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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
DEPARTAMENTO DE ARTES
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
Dissertação de Mestrado
O GESTO MUSICAL GAUCHESCO NA COMPOSIÇÃO DE
MÚSICA CONTEMPORÂNEA
Danilo Kuhn da Silva
Orientador: Prof. Dr. Maurício Dottori
CURITIBA, 2010
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DANILO KUHN DA SILVA
O GESTO MUSICAL GAUCHESCO NA COMPOSIÇÃO DE
MÚSICA CONTEMPORÂNEA
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre no Curso de
Pós-Graduação em Música, do Departamento
de Artes, do Setor de Ciências Humanas,
Letras e Artes, da Universidade Federal do
Paraná.
Orientador: Prof. Dr. Maurício Dottori
Curitiba, 2010
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À minha família.
À Luciane, pelo amor e pelas asas.
Ao Maurício, pelos ensinamentos, conselhos, incentivo e confiança.
Ao Carlos de Cézaro, ao Maurício Marques, ao Mano Júnior e ao Lacy Martins, pela colaboração.
Ao café e às madrugadas.
Ao tempo.
A Deus, pela dádiva da vida e pelo assalto à criatividade.
v
Resumo
Esta dissertação apresenta materiais musicais gauchescos, coletados e analisados através de
gravações com músicos inseridos no fazer musical do estado do Rio Grande do Sul, e a utilização
destes materiais numa composição contemporânea. Para tanto, aborda primeiramente questões
pertinentes ao folclore em geral, ao folclore musical gaúcho, e à apreensão de elementos musicais
gauchescos para utilização composicional contemporânea. A seguir apresenta as transcrições
destes materiais e a análise dos mesmos, pertencentes aos gêneros musicais chamarra, chote, vaneira,
chamamé, rancheira, milonga, polca paraguaia e bugio, utilizados no Rio grande do Sul. Ligada à questão
da utilização de materiais musicais gauchescos numa composição contemporânea, propõe-se uma
definição instrumental de gesto musical, a qual se mostra bastante importante nesta transferência.
Então é apresentada a composição de ensaio Rinascita, onde técnicas compositivas
contemporâneas e o conceito de gesto musical, aplicados aos materiais coletados, foram
experimentados pela primeira vez. Após, segue a composição principal, O rio de São Pedro, que
busca demonstrar no âmbito da prática a elaboração teórica proposta. A composição, para grupo
de câmara, é construída a partir da utilização de materiais musicais gauchescos e emprega um
pensamento gestual. Um memorial da composição é então apresentado, no qual o descritos as
técnicas compositivas e os principais gestos musicais utilizados, além de exemplos, retirados da
partitura, da aplicação de várias questões derivadas das já discutidas. Encerra-se com as
considerações finais, que avaliam tanto a elaboração teórica quanto a composição, na busca por
uma validação, na prática da composição, do caminho teórico proposto.
Palavras-chave: música gaúcha, gesto musical, composição musical contemporânea.
vi
Abstract
This dissertation presents music materials originated in the gaucho cultural traditions of Rio
Grande do Sul state, Brazil, collected and analyzed by means of recordings done with practical
musicians there, and the use of these materials in a contemporary art-music composition. It deals,
firstly, with subjects related to folklore in general, to gaucho folklore, and to the extraction of
gaucho musical elements and their utilization in contemporary composition. Secondly, it presents
the transcription and analysis of materials belonging to the chamarra, chote, vaneira,
chamamé, rancheira, milonga, polca paraguaia and bugio musical genres, as found in Rio Grande do Sul.
Related to the issue of using gaucho musical materials in a contemporary composition,
an instrumental definition of musical gesture is proposed, which shows itself to be very important
to this transfer. An essay piece, Rinascita, is presented, in which the composition techniques and
the concept of musical gesture, as applied to the collected materials, were tried for the first time.
Following, the main composition, O rio de São Pedro, that intends to put into practice the
theoretical frame proposed. The composition, for a chamber group, was build from gaucho
musical materials using a gestual thinking. Then, a composition memorial is presented in which
the compositional techniques and the main musical gestures used are described, together with
instances, drawn from the score, of application of the several issues derived from the already
discussed. Finally, there is a discussion and assessment of the validity of the theoretical
elaboration and of the composition.
Keywords: gaucho music, musical gesture, contemporary musical composition.
vii
Sumário
1. Introdução.................................................................................................................... 1
2. Do folclore.................................................................................................................... 5
2.1. O mito do gaúcho............................................................................................................. 6
2.2. Da música gauchesca enquanto folclore, artesanato ou arte............................................ 9
2.3. Das características gerais da música gaúcha................................................................... 14
2.4. Do folclore musical gauchesco no tocante aos propósitos deste trabalho....................... 26
3. Das transcrições.......................................................................................................... 32
3.1. Considerações iniciais.................................................................................................. 32
3.2. Considerações sobre os instrumentos executantes e sua notação.................................... 33
3.2.1. O violão................................................................................................................... 33
3.2.2. O acordeon.............................................................................................................. 36
3.2.3. O contrabaixo.......................................................................................................... 40
3.3. Análise dos materiais musicais dos gêneros gaúchos...................................................... 41
3.3.1. A chamarra.............................................................................................................. 41
3.3.2. O chote................................................................................................................... 48
3.3.3. A vaneira................................................................................................................. 55
3.3.4. O chamamé............................................................................................................. 61
3.3.5. A rancheira.............................................................................................................. 67
3.3.6. A milonga................................................................................................................ 71
3.3.6.1. A milonga pampeana............................................................................................. 72
3.3.6.2. A milonga arrabaleira............................................................................................. 77
3.3.6.2. A milonga corraleira............................................................................................... 83
3.3.7. A polca paraguaia..................................................................................................... 85
3.3.8. O bugio................................................................................................................... 90
3.4. Considerações finais.................................................................................................... 94
4. Do gesto...................................................................................................................... 96
4.1. Definição instrumental de gesto musical....................................................................... 96
4.2. Acerca do motivo: gesto versus motivo......................................................................... 103
4.3. Transferência dos elementos folclóricos para a música contemporânea......................... 106
5. Rinascita (partitura)................................................................................................... 111
6. Memorial descritivo: Rinascita (composição de ensaio)........................................... 122
viii
6.1. Dos caminhos criativos sugeridos pelos elementos gauchescos.................................... 133
6.2. Das técnicas composicionais estudadas...................................................................... 137
6.2.1. Quanto à harmonia................................................................................................ 137
6.2.2. Quanto à melodia.................................................................................................. 146
6.2.3. Quanto ao ritmo.................................................................................................... 148
6.3. Da utilização do material gauchesco.......................................................................... 158
6.3.1. Quanto ao gesto.................................................................................................... 158
6.3.2. Quanto ao motivo................................................................................................. 181
6.4. Dos desdobramentos............................................................................................... 184
7. O rio de São Pedro (partitura)................................................................................. 186
8. Memorial descritivo: O rio de São Pedro................................................................ 264
8.1 - Da estrutura e das escolhas temáticas...................................................................... 264
8.2 - Do programa de O rio de São Pedro............................................................................. 266
8.3 - Dos caminhos criativos sugeridos pelos elementos gauchescos................................ 268
8.4 - Das técnicas composicionais estudadas................................................................... 278
8.4.1 - Quanto a Persichetti............................................................................................ 278
8.4.2 - Quanto a Gramani.............................................................................................. 295
8.4.3 - Quanto a Stravinsky............................................................................................ 302
8.4.4 - Quanto a Messiaen.............................................................................................. 306
8.4.5 - Quanto a Hindemith........................................................................................... 308
8.5 - Da utilização do material gauchesco........................................................................ 314
8.5.1 - Quanto ao gesto.................................................................................................. 314
8.5.2 - Quanto ao motivo............................................................................................... 340
8.6 - Dos desdobramentos............................................................................................. 354
9. Considerações finais............................................................................................... 357
10. Referências............................................................................................................ 359
11. Anexos................................................................................................................... 365
ix
1
Introdução
Este trabalho coletou e analisou elementos inerentes a neros musicais usuais no estado
do Rio Grande do Sul e os utilizou numa composição contemporânea para grupo de câmara
um piano, um contrabaixo e uma viola , cuja formação foi escolhida por ser usual no meio
contemporâneo e por ser de nosso interesse composicional. Para tanto, foi necessário, além da
coleta e da análise dos materiais, um estudo sobre técnicas composicionais e as motivações
estéticas que pudessem ser usadas para a finalidade deste trabalho, bem como a cuidadosa
transposição destes materiais de seu ambiente folclórico para o ambiente artístico erudito
contemporâneo, de modo que o resultado do tratamento contemporâneo aos gêneros gaúchos
fosse interessante.
Assim, este trabalho se divide em cinco capítulos: o primeiro capítulo trata do folclore, do
mito do gaúcho, da música gauchesca enquanto folclore, artesanato ou arte, das características
gerais da música gaúcha, e do folclore musical gauchesco no tocante aos propósitos deste
trabalho; o segundo capítulo apresenta os materiais musicais coletados e análise dos mesmos; o
terceiro capítulo enfoca a teorização do conceito de gesto e de motivo, motivações estéticas deste
trabalho, bem como a transferência de elementos folclóricos para o ambiente artístico erudito
contemporâneo; o quarto capítulo se destina a apresentação da composição de ensaio deste
trabalho, Rinascita, e apresenta as várias técnicas composicionais de relevância para o processo
compositivo da mesma, discutindo possíveis maneiras de tratamento contemporâneo ao material
musical gaúcho, visando sua utilização na composição; e o quinto e último capítulo expõe a
composição principal deste trabalho, O rio de São Pedro, e o seu memorial descritivo, ou seja, as
decisões tomadas e os caminhos percorridos para atingir o resultado, bem como as técnicas
composicionais, as motivações estéticas e os elementos gauchescos utilizados, tratados
contemporaneamente. Encerra-se com as considerações finais.
A música gaúcha dispõe de vários neros musicais, popularmente chamados de ritmos
musicais, que contêm elementos peculiares. Segundo Cano (apud. OLIVEIRA, 2006, p. 15), um
gênero musical é uma classe de diferentes objetos musicais reunidos em uma só categoria
cognitiva” e, para ser classificada como tal, acrescenta Oliveira (2006, p. 16), “uma peça musical
precisa preencher determinados requisitos para ser considerada membro de um determinado
gênero”. Os elementos que distinguem os gêneros gauchescos são padrões rítmicos, com suas
variações, que configuram o acompanhamento de instrumentos a uma linha melódica; seqüências
harmônicas características, bem como o uso de certas dissonâncias; características melódicas;
2
fraseados; acentuações rítmicas; rasgueados, etc.; que, além de constituírem um gênero, de maneira
particular nos sugerem possibilidades de criação musical contemporânea. Além disso, o estudo de
tais gêneros ajuda a preservar, disponibilizar e difundir os materiais musicais inerentes a eles, algo
que é importante no próprio estado do Rio Grande do Sul, já que o aprendizado destes gêneros é
restrito e geralmente empírico. Inclusive, em nossa experiência docente, é corriqueiro algum
aluno, em sala de aula seja em aula particular ou em ensino fundamental e dio ou em
universidade , manifestar grande interesse em aprender a tocar ou compor uma milonga ou um
chote, etc. Mesmo que estes gêneros façam parte do fazer musical do estado do Rio Grande do
Sul, não há nenhuma orientação acadêmica voltada para o seu estudo. Este conhecimento
musical, salvo alguns poucos registros bibliográficos, passa de músico para músico pelo contato
direto entre os mesmos ou pelas referências musicais registradas em áudio e vídeo, como os CDs
e DVDs de festivais de música regional, de conjuntos musicais gaúchos, etc., o que limita a
parcela de pessoas que tem acesso a ele.
Portanto, estes materiais musicais, coletados e analisados, abordados neste trabalho, a
partir de então, poderão servir, em maior escala, como material criativo para a comunidade
acadêmica e artística, além de serem mais bem preservados, disponibilizados e difundidos às
pessoas interessadas.
Tendo em vista que, hoje em dia, a sica brasileira torna-se cada vez mais interligada,
pela fusão de elementos de várias regiões do país, e que a música contemporânea aproxima-se
crescentemente da pesquisa de técnicas composicionais e/ou de materiais musicais a serem
explorados, torna-se plausível que um trabalho de pesquisa e também de criação musical se
apresente a agregar materiais dos neros musicais gaúchos à música brasileira/contemporânea.
Estes materiais, coletados, transcritos e analisados, não servirão apenas para as obras compostas,
através do processo deste trabalho, mas também para artistas e estudantes de música de outras
culturas regionais e inclusive para artistas e estudantes de música do estado do Rio Grande do
Sul, visto que mesmo estes não têm acesso formal e estruturado academicamente ao
conhecimento de tais gêneros.
Em artigo sobre pesquisa em composição, Figueiró (2005) atenta para a questão do
compositor-pesquisador, que é o caso do compositor que tem sua pesquisa ligada ao ato da
própria criação, onde o objeto artístico (sua própria obra) é construído e analisado através de sua
pesquisa. Segundo o autor, o fazer musical e a pesquisa científica permeiam toda a vanguarda
musical do século XX. Figueiró ainda refere-se a três possíveis fases da pesquisa em composição
musical: o levantamento e a análise de dados e materiais musicais; as decisões composicionais e a
3
confecção da obra; e a análise da mesma, inserindo-a no meio artístico e perante a comunidade
musical acadêmica. E assim se estrutura o nosso trabalho, pois nossa pesquisa está estritamente
ligada à nossa composição, e se divide exatamente nas três fases descritas por Figueiró.
***
Conforme exposto, nosso trabalho, primeiramente, coletou e analisou os materiais
inerentes aos gêneros musicais gaúchos. Para tanto, foi necessário listar os gêneros a serem
estudados.
Tal listagem já traz consigo um julgamento nosso, pois de antemão apontamos os
gêneros musicais gaúchos de nosso interesse investigativo. Entenda-se que o presente trabalho
não teve a intenção de estudar os referidos gêneros em sua totalidade, visto que o prosito
maior foi a seleção de materiais musicais característicos de tais gêneros e peculiares, fazendo-se
desnecessário o estudo daqueles neros que pouco têm a acrescentar ao trabalho no que se
refere a materiais para a música brasileira/contemporânea, pois vários gêneros usuais no estado
do Rio Grande do Sul, como a valsa, a canção, etc., possuem características menos peculiares e
mais difundidas musicalmente.
Isto posto, os gêneros musicais gaúchos investigados, de acordo com nossos interesses
investigativos, foram os seguintes: a chamarra (ou chimarrita), o chote, a vaneira, o chamamé, a
rancheira, a milonga, a polca paraguaia e o bugio.
Definidos os neros, o segundo passo foi a coleta do material musical em si, que se
configurou da seguinte maneira: recolhemos, de sicos gaúchos imersos no fazer musical
regional, através de gravação em áudio e vídeo, exemplos de materiais diversos, característicos de
cada um dos gêneros selecionados, a fim de posterior análise, tratamento contemporâneo e
utilização nas composições.
Os músicos foram selecionados a partir de seu conhecimento sobre o assunto, sendo que
os mesmos nos forneceram a devida autorização da utilização de seus nomes e exemplos. Foram
selecionados, para bem do trabalho, dois violonistas um de formação erudita e outro de
formação empírica –, dois acordeonistas – um de formação erudita e outro de formação empírica
, e um contrabaixista. Os músicos colaboradores foram os seguintes: o violonista e
contrabaixista Carlos de Cézaro (formação popular), o violonista Maurício Marques (formação
erudita), o acordeonista Mano Júnior (formação popular) e o acordeonista Lacy Martins
(formação erudita). Assim, tentamos contemplar as diversas faces dos referidos gêneros, a partir
4
de exemplos musicais extraídos dos seus principais instrumentos executantes, sob possibilidades
técnicas e expressivas relativamente amplas.
A partir de então, nos debruçamos na transcrição dos exemplos musicais e em sua
análise. Procuramos extrair o mais relevante e peculiar de cada gênero, através de transcrição
minuciosa e de análise qualitativa.
Somente após esta coleta e a posterior transcrição e análise dos materiais foi possível dar
o próximo passo, isto é, decidir quais técnicas composicionais estudar e utilizar no processo
criativo, bem como quais motivações estéticas se mostravam adequadas. Foi a partir do
vislumbramento das principais peculiaridades dos materiais coletados e suas características, que
se mostraram a s as técnicas e as motivações estéticas mais apropriadas para um tratamento
contemporâneo interessante, capazes de contemplar o nosso objetivo composicional.
Então, pudemos dar atenção ao ato composicional em si, ainda que muitas decisões
tenham sido tomadas durante a criação das obras. E, por fim, passamos à análise das
composições e de seus processos criativos, demonstrando as técnicas utilizadas e analisando
como o tratamento contemporâneo dado aos materiais coletados e estudados foi realizado.
Assim sendo, o presente trabalho, primeiramente, realizou uma pesquisa de campo para
coletar materiais dos gêneros musicais gaúchos selecionados, a partir de exemplos musicais de
sicos regionais em gravações de áudio e vídeo, posteriormente transcritos e analisados; em
seguida partiu para o estudo das técnicas contemporâneas e as motivações estéticas a serem
empregadas ao material coletado e analisado; e finalmente, partiu para o processo composicional
em si, tratando contemporaneamente os materiais, analisando o processo composicional e as
composições resultantes da investigação e da criação.
5
Do folclore
Como folclore, neste trabalho, entende-se o saber do povo, ou seja, as suas tradições,
costumes, crenças populares, o conjunto de canções, as manifestações artísticas, enfim, tudo o
que nasceu do povo e foi transmitido através das gerações. Nas palavras de Luís da Câmara
Cascudo, folclore é “a cultura do popular tornada normativa pela tradição” (CASCUDO apud.
BRANDÃO, 1982, p. 24).
O termo ‘folclore’ apareceu pela primeira vez em uma carta do inglês William John
Thoms, escrita para a revista The Atheneum, de Londres, em agosto de 1856:
As suas páginas mostraram amiúde o interesse que toma por tudo quanto chamamos, na Inglaterra,
‘Antiguidades Populares’, ‘Literatura Popular’ (embora seja mais precisamente um saber popular que uma
literatura, e que poderia ser com mais propriedade designado com uma boa palavra anglo-saxônica, Folk-
Lore, o saber tradicional de um povo) e que não perdi a esperança de conseguir a sua colaboração na tarefa
de recolher as poucas espigas que ainda restam espalhadas no campo no qual os nossos antepassados
poderiam ter obtido uma boa colheita... (THOMS apud. BRANDÃO, 1982, p. 26-27).
Ao longo dos anos, muitos estudiosos trataram de formular suas próprias concepções do
termo, mas seguiremos as concepções acima dispostas.
Franz Boas, um antropólogo alemão que viveu nos Estados Unidos e teve uma
importância muito grande na formação da Antropologia Cultural norte-americana, definia o
folclore como “um aspecto da Etnologia que estuda a literatura tradicional dos povos de qualquer
cultura” (BOAS apud. BRANDÃO, 1982, p. 29).
Arthur Ramos, um dos pioneiros do estudo sistemático do folclore brasileiro,
compreendia-o como “uma divisão da Antropologia Cultural que estuda os aspectos da cultura de
qualquer povo, que dizem respeito à literatura tradicional: mitos, contos, fábulas, adivinhas,
sica e poesia, provérbios, sabedoria tradicional e anônima” (RAMOS apud. BRANDÃO, 1982,
p. 30).
Segundo Brandão, a concepção de folclore assumiu, ao longo dos anos, dimensões mais
atuais. No entanto, estas, a meu ver, vêm apenas a explicar com outras palavras, talvez um pouco
mais aprofundadamente, as anteriores: “Tudo aquilo que, existindo como forma peculiar de sentir
e pensar o mundo, existe também como costumes e regras de relações sociais. Mais ainda, como
expressões materiais do saber, do agir, do fazer populares” (BRANDÃO, 1982, p. 30). Ou seja, a
idéia de folclore é a mesma das concepções anteriores, mas agora mais preocupada em deixar
6
claro o modo pelo qual o folclore se forma, isto é, através do agir, do fazer, do sentir e do pensar
peculiares de cada povo.
Nesta mesma linha de pensamento, o ‘fato folclórico’ é definido pelo I Congresso
Nacional de Folclore:
Constituem o fato folclórico as maneiras de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição
popular e pela imitação, e que não sejam diretamente influenciadas por círculos eruditos e instituições que
se dedicam ou à renovação e preservação do patrimônio científico e artístico humano ou à fixação de uma
orientação religiosa e filosófica (apud. BRANDÃO, 1982, p. 31).
Saliento apenas mais uma característica do ‘fato folclórico’, que é o empirismo:
Uma outra característica consensualmente aceita sobre o fato folclórico é que ele se transmite de pessoa a
pessoa, de grupo a grupo e de uma geração a outra, segundo os padrões típicos da reprodução popular do
saber, ou seja, oralmente, por imitação direta e sem a organização de situações formais e eruditas de ensino-
aprendizagem (BRANDÃO, 1982, p.45-46).
Portanto, neste trabalho, que visou à utilização de elementos musicais gauchescos numa
composição contemporânea para concerto, os quais foram coletados através de exemplos
fornecidos por músicos gaúchos que se encontram ligados ao fazer musical do Rio Grande do Sul,
que por sua vez está intimamente ligado ao folclore gaúcho, assumimos o conceito de que folclore é o
saber do povo, que se forma através do agir, do fazer, do sentir e do pensar peculiares de cada povo,
e que se torna normativo pela tradição, de maneira empírica.
2.1 - O mito do gaúcho
Antes do que virá, é necessária uma reflexão sobre as próprias tradições gauchescas. Visto
que se tratará do folclore musical gauchesco, é importante discorrer um pouco sobre a cultura
gaúcha, da qual este faz parte.
Segundo Caramello, os valores e o comportamento de um povo estão diretamente
relacionados com o seu conhecimento e com a sua cultura, fazendo com que sua identidade cultural
baseie-se na teoria e na prática das suas próprias tradições que, por sua vez, para serem
constituídas, necessitam do estabelecimento de mitos e símbolos próprios (CARAMELLO, 2004,
p. 2). Ou seja, identidade cultural é o processo pelo qual um ator social se reconhece e constrói
significado principalmente com base em determinado atributo cultural ou conjunto de atributos
(CASTELLS apud. CARAMELLO, 2004, p. 2).
7
Portanto, a identidade cultural do povo gaúcho está baseada no estabelecimento do mito
do gaúcho e tudo que o circunda, como veremos a seguir. E é a partir desta identidade cultural que
o povo gaúcho se estabelece como tal e se proclama detentor das próprias tradições.
Até meados do século XIX, o termo ‘gaúcho’ era pejorativo, advindo do termo ‘guasca’
(homem rústico, valente, forte, guapo, grosseiro, rude) e, posteriormente, de ‘gaudério’, nome
dado a contrabandistas de gado (CARAMELLO, 2004, p.3). Somente mais tarde transformou-se
num substantivo gentílico, num símbolo de identidade regional. Mas estas antigas atribuições do
‘gaúcho’ não foram deixadas de lado, e sim usadas para mobilizar peões para combates na
Revolução Farroupilha e demais guerras ocorridas nos pses vizinhos à região sul do Brasil, pois
evocava o perfil de um soldado:
Trata-se essencialmente de um fenômeno ideológico o processo de construção do gaúcho como campeador
e guerreiro, inserindo-o num espaço histórico onde os atributos de coragem, virilidade, argúcia e mobilidade
são exigidos a todo o momento, transportando-o ao plano do mito (Ibid., p.3).
Porém, não foram apenas as necessidades das guerras que contribuíram para a formação
do mito do gaúcho. O Movimento Tradicionalista desempenhou um papel fundamental na
construção da identidade cultural gaúcha. Segundo Tau Golin (apud. MELO, 1995, p. 7-8), numa
breve retrospectiva, em 1898 foi fundado o Grêmio Gaúcho, a primeira tentativa de estabelecer o
mito do gaúcho, buscando no passado aquilo que viam como tradição ou história do Rio Grande
do Sul. No fim da década de 1940, foram criados os Centros de Tradições Gaúchas (CTGs),
espécies de clubes temáticos do tradicionalismo gaúcho. Então, os líderes do Movimento
Tradicionalista Gaúcho (MTG), Paixão Côrtes e Barbosa Lessa, recolheram elementos da cultura
popular e estabeleceram as ditas verdadeiras tradições do Rio Grande do Sul, impondo um
‘modelo’ para todos os gaúchos, uniformizando vestimentas, danças, etc. Já na década de 1970,
surge o Movimento Nativista e seus festivais de música regional, os quais serão detalhados mais
adiante. Todo este mundo simbólico, composto por CTGs, vestimentas picas, culto às
tradições, festivais de sica regional, os rituais do chimarrão, do churrasco, as figuras da prenda
e do peão, a temática campeira, etc., nos dias de hoje está presente na vida social dos rio-
grandenses-do-sul e é responsável, segundo Leal (apud. JACKS, 1999, p. 72) por “uma espécie de
negação da identidade nacional como um todo e muito mais uma identidade do gaúcho como ser
único”. Oliven (1989) ressalta, ainda, o seguinte aspecto: que embora brasileiro, o gaúcho seria
muito distinto de outros tipos sociais do país, guardando, às vezes, mais proximidade com seu
8
homônimo da Argentina e do Uruguai
1
. Na construção da identidade cultural do gaúcho
brasileiro, há uma referência constante a elementos que evocam um passado glorioso no qual se
forjou sua figura, cuja existência seria marcada pela vida nos vastos campos da pampa gaúcha, a
presença do cavalo, a fronteira com os países vizinhos, a virilidade e a bravura do homem ao
enfrentar o inimigo ou as forças da natureza, a lealdade, a honra, etc. Além disso, a Revolução
Farroupilha, luta armada comandada pelos estancieiros inconformados com a centralização
imperial e com a taxação excessiva do charque gaúcho, visava dar mais autonomia à Província.
Seu estopim foi em 20 de setembro de 1835, data da invasão da capital, Porto Alegre. Um ano
depois, os farrapos proclamaram a República Piratini e elegeram Bento Gonçalves como
presidente. Esta guerra somente findou com a assinatura do Tratado do Ponche Verde, em
primeiro de março de 1845, entre os farrapos e o governo brasileiro (CARAMELLO, 2004, p. 4),
e associou de vez, ao mito do gaúcho, características como virilidade, bravura, força, lealdade,
honra, orgulho, idealismo, coragem, etc.
Todos estes fatores colaboraram para a formação do mito do gaúcho e, por conseguinte,
para a formatação da cultura e das tradições gaúchas. Embora vários dos costumes e
características atribuídos ao gaúcho fossem realmente pertencentes ao povo habitante do hoje
estado do Rio Grande do Sul ou ao menos a uma boa parte de seus habitantes , o que se
verifica, por exemplo, através de sua existência também entre os gauchos Argentinos e Uruguaios e
também através de alguns relatos históricos de viajantes que por esta região passaram, é inegável
que a formação do mito do gaúcho tem características de um fenômeno ideológico, pois muitos
eventos concorreram propositadamente para ele.
No entanto, considerando o folclore um fenômeno em constante formação, onde o agir,
o fazer, o sentir e o pensar peculiares de um povo se tornam normativos pela tradição, pode-se
dizer que, nos dias de hoje, através do culto às referidas tradições gaúchas advindas da formação
do mito do gaúcho, a cultura e a tradição gaúchas são, sim, folcloricamente validadas, pois
representam o seu povo e este se identifica com elas. Portanto, a formação do mito do gaúcho, apesar
de acarretar certa uniformização e generalização dos costumes sul-rio-grandenses, expressa, de
maneira bastante representativa, o agir, o fazer, o sentir e o pensar peculiares do povo gaúcho,
pois estes já fazem parte da sua tradição.
1
O gentílico ‘gaúcho é comum aos três países, sendo que na Argentina e no Uruguai se pronuncia gaucho
(BANGEL, 1989, p.20)
9
2.2 - Da música gauchesca enquanto folclore, artesanato ou arte
A música, enquanto folclore, tem pouca especialização e faz parte de rituais. No folclore
gaúcho, isto é bastante claro.
A cultura gaúcha – e, portanto, o folclore musical gaúcho – formou-se num meio
essencialmente rural. Neste meio rural, um relativo isolamento ou distanciamento é fator
favorável à simplicidade do povo, o que se reflete no grau de especialização musical a que este
tem acesso. Como é característico do folclore, as informações são passadas de pessoa a pessoa de
maneira empírica. Musicalmente falando, alguém deste ambiente que deseje aprender um
instrumento, aprenderá como uma pessoa próxima, das redondezas ou da própria família, que,
por sua vez, aprendeu da mesma forma; além disso, como estas pessoas se encontram imersas no
folclore gaúcho, fatalmente uma ensinará à outra o instrumento sob a influência folclórica, ou
seja, tocarão música gaúcha. Estes dois elementos, o folclore musical e o músico, um forja o
outro e vice-versa, isto é: como o folclore musical tem pouca especialização e possui uma
simplicidade arraigada, o músico imerso neste também terá estas características; e como o músico
tem pouca especialização e possui uma simplicidade arraigada, o folclore musical assim o será. O
acesso restrito à tecnologia, no ambiente rural gauchesco, é também fator contribuinte para o
grau de especialização musical, pois o intercâmbio cultural é dificultado. Outro fator é a
precariedade dos instrumentos, em sua maioria bastante velhos e que, assim como o aprendizado
musical, passaram de geração a geração. Mas talvez o fator que mais propicie que o folclore tenha
pouca especialização técnica e artística é a não necessidade destas, ou seja, as pessoas imersas no
folclore tocam ou cantam músicas por diversos motivos, os quais não são a apreciação musical
pelos parâmetros eruditos – que requerem afinação, desenvolvimento, complexidade, etc. –,
como pela ocasião, pela simples vontade, pela simples ocupação do tempo, pela dança, pelo
divertimento, pela festa em si, pelo culto às tradições, e assim por diante. Assim, a pouca
especialização técnica e artística não é uma deficiência do folclore musical, e sim, uma
característica, o que não implica que tais sicas não possuam técnicas e dados artísticos de
grande valor do ponto de vista criativo, apenas estes não são a preocupação imediata daquelas.
A segunda afirmação, que a música folclórica faz parte de rituais, está intimamente ligada
à primeira, já exposta. Isto é, se a música folclórica não conta com grande especialização técnica e
artística por esta não se preocupar imediatamente com isto, e sim, com os motivos reais pelos
quais está sendo tocada ou cantada, ou seja, a dança, ou o divertimento, ou a festa em si, ou o
culto às tradições, etc., é porque a sua real preocupação é o ritual no qual está inserida. Os rituais
10
são os eventos afirmadores do folclore. Na cultura gaúcha, muitos são os rituais nos quais a
sica tem papel fundamental. Num churrasco campeiro, à moda gaúcha, quando a carne é
assada no fogo de chão, os gaúchos tocam músicas gauchescas para confraternizarem, faz parte
do ritual do churrasco. Numa roda de mate, onde os gaúchos tomam o chimarrão, é corriqueiro
acompanhar-se o ritual com música gaúcha. Num baile gaúcho, a música gauchesca é o centro,
pois a partir dela as pessoas dançam, se divertem, e cultuam as tradições gaúchas. Numa trova,
onde um gaúcho desafia outro, numa troca de versos provocativos, a música gauchesca,
geralmente ao som da gaita, anima o duelo. Portanto, a especialização cnica ou artística, na
sica folclórica, nunca está em primeiro plano; o que vale é a ambientação do ritual, a animação
do mesmo, ou o culto às tradições.
Neste contexto, o folclore musical gaúcho fornece aos músicos inseridos nele os seus
elementos peculiares e característicos, que por sua fez podem ser apreendidos por músicos mais
especializados, que coloquem num plano mais importante que antes, ou em primeiro plano, a
técnica e a artisticidade.
***
Já o artesanato tem uma especialização maior. Se poderia dizer que o músico-artesão é um
intermediário entre o músico imerso no folclore e o músico-artista. O músico-artesão coloca a
técnica e a artisticidade num plano mais importante que o músico genuíno do povo, mas ainda
não em primeiro plano, como faz o músico-artista. O músico-artesão se apropria do folclore
musical sob uma perspectiva mais elaborada, tocando e criando músicas de raiz folclórica,
tradicional, de maneira que sua música seja aceita nos rituais folclóricos e tradicionais, porém,
com uma cnica instrumental mais apurada e uma preocupação artística maior. a
preocupação com a qualidade do instrumento e com a afinação vocal e instrumental. Há também
a preocupação com a elaboração das letras, melodias, e arranjos, ainda que estes todos estejam
atrelados ao folclore.
De acordo com Brusatin, o artesanato tem as seguintes características: está ligado a
funções, a serviços prestados, à organização ritual e à produção rural; é todo o ofício em que a
prestação de serviços dispensa técnicas muito elaboradas, são ricas de labor, mas sem uma
aplicação especial do engenho; é um utensílio; e a procura pelos objetos’ artesanais provém de
um público que tem afinidades sociais com quem os produz (BRUSATIN in: Enciclopédia Einaudi,
Lisboa, IN-CM, 1989, vol.3 - Artes – Tonal/atonal, p.177-211).
11
Pode-se classificar, na música gaúcha, como música artesanal, a denominada tradicionalista.
Segundo Oliveira:
Foi encampada [a música tradicionalista] inicialmente pelo MTG (Movimento Tradicionalista Gaúcho), que
constitui um movimento nitidamente popular, o qual visa reviver bons costumes do Rio Grande do Sul.
Freqüentemente, a criação musical gira em torno de ritmos bailáveis, o que facilita sua propagação, inclusive
para outros estados do país (OLIVEIRA, 2006, p. 22).
A música tradicionalista, que é aquela tocada pelos grupos de baile gaúchos, é a música
artesanal gauchesca, pois está ligada à função e aos serviços prestados quanto à dança, à animação
dos bailes e rituais de confraternização gaúchos, à sua organização ritual e à produção rural;
dispensa técnicas muito elaboradas, são ricas em labor, mas sem preocupação especial com o
engenho, ou seja, com a complexidade criativa; é um utensílio; e é procurada por um público que
tem afinidades sociais e culturais com quem a produz. Isto contempla todas as características
artesanais expostas acima, de acordo com Brusatin.
Além destas características, a música tradicionalista gauchesca pode ser considerada como
conservadora, visto que é baseada no folclore a nas tradições gaúchas e não uma aplicação
especial do engenho, da inovação artística. É uma música funcional, que trata de temáticas
gaúchas e tem caráter dançante e animado, como sugerem os rituais às quais ela está relacionada.
É amplamente tocada em CTGs (Centros Tradicionalistas Gaúchos), onde pessoas se reúnem
para preservar e cultuar as tradições do Rio Grande do Sul.
Ainda há uma ramificação ou variante da música tradicionalista gaúcha que é a Tchê Music.
Esta música, à primeira vista tradicionalista, surgiu como um segmento musical semelhante ao
Axé Music, ou seja, de caráter comercial, almejando o ‘sucesso’ nos veículos de comunicação de
massa do estado do Rio Grande do Sul e do país. Para tanto, utiliza tendências estranhas à cultura
gaúcha, como elementos do estilo sertanejo, do gênero forró, e até do pagode, deturpando as
suas raízes tradicionais. Inclusive, este segmento, que alcançou determinado prestígio estadual
com vários grupos atuantes, geralmente denominados Tchê alguma coisa, como “Tchê Baile”
(exemplo-fantasia), numa conotação de Que (baita) Baile” , posteriormente foi proibido de
participar de eventos promovidos pelo MTG, como os bailes nos CTGs, justamente por não
mais respeitar sua origem folclórica e tradicionalista.
Neste contexto, o folclore musical gaúcho fornece, através de músicos mais
especializados que os gennos do povo, seus elementos peculiares e característicos, além da
técnica e da artisticidade serem colocadas num plano mais importante que antes.
12
***
No entanto, o artesanato pode se aprimorar, ganhando características artísticas. O artista
que não é artesão faz música ou arte para ser apreciada como obra de arte. A transferência do
folclore para a arte é uma transferência daquele para um outro mundo senão o do ritual.
Transferir preservando as características mais importantes é característica da arte. O músico-
artista coloca a técnica e a artisticidade em primeiro plano.
De acordo com Lotman:
Embora não seja obrigatória, nem do ponto de vista das necessidades vitais imediatas nem do das relações
sociais impostas, a arte demonstra, através de toda a sua história, a sua essencial indispensabilidade. Ao
longo de toda a existência da humanidade historicamente fixada, a arte foi a sua companheira de jornada.
(LOTMAN apud. ENCICLOPÉDIA EINAUDI, 1984, p. 17).
Assim, a arte, apesar não ser uma necessidade vital imediata para um povo nem uma
relação social imposta, mostra-se presente na cultura gaúcha como essencialmente indispenvel.
Há muito tempo músicos-artistas gaúchos se dedicam a explorar as potencialidades de sua
cultura. E, como “um objeto de arte é, por definição, um objeto definido como tal por um
determinado grupo” (MAUSS apud. ENCICLOPÉDIA EINAUDI, 1984, p. 22), naturalmente
criou-se, no Rio Grande do Sul, um grupo dedicado à música gaúcha, de raiz folclórica e
tradicionalista, porém de tendência inovadora, fazendo música que foi denominada de nativista.
Como sintetiza Oliveira:
De um lado, é fato que alguns elementos folclóricos e tradicionais resistiram a combinações inovadoras,
especialmente as de caráter efêmero e as sem grande expressividade. De outro, quanto ao desenvolvimento,
é de se ressaltar que são bastante significativas – qualitativa e quantitativamente – as correntes que
contribuíram com o aperfeiçoamento dos gêneros musicais gauchescos. Essa evolução adveio do
amadurecimento dos músicos e poetas, que, a partir de estudos não apenas artísticos, mas também
transdiciplinares, tiveram condições de decantar nosso acervo musical, sem deturpar as raízes. Dentre
outros poderíamos citar alguns músicos da atual geração de nativistas, que, mesclando talento,
conhecimento e consciência cultural, produzem material artístico de notável qualidade (OLIVEIRA, 2006,
p. 15).
Aparentemente proveniente do termo nativo, a música nativista, no entanto, não é ‘nativa’
do Rio Grande do Sul:
Segundo a perspectiva dicionarista (FERREIRA, Novo dicionário Aulio da língua portuguesa), o significado
deste vocábulo é “não estrangeiro; nacional; indígena”. Ora, não é necessário muito esforço intelectual para
abstrair que, ressalvadas as exceções, nossa música não é nem indígena, nem de invento regional. Assim, no
Rio Grande do Sul praticamente não há música nativa; , entretanto, música nativista (Ibid., p. 21).
13
O autor faz referência ao fato de que, com exceção aos gêneros musicais bugio e
contrapasso, tidos como de origem sul-rio-grandense, todos os demais gêneros m origem
estrangeira. A música nativista não é, portanto, a música ‘nativa’ do Rio Grande do Sul, mas sim a
sica gaúcha não-erudita mais elaborada:
O movimento nativista gera sua música prestigiando o que nossa cultural regional tem de melhor. Para isso,
envida conscientemente seus esforços no fomento da arte (canções) que julga condizente com a realidade
gauchesca. As frases a seguir, proferidas pelo principal idealizador do maior festival nativista do Estado
(Califórnia da Canção Nativa), Colmar Duarte [2001], confirmam essa diretriz: “Usamos o termo ‘nativo’
como afirmação dos propósitos do movimento em procurar as origens”; “Poderíamos dizer que a Califórnia
é música folclórica do Rio Grande”; “Ela é baseada em nossa música folclórica, procura as raízes nativas”;
“Mas é o canto de hoje do Rio Grande do Sul, principalmente” (Ibid., p. 21).
Ou seja, pode-se classificar como música artística, no Rio Grande do Sul, a música
nativista, pois esta coloca a técnica e a artisticidade em primeiro plano, apesar de manter sua raiz
folclórica e tradicional. Trata-se de uma tendência de projeção folclórica, isto é, partindo do folclore
gauchesco, os músicos e compositores do movimento nativista elaboram e desenvolvem os
elementos folclóricos, com técnica apurada e artisticidade proeminente. Segundo Oliveira:
Por essas razões, trabalhamos com uma proposta mista, considerando tanto o ambiente folclórico, como a
produção do músico profissional, enquanto o trabalho deste admita estabelecer vínculos com as
características sócio-culturais da nossa região. Quando a iniciativa de recolher o material artístico parte do
músico profissional, então acreditamos tratar-se, pelo menos, de uma atividade de projeção folclórica; nunca,
porém, relegando a importância da transmissão oral da sica entre elementos do próprio povo, que, para
Joseph Kerman (1987), “é uma questão central no folclore e na etnomusicologia” (Ibid., p. 18).
Para tanto, no Rio Grande do Sul, foram criados os festivais nativistas, eventos anuais
organizados por várias cidades gaúchas com o intuito de promover a arte musical gaúcha. O
primeiro festival nativista foi a Califórnia da Canção Nativa, de Uruguaiana, na década de 1970, e
a partir de então, inúmeros festivais foram criados, disponibilizando aos artistas gaúchos espaço
para o desenvolvimento de sua arte. Nestes festivais, as músicas concorrem entre si, avaliadas por
uma comissão julgadora composta por artistas atuantes neste cenário musical, as quais são
gravadas em CDs (antigamente, em LPs) e também, às vezes, em DVDs, que por sua vez são
divulgados amplamente nas rádios de enfoque nativista e no mercado musical.
Na música nativista há, ainda, pelo menos duas ramificações importantes: a linha campeira e
a linha de manifestação rio-grandense. Ainda que a música nativista da linha campeira, de caráter mais
tradicional tanto na utilização de instrumentos quanto na temática mais arraigada ao campo e suas
lides bem como detentora de um estilo mais rude tenha um enfoque mais conservador, em
oposição à sica nativista da linha de manifestação rio-grandense, seu fazer musical é menos
14
conservador que a sica tradicionalista, pois desenvolve suas temáticas com maior liberdade
criativa e maior arrojo composicional que aquela, que está vinculada à música artesanal. Na
sica de manifestação rio-grandense é permitida a utilização de instrumentos ‘eletrônicos’ como o
teclado, instrumentos como a bateria, como o sax, a flauta transversa, etc., de caráter mais
universal, possibilitando novas leituras da música gaúcha, além das temáticas das letras das
canções serem também mais livres, embora sempre de acordo com o contexto cultural rio-
grandense; enquanto que na música de linha campeira, os instrumentos mais utilizados são o violão
e o acordeon, como também o contrabaixo, mantendo-se mais fiel à instrumentação tradicional,
bem como a utilização de temáticas de cunho campeiro. Estas duas linhas ou convivem
simultaneamente num festival ou são divididas, não concorrendo entre si, tendência esta cada vez
mais corrente nos festivais.
E é neste contexto que a música gauchesca não-erudita alcança seu mais alto grau de
especialização técnica e arstica, produzindo música para ser apreciada como arte, porém, nunca
esquecendo as raízes folclóricas e tradicionais, visto que estes são requisitos básicos para que uma
sica possa vir a participar de um festival nativista e ser classificada como tal.
Há ainda o contexto da música erudita voltada a elementos gauchescos, porém, por tratar-
se de iniciativas esparsas de alguns compositores, receberá atenção adiante, no decorrer deste
capítulo.
2.3 - Das características gerais da música gaúcha
Um livro importante, principalmente pelo seu conteúdo musical, é O estilo gaúcho na música
brasileira, de Tasso Bangel. Por se tratar de um compositor competente, com obras eruditas e
populares importantes, das quais um bom número se relaciona com o estilo gaúcho, e também
por se tratar de um musicólogo que foi membro da Sociedade Brasileira de Musicologia, os
exemplos deste autor são bastante válidos, confiáveis e representativos da música gaúcha.
Ao começar a descrever o que diferencia a música gaúcha de outros estilos ou gêneros,
Bangel escreve: “Qualquer estilo é formado por seis itens: melodia, harmonia, ritmo, timbre,
forma e tessitura” (BANGEL, 1989, p. 28). Assim, o autor aborda cada um destes itens na
sica gaúcha.
Quanto à melodia, o autor aponta as seguintes características relevantes: a melodia no
estilo gaúcho é simples, intuitiva, construída por graus conjuntos e intervalos harmônicos, usando
com freqüência a escala descendente; o acento rítmico no tempo fraco é um dos mais fortes
15
indícios da presença do estilo gaúcho nos fraseados vocais e instrumentais; as frases de oito
compassos predominam no estilo, acompanhando a métrica da poesia em quadras; sua extensão é
pequena, mas também é típico do estilo haver grandes intervalos ocasionais; é bem característico
do estilo o uso de anacruse (Ibid., p. 29).
Bangel afirma, ainda, que:
No estilo gaúcho, a melodia é propositadamente embrutecida, sendo cantada ou tocada, acentuando sílabas
e notas no tempo fraco com a preocupação de torná-las mais de galpão do que de salão. É o estilo que
regula a ação na música gaúcha, com a melodia vinculada às suas origens campeiras (Ibid., p. 29).
No dicionário, o termo galpão designa uma “edificação aberta em um dos lados para
abrigo de homens, animais, material, etc.” (FERREIRA, 1999, p. 965). Para um dicionário
regional gaúcho, no entanto, o termo é mais abrangente: 1. Grande construção rústica edificada
na sede da estância, destinada ao abrigo de homens e animais bem como à guarda de materiais e
outras serventias. Possui, geralmente, uma área de chão batido e outra assoalhada com madeira
bruta para guardar ração, arreios ferramentas e outros utensílios. No galpão se reúnem patrões,
peões, tropeiros, viajantes e outros (menos as mulheres, pois se trata de ambiente exclusivamente
masculino); local onde se prepara e se come o churrasco e, num clima alegre e descontraído ao
redor do fogo de chão, toma-se chimarrão, discutem-se as lidas de campo e contam-se causos. 2.
Estábulo que serve de abrigo para animais. 3. Alpendre, varanda, edificação junto à casa de
habitação (BOSSLE, 2003, p. 259).
Portanto, é nestes moldes que a melodia gaúcha preocupa-se em ser mais de galpão que
de salão, ou seja, ambientada por um entorno rústico, essencialmente ligado às lides campeiras e
aos rituais gaúchos do churrasco, da música descontraída, do fogo de chão, do chimarrão, do
culto às tradições, etc.
Quanto à harmonia, dentre as características apontadas no livro, as únicas realmente
relevantes são que “o modo maior predomina nas cadências harmônicas do estilo gaúcho, mas o
modo menor aparece, mais nas toadas, rasqueados e milongas” e que “suas modulações são a
tons próximos” (BANGEL, 1989, p. 29-30).
Nesta direção, da simplicidade harmônica da música gauchesca, muitos fatores podem ser
considerados. Por um lado, o relativo isolamento e distanciamento provocado pelo ambiente
rural, o que é determinante no grau de especialização de um músico; e por outro, como já dito, a
precariedade dos instrumentos também é. No entanto, outro fator pode ter sido determinante à
simplicidade harmônica da música gaúcha, pois, segundo Oliveira:
16
São também detalhes relevantes em nível folclórico: as primeiras gaitas (de botão) serem bastante singelas
em termos de recursos, possuindo apenas dois, quatro ou oito baixos; o teclado ser diatônico, afinado em
tonalidade maior, com apenas uma ou duas carreiras de botões. A conseqüência direta disso foi a ausência
de cromatismo melódico e de harmonia dissonante (OLIVEIRA, 2006, p. 23).
Assim, o próprio instrumento pode ter delimitado, até certo ponto, as caractesticas
harmônicas da música gaúcha, devido a seus limitados recursos musicais e seu amplo uso.
Quanto ao ritmo, Bangel é categórico: “é no acento rítmico no tempo fraco que o estilo
[gaúcho] se afirma e se diferencia dentro da música brasileira” (BANGEL, 1989, p. 29).
Neste ponto, este trabalho se detém com grande interesse, pois é no ritmo que a música
gauchesca é mais claramente peculiar. O ritmo não define padrões de acompanhamento aos
vários gêneros, mas também engendra características rítmicas na melodia, por exemplo, influencia
as inflexões melódicas, influencia as cadências harmônicas e acrescenta vigor à música gauchesca.
O ritmo, portanto, é o germe da peculiaridade musical gauchesca, influenciando outros aspectos
musicais. Além disso, talvez esta característica rítmica marcante e vigorosa espelhe um pouco do
jeito de ser do gaúcho, ou do mito do gaúcho.
Quanto ao timbre, o autor escreve:
O violão é o centro de cor do som no estilo gaúcho. A gaita canta e floreia. O bombo marca, divide e
subdivide o compasso com seu som grave e seco. A rabeca (violino) faz a melodia aguda e o contracanto, às
vezes acompanha em contratempo. O assovio e o tilintar de esporas personalizam o timbre gaúcho (Ibid., p.
31).
Além disso, acrescenta que “é bem característico do gaúcho o canto com grupos vocais”
(Ibid., p. 32).
No entanto, quanto ao instrumento bombo, mais especificamente chamado de bombo-
legüero
2
, controvérsias sobre sua utilização na música gauchesca. No prefácio do próprio livro
de Bangel, Barbosa Lessa afirma ter algumas dúvidas sobre certas afirmações do autor, e cita o
caso deste instrumento que, segundo Lessa, apenas a partir da década de 1950 teria chegado ao
estado, ainda que, hoje em dia, ele seja bastante utilizado, mas geralmente num contexto mais
restrito aos gêneros latino-americanos que são usados em alguns festivais nativistas, como a
zamba e a chacarera, muitas vezes por músicos de países vizinhos que no Rio Grande do Sul vêm a
2
Assim denominado por, antigamente, servir como instrumento de marcação de léguas: quando não se ouvia mais o
bombo, ali se marcava uma légua; a pessoa que estava parada no local da partida dava um tiro para o alto, e o tocador
do bombo marcava a légua no campo.
17
participar destes festivais, ou em algumas situações nos CTGs, como no acompanhamento da
dança das boleadeiras.
Quanto à forma, Bangel afirma:
A forma no estilo gaúcho é binária (parte, frase ou período principal e parte, secundária) geralmente
contrastantes, rítmicas e melódicas, AB ou ternária ABA ou ABACA. (...) O 1º período pergunta ou propõe
em todas as células e incisos; o 2º responde e conclui (Ibid., p. 32).
Até então, é clara a referência do termo ‘forma’ utilizado por Bangel, à idéia ‘forma
musical’, indicando as partes de cada música. No entanto, em seguida, Bangel se refere aos
gêneros musicais gaúchos denominando-os também de ‘formas musicais’, como no trecho que
segue:
As principais formas musicais gaúchas são as toadas, as trovas, as rancheiras, os chotes, as polcas, as valsas,
as milongas, os bugios, as vaneiras, os rasqueados, as chimarritas e outras, com menor presença popular
(Ibid., p. 32).
Trata-se de um descuido terminológico. Entretanto, para os fins deste trabalho, as formas
musicais gauchescas, ou os ritmos gaúchos, ou as danças gaúchas (outras maneiras de referência
usuais), são denominadas gêneros musicais gauchescos.
Quanto à tessitura, Bangel destaca: predomina a tessitura homofônica, ou seja, melodia
(canto) com acordes acompanhando (canções); e o violão e a gaita formam uma trama harmônica
bem fechada, por um lado com os ponteios e rasqueados e por outro com as possibilidades
melódicas e acordais (Ibid., p. 33).
Por fim, mais uma característica do estilo gaúcho, segundo Albino Manique, importante
acordeonista gaúcho, entrevistado por Bangel, é que o instrumentista gaúcho toca com muito
ímpeto (Ibid., p. 57), o que se pode relacionar também ao jeito de ser do gaúcho, ou do mito do
gaúcho.
***
A seguir, Bangel exemplifica as características do estilo gaúcho, seja na melodia, na
harmonia, no ritmo, no timbre, na forma ou na tessitura, com dez composições de sua autoria,
cada uma em uma forma [gênero] musical diferente (trova, bugio, rancheira, toada, chotes, milonga, valsa
campeira, polca limpa-banco, vaneirão e rasqueado). É o estilo, nascido do folclore e utilizado na
sica popular ou erudita, com seus acentos diferenciais” (Ibid., p. 34).
18
De acordo como o autor, a trova, por “seu conteúdo folclórico, tanto na música quanto na
poesia, reflete a simplicidade espontânea do campeiro” (Ibid., p.35). Bangel compõe uma trova em
compasso dois por quatro, usando como acompanhamento na mão esquerda do piano a
figuração tônica/terça e quinta superiores/quinta inferior/terça e quinta superiores
(exemplificação de um acorde de tônica), ritmada em quatro colcheias, sempre com acentuação
nas partes fracas do tempo (contratempo), configurando um legítimo acompanhamento de polca.
Na melodia, a acentuação é de caráter fraseológico-composicional, acentuando as partes fracas
dos tempos para agregar gingado, do ponto de vista do estilo gaúcho. Realmente, soa gauchesco:
Figura 1: Exemplo de trova, (Ibid., p. 36, c. 1-17).
O bugio, com acento no primeiro tempo do compasso binário, imita, com o som do baixo
das gaitas, o ronco do bugio, uma espécie de macaco do Rio Grande do Sul (Ibid., p. 37). O
acompanhamento é ritmado, num compasso quatro por quatro, em uma colcheia pontuada
acentuada, uma semicolcheia e uma semínima, figurado em tônica/terça e quinta superiores/terça
e quinta superiores (exemplificação em acorde de tônica). Na melodia predomina a tmica de
quatro semicolcheias e uma colcheia e duas semicolcheias, com pausas usadas como respiração
melódica, uso de intervalos harmônicos de terça em alguns pontos e uso de acentuações no
primeiro tempo de caráter fraseológico-composicional. Estes dois últimos elementos, igualmente
à trova, ambientam a melodia num estilo gaúcho:
19
Figura 2: Exemplo de bugio, (Ibid., p. 37, c. 1-12).
Quanto à rancheira, segundo Bangel:
É o gênero mais gcho dentro da sica brasileira, por não se encontrar similar em outros estados. No
Rio Grande, a rancheira às vezes é confundida com o terol, que é outra dança. A diferença está no acento
forte no primeiro e terceiro tempos do compasso da rancheira. No terol o acento forte é somente no
terceiro tempo (Ibid., p. 38).
Bangel está em concordância com os folcloristas Paixão Côrtes e Barbosa Lessa
(CÔRTES & LESSA, 1967, p. 95) em relação à acentuação no primeiro tempo da rancheira e que
isto a diferencia do terol. No entanto, Côrtes e Lessa não levam em consideração a existência da
acentuação no terceiro tempo de ambas. Bangel não escreve as acentuações no primeiro e
terceiro tempo da rancheira (assim como Côrtes e Lessa não escrevem a acentuação no primeiro
tempo), conforme sua afirmação. Provavelmente, por ter deixado claro no texto explicativo do
exemplo que as acentuações daquela maneira se configuram, o autor tenha omitido-as na
partitura. Uma característica melódica evidente no exemplo é a rítmica de três tempos em
colcheia pontuada e semicolcheia, que completam um compasso. Aparecem também colcheias,
mínimas e mínimas pontuadas, como também a terminação fraseológica colcheia/pausa de
colcheia/colcheia/pausa de colcheia/pausa de semínima, bastante característica do estilo gaúcho.
O acompanhamento se dá por três semínimas sempre em staccato, o caracteriza o "compasso
picado" da rancheira, prevalecendo, no exemplo, a figuração tônica/terça e quinta
superiores/quinta inferior (exemplificação em acorde denica):
20
Figura 3: Exemplo de rancheira, (BANGEL, 1989, p. 39, c. 1-12).
O acompanhamento da toada, de dolente melancolia e andamento, em compasso dois por
dois, é ritmado por uma semínima pontuada, uma colcheia e uma mínima (às vezes, em
terminações de frases, duas semínimas), figuradas por tônica/terça e quinta superiores/terça e
quinta superiores, exatamente à figuração do bugio (exemplificação em acorde denica), mas sem
a acentuação no primeiro tempo, e num andamento lento. Na melodia, bem como no
andamento, nenhuma acentuação. O ritmo é lento, prevalecendo semínimas, semínimas
pontuadas, colcheias e mínimas pontuadas:
Figura 4: Exemplo de toada, (Ibid., p. 40, c. 1-13).
De acordo com o autor, “o modo maior domina no chotes gaúcho, ao contrário do
21
nordestino, em que o modo menor aparece com muita freqüência, além da elevação do e
abaixamento do grau, que personalizam o estilo nordestino” (Ibid., p. 41). No
acompanhamento, o segundo e o quarto tempo não são acentuados, ao invés disso, Bangel
escreve-os sob a rítmica de colcheia-pausa de colcheia (semínima/colcheia e pausa de
colcheia/semínima/colcheia e pausa de colcheia, num compasso quatro por quatro), como que
em staccati, na figuração tônica/terça e quinta superiores/quinta inferior/terça e quinta superiores
(exemplificação em acorde de tônica). As acentuações são fraseológico-composicionais, não
coincidindo com o segundo e quarto tempo acentuados, ao invés disso, como a figuração mais
usada no exemplo é a da colcheia pontuada/semicolcheia, geralmente é na semicolcheia que o
acento aparece, às vezes ressaltado pela altura das notas, muitas vezes em intervalos harmônicos
de terça, que se sobressaem à melodia, dando o gingado característico do estilo gaúcho, sempre
no contratempo:
Figura 5: Exemplo de chotes, (Ibid., p. 42, c. 1-10).
Segundo Bangel, a característica marcante da milonga está no baixo ou bordões do
violão, que soa como baixo-obstinado em tonalidade menor. (...) A milonga é gaúcha pampeana e
comum ao Brasil, Argentina e Uruguai” (Ibid., p. 43). Tonalidade menor, ainda que a maior
também apareça com freqüência hoje em dia, com a presença marcante da figuração tônica/sexta
menor (ou maior, em caso de tonalidade maior)/quinta justa (exemplificação em acorde de
tônica), ritmada por semínima ligada à colcheia pontuada/semicolcheia ligada à semínima
(acentuada)/semínima, em compasso dois por dois, no acompanhamento (ou no baixo). Na
melodia, além de mínimas pontuadas, semínimas e colcheias, aparecem características quiálteras
em semínimas. Há também a figura de mínima ligada a uma colcheia no final de frases:
22
Figura 6: Exemplo de milonga, (Ibid., p. 44, c. 1-10).
A valsa campeira é uma valsa com características gauchescas. No exemplo de Bangel, possui
acompanhamento de figuração tônica/terça e quinta superiores/terça e quinta superiores
(exemplificação em acorde de tônica), ritmadas por três semínimas, com modulações à
subdominante relativa. Na melodia aparecem semínimas, semínimas pontuadas, mínimas, e
principalmente grupos de colcheias, geralmente em notas repetidas:
Figura 7: Exemplo de valsa campeira, (Ibid., p. 46, c. 1-16).
“A polca limpa-banco é viva, alegre, dançante, e, quando executada, ninguém fica
sentado, daí então, limpa-banco” (Ibid., p. 47). Origem tcheco-alemã. Confunde-se com a marcha,
que é mais lenta. É saltitante. Bangel escreve que se tornou acentuada nos tempos fracos ao
23
cruzar-se com o crioulo gaúcho, quando nos bailes kerbs as quadrilhas são marcadas ao compasso
das polcas. Acompanhamento de polca, sob figuração tônica/terça e quinta superiores/quinta
inferior-terça e quinta superiores (exemplificação em acorde de tônica), ritmadas por quatro
colcheias em compasso dois por quatro, sem acentuação nos tempos fracos. Na melodia, onde
predominam as figurações de quatros colcheias e intercaladas por semicolcheias ou de grupos de
semicolcheias, acentos aparecem fraseogico-composicionalmente, sempre nos tempos fracos:
ou nas partes fracas dos dois tempos ou na parte fraca apenas do segundo tempo, mais
freqüentemente. Ornamentações cromáticas tímidas aparecem. Intervalos harmônicos por terças
na melodia:
Figura 8: Exemplo de polca limpa-banco, (Ibid., p. 48, c. 1-14).
Quanto ao vanerão, Bangel afirma que “seu movimento rítmico característico está no baixo
com marcação contínua de colcheia pontuada/semicolcheia e duas colcheias, com acento forte na
última colcheia do compasso binário” (Ibid., p. 49). Alegremente dançante. Figuração tônica/terça
e quinta superiores/terça e quinta superiores/quinta inferior, acento na última, ritmo conforme já
exposto. Algumas figurações de semicolcheias no baixo. Algumas modulações, como para a
subdominante. Sem acentos consideráveis na melodia, onde prevalece a figuração de grupos de
semicolcheias, intercalados por semínimas, às vezes colcheias. Intervalos harmônicos por terça e
principalmente por sextas:
24
Figura 9: Exemplo de vanerão, (Ibid., p. 50, c. 1-12).
“O rasqueado é da família do chamamê e da polca paraguaia. Comparável à guarânia”
(Ibid., p. 51). Segundo Bangel, acentua-se o terceiro tempo do compasso ternário. O termo
‘rasqueado’, de acordo com o autor, é um neologismo de ‘rasgueo’, rasgado’: modo de tocar
violão arrastando as unhas nas cordas, sem pontear. Acompanhamento de figuração tônica/terça
e quinta superiores/terça e quinta superiores/terça e quinta superiores/tônica e terça e quinta,
variando a tônica do primeiro tempo pela quinta inferior no compasso posterior (exemplificação
em acorde de tônica), sob a rítmica de quatro colcheias e semínima acentuada e rasqueada
(arpejada). Na melodia, predominam as figurações de grupos de seis colcheias ou então a de
semínima pontuada/colcheia/semínima pontuada/colcheia:
25
Figura 10: Exemplo de rasqueado, (Ibid., p. 52, c. 1-10).
***
Tasso Bangel, além de integrante do Conjunto Farroupilha, voltado àsica gaúcha, é
também músico e compositor erudito, utilizando em suas obras elementos musicais gauchescos.
Segundo ele, acerca do estilo gaúcho na música erudita:
Quando usado na música erudita, o estilo gaúcho, em virtude da complexidade instrumental e orquestral,
perde uma parte do componente timbre, mas ganha na harmonia, ritmo e principalmente tessitura. O estilo
gaúcho aparece atualmente nas mais diversas formas musicais e em diferentes níveis culturais; da música
tradicionalista à música contemporânea, em constante mutação, devido à sua origem folclórica. "O erudito
ou culto... é o folclore, é o popular, que se tornou exceção" (Ibid., p. 53).
No contexto deste trabalho, cujo objetivo é compor uma música contemporânea
utilizando elementos musicais gauchescos, tais afirmações de Bangel são incentivadoras. O estilo
gaúcho na música brasileira é um livro que visa, além de demonstrar as possibilidades criativas dos
gêneros gauchescos, analisar as principais características da música do Rio Grande do Sul.
No entanto, no tocante aos propósitos deste trabalho, foi dada uma atenção deveras
especial às transcrições do material musical gauchesco, o qual foi fornecido pelos músicos
entrevistados, pois cada detalhe é importante. Portanto, apesar de levar em consideração os
exemplos de Bangel e suas conclusões, buscou-se ir pessoalmente à fonte musical dos neros
gauchescos, para uma apreensão íntima dos elementos peculiares e característicos da música
26
gaúcha. Consideramos, assim, melhor validar este trabalho, tanto enquanto pesquisa quanto
enquanto obra de arte.
2.4 - Do folclore musical gauchesco no tocante aos propósitos deste trabalho
Os gêneros musicais gaúchos encontram-se imersos no folclore e no fazer musical do
estado do Rio Grande do Sul, os quais são, em sua maioria, provenientes de vários lugares do
mundo e foram ali reformulados, adquirindo novas características. Conforme afirma a Revista
Brasileira de Folclore em seu primeiro número (apud. RTES, 1984a, p. 106), “o folclore se
origina do homem, este cria os valores, difunde-os, reformula-os de acordo com suas
concepções, e a terra o ambiente, adapta as idéias universais às formas regionais, sendo o
povo que o cria, recria e transforma”. Dessa forma, por exemplo, o gênero chote, usual no Rio
Grande do Sul, já não é mais o schottisch europeu que chegou neste estado com os imigrantes
daquele continente, assim como vários outros gêneros presentes no estado, pois já foram
transformados pelo povo local ao longo dos anos.
O presente trabalho visou recolher este conhecimento musical popular, mais
especificamente do folclore gaúcho, a fim de utili-lo como material artístico em uma
composição contemporânea. Contudo, apesar de tal conhecimento estar presente maciçamente
em festivas de sica regional, em CDs e em DVDs de grupos e músicos gaúchos, etc., ele é
transmitido geralmente de maneira empírica, não contando ainda com uma análise e uma
estruturação acadêmica no que se refere ao seu ensino-aprendizado, o que restringe seu acesso.
Desde a década de 1950, alguns pesquisadores e folcloristas do estado do Rio Grande do
Sul, como Paixão Côrtes e Barbosa Lessa, estudaram, classificaram, registraram e divulgaram
vários gêneros musicais regionais, porém estes estudos não são muito aprofundados
musicalmente ainda que constem partituras, as mesmas geralmente se restringem à melodia
cifrada ou com um acompanhamento simples, sem detalhamento de acentuações, etc. –, pois
ambos não eram musicólogos. O livro de Tasso Bangel O estilo gaúcho na música brasileira, de 1989,
anteriormente detalhado, se mostra como um dos poucos trabalhos musicológicos de grande
importância para e sobre a música gaúcha, embora o mesmo não se dedique ao ensino-
aprendizado dos neros gauchescos, apenas lhes demonstra através de exemplos compostos
pelo autor e lhes aponta as principais características. E outro livro, este mais recente, de Silvio de
Oliveira e Valdir Verona, Gêneros musicais campeiros do Rio Grande do Sul – ensaio dirigido ao violão, de
2006, também é de grande importância para a música deste estado, pois, além de contextualizar
27
historicamente o folclore e a música gaúcha, se dedica a ensinar, ainda que destinado somente à
linguagem do violão, como tocar os gêneros gaúchos, fornecendo bastante material característico
gauchesco. Portanto, devido à precária bibliografia especializada, e levando em consideração a
importância de uma transcrição fiel dos elementos gauchescos para a realização satisfatória deste
trabalho, foi necessária a coleta destes elementos pessoalmente, através de entrevistas com
sicos pertencentes ao fazer musical gaúcho, os quais forneceram os exemplos musicais
transcritos mais adiante, no próximo capítulo, continentes de elementos gauchescos, que por sua
vez, foram utilizados artisticamente em uma composição contemporânea, objetivo principal
deste trabalho.
No âmbito nacional, muitos teóricos e compositores brasileiros valorizaram a música
folclórica, utilizando-a de várias maneiras em suas obras. Como referência teórica, podemos
destacar Mário de Andrade, grande incentivador de uma arte nacional. No que se refere ao
objetivo deste trabalho, consideramos importante, de Mário de Andrade, a seguinte citação:
Uma arte nacional não se faz com escolha discricionária e diletante de elementos: uma arte nacional já está
feita na inconsciência do povo. O artista tem que dar pros elementos já existentes uma transposição
erudita que faça da música popular, música artística, isto é: imediatamente desinteressada (ANDRADE
apud. VERHAALEN, 2001, p. 62).
De acordo com a citação acima, se mostra o presente trabalho, visto que os elementos’
ou materiais musicais pesquisados e utilizados na composição estão na ‘inconsciência do povo’,
isto é, estão imersos no folclore gaúcho, e o artista’ ‘transpôs eruditamente’, ou
‘contemporaneamente’, estes materiais, em prol de sua arte. Mário de Andrade alerta, ainda, que:
O compositor brasileiro tem de se basear quer como documentação quer como inspiração no folclore. Este,
em muitas manifestões caracteristiquíssimo, demonstra as fontes donde nasceu. O compositor por isso
não pode ser nem exclusivista nem unilateral. Se exclusivista se arrisca a fazer da obra dele um fenômeno
falso e falsificador. E sobretudo facilmente fatigante. Se unilateral, o artista vira antinacional: faz música
ameríndia, africana, portuga ou européia. Não faz música brasileira não (ANDRADE, 1972, p.9).
Segundo o autor, o compositor nacional é exclusivista quando cai no exotismo, exótico
até para a própria nação a qual ele pertence, pois aceita o que é ‘excessivo característico
nacional’, o que, segundo Mário de Andrade, “fatiga e se torna facilmente banal”; e é unilateral
quando valoriza apenas uma influência étnica, desconsiderando que o folclore nacional é
formado, no caso do Brasil, justamente pela mescla entre as nossas muitas influências étnicas.
Quanto ao aproveitamento dos materiais musicais coletados do folclore, o mesmo autor
adverte:
28
Devemos empregar com freqüência e abuso o elemento direto fornecido pelo folclore, carece que a gente
não esqueça que música artística não é fenômeno popular porém desenvolvimento deste. O compositor
tem para empregar não só o sincopado rico que o populario fornece como pode tirar ilações disso. E nesse
caso a síncopa do povo se tornará uma fonte de riqueza (Ibid., p. 12).
Foram justamente a estas ‘ilações’, às possibilidades criativas sugeridas pelo folclore
gaúcho, que procuramos atentar e valorizar ao nos apropriarmos dos elementos dos gêneros do
Rio Grande do Sul para utilizá-los em nossa composição.
Alguns compositores brasileiros, em seus processos composicionais, se aproximaram, em
parte, do objetivo deste trabalho pesquisa e aproveitamento composicional de elementos
musicais folclóricos –, em especial Camargo Guarnieri e Guerra-Peixe, os quais deixam alguns
escritos sobre sua arte que nos ajudam a elucidar a questão da transposição de elementos
musicais do folclore para um outro contexto musical.
Em seu Depoimento (apud. VERHAALEN, 2001, p. 80), Camargo Guarnieri afirma: “O
elemento folclórico deve estar tão integrado na obra quanto na sensibilidade do compositor”.
Assim, como me relaciono artisticamente com o folclore gaúcho, participando ativamente de
festivais de música regional quase dez anos como instrumentista, arranjador, poeta e
compositor, posso considerar que tanto minha ‘obra’ quanto minha sensibilidade’ estão
integradas aos elementos musicais folclóricos gaúchos, o que deve se legitimar no escopo deste
trabalho.
Após renunciar ao dodecafonismo, Guerra-Peixe inicia sua fase nacional, buscando no
elemento folclórico materiais composicionais. Dentre as idéias de Guerra-Peixe acerca do
aproveitamento do folclore em sua composição, podemos destacar o conteúdo desta citação:
Tendo selecionado elementos materiais de determinada manifestação folclórica, é possível elaborá-los “a
termos de valores artísticos”, ou seja, realizando “estilização em alto nível, mas de modo a permitir (ou
fazer pressentir) que na obra figurem, demarcadas, as características daquilo que é estilizado” (GUERRA-
PEIXE 1971, p. 18 in VETROMILLA, 2006, p. 83).
Portanto, embora tenhamos que considerar o contexto nacionalista das idéias de Guerra-
Peixe, assim como nas de Camargo Guarnieri e de Mário de Andrade, que pertencem ao seu
período específico e que não fazem parte do escopo deste trabalho, podemos tomar de
empréstimo aquelas que dizem respeito às maneiras de apreendimento do material folclórico de
maneira equilibrada, integrada com a obra e com a sensibilidade do compositor, comprometida
com a arte nacional e regional, e elaborada artisticamente, e, ainda, permitindo que na obra se
façam ‘pressentir’ as características dos elementos estilizados.
29
No entanto, para os propósitos deste trabalho, a principal referência quanto à
composição erudita baseada em elementos folclóricos – e aqui, especificamente quanto ao
folclore gaúcho – está na obra do compositor gaúcho Luiz Cosme, mais notadamente no tocante
à sua lenda-bailado A Salamanca do Jarau. Segundo Mattos:
A lenda-bailado Salamanca do Jarau, composta por Luiz Cosme em 1935 e revisada em 1940, (...) utiliza-se
notadamente de elementos folclóricos do Rio Grande do Sul: a lenda popular da região das Missões com o
mesmo nome do bailado, recolhida por João Simões Lopes Neto, e a canção folclórica sul-rio-grandense Boi
Barroso, a “mais gaúcha de todas as canções folclóricas”, segundo Bangel (1989, p. 38)(MATTOS, 1997, p.
3).
Muitos críticos, autores e compositores analisaram e escreveram esta obra de Luiz Cosme.
Estes perceberam a influência do folclore gaúcho em Cosme e em sua lenda-bailado. De acordo
com Almeida (1942, p. 496), “o bailado se inicia com o motivo do Boi Barroso, que, por assim
dizer, lhe cria o clima propício ao desenvolvimento, no qual utiliza ainda outros elementos da
temática gaúcha”. E, segundo Miranda Netto (1944), “já em ‘Assombração’ [trecho de A
Salamanca do Jarau] começa um ritmo batido, sobre o qual o corno inglês canta os seus temas,
inspirados no ‘folclore’ gaúcho, mas jamais reproduções”. Adiante, este mesmo autor destaca:
Luiz Cosme foge do puro ‘folclore’, e faz bem. Um compositor pode ser genuinamente popular sem a
escravização ao tema, pescado’ laboriosamente, sem a preocupação de produzir servilmente o ambiente
popularesco original. Antes, ao revés, Luiz Cosme prefere iniciar o seu trabalho com um ondular de
contrabaixos, sem nenhum sentido regional, cortado de vez em quando, por uma rajada de madeiras, onde
entram principalmente a flauta e o ‘ottavino’, prenúncio de assombração (MIRANDA NETTO, 1944, apud.
MATTOS, 1997, p. 77).
Ou seja, Cosme aproveita elementos folclóricos, porém, não apenas os estiliza, e sim, os
utiliza de maneira artística em meio seu processo composicional. Assim, quanto ao processo
composicional de Cosme, Guedes sintetiza:
Embora de livre composição, em ambos [quadros A Boicininga’ e ‘Ronda de Moças’] notadamente fins
do primeiro e último compasso do segundo, derivado do tema de Teiniaguá reminiscências regionais
transparecem (GUEDES, 1945, apud. MATTOS, 1997, p. 92).
Já no tocante à obra de Luiz Cosme em sua totalidade, Béhague afirma:
Encontramos a substância desta obra [a de Luiz Cosme] na incorporação de fontes folclóricas nacionais a
características estilísticas de seu tempo, resultando de preocupações estéticas sem igual nos seus
contemporâneos brasileiros (BÉHAGUE, 1969, p. 67).
Além disso, o mesmo autor, adiante, conclui que:
30
Temos uma obra [a de Luiz Cosme] que não permite vidas quanto a sua origem nacional, tanto em seu
contdo literário como musical, mas também uma obra de alcance universal quanto a sua estrutura e
contemporaneidade (Ibid., p. 72-73).
Estas afirmações conduzem a um entendimento da importância de Luiz Cosme para a
sica erudita e para a música gaúcha. Além disso, corroboram o presente trabalho, visto que é
possível, sim, desenvolver uma obra de raízes folclóricas e de conteúdo universal e
contemporâneo simultaneamente. Quanto a isto, assim sintetiza Cavalheiro Lima:
Ao socorrer-se o artista gaúcho [Cosme] de processos novos de composição ou ao tentar com certo arrojo
descobrir inusitadas possibilidades harmônico-expressivas, o faz sem ostentação nem rebuscamento, e sim
com uma inquietação e uma busca características do espírito de nosso tempo. Da mesma forma situa-se
face à música folclórica. As contribuições dela aparecem em sua obra com naturalidade, jamais se
salientando como elemento fundamental, antes servindo como mais um meio de que se vale o compositor
para desenvolver idéias eminentemente musicais (CAVALHEIRO LIMA, 1957, apud. MATTOS, 1997, p.
95).
Isto é, os elementos folclóricos podem, ou devem, ser apreendidos pelo compositor
erudito, que a partir de então os incorpora ao seu fazer musical, utilizando-os de várias maneiras,
engendrando-os em sua arte. Segundo Mattos, para Cosme “o substrato folclórico deveria ser
absorvido em sua substância, por meio da elaboração do material musical nele contido
(MATTOS, 1997, p. 229). Assim pretendeu desenvolver-se o presente trabalho, recolhendo
elementos gauchescos e utilizando-os artisticamente em uma composição contemporânea.
Outra questão, ainda do âmbito do folclore, e que merece um breve esclarecimento, é a
não relação do nosso estudo sobre gêneros musicais gaúchos a um suposto reforço ao
regionalismo, em seu sentido negativo, isto é, bairrismo. Pelo contrário. Pretendemos sim, com
este trabalho, preservar, disponibilizar e difundir os gêneros gaúchos, mas a fim de coletar
materiais musicais peculiares e agregá-los à sica brasileira/contemporânea e de ofertar
possibilidades criativas, podendo os compositores e músicos a seu bem entender e em busca
de novos materiais artísticos , fundir, transformar e/ou recriar estas informações. Não
buscamos estudar os referidos gêneros, no presente trabalho, com a pretensão de julgá-los
superiores aos de outras culturas regionais, mas sim com a preocupação de registrar materiais
ainda não explorados na música brasileira/contemporânea, e que pertencem a ela. Paixão Côrtes,
em seu livro Aspectos da Música e Fonologia Gaúchas, apontava para a ‘superação do regional’:
“Não existem mais regiões, ou seja, espaços sicos e políticos diferenciados capazes, por suas
delimitações hidrográficas, humanas e naturais, de forjar um comportamento autóctone”
(CÔRTES, 1984, p. 106).
31
Levando em consideração esta afirmação, se entendem desnecessárias quaisquer barreiras
regionais que possam existir como forma de resistência ao estudo e ao uso de materiais de
gêneros musicais gaúchos em outras culturas ‘regionais’ ou em outros contextos criativos.
32
Das transcrições
3.1 - Considerações iniciais
Apesar de eu possuir uma relação estreita com os gêneros musicais gaúchos, pois há
quase dez anos atuo no âmbito musical do Rio Grande do Sul, decidi, para bem deste trabalho,
proceder a uma coleta de materiais com músicos eminentes no referido estado, através de
gravações em áudio e vídeo. Foram selecionados quatro músicos, os quais se encontram
profundamente inseridos no fazer musical gaúcho. Os músicos colaboradores foram os seguintes:
o violonista e contrabaixista Carlos de Cézaro (formação popular), o violonista Maurício Marques
(formação erudita), o acordeonista Mano Júnior (formação popular) e o acordeonista Lacy
Martins (formação erudita). Levamos em consideração os instrumentos mais utilizados na
execução desta música, a saber, o violão, o acordeon e o contrabaixo. Além disso, também nos
preocupamos em obter possibilidades técnicas e expressivas relativamente amplas, visto que
decidimos proceder às gravações com dois violonistas um de formação empírica e outro de
formação erudita –, dois acordeonistas – um de formação empírica e outro de formação erudita –
, e um contrabaixista. Então, procedemos às gravações em si, realizadas em diversos locais, dada a
difícil disponibilidade dos músicos que, geralmente, a cada final de semana estão em uma cidade
diferente para tocar em algum festival de música regional, ou estão envolvidos em gravações,
ensaios para shows, etc. Foi dada muita atenção às transcrições, para fornecer a pessoas que não
participam dos gêneros gauchescos um detalhamento maior de suas características.
Cada instrumento revelou peculiaridades diferentes, relacionadas à sua produção de
som, que, em geral, não são notadas na partitura. A escrita musical, tanto para o violão e o
contrabaixo, quanto para o acordeon, é bastante simplificada, visando uma fácil leitura por parte
do instrumentista; porém, ela desconsidera detalhes importantes, para nosso trabalho, do material
musical. Procuramos transcrever cada detalhe revelado, o que muitas vezes deixou a partitura
repleta de informação, dificultando sua leitura, mas isto foi decisivo para obtermos uma
transcrição adequada ao nosso trabalho. Para tanto, também, nos preocupamos com as
características técnicas de execução de cada instrumento, o que, em alguns casos, nos levou a
elaborar uma notação específica para certos eventos sonoros, até então não convencionada, o que
será demonstrado caso a caso, no transcorrer da análise dos materiais.
33
Dividimos, portanto, este capítulo, destinado às transcrições, da seguinte forma:
considerações iniciais; considerações sobre os instrumentos executantes e sua notação, onde discutimos,
brevemente, algumas questões inerentes aos principais instrumentos executantes da música
gaúcha, os quais foram utilizados na coleta de materiais; análise dos materiais musicais dos gêneros
gaúchos, onde dispomos os oito gêneros gaúchos estudados na ordem mencionada na
introdução (chamarra, chote, vaneira, chamamé, rancheira, milonga, polca paraguaia, e bugio), de
maneira a apresentar e analisar suas principais características e os seus elementos mais peculiares;
e considerações finais, onde avaliamos, de maneira geral, os resultados da coleta, da transcrição e da
análise dos materiais.
3.2 - Considerações sobre os instrumentos executantes e sua notação
3.2.1 - O violão
Um dos instrumentos mais importantes e mais utilizados na execução da sica gaúcha
é o violão. Por suas características, é empregado tanto no papel de instrumento de
acompanhamento voz, ou a um instrumento solista), como no papel de instrumento solista
(muitas vezes em dueto com outro(s) violão(ões) ou outro instrumento, como o contrabaixo ou o
acordeon), bem como no papel de, simultaneamente, instrumento solista e de acompanhamento,
executando, sozinho, a melodia, o ritmo e a harmonia de uma música com uso de arpejos em
acordes e em cordas soltas, em conjunto com a execução da melodia, pela pressão dos dedos da
o esquerda nas casas do bro do violão, para definir as notas, e dos dedos da mão direita no
tanger das cordas, para a produção do som.
Geralmente, na música gaúcha, se usa o violão de cordas de nylon, o que faz com que a
sua sonoridade, o seu timbre, seja o que melhor reflete esta música. Entretanto, também é usual o
violão de cordas de aço, principalmente em guarânias, chamamés, canções, milongas lentas, e
chotes e vaneiras de cunho mais popular, como é comum em grupos de baile neste último caso
utiliza-se, inclusive, guitarra elétrica. Menos usuais ainda, introduzidos pela erudição de alguns
sicos regionais, são os violões de cordas de nylon de sete ou oito cordas, já que, em larga escala,
é usado o violão de cordas de nylon de seis cordas.
O violão de cordas de nylon de seis cordas possui, geralmente, uma extensão musical
que vai do Mi
1
(sexta corda solta, a nota mais grave) ao Si
4
(última casa da primeira corda, a nota
mais aguda), e tem suas cordas afinadas em Mi
3
a primeira corda, Si
2
a segunda corda, Sol
2
a
34
terceira corda,
2
a quarta corda,
1
a quinta corda, e Mi
1
a sexta corda, sendo que se conta
como primeira corda a corda mais abaixo no braço do violão, isto é, se contam as cordas do
violão de baixo para cima.
Quanto à notação para violão, como mencionado, existem várias simplificações, que
visam dar ao instrumentista mais facilidade de leitura, o que acaba omitindo, de certa forma,
informações importantes, além do descaso, muitas vezes, com as acentuações, o que, em se
tratando de música gaúcha, acarreta na descaracterização de uma de suas principais
peculiaridades. Seguem alguns exemplos de simplificações e omissões em partituras para violão:
a) o violão é um instrumento transpositor de oitava, ou seja, soa uma oitava abaixo do que é
notado. Portanto, para uma melhor transcrição, usaremos a clave de sol de uma oitava abaixo,
ajustando, assim, a notação para violão;
Figura 11: Transposição de oitava para violão.
b) os arpejos, no violão, geralmente o simplificados, deduzindo um conhecimento prévio do
instrumentista. Em nossas transcrições, decidimos por escrever todos os prolongamentos de
notas provenientes dos arpejos, além de revisarmos a maneira da divio entre as vozes;
Figura 12: Notação de arpejos para violão.
c) ainda a respeito dos arpejos, escrevemos também os prolongamentos de notas que se dão de
um compasso para outro, quando acontecem, pois os mesmos são omitidos na notação
convencional;
35
Figura 13: Notação de arpejos para violão.
d) as acentuações e os staccati, nos gêneros musicais gaúchos, o muito importantes, e não
podem ser omitidos na notação ao violão, como verificamos em diversas partituras. Como nossas
transcrições pretendem, justamente, apreender as peculiaridades destes gêneros – aí se incluem as
acentuações e staccati característicos de cada gênero , evidentemente, atentamos para isso, nos
arpejos;
Figura 14: Notação de arpejos para violão.
e) assim como nos arpejos, as acentuações e os staccati também são importantes na notação de
uma passagem melódica para violão;
Figura 15: Notação de melodias para violão.
36
f) fomos detalhistas nas transcrições de batidas, executadas no violão, notando, além do ritmo da
batida, as notas executadas, com a apropriada divisão de vozes;
Figura 16: Notação de batidas para violão.
g) e por fim, listamos abaixo alguns sinais convencionais, a respeito da notação da execução
violonística, utilizados nas transcrições, baseados em Oliveira (2006, p.11): p dedo polegar da
o direita, i – dedo indicador da mão direita, m – dedo dio da mão direita, e a – dedo anular
da mão direita; batida para baixo com o dorso das unhas dos dedos i-m-a (notado acima da
nota ou conjunto de notas que devem ser tocadas dessa forma), batida para cima com o
dorso da unha do dedo p (notado acima da nota ou conjunto de notas que deve ser tocadas dessa
forma), percutir as cordas com o dorso dos dedos i-m-a (aplicado à nota ou conjunto de
notas que deve ser tocadas dessa forma); e percutir as cordas com a borda interna da mão
direita.
Como pudemos ver, foi preciso dar uma atenção especial aos detalhes na transcrição
dos exemplos musicais de violão, expandindo o que seria sua notação usual, para não perdermos
as sutilezas, como os efeitos percussivos ou dinâmicos, as ligaduras, as acentuações e os staccati,
detalhes que nos transmitem algumas das principais peculiaridades da música gaúcha.
Além disso, em todas as nossas transcrições neste trabalho, atentamos também à
dinâmica, bem como, em certos casos, à notação de eventos para os quais ainda não sinais
convencionados, o que será tratado caso a caso, posteriormente.
3.2.2 - O acordeon
O acordeon é, junto ao violão, o instrumento mais importante na cultura gaúcha, e o
que, talvez, melhor a represente, por seu timbre marcante e larga utilização musical. Apesar de
geralmente o acordeon ser acompanhado de pelo menos um violão, ele é um instrumento que
facilmente assume o papel de solista e acompanhador simultaneamente, executando a melodia, o
ritmo e a harmonia de uma música, devido a sua estrutura, que se divide na utilização da mão
37
direita do instrumentista no teclado (semelhante a um piano) e da mão esquerda nos botões dos
baixos, contrabaixos e acordes de acompanhamento, que, somados ao jogo de fole, desempenham
ambas as funções.
Embora coexistam muitos tipos diferentes de acordeons na música gaúcha, optamos,
neste trabalho, pelo acordeon-piano chamado, no Rio Grande do Sul, de gaita apianada, ou
simplesmente gaita, ou cordeona , por sua maior utilização. Sua extensão é bastante variada,
sendo que os acordeons-piano mais importantes são os de quarenta e oito, os de oitenta e os de
cento e vinte baixos, o que influencia no tamanho e extensão musical do instrumento. Suas
extensões são, geralmente, segundo Terra (1998, p. 31-32), as seguintes:
Extensão musical de acordeons
Acordeon Teclado Baixos Acordes
48 baixos Sol
1
-Mi
4
Fá#-Réb Maiores/menores
80 baixos Sol
1
-Mi
4
Sol#-Dób Maiores/menores/7 ª da dominante
120 baixos
-Lá
4
Lá#-Lá Maiores/menores/7ª da dominante/7
as
diminutas
Figura 17: Extensão musical dos acordeons.
O acordeon-piano possui, de um lado, um teclado, como o do piano, e, de outro, um
sistema de botões conhecido como sistema de baixos Stradella (Stradella bass system, ou standard bass,
popularmente chamado de ‘baixaria’).
Este sistema consiste em fileiras de botões que, ao serem pressionados, fazem soar
notas graves ou acordes. Nas duas primeiras fileiras temos as notas graves, dispostas conforme o
ciclo das quintas, sendo que a nota fundamental de cada acorde se encontra na segunda fileira, ou
baixos, tendo em sua diagonal inferior, na primeira fileira, sua terça maior acima, ou contrabaixos
(counter bass). Na outra direção, temos, em relação à nota fundamental da segunda fileira, o seu
acorde maior na terceira fileira, o seu acorde menor na quarta fileira, o seu acorde de sétima da
dominante na quinta fileira, e o seu acorde de tima diminuta na sexta fileira, conforme figura a
seguir:
38
Figura 18: Sistema de baixos Stradella correspondente a um acordeon de 120 baixos (disponível em
http://www.accordionpage.com/basar.html).
No que se refere à notação para acordeon, na mão direita persistem problemas já
evidenciados na notação para violão, que é o descaso com as ligaduras, as acentuações e os
staccati, tão importantes na sica gaúcha. Na mão esquerda, por sua vez, existem abreviações
significativas, que consistem nas seguintes, segundo consulta ao método de acordeon de Alencar
Terra (1998):
a) baixos são notados entre Mi
2
e Ré
3
,
em clave de fá;
b) contrabaixos são notados com uma linha abaixo da nota (como um sublinhado), para indicar a
fileira, entre Mi
2
e Ré
3
,
em clave de fá;
c) acordes maiores são notados com uma nota apenas a fundamental do acorde , uma oitava
acima em relação aos baixos, com um M acima desta nota;
d) acordes menores são notados com uma nota apenas a fundamental do acorde, uma oitava
acima em relação aos baixos, com um m acima desta nota;
e) acordes de sétima da dominante o notados com uma nota apenas – a fundamental do acorde
–, uma oitava acima em relação aos baixos, com um 7 acima desta nota;
f) acordes de sétima diminuta são notados com uma nota apenas – a fundamental do acorde –,
uma oitava acima em relação aos baixos, com um 7.
d
acima desta nota;
39
g) qualquer acorde dentre os citados acima, ao ser tocado juntamente com seu baixo ou
contrabaixo, é notado com uma nota apenas a fundamental do acorde, com seu respectivo
símbolo (M, m, 7 ou 7.
d
, acima desta nota) –, e também com sua nota referente ao baixo (ou
contrabaixo, neste caso, notada com seu símbolo a linha abaixo da nota), cada nota em sua
respectiva oitava.
Entretanto, em nossas transcrições, decidimos não aplicar as abreviações acima listadas,
para obtermos uma transcrição mais próxima possível do som real. Evidentemente, como o
acordeon é um instrumento que, dependendo do modelo e do registro que é usado, faz soar várias
oitavas da mesma nota simultaneamente (inclusive em relação às notas do teclado, na mão
direita), e ainda algumas oitavas com maior volume que outras, não optamos por uma transcrição
que contemplasse essa característica, limitando-nos a apenas comentá-la. Abaixo, segue o que
levamos em consideração como um som aproximado ao som real do instrumento, tanto em
baixos ou contrabaixos, quanto nos acordes (desconsideramos as oitavas que soam em menor
volume, em registro normal, inclusive as referentes às notas do teclado, na mão direita):
Figura 19: Baixos e contrabaixos e acordes em transcrição aproximada ao som real.
Desta forma, mais uma vez, se tornou imprescindível que adotássemos uma postura
detalhista em relação à transcrição, neste caso, dos exemplos musicais de acordeon, expandindo
sua notação usual a fim de apreender as principais peculiaridades da música gaúcha, além de
também termos que, em alguns casos, criar sinais de notação para eventos musicais para os quais
ainda não existe notação convencionada, que serão tratados, assim como nos casos para violão,
caso a caso, posteriormente.
40
3.2.3 - O contrabaixo
O contrabaixo tem uma função importante na sica gaúcha, que é a de manter um
acompanhamento constante para os demais instrumentos, para que estes tenham mais liberdade
de arpejos, variações de batida, solos, etc., embora muitas vezes também execute solos,
geralmente em dueto com outro instrumento, para reforçar a linha melódica, em passagens
importantes, ou ainda em frases melódicas de ligação. Dificilmente são utilizados acordes no
contrabaixo, embora alguns contrabaixistas utilizem, em alguns casos, esta técnica.
Basicamente, o contrabaixo, além de dar sustentação de graves às músicas, mantém um
padrão rítmico-melódico durante a música, de acordo com o gênero musical utilizado, fazendo
poucas variações deste padrão, adaptando-o à harmonia.
Apesar da utilização de contrabaixos acústicos (não como o usado nas orquestras, mas
em formato de violão, com quatro cordas de aço, conhecido no Rio Grande do Sul como
baixolão), contrabaixos fretless (contrabaixos elétricos de quatro cordas e sem trastes para demarcar
as casas) e de contrabaixos elétricos de cinco ou seis cordas, o contrabaixo mais utilizado na
sica gaúcha é o contrabaixo elétrico de quatro cordas, que tem uma extensão musical que vai
do Mi
0
(quarta corda solta, a nota mais grave) ao Sol
3
(última casa da primeira corda, a nota mais
aguda) e tem suas cordas afinadas em Sol
1
a primeira corda,
1
a segunda corda,
0
a terceira
corda, e Mi
0
a quarta corda, sendo que se conta como primeira corda a corda mais abaixo no
braço do contrabaixo, isto é, se contam as cordas do contrabaixo de baixo para cima (em
comparação ao violão, o contrabaixo tem a mesma disposição de notas, excluindo-se as duas
primeiras cordas, transpondo as notas uma oitava abaixo, e acrescentando algumas casas no final
do braço).
Quanto à notação para contrabaixo, devemos considerar que este, assim como o violão,
é um instrumento transpositor de oitava, ou seja, soa uma oitava abaixo da notação que a ele é
empregada usualmente, o que corrigimos em nossas transcrições dos exemplos de contrabaixo
(clave de de uma oitava abaixo), além do problema encontrado e mencionado nos casos do
violão e do acordeon, a falta de atenção às acentuações, bem como a questão dos sinais de
notação para eventos musicais para os quais ainda não existe notação convencionada, que serão
tratados, assim como nos casos para violão e para acordeon, caso a caso, posteriormente.
41
3.3 - Análise dos materiais musicais dos neros gaúchos
3.3.1 - A chamarra
Na chamarra gênero geralmente dançante e alegre, em tonalidade maior, também
conhecido por chimarrita –, coexistem batidas e arpejos que podem ser utilizados como
acompanhamento no violão, disfarçando, assim, seu padrão rítmico característico:
Figura 20: Batida de chamarra para violão (exemplo coletado e transcrito da gravação com o violonista
Carlos de Cézaro, formação popular).
Figura 21: Arpejo de chamarra para violão (exemplo coletado e transcrito da gravação com o violonista
Carlos de Cézaro, formação popular).
Figura 22: Outro arpejo de chamarra para violão (exemplo coletado e transcrito da gravação com o
violonista Carlos de Cézaro, formação popular).
a a
p
m p i m
a a a
p i m p i m p m
42
Deste último exemplo, podemos observar a notação de algumas notas com a figura ,
por s assim definida (as durações e as alturas das notas são variáveis) para representar o som
resultante da retirada dos dedos da mão esquerda do violonista (ou do contrabaixista)
simultaneamente ao tanger das cordas correspondentes às notas em questão, pela mão direita.
Este evento musical singular produz um som percussivo, abafado, e é um detalhe interessante e
importante da execução instrumental empregada na música gaúcha.
No acordeon também encontramos uma regularidade no que se refere ao
acompanhamento rítmico, embora, no caso deste instrumento, a execução do acompanhamento
seja dominada pela improvisação. Neste exemplo, chamamos atenção a um evento musical
singular, que está vinculado ao jogo de fole do acordeon: a figura , por nós definida desta
maneira (as durações e as alturas das notas são variáveis), representa o som produzido pelo
instrumento quando o instrumentista retira o dedo de botões da baixaria, continuando, porém, o
movimento de abertura ou fechamento do fole pelo acontecimento de notas na mão direita (na
ausência de notas pressionadas, o acordeon não produz som, mesmo que se movimente seu fole),
o que acrescenta um gingado ao acompanhamento, fazendo com que o som produzido seja
apagado em um sutil decrescendo:
Figura 23: Improvisação na baixaria do acordeon em chamarra (exemplo coletado e transcrito da gravação
com o acordeonista Mano Júnior, formação popular).
no contrabaixo, pudemos averiguar duas maneiras definidas de acompanhamento,
sendo que, geralmente, uma é utilizada enquanto o violão executa uma batida, e outra enquanto o
violão executa um arpejo. Na chamarra, o contrabaixo atua, dentro do padrão tmico, com um
43
padrão melódico, dominado pelos intervalos de quinta, quarta e de oitava justas, além de algumas
variações e de frases eventuais:
Figura 24: Acompanhamento de chamarra para contrabaixo, enquanto o violão executa arpejos (exemplo
coletado e transcrito da gravação com o contrabaixista Carlos de Cézaro).
Figura 25: Acompanhamento de chamarra para contrabaixo, enquanto o violão executa batidas (exemplo
coletado e transcrito da gravação com o contrabaixista Carlos de Cézaro).
Neste exemplo, novamente, chamamos atenção a um evento musical singular, desta vez
vinculado à execução do contrabaixo, mas de características sonoras semelhantes ao exemplo
anterior: a figura , por s definida desta maneira (as durações e as alturas das notas são
variáveis), representa o som produzido pelo instrumento quando o instrumentista despressiona o
dedo da nota que está sendo pressionada logo após tocá-la, mantendo o dedo no mesmo lugar da
corda, permitindo que a vibração da mesma produza um ruído ao bater nos trastes, o que
acrescenta um gingado ao acompanhamento, fazendo com que o som produzido seja apagado
em um sutil decrescendo, de forma semelhante ao exemplo anterior, referente ao acordeon. Há,
ainda, mais outro evento musical singular: a figura , por nós assim definida (as durações e as
alturas das notas são variáveis), representa o som gerado a partir da percussão da corda
correspondente à nota em questão por um dedo da mão direita do instrumentista, o que produz
um som puramente percussivo. Portanto, o primeiro evento musical singular, detalhado
44
anteriormente, no segundo exemplo de arpejo para violão em chamarras, e representado pela
figura , é um movimento rápido, simultâneo ao tanger das cordas correspondentes e resulta
um som percussivo abafado a partir da nota em questão (encontrado em exemplos musicais de
violão e de contrabaixo); o segundo é um movimento mais lento, que ocorre um pouco após o
tanger das cordas e que resulta um decrescendo (encontrado em exemplos musicais de violão e de
contrabaixo e tamm de acordeon, relacionado ao jogo de fole); e o terceiro é estritamente
percussivo, não importando a nota em questão, pois se escutará apenas o som produzido pela
percussão do dedo da mão direita do instrumentista na corda (encontrado em exemplos musicais
de violão e de contrabaixo). Estes foram os três eventos musicais singulares que encontramos no
material gaúcho coletado, e para os quais entendemos necessária a convenção de figuras
representativas, ainda que de forma instrumental para este trabalho.
Entretanto, pudemos apreender, diante dos vários exemplos coletados e transcritos, o
seguinte padrão rítmico para a chamarra:
Figura 26: Padrão rítmico da chamarra.
Além do padrão rítmico acima, também exemplificamos as seguintes variações rítmicas,
utilizadas em trechos melódicos ou de acompanhamento:
Figura 27: Variações rítmicas da chamarra.
Em relação à harmonia utilizada no gênero chamarra, ela é essencialmente tonal. Na
grande maioria das vezes em tonalidade maior, visto que, a saber, uma chamarra em tonalidade
menor consiste, segundo alguns músicos gaúchos, em outro gênero musical, o rasguido ou o
raguido-doble, de procedência latino-americana, o qual não pertence ao escopo deste trabalho.
Possivelmente não seja apenas a tonalidade menor que defina um rasguido ou um rasguido-doble
45
em relação à chamarra , porém, como não estudamos este nero musical no presente trabalho,
damos como encerrada aqui esta questão.
Quanto à melodia e às frases, usualmente, são dobradas em terças, sextas ou oitavas.
Quanto à harmonia, além de ser tonal, a mesma se restringe, geralmente, aos acordes de tônica e
dominante, tendo, ocasionalmente, em ornamentos cromáticos e cadências harmônicas pontuais,
alguma variação:
Figura 28: Harmonia e ornamentos usuais em chamarras (exemplo coletado e transcrito da gravação com o
acordeonista Mano Júnior, formação popular).
46
Neste contexto, a subdominante também tem um caráter de variação importante. O
relativo menor, às vezes, aparece repentinamente, dando um colorido diferente à insistente
relação I-V. No entanto, mesmo havendo a necessidade de não descaracterizar o gênero em
função da harmonia estilizada, pudemos extrair algumas cadências mais elaboradas, utilizando
algumas dissonâncias, cromatismos e acordes de empréstimo de tonalidades vizinhas:
Figura 29: Harmonia um pouco mais elaborada em chamarras, no violão (exemplo coletado e transcrito da
gravação com o violonista Carlos de Cézaro, formação popular).
Outra seqüência harmônica um pouco mais estilizada, usada como exemplo para
chamarras, presente dentre nossas gravações, mas com ressalvas do instrumentista quanto ao
cuidado que se deve ter ao utilizá-la, para não soar estranha demais ao gênero, é a seguinte:
Figura 30: Harmonia elaborada em chamarras, no acordeon (exemplo coletado e transcrito da gravação
com o acordeonista Lacy Martins, formação erudita).
47
No que se refere às características melódicas encontradas, damos destaque às figuras em
semicolcheias, utilizadas em larga escala, muitas vezes ritmadas por acentuações e staccati. Outra
característica melódica e fraseológica importante é a utilização de arpejos, inerentes às melodias e
frases, mostrando, assim, através das notas das quais são formadas, a função harmônica daquele
trecho:
Figura 31: Características melódicas em chamarras, figuras em semicolcheias e arpejos (exemplo coletado
e transcrito da gravação com o acordeonista Lacy Martins, formação erudita).
48
Figura 32: Características melódicas em chamarras, figuras em semicolcheias e arpejos (exemplo coletado
e transcrito da gravação com o violonista Maurício Marques, formação erudita).
O andamento da chamarra, geralmente é rápido. A semínima varia entre 100 a 110
bpm, em compasso 2/4. No entanto, não são raros exemplos de chamarras um pouco mais
lentas, onde a semínima varia entre 70 a 80 bpm.
A chamarra, por suas características, geralmente tem um caráter alegre, dançante, com
letras despreocupadas, muito embora existam músicas regionais com letras de protesto, ou
reflexão, que foram musicadas com o referido ritmo, tocado mais lentamente, pois agrega à
composição valores rítmicos diferenciados. Muitas vezes, em sua instrumentação, ocorrem frases
no(s) violão(ões), reforçadas pelo acordeon e pelo contrabaixo. Vale também mencionar que é
comum à chamarra o acompanhamento de percussão, especialmente o pandeiro. Porém, o estudo
dos instrumentos de percussão, aplicados à música gaúcha, não pertence ao escopo deste
trabalho, porque acreditamos vislumbrar, de maneira consistente, o parâmetro ritmo, presente
nos gêneros gaúchos, através da sua manifestação nos acompanhamentos e na melodias
executadas pelo violão, pelo acordeon e pelo contrabaixo.
3.3.2. O chote
O chote também é um gênero geralmente dançante e alegre, majoritariamente em
tonalidade maior, enquanto a tonalidade menor é explorada mais caracteristicamente pelo xote
nordestino. Quanto ao acompanhamento no violão, encontramos variações de batida, e
constatamos que raramente se arpeja em chotes, e que o arpejo se assemelha muito com o
utilizado em chamarras:
49
Figura 33: Batida de chote para violão (exemplo coletado e transcrito da gravação com o violonista Carlos
de Cézaro, formação popular).
Figura 34: Outra batida de chote para violão (exemplo coletado e transcrito da gravação com o violonista
Carlos de Cézaro, formação popular).
Figura 35: Arpejo de chote para violão (exemplo coletado e transcrito da gravação com o violonista Carlos
de Cézaro, formação popular).
No acordeon também pudemos destacar variações de acompanhamento na baixaria:
a a
p m p i m
50
Figura 36: Acompanhamento na baixaria do acordeon em chote (exemplo coletado e transcrito da gravação
com o acordeonista Lacy Martins, formação erudita).
Figura 37: Outro acompanhamento na baixaria do acordeon em chote (exemplo coletado e transcrito da
gravação com o acordeonista Lacy Martins, formação erudita).
Figura 38: Outro acompanhamento na baixaria do acordeon em chote (exemplo coletado e transcrito da
gravação com o acordeonista Lacy Martins, formação erudita).
Portanto, apesar de possuir contornos, o padrão rítmico do chote se disfarça entre os
acompanhamentos dos instrumentos, ainda que a acentuação no segundo e quarto tempos
continue a ser a característica deste gênero.
No contrabaixo também pudemos averiguar esta variação de acentuações, visto que o
terceiro tempo muitas vezes é acentuado; no entanto, a acentuação do segundo e quarto tempos é
quase sempre respeitada. No chote o contrabaixo atua também, dentro do padrão rítmico, com
um padrão melódico, dominado pelos intervalos de quinta, mas geralmente invertidas (isto é, ao
invés do movimento
2
e Sol
2
, por exemplo, usa-se
2
e Sol
1
), além de algumas variações e de
frases eventuais, mas em maior número que na chamarra:
51
Figura 39: Acompanhamento de chote para contrabaixo (exemplo coletado e transcrito da gravação com o
contrabaixista Carlos de Cézaro).
Figura 40: Outro acompanhamento de chote para contrabaixo (exemplo coletado e transcrito da gravação
com o contrabaixista Carlos de Cézaro).
Entretanto, pudemos apreender, diante dos vários exemplos coletados e transcritos, o
seguinte padrão rítmico para o chote:
Figura 41: Padrão rítmico do chote.
Além do padrão rítmico acima, também exemplificamos as seguintes variações rítmicas,
utilizadas em trechos melódicos ou de acompanhamento:
52
Figura 42: Variações rítmicas do chote.
Em relação à harmonia utilizada no nero chote, ela é bastante simples e tonal, na
grande maioria das vezes em tonalidade maior. Ocorrem algumas modulações a tons vizinhos,
usando-se geralmente acordes de tima da dominante como ponte.
Quanto à melodia e às frases, usualmente, como na maioria dos gêneros gaúchos, são
dobradas em terças, sextas ou oitavas. Acordes em bloco tamm aparecem. O cromatismo
também tem espaço, sempre em notas de passagem, tanto na melodia quanto no
acompanhamento:
53
Figura 43: Harmonia e ornamentos usuais em chotes (exemplo coletado e transcrito da gravação com o
acordeonista Mano Júnior, formação popular).
No que se refere às características melódicas encontradas, damos destaque às
acentuações, às pausas, aos staccati e aos decrescendi:
54
Figura 44: Características melódicas em chotes, acentuações e pausas (exemplo coletado e transcrito da
gravação com o acordeonista Mano Júnior, formação popular).
Figura 45: Características melódicas em chotes, staccati e decrescendi (exemplo coletado e transcrito da
gravação com o violonista Maurício Marques, formação erudita).
O andamento da chote é bastante rápido, onde a semínima varia entre 120 a 160 bpm,
em compasso 4/4. Também por isso, sempre tem um caráter alegre, dançante, com letras
despreocupadas, muitas vezes jocosas. É um dos gêneros gaúchos mais tocados em bailes. Às
vezes é utilizado o pandeiro como instrumento de percussão; no entanto, a formação
instrumental mais usual é mesmo violão, acordeon e contrabaixo.
55
3.3.3. A vaneira
A vaneira também é o gênero musical gaúcho mais alegre e dançante. Sempre em
tonalidade maior. Quanto ao acompanhamento no violão, encontramos uma batida bem definida,
e constatamos que não se arpeja em vaneiras:
Figura 46: Batida de vaneira para violão (exemplo coletado e transcrito da gravação com o violonista Carlos
de Cézaro, formação popular).
No acordeon pudemos destacar variações de acompanhamento na baixaria, de caráter
improvisatório:
Figura 47: Acompanhamento na baixaria do acordeon em vaneira (exemplo coletado e transcrito da
gravação com o acordeonista Mano Júnior, formação popular).
No contrabaixo também encontramos variação no acompanhamento. Pudemos
destacar novamente a figuração tônica-quinta inferior, assim como no chote, mas agora sob outro
56
ritmo, mais gingado, o qual se alterna com a figuração de duas colcheias no segundo tempo do
compasso 2/4, onde os intervalos são o uníssono, ou a oitava, ou a quinta:
Figura 48: Acompanhamento de vaneira para contrabaixo (exemplo coletado e transcrito da gravação com
o contrabaixista Carlos de Cézaro).
Figura 49: Outro acompanhamento de vaneira para contrabaixo (exemplo coletado e transcrito da gravação
com o contrabaixista Carlos de Cézaro).
Figura 50: Outro acompanhamento de vaneira para contrabaixo (exemplo coletado e transcrito da gravação
com o contrabaixista Carlos de Cézaro).
Entretanto, pudemos apreender, diante dos vários exemplos coletados e transcritos, o
seguinte padrão rítmico para a vaneira:
57
Figura 51: Padrão rítmico da vaneira.
Além do padrão rítmico acima, também exemplificamos as seguintes variações rítmicas,
utilizadas em trechos melódicos ou de acompanhamento:
Figura 52: Variações tmicas da vaneira.
Em relação à harmonia utilizada em vaneiras, ela é bastante simples e tonal. Sempre em
tonalidades maiores, poucas vezes ocorrem modulações, e as dissonâncias muitas vezes são
empregadas utilizando uma nota espefica que é sustentada, passando por vários acordes, ou
então algumas notas de passagem.
Quanto à melodia e às frases, assim como no chote, geralmente são dobradas em terças,
sextas ou oitavas e muitas vezes acordes em bloco aparecem, repetidos por figurações de
semicolcheias em staccato. O cromatismo também tem espaço, sempre em notas de passagem,
tanto na melodia quanto no acompanhamento, porém, de maneira mais restrita que no chote:
58
Figura 53: Harmonia e ornamentos usuais em vaneiras (exemplo coletado e transcrito da gravação com o
acordeonista Mano Júnior, formação popular).
59
No que se refere às características melódicas encontradas, damos destaque às figurações
em semicolcheias em staccato, frases em semicolcheias, uso da figuração colcheia pontuada-
semicolcheia, uso do acompanhamento da melodia por baixo em semínimas, e frases arpejando
as notas do acorde:
Figura 54: Características melódicas em vaneiras, (exemplo coletado e transcrito da gravação com o
violonista Carlos de Cézaro, formação popular).
60
Figura 55: Características melódicas em vaneiras (exemplo coletado e transcrito da gravação com o
acordeonista Lacy Martins, formação erudita).
Pudemos também apreender uma harmonia um pouco mais elaborada, de utilização
erudita, de projeção folclórica, com algumas dissonâncias a mais e acordes de passagem
cromática:
61
Figura 56: Harmonia mais elaborada em vaneiras (exemplo coletado e transcrito da gravação com o
violonista Maurício Marques, formação erudita).
O andamento da vaneira é rápido, onde a semínima varia entre 90 a 110 bpm, em
compasso 2/4. Porém, apesar de não ser o nero mais rápido, é o de caráter mais alegre e
dançante, geralmente com letras jocosas ou de amor. Muitas vezes é utilizado o pandeiro como
instrumento de percussão. É o gênero gaúcho mais tocado nos bailes.
3.3.4. O chama
Já o chamamé é um gênero musical de caráter mais complexo. Pode ser alegre, rápido e
dançante; pode ser lento, romântico e melodioso; pode ser rápido, em tonalidade menor, tenso; e
também pode ser lento, em tonalidade menor, triste, um lamento. Usa-se tanto a tonalidade
maior quanto a menor, e também é usual ambas na mesma canção. Quanto ao acompanhamento
no violão, encontramos uma batida bem definida, bem como um arpejo:
Figura 57: Batida de chamamé para violão (exemplo coletado e transcrito da gravação com o violonista
Carlos de Cézaro, formação popular).
62
Figura 58: Arpejo de chamamé para violão (exemplo coletado e transcrito da gravação com o violonista
Carlos de Cézaro, formação popular).
No acordeon também encontramos um acompanhamento bem definido, com pouca
variação, mantendo sempre três semínimas por compasso 3/4:
Figura 59: Acompanhamento na baixaria do acordeon em chama (exemplo coletado e transcrito da
gravação com o acordeonista Mano Júnior, formação popular).
E é no contrabaixo que encontramos o acompanhamento mais usual para chamamé,
que é três senimas por compasso 3/4, sendo que a configuração é quase sempre tônica-terça-
quinta:
p i m a m i
63
Figura 60: Acompanhamento de chamamé para contrabaixo (exemplo coletado e transcrito da gravação
com o contrabaixista Carlos de Cézaro).
Porém, pode haver variação, em algumas oportunidades, muito embora a configuração
anterior seja amplamente utilizada:
Figura 61: Outro acompanhamento de chamamé para contrabaixo (exemplo coletado e transcrito da
gravação com o contrabaixista Carlos de Cézaro).
Entretanto, pudemos apreender, diante dos vários exemplos coletados e transcritos, o
seguinte padrão rítmico para o chamamé:
Figura 62: Padrão rítmico do chamamé.
Além do padrão rítmico acima, também exemplificamos as seguintes variações rítmicas,
utilizadas em trechos melódicos ou de acompanhamento:
64
Figura 63: Variações rítmicas do chamamé.
Em relação à harmonia utilizada em chamamés, apesar de tonal, tem uma maior
liberdade para dissonâncias, ainda que modulações sejam poucas.
Quanto à melodia e às frases, assim como os gêneros anteriores, geralmente são
dobradas em terças, sextas ou oitavas e muitas vezes acordes em bloco aparecem. O cromatismo
também tem espaço, sempre em notas de passagem, tanto na melodia quanto no
acompanhamento, de maneira corriqueira, pois, como as frases geralmente são rápidas, o
cromatismo de passagem serve como colorido e não “fere” a harmonia. A ênfase melódica
encontra-se nas acentuações no contratempo do primeiro e segundo tempo do compasso 3/4:
65
Figura 64: Harmonia e ornamentos usuais em chamamés (exemplo coletado e transcrito da gravação com
o acordeonista Mano Júnior, formação popular).
No que se refere às características melódicas encontradas, destacamos as acentuações
nos tempos fracos e ao cromatismo de passagem, bem como características de acompanhamento
em conjunto com a melodia, o que agrega mais movimento:
66
Figura 65: Características melódicas em chamamés, (exemplo coletado e transcrito da gravação com o
acordeonista Lacy Martins, formação erudita).
Pudemos também apreender uma harmonia um pouco mais elaborada no tocante a
dissonâncias, o que geralmente é característico em chamamés mais lentos, mais românticos, onde
também aparecem arpejos em acordes, bastante usuais neste gênero. Muitas vezes troca-se de
acorde no contratempo do segundo tempo do compasso, o que configura uma mudança acordal
no meio do compasso:
Figura 66: Harmonia mais elaborada em chamamés (exemplo coletado e transcrito da gravação com o
violonista Maurício Marques, formação erudita).
O andamento do chamamé é bastante variável, podendo ser lento ou rápido. Possui
raízes argentinas muito fortes, mas há muito tempo é utilizado no Rio Grande do Sul, onde
assumiu características específicas. É muito apreciado pelos acordeonistas, e o acordeon é o
instrumento mais utilizado para sua execução. Por sua maleabilidade de caráter, é muito
freqüentemente utilizado.
67
3.3.5. A rancheira
A rancheira é uma valsa campeira, uma valsa de galpão, de rancho. Geralmente alegre,
bastante rápida e dançante; mas também pode ser em tonalidade menor. Quanto ao
acompanhamento no violão, encontramos batidas bem definidas, com pouca variação, e sem a
utilização de arpejos, devido a sua velocidade:
Figura 67: Batida de rancheira para violão (exemplo coletado e transcrito da gravação com o violonista
Carlos de Cézaro, formação popular).
Figura 68: Outra batida de rancheira para violão (exemplo coletado e transcrito da gravação com o
violonista Carlos de Cézaro, formação popular).
Estas batidas abafadas no violão, bem como a baixaria em decrescendo, assim como os
muitos staccati na melodia, levam às expressões “compasso picado” e “compasso marcado”,
tradicionalmente atribuídas à rancheira.
No acordeon também encontramos um acompanhamento bem definido, com pouca
variação, geralmente com o segundo e o terceiro tempo do compasso 3/4 em decrescendo, com
alguma liberdade de cromatismo de passagem, de caráter improvisatório:
68
Figura 69: Acompanhamento na baixaria do acordeon em rancheira (exemplo coletado e transcrito da
gravação com o acordeonista Mano Júnior, formação popular).
No contrabaixo encontramos a configuração tônica-terça-quinta, semelhante à do
chamamé; porém, além de mais rápida, tem sempre o segundo e o terceiro tempo em staccato no
primeiro exemplo, e uma variação do segundo tempo no segundo exemplo, com o terceiro
tempo geralmente uma oitava abaixo:
Figura 70: Acompanhamento de rancheira para contrabaixo (exemplo coletado e transcrito da gravação
com o contrabaixista Carlos de Cézaro).
Figura 71: Outro acompanhamento de rancheira para contrabaixo (exemplo coletado e transcrito da
gravação com o contrabaixista Carlos de Cézaro).
69
O padrão rítmico da rancheira é confuso. São vários padrões, na verdade; ele é variável.
Entretanto, reservamos os vários padrões rítmicos utilizados na melodia às variações rítmicas,
figura 73, pois há um padrão que se destaca, que está presente sempre nas batidas do violão ou na
baixaria do acordeon ou na levada do contrabaixo. Portanto, pudemos apreender, diante dos
vários exemplos coletados e transcritos, o seguinte padrão rítmico para a rancheira:
Figura 72: Padrão rítmico da rancheira.
Além do padrão rítmico acima, também exemplificamos as seguintes variações rítmicas,
utilizadas, de maneira bem variada, em trechos melódicos ou de acompanhamento:
Figura 73: Variações rítmicas da rancheira.
A harmonia utilizada em rancheiras é muito simples, uma das mais simples dentre os
gêneros. Geralmente explora a subdominante, além da dominante. Praticamente não há
modulações. O cromatismo encontra espaço somente por causa da velocidade das frases e seu
caráter improvisatório e, ainda assim, pouco aparece.
Quanto à melodia e às frases, também são geralmente dobradas em terças, sextas ou
oitavas e muitas vezes acordes em bloco aparecem. Uma característica marcante das rancheiras
são os staccati e as notas repetidas:
70
Figura 74: Harmonia e ornamentos usuais em rancheiras (exemplo coletado e transcrito da gravação com o
acordeonista Mano Júnior, formação popular).
No que se refere às características melódicas encontradas, há uma variação quanto às
acentuações, o uso marcante de staccati e o jogo das notas repetidas, que muitas vezes
formam padrões melódicos, sempre numa harmonia muito simples:
71
Figura 75: Características melódicas em rancheiras, (exemplo coletado e transcrito da gravação com o
acordeonista Lacy Martins, formação erudita).
Figura 76: Características melódicas em rancheiras (exemplo coletado e transcrito da gravação com o
violonista Maurício Marques, formação erudita).
O andamento da rancheira é um dos mais rápidos dentre os gêneros, estando sempre
por volta de 180 bpm a semínima, num compasso 3/4. É bastante utilizada em bailes por sua
velocidade e por seu compasso “marcado, “picado”.
3.3.6. A milonga
A milonga é o gênero gauchesco mais desenvolvido, possui algumas variantes, e é
amplamente utilizada. A milonga, então, é um gênero que se divide em sub-gêneros, as variantes.
No entanto, estas variantes o são um consenso entre os músicos, inclusive dentre os músicos
colaboradores deste trabalho. Portanto, das três variantes encontradas durante nossa coleta, uma
ou outra não foi mencionada por um ou outro sico colaborador. Exporemos os materiais
encontrados, mesmo que faltem dados de todos os instrumentos aqui abordados para uma ou
outra variante.
72
3.3.6.1. A milonga pampeana
A milonga pampeana é a milonga lenta, em compasso 4/4. Pode ser rápida também,
mas sempre em 4/4. Pode ser em tom menor, característico, ou também em tom maior. No
violão, encontramos uma batida bem definida para este tipo de milonga, que é muito semelhante
à da chamarra, embora noutro compasso e andamento:
Figura 77: Batida de milonga pampeana para violão (exemplo coletado e transcrito da gravação com o
violonista Carlos de Cézaro, formação popular).
Para o mesmo tipo de milonga encontramos alguns arpejos para violão. Aqui notamos
sua principal característica, que é a linha do baixo, ou, no caso do violão, dos bordões:
Figura 78: Arpejo de milonga pampeana para violão (exemplo coletado e transcrito da gravação com o
violonista Carlos de Cézaro, formação popular).
p i m p i m p
73
Figura 79: Outro arpejo de milonga pampeana para violão, mais rápido e com variação na linha de baixo
(exemplo coletado e transcrito da gravação com o violonista Carlos de Cézaro, formação popular).
Figura 80: Outro arpejo de milonga pampeana para violão, com variação na linha de baixo (exemplo
coletado e transcrito da gravação com o violonista Carlos de Cézaro, formação popular).
p i m a
p i m p i m p
74
Figura 81: Outro arpejo de milonga pampeana para violão, em tonalidade maior (exemplo coletado e
transcrito da gravação com o violonista Carlos de Cézaro, formação popular).
Esta é a milonga mais utilizada no Rio Grande do Sul, também é chamada de milonga
tradicional ou simplesmente milonga por ser a mais difundida.
No acordeon também encontramos um acompanhamento bem definido, para a
milonga pampeana, juntamente com características harmônicas e medicas, num trecho musical.
Além da tonalidade de Mi menor, a mais característica talvez pela facilidade de se executar os
bordões ao violão, o instrumento mais utilizado para tocar este gênero (ou sub-gênero, no caso
da milonga pampeana) –, a seqüência harmônica utilizada é caracteristiquíssima, um clic
harmônico. De característica melódica, a melodia lenta é bastante usual:
p i m p i m p
75
Figura 82: Trecho musical do acordeon em milonga pampeana (exemplo coletado e transcrito da gravação
com o acordeonista Mano Júnior, formação popular).
No contrabaixo encontramos a configuração mais representativa da milonga pampeana:
Figura 83: Acompanhamento de milonga pampeana para contrabaixo (exemplo coletado e transcrito da
gravação com o contrabaixista Carlos de Cézaro).
Contudo, há algumas variações:
Figura 84: Outro acompanhamento de milonga pampeana para contrabaixo (exemplo coletado e transcrito
da gravação com o contrabaixista Carlos de Cézaro).
76
Figura 85: Outro acompanhamento de milonga pampeana para contrabaixo, em tonalidade maior
(exemplo coletado e transcrito da gravação com o contrabaixista Carlos de Cézaro).
Figura 86: Outro acompanhamento de milonga pampeana para contrabaixo, em tonalidade maior
(exemplo coletado e transcrito da gravação com o contrabaixista Carlos de Cézaro).
O padrão rítmico da milonga pampeana é bastante claro e característico:
Figura 87: Padrão rítmico da milonga pampeana.
Além do padrão rítmico acima, também exemplificamos as seguintes variações rítmicas,
utilizadas em trechos melódicos ou de acompanhamento:
Figura 88: Variações rítmicas da milonga pampeana.
A harmonia utilizada em milongas pampeanas, geralmente não foge do clichê
harmônico menor (já demonstrado) e maior (tonal, com a terminação V, IV, iii, ii, I). O
cromatismo encontra espaço como fator modulatório, ou dramático em algumas ocasiões.
77
Quanto à melodia e às frases, também são geralmente dobradas em terças, sextas ou
oitavas e muitas vezes acordes em bloco aparecem. A marca da milonga pampeana é a acentuação
das duas semínimas pontuadas num compasso 4/4 não só no acompanhamento, mas também na
melodia, embora sejam também bastante usuais os acentos no primeiro e terceiro tempos.
Pudemos destacar o uso de harmonia mais rebuscada:
Figura 89: Trecho musical mais elaborado em milonga pampeana (exemplo coletado e transcrito da
gravação com o violonista Maurício Marques, formação erudita).
Assim, pudemos analisar algumas características deste sub-gênero, a milonga pampeana,
que é muitíssimo utilizada no Rio Grande do Sul, executada principalmente pelo violão. Além das
atribuições musicais, a milonga pampeana também é utilizada para amadrinhar um declamador, isto
é, servir de fundo musical para um gaúcho recitar uma poesia (poema gaúcho). A milonga
pampeana, tocada lenta e em tonalidade menor, é bastante melancólica, com seus bordões
repetindo incessantemente. Porém, mais rápida e em tonalidade maior, é porta-voz de inúmeras
canções gaúchas. A milonga pampeana é um dos gêneros musicais (ainda que a consideremos um
sub-gênero) mais tocados e utilizados no Rio Grande do Sul.
3.3.6.2. A milonga arrabaleira
A milonga arrabaleira, também conhecida como milongão, tem um caráter forte, por suas
acentuações e vigor. Tem compasso 2/4, é rápida, e pode ser encontrada em tonalidade menor
78
ou maior. Se menor, é tensa, densa. Se maior, torna-se mais leve, porém, suas características
rítmicas permanecem.
Sua batida, ao violão, é vigorosa:
Figura 90: Batida de milonga arrabaleira para violão (exemplo coletado e transcrito da gravação com o
violonista Carlos de Cézaro, formação popular).
Nas partes mais calmas, o violão executa arpejo semelhante ao já mencionado na
chamarra e no chote:
Figura 91: Arpejo de milonga arrabaleira para violão (exemplo coletado e transcrito da gravação com o
violonista Carlos de Cézaro, formação popular).
Na baixaria do acordeon, a milonga arrabaleira se configura assim:
a a
p
m p i m
79
Figura 92: Acompanhamento na baixaria do acordeon em milonga arrabaleira (exemplo coletado e
transcrito da gravação com o acordeonista Lacy Martins, formação erudita).
Dum trecho musical do acordeon, pudemos destacar a seqüência harmônica básica
(semelhante à da milonga pampeana), seu padrão rítmico e variações na baixaria, além das
características melódicas importantes, a saber, os staccati, as acentuações e as notas repetidas:
80
Figura 93: Trecho musical do acordeon em milonga arrabaleira (exemplo coletado e transcrito da gravação
com o acordeonista Mano Júnior, formação popular).
Também pudemos analisar mais dois trechos musicais, de harmonia mais rebuscada. O
primeiro, em tonalidade maior, no violão; o segundo, em tonalidade menor, no acordeon:
81
Figura 94: Trecho musical do violão em milonga arrabaleira (exemplo coletado e transcrito da gravação
com o violonista Maurício Marques, formação erudita).
82
Figura 95: Trecho musical do acordeon em milonga arrabaleira (exemplo coletado e transcrito da gravação
com o acordeonista Lacy Martins, formação erudita).
No contrabaixo, o acompanhamento é bem definido:
Figura 96: Acompanhamento de milonga arrabaleira para contrabaixo (exemplo coletado e transcrito da
gravação com o contrabaixista Carlos de Cézaro).
83
No entanto, nas partes mais calmas, quando o violão executa arpejos, o
acompanhamento do contrabaixo é idêntico ao da chamarra na mesma situação.
O padrão rítmico da milonga arrabaleira é o seguinte:
Figura 97: Padrão rítmico da milonga arrabaleira.
Além do padrão rítmico acima, também exemplificamos as seguintes variações rítmicas,
utilizadas em trechos melódicos ou de acompanhamento:
Figura 98: Variações rítmicas da milonga arrabaleira.
Assim, pudemos analisar algumas características do milongão gaúcho. É muito utilizado
em tonalidade menor, por seu caráter forte e vigor, mas atualmente vem ganhando força em
tonalidade maior, com teor um pouco mais suave, agregando uma tmica diferente às canções
gaúchas.
3.3.6.3. A milonga corraleira
Das três variantes de milonga abordadas neste trabalho, a milonga corraleira é a menos
utilizada. Por este motivo também foi a menos lembrada pelos instrumentistas colaboradores
deste trabalho. Entretanto, ainda que os exemplos deste sub-gênero sejam poucos, a seguir
iremos analisar algumas de suas características.
Na baixaria do acordeon, a milonga corraleira revela seu padrãotmico e linha de baixo
característicos, que se assemelha ao da milonga pampeana, mas em 2/4, mais rápido, com outro
caráter:
84
Figura 99: Acompanhamento na baixaria do acordeon em milonga corraleira (exemplo coletado e transcrito
da gravação com o acordeonista Lacy Martins, formação erudita).
E, do seguinte trecho musical para violão, pudemos destacar uma harmonia mais
estilizada, embora a tradicional seja a mesma seqüência das milongas abordadas anteriormente,
em tonalidade menor. Também pudemos observar características melódicas, como as figurações
em semicolcheias, algumas acentuações, o uso do padrão rítmico ou linha de baixo característico,
e a utilização de figurações em tercinas, também usuais nas outras milongas:
Figura 100: Trecho musical do violão em milonga corraleira (exemplo coletado e transcrito da gravação
com o violonista Maurício Marques, formação erudita).
O padrão rítmico da milonga corraleira é o seguinte:
Figura 101: Padrão rítmico da milonga corraleira.
Além do padrão rítmico acima, também exemplificamos as seguintes variações rítmicas,
utilizadas em trechos melódicos ou de acompanhamento:
85
Figura 102: Variações rítmicas da milonga corraleira.
Assim, pudemos analisar algumas características da milonga corraleira, ainda que com
poucos exemplos. É utilizada geralmente em tonalidade menor, dando ênfase às frases rápidas,
em semicolcheias, sempre usando o padrão rítmico ou linha de baixo característico.
3.3.7. A polca paraguaia
A polca paraguaia tem compasso 6/8, e geralmente possui um andamento bastante
rápido, variando entre 120 e 160 bpm a colcheia. Usa-se tanto a tonalidade menor quanto a
maior. A nomenclatura polca paraguaia, além de revelar a procedência do gênero, se fez necessária
para diferenciá-lo do nero polca, também chamado de polca européia, que tem compasso 2/4 e
acentuações nos contratempos, amplamente utilizado pelos imigrantes alemães e italianos que
vieram para o Rio Grande do Sul, e que não faz parte do escopo deste trabalho. Quanto ao
acompanhamento no violão, encontramos uma batida um arpejo bem definidos:
Figura 103: Batida de polca paraguaia para violão (exemplo coletado e transcrito da gravação com o
violonista Carlos de Cézaro, formação popular).
86
Figura 104: Arpejo de polca paraguaia para violão (exemplo coletado e transcrito da gravação com o
violonista Carlos de Cézaro, formação popular).
O arpejo se aplica a passagens mais calmas, ou em algumas cadências. A batida é
executada por quase todo o tempo, caracterizando o gênero. Ambas guardam semelhança com o
chamamé; porém, o chamamé tem compasso 3/4 e é mais lento que a polca paraguaia, além de
outras diferenças que a seguir serão esclarecidas.
No acordeon também encontramos um acompanhamento bem definido, com pouca
variação:
Figura 105: Acompanhamento na baixaria do acordeon em polca paraguaia (exemplo coletado e transcrito
da gravação com o acordeonista Mano Júnior, formação popular).
No contrabaixo encontramos a configuração tônica-terça-quinta, semelhante à do
chamamé e da rancheira; porém, em compasso 6/8, esta figuração ganha novo sentido rítmico:
p
i m a m i
87
Figura 106: Acompanhamento de polca paraguaia para contrabaixo (exemplo coletado e transcrito da
gravação com o contrabaixista Carlos de Cézaro).
Também encontramos a seguinte variação, tanto em acentuação quanto em efeito:
Figura 107: Outro acompanhamento de polca paraguaia para contrabaixo (exemplo coletado e transcrito da
gravação com o contrabaixista Carlos de Cézaro).
O padrão rítmico da polca paraguaia é bem definido, se levarmos em conta seu
acompanhamento ao violão e ao acordeon:
Figura 108: Padrão rítmico da polca paraguaia.
Entretanto, variações deste padrão rítmico e figurações contrastantes, peculiares a este
gênero e que serão explicadas a seguir também ganham importância:
88
Figura 109: Variações tmicas da polca paraguaia.
Chamamos atenção, então, a uma peculiaridade muito importante deste gênero,
exemplificada nas figurações binárias das variações rítmicas acima e que possibilita uma
diferenciação maior com outros gêneros, principalmente o mais aproximado da polca paraguaia,
o chamamé. Em muitas ocasiões, o acompanhamento ternário do compasso 6/8, dividido pela
polca paraguaia em três semínimas (ou semínima, colcheia ligada em colcheia, e semínima,
respeitando a divisão do 6/8), serve de fundo para uma melodia com divisão quase que binária,
utilizando semínimas pontuadas como sendo semínimas e colcheias pontuadas como se fossem
colcheias. O exemplo a seguir, que ilustra as características melódicas da polca paraguaia, melhor
explica esta questão:
89
Figura 110: Características melódicas em polcas paraguaias, (exemplo coletado e transcrito da gravação
com o acordeonista Lacy Martins, formação erudita).
Então, como pudemos averiguar, trata-se, em algumas ocasiões, de uma melodia binária
sobre um acompanhamento ternário, ou seja, uma sobreposição rítmica.
Em relação à harmonia, aquela utilizada em polcas paraguaias é muito simples, e quanto
à tonalidade, pode ser maior ou menor. A principal característica do nero é a sua rítmica, ou
sua sobreposição, e em vista disso a harmonia se mantém bastante simples. É bastante utilizado o
jogo rítmico com esta sobreposição, utilizando-o, deixando-o de utilizar, e isto de diversas
maneiras. Não é um gênero utilizado em larga escala no Rio Grande do Sul; porém, sua presença
é sempre acompanhada com bastante atenção, pois suas peculiaridades saltam aos ouvidos.
Possui um caráter forte em tonalidade menor, e tanto em menor quanto em maior acrescenta um
flutuar tmico à melodia, devido à sobreposição já mencionada.
90
3.3.8. O bugio
O bugio é o único gênero musical criado no Rio Grande do Sul (diz-se que também o
contrapasso, um tanto menos peculiar e menos usual). Possui um padrão rítmico muito definido
em compasso 2/4 que é mantido sempre, ainda que o contrabaixo atue como resposta rítmica.
Sua harmonia é a mais simples de todos os neros gauchescos. Diz-se que a idéia do padrão
rítmico provém de uma tentativa de imitar, no fole da gaita, o ronco do bugio, uma espécie de
macaco nativa do estado. O padrão tmico está presente na batida do violão, que quase nunca
varia, e não há a presença de arpejos neste instrumento:
Figura 111: Batida de bugio para violão (exemplo coletado e transcrito da gravação com o violonista Carlos
de Cézaro, formação popular).
Esta batida, repetida do início ao fim de um bugio, é sua marca registrada e
inconfundível.
No acordeon também encontramos este padrão, que além de definir o
acompanhamento, muitas vezes constitui a rítmica da melodia. O jogo de fole é importantíssimo
para que a imitão do ‘ronco do bugioobtenha êxito, e é imprescindível na execução do gênero
bugio. E quanto à harmonia, é a mais simples possível, utiliza quase sempre exclusivamente os
acordes de tônica e de dominante de uma tonalidade, que é sempre maior:
91
Figura 112: Acompanhamento na baixaria do acordeon e trecho musical em bugio (exemplo coletado e
transcrito da gravação com o acordeonista Mano Júnior, formação popular).
No contrabaixo encontramos uma rítmica que se configura a partir de resposta ao padrão
rítmico vigente. Há variação apenas das notas, geralmente em quintas ou oitavas, mas o padrão da
linha do contrabaixo é sempre mantido:
Figura 113: Acompanhamento de bugio para contrabaixo (exemplo coletado e transcrito da gravação com o
contrabaixista Carlos de Cézaro).
92
Figura 114: Outro acompanhamento de bugio para contrabaixo (exemplo coletado e transcrito da gravação
com o contrabaixista Carlos de Cézaro).
Como já se mostrou evidente, o padrão rítmico do bugio é o seguinte:
Figura 115: Padrão rítmico do bugio.
Além do padrão rítmico acima, também exemplificamos as seguintes variações rítmicas,
utilizadas em trechos melódicos ou de acompanhamento:
Figura 116: Variações rítmicas do bugio.
Algumas cadências, sempre bastante simples e estritamente tonais e sem modulações,
podem aparecer. O acompanhamento às vezes comporta-se como resposta ao ritmo da melodia e
do padrão rítmico. A melodia baseia-se quase sempre na rítmica vigente. Staccati podem ser
utilizados em algumas notas para evidenciar o padrão. No entanto, o bugio é o gênero gaúcho
que menos tem variação melódica, harmônica e rítmica, como podemos observar adiante:
93
Figura 117: Harmonia e trecho musical em bugios (exemplo coletado e transcrito da gravação com o
acordeonista Mano Júnior, formação popular).
Um bugio também pode ser tocado ao violão solo, no qual a melodia e o
acompanhamento se fundem ainda mais. Contudo, a rítmica característica do bugio também
prevalece:
94
Figura 118: Caractesticas melódicas em bugios (exemplo coletado e transcrito da gravação com o
violonista Maurício Marques, formação erudita).
Portanto, o bugio, único gênero musical nascido no Rio Grande do Sul (ainda que
muitos citem o contrapasso, gênero pouco peculiar e pouco difundido, pois se assemelha muito
com a polca européia, mas tocada em andamento mais lento), mostra muita simplicidade na
harmonia e pouquíssima variação rítmica, além de melodia geralmente vinculada ao padrão
rítmico. Ainda assim, como este padrão é bastante peculiar, decidiu-se por inserir o bugio neste
trabalho.
3.4. Considerações finais
Como pudemos analisar, os gêneros musicais gaúchos possuem materiais peculiares,
especialmente quanto ao ritmo, mas também em cada conjunto de elementos que definem um
determinado gênero. Cada um dos gêneros possui um conjunto de regras específico, que lhe dão
forma.
Algumas características são gerais, como a harmonia tonal e a utilização de intervalos de
terça, sexta e oitava, além de acordes em blocos, para dobrar a linha melódica. Além disso, a
harmonia e a melodia são sempre bastante simples, visto que modulações são raras e a melodia
tem extensão curta.
No entanto, cada gênero é um pequeno universo, tem um caráter diverso, característico.
O andamento, a tonalidade, o padrão rítmico, os clichês harnicos, as características melódicas,
cada elemento contribui para a ambientação que cada gênero oferece.
Porém, o elemento que realmente nos permite diferenciar um gênero de outro é o
ritmo. Cada gênero possui um padrão rítmico definido e característico, que irá gerar variações de
95
acompanhamento, de rítmica melódica, enfim, é o ritmo que o sabor de cada gênero, que
define cada um, que os representa, que os diferencia. A colocação das acentuações, a divisão
rítmica, os staccati, a localização rítmica dos decrescendi provenientes da execução musical, tudo isso
são fatores rítmicos que em última instância revelam as características mais peculiares da música
gaúcha.
Portanto, com as transcrições acima expostas e analisadas, intentamos identificar várias
peculiaridades musicais gauchescas, a fim de utilizá-las numa composição contemporânea. Além
disso, consideramos importante tal feito, visto que é escasso o material sobre música gaúcha,
inclusive no Rio Grande do Sul. Apesar de não termos realizado um estudo sobre todos os
gêneros musicais utilizados no estado, cremos que o nosso trabalho possa servir como incentivo
a estudos futuros mais amplos.
Das transcrições, pudemos destacar que o detalhamento foi nossa tônica e que, dessa
forma, almejamos apreender as principais características de cada gênero estudado.
Procuramos exemplificar da melhor maneira possível as peculiaridades de cada gênero,
utilizando além de exemplos de batidas e arpejos de violão, levadas de contrabaixo e
acompanhamentos da baixaria do acordeon exemplos de trechos musicais executados pelo
violão ou pelo acordeon, pois muitas vezes é necessário ter uma visão mais geral do todo musical
de cada gênero para se perceber e compreender algumas características.
Lembramos que, dadas as proporções deste trabalho, foi necessária a delimitação dos
gêneros a serem estudados, dos instrumentos a serem abordados, e dos instrumentistas a serem
entrevistados. Isto pode gerar alguma divergência ou insatisfação, pois o que é importante, ou
verdade, para um músico pode não ser para outro, e alguma característica de algum gênero ou
outro pode ter sido deixada de lado.
96
Do gesto
A metodologia composicional das obras compostas constantes neste trabalho, além de
basear-se nos elementos gauchescos coletados, descritos no capítulo anterior, tem no conceito de
gesto musical sua estruturação teórica, antes mesmo que o estudo e a aplicação das técnicas
compositivas contemporâneas escolhidas. Trata-se de uma motivação estética minha, que se
desenvolve na direção do gesto em oposição ao motivo, considerando, em linhas gerais, o gesto
como uma sonoridade ou um movimento sonoro que significa, e o motivo como notas ou construções com
simples parâmetros, guiando, assim, o processo composicional através de um pensamento gestual, a
condução ou interação gestual. Evidentemente, estes conceitos, de gesto e de motivo, serão a seguir
detalhados, dada a importância dos mesmos para a estruturação teórica desta dissertação e para a
orientação da metodologia aplicada às composições.
4.1 - Definição instrumental de gesto musical
A abordagem do conceito de gesto musical que fazemos aqui é aquela suficiente apenas
para instrumentalizá-lo neste contexto delineado não mais do que este recorte específico ,
pois escaparia ao escopo deste trabalho, visto que tal conceito tem sido elaborado, pensado e
discutido, em maior ou menor grau, em vários rculos acadêmicos diferentes: no campo da
composição, da cognição, da performance, entre outras áreas.
Uma autora que aborda este conceito, mais especificamente em seu livro O que é gesto
musical? (1992) é Bernadete Zagonel. De início, ela recorre à origem etimológica da palavra gesto,
para a partir de então buscar a definição de gesto musical. Segundo ela:
Desde o século XV ela [a palavra gesto] possui o sentido de uma ação voluntária, do fazer”. Seria,
portanto, desprovido de sensações ou de sentimentos. (...) Em nossos dias seu significado se ampliou, e dele
faz parte a expressão de um sentimento interior do indivíduo. O gesto revela e exprime. Vê-se nele não só
uma ação física, mas uma intenção. No dicionário Aurélio é definido assim: “movimento do corpo, em
especial da cabeça e dos braços, ou para exprimir idéias ou sentimentos, ou para realçar a expressão
(ZAGONEL, 1992, p. 11-12)”.
Portanto, diferentemente de um simples movimento’, que é um deslocamento, ato de
mover-se, mudança de posição no espaço em função do tempo, em relação a um sistema de
referência e que não tem nenhum sentido de expressão em si, o ‘gesto’ tem em si um objetivo
preciso, de produzir ou simbolizar (Ibid., p. 12).
97
A autora aborda diferentes categorias de gesto, como os gestos sicos, os gestos mentais,
os gestos instrumentais, os gestos vocais, os gestos do regente, do compositor, etc., e
especialmente duas delas mostram-se pertinentes a este trabalho. Na definição de gesto mental,
Zagonel descreve:
O gesto mental está sempre presente no músico, enquanto compositor, ou intérprete. O compositor, ao
conceber uma idéia musical, constrói a imagem do movimento sonoro e pode prever o gesto instrumental
necessário à sua concretização. O intérprete, a partir da leitura da partitura, imagina o movimento sonoro
desejado, e associa o gesto físico necessário à emissão desse som (Ibid., p. 19).
Apesar de abordar simultaneamente duas categorias de gesto, o mental e o físico
necessário para a execução daquele, aparece nesta citação a idéia de gesto como a imagem de um
evento sonoro, a condensação de uma sonoridade.
Já quanto ao gesto do compositor, e relacionando-o com o gesto mental, Zagonel
acrescenta:
O gesto do compositor confunde-se com o que denominei anteriormente de gesto mental, entendido como
movimento sonoro. Nesse sentido, o compositor manipula gestos, que são na realidade “movimentos
sonoros” presentes anteriormente em seu pensamento, e os concretiza em forma de partitura. Ordena uma
série de gestos, coloca-os um ao lado do outro, os sobrepõe e dissocia (Ibid., p. 35-36).
Portanto, podemos apreender destas afirmações que o gesto musical, para autora, é um
movimento sonoro, uma sonoridade presente anteriormente no pensamento do compositor, que é
manipulado e concretizado na partitura. Além disso, no decorrer de seu livro, deixa claro que,
para ela, o gesto não é só um movimento, pois traz em si uma significação, uma intenção precisa:
o gesto quer comunicar; os gestos comunicam as intenções estéticas e expressivas do artista,
indicando que o gesto musical é uma sonoridade que significa.
***
Outro autor a buscar na etimologia do termo gesto um ponto de partida é André de Souza.
Em sua dissertação, Ação e significação: em busca de uma definição de gesto musical (2004), o autor intenta
definir tal conceito e, para tanto, parte de uma investigação etimológica:
Gest- antepositivo do latim gero andar com, trazer consigo, trazer em cima do corpo; produzir, criar;
encarregar-se voluntariamente de; executar, fazer’, donde gestus movimento; atitude, (...) esgares, caretas,
visagens’ (HOUAISS apud. SOUZA, 2004, p. 40)
98
Isto feito, o autor prossegue:
O significado que está na origem de “gesto” é, pois, o de uma ação que controla, sustenta, mantém, ou
mesmo produz algo voluntariamente. O sentido atual de “gesto” é de fato o de um movimento feito com o
corpo que é usado na comunicação humana, seja para representar um dado da realidade, seja para transmitir
uma intenção ou estado de espírito. Porém, a intenção está de alguma forma ligada à idéia de controle ou de
produção, sentidos presentes na origem da palavra. Podemos resumir, portanto, os múltiplos significados da
palavra “gesto” como uma “ação que revela uma intenção” ou um “movimento que significa” (SOUZA,
2004, p.40).
Para resumir esta investigação etimológica, o autor afirma que o gesto é um conceito que
apresenta duas faces complementares: de um lado é um movimento, uma ão intencional; de
outro, opera um processo de significação a partir da forma que nele percebemos. Assim, ele opta
por basear a sua fundamentação teórica do gesto musical nestes dois aspectos: movimento e
significação. O movimento que ele considera, entretanto, não é o movimento de um objeto real,
físico, mas antes a sensação de movimento presente nas estruturas sonoras. Da mesma maneira, a
significação é vista como a emergência de organizações sintáticas a partir do movimento sonoro.
Assim a especificidade de “musical” é garantida para o termo gesto (Ibid., p. 41).
Portanto, assim como para Zagonel, para Souza o gesto musical é um movimento sonoro que
significa. Nas suas palavras:
O gesto musical é uma forma percebida em um evento realizado num espaço nico (um espaço formado
pelas dimensões do campo perceptivo, que correspondem aos parâmetros musicais) cuja unidade sua
capacidade de ser percebida como uma totalidade, sua Gestalt é responsável pela articulação e coesão das
idéias musicais (Ibid., p. 86-87).
Uma outra possível conceitualização para gesto musical que este trabalho apresenta é a
seguinte:
Um movimento no campo perceptivo, percebido através da variação de um ou mais parâmetros musicais e
da permanência de outros, que apresenta uma forma reconhecível, a qual, no processo de significação
musical, cumpre a dupla função de dar forma às unidades sintáticas do discurso (e assim dar sentido às
estruturas musicais, evidenciando sua direcionalidade potencial) e de atuar como signo nos possíveis
processos de representação que ocorrem na música, incluindo a expressão de estados psicológicos e
modalidades (Ibid., p. 154-155).
Assim o autor conceitua gesto musical, muito embora não julgue definitiva sua
conceitualização. Como visto, esta não difere das idéias de Zagonel, já expostas. Um movimento
musical que significa. E assim definimos e utilizamos, para os propósitos deste trabalho, o gesto
musical. Como um movimento sonoro, uma unidade ou uma sonoridade, que significa, que
99
comunica as intenções estéticas e expressivas do artista, que articula e torna coesa as idéias
musicais.
***
E outro trabalho relevante para os propósitos desta dissertação é a dissertação O gesto
musical através do ma: uma abordagem alternativa da forma na composição musical (2008), de Marcell
Steuernagel. E, assim como o presente trabalho, de pronto aponta para a devida delimitação da
definição buscada ao gesto musical, pois também trata de uma definição instrumental, sem
pretender uma generalização sistemática do conceito (STEUERNAGEL, 2008, p. 43). O autor
não chega a uma definição estrita de que é o gesto, no entanto, nos traz idéias importantes
conquanto a estruturação musical através do gesto. O trabalho de Steuernagel postula o seguinte:
Compreende-se agora, a partir da conceituação desenvolvida até aqui, que uma rede de interações entre
elementos é o que confere estrutura a um gesto musical. No processo de composição, porém, não se trata
apenas de gestos individuais, e tampouco se trabalha com um gesto por vez. Do mesmo modo como dentro
de uma configuração se estabelecem relações entre elementos, acontece também interação entre
agrupamentos de relações – em outras palavras, entre gestos. É necessário, portanto, criar a possibilidade de
tratar um gesto como uma unidade, ou agrupamento, que possibilite um olhar mais geral da composição na
medida em que se vislumbra as interações entre gestos diferentes na peça (Ibid., p. 43).
Assim, encontramos na citação acima uma metodologia composicional com o
pensamento gestual, ou seja, manipular elementos para estruturar gestos e manipular gestos para
estruturar a composição em sua totalidade. Portanto, assim definimos a motivação estética para
os nossos processos composicionais: a condução ou interação gestual.
Dois autores importantes que abordam o conceito de gesto musical são Mark Sullivan e
Trevor Wishart. Estes integram o corpo do trabalho e as idéias de Steuernagel. Em uma
passagem importante, Sullivan afirma: “O gesto ajuda a atrair a atenção do respondente para
algumas coisas e para longe de outras” (SULLIVAN, 1984, p. 39).
Ao citar esta mesma passagem, Steuernagel acrescenta:
Visto deste prisma, ele [o gesto] se torna uma ferramenta essencial para direcionar a atenção do ouvinte na
condução deste através da peça que se desenrola. Negligenciar a importância do gesto é omissão que
aumenta o risco de uma “escuta desgovernada” por parte do ouvinte. O compositor que se exime de
controlar, até o limite de sua capacidade, esta escuta através da condução gestual negligencia o aspecto
talvez mais importante da música: o reconhecimento da intenção e direcionamento de seus esforços
criativos (STEUERNAGEL, 2008, p. 48).
100
Portanto, a condução ou interação gestual, além de configurar nossa motivação estética, é
o modo pelo qual intentamos assegurar a atenção do ouvinte, a fim de que este reconheça, na
medida do possível, a intenção e o direcionamento de nossos esforços criativos.
E, ainda quanto à condução ou interação gestual, o autor sugere que um olhar
arquitetônico mais amplo talvez possa contribuir, neste caso, com a idéia de um processo de
‘construção com gestos’, em vez de construção com simples parâmetros (Ibid., p. 55-56). Nesta
direção, Wishart aponta que:
Na prática, portanto, vários nódulos importantes na arquitetura musical são estabelecidos em lugares em
que, por exemplo, transformações cruciais do som se materializam, ou onde uma estrutura gestual específica
é escolhida (WISHART, 1996, p.123)
Assim, um processo criativo comprometido com as diretrizes aqui propostas encontra
suporte, sem perder o olhar mais abrangente, no que se refere à forma musical em si. Construir
com gestos musicais, conduzi-los, fazê-los interagir no transcorrer das peças, esta é a motivação
estética do presente trabalho.
No entanto, ainda que já tenhamos definido, para os propósitos deste trabalho, o
conceito de gesto musical, o trabalho de Steuernagel contém mais detalhes, mais características
do gesto musical que nos são pertinentes.
Steuernagel propõe reconfigurar gestos musicais, ou seja, manipulá-los, alterando-os,
elaborando-os, desenvolvendo-os de maneira a contemplar um discurso, um transcorrer musical.
Segundo Sullivan:
Se o componente que distingue [o gesto] é um pulo ascendente, então o tamanho do intervalo pode variar.
No tocante à configuração, é mais importante que seja um pulo ascendente, e não qual é o pulo ascendente
(SULLIVAN, 1984, p. 62).
Steuernagel sugere transformações gestuais, e não apenas de gestos, mas entre gestos,
sobrepondo-os, ligando-os em seqüência ou dividindo-os em partes, por exemplo. Além disso,
segundo o autor, através da manipulação e, de um ponto de vista mais radical, da própria
descaracterização de um gesto, também é possível gerar-se um gesto completamente novo.
Neste caso, o compositor precisa ter o discernimento de tratar o gesto resultante como tal. É
possível recortar gestos. Na música espaço para estes fragmentos, desde que apoiados por
outro gesto (STEUERNAGEL, 2008, p. 55).
Para uma mais detalhada exemplificação, recortamos do trabalho de Steuernagel um gesto
musical utilizado por ele em sua composição, Anima, e também como exemplo:
101
Gesto A
Figura 119: Fig. 2. Gesto A – c.1-2- seção I (Ibid., p. 127)
Nas palavras do próprio autor e compositor:
Este é o gesto original da peça o primeiro a ser composto, este gesto foi o “impulso” primário para a
composição de Anima. A partir dele nascem outros gestos importantes na peça. É um gesto musical claro,
com uma direcionalidade bem definida: o impulso se inicia no surdo, e sobe passando pela harpa,
encontrando seu ápice na nota da flauta. É um impulso de base firme com um ponto focal claro. O
movimento descendente que segue a fermata do ápice é rápido, como se a gravidade criasse uma aceleração
negativa para a volta. Em vez de retornar ao seu ponto de origem, porém, o gesto se estabiliza numa região
mediana da flauta, e assume uma finalização orientada para um plano horizontal (Ibid., p. 127).
Aqui, então, podemos vislumbrar um exemplar de gesto musical, uma sonoridade, um
movimento que significa, que impulsiona a composição e o próprio compositor para adiante. Possui
um movimento claro, e perpassa vários instrumentos, o que reforça a idéia de que o gesto é uma
sonoridade, não apenas notas ou construções com simples parâmetros. É uma apreensão holística, é um
evento sonoro em sua totalidade. Ainda sobre este gesto, o autor prossegue:
O movimento ascendente é percussivo, como se impulsionado por pulos no surdo e na harpa. A
culminância em um instrumento de sustentação provê a estrutura necessária que servirá de apoio para um
retorno apenas parcial em termos de freqüência. É um gesto em forte que decresce à medida que o som se
esvai (Ibid., p. 128).
102
No entanto, além da exemplificação de um gesto musical, ainda resta interesse no
trabalho de Steuernagel quanto ao processo de reconfiguração gestual. Muito embora para os
propósitos deste trabalho os gestos musicais a serem configurados e/ou re-configurados tenham
ascendência gauchesca, é interessante identificar como seu deu a configuração e reconfiguração
gestual em Steuernagel, até mesmo para validar aqueles diante destes. Além disso, o autor elabora
formas de reconfiguração que podem ser aproveitadas neste trabalho, ou servir de inspiração.
Segundo Steuernagel, o termo Evocações se refere a reconfigurações de um gesto que
aparecem antes ou depois do gesto original, e em um contexto diferente. Funcionam como
citações do gesto original e ocorrem ao longo de toda a peça. Quando aparecem antes, apontam
para o gesto principal antes que este ocorra em primeiro plano. Quando aparecem depois,
remetem ao gesto principal, mas sem ofuscar o que estiver acontecendo em primeiro plano na
sica naquele momento. Já o termo Fragmentos de gestos indica gestos que não são considerados
como tais, nascidos do risco de se descaracterizar um gesto através do processo de fragmentação,
ou parametrização, que não respeite as relações entre os elementos formantes de um gesto.
Quando um gesto é “quebrado” deste modo, sobram fragmentos deste gesto (Ibid., p. 135).
Apresentamos agora uma reconfiguração do gesto musical recortado, exemplificado
anteriormente:
Reconfiguração de A
Figura 120: Fig.12 – c.5 – seção I (Ibid., p. 136)
Segundo o autor, esta reconfiguração nasce, principalmente, através da divisão de A em
duas metades: uma ascendente e outra descendente. É uma reconfiguração bastante próxima do
gesto original. A relação é preservada também em termos rítmicos. A modificação em relação à
primeira aparição de A está no timbre – este gesto re-configurado aparece agora na harpa – e no
contexto. (Ibid., p. 136-137).
103
No entanto, notam-se diferenças mais profundas que as descritas pelo autor entre o gesto
A e a Reconfiguração de A, como a duração do evento, a restrição de seu timbre, a diminuição de
sua amplitude, etc. Mas estas são questões para serem abordadas e resolvidas ou justificadas no
momento do memorial descritivo das composições constantes neste trabalho.
Por fim, no tocante aos procedimentos que envolvem mais gestos, destacamos, quanto à
sobreposição gestual:
A sobreposição gestual é um procedimento que envolve dois ou mais gestos. O termo sobreposição”,
neste caso, descreve a técnica através da qual dois ou mais gestos são re-configurados verticalmente, um
sobre o outro. Esta descrição abarca duas possibilidades. A primeira envolve a sobreposição de mais de um
gesto em uma mesma voz da composição, resultando em uma reconfiguração que carrega em si traços
característicos dos gestos originais. (...) A sobreposição pode ainda ocorrer de outro modo: em vez de se
colocar um gesto sobre outro em uma mesma voz da instrumentação, pode-se optar por uma colocação em
vozes diferentes. O resultado sonoro é de uma sobreposição, mesmo que na partitura, por estarem os
gestos alocados em instrumentos distintos, cada um preserve suas características próprias sem interferência
direta do outro (Ibid., p. 153).
E, quanto ao seqüenciamento gestual:
Um gesto seqüenciado nasce da concatenação de dois ou mais gestos. A diferença para a sobreposição es
na natureza vertical ou horizontal da montagem: enquanto na sobreposição a relação entre os gestos é de
um sobre o outro – em outras palavras, uma relação de simultaneidade – no seqüenciamento os gestos são
ligados horizontalmente, ou seja, um depois do outro (Ibid., p. 154).
E, ainda:
Note-se também que gestos seqüenciais e sobrepostos podem ocorrer, e muitas vezes efetivamente
aparecem, de maneira conjugada (Ibid., p. 154).
Assim, pudemos reunir idéias e procedimentos composicionais que, além do mais, se
relacionam com um pensamento gestual, de acordo com a condução ou interação gestual, que,
juntamente com o conceito de gesto (sonoridade ou movimento que significa) em oposição ao motivo
(notas ou construção com simples parâmetros), configuram nossa motivação estética.
4.2 - Acerca do motivo: gesto versus motivo
Após uma definição instrumental de gesto musical, considerando-o, para os propósitos
deste trabalho, uma sonoridade, um movimento que significa, e, ainda, de demonstrar a intenção
estética de usar este conceito de gesto em oposição ao motivo, o qual, em linhas gerais, definiu-se
104
como notas ou construção com simples parâmetros, cabe agora detalhar e aprofundar o que se entende
por motivo sob a ótica do presente trabalho, confrontando-o com o conceito de gesto.
Segundo Schoenberg, em seu livro Fundamentos da composição musical (1996), “Os fatores
constitutivos de um motivo são intervalares e rítmicos, combinados de modo a produzir um
contorno que possui, normalmente, uma harmonia inerente (SCHOENBERG, 1996, p. 35).
De acordo com esta citação, os parâmetros constituintes de um motivo são o melódico e
o rítmico, que ‘normalmente’ possuem uma harmonia inerente. Portanto, podemos dizer que: o
parâmetro harmonia é relegado a segundo plano, já que ela é apenas inerente ao contorno
motívico resultante dos parâmetros melodia e ritmo; que outros parâmetros, como o timbre, são
excluídos do processo constitucional motívico; e que um processo composicional atrelado a um
pensamento motívico tende a constituir uma construção com simples parâmetros, ou seja, uma
construção que não leva em conta a idéia de sonoridade, de movimento que significa, de gesto. Entenda-
se como construção com simples parâmetros aquela que não atenta para a percepção holística de um
evento sonoro, na qual se percebe além das notas, do ritmo e de sua harmonia inerente um
movimento sonoro, a condensação de uma sonoridade, um evento musical em sua totalidade, um
movimento que perpassa instrumentos, que tem uma direcionalidade, que tem sua cor, seu timbre
característico, enfim, um movimento que significa.
Outra característica do motivo, e de um processo compositivo baseado num pensamento
motívico, a qual se pode confrontar com o gesto e o pensamento gestual, é a seguinte:
Visto que quase todas as figuras de uma peça revelam algum tipo de afinidade para com ele, o motivo
básico é freqüentemente considerado o “germe” da idéia: se ele inclui elementos, em última análise, de todas
as figuras musicais subseqüentes, poderíamos, então, considerá-lo como o “mínimo múltiplo comum”; e,
como ele está presente em todas as figuras subseqüentes, poderia ser denominado “máximo divisor
comum” (Ibid., p. 35).
Um pensamento motívico pressupõe certa hierarquia, visto que ‘todas as figuras de uma
peça revelam algum tipo de afinidade para com o motivo básico’. Não se quer dizer que num
processo composicional norteado por um pensamento gestual não haja hierarquia, mas, neste
caso, as relações são muito mais livres e de caráter criativo, não uma ordem imposta. Um gesto
pode ser mais importante que outro, pode até mesmo estar presente, em parte, noutro; porém,
não há, de forma obrigatória, um gesto básico do qual todos os outros se gerem, que esteja
presente em todos os outros.
Ainda segundo Schoenberg, o motivo aparece continuamente no curso de uma obra, ele é
repetido; mas esta repetição poderia engendrar monotonia e por isso o motivo deve ser variado
105
(Ibid., p. 35). A seguir, Schoenberg lista algumas maneiras de se variar um motivo, as quais podem
servir para lidar com os gestos, porém, num outro contexto:
O motivo se vale da repetição, que pode ser literal, modificada ou desenvolvida. As repetições literais
preservam todos os elementos e relações internas. Transposições a diferentes graus, inversões, retrógrados,
diminuições e aumentações são repetições exatas se elas preservam rigorosamente os traços e as relações
intervalares. As repetições modificadas, criadas através de variação, geram variedade e produzem novo material
(formas-motivo) para utilização subseqüente. Algumas variações são, entretanto, meras “variantes” locais e
possuem pouca ou nenhuma influência sobre a continuidade do discurso. Convém recordar que a variação
é uma repetição em que alguns elementos são mudados e o restante preservado. Todos os elementos
rítmicos, intervalares, harmônicos e de perfil estão sujeitos a diversas alterações. Com freqüência, aplicam-se
muitos métodos de varião a vários elementos simultaneamente, mas tais mudanças não devem produzir
uma forma-motivo muito distante do motivo básico. No curso de uma peça, uma forma-motivo pode ser
mais profundamente desenvolvida através de variação sucessiva (Ibid., p. 37).
Assim, como num processo compositivo norteado por um pensamento gestual não temos
a necessidade de utilizar um gesto básico, do qual os demais decorram, as repetições gestuais são
mais livres e de caráter criativo, bem como sua hierarquia. Entretanto, a possibilidade de variar
gestos é importante. Já foram apresentadas, no sub-capítulo anterior, algumas possibilidades de
variação gestual em Steuernagel e, adiante, nos memoriais descritivos das obras constantes neste
trabalho, as mesmas serão pormenorizadas. Além disso, a não necessidade de utilizar um gesto
básico do qual os demais decorram possibilita o uso de vários gestos, inclusive contrastantes,
interagindo no decorrer da peça, até mesmo fundindo-se.
Muito embora esta obra de Schoenberg esteja direcionada estritamente à música tonal,
muitas idéias são aplicáveis à música contemporânea:
Schoenberg estava convencido de que o estudante de composição devia dominar perfeitamente as técnicas e
os métodos construtivos tradicionais e possuir um conhecimento amplo e íntimo da literatura musical, para
que pudesse resolver as grandes dificuldades da música contemporânea. Neste livro pouca referência a
musica posterior a 1900, embora o estudante seja encorajado a fazer uso de todos os recursos disponíveis
daquela época. Os princípios aqui utilizados são perfeitamente aplicáveis a uma grande variedade de estilos
musicais e, igualmente, aos materiais da música contemporânea, visto que determinadas essências estéticas,
tais como, clareza na afirmação, contraste, repetição, equilíbrio, variação, elaboração, proporção, conexão,
transição, são aplicáveis a qualquer espécie de idioma ou sintaxe musical (STRANG, Prefácio à edição
inglesa, apud. Ibid., p. 18).
Contudo, para os propósitos deste trabalho, decidiu-se por opor o conceito de gesto ao de
motivo, por motivação estética.
Sobre este livro de Schoenberg, Souza, autor já citado quando da definição de gesto
musical, escreve:
106
Em Fundamentos da Composição Musical (SCHOENBERG, 1996), o compositor dá ênfase à elaboração
motívica na construção do discurso tonal, tomando exemplos principalmente das sonatas de Beethoven. (...)
Motivo como um conjunto ordenado de relações intervalares (intervalos de altura, duração, dinâmica e
assim por diante) (SOUZA, 2004, p. 116).
Ainda que no presente trabalho não se intente excluir características da música tonal no
processo composicional, o mesmo leva em consideração a música ‘posterior a 1900’, ou seja, as
técnicas composicionais desenvolvidas e utilizadas nos séculos XX e XXI: a música
contemporânea. E esta decisão espelha-se, primeiramente, na motivação estética deste trabalho,
que é o pensamento gestual. Portanto, a oposição do gesto ao motivo engendra, por conseqüência,
certa oposição ao tonalismo, pois a construção e a elaboração composicional estão norteadas pelo
gesto, não pelo motivo.
De acordo com Souza, a partir de sua definição de gesto, “o gesto musical (...) aparece
como responsável pela articulação e coesão das idéias musicais, revelando a intencionalidade do
agente por meio da percepção de um projeto de conjunto que imprime direcionalidade ao
discurso musical (Ibid., p. 154). Dessa forma, o discurso musical’, no presente trabalho, está
baseado no gesto, na sonoridade, no movimento que significa, e não no motivo, nas notas, na construção por
simples parâmetros. A articulação e a coesão musicais são responsabilidades do gesto de Souza, não
do motivo de Schoenberg.
4.3 - Transferência dos elementos folclóricos para a música contemporânea
A música contemporânea vem sendo marcada pela exploração de possibilidades
composicionais, pelas quais se abrem ao compositor inúmeras possibilidades de criação e de
utilização, combinação e/ou transformação de materiais. Contemporaneamente não existe
uma ‘prática comum’ de técnicas e métodos composicionais, como existiu em séculos passados.
Sobre o assunto, em seu artigo “O Ensino da Composição Musical na Era do Ecletismo”, Cunha
escreve:
Durante os séculos XVII, XVIII e XIX, a criação musical no ocidente estava fundamentada na ‘common
practice’. Todos os compositores praticavam um único sistema musical fundamentado na harmonia tonal,
contraponto tonal, formas discursivas, utilizando os mesmos meios, voz e instrumentos acústicos. A
música do século XX passou pelas mais radicais transformações marcadas por: prática de diversos sistemas
musicais e múltiplos princípios de organização; enriquecimento ilimitado do material sonoro; influências
estéticas, e técnicas de outras culturas musicais não-européias (CUNHA, 1999, p. 2).
107
O presente trabalho se insere nesta busca de materiais, incluindo-se aqui os materiais
inerentes ao fazer musical gaúcho.
Nas palavras do compositor gaúcho Luiz Cosme, que utilizou elementos gauchescos em
sua obra, encontramos uma síntese de como deve proceder um compositor no que se refere às
técnicas composicionais:
O compositor deve estar familiarizado com todas as Escolas da música, desenvolver a riqueza de sua
fantasia e idéias, empenhando-se, constantemente, em renovar os meios de expressão, pois todas as
diferentes fases, através das quais a técnica passou ou passa, devem enriquecer a nossa atual linguagem
musical. Enquanto cada Escola de composição escolhe seu sistema próprio, o compositor individual pode
fundir diversas técnicas em um todo consistente, desenvolvendo os novos princípios de seus conceitos, na
expressão de suas idéias musicais e convicções estéticas (COSME, sica e tempo, 1952, p. 41).
Portanto, um compositor contemporâneo está ‘livre’ para decidir seus caminhos.
Novamente segundo Cunha, o compositor atual vê à sua frente um tempo propício para
“enriquecer suas possibilidades de criação e interesses individuais através de atitudes integradoras
e paradoxais conscientes” e, que para tanto, o mesmo deve preocupar-se com a definição dos
limites para o seu trabalho, envolvendo duas questões principais: o que fazer, e como fazer
(CUNHA, 1999, p. 4).
No presente trabalho, o 'o que fazer' é a criação de uma composição para um grupo de
câmara (piano/viola/violoncelo), explorando os materiais dos gêneros musicais gaúchos, e o
'como fazer' se relaciona com o nosso próprio processo criativo, com as nossas motivações
estéticas, e com as técnicas composicionais que estudamos e utilizamos, mas também com
nossos objetivos, que não se referem a uma simples re-elaboração do folclore, ou a uma simples
devolução ao povo daquilo que lhe pertencia, numa abordagem naïf, nem a uma simples
colagem de materiais, mas, sim, à submissão destes materiais a um conjunto de técnicas
contemporâneas e a uma obra de arte.
Corroborando as idéias de Cunha, Iazzetta escreve, em seu artigo “O que é a Música
(Hoje)”, que “o trabalho de cada compositor, ou mesmo cada obra desse compositor, passa a se
constituir, no culo XX, como terreno para a exploração e ampliação das gramáticas musicais
existentes” (IAZZETTA, 2001, p. 2).
Os gêneros musicais gaúchos possuem inúmeros materiais com potencial artístico muito
característico, resultante de sua imersão no fazer musical daquele povo, e que se emprestam
genuinamente como possibilidades criativas contemporâneas, desde que tratados com as técnicas
composicionais adequadas, para não cairmos numa simples releitura do folclore ou do fazer
108
musical regional, mas, sim, torná-las (estas possibilidades) novo elemento integrante de um
processo criativo.
***
Sobre a busca por novas maneiras de compor, Nketia, em seu artigo Developing
Contemporary Idioms out of Traditional Music”, é categórico: “A busca por novos idiomas musicais ou
novas maneiras de fazer música é uma das maiores preocupações do nosso mundo musical
contemporâneo...” (NKETIA, 1982, p. 81). Neste artigo, o autor propõe abordar a música
contemporânea como um fenômeno cultural, e ver este processo criativo a partir de um ponto
de vista etnomusicológico, no sentido de estudo da música de um povo.
O autor apresenta três maneiras que, segundo ele, são capazes de promover a mudança
musical, ou seja, de transformar a música tradicional em música contemporânea desenvolvida a
partir da música tradicional: as técnicas de reversão (reversal techniques), as técnicas sincréticas
(syncretic techniques) e as técnicas de re-interpretação (techniques of re-interpretation).
As cnicas de reversão consistem no retorno a procedimentos musicais tonais, porém
usando a lógica reversível como base para maior combinação de sons e ritmos em pontos
cruciais de estresse ou tensão, por exemplo, mas geralmente evitando o retorno para uma
tonalidade ou tônica. As técnicas sincréticas, por sua vez, têm a tradição como um recurso, e usam a
combinação de diferentes formas de discurso ou prática ou a fusão entre duas ou mais diferentes
formas de inflexão, ou seja, um retorno à tradição para buscar idéias criativas, fontes de som,
temas e procedimentos que possam ser usados para expandir seus modos de expressão, enfim,
uma busca por novas experiências musicais que alargam os ouvidos de um compositor ou
ampliam sua imaginação e conhecimento de conceitos musicais que ele ainda não tem inerentes a
si. as técnicas de re-interpretação são aquelas que possibilitam um compositor ficar dentro de sua
cultura e dar relevância contemporânea para esta tradição musical, atingindo isto trabalhando
novas integrações de elementos musicais, os re-ordenando ou re-combinando, através de
técnicas composicionais contemporâneas.
Portanto, o nosso trabalho se adéqua exatamente às técnicas de re-interpretação mencionadas
por Nketia, visto que estamos inseridos na cultura musical tradicional gaúcha e objetivamos dar
relevância contemporânea a esta tradição, trabalhando os materiais musicais inerentes a ela
através de técnicas composicionais contemporâneas diversas, que consideramos adequadas.
109
Algumas outras questões levantadas por Nketia, relacionadas com a música
contemporânea no ‘terceiro mundo’, são: os complexos problemas que provêm da música em
relação à mudança social, referindo-se aos problemas que se originaram nestas sociedades
colonizadas em razão de anos de transculturação impostos pelos colonizadores; a educação e o
treinamento de compositores contemporâneos, para que sejam estimulados a combinar teoria
musical, composição e etnomusicologia em seu processo criativo; a realização de um distintivo
foco cultural e individualidade em compositores contemporâneos, para que eles tenham em
mente que a música é um fenômeno cultural e que cada cultura tem áreas específicas ou focos
estruturais; e a necessidade de manter um relacionamento estreito entre os musicistas e o seu
público musical, evitando o extremismo do conceito de “arte pela arte, apenas”.
Assim, de acordo com as palavras de Nketia, procuramos proceder com o material
recolhido: com comprometimento com a cultura regional; com o devido foco etnomusicológico,
em coesão com a composição contemporânea; com foco na individualidade da música regional,
dando ênfase às suas características peculiares; e também levando em consideração uma estreita
relação com o nosso público, visto que a composição resultante deste processo criativo bem
como a pesquisa, transcrição e análise dos materiais musicais gaúchos tem como objetivo
valorizar e difundir materiais peculiares da música folclórica gaúcha e suas possibilidades criativas
em relação à música brasileira/contemporânea.
***
A música constrói territórios imaginários, isto é, o dado estético é regional, denota sua
região. Elementos gauchescos denotam o fazer musical do estado do Rio Grande do Sul, são
elementos regionais. No entanto, estes não representam o gaúcho, por exemplo, para um ouvinte
de uma cultura distante, como um russo. Um brasileiro até pode reconhecer um determinado
material gauchesco, mas um russo, não. Porém, não é este o propósito deste trabalho, ou seja, o
de representar a música gauchesca num outro ambiente. O regionalismo pode vir a ser música
universal, música para ser ouvida por pessoas de qualquer cultura. A música de concerto é obra
de arte, e música artística pretende ser ouvida por pessoas de várias regiões. Assim nos
esforçamos metodologicamente, na direção de fazer música artística, baseada em elementos
gauchescos, mas com o objetivo de dar relevância contemporânea a esta tradição musical,
utilizando o material obtido do fazer musical gaúcho de modo a torná-lo universal, isto é,
110
intentando fazê-lo parte integrante de uma obra de arte que pretende ser ouvida como tal por
pessoas de qualquer região.
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Memorial descritivo: Rinascita
(composição de ensaio)
O nome da peça, Rinascita, deve-se ao fato de que se trata de minha primeira obra de
caráter contemporâneo, ou seja, música de arte para concerto que leva em consideração,
principalmente, o que foi produzido na música erudita dos séculos XX e XXI. Rinascita é um
termo italiano que significa renascença, o que faz referência ao meu renascimento como
compositor ante a música contemporânea, inexplorada por mim até então. Esta composição, no
presente trabalho, se configura como uma composição de ensaio, visto que em seu processo
compositivo pudemos experimentar as idéias até aqui expostas, visando um aprimoramento das
mesmas, para após nos debruçarmos de maneira mais madura sobre a composição principal deste
trabalho.
Rinascita foi-me encomendada pelo professor Maurício Dottori, para ser tocada pelo
grupo de música contemporânea Nova Camerata, que ele dirige, num concerto em Curitiba/PR. O
convite foi feito em agosto de 2008, e o concerto no qual seria apresentada a peça aconteceria em
julho de 2009.
Antes mesmo de eu receber tal convite, já vinha esboçando a idéia desta composição,
com fim de estudo, estritamente. Quando recebi o convite, já havia esboçado o pano de fundo
harmônico e a idéia gestual da melodia da composição, ainda escrita apenas para piano:
123
Figura 121: Trecho do esboço de Rinascita, para piano (c. 1-30).
124
A forma da composição manteve-se desde seu esboço, bem como seu pano de fundo
harmônico e a idéia gestual da melodia, exceto a primeira intenção de repetição da parte A
variada, a qual se mostrou inapropriada. Portanto, Rinascita é uma peça curta que consiste
basicamente em uma parte A, constituída pelos períodos a (antecedente), a’ (conseqüente), b
(antecedente) e b’ (conseqüente); e em uma parte B, lenta e contrastante, seguida de uma pequena
coda:
Figura 122: Plano formal de Rinascita.
O pano de fundo harmônico original foi mantido até a versão final da peça, ainda que
tenha sofrido várias transformações do ponto de vista da execução instrumental, pois, se
inicialmente era reservado somente à mão esquerda do piano de maneira elementar, em acordes
de ‘acompanhamentoe os efeitos disto na linha melódica, na versão final é distribuído entre os
instrumentos, com efeitos gestuais e de ataque no piano, elaboração da mão direita, etc. Este
pano de fundo harmônico foi o primeiro elemento a ser pensado e esboçado. Na primeira
metade da parte A, durante os períodos a e a’, trata-se da condução de três vozes, de maneira
alternada, partindo da eleição de certos intervalos, geralmente formando acordes dissonantes:
125
Figura 123: Pano de fundo harmônico da primeira metade da parte A de Rinascita (c. 1-30).
Na segunda metade da parte A, durante os períodos b e b’, o pano de fundo harmônico se
trata da condução de duas vozes, partindo do intervalo de segunda menor, ampliando-se
gradativamente, e culminando em cluster:
126
Figura 124: Pano de fundo harmônico da segunda metade da parte A de Rinascita (c. 31-60).
Na parte B, o pano de fundo harmônico baseia-se em acordes formados por quatro
quintas consecutivas a serem tocadas uma após a outra, formando cada acorde através do
prolongamento das mesmas pelo pedal do piano que, nesta parte, fica preso o tempo todo,
misturando tamm os acordes uns aos outros:
Figura 125: Pano de fundo harmônico da parte B de Rinascita (c. 61-78).
127
O pano de fundo harmônico da coda é formado por clusters, e nesta parte o pedal do piano
ainda está pressionado, misturando seus sons:
Figura 126: Pano de fundo harmônico da coda de Rinascita (c. 79-87).
Paralelamente ao esboço do pano de fundo harmônico, deu-se início ao esboço da linha
melódica e sua idéia gestual, a partir de decisões referentes ou não à utilização de materiais
gauchescos. Como a idéia rítmica do esboço do pano de fundo harmônico estava baseada num
compasso binário, dois por dois de ascendência quaternária, portanto , decidi compor a linha
melódica baseada num compasso ternário, característico do gênero musical gaúcho chamamé
(provocando, assim, um deslocamento entre a linha melódica e o acompanhamento’), além de
utilizar, preferencialmente, e de maneira direta ou desenvolvida, elementos característicos deste
gênero. a escolha das notas usadas na melodia deu-se pela decisão de utilizar notas que não
faziam parte da harmonia naquele compasso, a fim de completá-la, agregando mais notas à
harmonia pré-estabelecida.
Resolvi, então, desenvolver este esboço, transcrevendo-o para a formação do grupo Nova
Camerata, que consistia em um piano, uma viola, um contrabaixo, uma flauta transversa e um
clarinete em si bemol. Os resultados mais imediatos desta foram a subdivisão da linha melódica
entre os instrumentos, deixando a cargo do piano a condução harmônica:
128
Figura 127: Trecho de Rinascita transcrita para a formação da Nova Camerata (c. 1-7)
Nesta transcrição, para além da subdivisão melódica, muitos outros fatores foram levados
em consideração, principalmente após o estudo mais aprofundado pois já havia sido realizado
129
um estudo prévio, anterior ainda à composição do esboço do livro de técnicas composicionais
contemporâneas de Vincent Persichetti, Armonía del Siglo XX, referencial teórico e inspiração
maior do processo composicional desta peça. Este processo será detalhado em seguida.
Após a transcrição do então esboço para piano, juntamente com a composição de
elementos que surgiram em virtude desta transcrição, iniciou-se um período de reflexão e de
continuidade de estudo, visto que o resultado ainda era insatisfatório. Neste momento, a peça era
apenas o esboço transcrito para o grupo, ainda que mais elaborado. A partir desta etapa, reuniões
foram feitas com o professor orientador, as quais foram de grande valia. Rinascita também foi por
mim trabalhada durante a disciplina Seminário Avançado em Composição II, integrante do mestrado
em Teoria e Criação da UFPR, como trabalho composicional final da disciplina. Assim, idéias
foram surgindo e/ou sendo aperfeiçoadas, constituindo várias etapas do processo composicional.
Desta transcrição, os principais pontos negativos eram:
a) a escrita excessiva em uníssono das partes da flauta e do clarinete, visto que numa
formação reduzida, um quinteto, a escrita em uníssono muitas vezes tende a ‘gastar’ as
notas de um instrumento, pois poderia estar tocando algo diferente;
b) a mão esquerda do piano estava estática, apenas com função harmônica, e deveria ser
incrementada, movimentada, a fim de, por exemplo, antecipar ou prenunciar mudanças
rítmicas na melodia principal;
c) não estava detalhada a articulação para a flauta e o clarinete;
d) a parte do piano não estava adequada, era pouco piastica, especialmente na parte A;
e) muitas notas longas escritas para a flauta e o clarinete, com pouco movimento;
f) escrita para o clarinete não adequada, o melhor seria escrever sem armadura de clave, na
altura real, pois um clarinetista geralmente acostuma-se a ler transpondo
automaticamente;
g) o contrabaixo estava escrito erroneamente, sem considerar que o mesmo é um
instrumento transpositor de oitava.
130
No entanto, a melodia para a viola e sua articulação já estavam bem trabalhadas, o piano
estava razoável na segunda parte da peça, e a idéia melódica já estava madura, bem desenvolvida.
Surgiram, ainda, as seguintes idéias:
a) além de antecipar, também reciclar elementos anteriores, dando-lhes outro valor;
b) dar apoio às acentuações com outros instrumentos para dar mais expressividade;
c) acrescentar gestos de outros gêneros musicais gauchescos, visto que até então havia
apenas gestos do chamamé;
d) escrever mais para flauta, clarinete e viola, principalmente na segunda metade da parte A e
na parte B.
Após a incorporação destas considerações e idéias à composição, o resultado ainda não
era satisfatório. Apesar da peça ter melhorado muito, principalmente quanto às antecipações e
reciclagens de elementos, da rítmica da flauta e do clarinete, e das acentuações, havia outros
pontos negativos a considerar:
a) os gestos do chamamé ainda não tinham muita ênfase, poderia usar a mão esquerda do
piano para fazer isso, tornando a parte do piano mais movimentada e interessante;
b) ainda havia resquícios de ‘acompanhamento’, o que não soava bem e destoava do restante
da obra;
c) o piano tocava do início ao fim da peça, o que poderia ser melhorado, equilibrando a peça
coloristicamente;
d) o gesto do chamamé ainda o estava bem elaborado, pensado, e poderia ser utilizado de
melhor forma, mais abrangentemente, preenchendo a harmonia, com pequenas
intervenções;
131
e) havia vários acordes sustentados por muito tempo, que poderiam ser substituídos por
pequenas frases ou gestos com notas dos acordes vigentes, o que bastaria para se fazer
captar a harmonia, e de maneira mais interessante;
f) articulações e dinâmicas ainda não estavam bem detalhadas.
Considerados os pontos anteriores, agora a peça começava a definir-se. Porém, ainda
havia muito a ser percorrido até sua conclusão. Outras questões surgiram:
a) a melodia estava muito ‘diatônica’, o que a tornava restrita, e se poderia ‘jogarcom as
oitavas, oitavando abaixo ou acima determinadas notas para tornar a melodia ampla e
especial;
b) para tanto, se deveria escolher corretamente quais notas oitavar, a fim de provocar a
sensação de unidade na peça, tratando as notas oitavadas como integrantes de ‘acordes
motívicos’, que se desenvolvem durante a peça, amarrando-a;
c) a notação para a viola e para o piano ainda não estava totalmente adequada;
d) as dinâmicas ainda tinham problemas de escrita.
Após estes retoques, ainda surgiram as seguintes questões:
a) poderia surgir uma parte colorística para a flauta e o clarinete, com notas rápidas, durante
a parte B, onde os sopros encontravam-se em silêncio, o que acrescentaria interesse e
brilho a esta parte e à peça;
b) pormenorizar ainda mais as dinâmicas;
c) subir a parte do piano em uma oitava em alguns trechos, para não ‘competir’ com a viola;
d) reforçar as notas da mão esquerda do piano, dobrando-as no contrabaixo, a fim de dar
sustentação às notas graves, na parte B;
132
e) evitar o movimento por quartas paralelas entre a flauta e o clarinete na coda;
f) além de deixar decantar um pouco a peça, madurar as idéias.
Assim, após a composição da parte colorística para os sopros na parte B, a qual foi
inspirada no canto do quero-quero, pássaro característico do Rio Grande do Sul, e a incorporação
das demais questões, a peça decantou por alguns dias, recebeu alguns ajustes e, em seguida, foram
enviadas ao professor Maurício Dottori, diretor do grupo Nova Camerata, de Curitiba/PR, as
partes de Rinascita, para que se desse início aos ensaios. Rinascita teve sua estréia
3
nos dias 8 e 9 de
julho de 2009, no espaço cultural Capela Santa Maria, em Curitiba/PR, tocada pelo grupo de
sica de câmara Nova Camerata, sob o enunciado rie Música de Câmara Música Paranaense do
Século XXI. No programa
4
figuravam também os compositores Maucio Dottori, Fernando
Riederer, Indioney Rodrigues, Márcio Steuernagel, Sólon Mendes e Guilherme Tavares.
Após a conclusão da composição e sua estréia, alguns aspectos restaram para reflexão. O
fato de se tratar de uma peça curta devia-se a que, quando recebi o convite para compô-la, assim
me foi me pedido; deveria ser uma peça curta por necessidade do programa. Além disso,
enquanto a composição amadurecia, ao longo do processo composicional, eu sentia a necessidade
de encerrar a peça naquele determinado ponto, tendo em mente que a concisão da mesma era
uma virtude, e que a densidade que Rinascita exprimia era suficiente para, em cerca de quatro
minutos, cumprir seu papel estético. Já a tendência da peça de utilizar registros médios ou graves
dos instrumentos trata-se de uma preferência estética minha, mas dá-se também em referência ao
comportamento do gaúcho, geralmente sério e sóbrio; ainda que em várias ocasiões os agudos
sejam explorados, esta crítica foi feita à peça e é pertinente, porém de ordem estética. Outra
crítica construtiva feita à Rinascita foi em relação ao cromatismo proeminente; porém, apesar de
ter sido tratado com certo exagero por mim, o cromatismo é um elemento presente na música
folclórica gaúcha, ainda que em raras ocasiões, geralmente em singelas modulações para
tonalidades vizinhas à tônica; mas, mais do que isto, o cromatismo foi pensado para a peça como
um gesto melódico, como uma inflexão, que não é exatamente um cromatismo melódico, e sim,
um cromatismo rítmico
5
, ou seja, uma maneira de dar inflexão ao ritmo, que tem razões gestuais
abrigadas nos gestos do chamamé e também de outros gêneros gauchescos. E, por fim, uma última
3
Em anexo, CD com a gravação em áudio da apresentação (ANEXO 1).
4
Em anexo, o programa do concerto (ANEXO 2).
5
Este assunto será mais detalhado mais adiante, no item 6.3.1.
133
crítica construtiva feita à Rinascita foi quanto a não fragmentação da melodia, a qual poderia ser
distribuída mais ativamente entre os instrumentos, ainda que as linhas melódicas dos demais
instrumentos sempre venham a completar o gesto melódico vigente.
6.1 - Dos caminhos criativos sugeridos pelos elementos gauchescos
Visto que, mais adiante, ainda neste capítulo, será abordada a utilização do material
gauchesco quanto ao gesto e quanto ao motivo, bem como as técnicas composicionais estudadas,
neste sub-capítulo tratar-se-á estritamente dos caminhos criativos sugeridos pelos elementos
gauchescos os quais não estejam ligados ao gesto, ao motivo, e às técnicas composicionais
estudadas.
De maneira geral, a música gaúcha tem como principal característica as acentuações em
tempos fracos. Procurou-se, nesta peça, utilizar amplamente este recurso, a fim de promover uma
atmosfera gauchesca, porém, contemporânea, ou seja, utilizar, de maneira complexa e sob os
auspícios das técnicas composicionais contemporâneas estudadas, as acentuações, sem deixar de
lado sua inspiração gauchesca. Apesar de ser uma peça curta, Rinascita torna-se densa em virtude
do emaranhado de acentuações, ora reforçadas, ora não, que se desenrola durante os cerca de
quatro minutos de música.
Decidiu-se privilegiar relações interválicas e harmônicas dissonantes e tensas pelo caráter
tenso e inquieto do gaúcho, muitas vezes portador de um ar contestador, que cisma de tudo.
Apesar de alguns tradicionalistas resistirem o fato de o chamamé já estar aculturado no Rio
Grande do Sul
6
, este é um gênero que muito bem representa este estado, pois estreita seus laços
com os povos vizinhos e mescla ares de alegria e de nostalgia sob uma atmosfera vibrante, além
de suas acentuações potenciais, muito peculiares. Assim, escolheu-se o chamamé como o gênero-
base desta peça, ainda que elementos da milonga arrabaleira, uma variante da milonga e bastante
contrastante com o chamamé, estejam também presente, mas de maneira mais pontual.
Muitas das idéias melódicas embutidas em Rinascita são de motivação estritamente criativa
gauchesca. Alguns fragmentos melódicos são usuais no gênero chamamé, ainda que num contexto
tonal no tocante às alturas:
6
O principal e mais antigo festival de música nativista, a Califórnia da Canção, até hoje não aceita chamamés.
134
Figura 128: Fragmentos melódicos usuais no chama em Rinascita (c. 1-30).
Os staccati também são recursos usuais nos gêneros gauchescos, para além do chamamé.
Aparecem principalmente na parte colorística para o clarinete e a flauta, na parte B, onde estão
estritamente relacionados com o que chamei de citação ornitológica. Como está mais intimamente
ligada à questão do gesto, na oportunidade detalharei esta questão, mas adianto que se trata de
citação ao canto quero-quero, pássaro característico do Rio Grande do Sul:
Figura 129: Staccati em Rinascita (c. 59-62).
135
Outro elemento mais intimamente ligado ao gesto, mas também de inspiração gauchesca
é o glissando. Quando executados pela viola, também na parte B, que é de caráter contrastante à
parte A e em andamento mais lento, os glissandi dão um ambiente mais nostálgico ainda à parte
onde se ouve o canto do quero-quero, pois soa quase como um portamento, ou seja, como alguém
suspirando, numa infleo reflexiva, bucólica, que se associa ao canto do quero-quero numa
paisagem rural gauchesca, pensativa:
Figura 130: Glissandi em Rinascita (c. 65-67)
Os glissandi também estão presentes na segunda metade da parte A, no piano com pedal de
sustentação, o que acrescenta contraste ao movimento rápido e paralelo do clarinete e da flauta e
também ao acompanhamento ágil do contrabaixo:
136
Figura 131: Glissandi em Rinascita (c. 47-50)
O cromatismotmico, ou seja, uma maneira de dar inflexão ao ritmo, já mencionado,
também encontra seu abrigo junto ao gesto, mas também tem sua raiz no regionalismo
gauchesco, pois provém do jeito de tocar ou cantar do gaúcho, impulsionando a melodia em
certos trechos, em busca de uma ruralidade, de tornar a música campeira, de galpão.
Da milonga arrabaleira, destacamos o contrabaixo na segunda metade da parte A, que se
baseia na rítmica deste gênero
7
, e as tercinas da citação ornitológica
8
.
A relativa diatonicidade da melodia principal também provém da música gauchesca, visto
que esta está baseada estritamente no tonalismo, na simplicidade dos instrumentos e
instrumentistas e na singeleza das melodias, que poucas vezes transgridem uma oitava.
Assim, os elementos gauchescos, além de propiciarem gestos, motivos e utilização de
técnicas composicionais contemporâneas, me sugeriram caminhos criativos, me inspiram de
diversas maneiras, agregando à peça valores sensíveis, referentes e pertinentes à música
gauchesca, mas também à cultura gaúcha, na qual estou inserido e não intento renegá-la ou
oprimi-la.
7
Ver c. 31-60, páginas 114-118.
8
Ver c. 60-75, páginas 118-120.
137
6.2 - Das técnicas composicionais estudadas
Aqui, é importante destacar que o estudo do livro de Persichetti serviu-me como base,
sim, pois foram aplicados à composição da peça vários procedimentos demonstrados pelo livro.
Desde o estudo preliminar do livro que antecedeu o esbo de Rinascita , durante a primeira
transcrição da peça à qual se acrescenta também muito de composição, pois vários elementos
foram agregados, transformados, etc. –, e também no decorrer das demais etapas do processo
composicional, os procedimentos demonstrados por Persichetti começaram a fazer parte da
minha intuição, diga-se assim. Em nenhum momento recorri diretamente ao livro para compor.
A inspiração que o estudo do livro gerou espelha-se na peça, e não recortes daquele. No entanto,
numa análise posterior, encontra-se na composição, de maneira clara, onde esta inspiração
espelhou-se. São ecos de Persichetti em Rinascita.
Apesar do tulo, Armonía del Siglo XX não é um livro estritamente sobre harmonia, e sim,
um verdadeiro compêndio de técnicas composicionais e procedimentos criativos utilizados
durante o século XX pelos mais importantes compositores. Além de fornecer exemplos da
literatura musical, Persichetti demonstra, em exemplos de sua criação, o resultado musical da
aplicação do assunto que está sendo tratado. Como resume o próprio Persichetti, “o livro é sobre
e para a criatividade; representa possibilidades musicais para estimular o pensamento criativo
musical” (PERSICHETTI, 1985, p. 6).
Pessoalmente, considero o livro de Persichetti libertador, pois para quem ainda
encontrava-se preso às normas da tonalidade, por exemplo, o estudo de Armonía del Siglo XX
possibilita e incita a experimentação das mais variadas possibilidades musicais sem receio. É um
livro encorajador e inspirador. Ao passo que sugere uma possibilidade, o autor comenta o
resultado, demonstra-o, comprova-o, estimulando, assim, a criatividade composicional.
6.2.1 - Quanto à harmonia
Desde o início, Persichetti trata de romper possíveis paradigmas ou receios
composicionais. Quanto à harmonia, logo no prólogo, escreve:
A criatividade harmônica depende da relação de acorde com acorde em um contexto particular; qualquer
acorde pode mover-se a qualquer outro, e aparentemente se pode combinar técnicas opostas sob certas
condições formais e dramáticas. Nas deduções teóricas se põe ênfase nas idéias criativas e na estimulação
compositiva (Ibid., p.6).
138
Assim foi composto o pano de fundo harmônico de Rinascita, independente de uma
tonalidade ou uma escala pré-definida. Na primeira metade da parte A, a condução de três vozes
alternadas enfatizando acordes dissonantes; na segunda metade da parte A, a condução de duas
vozes partindo do intervalo de segunda menor e ampliando-se gradativamente para culminar em
cluster. Na parte B, os acordes formados por quatro quintas consecutivas a serem tocadas uma após
a outra, formando cada acorde através do prolongamento das notas pelo pedal do piano que,
nesta parte, fica preso o tempo todo, misturando os acordes; e na coda, os acordes formados por
clusters, e ainda a mistura dos mesmos provocada pelo pedal de sustentação do piano, que ainda
está pressionado nesta parte e assim permanece até o final da peça
9
.
Persichetti disponibiliza uma classificação dos intervalos harmônicos. Segundo o autor,
quintas e oitavas justas são consonâncias abertas; terças e sextas maiores e menores são
consonâncias brandas; segundas menores e sétimas maiores são dissonâncias fortes; segundas
maiores e sétimas menores são dissonâncias suaves; quartas justas soam consonantes em um
ambiente dissonante e dissonantes em um ambiente consonante; e trítonos soam neutros nas
passagens cromáticas e instáveis nas passagens diatônicas (Ibid., p. 12). Portanto, o compositor
pode valer-se deste conhecimento para controlar os graus de tensão interválica no decorrer de
sua peça:
A tensão interválica pode ser utilizada para satisfazer qualquer idéia ou função da música. As propriedades
de consonância-dissonância dos intervalos podem ser usadas para sustentar ou opor, com diversos
propósitos expressivos, outras forças tais como timbre instrumental, dinâmica e tempo (Ibid., p. 14).
No entanto, o compositor não pode levar em consideração tal classificação de maneira
isolada à própria peça, pois a consoncia e a dissonância dependem do contexto harmônico:
Os intervalos consonantes podem soar dissonantes em uma passagem dominada por intervalos dissonantes,
e na harmonia formada por intervalos fortemente dissonantes estas dissonâncias se convertem na norma
“consonante” da organização musical (Ibid., p. 14).
Esta tensão interválica induz à tensão acordal, ou seja, “a tensão dos acordes é medida
pela tensão de seus intervalos constituintes” (Ibid., p. 17). Assim, pode-se compor ou analisar uma
composição a partir da classificação dos acordes segundo sua tensão interválica, possibilitando ao
compositor controlar ou verificar o grau de tensão de determinado trecho musical de sua peça.
9
Conforme exemplos já disponibilizados, páginas 125-127.
139
Em Rinascita, o pano de fundo harmônico não foi controlado desde o princípio, embora haja nas
cadências principais (quando a melodia passa de a’ para b
10
, quando termina a parte A
11
e na
cadência final
12
) um grau de tensão profundamente maior, intencionalmente gerado pelos acordes
mais largos, tensos ou em clusters, além de outros recursos musicais.
Uma cnica importante, utilizada em Rinascita e extraída de Persichetti é a utilização, na
linha do baixo, de notas diferentes da fundamental real, mas que a dão ressonância. São elas ou a
quinta da fundamental ou a nona. Segundo Persichetti:
Em registros mais graves, a adição de sons está limitada pelo perigo das relações turvas. Os sons de suporte
mais efetivo são a quinta ou a nona debaixo do som base do acorde devido a que a quinta é um intervalo
forte e ressonante e a nona é a quinta da quinta. Os baixos tomando a quinta ou a nona por debaixo da
linha real do baixo proporcionam brilho à harmonia (Ibid., p. 22).
Figura 132: Quinta ou nona por debaixo da linha real do baixo em Rinascita (c. 5-8).
Uma questão de caráter harmônico, de certa forma, é a da escrita enarmônica, bem como
se verifica em Rinascita:
10
Ver c. 26-30, página 114.
11
Ver c. 55-60, páginas 117-118.
12
Ver c. 79-87, página 121.
140
Na música do século vinte raras vezes se utiliza a armadura de clave devido a que os centros tonais e a
modalidade mudam rapidamente e também a presença da atonalidade. A eleição da escrita enarmônica
está determinada pela facilidade de leitura (Ibid., p. 39).
Quanto à origem harmônica dos acordes em Rinascita, pode-se dizer que esta está ligada à
escala cromática, pois não um centro tonal definido e as notas constituintes dos acordes
pertencem à escala dos doze sons, sem que alguns sejam mais importantes que outros, ou seja,
são eleitos por decisões estéticas, somente. Encontra-se neste trecho de Persichetti a
fundamentação para tal procedimento:
Pode-se utilizar a escala cromática como ornamentação à escala diatônica ou como uma escala
independente com os doze graus igualmente importantes. Pode-se definir ou não uma tonalidade através de
centros fixos ou móveis. Sua harmonia é bastante complexa (Ibid., p. 58).
Figura 133: Acordes de Rinascita (c. 1-30).
Outro processo harmônico utilizado em Rinascita possui fundamentação em Persichetti.
Em várias ocasiões, quando se desejava uma ambigüidade tonal, ou seja, quando se desejava uma
harmonia vaga ou trechos indefinidos, sem um som central ou tônica evidenciada, usou-se
acordes eqüidistantes que, segundo o autor, são ambíguos porque qualquer uma de suas notas
constituintes pode funcionar como fundamental (Ibid., p. 96):
141
Figura 134: Acordes eqüidistantes utilizados em Rinascita (c. 35-42).
142
Uma categoria especial de acordes foi utilizada em Rinascita, principalmente em
momentos de tensão, funcionando como cadências. Esta categoria é chamada cluster, e, segundo
Persichetti, assim caracteriza-se:
Quando uma passagem está dominada por acordes por segundas colocados predominantemente sem
inverter, de tal maneira que a maioria das vocês estejam a uma distância de segunda, o acordes se chamam
clusters (Ibid., p. 128).
Segundo o autor, maioria das formações escalares ou suas partes podem converter-se em
clusters (Ibid., p. 129), o que se verifica em Rinascita pela formação de clusters com diversas notas da
escala cromática. Além disso, os clusters amplos são poderosas acentuações dramáticas (Ibid., p.
131), assim como os clusters utilizados nas cadências, momentos de grande tensão:
143
Figura 135: Clusters utilizados em Rinascita (c. 78-87).
Se a origem harmônica de Rinascita está ligada à escala cromática, seu encadeamento está
ligado à direcionalidade intencional do compositor. De acordo com Persichetti:
Quando uma sucessão de acordes estabelece uma direção definida, tem função forma e se considera uma
progressão. A meta de uma progressão pode ser alcançada ou abandonada, uma tonalidade fixada ou
deixada. Se uma sucessão harmônica se estabelece mediante movimentos de fundamentais, linhas
144
contrapontísticas ou fundos de som, o compositor é capaz de guiar sua harmonia em qualquer direção (Ibid.,
p. 185).
Figura 136: Direcionamento harmônico de Rinascita (c. 31-60).
Um intervalo harmônico utilizado com determinado destaque na composição de Rinascita
é a quinta justa. Segundo Persichetti, “as quintas o emocionalmente imensas, vagas e distantes
ou desnudas e dominantes constituindo um ingrediente harmônico importante na composição
contemporânea” (Ibid., p. 204). Além de constar na formação de acordes por quintas justas na
parte B
13
, as quintas justas são encontradas no período b da parte A, quando o clarinete e a flauta
tocam a melodia principal mantendo um intervalo harmônico de quinta justa entre eles, num
movimento de sucessivas quintas paralelas. Este movimento poderia tornar-se proeminente
demais, pois chama a atenção do ouvinte. No entanto, a atenção é desviada pelo
acompanhamento ágil do contrabaixo, o que garante o equilíbrio do trecho (Ibid., p. 206):
13
Conforme Figura 125, página 126.
145
Figura 137: Quintas paralelas sucessivas sob acompanhamento ágil em Rinascita (c. 43-50).
146
Do ponto de vista composicional, Rinascita possui várias características que a permitem
classificar, esteticamente, como uma obra atonal. Segundo Persichetti:
Atonalidade é um termo livremente aplicado à música na que o sentimento tonal tenha sido debilitado ou
perdido, e à música na que nunca existiu uma gravitação tonal. A escrita atonal é a organização de sons sem
estabelecimento de um tom por relações de fundamentais acordais; mas as combinações de sons ou áreas
podem formar um equivalente atonal de tonalidade. (...) Há movimento para e desde formações interválicas
características, mas a força central é geralmente a melodia, e não uma base harmônica governante. (...)
Quando se abandona o controle de uma tonalidade escalística, a organização de fundamentais acordais dos
doze sons cessa de existir, e a forma e a unidade são criadas pelo desenvolvimento melódico e rítmico (Ibid.,
p. 264).
Sob esta ótica, vale salientar que então, não por acaso, Rinascita concede à melodia e ao
ritmo papéis fundamentais em seu desenvolvimento. Além disso, justificam-se as escolhas
acordais que em nada se relacionam com qualquer tonalidade, pois, deste modo, a peça assegura
seu caráter contemporâneo, ainda que a utilização tonal não implique em não-
contemporaneidade. Inclusive, segundo o mesmo autor:
A escrita harmônica contemporânea é um processo compositivo que pode envolver diversas disposições da
norma de dissonância, eleger um idioma harmônico simples ou a co-ilação de um com outro, fusão de
tonalidades, simplicidade de organização sonora ou a justaposição de aspectos tonais e atonais. (...) A
aceitação de um procedimento não implica necessariamente na exclusão dos outros (Ibid., p. 275).
6.2.2 - Quanto à melodia
Primeiramente, saliento que a motivação melódica de Rinascita é, em grande parte, de
caráter regional gauchesca. No entanto, a melodia em si está baseada na escala cromática, isto é,
na escala dos doze sons sem hierarquia. Ou seja, a motivação gauchesca espelha-se no
movimento melódico dos períodos, em sua inflexão, em seu gesto, no qual o cromatismo rítmico já
mencionado sintetiza-se no movimento gestual da melodia, fato que a direciona, porém, não a
determina. As notas propriamente ditas foram definidas de acordo com a idéia de fugir, na
medida do possível, das notas pré-estabelecidas pelos acordes vigentes em cada compasso, a fim
de agregar notas ao pano de fundo harmônico, o que não relaciona, diretamente, a melodia ao
regionalismo gauchesco. Portanto, apesar de possuir motivação gauchesca (o que se verifica no
movimento gestual melódico), a melodia tem suas notas determinadas pela decisão composicional
de enfatizar notas que não pertençam ao acorde vigente. Nessa ótica, Persichetti escreve:
Qualquer som pode suceder a qualquer outro som, qualquer som pode soar simultaneamente com qualquer
outro som ou sons, e qualquer grupo de sons pode ser seguido por qualquer outro grupo de sons, assim
147
como qualquer grau de tensão ou matiz pode dar-se em qualquer meio sob qualquer classe de acento ou
duração. A eficácia do projeto dependerá das condições contextuais e formais que predominem, e da
destreza e do espírito do compositor (Ibid., p. 11).
Figura 138: Relação harmonia/melodia em Rinascita (c. 1-8).
Ainda sobre a fuga das notas da melodia em relação à harmonia, o mesmo autor salienta
que “os sons ornamentais não-harmônicos são inerentemente instáveis devido a sua contrária
ação interválica para o acorde” (Ibid., p. 233). No entanto, em Rinascita, a intenção não é de
promover ação interválica contrária aos acordes, e sim, completá-los, visto que a peça foi
composta para uma formação reduzida, um quinteto, e muitas vezes se tem a necessidade de
ampliar o contexto harmônico, por razões estéticas. Além disso, não se trata aqui de sons
ornamentais não-harmônicos a uma melodia, e sim a melodia em si ‘não-harmônica’.
Segundo Persichetti, “um ostinato é um segmento melódico bem definido, insistentemente
repetido” (Ibid., p. 244). Em se tratando de música contemporânea, certos conceitos podem ser
modificados, como no caso do uso do ostinato em Rinascita. Na parte B, durante alguns compassos,
surge um movimento melódico claramente definido, que figura como acompanhamento na mão
esquerda do piano e dobrada pelo contrabaixo, formado por quintas justas consecutivas, sempre
em número de quatro, as quais se alternam com compassos em branco, ainda que suas notas
sejam sustentadas pelo pedal do piano que fica preso durante toda esta parte. Mesmo que este
segmento melódico seja formador da harmonia vigente, configura-se como um padrão medico
que é repetido várias vezes, primeiramente em movimento ascendente por quatro vezes e depois
em movimento descendente, desta vez por cinco vezes. Trata-se, aqui, sim, de um ostinato. No
entanto, o que diferencia o ostinato de Rinascita do ostinato definido por Persichetti é a repetição,
148
que em Rinascita aparece variada em relação à altura das notas, o que, por definição, não é próprio
do ostinato tradicional. Contudo, por sua definição melódica e sua repetição interválica, ainda que
em alturas diferentes, considero como ostinato os segmentos em questão, utilizados em Rinascita:
Figura 139: Ostinati em Rinascita (c. 74-77).
As demais idéias melódicas ou foram de inspiração gauchesca, ou pertencem ao âmbito
da criatividade, da intuição e da composição livre, ou partiram de reuniões com o professor
orientador ou de discussões composicionais oriundas da disciplina Seminário Avançado em
Composição II, para a qual Rinascita figurou como trabalho composicional final, como já foi dito.
Há ainda as iias pertinentes à manipulação gestual, que serão abordadas oportunamente.
6.2.3 - Quanto ao ritmo
Uma das principais idéias rítmicas de Rinascita é a sobreposição, durante quase toda a
peça, de uma melodia ternária a um acompanhamento acordal quaternário. A idéia tem motivação
gauchesca do ponto de vista da decisão de utilizar uma melodia baseada no gênero chamamé, que é
ternário. No entanto, a decio de deslocar o acompanhamento acordal tem raiz em Persichetti:
O compasso é uma medida do ritmo. Não tem ritmo em si mesmo; representa quando o pulso rítmico
coincide com os pontos métricos. As partes fortes e fracas se produzem onde quer que a linha musical os
coloque, indiferente do compasso. (...) Duas linhas de sons de variados valores coincidindo em pontos
ocasionais fluirão sem um sentimento de caos (Ibid., p. 216).
Mais especificamente, em Rinascita dá-se uma combinação de três sobre quatro, o que
desloca a acentuação do primeiro tempo da melodia sobre os tempos do acompanhamento
acordal. A cada três ciclos ternários da melodia, esta volta a coincidir com o primeiro tempo do
acompanhamento acordal, mas como este troca de acorde a cada dois ciclos quaternários, apenas
a cada oito ciclos ternários ou seis ciclos quaternários o primeiro tempo melódico coincide com o
149
primeiro tempo acordal e a troca de acordes simultaneamente. Isto coincide exatamente ao final
de um antecedente de período e ao início do conseqüente do mesmo, ou mesmo à mudança de
período, o que indica que a decisão rítmica e sua relação três sobre quatro interferiu tanto na
forma da peça quanto na elaboração melódica. A este processo, ou seja, quando “duas ou mais
frases rítmicas de duração desigual podem ser repetidas cada uma até o retorno da combinação
original(Ibid., p. 217), ainda que, neste caso, não haja repetição exata de um padrão rítmico,
apenas a manutenção de uma frase de organização ternária sobre um acompanhamento acordal
quaternário, Persichetti chama de poli-ritmo:
Figura 140: Utilização de melodia terria sobre acompanhamento acordal quaternário em
Rinascita (c. 13-16).
Ainda que de motivação gauchesca, a ampla utilização de acentuações deslocadas dos
tempos fortes tem também raiz em Persichetti:
Ainda que o sincopamento implique em uma deslocação de um pulso estabelecido, não necessariamente se
opõe ao compasso. Se o pulso estabelecido não está de acordo com o compasso os acentos sincopados
poderiam ser paralelos a ele. (...) As linhas melódicas e harmônicas podem ser sincopadas de maneiras
opostas: a linha melódica sincopada contra o pulso harmônico; o ritmo harmônico sincopado contra o
pulso melódico; ou ambos pulsos harmônico e melódico sentidos em comparação com um pulso
contrastante de compassos precedentes. (Ibid., p. 218).
Então, paralelamente ao compasso estabelecido, à organização ternária da melodia e à
organização quaternária do acompanhamento acordal, o amplo uso de acentuações deslocadas
150
numa utilização de motivação gauchesca, onde estas acentuações são um dos principais
elementos característicos – foi-se desenvolvendo a rítmica de Rinascita:
Figura 141: Trecho com proeminência sincopada em Rinascita (c. 71-77).
Um recurso utilizado pontualmente em Rinascita foi o alargamento rítmico, pois “qualquer
parte de uma figura rítmica pode ser alargada por um som, um silêncio, ou um ponto de
aumento(Ibid., p. 218). Usou-se este recurso como retrógrado tmico na frase cadencial que
151
separa a parte A da parte B, a fim de conquistar maior dramaticidade e de efetuar a preparação para
a entrada em uma parte de andamento mais lento:
Figura 142: Alargamento rítmico em Rinascita (c. 55-60).
Outro recurso utilizado, mas este em mais oportunidades que o anterior, foi o iso-ritmo.
Segundo Persichetti, “quando uma ou mais vozes de sons variáveis aderem a um simples modelo
rítmico, existe um iso-ritmo” (Ibid., p. 219). Ainda sobre o iso-ritmo, o mesmo autor acrescenta
que “no iso-ritmo, os níveis de afinação são livres e usados com um modelo rítmico repetido”
(Ibid., p. 220). Em Rinascita, por razões gestuais, o iso-ritmo foi utilizado em diversas ocasiões,
variando ora as alturas, ora a direção, ora a instrumentação. Muitas vezes o iso-ritmo estende-se
de um instrumento a outro, a fim de completar o gesto em questão. Portanto, em Rinascita, o iso-
ritmo foi tratado gestualmente:
152
Figura 143a: Iso-ritmo em Rinascita (c. 1-8).
153
Figura 143b: Iso-ritmo em Rinascita (c. 9-16).
“O equivalente tonal [ou atonal] dos ritmos de percussão (instrumento de som
indeterminado) é o som melódico repetido” (Ibid., p. 223). Isto é de vital importância, não só para
a composição de Rinascita, ou para a composição da peça principal desta dissertação, mas para
154
todo este trabalho. Em todos os gêneros musicais gauchescos, o acompanhamento rítmico é feito
quase que exclusivamente por instrumentos de alturas definidas, o que tem conseqüências
musicais previsíveis. Na falta de instrumentos de percussão, os instrumentos de altura definida,
ao repetirem notas sob os padrões rítmicos de cada gênero, instituem o acompanhamento básico
de cada um, o que nos fornece a exata célula tmica ou células rítmicas características de cada
um. Estes padrões de acompanhamento são a rítmica de cada gênero, o que, no caso dos gêneros
gauchescos, consiste no principal elemento característico. “O ritmo, de acentuação e duração,
pode servir por um espaço de tempo como elemento compositivo principal” (Ibid., p. 223):
155
Figura 144: Percussão melódica em Rinascita (c. 51-58).
156
Um último fator rítmico utilizado em Rinascita e que encontra suporte em Persichetti é o
uso de silêncios. Segundo o autor:
O silêncio é um potente fator criativo. Pode ajudar à luminosidade da textura e projetar as figuras temáticas.
(...) Os silêncios precedendo a entradas novas adicionam interesse a linhas melódicas largas. (...) Os silêncios
podem incrementar o momento harmônico; uma interrupção de um acorde de alta tensão por meio de um
silêncio, produz uma corrente interna de expressão harmônica. (...) Os silêncios têm um poder rítmico. Em
uma conduta estabelecida por acentos, um pulso de silêncio tem mais força que um som (Ibid., p. 229).
A seguir, exemplos de utilização de silêncios em Rinascita:
157
Figura 145: Silêncios em Rinascita (c. 1-8).
Portanto, como afirma Persichetti, “o ritmo da melodia, harmonia e o matiz dinâmico,
gera forças musicais que podem ser justapostas de muitas formas para criar variedade das
158
condições climáticas” (Ibid., p. 229). Assim desenvolveu-se ritmicamente Rinascita, para além das
motivações gauchescas e gestuais.
6.3 - Da utilização do material gauchesco
Rinascita baseou-se, desde o início de seu processo composicional, em materiais musicais
do gênero musical gaúcho chama. Várias caractesticas, como a melodia de ênfase ternária, as
acentuações nos contratempos, o padrão rítmico e as variações rítmicas do nero, os staccati,
tudo isto foi utilizado desde o esboço da peça. Aos poucos, estes elementos foram adquirindo um
pensamento gestual, tanto na disposição da melodia quanto nos gestos mais curtos, inseridos ao
longo do processo.
No entanto, nos transcorrer do processo composicional, Rinascita também ganhou
elementos de outro nero, ou sub-gênero, a milonga arrabaleira, uma variante de milonga, mais
precisamente no contrabaixo, na segunda metade da parte A, c. 31-60, sobrepostos aos elementos
de chamamé, além das tercinas utilizadas na citação ornitológica, da parte B, que será descrita em breve.
Como pudemos observar no capítulo destinado às transcrições dos gêneros gauchescos, o
chamamé e a milonga arrabaleira são gêneros contrastantes, e a sobreposição dos mesmos nos já
referidos trechos de Rinascita acrescentou dramaticidade e também variação rítmica.
A utilização direta dos materiais gauchescos foi detalhada no item 6.1 - Dos caminhos
criativos sugeridos pelos elementos gauchescos. Resta-nos, então, detalhar a utilização destes materiais
quanto ao gesto e quanto ao motivo, o que faremos a seguir.
6.3.1 - Quanto ao gesto
De acordo com o caminho teórico por nós traçado anteriormente, o processo
compositivo de Rinascita relaciona-se com um pensamento gestual, de acordo com a condução ou
interação gestual, que, juntamente com o conceito de gesto musical (sonoridade ou movimento que significa)
em oposição ao motivo (notas ou construção com simples parâmetros), configuram nossa motivação
estética. Portanto, a partir desta motivação, utilizamos os vários gestos que integraram a melodia
principal e suas subdivisões, bem como gestos mais curtos, de caráter secundário, porém
fundamentais.
159
A seguir, iremos listar os principais gestos e suas características mais importantes, ligadas
aos materiais gauchescos, bem como as reconfigurações gestuais e as interações mais relevantes
entre estes gestos.
O gesto inicial da peça dá-se entre a viola e o piano; a melodia principal encontra-se na
viola, e o suporte harmônico e impulso no piano:
Figura 146: Gesto principal A de Rinascita (c. 1-2).
A ascendência chamamecera é evidente na divisão ternária da melodia, marcada com
acentos na parte da viola. O suporte harmônico, no primeiro compasso, irrompe na colcheia em
forte no segundo, impulsionando a melodia da viola. É um gesto em crescendo, que parte da inércia
inicial e fornece, no arpeggio em forte do primeiro acorde da peça, dissonante e estranho à melodia,
a o ímpeto necessário ao começo do desenrolar de Rinascita. E, assim como acontece com a
dinâmica, que cresce, cresce também o ritmo da melodia em relação ao primeiro compasso,
reforçando o caráter de primeiro impulso gestual.
no final do segundo compasso, na mão direita do piano, começa o segundo gesto,
ainda executados exclusivamente pela viola e pelo piano, e que é completado por um gesto
secundário, mais curto, na mão esquerda do piano:
Figura 147: Gesto principal B (c. 2-4) e gesto secundário a (c. 4) de Rinascita.
160
Na viola, o gesto principal B tem ainda forte ligação com o chamamé, visto as acentuações
no contratempo do primeiro e segundo tempos de uma divisão ternária, que configuram
exatamente o padrão rítmico deste gênero. Também ocorre a divisão de duas semínimas num
compasso ternário, outra característica do chamamé. O movimento da viola é ascendente até a
penúltima nota. Paralelamente a este movimento, ocorre um movimento descendente na mão
direita do piano, ampliando, assim, a tessitura do gesto. Exatamente no ponto onde o gesto
termina na mão direita do piano e torna-se descendente na viola, ocorre o gesto secundário a, curto,
em forte e grave, estritamente relacionado com o chamamé, pois faz referência à batida do violão
para este gênero, inclusive utilizando os arpeggi, característicos do violão no chamamé. Este gesto
secundário amplia ainda mais a tessitura gestual, como que antevendo a ampliação inevitável do
movimento até os instrumentos que ainda não entraram na trama, que são o contrabaixo e os
sopros.
Em seguida, ocorre o começo da atuação do contrabaixo e dos sopros, cumprindo a
previsão de ampliação indicada pelo movimento gestual precedente:
Figura 148: Gesto principal C de Rinascita (c. 5-7).
161
O movimento gestual amplo, que utiliza pela primeira vez na peça todos os instrumentos
do grupo de câmara que a executa, começa na flauta, que pára na nota
4
. O movimento, no
entanto, não estaciona, e tem continuidade no clarinete, a partir da nota Si
3
, um semitom abaixo
da nota estacionária da flauta, culminando, tanto a flauta quanto o clarinete, em frulatti com
articulações distintas, em notas longas. Paralelamente a este movimento, que é, na verdade, a
melodia principal, que no esboço da peça continuava na viola, mas que agora é dos sopros,
acontece uma frase agitada na mão direita do piano, que acrescenta mais ímpeto ao gesto e que
prepara para a continuação da melodia na viola, até então estacionada na nota Si
2
. A mão
esquerda do piano, antes executante de um gesto secundário, agora integra o gesto principal, com
notas em contratempo, culminando em acorde em arpeggio. Neste momento, o contrabaixo entra
na trama, concluindo o movimento de alargamento gestual. O gesto termina com a continuidade
da melodia na viola, agora com o suporte do grave do contrabaixo, impulsionada por frase rápida
na mão direita e acorde em arpeggio na mão esquerda do piano.
Este conjunto gestual, de gesto principal A, gesto principal B, gesto secundário a e gesto principal C,
é a idéia central de toda a primeira metade da parte A da peça, pois ele é reconfigurado por três
vezes, o que está relacionado com a derivação motívica dos períodos melódicos compostos no
esboço e que permanece na versão final. Este assunto será abordado no próximo item.
Na primeira reconfiguração do conjunto gestual apresentado, o gesto principal A aparece
reconfigurado da seguinte maneira:
162
Figura 149: Primeira reconfiguração do gesto principal A de Rinascita (c. 7-8).
Alguns traços do gesto original permanecem: embora esteja interagindo com o final do
gesto principal C, o início da primeira reconfiguração do gesto principal A se dá com um movimento
descendente na mão direita do piano que culmina num acorde em arpeggio de colcheia em forte,
com o suporte da mão esquerda e, desta vez, também do contrabaixo; a viola começa em crescendo,
embora em apenas uma nota, e depois a rítmica é semelhante, com base o padrão rítmico do
chamamé, de divisão ternária, e o caráter de impulso continua, pois este gesto serve como uma
retomada do discurso musical. Contudo, a reconfiguração é evidente: a interação com o gesto
anterior, quando o gesto original partia do nada; há o apoio do contrabaixo; e as notas integrantes
do gesto são diferentes, principalmente na parte da viola.
Logo após, temos a primeira reconfiguração do gesto principal B e do gesto secundário a:
163
Figura 150: Primeira reconfiguração do gesto principal B (c. 9-10) e do gesto secundário a (c. 10) de
Rinascita.
Na viola, a primeira reconfiguração do gesto principal B tem um sentido parecido com o
gesto original, embora em outras notas. Porém, a direção das duas semínimas pontuadas finais é
invertida: agora o movimento é ascendente. A frase da mão direita do piano continua na direção
oposta à parte da viola, no mesmo movimento de ampliação gestual do gesto original, mas com
outra rítmica e outras notas, além do suporte do contrabaixo. Esta frase, como antes, culmina
num gesto secundário. A primeira reconfiguração do gesto secundário a apenas altera as alturas das
notas, agora um pouco mais agudas.
E então, concluindo a primeira reconfiguração do conjunto gestual central da parte A,
temos a primeira reconfiguração do gesto principal C:
164
Figura 151: Primeira reconfiguração do gesto principal C de Rinascita (c. 11-12).
Nesta reconfiguração, o gesto perde um compasso, pois o que no gesto original era o seu
terceiro compasso agora dá lugar ao primeiro compasso do gesto posterior, a segunda
reconfiguração do gesto principal A, embora isto se de maneira interagida. A principal mudança
desta reconfiguração é o movimento dos sopros, que originalmente era descendente, da flauta
para o clarinete, e que agora é ascendente, do clarinete para a flauta, mas de maneira semelhante à
original, pois a flauta segue o movimento a partir da nota estacionária do clarinete em um
semitom, ainda que desta vez esta esteja transposta uma oitava abaixo. Há o apoio do
contrabaixo desde o início do gesto, e a frase do piano é trocada por acordes.
Concluída a primeira reconfiguração, completamos o período a (antecedente) da parte A
de Rinascita, já escrito no esboço da peça, faltando apenas sua conclusão interagida com o gesto
posterior, que se dá no compasso 13. Como podemos notar, apesar da melodia ter uma ligação
com o motivo e com os períodos melódicos, ela recebeu um tratamento gestual. O período a’
(conseqüente) é, na verdade, uma reconfiguração do período a (antecedente).
A seguir, a segunda e terceira reconfigurações do conjunto gestual central que,
culminando numa codeta, completarão o período a’ (conseqüente) da parte A de Rinascita:
165
Figura 152: Segunda reconfiguração do gesto principal A de Rinascita (c. 13-14).
Figura 153: Segunda reconfiguração do gesto principal B (c. 15-16) e do gesto secundário a (c. 16) de
Rinascita.
166
Figura 154: Segunda reconfiguração do gesto principal C de Rinascita (c. 17-19).
Figura 155: Terceira reconfiguração do gesto principal A de Rinascita (c. 19-20).
167
Figura 156: Terceira reconfiguração do gesto principal B (c. 21-22) e do gesto secundário a (c. 22) de
Rinascita.
Figura 157: Terceira reconfiguração do gesto principal C de Rinascita (c. 23-24).
168
Figura 158a: Codeta da parte A de Rinascita (c. 25).
Figura 158b: Codeta da primeira metade da parte A de Rinascita (c. 26-30).
169
A segunda metade da parte A de Rinascita, ou seja, os períodos b (antecedente) e b’
(conseqüente), tem um pensamento gestual mais discreto. Nela os gestos secundários e suas
reconfigurações servem de acompanhamento à melodia que está nos sopros e à ágil linha do
contrabaixo. A seguir, os gestos secundários utilizados e suas reconfigurações na segunda metade
da parte A:
Figura 159: Gestos secundários na segunda metade da parte A de Rinascita (c. 31-34).
Figura 160: Gestos secundários e reconfigurações na segunda metade da parte A de Rinascita (c. 35-38).
170
Figura 161: Gestos secundários e reconfigurações na segunda metade da parte A de Rinascita (c. 39-42).
Figura 162: Gestos secundários e reconfigurações na segunda metade da parte A de Rinascita (c. 43-46).
171
Figura 163: Reconfigurações de gestos secundários na segunda metade da parte A de Rinascita (c. 47-50).
Figura 164: Reconfigurações de gestos secundários na segunda metade da parte A de Rinascita (c. 51-54).
A parte B de Rinascita também tem um pensamento gestual tímido, pois se resume a: um
gesto secundário na mão esquerda do piano e no contrabaixo, sob a forma de ostinato, e suas
172
reconfigurações; e um gesto secundário na viola, sob a forma de glissando, e suas reconfigurações.
Estes gestos secundários e reconfigurações servem de acompanhamento à linha da mão direita do
piano e à parte colorística dos sopros, relacionada com o canto do quero-quero. A seguir, os
gestos secundários utilizados e suas reconfigurações na parte B:
Figura 165: Gestos secundários e reconfigurações na parte B de Rinascita (c. 61-63).
173
Figura 166: Reconfigurações de gestos secundários na parte B de Rinascita (c. 64-65).
Figura 167: Reconfigurações de gestos secundários na parte B de Rinascita (c. 66-67).
174
Figura 168: Reconfigurações de gestos secundários na parte B de Rinascita (c. 68-70).
Figura 169: Reconfigurações de gestos secundários na parte B de Rinascita (c. 71-73).
175
Figura 170: Reconfigurações de gestos secundários na parte B de Rinascita (c. 74-77).
Na coda, reaparece o gesto inicial, numa reconfiguração, relembrando o impulso gerador
da peça:
Figura 171: Reconfiguração do gesto principal A na coda de Rinascita (c. 85-87).
Assim, pudemos vislumbrar a estrutura gestual utilizada em Rinascita, bem como sua
ascendência chamamecera. No entanto, também temos a utilização de materiais da milonga
arrabaleira na produção de um gesto de acompanhamento no contrabaixo, e suas
176
reconfigurações, que agregam dramaticidade, tensão e variedade rítmica à segunda metade da parte
A da peça:
Figura 172: Gesto secundário i e reconfigurações para o contrabaixo na segunda metade da parte A de
Rinascita (c. 31-60).
Contudo, ainda restam algumas questões relacionadas ao pensamento gestual. Uma delas
é o cromatismo rítmico, já mencionada anteriormente. Este termo, por s assim definido,
representa uma maneira de dar inflexão ao ritmo, em referência às inflexões melódicas corriqueiras
no falar e no cantar do gaúcho, que agregam à melodia uma ambientação mais rude. Muitas
vezes, os icios de frases, ou os tempos fracos que antecedem a parte da frase que cai no
primeiro tempo de um compasso, são exagerados, tornando o ritmo correto da melodia um
pouco atropelado. Na nossa produção gestual, estas inflexões transformaram-se em cromatismos
rítmicos, ou seja, o cromatismo aparece, freqüentemente, nas notas rápidas que antecedem os
tempos fortes, de maneira semelhante às inflexões gauchescas:
177
Figura 173: Cromatismos rítmicos em Rinascita (c. 1-8).
Outra questão é a citação ornitológica, também comentada. Ao pensarmos na composição
da parte colorística para a flauta e o clarinete, lembramos que estes instrumentos de sopro m
um timbre que, de certa forma, se assemelha ao canto de pássaros. Como a motivação
composicional é a cultura gaúcha, surgiu a idéia de criar um gesto que lembrasse o canto do
178
quero-quero, considerado pássaro símbolo da pampa. Assim, criamos um gesto a partir da citação
ornitológica do canto do quero-quero para a parte colorística dos sopros, o qual se desenvolve,
aumentando seu distanciamento ao canto original. Este canto, que contém figurações em
tercinas, usuais na milonga arrabaleira, é intercalado por frases rápidas, pausas e staccati, e
contrasta com o restante do instrumental, mais lento ritmicamente:
179
Figura 174a: Citação ornitológica em Rinascita (c. 61-65).
180
Figura 174b: Citação ornitológica em Rinascita (c. 66-70).
181
E, por fim, o portamento, outra questão já citada anteriormente. Representado pelos gestos
secundários d, e, e h, exemplificados nas figuras anteriores, tem nos glissandi a característica
gestual em comum. O gaúcho é, muitas vezes, contemplativo. Fica a olhar o campo, a chuva, os
animais, o céu, enfim, a natureza. Esta contemplação tem um ar bucólico, campesino, de
simplicidade. Os portamenti o a transferência de suspiros, murmúrios, inflexões pensativas e
contemplativas do gaúcho para um pensamento gestual. Os portamenti constituem gestos de
contemplação, que aparecem junto à citação ao quero-quero, por exemplo, e que intentam
acrescentar nostalgia.
Portanto, pudemos averiguar como se deu o pensamento gestual, de acordo com a condução
ou interação gestual, que, juntamente com o conceito de gesto musical (sonoridade ou movimento que
significa), configuram nossa motivação estética, na composição de ensaio Rinascita. Porém, resta
ainda comentarmos a utilização do material gauchesco quanto ao motivo, o que faremos a seguir.
6.3.2 - Quanto ao motivo
Rinascita pode ser considerada uma obra de transição entre os conceitos de motivo e de
gesto. Basicamente, podemos averiguar que, em seu esboço, a construção melódica se baseia, em
toda a parte A, em períodos antecedentes e conseqüentes, ou seja, uma melodia ligada à
construção interválica e rítmica com uma harmonia inerente, uma construção motívica com
elementos gauchescos, portanto.
Evidentemente, analisando o resultado da versão final, podemos constatar que foi dado
um tratamento gestual a esta construção motívica, distribuindo a melodia entre os instrumentos,
criando gestos secundários, dando direcionalidade gestual, imprimindo características holísticas
aos segmentos melódicos, agregando timbres e dinâmicas importantes e diferenciadoras,
reconfigurando os gestos, interagindo gestos, etc. Porém, sua origem motívica interferiu na
construção gestual. Rinascita é, pois, uma composição híbrida, no sentido de que abriga
características de construção motívica, as quais foram tratadas gestualmente a posteriori.
A seguir, exemplificamos a origem motívica e o posterior tratamento gestual de um
trecho de Rinascita:
182
Figura 175: Origem motívica em Rinascita, esboço (c. 1-8).
183
Figura 176: Tratamento gestual em Rinascita, versão final (c. 1-8).
184
6.4 - Dos desdobramentos
Após a composição e a análise de Rinascita, pudemos verificar que a utilização de
elementos musicais gauchescos pode ser aplicada de diversas formas. Em Rinascita, por exemplo,
primeiramente utilizamos materiais do gênero chamamé na construção, ainda motívica, da linha
melódica do esboço, a qual persistiu até a versão final. Esta linha melódica foi construída em
divisão ternária, própria do chamamé, porém, sobre um pano de fundo harmônico de divisão
binária, o que provocou uma sensação mais intensa de atividade rítmica, característica dos
gêneros gaúchos. Depois, as construções motívicas da linha melódica foram tratadas
gestualmente, ainda que a origem motívica tenha interferido na construção dos gestos,
características estas que apontam Rinascita como uma composição de transição entre o
pensamento motívico, de características tonais, e o pensamento gestual, de características mais
livres. O pensamento gestual ajudou a guiar o transcorrer da peça, pois ao mesmo tempo que se
mostra amplo e maleável, acrescenta sentido e coesão às idéias musicais. Também foram
utilizados, paralelamente aos materiais do chamamé, materiais da milonga arrabaleira, mostrando
que se pode utilizar materiais de mais de um gênero musical gaúcho numa mesma peça ou seção.
Além dos materiais transcritos do chamamé e da milonga arrabaleira, apresentados e analisados
no capítulo destinado às transcrições dos gêneros gauchescos, foram utilizados, na criação dos
gestos, idéias como o cromatismo rítmico, a citação ornitológica e o portamento, demonstrando que
podem ser aproveitados outros traços da cultura gaúcha para a composição gestual. E por fim,
várias técnicas composicionais contemporâneas foram estudadas e se mostraram propícias para
serem utilizadas junto aos materiais gauchescos, pois o resultado foi equilibrado, deixando
transparecer a origem gauchesca dos materiais ou ao menos uma origem peculiar, caso o
ouvinte não reconheça os materiais gauchescos e mantendo uma estrutura composicional
contemporânea.
Ainda que seja uma peça curta, Rinascita é escrita para um número razoável de
instrumentos, o que se mostrou interessante para o pensamento gestual, pois os gestos podiam
percorrer os instrumentos numa determinada direção, e depois ter este caminho alterado. Isto
também facilitou a interação entre os gestos, pois enquanto um gesto era concldo em alguns
instrumentos, outro podia começar nos outros instrumentos. O elemento timbre foi fundamental
para a construção e a percepção holística dos gestos.
Enfim, a composição de Rinascita foi fundamental para mim, pois nela pude experimentar
a interação entre material folclórico gauchesco e música contemporânea de maneira a amadurecê-
185
la. Estando eu ainda muito ligado à música tonal e a sua construção motívica, tive em Rinascita a
oportunidade de fazer a transição entre o pensamento motívico e o pensamento gestual, num
renascimento composicional que deve se espelhar na composição principal deste trabalho. Além
disso, as várias técnicas composicionais estudadas durante a composição de Rinascita e os
procedimentos adotados perante a utilização dos materiais gaúchos podem servir também para a
composição principal. Rinascita serviu para preparar o terreno para uma composição de maior
envergadura, embora para um grupo instrumental mais reduzido. A seguir, portanto, passaremos
a apresentar e a analisar a composição principal deste trabalho: O rio de São Pedro.
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Memorial descritivo: O rio de São Pedro
A composição O rio de São Pedro sintetiza, neste trabalho, a aplicação dos elementos
musicais gauchescos estudados e dos estudos composicionais numa composição contemporânea.
É nela que se pretende desenvolver as etapas anteriores deste trabalho. Os neros gauchescos
estudados, a questão do gesto e do motivo, a transposição do folclore para o ambiente
contemporâneo, as técnicas composicionais, tudo isto se reflete em O rio de São Pedro.
A fim de demonstrar o processo composicional detalhadamente, este memorial descritivo
contempla desde as minhas inspirações até as questões técnico-compositivas utilizadas. A seguir,
serão expostas a estrutura da peça e as escolhas temáticas; o programa da composição; as decisões
de caráter criativo decorrentes dos caminhos pelos quais o lidar com os elementos gauchescos
sugeriram; as técnicas composicionais desenvolvidas por outros compositores, de aplicabilidade a
este processo composicional; e as questões pertinentes especificamente à utilização do material
gauchesco referentes ao gesto e ao motivo, além dos possíveis desdobramentos deste processo
composicional.
8.1 - Da estrutura e das escolhas temáticas
Conta-se que um navegador português, ao explorar a costa do atual estado do Rio Grande
do Sul, avistou o que pensou ser a foz de um grande rio, dadas suas dimensões, quando na
verdade navegava próximo ao local onde a Lagoa dos Patos deságua no mar. No dia em que
avistou o tal local, a igreja católica celebra a Cátedra de Pedro, ou cadeira de São Pedro, em
lembrança do dia em que esta foi levada a Roma, motivo pelo qual o navegador batizou o
suposto rio de “Rio de São Pedro”. Este nome ou esta referência manteve-se, ao longo do
tempo, para designar o estado gaúcho, sob diversas formas. Ainda hoje, “Rio Grande do Sul” faz
referência ao suposto rio grande, bem como no linguajar gauchesco refere-se ao estado como
“Província de São Pedro”. De acordo com Souza & Souza:
Em 1531, uma frota foi confiada a Martin Afonso de Souza, que tinha como objetivo expulsar os corsários
franceses da Costa brasileira, além de ir até o sul do estuário do Rio da Prata e fundar um ou mais núcleos
de povoamento. A navegação foi feita próxima da Costa, permitindo observações que resultariam na
descoberta de vários acidentes geográficos, entre os quais, a barra por onde o caudal da Lagoa dos Patos é
despejado no Oceano Atlântico. Era o dia em que o calendário eclesiástico recorda a Cátedra de Pedro, que
partindo de Antioquia, chegara a Roma para iniciar, no poderoso Império, a pregação do Cristianismo. A
data inspirou o topônimo equivocado: Rio de São Pedro. Posteriormente, para diferenciar de outro rio, que
265
levava o mesmo nome do padroeiro, passou a ser chamado de Rio Grande de São Pedro, devido a sua
grande dimensão (SOUZA & SOUZA, disponível em www.mikrus.com.br).
A peça O rio de São Pedro divide-se em três seções. A primeira seção, Baile na Sanga Funda, é
dividida em três sub-seções: Florêncio e China Rita, de caráter alegre e dançante, tratando-se de um
baile, onde os eventos musicais são norteados por personagens-guia e onde os elementos dos
gêneros gauchescos mais notadamente dançantes, como a vaneira, a rancheira, o chote, a
chamarra e o chamamé, são privilegiados, bem como o enfoque melódico; Duelo com Estácio
Valente, de caráter mais tenso e gestual, pois se trata do duelo, durante o baile, entre dois
personagens pelo amor da outra personagem, tendo os gestos papel importante na orientação do
duelo; e De volta pras casa, de caráter melancólico, lento e melódico, que espelha a despedida do
casal, que após o baile volta para as suas casas. a segunda seção, A cor rubra, é de caráter
sombrio, tenso e triste e espelha o lado obscuro da história gaúcha no tocante à ligação do estado
com sucessivos conflitos armados e guerras, onde a cor rubra simboliza o sangue derramado em
nome das guerras, e onde o elemento ritmo, característico e representativo dos neros
gauchescos, é a tônica do desenrolar composicional. Esta seção divide-se também em três sub-
seções: Memória de um farrapo, onde gestos são configurados, reconfigurados e sobrepostos, a fim
dramatizar a característica fugidia da memória, quando muitas vezes fatos ou eventos vêm à tona
ou escapam, simultaneamente ou não; Guerra do Paraguay, que reflete o conflito em que o Rio
Grande do Sul teve importante participação, sendo que cada país envolvido é representado por
um gênero característico; e O vento morno da morte, sub-seção baseada no personagem vento, que
após uma batalha, espalha os horrores da guerra. E, por fim, a terceira seção, O campo e a chuva,
que é de caráter devoto, contemplativo, sóbrio, esperançoso e bucólico, onde os elementos
gauchescos tecem-se a formar um todo, enquanto o gaúcho observa, introspecto, a chuva cair no
campo. Divide-se em duas sub-seções: Amanhecer na pampa, lenta, com enfoque harmônico, que
aos poucos ganha força e movimento, dando início ao dia; e Mateando solito, também lenta, onde
um gaúcho, inicialmente sisudo e triste, aos poucos, ao contemplar a natureza que se exibe, o
campo, a chuva e o amanhecer, se enche de esperança.
O motivo pelo qual a peça assim foi dividida deve-se ao desejo de contar com três seções
bem distintas musicalmente, a fim de abarcar o maior número de possibilidades composicionais,
e também tematicamente, pois compreende as temáticas do baile, da guerra e do campo, três
elementos fortemente presentes na cultura gaúcha.
O baile é uma temática gaúcha bastante característica, dada sua origem rural e sua
influência na música gauchesca. Freqüentemente os gêneros musicais gauchescos são chamados
266
de danças gaúchas devido a sua excelência dançante. Todos os neros gauchescos são dançados
em bailes, que são o seu principal disseminador. É um ambiente rural de festa, onde as pessoas se
divertem, dançam, flertam, e brigam também, muitas vezes por amor.
A guerra é uma temática marcante do povo gaúcho. Dada sua posição geográfica, de
fronteira com o Uruguai e a Argentina, o estado do Rio Grande do Sul sempre foi palco de
disputas territoriais. Além disso, a Revolução Farroupilha revolta contra o Império Brasileiro
por descontentamento político e econômico e a própria criação da República Rio-Grandense,
decorrente daquela revolta, ajudaram a imprimir na cultura gaúcha a exaltação de valores como a
valentia, a coragem, a bravura, a honra, o aguerrimento e o orgulho, o que se traduz no jeito de
ser do gaúcho. No entanto, apesar de ser um elemento formador da cultura gaúcha, guerras
sempre são guerras, e deixam rastros de crueldade e de injustiça. Inúmeros são os epidios
sangrentos e terríveis. Em O rio de São Pedro, esta temática tem uma ambiência triste e tensa.
E o campo também é uma temática característica gauchesca. O estado do Rio Grande do
Sul sempre teve vocação pastoril. Grandes propriedades, criação de gado, produção de charque,
de carne, grandes plantações. A ligação do gaúcho com a paisagem da pampa, dos campos vastos,
das várzeas e coxilhas, das planuras, do verde sem fim e o que ele contém, os rios, os açudes, as
sangas, os cavalos, o gado, as lides, o galpão, o fogo de chão. A cultura gaúcha é essencialmente
rural. Em O rio de São Pedro, a temática do campo é contemplativa, é poética, é um gaúcho
chimarreando e bombeando, de seu galpão, o campo e a chuva.
8.2 - Do programa de O rio de São Pedro
Apesar de não se tratar de música programática, O rio de São Pedro foi composto a partir de
um programa, um roteiro, um texto base. Evidentemente, o que se ouve é a música, pois esta não
representa nada. A música não comunica. Não é uma linguagem. Não possui semântica ou sintaxe.
O que se ouve são as relações, os contrastes, as simetrias, as assimetrias. Como se diria, por
exemplo, “cuia de chimarrãoem Dó menor? No entanto, O rio de São Pedro foi inspirada num
programa, baseada neste, a fim de que a estrutura musical espelhe a estrutura do programa, sem a
intenção de representação. Cada uma das três seções da peça possui um título, o qual indica a sua
temática, e cada uma das seções possui sub-seções também tituladas, o que funciona também
como um indicador temático. Além disso, situações descritas no programa influenciam os
eventos musicais no decorrer da peça.
A seguir, o programa de O rio de São Pedro:
267
O rio de São Pedro
Programa
I
Baile na Sanga Funda
Florêncio e China Rita
Florêncio é o contrabaixo, China Rita é a viola, o
piano é apenas a ambientação do baile. Desde o
início os personagens parecem desencontrar-se, no
jogo do amor, até que, no final da sub-seção, ocorre
o acordo entre as partes e o peão e a prenda ficam
juntos.
Duelo com Estácio Valente
Florêncio é o contrabaixo, China Rita é a viola, e o
piano é o novo personagem, o rival de Florêncio
pelo amor de China Rita: Estácio Valente. Os dois
peões duelam por China Rita, que assiste a tudo e
torce por Florêncio. Após uma luta disputada,
Florêncio leva a melhor e ganha de vez o amor da
prenda querida.
De volta pras casa
Após o baile, Flo
rêncio (contrabaixo) leva sua
amada (viola) na garupa, em seu cavalo (piano), para
a casa dela. Um clima de nostalgia se impõe pela
despedida iminente. Ao deixar China Rita em casa,
Florêncio ruma para a casa dele, e a nostalgia e a
tristeza aumentam pela saudade que já afeta seus
corações.
II
A cor r
ubra
Memória de um farrapo
Um farrapo conta suas lembranças da Revolução
Farroupilha, mas sua memória, fugidia, rememora
fatos e eventos de maneira confusa, construindo-se
aos poucos, misturando-se, pois a percepção da
guerra, e sua dolorosa rememoração, são difíceis
para um soldado.
Guerra do Paraguay
O Paraguai (representado pelo gênero gauchesco
polca paraguaia, proveniente do Paraguai) invade o
Brasil na altura da Província de Mato Grosso
(representado pelo gênero guarânia, semelhante
brasileiro do chama argentino e gauchesco), dando
início ao seu plano expansionista. Em seguida,
invade a Argentina na altura da Província de
Corrientes (representado pelo gênero gauchesco
chamamé, proveniente de Corrientes, Argentina),
com o objetivo de chegar até o Rio Grande do Sul.
Após, invade o Rio Grande do Sul (representado
pelo gênero gauchesco milonga), em busca do apoio
de um grupo político do Uruguai (não representado
na composição, devido sua pequena participação na
guerra), para conquistar este país e assegurar um
porto para escoar sua produção. No entanto, Brasil,
Argentina e Uruguai formam a Tríplice Aliança e se
unem para contra-atacar o Paraguai e, por
conseguinte, reconquistar seus territórios e acabar
com as intenções paraguaias.
O vento morno da morte
O vento
, após uma batalha,
espalha os horrores da
guerra.
III
O campo e a chuva
Amanhecer na pampa
O amanhecer na pampa num dia chuvoso.
Mateando solito
Um gaúcho sisudo, ao contemplar o amanhecer,
o
campo e a chuva, aos poucos se enche de
esperança, mateando sozinho.
Figura 177: Programa de O rio de São Pedro.
268
Assim, apesar de possuir um programa, O rio de São Pedro não é música programática. O
programa foi elaborado para estruturar a peça, para nortear as seções e sub-seções, definir suas
temáticas e orientar os eventos musicais, e não para ser representado. Inclusive, muitas vezes, no
decorrer do processo composicional, por força de idéias musicais, o programa foi sendo alterado
ou adaptado, configurando uma relação flexível entre composição e programa, interferindo um
no outro. O programa serviu como suporte composicional e foi elaborado, não raro,
simultaneamente à música.
8.3 - Dos caminhos criativos sugeridos pelos elementos gauchescos
Assim como se deu no capítulo anterior, que analisou Rinascita, mais adiante, ainda neste
capítulo, será abordada a utilização do material gauchesco quanto aos gestos e quanto aos
motivos referentes à composição O rio de São Pedro, bem como as técnicas composicionais
estudadas. Portanto, neste sub-capítulo tratar-se-á estritamente dos caminhos criativos sugeridos
pelos elementos gauchescos os quais não estejam ligados ao gesto, ao motivo, e às técnicas
composicionais estudadas.
Assim como em Rinascita, procurou-se, nesta peça, utilizar amplamente o recurso da
acentuação em tempos fracos, a fim de promover uma atmosfera gauchesca, porém,
contemporânea, ou seja, utilizar, de maneira complexa e utilizando as técnicas composicionais
contemporâneas estudadas, as acentuações, sem deixar de lado sua inspiração gauchesca:
269
Figura 178: Acentuações em tempos fracos em O rio do São Pedro (c. 19-24)
Em O rio de São Pedro foram utilizados materiais de todos os neros gauchescos
estudados: a chamarra, o chote, a vaneira, o chamamé, a rancheira, a milonga, a polca paraguaia e
o bugio. No entanto, não houve um critério qualitativo ou quantitativo referente a estas
utilizações, pois o processo criativo foi colocado em primeiro plano. Não se procurou dividir as
seções ou sub-seções da peça em razão dos neros, ou os gêneros em razão das partes. Foi a
invenção compositiva que, artisticamente, utilizou os elementos dos gêneros gauchescos ao longo
da composição:
270
Figura 179: Gêneros gauchescos em O rio do São Pedro (c. 426-431)
Os staccati e os staccati com acentuações também são recursos usuais nos gêneros
gauchescos. Aparecem em inúmeras oportunidades, e colaboram para várias intenções
compositivas, como a dissociação de uma linha melódica de outra, o reforço de alguns trechos, a
dramaticidade e a tensão. Nos gestos, estes recursos são bastante importantes, pois ajudam na
perceão da direcionalidade gestual:
271
Figura 180: Staccati e staccati com acentuações em O rio do São Pedro (c. 11-18)
Outro elemento importante, também de inspiração gauchesca, são os glissandi, que neste
contexto dão um ambiente mais nostálgico às linhas melódicas, pois soam quase como um
portamento, ou seja, como alguém suspirando, numa inflexão reflexiva, bucólica, que se associa a
diversos elementos culturais gaúchos, como a paisagem contemplativa rural, o amor, ou a dor da
morte nas guerras. Pode também refletir um tombo ou impacto após um golpe em um duelo,
como no exemplo abaixo, retirado da sub-seção Duelo com Estácio Valente:
272
Figura 181: Glissandi em O rio do São Pedro (c. 68-77)
Assim como em Rinascita, a predominância do registro médio e grave sobre o agudo, além
de uma preferência estética minha, dá-se também pelo comportamento do gaúcho, geralmente
sério, sóbrio, sisudo. É uma referência ao jeito de ser do gaúcho. Os instrumentos viola e
contrabaixo enfatizam esta idéia. No entanto, em O rio de São Pedro utilizei com maior abrangência
os recursos agudos dos instrumentos em certas partes, por diversos motivos, o que de certa
273
forma amplia a tessitura utilizada em meus processos composicionais. Inclusive, na última seção,
notas extremas dos instrumentos são utilizadas:
Figura 182: Registro agudo em O rio do São Pedro (c. 532-345)
Novamente assim como em Rinascita, a relativa diatonicidade das linhas melódicas em
algumas partes também provém da música gauchesca, visto que esta está baseada estritamente no
274
tonalismo, na simplicidade dos instrumentos e instrumentistas e na singeleza das melodias, que
poucas vezes transgridem uma oitava.
Figura 183: Melodia diatônica em O rio do o Pedro (c. 185-190)
Como foi dito, o programa de O rio de São Pedro tem motivação gauchesca. Desde o
título, que faz referência à origem do nome do estado do Rio Grande do Sul, até a influência
gauchesca nos títulos das seções e das sub-seções da peça, bem como sua interferência no
discorrer do discurso musical, que a peça inteira se baseia no programa. O baile, o peão, a
prenda, o peão rival e o duelo, o cavalo, a Revolução Farroupilha, a Guerra do Paraguai, o vento,
275
a pampa, o chimarrão, tudo isso são elementos da cultura gaúcha que foram usados como
inspiração composicional:
Figura 184: Influência do programa em O rio do São Pedro (c. 68-77)
A questão do acompanhamento às linhas melódicas, que ocorre em diversas ocasiões,
também é de motivação gauchesca. Mesmo que de uma maneira mais elaborada e com outros
sentidos, o recurso do acompanhamento aparece na peça muitas vezes, com várias funções, como
um pano de fundo para algum evento, ou também como caracterizador de algum gênero:
276
Figura 185: Acompanhamento em O rio do São Pedro (c. 161-166)
277
Figura 186: Acompanhamento em O rio do São Pedro (c. 53-60)
E, por fim, a forma de O rio de São Pedro também tem motivação gauchesca, ou seja, a
forma é inspirada no próprio título da peça: a forma de O rio de São Pedro discorre feito um rio.
Isto é, a forma da peça simplesmente flui, assim como um rio que segue seu curso, pois não há
relações entre as seções ou sub-seções, simplesmente uma vem após a outra, embora sigam um
programa (um curso) e alguns gestos ou materiais amarrem a peça, recordando elementos já
passados.
278
8.4 - Das técnicas composicionais estudadas
Assim como em Rinascita, em O rio de São Pedro utilizei muitas técnicas composicionais
descritas no livro Armonía del Siglo XX, de Vincent Persichetti, e da mesma maneira, ou seja,
intuitivamente, sem a preocupação de utilizar a técnica apenas pela técnica, e sim em função da
composição. As técnicas foram assimiladas e utilizadas quando eram requisitadas pelo processo
criativo, impondo sua presença apenas em prol da criatividade, e não pelo preciosismo técnico ou
intelectual. Estas técnicas serão descritas e detalhadas no item 8.4.1 - Quanto a Persichetti.
No entanto, técnicas composicionais de outros compositores foram utilizadas, devido às
aberturas que as mesmas proporcionam em relação à utilização de elementos gauchescos na
sica contemporânea. Foram utilizadas técnicas composicionais de José Gramani, Igor
Stravinsky, Olivier Messiaen e Paul Hindemith, as quais serão descritas e detalhadas nos itens
8.4.2 - Quanto a Gramani, 8.4.3 - Quanto a Stravinsky, 8.4.4 - Quanto a Messiaen, e 8.4.5 - Quanto a
Hindemith. Estas técnicas foram utilizadas de maneira a colaborar com a manipulação dos
materiais dos gêneros gauchescos. Assim, embora tenhamos utilizado um pequeno número de
técnicas de outros compositores, julgamos bem embasada teoricamente a peça, que a técnica
não foi colocada em primeiro plano, ainda que tenha fundamental importância: o processo
criativo, o resultado como um todo, a artisticidade foram postas em primeiro plano. A técnica é
um meio, não um fim. A obra de arte é um fim.
8.4.1 - Quanto a Persichetti
Uma técnica importante, já utilizada em Rinascita e extraída de Persichetti é a utilização, na
linha do baixo, de notas diferentes da fundamental real, mas que lhe dão ressonância. No entanto,
em O rio de São Pedro esta técnica foi utilizada de uma maneira diferente. Durante a sub-seção
Guerra do Paraguay, onde por quase todo o tempo a viola e o contrabaixo cantam a duas vozes
iguais rítmica e intervalicamente, a linha do baixo é escrita, além de uma oitava abaixo, mais uma
quinta abaixo, a fim de dar mais brilho não à linha de baixo fundamental, mas à linha melódica da
viola:
279
Figura 187: Quinta ou nona por debaixo da linha real da melodia em O rio de São Pedro (c. 266-
269).
Uma categoria especial de acordes que também foi utilizada em Rinascita foi o cluster.
Segundo o autor, a maioria das formações escalares ou suas partes podem converter-se em clusters
(Ibid., p. 129), o que se verifica em O rio de São Pedro na sua última sub-seção, Mateando solito, onde
em um trecho que utiliza apenas seis notas da escala de mi menor, mi, fá#, lá, si, dó e ré#, de
maneira a intercaladamente funcionarem como acorde de tônica e de dominante com as mesmas
notas, clusters de cinco destas seis notas aparecem na mão direita do piano, a fim de destacar a
dualidade harmônica que esta técnica, que mais adiante será detalhada no item referente à
Hindemith, agrega ao trecho musical:
280
Figura 188: Clusters utilizados em O rio de São Pedro (c. 560-569).
Além disso, os clusters amplos são poderosas acentuações dramáticas (Ibid., p. 131), assim
como os clusters utilizados em momentos de grande tensão:
281
Figura 189: Clusters utilizados em O rio de São Pedro (c. 103-107).
Segundo Persichetti, “um ostinato é um segmento melódico bem definido, insistentemente
repetido” (Ibid., p. 244). Em O rio de São Pedro, por várias oportunidades se utilizou deste recurso
para funcionar como acompanhamento e também para inserir a trama musical elementos
gauchescos, visto que, em última análise, um gênero musical gaúcho caracteriza-se especialmente
por seu padrão rítmico, que é exatamente um ostinato, uma célula rítmico-melódica bem definida e
insistentemente repetida:
282
Figura 200: Ostinati utilizados em O rio de São Pedro (c. 45-52).
A ampla utilização de acentuações deslocadas dos tempos fortes tem também raiz em
Persichetti. Então, o amplo uso destes deslocamentos, numa utilização de motivação gauchesca,
onde estas acentuações são um dos principais elementos característicos, em vários momentos foi-
se desenvolvendo a rítmica de O rio de São Pedro:
283
Figura 201: Trecho com proeminência sincopada em O rio de São Pedro (c. 426-431).
Outro recurso utilizado em diversas ocasiões em O rio de São Pedro foi o alargamento
rítmico, pois “qualquer parte de uma figura tmica pode ser alargada por um som, um silêncio,
ou um ponto de aumento” (Ibid., p. 218). Geralmente em finais de sub-seções ou seções, utilizou-
se este recurso a fim de produzir uma desaceleração no movimento musical, preparando a música
para um final, uma fermata:
284
Figura 202: Alargamento rítmico em O rio de São Pedro (c. 198-209).
Um procedimento também bastante utilizado foi o iso-ritmo:
285
Figura 203: Iso-ritmo em O rio de São Pedro (c. 53-60).
Em vários trechos de O rio de São Pedro foram utilizados fragmentos melódicos com a
função de percussão:
286
Figura 204: Percussão melódica em O rio de São Pedro (c. 31-33).
E ainda uma última técnica exposta por Persichetti e já utilizada em Rinascita é o uso de
silêncios:
287
Figura 205: Silêncios em O rio de São Pedro (c. 220-222).
Contudo, outras técnicas com raiz em Persichetti, mas que não foram utilizadas também
em Rinascita, foram utilizadas em O rio de São Pedro.
De acordo com o autor, “um som central com o qual estão relacionados outros sons
pode estabelecer uma tonalidade, e a maneira como estes outros estão situados ao redor do som
central produz a modalidade” (Ibid., p. 29). Num trecho da primeira sub-seção, Florêncio e China
Rita, por exemplo, mais precisamente entre os compassos 52 e 67, a harmonia gira em torno do
acorde de ré maior, sob uma armadura de clave de sol maior, o que indica, junto com a
288
disposição das notas e a utilização da nota natural no acorde de maior, a modalidade de ré
mixolídio:
Figura 206: Tonalidade e modalidade em O rio de São Pedro (c. 61-67).
E além disso, “estes acordes [os de sétima e de nona] se converteram em entidades
estáveis por si mesmas com seus sons dissonantes não necessariamente preparados ou
resolvidos” (Ibid., p. 74). Ou seja, o acorde de ré maior com sétima, a “tônica” do trecho citado
acima, por ter seu som dissonante o preparado ou resolvido, se converte em entidade estável.
Segundo Persichetti, uma passagem é politonal quando temos um “mesmo modo sob
diferentes centros tonais” (Ibid., p. 37). Assim, algumas passagens da sub-seção Guerra do Paraguay
são politonais, tal o exemplo a seguir:
289
Figura 207: Politonalidade em O rio de São Pedro (c. 306-309).
Também temos passagens polimodais nesta mesma sub-seção, que é polimodal uma
passagem onde “dois ou mais modos diferentes com o mesmo ou diferentes centros tonais
(Ibid., p. 36):
290
Figura 208: Polimodalidade em O rio de São Pedro (c. 270-279).
Bem como passagens politonais e polimodais, que ocorrem “quando temos diferentes
modos sob diferentes centros tonais ao mesmo tempo” (Ibid., p. 38):
291
Figura 209: Politonalidade e polimodalidade em O rio de São Pedro (c. 378-387).
De acordo com Persichetti, temos uma harmonia motívica quando os grupos
característicos dos sons melódicos são utilizados verticalmente, de maneira a formar os acordes
com intervalos do motivo horizontal (Ibid., p. 60). Assim, a passagem já citada anteriormente, a
última sub-seção, Mateando solito, no trecho onde aparecem os clusters e onde tanto a melodia
quanto a harmonia são formadas por apenas as notas lá, si, dó, ré#, mi e fá#, temos uma
harmonia motívica, formada pelas notas utilizadas na melodia:
292
Figura 210: Harmonia motívica em O rio de São Pedro (c. 560-569).
Quando o pulso está dividido irregular, mas consistentemente, se utilizam
simultaneamente diferentes marcações de tempo (poli-metro)” (Ibid., p. 217). Assim, na sub-seção
Guerra do Paraguay, temos vários exemplos de poli-metro:
293
Figura 211: Poli-metro em O rio de São Pedro (c. 373-377).
“A mudança de compasso é uma maneira comum de conseguir variedade rítmica. A linha
de compasso fluída ajusta facilmente e acomoda as medidas fracionais” (Ibid., p., 217).
Encontramos exemplos disto em vários trechos de O rio de São Pedro, mas especialmente na sub-
seção Memória de um farrapo:
294
Figura 212: Mudanças de compasso em O rio de São Pedro (c. 210-214).
E, por fim, Persichetti afirma que “a música do século vinte faz uso de muitos graus de
tonalidade e emprega muitos meios para estabelecê-los” (Ibid., p. 251). Desta forma, justificamos
as diversas ocorrências de tonalidades em O rio de São Pedro, utilizando como exemplo as
tonalidades surgidas na sub-seção Memória de um farrapo, as quais o a de lá menor para gesto A e
a de ré menor para gesto B. Assim, diferenciam-se e contrastam-se os dois gestos constituintes da
sub-seção, os quais serão construídos, sobrepostos, seqüenciados e desconstruídos de diversas
formas:
295
Figura 213: Tonalidades em O rio de São Pedro (c. 237-238).
8.4.2 - Quanto a Gramani
O brasileiro José Eduardo Gramani foi um importante educador, autor e compositor que,
com enfoque no elemento ritmo, desenvolveu técnicas interessantes para o presente trabalho.
Como foi dito e evidenciado, o elemento mais peculiar da música gauchesca é o ritmo e, por
este motivo, a busca por técnicas compositivas com enfoque rítmico é importante para a
fundamentação e desenvolvimento de nosso processo composicional.
296
Dentre a rica obra de Gramani, destacamos o livro Rítmica, de 1992, onde encontramos
algumas técnicas que foram utilizadas na composição de O rio de São Pedro.
À página 19 encontra-se o exercício chamado “Série 2-1”. Trata-se de um modelo de
adição rítmica, onde a cada compasso adiciona-se um valor rítmico à figura precedente:
Figura 214: Série 2-1, nº 1 (GRAMANI, 1992, p. 19).
Esta idéia de adição rítmica foi utilizada diversas vezes em O rio de São Pedro, mais
especificamente ao longo da sub-seção Guerra do Paraguay:
297
Figura 215: Adição rítmica de Gramani em O rio de São Pedro (c. 280-289).
À página 58 encontramos um exercício baseado em deslocamentos de acentuações em
estruturas de pulsações:
298
Figura 216: Estruturas de pulsações 8, trecho (Ibid., p. 58).
Muito embora o deslocamento de acentuações tenha sido utilizado em larga escala em O
rio de São Pedro, o deslocamento em estruturas de pulsações ocorre poucas vezes. O exemplo mais
claro encontra-se na primeira sub-seção, Florêncio e China Rita:
Figura 217: Deslocamento de acentuações em estruturas de pulsações, de Gramani, em O rio de
São Pedro (c. 31-33).
Às páginas 86 e 87 encontramos o exercício 6 a 2 e a 3 (1), um exercício polimétrico que se
estrutura na polimetria por nós encontrada no gênero gauchesco polca paraguaia, o que pudemos
verificar no capítulo destinado ao estudo dos gêneros gaúchos:
299
Figura 218: Exercício 6 a 2 e a 3 (1), letra c (Ibid., p. 86).
Figura 219: Exercício 6 a 2 e a 3 (1), letra g (Ibid., p. 87).
Assim, tivemos a oportunidade de utilizar uma técnica composicional de Gramani
intimamente ligada ao gênero gauchesco polca paraguaia, explorando a polimetria já ocorrente no
gênero original. Além disso, sua ocorrência na peça se na sub-seção Guerra do Paraguay e tem a
função programática de representar o Paraguai:
300
Figura 220: Polimetria de Gramani em O rio de São Pedro (c. 266-269).
De acordo com Rodrigues (2001), Gramani baseia sua notação no valor da brevidade, que
tem origem, segundo o autor, em Gelewski:
Gelewski realiza uma interpretação numeral de cada uma das fórmulas métricas, levando em consideração a
somatória dos seus valores integrantes, com base no valor da brevidade, correspondendo essa numeração às
espécies usuais de compasso (...). Em seus estudos Gramani também baseia sua notação no valor da
brevidade. Determina a unidade, proporcionalmente, pelo menor valor envolvido no jogo polimétrico. Ou
melhor, o menor valor é a base do cálculo das proporções. Esse pensamento é fundamentalmente aditivo,
atomista. Todos os valores são possíveis unidades’ e devem ser enfocados, até certo ponto, isoladamente.
Na rítmica aditiva os valores são pensados em função das suas próprias unidades internas como pulsações e
não como subdivisões (RODRIGUES, 2001, p. 20).
Daí surgiu a inspiração para a composição do esquema rítmico de toda a sub-seção
Memória de um farrapo. Apesar de os compassos, que variam o número de tempos, terem sempre
como figura de tempo a semínima, a brevidade rítmica, ou seja, a pulsação, é a semicolcheia. Ainda
segundo Rodrigues, Gramani usava preponderantemente a semicolcheia como “base de cálculo
das estruturações” (Ibid., p. 48). Durante toda esta sub-seção o tratamento rítmico está baseado
no valor da brevidade, da semicolcheia:
301
Figura 221: Ritmo com base no valor da brevidade em O rio de São Pedro (c. 210-214).
Evidentemente muitas outras técnicas e idéias interessantes contêm o trabalho de
Gramani. No entanto, para os propósitos deste trabalho, as técnicas acima descritas foram
suficientes para a geração de idéias composicionais relativas aos gêneros gauchescos e sua
utilização em O rio de São Pedro.
302
8.4.3 - Quanto a Stravinsky
Escapou do escopo deste trabalho uma investigação profunda das técnicas
composicionais de Igor Stravinsky. As técnicas e idéias deste compositor foram incorporadas
neste trabalho em razão da leitura do trabalho de Rodrigues (2001) sobre Gramani, citado
anteriormente, as quais ali se faziam presentes devido à sua influência no pensamento de
Gramani.
Mais especificamente, Rodrigues apresenta trechos da Conversas com Igor Stravinsky, de
Robert Craft (1999), em que o autor questiona o compositor sobre diversas questões. Daí,
pudemos extrair algumas idéias interessantes para O rio de São Pedro.
Para Stravinsky, “o ato de compor é a expansão e a organização posteriores do material
trabalhado” (STRAVINSKY & CRAFT, 1999, apud. RODRIGUES, 2001, p. 46). Esta frase
fundamenta nossa intenção de expandir e organizar, através de técnicas composicionais
contemporâneas, os materiais dos gêneros musicais gauchescos. Assim procedemos com O rio de
São Pedro, utilizando materiais gaúchos sob a luz de técnicas compositivas contemporâneas
apropriadas para expandir e organizar de maneira interessante suas potencialidades.
Questionado sobre a não utilização de barras de compasso em alguns trechos de suas
obras, Stravinsky explica que “as vozes nem sempre estão em uníssono rítmico. Portanto,
qualquer travessão cortaria, arbitrariamente, pelo menos uma linha melódica(Ibid., p. 47). Além
disso, para ele um compasso é mais que um mero acento; não demonstra apenas um padrão de
acentuação, mas também uma espécie de estrutura, um padrão de articulação interna (Ibid., p. 48-
49). Decidimos utilizar, na sub-seção Meria de um farrapo uma iia semelhante: apesar de haver
barras de compasso, estas servem apenas para a regência e para a contagem formal dos
compassos da obra, pois, como indicado desde o início da peça, não se deve acentuar os
primeiros tempos dos compassos em O rio de São Pedro, mas apenas as notas acentuadas, o que
atenua a característica padronizadora do compasso. Para além disso, na referida sub-seção a
composição das frases e dos contrapontos entre elas foi o que determinou a divisão dos
compassos, ou seja, em nenhum momento uma barra de compasso cortou uma ou outra voz,
garantindo, assim, a total não-interferência dos compassos nas estruturas das frases e dos
contrapontos:
303
Figura 222: Submissão dos compassos às frases e ao contraponto em O rio de São Pedro (c. 250-255).
Para Stravinsky, a função do ostinato “é estática (...) é o antidesenvolvimento; e às vezes
precisamos de uma contradição ao desenvolvimento” (Ibid., p. 49). Este recurso foi bastante
utilizado em O rio de São Pedro, e um exemplo interessante é o ostinato realizado pelo piano no final
da primeira sub-seção, Florêncio e China Rita, que se opõe ao desenvolvimento do entendimento
do casal, bem como o ostinato realizado também pelo piano na sub-seção De volta pras casa, que
representa o galopar do cavalo, que se opõe ao desenvolvimento da melodia cantada pelo casal
enamorado (Florêncio e China Rita) durante sua despedida após o baile, no rumo de suas casas:
304
Figura 223: Ostinato na sub-seção Florêncio e China Rita, em O rio de São Pedro (c. 47-48).
Figura 224: Ostinato na sub-seção De volta pras casa, em O rio de São Pedro (c. 154).
E, por fim, Stravinsky agrupa os interesses de sua geração: ritmo, polifonia rítmica e
construção intervalar ou melódica são os elementos da construção musical a serem explorados
em face da doutrina harmônica que já não oferecia mais recursos para a pesquisa (Ibid., p. 49).
Assim, a sub-seção Memória de um farrapo, citada, e que leva este nome (além de seu significado
programático e dramático na peça) em referência à obra L’Histoire du Soldat, de Stravinsky, visou ter
305
um enfoque tmico, utilizando-se de polifonia rítmica e de construções intervalares ou
melódicas, seguindo as idéias de Stravinsky:
Figura 225: Ritmo, polifonia rítmica e construção intervalar ou melódica na sub-seção Memória de um
farrapo, em O rio de São Pedro (c. 237-238).
Assim, pudemos aproveitar algumas idéias de Stravinsky e agregá-las a O rio de São Pedro,
muito embora representem uma parte ínfima do pensamento deste compositor.
306
8.4.4 - Quanto a Messiaen
Embora tenhamos estudado de forma mais aprofundada as técnicas de Olivier Messiaen
que as de Igor Stravinsky, também escapou do escopo deste trabalho um estudo amplo sobre as
técnicas composicionais deste importante compositor. Messiaen foi portador de um repertório
muito vasto de técnicas, as quais ele mesmo detalhou em seu The technique of my musical language, de
1944. No entanto, nos detivemos em algumas cnicas relativas ao ritmo, para bem de utilizá-las
sobre os materiais gauchescos.
Sobre ritmos não-retrógrados, ou palindrômicos, Messiaen afirma que se alguém -los
da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita, a ordem dos seus valores continua a
mesma” e que “todos os ritmos divididos em dois grupos, um dos quais é o retrógrado do outro,
com um valor central comum, não são retrógrados” (MESSIAEN, 1956, p. 20). Além disso,
“para Messiaen esses ritmos são simbólicos da eternidade porque não têm bem definidos o ponto
de partida ou ponto final (KELLEY, 2000, p. 5). Assim, utilizamos estes conceitos na sub-seção
O vento morno da morte, além de uma escrita por espelho, através de gestos palindrômicos baseados
em gêneros gauchescos, a fim de expressar a eternidade das almas acometidas pela guerra:
Figura 226: Gestos gauchescos palindrômicos de Messiaen na sub-seção O vento morno da morte, em O
rio de São Pedro (c. 414-417).
Quanto ao tempo em música, Messiaen declarou que:
307
A maioria das pessoas acredita que o ritmo seja como os valores regulares de uma marcha
militar. Considero, no entanto, que o ritmo é um elemento desigual, na seqüência de variações, como
as ondas do mar, como o ruído do vento, como a forma de galhos de árvores (apud. SAMUEL, 1976, p. 3).
Assim, na mesma sub-seção, intentamos expressar a desigualdade do elemento ritmo, de
acordo com o pensamento de Messiaen, no movimento ou ruído do vento morno da morte:
Figura 227: Ritmo desigual de Messiaen na sub-seção O vento morno da morte, em O rio de São Pedro (c.
411-417).
De acordo com Samuel (1994, p. 77), Messiaen nunca foi à Índia, ele assimilou a
concepção musical indiana quando estava estudando a reprodução, na Encyclopédie Lavignac de la
308
Musique, de cento e vinte deçî-tâlas’ indianas escritas pelo teórico indiano Cârngadeva, do século
XIII, e, mais tarde, quando ele podia apreciar as regras rítmicas, os símbolos cósmicos e
religiosos contida em cada ‘deçî-tâlas’ de algumas traduções feitas por um amigo hindu. Portanto,
ainda que sem um estudo aprofundado, Messiaen conseguiu incorporar os elementos rítmicos
indianos a sua linguagem musical e ao seu processo composicional. em nosso trabalho, como
temos uma relação íntima com os gêneros gauchescos e ainda os estudamos aprofundadamente
neste trabalho, podemos afirmar que a assimilação do material se deu de maneira bastante intensa
e profunda, pois, do contrário da apreensão de Messiaen referente aos ritmos indianos, a nossa
foi concebida após um estudo amplo e detalhado dos gêneros gaúchos. No entanto, podemos
comparar a apreensão parcial de Messiaen perante a música indiana com a nossa apreensão das
técnicas composicionais deste compositor, bem como das dos demais compositores utilizados
neste trabalho, pois estas também se configuraram de maneira parcial, apenas a contemplar
nossas intenções estéticas.
8.4.5 - Quanto a Hindemith
Em O rio de São Pedro também foi utilizada uma técnica composicional de Paul Hindemith.
Em seu livro Craft of Musical Composition Theoretical Part (1945), encontramos uma técnica a qual
Hindemith chama de interval roots (HINDEMITH, 1945, p. 68-69), e que consiste na idéia de que
o intervalo de quinta justa é o que define um acorde, define sua função, isto é, sempre a nota que
se encontra abaixo da quinta justa, em qualquer grupo de notas, é a tônica do acorde. Assim,
podemos utilizar, por exemplo, um grupo de notas específico e, através da disposição da quinta
junta, variar a função acordal. Usemos um exemplo: o grupo de notas dó, ré, mi, sol e sol#,
disposto na configuração dó
3
, mi
3
, sol
3
, sol#
4
e
5
, é afirmado como um acorde de devido à
posição da quinta justa, pois a nota está por debaixo deste intervalo; e o mesmo grupo de
notas, disposto na configuração sol
2
,
3
, mi
3
, dó
4
e sol#
4
, é afirmado como um acorde de sol
também devido à posição da quinta justa, pois a nota sol está por debaixo deste intervalo. Desta
maneira, podemos variar a função acordal de um mesmo grupo de notas, através da variação da
disposição do intervalo de quinta justa.
Esta cnica foi utilizada em O rio de São Pedro na sub-seção Mateando solito, onde
estabelecemos algumas relações de acordo com esta técnica de Hindemith. No primeiro trecho,
definimos as notas mi, fá#, lá, si, dó e ré# como nosso grupo e o dispomos de maneira a
obtermos um acorde de mi como tônica, equivalente a mi menor, e um acorde de si como
309
dominante, equivalente a si maior com sétima, de maneira a espelhar, de maneira contemporânea,
o clichê harmônico do gênero musical gauchesco milonga (sub-gênero milonga pampeana), além
de utilizar a idéia intervalar do baixo característico deste mesmo gênero na linha da mão esquerda
do piano, utilizando o contrabaixo para tocar a quinta justa acima de cada tônica acordal como
afirmador da função de cada acorde:
Figura 228a: Interval roots de Hindemith na sub-seção Mateando solito, em O rio de São Pedro (c. 539-
545).
310
Figura 228b: Interval roots de Hindemith na sub-seção Mateando solito, em O rio de São Pedro (c. 546-
551).
No trecho seguinte, apesar do contrabaixo e da mão esquerda do piano permanecerem
como no trecho anterior, a mão direita do piano e a viola transgridem as notas estabelecidas
anteriormente, utilizando também a nota sol, antes não pertencente ao grupo estabelecido,
extrapolando a utilização correta da técnica de Hindemith, por motivos estéticos. Lembremos
que a técnica o é um fim, e sim um meio, e cabe ao compositor decidir a sua utilização. Neste
trecho, decidi agregar valor melódico, para acrescentar dramaticidade ao movimento harmônico
estático do trecho anterior, mesmo que isso tenha significado uma interrupção ao uso da técnica
de interval roots:
311
Figura 229: Interval roots de Hindemith, interrompida pelo movimento melódico na sub-seção Mateando
solito, em O rio de São Pedro (c. 546-559).
No entanto, no próximo trecho retomei esta técnica, ainda que de forma variada: cinco
das seis notas do grupo estabelecido no primeiro trecho originaram clusters, repetidos até o final
do trecho, na mão direita do piano; o movimento de baixo de milonga da mão esquerda do piano
é alargado ritmicamente; a viola se desprende melodicamente, mas utilizando apenas as notas do
grupo; e a afirmação da função do acorde se dá a partir do acompanhamento do contrabaixo que,
312
ao utilizar o clichê de acompanhamento da milonga (sub-gênero milonga pampeana), substitui a
idéia inicial de afirmação somente pela disposição da quinta justa, o que agrega material
gauchesco à técnica de Hindemith:
Figura 230: Interval roots de Hindemith com material gauchesco de milonga pampeana na sub-seção
Mateando solito, em O rio de São Pedro (c. 560-569).
E, por fim, no último trecho, quando a música modula de mi menor para mi maior, as
relações do trecho anterior se mantêm até o trecho de finalização da peça, que inicia no
compasso 596, apenas com a modificação que ocorre na mão direita do piano, que deixa de tocar
313
os clusters e começa a fazer arpeggi sobre o grupo de notas estabelecido anteriormente, agora
modificado em função da modulação:
Figura 231: Interval roots de Hindemith com material gauchesco de milonga pampeana e modulação na
sub-seção Mateando solito, em O rio de São Pedro (c. 579-586).
Assim, ainda que tenhamos utilizado apenas uma técnica de Hindemith, julgamos tê-la
aplicado de maneira adequada a este trabalho, já que a mesma, além de se apresentar como um
procedimento compositivo interessante, se mostrou propícia para ser utilizada em conjunto com
materiais gauchescos, neste caso materiais musicais da milonga pampeana, contribuindo, assim,
com nossos propósitos técnicos e estéticos.
314
8.5 - Da utilização do material gauchesco
O rio de São Pedro baseou-se em materiais musicais dos oito gêneros gauchescos estudados:
chamarra, chote, vaneira, chamamé, rancheira, milonga, polca paraguaia e bugio. Estes materiais
foram dispostos de maneira criativa, sem critérios qualitativos ou quantitativos. O surgimento de
um determinado elemento se estritamente pelo seu valor artístico para a composição. Estes
materiais fazem parte do discurso musical e se apóiam em gestos ou motivos.
8.5.1 - Quanto ao gesto
De acordo com o caminho teórico por nós traçado anteriormente, o processo
compositivo de O rio de São Pedro, assim como o de Rinascita, se relaciona com um pensamento
gestual, de acordo com a condução ou interação gestual, que, juntamente com o conceito de gesto
musical (sonoridade ou movimento que significa) em oposição ao motivo (notas ou construção com simples
parâmetros), configuram nossa motivação estética. Portanto, a partir desta motivação, utilizamos
vários materiais dos gêneros gauchescos, criando gestos que integraram a peça.
A seguir, iremos listar os principais gestos e suas características mais importantes, ligadas
aos materiais gauchescos, bem como as reconfigurações gestuais e as interações e os
seqüenciamentos mais relevantes entre estes gestos.
***
Na primeira seção de O rio de São Pedro, Baile na sanga funda, temos três sub-seções
Florêncio e China Rita, Duelo com Estácio Valente e De volta pras casa –, nas quais o pensamento gestual
tem funções distintas. Em Florêncio e China Rita, após uma pequena abertura, composta com
pequenos gestos, a idéia gestual principal encontra-se na viola e no contrabaixo, que representam os
personagens do título da sub-seção; trata-se da idéia de desencontro entre os personagens que, de
acordo com o programa, estão no jogo do amor enquanto um personagem está cantando, ou
atuando em primeiro plano, o outro está em pizzicato, em segundo plano. Além da diferenciação
por nível de destaque ou de atuação, cada cena conta com o desencontro rítmico entre os
personagens:
315
Figura 232: Desencontros gestuais na sub-seção Florêncio e China Rita, em O rio de São Pedro (c. 11-18).
Deste mesmo trecho podemos destacar uma outra idéia gestual da primeira sub-seção: a
antecidapação gestual do piano. Isto é, através de seu movimento gestual, o piano antecipa o
movimento que o contrabaixo e a viola irão realizar, impulsionando a resolução do gesto:
316
Figura 233: Antecipação gestual do piano na sub-seção Florêncio e China Rita, em O rio de São Pedro (c.
11-18).
A idéia gestual e programática do desencontro gestual, ou amoroso, persiste entre a viola
e o contrabaixo, entre Florêncio e China Rita, até o final da sub-seção, onde ocorre o seu
encontro rítmico, a consumação do amor, que vem se configurando aos poucos, devido à
diminuição progressiva do grau de desencontro entre os personagens:
317
Figura 234: O encontro tmico entre o casal na sub-seção Florêncio e China Rita, em O rio de São Pedro
(c. 61-67).
na segunda sub-seção de Baile na Sanga Funda, Duelo com Estácio Valente, a idéia gestual
principal encontra-se na briga entre os personagens Florêncio (contrabaixo) e Estácio Valente
(piano), pelo amor de China Rita. Durante toda a sub-seção, os rivais golpeiam-se, o que
evidencia-se pelo movimento gestual realizado, onde o golpeado acusa gestualmente o golpe, e
onde cada golpe também nota-se gestualmente:
318
Figura 235: A briga entre os rivais na sub-seção Duelo com Estácio Valente, em O rio de São Pedro (c. 68-
77).
A outra idéia gestual presente nesta sub-seção é a das reações da viola, China Rita,
enquanto a briga se desenrola. China Rita torce por Florêncio, espanta-se com os golpes de
Estácio Valente, comemora cada golpe de Florêncio, o incentiva a continuar a pelear, etc. No
exemplo abaixo, China Rita comemora, cantando, a consumada vitória de Florêncio e, em
seguida, suspira aliviada:
319
Figura 236: Reações gestuais da viola na sub-seção Duelo com Estácio Valente, em O rio de São Pedro (c.
124-134).
E na terceira e última sub-seção de Baile na Sanga Funda, De volta pras casa, existem três
idéias gestuais principais. A primeira delas é a do ostinato do piano, que representa o galope de
cavalo de Florêncio, que nesta sub-seção leva sua amada para a casa dela, após o baile, e depois
segue para a casa dele. Este ostinato persiste até o final da sub-seção, quando sofre alargamento
rítmico até a fermata conclusiva. A seguir, o modelo do ostinato:
320
Figura 237: Ostinato representante do galope do cavalo de Florêncio na sub-seção De volta pras casa, em O
rio de São Pedro (c. 154).
A segunda idéia gestual principal desta sub-seção é a relação íntima entre os personagens
Florêncio e China Rita (contrabaixo e viola), os quais, de diversas maneiras, interagem durante o
caminho de volta pras casa, revelando o amor que floresce entre eles. Inicialmente, com base no
material do nero gauchesco milonga, mais precisamente do arpejo da milonga pampeana, a
viola canta a linha melódica enquanto o contrabaixo a acompanha, preenchendo os espaços das
pausas, complementando-a:
321
Figura 238: Relação íntima entre a viola e o contrabaixo, com base no arpejo de milonga pampeana, na
sub-seção De volta pras casa, em O rio de São Pedro (c. 155-160).
Em seguida, a situação inverte-se, ou seja, a viola executa o acompanhamento, baseado
agora no baixo de milonga pampeana, enquanto o contrabaixo canta a melodia com base no
arpejo do mesmo sub-gênero:
322
Figura 239: Relação íntima entre o contrabaixo e a viola, com base no arpejo e no baixo de milonga
pampeana, na sub-seção De volta pras casa, em O rio de São Pedro (c. 161-166).
Até que viola e contrabaixo cantam juntos, baseados no padrão rítmico da milonga
pampeana:
323
Figura 240: Contrabaixo e a viola cantam juntos, com base no padrão rítmico da milonga pampeana, na
sub-seção De volta pras casa, em O rio de São Pedro (c. 167-172).
E a terceira idéia gestual principal desta sub-seção é a progressiva diminuição da dinâmica
da linha melódica cantada pela viola, junto ao contrabaixo (que mantém sua dinâmica), no trecho
final da sub-seção. Isto se deve à idéia de que, ao ser deixada em sua casa por Florêncio, o qual
segue viagem para a casa dele, China Rita aos poucos vai ficando mais distante, embora a saudade
ainda a faça ser ouvida. Neste trecho a tonalidade modula para menor, para acrescentar
dramaticidade à despedida do casal:
324
Figura 241: China Rita chega em casa e Florêncio segue viagem na sub-seção De volta pras casa, em O rio
de São Pedro (c. 185-190).
***
A segunda seção de O rio de São Pedro, A cor rubra, divide-se também em três sub-seções –
Memória de um farrapo, Guerra do Paraguay e O vento morno da morte , as quais possuem diferentes
idéias gestuais. A primeira sub-seção, Memória de um farrapo, é a parte da composição que contou
com a mais ampla utilização gestual. Basicamente, possui dois gestos:
325
Figura 242: Gesto A da sub-seção Memória de um farrapo, em O rio de São Pedro (c. 222).
Figura 243: Gesto B da sub-seção Memória de um farrapo, em O rio de São Pedro (c. 235).
No entanto, estes dois gestos são tratados de diversas maneiras. Inicialmente, cada gesto é
construído pelas partes dele integrantes, e aos poucos configura-se no gesto completo, ou seja,
cada gesto é montado progressivamente por suas partes constituintes, o que se relaciona a idéia
programática desta sub-seção, pois trata-se de um soldado farroupilha rememorando fatos desta
guerra – é a memória reconstruindo lembranças:
326
Figura 244: Construção do Gesto A da sub-seção Memória de um farrapo, em O rio de São Pedro (c. 210-
214).
327
Figura 245: Construção do Gesto B da sub-seção Memória de um farrapo, em O rio de São Pedro (c. 223-
226).
Em seguida, após cada um dos gestos completos ser reapresentado, começam
reconfigurações com mudança da instrumentação das partes, bem como sobreposições entre eles,
intercambiando partes. Abaixo seguem alguns exemplos:
328
Figura 246: Reconfiguração com mudança de instrumentação do gesto A na sub-seção Memória de um
farrapo, em O rio de São Pedro (c. 238).
Figura 247: Sobreposição gestual na sub-seção Memória de um farrapo, em O rio de São Pedro (c. 242).
Esta idéia também está relacionada com a motivação programática da sub-seção, pois a
memória muitas vezes mistura fatos, os associa indiscriminadamente, principalmente quanto estes
são doloridos de se recordar, como uma guerra.
E, por fim, no final da sub-seção Memória de um farrapo os gestos o desconstruídos,
como uma tentativa de se esquecer estas lembranças doloridas:
329
Figura 248: Desconstrução gestual na sub-seção Memória de um farrapo, em O rio de São Pedro (c. 250-
262).
330
Da sub-seção seguinte, Guerra do Paraguay, podemos destacar duas idéias gestuais. A
primeira é a da invasão paraguaia aos territórios de outros países, como aos do Brasil (Mato
Grosso e Rio Grande do Sul) e aos da Argentina (Corrientes), conforme o programa. Esta idéia
consiste na invasão gestual do gênero gauchesco polca paraguaia, proveniente do Paraguai e
representante deste na sub-seção, nos gestos dos gêneros guarânia (gênero semelhante ao
chamamé gauchesco, proveniente e representante do estado do Mato Grosso), chamamé (gênero
gauchesco proveniente e representante da província de Corrientes, Argentina) e milonga (gênero
gauchesco representante do Rio Grande do Sul), como que expandindo o território paraguaio:
Figura 249: Invasão gestual paraguaia na sub-seção Guerra do Paraguai, em O rio de São Pedro (c. 270-
279).
331
E a segunda idéia é a do contra-ataque da tríplice aliança (que um pouco antes se dá de
forma isolada), formada por Brasil, Uruguai e Argentina, retomando os territórios sob domínio
paraguaio:
Figura 250: Contra-ataque gestual da tríplice aliança na sub-são Guerra do Paraguai, em O rio de São
Pedro (c. 373-382).
Esta sub-seção encerra-se com a derrota do Paraguai, quando o gesto de polca paraguaia
decresce dinamicamente até o pp e os gestos do chamamé e da milonga crescem até um f:
332
Figura 251: Derrota paraguaia na sub-seção Guerra do Paraguai, em O rio de São Pedro (c. 383-392).
E na última sub-seção de A cor rubra, O vento morno da morte, destacamos três idéias gestuais
principais. A primeira, que abre e encerra a sub-seção, é a representação do personagem vento,
através de glissandi no contrabaixo, baseado no material da milonga pampeana, no que se refere ao
acompanhamento do baixo:
333
Figura 252: O personagem vento na sub-seção O vento morno da morte, em O rio de São Pedro (c. 388-
392).
A segunda idéia é a da representação dos movimentos rítmicos desiguais causados pelo
vento, que tem origem em Messiaen, como já foi dito:
334
Figura 253: O personagem vento na sub-seção O vento morno da morte, em O rio de São Pedro (c. 407-
410).
E a terceira idéia, também de origem em Messiaen, é a utilização de gestos palindrômicos
(não-retrógrados) durante a sub-seção, para representar a eternidade das almas acometidas pela
guerra. Todos os gestos palindrômicos utilizados têm origem gauchesca:
335
Figura 254: Gestos palindrômicos gauchescos na sub-seção O vento morno da morte, em O rio de São
Pedro (c. 429-436).
***
De todas as seções de O rio de São Pedro, a última, O campo e a chuva, divide-se em duas sub-
seções, Amanhecer na pampa e Mateando solito. Em Amanhecer na pampa, temos um alargamento
rítmico do acompanhamento de baixo da milonga pampeana, na mão esquerda do piano que,
conforme o dia vai nascendo, torna-se mais rápido ritmicamente:
336
Figura 255: Alargamento rítmico do baixo de milonga pampeana na sub-seção Amanhecer na pampa, em
O rio de São Pedro (c. 452-465).
337
Figura 256: Aumento na velocidade do baixo de milonga pampeana na sub-seção Amanhecer na pampa,
em O rio de São Pedro (c. 515-526).
E outra idéia gestual importante desta sub-seção é a utilização de oitavas muito agudas,
tanto no piano, a duas vozes formando uma oitava, quanto entre o contrabaixo e a viola. Esta
idéia tem a intenção de tornar notas inicialmente consonantes aos acordes em vigência,
dissonantes, devido ao registro extremo, que dificulta a audição das mesmas como consonâncias.
Notas extremas graves também foram utilizadas com a mesma intenção:
338
Figura 257: Notas muito agudas em oitavas na sub-seção Amanhecer na pampa, em O rio de São Pedro (c.
487-500).
Por fim, na última sub-seção da última seção, Mateando solito, destacamos duas idéias
gestuais. A primeira é a utilização uma variante do baixo de milonga pampeana do início ao fim
da sub-seção, alternadamente nos acordes de tônica e de dominante, de acordo com o sub-
gênero:
339
Figura 258: Variação do baixo de milonga na sub-seção Mateando solito, em O rio de São Pedro (c. 539-
553).
E a segunda idéia gestual importante é a modulação de mi menor para mi maior, que se
deve ao fato que, no programa, esta sub-seção trata do estado de espírito de um gaúcho que,
inicialmente sisudo (em mi menor), ao contemplar de seu galpão – onde está a matear , o
amanhecer na pampa, o campo e a chuva, se enche de esperança para seguir seu caminho (em mi
340
maior). A modulação de menor para maior, portanto, representa a mudança de estado de espírito
deste gaúcho. Trata-se de uma modulação programática:
Figura 259: Modulação programática na sub-seção Mateando solito, em O rio de São Pedro (c. 575-582).
8.5.2 - Quanto ao motivo
Apesar de O rio de São Pedro ser baseada num pensamento gestual, em que a
responsabilidade pela articulação e pela coesão das idéias é do gesto, em muitas oportunidades
foram utilizados motivos derivados de elementos gaúchos, os quais têm a função de contrastar
com elementos gestuais ou de fortalecer uma idéia musical específica do programa. Isto se deve
341
ao fato de que a música gaúcha é estritamente tonal e de construção melódica motívica, e a
manutenção destas características, por vezes, se fez necessária para uma ambientação gauchesca
adequada ao momento da peça ou do programa.
Portanto, em O rio de São Pedro, revelou-se desnecessária a exclusão total de características
tonais ou motívicas, pois muitas vezes exatamente este contraste entre motivo e gesto, entre
atonalidade e tonalidade ou quase-tonalidade, é o que torna uma determinada parte da peça
interessante e revela a interação entre os materiais gauchescos e as técnicas composicionais
contemporâneas, onde não é uma necessidade a total homogeneidade de ambas. A seguir,
apresentaremos alguns exemplos.
***
Na primeira seção de O rio de São Pedro, Baile na Sanga Funda, mais precisamente no
encerramento da primeira sub-seção, Florêncio e China Rita, no compasso 47, surge um motivo na
viola, em colcheias, baseado na rítmica do nero musical rancheira, ternário, que reaparece
algumas vezes até o final da sub-seção. Este motivo está ligado à idéia gestual para esta sub-seção,
que é o desencontro amoroso entre os personagens, pois enquanto este motivo ternário acontece
na viola, o contrabaixo acompanha em compasso quaternário, baseado na rítmica da milonga
pampeana. Contudo, sua estrutura é claramente motívica:
342
Figura 260: Motivo de rancheira na sub-são Florêncio e China Rita, em O rio de São Pedro (c. 45-52).
A segunda sub-seção de Baile na Sanga Funda, Duelo com Estácio Valente, é essencialmente
gestual, não havendo o aparecimento de motivos.
a terceira sub-seção, De volta pras casa, possui vários aspectos relevantes referentes ao
motivo. O primeiro deles é a origem motívica do gesto ostinato do piano. Este motivo representa o
galopar do cavalo de Florêncio, e tem origem no material rítmico do gênero gauchesco bugio:
343
Figura 261: Motivo de bugio na sub-seção De volta pras casa, em O rio de São Pedro (c. 154).
O gesto que representa a relação íntima do novo casal também tem origem motívica, já que
está baseado no motivo do arpejo da milonga pampeana:
Figura 262: Motivo de milonga pampeana na sub-seção De volta pras casa, em O rio de São Pedro (c. 154).
Quando a viola e o contrabaixo começam a cantar em uníssono, a linha melódica tem
origem motívica no acompanhamento do baixo da milonga pampeana:
344
Figura 263: Motivo de milonga pampeana na sub-seção De volta pras casa, em O rio de São Pedro (c. 170-
172).
E a linha melódica do trecho que modula para mi menor também tem origem movica
nos materiais do gênero milonga:
345
Figura 264: Motivos de milonga na sub-seção De volta pras casa, em O rio de São Pedro (c. 182-190).
346
***
A segunda seção de O rio de São Pedro, A cor rubra, inicialmente o apresenta idéias
motívicas, já a sua primeira sub-seção, Memória de um farrapo, se desenvolve estritamente através de
gestos e suas construções, sobreposições e desconstruções. Ainda assim, podemos destacar que
uma das partes constituintes do gesto A, e que é retomada no encerramento da sub-seção para
encaminhá-la para o final, tem origem motívica no material do baixo de milonga:
Figura 265: Motivo de milonga na sub-seção Memória de um farrapo, em O rio de São Pedro (c. 256-269).
347
na sub-seção Guerra do Paraguay, a construção musical, além das idéias gestuais
expostas, baseia-se em motivos de alguns gêneros gauchescos. O primeiro motivo tem origem no
padrão de acompanhamento da polca paraguaia, bem como sua estruturação rítmica e melódica:
Figura 266: Motivo de polca paraguaia na sub-seção Guerra do Paraguay, em O rio de São Pedro
(c. 266-269).
O segundo tem origem no de acompanhamento da guarânia, gênero brasileiro semelhante
ao chamamé gauchesco, bem como sua estruturação rítmica e melódica:
348
Figura 267: Motivo de guarânia na sub-seção Guerra do Paraguay, em O rio de São Pedro (c. 275-284).
O terceiro tem origem no de acompanhamento do chamamé, bem como sua estruturação
rítmica e melódica:
349
Figura 268: Motivo de chamamé na sub-seção Guerra do Paraguay, em O rio de São Pedro (c. 290-300).
E o quarto tem origem no de acompanhamento da milonga pampeana, bem como sua
estruturação rítmica e melódica:
350
Figura 269: Motivo de milonga pampeana na sub-seção Guerra do Paraguay, em O rio de São Pedro (c.
310-313).
E na última sub-seção de A cor rubra, O vento morno da morte, podemos destacar três
influências motívicas nos gestos que se desenvolvem. A primeira é do gesto que representa o vento,
que se baseia no baixo de milonga pampeana:
Figura 270: Motivo de milonga pampeana na sub-seção O vento morno da morte, em O rio de São Pedro
(c. 388-292).
351
A segunda é a utilização de vários pequenos materiais característicos de diversos neros
gauchescos para compor os gestos de ritmo desigual que o vento entoa:
Figura 271: Motivos de diversos gêneros gauchescos na sub-seção O vento morno da morte, em O rio de
São Pedro (c. 426-431).
E a terceira é a utilização de motivos baseados nos acompanhamentos de vários gêneros
gauchescos para compor gestos palindrômicos:
352
Figura 272: Motivos de polca paraguaia e chamamé em gestos palindrômicos na sub-seção O vento morno
da morte, em O rio de São Pedro (c. 429-436).
***
Por fim, a terceira seção de O rio de São Pedro, O campo e a chuva, configura-se como uma
seção não muito amarrada nem à questão do gesto nem a do motivo. Ela desenvolve-se através
da textura que se forma entre as linhas melódicas da viola, do contrabaixo, da mão direita e da
o esquerda do piano. No entanto, da primeira sub-seção, Amanhecer na pampa, podemos
destacar a influência motívica na construção musical através do uso do acompanhamento do
piano baseado na milonga pampeana, inicialmente alargado ritmicamente, e das tercinas de
353
milonga, disfarçadas pelo compasso ternário da viola e do contrabaixo sobre o compasso
quaternário do piano:
Figura 273: Motivos de milonga na sub-seção Amanhecer na pampa, em O rio de São Pedro (c. 429-436).
E da segunda sub-seção, Mateando solito, podemos destacar também as tercinas de milonga
disfarçadas pelo compasso ternário sobre o quaternário, agora na viola e na mão direita do piano,
a variação de acompanhamento de baixo de milonga pampeana na mão esquerda do piano e o
acompanhamento de baixo de milonga pampeana no contrabaixo:
354
Figura 274: Motivos de milonga na sub-seção Mateando solito, em O rio de São Pedro (c. 429-436).
8.6 - Dos desdobramentos
Após a composição e a análise de O rio de São Pedro, pudemos verificar que a utilização de
elementos musicais gauchescos pode ser aplicada de diversas formas. Inicialmente, elaboramos
um programa para a composição da peça que, embora em muitas ocasiões tenha sido alterado no
decorrer do processo compositivo, ajudou na orientação da criatividade composicional. Isto se
revelou bastante interessante, porque dessa forma amenizamos o problema do discurso musical em
355
uma peça de envergadura considerável, além de estreitar a relação da sica com sua motivação
gauchesca. Contudo, a elaboração de um programa, obviamente, não é uma necessidade, e a
utilização de materiais gauchescos para além de uma ambientação gauchesca é um caminho
interessante a se trilhar.
Foram utilizados materiais de todos os neros gauchescos estudados chamarra, chote,
vaneira, chamamé, rancheira, milonga, polca paraguaia e bugio –, porém, sem um critério
quantitativo ou qualitativo: os materiais dos gêneros aparecem no decorrer da peça por questões
estéticas, apenas. Evidentemente, critérios poderiam ser estabelecidos, como um determinado
número de gêneros a serem explorados por seção ou sub-seção; ou uma classificação qualitativa,
no que se refere às principais características de cada gênero, para distribuí-los entre as partes da
peça.
Muitas técnicas de Vincent Persichetti utilizadas em Rinascita foram reaproveitadas, mas
devido a sua maior envergadura, em O rio de São Pedro utilizou-se muitas outras técnicas deste
compositor e também de outros, os quais foram José Gramani, Igor Stravinsky, Olivier Messiaen
e Paul Hindemith. Cada uma das técnicas destes compositores contribuiu para a organizar e
trabalhar os materiais gauchescos, mostrando-se eficazes e apropriadas para esta finalidade.
Entretanto, muitas outras técnicas destes compositores, e de outros, poderiam ter sido utilizadas.
A instrumentação utilizada mostrou-se maleável, cumprindo as necessidades compositivas
da peça. Além disso, a preponderância do registro grave agregou à peça um ar gauchesco, devido
ao jeito de ser sisudo do gaúcho. A utilização de outras instrumentações, mais amplas, é algo
importante a se considerar, vistas as possibilidades expressivas que se abrem.
A questão do gesto como elemento responsável pela organização e coesão das idéias
musicais, em O rio de São Pedro, mostrou-se apropriada, tornando-se mais evidente em algumas
partes onde a construção musical aconteceu de maneira menos melódica, como as sub-seções
Duelo com Estácio Valente, de caráter gestual pelos movimentos realizados por seus personagens;
Memória de um farrapo, de caráter gestual abstrato, representativo dos processos de rememoração
de fatos dolorosos; e O vento morno da morte, onde a liberdade do ritmo desigual decorrente da
representação dos ruídos e movimentos do vento propiciam uma sensação gestual interessante.
Contudo, como foi visto, em muitas ocasiões a construção motívica tornou-se mais
evidente que a gestual, principalmente em passagens mais melódicas, mais diatônicas, como as
sub-seções De volta pras casa, que tem um caráter melancólico e romântico, devido ao acerto do
novo casal e da despedida iminente; e Guerra do Paraguay, onde vários gêneros co-habitam o
discurso, cada um representando um país ou região envolvida no conflito, baseados, para tal, em
356
motivos característicos de cada gênero. Esta construção motívica está intimamente ligada aos
materiais da música gaúcha, que é estritamente tonal. No entanto, em O rio de São Pedro o motivo
foi tratado gestualmente, isto é, ainda que uma parte tenha uma construção musical
preponderantemente motívica, sempre uma idéia gestual estava a organizar, de certa forma, o
transcorrer da peça. Ainda assim, verificou-se em Rinascita uma construção gestual mais efetiva,
menos ligada ao motivo, o que pode ter ocorrido, em nosso atual estágio composicional, devido à
sua muito menor duração. Uma construção gestual menos ligada ao motivo, ou totalmente
dissociada deste, ainda é um desafio que se impõe perante nosso processo compositivo.
Por outro lado, na última seção, O campo e a chuva, experimentamos uma condução mais
textural, sem muitas amarras aos conceitos de gesto ou de motivo, apesar de algumas idéias destes
estivessem presentes. De composição mais livre, ainda que sob a orientação de algumas técnicas
composicionais e, discretamente, dos conceitos de gesto e de motivo, esta seção utiliza os
materiais gauchescos de maneira mais direta, associadas às funções programáticas da parte.
Quanto à forma de O rio de São Pedro, a consideramos fluída, feito um rio, que uma
seção ou sub-seção discorre uma após a outra, sem uma relação hierárquica formal ou alguma
repetição. No entanto, os materiais do gênero milonga, presentes em todas as seções e sub-
seções, serviram como elemento de coesão, amarrando, de certa forma, uma parte da peça à
outra.
Por fim, a composição de O rio de São Pedro sintetizou, neste trabalho, todas as etapas
anteriores, utilizando técnicas composicionais contemporâneas de Persichetti, Gramani,
Stravinsky, Messiaen e Hindemith, os conceitos de gesto musical e de motivo, os materiais
musicais dos gêneros gauchescos estudados, e o aprendizado que a composição de Rinascita
proporcionou. O rio de São Pedro representou, para mim, um aprendizado enorme, visto a
envergadura de seu processo composicional, materializado neste trabalho. Contudo, entendemos
que o exercício da composição musical é um processo ainda muito mais amplo, e que muito
ainda temos que amadurecer como compositor, mas agora já temos um trabalho realizado para
refletir.
357
Considerações finais
Em primeira instância, este trabalho materializa o processo composicional percorrido
para a composição de O rio de São Pedro, o qual abarca todas as etapas desta dissertação: a busca de
materiais musicais no folclore do Rio Grande do Sul; a coleta e a análise dos materiais dos
gêneros escolhidos; a elaboração teórica; a composição e o memorial da peça de ensaio Rinascita;
e a composição e o memorial, por fim, de O rio de São Pedro, bem como as técnicas
composicionais contemporâneas estudadas e utilizadas.
Quanto ao folclore e aos gêneros musicais gaúchos, podemos dizer que este trabalho foi
importante, pois ao mesmo tempo que coleta e analisa os materiais musicais, também os
organiza, preserva e disponibiliza, pois, em se tratando de música folclórica, o seu conhecimento
é relegado em grande parte ao empirismo. No entanto, entendemos que um estudo mais
profundo, e também mais amplo, ainda se faz necessário para realmente catalogar todas as
características peculiares da música gaúcha.
Quanto à elaboração teórica, utilizamos o conceito de gesto musical, entendido neste
trabalho como uma sonoridade, um movimento que significa, que comunica as intenções
estéticas e expressivas do artista, que articula e torna coesa as idéias musicais, e que tem uma
perceão holística. Em oposição a este conceito, encontra-se o de motivo, que neste trabalho é
entendido como a estrita percepção de notas, como uma construção por simples parâmetros.
Esta motivação estética, a de opor o conceito de gesto ao de motivo, nos surgiu como uma
maneira de tentar garantir às obras certa contemporaneidade, visto que a construção baseada no
motivo poderia engendrar, inerentemente, uma tonalidade definida. Porém, no decorrer do
processo composicional, pudemos averiguar que a composição pode manter um pensamento
gestual mesmo que esta esteja ainda vinculada ao motivo. Em outras palavras, o motivo pode ser
tratado gestualmente, pode ajudar a confeccionar gestos, ou também servir como material
contrastante. Em Rinascita, a ascendência motívica foi tratada gestualmente, com a intenção de
que esta peça se configurasse como uma obra de transição entre o pensamento motívico e o
gestual. Contudo, em O rio de São Pedro, muito em virtude da íntima ligação da música gauchesca
com o tonalismo, não sentimos a necessidade de excluir totalmente a influência do motivo e da
tonalidade no discurso musical, ainda que tenhamos empregado um pensamento gestual do início
ao fim da peça.
358
Quanto às possibilidades composicionais dos materiais dos gêneros gauchescos, pudemos
constatar que a sua principal potencialidade é o elemento ritmo, o qual pode ser explorado de
diversas maneiras. Outra potencialidade é a temática gaúcha, expressa em O rio de São Pedro
através de seu programa, pois a cultura gaúcha é peculiar, assim como muitos dos seus materiais
musicais, o que pode servir de inspiração ao compositor. Pom, visto a sua simplicidade, os
elementos gauchescos melodia e harmonia mostram-se restritos, o que pode ser vencido se estes
se aliarem ao elemento ritmo, pois agregados, estes elementos tornam-se representativos de cada
gênero e, portanto, peculiares e interessantes.
Quanto às técnicas composicionais estudadas e utilizadas, funcionaram como janelas que
antes estavam fechadas e que, ao serem abertas, permitiram a contemplação de paisagens ainda
não vistas, porque sua aliança com os materiais musicais gauchescos possibilitaram novos
horizontes.
Quanto às composições em si, entendemos ter realizado um trabalho interessante, visto
que nos utilizamos de cnicas composicionais contemporâneas e de materiais musicais
gauchescos para confeccioná-las. Além disso, verificamos nelas o reflexo das etapas anteriores,
pois tanto a utilização das técnicas e dos materiais gauchescos quanto os conceitos da elaboração
teórica perpassaram os seus processos composicionais.
Desta forma, esperamos ter concluído um trabalho que possa ser utilizado por
compositores, por músicos, por estudantes, enfim, que sirva de alguma maneira para pessoas que
buscam por materiais artísticos, ou por informações referentes aos gêneros musicais gauchescos,
ou por motivações estéticas.
359
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VETROMILLA, Clayton. Guerra-Peixe: considerações sobre o significado do conceito “objetividade folclórica”.
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VILHENA, L. R. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro (1947-1964). Rio de Janeiro: Funarte:
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WISHART, Trevor. On sonic art. Amsterdã: Harwood, 1996.
ZAGONEL, B. O que é gesto musical. São Paulo: Brasiliense, 1992.
365
Anexos
ANEXO 1: CD com a gravação em áudio da apresentação de estréia de Rinascita.
366
ANEXO 2a: Programa do concerto no qual Rinascita estreou.
367
ANEXO 2b: Programa do concerto no qual Rinascita estreou.
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