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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
A CONCEPÇÃO DE HARE SOBRE AS INFERÊNCIAS
PRÁTICAS
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Adriano Nunes de Freitas
Santa Maria, RS, Brasil
2009
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2
A CONCEPÇÃO DE HARE SOBRE AS INFERÊNCIAS
PRÁTICAS
por
Adriano Nunes de Freitas
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação
em Filosofia, Área de concentração em Filosofias Continental e Analítica, da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito parcial para a
obtenção do grau de Mestre em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Frank Thomas Sautter
Santa Maria, RS, Brasil
2009
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3
Universidade Federal de Santa Maria
Centro de Ciências Sociais e Humanas
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
A Comissão Examinadora, abaixo assinada,
aprova a Dissertação de Mestrado
A CONCEPÇÃO DE HARE SOBRE
AS INFERÊNCIAS PRÁTICAS
elaborada por
Adriano Nunes de Freitas
como requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Filosofia
COMISSÃO EXAMINADORA:
_________________________________
Dr. Frank Thomas Sautter (UFSM)
(Presidente/Orientador)
_________________________________
Dr. Marco A. O. de Azevedo (CUM-IPA)
_________________________________
Dr. Abel Lassalle Casanave (UFSM)
_________________________________
Dr. Albertinho Luiz Gallina (UFSM)
(Suplente)
Santa Maria, 05 de março de 2009.
4
À minha avó Doralice e aos
meus avôs Alfredo e Cláudio (in memorian).
5
Agradecimentos:
Agradeço à minha família pelo apoio emocional e financeiro;
Agradeço aos amigos Joel Thiago Klein, Adel F. de A.Vanny, Claudiosir R. dos Santos,
Édison M. Difante, Gustavo E. Calovi, Marcio Salles, Valdecir dos Santos e à amiga
Lucimara Schneider pela companhia e incentivo;
Agradeço aos professores do curso de Filosofia, sem a ajuda dos quais não teria
conseguido realizar minha caminhada pelos campos do saber filosófico.
Agradeço aos secretários Adrian de Castro e rgio Calil pelo bom atendimento e pela
capacidade de sorrir mesmo diante dos maus tratos recebidos.
Agradeço ao Prof. Ronai P. da Rocha pelo incentivo e pela ajuda quanto ao material
bibliográfico;
Agradeço ao Prof. Dr. Albertinho L. Gallina pelo incentivo e pela abertura das porteiras
do campo de pesquisa em Filosofia. ‘Gracias, meu galo!’;
Agradeço ao Prof. Dr. Frank Thomas Sautter pelo incentivo, pela pacncia e dedicação
com que tem me orientado nas pesquisas desde 2005;
Agradeço ao Prof. Dr. Abel Lassalle Casanave pela exigência de rigor argumentativo,
clareza conceitual e pelo auxilio na elaboração da discussão sobre a relação significativa
entre o conceito de ‘conseqüência lógica’ e o conceito ‘segue-se’ (primeira parte dessa
dissertação). Agrado também pelas piadinhas psicanalíticas!;
Enfim, agradeço a CAPES pelo financiamento da pesquisa.
6
MANIA DE PERSEGUIÇÃO?
Por que vocês riem da roupa que eu uso?
Por que vocês debocham do meu corpo torto e frágil?
Por que vocês têm raiva e nojo do meu linguajar caipira e atrapalhado?
Por que vocês querem me manipular e chantagiar a todo instante?
Por que vocês não olham para si mesmos e procuram corrigir os seus próprios defeitos?
Por que vocês fecham os olhos para as minhas boas ações?
Por que vocês não valorizam a maneira como eu trato as pessoas com quem convivo?
Por que vocês cobram de mim o que vocês mesmos não se esforçam para cumprir?
Por que vocês não suportam a minha sinceridade?
Por que vocês me procuram quando querem descarregar sua raiva e suas
frustrações?
Por que vocês têm inveja da minha felicidade?
Por que vocês ficam tristes quando eu estou alegre?
Por que vocês ficam fortes quando eu estou fraco?
Por que vocês sentem prazer quando eu estou com dor?
Vocês acham que eu não sofro?
Vocês acham que eu não tenho problemas?
Abram mais os seus olhos!
Usem mais seus ouvidos e suas mentes!
Cultivem bons sentimentos em seus corações!
E principalmente: larguem do meu pé, me deixem em paz e cuidem de suas próprias
vidas!
(Ednarg Rodnoc)
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RESUMO
Dissertação de Mestrado
Programa des-Graduação em Filosofia
Universidade Federal de Santa Maria
A CONCEÃO DE HARE SOBRE AS INFERÊNCIAS PRÁTICAS
AUTOR: ADRIANO NUNES DE FREITAS
ORIENTADOR: FRANK THOMAS SAUTTER
Data e Local da Defesa: Santa Maria, 05 de mao de 2009.
O tema da presente dissertação situa-se nos campos de pesquisa da Metaética e da
Metajurídica. Nessas áreas de pesquisa, investiga-se quais são as características do discurso
prescritivo (que inclui a Moral, o Direito, entre outros) e em que aspectos esse discurso é
diferente do discurso descritivo (que inclui as ciências como Física, Matemática, Química,
etc.). O problema geral que norteou a presente pesquisa é o seguinte: É possível usar os
princípios da Lógica como instrumentos para auxiliar na sistematização e na avaliação dos
discursos da Moral e do Direito? Esse problema geral é dividido em dois problemas
específicos, que são os seguintes: 1) Qual é a natureza lógico-semântica do discurso moral e
do discurso jurídico?; e 2) É possível construirmos inferências práticas, nas quais aos menos
uma das premissas e a conclusão são sentenças imperativas ou normas? Essas questões
recebem diferentes respostas dependendo dos pressupostos adotados e dos métodos de análise
utilizados. Meu objetivo é reconstruir, principalmente, a resposta que R. M. Hare elaborou
para essas questões, e, secundariamente, a resposta que H. Kelsen formulou para tais
questões. No segundo e no quarto capítulos, reconstruí a argumentação de Hare em favor da
tese de que é possível aplicar a Lógica diretamente aos imperativos (às normas). No terceiro
capítulo, reconstruí a argumentação de Kelsen em favor da tese de que não é possível aplicar a
Lógica diretamente aos imperativos (às normas).
Palavras-chave: Hare; Kelsen; inferências práticas.
8
ABSTRACT
Master’s Dissertation
Postgraduate Program in Philosophy
Universidade Federal de Santa Maria
HARE’S CONCEPTION ABOUT THE PRACTICAL INFERENCES
AUTHOR: ADRIANO NUNES DE FREITAS
ADVISOR: FRANK THOMAS SAUTTER
Date and Place of the Defense: Santa Maria, March 05
th
2009.
The theme of the present dissertation is situated in the fields of research of the
Metaethics and of the Metajuridics. In these fields of research, we investigate the
characteristics of prescriptive discourse (which include the Morals, the Law, and others) and
in what aspects this discourse is different from descriptive discourse (which includes sciences
like Physics, Mathematics, Chemistry, and others). The general problem that orientated the
present research is the following: Is possible to use the principles of Logic as instruments to
help in the systematization and evaluation of the discourses of Morals and Law? This general
problem is divided in two specific problems: 1) What is the logico-semantical nature of the
discourses of Morals and Law?; and 2) Can we make practical inferences, in which at least a
premise and the conclusion are imperative sentences or norms? These questions get different
answers depending on presuppositions adopted and the methods of analysis used. My purpose
is to reconstruct, primarily, the answer given by R. M. Hare for these questions, and,
secondarily, the answer given by H. Kelsen for these same questions. In the second and fourth
chapters, I reconstruct Hare’s argumentation in support of the thesis that it is possible to apply
directly Logic to imperatives (norms). In third chapter, I reconstruct Kelsen’s argumentation
in support of the thesis that it is not possible to apply directly Logic to imperatives (norms).
Key-Words: Hare; Kelsen; practical inferences.
9
SUMÁRIO
RESUMO ……………………………………………………………………..........................7
ABSTRACT …………………………………………………………………......................... 8
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 11
2. HARE E SUA DEFESA DA APLICAÇÃO DA LÓGICA AOS IMPERATIVOS:
OBRAS ATÉ THE LANGUAGE OF MORALS ................................................................. 16
2.1. O conceito de ‘conseqüência lógica’ e a possibilidade de aplicação da lógica aos
imperativos ............................................................................................................................ 16
2.1.1. Será que as relações lógicas só ocorrem entre sentenças com valor-de-verdade? ........ 17
2.1.2. Será que há relações lógicas entre sentenças imperativas? ........................................... 22
2.2. Uma proposta de aplicação da Lógica aos imperativos .............................................. 25
2.2.1. Uma comparação entre sentenças indicativas (assertivas) e sentenças imperativas ..... 27
2.2.2. As distinções entre ‘descritor’ e ‘dictor’ e entre ‘frástica’ e ‘nêustica........................ 30
2.2.3. As principais operações lógicas estão na frástica de uma sentença .............................. 42
2.3. O problema das barreiras inferenciais entre o Reino do Ser’ e o ‘Reino do Dever-
Ser’ .......................................................................................................................................... 51
2.4. Uma noção ‘neutra’ de argumento válido ................................................................... 56
3. ALGUMAS CRÍTICAS DE KELSEN À PROPOSTA DE APLICAÇÃO DA
LÓGICA ÀS NORMAS (AOS IMPERATIVOS) .............................................................. 60
3.1. Os princípios da Lógica não se aplicam às normas ..................................................... 60
3.1.1. Alguns pressupostos da teoria kelseniana das normas .................................................. 61
3.1.2. O princípio de não-contradição não se aplica às normas .............................................. 66
3.1.3. Não há relação de implicação lógica entre normas ....................................................... 68
3.2. Algumas críticas de Kelsen à proposta hareana de aplicação da Lógica aos
imperativos ............................................................................................................................ 75
10
4. HARE E SUA DEFESA DA APLICAÇÃO DA LÓGICA AOS IMPERATIVOS:
OBRAS POSTERIORES À THE LANGUAGE OF MORALS ......................................... 80
4.1. A importância da distinção entre implicação lógica e implicatura conversacional.. 80
4.1.1. Duas críticas de B. Williams às supostas ‘inferências imperativas’ ............................. 80
4.1.2. Uma distinção entre implicação lógica e implicatura conversacional .......................... 83
4.1.3. A utilidade da distinção entre implicação gica e implicatura conversacional para o
campo dos imperativos ............................................................................................................ 91
4.2. Uma distinção entre inferências de tipo necessário e de tipo suficiente .................... 95
4.2.1. Condições lógicas e condições causais para fazer algo ................................................ 95
4.2.2. Aplicações da distinção entre inferências de tipo necessário e de tipo suficiente ........ 98
4.3. Uma análise das sentenças indicativas e imperativas em seus componentes
subatômicos .......................................................................................................................... 103
4.3.1. O sinal de modo ou trópico ......................................................................................... 103
4.3.2. O sinal de subscrição ou nêustica ............................................................................... 104
4.3.3. O sinal de completude ou clístico ............................................................................... 107
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 111
6. BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 115
11
1. INTRODUÇÃO
O tema da presente dissertação situa-se nos campos de pesquisa da Metaética e da
Metajurídica. Nessas áreas de pesquisa, investiga-se quais são as características do discurso
prescritivo (que inclui a Moral, o Direito, entre outros) e em que aspectos esse discurso é
diferente do discurso descritivo (que inclui ciências como a Física, a Matemática, a Química,
etc.). Quando investigamos as características do discurso prescritivo em contraposição ao
discurso descritivo, acabamos nos defrontando com certas questões, tais como: 1) Pode-se
derivar logicamente juízos de valor a partir de juízos de fato?, 2) Pode-se derivar logicamente
a validade de uma norma ou imperativo a partir da validade de outra norma ou imperativo?, 3)
Como justificar nossos julgamentos morais?, 4) Qual é o significado do termo ‘bem’?, 5)
Nossos juízos morais podem ser verdadeiros ou falsos?, 6) Nossos julgamentos morais
contêm necessariamente uma motivação para agir?, 7) As propriedades de valor moral
existem somente em nossas cabeças?, entre outras. Todas essas questões têm sua importância
e merecem atenção, mas minha tarefa nessa dissertação é modesta e o estudo que realizei
fornece algumas respostas apenas para as três primeiras questões enumeradas.
O problema geral que norteou a presente pesquisa é o seguinte: É possível usar os
princípios da Lógica como instrumentos para auxiliar na sistematização e na avaliação dos
discursos da Moral e do Direito? Esse problema geral é dividido em dois problemas
específicos, que são os seguintes: 1) Qual é a natureza lógico-semântica do discurso moral e
do discurso jurídico?; e 2) É possível construirmos infencias práticas, nas quais ao menos
uma das premissas e a conclusão são sentenças imperativas ou normas? Essas questões
recebem diferentes respostas dependendo dos pressupostos adotados e dos métodos de análise
utilizados.
Na presente dissertação, meu objetivo geral é reconstruir as respostas que Richard
Mervyn Hare (1919-2002) e Hans Kelsen (1881-1973) fornecem para o problema geral e os
problemas específicos enumerados acima. A proposta de Hare receberá maior atenção e será
reconstruída em mais detalhes, pois ela questiona o tratamento que os lógicos usualmente dão
às sentenças imperativas e apresenta uma resposta inovadora para o problema das inferências
práticas. E a proposta de Kelsen é apresentada porque algumas de suas principais teses entram
em choque com as teses defendidas por Hare. Esse tipo de estratégia de reconstrução da
argumentação foi adotado porque permite construir uma espécie de quadro comparativo entre
o pensamento daqueles que defendem a aplicação direta da Lógica às prescrições e aqueles
12
que negam essa possibilidade. os objetivos específicos são os seguintes: 1) apresentar a
análise que R. Hare faz a respeito das sentenças indicativas e imperativas; 2) reconstruir o
argumento de Hare de que as principais operações lógicas estão na ‘frástica’ de uma sentença
e sua tese de que é possível aplicar a Lógica aos imperativos ou normas da Moral; 3) explicar
como H. Kelsen caracteriza a diferença entre normas e sentenças indicativas (assertivas,
enunciados), e 4) reconstruir a argumentação de Kelsen em favor da tese de que não é
possível aplicar diretamente os princípios da Lógica às normas.
O estudo das propostas de R. Hare e H. Kelsen é importante porque fornece respostas
inovadoras para certas questões que aparecem no campo da Moral e do Direito, e têm
repercussão em nossas práticas cotidianas. Por exemplo, o estudo da proposta de Hare é
importante porque (1) revela que a tendência dos lógicos de atribuir um status inferior para as
sentenças imperativas está baseada mais em preconceitos do que em afirmações efetivamente
justificadas; (2) esse estudo deu origem a uma série de discussões que contribuíram para
esclarecer certos problemas típicos da Moral e do Direito, tal como a questão sobre a natureza
das normas; (3) esse estudo pode ser usado como apoio para discutir certos problemas de ética
aplicada e como apoio para uma proposta de ensino dos valores morais. o estudo da
proposta de Kelsen é importante porque (1) ajuda a esclarecer as características do discurso
jurídico; (2) ajuda a explicitar quais o alguns dos recursos que legisladores utilizam na
elaboração das normas; (3) ajuda a esclarecer quais são alguns dos recursos que os juízes
utilizam nos processos de julgamento e quais o alguns dos mecanismos empregados na
justificação de decisões judiciais. É importante salientar ainda que as propostas de Hare e
Kelsen serviram, por exemplo, como ponto de inspiração e como ponto de crítica para as
investigações realizadas por estudiosos renomados como Alf Ross, Norberto Bobbio, Herbert
Hart, Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin.
Para apresentar as respostas que Hare e Kelsen fornecem para a questão sobre a
possibilidade de aplicar a gica aos imperativos (às normas), dividi a presente dissertação
em três partes.
No segundo capítulo da dissertação, reconstruo a argumentação que R. M. Hare
elaborou em seu artigo Imperative Sentences e na primeira parte de sua obra clássica The
Language of Morals. Minha tarefa consiste especificamente em explicar quais são os
conceitos e argumentos que ele utilizou para defender a tese de que a Lógica de imperativos é
semelhante à gica de indicativos ou de proposições. Para realizar essa tarefa, dividi o
capítulo em quatro seções. Na primeira seção, apresento algumas reflexões a respeito do
conceito de ‘conseqüência lógica’ e faço alguns comentários em favor da tese de que é
13
possível aplicar a Lógica aos imperativos. Na segunda seção, fiz três coisas: em primeiro
lugar, expliquei que, para Hare, as senteas indicativas (assertivas) e sentenças imperativas
têm funções diferentes. A função primária de uma sentença indicativa é dizer-nos que alguma
coisa é ou não o caso. Esse tipo de sentea é considerado habitualmente o objeto próprio da
Lógica. Já a função primária de uma sentença imperativa é dizer-nos para tornar ou não tornar
alguma coisa o caso. As sentenças imperativas não são portadoras de valor-de-verdade, sendo
geralmente deixadas de lado ou recebendo uma atenção menor por parte da maioria dos
lógicos. Em segundo lugar, apresento a distinção entre ‘frástica’ e ‘nêustica’. Para Hare, uma
sentença indicativa como ‘Você vai fechar a porta’ pode ser reescrita assim: Você fechar a
porta no tempo t, sim’; e uma sentença imperativa como ‘Feche a porta’ pode ser reescrita
assim: ‘Você fechar a porta no tempo t, por favor’. A parte comum as duas sentenças, o ‘Você
fechar a porta no tempo t’, recebe o nome de ‘frástica’ e serve para apontar o tema ou o estado
de coisas ao qual as sentenças se referem. a parte diferente, o ‘sim’ e o ‘por favor’, recebe o
nome de ‘nêustica’ e tem duas funções: fornecer o modo da sentença e indicar assentimento
(compromisso) para com a mensagem da sentença. Em terceiro lugar, reconstruo e justifico o
argumento de que as principais operações lógicas estão na frástica de uma sentença. Na
terceira seção, apresento duas regras que devem reger os diferentes processos inferenciais. Na
quarta seção, faço duas coisas: inicialmente, explico por que Hare precisa adotar uma noção
‘neutra’ de argumento válido; a seguir, apresento essa noção ‘neutra’ de argumento válido a
qual não faz refencia a valores-de-verdade e pode ser aplicada tanto a indicativos quanto a
imperativos.
No terceiro capítulo da dissertação, explico por que Kelsen defende a tese de que os
princípios da gica não se aplicam às normas. Para realizar essa tarefa, dividi o capítulo em
duas seções. Na primeira seção, faço três coisas. Em primeiro lugar, reconstruo alguns
pressupostos da teoria kelseniana das normas. Nessa parte, apresento a análise que Kelsen faz
a respeito de conceitos como ‘norma’, ‘ato de vontade’ e ‘validade de uma norma’ Em
segundo lugar, explico por que Kelsen defende que o princípio de não-contradão não se
aplica às normas. O argumento principal usado por ele é o de que o princípio de não-
contradição se aplica somente às sentenças portadoras de valor-de-verdade. Como as normas
não são portadoras de valor-de-verdade, então tal princípio não se aplica a elas. Em terceiro
lugar, explico por que Kelsen afirma que não há relação de implicação lógica entre normas. O
argumento central usado por ele é o de que normas somente podem ser criadas por um ato de
vontade autorizado por outra norma de um sistema moral ou jurídico positivos. Como o ato de
vontade que põe a norma não pode resultar de outro ato de vontade por meio de uma
14
implicação lógica, então a validade de uma norma não resulta logicamente da validade de
outra norma. Na segunda seção, apresento algumas críticas de Kelsen à proposta hareana de
aplicação da Lógica aos imperativos. Essas críticas são dirigidas à maneira como Hare
caracteriza a frástica’ e a noção de ‘assentimento’ e ao fato dele fazer uma aplicação direta
da Lógica às normas (aos imperativos).
No quarto capítulo, apresento a argumentação que Hare constrói nas suas obras
posteriores a The Language of Morals e que serve para defender a tese de que é possível
aplicar a gica aos imperativos (às normas). Para realizar essa tarefa, dividi o capítulo em
três seções. Na primeira seção, fiz três coisas. Em primeiro lugar, reconstruo duas críticas que
Bernard Williams fez a respeito das inferências imperativas’. Na primeira crítica, ele afirma
que a inferência de ‘Poste a carta’ para ‘Poste a carta ou queime-a’ não é uma inferência
imperativa válida porque a premissa tem ‘pressuposições permissivas’ que são, em algum
sentido, inconsistentes com as ‘pressuposições permissivas’ da conclusão. Na segunda crítica,
Williams afirma que a inferência dePoste a carta ou queime-a’ e ‘Não a queime’ para ‘Poste
a carta’ o é uma inferência imperativa lida porque as duas premissas o, em algum
sentido, inconsistentes uma com a outra. Em segundo lugar, apresento a distinção entre
implicação lógica (logical implication) e implicatura conversacional (conversational
implicature). O termo implicação lógica é geralmente usado para fazer referência às
inferências que derivam unicamente do conteúdo lógico ou semântico. Isso ocorre, por
exemplo, em uma infencia que vai de ‘Todos os homens são mortais’ e ‘Todos os
brasileiros são homenspara ‘Todos os brasileiros são mortais’. Já o termo implicatura
conversacional é usado para fazer referência às ‘inferências’ que estão baseadas não apenas
no significado lógico-semântico das sentenças envolvidas, mas também levam em conta o
contexto do proferimento e as regras que regem uma conversação. Isso ocorre, por exemplo,
na infencia’ que vai de ‘X disse que João está em algum lugar no sul do Brasilpara X
não sabe exatamente onde João está’. Em terceiro lugar, explico como Hare faz uso da
distinção entre implicação lógica e implicatura conversacional para rebater as críticas que B.
Williams fez às inferências imperativas. Na segunda seção, faço duas coisas. Primeiro,
apresento a distinção que Hare faz entre ‘inferências de tipo necessárioe ‘inferências de tipo
suficiente’; a seguir, explico que essa distinção ajuda a reforçar a tese de que a lógica de
imperativos é semelhante à lógica de indicativos ou de proposições. Na terceira e última seção
desse capítulo, reconstruo a nova distinção que Hare apresenta em seu artigo Some Sub-
Atomic Particles of Logic, de 1989, a saber: entre o sinal de modo, o sinal de subscrição e o
sinal de completude.
15
Para finalizar a dissertação, faço alguns comentários com o objetivo de recapitular os
principais pontos da argumentação de Hare e Kelsen a respeito da aplicabilidade da Lógica às
prescrições. Além disso, aponto alguns problemas que poderiam ser objeto de estudo para
futuras pesquisas.
16
2. HARE E SUA DEFESA DA APLICAÇÃO DA LÓGICA AOS
IMPERATIVOS: OBRAS ATÉ THE LANGUAGE OF MORALS
Neste capítulo da dissertação, reconstruirei a argumentação que R. M. Hare elaborou
em seu artigo Imperative Sentence e na primeira parte de sua obra clássica The Language of
Morals. Minha tarefa consisti especificamente em explicar quais são os conceitos e
argumentos que ele utilizou para defender a tese de que a lógica de imperativos é semelhante
à lógica de indicativos ou de proposições. Para realizar essa tarefa, dividirei o capítulo em
quatro seções. Na primeira seção, apresentarei algumas reflexões a respeito do conceito de
‘conseqüência lógicae introduzirei alguns comentários em favor da tese de que é possível
aplicar a lógica aos imperativos. Essa primeira parte do capítulo é necessária para
compreender a origem do problema e também a importância da aplicação da lógica aos
imperativos. Na segunda seção, farei três coisas: primeiro, reconstruirei a comparação que
Hare faz entre sentenças indicativas (assertivas) e sentenças imperativas; a seguir,
apresentarei a sua distinção entre ‘frásticae ‘nêustica’; por último, reconstruirei e justificarei
o argumento de que as principais operações lógicas estão na frástica de uma sentea. Na
terceira seção, apresento duas regras que devem reger os diferentes processos inferenciais. Na
quarta seção, farei duas coisas: inicialmente, explico porque Hare precisa adotar uma noção
‘neutra’ de argumento válido; a seguir, apresento essa noção ‘neutra’ de argumento válido.
2.1. O conceito de ‘conseqüência lógica’ e a possibilidade de aplicação da lógica aos
imperativos.
O conceito de ‘conseqüência lógica’ ocupa um lugar de destaque nos estudos
realizados pelos lógicos. A atenção dada a esse conceito se justifica na medida em que uma
boa compreensão do seu significado é importante não só para ciências como a Física e a
Matemática, mas também para o campo de estudos da Filosofia e do Direito isso sem falar
nas outras ciências. Uma melhor compreensão desse conceito pode servir de auxílio na
construção de provas mais rigorosas e de argumentações mais consistentes. Isso que acabo de
dizer não é uma novidade para alguém que estudou um pouco de Lógica, mas há um tema que
es relacionado com esse conceito e que parece não ter recebido a devida atenção até o
momento. Esse tema diz respeito ao que poderíamos chamar de ‘origem pré-teórica’ do
conceito de conseqüência lógica. Não tenho aqui, de modo algum, a pretensão de esgotar o
17
assunto em todos os seus detalhes. Um dos objetivos desta seção é defender que certa
ligação entre um conceito o-técnico que podemos denominar de ‘segue-se’ e o conceito
técnico de conseqüência lógica’. Outro objetivo é introduzir alguns comentários em favor da
tese de que há relação de conseqüência lógica entre imperativos. Para desenvolver essa
discussão, achei conveniente dividir a seção em duas partes. Na primeira parte, apresentarei
algumas sentenças da linguagem ordinária nas quais aparece o uso do conceito ‘segue-se’ e
apontarei qual desses usos recebeu atenção central por parte da maioria dos lógicos. Na
segunda parte, farei alguns comentários com a intenção de defender que na linguagem
ordinária há um uso legítimo do conceito ‘segue-se’ para relacionar imperativos e que foi
indevidamente deixado de lado por grande parte dos estudiosos da Lógica.
2.1.1. Será que as relações lógicas só ocorrem entre sentenças com valor-de-verdade?
O conceito técnico de ‘conseqüência lógica’ parece ter sua origem em um certo uso do
conceito ‘segue-se’. Para justificar e especificar melhor essa tese, começarei com uma
pequena reflexão acerca das seguintes sentenças:
(1) A briga entre Pedro e João seguiu-se do fato de que Pedro cantou a mulher de João.
(2) A dilatação da barra metálica segue-se do aquecimento da mesma.
(3) Estou lhe dizendo que de ‘Todos os homens são mortais’ e ‘Todos os gregos são homens
segue-se que ‘Todos os gregos são mortais’.
(4) Estou lhe dizendo que de ‘Fale a verdade ou cale-se’ e Não se cale’ segue-se ‘Fale a
verdade’.
Na sentença (1) a expressão ‘segue-se’ conecta expressões lingüísticas que são usadas
para falar de uma relação entre uma ação (a briga de Pedro com João) e um fato (a cantada
que Pedro deu na mulher de João) que serviu de motivo para essa ação. Na sentença (2) a
expressão ‘segue-se’ liga expressões lingüísticas que são usadas para descrever uma relação
causal entre dois eventos: o aquecimento da barra metálica e a sua dilatação. Para os nossos
propósitos não interessam os usos da expressão ‘segue-se’ que aparecem nas sentenças (1) e
(2). A relação causal é uma relação entre eventos na natureza, e a relação ‘motivacional’ é
entre ações e motivos. Essas relações o o de tipo lógico, pois as operações lógicas, tal
como a negação, a conjunção, a disjunção, a quantificação e a relação de conseqüência lógica,
ocorrem entre os significados de sentenças bem construídas.
O que nos interessa aqui são os usos do conceito ‘segue-se’ nas sentenças (3) e (4). Na
sentença (3) o conceito ‘segue-se’ é usado para relacionar o significado de sentenças
18
declarativas (com valor-de-verdade) as quais também o chamadas de sentenças assertivas
(Frege), indicativas (Hare), senteas que expressam proposições. Aristeles foi o primeiro a
desenvolver uma teoria sistemática sobre o tipo de relação que poderia haver entre o que hoje
chamamos de sentenças assertivas. Ele notou que as pessoas tanto no discurso científico
quanto no discurso corrente elaboram certas sentenças compostas que podem ser colocadas
na forma de um argumento. Nesse argumento, as sentenças ‘simples’
1
estão sendo
relacionadas de uma maneira especial. A sentença (3), citada acima, pode dar origem ao
seguinte argumento:
(5) Todos os homens são mortais.
Todos os gregos são homens.
Todos os gregos são mortais.
Esse tipo de argumento recebeu o nome de silogismo. Um silogismo é definido por
Aristóteles como um discurso (logos) que consiste em dizer que, enunciadas certas coisas,
algo mais segue-se necessariamente do fato delas serem assim’ (Primeiros Analíticos, I.1,
24b18)
2
. Essa definição de silogismo é apresentada quando Aristóteles está tratando das
‘sentenças apofânticas’ (logos apofântico). Essas sentenças apofânticas correspondem ao que
contemporaneamente denominamos de ‘sentenças com valor-de-verdade’. O curioso é que a
definição aristotélica de silogismo não estabelecia que as sentenças componentes do
argumento precisavam ter valor-de-verdade. Outro aspecto muitas vezes ignorado é que
Aristóteles fazia uma distinção entre dois tipos de silogismo: um teórico e outro que podemos
denominar de prático. No Movimento dos Animais (701
a, 7ss) e na Ética a Nicômaco (1144
a
31), ele fala de silogismos práticos e não de teóricos
3
. Voltarei a esse ponto na próxima
seção.
1
Estou usando o termo ‘simples’ em um sentido não-técnico. Uma sentença ‘simples’ pode ser entendida aqui
como composta de um termo sujeito e um termo predicado. Tendo isso em vista, uma sentença composta é um
agregado dessas sentenças simples. Por exemplo, as sentenças ‘Todos os mamíferos têm rins’, ‘Todos os homens
são mamíferos’ e Todos os homens têm rins’ são simples. a sentença “Se Todos os mamíferos têm rins’ e
‘Todos os homens são mamíferos’, então Todos os homens têm rins’’’ é composta. Ela agrega as três simples e
o seu valor-de-verdade é dependente do valor-de-verdade dessas.
2
Na edição inglesa de J. Barnes (1995, p. 40), diz o seguinte: ‘A deduction is a discourse in which, certain things
being stated, something other than what is stated follows of necessity from their being so’ (Aristóteles, Prior
Analytics I.1, 24b18).
3
No Movimento dos Animais, Aristóteles afirma: ‘[...] Mas como é que o pensamento é algumas vezes seguido
pela ação, às vezes o; algumas vezes pelo movimento, às vezes o? O que acontece parece comparável ao
caso do pensar e inferir sobre os objetos imóveis. o fim é a verdade compreendida (truth seen) (pois, quando
alguém pensa as duas proposições, ele pensa e coloca juntamente a conclusão), mas aqui as duas proposições
resultam em uma conclusão que é uma ão por exemplo, sempre que alguém pensa que todo homem deve
19
O que Aristóteles parece ter notado é que nos argumentos do tipo acima citado ocorre
a ‘preservação de algo’. Tendo em vista que as sentenças que compõem o argumento são
portadoras de valor-de-verdade, então podemos dizer que uma ‘preservação da verdade’
alguém poderia dizer também que uma ‘preservação de conteúdo informativo’. Outro
aspecto relevante é o uso da expressão ‘segue-se necessariamente’. Essa expressão, associada
ao contexto no qual ela aparece, a entender que a preservação da verdade não depende do
sujeito que argumenta e, em algum sentido, também é independente dos objetos aos quais se
referem as sentenças envolvidas. Não parece errado interpretar Aristóteles dessa maneira,
especialmente se levarmos em conta a sua abordagem sobre os silogismos aqueles
argumentos que são válidos unicamente em função de sua forma. Com respeito a esse tema,
há um comentário de Lukasiewicz (1977, p. 20-26). Para ele, a lógica aristotélica é formal
sem ser formalista. A título de esclarecimento, apresentarei as linhas gerais da argumentação
que ele usa para defender essa tese.
Lukasiewicz (1977, p. 22-23) explica que, para Aristóteles e os peripatéticos,
pertencem à gica as leis silogísticas expostas mediante variáveis, porém não suas
aplicações a termos concretos. Um caso de silogismo como pura regra estabelecida mediante
caminhar, e que alguém é um homem, imediatamente alguém caminha; ou que, nesse caso, nenhum homem
deveria caminhar, alguém é um homem: imediatamente alguém permanece em repouso. E alguém assim atua nos
dois casos desde que nada exista para forçá-lo ou impedi-lo. Novamente, ele deve criar algo bom, uma casa é
algo bom: imediatamente ele faz uma casa. Preciso de uma roupa, um manto é uma roupa: preciso de um manto.
O que preciso, devo fazer; preciso de um casaco: faço um casaco. E a conclusão ‘Devo fazer um casaco’ é uma
ão. E a ação volta ao ponto-de-partida. Se é para existir um manto, primeiro deve existir isso, e se isso então
isso e imediatamente ele faz isso. Agora está claro que a conclusão é uma ação. Mas as premissas da ação são
de dois tipos, do bem e do possível’ (MA 7. 701
a, 1-24). [Tradução minha].
Na edição inglesa desse trecho, feita por J. Barnes (1995, p. 1091-1092), a partir da qual realizei minha tradução,
diz o seguinte: ‘But how is it that thought is sometimes followed by action, sometimes not; sometimes by
movement, sometimes not? What happens seems parallel to the case of thinking and inferring about the
immovable objects. There the end is the truth seen (for, when one thinks the two propositions, one thinks and
puts together the conclusion), but here the two propositions result in a conclusion which is an action for
example, whenever one thinks that every man ought to walk, and that one is a man oneself, straightaway one
walks; or that, in this case, no man should walk, one is a man: straightaway one remains at rest. And one so acts
in the two cases provided that there is nothing to compel or to prevent. Again, I ought to create a good, a house is
good: straightaway he makes a house. I need a covering, a coat is a covering: I need a coat. What I need I ought
to make, I need a coat: I make a coat. And the conclusion ‘I must make a coat’ is an action. And the action goes
back to a starting-point. If there is to be a coat, there must first be this, and if this then this – and straightaway he
does this. Now that the action is the conclusion is clear. But the premises of action are of two kinds, of the good
and of the possible’ (Aristotle, Movement of Animals 7. 701
a, 1-24).
E na Ética a Nicômaco, Aristóteles afirma: ‘[...] O discernimento não é a faculdade, mas não existe sem ela. Este
olho da alma não adquire sua eficácia sem a excelência moral, como dissemos e é evidente; de fato, as
inferências dedutivas relacionadas com os atos a praticar pressupõem um ponto de partida por exemplo, “já
que a natureza do objetivo, ou seja, o que é melhor, é esta...” (seja ela qual for, pois para argumentar podemos
considerá-la como quisermos); e isto é evidente apenas para as pessoas boas, pois a deficiência moral nos
perverte e faz com que nos enganemos acerca dos pontos de partida da ação. É obviamente imposvel, portanto,
ser dotado de discernimento sem ser bom’. (itálico meu, EN, 1144
a 31, tradução de Mário da Gama Cury,
2001).
20
letras é o seguinte: A é predicado de todo B, B é predicado de todo C, por conseguinte A é
predicado de todo C’. Os termos concretos, isto é, os valores das variáveis, são denominados
a matéria do silogismo. Se eliminarmos todos os termos concretos de um silogismo,
substituindo-os por letras, teremos eliminado a matéria do silogismo e o que resta é a sua
forma. A essa forma do silogismo pertencem, além do número e a disposição das variáveis, as
denominadas constantes gicas. Duas dessas constantes são as expressões auxiliares ‘e’ e
‘se’. As restantes quatro constantes são representadas pelas seguintes expressões: ‘pertencer a
todo’, não pertencer a nenhum’, ‘pertencer a algum’ e o pertencer a algum’. Essas quatro
constantes representam relações entre termos quaisquer. Os lógicos medievais as denotaram
por A, E, I e O, respectivamente. Lukasiewicz defende que toda a teoria aristotélica do
silogismo está construída sobre a base dessas quatro expressões com a ajuda das expressões
‘e’ e ‘se’. Assim, a lógica de Aristóteles é formal, ou seja, é uma teoria das relações A, E, I e
O no campo de termos quaisquer.
Na seqüência, Lukasiewicz defende que a lógica aristotélica é formal sem ser
formalista (1977, p.24). Ele explica que no formalismo aparece a exigência de que o mesmo
pensamento seja expresso sempre por meio de exatamente a mesma série de palavras e
ordenadas exatamente da mesma maneira. Quando uma prova é construída de acordo com
esse princípio, podemos controlar sua validez somente com base na sua forma externa, sem
fazer referência ao significado dos termos usados na prova. Com o objetivo de obter a
concluo
β
a partir das premissas Se
α
, então
β
e
α
’, não precisamos saber o que
significam realmente o
α
e o
β
’; é suficiente advertir que os dois
α
’s’ contidos nas
premissas têm a mesma forma externa.
Ora, tendo em vista essa noção de formalismo, Aristóteles e os peripatéticos não foram
formalistas (1977, p. 25). O caso é que Aristóteles nem sempre era suficientemente exato na
formulação de suas teses. Por exemplo, há uma discrepância estrutural entre as formas
abstratas e as formas concretas de seus silogismos. Isso fica evidente em um silogismo com
premissas opostas, o qual aparece em Primeiros Analíticos II, 15, 64 a 23. Aristóteles
estabelece:
Em variáveis: Se B pertence a todo A
e C não pertence a nenhum A,
então Co pertence a algum B.
21
Em termos concretos: Se toda a medicina é ciência
e nenhuma medicina é ciência,
então alguma ciência não é ciência
4
.
Aqui devemos interpretar B e C como ‘ciência’ e A como ‘medicina’.
A diferença entre as premissas correspondentes que compõem os dois silogismos é
evidente. Considere, por exemplo, a primeira premissa. Para a rmula B pertence a todo A
corresponde a sentença Ciência pertence a toda medicina’, e para a sentença ‘Toda a
medicina é ciênciacorresponderia a fórmula ‘Todo A é B’. No entanto, a sentença em termos
concretos, dada por Aristóteles, não pode ser considerada como uma substituão da fórmula
abstrata aceita por ele. Assim, o que acontece é que a lógica aristotélica é formal sem ser
formalista. Ela não é formalista porque o atende ao critério formalístico exposto
anteriormente, a saber: que o mesmo pensamento seja expresso sempre por meio de
exatamente a mesma série de palavras ordenadas exatamente da mesma maneira
5
.
Agora que temos uma idéia do que é um silogismo e de sua importância na teoria
aristotélica, comentarei brevemente a noção de argumento válido e de conseqüência lógica.
Acredito que a grande parte dos lógicos concorda que num argumento válido uma relação
lógica de natureza formal entre o significado das sentenças que aparecem na(s) premissa(s) e
na conclusão. Dizer que essa relação lógica é de natureza formal significa dizer que ela se
mantém independentemente do sujeito que argumenta e das coisas que são objeto da
argumentação. Os lógicos costumam dizer que um argumento válido é aquele no qual
necessariamente se as premissas são verdadeiras, então a conclusão é verdadeira. Outra noção
empregada pelos lógicos, e associada à noção de argumento válido, é a noção modelo-
teorética de conseqüência lógica, que pode ser expressa assim:
(CL) A sentença X segue-se logicamente das sentenças da classe K se e somente se
cada modelo que torna as sentenças da classe K verdadeiras é também um modelo que
torna a sentença X verdadeira.
4
Adaptação da edição inglesa de Barnes (1995, p. 102), na qual lemos: ‘[…] Let B and C stand for science, A for
medicine. If then one should assume that all medicine is science and that no medicine is science, he has assumed
that B belongs to every A and C to no A, so that some science will not be a science. […] The propositions are
contrary if the terms are taken universally; if one is particular, they are opposite’ (Aristotle, Prior Analytics II 15.
64 a 23).
5
Um comentário detalhado sobre a distião entre lógica formal e gica formal formalística encontra-se no
capítulo 1 da obra La silogística de Aristóteles (ver Lukasiewicz , 1977; vide bibliografia). Além disso, essa obra
apresenta um comentário detalhado acerca da teoria aristotélica do silogismo.
22
Essas definições de argumento lido e de conseqüência lógica resgatam certas
‘intuições básicas’ que aparecem naquele uso cotidiano do conceito ‘segue-se’ para
relacionar sentenças com valor-de-verdade. Essas ‘intuições básicas’ são ao menos duas: uma
é a de que, no movimento das premissas para a conclusão, não há ganho de conteúdo
informativo; a outra é a de que a verdade das premissas impõe a verdade da conclusão.
Chegado a esse ponto, podemos colocar agora duas questões, que são as seguintes: 1) será que
as relações lógicas ocorrem entre senteas com valor-de-verdade?; e 2) seque o uso do
conceito ‘segue-se’ para relacionar imperativos não é também legítimo e expressa uma
relação lógica? É disso que vou tratar agora.
2.1.2. Será que há relações lógicas entre sentenças imperativas?
Na sentença (4), que apareceu acima como um exemplo que é elaborado na linguagem
corrente, o conceito segue-se’ é usado para relacionar imperativos. Essa sentença pode ser
colocada na forma de um argumento, tal como segue:
(6) Fale a verdade ou cale-se.
Não se cale.
Portanto: Fale a verdade.
Teríamos aqui um argumento válido? É claro que se tomarmos em consideração a
definição de argumento lido acima apresentada, então a resposta será negativa. A definição
usualmente aceita exige necessariamente que as premissas e a conclusão tenham valor-de-
verdade. Como as sentenças do raciocínio em questão são imperativos os quais não
possuem valor-de-verdade não faz sentido perguntar, a partir dessa perspectiva, se este é um
argumento válido. Apelar para a noção semântica de conseqüência lógica, acima exposta,
também não resolve o problema
6
.
6
Poderíamos apresentar uma redefinição da noção semântica (modelo-teorética) de conseqüência gica, tal
como a seguinte: a sentença X segue-se logicamente das sentenças da classe K se e somente se cada modelo que
torna as sentenças da classe K verdadeiras é também um modelo que torna a sentença X verdadeira (caso das
inferências teóricas) ou a sentença X segue-se logicamente das sentenças da classe K se e somente se cada
modelo que torna as sentenças sobre o cumprimento das sentenças da classe K verdadeiras é também um
modelo que torna a sentença sobre o cumprimento da sentença X verdadeira (aplicação indireta às inferências
práticas). As chamadas ‘lógicas da satisfação(ver, por exemplo, o comentário de A. Ross em Imperatives and
Logic, 1941) se propõem a tratar dos imperativos de uma maneira indireta, fazendo uso de sentenças indicativas
(declarativas) sobre o cumprimento de imperativos. Elas parecem fazer uso dessa redefinição da não semântica
de conseqüência lógica. No entanto, é possível questionar se as lógicas da satisfação’ conseguem dar conta de
explicar todas as formas de inferências com imperativos aceitas no uso cotidiano.
23
A questão é que sentimos certo desconforto perante essa conclusão. De fato, na
linguagem ordinária (de uso corrente) construímos certos racionios em que as sentenças
componentes são exclusivamente imperativos, ou então nos quais apenas a premissa menor é
uma sentença com valor-de-verdade. O silogismo prático, do qual falava Aristóteles, pode
ser descrito como um exemplo do segundo caso. Nesse silogismo prático, a premissa maior é
um imperativo universal, a menor uma sentea com valor-de-verdade e a concluo é um
imperativo, ou uma ação que, por assim dizer, substitui um imperativo (ver nota 3 acima)
7
.
Para fins de argumentação, podemos citar mais alguns exemplos de raciocínios com
imperativos, tais como os seguintes:
(7) Mantenha suas promessas.
Essa é uma promessa sua.
Mantenha essa promessa sua.
(8) Use um machado ou use um serrote.
Não use um machado.
Use um serrote.
(9) Alguém deve criar algo bom.
Uma casa é algo bom.
Logo: Alguém deve criar uma casa.
(10) Quem realizar atos de tráfico de drogas numa quantidade de noria importância
deverá ser punido, de acordo com o artigo 344 do Código Penal, com a pena de prisão maior.
A e B cometeram esse tipo de ato.
Logo, A e B devem ser castigados com a pena de prisão maior
8
.
Temos a impressão de que nesses raciocínios aparece um elemento alogo ao que
ocorre no caso de argumentos com sentenças assertivas (indicativas). Esse elemento é a noção
de que algo é preservado no movimento das premissas para a conclusão. Mas o que é isso que
é preservado? Alguém poderia responder que há a preservação de certo conteúdo informativo,
7
Ao falar de premissa maior e premissa menor como componentes da estrutura de uma inferência prática, estarei
seguindo a terminologia de Hare, o qual usa como referência para sua terminologia o modelo do silogismo
teorético de Aristóteles.
8
Exemplo de silogismo jurídico, adaptado de Atienza, 2003, p. 34 (vide bibliografia).
24
mas isso poderia receber a objeção de que conteúdo informativoé algo relacionado apenas
com sentenças assertivas. Outra resposta seria a de que pode haver a preservação de algo
como ‘a validade dos imperativos’ ou do significado das premissas. De fato, essas respostas
já foram elaboradas por alguns estudiosos, por exemplo, R. M. Hare e Alf Ross, que se
ocuparam com o tipo de linguagem e de raciocínios usados no campo da Ética e do Direito
9
.
O que cabe perguntar, entre outras coisas, é se essa preservão da validade ou do significado
é de natureza formal, ou seja, se ela se manm independentemente do sujeito que argumenta
e das coisas que o objeto da argumentação. As respostas de Hare e Ross são positivas,
embora não estejam livres de objeções.
Em todo caso, se aceitamos que há um uso legítimo do conceito ‘segue-se’ para
relacionar os imperativos e que essas relações são de caráter lógico, então nos deparamos com
uma espécie de ‘dilema’: uma opção é trabalharmos com duas definições de argumento
válido, uma aplicável para aqueles raciocínios compostos exclusivamente por sentenças
assertivas e outra aplicável para aqueles raciocínios nos quais também (ou unicamente)
comparecem imperativos; a outra opção é construirmos uma definição ‘neutra’ de argumento
válido, a qual é aplicável tanto no primeiro quanto no segundo caso. Os quadros abaixo
apresentam os esquemas dessas opções:
1ª opção
Inferências apenas com indicativas Infencias com imperativas e,
eventualmente, indicativas
por analogia
(Verdade - Falsidade) ___________________ (Validade-Invalidade)
(Cumprimento-Descumprimento)
Quadro 1 - Duas noções de argumento válido.
9
Cabe esclarecer aqui que A. Ross inicialmente era um crítico da aplicação da lógica aos imperativos (em
Imperatives and Logic de 1941) e posteriormente vai defender a aplicação da lógica aos imperativos (em
Directives and Norms). Essa última obra foi traduzida para o espanhol sob o título Lógica de las Normas (vide
bibliografia).
25
2ª opção
Noção geral de argumento válido aplicável à:
Inferências apenas com indicativas Inferências com imperativas
e, eventualmente, indicativas
Quadro 2 - Noção única de argumento válido.
Como resposta ao ‘dilema’ acima, Hare tomou um caminho que segue em direção à
segunda das opções. Ele identificou um elemento comum entre sentenças assertivas
(indicativas) e sentenças imperativas (1996, p. 22-23). Tal elemento recebeu o nome de
‘frástica’ e nele ocorrem, segundo Hare, as principais operações lógicas: implicação, negação,
conjunção, disjunção, quantificação. Um argumento válido seria aquele no qual se as
premissas apontam ou indicam um estado de coisas, então a conclusão também aponta ou
indica, ao menos parcialmente, esse mesmo estado de coisas. Nas seções abaixo, explicarei
em mais detalhes a proposta hareana.
2.2. Uma proposta de aplicação da Lógica aos imperativos.
Na seção anterior, apresentei alguns comentários com a intenção de mostrar que é
possível questionar o critério segundo o qual somente sentenças portadoras de valor-de-
verdade são objeto da gica. Nas três pximas seções, reconstruirei uma parte da
argumentação que R. M. Hare elaborou em favor da tese de que é possível aplicar a lógica aos
imperativos. A proposta de Hare é importante devido a três razões principais: 1) ela possibilita
estudar e avaliar sistematicamente a coerência do discurso no campo da Moral; 2) ela
possibilita estudar e avaliar sistematicamente a coerência de certos raciocínios práticos da
vida cotidiana que envolvem o uso de imperativos (Hare, 1949, p. 22-23); 3) esse estudo de
Hare é importante para certas áreas da Filosofia do Direito, especialmente aquelas discussões
que envolvem a justificação das decies judiciais (Hare, 1949, p. 38). Um problema muito
discutido dentro dessa temática é se a decisão do juiz se ou não através de um processo
inferencial segundo regras de subsunção (ao estilo do exemplo 10 apresentado na seção
anterior, chamado de silogismo jurídico). Cabe lembrar, que Hare (1949, p. 23-24) menciona
ainda que estudar e compreender as características dos imperativos pode ajudar a
26
compreender a natureza de definições, sentenças analíticas e regras em geral (regras de
inferência, regras de jogos, manuais de instrução, livros de culinária, digos de trânsito,
regras de etiqueta, entre outras).
Para reconstruir a argumentação de Hare em favor da tese de que é possível aplicar a
lógica aos imperativos, usarei como base o artigo Imperative Sentences, de 1949, e a primeira
parte da obra The Language of Morals, de 1952. Na reconstrução da argumentação obedecerei
não tanto a ordem cronológica dessas obras, mas principalmente a ordem sistemática
necessária para uma melhor compreensão dos argumentos e conceitos utilizados em favor da
tese hareana.
Antes de reconstruir mais detalhadamente a argumentação hareana, quero destacar
dois pontos: o primeiro deles é que Hare começou a estudar os imperativos de uma maneira
mais sistemática devido a sua preocupação com o discurso do campo da Moral. Ele notou que
a linguagem da Moral é uma espécie de linguagem prescritiva. A linguagem prescritiva tem
como função orientar a conduta, ou seja, ela nos diz que algo é ou não para ser efetivado,
realizado. O gênero linguagem prescritiva é composto, de acordo com Hare, por imperativos e
jzos-de-valor. Esses imperativos se dividem em simples e universais, e os juízos-de-valor se
dividem em morais e não-morais (Hare, 1996, p. 3-5). Ele realiza um estudo detalhado tanto a
respeito dos imperativos quanto a respeito dos juízos-de-valor.
Aqui não apresentarei a abordagem hareana a respeito dos juízos-de-valor por duas
razões: a primeira delas é que esse não é o tema da presente dissertação; a segunda razão é
que juízos-de-valor morais tais como ‘É certo não matar’, ‘É seu dever o mentir’ e ‘Não é
bom roubarquando são usados em caráter prescritivo e não apenas para fazer referência à
existência de um sistema de valores morais podem ser analisados de maneira semelhante
aos imperativos universais como ‘Não mate’, ‘Não minta’ e ‘Não roube’. Assim, estudar os
imperativos é uma boa maneira de começar a entender as complexas características lógicas
dos juízos-de-valor, sejam eles morais ou não-morais. Como a presente dissertação está
voltada para a proposta inicial de Hare, o que interessa aqui é estudar os imperativos simples
como ‘Feche a porta’, ‘Entre’, ‘Poste a carta’ e os imperativos universais como ‘Não mate’,
‘Não roube’, ‘Não minta’. Esses imperativos aparecem como premissa(s) e conclusão das
chamadas inferências práticas (veja exemplos na seção anterior). Compreender as principais
características desses imperativos é fundamental para 1) avaliar se alguém está sendo
consistente naquilo que está ordenando; e 2) avaliar se determinada conduta está ou não de
acordo com o que foi ordenado. A segunda razão que levou Hare a estudar os imperativos é
27
que ele queria compreender melhor as características das regras de inferência, que o a base
dos sistemas lógicos (Hare, 1949, p. 38).
Com o objetivo de melhor explicar a tese de Hare de que é possível aplicar a lógica
aos imperativos, dividirei a sua argumentação em quatro partes. Em primeiro lugar,
apresentarei a comparação que ele faz entre sentenças indicativas (assertivas) e sentenças
imperativas (comandos). Secundariamente, reconstruirei a distinção entre ‘frástica’ e
‘nêustica’. Em terceiro lugar, reconstruirei o argumento de que as principais operações lógicas
estão na frástica. Por último, explicarei porque Hare precisou adotar uma noção ‘neutra’ de
argumentolido e apresento tal noção.
2.2.1. Uma comparação entre sentenças indicativas (assertivas) e sentenças imperativas.
Para compreender as principais características lógico-semânticas da linguagem
prescritiva, Hare adota o método comparativo per genus et differentiam (por gênero e
diferença). A primeira coisa que ele faz, é traçar um paralelo entre sentenças imperativas
simples como Feche a porta’ e sentenças indicativas como ‘Você vai fechar a porta’. Essa
comparação é feita com o objetivo de começar a explicitar as principais características da
linguagem prescritiva e mostrar que podemos construir inferências práticas legitimas [válidas]
(1996, p. 4).
Na parte inicial do artigo Imperative Sentences, de 1949, Hare alerta que irá atacar o
critério popularmente aceito segundo o qual somente sentenças portadoras de valor-de-
verdade requerem a lógica para o seu tratamento. Ele explica que esse critério
exclui do objeto da lógica todas as sentenças exceto aquelas que pretendem dar
informação, isto é, declaram que alguma coisa é ou não é o caso. Como as sentenças
que fazem isso estão propriamente colocadas no modo indicativo, refiro-me a elas
de agora em diante como ‘sentenças indicativas’. O termo tem a vantagem de ser,
até agora, emotivamente neutro. O critério que estou atacando diz, então, que as
sentenças indicativas são as únicas sentenças que requerem lógica para o seu
tratamento. [...] Tomarei uma classe de sentenças, a saber imperativas, as quais
claramente não pretendem declarar que alguma coisa é o caso, e mostrarei que seu
comportamento lógico é, em muitos aspectos, tão exemplar como aquele das
sentenças indicativas, e em particular, que é possível inferir uma conclusão
imperativa de premissas imperativas. Espero mostrar por esse meio que os lógicos
erram ao limitar sua atenção às sentenças indicativas
10
.
10
Hare (1949, p. 22): ‘We may perhaps give this criterion sufficient precision for our purposes by saying that it
excludes from the subject-matter of logic all sentences except those which purport to give information, i.e., to
state that something is or is not the case. Because sentences which do this are properly put in the indicative
mood, I shall refer to them henceforth as ‘indicative sentences’. The term has the advantage of being, as yet,
emotively neutral. The criterion which I am attacking says, then, that indicative sentences are the only sentences
whit which logic is called upon to deal. […] I shall take a class of sentences, namely imperatives, which clearly
do not purport to state that anything is the case, and shall show that their logical behaviour is in many respects as
exemplary as that of indicative sentences, and in particular, that it is possible to infer an imperative conclusion
28
Para investigar o comportamento lógico-semântico dos imperativos, Hare adota a
seguinte estratégia: primeiro, ele chama a atenção para algumas características da gramática
de imperativos na linguagem ordinária (de uso corrente); a seguir, ele exibe algumas
características lógicas dos imperativos (Hare, 1949, p. 24).
Esse primeiro passo consiste em comparar algumas características da gramática de
imperativos e indicativos tais como eles aparecem na linguagem ordinária. Ao fazer essa
comparação, Hare nota que as sentenças imperativas ocupam muito menos espaço nas páginas
da maioria dos livros de gramática do que as sentenças indicativas. Isso ocorre porque os
imperativos são defeituosos em muitas partes. Em primeiro lugar, em certos tempos verbais
não temos imperativos de forma alguma. Por exemplo, não comandamos coisas para
acontecerem no passado (Hare, 1949, p. 25). Em segundo lugar, uma preponderância da
segunda pessoa em sentenças imperativas. Um comando só pode ser cumprido quando alguém
faz alguma coisa. Por isso, é natural dirigi-lo para essa pessoa e mandá-la fazer o que for.
Naqueles casos em que é inapropriado ou impossível falar dessa maneira usa-se outras
pessoas gramaticais (Hare, 1949, p. 26). Em resumo, Hare afirma que os imperativos são
defeituosos porque são normalmente dados na segunda pessoa e no tempo verbal presente ou
futuro.
O critério que está sendo usado para dizer que os imperativos o defeituosos é o da
capacidade lingüística de expressar certos estados de coisas. Tendo em vista certas limitações
dos seres humanos, os imperativos servem para ordenar apenas estados de coisas de origem
humana e esses estados de coisas devem ser potencialmente realizáveis e efetivamente ainda
não realizados. Por isso, a capacidade lingüística de expressar certos estados de coisas é mais
restrita em imperativos do que em indicativos
11
. Hare entende que é possível argumentar
sobre esse ponto de uma maneira mais geral. Ele explica que
a razão para as restrições no âmbito do modo imperativo que apresentamos é que ele
está relacionado unicamente com estados de coisas de origem humana (on arché
from imperative premisses. I hope by this means to show that logicians have been wrong to confine their
attention to indicative sentences’.
11
É possível fazer uma crítica a essa parte da argumentação de Hare. O fato dos imperativos serem usados
normalmente na segunda pessoa e no tempo verbal presente ou futuro não é propriamente um defeito dos
imperativos, mas é algo constitutivo de sua natureza. Esse fato serve para revelar, ainda que de maneira
acidental, que os humanos é que m uma capacidade limitada para dar e obedecer ordens. Se fosse necessário
usar mais freqüentemente os imperativos em outras pessoas e tempos verbais, os seres humanos teriam
desenvolvida a linguagem de uma maneira tal que os imperativos teriam uma maior capacidade lingüística de
expressar estados de coisas. Uma crítica mais refinada a essa tese de Hare poderia levar em conta a tese de I.
Kant segundo a qual os imperativos só têm sentido para aqueles seres cujo Querer não necessariamente coincide
com o Dever que é o caso de seres humanos, mas não daqueles seres com uma Vontade Santa (cujo Querer
necessariamente coincide com o Dever).
29
antrophos), que são causados pela ação humana. Eles estão, de fato, relacionados
com a esfera da práxis e poiesis, e não com aquela da teoria no sentido estrito, que é
a província própria do modo indicativo. Uma sentença indicativa é uma resposta
para a questão ‘O que é o caso?’; uma sentença imperativa é uma resposta para a
questão ‘O que tem que ser o caso? ou ‘O que eu tenho que tornar o caso?’. A
primeira questão pressupõe que há algum fato inalterável para ser declarado; a
segunda questão, ao contrário, pressupõe que há uma escolha entre fatos
alternativos, isto é, entre cursos alternativos de ação. Fazer o segundo tipo de
questão é deliberar; respondê-la é ou escolher, se a questão perguntava sobre nossa
própria ação, ou comandar, se ela perguntava sobre a ão de outro. Nem
poderíamos deliberar, nem escolher, nem comandar, a menos que estivesse em
questão se a ação era para ser realizada ou não. Mas isso nunca é o caso com ações
passadas, por isso não imperativos passados autênticos. Não comandamos que
Esparta seja arrasada (ilion peportekenai)
12
.
O próximo passo da argumentação consiste em mostrar que é possível, para propósitos
lógicos, adotar uma linguagem em que nenhuma das restrões como tempo e pessoa
aplicam-se às sentenças imperativas. A restrição de tempo pode ser eliminada da seguinte
maneira: ao invés de dar nossa indicação temporal pelo tempo do verbo, dâ-mo-la pela
referência a alguma data fixada. Quando construímos a sentença numa linguagem apropriada,
usando certa artificialidade, a indicação temporal será representada pela expressão no tempo
t’. No lugar da expressão ‘no tempo t’, podemos colocar alguma data, por exemplo, o
nascimento de Cristo. Já a restrição quanto a pessoa pode ser removida inteiramente sempre
que as circunstâncias assim exigirem. Essa restrição quanto a pessoa é removida quando
colocarmos o verbo no infinitivo (Hare, 1949, p. 26-27). A conclusão de Hare com respeito à
eliminação da restrição de tempo e pessoa em sentenças imperativas é a seguinte:
para qualquer evento imaginável, é possível imaginar uma sentença imperativa que
manda esse evento ocorrer; não precisamos especificar quando a sentença foi
proferida, desde que a data do evento referido tenha sido dada. A sentença é algo
que pode ter sido proferido em qualquer tempo prévio ao evento referido; se ela foi
proferida ou não é uma questão de fato contingente que não diz respeito aos lógicos.
Dessa forma, para qualquer sentença indicativa descrevendo um evento, podemos
formar uma sentença imperativa correspondente comandando que o evento aconteça.
Naturalmente, o comando pode ser fisicamente impossível de realizar; mas isso
novamente é uma questão de fato contingente. [...] Os dois modos poderiam então
ser co-extensivos, e existiria uma correspondência entre declarações e comandos.
Que isso não é assim em nossa gramática ordinária é meramente um sinal de que
não somos onipotentes; e isso novamente é um fato que não diz respeito aos lógicos.
12
Hare (1949, p. 25): ‘Put most generally, the reason for the restrictions on the scope of the imperative mood
which we have noticed is that it is concerned only with states of affairs on arché antrophos, which are brought
about by human action. It is, in fact, concerned with the spheres of práxis and poiesis, and not with that of
theoria in the strict sense, which is the proper province of the indicative mood. An indicative sentence is an
answer to the question ‘What is the case?; an imperative sentence is an answer to the question ‘What is to be the
case?or ‘What am I to make the case?’. The first question presupposes that there is some unalterable fact to be
stated; the second question, on the contrary, presupposes that there is a choice between alternative facts, i.e.,
between alternative courses of action. To ask the second sort of question is to deliberate; to answer it is either to
choose, if the question was asked about our own action, or command, if it was asked about someone else’s. We
should neither deliberate, nor choose, nor command, unless it were in question whether the action were going to
be performed or not. But this is never the case with past actions, therefore there are no true past imperatives. We
do not command ilion peportekenai’.
30
Assim, assumirei que um lógico está autorizado para construir imperativos em todas
as pessoas e em todos os tempos
13
.
Aqui é preciso chamar a atenção para a última afirmação de Hare que aparece na
passagem acima. Ao dizer que ‘um lógico está autorizado para construir imperativos em todas
as pessoas e em todos os tempos’, Hare quer atacar a tese dos verificacionistas de que
somente sentenças indicativas têm um significado digno da atenção de um lógico. Ele quer
mostrar que o significado de imperativos é digno de ser examinado e que certos defeitos do
modo imperativo podem ser eliminados ao adotarmos uma linguagem expressivamente mais
apropriada que a linguagem de uso corrente. Na próxima subseção, explicarei em mais
detalhes como funciona o processo acima descrito e reconstruirei a distinção entre ‘frástica’ e
‘nêustica’.
2.2.2. As distinções entre ‘descritor’ e ‘dictor’ e entre ‘frástica’ e ‘nêustica’.
Para explicar em mais detalhes como funciona o processo da eliminão das restrições
de tempo e pessoa em imperativos e reconstruir a distinção entre ‘descritor’ e ‘dictor’,
utilizarei um exemplo fornecido pelo próprio Hare. Consideremos as duas sentenças seguintes
(Hare, 1949, p. 27):
(11) Mary, por favor mostre à senhora Prendergast o quarto dela.
(12) Mary mostrará o seu quarto, senhora Prendergast.
A sentença (12) é uma sentença indicativa. No entender de Hare, a função primária de
uma sentença indicativa é dizer-nos que alguma coisa é ou não o caso. Esse tipo de sentença é
considerado habitualmente o objeto próprio da Lógica. Já a sentença (11) é uma sentença
imperativa. A função primária de uma sentea imperativa é dizer-nos para tornar ou não
tornar alguma coisa o caso. As sentenças imperativas não são portadoras de valor-de-
13
Hare (1949, p. 26-27): ‘[...] for any imaginable event, it is possible to imagine an imperative sentence which
commands that event to take place; we do not need to specify when the sentence was uttered, since the date of
the event referred to has been already given. The sentence is one which might have been uttered at any time
previous to the event referred to; whether it was uttered or not is a matter of contingent fact which does not
concern the logician. In this way, for any indicative sentence describing an event, we can frame a corresponding
imperative sentence commanding that event to happen. Of course, the command may be physically impossible of
fulfilment; but this again is a matter of contingent fact. […] The two moods would then be co-extensive, and
there would be a one-one correspondence between statements and commands. That this is not so in our ordinary
grammar is merely a sign that we are not omnipotent; and this again is a contingent fact which does not concern
the logician. I shall therefore assume that a logician is entitled to construct imperatives in all persons and in all
tenses’.
31
verdade
14
, sendo geralmente deixadas de lado ou recebendo uma atenção menor por parte da
maioria dos lógicos (Hare, 1949, p. 27)
15
.
Apesar de essas duas sentenças dizerem coisas diferentes, elas têm em comum o fato
de fazerem referência a um mesmo estado de coisas. Para Hare, é possível remodelar as
sentenças mais claramente escrevendo nos dois casos uma expressão idêntica para nos
referirmos a esse estado de coisas sobre a qual elas falam (Hare, 1996, p. 19). A expressão
pode ser:
(13) Mostrar o quarto da senhora Prendergast por Mary no tempo t
Aqui té o instante de tempo imediatamente seguinte ao proferimento das sentenças. Hare
esclarece que
essas palavras não são uma sentença. Elas são a descrição de uma complexa série de
eventos; mas elas não são uma sentença porque está faltando alguma coisa; para
serem completas, elas teriam que ou dizer que os eventos descritos aconteceram ou
podem acontecer, ou comandá-los para acontecer, ou perguntar se eles eram para
acontecer, ou alguma coisa nesse sentido
16
.
O que vai ficar claro mais abaixo é que Hare elimina as restrições do modo imperativo
usando de dois artifícios, a saber: 1) ele elimina a restrição quanto à pessoa ao colocar o verbo
no infinitivo; e 2) ele elimina a restrição quanto ao tempo ao usar a expressão ‘no tempo t’.
Na seqüência da argumentação, Hare (1949, p. 27) explica que parte do que ambas as
sentenças (11) e (12) fazem é descrever uma série de eventos – os mesmos eventos em ambos
os casos. Essa complexa série de eventos é descrita pela expressão ‘Mostrar o quarto da
senhora Prendergast por Mary no tempo t’. Ele chama essa parte do que uma sentença faz de
14
Alguns lógicos afirmam que nem as sentenças imperativas e nem mesmo as sentenças indicativas são
portadoras de valor-de-verdade, mas que as sentenças indicativas expressam proposições e tais proposições é que
são portadoras de valor-de-verdade. Acredito que Hare não uma diferença essencial entre sua terminologia e a
terminologia desses gicos. O que importa mesmo é que os valores-de-verdade têm a ver somente com as
sentenças indicativas (assertivas).
15
Alguns estudiosos fazem uma distinção entre forma e função de uma sentença (ver, por exemplo, o capítulo 2
da obra Introdução à Lógica, de Irving Copi – vide bibliografia). Para eles, uma sentença como ‘Você vai fechar
a porta’ tem a forma de uma indicativa, mas em alguns contextos tem uma função imperativa. Isso ocorre, por
exemplo, quando o pai de um menino teimoso diz ‘Você vai fechar a porta’ como uma maneira de reforçar a
ordem ‘Feche a porta’, dada a seu filho anteriormente. Algo semelhante ocorre com as sentenças interrogativas.
A sentença ‘Você já tomou seu banho hoje?’ tem a forma de um interrogativa, mas em alguns contextos tem uma
função imperativa. Isso ocorre, por exemplo, quando a mãe de uma menina arteira nota que já é tarde da noite e
diz ‘Vo já tomou seu banho hoje?’ como uma forma de ordenar ‘Vá tomar seu banho que já é tarde’. Hare tem
consciência desse tipo de distinção, mas adota a estratégia de equiparar a forma de uma sentença com a sua
função primária, isto é, se uma sentença tem a forma indicativa, então sua função primária é indicativa.
Analogamente, se uma sentença tem a forma imperativa, então sua função primária é imperativa. O justifilósofo
Alf Ross adota uma estratégia muito semelhante à adotada por Hare, tanto com respeito à análise de sentenças
indicativas e imperativas em seus componentes ‘frástica’ e nêustica’ quanto em relação a identificar a forma de
uma sentença com a sua função primária (ver Ross, 2000, capítulos II e III).
16
Hare (1949, p. 27): ‘These words are not a sentence. They are the description of a complex series of events;
but they are not a sentence because there is something missing; to be complete, they would have either to say
that the events described happened or would happen, or to command them to happen, or to ask whether they
were going to happen, or something else of this general nature’.
32
sua função ‘descritiva’ (descriptive’ function); e nomeia a parte da sentença que realiza a
função descritiva dessa sentença de seu ‘descritor’ (descriptor). O que falta agora é adicionar
algo que complete o significado dessa expressão e a constitua ou como uma sentença
imperativa ou como uma sentea indicativa, ou outro tipo de sentença.
O próximo passo consiste em reconstruir as sentenças (11) e (12) de tal forma que as
palavras que realizam sua função descritiva sejam separadas das palavras que fazem as outras
coisas que a sentença tem que fazer. Para efetivar tal processo de reconstrução das sentenças,
Hare usa de certa artificialidade – a qual não prejudica a compreensão do significado expresso
pelas sentenças. Como vimos anteriormente, nas senteas (11) e (12) o descritor não está
explícito, mas ele pode tornar-se expcito como segue (Hare, 1949, p. 27-28):
Em vez da sentença (11), escrevamos:
(11.1) Mostrar o quarto da senhora Prendergast por Mary no tempo t, por favor.
E em vez da sentença (12), escrevamos:
(12.1) Mostrar o quarto da senhora Prendergast por Mary no tempo t, sim.
Aqui é preciso mencionar que Hare chama a atenção para duas coisas: a primeira é
que devemos entender (11) e (11.1) como tendo o mesmo significado, e da mesma forma (12)
e (12.1); a segunda é que a contraditória de (12.1) o é
(12.2) Mostrar o quarto da senhora Prendergast por Mary no tempo t, não,
mas
(12.3) Não mostrar o quarto da senhora Prendergast por Mary no tempo t, sim.
Isso significa que a negativa vai no descritor. ‘Sim’ e ‘por favor’ têm a única função de
indicar o modo da sentença, se indicativa ou imperativa ou outro tipo de sentença. Hare
(1949, p. 28) chama essa parte do que uma sentença faz de sua função dictiva’ (‘dictive’
function); e nomeia a parte da sentença que realiza a função dictiva dessa sentença de seu
‘dictor’ (dictor). O dictor indica o que uma sentença realmente está dizendo, ou seja, ele
indica se a sentea é imperativa, indicativa, exclamativa, etc. o descritor, como vimos,
descreve o que é que está sendo dito. Dictores, como descritores, podem estar ou implícitos
ou explícitos.
33
Para explicar que a fuão dictiva e o dictor são essenciais para a identificação do
modo de uma sentença e para uma melhor compreensão do que está sendo dito, Hare faz uma
espécie de comparação entre as sentenças regimentadas (construídas com certa artificialidade)
e as sentenças da linguagem ordinária. Ele argumenta que
em Inglês, como na maioria das linguagens, dictores e descritores estão implícitos;
eles não podem ser separados sem remodelar artificialmente as sentenças. Contudo,
podemos dizer de uma sentença, mesmo em Inglês, em que modo ela está; portanto,
deve existir alguma coisa nela que diz-nos isso. Isso, então, é o dictor, e o resto é o
descritor. Por exemplo, sabemos que a sentença ‘Entre’ é um comando porque ela
carece de um pronome pessoal, e essa ausência de um pronome é, no idioma
Irlandês, um símbolo para o dictor imperativo. Em Latim, sabemos que ‘Intrate’
(‘Entre’) é um imperativo por causa de sua terminação, e assim a terminação conm
o dictor; mas naturalmente ela também contém mais alguma coisa que pertence ao
descritor e não ao dictor, a saber: a indicação da pessoa. É possível que não existam
linguagens em que dictores e descritores estão completamente expcitos; mas para
propósitos lógicos teremos que torná-los assim artificialmente
17
.
Com relação a essa passagem pode ser destacado duas coisas: uma é que as sentenças
da linguagem ordiria normalmente apresentam alguma característica pela qual as
identificamos como sendo indicativas, imperativas, exclamativas, etc; outra coisa a destacar é
que essas mesmas sentenças apresentam um conjunto de palavras que realizam a função
descritiva da sentença e são o seu descritor.
Após explicar a importância da distinção entre descritor e dictor, Hare chama a
atenção para o estado de coisas que é descrito pelo descritor. Para defender que as sentenças
imperativas têm um significado tão digno da atenção dos lógicos quanto as sentenças
indicativas, ele argumenta que toda sentença com sentido (bem construída e com significado)
faz referência a um estado de coisas possível ou efetivo (Hare, 1996. p. 24). Esse estado de
coisas que é descrito pelo descritor recebe o nome de descriptum’ (descriptum)
18
. Tanto as
sentenças indicativas quanto as sentenças imperativas têm que fazer referência a um estado de
coisas possível ou efetivo têm que ter um descriptum para ter significado (Hare, 1949, p.
29). Hare esclarece que
17
Hare (1949, p. 28): ‘In English, as in most languages, dictors and descriptors are implicit; they cannot be
separated without artificially recasting sentences. Even in English, however, we can say of a sentence, what
mood it is in; there must, therefore, be something about it which tells us this. This, then, is the dictor, and the rest
is the descriptor. For example, we know that the sentence ‘Come in’ is a command, because it lacks a personal
pronoun, and this absence of a pronoun is, in an Irish sense, a symbol for the imperative dictor. In Latin, we
know that ‘Intrate’ is an imperative, because of its termination; and so the termination contains the dictor; but of
course it also contains something else which belongs to the descriptor, not the dictor, namely, the indication of
person. There may be no languages in which dictors and descriptors are completely explicit; but for logical
purposes we shall have to make them so artificially’.
18
O termo ‘descriptum é uma derivação do termo latino ‘descripto’, o qual significa ‘aquilo que é descrito,
designado’. Também os termos ‘descriptor’ e ‘dictor’ vêm do Latim e significam ‘aquele que descreve, pinta’ e
‘aquele que diz’, respectivamente.
34
O descriptum de uma sentença indicativa é o que seria o caso se a sentença fosse
verdadeira; e de uma sentença imperativa, o que seria o caso se ela fosse obedecida.
O descriptum de uma declaração pode ou não ser atualmente um fato; se a sentença
é verdadeira, ele é, se não, não. O descriptum de um comando pode ou não tornar-se
um fato; se o comando é obedecido, ele torna-se; se não, não. Como os
verificacionistas têm apontado, uma das maneiras em que uma declaração pode ser
sem significado é não tendo descriptum, isto é, nada há que seria o caso se ela fosse
verdadeira, ou que pudesse verificá-la. Uma sentença imperativa pode ser sem
significado da mesma maneira. A sentença ‘Cante-me uma corda de sabão
exuberante’ é para mim (descritivamente) sem significado, pois não sei qual ação ela
descreve e me manda fazer
19
.
No entendimento de Hare, devemos admitir o valor de grande parte do que tem sido
dito pelos verificacionistas a respeito do significado de uma sentença, mas não devemos
aceitar totalmente a argumentação dos verificacionistas. Para ele, é plausível sustentar que há
tal coisa como o significado descritivo; e uma sentença deve tê-lo se ela é para ser usada para
certos propósitos, tal como a transmissão de informações ou ordens. No entanto, de acordo
com a proposta hareana, dizer que uma sentença tem que ter significado descritivo não é dizer
que sentenças que não são verdadeiras-ou-falsas são sem significado, mesmo descritivamente.
O que acontece é que outras sentenças do que indicativas podem ter significado descritivo, no
sentido de que elas podem ser construídas de tal maneira que façam referência a um estado de
coisas possível ou efetivo (Hare, 1949, p. 29). Aqui é preciso mencionar ainda que uma
sentença pode deixar de ser compreendida por uma pessoa, embora seja perfeitamente
compreensível e significante para outra. Por exemplo, o comando ‘Ponha de ló não tem
significado para os que não sabem no que consiste r de ló, isto é, essa sentença não tem
significado para aqueles que o conhecem o estado de coisas à qual ela se refere (Hare,
1996, p. 24).
Agora que reconstruí a distinção entre descritor e dictor, apresentarei um
esclarecimento que o próprio Hare faz com o objetivo de evitar que sua proposta seja mal
compreendida. Como vimos acima, uma sentença imperativa e sua correspondente sentença
indicativa têm o mesmo descritor, mas diferentes dictores; em outras palavras, o que uma
comanda para ser o caso, a outra declara ser o caso – quer dizer, a diferea entre elas está nos
diferentes significados que elas expressam. Para explicar que sua proposta é diferente da
proposta de J. Jörgensen, Hare argumenta que
19
Hare (1949, p. 29): ‘The descriptum of an indicative sentence is what would be the case if the sentence were
true; and of an imperative sentence, what would be the case if it were obeyed. The descriptum of a statement
may or may not be actually a fact; if the sentence is true, it is; if not, not. The descriptum of a command may or
may not become a fact; if the command is obeyed, it does; if not, not. As the verificationists have pointed out,
one of the ways in which a statement can be meaningless is by having no descriptum, i.e., nothing that would be
the case if it were true, or that would verify it. An imperative sentence can be meaningless in the same way. The
sentence Sing me a rope of exuberant soap’ is for me (descriptively) meaningless, because I do not know what
action it describes and tells me to do.
35
esse ponto tem sido colocado de outro modo ao dizer que sentenças imperativas
‘contêm um fator indicativo (Jörgensen, Erkenntnis, vol. 7, p. 291). Isso é
possivelmente enganoso. Elas realmente contêm um fator (o descritor) que também
está contido em declarações; mas elas não contêm o ‘fator indicativo específico de
declarações, a saber, seu dictor indicativo. Essa forma enganosa da expressão tem
levado algumas pessoas a falar como se uma inferência imperativa, tal como aquelas
que consideraremos, fosse realmente, conforme elas estão, uma inferência indicativa
disfarçada; e poderia ser argumentado nessa base que imperativos o são lógicos
como tais, mas somente em virtude desse fator indicativo. Certamente essa
interpretação do ‘fator indicativo, para significar o que temos chamado de
‘descritor’, tal como está parece controvertida; mas ela poderia ser igualmente
emitida para chamar o descritor de sentenças indicativas de um ‘fator imperativo’, e
assim argumentar que indicativas não eram lógicas como tais, mas somente em
virtude de seu ‘fator imperativo’. Uma forma menos enganosa de expressar-se é
dizer que um fator, o descritor, que está contido tanto em indicativos como em
imperativos, e que é com esse descritor que operamos em muitas, senão todas,
inferências lógicas
20
.
Para tornar mais compreensível a diferea entre as propostas de Jörgensen e Hare
quanto à análise das sentenças imperativas e indicativas, usarei de algumas informações que
aparecem na passagem acima e também de alguns recursos simples da formalização.
Consideremos as duas sentenças abaixo:
(14) Feche a porta.
(15) Você vai fechar a porta.
Em seu artigo Imperatives and Logic, de 1938, Jörgensen defende que uma sentença
imperativa é composta por dois fatores: um ‘fator indicativo que descreve o que é
comandado, e um ‘fator imperativoque expressa (indica) que algo é comandado (Jörgensen,
1938, p. 291-292). Se analisarmos a sentença (14) de acordo com o método proposto por
Jörgensen, ela ficará assim:
(14.1) ! A porta será fechada.
Aqui o !é um símbolo para o fator imperativo. É preciso notar que a sentença ‘A porta será
fechada’ é o fator indicativo e se trata de uma sentença indicativa. Assim, usando de recursos
simples da formalização, podemos traduzir a sentença imperativa (14) da seguinte maneira:
(14.2) ! p
20
Hare (1949, p. 30): ‘This point has been put in another way by saying that imperative sentences ‘contain an
indicative factor’ (Jörgensen, Erkenntnis, vol. 7, p. 291). This is perhaps misleading. They do indeed contain a
factor (the descriptor) which is also contained in statements; but they do not contain the specifically ‘indicative
factor’ of statements, viz. their indicative dictor. This misleading form of expression has led some people to talk
as if an imperative inference, such as those we shall consider, were really, as it were, an indicative inference in
disguise; and it might be argued on this basis that imperatives are not logical as such, but only in virtue of their
indicative factor. Granted this interpretation of indicative factor’, to mean what we have called ‘descriptor’,
such a contention is sound; but it would be equally sound to call the descriptor of indicative sentences an
‘imperative factor’, and so to argue that indicatives were not logical as such, but only in virtue of their
‘imperative factor’. A less misleading form of expression is to say that there is a factor, the descriptor, which is
contained in both indicatives and imperatives, and that it is this descriptor that we operate with in most, if not all,
logical inferences.’
36
Onde o !é um símbolo para o fator imperativo, é um símbolo para o modo indicativo e
p’ é uma expressão para o tema do imperativo.
A sentença (15), se analisada de acordo com o todo de Jörgensen, será traduzida da
seguinte maneira:
(15.1) p
Onde ’ é um símbolo para o modo indicativo ep’ é uma expressão para o tema do
indicativo.
Em outras palavras, se essa interpretação for correta, Jörgensen está dizendo que há
uma sentença indicativa imanente em uma sentença imperativa. Assim, os imperativos por si
mesmos não teriam significado e nem estariam sujeitos à aplicação dos princípios da Lógica;
porém os imperativos teriam significado e estariam sujeitos a uma aplicação indireta da
Lógica em função desse fator indicativo que dá origem a uma sentença indicativa (Jörgensen,
1938, p. 291-292).
Ora, a proposta de Hare tem o objetivo de negar que os imperativos não têm
significado por si mesmos e que não eso sujeitos aos princípios da Lógica. A maneira como
ele analisa as sentenças imperativas e indicativas é diferente do método adotado por
Jörgensen. Na proposta hareana, a sentença imperativa (14) e a indicativa (15) podem ser
traduzidas da seguinte maneira:
(14.3) Você fechar a porta no tempo t, por favor.
(15.2) Você fechar a porta no tempo t, sim.
Usando de recursos simples da formalização podemos traduzir (14.3) e (15.2) que são as
equivalentes de (14) e (15), respectivamente – da seguinte forma:
(14.4) p!
(15.3) p
Onde p’ é uma expressão para o descritor; e o ‘! e o ‘’ são símbolos para o modo
imperativo e indicativo, respectivamente, ou seja, eles são os dictores das sentenças.
Essa interpretação ajuda a mostrar que na proposta hareana os imperativos têm
significado por si mesmos e não há uma sentença indicativa imanente a tais imperativos. Nas
palavras de Hare, o correto é dizer que um fator, o descritor, que está contido tanto em
indicativos como em imperativos, e que é com esse descritor que operamos em muitas, senão
todas, inferências lógicas’
21
.
Antes de reconstruir a tese hareana de que as principais operações lógicas estão no
descritor (frástica), apresentarei algumas das mudanças que Hare fez em relação à sua
21
Ver final da nota 20.
37
terminologia. Em sua obra A Linguagem da Moral, ele usa os termos ‘frástica’ (frastic) e
‘nêustica’ (neustic) para analisar as sentenças indicativas e imperativas
22
. Vimos que o termo
‘descritor’ era usado para nomear a parte comum aos imperativos e indicativos; porém o uso
desse termo originou alguns mal entendidos, como, por exemplo, o de entender as propostas
de Jörgensen e Hare como sendo iguais no seu aspecto central
23
. Alguns estudiosos – os quais
geralmente apóiam a tese de que somente sentenças indicativas são objeto pprio da gica
interpretaram mal e criticaram a proposta hareana por entender que o termo ‘descritor’ devia
ser associado somente às sentenças indicativas
24
. Para evitar confusões, Hare renomeou essa
parte comum das sentenças indicativas e imperativas e a chamou de ‘frástica’ (Hare, 1996, p.
20). O termo frástica deriva de uma palavra grega que significa ‘apontar ou indicar’. Assim, é
a frástica que aponta o estado de coisas possível ou efetivo ao qual as sentenças se referem.
Outra mudança que Hare faz em sua terminologia diz respeito ao termo ‘dictor’.
Vimos acima que o dictor de uma sentea indica o modo dessa sentença, se indicativa,
imperativa, etc. Em sua obra A Linguagem da Moral, Hare usa o termo ‘nêustica’ como um
substituto para o termo dictor. O termo nêustica deriva de uma palavra grega que significa
‘consentir inclinando a cabeça’ (Hare, 1996, p. 20). De acordo com essa nova terminologia, é
possível afirmar que:
A elocução de uma sentença que contém frástica e nêustica pode ser dramatizada da
seguinte maneira: (1) O falante aponta ou indica o que vai afirmar que é ou ordenar
que se faça ser; (2) Ele assente com a cabeça, como para dizer ‘É’, ou Faça-o’. Ele,
porém, terá de assentir movendo a cabeça de formas diferentes, conforme queira
dizer uma ou outra dessas coisas (HARE, 1996, p. 20).
Nessa passagem, Hare se expressa de uma maneira imprecisa. Ele diz que a nêustica é
usada por um falante para indicar assentimento. O problema é que na proposta hareana o
termo ‘assentimento’ tem dois significados diferentes: 1) ‘fornecer o modo de uma sentença’,
e 2) comprometer-se com o que está sendo dito’. Uma crítica que pode ser feita é que
‘fornecer o modo’ e ‘comprometer-se com o que está sendo dito’ são atos distintos. Assim,
um mesmo símbolo, por exemplo, o ponto de exclamação (!) ou um certo movimento de
cabeça, não poderia ser usado para realizar duas funções. Isso daria margem a certas
22
Poderíamos perguntar se é possível aplicar a distinção entre descritor e dictor (frástica e nêustica) na análise de
sentenças interrogativas, exclamativas, normativas (obrigações do campo do Direito). Ainda não conheço todas
as obras de Hare, por isso, não posso responder categoricamente se ele realiza ou não essa tarefa. Nas obras dele
que estudei até o momento, isso não é feito.
23
H. Kelsen critica Jörgensen e Hare por entender que os dois cometeram o mesmo erro, a saber: afirmar que há
uma sentença indicativa imanente na sentença imperativa. (Ver Teoria Geral das Normas, p. 244-246 e p. 249-
250).
24
Esses estudiosos que criticaram a proposta hareana são nomeados por Hare como verificacionistas’, mas ele
o se refere a algum desses indivíduos em particular.
38
confusões, pois em alguns casos o falante profere uma sentença, seja de que tipo for, mas não
quer se comprometer com a mensagem transmitida, ou seja, ele está apenas mencionando tal
sentença.
Apesar dessa ambigüidade do termo ‘assentimento’, pode-se dizer que o próprio Hare
fornece uma solução que evita o surgimento de confusões, ao menos na linguagem escrita. O
fato é que na linguagem escrita dispomos de recursos diferentes para fornecer o modo e para
se comprometer com algo que é dito. Por exemplo, podemos fornecer o modo de uma
sentença ao omitir um pronome e ao conjugar o verbo de uma maneira apropriada – algo que
ocorre com o imperativo ‘Feche a porta’; ou então podemos fornecer o modo de uma sentença
ao usar um pronome e ao conjugar o verbo de uma maneira apropriada – algo que ocorre com
a sentença indicativa ‘Vovai fechar a porta’. Para mostrar se ou não um compromisso
com o que está sendo dito, podemos usar do recurso das aspas. É possível adotar a convenção
de que se uma sentença aparece entre aspas, ela essendo mencionada e o falante não se
compromete com a sua mensagem. Outra convenção que pode ser adotada é de que se ocorre
a ausência de aspas, a sentença está sendo usada e o falante se compromete com sua
mensagem. Para ilustrar esse ponto da argumentação, usarei um comentário do próprio Hare.
Ele esclarece que
[...] se estamos procurando pela diferença essencial entre afirmações e comandos,
temos de procurar na nêustica, não na frástica. Porém, como o emprego da palavra
‘nêustica’ indica, ainda algo em comum entre nêusticas indicativas e imperativas.
É a iia comum, por assim dizer, de assentir a uma sentença ‘inclinando a cabeça’.
É algo que é feito por alguém que usa a sentença com sinceridade e não que
meramente a menciona ou cita entre aspas, algo essencial ao ato de dizer (e querer
dizer) algo. A ausência de aspas na linguagem escrita simboliza o elemento de
significado de que estou falando; escrever uma sentença sem aspas é como assinar
um cheque; escrevê-la entre aspas é como preencher um cheque sem assiná-lo, e.g.,
para mostrar a alguém como preencher cheques. Poderíamos ter uma convenção
segundo a qual, em vez de colocar entre aspas sentenças que estivéssemos
mencionando e não usando, inclinaríamos a cabeça ou faríamos algum sinal especial
na escrita quando estivéssemos usando a sentença a sério. O ‘símbolo de asserção’
no sistema lógico de Frege e no de Russell e Whitehead tem, entre outras funções,
esta, de significar o uso ou afirmação de uma sentença (HARE, 1996, p. 21).
Nessa passagem e na anterior, aparecem certas pistas sobre como resolver o problema
de distinguir entre ‘fornecer o modo da sentença e ‘comprometer-se com a mensagem da
sentença’, ao menos na linguagem escrita. Mesmo que Hare não afirme explicitamente, ele
parece dar a entender, nas passagens citadas, que na linguagem falada é possível fornecer o
modo da sentença’ usando dos mesmos recursos da linguagem escrita omitindo ou usando
um pronome e conjugando o verbo de uma maneira apropriada. o ‘compromisso do falante
com a mensagem da sentença’ pode ser mostrado pelo falante ao mover a cabeça de uma
39
maneira apropriada. A ausência do movimento de cabeça mostrará que o falante não se
compromete com a mensagem da sentença. É claro que aqui temos que supor que tanto o
falante quanto o ouvinte têm conhecimento dessas convenções. Em todo caso, é plausível
defender que o próprio Hare tem uma solução para o problema apontado na crítica
apresentada acima ainda que essa solução apareça de uma maneira pouco detalhada e até
implícita.
Aqui é preciso mencionar ainda que Hare elaborou um recurso que pode ser usado
pelo ouvinte, e que serve para mostrar que tal ouvinte se compromete com a mensagem da
sentença que foi proferida. Como vimos acima, em alguns sistemas lógicos, uma das funções
do sinal de asserção ( a barra vertical ’) é significar o uso ou a afirmação de uma sentença
por parte do falante. Assim como um sinal de comprometimento para o falante, também
pode haver
[...] um sinal de concordância ou assentimento para uso de um ouvinte. Empregar tal
sinal de assentimento seria equivalente a repetir a sentença com os pronomes, etc.,
alterados onde necessário. Assim, se eu dissesse Você vai fechar a porta’ e você
respondesse ‘Sim’, este seria um sinal de assentimento e seria equivalente a ‘Vou
fechar a porta’. E se eu dissesse ‘Feche a porta’ e você respondesse ‘Sim, sim,
senhor’, isto seria, da mesma forma, um sinal de assentimento; se desejássemos
expressar a que isso equivale, poderíamos dizer ‘Deixe-me fechar a porta’ ou
‘Fecharei a porta(onde [o sufixo]
25
‘ei’ não é uma predição, mas a expressão de
uma resolução ou uma promessa) (HARE, 1996, p. 21).
Na seqüência da argumentação, Hare (1996, p. 22) defende que uma reflexão
cuidadosa acerca da noção de assentimento entendida aqui como um compromisso com a
mensagem da sentença fornece uma pista para entender a diferença essencial entre
afirmações (sentenças indicativas) e comandos (sentenças imperativas). De acordo com a
proposta hareana, a diferea essencial entre afirmações e comandos está no que implica
assentir a eles. Para ele, é plausível defender que:
Se assentimos a uma afirmão, somos considerados sinceros em nosso
assentimento se e apenas se acreditamos que ela é verdadeira (acreditamos no
que disse o falante). Se, por outro lado, assentimos a um comando de segunda
pessoa dirigido a nós, somos considerados sinceros em nosso assentimento se e
apenas se fazemos ou decidimos fazer o que o falante ordenou que fizéssemos; se
não o fazemos, mas apenas decidimos fazê-lo mais tarde, e então, quando chega a
ocasião de fazê-lo, não o fazemos, considera-se que mudamos de idéia; não estamos
mais sendo fiéis ao assentimento que expressamos previamente. É uma tautologia
dizer que não podemos assentir sinceramente a um comando de segunda pessoa
dirigido a nós e ao mesmo tempo o realizá-lo, se agora é a ocasião de realizá-lo e
está ao nosso alcance (físico e psicológico) fazê-lo. Similarmente, é uma tautologia
dizer que não podemos assentir sinceramente a uma afirmação e ao mesmo tempo
não crer nela. Assim, podemos caracterizar provisoriamente a diferença entre
afirmações e comandos dizendo que, embora o assentimento sincero ao primeiro
25
Acréscimo entre colchetes é meu.
40
envolva acreditar em algo, o assentimento sincero ao segundo implica (na ocasião
adequada e se estiver ao nosso alcance) fazer algo (HARE, 1996, p. 22).
Na passagem acima, Hare argumenta para justificar sua tese de que a diferença
essencial entre afirmações e comandos está no que implica assentir a eles. Aqui quero chamar
a atenção para as duas definições apresentadas acima. Essas definições são importantes
porque ajudam a compreender melhor as diferentes atitudes de uma pessoa frente a uma
sentença indicativa ou frente a uma sentença imperativa. A primeira definição afirma que uma
pessoa assente sinceramente a uma afirmação (sentença indicativa) se e apenas se ela
necessariamente acredita nessa afirmação podemos nomeá-la como definição de
assentimento sincero a uma afirmação. A segunda definição afirma que uma pessoa assente
sinceramente a um comando (sentença imperativa) se e apenas se é a ocasião adequada e
estiver ao seu alcance e ela necessariamente obedecer ao comando – podemos nomeá-la como
definição de assentimento sincero a um comando. Tais definições podem ser expressas
usando de alguns recursos simples da formalização, tal como segue:
(16) Assentimento sincero a uma afirmação =
def
A
1
xy
Cxy.
Aqui ‘A
1
é uma expressão para ‘assentir sinceramente’, xé uma variável para indivíduos,
y uma expressão para ‘conteúdo assentível’ e ‘C’ é uma expressão para ‘acreditar’. Em
linguagem de uso corrente, isso significa que: x assente
1
sinceramente a um conteúdo
assentível se e somente se ‘xacredita nesse conteúdo assentível”.
(17) Assentimento sincero a um comando =
def
A
2
xy B & C & Oxy.
Aqui ‘A
2
é uma expressão para ‘assentir sinceramente’, xé uma variável para indivíduos,
yé uma expressão para ‘conteúdo assentível’, B’uma expressão para ‘ocasião adequada’,
‘C’ uma expressão para ‘estiver ao seu alcance’ e O’ é uma expressão para ‘obedecer’. Em
linguagem de uso corrente, isso significa que: x assente
2
sinceramente a um conteúdo
assentível se e somente se é a ocaso adequada e estiver ao seu alcance e xobedece a tal
conteúdo assentível”.
Até onde sei, essa definição de assentimento sincero a uma afirmação não recebeu
críticas por parte de outros estudiosos. Já a definição de assentimento sincero a um comando
recebeu ao menos uma crítica, a qual foi formulada por Alf Ross. Em seu livro Lógica de las
41
Normas
26
, Ross (2000, p. 80) constrói um contra-exemplo para mostrar que a obediência a um
comando nem sempre implica que houve ‘assentimento sincero’ a tal comando. Por exemplo,
se um assaltante aborda uma pessoa e diz Entregue o dinheiro ou atiro’, então mesmo que a
pessoa obedeça a ordem, não é correto dizer que ela necessariamente assentiu de maneira
sincera a tal ordem’. O que ocorre é que a pessoa foi coagida, ou seja, em algum sentido ela
foi forçada a agir de uma determinada maneira para preservar sua vida. A meu ver, esse
exemplo de Ross mostra que a definição de assentimento sincero a um comando precisa ter
entre uma de suas notas a noção de que ‘a pessoa desfruta de certo grau de liberdade para
escolher entre assentir ou não a tal comando’.
Essa crítica de Ross foi formulada na obra Directives and Norms, de 1968, portanto
muito depois de A Linguagem da Moral ter sido escrita. Contudo, aparentemente Hare não
desconhecia alguns dos problemas enfrentados por sua definição de assentimento sincero a
um comando. Sua preocupação a respeito do problema levantado acima aparece
implicitamente em uma passagem do capítulo 11 de A Linguagem da Moral. Ele afirma que:
Se uma pessoa não faz algo, mas a omissão é acompanhada de sentimentos de culpa,
etc., normalmente dizemos que ela não fez o que pensa que deve. É, portanto,
necessário qualificar o critério dado acima para ‘assentir sinceramente a um
comando e admitir que graus de assentimento sincero, sendo que nem todos eles
envolvem efetivamente obedecer ao comando. Porém, a análise detalhada desse
problema requer muito mais espaço do que posso dar-lhe aqui, e tem de aguardar
uma outra ocasião (HARE, 1996, p. 182).
É claro que primeiramente Hare está pensando naqueles casos em que uma pessoa
assente a um comando e depois não o obedece. Quando alguém desobedece a um comando ao
qual havia assentido e se sente culpado ou tem boas razões ou bons motivos para tal
desobediência, então ainda podemos alegar que nesse caso houve assentimento sincero. Um
caso desse tipo é o seguinte: um pai sabe que seus dois filhos têm o mesmo tipo de sangue,
então ele chama um deles e ordena Vá doar sangue para o seu irmão que sofreu um acidente
e corre risco de morte’. O filho que recebeu a ordem é obediente ao seu pai e gosta muito de
seu irmão, por isso, assente sinceramente ao comando. Quando chega ao hospital analisam
seu sangue e descobrem que ele está com hepatite, o que impede a doação. Aqui o filho que
desobedeceu a ordem não pode ser acusado de não ter assentido sinceramente a tal ordem
ele tinha boas razões para tal desobediência. Ora, admito que o caso do assaltante é diferente
porque a pessoa obedece ao comando proferido, diferentemente do caso recém citado. No
entanto, é possível alegar que Hare tinha consciência desse tipo de casos que aparecem como
26
O titulo da obra original é Directives and Norms, e sua publicação ocorreu em 1968. Não tive acesso à obra
original.
42
problema para sua definição. Na passagem citada acima, ele está consciente da necessidade de
‘admitir que graus de assentimento sincero’. A questão é que se graus de assentimento
sincero, então no caso do comando do assaltante o assentimento’ da pessoa assaltada poderia
ser de grau zero, ou seja, não houve assentimento sincero. Ocorreu um pseudo-assentimento e,
em algum sentido, o comando não foi obedecido o que significa que o estado de coisas
resultante da ação da pessoa tornou-se o caso por outras razões que não o assentimento
sincero. Não vou me deter mais nesse tipo de problema, pois esse não é o tema central desta
dissertação. Em todo caso, na passagem recém citada o pprio Hare admite que precisa
melhorar sua definição de assentimento sincero a um comando’, mas para isso terá ‘de
aguardar uma outra ocasião
27
.
2.2.3. As principais operações lógicas estão na frástica de uma sentença.
No início da Seção 2, afirmei que Hare defende a tese de que é possível aplicar a
lógica aos imperativos; ou dito de uma maneira mais precisa, afirmei que ele defende a tese de
que uma gica de imperativos e que ela é semelhante à lógica de indicativos ou de
proposições. Para mostrar que essa tese é plausível, reconstruí até o momento duas partes da
argumentação hareana: primeiro apresentei sua comparação entre sentenças indicativas e
imperativas; a seguir, reconstruí sua distinção entre frástica e ustica. Agora reconstruirei o
argumento de que as principais operões gicas, tal como a negação, conjunção, disjunção,
a quantificação e a implicação, estão na frástica de uma sentença. Se esse argumento estiver
correto, então teremos mais uma prova de que é possível aplicar a gica aos imperativos e
não somente aos indicativos. Em outras palavras, se esse argumento estiver correto, então
podemos falar de relações de implicação e de contradão entre imperativos e não apenas
entre indicativos isso significa que podemos construir e avaliar a validade tanto de
inferências teóricas quanto de inferências práticas. Uma inferência é um raciocínio que
começa com uma ou mais sentenças e termina noutra sentença cuja verdade ou validade é
vista como necessária em face da verdade ou validade da(s) primeira(s). As inferências
teóricas são aquelas em que a(s) premissa(s) e a conclusão são sentenças indicativas. as
inferências práticas se a tese hareana procede o aquelas em que ao menos uma das
premissas e a conclusão são sentenças imperativas. Para reconstruir o argumento de que as
principais operações lógicas estão na frástica de uma sentença, adotarei o seguinte
27
Até onde sei, Hare não reformulou essa noção de assentimento de uma maneira mais detalhada e menos
suscetível ao tipo de crítica elaborado por Alf Ross.
43
procedimento: 1) fornecerei exemplos de raciocínios que construímos no campo da ciência, da
Moral, do Direito e nas nossas práticas cotidianas e os analisarei de acordo com o método
proposto por Hare; 2) explicarei que os imperativos assim como os indicativos estão
sujeitos a autocontradição; 3) mencionarei duas regras que segundo Hare devem reger os
diferentes processos inferenciais tendo em vista o tipo de sentenças que comparecem na(s)
premissa(s) e na concluo de um raciocínio, e 4) apresentarei uma noção neutra’ de
argumento lido. Tal procedimento tem o objetivo de: a) corroborar a tese de que é possível
aplicar a lógica aos imperativos; b) esclarecer que a lógica de imperativos é semelhante à
lógica de indicativos ou de proposições. Em resumo, esse procedimento tem como objetivo
mostrar que faz sentido construir e avaliar a validade tanto de infencias teóricas quanto de
inferências práticas.
Vimos anteriormente que as sentenças indicativas e as imperativas têm em comum um
elemento significativo que Hare denominou de ‘frástica’ (primeiramente chamado de
‘descritor’); e o elemento significativo que difere as sentenças indicativas e as imperativas foi
denominado de ‘nêustica’ (primeiramente chamado de ‘dictor’). De acordo com a proposta
hareana, esse método de análise pode, em princípio, ser usado com qualquer sentença
indicativa ou imperativa. Para relembrar esse ponto da discussão e começar a reconstruir o
argumento de que as principais operações lógicas estão na frástica, usarei uma passagem em
que o próprio Hare esclarece qual será o próximo passo de sua argumentação. Ele explica o
seguinte:
Portanto, se queremos distinguir, em qualquer sentença, quais símbolos são dictivos
e quais são descritivos, tudo o que temos a fazer é construir a correspondente
imperativa ou indicativa, conforme o caso, e ver em que ela difere da sentença
original. A diferença estará no dictor; a semelhança estará no descritor. O processo é
mais fácil se usamos o tipo de tradução artificial que tenho sugerido; mas ele pode,
em princípio, ser realizado com qualquer sentença imperativa ou indicativa.
Veremos, se testarmos esse método em sentenças contendo conetivos gicos, que
estes conetivos são todos descritivos e não dictivos. De fato, é com a parte descritiva
das sentenças que os lógicos formais estão quase que exclusivamente interessados; e
isso significa que o que eles dizem aplica-se tanto a imperativos como a indicativos;
para qualquer descritor podemos adicionar outro tipo de dictor, e obter uma
sentença
28
.
28
Hare (1949, p. 29-30): ‘If, therefore, we want to tell , in any sentence, which symbols are dictiva and which
descriptive, all we have to do is to frame the corresponding imperative or indicative sentence, as the case may
be, and see wherein it differs from the original sentence. The difference will be in the dictor; the resemblance
will be in the descriptor. The process is easier if we use the type of artificial translation which I have suggested;
but it can in principle be performed with any imperative or indicative sentence. We shall see, if we try out this
method on sentences containing logical connectives, that these connectives are all descriptive and not dictive. In
fact, it is the descriptive part of sentences with which formal logicians are almost exclusively concerned; and this
means that what they say applies as much to imperatives as to indicatives; for to any descriptor we can add either
kind of dictor, and get a sentence’.
44
Aqui é importante destacar duas das afirmações que aparecem na passagem acima. A
primeira delas é que ‘em sentenças contendo conetivos lógicos, estes conetivos são todos
descritivos e não dictivos’ – o que deve significar que as principais operações lógicas estão na
frástica de uma sentea. A segunda afirmação a destacar é que ‘os lógicos formais estão
quase que exclusivamente interessados com a parte descritiva das sentenças’ o que deve
significar que o que eles dizem aplica-se tanto a imperativos como a indicativos.
O que temos que fazer agora é examinar alguns exemplos de inferências usando o
método proposto por Hare. Ao fazer isso, descobriremos até que ponto é aceitável defender a
tese de que a lógica é aplicável aos imperativos. Para facilitar um pouco o trabalho, analisarei
alguns exemplos de inferências citadas na Seção 2.1 e alguns exemplos de raciocínios
práticos que aparecem nos textos do pprio Hare. Consideremos o seguinte silogismo
teórico:
(18) Todos os homens são mortais.
Todos os gregos são homens.
Todos os gregos são mortais.
Façamos a tradução conforme o método proposto por Hare:
(19) Todos os homens ser mortais no tempo t, sim.
Todos os gregos ser homens no tempo t, sim.
Todos os gregos ser mortais no tempo t, sim.
Note que a palavra lógica todos a operação lógica da quantificação aparece na
frástica da sentença, tal como previa a proposta hareana. Ora, quando usamos certas palavras
lógicas como todos’, alguns’, nenhum’, temos que respeitar determinadas regras lógicas.
No caso específico das palavras lógicas mencionadas, essas regras gicas são aquilo que dá
às expressões todo o significado que elas têm. Assim, saber o significado da palavra ‘todos’ é
saber que não se pode, sem autocontradição, dizer certas coisas, como, por exemplo, ‘Todos
os homens são mortais’ e Todos os gregos são homens’, mas Nem todos os gregos são
mortais’” (adaptado de Hare, 1996, p. 26). Na seqüência da argumentação, Hare explica o
seguinte:
Se o leitor refletir sobre como saberia se uma pessoa conhece o significado da
palavra ‘todos’, perceberá que a única maneira seria descobrindo quais sentenças
mais simples a pessoa pensa que sentenças com a palavra ‘todos’ ‘implicam’.
Implicar’ é uma palavra forte, e os lógicos hoje não são propensos a empregar
palavras fortes; uma discussão completa de seu significado, especialmente em
contextos matemáticos, ocuparia muitas páginas, mas, para meus propósitos
45
presentes, ela pode ser definida com exatidão satisfatória da seguinte forma: Uma
sentença P implica uma sentença Q se e somente se o fato de uma pessoa assentir a
P mas dissentir de Q ser critério suficiente para dizer que ela compreendeu mal uma
ou outra das sentenças. ‘Sentença’, aqui, é uma abreviação de ‘sentença tal como
empregada por um falante particular numa ocasião particular’ pois os falantes
podem, em ocasiões diferentes, usar palavras com significados diferentes, e isso
significa que aquilo que é implicado pelo que dizem diferirá também. Extraímos seu
significado perguntando a eles o que consideram que seus comentários implicam
(1996, p. 26-27).
O que é afirmado a respeito da palavra lógica todosaplica-se, mutatis mutandis, às
palavras lógicas ‘algum(ns)’, ‘nenhum’. Antes de fazer um pequeno comentário sobre a noção
de implicação que aparece na passagem acima, examinarei mais alguns exemplos de
inferências. Consideremos o seguinte silogismo teórico disjuntivo (Hare, 1949, p. 31):
(20) Você usará um machado ou um serrote.
Você não usará um machado.
Você usará um serrote.
Novamente, façamos a tradução conforme o método proposto por Hare:
(20.1) Você usar de machado ou serrote no tempo t, sim.
Você não usar de machado no tempo t, sim.
Você usar de serrote no tempo t, sim.
Agora coloquemos essas sentenças no modo imperativo. Suponha que eu diga para
alguém, ‘Use um machado ou um serrote’, e então, temendo que ele possa decepar sua perna,
digo ‘Não use um machado’. Essa pessoa irá, sem instrução adicional, inferir que é para usar
um serrote. Conforme o método proposto por Hare, esse, digamos, silogismo prático
disjuntivo pode ser traduzido como segue (Hare, 1949, p.31):
(21) Você usar de machado ou serrote no tempo t, por favor.
Você não usar de machado no tempo t, por favor.
Você usar de serrote no tempo t, por favor.
Note que esses dois silogismos, um teórico e outro prático, têm as mesmas frásticas na
mesma ordem, mas as nêusticas (entendidas como sinais de modo) são diferentes. Isto esde
acordo com a previsão de Hare, pois é somente na nêustica que um imperativo difere do
correspondente indicativo. Aqui é necessário destacar também que a palavra lógica nãoe o
conetivo lógico ‘ou’ aparecem nas frásticas das sentenças – algo que também era previsto pela
proposta hareana. Assim, para inferir certas conseqüências das premissas temos que observar
46
ao menos duas coisas: 1) o significado da(s) premissa(s), e 2) as regras gicas que regem o
uso do conetivo lógico oue o uso da negação – mais adiante veremos que é preciso observar
também as regras que delimitam os diferentes processos inferenciais entre o ‘Reino do Ser’ e
o ‘Reino do Dever-Ser’. Antes de apresentar mais algumas das conclusões de Hare a respeito
desse ponto, examinarei mais duas inferências.
Consideremos agora mais duas infencias, uma teórica e outra prática, tal como
segue:
(22) Você vai colocar seu pára-quedas e saltar.
Você vai saltar.
(23) Coloque seu pára-quedas e salte.
Salte.
Na proposta hareana, as duas inferências são válidas de acordo com as regras da lógica
ordinária (Hare, 1949, p. 32). Elas têm as seguintes formas:
(24.1) p e q, sim.
q, sim.
(24.2) p e q, por favor.
q, por favor.
E elas podem ser analisadas da seguinte maneira:
(25) Você colocar seu pára-quedas e saltar no tempo t, sim.
Você saltar no tempo t, sim.
(26) Você colocar seu pára-quedas e saltar no tempo t, por favor.
Você saltar no tempo t, por favor.
Note que nas duas inferências acima o conetivo gico eaparece na frástica das sentenças,
tal como previa a proposta hareana. Assim, para inferir certas conseqüências da premissa
47
temos que novamente observar ao menos duas coisas: 1) o significado da(s) premissa(s), 2) as
regras lógicas que regem o uso do conetivo lógicoe’.
A respeito das inferências acima é preciso mencionar que Hare chama a atenção para
duas coisas. A primeira delas é que os dictores (as nêusticas enquanto sinais de modo)
parecem não fazer qualquer diferença para as inferências acima, pois as operações lógicas
aparecem nos descritores (nas frásticas) e a relação de implicação ocorre de descritor para
descritor (ou de frástica para frástica). A segunda coisa para a qual ele chama a atenção é que
se as premissas descrevem ou apontam uma situação, então a conclusão também descreve ou
aponta aquela situação, embora não necessariamente de maneira integral como fazem as
premissas (Hare, 1949, p. 31). A afirmação de que os dictores (as nêusticas) parecem não
fazer qualquer diferença para a inferência será revista por Hare em sua obra A Linguagem da
Moral explicarei esse ponto mais abaixo. As duas afirmações destacadas acima podem ser
colocadas de uma maneira mais formal. O próprio Hare afirma que:
Podemos colocar isso mais formalmente como segue. Seja C um comando e seja S
uma declaração com o mesmo descritor. Sejam c
1
c
2
...
c
n
comandos que podem ser
inferidos de C (isto é, cujos descritores descrevem estados de coisas que
logicamente precisam ser o caso se o estado de coisas descrito pelo descritor de C é
o caso); e analogamente para S e s
1
s
2
... s
n.
Então se comandamos C comandamos c
1
c
2
...
c
n
; quer dizer, se comandamos para ser o caso o que é descrito pelo descritor de
C, comandamos para ser o caso o que é descrito pelos descritores de c
1
c
2
...
c
n
29
.
Na continuidade da argumentação, Hare (1949, p. 34) explica que intimamente
conectado com o fato de que é possível inferir com imperativos, está o fato de que é possível
contradizer-se. Por exemplo, embora isso pudesse não ocorrer, se alguém comandasse ‘Faça x
e não faça x’, estaria cometendo uma auto-contradição. A questão é que esse comando é auto-
contraditório do mesmo modo que a correspondente sentença indicativa Você fará x e você
não fax’. A mesma auto-contradição ocorre nessas duas sentenças, pois os seus descritores
(as suas frásticas) são os mesmos, e auto-contraditórios. O descritor é Você fazer x em breve
e você não fazer x em breve’. Seja qual for o dictor (a ustica) que adicionarmos a isso, o
resultado é uma auto-contradição. A questão de que a auto-contradição ocorre entre
descritores (frásticas), e não entre dictores (nêusticas) é ressaltada por Hare na seguinte
passagem:
29
Hare (1949, p. 31-32): ‘We may put this more formally as follows. Let C be a command, and let S be a
statement with the same descriptor. Let c
1
c
2
...
c
n
be commands which can be inferred from C (i.e. whose
descriptors describe states of affairs which logically must be the case if the state of affairs described by the
descriptor of C is the case); and analogously for S and s
1
s
2
... s
n .
Then if we command C we command c
1
c
2
... c
n
;
that is to say, if we command to be the case what is described by the descriptor of C, we command to be the case
what is described by the descriptors of c
1
c
2
... c
n
’.
48
Que são os descritores e não os dictores que contradizem-se, aparecerá também da
seguinte consideração. Para contradizer-se, temos, se fizemos explicitamente, que
usar o símbolo de negação. Esse, como temos visto, pertence ao descritor, como
outros sinais lógicos mais importantes. Ele pertence ao descritor porque nada tem a
ver com o modo de uma sentença. Ele seguirá uma sentença em todos os seus
modos
30
.
Nessa passagem, não é dito explicitamente o que se entende por auto-contradição, mas
pelo contexto em que esse termo aparece pode-se dizer que uma sentença é auto-contraditória
se é impossível que os estados de coisas que ela aponta sejam o caso ao mesmo tempo.
Assim, duas sentenças indicativas são contraditórias se é impossível que os estados de coisas
por elas apontados sejam o caso simultaneamente; de modo semelhante, dois comandos são
contraditórios se é impossível que os estados de coisas por eles apontados sejam tornados o
caso simultaneamente.
Tendo em vista que as sentenças imperativas, assim como as indicativas, podem
contradizer-se, então temos que obedecer a certas regras lógicas ao darmos certos comandos e
ao extrair deles certas conseqüências. Por exemplo, alguém que tem condições físicas e
psicológicas e assente ou compromete-se a obedecer ao comando ‘Lave o carro e limpe a
garagem’ e, não obstante, se nega a obedecer ao comando ‘Limpe a garagem’, somente
poderia fazê-lo se não compreendesse as regras gicas que regem o uso do conetivo lógico
e ou estivesse deixando de se comprometer com o seu assentimento inicial. Se alguém
assente ao comando composto p e q’, então esassentindo a cada um dos comandos simples
pe q’. Esse tipo de explicação também é válido, mutatis mutandis, para o uso de outras
palavras lógicas que aparecem nos comandos, tal como as palavras todos, alguns’,
nenhum’, os conetivos ‘e’, ‘o’, a negação e o condicional.
Para finalizar essa Seção 2.2, examinarei agora duas infencias práticas mistas. Uma
inferência prática mista é aquela em que a premissa maior é um imperativo, a premissa menor
é uma sentença indicativa e a conclusão também é um imperativo. Já uma inferência prática
pura é aquela em que comparecem unicamente imperativos. Poderíamos falar de inferências
práticas mistas nas quais uma das premissas é um juízo de valor, como no seguinte exemplo:
‘Se você é uma boa pessoa, então respeite o seu próximo’ e ‘Você é uma boa pessoa’, logo
‘Respeite seu próximo’. Aqui não examinarei as inferências mistas em que ao menos uma das
premissas é um juízo de valor. O que farei é examinar aquelas inferências mistas em que ao
30
Hare (1949, p. 34-35): ‘That is descriptors and not dictors which contradict, will appear also from the
following consideration. To contradict, we have, if we make ourselves explicit, to use the symbol of negation.
This, as we have seen, belongs to the descriptor, like the other chief logical signs. It belongs to the descriptor,
because it has nothing to do with the mood of a sentence. It will follow a sentence in all its moods’.
49
menos uma das premissas é um imperativo. Para fazer isso, começarei analisando as duas
inferências abaixo:
(27) Mantenha suas promessas.
Essa é uma promessa sua.
Mantenha essa promessa sua.
(28) Quem realizar atos de tráfico de drogas numa quantidade de notória importância, deve
ser punido, de acordo com o artigo 344 do Código Penal, com a pena de prisão maior.
A e B cometeram esse tipo de ato.
Logo, A e B devem ser castigados com a pena de prisão maior.
De acordo com o método proposto por Hare, essas inferências podem ser traduzidas da
seguinte maneira:
(29) Você manter todas as suas promessas no tempo t, por favor.
Essa ser uma promessa sua no tempo t, sim.
Você manter essa promessa sua no tempo t, por favor.
(30) Quem realizar atos de tráfico de drogas numa quantidade de notória importância, ser
punido – de acordo com o artigo 344 do Código Penal – com a pena de prisão maior no
tempo t, por favor.
A e B cometer esse tipo de ato no tempo t, sim.
Logo, A e B ser castigados com a pena de prisão maior no tempo t, por favor.
A inferência (27) aparece no campo da Moral e a inferência (28) aparece no campo do
Direito. A inferência (27) é válida. Ela contém a palavra lógica ‘todase a conclusão se segue
das premissas em função do significado das mesmas e das regras lógicas que regem o uso da
palavra lógica todas’. Quanto à inferência (28), poderíamos defender que ela é válida porque
tem a forma de um raciocínio por modus ponnens: ‘Se A, então B e A’, logo B’. Ressalto
aqui que Hare não analisa especificamente essas duas inferências citadas. Ele analisa outras
inferências, mas tanto esses dois exemplos que estou analisando agora quanto os exemplos
que Hare analisa têm uma forma semelhante. No lugar da infencia (27), ele analisa a
inferência seguinte: ‘Leve todas as caixas para a estação e ‘Esta é uma das caixas’, logo
50
‘Leve esta para a estação’ (Hare, 1996, p. 29). Essa não é uma inferência que aparece no
campo da Moral, mas não é sem razão que essa inferência sobre levar caixas para a estação é
analisada na proposta hareana. Hare usa esse exemplo porque tal inferência tem uma forma
semelhante à forma daquelas inferências que aparecem no campo da Moral, como, por
exemplo, a inferência sobre promessas que analisei acima. Além disso, Hare não quer se
comprometer com as regras específicas de uma Moral particular. No lugar da inferência (28),
ele analisa a infencia seguinte: ‘Se voquer quebrar as molas, continue a dirigir como
agora’ e ‘Você quer quebrar as molas’, logo ‘Continue a dirigir como agora’ (adaptado de
Hare, 1996, p. 36)
31
. Essa inferência não aparece no campo do Direito. Ela é usada de uma
maneira irônica por instrutores de auto-escola que estão ensinando as pessoas a dirigir de
acordo com as regras de trânsito. Apesar disso, no próximo parágrafo defenderei que tal
inferência tem uma forma semelhante à forma daquele tipo de inferências que ocorrem no
campo do Direito.
A alise da inferência (27) parece fácil, mas é necessário explicar como é possível
extrair uma conclusão imperativa a partir de premissas mistas, isto é, a partir de uma
premissa imperativa e outra indicativa explicarei a solução hareana para esse problema um
pouco mais abaixo. Agora farei um comentário sobre a inferência (28). Essa inferência é mais
difícil de analisar por duas razões: a primeira é que a premissa maior tem a forma ‘Se A, então
Be, além disso, é mista porque o antecedente é um ‘fragmento’ de sentença indicativa e o
conseqüente é uma sentença prescritiva. A segunda razão que torna essa inferência de difícil
análise é que o conseqüente da primeira premissa é uma sentença que inicia com o termo
‘dever’, e isso poderia servir de base para a afirmação de que não temos aqui uma sentença
imperativa, mas uma ‘sentença-de-dever’ (ought-sentence). Em seu artigo Some Alleged
Differences between Imperatives and Indicatives, de 1967, Hare reconhece que a lógica de
sentenças imperativas e a lógica de ‘sentenças-de-dever’ o diferentes. Para ele, a lógica de
imperativos é semelhante à lógica de indicativos. Por exemplo, as relações lógicas entre
imperativos tais como Feche a porta’ e ‘Não feche a porta’ são semelhantes às relações
lógicas entre indicativos como Vo vai fechar a porta’ e ‘Você não vai fechar a porta’.
Tanto entre as sentenças do primeiro tipo (T
1
) quanto entre as sentenças do segundo tipo (T
2
)
ocorre uma relação lógica de contraditoriedade, isto é, 1) ambas não podem ser inválidas e
31
Hare (1996, p. 36) analisa essa inferência de um modo diferente, que é o seguinte: de ‘Faça o que for que
contribua para quebrar as molas’ e ‘Continuar a dirigir como agora contribuirá para quebrar as molasé inferido
‘Continue a dirigir como agora’. Até onde sei, Hare não usa o seu todo para analisar os chamados silogismos
jurídicos, mas aqui estou usando esse todo para analisar esse tipo de silogismo por duas razões: uma é que
acredito que o método é apropriado para tal tarefa; a outra é porque quero chamar a atenção para a importância
de dar um tratamento sistemático para esse tipo de raciocínio que aparece no campo do Direito.
51
ambas não podem ser válidas ao mesmo tempo (T
1
), e 2) ambas o podem ser verdadeiras
nem ambas podem ser falsas ao mesmo tempo (T
2
). Já a lógica de sentenças-de-dever’ é
semelhante à lógica modal deôntica. Por exemplo, as relações gicas entre ‘sentenças-de-
dever’ tais como ‘Você deve pagar suas dívidas’ e Você não deve pagar suas dívidas’ são
semelhantes às relações lógicas entre sentenças modais tais como ‘É obrigatório que pe ‘É
proibido que p’. Tanto entre as sentenças do primeiro tipo (T3) quanto entre as sentenças do
segundo tipo (T4) ocorre uma relação lógica de contrariedade, isto é, 1) ambas podem ser
inválidas, mas ambas não podem ser válidas ao mesmo tempo (T3), e 2) ambas podem ser
inválidas, mas ambas não podem ser válidas ao mesmo tempo (T4).
Aqui não terei espaço para explicar esse ponto da argumentação hareana. Para evitar
maiores complicações, assumirei, por ora, que na inferência (28) – a qual ocorre no campo do
Direito o fato do conseqüente da primeira premissa ser uma ‘sentença-de-dever’ não
atrapalha a validade da mesma, pois a validade de tal infencia se dá em função de sua forma
juntamente com o significado das premissas e concluo. Outro ponto para o qual Hare (1949,
p. 34) chama a atenção é que em inferências desse tipo somente os verbos principais de cada
sentença contêm dictores (usticas) que é o que ocorre com os verbos dever-ser
(primeira premissa), ‘cometer’ (segunda premissa) e novamente ‘dever-ser’ (conclusão).
Uma análise e discussão mais detalhada a respeito do problema acima levantado do caráter
misto da primeira premissa da inferência – terá que esperar outra oportunidade, assim como a
discussão das diferenças entre as lógicas de imperativos e de ‘sentenças-de-dever’.
2.3. O problema das barreiras inferenciais entre o Reino do Ser’ e o ‘Reino do Dever-
Ser’.
Agora reconstruirei aquela parte da argumentação na qual Hare explica como é
possível extrair uma conclusão imperativa a partir de uma premissa imperativa e outra
indicativa. Na proposta hareana, essa infencia prática recebe o nome de silogismo prático
misto (Hare, 1949, p. 34). Na subseção 2.1.2, apresentei alguns exemplos desses silogismos,
os quais já eram mencionados na teoria aristotélica (como vimos na seção 2.1 ). Vimos acima
que nas infencias práticas puras tanto as premissas quanto a conclusão são imperativos; mas
as inferências práticas (27) e (28) são mistas, e isso cria o problema de como vamos saber,
dadas duas premissas em modos diferentes, em que modo deve estar a conclusão. Para
discutir esse problema e explicar qual é a solução que ele recebe na proposta hareana, partirei
do seguinte silogismo (Hare, 1996, p. 29):
52
(31) Leve todas as caixas para a estação.
Esta é uma das caixas.
Leve esta para a estação.
Note que a primeira premissa é uma sentença indicativa e a segunda premissa é uma
sentença imperativa. A pergunta que surge é: em que modo deve estar a conclusão? Aqui a
concluo está no modo imperativo, mas será que essa inferência é mesmo válida? A respeito
desse ponto, Hare explica o seguinte:
O problema do efeito dos modos das premissas e da conclusão sobre as inferências
tem sido ignorado por lógicos que não examinaram além do modo indicativo,
embora o haja razão para que o ignorassem pois como demonstraríamos que a
conclusão de um conjunto de premissas indicativas deve também estar no
indicativo? Mas se consideramos, como faço, as relações de implicação da lógica
comum como relações entre as frásticas de sentenças, o problema torna-se premente.
Admitindo que a razão da validade do silogismo acima é que as frásticas ‘Você levar
todas as caixas para a estação e ser esta uma das caixas’ e ‘Vonão levar esta para
a estação’ o logicamente incoerentes entre si, por causa das regras lógicas que
regem o uso da palavra ‘todas’, como saber que não podemos adicionar nêusticas de
uma forma diferente daquela acima? Poderíamos escrever, por exemplo:
Leve todas as caixas para a estação.
Está é uma das caixas.
Vovai levar esta para a estação.
e dizer que isso é um silogismo válido, o que evidentemente ele não é (1996, p. 29).
Esse problema de como saber, dadas duas premissas em modos diferentes, em que
modo deve estar a conclusão é resolvido por Hare através do apelo a duas regras que
parecem reger os diferentes processos inferenciais. A primeira regra é lida para as
inferências com conclusão indicativa as quais podem ser substituídas sem prejuízo por uma
inferência teórica que tenha como componentes relevantes apenas indicativos. Tal regra diz o
seguinte:
(1) Nenhuma concluo indicativa pode ser extraída validamente de um conjunto de
premissas que não possa ser extrda validamente apenas dos indicativos dentre elas (Hare,
1996, p. 29).
Aqui não apresentarei um comentário detalhado sobre essa regra por duas razões: a
primeira razão é que o próprio Hare não apresenta uma discussão mais detalhada sobre ela,
pois tal regra parece não ter utilidade quando estamos tratando das inferências práticas.
53
Talvez a regra sirva como inspiração para a formulação de regras inferenciais aplicáveis aos
imperativos, mas isso é muito pouco. A segunda razão pela qual não discutirei essa regra em
detalhes é porque esse não é o tema da presente dissertação. Todavia, veremos que os
comentários a respeito da regra inferencial aplicável às inferências práticas podem ser usados,
mutatis mutandis, para justificar a regra inferencial aplicável às infencias teóricas.
A título de esclarecimento, cabe dizer que o problema de saber qual deve ser o modo
da conclusão tendo em vista o(s) modo(s) da(s) premissa(s) já foi discutido por outros autores.
Para ver um estudo sobre esse problema, que é conhecido como o problema das barreiras
inferenciais, vale a pena consultar um artigo de Sautter (2006) intitulado Um estudo histórico-
analítico da lei de Hume. Nesse artigo, ele faz um estudo sobre o que tradicionalmente se
denominou como lei de Hume. A lei de Hume, tal como é tradicionalmente interpretada, diz
que sentenças sobre o dever-ser não podem resultar de sentenças sobre o ser, e sua recíproca
diz que sentenças sobre o ser não podem resultar de sentenças sobre o dever-ser. No artigo em
questão, Sautter faz duas coisas: (1) mostra as relações gicas entre distintas formulações da
lei de Hume e da sua recíproca; e (2) mostra como essas formulações estão relacionadas a
teses sustentadas por importantes pensadores como Poincaré, Jörgensen, Kelsen e Hare. Outro
texto que aborda o problema das barreiras inferenciais entre ‘Ser’ e Dever-Sere o tema das
inferências práticas é o artigo de Marco Azevedo (2007, p. 91-108).
A segunda regra que Hare menciona é lida para as inferências práticas, sejam elas
puras ou mistas. Tal regra diz que:
(2) Nenhuma conclusão imperativa pode ser extraída validamente de um conjunto de
premissas que não contenha pelo menos um imperativo (Hare, 1996. p. 30)
32
.
No entendimento de Hare, essa regra de que um imperativo não pode aparecer na
concluo de uma inferência válida, a não ser que haja ao menos um imperativo entre as
premissas relevantes para essa conclusão pode ser confirmada recorrendo a considerações
lógicas gerais. Ele argumenta que hoje é geralmente considerado verdadeiro por definão
que, grosso modo e em princípio, nada pode aparecer na conclusão de uma inferência
dedutiva válida que não esteja, a partir de seu próprio significado, implícito na conjunção
das premissas. Disso resulta que: se há um imperativo na conclusão, o somente deve
32
Hare afirma que conhece apenas duas obras onde a regra é exposta explicitamente: a primeira é Dernières
Pensées (p. 225) de H. Poincaré; e a segunda é What can Logic do for Philosophy? de K. Popper (ver Hare,
1996, p. 31-32).
54
aparecer algum imperativo entre as premissas relevantes, mas o próprio imperativo deve estar
implícito nelas (Hare, 1996, p. 33).
Como essas considerações têm amplo alcance na filosofia moral, porque elas versam
sobre o tema das inferências práticas, Hare considera conveniente explicá-las em maior
detalhe. Para ele, poucas pessoas pensam, como Descartes parece ter pensado, que podemos
chegar a conclusões científicas sobre questões de fato empírico, como a circulação do sangue,
por meio do raciocínio dedutivo a partir de primeiros princípios auto-evidentes (Hare, 1996,
p. 33). Na seqüência da argumentação, Hare explica o seguinte:
A obra de Wittgenstein e outros tornou claras, em grande parte, as razões da
impossibilidade de fazer isso [de chegar a conclusões científicas sobre questões de
fato empírico por meio do raciocínio dedutivo a partir de primeiros princípios auto-
evidentes]
33
. Argumentou-se, convincentemente em minha opinião, que toda
inferência dedutiva é de caráter analítico, isto é, que a função de uma inferência
dedutiva o é obter das premissas ‘algo adicional’ não implícito nelas [...], mas
tornar explícito o que estava implícito na conjunção das premissas. Demonstrou-se
que isso decorre da própria natureza da linguagem, pois para dizer qualquer coisa
temos de, como observamos, obedecer a determinadas regras, e essas regras
especialmente, mas não apenas, as regras para o emprego das chamadas palavras
lógicas significam, primeiramente, que dizer o que está nas premissas de uma
inferência lida é dizer, pelo menos, o que está na conclusão, e, em segundo lugar,
que se algo é dito na conclusão que não foi dito, implicita ou explicitamente, nas
premissas, a inferência é inválida (1996, p. 33-34).
Nessa passagem, é importante destacar que, devido a natureza da linguagem, para
dizer certas coisas, temos que obedecer a determinadas regras. Como foi explicado na Seção
2.2.3, essas regras especialmente, mas não apenas, as regras para o emprego das palavras
lógicas determinam o que pode ser deduzido validamente a partir de um dado conjunto de
premissas. Numa inferência válida, dizer o que esnas premissas é dizer, ao menos, o que
esna conclusão. Com base na passagem acima e em função de algumas considerações que
já apresentamos anteriormente, Hare afirma que é plausível defender o seguinte:
[...] se alguém professasse admitir que todos os homens são mortais e que Sócrates é
um homem, mas se recusasse a admitir que Sócrates é mortal, o correto não seria,
como se sugere às vezes, acusá-lo de algum tipo de obtusidade lógica, mas dizer
“Você evidentemente não conhece o significado da palavra ‘todos pois se
conhecesse saberia eo ipso como fazer inferências dessa espécie” (1996. p. 34).
O próximo passo de Hare (1996, p. 34) consiste em chamar a atenção para aquele tipo
de inferência que não obedece apenas ao princípio anteriormente apresentado. Ele afirma que
o princípio explicado pouco de que numa infencia dedutiva lida o se deve dizer
nada na conclusão que não seja dito implícita ou explicitamente nas premissas não é
exatamente geral o bastante para abranger todos os casos. Consideremos a seguinte inferência:
33
Acréscimo entre colchetes é meu.
55
(32) i. x = 2
ii. x
2
= 4
É razoável admitir que ‘x = 2’ implica x
2
= 4’. No entanto, não é natural dizer que
nesta segunda expressão não se diz nada que não seja dito implicitamente na primeira, pois a
segunda contém o símbolo ao quadrado’ e para compreender ‘x = 2’ não temos que saber
nada sobre o significado desse símbolo. Assim, para tornar essa inferência mais plausível,
temos que adicionar algumas definições de termos. A inferência é construída mais
corretamente como segue:
(33) i. x = 2.
ii. x
2
= x.x.
iii. x
2
= 2.2.
iv. 2.2 = 4.
v. x
2
= 4.
As sentenças ii, iii e iv são definições de termos e permitem, juntamente com i e certas
regras para o sinal de igualdade, concluir validamente v. A conclusão hareana a respeito desse
ponto é a seguinte:
Temos de dizer, portanto, que não se deve dizer nada na conclusão que não seja dito
implícita ou explicitamente nas premissas, exceto o que pode ser adicionado com
base unicamente em definições de termos. Essa qualificação é importante para a
lógica dos imperativos pois [...] um tipo de conclusão imperativa que pode ser
implicado por um conjunto de premissas puramente indicativas. É o chamado
imperativo ‘hipotético’(HARE, 1996, p. 34).
Aqui é necessário comentar duas coisas. A primeira é que na proposta hareana a
expressão “imperativo ‘hipotético’” é empregada com um significado nem sempre semelhante
ao significado que essa expressão possui na filosofia de I. Kant, por exemplo. Nos escritos de
Kant, um imperativo é hipotético se a ação que ele ordena é um meio para atingir certo fim.
Por exemplo, a sentença Se você quer emagrecer, então faça um regime’ é um imperativo
hipotético, pois a ação de fazer um regime é um meio para conseguir emagrecer (o fim). Hare
(1996, p. 36) cita dois exemplos de imperativos hipotéticos, que são os seguintes: ‘Se você
quer ir à maior mercearia de Oxford, vá à Grimbly Hughes’ e ‘Se uma afirmação qualquer for
inverídica, não a faça’. O primeiro exemplo fornecido por Hare é um imperativo hipotético no
sentido tradicional do termo. Já o segundo exemploo é um imperativo hipotético no sentido
tradicional do termo.
56
O segundo ponto que é necessário comentar é a afirmação hareana de que “há um tipo
de conclusão imperativa que pode ser implicado por um conjunto de premissas puramente
indicativas. É o chamado imperativo ‘hipotético’”. Esse comentário de Hare parece
contradizer a regra de que nenhuma conclusão imperativa pode ser extraída validamente de
um conjunto de premissas que não contenha ao menos um imperativo. Para evitar uma
contradição na fala de Hare, temos que entender que um imperativo hipotético o é algo que
tem a mesma natureza de um imperativo simples como ‘Feche a porta’ ou de um imperativo
universal como ‘Não mate’. O imperativo hipotético ‘Se voquer ir à maior mercearia de
Oxford, à Grimbly Hughes’ tem um caráter misto, pois o antecedente é um ‘fragmento’ de
sentença indicativa e o conseqüente é um imperativo simples. De acordo com Hare (1996, p.
36), esse ‘imperativo’ pode ser inferido a partir da sentença indicativa ‘A Grimbly Hughes é a
maior mercearia de Oxford’. Aqui é preciso atentar para duas coisas caso queiramos manter a
coerência da fala hareana: a primeira é que, como disse, o imperativo hipotético tem uma
natureza distinta dos imperativos simples e universais; a segunda é que a inferência em
questão élida porque outra mais simples também é válida, a saber: de ‘Vá à maior
mercearia de Oxford’ e A Grimbly Hughes é a maior mercearia de Oxford para ‘Vá a
Grimbly Hughes’ a qual obviamente respeita a regra inferencial aplicável aos imperativos
ou às inferências práticas. Em todo caso, o próprio Hare deixa esse problema de lado, ao
menos em A Linguagem da Moral, e admite que o problema dos imperativos hipotéticos ‘é
parte do problema mais amplo, ainda mais obscuro, da análise das sentenças hipotéticas em
geral’(Hare, 1996, p. 37). A presente dissertação não tem o objetivo de discutir e analisar a
lógica dos imperativos hipotéticos. Por isso, não farei mais comentários sobre a afirmação
hareana a respeito da implicação para o caso dos “imperativos ‘hipotéticos’”.
Agora que apresentei a justificativa de Hare para a regra inferencial aplicável às
inferências práticas, reconstruirei uma noção ‘neutra’ de argumento válido.
2.4. Uma noção ‘neutra’ de argumento válido.
Vimos acima que na proposta hareana as sentenças indicativas e as sentenças
imperativas podem ser analisadas em dois componentes de significado: frástica (descritor) e
nêustica (dictor). Expliquei também que para Hare as principais operações lógicas pertencem
à frástica de uma sentença; e como a frástica é comum a indicativos e imperativos, então é
possível aplicar a gica tanto a indicativos como a imperativos. Em outras palavras, podemos
falar de relações de implicação e contradição entre imperativos e não somente entre
57
indicativos. Agora farei duas coisas: 1) explicarei porque Hare precisa adotar uma noção
‘neutra’ de argumento válido, e 2) apresento essa noção ‘neutra’ de argumento válido.
Uma noção usualmente aceita diz que um argumento válido é aquele no qual
necessariamente se as premissas o verdadeiras, então a conclusão é verdadeira. Ora, essa
noção de argumento válido não pode ser aplicada àquelas inferências que chamamos de
práticas, pois nessas inferências comparecem imperativos e estes não são portadores de valor-
de-verdade. Vimos que Hare propôs um método para avaliar a validade tanto das inferências
teóricas quanto das inferências práticas. Tal método consiste nos seguintes passos: 1) analisar
as sentenças componentes do argumento em seus componentes frástica e nêustica; 2) observar
se os estados de coisas descritos ou apontados pelas premissas são também descritos ou
apontados, ao menos parcialmente, pela conclusão (em outras palavras, aplicar a noção
‘neutra’ de argumento válido que apresentarei mais abaixo); 3) observar as duas regras que
devem reger os diferentes processos inferenciais, ou seja, ter o cuidado de inferir indicativos
apenas de indicativos e ter o cuidado para o inferir imperativos apenas de indicativos. O
ponto principal para o qual quero chamar a atenção é que para Hare a relação lógica de
implicação ocorre de frástica para frástica (ou de descritor para descritor). Como as frásticas
de sentenças, sejam indicativas ou sejam imperativas, não são portadoras de valor-de-verdade,
a noção de argumento válido usualmente aceita não serve para avaliar a validade de uma
inferência com base no método proposto por Hare. Assim, ele precisa formular uma nova
noção de argumento válido, a qual leve em conta que as frásticas das sentenças não são
portadoras de valor-de-verdade.
Antes de propor essa nova noção de argumento válido, Hare introduz alguns
comentários com o objetivo de sugerir que o uso das palavras ‘verdadeiro’ e ‘falsoem livros
de lógica é geralmente um defeito. Ele explica esse ponto na seguinte passagem:
A maioria dos livros de lógica são escritos na suposição de que as rmulas
mencionadas neles têm que ser interpretadas indicativamente. Por isso, em seus
comentários meta-lingüísticos, eles usam formas de expressão que não o
apropriadas para sentenças-objeto imperativas. Por exemplo, eles usam as palavras
verdadeiro’ e ‘falso’ para as sentenças-objeto; e sentenças imperativas não são nem
verdadeiras nem falsas. Gostaria de sugerir que o uso das palavras verdadeiro e
‘falso’ em livros de lógica é geralmente um defeito, e que esse defeito poderia ser
removido se as meta-sentenças fossem reformuladas para acomodar uma
interpretação imperativa das sentenças-objeto. A lógica está primariamente
relacionada não com a verdade de proposições, mas com a validade de inferências; e
muito tem sido um lugar comum da lógica tradicional que não faz diferença para
a validade de uma inferência se suas premissas e conclusão o verdadeiras ou se
elas são falsas
34
.
34
Hare (1949, p. 36-37): ‘Most logic-books are written on the assumption that the formulae mentioned in them
are to be interpreted indicatively. They therefore, in their meta-linguistic remarks, use forms of expression which
are not appropriate to imperative object-sentences. For example, they use the words ‘true and ‘false’ of the
58
Nessa passagem, quero destacar duas afirmações de Hare, as quais são usadas por ele
para extrair as conclusões que apresentarei mais abaixo. A primeira afirmação a ser destacada
é que para Hare ‘a lógica está primariamente relacionada não com a verdade de proposições,
mas com a validade de inferências’. A segunda afirmação a ser destacada é que na concepção
de Hare ‘muito tem sido um lugar comum da lógica tradicional que não faz diferença para
a validade de uma inferência se suas premissas e conclusão são verdadeiras ou se elas são
falsas’. Com base na passagem acima e com o apoio dessas duas afirmações, Hare conclui o
seguinte:
O argumento é lido se a conclusão segue-se das premissas, se verdadeira ou falsa,
ou, podemos adicionar, nem um nem outro. É verdade que geralmente dizemos que
se as premissas são verdadeiras, então a conclusão é verdadeira. Mas isso é uma
concessão para o modo indicativo que não precisamos fazer. Em nossa terminologia,
podemos ignorar os dictores, e dizer que se os descritores das premissas descrevem
um estado de coisas, então a conclusão descreve, ao menos parcialmente, o mesmo
estado de coisas. Se o estado de coisas é atualmente o caso, o faz diferença para a
validade do argumento. Referências a verdade e falsidade são portanto
irrelevantes
35
.
Aqui aparece o que podemos chamar de noção ‘neutra’ de argumento válido a
qual não faz referência a valores-de-verdade. Essa noção diz que um argumento válido é
aquele no qual se os descritores (as frásticas) das premissas descrevem (ou apontam) um
estado de coisas, então a conclusão descreve (ou aponta), ao menos parcialmente, o mesmo
estado de coisas. Tal noção neutra’ de argumento válido é aplivel tanto aos indicativos
quanto aos imperativos, desde que analisemos essas sentenças de acordo com o método
proposto por Hare.
Espero que a maneira como estruturei esse capítulo, juntamente com os argumentos e
conceitos que apresentei ao longo dele, sirvam para mostrar a plausibilidade da tese hareana, a
saber: que há uma lógica de imperativos e que esta é semelhante à gica de indicativos ou de
proposições. Para finalizar o presente capítulo, cito uma passagem em que Hare chama a
object-sentences; and imperative sentences are not either true or false. I should like to suggest that the use of the
words ‘trueand false’ in logic-books is often a blemish, and that this blemish would be removed if the meta-
sentences were recast in order to accommodate an imperative interpretation of the object-sentences. Logic is
primarily concerned, not with the truth of propositions, but with the validity of inferences; and it has long been a
common-place of traditional logic that it makes no difference to the validity of an inference whether its
premisses and conclusion are true or whether they are false’.
35
Hare (1949, p. 37): ‘The argument is valid if the conclusion follows from the premisses, whether true or false,
or, we may add, neither. It is true that we often say that if the premisses are true, then the conclusion is true. But
this is a concession to the indicative mood which we need not make. In our terminology, we could ignore the
dictors, and say that if the descriptors of the premisses describe a state of affairs, then the conclusion describes,
at least partially, the same state of affairs. Whether the state of affairs is actually the case, makes no difference to
the validity of the argument. References to truth and falsehood are therefore irrelevant’.
59
atenção para a necessidade de uma reformulação da terminologia dos lógicos a fim de
acomodar as sentenças imperativas. Ele afirma o seguinte:
Aqui não há espaço para tentar uma reformulação detalhada da terminologia dos
lógicos a fim de acomodar sentenças imperativas. Estou satisfeito que tais artifícios
como tabelas-de-verdade possam ser modificados sem prejudicar na realização de
sua função. Outros usos das palavras ‘verdadeiro e ‘falso’, especialmente em
discussões semânticas, criarão mais dificuldade. Em particular, definições de
validade em termos de verdade necessitarão de um exame cuidadoso. Mas discutir
essas dificuldades me levaria para fora do escopo deste artigo, o qual foi planejado
somente como um primeiro reconhecimento da matéria. Antes deixe-nos repetir
nossa principal conclusão, que uma vez que a lógica diz respeito principalmente a
descritores, e comandos conm descritores, comandos são de interesse apropriado
aos lógicos
36
.
No próximo capítulo, reconstruirei resumidamente a concepção de Hans Kelsen a
respeito das inferências práticas e apresentarei algumas críticas que o mesmo elaborou contra
a proposta de Hare.
36
Hare (1949, p. 37): ‘There is no room here to attempt a detailed recasting of the terminology of logicians to
accommodate imperative sentences. I am satisfied that such devices as truth-tables can be so modified without
impairing their performance of their function. Other uses of the words ‘true’ and ‘false’, especially in semantical
discussions, will create more difficulties. In particular, definitions of validity in terms of truth will need careful
examination. But to discuss these difficulties would carry me outside the scope of this article, which is in any
case intended only as a first reconnaissance of the subject. Let us rather repeat our main conclusion, that since
logic is mainly about descriptors, and commands contain descriptors, commands are a proper concern of the
logician’.
60
3. ALGUMAS CRÍTICAS DE KELSEN À PROPOSTA DE APLICAÇÃO
DA LÓGICA ÀS NORMAS (AOS IMPERATIVOS)
No segundo capítulo dessa dissertação, reconstruí a argumentação que R. M. Hare
elaborou em favor da tese de que a lógica de imperativos é semelhante à lógica de indicativos
ou de proposições. Agora reconstruirei algumas das críticas que Hans Kelsen fez à proposta
de aplicação da Lógica às normas (aos imperativos). Para realizar essa tarefa, dividirei o
presente capítulo em duas seções. Na primeira seção, explicarei por que Kelsen defende a tese
de que os princípios da Lógica não se aplicam às normas. Na segunda seção, apresentarei
algumas críticas de Kelsen à proposta hareana de aplicação da lógica aos imperativos.
3.1 – Os princípios da Lógica não se aplicam às normas.
Em sua obra stuma intitulada Teoria Geral das Normas, de 1979, H. Kelsen
objetiva mostrar, entre outras coisas, que não é possível aplicar os princípios lógicos às
normas. Para ele, não podemos aplicar diretamente o princípio de não-contradição e a regra de
concluo no campo normativo, que inclui normas da Moral e do Direito. Essa postura de
Kelsen contraria, por exemplo, as concepções de Hare para quem é possível aplicar os
princípios lógicos às normas (imperativos) da Moral e de Alf Ross, que em suas obras
tardias defende que é possível aplicar os princípios lógicos às normas do Direito. A
importância da teoria kelseniana das normas reside no fato de que ela é um ponto de
referência para os teóricos da Moral e especialmente do Direito, ou seja, ela traz inovações
para essas áreas de estudo e serve igualmente bem para dois prositos, a saber: como ponto
de inspiração e como ponto de crítica para os teóricos do campo normativo.
Para explicar com um pouco mais de detalhes a proposta kelseniana, dividirei essa
seção em três partes. Inicialmente, reconstruirei alguns pressupostos da teoria kelseniana das
normas. A seguir, explicarei por que Kelsen defende que o princípio de não-contradição não
se aplica às normas. Por último, explicarei por que ele afirma que não relação de
implicação lógica entre normas.
61
3.1.1. Alguns pressupostos da teoria kelseniana das normas.
Para poder explicar as razões que levaram Kelsen a afirmar que os princípios da
Lógica não se aplicam às normas, terei que realizar três tarefas. Em primeiro lugar, preciso
esclarecer o que Kelsen entende por ‘norma’, por ‘ato de vontade’ e o que é a ‘validade de
uma norma’. Em segundo lugar, retomarei brevemente a tese de que a lógica aplica-se
somente às sentenças indicativas, aos enunciados – que são as sentenças que expressam
proposições. Em terceiro lugar, reconstruirei a tese kelseniana de que não há uma analogia
entre a verdade de uma sentença indicativa (de um enunciado) e a validade de uma norma.
No início da Teoria Geral das Normas, Kelsen (1986, p. 1) explica que a palavra
‘norma’ procede do termo latino norma. O termo ‘norma’ designa um mandamento, uma
prescrição, uma ordem de certo tipo. No entanto, ele alerta que mandamento não é a única
função de uma norma, pois conferir poderes, permitir, derrogar também são funções de
normas. Na terminologia kelseniana, as normas são expressas linguisticamente por sentenças
imperativas ou por sentenças de dever-ser (Kelsen, 1986, p. 2). Como exemplo de normas
morais, ele cita Não mate’ e ‘Você não deve mentir’, e de normas jurídicas, cita Se uma
pessoa matar outra pessoa, então deve ser presa de 7 a 15 anos’. Tendo em vista que as
normas são prescrições expressas por sentenças imperativas ou por sentenças de dever-ser,
elas não são portadoras de valor-de-verdade.
Dando seqüência na argumentação, Kelsen (1986, p. 1) esclarece, inicialmente, que as
normas da Moral e as normas do Direito compõem aquilo que se qualifica como Moral’ ou
‘Direito’, respectivamente. A seguir, ele questiona a suposição de que o princípio de não-
contradição e as regras de conclusão tenham o caráter de normas. Ao comentar esses temas,
Kelsen afirma o seguinte:
Fala-se de normas de Moral, de normas de Direito, como de prescrições para a
conduta recíproca de seres humanos, e com isto se quer manifestar que aquilo que se
qualifica como ‘Moral’ ou Direito compõem-se de normas, é um agregado ou
sistema de normas.
Fala-se também de normas de Lógica, como de prescrições para o pensamento; mas
é contestável a suposição de que os princípios da Lógica, como o princípio de não-
contradição ou as regras de conclusão, tenham o caráter de normas; que a gica,
como Ciência, do mesmo modo que a Ética [enquanto ciência da Moral]
37
ou a
Ciência do Direito, tem normas por objeto (1986, p. 1).
Aqui é possível destacar uma diferença terminológica entre a proposta de Hare e a
proposta de Kelsen, que é a seguinte: Hare (1996, p.5) divide o gênero prescrição em
imperativos (simples e universais) e em juízos-de-valor (moral e não-moral), e admite que a
37
Acréscimo entre colchetes é meu e baseia-se na própria terminologia de Kelsen.
62
classificação não é exaustiva; Kelsen (1986, p. 35-36) divide o gênero prescrição em
ordem o autorizada (que não é uma norma) e em ordem autorizada (que é uma norma), e
parece entender que essa classificação é exaustiva. Além disso, para Hare (1996, p. 4) um
sistema Moral deve ser constituído por imperativos universais, os quais são sempre
mandamentos; já para Kelsen (1986, p. 124) um sistema Moral é composto não só por normas
de tipo obrigatório (mandamentos, imperativos universais de Hare), mas também por
permissões; por exemplo, ele destaca que alguns sistemas morais incluem entre suas normas
permissões para mentir no caso de pessoas que m doenças terminais. A meu ver, essa
diferença terminológica aparece porque Hare esfalando sobre a maneira como os sistemas
morais devem-ser constituídos e Kelsen está falando sobre a maneira como os sistemas morais
são constituídos.
Voltemos então para o tema central desta seção, que consiste em reconstruir alguns
pressupostos da teoria kelseniana. Na seqüência de sua obra, Kelsen discute três questões, que
o as seguintes: 1ª ) o que é um ‘ato de vontade’?, 2ª ) o que significa dizer que ‘a norma é o
sentido de um ato de vontade’?, e 3ª ) o que é a ‘validade de uma norma’?
As duas primeiras questões podem ser respondidas com base numa passagem em que
Kelsen diz o seguinte:
‘Norma’ dá a entender a alguém que alguma coisa deve ser ou acontecer, desde que
a palavra ‘norma’ indique uma prescrição, um mandamento. Sua expressão
lingüística é um imperativo ou uma sentença de dever-ser.
O ato, cujo sentido é que alguma coisa está ordenada, prescrita, constitui um ato de
vontade. Aquilo que se torna ordenado, prescrito, representa, prima facie, uma
conduta humana definida. Quem ordena algo, prescreve, quer que algo deva
acontecer.
O dever-ser a norma é o sentido de um querer, de um ato de vontade, e se a
norma constitui uma prescrição, um mandamento – é o sentido de um ato dirigido à
conduta de outrem, de um ato cujo sentido é que um outro (ou outros) deve (ou
devem) conduzir-se de determinado modo (1986, p. 2-3).
Nessa passagem, é afirmado que um ‘ato de vontade’ é um ato de comando, de
prescrição, de exigência, o qual pode fixar uma norma. Em outras palavras, o ato de vontade –
que tem caráter de evento pertence ao reino do ser e pode dar origem a uma norma, a qual
pertence ao reino do dever-ser. No próximo parágrafo, explicarei por que Kelsen entende que
nem todo ato de vontade dá origem a uma norma, e, mais adiante, farei um comenrio sobre a
distinção entre o ‘Reino do Ser’ e o Reino do Dever-Ser’. O outro ponto que precisa ser
comentado é a afirmação de que ‘uma norma é o sentido de um ato de vontade’. Na
terminologia kelseniana, dizer isso é o mesmo que afirmar que a norma, enquanto uma
prescrição, é o sentido de um ato dirigido intencionalmente à conduta de outrem. Se a norma
for obrigatória ou proibitiva, então ela é o sentidode um ato cujo sentido é que um outro (ou
63
outros) deve (ou devem) conduzir-se de determinado modo’ (Kelsen, 1986, p. 2-3). se a
norma for permissiva, ela é o sentido de um ato cujo sentido é que deve-ser permitido que
outro (ou outros) aja (ajam) de uma determinada maneira. Para o legislador criar uma norma
no campo do Direito, por exemplo, ele precisa ser autorizado por uma norma de
‘competência’. Se ele está autorizado a legislar sobre aquele tipo de caso, então seu ato de
vontade dá origem a uma norma, a qual prescreve que certa conduta humana seja autorizada,
obrigatória ou proibida (adaptado de Kelsen, 1986, p. 129-130) isso ficará mais claro na
seqüência.
Antes de esclarecer o que Kelsen entende por ‘validade de uma norma’, quero explicar
por que ele defende que nem todo ato de vontade origem a uma norma. Para isso, usarei
uma passagem na qual é dito o seguinte:
[...] toda ordem não é – segundo o uso da linguagem um mandamento, uma
prescrição [de mesmo tipo que uma norma]
38
, uma norma. Se um assaltante me
ordena entregar-lhe meu dinheiro, então o sentido de seu ato de vontade é realmente
que eu lhe devo entregar o meu dinheiro; mas sua ordem não se interpreta como
‘mandamento’, ‘prescrição’ [de mesmo tipo que uma norma]
39
ou ‘norma’.
Como norma vale o sentido de um ato de comando qualificado de certo modo, a
saber: de um ato de comando autorizado pela norma de um ordenamento moral ou
jurídico positivo.
[...] Não sendo este [comando]
40
uma ordem autorizada, representa apenas o sentido
subjetivo do ato de comando, o sentido que tem o ato de ordem só do ponto de vista
do emissor, não precisa ter também do ponto de vista do destinatário da ordem ou de
um terceiro desinteressado.
Se o destinatário da ordem não lhe obedece, não se condena sua conduta como
moralmente má nem como ilegal nem como violação’ de uma norma. Apenas a
ordem autorizada tem também o sentido objetivo de dever-ser, e isto significa:
somente a ordem autorizada é uma norma obrigatória para o seu destinatário, e que
o obriga à conduta nela prescrita; enquanto a ordem não autorizada não é obrigatória
para o seu destinatário (KELSEN, 1986, p. 35- 36).
Para Kelsen, nem todo ato de vontade dá origem a uma norma porque alguns atos de
vontade têm apenas um sentido subjetivo. A passagem acima mostra que na teoria kelseniana
há uma distinção entre ‘ordem não autorizada’ e ‘ordem autorizada’. Uma ‘ordem não
autorizada’ é o sentido subjetivo de um ato de vontade, ou seja, o ato de vontade que
origem a esse tipo de ordem não é autorizado pela norma de um ordenamento moral ou
jurídico positivo. Isso ocorre, por exemplo, com a ordem do assaltante que diz ‘Entregue-me o
dinheiro ou atiro a qual não é autorizada por uma norma de um ordenamento moral ou
jurídico positivo. Se o destinatário da ordem não autorizada não lhe obedece, não se condena
sua conduta como imoral, ilegal, nem se diz que ele está violando uma norma.
38
Acréscimo entre colchetes é meu, e é necessário para manter a coerência do discurso de Kelsen. Sem esse
acréscimo, Kelsen estaria dizendo que ordens são e não são prescrições.
39
Acréscimo entre colchetes é meu. Ver explicação da nota anterior.
40
Acréscimo entre colchetes é meu.
64
Por sua vez, a ‘ordem autorizada’ é uma norma. Uma ordem autorizada é não apenas
o sentido subjetivo de um ato de vontade, mas é também o sentido objetivo desse ato de
vontade. Em outras palavras, a ordem autorizada é uma norma porque ela resulta de um ato de
vontade (de comando) autorizado por uma norma de um ordenamento moral ou jurídico
positivo. Se a ordem autorizada é uma norma de tipo obrigatório, então caso o destinatário
não lhe obedeça, sua conduta pode ser qualificada como imoral, ilegal ou como estando a
violar uma norma. Por exemplo, a ordem ‘O homem Maier deve cumprir sua promessa feita
ao homem Schulze, i.e., pagar 1000 ao Schulze’ é uma norma porque resulta de um ato de
vontade que é autorizado pela norma moral ‘Se uma pessoa fez uma promessa a uma outra,
deve cumpri-la’. Se Maier não obedece à norma a ele dirigida, sua conduta pode ser
qualificada como imoral.
Agora é preciso esclarecer o que é a ‘validade de uma norma’. Para Kelsen, não
existem normas inválidas, e a validade e a eficia de uma norma são coisas distintas. Com
respeito à validade de uma norma, ele diz o seguinte:
De uma forma ou de outra: por ato de fixação ou pelo Costume, a norma entra em
validade. Quando se diz: ‘uma norma vale’, admite-se essa norma como existente.
‘Validade’ é a especifica existência da norma, que precisa ser distinguida da
existência de fatos naturais, e especialmente da existência dos fatos pelos quais ela é
produzida (KELSEN, 1986, p. 3-4).
Nessa passagem, é afirmado que validade é a específica existência da norma’. Isso
significa que norma válida é norma existente. No contexto da teoria kelseniana, não faz
sentido falar em norma inválida, pois ‘norma inválida’ não é norma porque não existe. Outro
ponto a destacar, é que a existência ideal de uma norma precisa ser distinguida da existência
dos fatos pelos quais ela é produzida. Na passagem em questão, Kelsen ressalta que a norma
pode ser criada por um ato de vontade ou pelo Costume (um comportamento que é
considerado como padrão e que é reproduzido pelos membros de uma sociedade)
41
. Um ato de
vontade ou o Costume são, então, os fatos que podem dar origem a uma norma
42
. Esses fatos
podem deixar de existir e ainda assim a norma pode continuar existindo (valendo), ao menos
até o momento em que uma nova norma (uma norma derrogante) venha a extinguir (a abolir)
a sua existência (sua validade). Assim, a existência (a validade) da norma não
41
Cabe esclarecer aqui que não é o Costume por si que origem a uma norma moral ou jurídica, pois ele
precisa ser legitimado pelo legislador através de um ato de vontade que dá origem a uma norma.
42
A Norma Fundamental, que é o supremo fundamento de validade de uma ordem normativa, é uma exceção
porque ela não é o sentido de um ato de vontade efetivo (real), mas ela é o sentido de um ato de vontade
meramente pensado. Kelsen afirma que: ‘A norma fundamental de uma ordem jurídica ou moral positivas [...]
o é positiva, mas meramente pensada, e isto significa uma norma fictícia, o o sentido de um real ato de
vontade, mas sim de um ato meramente pensado’ (Kelsen, 1986, p. 328).
65
necessariamente acaba com a extinção (o cessar) do ato de vontade ou do Costume que a
produziu.
Em outra passagem, Kelsen reafirma parte do que havia dito e acrescenta que uma
norma não necessariamente tem uma validade universal, ou seja, ela pode valer apenas para
certos indivíduos, num certo espaço (território) e tempo delimitados. Na passagem à qual me
refiro é dito o seguinte:
Esta ‘validade’ de uma norma é sua existência específica, ideal. Que uma norma
vale’ significa que ela é existente. Uma norma que não vale, não é norma, porque
não existe.
Uma norma vale para determinados indivíduos, para um espaço fixado e um tempo
marcado. Eis seu âmbito de validade pessoal, territorial e temporal. Este pode ser
limitado ou ilimitado (KELSEN, 1986, p. 36).
Antes de explicar por que Kelsen defende que o princípio de não-contradição não se
aplica à normas, ainda quero destacar duas coisas. Uma é que, de acordo com a teoria
kelseniana, validade e eficia de uma norma o coisas distintas. A ‘eficácia’ de uma norma
‘deriva do seu efetivo cumprimento ou do seu o cumprimento com a conseqüente
aplicação’ (Kelsen, 1986, p. 5). a norma para existir, para valer tem que ser
estabelecida por um ato de vontade autorizado por outra norma de um sistema moral ou
jurídico positivo. A norma pode valer (existir) ainda que sua eficácia (seu cumprimento, sua
aplicação) não esteja vigorando ou deixe de vigorar por certo período de tempo, por exemplo,
durante uma guerra, uma revolução. Nessas situações, a norma pode o estar sendo aplicada
(perdendo sua eficia), mas continuará valendo (existindo) a o ser que uma norma
derrogante venha a extinguir sua validade.
A segunda coisa a destacar é que, no entendimento de Kelsen (1986, p. 264-265),
querer e pensar não estão substancialmente ligados: eles são duas funções diferentes. O ato de
pensamento precede ao ato de vontade porque o querente tem de saber o que quer, mas o ato
de pensamento o é imanente ao ato de vontade. Isso pode se tornar mais claro se
considerarmos o seguinte exemplo: Um professor esministrando sua aula quando começa a
ser incomodado pelo vento frio que entra através da janela. Ele raciocina (pensa) que se a
janela for fechada, então o vento deixade incomodá-lo. Assim, por um ato de vontade, ele
ordena a um de seus alunos: ‘Feche a janela’. Se a ordem do professor for autorizada por uma
norma moral, tal como Obedeça aos seus pais e professores’, então essa ordem é uma norma
a qual deve ser obedecida pelo aluno caso ele não queira ter sua conduta censurada como
imoral.
66
3.1.2. O princípio de não-contradição não se aplica às normas.
Agora que reconstruí alguns pressupostos da teoria kelseniana, explicarei por que
Kelsen defende que o princípio de não-contradição o se aplica às normas. Primeiramente, é
preciso dizer que ele é adepto da tese de que os princípios da gica se aplicam somente a
enunciados ou sentenças indicativas que são as sentenças que expressam proposições e são
portadoras de valor-de-verdade. Na terminologia kelseniana, enunciados são o sentido de atos
de pensamento e são verdadeiros ou falsos; as normas são o sentido de atos de vontade e
nem são verdadeiras nem são falsas. Nas palavras de Kelsen:
O pressuposto fundamental dos princípios da Lógica tradicional aplicados à verdade
de enunciados é que existem enunciados verdadeiros e falsos, quer dizer:
enunciados que têm a qualidade de ser verdadeiros ou falsos.
Enunciados que são verdadeiros ou falsos são o sentido de atos de pensamento.
Normas são, porém, o sentido de atos de vontade dirigidos à conduta de outrem e,
como tais, nem são verdadeiras nem falsas e, por conseguinte, não subordinadas aos
princípios da Lógica tradicional, contanto que estes sejam relacionados com verdade
ou falsidade (1986, p. 263).
Nessa passagem, é explicado que se aceitamos a tese de que os princípios da Lógica
tradicional se aplicam somente às sentenças portadoras de valor-de-verdade, então o princípio
de o-contradão que é um dos princípios lógicos não se aplica às normas porque elas
não são portadoras de valor-de-verdade. O que ocorre aqui, então, é a negação da
possibilidade de aplicar os princípios da Lógica às normas. Frente a essa resposta negativa,
surge a alternativa de uma fazermos uma analogia entre a verdade de um enunciado (sentença
indicativa) e a validade de uma norma, e, dessa forma, tentarmos aplicar a Lógica ao campo
normativo. A resposta de Kelsen para essa alternativa é novamente negativa.
Para sustentar a tese de que não há uma analogia entre a verdade de um enunciado e a
validade de uma norma, Kelsen baseia-se em duas razões principais. Em primeiro lugar,
Kelsen (1986, p. 214-216) explica que um enunciado é o sentido de um ato de pensamento
possível; e um enunciado é verdadeiro se ele é verdadeiro, e falso se ele é falso. Isso
significa que a verdade ou falsidade do enunciado independe do ato pelo qual pensamos ou
proferimos esse enunciado. Se o enunciado ‘A Lua gira em torno do planeta Terra no ano de
2008’ é verdadeiro, então ele é verdadeiro independentemente do fato de que alguém pensa ou
profere esse enunciado. Assim, um enunciado precisa ser pensado e proferido para ser julgado
como verdadeiro ou falso, e não para ser verdadeiro ou falso.
43
43
Esse ponto da argumentação de Kelsen assemelha-se, em linhas gerais, com a argumentação que Frege
desenvolve em seu artigo O Pensamento: uma investigação lógica (p. 17 e 39).
67
Ora, ocorre algo diferente quando se trata de uma norma. Vimos que, na teoria
kelseniana, uma norma é o sentido de um ato de vontade efetivo; e ela é lida (existe) se é
criada por um ato de vontade autorizado por outra norma de um sistema moral ou jurídico
positivo. Isso significa que, com exceção da norma fundamental, a validade (a existência
ideal) de uma norma depende da existência de um ato de vontade, o qual pode ter essa norma
como o seu sentido objetivo. Em resumo, a primeira razão de não haver uma analogia entre a
verdade de um enunciado e a validade de uma norma é a seguinte: a verdade de um enunciado
independe da existência efetiva de um ato de pensamento, mas a validade de uma norma
depende da existência efetiva de um ato de vontade.
Em segundo lugar, Kelsen (1986, p. 215-219) defende que não uma analogia entre
a verdade de um enunciado e a validade de uma norma porque a validade é a existência ideal
de uma norma e tem um caráter temporal; a verdade ou a falsidade é a propriedade de um
enunciado e tem um caráter atemporal. Assim, a ‘validade’ (a existência) não é entendida aqui
como uma propriedade que poderia servir para separar normas válidas de normas inválidas,
pois na concepção de Kelsen não existem normas inválidas. A ‘validade’ é, então, algo
constitutivo da essência’ de uma norma. a verdade ou falsidade é considerada aqui como
uma propriedade que serve para classificar os enunciados em dois grupos: o grupo dos
enunciados verdadeiros e o grupo dos enunciados falsos.
Para concluir essa parte da argumentação, Kelsen explica que a natureza de uma
contradição impede que possamos falar de uma contradição entre normas. Para ele, o que
pode ocorrer é um conflito entre normas o qual tem uma natureza distinta de uma
contradição. A respeito dessa distinção entre contradição e conflito, Kelsen afirma o seguinte:
Os dois enunciados existentes numa contradição, como ‘Deus existe’ ‘Deus não
existe’ [...], subsistem um ao lado do outro, mas apenas um é verdadeiro; e se um é
verdadeiro, o outro tem de ser falso. Existe conflito de normas se uma norma fixa
uma conduta determinada como devida, e a outra, a omissão desta conduta. Na
hipótese de tal conflito de normas, não pode, porém, ser afirmado que se uma das
duas normas vale, a outra tem de ser não-válida, assim como na hipótese de uma
contradição lógica, se um enunciado é verdadeiro, o outro tem de ser falso. Na
hipótese de um conflito de normas, ambas as normas são válidas; do contrário, não
existiria conflito de normas. Nenhuma de ambas as normas que estão em conflito
suprime a validade da outra. De mais a mais, é indiferente se trata-se de duas normas
da mesma ordem jurídica ou de duas normas que pertencem a ordenamentos
diferentes, como, porventura, de uma norma da Moral e de uma norma do Direito
positivo. A supressão da validade de uma de ambas, ou também de ambas as
normas, apenas pode realizar-se no processo producente de normas, especialmente
por meio de uma norma derrogatória (1986, p. 266-267).
É possível notar que, na passagem em questão, Kelsen apresenta a distinção entre uma
contradição de enunciados e um conflito de normas. Uma contradição lógica ocorre quando
68
dois enunciados subsistem um ao lado do outro, mas ambos não podem ser verdadeiros nem
ambos podem ser falsos, ou seja, se um é verdadeiro o outro é falso, e vice-versa. Isso ocorre,
por exemplo, entre os enunciados ‘A Terra é um planeta em 2008 d. C.’ e ‘A Terra não é um
planeta em 2008 d. C.’. Esses dois enunciados são contraditórios – se o primeiro é verdadeiro,
o segundo é falso, e vice-versa.
Um conflito de normas existe se uma norma fixa uma conduta determinada como
devida e a outra norma fixa a omissão desta conduta como devida. Por exemplo, ocorre um
conflito de normas entre a norma Mantenha suas promessas’ e a norma ‘Não mantenha suas
promessas’. Aqui ocorre um conflito porque ambas as normas são válidas e enquanto uma
norma fixa a conduta como devida, a outra norma proíbe a efetivação dessa conduta.
Assim, o conflito é diferente de uma contradição porque em um conflito de normas
ocorre que ambas as normas são lidas, pois, do contrário, não haveria conflito; e numa
contradição de enunciados ocorre que um deles é verdadeiro e o outro é falso. Entre duas
normas que estão em conflito, nenhuma delas suprime a validade da outra. A supressão da
validade de uma delas – ou de ambas – pode realizar-se apenas por um processo de criação de
normas, especialmente por meio de uma norma derrogatória. entre dois enunciados que
estão em contradição, a verdade de um deles suprime a verdade do outro e isso ocorre sem
que seja preciso uma norma derrogatória.
3.1.3. Não há relação de implicação lógica entre normas.
Nessa subseção, explicarei porque Kelsen defende que a validade de uma norma
individual não resulta logicamente da validade de uma norma geral. Para isso, começarei
analisando o seguinte silogismo teorético:
(1) Todos os homens são mortais.
Sócrates é homem.
Sócrates é mortal.
Será que esse silogismo teorético é válido? Para responder essa questão, temos que
usar a regra de conclusão lógica ou a definição de argumento válido. Uma definição
usualmente aceita diz que um argumento válido é aquele em que se as premissas são
verdadeiras, então a conclusão é necessariamente verdadeira. Assim, para avaliar a validade
desse silogismo temos que, primariamente, observar se suas premissas relevantes e a
69
concluo o enunciados ou sentenças indicativas (que expressam proposições e são
verdadeiras ou falsas); e, secundariamente, temos que observar se a verdade das premissas
implica necessariamente a verdade da conclusão. Esse silogismo teorético é valido porque
atende as duas exigências.
Ao lado dessas observações que são usuais na Lógica tradicional, Kelsen apresenta
alguns comentários que são importantes para responder a seguinte pergunta: Será que ao lado
do silogismo teorético pode ser colocado um silogismo normativo a ele análogo? Antes de
apresentar a resposta que essa pergunta recebe na teoria kelseniana, terei que reconstruir os
principais comentários adicionais que Kelsen faz a respeito do silogismo teorético.
Em primeiro lugar, Kelsen (1986, p. 290) explica que um enunciado (sentença
indicativa) é o sentido de um ato de pensamento e a verdade ou falsidade desse enunciado
independe do fato dele ser pensado ou proferido. Por exemplo, o enunciado ‘O planeta Terra
gira em torno do Sol no ano de 2008 d. C.’ é verdadeiro e será sempre verdadeiro – se ele tem
a propriedade ser verdadeiro; e isso independentemente do fato de tal enunciado ser pensado
ou proferido por alguém. Algo semelhante ocorre no silogismo teorético. Conforme a
argumentação kelseniana (1986, p. 292), para chegar da verdade dos enunciados ‘Todos os
homens são mortais’ e Sócrates é homem’ à verdade do enunciado ‘Sócrates é mortal’ não é
necessário nenhum real ato de pensamento cujo sentido sejam esses enunciados. Desse modo,
assim como a verdade de um enunciado independe de um ato de pensamento, também num
silogismo válido o é necessário nenhum ato de pensamento para ir da verdade das
premissas para a verdade do enunciado que se apresenta na conclusão. A respeito desse
assunto, Kelsen ainda afirma o seguinte:
[...] a gica não se refere a reais atos de pensamento, mas ao sentido de possíveis
atos do pensamento. Ela diz: se é verdadeiro que todos os homens são mortais, e se é
verdadeiro que Sócrates é um homem, então é verdadeiro que Sócrates é mortal,
independentemente se uma pessoa executa os atos de pensamento, cujo sentido são
as premissas e a proposição conclusiva do silogismo. O silogismo que da verdade
geral: ‘Todos os homens são mortais’ conduz à verdade individual: ‘O homem
Sócrates é mortal’ baseia-se em que logicamente o individual é implicado no
geral (1986, p. 292).
Em segundo lugar, Kelsen (1986, p. 288) afirma que um silogismo teorético é válido
se o conteúdo de sentido da conclusão está contido no conteúdo de sentido das premissas. Isso
significa que, num silogismo válido, ‘a conclusão não é movimento do pensamento que
conduza a uma nova verdade, senão apenas faz explícita uma verdade que é implicada na
verdade das premissas’(Kelsen, 1986, p. 291). Outra maneira de explicar isso é dizendo que a
verdade do enunciado da conclusão está implícita na verdade dos enunciados das premissas,
ou seja, o ganho de informações e a verdade do enunciado da conclusão não é
70
temporalmente posterior a verdade dos enunciados das premissas. Conforme a teoria
kelseniana, essa questão também pode exprimir-se assim:
[...] a verdade do enunciado geral ‘Todos os homens são mortais’ não precede
temporalmente à verdade do enunciado individual: ‘O homem Sócrates é mortal’. O
enunciado individual é verdadeiro se o enunciado geral é verdadeiro, uma
circunstância que como veremos é de importância na confrontação do chamado
silogismo normativo com o silogismo teorético (KELSEN, 1986, p. 291-292).
Para evitar mal entendidos com respeito à regra gica de conclusão, Kelsen (1986, p.
292) explica que a verdade de enunciados do tipo ‘Todos os homens são mortais’ e ‘Sócrates
é homem’ não precisa necessariamente conduzir a um ato de pensamento cujo sentido é
‘Sócrates é mortal’. Outra coisa a ser ressaltada é que quem constrói um silogismo teorético
não precisa saber se os enunciados que ali aparecem são efetivamente verdadeiros. A regra
lógica de conclusão estabelece que o raciocínio tem um caráter hipotético, ou seja, ela diz que
um silogismo válido é aquele no qual se as premissas o verdadeiras, então a conclusão é
necessariamente verdadeira.
Para finalizar essa parte da argumentação, Kelsen reafirma que um silogismo teorético
válido é aquele no qual a conclusão é uma conseqüência lógica das premissas. E explica que
‘a conseqüência lógica não tem [...] o poder de produzir uma realidade psíquica
correspondente a ela. O ser humano pode pensar ilogicamente, e muito freqüentemente pensa
ilogicamente’ (Kelsen, 1986, p. 292). Entretanto, apesar do fato do ser humano poder
raciocinar ilogicamente, para Kelsen, isso o se constitui num problema irresolúvel para a
Lógica. A questão é que a Lógica não se refere a reais atos de pensamento, mas ao sentido de
possíveis atos de pensamento. Acrescente-se a isso, que a função da Lógica é justamente a de
avaliar se no raciocínio construído houve a preservação da verdade no movimento das
premissas para a conclusão e se essa conclusão se segue necessariamente das premissas.
A meu ver, essas o as principais observações de Kelsen a respeito do silogismo
teorético. Agora passo, então, a reconstruir a resposta kelseniana para a pergunta sobre a
possibilidade de haver um silogismo normativo. Para isso, começo analisando o seguinte
raciocínio (Kelsen, 1986, p. 293):
(2) Se uma pessoa fez uma promessa a uma outra, deve cumpri-la.
O homem Maier prometeu ao homem Schulze pagar-lhe 1000.
O homem Maier deve cumprir sua promessa feita ao homem Schulze, i.e., pagar 1000 ao
Schulze.
71
Esse raciocínio é, por vezes, considerado como um exemplo de silogismo normativo.
Resta saber, se esse pretenso silogismo normativo é semelhante ao silogismo teorético e se ele
é válido. A resposta de Kelsen para essas duas questões é negativa. Primeiramente, ele
argumenta (1986, p. 294) que esse pretenso silogismo normativo tem uma estrutura diferente
do silogismo teorético. Num silogismo teorético, tal como no exemplo (1) acima citado, as
premissas e a conclusão são enunciados (ou sentenças indicativas) que expressam proposições
e são portadores de valor-de-verdade. Já no raciocínio (2) – aqui citado como exemplo de um
pretenso silogismo normativo ocorre algo diferente, pois a premissa maior é uma norma
geral, a premissa menor é um enunciado e a conclusão é uma norma individual. A questão que
surge aqui é a seguinte: A validade de uma norma individual pode ser deduzida da validade de
uma norma geral juntamente com a verdade de um enunciado? A resposta de Kelsen para essa
questão é negativa. Para explicar porque a resposta dele para essa questão é negativa, terei que
apresentar a distinção kelseniana entre o Reino do Ser’ e o ‘Reino do Dever-Ser’.
Kelsen é adepto da tese de que uma barreira ´semântica’ e uma barreira inferencial
entre o ‘Reino do Ser’ e o ‘Reino do Dever-Ser’. Dizer que uma barreira ‘semânticaentre
o ‘Reino do Ser’ e o ‘Reino do Dever-Ser’ é afirmar que uma sentença sobre o ‘Ser’ não pode
ser reduzida a uma sentença sobre o Dever-Ser(uma norma, um imperativo). Uma sentença
sobre o ‘Ser’ diz que algo é ou que algo não é e isso pode ser verdadeiro ou falso. Já uma
sentença sobre o ‘Dever-Ser’ diz que algo é devido ou permitido ou que algo não é devidoe
isso não é verdadeiro nem falso, mas sim pode ou não dar origem a uma norma. Portanto, as
duas sentenças têm conteúdos de sentido diferentes, ou seja, não uma equivalência de
significado entre elas. Kelsen explica essa questão da seguinte maneira:
‘Ser’ e ‘dever-ser’ são dois modos essencialmente diferentes um do outro, duas
diferentes formas que têm um conteúdo determinado. Nos enunciados, que algo é e
algo deve (ser), precisam-se distinguir dois elementos diversos: que algo é e o que é;
que algo deve (ser), e o que deve (ser). O que é e o que deve (ser), o conteúdo do ser
e o conteúdo do dever-ser são um substrato modalmente indiferente. Na proposição:
‘A paga sua dívida de jogo’, o substrato modalmente indiferente pagar dívida de
jogoveste-se no modo do ser; na sentença: ‘A deve pagar sua vida de jogo’, o
substrato modalmente indiferente ‘pagar dívida de jogo’ veste-se no modo do dever-
ser. A norma: ‘A deve pagar sua dívida de jogo dá ao substrato modalmente
indiferente o modo do dever-ser (1986, p. 73).
A constatação de que ‘Sere Dever-Sero dois modos essencialmente diferentes
leva Kelsen a afirmar que há também uma barreira inferencial entre o ‘Reino do Ser’ e o
‘Reino do Dever-Ser’. Ele explica isso dizendo o seguinte:
Como ser e dever-ser são dois modos essencialmente diferentes, pode, o que é
existente, ao mesmo tempoo ser devido, e o que é devido pode, ao mesmo tempo,
não ser existente. Que algo é como deve ser, que um ser ‘correspondea um dever-
ser, significa: o conteúdo de um ser é igual ao conteúdo de um dever-ser; o substrato
72
modalmente indiferente é igual em ambos os casos. O que existe são dois substratos
iguais, modalmente indiferentes, em dois modos distintos (KELSEN, 1986, p. 74).
Ao dizer que há uma barreira inferencial entre ‘Ser’ e ‘Dever-Ser’, Kelsen (1986, p.
70) quer explicar que sentenças sobre o ser não podem ser deduzidas a partir de sentenças
sobre o dever-ser (normas, imperativos), e que também não se pode deduzir sentenças sobre o
dever-ser a partir de sentenças sobre o ser. Ao que parece, Kelsen entende que deduzir uma
sentença sobre o ser a partir de uma sentença sobre o dever-ser mais um enunciado é cometer
o erro de concluir algo mais do que era dito nas premissas. Isso ocorre, por exemplo, no
raciocínio que vai de ‘Você deve manter todas as suas promessase ‘Está é uma promessa
sua’ para ‘Vovai manter essa promessa sua’. Ora, aqui pode acontecer que existe (vale) a
norma ‘Você deve manter todas as suas promessas’ e que seja verdadeiro o enunciado ‘Essa é
uma promessa sua’ e, não obstante, ser falso o enunciado ‘Você vai manter essa promessa
sua’ – a razão disso acontecer é que ‘o que é devido pode, ao mesmo tempo, não ser existente’
(Kelsen, 1986, p. 74). Analogamente, Kelsen parece entender que deduzir uma sentença sobre
o dever-ser a partir de sentenças sobre o ser é cometer o erro de concluir algo mais do que já
era dito nas premissas. Isso ocorre, por exemplo, no raciocínio que vai de ‘Você vai manter
todas as suas promessas’ e ‘Está é uma promessa sua’ paraVocê deve manter essa promessa
sua’. Ora, aqui pode acontecer que seja verdadeiro o enunciado ‘Você vai manter todas as
suas promessas’ e que seja verdadeiro o enunciado ‘Essa é uma promessa’ e, não obstante,
não existir (não valer) a norma ‘Você deve manter essa promessa sua’ a razão disso
acontecer é que ‘pode, o que é existente, ao mesmo tempo o ser devido’ (Kelsen, 1986, p.
74).
Essa concepção de Kelsen é semelhante à interpretação que tradicionalmente se faz
acerca da Lei de Hume e sua recíproca. Aqui não tenho o objetivo, nem o espaço e nem o
tempo suficiente para fazer um estudo mais detalhado a respeito das barreiras inferências.
Para ver um comentário mais detalhado sobre esse tema, é possível consultar Sautter (2006).
Antes de reconstruir o próximo passo da argumentação kelseniana, deixe-me repetir as
duas principais conclusões a que cheguei até o momento. A primeira é que, de acordo com
Kelsen, o pretenso silogismo normativo tem uma estrutura diferente do silogismo teorético. A
segunda conclusão é que uma das razões que impede que o pretenso silogismo normativo seja
válido é a existência de uma barreira inferencial entre o Reino do Ser’ e o ‘Reino do Dever-
Ser’ – o que impede que a norma individual seja deduzida da norma geral e do enunciado que
comparecem nas premissas. Existem ainda duas razões que levam Kelsen a afirmar que o
pretenso silogismo normativo não é válido, as quais apresentarei agora.
73
Qual é, então, a segunda razão que leva Kelsen a afirmar que o pretenso silogismo
normativo não é válido? Para responder essa questão, é necessário explicar que, além das
teses de que o ser não pode ser deduzido do dever-ser e de que o dever-ser não pode ser
deduzido do ser, Kelsen sustenta uma tese ainda mais forte, a saber: que o dever-ser não pode
ser deduzido logicamente do dever-ser. Em outras palavras, ele defende que a validade de
uma norma o resulta logicamente da validade de outra norma. Para entender isso, é preciso
lembrar que, na teoria kelseniana, uma norma é o sentido de um ato de vontade autorizado por
outra norma de um sistema moral ou jurídico positivo. Isso significa que a existência (a
validade) da norma é sempre dependente de um ato de vontade do qual ela é o sentido
objetivo. Como as relações lógicas entre elas a relação de implicação lógica ocorrem
entre sentidos de possíveis atos de pensamento (entre proposições), então não relação de
implicação lógica entre atos de pensamento e nem há relação de implicação gica entre atos
de vontade.
Ora, entre a validade da norma geral e a validade da norma individual a ela
correspondente, é sempre necessário intercalar um ato de vontade cujo sentido objetivo é a
norma individual; e a validade da norma individual é sempre posterior à validade da norma
geral. É preciso notar, então, que esse processo é diferente do que ocorre com um enunciado
porque a verdade de um enunciado independe de um ato de pensamento, e a verdade de um
enunciado particular do tipo ‘O homem Sócrates é mortal’ não é posterior a verdade do
enunciado geral ‘Todos os homens são mortais’. Além disso, esse enunciado particular é
implicado logicamente pelo enunciado geral sem que haja a necessidade de existirem reais
atos pensamento cujos sentidos sejam esses enunciados. A respeito dessa discussão, Kelsen
conclui o seguinte:
Verdade ou falsidade são qualidades do enunciado, validade não é uma qualidade da
norma, e sim sua existência. Assim como a existência de um fato não pode resultar
logicamente da existência de um outro fato [...], então a existência de uma norma,
que é sua validade, não pode resultar logicamente da existência de uma outra norma,
quer dizer, da validade de uma outra norma. [...] Visto que se precisa intercalar,
entre a validade da norma geral e a validade da norma individual a ela
correspondente, um ato de vontade, cujo sentido é a norma individual, não pode ela
resultar logicamente, i.e., pela via de uma operação do pensamento, como resulta a
verdade de um enunciado individual da verdade do enunciado geral, ao qual
corresponde o enunciado individual. Entre a norma geral e a individual a ela
correspondente não existe de modo nenhum relação direta, mas apenas indireta,
conciliada pelo ato de vontade cujo sentido é a norma individual. [...] No fato de que
a validade de uma norma é condicionada pelo ato de vontade, cujo sentido é a
norma, está sua positividade, e o problema aqui em questão é a aplicabilidade de um
princípio lógico a normas positivas da Moral e do Direito. Nenhum imperativo sem
um mandante, nenhuma norma sem autoridade ponente da mesma, i.e., nenhuma
norma sem um ato de vontade, cujo sentido é a norma (1986, p. 295-297).
74
Conforme a teoria kelseniana, uma terceira razão que impede que a validade da
norma individual resulte logicamente da validade da norma geral, a saber: a norma individual
contém algo mais do que aquele conteúdo de sentido que aparece na norma geral. Kelsen
(1986, p. 306) explica que a norma individual pode determinar o tempo (quando), o lugar
(onde) e a ‘quem’ certa conseqüência moral ou jurídica deve ser aplicada. Para explicar isso
mais claramente, é possível usar um exemplo do campo jurídico. Suponhamos que um
determinado sistema jurídico tenha, entre suas normas, a seguinte norma geral: ‘Se um
indivíduo cometer um assassinato de maneira premeditada, deve ser condenado à morte por
enforcamento’. Digamos também que Schulze matou Maier de maneira premeditada. Dessa
forma, precisa ser fixada uma norma individual que marque onde e quando deve realizar-se o
enforcamento do matador Schulze. Este ‘quando’, ‘onde’ e a ‘quem’ deve ser aplicada a
conseqüência jurídica são especificões adicionais que aqui aparecem apenas na norma
individual. Assim, como essas especificações fornecidas pela norma individual não estavam
contidas no conteúdo de sentido da norma geral, conclui-se que a validade da norma
individual não pode resultar logicamente da validade da norma geral. A questão é que num
argumento dedutivo a conclusão não pode apresentar algo novo, que já não fosse dito
explícita ou implicitamente nas premissas.
A pergunta que surge de imediato é a seguinte: como se realiza a fixação da norma
individual, já que sua validade não resulta logicamente da validade da norma geral? A
resposta kelseniana (1986, p. 304) é que a fixação da norma individual pressue o
reconhecimento da validade da norma geral – e isso ocorre tanto no campo da Moral como no
campo do Direito. Primeiramente, Kelsen (1986, p. 300-301) explica que, no campo da Moral,
uma norma individual é fixada em duas situações: 1ª ) quando o indivíduo, tendo reconhecido
a norma geral, dirige a norma individual a si mesmo; e ) quando um membro da
comunidade, que está sob o ordenamento moral e reconhece a norma geral, dirige a norma
individual para certo indivíduo também pertencente a essa comunidade moral.
Secundariamente, Kelsen (1986, p. 304) afirma que, no campo do Direito, uma norma
individual é fixada nas seguintes situações: 1ª ) quando o órgão aplicador do Direito o juiz
competente reconhece a norma geral e fixa a norma individual para um caso concreto; )
quando o tribunal superior reconhece a norma geral e ordena a fixação da norma individual.
Para finalizar essa seção, é importante mencionar que, embora Kelsen negue que a
validade da norma individual resulte logicamente da validade da norma geral, ele admite que
a validade da norma individual possa ser fundamentada pela validade da norma geral.
Conforme a teoria kelseniana, é possível construirmos um silogismo teorético pelo qual
75
mostramos que o sentido de uma norma individual já válida corresponde ao sentido de uma
norma geral. Ele defende que
[...] um silogismo no qual tem lugar uma norma geral e uma norma individual
àquela correspondente. Sob o pressuposto mesmo de que uma norma geral valha e
seja existente o sentido de um ato de vontade a ela correspondente. Com isto, precisa
tratar-se de enunciados sobre a validade de norma geral e de norma individual
lida, que àquela corresponde. Por exemplo:
1. Vale a norma geral: Todas as pessoas devem cumprir suas promessas feitas a
outras pessoas’.
2. Existe um ato de vontade, cujo sentido é: ‘A deve cumprir sua promessa feita a B,
de eles se casarem’.
3. Logo, o sentido individual citado na premissa menor é uma norma que
corresponde à norma geral citada na premissa maior (KELSEN, 1986, p. 323).
Esse é um silogismo teorético, e não um silogismo prático ou normativo, pois a
premissa maior, a premissa menor e a proposição conclusiva são enunciados que podem ser
verdadeiros ou falsos, e a proposição conclusiva apenas é verdadeira se as duas premissas são
verdadeiras. O que logicamente resulta não é a validade da norma individual, mas a verdade
de um enunciado, a saber: que o sentido individual citado na premissa menor é uma norma
que corresponde à norma geral citada na premissa maior. Assim, a validade da norma
individual citada na premissa menor é fundamentada pela validade da norma geral citada na
premissa maior (Kelsen, 1986, p. 324).
3.2. Algumas críticas de Kelsen à proposta hareana de aplicação da Lógica aos
imperativos.
A tese hareana de que a Lógica é aplicável aos imperativos é atacada por Hans Kelsen.
No entender de Kelsen, Hare cometeu alguns equívocos ao defender que os princípios da
Lógica são aplicáveis aos imperativos. Para cada erro supostamente cometido, ele fez uma
crítica, cinco das quais reconstruirei na seqüência.
Na primeira crítica, Kelsen (1986, p. 449-450) diz que Hare cometeu um erro ao
afirmar que o descritor (a frástica) contém um elemento descritivo. Como vimos no capítulo
dois, Hare defende que uma sentença imperativa como ‘Feche a porta’ e uma sentença
indicativa como ‘Vo vai fechar a porta’ têm em comum um elemento de significado
denominado de descritor ou frástica. Esse descritor ou frástica descreve ou indica o estado de
coisas ao qual as sentenças se referem. Ao fazer tal afirmação, Hare estaria admitindo que o
descritor ou a frástica contém um elemento descritivo e acaba caindo no mesmo erro
cometido por Jörgen Jörgensen, a saber: afirmar que há uma sentença indicativa imanente em
uma sentença imperativa.
76
Para Kelsen, o elemento de significado que Hare chama de descritor ou frástica não
pode ser absolutamente descrição ou indicação. A questão é que esse elemento de significado,
que Kelsen chama de substrato modalmente indiferente, apresenta o tema da sentença (ou o
estado de coisas ao qual ela se refere) de uma maneira neutra, isto é, sem dizer se o estado de
coisas em questão é o caso ou se ele deve-ser tornado o caso. Tal substrato pode ser comum a
sentenças indicativas e imperativas. Por exemplo, as sentenças ‘Feche as janelase ‘Vovai
fechar as janelas’ têm em comum o substrato modalmente indiferente ‘fechar-janelas’. Mas
esse substrato não contém uma descrição e não possui valor-de-verdade nem é verdadeiro
nem é falso. Desse modo, para construirmos uma sentença indicativa, consideramos o
substrato ‘fechar-janelas’ e o conjugamos no modus do ser; e para construirmos uma sentença
imperativa, consideramos o substrato ‘fechar-janelas’ e o conjugamos no modus do dever-ser.
Isso pode ser feito utilizando os recursos gramaticais disponíveis em nossa linguagem
44
.
Dessa forma, uma descrição ou indicação apenas pode aparecer no modus do ser (real ou
ideal), ao conjugarmos o substrato modalmente indiferente num modus indicativo. Dizer que
uma sentença imperativa contém um elemento descritivo é confundir a função de imperativos
e indicativos, pois descrever é a função de sentenças indicativas (enunciados), e a função de
sentenças imperativas e das normas é prescrever (fornecer orientações para a conduta).
Assim, o fato de que imperativos e indicativos tenham em comum um substrato
modalmente indiferente (a frástica) não nós habilita a dizer que as relações lógicas de
implicação e contradição ocorrem entre imperativos, porque essas relações lógicas só ocorrem
entre sentenças que são portadoras de valor-de-verdade e substratos modalmente indiferentes
não são portadores de valor-de-verdade
45
.
As próximas três críticas de Kelsen dirigem-se a uma passagem na qual Hare fala do
significado da palavra lógica ‘todas’ e da noção de ‘assentimento’. Segundo Hare (1996, p.
27), a palavra lógica ‘todos(as)’ tem um significado que lhe é específico. Tendo em vista esse
significado, uma pessoa que assentiu (comprometeu-se, concordou) ao comando ‘Leve todas
as caixas para a estação’ e também à afirmação ‘Esta é uma das caixas e, não obstante, se
negou a assentir ao comando ‘Leve esta caixa para a estação’, somente poderia fazê-lo se
tivesse interpretado mal uma dessas três sentenças. E se esse teste fosse inaplicável, a palavra
44
O substrato modalmente indiferente, do qual fala Kelsen, corresponde à frástica (ou descritor) de Hare; e o
modus, de Kelsen, corresponde à nêustica (ou dictor) de Hare
45
Na seção 2.2.2 do segundo capítulo, mostrei que a proposta de Hare é diferente da proposta de Jörgensen.
Expliquei que, na proposta hareana, a frástica não é uma sentença indicativa; e que, portanto, Hare o está
afirmando que há uma sentença indicativa imanente em uma sentença imperativa. Já na proposta de Jörgensen há
uma sentença indicativa imanente em uma sentença imperativa. Assim, Kelsen é que interpreta mal a proposta
hareana, pois Hare não afirma que há uma sentença indicativa imanente em uma sentença imperativa.
77
‘todos(as) (tanto em imperativos como em indicativos) seria inteiramente destituída de
significado.
Na segunda crítica, Kelsen (1986, p. 471-472) afirma que Hare comete um equívoco
que consiste em estabelecer uma dependência necessária entre o ato de concordar com uma
ordem geral e o ato de concordar com a ordem individual. Na passagem acima, Hare estaria
dizendo que se uma pessoa concordou com a ordem geral ‘Leve todas as caixas para a
estação’ e com o enunciado Esta é uma das caixas’, então ela irá concordar com a ordem
individual ‘Leve esta caixa para a estação’. No entanto, Kelsen objeta que é possível que uma
pessoa concorde com a ordem geral e com o enunciado, mas não concorde com a ordem
individual - mesmo que tenha compreendido muito bem as três sentenças. Essa pessoa pode
se negar a concordar com ordem individual porque não quer assumir o compromisso de ter
que cumprir uma promessa específica. Ela pode ter notado que cumprir essa promessa
específica lhe traria prejuízos e sofrimentos, e isso é algo que ela quer evitar
46
.
Na terceira crítica, Kelsen (1986, p. 472) afirma que Hare comete o equívoco de
estabelecer uma dependência necessária entre o significado da palavra ‘todas’ e o ato
particular de uma pessoa que emprega tal palavra em um raciocínio. Para Kelsen, do fato
psicológico de que alguém entenda mal uma das sentenças do raciocínio citado não resulta
que a palavra todas seja sem sentido. O fato é que a palavra ‘todas’ tem um significado
padrão, que foi construído na medida em que as pessoas faziam uso dessa palavra ao construir
sentenças e ao elaborar seus raciocínios. Esse significado padrão continua valendo, mesmo
que algumas pessoas cometam erros ao empregar tal palavra. Assim, quando uma pessoa erra
ao empregar a palavra ‘todas’, temos que dizer que a pessoa não está raciocinando
corretamente, e não que a palavra ‘todas’ seja sem sentido
47
.
Na quarta crítica, Kelsen (1986, p. 472) afirma que Hare erra ao derivar logicamente a
validade de uma ordem individual a partir da validade da ordem geral. De acordo com a teoria
kelseniana, uma ordem somente pode ser criada por um ato de vontade, sendo que esse ato
46
Em minha interpretação, Hare o está dizendo que se uma pessoa concordou com a ordem geral ‘Leve todas
as caixas para a estação’ e com o enunciado ‘Esta é uma das caixas’, então ela irá concordar com a ordem
individual ‘Leve esta caixa para a estação’. Ele está dizendo que se uma pessoa concordou com uma ordem
geral, então ela deve concordar com a ordem individual a ela correspondente; do contrário, essa pessoa o
estaria sendo fiel ao seu assentimento inicial porque não compreendeu o que estava sendo dito ou porque se
arrependeu de ter assumido aquele compromisso. É claro que a interpretação de Kelsen parece correta se
consideramos isoladamente a passagem citada, mas se tivermos em mente o contexto maior em que a passagem
aparece é possível extrair a interpretão que fiz acima.
47
A meu ver, Hare não estabelece uma dependência necessária entre o significado da palavra ‘todas’ e o ato
particular de uma pessoa que emprega tal palavra em um raciocínio. Ele parece estar dizendo apenas que se uma
palavra tem significado, então há algum tipo de teste que serve para descobrir se uma pessoa realmente
compreende o significado dessa palavra. Assim, se não há um teste para descobrir se uma pessoa compreende o
significado de uma palavra, então essa palavra o tem significado para aquela comunidade de falantes.
78
não pode ser obtido pela via de uma implicação gica. O ato de vontade cujo sentido é a
ordem individual não resulta logicamente do ato de vontade cujo sentido é a ordem geral,
porque a relação de implicação lógica ocorre entre sentidos de possíveis atos de
pensamento, ou seja, entre enunciados – os quais são verdadeiros ou falsos.
Kelsen entende que o exemplo fornecido por Hare não prova que a validade da ordem
individual resulta logicamente da validade da ordem geral. O que ocorre é que, no exemplo
fornecido, a ordem individual Leve esta caixa para a estação’ já existe, isto é, é
pressuposta como válida. O que falta é a concordância (o assentimento) do destinatário da
ordem com essa ordem individual. Kelsen até admite que se a ordem individual é fixada,
então sua validade pode ser fundamentada pela validade da ordem geral. Tal processo de
fundamentação consiste em mostrar que o sentido da ordem individual é objetivo e
corresponde à ordem geral. Nesse processo partimos de uma ordem individual válida, e,
dessa forma, não provamos que a validade da ordem individual resulta logicamente da
validade da ordem geral.
Na quinta crítica, Kelsen (1986, p. 462) afirma que Hare erra ao dizer que o princípio
de não-contradição aplica-se aos imperativos. Para Hare, os imperativos Feche a porta’ e
‘Não feche a porta’ o contraditórios porque é impossível que os estados de coisas por eles
apontados sejam tornados o caso simultaneamente. Kelsen objeta que a relação de contradição
lógica pode ocorrer entre enunciados (sentenças indicativas) as quais são verdadeiros ou
falsos. Como imperativos não são nem verdadeiros nem falsos, eles não podem contradizer-
se. O que ocorre no caso acima é um conflito entre dois imperativos, e um conflito tem uma
natureza distinta de uma contradição.
Uma contradição lógica ocorre quando dois enunciados subsistem um ao lado do
outro, mas ambos não podem ser verdadeiros nem ambos podem ser falsos, ou seja, se um é
verdadeiro o outro é falso, e vice-versa. Já um conflito de imperativos ocorre se um
imperativo fixa uma conduta determinada como devida e o outro imperativo fixa a omissão
desta conduta como devida. Dessa forma, ocorre um conflito entre os imperativos ‘Feche a
porta’ e ‘Não feche a porta porque ambos são válidos e enquanto um imperativo fixa a
conduta como devida, o outro proíbe a efetivação dessa conduta. Assim, o conflito é diferente
de uma contradição porque em um conflito de imperativos ocorre que ambos os imperativos
79
o lidos, pois, do contrário, não haveria conflito; já numa contradição de enunciados
ocorre que um deles é verdadeiro e o outro é falso
48
.
Para finalizar esse capítulo, quero ressaltar que, a meu ver, as três primeiras críticas de
Kelsen a Hare se devem a uma interpretação que ele faz acerca da teoria hareana. Isso
pode ter ocorrido porque Kelsen nem sempre parece levar em conta o contexto maior em que
se encontram certas afirmações de Hare. as duas últimas críticas que Kelsen faz a Hare se
devem ao fato de que os dois autores divergem acerca de teses que o fundamentais em suas
respectivas propostas. Por exemplo, enquanto Kelsen adota a tese de que os princípios da
Lógica se aplicam somente aos enunciados ou sentenças que o portadoras de valor-de-
verdade, o objetivo de Hare é justamente mostrar que essa tese é muito restrita e não serve
para auxiliar na tentativa de sistematizar adequadamente o discurso normativo, especialmente
aquele que aparece no campo da Moral. Além disso, Kelsen entende que a distinção entre
enunciados como sentidos de possíveis atos de pensamento e normas como sentidos de
efetivos atos de vontade é importante para mostrar a alogicidade do discurso normativo;
Hare o faz essa distinção em suas obras até The Language of Morals.
48
A quarta e a quinta críticas que Kelsen fez a proposta hareana devem-se ao fato de que ele é adepto da tese de
que os princípios da lógica se aplicam somente aos enunciados, que podem ser verdadeiros ou falsos. Como
vimos, o objetivo de Hare é justamente o de mostrar que esta tese está errada.
80
4. HARE E SUA DEFESA DA APLICAÇÃO DA LÓGICA AOS
IMPERATIVOS: OBRAS POSTERIORES À THE LANGUAGE OF
MORALS
No primeiro capítulo dessa dissertação, reconstruí a argumentação que R. M. Hare
elaborou em seu artigo Imperative Sentence e na primeira parte de sua obra clássica The
Language of Morals. Minha tarefa consistiu especificamente em explicar quais foram os
conceitos e argumentos que ele utilizou para defender a tese de que a lógica de imperativos é
semelhante à lógica de indicativos ou de proposições. No segundo capítulo, apresentei
algumas críticas que H. Kelsen fez a proposta de aplicação da Lógica às normas (aos
imperativos). Na primeira seção do presente capítulo, realizarei três tarefas. Inicialmente
reconstruirei duas críticas que B. Williams fez a respeito das inferências imperativas’. A
seguir, apresentarei a distinção entre implicação gica (logical implication) e implicatura
conversacional (conversational implicature). A distinção foi elaborada primeiramente por H.
P. Grice e pode ser usada, com algumas adaptações, para defender a aplicação da lógica aos
imperativos. Concluindo, explicarei como Hare usa da distinção entre implicação lógica e
implicatura conversacional para rebater as críticas que B. Williams fez às inferências
imperativas. Na segunda seção, faço duas coisas. Primeiro, apresentarei a distinção que Hare
faz entre ‘inferências de tipo necessárioe ‘infencias de tipo suficiente’; a seguir, explicarei
que essa distinção ajuda a reforçar a tese de que a lógica de imperativos é semelhante à lógica
de indicativos ou de proposições. Na terceira e última seção desse capítulo, apresentarei a
nova distinção que Hare apresenta em seu artigo Some Sub-Atomic Particles of Logic, de
1989, a saber: entre o sinal de modo, o sinal de subscrição e o sinal de completude.
4.1. A importância da distinção entre implicação lógica e implicatura conversacional.
4.1.1. Duas críticas de B. Williams às supostas ‘inferências imperativas’.
Em seu artigo Imperative Inference, de 1973, B. Williams defende a tese de que não
existe, em geral, algo que possa ser chamado de inferência imperativa
49
. Para argumentar em
favor de sua tese, ele parte de algumas considerações sobre dois exemplos que o tomados
como inferências imperativas válidas por alguns defensores da gica de imperativos entre
49
Williams (1973, p. 153): I shall argue that there is not in general anything that can be called imperative
inference’.
81
os quais esHare. Para Williams, esses exemplos obedecem ao seguinte esquema (1973, p.
153-154):
(D
1
) Faça x; logo faça x ou faça y.
(D
2
) Faça x ou faça y; não faça y; logo faça x.
Para preencher esse esquema com certo ‘conteúdo’, vou usar dois exemplos que
aparecem em um artigo de Hare (1972b, p. 25 e 29):
(1) Poste a carta
Poste a carta ou queime-a.
(2) Poste a carta ou queime-a
Não a queime
Poste a carta.
No entendimento de Williams, os exemplos que obedecem ao esquema (D
1
) e (D
2
) não
podem ser chamados de inferências imperativas válidas. Para justificar essa afirmação, ele
divide sua argumentação em duas partes, as quais vou reconstruir aqui com algumas
adaptações que não interferem nos núcleo das mesmas.
Em primeiro lugar, Williams (1973, p. 154-155) entende que os exemplos que
obedecem ao esquema (D
1
) não são inferências imperativas válidas porque a premissa tem
‘pressuposições permissivas’ (permissive presuppositions) que são, em algum sentido,
inconsistentes com as pressuposições permissivas’ da conclusão. Isso pode ser explicado em
mais detalhes e de uma maneira mais compreensível usando o exemplo (1) citado acima. Se
uma pessoa diz ‘Poste a carta’, naturalmente assumimos que ela implica que não estamos
autorizados a não postar a carta. Agora, se uma pessoa diz ‘Poste a carta ou queime-a’,
naturalmente assumimos que ela implica que estamos autorizados a não postar a carta,
contanto que a queimemos. Aqui é possível notar que a última permissão é inconsistente com
o que vimos ser uma pressuposição permissiva da premissa ‘Poste a carta’. Por isso, Williams
conclui que a premissa é realmente inconsistente com a conclusão. Ele explica
[...] que quando examinamos a função de comandos disjuntivos em termos de suas
pressuposições permissivas, descobrimos que o proferimento sucessivo dos
comandos envolvidos nas supostas inferências tem um efeito cancelador, o efeito
de retirar o que já tinha sido dito; e que essa característica é incompavel com a
construção de tal seqüência como uma inferência
50
.
50
Williams (1973, p. 155): ‘I suggest, therefore, that when we examine the function of disjunctive commands in
terms of their permissive presuppositions, we find that the successive utterance of the commands involved in the
82
Em segundo lugar, Williams entende que os exemplos que obedecem ao esquema (D
2
)
não são inferências imperativas válidas porque as duas premissas o, em algum sentido,
inconsistentes uma com a outra. Ele argumenta que uma ‘mudança de idéia’ (change of mind)
deve ter acontecido entre as duas premissas, e assim a inferência é destruída por sua
descontinuidade (1973, p. 154). A razão porque ele diz que as duas premissas são, no caso
imperativo, inconsistentes, pode ser melhor explicada usando o exemplo (2) citado acima. Se
alguém profere a disjunção imperativa Poste a carta ou queime-a’, isso tem uma
pressuposição permissiva de que a pessoa endereçada pode queimar a carta; porém, a segunda
premissa, ‘Não a queime’, tem uma pressuposição permissiva que é inconsistente com aquela,
a saber: que ela não pode queimá-la. Assim, as duas premissas, tendo pressuposições
permissivas mutuamente inconsistentes, o elas próprias mutuamente inconsistentes
51
.
Essas são algumas das principais razões que Williams oferece em favor de sua tese de
que não existe, em geral, algo que possa ser chamado de inferência imperativa. Ele até admite
que existem certas relações lógicas entre imperativos, mas parece negar que tais relações
sejam de tipo inferencial. Já no início de seu texto, ele alerta para algo que é também a sua
concluo geral, a saber:
Eu admito que existem certas relações lógicas entre imperativos: essas podem ser
resumidas no fato de que dois imperativos podem ser inconsistentes se e somente se
é logicamente impossível que ambos devam ser obedecidos. O que eu nego é que
esse fato habilite-nos, em geral, a aplicar a noção de inferência a imperativos
52
.
Essa tese de Williams recebeu algumas críticas por parte daqueles que defendem a
aplicação da lógica aos imperativos. R. M. Hare, por exemplo, afirmou que a proposta de
Williams padece de certos defeitos. Em seu artigo Some Alleged Differences between
Imperatives and Indicatives, Hare desenvolveu sua argumentação com o prosito de
sustentar a seguinte tese geral: que várias das razões que vários autores têm dado para alegar
diferenças entre imperativos e a gica proposicional ordinária estão baseadas em equívocos.
Aquio vou reconstruir toda a argumentação que ele formulou nesse texto. Minha tarefa se
supposed inferences has a cancelling effect, the effect of withdrawing what has already been said; and that this
feature is incompatible with construing such a sequence as an inference’.
51
A primeira objeção que podemos fazer a essa parte da argumentação de Williams, é que de premissas
inconsistentes segue-se qualquer coisa pela lógica contemporânea clássica, inclusive ‘Poste a carta’. No entanto,
como veremos adiante, Hare vai argumentar de uma maneira diferente. Ele dirá que não inconsistência entre
as premissas, pois sua preocupação é saber que comandos alguém deve obedecer para estar em conformidade
com certo(s) comando(s) já emitido(s) pelo mandatário.
52
Williams (1973, p. 152): ‘I do admit that there are certain logical relations between imperatives: these may be
summed up in the fact that two imperatives may be said to be inconsistent, if and only if it is logically impossible
that they should both be obeyed. What I deny is that this fact enables us in general to apply the notion of
inference to imperatives’.
83
apresentar aqueles argumentos que foram usados contra a tese de Williams de que não
existem, em geral, infencias imperativas.
Para mostrar que a tese de Williams é equivocada, Hare usa de uma distinção entre o
que podemos chamar de implicação lógica (acarretamento lógico) e implicatura
conversacional. Essa distinção apareceu primariamente em um texto de H. P. Grice, o qual é
intitulado Lógica e Conversação. Na próxima subseção, vou reconstruir essa distinção de
Grice porque ela será importante para compreender as críticas que Hare formulou contra a
tese de que não há inferências imperativas, especialmente na forma que esta tese assumiu na
concepção de Williams.
4.1.2. Uma distinção entre implicação lógica e implicatura conversacional.
Em seu texto Lógica e Conversação, de 1967, Grice realiza um estudo que é
classificado como pertencente, hoje em dia, ao campo da Pragmática. Nesse estudo, os
principais elementos utilizados para explicar a ‘lógica da conversação são os conceitos de
‘relevância’ e intencionalidade do falante’, juntamente com o ‘princípio de cooperação e
suas ‘máximas’. Ele sugere que existe um conjunto de suposições, mais amplo do que os
estudiosos da comunicação geralmente se o conta, que guiam a conduta da conversação
53
.
Essas suposições surgem, ao que parece, de considerações racionais básicas e podem ser
formuladas como diretrizes para o uso eficiente e eficaz da língua na conversação para fins
cooperativos. Em uma conversação, estamos seguindo certas orientações que valem tanto para
aquele uso da linguagem que é feito com o objetivo principal de transmitir informações
quanto para aquele uso que é realizado com o propósito principal de divertir, expressar certos
sentimentos, desejos, etc
54
. Grice (1982, p. 86) defende que a conversação é governada pelo
seguinte princípio geral de cooperação:
(PC) Faça a sua contribuição conversacional tal como é exigido, no momento em que
ocorre, pelo propósito ou direção do intercâmbio conversacional em que você está
engajado.
53
Mais adiante eu explico com um pouco mais de detalhes o que Grice entende por ‘conversação’; por enquanto
posso adiantar que se trata de um diálogo entre pessoas, no qual há, até certo ponto, algum(ns) propósito(s) ou
objetivo(s) comum(ns).
54
Para ver uma aplicação do estudo de Grice na explicação de figuras de linguagem como metáforas, ver S.
Levinson, 2007, p. 183-200.
84
Esse Princípio de Cooperação serve de base para a derivação de certas máximas e
submáximas mais específicas, as quais podem ser classificadas em quatro ‘categorias’
55
:
Quantidade, Qualidade, Relação e Modo. Essas categorias podem ser representadas por quatro
‘supermáximas’, que são os pretensos corolários do Princípio de Cooperação (Grice, 1982, p.
87):
(QN) Faça com que sua contribuição seja tão informativa quanto exigido para o propósito
corrente da conversação.
(QL) Trate de fazer uma contribuão que seja verdadeira.
(R) Seja relevante.
(M) Seja claro.
Essas ‘supermáximas’ contêm sob si certas máximas mais específicas que são
estudadas por Grice com certa riqueza de detalhes. A idéia geral é que essas máximas
especificam o que os participantes têm que fazer para conversar de maneira maximamente
eficiente, racional, cooperativa: eles devem falar com sinceridade, de modo relevante e claro,
e, ao mesmo tempo, fornecer informação suficiente
56
.
Ao propor o princípio de cooperação e suas máximas, Grice tem como objetivo
principal explicar o funcionamento de um dos fenômenos da comunicação que ele nomeia de
‘conversação(conversation). Uma conversação pode ser entendida, grosso modo, como um
diálogo entre pessoas, sendo que esse dlogo é, até certo ponto, um esfoo cooperativo, e
cada participante reconhece nele, em alguma medida, um propósito ou conjunto de propósitos
comuns, ou, no mínimo, uma direção mutuamente aceita (adaptado de Grice, 1982, p. 86). No
desenvolvimento dessa conversação ocorre um certo tipo de transmissão de informações
denominado de indireto’ ou o-transparente’ que é tornado possível por um artifício que
Grice denomina implicatura conversacional’. Ele usa o termo ‘implicatura conversacional’
com o objetivo de explicar que nessa conversação pode ocorrer um certo tipo de troca de
informações (‘indireto’) que não pode ser explicado com base na usual noção de ‘implicação,
acarretamento, conseqüência lógica’. Para tornar essa proposta griceniana mais
compreensível, farei duas coisas: primeiro, vou explicar brevemente o que pode ser entendido
55
O termo ‘categoria’ não tem aqui um significado tão restrito ou técnico como na Crítica da Razão Pura de
Immanuel Kant. ‘Categoria’ está sendo usado aqui como sinônimo de ‘classe’, ‘tipo’.
56
Para uma discussão mais detalhada do Princípio de Cooperação e suas máximas veja o próprio texto de Grice
(citado acima) e a primeira parte do capítulo 3, ‘Implicatura conversacional’, da obra Pragmática de S. C.
Levinson (vide bibliografia). Uma discussão e problematização do conceito e da máxima de relevância
encontram-se no capítulo 2, ‘Relevância Conversacional’, do livro Interpretação e Compreensão de M. Dascal
(vide bibliografia).
85
por implicação gica; a seguir, vou explicar o que é uma implicatura conversacional e quais
o algumas de suas principais características. Os comentários que farei estão embasados no
próprio texto de Grice e na primeira parte do capítulo 3, ‘Implicatura conversacional’, do livro
Pragmática de Stephen C. Levinson (vide bibliografia).
O termo implicação lógica é geralmente usado para fazer referência às inferências que
derivam unicamente do conteúdo lógico ou semântico. Em outras palavras, usualmente
dizemos que certa sentença C é implicada logicamente por outra sentença A ou conjunto de
sentenças B
1
, B
2
... B
n
, se o significado de C está explicita ou implicitamente contido no
significado de A ou de B
1
, B
2
... B
n
, ou pode ser extraído dessas com base em definições de
termos. Outra maneira de explicar isso é dizendo que a verdade da conclusão é necessária face
à verdade da premissa ou premissas. Nas inferências abaixo, ocorre o que chamamos de
implicação lógica:
(3) i. Todos os gaúchos são brasileiros
ii. Todos os porto-alegrenses são gaúchos
iii. Todos os porto-alegrenses são brasileiros.
(4) i. x = 2
ii. x
2
= x.x
iii. x
2
= 2.2
iv. 2.2 = 4
v. x
2
= 4
Na inferência (3) a conclusão é implicada ou é uma conseqüência lógica das premissas, ou
seja, necessariamente se as premissas são verdadeiras, então a conclusão é verdadeira. Na
inferência (4) o significado da conclusão é implicado logicamente pelo significado das
premissas (entre as quais aparece três definições de termos – ‘x
2
= x.x’, ‘x
2
= 2.2’e ‘2.2 = 4’).
Esse tipo de inferências recebe o nome de inferência dedutiva ou lógica. Uma
característica central das inferências dedutivas é a não-anulabilidade
57
. Uma inferência é não-
anulável se não é possível cancelá-la acrescentando algumas premissas adicionais às
premissas originais. Assim, dado um argumento lógico como o (3) acima, não é possível
derrotar o argumento simplesmente acrescentando premissas, não importa quais sejam. Se as
duas premissas, i e ii, forem verdadeiras, então seja o que for, além disso, que é verdadeiro ou
57
Alguns estudiosos contemporâneos usam o termo ‘não-derrotabilidade’ (not-derrogation).
86
falso, iii será verdadeira. As implicaturas conversacionais, que vou explicar agora, são
anuláveis e, quanto a esse aspecto, são mais fracas e têm uma natureza distinta das
implicações lógicas.
No entendimento de Grice, as implicaturas conversacionais não são inferências
senticas, isto é, não estão baseadas unicamente no significado das premissas ou das
sentenças que aparecem na base de um raciocínio. Para ele, as implicaturas são inferências de
um tipo especial, pois elas são geradas do seguinte modo: (1) pelo proferimento de uma
sentença em certo contexto (que envolve elementos lingüísticos e extralingüísticos); e (2) elas
estão baseadas no significado do que foi dito e algumas suposições específicas a respeito da
natureza cooperativa da interação verbal comum. Grice usa o termo implicatura (implicature)
para chamar a atenção para um tipo especial de implicitação, a qual é diferente da
implicitação que ocorre numa implicação lógica. Uma implicitação que ocorre numa
implicação lógica está baseada unicamente no significado lógico-semântico das sentenças
envolvidas. Uma implicitação que ocorre numa implicatura conversacional está baseada não
apenas no significado lógico-semântico das sentenças envolvidas, mas também leva em conta
o contexto do proferimento e as regras que regem uma conversação. Na proposta griceniana,
aparece a seguinte caracterização para a noção de implicatura conversacional:
Se uma pessoa, ao dizer que p, implicitou q, pode-se dizer que ela implicitou
conversacionalmente q desde que: (1) pode-se presumir que ela esteja obedecendo
às máximas conversacionais ou ao menos o Princípio de Cooperação; (2) a
suposição de que ela esteja consciente de que (ou pense que) q é necessária para
tornar o seu dizer p [...] consistente com a presunção acima; (3) o falante pensa (e
espera que o ouvinte perceba que ele pensa) que faz parte da competência do
ouvinte deduzir, ou compreender intuitivamente, que a suposição mencionada em
(2) é necessária (GRICE, 1982, p. 92).
Para Grice, um padrão geral para a dedução de uma implicatura conversacional, o
qual pode ser formulado assim:
(1) Ele disse que p; (2) não nenhuma razão para supor que ele não esteja
observando as máximas ou ao menos o princípio de Cooperação; (3) ele não
poderia estar fazendo isso a não ser que ele pense que q; (4) ele sabe (e sabe que eu
sei que ele sabe) que posso ver que a suposição de que ele pensa que q é necessária;
(5) ele não deu qualquer passo para impedir que eu pensasse que q; (6) ele tem a
intenção de que eu pense, ou ao menos quer deixar que eu pense que q; (7) logo, ele
implicitou que q (Ibidem, p. 93)
58
.
58
M. Dascal afirma que o argumento gerador de implicatura deveria ser visto como um caso de raciocínio frouxo
ou de raciocínio que se serve de conceitos frouxos; e não como um argumento dedutivo. Para ele, a tarefa de
descoberta de uma implicatura deve obedecer a um procedimento heurístico, ou seja, um conjunto de regras
ordenadas (ao menos parcialmente) forneceria ao ouvinte (e ao falante) os instrumentos para adivinhar (e não
deduzir) as implicaturas; mas essa adivinhação se daria de maneira educada’ e ‘sistemática’ e não de forma
casual.’ (Dascal, 2006, p. 70). Para conferir essa argumentação em mais detalhes, ver Dascal (2006, p. 69-74).
87
As implicaturas podem ocorrer de três maneiras diversas, dependendo da relação que
se considera que o falante tenha para com as máximas. Grice explica que as implicaturas
conversacionais podem ocorrer nas seguintes circunstâncias:
(1) Quando nenhuma máxima é violada, ou ao menos o é claro que qualquer máxima
esteja sendo violada. Isso acontece no exemplo abaixo:
A está parado, obviamente em função de um problema no carro, e dele se aproxima
B; a seguinte conversação ocorre:
A - Estou sem gasolina.
B - Há um posto na pxima esquina.
(Interpretação: B estaria infringindo a máxima ‘Seja relevante’ a menos que ele
pense, ou pense que seja possível que o posto esteja aberto e tenha gasolina para
vender; assim, ele implicitou que o posto está aberto, ao menos pode estar aberto,
etc.) (GRICE, 1982, p. 93).
(2) Quando uma máxima é violada, mas sua violação se explica pela suposição de um
conflito com outra máxima. Isso ocorre no seguinte exemplo:
A está planejando com B um itinerário de rias na França. Ambos sabem que A
deseja ver seu amigo C, desde que para tanto não seja necessário alterar muito o
trajeto:
A - Onde C mora?
B - Em algum lugar do sul da França.
(Interpretação: Não há nenhuma razão para supor que B esteja optando por fugir ao
cumprimento das máximas; sua resposta é, como ele bem sabe, menos informativa
do que o exigido pela pergunta de A. Esta transgressão da primeira máxima da
Quantidade pode ser explicada somente pela suposição de que B está consciente de
que ser mais informativo seria dizer alguma coisa que violaria a máxima da
Qualidade ‘Não diga senão aquilo para que você possa fornecer evidência
adequada’. Assim, B implicitou que ele o sabe em que cidade C mora) (Ibidem,
p. 94).
(3) – Quando o falante abandona uma máxima usando de um artifício que se aproxima de uma
figura de linguagem. Isso acontece no seguinte exemplo:
Ironia – X, a quem A sempre confiou seus segredos, revelou um segredo de A a um
concorrente seu. Tanto A quanto seus ouvintes sabem disso. A diz: ‘X é um
excelente amigo’. (Interpretação: É perfeitamente óbvio para A e seus ouvintes que
o que A disse ou fez como se tivesse dito é algo em que ele o crê, e os ouvintes
sabem que A sabe que isto é óbvio para eles. Assim, a não ser que a enunciação de
A seja inteiramente sem propósito, A deve estar tentando comunicar alguma outra
proposição que não a que parece estar dizendo. Tal proposição deve ser obviamente
relacionada com o que A parece estar dizendo, e a proposição mais obviamente
relacionada é a contraditória da que ele parece estar dizendo (GRICE, 1982, p. 96).
Aqui não vou comentar esses exemplos, pois o objetivo principal era apresentar uma
breve caracterização do que é uma implicatura conversacional e de quando ela pode ocorrer.
Um estudo mais detalhado sobre o tema pode ser encontrado no texto de Grice citado e no
capítulo 3 da obra Pragmática de Levinson (vide bibliografia). Na seqüência, vou explicar
uma das principais características das implicaturas conversacionais, que é a anulabilidade.
88
Dadas as maneiras como as implicaturas são calculadas, Grice sugere que as
propriedades essenciais das implicaturas são, em boa parte, previsíveis. Ele isola cinco
propriedades características, que são as seguintes: (1) anulabilidade (cancelabilidade), (2)
não-destacabilidade, (3) calculabilidade, (4) não-convencionalidade, (5) ‘variabilidade
contextual’ (Ibibem, p. 102-103). Dessas propriedades, a que mais importa para o meu
propósito é a anulabilidade. A razão pela qual vou comentá-la é que Hare usa do artifício da
anulabilidade das implicaturas para criticar a tese de Williams de que não existe, em geral,
inferências imperativas.
Uma implicatura conversacional é uma inferência que pode ser anulada
59
. As
implicaturas são inferências anuláveis porque elas podem ser canceladas ao acrescentarmos
algumas premissas adicionais às premissas originais. Nesse aspecto, as implicaturas se
assemelham mais com as inferências indutivas do que com as dedutivas. Os argumentos
indutivos também o anuláveis. Para explicar essa semelhança, podemos tomar em
consideração o exemplo abaixo:
(5) i. Encontrei 1000 cisnes
ii. Cada um dos 1000 cisnes é branco
iii. Portanto, todos os cisnes são brancos.
Suponha que eu agora encontre um cisne cinza. Se acrescentarmos a premissa
adicional iii, o argumento se tornará falho e a conclusão será invalidada.
(6) i. Encontrei 1000 cisnes
ii. Cada um dos 1000 cisnes é branco
iii. O 1001º cisne é cinza
iv. Inválida: Portanto, todos os cisnes são brancos.
As implicaturas conversacionais também são inferências facilmente anuláveis.
Considere, por exemplo, (7) e sua implicatura direta de quantidade (8):
(7) Pedro tem quatro cabras.
(8) Pedro tem apenas quatro cabras e mais nenhuma.
Note também que (7) implica logicamente (acarreta) (9):
59
Os comentários e exemplos que apresento a respeito da anulabilidade das inferências indutivas e das
implicaturas são adaptações da argumentação de Levinson (2007, p. 142-144).
89
(9) Pedro tem três cabras.
Ora, é possível perceber que as implicaturas podem ser anuladas (suspensas,
canceladas) pela menção numa oração condicional, conforme ilustra o exemplo abaixo:
(10) Pedro tem quatro cabras, senão mais.
(10) não tem a implicatura (8). as implicações lógicas (os acarretamentos), sendo não-
canceláveis, não podem ser suspensas dessa maneira. Para entender isso, analisemos o
exemplo abaixo:
(11) ? Pedro tem quatro cabras, senão duas.
O uso da interrogação (?) indica que essa sentença não pode ser proferida para cancelar a
implicação lógica de (7), que é a sentença (9). Se é verdade que ‘Pedro tem quatro cabras’,
então é necessariamente verdadeiro que ‘Pedro tem três cabras’, e não importa que outras
sentenças são verdadeiras ou falsas. O argumento que mostra isso é seguinte:
(12) i. Pedro tem quatro cabras (verdadeiro)
ii. ? Pedro tem quatro cabras, senão duas (falso)
iii. Pedro tem três cabras (verdadeiro).
Aqui notamos que, dado um argumento dedutivo como o de (7) para (9), não é possível
derrotar o argumento simplesmente acrescentando premissas, não importa quais sejam. Se a
premissa i for verdadeira, então seja o que for, além disso, que é verdadeiro ou falso, iii será
verdadeira.
Um fato importante é que as implicaturas podem ser negadas direta e ostensivamente
sem que percebamos nisso uma contradição. Para ver como isso acontece, analisemos as
sentenças abaixo:
(13) Pedro tem quatro cabras, na verdade, dez.
(14) Pedro tem quatro cabras e talvez mais.
Aqui as expreses ‘na verdade’ e ‘talvez’ estão sendo usadas pelo falante para corrigir seu
proferimento devido ao fato dele lembrar de alguma informação adicional. As sentenças
‘Pedro tem dez cabras’ e ‘Pedro tem quatro cabras’ não são contraditórias, pois ambas podem,
ao mesmo tempo, ser verdadeiras.
90
as implicações lógicas não podem ser negadas dessa maneira, conforme ilustram os
exemplos abaixo:
(15) (?) Pedro tem quatro cabras, na verdade, nenhuma.
(16) (?) Pedro tem quatro cabras e talvez nenhuma.
Aqui a interrogação (?) está indicando que as expressões ‘na verdade’ e ‘talvez o estão
cancelando as sentenças que são implicadas logicamente por (7) ‘Pedro tem quatro cabras’, tal
como a sentença (9). Na verdade, ao construir a sentença dessa maneira, estamos cometendo
uma contradição, pois as sentenças ‘Pedro tem quatro cabras’ e ‘Pedro não tem quatro cabras’
não podem ser ambas verdadeiras nem ambas falsas.
Alguém poderia objetar que, nos exemplos (15) e (16), as expressões na verdade’ e
‘talvez’ também estão sendo usadas pelo falante para corrigir ou cancelar o seu proferimento
inicial, e, com isso, as implicações lógicas deste também seriam canceladas. O falante
poderia, no decorrer de seu proferimento, lembrar que Pedro vendeu ou pode ter vendido suas
cabras. No entanto, aqui estamos diante de um caso diferente do descrito nos exemplos acima.
Nos exemplos anteriores, aceitamos que a sentença ‘Pedro tem quatro cabras’ era verdadeira
e, disso, extraímos certas conseqüências. Já no exemplo de nosso objetor, não partimos da
verdade dessa sentença, e isso faz com que estejamos numa situação diferente.
Para concluir esse tópico, é importante ter em mente que as implicaturas podem
simplesmente desaparecer quando fica claro, pelo contexto do proferimento, que tal inferência
pode não ter sido pretendida como parte do significado comunicativo completo da
enunciação. Por exemplo, suponha que, para conseguir subsídio junto ao Programa de Apoio
às Cabras (PAC), alguém deva possuir ao menos quatro cabras; e o inspetor faça ao vizinho
de Pedro a seguinte pergunta:
(17) I: Pedro tem realmente o número exigido de cabras?
V: Ah, certamente, ele tem quatro cabras, sim.
Aqui a resposta de V (vizinho de Pedro) não o compromete com a implicatura comumente
associada com (7), ou seja, (8), porque fica claro no contexto que toda a informação exigida é
se o rebanho de Pedro ultrapassa o limite para o pagamento do subsídio, não o número exato
de cabras que ele, na verdade, possa ter.
Na próxima subseção, vou explicar como Hare adaptou algumas dessas idéias de Grice
com o objetivo de defender a aplicação da lógica aos imperativos.
91
4.1.3. A utilidade da distinção entre implicação gica e implicatura conversacional para o
campo dos imperativos.
No primeiro capítulo dessa dissertação, apresentei os conceitos e argumentos que Hare
usou para defender a tese da aplicação da gica aos imperativos. Na primeira parte dessa
seção (4.1.1), reconstruí duas críticas que Williams apresentou contra a tese de que há
inferências imperativas. Agora, vou explicar como Hare adaptou algumas idéias de Grice na
tentativa de rebater as críticas de Williams.
Em seu artigo Some Alleged Differences between Imperatives and Indicatives, Hare
adapta a tese de que a ‘conversação’ é governada por um Princípio de Cooperação e suas
máximas. Ele explica que
Existe (se posso resumir muito toscamente a visão de Grice), um conjunto de
convenções gerais que têm que ser observadas se a comunicação é para funcionar e
se equívocos, desarmonias e outras falhas da comunicação têm que ser evitadas.
Essas convenções são muito gerais; elas não dependem do significado particular ou
das propriedades lógicas de sentenças particulares ou outros proferimentos. Duas
das convenções mais importantes são: o dizer coisas que são irrelevantes para o
tema da comunicação no contexto, e não omitir coisas que são relevantes. [...] A
existência dessas convenções significa que, se dizemos alguma coisa, em algum
contexto, implicamos (ou, para adotar o termo de Grice, implicitamos
conversacionalmente’) certas outras coisas que nos restam não ditas
60
.
Nessa passagem, Hare chama a atenção para duas coisas. Primeiro, ele entende que
essas convenções que orientam a comunicação valem tanto para o proferimento de sentenças
indicativas (assertivas) quanto para o proferimento de sentenças imperativas (entendidas aqui
como comandos). Segundo, ele quer chamar a atenção para a máxima da relevância e para o
artifício das implicaturas conversacionais.
Na proposta hareana, a inferência (1), de ‘Poste a carta’ para ‘Poste a carta ou queime-
a’, é válida. A objeção de que a premissa tem uma pressuposão permissiva que é
inconsistente com uma pressuposição permissiva da conclusão o serve para invalidar esse
tipo de inferência. Para que houvesse uma inconsistência, teria que ocorrer um dos seguintes
casos: (1) premissa e concluo teriam que ser diretamente inconsistentes; ou (2) aquilo que é
implicado logicamente pela premissa teria que ser diretamente inconsistente com a conclusão
60
Hare (1972b, p. 27): ‘There is (if I may summarise Grice’s view rather crudely) a set of general conventions
which have to be observed if communication is to work and misunderstandings, disharmonies and other failures
of communication are to be avoided. These conventions are quite general; they do not depend on the particular
meanings or logical properties of particular sentences or other utterances. Two of the most important of these
conventions are, not to say things which are quite irrelevant to the point of the communication in the context, and
not to omit things which are importantly relevant. […] The existence of these conventions means that, if we say
some things, in some contexts, we imply (or, to adopt Grice’s term, ‘conversationally implicate’) certain other
things which we have left unsaid’.
92
ou com alguma implicação lógica da concluo. No entanto, no entender de Hare aqui não é
isso que acontece. Ele argumenta que uma pressuposição permissiva, da qual fala Williams,
pode ser descrita como implicatura conversacional. É possível assumir que a sentença ‘Poste a
carta’ implica logicamente Você não está autorizado a não postar a carta’, embora haja
argumentos contra essa suposição. No entanto, a sentença ‘Poste a carta ou queime-a’ apenas
implicita conversacionalmente que ‘Você está autorizado a o postar a carta, contanto que a
queime’. As implicaturas conversacionais são mais fracas que as implicações lógicas, e, nesse
caso, não aparece uma inconsistência. Para que houvesse aqui uma inconsistência no sentido
forte do termo, teríamos que estar diante de duas implicações lógicas mutuamente
incompatíveis. Como não temos essas duas implicações lógicas mutuamente incompatíveis,
então não inconsistência e, consequentemente, a infencia imperativa em questão é válida
(Hare, 1972b, p.28-29).
Nessa parte da argumentação, Hare está usando uma noção neutra de implicação
lógica, a qual não faz refencia aos valores de verdade da(s) premissas(s) e conclusão. Outra
noção que aparece aqui é de que a inconsistência é algo que pode ocorrer entre frásticas de
sentenças que estão no mesmo modo e têm a mesma função lógica. Essas noções foram
explicadas nas Seções 2.2.3, 2.3 e 2.4 do segundo capítulo, por isso, não vou retomá-las aqui.
A concluo de Hare, com respeito a esse ponto, é de que tanto no modo indicativo
quanto no modo imperativo há uma infencia válida de p’ para ‘p ou q’. Em outras palavras,
assim como uma inferência válida de ‘Você vai postar a carta’ para ‘Vovai postar a
carta ou queimá-la’, também há uma infencia válida de ‘Poste a carta’ para ‘Poste a carta ou
queime-a’. Isso significa que a objeção da inconsistência entre pressuposições permissivas da
premissa e conclusão não é cabível nem para a inferência indicativa nem para a inferência
imperativa. No entanto, embora a inferência seja válida, é preciso ter o cuidado de deixar
claro para o ouvinte aquilo que queremos. O próprio Hare alerta que
Se quero que alguém poste a carta, cabe a mim dizer ‘Poste a carta’; se eu desse o
comando fraco ‘Poste a carta ou queime-a’, implicitaria conversacionalmente que
ele pode abster-se de postá-la, contanto que a queime. Assim, se digo-lhe para
postar a carta, e ele infere deste o ‘Poste a carta ou queime-a’, e cumpre esse último
comando ao queimar a carta, ele errou. Mas seu erro consiste, não em fazer uma
inferência inválida, mas em cumprir o comando fraco quando o que dei-lhe foi o
forte
61
.
61
Hare (1972b, p.29): ‘If I want somebody to post the letter, it is up to me to say ‘Post the letter’; if I gave the
weaker command ‘Post the letter or burn it’, I should conversationally implicate that he may refrain from posting
it, so long as he burns it. Therefore, if I tell him to post the letter, and he infers from this to ‘Post the letter or
burn it’, and fulfils this latter command by burning the letter, he has erred. But his error consists, not in making
an invalid inference, but in fulfilling the weaker command when what I gave him was the stronger’.
93
A infencia (2), de ‘Poste a carta ou queime-a’ e Não a queime’ para ‘Poste a carta’,
também é válida na concepção de Hare. A objeção de que as premissas são inconsistentes
porque têm pressuposições permissivas inconsistentes é algo que não se sustenta. É possível
aceitar que o comando ‘Poste a carta ou queime-a’ implicita conversacionalmente (ou tem a
pressuposição permissiva) ‘Você pode queimar a carta’. No entanto, é um erro argumentar
que a inferência é inválida porque há uma inconsisncia entre ‘Você pode queimar a carta’
(implicitado conversacionalmente) e Não a queime’ (segunda premissa). Para explicar isso
em mais detalhes, Hare adapta o artifício da anulação das implicaturas. Ele argumenta que a
permissão ‘Vo pode queimar a carta’, que é uma das implicaturas de ‘Poste a carta ou
queime-a’, é cancelada quando o falante profere o comando ‘Não a queime’. Como vimos
anteriormente (seção 4.1.2), o inconsistência no fato de cancelarmos uma implicatura. O
que acontece, então, é que uma inferência válida de p ou qe ‘não-q’ para p’; e isso vale
tanto para o modo indicativo quanto para o modo imperativo (Hare, 1972b, p.31-32). Aqui, tal
como na inferência anterior, precisamos ter o cuidado de deixar claro para o ouvinte o que
queremos. Quando proferimos o comando disjuntivo ‘Poste a carta ou queime-a’ e nada mais
dizemos, implicitamos conversacionalmente que o ouvinte pode escolher entre postar ou
queimar a carta. Caso ele a queime, não podemos reclamar que ele desobedeceu nossa ordem,
pois ao proferir o comando dessa maneira nós o autorizamos a queimar a carta. Assim, em
certos contextos, precisamos ter bastante cuidado ao proferir um comando disjuntivo. Se
quisermos cancelar alguma implicatura conversacional desse comando, isso deve ser
esclarecido antes do ouvinte realizar a ação. Caso contrário, depois nos restará lamentar.
Para esclarecer um pouco mais essa questão da anulação das implicaturas de um imperativo,
Hare usa o seguinte exemplo:
Suponha que eu sou um transportador oficial mandando um comboio de Londres a
Edinburg. Existem cinco rotas convenientes: todas seguem a Rua Great North
assim como a Scotch Corner ou por perto, e então elas vão respectivamente
(indicando de oeste para leste) via Beattock, Hawick, Carter Bar, Coldstream e
Berwick. Apenas as últimas duas (as duas do leste) envolvem ir através da
Newcastle. Não sei quais são as condições da neve na fronteira, mas sei que a rota
Berwick esem boas condições, embora seja bem mais longa. Por isso, digo ao
comandante do comboio ‘Vá via Coldstream ou Berwick; não estou dizendo qual
no momento, e o estou autorizando você a pegar a rota Coldstream; apresente-
se ao Transport Officer em Newcastle e ele dará para você mais uma mensagem
minha’. Quando ele chega na Newcastle, descobri que a rota Coldstream está
bloqueada, e assim mando a mensagem ‘Não via Coldstream’. Assim, ele infere
das duas premissas que lhe forneci, ‘Vá via Coldstream ou via Berwicke ‘Não
via Coldstream, que ele é para ir via Berwick
62
.
62
Hare (1972b, p. 32): ‘Suppose that I am a transport officer sending off a convoy from London to Edinburgh.
There are five reasonably convenient routes: they all follow the Great North Road as far as Scotch Corner or
thereabouts, and then they go respectively (read from west to east) via Beattock. Hawick, Carter Bar, Coldstream
94
A objeção de Williams, de que as premissas de tais inferências são inconsistentes, não
é cabível. As pressuposições permissivas podem ser descritas como implicaturas
conversacionais; e como implicaturas podem ser anuladas (canceladas), a inferência
imperativa é lida tal como acontece no modo indicativo. O argumento de Williams, de
que em casos como acima o falante está chamando o agente de volta, é equivocado. O fato é
que, no exemplo dado, o comandante não pode estar começando de novo. Nas palavras de
Hare:
[...] no exemplo dado, o comandante não pode estar fazendo isso, porque o que ele
tinha dito é um ingrediente necessário na série total de ordens; sem isso, o
receptor não saberia o que fazer. Portanto, o comandante não está cancelando sua
ordem prévia; tanto a ordem prévia quanto a subseqüente são requeridas para que
da combinação delas o receptor possa inferir o que ele é para fazer
63
.
A concluo geral de Hare é de que os argumentos de Williams não são bons e não
servem para refutar a tese de que inferências imperativas. Na proposta hareana, a lógica de
imperativos é semelhante à lógica de indicativos ou de proposições. Ele acredita que ‘se o
paralelismo entre indicativos e imperativos é trabalhado de modo integral e correto,
geralmente descobriremos que o que é impróprio para um é impróprio para o outro’
64
.
Na próxima seção, apresentarei uma distinção que Hare faz entre infencias de tipo
necessário’ e ‘inferências de tipo suficiente’.
and Berwick. Only the last two (the two eastern ones) involve going through Newcastle. I do not know what the
snow conditions on the border are, but I know that the Berwick route is certain to be all right, but is rather
longer. I therefore say to the commander of the convoy ‘Go via Coldstream or Berwick; I am not saying which at
the moment, Im not authorising you yet to take the Coldstream route; report to the Transport Officer at
Newcastle and he will give you a further message from me’. When he gets to Newcastle, I have found out that
the Coldstream route is blocked, and so I send the message ‘Don’t go via Coldstream’. He therefore infers from
the two premises that I have given him, ‘Go via Coldstream or Berwick’ and ‘Don’t go via Coldstream’, that he
is to go via Berwick’.
63
Hare (1972b, p.33): ‘But in the example given, the commander cannot be doing this, because what he has said
already is a necessary ingredient in the total series of orders; without it, the recipient would not know what to do.
The commander is therefore not canceling his previous order; both the previous order and the subsequent one are
required in order that from the combination of them the recipient may infer what he is to do’.
64
Hare (idem): ‘If the parallelism between indicatives and imperatives is fully and correctly worked out, it will
commonly be found that what is sauce for one is sauce for the other’.
95
4.2. Uma distinção entre inferências de tipo necessário e inferências de tipo suficiente.
Em seu artigo Practical Inferences, publicado primeiramente em 1969 e
posteriormente reeditado em 1972, Hare discute e compara algumas de suas idéias acerca das
inferências práticas com aquelas idéias que o jovem A. Ross (1941) e A. Kenny (1965/6)
sustentam a respeito desse tema
65
. Embora pudesse ser interessante reconstruir toda a
discussão que aparece nesse artigo, aqui não farei isso. Meu objetivo será reconstruir a
distinção que Hare faz entre infencias de tipo necessário’ e ‘inferências de tipo suficiente’.
Essa distinção ajuda a reforçar a tese de que a gica de imperativos é semelhante à gica de
indicativos ou de proposões. Para apresentar tal distinção em mais detalhes, dividirei essa
seção em duas partes. Inicialmente, reconstruirei a distinção entre condições gicas e
condições causais para fazer algo, e mostrarei que tal distinção serviu de inspiração para Hare
elaborar a distinção entre infencias de tipo necessário e inferências de tipo suficiente. A
seguir, explicarei como é possível aplicar a distinção entre inferências de tipo necessário e de
tipo suficiente tanto no campo teórico quanto no campo prático.
4.2.1. Condições lógicas e condições causais para fazer algo.
No início do artigo Practical Inferences, Hare (1972c, p. 59) explica que sempre que
nos mandam fazer algo, ou sempre que nós mesmos constituímos a intenção de fazer algo,
surge a questão de como fazer isso – a menos que se trate de comandos ou intenções simples e
a resposta seja tão óbvia que a questão o precise ser respondida. Na seqüência, ele alerta
que a pergunta ‘Como farei isso?’ é ambígua e pode receber diferentes respostas, pois existem
condições lógicas e condições causais que precisam ser satisfeitas se queremos fazer algo. A
respeito desse ponto, Hare diz o seguinte:
Existem, contudo, certas distinções que precisam ser feitas entre diferentes tipos de
questões, as quais poderiam ser expressas na frase ‘Como farei isso?’. Primeiro,
existe a distinção entre condições lógicas para dizermos que fizemos a coisa em
questão, e condições causais que têm que ser cumpridas se temos que fazer isso. Por
exemplo, se me mandaram carregar quatro gravetos, é uma condição lógica para
fazer isso que eu deveria carregar ao menos três gravetos; e se me mandaram
carregar água, é uma condição causal para fazer isso que eu deveria pegar um
65
Hare usa como base para essa discussão os artigos Imperatives and Logic, de Ross, e Practical Inference, de
Kenny (vide bibliografia).
96
recipiente mas apenas uma condição causal, não uma condição lógica, pois um
mágico seria capaz de deslocar a água de um lugar para outro sem recipientes
66
.
Ao refletir sobre as condições lógicas e as condições causais para fazer algo, Hare
notou que essa distinção poderia ser ampliada e melhor detalhada. Primeiramente, é possível
distinguir entre condições logicamente necesrias e condições logicamente suficientes para
fazer algo. Por exemplo, se me mandaram carregar quatro caixas até a estação de trem, então
carregar três dessas caixas até a estação de trem é uma condição logicamente necessária para
fazer o que me mandaram; e se me mandaram carregar alguns gravetos, então carregar ao
menos um desses gravetos é uma condição logicamente suficiente para fazer o que me
mandaram
67
. Analogamente, é possível distinguir entre condições causalmente necessárias e
condições causalmente suficientes para fazer algo. Por exemplo, se me mandaram carregar
água, então pegar um recipiente é uma condição causalmente necessária para cumprir essa
ordem; e se me mandaram ferver a água, colocá-la em um recipiente no topo do fogo que está
acima de certa temperatura é uma condição causalmente suficiente para obedecer a esse
comando (Hare, 1972c, p. 59).
Dando seqüência à sua argumentação, Hare explica que para satisfazer a maioria dos
comandos e das intenções temos que ser capazes de descobrir quais são as condões
necessárias e suficientes para cumpri-los. Nesse processo de raciocínio, tentamos descobrir
tanto as condições lógicas quanto as condições causais que têm que ser cumpridas para
fazermos algo. No entanto, como o principal interesse de Hare é comparar a lógica de
imperativos e de indicativos, ele escolhe investigar duas coisas: 1) as condições logicamente
necessárias e logicamente suficientes para satisfazer a verdade de uma sentença indicativa
(sentença assertiva), e 2) as condições logicamente necesrias e logicamente suficientes para
satisfazer o cumprimento de comandos. Ele justifica sua decisão de fazer esse tipo de estudo
dizendo o seguinte:
66
Hare (1972c, p. 59): ‘There are, however, a number of distinctions which need to be made between different
sorts of questions, all of which could be expressed in the phrase How shall I do this?’. First, there is the
distinction between logical conditions for being said to have done the thing in question, and causal conditions
which have to be fulfilled if we are to do it. For example, if I am told to bring four sticks, it is a logical condition
of doing this that I should bring at least three sticks; and if I am told to bring some water, it is a causal condition
of this that I should get hold of a receptacle but only a causal, not a logical condition, because a magician
might be able to conjure water from place to place without receptacles’.
67
É possível defender que se as pessoas ordenam ‘Carregue alguns gravetos’, elas estão ordenando que alguém
carregue mais de um graveto. Nesse caso, carregar ao menos um graveto não seria uma condição logicamente
suficiente para satisfazer o cumprimento do comando dado. Essa interpretação do termo ‘alguns’ é diferente da
interpretação dada por Hare, que está considerando o termo alguns’ como sinônimo de ‘ao menos um’.
97
No caso da maioria dos comandos e intenções, não poderíamos começar a cumpri-
los de modo algum a menos que pudéssemos raciocinar a partir deles para as
condições necessárias e suficientes para cumpri-los. Isso porque a maioria dos
comandos são ao menos até certo ponto logicamente complexos, e porque quase
tudo o que realizamos é realizado indiretamente, ao iniciar um processo causal. É o
primeiro raciocinar que nos interessanesse artigo. Se me mandaram nunca deixar
a porta aberta, não posso saber o que tenho que fazer ou deixar de fazer para
obedecer a essa proibição, a menos que nessa ocasião particular eu seja capaz de
raciocinar: ‘É para eu nunca deixar a porta aberta; portanto é para eu não deixá-la
aberta agora’. Essa conclusão fornece uma condição logicamente necessária para o
cumprimento da proibição universal expressa na premissa. Algumas das inferências
exigidas serão menos elementares do que essa; por exemplo, se me mandaram
comprar a lã de vidro suficiente para isolar um telhado de 24 pés de largura e 60 pés
de comprimento, e existia unicamente em rolos de 4 s de largura e 60 s de
comprimento, tenho que ser capaz de raciocinar que uma condição logicamente
necessária e suficiente para obedecer o comando, dada essa condição, seria comprar
seis rolos.
Proponho examinar nesse artigo o esclarecimento lançado sobre a lógica de
imperativos ao observar cuidadosamente a distinção entre condições necessárias e
suficientes
68
.
Com base em algumas idéias de Kenny (1965/6) e com apoio na distinção entre
condições logicamente necessárias e condições logicamente suficientes, Hare elaborou a
distinção entre ‘inferências de tipo necessário’ e ‘inferências de tipo suficiente’. Uma
inferência de tipo necessário é aquela em que satisfazer a concluo é uma condição
logicamente necessária para satisfazer o comando ou a sentença indicativa que comparece na
premissa maior. uma inferência de tipo suficiente é aquela em que satisfazer a conclusão é
uma condição logicamente suficiente para satisfazer o comando ou a sentença indicativa que
comparece na premissa maior.
68
Hare (1972c, p. 60): ‘In the case of most commands and intentions, we could not set about fulfilling them at
all unless we could reason from them to the necessary and sufficient conditions for fulfilling them. This is
because most commands are to at least some extent logically complex, and because nearly everything that we
achieve is achieved indirectly, by initiating a causal process. It is the first reason that will mainly concern us in
this paper. If I am told never to leave the door open, I cannot know what I have to do or to refrain from doing in
order to obey this prohibition, unless on particular occasions I am able to reason: ‘I am never to leave the door
open; therefore I am not to leave it open now’. This conclusion gives a logically necessary condition of fulfilling
the universal prohibition expressed in the premiss. Some of the inferences required will be less elementary than
this; for example, if I am told to buy just enough glass wool to insulate a roof 24 ft wide and 60 ft long, and that
it is only to be had in rolls 4 ft wide and 60 ft long, I have to be able, in order to fulfil this command, to reason
that a logically necessary and sufficient condition of obeying the command, given this condition, would be to
buy six rolls.
I propose to examine in this paper the light that is shed on the logic of imperatives by carefully observing the
distinction between necessary and sufficient conditions’.
98
4.2.2. Aplicações da distinção entre inferências de tipo necessário e de tipo suficiente.
Hare defende que é possível aplicar a distinção entre infencias de tipo necessário e
de tipo suficiente tanto no campo teórico quanto no campo prático, e, dessa forma, corroborar
a tese de que a lógica de imperativos é semelhante à lógica de indicativos ou de proposições.
Para mostrar a plausibilidade da argumentação hareana, primeiro aplicarei a distinção no
campo teórico, e posteriormente no campo prático.
Com o objetivo de mostrar que é possível aplicar a distinção no campo teórico,
examinarei as seguintes inferências teóricas:
(18) Você vai manter todas as suas promessas.
Essa é uma promessa sua.
Você vai manter essa promessa sua.
(19) Você vai colocar seu pára-quedas e saltar.
Você vai saltar.
(20) Você vai comprar uma roupa.
O manto é uma roupa.
Você vai comprar um manto
69
.
A inferência (18) é válida e é de tipo necessário. Essa inferência é de tipo necessário
porque, dado que fiz uma promessa, manter essa promessa particular é uma condição
logicamente necessária para satisfazer a verdade da premissa ‘Você vai manter todas as suas
promessas’. O caso da inferência (19) é semelhante, pois ela é uma infencia válida e
também de tipo necessário. Aqui a verdade da sentença Vo vai saltar’ é uma condição
69
Em uma conversa que tive com o Prof. Dr. Marco A. O. de Azevedo, ele objetou que essa inferência é mais
problemática e mais fraca do que a inferência indutiva que vai de ‘Você vai comprar uma roupa’, ‘O manto é
uma roupae ‘Vogosta de manto’ para ‘Você vai comprar um manto’. O mesmo tipo de objeção pode ser
feito à inferência (23). A meu ver, a objeção é aceitável, mas não tenho como reconstruir a argumentação
hareana de maneira diferente no que diz respeito a esse ponto.
99
logicamente necessária para satisfazer a verdade da premissa Vo vai colocar seu pára-
quedas e saltar’. Cabe ressaltar que em ambas as inferências válidas a verdade da conclusão é
uma condição logicamente necessária mas não suficiente para a verdade da premissa maior.
Na inferência (18), não é suficiente que vomantenha essa promessa particular para que a
sentença ‘Você vai manter todas as suas promessas’ seja verdadeira. E na inferência (19), não
é suficiente que você salte para que a sentença Vovai colocar seu pára-quedas e saltar’
seja verdadeira.
o caso da inferência (20) é diferente, pois ela não é válida pelos padrões usuais da
lógica, mas é válida’ em um sentido fraco e é uma inferência de tipo suficiente. Segundo os
padrões usuais da lógica, uma inferência válida é aquela no qual necessariamente se as
premissas são satisfeitas, então a conclusão é satisfeita que não é o caso da infencia (20).
Se formalizarmos essa inferência e usarmos um método de decisão para testarmos sua
validade, veremos que ela é inválida
70
. Agora, podemos usar uma noção fraca de inferência
válida, tal como: possivelmente se as premissas são satisfeitas, então a conclusão é satisfeita.
Usando essa noção fraca como critério, é possível dizer que a inferência (20) é ‘válida’.
Quanto à classificação, a inferência (20) é de tipo suficiente porque, dado que o manto
é uma roupa, comprar um manto é uma condição logicamente suficiente para satisfazer a
verdade da sentença ‘Vo vai comprar uma roupa’. Nesse tipo de inferência, satisfazer a
verdade da sentença indicativa que comparece na conclusão não é uma condição logicamente
necessária para satisfazer a verdade da sentença que comparece na premissa maior, pois
poderíamos satisfazer a verdade da premissa maior comprando outra roupa que não um
manto, por exemplo, ao comprar uma calça ou uma camisa (Hare, 1972c, p. 61).
Existem também certas infencias em que a conclusão fornece uma condição
logicamente necessária e logicamente suficiente para a satisfação da verdade da premissa. Por
exemplo, a inferência de ‘Você vai comer algumas laranjas para ‘Você vai comer ao menos
uma laranja’
71
.
Agora mostrarei que é possível aplicar a distinção no campo prático. Para isso,
examinarei as seguintes inferências práticas:
70
A inferência (20) poderia ser formulada da seguinte maneira: x (Rx Cax) e Rm, logo: Cam. Onde ‘R’ é
uma constante de predicado para ‘roupa’, ‘C’ é uma constante de predicado para vai comprar’, ‘a’ é uma
constante de indivíduo’ e ‘m’ é uma constante de indivíduo para ‘manto’.
71
Ver a nota-de-rodapé sobre o termo ‘alguns’ no exemplo do comando ‘Carregue alguns gravetos’, citado na
seção 4.2.1.
100
(21) Mantenha suas promessas.
Essa é uma promessa sua.
Mantenha essa promessa sua.
(22) Coloque seu pára-quedas e salte.
Salte.
(23) Compre uma roupa.
O manto é uma roupa.
Compre um manto
72
.
A inferência (21) é válida e é de tipo necessário. Essa inferência é de tipo necessário
porque, dado que fiz uma promessa, manter essa promessa particular é uma condição
logicamente necessária para cumprir o comando Mantenha (todas) as suas promessas’. O
caso da infencia (22) é semelhante, pois ela é válida e também é de tipo necessário. Aqui a
ação de saltar realizada pelo destinatário da ordem é uma condição logicamente necessária
para o cumprimento do comando ‘Coloque seu pára-quedas e salte’. É preciso ressaltar que,
em ambas as inferências, a conclusão fornece uma condição logicamente necessária mas não
suficiente para o cumprimento do comando que comparece na premissa. Assim, na inferência
(21), não é suficiente que você mantenha essa promessa particular para que o comando
‘Mantenha (todas) as suas promessas’ seja cumprido. E na inferência (22), não é suficiente
que você salte para que o comando Coloque seu pára-quedas e salte’ seja obedecido sem
falar nas conseqüências desastrosas que ocorreriam sem o uso do pára-quedas. .
72
Exemplo baseado no seguinte silogismo prático: ‘Preciso de uma roupa’, ‘O manto é uma roupa’; logo,
‘Preciso de um manto’ o qual é apresentado por Aristóteles em Movement of Animals 701 a 7 e seguintes. No
entendimento de Barnes (1977), o silogismo prático de Aristóteles é um silogismo teorético e deveríamos falar
de silogismos práticos apenas em um sentido figurado. Para ver uma interpretação semelhante, conferir artigo de
Zingano (2007). Para esses dois autores, as sentenças que compõem o silogismo prático’ o portadoras de
valor-de-verdade, e o próprio Aristóteles tinha consciência disso. Com o intuito de defender essa interpretação,
Barnes (1977) e Zingano (2007, p. 279) citam uma passagem do De Anima, em que Aristóteles observa que as
proposições práticas são sempre verdadeiras ou falsas para algm, enquanto as tricas o o simpliciter, sem
outra consideração (III 7 431b 10-12). Além disso, para defender que sentenças do tipo ‘Preciso de uma roupa
e ‘Preciso de um manto são portadoras de valor-de-verdade, Barnes e Zingano formalizam essas sentenças de
uma maneira especial, usando de operadores para representar desejos. Isso poderia dar margem a certas objeções
que terei que deixar para outra oportunidade.
101
a infencia (23) é diferente, pois ela não é válida pelos padrões usuais da lógica,
mas é ‘válidaem um sentido fraco e é uma infencia de tipo suficiente. Como vimos acima,
segundo os padrões usuais da lógica, uma infencia válida é aquela no qual necessariamente
se as premissas são satisfeitas, então a conclusão é satisfeita que o é o caso da inferência
(23). Aqui também podemos usar a noção fraca de inferência válida, que era a seguinte:
possivelmente se as premissas são satisfeitas, então a conclusão é satisfeita. Usando essa
noção fraca como critério, é possível dizer que a inferência (23) é ‘válida’.
Quanto à classificação, essa inferência é de tipo suficiente porque, dado que o manto é
uma roupa, comprar um manto é uma condição logicamente suficiente para que o comando
‘Compre uma roupa’ seja obedecido. Isso significa que aqui a conclusão fornece uma
condição logicamente suficiente para o cumprimento do comando que comparece na
premissa. Nesse tipo de inferência, obedecer ao comando específico que comparece na
concluo não é uma condição logicamente necessária para obedecer ao comando que
comparece na premissa maior, pois poderíamos obedecer ao comando da premissa comprando
outra roupa que não um manto, por exemplo, ao comprar uma calça ou uma camisa (Hare
1972c, p. 61).
Também no campo prático é possível encontrar inferências em que a conclusão
fornece uma condição logicamente necessária e logicamente suficiente para o cumprimento
do comando que comparece na premissa. Por exemplo, a infencia de ‘Coma algumas
laranjas’ para ‘Coma ao menos uma laranja’.
Para finalizar essa seção, quero mencionar uma objeção que alguém poderia fazer a
distinção entre inferências de tipo necessário e de tipo suficiente. A distinção não pode ser
aplicada no caso das inferências abaixo:
(24) Poste a carta.
Poste a carta ou queime-a.
(25) Você vai postar a carta.
Você vai postar a carta ou queimá-la.
102
Na proposta hareana, as duas infencias são válidas (conferir a seção 4.1.3 do
presente capítulo). No entanto, ainda que alguém aceite a validade dessas inferências, poderia
objetar que a distinção entre inferências de tipo necessário e de tipo suficiente não se aplica
nesses dois casos. No caso da inferência (24), obviamente não é necessário cumprir todas as
exigências da conclusão como um requisito para cumprir a exigência da premissa e,
podemos acrescentar, nem mesmo é possível cumprir simultaneamente todas as exigências da
concluo. Outra coisa a ser notada é que não podemos escolher arbitrariamente obedecer a
um dos comandos da disjunção ‘Poste a carta ou queime-a’ e pensar que isso é uma condição
suficiente para obedecer ao comando da premissa Poste a carta’. Aqui obviamente é preciso
obedecer a uma parte específica da conclusão, a saber, ‘Poste a carta’, para obedecer ao
comando da premissa.
Analogamente, na inferência (25) obviamente não é necessário satisfazer a verdade
das duas sentenças da conclusão como um requisito para satisfazer a verdade da premissa – e,
podemos acrescentar, nem mesmo é possível satisfazer simultaneamente a verdade das duas
sentenças da concluo. Outra coisa a ser notada é que o podemos simplesmente satisfazer
arbitrariamente a verdade de uma das sentenças da disjunção Vo vai postar a carta ou
queimá-la’ e pensar que isso é uma condição suficiente para satisfazer a verdade premissa
‘Você vai postar a carta’. Aqui obviamente é preciso satisfazer a uma parte específica da
concluo, a saber, Você vai postar a carta’, para satisfazer a verdade da premissa. Assim, a
inferência (24) e também a (25) não são nem de tipo necessário nem de tipo suficiente. Isso
poderia ser usado para objetar que a distinção hareana é problemática e incapaz de classificar
satisfatoriamente os diferentes tipos de inferências, sendo que o melhor é abandoná-la.
A meu ver, como resposta a essa objeção, pode ser dito que a distinção feita por Hare
não tem a pretensão de ser exaustiva, e sua virtude residiria no fato de que ela é capaz de dar
conta de um vasto território tanto no campo teórico quanto no campo prático. Dessa forma,
como disse anteriormente, a melhor solução seria ampliar a distinção e não simplesmente
jogá-la fora.
O fato é que a distinção entre condições logicamente necessárias e logicamente
suficientes e entre inferências de tipo necessário e de tipo suficiente nos ajuda a descobrir o
que temos que fazer para emitir e obedecer a comandos de maneira consistente, e o que temos
que fazer para construir e conectar proposições de maneira o-contraditória. Além disso, o
fato da distinção poder ser aplicada tanto no campo teórico quanto no campo prático ajuda a
103
mostrar que é plausível defender a tese de que a lógica de imperativos é semelhante à lógica
de indicativos ou de proposições.
4.3. Uma análise das sentenças indicativas e imperativas em seus componentes
subatômicos.
No segundo capítulo da presente dissertação, expliquei que Hare faz um estudo lógico-
sentico a respeito das sentenças indicativas e imperativas. A importância desse estudo,
como vimos, reside no fato de que ele auxilia na tarefa de sistematizar e avaliar a coerência
tanto do discurso teórico quanto do discurso prático (especialmente o discurso da Moral). Para
realizar o estudo em questão, uma das coisas que Hare fez foi elaborar a distinção entre
frástica e ustica. A distinção entre frástica e nêustica recebeu algumas críticas. Por
exemplo, alguns
73
alegaram que Hare usava o termo nêustica de uma maneira ambígua, pois
ela tinha duas funções (indicar o modo e indicar o comprometimento com a mensagem da
sentença); e essa ambigüidade fazia com que em alguns contextos não ficasse claro se o
falante estava usando seriamente ou apenas mencionando uma sentença. Com o objetivo de
tornar esse estudo das sentenças mais adequado e completo, Hare ampliou sua distinção
original. Nessa seção, reconstruirei a nova distinção que Hare apresenta em seu artigo Some
Sub-Atomic Particles of Logic, de 1989, a saber: entre o sinal de modo, o sinal de subscrição e
o sinal de completude.
4.3.1. O sinal de modo ou trópico.
Para apresentar a nova análise que Hare faz acerca das sentenças indicativas e
imperativas, começarei com os seguintes exemplos:
(26) Você vai fechar a porta.
(27) Feche a porta.
Essas sentenças têm significados diferentes, pois a sentença (26) diz que um certo
estado de coisas (Você fechar a porta) será o caso, e a sentença (27) diz que um certo estado
73
Hare não os nomina.
104
de coisas (Você fechar a porta) é para ser tornado o caso. Isso significa que a sentença (26) é
uma indicativa e a sentença (27) é uma imperativa. A pergunta que surge é como
identificamos as diferenças de significado entre essas duas sentenças. A resposta de Hare
(1989, p. 23) é que a diferença de significado é dada pelos modos em que os verbos das
sentenças estão. Na sentença (26), aparece o verbo ‘vai’ que está no modo indicativo e
determina a natureza lógico-semântica da sentença, a saber: que ela é uma indicativa que
expressa proposições e é portadora de valor-de-verdade. Já na sentença (27), o verbo fechar’
es no modo imperativo e isso faz com que a sentença seja uma imperativa a qual não
expressa proposições e não é portadora de valor-de-verdade
74
.
Na seqüência, Hare afirma que esse elemento de significado que fornece o modo da
sentença e que serve para identificar a natureza lógico-semântica da mesma será denominado
de sinal de modo ou ‘trópico(palavra do grego para o modo gramatical). Hare (1989, p. 24)
ainda fornece mais dois exemplos da utilidade do sinal de modo. Em primeiro lugar, ele
explica que o sinal de modo é necessário para identificarmos se há uma contradição ou
inconsisncia entre diferentes sentenças. Por exemplo, com base no sinal de modo e no
princípio de o-contradição, sabemos que as sentenças Vovai’ e Você não vai’ (ambas
indicativas) são contraditórias. E algo semelhante pode ser sustentado com respeito às
sentenças ‘Vá’ e ‘Não vá’ (ambas imperativas) as quais são inconsistentes e em algum
sentido contraditórias. entre as sentenças Vá’ e Você não vai’ (uma imperativa e uma
indicativa) não há essa contradição ou inconsistência, ao menos não do mesmo tipo que nas
anteriores.
Em segundo lugar, Hare (1989, p. 24) explica que o sinal de modo é necessário
quando vamos avaliar se uma inferência é válida ou inválida. Por exemplo, tendo em vista as
barreiras inferenciais entre ‘Ser’ e ‘Dever-Ser’ e conhecendo o modo de uma sentença,
teremos subdios para descobrir que a infencia de ‘Você está buscando cinco maças para
mim para Você está buscando ao menos quatro maças para mim’ élida; mas que a
inferência de Busque cinco maças para mim’ para ‘Você está buscando ao menos quatro
maças para mim’ é inválida.
4.3.2. O sinal de subscrição ou nêustica.
74
Reveja a breve discussão a respeito da distinção entre a forma e a função de uma sentença (conferir a nota 15
que aparece na subseção 2.2.2 do segundo capítulo da presente dissertação).
105
Para apresentar a discussão de Hare a respeito do sinal de subscrição, examinarei os
seguintes exemplos:
(28) ‘Lave o carro e limpe a garagem’
75
.
(29) Lave o carro e limpe a garagem.
(30) ‘Você vai lavar o carro e limpar a garagem’.
(31) Você vai lavar o carro e limpar a garagem.
Qual é a diferença entre as sentenças (28) e (29), e entre as sentenças (30) e (31)? A
primeira diferença visível é que as sentenças (28) e (30) estão marcadas com o sinal de aspas,
já as outras não. O uso das aspas na linguagem ordinária e também em livros pode estar
servindo para ao menos três propósitos distintos: 1) citar a fala de alguém e posteriormente
argumentar que você concorda ou aprova o que é dito; 2) citar a fala de alguém e
posteriormente argumentar que você discorda ou desaprova o que é dito; 3) para transmitir
uma mensagem que é diferente do significado literal da sentença proferida ou escrita.
Hare está consciente dos usos diferentes e até opostos que as pessoas fazem do sinal
de aspas, e o que ele quer é encontrar um artifício que sirva de base para identificar se as
pessoas estão ouo se comprometendo com o que é dito ou escrito. Ele explica (1989, p. 25-
31) que, por exemplo, assinaturas em cheques e juramentos em um tribunal ou numa
cerimônia de casamento estariam indicando que o proferinte se compromete com a mensagem
veiculada pelas sentenças ali proferidas ou escritas. E numa peça de teatro, por exemplo, o
fato dos atores estarem no palco ou protegidos pela parábase (como nas comédias gregas)
seria um indicativo de que eles não se comprometem com a mensagem das sentenças
proferidas.
O problema é que, como o próprio Hare reconhece, em algumas situações é difícil de
saber se o proferinte está ou não se comprometendo com a mensagem das sentenças. Por
exemplo, poderia pegar fogo em uma parte do palco, os atores mandarem o público sair e as
pessoas pensarem que aquilo era uma parte bastante realista da encenação. Outro exemplo
seria o de uma pessoa que jura falar a verdade no tribunal, diz que viu o acusado matando o
policial e depois diz que estava brincando, que estava apenas considerando a idéia, ou que se
75
Hare trata (28) a (31) indistintamente como sentenças. A rigor, (28) e (30) não são sentenças, mas nomes para
sentenças. Na continuidade adotarei a solução de Hare, porque ela não compromete o entendimento do ponto sob
discussão.
106
enganou, etc. Tendo em mente esse tipo de situações, Hare propõe que seria adequado
elaborar um artifício lógico que servisse para indicar que o proferinte se compromete
(concorda ou aprova) com a mensagem veiculada por uma sentença. Esse artifício é
denominado de sinal de subscrição ou ‘nêustica’(palavra do grego que significa ‘consentir
inclinando a cabeça’)
76
.
Na concepção de Hare (1989, p. 27), seria possível adotar uma norma ou convenção
que exigisse a colocação do sinal de subscrição diante de todas as sentenças que aprovamos
ou com as quais concordamos. Se essa norma vigorasse, a ausência do sinal de subscrição
estaria indicando que o proferinte não se compromete com a mensagem veiculada pela
sentença. O problema é que alguém poderia se aproveitar que essa norma existe e usar o sinal
de subscrição diante de sentenças com as quais não concorda ou que não aprova, a saber: para
pregar mentiras, para obter vantagens por meios ilícitos e até para fazer críticas de uma
maneira velada, por meio de ironias. Como uma maneira de resolver esse problema, Hare
(1989, p. 29-30) convenciona que existem ao menos dois tipos de uso da linguagem: o uso
subscritivo, o qual é sério e compromete o proferinte com aquilo que é dito ou escrito; e o uso
não-subscritivo, o qual não é sério e o compromete o proferinte com aquilo que é dito ou
escrito. Além disso, ele convenciona que o uso não-subscritivo se divide em mimético e
imersivo. O uso mimético é aquele que é feito em encenações no teatro, novelas, e em obras
literárias de ficção, por exemplo; e o uso imersivo é aquele que ocorre, por exemplo, quando
estamos apresentando o pensamento de um fisofo ou a teoria de um cientista e não
assumimos diante do público ouvinte se concordamos ou não com aquilo que é dito.
A pergunta que surge é a seguinte: qual seria o símbolo que usaríamos como um sinal
de subscrição? Para Hare, não uma resposta unívoca para tal questão. Ele defende que
diferentes símbolos para o sinal de subscrição. Por exemplo, assinaturas em cheques indicam
subscrição e permitem que os bancos descontem da conta o valor ali descrito; na área jurídica,
o sinal de subscrição corresponde à frase ‘Prometo que falarei a verdade e somente a
verdade’; no campo da lógica, a subscrição poderia ser indicada pela ausência das aspas
76
Frege, por exemplo, usava de um recurso semelhante, o sinal de asserção (a barra vertical
’), para indicar
que alguém se comprometia com a mensagem veiculada por uma sentença indicativa. Aparentemente, Hare
associa, a exemplo de Frege, a desaprovação com a aprovação da negação da mensagem original, mas isso não
está explicitamente expresso no texto. Em sua obra A Linguagem da Moral, Hare (1952, p. 23) faz um uso da
negação na nêustica o qual corresponde a um uso distinto do fornecido por Frege. Hare usa a negação na
ustica para traduzir sentenças modais contendo a palavra ‘poder’. Por exemplo, ele diz que a sentença ‘Vo
pode fechar a porta’ poderia ser rescrita como ‘Não digo a você que não feche a porta’ a qual poderia ser
traduzida assim: ‘Você não fechar a porta no futuro imediato, não-por favor’. Analogamente, a sentença ‘Pode
ser que você fechar a porta’ poderia ser reescrita como ‘Não digo que você não vai fechar a porta’ a qual
poderia ser traduzida assim: ‘Vo não fechar a porta no futuro imediato, não-sim’.
107
(vírgula invertida) ou pela colocação da barra vertical (‘
). Se no campo da lógica vigorasse
a convenção de que somente sentenças o marcadas por aspas estavam sendo subscritas
(aprovadas, recebendo concordância), então somente as sentenças (29) e (31), que apareceram
no início dessa subseção, estariam sendo subscritas, a (28) e a (30)o.
4.3.3. O sinal de completude ou clístico.
Com o objetivo de apresentar a discussão de Hare a respeito do sinal de completude,
usarei como exemplo as seguintes sentenças:
(32) Ele pegou a bola. Ele não a tem, ele perdeu a bola.
(33) Ele pegou a bola e ele não pegou a bola.
(34) Estamos agora na China se dois mais dois são cinco.
É preciso notar que nas três sentenças acima aparece o ponto final. Na linguagem
ordinária o ponto final serve, entre outras coisas, para fechar ou mostrar os limites de uma
sentença. De acordo com a proposta de Hare (1989, p. 32), temos que ter um sinal lógico que
sirva para realizar essa função que é realizada pelo ponto final na linguagem ordinária. Hare
chama esse sinal lógico de sinal de completude ou ‘clístico’ (palavra do grego para ‘fechar’).
Para explicar a importância do sinal de completude para a lógica, podemos imaginar
três situações diferentes nas quais o ponto final estará realizando a função do clístico. Na
primeira situação, imaginemos que estamos escutando um comentarista de rádio narrando
uma partida de futebol. Digamos que ele profere a sentença (32) ‘Ele pegou a bola. Ele o a
tem, ele perdeu a bola’. Na concepção de Hare (1989, p. 33), ninguém acha que o
comentarista fez quaisquer afirmações contradirias, ainda que ele tenha corrigido a
afirmação anterior ao proferir uma outra afirmação que é inconsistente com aquela. O que
ocorre aqui é que o ponto final entre as duas sentenças está funcionando como um sinal de
fechamento que separa dois pensamentos que se referem a dois momentos diferentes. É como
se o comentarista proferisse a sentença ‘Ele pegou a bola no tempo t
1
e ele não pegou a bola
no tempo t
2
’, a qual não é uma sentença falsa por razões lógicas.
Na segunda situação, imaginemos que o comentarista profere a sentença (33) ‘Ele
pegou a bola e ele não pegou a bola’. Hare (1989, p. 33) explica que aqui o comentarista se
contradiz no sentido forte em que somente proferimentos de sentenças auto-contraditórias
108
podem fazê-lo. A ausência do ponto final entre as duas sentenças e o uso do conetivo e’
passa a idéia de que o comentarista está afirmando dois pensamentos contraditórios entre si a
respeito do mesmo evento.
Na terceira situação, imaginemos que alguém está proferindo uma palestra a respeito
de como a lógica trata sentenças condicionais. Digamos que o palestrante profere a sentença
(34) ‘Estamos agora na China se dois mais dois o cinco’. Essa sentença é considerada
verdadeira pelos lógicos que aceitam a regra segundo a qual toda sentença com um
condicional falso é vacuamente verdadeira. Agora, existem duas maneiras pelas quais
poderíamos tornar essa sentença falsa. Uma delas seria a seguinte: digamos que o palestrante
estivesse no Brasil e escondesse com o bro a parte da sentença ‘se dois mais dois são
cinco’, então a sentença restante ‘Estamos agora na China’ seria falsa. Outra maneira de
tornar essa sentença falsa, seria colocando um ponto final depois de ‘Estamos agora na
China’.
77
Portanto, essas três situações mostram a utilidade lógica do sinal de completude.
Na parte final de seu artigo, Hare (1989, p. 34) afirma que o sinal de modo, o sinal de
subscrição e o sinal de completude são partículas subatômicas da lógica e que seu palpite é de
que, tal como suas correspondentes em Física, essas partículas são mais numerosas e variadas
do que alguém poderia pensar. Assim, ele não afirma ter fornecido uma lista completa e
admite que sua distinção pode não ser exaustiva.
Para finalizar essa seção e esse capítulo como um todo, quero apresentar uma
classificação feita por Alchourrón & Bulygin – a qual mostra a atualidade do temas discutidos
por Hare e Kelsen. Para Alchourrón & Bulygin (2002, p. 38-39), duas concepções que
podem ser adotadas com relação às normas: a concepção hilética e a concepção expressiva. A
concepção hilética defende que há normas-sentido, ou seja, ela defende que um tipo de
proposição que tem o de sentido de uma prescrição, de uma exigência. Os adeptos dessa
concepção afirmam que o especificamente normativo se ao nível semântico, isto é,
proposições nas quais o aspecto normativo está inserido no conteúdo conceitual. Para essa
concepção, é possível fazer tanto uma aplicação direta quanto uma aplicação indireta da
Lógica ao campo das prescrições. Essa concepção é adotada por lógicos que se ocupam da
Lógica das normas ou Lógica deôntica, e é a posição dominante entre aqueles lógicos que
trabalham com modelos semânticos na linha de Kripke, Hinttika e Kanger. a concepção
expressiva defende que não normas-sentido, ou seja, não há proposições com sentido
77
Uma análise semelhante poderia ser feita a respeito da sentea ‘Dois mais dois são cinco se e somente se
estamos agora na China’ – a qual contém uma bicondicional lógica.
109
normativo, prescritivo. Os adeptos dessa concepção afirmam que a característica específica do
normativo está no uso prescritivo da linguagem. Eles defendem que é no vel pragmático,
no nível do que o sujeito falante faz mediante a linguagem, onde surge a diferença entre as
funções descritiva (indicativa), prescritiva, emotiva, etc. Isso significa que a mesma oração ou
uma oração sinônima podem ser usadas em ocasiões diferentes para fazer coisas distintas,
como, por exemplo, asserir, prescrever, perguntar, etc. Para essa concepção, é possível fazer
apenas uma aplicação indireta da Lógica às prescrições. Essa concepção é adotada por
filósofos do Direito que defendem a teoria imperativista das normas, tais como: Bentham,
Austin, Alf Ross para os quais há normas imperativas (ordens e proibições) e,
consequentemente, não normas permissivas.
No que diz respeito à aplicação da Lógica ao campo das prescrições, podemos
enquadrar Hare como um adepto da concepção hilética e Kelsen como um adepto da
concepção expressiva. No entanto, a terminologia de Hare é um pouco diferente da
terminologia dos adeptos da concepção hilética, pois ele não fala de normas-sentido como
proposições com sentido prescritivo, mas sim de imperativos. Já Kelsen, ao menos em sua
obra Teoria Geral das Normas, admite normas permissivas, algo que não é feito pelos adeptos
da concepção expressiva. Assim, é possível questionar até que ponto a classificação de
Alchourrón & Bulygin é uma boa descrição do que ocorre no campo de estudos sobre o
discurso prescritivo. No entanto, ainda que a classificação seja problemática, ela mostra que
os temas estudados por Hare e por Kelsen continuam atuais e têm importância para a o campo
Moral, do Direito e também para as nossas práticas cotidianas.
Por último, como um ponto para discussão e uma maneira de provocar um pequeno
debate entre os lógicos, quero sugerir uma maneira de formalizar as sentenças (26) e (27), que
apareceram acima, usando de alguns recursos simples de simbolização:
(26) Você vai fechar a porta.
(27) Feche a porta.
A sentença (26) pode ser traduzida e formalizada assim:
(26.1) Você fechar a porta, sim.
(26.2)
p
110
Onde a barra vertical
é um símbolo para o sinal de subscrição ou nêustica, p é uma
expressão para a frástica (‘Vo fechar a porta’), o delta é um símbolo para o modo
indicativo (‘sim’) e a caretinha’é um símbolo para o sinal de completude ou clístico.
Já a sentença (27) pode ser traduzida e formalizada assim:
(27.1) Você fechar a porta, por favor.
(27.2)
p !
Onde a barra vertical
é um símbolo para o sinal de subscrição ou nêustica, p é uma
expressão para a frástica (‘Você fechar a porta’), a exclamação ‘!é um símbolo para o modo
imperativo (‘por favor’) e a caretinha ’é um símbolo para o sinal de completude ou
clístico.
111
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após ler essa dissertação e refletir um pouco a respeito dos capítulos dedicados a R.
Hare e a H. Kelsen, é possível levantar a seguinte questão: Afinal de contas, é ou não é
possível aplicar a gica ao campo das prescrições? Uma maneira de começar a responder
essa questão é fazendo outra pergunta mais específica, a saber: Estamos perguntando se é
possível aplicar a Lógica diretamente às normas (aos imperativos), ou estamos perguntando se
é possível fazer uma aplicação indireta da Lógica às normas (aos imperativos)?
No segundo capítulo, vimos que para Hare é possível aplicar a Lógica diretamente
aos imperativos que aparecem no campo da Moral e em certos raciocínios do nosso cotidiano.
Para defender essa tese, ele centrou sua argumentação em duas linhas principais. Em primeiro
lugar, Hare mostrou que as sentenças indicativas e imperativas têm um elemento de
significado em comum, a saber: a frástica’. O fato da ‘frástica’ ser comum a indicativos e
imperativos serviu de base para questionar o critério ‘verificacionista’ do significado, segundo
o qual somente as sentenças que expressam proposições (as sentenças indicativas, assertivas)
o dignas da atenção dos gicos. Em segundo lugar, ele defendeu que as principais
operações lógicas, tal como a negação, a conjunção, a disjunção, a quantificação e a
implicação, ocorrem nas frásticas das sentenças. Assim, com base no argumento de que as
principais operações lógicas estão nas frásticas das sentenças e tendo em mente que a frástica
é comum a indicativos e imperativos, Hare concluiu que é possível fazer uma aplicação direta
da Lógica tanto as sentenças indicativas quanto as sentenças imperativas. Ele ressaltou,
porém, que para aplicar a Lógica aos imperativos é necessário fazer duas coisas: 1) traduzir
essas sentenças para uma linguagem formalmente adequada, e 2) quando construirmos
inferências com imperativos temos que ser cuidadosos e respeitar, assim como no caso das
inferências com indicativos, as regras que regulamentam as barreiras inferênciais entre o
‘Reino do Ser’ e o ‘Reino do Dever-Ser’. Isso significa que precisamos estar atentos para o
modo das sentenças, o qual é dado pela ‘nêustica’ ou ‘trópico’.
No quarto catulo, vimos que Hare utilizou três distinções: 1) a distinção entre
implicação lógica e implicatura conversacional, a qual foi usada para rebater as críticas que
B. Williams fez a tese de que inferências imperativas; 2) a distinção entre inferências de
‘tipo necessário’ e de ‘tipo suficiente’, a qual foi usada para defender que a Lógica de
imperativos é semelhante a gica de indicativos ou de proposições; 3) a distinção entre o
sinal de modo (‘trópico’), o sinal de subscrição (‘nêustica’) e o sinal de completude (‘clístico),
112
a qual foi usada para escapar das objeções feitas a distinção entre ‘frásticae ‘nêustica’ e para
mostrar que as análises que muitos lógicos e lingüistas fazem a respeito de sentenças
indicativas e imperativas geralmente são pouco detalhadas.
Ora, a primeira resposta que poderia ser dada para a questão acima é que, para Hare, é
possível aplicar a Lógica diretamente aos imperativos que comparecem em certos raciocínios
no campo da Moral e em certos raciocínios que construímos em nossas práticas cotidianas.
Além disso, seria possível mostrar que Hare também faz uma aplicação indireta da Lógica aos
imperativos, a saber: aplicando a Lógica às sentenças sobre o cumprimento de imperativos.
Ele explica, por exemplo, que necessariamente se é verdade que o imperativoFeche a porta e
abra a janela é cumprido, então é verdade que o imperativo ‘Feche a porta’ é cumprido. No
entanto, isso é um tema para futuros trabalhos.
Cabe dizer qual seria, então, a resposta de Kelsen para a questão formulada acima. No
terceiro capítulo, vimos que Kelsen é adepto da tese usualmente aceita de que os prinpios
da gica se aplicam somente as sentenças que expressam proposições (que são as sentenças
indicativas, assertivas, os enunciados). Com base nessa tese e com apoio na distinção entre
norma como o sentido de um ato de vontade e enunciado como o sentido de um ato de
pensamento, ele argumentou que o é possível fazer uma aplicação direta da Lógica ao
campo das prescrições. No entanto, Kelsen aceita e mostra que podemos fazer uma aplicação
indireta da gica ao campo das prescrições, a saber: para fundamentar uma norma válida
com base na validade de outra norma. Isso ocorre, por exemplo, quando mostramos que o
sentido de uma norma individual corresponde ao sentido de uma norma geral.
Uma conclusão a que se pode chegar é que tanto Hare quanto Kelsen aceitam que é
possível fazer uma aplicação indireta da gica ao campo das prescrições, ou seja, aplicando
os princípios e as regras lógicas àquelas sentenças sobre o cumprimento de imperativos
(normas) ou àquelas senteas que estabelecem uma correspondência entre o sentido de duas
normas. Quanto a pergunta pela aplicação direta da Lógica ao campo das prescrições, temos
duas respostas: a resposta de Hare é positiva; a resposta de Kelsen é negativa. Minha
tendência é achar que Kelsen tem razão em negar que a Lógica possa ser aplicada diretamente
àquelas normas que aparecem no campo do Direito. Se aceitarmos suas teses de que, com
exceção da norma fundamental, todas as outras normas precisam ser postas por um ato de
vontade autorizado e que um ato de vontade não resulta de outro por uma implicação lógica,
então a criação de uma norma nunca é o resultado da mera aplicação mecânica de uma
operação lógica. No entanto, a resposta de Kelsen me parece menos apropriada quando
113
estamos tentando descrever o que ocorre no campo da Moral e das nossas práticas cotidianas.
Enquanto no campo do Direito é necessário um ato de vontade real para a criação da norma
geral e outro ato de vontade real para a criação da norma individual, no campo da Moral e das
nossas práticas cotidianas não parece ser isso o que ocorre. Por exemplo, se o pai ensina para
o filho um preceito moral geral do tipo ‘Mantenha todas as suas promessas’ e o menino faz
uma promessa, não é necessário que o pai diga Mantenha essa promessa sua’ para que essa
norma individual exista ou passe a valer. O que mais bem parece ocorrer é que, uma vez que o
menino acata a norma geral e faz uma promessa, então logicamente a norma individual se
impõe tenha ou não o pai do menino realizado um ato de vontade pelo qual a norma
individual é criada.
Pode-se dizer que no campo do Direito o ato de vontade é sempre necessário para a
criação de uma norma, deixando de lado o caso da norma fundamental. no campo da
Moral, parece que esse ato de vontade é dispensável em certas situações e pode ser substituído
por uma operação lógica. Se isso for verdade, poderíamos argumentar que uma das
características que o agente moral racional livre e responsável deve ter é saber quais são os
imperativos (ou normas) que ele deve obedecer para ser fiel àquelas normas gerais que ele
aprovou. Em outras palavras, esse agente moral deveria saber aplicar corretamente a Lógica
quando estivesse construindo raciocínios com imperativos e tivesse a pretensão de usar tais
raciocínios como guias para as suas ações.
Em conversas que tive com meu orientador, ele objetou que o ato de vontade que e
a norma moral individual não precisaria ser real/efetivo como no caso do Direito. O ato de
vontade que põe a norma individual no campo da Moral poderia ser de tipo fictício e, de
alguma forma, estar presente no ato de vontade que criou a norma geral. Minha contra
resposta é que isso corrobora minha suspeita de que em certas situações não precisamos de
atos de vontade reais para criar normas no campo da Moral. E nessas situações, em vez de
apelarmos para atos de vontade fictícios, devemos usar dos recursos da Lógica. É claro que
aqui estou falando da Lógica em um sentido mais amplo que o usual, levando em conta as
modificações que Hare apontou como sendo necessárias: tal como a ampliação da definição
de argumento válido, o uso de regras inferências menos restritas, que permitam inferir com
imperativos, etc.
Uma resposta melhor elaborada para a questão sobre quem teria razão no debate sobre
a aplicabilidade da Lógica ao campo das prescrições requer maior reflexão. O que posso
114
dizer, por ora, é que podemos aprender uma lição valiosa tanto com a proposta de Hare
quanto com a proposta de Kelsen.
Para finalizar, quero mencionar alguns problemas que poderiam ser objeto de estudos
futuros. Um desses problemas é o seguinte: o método de análise desenvolvido por Hare pode
ser aplicado no estudo das normas do Direito? No segundo capítulo, defendi, sem maior
argumentação, que isso seria possível. No entanto, essa resposta positiva precisaria ser melhor
fundamentada e teria que passar pelo julgamento de estudiosos competentes na área. Vale
lembrar que a proposta de Kelsen aplica-se indistintamente à Moral e ao Direito, enquanto
que a proposta de Hare aplica-se, primariamente, à Moral, ficando em aberto a possibilidade
de sua aplicação ao Direito. Essa diferença entre Hare e Kelsen coloca em relevo a questão
mais geral da homogeneidade do discurso prescritivo em suas diferentes áreas de aplicação
quanto à utilização da Lógica. Um segundo problema a ser estudado poderia ser este: como
aplicamos o método de análise de Hare ao estudo dos juízos de valor? Seria proveitoso
estudar se raciocínios com juízos de valor são ou não de tipo inferencial. Por exemplo, o
raciocínio que vai deSe você é uma pessoa boa, então não minta’ eVocê é uma pessoa boa
para ‘Não minta’ é uma inferência? Se for uma inferência, ela é válida? Vale lembrar que, em
The Language of Morals, R. M. Hare separa a discussão sobre os juízos de valor da discussão
sobre os imperativos. Outra questão a ser estudada poderia ser a seguinte: o método de análise
elaborado por Hare é útil no estudo daqueles raciocínios práticos que elaboramos em nosso
cotidiano e nos quais usamos sentenças ‘mistas’? – desde que, é claro, admitamos a existência
de sentenças ‘mistas’. Por exemplo, o raciocínio que vai de ‘Se chover, recolha a roupa e
feche a casa’ e Está chovendo para ‘Recolha a roupa e feche a casa’ é de tipo inferencial?
Se for uma inferência, como avaliamos sua validade? E qual seria a resposta que um defensor
de Kelsen daria para os problemas levantados por essas queses? Enfim, problemas para
serem investigados não faltam.
115
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Novo Michaelis, Dicionário Ilustrado. Inglês-Português. São Paulo: Edões
Melhoramentos, 3ª edição.
MARQUES, A. & DRAPER, D. Dicionário Inglês-Português, Português-Inglês. São
Paulo: Editora Ática, 17ª edição, 1997.
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