerca de nove horas a cavalo, em uma terra comprada
por ele mas cujos “direitos” foram recentemente restringidos pela presença do IBAMA
(hoje ICMBio). O tempo de viagem e as conseqüências da idade, o corpo
encarquilhado, fazem com que as visitas ao seu povo não sejam freqüentes. Assim,
aquele encontro guardava a promessa de boa prosa, conforme indicava a “animação” de
todos com a chegada. O próprio Manoel, porém, precisou adiantar suas escusas,
lastimando-se por sua parte. Não podemos tardar mod’a chuva!, justificou. Ele e o
primo seguiriam dali para o local onde, mais tarde, chegariam os foliões da Folia de
Reis, os foliões de Zé Orotides. Para festar. A chuva se ameaçava para ainda durante
aquela tarde e lhes pedia que apressassem o passo. Manoel analisou então o pretume das
nuvens e prometeu outra vinda em breve, com mais calma, mas Quincas não lhe deu
ouvidos, Entra para dentro!, e faz gesto de corpo rumo à cozinha. Numa silenciosa
tensão entre a despedida latente e a intenção de entrar, todos permaneceram de sem
sair do lugar, No dizer do povo, sem voltar para trás nem seguir para frente! Hahahá!
Até que se sentaram no banco da área. Quincas comentou o processo de piora de seu
problema nas vistas e assim a conversa se desenrolou. Lado a lado, de frente para a
escola construída diante da casa, os três como que olhavam para o nada quando, numa
pausa de silêncio assuntaram no rumo de Titia a zoada de dois cavaleiros. Nesta hora, a
chuva começa. Primeiro, fina. É chuva de manga! Acolá está seco, observaram os
primos sentados à área.
“Área” é o espaço exterior a casa, ligado à sua fachada dianteira pela cobertura e
o assoalho, sobre o qual um banco espera pelos passantes que queiram “encostar”.
Trata-se enfim do que ‘nós’ chamamos ‘varanda’. Da área, os homens observavam os
cavaleiros aproximarem-se; uma típica cena buraqueira, “assuntar o movimento do
povo”, prestar atenção nos passantes, saber destes a procedência, o destino e os
encontrados por eles no caminho. Pelo “movimento do povo”, mapeiam-se as relações
de cada “casa” ou “família”: o que foi necessário comprar, o que se conseguiu plantar e
colher, a quem um e outro “ajudou”, o que foi necessário “caçar na vila”. Sejam
problemas de saúde, de dinheiro, amor ou desavença. E assim se mapeiam também as
relações entre as diversas casas. Tudo isto se traduz em deslocamentos que são então
51
analisados de modo a formar uma semiótica específica: os ‘fluxos’ em certa direção,
bem como a concentração de gente em um determinado ponto, são como sintomas; os
causos contados por quem passa, como diagnósticos de relações. Quincas, por estar
praticamente cego, raramente sai de sua casa, tendo-se transformado em testemunha
privilegiada deste movimento. No episódio daquela tarde, o marasmo da paisagem
‘falava’ sobre os preparativos da festa de Folia de Reis. Sabíamos onde se encontrava o
povo buraqueiro ausente: estavam em suas respectivas casas, arrumando-se para logo
mais tomarem o rumo da festa. Eu mesma esperava o café da tarde para em seguida
arrumar-me e ir para a Folia. Os homens que se aproximavam da área de Quincas já
estavam “molhados”, termo que indicava não apenas o efeito da chuva; trazia o sentindo
metafórico de “bêbado”, isto é, “molhado de pinga”. Era mod’a festa; dava seus sinais
adiantados.
Logo que a chuva engrossa, molhando os homens montados, os observadores
fazem graça, Não faz mal pra eles, eles estão bem molhados mesmo!, riem E havia
neste comentário uma possível referência a ainda outro sentido: molhado é também um
termo sinônimo para “tolo”, “abestalhado”, “de juízo ruim”. Via-se pelo descontrole de
seus animais e pelo litro de cachaça sob o sovaco de um deles. A chuva aumenta. De
repente, um dos cavalos um pinote e quase derruba o dono. Desajeitados, os
cavaleiros aproximam-se da escola e fazem uma brusca manobra, mudando seu prumo
para então ir rompendo: enfim desceram o Calengue em direção ao local da festa.
Passam diante de nós sem sequer um aceno de mão. Uma atitude tão rara quanto
ofensiva, sobretudo se tomada entre parentes, como no causo. Mas não se comentou o
fato; era assunto delicado. João, um dos cavaleiros molhados, é o atual marido da ex-
mulher do primo que trouxera Manoel. Mais precisamente, atual “amigado”, pois que
não se casaram em igreja ou cartório. Vivem juntos e, no dizer do povo, “amigado com
casado é”. Quando casado, o tal primo morava “fora”, em uma área definida por seis
fazendas e algumas casas, no alto dos Buracos, beirando a rodagem. Desde que a esposa
o deixou, mora sozinho em sua terra herdada nos Buracos. A ex-mulher hoje foi morar
com João não distante dali, terra ainda considerada buraqueira embora já fora do cânion
chamado Vão dos Buracos, na área de chapada, no planalto onde estão as fazendas
com as lavouras de capim e soja além de algum cerrado remanescente. O celibato do
primo vizinho não foi ali tema explorado, embora com freqüência seja dele feito piada,
não por desrespeito, mas por graça. O próprio se ri, mas é quando se está entre
“chegados”.
52
Como se diz de parentes com “sangue parecido”, “chegado” é aquele de quem se
espera uma relação específica, uma relação pessoal constituída pelo ‘fluxo’ rotineiro de
prosa e comida. Dizer que se têm muitos “conhecimentos” é freqüentemente o mesmo
que dizer sobre as muitas relações “chegadas” que se tem. Um parente definido como
“chegado” chega a esta posição em função da proximidade, na linha de descendência,
com quem se diz “perto na parenteza”. Analogamente, um “chegado” qualquer (não
parente) é qualquer um com quem se possa construir, via narrativa, uma cadeia de
relações, uma aproximação inteligível. Em suma, a idéia implicada no termo “chegado”
não é apenas a de um ‘dado’ da consangüinidade; é possível tornar-se “chegado”. Trata-
se de uma rie de condutas de aproximação, de “criação de intimidade”: visitas, trocas
de palavras e de comidas. Foi este, aliás, o processo que efetivamente me tornou
“chegada” ao povo buraqueiro, no sentido de que esta criação de amizade e vizinhança
implicou-me em um singular processo de “conhecimento” (cf. capítulos 2 e 3). Nos
Buracos, o fato de ser parente é significativo à medida que envolve uma série de outros
vínculos, dos quais sairão lembranças comuns e causos inéditos. Desta intimidade
necessária, tratava o causo que Manelão contaria logo de sua chegada à casa de
Quincas. Mesmo que a passagem desajeitada dos cavaleiros molhados não tenha sido
matéria de conversa, havia ali o assunto que por fim renderia conversa, o assunto das
relações rompidas.
O causo era o seguinte: pouco antes de chegar onde estava Quincas, Manoel
entrara na casa do primo barulhando do jeito que era próprio seu. Então gritou com
troça ao dono da casa, Você está feio demais! Não arranja mulher desse jeito não! O
homem havia recém extraído os sete dentes que ainda lhe restavam na boca para colocar
a dentadura completa, a chapa, e enquanto a gengiva não cicatrizasse encontrava-se
inteiramente banguela. Ao soltar sua barulhada, portanto, Manelão não fazia mais do
que um gesto comum entre gente chegada, parentes com quem se tem intimidade. Era
brincadeira; entre “chegados” se “brinca” assim. Piada feita, entretanto, Seo Manoel
percebe ali a presença de João-de-Augusto.
O desconserto do chegante veio acompanhado de indignação: imediatamente.
Como ia imaginar? Aquele homem dentro da casa do outro? A presença do atual marido
da ex-mulher do dono da casa mudava o rumo da prosa; não se podiam dizer as mesmas
coisas, ao menos não do mesmo modo. Ainda mais João estando bêbado, ressaltou
Quincas. O estado de embriaguez tornava especialmente temerosa uma situação
delicada por princípio. Defrontar-se com o homem que tomou sua esposa é sempre uma
53
espécie de confronto e, se o sujeito é de paz, como no caso do primo banguela, a melhor
arma é o silêncio. Mas a cachaça não é afeita a situações de silêncio, ao contrário,
costuma ser motivadora de “prosa ruim”, e nisto Quincas reforçava seu argumento: a
pinga é danada, a gente nunca sabe... Manelão concordava com Quincas e se repetia
indignado, justificando-se, Você acha, Quincas, que eu ia fazer uma brincadeira
daquelas se imaginasse que o outro podia estar ali? Nunca ia falar um trem daquele na
frente do outro! Mas como eu podia pensar! O outro balançava a cabeça negativamente,
pacífico. E por sua parte, justificava-se também, É que eu sou mesmo um sujeito que
não gosta de malquerença. E todos na varanda balançavam a cabeça em sinal positivo.
A parte errada da estória era o outro.
A esta altura, Rosa já havia entrado em casa para, minutos depois, retornar à área
e avisar, O café está passado. Os homens então não mais hesitaram. Dirigiram-se ao
interior da casa como que automaticamente, passando pela sala diretamente à cozinha,
Ao menos molhar a boca e ter dois dedos de prosa. Não se recusa um café depois de
tanto tempo longe... Por ali contaram outros causos, puxados por aquele primeiro,
trazido por Manelão e o primo vizinho: os de contaram da visita que a ex-esposa
deste fez à sua ex-sogra; o de lá, que encontrou Seo Augusto na Vila, Ele fica sem jeito
com o amigamento do filho com a que era esposa do outro, pois que este é gente da
gente... Mas estavam separados quando se deu o causo... Fazer... Rosa serviu um taco
de queijo e algumas bolachas, uma merenda especial em se considerando a chegada
repentina. Então o tempo se estendeu abrindo espaço à conversa que animou os
presentes; no que se previu como rápida passagem para um aperto de mão, veio a se
configurar uma visita. Permanecemos o resto da tarde na cozinha. Comemos, bebemos,
falamos. O de-comer foi puxando causo
19
.
19
O termo ‘fluxoapareceu aqui sorrateiramente. Seu uso como instrumento de análise merece alguma
atenção, uma vez que é alheio ao que chamei ‘sintaxe buraqueira’ (Introdução), a qual pretendo ‘seguir’,
mas algo determinante para a presente descrição.A idéia guarda o sentido genérico da ‘circulação’ de
pessoas e palavras algo análoga à imagem do ‘fluxo’ sanguíneo’, que está, conforme veremos no segundo
capítulo, impregnada das concepções buraqueiras do que ‘nós’ costumamos chamar ‘morfologia social’.
Tal analogia supõe um movimento contínuo de intensidade variável, mais do que o termo troca’ poderia
nos dar. Este último carrega consigo uma noção de ‘obrigação’ que a descrição aqui buscará matizar,
conforme veremos. Convém com isto mapear rapidamente o percurso teórico que me levou a adotar o
termo ‘fluxo’, que este caminho não será explicitado noutra ocasião ao longo do texto. Trata-se de um
termo inspirado na noção de ‘redeconforme formulada por Latour (2006). A partir da elaboração deste
autor, Strathern (1996: 518-524) persegue a rede de um processo de definição do direito de patente e
descreve a maneira como o ‘fluxo’ de pessoas e coisas envolvidas numa invenção científica é
interrompido de acordo com a definição do proprietário da invenção. A quem pertence o ‘direito de
propriedade’, depende de onde o ‘fluxo’ for cortado, mostra a autora. A própria definição da idéia de
propriedade, portanto, varia conforme as relações a serem consideradas na rede de produção de um bem.
No caso dos Buracos, veremos, o mapeamento das relações, realizado nos gestos de contar causos,
54
1.2 - O que é um causo?
Nos Buracos, oferecer um de-comer é abrir as condições para a prosa; dar-lhe
movimento, “animação”. A comida “puxa” a prosa assim como o carro da escola
“puxa” os alunos, ou como um filho “puxa” o sangue dos pais: o primeiro tem em
relação ao segundo um nculo pressuposto, à medida que exerce sobre este um efeito
de deslocamento. Mas esta espécie de atração também ocorre em sentido inverso: a
inauguração de uma “boa prosa”, que se queira demorada porque prazerosa, também
“puxa” a oferta do de-comer, tal qual ocorreu na casa de Quincas e Rosa. Nesses casos,
não se imagina tratar de um “assunto” em especial, seja negócio ou mensagem trazida.
O fito ali é mesmo “só bestar”, “bestar nas casas”, “contar causo”, “contar mentira”. Há
contudo chegadas motivadas por algum “negócio a ser tratado”, e elas podem ou não
desaguar em “visita”. A articulação entre as motivações do deslocamento e o “modo de
conversar” assumido ao se chegar não parece obedecer a quaisquer prescrições, mas
constitui uma dada linguagem que se apreende como um movimento de “criação”, isto
é, no próprio “modo” da relação atualizada na “prosa”. É o que veremos a seguir.
A “pessoa” para ter conhecimento tem que viajar, dizem os buraqueiros; “quem
não caminha, não conhece”, diz o dizer. Assim, os deslocamentos até outras casas não
necessitam de um motivo em especial; tampouco sua prosa. Este “modo de conversar”
displicente em que se configura a contação de “causos” é para os buraqueiros um hábito
“besta”, pode-se dizer; no sentido de que não se presta a um objetivo pré-programado,
conversa-se porque assim é “o modo da gente”, assim é “o sistema mineiro” (cf.
capítulo 2). Aos encabulados, os “de pouca prosa”, chamam “brabinhos”: parece que é
também opera como um corte no ‘fluxo’ contínuo dos deslocamentos pessoais, ‘objetificando’ um
determinado estado deste movimento, evidenciando assim o ‘domínio’ sobre o “conhecimentonarrado;
dando “sentidoe “rumo” ao que se contou. Convém notar como esta imagem, se trazida a um plano de
abstração maior, aproxima-se do formulado no Anti-Édipo de Deleuze e Guattari (1972: 12). ‘Sem
dúvida, cada máquina-órgão interpreta o mundo inteiro segundo o próprio fluxo dela, de acordo com a
energia que flui dela: o olho interpreta tudo nos termos do ver o falar, o ouvir, o cagar, o trepar... Mas
sempre uma conexão se estabelece com uma outra máquina, em uma transversal onde a primeira corta o
fluxo da outra, ou “vê” seu fluxo cortado pela outra’. Como veremos, a prática de “contar causo”
funcionará aqui como espécie de fórmula etnográfica nativa com a qual estabelecerei uma operação de
‘simetrização’; e neste sentido é interessante que tais narrativas funcionem como princípios de descrição,
ou de organização conceitual, que podemos definir como ‘imposições de sentido sobre o fluxo da
memória’ tal qual se elaborou a respeito da ‘antropologia da experiência’ (cf. Bruner, 1986: 7). Adiante-
se que, guardando as distâncias entre um e outro uso da noção de ‘experiência’ (não a imagino como uma
espécie de ‘sensibilidade individual’ que vejo ali implicada), esta desempenhará aqui um papel
considerável na ‘tradução’ das práticas de “conhecimento” buraqueiro, isto é, no esforço de não reduzir a
explicação dos ‘outros’ a uma questão de ‘crença’ (cf. Goldman, 1996).
55
filho de bicho; nem parece que é filho de gente... Conversar é o que se espera das
pessoas “certas do juízo”
20
. Quando se planeja, por exemplo, subir a serra nas rotineiras
idas e vindas entre Buracos e Chapada Gaúcha, é de praxe procurar na vizinhança os
que estejam de plano similar; assuntam mod’ encontrar “um companheiro de viagem”.
É bom! A gente conversa, fica com o sentido naquilo; nem o tempo passar... Certa
vez expliquei a uma senhora que, para mim, não havia problemas em caminhar sozinha,
era bom para ir ‘pensando na vida’, eu disse. Ela riu muito desta expressão e a
relembrou algumas vezes, tempos depois. No seu entender, minha justificativa era algo
esquisita, mas tinha sua coerência. É verdade, disse-me ela, a gente quando tem
companheiro de viagem vai conversando, contando causo, perde o sentido do que
queria fazer na casa pra onde vai; chega e às vezes até esquece o assunto que queria
tratar.
Contar causo constitui, a rigor, uma atitude displicente, tão desinteressada
quanto prazerosa; mas gera movimento, o que não ocorre sem algum “sentido”
deliberado, seja para se conhecer o que se conta, seja para se chegar a quem se quer
contar. Qualquer “causo” resulta de uma experiência de deslocamento, pois quem conta
é porque chegou de onde tomou conhecimento do que conta. A estrada e as casas são
locais de circulação de causos. Talvez por isto, ouvi tantas vezes as parentas mais velhas
ralharem contra a educação dada aos filhos das mães mais novas: filho não é para ser
criado “nas estradas”! Igualmente, diz-se: filho não é para ser criado “nas casas”! É nas
casas que o povo “conversa com gosto”, quando a comida acompanha o causo no prazer
que um e outro propiciam, testemunhando as “boas relações” que esta dupla oferta
supõe.
Em ambos os casos, o da casa e o da estrada, deduz-se um “relaxamento” que
não condiz com a imagem buraqueira da “criação” de filhos, os quais precisam calar
diante dos mais velhos em sinal de respeito e com intuito de aprender. Por outro lado, se
entre crianças a prática de “bestar nas casas” é aceitável quando em horário de lazer,
entre adultos ela se contrapõe aos compromissos de trabalho que se esperam
2
A relação entre o hábito de “bestar nas casas” e o “juízo certo” têm implicações específicas para o modo
de elaborar o “conhecimento”, como bem expressa o dado colhido por Camila Medeiros (comunicação
pessoal), em sua pesquisa com assentados deslocados do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, a
respeito de uma ‘informante’ sua que é também “chegada” (parente por afinidade) dos buraqueiros.
Conforme ocorreu comigo em outras ocasiões, Medeiros ouviu de sua informante a queixa por não “ir nas
casas”, o que foi formulado da seguinte maneira: “Mas o pior de tudo é que você chega e você não anda
nas casas. Pois é. Você fica [na casa de uma única pessoa]; você não anda, você não conhece
ninguém. Às vezes até tem uma pessoa que às vezes ela até conhece você, interessa em falar com você,
mas você não conhece.”
56
cumpridos. bestando nas casas..., diz-se em tom de reprovação a um adulto, em
respeito à falta de sentido naquilo que faz. “Nas casas”, dá-se tempo à prosa fortuita, e
então este “bestar” corresponde genericamente à circulação desinteressada pela
vizinhança. Mas, nas “visitas”, a idéia de “bestar” assume um sentido menos
repreensível, pois que ali o prazer da prosa aparece em seu momento mais
deliberadamente explicitado, o que lhe proporciona decerto um “sentido” seja este o
próprio estabelecimento do laço, a ‘socialidade’, poder-se-ia dizer. Como na
objetificação dos buraqueiros que migraram para as cidades: passar as férias “na roça” é
bom para bestar, fazer as visitas, comer, prosear bom, saber as “notícias do povo”...
Entre as idéias de “visitar” uma casa ou apenas “encostar”, note-se que, no
primeiro caso, a extensão da conversa é uma responsabilidade assumida por anfitrião e
visitante; sua demora e interesse darão forma aos causos que sairão sobre o encontro ali
ocorrido, Eles vieram aqui e nós fiquemos contando mentira! Contemos um bocado de
causo! Fiquemos umas horas contando causo! Ih, nós mentimos bom! Esses modos de
se comentar sobre uma conversa indicam a ocasião de “divertimento” e animação”
originada por uma visita. Assim se define a “boa prosa”. A partir dos causos que se
ouve e se conta, um puxando o outro, a gente “cria intimidade”, “tem costume”,
estabelece “conhecimento” com pessoas que se tornam então “chegadas”. Fulano é
muito conhecido meu! É meu chegado, vem aqui, a gente conta causo é um bando! Tais
fórmulas falam sobre relações assumidas como boas. Ouvir e contar causos é causa e
efeito do “querer-bem”, “dar bem”, “combinar”. Inversamente, pode-se dizer, Fulano é
boa pessoa, mas a gente não combina, o sangue parece que não bate, é mod’ a prosa
dele. Narrar um causo, ou o causo de um causo, é, neste sentido, fazer-se “chegado”. A
palavra “mentira” usada nestes contextos não é senão uma brincadeira para com aquele
de quem se pretende intimidade; uma pirraça gentil uma vez que indicadora tanto de
amizade quando do espanto causado pelo que nos contam o espanto que se espera de
um bom causo. Assim, “mentira” é - no caso específico da brincadeira entre chegados –
um caso particular de elogio.
Contar causo; contar mentira; conversar; prosear. Estes termos são muitas vezes
sinônimos. Por serem usados com tamanha freqüência, à primeira vista não parece
possível definir precisamente o que é um causo”; seria apenas mais um entre outros
tipos de designação genérica para a circulação de palavras buraqueira. Um causo
caracteriza-se por sua repetição; podendo, a rigor, consistir em uma frase ou em
preleções de mais de hora. Fulano foi ontem na casa de Cicrano, ele mesmo me contou
57
o causo, diz-se ordinariamente. Um causo mais instigante foi o de Manelão sobre o
ocorrido que fez diferença à sua chegada na casa do primo. E ainda maior interesse
despertaria nos ouvintes se houvesse o causo resultado em conflito aberto, quiçá em
morte. A descrição implicada no causo exigiria então detalhes e reflexões próprias ao
inesperado do ocorrido e, em igual proporção, o causo se desenrolaria em maiores
quantidades e qualidades de repetições. Esta variação na forma daquilo que
identificamos como “causo” no sentido buraqueiro merece alguma justificativa. A rigor,
o “causo” poderia ser dado como sinônimo de “ocorrido” (para nos limitarmos a dois
termos buraqueiros), no sentido de que, quando alguém se refere ao primeiro, está
necessariamente se referindo ao segundo. Como identificou Herzfield (1985: 174) a
respeito do que os habitantes de uma aldeia de Creta lhe contavam sobre os roubos de
animais (vividos por eles como espécie de iniciação ritual à vida adulta masculina), ‘se
as narrativas reproduzem a qualidade do rapto, também é verdade que o rapto por sua
vez possui algumas das propriedades expressivas da narrativa’. O narrador conta:
‘lembro-me da primeira vez que me meti em um tal causo’, isto é, em uma tal istoria’,
no vocabulário local, ou tale’, conforme a tradução para o inglês feita por Herzfield
(1985: 163). É importante buscar imaginar, por esta perspectiva, não uma narrativa que
organiza uma já dada experiência, mas um modo narrativo que se faz na própria
experiência, no próprio modo de vivê-la. Esta idéia ganha forma quando os buraqueiros
especulam sobre o “modo” de uma determinada pessoa: a prosa de um sujeito, seja
mansa, cumprida, curta ou barulhenta, diz sobre o que poderíamos chamar ‘caráter’ da
pessoa, pois que diz sobre o “modo” como ela se relaciona com o mundo (cf. capítulo
3). Assim, na sintaxe buraqueira, o ‘fato’ é ele mesmo um “causo”, pois que ambos são
ordenações de uma experiência pessoal singular. O curioso é que, ao se deslocar de uma
narrativa particular, repetindo-se em versões variadas, os rastros desta experiência vão
se modificando, não em função de uma memória seletiva individual, mas à medida que
o causo se vai recriando por meio das suas diversas versões; muitas vezes gerando fatos
que lhe dão continuidade, advindos dos posicionamentos gerados pelos relatos. Fulano
disse que Beltrana contou, mas Beltrana contou que Cicrano fez foi outra coisa. A
‘função-narrador’ (ou ‘função-autor’, como escreve Foucault, 1969) se metamorfoseia à
medida de sua repetição, numa experiência da qual participam diversos ouvintes e
narradores. O causo reveste-se assim de uma sucessão potencialmente infinita de
narrativas pessoais reunidas em um bloco de informações e posicionamentos diversos,
incluídos em uma mesma série que integra um único causo, um único fato. Eu sei do
58
causo, quem me contou foi Fulano, diz-se. Em expansão contínua, não para além do
ocorrido narrado como à distância de seu primeiro relato, o relato perpetua-se na boca
de uma vizinhança que se amplia em função da circulação de prosa. Desta forma, pode-
se dizer que um “causo” é um fato que circula pela palavra; uma definição
deliberadamente ampla e vaga. Como escreve Lévi-Strauss (1964 : 12), um mito se
mostra como tal à medida que se mostra capaz de ajudar a compreender outro mito.
‘Rejeitamos qualquer definição muito precipitada sobre o que é ou não mito’, diz o
autor, no que o poderíamos seguir para o caso do causo.
Mas se tudo o que se conta ou a que se refere a partir de um fato decorrido se
pode denominar “causo”, é necessário especificar o que está em jogo quando o isolamos
como uma fórmula narrativa específica. É preciso dizer que tal definição é algo
arbitrária; constitui-se com base em certo interesse analítico, mais do que em uma
‘essência’ própria. Isto não significa, contudo, que os causos não se configurem por
elementos externos à análise, mas sim que tais elementos são aqui isolados e reunidos
com vistas ao que podem nos dizer sobre a questão que nos guia, a saber: como uma
“conversa” buraqueira é ‘lida’? Como sua retórica se torna eficiente para se dizer e se
fazer ‘coisas’ que dizem respeito aos laços interpessoais buraqueiros? O causo constitui
uma noção específica uma vez que os buraqueiros se referem a ela para localizar quem
disse o quê sobre determinado acontecimento que, por sua vez, envolve também
localizações e posicionamentos pessoais e/ou coletivos. Nisto, trata-se de uma fórmula
narrativa similar à etnografia. Por este caminho - e tendo em vista tudo o que se
elaborou sobre a ‘escrita etnográfica’ vale atentar para seu valor, por assim dizer,
estético. Como o ‘mito’ tratado por Lévi-Strauss (1964: 35), o causo ocupa um lugar
intermediário (‘place moyenne’) entre a linguagem musical e a linguagem articulada (da
informação comunicada por uma via da lógica). A contação de “causo” (a “conversa”)
transporta os interlocutores por uma apreciação sensível que em certa medida independe
da transmissão da informação. O “causo” difere-se das funções fáticas presentes em
uma interlocução buraqueira ordinária, bem como das mensagens informativas que se
transmitem ali de um para outro, ou das informações diretas dadas com um objetivo em
especial (o estado da estrada; os sinais da chuva; a entrega de uma encomenda), embora
estas também possam derivar em causos. No “causo”, o tempo passado (narrado) torna-
se permanente; se não por sua estrutura, conforme a análise lévistraussiana do ‘mito’
(Lévi-Strauss, 1975 [1955]: 241), por seu efeito centrípeto: ‘fato’ e ‘versão’ (ou
‘referente’ e ‘discurso’) colapsam-se na experiência presente da interlocução. Neste
59
sentido, é importante considerar, como consideram os buraqueiros, que cada narrador
conta as histórias à sua maneira, sendo um mesmo causo constituído por um enorme
leque de variações, constituindo um encadeamento de versões que funcionam umas
como comentário das outras. E para além da repetição de um causo específico, a prosa
prolongada ainda traz outros causos que, postos em seqüência numa dada conversa,
funcionam também como se constituíssem, em seu conjunto, um argumento encadeado.
Em uma conversa, um dado causo escutado remete a outro causo narrado, os
interlocutores alternam-se em suas posições de ouvintes e falantes, ligando os diversos
causos, contados por uns e outros, em uma narrativa de ‘autoria’ coletiva. Em uma
ocasião de visita, os causos ganham atenção especial. Têm seus cortes, términos,
paradas, e do lado do ouvinte recebem silêncio, até que outros causos são puxados,
tornando-se cada um o comentário sobre o que foi dito anteriormente. Um causo recente
tido por intrigante é em geral inaugural na seqüência de apartes pessoais que em geral
levam a outros causos tidos ali como análogos. Nesta seqüência encadeada consiste a
prática de “contar causos”. De um jeito ou de outro, as locuções são testemunhos da
experiência de quem conta, seja por sua participação direta, seja pela via da escuta de
quem teve parte no ocorrido, o que por sua vez pode ocorrer de segunda mão ou ainda
mais distante o “causo” do “causo” ouvido mantém-se um “causo” independente de
quantos intermediários existirem entre a primeira versão e aquela que se narra. Assim,
por um lado, podemos considerar o causo como uma narrativa propriamente ‘autoral’,
particular; suas ‘evidências’ baseiam-se numa reconstituição da ‘experiência’ de quem
narra por ter ‘estado lá’ (cf. Geertz, 2002 [1988]: 11-40). Por outro lado, a prática de
“contar causo” constitui, por sua vez, uma espécie de ‘tecido discursivo’, conforme
denomina Foucault (1969: 97), pois que não se encerra em uma unidade identificável
nos termos de uma ‘obra’, ou de uma ‘função-autor’. A circulação de um causo consiste
aproxima-se da idéia de uma ‘linha de pensamento’, como seria a economia política’,
ou a ‘história natural’. Integrando um conjunto de práticas discursivas específicas, um
único causo é composto por uma série de versões. Além disto, ao ser contado, um causo
puxa outro trazido pelo interlocutor com o intuito de traçar analogias ou comparações. E
se os causos tratam dos “ocorridos” com o “povo”, o arranjo que eles constituem ao
serem narrados (uns “puxando” outros) formam, tanto no que consiste à autoria quanto
ao objeto narrado, uma espécie de ‘turma’. À imagem daquilo que descreveu Edwards
(2000: 164) sobre as ‘famílias briguentas’ em uma cidade britânica, funcionam como
um colletive body’: pode-se querer chutar um único indivíduo, mas todo o grupo sairá
60
mancando de dor. Pois se o causo está necessariamente vinculado à sua interlocução -
isto é, ao que se ouve das outras partes envolvidas e ao que se quer fazê-las ouvir -, ao
ser narrado, ele causa efeitos não só nos que escutam como também em quem o narra.
Os causos “contaminam”, tal qual certa vez disse o Prefeito de Chapada a uma
funcionária grevista que ele identificara como liderança, Você está contaminando os
outros!, acusou em uma reunião de reivindicações. Eu não sou doente para contaminar
ninguém!, respondeu ela, com o coro contrariado dos demais, se deixavam que ela
falasse em nome dos outros era porque “pensavam igual”, reagiu-se então. Mas o causo
do comentário do Prefeito se difundiu em “diz-que-diz-que”, e o poder de
“contaminação” da funcionária passou a ser jocosamente associado à sua desenvoltura
retórica, Aquela ali é boa na prosa!, diziam em misto de ofensa e elogio. A prosa engaja
portanto não só uma aproximação entre fato e versão mas também entre falante e
ouvinte. Um movimento de reconhecimento mútuo se faz a partir das relações pessoais
e geográficas que situam o ouvinte a respeito do narrado em função dos parâmetros
apresentados pelo narrador (cf. capítulo 2). Neste sentido, a narrativa é como uma
‘bricolagem’; reúne certos ‘conjuntos factuais’ a “parenteza”, as histórias dos lugares,
os acontecidos das relações que são como imagens independentes de sua posição na
argumentação da qual são parte constitutiva
21
. Por esta ‘bricolagem’, o “modo” da
“conversa” não se distingue daquilo que se tem a dizer, uma vez que o narrado não se
separa das unidades relacionais acionadas por cada imagem trazida à narração. E a
forma de um causo se mistura aos elos que lhe dão sentido. “Contar causo” é, em suma,
uma conversa em que se aprecia o “modo da prosa” “uns aos outros”, no dizer
buraqueiro (uns apreciando os “modos” dos outros).
À medida que um causo estabelece relações que puxam outros causos, estes por
sua vez com novas relações, reforçam-se “povos”/“famílias”, pois que o causo puxa
comentários, sendo ele mesmo uma espécie de posicionamento deliberado, no qual
narrador e ouvinte compartilham a experiência do ocorrido narrado. O sujeito falante é
inextricável ao acontecimento que narra, envolvendo os ouvintes em seu próprio objeto
à medida que os instiga a experimentar os efeitos da prosa como efeitos do
acontecimento. Ao implicar narrador e ouvinte em uma relação dinamizada por
“cálculos” de parte a parte, a conversa funciona como um jogo cujas regras não se
limitam a uma combinação estratégica; é antes o resultado de uma relação que se
3
A noção de ‘bricolagem’ é inspirada aqui na formulação de Lévi-Strauss (2004 [1962]: 15-50) em sua
clássica discussão sobre o ‘pensamento selvagem’.
61
conhece no próprio gesto da prosa, em seu porvir. O ‘sucesso’ no relato de um causo é
como em um processo de “catira” [negociação], leva tempo e paciência, o “catireiro”
obrigando seu interlocutor a entrar em uma relação que existe no ato presente da
interlocução, no gesto próprio de negociar, criando-se uma necessária ‘co-produção’
22
.
Trata-se neste sentido do que elabora Stengers (2005: 159-160), a partir de Leibniz,
sobre a noção de ‘cálculo’:
Calculemus!, dizia Leibniz, matemático-filósofo mas também diplomata.
Não se tratava absolutamente da injunção a ter que se submeter a um modelo
geral, mas da produção de dois processos inseparáveis: aquele que cria a
“consistência” do problema (...) e aquele que cria o “nós” da situação
problemática (...)’. (Stengers, 2005: 159-160)
O conhecimento que se cria e se transmite numa contação de causos não é
portanto redutível à síntese; não pode ser traçado como um modelo prescrito; existe
enquanto singularidade presente, criada na própria relação de conversa. Pode-se assim
aproximar a forma narrativa da “contação de causos”, enganchados uns nos outros,
daquilo que, em nome da definição de sua ciência mitológica’, Lévi-Strauss (1964: 32)
identificou na música serial em analogia ao modelo astronônico. Hélas!, suspira o autor,
nada garante que os corpos de um universo em expansão sejam animados pela mesma
velocidade nem que se desloquem em uma mesma direção. Sem um padrão que se
reconheça, o auditor da música serial é retirado de sua passividade. Assim, especula o
autor, pode ser que este gênero musical se afaste de seu auditor, tornando-se muito
distante para emocioná-lo, atraí-lo, puxá-lo (‘l’entraîner’). De forma similar, na prosa
lenta dos Buracos, o que se prescreve como fim é apenas a abertura a outros causos;
novas relações de mapeamento e análise que se elaborarão através dos causos contados
em reação aos que se acabaram de ouvir.
A partir desta dupla articulação entre a forma etnográfica e a do “causo”
buscando acompanhar suas distâncias e aproximações é constituído o caminho de
análise a ser aqui explorado. Noutras palavras, o caminho de minha descrição. Um rumo
que às vezes poderá ao leitor parecer sinuoso, mas que impõe ao ouvinte buraqueiro
circunstâncias e interesses bem específicos; bastando para isto tomar o gosto de
prospectar conforme o “rumo da prosa”. A apreciação buraqueira da prosa parece estar
4
Ao descrever o ‘cálculo que governa a lida e rege a catira’, Ribeiro e Galizoni (2007: 65-74) contam que
‘o catireiro finge ser sonso no jogo de deixar a palavra inicial ao parceiro’, além disto ele ‘tem que ser
conhecido, ter bens próprios e ter sua rede de informantes’ (grifos meus).
62
justamente nesta especulação vagarosa a respeito do rumo indicado por um dado modo
de “dizer”, uma determinada forma de chegar”. Lembre-se que o presente esforço de
escrita pretende justamente movimentar-se pelo inescapável desalinhamento lingüístico
entre os “entendimentos” do leitor e do ouvinte, do escritor e do falante, buscando entre
eles um equilíbrio possível (cf. Introdução).
Nos Buracos, causos que são contados e repetidos por todos; cada um a seu
modo. Mas nem todos sabem “contar direito”. Quem “sabe”, “conta direito”, o que
consiste em criar a ocasião para uma performance singular. Uma tomada de ar indica o
porvir de um causo. O locutor cria uma brecha de silêncio e inicia uma primeira frase;
em geral vagarosamente, às vezes seguida de um anúncio do tipo, Você agora falou isto,
me fez lembrar o causo... Ou bem o silêncio se segue à pergunta sobre o ocorrido,
dando-se gravidade ao que se didepois. O tom de voz então se imposta e os ouvintes
se ajeitam para assuntar, vem “mentira”, dizem quando o causo é para fazer rir. E
então se imagina que a prosa ali vai tomar tempo. Ao anunciar seu causo, o contador
espera que o ouvinte assuma por si um modo atencioso. Não se deve interromper quem
conta um causo. Entre casais, pequenas brigas surgem a toda hora por conta de
interrupções deste nero. O causo é para “enterter”, o que demanda um relaxamento
atencioso da escuta.
Os causos são dados a apresentar o rastro do que ocorreu, à semelhança dos
rastros deixados na terra por quem caminha. O rio de Fulano, a manga [pasto] de
Beltrano: por onde passou a pessoa que nome a um lugar? Casou e foi lá para onde
hoje é o Velho Zé, na cabeceira [do rio]; o velho comprou do filho deste que casou;
nasceu lá, a casa ficava do lado do de Ingá que ainda tem, você viu, passando o
córrego. Com base na configuração atual de casas e/ou famílias, apresentam-se as
referências espaciais de percursos traçados no tempo; o espaço atual faz-se então prova
e testemunho da matéria abordada, a saber, o que se passou a um dado tempo
transcorrido
23
. Assim narram-se os causos, lembrando-se os sinais que, por ventura do
episódio, deram as pistas do que não se poderia conhecer por ocasião da presença”. A
habilidade do contador de causo está em fornecer ao ouvinte não a informação do
23
A idéia de que os “pés de pau” são marcadores de tempo foi incorporada ao processo de criação do
Parque Nacional Grande Sertão Veredas, quando se avaliaram as “benfeitorias” dos moradores da área a
ser transformada em “unidade de conservação” de onde seriam retirados os moradores. Com o intuito de
estabelecer os valores de seu “patrimônio” para ressarci-los no processo de reassentamento, os órgãos
ambientais responsáveis incluíram os pés de manga das terras habitadas no “inventário” das
“benfeitorias”. O tamanho dessas árvores estabeleceu-se então ali como um dos principais índices do
tempo de moradia dos habitantes a serem reassentados (Camila Medeiros, comunicação pessoal).
63
movimento no tempo e no espaço, mas a experiência da surpresa no modo como se deu
quando do “ocorrido”. E não é que foi mesmo desse jeito!!, repete o locutor às vezes ao
finalizar o causo, para então reapresentar a o encadeamento dos movimentos que deram
no que inesperadamente ocorreu.
O que mais parece puxar o interesse dos ouvintes buraqueiros é a “verdade”
evidenciada na fatalidade do que, pelo inusitado, poderia ser “mentira”. O que é
verídico atesta-se, a despeito do espanto, na coerência de uma geografia atemporal: o
tempo que se levou para ir até lá, o cálculo que se fez e o imprevisto que fez o que fez.
O bom orador dá ao ouvinte indicadores passíveis de averiguação por meio da geografia
atual. Assim, o causo traz como recurso retórico a explicitação por onde andou o
narrador, isto é, com quem falou, onde esteve; ouvir a “conversa” de alguém é informar-
se sobre o que o falante andou “caçando”, quem andou “beirando”; notificam-se assim
as distâncias e aproximações dentre a gente buraqueira. Para isto, um recurso recorrente
é o mapeamento das relações ali envolvidas, o que se faz à medida que se narraram,
conforme veremos logo mais, determinados movimentos no tempo e no espaço. Da
mesma forma, as pessoas mencionadas pela história são identificadas por seus laços de
parentesco, Fulana, a filha do tio de Beltrano, que você conhece da Vila, contam-me.
Assim, o deslocamento - evidência e forma do ocorrido - integra-se, no causo, ao
acúmulo de laços feitos em uma vida (os avós, os pais, os filhos, os netos) - evidência e
forma do tempo transcorrido. O locutor ressalta como estes referenciais do tempo e do
espaço se situam em relação ao ouvinte; e então, por meio de quem é falado, mapeiam-
se ainda as posições relacionais entre quem fala e quem ouve (capítulo 2). Assim, é no
próprio “modo” pelo qual um causo é transmitido e repetido que se encontram as pistas
sobre a verdade de quem fala; trata-se de testemunhos de relações não de quem é
narrado como também de quem é narrador.
Conforme explicou certa vez um senhor buraqueiro, o “tio” do sobrinho é
“irmão” do pai do sobrinho, que então é filho. Assim é a palavra, disse ele, “tio” pode
ser “irmão”, “sobrinho” pode ser “filho”. O tal senhor, chamado de Orotides, disse-
me ali ser um sujeito “declarado”, reivindicando assim sua autoridade em questão de
“palavra”. É um sujeito que “honra a palavra”, disse sobre si, conforme a expressa
buraqueira, e que sabe usá-la; daí, “declarado”. Não sou bom na letra, mas minha
palavra é honrada!, prosseguiu (cf. capítulo 5). Naquela ocasião, refletia sobre
controvérsias a respeito dos fundamentos da Folia de Reis, sendo ele mesmo um “dono
de folia”. As pessoas falam que a folia começou no início do mundo, contou-me ele,
64
mas não foi bem assim! E me exemplificou “o causo dos três Reis Magos”, viajantes
rumo ao local de nascimento do menino Jesus, escondidos do Rei Herodes, que queria
matar a criança então recém nascida. Os Reis Magos receberam de Deus um sinal sobre
o nascimento de Jesus, e sobre a localidade a encontrá-lo: uma estrela brilhante indicar-
lhes-ia o rumo, contou Zé Orotides. Caminharam durante toda noite, no rumo da estrela,
enquanto Herodes, também sabedor do ocorrido, caçava-os. As folias em que há pessoas
representando Herodes sob fantasias de palhaços e mascarados estão equivocadas,
concluiu Orotido, pois reapresentam o giro dos Magos em companhia daquele de quem
justamente estes fugiam
24
. A prova alegada em favor de seu próprio argumento, dizia-
me, estava na própria estória que ele então me contou, lembrando-me que esta era
conhecida e reconhecida por todos. As pessoas falam de um livro, contou-me, mas este
livro não existe. O que existe é a letra da música, que é uma interpretação da Bíblia.
Porque a Bíblia mesmo não foi Deus quem escreveu. Deus escreveu algumas palavras
na pedra, o resto é tudo interpretação. A Bíblia é certa, o que é errado é o povo!,
concluiu. Você vê, se o fosse isso como é que ia ter uma única Bíblia sozinha e 397
religiões diferentes? Não estou dizendo que a católica é a certa, não! Porque a gente não
sabe! Mas a Bíblia é certa! Os crentes é que dobram a língua pra falar que sabem ler a
verdade da Bíblia, mas quem são eles pra saber a verdade de Deus?!
Talvez por este motivo os buraqueiros não se cansam de ouvir o mesmo causo
contado por diferentes pessoas. As tardes “bestando nas casas dos outros” são
preenchidas pela repetição dos causos dos quais em geral se teve conhecimento. A
circulação de um causo se estende numa espécie de guerra de versões que pode aturar
apenas alguns dias ou completar mês, podendo se repetir, embora cada vez com menos
freqüência, através dos anos. As versões são contestadas, conflitadas. A circulação de
um único causo passa a se recompor em causos do causo, no que os buraqueiros
recapitulam uma escalada de versões onde, ao contar o que se ouviu contar, se
explicitam os alardes e não-ditos de quem contou. Os ditos nem sempre são
verbalizados, sabem os buraqueiros. Por este caminho, entende-se o especial apreço dos
buraqueiros em geral pelo exercício oral da palavra, em detrimento da “letra”. Não
porque o texto escrito seja ali acessível apenas às gerações mais novas o que ocorre
mas porque é na oralidade que o jogo da prosa ganha os contornos próprios ao modo de
24
Esta forma de Folia de Reis a que se refere Orotides não existe na região norte e noroeste de Minas
Gerais, sendo característica no estado do Rio de Janeiro, entre outras partes do país. Para uma exposição
aprofundada do tema, ver, entre outros, Chaves (2003 e 2009), Pereira (2004) e Porto (1982).
65
conversar que apreciam. Certa vez, uma jovem pediu-me que eu entregasse uma carta
de amor dirigida por ela a seu namorado clandestino, o que me recusei a fazer,
argumentando não querer atuar contra sua família, que se opunha ao namoro. A menina
pediu-me então que eu falasse com o rapaz por telefone e, buscando convencer-me,
explicou: a palavra no papel deixa prova, mas quando a gente fala não tem como os
outros saberem se a gente falou aquilo realmente, a palavra fica “perdida no ar”. Nesta
formulação a moça entretanto não considerava que, conforme ela mesma me contara,
estava temporariamente residindo em Brasília para fugir da “falação do povo na
Chapada”, onde morou ao deixar os Buracos. “O povo fala demais”, explicara-me. A
oralidade é interessante porque relacional e efêmera, os buraqueiros o notam e fazem
uso habilidoso disto; pelo mesmo motivo, tornam-na especialmente potente.
Contar um causo pode ser “mesmo que dar veneno”; a informação efetuando-se
tal qual um acontecimento provocado, uma ameaça, uma briga, um assassinato, uma
ruptura. “Perdida no ar”, a palavra oral é como que jogada, estando totalmente
vinculada às contingências do momento em que foi proferida. O mapa das relações
então se reforça ou se reconfigura. Pela mesma via, o afastamento em relação a um
promove a união em relação a outros e, portanto, quão mais perspicaz o proseador, mais
bem feito é o seu “cálculo” sobre os efeitos do que diz. “Cálculo” é uma expressão
buraqueira usada em geral como sinônimo de “sentido”, “juízo”. Como quando se diz,
Ouvi o barulho acolá e fiquei com o sentido ali, até que decidi ir assuntar... Ou então,
Fulano ficou com o “juízo” atrapalhado e esqueceu de dar o recado que mandei. A idéia
constitui um misto de planejamento e possibilidade; interesse e vontade, e nisto se
identifica à idéia de ‘jogo’ que associei à oralidade. Nos causos, este jogo é deliberado,
à maneira do que Comerford (2003: 89-90) descreve sobre a ‘brincadeira’ cotidiana nas
conversas entre pessoas que têm ‘intimidade’, na região rural da Zona da Mata de Minas
Gerais pesquisada por ele, conforme o vocabulário local:
‘Caracterizada por provocações mútuas, aparentemente agressivas, e
respostas a essas provocações, a propósito de um mote qualquer. (...) os temas
mais frequentemente usados para provocação podem ser, por exemplo, a
sexualidade, a capacidade técnica e intelectual, os atributos físicos, um
acontecimento qualquer envolvendo um dos participantes, a posição política, e
assim por diante. (...) nisso inúmeras possibilidades de combinações e
distinções sutis, que podem adequar o “tom” da brincadeira de acordo com os
participantes, a situação, o local’ (Comerford, 2003: 89-90).
66
Assim como na situação descrita por Comerford, o cálculo é parte do jogo
prazeroso “entertido” - da prosa buraqueira. Mas, ao contrário do que ocorre nas
‘brincadeiras’ - de relaxada “contação de causo” - a exposição sobre um determinado
“cálculo” se faz, por meio da palavra, para amenizar possíveis mal-entendidos, sendo o
argumento também calcado em um cálculo. Este, entretanto, não exposto diretamente. A
um vizinho distante, por exemplo, pode-se dizer, como justificativa para o não
cumprimento de uma visita, Eu estava de cálculo em ir à tua casa, mas Fulano chegou e
eu “perdi o lculo”. O lculo, empenhado no pensamento como na palavra, fala de
relações ao explicitar as relações que faz. Assim, a ambivalência (ou a polivalência) de
palavras cujo sentido é variável conforme as relações internas e externas ao discurso é
engenhosamente administrada pela retórica buraqueira. Sobre o causo da piada mal
sucedida de Manoel na casa do primo banguela, o que se notava em princípio era um
erro de cálculo: não se imaginou a presença do outro, o homem que “tomou a mulher”
do primo. Mas então o causo se configurou, por seu efeito de surpresa, em um
comentário de desculpas: o cálculo de Manoel havia sido, a bem dizer, correto, defendia
este. Afinal, quem imaginaria aquela presença?! Além do mais, o outro estava bêbado,
ressaltaram os ouvintes, e chegara na companhia de outros. Caçando pinga. Daí para
caçar briga...! Quem controla?! Quando o outro bebe, a gente nunca sabe..., concluiu
Quincas sobre o causo. Com os bêbados, “molhados”, não se pode calcular as reações;
eles têm uma “prosa descontrolada”. A atenção sobre o causo estava nesta tensão
específica, indicadora de uma sorte possível. Graças a Deus o causo não findou em
briga!, comentou-se. Nada se mencionou ali sobre os rompantes de faca vez e outra
promovidos pela cachaça, conforme ouvi em causos de outras ocasiões. Mas o balançar
das cabeças em sinal de consternação nos fazia lembrar de ocorrências tristes, dos
causos que ali se acharam por melhor silenciar. Os presentes importaram-se ao invés
disto em rumar a prosa para a questão do divórcio, tendo como exemplo a mulher do
povo de lá parente, mas “da outra beira” - que viera visitar os ex-sogros de cá. Rosa
contou aos que proseavam e estes reforçavam com isto sua recriminação ao ocorrido,
misturando-se em comentários de opinião comum.
Com o tempo permitido pelas visitas, o contador de causo se esmera em explorar
as ambivalências da palavra, fazendo brincadeiras a partir do que se pode ou não contar
a cada ocasião ou conjunto de pessoas. O suspense é um elemento fundamental, criado
por pequenas pausas que antecedem a exposição detalhada seja de um movimento, seja
de um algo que se disse, levada a cabo como desfecho do fato, o “ocorrido”. Nesses
67
espaços de silêncio, eventuais risadas, muxoxos, exclamações ou breves comentários
dão ao falante alguns sinais dos efeitos de sua prosa. Quem ouve é engatado por este
ritmo narrativo; e freqüentemente o acompanha já sabendo o desfecho previamente, mas
aprecia os melindres do narrador, como que re-experimentando o acontecimento. As
reações ao que se conta dizem respeito a esta apreciação, que envolve não o relato
ouvido, mas também as inferências sobre o que já se conhece do causo. Desse contraste,
surgem às vezes análises explícitas de relações. Por exemplo, sobre um causo de briga
entre marido e mulher: Fulano não contou que antes da briga ela tinha ido à festa porque
aí a gente ia saber que foi ele o iniciador da briga, ciumando! O cálculo é de quem narra
e de quem escuta. Pode chegar!, diz-se ao visitante, e em seguida este é encaminhado
para dentro da casa, em geral à cozinha. A circulação de palavras assume-se ali como
efeito e criação de intimidades entre a gente buraqueira. Por este gosto da prosa, uns
aprimoram o conhecimento sobre os modos dos outros, entre os presentes que falam e
os ausentes de quem se fala. Assim, um causo não é testemunho de determinado
mapa de relações, também lhe é constitutivo. A escuta atenta sobre “o rumo da prosa”
de determinado alguém promove posicionamentos. Uma vez ausente o proseador, os
causos do causo por este narrado alimentarão a permanente circulação da prosa. Eu fui
entendendo o rumo daquela prosa e falei logo..., conta-se. Sendo a conversa a substância
por excelência dos encontros que os deslocamentos promovem, ela é por outro lado
também motor de prosas futuras. Neste sentido, toda visita é ela mesma um causo.
Pelo procedimento de “contaminação” que ora vimos, as histórias pessoais são
histórias familiares, organizam-se, ‘estratificam-se’ por operações de mapeamento.
Recorre-se a referências geográficas que são relacionais, “a fonte de Fulano”, o
“pé de jatobá de Cicrano”, “a manga de Beltrano”, e nisto a ocupação de um espaço
demarcado é descrita o como transcurso do tempo, conforme viemos de ver, mas
também como um mapa de relações temporariamente fixado
25
. Tornar presente o
passado pode ser uma definição adequada àquilo de que, enfim, se trata um “causo”,
tanto porque reapresenta a experiência anterior quanto porque estende a outrem as
reações e implicações do ocorrido narrado. Se esta operação de ‘presentificação’ se faz
pela palavra, é porque por esta as pessoas se misturam umas às outras, tornando-se um
coletivo.
25
Comerford (2003: 33) formula esta idéia ao descrever um ‘mapa’ que tem como ‘princípio organizador
básico os pertencimentos familiares e as relações de parentesco, associados sistematicamente à
localização geográfica e à reputação de pessoas, localidades e famílias’. Sobre a noção de ‘estratificação’,
ver Deleuze e Guattari (1980: 592-623).
68
Quando cheguei aos Buracos anunciando meu interesse em ‘estudar parentesco’,
logo me ofereceram ouvir relatos sobre seus ‘antepassados’: eram-me estes
apresentados através de “causos do povo de primeiro”. E o passado comparado ao
presente fazia com que, diante de mim, fossem mapeadas as mudanças vividas nas
relações entre parentes, e entre estes e suas terras. Imbuída também de outra dimensão
temporal, a da imprevisibilidade prospectiva dos movimentos humanos, a relação entre
parentesco, tempo e território mostrou-se uma pista importante para a observação dos
laços que constituem o “povo dos Buracos”.
Através dos causos, vai-se criando uma História dos Buracos. Narrados, seja às
gerações mais novas, seja a uma pesquisadora que se declara interessada em “pesquisar
a parenteza do povo”, estes relatos revestem-se basicamente de histórias sobre quem
casou com quem e para onde o casamento os levou, para longe ou perto, para poucos ou
muitos filhos gerados. Seguem-se a isto os destinos dos filhos e assim vai sendo traçada
“a sorte do povo”, os movimentos de sua “gente”, suas “famílias”. E também quem não
casou tem seu rumo por justificado. Os buraqueiros esmeram-se em contar detalhes
de como cada um desses casamentos reuniu povos ou famílias mais ou menos distantes.
Quando ocorre uma união matrimonial, de se justificar, por exemplo, a proximidade
que deu margem ao encontro do casal: seja por ocasião de uma festa, quando os noivos
não se conheciam, ou por resultado de laços familiares existentes, quando os noivos
apenas fortaleceram seu conhecimento mútuo. Em todo caso, as estórias de união
desenrolam certos mapeamentos: como se chegou ao “acontecido” do encontro? “O
irmão dele casou com a irmã da que agora é esposa dele, por isso acabou puxando”,
conta-se, por exemplo, explicando-se como deu por se dar um casamento entre
concunhados. Noiva e noivo “puxados” uns aos outros através dos respectivos irmã e
irmão. Assim, de um modo geral o traçado destes deslocamentos se faz à medida dos
elementos que, no dizer dos Buracos, “puxam” as pessoas em uma ou outra direção. O
casamento é sem dúvida o mais mencionado fator de deslocamento. E casamento,
repetem os buraqueiros, “é sorte”. Se certo é muito bom... Mas nem de sorte boa
se fazem os casamentos. Integrando casas distintas, o matrimônio é feito da
ambigüidade própria ao deslocamento humano: entre o cálculo e o acaso; o desejo e o
equívoco – conceitos necessariamente pareados no mundo buraqueiro (capítulos 5 e 6).
Mas o que é a “sorte”?
Oscilante entre as idéias de “acaso”, escolha” e “destino”, a sorte mostra-se
como causa e efeito de deslocamentos; está naquilo que desencadeia uma mudança de
69
rumos e no que é, no lo oposto, o resultado de algum desvio determinante. A sorte
está por exemplo no que é gerado por um nascimento, um casamento, uma morte; ela
determina a história da duração de uma pessoa
26
; não é conhecida se não depois do
acontecido, mas emite sinais, pistas que são analisadas em retrospectiva quando se conta
um causo. Por outro lado, a sorte “abre”, diz-se às vezes. Quando, em uma casa, pessoas
começam a chegar separadamente mas ao mesmo tempo, o povo anima e diz: “Ich!
Agora a sorte abriu!”. Ao viajar, quando a carona aparece no tempo certo de se alcançar
o ônibus e chegar ao destino - antes mesmo da hora marcada! - o sortudo diz: “tem
vezes que a sorte abre e tudo anda no tempo.”. Da sorte, se vai em busca, “caçando”:
“foi para esse mundão caçar a sorte”, sobre quem buscou destino longe. Para
mantermos a analogia feita anteriormente entre o “causo” e o ‘mito’ lévistraussiano,
podemos dizer que, se este se caracteriza por ter como objeto de interesse a separação
entre ‘natureza’ e ‘cultura’ (Lévi-Strauss, 1975 [1955]), aquele se define por uma
atenção especializada sobre o acontecimento da “sorte”.
Nas conversas “pra lá da porta”, o chegante “encostado” à cerca sem intenção de
entrar, os de casa tomam parte dos últimos deslocamentos: quem foi; quem voltou; para
onde; quando. Estes temas, sempre triviais, tornam-se “causos” no caso de uma notícia
inesperada, seja novidade ou detalhe recente de um causo sabido. Assim, o aviso de
falecimento de um primo distante rendeu vários dias de prosa entre a vizinhança onde
eu morava. Notava-se com surpresa, Como é que um sujeito que sempre lidou com
garrote valente agora - de repentinho! - morre pisoteado por um bicho manso, que além
de tudo ele conhecia bem (foi criado por ele!)? Sem resposta definitiva, um senhor
concluiu em voz baixa, O destino está lá; aí parece que o sujeito facilita... É coisa que só
se pode dizer depois do fato ocorrido. O causo repetia-se nas versões de quem havia
estado pelas beiras do povo do primo morto; os detalhes sobre os pequenos movimentos
que desembocaram no acaso repentino multiplicavam-se. O que poderia haver ali
“diferente” em relação ao corriqueiro era o que parecia informar as descrições do
ocorrido. Aquele que terminou em morte: parece que o sujeito facilita a morte.
Descreviam com precisão aquilo que nos pequenos deslocamentos do homem já podiam
indicar o “rumo” - a “sorte” ou o “destino” do que se passou: o cavalo estranhou e o
homem, forte, ao invés de ir para trás, foi para frente mod’ enfrentar! caiu bem perto
do animal, e este foi para cima. Deu o azar de pisar bem no lugar do rim. Parece que
26
A idéia de ‘duração da pessoa’ é aqui utilizada no sentido mais ou menos similar ao trazido por
Pissolato (2007).
70
facilita..., concluem. E num outro momento o causo vem mesmo para dizer, É a sorte da
pessoa. A morte arranja desculpa... Ao se narrar o episódio, rememoram-se então os
meios pelos quais o falecido, sem opção, “facilitou” para que a sorte mostrasse sua cara
na morte.
modos de especular, ou “calcular”, um destino, uma sorte de alguém em
determinado, o que se faz através da observação de suas pistas, isto é, de deslocamentos
por algum motivo significativo. Quando se nota alguma “diferença” em relação à
paisagem cotidiana por exemplo o excesso de circulação de duas pessoas entre suas
respectivas casas, ou o excesso de “quentura” em tarde nevoada - o assunto se estende,
rende; algumas prospecções podem ser feitas. Será o caso de falar de amor ou de chuva.
Estas, contudo, são prosas a título de especulação; diferem dos causos cujo interesse
reside justamente no desfecho já traçado. As maneiras de fazê-lo são sempre
contingentes, se pode saber a posteriori quais os gestos ou atitudes que “facilitaram”
um ocorrido, que resultaram em um dado causo. É fundamental notarmos que isto não
significa que se deva “entregar a sorte a Deus”. Ao contrário, o sistema de prosa
buraqueiro consiste no prazer de observar as pistas dadas pelo destino desconhecido,
conhecendo-o assim de um modo muito particular. O tempo, marcado na história da
ocupação da terra, por exemplo, vê-se medido pelo processo do parentesco: a sorte dos
casamentos, da geração e criação de novas pessoas quem puxou quem, se o sangue
deu bem e a família rendeu ou se findou por espinicar”, partindo uns, morrendo outros
(capítulo 2). Rogados a Deus para que sejam bons, tais acontecimentos seguem a gica
da circulação sanguínea: vivem no curioso limiar entre o que se herda da raça e o que se
puxa pelo acaso, sendo a escolha uma determinante mais ou menos determinada pelos
dois primeiros (capítulos 5 e 6).
Enfim, seja na morte, quando se parte “para o país dos pés juntos”, seja no
casamento, quando se “toma rumo”, ou noutros acontecimentos analisados pela sorte, o
que se a ver nos causos são históricos de movimentos: o que “puxou” fulano para lá?
A respeito da sorte, o que se pode sempre dizer portanto é que algum “rumo” foi
encaminhado. Mas como do “destino” mesmo “só Deus sabe”, resta aos humanos
buscar enxergar os seus sinais, isto é, as pistas dadas por deslocamentos que lhe dão
visibilidade. Estes não se fazem apenas ao longo de dados espaços; também como
“puxar” pessoas através do tempo, quando se “puxa o sangue” de um parente ou quando
se diz “puxar no sentido” a lembrança de um velho falecido, trazendo-o ao “juízo” de
quem ouve. Deste modo, é a própria sorte que se analisada nos mapeamentos de
71
relações que constituem o causo. Muitas vezes, tal palavra não chega a ser verbalizada,
e sua imagem desponta apenas no silêncio que se segue ao término de um causo, como a
força motriz, nem sempre dizível, daquilo que se narra.
O causo é também um modo de “dizer” sem ‘dizer’. Ali se ressaltam em
retrospectiva as pistas pregressas do que fez a sorte, como se fossem analisados os seus
rastros. Pela decomposição da seqüência do “acontecido”, o fato provocador da
mudança de rumos, infere-se algum “sentido”. Em geral sem que seja preciso proferir as
palavras medonhas que se imagina em silêncio. E por isto a conclusão de um causo
pode soar vaga: “parece que facilita...”. A irrupção da “sorte”, do acontecimento, ao ser
analisada em retrospectiva faz-se como contraste entre o que ocorreu e o que, pela
rotina, seria suposto ocorrer; é sobre a “diferença” entre um e outro que o espanto
reside.
A primeira vez em que dei atenção a este sentido particular da idéia de
“diferença” foi quando Anísio Carneiro contou-me do “o falecido João Carneiro”, seu
pai. Era a primeira vez que eu visitava o local até hoje referido pelo nome do
proprietário morto. Seu filho contou-me o causo com detalhes: numa tal data, lembrava
a hora em que havia subido para a Vila e a hora em que voltara no dia seguinte; como
havia ido e voltado e porque não descera antes para a roça. Quando enfim tornou à casa,
o pai não estava. Então sio contou: O chapéu dele estava. O pai era apegado àquele
chapéu, ia a todos os lugares com ele na cabeça. Cortava lenha e, para não molhar o
chapéu, colocava de riba de um pau [árvore] que ainda hoje existe [e me indicou o
local]. A lenha estava. Cortadinha; empilhadas uma parte, outras ainda espalhadas, bem
espalhadas. E o chapéu. Então eu cheguei e já achei uma diferença. Aí fui procurar o pai
no meio do mato. Chamei Cicrano meu irmão, Fulano que mora ali mais adiante. Nada.
Por fim, depois de andar um dia inteirinho, encontramos. Estava no meio do mato,
estranho, porque ali era fora de picada [caminho].
O termo “diferença”, dito frequentemente por ocasião desses “acausos”
assustadores, parece ser o mote do causo. Esta palavra como o verbo “diferençar” ou
“dar uma diferençada” pode ser a simples constatação de um novo “rumo”; emprega-
se onde o “destino” (ou “sorte”), em vista do que se observa na mexida diária, mostra-se
abrupto ou mesmo insolente. Noutras vezes é algo que não cabe pronunciar, sob o risco
de ser “prosa ruim”, pois que “o mal puxa o mal”, repetem-me os buraqueiros; e a
menção à “diferença” torna-se mais eloqüente do que seu uso ordinário nos daria a
imaginar (capítulo 5). De um jeito ou de outro, isto que se faz rastro de um
72
acontecimento narrado reveste-se no próprio “assunto”, naquilo que é de interesse
assuntar. Conforme veremos ao longo deste trabalho, esta “diferença” que se analisa nos
causos, seja ela indicadora de “sorte”, “destino” ou “acaso”, mostra-se de maneira
privilegiada quando dos ‘acontecimentos do corpo’, a saber, o nascimento, o amor, a
doença e a morte.
1.3 – O que é uma visita?
Manelão vem hoje aos Buracos apenas por motivo de festa. Quando vem,
portanto, se lhe esperam visitas. Sua chegada à casa de Quincas, mesmo que não viesse
com tal intenção, trazia a expectativa da prosa demorada, alimentada pela memória
comum dos “tempos de primeiro” e pelos ocorridos recentes que se acompanhavam
mutuamente, à distância, graças às notícias que circulam junto aos rapazes que vêm e
vão mod’as mexidas de gado
27
. O causo de Quincas era sabido. Havia piorado desde as
vistas no último ano, estando agora praticamente cego enxerga mal-mal algum laivo
colorido. Pelo menos a vista não trancou de vez, reconforta-se o antigo Joaquim Branco.
Sem poder trabalhar, queixa-se por estar “jogando do mato” o que acumulou durante os
anos de saúde e juventude. Dos filhos homens, só Nêgo mantém-se na lida de roça; João
mora em Brasília; Paulo, cego de nascença, não presta para estes serviços. E Nêgo,
naquela cachaça ruim... A casa rebocada e telhada, as terras para além das herdadas e a
casa de farinha, hoje sem uso, são ganhos do passado. Recentemente, Quincas passou
por um dificultoso périplo às voltas com médicos e exames que lhe custaram a venda de
gado e lhe deram pouco resultado. Sua filha Lúcia teve que descer aos Buracos porque
estavam com o cálculo de voltar hoje. Para depois tornar a subir para a Vila, porque
amanhã partem os dois, pai e filha, para Montes Claros; consulta marcada de acordo
com o encaminhamento do Dr. Reginaldo, do Posto da Vila. Encaminhou um tal
angioplasta; diz’que é um exame na veia. Então é coisa séria mesmo. Deve ser caro,
exame de sangue não serve. Dr. Reginaldo alarmou urgência se não ia ter que arrancar
os pés!, assustou-se Quincas. É porque o sangue fica parado aí roxeia e morre. A
27
O gado criado pelos buraqueiros costuma ficar em áreas próximas às suas casas durante o período de
chuva, quando o cerrado está verde e as veredas e córregos, fartas. Na época de seca, é necessário
deslocar a criação, em geral para pastos pagos. A área do Parque Nacional Grande Sertão Veredas é
frequentemente utilizada também com este intuito. Aqueles que, tendo o título de terra, não foram
indenizados nem reassentados noutras áreas, mantiveram-se na unidade de conservação, sendo contudo
proibidos de manter atividades de roça, restando-lhes como única alternativa de atividade econômica na
terra driblar a fiscalização para utilização do cerrado como local de criação de animais.
73
aposentadoria é só em remédio! E o de-comer come inteirinha a aposentadoria de
Rosa
28
. Quincas explica que sente os pés muito frios, ele mesmo faz massagem,
esfrega os pés com as mãos, depois caminha um pouco, melhora; mas fica sentindo
aquela dormência nas solas dos pés. E só vendendo gado...
Gado a gente tem é para esses ocorridos mesmo, diz Manelão procurando
consolar o outro. Agradecer a Deus que tem o gado para vender! A esta altura,
estavam na cozinha de Rosa e Manoel perguntara sobre os olhos de Joaquim,
queixado logo que se cumprimentaram. A ocasião dos detalhes do causo veio por
causa do tempo que se prolongou em forma de visita. Foi com talento que Rosa
conduzira os chegados até sua cozinha, pois que a intenção inicial deles era “só
encostar”. Deu-se ali, portanto, um gesto exemplar desta mexida feminina da qual
depende o bom funcionamento de uma visita. Cálculos engenhosos sobre o tempo e os
mantimentos disponíveis. Cada mulher tem “seu jeito” e, sobre as diferenças pessoais,
muito elas conversam. O sucesso ou fracasso de uma visita será, em sua avaliação
retroativa (ao narrar-se o causo da visita), um ou mais comentários sobre a qualidade da
comida e o que fez a dona da casa; como e em que tempo. faltou dar o de-comer na
boca, diz-se em prol da recepção. E o elogio se estende quando se nota a rapidez com
que a anfitriã tratou a galinha mod’oferecer às visitas. A mulher orquestra a hora de
passar o café e arruma um arranjo de comida com o que sobrou, guardou ou preparou de
véspera, por ocasião de outro acontecido. Mulher tem sempre um jeitinho. Como não
podia deixar de ser, Manoel aceitou de pronto o convite não-dito da casa, fazendo-se
visitante ao lado do outro primo, este morador da vizinhança, mas naquela contigência
recebido como “visita”, puxado pela presença do parente saudoso. Manoel também
andara com problemas de saúde e, agora recuperado, devia notícias em “fazendo
presença”.
Como o primo que o acompanhava, Manelão fora deixado pela esposa e hoje,
também como aquele, mora só. Sua ex-mulher é Maria, irmã de Quincas, chamada Titia
por quase todos nos Buracos; pegou-se o costume puxado pelos verdadeiros sobrinhos,
que são maioria entre os da geração conseguinte à dela. Ao largar o marido, Titia
28
Rosa e Quincas pertencem à primeira geração de buraqueiros a usufruir da “aposentadoria de lavrador”.
A preocupação em conseguir o benefício e os planos que esta perspectiva futura abre são assuntos
constantes na prosa buraqueira. O “lavrador” aposenta-se mais cedo do que o “empregado de cidade”.
Para receber a aposentadoria, além da idade mínima, é necessário estar cadastrado no Sindicato dos
Trabalhadores Rurais e comprovar que sua atividade seja excluvamente a de lavrador(a). Para isto, é
necessário levar ao Posto do INSS, em Januária, além da documentação, duas pessoas que sejam
“testemunhas” de tal condição.
74
voltara para a terra que herdara nos Buracos, sendo hoje vizinha de seus irmãos.
Primeiro ficou morando de favor na casa destes, pulando como galinha que cisca, uns
meses na casa de um, uns meses na casa de outro. Uma agonia!, contara-me ela. Até que
se mudou para o rancho construído por um dos irmãos, junto com um sobrinho. A palha
de buriti quem tirou foi outro sobrinho e também “deu dado” o serviço de colocá-la.
Aos poucos, as paredes de palha deram lugar ao adobe; os filhos, agora crescidos,
rebocaram-nas com o barro amarelo que caçaram no trecho colorido da ladeira
29
. Titia
vive atualmente solteira e em companhia de seus dois filhos, que depois do causo da
doença do pai e a despeito dos protestos da mãe, passaram a se revezar entre fazer
companhia a um e outro. O menino mais novo de Titia, depois que arranjou uma
paquera no Rio Preto, na vizinhança do pai, é que não sai mesmo de lá, aproveitando
a desculpa do gado que o pai lhe deu sob condição de que ele mesmo tome conta. Filho
é para ficar de junto da mãe!, reclama Titia, lembrando o sofrimento de quando perdeu
os outros quatro filhos que teve, mortos ainda à idade de começar a caminhar, por
disenteria ou febre. Diz’que por isto Titia teve o juízo meio arruinado. Teve épocas em
que a cabeça arruinou mesmo!, conta o povo. E foi pela agonia na cabeça que separou
do marido. Não pode com barulho; Manelão é barulhento, aquela zoada no ouvido da
gente...
Figura 2.1 – Os chegantes chegados de Quincas e suas respectivas ex-esposas
O causo de Titia, eu sabia; mas não me foi contado naquela ocasião da chegada
de Manelão. Ela mesma era quem me havia contado uma parte, o resto haveria de ser
29
Adobe” é o tijolo feito pelos próprios moradores dos Buracos com a argila que extraem em pontos
específicos do Vão dos Buracos.
75
dito e entredito por outros ao longo de minha estada nos Buracos, um trecho aqui outro
ali, ninguém pretendendo detalhes. Pela mesma via sorrateira informei-me sobre como a
boa relação entre Manuel e Quincas se fazia em contraste ao desconforto provocado
pela separação entre o primeiro e a irmã do segundo. Tomei conhecimento disto quando
os dois homens se apresentaram diante de mim como cunhados, acentuando ali a
importância de seu vínculo. E quando o aparte de Rosa sobre o fato de serem também
primos, embora condizente com o sentido daquela afirmação de intimidade, inspirou a
repreensão de Quincas. Haviam de ser cunhados. Da mesma forma, aquela chegada
merecia-se como visita.
Note-se que nem todo chegante” é um “visitante”. O primeiro termo
designa qualquer um que “chega”; uma casa vive cheia deles, gente da vizinhança,
chegando para logo sair. Ou gente de fora, mas com destino certeiro noutra parte, A
demora vai ser pouca..., avisam logo. Encostam à cerca ou passam pela cozinha para
assuntar qualquer coisa ou apenas pedir a bênção dos de casa, sejam avó e avô, tio e tia,
sogro e sogra, ou “conhecidos”, “gente de casa”. Bebem uma copada d’água do pote;
ciscam um resto de merenda. Às vezes, chegam com algum “sentido”: por exemplo,
perguntar qual foi o remédio usado para bicheira no saco do boi, pois que o mal chegou
ao pasto do outro, Os meus, está tudo, explica o chegante. Ou pedir emprestado o
estojo, mod’ vacinar o animal. A seringa dilatou, conta outro, Botei a água fervendo
nela para lavar, arruinou. Quis ser ativo de mais, acabei sendo besta! O vizinho logo
pega o de empréstimo e volta no próprio rastro. Então outro chega e conta o causo de
sua egüinha, Só tenho aquela para caminhar, não quero parir ela não, diz, Égua criada
tem uma caminhada dura. A vizinha vem dizer que passou ni Fulano e ele devia estar
amuado, pois nem gritou o cum’vai. E passa outra que não é vizinha, mora para do
Retiro; vem da Vila, descendo a ladeira com as compras do mercado. Encosta um
instante à cerca e reclama dos filhos que saíram rompendo em sua frente, deixaram
rasgar as sacolas, andando de qualquer jeito pelo caminho. É tolo!, ralha a mãe. Quando
esta vai, outro chega e comenta, É para ela deixar de ser besta, ficar comprando comida
pros filhos beberem cachaça, pois se ela mesma não pára em casa, não é ela que come...
Às vezes o tempo desses assuntos rende até a hora do almoço ou da janta e pode ser que
os “de intimidade” resolvam comer por ali mesmo, mas isto não caracterizará uma
visita. É gente “acostumado”; gente que é “mesmo que ser da casa” (cf. capítulo 3).
Nos Buracos, entende-se que a presença de uma pessoa na casa de outra em
geral puxe gente. Seja visita ou só passante rotineiro, quando se conversa dentro de uma
76
casa, os de fora, a caminho de algum lugar, ouvem a barulhada de quem está dentro e
isto não raro lhes move também para dentro. Ao bestar de uma casa para outra, o
sentido sempre assunta a zoada na vizinhança, os mais jovens e animados indo decerto
em direção ao que escutam. A prosa animada puxa gente. Às vezes entram para
“assuntar um instante”, podendo ou não permanecer mais tempo por ali. Ao longo de
um dia, uma casa se enche e se esvazia de gente diversas vezes. aquelas nas quais
este movimento é maior, são casas que por característica própria puxam gente. Mesmo
assim isto é em geral variável, depende também do acaso, da sorte de cada dia. Quando
um lugar “puxa gente”, é porque está “animado”.
E também os chegantes “de fora”, moradores que não nasceram nem foram
criados nos Buracos, que vêm “só de passagem”. Freqüentemente, por exemplo, chegam
biscateiros vendendo coisa ou fazendo cobrança. Da Vila, funcionários da Prefeitura de
Chapada Gaúcha vêm para algum reparo em escola ou estrada. Dependendo do serviço
que prestam e do apreço que despertam nos moradores, podem ganhar o almoço da casa
mais próxima.
Mas a “visita” se difere de qualquer um desses movimentos. Grosso modo, o
buraqueiro nomeia “visita” o chegante cujo deslocamento não é habitual ou diário, mas
que nem por isso deixa de ser, em alguma medida, esperado. O visitante - ou “a visita”,
conforme o vocabulário buraqueiro - é tido como tal por ser “chegado”, isto é, benquisto
e conhecido; mas sua presença ali não é usual. certas motivações recorrentes ao
movimento geral de visitas. Por exemplo, o “acauso” de um doente na casa é decerto
motivo para que se lhe visite. É mesmo comum que o cônjuge ou filho do enfermo faça
o trajeto passando nas casas dos mais chegados para lhes noticiar sobre a moléstia, de
modo que estes possam planejar suas visitas. Com o mesmo intuito, na época em que os
partos eram feitos em casa, o nascimento se anunciava por meio do lançamento de um
rojão, ou “foguete”, como se chama nos Buracos. Se na doença iminência de morte,
como quando quem se abate é “de idade”, a visita se faz urgente entre todos os parentes,
vizinhos ou não. O assunto circula nos causos de cada visita em que se contam as
impressões sobre o estado de saúde em questão, e se perguntam e se comentam sobre
quem ainda não fez a visita e quem a fez muitas vezes. Aos velhos em geral, aliás, é
preciso fazer visitas com algum regularidade, sabem os buraqueiros; assim como aos
recém-nascidos, bem como quando da presença de uma criança pequena que não more
nos Buracos, seja neta ou sobrinha da dona da casa. Pedir ou dar a bênção; para os
velhos e nos novos, respectivamente.
77
Os noivados e casamentos também costumam engajar uma circulação especial
entre as “famílias” dos respectivos cônjuges: “visitas” com “pousos” [pernoites] de
ambos os lados. Destarte, o nascimento, o amor, a doença e a morte são motivações de
visitas tanto quanto são motes de causos. Tais ocorridos dão cor especial aos
deslocamentos entre casas, mesmo que estes sejam os rotineiros movimentos de
vizinhança, e então se pode entender por “visita” a presença de um “vizinho”, o que não
é comum. Vizinhos não fazem “visitas”. É muito difícil, contudo, traçarmos uma linha
imaginária que separe a visita de certas presenças mais ou menos rotineiras. Uma pessoa
“chegada” pode eventualmente receber um tratamento mais cerimonioso, de um modo
que se assemelhe à visita, mas que talvez seja apenas o traço casual de uma oportuna
demonstração de afeto. Por outro lado, uma chegada despretensiosa pode transitar pelas
conveniências de uma recepção que, por fim, será deliberadamente efetuada nos termos
que se espera quando da ocasião de visita. Tal foi o que ocorreu no causo de Manelão,
descrito aqui inicialmente.
Outros movimentos vêm ainda se somar a estes dois que caracterizei aqui nos
termos da “visita” e da “passagem” (para a “bênção” ou o “cum’vai”). Caminhadas mais
longas e menos rotineiras, tais quais as que eu descrevi como resultantes em visita,
podem ser apenas uma extensão da prática de “bestar” na vizinhança. No tempo de
laranja, por exemplo, vai-se à casa de Seo Fulano apanhar uma sacada da fruta; no
tempo das mangas, é na casa de Dona Cicrana que se encontra interesse. Mas estes
objetivos precisam ser bem calibrados em relação à continuidade de visitações
anteriores, ou poder-se-á acusar os visitantes de se moverem exclusivamente “com
interesse”, o que nesses casos não é considerado boa coisa. Entre chegar movido “só
com interesse” e chegar “com um sentido”, que tampouco se separa do “interesse”,
existe um limite também delicado. Como na significação do “cálculo”, o intuito do
“interesse” torna inextricável a ‘vontade’ de sua ‘obrigação’. É interessante quanto a
isto o uso buraqueiro do termo “direito”. A palavra é usada nos Buracos com o sentido
que ‘nós’ damos à palavra ‘obrigação’, mas isto não retira as vantagens e vontades
daquilo que se reivindica sob o termo do direito. Os jovens, por exemplo, têm o
“direito” de prestar ternura aos seus parentes idosos mais chegados, expressando-lhes
suas ‘reais’ benquerenças; a ‘obrigação’ neste caso não se opõe à vontade.
Quando é entre a gente moradora” [dos Buracos], é normal que os “assuntos”
motivadores dos deslocamentos sejam de “interesse”, isto é, com objetivos “declarados”
de se pedir algo. Mas eles não podem prescindir de uma seqüência de “presenças
78
anteriores nas quais as chegadas tenham sido efetuadas sem quaisquer pretensões a não
ser as do contato, do movimento, do “bestar”. Da mesma forma, espera-se que uma
visita, mesmo que movida por algum interesse explícito, esteja envolta por expressões
de afeto. Este sentimento objetiva-se no “modo” ou “rumo” da conversa que se engata
com os que chegam, e a apreciação de tal “sentido” é também o que influenciará as
maneiras de recepção, podendo redefinir o estatuto daquela presença, conforme o causo
de Manelão. “O rumo da prosa” é, portanto, o principal objeto de avaliação buraqueira
sobre quem chega; por ele, veremos, analisar-se-á também a qualidade de uma pessoa
que pouco se conhece, seja ela “prosa ruim” ou “boa de prosa”; “sangue ruimou “boa
pessoa”. De outro lado, na comida oferecida objetifica-se tal avaliação.
É comum que em uma visita de início o silêncio impere por instantes mais ou
menos duradouros; o povo expressa certa timidez ao iniciar uma conversa. É com vagar
que uma pergunta sobre o estado das roças para o rumo de lá, a condição de saúde de
um “familiado”, o andamento da briga do casal que se sabe brigado ou o paradeiro de
um parente menos chegado vai puxando “assunto”. As perguntas puxam um causo
qualquer, e entre silêncios e reações os causos vão se sucedendo. As “notícias do povo”
dadas por quem chega é em geral o que inaugura a contação de causo: informam sobre
quem se encontrou pelo caminho, sobre as casas que pontuaram o percurso e o estado
em que encontraram um e outro conhecido. Pela história do deslocamento até a casa
aonde se chega, pode-se chegar a um causo. Assim se atualizam as notícias do povo; a
evolução dos acontecimentos passados e a eclosão de novos desenlaces. Do outro lado,
o anfitrião devolve o que ouviu contando os causos dos de cá, de sua gente. Se é
possível identificar com precisão o que se nomeia “visita”, os exemplos que permitem
esta idéia são as visitas feitas por casais a outros casais. Ali a prosa rende e a comida
também. Sempre se fala um pouco do mesmo. Os homens falam do gado, Assunto que
homem gosta é gado! Já elas preferem comentar seus diferentes modos de preparo no
de-comer e noutras tarefas da mexida de cozinha: lavar roupa na hora boa de secar;
manter a lenha acesa ou não; impedir que a galinha choque os ovos no tempo das águas.
Conversam sobre os “modos” seus e os das outras. Às vezes, eles ou elas falam de
negócios, mas neste caso é “particular”, em um canto qualquer e com tom de voz baixo.
Indistintamente, homens e mulheres agregam-se em torno de assuntos gerais, a saber,
saúde e causos de “raparigagem”. Estes são os temas mais recorrentes nas conversas
buraqueiras. Assuntando os rumos das respectivas prosas, visitantes e anfitriões
costumam esforçar-se para mostrar uns-aos-outros que se “misturam” em suas
79
“opiniões”; mas é sobretudo com base no modo da prosa e da comida que, após o
ocorrido da visita, dar-se-á conta do verdadeiro entendimento sobre o prazer ou
desprazer ali propiciado. Uma intenção mal-dita pelo visitante, inconfessa, porém
identificada no seu “modo de chegar” no rumo de sua “prosa” pode levar o forçado
anfitrião a criar posteriormente um causo de “malquerença”.
A rigor, um dado causo tende a variar de acordo com a distância entre as casas
nas quais ele é contado. Contam-se versões diferentes dependendo dos diferentes
aglomerados de casas os chamados “povos”, nomeados de acordo com a localização
geográfica (nomes de rios) e/ou com os “nomes de famílias” (cf. capítulo 2). Assim, a
similaridade entre os detalhamentos de um dado causo indica grosso modo uma
proximidade espacial, de “vizinhança”. No entanto, em função dos casamentos nos
quais se misturam diferentes “famílias” buraqueiras, esta proximidade se dá também em
detrimento da distância física, atualizando-se pela circulação de palavras entre parentes
afins. É notável por exemplo a maneira como as informações circuladas entre algumas
casas buraqueiras dos Buracos é menos intensa do que entre estas e determinadas casas
de Chapada. Muitas vezes, a notícia esperada de um doente nos Buracos será buscada
junto a alguém que esteve em Chapada, na casa de um parente do enfermo. O
distanciamento geográfico é contrabalançado pela intensidade do ‘fluxo’ de pessoas
entre as respectivas casas, e a configuração do ‘território existencial’ de um “povo”
parece às vezes mais eloqüente por meio do movimento humano na paisagem
geográfica do que pela distribuição do espaço em função dos “nomes de família”.
Em suma, trata-se de uma ‘paisagem’ que não se enxerga apenas pela
configuração espacial das casas, mas pela qualidade do trânsito de pessoas e palavras.
Este é até certo ponto diretamente proporcional à escala de proximidade física (isto é,
vizinhança implica maior ‘fluxo’), mas não se pode ignorar a intensidade de
determinados ‘fluxo’s estabelecidos entre não-vizinhos (cf. capítulo 3). O que rege a
circulação das notícias é antes a cadeia de proximidades criadas no parentesco, mas se
este é sinalizado pela distribuição das “vizinhanças” (os “povos” de cada lugar), note-se
que não se reduz a isto.
Expressões como “criar intimidade”, “criar amizade”, “apegar-se” ou “agarrar-
se” falam em geral sobre uma proximidade adquirida pela vizinhança física. Sobre
filhos que vão, ainda crianças, morar longe de seus pais, por exemplo, sabe-se do risco
de, sem criar intimidade com estes, o filho perca seus vínculos. muitos casos de
filhos que vão morar com avós ou tios ou algum outro “chegado” devido à maior
80
proximidade com escola, às dificuldades financeiras do núcleo familiar originário ou
mesmo porque a criança “dá melhor” com os outros parentes. Em algumas dessas
situações, o filho ou filha passa a chamar os pais pelo nome próprio e não pelo termo de
parentesco. Um efeito grave que certamente exemplifica o que se diz às vezes, em geral
em função do debate recorrente sobre o gesto de “dar” ou “adotar” filhos: “mãe é quem
cria”. Assim, observar os ‘fluxos’ de prosa à medida que eu mesma ia sendo
incorporada, (ou “criada”) à minha vizinhança buraqueira foi fundamental para meu
processo de “conhecimento” junto aos “povos” que constituem o “povo dos Buracos”.
Ao ouvir e retransmitir os causos que se repetiam diversamente e lá, tornando-me
assim um dos vetores desta circulação, notei que a continuidade naquilo que se diz e
ouve dá-se às vezes despeito da continuidade espacial, constituindo uma ‘geografia’
particular. A circulação de palavras não é só uma condição da intimidade, como no caso
da “criação”, ela é também, por outro lado, causa e efeito da intimidade, podendo ser
efetuada a despeito da distância física, como no causo dos buraqueiros que migram para
Ceilândia-DF e são diariamente atualizados, por telefone, sobre “as notícias do povo”
(cf. capítulo 6). Se este movimento da palavra pode ainda ser associado às linhagens
verificadas pelos agrupamentos das casas buraqueiras, existe outro importante vetor do
‘fluxo’ de prosa que, ao contrário, não se pode observar pela localização das moradias, a
saber, o matrimônio. As relações inter-familiares criadas por um casamento inclui certa
freqüência de “visitas” mútuas, e então a cadeia de intimidade implicada na circulação
de palavras envolve dois modos distintos, o da “vizinhança” e o da “visita”. No
primeiro, os causos são mais detalhados, posto que estendidos em versões e contra-
versões cotidianas; no segundo, tratam das “notícias do povo”, atualizações do que se
passou recentemente; e embora menos detalhados, pois que contados uma vez, são
em geral mais demorados, puxados pelo de-comer cuidadoso.
Por meio do matrimônio, dois “povos”/“famílias” incorporam pessoas que
trazem consigo uma circulação familiar específica, misturando as famílias dos dois
cônjuges sem, entretanto, confundi-las em um conjunto único. A criação de intimidade
entre elas é ao modo da visita, o que corresponde a uma etiqueta específica;
condicionada pela prática do deslocamento e, por este motivo, efetuada graças à
manutenção de certa distância. Contudo, a “amizade” ali “criada” pode atrair novos
matrimônios, sendo bastante comum que um casal se forme entre “o irmão do marido da
irmã” e “a irmã da esposa do irmão”, conforme se deslindam os “concunhados”. Um
“puxa” o outro, explicam. Assim, um povo “rende” à proporção da intensidade com que
81
os causos se movimentam entre famílias distintas, o que nos faz refletir sobre a extrema
importância do acontecimento do casamento para os buraqueiros. O que “o povo fala”,
afinal, não apenas interfere na reputação de quem é “falado” como mexe com a própria
união ou ruptura, simpatias e antipatias, das diferentes famílias, constituindo ou
desfazendo os coletivos que farão os rumos futuros. Assim, dar-se-á ao “povo dos
Buracos” seu mapa definidor, embora vulnerável, pois que sempre haverá novas guerras
de versões e novos casamentos. As visitas, contudo, para além dos acontecimentos
matrimoniais, são importantes modos de atualização ou reconfiguração destes ‘mapas’.
Conforme veremos (capítulo 6), minha prática de “visitar todo mundo”, por exemplo,
trouxe implicações para a “política” que se delibera nos Buracos, pois que me colocava
numa posição de proximidade privilegiada diante de povos/famílias que não eram
próximos entre si.
O causo da visita de Manelão é especialmente interessante sob este aspecto.
Como ia imaginar um trem daqueles?, perguntava-se ele sobre o causo passado
momentos antes de alcançar a casa de Quincas. Quando, ao aviso do café, os homens
rumaram “para dentro”, o causo tornou a parecer: o assunto rendeu. Conversaram,
comeram. Configurou-se a visita. Na cozinha, o causo do homem que “tomou a esposa”
daquele que ora visitava, Ainda por cima bêbado! Seguiu-se então uma série de
elaborações sobre como deve ser a relação estabelecida entre um ex-casal. Eu
escutara a respeito. Haviam me contado, com graça, a forma como Manelão entra na
casa de sua ex-mulher. Ali Manelão apenas “encosta”. Permanece ao da porta, sem
aperto de mão, ele e ela longe uns-aos-outros. É um cum’vai e pronto, a mão arribada;
não proseiam, contaram-me, rindo-se, os meninos de Titia, filhos dela com Manelão.
Quincas, na ocasião de visita deste, não fez piada. Ao contrário, foi enfático quando
refletiu genericamente sobre as relações que se rompem, Casou, não deu certo, tudo
bem, cada um pro seu canto, mas essa de ficar conversando... Eu não! Eu tenho
vergonha na cara! tenho encrava com um irmão, mas também não converso mais.
Não sou que nem os outros; briga com todo mundo depois está de prosa... Eu não!
Sou difícil de brigar, mas se brigo... Eu sou de opinião! Eu tenho opinião!
Manoel, por sua vez, explicou-me àquela ocasião, A gente fica sem assunto!
Porque a casa é dos filhos, e filho é parte do coração! Como você vai ficar na casa que é
dos seus filhos mas o é sua? Fica sem jeito! O desconforto da relação entre ex-
cônjuges aparecia assim na ambigüidade de uma relação que, embora desfeita,
mantinha-se através de outras pessoas da casa, gente “do coração”.
82
Marido é parente? Cunhado é parente? A questão é recorrente entre buraqueiros
e não passa sem controvérsia. Panela que te criou não fura, dizem as mães aos filhos,
frequentemente para que eles voltem de onde saíram; lembrando às vezes que outro é o
causo dos genros ou noras: uma escolha errada de maridos ou esposas é a incerteza do
paradeiro futuro. Durante o tempo da política, a imagem dos laços feitos no matrimônio
opunha os que eram contra e aqueles a favor da contratação de cunhados do Prefeito no
quadro de funcionários da prefeitura
30
. E desde quando cunhado é parente?!,
reclamavam os favoráveis ao Prefeito. Por outro lado, os mesmos a se posicionar sob tal
defesa, noutras ocasiões podiam reconhecer suas vantagens pessoais por ter, entre seus
afins, um “parente na saúde”, uma vez que os funcionários da Secretaria Municipal de
Saúde têm acesso privilegiado a informações e decisões a respeito da circulação dos
pacientes dentre os hospitais de outras cidades, conveniados ao município de Chapada
Gaúcha (cf. capítulo 4).
Filho é do coração, explicou-me Manoel. Noutras palavras, o casamento, mesmo
que desfeito, mantém-se como relação especial; ali se “toca parenteza”, não pela
ascendência, onde em geral se busca o contato do sangue “onde o sangue encontra” -
mas pela descendência. Ter uma ex-esposa mãe de seus filhos implica “ter
conhecimento” sobre ela, mesmo à distância física. Neste sentido, procedia a
comparação feita por Quincas entre a ruptura dos cônjuges e a briga dos irmãos. Cessar
de “conversar” e de “ir na casa” uns-aos-outros era a maneira encontrada de evitar uma
proximidade inevitável em ambos os casos, pois tanto o matrimônio quanto o sangue
produzem elos que não se podem reduzir a uma relação binária. Compõem-se de uma
cadeia de relações familiares. Deste modo, bem como as imagens do “interesse” e do
“cálculo” implicadas em uma visita, a idéia sobre o “casamento” impõe-nos uma
reflexão sobre o caráter algo tortuoso dos laços afetivos buraqueiros.
Conforme ocorre nos Buracos, os “modos” da prosa e da comida servirão ao
intuito analítico de observar relações ora delicadas ora internamente diferenciadas
segundo “sentidos” e “rumos” pessoais. As palavras são importantes não apenas pelos
objetos que querem designar, mas pelo efeito que geram; requerem um “cálculo” no
30
No período de campanha para eleições municipais, uma série de matérias jornalísticas de televisão
divulgava ações do Ministério Público contra práticas de nepotismo denunciadas em diversas pequenas
prefeituras do país. Em Chapada Gaúcha-MG, não houve ações deste tipo, mas a ameaça de denúncia dos
opositores e as “fofocas” em torno disto levou o prefeito a exonerar boa parte de seu quadro de
funcionários, inclusive os que eram seus parentes por afinidade.
83
sentido em que são, a rigor, “um causo pensado”, mas são, ao mesmo tempo um risco
cego, necessário a qualquer “criação de intimidade”. Como se diz ali em tom irônico, as
visitas podem servir para “pagar” outra visita, realizada no sentido inverso, mas elas
se concebem em geral como resultado de afeto, “saudade”. Neste sentido, a visita é
análoga ao causo em dois aspectos: uma como outro não distinguem entre obrigação e
vontade (são, na reunião dos dois, o “direito” das pessoas); uma como outro se realizam
numa seqüência contínua em que uma visita puxa outra (ou um causo puxa outro).
Atente-se sobre este ponto. Fazer uma visita é de algum modo sempre a retribuição a
outra visita recebida, mas isto não lhe subtrai o sentido inaugural e tampouco anula a
possibilidade de que algumas visitas não tenham qualquer motivação objetiva;
explicam-se por si. No caso dos buraqueiros que partiram para Brasília ou São Paulo,
por exemplo, os passeios em sua “terra” natal, em tempo de festa, são para conversar
nas casas dos seus. O “assunto” da visita é então a própria visita: festar a vinda de
longe, matar a saudade. Com o que o “interesse” é “só mesmo bestar”.
Durante a pesquisa de campo, buscando observar o que “puxa” as pessoas para
um e outro sentido para dar forma ao que ouvia ser nomeado “visita”, anotei em diário
uma possível definição: visita = momento onde quem recebe se sente dando menos do
que deveria e onde quem é recebido sente-se recebendo mais do que mereceria ganhar’.
Esta observação orientava-se pelos freqüentes excessos de escusas por parte do anfitrão
e de elogios, pelo visitante. Mas agora me a ver ainda outro sentido. Da visita,
depende um elo tido como especial. Um turista, por exemplo, pode chegar, entrar,
prosear e até comer, reproduzindo-se ali o que se nas ocasiões de oferta cerimoniosa
e prosa demorada de uma visita, mas não será dito que ele “fez visita” aos donos da
casa, a menos que já tenha com estes uma relação prévia de “conhecimento” (capítulos
2 e 3). Este modo da relação parece assim configurar-se numa forma de afeto algo como
uma ‘dívida’ default de ambas as partes. Estou “devendo uma visita” à tia Fulana, diz-se
frequentemente nos Buracos. A formulação funciona mais como uma metáfora do que
como analogia da vida econômica, pois que, em relação a esta, guarda em comum
apenas o fator de retribuição, não incluindo a idéia de ônus que um pagamento de dívida
necessariamente supõe. Parece-me bastante claro que “dever uma visita” é a expressão
de um desejo, posto que “fazer vista” é em geral um gesto tido como vantajoso de
mabos os lados, assim como é vantajoso “fazer amigos”. Conforme ouvi diversas vezes
sobre minhas práticas rotineiras de visitar os buraqueiros, É bom ir nas casas! Não
existe nada melhor do que ter amigos!
84
1.3.1 – Duas visitas: análises de causos
A seguir, descrevo dois episódios que foram nomeados pelos buraqueiros como
“visitas”, porém pretendendo dizer coisas distintas. Ambos ocorreram na casa de Dona
Rosa e Seo Quincas e se passaram com a chegada de gente dos Buracos vindas de
“povos” distanciados dos primeiros por caminhadas que variam entre uma e três horas
“de a pé”, dependendo do “caminhador” e da estação de chuva ou seca. A escolha por
descrever estas duas visitas não se dá pelo fato de serem representativas’ das inúmeras
outras que presenciei nos Buracos, mas porque, postas em contraste mútuo, nos dão a
ver questões que me ocorreram à medida desta experiência mais ampla. Vale adiantar de
que se tratam de perguntas ligadas a este movimento que venho delineando, aquele que
“mistura” pessoas ao mesmo tempo em que as identifica a “povos” distintos; diferentes
“raças de gente”. O que segue, portanto, pretende dar ao leitor a oportunidade de
reconhecer isto que chamei de ‘geografia particular’ dos Buracos.
[Figura 1]A casa de Quincas situa-se em um ponto central do “povo do Calengue”, o
mais povoado e movimentado dos Buracos. Localiza-se em frente à Escola Municipal São
João, braço rural buraqueiro da rede municipal de ensino, e no exato cruzamento entre os
dois trajetos que se bifurcarão em direção às cinco “pontas” oucabeceiras” dos Buracos.
A saber, as cabeceiras dos rios Calengue, Pardo, Retiro e duas “beiras” do rio Três
Passagens. Além de ser um local de convergência entre os caminhos que levam a esses
locais, ou “povos”, a trilha, ou “picada”, colada à casa de Quincas é uma continuação da
principal “ladeira que liga Buracos à Vila, a estrada de pedestres que desemboca no
ponto da “rodagem” [estrada] mais próximo de Chapada (oito quilômetros). Esta subida
é chamada “a ladeira de Antônio Velho”, em referência ao morador mais idoso dentre as
casas que a margeiam, todas beirando o rio Calengue. Por ali se inaugurou o povoamento
que hoje conhecemos como “Buracos”, com a chegada de João Gomes, avô de Quincas,
em cuja casa morei durante todas as etapas do trabalho de campo. No quarto em que fui
hospedada durante minha primeira estadia havia uma janela que dava para a área, ou
seja, justamente para esta movimentada picada e seus cruzamentos, e também para a
escola onde se realizavam cultos e festas (logo ao lado do campo de futebol). A “visita”
que descrevo a seguir foi escutada quando me encontrava neste quarto, apartada da sala
pelo lençol que cobre o vão da porta. É possível que alguns dos interlocutores da
conversa não se tenham dado conta de minha presença no cômodo contíguo.
85
Chega um senhor. Quincas o chama para se sentar, puxando o banco da área e o
levando até a sala. Este que chega é Toró, o único morador dos Buracos não-parente,
definiram-me três ou quatro vezes alguns buraqueiros. O dado é significativo porque
não é verdadeiro, e apenas quando eu lembrava de outros moradores não-parentes,
informados a mim noutras circunstâncias, meus informantes corrigiam seu equívoco.
Naquele dia em que Toró veio até Quincas eu ainda não o havia conhecido, pois ele
mora “para do Retiro” e pouco vem ao Calengue Mas a distância não devia ser o
único motivo de meu desconhecimento, pois eu havia visitado outras casas perto da
sua. Toró não freqüenta as famílias buraqueiras, quando vem, é decerto com algum
interesse.
Na sala de Quincas, os dois senhores comentam sobre o calor, a secura. Toró
fala da roça que plantou; nasceu mas, se não chover, vai morrer tudo, os pés estão
amarelando. Lamenta; reclama. Em seguida pergunta se Quincas vai a o Paulo, onde
está sua filha Bia, para tratar do olho. Esse aí tem que ir é no curador!, interrompe Rosa,
vindo da cozinha. E emenda no cumprimento, a mão arribada de longe: Passou, Toró?
Passei... Quincas conta seu causo: das injeções no braço à dificuldade de “subir a
ladeira” atrás dos médicos. Um sofrimento danado, moço! Diz que vai, dia seguinte, a
Brasília de Minas. Sua filha Lúcia marcou consulta, porque da última vez foi viagem
perdida. Não vai a São Paulo. O genro não vai trabalhar na firma mês de dezembro e
então ele mais a filha e as netas dizem que vêm. Até dava pr’eu ir, voltava mais eles em
janeiro. Mas essa época é ruim: os médicos tudo de férias! Toró por sua vez conta o
causo de quando fora a Brasília: findou por não conseguir tratar, voltou sem resolver; só
para passar raiva! E emenda: Diz’que Paulo foi a Brasília levar Arlo para tratar os
dentes... Quincas responde sobre seu filho; Paulo foi sim levar o primo. Mas é doido! O
Arlo conta de ir sozinho, moço... Toró destrincha o causo das pessoas envolvidas no
empréstimo de uma quantia pertencente a ele, cada qual repassando a dívida inicial a
outro, formando-se uma seqüência auto-explicativa de negociações, quitações de antigas
dívidas através do empenhado no empréstimo feito, cujo valor é o mesmo de um
objeto dado a outro, que então se tornara o alvo da cobrança. Não pude captar os
detalhes da rede de endividamentos, mas entendi o que ela oferecia como entendimento:
diz’que Paulo deve Toró. Viajou sem lhe pagar.
Quincas balança a cabeça para os lados, indicando repreensão ao erro do filho
Paulo. É sem juízo mesmo! Já não dá conta de pagar as prestações dele... Porque
cobrador é que nem carniça... Na aposentadoria de Paulo desconta cento e pouco, e
86
ele não dá conta...
31
. Antes, na hora de comprar fiado, a gente que adulava. Agora as
firmas é que ficam correndo atrás da gente para passar pra frente... As firmas é tudo
doido para vender, moço! Mas se o cara não quiser pagar, como é que faz? E Toró: pois
é, como é que faz? Matar não pode, né. Rosa conta o causo do empréstimo que pegou
do banco, os juros vai dar mais que o dobro do que pegou. É um perigo empréstimo de
banco, diz Toró. E os juros é de absurdo!, concorda Quincas. E Rosa: esse povo
aposentado dos Buracos tudo fez, o pessoal falta me agredir pra fazer isso... E
disseram, Se a senhora não fizer esse empréstimo o governo vai cortar o dinheiro! Mas
vai cortar aposentadoria de aposentado é o quê! Não vai! Porque o dinheirinho que a
gente ganha a gente gasta.
Quincas interrompe a esposa e conta o causo do filho Paulo: agora diz que quer
uma antena parabólica, porque João [irmão de Paulo] diz que vai dar uma televisão. Eu
disse que não queria! Quando vem Tobias para instalar a antena do Dão ia também
instalar a do Paulo. Dão ia emprestar. Eu falei pro Dão que Paulo não tem dinheiro pra
pagar essa antena - mil e tanto as duas, né? - eu falei pro Dão. Ele pagou a primeira
prestação pro Paulo. Eu falei, Olha, o Paulo não vai te pagar! É melhor pedir a primeira
prestação de volta... Eu ia falar pro Tobias que não era pra instalar, mas quando foi ele
chegou aqui pra pegar a chave do carro, disse que não tinha o cabo pra instalar a
antena de Paulo.
Antônio entra, Bênção, tio Quincas. Cum’vai, Toró! E senta no chão,
assuntando. Depois sai, mudo como entrou, mas logo volta: não faz muito rastro.
Falam sobre Orotides; está plantando [capim] braquiara, mas não está dando
certo. Para plantar no mato não dá não! Tem que comprar veneno, mas ele não compra...
A condição dele não está dando, não dá mesmo, e a mulher dele não quer largar a vila...
A casa é de palha mesmo, a estrada... Começam as águas, arruína tudo. Era ainda
novembro, mas aquele ano o tempo das águas se adiantara e as primeiras chuvas
haviam obstruído alguns trechos da estrada que vem pelo Retiro, a que se consegue às
vezes usar para vir de carro. E mais conversa sobre as chuvas: o tipo dessa de ontem
não era dessas que ficam não; era muito, mas não era pesada; os pingos, finos. Agora
estia outra vez.
31
Paulo ganha do Estado uma aposentadoria de um salário mínimo devido ao fato de ser ‘deficiente
visual’.
87
[
Figura 1] Toró não é parente, mas é casado com Belinha, prima-primeira de
Quincas, e mora na terra herdada da esposa, isto é, do povo “pra lá” do Retiro, acima dos
herdeiros do Falecido-Sinésio, também da beira do Retiro. Para ir à Vila, Toró e seus
vizinhos sobem por outra “ladeira” que não a “ladeira de Antônio-Velho”, usada pelo
povo do Calengue. Durante minha estadia nos Buracos, não lembro de ter tido notícia de
visitas de gente do Calengue rumo a uma casa que ficasse depois de Toró. Muitas das
terras “para lá” são compradas por “gente de fora”, arrendadores paulistas e até uma
família cigana. Em relação a ambas as gentes”, não existe nos Buracos um ‘fluxo’
rotineiro de prosa e comida. Sobre os que são parentes e moram por lá, contudo, ouvi
muitos causos. Ouvia sobre “aqueles povo de Ricarda”, em menção ao nome de uma
prima que mora naquela vizinhança, situada longe, quase no alto da serra”. Em geral
realizados no Calengue, os eventos que reúnem “todo o povo dos Buracos” - festas,
missas, ou campeonatos de futebol – não costumam atrair “os de lá”.
Toró quer matar um boi. Falam ainda do tempo, agora está bom para secar a
carne. Falei que mais nunca compro carne nessa fase de lua nova!, diz Rosa. Toró diz
que vende, mas fica com um pedacinho, debatem sobre quanto cada um compraria. Toró
reclama, Eu não arranjo comprador, compro é no açougue, não tem jeito, Pra você
ver, a gente comprando aqui a quatro e eles vendendo a oito. E não tem carne que
sobra lá!
Antônio e Nego, o mais velho de Quincas, entram na conversa. Contam o
causo da energia que falhou na Vila; e do acidente à caixeta de arroz (quase pega fogo!).
Chega um terceiro rapaz, Mildo de Guilherme, Vou sentar no chão que é mais
fresquinho... E comenta o calor, comparando ao calor de São Paulo: pior, mais abafado.
Silêncio.
Chega Anésia. Bênção, Tia Nésia; Bênção Tia Nésia... Ela vai respondendo um
por um, Deus te abençoe; Deus te abençoe... Depois arriba a mão espalmada e
cumprimenta os outros, Passou, Toró? Passou, Quincas? E atravessa a sala, seguindo até
a cozinha, onde agora está Rosa. As duas barulham por lá um bocado.
do Carmo e Orotides passam diante da casa, subindo a ladeira... Quincas
Branco!, cumprimenta Zé Orotides, sem encostar.
Silêncio.
Toró traz outro assunto: quer vender umas vacas. Mas eu vou dizer a verdade,
não estão boas, não! E é miúda... Pesa dez [arroubas], dez e pouco... A gente come, mas
não estão boas, não! Os rapazes falam sobre uns esteios que devem pegar na Vila. Toró
88
conta o causo de uma dívida que um rapaz fez com ele, não pagou até agora, Todo
mundo tem que compreender, o negócio é difícil! Se não pode pagar, não pode, mas tem
que conversar! A coisa está difícil não é para um só, é para todo mundo. Mas quando a
pessoa nega, faz folia. é ruim, e é ruim pra todo mundo! Se não faz assunto... Porque
não consegue mais; e é aquela coisa, a barriga não dói uma vez, né. Os rapazes
contam vários causos de dívidas: o cigano que tomou de volta o cavalo e ainda ganhou a
sela, porque o cavalo estava arreado; um fulano que procurou Quincas achando que ele
era pai de um devedor; questões de troca de cheque. Sabendo que você é cego, você
pode estar com o bolso cheio de dinheiro que o cara não empresta! Dívidas de
seiscentos, setecentos contos, por causa de cachaça; causo de pessoas de quem se
informou estarem “quebradas” antes de se fechar um negócio com gado. Toró informa:
fulano de tal está enrolado.
Quincas chama os presentes pra tomar um café, Vamos entrando. E Toró segue
até a cozinha acompanhado pelos demais, à exceção de dois dos rapazes que partem,
Até Hoje!, despedem-se, a mão arribada. Ao olhar o chegante entrando na cozinha,
Anésia atenta: Ê, Seo Toró do dinheiro! E ele: a senhora fala assim, Deus ajuda que seja
mesmo...
Mildo conta o causo do boi de Valdemar, está bichado.
Tomam do café de Rosa. “Café corajoso”, no dizer de um tio que inventou de
dizer isto quando o café vem sozinho, sem a companhia do de-comer (quando vem
acompanhado por um de-comer, é “café medroso”). Ninguém ri nem comenta o café.
Mal proseiam, mas a conversa rende ainda um pouco. Quincas inicia: no dia em que
Dão esteve por lá, diz, ia mandar o dinheiro, mas... E Toró interrompe, reclamando de
Dão. No caso ele fez um negócio errado! Porque cem, se você tira um real já não é cem.
O Dão tirou cento e cinqüenta, tinha que dar cento e sessenta e cinco. Eu não estava, ele
deixou cento e sessenta e não deixou dizer nenhum
32
. Porque tem que falar, é aquilo...
É, moço...
Toró diz que vai indo. Quincas reage manso, como que mecânico, cedo..., e
completa, Nós ficamos aqui falando dos negócios dos outros e eu tenho o dinheiro aqui
do nosso negócio. Então explica porque não pagara até agora; faz as contas do prazo do
negócio, pergunta quanto deve. Toró avisa que fará um desconto, Sabendo como o
32
Toró cobra juros de 10 % ao mês sobre a quantia “emprestada”.
89
senhor é, diz ele a Quincas, nem queria cobrar... Mas, sabe como é, a coisa está difícil...
Mas quando precisar estamos lá...
Toró vai saindo e combinam quando matar o boi: depois da lua nova. Quincas
diz que vai ficar com um quarto traseiro. E Mildo: Ô, Seo Toró, paga eu pra dar um
jeito nesses bois brabos... Eu sou vaqueiro bom! (risos). O homem enfim sai, os outros o
acompanham até a área e ficam por ali; cada um arranjando seu canto para sentar. O
banco, a soleira da porta, a beira da área. E os rapazes conversam com Quincas sobre o
torneio de futebol: o time dos Buraquinhos perdeu de três a zero para os Buracos no
último jogo, realizado no Barro Vermelho. O time dos Buracos está forte desde que os
meninos de Jilvaldo vieram morar aqui...
Bênção, tio Quincas, dizem outros dois rapazes que acabam de entrar. Comenta-
se o causo de Dão, atrasou quinze dias e pagou dez reais, mas Toró cobrou os trinta
dias. Comeu na casa errada, diz Quincas, Dão devia ter ido na hora que sabia que
Toró estivesse na casa... É, tem que conversar..., concordam os demais. Passa Geraldo-
de-Cristina diante da casa; encosta. Da porteira conversa sobre catira e cachaça. E sobre
a vaca que está com os peitos murchos, Acho que é ela que está mamando nela mesmo!
Ou então é jibóia... Geraldo diz que viu Toró pelo caminho. Veio fazer visita!, diz um
dos rapazes, gaiato, e solta uma gargalhada prolongada. Veio cobrar, diz Quincas, e os
outros se riram. Quincas contou ao recém chegado o causo daquele “passeio” feito até
sua casa pelo cobrador. Por fim alguém comentou, Ver Toró de longe é o mesmo que
ver onça pintada! Hahahá!
*
Quando Francisca e Pindola vieram visitar o povo do Calengue em época de
férias, o causo foi diferente. Aproveitaram a presença de Ana-Carneira e Lúcia-
Carneira, irmãs dela que hoje moram nos arredores de Brasília. Chica e vivem em
Arinos, município vizinho de Chapada, mas ambos nasceram e se criaram nos Buracos.
Naquela ocasião, passavam sua temporada de férias na casa da mãe dela, Zefa Carneiro,
irmã de Manelão (cunhado de Quincas). Vinham do Três Passagens, do Falecido João
Carneiro.
Chegaram todos à casa de Rosa e Quincas para dali seguir uma seqüência de
visitas. Deviam ainda subir em direção “aos Antônio Velho”, pai de Pindola. Mas
passavam das onze da manhã e Rosa, pega desprevenida, apressou-se em incrementar o
90
arroz e feijão quase prontos sobre o fogão. Pegou o último pedaço de carne seca
pendurada no mastro do quintal e ali mesmo socou-a no pilão. “Pisou” a carne até que
se transformasse uma espécie de renda fina, e então acrescentou o óleo e a farinha,
pisando tudo no grande pilão ao fundo da casa. Antes disto, ligou o fogão a gás, que usa
apenas eventualmente, na hora da pressa, mod’não ficar gastando o gás, caro e
dificultoso para trazer lá de riba da ladeira. Ali ferveu a água para o macarrão.
Os que chegaram me perguntaram por Daiana, uma amiga chapadense, então
funcionária do Posto de Saúde de Chapada, que viera passar férias nos Buracos. O
serviço no Posto é muito cansativo, explicou Rosa aos visitantes. A moça dormia,
estava cansada. Aquela doença..., formulou, buscando lembrar a palavra. Aquela
doença..., repetiu. Depressão, alguém disse. Francisca contou então de suas dores nas
pernas, os nervos inflamados; e nos narrou o causo, o processo de desenvolvimento da
dor, o diagnóstico feito pelo médico de Arinos e o diagnóstico feito por ela mesma.
E os netos?, pergunta Rosa a Francisca. Inteirava dois anos que esta não os via.
O mais novo, sequer havia conhecido. Estão lindos... Pega um pr’ocê!, diz Rosa.
Francisca diz que disse, que falou em levar o mais velho, mas Neide não dá, e ela não
tira a razão da filha Neide, Eu também quando tive os meus não dei nenhum... Rosa
então assunta, Os meninos estão dizendo que Neide está grávida de novo... Dona Zefa e
Francisca negam, O povo fala isso porque ela está barrigudinha! Está grávida é o quê!
Está nada! Está só é gorda!
Titia decerto de casa ouviu a zoada, pois chegou à casa de Rosa imaginando a
visita dos Carneiro. Abraçou com força um por um, encostando seu ombro esquerdo no
ombro esquerdo do outros e depois trocando os lados, o cumprimento do “povo da
roça”. Perguntou pelos da Brasília, onde moram Ana-Carneira e Lúcia-Carneira que
agora aqui estavam. Como está no trabalho; a saúde; os namoros. Lúcia conta o causo
de seu sobrinho. Do chamego que tem com ela, que além de tia é madrinha. foi
batizado no ano passado, pois mãe não é casada com o pai das crianças. E pode batizar
quando não é casado? Tem que bater um papo com o padre. Mas não tinha batizado até
agora não era por isso não! É por relaxamento mesmo... Não pode ficar sem batizar,
não! As crianças não têm culpa dos pais não terem casado. É errado isso da igreja, pois
se é casado no civil, eles aceitam batizar, mas casado no civil é mesmo que ser amigado
para a Igreja, não conta, então por que pode batizar? Deva ser porque não querem que o
povo saia tendo filho por com qualquer um. Ana-Carneira é solteira ou separada? É
91
amigada... E muxoxo. Ela é da era de Santana, mas Tana já tem até neto e Ana só tem os
filhos pequenos.
É por isso que é bom casar nova..., diz Titia. Todos riem. Zefa Carneiro conta
então o causo de sua filha, e conclui: ela é nojenta, não certo com homem nenhum!
Ela não morou com nenhum! O pai do filho agora amigou com outra e tem outra
filhinha. A outra se defende: eu não quero morar com ninguém! Eu tenho o meu jeito! E
trabalho! Sou independente, faço o que eu quero! Titia interrompe a polêmica para
repetir e completar o raciocínio anterior: o bom é casar moça, porque se não der certo,
separa e pra arranjar outro. Ela separou velha e ficou velha, sozinha. Todos riem
muito. É difícil saber acertar! O bom e o ruim não têm pinta mostrando, como vai saber
quem é o bom marido? Lúcia-Carneira comenta o comentário: as mulheres dos Buracos
estão modernizadas!
Logo depois do almoço, partem todos. Francisca os apressa, Se não, não
tempo de fazer o giro! Rosa reclama, O povo não gostaram da minha comida... E avisa
que o leite já está no fogo para a canjica, para que passem ali outra vez, no caminho de
volta das outras casas, mod’comer da canjica. Caprichada no tempero! Os outros na
porta, Rosa corre para lhes dar um guarda-chuva, mod’ proteger do sol, que está
rachando. Cerca de duas horas depois, voltaram. Haviam livrado da casa de Félix, irmão
de Zé Pindola, porque os de estavam pra Chapada. Nas outras, passaram em todas, na
ida e, na volta, sem entrar, encostando para despedir-se. Mais tempo foi na casa de
Anésia, que é comadre de Francisca, madrinha da menorzinha. O que salvou foi que
Silu não estava! E nem Félix. Se não, não ia dar pra ir embora hoje... Pararam mais esta
vez na casa de Dona Rosa para comer da canjica. Caprichada na canela! Ô coisa mais
linda é Deus! Faz um pé de pau com um gosto lindo desses... Rosa comprara no
“mercado dos baianos”, os mascates que param uma vez por mês na Vila, entre os dias
cinco e treze, período em que os aposentados vêm “das roçaspara a Vila para sacar
suas aposentadorias, configurando-se em bons consumidores em potencial. Rosa conta
ali sobre o que “descobriu com os baianos” que montam suas barracas mensalmente
ao lado dos Correios, onde ela retira seu dinheiro.
Ana-Carneira enfiou o pé no pequi com café! Desejo de comer pequi e até agora
não tinha arranjado! Na casa da Velha Maria tinha um bando! Ô, mas é bom! E chega
Titia de novo nesta hora da canjica. Traz uma sacolinha plástica com polvilho, trigo e
ovos. É para fazer os biscoitos. Santana, uma das filhas de Rosa, a esta altura
conversava com Lúcia-Carneira sobre as crianças. Clarice e Preta estão muito crescidas!
92
Abraços e barulhada; seguimos todos para a casa de Damásio, com exceção de Rosa e
Quincas. Parecia mesmo um giro de Folia de Reis. Só falta a bandeira!, disse alguém.
O termo “giro”, designando o percurso feito pela devoção dos foliões, costuma
ser usado metaforicamente por pessoas em visita às casas do Calengue, vindo de outras
casas e planejando seguir caminho com novas visitas. Como no giro de folia, durante o
trajeto pessoas encontradas casualmente pelo caminho ou chegadas já com o objetivo do
encontro, como ocorreu com Titia, vão se incorporando à caminhada. Acompanhei
alguns desses circuitos e a grande dificuldade era ter espaço no estômago para comer a
cada casa que se visita. Se no giro dos foliões as casas em geral calculam o que oferecer
a partir do que se sabe oferecido pelos vizinhos, no giro dos parentes, cada casa prepara
sua recepção como se não houvesse havido outras pelo caminho, e o visitante se
esforça para dar ao anfitrião o tempo que este espera de uma visita.
O modo barulhento de receber e despedir-se, bem como a comida que puxa e
estende a prosa, dão ao episódio de chegada do povo de Zefa Carneiro a forma mais
acabada de uma “visita”, e nisto se distingue da presença de Toró, que mesmo sem dizer
trazia um “assunto de interesse”. À diferença do que ocorreu com este, o povo de Zefa
proseou sem rumo certo; traziam era “notícias do povo”. A filha ou neta em cuja casa se
hospedou; os causos dos que deixaram na Brasília. A menina de Francisca não está
grávida; a filha de Zefa não quer marido; Titia aconselha casar logo para separar-se
cedo do marido, em tempo de namorar mais. Comentava sobre ela, por certo, e por isto
os presentes riram, mas a risada só fazia sentido para quem já soubesse o causo de Titia,
que era ali um comentário silencioso. As opiniões e posições que os causos geram
fazem não se descolam do mapa em que as relações pessoais são, na conversa,
atualizadas.
Ressalte-se que este ato performativo de mapeamento das relações, próprio ao
que os buraqueiros chamam “visita”, também está presente na “visita” de Toró. Neste
sentido, é exemplar o causo da dívida de Paulo Gomes, filho de Quincas, e o
posicionamento que este deliberou em seguida: parece que é doido!, opinou sobre o
filho. Mas vale notar que - neste causo como nos outros que se seguiram naquela
ocasião a conversa vinha ao interesse de uma relação exclusiva, o negócio que se
pretendia tratar era entre Quincas e Toró. O assunto era um e dizia respeito aos
senhores que conduziam a conversa, o dono da casa e sua “visita”. Foi o que explicitou
Quincas, dizendo sem dizer, ao concluir o encontro após a rotineira e cordial expressão
“Tá cedo...”. E nós ficamos aqui falando dos negócios dos outros, disse o anfitrião, e eu
93
tenho o dinheiro aqui do nosso negócio. No que Toró lhe informa sobre um desconto na
dívida, explicando: nem queria cobrar... “Veio cobrar”, diriam mais tarde, entre risadas,
sobre a “visita” de Toró. A prosa deste havia rumado certeira: cigano cobrador; o
homem cego endividado de cachaça; o rapaz que pagou menos do que devia; o boi
bichado de Waldemar. Os personagens envolvidos na conversa de Toró informavam
Quincas sobre “os negócios dos outros”, e se isto foi assunto de particular interesse aos
dois, é porque, nos Buracos, um negócio entre duas pessoas envolve necessariamente
outros negócios, outras pessoas. Alguém que esteja envolto em “negócios”, seja
devedor ou cobrador, depende de negócios com outros, isto é, da compra e/ou venda
que gere o dinheiro necessário ao pagamento da dívida. A partir desta cadeia de
informações sobre catira, promessas de pagamento, vendas, empréstimos e gasto
excessivo, Toró narrou o causo de Paulo Gomes. A posição de Quincas sobre o causo
diante de Toró era “declarada”, isto é, foi dita diante de todos e do próprio Toró, devia-
se fazer confiança. Assim, após a visita, Quincas reforçou o tom conciliador com o
visitante: sobre o outro causo, o do rapaz que não pagara a Toró a quantia que este
reivindicava, Quincas avaliou, Tá certo, tem que falar... O causo de Toró renderia
assunto mais tarde no povo do Calengue, chegando ao conhecimento do acusado mal-
pagador. Assim, ao concernir ‘apenas’ o “negócio” entre dois, a prosa de Toró envolvia
uma cadeia de rapazes, filho e sobrinhos de Quincas.
Entretanto, a cadeia criada na “visita” de Pindola e seus afins tem em relação à
conversa de Toró um alcance maior: envolve as “famílias” de dois “povos”, o do
Calengue e os Carneiro. Entre parentes, o que circula é a notícia do povo, à maneira
mais genérica que este termo pode assumir. Ao dizer “os meninos de Titia estão
falando...”, e perguntar à visita se sua filha estava grávida, Dona Rosa mostra
“intimidade” não por trazer o assunto, também por envolver outras pessoas. É tudo
gente de Rosa e também de Francisca. Falando em casa, a gente pode dizer...”, diz-se
às vezes nos Buracos quando se quer segredar algo. As análises das relações mapeadas
figuram uma decomposição mais detalhada quando os causos são contados entre
chegados, revestindo-se em risadas entretidas e controvérsias mansas. Ali, as opiniões e
posicionamentos emitidos a partir dos causos envolviam sempre mais de dois, assim é
entre família.
O termo “visita” usado para descrever o episódio da chegada de Toró foi dito e
seguido de gargalhada; a expressão ali soava caricata. O tempo demorado e a “contação
de causo” por ocasião daquela presença assemelhavam-se ao que ocorre quando se “faz
94
visita”, mas, naquele causo, serviriam apenas para fazer do ocorrido a metáfora de uma
visita; daí a risada. Em sentido inverso, o “giro”, substituindo o termo “visita” para falar
do percurso entre as casas visitadas pelo povo de Zefa Carneiro, fazia da “visita”
ocorrida ali metonímia do giro de Folia. Neste, a prática das visitas é uma espécie de
inspiração-guia no funcionamento de recepção e chegada das casas. A diferença entre os
dois primeiros causos, portanto, traduz-se por uma diferença de ‘gradação’: a presença
de Toró é, em relação ao episódio de Pindola e os Carneiro, menos “visita”. A vinda
destes, por sua vez, apresenta elementos tão ‘acabados’ que se poderia compará-los à
visita ‘ritual’ do giro de folia. Houve animação e comida: a barulhada rendeu e o tempo
se estendeu o quanto pôde conforme o esforço dos anfitriões.
Vejamos o exemplo da prosa desenrolada com Pindola e os Carneiro: falou-se
inicialmente dos assuntos mais usuais: estados de saúde, a criação das crianças; e de
se perguntou sobre a suposta gravidez da moça de lá, do povo de onde se vinha. O causo
entretanto não rendeu: ela não está grávida, informaram. Partiu-se então para as
perguntas sobre o resto do povo, os que de quem sabiam as que vinham de Brasília,
duas das filhas de Zefa Carneiro. E estas contaram o causo do sobrinho: ela é madrinha;
a igreja está equivocada sobre a regra dos batizados; os casamentos não valem à pena,
as mulheres precisam se separar. O resumo do que se analisou neste causo nos a ver,
nas próprias relações que a narração engendra tia, madrinha, comadre, solteira um
determinado ‘posicionamento’, ou “opinião”, que no causo em questão se articula às
controvérsias que acabo de listar. Assim, a questão na qual desemboca o causo da
relação da tia com seu afilhado e sobrinho mulheres precisam ou não ser casadas?
leva os falantes ao próximo causo, o da filha que não quer casar. Esta cadeia de assuntos
controversos manifesta decerto “intimidade”, é assunto de quem é “chegado”.
1.3.2 – Conversa de Homem
Não cabe imaginar uma simples oposição entre a visita do povo de Zefa,
parentes, e a caricatura de visita de Toró, não-parente. A intimidade atualizada na prosa
de Zé Pindola e os Carneiro não se reduz à cadeia do parentesco; tampouco o “prazer da
prosa” se efetua apenas quando o sentido do deslocamento é a própria visita, “as
notícias do povo”. A despeito do que os exemplos de “visita” contrastados acima podem
nos fazer inferir, vale uma última descrição. Foi quando Bandeira, que tampouco é
parente de Quincas, veio até este devolver uns parafusos que pegara emprestado havia
95
alguns meses. A chegada era, portanto, como a de Toró, motivada por um “assunto de
interesse”, embora algo diverso: tratava-se de uma intenção de devolução e não de uma
cobrança. Mas não só nisto os dois causos diferem.
[Figura 1] Bandeira mora com a esposa e três filhos “tolos”, ou problemados
da cabeça”, às margens do rio Três Passagens. Sua terra faz fronteira com a de seu filho
Zezo, e não muito longe se encontra um conjunto de casas de outra “família” que, como a
sua, não é “herdeira” nem “proprietária”. São “posseiros” e isto talvez tenha relação com
o fato de que, naquela “ponta dos Buracos”, a terra é mais arenosa e portanto menos
propícia ao cultivo. O nome Bandeira” é uma referência ao “tatu bandeira” que se conta
ter havido em abundância naquelas terras que hoje ganham este nome. Mais antigo entre
“Os Bandeira” e responsável pelo sobrenome que hoje se estende aos demais, também
é ali o mais antigo posseiro, condição que só mostra sua tensão em situações muito
específicas. No mais, a “amizade” e o “conhecimento” mútuo é o que marca a relação
deste com os herdeiros de João Gomes, os quais conhece desde que nasceu, quando seu
pai trabalhava como “agregado” dos donos da terra. Isto é, trabalhava “para os outros” e,
em troca, ganhava o direito” de plantar para si no lote que lhe destinavam os
proprietários. A história de povoamento do Três Passagens resulta numa distinta
configuração das casas, estando elas ali menos conectadas por laços de parentesco do que
o estão nos povos” do Calengue e do Retiro, por exemplo. O fato de que Zezo, filho de
Bandeira, tenha iniciado sua carreira profissional a partir da experiência sindical também
aponta para essas determinadas diferenças do Três passagens em relação ao povo do
Calengue (cf. capítulos 2 e 6).
Quando Bandeira chegou, Quincas encontrava-se no banco da varanda.
Pitava enquanto olhava para o nada, silencioso. Mostrou-se feliz ao ouvir a chegada do
amigo e abriu sorriso, arribando os braços. Não houve muita barulhada, talvez porque
estivessem os dois presentes; faltaria mais gente para se poder falar em “animação”.
É que o modo silencioso é a ambos mais característico; Bandeira tem a prosinha
mansa e, ao sentar-se ao lado de Quincas, permaneceu em silêncio por uns instantes.
Isto não indicava falta de assunto. Enfim, Quincas perguntou pela família do outro, que
respondeu com lamentos: a idade avançada, as dores, as doenças da esposa, a
dificuldade de pegar na enxada. Zezo desde que começou a trabalhar na cooperativa não
96
pára mais nos Buracos. Está para ganhar “o título de posse”
33
, mas para isto é preciso
estar na terra! Quincas concorda: E aqueles que hoje estão vivendo mais controlado,
garantindo a rocinha com o de comer, pra quê trabalhar para fora?!... No que Zé
Bandeira emenda: no caso de Zezo, até quando? Nem muda pra lá nem muda pra cá... A
gente está vendo que ele que está perdendo. Quando perder o trabalho na cidade
vai ser na hora que não vai ter mais força de tocar a roça! Deixa ele mandar na terra
quando eu morrer! Ele plantou e eu, por desaforo, arranquei. O mais importante era
terra, ele arrumou sem comprar, eu tive que comprar, e cara! E agora eu estou
comprando tudo, não estou vendendo nada. Até ovo, se precisar, tem que comprar! Não
agüento mais nada. Não presto mais pra pegar na enxada, mod’as dores...
Ao encerrar o causo do filho, Bandeira contou sobre as reformas e construções
que estava terminando em sua casa. Hoje é hora d’a gente fazer as coisas d’a gente,
igual o senhor fez. Quincas então contou o causo da cancela que fez, separando seu lote
do de seu irmão Damásio: saiu por 250. Eu comprei a madeira, contou Quincas, sai
caro: dez reais o pau. O Fulano me deu o tombo; cortou ali, tirou pra ele. Ele disse que
tirou pra ele. Mas eu combinei com ele doze réguas e seis batedores, que dava pra três
cancelas. E esse banco aí, tudo junto era 350 contos para duas vezes, ele deixou por 300.
Mandei buscar a madeira pra ele não, moço! É dois não é dez, e para duas cancelas,
quatro batedores. Doze réguas, cinco cada. ficou caro. Chamei Anísio, dei o dinheiro
para comprar o parafuso, foi por cinqüenta contos e ferramenta para duas cancelas; o
menino veio fazer, mandei fazer uma. Foi a metade, ficou o banco fora, os parafusos
foi metade. O Anísio, a mão de obra foi trinta e cinco por dia, ficou setenta contos. Cem
com cento e cinqüenta, que é metade da madeira, deu 250, e sobrou a madeira pra fazer
a outra. O dia que ele fez foi véspera de Serra [Festa de Santo Antônio na Serra], ele
dizendo que não ia, mas paguei e falei, Dá tempo, moço!
É, moço... O tempo é pra quem tem saúde e coragem...
Silêncio.
Era tempo da política e de política conversaram um bando sobre de
Herculano, o Zé do Boné, que agora decidia se candidatar a Prefeito, em um quadro pré-
eleitoral que se imaginava já ganho pelo atual Prefeito (cf. capítulo 6). O assunto
33
Naquela ocasião, a Ruralminas começara a fazer o levantamento das terras devolutas da região de
Chapada Gaúcha-MG, registrando e reconhecendo neste processo as “posses” dos pequenos produtores
que provassem estar morando na terra durante o tempo mínimo estabelecido pela ‘lei do uso capião’. A
Fundação Rural Mineira, ou “Ruralminas”, é um órgão da Secretaria de Agricultura, Pecuária e
Abastecimento do estado de Minas Gerais com presença constante na prosa buraqueira.
97
começou quando Quincas contou sobre a visita que recebera de Eloi da Replan,
candidato a vereador e antigo conhecido do povo dos Buracos. Eloi veio aqui e falou,
contou Quincas: Nilo, Juca, Clovis, Seo Armando, os gaúchos tudo... Juca quer
combinar com do Boné de ajudar, quer dizer, na política, né, o senhor me entende. E
que Zé do Boné disse que não quer nada. Mas é besta! Negou ajuda é o que?! Conversa
do povo!
Em todo o município de Chapada Gaúcha, poucas pessoas afirmavam apoio a
este que era candidato de oposição. Paulo Gomes, filho de Quincas, era uma dessas
exceções; planejando inclusive candidatar-se a vereador pela chapa opositora. Sempre
que a conversa dava oportunidade, Seo Quincas e Dona Rosa posicionavam-se
abertamente contra a candidatura do filho. Mas o assunto não havia ainda surgido ali
quando Zé Bandeira declarou seu voto a vereador. Falou de um outro candidato, parente
seu, em quem poderia votar com intuito de “interesse”, mas não votaria. Seu candidato
era Paulo Gomes, contou. Deu as coordenadas do parentesco com o outro candidato
para concluir, É parente meu muito perto! Então a presença dele é boa, mas eu não vou
votar nele não! Eu voto em Paulo Gomes, candidato da comunidade! Porque nós, a
gente sempre reparte voto para gente de fora. Se Paulo ganhar, ganhou, se não ganhar,
não ganhou; pouco que me importa, mas eu voto nele, eu vivo às minhas custas! (cf.
capítulo 6).
E o tema da política trouxe do assunto do hospital, cuja construção havia sido
concluída na Vila. Mundinho, o atual prefeito, gostaria de inaugurar antes das eleições.
Se inaugurar ganha, disseram os dois senhores durante a conversa na área. E, do tema
do hospital, passaram à doença de Gilmar, filho de um primo próximo de Quincas. Este
contou o causo a Bandeira, Foi no Posto da Vila mas tinha que ir fazer os exames
depressa, e na Januária, ou São Francisco. Foi. volta para Chapada e, ao invés
de esperar para tratar, volta pro Sapé; aí piorou. Levou pra Chapada já morrendo! Quase
morto! água e vomitando, não comia nada... o menino falou, diz que bebeu uns
quinze litros de água, não dormiu nem deixou ninguém dormir. Tirou o material pra
fazer os exames, sem o material não podia fazer nada, porque se aplicasse a injeção,
batia nos exames. Só descobre a doença dele com os exames...
Meu primo velho é que morreu ontem, conta Bandeira. Mas sofreu, o
coitado! Ontem Joaquina veio, diz que viu o menino de Belinha entrando no carro, de
certo que fretaram o carro.
Silêncio.
98
Bandeira pergunta da carne. O gado que Guilherme matou, diz Quincas, nenhum
levou uma arrouba sequer, só Bastião Mole, os outros, tudo, só meia arrouba.
Neste momento, Dona Rosa vem até a varanda trazendo um recipiente com
farinha e uma chaleira com chá; Bandeira não bebe café mod’ o coração. E Quincas
atualizou o outro sobre seu problema nos olhos; a próxima consulta, a filha foi quem
marcou, Lúcia. Foi no Posto às quatro horas da manhã para marcar. foi que
encontrou Gilmar quase morrendo. E mais detalhes foram dados sobre o causo de
Gilmar. água! E vomitando, não come nada, repetiu-se. E nem conversa. Estava
bebendo cachaça direto; aí sentiu mal, parou de beber... Cachaça já dá essa secura.
Puxando o tema dos males da cachaça, Quincas exemplifica o problema fazendo
referência ao causo de seu irmão Nico. Foi para Vila vai inteirar oito dias amanhã! Esse
para ficar bom é depois de morto. Deixa ele morrer que no dia seguinte o povo
esquece que ele era bêbado. Hahahá! Nico dizendo que queria que [o prefeito]
Mundinho perdesse [a eleição] para cortar o emprego de Nésia [esposa de Nico,
contratada da Prefeitura]. Pra ela voltar pra morar mais ele, pra casa dela. Volta o quê!
Ela saiu sofrida pra lá, sem serviço, sem lugar de ficar. Arranjou serviço, comprou
barraquinho. O que ela quer mais com Nico! Ele bêbado! Se perder o emprego, se
Mundinho tira ela... Todo mundo está trabalhando na Vila! Essa menina de Rica, ficou
quanto tempo estudando? Agora, parou de estudar, não vem pra casa não!
Trabalhando. Ganha o quê? Cento e quarenta reais, a mãe aqui sozinha mais o pai...
Agora a mãe doente precisando dela, uma vergonha, os pais precisando dela e ela
trabalhando por 140 contos. Se fosse ao menos um salário. Eu falei, Ó, eu era pobre,
mas trabalhava para mim. Uma vez cheguei aqui, a Bia minha trabalhando pr’os
Sbruzi
34
, por sete reais por dia! A Bia andando na rua de short apertado, eu calei a
boca. Quando inteirou o mês, falei ... Fomos pro Onça... Ela voltou a trabalhar
quando Tana [irmã de Bia] casou. Bia falou, Tem jeito não. No causo, dizia que tinha
que estudar. foi para Brasília, e depois de uns anos quietou em São Paulo. Mas não
bagunçou a vida, não... Porque essas meninas... O povo fala o acontecido, não é só filha
minha, não. Porque na Brasília é um salário, a que ganha ao menos...
Bandeira interrompe o amigo, mostrando indignação, Hoje todo mundo quer
ter salário!
34
“Os Sbruzi” compõem uma “família de gaúcho” conhecida ali sobretudo por ser dona de um
supermercado na cidade de Chapada.
99
E Quincas, O pior é a grã-finagem da cidade! As moças da roça querem a moda
da cidade. Tudo nascido e criado aqui, nunca faltou comida, moço! Mas os outros, foi
tudo para e não acertou; fica com vergonha de vir, quer ganhar dinheiro pra vir,
não consegue, vai ficando lá. Até pra aposentar custa mais
35
. Eu, da Vila, eu não gosto
mesmo. da Brasília eu gosto, dou certo lá, aqui na Vila eu não dou. A casa é quente
demais... Prefiro prostrar aqui. Se a aposentadoria fosse mais um pouco eu estava na
Brasília. Na casa de João meu filho, a esposa dele é boa pra mim, mas a gente não
certo. É boa pessoa, mas a prosa dela... Sabe como é... É o sangue da pessoa, né. Dois
cômodos, você entende, tudo ali, 200 contos! E a minha médica quer que eu fique
sempre ali, eu falei pra João, se o meu dinheiro, se ele desse... levava comigo uma
neta, uma menina de Tana... Mas cadê esse dinheiro pra isso?
Chega Lúcia, filha de Quincas, vem de casa e vai até a casa de sua cunhada, um
pouco mais acolá, o concunhado lhe prometera um cocar [galinha d’angola] da nova
ninhada e ela ia buscar. Lúcia apenas passava ali para “dar bênção” [pedir a bênção]. No
que chegou, os outros interromperam a conversa; o pai lhe pergunta sobre Raimundo,
seu genro, marido dela. O casal brigou de novo, o povo tudo já está contando o causo.
Diz’que teve até faca. Quincas ralha suavemente com a filha, dizendo, Ele diz que você
é que é prosa ruim, você diz que é ele... Lúcia posiciona-se, Eu não vim de mala e cuia
não sei por que! Ontem Osmar foi dizer de brincadeira que o senhor tinha dito que eu
era que ia com o senhor pro tratamento em Brasília... depois não desmentiu e foi
embora. Foi mesmo que dar veneno!
Depois deste breve informe, Lúcia entra rumo à cozinha. Os dois senhores ainda
permaneceram ali ainda por cerca de uma hora contando causo. Até que Rosa vem
chamá-los para o almoço. Zé Bandeira ensaia recusar, mas Rosa não deixa. Havia carne.
O chegante entrou, comeu e agora proseou também com Rosa. Depois permaneceu mais
um pouco na cozinha, contaram causo mais um bando. Rosa e Lúcia foram para a fonte
lavar as vasilhas enquanto os homens mantiveram-se falando, e o sol baixava quando
Bandeira pediu para ir. Tomaram ainda o café da tarde e um pouco ainda
conversaram. Ao se despedirem, Quincas agradeceu longamente o que partia. Aos que
chegassem depois, contaria sobre “a visita do Bandeira”.
“Chegados”, a relação privilegiada que afirmamos aqui ser a condição para que
se configure uma visita, era bem o caso da relação entre Quincas e Zé Bandeira.
35
Quincas refere-se à “aposentadoria de lavrador”, que demanda menos ‘tempo de serviço’ do que a do
trabalhador assalariado, “da cidade”.
100
Conhecem-se “desde sempre”, pois que ambos nasceram nos Buracos. é filho de um
dos “agregados” do povo de Quincas, mas a amizade alardeada por um e outro chegava
a ocultar o fato das duas famílias não estarem ligadas pelo “sangue” não “tocam
parenteza” e nem por laços de afinidade. A um observador desavisado, pareceriam
parentes. E se Bandeira não inspirava a barulhada tal qual a de Manelão, no início
deste capítulo, aqui foi o cuidado com a condução da prosa que se deu como nota do
laço.
Dos quatro causos descritos anteriormente, a visita de Bandeira foi a única em
que se cumpriu demoradamente cada um dos assuntos mais ou menos obrigatórios em
todas as outras: a saúde, o trabalho, “as notícias do povo”. As “opiniões combinaram”,
como se pôde ver pela profusão de causos, pelo tardar da hora ao cabo da conversa. O
prazer ali gerado via-se no modo como os causos emendavam-se uns aos outros; cada
qual viabilizando um determinado conjunto de opiniões compartilhadas. As reações
enfáticas em consonância. Ao despedirem-se, Quincas foi insistente em seu
agradecimento. Pelo “prazer da prosa”, disse-se grato duas ou três vezes. Dizê-lo no
momento do aperto de mãos, conforme vi ser feito, deu mais dramaticidade ao modo do
dizer, decerto dava garantias de sinceridade; estavam cara a cara, sob o testemunho do
olhar.
Aqui, o que havia a ser dito era sempre em detrimento da relação de empregado
e patrão que suas histórias familiares de algum modo lhe impunham. A “amizade”,
neste caso, vinha como sobreaviso: entre Quincas e Bandeira, “o modo combina”. De
primeiro, ele vinha em minha casa, antes de a vista dele arruinar..., conta Bandeira.
Hoje, é apenas este quem vem, falha uns meses, mas vez ou outra vem. Logo de início,
ao dar a Quincas “notícia da família”, como este pedira, Bandeira descreveu suas
dificuldades em casa, queixou-se do filho, da idade, dando assim elementos que
justificavam uma possível queixa do outro à ausência deste, ou mesmo à demora na
devolução do empréstimo. Bandeira viera devolver uns pregos a Quincas e, neste caso, a
motivação poderia ser tanto um pretexto de visita quanto uma obrigação de praxe,
devolver o que se toma de empréstimo. Por este “assunto”, tal chegada não diferiria da
que trouxe Toró; nos dois causos, era uma conversa entre homens. O que diferiu foi o
rumo da prosa e a oferta de comida.
No caso de Toró, os negócios dos outros vinham em substituição ao que o
trouxera até Quincas, a saber, o assunto que os envolvia diretamente. Em geral,
resoluções desta ordem são tratadas “no particular”. Se Toró teve que esperar Quincas
101
tocar na questão, decerto a presença dos outros rapazes o intimidava. E diante da
imposição do assunto, tratou-se de se desculpar ao outro, antigo nos Buracos, contra
quem não se podia, pelos anos de prova, acusar causo de negócio mal-feito. Com a
chegada e permanência dos rapazes à sala, o tema teve que ser tratado à revelia, “nas
vistas do povo”, o que se fez lançando mão de outros causos, outros negócios. Bandeira
e Quincas, ao contrário, não tinham “negócio para tratar”, mas tiveram “um particular”,
pois quis a sorte que ninguém chegasse ali naquela tarde, a não ser a filha de Quincas,
que não quedou na área. Era uma conversa de homens. Talvez Bandeira não
inspirasse aos outros a mesma curiosidade instigada por Toró, de quem se sabia vir
assunto de dinheiro, “assunto de interesse”.
O que se diz entre dois não é o mesmo que se diz entre três. Imagine-se antes de
tudo que, quando não testemunha, toma-se mais riscos no dizer “particular”, pode-se
dizer o que não se repetiria a qualquer um; não é “o povo” que escuta, mas uma pessoa
singular da qual se saberá autora da “fofoca”, no caso de a conversa aparecer na boca de
“outros”. Inúmeras vezes, presenciei uma acusação de fofoca ser feita com base no
trajeto refeito, especulado, daquilo que se disse a uma única e determinada pessoa:
através das relações chegadas desta, e dos movimentos sabidos implicados por tais
relações, sabe-se o percurso do que foi dito necessariamente com motivo de fofoca pois
que informava sobre “um particular”.
Quincas e Zé Bandeira desenrolaram uma conversa a dois. O leitor decerto se
pergunta agora onde entra a presença da narradora que vos escreve, pois que não é ela
nenhum desses dois. À ocasião, eu me localizava no quarto contíguo, de onde ouvia a
conversa da área; estava, a bem dizer, na posição em que se encontram frequentemente
as mulheres de uma casa, a saber, a posição de ouvir os causos sem deles participar,
pois que entretidas com suas próprias mexidas (capítulo 2). Conforme ocorre com elas,
os causos que eu aqui retransmito movimentam-se no tênue limite entre a “fofoca”
(intencional) e o “conhecimento” (capítulo 3). Para que se aproxime mais do segundo,
sabendo-se entretanto não poder escapar por completo do primeiro, o causo da visita de
Bandeira é contado aqui de acordo com os limites que imagino seriam feitos pelas
mulheres buraqueiras, cortando-os pela regra da educação.
Nos causos trocados, os dois senhores manifestavam em abundância suas
posições comuns sobre os causos que contavam, e assim falavam de sua própria
amizade são seus modos de combinar. Sobre as notícias do povo, notícias que se dão
aos chegados, opinaram sobre controvérsias semelhantes às que se empenhou no causo
102
da visita de Pindola e os Carneiro. O causo do filho de Bandeira e a questão do valor do
trabalho da cidade. Hoje todo mundo quer salário! E o problema das mulheres que
partem para trabalhar fora. Em todos os causos, deslindavam-se as relações familiares
nas quais os presentes guardavam posições equivalentes: eram senhores velhos e
adoentados vendo os filhos atrás de “salário” enquanto eles não podiam mais tirar da
terra o que julgavam de valor. Sobre “política”, entretanto, as posições o se reduziam
a serem conterrâneos e contemporâneos. O causo de Bandeira teve então o efeito de
visibilizar outras vias de identificação; se não pela cadeia da parenteza, dos “problemas
de família”, pela inclusão na “comunidade”. Entre um candidato parente e um candidato
“da comunidade dos Buracos”, Bandeira declara sua escolha: eu voto em Paulo Gomes,
candidato da comunidade! Porque nós, tudo sempre reparte voto para gente de fora. Se
Paulo ganhar ganhou, se não ganhar não ganhou, pouco que me importa, mas eu voto
nele, eu vivo às minhas custas!, dissera o visitante. Nisto, Quincas corta o assunto não
estava em posição de apoiar o filho Paulo – e puxa o causo do hospital, assunto
consensual na política: se Mundinho conseguir inaugurar... Em seguida recomeçam
sobre o causo de Gilmar: doente, diabete, cachaça. E chegam de novo aos causos de
“mulher que quer salário”. A cunhada de Quincas separou-se do marido, Nico-bêbado.
Ela está é certa, diz Quincas, contra o irmão, bêbado, não trabalha mais nunca!
Chega Lúcia, a filha de Quincas; brigou com o marido. Falaram com este de
brincadeira: mesmo que dar veneno! O causo o povo tudo sabia, Bandeira decerto
também, e agora ouvia a versão contada pela própria. O motivo da briga era a “falação
do povo” e Lúcia vivia a defender-se disto: o povo fala muito, reclamava. Noutro
instante, de novo se fala em “mulher que quer salário”. Quincas ralha, Não é filha
minha não! O povo fala o acontecido!
Quando “o assunto rende” e a “a visita tarda”, deduz-se via de regra que a visita
agradou. Entre visitantes e anfitriões, a disputa tem seus limites, mesmo que as
oposições estejam latentes; quando se entrevêem em demasia, pelo silêncio daquilo que
não se quer contrariar, é melhor “voltar para trás”, para de onde se veio. Determinadas
palavras são “mesmo que dar veneno”, às vezes a despeito de seu intento, e a
possibilidade de proferi-las parece provocar um constante estado de guerra das relações,
raramente explicitado; nos causos dos conflitos abertos que, nos Buracos, costumam
ser tão violentos quanto repentinos. Quanto uma conversa renderá é uma resultante
singular e inevitavelmente produtora de singularidade; trata-se afinal de um encontro
103
específico, de um estado de “bem-querer” que se quer “dado” mas não deixa de ser ser
“criado”, A gente “pega afeição”, “apega” “cria amizade”.
Quando - pelas associações instigadas na conversa sobre a roça, os animais, as
galinhas ou deslocamentos recentes do povo de quem se notícia - vem “no sentido”
de alguém contar um causo, a conversa ganha rumo. Mas sempre o risco de uma
visita desenrolar-se mal, “sem assunto”, A gente fica tudo desanimado! Em qualquer
causo de visita, entretanto, a reputada maneira de se fazer com que o visitante demore é
através da produção e oferta de comida. Neste sentido, os distintos modos com que, nas
três visitas, desenrolaram-se o caminho rumo à cozinha são indicadores significativos.
Na presença de Toró, a prosa se desenrolou na sala, e foram chamados até a cozinha
quando “o sentido do assunto”, “negócios”, se definira, mod’ o visitante poder
despedir-se. O café “veio corajoso”, isto é, sem a companhia do de-comer, o que
indicava que “o tempo do café” não tardaria muito. Diversamente, a conversa com
Francisca e Zé Pindola mais o povo de Zefa veio a se desenrolar desde logo na cozinha,
e, depois, foi para o quintal, onde os visitantes puderam observar e comentar a “mexida
de cozinha” de Dona Rosa. Esta mexida consiste na própria produção dos recursos para
o de-comer, e portanto dá-la à observação é uma mostra de que se está oferecendo o
melhor que se tem. Não por acaso, a estada ali foi marcada por almoço e merenda, o que
demandava um tempo de prosa maior do que os visitantes poderiam oportunizar.
Tiveram mesmo que voltar mais uma vez, mod’ comer a canjica de Rosa, ao menos. O
equilíbrio entre a qualidade e quantidade da comida e da prosa indicará a qualidade do
receber e do ser recebido. Aqueles visitantes o foram, não na casa de Rosa, aliás.
Conforme os causos que ouviria mais tarde, e de acordo com meu próprio testemunho
da visita em que os acompanhei naquela ocasião casa de Rosa e à de Damásio),
Pindola mais o povo de Zefa não tinham mais por onde ter fome. Em todas as casas
daquele “giro”, as merendas foram servidas com fartura. Com isto, podemos deduzir
que a oferta de comida ocorre menos em função da medida da vontade que o visitante
tem de comer do que da indicação de “boas relações” entre os presentes. Embora
tenhamos aqui efetuado certo esforço em recompor as conexões do que foi dito nas
visitas descritas, cabe notar que a criação de intimidade e conhecimento entre o povo
dos Buracos, atualizada por estas prosas com suas nuances diversas, não passa apenas
pela semântica de suas palavras. O “modo de conversar”, no dizer buraqueiro, é também
uma apreciação do estar junto e deixar o tempo passar. Nisto o tempo de uma visita é
104
tão eloqüente quanto o que se conta ter sido dito, sendo o de-comer ali oferecido o
indicador por excelência de um como de outro.
Quando um buraqueiro conta o causo de uma visita, é sobre a comida que narra.
“No tempo da política”, por exemplo, quando a prática das “visitas nas casas” é
assumida intensamente pelos candidatos, o de-comer é o principal medidor. O elogio ao
de-comer é uma das práticas que os candidatos aprendem (capítulo 6). E os causos que
ouvi de buraqueiros sobre as visitas dos candidatos eram pautados por questões ligadas
ao tema. Fosse “a trabalheira que deu” preparar um de-comer naquela hora, fosse a
satisfação com o elogio a um de-comer feito, fosse a reclamação da visita de um
vereador que veio de surpresa e trouxe um pão feito em casa, Nem comprado em
supermercado era! Mas em qualquer ocasião, a se narrar o causo de uma visita, a
informação sobre se a anfitriã matou ou não um frango costuma anteceder o relato dos
causos narrados na visita. Não se trata de identificar uma ‘tabela’ com tipos de comidas
mais ou menos valorosas, mas da própria dinâmica com que se a comida se integrar
ao estar demorado de uma prosa. É curiosa neste sentido a expressão “Fulano tem
tempo!”, usada em tom pejorativo seja a uma pessoa “que fala demais”, seja a quem se
reprime por estar “atentando”, ou a alguém que “dá ouvido ao que os outros falam”.
Por este aspecto, os “causos de visita” narrados pelos buraqueiros são em geral
distintos das seqüências que desenvolvi aqui. Ao contrário de meu esforço em retraçar -
pela descrição das visitas - os rumos da prosa, o interesse buraqueiro sobre o que se
contou numa visita não costuma passar de um ou dois causos que consideram mais
importantes. Este critério pode ser medido pelo montante que os causos rendem de
assunto. A diferença entre o modo como descrevi e resumi os causos de visita em
questão e o modo como os próprios buraqueiros costumam fazê-lo é significativa. O
detalhamento com a descrição da prosa teve, no meu caso, a intenção deliberada de
fazer ver como os “causos” de algum modo mapeiam e efetuam relações pessoais e
semânticas. Minha intenção enfim era a de buscar observar formas de ‘estabilização’ do
que se entende por “povo”. Na conversa buraqueira, contudo, a comida conta não de
dizer o usual. A não ser quando se trata do “causo de um causo” - como na visita do
candidato à casa de Quincas, que falou sobre a posição dos gaúchos -, não é preciso
dizer além do usual.
A qualidade da comida dará a imagem geral da qualidade da prosa. Por um lado,
existe, por parte do visitante, uma expectativa sobre o que lhe vai ser oferecido, por
outro, o anfitrião que queira “receber bem” quer a apreciação do visitante. Alguma gula
105
deste é bem vista. E como em uma visita, não convém “desfazer da comida” seria o
mesmo que “desfazer da pessoa” –, isto às vezes tensão à situação. Um visitante que
não tenha gostado da comida que lhe ofereceram o informará apenas em ocasião
segredada ou então de modo irritado, abrindo a possibilidade do conflito. Mais acima,
procurei mostrar como os causos constituem uma fórmula narrativa que, pela ‘análise’,
pode ser entendida como produção de “conhecimento”. Nos causos de visitas narrados
após um passeio, esta apreensão que associei à observação sobre o rumo da prosa alheia
é feita em grande parte por uma apreciação da comida e do modo de comer que ali se
efetuaram. Este aspecto é importante porque parece dar uma forma singular ao que
busquei observar nos termos de ‘análise’ ou ‘decomposição’ das relações. Se esta é
equiparável à imagem que ‘nós’ temos do processo de conhecimento, no caso dos
Buracos ela passa também por uma experiência pessoal não restrita ao objeto que se
decompõe. Noutras palavras, está sempre em ação. Por este caminho, embora o esforço
seja, como sempre o é, de ‘objetificação’, espero que o leitor empreenda por sua parte
um movimento próprio de ‘afecção’
36
. Que se busque, ao modo da escuta dos causos,
um entendimento sobre o que permanece necessariamente residual naquilo que pode ser
verbalizado, decomposto sob uma lógica lingüística pré- determinada.
36
‘Afecção’ aqui não se funda absolutamente na idéia de ‘sentimento’, mas no que Goldman (2003)
elabora reunindo as acepções da palavra em Favret-Saada (1990) e em Deleuze e Guattari (1980). Para
Goldman, trata-se de uma imagem do pensamento como ‘movimento através do qual um sujeito sai de
sua própria condição por meio de uma relação de afetos que consegue estabelecer com uma condição
outra’, engajando novas composições.
106
Capítulo 2 – Quem sabe contar?
2.1 – Aproximações: quem não caminha não conhece
[Figura 4] O avô da Diva não sei de onde ele era, a mãe eu sei; não sei mas conheci
na Inhuma, sei da procedência do povo dela. Conheci uma irmã da avó da Diva. O meu tio, o
irmão da minha mãe, rapaz solteiro (eu lembro dele pouquinho) [...]. Casou com a irmã da avó da
Diva, mas a irmã da avó da Diva viúva. E decerto bem idosa porque o que ela tinha de
filho! meu tio casou com essa viúva, ela tinha os filhos. [...] Daí, daqui a uns tempos, a Dona
Pidu lembro dela como é hoje, essa que era casada com meu tio ela era viúva, casou com
meu tio e tornou a ficar viúva. Aí não casou mais, não. E pode dizer que ela morreu, adoeceu,
morreu lá pra Januária. depois os filho mudou de lá, Zé Pidu.... Chamava[m] Joaquim Pidu de
Pidu porque [era] o nome da mãe, né. Mas a Pidu não teve filho com meu tio, não. Ele
morreu, não teve filho nenhum. Que ele era solteiro, casou com ela; ela não teve filho mais.
Aí o que eu queria contar...
A avó da Diva, essa que a irmã casou com meu tio - a Diva deve saber, que a mãe dela
conta - eu conheci, eu lembro da minha mãe falar. Eu conheci ela demais! A avó da Diva que eu
conheci chamava, não sei qual era o nome dela, sei que é Maria... Decerto é Maria. Chamava
Cotinha. Dona Cotinha. O marido da Cotinha, que é avô da Diva, chamava Joaquim Avexado.
Porque ele era avexado mesmo, era doido! Era doido-doido... Assim, doido. Aquele desinquieto,
né. Joaquim Avexado, era nome e sobrenome, que ele não importava de chamar Avexado. E
ela, Cotinha, conheci ela já cega, quase, mulher nova [...]. Ela andava pouco. Quando eu lembro
ela pra sair assim nas casas, ela botava um panão na cabeça e puxava bem o pano assim, ó, e
saía mais as mulheres. [... ] A Idelina, mãe da Diva, é filha dessa Cotinha... (então a Diva sabe
falar...) era uma mulher bonita, moço, a finada Cotinha! A Pidu - a que casou com meu tio, essa
viúva - ela era loirona do cabelo bom. E a velha Cotinha era bem clara, bonita. Igual à mãe da
Diva, a Idelina. Uma mulher bonita, a Idelina! Idelina é, como no dizer/É do meu tempo.
Os dois causos que se seguem são transcritos do relato de Quincas. As figuras indicadas representam as
relações de parenteza a serem compreendidas para que se possa compreender os causos.
107
Assim/Parece que é mais nova do que eu um ano ou dois. E eu não namorei com a Idelina
quando era solteiro?! Namorei! Com/com a mãe da Diva!
... E daí ainda antes de chegar a hora de casar, o doido irmão dela (irmão da Idelina que
é mãe da Diva; chamava Manoel Avexado; era filho do Avexado; a Diva é dos Avexado, no
causo) foi embora pro mundo, rapazinho novo quando ele veio [...]. Aquele tempo, pra mim,
era longe... Peraí, Não!, estou mentindo, o nome dele era Geraldo, não era Manoel, Manoel era
o irmão dele, que tinha casado aqui em São Joaquim, Manoel Avexado, era. Esse do causo é
Geraldo Avexado.
[silêncio]
[Geraldo] veio passear daonde estavam os pais. A Idelina, moça nova, sei lá, uns 18
anos naquele tempo, estava com 18 anos, estava nova, né. Pra casar. Ou ela tinha menos do
que 18 anos? Pergunta a Diva que ela conta pra você a história. A Diva acho que era a primeira
filha. Não, era a segunda. [silêncio]
...E daí, ainda antes de chegar a hora de casar, o doido irmão dela - irmão da
Idelina que é mãe da Diva [...] esse irmão da Idelina veio passear [onde a Idelina morava
com o pai]. Não! Eu vou levar minha irmã porque (ele solteiro...) eu preciso dela, eu moro
sozinho, tátátá, ela vai ganhar dinheiro e tal. [...] Parece que é a sorte! Levou [a Idelina, irmã
dele] pra ele, moço! Chega lá, ele engravida a irmã. E não custou, não. Foi logo, sei se
passou um ano. ahoje ele nunca mostrou as caras. Se ele é vivo... E ela chegou na casa
dos pais grávida do irmão! [silêncio]
Eu – E ninguém sabia? Ou o povo ficou tudo sabendo?
Quincas - Ele chegou e no outro dia foi embora, né. Ele veio passear, ela era moça. na casa
do pai. Ele veio passear na casa do pai. Vamos supor, ele ficou oito dias e levou ela. Lá,
morando com ela, engravidou ela. Ela sentiu grávida... Não sei como é que ela quebrou as
portas que veio pra casa da mãe. Grávida! Chegou aí, ganhou o menino! Com isso, rapaz, o
filho da Idelina, que é irmão da Diva hoje, o Manoelzinho, é filho do irmão com a irmã. [silêncio]
108
Figura 4 – Causo do povo de Diva
Figura 5 – Causo da falecida Juçu
EuE tem muito causo?...
QuincasMuito causo, é. Ó, vamos supor, na família minha, o que é que deu?
[Figura 5]
109
A irmã da minha mãe [morava] aqui, logo ali do outro lado do rio. Eu não conheci, não. Não era
nascido ainda não). Ela se chamava Juscelina, minha mãe contava. E o pai de Firmino, o
Lindolfo, [era] irmão dela e irmão da minha mãe... Tudo dentro de casa, ali. Aí, Lindolfo, que é
pai de Firmino, depois casou com a tia Gregória. Mas [na época do ocorrido] ele [era] solteiro
na casa dos pais [ ]. A minha avó Arcanja não analisava nada não, moço! Que as moças
naqueles dias era só de dentro de casa. Na hora que ia ni festa, era rodeada da mãe. Aí - minha
avó contava - diz que dali um pouco... Ó! [ ] Juscelina doente. [ ] Doente e tal..., trabalhando
dentro de casa. O meu avô João Gomes, ele tinha dinheiro: tinha muito gado. As filhas dele não
ia pra roça não, a Juscelina da época, a minha mãe, a Velha Maria de Antônio Velho que está ali
viva ainda - é a mais nova... dentro de casa, lavar roupa e tal, não iam pra roça não. Ia pra
roça diz que pra buscar milho verde, quando tinha. O meu avô [João Gomes] tinha
peonagem. [ ] Daqui um pouco... Juscelina doente, marinada... [Perguntaram em casa:] O que
é?! [ ] E a minha avó [Arcanja, irmã de João Gomes], nova nesse tempo, - faz muitos anos! -
era curiosa. Estava começando a ser parteira. [Ela] diz que vai ver [qual era o problema da
sobrinha Juscelina] e diz [para o marido], Olha Eloe, ela está é grávida. E o marido da minha
avó, o Velho Eloe, disse, Essa mulher está é doida! Juscelina ia engravidar de quem, moço?!
Qual é esse homem que ela já viu aí? Diz que ele ainda falou bem assim. Depois... [silêncio]
Tá! Ela está é grávida! se for dos irmãos dela! Eles o é doido! E minha
avó, Eu não sei de quem foi, mas ela está é grávida! minha avó foi assuntar mais... Ô, moço!
no mês de ganhar menino! Escondendo, diz que ficou doente, pra dentro do quarto.
deitada. A hora que o pai estava por ali, ou os irmãos, ela não saía. quando estava as
mulheres saía, voltava e deitava [no quarto]. Não tomava remédio, não. Às vezes, [pode ser
que] adoeceu na gravidez. Ninguém sabia tomar remédio nenhum [naquele tempo]. A minha
avó falava de uma doencinha de gravidez - como é que era? - que incha a cara, os pés, a mão...
Tem um nome de uma doencinha assim, hoje é sem nome de doença. [ ] É um nome antigo,
não é das doenças de hoje não... [silêncio]
Aí a minha avó [Arcanja] falou, Não! Vou falar pra Jove [a outra avó, cunhada
desta e mãe], que era a mãe dela, [da moça grávida]. Minha avó [Arcanja] diz que botou o
pano na cabeça... (Ela não morava aqui não, morava lá onde [hoje] Seo Zé mora). E a outra avó
[morava] aqui pertinho, atravessar o rio, chegar no de manga ali você onde era a
tapera deles, o de manga está até hoje você , menino! ali na manga de Damásio,
bem ali... minha avó [Arcanja] diz que botou o pano na cabeça, como diz ela, e foi lá.
Proseando.
[silêncio]
110
Chamava[m] minha tia Juscelina [de] Juçu. É isto!
Então, como vai a Juçu? Minha avó [perguntou à cunhada]
Ah, tia, tal e tal [respondeu a sobrinha Juçu].
[a avó Arcanja, parteira] assuntou. Devagarinho... [Juçu estava] Toda
inchada; o dava pra ver [que era gravidez]. E minha avó diz que ela não fez muito bucho
também não. Que nem uma sobrinha minha, que foi descobrir [que estava grávida] no dia que
ganhou o menino.
Aí... Tá. [A avó de Quincas, Arcanja] Chamou minha [outra] avó [Jove] lá, Ó Fulana,
Juçu é pra parir! Você é doida! Parir de quem?! Moço, você doido! está doido! Não é
verdade! E cuida, e cuida. Ou arranja uns pano de menino ou... Mas não conta pro João [João
Gomes, pai de Juçu], não! Conta, não! Tá. minha avó diz que ensinou uns remédios pra ela
[Juçu]. Acho que a minha avó falou pra ela, Mas você não contou que estava grávida! Ela [Juçu]
pegou a chorar, aí minha avó pegou e deu a ela uns remédios pra ela normalizar mais o corpo.
não lembro bem, se foi ali no mesmo dia ou semana [que Juçu] inchou dentro do
quarto, correu atrás de minha avó e tal. E Contou: era de Lindolfo, o irmão dela, né. [ ] E Lindolfo
dentro de casa... Aí, também, fazer o que? Lindolfo não pôde sair, que era/tinha muita coisa de
cuidar. Então ele quietou ali. Juçu cumpriu o resguardo [ ]. Aí, menina, é que eu não sei. Se
ela cumpriu o resguardo todo... Dindinha é quem sabe. ela [Juçu] morreu do parto, ganhou [a
criança], mas morreu. Aí, não sei se passou quantos dias ou mês, mas... [ ] minha avó
falava, o sujeito não morre antes do dia. Morre! Juscelina mesmo morreu (...). Porque ela
adoeceu o bucho; ela escondeu, ficou doente. Se ela fosse uma mulher casada, que não
esconde, tinha tomado remédio, não tinha morrido. Mas quando descobriram, estava passado: a
mulher morreu.
*
Era noite e Santana, a mais silenciosa e única vizinha entre as filhas de
Quincas e Rosa, “pousava” [pernoitava] na casa deles com os filhos, pois que o marido
havia subido para a Vila e ela temia passar a noite sozinha em casa. Enquanto as
crianças assistiam TV na sala, eu, Quincas, Rosa e Tana mantivemos quatro horas de
prosa entrecortada por raros e curtos momentos de silêncio. A transcrição acima é um
trecho desta conversa. Dona Rosa preparava seu chá de todas as noites, uma
combinação de ervas, sementes e frutos “do mato”, para “acalmar o sistema nervoso”;
ajudá-la a ter sono. Tana, calada como é de seu feitio, recostava-se à beira do fogão
111
fazendo um ou outro ajuste e comentário às informações que seu pai me fornecia. Eu
estava em minha terceira ida a campo e, embora com isto completasse cerca de treze
meses junto ao povo dos Buracos, todas as tentativas anteriores em gravar entrevistas
haviam sido mal-sucedidas. Ao ligar o gravador, minhas perguntas soavam
constrangedoras e o buraqueiro entrevistado respondia com palavras cautelosas. Temas
largamente desenvolvidos em outras situações tornavam-se, por ocasião das
gravações, frases tão curtas quanto vagas; reduziam-se em geral a um “simou “é”.
Quando eu perguntava por que”, respondiam-me: “diz’ que é assim”; “parece que é,
né” ou “eu penso que é assim”. O que transcrevo acima ocorreu de modo distinto.
Mostrei a Seo Quincas o desenho que havia esboçado da genealogia do povo dos
Buracos (Figura 1.1) e lhe expliquei-lhe o motivo da gravação: registrar os dados que,
embora já ouvidos de outrem, eu não conseguira ainda memorizar. Informações sobre “a
história do povo dos Buracos”, precisei eu. Quincas balançou a cabeça positivamente,
sorriu e disse, Sim, sei... Em seguida, liguei o gravador e fiz uma primeira pergunta
sobre sua avó, a parteira Arcanja Gomes, mais o marido dela Eloe Pereira. Eram de
onde?
[Figura 6] Arcanja, como todos os “Gomes”, é “da família do povo dos Buracos”.
Esta ampla “família” se inicia com a chegada do irmão de Arcanja, João Gomes, à
Fazenda dos Buracos, comprada por ele. Vieram na ocasião sua esposa, Jovelina Carneiro
(Jove), e dois casais de “agregados”: a irmã de J. Gomes, Arcanja, mais o marido desta,
Eloi Pereira; e o casal formado pela irmã da esposa de J. Gomes, Jove, e se marido
Olegário Carneiro. “Os Gomes” e sua combinação com Os Pereira” e “Os Carneiro”
formam então os três casais que inauguram as três linhas de descendência dos Buracos;
duas delas se encontram no Calengue: os Gomes Carneiro, e os Pereira Gomes, o
primeiro termo de cada par sendo proveniente da linhagem paterna. A terceira linha de
descendência, “Os Carneiro”, ficou “pra lá” trata-se do que originou linhagens
provenientes do “irmão da esposa”. Assim, a divisão espacial deste primeiro trio uma
idéia de um ‘princípio’ mais ou menos genérico reconhecível nos deslocamentos
buraqueiros: a importância da relação entre a esposa do dono da terra e a ir deste.
Sendo único proprietário, João Gomes “puxou” para perto de si, sua irArcanja e sua
esposa Jove, que vieram morar no Calengue, enquanto o irmão de Jove (Olegário
Carneiro) veio morar mais afastado, no Três Passagens, na condição de posseiro”
(espécie de atualização de “agregado”). O causo contado por Quincas expressa a
circulação intensa entre as casas das cunhadas, Jove e Arcanja, que se tornaram co-sogras,
uma vez que uma filha da primeira casou-se com um filho da segunda, formando-se o
112
casal gerador de Quincas e seus irmãos, freqüentemente designado “o casal principal dos
Buracos”: Dona Lió (Liovergina Gomes Carneiro) e João Branco (João Pereira Gomes; não
confundir com João Gomes, de quem era genro). O “povo do Calengueconstitui-se de
três linhas de descendência provenientes deste casal (que deu origem ao “povo dos
Buracos”), replicando-se algo da estrutura da primeira geração: os descendentes que
permanecem hoje na terras do Calengue são filhos do “casal principal” (Lió e J. Branco) e
de outros dois casais, formados, por uma irmã do marido (Julia Pereira Gomes) uma irmã
da esposa (a “Velha MariaGomes Carneiro). A posição de Dona Lió, cunhada de Júlia e
irmã de Maria, é similar à de sua mãe Jove, isto é, liga as duas “famílias” progenitoras do
“povo”. Quincas, sendo hoje o filho vivo mais velho de Lió e João Branco, delibera muitas
vezes sobre a autoridade provinda de sua ascendência: sendo filho de J. Branco Pereira
Gomes e Lió Gomes Carneiro, ele é duas “vezes Gomes” e tem, “no sangue” os nomes”
das três linhas de descendência buraqueira. Esta posição corresponde a certo
“conhecimento” que poderíamos traduzir toscamente como um ‘conhecimento histórico’
do “povo dos Buracos”, uma vez que este efetivamente se origina nos casais “principais”,
pais e avós de Quincas. O povo dos Buracos inaugura-se ali, no cruzamento desses
“conhecimentos” (‘relações’) de Quincas: onde “toca parenteza”. Sobre o momento
anterior a este, o que se conta é, vagamente, que os parentes moravam “pelos lados do
São Francisco”.
113
Figura 6 Os casamentos originários do “povo do Calengue” e os descendentes que hoje habitam à beira do rio
Calengue.
À medida que Seo Quincas começa a contar sobre de onde vieram “os
mais antigos dos Buracos”, pergunto-lhe sobre o grau de “parenteza” entre os cônjuges
narrados. E então ele puxa os causos. Inicia com as descrições dos deslocamentos dos
dois casais “principais” na história do povo, seus dois casais de avós. Meu avô [Eloe]
morou no Curral Velho, nesses lados do São Francisco, depois ficou um tempo no Goiás e logo
veio pros Buracos. Derradeiro foi que ele foi pro Goiás, onde arranjaram o pai de Dona Zefa para
casar com a filha do meu avô. Assim, por meio da descrição dos elos entre o narrador e a
pessoa narrada, engaja-se o movimento de aproximação e reconhecimento do ouvinte
em direção ao “pessoal” narrado. Sabedor de minha proximidade com Zefa, cuja casa
em Chapada eu visitava regularmente, Quincas traça por ela o percurso que me leva a
um tempo até Arlindo, pai dela, e até Quincas, por meio do avô dele. Liga-nos assim
ao “pessoal de Dona Zefa Carneiro” e depois ressalta que não são “os Carneiro”, pois
este nome a Velha-Zefa puxou foi do marido, já do outro lado, “o povo de João
Carneiro pra lá”.
[Figura 7] Dona Zefa, chamada “Zefa-Carneira”, é filha de outra cunhada de Lió, outra
de nome Maria: a filha Maria de Eloy e Arcanja, “dos Pereira Gomes”. Maria casou-se
com “gente de fora”, de modo que seus filhos e filhas perderam o “Pereira”, Tornando-se
“Ferreira da Silva”
37
. Dentre estes, a única a permanecer foi Zefa-Carneira, que então
perdeu o “Ferreira da Silva por ter se unido a “João Carneiro”, “dos Olegário Carneiro”,
que moram do outro lado, pra lá”, no Três passagens. Por esta trajetória, é significativo
que não exista, nos Buracos, “os Carneiro Pereira”. Os pioneiros desses dois sobrenomes
nos Buracos não são dos Gomes”, verdadeiros “primeiros donos”, representados por
João Gomes e Liovergina Gomes (avô e e de Quincas - chamado Joaquim Gomes ou
Joaquim Branco). Dos descendentes de terceira geração de Eloi Pereira, permanecem hoje
no Calengue apenas as duas mulheres (Nésia e Rica), justamente as que se casaram com
“os Gomes”, do Calengue (filhos de João Branco e Lió), mantendo com isto o nome
materno “Pereira”. Outro “ramo da família” dos Pereira foi para a beira do Ribeirão de
Areia, formando um povo com este nome. Ao “povo do Ribeirão” pertence o atual
prefeito de Chapada Gaúcha-MG, José Raimundo Ribeiro Gomes, chamado Mundinho,
37
Eloy Ferreira da Silva, irmão de Zefa, foi uma importante liderança do sindicalismo rural, tendo sido
assassinado por grileiros em 1981. Sua esposa e dez filhos mudaram-se então para a cidade de São
Francisco e hoje não mantêm contato quase nenhum com os parentes dos Buracos.
114
filho do “primo-primeiro” de Quincas. A “família” de Mundinho é dissidente dos
Buracos”, mas é “tudo a mesma família”, conforme este mesmo definiu em palestra de
campanha eleitoral nos Buracos [Figura 8].
Figura 7 – Os descendentes dos Pereira Gomes que permaneceram nos Buracos.
Figura 8 – Os “dissidentes” da “família dos Buracos” que foram para o Ribeirão de Areia.
115
Através da identificação de alianças e filiações, Quincas me situa os
caminhos pelos quais os personagens concernidos ele sabe serem de meu próprio
conhecimento. Conforme o casamento da “irmã da mãe da Diva” com o tio de Quincas
deu a este a oportunidade de saber sobre a procedência de seu povo, na Inhuma, eu
poderia agora reconhecer o povo graças ao casamento de Diva com Zezo, filho de
Bandeira, dos Buracos. No início do primeiro relato sobre incesto, trata de detalhar:
chamava[m] Joaquim Pidu de Pidu porque [era] o nome da mãe. E dali se estende em
detalhes que dão substância à gente de Dona Pidu, a mulher que casara com o tio de
Quincas mas que tivera filhos no primeiro casamento. Sua linhagem, portanto, não
pertence aos Gomes nem aos Carneiro ou aos Pereira. Após a morte dela, os filhos
tomaram cada um seu rumo, separando-se assim do povo dos Buracos, com o qual
mantém, entretanto, a relação de “conhecimento”. Quincas preparava terreno para
contar o causo do povo da Inhuma, os de Pidu, irmã da avó de Diva, a quem eu enfim
conheço. A irmã de Pidu é que se narrava no causo, mas dela posso saber por via de
outros elos. A partir deste movimento aproximativo me é dada a referência necessária à
compreensão da configuração do povo no passado. Como o causo diz respeito a Idelina,
mãe de Diva, teria sido possível mencionar apenas esta, ou no máximo sua mãe,
Cotinha, para que eu reconhecesse e localizasse os personagens narrados. Era contudo
necessário que o próprio Quincas fosse também concernido, como recurso narrativo que
situa e ao mesmo tempo legitima sua palavra. Por isto inicia o causo aludindo à mulher
que casou com seu tio. Assim o povo narrado aproxima-se, ganha continuidade em
relação ao povo dos Buracos, traçando-se por o conjunto de qualidades que
caracterizam “o povo de Diva”, isto é, “o povo da Inhuma”, “dos Buraquinhos”. E estes
diferentes povos se mostram ora distintos, ora unidos pelas pessoas em cujos
movimentos se descrevem relações análogas de distância e aproximação com os dos
Buracos. Os povos “pro lado de Diva” (ou “da Inhuma”...) são “um pouco chegados”,
“meio aparentados”.
O povo dos Buraquinhos é vizinho dos Buracos, dos quais se separa por cerca
de uma hora a cavalo, trajeto a ser cumprido por dentro do rio Pardo, cuja nascente é nos
116
Buracos
38
. Os dois povos entendem-se a rigor como não vinculados por laços de
parentesco; o de “famílias” distintas. Entretanto, na ponta ainda mais pra lá” do Três
Passagens, quase encostados a uma das “ladeiras” que limita a terra buraqueira,
encontram-se “os Nicolau”, que pertencem a uma família dos Buraquinhos, precisamente
da Inhuma, rio que deságua no rio Buraquinhos e assim subdivide os povos um pouco à
maneira da relação Calengue/Buracos. Os Nicolau moram em uma “posse” na qual se
estabeleceram com o consentimento de um herdeiro dos Carneiro que é genro de
Nicolau. O “povo de Diva “toca parenteza” com os parentes da esposa de Nicolau, o
povo dos Buraquinhos que conheci graças à intensa circulação (em geral por torneios de
futebol e festas de santo) entre os filhos deste com primos rapazes e moças que moram
“pra lá do Pardo”.
Além das relações com pessoas que hoje conheço nos Buracos, Quincas
fornece-me também as referências geográficas atuais; pelo traçado do parentesco na
terra em que ora nos encontrávamos - eu como ele - apreendo a “procedência” do povo
narrado. Seo Quincas oferece-me, enfim, um ‘método’ de conhecimento sobre o que me
conta, a saber, o de localizar os personagens dos causos a partir de meus próprios
“conhecidos” e “conhecimentos”. Os sobrenomes anunciam-se como traços das relações
sanguíneas e/ou de afinidade que situam os narrados a uma determinada distância de
nós, tanto de mim como de Quincas, formando uma cadeia histórica da qual, pelo
conhecimento pessoal, tomamos parte. E aos episódios de casamento e nascimento, a
história acresce-se dos causos de doença ou morte trata-se, enfim, do movimento dos
povos, de sua “sorte”; reprodução e concentração ou dispersão e rarefação. Gozado, tem
gente que o povo acaba tudinho..., refletira Quincas a um dado momento.
“Ter conhecimento” é, neste contexto, uma expressão usada para dizer
que se conhece alguém a ponto de lhe traçar operações de aproximação que o situem.
Em certa medida (ou em algum ponto) implica o conhecimento da terra de seu povo,
pois que nela se estabelece a “parenteza” que nos servirá de compasso. Quando narrados
a uma forasteira como eu, feita “amiga chegada” pelo “costume de estar perto”, os
causos costumam engatar uma cadeia de aproximações em geral mais extensa do que
38
A história da ocupação do povo dos Buraquinhos difere da dos Buracos por não ter, como este, sido
originada com a compra da propriedade da terra (da “fazenda”, como no segundo caso). Os primeiros não
possuem portanto o “documento da terra” ou a condição de “herdeiros”. Acredito que talvez isto os tenha
estimulado a, em 2007 se auto-reconheceram quilombolas, o que não foi encampado pelo povo dos
Buracos, embora estes, como aqueles, tenham recebido informações a respeito, além de visitas de
representantes do Ministério da Cultura e da Secretaria da Igualdade Racial. Com a nova condição, as
famílias dos Buraquinhos passaram a integrar programas de auxílio do Governo Federal, o que alimentou
a já conhecida rixa, ou “fofoca”, entre as duas “comunidades”.
117
quando narrados entre os próprios buraqueiros, uma vez que no meu caso os percursos
aproximativos podem lançar mão dos “conhecimentos” que fiz no pouco tempo em
terras buraqueiras. Por outro lado, meu “interesse” em ouvi-lo todas as noites, na rotina
da janta que compartilhávamos, instigava Quincas a contar mais. E o conhecimento que
fui tecendo nesta relação passou a me valer junto a outros senhores buraqueiros:
quando, em visita, eu lhes mostrava conhecer os elos que os aproximavam daqueles de
quem eu me aproximara no Calengue, os velhos costumavam abrir um sorriso
automático, animando-se a puxar outros causos desses laços.
O empenho narrativo de Quincas diante de meu gravador dava pistas de
seu gosto por sua posição de “conhecedor dos causos antigos”. Seu relato inicia-se com
as coordenadas do “povo”, reunindo as qualidades conhecidas e reconhecidas entre
irmãs e filhas para se chegar à “mistura” do “sangue” constitutivo de um “povo” cujos
traços Quincas soube aproximar de sua própria rede de conhecimento. Pergunte a
Quincas que ele sabe contar o causo direito, dizia-me Titia quase sempre que eu lhe
perguntava sobre um parente falecido. De fato, Quincas lembra de seus parentes com
precisão singular. O antigo namoro com uma das personagens, por exemplo, esfuziava-
se como conclusão de um ‘dado’ (a beleza) a respeito daquele povo: Era uma mulher
bonita, moço, a finada Cotinha! A Pidu - a que casou com meu tio, essa viúva - ela era loirona do
cabelo bom. E a velha Cotinha era bem clara, bonita. Igual à mãe da Diva, a Idelina. Uma mulher
bonita, a Idelina! Idelina é, como no dizer/É do meu tempo. Assim/Parece que é mais nova do
que eu um ano ou dois. E eu não namorei com a Idelina quando era solteiro?! Namorei!
Com/com a mãe da Diva! E então Quincas aproxima-se do causo, legitimando o que conta
à medida que mostra “conhecimento” pessoal sobre a gente de quem fala. No esmero
em descrever relações pelo exercício da memória sobre sua trajetória pessoal, cria
ocasião para as reações da conversa. Tana e Rosa participavam com aceites ou
discordâncias enquanto eu localizava os causos na genealogia que havia desenhado.
Quincas então voltou a olhar para o horizonte imaginário e prosseguiu com o causo, Aí,
o que eu queria contar...
Quincas era vivo quando o Calengue ainda era ralo de casas e a
Inhuma, ao contrário, é que tinha um bando de gente. É “da família dos Pereira Gomes”,
como a maioria dos Buraqueiros, reunindo em seu “sangue” as duas principais
“famílias” de sua “terra”. Nisto, Quincas também tem prerrogativa sobre o
“conhecimento” de seu povo; é sabedor dos causos que lhe fizeram história, como
quando da chegada dos gaúchos, dos primeiros carros que se viu por ali, da estrada que
118
se abriu depois destes (cf. capítulo 3). Antes, disto, Quincas conta do cerradão - para
mais de légua sem ver rastro de gente! - por onde ele passava montado, sofrido, levando
gado ou carregando mantimento mod’trocar por café e tecido de fazer roupa o resto
era tudo tirado do trabalho ni roça. Era duro nos tempos de primeiro. Depois dos
gaúchos é que tudo demudou; as primeiras famílias de gaúchos também sofreram, diz
Quincas ao lembrar dos quantos tempos trabalhara para as carvoarias e firmas que
eles empenhavam, longe dos Buracos.
No repertório que credibilidade a seu tulo de “bom proseador”, as relações
conhecidas por parenteza e idade são acrescidas da “experiência” de Quincas na estrada.
Quem não caminha não conhece, diz o dizer, e Quincas se arvora conhecedor do
“mundo aí fora”. Ele tem experiência, tem conhecimento..., reconhecem os outros.
Mesmo com a chegada dos aparelhos televisores nos Buracos, ainda é comum a
presença de alguns mais jovens à cozinha de Dona Rosa, logo após a hora da janta, para
contar causo mais o tio, ouvir dele os causos dos antigos, dos quais riem e apreendem.
Contudo, é notável o quanto estas chegadas noturnas se reduziram ao longo dos três
anos em que fiz pesquisa de campo, intervalo de tempo em que se verificaram os efeitos
da chegada da energia elétrica: acompanhei a chegada do primeiro aparelho televisor ao
Calengue, durante meus últimos meses nos Buracos, todas as casas ali, com exceção de
Titia, já possuíam televisão. Certa vez, já em minha última estada, a chuva torrencial fez
com que os buraqueiros desligassem seus aparelhos elétricos mod’ não “puxar” os raios,
e experimentamos a curiosa sensação de voltar no tempo. O que então aconteceu na
cozinha de Rosa foi o mesmo das outras casas, conforme ouviria dos meus vizinhos no
dia seguinte: o povo tudo proseou bom! Quincas mostrava sua satisfação com a ocasião
emendando animadamente um causo no outro, e Rosa aproveitou a brasa que então se
demorava no fogão para fazer brevidade que comemos ainda quente, eu e os rapazes
que de primeiro vinham ali todas as noites, mas que agora, quase nunca. E quando
vinham era para uma bênção rápida ao tio na cozinha e logo iam para “o pé da
televisão”, onde permaneciam. A prosa agora era orientada pelos programas enquanto
os assistiam.
Quincas relutou em aceitar que seu filho Paulo comprasse a TV e a parabólica
para botar em casa. Como sua irmã Titia, não gosta da barulhada do aparelho. E hoje,
com exceção das noites em que chega alguém de fora para pousar e lhe o prazer da
prosa na cozinha, Quincas dorme logo após o Jornal Nacional, que às vezes ouve,
colando o ouvido à tv, posto que enxergar, não enxerga. Vai para cama quando os
119
demais se aboletam para assistir “a novela das nove”, e quando tarda a dormir fica na
cozinha sozinho e em silêncio. Durante os dias, a solidão silenciosa de Quincas é entre a
área e a cozinha, para onde arrasta o chinelo vagarosamente mod’pegar a palha do
milho e enrolar o cigarro. Pita o dia inteiro, sozinho até que seja interrompido pelos
transeuntes rotineiros, em geral seus sobrinhos e primos, que param ali por alguns
minutos e o informam sobre suas próprias caminhadas, em geral relacionadas às de
outros, que ali também se informavam. Atualizam o velho sobre os últimos ocorridos e
este, por ser “viajado”, palpites rigorosos sobre os percursos a serem feitos. Atrás de
gado sumido, de se procurar perto da Grota D’água Ruim, é para onde o gado que
vem da Manda-Saia costuma fugir; e tem que cuidar aquela veredinha acolá, areia mole
depois da chuva, boa para a vaca atolar. Dos palpites às vezes Quincas consegue fazer
surgir um causo de interesse, de quando era moço e trabalhador, quando foi que perdeu
o cálculo da viagem e parou no meio do cerrado, aquela sede, deitado como que morto,
no dizer do outro, dizendo, Pode comer, onça! Se o causo é bom, outros passantes
param e se aproximam em silêncio; apenas pedem bênção ao tio Quincas e se
acomodam, chegam ouvindo.
2.2 – Saber a pinta pelo sangue (misturas)
Quincas fez o traçado ao seu modo, de acordo com suas próprias
relações (“conhecimentos”), e por elas conduziu aquela conversa registrada na cozinha.
À medida que eu perguntava sobre o grau de parenteza” do povo dos Buracos, ele
deduzia sobre minha preocupação central: quem afinal não é “aparentado” nos Buracos?
Buscando responder a esta pergunta, que não me lembro ter verbalizado, ou ao menos
não nesses termos, Quincas narrou-me seu pensamento do dia anterior àquela prosa,
dizendo ter ido para a cama com a questão. Ó, eu... uma família de gente... Ontem fui deitar
ali na cama [ e pensei:] Bandeira... Uma família aqui que não é parente nossa nos Buracos...
No causo é Bandeira. Mas aí, no causo, eu falo assim... Porque tem os Bandeira ali tudo,
[as famílias com descendentes de Bandeira]. Mas eu volto atrás. Porque é o
Bandeira que não é parente nosso dos Buracos! A mulher dele já é parente, a Lucrécia.
Eu - Ela é parente?
Quincas É! É parente! Nossa! Pois veja bem, ó... Mateus... Não... Quer ver como é
que começa o trem... É assim... Penso assim, Zezo não é parente... É parente! A Lucrécia é mãe
de Zezo. E a mãe de Lucrécia, filha de Antônia de Mateus. É dos pintados. E o Mateus Pintado
120
era... Não sei como é o trem direito, mas ele era primo carnal da minha mãe! Acho que é primo
carnal, porque ele é dos pintados. [...]
Eu – Tudo que é pintado é parente?
Quincas – Parente! É dos Gomes.
Rosa - Tudo o que é pintado é Gomes![risos].
Independente do tom de pele ou cabelo, os “pintados” têm na pele manchas
brancas por falta de pigmentação; são “de nascença” e não aumentam ao longo da vida;
algumas podem ao contrário ir-se tornando menos visíveis com o passar da idade,
aproximando-se do tom de cor da pele pigmentada e chegando quase desaparecer
39
. As
pintas ocorrem em geral na testa, tomando parte do cabelo; nas pernas, à altura do
joelho; ou na barriga, formando desenhos em que às vezes os buraqueiros reconhecem o
mapa do Brasil. Algumas pessoas são consideradas desafortunadas por terem nascido
com as pintas em todos estes locais do corpo, outras carregam apenas um “rastro” de
pinta, uma “manchinha” que mal se pode enxergar. E os que, ao nascer, ganharam
uma única pinta no topo da testa, sem ocupar o rosto mas sim o cabelo, formando-lhe
uma mecha branca, admirada. Esta forma de pinta é chamada “estrela” e considerada
extremamente bonita. Dentre os antigos buraqueiros, existem alguns muito
mencionados cujo sobrenome “Estrela” é em geral devido a este sinal, e hoje quando se
conta sobre eles nem sempre se tem notícia se tal é um atributo físico ou uma espécie de
“nome de família” (herdado, como os “Bandeira”)
40
. A “pinta” é uma marca da
“parenteza” (“às vezes eu vejo um pintado na televisão e falo, olha um parente meu”)
e também da “família”, como em um antigo causo em que o filho nasceu “pintado” sem
que seu pai ou sua mãe fossem pintados. Tratava-se do resultado de uma relação
extraconjugal, concluíram os conhecidos do casal, pois que, para se nascer “pintado”, é
necessário, antes, que um dos genitores o seja. De outro lado, seguramente uma pessoa
não pintada cujo pai ou mãe por sua vez o seja terá normalmente alguns pintados entre
seus irmãos. Igualmente, um não-pintado, ao se casar com alguém que tenha pinta, terá
seguramente filhos pintados. Uma pessoa pintada, mesmo que tenha apenas uma
39
As pintas têm a aparência do vitiligo e tal semelhança gera alguns mal-entendidos. Mas é importante
para os buraqueiros o fato de que não se trata de uma doença, mas de uma “mancha de nascença”, pois
“quem vem de fora, às vezes pensa...”.
40
A Fazenda dos Buracos foi comprada por João Gomes de um algo lendário homem conhecido como
Martim Estrela. Os buraqueiros a quem perguntei não souberam me responder se o “estrela” do nome
indicava algum parentesco com o “povo pintado”, isto é, o “povo dos Buracos”. Dizem-me não saber de
qualquer nculo sanguíneo. Por outro lado, dizem que o nome “Estrela” indica decerto a pinta
característica, no alto da testa.
121
mancha imperceptível, pode ter filhos “muito pintados” (“pintados que só a vaca”). Mas
é possível que nenhum deles nasça com pintas. Vai da sorte, dizem os buraqueiros. Por
outro lado, quando o pai e também a mãe possuem pintas no corpo, sejam elas “fracas”
ou “fortes”, é esperado que seus filhos nasçam com muitas pintas, pois “puxam dos dois
lados”; “o sangue apura”.
Mesmo que não se tenha pinta alguma, ter irmãos pintados implica pertencer ao
“povo dos pintados”. Sobre os que se casam com um pintado, também se diz (mesmo
que em tom de brincadeira) que “entrou para o povo dos pintados”; afinal, “formar
família” define-se pela aquisição de cônjuge e filhos e, no interior de uma “família”, as
pessoas se confundem umas às outras. Conforme dissera Quincas, uma família de gente
[...] Bandeira... [...] No causo é Bandeira. A distinção entre Bandeira/“família”,
e Bandeira/“pessoa” não aparece até que o narrador nos especifique: no causo, eu falo
assim... Porque tem os Bandeira ali tudo, . [as duas famílias com descendentes de
Bandeira]. Mas eu volto atrás. Porque é o Bandeira que não é parente nosso dos
Buracos! A mulher dele é parente, a Lucrécia. A coincidência entre a pessoa e sua família
é visibilizada quando, por contraste (Mas eu volto atrás [...] é o Bandeira), Quincas
separa “Bandeirad’ “os Bandeira”. Penso assim, Zezo não é parente... É parente! O filho
do casal é “parente” por via da mãe, Lucrécia, mas sua “família” a rigor se define pelo
pai, Bandeira, cuja ascendência determinou a localização tanto física quanto no que
se refere à posição relacional dos Bandeira no que se entende por “povo dos Buracos”.
Isto não significa que a linhagem materna seja ignorada, mas é preciso um trabalho de
elaboração maior para que ela seja considerada. Em suma, Lucrécia “toca parenteza”
com “os Gomes”, mas por ser da família d’ “os Bandeira”, sua possibilidade de inclusão
não é evidente; é preciso “voltar atrás” para dar-se conta que “os Bandeira tudo é
parente”, o Bandeira não é, mas se enredou na rede de parenteza ao ter formado
família.
Nos Buracos é tudo primo, tudo parente, dizem-me os buraqueiros, como que
indicando uma ‘marca identitária’. Mesmo os que a gente acha que não é, se for ver
bem, acaba encontrando uma parenteza, refletem frequentemente. Neste exercício de
buscar parenteza, viria enfim descobrir que Lucrécia é “prima” de seu marido Zé
Bandeira, de modo que seguindo o raciocínio de Quincas mas chegando em um ponto
distante do seu Bandeira também toca parenteza com os Gomes. Foi Ana-de-Juca,
irmã de Bandeira, quem me contou. Lucrécia é “da gente minha”, disse, usando em
seguida o termo de parentesco genérico: é nossa “prima”, disse. O pai de Ana é irmão
122
da avó de Lucrecia. Ah, mas então é longe!, refutou alguém, ao que Ana-de-Juca
replicou, Mas é tudo um sangue só!
O gosto buraqueiro em ir tecendo associações pessoais e familiares a partir das
relações sanguíneas trazia novas informações a cada vez que eu “puxava” o assunto.
Diante do que viam em mim como um estranho comportamento - “estudar bestando nas
casas” - pareciam encontrar, em meu interesse sobre a “parenteza”, uma intenção mais
justificável: o que eu chamava ‘estudo’ eles podiam então traduzir por “conhecimento
do povo”. Se este envolvia “experiência”, era certo que eu deveria ouvir os causos do
“povo antigo”, e então me recomendavam conversar com os mais velhos. Quanto mais
eu caminhava e conhecia gente, mais eu aprendia sobre o povo, conforme eles
ressaltavam ao passar do meu tempo de estadia ali. Afinal, este “conhecimento” que eu
acumulava era, por assim dizer, pessoal, no sentido de que se compunha por um
conjunto de perspectivas particulares. Noutras palavras, o que uma determinada pessoa
conhece é em certo sentido único, singular, posto que baseado em sua própria
“caminhada”. A noção buraqueira de “experiência” aproxima-se assim do se imaginou a
respeito de uma ‘antropologia da experiência’: ‘tem uma dimensão temporal explícita
na medida em que nós atravessamos (go through’) e passamos por (‘live through’) uma
experiência, que então se torna auto-referente no gesto de contar (‘in the telling’)’
(Bruner, 1986: 7). Isto não significa, porém, que se trate aqui de um “conhecimento”
imaginado como ‘subjetivo’, mas antes que a prática de contar causos se constitui em
uma troca de ‘perspectivas’, em uma produção de conhecimento necessariamente
relacional. Cabe por notar que o “povo” que eu chamo aqui de “buraqueiro” tem uma
composição particular não porque ‘relativa’, mas, ao contrário, porque integral’; está
determinada pelas referências de tempo e espaço que integram toda experiência possível
no mundo que descrevo. O fato de que este conhecimento está necessariamente colado à
minha condição de moradora do Calengue não é um problema. Se não fosse esta
posição, seria outra, o que não invalida uma nem outra; conforme me ensinam os
buraqueiros, trata-se apenas de fornecer ao interlocutor as ‘evidências’ de que o que se
conta é “verdade”. Tratando de alinhar os causos buraqueiros às narrativas etnográficas,
poderíamos aqui perguntar, a exemplo de Csordas (2004: 473-480): em que momento
um ‘dado’ é pelos buraqueiros transformado em ‘evidência’? Ou, para nos remetermos a
Latour (2005): onde os buraqueiros coletam os ‘matters of fatcs’ que compõem a
descrição de seu “povo” ?
123
Na antropologia, qualquer ‘dado’ observado na experiência de campo pode a
rigor ser usado como ‘evidência’, uma vez que seja posto em relação com outros
‘dados’ que, em conjunto, criem significados específicos. Nos causos dos Buracos, as
composições não parecem se preocupar em dar ‘significado’ aos objetos narrados, mas
sim em lhes dar um “sentido”, isto é, um “rumo”. O que os buraqueiros supunham
quando me colocavam para conversar com os antigos era que o “conhecimento” sobre
seu “povo” exige ‘dados’ sobre movimentos humanos originados no passado, formando
uma seqüência temporal. Um “povo”, assim como uma “pessoa”, é conhecido por seus
deslocamentos ou, mais precisamente, pelos eventos que geram tais deslocamentos, a
saber, o nascimento, o casamento, a geração de filhos, a morte
41
. Estes eram os dados
que me forneciam ao contar, a um tempo, sobre o “povo” e as “pessoas”, sobre os
“povos” e as “famílias”. A transição para a ‘composição’ de um ou outro desses termos
era evidenciada nas narrativas por tais acontecimentos, nos quais, de acordo com os
buraqueiros, podemos identificar “a arte da sorte”. O sangue de uma única pessoa
contém o traçado desta “sorte”, isto é, do “destino” que a fez existir tal qual se pode
atestar no presente. Assim, a maneira com que se atualizarão, no relato, os traçados do
“sangue”, determinará se o termo “família” se refere aos moradores de uma casa ou a
todo o “povo aparentado”; e se o termo “povo” se refere a um conjunto de pessoas com
mesmo sobrenome, à totalidade das casas daquela terra buraqueira ou mesmo ao difuso
arranjo de gente que inclui tanto moradores de “Minas” quanto migrantes de “cidade
grande”. Se tais termos recusam-se à definição de uma unidade fixa, é porque a
evidência de sua existência encontra-se na descrição de um movimento que podemos
traduzir por “sorte”. Concretamente, um povo ou pessoa depende, para existir, dos
constantes rearranjos resultantes disto que ora se chama “acaso”, ora “destino”, e que se
evidencia nos acontecimentos que geram uniões (como o casamento) e separações
(como a morte). Sejam eles descritos por deslocamentos na terra (quando se muda de
casa ao se casar, por exemplo); ou deslocamentos da terra (quando, ao morrer, se “faz
mudança para o pais dos pés juntos”).
A expressão “de-Fulano” é um bom exemplo de como isto que chamei
‘evidência’ é ‘construído’ pelos buraqueiros. Trata-se de uma fórmula usada tanto para
uma relação de ‘filiação’ [nome do filho(a)-“de”-nome do pai ou, mais raramente, da
41
Com preocupações teóricas distintas da que trago aqui, Chayanov (1966) descreve estes
acontecimentos a um tempo pessoais e familiares ao acionar a noção de ‘diferenciação demográfica’,
buscando contornos para os arranjos possíveis presentes em uma mesma ‘família’.
124
mãe] quanto de ‘aliança’ [nome da esposa-“de”-nome do marido]. Por extensão, pode se
entender a expressão “povo de Fulano”, que envolve ambos os modos relacionais,
deslindando-se em proximidades relativas ao sangue e à terra. Estas aproximações
precisam entretanto ser evidenciadas, o que se faz descrevendo-as através da seqüência
dos acontecimentos da sorte (nascimentos, casamentos e mortes, reunidos grosso modo
sob o tema do amor e da doença). Neste sentido, é significativo que, nos causos, a
identificação “povo de Fulano” se sobreponha ao “nome de família” (‘sobrenome’). O
primeiro, formado por relações de aliança ou de filiação (em geral por linhagem
paterna) muitas vezes acaba por eclipsar o segundo. Assim, a ocorrência das “pintas” é
como a prova teste deste ‘processo do parentesco’ decorrido da prática de “formar
família”, geradora de “pessoas” e “povos”. Se elas podem ou não aparecer em um filho
de pais pintados, é porque são uma ‘evidência’ não no sentido de serem ‘visíveis’, mas
justamente por expressarem este ecplipsamento próprio à gica do sangue, ao
movimento da sorte a que ele está sujeito. Às vezes o traço do sangue se faz visível, às
vezes não. A “sorte” [ou “acaso”] de “puxar a pinta do sangue” [paterno ou materno] é
neste sentido semelhante à sorte de à “sorte” [ou “destino”] de, no casamento, manter ou
não a descendência do nome ou da pinta.
As “pintas” e os “nomes de família”, estando ou não explícitos em uma
determinada pessoa, seguem sendo ‘traços’ de uma relação de parentesco, e tornam a
‘existir’ por meio do relato em que se traça a cadeia dos laços buraqueiros, à medida
que se buscam os pontos onde se “toca parenteza”. A busca retroativa leva a algum
ponto “atrás” no qual encontramos a evidência d’ “os pintados” e d’“os Gomes”, isto é,
a pinta ou o nome de família, mesmo que estes, nas “misturas” efetuadas pelos
casamentos, tenham ficado “fracos”. Inúmeras vezes, quando perguntei sobre a relação
de parentesco entre determinadas pessoas, o traçado de seu vínculo gerava avaliações
sobre distâncias e proximidades envolvendo outras pessoas, até se chegar a inter-
relações dos diversos povos dos Buracos. Constantemente, a descrição do “povo dos
Buracos” isto é, a definição de suas “famílias”/“povos” e os respectivos locais de
procedência e moradia atual - surgia diante de mim por meio dos causos que puxavam
comparações sobre o que deu a “mistura” de “sangue”, de famílias”. Igual o
Pererinha, pintado que só a vaca! Os filhos dele, pelo menos os que eu conheço, é tudo pintado.
As filhas dele eu acho que não, mas o Pererinha... misturou. Os Pereira é do lado
dos Gomes, que é pintado, mas já assina só por Pereira, que é parente de Dona Alice, é parente
do meu pai! puxou dois lados [...] parente meu por duas partes, da minha mãe e do meu pai,
125
que o meu pai mais minha mãe era primo um do outro. E o Zé Pererinha está nesse meio aí, que
é parente da minha mãe e parente do meu pai, e aí vai gente... Netos pra lá, ó, tudo parente.
Mais tarde, ainda naquela conversa gravada, Quincas retomaria o raciocínio para
afirmar que “o povo mineiro da região” é tudo um pouco “misturado”, “familiado”,
“aparentado”. É... por exemplo (...), no causo, os Buracos. De gente que não é familiado,
aparentado, é o Bandeira mesmo, mais os irmãos dele [que hoje partiram dos Buracos
para cidades ou outras “comunidades” da região]. Hoje está a [irmã] Ana de Juca. [...]
Mas eu tava pensando que a Lucrécia não era parente... É sim. Pois é da família dos... que aí já
não assina pelos Gomes. Você entende, né. Vai ficando fraco já. Pega o sobrenome de pai e
mãe, né... Mas é da família.
– Olhando lá em cima, junta...
É, é igual documento de terra pra saber quem é o proprietário: procedência, é da família
[risos].
Seguindo o raciocínio de Quincas, eu ressaltaria, contudo, que a “procedência”
do “sangue” buraqueiro parece-se antes com a procedência da terra do “posseiro” que,
ao contrário do “proprietário”, não possui “documento de terra”. Não pretendo com isto
contradizer meu ‘informante’, o que se passa nos Buracos é que, sobre um, tanto quanto
sobre o outro, a palavra intenciona tratamento igual, e a posse, como o sangue, depende
do processo de mistura e convivência em se constitui a “parenteza” tanto quanto a
história de ocupação de uma terra. A procedência do proprietário, por outro lado, perde-
se ao longo das misturas do sangue, e como o do “documento de terra” pode estar
perdido em um cartório longínquo e inacessível. Não se trata então de duas alternativas
mutuamente exclusivas; a prosa sobre a história do povo buraqueiro, ao reconstituir os
elos de sangue e formações de famílias, aciona justamente os dois caminhos de
conhecimento sobre as procedências pessoais e familiares. Nos Buracos, “posseiro” e
“proprietário” não costumam ser verbalmente distinguidos não porque sejam
confundidos, ao contrário. Os buraqueiros têm sobre isto um conhecimento apurado;
conquanto admitam suspeitar das intenções de alguém de fora, como eu, que se
interesse pelo assunto.
Diversamente ao tema da parenteza, a questão da propriedade, ou do “direito”,
não rende quando pergunto sobre causos que possam ‘analisar relações’ ligadas à
história de uma dada “terra”, gerando inclusive um desconforto recorrente (cf. capítulo
3). Mas desponta quando se fala dos movimentos pessoais na constituição de famílias
126
que se estabelecem aqui ou ali
42
. Assim, sem alarde, o tema do “documento”, da “posse”
e - o que se sobrepõe a esses dois - do “direito” da terra surge quando se deslindam
causos de casamento envolvendo deslocamentos que fogem à “lei” buraqueira, como o
de um genro que foi morar na terra do sogro ou de uma mulher que voltou com o
marido aos Buracos, para morarem na “herança” dela (lote de terra que é um pedaço do
antigo lote de seu pai). Herdar uma terra, em princípio, nada tem a ver com as regras do
documento de terra, mas sim com a prerrogativa do primeiro filho ou filha a casar e se
manter após a união, “de junto dos pais”. Perguntada sobre a questão da herança, Dona
Zefa-Carneira argüiu sobre essas ponderações do “direito”, fundado basicamente na
condição de que os filhos se mantenham na terra dos pais. Ela foi categórica sobre os
filhos que migram, por exemplo, ao afirmar que, seja qual a sua idade ou a idade em que
casaram, eles não têm direito de “posse” (neste caso, o mesmo que “herança”). Pela
mesma lógica, as filhas mulheres não têm “direito” porque, ao se casarem, partem
para a terra da família do marido. Aquelas que se tornam “mães solteiras” permanecem
morando com os pais e acabam ganhando seu “pedacinho de terra”, seu “lotezinho”
43
.
À medida que ia tecendo tais considerações, entretanto, Dona Zefa ponderava
repetidamente sobre a orientação que a Ruralminas têm dado às famílias”: “herança é
para aqueles que têm documento ou posse”. Esta frase era repetida por ela para explicar
que o órgão tem tentado regularizar os documentos de propriedade e de posse, mas
encontram enorme dificuldade por não encontrarem os documentos originais das terras.
Ali, a transmissão da terra, afinal, nunca se baseou em um “direito” prévio que
necessitasse de comprovação oficial, ela é ‘regulada’ pelas contingências de cada
história familiar. Por outro lado, a chamada ‘terra devoluta’ é pelos buraqueiros
chamada “terra ausente”, o que indica outra “lei” entendida como certa até que algum
representante do Estado venha interferir: quem cercar uma terra ausente, isto é “sem
dono”, tem “direito” sobre ela.
Quanto a questão dos filhos, portanto, a “lei” buraqueira aproxima-se
parcialmente do que descreve Bourdieu (2002: 23) sobre o povo de Béarn: ‘quando o
herdeiro ou a herdeira deixam a casa e a terra, perdem seu direito de primogênitos
porque este é inseparável de seu exercício, isto é, da direção efetiva de seu domínio’.
42
As linhagens, como os “documentos”, funcionam como princípios de associação, formas relacionais
que articulam variações, rearranjos constantes, naquilo que ‘nós’ muitas vezes chamamos ‘estrutura
social’. Estas variações talvez possam ser pensadas nos termo dos diferentes ‘planos’ observados por
Geertz (1967) nas maneiras com que se pode identificar um ‘povo’ balinês.
43
A entrevista com Dona Zefa foi realizada por Damiana Campos.
127
Mas se ali o autor vincula o ‘direito’ do filho ao fato de ser ‘primogênito’, esta
associação perde o sentido nos Buracos. Também diversamente ao observado por
Bourdieu, não se pode nos Buracos pensar em uma ‘regra’ (ou “lei”) a presidir as trocas
matrimoniais com vistas a garantir a manutenção da integridade do patrimônio familiar.
Existe uma evidente preocupação com o tamanho da terra disponibilizada ao novo casal
buraqueiro e sua capacidade produtiva, mas isto não chega a ‘reger’ os movimentos do
mesmo. Os arranjos e alternativas encontrados são inúmeros. Uma moça do Três
Passagens que se casou com um rapaz do Calengue, por exemplo, veio morar ao lado de
seu sogro, onde, pela densidade demográfica, pouco resta de terra cultivável. Ocorre
então que o casal se associa ao “povo” da jovem esposa no plantio da terra que este
último arrenda em uma área mais afastada.
Em geral, a prerrogativa da herança de terra nos Buracos acompanha a idade,
pois se imagina que os mais velhos se casem antes. E é ‘natural’ que os que
permanecem perto da família sejam homens, uma vez que “a mulher é quem deve
acompanhar o marido”, diz o povo buraqueiro. “É a lei”, no dizer. Isto significa antes de
tudo que ela deve ir morar na terra da família do cônjuge, o que tem conseqüências para
a configuração familiar expressa e atualizada na ocupação do espaço. Da mesma forma
que as “pintas” e os “nomes de família” ocultam-se à medida dos casamentos, isto é, das
“misturas” entre cônjuges, a distribuição das casas visibiliza apenas uma parte da
história das “famílias”. Sendo idealmente virilocal, o povo buraqueiro não costuma ter,
na distribuição de suas casas, a imagem dos rastros do “sangue” “puxado” por ‘linha’
materna (“o lado da mãe”; “a parte da mãe”), porém, note-se que as pessoas ali não
sabem como apreciam contar sobre os vínculos implicados na herança do “sangue”.
Este funciona então como elemento retórico e, ao mesmo tempo, a justificativa dos
aspectos diferenciadores de cada pessoa. Você tem no seu sangue é Fulano de Tal,
Beltrano de Tal, Cicrano, ouvi um homem dizer ao amigo, enumerando-se neste a lista
de seus parentes mais conhecidos. Em tom jocoso, concluiu, Não tem uma pessoa que
presta nesse teu sangue! Então não tem jeito de você prestar! É da raça, mesmo!
Hahahá!
44
À ocorrência de entreveros pessoais constantes, vê-se a atuação do sangue (“não
deu bem”; “não combinou”). Da mesma forma, sobre as proximidades afetivas, explica-
se: nosso sangue “encontra”, “combina”; meu sangue “dá bem” com o de minha prima;
44
Sobre o sangue como lugar de elaboração sobre os aspectos ‘físicos’ e ‘morais’ da ‘pessoa’ ver Duarte,
1986.
128
o menino de Eva tem o “sanguinho bom”; a sogra tem o “sangue bom” que nem parece
mãe de quem é, diz-se para se dizer do querer-bem (e do mal-querer) que se sente. Deste
modo, já que os casamentos resultam geralmente do acontecimento do amor, é
compreensível que ocorram freqüentemente entre vizinhos, primos ou com o(a) irmã(o)
de um(a) cunhado(a)s (podendo uma mesma pessoa cumprir todas estas posições).
Deve-se, entretanto, atentar para outro rumo - menos “controlado” - que a noção de
“sangue” à nossa análise. Se o sangue é índice de “querer-bem” e “malquerença”,
não se trata de uma sobredeterminação exclusiva da “raça” (=filiação) ou da “sorte”;
estes são dois dispositivos de explicação que participam de forma equânime, embora
diversa, do que se como justificativa para o acontecimento de um dado nascimento,
de uma dada pessoa. De um lado, na noção de sangue uma espécie de “lei” onde a
intensidade da circulação de prosa e comida é diretamente proporcional à semelhança
sanguínea (filho(a) e irmã(o) é o que tem sangue mais parecido, depois vêm os
primo(a)s, explicam-me os buraqueiros). De outro, no entanto, o sangue nem sempre
“encontra” ou “dá bem” com um aparentado seu: a “sorte” de “puxar” o sangue de um
jeito ou de outro é tão imprevista quanto o “destino de Deus”, e por esta ocasião
singular, completamente pessoal, se caracteriza o nascimento de todo ser. Assim, a sorte
de fazer uma amizade, como a de ter um bom casamento, a de ter muitos filhos e a de
ter filhos com saúde indicam decerto características marcadas no sangue, entendem os
buraqueiros, mas não necessariamente são traços encerrados em uma genealogia
familiar prescritível. O nascimento de um filho, afinal, não é um acontecimento que se
deva exclusivamente ao encontro de seus pais. As estórias buraqueiras, brigas e amores
narrados segundo a gica do sangue, mostram como singularidades pessoais e
familiares correspondem não apenas à filiação. Apontam para contingências que,
interrompendo seqüências cronológicas (narradas através do relato da produção de
filhos), dão também pistas sobre o movimento da sorte imprevista de cada um. Sobre
isto falam os “causos” buraqueiros, apresentando-nos assim sua História e seu modo.
Para evitarem o risco de se tornarem “prosa ruim”, meus amigos dos Buracos esforçam-
se em diferenciar, nos causos que contam, os acontecimentos da “sorte” e as deduções
da “raça” [=filiação]. O cuidado em não sobrecarregar apenas uma entre estas duas
forças determinantes - díspares mas de pesos equivalentes dá-lhes a possibilidade de,
pela palavra, instigar a risada e o debate entre seus ouvintes. Por este movimento da
palavra, as pessoas se criam. A gente nem vê o tempo passar!, dizem eles sobre o apreço
pela conversa. Tal movimento flui ‘naturalmente’, afinal, “contar causo” é próprio do
129
“modo” buraqueiro. Por este gosto, os mais velhos ganham a autoridade de saber contar,
têm mais “conhecimentos”, mais relações.
Tudo o que é pintado é parente; tudo o que é parente é Gomes. Se o sobrenome e
a pinta podem desaparecer ao longo de uma linha de descendência, mantêm-se contudo
presentes na informação do laço - “puxado” ou não - de cada um dos “lados”. A
redescoberta de vínculos que se tornaram “fracos” possibilita a afirmação genérica, Tudo
o que é pintado é Gomes! E se ri. Como se, ao resgatar o nome e a pinta pela história da
“procedência”, se refizessem rastros que se imaginavam apagados. Tal qual ocorre em
uma longa caminhada, da “lonjura” de uma “parenteza” espera-se que os rastros se
apaguem. Causa graça imaginá-los refeitos. A amplitude da rede de relações
consangüíneas, imaginada em suas últimas conseqüências, inclui gente que não se
imaginava próxima; aproxima pessoas que via de regra se julgam distantes. Como se os
antigos parentes, mesmo os “defuntos”, ainda estivessem por ali, atualizando seus laços
à medida que se movimentassem pelas casas de seus “familiados” de hoje.
Os pintados são muitos, espalham-se por outros povos da região e mesmo do
país, conforme atestam por exemplo os que contam terem visto um “pintado” na
televisão. Mas a afirmação “todo pintado é parente” parece ser mais uma idéia abstrata
do que uma análise que se quer conseqüente, pois os buraqueiros não se preocupam em
traçar vínculos ou estabelecer relações com pintados que já não lhe sejam próximos pelo
“costume”. Neste sentido, as pintas funcionam como evidência do parentesco que eles já
“conhecem” de antemão, mas existem enquanto tal quando contrastadas ao dado que
se quer observar, sendo constantemente fonte de debate sobre o que, no “sangue”, se
pode afirmar ter sido “puxado”. Tem gente que diz que o sangue faz, contou-me
alguém, que a pessoa puxa da família, mas não é não, retrucou. Se a criança nascer
pintada é porque um dos pais tem a pinta, às vezes a pessoa não sabe, porque o pai ou a
mãe tinha uma manchinha quando era pequeno e sumiu... Mas para o filho nascer
pintado sempre tem que o pai ou a mãe ter a pinta, nem que seja miuchinha.
A idéia de que o “sangue faz”, isto é, “puxa” traços sabe-se de onde,
distinguia-se ali da noção da “pinta” herdada diretamente dos genitores (como ocorre
com a “terra”, por sinal). Por outro lado, como o que se herda do pai ou da mãe também
se “puxa no sangue”, a ocorrência ou não da pinta dos filhos, bem como a forma que ela
assume em cada corpo, será atribuída ao acaso. Neste, não existe sequer uma análise
combinatória, pois um casal em que um dos pares é pintado pode gerar uma prole
extremamente variável no que se refere ao conjunto das formas das manchas corporais.
130
Neste sentido, é importante notar que os pintados não são necessariamente feios, ao
contrário, os que têm a sorte de ter pintas bonitas. Assim, a idéia de que, ao se casar
com um pintado, a pessoa “entra para os pintados” em nada se assemelha ao que
costumamos identificar sob a rubrica do estigma’. A marca é antes um sinal do
movimento de um povo, de sua “sorte”.
Rica é casada com um pintado e diz que teve sorte: dos seus filhos, alguns
nasceram pintados, mas nenhum “pintado igual a vaca”; os filhos de Fulano... Deus
me perdoe..., comenta ela. O “povo dos Buracos” pode ser metaforicamente chamado
“povo dos pintados”. E dentre o povo dos Buracos, os pintados não constituem
absolutamente qualquer espécie de ‘subgrupo’, pois a sorte lhes pintas tão diferentes
entre si que cada pessoa terá, associada à sua pinta, uma imagem particular. Em
assuntos sobre a incerteza da escolha de um homem para casar, por exemplo, assinala-se
freqüentemente, Ninguém não nasce com pinta mostrando se é bom... A pinta, embora
possa servir na nomeação genérica ao “povo dos pintados”, não parece fazer deste termo
mais do que uma atribuição jocosa e, neste sentido, extensível a todo o “povo dos
Buracos”, incluindo os não pintados. O que a pinta indica é apenas o acaso
condicionado por uma história necessariamente contingente de matrimônio e filiação.
Por esta característica irredutível à lógica da herança familiar, sendo-lhe, contudo,
inextricável, as “pintas” nos ajudam a definir uma imagem buraqueira do ‘parentesco’,
esta cadeia temporal que, nos “causos dos antigos”, ganha a forma dos elos entre
pessoas que “tocam parenteza”.
Tal descrição volta-se para os movimentos humanos no interior da terra
buraqueira ou para fora dela; movimentos resultantes dos casamentos e de suas
respectivas casas, conforme vimos (capítulo 1). Quem casa quer casa; quem quer casa
quer casar, diz o dizer. “Montar casa”, ou “formar família” é gerar filhos, e nisto reside
o interesse de quem me conta sobre a parenteza de seu povo: a ocorrência de filhos
“tolos” e dos que nascem com outros “problemas de nascença” é tida como resultado de
“misturas” que não “deram bem”, mas também é resultado da sorte. Entende-se como
determinada pela proximidade sanguínea, mas também por um acaso desafortunado,
como o de quem “puxa” uma pinta feia. A possibilidade de uma criança ter nascido
“problemada” devido à mistura” de sangue, isto é, à combinação de progenitores com
substâncias semelhantes (parentes “chegados”) está sempre em aberto. Rica e Anésia,
por exemplo, são duas irmãs cujos maridos são irmãos entre si. Os filhos gerados em
ambos os casamentos são “primos-irmãos” entre si, isto é, guardam uma relação de
131
consangüinidade similar à que existe entre irmãos; o “sangue é muito perto”
45
. Em um
desses casamentos, nenhum dos filhos gerados nasceu “com problema”, no outro,
entre os filhos um “tolo’, um rapaz com dificuldade de fala e audição e uma menina que
morreu recém-nascida devido, segundo se conta, aos “problemas de nascença”. A
comparação entre os dois casamentos é um dos constantes argumentos usados para
refutar a idéia de que a mistura entre parentes chegados seja “problemática”. O sangue
não encontrou, não deu bem, diz-se nos casos de filhos problemáticos, e isto pode
ocorrer não só entre parentes chegados como também entre cônjuges não-parentes,
observam os buraqueiros. De primeiro, contam os mais velhos, os antigos não gostavam
que a gente namorasse primo, diziam que os filhos nasciam com problema. É o que! É
nada! E como é que fulano e Beltrana são primos-primeiros e não têm nenhum filho
com problema? A controvérsia entretanto se mantém viva, pois existem os casamentos
entre primos que geram filhos “problemados” e a explicação, oscilando entre a “sorte” e
o “sangue perto”, não opõe estas duas determinações, mas as como facetas de uma
mesma questão: casamento é sorte, diz-se. Se der bem é muito bom... E quanto aos
amores entre primos, ri-se, E quem vai lembrar que é primo numa hora dessas! Hahahá!
A palavra “mistura” merece atenção. Usada para falar sobre o que ocorre no
processo de geração de filhos (pessoas formadas por dada mistura de sangue), a
“mistura” de pessoas, a despeito do que nos pode levar a supor, distingue-se nos
Buracos do que entendemos por ‘miscigenação’
46
. Como neste último caso, é sobre o
sangue que se fala, mas, diversamente, aqui o sangue misturado torna-se mais “forte”,
explicam-me os buraqueiros. Por isto dois cônjuges “pintados” gerarão - mais
seguramente - filhos pintados. Da mesma forma, a ocorrência de problemas de nascença
é explicada frequentemente pela mistura do sangue de genitores que tinham algum
“problema na família” e que, portanto, carregavam problemas em seu próprio “sangue”.
Na “mistura”, o sangue “apura”, explicaram-me, lançando mão da mesma palavra que
se utiliza para o processo culinário de engrossar um caldo. A “mistura” supõe, portanto,
a intensificação de substâncias similares. De um tecido com estampa xadrez, por
exemplo, muito cheio de linhas coloridas, diz-se “é muito misturado”. De dois bebês
gêmeos dentre os quais não se consegue fazer distinção, diz-se também: “a gente olha e
45
“Primos-irmãos”, como “irmãos”, não podem namorar em qualquer hipótese, ao contrário de outros
parentes menos “chegados”.
46
Note-se que “mistura” aqui traz a idéia de intensificação de uma mesma substância, diversamente ao
que se entende em ‘nosso’ senso comum sobre a ‘mistura de raças’ no Brasil, conforme identificam, entre
outros, Da Matta (1981) e Gonçalves e Maggie (1995).
132
mistura”, não quem é quem. Por outro lado, como a sorte das pintas que se formam
diferentemente nos filhos diversos de um único casal, a mistura dos nomes de família
gera filhos que, tendo puxado parenteza dos dois lados (e por isto, “mistura”), assinam
apenas um dos nomes, rarefazendo a existência do outro na cadeia familiar. Igual o
Pererinha, dissera Quincas, pintado que a vaca! Os filhos dele, pelo menos os que eu
conheço, é tudo pintado. [...] já misturou. Os Pereira é do lado dos Gomes, que é pintado,
mas assina por Pereira, que é parente de Dona Alice, é parente do meu pai! Já puxou dois
lados [...]. A idéia de que o sangue mistura, portanto, não passa apenas pela combinação
de sangue no filho gerado por parentes “chegados”, mas pela própria idéia de “povo”,
posto que, nos Buracos, “o povo é tudo primo”.
As pistas do elo familiar, do ponto “onde o sangue encontra”, onde “toca
parenteza” são recuperadas por técnicas mnemônicas particulares. Cada pessoa tem seu
modo de reconstituir o trajeto deste encontro, situando sua própria experiência através
de seus laços familiares e de vizinhança, até encontrar onde é que começa o trem”.
Entende-se assim que a “mistura” (casamento entre parentes) gera um povo “forte”,
tanto porque, analogamente ao processo culinário, torna o sangue mais denso no que se
refere às suas substâncias herdadas (cf. capítulo 4), quanto porque o torna mais
concentrado demograficamente. Afinal, a mulher que “casa na família” mantém-se
morando próxima aos pais. Além disto, podemos aqui inferir, um povo que casa entre si
é “forte” porque mais capaz de relembrar os elos familiares “puxados dos dois lados”. É
o que ocorre por exemplo com a narrativa de Quincas, herdeiro das duas principais
linhagens buraqueiras. puxou dois lados, contara-nos ele mais acima, [...] parente meu
por duas partes, da minha mãe e do meu pai, que o meu pai mais minha mãe era primo um do
outro. E o Pererinha está nesse meio aí, que é parente da minha mãe e parente do meu pai,
e vai gente... Netos pra lá, ó, tudo parente. Assim Quincas se faz orador privilegiado,
reconhecido “conhecedor dos causos” do “povo antigo”, do “povo tudo” dos Buracos.
No rastro das evidências físicas dos próprios parentes, traça uma História detalhada do
povo. O transcurso do tempo indicado pelos resultados das “misturas”.
Ela [uma antiga parenta pintada] tinha o queixo branco. Aqui, as pernas dela,
brancas, até onde desce cumprido o vestido, com vergonha. Aí a gente atentava Orotido
[marido da pintada], que ela no atolar era branca [risos]. Ele morria! tá, os dela, na Serra é
tudo pintado... Dominguinhos.. [ ], os filhos dela, os netos dela, pintado demais. Mas parenta
minha! Pois se é neta de Mateus. Da família minha... Vovê, eu com meus irmãos, são oito
irmãos, filhos da minha mãe. Quatro têm pinta saiu pintado e quatro não. E o
133
Cumpad’Cipriano é todo pintado, né. Ó cumé que parou! Que os outros não, como essa
menina de Rica/
Paula (...) são pintados porque a família da mãe é pintado. Cumad’Zefa... Tio Augusto
é pintado, Cumad’Zefa tem uma manchinha aqui no braço.
– No causo, a minha mãe é pintada. Os avôs, tudo pintado. A Zefa não tem.../
– Tem, tem uma pintinha.
– É? Não sabia, não.
– Pra nascer pintado o pai ou a mãe têm q ter ao menos uma pintinha, né...
– É...
– Não! Não! É... Vamos supor...
– E como Titia não tem, tio Bastião não tem, o senhor não tem?
- É... Titia também saiu a pinta [nasceu sem pinta]. Titia, nenhum [dos filhos] foi
pintado... É mesmo... Já compadre Bastião, Damásio, Cipriano...
Como a pinta, existem outras imagens da herança familiar que funcionam como
elementos privilegiados à observação buraqueira sobre as trajetórias humanas, isto é, as
misturas de sangue articuladas à ocupação da terra. É o caso da idéia de “raça”, como
vimos, e também da de “raiz”. Conforme me explicou uma senhora “da família dos
Buracos”, mas cujos parentes chegados hoje pertencem à “comunidade do Ribeirão da
Areia”, entre estes dois “povos”, “a raiz é uma só”, disse-me ela. Naquela conversa, a
mulher repetiu-me por diversas vezes a imagem da “raiz”, a partir da qual foi traçando
as transformações, os transcursos de sua gente. Falou-me dos sobrenomes que
compunham os povos e e lembrou de sua Falecida-vó-Arcanja, também avó de
Quincas. Lourinha, linda-linda..., lembrou. E tem também a Falecida-tia-Júlia, que era
também muito-muito linda, todas as filhas de Arcanja - menos minha e, que tinha o
olho castanho eram louras dos olhos azuis. Se não fosse a minha mãe, a gente de
repente também ia ter tudo o olho azul, especulou ela, para então falar sobre a mistura
que encaminhou para o fim dos pintados no “lado da família” do qual fazia parte. Minha
avó era Estrela, disse, mas os pintados são do lado João Gomes, que tinha estrela,
minha avó não tem, então ninguém de nós tem. Os da Serra das Araras, a gente não
sabe, eles dizem que são parentes, mas até a pinta deles é outra, é diferente da do povo
nosso.
Embora este argumento difira do de Quincas “todo pintado é parente” - ambas
as afirmações assumem como horizonte um não-saber que me parece interessante.
Puxando pela memória os causos que sabem por ouvir contarem de seus parentes ou por
134
própria experiência, o que os buraqueiros me informam sobre sua parenteza não se
descola de determinadas cadeias de relações pessoais. O conhecimento sobre as
possibilidades de transmissão pelo sangue, portanto, efetua generalizações
deliberadamente limitadas por este aspecto contingente. Os mapeamentos realizados
pelos causos de casamentos são, neste sentido, a expressão maior deste “conhecimento”
a um tempo genérico e particular. Assim, a escolha em se casar com um parente é
tida como uma “aposta na sorte” que, entretanto, aciona certo “conhecimento”,
tornando-a uma aposta “controlada”. Ali, tem-se um conhecimento prévio dos traçados
familiares do futuro cônjuge, uma possibilidade de análise e mapeamento das relações
passadas que são contudo geradoras de futuro. Nisto parece consistir o que busco
descrever como um “conhecimento” prospectivo, próprio a este modo buraqueiro de
refletir sobre a história da constituição de seu “povo”, sobre sua própria sorte. A palavra
‘prospecção’ não é casual, fala sobre uma ‘técnica’ (ou ‘método’) de conhecimento que
localiza e calcula riquezas futuras (no caso, minerais) a partir da análise das
características de um determinado terreno; dos traçados de uma dada “terra”.
Retomando as associações ora vistas entre as trajetórias na terra e a história do sangue,
podemos observar que uma pessoa como Quincas, cujo sangue “mistura” todas as linhas
de descendência buraqueira, tem, também por este motivo, um “conhecimento”
privilegiado sobre seu “povo”
47
.
Questões sobre até que ponto a endogamia é responsável por doenças de
nascença são comuns nos Buracos. Como vimos mais acima, havia entre “o povo
antigo”, os que proibiam seus filhos de namorar primos. E se hoje quem diga que a
“cisma” é “bestagem do povo antigo”, sempre alguém que endosse tal preocupação.
Cheguei a ouvir que, como acontece com o gado que procria apenas entre si, “os povos
de roça”, por serem “tudo parente”, nascem fracos e feios. Sobre uma “comunidade”
vizinha, ouvi os buraqueiros fazerem piada invocando o tema. Eles, é como o povo dos
Buracos de primeiro, disseram os buraqueiros, casa tudo entre a gente deles! A maneira
irônica com que tal observação fora feita deu-me a observar a marcação de alteridade
para com estes vizinhos. A rigor, todos os “mineiros da roça” são parentes, de modo que
a questão do casamento “entre a gente” não costuma ser colocada seriamente como
47
Uma idéia similar a esta « mistura » do sangue buraqueiro aparece em Jolas, Verdier e Zonabend
(1990: 142) a respeito do ‘falar família’ (parler famille’) de um povoado na região da Bourgogne. Ali, os
informantes chamam atenção para o número de ‘reencadeamentos de aliança’ (renchaînement
d’alliance’) quando, ao traçar sua genealogia, acrescentam com satisfação: ‘Viu só, e a gente cai de novo
na família’ (‘Vous voyez, ça retome dans la famille.’).
135
problema. Quando Tutty, sobrinha de Quincas, “arranjou um namorado” finalmente
com o raro consentimento de seu pai, o consentimento havia sido dado porque se tratava
de um “primo-primeiro”, explicou-me ela. O rapaz “é do lado” de sua “família”
materna, hoje majoritariamente pertencente ao povo do Ribeirão de Areia. Os primos
buraqueiros enciumaram, disseram que não podia casar por causa do DNA! E se riram.
Mas o pai de Tutty fazia gosto do fato de serem primos: sendo da mesma família, a
gente sabe, conhece, explicou-me Tutty. Assim, a auto-imagem da endogamia
mineira figura-se em um misto de gozação, vantagem e retrato pejorativo. Em todo
caso, porém, a controvérsia está em aberto e os primeiros beijos na boca, dos jovens
buraqueiros sejam dos Buracos, de Chapada ou de Brasília e São Paulo, ocorrem via de
regra entre primos. “Quem é que vai lembrar que é primo numa hora dessas?!”
2.3 – A boa distância (em família)
O que aparece tematizado nos casamentos é antes uma ponderação entre
diversas formas de proximidade e distância, não necessariamente associadas à
consangüinidade: a diferença de idade, por exemplo, faz-se às vezes gritante. Sobre um
conhecido causo buraqueiro do tio que casou com sua sobrinha, o que me contaram
dizia respeito à surpresa diante do amor entre uma moça “tão moça” e um homem “já de
idade”. Por outro lado, se a distância etária ali era o que “não combinava”, também
formas de proximidade impeditivas à experiência do amor. Um compadre, por exemplo,
nunca poderá “querer” sua comadre, mãe de seu afilhado, e a proibição é alegada em
vista da proximidade que este vínculo cria entre duas pessoas (cf. capítulo 3). A
“mistura” do “sangue perto” o que ‘nós’ chamaríamos ‘incesto’ - parece ser apenas
um dos modos de relação que “não combinam”. Ali onde a proximidade é considerada
excessiva, os causos parecem um grau elevado daquilo que ocorre com certa constância
(o casamento entre “primos”) e com mais ou menos hesitação. O incesto seria, neste
sentido, apenas um caso particular, extremo, dos ordinários casamentos entre
“chegados”. Mas o que o bom senso consideraria ali uma ‘boa distância’? Perto o
suficiente, longe o recomendável
48
. Em que se definiria uma demasiada proximidade
entre dois amantes?
48
A ‘boa distância’ nos remete fortuitamente ao terceiro volume das mitológicas, onde Lévi-Strauss
(2006[1968]) abre sua análise com o mito O mistério da mulher cortada em pedaços, uma mulher quera
da “mesma gente” de seu marido.
136
Dentre os dois causos de incesto transcritos na primeira sessão deste capítulo, eu
ouvira apenas falar sobre o primeiro, o do povo da Inhuma, mas o causo nunca rendera
“assunto”. Sobre o causo da parenta chegada (tia de Quincas) haviam-me sempre
silenciado por completo. Contudo, quando eu perguntava sobre o tema do incesto,
normalmente me forneciam dados com naturalidade, falavam de casos de um e outro
povo “aparentado”. A palavra ‘incesto’ não faz parte do vocabulário buraqueiro e eu
precisava perguntar sobre situações específicas, irmão com irmão, filha com pai, mãe
com filha, para que eles puxassem as informações que tinham em mente. Sim, havia
causos, diziam, e lembravam de algum, sempre envolvendo gente distante. Embora não
inspirassem comentários repreensivos, era claro que tais situações lhes soavam
estranhas. Acrescentavam, aos exemplos acima mencionados, a situação de namoro
entre “primos-irmãos” ou as de tio e sobrinha, e estes pareciam nem mais nem menos
grave do que os anteriores, confundindo-se com eles da mesma forma com que se
confundiam com parentes criados. Por outro lado, quando presenciei o namoro de uma
sobrinha-neta com seu tio-avô, o fato do parentesco foi ressaltado por alguns fosse
com estranhamento, fosse com piada mas nunca considerado um verdadeiro
impeditivo. Tinham a mesma idade e guardavam uma relação similar à que nos Buracos
se estabelece entre primos (“e quem vai lembrar que é primo numa hora dessas!”). A
proximidade, portanto, é de algum modo “criada”. De um menino cuja semelhança com
o pai falecido era ressaltada como motivo de espanto, me contaram o causo: é que o
pai é também o tio legítimo, né, então apurou mesmo o sangue. então entendi que
não falavam de quem eu julgava ser o pai “legítimo”. O tio do menino era “o pai
verdadeiro”, “legítimo”, e havia seduzido a própria irmã, “a tola”, que vive hoje aos
cuidados de Silu, sua irmã. Esta última “criou” o filho gerado pelos dois irmãos, e assim
é considerada, além de “tia legítima”, “mãe de criação” do menino. A relação entre
estes últimos é a de mãe e filho, de modo que, até aquela conversa, eu não duvidava ser
esta a descrição correta de seu laço de “sangue”, “legítimo”. No dia-a-dia buraqueiro, o
povo se refere a Silu e seu marido Bastião como respectivamente “pai” e “mãe” do
jovem criado por eles. O outro pai (e tio) mudara-se para longe depois do ocorrido da
gravidez, quando os outros descobriram “o acontecido”. Como nos outros causos de
sexo entre irmãos, o excesso de proximidade resultou ali no abrupto distanciamento.
A controvérsia sobre o que é certo ou errado no casamento entre
parentes chegou a render cerca de três horas em uma viagem entre Chapada Gaúcha e o
município de Côcos-BA. Voltávamos de uma consulta ao “curador” que atendia neste
137
último município; a viagem era longa
49
. No carro, havia gente, no dizer do povo, “de
tudo o que é raça”. O motorista chamava-se Negão, vinha de Goiás mas, contava-nos,
antes de chegar onde agora estava, havia rodado o Brasil inteiro. Viera para Chapada
havia cerca de cinco anos, “mexer com compra e venda de terra”. Sua esposa veste-se
como cigana e, no dizer dos outros, namorou um cigano, de modo que Negão é
também conhecido como “o marido da Cigana”. Havia também, no carro, vários
mineiros, “povo da roça”, “mineiros da região”, “gente do norte de Minas”. E havia um
baiano do interior da Bahia, de apelido Baiano, além de mim, “a carioca”, e de um
gaúcho que, pelo tempo de moradia em Chapada (era da “segunda família de gaúchos” a
ter migrado), dizia-se mineiro a ponto de preferir o café ao chimarrão.
A discussão fora conduzida pelo marido da Cigana e pelo gaúcho.
Falavam de mulher e este último se defendia do primeiro, que o acusava de racismo por
ter dito que as mineiras, no mais das vezes, são feias. Namorei uma negra da pele
brilhando!, defendeu-se o gaúcho, Daquelas que não têm pelo no braço! Namorei, mas
não deu certo. A natureza não deu bem. Mas eu gosto de negro! Casei com uma
morena! Dito isto, o gaúcho se vira para o banco de trás do carro, onde uma moça com
quem não estabelecera qualquer contato durante a viagem foi por ele apontada como
“aparentada” de sua esposa. Não é, menina?, disse ele. É uma morena meio branca...,
respondeu a moça.
Em seguida ao tema das mulheres, falamos sobre a legitimidade de o Ibama
desapropriar ou não o povo dos Buracos
50
. Negão disse, É o certo! Se não fizer o povo
vai queimar é tudo! Arlindo ponderou, O fogo é da Natureza! O gaúcho e Negão
diziam-se “viajados”, o que significava dizer que “sabiam das coisas”, “conheciam o
mundo”, e deste atributo se valiam a todo momento, instaurando, ao longo de nosso
percurso, uma constante e deliberada competição por maiores e melhores informações.
Negão contou, A minha terra é a dos Calunga! E o gaúcho, sobre os arredores dali, vasta
região que ele alardeou conhecer bem, disse não existirem quilombos de verdade, Aqui
é tudo misturado..., argumentou, Diferente dos gaúchos. O sangue misturado fica
mais fraco!, concluiu, completando com seu próprio caso, Tiro por exemplo a minha
49
Sobre a definição de “curador” e os detalhes da viagem aqui mencionada, ver capítulo 5.
50
O tema veio em reação à informação de que eu fazia pesquisa nos Buracos, mas se trata de uma
possibilidade sempre especulada, devido à recente operação de ‘reassentamento’ dos moradores da área
ocupada pelo Parque Nacional Grande Sertão eredas. O próprio Negão chegara na região depois de
comprar uma fazenda “onde hoje é o Parque” e viu seu título de propriedade ser submetido às leis
federais, episódio que ele me narrou como “um negócio em que ganhei uma volta”. Sobre o receio dos
buraqueiros quanto à minha presença associada aos “ambientalistas”, cf. capítulo 3.
138
mulher; ela e o filho vivem doentes; eu e minha filha estamos sempre com saúde. É
que o filho puxa o sangue da e e a filha puxa o sangue do pai! É o que!, reagiu
Negão, É nada! É um sangue só! E a discussão seguiu. Sangue misturado é mais fraco!,
disse o gaúcho, É que nem sangue de parente quando mistura: nasce filho defeituoso!
Deus mesmo não gosta! Não é abençoado por Deus! Se Deus abençoasse, não nascia
defeituoso! No Rio Grande [do Sul], casamento com primo é proibido na Igreja e
também a lei não deixa!
Depois de discorrer sobre as regras corretas de sua terra, o gaúcho rogou que
nunca permitiria sua filha casar-se com um primo. Baiano balançou a cabeça de um lado
para outro, vagarosamente, sem dizer nada, enquanto Negão manteve o debate, Se é
assim, como é que quando um pai precisa de doação é o filho que precisa dar o sangue?
O gaúcho contra-argumentou, Mas é outra coisa, não é no útero, quando gera a
criança!, e com voz alterada concluiu, Pode me levar pra televisão pra discutir com
você que eu ganho! Eu não sou muito forte de estudo, mas eu sou declarado! Eu ganho
o debate!
As meninas mineiras que vinham caladas durante toda a viagem, no banco de
trás, começaram a esta altura a dar risadas e barulhar, cochichando. As atenções então
se voltaram para elas, uma tomou coragem e contou um causo que disse ser “conhecido
de todo mundo”, O senhor conhece o homem que casou com a filha na Chapda?,
perguntou ela ao gaúcho. E puxaram as parentezas para que os outros reconhecessem de
quem se tratava. Alguém deu-se conta, Na verdade, a filha casou foi com o pai de
criação! E Negão (provocando), Então está certo, pegou pra criar! (risos) Está no direito
dele! O gaúcho, por sua parte, disse, Quanto ao sangue está certo, não tem problema
não... As meninas atrás desconsideraram o debate e seguiram comentando os
casamentos entre parentes. Uma delas contou em voz baixa apenas para mim, que
estava ao seu lado, Casei com meu primo-segundo, a mãe do pai dele era irmã da minha
mãe... Dá bem. Nós, briga é nunca... E em seguida a outra contou que no Barro
Vermelho, sua terra, pai e filho tiveram filhas com a mesma mulher. Estas filhas são
portanto irmãs de parte de mãe, e tia e sobrinha por parte de pais, deduziram, rindo-se.
Dali seguiram rindo e contando causo até o final da viagem.
2.4 – Sistema antigo: terra e palavra
Para o causo a seguir, cf. Figura 9
139
- Como é que Firmino foi arranjar esse casamento [com Jó]?...
- Arranjou, não! Trouxeram pra ele na porta [risadas e gargalhadas]. [...]era assim... Como é
que puxa?... Contar do começo.
- ... E a Jó era criada por Toró!
- O Toró morava no Rio Preto, onde é o Parque do Ibama hoje. E eu fui trabalhar numa
fazenda, fiquei quase quatro anos, vizinho do Toró. O Toró tinha o... Casou, largou a família
com os filhos. ele não botou mulher mais em casa, mais não. Que tinha mulher na casa dele;
ele morava mais a mãe, a velha Cândida. Criou... o Geraldo é neto?
Sobrinho de Dona Cândida. Todos dois, sobrinhos de Dona Cândida/ criou os sobrinhos... a
Velha ndida não tinha filho de filho nenhum mais. Acho que o caçula era Toró... Eu não
conheci os outros. A Velha Cândida era do Goiás mais Toró/
ela teve dois filhos! Dindinha-Velha é que contava! [...]. tá, morava o Toró, pai de família
que casou, largou a mulher e foi morar mais a Velha ndida. A Velha ndida criando dois
sobrinhos, e Geraldo; um homem e uma mulher. Quando eu tava eles ainda eram
pequenos. morou lá. E o Toró largou a família! Abandonou mesmo. Os filhos, a mãe criou pra
lá. [...] Aí, vai ver Belinha aqui ficou viúva. Ainda nova, né!... (Nova assim... Não sei... Quantos
filhos ela tinha, oito?)
– Seis.
- Aí tá... Mas viúva mesmo. Aí pai botou uma roça aqui pra morar pra mais a esposa e trouxe
Toró pra ajudar ele a fazer a roça aqui. Chegou aí, Belinha mão ni Toró! [risos]. Toró
imediatamente casou com Belinha. Casou mesmo! E mudou pra cá, apanhou a mãe e os dois
sobrinhos que moravam com ele/
– Era primo dele! É sobrinhos da mãe dele!
É, primos dele, é mesmo! Aí veio tudo pr’aqui. O Toró, a mãe, [os sobrinhos] Geraldo e a Jó.
logo a menina [ Jó ] ficou moça. E o Firmino [irmão de Belinha, recém-casada com Toró]
ficou viúv/a mulher largou ele, ele veio pra cá (mais a mãe dele, já que ele também ficou sozinho,
né) [...]. (...) Aí, tudo pertinho né... Aí, como diz’os antigos, a porca quando fica parada perde o
porco [risos]... o Firmino endoidou pra casar com essa Jó. O Tofalava pra ele assim, Ó....
Não havia de dizer/
– E a Jó era bonita quando era moça/
– Era! Bonitona! Grandona!
– Tinha um corpão! O cabelo pretinho!
– Mas o jeitão... [
risos]
140
- Só que era ruim de prosa...
Molhadona!... A gente está conversando, ela está olhando pra gente e baba escorrendo...
[risos]
- O Toró quando/ o Toró disse, Ó Firmino, a não é gente de casar não, ocê não está vendo?,
E o Firmino, Deixa de ser besta! Ela é sabida, menino! (...). o Toró: ocê quer, né? Então
vamos casar [fazer o casamento]. Eu mesmo fui ajudar a levar eles no cartório na Serra, no
tempo... Casou e... Ó o quê que deu! Ó o tanto de menino que deu!
– Ó o tanto de tolo! [risos]
Aí, tá. O que aconteceu? Como dizer? na época... Pra pagar o que tinha que pagar. Ele
tinha que pagar o Firmino. O Toró casou com a irmã do Firmino, né. Agora ele tinha que casar a
criada dele com o Firmino pra pagar [risada]. Aí deu tudo certo.
– Acontece muito isso, né. De um pagar o outro... aqui nos Buracos tem/
– Rica e cumpad’Damásio...[...]
Não, mas no causo meu, “pra pagar” é assim, moço... Vamos supor, “pra pagar” é isso, assim
como: Ito mais o Côco-de-Niculau. O Ito casou com a irmã do Côco e o Côco, com a irmã do Ito.
que “pagou”. Duas irmãs e dois irmãos, não. Aí cada um está fazendo a sua parte. Agora,
igual Côco mais o Ito, deu certo, “cruzou”: o irmão dela casou com uma e o irmão da uma casou
com uma de cá.
141
Figura 9 – Causo do “casamento cruzado”.
O mapa do “povo dos Buracos” constitui-se de vários “povos” (ou “famílias”)
cuja divisão territorial se configura de acordo com diferentes linhas de descendência
“pela parte do pai”. A mensuração do tempo transcorrido, quando se conta um causo, se
por uma espécie de rastreamento das linhagens que compõem estas linhas, Naquela
época Fulano morava onde hoje mora Cicrano, e era assim da idade do menino de
Beltrano hoje. Ou então: Isso tem muito tempo, Fulana era casada, morava onde é o
povo de Beltrano, mas nem filho tinha ainda. Porém, como a sorte de puxar um “sangue
ruim” ou de “sair pintado igual à vaca”; ou como a “má sorte” de ter filhos cujo sangue
“não bate” (pais e filhos, cada um seguindo seu “rumo próprio”), casos em que a
“família” se desmembra em “povos” distintos, isto é, em casamentos cujos “destinos” se
dão distante da terra de origem. A sinonímia entre os termos “povo” e “família”
encontra então um distintivo importante, a “terra”. Se o “costume”, a “tradição” ou a
“lei” rogam quea mulher deve acompanhar o homem”, como diz o dizer, mantendo-se
a virilocalidade, nada garante que isto de fato ocorra. Há casas em que o povo “espinica
tudo”, vão embora mesmo até mesmo os filhos-homens. E casos em que, ao
contrário, até as filhas-mulheres casam e permanecem próximas aos pais, “fazendo o
povo render”. Os “destinos” dos nascimentos, portanto, são como o dos casamentos,
determinam povos. famílias que “raleiam” até desaparecer, espantam-se os
buraqueiros. Tem gente que a família morre toda... Um povo é “forte” quando “puxa”
gente, um povo “rende” graças ao surgimento de crianças e casas; resultado de
casamentos. “Como é que puxa?... Contar do começo”. Para entender onde começa o causo
do casamento com uma tola, o causo dos dois casamentos “cruzados”, era preciso achar
o elo inaugural; o elo que “puxa” o causo enquanto puxa a trajetória do encontro,
deslindando as relações narradas: Jô era criada de Toró; não era irmã, pois que este era
de fora e não trouxera irmãs consigo. A criada foi quem como se fora irmã - serviu
“pra pagar” o outro, Firmino, com cuja irmã o primeiro casara. No cruzamento, a sorte
do deslocamento mostrou seu rumo. Os cunhados tornaram-se duplamente cunhados, a
relação tornou-se mais forte”, tornaram-se todos vizinhos. O irmão da noiva de um
“pagou” com sua “criada” o irmão de sua noiva: “cruzou” uma mulher para cada lado:
uma foi, outra veio. “Deu certo”.
O riso provocado pela idéia do pagamento parece-me significativo, diz sem dizer
o que os buraqueiros sabem e dizem nalgumas ocasiões: quem decide se quer ou não
142
casar é a mulher. O “pagamento”, portanto, se dá a despeito da agência daquele que
paga, embora isto não anule a autoridade que ele então ganha. O irmão homem de uma
moça tem, idealmente ganha de seu cunhado alguma atitude de respeito. Neste sentido,
é interessante notar que a relação entre cunhados homens é em certa medida comparável
à relação entre genro e sogro; enquanto a relação entre cunhadas mulheres é
frequentemente associada, pelas buraqueiras à relação de “prima” ou de “irmã”. Isto por
certo reflete a situação em geral configurada antes da realização de um matrimônio. Um
rapaz “pretendente” pode “querer” uma moça e esta o recusar. O contrário é mais raro.
As moças, ao prospectarem sobre suas escolhas amorosas, não raro ponderam sobre a
qualidade de suas relações com a família do rapaz em questão: dar bem com sogra e
cunhadas em potencial é seguramente um fator de peso. Do lado dos rapazes, este
critério parece ser menos importante, uma vez que, a rigor, ele não será, como ela,
obrigado a conviver cotidianamente com os parentes da moça.
A autoridade do pai sobre a escolha da filha também é uma questão de interesse.
Mas ao contrário do que se perguntar sobre como as ‘escolhas individuais’ devem ou
podem ser submetidas a ‘estratégias familiares’, como poderíamos supor, os
buraqueiros e buraqueiras costumam ver, no conflito de ‘escolhas’ sobre o futuro
marido/genro, a ocasião de “encontrar a sorte” de querer um rapaz e o pai concordar,
“fazer gosto”. Trata-se portanto de uma reflexão sobre a “sorte”, e a questão que
poderíamos colocar nos termos da ‘autonomia individual’ aparece ali apenas sob o
prisma de tal reflexão (cf. capítulo 4). A convergência entre os dois acontecimentos (o
“gosto” do pai e o da filha por um dado rapaz) não é absolutamente lida como algo que
poderíamos traduzir por ‘estratégia’. Embora as razões para o “gosto” paterno possam
ser explicadas por critérios como a saúde financeira ou a procedência familiar do rapaz
pretendente, elas o são em certa medida e isto é afirmado freqüentemente pelas
moças solteiras nos Buracos. O que se coloca em primeiro plano é a contingência desta
avaliação paterna. O pai “cisma”, “fica atentando”, aí o namoro não vai adiante. Noutras
vezes - quando “é para ser” - a filha foge com o noivo a despeito da vontade paterna.
Causos deste gênero são abundantes. De primeiro, como hoje, contam os buraqueiros,
muitas vezes o casamento não acontece por causa do conflito entre a vontade da filha e
a de seu pai ou irmão-homem. Mas não me lembro de ter ouvido causos em que a moça
tenha casado sem que fosse por desejo próprio. O Pai e os irmãos-homens de uma moça
podem “fazer gosto” por certo casamento, o que decerto interferirá na sorte futura,
explicam-me os buraqueiros, mas quem decide por fim é ela, e será por amor, afirmam-
143
me com segurança. Da mesma forma, quando um pai se opõe ao namoro de sua filha, os
outros alertam: melhor aceitar a vontade da filha do que vê-la fugir de casa; causos
assim não são raros (nos dias de hoje e nos de primeiro). Nos Buracos, “casamento” e
“amor” são termos mais ou menos intercambiáveis. Mesmo que seus causos sejam
marcados pela opinião alheia, isto é, da família, dos vizinhos, dos aparentados, sobre “o
certo” e “o errado” de uma união, é um senso comum o fato de que, “casamento é
sorte”: o amor rege a escolha, mas a convivência dirá se a “sorte” de amar certo alguém
foi ou não uma “sorte boa”
51
. A sorte de casar é a sorte de amar a pessoa certa,
entendem (cf. capítulo 5). Se a figura do “solteirão” e não a da “solteirona” - é o que
lhes causa graça, é que as moças são tidas como mais “cheias de prosa” na ciência do
coração”. Quando a gente gosta, vive até de riba do pau, disse-me Titia certa vez,
definindo-me: se “a mulher deve acompanhar o homem”, isto só funciona quando existe
“bem-querer”. Lembre-se, Titia “largou do marido”. Sobre a decisão das mulheres em
se separar, parece-me haver uma divisão mais ou menos generalizada entre as opiniões
masculinas e femininas. O homens ressaltam a falta de dedicação que se espera da
esposa em relação ao marido; as mulheres avaliam a “razão” do abandono do lar diante
da “ruindade” dos homens, representada por problemas como “a cachaça” ou o “vício
da catira”. Em alguns casos, os males provocados pelo marido durante o casamento
chegam justificar, na opinião feminina, não só a separação como a ocorrência do
adultério da esposa. Ressalte-se, contudo, que esta divisão de gênero é uma
aproximação minha, um tanto grosseira, mas que nos serve ao propósito de observar
como o causo particular de separação conjugal é avaliado segundo critérios diversos.
Um homem solteiro dificilmente recusará uma mulher que o queira; se o fizer
será decerto criticado por seus pares: moça direita não se rejeita, dizem. Por suposto.
Quem quer casa, quer casar; e quem cuida da casa é a mulher. Mas “montar casa” é
como se tornar adulto, e portanto existem muitos homens que decidem fazê-lo mesmo
antes de “arranjar casamento”. É mod’garantir a terra de herança e “facilitar a arranjar
esposa”, especulam os parentes. Dentre as mulheres, não existem causos semelhantes,
embora depois de casadas elas também possam vir a se interessar pela terra herdada. As
mulheres hoje não querem mais saber dos Buracos, contam-me os mais antigos. Os
51
Qui se marie par amour a bonnes nuits et mauvais jours[Quem se casa por amor tem noites boas e
dias ruins], diz um ‘provérbio popular’ francês registrado por Segalen (1981: 11). Conforme ressalta a
autora, não se trata de pensar que as ‘sociedades de antigamente’ viviam menos a escolha amorosa do que
as ‘contemporâneas(isto é, ‘nós’), mas de perceber as diferentes maneiras com que isto se exprime. No
que poderíamos incluir as maneiras com que se o vivencia.
144
moços, pra casar, estão tendo que caçar mulher fora! (cf. capítulos 5 e 6). Assim,
quando o irmão de uma noiva arranja pra si a cunhada, “deu tudo certo”.
Os casamentos “cruzados” uniões de concunhados” - são muito comuns nos
Buracos, ou ao menos o suficiente para que faça sentido a expressão “um casamento
puxou o outro”. Mas os dedos da mão não são iguais, prosseguem os buraqueiros ao
contarem o causo de um casamento “puxado” por outro, entre a irmã e o cunhado, mas
cujo noivo (concunhado) “não prestava”, ao contrário do primeiro. Tais causos
ressaltam “a sorte” em que consiste o matrimônio. Casamento é sorte, refletem. A sorte
de “dar certo” ou não; de amar mesmo “uma tola”; de gerar deslocamentos cujo destino
não se imaginaria. O rumo de uma união, sua “sorte”, é, por definição, desconhecido.
Talvez por isto o tema dos casórios passados ou possíveis acabe entrando em questão
quando a conversa é sobre as “andanças do povo”, “onde é que foi parar uma família”.
Nestes casos, o que se debate enfim é sobre o futuro - ou destino - já dado ou ainda por
se dar na vida de uma pessoa. Falando-se de “rumos”, ou “destinos”, da “sorte de um
povo”, fala-se de casamentos e geração de filhos (sessão 2.2): “casou e tomou rumo
para a terra da gente do marido”. Pelo matrimônio, estabiliza-se certo campo de
possibilidades, criando-se outros que se manterão entretanto em constante movimento,
atualização, mapeamento. O sangue “faz” a pessoa nascer de determinado jeito porque
“puxa” um conjunto particular de características (sessão 2.2), mesmo o acaso de se
“puxar” este ou aquele sangue de uma tia ou bisavó que seja, Até de madrinha a gente
pode puxar o sangue! Hahahá!. Analogamente, os casamentos “fazem” um povo; puxam
gente para perto; fazem as casas e a gente renderem. Gerada pela ocasião de uma união,
vimos (capítulo 1), a circulação entre casas de famílias não vizinhas cria uma intimidade
que, pelas visitas, “imita” a relação de vizinhança.
Pela sorte dos casamentos, os causos contam sobre a geografia buraqueira,
formando-se por um movimento duplo. De um lado, a paisagem evolui conforme a
lógica da genealogia, da idade em progressão expressa no número de filhos (Ainda nova,
né!... Nova assim... Quantos filhos [...]?). De outro, o acontecido dos matrimônios, um povo
que rende aqui e acolá um povo em que a família espinica ou morre. Neste duplo
sentido, um “povo” se forma tal qual uma “pessoa”; lembremos: determinada pela
filiação até o limite do acaso, quando “o sangue faz” puxa as características sabe-se
de onde (não só da mãe e do pai) - quando “o sangue faz” (sessão 2.2). “Quando de
nascer”. A vulnerabilidade à “sorte” que incide sobre o amor, a que se conta nos causos
de casamento, é, nos destinos de pessoas e povos, análoga à sorte do sangue:
145
contingente. Ou seja, de um lado, os movimentos demográficos traçam, no espaço, a
linha do tempo atestada pela filiação. Isto faz muito tempo?, pergunto; o interlocutor
buraqueiro não me dá a medida em números, mas indica o tempo por frases como: Nêga
caminhava; Bel era assim do tamanho da menina de Tana; Maria ainda morava em
baixo, ainda não tinha casado. E o tempo transcorrido se atualiza na configuração das
vizinhanças, as casas dos filhos, construídas depois de seus casamentos em terras
herdadas próximo às casas de seus pais. De outro lado, não de proximidade física
vive este espaço, a circulação de pessoas, prosa e comida encurta o tempo dos percursos
ligando as informações de cada casa. Graças aos casamentos, com seus sogros e
cunhados, formam-se circuitos de “povos” ou “famílias” que se sobrepõem àquelas
linhas de descendência testemunhadas na configuração das casas
52
.
A rigor, “parentes chegados” visitam-se regularmente. Mesmo se não moram
próximos, procuram cumprir com gosto as práticas vizinheiras de troca de prosa e
comida. Neste sentido, espera-se que parentes e vizinhos tenham em comum este modo
de se querer bem, este “sistema” de se “puxar” “uns-aos-outros”. “O sistema mineiro” é
parecido com “o sistema baiano”, explicou-me certa vez um “mineiro da região”. Como
assim?, perguntei. Assim: o modo de comer, o modo de conversar, é parecido, disse-me
o senhor. Noutras ocasiões, estas mesmas expressões viriam a serem usadas, quase que
automaticamente, para marcar a distinção entre “mineiros” e “gaúchos”. A diferença
entre um e outro “sistema” descrevia-se então pelas maneiras de com que uma gente se
reúne. É eloqüente neste sentido a fórmula “gaúcho não é gente” - usada em tom jocoso
mas não sem alguma acidez. Note-se que, nos Buracos, existe apenas um único causo de
casamento entre mineira e gaúcho; mineiro com gaúcha, nenhum causo (cf. capítulo 6).
Os gaúchos vivem de porta fechada, te recebem é da porta para fora, resumem os
mineiros em geral. Assim, o “sistema de prosa”, ou o “modo de conversar”, pode ser
entendido como um “modo” de se “puxar” para perto de si outras pessoas, como, em
suma, um “modo de comer”. É que a morena não conhece o meu sistema, diz uma
canção sertaneja tocada na rádio. Quem canta conta que a morena não se faz vulnerável
aos seus apelos amorosos, isto é, seu “sistema”, sua “prosa”, seu “modo” (cf. capítulo
4). À diferença do sistema gaúcho, os mineiros o certas atenções ao modo de comer e
52
A observação buraqueira sobre o transcurso do tempo a partir dos movimentos das “famílias” poderia
ser útil a certos clichês sobre o ‘enraizamento na terra’ das ‘sociedades tradicionais’, conforme a crítica
de Segalen (1980: 10) aos dados demográficos que, segundo a autora, criam este efeito de estabilidade
porque se baseiam na unidade da ‘família nuclear’ durante o período de fecundidade da mulher.
146
de conversar: o fato de que, durante a lida nas “firmas de gaúchos”, estes se apartam dos
mineiros na hora de comer, por exemplo, é narrado como grave ofensa. Eles acham que
são bons!, interpretam os mineiros (cf. capítulo 6). O “trabalho na roça” é pontuado pelo
intervalo onde se come junto da mesma comida, o que significa também “conversar”, e
em certa medida “pegar intimidade”. D a natureza de alguns deslocamentos e
casamentos oportunizados, como no causo contado acima: pai botou uma roça aqui pra
morar pra mais a esposa e trouxe Toró pra ajudar ele a fazer a roça aqui. Chegou aí, Belinha
mão ni Toró! [risos]. O sistema mineiro “abre a sorte”
As maneiras deste “sistema” “mineiro” ou “da roça” - confundem-se com o
que os buraqueiros chamam “sistema antigo”, sendo este associado à “lei” “criada no
costume”. Eventualmente tal “lei” é proferida à guisa de comparação diante de condutas
atuais julgadas equivocadas. Outras vezes, é tida como “bestagem”. Mas sempre, por
acordo ou desacordo, o sistema antigo é como a lei da roça, uma referência considerável
nos modos de conduta e deslocamento. De primeiro, o povo passeava muito, contam-
me. Hoje é correria, ninguém tem tempo. E alguém reage, piadista, Ninguém está
conhecendo a tradição, só dona Fulana. Hahahá! Esta “só vive viajando”, o que é dito
não raro sob tom de crítica, A mulher não pára em casa! As galinhas dela, tudo largada,
comendo na casa dos vizinhos! Da mesma forma, nos Buracos um pai que vive no
sistema antigo: não quer que mulher e filhas saiam vão à festa sem sua presença, não as
deixa usar roupa decotada, vive com elas é no cabresto. Tal conduta ora é festejada (por
isso “as moças dele são certas”, avaliam), ora é criticada (“quer ser melhor do que os
outros”). Note-se que, hoje tal qual era “de primeiro”, pessoas mais severas do que
outras, conforme contam os causos. Assim, o “sistema antigo” parece tratar-se menos de
uma questão ‘geracional’ do que de um modo próprio, algo que poderíamos entender
como uma ‘potência’ própria ao “povo da roça”. O sistema antigo fala sobre o presente.
Por exemplo, os antigos, quando saíam atrasados para almoçar na casa de alguém que
não estivesse avisado da visita, botavam uma pedra sobre uma árvore. Era um “feitiço”,
contam-me, para mod’os da casa visitada se atrapalharem na mexida da cozinha e o
almoço atrasar. Bota a pedra no pau! De primeiro o povo dizia assim. Bota a pedra no
pau!, dissera-me Seo Quincas, antes de me explicar sobre o “dizer”, repetindo por sua
vez o “dizer dos antigos”.
O que contam do sistema antigo em relação aos tempos atuais é como o que
contam do povo da roça em relação à cidade: os primeiros são mais fortes, mais
sofridos, mais pobres. O sistema - hoje em relação a ontem, na roça em relação à cidade
147
é de um povo que eu mesma reconheci em meu trabalho de campo: um povo que
aprecia a prosa e a comida, que tem na chegada às casas uma etiqueta elaborada e
reputada, seja por elogios ou fofocas. De primeiro, o café era no pilão, dava trabalho.
Quando tinha visita na vizinhança, a gente já sabia, porque ouvia o barulho do pilão
na vizinhança dos outros. De primeiro, não tinha médico, mas as mulheres e crianças
não adoeciam tanto, o sangue era mais forte”. De primeiro, não era obrigado o gado a
tomar vacina, e o gado não adoecia, era mais “forte”. Tais julgamentos se replicam na
idéia de que “gente de cidade” é menos “sofrido” e mais “fraco”. A associação entre a
“lei da roça” e o “sistema antigo” é recorrente, de modo que a ordenação de espaço se
reveste de um sentido temporal. A “cidade” é o lugar da “moda”, da “novidade”; a
“roça” é o lugar dos “antigos”
53
.
Esta geografia do tempo costuma ser elaborada pelos jovens que hoje vivem
divididos entre a Vila, onde estudam, e os Buracos, onde vão passar os fins de semana
“de junto da família”. Na roça a gente tem mais medo, dizem eles, parece que “essas
coisas” só existem na roça, o povo antigo “fica falando”... Por “essas coisas”, entendem-
se “visagens” como “seres encantados” e “defuntos”, pessoas que voltam depois de
morrer; quando a gente pensa nelas, elas voltam. “Ficar falando”, “contando os causos
do povo antigo”, faz a gente “ver e pensar”, olha um pau, lembra do causo; a casa,
pensa no defunto. Os causos dos antigos, passados nas terras por onde hoje
caminhamos, ao lado de determinada casa, junto de um pau que ainda existe, descrevem
os ocorridos das visagens, fazendo-se presentes a um tempo pela palavra e pelo
espaço atuais. Os causos antigos, aliás, no medo causado ao serem narrados, renovam-se
em versões recentes. Casa onde morreu gente... Deus me perdoe! E o assunto começa.
Alrim disse que não acredita. Não é defunto, é o Dé. E me olhou, avaliando se eu o
entendia (“Dé” – mônio). A conversa cai na casa de Anísio, tio dos rapazes, “o cientista
dos Buracos” (capítulo 1). Ele viu visagem por cerca de duas ou três vezes. Uma
quando era moço, ele via uma mulher toda vestida de rosa, conta um. Viu quando era
53
Note-se que esta idéia de “sistema” é puramente relacional, no sentido que se assume como operante
em contraste com outros sistemas, não estando baseada numa totalidade de valores a que se pode ou não
ser submetido, mas antes numa perspectiva sobre seu funcionamento dado em circunstâncias concretas.
Difere-se assim da idéia de uma totalidade de relações sociais impondo escolhas de conduta que, em
última análise, seriam de ordem ‘mental’, e não da ação, como no ‘sistema moral’ definido por Pitt-Rivers
(1971[1954]: 208), embora guarde em relação a este a idéia de que não é importante a delimitação de
fronteiras (seja a Europa, a Andaluzia ou o povo de Alcalá, no caso do autor, ou seja o Brasil, Minas
Gerais ou o povo dos Buracos, no caso aqui). De acordo com o exemplo das relações entre o “sistema
antigo” da “roça” e do “passado”, a área delimitada pelos dados apresentados existe em função dos
usos empenhados no ato de criação desses mesmos dados.
148
criança, mas agora faz pouco viu de novo, interveio outro. Mas tem tempo que nunca
mais viu, completou o terceiro. Zezinha nos conta então que fica cismada de dormir na
casa do tio. Já morreu muita gente ali! A irmã contesta: quem morreu foi João
Carneiro; ele sozinho! Zezinha então conta a noite em que dividia a cama com uma
prima e sentiu uma pessoa caindo sobre ela, pesando. Não era a prima, não era sonho.
Lá naquela casa, Zezinha contou-nos que via vultos quando criança.
Tutty, aos 19 anos e tendo voltado a morar nos Buracos depois de trabalhar e
completar o Ensino Médio na Vila, diz que, nesta, ela não sente o medo de defunto,
Essas bestage dos antigos!, como sente quando está nos Buracos. Provocando
gargalhadas em seus familiares, Tutty recusou-se a dormir sozinha quando da
veiculação massiva, pela TV, do enterro do cantor Michael Jackson. Tinha medo que o
defunto do artista lhe aparecesse durante a noite. Bestage!, reagiram os familiares da
moça, aos risos, O defunto só vem quando é parente! Quando morre aqui por perto! Mas
é que a gente tanto na televisão que fica pensando, vai que de tanto pensar acaba
puxando ele pra cá!, respondeu ela, sorrindo com auto-ironia. O povo da televisão
também é alvo de piada, Por que agora esse “incutimento”, essa “influência toda” todo
com o morto?! Antes ninguém nem falava nele!
No “sistema antigo”, “do povo antigo da roça”, a “prosa” é particularmente
perigosa, o que implica constantes e atuais cuidados no “dizer”. Não se deve falar dos
mortos porque eles não estão aqui para se defender, repetem os buraqueiros. Mas o
gesto de silêncio em respeito e homenagem aos mortos é também um gesto de medo. A
palavra “puxa” o pensamento assim como “puxa” o contra-argumento. Se este não pode
ser proferido pelos mortos, é possível que aquele venha a dar conta de tal ausência,
puxando uma presença indesejada, a dos “defuntos que voltam”. O receio no falar
acompanha o receio no pensar, um controlando o outro. Isto é, se o pensamento “puxa”,
assume a possibilidade de ser pressentimento. Verbalizá-lo, portanto, é correr o risco de
predizê-lo, ou do contrário terá sido uma “prosa ruim”, bestage!, do locutor. Seguindo a
lógica desta “lei”, o povo da terra dos Buracos a exemplo e por herança do povo
antigo - é mais vulnerável e também mais “forte”; mais “controlado” e também mais
“descontrolado”. O riso despertado por tal sistema, como a controvérsia, sinaliza para a
natureza tão imprevisível quanto vulnerável de determinados acontecimentos, como a
morte ou o amor. A aparente contradição do “sistema” se desfaz se imaginamos que este
consiste na própria circulação de prosa e comida, pois seus efeitos são sempre
contingentes.
149
De primeiro, era mais “controlado”, repetem os buraqueiros, dimensionando o
esforço redobrado que o trabalho e os deslocamentos de seus antepassados requeriam.
As rezas também eram mais “fortes”, aprendidas na força da memória e da autoridade
dos mais velhos - não no “sistema frouxo” da escrita ensinada pela professora, que nem
bater ni menino não pode! Também era mais “forte” a circulação e os efeitos dos
“feitiços” (capítulos 4 e 5). Tudo era mais descontrolado, resumem os mesmos que
repetiram o contrário. Invertendo mais uma vez o raciocínio, lembram-se do rígido
controle outrora imposto sobre a ingestão de certos alimentos, comidas “fortes” e
“remosas”. O povo antigo tinha dessas bestages!, concluem.
Uma espécie de linha divisória - criada pela palavra de quem “sabe contar” o
que não é - separa o tempo “de primeiro” dos “tempos de hoje”. Os antigos
descrevem seus testemunhos com autoridade e detalhe, sendo freqüentemente citados
pelos mais novos, que dizem, à guisa de conselho ou conclusão, “dizem os antigos...”. E
assim “o dizer dos antigos” ora também “o dizer dos outros”, ora “o dizer do povo
é acionado cotidianamente, condenando, explicando ou justificando comportamentos
atuais. Aí, como diz’os antigos, a porca quando fica parada perde o porco. Aparentemente,
qualquer opinião pessoal que assuma um jeito de “ditado” ou “dizer” pode ser
seguida deste anúncio: “dizem os antigos”, ou “diz o povo”, parece ser o mesmo que
dizer “a gente sabe”. Os dizeres não me parecem listáveis, pois surgem em quaisquer
ocasiões em que se queira julgar ou avaliar um fato ocorrido, e se normalmente
aparecem como frases feitas, também servem a exprimir opiniões pessoais. Assim, o
dizer dos antigos (ou “do povo” ou “dos outros”) atualiza uma era que, embora passada,
não limita seus efeitos à sua ordenação cronológica. No tempo de hoje, contudo,
reclama-se sobre o fato de que os mais novos falam com os mais velhos como se
tivessem a mesma idade, e isto não ocorre sem conseqüências. No tempo dos antigos, os
comportamentos eram mais “controlados”. Se fosse na lei antiga..., dizem seja para dar
crédito a uma atitude “dura”, seja para se desfazer de uma postura “frouxa”. De todo
modo, a “lei”, ou “sistema”, dos antigos vigora através de aforismos repetidos por bem
ou por mal entre quaisquer gerações buraqueiras. Similarmente aos movimentos das
conversas e das fofocas, o dizer dos antigos também cria ondas de discordância e aceite,
concentração e dispersão; combinando e descombinado pessoas, reunindo-as ou não.
Se o tempo dos antigos, narrando-se como imutável, opõe-se aos dias de hoje, de
“evolução” acelerada, a simpatia em relação às figuras de um ou outro dos mundos que
se vêem diversos muda a toda hora. As variadas avaliações surtidas neste contraste
150
dependem menos de quem avalia do que dos efeitos observados por dada avaliação. De
primeiro, o sangue do povo era mais “forte”, diz-se quando se notam as restrições
alimentares hoje recomendadas pelos médicos e pela televisão. E a comida era mais
“forte”, observam os mais velhos ao lembrar da banha de porco que se pingava sobre a
farinha, do óleo de côco quebrado e torrado para uso diário e da rapadura, também feita
com suor, para adoçar o café pisado no pilão. Quase nada a gente comprava pronto! E
para comprar, era mais de dias sofrendo em cima do carro de boi! Como efeito deste
tempo em que o “sistema” era “bruto” e “sofrido”, os corpos, criados nas cozinhas das
antigas mães, faziam-se também mais fortes. A lei era outra e as doenças também. Isto
não impede entretanto os atuais cruzamentos de “sistemas”; ao contrário, estes são
constantemente equilibrados em argumentações que incluem “bestagens” e “verdades”.
O povo de primeiro nunca que tomava água depois de uma refeição, como essa gente
toda faz hoje (“mistura perigosa” entre comida “quente” e água “fria”, cf. capítulo 5).
Bestagem do povo de primeiro! Mas é verdade que de primeiro o povo não tinha essas
dores no estômago, de ter que ficar tomando Omeprazol toda hora...
2.5 – Quem sabe contar?
Os preâmbulos de cada um dos dois causos transcritos na primeira
sessão deste capítulo não apenas criam aproximações entre mim, os narrados e o
narrador, conforme vimos, também se esforçam a dar evidências das relações que
possibilitaram a este último “conhecer” o causo. Tal “conhecimento” inclui a indicação
de conhecedores melhores do que ele. A avó da Diva, essa que a irmã casou com meu tio. A
Diva deve saber, que a mãe dela conta. Eu conheci - eu lembro da minha mãe falar - eu conheci
ela demais! No outro causo, destaca, Dindinha sabe contar o causo. A fórmula é recorrente.
No dia a dia “nas casas”, quando se repetem os causos, diz-se “Fulano é que sabe
contar”, indicando também por o mapeamento das pessoas envolvidas no acontecido.
A trajetória de sua “conversa” havia partido de casamentos entre primos e outros
parentes mais chegados, como um causo de casamento entre tio e sobrinha, até chegar
ao acontecido cujo inesperado, à época do causo, não se poderia “analisar”. A minha avó
Arcanja não analisava nada não, moço! Que as moças, naqueles dias, era só de dentro de casa.
Na hora que ia ni festa, era rodeada da mãe. Aí - minha avó contava - diz que dali um pouco... Ó!
As moças dentro de casa, na intimidade da presença materna, garantiam
que não houvesse movimentos suspeitos. Como se poderia analisar o acontecido de uma
151
gravidez? A “análise”, no causo, é a observação sobre as implicações de movimentos
fora da casa: deslocamentos que dizem, por meio do rumo de onde se vai, o rumo de
algum querer-bem. dentro de casa! Quem poderia supor? Quem poderia analisar? O
futuro a Deus pertence, diz o dizer. Mas, como mostram os causos, quase sempre se
pode analisar os rastros de um rumo ainda a ser dado (capítulo 1). Nos acontecidos que
se prestam à matéria de um causo, a surpresa de uma sorte que não se podia “calcular”
previamente mostra-se imaginada em análise através de deslocamentos tornados
significativos.
Quando a jovem Juçu caiu doente dando sinal do ocorrido, os
deslocamentos começaram: davam alguma pista. Mas quem ia analisar? E Quincas
descreve a movimentação, analisando as relações e percursos do que veio se tomar,
depois, conhecido de todos. Aos homens, foi mantido o silêncio. O conhecimento sobre
“as intimidades de mulher” é até hoje, nos Buracos, cuidadosamente ocultado dos
homens. Assim, para se contar um causo” desta ordem, de circulação restrita à
intimidade da casa, é esperado que se tenha não apenas idade, parenteza e vizinhança. O
conhecimento para tal depende ainda de uma qualidade de gênero. São causos dos quais
as mulheres tomam parte sem deixá-los circular entre os homens; sobre o qual o
“conhecimento” de quem “sabe contar” não se expõe do mesmo modo. Quando Quincas
terminou o causo de sua tia Juscelina, contando ter ela morrido após ocultar a gravidez
incestuosa, perguntei a ele sobre a criança. Logo que/Dizem assim, quando deu fé, o menino
não chorou. Logo, nasceu morto. Foi bem assim. Agora/Dindinha sabe contar o causo,
respondeu-me. Algum tempo depois, tive a ocasião de perguntar sobre o causo a Dona
Maria de Antônio Velho, a “dindinha”, ou “Velha-Maria” (cf. Figura 5). Era decerto
uma indiscrição de minha parte, cometi-a me valendo da posição de forasteira
“chegada”. Ouvi um causo, eu disse a ela, sobre alguém que teve filho com irmão,
alguém da família suas... A senhora sabe contar? Por seu lado, Velha Maria usufruiu de
sua posição de Velha” e não me respondeu, Não sei, não, minha filha... O juízo ruim,
você sabe...
Há cerca de quatro anos sem poder caminhar devido à bacia óssea
quebrada, Dona Maria está “o osso puro”, dizem para dizer que não se nota a presença
de carne entre sua pele caindo como que solta dos ossos. Praticamente não come,
lamentam-se os parentes. Mas a cabeça...! A Velha Maria sabe contar os causos
tudinho-certinho! O que tem de encarquilhada a velha tem de lúcida! Ao declinar sobre
o assunto do incesto, alegando juízo fraco, Dona Maria pareceu-me, ao contrário, dar
152
provas de seu “juízo bom”. Ela sabe contar sim!, retrucaram mais tarde outros a quem
relatei minha investigação. O causo não era mesmo de se falar. Embora eu tenha
freqüentemente perguntado ao povo dos Buracos sobre o tema, o incesto só havia
aparecido diante de mim na forma de causos longínquos, pouco conhecidos, relativos a
outros povos, vizinhos mas não parentes. Povos, enfim, dos quais não se sabe “contar o
causo direito”. Por que Seo Quincas me contou um causo tão íntimo, de gente tão
chegada? Por que o fez diante de um gravador? Juçu, Jucelina, a falecida tia de
Quincas, é irmã da madrinha e vizinha deste, a Velha Maria. Juçu é chegada de seu
sobrinho, a constar por sua posição de proximidade no desenho da árvore genealógica.
Mas, por ter morrido cedo e não ter deixado descendentes, não se pode dizer que
chegaram a ter de fato “conhecimento” mútuo. Esta distância entre a falecida de outrora
e os vivos de hoje se expressa no fato de que, embora seu nome já constasse no desenho
que eu fazia da genealogia buraqueira, o que significava me terem mencionado a
existência de Juçu, nada me havia contado sobre ela, conforme se costumava fazer ao
indicar os parentes e suas relações de parenteza.
Qual foi “cálculo” de Quincas ao me contar aquele causo? Não pretendo
estender-me em especulações, mas cabe aqui considerar duas ou três pistas a respeito, as
quais se dão a ver a partir do que identifiquei como ‘evidências’ fornecidas por seu
‘método’ narrativo, seus “causos”. Antes de tudo, note-se que os causos contavam sobre
os deslocamentos de mulheres. A dúvida sobre o nome da personagem narrada segue-se
por uma cadeia de nomes femininos de quem sabia, quem contava: Ela se chamava
Juscelina, minha mãe contava; - minha avó contava - diz que dali um pouco; A minha avó
falava de uma doencinha de gravidez - como é que era?; Aí Juçu cumpriu o resguardo [...]. Aí,
menina, é que eu não sei. Se ela cumpriu o resguardo todo... Dindinha é quem sabe. O causo
de Juscelina, enfim, tinha como ‘tensão dramática’ a própria ocultação do causo diante
dos homens da casa, pai de Juçu. Quando da descoberta do acontecido, a restrição aos
homens se explicita: Ela está é grávida! se for dos irmãos dela! Ele não é doido! E minha
avó, Eu não sei de quem foi, mas ela está é grávida! minha avó foi assuntar mais... Ô, moço!
no mês de ganhar menino! Escondendo, diz que ficou doente, pra dentro do quarto.
deitada. A hora que o pai estava por ali, ou os irmãos, ela não saía. quando estava as
mulheres saía. O tema do incesto, como outros ligados à criação e reprodução dos corpos
(sua ‘saúde’), é “assunto de mulher”. Sugiro, neste sentido, que a condição para que Seo
Quincas me tenha contado o causo seja justamente sua ignorância em relação a este. Se
153
certos temas com os quais a palavra deve tomar cuidado, Quincas não corria o risco
de enfrentá-los
54
.
A narrativa do causo contado por Quincas engajava sobretudo um
exercício mnemônico - Como é que era o nome? É por apelido que chamavam... diziam, Ei
fulano, como é que está a.... Note-se que ele nunca ouvira pessoalmente alguém perguntar
por Juscelina (“Juçu”), pois nasceu depois que esta havia morrido; a musicalidade da
pergunta, contudo, é agora repetida familiarmente; o “modo de dizer” lhe traz a
lembrança decerto dos causos que ouvira de menino. Por esta aproximação operada na
palavra, Juçu é feita “chegada” de Quincas (sessão 2.1). Na cadeia dos causos, a
experiência de escuta reflexo da proximidade em relação aos “antigos” suprime a
explicitação suposta em um discurso indireto e assim suprime o tempo que separa o
acontecido e a sua narrativa, o fato e a versão. Narrador e narrado aproximam-se até
assumir uma mesma posição, sobrepondo-se. Entretanto, cabe atentarmos para outros
movimentos de sua “conversa”, movimentos de afastamento. “Aí não lembro bem, diz
Quincas, se foi ali no mesmo dia ou semana [que Juçu] inchou dentro do quarto”. A conversa
pontua-se por pequenas mostras de incongruências, lapsos explicitados: que não sei
se...; é que não lembro...; mentindo... Estas explicitações são significativas.
Explicitam o que nos é dado a ver no relato de Quincas; trata-se do que se deu a ver
“aos outros”, os deslocamentos entre casas, fora delas portanto. O desconhecimento
sobre o que se passou dentro de casa é, neste causo, significativo, pois que a sorte aqui
narrada figura em um acontecimento da vida íntima. Nos lapsos do causo de Quincas
residem o objeto por excelência do que definimos por “causo”: a sorte. Sua análise
dependeria aqui dos traçados dos movimentos dentro de casa, na intimidade “rodeada da
mãe”. Como bom orador, Quincas explora sua melhor qualidade: a idade. Mas o
desfecho do causo, ali onde a história, com sua rede de relações e deslocamentos, é
‘cortada’, quando a sorte se mostra enfim “dada” acontecida”, Quincas aponta para
“quem sabe contar”. Assim, encerra os seus causos: Pergunta a Diva que ela conta pra você
a história ou Foi bem assim. Agora/Dindinha sabe contar o causo.
54
Camila Medeiros também identificou este silêncio vindo daqueles que dominam o
assunto em questão. No seu caso, tratava-se do tema da criação de gado e da prática de
queima. Assuntos delicados em seu contexto de pesquisa (o assentamento originado dos
ex-moradores da área do Parque Nacional grande Sertão veredas), eles ganhavam
alguma atenção quando das conversas com mulheres, justamente quem “não entende do
assunto”. Os homens se esquivavam de modo semelhante à Velha Maria sobre o tema
do incesto. (comunicação pessoal).
154
A morte de Juçu não é como a de um acidente no qual o destino
abruptamente se mostra, a despeito da ação da vítima (capítulo 1). Que relação esta
morte guarda com a sorte? Sobre um amor proibido, arriscado, desvantajoso, é iminente
a suspeita de uma sorte “posta”, “coisa feita”. Uma “sorte” que não seja a dada por Deus
é, logicamente, “feita” – ou “posta” - por gente. Que pecado! A sorte é de Deus! Acusar
alguém de tamanha pretensão seria uma acusação demasiado grave. (cf. capítulos 4 e 5).
Convém não falar. A vaga menção a tal possibilidade, que em última instância seria
chamada “feitiço”, é o que se chama “prosa ruim”; uma palavra que se pode fazer
rogada, como um pensamento que se faz pressentimento (sessão 2.3). A questão do
acontecido tal qual narrado por Quincas coloca o problema da morte como associado à
sorte. Parece que é a sorte!, comenta ele. No caso de Juçu, a “sorte” entendida como algo
que é “dado por Deus” se faz perturbadora quando imaginada sob intervenção dos
procedimentos humanos. Parece..., diz Quincas. A “doencinha de antigamente” e os
seus remédios, menciona ele; e os devidos socorros médicos, negados uma vez que
segredado o fato. Ali, na análise de Quincas, a sorte se confrontava ao livre arbítrio.
Minha avó falava, o sujeito não morre antes do dia. Morre! Juscelina mesmo morreu (...). Porque
ela adoeceu o bucho; ela escondeu, [por isto] ficou doente. Se ela fosse uma mulher casada,
que o esconde, tinha tomado remédio, não tinha morrido. Mas quando descobriram, estava
passado: a mulher morreu. Algo efetivamente havia sido “feito”; algo do qual Quincas não
poderia ter conhecimento; “assuntos de mulher”. A rotina de dentro da casa, na
intimidade do quarto fechado, no causo de Juçu é o próprio acontecimento da morte, o
traçado de sua sorte. Quincas não sabe contar do tempo de resguardo, dos remédios
caseiros; tomou, não tomou; o nome da doencinha e o diagnóstico da gravidez (capítulo
4). Juçu cumpriu o resguardo. Aí, menina, é que eu não sei. Se ela cumpriu o resguardo
todo... Dindinha é quem sabe.
Dindinha “é quem sabe”, diz Quincas. Até aqui, pode ser que os ‘dados’
apresentados tenham nos dado a notar uma proeminência masculina na prática de se
“contar causo”, mas esta ‘evidência’ merece nuance. As mulheres “falam muito”, mas
“assunto de mulher”, é “mais na intimidade”, “no particular”. “Assunto de mulher” é
dizer assunto de “saúde feminina” (capítulo 4). Causos assim circulam mais de forma
mais restrita, como veremos (capítulo 3). Mas, apesar da discrição, note-se que o tema
acaba por articular-se necessariamente ao que vimos ser obrigatório ao repertório
buraqueiro, a saber, o amor e a doença (capítulo 1).
155
Entendidos como acontecimentos da sorte do corpo, os dois temas constituídos
nas conversas segredadas da intimidade feminina espalham-se de modo diversificado na
ordinária circulação de palavras buraqueira. É sobre estes temas que se assunta “nas
casas”, pela conversa cotidiana nas quais se atualizam sobre o estado de saúde de um tio
ou o estado de paz e guerra no casamento de uma sobrinha. Além disto, seja quando de
uma visita, à guisa de “notícias do povo”, seja nos causos do “povo antigo”, quando se
conta a história dos Buracos (sessão 2.3), os casamentos latentes ou passados, vimos,
são forçosos temas. Igualmente, o estado de saúde dos enfermos em geral é na prosa
diária tão reincidente quanto o são os causos do povo antigo sobre doença e morte
acontecidas. O interesse buraqueiro nos causos e informações a respeito do amor e da
doença, contrastado à maneira com que o assunto de mulher é em geral apenas
‘entredito’ na circulação prosaica, compõe um aspecto curioso do “sistema de prosa”
dos Buracos: aquilo de que mais se fala é também sobre o que se guardam mais
silenciosos cuidados. Deter-nos-emos sobre este ponto na segunda parte desta tese. Por
ora, adiantemos que as mulheres buraqueiras, responsáveis pela “geração” e “criação”
de pessoas, são, ‘naturalmente’, conhecedoras privilegiadas daqueles acontecimentos do
corpo. Nisto reside uma diferença notável entre os modos da palavra masculina e os da
feminina, sendo esta última mais afeita à observação disto que venho identificar como
próprio aos buraqueiros em geral. A saber, o modo de dizer sem dizer, de puxar uma
argumentação ou um raciocínio sem verbalizá-los por completo, trazendo os outros para
perto de si à medida que os remete e refere a outrem.
De fato, quando chega alguém “de fora”, isto é, um não parente ou um
não chegado, cabe ao homem puxar a cadeira ao visitante e dele se ocupar com a prosa,
enquanto a mulher se mantém calada à beira do fogão, tratando da mexida de cozinha,
também voltada ao chegante. Eu mesma pude observar inúmeras vezes tal cena. À
exceção precisa de duas casas onde as mulheres são do tipo que, no dizer dos outros,
“põe sela no marido”, minhas primeiras visitas às casas buraqueiras renderam os causos
de homens, contados pelos mesmos. Com o passar do tempo, entretanto, comecei a
ouvir cada vez mais os causos das mulheres. Elas então haviam se acostumado a
mim; e eu a elas, tendo aprendido a me locomover conforme sua mexida, sabendo
quando ir com elas fosse até o rio lavar as vasilhas; ao terreiro, caçar manga, goiaba,
buriti; ou ao mandiocal, fazer xixi. Por essas ocasiões, o assunto muitas vezes era de
mulher, ou de moça, assuntos do corpo. Não percamos de vista que “o homem é quem
a palavra”. Os buraqueiros o dizem deliberadamente, assim como dizem que “a
156
mulher deve acompanhar o homem” (sessão 2.3). Em ambos os casos, os dizeres falam
sobre modos de decisão masculina, mas não o entendamos como sobredeterminantes
nos acontecimentos diários ou dos causos passados. A relação entre o dizer e o dever é
aqui complexa. Como no “sistema antigo”, o “sistema” de hoje, na roça, entende que
mulher “é em casa”, na mexida de cozinha; e homem “é saindo”, para a roça ou em dia
de serviço na casa de outro. Este quadro vem se alterando desde o crescimento da Vila,
quando, sobretudo devido ao Posto de Saúde e aos supermercados, as tarefas femininas
de geração e criação foram deixando de ser práticas exclusivas ao interior da casa. Mas,
se estas mudanças recentes vêm sendo alvos de nota dos buraqueiros, é justamente
porque mobilizam algo que se entende por constitutivo das relações buraqueiras (cf.
capítulos 5 e 6). A rigor, o homem é quem caminha. E se “quem caminha conhece”,
como diz o dizer, o homem é quem “sabe contar” o causo. A rotina dos movimentos
humanos nos Buracos - embora aberta à sorte das tardes morosas, “horas de bestar”, e
dos deslocamentos constantes - é marcada de modo bastante calculado por buraqueiros e
buraqueiras. A mulher deve ficar em casa durante a manhã; primeiro para preparar o
café, depois para lavar-lhe as vasilhas junto com as da noite anterior, e em seguida para
preparar o almoço. Até a hora de servi-lo, o homem em geral já saiu e voltou; o que teve
a resolver era fora da casa. A tarde é o momento em que as mulheres podem ir às casas
da vizinhança ou fora dela; que sejam antes do tempo de preparar a janta, e que
ninguém tenha chegado de surpresa em sua casa antes da saída, atrapalhando-lhe o
cálculo. Também em dias de sol forte, o plano de partida pode ser adiado em detrimento
da idéia de lavar roupa, aproveitando o dia bom de secar. Assim, as idas e vindas
femininas são - embora regulares - particularmente sujeitas a determinados “cálculos”.
Com isto, e ainda de acordo com o que vimos anteriormente, a palavra
feminina assume uma peculiaridade curiosa, pois se o causo ganha forma em um gesto
de interlocução, isto é, na interação entre quem fala e quem ouve (capítulo 1), ele é a
explanação de uma ‘experiência’, um ‘testemunho’, mas também está aberto ao não-
dito, isto é, à informação partilhada secretamente, na intimidade da casa. Muitas vezes,
a reticência ou os ‘dados’ sobre deslocamentos (como, por exemplo, o fluxo entre as
casas das avós de Quincas) dão evidências não verbalizadas daquilo que a ‘experiência’
do próprio locutor não conta de saber (por exemplo, a idade, as viagens, os
“conhecimentos” pessoais de Quicas). Assim, a posição da mulher, “de dentro da casa”,
é privilegiada em relação à do homem no que diz respeito às duas formas de produção
narrativa de ‘evidência’. Por um lado, é nas casas que se vê (ou escuta) serem pontuados
157
os diversos deslocamentos, as merendas e refeições fornecendo aos passantes a ocasião
de interrupções particulares, nas quais narram os estados das caminhadas (para onde se
vai, de onde se veio, etc), isto é, os dados concretos, verbalizados, sobre um
acontecimento qualquer. Noutras palavras, à semelhança do que foi dito no primeiro
capítulo a respeito de Quincas, cuja condição de cego o mantinha fixo em casa,
tornando-o observador privilegiado do movimento, as mulheres têm acesso vantajoso
aos causos que se estendem pelas versões dos diversos passantes. É nas casas que o
povo conversa, dizem os buraqueiros para dizer que ali se contam causos e também
“fofocas”, isto é, “mentiras” no sentido pejorativo do termo (não como ‘fabulação’
própria ao causo, conforme vimos no capítulo 1). “Nas casas”, está em jogo o que
podemos chamar reputação’ e que os buraqueiros nomeiam jocosamente “a fama dos
outros”. Neste sentido, pode-se dizer de maneira algo subvertida que as casas
constituem o ‘espaço blico’ buraqueiro. Não existe nos Buracos uma praça central
onde se possa “reunir o povo”, tampouco uma “associação” com peso significativo nas
discussões que pautam a prosa comum; e a “conversa” que ‘circula’, por assim dizer
(como, para ‘nós’, seria grosso modo a produção jornalística e o debate do ‘poder’ e
‘interesses’ ‘públicos veiculados por esta), se “nas casas”. Por outro lado, a
vantagem feminina não diz respeito apenas ao fato de que elas se mantêm mais ou
menos ‘fixas’ em suas casas. Quando o causo envolve, como contraparte ao sabido
pelos deslocamentos, alguma questão ligada ao que venho chamado ‘acontecimentos do
corpo’ (de um modo geral, o amor e a doença), e sobretudo do corpo feminino, dados no
interior da casa, pode-se seguramente afirmar que uma mulher o saberá “contar
direito”, pois que são elas as “donas” da cozinha, onde se preparam, se aprendem e se
resolvem as medidas necessárias (cf. capítulo 4). Assim, nas conversas entre
“visitantes” vizinhas, integram-se várias vezes dados tão delicados quanto definitivos na
resolução de causos específicos, concernindo namoros, casamentos ou enfermidades. Os
causos contados entre mulheres nas rotineiras tardes buraqueiras “entre o almoço e a
janta”, enquanto os homens estão “fora” - misturam os detalhes daquilo que todos
conhecem e os segredos ou semi-segredos do que elas conhecem d’avantage sobre a
dinâmica de seus corpos particulares. Além disto, parece-me que o modo das conversas
entre mulheres, em geral realizadas no tempo limitado pelo intervalo entre uma e outra
tarefa doméstica. Quando conseguem “acertar o cálculo” de sair e realizar a visita
158
planejada, a conversa é, no que toca à intenção da prosa, mais rica em zelo e
objetividade do que a temática caracteristicamente propriamente masculina
55
: os causos
que se conta e ouve entre mulheres são em geral objetivados previamente, ao longo dos
dias de “cálculo” anteriores ao encontro. Dias transcorridos até que o deslocamento
planejado “dê certo”, pois não é todo dia que uma mulher consegue “fazer visita” ou
mesmo “passar” numa casa da vizinhança, ao contrário dos homens, que o fazem a todo
o momento, durante seus deslocamentos rotineiros. A ‘objetividade’ no assunto que se
pretende tratar decerto existe tanto entre homens quanto entre mulheres, mas no
segundo caso é uma “lei”, por assim dizer, uma vez que estas se auto-reconhecem como
mais interessadas na “intimidade” alheia do que são os homens entre si. Entre eles, é
senso comum o fato de que “gostam mesmo é de falar de gado”. Comentei logo acima
sobre os causos que identifiquei como “assunto de mulher”, dizendo que os ouvi em
locais menos ‘públicos’, sem a presença masculina: a fonte [rio] onde se lava o sujado
na cozinha, o terreiro, o mandiocal. É importante notar, entretanto, que estes causos de
mulher, discretos e em certa medida silenciosos, não se separam das informações
circuladas “nas vistas de todo o mundo”. Nos assuntos de doença, tal forma de
conhecimento determinará os modos de tratamento a serem adotados; nos de amor, a
palavra será incisiva de maneira menos explícita.
Havia uma família na qual o pai, por ser muito “seguro”, devia afeto aos
filhos, isto é, mal lhes dirigia a palavra e vice-versa, contou-me Quincas. Ele me falou
então sobre este “modo do povo antigo”, De primeiro, disse, um filho ou uma filha
tratava era com a mãe; se quisesse alguma coisa, ou se decidisse casar, a mãe ficava
sabendo e ia tratar de amansar o pai, convencer. Quincas narrou-me ali o causo do
casamento de um “familiado” que vive hoje não muito distante: o pai era contra o
namoro da filha com um primo, mas esta decidiu que ia casar e veio ao pai com o futuro
genro, os dois com intenção de jantar, conforme aceite da mãe. E então anunciaram o
casório. O pai, com os dois ali já de dentro da casa, ficou mudo. Precisou a noite inteira,
55
Tal afirmação sustenta-se evidentemente por um universo de comparação desequilibrado. Participei por
inúmeras ocasiões de conversas empenhadas exclusivamente por mulheres, sendo impossível que o
mesmo ocorresse entre homens, uma vez que sou mulher. Creio contudo que tal impressão pode ser
respaldada por um e outro causo de visita entre homens testemunhada por mim na casa de Dona Rosa.
Ali, como é a regra geral, a conversa entre homens não excluía a presença feminina, e isto é seguramente
a regra. Pode-se argumentar que conversas masculinas mais íntimas em locais onde não
necessariamente presença feminina, como na roça e na estrada, mas aqui é importante considerar a
argumentação geral desta tese, a saber, que a “cozinha” e a “comida” dão as bases para o tempo lento
necessário à “boa prosa”. O valor dado por buraqueiros homens e mulheres ao gesto da visita justifica
este caminho de análise.
159
o jovem casal em um quarto enquanto, no outro, a mãe conformava o pai do dado
consumado, dando-lhes as alternativas aos arranjos necessários. Ainda hoje, parece-me
uma regra o fato de que, sobre os causos dos filhos, a mãe toma conhecimento antes do
pai; cabe-lhe transmitir ao marido as informações ao mesmo tempo em que lhe acalma
os ânimos. Nas famílias em que a e é “valenteou “prosa ruim”, e o pai é quem tem
a palavra de aceite, os filhos decerto encontram mais dificuldade em enfrentar os de
casa quando de uma decisão controversa.
A “casa”, portanto, é o lugar por excelência das mulheres. Mas isto não
se refere apenas a uma divisão de ‘domínios’ no ‘espaço social’ buraqueiro; constitui
uma característica da circulação de causos em geral, e portanto da escala de valores que
se atribuem a uma e outra versão circulada. As versões femininas “têm seu lugar”, para
falar como fazem os buraqueiros numa expressão que se tem por elogiosa. E esta
proeminência parece estar implicada numa questão de rotina: se é na cozinha que se
contam os causos, natural que sejam as mulheres, “donas da cozinha”, quem os
conheçam com mais detalhes, mais acúmulos de versões (capítulo 1). Além disto, elas
têm ali a ocasião de estar apartadas dos homens, informando-se sobre os corpos que aos
homens não se devem revelar completamente. O leitor poderá questionar se afinal não
estou deduzindo afirmações para além de meu alcance parcial, a saber, o de estar
necessariamente limitada aos espaços de prevalência feminina. De fato, é significativo
que eu não tenha freqüentado as “lidas na roça” (trabalho hoje quase exclusivo aos
homens); por apenas uma vez consegui que me levassem a ajudar neste tipo de trabalho,
e pude averiguar que ali eles conversam muito. Nos Buracos, não existem bares onde os
homens se encontram e se sentam para conversar, como os que existem na Vila, mas sei
que nesta eles se encontram com regularidade mais ou menos esparsa, e também isto
poderia ser usado em prol de sua participação nas versões de causos. O que sei sobre as
informações sonegadas por homens é praticamente nada e não poderia portanto incluir
tal dado em meu jogo analítico. Contudo, dois modos” próprios ao povo buraqueiro,
conforme etnografados até agora, nos levam a imaginar o ‘não-dito’, ou o ‘entre-dito’,
feminino como determinante na guerra de perspectivas em que se constitui a circulação
de prosa nos Buracos (capítulo 1). Primeiro, a reincidência de assuntos ligados ao que
chamei de acontecimentos do corpo - a saber, o amor e a doença - em sua abordagem
feminina revestem-se de um elemento também recorrente na prosa buraqueira: a análise
da relação entre os deslocamentos humanos e aquilo que não pode ser evocado, o acaso,
“a sorte de Deus”. O tempo, entendido como linha linear na qual os eventos se sucedem
160
por causa e conseqüência, é articulado à “sorte”, que incide sobre o que não se pode
prever, refutando-se à lógica cronológica (do modelo progressivo). Como expressão
deste acaso inescapável, o amor e a doença assumem, no conhecimento do corpo
próprio às mulheres, uma forma narrativa tão sorrateira quanto eficaz: o silêncio
feminino se assemelha assim à “mexida de cozinha”, uma prática que se faz
conhecimento, uma semiótica não verbal. Esta articulação entre os dois modos de
observar a ação do tempo parece-me ‘central’ ao povo buraqueiro, uma vez que presente
na maneira como homens mulheres crianças e velhos analisam seu estar no mundo, seu
“sistema”. Ela está na composição entre duas práticas propriamente femininas,
respectivamente a de ‘reprodução’ (i. é, “geração” e “criação” de seres humanos) e a do
“cálculo” cotidiano envolvido na “mexida de casa”, sendo uma e outra muitas vezes
indistinguíveis.
161
Capítulo 3 – Conhecer de dentro da casa
3.1 – Pessoal, visitas e vizinhos
Escarquiado, explicou-me Titia, é assim... Quando você chega em um
lugar e que os outros estão rindo de você e você não sabe o porque, ou quando estão
falando e param de falar na hora que você entra; você fica assim, sem assunto,
escarquiado. Esta última palavra, Titia diz e repete olhando para mim, franzindo a testa
com graça, depois ri. Trata-se de uma referência ao vocabulário que eu desconhecia
antes de morar nos Buracos e que me foi ensinado por Titia - atenta ao meu desajeito no
falar e entendendo por o motivo que me levara para perto dela e de seu povo, o
motivo que me levava a “estudá-los”. Titia sorri quando surge diante de mim com uma
palavra que julga especificamente “da roça”, “o modo de falar do povo antigo”. E a
repete olhando-me fixamente, até que eu reaja e sorria por minha parte. Criou o costume
de encaixar o vocabulário ensinado em assuntos distraídos, tecendo assim uma espécie
de código, que os outros testemunham, passam a reconhecer, compartilhando-os cada
um em sua medida. Eu não gosto de leite, não! um trem ruim no estômago! Argh!
Dá aquele enfaro! E se riem todos. Com isto, a casa cheia, Titia faz de sua prosa motivo
de risada geral. Me enfaro!, diz ela, com gosto. Gosta também que os outros a
chamem “Titia” e assim ensina a todos. Seu nome de batismo é Maria, mas ganhou o
apelido porque a maioria dos da geração de seus filhos eram seus sobrinhos de sangue;
os outros “pegaram costume” de chamar. Hoje, até mesmo os mais velhos a chamam
pelo tratamento do parentesco. E quem chega de fora também passa a tratá-la pelo
apelido. Que este modo de chamar seja costume, não é interessa a Titia; apraz-lhe
ouvirem chamá-la assim, Ele me chama é tia!, conta ela a respeito de uma relação não
consangüínea, e o tratamento instituído mostra-se para ela como sinal de afeto. Titia não
gosta de ver TV, aquela zoada. Enfara! “Enfarar”, aprendi, é o mesmo que enjoar
devido à exposição excessiva, o que Titia me explicou a partir de um exemplo: enfarar
de uma comida que se ingeriu durante toda uma vida, é ficar mal de sentir o cheiro.
Pode-se “enfarar” de uma pessoa, de um lugar ou de uma comida, mas qualquer um
destes componentes, quando provoca enfaro, é provável que venha em bloco com os
demais. “Enfarar da prosa” de alguém expressa isto: enjôo em reação ao modo de
162
conversar tanto quanto ao modo de comer, cozinhar e habitar de uma pessoa. Trata-se
em suma de um mal-estar cuja causa pode ser fisiológica tanto quanto social ou afetiva.
Me enfaro!, repete-me Titia, destacando a palavra desconhecida, a respeito de uma
comida de que não gosta; fazendo muxoxo, a cara franzida para expressar nojo, é um
jeito próprio dela. Os outros se riem, Essa Titia...
Quando cheguei aos Buracos, os silêncios a que fora rotineiramente submetida
pelos meninos da casa de Titia deixavam-me escarquiada, contei-lhes. Eles riram, mas
agora já ríamos junto. Desde que me tornara amiga e, depois, madrinha de Tutty,
sobrinha de Titia, os filhos desta passaram a verbalizar sobre o tema que outrora
silenciavam: Tutty quer namorá-los? Qual deles ela está querendo? Os rapazes
aproveitam minha presença para caprichar nas piadas, rindo um do outro, dizendo,
Almoçou e Jantou na casa de Dasim [pai de Tutty]! Rica (a mãe) fez até frango!
ganhou a sogra! falta é a Tutty querer! Riem os outros enquanto o pretende se
aborrece, Prosa Ruim! Na ausência de Tutty, olham-me, esperando em meu riso
cúmplice um sinal de resposta qualquer. Outras vezes, testam-me diretamente, Aninha
não quer casar nos Buracos, heim, Aninha? Casa não! E se riem. De outro lado, a sós
entre Tutty e suas primas, dizemos “coisa que não se diz na frente dos outros”. Às
vezes, é necessário aproveitar a saída do xixi para, escondidas no mandiocal,
compartilharmos detalhes segredados. Titia faz pergunta, sem nos esconder o que
deduzira antecipadamente. E independente da negação da sobrinha, ri e repete sua
própria dedução, Namorou ele, sim! Eu cunheç’ocê, minha sobrinha! Por esta, Titia
poderia ser chamada “prosa ruim”, mas não o é. Sobra para seu filho mais velho, este
sim, Prosa ruim!, xinga Tutty, Fica atentando a gente! Ê atentado!
Os silêncios, contudo, nunca deixaram de acontecer. Às vezes, não passam de
uma pausa calma, na qual se aproveita o fim de um assunto para buscar outro que se
quer contar. Toda conversa tem mais ou menos momentos de silêncio. Graças a eles,
pode-se ouvir o tio bêbado gritando, Ele está é pelas bandas de Silvino!, e atentar para a
zoada do vento que trará chuva, ou para a barulhada de uma galinha, É bicho? E correm
ao terreiro, onde uma cobra é talvez quem assuste a outra aos cacarejos. Noutras vezes,
os latidos de um cachorro anunciam a caminhada de alguém mais acolá. Os silêncios,
enfim, também podem servir para animar a prosa. Mas há, ao contrário, momentos onde
a falta de assunto cria tensão, o que se expressa na manutenção da quietude, deixando-
nos a todos escarquiados. A conversa ni casa de Titia estava muito parada!, reclama-se
então, ao ir embora para outra casa. Assim fazíamos eu e Tutty, aos domingos ou nas
163
férias, quando esta vinha para a casa dos pais nos Buracos, sua casa; vinda de Chapada,
da casa mais recentemente construída também pelos pais, onde então morava para
estudar o Ensino Médio. À medida que as caminhadas com Tutty pelos Buracos se
tornavam rotina, minhas visitas às casas mais longínquas viam-se reduzidas. Muitas
vezes, desistia de “visitar o povo”, conforme planejamento de pesquisa, para sucumbir à
preguiça alegada por Tutty. Estou sem coragem! O sol está rachando!, argumentava ela,
e ficávamos o dia por ali mesmo, circulando apenas entre as casas mais chegadas.
Assim foi-se formando minha própria “vizinhança”, que a rigor se restringe hoje às
casas de Quincas, onde morei, de Damásio, pai de Tutty, e de Titia. Nessas casas, não
costumo sentir-me escarquiada e não me enfaro das companhias. Posso entrar e sair sem
necessariamente cumprir rituais de visita, é enfim, minha “vizinhança”. Caminhar de
uma casa para outra em busca de “prosa animada”, circulando em um raio de vizinhança
variável é o que fazem crianças, moças e rapazes nos Buracos quando não é hora de
serviço ou dia de escola. Quando um buraqueiro emigrante diz que a “roça” é lugar de
“bestar”, a afirmação produz graça porque a expressão “bestar nas casas” indica
descompromisso, coisa de gente que “tem tempo(“gente que não trabalha”). Circular
é “bestar”. Roça é o melhor lugar de bestar!, riem os que vêm de Brasília, agora a
passeio em sua terra de nascença. Durante os meses de dezembro a fevereiro, o tempo
das águas, a época de Reis, os parentes migrados para as capitais animam as casas
buraqueiras. Cada família recebe os seus. Mas esta circulação, ao contrário do que
ocorre “na vizinhança”, prolonga-se para além do espaço das casas agrupadas segundo o
nome de um rio e/ou “povo”/“família” (capítulo 2), e portanto é mobilizada por algum
“cálculo” (capítulo 1), no que diferem deste modo quase aleatório de “bestar” à mercê
da “animação” aqui e acolá, conforme fazíamos eu e Tutty no Calengue. O que fazem
os que vêm de longe é “visita”. Alegando “gosto” e “saudade”, dizem “cumprir a
dívida”.
Os motivos para se passar nas casas da vizinhança não consistem apenas em
“bestar”. Às vezes, a intenção de um sujeito é entrar e pedir a bênção para saber dos
últimos deslocamentos do “povo”, informando por sua vez sobre o seu próprio
movimento. Quando se está a caminho de algum rumo - seja gado para olhar, lenha para
caçar, horta para molhar – os ‘dados’ sobre a circulação alheia são em geral úteis, pois o
cálculo de um movimento pessoal costuma considerar certos encontros pelo caminho,
seja para mod’negócio ou para enviar recado. O que parece caracterizar as presenças
rotineiras em uma casa é que ali não se imagina ficar “escarquiado”, já que, ao contrário
164
das visitas, não é preciso, no dizer do povo, “fazer muita lama” antes de ir embora;
pode-se voltar no próprio rastro. Durante uma única tarde, uma pessoa pode entrar e sair
inúmeras vezes de uma mesma casa, e o gesto inaugural de quem chega não é o de fazer
engrenar a prosa, como no caso das visitas, mas antes o de “assuntar” a prosa já corrente
entre os presentes. No bestar diário, chegantes e dono(a)s da casa deixam-se levar pelo
rumo da conversa sem necessariamente se preocuparem em mantê-la “animada”. Pode-
se deixar a casa a qualquer hora, aproveitando-se o justo momento em que a prosa perca
o rumo e esmoreça em silêncio. De acordo com o assunto, entretanto, deixar a casa logo
após uma determinada prosa pode levar os que ficam a sugerir motivações não-ditas
para aquela partida, seja vergonha em continuar o tema, seja aborrecimento causado
pela conversa. Assim, deixar a casa logo após o término de uma prosa também tem seus
riscos; pode-se dar a entender, pelo gesto de partir, algo que não queira ser dito. Mas de
um modo geral não problema em que a estada numa casa da vizinhança dure dois
minutos apenas o tempo de cumprimentar - ou uma tarde inteira. Ambas as situações
são justificadas (ou podem ser justificadas, caso não haja alguma suspeita que
transforme o tempo da presença em elemento expressivo). Ao contrário do que ocorre
em uma situação de “visita”, no dia-a-dia bestando nas casas a decisão de partir pode ser
feita qualquer momento, seguindo-se apenas por um “até hoje!” dito entre dentes, sem
cerimônia de adeus. Pois se esta circulação é diária e constante, imagina-se sempre
poder voltar logo mais àquela casa, ou vir a encontrar os ali presentes em outras casas,
mais tarde, mais adiante. Diversamente, um vizinho que chegue a uma casa para dali
seguir “viagem” dar-se-á ao trabalho de pedir a bênção aos mais velhos, mas tampouco
se preocupará em estender sua prosa ou fazer cerimônia. Entre vizinhos, isto não é o que
ocorre. Pode-se mesmo chegar com o intuito de pedir um favor, um empréstimo ou uma
autorização para pegar raiz, pau ou planta: uma vez concedido o pedido, o chegante
parte sem precisar pagar o favor com a prosa que se imaginaria ‘obrigatória’ em uma
visita. Ao entrar numa casa de vizinhança, o passante cumprimenta com aperto de mão a
quem ainda não viu naquele dia, deixando passar aqueles a quem já cumprimentou mais
cedo, ali mesmo ou alhures. A atenção a respeito de quem já se cumprimentou é tão
importante que parece um gesto automático, um conhecimento ‘naturalizado’ ao qual eu
precisava me esforçar para reproduzir.
Quem chega de longe vem descendo aos Buracos “tomando tempo”, pois a falta
de “costume”, ou de rotina, exige certos cuidados na lida com a gente aparentada. A
caminho da casa de seus respectivos “povos”/“famílias”, às vezes encostam-se em uma
165
e outra cerca das casas por onde passam. Encostam quando as portas se encontram
abertas e se pode ouvir os outros barulharem lá dentro, ou quando um de dentro corre
fora cumprimentar os chegantes. Entra pra dentro!, e os de fora em geral declinam,
justificando-se, As bolsas estão pesadas e a hora está tardando! Não raro, prometem
vir para uma visita futura com calma, antes que tornem a voltar para de onde chegaram,
seja Brasília, São Paulo ou outro paradeiro distante. Noutras vezes, os chegantes
atravessam a porteira e entram para uma prosa rápida enquanto bebem uma copada
d’água. Água da moringa, que é mais fresca que a do filtro. Atualmente, a maioria das
casas buraqueiras possui um filtro, conforme recomendação do “povo da saúde” (cf.
capítulo 5), mas o povo prefere mesmo é a da moringa, mais fresca: quem está morando
longe é que sente mesmo se aprazeirar com “essas coisas da gente da roça”. Já antes
de descer a serra, ao saltar do ônibus que as traz até a rodagem, as moças retiram seus
sapatos de salto alto, dobram a calça jeans até o joelho e colocam as sandálias de dedo.
Mod’a lama!, dizem ao rir de si, das condições” de seu próprio povo. Ê sofrimento! O
tom é jocoso e a intenção não parece ser de desmerecimento nem de elogio; ou, ao
contrário, talvez sejam ambas.
De acordo com o tempo que se pretende ficar nos Buracos, os chegantes
calculam as casas que pretendem visitar, e nas primeiras visitas, informam os
visitados sobre tais cálculos, justificando “falhar” uma e outra casa por falta de tempo,
indicam os critérios que o fizeram escolher o repertório do “giro”: um porque está
adoentado; outro porque é padrinho; outro porque lhe trouxe uma encomenda da última
vez que esteve em Brasília. Os que serão visitados ficam assim sabendo da intenção de
visita e providenciam o mantimento necessário à recepção, seja o polvilho ou mesmo
uma “bolacha comprada da vila”, menos valoroso mas, igual, sinal de que se oferece o
que se tem. O importante é que a atitude do anfitrião se mostre ser “por gosto”, sendo
sua “intenção”, “o que vale”. No tempo das Folias (dezembro e janeiro), as casas
buraqueiras são animadas por merenda e prosa, animadas de gente, mod’muita gente. É
o causo de quando vem “o povo de Joaquina”: Dinalva-de-Joaquina, esses povo... Vêm
do Retiro e passam nas casas tudinho; arrastando gente! Trazendo junto os das casas
por onde passaram. Quando chegam no Calengue, é vem aquele montoeiro de gente! A
“família” mais o “povo das casas” que quiseram vir junto. Em cada casa que se chega,
dá-lhe pão-de-queijo e biscoito. E tome café! É, no dizer dos outros, igual à folia do
outro, os foliões parando nas casas, comendo e descansando. Não chega nunca no
destino conforme o planejado! Hehehe! Como vimos no primeiro capítulo, a analogia
166
entre o “giro de Folia” e o “giro das visitas” é quase certa. Temos que completar o giro!,
justifica Dinalva ao tio e meio-irmão Joaquim Branco (Quincas) desculpando-se pela
partida rápida depois do café. Ela pretendia alcançar a casa da Velha Maria ainda àquela
tarde, Amanhã eu já, vup!, para Chapada, depois Brasília, não para ver a velhinha
tão-fraquinha-tadinha!
A intenção verbalizada de uma visita não realizada tem também o seu valor, de
modo que os parentes visitantes costumam usar algum tempo das visitas que fazem para
falar sobre planos frustrados de ir a uma e outra casa. Assim, através daqueles cujas
casas foram contempladas, os não visitados tomarão conhecimento das justificativas de
ausência. Há ocasiões onde, ao contrário, as queixas rendem, “viajam” pelas casas; às
vezes são alardeadas de casa em casa até virar “fofoca”, pois “quem conta um conto
aumenta um ponto”, diz o dizer do outro. É o caso de quando algum parente esteve por
ali “um bocado de dias” e quase não fez visitas, Nem aos vizinhos, não foi! Ou de um
afilhado que chegou e partiu sem fazer visita a sua madrinha, Nem pra ir pedir a
bênção! Nestes casos, o critério das reclamações sobre os parentes emigrados é o
mesmo que pesa sobre os moradores da terra. É como quando de um neto ausente da
rotina da casa de uma avó adoentada. Tanto pior. As queixas por falta de visita figuram-
se tanto em relação aos parentes que moram na capital quanto entre as casas
buraqueiras. Neste último caso, aliás, pode-se via de regra chegar a acusações mais
graves, posto que estas envolverão relações cotidianas. Já houve caso de uma mulher
me narrar uma “fofoca” feita contra ela por uma cunhada, e a defesa desta era inútil,
contou-me a primeira argumentando que a ausência de uma e outra em suas respectivas
casas vinha indicando problemas de relação. Em suma, as visitas e as presenças
cotidianas que se faz nas casas “só pra bestar” assemelham-se no sentido de que são
práticas a serem em alguma medida “calculadas”, pois que são tanto geradoras como
fortes indicadoras de boas relações.
Assim, mesmo que entre a vizinhança o tempo de estada seja por definição
flexível, e que a motivação do deslocamento não requeira justificativa precisa, tanto a
intensidade do fluxo em relação a uma casa quanto a rapidez ou demora da permanência
na mesma são às vezes notados e comentados pelos vizinhos. Isto ocorre quando tais
movimentos são comparados a outros e, no contraste, ganham expressividade. Teu
sobrinho não gostou muito da prosa não!, diz Rosa a Quincas sobre a partida repentina
do rapaz. Quincas reage, É você que nem passou o café! Esta curta troca de comentários
falava não só sobre as acusações mútuas envolvendo a recepção ao sobrinho de Brasília,
167
também denotava a frustração do casal pela rapidez daquela “demora”. Deste modo,
pequenas observações a respeito dos deslocamentos na vizinhança acusam e promovem
estados de relações buraqueiras. Foi assim com relação a Titia. Vizinha à casa de
Quincas, ela me esperava todos os dias para ao menos uma refeição em sua casa
(almoço, janta ou ao menos uma merenda da tarde ou noite). Eu cumpria sua
expectativa sem sabê-lo; “por gosto”, “ia para donde está Titia”, cerca de duas ou três
vezes por dia. Ao retornar à minha casa, casa de Dona Rosa, ouvia desta, Comeu carne?
Gostou da prosa de Titia! Ela fez biscoito? Posteriormente, Rosa passou a me chamar
com antecedência para a janta em ‘nossa’ casa, Você vem jantar aqui hoje que eu vou
matar um frango! Por seu lado, Titia todos os dias me oferecia um de-comer especial,
em geral algo com leite ou carne, Come que é bom que é forte!, e não me deixava
recusar. Por vezes, conversávamos sobre os diferentes modos de fazer algum de-comer,
e ela buscava saber o que era do meu gosto. Disto, uma espécie silenciosa de disputa se
fazia entre Rosa e Titia, narrada apenas transversalmente nos comentários ligados em
geral à mexida de cozinha (cf. capítulo 4). A ladainha diária das duas cozinheiras dava-
me então a ver que ambas haviam assumido papel igualmente importante para meu
bem-estar “longe de casa”; em uma “terra” longe do “meu povo”, longe de “minha
gente”.
Eu chegara aos Buracos por intermédio da filha de Dona Rosa, Lúcia, a
quem conheci em uma viagem ainda ‘exploratória’ à Januária, por ocasião do
“Encontro dos Povos do Cerrado”, evento que - como outros que ocorrem
anualmente por ali - reunia representantes de “comunidades tradicionais” da
região com intuito de “promover a cultura e o desenvolvimento sustentável”(cf.
capítulo 6). Naquela época, Lúcia estava separada do marido e morava na casa
dos pais, para onde me levou quando lhe expliquei sobre minhas intenções em
pesquisar o seu povo. Os donos da casa receberam-me com naturalidade e nunca
me cobraram qualquer valor pela estadia; eu dava a Dona Rosa um montante
variável a cada mês e contribuía com o que comprava de comer para toda a casa,
o que parecia ser recebido como uma contribuição extra, uma espécie de cortesia
ou presente. Em meus primeiros cinco meses de campo, dormia no quarto de
Paulo Gomes, irmão de Lúcia que passava a maior parte da semana na Vila e que
portanto, quando vinha, dormia na cama de Nêgo, o irmão mais velho e o único
a nunca ter morado fora dos Buracos. Durante os outros períodos de campo,
168
perdi a regalia do quarto individual e passeia perambular, assim como os
demais, pelas camas disponíveis na casa em função da variação do número e
gênero das pessoas presentes. Além de ser ‘central’ (capítulo 1), a casa de Rosa e
Quincas - que na referência dos buraqueiros viria a se tornar minha própria casa -
era na época a que possuía uma vizinhança mais “colada” (embora eu ao chegar
mal conseguisse enxergar a presença de tal vizinhança). Tratava-se da casa de
Damásio, o irmão de Quincas com quem este permanecia brigado havia mais de
cinco anos. Como que formando um triângulo, a casa de Titia situava-se a
distâncias equivalentes em relação a cada um dos dois primeiros, seus irmãos
(Figura 1).
A casa de Titia era para onde eu corria nas tardes de sol escaldante, ali
deitava na cama sobressalente e, sob insistência da dona da casa, adormecia sob o
frescor da palha de buriti de seu telhado, diverso do de Dona Rosa, de amianto. Ao
despertar no fim da tarde, encontrava à minha espera um caneco de leite fervido e a
farinha peneirada, ou então abóbora cozida, mod’misturar no leite. Às vezes
bebíamos puro com açúcar, conforme fosse o que houvesse a oferecer. O leite, embora
houvesse duas vacas leiteiras, dependia que os meninos fossem ordenhar, que Titia está
com as pernas fracas demais, a água fria o reumatismo ataca. E ralha com os meninos
que têm preguiça de apanhar o leite. Quando tinha polvilho, Titia enchia a bacia com as
medidas certas e fazíamos biscoito frito. O biscoito do furinho!, dizia ela, rindo diante
de uma forasteira que há pouco não conhecia o que era “biscoito frito”. Então pedia que
eu amassasse a massa. Conforme a sorte, outras bocas dispostas faziam-se presentes:
comíamos e conversávamos, bestando até que chegasse a hora da novela, quando eu
acompanhava os “meninos de Titia” até “a televisão de Rica”, mãe de Tutty. Naquela
época, a única casa a não possuir um aparelho televisivo era a de Titia, Aquela zoeira no
ouvido da gente!, reclamava esta, desmerecendo o “incutimento” dos filhos com a
novidade. A casa de Rica, esposa de Damásio, era a escolhida pelos rapazes de quem
mais me aproximei – os dois filhos e três ou quatro sobrinhos de Titia – e mesmo os que
tinham TV em casa caminhavam fosse frio e escuro para assistir ali o Jornal Nacional e
“a novela das nove”. O entretenimento se devia em grande parte às gargalhadas
estridentes da dona da casa. Com o decorrer do tempo, a televisão de Rica e os cuidados
de Titia e Dona Rosa o apenas me reconfortavam como me davam sentido de rotina;
era minha maneira de “bestar”, de não ‘fazer nada’, quando descumpria meus
169
planejamentos de visita “mod’os estudos”. À medida que fui cumprindo meu roteiro
inicial e conhecendo as casas de todos os “povos” buraqueiros, a opção por “ficar
bestando no Calengue” foi se tornando mais freqüente, até que os deslocamentos
eventuais deixaram de ser entendidos por eles como motivados pelo “estudo”. Se eu
fosse, era mesmo “mod’visita”. Por outro lado, quando desistia das visitas e
permanecia em casa de Dona Rosa escrevendo, meus vizinhos estranhavam, Mas você
ainda está fazendo trabalho aqui?, perguntavam-me.
A esta altura, estar no Calengue era como “estar em casa” não só por conta do
“costume” criado na rotina. Também porque a presença crescente dos aparelhos
televisivos (e mais tarde dos celulares) aumentava as alternativas de comunicação com
‘meu’ próprio mundo, por outro lado, porque a estrada ligando Buracos, Chapada e
Brasília tornou-se, à custa da repetição, mais conhecida e facilmente transitável por
mim. Mas é o mundo todo que está mais perto!, comentavam Rosa e Quincas diante de
minhas considerações. Não se tratava apenas uma questão subjetiva, entendi então. Em
minha terceira ida a campo, uma antena retransmissora de sinal para telefones celulares
foi instalada em Chapada Gaúcha, e rapidamente muitos jovens buraqueiros adquiriram
seus próprios aparelhos - mesmo que o sinal não chegasse nos Buracos, usavam-nos
para tirar e mostrar fotos ou escutar música. Meses depois, passamos a descobrir alguns
pontos onde não sem dificuldade conseguíamos linha para telefonar, e então o
deslocamento até a Vila foi facilitado por um motoboy que, chamado ao telefone, vinha
em poucos minutos buscar-nos no alto da ladeira. Nesta mesma época, a chegada da
energia elétrica completava cerca de dois anos nos Buracos, de modo que a
programação televisiva havia sido incorporada à prosa rotineira. Em meu terceiro
retorno ao campo, ainda ligada aos modos a que me habituara anteriormente, cheguei a
anotar em diário de campo minha dificuldade em distinguir quando os causos contados
falavam do “povo” e quando eram causos fictícios da TV, envolvendo o “pessoal da
novela”. Pouco depois, veria o próprio Quincas ralhar contra esta confusão a que ele
também era acometido, Estou aqui pensando que vocês estão contando um causo e estão
com essas bestagens de gente que nem existe!, repetia ele. Foi neste período que passei
a alugar uma casa para mim, na Vila, e passei a fazer o percurso semanal dali aos
Buracos. Acompanhada nesta “viagem” rotineira pelos adolescentes buraqueiros que
estudavam na Vila, passei a viver, como eles, não só a “mistura” entre o “sistema antigo
da roça” e a “moda da Chapada”, como as conseqüências desta mistura para o “sistema”
de vizinhança.
170
Chapada Gaúcha, a Vila, pode ser percorrida de ponta a ponta por não
mais de quinze minutos. Uma avenida chamada Getúlio Vargas corta a cidade ao
meio, ligando-a de ponta a ponta, e é cortada ao meio por uma transversal na
qual se situa a sede da Prefeitura Municipal. Estas duas ruas foram as primeiras a
serem calçadas, logo de minha segunda ida a campo, e durante o restante de meu
tempo de pesquisa permaneceram sendo as únicas. A encruzilhada que elas
formam concentra, com exceção do Posto de Saúde também não muito distante
dali, todos ‘serviços urbanos’ oferecidos no município (Correios, pousadas,
mercados, farmácia, Emater, um guichê da Caixa Econômica Federal e, mais
tarde, uma agência com guichês eletrônicos do Banco Itaú). A casa que aluguei
ficava na extremidade da rua da Prefeitura, isto é, a poucos passos do horizonte
traçado pelas monoculturas “de gaúcho” (capim ou soja) que rodeiam toda a
cidade. Esta se divide nos quadrantes definidos pelo cruzamento das “ruas
calçadas”, cada um dos quais correspondendo a um perfil que poderíamos
chamar ‘sócio-econômico’ definidos pelo “lado dos gaúchos” e o “o lado dos
mineiros” (cada um dos quais subdivididos em dois conforme configurações
específicas). O primeiro é “o lado rico”; o segundo, “o lado pobre”. As duas
igrejas católicas são identificadas como “a dos gaúchos” e “a dos mineiros”,
estando localizadas nessas respectivas áreas. Um dos quadrantes concentra
diversas igrejas evangélicas, que entretanto estão espalhadas por toda a cidade
(como praticamente não existem buraqueiros evangélicos, nunca entrei nelas e
não tenho qualquer conhecimento sobre seu funcionamento). Minha casa situava-
se ao final da rua calçada, onde ela cruza com a chamada “rua de fora”. O ponto
é “mineiro”, mas perto não do “lado gaúcho” como do Hospital, do Sindicato
dos Trabalhadores Rurais e do domicílio do Padre católico, de modo que por ali
havia um fluxo de pessoas tão intenso quanto variado.
A moradia em Chapada decerto contribuiu para que me sentisse “em
casa”, ou “mais perto do mundo”, pois ali eu mesma preparava a comida e ouvia as
músicas que aprendi a gostar em ‘minha’ própria “terra” (comida e música que meus
amigos buraqueiros, ao me visitarem, não escondiam acharem detestáveis). Eu
imaginara criar assim um espaço distanciado do ‘campo’, intuindo trabalhar na escrita e
leitura com a solidão julgada habitual para esses casos. Por fim, contudo, os momentos
171
individuais mostraram-se praticamente impossíveis: “estar em casa” na Chapada
implicava, assim como nos Buracos, manter a porta aberta para que os outros pudessem
“chegar”. Ali, uma casa com porta fechada ou bem é “casa de gaúcho” (ou equivalente,
isto é, de gente nojenta”), ou bem é por motivo suspeito, quiçá “doidice”. Lembro-me
de uma amiga que, ao entrar em minha casa e vendo que eu fechava a porta atrás dela,
arregalou os olhos me recomendando que a deixasse aberta, Os outros podem pensar
que a gente está fazendo “algum trem...”! Assim, a porta aberta foi apenas um dos sinais
que fizeram com que a experiência de ter um endereço próprio na Vila aproximasse esta
daquilo que antes eu identificara como restrito à “vida da roça”. Lembrava-me de minha
chegada naquela cidade que então me parecera um esboço de ‘urbanização’, com suas
ruas largas como se fossem avenidas, contrastando-se com o chão de barro vermelho
que fritava sob o sol sem o abrigo de quaisquer árvores. Na “época das águas”, criavam-
se poças de lama que pela largura pareciam lagos. Contornados pelas bicicletas,
principal meio de transporte buraqueiro, a paisagem ia ganhando graça no movimento
das pessoas, mas quando cheguei não vi nada disso e achei que Chapada, para ser
precisa, era uma cidade feia. Uma e outra construção de alvenaria em dois andares me
faziam lembrar zonas periféricas do Rio Janeiro; as casas em sua maioria não tinham
reboco, e o tijolo à mostra dava-me a ver a imagem de uma cidade inacabada, uma
cidade ‘sem alma’, servindo apenas como passagem para os representantes do capital
gerado pelas monoculturas que a cercava. Chapada entretanto não era isto.
Desde que aluguei a casa, gente do povo dos Buracos começou a chegar a mim
sem que eu necessariamente os procurasse; a experiência de campo então se inverteu: ao
invés de ir atrás do “povo” fazendo “visitas” às suas casas, eu devia aprender a receber
as visitas que me faziam. Conforme ocorre entre familiares “chegados”, vinham em
geral com o intuito de dar e receber “notícia do povo”. O movimento a que me habituara
no Calengue imitava-se agora nas visitas e chegadas em minha própria casa. Muitas
vezes, não eram exatamente visitas; queriam “só encostar” e “ter notícia” de alguém em
especial. O fato de que eu me movimentava rotineiramente entre Buracos e Chapada me
tornava uma informante privilegiada do movimento como um todo entre as duas
localidades, e assim, como que displicente, dei-me conta deste intenso fluxo de pessoas
e informações a criar uma continuidade entre locais geograficamente descontínuos.
Aprendi a deixar durante a tarde o café na garrafa térmica e o oferecia aos que
“encostassem”, fazendo-os entrar nem que fosse para beber um gole e partir. Às vezes a
conversa rendia. É importante ressaltar que “o povo dos Buracos” (isto é, a maioria dos
172
“parentes” da “família dos Buracos”) morava no extremo oposto da cidade. Minha casa
estava próxima da “família Campos”, a qual eu havia conhecido assim que chegara ali
por intermédio de Damiana Campos, então funcionária do Setor de Cultura da
Secretaria Municipal de Educação e Cultura, Semec (cf. Prólogo). Desde nosso primeiro
encontro, sua mãe, Dona Vera, esta deu por nos tomar - eu e minha colega de doutorado
Camila Medeiros como “filhas que a vida deu”. Assim era sua formulação, que se
expressaria mais tarde em ajudas incondicionais relativas a tudo aquilo que “uma casa
pode dar”, grosso modo, comida e conforto. A “família Campos” se movimentava entre
a “casa principal”, cuja “dona” era Dona Vera, e a de Damiana, futuramente
incorporando ainda a casa de Camila, que morou por mais de um ano a poucos metros
da primeira. Durante os seis meses em que tive minha própria casa chapadense, esta
também fez parte do circuito. Como Damiana era professora da rede de escola
municipal, acabei me tornando amiga de diversas professoras “da rede”, e
freqüentemente ouvi os buraqueiros referirem-se a elas como um “povo” ou “pessoal”
que me ‘pertencia’, Vi aqueles pessoal seus, aqueles povo, as professorinhas, e procurei
você!, diziam-me eles.
Isto não impediu entretanto que eu também fosse incluída pelos
buraqueiros ao “povo” deles próprios. Ei, parente!, chamavam-me Tutty e suas primas
ao me encontrarem na Vila. O tratamento diante de mim guardava algo de prazenteiro, o
que dava à nossa relação uma especificidade, mas não a diferenciava de outros laços
entre parentes buraqueiros. A mesma jocosidade aparecia quando a expressão era usada
entre primos adolescentes que se encontravam na Vila e o riso que se podia seguir
nestas situações não indicava então uma “brincadeira”. Ao menos não no sentido de ser
uma espécie de inversão da “verdade” (cf. capítulo 1). Talvez a graça estivesse noutro
“cálculo”. Vale notar que as “professorinhas” chapadenses também riam da idéia, Olha
teus parentes chegando!, Teu povo passou por aqui agorinha mesmo!, avisavam-me
ao avistarem algum buraqueiro. E se riam. O que me parece significativo, posto que
particular àquelas situações em que me nomeavam “parente”, não é a questão sobre o
quanto de “sangue” poderia ser inferido por este “modo de chamar”, mas justamente o
fato de que, não sendo filha de buraqueiro, a maneira mais comum de inclusão a um
povo seria pela via do matrimônio. Ao dizer, “Ei, parente”, a “conversa” buraqueira
lembrava o jeito de quando um rapaz diz “ei, sogro”, ao pai de uma moça que considera
bonita. “Parenteza” supõe fluxos de intimidade - trocas de prosa e comida entre casas - e
se minha relação com os buraqueiros imitava esta prática, podia-se deduzir que eu era
173
uma espécie de “prima” do povo dos Buracos. Isto é, uma esposa em potencial. O gesto
de chamar era a própria ‘matéria’ de nossa relação de “parenteza”. Como disseram
minhas “parentas” buraqueiras diante de meu questionamento, falar assim com “outra
gente” “fica esquisito”. Certa vez, trouxe à Dona Joaquina roupas enviadas por seus
filhos hoje moradores de Ceilândia-DF, em cuja casa me havia hospedado. Levei a
encomenda à casa de Joaquina e então a ouvi discorrer longamente sobre o fato de me
considerar “gente sua”. Minha intermediação no envio das roupas era o que havia
suscitado tal descrição. Pra mim, você é o mesmo que ser gente minha!, disse-me,
descrevendo em seguida a circulação de artigos e palavras que confiávamos uma à
outra. A gente “pega costume”, se “afeiçoa” à pessoa..., contou-me Joaquina. A
“parenteza” então dizia respeito a um elo afetivo (de atenção e ajuda) que passava por
outras pessoas; daí a indicação de possível casório. “Mesmo que ser gente minha” - isto
é, mesmo que ser “parente”, ou “da família” - referia-se portanto a uma prática
deliberada de aproximação ‘pessoal’, efetuada por um gesto vinculado sempre a mais do
que duas pessoas. Assim, o elo de “parenteza” envolve necessariamente um “pessoal”,
um ‘coletivo’, e a imagem do parentesco buraqueiro parece fundar-se menos na
existência de um ‘dado’ (o sangue “puxado” no nascimento) do que no próprio esforço
de se aproximar “do outro”.
A naturalidade com que Dona Vera e Dona Rosa me receberam desde o
início talvez diga sobre isto. A maneira como a “família Campos” e o “povo dos
Buracos” me receberam, sem colocar condições quaisquer para eu fizesse meu
“trabalho” junto a eles, é notável mesmo em se considerando os prováveis não-ditos
sobre constrangimentos que eu não tenha percebido à época. O processo foi certamente
menos trabalhoso do que o vivido, por exemplo, quando fui incorporada a outra espécie
de família a ‘família verde-e-rosa’, no Morro da Mangueira, Zona Norte carioca,
durante pesquisa de mestrado (Carneiro, 2006). A própria dinâmica familiar buraqueira
parece ter facilitado minha entrada; e se incluo, sob a designação “buraqueira”, o
“pessoal” de Chapada, é porque neste caso conta justamente o caráter lábil da definição
de “família”. Tal ‘labilidade’ nos leva a observá-la menos como uma ‘entidade’ definida
‘por si’, do que como princípio organizador de relações: indica práticas de se fazer
“chegado”. Noutras palavras, mais interessante que entender minha relação com Dona
Joaquina como uma ‘metáfora’ da parenteza “verdadeira” (conforme a diferenciação
que efetivamente ocorre ali), é entendê-la como constituída dos mesmos traços
imaginados entre quaisquer parentes. Seríamos então não uma imitação de “parente”,
174
mas sim “o mesmo que” sê-lo. O que esta identificação diz sobre ser da mesma “gente”,
da mesma “família”? Como vimos, os “mineiros da região”, observam os buraqueiros,
“é tudo meio aparentado”; se for ver bem, em algum lugar toca (capítulo 2). Moura
(1978: 31-33), ao refletir sobre o parentesco e a transmissão da terra ‘numa área rural’,
ouviu de seus informantes a mesma frase: “aqui é tudo parente”, se não, é ao menos
“aparentado”. A escuta leva a autora a distinguir dois usos da palavra “parente”: um
efetuado quando os habitantes de um bairro se vêem ligados entre si em oposição a um
‘exterior’, e portanto quando se vêem como um ‘todo’; outro, com sentido mais estrito,
realizado no traçado relacional que reconhecem até o grau dos bisavós. Nos Buracos,
esta distinção se confunde, pois se o “povo” é “tudo parente”, há os que não são
“parentes” mas são do “povo” porque moram na “terra” (como Toró, por exemplo), e há
os que não moram na terra mas estão inclusos pelo termo “povo dos Buracos”, porque
são parentes. O critério de exclusão (parenteza) é então anulado por um critério de
inclusão (a terra) que por sua vez não encerra o povo em um ‘todo’ discreto, anulando-
se na inclusão efetuada pelo critério que, no primeiro caso, havia sido de exclusão
(parenteza).
Se, conforme observei, a parenteza (neste caso sinônimo de “família”,
ou “gente”) se realiza como ‘princípio organizador’ de um modo da relação, o fato de
que esta se assume nos termos da aproximação pessoal (a “afeição”) não indica então
uma identificação ‘dada’ entre os aparentados. Ao contrário, a prática cotidiana de
“criar costume” mostra que esta identificação é “criada” por um ‘trabalho’ contínuo; é
preciso que a “pessoa” buraqueira “crie” sua “afeição” com “os outros”, de modo que
passem a “combinar”. A identidade é imaginada como um ‘modo enfraquecido da
alteridade’, esta sim pressuposta, pois o esforço serve justamente àquilo que se
contrário ao “natural da pessoa”. Parentes ou não, as pessoas precisam fazer um esforço
de aproximação para que o sangue “combine”, num processo de incorporação da
diferença (‘o fora’ ou os outros”) algo similar ao elaborado por Viveiros de Castro
(2002a) a respeito das ‘sociedades ameríndias’. A exemplo do que se observou ali,
podemos imaginar este movimento concêntrico como o próprio modelo do laço ‘social’
(Viveiros de Castro, 1986) ou do ‘político’ (Albert, 1985), realizado na interface entre a
‘sociedade’ e seu ‘fora’. Nos Buracos, este ‘modelo’ pode ser reconhecido menos nas
relações ‘inter-comunitárias’, como é o caso acima, do que nos movimentos do
“pessoal”, entendido ora nos limites da “família”, ora como designação do “povo”, de
modo a colapsar freqüentemente as ‘composições’ engendradas por esses dois termos.
175
Por outro lado, a exterioridade surge ali quando se fala em comunidade”, cuja
dinâmica se assume como internamente indiferenciada e os limites exteriores
deliberadamente anunciados (cf. capítulo 6). Por este argumento, haveria, na
constituição da ‘sociedade’ buraqueira, dois modos distintos de lidar com a diferença: o
da criação do laço de “parenteza” (numa espécie de ‘afinidade potencial’) e o da
individualização da “pessoa”, à distância de seu “pessoal” mas identificada à sua
“comunidade”. É o que ocorre por exemplo quando um buraqueiro se candidata a um
cargo político. A atividade eleitoral, ao contrário do que o senso comum pode nos fazer
crer, não é ali experimentada como congregação entre o candidato e seu povo parente,
ao contrário, parece em geral afastá-los. Quando uma senhora se queixou das “mentiras”
ditas em palanque por Paulo Gomes, filho de Quincas, contra o primo que era então
Prefeito candidato à reeleição, o filho da senhora reprimiu-e pelo comentário, Mãe
confunde “pessoa” com “política”..., disse ele. A frase talvez responda às frustrações de
inúmeros candidatos que, após a divulgação dos votos por urna (“por comunidade”),
assustam-se com o pouco apoio recebido por seu próprio “povo”. Testemunhei causos
do gênero ocorridos tanto quando estive presente nas eleições municipais de Chapada
Gaúcha (2008) quanto em eleições passadas, sobre as quais me contavam a título de
comparação. Os relatos envolviam ‘indivíduos’ não dos Buracos como também de
outras partes do município
56
.
Todavia, note-se que essas considerações devem ter cautela na
tipificação que supõem: o “político” (a “pessoa” na “política”), veremos, é
constantemente um “amigo”, um “muito conhecido”, um “mesmo que um filho”.
Assim, não podemos entender a política como lugar de negação do “pessoal”. Talvez o
mais frutífero seja colocar essas duas imagens da alteridade como ‘dispositivos’
distintos (cf. Deleuze, 2003), o que não significa entendê-los como estanques. Por este
caminho, é possível ainda comparar a aproximação “criada” no processo do parentesco
buraqueiro ao que se observou sobre o significado da ‘família’ em ‘camadas médias
urbanas’ (cf. entre outros, Dauster, 1988; Salém, 1989 e Velho 2001). Ali, como nos
56
Em sua etnografia sobre a relação cotidiana entre o ‘Estadoe habitantes de uma cidade satélite de
Brasília, Borges (2003: 14) afirma partir do ‘pressuposto que a política se distingue da moral por ser
necessariamente temporal, e que portanto trata de fenômenos múltiplos por princípio’. No caso aqui, esta
temporalidade própria ao que os buraqueiros chamam “tempo da política” assume uma ‘moralidade’
particular: a contabilidade dos votos é uma prática intensa no “tempo da política” (cf. capítulo 6), e
desencadeia uma série de queixas sobre “o certo” e “o errado” em se estar perto de um e longe de outro.
Mas isto é porque o “pessoal” identificado ao conjunto de votantes é passível de uma quantificação
inimaginável noutros contextos. Neste sentido, aproximam-se do que identifica Borges (2003) no Recanto
das Emas-DF, “não se pode misturar pessoa com política” (cf. capítulo 6).
176
Buracos, a família se assume como uma espécie de ‘construção social’ (uma “criação”),
fundada em valores como a “afeição”. Ressalte-se, contudo, que esta comparação é
limitada primeiramente, porque nos Buracos a criação do laço não se opõe a uma
‘substância nata’, da família “legístima”, mas é ao contrário necessariamente integrada a
ela. Para usar o vocabulário do ‘contexto urbano’, as pessoas buraqueiras que se vêem
com ‘projetos de vida’ aproximados entendem que a coincidência se explica na
proximidade de suas próprias substâncias pessoais, a saber, o “sangue”. Isto é, se os
projetos de vida se aproximam é porque o sangue de uns aos outros é “chegado” de
antemão. Para isto não é preciso descendência, basta “dar certo”, “combinar” - daí
expressões como “nosso sangue combina”. Além disto, a idéia de ‘escolha’ calcada
numa autonomia individual em busca de realização afetiva é também estranha aos
buraqueiros. Ali, a família não é ‘escolhida’, pois não decorre de uma ação ‘individual’,
como observamos, nem se coloca em relação de diferença com a família onde se nasceu.
Esta última, que nos Buracos corresponde às pessoas da “casa” dos pais, é incluída na
mesma cadeia do parentesco onde se encontram relações não sanguíneas. O que ocorre é
que a “pessoa” buraqueira é necessariamente vinculada a um “pessoal” que ultrapassa
os limites de sua casa de nascimento, isto é, a um “pessoal” que não se encerra nos
limites da ‘unidade doméstica’.
Neste sentido, é eloqüente o movimento rotineiro entre os Buracos e a
Vila dos Gaúchos. Note-se que as “casas” dos Buracos correspondem cada qual a uma
“família” (capítulo2), incluindo a rigor o casal e seus filhos; mas freqüentemente
abrigam também algum “criado”, seja um(a) filho(a) de outra família “aparentada” que,
“por gosto”, decidiu morar ali, seja (mais raramente), um jovem não-parente trazido de
longe para ajudar na lida da roça. Esta prática estende-se aos avós que, encontrando-se
sem filho(a)s solteiro(a)s, ganham muito comumente a companhia de uma neta ou neto,
que passa a morar com os primeiros durante a maior parte da vida (não me lembro, por
outro lado, de idosos que tenham ido morar com os filhos casados). Em algumas
circunstâncias, diz-se mesmo que o(a) filho(a) foi “dado(a)”, e este passa a chamar os
donos da casa onde mora por “pai” e “mãe”. Isto ocorre nos limites da terra dos Buracos
mas também, e talvez sobretudo, para fora dela; afinal, como ressaltam vez e outra os
buraqueiros, o mineiro da região tudo é parente. Além disto, cada “família” buraqueira
possui uma casa “na roça” e outra “na vila”, e então o termo “família” passa a
corresponder não a uma única “casa” buraqueira, mas a duas, três ou mais, podendo
chegar, dependendo do círculo de deslocamentos a ser considerado, todo “o povo dos
177
Buracos”, isto é, “a família dos Buracos”. Mas quando o termo “família” se refere a isto
aqui chamado “pessoal”, o que se reúne são os pais donos de uma casa e os filho(a)s
solteiro(a)s mas também os filho(a)s casado(a)s e, às vezes, irmãos e irmãs de um dos
membros do casal gerador. A configuração de casas buraqueiras que constitui a
“família”, ou o “pessoal”, que “mora” ou “pousa” eventualmente em uma determinada
casa chapadense é bastante variável e obedece a determinadas contingências.
Dois primos que se tornam especialmente amigos, por exemplo, podem
vir a pousar em uma mesma casa na Vila, embora pertençam a “povos” (agrupamentos
de casas) distantes na organização do espaço dos Buracos (sendo esta, como vimos no
capítulo 2, correspondente à consangüinidade). Esta diferença entre o espaço dos
Buracos e o da Vila, entretanto, é menos considerável se observamos, no primeiro, o
fluxo de prosa e comida, isto é, de circulação pessoal entre casas. Noutras palavras, é
certo que esses referidos primos, quando nos Buracos, movimentam-se regularmente
entre suas respectivas casas, em certa medida independentemente do espaço físico que
as separa. Portanto, a despeito desta distância e devido àquela movimentação, os tais
primos tornam-se, nos Buracos, tão próximos quanto o são pela proximidade espacial na
Vila. Esta é, neste sentido, um local privilegiado para a observação das relações
buraqueiras. O exemplo dos primos seria o caso particular de um modo de circulação
específico. Qualificam relações de parenteza segundo descrições que a
‘consangüinidade’ não dá conta de fazer. Assim, antes de alugar minha própria casa na
Vila, encontrava-me tendo que administrar meu “pouso” chapadense, buscando
justificativas por ter escolhido dormir em uma casa e não em outra. O problema dizia
respeito aos modos como a ordenação das casas na terra dos Buracos se transforma na
Vila. Ali, as proximidades criadas nos Buracos reconfiguravam-se segundo uma outra
geografia. Da mesma forma, se dois primos são “chegados”, a intimidade é em geral
criada na rotina de vizinhança, e então a proximidade afetiva e geográfica é em geral
uma proximidade de sangue (primos vizinhos são não raro primos-irmãos, posto que os
irmãos compartilham uma mesma “herança” [terra]). Para tornarmos aos primos em
questão, imaginemos que um deles se trate de um filho de Titia: como esta não possui
casa na Vila, é natural que uma “pessoa sua” (um de seus dois filhos), pouse nas casas
construídas ali por Quincas e Damásio, os parentes “mais perto” . No entanto, a escolha
é atravessada por outras relações, seja a do casamento desfeito de Titia, seja a da briga
de Quincas e Damásio, seja a das motivações de seus filhos. Quando vão “para festar”,
por exemplo, seguramente pousarão na casa dos filhos de Joaquina, prima e madrasta de
178
Titia; ou seja, pousarão não com os “primos primeiros”, mas na dos meio-irmãos de
Titia, isto é, seus “tios”. O que “puxa” uns para perto dos outros, neste caso, não é o
sangue, mas os interesses comuns à idade.
3.2 – Vizinhança gaúcha
O povo dos Buracos é “o primeiro vizinho de Chapada Gaúcha”. Tanto porque
guarda em relação a esta uma distância menor do que a de qualquer outro povo, quanto
porque foi o primeiro povo a “criar amizade” com “as famílias de gaúchos” quando
estas chegaram, nos idos de 1979, para iniciar monoculturas e carvoarias onde então “só
tinha o cerradão” (cf. introdução e capítulo 2). Certa vez, visitando os Buracos em
tempo de “política”, o ex-prefeito gaúcho Eloe Baron primeiro vereador e primeiro
prefeito de Chapada - recordou tal fato e fez sobre ele uma analogia com a rotina de
quaisquer vizinhos de cerca. A boa qualidade de uma relação de vizinhança pode-se
medir pelas idas e vindas de ajudas mútuas entre duas casas, analisou o gaúcho: o pó de
café que se empresta e a farinha que vem de “volta”, exemplificou. Assim, a “palestra”
de Eloe pagava tributo à receptividade dos mineiros em geral e dos Buracos
especialmente, na época em que os imigrantes do sul mal tinham acesso à água, que era
trazida por caminhões-pipa desde de São Francisco. O povo dos Buracos, com suas
veredas e rios, recebeu os gaúchos em casa dando-lhes o que de conforto podiam dar. E
então a memória narrada dos primeiros e sofridos tempos provocou o choro discreto,
mas perceptível - da esposa do ex-prefeito. Dona Alice, esposa de Seo Orotides,
chorou lágrimas de escorrer no rosto. Como bom profissional da “política”, julguei eu
ali, Eloe Baron mostrou sensibilidade em valorizar o mais precioso modo de conduta da
etiqueta mineira: “dar o de-comer” a quem chega em sua casa. A exemplo do gesto
Divino, quando da Criação. Deus nos deu o de-comer quando fez de nascer da terra o
alimento de que precisamos para nos criar a nós mesmos.
A idéia me foi assim discorrida inúmeras vezes por diversas circunstâncias. Com
precisão, um senhor refletiu sobre isto ao indignar-se com o “modo nojento” dos
gaúchos – nunca te convidam para “entrar pra dentro”!, disse. É o modo deles, ponderou
alguém. O gaúcho é “prosa”, tipificou o senhor para dizer, algo inversamente, que o
gaúcho “não prosa” “prosa ruim”). O “modo” deles é diverso do mineiro”, que
sempre oferecerá ao chegante “um café que seja”. Dito isto, o senhor explicou-me o
valor deste “modo mineiro”: Deus é tão bom que nos “dá dado”! Quantas sementes não
179
saem de uma espiga de milho?! Repare em quantas espigas Deus multiplica uma
única sementinha! A exemplo da mão Divina, portanto, dar o de-comer constitui uma
dádiva tão cara que a gratidão eterna é capaz de retribuir. Deus lhe pague!, diz-se de
praxe em agradecimento a(o) dono(a) da casa, após lhe “fazer visita”. Em troca, o(a)
anfitriã(o) reivindica prerrogativa nos agradecimentos pelo recebido. Eu é que agradeço
o prazer da prosa! Quanto mais esfuziante o “obrigado” do visitante, maior o “obrigado”
do(a) dono(a) da casa.
As idas e vindas entre pessoas de casas vizinhas diferem-se das formas
ritualizadas das visitas - em geral resultadas de deslocamentos menos rotineiros mas
não deixam de garantir, com ofertas e pedidos mútuos de uma sobra de carne ou uma
intera de farinha, a abençoada multiplicação dos alimentos. É ponto pacífico entre os
buraqueiros que, entre “as coisas boas da vida na roça”, está o fato de ali se poder viver
sem dinheiro: nunca de faltar o de-comer: “o que a gente não colhe, o vizinho
empresta”. A boa relação de vizinhança, portanto, feita disto que se reveste em
constante fluxo de prosa e comida, supõe o reconhecimento constante da generosidade
alheia. Esta deve ser, por bom tom, considerada sempre anterior aos gestos de oferta
que, se houver cuidado e polidez, manifestar-se-ão na forma de retribuição. O gesto de
dar nunca é primeiro, pois que Deus o inaugurou. A Ele agradecemos, trabalhando na
roça, os homens, e na cozinha, as mulheres. Mantém-se assim a multiplicação dos
alimentos. Deste constante déficit humano perante Deus, nasce “o amor” e “a gratidão”
- manda o padre que os pais preparem os filhos para isto. O pecado de “desejar mal ao
próximo”, ensina “a Religião”, pode sempre ser silenciado, quiçá apagado, por uma
gentileza como a de lhe enviar o resto de uma carne cozida ou uma sobra da paçoca,
comidas que não são de todo dia. Assim, a recusa da própria ingratidão - o mais
temerário dos sentimentos – consiste em “criar gosto” no “costume” de pedidos e
ofertas mútuas. O trato diário é decerto resultado de um querer-bem, mas pode também
ser entendido como seu criador. Conforme o comentário de uma buraqueira moradora
de Brasília, Gente é que nem cachorro, fica junto um pouquinho e logo acostuma, já fica
querendo bem (risos). Ela comentava a saudade que minha partida lhe causaria após eu
ter permanecido como sua hóspede durante duas semanas. Entendi ali que o termo
“acostumar”, como “querer-bem”, é o mesmo que “combinar”, “dar bem”; palavras
usadas quando duas pessoas conseguem conviver sem risco de, no dizer do povo,
“passar raiva”. Espera-se que assim seja entre vizinhos, e assim me contaram ter sido
entre buraqueiros e gaúchos, quando da chegada destes, de suas “primeiras famílias”.
180
Quando chegaram “as primeiras famílias de gaúcho” e se instalaram em meio ao cerrado,
“cerradão”, João Branco ainda era vivo e tomou a frente da empreita” para a qual “os
gaúchos” lhe “contrataram”: abrir a estrada que, passando rente ao Vão dos Buracos,
passou a dar acesso a carros que vem e vão entre São Francisco (então sede municipal
daquela região) e a Vila dos Gaúchos (hoje “Chapada Gaúcha”, sede municipal). Quincas
e alguns de seus irmãos participaram da empreitada sob comando do pai, e até hoje
recorda o causo quando o assunto é sua relação com os gaúchos, a qual ele diz ser “muito
boa”. Guardando-se as diferenças de escala, Eloe mantém-sevizinho” de Quincas, como
Chapada é “vizinha” dos Buracos (cf. capítulos 3 e 6). Os primeiros moradores “gaúchos”
(incluindo os oriundos do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná) povoaram a área
que hoje é a Vila no ano de 1976, motivados por subsídios federais por meio do PADSA
(Projeto de Assentamento Dirigido a Serra das Araras). Em 1995, foi criado o Distrito de
Chapada Gaúcha, desmembrado do Distrito de Serra das Araras, que já existia e cuja sede
se localiza a 40 km da Vila dos gaúchos. O Distrito foi transformado em Município em
dezembro do mesmo ano (fato até então inédito no estado de Minas Gerais). O município
situa-se a aproximadamente 130 km de distância do município de São Francisco, a 90 km
de Arinos, 125km de Formoso e 165 km de Januária. Chapada é cortada por uma estrada
federal e uma estadual (MG), não contudo vias de acesso asfaltadas. De acordo com o
último censo do IBGE, atualmente o município de Chapada Gaúcha-MG tem 10.266
habitantes, 4 mil deles na Vila e o restante em ‘área rural’.
Apesar dos declarados bons sentimentos, naqueles tempos “de primeiro”
Chapada Gaúcha não “puxava” a gente dos Buracos como puxa hoje. Os buraqueiros
não tinham qualquer interesse em se deslocar até lá, e justificam agora o fato de não
terem na época aceito os lotes ofertados deram dado!, contam. À época, Chapada
Gaúcha chamava-se ainda Vila dos Gaúchos. Eloe, contam-me os buraqueiros, nunca
“mexeu com terra”, quando tentou, “não deu certo”. Trabalhava com as mexidas entre a
Vila e a sede municipal de São Francisco, de onde trazia “recursos para o povo” e para
onde se elegeu vereador. Quando a Vila iniciou sua campanha de “municipalização”,
por iniciativa de Eloe, era necessário um número mínimo de casas em área considerada
urbana, isto é, na Vila, o que levou, no dizer dos outros, ao processo de doação lotes a
quem quisesse, com a condição de que o beneficiado construísse uma casa no lote
181
ganho
57
. Ganhava o terreno, mas tinha que gastar o dinheiro para fazer casa!, contam os
buraqueiros. Se a gente não ia nunca lá! Era lá aquela gauchada! Bestagem gastar
dinheiro pra fazer casa!, explicam-me. Mais tarde acabariam por ter que gastar o dobro
do dinheiro, pois foi preciso pagar, além da casa, o lote, lamentam-se. Hoje,
inversamente àqueles tempos, é diário o fluxo entre os Buracos e a Vila, como ainda
hoje costumam se referir à outrora “Vila dos Gaúchos”. O nome de Chapada, aliás,
também rende assunto. Foi promovido um plebiscito para a escolha de nome do novo
município e entre as opções, havia “Novo Horizonte”, “Chapada Gaúcha” e “Serra
Gaúcha”. O primeiro ganhou com ampla maioria, posto que os votos de mineiros são
em maior número. Qual mineiro que ia querer chamar Chapada Gaúcha?!, questionam
os que me contam o causo. Porém, após o resultado, foi alegado que, por haver em
Minas Gerais um município de mesmo nome, o segundo lugar seria oficializado
vencedor. Estabeleceu-se então automaticamente que o nome do município seria
Chapada Gaúcha, segundo colocado no plebiscito.
Hoje, existem mineiros que dizem evitar deliberadamente o termo “Chapada
Gaúcha”, referindo-se apenas a “Chapada”. Em todo caso, que seja por acaso, os termos
“Chapada” e “Vila” (não seguidos de “Gaúcha” ou “dos gaúchos”) são de longe os mais
usuais entre buraqueiros e mineiros em geral. Os deslocamentos entre Vila e Buracos
são tão rotineiros que é difícil fazer um censo dos Buracos. Quantas pessoas habitam a
casa de Dona Rosa e Seo Quincas, por exemplo? Além deles dois, eu acrescentaria o
filho Nêgo, o único que, a não ser por ocasiões muito “especiais” (singulares), nunca
dorme na Vila. Paulo Gomes fica mais do que cá, mas quando a agente do PSF
(Programa Saúde da Família) chega ali para preencher o formulário “mandado pelo
governo”, Rosa não hesitou em incluir também Paulo na lista de moradores da casa (não
57
Eloe Baron fora eleito vereador do município de São Francisco, ao qual pertencia a maior parte da área
que hoje constitui o município de Chapada Gaúcha, com ampla maioria de votos, tornando-se assim
presidente da Câmara Municipal de São Francisco. Não teve um que não votou nele!, contam-me os
buraqueiros sobre “todo o povo da região”. Na gestão de Eloe, a câmara aprovou, em dezembro de 1994,
a Lei criando o Distrito de Chapada Gaúcha, tendo seu território desmembrado do Distrito remanescente
de Serra das Araras. Em Janeiro de 1995, foi instalado o Distrito de Chapada Gaúcha, na antiga Vila dos
Gaúchos. Neste mesmo ano, iniciou-se o processo de emancipação (ou “municipalização”, como dizem
os buraqueiros), que resultou, em dezembro, na junção dos distritos de Chapada Gaúcha e Serra das
Araras, criando o novo município, no qual Serra das Araras se manteve como distrito. Até hoje, “o povo
de Serrase ressente por não ser a sede municipal, uma vez que se trata de uma cidade de mais de
trezentos anos. A sede chapadense é assim tida como marca territorial da valorização gaúcha em
detrimento dos mineiros, idéia visibilizada por diversas atitudes do primeiro prefeito mineiro, Mundinho,
que deliberadamente disse algumas vezes querer “recompensar Serra pela rejeição histórica”. Em janeiro
de 1997, instalou-se a primeira administração, tendo Eloe Baron como gestor e prefeito.
182
mencionando a mim, que na época morava na casa e passava mais tempo ali do que
Paulo). Lúcia, durante o período em que esteve separada do marido, também morou
conosco. E os netos vivem dormindo por ali, sobretudo Vinícius, “primeiro neto”, filho
mais velho de Lúcia que estudou por dois ou três anos em uma escola agrícola na cidade
de São Francisco, mas então passava férias e feriados na casa dos avós. Depois deixou
esta escola interna e passou a oscilar entre morar na Vila para continuar os estudos e
ficar nos Buracos, largando os estudos.
O movimento entre Buracos e Vila varia de intensidade e duração dependendo
da família e da pessoa; os motivos estão em geral ligados ao dinheiro, às compras, à
escola, à saúde às festas eventuais. Os buraqueiros que passam a morar na Vila incluem,
entre os motivos da mudança, a possibilidade de ter um trabalho remunerado. No
entanto, quando não se trata da rotina atual, mas sim da origem deste movimento
buraqueiro em direção à Chapada, note-se, o que “puxou” foi a presença de um e outro
mineiro. Quando, de primeiro, na Vila era “só gauchada”, ninguém tinha interesse. À
medida que mais mineiros passaram a morar ali, empregados nos incipientes serviços
urbanos ou mesmo nas “firmas de gaúcho” (fazendas de monocultura), “um foi puxando
o outro”. Entre os “mineiros”, mencionam-se os “povos da roça” vizinhos, com quem
“em algum lugar a gente toca parenteza” e gente das cidades existentes antes da
criação do município de Chapada, como Januária e São Francisco, que embora maiores
do que a Vila, são menos prósperas no que se refere à oferta de emprego.
É difícil valorar as diferenças que buraqueiros estabelecem em relação aos
gaúchos, embora elas estejam cheias de valoração. Em meus primeiros momentos em
Chapada, e em seguida nos Buracos, anotei em diário de campo algumas observações
sobre a cordialidade desta relação, anunciada pelos buraqueiros em um vocabulário
elogioso sobre “o sofrimento dos gaúchos de primeiro”. Se não fosse o trabalho deles, a
gente, os mineiros tudo, ia estar até hoje sofrendo..., contam-me. Com o tempo, esta
imagem foi-se modificando, e nisto “o tempo da política” foi especialmente revelador.
Não que tenha anulado a valorização inicial sobre certos aspectos do que podemos a
chamar ‘identidade gaúcha’ aos olhos buraqueiros, mas ao estender o assunto sobre “o
modo de comer e o modo de conversar” daquele povo, dá-se a entende que ele sempre
algo áspero ao contato diário. O melhor exemplo são as “festas de gaúcho” realizadas
no Centro de Tradições Gaúchas Chama Crioula (“o CTG”), um galpão patrocinado
pelas principais empresas com presença em Chapada. O espaço é às vezes emprestado,
às vezes alugado a famílias mineiras que realizam ali festas de casamento, mas estas em
183
nada se assemelham aos jantares que os gaúchos realizam por conta de um calendário
próprio que não inclui os mineiros
58
. Nas festas de gaúcho ocorridas no CTG, é preciso
que cada um leve seus próprios pratos e talheres para comer churrasco, ou macarronada
e risoto, servidos em travessas acomodadas nas mesas de madeira cujo comprimento
corta o espaço de ponta a ponta. Sentados, os presentes comem a comida pela qual
pagaram cerca de dez reais (preço mais caro do que qualquer refeição comprada na
Vila), e assistem às danças folclóricas da tradição gaúcha, encenadas pelos jovens e
crianças depois das semanais rotinas de ensaio. As bebidas (cerveja e refrigerante) são
compradas no balcão por meio de tíquetes retirados em um caixa onde a pessoa
responsável prestará mais tarde conta aos pares associados do CTG. Os homens em sua
maioria vestem-se com bombachas e calçam botas, além de portar o lenço amarrado ao
pescoço. Algumas mulheres usam saias rodadas até o pé, como elemento de referência à
vestimenta das “prendas”, moças vestidas conforme o folclore reiograndense, com
longos vestidos coloridos. Apenas as mulheres que se apresentam nas “danças
tradicionais” costumam adotar este figurino.
Em tudo, estas ocasiões se diferem das festas mineiras, das quais a Folia é o caso
mais exemplar. Nestas, necessariamente “quem a da festa é que a comida”, o que
faz graças a uma rede pessoal de doações, realizadas por amigos, parentes, vizinhos e
conhecidos. A comida arroz, feijão, macarrão, farinha, salada verde, carne cozida,
franco e, às vezes, churrasco é servida pelos ajudantes do anfitrião aos que fazem fila
segurando os pratos descartáveis que lhes são “dados”. Não mesa e as danças e
músicas desfrutadas não são chamadas “tradicionais”, embora reconhecidas como
“costume que veio dos antigos”. Á diferença das danças gaúchas, ali o que “anima” não
são os passo ensaiados mas improvisos dos versos “soltados” e palmas que
acompanham os pés em um movimento quase espontâneo, feito por quem quer que
esteja presente e queira “brincar”. Não existem mesas e a cachaça é distribuída por um
folião exclusivamente encarregado. Quando realizadas em lugares com acesso a carros
ou ao menos motos, as festas de Folia” - destas de “saída” e “chegada” do “giro” que
constitui o circuito ritual entre as “casas visitadas pelos foliões” – recebem a chegada de
58
O calendário a que me refiro inclui datas especiais, como “a Semana Farroupinha” e o dia de Santo
Agostinho, escolhido como “santo padroeiro” da cidade, mas chamado “santo dos gaúchos”. O CTG
também realiza regularmente festas promovidas para arrecar dinheiro para o próprio CTG. Os “mineiros”
não costumam comparecer a nenhuma dessas ocasiões, ficando muitas vezes da porta para assistir os
gaúchos dançarem o “vanerão”. Note-se contudo que a ausência de mineiros tem exceções importantes,
como as mineiras que se casaram com gaúchos (mais raramente, mineiros com gaúchas) e algumas
figuras como Miguel da Matão, vice-prefeito nos mandatos de Eloe Baron que, tendo “virado a folha”,
tornou-se na gestão posterior chefe de gabinete do Prefeito Mundinho.
184
alguns gaúchos, em geral adolescentes da Chapada e uns poucos gaúchos mais velhos
que sejam “conhecidos” dos “donos da festa”. Nos Buracos existem dois ternos de Folia
mas vi a presença de gaúchos nas festas do terno de Orotides, que se reconhece
como “amigo dos gaúchos”. As festas de Folia são realizadas graças a um complexo
sistema de doações, ao qual não cabe aqui nos atermos. Em geral, o Folião de guia
(“dono da folia”) faz seu próprio giro antes da data dos Reis, passando de casa em casa
com a bandeira dos santos e pedindo alguma doação. Os vizinhos muitas vezes
colaboram com uma quantidade de mantimento de sua própria roça ou mesmo um gado
ou algumas galinhas. As doações mais substanciais (como o gado) costumam ser feitas
por quem fizera promessa, isto é, prometera ao santo a doação à festa. Outras formas de
ajuda poderiam ser incluídas em uma lista infindável: as panelas emprestadas da
merenda escolar; a tapioca tirada com antecedência por um parente ou amigo; o uso do
leite doado pelo Programa Pela Vida, do Governo Federal, que os beneficiários podem
repassar para a festa. Não existe qualquer subsídio direto da Prefeitura para as festas de
Folia, mas é sabido que as doações pessoais incluem não raro um ou mais “políticos”.
Note-se que estas “festas” costumam atrair “a gente da Vila”, isto é, seus moradores
imigrados tanto de outras e maiores cidades mineiras quanto os que vieram do sul, mas
nisso diferem das ocasiões festivas ocorridas durante o giro da Folia, por exemplo
quando os foliões e os demais presentes recebem uma refeição (café-da-manhã, almoço
ou janta) de uma das casas por onde passam. Sobretudo nos Buracos, onde não existe
acesso de carro durante a época dos Reis (“o tempo das águas”), o giro não costuma ter
absolutamente a presença de gaúchos nem “gente da Vila”. Aqui, é importante notar que
a diferença entre mineiros e gaúchos pode ser às vezes descrita por uma diferença entre
gente da roça e gente da Vila. Os mineiros vindos de outras cidades formam uma
espécie de classe-média chapadense que, embora não comparável às “famílias gaúchas”
em termos de poder aquisitivo, frequentemente se “misturam” a estas nas atividades de
trabalho e lazer. Conforme ouvi mais de uma vez em Chapada, ali “a divisão não é
por classe social”. Neste sentido, o fato de existirem apenas escolas públicas é decerto
significativo; ali é facilmente identificada a diferença entre os alunos da “roça” e os da
“Vila”, e as aproximações pessoais correspondem certamente a esta divisão.
Entrar em uma das lojas chapadenses de propriedade gaúcha sempre foi, para
mim, como passar por uma espécie de experiência: a “prosa” que eu então me esforçava
em aprender era subitamente substituída pelo sotaque gaúcho, bem mais inteligível ao
meu ouvido carioca; um sotaque falado por pessoas louras vestidas com roupas em geral
185
visivelmente novas. O assunto sobre as melhores marcas de tênis para a escolhinha de
futebol ou o último DVD da Disney, a serem comprados para os filhos, causava-me o
efeito de me sentir de volta à minha própria rotina carioca. Nada poderia ser mais
distante do mundo buraqueiro no qual eu estava em vias de me envolver. A noção de
‘classe social’ pode descrever esta diferença - expressa nas casas e mansões bem como
nas caminhonetes de gaúchos - mas não diz tudo sobre ela. Durante minha temporada
buraqueira, testemunhei a chegada na casa de Quincas de pessoas que pertenciam à
família mineira de uma fazenda que era “vizinha colada” dos Buracos, isto é, justo “no
alto da ladeira de Antônio Velho”, no aglomerado de casas batizado “Nova Brasília”.
Tais chegadas confundiam-se com as chegadas de parentes, tendo eu inicialmente
dificuldade em distinguir aqueles chegantes dos demais buraqueiros. Isto nunca me
ocorreu em relação aos gaúchos que chegavam. Na presença destes, a única vez em que
testemunhei uma circulação de prosa e comida ao modo buraqueiro foi quando da visita
do ex-prefeito Eloe Baron, aquela mencionada ao início desta sessão.
Tais observações assumem contudo uma importante limitação temporal, de
forma que não podemos desconsiderar os inúmeros causos que os buraqueiros me
contaram sobre sua “amizade” com “famílias de gaúcho” no tempo que estas chegaram,
à época em que “sofriam até mais do que os mineiros”, novos vizinhos. Aldroaldo é
seguramente o nome gaúcho mais citado nos Buracos. Aldroaldo e o povo dele, contou-
me Quincas, dos gaúchos, foram os qu ficaram mais amigos nos buracos. Comiam com
a gente. A gente ia na Vila, comia na casa deles. Eles... Não é assim asseado pra comer,
come do jeito que for está bom, como a gente... Aldroaldo comia lá, junto com os peões,
e quando ia nas casas. Foi o que mais se adaptou aos mineiros. Às vezes, não podia dar
carne pra todo mundo; me dava e dizia pra não contar pro resto do povo. Não tinha o
costume de botar carne no feijão. quando viu, disse que entendeu porque os mineiros
bebem tanta água - porque fica salgada mod’a carne. depois ele passou a usar carne
no feijão. Virou mineiro.
O relato de Quincas falava de um “tempo” – “o tempo de primeiro” - que
conheci por meio dos causos contados pelos “antigos” em diversas ocasiões. Aldroaldo
e seu “povo” (os filhos e dois irmãos com respectivas “famílias”) mudaram-se da
Chapada antes de minha chegada, mas quando esteve ali certa vez a passeio fui-lhe
apresentada e ouvi dele a genealogia do pessoal dos Buracos de quem ele era mais
chegado. Dona Zefa-Carneira à época contou-me: Aldroaldo é mesmo que um filho
186
meu! Na época da política, ele estava trabalhando pra Antonio Silu
59
e mandou o carro
levar Silvaneis e Nísio [filhos de Zefa] até Montes Claros, pra de eles correrem para
São Paulo, mod’o tratamento de fisioterapia [Silvaneis teve uma doença que o deixou
paralítico]. (...) Meu marido [o falecido João Carneiro] trabalhava para Aldroaldo,
tirando toco, roçando roça de feijão... Agora parece que Aldroaldo está querendo voltar
pra Chapada mais a família. Esteve aqui, encontrou com Leide [filha de criação de
Zefa], aí ele disse a ela que se desse passava aqui em casa. Mas de certo que foi corrido
e ele não veio.
Perguntei a Dona Zefa porque Aldroaldo havia ido embora de Chapada,
instalando-se em Goiás. Ah... que gaúcho é muito interesseiro, explicou-me ela. vai
onde tem jeito de ganhar dinheiro; aqui não tava dando pra ele... ele foi embora...
Zefa contou então sobre a primeira vez em que viu os gaúchos. Foi quando eles
começaram a usar as margens de areia batida do rio Três Passagens para jogar futebol.
Em deles “incutiu” com Joaquina [filha mais velha de Zefa], mas era casado. Outro
“incutiu” pra casar com Ana [outra filha]. Mas o povo dizia que os gaúchos
vinham aqui pra se aproveitar das mineiras e ir embora, ela não quis. Casou com um
mineiro que conheceu em Águas Claras [Distrito Federal, onde Ana hoje mora]. Até
hoje, quando esse gaúcho me encontra ele diz que se Ana ficar viúva ele larga a esposa
e casa com ela. Se ela tivesse casado com ele, tava bem. Porque ele enricou... Trouxe a
esposa do sul. De primeiro, eram pobrinhos, comiam era arroz e mandioca, às vezes até
da mandioca amarga! Trabalhavam muito, homem e mulher também. As mulheres
dirigiam trator! Os gaúchos que enricaram foram os que casaram com gaúchas, porque
elas tinham também aquele sentido...
Alguns gaúchos falecidos são personagens da História local; são “importantes”,
“donos de muitas terras”. “Moacir Cândido”, por exemplo, deu nome à escola estadual
de Chapada e era “dos mais ricos”; “Vivente Vieira” é às vezes usado como sinônimo
de “Ruralminas”, órgão para o qual trabalhava. Foi ele quem pagou João Branco, o pai
de Quincas, para “empreitar gente” mod’fazer a estrada de Serra das Araras até a Vila.
João e os filhos foi que abriram a estrada, contam-me os dos Buracos. Com isto,
Quincas mostra-se autorizado a dizer que não existe hoje nos Buracos “ninguém vivo”
mais “chegado” do que ele próprio a alguns dos gaúchos mais “importantes”. Prova sua
59
Candidato mineiro (família de São Francisco) às duas primeiras eleições para prefeito de Chapada
Gaúcha, as quais foram ganhas pelo gaúcho Eloe Baron, cujo vice era então Miguel da Matão “mineiro da
região”.
187
afirmação contando causos de relações prazenteiras com estes últimos. Aldroaldo,
quando era candidato por Antônio Silu, conta Quincas, disse pra Fulano, Vai no meu
comê-tê. E o homem, me estranhando? Ahahaha! diz-que Aldroaldo, sem
entender a piada, insistiu no convite, é asseadinho..., disse, pensando que o homem
não queria ir no comitê de campanha porque era sujo. Mas, não. Era por causa do modo
deles falarem. Comê-tê. Aldroaldo não entendeu. Comê-tê. Ahahaha! E nós, é cu-mitê.
Os gaúchos têm o jeito de falar errado, é tudo ê”... o beiju, a gente fala -ju e eles
bi-ju. Então a gente “tirava” [gozava] o Aldroaldo, fazendo piada do modo deles...
Atualmente, à distância de alguns anos dos ocorridos contados por Seo Quincas
e Dona Zefa, posso dizer ter testemunhado não mais do que dois causos de proximidade
entre uma “família gaúcha” e uma “casa” buraqueira. Um deles é a de um buraqueiro
que, endividado, contou-me que recorreria à ajuda de um conhecido gaúcho, pertencente
a uma das “famílias” mais “importantes” de Chapada. Muito conhecido! Gente chegada
mesmo!, disse-me o buraqueiro sobre o amigo gaúcho. Mais tarde, ele me viria explicar
que eram “sócios em uma terra grilada”, mas que pretendia “deixar o negócio” antes de
“dar problema”, pois se o gaúcho tinha advogado pra pagar e “resolver o lado dele”, o
buraqueiro não dispunha da mesma garantia. Outro causo de proximidade é a de
Orotido e Alice com Eloe Baron e Dona Dulce. O primeiro casal não pertence à “família
dos Buracos”, mas passou as duas últimas décadas alternando-se entre as moradias que
possuem na Vila e nos Buracos. O filho de Orotides revende semente de capim
“comprada dos gaúchos” e vem transformando boa parte da mata buraqueira em
pasto. Seja aquele que ele mesmo faz para alugar a terceiros, seja aquele que os outros
fazem com o capim que ele vende por intermédio do filho. Dona Alice tem “muita
amizade com Dona Dulce”, a esposa de Baron. Mas me conta, É diferente, né... Mineiro
tem isso de querer agradar... Eles agradam também, mas é diferente. Quando mineiro
faz amizade com gaúcho, presente e eles não comem. Mas é que não é o costume
deles. Eles agradam, mas é diferente. Fulana trouxe um sacão de beiju lá da Marimbas
pra Dona Dulce, mas ó... Caprichou mesmo! Dona Dulce me deu, porque achou
assim sem graça. A gente gosta do beiju natural. Eles agora até gostam, mas é assim
temperado, com sal ou açúcar, queijo ou coco e leite condensado, que nem aquele do
Encontro [Festa do Encontro dos Povos, cf. capítulo 6]. O beiju de tapioca eu gosto é
natural, Zé já gosta com sal, temperado. Eu não, gosto com sal o de tapioca. O de massa
é bom ser natural. Eu vi na televisão, na Bahia, eles colocam um tanto de trem, carne,
queijo. Eca! E tem o vegetariano, coloca milho, aquele trenzinho verde, como é?,
188
Ervilha... Hmmm... Mas é um trem esquisito! Eu gosto mesmo é do beijuzinho mesmo.
Seo Eloe toda hora me pede pão de queijo. Quando eu vou na Chapada levo pra ele um
bando. As meninas de Dulce vieram aqui pra Folia pediram pra eu fazer o beiju doce,
com açúcar e leite condensado, deu um trabalhão. Gaúcho tem o de-comer todo
atrapalhado, o leite e o pão junto com o arroz e feijão no almoço. Ê gaúchos nojentos...
Não à toa a relação com “os gaúchos” me foi descrita por Alice por meio de uma
descrição culinária. Assim se fazem as relações, conforme vimos observando. E foi a
opção de Eloe e Dulce por almoçar na casa de Quincas que me fez entender do que
falava este quando reivindicava primazia no “conhecimento com os gaúchos”. Como era
“época da política”, era como se estivessem abertas as apostas sobre os “cálculos” de
uns e outros. Lembro-me que cheguei da Vila, nos Buracos, pouco antes da chegada do
casal. Então o diz-que-diz-que sobre onde eles comeriam antes de “dar a palestra para o
povo” ainda não havia chegado ao término. E o modo com que mudavam, na casa de
Dona Rosa, os cálculos sobre fazer ou não comida para os gaúchos parecia imitar o diz-
que-diz-que sobre as intenções de voto. Naquele mesmo dia, ouvi o causo da visita aos
Buracos de Eloy da Replan, candidato a vereador que alguns buraqueiros julgavam ser o
candidato de Rosa e Quincas, embora estes não dissessem nem que sim nem que não.
Eloy da Replan se candidatava pelo DEM, partido de Eloe e Dulce Baron. Segundo me
contaram, Eloy da Replan palestrara nos Buracos no dia anterior. Poucos buraqueiros
vieram ouvi-lo e o candidato, trazido por Paulo Gomes, ainda teve a sorte de não
conseguir subir a ladeira de volta à Chapada. Surpreendido pela chuva, tivera que
pousar na casa e Rosa e ir embora no dia seguinte. Naquele mesmo dia, ainda antes
da chegada de Dulce, Titia contou-me, Rosa veio em casa pedir pra eu votar ni Eloy
da Replan. Rosa contou (contou-me Titia) que Jorginho (“o candidato dos Buracos”
cf. capítulo 6) vai cair do cavalo! E disse que quem vota nele ali é o povo de
Guilherme, mas mesmo esses a metade é pra Eloy da Replan. Titia contou o causo e
ficou calada. Eu lhe disse que era estranha a suposição de Rosa, pois de acordo com os
votos “declarados”, o povo de Guilherme, o do povo de Dasim e o do povo de Joaquina
eram para Jorginho, o que lhe dava ampla maioria no Calengue. Titia permaneceu
calada para, noutro momento de nossa conversa, declarar seu voto em Jorginho. Aquilo
era prosa ruim de Rosa!, concluiu ela, que Eloy nem nunca aparece ali nos Buracos.
Quem é aqui que vai votar ni Eloy da Replan!
Dona Dulce, a esposa de Eloe Baron, era a candidata, mas a visita “política” era
sobretudo do casal. Quando enfim o menino de Alice veio de avisando que Dulce
189
mais Eloe vinham almoçar era mesmo ni Rosa, olhei para a casa e julguei que estava
posta a recebê-los: nas janelas da frente, víamos um cartaz do candidato a Prefeito da
situação, Mundinho (“o candidato da vez”, dissera Rosa, cadidato “do Lula” e “do PT”,
diziam todos). Mas havia também um cartaz para o candidato a Prefeito da oposição (Zé
do Boné, “o candidato de Paulo Gomes”) e os “santinhos” de cada um dos vereadores
que haviam visitado a casa. Ao lado deles, a única vereadora presente que ainda não
os visitara era justamente Dona Dulce, cuja fisionomia se multiplicava em colantes
redondos estampando as duas janelas de Rosa e Quincas. Quando cheguei ali, por volta
das nove da manhã, Rosa estava deitada em sua cama, no escuro. Amanhecera doente,
contou-me. Logo hoje que Dona Dulce vem almoçar! Quando chegou a notícia de que
esta viria mesmo, Nêgo foi buscar Tana pra ajudar. A filha e vizinha de Rosa então
veio, mas também não estava bem. Uma dor de cabeça que às vezes ataca, isso é de toda
a vida. Levantou o sol já estava alto, contou Tana ao chegar pra ajudar. A professora da
escolinha, que fica em frente à casa de Rosa, também tomou a iniciativa: tinha ido ao
rio limpar o frango enquanto as duas ficaram na função. Rosa as orientações para
Tana e a professora: coentro não, porque gaúcho não gosta de coentro; só alho e sal.
Açafrão?... Podia era botar uma massa de tomate. Não vai lavar o arroz? A professora
diz que não. Quincas tem uma raiva de não lavar o arroz!, diz Rosa. A professora ri
marotamente e coloca o arroz na água fervendo, sem lavá-lo. O feijão estava no fogo
de cedo, mas a hora alcança as dez da manhã e de resto nada havia sido preparado,
Rosa então decidiu que fizessem o frango no fogão a gás, para ir mais rápido. E
macarrão, não vai fazer? Dona rosa faz pouco caso, as outras duas debatem sobre as
panelas para cada coisa; Rosa indica panelas adequadas, que as outras acham pequenas
para a ocasião. A grossa é pro arroz, determinou Rosa, Ô gente! Dá pra mais de um litro
de arroz aí; pega aquela fina pro macarrão! Ôchi! Tana põe o resto de um saco de
macarrão na água e, aproveitado uma ausência da mãe, acrescenta mais um pouco
escondido. Botou só esse pingo de cebola? Tem que botar o tomate depois da água! Mas
eu estou só é esperando secar a água!
Quando Dulce e Eloe finalmente chegaram, por volta das onze, o de-comer
estava preparado e os pratos de cerâmica colocados sobre a mesa, no lugar dos de
plástico, usados no dia-a-dia. A mesa, em geral usada como suporte para a garrafa
térmica, rádio e palhas de milho para o cigarro de Quincas, além de outras “trenhadas”,
agora encontrava-se apenas com os pratos e os copos de vidro. No pote com os garfos e
colheres, Rosa acrescentara as facas que ficam guardadas para pessoas “especiais”, que
190
“têm o costume da faca”. Dulce e Eloe chegam acompanhados de Orotides, que
também almoçou conosco. Não parou de falar durante toda a visita, o que foi notado em
tom de chiste por Quincas, depois do ocorrido. Na ocasião, este permaneceu mais
calado do que seria de seu costume; não sei se por esmorecimento, protesto ou elegância
diante da conversa ininterrupta de Orotido, que contava sobre a função de sua esposa
Alice, preparando bolo fofo, biscoito, café e chá para a palestra de logo mais. Dali
sairiam para a casa de Orotides e Alice, onde seria servida a merenda a quem viesse
para “reunião” das “palestras” de Dulce e Eloe. Livrei de fazer o almoço!, disse
Orotido, mas vou ter que fazer o café! Hahahá! Os demais presentes não o
acompanharam nos risos.
Eloe diz, Na cozinha as mulheres é que mandam! E então relembram a época em
que Quincas trabalhou na carvoaria de Eloe, quando o primeiro “empreitava os peões” e
Rosa era a mexia com a cozinha de todos. Eloe e Quincas beberam muita cachaça
juntos! Este conta ainda hoje manter aquela terra, Construímos uma casinha, diz. Não
vendemos aquilo nunca!, emenda a esposa Dulce. Ela adora, conta, mas acrescenta que
extraordinariamente bonita é a paisagem dos Buracos e dos Buraquinhos, mais bonito
do que onde têm a casa. E lembram das histórias do irmão de Dulce, pessoa meio
atrapalhada, mas boa pessoa demais, concluíram todos. Enfim os homens deslocam-se
para a área enquanto as mulheres permanecemos na cozinha. Rosa conta a Dulce que
sentira a barriga ruim na noite anterior e hoje cedo amanhecera “naquela vomitadeira”,
“aquele embrulho no estômago”. Mandou recado a Titia que viesse lhe fazer um chá de
casca de laranja com cabelo de milho, mas Titia estava preparando o almoço e não pôde
vir. Rosa bebeu uma Gota do Zeca [remédio fito terápico]. Aquilo é que é bom pro
estômago!, disse Rosa. Deve ter muito boldo, é amargo, disse Dona Dulce. Eu dei umas
sugestões sobre o que poderia ter provocado o mal, rosa não aceitou nenhuma, É a
barriga que está ruim mesmo, explicou. É andaça, disse Dulce, explicando-me que este
é o nome que “eles dão quando muita gente começa a ficar ruim”. Rosa fala “do diabete
que tem mas está baixa”. Dulce tenta lhe dizer que diabete é sempre perigoso, é preciso
cuidar a alimentação, mas Rosa não lhe muita atenção e logo chama os homens para
puxarem o almoço. Depois de comermos, Rosa anuncia que vai passar o café, e nisto os
homens tornam a ir para fora.
Eu pergunto quanto tempo faz que Dulce e Eloe chegaram em Chapada; Dulce
me conta que foram “a oitava família” [de gaúchos a chegar], vieram casados. Desde
que cheguei, me senti em casa, conta ela. Agora não voltaria nunca para o Rio Grande
191
[do Sul], continua, para justificar o sentimento dizendo estar na Vila mais tempo [29
anos] do que o tempo somado de quando viveu no sul do país [chegou em Minas com
23 anos]. O causo desta chegada era contado por Dulce entremeado de considerações
sobre o quanto havia sido sempre bem, recebida “pelo povo daqui”. Rosa e as demais
mulheres permaneceram caladas enquanto eu e Dulce conversávamos. Ela me nomeou
“as primeiras famílias de gaúchos” [a chegarem], e a ordem de suas chegadas, dizendo
que agora o número havia crescido tanto que ela nem mais seria capaz de nomear. A
conversa ia quando Titia chegou e Tana aproveitou para ir embora, despedindo-se e
desculpando-se pela partida. Era mod’preparar as coisas que deixou por terminar em
casa, as filhas na Vila... Sozinha. Dona Dulce sorriu para Tana e recomendou-lhe
melhoras na dor de cabeça. Na cozinha, continuamos a conversar sobre doença. Raiz de
caju é uma beleza pra diarréia! Porque aperta e é fresco, explicava Rosa à visitante, Não
aperta tanto quanto a fruta do caju mesmo, mas você toma e depois sente apertar na
boca.
Aproximava-se a hora marcada para a palestra e portanto logo após o café fomos
todos no encaminhando para a frente da casa, onde a caminhonete de Eloe estava
estacionada. Chegaram Aninha-de-Ito mais Ito, filho de Nico, o irmão mais novo de
Quincas. Esses vizinhos “nós de casa”, ao menos, sabíamos que “não davam voto” o
povo de Niculau [pai de Aninha-de-Ito] vota é ni Zé Elias! Mas Dulce e Eloe tomaram a
iniciativa de tirar foto de todos os presentes, e Ana mais Ito se entreolharam sem ter
como se recusar a aparecer no retrato, ao lado de Dulce e Eloe; mas queriam mesmo era
a carona destes, supúnhamos. Após a fotografia de despedida Quincas explicou que não
ia à palestra mod’as pernas fracas e os olhos ruins, que já não servem para nada, mas
pediu desculpas, Vocês sabem q eu sou fiel... Eloe e Dulce sorriram balançando
positivamente as cabeças. Dona Dita, mãe de Aninha, chegou também à casa de
Quincas, seguindo a filha e o genro; iam conosco à palestra em Orotido mas depois
queriam subir para a Vila “o sentido” deles era aproveitar a volta do carro ao final da
palestra. Chegou a hora de ir para a casa de Orotido, subimos a maioria na caçamba da
caminhonete e fomos alguns falando mal do padre, que agora mora em Chapada e dirige
seu carro individual, mas não carona a ninguém, alegando cuidado com o carro, que
não conta de levar muito peso. Ciúma do carro que nem é dele, é do povo! Prosa
ruim!
Do lado de fora da casa de Dona Alice-de-Orotido, os dois bancos compridos,
usados nas ocasiões da Folia, era usados pelos que chegavam. Como que naturalmente,
192
os homens sentaram-se de um lado e as mulheres de outro. Dos homens, havia Toró,
Bandeira, Dão-de-Cipriano e os meninos de Niculau estes últimos, sobretudo, eu não
imaginava “dar voto” a Dulce, e também calculavam aproveitar a carona dos
candidatos, vindos com suas bolsas para levar para a Vila. Niculau não viera, apenas
a esposa Dita, que ia consultar [-se, no médico da Vila]. Orotides sentava-se ao lado
de Eloe Baron. Do lado das mulheres, Ana, Dita, Deyse, Joaquina e Dona Neném, além
da professora. Muitos ali me diziam de si ou de outrem, de modo algo segredado, que só
haviam vindo “mesmo só pra dizer que veio”. Havia ainda Lúcia-de-Quincas e
Raimundo, este no rastro daquela, “ciumando” (porque ela estava de cálculo de ir pra
Vila de carona com os candidatos). A professora também estava presente e também
subiu de carona. Foi certamente a “reunião” de candidato a vereador com mais quorum
nos Buracos.
Enquanto a palestra não se iniciava, esperávamos que chegasse mais gente. Eloe
conversava e os homens ao seu redor o ouviam calados. Com um graveto, o ex-prefeito
desenha no chão o mapa do estado do Rio Grande do Sul para explicar o causo de uma
estrada que vão construir por lá. Depois emenda com de Orotides um assunto sobre
as futuras plantações de eucalipto em Chapada, uma questão pra preservar o meio
ambiente, diz ele, pois a Amazônia daqui a pouco não tem mais, e lá fora eles dizem que
o Brasil está acabando com a floresta, mas são eles que fora que compram a madeira,
se não fosse a Europa e os Estados Unidos, não estaria acabando a nossa floresta. Então
o eucalipto é a solução. Neste ínterim, alguém entrega a Eloe um “ofício” enviado por
Maçu, buraqueiro filho de Antônio Velho. O homem apresenta no escrito suas
desculpas por não poder ter vindo à palestra. Eloi lê em voz alta e sorri mostrando aceite
pelas justificativas.
Enfim, o fluxo de chegantes parece encerrar-se e Eloe início às palestras,
pedindo que Zé Orotides “tome a palavra”. Este abre um largo sorriso e abaixa a cabeça,
como que se dizendo pequeno para aquela tarefa, balança a cabeça como que em sinal
de modéstia. Apóia a mão na moto e mantém-se de pé, altivo. Começa agradecendo a
Eloe e Dona Dulce pelas “pessoas iluminadas que são” e segue com mais alguns
elogios, dizendo-se privilegiado por ter sua amizade e os estar recebendo ali, como o
fará por ocasião de sua Folia do Divino, e como o fará sempre que for necessário. Dulce
falou em seguida, mas não me recordo o que disse e tampouco o anotei em diário de
campo. Registrei contudo algo sobre a fala de Eloe, que ocorreu após à da esposa, e fiz
ali uma observação dizendo que havia sido a palestra de longe mais longa do que todas
193
as outras ali. O foco do discurso de Eloe era sobre seu sentimento de gratidão”: é a
maior qualidade de um ser humano, disse ele. E prossegui: eu tenho muita gratidão ao
povo dos Buracos, discorrendo então sobre a “vizinhança”, Assim como o primeiro
vizinho dentro de uma comunidade [o “vizinho de cerca”], o povo vizinho é também o
mais importante; Buracos é a comunidade mais próxima de Chapada Gaúcha, por isso
fizemos tanta amizade com o povo daqui. Tivemos a oportunidade de vender fiado,
pudemos ajudar. Sempre nos relacionamos muito bem, ressaltou Eloe Baron.
Por último, o marido da candidata fez considerações sobre a candidatura da
esposa, explicando sobre porque Dulce não se candidatara agora para Prefeitura, “não é
o momento”, e falou sobre a decisão de terem optado por não fazer coligação de sua
legenda com ninguém: era uma decisão que os submetia ao risco de não se eleger, pois
por não estarem coligados precisavam de mais quantidade de votos. Eloi e Dulce, ao
contrário de absolutamente todos os candidatos que ouvi palestrarem, não iniciaram
suas palestras com o agradecimento a Deus, mas sim a Orotides e Dona Alice, por
terem estes cedido sua casa para a realização daquele encontro. Disse que com certeza
estariam de volta aos Buracos no mês de maio, por ocasião da festa de Folia do Divino,
comandada por Orotido. A Folia é uma coisa muito séria, disse o ex-Prefeito. Muito
séria, repetiu. Porque educação e religião são as coisas mais importantes que uma
família pode dar ao filho, continuou. Quem tem isso não vai estar por matando, se
todo mundo tivesse educação e religião...Após o discurso de Eloe, Sueli, a filha de Alice
e Zé, pediu a palavra e contou o causo da doença da mãe, havia alguns anos. E discorreu
sobre sua gratidão, s não somos como porcos que jogamos fora o prato onde
comemos. Isto seria uma ingratidão, das piores ofensas que se pode fazer, dos piores
xingamentos!
3.3 – Vila e Buracos: trânsito pessoal
A casa que aluguei na Vila pertencia a Dona Neném, batizada Maria
mas cujo apelido suplantara totalmente o nome de batismo. Era a caçula entre os irmãos,
o povo do Falecido-Velho-Sinésio. Depois de sair para “caçar rumo fora”, Neném
casara-se com um marido “de fora”, um mineiro de “outra região”. Viveu por mais de
duas décadas longe de sua terra nos Buracos e criou suas filhas na cidade de Três
Corações (MG), onde o marido se aposentara como operário. Foi quando voltou mais o
marido para Chapada - que “mal era uma vila” quando de sua partida - e reencontrou
194
seus parentes, com quem havia permanecido alguns anos sem comunicação. Na Vila,
morou cerca de dez anos com o marido e a filha mais nova (as outras permaneceram em
Três Corações). Havia um ano, esta voltou para junto das irmãs, e Neném se mudou
com o marido para os Buracos. Toda vida ela me acompanhou, é justo agora eu ir para
onde ela quer, explicou-me o marido. Neném possui um bom lote e uma casa nos
Buracos, entre as terras do povo de Juca, seu irmão, e da casa de Cristina, sua cunhada.
Trata-se da “herança” que ganhou, segundo me explicou, graças ao fato de ter voltado
para “a terra”. A mudança do casal da Vila para os Buracos tinha um objetivo tão
preciso quanto verbalizado: tratava-se de permanecer “na roça” ao menos por um ano
para que ela conseguisse a aposentadoria de lavrador. Contudo, o tempo previsto se
completara e o casal, agora empenhado nas plantações, dizia ter “criado gosto” naquela
vida. A aposentadoria do marido permitira que comprassem dois grandes lotes em
Chapada, onde construíram a casa onde moraram e ali “plantavam uma roçinha”
(milho, mandioca e uma horta para consumo próprio, além da criação de galinhas e dos
pés de fruta). Ao lado desta casa haviam recentemente erguido uma outra, rebocada e
pintada tanto por dentro como por fora. O acabamento da casa incluía ainda o chão de
cerâmica e o chuveiro elétrico; o banheiro era azulejado até o teto e possuía espelho, o
que costuma encontrar nas “casas de mineiros” da Vila. E a casa ainda era munida de
geladeira, fogão, armário, televisão, sofá e camas. falta o forro do teto!, diziam os
que chegavam, Parece casa de gente de chique de cidade!, espantavam-se alguns
buraqueiros aparentados. Neném não chegara a morar ali. Distante apenas dois metros
da antiga construção, a nova casa havia sido planejada para receber as filhas que por
ventura quisessem visitá-los, ou - Quisera Deus! - vir em definitivo; mod’estabelecer
moradia. As moças, nascidas e criadas em cidade “mais evoluída” do que Chapada,
entretanto, quando vinham pouco ficavam. Assim, a casa antiga foi alugada para um
“conhecido” e a nova, que aluguei, era antes disto utilizada apenas uma vez por mês,
quando Neném vinha fazer “a feira” e pegar o dinheiro da aposentadoria do marido.
Dona Cristina - viúva de um irmão de Neném, e hoje vizinha desta nos
Buracos - subia com esta dos Buracos até a Vila e pousava na antiga casa da cunhada
(contígua à que eu alugava), agora desalugada. Do outro lado da rua, em uma casa
adiante três ou quatro casas dali, morava Maria-de-Mauro, a sobrinha de Neném e filha
de Joaquina que se casara com Mauro, gaúcho, mas não “das famílias conhecidas de
gaúcho” (isto é, era “gaúcho, mas pobre”). Até pouco tempo Maria era a única pessoa
dos Buracos casada com um gaúcho (recentemente uma outra moça buraqueira também
195
se casou com um “gaúcho pobre”). Joaquina era a irmã de Neném que possuía uma casa
chapadense no outro limite da cidade, oposto àquele mesmo quadrante, mas passava a
maior parte do tempo de suas estadias chapadenses por ali. Ela mais as outras duas
vinham e voltavam juntas para os Buracos. Eu me entretia com as horas que
despendiam nas negociações para acertar uma forma de voltar aos Buracos levando as
compras do mês; as soluções que cada uma defendia diziam respeito ao “modo” de cada
uma e nunca entravam em um acordo imediato. Fosse uma “carona”, um “favor” (em
geral de um “político”) ou uma cortesia do mercado onde faziam as compras. Nestes
casos, ou bem os meninos de Cristina ou bem Raimundo-de-Joaquina (filho desta) as
esperavam no alto da serra com os animais para carregar as sacas de compra. Caso não
arranjassem carona, cotizavam-se para o valor pago a alguém que as levasse de carro
mais abaixo nos Buracos, até onde a estrada estivesse boa.
A cada mês, as três senhoras buraqueiras “davam presença” no terreiro
que então compartilhávamos: o antigo lote cultivado encontrava-se a esta época apenas
com os vestígios secos do que havia sido uma pequena roça, mas com aquela presença
ele se enchia de expressão. Restavam duas mangueiras, um pé de maracujá e um
abacateiro que atraíam os meninos da vizinhança e entretinham as senhoras a cada safra.
A presença delas me animava, animava ‘minha’ casa; tanto pelas demoradas transações
em torno do transporte quanto pelos causos que trocavam em torno da estadia em
Chapada, cada uma trazendo os seus, originados de suas andanças particulares (pois na
Vila, cada uma tinha seu “jeito” e caçava individualmente seu “rumo” particular).
Embora dormissem na casa antiga, Neném e Cristina faziam um uso comedido da
cozinha que estava comigo. Vez e outra vinham e proseava; perdiam assim a vergonha e
então se demoravam. O uso da geladeira é que puxava a prosa e, com a demora, a porta
aberta voltada para o terreiro fazia transitar quem chegasse, “os meninos de Cristina” e
também a neta desta, que morava com ela nos Buracos. Os pais estão hoje em Brasília,
mas antes era outro lugar porque é toda a vida viajando. Ô sorte enguiçada!, esbraveja
Dona Cristina. As refeições, entretanto, eram feitas na outra casa, ao redor do fogão à
lenha, do lado de fora da antiga casa, onde Neném cozinhava o feijão desde cedo e
fervia a água do café nas manhãs e tardes; onde, enfim, se virava na mexida de cozinha;
a madeira para lenha era comprada mensalmente dos mascates que a vendem no
carrinho de mão pelas ruas de Chapada. Neném apenas buscava ou colocava as garrafas
de água e refrigerante gelados um prazer próprio de Chapada, posto que nenhuma
196
delas possui geladeira nos Buracos - e pontualmente me pedia licença para usar
esquentar uma comida pronta no fogão a gás.
[Figura 10] Sinésio, o pai de Neném, é irmão de Lió. Deste modo, Neném; Juca
(hoje sogro de Lúcia de Quincas); Joaquina e o falecido que desposara Cristina
são todos primos-primeiros de Quincas. Joaquina viria a se casar com João
Branco, o pai de Quincas. Após a morte de Lió, a mãe de Quincas e tia paterna de
Joaquina, esta é desposada por João Branco, o pai de Quincas que então saiu do
Calengue e para morar “no Retiro”, terra do povo do Velho Sinésio. Antes de
conhecer Neném, que quando cheguei nos Buracos morava em Chapada, conheci
o “povo de Joaquina”, isto é, ela e seus filhos rapazes, que trabalhavam alguns
meses por mês no corte de cana (Barreiras-BA). Quando estavam nos Buracos,
vinham sempre às “festas” ou “reuniões” que ocorriam via de regra no Calengue.
No tempo das Folias, Dinalva-de-Joaquina veio passar as férias nos Buracos (e na
Vila); foi quando nos conhecemos, tornando-nos “chegadas”. Edinalva mora em
Ceilância-DF e me hospedei em sua casa quando fiz ‘pesquisa de campo’ com “o
povo dos Buracos da Brasília”. Minha aproximação com Dinalva teve decerto a
ver com termos “combinado”, como ela definiu, O sangue bateu logo! Mas teve
ainda o reforço de outras relações: Daiana Campos, irmã de Damiana, viera
passar as férias nos Buracos na mesma época que Edinalva. Daiana trabalhava no
Posto de Saúde de Chapada, de modo que conhecia “todo o povo”, e além disto
havia trabalhado como empregada doméstica em Brasília, assim como
Edinalva. Meu “conhecimento” prévio com Daiana e prosa relaxada que
desfrutávemos por isto decerto me ajudou a “puxar amizade” com Dinalva. Da
mesma forma, findei por me tornar “chegada” de Simone, prima da última e filha
de Neném. Simone-de-Neném estava ali também de férias - também de seu
trabalho “em casa de família”, mas na cidade de Três Corações (MG).
197
Figura 10 – O “povo de Sinésio” e a “família de Quincas”.
Neném é mais quieta e menos risonha do que sua irmã e sua cunhada.
Quando vinha à Chapada, apenas cumpria suas tarefas mensais e voltava para casa,
onde permanecia sentada na área dos fundos, por toda a tarde, olhando suas antigas
fruteiras e o resto da pequena roça, outrora cuidada. Regava um por um os vasos de
plantas e flores que enchiam toda a lateral e frente da moradia e varria o terreiro
deixando-o impecável tal qual a estética chapadense: nenhuma folha ou rastro pelo
chão. Depois tornava a sentar-se em silêncio, vez em quando se levantando para dar
conta de algum fruto ou folha. Sua irmã Joaquina aparecia no final da tarde, proseava
um pouco e retornava à sua casa, a algumas quadras dali, no limite da cidade. Ao
anoitecer, chegava Cristina, a cunhada viúva de seu falecido irmão. Falante e risonha,
Cristina barulha bom. Passara o dia caminhando, Medindo rua!, riam as outras. Neném
a acompanhava nas visitas em ocasiões especiais, fosse parente doente, gente recém-
nascida ou gente chegada de viagem, ou algo assim. Então iam depois da janta
invariavelmente preparada por Dona Neném, a dona da casa. Cristina me justificou que
tinha pudor em cozinhar em casa de cunhada, Cada um tem seu jeito, né... O feijão era
cozinhado no fogão à lenha ao lado de fora, onde comíamos. Neném vinha me chamar e
se manifestava ofendida se eu alegasse falta de fome ou ter comido, Não está muito
bom, mas é de-comer... Até que eu aprendi a não recusar. De minha parte, porém, não
198
consegui incutir-lhe o mesmo efeito. Poucas vezes comeu da minha comida; uma vez
insisti no argumento de que havia feito carne e ela enfim se serviu; noutra, quem puxou
foi Dona Cristina, que é “mais atirada”, e Neném por fim acompanhou a cunhada. Mas,
durante suas tardes de solitude, aceitava com naturalidade minha bolacha com café, que
aprendeu a beber depois de acrescentar água quente e açúcar. Nestas ocasiões, fazia-me
perguntas para traçar paralelos entre minha presença ali e a ausência de suas filhas; eu
como elas longe de suas mães.
Mas eu recebia ali a presença passageira também de outra gente”
buraqueira. Em geral, o “pessoal” do Calengue, minha vizinhança nos Buracos, de
modo que, atraindo sua circulação, eu criava meu próprio arranjo familiar. Eles
moravam, como a maioria dos buraqueiros, do outro lado da Avenida Getúlio Vargas e,
por isto, queixavam-se da distância sob a quentura do sol. A maioria deles nunca havia
passado ou visitado a casa de Dona Neném em Chapada, mas quando chegavam ali
notava-se que eram todos parentes. A proximidade criada na casa parecia-me como a
recordação de um tempo ainda por viver, havia alguma intimidade expressa na prosa
solta, nos causos logo encontrados para conversar, mas era “declarado” o fato de que,
estivessem ali para me visitar ou para dar dois dedos de prosa, era eu quem caçavam.
Como o Posto de Saúde e o “laboratório de exames” (sangue, fezes e urina) da cidade
localizavam-se nas duas ruas consecutivas à de minha casa, muitos aproveitavam o
caminho e passavam por ali. A circulação de pessoas era ainda motivada pelo fato de
que minha rua era a única “calçada” a cruzar transversalmente a cidade, de modo que se
buscava passar por ela sempre que o destino pedisse, evitando-se a “lama” (“no tempo
das águas”) ou a “poeira” (“na seca”) das demais ruas. O circuito puxado pelo Posto
incluía ainda a Prefeitura - no extremo oposto da cidade em relação à minha casa - e a
Secretaria Municipal de Meio Smbiente e Turismo (Semat) da “Adisc”, a dois
quarteirões de minha casa. A sede da Semat abrigava também escritórios da Adisc (Ong
voltada para o “desenvolvimento sustentável”), do IEF (Instituto Estadual de Florestas)
e da Coope (Cooperativa de pequenos agricultores comandada por Zezo, filho de
Bandeira, dos Buracos). Deste modo, o local reunia um pessoal bastante “chegado
meu”: por um lado, Zezo e seus cooperativos, por outro, “os ambientalistas”, “gente do
IBAMA e da Funatura”, como se chamam ali os que trabalham respectivamente para o
órgão federal (hoje ICMBio) e a Ong Fundação Pró-Natureza, com sede na Vila (cf.
capítulo 6). Esta foi, aliás, meu primeiro “pouso” ao chegar na cidade, e desde então me
tornei amiga desses que também eram reconhecidos, pelos buraqueiros, como
199
integrando meu “pessoal”. Zezo e os ambientalistas tinham, por sua vez, uma relação
que não passava por mim, de modo que as “reuniões” entre ambos acabaram por me
aproximar de uns e outros, como que num movimento centrípeto semelhante ao que
vimos nos recursos narrativos sobre a parenteza (capítulo 2). Esta concentração de
“chegados” acabava puxando outros: Dona Anésia (ou Nésia), tia de Tutty e irmã de
Rica, trabalhava como funcionária de limpeza da Semat, e uma de suas aparentadas
buraqueiras, Leide, era babá de uma filha de gaúchos, na casa ao lado. Leide e Nésia
vinham sempre visitar-me, ou “só assuntar”, ver se eu estava, cada uma por sua parte.
Leide trazia a menina de quem cuidava, Nésia vinha nas tardes mais folgadas;
“escapada”. Foi então que minha comunicação com Tutty, vizinha minha nos Buracos,
reforçou-se: os assuntos que cabiam a Nésia e Leide cabiam também a mim e Tutty.
Encontrávamos e empenhávamos futuras prosas; fosse a combinação de uma ida à festa,
O povo está falando que vai ter esse sábado!, fosse o pedido de retribuição à presença
que faziam em minha casa, Esperand’ocê com o feijão!
As práticas de visita, passeio ou passagem constituem assim uma
maneira de “criar/pegar intimidade” na qual as pessoas envolvidas arrastam todo um
“pessoal”, um “povo” o que circula é a “notícia do povo”. Aproximar-me do povo de
Joaquina trouxe-me, neste sentido, um reforço à relação com o povo do Calengue; eu
me ligava a este agora também por intermédio daqueles, e aqueles por intermédio
destes, éramos todos “parentes”. É como entre “primos-irmãos”, isto é, quando os pai e
mãe de um são respectivamente irmão e irmã do pai e da e do outro. Neste caso, os
primos se ligam “pelo lado” da mãe e “pelo lado” do pai, o sangue “apura”, explicam os
buraqueiros, em analogia ao processo de “apurar” um tacho de caldo, engrossando-o
(capítulo 2). Nos laços em que o sangue é mais “fraco”, quando se trata de “uma
parenteza longe”, busca-se traçar por um lado e por outro, as várias gerações de parentes
até que um ascendente “encontra” outro, ligando-se por uma cadeia de filiação e
germanidade; é quando se diz “tocar parenteza”. Quando contei a Zefa Carneiro que
meu sobrenome é igual ao seu, ela e seu filho especularam sobre um possível parentesco
de sangue. Com certeza em algum lugar toca!, concluíram. Quando lhes disse que
minha família é originária do Sul de Minas Gerais, suas hipóteses se reforçaram. A
mistura de um “aparentado longe” com uma pessoa de “sangue perto”, contudo, sempre
aproxima a “pessoa” do “povo”.
Uma relação de parenteza nunca é bilateral, sendo, por definição, uma
mistura de “sangue”; de pessoas outras, portanto. Note-se, contudo, que se até agora me
200
referi prioritariamente ao termo “pessoal”, evitando o uso de “povo”, foi justamente
para evitar que o leitor trouxesse a idéia de sangue ao primeiro plano, conforme
aconteceu nos “causos do povo antigo” (capítulo 2). No uso buraqueiro, “povo” e
“pessoal” são, a rigor, sinônimos; mas, diversamente ao que ocorre quando se trata do
“povo dos Buracos”, aqui a noção envolve, necessariamente e em um nível, relações
de “parenteza” (neste caso, incluindo afins) e o que chamei ora ‘afeto’, ora amizade’.
Não são ‘tipos’ de relações distintas, mas elementos de um mesmo “modo” de relação:
não basta ser “parente”, tem que ser “chegado”; não basta ser chegado na linha de
descendência, é preciso participar de um mesmo ‘fluxo’ (cf. capítulo 1). Na tentativa de
qualificar o que diziam quando me chamavam “parente”, chegamos assim a uma
espécie de matriz relacional que não diz respeito à proximidade “no sangue”, embora
muitas vezes a inclua. Muitas vezes, o que “puxa” duas pessoas a este vínculo é um
atributo geracional. Primos da mesma idade não raro tornam-se “chegados” no sentido
forte do termo, isto é, assim como eu me tornei “chegada” de meu “pessoal”. Afinal,
primos da mesma idade estudam juntos, vão às mesmas festas, têm os mesmos assuntos.
Existem nos Buracos vários pares de primos e pares de primas (nunca pares cross-sex)
notoriamente “colados”, Parece que nasceu colado uns aos outros!, ralham as mães
vendo filho e sobrinho não sem “largar uns aos outros”. Filho não é pra ser criado na
casa dos outros! Os “colados” são em geral “primo(a)s” e vizinho(a)s que nasceram na
mesma “era” [ano] e o povo buraqueiro compara essas duplas de criança atuais às que
existiram no passano, Fulano mais Cicrano era mesm’isso! Algumas vezes, a dupla
envolve “pessoas” que não têm o mesmo “sangue”, como é o caso da relação entre uma
“criança criada” em “outra família” e o “filho legítimo” desta última. É significativo
que, até cada um “formar família”, os membros destes pares circulem com um conjunto
de outros primos da “vizinhança”. Formam um pessoal que é também uma vizinhança.
Como vimos, Chapada desloca um pouco esta identificação entre “pessoal” e
“vizinhança”: ali, os locais de trabalho, a escola, e mesmo as moradias dos buraqueiros
muitas vezes não correspondem à proximidade geográfica que vivem nos Buracos. Este
rearranjo provoca um movimento próprio. A formação desse pessoal é propícia ao que
chamei ‘afeto’, e não à toa evoca a possibilidade latente de futuros casamentos.
- Como é que Firmino foi arranjar esse casamento [com Jó]?...
- Arranjou, não! Trouxeram pra ele na porta [risadas e gargalhadas]. [...]era assim... Como é
que puxa?... Contar do começo.
201
Como contara Quincas (capítulo 2), o causo do casamento de Jó e
Firmino começava com Toró, seu futuro cunhado. Jó, “criada” deste, veio “trazida” por
ele, que “largou da família” e veio trabalhar “pra cá”. Foi então que Toró casou com
Belinha, a irmã de Firmino. E como que para “pagar” a este pela esposa, Toró lhe
trouxe Jó (cf. Figura 10). O movimento de aproximação ‘pessoal’ é de algum modo
‘coletivo’, vimos. De tal maneira que essa espécie de colective body (capítulo 1), esse
“pessoal” formado num dado momento (seja o momento de uma geração ou o de uma
mudança de endereço), assume o aspecto de “pessoa”. Quando se conta o causo de uma
“pessoa”, é preciso ir do começo para se perguntar, Como é que “puxa”? No causo, os
movimentos coletivos são indiferenciados dos movimentos pessoais. Uma moça do
Calengue pode por exemplo interessar-se por um rapaz do Três Passagens, e será um
“incutimento” entre duas “pessoas”; entretanto, toda circulação de prosa, opinião e
análise dos deslocamentos da primeira sobre o segundo (e vice-versa) será feita sobre o
“pessoal” dele ou dela. Trata-se, para usar outro sinônimo buraqueiro, de uma gente” -
termo a um só tempo plural e singular.
Durante meu processo de aproximação com o povo buraqueiro, ouvi-os
muitas vezes me perguntarem, Você tem pai, mãe, família? Saber sobre isto era um
modo de me conhecer, fazer-me “conhecida”. É certo que, entre buraqueiros, uma
pessoa sem família provoca espanto, mas não devemos nos adiantar e ver nisto uma
distinção ente ‘pessoa’ e ‘indivíduo’, como ocorre nas situações do tipo ‘Você Sabe
com Quem Está Falando?’ (cf. Da Matta, 1979: 139-193). A ascendência de uma pessoa
diz muito sobre ela, como vimos no capítulo 2, mas o fato de ter família não é em si
bom ou ruim, isto dependerá da análise desta família. Tampouco se trata, neste caso, de
buscar na ascendência uma posição de ‘hierarquia’. Não duvido absolutamente que os
filhos de “gente importante” sejam eles mesmos considerados “gente importante” – pelo
exato motivo de serem filhos de quem são. Mas isto é um indicador de, podemos dizer,
‘posição social’, e o era sobre isto que se interessavam meu interlocutores
buraqueiros ao perguntarem por minha própria família. Já era ‘dado’ a eles que eu tinha
uma posição social, digamos, ‘superior’ à sua: por ser “gente de cidade”, “estudada”,
“possuidora de carro”, e outros atributos mais e menos comensuráveis, eles me tinham
por gente importantee volta e meia o expressavam diante de mim (em geral como
“piada”, mas nem sempre). Assim, a pergunta sobre minha família não se mostrava
motivada por uma curiosidade a respeito de meu estatuto ‘sócio-econômico’ ou do
‘valor simbólico familiar’ que eu pudesse informar por meio de meus laços familiares.
202
O que buscavam era saber sobre mim, “ter o entendimento de minha pessoa”, como já
ouvi dizerem em uma argumentação que se queria ouvida com paciência. A curiosidade
deles parecia-me similar à que elaboravam quando falavam do causo de um homem de
língua estranha (em algumas versões, francês, noutras, americano, noutras, estrangeiro)
que muitos anos atrás havia se mudado para Serra das Araras, onde viveu sozinho
durante décadas, até falecer. Aquele causo assumia um aspecto fantástico quando me
descreviam a “doidice” do sujeito. Uma pessoa que vive inteiramente só não está com o
juízo certo, imagina-se.
Nos Buracos, existe também um causo de homem só. Quincas me
traçou seus laços de parentesco com o povo. É parente!, afirmava-me. Mas nunca
consegui guardar e por algum motivo ele não consta na genealogia que desenhei com a
família dos Buracos. Seu nome é Porcidônio e ele mora hoje na herança que recuperou
ao voltar à terra da família, depois de ter vivido na cidade e, dizem os outros, ter feito
“coisa errada” e ter sido preso. Dizem também que, quando “fora”, chegou a “formar
família” – “mulher e filha” -, mas quando voltou já veio sozinho. Naquela época, “ainda
conversava”; “proseava normal”, contaram-me. Hoje passa para com a feira que compra
na Vila, carregando no próprio lombo, e nem olha para os lados; vai direto à sua casa,
que para mim sempre foi invisível, pois que entocada atrás de uma mata fechada dessas
que hoje não existem nos Buracos. Dizem os outros que “o problema” piorou porque ele
tomou chá de Boa Noite [flor de trombeta]. Porcidônio veste-se todo de branco e tem
uma imensa barba “vermelha” [ruiva]; morre de medo de gente pintado” e não aperta
mão de mulher, que ele diz ser “coisa ruim”. Nísio, o filho solteirão de Dona Zefa, é o
único a receber às vezes uma visita de Porcidônio, quando este está com “o juízo
melhor”. Certa vez, o sujeito estava na cozinha de Nísio quando o povo chegou para
fazer farinha. Foi a única vez que o vi de perto; pareceu-me um personagem do musical
Hair cumprimentou-me de longe e julguei que seu aspecto não era o de um doido.
Naquele mesmo dia, um dos meninos pintados [filhos] de Guilherme viu Porcidônio ir
embora, “fugindo do povo”, e correu atrás dele, para fazer graça. Contam então que o
homem ficou “desabestado” e dias depois danou a fazer ameaças ao rapaz por
intermédio de Nísio. O comentário geral foi o de que Porcidônio tinha razão: o homem
tem “o juízo fraco”... Não pode “ficar atentando”!, diziam. O episódio levou Quincas
a me contar mais detalhes do personagem, e depois de narrar os causos refletiu como
que pensando em voz alta: como é que pode, moço? A pessoa tem o juízo bom para
203
umas coisas e ruim para outras... Porque ele sabe conversar, é inteligente e tudo, mas é
assim... doido... Como é que entende uma pessoa assim, moço?
Uma “pessoa” que não se relaciona, em suma, é alguém de quem não se
pode ter “entendimento”. Analogamente, saber sobre minha “família” era apurar o
“conhecimento” sobre mim - não no sentido da ‘posição social’ que eu ocupava, mas no
de “entender” meu modo de ser; para usar o termo buraqueiro, meu “modo de comer e
de conversar”. Neste sentido, é significativo que, com o passar do tempo, eu ouvia nos
Buracos comentários e perguntas de teor que poderíamos julgar ‘íntimos’ - posto que
falavam sobre destinos ‘pessoais’, ‘individuais’ a respeito daqueles que formavam
meu pessoal fora dos Buracos. Não apenas “a família Campos” e “as professorinhas de
Chapada”. Camila Medeiros, minha companheira de viagem que a despeito de nossas
explicações era reconhecida por todos como minha “irmã”, veio a se casar, ainda em
meu período de ‘campo’, com um funcionário do IBAMA “muito conhecido de todo o
povo”. E se isto ajudou o povo buraqueiro a ter um “entendimento” sobre minha
“pessoa”, o fato foi ainda acrescido da vinda de minha mãe e dos familiares de Camila
(minha “irmã”). Convidei as famílias buraqueiras com as quais eu mais convivia para a
festa de casamento, na qual uma mesa reservada ao “povo dos Buracos” possibilitou que
eles observassem meu “povo do Rio de Janeiro”. Depois disto, passei a ouvir deles
perguntas regulares sobre como estava Fulano ou Beltrano presentes na festa. Sobre o
estado de minha e, não apenas questionavam como enviavam a ela, por meu
intermédio, as palavras de bom agouro presentes também nos recados que enviam aos
seus parentes e aparentados emigrados. Deus lhe saúde! Os mais gaiatos faziam
brincadeiras sobre o “modo” dos “cariocas”. Era como se, através de mim, “pegassem
intimidade” com todo o meu “povo”. Por outro lado, foi justamente o “conhecimento”
sobre este último que os fez ganhar melhor “conhecimento” sobre mim: o evento do
casamento seguiu-se então de uma visível aproximação entre mim e os buraqueiros.
Em suma, para a existência de uma “pessoa”, é suposta a existência de
um “pessoal”; o conhecimento sobre a primeira implica alguma observação sobre o
segundo. Muito tem sido escrito sobre a característica ‘relacional’ da ‘pessoa
ocidental’
60
. A partir de análises sobre novas práticas de tecnologias reprodutivas,
notam que o ‘indivíduo’ monádico e autônomo, imaginado como expressão do que
‘nós’ concebemos constituir a ‘pessoa’, não passaria de uma ilusão, uma ‘ideologia
60
Para uma reflexão sobre a noção de pessoa no pensamento antropológico e suas implicações nos
estudos sobre as chamadas ‘sociedades complexas’, ver Goldman (1999a).
204
individualista’, mais do que um ‘fato empírico’. Que seja produzida em laboratório,
uma criança não se reduz à ‘matéria biológica’ que lhe forma; existe uma
determinada ‘necessidade de e’, uma outra determinada ‘necessidade de pai’. Assim,
se é possível imaginar relações sexuais sem a produção de filhos, a idéia de um filho
produzido sem a ocorrência de tais relações provocou uma onda indignação quando, na
Grã-Bretanha, mulheres buscaram o laboratório para se tornarem ‘mães virgens’. E o
que ‘nós’ (pesquisadores ‘euro-americanos’) julgávamos ‘construções sociais’ fez uma
incursão inesperada no ‘fato biológico’ da gestação (cf. Strathern, 1995). Foi curioso
observar que este debate reverberava na conversa de moças buraqueiras quando, falando
sobre planos futuros, duas delas afirmaram que queriam ter filhos, mas não queriam ter
maridos. Marido pra quê? pra atentar! Diante do espanto de uma terceira, a moça
defendeu que seu desejo hoje em dia é possível, e citou os “bebês feitos em
laboratório”. Ao contrário do que ocorrera com as moças inglesas, a reação buraqueira
não me pareceu estar voltada para a inexistência do intercurso sexual. Se “nos dias de
hoje”, é possível fazer filhos em laboratório, isto aparece apenas como mais uma das
novidades trazidas pela televisão; o espanto causado é em geral associado à esperança
prometida pelos “cientistas” e “especialistas” a respeito de alternativas benéficas para
corpo humano: “esse povo faz coisa...”, riem-se os buraqueiros.
Longe de causar ‘indignação moral’, a idéia de um ‘nascimento virgem’
nos Buracos poderia aqui trazer alguns deslocamentos ao debate sobre a ‘existência
incorporada’ (‘embodied’) das ‘pessoas’, conforme o desenvolvimento recente dos
chamados ‘estudos de gênero e parentesco’
61
. Mas para a argumentação puxada até
agora sobre a articulação entre as noções buraqueiras de “pessoa” e “pessoal” este não
me parece o aspecto mais interessante. Embora o assunto apareça nas elaborações sobre
as formas de se “puxar o sangue” (cf. capítulo 2), é notável que o próprio “sangue” seja
aqui uma questão de “criar/pegar intimidade”. Como diz o vocabulário buraqueiro,
“nosso sangue bate”; “nosso sangue não bate”. “Conhecer” a “pessoa” é observar a
‘imagem’ de seu “pessoal” não tanto porque se atribua ao último a ‘imagem’ exata,
digamos codificada, do sangue ‘pessoal’, ‘individual’
62
. Antes, o que se a observar
61
Sobre a noção de embodimente os debates sobre a noção de pessoa a partir da pesquisa sobre novas
tecnologias reprodutivas, ver, entre outros, Conklin e Morgan (1996), Frankiln (1999), Luna (2001)
Strathern (1991). O termo ‘nascimento virgem’ ao qual me refiro diz respeito ao debate desenvolvido a
partir de pesquisas na Austrália (notadamente Ilhas Trobriand), onde se observou, conforme a exposição
de Strathern (1995: 303), que ‘a concepção não era pensada como dependente das relações sexuais’.
62
A idéia de ‘imagem’ entra aqui em lugar do que poderíamos chamar ‘conceito’, ‘categoria’, ‘noção’ ou
‘concepção’, e me parece aqui mais adequada se usada no sentido sugerido por Joseph, ‘informante’ de
205
pelo conjunto de um “pessoal” são pessoas que “combinam”, “dão certo”: a matriz
relacional observada é menos uma questão de ‘filiação’ do que a de certa ‘afinidade’ em
‘potencial’. Neste sentido, o “sangue” de uma “pessoa” é ‘individual’ não por um
processo de singularização produzido na “mistura” (pai + mãe), mas porque é sintoma
de proximidades e distanciamentos internos ao seu “pessoal”. Ao contrário da análise
sobre a descendência (capítulo 2), onde o sangue do filho necessariamente “puxa” o de
seus ascendentes, aqui o sangue é como as palavras circuladas: servem tanto ao intuito
de aproximação quanto de distanciamento. A observação sobre o pessoal incide portanto
sobre este movimento.
O “pessoal” é neste caso um arranjo em variação contínua por meio do
qual a “pessoa” a ele vinculada ganha inteligibilidade, “entendimento”. Este é
necessariamente contingente, uma vez que o pessoal formado depende de “dar certo”,
“combinar”, “o sangue bater”. Conforme vimos sobre o causo do prefeito que acusara
uma grevista de estar “contaminando” os colegas, “ninguém é doente para contaminar
ninguém”, e “ninguém está doente para ter sido contaminado”. Neste caso, a idéia de
‘liderança’ deve ser matizada. O “pessoal” em questão eram os professores da rede de
ensino municipal, muitos dos quais meus “conhecidos”, alguns “chegados”, de modo
que testemunhei alguns acontecimentos talvez presentes nesta reação contra a idéia de
“contaminação”. A grevista identificada pelo prefeito como “contagiosa” já havia
noutras ocasiões sido acusada de “cabeça” de mobilizações coletivas, e de fato ela se
ressentia de “puxar” movimentos de protesto e depois ver “os outros roerem a corda”.
Mas até que ponto isto pode ser lido como sinal de seu ‘poder de agência’ é um ponto a
se pensar. Justamente o fato de que “os outros roem a corda” (rompendo os vínculos do
grupo em dada reivindicação) mostra que os momentos de união não dependiam dela.
Embora fosse “boa da prosa”, e por isto se colocasse à frente nos embates com o
Prefeito, isto estava longe de indicar seu ‘poder’ sobre os demais. Na lida diária da
atividade docente, aliás, tal professora era freqüentemente criticada pelos colegas, sendo
constante alvo de “fofoca”. A situação de greve, portanto, não poderia ser vista como
orientada por ela, tratar-se-ia de uma acusação aos demais, que se viam no mais das
vezes em oposição a ela. Os grevistas não se viam, em suma, como um ‘grupo
corporado’. A expressão “dar certo” é aqui significativa: usada em geral para relatar
Tedlock (1978: xxxi). Este então escreve: ‘acredito que algumas (...) narrativas são abertas o suficiente
para permitir ao leitor criar alguma figura [picture] por conta própria. Como diz Joseph, “Se alguém conta
uma estória [story], você simplesmente consegue imaginá-la”[you can just imagine it]’.
206
sobre um cálculo de atitude bem sucedida, ela corresponde à seqüência de condições
necessárias a um gesto pessoal. Deslocar-se à casa de alguém distante, por exemplo,
depende de uma carona, de uma mulher que fique em casa para fazer o almoço, da
saúde das pernas que naquele dia amanheceram fracas, e daí por diante. Deste modo, é
comum ouvir, sobre a ausência de uma pessoa que anunciara visita, “deu certo, não”. A
exemplo do que ocorre com uma pessoa, para que “o pessoal reúna”, é preciso “dar
certo”, o que não depende de uma agência individual qualquer, mas sim de uma
combinação contingente, uma combinação de combinações pessoais, poder-se-ia dizer.
Uma pessoa pode sim “contaminar” e ser “contaminada” por outra, mas para isto é
preciso estar “doente”. Se a linguagem ligada à “doença” “veneno”, “contaminação”,
“feitiço” – é negativa quando usada “na política”, é curioso que ela assuma certa
positividade quando associada às relações amorosas (cf. capítulo 5). Estas são descritas
nos termos da “influência”, veremos (não é à toa que o amor e a dor sejam às vezes
indistintos). No caso de uma greve, contudo, a associação com o vocabulário da
moléstia não cabia. A agência ali era de outra ordem.
Mas o que “puxa” uns aos outros no rumo comum de uma atividade
coletiva? Como vimos até agora (capítulos 1 e 2), prosa e comida puxam gente. Mas o
que puxa prosa e comida? Logo acima, fiz referência a um causo possível de “namoro”
entre uma moça do Calengue e um rapaz do Três Passagens para dizer que esta relação
seria criada a partir do movimento do “pessoal”/“povo” de e do de lá. O exemplo é
bom porque se refere aos dois “povos” buraqueiros mais “fortes” hoje em dia: ali “o
povo rende”, casam-se os jovens e nascem as crianças. Por serem fortes, Calengue e
Três Passagens “puxam” gente, mas cada qual ao seu “modo”. Como o primeiro inclui
em sua terra a presença da escolinha rural e do campo de futebol, de modo que sua
rotina envolve as principais atividades dos finais de semana e dias santos nos Buracos.
A “escolinha”, ou Escola Municipal São João, é nos dias de semana utilizada pela
manhã por uma professora e uma turma “multisseriada” com alunos até do primeiro
ciclo do Ensino Fundamental. Mas nos dias de missa, é onde ocorre a missa. Aos
domingos, o culto.
63
Eventualmente há ali também reuniões com “gente da Chapada” ou
“de fora” - assuntos da Prefeitura ou de algum outro “interesse da comunidade”
63
Durante meu primeiro período de campo, o padre, um “gaúcho” de Santa Catarina, morava em Januária
e vinha rezar a missa nos Buracos em datas marcadas previamente, com intervalos de três ou quatro
meses. Mais tarde, o padre mudou-se para a Vila e passou a fazer missas mensais na escolinha dos
Buracos. Aos domingos, costuma haver um “culto” católico, no qual Paulo Gomes ou Maria Caiana são
“frenteiros”. Quando ocorre, é pouco antes do horário do futebol, sendo contudo menos frequente do que
este.
207
(trazidos por Ibama”, “projetos”, etc). E as festas. Sempre foram realizadas ali, assim
como qualquer assunto que se considere “de interesse da comunidade”. Mas durante o
último período de campanha para vereadores e prefeito, por conta da “fofocada”, a
Secretária de Educação o proibiu, o que levou o Povo do Três Passagens (“povo forte,
unido”) a se organizar para criar “condições” de festar: roçaram um campo de futebol à
beira do Três Passagens e, logo do lado, um barraco de palha para vender bebida. O
pessoal do Niculau achou bom. Mas apenas em parte. Bom porque “festa perto de casa é
melhor”. Por outro lado, lamentavam que, por morarem em sua maioria no Calengue, as
moças buraqueiras não compareciam com muita “força” às festas do Três Passagens
(que não fossem as de Folia, é claro). Neste sentido, todos concordam que o Calengue é
em geral “mais animado”. épocas que os meninos de não falham um final de
semana, vêm montados para o futebol até de baixo de chuva e ficam na quadra até
turvar.
Paulo Gomes de Quincas “é sãopaulino doente”. Incutidim mesmo com
futebol! Por ser ruim das vistas, não é muito bom de bola; então concentra suas
atividades organizando o time dos Buracos, do qual é capitão. Com a aposentadoria que
recebe mod’as vistas ruins, comprou as camisas do uniforme do time e arranja carro
para levar os meninos noutras comunidades. Às vezes, tenta promover torneios ali
mesmo no Calengue, mas os que vêm “de fora” são “o pessoal dos Buraquinhos”, os
meninos que são primos dos meninos do Três Passagens. O time dos Buracos
“fortaleceu” ultimamente, depois que os filhos de Jilvaldo, cunhado de Niculau do Três
Passagens, mudaram mais a família também para o Três Passagens. Os meninos de
Niculau e Jilvaldo são bons de bola. Quando esse pessoal jogava pelos Buraquinhos o
time dos Buracos perdia deles era de goleada. Agora, trocou: quem perde sempre é o
time dos Buraquinhos.
O futebol é uma das ocasiões em que os “povos” ganham arranjos que
se reconhecem como comunidade”, e então não se trata de “Três Passagens” e
“Calengue”, mas de “Buracos”, “Buraquinhos” e daí por diante, isto é, aglomerados de
casas que, mesmo não sendo uma mesma “vizinhança”, possuem uma rotina comum: se
não diária, ao menos nos finais de semana e dias santos. A “comunidade” também é
assumida como unidade em ocasiões de festa e no tempo da política”. Festa boa é na
nossa comunidade, dizem. Nas eleições, os políticos contam os votos que tiveram “por
comunidade”, e antes delas é também “por comunidade” que se especula os montante da
208
votação de um candidato
64
. Não por acaso, no tempo da política proliferam-se festas e
torneios de futebol. Certa vez, fomos com o time dos Buracos à comunidade do Barro
Vermelho, “a última do Vão dos Buracos”, no distrito de Serra das Araras, distante
cerca de três horas de carro do ponto da rodagem onde sai o povo dos Buracos. A
maioria dos buraqueiros então presentes (entre as moças, cem por cento) nunca tinha
visitado o Barro Vermelho, embora conhecessem o povo de lá, com os quais tocavam
parenteza aqui e ali.
Paulo Gomes arranjara o carro e o motorista, os quais foram “dados”,
assim como a gasolina, por um candidato a vereador que fez expressas recomendações
para que não contassem “aos outros” sobre sua benesse
65
. O torneio pareceu-me
emocionante porque me fez ver a força que a idéia de “comunidade” gerava no
comportamento do “povo”, sobretudo nas moças; uma agressividade verbal que não me
lembro ter presenciado em outras circunstâncias. Integrando a torcida, as meninas de
e de lá, posicionadas em lados opostos da quadra, xingaram-se duramente durante
praticamente todo o desenrolar das rodadas de jogos. O curioso foi que, do lado de cá, o
“pessoal” reunia tanto “pessoas” da comunidade de Buracos quanto de Buraquinhos.
“Cruzava”, no dizer de Quincas (capítulo 2). A mistura das “comunidades” revelou-se
inclusive na composição dos times, quando, por falta de jogador no time dos
Buraquinhos, uns rapazes do Calengue vestiram a camisa e jogaram por eles. Nem
mesmo eram rapazes do Três Passagens, que são primos do pessoal dos Buraquinhos. A
ajuda gerou críticas pontuais de duas ou três moças dos Buracos, mas no geral era
notável “a reunião” de Buracos e Buraquinhos, cujo pessoal não apenas se posicionou
do mesmo lado da quadra, sob a mesma árvore, como também comeu do mesmo
churrasco. Esta indistinção dentre o pessoal reunido mostrava-se evidente no
comportamento de Deyse e Ana, nascidas respectivamente no Calengue e no Três
Passagens, mas que hoje “trocaram” os lugares de moradias, pois se casaram com os
irmãos umas às outras (trata-se do causo mencionado por Quincas no capítulo 2, em que
um “pagou” o outro, “cruzando” as irmãs [de um lugar para outro]).
64
Esta especulação se complexifica quando são “calculados” os votos a um dado candidato em cada
“casa” ou “família” de uma “comunidade”, mas esta continua sendo a ‘unidade’ fundamental na
contagem dos votos.
65
A proibição da oferta de carona, camiseta ou festas pelos candidatos gerou protextos unânimes em
Chapada Gaúcha. Como fazer política sem dar nada?, questionavam os candidatos. Pra que ir votar se
nem a carona a gente ganha?, questionam os eleitores. Sobre o problema da ‘compra de voto’, conforme
ouvem alegarem, eles reagem, E desde quando o povo é burro de votar em alguém porque ganhou
coisa? De fato, os pedidos e “cálculos” que fazem ali os eleitores no “declarar”, “mentir” ou silenciar
sobre a intenção de voto mereceria, por sua riqueza, um estudo aprofundado.
209
3.4 – A roça da gente ou Modos de chamar
Ainda beirando o conceito de “pessoal”, devemos observar que este
“cruzamento” que resulta no que chamei ‘indistinção’ de povos de uma mesma
comunidade (chegando às vezes a se misturar a uma outra), se a ver não por
ocasiões de “festa” e “política”, quando a “comunidade” é feita ‘unidade de análise’. No
cotidiano buraqueiro, as atividades de produção (“a lida na roça”) servem-nos a notar
como uma “vizinhança” (‘geográfica’) é às vezes sobreposta pela movimentação entre
“famílias” que, embora originárias de “povos” distintos no interior dos Buracos,
trabalham na mesma roça. Quando uma “família”/“casa” “faz uma roça” [planta], é
comum que precise de “ajuda” de gente “de fora da família”, um conhecido ou parente
(em geral, sobrinho do dono da casa) que receberá, pelo serviço, ou “o dia” (R$ 15,00)
ou a “quadra” (área a ser “roçada”, gradeada”, “destocada” ou “limpada”; tarefas com
preços negociados). Mas situações em que a roça é grande e o trabalho é feito por
duas famílias
66
. Nestes casos, é normal que essas “famílias reunidas” pelo trabalho
integrem as “casas” do sogro e do genro, de modo que moram em geral em terras não
vizinhas (capítulo 2), implicando maior intensidade de deslocamento. Assim, a
‘atividade econômica’, por assim dizer, é também “fazedora de pessoal”, “animadora de
gente”, e quiçá promotora de casórios. O causo de Toró, aliás, havia sido este:
conhecera sua futura esposa quando veio trabalhar na roça de Quincas, tio desta última.
Um “pessoal” é formado por reuniões em geral, o que significa “animação”,
‘movimento’ de pessoas.
Entre o “pessoal da vizinhança”, os trabalhos nem sempre são remunerados. É
comum que um sobrinho vizinho vem apartar uma vaca ou matar um boi a pedido dos
tios, por exemplo; e em troca da “ajuda” receberá um tanto de leite ou um naco da carne
e tripas do animal. Entre as mulheres, a ajuda é também “paga” com “agrados”
eventuais da parenta mais velha (a quem em geral se ajuda), mas existem sempre
reclamações de ambas as partes. Por um lado, fala-se que, de primeiro, as moças novas
vinham sempre de onde estavam as idosas, para lavar umas vasilhas que fosse. Nos dias
66
Nestes casos, como em outros em que “famílias”/“casas” compartilham uma mesma “roça”, a divisão
do plantio pode ser “na meia” ou “na quarta”. No primeiro caso, o proprietário da terra “dá a terra
gradeada e tratada”, pagando a semente, mas quem planta e colhe é o outro, ficando cada qual com
metade. No segundo caso, o proprietário entra apenas com a terra, tendo então “o direito a meia metade,
isso é a renda dele”.
210
de hoje, Titia chegou a pagar sua sobrinha Tati para ficar durante as tardes (R$ 40,00
mensais), mas acabou por considerar que a quantia era muita por um serviço que ela
mesma podia fazer. E conta com a eventual ajuda das sobrinhas que vêm visitá-la. É
difícil contabilizar o valor dessas “ajudas”, sobretudo porque elas muitas vezes são
“pagas” depois de um longo intervalo que parece em certa medida apagar a intenção de
pagamento. Cristina, por exemplo, foi certa vez pisar coquinho da índia pra Silu até a
casa de sua comadre Silu (distante cerca de uma hora de a pé), mod’fazer óleo de co
(“trabalho trabalhoso”). O motivo da ajuda era o fato de Silu estar com dores em um
braço. Esta perguntou à outra quando devia, mas a comadre fez questão de não cobrar
nada. Era decerto uma retribuição, calculou Silu, que num passado próximo costurara
“muitas vezes” a roupa de Cristina, sem lhe cobrar nada.
Nessas transações rotineiras, portanto, são muito variados os conjuntos de
motivações em torno de uma “ajuda”, de roça comum, ou mesmo de um “negócio” a ser
fechado
67
. Apenas através das situações particulares parece ser possível entender como
a circulação cotidiana de “ajudas” cria e recria aproximações e dispersões de um
“pessoal” determinado. A vizinhança, por exemplo, é e não é agregadora; da mesma
forma que no interior de uma família/casa movimentos de diferenciação são criados
diariamente por questões pecuniárias nas quais a ação individual é posta em relevo, em
detrimento da imagem do “pessoal”. Quincas, por exemplo, ‘possuium tantinho de
gado, de acordo com o que vemos em seu terreno, mas assuntando bem tomamos
conhecimento a bem da verdade possui apenas uma vaca e um bezerro. Eram duas,
vendeu uma para Rosa, sua esposa; a outra que está ali é da filha Bia, que mora em São
Paulo. Duas vacas e um garrote é de Lúcia, que ao invés de levar os animais para criar
de junto da criação do povo do marido, deixa aqui. E ele tem q ficar pagando pra olhar o
gado dos outros, e pra dar remédio e pasto! Reclama alguém de dentro de casa. Nêgo,
irmão mais velho de Lúcia, é quem sofre tomando conta. Valia mais vender e botar o
dinheiro no banco, ralha-se. Agora, por exemplo, ainda nunca conseguiu vender o
67
Nos Buracos é impossível contabilizar a quantidade de cabeças de gado de uma família. Por um lado,
porque existe uma grande ‘flutuação’: bezerros que nascem, transações constantes e o abate para comer.
A carne comida nos Buracos é a maioria do boi abatido ali mesmo. O dono que decide matar o boi deve
calcular o bom momento de fazê-lo, e para isto faz antes um “giro” pelas casas, procurando saber quem
seriam os compradores a dividir com ele “as quartas” do animal. Por outro lado, existe mesmo um receio
em revelar a quantidade de gado de que se é proprietário, seja por conta do “cartão de vacinas(que deve
ter registrado o número, mas é difícil manter-se atualizado), seja por conta de um “cálculo” específico: o
anúncio de um patrimônio substancial deve ser discreto porque sua informação terá peso em futuras
negociações, “catiras”. O gado na roça é a caderneta de poupança, disseram-me certa vez. Nos Buracos,
uma família que possua quarenta cabeças é considerada ter “muito gado”.
211
bezerro, e já está quase na hora de ele ir pra Brasília. Com que dinheiro? E a reclamação
emenda na queixa de Rosa em defesa do filho Nêgo. O problema é o genro Silvino,
vizinho de Quincas, que veve bêbado! Mora nas terras do sogro, mas trabalhar não
trabalha. Nêgo é besta de fazer meia com ele! Parece que Nêgo vendeu os patos de
Silvino a Ambrosina. Rosa orienta o filho a falar com Ambrosina pra não pagar os patos
a Silvino, mas sim a ele, Nêgo, assim ao menos ele recupera parte. Silvino também
acabou com a farinha de casa, trocando tudo por cachaça!
*
Em estudo realizado na região da Zona da Mata permanmbucana, Heredia e
Garcia Jr (1971) observaram como a ‘família elementar’ (pai, mãe e filhos solteiros) se
organizava na ‘casa’ em torno de duas formas de produção, o ‘roçado’ trabalhado
coletivamente e o ‘roçado individual, o primeiro assumindo valoração maior que o
segundo, conforme um sistema classificatório que os autores identificam ali entre as
atividades masculinas e femininas (as primeiras mais valorizadas do que as segundas).
Nos Buracos, veremos, ‘a divisão de gênero’ não ocorre desta maneira (Segunda Parte).
Quanto às diferenças entre o trabalho coletivo e o individualizado, note-se que uma
“casa” pressupõe uma roça” familiar. Para ganhar uma herança individual, o filho
precisa ter sua própria casa, o que ocorre em geral em decorrência do casamento, mas
não exclusivamente. Contudo, uma “família forte”, “unida”, como o “pessoal de
Niculau”, complica a idéia da ‘casa’ como ‘unidade produtiva’ (e ‘de consumo’)
fechada, pois ali é a configuração de casas que se reúne para plantar e colher. As roças
ali, sejam dos pais ou dos filhos casados (e eventualmente genros), envolvem o trabalho
de todos ou de um e outro irmão/filho, o que é feito por um sistema de retribuições e/ou
pagamentos (conforme o sistema de “meia” ou “quarta”). O processo de
individualização é mais visível quando se trata de artigos de consumo pessoal
comprados na Vila, que não sejam “de-comer”. Mas também aparecem em entreveros
familiares sobre a participação no trabalho na roça (como no caso do genro bêbado) ou
sobre a transmissão desigual da terra, como veremos logo mais.
A circulação de pratos de farinha entre as casas de uma vizinhança
mereceria quanto a isto um capítulo à parte. Uma casa buraqueira não permanece sem
farinha. Quando a mulher o saco baixar de volume, ou bem faz com que marido e
filho se mobilizem para arranjar [colher] a mandioca, ou bem trata de comprar ela
212
mesma, de algum vizinho na Vila ou nos Buracos
68
. Ocorrem momentos em que
ninguém se organiza para fazer farinha, os pés de mandioca todos “na hora ruim de
arrancar”, e o produto se torna difícil de achar “igual que ouro”. O preço também é igual
a ouro; tem sua ‘cotação’ de preço acompanhada mês a mês. Em geral, a escassez nos
Buracos parece corresponder à situação de todo o município, os povo tudo. Deste modo,
a circulação de farinha de uma casa a outra, como pequeno empréstimo ou mesmo “na
intenção de dar”, como um agrado que puxe gentileza futura. Às vezes, alguém se diz
completamente sem farinha e pede um prato a quem julgue estar “mais folgado”, mas o
que ouvi mais vezes foram modos menos diretos de pedir. Rosa vai “tratar um negócio”
com Antônio Velho e aproveita para “olhar a Velha Maria”. Chegando lá, proseia, bebe
café. Já de saída, pergunta se os Antônio Velho estão com bastante farinha. Ele diz não.
A conversa ganha outro rumo até chegar na casa de farinha de Antônio Velho, este se
queixa, ninguém está querendo consertar, é simples mas... Rosa pergunta sobre
Guilherme [filho e vizinho de Antônio]. Não, responde o velho, Guilherme planta é ni
Nísio. Então é [os outros filhos vizinhos] Félix e Regino mesmo que têm que ajudar, diz
Rosa. Especulam o preço, não sairia caro, não mais do que 50 reais. Rosa diz que tem
uns fios [de energia] em sua casa, quem deixou foram os “meninos da luz”, os
“meninos da Ecel” [funcionários da empresa que instalou energia elétrica nos Buracos].
Se o senhor quiser manda apanhar em casa, ofereceu ela. Rosa conta do “palhado”
que Nêgo está capinando: plantar milho, mandioca e dois pratos de feijão; um
pouquinho mesmo, mas ajuda. E Antônio, É... O que é da gente parece que rende
mais, pode perceber... O assunto morre, dizem mais umas palavras de despedida e, à
porta, Antônio Velho entrega um litro de farinha nas mãos de Rosa. Deus lhe Pague,
retribui esta.
68
A casa de Dona Rosa, com o número fixo de três habitantes mais os ‘flutuantes(o filho Paulo e os
netos Vinícius e Luciano, além de mim) consome cerca de três quilos de farinha por mês. Boa parte do
que consome, Rosa costuma comprar de gente dos Buracos ou de vizinhos da Vila. Isto entretanto é
considerado um sinal de que “a família” não está “forte” - no caso ali, a produção é afetada pela “doença
de Quincas”, cegueira que o impediu de trabalhar, pela “cachaça” do único filho-homem do casal a
trabalhar na roça. Comprar farinha é, para os buraqueiros, o limite do que vêem como “o problema dos
dias de hoje”, que é também “o problema da cidade”, a saber, “tudo tem que se comprar”. Todas as
famílias buraqueiras produzem pelo menos parte de sua própria farinha, seja em uma “casa de farinha”
(ou “casa da roda”) de propriedade própria, seja em uma casa da vizinhança, onde o dono da casa levará
em produção parte que lhe cabe. No Calengue, hoje existe apenas a casa da roda de Antônio Velho, cujo
motor (para “a rela”) não funciona. Dona Silu e Bastiãozinho possuem uma onde moram, na cabeceira do
rio Pardo. Rosa e Quincas tiveram, “na época em que a gente plantava muito”. Antônio Velho tem
uma, quebrada algum tempo. No Retiro, é a casa de Dona Joaquina que abriga uma casa de farinha.
Nos Três Passagens, Nísio e Niculau. Apenas este, além de consumir, vende a farinha que produz. A
produção é feita em um dos sistemas de parceria/”ajuda” acima mencionados.
213
Guilherme planta é ni Nísio. Este - “solteirão” - vive à beira do Três
Passagens, “no João Carneiro”, seu falecido pai, na casa que era deste. Vive só. Nísio é
do povo de Zefa-Carneira, de quem é filho, e chama Ana-de-Guilherme [Ana, esposa de
Guilherme] de sua “irmãzinha”, pois esta viveu com a tia Zefa nos tempos de moça (sua
mãe, viúva, partira para São Paulo). Assim, o povo de Guilherme que tem 12 filhos,
dos quais sete rapazes e quatro moças moram na casa deste último - “está sempre ni
Nísio”: é a casa de farinha que utilizam e um bocado das roças que plantam. Quando
na Chapada, seu pouso é na casa da Velha Zefa. O outro por sua vez não raro pousa na
casa de Guilherme no Calengue. Nísio é chamado às vezes de “cientista dos
Buracos”, é ele quem conserta todos os aparelhos eletrônicos e também quem faz os
cálculos direito na colocação das madeiras para construção das casas. Nísio é bom
também de construir fogão à lenha e com marcenaria em geral. Boa pessoa demais, é o
Nísio! Conversa devagar. Tem uma paciência... Quando vem ao Calengue, não é uma
novidade do tipo que o faz visita. Não é visita. Passa por Quincas, a caminho de
Guilherme. Senta à área, proseia, os dois se riem um bocado.
Essa noite foi fazer xixi e sentiu aquela dor, caiu a pedra, conta Nísio. Como
era no mato não deu pra ver, mas decerto que era pedra nos rins. Narra-nos o local da
dor e concluiu mais uma vez: pedra nos rins. Fala do desassossego que passou. Lúcia
confirma o que viu quando esteve em sua casa, vizinha à de sua cunhada, Maria de
Neco, casada com Neco, irmão de seu marido. Eu até pensei, conta Lúcia, Esse pessoal
do Guilherme é assim... Muito parado, sei lá. Se fosse eu, vendo você assim, tinha
corrido pra buscar remédio. Porque eles falaram que vonão estava passando bem, eu
achei que era assim uma coisinha assim, quando cheguei foi que vi você daquele
jeito... Passa o filho de Guilherme, montado com a esposa, filha de Nicolau, do Três
Passagens. O rapaz conversa com Quincas e se queixa que ninguém foi visitá-lo desde
que se mudou. Da cozinha, Lúcia resmunga, Também... Aquela lonjura, quem vai
visitar? Eles se despedem e Quincas promete uma visita. E Lúcia, da cozinha, Pai não
vai nem no rio, vai visitar é o quê!
O movimento diário é que faz o “pessoal”, no que a atividade de roça é
tanto indicador como matriz. Não é difícil neste sentido perceber que Nísio é do
“pessoal de Guilherme”. Guilherme planta é ni Nísio, embora os dois toquem uma
parenteza algo distante. Um no Calengue outro no Três Passagens, pra de uma hora
de caminhada. Por este causo, o “pessoal” não depende de vizinhança nem
consanguinidade. Nísio é vizinho de seu irmão Neco, mas roça é com Guilherme. Da
214
mesma forma, “o Povo do Três Passagens” é tudo vizinho de Nísio, mas não formam
um mesmo “pessoal”, sua roça e seus deslocamentos são independentes uns aos outros.
Nísio é do povo do Três Passagens, pois que mora ali, mas quando usamos este termo, é
mais provável estarmos falando do “povo de Niculau”. A este me referi quando falava
sobre o movimento de namoros cá e lá. É que as moças estão - a maioria - no Calengue,
vimos, e os rapazes solteiros existem é um bando. Os filhos de Niculau e, sobretudo,
os de Jilvaldo. E eles andam é em bando! São todos foliões, os rapazes. Jilvaldo é o
“dono” e o cantador principal do “terno de Folia do Três Passagens” (ou “dos
Buraquinhos”, dependendo de quem faz a designação). Niculau, o “Alferes”. João Grilo,
dos Buraquinhos, é o “Folião de Guia”
69
. Os três são cunhados, suas respectivas esposas
são irmãs, “do povo da Inhuma”, dos Buraquinhos (cf. capítulo 2). Eles, elas, mais a
penca de filhos formam “um pessoal grande”. Quando perguntei a Jilvaldo sobre a
criação de seu terno de Folia, ele me contou que tudo começou quando descobriu sua
“devoção”. Ainda criança, muito antes de ele mudar mais a família para Brasília, onde
moraram por mais de dez anos. Foi quando estava lá que resolveu criar o terno cá: vinha
sempre para as férias e os sobrinhos - “os meninos de Niculau” começaram a incutir;
um com a viola, o outro a reza. “o pessoal foi fortalecendo”, contou-me Jilvaldo. A
devoção é assim, explicou-me
70
.
“Devoção”, no sentido que me parece usual entre foliões - “devotos de
Santo Reis” - é o que ‘nós’ talvez chamássemos “vocação”. Trata-se de um modo de
conhecimento específico (no caso, a prática da Folia) para o qual é necessário um
esforço de aprendizagem contínuo, “natural da pessoa”. É o que leva uma pessoa “a
incutir com aquilo”, “ter influência”. O termo “incutimento” também é usado para falar
do amor entre um homem e uma mulher. Dizer “Fulano está incutido com ela” é dizer
que ele a “está querendo” [para namorar]. “Influência” e “incutimento” não são
empregados apenas para falar de relações pessoais, mas também de relações que
promovam prazer em geral, entre uma pessoa e sua ação. Titia não tem “influência”
com televisão. Influência nenhuma!, diz ela para dizer que “não gosta nadinha” de
assistir televisão, nem entende “o que eles conversam” na TV, aquela zoada nos
69
O dono do terno de folia é o “frenteiro”, quem decide sobre se a Folia “vai sair” naquele ano e os
demais assuntos de maior importância. Em geral o dono é rezador (cantador e tocador) e também o Folião
de Guia, que carrega a bandeira e ‘faz as honras’, poderíamos dizer, na relação com os donos da casa. Na
Folia de Jilvaldo, o dono não é o Folião de Guia; a função é dividida entre cunhados, o que indica agumas
particularidades próprias àquela relação. O alferes, Niculau, é o responsável pela por guardar e distribuir a
cachaça. Alguma descrição sobre a Folia pode ser encontrada no capítulo 4.
70
Para uma reflexão sobre a ‘a relação de devoção’, cf. Menezes (2004: 233-250).
215
ouvidos... o Arlo, filho de Titia, é um incutimento com aquela televisão da casa de
Rica! Da mesma forma, os buraqueiros observam freqüentemente sobre quais as
crianças que têm e as que não têm “influência com os estudos”. As meninas em geral
têm mais influência do que os meninos: elas escutam “a conversa da professora”; eles só
atentam. A fórmula “gostar da conversa de” indica, por este caminho, o que vimos
observando sobre a “formação” de um “pessoal”, isto que “puxa” gente, fazendo
circular a prosa. O vínculo pressuposto nas evidências de “influência” e “incutimento” é
o que imagino aqui sobre a idéia buraqueira de “pessoal”, e se deixa ver em um “modo
de chamar” a “pessoa” muito comum ao povo buraqueiro, ligando a pessoa designada a
uma outra por meio do conectivo “de”.
Ao final de minha primeira estadia nos Buracos, após cinco meses ali,
os meninos de Titia chamaram-me, entre risos: Ana-de-Rosa! Disseram em volume
baixo, entre risos, sem soltar a voz, de modo que não consegui entender. Então
repetiram e eu ri. A graça estava em imaginar Rosa na posição de minha mãe. Antes o
povo chamava você era Ana de Rosa! Antes da gente conhecer você dizia era Ana de
Rosa! Mais de um ano depois, de volta aos Buracos para a terceira etapa de trabalho de
campo, o filho mais velho de Rosa, único a morar com os pais, chamou-me “irmã”. É
mesmo! De primeiro, o povo chamava você era Ana de Rosa!, alguém disse, rindo. Mas
agora o riso não ocultava o dito, era largo e não contido; deixou de me parecer
constrangedor. A esta altura, eu era chamada “Ana-carioca”, e a substituição do
predicativo denotava uma mudança na imagem que tinham sobre minha rede de
relações. “Ana de Rosa”, nome inaugural, não apenas indicava meu local de moradia (a
casa de Rosa), como sobretudo sugeria uma relação privilegiada (com Rosa). Via-se, na
rotina conjunta que passamos a estabelecer dentro da casa que me abrigava, o sinal de
uma proximidade de substância. Nosso “sangue bate”, imaginava-se, ou, para dizer
como se disse Quincas em relação a Tutty, sua sobrinha preferida, “é o modo que
combina”. Sobre Rosa, contudo, era algo delicado de se dizer. Rosa tem “uma prosa...”,
“fala muito”, “pragueja”; no dizer dos outros, “prosa ruim”. E se eu, ao contrário,
mostrava pelo convívio gostar de sua prosa, cabia perguntar: até que ponto as relações
dela seriam também as minhas? Logo que cheguei, Dona Cristina encostou ni Dona
Rosa e perguntou quem era a moça, apontando pra mim. É minha filha!, respondeu
Rosa, com sorriso fechado. Cristina desconfiou, É não! Voestá é atentando! E Rosa:
é sim. Eu tinha perdido ela, encontrei pelo computador! Cristina me olhou e tornou a
olhar Dona Rosa; não me pareceu ter acreditado na amiga, saiu rindo.
216
Ao avistarem uma dupla de primas especialmente amigas, É grudada
uns-aos-outros!, observam os buraqueiros, e será esperado que a cena lhes motivo
para piada: sugerem que no futuro serão cunhadas, e assim especulam sobre a terceira
pessoa envolvida naquela relação entre duas. Não porque a boa relação entre
cunhadas é um elemento de peso no cálculo sobre o futuro casório (capítulo 2).
Também porque, se a amizade supõe presença intensa na casa de uns-aos-outros, o
motivo ou efeito desta combinação pode ser o “querer-bem” do irmão de uma delas,
igualmente próximo. Igualmente, quando eu mostrava fotografias tiradas em festas
buraqueiras, o conjunto de pessoas, aleatoriamente reunido por um determinado quadro
da imagem fotográfica, vez ou outra gerava risada. O motivo seria uma relação
indiretamente suposta entre aquelas pessoas. Por exemplo, na foto em que o pai de um
rapaz aparece ao lado de uma bela moça, gritam, Sogro! E se riem. Noutra ocasião,
alguém diz, Sobrinho! E risada. Na imagem, uma mulher abraçada com um primo cujo
tio ela recém “amigou”. Duas primas caminham juntas e uma delas “namorou” o
irmão da outra, Cunhadas!, diz-se. E se riem. A possibilidade de se criar uma relação de
parentesco pela via da união conjugal é o que provoca graça. Imaginar que um primo se
transforme em sobrinho é curioso. Tratam-se de relações distintas; a primeira é
simétrica, a segunda supõe hierarquia. Através das composições dos retratos, ressaltam-
se laços em geral ocultados por relações contextualmente mais importantes. Não apenas
os assuntos ligados ao amor e ao casamento fazem rir o povo buraqueiro; a graça parece
vir de quaisquer relações que imitem um determinado laço de “parenteza”, como é o
caso de um “criado” de Orotides. Ó o filho de Zé Orotides!, dizem e se riem. Depois
me explicam, É que diz que ele é criado de Orotides! O rapaz veio de onde vive a
família de Zé Orotides, veio para trabalhar para este. Assim, embora a relação entre eles
seja assumida nos termos de um elo entre patrão e empregado (“criado”), é possível
imaginá-la entre pai e filho (“criado”), que ambos moram na mesma casa e vêm do
mesmo lugar. Entre buraqueiros, imaginar que uma relação qualquer possa ser descrita
nos termos do parentesco equivale a contar uma piada; faz-se com o intuito de rir. Mas
também se ri de uma relação que, conhecida sob um determinado modo do parentesco,
possa ser descrita por outro modo, como por exemplo um tio que, ao ver sua irmã casar-
se com seu sobrinho, torna-se cunhado deste. Como houve muitos casamentos entre
“primos” (termo genérico para relação de parenteza a partir da segunda geração), é em
geral possível ligar duas pessoas por linhas de descendência diversa. Quando se
encontra uma definição do laço por um modo diferente do que se está acostumado a vê-
217
lo, têm-se em mente a brincadeira de se refazer o traçado da relação. A idéia de que um
dado elo entre duas pessoas passa por outras pessoas, outros elos, é aparentemente o que
provoca a risada.
Fulano é parente?, pergunto eu. Sim, acho que eles tocam parenteza,
dizem-me, quando o parentesco é distante. E então se refaz o traçado das conexões, A
mãe dele era irmã da avó minha, moço! Sim, era parente perto! No causo então ele era
primo primeiro do meu pai... Assim, a expressão “tocar parenteza” traz à tona a cadeia
de relações que fazem duas pessoas serem do mesmo “povo”. O termo “Ana de Rosa”
falava sobre o movimento da “casa” e sobre o movimento da “pessoa”. Aquilo em que
parece consistir a “parenteza”, uma relação que se define através de outras, estende-se
assim a uma definição em que a cadeia de relações independe da consangüinidade (por
onde se “toca parenteza”). Se neste capítulo privilegiei o termo “pessoal” em detrimento
de “povo”, foi por uma opção deliberada, mais do que para acompanhar o uso
buraqueiro, que muitas vezes “mistura” os dois termos, fazendo-os sinônimos. Meu
intuito foi o de diferenciar a idéia contida na formação de meu povo, que incluía
chapadenses, buraqueiros e cariocas, do povo buraqueiro, com suas
famílias/pessoais/povos. Note-se contudo, que esta diferenciação é um recurso de
análise preocupado em descrever as linhas que compõem tanto “povo” como “pessoal”,
posto que no mais das vezes trata-se da mesma coisa. Este procedimento da escrita visa
- poder-se-ia dizer à maneira de um experimento químico tornar visível, por contraste,
alguns dos elementos que compõem o conceito de “povo”. dar semelhança ... ali existe
uma concepção de sangue que não devemos menosprezar. Sangue e território cruzam-se
então de modos particulares, pessoais. Como vimos no capítulo 2, a fórmula “Fulano de
Sicrano” é de uso corrente nos Buracos e pode se referir à relação entre cônjuges (nome
da mulher “denome do marido) ou entre filho(a) e pai (ou, menos freqüente, mãe).
“Aninha de Niculau”, por exemplo, ao se casar, tornou-se “Aninha de Ito”, substituindo
o nome do pai pelo do marido. Contudo, entre sua gente - o povo de Niculau, o povo do
Três Passagens e os parentes e aparentados dos Buraquinhos - ela ainda atende por
“Aninha de Niculau”. As especificações do nome de Ana passam, portanto, por uma
questão de território: no Calengue, onde está o povo de seu marido Ito, este lhe
nome; no Três Passagens, seguindo rumo até Buraquinhos, onde moram os de Aninha, o
pai é a referência. Em suma, a pessoa a que Ana predica seu nome é quem intermedeia o
processo aproximativo entre Ana e o povo que a nomeia; é “quem o nome”. Esta
relação aproximativa, envolvendo o nome, a terra e o povo, pode ser metaforizada nos
218
termos de uma ‘prática de vizinhança’ que não se reduz à proximidade geográfica, ou
seja, no sentido exato da intensidade de ‘fluxo’ entre casas. As conversas a respeito do
paradeiro de seus vizinhos é tema ordinário nos Buracos. Este assunto, aparentemente
apenas uma espécie de função fática, promove atualizações contínuas do mapa de
relações do “povo”. Perceber quem “está beirando” quem diz sobre o “modo de cada
um”, sobre as ‘combinações’ que geram pessoas e relações.
3.5 – O modo da pessoa (cercas e opiniões)
Filha de Damásio, Tutty, nos Buracos, era minha vizinha. Mas como à
época de minha chegada ela morava na Vila, onde então estudava, demoramos a
estabelecer contato. Na época em que aluguei a casa na Vila, tornamo-nos companheiras
nos percursos semanais descendo-subindo a “ladeira”. Havíamos sido apresentadas na
casa de Titia, mas foi durante as festas de Folia de Reis que nos tornamos “amigas”,
para mais tarde sermos “parentes”. Foi quando ela incutiu em me ensinar grande parte
do que aprendi sobre a Folia, não sobre o ‘ritual’ propriamente dito, mas antes a respeito
dos gestos e atitudes empregados por aqueles que não estão diretamente envolvidos na
organização da festa. Isto é, às expectativas e combinações prévias à festa,
concretizadas em parte nas subliminares textuais dos versos soltados durante o “lundu”,
o “samba” da Folia (cf. capítulo 4). Da cozinha de Dona Rosa, a porta aberta dava a ver
as galinhas e o movimento geral de seu terreiro. Para da cerca, havia o caminho no
qual se viam os passantes que vinham “de baixo” (subindo o rio Calengue); mais
adiante se encontravam “os Damásio”, como dizia Rosa vez e outra, em uma referência
irônica ao fato de que ele, Damásio, “tem costume de mandar” nas mulheres de sua
família. A distância entre as duas casas permitia-nos apenas enxergar vultos coloridos
que sabíamos serem pessoas. No que para mim não passavam de deslocamentos
aleatórios os mais astutos reconheciam pessoas e motivações. O “modo de caminhar”
era o que se enxergava. Da cozinha de Dona Rosa, checávamos com interesse quem
seria o passante ou visitante a “fazer presença” na casa de lá, e também observávamos o
movimento rotineiro da própria casa: o burro arreado sugeria que alguém se preparava
para ir à vila; a fumaça indicava a hora em que o povo de preparava o café ou
refeição. Até mesmo a zoada podia ser ouvida quando eles estivessem animados e a
televisão, ligada. Em minhas primeiras semanas nos Buracos, a prática de observar os
Damásio instigou-me a querer conhecê-los melhor, mas uma antiga briga entre este e
219
seu irmão Quincas havia interrompido por completo a conversação entre eles, conforme
me explicara Titia na ocasião em que a conheci. Damásio não vem à casa de Quincas
e Rosa, ao passo que estes tampouco vão até lá. A esposa do primeiro, Rica (mãe de
Tutty) também não entra em Rosa, mas encosta-se à cerca e, sem passar da porteira,
proseia bom. Damásio, por sua vez, sequer cumprimenta o casal; transita diante deles
diariamente, pois assim obriga o caminho que liga sua casa à Vila e às demais casas do
Calengue. A briga ocorreu alguns anos - não souberam me precisar quantos - e fora
por conta da localização de uma cerca dividindo suas terras. Na área que se constituiu
em objeto de discórdia, atualmente encontramos duas cercas de arame paralelas,
afastadas uma da outra por menos de um metro. Além de dar testemunho do conflito, a
presença inusitada de duas cercas rentes mostra que o teor da briga por terra não era ali
exatamente ‘pecuniário’. Decorreu antes de uma questão de “opinião”.
A divisão da terra é um assunto extremante delicado nos Buracos
71
.
Sempre que eu buscava puxar assunto, mesmo que fosse de forma indireta, o rumo de
minha prosa acabava por provocar um silêncio algo desconfortante. Por certo, fazia
parte desta tensão o fato de a região do Vão dos Buracos ter ainda hoje uma vasta área
de ‘terras devolutas’, “terras ausentes”. Conforme me explicou certa vez um forasteiro
que “mexia com terra” em Chapada, “é quase tudo na base da cerca, mesmo”. Além
disto, o relativamente recente deslocamento de posseiros - conhecidos e aparentados dos
buraqueiros - da área onde hoje é uma unidade de conservação, provoca entre todos
receio constante
72
. Logo que cheguei nos Buracos, em uma e outra ocasião notava a
71
O tamanho das terras por “família” no Vão dos Buracos varia entre cerca de sete a cem hectares,
embora, pelo que me conste, a produção de terra plantada se mantenha em mais ou menos meio hectare.
Poucas “famílias” mais “fortes” e “unidas”, como a de Niculau, chegam a plantar três hectares. Além da
mandioca, cada família costuma plantar feijão e milho. Às vezes legumes como abóbora, e beterraba. Se o
gado e a roça são em geral “assunto de homem”, a criação do terreiro (galinhas, cocás, porcos), as frutas,
hortaliças e alguns legumes plantados perto de casa são produzidos e circulados pela mão das mulheres.
Algumas vendem regularmente na Vila os ovos que sobram. A gestão do “de-comer” (diferente da
“roça”) é seguramente um “assunto de mulher”. Ela é quem decide, por exemplo, se compra um porco
para cevar com a comida que, por alguma queda no consumo da casa, esteja sedo “jogada no mato”
(‘jogada fora’). Uma criação de terreiro mediana costuma variar em torno de quinze galinhas. O preço de
uma galinha é estabelecido em dez reais, e isto se cobra tanto aos turistas quanto entre vizinhas, embora
neste último caso a transação não costume ser “paga” em dinheiro, se não em farinha ou algo do gênero,
sempre após um intervalo de tempo. Uma “casa” de roça costuma gastar em supermercado (“a feira”)
cerca de R$ 400,00 reais (“um salário”). A lista de compras inclui invariavelmente: arroz, macarrão, café,
açúcar, bolacha, vela, sabão, sal, trigo, óleo de lata (algumas casas compram banha de porco “da roça”).
Leite em pó, manteiga e queijo são artigos de luxo: “nem sempre a gente encontra” em uma casa.
72
O Vão dos Buracos é definido como “Corredor Ecológico”, isto é, ‘área de amortecimento’ entre o
Parque Estadual Serra das Araras e o Parque Nacional Grande Sertão Veredas (PNGSV), segundo os
parâmetros do ‘plano de manejo’ elaborado nos termos do SNUC (Sistema Nacional de Unidades de
Conservação). O PNGSV (gerido em ‘parceria’ entre Funatura e ICMBio) realocou, em 1999, dezenas de
famílias que moravam no “Rio Preto” (área do Parque) para um assentamento criado exclusivamente com
220
desconfiança de senhores buraqueiros aos quais Quincas me apresentava. Um deles
chegou a perguntar, A senhora é do Ibama? Mas em geral a questão era apenas
entredita. Traziam o assunto do “corredor ecológico”. Conforme decreto oficial, o Vão
dos Buracos fora nomeado “Corredor Ecológico Vão dos Buracos”, isto é, uma área
considerada propícia a projetos sócio-ambientais’ uma vez que liga o Parque Nacional
Grande Sertão Veredas ao Parque Estadual Serra das Araras. Embora tal decisão não
alterasse em nada a situação dos buraqueiros, isto provocava neles um temor bastante
evidente. Certa vez, um senhor introduziu o assunto em voz alta, repetindo-me, sem
que eu houvesse entrado na questão, Eu tenho “os documentos”, o Estado não pode me
tirar daqui!
73
. Naquela ocasião, Paulo Gomes “incutido com os cursos da Funatura”
saiu-se em defesa do corredor ecológico. O melhor mesmo que tinha para os Buracos
era virar parque!, argmentou, aí o povo deixava de derrubar o mato e ainda ficava com a
ajuda do Estado! Mas não vai acontecer porque o povo aqui é tudo herdeiro... Eles não
pode tirar mod’os documentos, se não era até bom! Nos Buracos, a situação difere da
maioria dos outros “povos” da região no sentido de que a maioria dos buraqueiros é
“herdeira”. Mas ao contrário de ser um simplificador da questão, o parentesco parece
colocar aqui mais problemas. Se, por um lado, isto significa que o “direitoa uma terra
é dado “pela cerca”, isto é “de boca”, por outro isto é causa de causos: gente do povo
antigo, que vendeu uma mesma terra pra mais de um comprador. Atualmente, um
homem de fora da região imigrado para o município comprou uma terra nos Buracos a
qual teve que passar por meses de crivo, “rodando nos cartórios”, para “puxar” o
histórico de herdeiros e enfim garantir a compra. Este mesmo homem contou-me a
dificuldade de colocar a cerca na terra que comprara. A vizinhança ali é complicada!,
disse-me ele; em sua nova terra já haviam passado três proprietários. Nenhum deu certo!
Ele explicou-me então que a razão de ter “dado certo” com a “vizinhança” havia sido a
de aceitar seus critérios de posicionamento da cerca: ao invés de considerar a
mensuração da área dos lotes, as preocupações colocavam questões como passar a cerca
deixando um tal pé de buriti para cá ou para lá.
A “lei” da transmissão de terra buraqueira, como vimos (capítulo 2), é
consuetudinária, mas o “costume” em que ela se funda não constitui-se em uma regra
este intuito para isto. Os moradores dos Buracos frequentemente se remetem ao temor de ter que passar
por processo semelhante: “o governo tomar nossa terra”.
73
Com a criação do PNGSV, apenas os posseiros foram deslocados e reassentados. Os proprietários não
puderam ser deslocados por falta de verba de indenização do órgão responsável (ICMBio), de modo que
aqueles com pequenas propriedades não puderam retirar-se dali, vendo-se isolados e com a produção
quase inteiramente limitada pela fiscalização ambiental.
221
fixável, pois inclui as contingências da sorte. Dentre estas, está por exemplo a “afeição”
que se “pega” por um herdeiro mais do que por outro. Se “apegar” mais a um filho ou
neto é, para os buraqueiros, um acontecimento “natural da pessoa”, Tem sempre aqueles
que a gente combina mais, dizem. Esta naturalidade não impede contudo as constantes
queixas e acusações dos filhos mais “descombinados”. O sogro de um deles certa vez
me contou o causo:
O Fulano [pai] tinha uma terra “ausente”, mas que ninguém tomava
dele. Eu mesmo ajudei ele a fazer uma cerca, mais o Beltrano [filho descombinado].
ganhou o direito e deu um pedaço pra Cicrano [outro filho], que vendeu a posse por mil
e quinhentos. Depois Fulano [pai] vendeu a posse pra um paulista; ficou aquela
coisa... O primeiro comprador e o paulista cercaram e o comprador, que tinha comprado
por mil e quinhentos, vendeu por 4.500. Ou seja, ganhou 3 mil! E o Beltrano [filho
descombinado], que ajudou a roçar e tudo, trabalhou ali a vida toda, ganhou mil. Na
verdade, setecentos, mais a geladeira de 300 reais, dada pelo paulista na compra. Pras
meninas [as duas outras filhas], que trabalharam tanto na terra, Fulano [pai] não deu
nem cinquenta reais! A Fulana [mãe] pediu pra ele dar. E ele, de jeito nenhum.
Era por estes entreveros familiares, onde se reivindicam direitos
pessoais em um negócio que está a se desenrolar, que eu podia acompanhar alguns
movimentos da “terra” buraqueira. Informações a respeito do que cada um ‘possui’ às
vezes mesmo sobre quanto tem de roça e criação eram-me dadas apenas de forma
vaga. Destarte, o que sei neste sentido é, por assim dizer, “no dizer dos outros”. Um
outro desses, gente de fora dos Buracos, contou-me que “os mais velhos é que têm mais
terra”, mencionando Damásio, Quincas [de João Branco] e Juca [do Velho-Sinésio].
Não é à toa, pensei eu, que são todos eles senhores notoriamente “de opinião” (cf.
capítulo 1). Isto também explicava em parte o fato de os irmãos e “vizinhos de cerca”
Damásio e Quincas terem chegado a tal ordem de conflito. É da raça!, dizem alguns.
Quincas e Dasim puxaram à mãe deles! Ela também era assim, no dizer dos outros,
meio prosa... Tutty é diferente do pai [Damásio], puxou Rica [a mãe]. Uma pessoa boa
de prosa está ali!
As vizinhanças buraqueiras com sua circulação diária de prosa e
comida, são motivadas por modos do “querer-bem” tanto quanto por “malquerenças”,
“maldizeres”. O marido que pragueja contra a comida de sua esposa; a sobrinha “prosa
ruim” que não veio para onde está sua tia; o irmão “nojento” que não come na casa de
ninguém; o afilhado que não se esforça em ver a madrinha. Se do parente se espera que
222
“dê bem”, sabe-se que entretanto freqüentemente não é esse o caso. A circulação de
prosa efetua ondas de antipatia e simpatia, modos que não combinam ou pessoas que
começam a “incutir” com outras, desfazendo-se ou se mantendo a configuração dos
diversos “povos”, o “pessoal” que constitui o “povo” dos Buracos. Assim, deve-se
evitar que o assunto controverso seja pautado quando os interessados estiverem todos
presentes. Evitam-se as brigas em se mantendo o estado de guerra. Ali a animosidade
manifesta-se na maioria das vezes pela abstinência da palavra. Quando dois “chegados”
conflituam, é compreensível que este silêncio seja levado ao extremo: a ruptura pelo
erro do cálculo de uma palavra passada estende-se no tempo como efeito contínuo
daquele erro de cálculo. É a “palavra do outro” que se torna então problemática. A
inversão jocosa promovida pela “brincadeira” de se verbalizar o contrário da “boa
intenção sabida” deixa de funcionar, os efeitos mudam. As palavras tornam-se, para uns
aos outros, “o mesmo que dar veneno”.
Interromper a prática de “ir na casa” (isto é, as trocas de palavra e
comida) é uma medida relativamente comum nos Buracos. No mais das vezes, resulta
de alguma queixa feita a outrem, e não diretamente a quem se entra em conflito. São
necessárias as queixas e suas retransmissão (às vezes, nem sempre, ao modo da
“fofoca”); por elas, mede-se o estado de guerra das relações, podendo-se tomar as
medidas que se queira – caso se queira - para se manter a paz. A interrupção da troca de
palavras entre duas “pessoas” “deixa o trem mais controlado” diante de uma relação que
não se quer entre “chegados”. O fluxo de palavras, contudo, mantém-se através do
“pessoal”. Como vimos acima, afinal, muitas vezes uma pessoa não se distingue de seu
pessoal. A circulação entre as casas é, neste sentido, não um importante meio de
comunicação como o próprio espaço de existência dos “modos” das pessoas. Cada
buraqueiro tem um percurso rotineiro mais ou menos definido entre determinadas casas,
e nestas se espera diariamente o relato atualizado sobre o que se passa no rumo do povo
de quem chega. Como brincam os buraqueiros de Ceilândia (DF), onde esta prática se
replica, um parente chegado deve marcar presença (“ir na casa”) todos os dias, para
mod’ “passar o fax”. Esta continuidade do fluxo de informação permite que se saiba
como conversar, configurando-se uma pauta de conversas nas quais se atesta a
intimidade. Esta é causa e efeito de um conhecimento específico, informações que
permitem a elaboração de perguntas corretas (sobre os últimos causos de doença,
nascimento, namoro, casamento e outros acontecimentos familiares). Mas a intimidade
muitas vezes requer também algum silêncio. “Dentro da casa”, um assunto que se sabe
223
controverso deve ser evitado diante de certas pessoas, ou então se atenta ao modo de
inaugurar uma e outra conversa. A quebra do silêncio pode fundar-se numa valiosa
qualidade pessoal de quem é “boa prosa”, mas também no gesto característico de um
“prosa ruim”. Com o silêncio, pode-se indicar respeito e conhecimento, afastando
assuntos que se sabe serem delicados ao outro, mas também é o modo de se evitar
brigas em se mantendo o estado de guerra; a animosidade manifestando-se pela
“ausência”. A expressão “fazer presença” é, neste sentido, eloqüente: diz-se daquele que
“chega com boa prosa”.
Tutty, pode-se dizer, é “boa de presença”. Sendo a filha caçula de Damásio, é por este a
mais “presa” das filhas. Mas sabe sair-se tão bem com o pai “valente” que chega a dar
razão a ele, considerando e ponderando os motivos de seu “controle” sobre ela. Isto
contudo não contradiz o fato de ser ela uma moça “animada”, “gostadeira de festa”, e
nem de ser ela a sobrinha preferida de Quincas. Ela é quem mais “anima” o fluxo
contínuo de prosa e comida entre as casas rompidas de seus pai e tio. Um taco do bolo
ou do doce de leite feito na noite anterior, ou mesmo um tico da costela de boi,
cozinhada na mandioca, como Tutty gosta, eram-lhe reservados com gosto e esmero por
sua tia Rosa. Diga a Tutty que venha onde está nós!, pedia Rosa a alguém que
estivesse no rumo dos Damásio. E a sobrinha ficaria sabendo que algum mimo a
esperava com os tios. Não raro, o mensageiro era Zeca, um dos irmãos de Tutty. Ele
caminha cambaleante e não tem o comando perfeito dos braços; no dizer do povo, é
“tolo”. A fala só entende quem tem costume, os mais chegados, é uma prosa “molhada”,
às vezes escorre-lhe a baba, a dicção assim mole”. Por tudo isto, Zeca não sai da
vizinhança sem a companhia dos pais. Passa os dias bestando, percorrendo a esmo o
espaço triangular circunscrito por sua casa e as de Titia e Quincas. A este último,
notícia de sua família, Comeu pato hoje?; Vão para vila? Rica melhorou das pernas?
Zeca responde com uma ou duas palavras, que o interlocutor repete, em geral soltando
alguma provocação, Você não pode comer pato não, que é remoso!; Você vai é caçar
mulher na vila!; Rica vai tratar na Brasília e você vai ficar sozinho nos Buracos! Zeca ri
e balança a cabeça para trás. Ele, também como sua mãe, puxou o gênio bom; não é
prosa. Quincas discorreu-me sobre o conceito “bom de prosa”, ao qual se acrescenta o
sinônimo “sangue bom”. São características da “pessoa”. É assim uma pessoa que não é
nojenta, disse ele, que come qualquer coisa que a gente oferece...
Neste sentido, nossa amizade - expressa e gerada na rotina de deslocamentos
entre Buracos e Chapada, inicialmente, e depois dentre o próprio povo buraqueiro
224
constitui-se em uma aproximação especialmente determinante para meu “conhecimento
do povo”, possibilitando uma série de outras. Nosso modo havia “combinado”. Tutty
acompanhava-me na estrada que ligava as casas da roça e da vila, as minhas, as dela e
as dos parentes. Chegando aos Buracos, como ocorria em Chapada, mantínhamo-nos
atualizadas dos rumos de uma e outra. No primeiro caso, coincidíamos em nossas
“presenças”; no segundo, como vimos acima, ligávamos às vezes por intermédio “dos
outros”, sua tia Nésia (rotineiramente) além dos primos e primas que eu encontrasse
pela Vila. Mas as ‘mediações’ existiam antes que me tornasse “amiga” de Tutty,
quando apenas nos cumprimentávamos. A esta época, eu e Titia éramos bastante
“chegadas”, eu ia à sua casa todos os dias, mas nunca havia ido à casa de Damásio, casa
de Tutty. cheguei a conhecer sua moradia três meses depois, quando a própria Titia
me levou. Aproveitou para apanhar uma copada de leite que Rica lhe prometera
presentear e foi comigo, sob meu pedido de companhia. Eu então morria de medo de
Damásio. Além da briga com o irmão, contavam-me àquela época sobre sua briga, havia
pouco mais de um ano, com o cigano que lhe dera então um tiro no braço. E a esta
imagem acrescentava-se ainda a reconhecida “cisma” de Damásio com “o povo do
IBAMA”, que o fazia cismar com qualquer um que viesse da cidade. A imagem do
turista que chega aos Buracos, “gente moderna”, “gente de cidade”, não se distinguia da
dos ambientalistas que moravam em Chapada (também vindos da “cidade grande”); os
discursos e os modos de vestir eram afinal os mesmos uns aos outros. Contavam-me que
certa vez Damásio chegara a expulsar um grupo de turistas trazido por Zezo. Contavam-
me também que Damásio não deixava suas filhas fazerem nada sozinhas, Forró é de
junto dos pais, que nem era o povo de primeiro! Damásio “tinha fama” e eu hesitava em
me aproximar. O que diziam, entretanto, não combinava com seu “modo”. O jeito
risonho toda vez que nos cruzávamos em nossos deslocamentos buraqueiros deixava-me
intrigada, sem “entendimento” sobre aquela pessoa”. Era o prenúncio de uma
gentileza singular.
Quando entrei pela primeira vez em sua casa, seguindo Titia, Damásio
abriu um largo sorriso e limpou as mãos na calça para nosso aperto de mão, Pode
chegar! Acompanhou-me, sentando-se no banco e puxando a cadeira com encosto para
que eu me sentasse também. Rica, sua esposa, cumprimentou-me também e seguiu logo
para a cozinha. Proseei o resto da prosa deixada por Titia, creio que algum tema sobre a
chuva. E em seguida fiz menção de partir. Não!, impediu-me Seo Damásio, A Rica está
passando o café... Esta veio com a garrafa térmica e um prato cheio de bolachas
225
compradas. Damásio trouxe uma pilha de quatro ou cinco álbuns daqueles que se dão
em loja de revelação fotográfica. Neles, fotografias de épocas e pessoas diversas;
situações do “tempo da política”, em que os hoje rapazes apareciam garotos ao lado de
um ex-candidato a vereador, “chegado da família”. Algumas imagens eu já vira noutras
casas, como as de casamentos e batizados. Dasim mostrava-me enquanto ia explicando
a parenteza dos fotografados. A maioria havia sido tirada pelos que hoje moram em
Brasília. O filho Dinga, que partira havia cerca de quatro anos, enviara-lhes retratos
tirados por fotógrafos profissionais, nos quais aparecia “mesmo que galã de novela”,
com as roupas e sapatos comprados na Brasília. É o primo mais bonito o filho de
Damásio!, concorda-se nos Buracos. E Damásio ali me contou sobre o namoro de Dinga
e a prima, a menina de Guilherme que agora, pela segunda vez, havia-se incutido com
um cigano. Antes, o pai da moça ralhara até lhe dar juízo, mas agora, de novo! Dinga
estava querendo ela! Mas agora! Como pode?! De lá, Dinga soubera do ocorrido aqui e
terminara o romance que, imaginara-se, chegaria a casamento. A segunda aproximação
da menina com o cigano não era tão certa quanto falada, mas apenas isto bastava,
Onde fumaça, fogo!, diz o dizer. O povo aumenta, mas não inventa! O causo
mostrava-se de extrema gravidade uma vez que o cigano em questão, Se não bastasse
ser cigano!, era o mesmo que, dois anos antes, dera o tiro em Damásio. Depois daquele
dia, senti-me à vontade para “passar” rotineiramente na casa de Damásio e Rica. Não sei
dizer quando me dei conta de ter-me ali tornando “de casa”. O estreitamento da amizade
com Tutty veio em seguida às primeiras e tímidas “passagens” pela casa de seus pais,
veio como causa e efeito daquela nova prática. Com o passar do tempo, era todo dia na
casa de Rica, e as ofertas de merenda e café tornavam-se menos cerimoniosas. Às vezes
nem ocorriam. À noite, quando a prosa da tarde emendava-se na “hora da novela”,
chegava o momento da janta e eu podia recusá-la, alegando que Rosa, ou Titia,
esperava-me com o feijão. Com isto, via-se que na casa de Rica eu não era “visita”.
Isto ocorrera em minha primeira temporada nos Buracos. Já em meados de
minha terceira ida a campo, Zeca veio um dia à casa de Rosa trazendo-me um bilhete
escrito por Tutty. Era um convite para que eu fosse jantar em sua casa. Pela primeira
vez, fiz então uma visita aos meus vizinhos. Antes que Rica servisse o prato a Damásio,
este me orientou, Pode encostar! Pode puxar!, e apontou para o fogão à lenha, que eu
me aproximasse das panelas e “puxasse” a janta. Além do arroz e feijão de costume,
havia não o macarrão com molho de tomate e a carne como também um ensopado de
abobrinhas com ovos cozidos por cima. Tudo isto acrescido da farinha feita pelo povo
226
de Guilherme, A melhor farinha dos Buracos! Após a janta, Rica passou o café e o
serviu com os biscoitos que havia fritado mais cedo. Com exceção do de-comer,
entretanto, cumpriu-se ali menos o ritual de “visita” do que quando daquela minha
primeira “passada”; desta vez, ao contrário daquela, não proseamos muito, pois veio o
noticiário televisivo e depois a novela das nove, que todos queriam assistir. Como de
hábito, assistimos TV enquanto comentávamos sobre o que “conversam” os da TV, e
antes que se encerrasse a novela fui embora. Sem alarde, como fazia sempre e como
fazem os outros, apertando a mão de cada um dos presentes, Até amanhã! A janta não
teria sido um ‘evento’ - um “causo de visita” - não fosse o convite escrito de Tutty e o
cuidado especial dispensado ao de-comer oferecido. O motivo desta intenção deliberada
em fazer de mim visitante onde eu já era “de casa” não me foi informado. Não era
preciso. Poucos dias antes, Tutty havia me chamado para ser sua madrinha de crisma. O
jantar inaugurava, pois, a relação de compadrio entre mim e os donos da casa. Mais
tarde, após o ritual católico da crisma, ouviria Rica e Damásio me chamarem por
“senhora”, a despeito de minha “junventude em vista deles”. Este novo modo de chamar
pareceu-me um gesto ‘mágico’, criando uma nova relação de “parenteza”. Uma série de
atenções especiais que eu então aprendi a dar e receber passaram a fazer parte de minha
rotina de vizinhança: avisos sobre um de-comer especial em tal dia e um “Entra,
comadre”, dito de modo algo destacado quando eu chegava em sua casa. Vez ou outra,
os primos e tios de Tutty vinham me contar sobre ela, esperando que eu então mostrasse
minha “opinião” sobre os causos da “afilhada” e dos “compadres” que estivessem então
em circulação.
O querer-bem, vimos, manifesta-se nas dádivas mútuas de prosa e
comida, sendo também seu efeito e seu criador. Uma série de expectativas em relação à
continuidade desta troca é cultivada entre parentes. Dizem os antigos que, por exemplo,
ir à casa da madrinha “dar bênção” a esta faz o afilhado crescer. O verbo “dar” é neste
caso empregado no sentido de “pedir”. Aos pais e padrinhos, se diz, Bênção! Estes
então os abençoam, isto é, dão por sua vez o que lhes cabe “dar”, a recepção aos que
chegam. A identificação aqui entre os termos dar e pedir falam sobre um modo da
relação entre parentes mais novos e mais velhos, grosso modo, pais e filhos ou tios e
sobrinhos. A afeição, o “apegar”-se é assim a matriz de um modo relacional que se
exacerbado em um e outro causo particular. Falando-me sobre sua preferência pela
sobrinha Tutty, Quincas ressaltou o acaso que haveria dado a esta o privilégio de um
querer-bem especial. Por que?, perguntava-se ele. Eu então reagi com a dedução, É o
227
sangue dela... Quincas aceitou minha explicação, mas elaborou outra análise, É o
“modo” mesmo da pessoa, moço! Tem o modo que combina, moço! bem! A outra
menina de Damásio, irmã de Tutty, também sempre vizinha nossa aqui, vinha aqui em
casa e tudo, a gente proseia, ela respeita e tudo... Mas Tutty é diferente, brinca - respeita
também, mas brinca. Não sei por que, pegou essa intimidade... Eu gosto de Tutty. A
gente ri. É o modo mesmo da pessoa, concluiu Quincas.
A diferenciação operada por ele entre os termos “modo” e “sangue” (ou “prosa”)
pareceu-me então contra-intuitiva. O “modo”, sendo um atributo definidor da “pessoa”,
haveria de ser, pensava eu, equivalente às expressões “sangue” e “prosa”, pois que estas
definem “qualidades” da “pessoa”: “bom” e “ruim”, para citar apenas a divisão de
escopo mais amplo, mas outras também distinções como “sangue quente”, “prosa
mansa”, “sangue grosso” e “prosa cumprida” formam separações não simétricas quanto
a primeira. Na comparação feita por Quincas, a irmã de Tutty era “prosa boa” ela
conversa, respeita... mas tinha em relação a esta uma diferença de “modo”. Se como
vimos, povos e pessoas podem ser identificados segundo seus “modos de comer e de
conversar”, note-se que a diferença entre as irmãs dizia respeito a seus modos de
interação: como na culinária, uma comida pode ser boa mas não “combinar” com outra;
seja porque está “muito temperada no sal” ou porque o suco é doce e o bolo também (cf.
capítulo 4). O mesmo é a prosa; o mesmo é a pessoa. Para mantermos a analogia, o
gosto pessoal por outrem depende menos de uma questão de substância do que de
tempero. A combinação singular das qualidades de uma “pessoa”, portanto, pode ser
classificada como “boa” ou “ruim” a partir das interações entre atributos do “sangue”
(ou “prosa”) e os efeitos deste gerados na relação entre quem conta e quem é levado
conta. A irmã de Tutty é “prosa boa”, conversa e respeita, mas não estabelece com
Quincas a movimentação de corpo em que se expressa o “querer-bem especial: as
risadas e demoras no estar junto. Se quisermos extrair desta idéia sobre o “modo da
pessoa” alguma conseqüência para a ‘categoria do pensamento antropológico’ da ‘noção
de pessoa’, será necessário ‘alargar’ a noção à maneira proposta por Goldman (1999a:
37): reunindo, ao texto de Mauss sobre esta ‘categoria do espírito humano’ (Mauss,
2003 [1938]) aquele sobre as técnicas do corpo (Mauss, 2003 [1934]):
‘Recuperaríamos, assim, o plano do “fato social total”, onde físico,
psíquico e social não mais podem ser distinguidos, e onde representações e
processos empíricos não constituem mais do que dimensões ou expressões sempre
228
articuladas das práticas humanas que pretendemos investigar’ (Goldman, 1999a:
37)
Alguém que tenha o sangue “esquentado” briga por qualquer motivo, isto é, não
depende tanto da interação com o outro, mas de como se “puxou o sangue de nascença”.
Da mesma forma, uma prosa, se for “suave”, “mansa” ou “macia”, é boa, contrasta-se
com a agonia provocada por uma “prosa ruim”, demasiado “comprida”, oblíqua no dizer
das coisas ou excessivamente “barulhenta”. Cada um destes adjetivos, no entanto, pode
ser identificado para descrever afecções diferenciadas: o modo “barulhento”, tanto
quanto o “manso”, pode divertir ou irritar, dependendo de quem escuta. E isto é motivo
de debate freqüente entre buraqueiros: de quem se apraz o modo da prosa e por que.
Perguntei a outras pessoas o que queriam dizer com “modo da pessoa”, e me
responderam, É o modo da “prosa”, o “sangue” da pessoa! Quando, diversamente, eu
perguntava sobre o “sangue”, diziam-me, É a “prosa”! E vice-versa. Enfim, quando se
aprecia a prosa do outro, é que o modo “combina”. Prosas que combinam presenteiam-
se espontaneamente, circulando “animadas”. O que faz uma pessoa se aproximar,
“pegar intimidade”, de outra? Existe uma aproximação “natural da pessoa” em função
do parentesco? Mães e pais costumam estar próximos de seus filhos; espera-se que estes
e aqueles se dêem bem, “combinem”; não para que se faça paz no convívio, também
porque esta é uma possibilidade grande, em virtude de serem “gente do mesmo sangue”.
O que diferencia a “prosa” de uma pessoa é o “modo” de se dizer algo? Ou é
propriamente aquilo que se diz?, pergunto. São as duas coisas! É o sangue da pessoa!,
respondem-me de imediato sobre a “prosa” questionada.
Tanto no que diz respeito à minha “vizinhança do Calengue” como no que
consta ao “povo dos Buracos” em geral, a medida de meu conhecimento se visibilizava
na circulação entre as casas buraqueiras. Assim por exemplo julgavam os “politicos”
que, “no tempo da política”, pediam-me que utilizasse meu “conhecimento” nos
Buracos para ajudá-los a “ganhar votos”. Certa vez, depois de “pousar” na casa de um
senhor buraqueiro, encontrei casualmente, no caminho de volta, com seu vizinho de
cerca que tivera um entrevero com aquele. Eu imaginava - pela recusa em ajudas
mútuas na casa de farinha e em outras cooperações esperadas entre vizinhos - que eles
não “combinavam”, embora a questão nunca me tivesse sido narrada. Ao contrário, em
situações ‘públicas’ como a reunião da Associação da Comunidade dos Buracos,
mostravam um respeito mútuo exageradamente verbalizado. Mas aquele encontro casual
com um após a visita à casa do outro mudou o rumo da prosa do primeiro, que me
229
perguntou se eu estava gostando do povo dos Buracos e logo emendou um elogio ao
povo para em seguida fazer a ressalva e narrar o causo de sua briga. Eu também me dou
muito bem com todo mundo aqui, disse ele, É mesmo que parente meu! E então
ressalvou que havia ali uma única pessoa com quem ele tivera problemas: seu vizinho,
por conta de um desentendimento sobre a localização da cerca dividindo suas
respectivas terras. Ao contrário do causo anterior, neste os partícipes não são parentes;
são “chegantes” e vêm de terras distintas. Posso calcular que, ao me narrar a briga, o
senhor calculava o que, “dentro de casa”, os da outra “família” poderiam me ter
contado. Ele por sua parte então me contou, Eu recebi o outro dentro da minha casa!
Minha esposa fazendo o café! Ele veio dizer que se alguém colocasse a cerca ali ia ver
sangue! Minha esposa passando o café e ele falando de sangue! Isso não pode! Eu não
quero malquerença! Tenho um medo danado de malquerença! Queria resolver!, contara-
me o desafeto do outro. A mistura de sangue e café era inaceitável: dentro de casa, o
que existe é respeito, explicava-me subliminarmente o homem. Assim, pelo espanto
identificado neste relato, tomei conhecimento da origem da tal malquerença: não era
exatamente a cerca, mas a estranha combinação de sangue com café. É significativo que
este dado tenha sido explicitado um devido ao fato de eu ter passado a noite anterior
na casa do outro. Tratava-se de uma disputa de perspectivas no processo de
“conhecimento” que eles reconheciam ser empenhado por mim. Tal disputa se delineou
durante o relato da briga, quando o homem não visitado me disse, Você sabe, né, que
eu e ele... Eu nada sabia, o outro homem nada me havia contado, ou pelo menos não
daquela maneira.
230
Segunda Parte
Mexida de Cozinha
231
Capítulo 4 - Sobre comer e ser comida
‘O que a beleza puser na mesa
Beba sem medo
Vem da natureza’.
(Victor & Leo)
4.1 – Modo de Comer (criação)
Uma grande tigela de farinha fora colocada no chão puxando para sentar ali o
povo tudo. Poucos comeram, no entanto. Preferiu a maioria entreter-se com as
conversas e violas dedilhadas por alguns foliões, iniciantes mais afoitos, durante o
intervalo do lundu, na roda formada ao redor do de-comer. Era uma “parada no giro”;
não deviam tardar a sair da casa e dar seguimento à viagem. Sem conversar com
ninguém, um senhor enchia a palma da mão, jogava a farinha para dentro da boca, em
seguida repetia o movimento com entusiasmo: vup pra dentro! Assim sucessivamente,
até que alguém notou e lhe fez troça, Ê homem para ser gostador de farinha! O senhor
explicou, Esse queijo ralado misturado na farinha está gostoso que está danado! O
gozador reagiu surpreso e disse, Mas tem é queijo nessa farinha?! Os demais presentes
interromperam suas respectivas conversas e aos poucos foram prestando atenção no
acontecido, Mas ninguém disse que tem queijo nessa farinha!, e avançaram todos no
que ainda sobrava do oferecido. Observando a cena, a dona da casa ria. Àquela altura o
povo prosa que desdenhara a farinha ia ficar sem o de-comer, pois a tigela estava
mais vazia do que cheia.
Assim aconteceu durante um giro de Folia nos Bois, contou-me Damiana entre
risadas. O povo não deu hora; pensaram que era farinha pura! Hahahá! Com variações
de lugar e ocasião, causos muito similares a este chegariam aos meus ouvidos outras
vezes, narrados por outras pessoas. O mote para o riso era sempre o mesmo: o
desengano do povo que não sabia do queijo escondido na farinha. A farinha é o de-
comer de todo dia, mas misturada ao queijo torna-se comida de festa. Embora isto seja
uma conhecida artimanha usada pelas donas de casa mod’ fazer o queijo “render”,
olhando o resultado ninguém vê ou imagina. De um modo ou de outro, contudo,
desmerecer farinha é coisa de gente “prosa”; mineiro é povo comedor de farinha. Quer
“ser bom” pra dizer que não come farinha!, reclama-se sobre “os prosas” que, pegos em
flagrante, assumem-se desprezando o que comem todos os dias. Mas a gente acha graça
232
é do que reconhece. Quem ria, ria decerto também de si. Farinha é prato de todo dia,
não é comida de festa.
O receio em comer um de-comer preparado alhures é comum entre o povo,
havendo mesmo aqueles os mais prosas que se negam a comer da galinha servida
em dia de festa. Outros ainda mais prosas não comem é na casa de ninguém! As
mulheres que ajudam no preparo de uma festa, “as muié”, não raro averiguam a
qualidade das galinhas ou frangos que lhes foram designadas para limpar e cozinhar
(para “tratar”): retiram antes de tudo a moela e olham. Se estiver a amarela, é porque a
bicha foi corretamente cevada, isolada do terreiro, presa para comer milho e não
“porqueira”. Caso contrário, a galinha criada solta, é comendo terra, bicho e até carniça.
É aquela moela escura... Credo! as “muiétratam do bicho mas comer, não comem.
Lá em casa minha mãe deixava era três dias cevando antes de ir para panela!
Mesmo a carne de gado, ainda de maior valor de que a da galinha, requer alguma
desconfiança. Óleo de soja em demasia, por exemplo, é para fazer o povo saciar-se mais
rapidamente com menos comida, é para a carne “render”. O recurso é mal falado nos
causos sobre a festa, bem como quando se reconhece na panela a carne do boi ervado. A
mandioca brava, raiz e folha, a mandioca mansa, só a folha, e também a favela ou o
umbu-do-cerrado essas ervas chamam atenção do gado. Quando o gado come fica
empasinado e chega a morrer. Fica lá o boi “ervado”, “morto”, o boi que “comeu erva”,
“já roxo”. O animal ervado é encontrado morto, e portanto não é “sangrado”,
conforme o procedimento correto na matança do gado; sua carne fica com “aquele
sangue preso”, a cor escura, arroxeada, o gosto “forte”. de olhar a gente sabe! Por
esta série de preocupações, quem se recuse a comprar nos açougues da Vila, onde se
desconhece a procedência da carne, isto é, o dono do gado.
De outra festa, conta-se o causo, O leite que sobrou, moço! E na festa ninguém
não viu a cara do leite. O tanto de saco pelo chão no dia seguinte... E não era daqueles
saquinhos do [Programa] Pela Vida, não! Foram os gaúchos que deram! Decerto foram
eles mesmo que tomaram, no dia que chegaram na casa para pousar [antes da festa].
Quando o primeiro pessoal chegou pra ajudar o bolo estava assando, então não foi no
bolo que o leite foi... A carne tava boa? É. Cicrana disse pra botar a cebola antes e eu
falei que comida de festa é diferente: tem que botar tudo por cima da carne, porque é
muita quantidade e se não a cebola queima! Dona Beltrana [dona da casa] me deu razão
e eu fiz do meu jeito. A outra disse que não comeu nada, que não gostou e que era
pouco que deram e ela nem assim comeu tudo, mas ela sempre diz isso! É para dizer
233
que está com nervo ruim. É o quê! O que ela tem a gente sabe, é prosa ruim, isso sim.
Eu vi: ela repetindo o prato, e era prato grande! A carne que sobrou os gaúchos iam
levar. Fulano viu Dona Beltrana dizendo, mas não viu levar quando foi levar as coisas
pra ela no alto da ladeira, na mula. A menina de Fulano disse que tinha ainda a carne lá,
depois que eles já tinham ido, então a carne não foi: ficou. E mandioca, será que
sobrou? Tinha um tanto, ah isso se sobrou os gaúchos levaram, porque de mandioca
cozida eles gostam. Eles deixam a mandioca cozinhar, cozinhar, cozinhar. põe na
mesa aquele trem assim desmilingando... Hehê! Ê, gaúcho nojento! Estão certos, eles.
Se sobrou tem que comer. Vai jogar fora? Se foram eles que deram...
A Folia daquele povo é ruim!, alguém conta. Aquele ano na [festa de] saída que
teve na casa de Fulano, era carne crua e só. Chegando gente e ninguém preparava o de
comer. tinha um arrozinho queimado, com aquela rapa da panela. No dia seguinte,
prepararam buchada. Onde se viu buchada de manhã! Ninguém comeu; os foliões
saíram logo, cedinho. Contrariamente, em outro caso, contam, A festa teve boa... Muita
comida... Este é o primeiro e mais necessário elogio que se faz a uma festa qualquer. Se
a comida teve boa, difícil dizer que não estava “animado”. A comida diária, por sua vez,
pra ser boa não é como na “comida de festa”; o de-comer de todo dia é farinha e arroz
com feijão e “é bom” “bom é o que tem”. Macarrão e ovo são incrementos
secundários; a carne de qualquer animal é para uma ou duas vezes na semana,
mod’fortalecer o corpo. O feijão é forte! “Anima” o corpo! Se colocar um toucinho
então... Tristes eram os tempos de atrás, quando nem o feijão com arroz a gente
conseguia... Tudo é o costume. De primeiro, adoçava o açúcar com aquele mel, o gosto
“forte”! Eca! Argh! Tinham aquelas qualidades todas do mel, da Manda-Saia, a Europa,
Jataí... Mas nos Buracos era menos. Nos Buracos tem muita flor, mas não dá muito mel.
É o clima das flores; o clima da terra.
As notícias sobre quem comeu ou não e o que achou no que comeu indicam os
“modos” dos “comedores”. As meninas de Fulano são “nojentas”, têm nojo de tudo, não
comem nada fora de casa! Cicrana é do “estômago fraco”, diz que não pode com
comida “forte”. Mas é do “juízo fraco”! Tudo o que come diz que é forte demais...
Beltrano não come pé de galinha porque dizem os antigos que quem come pé de galinha
fica pobre. Bestagem! Se fosse assim ia ter um monte de gente rica nos Buracos! É
prosa! E na família do outro, diz-que toda vida foram gente ruim - a casa é de porta
fechada - aquela segurança no de-comer. A farinha guardada pubando e eles nem pra
234
trocar por uma quarta de boi. Diz-que os filhos, comer, depois que os pais comiam,
mas isso já é maldade do povo...
As amigas Alice e Rosa conversavam animadas na casa desta sobre o de-comer
dos tempos de atrás. À medida que trocavam receitas e comparavam os modos diversos
da mexida na cozinha, bem como o gosto de uma e outra por este ou aquele de-comer,
contavam os causos de suas infâncias. Alice, esposa de Orotides, trabalhou muitos
anos “na saúde”, responsável pela limpeza do Posto. Hoje quis mais o marido “voltar
pra roça”, Como é bom na roça! Não precisa nem muito dinheiro. A gente cria nossas
galinhas, planta a nossa hortinha... Ô beleza!, conta Dona Alice. Sendo funcionária
“contratada” da Prefeitura, ao decidir pelos Buracos foi realocada como “merendeira da
Escolinha”, cozinha a merenda escolar nos Buracos. É boa cozinheira! Prepara - vamos
dizer, sozinha - o de-comer todim nas festas na casa dela. As festas de chegada, do terno
de Folia do marido Orotido. Como a escola está construída justo em frente à casa de
Rosa, a merendeira vem quase todos os dias repousar na cozinha da amiga durante o
intervalo do trabalho. Proseiam bom! Rosa é boa remedeira e ensina à outra alguns
modos de preparar um e outro remédio-do-mato, ensinando as qualidades dos pés-de-
paus e os procedimentos de feitura. Em troca ouve sobre os cheiros e temperos da horta
de Alice. E também alguns macetes. As duas gostam dos pés de flor e frequentemente
trocam sementes para enfeitar seus respectivos terreiros. Deus faz cada coisa! E flor é só
por boniteza...
Nenhuma das duas pertence às linhagens buraqueiras e, falando de suas mexidas,
lembram das terras de suas respectivas famílias; suas comidas, suas mães. Naquele
tempo, tinha leite nas águas e seca! Agora não tem mais, deve ser mod’os pastos... E a
abóbora! A abóbora cortava o tempo da seca inteirinho. A seca toda tinha abóbora! Mãe
colocava de cabeça para baixo, secava os fiapinhos e a semente saía sozinha. Por que
agora não tem mais? Deve ser mod’as sementes enxertadas... E moranga não tem mais!
Quando tem é igual abóbora, aí abóbora é até melhor. A moranga de primeiro enxugava,
botava no arroz, hmm... Delícia! Dona Rosa remexia na panela o espinhaço que Titia
lhe dera. Lembrou do espinhaço que comeu muitos anos. Mas era uma coisa linda!
Mas era gostoso! Tem uns de-comer que a gente fica assim lembrando por toda a vida...
*
235
Titia gosta do bolo menos doce, Rosa diz que gosta é doce, mas não para
comer bebendo o café. É como bolacha de maisena, é bom se acompanhar suco de
limão. Com suco doce não é bom. O [fruto do] jatobá é como o ovo: a gente está
comendo e parece que não sente o cheiro ruim, se outra pessoa estiver comendo e a
gente chega, sente aquele gosto forte! Antônio, filho de Titia, é como ela, tem
prosa no de-comer. E quando fala em cachaça, coloca a língua para fora em sinal de
nojo, o mesmo é a cara de Titia. Ela faz o gesto quando comenta sobre um dos irmãos,
que vem trabalhar na roça mais os filhos dela, e ela é que tem que fazer o ovo porque
ele não gosta de macarrão. Ovo!, diz, e põe a língua de fora. Parece que gruda assim um
feitiço, uma preguiça de fazer o de-comer...
Os buraqueiros gostam de assuntar as diferentes maneiras das combinações entre
um de-comer e seus acompanhamentos, bem como as interações entre o que se come e o
corpo de cada pessoa. É a “natureza” de “cada um”. Na hora de comer, Seo Quincas diz
estar sem fome. Mas o senhor tem que comer!, diz seu casal de visitantes, Sim, o senhor
tem que obrigar a natureza. Tem que comer!”. Dona Rosa ralha, Isso é prosa ruim! E
conta. Quincas não quis nem provar do bolo que ela fez. Titia observa a razão da
cunhada, É prosa ruim dele! Pois eu, se me dessem farofa de feijão catador - que é o
trem que tem pra mim ruim no mundo! - eu comia satisfeita. Pois se alguém faz a
comida para você! Pelo prazer em comer, mede-se o prazer de fazer o de-comer. Rosa
conta que de primeiro fazia “um feijão lindo”: era antes do enjoamento de Quincas com
essas idas de comida, botava toucinho e carne e ficava um feijão forte, grosso, gostoso;
agora não pode botar nada, tempero é só o sal, nem um açafrão na carne não coloca! Ela
por sua vez diz que se cansou de acordar cedo, dorme até a hora que quer; quem quiser
é que faça o café! Seu filho Nêgo é hoje quem acende o fogo no alvorecer, e muitas
vezes é ele mesmo quem passa o café – “café macho”, riem os outros. Quando acorda, o
sol alto, Rosa queixa-se do sono não recuperado da insônia noturna. O “sistema” está
“nervoso”, reclama ela.
Dentro de casa, o carinho de que depende o sucesso na mexida de cozinha é
próprio ao modo de comer de cada “família”. Os desentendimentos familiares em torno
da comida são, portanto, motivo de atenção especial nas conversas das casas”,
calculando-se gostos e modos e esforços. Ela é que é errada também!, diz alguém sobre
a mulher que se separou do marido, mod’a cachaça ruim dele, e quando vem aos
Buracos nem trisca na casa. Bem que ela podia ao menos fazer o almoço. O outro
retruca, mas ele com aquela cachaça! Quem tem vergonha vai embora mesmo! O
236
homem bêbado disse que ia matar um frango para comer mais a filha, que desceu aos
Buracos com a e. Mas não foi nem uma nem outra. Ele ficou com raiva e matou o
frango para comer sozinho. Matou foi um pinto! Homem saiu matando de qualquer
jeito. Um sobrinho esteve em sua casa, mod’compaixão, e comeu o frango de macho.
No dizer do outro, comeu porque era o jeito. Ele chamou, né... Mas era um gosto de
fumaça, um trem mais ruim! Quando o marido diz não gostar da comida da esposa, os
outros especulam. “Prosa ruim” dele ou “preguiça” dela? Tem mulher que gosta de ficar
“bestando nas estradas”. Mas se ela o de-comer! A comida é que não sai no gosto
dele. Queria fazer não é de hoje, mas o marido é nojento! Como é o modo dela fazer
o bolo? É do jeito que o marido gosta!, dizem os outros. Mulher trabalhadeira está ali,
notam as vizinhas ao defender a cunhada, Rosa. Forte - nesta idade! - cortando e
carregando lenha, rebocando a casa, às vezes até trabalhando na roça para ajudar o filho,
o pobre do Nego, sozinho mais a mãe. Quincas doente...
Além das diferenças pessoais e entre povos, o modo de comer marca também
uma distinção de gênero, que pode ser um traço da idade de cada um ou do “tempo de
primeiro”, que “hoje demudou”. Os buraqueiros observam por exemplo que, entre as
senhoras mais velhas, uma quantia considerável “repuna” só com o cheiro de uma
franga morta. Explicam-me que isto se deve decerto ao enjôo acumulado durante os
anos de prática matando e tratando as bichas. Deu enfaro. Assim como a prosa, que por
sua possibilidade de “contaminação” e “influência” (cf. capítulo 3) indica a um
tempo qualidades específicas a cada pessoa e a cada povo, a comida tem suas maneiras
de “puxar” e “repunar” gente, atualizando combinações particulares entre pessoas e
cozinhas. Os “modos de comer” de cada um, sua natureza, são pessoais e, por isto
mesmo, são do povo. Dona Zefa Carneiro adora carne cozida, mas em sua casa fazia
frita ou assada, porque o filho Silvaneis não gostava da carne fresca, apenas da carne de
sol, pois com o caldo não pode, repuna. A carne de sol “no tempo das águas” não fica
boa, periga “pubar”, e assim a mãe se via obrigada cozinhar a carne no modo custoso.
Alguma carne este precisava comer! Enfim aprendeu com uma prima e vizinha a receita
boa: cortar a carne em pedaços grandes, fritá-la bem e depois botar para cozinhar a
carne fica mais dura, mais forte, menos aguada; fica sequinha, uma delícia! Assim o
filho de Zefa aprendeu a comer carne cozida, e do mesmo modo a filha de criação dela,
mais nova do que o irmão uns anos, aprendeu a cozinhar a carne. Hoje o povo de Zefa
tudo é assim, gosta da carne cozida sem o caldo. Mais “forte”.
237
“Criar” é o termo usado para o gesto de “dar o de-comer” aos filhos e também
para o processo da gestação da criança na barriga de mulheres ou animais fêmeas (a
“criação”). “Vaca criada” é o mesmo que “Mulher criada”, diz-se daquelas que
pariram, tiveram filhos. A expressão “Fulano(a) é criado(a)” tem um sentido distinto,
é o mesmo que dizer: “Fulano(a) é gente”, isto é, comporta-se como um adulto
experiente. Assim, se a “criação” da prole consiste necessariamente e alimentá-la, o
modo do de-comer se cria no costume aprendido na cozinha de casa; mas dele também
depende o gosto de cada um, “puxado” de algum parente; “criado” n “costume” tanto
quanto no “destino” do ventre materno. A “criação” esbarra-se na “natureza” de cada
um, sendo-lhe, neste sentido, contínua e diversa: “esbarrar”, no vocabulário buraqueiro,
é o mesmo que “parar”, mas também pode significar um tropeço do corpo. Quando se
pretende livrar a mãe da culpa por um filho “mal-criado”, diz-se, É da natureza mesmo!
O menino é que é assim desde pequeno... Como a “mexida” da mãe interfere no “modo”
dos filhos?, parecem perguntar-se os buraqueiros. Fazem-no por meio de comparações
pessoais entre irmãos criados na mesma casa, entre “o tempo de primeiro” e o “agora
que são gente”, ou entre um menino e um velho do qual o primeiro puxou o “jeito”, o
“modo”, o “sangue”, a “prosa” – a “natureza”.
O paladar, como a prosa, é algo que se puxa no sangue, contam-me os
buraqueiros. Fulano é comedor de abóbora; puxou da avó, a Falecida Velha Cicrana:
morria quando via abóbora! O modo de comer, e o de-comer como efeito de um modo,
são da “natureza”: Dona Lió, mãe de Quincas, Titia, Damásio... Esses povo tudo, é tudo
magro. A magreza é natural da família toda, o que morreu era mais forte. Todos os
outros puxaram a natureza da mãe. A perna é mesmo que um galho; e o de-comer é
cheio de prosa! Certa vez uma senhora explicou-me sobre a natureza diversa criada no
modo da prosa e na mexida de casa, quando reclamava de uma sobrinha, filha da irmã
de seu marido, que este pagara para ajudar na cozinha durante o período de resguardo.
A menina, hoje mulher, não prestava, contou-me a senhora. As filhas dela também não.
a filha do meio e a que hoje está no São Paulo. Elas é diferente da mãe são
trabalhadeiras. Só a Cicrana [filha de Fulana] é que é caprichosa, e também a Beltrana
[outra filha]. As outras... Aquela que está na Brasília também é folgada... É como os
dedos das mãos; é tudo nosso, mas não é tudo igual. A mulher me conta então o causo
de quando a sobrinha do marido, hoje sua vizinha, trabalhou pra ela, durante um de seus
resguardos, quando pagou a então menina pra lhe ajudar nas tarefas da casa. o povo
dizia que eu chamava gente de fora!, contou-me. Mas aqui dentro dos Buracos não
238
tinha ninguém que prestava! As meninas daqui servem para dar raiva! A filha da
Fulana é igual à mãe. Fulana “cria” as filhas para serem iguais a ela! Não prestam para
trabalhar, não prestam para fazer nada na cozinha, nem cozinhar nem lavar. Era eu de
resguardo carregando bald’água! Ela presta pra fazer raiva e fuxicar! Eu assuntei,
quando a gente está conversando, é falar o nome de alguém que ela está longe e
vem aqui pra ouvir e depois soltar a língua. É essa prosinha reduzida a gente mal
escuta - mas tem uma língua...
O gosto por uma determinada comida o “modo de comer” - inclui a
“influência” mutuamente exercida no comer e no fazer o de-comer. Panela que te criou
não fura; comida de mãe é o que cura, conforme os dizeres dos antigos, repetidos aos
filhos que se querem de volta às casas onde nasceram e “se criaram”. O gesto diário de
cozinhar para alimentar é próprio à mulher “criada”, isto é, mãe e esposa. Paçoca de
carne-seca, farofa de ovo são preparadas e entregues pela mãe/esposa aos filhos e
maridos que saem no raiar do dia; e logo se emenda a labuta do almoço: catar o feijão,
caçar a lenha, botar no fogo a panela com água. Nos dias em que os homens não têm
trabalho na roça, é esperado que a mulher seja a primeira a acordar, mod’esquentar a
água do café. Quando é época de vaca dar leite, é um “caprichoelogiado o dela em
preparar um biscoito ou bolo na noite anterior, mod’oferecer na manhã seguinte. Ou
então o reputado requeijão, molezinho. O cálculo da comida a ser preparada inclui as
merendas da tarde, sendo esta, ao contrário do almoço e da janta, passível de ser o
aproveitamento da sobra do que se fez na noite anterior ou na manhã para comer junto
ao café matinal. Nos dias de animação, prepara-se um de-comer especial para o “café da
tarde”, que também tem seu tempo calculado de se botar na panela, o café dos de casa e
de quem chega. A garrafa térmica de uma boa dona de casa, vimos, tem sempre um café
quente a espera de quem quer que chegue sem aviso. No tempo do milho, existem as
comidas próprias do milho, assim como no tempo do pequi e no do buriti o que se come
é pequi e buriti. No início da “época de seca” é apropriado se matar o gado - a carne é
farta. No “tempo das águas” é o pasto que está bom e as vacas, paridas. Aí a fartura é do
leite. O “queijo mineiro”, curado ao longo de dois ou três dias, tem seu lugar de valor.
As mulheres “prendadas” fazem; as outras compram ou ganham na vizinhança. É bom
fazer o seu queijinho..., dizem as primeiras. Mas quando a vaca está a dar leite, é em
geral um filho homem quem sabe ordenhá-la, o que depende do capricho deste. Entre
mãe e filhos, entre esposa e marido, a comida fala do transcurso do tempo vivido em
comunhão e da vida “reunida”, ou da “família formada”, “criada”. Deus faz tudo certo:
239
fez o homem para trabalhar na roça e a mulher, na cozinha. Os dois precisam uns aos
outros. É o que buraqueiros e buraqueiras elaboram vez e outra.
Dar o de-comer diário diverge das situações de recepção de visitas e da
circulação de ofertas entre vizinhos (conforme Parte 1). Como nos primeiros casos, o
de-comer diário é uma oferta irrecusável. Mas, diverso deles, aqui se a comida pode ser
silenciosa: comer “é o que tem”. A comida cotidiana, portanto, não se imagina “paga”
com prosa ou elogios de conveniência. Por outro lado, quando a comida de casa ‘faz
falar’, quando a comida rende assunto “dentro de casa” é muitas vezes por “ingratidão”;
“descombinação” entre familiares. De primeiro, tinha mandioca e farinha. A gente
era pobrinho, às vezes até era da mandioca braba. A gente não dizia nada; achava era
bom! E quando a mãe da gente dava farinha com rapadura... Era gostoso! Agora esses
meninos mal-criados ficam de prosa ruim para comer feijão! Prosa!
O ritual de ‘sentar-se à mesa em família’ não faz parte do modo buraqueiro.
Com os pratos em uma das mãos e a colher ou garfo na outra, acomodam-se pela casa,
podendo ou não permanecer juntos na cozinha. A comensalidade é deliberadamente
“puxada” nas ocasiões “especiais” (capítulos 1 e 3), embora “em família” também
venha por acontecer. Sobretudo se estão todos bem. Mas em quaisquer casos, o de-
comer “é para agradecer”, o que resulta não raro em silêncio contencioso temerário
quando das visitas cujo paladar, o modo de comer, não se desconhece. Quando entre
gente que não é de casa, a tensão pode no limite ser verbalmente sugerida. Gostou da
comida? Quando entre conhecidos, a mesma pergunta pode chegar a uma espécie de
provocação. Testemunhei por exemplo, em uma Festa de Folia, um episódio no qual
entre os convidados estava “outro Folião de Guia”, “dono de outra Folia”. A anfitriã,
dona da Festa, mulher do dono da festa, viu o silêncio do primeiro e lhe perguntou,
Gostando da comida? E o convidado responde, sem mais, Toda comida é boa... Aquilo
que se silencia na presença da cozinheira anfitriã é justamente o que se compartilha e se
conhece no cotidiano caseiro: os percalços da mexida de cozinha. Dentro de casa, a
mexida diária envolve administração de finanças, produção de roça e criação de
animais, uma lida cujo esforço coletivo não pode ser silenciado, mas que tampouco se
quer exposto ao conflito verbal. Como vimos, a intimidade “de dentro da casa” implica
uma gestão particular da palavra, requer um “conhecimento” específico (capítulo 3). A
intimidade implica modos menos explícitos e deliberados. Não é então de se espantar
que a relação entre mãe e “filha-mulher” mulheres “criadas” convivendo em uma
única cozinha – seja freqüentemente envolta em “diz’que-diz’que”, o mesmo que a rigor
240
se teme e se supõe diante dos laços entre sogra e nora. Entre “mulher-feita” as relações
serão saudáveis tanto melhor quando em cozinhas separadas. “Cada mulher tem seu
jeito”. Entre mães e filhas, como entre sogras e noras, o modo de combinar (ou não) na
cozinha é uma “sorte da pessoa”.
4.2 – De mães e de Tias
Entre o modo de comer e o modo de conversar “puxados” da família não existe
apenas uma diferença atribuída à criação”, eles correspondem também a efeitos
relacionais da “sorte”. Tomemos o causo de Lúcia e sua mãe Rosa. Pode-se dizer que
uma “puxou” a prosa uns aos outros. Alguns consideram que uma ou outra têm “uma
prosa...”; o gênio forte, no dizer. “Gente” que fala o que quer, ouve o que não quer. Esta
semelhança implica certo descontrole na cozinha: uma prefere deixar a água no fogo
enquanto vai catar o feijão; a outra diz que deste modo a água fervente queima os
caroços, que precisam ao contrário ser postos no fogo com a água ainda fria. A
diferença do processo implica uma diferença na administração do tempo, e portanto
quando preparam junto a refeição, as duas “descombinam”. Cada uma com seu modo.
Na comida, a falha se expressa e se perpetua, eventualmente eclodindo em conflito
aberto. Quando fui morar na casa Dona Rosa, levada por Lúcia, esta havia se separado
do marido havia cerca quatro meses, logo após a morte de sua filha, “a neném”.
Lúcia já era mãe de quatro meninos: o mais novo, com o marido Raimundo, e os
outros três de pais diversos. O mais velho, Lúcia teve aos dezesseis anos. Rosa e
Quincas foram que criaram, contam os outros. Este menino, hoje, quando está nos
Buracos, é na casa dos avós que ele mora. A mãe, ele chama é pelo nome de batismo,
chama é pelo nome de “Lúcia”. Um dos filhos, Lúcia “deu dado” a uma prima do
Ribeirão de Areia, que se casou com um homem “de condições” - da “família Da
Matão”, Fazenda da Matão. Tudo isto, e agora a morte da filha, que seria sua única filha
mulher. Lúcia ressaltava-me freqüentemente este último fato, tentando entender sua
sorte no causo todo. O causo parecia começar com Lúcia não ter ligado as trompas,
conforme o previsto. Queria ligar, contou-me ela, mas “não deu certo”. Ali era a
sorte, “era para” eu ter a neném, disse-me Lúcia. Quando a conheci, falava-me
constantemente sobre esses sentimentos, sua “tristeza”, dizia. É bom “conversar”,
explicava. O marido Raimundo - então ex-marido - “sofria de ciúmes”. Naquele
momento, Lúcia se separara dele pela terceira vez, “o povo falava” que era a sexta.
241
Paguei Lúcia para que me ajudasse durante aqueles dois primeiros meses, considerando
que esta era sua expectativa ao me trazer para os Buracos. Na condição de solteira,
Lúcia a rigor não precisava responsabilizar-se pela cozinha. A cozinha agora não era a
de sua casa (embora a casa fosse sua); era a cozinha de Rosa”. Lúcia “estava com
tempo”, portanto, para ganhar seu próprio dinheiro. E havia recém trabalhado para
outra gente de fora, “as muié do filme”. As “mulheres do filme” eram três e
permaneceram por três temporadas de duas a três semanas nos Buracos, para rodar ali
um documentário sobre a chegada da Energia Elétrica, através do Projeto Luz Para
Todos, “a luz do Lula”, como apelidaram os buraqueiros.
Dona Cristina certa vez comparou sua filha à de sua amiga Rosa. A “sorte” de
Lúcia é como a da menina minha, disse Cristina. Ambas se casaram com maridos que
“não certo”. Tudo tem uma sorte... Esse povo que nasce torto..., concluiu a
vizinha, sem esperança. Lúcia estava com “a sorte complicada”, o povo falava:
precisava “caçar rumo”, fosse na Brasília ou ao menos Chapada, aconselhavam os
parentes. Lúcia pensava. estivera na Brasília, trabalhou em casa de família apenas
nos finais de semana saía da casa onde trabalhava. Na época, era antes de Raimundo, o
terceiro filho mais velho, Luciano, era criança começando a caminhar. Tinha que ficar
com uma das primas, das meninas de Silu, com quem Lúcia dividia o apartamento, na
Ceilândia. Pagava a prima para olhar Luciano; o compensava. Não compensa ir para
Brasília, dizia-me Lúcia. E não queria ir para longe do pai, alegava que ele estava
doente e precisava de seus cuidados. Quem cuida? Mãe é aquela prosa... Ir para cidade
não podia também mod’os filhos: o mais novo, o marido Raimundo não a deixaria
levar. Raimundo é filho de Juca, do Falecido Velho Sinésio, do povo do Retiro; os avós
eram muito apegados ao neto. Ana-de-Juca, sogra de Lúcia, chorou dizendo que não
agüentaria a partida do neto, implorando à nora que o deixasse por perto, contou-me
Lúcia. Mais tarde, em entrevista concedida a mim, ela elaborou: Eu nem imagino assim,
sair... Não sei, nem digo morar em uma cidade grande, mas pelo menos estudar e ver o mundo
lá fora, na realidade que é. Eu não sonho envelhecer aqui nos Buracos. Não penso em ficar aqui
pra sempre.
Eu - Você pensa em ir pra onde? Brasília?
Lucia - Não, acho que Brasília o. Mas acho que de repente até assim... [silêncio] Se der pra
comprar uma terra fora daqui. Por que aqui é difícil demais o acesso, né. Os meninos crescem,
têm que estudar. (...) De repente até na Chapada, algum sitiozinho perto da Chapada que dê pra
gente morar. Não sei. Só o tempo mesmo pra dizer.
242
O transcurso do tempo é o modo da “gente” entender o sentido do “destino de
Deus”. O “tempo” ‘faz falar’ a “sorte”. o tempo mesmo pra dizer, diz Lúcia. Os causos
pessoais ganham rumo é com o passar do tempo, portanto é na espera pela “situação do
pai” que ela espera um rumo desconhecido. Enquanto vida, sorte”, diria Lúcia
ainda naquela mesma entrevista. Então me falava sobre a idéia de construir “uma
casinha” no terreno de seu pai, perto da fonte, ou então aproveitar a casinha onde Rosa e
Quincas guardam lenha e selas. No poste de energia que instalaram bem em frente à
casa, Lúcia pedira aos meninos da luz um ponto de luz individual, pensando em
futuramente construir ali sua futura casa, com luz
74
. Lúcia é muito “apegada” a
Quincas, diz o povo. Eu sou muito “apegada” a pai, diz Lúcia. apegada” a pai, diz
Lúcia.
Embora os buraqueiros já conhecessem a energia elétrica, seus objetos e
serviços, pelo menos desde meados dos anos oitenta, quando a Vila ganhou as primeiras
ruas iluminadas, o Luz Para Todos foi um acontecimento sem igual. Mencionavam-no
todas as vezes em que, falando “da política”, diziam, “Lula é o único Presidente que
olhou para os pobres”. Até mesmo os que “não gostam do Lula” (poucos ali), contavam
o causo da luz como um ponto positivo inegável a ser atribuído ao Presidente. O causo
da luz se desdobrava nos causos dos “meninos da luz”. Eles haviam partido dois meses
antes de minha chegada nos Buracos. As “mulheres do filme”, duas semanas. Lembro-
me de, em meu primeiro dia na Vila, ter cruzado com a caminhonete alugada por elas,
levando na caçamba uma geladeira comercial da qual fizeram uso em sua última estadia
buraqueira. Eu então almoçava com Damiana e “o povo da Funatura”, que me contaram
sobre a luz, o filme, os Buracos
75
. As mulheres haviam pousado na escolinha, onde
montaram uma estrutura independente das casas buraqueiras, cozinhando para si
próprias em um fogão a gás portátil. E Lúcia havia sido sua guia nas gravações do
filme. Mas não Lúcia como vários outros buraqueiros tinham causos para me contar
sobre “as muié”. O “filme das mulheres” envolvera diversas “famílias”: Os Bandeira, a
74
No Programa Luz Para Todos, do governo federal em parceria com o estado de Minas Gerais, não
‘iluminação pública’ (postes ou equivalentes), e cada casa tem direito a um ponto. Houve um solteiro que
construiu uma casa para garantir a luz ali “no futuro”, quando casasse. Outros, que casaram ou chegaram
depois dos “meninos da luz”, permanecem até hoje sem energia elétrica.
75
A ONG ambiental Fundação Pró-Natureza (Funatura), com matriz em Brasília, possui sede em
Chapada. O PNGSV é gerido pela Funatura com recursos provenientes sobretudo da conversão de títulos
da dívida pública, por uma espécie de ‘parceria’ com o Estado, estabelecida em concessão por 20 anos
desde a criação do Parque, por Decreto Lei, em 1989. Por conta deste trabalho, muitos projetos
ambientais e sócio-ambientais têm-se desenvolvido no município de Chapada Gaúcha-MG. Ao chegar ali,
eu e Camila Medeiros ficamos hospedadas por cerca de dez dias na casa da Funatura.
243
casa de Silu e o povo de Rosa. Pediam que o povo conversasse fingindo que as
mulheres não estavam ali, e elas com a câmera filmando. Uma luz forte que chegava a
arder os olhos! Pediam para repetir um bocado de vezes aquele modo de ficar
conversando. Gravaram também o povo comendo. E Guilherme, que apareceu
caminhando com uma lamparina na mão, para dizer como que não existia ainda energia
nos Buracos. Os buraqueiros se riam dos causos do filme. “As muié” eram de Belo
Horizonte, uma vinha do São Paulo; vestiam-se de um jeito engraçado, disseram-me.
Adoraram a paçoca de carne de sol, contou-me Rosa, para dizer que “qualquer dia” faria
também para que eu experimentasse pisa no pilão até a carne virar uma renda, e pisa
com a farinha. Mas é lindo! As mulheres do filme! Faltou morrer! Ich! Mas gostaram!
Quando cheguei nos Buracos, os causos sobre os “meninos da luz” eram os
únicos a competir em quantidade com os causos das “mulheres do filme”. Na verdade,
uns se enredavam nos outros, pois estiveram nos Buracos em grande parte durante o
mesmo intervalo de tempo. “Elas” também filmaram “eles”, o caminhão carregando os
enormes paus que mais tarde seriam fincados à terra pra mod’ passar os fios. Eles
sofreram aqueles meninos da luz! Me chamavam era tia!, contou-me Titia, informando
sobre a saudade deixada pelos rapazes. Eram sempre na sua casa, conta ela, que oferecia
o café amargoso, do modo que eles gostavam. As mulheres do filme haviam
patrocinado uma festa na escolinha, com música, comida e tudo, para filmar fazendo
como se fosse “a festa da luz”, que tinha acontecido com a presença do “povo da
política”: os de Ministério e também os de Aécio, mas os políticos da Chapada, tudo.
Tudo discursou. Inclusive Zezo, porque era presidente do Sindicato da Comunidade dos
Buracos. Lúcia parece que também falou no microfone, decerto porque também estava
“mexendo com” Zezo [trabalhando com ele]. Ocorrera, portanto, duas “festas da luz”,
que as moças e rapazes buraqueiros comparavam ao me mostrarem as fotografias. E
contavam os causos das festas. Até as moças da Brasília vieram: veio uma menina de
Bastião, que namorou um menino da luz mas não depois não deu certo. Dos Buracos,
uma menina de Joaquina começou namoro também com um da luz, e findou separando
de vez do ex-marido, para casar com o menino da luz. Bonito! Novo! Mudou pra Vila e
arranjou emprego de eletricista na Prefeitura. Amigou mesmo com a menina Dora de
Joaquina! Mais tarde, daria mais um filho a Dora, que tinha então três. Uma de
Guilherme também namorou muitos tempos um menino da luz, que ficou vindo nos
Buracos mesmo depois que acabou o serviço deles aqui. Mas parece que ela não quis
mais. ele nunca mais veio, voltou pra terra dela. Os meninos da luz eram originários
244
de várias cidades e roças ao norte e noroeste de Minas Gerais. Nega de Damásio casou-
se com um menino e hoje mora na terra da família do marido, no município de Montes
Claros. Nega de Dasim ganhou um casamento em que foi convidada toda a aparentada
dos Buracos, no padre e no civil. Os primos da Brasília fretaram uma van e vieram
todos. Depois, festa do CTG. Festão! Churrasco, arroz, feijão, massa, farofa e salada.
Também refrigerante e cerveja. O pessoal dançou forró até umas horas. Mas isso
aconteceu cerca de dois anos após a chegada dos meninos da luz nos Buracos.
Quando vieram, foi que fizeram a alegria das moças, tudo ficou feliz, disseram-
me depois, às gargalhadas, senhoras tias e mães das primeiras. Dois meses depois do
acontecido, quando eu cheguei, ainda contavam e repetiam os causos. Lúcia também
namorou um menino da luz. Era até boa pessoa, gostava dele, contou-me, mas não deu
certo. Dona Rosa rogava, praguejava. Dizia que Lúcia estava era com ciúme de
Raimundo, que naquele momento começou a namorar a menina de Toró. A mãe de
Lúcia acusava, dizia. Falava que Lúcia estava era encontrando com Raimundo
escondido. Conforme o causo que o povo me contava, sobre a última vez em que o casal
separara e voltara, Rosa foi quem falou o que ia acontecer. E foi certinho o que ela
disse: naquela, eles estavam para voltar de novo! E voltaram. agora tornaram a
separar. Lúcia não pára quieta. Tem uma sorte, coitada, diziam os outros. Agora,
entretanto, eu convivia diariamente com Lúcia, que então me levava para as casas de
cada um dos povos dos Buracos, apresentando-me “ao povo”, e não via “incutimento”
nenhum com Raimundo. Sempre que se encontravam, era brigando. Contava isto às
pessoas que então me perguntavam sobre o assunto quem me perguntava eram quase
todos os buraqueiros que à época eu por ventura encontrasse sem a presença de Lúcia.
Perguntavam-me como que no cálculo de eu saber alguma coisa. Mas, na minha frente,
brigavam, xingavam uns aos outros - não conversavam direito e era quando
calhávamos de cruzar com ele pelo caminho. Mas é isso!, disse-me um primo de Lúcia e
Raimundo. Eles encontram assim mas é porque estão beirando... Quando briga assim é
porque ainda está querendo uns aos outros!
Por outro lado, dentro de casa, Lúcia e Rosa não brigavam na minha frente.
Embora também estivesse morando ali, eu apenas ficava sabendo dos causos dessas
brigas, que elas contavam diretamente a mim ou então aos outros, e eu testemunhava.
Eram causos de briga com sérias acusações mútuas - Besta-Fera! Raparigagem! - mas
também causos de pequenos desentendimentos que se estendiam em diz’que-diz’que
por dias ou até meses. Foi o que ocorreu por exemplo no trato de Rosa com um mascate
245
na casa da família na Vila. A casa na Vila gerava muita “conversa”, muita
“descombinação”. Fora comprada com parte do dinheiro de Quincas, parte “dado” pelo
pai de Vinícius, o filho mais velho de Lúcia que havia sido criado pelos avós, hoje
adolescente. O pai de Vinícius é “mineiro” mas “mexe com os gaúchos”, é “sócio” do
mais rico dentre eles, o povo é quem fala. É dono do Posto Chapadão, único posto de
gasolina da cidade. É portanto o “Juca do Chapadão”. Conta-se também que é o terceiro
maior produtor individual de capim para exportação de todo o país
76
. Seus pais - uma
“das primeiras famílias que chegaram” - são donos de um mercado e da única loja na
vila a vender móveis, utensílios e aparelhagens quaisquer voltados ao interior da casa. É
a “loja Chapadão”. Ao lado, está a “pousada Chapadão”. Tudo da família de Juca; tudo
“na Avenida”, no seu cruzamento com a rua da Prefeitura, a rua calçada, onde existe a
praça. Ali, “onde nasceu a vila”, é “onde tem a família Chapadão”. Mas o pai do filho
de Lúcia, embora sócio de Juca do Chapadão, não tinha parte em nenhuma dessas
propriedades. “Mexia lá”; era com “dinheiro grande”. O causo é que o homem tem
dinheiro, o pai do menino de Lúcia. Construiu recentemente uma casa de dois andares e
garagem com caminhonete e moto, em frente ao Posto de Saúde, ao lado da casa do
vice-prefeito, o Doutor Reginaldo. A pedido de Lúcia, fotografei a nova casa do pai de
Vinícius, para que ela pudesse “provar no juizque o homem tem dinheiro. O causo
levou dinheiro de Lúcia, que precisou ficar indo” a Arinos rias vezes. Esta era a
segunda vez que o homem “botava na justiça”. Ele assumira a criança logo, mas
namorou Lúcia antes de Vinícius nascer, e apenas quando ela “abriu processo” contra
ele pela primeira vez é que decidiu ajudar. Fez negócio antes do juiz “dar ordem” e deu
a casa na Vila. “Deu dado”. Mas deu o dinheiro que não dava para tudo. Então Quincas
completou com cerca de mil e quinhentos reais, digamos um terço do valor da casa mais
o lote, na época. Hoje a casa da família na Vila é “de Quincas”, mas é também “de
Lúcia”, reivindica esta, pois que é de seu filho, pois que é “dado” pelo pai deste.
Paulo Gomes, irmão de Lúcia, por ser aposentado “mod’as vistas cegas” -
mora na Vila, na “casa da família” na Vila, e paga algumas contas, compra algumas
coisas. Mas é sempre aquela briga. Paulo, no dizer dos outros, é “meio enrolado”. Boa
pessoa, mas atrapalhado às vezes. Lúcia xinga. Ela ajuda nas despesas da casa e, com o
próximo Pronaf, decidiu arrumar o banheiro. Quando Vinícius “fica na Vila”, estudando
o Ensino Médio, Lúcia o dinheiro. Toda vida, embora Quincas e Rosa é que tenham
76
O capim ali é produzido para a exportação de sementes, processadas nos próprios galpões de Chapada,
de onde saem transportados segundo suas diversas qualidades para as empresas exportadoras.
246
garantido “o de-comer”, Lúcia é quem dá roupa, tênis, “coisas que menino precisa”. Ela
ganha o Bolsa Família, mas para pouco, argumenta. E freqüentemente se encontra
em casa de Rosa e Quincas contando o causo dos seus gastos.
Eu sempre julguei surpreendente a habilidade dos buraqueiros para fazer
oralmente o cálculo do dinheiro gasto; Lúcia o fazia especialmente bem. Inteligente pra
tudo, ativa que ela! A despeito de qualquer “conversa” ou ‘controvérsia’ todos
nos Buracos admitem que Lúcia é “ativa” e “sabe contar o causo direito”. Nem por isso,
entretanto, cessam os debates dentro de casa, sobretudo entre ela e sua mãe, mas sempre
envolvendo o pessoal tudo. No causo das panelas da “casa da Vila”, por exemplo, por
fim o homem pegou de volta uma das panelas que vendera a Lúcia em prestações até
então não pagas. uma das panelas do conjunto, Lúcia havia vendido por vinte reais à
mãe, Rosa, que até então não lhe pagara, acusava. A outra, a panela menor, Lúcia
vendera à irmã Tana por dezesseis reais. Tana deu a panela à filha Rosana, quando da
formatura desta no Ensino Médio. A Rosana, Rosa prometera trocar a panela menor,
pela maior, a de 20 reais que comprara de Lúcia e ainda não pagara. Adulando Rosana!,
acusava Lúcia. Rosana nunca que ia apanhar a panela, e nada de Rosa pagar o que
devia. Aí o mascate chegou e apanhou!
Lúcia é sobrinha de Titia, mas é “mesmo que filha”, diz esta. Titia é mais
“chegada” de que minha mãe, diz Lúcia. Os outros vêem. Freqüentemente a sobrinha
vai na casa da tia; juntam-se na “mexida de cozinha”, em ‘ajudas mútuas’. Seja um
frango no ponto de matar “dado” a Lúcia por Titia - seja parte da tapioca tirada na
última farinha – “dada” a esta por aquela. A sobrinha amassa a massa do biscoito para a
merenda da tarde da casa de Titia. Lúcia tem mão boa de fazer biscoito! Também é boa
de cálculo! Inteligente pra tudo!, reconhecia a tia. Nos gastos desta com supermercado:
com a nota fiscal na mão, Lúcia observava os gastos de um dos filhos da tia, seus
primos-primeiros. Titia, toda vida “fraca das pernas”, não sobe a ladeira a não ser em
“causo de morte”, para dizer no exagero. Quem então sobe para a apanhar a
aposentadoria e a feira do mês é um dos seus meninos. Mas ele deu na senhora um
tombo de cento e dez reais!, reclamou Lúcia observando as faturas da última compra. E
discriminando na nota os artigos comprados, via-se que o filho de Titia comprara além
da “feira” uma sandália. Titia ponderou que ela própria consentira a compra. Então a
senhora tudo pra ele e ele ainda pega o dinheiro da senhora! E quando é para
comprar carne ele não compra! E Titia concorda, queixando-se. Fraca porque no mês
passado quase não comeu carne. E nesse ano os “prosa ruim” nem ainda nunca
247
destocaram a roça! Mortos na preguiça!, reclama a mãe. Mas Titia é “doida por esses
filhos”, “dá tudo” a eles.
*
Os “causos” e a “conversa” desenrolados pela “mexida de cozinha” ‘analisavam’
as relações ‘intra-familiares’ (capítulo 1). A relação entre mães e filhas-mulheres é
seguramente a mais freqüente animadora” dessa “mexida”. A gente cria os filhos é
para o mundo!, lamentam as mães em tom de conformidade. Por outro lado, é na
cozinha que o resultado da criação materna se explicita como perene, Panela que te
criou não fura!, repetem elas aos filhos que querem de volta à “casa da família”. Mas a
gente cria os filhos é para o mundo!
Presenciei a temporada de férias das filhas de Dona Neném, vindas da cidade
onde moram, para ficar na “casa da Vila” de Neném, a mesma que eu alugara em um de
meus períodos de campo (cf. capítulo 3). A cozinha às vezes era “descombinada”.
Farinha com ovo; Sazon; pimenta do reino no chuchu... Neném repetia em voz alta as
idéias de suas filhas e afastava-se da mexida no fogão em silêncio. Noutra ocasião, na
casa de Guilherme, também presenciei um modo “descombinado”; neste causo, a
relação entre mãe e filha atravessava-se pelas “conversas” das irmãs desta. Uma morava
na Brasília e estava “visitando a família”, “no tempo das Folias”, tempo das férias; as
outras moram nos Buracos. Nem ficar na vila para completar os estudos não quiseram!,
conta a mãe. Não tenho incutimento com escola..., justificou uma delas. ali nos
Buracos, e ali mais a mãe de dentro da casa. É o “povo dos Antônio Velho”, é toda
vida assim. São “as meninas de Guilherme”. Mas Zezinha, a menina de Guilherme que
morava em Brasília, é de uma “natureza diferente” das irmãs. se mudara para “o DF”
havia seis anos e agora partia para Goiânia, chamada pelos atuais patrões, da “casa de
família” onde trabalhava em Brasília. Imaginava que nesse novo local teria mais
facilidade em conciliar o emprego e os estudos na faculdade. Na Brasília, não
conseguiu. Só trabalhando na “casa dos outros”... Goiânia é menor, com sorte consegue.
Zezinha iniciara o Ensino Médio na Chapada, mas depois morou com os tios em Arinos,
e só depois, já em Ceilândia (DF), é que “completou a escola”. Zezinha sempre quis o
diploma. Agora, no Goiás, quem sabe... Quem sabe a minha sorte está lá?, especula.
Uma das vezes em que fui “almoçar ni Guilherme”, era em visita sobretudo a
Zezinha, que chegara nos Buracos havia poucos dias. Eu havia pousado por uma noite
248
em sua casa na Ceilândia, vizinha à de Edinalva-de-Joaquina, onde eu “pousava”
efetivamente durante aquela estadia (cf. capítulo 3). No almoço, Zezinha era quem mais
puxava assunto. Contava que, na Ceilândia, “pegou o costume” de comer apenas
verdura e carne; à noite, é lanche: café e um pão com queijo. As outras irmãs faziam
cara de nojo e espanto. Como é que vive sem arroz com feijão! Mentira dela! Mas
Zezinha continuou narrando seu novo “costume”. Você gosta de abóbora?, perguntou-
me. Eu disse que sim, ela botou a língua pra fora. Eca! No que uma das irmãs reagiu, É
besta! Quer ser chique pra dizer que não gosta de abóbora! A e, silenciosa,
desculpou-se diante de mim pelo atraso no preparo. Essas meninas ficam com essas
conversas!, justificou ela. O arroz eu demorei para botar porque fiz a abóbora e
desconcentrei! E errei na galinha, Ficou com muito caldo! Eu lhe disse que adorava o
caldo, para botar a farinha e fazer o pirão. É que nem os meninos, disse ela. Mas as
meninas é “uma prosa” porque não gostam do caldo...
Na casa de Rica - casa de Tutty, do povo de Damásio (capítulo 3) -, a cozinha
também tinha “as horas que “as muié” descombinam, mas em geral era “controlado”. Se
ria muito, o povo de Rica. Ela com sua gargalhada animava a televisão e o café da tarde.
Preparou-o certa vez sem açúcar, dizendo estar amargoso como era de meu gosto. Nésia
irmã de Rica, viu fazerem assim pela novela, O povo põe o açúcar é na hora de
beber. Rica se riu, E é no copinho especial pra café que eles bebem! Um copinho que
fica em cima de um pratinho! Hahahá! Povo besta! Já pensou? Ter que ficar segurando
o pratinho na hora de tomar o café! Hahahá! O “povo da cidade” tem desses modos...
Na cozinha de Dona Vera, ela também se ria disso. A mãe de Damiana, meu “povo da
Chapada” (capítulo 3), que voltara recentemente de uma viagem à Europa contou-me,
na Vila, o causo do povo de lá. Dona Vera havia morado por seis meses na França
chamada por sua antiga patroa, na casa de quem trabalhara por anos no São Paulo, da
época que a “família Campos” morou em Osasco (SP). Agora, anos depois, os patrões
de Dona Vera moram na Europa e a chamaram para ajudar a criar o filho da filha de sua
antiga patroa, “a patroa da vida”. Dona Vera relatava-me suas experiências “no
exterior”, onde cozinhara para a patroa enquanto criava o neto desta. Cozinhava e
salvava a patroa, note-se, pois “lá é um trem feio”, dizia-me. Lá eles não comem arroz e
feijão! O assunto rendeu, um rapaz chegante, então presente na Vila, contou-nos o causo
de um parente que comera peixe cru em um restaurante de cidade, mas como não
conseguia “perder o costume” de comer sem farinha, comeu peixe cru com farinha!
249
Por outro lado, ocasiões em que o conhecimento da filha sobre as “comidas
de cidade” é ressaltado à guisa de elogio. E a própria mãe, mesmo estranhando, “acha
bom”. É o caso de Zefa-Carneira e a filha Lúcia-Carneira não a Lúcia-de-Quincas, a
de Zefa mais o falecido João Carneiro. Lúcia-Carneira foi uma das primeiras
buraqueiras a ir morar em Brasília; hoje conhece o modo de cozinhar da “gente de
cidade”: pica a cebola ao invés de pisá-la no pilão junto com os temperos, como o modo
das “muié da roça” e prepara cardápios desconhecidos do “povo antigo”. Macarronada!
Hahahá! É macarrão-nada! Hahahá! Quem ria era um tio materno de Lúcia-Carneira
quando ela, em viagem de férias a Minas, preparou-lhe uma refeição de acordo com o
que aprendera nas casas de família onde trabalhou: o macarrão ao forno coberto com
queijo gratinado, não cozinhado na panela, foi-nos servido na casa da Vila de Dona
Zefa. Contei-lhes então o causo de quando visitei Lúcia-Carneira na Ceilândia: o tanto
de comida que ela fizera para me receber eu sozinha! - em sua casa: uma travessa
desse tamanho de macarronada com molho de tomate e carne moída, mais o queijo
ralado e azeitonas por cima; noutra travessa, ainda maior do que a primeira, pedaços de
um franco de granja inteiro, comprado em pacote mas bem temperadinho, gratinado ao
forno com batatas e cebolas; ainda em uma terceira travessa, abobrinha picadinha
cozida sob o queijo derretido, uma coisa que nunca havia experimentado, uma delícia! E
ainda uma travessa com salada – tomate, alface, pepino, tudo cortadinho mais as
azeitonas por cima. Ao final da comilança, ainda me serviu um doce de pudim!
Quando visitei em Ceilândia-DF a filha de Dona Zefa, era um dia de semana,
mas era quando ela “folgava” [do trabalho]. Nenhum buraqueiro “do pessoal dela”
poderia ir comigo. O convite fora feito no domingo anterior, em almoço na casa de
Dinalva-de-Joaquina. Lúcia-Carneira recebeu-me em sua casa, que ficava a cerca de três
quarteirões da casa de Dinalva. Lúcia morava colado em João-de-Quincas, mas este
recém mudara para outra casa, mais perto de Dinalva. A vizinhança de Lúcia era
portanto bastante buraqueira, e se a sua comida diferia da que comemos nos Buracos,
seu modo de receber era o mesmo do povo de lá. Das que vieram dos Buracos para
Brasília, o povo fala, Lúcia-Carneira é que “está das melhores”. Trabalha como caixa
nas Casas Bahia, rede de lojas de utensílios domésticos em geral. Ao final do ano, leva
sempre as caixetas com panetone, espumante, bolachas e alguns quilos de mantimento
que ela ganha da empresa, ou compra. Leva tudo para a casa da mãe na Vila, e também
para o irmão Nísio, na casa da família nos Buracos. E presente para todo o seu
pessoal. Lúcia-Carneira foi “das primeiras dos Buracos” a chegar na Brasília. A outra
250
que já existia ali era uma mais velha de Toró. Dividiam apartamento mas era só no final
de semana que vinham. E foi juntando um bando. Veio Dinalva, depois as meninas de
Silu. Morou tudo junto, vieram os meninos de Silu, que depois foram morar mais as
irmãs. Dinalva-de-Joaquina morou também com eles, seu sobrinhos por parte de pai;
hoje mora com os irmãos mais novos, que vieram agora para a Brasília, os meninos de
Joaquina.
Lúcia-Carneira me contava o movimento do povo enquanto mostrava “os
albinhos” [com as fotos]. Aqui a gente mora que nem cigano, mudando... A
qualidade de parenteza “puxa”, explicitando-nos o início dos Buracos do movimento
dos Buracos para as grandes cidades: a primeira a ir foi a Bia, para Brasília depois São
Paulo, tem já uns vinte anos, a Lúcia de Zefa foi também, assim “foi puxando”. E me
listam por ordem de partida os parentes que romperam caminho para longe dos Buracos.
De todo modo, analisam os buraqueiros, Chapada é quem “vai puxando primeiro”, pois
hoje é-se obrigado a estudar o Ensino Médio, que existe ali, e depois do diploma
quem vai querer trabalhar ni mexida de roça? Assim, de estudantes na Chapada, muita
gente pula para “caçar a sorte” em cidades maiores. O movimento de mudança em
direção a Chapada e o fluxo migratório para as metrópoles é algo contínuo - pelo que
transita seja no trajeto das linhas rodoviárias, que obriga o buraqueiro a passar na vila
caso queira dali seguir para mais longe, sejam nas trajetórias migratórias narradas em
retrospectiva, quase sempre iniciadas com uma temporada de alguns anos na vila, antes
que se tome coragem para, dali, “caçar rumo no mundo”. Além disto, o movimento
contínuo entre Chapada e “o mundão lá fora” se reforça com os retornos: cada vez mais,
notam alguns, há “gente mineiro” voltando. É para Chapada e não para “as roças” que o
povo volta.
“Está bem em Brasília”, contaram-me sobre Lúcia-Carneira. Em sua casa, ela
me repetiu a avaliação sobre si. Sente saudade da família, a mãe ficando velha, mas
como é que volta? Seria para morar na Chapada. Mas emprego ali é para ganhar
menos de um salário! não dá! Já pensou em revender roupas compradas na Brasília,
que na Vila roupa é caro e na Brasília é barato. Mas não é fácil. Ó o tanto de loja que
fica abrindo e fechando na Vila!, observa Lúcia-Carneira. Seu filho perde o sono, diz
ela, toda noite antes de viajar para Minas, de tanta vontade que ele fica de ir! Por ele, a
gente ia pra lá. Mas Lúcia alega querer ficar onde está justamente por causa do filho.
Criou-o na cidade, sozinha; ele está quase se formando no primeiro ciclo do Ensino
Médio. É incutido com computador e faz curso de inglês às terças e quintas.
251
Para entrar na casa de Lúcia-Carneira na Ceilândia, devíamos passar por uma
espécie de corredor formado pelas paredes das outras casas, criando-se uma área
comum entre as casas. Parecia o que, conforme o termo que aprendi na cidade, ‘uma
vila de casas’. Muito diferente da Vila dos Gaúchos, onde as casas ainda guardam muito
“espaço de lote” entre umas e outras. Mas na Ceilândia, como Chapada ou os Buracos, o
espaço entre casas inspirava o ambiente familiar: almoçamos ali de porta aberta, tendo
deixado os sapatos do lado de da porta, como “o costume do povo da roça”. Por ali
entrou um senhor de idade, que não comeu, pois estávamos no café, mas sentou e
conversou. Pela prosa, imaginei ser parente. É como se fosse, respondeu-me Lúcia-
Carneira. Ele tem meu menino “como que um neto para ele”. Busca o menino no curso
de inglês, “o menino fica lá”, na casa do tal senhor mais sua esposa. Esta senhora eu
conheci também naquele dia de visita a Lúcia-de-Zefa. Após almoço, sobremesa e café
na casa desta, seguimos a até a casa do casal de senhores amigos, situada no mesmo
quarteirão onde se encontrava a de minha anfitriã. Ali me ofereceram café, pão de
queijo e bolachas de sal com manteiga, e enquanto comíamos mostraram-me as fotos de
sua última viagem de férias, ao Maranhão. Foram reencontrar a família; a senhora
reencontrou a irmã com quem não falava nem sabia notícia havia mais de trinta anos.
fica os nossos Buracos, os Buracos do Maranhão!, contou-me. Imaginei que fizesse uma
analogia, mas não, explicou-me ela que se tratava efetivamente do nome de seu local de
nascença. E então me mostrou nas fotos: a imagem de fato se aproximava da paisagem
dos Buracos, ou ao menos daquela região, julguei eu. A diferença é que os Buracos do
Maranhão são esses barrancos, menores do que os dos Buracos de Minas, avaliou ela.
Contou-me sua história dizendo ser uma “história de vitória”, e que tinha muito orgulho
por ter “começado comendo farinha com café”. Disse-me por fim que planejava
futuramente ir com o marido visitar o povo dos Buracos, em Minas.
O casal maranhense conhecia todo o povo dos Buracos da Ceilândia. O primeiro
a ser conhecido foi o menino de Silu, que hoje é homem, na época era rapazinho. Bateu
aqui em casa de bicicleta, contou-me a senhora. E de olhar pra ele eu fiquei
sabendo que era boa pessoa. Alugamos o quartinho atrás da garagem pra ele mais as
irmãs morarem. Moraram ali um bocado de tempo. Hoje, o pessoal tudo dos Buracos a
gente conhece e gosta. A nossa vizinha que eles todos chamam “a Tia”, o endereço
aqui de casa quando faz compra a prestação, porque a nossa é casa própria. Da primeira
vez que chegou a conta para ele, a gente não sabia quem era: Edinalva. E quem é
252
Edinalva. Depois que descobrimos, é “a Tia”. É que todos chamam “Tia”, a gente
também só conhece e só chama ela por “Tia”.
A replicação da designação “Titia”, nos Buracos” , no apelido Tia”, Ceilândia,
fez-me reparar possíveis equivalências. Solteira como Titia, Dinalva era no entanto mais
nova. Trinta e sete anos à época. Dizia que não queria casar, mas os sobrinhos
atentavam, que ela devia arranjar um marido. Dinalva é a filha mais velha de João
Branco, pai de Quincas, com Joaquina, madrasta deste. Dinalva é portanto “irmã torta”
de Quincas, Titia, Damásio e os outros irmãos deles, dentre os quais Bastião, marido de
Silu. O(a)s “menino(a)s de Silu”, que emigraram todos para Brasília, são então
sobrinhos de Dinalva “pelo lado” do Calengue, dos de João Branco. Mas seus sobrinhos
pareciam também irmãos mais novos, e tinham a mesma idade de seus irmãos mais
novos “verdadeiros”, “pelo sangue”. Curioso é que entre os sobrinhos de Dinalva e os
irmãos da mesma, a relação era “mesma que deprimo, embora fossem, “pelo sangue”,
sobrinhos também. Mas não. Como Titia, a Tia Dinalva era a única da casa a ocupar o
posto. Os meninos todos vinham, passavam todos os dias em sua casa e pediam a
bênção “à Tia”. Na Ceilândia, Dinalva é “respeitada”, é ela “quem aconselha”. Contou-
me ser “costume”, todo final de semana, os primos e sobrinhos irem para lá e fazer
aquela festa”. Nos dias de semana, disse-me, passam aqui em casa é logo cedo,
“passam o fax”. Ahahahá! E me explica que “passar o fax” é “contar como é que está o
outro”. Quando estive pousando por dez dias na casa de Dinalva, os dois mais novos de
seus irmãos, que eu conhecera quando moravam nos Buracos, haviam chegado ali,
havia dois anos, o rapaz Orlando, e seis meses, a moça Marlene. Dinalva, com Marlene,
era mais dura de que sua própria mãe Joaquina.
4.3 – A farinha fofoqueira: folia, destino e sorte
Terra da gente é depois que casa, dizem-me os buraqueiros. Como “a mulher é
que acompanha o marido” (capítulo 2), esta situação pode gerar uma tensão específica.
Já escutei, por exemplo, acusarem uma senhora - buraqueira, mas por afinidade –
dizendo sobre ela que se mostrava “trabalhadeira” apenas porque tinha medo de o
marido morrer, e ela “perder a casa nos Buracos”. Nunca tomei conhecimento de causos
em que isto tenha ocorrido, ou sequer sido sugerido, à exceção daquela vez, de modo
que o assunto, trazido ali inédito, era “uma conversa”. Durante o período em que estive
morando na casa de Dona Rosa, as brigas constantes entre ela e seu marido Quincas,
253
bem como entre ela e Lúcia, perturbavam-me sobre a autoridade do dinheiro. Eu pagava
à Rosa uma quantia mensal, mas dos constantes questionamentos de Lúcia em relação à
gestão da casa comandada por sua mãe, perguntei-lhe se afinal eu deveria pagar também
a Quincas, de quem Lúcia era mais chegada. Esta foi categórica em afirmar que, se
fosse para “ajudar nas despesas da casa”, o dinheiro era de Rosa. Da prole, espera-se
que cresça e tenha suas próprias casas, com cozinhas comandadas não mais por mães e
sim por esposas, no caso dos filhos, ou pelo próprio punho, no caso das filhas. A mãe é
a “a dona da cozinha”, a “dona da casa”. Os filhos e marido podem ajudar na gestão das
finanças, mas à condição de que também “ponham dinheiro na casa”. A dona da casa,
por sua vez, tendo ou não dinheiro, é dona da mexida dentro da casa. Ali a mãe é “quem
sabe”. Este trabalho de mães e esposas, “a mexida de cozinha”, aparece em várias
expressões do “dizer do povo” buraqueiro. “Pobre só se desespera quando a roça não foi
queimada
77
ou quando a mulher está doente”, diz o dizer. Hahahá!; “Mulher gorda é
porque o casamento vai bem”, dizem os antigos. Hahahá! Algumas moças reclamam: a
gente casa e logo o povo está falando que a gente emagreceu é porque o casamento
está mal! O povo fala muito!
Que a esposa tem no de-comer um prazer vinculado ao marido, entretanto,
parece ponto pacífico entre buraqueiros: come quem está feliz; come quem tem saúde;
assim é dentro de casa. Quem não é bom com os de casa não é bom com os de fora”,
diz o dizer. Nas idas de comida, o enjoamento do outro é sempre preocupante. A tensão,
implícita ou não, desta mexida é tematizada por exemplo quando se fala nos casamentos
futuros. O dizer dos antigos desaconselha comer na casa da futura sogra quando se está
ali pela primeira vez em visita: se o fizer, não casa. A possível futura nora – mesmo que
desacredite do dizer - o raro se envergonha de fazê-lo. Igualmente, moças e rapazes
envergonham-se quando precisam comer diante de alguém com quem querem namorar;
e os tímidos em geral revelam sua timidez recusando-se a comer “nas vistas dos outros”.
De primeiro, contam os antigos, o ponto alto da cerimônia de casamento ocorria quando
os noivos eram postos a compartilhar uma pratada de comida diante dos convidados.
Estes achavam graça em ver os outros comendo. Era uma vergonha! Hahahá!, contam
os que casaram neste antigo sistema. Ri-se por certo pela dubiedade daquela imagem.
Comer junto, afinal, é o que passam a fazer os noivos depois de casados. Misturar o
77
De acordo com o “sistema” da região, a “roça” precisa ser “queimada” antes de ser semeada. O fogo
não só ajuda a “limpar” (eliminando o mato crescido ali) como deixa um resíduo rico em matéria
orgânica, que serve de adubo para a nova plantação.
254
modo do de-comer implica afinal “a mistura de corpos”, no dizer do padre. A cerimônia
dos antigos explicitava então uma relação de intimidade própria, que para todos supõe
relações sexuais, o que nos Buracos é constante alvo de riso e piada.
Certa vez, indo ao Ribeirão de Areia com o povo do Ribeirão, o pessoal de
Jonas, esses “parentes de lá”. E a conversa era animada entre todos, que eram todos
chegados. O de-comer era o assunto que gerava as gargalhadas então provocadas. Uma
mulher come um caju manso. Eu quero é o caju brabo, diz a outra, o bom é o brabo, que
não trava a língua, Luiz me deu um bando. Hmm... Mas é gostoso! Docinho... Em
reação à expressão de prazer da senhora que descrevia o caju, um primo seu solta a
gargalhada. Fulana está comendo o caju de Luiz! Hahahá! A partir daí todos começam a
rir, enquanto vão emendando cada qual seu próprio comentário, Pegou a vara e deu o
caju! Esse mostra a vara e dá o caju! Hahahá!
Mas a graça e a vergonha causadas pelo gesto matrimonial de comer no mesmo
recipiente decerto não se restringem à conotação sexual. A comida do prato a
“pratada” é algo essencialmente individual: comer, cada um tem seu jeito, explicam-
me. Mesmo nas festas de Folia, quando a comida é servida em medidas suficientes para
que a maioria dos presentes deixe em seu prato alguma quantidade. Além disto, vale
notar que o interesse constante no modo de comer da “gente”, “do povo” em geral,
inclui o preparo da comida mas não necessariamente maneira de ingeri-la, de “botar
para dentro”. Este gesto, se comentado, provoca piada e risos porque é um gesto que
“fala do povo”, “fala dos outros”. E a imagem do comer, acima de tudo, parece aos
buraqueiros algo patética. Orotides, por exemplo, não gostou de ver aparecer o povo
comendo, no “filme das mulheres”. Mostrando as mãos de perto, como se o povo fosse
bicho, analisou. A respeito de uma visita que fiz à família de Uruvaio, “para do”
Retiro, escrevi em diário sobre esta relação entre a graça e o bestial do de-comer. No
diário daquele dia, registra-se o seguinte:
[09.12.08] Contei-lhes de Antônio-Velho e da Velha Maria, que atualmente
é o principal assunto nos Buracos: ele com problemas de coração, ela sem
comer. Logo a conversa rumou para o tema da morte. As pessoas não
deviam morrer, disse Uruvaio. E contou sobre a idéia de algumas pessoas -
ele escutou na TV - de que as almas dos mortos continuam entre nós, e que
nós não os vemos. Os mortos não sabem que estão mortos e ficam tentando
se comunicar conosco. Uruvaio não acredita nisto. Sua esposa intervém, diz
255
que a alma certamente existe, pois caso contrário a gente não caminharia,
seria o povo todo vivo como um pé de pau, explicou ela, que é vivo mas não
caminha. E continuou, A alma deve ser como o fogo; se parar de mexer o ar,
a gente morre. Talvez a alma morra junto com o corpo, mas ninguém sabe,
concluiu. Uma das meninas de Uruvaio disse que tem medo de morrer, e a
mãe disse que tem medo é de ser enterrada viva. Conta de um causo que
ouviu, em que a velha foi encontrada virada de barriga para baixo no caixão.
De primeiro, o povo esperava vinte e quatro horas para enterrar o morto,
não tinha desse problema, dava tempo de o corpo esfriar. Agora não tem
disso. Depois de um instante de silêncio, a menina de Uruvaio disse,
pensou se a gente soubesse o dia em que vai morrer... Deus faz cada coisa,
né! Faz tudo certo. Ninguém sabe se vai morrer hoje ou daqui a muitos
anos, vai vivendo. Só comendo, sem saber. Dizendo isto, a menina deu
uma risadinha, como se houvesse algo de patético no gesto de comer.
A gente daqui vai levar terra na cara... Mas Deus recompensa com alegria. Se
plantar o bem, colhe o bem. Mas o destino que “Deus dá” ninguém sabe. Por isto, come.
Mas a hora certa da morte... Quem sabe? Seja comendo, a pessoa morre quando é a
hora”, a morte só arranja desculpa. A menina de Uruvaio especulava sobre nosso
esforço vão e diário: sem saber, a gente vai vivendo, só comendo. E se riu. Como sabem
os buraqueiros, “a gente não conhece o destino de Deus”. Nosso único destino certo é a
terra e da terra vem o de-comer. Noutra ocasião, outra moça buraqueiraperguntou-me o
que eu pensava sobre o destino do corpo depois da morte. Perguntou-me o que eu
achava da cremação e lhe respondi que gostava da idéia. Ela reagiu com cara de nojo, a
língua para fora. Eca! Ser queimado igual papel higiênico! Eu quero é ir para a terra, ser
comida, comida pelos bichos! Hehê... Esses olhos que a terra de comer! Deus faz
cada coisa! Faz nascer da terra o alimento e faz da gente comida para os bichos da terra!
Tudo quem é Deus; a morte também. Da terra comemos e na terra seremos comida.
Disseram o povo de Uruvaio, o destino se disfarça no prazer diário de “botar pra comida
dentro”, um prazer engraçado pela ignorância que supõe. A mexida de cozinha é,
podemos dizer, ‘luxuosa’. Não que eles o digam. Para os buraqueiros, “luxo” é o que a
gente “possui” sem precisar; a comida não é um luxo, é ao contrário a única coisa da
qual não podemos prescindir. Mas a cozinha deve ter algum “luxo”, concordariam os
buraqueiros. Por isto espantam-se com o de-comer alheio. Gente de cidade é que come
256
mortadela crua! Com pão, que gente de cidade tem mania de pão! Eca! Ê povo nojento!
Comer mortadela fria! Mesmo que bicho!
A passagem para a vida adulta de uma mulher quando, de “moça”, torna-se
“gente” – se assume freqüentemente nos termos do aprimoramento culinário. Tutty teve
sua comida elogiada durante a visita de um candidato a vereador – “bonito e simpático”,
“prosinha doce” e foi o mesmo que ganhar o dia, contou-me. Hoje, o pai diz que seu
feijão está quase igual ao de sua mãe, o que Tutty me repete com sorriso de orgulho
declarado. A expectativa das moças buraqueiras sobre a opinião dos outros a respeito de
suas comidas é explicitada, verbalizada, e se elas ainda não possuem o “controle” da
mexida de cozinha de suas casas, brincam com a idéia de que um marido, como diz o
dizer, pode ser “preso pela boca”. Com o de-comer “o povo anima”; disto “se criam”.
Farinha é o trem mais fofoqueiro que existe”. No dizer do outro, é como missa
cantada ou galo velho na panela: tem tempo. Certa vez, Daiana Campos, irmã de
Damiana, do “meu povo de Chapada”, visitava-me nos Buracos, em suas férias, quando
apelidou o beiju que nos serviam de “beiju arrebitado”. Era o beiju feito por Lúcia-
Carneira, quando ela mais duas irmãs e suas respectivas “famílias” faziam “visita à
família” nos Buracos. O povo dos Carneiro fazia farinha na casa da roda de Nísio, e o
apelido, “beiju arrebitado”, viera devido à forma que aquele de-comer ganhara
ocasionalmente, levantando-se em suas beiradas. O nome provocou tanta graça que,
cerca de dois anos depois, ao reencontrar uma das pessoas então presentes, comentou-se
o fato e tornamos a rir. Tal apelido serviu para descontrair a conversa na casa de farinha
e posso dizer que foi uma das primeiras vezes em que me senti “em casa” junto ao povo
dos Buracos. Talvez a recíproca tenha sido verdadeira, pois dali seguiu-se uma prosa
sobre o fato de eu estar “estudando as mulheres do buraco grande”. Após um instante de
hesitação sobre o sentido erótico daquele trocadilho, vi-me autorizada a rir; assim
fizeram também os outros presentes. Esta “brincadeira” é ali corrente, descobri então.
No povo dos Buraquinhos, estão as “mulheres do buraco pequeno”. Hahahá! A
jocosidade das palavras é uma espécie de passatempo esporádico dos buraqueiros, um
divertimento despretensioso que exige ‘diplomacia’ fina, de ocasião e conveniência
próprias.
Durante o “samba da Folia, alternando-se aos refrões cantados com
instrumentos musicais (caixa, rabeca, violão e pandeiro) pelos homens e rapazes foliões,
as moças batem palma e “soltam” os versos; os que inventam na hora e os que
conhecem pelo costume do ouvido. A brincadeira entre homens e mulheres constitui o
257
“lundu”. Como no causo da prosa de visita, os chegantes oferecem assunto aos donos da
casa, em troca do que estes lhes dão o gosto em receber: comida e animação. A
animação do lundu depende basicamente da presença feminina, que não é constante. No
“giro de Folia”, os homens e rapazes foliões passam caminhando cerca de doze dias e
noites do Natal ao dia de Reis enquanto as mulheres e moças acompanham no
máximo um certo “trecho” do giro”, os das casas da vizinhança, quase sempre. Com a
tarefa de passar em todas as casas, os foliões “passam muito sofrimento”. Às vezes
passam muitas casas sem ganhar nada de comer, dão o litro da pinga. As mulheres
estão presentes no giro nos pontos em que se oferece o de-comer. Sua presença, aliás, é
mesmo uma condição para ter o de-comer aos foliões. Mas além da necessidade da
mexida de cozinha, a animação do samba nunca dura quando não chegam as mulheres
“pra bater palma”. São elas que “seguram a animação” dos foliões; se eles esmorecem,
ouvem-nas cantar: segura a caixa caixeiro, não deixa a caixa parar/a caixa custou
dinheiro, dinheiro custou ganhar. A animação de uns faz a de outros, no dizer do povo.
É sabido que os foliões não podem “namorar” durante o giro, mas é também sabido que
eles “não respeitam”: a toalha colocada ao redor do pescoço dos foliões, em geral
enfeitada com um motivo em homenagem ao santo, é, no dizer das moças, o mesmo que
ter ouro. Parece que é o rapaz botar a toalha que as meninas estão querendo namorar!
Assim, os versos de Folia têm por tema o amor como tema mais presente; nisto reside a
graça dos acontecimentos esperados por moças e rapazes em um giro de Folia. Em cima
daquela serra tem uma fita balançando, cantam elas, não é fita não é nada, é meu amor
que vai chegando; estrelinha miudinha juízo a quem não tem/dá juízo àquele ingrato
pra tornar me querer bem; o anel que trinca-trinca caiu na pedra e trincou/eu também
sou trinca-trinca nos braços do meu amor; passarinho que pinta-pinta que pintou nossa
senhora/pinta a casa do meu sogro onde meu querido mora.
“Conheci a Folia” pela primeira vez indo à “Festa de Saída”, na casa de Nicolau,
no Três Passagens - “longe e sofrido para voltar”, segundo a gente do Calengue. No dia
seguinte, fui como os outros receber os foliões na casa de Damásio, onde Rica, Dinalva
e “as muié” prepararam um café da manhã caprichado. O Calengue estava animado, o
povo todo “nas casas”. Muitos de nós havíamos emendado a festa, que atravessou a
noite, na manhã de sol ainda baixo, quando circulávamos “nas casas”. Quando os
foliões chegaram “pelos lados do Antônio Velho”, nós ouvimos o foguete e fomos
até lá. Ou seja, andamos umas três casas e passamos por todas, junto com os foliões.
Todo mundo gosta de folia no Calengue, diz Tutty, é animado porque tem muita
258
mulher, explica. Em nossa vizinhança, a cada casa que os foliões chegavam era mais
gente, ia enchendo. Em cada casa, ao invés do habitual ‘fluxo’ de café, servia-se a
pinga. A mistura de cansaço e animação a que nos submetíamos mostrava-se, para mim,
“o mesmo que” ‘o carnaval de rua’ carioca. Contudo, era para estar “nas casas” e não na
“rua” que a Folia buraqueira me guiava. Os foliões de Jilvaldo chegaram montados e,
antes de entrar, “rezaram a cruz” diante da casa, onde estava enterrado o corpo da
primeira filha de Rica, que morrera ainda bebê. Em seguida entraram na sala da casa,
rezaram, tocaram. Até que Rica pediu a Dasim que avisasse aos foliões: a comida já
estava pronta. Os foliões passaram então pela cozinha e se encaminharam então ao
terreiro de Rica, onde, ao redor de uma grande mesa, rezaram “a Arvorada”, reza em
agradecimento ao de-comer oferecido por quem “recebe os foliões”. Pelo giro do terno
de Jilvaldo, observei as diferenças entre os “modos de receber” nas casas do Calengue.
Naquele dia, escrevi em diário de campo:
[30.12.06] Quando a Folia entra na sua casa, talvez você não goste
daqueles foliões, talvez não esteja em um momento bom para receber ninguém,
mas é a vista dos Santos Reis (ou “Santo Reis”, como eles falam, transformando
os três viajantes em um única santo). “Se não gosta de visita, que deixe a porta
fechada”, reza a etiqueta local. (...) Com os Reis, não é diferente: o dono da casa
ouve os foliões “cantarem os Reis” e ali se faz presente a visita; os foliões
“cantam a saudação” ao dono da casa, em seguida este se ajoelha diante da
bandeira, que depois de empunhada - rodando três vezes pelo cômodo é
estendida no centro da roda de músicos. Ali o dono da casa se ajoelha, faz o sinal
da cruz e beija três vezes a bandeira. Depois do dono vem a dona da casa, e depois
são chamados os filhos solteiros. Quando estão presentes filhos casados cujas
casas não ficam na zona do giro, os foliões “cantam a saudação” também para o
jovem casal. Desse momento em diante, a bandeira é entregue ao anfitrião que a
coloca em um dos cômodos da casa, fora do acesso aos demais. A partir dali, os
foliões fazem “o samba”, “a brincadeira”, e o tempo de duração desta folia
dependerá, como no caso de qualquer visita, do sentir-se bem na casa. A animação
que se instala (ou não) - no bater as palmas, na cantoria das mulheres, na caixa,
violões, violas e pandeiros é a própria visita dos Reis Magos, me parece. O
santo não gosta de briga, o santo gosta é de alegria, me explicou Jilvaldo (também
chamado Beiju) sobre o bom andamento da folia. (...) Para receber os Reis, dar a
259
cachaça é quase obrigatório; raro alguém que não dê, assim como ninguém “passa
sem café” nas casas. O “alferes” é o folião responsável por carregar e distribuir a
pinga; ele é quem recebe dos donos da casa a cachaça que é despejada em um dos
“litros” que os foliões carregam com eles (a unidade “litro” é a de uma garrafa
PET de dois litros). Para além da cachaça, “o dono da casa oferece o que pode ou
quer, o que der é lucro”. Foi o que me disse Jilvaldo. Mas embora ele me tenha
dito que viajam “sem saber se vão comer”, vi, pelas conversas que circulam nas
semanas anteriores à Folia, que existe uma combinação mais ou menos prévia
sobre “quem vai dar o de-comer aos foliões”. O tempo de duração dos foliões em
uma única casa varia, como nas visitas, em função da mexida da cozinha: se dali
saírem os barulhos sinalizando que se está preparando um de-comer, a
“barulhada” dos foliões deve ser mantida. Tem folia em que os foliões são
“fracos”, me disseram, pois param de tocar e ficam bestando. Mas folia boa tem
sempre ao menos algum folião pra animar. (...) Saúde e fartura é o que todos
precisam. É isso o que o folião de guia deseja à família moradora da casa que o
recebe, numa pequena prece rezada no momento em que o anfitrião lhe uma
nota de dinheiro. O dinheiro recebido é amarrado aos fios de pano da bandeira. O
dinheiro será usado para a própria Folia, isto é, será “dado ao santo”. O valor é do
gosto do freguês.
Apesar do calendário repleto de festas (cf. capítulo 6), muitas associadas aos
“dias santos”, o povo buraqueiro não dá importância às festas de Natal conforme
concebemos aqui. Assim como o Ano Novo e as datas de aniversário nas quais o bolo
de aniversário apareceu apenas em minha última temporada de campo – o Natal é
apenas a data do nascimento de Cristo em que alguns mais animados aproveitam para
soltar foguetes (rojões), e os foliões que compõem um terno fazem a reza. Muitas vezes,
a Festa de Saída do giro de Folia ocorre no dia de Natal, na madrugada do dia 25 de
dezembro. Embora ao longo dos três anos de pesquisa de campo eu tenha sentido uma
“diferença” (aquelas comemorações passavam a “imitar” pontualmente os modos da
cidade), não dúvidas de que a agenda das festividades do Fim de Ano seja pautada
pela Folia. No dia de fevereiro, “Dia de Reis”, o giro se encerra com a “Entrega da
Bandeira”, na casa do “Dono da Festa”, que recebe os foliões e demais para a “Festa de
Chegada”. A Entrega da Bandeira é um momento solene algo à semelhança de nossa
‘Virada de Ano’, embora grave, ao contrário desta. Na Entrega, a maioria dos presentes
260
chora. A gente pensa nas pessoas que estavam aqui no outro ano e agora não estão
mais..., dizem-me. Não é um momento festivo, ao contrário das outras ocasiões da
Festa. Nesta, é para “animar”, “dar alegria ao povo”, que se volta todo o esforço de
preparo da comida, decoração do altar, recepção aos chegantes e manutenção da música
e dança. Em uma Festa boa” “os músicos-foliões nunca param”, ou ao menos “só
param para comer”. Para isto, revezam-se nas funções, havendo no termo sempre maior
número do que o necessário para “fazer o lundu”, “tocar o samba”. Tudo isto,
entretanto, está inevitavelmente ligado às palmas e versos que as moças “soltam”.
Os versos de Folia podem guardar recados mais ou menos subliminares ao rapaz
que se quer bem. Na folha da bananeira pinga ouro, pinga prata/na família de [nome do
pai do rapaz] tem um rapaz que me mata; o alfabeto pegou fogo e eu corri para
apagar/apaguei a letra [primeira letra do nome do rapaz] e o resto deixei queimar...
“Soltar verso” é um modo de dizer sem dizer, pois, como se sabe, “é tudo brincadeira”.
Canta-se é mod’enterter. Quase sempre, o coro acaba por ser composto com uma
maioria de moças solteiras. Na brincadeira, envoltas na música que cantam, servindo-se
comedidamente da contínua oferta de cachaça, “soltam” recados em forma de verso. Se
eu soubesse de certeza que meu bem viesse hoje/eu matava uma galinha e dav’ ele com
arroz; a folha da bananeira de tão verde amarelou/a boquinha do meu bem de tão doce
açucarou; eu subi na mandioqueira pra comer beiju de massa/eu sou fina no ciúme e
danada na pirraça; eu subi no da lima, chupei lima sem querer, abracei o gai [galho]
da lima pensando que era você...
A comida, zona sombria da prosa, não apenas “puxa” a conversa, rumando-a
para um ou outro destino (capítulo 1), também se mistura aos acontecimentos do corpo,
‘faz falar’ coisas que a palavra não diz.. O amor é um desses acontecimentos; tem por
efeito algo análogo ao prazer propiciado pelo do fruto que se come. Assim, a conexão
entre comida e casamento é eloqüente; fala o que não se “declara”. Eu e mais duas
mulheres buraqueiras jantávamos na casa da Vila de uma delas e falávamos a respeito
de um povo buraqueiro com quem a filha de uma delas hoje é amigada mas “mesmo
que” casada. Com quem mora “o povo do genro”. Ríamos e falávamos sobre comida.
O de-comer deles é duas pratadas desse tamanho!, e elas traçavam com as mãos a
silhueta de um pequeno morro. O genro engordara muito no último ano, enquanto sua
esposa, filha de quem contava o causo, tornava-se cada vez mais magra. Daqui a pouco,
some! Hahahá! O assunto surgira porque o casal em questão só tinha uma filha e esta,
com mais de cinco anos, ainda não ganhara irmãozinhos. Gordo com magra não dá certo
261
pra fazer filho, não!, riram elas. Caçando deduções a respeito da reprodução (pois que
me interessava o ‘parentesco’), quis logo extrair dali uma regra. E é mesmo? Mulher
magra com homem gordo não gera criança, não?, perguntei. É o que!, disseram elas,
como que dizendo, Bestagem! O comentário e a risada falavam afinal sobre outra coisa.
A menina hoje com cinco anos fora gerada pelo casal ainda em fase de namoro, o que
levou o pai a fugir da mãe durante algum tempo até que, enfim, resolvesse amigar e
criar a filha dentro de casa. O que elas comentavam era a falta de sorte de o nascimento
ter ocorrido àquela época e não agora, pra passar vergonha!, disseram. Mas minha
pergunta não era de todo ingênua: eu sabia que a falta de apetite da moça havia sido
diagnosticada como depressão causada, na boca de alguns, pela falta de sexo. Daí a falta
de filhos. Mulher magra é casamento ruim, diz o povo. Ao mesmo tempo, a gordura do
homem resultava em “feiúra”, quiçá incapacidade de despertar o desejo da mulher. A
“depressão”, então diagnosticada na “magreza” desta, podia ser sintoma de “juízo
fraco”, “doenças que médico não descobre” (capítulos 2 e 5). No causo da menina
magra, a diferença nos modos de comer articulava-se a uma suposta incapacidade de
gerar de filhos. Estaria ali um problema inverso mas similar à acusação que vimos Rosa
dirigir ao marido (“ele não come da minha comida”): a “descombinação” do casal.
Não se pragueja a “sorte”, a sorte é “o destino de Deus”. Casamento é sorte;
nascimento e morte, é sorte. “Tudo é a sorte da pessoa”, repetem-me os buraqueiros.
Deus faz cada coisa! Faz coisa que a gente nem entende... Deste modo, quando se nota
na sorte de alguém um rumo não usual, particularmente sofrido, a questão em aberto
desdobra-se em novas elaborações. As palavras são dadas a certas inconformidades. Isto
foi o que elaborou Lúcia-de-Quincas, quando gravei com ela uma entrevista pedindo
que me contasse ‘sua história’.
Lúcia iniciou a conversa comentando sobre seu “destino”. No registro em áudio,
escutam-se os instantes antes que iniciássemos ‘formalmente’ a entrevista. Sentamo-nos
comentado a respeito de algum assunto do dia, Lúcia ralha com as crianças e torna ao
nosso assunto. Falamos de Dona Rosa, que havia entendido algo sobre a revista, mas
era nossa entrevista, esta que eu anunciara querer fazer com Lúcia. Eu me encontrava
no quarto e último ano do doutorado e, embora declarasse encerrado o período de
‘campo’, tornei a voltar a Chapada e Buracos por quinze dias, para comparecer ao
Encontro dos Povos do Grande Sertão, no qual eu daria continuidade a atividades
iniciadas na última temporada de campo (cf. capítulo 6). Assim, voltei em meio ao
processo de ‘escrita da tese’ e aproveitei para uma última tentativa de entrevistas, já que
262
a maioria das anteriores haviam sido um fiasco. Combinei então de ir à casa de Lúcia
para isto. Na ocasião, ela estava de novo amigada com ex-marido Raimundo de Juca.
Sua nova cozinha, recém-rebocada e o fogão construído “do jeito dela”, estava ficando
bonita, reparei eu, notando também sua horta: caprichada, no dizer dos outros. Imaginei
ali que Lúcia decidira enfim seu “rumo”: “se acertar” com Raimundo, nos Buracos.
Contudo, conforme ela então me explicou, seu “sentido” era o do dizer buraqueiro:
“enquanto há vida, há sorte”.
Iniciei a entrevista pedindo que me falasse sobre sua história. Digo-lhe, Como se
você não me conhecesse... Onde mora hoje, seu marido, seus pais... Lúcia então faz um
instante de silêncio e me diz, Quando vo falou, eu entendi assim, No começo, quando
morou em tal lugar, o motivo que eu fui por isso...
(...)
Vinte e dois de janeiro agora fez seis anos que eu estou morando aqui com Raimundo.
Mas parece que foi quinze anos (risos). Tem um lado bom e um lado ruim. O lado bom é que eu
sempre gostei muito da roça; o lado ruim é porque eu fui uma pessoa que sempre quis o que
quis, o que tinha vontade. E hoje a vida de casada é diferente, você às vezes quer fazer uma
coisa e o marido fala que não, que tem que ser do jeito dele. E eu não quero concordar. Briga.
Mas, se pára para pensar, tem um lado bom (...): perto da família, né. Porque a minha família
está toda aqui... Mas tem um dizer aqui que diz, “enquanto há vida, há sorte”. (...)
Porque às vezes a sorte é só coisa boa, né. Só que a sorte, ela tem os dois lados, tem o
lado bom e o lado ruim. De repente uma pessoa ganhou um monte de dinheiro, perde, em
vez de falar, Fulano deu azar, diz, Fulano tem a sorte ruim, perdeu tudo! Ou às vezes a pessoa
adoece... Aqui na roça é assim. Aqui o povo diz, Ah porque Fulana vive com Fulano, Fulano é
ruim para ela e tal. É a sorte dela, ou então é a sorte dele. Mas eu, do meu ponto de vista, não
imagino que no casamento seja a sorte, não. Por exemplo, num serviço, se você deixa o
currículo e eles acabam te chamando, aí é a sorte. Mas casamento, não. Casamento é uma
escolha que você pode fazer. Então acho que não é sorte, não. E dependendo da escolha que
você faz, por mais que não era a coisa ali que você queria... Por exemplo, se for parar pra
pensar, não é essa vida que eu queria pra mim. Estar morando aqui, deixar de fazer muitas
coisas, tipo festa, passeio, viajar. E deixar de fazer por conta de marido. que isso pra mim
não é a sorte. Se eu estou escolhendo, mesmo não estando gostando, não é a sorte, é escolha.
Qual será a sorte de cada um? Lúcia partiu para a cidade, caminhou por São
Paulo e Brasília; trabalhou, estudou. Por que foi encontrar o destino nos Buracos? Esta
pergunta foi feita em uma conversa, na casa de Dinalva na Ceilândia, entre mim e os
263
irmãos mais novos desta, Orlando e Marlene. Eles disseram, É difícil pensar esse
destino, mas “existem”. Não só Lúcia, também a filha de Francisca-Carneira, agora com
o menino de Nicola, com três filhos nos Buracos. E tem Deyse, de Nésia, casada com
outro de Nicolau. Por que “depois de tudo” elas voltaram?, perguntavam-se Orlando e
Marlene. Vai da sorte de cada um, né..., concluíram.
Lúcia como outras - saíra “caçando a sorte”, “caçando rumo”, “caçando
melhora”. Depois “casou nos Buracos”. Um homem que “só pensa ni gado”; nem à
festa não gosta de ir, fica enraivado porque é “ciumento da raça”. Seu marido,
Raimundo-de-Juca, puxou ao pai, Juca, do falecido Velho Sinésio. Um, como o outro,
até hoje ciúma da mulher: Ana-de-Juca quando quer subir para a vila mod’ver os filhos
tem que inventar uma doença e dizer pro marido que vai no Posto. Diz-que, quando
moço, Juca fiscalizava o chão do terreiro quando voltava de uma mexida qualquer - era
mod’ver se encontrava rastro: a mulher era só de dentro da casa! Já o Velho-Sinésio, pai
de Juca – curioso - era o contrário do filho Juca, a mulher dele é que regia. E dos irmãos
do Velho-Sinésio era tudo assim: deixavam as mulheres botar sela de riba. O povo de
Juca é que demudou: os irmãos de Raimundo, tudo é mesmo que ele, tudo assim,
pregado no ciúme. Joaquim-de-Juca é mesmo isso! Briga! Raimundo arranjar uma
mulher como Lúcia-de-Quincas... certo nada, descombina, descontrola. Se tivesse
vergonha não brigava... Lúcia não é de casar, opinou certa vez um parente seu, Tem
gente que é assim, disse ele, Lúcia é para ficar um pouco com um e um pouco com
outro, uma hora aqui outra ali; se casa, briga dentro da família, é esquisito, é ruim. Ela
tinha era que deixar os filhos com os avós e ir para a Brasília. Como que de brincadeira,
a própria Lúcia me disse, Eu devia ter casado com cigano, que vive viajando... Do
ciúme de Raimundo, o povo brinca, A lei hoje é essa, riem, a mulher dois beijos ni
amigo homem, e caminha para onde quer, é a lei de hoje, lei botada, não é lei criada!
Hahahá! A curiosidade e o riso sobre as questões do amor são, nos Buracos, tão
insistentes quando ‘reflexivas’, falam “do destino do povo”. Não só pelos rastros do que
passou, também pelo que indicam sobre um possível rumo futuro, um movimento
determinado. Sabe Deus onde vai dar... Quem sabe é Deus... O destino é de Dues,
ninguém sabe... Assim, a despeito do tom prosaico e até “fofoqueiro”, ou “prosa ruim”,
que podem assumir, as “conversas” sobre namoros e casamentos chamam atenção pela
dúvida implicada: sempre em aberto, sempre na espreita de uma surpresa. Como diz o
dizer, o amor é sem juízo.
264
Em algum momento de minha estadia, dei-me conta de que os buraqueiros
haviam notado: “a carioca gostou dos Buracos”. Repetiam vez e outra essa frase. Não só
propriamente os ‘buraqueiros’, também o povo em geral de Chapada. Na roça, o fato
associado a ter eu me tornado “mais forte”. O fato de que eu comia tudo o que me
ofereciam não passava sem comentários nas situações em que era apresentada a alguém
pelo “povo da roça”, ou quando me reencontravam depois de um tempo de distância.
Uma pessoa boa de prosa está aí! Tudo o que a gente dá ela come e ainda acha bom! Eu
havia engordado durante minhas estadias de trabalho de campo, e isto parecia ser o que
mais influenciava as senhoras buraqueiras ao avaliarem meu prazer em estar ali. A
descrição dessas senhoras pareceu-me a mais precisa a respeito deste meu notório
“gosto” por estar ali. Quando minha mãe esteve em Chapada por ocasião do casamento
de minha “irmã” Camila Medeiros (cf. capítulo 3), fez a visita de um dia ao povo dos
Buracos, e teve então outra imagem desta descrição: todos ali lhe diziam que sua filha ia
casar “aqui em Minas”, assustou-se minha mãe.
“Terra da gente é depois que casa”, diziam-me os amigos buraqueiros. A julgar
pelo exemplo dos gaúchos que estão na Chapada: sua terra não é a do seu povo, mas
“são de Chapada” porque aqui casaram, “formaram família”. “O casamento é sorte”, diz
o povo. “Na saúde e na doença”, diz o padre que, em companhia do pai da moça,
entrega-a como noiva ao outro, o futuro marido. A cerimônia é para “abençoar a sorte”,
explica-se ali sobre o matrimônio “no padre”. Assim que cheguei aos Buracos, minha
condição de solteira - associada à idade que consideraram “já avançada” - foi logo
expressa diante de mim como fato curioso. Ao sermos apresentados, o(a)s
buraqueiro(a)s perguntavam-me, em geral imediatamente, Quantos anos você tem? E
então seguiam o interrogatório que virou praxe: como é que você veio parar sozinha
nesse mundão longe?, espantavam-se. Sofrendo aqui! Sofrendo nesse mundão longe!
Você tem família? Ainda não casou? Não quer casar? Eu, por meu lado, espantava-me
com a idéia que eles mesmos faziam de si, a de ser um povo “longe”, a de que eu
“sofria” por estar ali “sozinha”. Tempos depois, quando retornei ali pela terceira vez, já
não me apresentavam a auto-imagem do ‘isolamento’ (“longe”), e suas questões sobre
meu “destino” já não eram as mesmas. Foram substituídas por uma única outra, que
surgia como um bordão cômico, dito em geral logo que me encontravam, ao me
cumprimentarem, Então, arrumou casamento nos Buracos...? E então se riam, ou
sorriam. A uma forasteira que parecia não querer mais deixar os Buracos, cabia que as
perguntas assumissem uma ‘sugestão’. Qual seria a sorte da “carioca”?, especulavam.
265
Permanecendo ali por cada vez mais tempo, mantendo-me no “rumo” indicado por
minha aproximação com o “povo”, era imaginado que eu arranjasse um casamento
buraqueiro. A “sorte” de se apaixonar na roça não se separa afinal de um determinado
“gosto” pela roça. Mas minha situação diante do povo dos Buracos mostrava-se
instigante também por outro motivo. Não casar apontava quem sabe para uma “escolha”
deliberada. Com o passar do meu tempo de estadia nos Buracos, a idéia de poder ir e vir
“sem a prosa do marido” mostrava-se, nas conversas entre moças, algo tentadora. Casar
é bestagem, né!, disse-me uma jovem casada, para o marido enciumar! para
passar raiva! Bom é poder andar para onde a gente quer! E poder namorar quem a gente
quiser! Com essas formulações, as moças buraqueiras pareciam reconhecer em mim
certo “rumo”: o do “diploma”, em oposição ao “casamento”. Casamento hoje é “mau
negócio”, disseram-me algumas senhoras buraqueiras, em ocasiões diversas. Não está
valendo mais nada!, dizem elas, A pessoa casa no almoço e já está separando na janta!
Os senhores homens têm queixas semelhantes. O que é condenável para Quincas
é a “granfinagem” das moças de hoje, que querem “moda” e “salário”. O trabalho na
roça é digno, dizia Quincas ao amigo Bandeira: é comida (cf. capítulo 1). Falavam a
respeito de uma prima e cunhada sua, Nésia-de-Nico, irmã de Rica-de-Dasim. Nésia
decidira sair de casa, nos Buracos, depois de sofrer a vida toda na mão de Nico, mod’a
cachaça. Nésia contava e os outros também diziam saber deste passado, deste
acontecido. Havia cerca de três anos, Nésia construíra “um barraquinho” na Vila com
parte do dinheiro da venda da “casa da família na Vila”, dinheiro da herança de sua mãe
que então falecera. Mudou-se assim para Chapada, “já depois de velha”, conseguindo
emprego na Prefeitura, e separando-se definitivamente do irmão de Quincas. A ocasião
da conversa entre este e seu amigo do Três Passagens ocorrera poucos dias depois de
mais um entre os constantes causos de “bebedeira”, “cachaça ruim” de Nico. Desta vez,
entretanto, ele não era o alvo da crítica, “a parte errada”. Nésia e a filha mais nova
haviam chegado nos Buracos e nem sequer encostaram ni Nico, foram direto para a casa
do filho de Nésia e Nico, Ito, vizinho do pai nos Buracos. Depois seguiram viagem até
Damásio e Rica, a irmã de Nésia, e por passaram todo o final de semana.
Argumentara-se que, estando o Nico “são” [não-bêbado], Nésia poderia “ir na casa”.
Nésia é errada também, disse alguém. Com Nico são, ela bem podia ir lá; fazia o
almoço... Ficou na casa de Ito. Nem ni Cipriano [vizinho e irmão de Nico], ela não foi.
Ni Rosa, passou correndo. Nico disse que ia matar um frango pra comer mais Néia [a
filha]. Ela não foi. Ele ficou com raiva e matou pra comer sozinho.
266
Quincas – O Nico disse que ia falar para o [prefeito] Mundinho tirar o emprego de
Nésia e ela voltar pra morar mais ele nos Buracos, pra ela voltar pra casa dela.
Volta o quê! Ela saiu sofrida pra lá! Sem serviço, moço! Sem lugar de ficar!
Agora arranjou serviço, já comprou barraquinho. O que ela quer mais com Nico?
ele só bêbado. Se perder o emprego, se Mundinho tira ela... Que pode acontecer?
Todo mundo está trabalhando na Vila! Essa menina de Rica, ficou lá quanto
tempo estudando? Agora, parou de estudar, não vem pra casa [nos Buracos] mais
não. Trabalhando. Ganha o que? Cento e quarenta reais! A mãe sozinha mais o pai
aqui. Agora a mãe doente precisando dela... Uma vergonha, os pais precisando
dela e ela trabalhando por 140 contos. Se fosse ao menos um salário [inteiro]! Eu
falei, Ó, eu era pobre, mas trabalhava pra mim. Uma vez (...) cheguei aqui a Bia
filha minha trabalhando [na Chapada] pros Sbruzi, por sete reais por dia. A Bia
andando na rua, de short apertado, eu calei a boca. Quando inteirou o mês, falei
... Fomos pra fora... Ela voltou a trabalhar quando Tana [outra filha] casou.
a Bia falou, Tem jeito não. No causo dizia que tinha que estudar. Mas estudou o
que? Chega lá, trabalhando... Mas não bagunçou a vida não! Ta ganhando
seu dinheiro... Porque essas meninas bagunçando a vida na vila [Chapada]. O
povo fala o acontecido! Porque não é só filha minha, não! Porque na Brasília é um
salário [inteiro], a que ganha menos...
Zé Bandeira - Mas hoje todo mundo quer ter salário...
Quincas - E o pior é a granfinagem da cidade! As moças da roça querem a moda
da cidade! Tudo nascido e criado aqui, nunca faltou comida, moço!
Prosa ruim de Tio Quincas, diria Tutty por certo, caso o ouvisse. Sorte boa é a de
conseguir um casamento que não viva, como no “sistema antigo”, em função apenas da
comida. Quero a comida mas também quero ser comida!, riu, certa vez, uma jovem
solteira de Chapada Gaúcha ao discorrer sobre o tema. Sobre “ser comida”, ela dizia,
não apenas devia-se pensar o ato sexual mas também todo o leque de “luxos” e “modas”
– perfumes, cremes, calcinhas e camisolas, de que “uma mulher gosta”. Noutra situação,
Lúcia encaminhou seu argumento de forma similar. Defendia-se das acusações do
marido, que reclamava o fato de ela “só viver caminhando”, “subindo a ladeira”. Lúcia
enraivava. Antes a mulher casada pelo menos ganhava o dinheiro do marido pra fazer o
que precisasse, agora eu, além de cozinhar, cuidar da casa, é que pago tudo!,
267
argumentava Lúcia pro povo todo, todos querendo saber se agora eles iam separar outra
vez. Lúcia “gosta” da moda de cidade e “gosta” de festa. Raimundo é “da raça dos
ciumentos” As senhoras mais velhas retrucam as moças que dizem não querer casar,
Toda panela tem sua tampa! está guardada a sua tampa! Deus é quem sabe! Quando
diz que não quer casar, é porque ainda não encontrou a tampa para a sua panela. Tal
explicação é refutada pelas moças, como no caso de uma que me explicou, rindo de si,
É que a minha panela é uma frigideira, e não existe tampa para frigideira!
“Casamento é sorte”, dizem os buraqueiros, mas Lúcia não o seu como um
causo “sorte”. Por seu argumento, “sorte” seria no causo de dizer que seu “destino” não
dependia de sua “escolha” era recusar-se a predizer um rumo próprio, “dado” como
sofrido; uma “sorte ruim”. Mas se o “povo diz” que casamento é sorte, a oposição
elaborada por Lúcia entre a “escolha” e a “sorte” dava uma alternativa à sorte do
casamento: a escolha. Certa vez, perguntei a Tutty se ela acreditava em “destino”, no
que ela me respondeu imediatamente, Destino para o amor existe, como dizem os
antigos, é a sorte. Para explicar o que dizia, lembrou-me o causo de uma prima sua, que
tinha um namorado com que escolhera casar, mas, por implicância e insistente oposição
do irmão mais velho, “não deu certo”, acabaram “descombinando”. O ex-namorado por
fim casou-se com outra e, depois disto, “virou o capeta”: bate na esposa e tudo! É a
sorte, concluiu Tutty. Nossa conversa rumou então para o causo de uma outra prima,
irmã da primeira, cujo namorado era um rapaz que terminara a relação para escolher
outra, que “só atentava dele”. Outros me haviam contado que o tal rapaz decerto
sofrera “feitiço” da menina escolhida; e a prova disto seria sua “escolha” injustificada
de estar com alguém que o fazia sofrer, o que se reforçava pelo fato de que a avó da
moça atentada era alguém de quem diziam “saber reza”. E o pior é que, das irmãs
daquela prima, largada pelo rapaz que diz-que “levou feitiço”, tem duas que é “meio da
sorte complicada”, puxaram a mãe, cabeça fraca... Pensando nesta conversa com Tutty,
contra-argumentei o que Lúcia me dissera sobre a idéia de sorte como oposta à sua
escolha deliberada. Mas o fato de você gostar dele não é escolha... Ou é?, eu disse. Lúcia
respondeu-me: Eu posso dizer que eu, na minha vida, nunca me apaixonei por ninguém. Eu
gosto muito, mas é um gostar independente. Se eu falar, Eu prefiro esse [outro] lado da minha
vida, eu acho que eu consigo. Não é aquele tipo de pessoa que tem paixão, um amor que você
deixa tudo pro lado pra viver. Isso não. Gosto muito da companhia dele, ele tem muitos valores
que são bons, né. E às vezes, não sei, porque ele nem dá conta de alguma coisa que ele faz que
eu não gosto.
268
4.4 - Caçando rumo: diploma, TV e Brasília
Enquanto vida, sorte, refletira Lúcia, opondo-se à idéia de que sua sorte
estava em seu casamento. Falar sobre “a sorte” é às vezes perigoso: se ela é o destino de
Deus, que se pode dizer quando o destino não parece “dar certo”? Bem no meio da
tormenta, entre o mel e a pimenta, não sei o que é pior pra mim, descreve uma canção
de amor tocada nos rádio e DVDs buraqueiros. não mando em mim, diz a música
para seguir com o refrão, É surreal, é improvável, é impossível te amar assim. As
evidências do que nos Buracos se pode chamar uma “sorte enguiçada” o associadas a
situações em que uma pessoa “não se para quieta”, “fica caçando o destino”.
Algumas relações de amor apresentam ali este quadro, mas misturar a idéia de “sorte
enguiçada” ao “amor” é o que é mais perigoso. Se casamento é sorte, encontrar ali uma
sorte enguiçada é como “mexer com a sorte”: as palavras não podem ser ditas de
qualquer maneira. É como falar dos mortos (capítulo 2): se o pensamento verbalizado
arrisca “puxar os defuntos”, é porque também pode ser ele um pressentimento. Não se
deve “rogar”, repetem os buraqueiros. Fulano é uma bênção!, como querendo dizer que
Fulano é uma peste (capítulo 2). Ou contar um “causo” cujo ‘mapeamento analítico’
(capítulo 1) sugere ao ouvinte a “opinião” que não se quer por bom tom declarar
(capítulo 3). O curioso é que os temas mais instigantes à prosa buraqueira aqueles que
“rendem conversa” - são justamente os que demandam certos cuidados e conveniências
no dizer. Refiro-me especialmente ao amor e à doença, “conversas” que “falam”
deixando por dizer. Nesses assuntos, o vocabulário é como o culinário, diz uma coisa
para fazer o outro pensar outra. Como “o caju do Luiz”, entre o povo do Ribeirão, que o
interlocutor faça seu “cálculo” particular (capítulo 1). “Assunta bem”, o narrador pede
ao contar um causo. É o mesmo que dizer, Procure saber...
O que “vai da sorte” é, como o que identificamos anteriormente nos termos da
‘duração da pessoa’
78
, o nascimento, o amor, a doença e a morte. ‘Acontecimentos do
corpo’, em suma. Parece que é a sorte!, concluíra Quincas sobre o causo que me contara
(capítulo 2). Ali, a mistura de sangue “misturado” havia gerado doença e morte.
Noutro causo, a discórdia a respeito de uma cerca entre vizinhos fora exposta enquanto,
na cozinha, era preparado o “café”, puxador de ‘sociabilidade’, falou-se em “ver
78
Cf. Pissolato (2007).
269
sangue”, resultado de guerra’. A mistura repugnante sangue e café era lembrada
pelo contador do causo para explicitar o dito que não deveria ter sido dito. Indicava
interferência naquilo que é de bom tom entender sob domínio de Deus: o destino da
morte (capítulo 3). O incesto e o conflito, ou o amor e a morte, davam à noção de
“sorte” ou “destino” o horizonte a partir do qual se entrevia um certo equívoco
humano sobre o que se espera ser “dado por Deus”. Cada pessoa tem um “destino”, foi
o que Deus deu: “a hora” de a pessoa nascer, morrer. Deus faz cada coisa! É da natureza
da pessoa ter um destino, dizem-me. Por outro lado, dizem também, “mexer com o
destino” é coisa complicada... E sobre os doentes que “não ajudam a sorte”, não vão
atrás de médico, não rezam, dizem que Deus ajuda mas também não é assim! Tem que
ir atrás, caminhar com as próprias pernas! Deus ajuda quem trabalha!
Em analogia às mães, pensei eu, Deus cria seus filhos “é para o mundo”. “Maria
é mãe de Deus”; “Deus é nosso pai”. Desta união não matrimonial entre “mãe” e “pai”,
que é também uma união entre “mãe” e “filho”, surge a idéia de “amor” que o padre
reza nas missas. Não se deve rogar, dizem os buraqueiros para dizer, de outro modo,
que não se deve é praguejar. Rogai por Nós, pede-se a Maria, “nossa mãe”. As rezas que
são pedidos de rezas, que se rogue o bem para “o nosso mundo”, feito” por Deus. Que
podemos “fazer” diante da transcendência Divina? Como “mexer” com o que Ele
“conhece”? Como respeitar a ignorância, “só comendo”? A comida de todo dia,
necessária à manutenção do corpo “forte” garante a saúde “dada” por “Deus”,
mostrando o esforço diário que este espera da gente” tal qual os pais esperam de um
filho. Dar o de-comer é receber a bênção Divina (capítulo 3). Por outro lado, a mexida
de cozinha, ao explicitar esta abençoada atuação sobre o corpo humano, guarda em seu
próprio gesto uma “mexida” sobre o que por definição é animado por Deus: o corpo
com sua alma, tal qual fogo e ar, no dizer da esposa de Uruvaio.
Titia está com uma morrência..., comenta Rosa ao voltar da casa da cunhada.
Havia ido caçar um olho de buriti no terreno da outra, e foi quando soube do causo.
Titia pensa que é porque tomou leite com açúcar, diz-me Rosa. Não é nada. Não é o
açúcar não, é o leite. E então me explica, Qualquer leite, a gente vê nos bezerros,
mamam e dali a um tempo está tudo deitado. O mesmo é a pessoa, conclui Dona Rosa.
O fazer feminino da mexida de cozinha implica constantes observações deste gênero -
como é a pessoa e como são sobre esta os efeitos do que a gente come. Além de tudo, a
própria mexida na cozinha é uma prática de gestão do tempo, vimos (capítulo 2). Os
“remédios do mato” dão também exemplo desta mexida de “criação”, sobretudo quando
270
associados aos “benzimentos”, ou “rezas”, que a maioria das senhoras “conhece”, “sabe
fazer”. Além deles, existem ainda “as simpatias”, “bestagem” que “os outros fazem”.
Banha de galinha, frita depois põe no vidrinho, para o cabelo. Enterra os cabelos
cortados na beira do rio, para refrescar o juízo. Titia fez. Bestagem? Menino de
Guilherme foi quem falou! Ele tem o juízo bom!
Certa vez, Maria e João Caiana tinham vindo para a “missa do padre”, mas por
algum engano de comunicação, vieram no dia errado. Como a missa ocorre na
escolinha, em frente a Quincas, os Caiana aproveitaram e se demoraram na cozinha de
Rosa, proseando mais o casal dono da casa e os meninos que por ali estavam. Rosa lhes
conta, Fui “bater no” curador [viajou até “parar lá”]. Estava numa preocupação com o
Nêgo mod’a cachaça e Quincas mod’a doença. Com a fé em Deus e Nossa Senhora!
João Caiana - Mas simpatia não resolve não...
Rosa - Mas isso não é simpatia não. Eu não tenho é coragem de ficar junto com
ele bebendo. Me assim um nervoso. Se não eu fazia simpatia: pega o copo, enterra e
bate três vezes e diz, Estou enterrando a cachaça de fulano. Mas não é isso, é curador
mod’a “natureza da doença”. Nêgo pequeno, quando trabalhava na carvoaria... Eu falei
pra Quincas, Pega go e um coro! Quincas levantou e gritou, Cachaça foi e é pra
homem beber, e beber e fumar, não foi feita pra boi beber, não!
João Caiana - Meu pai me dava pinga pra eu beber desde pequeno. Não tem isso
não. Às vezes eu estou bebendo... É um pouquinho, eu sei que é pecado, mas...
Paulo Gomes - Mas você não bebe um bando. Não é um vício.
Rosa - É um vício. Se não for remédio, não pára não.
A controvérsia ali se desenrola à medida que cada qual dos presentes vai dando
seu exemplo para a análise: os meninos de Cristina, curtidos na cachaça! E ela não
bebe...; a família de João Gomes é tudo miserável pra beber..., reclama Rosa. Mas o
Preto de Cipriano, diz outro, é ele quem não bebe, o irmão... Você os meninos
de Maria, Antônio não bebe, o pequeno, Arlo, está aí... Beber é da natureza,
mesmo, diz João Caiana, no que todos concordam, É mesmo, é da natureza da pessoa
mesmo... Assim, se existe algum ‘valor moral’ no “beber”, não se pode atribuí-lo à
“natureza” da “pessoa”. A natureza é “mesmo que” a “sorte”: “boa” ou “ruim”, vem “de
Deus”. No segundo causo, contudo, é necessário algum julgamento. Sendo “ruim”, seria
da “natureza” da “pessoa”? Quando se sabe que “a pessoa tem uma natureza boa”,
pode-se falar em “sorte enguiçada”. Mas por que enguiçada se a natureza é boa? Pode
ser mod’ “coisa dos outros”, coisa que não é “de Deus”. “Cumprir a sorte”, como se diz
271
sobre estas situações, implica a idéia de “falta de rumo”, e é então que o “destino” deixa
de ser sinônimo de “sorte”. Evitar a palavra é neste sentido evitar “puxar” qualquer
coisa (capítulo 2). Afinal, “falar” sobre uma “sorte” que pode não ser dada por Deus
sugere alguma “mexida”, ou ao menos “conhecimento”, sobre o causo que por definição
não se conhece de antemão, o do “destino”. Seria então o causo de uma sorte “feita”?
*
Manhã ainda de sol baixo, Paulo, da área, me conta, O povo de Damásio subiu
para telefonar... Para Dinga? Deve ser, Subiu Rica, Tutty, Damásio, Zeca, passou todo
mundo... Minutos depois eu encontro Quincas na cozinha e ele me a mesma
informação, Os Damásio estão falando com o Brasil!, diz ele em seu tom característico,
algo sarcástico. Sabendo a notícia do telefonema, fui eu atrás do povo, imaginei aliás
que era este o intuito dos de casa ao me informarem sobre o rumo dos outros, Os
Damásio. Instigavam-me a ir caçar mais informação, pensei ali. Fui assuntar ni Titia,
único lugar dos Buracos onde o celular funciona. Chegando lá, Titia pergunta se comi
queijo hoje de novo. Digo-lhe que não, mas teve bolo e doce de leite... Titia diz que
também fez bolo, e tem mais queijo... Está chique a Titia!, eu disse. Ela riu, É! Nós,
aqui, passa bem! E riu de novo. O povo de Damásio nem assuntou nossa conversa.
Estavam apreensivos, todos do lado de fora da casa, no ponto do terreiro onde “dá o
sinalzim”. Mas não conseguiam falar. Tentavam e nada. Não era para Dinga que
ligavam; era para Nega na roça, onde é a família do marido. Preocupavam-se porque
Ana-de-Ito - o sobrinho de Rica, filho Nésia - recebeu na Chapada uma ligação de
celular. Ficou achando que podia ser Nêga. Mas não conseguiam falar com ga. O
menininho de Dagilson, o ex-patrão de Nêga, tinha vindo da Vila e estava também mais
os Damásio, ajudava Dasim, que ele chama “vô”, a “mexer com o trem”. Rica e Titia
não entendiam nada, só riam de olhar Dasim, que também ria de si, atrapalhado com “os
barulhinhos” do telefone, sem saber onde apertar. Até que Tutty saca o telefone da mão
do pai e reinicia as tentativas de chamada. Mas tampouco consegue. Por fim desistiram,
não havia de ser nada. Falta de notícia é notícia boa.
ligaram pra Dinga, na Brasília. Ele vem amanhã. Damásio vai buscá-los com
os animais na Vila. deixam o carro e vêm com os animais carregados. Dinga vem
com o Renê, seu amigo da Brasília que possui um carro de passeio. Renê viera antes
aos Buracos. Passou ali no feriado das Eleições, aproveitando a carona no carro que o
272
povo conseguiu para vir pra Minas votar. E Renê ficou incutido com Tutty! Incutidim!
Titia sabia e atentava a neta. Tutty negava ter namorado o rapaz. E Titia, Eu
conheç’ocê! Você está mentindo! Rica ria.
Dinga e o amigo Renê vieram no carro de Renê. Sai de Brasília às cinco da
manhã e chega meio dia. Damásio subiu com os animais para pegar o filho mais o
amigo. Às quatro da tarde, Dinga ainda estava em Brasília. Seo Damásio volta com os
animais, passa pela casa de Quincas montado, em silêncio, a cara fechada; ficamos
sabendo que não tinha dado certo. Depois Rica contou. Chegarão hoje à noite na Vila.
dormem e descem amanhã com Joaquina. Os de Joaquina chegaram hoje na Vila,
Dinalva, Marlene e Orlando. desce tudo amanhã. Já acertaram com Jorginho que vai
trazer até o alto da ladeira, explicou Rica. Era de manhã e ela resolveu passear ni Paula
de Cipriano, porque se ficar só dentro de casa, esperando Dinga, é aquela agonia, disse-
nos ela, debruçada na porteira de Quincas, do lado de lá do terreiro. Algumas horas
depois, passa Rica de volta. Na área de Quincas, vejo-a atravessando o caminho até sua
casa e vou até lá. Tutty TV, Rica está calada, escarquiada. Passa o resto do dia
calada, preparara o pato pro almoço; aí cozinhou e deixou, pra não estragar... Hoje cedo,
nem preparou o almoço, me conta Rica, e sai de novo pra mod’não ficar com o sentido
naquilo. Foi andar nas casas pra riba, à espera. Tutty me chama para também irmos
“lá pra cima”, para as casas de lá. Mas, no que estamos indo, é-vem Rica descendo de
volta. Ao ver a mãe, Tutty nota, Então é que eles estão vindo. Eu volto para a casa de
Dona Rosa, e da área vejo, como que fosse um corteja, os animais e o pessoal vindo aos
poucos. Seo Quincas também assunta da área. Bênção, Seo Quincas! É René quem
passa, está montado, vem devagar na mula, o rapaz da cidade, amigo de Dinga. O irmão
de Adagilson, o ex-patrão de Nega, também vem, mas está de pé. mais adiante
começam a chegar Dinga e todos os outros. Todos os animais estão carregados de
bolsas e sacas, comenta-se na casa de Rosa. Dinga trouxe um bando de coisa, informa
alguém.
Dinga trouxe presente para a família toda. Tutty ganhou um terninho da moda e
uma calça jeans com muitas tachinhas brilhantes. Linda! Custou caro, me contou. a
blusa, trinta reais. Para Zeca, Dinga também trouxe um terno, e umas cuecas. Para o pai,
uma calça; para a mãe, uma blusa. Mas rica não gostou; é “blusa de moça”. Então Tutty
vai comprar a blusa da mãe para que esta compre outra na Vila. Dinga trouxe também
um aparelho de som e um aparelho de DVD. O som custou trezentos reais. Barato, né?
Na Vila, um som desses custa uns setecentos ou até oitocentos reais, avaliou Dasim.
273
Dinga toda a vida foi assim, gastador. Dinheiro não pára na mão dele, compra trem pra
todo mundo. Trabalha em revenda de remédio. Herbalife, é o nome. Remédio para um
bocado de coisa, serve assim como o remédio do mato, mas é processado. diz’que
Dinga estava para receber um dinheiro grande da venda. Mas Dinga é assim. Diz’que já
vendeu quase todo o gado que ele tem aqui. Deve ter queimado umas vinte cabeças,
dizem os outros. Dinga trouxe também vários DVDs de música, com shows de Eduardo
Costa, Amado Batista, Vítor e Leo, e muitas bandas de forró, tipo Forró Boys, Gaviões
do Forró, Calipso, Camisa Suada, Calcinha Preta e daí por diante. Agora é o dia todo o
som nas alturas nos Damásio. O Calengue inteiro escuta. Tutty adorou, mas depois
ficou assim meio enjoada do barulho.
Antes disso, durante minha estadia em Ceilândia, na casa de Dinalva, eu passava
as tardes assistindo aos mesmos cantores que agora ouvíamos no Calengue. Marlene,
esta de Joaquina que vinha agora com Dinga, regula a idade com Tutty e estava
estudando o Ensino Médio em Ceilândia. Morava com sua irmã Dinalva, onde eu então
pousei. O cálculo era Marlene ir a Brasília apenas para completar o último ano do
Ensino Médio, pois embora Dona Joaquina tivesse a casa na Vila, os meninos e a mãe
estavam o tempo todo na roça. E Marlene morando sozinha na Vila estava ruim - o povo
na Vila “fala” muito. Em Ceilândia, Marlene vivia sob a vigia rigorosa da irmã
Edinalva, que passa a semana fora, na casa de família onde trabalha, mas liga do celular
para saber. Marlene tem essa prosinha mansa, mas sabe aprontar, no dizer dos outros.
Agora em Ceilândia, todo dia é da escola para dentro de casa. Quando estive em sua
casa, saíamos nós duas para passear; íamos nos imensos galpões com barracas de roupas
e artigos diversos. olhávamos e experimentávamos, não comprávamos nada. Ao
voltar, tomávamos o café com bolacha em casa com o aparelho de DVD ligado nas
bandas de Forró. As bandas costumam ser do Goiás ou norte de Minas; todas integram
ao menos duas dançarinas com mini-saias. Quando dançam, “se tudo”, reparam as
buraqueiras, e soltam uma gargalhada. Quando fui a Brasília conhecia os DVDs por
ter assistido em casas da roça, não ainda nos Buracos. Uma vez foi no Ribeirão da
Areia. As mulheres o dia todo assistindo, Nésia, Rica e a outra irmã, Zica, dona da casa.
As meninas também: Néia, Tutty e as primas. Às vezes os homens chegavam e olhavam
também. Mas quando o DVD chegou na casa de Dasim, todos queriam assistir.
Ninguém ficava na cozinha. Os bancos da sala tomados de gente. Era época de Festa,
tempo dos Reis, o Calengue estava cheio de gente. À noite, na casa de Dasim, podia
apostar que ia ter o forró, o povo assistia e às vezes até dançava, ali na sala mesmo.
274
Lembro-me de me espantar com a naturalidade dos buraqueiros ao assistir cenas
que eu teria julgado obscenas: reboladas e danças que simulavam gestos sexuais
animavam as dançarinas no vídeo, em geral praticamente nuas. Mas os buraqueiros e
buraqueiras não pareciam se espantar. Ao contrário, frequentemente as moças
ocupavam as salas para copiar os passos da dança, as reboladas e agachadas que,
repetiram mais tarde nas ocasiões de forró na Vila. O povo olhava as moças achando
engraçado; o pai não assuntava muito, talvez se recolhesse, mas a mãe e os outros riam,
achavam engraçado. Este é o modo buraqueiro, parece-me. Ao assistir na Ceilândia os
mesmos DVDs, em companhia do pessoal dos Buracos, havia experimentado a curiosa
sensação de ‘sentir-me em casa’ similar àquela a que me dera conta em determinado
momento do campo (capítulo 3). Por que a familiaridade? Em Ceilândia, das moças
buraqueiras que conheci, nenhuma era “incutida” com novela. Ao contrário dos
Buracos, onde as moças assistem “as novelas da Globo” de todos os horários da grade
de programação. Não se trata de uma oposição genérica, evidentemente, pois meu
tempo de permanência em Ceilândia não me material para tanto. Mas a comparação
fortuita pode dar a pensar. As primeiras, sobretudo quando solteiras, falam na saudade
“de Minas”, da vontade de voltar para “perto da família”. A outras, ao contrário, estão
sempre pensando ir para a cidade, “caçar rumo”, “evoluir”.
Os aparelhos de TV (com as parabólicas) são a própria imagem da “chegada da
luz” nos Buracos. A geladeira chegou a ser desejada: “no início da luz”, as mulheres
planejavam ter água gelada e poder comer carne fresca todos os dias. Mas a vontade foi
esmorecendo. Dona Rosa chegou a comprar uma grande geladeira que, segundo ela, foi
só para comer energia. E come energia aquele trem! A conta de luz... Ôchi! Não mais do
que quatro ou cinco casas possuem hoje geladeira nos Buracos. A bomba de água
começou a surgir em uma e outra casa apenas depois de cerca de três anos de chegada a
energia elétrica. Mas a televisão, no intervalo de um ano, estava em praticamente em
todas as casas buraqueiras. A primeira TV do Calengue foi na de Cipriano. Dão
comprou para a irmã Paula assistir; as meninas de Guilherme, era todo dia na casa de
Paula. O povo dizia que Dão ia ficar no prejuízo tendo que dar café praquele bando de
gente que vinha. Depois cada casa passou a ter a sua. O povo “fala”, porque agora as
meninas de Guilherme, com teve na casa, de dentro da casa, nunca que vem onde
estão os outros...
Lembro nessa época de ter assistido TV ni Cipriano, com Paula, as meninas de
Guilherme e Lúcia, e ficar especialmente intrigada. Era hora da novela das seis,
275
chamava-se O Profeta. As mulheres, em silêncio absoluto, assistiam à cena da primeira
relação sexual entre os protagonistas. A mocinha da trama lembrou-me as feições da
Cinderela do Walt Disney, e sua pele tinha uma tonalidade alaranjada, como dos
desenhos animados. Logo depois, chegaram mais mulheres, todas mulheres. O que
haveria de distância e de proximidade entre aquelas cenas e os “causos” das próprias
buraqueiras?, pensei naquela ocasião. É notório o fato de que as mulheres em geral, e
particularmente as moças, são as mais “incutidas” com novela e televisão. Como vimos,
aliás, “a moda de cidade”, incluindo o “diploma”, quem “gosta mais” são as mulheres.
O déficit entre a quantidade de moças e rapazes vivendo nos Buracos pode ser
contabilizado aproximadamente como o de trinta rapazes “no ponto de casar”, incluindo
“solteirões” em “idade avançada”, para apenas quatro ou cinco moças em mesma
situação. É para Chapada que as moças buraqueiras começam partindo. Primeiro para
estudar, depois para trabalhar por ali ou para dali seguir rumo a Brasília ou São Paulo.
Os rapazes não cumprem este percurso com tanta freqüência. Em geral, se saem, é
para trabalhar nas monoculturas, e retornam meses depois à terra de origem. Assim, na
terra dos buraqueiros, “os homens estão sobrando mais do que abóbora na janta”, como
eles mesmos constatam, fazendo graça. Por outro lado, é também para a Chapada que
algumas moças pensavam em voltar, conforme ouvi naquele período em Ceilândia.
Dinalva, por exemplo, ao longo dos quase vinte em Brasília juntou dinheiro e comprou
um lote na Vila. Depois conseguiu ir comprando aos poucos o material para a
construção da casa. E em dezembro de 2009, Dinalva enfim estava De Volta Para
Minha Terra, conforme o nome do quadro dominical de TV favorito dos buraqueiros.
Vai tentar a sorte, contou-me, tentar revender roupa, mexer com o que tiver... De modo
geral, a imagem de uma moça que “evolui” surge nos Buracos, parece-me, no rumo da
“escola”, do “diploma”, da “cidade” - o que não raro se em oposição ao plano do
casamento. A Vila assume assim um lugar curioso, parece ser ao mesmo tempo uma
espécie de ‘trampolim’ para a partida às grandes cidades, mas também aquilo que
“puxa” de volta as moças que partiram. Neste sentido, vale notar que o emprego de
professora na Vila é seguramente uma possibilidade sempre sonhada. Dora de Joaquina
“está bem”, mora na Vila e aula no rio dos Bois, que é roça mas para ir e voltar
todos os dias para a Vila. Leide de Zefa, criada por Zefa, conseguiu recentemente vaga
temporária para dar aula em uma outra escolinha das duas que existem nos Buracos, a
que fica distante do Calengue, no Uruvaio. É longe de casa, diz Leide sobre a casa de
276
Nísio nos Buracos. Mas ao menos é nos Buracos, para ficar na casa de parente ali
perto, pondera. Leide “já está no rumo”, o povo fala.
*
Quando pergunto, as moças dos Buracos hesitam em decidir qual o melhor
destino para si. Viver na cidade é bom, mas trabalhar em casa de família, trabalhar pros
outros... Ninguém merece! Entre ficar nos Buracos, em Chapada Gaúcha ou partir para
mais longe, as opções tipificam-se entre os desejos de, na cidade, “evoluir”, “ganhar um
diploma”, e nos Buracos, ter sua própria “casinha”, com um “maridinho bom”. Esta
oposição genérica tende a começar pelo julgamento de que a primeira opção é a mais
correta, mas isto se desfaz quando, aos risos, as migrantes buraqueiras constatam, As
moças saem da roça dizendo pros pais que vão voltar com o diploma, mas o diploma
que elas trazem da cidade é um filho no colo! E sem o pai da criança! A oscilação
poderia ser descritas entre os pólos do bom emprego (causa do “diploma”) e o bom
casamento. A “sorte” de um e de outro parecem algo inconciliáveis, portanto. Ambos os
destinos são considerados desejáveis, com variações tendendo pra um ou outro lado
dependendo da moça em particular. Assim, as possibilidades de acontecer uma e outra
coisa são pesadas; é preciso algum “cálculo” sobre a “sorte”.
Por que as moças buraqueiras partem mais do que os rapazes? Fiz esta pergunta
inúmeras vezes ao povo dos Buracos; elas e eles invariavelmente explicavam-me sobre
a maior possibilidade, por parte das mulheres, de conseguir emprego (como empregada
doméstica), e sobre o fato de as moças serem mais “incutidas” com a “moda de cidade”.
Por esta, devemos entender a compra de produtos de beleza, roupas, perfumes e brincos,
e de serviços de salão, como a “escovinha no cabelo”. Assim, entende-se como, ao
estender um pouco mais a conversa nesta direção, as moças me falem não sobre as
indecisões da sorte caçada na vida de cidade, mas sobre a sorte de ter um bom
casamento. Este acontecimento certamente “puxa” as moças buraqueiras. Mas a
“cidade” também puxa gente. Nosso quadro de análise vê-se às voltas com uma
duplicidade de desejos femininos: de um lado, o que “puxa” é o dinheiro, o salário, o
estudo; de outro, o casamento, o amor não como valor irredutível, particular, mas como
fenômeno propriamente familiar. “Só o tempo é que pode dizer”; “enquanto vida,
sorte”, analisara Lúcia sobre seu próprio rumo. É como se disse certa vez quando do
debate sobre o “destino” de um nascimento de gêmeos, quando “dá de gerar a criança”.
277
algo no sangue da criança que “puxa” um defeito, um temperamento, uma beleza; a
voz, o tipo do cabelo, o modo no comer e na conversa. Enfim, cada pessoa puxa uma
natureza, vai da sorte: pode mesmo acontecer de serem dois, e não um apenas, os
nascidos gerados pela sorte, o destino. Quando “dá o destino” de gerarem dois... Até
onde se pode “caçar” um destino diferente daquele “dado”, “de Deus”? Esta é uma
questão que os buraqueiros se colocam freqüentemente. Analisá-la é, mais uma vez,
analisar a sorte, isto é, observar os efeitos de um e outro deslocamento particular para
dele extrair algum sinal, uma pista do rumo a que por fim se chegou. Assim se calcula
sem nunca se chegar a um resultado final, pois a sorte “de cada um é uma”, “o destino
de cada um está guardado”. Como no dizer buraqueiro, “quem não caminha não
conhece”.
278
Capítulo 5 – Mulher é trem ruim
5.1 – Dois causos de diferença
Rosa deixou as bacias apanhando a água da chuva e no dia
seguinte lavou a louça sem precisar caminhar até a fonte, Se
chovesse toda noite, pra ter água pra lavar, seria lindo...,
disse Rosa para concluir, Mas as coisas não são como a gente
quer. É como Deus quer.
As controvérsias em torno da idéia de sorte rendem causos. Por ‘idéia’ de
“sorte”, refiro-me não às ocasiões em que a palavra é verbalizada, como também
àquelas onde vejo “no rumo da prosa” uma ‘sugestão’. Por exemplo quando do uso
lacônico da expressão “diferença” (cf. capítulo 1). Ou nas perguntas sem resposta com
as quais um e outro causo se encerra. Por que acontece isso, moço?... Para às vezes
explicitar-se, Parece que é a sorte... Uma morte por acidente é a sorte “dada de Deus”
ou um erro do destino? Até que ponto o sofrimento pode ou não ser atribuído à “mão
Divina”? Sem pretender uma síntese para as maneiras de se classificar a “sorte”, é
possível notar um sentido particular quando o causo traz a percepção da “diferença”.
Nestes causos, as relações decompostas parecem apresentar um equilíbrio especialmente
instável na oposição entre “cisma” e “verdade”; entre “ciência” de gente e aquilo que se
“entrega a Deus”; entre a rotina e o acontecimento.
“Ali eu notei uma diferença”, dissera Nísio sobre o causo de como “tomou
conhecimento” da morte do pai (capítulo 1). Noutro causo de morte, também a
diferença foi destacada. Sentada na rede da área de sua casa, após o almoço que me
oferecera pela visita, Dona Silu me fala da chuva, diz que ouviu a galinha d´água cantar
e não tem errada, uns três dias e chove. É como aquele pássaro..., eu disse. Eu
lembrava do que Dona Rosa me havia contado, Eu tenho uma cisma quando esse
pássaro canta! Um dia ele vinha cantando por cima das casas, tudo. Era uma cantiga
diferente de quando é mod’a chuva, era para anunciar a morte da menina de Silu.
Contara-me Dona Rosa. Agora, ali na rede, Silu diz o nome do pássaro. É o cuan, ele
avisa que vai ter morte na família, disse ela, e continuou, Quando a minha Cleide
faleceu, um cuan pousou bem aqui nesse galho [mostra], e ficou cantando. Eram doze
279
horas ou uma da manhã. Quer dizer, nessa hora tinha ocorrido o acidente. O canto do
acauã, quando vai avisar uma morte, é diferente, diz Silu, Ouvi e tornei a deitar, mas
fiquei com aquela cisma... E sonhei com Cleide, com as laranjas que Cleide gostava,
que no sonho estavam maduras e eu guardava para comer com ela. No dia seguinte,
Toninho Buraco apareceu em minha casa. Estranho, porque ele não vem nos Buracos.
quando é Folia. Então porque ele estava aparecendo ali? Era para me levar para
Brasília, onde minha filha morava. Eu atentei, atentei, porque vi a diferença no modo
dele. Até que ele contou. Primeiro disse que era um acidente de carro e que Cleide
estava hospitalizada, mas ali já dava para desconfiar.
Este causo de Silu foi-me narrado por diversas outras pessoas. Pensa uma
mulher que sofreu!, dizem-me sobre a mãe de Cleide. Em Brasília, a menina era vizinha
de sua tia Edinalva. A sobrinha falecida era “mesmo que uma filha”. Dinalva narrou-me
os detalhes do dia do acidente: o jeito de Cleide bater com os dedos em sua janela; o
modo com que ela o fizera naquele último dia; as palavras que dissera ao despedir-se da
tia. No dia do acidente, antes do ocorrido, Dinalva sofrera uma dor de cabeça que
“sentia como se fosse morrer”. Por isto não acompanhou a moça, que foi com seu
namorado dirigindo o carro que sofreu o acidente. E se ela tivesse ido com eles, como
era o combinado? Talvez eles não tivessem morrido... Mas é bestagem pensar assim.
Aquela dor de cabeça foi Deus quem mandou, porque se não fosse isso a gente teria ido
eu e mais as outras irmãs de Cleide. Porque as meninas de Silu não foram porque eu
não fui, até ficaram insistindo para eu ir, mas a dor de cabeça... Era a vontade de Deus.
Nos últimos anos, Dinalva tornara-se especialmente devota ao catolicismo, participando
de freqüentemente das grandes missas católicas, do chamado ‘movimento carismático’.
As outras meninas de Silu, irmãs de Cleide, hoje freqüentam “igreja de crente”, mas os
parentes não levam muito a sério a devoção destas. Dinava, por sua vez, é “incutida”
mesmo! Com a idade, está ficando mais religiosa, é como as velhas de primeiro aqui
nos Buracos, riu Seo Quincas ao contar o causo da prima e meia-irmã. No cômodo
único da casa de Edinalva em Ceilândia, no espaço entre as duas camas divididas entre
os três irmãos (ela, Marlene e Orlando), um sapateiro de plástico é o suporte das
imagens de Santo e dois cordões de Terço pendurados. Talvez por isto a “vontade de
Deus” fosse tão insistente no causo de Dinalva.
Mas quando o causo ainda não mostrou o rumo da sorte, quando estamos todos
ainda em vias de testemunhá-lo, a vontade de Deus é tão incógnita quanto o canto do
cuan. A cantiga ecoou quando um menino de Fulano estava “morre-não-morre” por
280
conta de uma súbita doença. Começara com lançadeira: o rapaz vomitava mesmo sem
comer. E enfarou da pinga, que ele antes diz’que já estava bebendo dois litros por dia. E
sem comer. começou com isso de sentir uma quentura por dentro; bebia água que
não esbarrava. E vômito. Mijando a noite toda. Foi para o Posto; mandaram ele para
São Francisco. O tio é que levou. Na noite de segunda para terça é que quase morreu...
Tremendo como uma cobra, remexendo na cama... bebia coisa gelada, via leite
quente já parece que dava aquela volta no estômago, que não descia, travava, a natureza
não deixava. Era vomitando. Era aquele calorzão por dentro. Nessas idas, saiu o
resultado do exame de sangue: diabete. Estava a 560, e o médico disse que no máximo
pode chegar a 300; que ele agüentou porque é moço. Depois baixou pra 250, ele
voltou para o Sapé, na fazenda em que estava trabalhando, mas o diabete tornou a
subir. É besta de não ficar logo na Chapada! Quando souberam da piora, Lúcia foi quem
contou. Ela estivera no Posto marcando consulta e o encontrou ali convalescente: uma
magreza repentina; aquele brilho nos olhos que a gente viva tem, não tinha mais, e a
cor da pele era assim acinzentada. Era mesmo que outro! A diferença era tanta que a
gente olhando não reconhecia. A mãe dele enfim foi vê-lo no posto. Chorava!, contaram
os outros, enquanto insistia para que o filho tomasse o caldo que preparara com
capricho. Mas ele nada, não conversava nem comia.
O causo da diabete do rapaz buraqueiro todo mundo sabia; atualizavam-se
diariamente as notícias, de acordo com o que contavam os que vinham do rumo de
quem o encontrara ou tendo estado diretamente com ele, fosse no Sapé, fosse na vila.
Nas duas vezes em que foi para o hospital em São Francisco, nos Buracos esperavam
com agonia declarada um recado transmitido pela rádio de Gersino, que da Vila recebia
o telefonema e anunciava em seu programa. O programa de Gersino é o principal meio
de comunicação para as “comunidades rurais” que integram a maior parte do município.
Todos os dias de manhã, Gersino cumprimenta um e outro pessoal das roças, e dá os
recados. Teve um dia que ele disse em voz de pesar, parecia que anunciando a morte,
sobre o estado de saúde do menino de Fulano. Depois se desculpou aos ouvintes por não
poder dar sempre notícia boa. Depois da súbita piora, do dia em que “quase-morre”,
levaram-no para São Francisco e o rapaz passou a tomar as injeções de insulina. Então
Gersino deu na rádio a notícia de que o rapaz já comia um pouco, embora ainda
estivesse muito fraco para conversar. Agora se sabia que, mesmo recuperado, nunca
mais seria o mesmo, nunca mais ia poder comer normalmente, pois a diabete se controla
281
é pela boca, repetia-se em anunciada consternação. Como é que esse menino vai fazer
na roça? A mãe, coitada, vai ter que ter “mão fina” pra cuidar dele!
Durante aquelas idas de doença, ouvimos o canto do cuan nos Buracos.
Estávamos na casa de Titia. Fazia-se então um instante de silêncio e em seguida alguém
dizia, como que para espantar o receio, É o quê! Bestagem! É cisma do povo! O bicho
canta é mod’a chuva! Finalmente, o rapaz começou comer direito”; logo estava
também conversando, conforme nos contaram os que estiveram com ele primeiro. Ele
está comendo e conversando!, repetiam, Já está bom, concluíam. Mas ainda rezavam
por sua saúde nos Buracos. Titia fez até promessa. Quando enfim ele tornou aos
Buracos, prometeu e disse inúmeras vezes nunca mais botar “um trisco de pinga na
boca”, mas acreditaram em sua promessa quando o viram percorrer o giro da Folia
“no seco”, “sem uma gota”. A magreza ainda fazia vista, mas tinha recuperado o
apetite. Dona Rosa, entretanto, preocupava-se; ia dizendo nas casas, Essa bebeção de
água! Ele não está bom! Pra mim, isto não é essa diabete que estão dizendo, não! Outros
refutavam Rosa, e contavam causos de gente conhecida que sofrera diabete, É assim
mesmo! Fulano também quando teve diabete teve essa queimação e essa sede... É
natural da diabete!, argumentavam enquanto Rosa desdizia, dizendo, Eu sei como é
doença, isso é diferente.
Viajei para Ceilândia na época em que a melhora do rapaz era ainda instável, e
encontrei com uma das irmãs do enfermo. Vizinha da casa onde me hospedara,
transmiti-lhe as últimas notícias do rapaz, conforme ela ia indagando. Outros parentes
habitantes da Capital haviam feito ou ainda haveriam de fazer o mesmo. E a conversa
inevitavelmente rumava para o tema da cachaça. Será que, se ele não bebesse, ia ter
“aquilo”? A questão já havia sido levantada nos Buracos, Às vezes, a pessoa tem aquela
tendência, mas se não bebesse... Faziam-se então comparações entre o moço diabético e
outros que “bebem até mais do que ele” e nunca tiveram doença por isto, ao contrário.
Esse tanto de bêbado-velho que tem por aí! Não come e não morre, bebe! Nem ficar
doente não fica! Por que aquilo justo com ele? Tão bom rapaz, nem era de beber tanto
assim, trabalhadorzinho... A irmã de Brasília, ao contrário dos demais, me disse que a
“diferença” não era dele, mas com todos os seus três irmãos que “bebem”. Parece
que a cachaça deles é assim uma coisa ruim, disse-me. O problema da cachaça é que...,
e ela não completa, emendando em outra frase, Parece até que tem trem ruim... De
saúde?, eu pergunto. E ela diz, Não, um trem mesmo... E muda o assunto.
282
Noutro momento, comenta que seu irmão tem “uma coisa triste”, Está sempre no
mundo, não pára em casa. Até que disse, muito rapidamente, Parece que tem coisa
posta. Disse entre uma e outra frase que se destinavam a outros assuntos. Não consegui
entretanto fazer o assunto render. Sabíamos que a cachaça levara algum tempo antes um
desses irmãos a uma violenta briga com o pai, tendo sido amarrado a uma árvore para
que não o matasse, contou o povo, tamanha era a fúria do filho. Curtido na cachaça, fora
convencido a deixar os Buracos por uns meses, indo trabalhar como peão em uma
fazenda longe. A mãe despedira-se chorando, disseram. Esse irmão certa vez bebeu
antes de ir para a festa e “saiu dizendo”: sentia “gosto de sangue”. Isto quem me contou
foi Titia. Esta estava planejando comprar um remédio a ser misturado na pinga
mod’fazer o bebedor ter “lançadeira” [vômitos] no momento em que der o primeiro
gole. Existe!, afirmou-me Titia, Mas tem que ser um remédio alvinho porque, se tiver
cor, os meninos desconfiam e não bebem. As pestes não querem parar de beber não!
Com a preocupação mod’a bebeção de pinga, Titia começava a ouvir aquela antiga
zoada na cabeça, como na época em que teve problemas de juízo. Outro dia um de seus
filhos bebera antes de ir para o campo de futebol e brigou. Chegou em casa
procurando faca. Titia escondeu todas as facas da casa e passou a ficar em constante
sobressalto. Bebe e fica com aquela prosa ruim! Ô cachaça ruim! Mesmo quando não
briga, fica prosa ruim. Aquela barulhada! Zoeira nos ouvidos. O causo do sobrinho
diabético, Titia usava para tentar assustar os outros meninos, mas de nada adiantava. O
rapaz diabético, antes de adoentar-se, “bebia sem incomodar aos outros”, o que tornava
seu causo intrigante: de uns tempos para é que ele tinha começado com “aquela
cachaça ruim”. Por que “aquilo” agora? Havia ali uma “diferença” qualquer.
*
Nos dois causos descritos acima, o da morte por acidente e o da súbita doença
sem morte, os destinos desafortunados estendem-se dos filhos às mães, dos sobrinhos às
tias. O canto ouvido do cuan aquele dia fora mais triste, e o pássaro pousou ao lado da
mãe; o sonho desta, como a dor de cabeça da tia e as últimas palavras da sobrinha,
teriam quem sabe indicado a “vontade de Deus”. Nisto os relatos se consolavam, dando
sentido ao ocorrido, ligando o passado ao presente graças a num rumo sobre o qual não
tiveram participação, embora tenham participado da dor. A partir dali a conversa se
encerrava em silêncio, como em respeito à morte, ao “destino de Deus”. No causo do
283
rapaz doente, ao contrário, o sofrimento das mães e tias relatava-se como desconfiança
sobre os comportamentos que, por “diferentes”, davam ao corpo uma matéria suspeita,
nunca concluída. A “cachaça ruim” era a “diferença” que mantinha vivo o assunto nas
conversas, e quando deixava de “render”, o silêncio falava sobre fatos não-ditos, a
“ruindade” dos irmãos e primos, as mortes por diabete de outrem. Falavam da mórbida
transformação do corpo, que não respondia à sua “natureza” habitual. Seria tudo isto
efeito da cachaça? Uma cachaça ruim..., dissera a irmã do rapaz.
O que era “aquilo” se não era diabete? Eu imaginava escutar mais coisa, embora
nada mais me dissessem. Dois meses depois de recuperada a saúde do rapaz - que
seguia em rígido regime alimentar e tomando duas injeções de insulina por dia - pude
ouvir algumas palavras sobre o que antes parecia apenas imaginação minha. Ocorreu no
dia seguinte a uma festa de Folia. Eu havia dormido na casa de Titia, para onde, na
manhã seguinte a uma festa na casa de Dasim, as moças e rapazes do Calengue
dirigiam-se costumeiramente com o intuito de contar e ouvir os causos da noite anterior.
Ao acordar, mantive-me um tempo deitada, o quarto ainda escuro, e os outros por certo
me imaginaram ainda adormecida. Foi quando ouvi a conversa sussurrada entre dois
rapazes a respeito do primo enfermo, que na festa beijara uma moça. Milagre!, diziam
em tom que me pareceu grave, Mole do jeito que ele é, como é que chegou nela?!
Porque quando está tonto [bêbado], para entender... Mas no seco... É feitiço, pode
ser! Mais tarde, eles abordariam a menina em tom de gozação, Me ensina esse
benzimento! Benzimento em cruz! Fetiço de Mulher! Hahahá. O tom de brincadeira,
como é costume quando se verbaliza sobre o amor, não me teria dado a pensar que
pudesse ali haver uma suspeita verdadeira, não fosse o conjunto de comentários
anteriores.
A palavra “feitiço” não costuma ser pronunciada nos Buracos se não em forma
de “brincadeira” (cf. capítulo1). Nessas ocasiões, o termo pode chegar a entredizer
efetivamente algo que se calcule, que se “saiba”, mas não se torna o tema da conversa.
O assunto, o causo, fica “no ar”, uma vez que não se fazem acusações quaisquer. Este
modo de falar sobre o feitiço é, enfim, uma “brincadeira”; “não é para dizer dos outros”.
Aliás, não creio ter ouvido mais do que duas vezes a acusação deliberada de feitiço
contra uma “pessoa”. Ambas envolviam doenças nas quais a cura se demorava,
associada a problemas de comportamento recorrente, isto é, males que se estendiam aos
relacionamentos pessoais do atingido. Não se tratavam de um acidente ou morte súbita,
mas de uma complicação entre a pessoa acusada e outras com quem elas mantinham
284
uma relação, em um causo, de vizinhança, no outro, de matrimônio. Neste último, quem
acusava era a sogra, que dizia ter falado com uma rezadeira, “Foi ela quem me contou”,
disse a sogra. Foi comida posta, diz’que foi um arroz. O genro, que muitos anos
“sofre da cachaça”, sem conseguir trabalhar ou “ajudar das despesas”, é um dos poucos
buraqueiros a morar na terra da família da esposa. Depois da acusação, deixou de entrar
na casa dos sogros, apenas pedindo suas bênçãos de longe, do outro lado da cerca. Com
o tempo, o problema se agravou: bebia, ficava “tonto”, “virava bicho”, contavam que o
homem havia pego a faca para ameaçar a esposa, depois estrebuchou inteiro, até cair
no chão de raiva. Quem contou foi o outro bêbado que estava lá. E depois o menino
deles conformou. Um trem doido! A esposa não separava por que?, aconselhavam.
se fosse tolice ou mesmo era feitiço, diziam. Ela alegava medo. Quando enfim planejou
fugir para Brasília, sem o conhecimento do marido mas com a ajuda de seus pais e dos
filhos, desistiu na última hora; a filha a estava esperando em São Paulo, mas ela não
teve coragem, nunca saíra da roça, era mulher de dentro da casa. Uma semana depois, a
família dele mandou-o para uma clínica de recuperação em São Paulo, ficou onde
está o povo dele de São Paulo, mas permaneceu por não mais de um mês. De volta aos
Buracos, as coisas pareceram acalmar-se por um tempo, ou pelo menos não se falou
mais nisto. A “cachaça ruim” ainda era rotina, mas não havia mais chegado ao extremo
de antes. Certa vez, encontrei a mãe deste homem em Chapada Gaúcha e ela se mostrou
preocupada, que não acreditava no que a sogra de seu filho andava dizendo, Ele não está
tão ruim assim!, explicou-me, Eu sei como é que é sogra! Sogra fala demais!
No outro causo em que ouvi uma acusação de feitiço que não era, como no mais
das vezes, apenas uma menção vaga e prazenteira, tratava-se de um aparentado do povo
dos Buracos, morador de um povo vizinho, que havia ficado cego e o curador o curara.
O causo era conhecido por todos e o motivo suposto para o feitiço era “a inveja”, pois o
homem suposto alvo do feitiço havia enriquecido de repentino, o que o tornara “meio
prosa”. Um curador de Brasília lhe recuperou a visão e foi quem disse sobre o feitiço,
sem dizer quem era. Estão dizendo que é a Fulana, que é rezadeira, e o irmão dela era
brigado com o outro, o que ficou cego e curou. O “Homem da Brasília” era o curador
responsável pela cura. Silu havia ido e me narrara o causo: para chegar, precisa ter
carro, pois é Brasília mas longe da cidade. Chega lá, uma sala grande com muitas camas
onde a gente se deita, o homem vai passando e consultando, contou-me Silu. Seu filho,
que tem carro e mora na Brasília, estava planejando levar a mãe. Dona Rosa “estava de
cálculo”, queria aproveitar a carona de Silu para ir também. Quincas ralhava, E vai ficar
285
aonde na Brasília se na casa da nora não vai ficar mod’ língua! Rosa era descombinada
com a esposa do filho que mora em Ceilândia. Quincas dizia sempre que, “esses
assuntos de curador”, “é bestagem”. Mas depois do causo da cura do outro, me disse
que estava de cálculo, se tudo desse certo ele ia “ver o Homem”. Quincas de todo
modo iria a Brasília, como estava prescrito que fizesse a cada três meses, para medir a
pressão do olho. O diagnóstico médico dizia glaucoma.
Certa vez, comentei ter ouvido que o genro acusado de fazer feitiço havia sido,
por outro, identificado como o próprio alvo de feitiço. A hipótese foi logo refutada,
argumentando-se, Quem ia fazer feitiço contra ele? Ele não tem nada! Quem é que ia ter
inveja dele? Formulou-se então uma outra hipótese: as violentas brigas entre o casal não
diziam respeito a um suposto “feitiço” contra o marido, mas à “praga” deste em relação
à sua esposa. A sorte dela estava ruim porque, conforme me contara uma prima sua, ele
enfurecido por algum motivo relativo à cerimônia matrimonial, dissera à noiva, no dia
do casamento, Você vai ser infeliz pro resto da vida! Assim, foi a esposa quem
“cumpriu a sorte” daquela prosa ruim, daquela praga rogada. Por que entretanto é o
marido que estava “sofrendo”, “se estragando na cachaça”?, perguntei. Ela sofre
também, é tudo da ruindade dele! Mas ela é que sofre! E é tola de não vir embora!
Largar daquele traste! Se fica junto, é porque não tem vergonha! Tinha que ir embora!
Como entre mães e filhos, ou tias e sobrinhos, entre marido e mulher os
sentimentos também implicavam ali uma determinada continuidade. Era um causo a se
assuntar. A presença do curador se articula em geral a causos de “gente que não para
quieta”, “só caçando o destino”, “sem sorte”. Contudo, nada disto garante
absolutamente o diagnóstico do “feitiço”. Pode ser que seja “doença mesmo”, ou que
seja apenas a infeliz “falta de sorte”. Assim, o modo de (não) se contar sobre um
infortúnio “feito” acompanha uma seqüência de ambigüidades própria à matéria em
questão. Não no que se refere ao diagnóstico, sobretudo no que toca ao efeito criado
ao se falar sobre o assunto. O ‘entredizer’ sobre o feitiço não constitui - ou nem sempre
- a ocultação de uma “verdade” que se “conhece”, mas a própria forma com que os
buraqueiros concebem o “feitiço”, sempre aberto a outras possibilidades e justificativas.
É justamente sobre os modos de comunicar o indizível e de calcular sobre o que dele foi
comunicado que parece residir o interesse buraqueiro nos causos sobre uma sorte não
desejada. Quando tais causos se estendem em versões, o que se conta é o como e quem
contou o ocorrido. Assim, o receio em verbalizar o termo “feitiço” ocorre não apenas
pelo receio em “puxá-lo” para perto, como vimos (capítulo 2); também porque a forma
286
do (não) dizer acompanha a idéia que se faz sobre o que se diz. A acusação de feitiço,
afinal, não é uma acusação contra “quem fez”, mas também contra quem “sofre”
todos enfim que estejam envoltos em uma relação de “ruindade”. E o próprio contador
do causo, ao se assumir acusador do feitiço, ver-se-á envolto em ruindade, uma vez que
se colocará em relação de “conhecimento” para com os outros de quem fala.
Deste modo, em “assunto de curador”, o entredizer a respeito de uma suspeita é
também o “desejo” que o narrador assume por bem: o de ter boas relações, “amizade
pelas pessoas”. O que se deseja para o outro é como os dedos da o imitando o
revólver, disse-me de Orotides, fazendo com as mãos o gesto que descrevia, do
revólver atirando. Mostrava-me as direções de seus dedos: vai um para quem se deseja o
mal, um para Deus [para cima] e voltam três para aquele que está desejando o mal do
outro. O pior mal que uma pessoa pode fazer é desejar o mal; a outra coisa pior é a
ausência. Como assim ausência?, perguntei. Por exemplo, você fala mal pelas costas,
mas se quando chega na frente, faz a “presença”, quer dizer, trata bem, aperta a mão,
então está tudo bem, então eu nem quero saber se a pessoa falou mal. Porque gente para
falar mal quando você está subindo (dizendo que está subindo é porque rouba ou coisa
assim) é o que não falta, ou pra dizer que está descendo enquanto na verdade vocês está
subindo... Isso é o que mais tem na boca do povo! Dizer que está indo mal é a coisa
mais fácil, mas se a pessoa tem sucesso, quero ver dizer que está indo bem, diz é que
tem alguma coisa errada pra estar avançando. Esta prosa de de Orotides eu fui
compreender muito tempo depois, quando ouvi o causo do causo - “diz-que-dizendo”,
disseram-me - que ele “sabe benzimento mesmo”, que sabe transformar-se em besouro e
então rouba as coisas e ninguém o vê.
Orotido, naquela ocasião em minha casa, por certo entredizia estas “ausências”,
isto que me diziam em sua ausência. Falava-me de “inveja”, portanto, para dizer que o
“povo falava mentira”. Naquela mesma conversa, contou-me da enorme casa que
pretendia fazer agora que se mudara em definitivo para os Buracos: toda rebocadinha,
mais de três mil tijolos comprados, não desses adobes feitos, não! E comentava da
braquiara que plantara em seu terreno, ganhando muito dinheiro com o aluguel para
pasto de gado dos outros; e contava ainda sobre sua extrema e benéfica amizade com os
gaúchos, nomeando desses “as famílias” mais reputadas. Na ocasião de tal prosa,
Orotido estava em minha casa de Chapada, onde encostara para perguntar sobre um dos
“projetos culturais” dos quais eu participava e nos quais ele, como “dono de Folia”, era
parte interessada. Recebi-o com as conveniências de uma visita, oferecendo-lhe pão,
287
bolo e café, que ele comeu e bebeu repetidamente. Fizemos “presença”, portanto, tanto
eu quanto ele. Àquela época eu não sabia sobre os causos de “benzimento” de Orotides,
depois viria conhecer inclusive dos causos notórios, aqueles que todos contam, o
próprio Orotides, com orgulho – o causos de benzimento de cura.
Meses depois, tomávamos o café da tarde em sua casa a título de despedida; era
minha última semana nos Buracos antes de encerrar o trabalho de campo para escrever a
tese. Ele o sabia e nisto dizia que minha visita o alegrava em especial, pois era um sinal
de sua eleição entre as casas visitadas em circunstância cerimoniosa. Orotido gosta
de ser apreciado no que chama a ciência da vida”, isto é, no domínio da viola e das
palavras, que usa, pode-se dizer, com certo abuso, pois que em quantidade. Tudo
“aprendido no sofrimento”, sem escola, sem caneta nem papel. Orotido conta-me
repetidamente dos jornalistas que chegam das grandes cidades procurando-o em
Chapada, mod’ a sua “cultura”. É um “homem declarado”, diz-me com ênfase. Talvez
por isto, quando perguntei sobre “o causo que o povo me contou”, “o causo dos
benzimentos...”, ele sorriu satisfeito e iniciou uma longa descrição de como aprendera o
que sabe. Foi com uma mulher de sua terra, de onde ele veio. Seu nome era Maria e ela
lhe contou que poderia transmitir seus conhecimentos a alguém que se chamasse
José, assim lhe disse ao lhe ensinar as rezas. José de Eurotides, ou Zé Orotido, agora me
contava que poderia “passar adiante” o que aprendera a alguém de nome Maria, por
causa do casal, Maria e José, mãe e padrasto de Jesus. Poderia também ser Mariana, ou
então Ana, por ser esta mãe de Maria e aquela, uma junção das duas, mãe e filha, avó e
mãe de Jesus. O fato de que eu mesma me chame Ana não foi então mencionado por
Orotido, mas ele ali me retransmitiu os benzimentos, repetindo-os tal qual aprendera da
tal Maria da Várzea. Fazendo a encenação das palavras da velha. Faltou-me, contudo,
“influência”, pois não aprendi nada do que ele me contou. Ao chegar em casa, ainda
tentei tomar nota, mas de nada me lembrei sobre as palavras do benzimento. O que
guardei foi aquela teia de parenteza da Santíssima Trindade, modelo de um benzimento
que poderia ser “para o bem”, conforme me reforçou José. Minha presença ali, no
olhar demorado durante o aperto de mãos final, nada tinha de “ausência”, “fofoca” ou
“inveja” – via-se. Esses são os “diz-que-dizendo” que, ao contrário da boa prosa de uma
visita, podem “grudar”, “feito feitiço”. Minha presença, portanto, fazia Zé Orotides “ver
a diferença” na qual se assegurava não ter eu “uma língua” contra ele.
288
5.2 – Do amor e da dor (ruindades)
A responsabilidade é de quem pensa. Deus me Perdoe!, Ave Maria!, diz-se
apenas, mod’espantar o mal, depois de ouvir ou falar qualquer “coisa ruim”. Oscilando
entre os efeitos do “remédio” e do “veneno”, as conseqüências assumidas por quem
“bebe” fazem render boa parte da conversa rotineira. E não raro em algum momento
desta prosa alguém recorre aos santos ou diretamente a Deus. A pinga é uma “garapa do
Demo”, conforme ouvi certa vez. A expressão “Fulano bebe” é usada para dizer que
determinado sujeito “bebe muito, e é cachaça”. Esta se assume assim como a própria
matéria das relações delicadas, “descontroladas”, “descombinadas”. Vimos no causo do
genro bêbado. Da mesma forma, no causo do rapaz diabético, aquela vaga menção à
“coisa ruim” entre irmãos, seguida da brincadeira sobre “feitiço de mulher” me fizeram
re-contar a história, calculando a carga dramática’, por assim dizer, daquela cachaça
diferente”, no dizer da irmã do doente. Como que para apagar a queimação por dentro
queimando igual que fogo! – a água e o alimento, que não “parava no corpo”, se
contrapunham à pinga: fogo! Foi então que, “puxando atrás”, no dizer de Quincas,
pude observar a seqüência de pequenas “diferenças” a respeito da doença do rapaz
diabético: a cachaça deles” é diferente, disse-me a irmã; não é doença, eu conheço
doença, disse Rosa; magreza estranha, disse o povo. Assim, o causo da “bebeção
descontrolada” de pinga depois de água e, por fim, o cumprimento da promessa aos
Santos Reis, “no seco”, entredisse: não era um ocorrido trivial, havia ali “uma
diferença”. A diferença, contudo - no causo tanto quanto no ocorrido não garante que
se trate de um “causo de feitiço”.
Se é ou não um causo de feitiço, isto é o que menos importa aqui sobre o causo
do diabético. Boca que não beija, pinga nela!, dizem repetidamente os buraqueiros em
ocasião de festa. A frase uma pista noutro rumo. A expressão “cachaça ruim”, usada
em referência às pessoas que, quando bebem, se tornam “sangue ruim” e/ou “prosa
ruim”, refere-se também à própria bebida; uma cachaça que faz o sujeito passar mal ou
brigar é uma “cachaça ruim”. Com o intuito de se resguardar de uma possível “cachaça
ruim” , é esperado na Folia que cada um tome em uma única “golada” todo o conteúdo
servido pelo alferes no copo, ou no chifre de boi. Caso o sujeito bebedor não tome toda
dose servida da pinga, ao alfares cabe jogar fora o restante. É comum que na Folia a
cachaça doada pelas casas visitadas seja colocada pelos foliões em garrafas preenchidas
com também um “preparo especial”, plantas e paus variados, dependendo da “ciência”
289
de quem prepara, com reconhecidos poderes curativos, mod’ajudar os foliões a agüentar
sua jornada. A cachaça servida nas folias é chamada “remédio”.
Em toda Folia, existe um risco de “pinga posta”, e isto ninguém se recusa a dizer
de uma maneira assim genérica. Mas ao falar sobre seu conhecimento pessoal, os
foliões nunca me disseram saber sobre algum causo. O “preparo” da cachaça passa pelo
“benzimento” de rezadeiras “chegadas” quase sempre mulheres - cujo intuito é
proteger os foliões de uma possível mal-querência vinda daquele que doou a cachaça.
Esta informação, entretanto, eu obtive quando me envolvi com “projetos culturais”
estimulada por Gelma, a irmã do Prefeito Mundim, cujo pai é Folião de Guia no
Ribeirão de Areia. Gelma me propôs escrevermos um projeto que estimulassem os
jovens a ver na Folia um “saber tradicional” (cf. capítulo 7) e, com ela, aprendi muito
do que nunca ouvira os buraqueiros falarem. Ao lado de Damiana - com quem eu e
outros findaríamos por “fundar um instituto” - Gelma introduziu-me aos termos
“culturais” e “sócio-ambientais” que me engajaram em novas fontes de
“conhecimento”, agora chamados “saberes”. Mas embora, para os “projetos”, Gelma
falasse na “proteção da reza” de um modo mais explícito do que meus amigos
buraqueiros o faziam, Gelma tampouco quis escrever ali sobre “a cachaça”. Ressaltou-
me, com o coro alto de Damiana, que era melhor evitar o assunto da cachaça, embora
fosse um “costume”. A “pinga posta”, portanto, não apareceu em minha prosa com
Gelma. A bem da verdade, escutei o termo, de modo vago, em geral em baixo
volume de voz. Em geral diz-se, É pinga ruim..., e o assunto morre.
Um pouco de pinga é até bom, diz-se frequentemente. Ajuda a ativar a
circulação do sangue. Misturada ao remédio-do-mato, faz com que este circule mais
rapidamente pelo sangue, aumentando sua eficácia, explicam-me. O termo
“aguardente”, por exemplo, costuma ser ali designado para um tipo de remédio muito
usual, com base em álcool. Além disto, a cachaça reduz a dor. Pinga podia não fazer tão
mal!, refletiu certa vez um amigo buraqueiro. A gente bebe até um certo ponto, é bom.
O diabo é que você nunca vai saber quando vai fazer mal para entontar e ter ressaca no
dia seguinte... Quem tem sangue forte não entonta fácil. Tem gente que bebe-bebe e não
cai. Com a idade, a natureza abranda. Vovê, por exemplo, Fulano é um que sempre
bebeu e não tinha problema, depois de velho é que deu para ficar assim, caído pelos
cantos.
É que a pinga penetrou na carne; nem cobra pica mais; até a cobra repuna
daquele cheiro de cachaça! Você os bêbados desmaiados que nem morto pelos
290
matos e não acontece nada com eles! Diz-que Deus protege os bêbados. Hahahá! Beber
cachaça é normal, repetem os buraqueiros. Serve para “dar coragem”, isto é, tornam o
“sujeito” “forte” seja para trabalhar quando o cansaço tomou o corpo, seja para
“chegar na moça” que se quer namorar. “Pinga ficou pra gente, não foi pra bicho não!”,
argumentou-me certa vez um senhor sobre o filho, que sempre bebera e nunca houvera
problema, mas agora passava dos limites, estava “morto na cachaça”, não trabalhava
direito, só bebia. Ele foi “no Homem”, contara o senhor. Bebeu o remédio que o curador
passou e melhorou, mas depois voltou a beber. Se não tiver “opinião”, não adianta,
explicou sobre o tratamento.
Mulher é poucas que a gente fala: bebe!, disseram-me dois buraqueiros em
conversa sobre o tema da cachaça. Com o termo “bebe”, vimos, referiam-se a beber em
demasia, o suficiente para prejudicar o trabalho e as relações. Relacionei esta
observação ao fato de que os homens costumam beber para ajudar no trabalho da roça,
que exige “sangue forte”, mas também imaginei que isto pudesse corresponder ao fato
de que, nos Buracos, as moças são supostas fazerem os homens sofrer, e não o
contrário, vide os causos de separação (capítulo 1) e de matrimônios (capítulo 2).
Quando lhes relatei a associação que supus entre esses fatos, os rapazes riram sem
divergir de mim. Inúmeras canções de rádio cantam ali a figura do homem que se
embriaga por sofrer de amor. As canções chamadas “sertanejas”, ou “forró”, assumem
em sua maioria a perspectiva do homem, sofredor ou feliz de amor. Quem canta é o
homem, não a mulher, o que pode soar mentiroso se imaginarmos a figura corriqueira
das moças buraqueiras cantarolando algum sertanejo. Os rapazes só as cantam em
determinadas ocasiões. Em “época de Folia”, “animados”, cantam como que “de
brincadeira”, Se eu beber, vai doer menos do que está doendo agora...; Tô virando pé-
de-cana, toda noite eu tô bebendo por amor, por amor eu sofrendo, a marvada me
largou...; Amigo locutor (...) estou no celular, falando de um bar, bebi todas pra poder
ligar. Manda um recado e um beijo meu. Sei que ela não perde um programa seu. Vai
locutor, diz que estou completamente apaixonado, louco de amor... E daí por diante.
“Beber” é, enfim, o signo por excelência da rima fácil entre amor e dor. Relacionada à
pinga, a rima nos a idéia da ambigüidade que se lhe mostra constitutiva, um tema
contrastando-se ao outro e ao mesmo tempo iluminando seu sentido.
“O amor é sem juízo”, diz o dizer. Talvez por isto, quando se o associa ao
feitiço, formula-se uma piada. Se é próprio ao modo de alguns sentimentos de amor ser
assim “descontrolado”, pode-se sempre dizer, Bestagem! Brincadeira! E estará
291
entendido que a “sorte” ali não está posta em dúvida: ela é mesmo o destino de Deus,
pois deste, “diz a religião”, nasce o amor. O elo entre “amor” e “feitiço” é engraçado
também por ser um truísmo. Piadas e causos que os rapazes contam em tardes morosas
fazem do “cachaceiro” um personagem recorrente quando o assunto são os desacertos
de uma intenção não pretendida. Tal qual ocorre com a figura do “tolo”, o bêbado é
engraçado por ser “do juízo fraco”; sua comunicação constitui-se de equívocos. A rádio
de Gersino vez e outra reserva um horário para transmitir um antigo cd de piadas, que
alguns buraqueiros conhecem mas gostam de assuntar novamente. Ali, o personagem
caracterizado por gestos “descontrolados” tem como repertório recorrente o amor não
correspondido.
No tempo ocupado “nas casas” analisando-se a relação de um determinado casal,
os causos contados especulam sobre quem gosta mais do outro; e quando o cônjuge ou
namorado em questão está presente, atiçam-no à medida que este reage, sempre
negando seu gostar demasiado. Os outros “atentam”, falam de “um bem-querer doido”
para depois explodir em gargalhadas. Frequentemente, a “cachaça” do rapaz é
mencionada como prova do sofrimento causado por sua “paixão”, esta sobre a qual,
conforme definira Lúcia, deve-se enxergar o perigo da vulnerabilidade, deixando tudo
de lado para viver (capítulo 4). Mas se a cachaça é objeto privilegiado nos
acontecimentos amorosos contados por rapazes piadistas e gozadores, entre as moças o
amor era contado de outra maneira. O que ouvi mais freqüentemente foram causos com
tom folhetinescos, como o da menina que manchou sua própria camisa de tinta
vermelha e a colocou sobre a cama do namorado de sua irmã, fazendo com que esta
suspeitasse que a primeira perdera a virgindade com o cunhado potencial. Em causos
como este, não a “cachaça”, mas sim a “inveja”, parece ser o signo por excelência da
dor de amor. O amor é como um jogo, refletiu certa vez uma jovem buraqueira, hoje
moradora de Brasília, para quem o destino se elaborava como dividido entre voltar para
os Buracos ou terminar os estudos e “arranjar um namorado de cidade”. Vai da sorte,
disse ela, mas a gente também tem que saber o que fazer, não pode ficar parada que não
arranja nada! E se o homem é bonito ficam as outras olhando, querendo tomar o
homem. Têm inveja. E tem gente que até faz coisa! Mas é ruim porque é mexer
com a sorte! Eu não faço!
Os efeitos da “inveja” sobre um “outro” não são necessariamente intencionados
pelo invejoso. É usual, por exemplo, ouvirmos falar em “quebrante” quando se
observam sintomas de um mal-estar recorrente (vômito, febre, sonolência, enjôo,
292
irritação), mas o diagnóstico não vem seguido de acusação, embora se comente vez por
outra a característica “invejosa” de alguma pessoa próxima por convivência e/ou
parentesco e o atingido pelos achaques é alguém que se entende ser objeto de inveja. O
“quebrante” é tão difundido que cheguei a conhecer, em Chapada, um bebê, filho de
mãe gaúcha, portando uma fita amarrada ao pulso. O que é isto? Perguntei. É reza para
quebrante, respondeu-me a gaúcha. Havia sido feita por “uma senhora da roça”,
mineira, pois que os gaúchos não são tidos como entendedores de benzimento. Entre
moças também se fala em “quebrante” com alguma freqüência, mas nunca as vi tomar
quaisquer medidas quanto a isto, como no caso dos bebês. O termo entre elas é dito de
modo mais ou menos equivalente ao “feitiço”, isto é, no sentido da “brincadeira”. Como
que justificando uma preguiça em ir para o rio lavar a roupa, uma moça pode dizer,
Estou com um esmorecimento... Deve que é quebrante... Hahahá! Eu questiono, O que é
“quebrante”? É olhado, respondem-me sem mais. De quem? É o povo! É inveja do
povo! Numa certa ocasião, em viagem com Tutty e seus pais a um povo vizinho para
irmos a uma festa, ela sentiu-se mal ao chegarmos, com dores de cabeça e enjôo.
Recusou o café oferecido pela dona da casa que nos recebia alegando indisposição,
Deve que é quebrante!, disse, O povo deve que me achou bonita! A mãe voltou-lhe um
rosto sério e ralhou, E quem é que ia fazer quebrante? Tutty corrigiu-se, É brincadeira!
Graças ao estado de relaxamento e gozação que este modo da prosa costuma
assumir, as “brincadeiras” em torno de namoros, cachaça e inveja forneceram-me
alguma brecha para aprender o que se pode “fazer” a respeito da “sorte” no amor. Dizem
os antigos, por exemplo, que uma namorada não deve dar sua foto ao namorado, pois
com esta os ex-namorados às vezes fazem “porqueira”. As moças que me contaram
sobre este receio afirmaram-me que é um conselho a ser seguido. Por outro lado,
presentear “os outros”, sobretudo namorados, com fotografias próprias ou de seus
familiares constitui uma prática corrente entre buraqueiros
79
. Durante meus sucessivos
retornos aos Buracos, os retratos impressos das fotos digitais tiradas por mim em visitas
anteriores eram presentes com os quais eu sabia agradar invariavelmente. Não é segredo
que as fotos presenteadas têm como objetivo despertar no outro a admiração pelo olhar.
Ó como estou bonita! Diziam-me quando se arrumavam para uma ocasião especial.
79
No último ano de campo, Gersino da rádio comprou uma câmera digital e passou a oferecer serviços
fotográficos em Chapada. O custo é caro para os buraqueiros: cinco reais uma fotografia 12cmX15cm.
Mascates de vez em quando aparecem nos Buracos para vender os quadros emoldurados, nas quais o
retratado ganha retoques a mão que chegam a incluir ternos e gravatas nos homens, e brincos e chapéus
nas mulheres. Por tais quadros, os buraqueiros pagam “um salário” (à época, em torno de $R 400,00).
293
Capa de revista! Olha como estou capa-de-revista! Hahahá! Quando estive com Tutty na
casa da família de um rapaz solteiro dos Buracos, ele nos mostrou com orgulho as
várias páginas de seu álbum, com fotografias de amigas e ex-namoradas; espantei-me
com a quantidade de fotos. Presentear alguém com uma fotografia própria parece ser,
nos Buracos, um modo deliberado de se expor ao olhar alheio. Desta contradição entre
querer ser olhado e se expor ao [mal] “olhado”, parece surgir o próprio “jogo” do amor,
a “inveja” sendo uma espécie de efeito colateral do “querer-bem”.
5.3 – Viagem ao curador
Os “curadores” parecem-se com alguns “benzedores” à diferença que os
primeiros receitam “remédios de farmácia” e os últimos não. Ambos caracterizam-se
por saberem fazer “benzimentos” (ou “rezas”), mas o termo “benzedor” designa não
curadores profissionais como também parentes ou vizinhos que “sabem rezas” e as
associam aos “remédios do mato”. Estes constituem um conhecimento mais ou menos
difuso entre as mulheres da roça, as chamadas “remedeiras”, mas por si não se
confundem com a prática de reza. Ocorre, porém, que muitos remédios do mato são
conhecidos em associação a determinados benzimentos de cura e são bastante
difundidos entre pessoas “religiosas”. A dor de barriga é o provável alvo mais comum
destas práticas, transmitidas a quem queira aprender: basta “ter influência”.
Normalmente, são aprendidas por mulheres que querem curar filhos ou netos. Mas
existem rezas cujo conhecimento restringe-se a poucas pessoas, ultrapassando os limites
da usual mexida feminina para com a saúde familiar. Trata-se de rezas de utilidades
diversas, podem ser feitas seja com o intuito de “prender mulher (ou homem)”, seja para
amansar animal valente, ou simplesmente para caminhar com os pés descalços sobre
brasas fumegantes. Esta última proeza não apresenta qualquer objetivo a não ser o de
exibir a força de sua própria “fé”. Existem dois rapazes buraqueiros que costumam fazê-
lo por ocasião das fogueiras de São João, conforme diversos parentes me contaram ter
visto. Embora os próprios rapazes digam que se trata apenas de “fé”, os outros dizem, É
o quê! É reza que eles fazem!
“Benzimento” e “reza” são palavras usadas indistintamente, mas apenas a
segunda pode ser empregada no sentido prosaico das “rezas que todo mundo sabe”, isto
é, o Pai Nosso, a Ave Maria e o Crê em Deus Pai. Quando usados como sinônimos, os
dois termos também servem para falar sobre o que - muito cautelosamente se chama
294
“feitiço”. Esta coincidência entre sentidos opostos se por meio da idéia de que, seja
para o “bem” ou para o “mal”, são práticas que, em última análise, “mexem com a
sorte”. Existe porém uma importante gradação no modo como se encara esta questão,
pois se o benzimento feito não vai “contra a vontade de Deus”, ele é menos “mexer com
a sorte de Deus” do que ajudá-la segundo a vontade do Mesmo, o que, aliás, envolve
uma inspiração propriamente divina. Assim, se os termos benzimento/terapia e
benzimento/feitiço são a rigor homônimos antônimos, não devemos desprezar sua
coincidência no que diz respeito às técnicas que implicam. E com isto o termo produz o
curioso efeito de, em determinadas circunstâncias, querer dizer duas coisas contrárias
em um único gesto. Embora este dado tenha chegado a mim apenas sorrateiramente,
conforme veremos no próximo capítulo, é notável que ambos os sentidos designam um
conhecimento de difusão restrita, além de se constituírem, tanto um quanto outro, em
procedimentos de concentração individual nos quais se verbalizam palavras aprendidas
de alguém em geral mais velho, que “já conhecia reza”. Estas semelhanças, entretanto,
não são explicitadas pelos buraqueiros, a não ser na coincidência dos nomes e na
controvérsia de uma e outra designação: diz-que benze; é nada, coitado do inocente,
sabe só uma rezinha para dor de barriga!
Para além destes pequenos lapsos, os buraqueiros acentuam, via de regra, uma
importante “diferença” quanto ao caráter benéfico ou maléfico dos termos homônimos:
o primeiro corresponde à “vontade de Deus”, o segundo associa-se àquele de quem “não
se deve dizer o nome”. O termo “diferença”, tal qual se conceituou no primeiro capítulo,
tem quanto a isto uma dimensão fundamental, pois que se assume, a um tempo, em
seu sentido ordinário “não é o mesmo” - e em uma possibilidade grave - a quebra de
rotina indicando algo que “não é de Deus”. Dizer que o benzimento de alguém “é
diferente” evoca, portanto, um conjunto de possibilidades significantes. A
multiplicidade contida nesta idéia de “diferença” será ainda explorada no próximo
capítulo. Por ora, note-se como o “benzimento” e a “reza” são termos igualmente
capazes de dizer muitas coisas em uma vez, de modo que o vocabulário sobre este
assunto constitui uma comunicação que se reduplica em sentidos deliberadamente
dúbios.
Alguém que conheça qualquer “reza” contra um mal ordinário em geral dor de
barriga, enxaqueca ou medo de defunto - pode ou não ser considerado um “benzedor”,
mas nunca escapará totalmente de alguma suspeita. Um senhor amigo do povo dos
buracos, vizinho de Quincas na época que este trabalhou para os lados do Rio Preto,
295
vende remédios que ele mesmo faz e benze, mas cuja função é apenas curar males do
corpo, alega ele. Mesmo assim, estando hoje solteiro, é frequentemente alvo de chacota,
Faz um benzimento para arranjar mulher!, aconselham-no, entre risos. Sua filha, hoje
casada com um buraqueiro, ralha contra as brincadeiras de seus afins; sabe que a idéia
de alguém que mexa com a sorte no amor tem um poder perigoso, pois que tal domínio
é por excelência a do destino pessoal, dados conforme a Natureza dada por Deus.
Embora não se considerem como tal, pessoas que sabem apenas um único
benzimento podem ser chamadas jocosamente de “benzedores”, pois que mostraram
“ter influência” no aprendizado da matéria. Assim, os outros duvidarão do verdadeiro
alcance deste seu conhecimento; e a brincadeira sobre o fato expressará uma
possibilidade em aberto. Existem contudo algumas pessoas que se orgulham pela fama
de serem “boas de reza”, e neste causo o que se arvora são claramente os benzimentos
de cura. Existem moléstias que os “verdadeiros benzedeores” em geral os
“profissionais”, mas não estes sabem curar. A cachaça é “uma principal” entre
essas graves moléstias. Alguns curadores preparam remédios próprios contra isto,
bastando que se leve, do bêbado, uma camisa usada ou uma fotografia. O curador ou o
benzedor faz, sobre estes objetos, o benzimento que pode funcionar a despeito da
vontade do benzido; por outro lado, a duração da eficácia de tais remédios parece
depender da “opinião” de quem é medicado, pois toda reza depende também da fé,
assim como toda benção divina depende do esforço humano. O mesmo esforço de
necessário ao benzido é fundamental ao benzedor, embora apenas neste segundo caso
tal trabalho seja motivado por uma espécie de “natureza” pessoal. Quem é “bom de
reza” é porque “já nasceu com aquela devoção”. Os foliões-guias são “desse tipo de
gente”, não são necessariamente “benzedores” porque “não sabem ou não fazem”
reza para cura.
A palavra “benzedor” é assim um termo muito preciso no que consiste à
definição de sua prática; mas muito genérico se considerarmos que se refere a qualquer
um que saiba fazer benzimentos. Seja um “curador”, um “benzedor profissional” ou
mesmo um “chegado” que seja “bom de reza”, todos são benzedores; mas quando
pergunto sobre “o que sabe” cada um, os buraqueiros mencionam, com igual precisão,
as distinções ora relacionadas. É importante neste sentido distinguir entre as pessoas
“chegadas” que lançam mão de benzimentos em ocasiões específicas e os benzedores
profissionais que, como os curadores, fazem da cura por reza sua principal atividade
econômica. Por esta motivação pecuniária, os últimos são sujeitos a desconfianças tanto
296
em relação à honestidade de suas intenções – “eles sabem é tirar dinheiro do povo”, diz-
se – quanto ao teor de suas rezas.
Todos os curadores e benzedores profissionais de que ouvi falar nos Buracos
ofertam suas consultas em lugares distantes dali, e em geral, as pessoas não alardeiam
sobre o causo de viagem a um curador. Apenas após eu mesma ter tido a experiência e
contado a todos sobre o causo da minha viagem é que comecei a ouvir dos outros seus
próprios relatos, contados em conversas particulares ou entre os mais chegados. Neste
ponto, as relações com os “curadores” diferem das que se estabelecem com os
“doutores”, as quais, conforme veremos logo mais, rendem causos repetidos à exaustão.
Mesmo a motivação da consulta ao curador, quando não se trata de uma moléstia
conhecida por todos, não é um assunto dito a não ser em particular, entre “chegados”.
Este receio em tocar no assunto se manifesta na substituição recorrente do termo
“curador” por “O Homem”. Às vezes, indica-se o local onde ele se encontra para que se
saiba de quem se fala, como por exemplo “O Homem de Côcos”, no caso do curador
que conheci. O baixo volume e o jeito de pronunciar este termo - num “modo de
conversar para dentro” - faz com que a palavra seja imperceptível a um não-falante da
“conversa dos povo da roça”. Este modo de falar é apenas um dos inúmeros
subterfúgios usados pelos buraqueiros para abordar o que, pela sua própria matéria, não
deve ser dito, ou ao menos não verbalizado, pois que só se expressa como ‘entredito’.
Quem fala de feitiço é prosa ruim, explicou-me certa vez uma moça buraqueira.
Exemplificou-me: quando alguém vai no curador e ele diz que é feitiço do vizinho, faz
brigar com o vizinho, é maldade. Nos Buracos, todos sabem que Dona Rosa diz ter sido
alvo de feitiço. Mencionam o causo em geral para dizer que ela é “prosa ruim”. Ou seja,
que isto é prosa ruim de Rosa, nada que mereça muita atenção. Certa vez, eu estava
vendo novela na casa de uma das quatro moças em idade de casar, as outras três
também estavam lá e a TV transmitia O Profeta, a novela das seis, a que elas mais
gostam. Contava a história de um rapaz que tem poderes sobrenaturais e os está usando
para enriquecer. O rapaz não queria fazer isso, pois é um bom rapaz, mas a mocinha que
ele ama vai se casar com um homem rico, ele acha que só terá o seu amor se ficar rico
também. Trabalhar como profeta estava levando o mocinho da novela para o caminho
do mal. E as moças dos Buracos me explicavam porque é errado uma pessoa usar os
seus poderes para enriquecer a si mesma; mexer com a sorte é um trem ruim, disseram.
A Tia Rosa, por exemplo, vive dizendo que fizeram feitiço nela. Mas ela não diz quem
foi que fez.
297
Dona Rosa, por sua vez, contou-me sua versão do causo, que durou mais de ano.
Foi a única vez que ouvi um testemunho aberto sobre uma experiência própria
envolvendo “feitiço”. Era um relato “particular’, em uma tarde calma a sós na cozinha,
quando me chamara para o café, talvez especialmente querendo me contar o causo, pois
dias antes eu perguntara algo sobre “feitiço” e ela franziu a testa dizendo “não saber
dessas coisas”. Segue o causo de Rosa:
Eu estava doente dos nervos e estava na menopausa. Os médicos no são Paulo
disseram, mas eu fiz mais de onze exames e não deu nada, por isso eles não davam
remédio. Teve um médico de Arinos que deu um comprimidinho cor-de-rosa e eu bebi.
Mas nada curava. Tinha uma dor de cabeça que não pode; corria para o mato porque
não agüentava. Às vezes, ficava seis meses sem menstruar. vinha a menstruação e o
modess ficava em um minuto igual a um pirão. Teve uma vez que fiquei dois anos sem
menstruar, quando desceu foi que eu quase morri. Tiveram que me carregar nos
braços de tão fraca que eu estava. A Bia, minha filha que mora no São Paulo, queria
me levar para lá. Mas se eu não quero ir quando estou boa, imagina ruim dos nervos. Lá
que a gente fica presa dentro de casa. E coisa pior que tem para cabeça é ficar preso
dentro de casa. Não queria mais deitar com meu marido. Não queria ir tomar banho no
rio. Eu voltei para cá e me falaram para tomar uns remédios do mato... Eu fui à farmácia
e tomei Maracujina. E tomei outro gole. deitei à tarde e fui acordar no outro dia.
Mas continuei ruim. Era tanta coisa, que eu nem me lembro. E gastei tanto dinheiro com
remédio e exame, quanto gado não dava para comprar com esse dinheiro... ficava
aqui, sem coragem de fazer nada, nem fazer o de-comer a minha natureza não deixava.
O meu filho Nêgo, coitado, tinha que botar água no feijão para eu depois ter coragem de
cozinhar. Até que um dia, não sei o que aconteceu, porque sempre tinha alguma
natureza que não deixava eu ir no Posto. Todo dia eu dizia que ia e alguma coisa
acontecia que eu não ia. Até que teve um dia que me deu uma vontade de ir. Mas uma
vontade. eu fui... Lá tem uma enfermeira que é sobrinha minha, a Nair. Eu falei com
ela se ela podia arranjar de o Doutor Luizinho me atender - na época não era esse
Reginaldo de agora, era o Luizinho, boa pessoa demais! Ele atendeu três barrigudas
[grávidas] e a minha sobrinha falou para eu entrar. Ele mediu minha pressão - porque
eles eles tiram a pressão, mas o Dr. Luizinho fez questão de ele mesmo medir a
minha. E ouviu meu coração. me disse, A senhora está com o coração bem
fraquinho, e a pressão está alta. Eu botava a mão no peito e nem ouvia o coração. Aí Dr.
Luizinho me falou, Ó, a senhora está com um problema, mas não sou eu que posso
298
tratar. ele falou foi... não foi curador, foi benzedeiro. Falou, A senhora tem que ir
num benzedeiro que a senhora está com mal olhado. Eu disse: mas essas coisas não
existem... Ele disse, Existe. eu pedi paro o marido da minha vizinha da Chapada,
que tem moto, se ele me levava. Levo agora, ele disse. E me cobrou sessenta reais. As
motos cobram setenta reais para levar nesse Homem em Vargem Bonita, ele fez por
sessenta. eu fui nele. Cheguei lá, o rapaz da moto me levou no benzedeiro. E eu
conheci! Ele é casado com uma prima carnal minha, mas eu nunca soube que ele benzia.
E cheguei e minha prima ficou emocionada. Chorou muito, chorou de alegria. E ele
foi me benzer. Rezou um terço, depois botou um negócio com cheiro e rezou, ficou um
bocado de hora comigo. disse que eu estava mal mesmo. Eu suei, suei, que ficou
uma catinga. Então eu tomei um banho e minha prima me deu uma roupa. E eu dormi.
Depois disso melhorei. Eu perguntei para o benzedor quem é que tinha jogado mal
olhado, mas ele disse que eu não podia ficar sabendo. Eu pedi se podia fazer voltar para
a pessoa. E ele disse que Nossa senhora se encarregava de fazer pagar. Tempos depois,
eu fui no Doutor. Luizinho e ele perguntou, A senhora foi no benzedor, né? Porque
está boa!
Eu mesmo não tenho ni curador!, dissera a moça que recusava-se a acreditar
no causo de Rosa. Quando estou doente, vou no médico, disse ela. Se ele não resolve,
me apego em Deus. Todo curador diz que tem feitiço. Se uma pessoa não acredita, o
feitiço não pega. E ninguém diz na cara que fez feitiço. Se eu te digo na tua cara que te
enfeiticei, você não vai acreditar em mim! Dona Zefa-Carneira, cujo filho tornou-se
paralítico quando rapaz-moço, contou-me o causo do tratamento também indicando na
falta de crença as razões para desmerecer os curadores. Muita gente diz que foi erro do
médico, contou-me ela sobre o problema do filho, mas não foi não. Foram as feridas
que deram no corpo todo. Naquela época pipocou umas feridinhas na pele dele... Deve
ter dado também por dentro do corpo, no lugar da coluna. Da virilha para baixo, ele hoje
não sente mais nada. Começou sentindo uma dor nas costas que não passava. ficava
indo ao Posto, tomava injeção de Benzetacil mas nem assim a dor não passava. E ele
passou a sentir as pernas dormentes. o Posto mandou para Montes Claros. Até que
começou o braço também a ficar dormente. Aí a gente assuntou, lembrou Zefa, e
levamos na Brasília. Foi quando foram ver e disseram que demorou muito para ir
tratar, ele estava com uma coisa, penso que era um tumor, mas não era câncer. Tinha
que operar a coluna para tirar. Ele operou e disseram que depois de uns meses voltava a
299
andar. Mas ele fez dois anos de fisioterapia e ainda nunca melhorou. É um rapaz tão
lindo. Dá um dó...
Perguntei à Dona Zefa se chegaram a levá-lo em um curador. Sim, respondeu
ela, manifestando imediatamente que não acredita em curador. Porque essas coisas,
assim, é só com médico mesmo, afirmou. Era uma curadora em São Paulo, onde moram
uma filha de Zefa e a família de uma irmã. A mulher falou em feitiço, disse Zefa, mas,
não é não, é problema mesmo de doença. Ela pediu cem reais, não deu certo, pediu mais
seiscentos, depois disse que as barcas que ela mandou pelo rio, que tinham que subir a
margem, estavam com dificuldade pra subir, então ela precisava de mais dois mil.
eles não acreditaram mais nela. E nem se acreditassem, não tinham esse dinheiro todo.
A curadora segurava Silvaneis de um jeito que botava ele nas costas e saía caminhando.
Disse que era feitiço de uma ex-namorada que queria ele e ele não queria. Mas é o quê!
Bestagem! Quem ia fazer feitiço contra ele que sempre foi uma pessoa tão querida?!
Pelo que a curadora falou, a pessoa era uma pessoa que a gente conhece, conhece a
família e tudo, gente muito boa!
Nos Buracos, não acreditar em certos causos parece ser antes um modo de
proteção - uma deliberada auto-afirmação das boas relações próprias (com pessoas e
com Deus) - mais do que uma atitude de ceticismo sobre o que se diz “não acreditar”.
Conforme a explicação de outra moça, não se deve “mexer com a sorte”, pois esta
pertence a Deus. Se você mexe com a sorte, vose abre para as coisas que outras
pessoas querem fazer com você, disse-me ela. Assim, existe uma importante diferença
entre a atitude de alguém que vai ao curador para “ser benzido” - como se “recebe o
benzimento” do padre em uma missa católica e alguém que tem a intenção de “fazer
alguma coisa”. Da mesma forma, quando se fala mal dos curadores, mencionam aqueles
que “batem na sua porta” oferecendo serviços, em geral dizendo que sabem que existe
alguém fazendo feitiço contra o dono da casa, para então cobrar pela proteção. Pelo
número de menções a esta figura do curador andarilho, não parece ser um fato raro,
embora eu pessoalmente nunca tenha presenciado algo do gênero. Os curadores como
os de Côcos são considerados mais confiáveis por ter um local de trabalho estabelecido
e conhecido por todos.
Nunca tive notícia de alguém que tivesse ido a um curador para fazer
benzimento contra outrem “o mal puxa o mal”, explicam todos mas ouvi menções
passageiras a respeito de profissionais que “fazem coisa ruim”. Sobre o curador com
quem me consultei, por exemplo, uma pessoa me disse que ele encaminha aqueles que
300
querem “fazer trabalho pesado” para se consultarem com sua irmã, de quem
curiosamente nunca ouvi falar a não ser nesta única vez. Nem mesmo quando estive por
lá escutei qualquer comentário que o sugerisse.
O município baiano de Côcos, onde vive o curador que visitei, faz fronteira com
Chapada Gaúcha. A divisa municipal é feita pelo rio Carinhanha e separa também os
estados da Bahia e de Minas Gerais. Ê, agora mineiro virou baiano!, diz-se na frase
clichê toda vez que se passa de um lado para outro do rio. A fórmula é dita em tom
alegre, como de quem narrasse um causo de longa caminhada. “O Homem de Côcos”
mora em uma comunidade que não possui mais do que cem habitantes, a poucos
quilômetros da sede municipal, e na qual grande parte das atividades parecem girar em
torno das consultas de cura. Chegando ali, a importância do Homem se explicita nos
pôsteres colados em diversos locais com seu retrato; trata-se de uma foto de campanha
das últimas Eleições, nas quais ele se elegeu vereador. A cada dia chegam carros e
ônibus cheios de gente destinada a se tratar com os benzimentos do curador. Ali pagam
pelo pernoite, pela comida, e pelo conjunto de remédios, uma lista que inclui
fitoterápicos industrializados e comprimidos alopáticos e xaropes alopáticos. Pelo que
ouvi nos Buracos ou “na região” a respeito dos relatos sobre diversos curadores,
entre eles variações sobretudo no que consiste ao receituário de medicamentos e ao
sistema de cobrança. O Homem de Côcos não cobra a consulta; e os que o elogiam
mostram nisto um sinal de seu “trabalho sério”. Ele não produz remédios próprios,
como fazem outros curadores, apenas receita os que existem comercializados; e não
receita a quem não venha consultar-se pessoalmente, mas faz benzimentos a partir
das fotografias trazidas em geral por parentes do amolestado, às vezes à revelia destes.
Em alguns casos, o curador fez o benzimento e encerrou o assunto sem nada dizer;
noutros, informou sobre os sintomas dos ausentes, chegando a dizer que, pela gravidade
do mal, deveriam vir pessoalmente para se tratar. Nem todos os problemas referiam-se à
“cachaça”. Todos os remédios ali receitados podem ser encontrados nas farmácias de
Chapada – uma delas é, aliás, especializada nos medicamentos que se sabe serem
usualmente recomendados pelo Homem. Mas como é fundamental que se trate
exatamente do que foi receitado (não bastando ter a mesma fórmula, explica o curador),
os viajantes, quando portam a quantia necessária, preferem em geral garantir sua
compra na venda estabelecida no próprio local.
Todo o movimento de pessoas e deste pequeno comércio se faz em função da
atividade do curador. Os que viajaram comigo gastaram cerca de duzentos reais com os
301
medicamentos, além do dinheiro gasto com comida (sete reais o prato) e pouso (cinco
reais, no cômodo sem camas; oito, no quarto com cama). Pelo transporte, pagam
sessenta reais a Cassote, mineiro da roça, da região de Chapada, onde hoje mora, e
que também organiza viagens regulares a Bom Jesus da Lapa, tão concorridas quanto as
de Côcos. Seo Zé Cassote é figura notória entre os chapadenses, pois além das viagens e
de ser reconhecidamente bom de “prosa” tanto quanto de “presença”, é dono de um
terno de Folia. Cassote conta que vai regularmente ao curador de Côcos desde que foi
curado definitivamente de uma dor de estômago crônica, sobre a qual os diagnósticos
médicos de nada haviam servido. Na época em que viajei com ele, seu irmão, depois de
ter sido alvo de uma denúncia que o levara à prisão durante um ano, agora sofria de uma
doença que o fizera emagrecer até restar “só pele e osso”, as feridas pelo corpo se
espalhavam e se tornaram comentário geral em Chapada. Cassote mostrou ao curador as
fotografias do irmão para que este o benzesse.
Quando decidi fazer a viagem ao curador, falei abertamente sobre o assunto, mas
nada me perguntaram a respeito de meus objetivos. Apenas algumas semanas depois de
ter voltado, e depois de minha insistência em conversar sobre o tema, Dona Rosa
perguntou-me sobre minhas intenções; se era para “melhorar tudo” ou se tinha algum
“motivo especial”. Lúcia também viria a perguntar, mas em sua questão continha a
resposta: você foi para pesquisar? Julguei que ela assim me fornecia gentilmente a saída
de que eu poderia dispor diante da indiscrição de sua pergunta. Maria-de-Neco, cunhada
de Lúcia pela via do marido, viajou comigo para tratar do filho; e antes de questionar
sobre mim, Rosa me perguntou se a moça havia se consultado também ou se apenas
levara o filho. Pelo tom baixo com que formulou a pergunta, notei que era “um
particular”. Era sabido que o menino, com um ano de vida já completo, mal engatinhava
e tinha dificuldades em fixar o olhar nos objetos; além disto, tinha uma mania de virar
os olhos para o lado e ficar tremendo a cabeça na direção dos olhos virados. Os médicos
alegaram que o baticum da cabeça era devido à dificuldade de enxergar, e receitaram o
uso de óculos. Mas como o quadro da criança não se alterara, era justificada a ida ao
curador, sem que para isto se necessidade dizer o que fosse. No causo da mãe,
entretanto, não havia porquê a consulta, a não ser, como ela mesmo explicou, pelo
simples fato de ser mãe do enfermo. É que a gente sente junto com o filho, disse-me ela,
eu fico assim com uma coisa ruim, um esmorecimento... Sua elaboração era mesmo
uma justificativa, feita depois de nossas consultas, pois que me dissera não ter a
intenção de “ser benzida” pelo Homem. Ele é que tomara a iniciativa, preocupou-se ela
302
em me informar, concluindo que estava certo: sendo mãe, sentia o mal do filho como se
fosse em seu próprio corpo. Reproduzi este argumento a Dona Rosa, que balançou a
cabeça em acordo e nada disse.
Evitar “sair contando” de si envolve ainda, na questão do Homem, uma
indisposição em entrar nas controvérsias acima mencionadas. Neco, por exemplo, o
marido de Maria, opôs-se à idéia de levar o menino ao curador e, uma vez tendo
finalmente consentido a viagem da esposa, permaneceu algo contrariado; o assunto
dentro de casa se deu por encerrado e por isto era evitado. Além do mais, a controvérsia
poderia indispô-lo com o sogro. Maçu, o sogro, fizera duas ou três vezes este trajeto a
Côcos; e a quem perguntasse, respondia que “deu muito bem” com os remédios
receitados pelo Homem. Maçu é “primo-primeiro” de Neco; sua mãe, a Velha-Maria de
Antônio-Velho, era irmã do falecido João Carneiro, pai de Neco. Tudo povo antigo dos
Buracos! Neco e o sogro Maçu “regulam na idade”, pois que o primeiro “casou tarde”
com a filha do segundo, a Maria que hoje “é de Neco”. A mãe deste, Dona Zefa-
Carneira, não é da mesma família - é dos Pereira, “já do outro lado” mas, igual, “tudo
gente antiga nos Buracos”. Dado isto, consta que a relação de Neco com seu sogro
Maçu “é boa”: “são chegados”. Não convinha portanto criar desavença na tal questão do
curador. O assunto “ficou por dado”.
Acostumada a “viver na barra da saia da mãe” e tendo ido da casa dos pais
“direto para o casamento” , Maria-de-Neco é acostumada a “só viver de dentro da casa”,
é quieta, “puxou” à mãe Luzia, “não dá motivo” para Neco “ciumar”, “ficar de prosa”, e
a viagem se fazia então “só pelo motivo certo”. Maria “nunca deu trabalho” (diferente
da irmã, Angelina, que, “no dizer do outro”, de anjo é só o nome); a aventura da viagem
sozinha era pela primeira vez. Acanhada, Maria não conversou com os homens que
viajavam conosco; pedia que eu a ajudasse para resolver qualquer assunto de pouso ou
comida. Imaginei que se sentisse desconfortável, mas ao fim da viagem ela me contou
que tudo havia sido motivo de grande divertimento. A viagem além do mais ajudou que
estreitássemos amizade. Chegando de volta à Vila, noite alta, Maria me pediu para
“pousar” na casa de sua sogra, assim eu a ajudaria com as trouxas suas e do menino,
argumentou, acrescentando, sobre a sogra, Tia Zefa vai ficar feliz se você pousar lá!
Esta, de fato, nos recebeu com surpresa: não sabia que Maria tinha viajado!, disse-nos.
Bem que ouvira dizer - Menino-de-Fulano contou - que ela tinha andado por Chapada.
Achou que era no Posto e de descida pros Buracos, pois ninguém viu mais Maria
na Vila... Agora então veio o susto manifesto pelo tardar da hora; mas Zefa-Carneira
303
não ralhou com Maria. Não o faria diante de minha presença, decerto, e por outro lado,
tampouco achava ruim a tentativa no curador. Perguntou o que a gente tinha achado do
Homem e falou em levarmos da próxima vez a camisa de Silvaneis, o filho de Zefa que
fira paraplégico havia dez anos. Acho que o Homem gosta mais que a gente leve foto,
alertou Maria. Leva os dois, sugeriu Leide, a “filha-criada” de Zefa. É pode mandar,
disse esta, A gente nunca sabe, né... De onde veio essa doença...
O próprio Silvaneis permaneceu calado, embora estivesse no quarto contíguo,
em sua cadeira de rodas, de onde podia nos ouvir. Momentos depois, quando
conversamos sobre o causo, ele comentou apenas, E então, como é o homem? Aquele
jeitinho de tirar dinheiro do povo, né? Silvaneis é hoje paralítico, mas me disse que nem
pensa em recorrer ao Homem, pois “não acredita nadinha”: as pessoas que vão têm
que estar sempre voltando; nunca melhoram de vez, argumentou. E não conversou mais
o assunto, assim como fez Mildo, o primo que naquela noite também dormiu na casa de
Zefa-Carneira. Esta reação foi a da maioria das pessoas a quem comentei sobre minha
viagem a Côcos. Os rapazes dos quais sou mais chegada, gente do Calengue, muitas
vezes fizeram comentários como os de Silvaneis, antipáticos ao “jeito” do curador. As
moças mais amigas não emitiram opinião e nem me fizeram muitas perguntas. Mas,
apesar da discrição geral e das contraposições individuais, o assunto dos curadores vez
ou outra desponta na conversa cotidiana dos Buracos, fazendo-nos notar que recorrer ao
curador é, entre buraqueiros, uma prática bastante usual. A notícia sobre a viagem
agendada a Côcos é anunciada na rádio de Chapada, principal meio de comunicação
para todas as “comunidades”, “os povos das roças”, e embora nada se mencione sobre o
Homem, todos sabem do que se trata. Espalham a notícia aos chegados que se sabe
“querer ir”. Diz-que Fulano “está querendo ir”. O custo da viagem faz com que esta
vontade nem sempre se concretize, e às vezes acabam desistindo. Assim, as idas ao
curador costumam ser feitas por pessoas que muito tempo “pensam em ir”, “estão de
cálculo de ir”.
Quem vai para Côcos tem sempre o alegado objetivo de se tratar, mas em geral
não esconde a motivação do divertimento proporcionado pela ocasião. “Um dia quero
fazer essa viagem”, diziam-me freqüentemente quando eu contava sobre minha ida, e
me perguntavam sobre o que eu havia “conhecido” pela estrada e cidades por que
passara. A viagem costuma levar cerca de doze horas de ida mais outras doze de volta.
Nas duas vezes em que fiz o périplo, saímos de Chapada na madrugada de um dia e
chegamos de volta na noite alta do dia seguinte. A maior parte do tempo é gasta na
304
estrada, onde paramos de tempos em tempos seja para comer, para desatolar o carro na
estrada arenosa ou enlameada, de acordo com o tempo da seca ou das águas, ou para
esperar que Zé Cassote “resolvesse um assunto” em casa de amigo. ainda os rios
Cochar, Carinhanha e Itaguari caudalosos, costumam ser os pontos altos da viagem:
ali paramos e apreciamos a abundância da água que não se nos rios próximos à Vila
de Chapada Gaúcha. A paisagem, mais montanhosa e com árvores mais altas, também
rende assunto e admiração entre os passageiros, bem como o cerrado recém recuperado
das carvoeiras extintas. Nas duas vezes em que fiz a viagem, nada se falou sobre a
motivação da consulta no percurso de ida.
Durante a volta, quando “criada” a “intimidade”, falou-se mais do que na ida,
mas sobre assuntos aleatórios; quase nada sobre o ocorrido na consulta com o Homem,
de quem se fez um e outro comentário. A única preocupação explícita é para com
aqueles que passaram pela “operação invisível”, o que exige alguns cuidados prescritos,
como evitar o esforço do corpo. Os demais passageiros cedem os lugares mais cômodos
aos pós-operados e dão a estes as dicas que sabem sobre sua condição. Eles devem
dirigir a Côcos cerca de três vezes, com intervalos de 30, 60 ou 90 dias: primeiro vão
para receber o diagnóstico e se informar sobre os procedimentos pré-operatórios; depois
de cumpri-los, voltam para operar-se; e na terceira vez para retirar os pontos invisíveis
da operação. Tal tratamento é feito com uma tesoura que o curador desliza sobre a
superfície do corpo do paciente enquanto profere algumas palavras relacionadas ao
Deus, aos santos e ao problema diagnosticado. A condição exige algumas privações,
como a interrupção temporária da atividade sexual, o que gerou algumas piadas durante
nosso caminho de volta. Quem passa por esta operação explica que, no pós-operatório,
o corpo fica enfraquecido tal qual ocorre à ocasião da “operação normal”; e, numa como
na outra, existem determinados alimentos que lhe são proibidos. Durante a viagem,
entretanto, ninguém comentou sobre o assunto das proibições alimentares pessoais. O
único causo que ouvi a respeito foi dito em uma conversa particular, tida quase aos
sussurros, quando por acaso eu me encontrava por perto. Deu-se entre duas mulheres
que já haviam feito a operação invisível. Uma delas viajava para tirar os pontos e contou
que, ao fazer a operação, o curador lhe disse para não comer ovo, quiabo, mandioca
nem batata doce. Ela esquecera do quiabo, Foi só comer e passei mal na hora!, contou.
O local da consulta é uma sala com não mais de seis metros quadrados, onde não
cabe mais do que duas mesas pequenas, uma para o curador outra para os dois
auxiliares, e um banco comprido no qual se sentam cerca de quinze pessoas apertando-
305
se umas às outras. O cômodo é contíguo a uma ante-sala, onde esperamos para ser
atendidos; muito escura, toda azulejada e sem objetos a não ser o banco de alvenaria que
rodeia as paredes e uns papéis empilhados em caixas de papelão que me pareceram
restos de campanha eleitoral. Ficamos ali enquanto o curador consultava as pessoas que
chegaram antes de nós. Dali, ouvíamos tudo o que este dizia sobre os outros, e quando
foi a vez de nosso grupo entrar, não só escutamos como também presenciamos as
consultas daqueles que vieram com Cassote. É possível pedir para ter uma “consulta
particular”, e então o Homem fecha as portas e conversa a sós com o consultado, em um
volume de voz que na ante-sala não se pode ouvir. Um rapaz que viajara conosco
consultou-se diante de todos depois pediu para ser atendido individualmente; nada foi
comentado a respeito e não pude saber em que consistiu esta experiência particular.
A ordem é sempre a mesma: o Homem pergunta nome, casado ou solteiro, se
trabalha ou não, qual o trabalho, a idade. Em seguida, identifica os sintomas de quem se
apresenta e faz questões associadas ao mal por ele identificado. então o paciente
tem espaço para dizer o que o levou até ali, mesmo assim, deve dizer depressa, pois o
curador não lhe muito tempo de fala. Existem alguns sintomas recorrentes - rnia,
dor no peito, veia entupida, dor nas pernas, cansaço, esmorecimento e perda de apetite –
e algumas partes do corpo são mencionadas para quase todas as pessoas - intestino, rins,
sangue, pele, osso. Dentre os remédios receitados, o purgante [laxante] e os
comprimidos com paracetamol são quase unânimes, bem como os remédios
fitoterápicos para acalmar, em geral a base de maracujá; para as mulheres, é comum a
indicação do remédio “Saúde Feminina”
80
. Ao final de cada consulta o Homem repete
invariavelmente, Jesus que te alimente, sangue e corpo. Algumas consultas, entretanto,
diferem completamente das outras, e o curador descreve diagnósticos tão precisos
quanto particulares. Foi o causo de um nosso companheiro a quem ele disse, Você anda
vendo passos, como se uma assombração ficasse atentando, e você pensando em coisa
ruim... Isso não é espírito, não é defunto. As pessoas dizem isso, mas é bestagem. Gente
morta não volta para atentar, quem faz isso é o capeta!, berrou o curador. Disse tudo
certinho, contou-me depois o consultado.
O Homem de Côcos veste-se como um padre: túnica branca até os pés e uma
estola vermelha rodeando seu pescoço. Sobre a mesa, um copo com água para onde o
80
“Saúde Feminina” é o nome de um remédio industrializado feito com um conjunto de plantas
medicinais, “remédio do mato”, conhecidas nos Buracos. Saúde Feminina me foi receitado quando estive
no curador, assim como ocrre com a maioria das mulheres que se consultam ali.
306
curador olha enquanto vai falando, como que buscando ali as indicações sobre o que nos
diz. E uma Bíblia aberta, em cima da qual ele manda que o paciente encoste a cabeça ao
final da consulta, quando ele jorra o desodorante Água de Flores um cheiro lindo!,
comentara Dona Rosa - e faz o benzimento. As palavras de sua reza são ditas em voz
rápida e veloz, exatamente como é feito o diagnóstico e como são receitados os
remédios. A mim, parecia uma fala contínua; fosse sobre as palavras de Deus, sobre os
males da alma, da moral ou do corpo, ou sobre as remediações prescritas
(medicamentos e mudanças de comportamento), não havia diferença de tom ou de
abordagem. Tudo era dito com severidade, na maioria das vezes brigava com o paciente
como uma mãe briga com o filho. Em uma menina que viera conosco, deu um cascudo e
gritou, Obedece sua mãe, cabelo de bucha! A e ao lado deu um sorriso de canto de
boca. A uma também adolescente acompanhada da mãe, disse, Você está com uma
pessoa que não te dá valor, tem que perguntar para ele, vai casar? Porque, se não for, a
fila anda, tem outro que quer, hoje as pessoas não têm mais ética, não têm mais moral!
E você tem uma amiga que está te dando força pra esse namoro que não tem futuro,
você tem que saber que essa pessoa que te aconselha não quer o teu bem, não quer te
ver avançar. À medida que o curador falava, a mãe resmungava, Isso mesmo! Es
certo! E, para a filha, Não te falei?
Não havia pais com filhos; os homens que vinham estavam avulsos. A eles,
quase sempre o curador repreendia por conta da cachaça; xingava-os por não terem
“vergonha”. Às vezes, ao final da consulta, dizia algo mais afável. Repetiu algumas
vezes a promessa de que ia fazer a mulher consultada “namorar o marido”. E disse a
alguns - e a algumas - que cura até feiúra, pois “feio é quem não tem saúde”. Falava em
geral sem deixar as pessoas falarem, fazendo-lhes perguntas muito pontuais, de modo
que cada consulta não durava mais do que dez ou quinze minutos. A desproporção entre
este intervalo de tempo e os dois dias gastos para chegar ali não pareceu entretanto
incomodar nenhum dos que foram comigo, pois me disseram que o Homem “acertou no
que disse”.
Para algumas pessoas, o curador perguntava sobre o diagnóstico dado pelos
médicos, podendo ou não contestá-los. No caso do bebê de Maria-de-Neco, a nora de
Zefa-Carneira, ouvi-o perguntar se ela havia escutado dos doutores sobre “glaucoma”,
identificando assim o problema nos olhos de seu filho. Quando falamos sobre sua
consulta, entretanto, Maria não lembrava deste diagnóstico. Contou-me que, segundo o
curador, o problema nos olhos do menino não estava associado ao “baticum da cabeça”,
307
no que ela concordava, ao contrário do que disseram os médicos da Brasília, para quem
o tremor do rosto era resultado do problema da vista. Eu não lembrava deste argumento,
e, ao conversar com Maria-de-Neco, tive a impressão de que a conversa do curador
misturava-se em nossas cabeças, reunindo o que ouvíramos sobre nós mesmas e o que
ouvíramos sobre os outros. Esse esforço de escuta se estendia em um exercício
mnemônico deliberado, conforme nos obrigava o próprio método do Homem. A uma
mulher com dor crônica na coluna, por exemplo, ele perguntara se ela havia sofrido
alguma queda. Ela respondeu negativamente, mas ele insistiu; disse que sim, ela decerto
não lembrava, mas sofrera uma queda - provavelmente quando criança, ninguém lhe
contou por não considerar grave, disse ele. Desde então se fez uma feridinha na ponta
da coluna, explicou ele, e aquilo foi inflamando, por isso hoje dói. É preciso tratar antes
que vire câncer. E lhe recomendou a operação invisível, no que a mulher saiu satisfeita,
considerando que esta é menos perigosa do que a “operação normal”.
Sobre minha consulta, a única lembrança que guardei e consegui anotar consistiu
precisamente na pergunta, Tem muito tempo que você sente essa dorzinha fina no peito,
essa sonolência? Não soube responder e fiz muxoxo, mas o Homem não esperou o
silêncio prolongar-se. Como está o dinheiro? Como está o amor?, emendou, e sem
esperar que eu falasse, descreveu em detalhes os sintomas que via em mim enquanto
olhava o copo de água à sua frente. Explicou o que significava “dorzinha fina” e o modo
da sonolência a que se referira, mas fez isto com tal velocidade que não consegui
compreendê-lo. Por fim concluiu, Tua sorte é boa, mas tem muita inveja em cima de
você. Isso é que faz você sentir assim, que as coisas não estão avançando como você
queria. Você reza?, perguntou-me então. Não, não tenho o costume, respondi. Ele
franziu a testa e fechou os olhos para listar as numerações dos salmos que, a partir dali,
eu precisaria ler em voz alta todas as noites antes de dormir, conforme determinou. Dois
auxiliares anotavam tudo - os salmos e depois os nomes dos remédios que ele me
receitaria. Um pequeno papel com as anotações me seria entregue ao final da consulta,
quando o Homem me repetiu, em tom de conclusão, Tua sorte é boa, segue em frente
assim mesmo; o que voprecisa é de reza. Dito isto, mandou-me curvar o pescoço
sobre a Bíblia e espirrou sobre mim um perfume de lavanda enquanto fazia o
benzimento, do qual compreendi as últimas palavras: Jesus que te alimente, sangue e
corpo, disse-me o curador. Quando contei a Titia o causo do curador que diagnosticara
em mim os efeitos da inveja, ela arregalou os olhos e disse, Inveja é mesmo que feitiço,
minha filha! Como assim, feitiço?, perguntei. Por exemplo, disse ela, uma pessoa acha
308
você bonitinha e fica com raiva porque queria ser bonita igual que você; é ruim, não
pode, a gente tem que querer é o que Deus deu pra gente. Inveja é mesmo que feitiço?,
perguntei depois a Dona Rosa. Esta, que naquela hora se agachava para lavar as vasilhas
no rio, levantou-se e olhou para mim sem dizer nada, franzindo a testa. Eu contei o que
Titia me dissera e Rosa então me respondeu, de pronto, Bestagem de Titia! O que eu sei
é que inveja é uma coisa e feitiço é outra. Dali a dois meses, tornei a viajar até o curador
de Côcos e ele tornou a me recomendar a reza, mod’a inveja. Perguntei-lhe então se
alguém poderia ter “feito alguma coisa” contra mim. Ele respondeu negativamente, mas
acrescentou, A inveja é pior do que o feitiço: o feitiço, a gente faz o benzimento para
acabar com ele; a inveja não acaba nunca, é só virar o rosto e ela está lá de volta de riba
da gente. Conforme me foi dito noutra ocasião, a inveja é “prima” da fofoca que é
“prima” do feitiço.
5.4 - O doutor e o benzedor: saúde feminina
Doutor e benzedor é tudo igual, disse Dona Silu certa fez em sua casa de farinha,
o povo conversando enquanto rapava [descascava] mandioca. E então Silu concluiu
sobre o método de ambos: às vezes acerta, às vezes não. Falavam sobre um dos
principais assuntos buraqueiros, os causos de doença. E debatiam sobre os que
consideravam bons e maus médicos. Em geral, os buraqueiros preferem os médicos da
Vila aos das cidades grandes, em quem não confiam porque “não conhecem” “esses
de fora” podem “fazer qualquer coisa”, pois depois nunca mais vai “ver a nossa cara”.
Neste sentido, o critério de confiabilidade sobre os médicos se assemelha ao que é feito
sobre os curadores: dá-se pelo fato de se “conhecer” seu local de moradia.
Ao contrário do que ocorre no curador de Côcos, o consultório médico é
apartado dos demais pacientes e o que se diz ali ninguém escuta, mas se, a respeito do
primeiro, os causos circulam de forma controlada, sobre o segundo escutamos tanta
coisa que podemos chegar a duvidar. Afinal, vimos “contar causo” e “contar mentira”
são em certo aspecto sinônimos. De Chapada Gaúcha a São Francisco, de lá para
Montes Claros, e às vezes até Belo Horizonte, as viagens indicam a gravidade do
assunto e instigam o interesse sobre os causos. A própria rede de convênios municipais
com os hospitais e clínicas das cidades mineiras mais próximas estende o ‘território’ dos
causos: os “carros da saúde” e os “motoristas da saúde” são personagens recorrentes nas
trajetórias pessoais de doenças e curas, sendo também um elo importante e regular com
309
as cidades grandes. Encomendas, caronas e recados integram, por esta “rede”, um
território do corpo que inclui causos de nascimento e morte na beira da estrada. A
notoriedade dada ao cargo de motorista da saúde aparecia frequentemente nos causos
buraqueiros envolvendo Toni Buracos, filho de Seo Augusto e Dona Antônia, esta irmã
da Velha Maria de Seo Antônio Velho. Os pais de Toni Buraco moram hoje na Vila,
porque são do “povo mais antigo vivo” dos Buracos, e assim como “os velhos” Antônio
e Maria, estão “já doentes”. A Vila, “perto de qualquer socorro”, é o lugar para quem
está velho e doente, julgam alguns. O fato desse último casal não “arredar o pé dos
Buracos” - nem quando estiveram no “quase-morre”! - foi criticado mesmo por seus
filhos, que queriam deslocá-los para a casa de uma neta na Chapada. Mas “os Velho”
não quiseram ir, escolheram morrer nos Buracos, no que tiveram o consenso de alguns
vizinhos, E como é que de primeiro todo mundo envelhecia nos Buracos e ninguém
morria à míngua?...
As idas e vindas a médicos e hospitais se estendem em riqueza de detalhes e
experiências de deslocamentos conforme a gravidade do problema, manifesta por sua
dificuldade de cura. Na Vila, ainda o “Fábio da Farmácia”, a quem as senhoras
buraqueiras visitam mensalmente sempre que sobem para pegar aposentadoria. Trata-se
da Farmácia do Povão, a mais recente de Chapada, mas que, após o forte esquema de
anúncio na rádio e através do carro de som, quase fez falir sua concorrente. Fábio é da
cidade de Patos de Minas e durante os primeiros meses na Vila fez render assunto por
seu empreendimento. Próximo à farmácia, ao lado do Correio, onde retiram a
aposentadoria, “os idosos” compram vez ou outra alguma óleo ou erva boas de cura à
venda “nos baianos” que mensalmente montam ali suas barracas durante as datas de
pagamento. Um causo de doença, ou de cura, envolve geralmente todas as fontes de
diagnóstico - do Fábio da Farmácia, do doutor, do benzedor, dos baianos e dos Fulanos
que tiveram um e outro causo parecido. O médico de Montes Claros passou um remédio
para Alice que está com os pés inchados, e um bolo no estômago não é de hoje! A
barriga fofa!, queixa-se ela. Dona Rosa receita jatobá. Outro dia, uma perna inchada e a
cabeça doendo do mesmo lado. Um lado está bom, o outro está ruim. Hahahá! Deve que
é coluna; dormir de travesseiro é aquele sufoco, não dá. Batata e purga para coluna é
lindo! Mas não adiantou. Está tomando Diclofenato, o médico da Vila receitou e deram
no posto as cartelas. Dez cartelas acabaram. O médico de Montes Claros é que
receitou. Deu bem, mesmo! Mas tem que estar tomando sempre. Se parar, dói de novo.
E piorou. Então é porque não está sarando, continua inflamado. Eu acho que vou tomar
310
um banho com um monte de chá. Vou ficar uns três dias sem banhar. Pode ser q seja
esteporo... Remédio do mato já tomei até o de menopausa: cebola socada; amora... Igual
remédio de resguardo... Alice vai contando e Dona Rosa ouve atenta, intrigada. Então
conta à amiga o causo de Rica: diz’que continua ruim, mas está boa, foi à missa longe, e
também na festa do Ribeirão. Não conseguiu vaga para ir tratar em Montes Claros.
Damásio tinha era que vender um bezerro para pagar logo o particular. Daqui a pouco
está a mulher aleijada! Tutty está na chapada, vai pro posto pra ver se agendaram a
viagem de Rica a Montes Claros. Agora Dr. Reginaldo está tratando, deu injeção de
benzetacil. Mas o médico nem pediu exame! Devia ter feito exame de sangue, aí acusa a
doença!
Alice e Rosa conversam na cozinha desta, de onde, entre um causo e outro,
avistam Rica passando, para da cerca de Rosa, saindo de casa decerto para subir à
ladeira. Vem de bolsa. As converseiras vêm à varanda mod’saber de Rica, que conta da
ida ao Posto de Saúde, Eles têm é uma mala vazia pra dar pra gente! Cada um tem a sua
doença, eles dão o mesmo remédio pra dar pra todo mundo! E Alice: Hoje em dia não
tem mais curador; um curador bom resolvia. Rica: diz’que tem um em Arinos, aquele
menino-Bichim... Como é que chama?... Ele levou o filho lá. Os pés inchados,
melhorou. Dona Rosa lembra do antigo doutor do Posto da Vila, antes do Dr.
Reginaldo, Aquele sim é que era bom! Diz’que saiu porque não tinha o diploma, mas
era melhor que esses estudados! Já Quincas gosta do médico atual, se receita sempre os
mesmos remédios, é porque a farmácia do Posto de Saúde tem aqueles, e se não for
para “dar dado”, o povo não tem como comprar os medicamentos diferentes, mais
caros...Depois de algumas semanas de melhora, Rica volta a “sentir a perna”. É
reumatismo, diz Dona Rosa, É mesmo isso! Eu conheço! Tem um remédio que as
mulheres agora estão dizendo que é bom pra reumatismo, diz Rosa, Eu sabia que era
bom para um monte de coisa, mas reumatismo eu não sabia: é o couro de metela! Tinha
um aqui, vou caçar, não sei se ainda tem... Muita gente jovem está tendo reumatismo,
diz-que vem no sangue. É nada! Pois se meu primo está e tem só onze anos e na família
ninguém tem! Ito e Tutty também têm reumatismo. Ito foi receitado de tomar seis
injeções Benzetacil, tomou cinco. Injeção de mais faz mal! Benzetacil vai dando
problema nos ossos, por isso deve estar esse monte de problema de reumatismo. E
Lúcia, melhorou? Não, nem veio pegar Luciano. Está com hemorragia. É inflamação no
útero. Titia mandou-lhe por intermédio de Luciano uns comprimidinhos que tinha em
311
casa, Amoxilina. Mas Lúcia não bebe nada, nem um banho de barbatimão não faz! Tem
que beber aquele Tretec, que é bom. Casca de Cravão, ou de algodão. Bebe, exala tudo!
É importante atentar para o equilíbrio instável, mas não desigual - entre as
explicações médicas e as do curador. Não se trata aqui de buscar qual das duas ‘lógicas’
prevalece no diagnóstico que se tem por válido, no destino final de um causo de doença.
No corpo buraqueiro, os dois ‘discursos’ não parecem obedecer a ‘lógicas’
necessariamente distintas; ao menos não segundo a distinção a que ‘nós’ nos
acostumamos, aquela que separa ‘crença’ e ‘verdade’. Assim, antes de supor uma
‘crença’ buraqueira aleatória em qualquer medida que se mostre eficaz a posteriori,
vale-nos atermos um pouco nos argumentos que dão consistência aos causos de
tratamento e cura. Ao invés de um ‘corpo’ articulado ao ‘espírito’, como poderíamos
supor, o que parece fazer mais sentido ali é um “corpo” articulado ao “sangue”.
Conforme as palavras do curador: Jesus que te alimente, corpo e sangue. No “sangue”, a
fisiologia se complexifica. As chamadas “doenças do sangue” ramificam-se. O
reumatismo, por exemplo, explicou-me Dona Rosa, citando Dr. Reginaldo, é uma
doença que caminha no sangue; existem dele quatorze qualidades distintas, por isto os
sintomas se espalham por diferentes partes do corpo, desaparecendo ali, ressurgindo
acolá. O “andaço”, por sua vez, caminha é entre as pessoas. O termo se usa quando
aparece um doente aqui seguido de outro ali. Acontece muito nos Buracos: de repentino,
vários adoentados de uma vez. Primeiro é Dona Rosa que conta, Caguei pra tudo o que
é parente... Aquele aguão! Escom diarréia. Depois é Tutty que amanhece dormindo,
adoentada, diz-que-dizendo com dor de barriga. A mãe diz que é preguiça. E depois é
Titia de gripe; dor no corpo. Faltou morrer! Esses meninos de Titia são uns tolos, nem
pra arranjar uma nora pra cuidar de Titia! Hoje foi a vez de Lúcia; também ruim da
barriga. Ontem nem ela nem Raimundo almoçaram. É andaço. Mas o andaço acomete as
pessoas que estão com o “sangue ruim”, ou com o “sangue remoso”. Assim é nos
Buracos, você, já sabe como é, né, Aninha?, perguntam-me. Tem essas doenças do povo
da roça...
O esteporo parece ser a mais ‘particular’ entre tais doenças, pois que não
encontra qualquer correspondência com a diagnose médica e, ao contrário do que se
poderia supor nesses casos, não tem absolutamente nenhuma associação com o que
poderíamos chamar ‘doenças morais’. A ocorrência do esteporo não se articula à
“pessoa”, mas exclusivamente à reação do corpo quando da exposição ao contraste
quente-frio. Que esta exposição seja danosa a qualquer um, é uma evidência dada aos
312
buraqueiros bem como a todos os “mineiros da região”. Todavia, notam ali que o
esteporo é mais recorrente entre mulheres, pois, é freqüente resultar da mexida com
fogão e água, combinação característica à mexida de cozinha, feminina. Mas o esteporo
também pode ocorrer, por exemplo, por uma bebida quente seguida da ingestão de algo
gelado; ou resultar de situações como a de Silu, quando se passa um remédio “fino” e na
seqüência se expõe ao frio. Os remédios para pele à base óleo, por exemplo, são “finos”
porque são “quentes”. Diz-que feijão de corda misturado com o carioquinha é quente.
Neco não gosta porque é quente, faz mal ao estômago, pesa, queixa-se ele. Nunca ouvi
entretanto o termo “finousado para se referir a uma comida “quente”; o que se pode
dizer é “mão fina” na cozinha, o que significa um gesto de comedimento e seleção
apurada na prática de misturar os alimentos na panela. Similarmente, diz-se que uma
pessoa é “fina” quando é suscetível a ofensas, “melindrosa”; como é o sangue da pessoa
que usou um medicamento “fino” ou “quente”.
Os remédios “finos” aproximam-se também da idéia expressa pelo termo
“remoso” para falar dos alimentos, no sentido de que fazem mal quando alteram a
“qualidade” do “sangue”. É sobretudo às mulheres que este termo se aplica. As comidas
remosas são danosas às mulheres apenas quando ingeridas nos períodos de menstruação
ou resguardo, isto é, momentos em que o ciclo reprodutivo feminino altera as
qualidades do sangue, tornando-o mais “fraco”, suscetível aos males de algumas
comidas “fortes”. A chamada quebra de resguardo consiste não em “comer remoso”
como em “pegar friagem” (esfriando o sangue) ou “passar raiva (esquentando o
sangue). A exemplo do esteporo, portanto, trata-se de um problema causado pela
vulnerabilidade do sangue. No causo das mulheres, provavelmente porque nunca se
sabe o momento preciso em que se inicia esta alteração sangüínea, há uma espécie de
jogo especulativo constante sobre o mal que determinado alimento ou comportamento
pode lhe ter causado.
“Sangue remoso” é mesmo que “sangue grosso”; significa que ele está “ruim”,
mas difere da idéia de “sangue ruim” como sinônimo de “prosa ruim”. Diversamente a
esta características, trata-se ou bem de uma qualidade passageira do sangue - julho, por
exemplo, “é mês de inflamação”; o sangue fica remoso ou bem do resultado de uma
doença. Quando o sangue “está com muita gordura”, por exemplo, “o colesterol
problemado”, um único pedacinho de gordura de carne que se come contamina todo o
sangue da pessoa; engrossa tudo porque o sangue está grosso mod’a doença,
explicaram-me. As comidas remosas portanto m o poder fazer o sangue ficar ruim. O
313
que é remoso é “forte”, mas a recíproca não é verdadeira (nem toda comida forte é
remosa). Remoso é, em suma, o que faz mal: alguns o são para quem tem colesterol
alto; outros, para as mulheres em “certas situações”, quando estão “naquelas épocas”.
Aí é um tanto de trem!
Os sintomas provocados nestes casos femininos são - como no ocorrido do
esteporo e do reumatismo - crônicos e reincidentes, podendo acompanhar a pessoa por
toda a vida. Com exceção de alguns casos de reumatismo, os doutores e os exames
médicos não são capazes de diagnosticar essas doenças, embora isto o invalide a
importância do “exame de sangue”. Na opinião geral dos buraqueiros, este é o
procedimento mais respeitável dentre as formas de diagnosticar doenças, mas tem como
limite as “doenças do povo da roça”, “doenças que médico não descobre”. Como elas
aparecem, desaparecem e reaparecem ao longo do tempo, às vezes independentemente
do momento em que foram causadas, o esforço de memória sobre os acontecimentos do
corpo - tal qual vimos no curador - consiste numa etapa fundamental do tratamento.
Assim, a escuta e os relados sobre os causos de doença devem ser necessariamente
prolixos, e a maior queixa que se tem em relação aos médicos refere-se à sua falta de
paciência. Por outro lado, elogiam-se alguns doutores e enfermeiros que são
“atenciosos”, têm “uma prosinha boa”, o que nestes causos consiste mais em escutar do
que em falar. Por este mesmo motivo, o reputado “Fábio da Farmácia” tem lugar
privilegiado no circuito médico que os buraqueiros cumprem com tanta regularidade.
No posto de saúde de Chapada Gaúcha, diariamente forma-se uma fila de
pacientes à espera da distribuição das “fichas” que garantem o atendimento pelo doutor.
O número de fichas é limitado; portanto, quanto mais cedo se chega, mais garantido é
conseguir falar com o médico. “Os povo da roça” costumam aproveitar as datas em que
precisam “resolver os trens na Vila” para dormir ali e no dia seguinte conseguir chegar
cedo ao Posto. Às cinco da manhã, a fila começa a formar-se; às oito da manhã, começa
a distribuição das fichas, que logo se encerra, mas como as consultas são marcadas para
o mesmo dia, o povo permanece ali até o meio dia. O expediente matinal então se
encerra para retornar às treze horas, quando são atendidos os que pegaram as últimas
fichas. Alguns dos que não conseguiram consulta tentam falar com o médico fora do
consultório, abordando-o em um rápido descuido, pois que ele costuma passar por todos
sem olhar para o lado, talvez evitando justamente estas abordagens. Quem consegue sua
atenção lhe conta o causo da doença e recebe uma consulta sorrateira conforme consiga
convencer o doutor da gravidade de sua moléstia. Muitas das pessoas que permanecem
314
ali não querem do doutor um diagnóstico, mas se não a receita assinada de um remédio
com o qual “deu bem” e já se espera conseguir. Com a receita médica, pegam o remédio
na farmácia do Posto: “dão dado”. O enfermeiro-chefe do Posto, mais antigo
funcionário dali, também é bastante solicitado, alguns vão direto a ele, pois lhe confiam
mais respeito.
Durante as manhãs, mesmo após a entrega das fichas, o Posto de Saúde é
animado pela prosa dos que esperam para ser atendidos e também pelos que não
conseguiram a consulta mas se mantêm ali, seja buscando a atenção passageira do
doutor, seja mesmo a mod’conversar. ainda os que passam pela rua e “encostam”
ao verem um conhecido ou gente que vai ao Posto à procura de carona com “os carros
da saúde”, com o argumento de consultas particulares ou quaisquer assuntos graves.
ainda os que chegam para agendar exame, agendar viagem ou por uma urgência
específica: ferimento de faca, brusca queda ou alta de pressão, acidente. Essas pessoas
se juntam ainda aos funcionários que quase sempre tocam parenteza com algum
paciente ou, se não, conhecem-no por amizade e convivência. O posto é assim não
um lugar animado pela circulação de gente como um local privilegiado para se tomar
conhecimento dos últimos ocorridos. Durante dez dias, fiz ‘trabalho de campo’ nesta
fila matinal, graças à qual registrei em diário sobre a circulação dos causos de doença:
cada qual trazendo diagnósticos, viagens e opiniões particulares.
Um senhor mostra o pescoço avermelhado, com protuberâncias inchadas que
chegam quase a lhe provocar feridas. Diz-me que veio ali para tomar injeção. Quando
entra no sangue, explica, tem que tomar injeção mesmo. Mas quando as duas senhoras
que lhe rodeavam acompanhadas das respectivas crianças deram suas próprias opiniões,
o senhor voltou atrás. Estou preocupado porque ainda não entrou no sangue, se entrar
no sangue fica feio mesmo. A injeção era, na verdade, uma medida profilática, e
depois daquilo abri o ouvido para escutar o motivo das pessoas que vão ao posto
“caçando uma injeção”: buscam injetar o remédio na corrente sanguínea porque
entenderam que seu sangue estava “ruim”, “remoso”, “grosso”. Seja por causa de algum
ocorrido específico (a ingestão de determinado alimento, o contato com uma substância
específica ou o contraste quente/frio), seja pela dinâmica própria ao “sangue”, à
“pessoa”, o sangue “vira”. Isto foi o que me explicou o homem do pescoço vermelho.
Quando o sangue “vira”, fica “novo”, fica mais “fraco”, suscetível, disse ele.
Às vezes o sangue fica mais “ralo” ou mais “grosso”, continuou o homem, o
sangue vira e a gente fica com a saúde mais precária, pode ser mod’ a pessoa mesmo, ou
315
então mod’ o clima. As mulheres ao redor do senhor faziam perguntas para obter
detalhes de seu causo e a partir deste arriscavam as causas do ocorrido. É alergia,
diagnosticavam. Pode ter sido a toalha, suspeitavam. Ele escutava e reagia, É mesmo, eu
deixei a toalha num de pau e quando esfreguei... Às vezes passa uma aranha e solta
aquele pozinho; ou também pode ser algum produto, veneno de plantação, porque eu
passei numa braquiara [capim]. Às vezes pinica... Nunca tive isso com braquiara, mas
quando o sangue está novo, pode dar esses ataques...
O tema do sangue parece nunca se encerrar: o sangue “virou”; ficou “remoso”,
“grosso”. Foi um de-comer que fez mal não “deu bem”. Noutra análise, a “pessoa” é
sangue ruim mod’a “raça” que “puxou”. Ou ainda: a doença ainda presente no sangue
desde tal ou qual acontecimento, o “esteporo”... O sangue puxa causo enquanto vai-se
deliberando sobre qualidades “pessoais”, de ‘gênero’ ou de “povo” (capítulo 2). Assim,
o tema institui controvérsias e, por outro lado, constitui não raro o argumento cabal
sobre as causas e razões do corpo, a evidência da “Natureza” criada e dada por Deus.
Ao subir a ladeira, Tutty coloca os dedos na veia jugular para, na pulsação do fluxo,
sentir as batidas do coração. Então assunta a aceleração de suas batidas cardíacas, o
coração como se saltasse querendo sair. Deve que é o sangue, né! Corre mais rápido,
o coração tem que bater mais rápido, diz Tutty, instigada pelas deduções inspiradas em
seu próprio corpo. Das inúmeras vezes que subi a ladeira com os buraqueiros, tantas
foram as que ouvi especulações sobre “a saúde” gerada naquele “sofrimento” da subida.
O doutor diz que problema do coração é difícil nos Buracos: o esforço da ladeira não
deixa!, orgulhavam-se. Dizem os buraqueiros que não dormir é deixar o “sangue
agitado” por demais, “sofrido”, e isto por outro lado é ruim; é negar caridade ao corpo,
não pode. Quem tem problema de pressão então, nem se fale! Assim vão se tecendo
seus argumentos; as senhoras aprenderam que devem mexer o corpo pela manhã,
melhora as dores, explicam, porque “desembola o sangue”.
Os causos de doença, como os causos que se conta sobre brigas antigas,
terminam sem chegar a uma síntese, a um diagnóstico final ou a um posicionamento
definitivo sobre “o lado certo da questão”. Assim é o jeito buraqueiro de contar causos
desse gênero. São relatados a partir das controvérsias próprias ao processo de buscas por
tratamento ou pacificação. Em geral, os males crônicos do corpo que se submetem às
buscas por cura não se encerram depois de uma ida ao médico nem ao curador; seguem
por meses, às vezes anos, até que um dia curam. Assim são narrados os causos passados
e assim também aconteceram os causos que testemunhei no presente. Existem panacéias
316
muito conhecidas de todos, curam um leque inesgotável de problemas, como a Gota do
Zeca (“amargoso”) e o Pau d’Óleo (“forte”), remédios que são “mesmo que remédio do
mato”, mas são comercializados em embalagens industrializadas. Como os remédios do
mato, “é bom pra um bando de coisa”, o que responde a esta sintomatologia particular,
na qual o sangue - espécie de ‘vetor’ que põe em marcha toda a dinâmica humana
(corpo e sangue) explica e explicita a imagem de doenças que não se restringem a um
único ‘quadro sintomático’. Como vimos (capítulo 3), ao se dizer que uma pessoa é
“sangue ruim” está-se dizendo que é “prosa ruim”. Não nos cabe, portanto, escolher
entre o que julgamos ser ‘matéria’ ou ‘espírito’. Ali, um é mesmo que outro. No dizer
da esposa de Uruvaio (capítulo 4), o corpo e a alma são como fogo e ar.
Não é fácil distinguir entre as variadas “doenças que médico não descobre”. São
“doenças do povo antigo”, “doenças do povo da roça”. Em geral, são “doenças do
sangue”, como o reumatismo e esteporo, sem dúvida as mais recorrentes nos Buracos.
Elas se vinculam a diversos incômodos crônicos no corpo ou na cabeça, muitas vezes
associados à falta de apetite; seja uma excessiva preocupação manifesta por uma “prosa
desembestada”, um “converseiro danado” ou, ao contrário, por um súbito laconismo, a
“prosa reduzida”. Tais achaques atribuem-se cada qual a motivos tão variados quanto
são variados seus desenvolvimentos na fisiologia de cada pessoa. A dúvida sobre o mal
sempre recai em comparações com os causos na família, querem saber se é “da natureza
da pessoa” ou se esta “puxou da raça”. É o sangue da pessoa!, explicam-me. Vai da
sorte... Ou então, É da raça, é que puxa no sangue...
Na posição de ‘observadora’, minha maior dificuldade esteve em diferenciar
entre os males restritos às mulheres e aqueles que se lhe assemelham mas encontram
origens diversas, podendo acometer também os homens. As dores de cabeça, por
exemplo, constituem um causo mais ou menos recorrente entre mulheres, que portanto
costumam seguir tratamentos específicos à “saúde feminina”, mas as causas afinal
podem ser outras. Vez e outra associada à “cabeça fraca” e ao “corpo aberto”,
incômodos associados à cabeça atribuem-se não raro a questões envolvendo do ciclo
reprodutivo da mulher, conforme vimos (capítulo 2). Mas banhar-se em determinados
dias uns indicam a Sexta-feira da Paixão, outros o dia de São João também faz o
“corpo ficar aberto”, Fulana, por exemplo, vai inteirar três vezes que viu defunto”;
Morre que se caga de medo! Às vezes, a “cabeça fica fraca”. A “cabeça fraca” é
apontada como origem e também resultado desta seqüência aproximativa de problemas;
entende-se que se trata de um traço que se “puxa da raça” ou “da família” e, ao mesmo
317
tempo, controverte-se, É o quê! Diz-que cabeça é doença de família, mas é nada! O que
vale é a sorte da pessoa!
Lúcia tem “essa dor” de cabeça há muitos anos, diz’que foi quebra de resguardo.
Rosa tem é uma da dor no braço e diz’que é reumatismo; com certeza, diz ela. Então me
narra seu histórico, a ocorrência em diversos lugares do corpo, nos diferentes momentos
de sua vida. Ainda com os filhos novos, ela pagava Rica para lavar roupa, de acordo
com a recomendação médica. Disse que todas essas dores passaram, mas agora voltou
no braço; ainda está no sangue, explicou-me. Noutro dia, diz que não dormiu mod’a
chuva, deu dor no joelho. Levantou, esquentou uma pomada. Mesmo que tirar com a
mão!, diz ela, na expressão buraqueira que me faz lembrar a “operação invisível” do
curador de Côcos. Mas, embora atribua a melhora à pomada, diz que o “nervo” é o
principal responsável pelo mal-estar no braço; não dorme, toma Maracujina, é quando
“ataca o sistema”. Todas as noites, Rosa recorre à sua sacolinha plástica onde guarda
inúmeros remédios, uns comprados outros dados; Esse comprimido amarelinho é pra
aliviar nevrosia no sangue, contou-me ela, que o toma há alguns anos. Dona Silu
também tem um problema no sangue muitos anos, mas é o esteporo, que está no
sangue desde que ela usou um remédio indicado por uma amiga: álcool com a flor da
Boa-Noite [trombeta], folha da samabaia e mais uma trenhada, tudo pisado no pilão; um
bando de pau. Então ela não sabia que era “fino”, que não podia pegar friagem, e nem
chegou a molhar a cabeça, mas a chuva rala, na hora que saiu para apanhar as lenhas,
sentiu... E Silu me mostra os pés inchados; o corpo cheio de bolotinhas vermelhas:
esteporo.
Sem se sobrepor aos problemas gerados por quebra de resguardo, o chamado
“problema de nervos”, confunde-se com esses outros males, sendo também uma espécie
de transformação estrutural da ordinária “dor de cabeça” (que significa a um tempo
“enxaqueca” e “preocupação”). Sendo reconhecidamente recorrentes nas mulheres,
conforme se contam nos causos dos antigos e nos atuais, esses incômodos são atribuídos
por elas à preocupação por que “passam” ao longo da vida, infortúnios cujas causas
costumam ser atribuídas ao comportamento dos filhos e/ou maridos. O “sistema” está
“nervoso”, diz Dona Rosa frequentemente; há muitos anos ela “sofre dos nervos”. Hoje,
os médicos lhes falam em “depressão”, o que é associado, pelas pacientes buraqueiras,
tanto aos “nervos” quanto ao “coração”; e então a “depressão” é entendida como
corruptela de “problema de pressão”, comum também nos homens. Depressão e pressão,
afinal, vinculam-se à idéia de “passar raiva”, “passar preocupação” (talvez por isto
318
exista a expressão cômica: “passado”, ou “passado na manteiga”, para se dizer que
alguém é “maluco da cabeça”).
Seja qual for a causa do mal, rezar não apenas é o remédio mais indicado como
quase sempre a primeira medida a ser tomada. Rezar é - para quem se arvora ser
“pessoa certa” - uma espécie de medida profilática, a única que serve para todos os tipos
de achaque. Não relativos à “gente” como também aos “animais” da gente. Em
conversa na cozinha de sua mãe Zefa, Nísio lembrou-se do boi que estava quase
morrendo, não melhorava por nada, e eles “prometeram em reza” que davam uma
quarta do boi para a Folia daquele ano; na promessa, ninguém nem falou nos Santos
Reis, falou só em Folia mesmo. O tal garrote, que não melhorava por nada, logo
melhorou. Mas Zefa-Carneira interveio, Não foi bem assim..., disse. E contou ela
mesma o causo em seus detalhes: foi uma vaca e não um garrote; estava caída numa
grota, já com as moscas em cima. Tinha ficado doente, aí saiu rolando e foi parar dentro
de uma grota, dali não levantou mais. A barriga inchada. Zefa então rezou pedindo pra
Santos Reis e o Divino Espírito Santo que lhe desse uma idéia de algum pau, alguma
coisa para dar para vaca, porque já tinha dado de tudo e nada de melhorar. fez
promessa de dar pros Reis o bezerro da novilha, se ela melhorasse. Na mesma hora, ela
viu o pau de imburana e pensou: hmm, se isso é bom para tanta coisa, pode ser...
pisou a folha e juntou com limão mais a borra de café. Para vaca é bom não sei se pra
gente é, contou Zefa, minha mãe sempre fazia... E os irmãos, tudo fazia era assim com o
gado, botava no litro [garrafa PET] e arribava a cabeça do animal segurando a boca
enquanto ia enfiando o remédio pela boca. Eu falei pros meninos darem os remédios,
eles não acreditaram, mas viram que eu estava naquela incutição, aí foram. Ainda bem q
foram. Eu fiz dois litros. Coei bem direitinho para não ter cisco e fazer ela engasgar.
Rapadura é bom para ar na barriga [gases], misturei também a rapadura. A bichinha
bebeu todo o remédio; já naquela hora soltou um peido e arrotou ao mesmo tempo. Aí já
levantou o rosto, como quem lambe os beiços. depois daquilo foi só melhorando... O
bezerro que ela criou depois era lindo, mas lindo. E assim, grande! Eu não sei por que,
todo boi que é prometido para a Folia parece que cresce mais, é mais bonito...
Doença parece que tem uma vida própria, ela cura sozinha, explicou-me certa
Dona Zefa-Carneira. A gente toma remédio, mas ela só sai quando ela quer. Tem
mesmo é que “se apegar a Deus”. A reza, contudo, não exclui a necessidade do
tratamento médico. E a busca por este tratamento é provavelmente o que mais move os
buraqueiros, literalmente. Eles ‘movem mundos e fundos’, na expressão ‘nossa’, para
319
“correr atrás de médico”, percorrendo estradas e cidades, com a mesma Fé com que se
“apegam em Deus”. Nisto, aliás, parece coincidir a “Criação Divina” e a “criação”
materna, conforme vimos (capítulo 4). Não se pode demorar a tratar, deixando a doença
se “enraizar”, diz uma imagem freqüente da retórica buraqueira da doença. Quem sabe
de onde veio essa doença...?, pergunta-se, sem pretender resposta. Se o acertado modo
de cura se atesta conforme a origem do mal, esta pode entretanto viver para sempre no
esquecimento ou na ignorância. Algumas doenças provêm de ocorridos remotos: um
banho na hora errada sem que se prestasse atenção; ou um banho frio depois de uma
rotineira mexida no forno; um peso demasiado carregado por descuido sem reparo ainda
no resguardo; uma comida que não se sabia remosa ingerida numa data perdida durante
a menstruação... Tais fatos podem ter-se passado mais de década antes da eclosão da
doença, de modo que o esforço de memória deve ser ajudado pelas hipóteses sugeridas
por outros, mod’encontrar o tratamento correto. Em suma, um mesmo sintoma pode ser
atribuído a origens diversas e, por outro lado, determinadas patologias como a
genérica moléstia chamada “cabeça” - estão ligadas a uma sintomatologia diversificada,
“caminhando pelo sangue”, bem como se desdobram em uma aparentemente infinita
escala de intensidade. Além disto, os efeitos de uma mesma comida sobre o corpo
variam conforme o causo. O assunto rende.
A idéia de que as doenças são mais graves quando “entram no sangue” parece
ser um senso comum não nos Buracos mas em toda a região de Chapada. Na viagem
a Côcos, uma senhora, cujo pescoço engrossava-se à largura da perna devido a um
caroço no papo, explicou-me que, apesar de ser feio, seu problema não era sério, pois
que sua doença era “por fora”, e com isto dizia que o exame de sangue não acusara nada
de errado. Este tipo de argumento parece explicar o gosto pela injeção, considerada
melhor do que os medicamentos em comprimidos pelo fato de “entrar direto no
sangue”. Estes últimos, por sua vez, são considerados mais eficazes que a pomada ou
óleo, os quais se entende servirem para problemas literalmente superficiais, isto é, na
pele. Os remédios do mato” têm, em relação aos “remédios de farmácia”, uma fama
controvertida. Podem ser considerados mais ou menos eficazes dependendo de quem
opina e de qual o problema a ser curado. Em todo caso, alguns “paus do mato” são
inigualáveis em sua eficácia, conforme recomendação “dos antigos”. Sobretudo quando
se trata de problemas ligados à “Saúde Feminina”, usualmente referente ao sangue e a
inflamações internas. As buraqueiras após o parto, estejam elas em Brasília ou nos
Buracos, seguem o quanto podem o que sabem sobre os remédios-do-mato “para
320
mulher”. O sumo da folha do algodão, ou de mastruz, bebe-se preventivamente para
“limpar o corpo por dentro”. Quando o causo é de doença, a casca do barbatimão -
talvez entre as mulheres o “pau” mais reputado de todos - é usada em toda ordem de
problemas ligados ao aparelho reprodutor feminino, seja uma coceira vaginal ou uma
inflamação no útero, seja para “fazer banho” ou beber a infusão. Por ser um remédio
“de aperto”, entretanto, o barbatimão tem seu uso excessivo contra-indicado. Contam-se
causos de quem bebeu demais e ficou com problemas próximos à morte, pois o remédio
“apertou” os órgãos do corpo. Este risco é equivalente à sua eficácia, o que indica um
conhecimento “formado” sobre seus modos de uso. Às mulheres, cabe este saber. O caju
também aperta, mas por ser mais “fraco” do que o barbatimão, é recomendável que se
tome em abundância quando se está com diarréia; os buraqueiros o fazem
invariavelmente; seu uso não é delicado como o outro, e neste causo não se trata de
“assunto de mulher”. O médico recomenda!, dizem-me com o intuito declarado de dar
credibilidade à indicação.
Embora o sangue seja um tema insistente, o fato de que as mulheres antes da
menopausa sangram todo mês não é um assunto corrente. Uma senhora contou-me uma
vez de sua “vergonha sem tamanho” quando, ainda moça, usava “os paninhos
enrolados” para absorver sua menstruação e, ao lavá-los na fonte, escondia-se “até da
irmã”. Ainda hoje, as moças não falam sobre seu próprio “sangue”, mas, como “as
mulheres antigas”, preocupam-se e debatem sobre o que pode fazer mal quando se está
“naquelas épocas”. O assunto só ocorre quando se está exclusivamente entre mulheres, e
então o que se fala é sobre “resguardo”. De primeiro, era um resguardo!, dizem, tanto
para falar sobre o período de resguardo propriamente dito os quarenta dias após o
parto quanto sobre os cuidados necessários aos períodos de menstruação. As
proibições alimentares e evitações específicas do corpo (sobretudo relacionadas ao
contato com a água) são as mesmas em ambos os casos. O povo de primeiro era muito
sistemático! Mulher não podia comer nada, contam-me as moças. Uma delas disse que
foi comer pato agora, na idade de casar. Tem coisa que é cisma! A cisma é que
faz mal! As minhas meninas comem limão quando estão menstruadas, diz uma senhora,
e nunca nada! Chupam limão, que diz que não pode, e não dá nada. Às vezes é
cisma! Diz que pode fazer mal à cabeça... Mas tem coisa que faz mal mesmo,
controverte-se a mulher, e conta, Quando eu estava no resguardo e chegou um homem
com salsicha, eu com aquela gula, comi quase a lata inteira! Hihihi! Quando foi de noite
deu uma dor de cabeça que parecia que eu ia subir, suspender, um trem que eu nunca vi!
321
O que salvou foi a vizinha, a cumad’Fulana, na época, que fez uma queimada (pinga
com fedegoso: risca um fósforo e deixa a pinga queimar um tempo, depois bebe). Se
não fosse aquilo eu estava até hoje com dor de cabeça. Acho que fica aquela carne
muito tempo na lata...
O “sistema antigo” é parcialmente seguido pelas moças buraqueiras quando
menstruadas. A adesão ao que “diz o povo antigo” varia conforme “a pessoa”, mas
algumas medidas parecem bastante difundidas, como a de não ir às aulas de educação
física “naquelas épocas”, mod’ evitar o esforço físico. É um momento em que o “sangue
está fraco” e portanto pode “subir para a cabeça”. E falam sobre quais comidas são mais
remosas do que as outras; a carne de tatu-bola é das mais remosas; e a de gaieiro
[veado]. Porco também é, mas não muito. Agora, tem coisa que faz mal mesmo!,
repetem elas. Como lavar a cabeça nos dias das regras. Provoca dor de cabeça imediata
e, se a cabeça está fraca, pode até acontecer coisa pior! Neste ponto, as “cismas”
relativas à menstruação são certamente menos graves do que aquelas envoltas no
resguardo pós-parto. Neste, teme-se o pior. Durante minha convivência buraqueira,
obtive relatos difusos sobre causos de mulheres que “endoidaram mesmo”. Três deles,
recordo-me terem sido narrados como causos de “resguardo quebrado”. Além desses,
presenciei inúmeras situações em que outros problemas, em geral dor de cabeça crônica,
se atribuíam a esta causa. Entretanto, quando tentei registrar no gravador informações
sobre este mecanismo, mesmo argumentando que não seria necessário falar de algum
causo em especial, as mulheres desconversaram. A “doidice” é um “mal da cabeça” que
se “puxa da raça”; em geral pela linhagem materna, mas este dado nunca exclui o
diagnóstico da quebra de resguardo, o qual se costuma definir, nestes males mais
graves, pela raiva ou preocupação por que se passa. Dos três causos acima
mencionados, um ocorrera no passado, outro com uma pessoa distante do povo do
Calengue. O terceiro causo, entretanto, era bastante próximo a mim. A primeira vez que
ouvi o tal causo ainda não conhecia a moça; ouvi sobre que apanhara do marido durante
o resguardo; versão que ela mesma refutaria mais tarde, sem que eu perguntasse ou
ninguém disse nada sobre a suspeita. O causo foi que ela viu o marido brigar com o
cunhado, contou-me, “aí é que deu”, explicou. Depois “deu de novoquando o outro
cunhado morreu, mas ali não já estava no resguardo. Quando “dá” de acontecer, ela fica
sem entender nada, me diz; depois apaga, não lembra de nada. Os outros dizem que ela
fica conversando umas coisas sem sentido, e depois pára de conversar.
322
Esta moça mora hoje em uma fazenda onde o marido trabalha; a poucos
quilômetros dali. O marido atual é filho do atual marido de sua mãe, que se separou do
primeiro marido diversas vezes até amigar definitivamente com o atual. Diz’que fugiu,
voltou para casa; depois foi embora de novo e veio para pegar as meninas; aí se
desentendeu com o amigado e foi morar com os pais. Quando pensa que não, ó o
homem beirando. E ela sumia e o povo via os dois pelos matos... Até que amigou de
novo. Por fim, acabaram vindo morar aqui, onde estão até hoje, ao lado da sogra, a
Velha Fulana. Hoje, está tudo bem. Durante muito tempo as duas não se falavam, agora
uma manda queijo pra outra e tudo. Mas não visitam a casa, ou pelo menos não ia até
pouco tempo. Agora acho que vai, porque é ela quem banho na velha, decerto. O
filho mais velho era rapaz na época da segunda separação, e foi ele quem proibiu a
mãe de voltar para casa. Rapazinho trabalhador e tudo, mas é “ciumento que a
égua!”. Puxou não sei quem na família, porque o pai não é ciumento! Agora as
meninas... Elas têm a quem puxar; a maioria é “quente”, porque a mãe é quente. Esse
rapaz mais velho, que hoje cuida da casa, prende as irmãs como se fosse de cabresto!
Mas não adianta, quando chega a idade de namorar, se o sangue pedir, elas fogem. Uma
fugiu; a outra está aí, porque é quieta. E as que casaram foram tudo embora. Daqui a
um pouco, está ele, ciumento, sozinho tendo que cuidar do pai. E quem vai fazer o
de-comer para o velho doente?!
Todas as pessoas envolvidas no causo são hoje vizinhas e convivem
cordialmente. A mãe que “fugiu de casa” recebe visitas dos filhos que moram com o pai
adoentado e das filhas que se mudaram ao se casarem. Regularmente, também os visita
na casa do ex-marido. E cria a neta (filha de sua filha que teve problemas na cabeça), a
quem chama de “minha menina” e sobre quem todos julgam que “o direito é da avó”. O
ex-marido vive deitado em uma cama na sala de sua casa, de onde não sai a não ser
quando precisa de socorro médico. O atual marido, pelo que sei, nunca foi à casa do ex-
marido, depois de todo o ocorrido. O filho mais velho do primeiro casamento ficou
muito tempo “sem querer falar” com a mãe, contou-me alguém, mas hoje freqüentam-se
mutuamente, como “bom filho” e “boa mãe”. Quem “fica falando” é por que “quer ser
bom”, entendem os buraqueiros que, via de regra, afirmam desgostar daqueles que se
querem perfeitos. Perfeito, os santos. E Deus! Quem aqui é santo? Quem aqui quer
ser igual a Deus?, diz-se para mal-dizer de quem “fala muito”. Neste sentido, ser “boa
pessoa” refere-se diretamente às “leis” da convivência diária “nas casas”, na
“vizinhança”, assim a pessoa se torna “conhecida”, isto é, faz boas relações.
323
Uma “mulher quente” não é pior do que um “homem ciumento”; a condenação
de um ou de outro costuma vir apenas comparativamente uns-aos-outros, descontando-
se “a natureza” de cada um. “Tudo tem uma sorte”, diz o dizer, o que parece implicar
uma boa margem de compreensão sobre os “males feitos” pontuais, caso estes sejam
reconfigurados pelo que se “conhece” da “natureza da pessoa”. No causo acima, ouvi
diversas vezes ser “um problema da raça”, e se a expressão assume um tom pejorativo,
como vimos (capítulo 2), não deixa de acionar certa conformidade, pois que indica ser
um problema “puxado no sangue” - é da “natureza”; é “dado de Deus”.
outra expressão que, usada contra atitudes moralmente condenáveis, também
pode pender para lados opostos do argumento: “quem não é bom com os de casa, não é
bom com os de fora”, diz-se. Mas, no causo acima por exemplo, a mulher é ou não é
boa “com os de casa”? Hoje, “está tudo bem”, avalia-se. Tal julgamento parece portanto
depender das atualizações diárias, dos mapas relacionais elaborados “nas conversas das
casas”. O sofrimento decorrente dos males que se “puxa da raça” frequentemente
ameniza a condenação. Quando a filha com histórico de “problemas na cabeça” acabara
de ter um segundo bebê e cumpria o resguardo na casa de sua mãe, fui visitá-las. Elas
recebiam então a visita de Rica. O fato seria de se esperar no causo de um nascimento,
mas não ali, pois Damásio, o marido de Rica, “não conversava” com a outra havia
muitos anos, “por causa das sem-vergonhices dela”, contaram-me. A própria Rica,
acompanhando o marido como se espera que seja, não visitava a prima (embora
conversasse com ela). Naquela ocasião, portanto, a visita chamou a atenção dos
buraqueiros vizinhos. Mas Rica não era de “ir na casa” de Fulana..., comentou-se. A
anfitriã decerto ficou contente, pois andava muito preocupada: além do delicado
resguardo da filha, havia agora a outra que, casada e tendo virado crente, morando
fora dos Buracos, sempre fora muito quieta. De repentino desandou num “converseiro
esquisito”! Foi a preocupação com a piora na saúde do pai, a cabeça dela arruinou,
tadinha!, lamentava a mãe. Além disto, uma outra filha, que agora “finalmente
quietava”, casando e indo morar donde está a sogra, teve uma agulha enfiada à mão por
acidente, e quando foi ao médico em Brasília de Minas, este fez a operação no lugar
errado: a mão inflamou com o corte da operação e o alfinete ainda estava lá. Tudo isto
exasperava a mulher diante de Rica, que então disse, em tom tranqüilizador, A gente
não deve mal-dizer da sorte de Deus... Aquela sorte portanto era “de Deus”, de acordo
com o dito por Rica, o que me soou uma espécie de recado: não havia malquerença que
pudesse indispor ali o destino de uns-aos-outros.
324
Noutra ocasião, um Velho Fulano fazia um julgamento sobre sua ex-nora,
“recém largada” de seu filho. A conversa foi na casa do velho e Dona Rosa não
discordou do que ele disse. Era uma conversa entre amigos. Mas disse uma frase que me
pareceu sutilmente desdizer o velho, ou não. É isso mesmo, mulher nasce é para sofrer!
A gente nasce é para o que a gente é... Seu tom era de lamúria, pois ela mesma, Rosa,
“sofria muitos anos na mão do marido”. Ao concordar com a condenação do velho
sobre a recusa da ex-nora em se submeter à “prosa ruim do marido”, dizendo que
deveria ter continuado “dentro de casa sofrendo”, Rosa também denunciava o ciúme
besta” do mesmo. Além disto, o sofrimento tem seu lugar. A idéia de que “o povo
antigo” era “forte”, “trabalhador” e “sofrido” é repetida como um chavão, sempre para
vangloriar as qualidades do povo. O povo era forte; tinha sangue na veia! Trabalhava
duro! Sofrimento! Dizem os antigos, desdenhando da fraqueza dos mais moços. Com as
mulheres, dá-se o mesmo. Não faziam pré-natal; não tomavam remédio, e não tinham
esse tanto de inflamação no útero que têm hoje! Sofria! Porque no sistema antigo as
mulheres pegavam na enxada! Mas era tudo forte! Com o gado, também: comiam o
cerrado e não esse pasto aguado de hoje; não tomavam vacina e não adoeciam, como é
hoje. É o que contam os antigos, não se alguma controvérsia.
Em todo caso, concorda-se que o “sofrimento” fortalece. Na mulher isto assume
uma perspectiva curiosa, pois ninguém discorda que “sangue” feminino é “fraco”,
comparativamente ao do homem. Mas seu trabalho dentro da casa é mais “puxado” do
que todo serviço de homem. Porque serviço de mulher não acaba nunca; o homem faz a
quadra dele e deu; a mulher não acaba é nunca: quanto mais trabalha, mais serviço
tem para fazer. Cozinhou, tem que lavar as vasilhas, lavou, está na hora de preparar a
janta... Este raciocínio é usual entre buraqueiros e buraqueiras. Sobre o assunto, Quincas
me narrou uma anedota envolvendo Jesus Cristo. Este vem disfarçado em farrapos pedir
a ajuda das mulheres, e elas, lavando roupa, aperreadas na beira do rio, não lhe dão
hora. Então Jesus pede ajuda aos bêbados que passavam por ali, bestando. Bêbado,
aquele jeito, faz qualquer coisa, ajudaram Jesus Cristo, que ficou muito agradecido.
Por isso até hoje é assim: o serviço da mulher nunca acaba e os bêbados não trabalham
mas estão sempre arranjando o de-comer. Hahahá!
Mulher é trem ruim!, dissera Dona Rosa ao velho, em seguida à afirmação sobre
o sofrimento feminino. Esta segunda frase, dita por uma mulher, encheu-se de sentido
aos meus ouvidos. A própria Rosa, sabe-se, não se curva à “prosa ruim” do marido. Não
é de se curvar, não deixa o outro botar sela. Mas o marido tampouco é dos que deixam a
325
mulher botar sela, de modo que vivem os dois em de guerra. Mulher é cabeça fraca!,
dizem os maridos contrariados. De fato, os cuidados de resguardo objetivam sobretudo
“proteger a cabeça”. “Nessas épocas de mulher”, a “cabeça” fica mais “fraca”, e por
isso não podem “comer comida remosa”, que é “forte”. Esta intrincada articulação entre
o sangue, a cabeça fraca e a comida forte, somada à idéia de que a mulher “nasce é para
sofrer” - o que lhe dá um valor específico leva-nos a lembrar do argumento daquele
senhor com problema de pele: o sangue “vira”, dissera ele, fica ruim. Mulher é trem
ruim, diz Rosa. A “ruindade” aqui por certo se associa ao “sangue” feminino, sempre
“virando”, pois ciclicamente se predispõe à fraqueza, torna-se vulnerável ao que é
“forte”.
Por outro lado, note-se, a “ruindade” também tem sua força; é contra ela que o
curador faz suas rezas. Podemos afinal perguntar: a mulher é “trem ruim” porque faz
“male-feito” ou ruim porque sofre desses males “feitos”? A pergunta não parece ter
resposta. A vulnerabilidade própria ao sangue feminino decorre do ciclo reprodutivo de
seu corpo, e nisto reside sua força incontestável, a de gerar e criar novas pessoas.
Lembre-se que a comida “puxa” a prosa, de modo que o gesto de “comer junto” (“de
dentro da casa”) indica certa combinação” entre “pessoas”: seus “modos”, “prosa” ou
“sangue” (capítulo 3). Assim, dados sobre o de-comer falam diretamente sobre “o
sangue” de cada pessoa, suas relações, suas heranças familiares, sua “raça” (capítulo 2).
Mas através da lógica do sangue, -se que a relação entre a “comida” e os “modos”
pessoais se estende não apenas às relações externas ao corpo como também àquelas que
lhe são intrínsecas. Neste sentido, é notável que uma das palavras usadas como espécie
de eufemismo para o termo “feitiço” seja uma designação auto-descritiva, mas também
ambígua quanto à sua intenção no dizer: “comida posta”.
O vocabulário culinário é eloqüente, vimos (capítulo 4). Não cheguei a conhecer
benzimentos “para o mal”, mas sobre um “benzimento” que objetivava “adoçar”
determinada relação pessoal, por exemplo, o uso do mel é o que dava eficácia à reza.
Foi-me ensinado pela mãe de uma das partes envolvidas em um conflito constante;
explicou-me que já a havia feito para o marido, tempos atrás, apreendida de uma amiga,
conhecida de longe. E deu certo?, perguntei. Ô, gente! Depois ele ficou nosso amigo foi
muitos anos! O benzimento consiste em escrever, lado a lado em um mesmo pedaço de
papel, os nomes e sobrenomes das pessoas que se queiram “adoçar”. Em seguida,
embebe-se o papel em um copo com mel. O recipiente é colocado junto a uma vela de
sete dias acesa, diante dos quais é proferida a reza conhecida (o benzimento) ressalte-
326
se que seja “com Fé”. Em seguida, reserva-se o papel com mel ao lado da vela,
deixando-os em um local que esteja em uma altura “acima da cabeça”. Ali “o
benzimento” é mantido, até que a vela se apague sozinha. A mesma mulher a me
ensinar este procedimento - uma receita caseira, por assim dizer - avisara-me, antes de
minha viagem ao curador, que durante o tempo em que eu tomasse “os remédios do
Homem”, eu não poderia comer ovo, peixe nem carne de porco. No carro de volta do
curador, entretanto, Zé Cassote explicou que, no caso de o Homem não nos ter dito nada
sobre comida, é porque poderíamos seguir comendo de tudo. Um dos homens sorriu
então aliviado, achava que o curador o mandaria parar de beber, mas não.
Tem gente que diz que limão é ruim, porque afina o sangue, diz Aninha-de-Ito, a
moça dos Buracos que trabalha no PSF [Programa Saúde da Família]. Sim, ele afina o
sangue, explica ela em uma das casas buraqueiras que deve visitar por ofício, mas faz
muito bem, pois se a pessoa tem o sangue grosso, problema no coração, tem mesmo é
que ralear! A lima também, diz-que é muito bom, conforme Seo João, marido de Dona
Neném: ele tem diabete e desde que veio para a terra da esposa na roça sentiu na
melhora o gosto da sacada de lima que chupa por dia. Diabete é uma doença séria
porque é um problema do sangue doce, explica-me, o que trata é a boca. Vai ter que ter
“mão fina” para cozinhar!, diz a avó do rapaz que se tornou diabético “de repentino”. A
comida em geral tem qualidades curadoras ou arriscadas, e as informações sobre suas
funções circulam com intensidade rotineira, muitas vezes puxadas em uma conversa
despretensiosa durante um de-comer. Com a chegada da televisão aos Buracos, este
circuito enriqueceu-se em novidades: a tal aveia que vem numa caixa, que a gente
compra em mercado, diz-que é bom para sangue grosso, tira a gordura no sangue; a
beringela também, faz o sumo, diz-que puxa a gordura do sangue, conta-se, fazendo
referência a uma e outra reportagem de TV. Uma matéria do Globo Rural onde se
apresentava um cogumelo com mais proteína do que a carne de gado atraiu todos para a
sala, animando-se como se assistissem a um jogo de futebol da seleção brasileira: diz-
que esse cogumelo é mais forte do que carne de gado!, repetia-se aos que chegavam
em meio ao programa. Ao assistir com os buraqueiros as ‘matérias de comportamento’
que na televisão ensinam, para o bem da saúde, a comer saladas e legumes, julgava-as
alienígenas diante do de-comer dos buraqueiros, mas eles mesmos se interessavam ao
extremo, e davam sentido ao que viam a partir do que conhecem e falam desde os
antigos. Para mim é ainda impossível dizer até que ponto eles “acreditam” nestas
prescrições de saúde vindas “da cidade” nas quais a pessoa “forte” (para nós, ‘gorda’)
327
estranhamente não inspira saúde. Em uma tentativa de entrevista com Dona Rosa,
perguntei-lhe quais as comidas ela julgava fazerem bem à saúde, e ela me listou, algo
reticente, legumes e verduras, no que acabei por desligar o gravador. Aquela fala em
nada correspondia ao que eu já “conhecia” de Dona Rosa, julguei então.
Comida muito forte pode fazer mal! O pequi é forte, não pode comer demais; os
antigos dizem que a gente deve passar no cabelo a mão suja do pequi para não passar
mal de tanto comer. Bestagem do povo antigo! Titia está hoje com uma morrência;
pensa que é porque tomou leite com açúcar. E manga, diz’que não pode misturar com
pinga, mas o tanto de Folia que cortou os tempos aí, e a gente bebendo pinga e comendo
as mangas até verde! - nos pés... Uma moça conta do suco de mangaba, que adora, É
tipo o suco de manga, grosso! Delícia é manga com caju, porque caju é apertado e
manga é doce. E pode manga com caju?!, pergunta sua avó, em tom de espanto. Claro,
diz a outra, e também manga com goiaba, que dizem que não pode. É o quê! Não dá
nada. Ô gente, tem disso não! E a avó: deve que depende do momento em que a pessoa
come, ou depende da pessoa mesmo. E contou o causo da mulher cujo filho tomou café
com leite, depois comeu ovo, depois goiaba e manga. Aí começou a se sentir muito mal,
aquele desassossego, e não vomitou, se tivesse vomitado não dava nada. Mas levaram
no Posto, o médico mandou correndo para São Francisco, chegando logo morreu. Às
vezes a cisma é que faz mal! Foi o ovo, avalia a menina. Com certeza, ovo é muito
forte. No que outro presente completa, É porque já “era a hora” da pessoa! Morte não
vem sem motivo, o povo a desculpa do que comeu, mas é porque é a hora da
pessoa morrer... É verdade, ri a moça, Sempre a morte tem que ter um motivo, não
existe morte sem motivo.
Tudo o que se ingere tem uma espécie de acesso privilegiado ao funcionamento
do sangue, à vida que este viabiliza. O de-comer é, neste sentido, poderoso como um
remédio aplicado por injeção. D decerto reside a importância do conhecimento
culinário sobre a imagem do corpo buraqueiro. As “conversas de mulher” constituem
assim um terreno privilegiado. E os processos na cozinha são apreendidos e elaborados
por um vocabulário quase inteiramente coincidente com o vocabulário do sangue. O
sangue pode ser apurado”, isto é, intensificado na “mistura”, conforme vimos ocorrer
na reprodução entre pessoas de “mesmo sangue” (capítulo 2), numa lógica idêntica ao
que se vê no caldo “apurado” no fogo, mod’ficar “grosso”. O leite “corta” e vira talhada
e a lima, por sua vez, “corta” o açúcar, chupando-o na receita de doce de leite, por isto é
bom contra diabete, que é “açúcar no sangue”. O limão também “corta”, e nisto o termo
328
assume dois sentidos aparentemente distintos – corta porque elimina e porque faz talhar.
Associadas, as duas idéias ‘alimentam o pensamento’, que se segue em novas
elaborações. O esteporo, resultante do choque rmico, seria o efeito no sangue daquilo
que se nos processos culinários que demandam resfriamento lento; caso contrário,
talha, corta, desanda, estraga, “não dá certo”.
Os temas da comida e do sangue ‘fazem falar’ a respeito de pessoas, seus modos
de criação e procriação. O de-comer que “mistura” com outro na mesma panela, por
exemplo, vira uma coisa só, e o mesmo termo se usou para as gêmeas recém-nascidas
de João, filho de Rosa, A gente “mistura” as duas, diz esta, não diferença. É que
vieram da mesma placenta, explica, quando é de duas placentas, “divide”, o sangue de
uns-aos-outros “separa”. E se a mistura do sangue às vezes produz crianças tolas ou
deficientes (capítulo 2), a “mistura” de algumas comidas, vimos aqui, também arrisca
dar em efeitos danosos, “cismam” até em falar de morte. No frango ao molho pardo,
explicou-me Dona Zefa-Carneira, joga-se o limão para cortar” o sangue. Crente não
come sangue por causa do nascimento de Jesus. É besta! E de certo bicho é irmão de
gente! Hahahá! O frango ao molho pardo é conhecido, mas não é “costume” nos
Buracos. E a idéia de “cortar o sangue” tinha nisto também outro sentido, pois o modo
propriamente buraqueiro de comer inclui processos deliberados de eliminação do
sangue: frituras, cozimentos e longa exposição ao fogo são imprescindíveis a qualquer
carne, e isto após tê-la “escaldado”, mod’ tirar o sangue da carne. A água quente
também serve para retirar os bernes que começam a aparecer quando a carne “puba”
[começa a apodrecer] e, tal qual ferida, aparenta aquele aspecto “frio”.
Forte, remoso, frio, quente; apurado, misturado; puxar, enxugar, chupar, pubar...
As coincidências entre os processos e as qualidades existentes na “cozinha” e no
“sangue” o apenas de vez em quando exploradas pelas reflexões dos buraqueiros.
Contudo, nas poucas vezes em que os ouvi fazendo esta associação, foi com um espanto
alegre: açúcar na ferida do pé, acelerando a cicatrização para poder seguir a Folia é uma
prática corrente, mas uma vez alguém comentou, É como com a carne, que não puba
mod’o sal... Os outros deram uma risada satisfeita. É isso mesmo!, reagiram. Como se,
naquele processo culinário, encontrassem a comprovação da eficácia de seu
medicamento caseiro. “Para tudo existe uma ciência”, dizem em situações como esta. A
“ciência” do corpo e da cozinha faz-se ver na autoridade que as mulheres em geral
assumem sobre os assuntos de tratamentos de doença, tanto quanto na “mexida” dentro
de casa ou no preparo das festas e outras situações de importância para o que
329
poderíamos chamar ‘questões públicas’. A carne é pouca, dobra o óleo, que é quente e
forte, como a carne: o povo come e satisfaz com pouco... Café é forte, por isso é tomar e
passar a fome... Você está precisando é de um purgante; toma e limpa, tira as coisas
ruins, ajuda a sentir fome e fortalecer... A barriga está fofa é mod’ coisa fria ou trem
fino que você comeu... Para tudo existe uma ciência, repetem os buraqueiros em
ocasiões diversas. Referem-se decerto à ‘nossa’ ciência moderna, observada na voz dos
“cientistas” e “especialistas” que ouvem nas reportagens de TV; mas a referência é a
título de comparação, pois cada “ciência” sabe sobre tem o conhecimento que lhe é
constitutivo. Nem tudo os especialistas explicam, como entredizem as eventuais risadas
(algo desdenhosas) a respeito das explicações de Nísio, ele é “o especialista dos
Buracos”. Aninha, você conhece “o cientista dos Buracos”? Hahahá! Nos Buracos,
observam-se com curiosidade os “entedimentos” identificados seja no comportamento
razoável e interessado dos animais, seja na habilidade de um artesanato desconhecido
pelas técnicas costumeiras, seja na vocação (a “influência”) de quem conhece e sabe
fazer benzimentos, ou então na de um tolo que, embora não tenha aprendido a falar,
constrói instrumentos musicais de rara qualidade. Como é que entende uma pessoa
assim...?, perguntara-se Quincas (capítulo 3). Para tudo existe uma ciência...
Por que uns aprendem e outros não? Como é que aprende, moço? Com as donas
de casa, dá-se o mesmo. Elas têm sua própria “ciência” e constantemente trocam
informações que aprimoram seus modos individuais de um fazer comum, uma
“ciência”: como é melhor para que a roupa fique alva; a dor de barriga, curada; a
comida, gostosa. Mas nem tudo se conhece e domina; o resultado imprevisto de alguma
ação doméstica visibiliza outra espécie de “entendimento”. Pode-se, por exemplo,
repetir o modo no fazer de um doce - “o jeitinho” como sempre se faz! - mas de
um dia o leite dar de cortar e o doce desanda. Suspeita-se sobre a chegada de gente de
fora” durante a mexida na cozinha, pois “o olho dos outros” faz o leite cortar. Diz o
dizer!, dizem-me os buraqueiros. É inveja?, pergunto. E quem é que sabe?, respondem-
me.
5.5 – Praga de mãe pega (influências)
Lúcia-de-Quincas precisava ir à casa de sua tia Zefa-Carneira. Queria fazer a
visita porque a tia nos mandara recado, O de jabuticaba está carregadinho, e as
jabuticabas estão tudo perdendo no chão! E queria aproveitar para ver se caçava um
330
barbatimão, contou-me, alegando por fim a vontade de “matar a saudade da velha”. Faz
tempo que não vou ver, disse. Quando é na vila, sempre de correria, tendo que
resolver coisa, não tempo de fazer visita: aproveitar agora que ela está nos Buracos,
justificou-me Lúcia. Na ocasião, eu a havia pagado para que me levasse às “famílias
principais” dos Buracos; estava recém chegada ali e era a primeira vez que “fazia
conhecimento” com a maioria das pessoas. Dona Zefa entretanto, eu conhecera da
Vila, onde hoje mora com um dos filhos. Mulher antiga nos Buracos, conhecida demais!
O local de sua casa buraqueira, qualquer motorista de Chapada conhece. É dizer, “Lá
no João Carneiro”, nome de seu falecido marido, e o povo te trazem na casa de Zefa,
nos Buracos.
De Quincas, no Calengue, até Os Carneiro, no Três Passagens, são duas horas de
a pé, assim no dizer, para mais ou para menos. No caminho, passamos pelo pasto onde
antigamente era mato fechado e acontecia de muita gente “ver visagem”. Teve um tio de
Lúcia que viu uma vaca bem ali, que naquela época não existia vaca nos Buracos.
Era comum também “ver visagem” de um leitão junto com um monte de pintinhos, ou
de uma galinha seguida por filhotes de leitão. No dia seguinte, iam procurar os rastros
dos bichos e não encontravam. Ainda hoje, acontece às vezes de alguém escutar uma
barulhada embaixo daquele jatobá. E ainda hoje, quem passa por ali à noite pode contar
que é valente... Bestagem!, retruca outro. Mas dizem, Acontece, moço! É o quê!
Coisa de gente de cabeça fraca! Lúcia me diz não acreditar, e me explica, Olha, tem
gente que diz que acredita vendo. Tem gente que diz que existe no passado. O
meu bisavô, por exemplo, o finado João Gomes, era muito rico. E como não tinha banco
naquela época, dizem que guardava o dinheiro em uns potes e enterrava. Dizem que
dinheiro enterrado atrai o Diabo. Eu penso que é o Diabo. Porque hoje não tem mais,
porque as pessoas estão mais devotas, mais apegadas em Deus. Naquela época o povo
não seguia assim a Igreja...
O assunto rendeu até chegarmos à casa de Dona Zefa Carneiro, que nos recebeu
pedindo desculpas pelo “de-comerzim fraco”. Reclamou por não termos avisado que
vínhamos hoje. Se soubesse, ao menos mataria uma galinha, Ontem eu fiz um monte de
comida e ninguém apareceu!, reclamou. Nísio, filho de Zefa, remediou as reclamações
da mãe cortando algumas fatias da mortadela para fritá-las e rapidamente as acrescentou
ao cardápio do feijão com arroz, ainda quentes nas panelas sobre o fogão, embora
retirados do fogo, que aquela altura era brasa. Haviam almoçado naquela pouca hora.
Chegávamos de fato em horário inconveniente: tarde para o almoço, cedo para a
331
merenda. Lúcia justificou-se, teve um entrevero com o ex-marido, encontrado durante o
caminho: foi o que atrasou nosso cálculo. Almoçamos logo e por ali nos mantivemos o
resto da tarde, até quase o anoitecer. Zefa-Carneira é boa na prosa! Não nos deixou ir
embora sem antes tomar o café-com-biscoito (biscoito frito), que pediu para Lúcia
amassar. Lúcia é boa de amassar biscoito! A visita teve boa, portanto. Fomos caçar
jabuticaba, e tinha jabuticaba que não esbarrava mais. Lúcia comeu menos da jabuticaba
porque viu os buritis amolecendo no bald’água; Lúcia não sabe recusar buriti com
farinha! Havia ainda uma panela com o resto do tatu que o outro arranjara, assim como
se hoje ontem. Dera a Zefa e Nísio a sobra do bicho feito e desfiado. E também o
beiju de massa, este feito trazanteontem, quando torraram farinha. Zefa perguntou-nos
pelo povo do Calengue e a sobrinha foi contando, Titia daquele jeito. Uma dor de
barriga que não pode! Mas não vai no médico, diz que vai quando chegar a data de ir
pegar a aposentadoria, que vai ter que subir mesmo pra Chapada. Tomou raiz de
caju e diz que deu bem. Mas aquela Titia! Parece que é besta...
Dona Zefa traz “os fotinhos dos antigos”, desses “do monoquinho”, da época
que o povo só tirava foto quando ia à Festa da Serra. Vai mostrando os que hoje estão
vivos e velhos quando eram moços e bonitos; depois me aponta os que são hoje mortos,
apresentando cada um por meio da “parenteza” em relação aos conhecidos meus. Lúcia
provoca nossa risada ao recordar a ocasião do velório da tal parenta que morreu doida.
Foi um acontecimento memorável. Diz’que Rosa chegou no velório carregando uma
faca para matar uma prima de Lúcia: tinha encontrado, na gibeira do marido, uma carta
de amor desta prima que era então a jovem amante de Quincas. Anísio contou o que
contam, que o povo dizia, Não! tem um morto, deixa para matar depois, se não vai
dar muito trabalho! Riram-se. Lúcia riu com gosto, pois não estava gostadeira da mãe.
Prosa... A relação das duas havia sido debatida em absolutamente todas as casas que
eu visitara nos Buracos sem a presença de Lúcia. Queriam saber a quem eu dava razão.
Muita gente defende Lúcia, diz que Dona Rosa é prosa ruim. Outros são contrários. Sem
negar a prosa de Rosa, defendem-na. Argumentam que Lúcia pirraçou a mãe desde
criança. É assim da natureza mesmo. Como o espinho da planta, que já está antes de
aparecer, formulou-me uma senhora buraqueira. Filho não pode brigar com a mãe!,
continuou. Não pode! Mãe é fino! Mas aí, os outros falam. Rosa também “está errada”.
Chama a filha até de Besta-fera! A gente diz esse nome é para a mãe do capeta, não
pode dizer isso à própria filha! Vai que é por isso que Lúcia fica assim, tendo que
cumprir aquela sorte. O que é cumprir a sorte?, perguntei a uma tia de Lúcia, que então
332
me explicou: a pessoa já tem uma sorte quando nasce, mas pode caçar sua sorte
também, trabalhar, se esforçar para conseguir as coisas. Mas quando a mãe roga
praga, a filha fica tendo que cumprir aquela sorte. Fica assim, isolada, escarquiada; não
quieta mais em nenhum lugar. E o pior é que Tia Rosa tem uma prosa... Tudo o que ela
fala, acontece. E praga de pai nem sempre pega, mas a de mãe... Pega mesmo!
Quando veio o filho que “deu” para uma prima, Lúcia estava “sem condições”
sofrendo muito e, dentro de casa, a mãe brigando. Deve que é por isso a dor de
cabeça de Lúcia. Foi quebra de resguardo. Na época de Luciano, o filho do meio, Lúcia
foi morar na casa de Siluzinha, Dona Silu, a tia que é prima de Lúcia e esposa de seu tio
Bastião, irmão de Quincas. Luciano tem o sanguinho bom! A avó Rosa quer que ele
fique com ela. Uma menina, implicando com o menino de Lúcia, chamou-o “filho-de-
traíra”, porque não tem pai. É de filho-de-siriema, disse a avó, Só anda de um lado pra
outro. Hahahá! Luciano faz que não se incomoda, gritando, Sou é filho-de-tubarão!
Porque não tenho pai! À época daquela visita a Dona Zefa, “a neném” de Lúcia havia
falecido havia cerca de quatro meses, aos dez meses de idade. Em meio ao sofrimento,
Lúcia separou-se mais uma vez do marido. Voltava agora a morar com os pais. Ou seja,
mais a mãe: aquela guerra. Embora ambas muito trabalhadeiras e boas de serviço -
ativas! - Lúcia e Rosa não davam bem dentro de casa.
Durante a visita à Dona Zefa, o causo da mãe e filha não rendeu muito. Lúcia
estendeu-se foi nos causos sobre “a época da neném”, a filha falecida, de nome Julisa,
cuja madrinha era a tia Silu e o tio Bastião. Quando a neném andava doente, Rosa
estava “outra pessoa”; ajudava. Após a morte, Lúcia às voltas com “o processo” no
hospital em que a menina morrera, pedindo o laudo médico sem sucesso, mas a mãe
havia tornado à prosa habitual. A conversa esmoreceu quando Anísio decidiu ir caçar
o barbatimão de Lúcia; esta então juntou as vasilhas para “ir lavar na fonte”. Que ficasse
eu fazendo companhia à Zefa, orientou-me, negando minha ajuda. Foi então que esta, a
sós comigo, quis me assuntar: Aninha, você que é da cidade, deve saber mais dessas
coisas... Você acha que a célula-tronco vai chegar no Brasil? Silvaneis, o filho mais
novo de Zefa que ficra paralítico foi quem havia contado à mãe sobre as recentes
descobertas científicas em torno das células-tronco. E contou que a Igreja não queria
aceitar
81
. Zefa discorda da Igreja, pois entende que a célula-tronco é tirada antes de
entrar no corpo do bebê. A família havia “tentado de um, tudo”; as células-tronco,
81
Neste período estava tramitando no Congresso Nacional o Projeto de Lei para regularizar a pesquisa em
células-tronco e uma série de reportagens de TV estava sendo vinculada pelo Jornal Nacional.
333
contou-me a senhora, eram sua última esperança. Conversamos sobre o assunto, Zefa
contando o causo, relembrando o que se passou com o filho, narrando “o sofrimento”,
“as viagens”; chegou a morar dois anos em São Paulo, mod’tratar. De nada adiantou.
Hoje vive em Chapada mais o filho, pois cadeira de roda não dá para a roça.
Nísio e Lúcia voltaram à cozinha cada um por sua vez e se juntaram de novo à
conversa, mudando-lhe um pouco o rumo. Lúcia retomou o assunto do ponto de quando
saiu. Contou que ela, assim como Zefa, teve que “viver no hospital” do São Paulo
durante muitos meses. Depois foi parar no hospital da Brasília, onde sua filha viria a
falecer. A neném estava melhorando, mas deram uma injeção nela para mod’ um
exame. Como era alérgica à substância da injeção, morreu foi mod’injeção, não da
doença que ela já tinha. Fizeram a autópsia do corpo, contou Lúcia, Vou abrir processo!,
disse ali, Meu irmão João, que mora na Brasília, é que está vendo isso para mim.
As duas contaram-me sobre as muitas amizades feitas durante o tempo em que
passaram nos hospitais de cidade grande, Gente que estava em situação até pior do que a
minha!, contou Zefa, Que teve filho com deformações horríveis! Um menino com fuça
de porco, um olho de cada lado do rosto... Deus me perdoe! A gente não sabe, né, mas
eu acho que não tinha coragem de criar um menino meu se nascesse assim... Com
certeza é porque a mãe viu esse bicho na TV. Quando uma grávida uma coisa feia e
fica incutida naquilo, o filho nasce igual... Lúcia intervém e refuta a tia, diz que é no
início da gravidez. Zefa diz que só acontece se a pessoa esquece que está grávida. Aí ela
fica “incutidanaquilo, fica com “influência”... Teve uma criança que apareceu na TV,
na época daquele programa da Família dos Dinossauros, e era a cara do bicho. Lembra?
Aquele bichinho da TV que gritava “não é a mamãe”! a mãe não quis saber da
criança e o médico brigou e falou, Vai sim levar o bebê, para aprender a não ficar assim
com essa influência com televisão! O irmão de Lúcia, por exemplo. Ele tem a orelha
dobrada, e é porque a mãe viu uma guariroba quando estava grávida. Dona Zefa
mostrou então uma mancha em sua perna e disse, Dizem também que se uma grávida
coloca uma coisa no sutiã - por exemplo, a gente tem mania de guardar o dinheiro no
sutiã - a criança nasce com o desenho do dinheiro na pele. Mas no meu caso, é uma
folha de fumo. É claro que minha mãe não ia botar uma folha de fumo no sutiã; ela
usava era para limpar os dentes, então foi alguma coisa assim...
Anísio ouvia balançando a cabeça, não acredita nessas “superstições”, disse,
coisa de “gente de cabeça fraca”. Na verdade, tudo depende do que acontece no
momento em que se está gerando o bebê!, explicou Nísio. Então! É isso mesmo!, alegou
334
sua mãe, É na hora de gerar que acontece. Mas ele discordava; recorreu ao exemplo dos
gêmeos que haviam aparecido na TV recentemente e disse, Quando “dá o destino” de
entrar ao mesmo tempo dois embriões - ou até três ou quatro! -, eles são gêmeos.
Qualquer mulher pode ter um filho gêmeo! Neste ponto, Lúcia interveio, Mas tem
também o fator genético, argumentou, Quem tem gêmeos na família tem mais chance de
ter filho gêmeos. No pré-natal os médicos perguntam se a gente tem gêmeo na família.
E a conversa seguiu com outro exemplo: o das gêmeas que são primas de Lúcia. Uma
delas mora nos Buracos, a outra está casada e o marido trabalha numa fazenda fora. Ela
pouco vem visitar os Buracos, dizem que não se parece em nada com a irmã gêmea.
Esta, por sinal, tem uma outra irmã que não é gêmea mas é igualzinha uns-aos-outros; o
sangue puxou mesmo!
O caso dos gêmeos na TV havia sido comentado em outras conversas nos
Buracos. As pessoas que tocaram no assunto mostravam-se intrigadas com a idéia da
‘gestação’, ou geração”. O que interessava na reportagem era o fato de que os irmãos
gêmeos, quando não são fisicamente iguais, é porque não foram “gerados” juntos,
embora tenham sido fecundados ao mesmo tempo. Também o argumento de Anísio
focava aí; quando ele falava em “gerar”, incluía o momento que entendemos como
‘fecundação’. É na hora de gerir!, dizia ele, quando “dá o destino” de entrar dois
embriões de uma vez, é que a criança nasce gêmeos. Pensando sobre a relação
semântica entre “destino” e “acaso”, perguntei ao Anísio, Então é o acaso que
determina? Ele fez que sim. E eu tornei a perguntar, Mas o que determina o acaso? É
isso que ninguém sabe, disse Nísio, Tem coisas que nem a ciência sabe explicar...,
concluiu.
Dona Zefa ofereceu-me o resto do tatu que estava na panela, menino-Bichim
encontrou e trouxe um pouquim pra nós, acrescentou ela, ressaltando-me saber que “é
errado” caçar tatu. Disse-me que eu precisava experimentar, já que não conhecia,
embora aquele tatu estivesse ruim, lamentou, muito magrinho. Bom é pegar tatu em
fevereiro, março, quando termina a chuva. Ele fica a chuva inteirinha escondido no
buraco, aí quando sai é aquele bicho gordo. Nísio refletiu, Eu não entendo como é que o
tatu existe. A gente ele correndo, e é sempre sozinho... Hoje em dia não tem mais
muito tatu, pegaram tudo. E a conversa veio sobre o erro de matar tatu além da conta.
Lúcia disse, Eu penso assim, igual tem o pecado da gula, matar muito tatu é a mesma
coisa. E Zefa-Carneira contou o causo de uns Fulanos que foram matar um tatu canastra,
um bicho enorme, disse ela, quase não tem aqui nos Buracos. Os homens viram o rastro
335
do bicho e ficaram esperando ele sair pelo buraco. Ficaram ali um mês esperando-
esperando, um revezando com o outro, de prontidão na saída do buraco. E nada do tatu
sair. Quando completou um mês, eles pegaram a enxada e cavaram para achar o bicho.
Até que encontraram: do tamanho de um tatu bola, tinha uma lacraia. Uma lacraia
gigante!
Aquilo era para mostrar a eles o pecado da gula. Porque eles fizeram o bicho
esperar ali durante um mês, sem poder comer, sem poder sair para nada, tudo por causa
da gula deles..., analisou Zefa. E foi a vez de Anísio contar sobre o sujeito que foi
pescar na Sexta-feira Santa mas voltou com uma cascavel no anzol. Todos ficaram
muito impressionados com esta história, afinal de contas, cascavel não anda no rio e
nunca pega isca nenhuma, quanto mais isca de peixe. O homem do causo ficou cismado,
matou a cobra e não pescou mais. Certamente aquilo era um sinal de Deus. Falando nos
sinais de Deus, Dona Zefa citou “os crentes”: não acreditam em santo, não têm dia
santo, só acreditam em Deus. Eu tenho uma irmã que mora lá no São Paulo e é
evangélica, disse, então eu falo para ela desses sinais que Deus e os santos mandam, pra
trazer a a quem não acredita. As aberrações atribuídas à gula, dadas como sinais dos
santos e de Deus, fizeram-me ali lembrar das aberrações que, no começo da visita,
elaboraram-se sobre a “influência” do olhar materno sobre a formação do corpo de seu
bebê. Praga de mãe pega mesmo!, como diz o povo. Um filho não existe sem sua mãe,
desta ele é criado e por ela se cria. Como seria possível viver sem relações?, parecia
perguntar Nísio a respeito da intrigante existência do tatu, “sempre sozinho”. Como é
que existe sempre sozinho?
era fim de tarde e eu e Lúcia decidimos ir embora. O tempo turvava também
mod’a chuva. Dona Zefa insistiu que esperássemos, O tempo realçou só de quentura,
daqui a pouco é vem a chuva! Vai lacrar. Melhor vocês pousarem aqui; acabaram de
beber o café quente, vai dar esteporo! Mas a despeito da insistência da casa nós
seguimos nosso rumo. No caminho de volta, carregadas com as sacolas de jabuticaba e
pinha dadas por Dona Zefa, passamos pelo rio Pardo, ali onde ele é largo e espalhado
pela areia, onde desaguou o Calengue e misturou com o Três Passagens, trazendo
com ele o Retiro, ali onde já é “um rião grosso”. Com a enxurrada, não as estradas
desapareceram em vários pontos, formando grotas e montes de areia. Também as
travessias dos rios ficaram difíceis. É preciso saber onde andar para que os pés não
afundem deixando-nos presos com terra até o alto das coxas. É preciso tirar os chinelos,
para mod’ não pregar na terra. Lúcia me explica, Onde tem água correndo forte, não
336
pára a areia mole; e onde tem cascalhos e pedras, nunca se afunda. É preciso saber onde
caminhar. Essa paisagem me lembra a época de moça, disse Lúcia, eu vivia aqui, na
casa da minha prima, filha de tia Zefa, a gente falava dos namoradinhos, a gente era
mesmo que irmã. Naquela época, o mundo era melhor. Não tinha tanta tristeza na
família, não tinha essas mortes todas.
337
Terceira Parte
Considerações finais
338
Capítulo 6 – No tempo da política
6.1 – Política é uma festa
Em meu terceiro retorno a Chapada Gaúcha, fazia cerca de um ano que eu
partira de da última vez, e lembro das impressões otimistas sobre a “evolução” do
município impressões tanto de minha parte quanto dos relatos que ouvia naquele
reencontro. A evolução era no sentido preciso costumeiramente aplicado ali: a Vila
estava ganhando cara de “cidade evoluída”. O calçamento enfim chegara na principal
avenida e se somava a outros detalhes urbanísticos, como o gramado e as mudas
plantadas na praça central, a instalação de uma Cozinha Comunitária ali em frente e as
vistosas lixeiras coloridas conforme o padrão de separação de reciclagem (embora não
fossem usadas para este fim, “faziam vista”)
82
. Os causos sobre furtos às casas, notados
então como em número crescente, pareciam estar também incluídos nesta “evolução” -
se falava sobre o perigo de, com a vislumbrada chegada do asfalto nos cem
quilômetros entre as cidades de Arinos e Chapada (ligando mais facilmente esta a
Brasília), chegasse também “a violência”. De um modo geral, entretanto, o clima era de
otimismo com a cidade. Está ficando “arrumadinha”, está “evoluindo”, diziam-me.
Além das novidades, o último ano havia sido “bom de chuva” - chovera “na hora certa”
- de modo que as colheitas haviam sido boas.
Ainda no caminho, quando o ônibus parou na rodoviária de Arinos, encontrei
um grupo de amigas, professoras de Chapada, que voltavam de um curso de
especialização para o qual ganhariam o diploma de pedagogia necessário ao cargo de
supervisão na rede de ensino municipal. A “evolução” mostrava-se então também nas
“pessoas”. Entre as professoras, estava Damiana Campos, minha primeira guia’ em
Chapada que, àquela altura, já era “mesmo que uma irmã” (cf. capítulo 3). Sentou-se ao
meu lado no ônibus e veio me adiantando as novidades. Contou-me então sobre “a nova
moda de Chapada Gaúcha”: as cartas anônimas escritas em computador com cópias
espalhadas por diversas casas chapadenses; o conteúdo era sempre relativo a algum
“podre”, isto é, “fofocas” que “o povo sabe” mas “não fala”, explicou-me ela, podres
“da política e das pessoas”. Os efeitos da vida de alguns dos delatados nas cartas foram
82
A Cozinha Comunitária e as lexeiras ecológicas foram implementadas com verba federal, por meio de
projetos do Ministério do Desenvolvimento Agrícola e Ministério do Meio Ambiente, respectivamente.
339
devastadores, tendo quem se mudasse da Vila por conta. Engraçado é que as cartas não
forneciam os nomes das pessoas; referiam-se a estas apenas de forma cifrada, como por
exemplo no causo do “rei do gado”, onde a referência ao nome de uma novela cujo
protagonista era um fazendeiro conquistador somava-se à referência aos “chifres”, e
assim todos souberam de quem se tratava. O fato de que a maioria dos chapadenses
soubesse do causo antes de sua divulgação epistolar não alterava o efeito explosivo dos
dados por escrito. Como vimos, escrever e falar guardam valores bastante distintos.
Sobre as cartas, Damiana julgava ser justo “espalhar os podres da política”, mas
não os “da pessoa”. Tal análise dava-me a ver um ‘entredito’ nas minhas primeiras
impressões: o clima festivo com que a Vila me recebia tanto na alegria da
“arrumação” da cidade quanto na intensidade das agressões indicava ser aquele um
“ano de política”. O que eu já conhecia das inúmeras referências na literatura
etnográfica, mostrou-se, assim que cheguei, um ‘conceito nativo’ dado quase que
pronto. À diferença, por exemplo, da idéia de “cálculo”, que exige certo esforço de
‘escuta’ para ganhar consistência, o “tempo da política” (no momento que lhe cabe ser
abordado) é uma expressão tão repetida quanto ‘extensa’ em sua capacidade de articular
“assuntos”. Como não foi possível explorá-lo ao longo desta tese, aproveito aqui para
trazer o tema pontualmente, apenas à medida que se retome com isto algumas questões
trazidas até agora. Importante destacar que muito do que expus anteriormente sobre o
cotidiano buraqueiro foi pensado durante o “tempo da política”, dado algo curioso,
posto que este “tempo” pode ser caracterizado justamente como uma ‘ruptura do
cotidiano’, como demonstram Palmeira e Heredia (1997: 161). Na formulação ouvida
de um pernambucano pelos autores, ‘Eleição é a maior festa do Sertão. Sertanejo adora
votar’. Como as festas que marcam o período do giro das Folias (capítulo 4), “o tempo
da política” também é marcado por “festas”. Sejam os “comícios” que têm o formato de
“shows”, as “palestras” que são o mesmo que “reuniões”, ou as festas” propriamente
ditas, oferecidas pelo candidato antes e (no caso de vitória) depois das eleições. O dia
do voto para Prefeito e vereadores foi sem dúvida o mais movimentado - “animado” -
dentre todos os outros dias em que passei na Vila. Mesmo assim, naquele ano de 2008,
estando os candidatos proibidos por Lei a dar aos eleitores fossem presentes, caronas ou
festas, o povo me dizia que “a política” estava “muito fraca” em relação aos “tempos”
anteriores
83
. A comparação evidenciava outro aspecto comum entre os tempos “das
83
Sobre a dimensão que se pode chamar ‘personalista’ das relações estabelecidas no “tempo da política”,
ver Chaves (2003).
340
festas” e “da política”, a de se estender para além do tempo dos acontecimentos que se
lhe são diretamente atribuídos. Os causos e análises que tais eventos geram continuam
sendo efetuados e gerando efeitos através dos tempos (embora com intensidades
diversas). Daí a dificuldade em circunscrever este período a um calendário fixo; daí
também a constante ‘invasão do cotidiano pela política’ (Palmeira e Heredia, 1997:
177).
Tal dificuldade de definição não se restringe à questão do intervalo de tempo, a
própria noção do que venha a ser a ‘política’ objetificada na investigação é uma questão
antiga da antropologia (cf. Goldman, 2006: 38-42). No Brasil, estudos produzidos a
partir dos anos 1990 sob a idéia de uma ‘antropologia da política’, conforme o termo
cunhado por Moacir Palmeira, propõem-se a evitar definições extrínsecas e buscar
observar o que ‘do ponto de vista nativo’ esteja relacionado a uma definição ‘nativa’ de
política (Goldman, 2006: 39-40). Esta operação, no caso de Chapada, leva-nos
diretamente ao conceito do “tempo da política”, e a dificuldade em circunscrevê-lo em
um intervalo mensurável pode ser encarada como um desafio próprio à construção’
deste ‘conceito nativo’. De acordo com o que coloquei na introdução a esta tese, e
segundo a proposta de Goldman (2006: 41), ‘nosso problema é de tradução, não de
imposição’; para isto, o esforço é o de não recair no gesto de projetar pressupostos de
‘nosso’ vocabulário descritivo sobre os modos descritivos ‘deles’. Em se tratando da
‘mesma língua’, ressalta o autor, a tarefa ganha um desafio particular.
‘Política, por exemplo, parece ser, simultaneamente, um ‘objeto’ (ou
‘categoria nativa’) e um ‘conceito’. Na verdade, não se trata, ao menos em estado
puro, de nenhuma das duas coisas, mas de um dispositivo histórico que permite
recortar, articular e refletir, de maneiras diferentes, práticas e experiências
vividas’ (Goldman, 2006: 41).
Tal esforço, prossiga-se, é o de restituir ‘as dimensões êmicas das noções até as
últimas conseqüências’, o que consiste em observar a um tempo as abstrações
produzidas pelas palavras nativas e as ‘modalidades concretas de sua atualização e
utilização’ (Goldman, 2006: 41). No caso aqui, parte dessa ‘concretude’ é encontrada na
própria circulação de palavras, isto é, nos efeitos a partir dos quais ela se a ver,
efeitos de aproximação e distanciamento entre pessoas. Não é à toa que as festas me
soaram sempre tão eloqüentes. Os buraqueiros, como apreciadores da prosa que são,
dão a estas ocasiões um lugar de destaque inconteste em suas reflexões sobre as relações
humanas. Infelizmente, não pudemos aqui observar a presença estruturante das datas
341
festivas nos calendários buraqueiro e chapadense (que não são não inteiramente
coincidentes). Basta dizer que todo cronograma de vindas dos parentes emigrados é
formulado segundo o parâmetro das principais festas do município: “a Folia” (janeiro e
fevereiro), “a Festa da Serra” (junho, em homenagem a Santo Antônio) e “a Festa do
Encontro” (Festa do Encontro dos Povos do Grande Sertão, em julho). Nesta tese não
explorei esses diferentes “tempos” mas sim sua dimensão propriamente ‘cotidiana’. A
partir do exemplo da Folia, busquei mostrar que, na ‘prática concreta’ das festas de
Folia, replicam-se elementos constitutivos da circulação rotineira “nas casas”, isto é, da
circulação de prosa e comida (cf. capítulos 3 e 4). Assim, evidenciaram-se ali os
gestuais ritualizados de recepção e chegada. Por ocasião das “festas da política”,
diversamente, o que a experiência me deu a ver foi o especial zelo, a acelerada
intensidade e o prolongamento no tempo dos efeitos do fluxo rotineiro de palavras.
Nestas considerações finais, vale nos atermos um pouco sobre este ponto. Um bom
exemplo para se comparar as ‘visibilizações’ fornecidas na experiência desses diferentes
“tempos” (que às vezes coincidem) é o caso dos diferentes efeitos da “arrumação” da
casa (na Folia) e da cidade (na Política). Em um e outro caso, “o povo fala”, “o povo
comenta”. Na Folia, “o sentido da conversavolta-se principalmente para as relações
pessoais eclipsadas no evento (quem “ajudou”; quem “deu a carne”, quanto de doação o
festeiro ganhou, etc). Na Política, estas preocupações estão igualmente presentes, mas
ali o que me chamou atenção foi antes a elaboração desenrolada sobre o “cálculo” de
quem fez, de quem arranjou”, de quem ajudou”. Fez para a gente “falar bem”! Fez
porque “é tempo da política”!, analisa-se sobre as festas e arrumações do tempo da
política.
Neste período, Chapada Gaúcha testemunha a palavra “espalhada” pela “falação
do povo”, essa modalidade de prosa que fica “perdida no ar”, conforme bem elaborou
uma amiga buraqueira (capítulo 1). Embora a divulgação das campanhas incluam a
intensa circulação de carros com auto-falante, além dos “santinhos” com a foto do
candidato e algum texto escrito, o registro da palavra não é o que ali “rende assunto”.
Com exceção das cartas anônimas, os “causos” envolvendo os “declarados” pela
“política” são os da palavra oral. O que se diz nem sempre se escreve, poder-se-ia dizer.
Isto talvez explique a quantidade de “ofícios” emitidos pela Secretária de Educação e
Cultura do município. Muitas dessas declarações oficiais diziam respeito a questões que
me pareciam algo prosaicas, como a determinação de uma atividade de aperfeiçoamento
da qual os professores deveriam participar ou a reafirmação da “imparcialidade da
342
gestão” daquela Prefeitura. O ‘prosaico’, ali, ocultava contudo a ocorrência de sérias
“guerras verbais”, conforme elaborou Damiana certa vez - a pior guerra que se pode
fazer contra uma pessoa é a guerra verbal, dissera ela. Por conta de minha proximidade
com as professoras “da rede”, pude ter conhecimento de uma produção diária desses
ofícios - declarações por escrito e, por isto, “oficiais” - que, algo à maneira das cartas
anônimas, circulavam pelas pessoas as quais, uma vez conhecedoras do dito e de acordo
com suas relações pessoais, davam conta potencializá-lo verbalmente.
Foi o que ocorreu quando me comprometi a gravar uma “Folia temporona”
(“fora de época”) na “comunidade dos Buraquinhos”: era a “Folia de Jilvaldo”, que
então morava nos Buracos, mas também era “de João Grilo”, cunhado do primeiro e ex-
presidente do Sindicato dos Moradores da Comunidade dos Buraquinhos (cf. capítulo
4). A Folia havia sido realizada nos Buraquinhos (c. capítulo 2) com o propósito
declarado do registro audiovisual, e vinha na esteira de uma série de atividades ligadas
aos editais governamentais de “projetos culturais” dos quais passei a participar em
companhia de buraqueiros e chapadenses. O evento portanto tinha o intuito de um
registro do patrimônio, um registro da cultura (conforme as expressões dos editais
eventualmente repetidas por nós em ocasiões como aquela) e veio a ser realizado apenas
alguns meses depois de sua idealização, ocorrida quando da inscrição em um edital do
Ministério da Cultura. O anúncio da realização da festa, por fim em pleno “tempo da
política”. Um pedido especial da Secretária foi então endereçado a mim por meio de um
ofício entregue à Diretora da rede de ensino municipal, que por sua vez era também
presidente do Instituto Rosa e Sertão, ONG criada por um grupo de pessoas
chapadenses no qual me incluí. O ofício de número 199 terminava da seguinte maneira:
Qualquer candidato poderá comparecer nos eventos escolares, porém não poderá
fazer uso do microfone nas atividades solenes.
Caso cheguem às escolas e alguém tenha colado alguma propaganda de candidato
nas paredes ou qualquer local, solicito por gentileza retirá-las.
O tema política é transversal, mas ao trabalhá-lo evitem beneficiar algum
candidato ou partido político.
Desde já agradeço a compreensão,
Atenciosamente sou,
[nome próprio da Secretária]
343
A “política” como “transversal” é, no sistema de ensino chapadense, tal qual a
“cultura”: “temas” que devem ser “trabalhados” nas diferentes disciplinas curriculares.
Apesar da “transversalidade”, contudo, ressaltava a Secretária, a política deveria ser
trabalhada sem “beneficiar” algum candidato ou partido político. Mais uma vez,
portanto, a declaração sobre o funcionamento da “política” pedia para não se “misturar”
pessoae “política(cf. capítulo 3). A recorrência deste gênero de afirmação, antes do
que testemunhar uma ‘evidência’ das maneiras de “mexer com política”, parece afirmar
um ‘dever ser’ imposto justamente contra tal evidência. Noutras palavras, se é
necessário repetir que “política” e “pessoa” devem-se manter separados é justamente
porque essas duas composições efetuadas na palavra são freqüentemente flagradas
“misturadas”. Separá-las exige algum “trabalho”. No causo da Folia de João Grilo, por
exemplo, a solução encontrada diante do ofício da Secretária foi a de construir uma
palhoça ao lado da escola, de modo a não utilizar o ‘espaço público’ para a Folia.
Naquele mesmo dia, fizeram a reunião mensal da associação (de Moradores dos
Buraquinhos), também realizada ao lado de fora da escola, embora costumeiramente
esta seja o local da reunião. No rancho de palha, atrás do local da reunião onde em
seguida seria realizado o lundu, as mulheres preparavam o de-comer em fogões de barro
feitos no chão especialmente para a ocasião. A Festa esteve boa. Além do povo dos
Buraquinhos e dos Buracos, havia um pessoal formado por jovens chapadenses, muitos
dos quais acompanhando maridos, amigos e parentes que estivessem candidatos a
vereador. Estes também compareceram em peso - eram cinco. Um deles, “amigo antigo
da comunidade”, foi quem escreveu e leu em voz alta a ata da reunião, o que não era
exatamente uma prática “da política”. É usual ali que - chegando na reunião de
associação um “conhecido da comunidade” que seja “bom na leitura” - os moradores
lhe peçam para se encarregar da ata.
Como é que nós não vamos receber um amigo?, explicou-me João Grilo a
respeito de sua decisão em sequer entrar na escola. A justificativa soou-me
incontestável, sobretudo porque os amigos que estavam ali como “políticos” estavam
justamente para “pedir ajuda”. Vale notar que, em Chapada Gaúcha-MG, a carreira de
“político” reduz-se praticamente às possibilidades de se eleger como prefeito ou
vereador, de modo que não costuma haver muitos “políticos profissionais”. Naquela
eleição municipal, a maioria dos candidatos a vereador era formada por “pessoas” cujas
atividades principais não se vinculavam à “política” propriamente dita (isto é, a cargos
eleitorais ou cargos por indicação de governantes e legisladores). O “conhecimento”
344
destas pessoas com as “comunidades”, portanto, às vezes é encarado como
intermediado por ações ligadas a questões de campanha. Assim, embora muito se diga e
se escreva sobre a prática dos eleitores em pedir ajuda aos candidatos, a relação inversa
é ali igualmente notória. Quando uma pessoa “entra na política” ou começa a “mexer
com política”, seus conhecidos tornam-se sua principal fonte de ajuda. Conforme me
afirmou certa vez um político local, os eleitores são mais corruptos do que os políticos.
Mas se a ‘troca’ é assim reforçada nas relações estabelecidas no tempo da política, ela
não se livra de um resíduo não mensurável entre as partes, isto é, de um fluxo que não
se reduz aos termos trocados. João Grilo o expressou bem ao mencionar o gesto de
“receber um amigo”.
A troca de “ajuda” no “tempo da política” consiste grosso modo em algo que o
político “dá” ao eleitor para que este lhe dê, em troca, seu voto. Mas conforme
escutamos acima, e conforme a elaboração precisa de um rapaz buraqueiro (capítulo 3),
não se pode “misturar pessoa com política”. Deste modo, as trocas por voto nunca são
contabilizadas da maneira precisa como descrevi acima. Um eleitor pode
individualmente fazer pedidos a candidatos opositores, estes sabem que o que “dão” não
é garantia de voto. Trata-se antes de qualquer coisa de criar, com a doação, uma “prova
de amizade”. E esta é decerto um motivos alegados para que se justifique o voto em
determinada pessoa. o se reduza com isto a justificativa ao traço ‘personalista’ da
política lembre-se antes que, como vimos, a “amizade”, como o “parentesco”, é um
“conhecimento”. Por este caminho, a amizade, como o parentesco, mistura e “pessoa” e
“pessoal” (capítulo 3). Assim, a contabilização dos votos não equivale a das amizades:
se na política, cada pessoa é igual a “um” voto, entre amigos o que existe é a variação
contínua de um “pessoal”. A “declaração de voto” torna-se assim um ‘bônus’ de que os
eleitores chapadenses dispõem como “ajuda” dada aos candidatos. Se não podem
garantir o voto, podem declará-lo. A mim, por exemplo, os candidatos pediam “ajuda”.
Às vezes, diziam-me, Já que você não vota aqui... E então acrescentavam o pedido: “me
ajuda lá no povo dos Buracos”.
Que o voto seja secreto, é um clichê da democracia; mas eu nunca havia
encontrado esta maneira tão ‘ao da letra’ de encarar a afirmação. Com exceção dos
mais diretamente engajados na “mexida de política”, as pessoas costumam demorar a
declarar seu voto; às vezes não o fazem, ou informam o voto de forma que os outros
desconfiam da verdade. Existe ainda, é claro, a variação em função de quem está
ouvindo a declaração. Aos candidatos, a questão é delicada. A palavra ajuda, com o
345
perdão do trocadilho, costuma ajudar. Fulano veio aqui pedir o voto e eu disse que
ajudava, mas não declarei voto, explicou-me certa vez um senhor. E outras maneiras
de se posicionar, mais sutis, como no causo de Quincas dizendo a um candidato que o
visitava: Não vou lhe dar frango porque os candidatos é muito, se for oferecer frango
pra todo mundo que vem almoçar aqui... O voto declarado é nos Buracos algo de muito
valor, por isso mesmo pode levar com que o declarante seja ofendido como “vira folha”
caso seja flagrado em contradição ao declarado. A diferença entre o voto “declarado” e
o voto na urna é assunto constante entre buraqueiros, que quanto a isto tecem os
julgamentos sobre a honestidade dos eleitores. Por outro lado, o voto declarado pode
funcionar como uma maneira de expressar aos outros a contabilidade de votos de sua
“família”, seu “pessoal”. Os votos da minha família eu garanto! Alardeou Dona Silu
certa vez. Acusava outras “casas” de não conseguir “votar unido”. Muitas vezes, porém,
a família delibera justamente sobre como vai “dividir os votos”, no caso de quererem
ajudar mais de um candidato. Veremos adiante sobre quão intenso é o cálculo sobre essa
contabilidade eleitoral, cujas unidades podem ser “pessoas” ou “famílias”, nenhuma
delas reduzindo-se a “um”.
Na Folia temporona dos Buraquinhos, a ajuda que se podia dar aos candidatos
era “forte”, o que evidentemente implicava dizer que a própria comunidade se mostrava
“forte”. A festividade havia sido bem organizada: comida não faltou, nem animação dos
foliões. Uma semana antes, havia-se tornado assunto na Vila. Eu mesma, tive notícia da
festa porque ouvi “povo falar” na Prefeitura, depois “nas casas” que freqüentava. João
Grilo e Jilvaldo, por não morarem na Vila, deram-me suas palavras apenas dois dias
antes, e então combinamos em que consistiria minha própria ajuda: a gravação. O fato
de ser filmada certamente aumentava o interesse na festa. E em se tratando a um registro
da “cultura do povo”, a coisa crescia ainda mais. Diga-se quanto a isso que a
comunidade de Buraquinhos, assim como outra comunidade do município, haviam
ganhando o reconhecimento de ‘comunidade quilombola’, segundo os procedimentos da
política federal. Com isto, no último estavam sendo alvo de outros projetos culturais,
iniciativas municipais ou de “gente de fora” (sobretudo Montes Claros e Brasília). O
Projeto Griô que eu havia escrito em parceria com a irmã do Prefeito, por iniciativa
dela, era mais uma das recentes benesses associadas à noção de “cultura” (neste caso
346
não diretamente vinculada à questão ‘quilombola’)
84
. O ‘projeto’ era financiado pelo
Ministério da Cultura e consistia em aplicar um ‘projeto pedagógico’ envolvendo um
‘saber oral’. A escola de Ribeirão de Areia, comunidade do Prefeito, foi a escolhida
como alvo da iniciativa, mas os ‘mestres griôs’, aqueles responsáveis pela ‘transmissão
do saber oral’ haviam sido selecionados em ‘comunidades tradicionais’ de todo o
município. Para isto, ganhariam uma ‘bolsa’ de pouco menos de um salário mínimo.
Jilvaldo era um dos griôs contemplados, conforme deliberação de outros, pois além de
ser Folião de Guia tinha muitos filhos e nenhuma ajuda do Estado (Bolsa Família ou
Aposentadoria). A ajuda do projeto seria então muito bem vinda, e aguardada com certa
apreensão, tendo em vista a demora de sua realização. Mas mesmo sem ter ainda
recebido “o dinheiro dos Griôs”, notava-se em sua palestra, como na de João Grilo, um
entusiasmo particular com as noções de cultura e de conhecimento tradicional
relacionadas às atividades que eram, “no dizer do povo”, “o costume nosso”. Os dois
homens falaram sobre isto ao palestrarem ao final da reunião da associação, quando
então deram por começada a festa. Após o almoço e uma primeira etapa das rezas e
sambas de Folia, Jilvaldo levou os foliões para uma área maior, sob as árvores, para que
ali os candidatos presentes pudessem palestrar. Conceder a palavra aos candidatos
presentes potencializava suas próprias palestras. O termo “palestra”, atribuído a todos
que ali tiveram oportunidade de falar enquanto os demais permaneciam em silêncio,
indicava essa “força” especial do gesto de falar em “mexida de política”.
Zé de Orotides certa vez me explicou que o Pai Nosso, a reza, é na verdade “um
pedido”, e me fez assuntar: Santificado seja o Vosso nome... Perdoai as nossas ofensas,
assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido... A gente fala não é mod’estar
dizendo uma coisa que existe, refletiu Orotido, mas é pedindo que aconteça!, concluiu.
Para dizer como os buraqueiros, “fiquei com o sentido naquilo”, naquela idéia de
Orotides. Muito do que descrevi aqui sobre os agenciamentos do termo “rogar”
(capítulos 4 e 5) têm a ver com isto, o que é no mínimo curioso, que seus efeitos são
freqüentemente no sentido inverso ao da reza, a saber, no de “falar bestagem”, “dizer
mentira”, “jogar praga” e quiçá “fazer porqueira”. Não é à toa que, antes das situações
de “palestra de político”, é praxe que todos os presentes se arranjem em um mesmo
84
O Projeto Griô faz parte da Teia Cultural do Ministério da Cultura. Integrados à rede de Pontos de
Cultura criada por esta política, os chamados Griôs são pessoas reconhecidas por sua excelência no
chamado ‘saber de tradição oral’.
347
círculo para rezar em voz alta “o Pai Nosso” e “a Ave Maria”
85
. Numa ocasião em que a
palavra é especialmente “forte”, o cuidado com o que se “roga” faz-se imprescindível.
Como em uma reza, o ‘conteúdo’ das palestras dos candidatos soavam-me em geral
repetitivos, mas a impressão do eleitorado chapadense não parecia ser esta. Ao menos
isto não lhes causava desinteresse. A maneira com que uma e outra palestra se
estendiam em conversas e comentários posteriores ao acontecido sempre me deu mostra
de como se havia “assuntado bem” “a prosa do outro”. “Gostar da prosa” de um
candidato é certamente o primeiro passo para se decidir votar nele.
O pior é a fofoca, disse Jorginho com aquele seu jeito de garoto triste achei
que pudesse começar a chorar (na palestra dos Buracos, chegaria de fato às lágrimas).
Estávamos em uma caminhonete emprestada a Mundinho para que este fosse aos
Buracos “palestrar” (fazia campanha de reeleição à Prefeitura). Àquela altura “da
política”, Jorginho era declarado por muitos buraqueiros “o candidato dos Buracos”. Ele
é gaúcho e possui uma oficina de carros na Vila, em cujo lote - “desde muitos tempos
atrás” – deixava o pessoal dos Buracos soltar seus animais quando vinham à cidade para
voltar no mesmo dia. Com isso “foi ficando amigo”, “foi ficando conhecido nosso”,
contam-me hoje os buraqueiros. Quando, como eu e outros candidatos a vereador,
Jorginho pegava carona com Mundinho para aos Buracos, contou-nos estar muito
preocupado com uma tal senhora que sempre havia sido muito gentil com ele, mas que
naquele dia - era a segunda vez que acontecia Jorginho “batia a mão” pra ela e ela
não respondia. Tenho certeza que foi alguma coisa que disseram pra ela!, contava-nos o
candidato. Durante o restante do tempo, contudo, o caminho de carro rendeu foi sobre
os discursos do comício de Mundinho, passado havia menos de uma semana dali.
Riram-se muito. Houve um que errou no cálculo do tempo e acabou só elogiando
Mundinho, justo aquele, todos sabiam, não gostava de Mundim, apesar de “ser da
coligação”. Riram de outro que, no seu momento de falar, ficou pulando ao microfone
enquanto gritava, É 13, é 13, é 13, é 13...!, E de outro que no palanque tremia feito vara
verde, sem conseguir segurar o microfone. Nossa conversa rumou então para
dificuldade de se fazer discurso - é devido ao “tempo”, à “pressão”, disseram eles. Mas
não isso, comentaram também sobre os perigos no rumo da prosa: você não pode
queimar ninguém, nem os opositores nem o Prefeito; um discurso de 3 minutos pode
derrubar uma campanha inteira, como o caso do sujeito que falou, Eu não sei nem se
85
A única ocasião de palestra política em que não presenciei este comportamento, pelo que me lembro,
foi a de Eloe e Dulce Baron (cf. capítulo 3)
348
minha mulher vota em mim, aliás eu não sei nem se dormi com minha mulher essa
noite! E começou a ver todo mundo saindo de fininho. Jorginho mencionou um
especialista que ele ouvira palestrar sobre o comportamento em campanha política: o
tempo de visitar uma casa; não é bom ficar tempo demais, e se você chega e eles
dizem, Meu voto é de Fulano, não se deve insistir, e muito menos falar mal do outro.
Vai, dá o seu recado e vai embora. Quando vai almoçar, come, conversa um pouco e sai.
É tudo muito difícil, dizia Jorginho. E deu como exemplo a pior das gafes: no causo, um
candidato fora na casa de um eleitor e ficou falando mal de outro candidato, justamente
de quem a família da casa era eleitora.
Se, como vimos, há “o giro da Folia” e “o giro dos parentes da Brasília” (ou “do
São Paulo”) (capítulos 3 e 4), os candidatos também têm sua maneira de “giro” às casas
dos eleitores. Como sugeria Jorginho, a “política” exige “presença” - nas palavras de
Orotides, é preciso saber “dar presença” (cf. capítulo 5). Sem querer me estender neste
assunto, vale aqui colocar a questão: em que “este tempo da política” - pode-se dizer
tempo de intensificação dos efeitos da prosa - nos ajuda a refletir sobre as maneiras de
articulação entre ‘palavra’ e ‘sociedade’, ‘palavra’ e ‘poder’ (cf. Clastres, 2003 [1973]:
169-174)? Para falar como os buraqueiros: o que isto nos diz sobre os modos de “puxar
gente”?
Ao longo desta tese, utilizei o termo ‘buraqueiro’ de um modo um tanto quanto
vago, rearranjando, na mesma palavra, composições diversas. No presente capítulo,
entretanto, talvez o leitor tenha notado que se promoveu alguma confusão entre os
termos ‘buraqueiro’ e ‘chapadense’. O fato de que isto tenha ocorrido jutamente ao
falarmos sobre ‘política’ não é insignificante. A problematização da separação entre
“pessoa” e “política” é apenas um dos aspectos que a ‘prosa buraqueira’ nos fornece a
respeito destas composições em variação contínua. À primeira vista, poderíamos dizer
que o “tempo da política” ativa o modelo hierárquico das relações, em que unidades
compõem e recompõem o todo, sendo por outra via compostas e recompostas por ele.
Por este modelo, observamos divisões segmentares algo ‘duras’. Quanto a isto, ressalte-
se a circulação de camisetas, uniformes e adesivos distribuídos em campanha para
representar comunidades e pessoas
86
. Ali, a “comunidade” ganha prerrogativa sobre a
86
Nas eleições de 2008, das quais participei, estava proibida a doação de camisetas, bonés e afins pelos
candidatos, o que foi alvo de muitos protestos por parte dos eleitores. Mas havia outras maneiras de fazê-
lo, como o antigo patrocínio de um agora candidato ao time de futebol de uma comunidade, portanto
uniformes com a propaganda de seu “amigo”. É enorme o apreço pelas camisetas padronizadas (seja de
campanha, seja de eventos como o da Festa do Encontro dos Povos), o que não se deve apenas ao fato de
349
fórmula do “povo”, na qual a “pessoa” pode ser o mesmo que um “pessoal”, como
vimos (capítulo 3). Neste sentido, “mexida de política” é mais uma vez similar à
“mexida de cultura”. Durante a organização da Festa do Encontro dos Povos de 2008, a
expressão “churrasquinho dos gaúchos”, feita por um membro do comitê organizador
em referência à comida vendida por mascates desenrolou-se como conflito aberto.
Findou por desembocar, depois de uma seqüência de acontecimentos, na declaração, Eu
morro e mato pela minha cultura!, feita pelo coreógrafo do Grupo de Dança Folclórica
do CTG em plena reunião do comitê. Na “cultura”, até mesmo a ‘divisão de gênero’
faz-se deliberada, “declarada”. Como palestrou Jilvaldo sobre a dança das mulheres”,
coreografias recuperadas do “costume antigo” para que elas também “se apresentar”:
existe a “cultura dos homens”, mas também tem a “cultura das mulheres”.
Contudo, escutar um pouco mais “a conversa” dos políticos e eleitores dos
tempos da política nos ajudaria a imaginar como, mesmo ali, “calcular” o número de
votantes passa antes por uma forma de ‘tática’ (cf. introdução e capítulo 1) do que pelo
recorte preciso sobre aquilo que poderíamos chamar ‘curral eleitoral’. Fulano vota em
Lourdes ou em Robson? E se inicia uma discussão: certamente em Lourdes; declarou
pessoalmente seu voto em Robson. Seo Armando, do Chapadão, não vota em Mundim
por nada! Os gaúchos dizem que não votam em PT, mas não vota é em Mundim, que
tirou o doce da boca deles! Mas Dona Arminda, do Chapadão, esposa de Seo Armando,
ela vota em Mundim. Vota escondida. E o outro imita o sotaque gaúcho de Dona
Arminda, quando esta declara sobre Mundinho, seu ex-funcionário no Supermercado
Chapadão: Funcionário exemplar!, diz a velha. Era responsável pelo Caixa. Nunca tirou
um centavo. No tempo da política, durante a carona com Mundinho e os candidatos a
vereador na descida aos Buracos, ouvi um e outro especulando sobre a quantidade de
votos que poderia conseguir, ouvindo dos demais os outros cálculos. Vicente, diziam
todos, está garantido. Não!, reagia Vicente, Não pode pensar assim não! Alguém falou
em 500 votos. É 250 na eleição passada e 250 nessa! Hahahá! E os candidatos
enumeram as comunidades que visitarão no dia seguinte. Quatro comunidades, 200
quilômetros de estrada! Política é um jogo, disse um deles, como que lamentando por
seu trabalho e custos, talvez em vão. É..., disse outro, É um jogo que acaba quando
termina.
que elas sejam muitas vezes um “presente”. Ao se reeleger, o comitê de campanha de Mundinho
encomendou camisetas vermelhas com a estrela do PT que foram vendidas a 12,00 reais e disputadas com
fervor pelos eleitores que se queriam notar “declarados”.
350
6.2 - Rosa e Sertão (nota final)
Eu tenho saudades da nossa canção
Saudades de roça e sertão
Bom mesmo é ter um caminhão
(Chico Buarque)
O nome veio quando, ao som do carro que nos trouxera até Chapada, eu e
Camila ouvimos de Damiana um comentário sobre a música. Era Bye Bye Brasil, a
canção de Chico Buarque da qual ela havia retirado o nome do “instituto” que - então
nos contou - planejava criar: o Instituto Rosa e Sertão, em referência a saudades de
Rosa e sertão, da estrofe musical. Depois viríamos a nos dar conta da verdadeira
expressão usada na letra cantada: era “saudades de roça e sertão”. O equívoco viria a ser
devidamente notado em nossas “falas” quando das entrevistas e encontros a serem
gerados pelas atividades do Instituto (“o Rosa”), quando este já em funcionava. O
pequeno acontecimento um ‘agenciamento’ de significações - diz muito sobre minha
própria experiência de campo, e se ela assim se liga ao Instituto, é inevitável conceder
aqui algumas últimas palavras sobre isto. Mesmo que breve, trata-se de uma tarefa algo
dificultosa, uma vez que assume caráter fortemente “pessoal” (cf. capítulo 3), e isto é
justamente o que me interesse em ‘incluir’ o Rosa” na composição do “povo dos
Buracos”. A dificuldade, note-se portanto, reside em lidar ‘objetivamente’ com a
dimensão “pessoal” da ‘autora’; não no procedimento de ‘composição’ propriamente.
Este, pode-se dizer que é mesmo ‘dado’. Pois o Instituto foi “criado” também por
pessoas dos Buracos e, em seus primeiros “projetos”, “a comunidade dos Buracos” veio
a constar entre os principais “alvos beneficiados”.
O Instituo Cultural e Ambiental Rosa e Sertão era uma idéia quando
chegamos em Chapada pela primeira vez, e foi “criado” – isto é, passou a existir
juridicamente em um período de intervalo nos campos’ tanto meu quanto de Camila.
Quando retornei para o ‘terceiro campo’ (cf. Anexo 1), esta já participava com outras
pessoas do primeiro “projeto do Rosa” - chamado Projeto Manoelzinho-da-Crôa e
financiado pela Semec (Secretaria Municipal de Educação e Cultura)
87
. O segundo
87
Manoelzinho-da-Crôa é o nome de um pássaro mencionado no romance Grande Sertão: Veredas.
Como é de praxe nas atividades ligadas à “cultura mineira” realizadas em Chapada, nós também
adotávamos a prática de incorporar termos rosianos à concepção de nossos “projetos”.
351
projeto do Rosa, do qual participei da escrita, foi financiado por seleção em edital
88
e se
chamou Projeto Sertão Flor. Tratava-se de “ativar a rede de mulheres das
comunidades de Buracos e Buraquinhos”, para o que foram realizados oficinas de
culinária com “frutos do cerrado”, e festas celebrando os mesmos. A palavra-chave era
o “empoderamento das mulheres”, tal qual nos sugerira César Vítor, “o homem da
Funatura”, que nos ajudara com sugestões à elaboração do projeto. Nesta época,
Damiana passou a repetir é “o empoderamento”, para então cair na gargalhada. Ela
sabia que, ao dizê-lo, me fazia torcer um pouco o nariz. À força da obrigação, os usados
nos projetos culturais me pareciam perder a força. Eu havia feito uma palestra sobre isto
em Montes Claros a convite de Damiana, em um seminário de encerramento de um
curso que ela havia feito sobre, exatamente, “redes culturais”. Na ocasião, listei termos
como “cultura”, “sociedade”, “comunidade”. Meses depois, quando da elaboração de
nosso próprio projeto, ela incluiu por sua conta o termo empoderamento” entre os
listados por mim anteriormente, e deduziu sobre minha antipatia. Estava certa até certo
ponto. Por outro lado, era curioso que aquele ‘novo’ termo articulado ao universo dos
“projetos culturais” associava-se ali também ao vocabulário “ambiental”, o que
descrevia muito bem uma dimensão importante da micropolítica local chapadense: a da
oposição entre “dinheiro” e “evolução” vs. “cultura” e “ambiente”. Grosso modo, os
primeiros termos do par implicam a derrubada do cerrado para “o [agro]negócio dos
gaúchos”, enquanto os segundos associam-se ao “cerrado em ”. Neste contexto, o
Projeto Sertão Rosa respondia aos termos do edital ao qual se inscrevera:
“potencializar a sustentabilidade econômica das comunidades tradicionais”, o que nos
nossos termos tornou-se a valorização econômica dos frutos do cerrado e das atividades
“tradicionais” femininas: a mexida de cozinha. César Vítor havia-nos discorrido sobre o
conceito de “empoderamento” dando-nos como exemplo o papel das mulheres
chapadenses na rede de ensino, onde ocupam a maioria dos cargos, inclusive os de mais
alto escalão. Nas atividades dos projetos ambientais e culturais, entretanto, notava-se
uma participação muito pequena das mulheres em geral; nossa intenção seria, pois, a de
88
Os projetos Manuelzinho-da-Crôa e Sertão Flor foram realizados, respectivamente, com verbas da
Semec (Secretaria de Educação e Cultura de Chapada Gaúcha) e PPP-Ecos (Programa de Pequenos
Projetos Ecossociais), em edital elaborado pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento) e, no Brasil, executado pelo ISPN (Instituto Sociedade População e Natureza). Outros
projetos do Rosa ganharam ainda financiamentos do Ministério da Cultura, da Secretaria Estadual de
Cultura de Minas Gerais, da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de
Minas Gerais, do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Ministério das Minas e Energias (através
do Programa Luz Para Todos).
352
estimular esta “participação” dentre “as mulheres da roça”, aproximando-as ao mesmo
tempo de suas “comunidades tradicionais” de origem.
Ocorre, contudo, que as moças “da roça”, as ‘buraqueiras’, têm como
perspectiva de futuro mais estimada a de conseguir ganhar um diploma”, e com isto
pode-se incluir seguramente a idéia de poder “ser professora na Vila”, podendo então
associar o trabalho e o casamento “perto da família”. Por que exigir delas outra coisa?
Por que lhes exigir “cultura” e “tradição”? Estas questões fizeram parte de outras às
quais passei a enfrentar contra minhas próprias atividades e se complexificavam à
medida que, aparentando tratar-se de uma ‘imposição’ dos valores que eu trazia, os
termos da “cultura” eram ‘demandados’ pelos próprios buraqueiros. Nesta época, por
exemplo, houve uma aproximação quase ‘natural’ entre mim e o “Povo de Niculau” (o
“povo de Jilvaldo”, “do Três Passagens”), posto que este era um “povo de foliões”. E a
“cultura da Folia” rapidamente foi posta, em uma de nossas conversas, como uma
espécie de moeda de troca na qual eu deveria lhes dar o “retorno” por ter conduzido
minha pesquisa ali. Isto ocorreu nos meus últimos meses de campo e foi a primeira vez
que ouvi-me ser cobrada pelo “retorno” de minha pesquisa. Até então, eu julgava salutar
o fato de que tal vocabulário não houvesse sido acionado pelas relações que estabeleci
naquele trabalho de campo. Diante de sua eclosão, portanto, senti uma espécie de
‘pessimismo sentimental’, conforme o identificado por Sahlins (1997).
Parte do esforço desta tese esteve em fugir de tal ‘sentimentalismo’, mais
apropriado ao lamento, parece-me, do que às ‘práticas de pensamento’. Tal esforço,
contudo, contrastou-se certamente com o efetuado na escrita dos “projetos do Rosa”.
Ali, justamente, aprendíamos a olhar para o “povo” ou para “as comunidades” -
segundo o vocabulário do problema social, isto é, de acordo com suas deficiências
devido à sujeição ao sistema desigual. O breve movimento de reaproximação entre as
duas distintas práticas serve-nos assim, nestas considerações finais, para - ao modo dos
‘entreditos’ - imaginar em que essa minha operação de eclipsamento’ (cf. Strathern,
2006) pode ser, a título de última nota, proveitosa para elaborações futuras. Em um
“povo” que se define por seus deslocamentos, como vimos, não se pode pensar a
‘migração’ nos termos associados à idéia de ‘fragmentação social’, o que seria um
‘problema’ de ‘desruralização’ ou idéias afins. Como nota Garcia Jr (1989: 13), os
estudos dos deslocamentos não podem se encerrar na idéia de que existe neles uma
necessária ‘finalidade’, a de ‘abandonar as áreas de declínio’ e ‘se integrar aos pólos de
prosperidade’. Tal abordagem, diz o autor, ‘admite, implicitamente, que uma
353
homogeneidade de objetivos entre os que partem’ bem como uma igualdade de
condições entre os deslocamentos diversos. No caso dos Buracos, eu acrescentaria, o
‘êxodo’, predominantemente feminino, poderia nos levar a supor sobre a ‘finalidade’
dos ‘valores do processo de modernização’: conforme se deduz freqüentemente nos
estudos demográficos sobre o tema, estaria ali uma busca feminina pela ‘liberdade
individual’, contra as ‘imposições de um modelo hierárquico e machista’
89
. Garcia Jr.
(1989:13) propõe investigarmos ‘em que condições indivíduos de carne e osso fazem os
investimentos materiais e psicológicos que tais deslocamentos exigem’, o que, de
acordo com o caminho seguido até aqui, coloca-se justamente por uma espécie de
indistinção entre o ‘material’ e ‘psicológico’.
Analisando a idéia de “sorte”, necessariamente “puxada” pelo tema dos
deslocamentos buraqueiros, o que se nos deu a ver foi certa continuidade entre os
acontecimentos do corpo e da palavra. Assim, deslocamo-nos do que poderia ser
definido segundo os termos de uma ‘subjetividade individual’ - o que em última análise
recairia não na sobredeterminação do ‘grupo’, mas na da ‘escolha autônoma’. Por esta
perspectiva, a oscilação algo ‘orgânica’ entre ‘indivíduo’ e ‘sociedade’ colocar-se-ia,
mais uma vez, como a própria ‘natureza das coisas’ (cf. Sahlins, 2004). Diversamente,
nos Buracos a “sorte” está para a “natureza” como a “geração” (ou ‘gestação’) está para
a “pessoa”: o sangue que se “puxa” “vem da família”, mas não pode ser prédeterminado
pelo que se conhece dela, o destino do instante da gestação tem um resíduo inevitável de
acaso. Além disto, o sangue de uma pessoa não é impermeável à sorte do dia à dia,
vimos: as “doenças do sangue”, como o esteporo, e os efeitos da “praga”, como a dor de
cabeça crônica, são apenas alguns exemplos. E ainda no ventre a “natureza” de um bebê
está expostas ao que a gente “faz”: o contato da pele materna com uma figura pode
marcar com a mesma a pele de seu futuro filho. Igualmente, a grávida não se deve
deixar “incutir” com o que vê, sob risco de seu bebê nascer deformado pelo que foi
“olhado”. E como a “pessoa”, a natureza do “povo” também replica a gica do
“sangue”: um povo “forte” é um povo “unido”, assim como o sangue “apurado”
(‘intesificado’) é um sangue “misturado” (resultado da endogamia’). E como no
“destino” de uma pessoa, o sangue de um povo dependerá das sortes do amor (ou
matrimônio) e da dor (doenças e morte). Os acontecimentos do corpo, em suma.
89
Para este caminho de análise, focado especialmente na migração feminina, cf. Jacquet (2003). Para uma
análise panorâmica dos estudos sobre ‘êxodo rural’ no Brasil, cf. Camarano e Abramovay (1999).
354
Se o “destino” de uma “pessoa” “vai da sorte”, como dizem buraqueiros e
buraqueiras, é a esta que a análise se volta. Nisto consistem os “causos”, sugeri eu.
Buscando seguir suas análises, notei que esta “sorte”, deslindada nos mapeamentos
reparadores do espaço e do tempo, mostra-se em uma articulação particular do que se
pode chamar determinações do “acaso”, isto é, disso que se “conhece” a posteriori,
após a caminhada. A própria “natureza” mesmo que “dada” pelo Senhor existe
em um movimento necessariamente misterioso. Quanto a isto não faltam dizeres: “Só
Deus sabe”, “Ninguém sabe o que Deus Quer”, “Você como é que Deus faz as
coisas...”; “Deus faz tudo certo”; “Deus escreve certo por linhas tortas”, repetem. Por
outro lado, é importante afirmar que as pessoas são também “senhoras” de seu próprio
“destino”. “Deus ajuda, mas...”. Uma coisa não exclui a outra. A “sorte” agenciada no
“sangue” como na “prosa” articula continuamente coisas “feitas por gente” e outras
coisas a serem “assuntadas” sob análise do tempo. O que se assunto é o “destino” das
“pessoas”, das “famílias”, do “povo”. O empreendimento da questão “o que puxa a
gente?” coloca-nos assim algo à maneira do romancista Paul Auster em um episódio de
criação literária gerada por um engano ao telefone, no qual o autor conta ter encontrado
‘o equívoco que põe toda história em movimento’ (Auster, 2009: 47). Como diria
Quincas, “parece que é a sorte...”.
355
Referência Bibliográfica
ALBERSHEIM, Úrsula. 1962. Uma Comunidade Teuto-Brasileira. Rio de Janeiro,
INEP, 228 p.
ALBERT, Bruce. 1985. Temps du sang, temps des cendres. Représentation de la
maladie, système rituel et espace politique chez les Yanomami du sud-est (Amazonie
brésilienne). Universidade de Paris X (Nanterre).
ASSAD, Talal. 1986. “The concept of cultural translation in British Social
Anthropology”. In: James Clifford e George E. Marcus (orgs). Writting Culture. The
Poetics and Politics of Ethnography. Berkeley: University of California Press. pp. 141-
164.
AUSTER, Paul. 2009. O caderno vermelho. São Paulo: Companhia das Letras.
BAILEY, F.G. – “Gifts and Poison”. In: Gifts and Poison. Oxford: Basil Blackwell.
1971, pp. 1-25.
BRUNIER, Edward M. 1986. “Experience and its expressions”. In: The anthropology of
experience. Chicago: University of Illinois Press.
BORGES, Antonádia. 2003. Tempo de Brasília : etnografando lugares-eventos da
política. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
BOURDIEU, Pierre. 2002. Le Bal des célibataires. Paris: Éditions du Seuil.
CAMARANO, Ana Amélia e ABRAMOVAY, Ricardo. 1999. “Êxodo rural,
envelhecimento e masculinização no Brasil: panorama dos últimos 50 anos”. In; Texto
para discussão n. 621. Rio de Janeiro: IPEA
CÂNDIDO, Antônio. 1977. Os parceiros do Rio Bonito. Estudo sobre o caipira
paulista e a transformação dos seus meios de vida. São Paulo: Livraria Duas Cidades.
CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 1979. “De amigos formais e pessoa; de
companheiros, espelhos e identidades”. In: Boletim do Museu Nacional, n. 32 maio de
1979. Rio de Janeiro: PPGAS-MN/UFRJ.
CARSTEN, Janet (ed.). 2000. “Introduction”. In: Cultures of relatedness. New
approaches to the study of kinship. Cambridge: Cambridge University Press. 128-149
pp.
CHAYANOV, A. 1966. The theory of Peasant Economy. Illinois: American Economic
Association.
CHAVES, Christine de Alencar. 2003. Festas da Política: uma etnografia da
modernidade no sertão (Buritis-MG). Rio de Janeiro: Relume Dumará / Nuap
356
CHAVES, Wagner. 2009. A Bandeira é o santo e o santo não é a bandeira: práticas de
presentificação do santo nas Folias de Reis e São José. Rio de Janeiro: PPGAS-
MN/UFRJ. Tese de doutorado.
__________. 2003. Na Jornada de Santos Reis: uma etnografia da folia do mestre
Tachico. PPGAS-MN/UFRJ. Dissertação de mestrado.
CLASTRES, Pierre. 2003 [1973]. “O dever da palavra”. In: A sociedade contra o
Estado – pesquisas de antropologia. pp 169-172.
COMERFORD, John Cunha. 2003. Como uma família: sociabilidade, territórios de
parentesco e sindicalismo rural. Rio de Janeiro : Relume Dumará, pp. 25 – 139
CONKLIN, Beth A.; MORGAN, Lynn M. “Babies bodies and Production of
Personhood in North America and in Native Amazonian Society”. In: Ethos, v. 24, n. 4,
pp 657-694.
CSORDAS, Thomas. “Evidence of and for what? In: Anthorpological Theory 4 (4)
DA MATTA, Robert. 1981. “Digressão: a fábula das três raças, ou o problema do
racismo à brasileira”. In: Relativizando: uma introdução à Antropologia Social,
Petrópolis Vozes, 1981.
__________ 1979. “Você Sabe com Quem Está Falando? Um ensaio sobre a distinção
entre indivíduo e pessoa no Brasil”. In: Carnaval, Malandros e Heróis: para uma
sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
DE CERTEAU, Michel. 1990. L’Invention du quotidien. vol.1 Arts de faire. Paris:
Éditions Gallimard.
DAUSTER, Tânia. 1988. “Código familiar: uma versão sobre o significado da família
em camadas médias urbanas”. Revista Brasileira de Estudos de População. São
Paulo : ABEP, vol. 5, nº 1, jan./jun. pp. 103 – 125.
DELEUZE, Gilles. 2003. “Qu’este-ce qu’un Dispositif”. In: Deux Régimes de Fous.
Paris: Les Editions de Minuit
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. 1968. Différence et répétition. Paris : PUF.
__________. 1972. L’anti-Oedipe. Paris: Minuit.
__________. 1997 [1980] « O liso e o estriado ». In: Mil Platôs: capitalismo e
esquizofrenia. vol.5 São Paulo: Editora 34.
__________. 1980. Mille Plateaux. Paris : Minuit.
DUARTE, Luiz Fernando Dias. 1986. Da vida nervosa nas classes trabalhadoras
urbanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/CNPq.
357
DUMONT, Louis 1971. Introduction à deux théories d'anthropologie sociale. Groupes
de filiation et alliance de mariage. Paris: Mouton.
EDWARDS, Jeanette. 2000. Born and bred. Oxford : Oxford University Press.
FAVRET-SAADA, Jeanne. 1990 "Être affecté", Gradhiva. Revue d'Histoire et
d'Archives de l'Anthropologie, 8: 3-9.
FERREIRA, Paulo Rogers. Os afectos mal-ditos: o indizível nas sociedades
camponesas. São Paulo: Anpocs / Editora Hucitec.
FOSTER, George M. 1976. “Disease Etiologies in Non-Western Medical Systems”. In:
American Anthropologist. New Series, vol 78, n. 4. pp. 773-782. Dezembro.
FOUCAULT, Michel. 1994[1969]. “Qu’est-ce qu’un auteur?” In: Dits et écrits. Paris :
Éditions Gallimard.
FRANKLIN, Sarah. 1999. “Making representations: the parliamentary debate on the
human fertilization and embriology act”. In: EDWARDS, Jeannette. Et al. Technologies
of procreation: kinship in the age of assisted conception. 2a ed. Nova Iorque:
Routledge. Pp. 127-165.
GALVÃO, Eduardo. 1955. Santos e visagens. São Paulo: Cia Ed. Nacional.
GARCIA Jr. Afrânio. 1989. O sul: caminho do roçado: estratégias de reprodução
camponesa e transformação social. São Paulo: Marco Zero; Brasília-DF: Editora
Universidade de Brasília; MCT-CNPq.
GARCIA Jr., Afrânio e HEREDIA, Beatriz. 1971. “Trabalho familiar e campesinato”.
América Latina, ano 14, n.1/2: 10-20.
GEERTZ, Clifford. 2002 [1988]. “Estar lá: a antropologia e o cenário da escrita”. In:
Obras e Vidas: o antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.
__________. 1967. “Form and Variation in Balinese Village Structure”. In: POTTER et
al (eds). Peasant Society: a Reader. Boston: Little, Brown.
GOLDMAN, Marcio. 2006. Como funciona a democracia: uma teoria etnográfica da
política. Rio de janeiro: 7Letras.
__________. 2003. “Os Tambores dos mortos e os tambores dos vivos. Etnografia,
antropologia e política em Ilhéus, Bahia”. Revista de Antropologia, vol. 46, n.2, pp 423-
444.
__________. 1999a “Uma categoria do pensamento antropológico: a noção de pessoa”.
In: Alguma antropologia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará / Nuap.
358
__________. 1999b – “O que fazer com selvagens, bárbaros e civilizados?”. In: Alguma
antropologia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará / Nuap.
__________. 1994. Razão e diferença: afetividade, racionalidade e relativismo no
pensamento de Lévy-Bruhl. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Editora GRYPHO.
GOLDMAN, Marcio e STOLZE, Tânia. 1999. “Como se faz um grande divisor?” In:
GOLDMAN, M. Alguma antropologia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará / Nuap. pp. 83-
92
GUTTARI, Félix. 1989. Les trois écologies. Paris: Galilée
GUATTARI, Félix e ROLNIK, Suely. 1986. Micropolítica: cartografias do desejo.
Petrópolis: Ed. Vozes
GUIDI, Maria Laís Mousinho. 1962. “Elementos de análise dos ‘Estudos de
Comunidades’ realizados no Brasil e publicados de 1948 a 1960”. In: Educação
e Ciências Sociais, jan. v. 10 n. 19: 45-87.
GUIMARÃES ROSA, João. 1956. “Prefácio”. In: Paulo Rónai, Antologia do conto
húngaro. Rio de Janeiro: Artenova.
HERZFIELD, Michael. 1985. The Poetics of Manhood : contest and identity in cretan
Mountain Village. Princeton: Princeton University Press.
IABÑEZ-NOVIÓN, Martin Alberto. 1978.. “O Anatomista Popular: um estudo de
caso”. Anuário Antropológico 77.
JACQUET, Christine. 2003. “Urbanização e emprego doméstico”. In: Revista
Brasileira de Ciências Sociais. Junho, vol. 18, n. 52.
JOLAS, Tina, PIMGAUD, Marie-Claude; VERDIER, Yvonne ; Zonabend, Françoise.
1990. Une campagne voisine : Minot, un village bourguignon. Paris: Ed. De la Maison
des sciences de l’homme.
KOTTAK, Conrad Phillip. 1983. Assault on Paradise: Social Change in a Brazilian
Village. New York, Random House. 314 pp.
LATOUR, Bruno. 2006. Changer de société, refaire de la sociologie. Paris : Éditions
de la Découverte.
__________.2005. Reassembling the Social: an introduction to Actor-Network-Theory.
Nova Iorque: Oxford University Press.
359
LEITE LOPES, José Sérgio. 1976. O vapor do Diabo. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
LÉVI-STRAUSS, Claude. [1968]. 2006. A Origem dos modos à mesa (mitológicas v.
3). São Paulo: Cosac-Naify.
__________. 2004[1962]. O Pensamento Selvagem. 4ª ed. São Paulo: Papirus.
__________. 1975[1955]. “A estrutura dos mitos” In: Antropologia Estrutural. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro. pp. 237-264.
LÉVY, Pierre. 1987. “Le paradigme du calcul”. In : STENGERS, I. (org). D’une
science à l’autre. Paris: Éditions Du Seuil.
LUNA, Naara. 2001. “Pessoa e parentesco nas novas tecnologias reprodutivas”. In:
Estudos Feministas, ano 9, n. 2. pp. 389- 413.
MAGGIE, Yvonne; GONÇALVES, Marco Antônio. 1995. “Pessoas fora do lugar: a
produção da diferença no Brasil”. In: GONÇALVES, M.A.; VILLAS BOAS, G. (Org.).
O Brasil na virada do século. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.
MALINOWSKI, Bronislaw. 1935. Coral gardens and their magic. London: George
Allen & Unwin.
MARQUES, Ana Claudia. 2002. Intrigas e Questões: Vingança de família e tramas
sociais no sertão de Pernambuco. Rio de Janeiro : Relume-Dumará, pp. 45
118.
MAUSS, 2003 [1938]. “Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de
‘eu’”. In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac-Naify. pp. 367-398.
__________. 2003 [1934]. “As técnicas do corpo”. In: Sociologia e antropologia. São
Paulo: Cosac-Naify. pp. 399-422.
MOURA, Margarida Maria. 1978. “A Família e o Parentesco”. Os Herdeiros da Terra:
Parentesco e Herança numa área rural. São Paulo : Hucitec. pp. 31 – 45
MACCALLUM, Cecília. 1998. “Alteridade e sociabilidade kaxinauá: perspectivas de
uma antropologia da vida diária” In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol 13, n.
38 Outubro.
MENEZES, Renata. 2004. “A relação de devoção” In: A dinâmica do sagrado: rituais,
sociabilidade e santidade num convento do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará / Nuap
PALMEIRA, Moacir. 1976. “Prefácio”. In: LEITE LOPES, José Sérgio. O vapor do Diabo. Rio
de Janeiro: Paz e Terra.
PALMEIRA, Moacir e HEREDIA, Beatriz. 1997. “Política ambígua”. In: BIRMAN, P.,
NOVAES, R. e SAMIRA, C. (orgs.). O mal à brasileira. Rio de Janeiro: EdUERJ.
360
PEIRANO, Mariza. 1975. Proibições alimentares numa comunidade de pescadores.
Dissertação de Mestrado. UNB.
PEREIRA, Luizimar. 2004. Os andarilhos dos Santos reis: um estudo etnográfico sobre
Folia de Reis e bairro rural. UFRRJ. Dissertação de mestrado.
PIERSON, Donald. 1972. O Homem no Vale do São Francisco. Rio de Janeiro,
SUVALE.
PIGNARRE, Philippe et STENGERS, Isabelle. 2005. La sorcellerie capitaliste :
pratiques de désenvoûtement. Paris : La Découverte.
PISSOLATO, Elizabeth. 2007. A duração da pessoa: mobilidade, parentesco e
xamanismo mbya (guarani). São Paulo: Editora UNESP: ISA; Rio de Janeiro: NuTi.
PITT-RIVERS, Julian. 1971 [1954]. The People of the Sierra. Londres: The University
of Chicago Press.
POE, Edgar Allan. 1974[1841]. “A Desida para Maelström”. In: Histórias
Extraordinárias.
PORTO, Guilherme. 1982. As Folias de Reis no sul de Minas. Rio de Janeiro: Ed.
Funarte.
PORTO , Marco Antonio. 1994. “A circulação do sangue, ou o movimento no conceito
de movimento”. In: História, Ciências, Saúde – Manguinhos 1: 16.
QUIRÓS, Julieta. 2006. Cruzando la Sarmiento. Una etnografía sobre piqueteros en la
trama social del sur del Gran Buenos Aires. Buenos Aires: Ed. Antropofagia.
REDFIELD, Robert. 1965. The Little Community and Peasant Society and Culture.
Chicago, The University of Chicago Press.
RIBEIRO, Eduardo Magalhães e GALIZONI, Flávia Maria. 2007. “A arte da catira:
negócios e reprodução familiar de sitiantes mineiros”. In: Revista Brasileira de Ciências
Sociais, jun. vol. 22, n. 67.
SAHLINS, Marshall. 2004 [1996]. “A Tristeza da doçura, ou a antropologia nativa da
cosmologia ocidental”. In: Cultura na Prática. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.
__________ 1997. “O ‘Pessimismo Sentimental’ e a Experiência Etnográfica: Por que a
Cultura não é um ‘objeto’ em via de extinção”. Mana. Estudo de Antropologia Social 3
(1): 41-73; Mana. Estudos de Antropologia Social 3 (2): 103-150.
SALÉM, Tânia. 1989. “O casal igualitário: princípios e impasses”. Revista Brasileira de
Ciências Sociais. Rio de Janeiro : ANPOCS, vol. 3, nº 9, fev. pp. 24 – 37.
361
SEEGER, Athony, DA MATTA, Roberto e VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “A
construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras”. In: Boletim do Museu
Nacional, n. 32 maio de 1979. Rio de Janeiro: PPGAS-MN/UFRJ.
SEGALEN, Martine. 1981. De l’amour et du mariage, autrefois. Paris: Bibliothèque
Berger-Lévrault
__________. 1980. "Couple, Menage, Communauté". Mari et Femme dans la Société
Paysanne. Paris : Flamarion. pp. 4-85.
SHIRLEY, Robert W. 1977. O fim de uma tradição: cultura e desenvolvimento no
município de Cunha. São Paulo, Editora Perspectiva.
SILVA, Fernando Altenfelder. 1961. Xique-xique e Marrecas: duas comunidades do
médio São Francisco. Rio de Janeiro: Presidência da República.
STEINMETZ, Rudy. 1988. “Surveillance du corps et émancipation de l’âme : la
vigilance alimentaire à l’âge classique ». Rhétoriques du corps. Philippe Dubois e Yves
Winkin. Bruxelas : De Boeck-Wesmael : 25-38.
STENGERS, Isabelle. 2003. “Calculemus”. In: Cosmopolitiques II. Paris: La
Découverte.
STIRLING , Paul - A Turkish Village. In: SHANIN, Teodor (ed) Peasants and peasant
societies. Penguin Books, Middlesex, England, pp.37-49
STRATHERN, Marilyn. 2006 [1988]. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres
e problemas com a sociedade na Melanésia. Campinas, SP: Editora da Unicamp.
__________. 1999. “No limite de uma certa linguagem” (entrevista com Eduardo
Viveiros de Castro e Carlos Fausto) In: Mana 5(2): 157-175.
_________. 1996. “Cutting the Network”. In: Journal of the Royal Anthropological
Institute 2 (3): 517-535.
__________. 1995. “Necessidade de pais, necessidade de mães”. In: Estudos Feministas
vol. 3, n. 2. pp. 303-329.
__________. 1987. “The Limits of Auto-Anthropology”. In. A. Jackson (ed).
Anthropology at Home. London: Tavistock Publications. pp. 59-67.
STRATHERN, Marilyn e TOREN, Christina. 1996. “The concept of society is
theoretically obsolete”. In: Ingold, Tim. Key Debates in Anthropology. Londres:
Routledge.
362
TEDLOCK, Dennis. 1978 [1972]. “Introdução”. In: Finding the center: narrative
poetry of the zuni indians translated by Dennis Tedlock.
VELHO, Gilberto. 2001. “Família e parentesco no Brasil contemporâneo:
individualismo e projetos no universo das camadas médias”. In: Interseções. Ano 3, n.
2, julho/dez. Rio de Janeiro: UERJ. pp 45-52.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002a. “Atualização e contra-efetuação do virtual:
o processo do parentesco”. In: A Inconstância da Alma Selvagem. São Paulo, Cosac-
Naif. pp – 401-456.
__________. 2002b. “O conceito de sociedade em antropologia: um sobrevôo”. In: A
Inconstância da Alma Selvagem. São Paulo, Cosac-Naif.
__________. 2002c. “O Nativo Relativo”. In: Mana vol. 8 n.1. pp. 113-148.
__________. 1986. Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
ed./Anpocs.
WADE, JEAN-KLEIN e HUTNYK. 1999. “Group for Debates in Anthropological
Theory” In: The Right to Difference is a Fundamental Human Right. Manchester:
Department of Social Anthropology University of Manchester
WAGLEY, Charles. 1977. Uma comunidade amazônica: estudo do homem nos
trópicos, 2ª ed., São Paulo, Ed. Nacional, Brasília, INL, 312p.
__________. 1954. “Estudos de comunidade no Brasil sob perspectiva nacional”. In:
Sociologia, maio v. 16 n.2. pp. 3-22
WAGNER, Roy. 1981 [1975]. The Invention of Culture. Chicago: The University of
Chicago Press.
__________. 1974. “Are There Social Groups in the New Guinea Highlands?”. In:
Murray J. Leaf (ed). Frontiers of Anthropology: An Introduction to Anthropological
Thinking. New York: D. Van Nostrand Company. pp. 95-122.
WILLEMS, Emílio. 1961. Uma vila brasileira. Tradição e Transição. São Paulo,
Difusão Européia do Livro.
ZOURRABICHVILI, F. 2004. O Vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará.
363
ANEXOS
364
ANEXO 1
Períodos de pesquisa de campo
e
Lista cronológica dos deslocamentos pessoais nesses períodos
Número de
casas e média
de pessoas por
cada “povo” *
Número de pessoas que deixaram de morar nos Buracos e seus
respectivos destinos ao longo de minha pesquisa de campo ***
1º campo
(setembro/06 a
fevereiro/07)
2º campo
(junho/07 a
julho/07)
3º campo
(abril/08 a
janeiro/09)
4º campo
(julho/09)
Povo do
Calengue:
13 casas**
52 pessoas (em
média)
- 6 p/ fazendas
nos Gerais
- 8 p/ Chapada
Gaúcha
- 1 p/ São
Francisco
-
1 p/ Rio Preto
- 1 p/ terra do
marido.
- 1 p/ fazenda
“fora”.
Povo do Pardo:
4 casas
16 pessoas (em
média)
- 1 p/ Chapada
Gaúcha.
- 2 p/ Chapada
Gaúcha.
- 1 p/ São Paulo
(Goianazes)
- 3 p/ fazenda
nos Gerais.
- 1 p/ Ribeirão
Preto (SP).
- 2 p/ Brasília.
Povo do Três
Passagens:
9 casas
36 pessoas (em
média)
- 1 p/ Chapada
Gaúcha.
- 5 p/ Arinos.
- 3 p/ fazenda
“fora”.
- 1 p/ corte de
cana (BA).
- 4 p/ Brasília.
Povo do Retiro:
11 casas
44 pessoas (em
média)
- 3 p/ terra da
esposa.
- 2 p/ corte de
cana (BA)
- 2 p/ Brasília. - 1 p/ terra do
marido.
Total em média Total: 23 Total: 6 Total: 17 Total: 4
365
de pessoas: 148
pessoas pessoas pessoas pessoas
Total
90
de partidas: 54
Número de
casas e média
de pessoas por
cada “povo”
Número de pessoas que voltaram a morar nos Buracos e os locais de
onde voltaram ao longo de minha pesquisa de campo ***
1º campo
(setembro/06 a
fevereiro/07)
2º campo
(junho/07 a
julho/07)
3º campo
(abril/08 a
janeiro/09)
4º campo
(julho/09)
Povo do
Calengue:
13 casas
52 pessoas (em
média)
3 de Chapada
1 de Nova
Brasília
1 de fazenda
5 de fazenda 3 de Chapada
Povo do Pardo:
4 casas
16 pessoas (em
média)
1 de São Paulo 1 de São Paulo
2 de Chapada
1 de Brasília
Povo do Três
Passagens:
9 casas
36 pessoas (em
média)
5 de Brasília
3 de fazenda
90
Cruzando estes dados com os do quadro sinótico das chegadas, os do mapa genealógico e os da
descrição etnográfica, pode-se ter uma idéia da transitoriedade das idas e vindas e do perfil das pessoas
que se deslocaram. Para estas análises, é útil saber quem foram os migrantes buraqueiros no período
abordado(os nomes a seguir obedecem à sequência cronológica expressa na tabela). No Calengue P/
fazenda: família de Maçu; Preto de Cipriano + Gilmar de Guilherme; P/Chapada: Lena de Cipriano +
família de Ito + Paulo de Quincas + filho(a)s de Damásio; P/ Rio Preto: filho de Titia; P/ São Francisco:
Vinícius de Lúcia. P/ terra do marido: Nega de Damásio. No Pardo P/ Chapada: filho(a)s de Tana; P/ S.
Paulo (Goianazes): Romário de Tana. P/ fazenda nos Gerais: família de Sidney; P/ Ribeirão Preto:
enteado de Sidney; P/ Brasília: filhas de Tana. No Três Passagens – P/ Chapada: Zezo; P/ Arinos: família
de Bandeira; P/ fazenda “fora”: família de Côco; P/ corte de cana: Reginaldo de João caiana; P/
Brasília: filho de Jilvaldo; família de Dim (de Jilvaldo). No Retiro P/ terra da esposa: família de
Quinquinha de Cristina; P/ corte de cana (BA): Osmar de Joaquina. P/ Brasília: filho(a)s de Joaquina; P/
terra do marido: filha de Uruvaio
366
Povo do Retiro:
11 casas
44 pessoas (em
média)
1 de fazenda 1 de fazenda
3 de Brasília
1 de Brasília
Total em média
de pessoas: 148
Total
91
de chegadas: 32
* Considero aqui grosseiramente uma média de quatro pessoas por casa. Este é o
cálculo que fazem os buraqueiros quando querem, por exemplo, quando especulam
sobre a quantidade de gente que deve ir a uma dada festa, baseando o cálculo na
quantidade de casas da “vizinhança”. A dia, contudo, oculta uma variação
demográfica importante: em uma casa, podem morar 13 pessoas (como a de
Guilherme), apenas uma (como as dos “solteirões”) ou mesmo nenhuma (como a
daqueles que têm moradia fixa na Chapada). Além disto, note-se nas tabelas a variação
no tempo, interna a cada casa. As mudanças de moradias efetuadas entre as casas dos
Buracos não estão indicadas aqui.
** Considero o número de casas existentes no momento de minha última partida dos
Buracos.
*** o considero aqui as pessoas que, no momento de minha primeira chegada aos
Buracos, já tinham moradia fixa em outras cidades. Estes dados constam no mapa
genealógico (Anexo ##).
Proporção no total dos que partiram e dos que retornaram:
Mulheres
(individualmente)
Homens
(individualmente)
Famílias
Foram 9 9 7
Voltaram 3 9 6
91
Nomes dos que chegaram, por ordem cronológica (expressa na tabela): No Calengue - Ana de Ito e
família; Gilmar de Guilherme; Regino (ex-de Aparecida); Zé Antônio de Titia; Nôca de Guilherme; Maçu
e família; Tutty; Zé de Orotides e Alice. No Pardo - Tui de Tana; Romário de Tana; Vinícius; Paulo;
Preta de Tana. No
367
ANEXO 2
Fotos
Foto 1 – “Povo desce a ladeira” carregando um aparelho de TV para os Buracos.
Foto 2 – “Povo sobe a ladeira” em direção à Vila.
368
3. 4.
5. 6.
7.
369
8.
9. 10.
11. 12.
370
13. 14.
15. 16.
17. 18.
19. 20.
371
21. 22.
23.
24.
25.
372
ÍNDICE DAS FOTOS:
Foto 3 – Casa de Damásio (à frente, roça de milho e feijão)
Foto 4 – Casa de Titia (com ela diante da casa)
Fotos 5 e 6 – Casa de Quincas
Foto 7 – Guilherme na prensa da mandioca (fazendo farinha)
Foto 8 – Quincas na área de sua casa
Foto 9 – Tutty fazendo “pose capa de revista”
Foto 10 – Néia imita as dançarinas de forró da TV
Foto 11 – Tutty mexe no celular sob olhar de sua tia Rosa
Foto 12 – As irmãs “mesmo que gêmeas”
Foto 13 – Mexida de cozinha
Foto 14 – Lavando vasilha na fonte
Foto 15 – O “jeito” de arrumar as vasilhas
Foto 16 – Prosa na cozinha
Foto 17 – A cozinha de Dona Zefa-Carneira nos Buracos
Foto 18 – O solteiro Nísio catando feijão
Foto 19 – Zé Bandeira e sua esposa na cozinha
Foto 20 – Dona Cristina com seu tatu de estimação
Foto 21 – Neguinha, a gaúcha “herdeira do Chapadão”, come pequi em festa de
aniversário de uma professora gaúcha de Chapada
Foto 22 – Apresentação de dança tradicional gaúcha
Foto 23 – Rua de Chapada no “tempo das águas”
Foto 24 – Início do calçamento na rua da Prefeitura
Foto 25 – Nésia na “festa da vitória” de Mundinho
373
ANEXO 3
Localização de Chapada Gaúcha
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo