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seu irmão Quincas havia interrompido por completo a conversação entre eles, conforme
me explicara Titia já na ocasião em que a conheci. Damásio não vem à casa de Quincas
e Rosa, ao passo que estes tampouco vão até lá. A esposa do primeiro, Rica (mãe de
Tutty) também não entra cá em Rosa, mas encosta-se à cerca e, sem passar da porteira,
proseia bom. Damásio, por sua vez, sequer cumprimenta o casal; transita diante deles
diariamente, pois assim obriga o caminho que liga sua casa à Vila e às demais casas do
Calengue. A briga ocorreu há alguns anos - não souberam me precisar quantos - e fora
por conta da localização de uma cerca dividindo suas terras. Na área que se constituiu
em objeto de discórdia, atualmente encontramos duas cercas de arame paralelas,
afastadas uma da outra por menos de um metro. Além de dar testemunho do conflito, a
presença inusitada de duas cercas rentes mostra que o teor da briga por terra não era ali
exatamente ‘pecuniário’. Decorreu antes de uma questão de “opinião”.
A divisão da terra é um assunto extremante delicado nos Buracos
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.
Sempre que eu buscava puxar assunto, mesmo que fosse de forma indireta, o rumo de
minha prosa acabava por provocar um silêncio algo desconfortante. Por certo, fazia
parte desta tensão o fato de a região do Vão dos Buracos ter ainda hoje uma vasta área
de ‘terras devolutas’, “terras ausentes”. Conforme me explicou certa vez um forasteiro
que “mexia com terra” em Chapada, “é quase tudo na base da cerca, mesmo”. Além
disto, o relativamente recente deslocamento de posseiros - conhecidos e aparentados dos
buraqueiros - da área onde hoje é uma unidade de conservação, provoca entre todos
receio constante
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. Logo que cheguei nos Buracos, em uma e outra ocasião notava a
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O tamanho das terras por “família” no Vão dos Buracos varia entre cerca de sete a cem hectares,
embora, pelo que me conste, a produção de terra plantada se mantenha em mais ou menos meio hectare.
Poucas “famílias” mais “fortes” e “unidas”, como a de Niculau, chegam a plantar três hectares. Além da
mandioca, cada família costuma plantar feijão e milho. Às vezes legumes como abóbora, e beterraba. Se o
gado e a roça são em geral “assunto de homem”, a criação do terreiro (galinhas, cocás, porcos), as frutas,
hortaliças e alguns legumes plantados perto de casa são produzidos e circulados pela mão das mulheres.
Algumas vendem regularmente na Vila os ovos que sobram. A gestão do “de-comer” (diferente da
“roça”) é seguramente um “assunto de mulher”. Ela é quem decide, por exemplo, se compra um porco
para cevar com a comida que, por alguma queda no consumo da casa, esteja sedo “jogada no mato”
(‘jogada fora’). Uma criação de terreiro mediana costuma variar em torno de quinze galinhas. O preço de
uma galinha é estabelecido em dez reais, e isto se cobra tanto aos turistas quanto entre vizinhas, embora
neste último caso a transação não costume ser “paga” em dinheiro, se não em farinha ou algo do gênero,
sempre após um intervalo de tempo. Uma “casa” de roça costuma gastar em supermercado (“a feira”)
cerca de R$ 400,00 reais (“um salário”). A lista de compras inclui invariavelmente: arroz, macarrão, café,
açúcar, bolacha, vela, sabão, sal, trigo, óleo de lata (algumas casas compram banha de porco “da roça”).
Leite em pó, manteiga e queijo são artigos de luxo: “nem sempre a gente encontra” em uma casa.
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O Vão dos Buracos é definido como “Corredor Ecológico”, isto é, ‘área de amortecimento’ entre o
Parque Estadual Serra das Araras e o Parque Nacional Grande Sertão Veredas (PNGSV), segundo os
parâmetros do ‘plano de manejo’ elaborado nos termos do SNUC (Sistema Nacional de Unidades de
Conservação). O PNGSV (gerido em ‘parceria’ entre Funatura e ICMBio) realocou, em 1999, dezenas de
famílias que moravam no “Rio Preto” (área do Parque) para um assentamento criado exclusivamente com