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Vera Lúcia de Oliveira.
“O Corpo da TV”: Imagens entre os Guarani Mbyá (Rio de
Janeiro).
IFCS/PPGSA
2009
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Vera Lúcia de Oliveira.
“O Corpo da TV”: Imagens entre os Guarani Mbyá (Rio de
Janeiro).
Tese de Doutorado apresentada ao programa de
Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, do
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio de Janeiro para a
obtenção do grau em Doutora em Ciências
Humanas (Concentração em Antropologia
Cultural).
Orientador
Prof. Dr. Marco Antônio Gonçalves
Rio de Janeiro
2009.
ii
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Vera Lúcia de Oliveira.
“O Corpo da TV”: Imagens entre os Guarani Mbyá (Rio de
Janeiro).
Tese submetida ao corpo docente da Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do grau de Doutor em Ciências Humanas (Concentração em Antropologia
Cultural).
Aprovada por:
Prof. Marco Antonio Gonçalves – Orientador
Doutor
Prof. Elsje Maria Lagrou
Doutora
Prof. Elizabeth Pissolato
Doutora
Prof. Beatriz Herédia
Doutora
Prof. Scott Head
Doutor
Rio de Janeiro
2009.
iii
Ficha Catalográfica.
Oliveira, Vera Lúcia de.
O Corpo da TV: Imagens entre os Guarani Mbyá.
Vera Lúcia de Oliveira. Rio de Janeiro:
UFRJ/PPGSA. 2009, xv, 243 p.il.
Tese Universidade Federal do Rio de Janeiro,
PPGSA.
1. Índios Mbyá Guarani: cosmologia, agência,
televisão, imagens, real e imaginário, cotidiano,
relações de consumo, tecnologia em terra
indígena. 2. Etnografia.
iv
Aos meus pais cuja busca pelo estudo transmitiu aos filhos a importância do
conhecimento.
v
“Para falar a verdade, não se pode pensar num conteúdo sem sua forma. Só a
intuição toca na verdade sem precisar nem de conteúdo nem de forma” (Forma e
Conteúdo: Clarice Lispector).
vi
Agradecimentos.
Aos Mb da Aldeia Sapukaia no Rio de Janeiro pela amizade, por me receber em
suas vidas e me auxiliar com as informações, explicações e conhecimento de vossa cultura.
O acolhimento de Seu João e toda sua família, em especial o de Jandira, Lina, Alexandre e
sua esposa, as crianças, ao Mauricio, Adílio e sua esposa, Ernesto e família, Algemiro,
Alessandro, Valdir, entre outros. Através deles pude penetrar no mundo imagético Mbyá.
Sou-lhes eternamente grata.
Aos Mbyá da Aldeia Boa Vista em Ubatuba e da Aldeia Araponga em Paraty, Rio
de Janeiro pela acolhida e pelo carinho.
Ao Programa de Pos-Graduação em Sociologia e Antropologia por me possibilitar a
formação num ambiente rico academicamente. As Secretarias do PPGSA Denise e Claudia,
e a todos os professores em especial: Beatriz Heredia, Yvonne Maggie, José Reginaldo
Santos Gonçalves, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti; Elsje Lagrou pelo carinho e
conhecimento transmitidos nas disciplinas sobre corporalidade.
Aos antropólogos com os quais dividi momentos especiais durante o trabalho de
campo com os Guarani: Rafael, Michele pelas conversas e apoio no momento certo, a
Eliana Granado pelo carinho e apoio, pela gentileza em ceder dados e informações
necessários a tese. A antropóloga Valéria Assis pelo apoio e amizade.
Ao Paulo Bahiense da Secretaria Estadual de Educação por toda a amizade, ajuda
‘filosófica’, e por ajudar na minha interação e participação na formação dos professores
Guarani. Sou-lhe grata pela amizade. Ao Cristino FUNAI pelo cuidado e apoio de
sempre, a Ir. Eunice pelo carinho.
vii
Ao Paulo Sess pelo carinho todo especial. Aos amigos Luciano, a Val e demais
amigos de trekking; a Joelma, e a turma do pela descontração. Aos amigos de trabalho
Carol, Sandra, Márcia, Amílcar, os que chegaram agora, Dani, Souza, Michele, entre outros
pelo carinho.
Ao meu orientador Marco Antonio Gonçalves pela paciência, compreensão,
incentivo e dedicação. Sou-lhe eternamente grata e as palavras são poucas para expressar
essa gratidão.
A minha família, em especial meus pais e irmãos. A ajuda da minha família foi
fundamental para a realização e concretização desta tese. A presença constante de minha
mãe Vera e dos meus irmãos Alder, Aldo foi imprescindível. Ao meu pai Airton, meus
irmãos André e Airton (Tinho) pela ajuda e palavras amigas, sou muito grata. As minhas
cunhadas Eveline e Elizângela pelo apoio e amizade. A tia Maria e Vânia por todo afeto e
apoio. Aos meus sobrinhos por existirem na minha vida, e aos demais, que quando comigo
me ajudaram de uma forma ou de outra.
viii
Resumo
Oliveira, Vera Lúcia. O Corpo da TV: Imagens entre os Guarani Mbyá (Rio de
Janeiro). Orientador: Marco Antônio Gonçalves. IFCS/PPGSA/UFRJ. Tese de Doutorado.
A televisão, assim como, outros aparelhos domésticos entraram na Aldeia Sapukaia
(Guarani Mbyá, Rio de Janeiro) após a inclusão da energia elétrica através do projeto Luz
para Todos do Governo Federal, cujo objetivo é ‘modernizar o campo e melhorar o estilo
de vida das pessoas’ dando-lhes oportunidades para adquirir eletrodomésticos e novos
projetos sociais. Os Guarani apoiaram o projeto pois desejavam os eletrodomésticos. Na
posse desses objetos os Guarani passam a conhecer mais o ‘mundo’ do jurua (não-índio),
assim como refletem sobre seu próprio mundo. Essas relações e percepções dos Guarani
sobre as novas tecnologias e em especial a televisão é objeto central de investigação desta
tese que pretende apresentar através de uma etnografia as ações e experiências vivenciadas
pelos Guarani diante das imagens proporcionadas pela inclusão do aparelho de TV no
cotidiano da aldeia. Portanto, essa relação com os objetos eletrônicos, eletrodomésticos, e a
percepção Guarani sobre estes objetos e como vivenciam estas práticas é o tema primordial
desta etnografia.
ix
Abstract
Oliveira, Vera Lúcia. The self of TV: Images abaut them Guarani Mbyá (Rio de
Janeiro). Orientador: Marco Antônio Gonçalves. IFCS/PPGSA/UFRJ. Tese de Doutorado
The television, as, other appliances got in Sapukaia village (Guarani Mbyá, Rio de
Janeiro) after the electric power was introduced by the Federal Government project called
Luz para todos” (light for all), which purpose is to update the field and make their lifestyle
better, giving them opportunities to achieve electrical appliances and new social projects.
The Guarani supported this project because they really wanted these appliances.
With them, the Guarani started to know the Juruá (no-indian) World better, and also
started to think about their own world.
The Guarani relationship as their perceptions about the new technologies, mainly
the television, is the central object of investigation of this thesis which intends to introduce
by an ethnography, the actions and experiences lived by the Guarani through the daily
projected images by a television set in their village. Therefore, this relationship among
electronics, appliances and the Guarani perception about them as how they have
experienced these practices is the primary topic of this ethnography.
x
Convenções.
Todas as palavras em Guarani encontram-se em itálico, exceto nomes dos
interlocutores Mbyá, etnônimos como Mbyá e Mbyá Guarani, assim como divindades.
Faço uso da escrita orientada pelos interlocutores, em alguns casos, da convenção
ortográfica instituída por Cadogan (1992). As palavras não possuem flexão em gênero ou
número. O termo opy acompanha a forma de pronuncia ‘nativa’, referida como a opy.
Todas as citações com conversas e depoimentos dos informantes encontram-se entre aspas.
Adoto os nomes pessoais conforme são utilizados no cotidiano, faço uso dos nomes
fictícios a pedido de interlocutores que permitiram apenas o uso dos nomes em guarani,
para identificar sete mbyá, quais são Vera, Karai, Para, Para’yre e Kuaray. Em
concordância com os interlocutores foram criados os nomes fictícios: Roberto, Marcelo,
Luis, Ana, Maria, Pedro e João.
As fotografias são todos de minha autoria e foram tiradas durante o trabalho de
campo.
xi
Siglas e Abreviaturas.
ANEEL – Agencia Nacional de Energia Elétrica.
CIMI – Conselho Indigenista Missionário.
CNU – Comissão Nacional de Universalização.
CGN – Comitê Gestor Nacional.
CGE – Comitê Gestor Estadual.
ELETROBRAS – Centrais Elétricas Brasileiras Sociedade Anônima.
ELETRONUCLEAR – Eletrobrás Termonuclear Sociedade Anônima.
FUNAI – Fundação Nacional do Índio.
FUNASA – Fundação Nacional de Saúde.
FURNAS – Centrais Elétricas Sociedade Anônima.
INSS – Instituto Nacional de Seguro Social.
LTP – Programa Luz para todos.
MME –.Ministério de Minas e Energia.
ONG – Organização não Governamental.
xii
Lista de fotografias.
Foto 1- Fios que levam eletricidade à aldeia. 41
Foto 2 – O trajeto para a aldeia sapukaia. (duas fotos). 47-48
Foto 3 – A padaria. 60-61
Foto 4 – Residências Guarani com antenas parabólicas. 66
Foto 5 – Sala de Informática – fechada. 73
Foto 6 – Sala de informática aberta: os computadores. 77
Foto 7 – Leandro, professor de informática. 78
Foto 8 – O celular de Alessandro. 85
Foto 9 – Televisão ligada durante à tarde. 96
Foto 10 – Kerethu assistindo o DVD. 98
Foto 11 – O roçado e seu pomar – joapyguá do Seu João. 113
Foto 12 – O joapyguá de Domingos visto da estrada. 118
Foto 13 – A tarde na Aldeia Sapukaia. 122
Foto 14 – O Espaço da televisão na casa de Jandira. 124
Foto 15 – Criança Mbyá. 159
xiii
Lista de Anexos.
Anexo I. Lista de Atores e respectivos personagens. 232
Anexo II. Mito dos Gêmeos Kuaray e Jachy. 236
Anexo III. História do Juruá – trechos. 240
Anexo IV. Glossário. 241
xiv
Sumário.
Introdução. 01
Os Guarani Mbyá. 07
O uso das tecnologias em populações indígenas. 12
Imagem e Televisão. 17
Aspectos Metodológicos. 34
1 - A Introdução da Luz Elétrica na Aldeia Sapukaia:
novas perspectivas. 40
1.1. O Projeto luz para todos e a introdução da eletricidade. 40
1.2. Os desejos e expectativas para com a eletricidade. 50
2. O Uso das tecnologias. 71
2.1. Os computadores. 71
2.2. Os celulares e DVDs. 81
2.3. O Impacto dos novos hábitos na Aldeia Sapukaia. 101
2.4 A Nova paisagem. 111
3. A Televisão no cotidiano Guarani Mbyá. 122
3.1. O contato com o aparelho de televisão e sua trajetória
no imaginário Guarani. 124
3.2. Assistindo televisão ou escutando música na aldeia:
os programas e gosto entre os Guarani. 136
4 – Desenho e Novela: associações míticas através
das imagens e narrativas televisivas. 174
4.1. O programa Pica-Pau. 175
4.2. Caminhos do Coração – Os Mutantes. 187
4.3. Em busca da tradição e da trajetória mítica: um olhar sobre a imagem. 196
V - Conclusão. 218
VI - Bibliografia. 222
Anexos. 232
xv
Introdução
Essa tese é uma etnografia sobre a televisão e o uso de outras tecnologias no dia a
dia Mb Guarani. A televisão terá ênfase maior nesta narrativa pois é um elemento novo
no cotidiano Guarani que foi recentemente apropriado pelas pessoas que habitam a aldeia.
O trabalho foi realizado na Aldeia Mbyá Guarani
1
Sapukaia no litoral sul do Rio de Janeiro,
Angra dos Reis. A Aldeia possui 380 residentes fixos, divididos em 80 núcleos familiares,
e 04 joapygua (terreno, espaço da família). Desse total de famílias, 66 possuem um
aparelho de televisão, e assistem diariamente aos diversos programas por ela exibidos.
A introdução da tecnologia e da eletricidade na aldeia nos possibilita observar a
reação dos Guarani e as várias interpretações, indagações, curiosidades, admiração, prazer,
medo e incompreensão, diante das imagens produzidas ou apresentadas (nos DVD) pela
TV. Esses sentimentos são produzidos por vários programas da TV, dentre os quais, as
novelas, minisséries, jornais e desenhos animados.
A televisão, assim como, outros aparelhos domésticos entraram na Aldeia Sapukaia
após a inclusão da energia elétrica através do projeto Luz para Todos do Governo Federal,
cujo objetivo é ‘modernizar o campo e melhorar o estilo de vida das pessoas’
2
dando-lhes
oportunidades para adquirir eletrodomésticos e novos projetos sociais. Os Guarani
apoiaram o projeto pois desejavam os eletrodomésticos. Na posse desses objetos os Guarani
passam a conhecer mais o ‘mundo’ do jurua (não-índio), assim como refletem sobre seu
próprio mundo. Essas relações e percepções dos Guarani sobre as novas tecnologias e em
1
Assim definida lingüisticamente e etnologicamente. Entretanto, durante meu trabalho de
campo fui questionada sobre essa divisão. O discurso usado pelas lideranças atualmente, é
que eles são Guarani, uma etnia Guarani. Nesta tese farei uso no decorrer da narrativa da
denominação geral, Guarani. Sobre os Mbyá Guarani ver segundo tópico desta introdução.
2
Idéia do Programa Luz para todos do Governo Federal que faz parte do Programa de
aceleração do Governo. Esse tema é descrito no primeiro capitulo da tese.
1
especial a televisão é objeto central de investigação desta tese que pretende apresentar
através de uma etnografia as ações e experiências vivenciadas pelos Guarani diante das
imagens proporcionadas pela inclusão do aparelho de TV no cotidiano da aldeia.
Com a introdução da luz elétrica os Guarani passam a adquirir televisão, geladeira e
DVD (os celulares também ganham destaque) e aprendem rapidamente a manuseá-los. A
televisão encantou os Guarani devido às imagens em ação como afirma Vera Mirim
3
:
“Os nossos sonhos são como a televisão, você assim, é
real. Nossa TV é o sonho nosso, no sonho tudo é real, tudo
acontece, você está lá, vivendo tudo”.
Essa relação com a tecnologia e arte ocidental propõem à estética Guarani uma nova
reflexão. Na cosmologia dos Mbyá Guarani a estética é voltada à produção corporal, que
em contrapartida produz bons sentimentos, dentre os quais alegria (vy’a) e força
(mbaraete). A tecnologia introduzida na aldeia possibilitou a comunicação, a descontração,
o prazer entre outros.
4
3
Essa comparação foi feita por Vera ao responder uma pergunta realizada por Maria
Dorothea Post Varela, antropóloga e pesquisadora do Museu Universitário da UFSC, após a
exposição do meu trabalho Aechara’u: vi em sonho. Mito e História Mb Guarani,
apresentado no GT Memória e Imaginário Guarani: mito, história e territorialidade na Aba-
Mercosul V RAM em 2003. Essa resposta suscita posteriormente muitas reflexões
tornando-se um marco para o inicio dessa pesquisa
4
Darei ênfase aos dados e interesses Guarani não querendo, portanto, produzir nenhum tipo
de julgamento sobre a TV e suas possíveis influencias em comportamentos ou processos
chamados ‘alienantes’. Assim, trabalho aqui com o que me foi possível observar e elucidar,
dando prioridade aos depoimentos Guarani.
2
A introdução da tecnologia na aldeia possibilitou um encontro entre a arte ocidental
e a ‘arte’ Mbyá Guarani. O cotidiano Mbyá tem em suas relações de convivialidade uma
forte ação estética. Para os Mbyá, a ‘produção artística’ é o próprio “fazer” no cotidiano.
Essa estética está presente nas danças (jeroky) e cantos (poraei - diálogos com o Deus
Ñanderu), na produção dos artefatos Guarani. Esse é um aspecto fascinante na cultura
Mbyá, pois esse ‘ser estético’ está implícito na cultura, é real e diário ao mesmo tempo que
aos olhos de um visitante, nada se do que se imagina partindo do pressuposto da
‘estética ocidental’, ou seja, impacto, vislumbre, entre outros. No entanto, os Guarani,
enfatizam sua produção corporal visando os sentimentos (vy’a e era’a: alegria e leveza para
combater o cansaço e a raiva), além da produção de artefatos.
Essa ‘produção artística’, é o próprio “fazer” Mbyá. Os Mbyá traduzem como ‘arte’
tudo o ‘que o homem faz’ (mba’evyky
5
= o que a gente faz). Esse “fazer” é eminentemente
social, a produção artística não é um atributo do sujeito, ou uma inspiração individual; o
mba’evyky é um “fazer” que produz relações consideradas tranqüilas entre os membros do
teko’a, estabelecendo uma boa relação entre o espaço do homem e o espaço da mulher.
A ‘arte’ Mbyá não está centrada no sujeito como na sociedade ocidental, mas no
outro, o que impõem uma reflexão sobre a condição da cognição. Para os Mbyá, a
‘produção artística’ é o próprio “fazer” no cotidiano, sendo eminentemente social, um
aprendizado e conhecimento dos Mbyá de sua realidade sócio-cósmica.
5
Assim explicado pelos interlocutores, dentre os quais o Professor Mbuá Guarani
Algemiro, entretanto o termo usado para designar feitiçaria.
3
Lagrou (1991, 1997, 2002, 2007) através de seus estudos sobre os Kaxinawa frisou
a amplitude da arte indígena que atua como uma forma especifica de linguagem ao dialogar
com a música, mito e vida cotidiana, atuando ativamente na construção do social.
Overing (1991) define a arte como uma produção estética, uma expressão do
conhecimento social para além da arte propriamente dita. Através das capacidades
criativas de produção relações são construídas e o conhecimento é transmitido. Desta
forma, a arte deixa de ser um atributo ‘criativo’, uma inspiração do indivíduo e passa a ser
social. É neste contexto, o da arte como produção, que reflito sobre a arte Mbyá Guarani.
Assim, arte expressa conhecimento e possibilita uma ação cotidiana entre os Mbyá cujo
‘olhar’ nos remete a arte como um “fazer cotidiano e constante”.
Esse ‘fazer estético’ Mbyá também expressa a percepção que têm sobre o que é
imagem, onde o que se vê e o ‘real’ se mescla com a invisibilidade (no caso a alma, o corpo
e a estrutura onírica Mbyá
6
) possuindo uma força própria. É o contexto estético que salienta
a importância de uma arte pautada em ações próprias e na imagem que se tem de si e do
mundo. Diante de uma cultura cujo ‘fazer’ estético cria e possibilita sua própria imagem,
qual o espaço, e como as novas tecnologias (celulares, computadores, DVD) e a televisão
atuaria nesse cotidiano? Como pensar e refleti-los no âmbito analítico da imagem? Como
seria esse encontro e quais as propensões ‘filosóficas’ seriam geradas a partir desse
encontro, onde a tecnologia passaria a viver no interior desse cotidiano esteticamente
composto? Quais os reflexos do uso da televisão na vida dos MbGuarani? Como eles se
apropriam desses objetos?
6
Ver o quarto capítulo da tese.
4
O “fazer Guarani” sempre atribuiu aos objetos uma capacidade agentiva
7
que
possibilita estabelecer uma relação social entre as pessoas e as coisas. Neste sentido, são
parte mesmo da pessoa como o petyngua (cachimbo Guarani usado nos rituais), que dialoga
através da fumaça com Ñanderu (Deus Guarani). Mas os corpos
8
mesmos podem ser
tomados enquanto um objeto agentivo ao performatizar os poraei (cantos), os jeroky
(danças), demonstrando uma capacidade de relacionar o visível com o invisível, o que pode
ser real e o que pode ser imaginado
9
.
7
O termo agência (agency) é utilizado no sentido de indicar a potencialidade de ação. A
capacidade agentiva pode estar em pessoas, coisas, objetos diversos (Overing & Rapport,
2000).
8
Seguimos, aqui, Gonçalves (2008:70) na definição de conhecimento ‘encorporado’
baseado em Taussig (1993:19): “Taussig propõe que o conhecimento é um conhecimento
corporal, sensorial: isto é, imita-se para compreender, mas compreender através dos
corpos” .
9
Ver a discussão proposta por Gonçalves(2008) sobre o estatuto do ‘real’ e do ‘imaginado’
a partir das imagens. Vejamos em suas palavras: “Neste sentido, é interessante pensar o
imaginário enquanto fazendo parte da ‘realidade’ ou pelo menos um discurso sobre a
realidade. Esta capacidade do imaginário em criar realidade pode ser evidenciada num
exemplo dado por Menezes (2005:100) extraído de Bazin (1985:66 apud Menezes,
2005:100,n.49) a partir das relações entre imagens, imaginação e realidade imagética: numa
enquête realizada após o filme O Bebê de Rosemary (Roman Polanski) muitos espectadores
declararam que viram na cena final uma criança recém-nascida, descrevendo as feições
monstruosas da filha do demônio. No filme, aparece o berço e o rosto das pessoas que
olhavam o berço mas jamais apareceu a imagem de um bebê. O que se passou com os
espectadores não foi propriamente ver algo que não existia, mas sim imaginar a imagem,
somente uma percepção artificial e rígida do que seria o real e o imaginário poderia por em
dúvida esta possibilidade de tomar o imaginário como real, ou como constitutivo da
experiência. A mesma problematização entre o imaginário e o real pode ser encontrada na
Antropologia. Goldman (2004:446-449), ao refletir sobre o fato de ter escutado tambores
no momento em que participava de uma oferenda de candomblé, quando realizava trabalho
de campo em Ilhéus, acentua a questão da imaginação e da experiência etnográfica como
produtoras de verdade. Ele pôde escutar tambores pois compartilhava a experiência da
crença. O mesmo se passou com Evans-Pritchard (1989:11) entre os Azande quando narra
sua visão da luz da bruxaria durante a noite quando estava sozinho atrás de sua cabana e
viu uma luz brilhosa andar na direção da cabana vizinha.”(Gonçalves, 2008: 119-120)
5
A função de agencia social atribuída aos objetos e artefatos é estudada por Gell
(1998) que trata esses elementos como pessoas pois os objetos possuem uma função para
além da estética no sentido estrito, devido seu uso, sua decoração e circulação.
De acordo com Lagrou, “A vida dos objetos deriva diretamente do universo
imaginativo que são capazes de invocar e condensar” (2007:50). A autora percebeu a
capacidade agentiva dos objetos através da exegese dos cantos. Para Lagrou,
“A lição metodológica tirada desta constatação é a que é
impossível isolar a forma do sentido e é impossível isolar
ação e sentido. O sentido muda conforme o contexto no qual
o objeto se insere” (idem: 50-51).
Essa percepção ativa dos objetos e a vida que estes possam adquirir é
interessante para refletir a relação dos Guarani com as novas tecnologias e a televisão. Os
Guarani atribuem à televisão um espaço na aldeia e uma relação que, analisada numa
perspectiva metafórica passa a ser ‘um corpo na aldeia’, tornando-se um objeto
eminentemente interativo. A televisão nesse sentido, sendo um ‘corpo’ é capaz de produzir
ações e reações através das imagens e dos sons que evoca e produz ao mesmo tempo um
imaginário sobre múltiplos mundos que se condensam no seu ‘corpo’
10
, nas suas imagens e
na sua fala. A etnografia que apresento procura perceber a relação dos Mb com as
imagens produzidas pela televisão na aldeia, ou seja, como vêem as imagens e os conteúdos
televisivos e quais as dimensões dessa relação no cotidiano da aldeia.
10
Nesta perspectiva, o titulo que a principio seria “Tecnologias em áreas indígenas:
consumo e imagens” passa a ser “O corpo da TV: imagens entre os Guarani Mbyá”.
6
Os Mbyá Guarani
Esta tese é fruto do trabalho de campo realizado com os Guarani da Aldeia Mbyá
11
Sapukaia, localizada em Bracuhy, Angra dos Reis, Rio de Janeiro
12
.
Os Guarani são oriundos do Paraguai, sua entrada ao Brasil ocorreu após a
conquista do Paraguai pelos espanhóis; em decorrência dos conflitos, esses grupos
buscaram novos espaços. Por volta de 1870 e 1862 esses grupos são mencionados na
Província de Missiones na Argentina, deste local, avançaram em direção ao Rio Grande do
Sul (RS), Santa Catarina (SC), Paraná (PR), Mato Grosso (MT), São Paulo (SP), Rio de
Janeiro (RJ) e Espírito Santo.
Lingüisticamente, os Guarani são divididos em três sub-grupos: Nandeva, Mbyá e
Kaiova. Cada grupo fala um dialeto derivado do Tupi-Guarani pertencente ao tronco
lingüístico Tupi (Schaden:1962).
A população Guarani é de aproximadamente 30.000 pessoas (no Brasil, Paraguai e
Argentina). Uma tese antiga estabelecia que os Tupi-Guarani formavam um povo, cuja
11
Os Guarani se reconhecem como tal por sua ascendência mbyá (tomói ancestral, avô
guarani), por possuírem uma língua própria e pelas relações de parentesco que possuem.
Ter parentes (ratarã) é fundamental na vida sociocosmica Guarani. Ser parente é fazer
parte de um dos kuery, termo usado no dia a dia para designar a unidade local do líder de
uma família. Kuéry estabelece o plural e designa uma totalidade: Vera Kuéry, significa o
grupo do Seu João. O termo pode ser usado no seguinte contexto: Cláudio ia fazer uma
visita à Aldeia Araponga, antes de partir, disse: Vou para Agostinho Kuéry - vou para o
grupo de Agostinho, cacique e xamã
daquela aldeia. O temo xamã ira designar todo curador
e ‘rezador’ Mbyá Guarani.
12
No decorrer do trabalho de campo tive contato com Guarani de outras aldeias, com os
quais pude realizar entrevistas e colher dados sobre o uso dos objetos tecnológicos.
7
localização era as margens do médio Paraná-Paraguai
13
, e que migraram posteriormente em
várias direções.
Os Mbyá são os que mais migram no país. Antes do contato com os não-índios,
ainda no Paraguai, os Mbyá circulavam em um território mais circunscrito e sua mobilidade
não era caracterizada por migração.
O histórico de migração Mbyá no país é recente
14
; os motivos que os levam a migrar
são vários, assim como as interpretações e estudos sobre as migrações Mbyá. Uma das
analises enfatizadas na literatura Guarani refere-se às migrações como uma busca pela
“terra sem males” (Yvy mara ey)
15
, uma busca chefiada pelo grande líder, que os leva a um
espaço além mar, um mundo ‘sobrenatural’ cuja paz e tranqüilidade ocorre pela ausência de
males (Clastres:1978; Clastres:1990-1990; Cadogan:1959; Nimuendaju:1987;
Schaden:1962).
Estes estudiosos desencadearam varias pesquisas e teses sobre os Guarani,
resultando numa extensa e rica etnologia Guarani onde se destaca as pesquisas de Meliá
(1976, 1981, 1987, 1997, entre outros) Ladeira (1992, 2001), Litaiff (1996, 1999), Garlet
(1997), Garlet e Assis, V.S. (1998), Post Darella (2004), Chamorro (1998), Pissolato
(2006,2007), Oliveira (2002) Montardo (2000), Ciccarone (2001), entre outros, cujos
trabalhos se mantém ativos, seja em defesa dos direitos Guarani via estudos de impacto
socioambiental e demarcação de terras, ou artigos e textos diversos, propiciando assim um
amplo e continuo debate sobre os Guarani.
13
Segundo Lugon (1968:22) “era de costume dizer que os Guarani ocupavam o Paraguai
porque a palavra Paraguai designava no século XVI toda a bacia dos três rios, que
convergem para o Prata, até os Andes, do Chile ao Peru, bastante para o interior da Bolívia,
do Brasil e do Uruguai, e mesmo dos Pampas do Sul de Buenos Aires”.
14
Os Mbyá convivem há bastante tempo com a sociedade envolvente (ver Schaden:1962)
ou seguimentos da mesma, como as Missões Jesuíticas.
15
Uma Terra sem Males, ‘um paraíso alem mar’.
8
A “terra sem males” nos estudos clássicos (Clastres:1978; Clastres:1990-1990;
Cadogan:1959; Nimuendaju:1987; Schaden:1962) foi analisada como a busca do universo
cosmológico, um espaço além mar, dissociado do cotidiano. Outra analise, surgiu com os
trabalhos de Garlet (1997), partindo de uma perspectiva histórica e não metafísica. Garlet
enquadrou os Mbyá Guarani numa realidade cultural especifica, apontando os rendimentos
que poderia ter a opção cotidiana.
A mobilidade Mbyá Guarani passa a ser uma busca por um espaço (teko) para se
viver bem, para se construir uma Aldeia boa (teko’a porá). Dessa forma, a migração aponta
a importância do espaço geográfico para se constituir enquanto grupo. Trabalhos recentes,
realizados nas Terras Indígena Guarani, apontam nessa direção. Segundo Ladeira e Tupã
“atualmente, um dos grandes motivos dos Guarani se locomoverem é a busca por lugares
com água boa (Yy porã) para viverem” (2004:58). João da Silva, Cacique da Aldeia
Sapukaia, em Bracuhy, enfatiza que o bom lugar para viver deve possuir: água, terra boa e
mata bem próximo.
Ladeira aprofunda a questão dos deslocamentos Guarani analisando o modo de
ocupação e uso ambiental do teko, cujo “modo de ser” compreende o entendimento das
relações humanas ou a “reciprocidade” (trocas recíprocas entre famílias Guaranis) assim
como o relacionamento dos humanos com o ambiente no “mover, cuidar do território”
(Ladeira, 2001:223).
Os Mbyá priorizam um espaço no qual a vida possa se fazer presente. Isso não
significa, que os reflexos de uma realidade histórica sejam desconsiderados, ao contrário,
pois os Mb projetaram miticamente, um território subtraído de seu domínio. Nesse
caso, de acordo com Garlet “há uma memória espacial que orienta e determina a
9
reterritorialização, ao mesmo tempo em que incorpora fatos e personagens históricos em
sua perspectiva mítica para justificarem a recriação de espaços” (1997:19).
As relações de parentesco e a reciprocidade fundamentam a socialidade Mb
Guarani. Segundo Meliá “não é a migração em si que define os Guarani, mas sim o modo
particular de viver a economia da reciprocidade” (1990:43)
16
.
Pissolato (2006) em sua tese de doutorado salienta uma busca de um modo melhor
de viver, para a autora, “(...) a tradição está na procura mesmo e não numa forma com
definições plenas projetadas nos “antigos”, de quem, aliás, dizem sempre os Mbya que “não
paravam” (não se fixavam de modo duradouro em um único lugar)” (2006:100). A autora
busca relativizar a ideia de tekoa, percebendo-a como categoria espacial onde o espaço do
individuo e alterações no modo de vida são possíveis. Para a autora,
“A referência ao “antigo”, deste ponto de vista, não deve ser
entendida imediatamente como intenção de continuidade de um
“modo tradicional” completamente determinado que a memória
deveria perpetuar, mas no interior de uma perspectiva
existencial que orienta a escuta ao “antigo” tanto quanto a
alteração constante do próprio modo de vida (a mobilidade),
16
O autor se detém nas relações de reciprocidade para explicar os deslocamentos Mbyá.
Segundo o autor “A comunidade Guarani se forma junto ao pai, que promove as condições
da reciprocidade generalizada, e junto ao xamã, que ritualiza e representa a reciprocidade
de palavras, sem as quais o convite seria apenas um comer em comum. A busca da Terra
sem Mal é um sistema de reciprocidade, deste modo, a própria busca da Terra sem Mal
manifesta diversas formas, desde a migração real até o “caminho espiritual” celebrado
ritualmente e praticado asceticamente” (1990:42). Ainda de acordo com o autor, “a busca
da Terra sem Mal nunca esteve desligada das condições e do modo de viver a
reciprocidade, no convite e na dança ritual. Sempre a Terra sem Mal é a condição realista
da economia de reciprocidade neste mundo ou mais além. Uma busca que não se desmente”
(ibid: 45).
10
tudo para “ficar”, “permanecer” (-iko, -ikove) na vida”.
(idem:101)
Na perspectiva de Pissolato, as práticas de deslocamento resultam de interesses
pessoais em contextos específicos, onde o individuo pode ou são se deslocar. As decisões
quanto aos deslocamentos resultam de uma série de negociações feitas por cada indivíduo,
em que as experiências vividas e oportunidades de escolha ganham ênfase. (Pissolato,
2007).
Essa ênfase no vivido e articulado por uma forma melhor de vivencia marca além da
importância do espaço as relações nele construídas
17
.
Partindo de uma perspectiva sócio-cósmica
18
centrada no cotidiano da aldeia e
pautada nas emoções Mbyá, Oliveira (2002) aponta a socialidade Mbyá Guarani marcada
por uma forte autonomia do individuo, por uma busca emotiva de alegria (vy’a), uma série
de trocas e experiências entre si, entre eles e os não-índios, entre demais povos e entre eles
e seus ‘deuses’ (os Ñanderus). Ao mesmo tempo em que os Mbyá possuem uma autonomia
individual acentuada, estabelecem relações sociais construídas através de seus nomes; os
indivíduos são classificados entre si através de seus nomes, e toda uma rede de
reciprocidade é estabelecida entre as pessoas que portam o mesmo nome.
17
Esta preocupação com a vida e a realidade cotidiana, sem abrir mão da imagem ‘da
tradição, dos antigos’ será abordada no quarto capitulo.
18
No sentido atribuído por Viveiros de Castro (1996) ao conceito.
11
Isso possibilita à pessoa Mb ir além da autonomia pessoal, sendo ao mesmo
tempo individuo e coletivo, social e cosmológico
19
. É nesse mundo sóciocósmico em que a
percepção artística do ‘fazer estético’ é crucial para se criar ‘corretas’ relações sociais que a
televisão e outras tecnologias passam a conviver.
O uso das tecnologias em populações indígenas.
A inserção da TV numa aldeia indígena proporciona um momento de muitas
reflexões, uma vez que em nossa sociedade a televisão exerce forte influência sobre a vida
das pessoas ao solidificar códigos que transformam o cidadão em um ‘expectador’ assíduo
aos seus programas. Existem inúmeros trabalhos acadêmicos nas mais diversas áreas do
conhecimento sobre o papel e o efeito da televisão em nossa sociedade. Estudos que sempre
relacionam TV à cultura de massa.
A televisãofoi objeto de desejo e consumo dos brasileiros mas hoje a maior parte
da população possui seu aparelho. A televisão pode ser considerada um dos mais poderosos
meios de entretenimento de massa e veiculador de informações. Diante da TV as pessoas
buscam informações, descansam, divertem-se. Mas a TV atua também como difusor de
idéias e comportamentos modelando e modificando costumes e hábitos
20
. A televisão
informa sobre si, sobre o mundo, assim como incentiva, o consumo.
19
A pessoa Mbyá Guarani é também a presentificação de ‘deus’ através de seu corpo. O
corpo é uma condição social para os Mbyá. O corpo é produzido cotidianamente para se
tornar leve (era’a) e forte (mbaraete). Esse corpo é produzido no cotidiano Mbyá através
dos afazeres domésticos, dos cantos, das danças (destacá-se a dança do xondáro) e dos
cantos no opy (casa cerimonial). Todo esse cuidado com o corpo, possibilita um estado
emotivo de alegria (vy’a). A noção de corporalidade usada nesta tese baseia-se em Seeger,
Da Mata e Viveiros de Castro (1986).
20
Dos estudiosos sobre a televisão, consumo, mídia e recepção ver Hambúrguer (2005),
Morley (1986), Hall (1986, 1993) entre outros. Ainda temos a reflexão fílmica proposta por
Cacá Diegues com seu filme Bye-Bye Brasil - 1979
12
A TV possui os mecanismos necessários e capazes de integrar expectativas, desejos
e insatisfações apresentando sempre ‘novidades’ e de forma dinâmica, criando um espaço
que trata as tensões de forma universalizante. Tensões maiores e menores se resolvem com
movimentos que atestam, a eficácia da imagem.
Linhares (2001) considera importante saber de que maneira a televisão altera
comportamentos e desperta os indivíduos para novos desejos de consumo. Segundo ela,
“Neste estudo o embasamento se da na perspectiva da
recepção, observando mais atentamente a construção cultural
em que o interesse está na reconstrução dos significados feita
pelos receptores aos conteúdos, dando significados aos meios
de acordo com a realidade sociocultural. Dessa forma, o foco
da análise passa a ser a interpretação das mensagens.
(Linhares:2001:6-7).”
A autora analisou a influência da televisão (telenovela Terra Nostra) na vida dos
habitantes da aldeia Urbana “Marçal de Souza” formada por indígenas da etnia Terena,
localizada no bairro Tiradentes em Campo grande, Mato Grosso do Sul. Na análise da
autora, dos indígenas que assistem à novela, uns se identificam com a novela e seus núcleos
urbano ou rural, outros gostam mas não sabem o porque. Por exemplo, a autora cita a
Terena Italete Moreira Pereira de 12 anos,
“Gosto de assistir novela, Terra Nostra, por causa que é muito
bonita né, acho assim o tipo das danças deles, eu entendo
mais ou menos, não perco nenhum capítulo, eu nunca assisti
uma novela...Gosto de todos mas a minha preferência é a
13
fazenda porque meu avô trabalhava, o pai do meu pai
trabalhava na fazenda, por isso eu gosto mais da fazenda do
que da cidade...(...) a Florinda, ela é bonita, os cabelos dela
são lindos, os olhos, eu queria ser loira
(...).”(Linhares:2001:09).
Apesar da identificação de alguns interlocutores da autora com os personagens, ela
conclui que,
“A industria cultural neste trabalho, representada pela
televisão, tem papel fundamental no cultivo e no despertar da
consciência cidadã, ressaltando-se que os veículos de
comunicação devem ter maior responsabilidade com o
conteúdo de sua programação, pois constituem-se fator de
espelho e modelo a serem seguidos por essa imensa
população brasileira.” (idem: 12)
A autora salienta que os moradores da Aldeia “Marçal de Souza” assistem a TV e
ficam expostos a todo o conteúdo vinculado por ela.
Apesar de ser um dos poucos trabalhos sobre índios e televisão, a visão de
tecnologia da autora está relacionada à noção de impactos que a mesma pode vir a causar
na sociedade indígena e nos indivíduos.
Em nossa sociedade a tecnologia foi ‘coisificada’, ou seja, descontextualizada e
separada da sociedade, apreendida como espécie de entidade material que se choca contra
sua própria cultura (através da cultura de massa e direcionamento das informações, no caso
os meios de comunicação) e contra culturas diferenciadas. O contato das culturas indígenas
com a tecnologia poderia gerar um impacto, resultando no próprio ‘fim da cultura’. Esse
14
tipo de visão é criticado por vários autores, dentre os quais Pierre Lévy. Segundo Levy,
(1997) o que ocorre são inter-relações dos grupos sociais e suas cnicas peculiares, de
agentes humanos que inventam, produzem e interpretam as técnicas.
Qs Xavante fazem uso um bom tempo de aparelhos tecnológicos. Nos anos
Setenta, o Xavante Mário Juruna fazia uso do gravador para registrar suas conversas e as
promessas dos políticos. Com o tempo o gravador foi usado em diversas aldeias. Segundo
Rodrigues,
“A utilização das tecnologias audiovisuais pelos índios
Xavante da Aldeia Pimentel Barbosa, uma vez descartada a
metáfora do impacto, vem mostrar-se como um exemplo da
impossibilidade de uma analise maniqueísta do uso dessas
tecnologias. Os xavante, como agentes que se inter-
relacionam, inter-atuando e criando uma complexidade de
fenômenos em vários níveis dessa cultura, se mostram não
como meros sujeitos passivos frente a ocorrência de um fato
exterior, mas como aqueles que participam efetivamente em
todo o processo relacionado com a utilização das Tecnologias
de informação e comunicação de outra cultura” (2002: p.02 ).
Segundo o autor, as gravações audiovisuais estariam muito próximas da tradição
oral, motivo pelo qual os xavante absorveram essa tecnologia fazendo uso, posteriormente,
da câmera de vídeo. É interessante o papel que o autor atribui aos indígenas diante da
tecnologia, vislumbrando-os como agentes ativos, que sabem e querem fazer uso dessa
nova técnica.
15
Recentemente, na década de noventa, a televisão entrou em algumas aldeias
indígenas, em especial no Mato Grosso do Sul e, atualmente, com o Projeto Luz Para
Todos, nas demais comunidades
Sobre a relação das sociedades indígenas e a televisão existem pouquíssimos
trabalhos de cunho etnográfico que privilegie os aspectos empíricos dessa relação. Não
existe ainda um estudo sobre a televisão e seus efeitos assim como os motivos, ‘do ponto de
vista nativo’, que os leva a se ‘fascinarem’ pela televisão.. Poucos trabalhos tratam
especificamente do tema, além dos estudos citado acima, destaca-se Orivaldo Nunes Jr
(2007) com seu estudo sobre o uso de computadores entre os índios Guarani da Aldeia
Morro dos Cavalos em Santa Catarina a reflexão de Paes (2003) sobre educação e
tecnologia.
16
Imagem e Televisão.
Nos estudos sobre a industria cultural, a cultura de massa que se dedicam a entender
a imagem na cultura contemporânea destaca-se a Escola de Frankfurt, em especial Teodor
Adorno e Walter Benjamin (1968)
21
. No Brasil, destacamos o trabalho de Esther
Hambúrguer (2005) que faz uma análise buscando mapear o equacionamento da produção
de significados na história recente do Brasil via a linguagem de novelas e seu mecanismo
de produção e reprodução de idéias e informações.
Hamburguer alerta sobre o consenso das diversas teorias sobre a industria cultural
que reproduz o status quo. Segundo ela, “Para esses estudiosos, os veículos de
comunicação estão reduzidos à função de difundir valores, reforçando consensos”.
Hambúrguer sugere a leitura de Stuar Hall, pois ele sugere, nas palavras da autora
(Hamburger:2005:18), “que significados codificados podem definir significados
decodificados, abrindo, portanto a possibilidade de um mesmo texto admitir leituras
21
Seguimos, aqui, a percepção de Gonçalves (2008:141) sobre a conceituação que
Benjamin faz sobre a imagem e sua importância no mundo contemporâneo como fonte
criadora de ‘realidade’ e, consequentemente, de relações sociais. Em suas palavras: “Neste
sentido, na conceituação de Benjamim (1996b:170), o que importa não é mais a coisa-em-si
mas as imagens das coisas. Para Benjamim (1996b:189) a questão central não era de como
o homem se representaria diante da câmera mas o modo que representa o mundo com a
câmera. Benjamim (1996b:175) acentuava este caráter sígnico do cinema, proposto por
Jakobson, uma vez que “a compreensão de cada imagem é condicionada pela seqüência de
todas as imagens anteriores”. A imagem se remete a uma outra imagem, não tem sentido
intrínseco, portanto, no cinema não a possibilidade de objetificação da imagem pois a
cadeia significante não pára, desobjetificando a imagem o cinema desrealiza o real que se
apresenta no cinema como se fosse uma imagem do real.
17
plurais”. A autora concorda que a recepção é o mecanismo central para qualquer análise,
pois “a diversidade de significados está situada no pólo da recepção. Mensagens
permanecem reduzidas a ideologias dominantes predeterminadas, que podem no entanto,
estar sujeitas a interpretações alternativas” (2005:18).
A autora sugere que se a audiência é um instrumento conceitual capaz de alimentar
as atividades da industria televisiva não demonstra uma realidade direta com o
telespectador.
Hamburger aponta a possibilidade de uma etnografia da recepção, segundo a autora,
“A chamada “etnografia da recepção” da televisão seria uma
alternativa capaz de fornecer uma descrição compreensiva
sobre o que os telespectadores vêem em determinados
programas. A observação participante em contextos de
recepção seria capaz de ir além do que expectadores falam ou
escrevem quando perguntados, permitindo a abordagem de
como a TV, ou determinados programas, se inserem no
cotidiano das pessoas que assistem” (idem:17).
Essa perspectiva, apontada por Hamburger parece ser crucial pois acentua uma
preocupação com o cotidiano e as experiências vividas pelos receptores. A autora em seu
trabalho identificou varias perspectivas sobre a televisão, dentre as quais a habilidade da
TV penetrar no espaço domestico.
De acordo com Hamburger (2005) e (Mulvey: 1989) a televisão atua também como
uma força privatizante por estimular a permanência no lar uma vez que a ênfase da TV é
voltada ao espaço doméstico, diferente do cinema que está associado ao espaço público.
18
Para Meyrowitz (1984) a televisão influência repertórios e mudanças nas relações
de gênero e abre espaços para democratizar temas e idéias. As novelas tornam-se
‘sedutoras’ também por colocar a nível público as ‘fofocas’. Na televisão, não existe uma
lógica institucional, mas várias lógicas que ultrapassam as instituições ao se colocarem
diante do público. As imagens que assistimos trazem consigo toda uma estrutura lógica que
interage e inter-relaciona-se com o espectador disseminando vários significados produzidos
pela imagem.
A televisão é considerada um meio de comunicação de amplo alcance e seu sucesso
ocorre devido a sua estética. Fahle (2005) nos alerta para a falta de estudos sobre o conceito
de imagem e do visível em que se possa buscar uma dimensão estética da televisão no
interior de uma teoria da imagem. Para o autor, televisão e imagem estão entrelaçadas de tal
modo que uma teoria da imagem tem na TV um lugar privilegiado.
A imagem da televisão se significou, sem dúvida, um avanço técnico aponta
também para continuidades com a pintura, a fotografia, o cinema e a TV, de certo modo,
condensa estes meios imagéticos. A modernização desses meios imagéticos, em especial da
fotografia, leva a modernização da imagem. Segundo Fahle,
“A evolução dos meios imagéticos, implica uma evolução das
imagens. Quando os meios imagéticos se modernizam e está
seria nossa tese as imagens também se modernizam”
(Fahle:2005: 02).
De acordo com as idéias de Fahle, existe uma diferenciação entre a TV clássica e a
TV moderna no que se refere a sua estética. O autor aponta a importância das noções dos
termos “paleo” e “neotelevisão” para avaliar a dimensão da modernização estética da TV.
19
Existia, segundo o autor, uma relação hierárquica de comunicação entre produtores e
usuários na era ‘peleo’ enquanto a neotelevisão se caracteriza por uma relação de
proximidade e de intercâmbio aparentemente não hierárquico. A neotelevisão recusa
formas vetorizadas de comunicação (o que ocorre na paleo-televisão), procurando várias
formas de interação e se destacando pelo contato via a imagem. Fahle destaca a análise de
Cézanne onde a imagem clássica (figurativa e espacial) cede às imagens modernas, cuja
imagem é não figurativa, atemporal e ilimitada. A imagem passa a ser pensada por sua
visibilidade, o visível é parte da imagem. Segundo Fahle,
“Na modernidade, o exterior é acolhido na imagem, sendo
que não separo a fotografia da pintura moderna, uma vez que
ambos se baseiam no dispositivo de imagem fixa,
tematizando, todavia, o exterior. Isso fica muito nítido pelo
fato de ambos adotarem a contingência na representação, ou
então no dispositivo, chamando assim a atenção para a
própria estrutura espacial e temporal em sua
causalidade”.(idem:07)
Salienta o autor que,
O cinema vai além da fotografia por apresentar uma
imagem móvel, e não fixa. O movimento é inerente à
imagem do filme, uma vez que sempre se relaciona a um
visível que a ultrapassa, (...) a televisão representa um ponto
final dessa associação e imbricação entre imagem e o
visível.” (ibidem: 07).
20
A televisão através de suas imagens possibilita uma forma de representação em que
as condições de poder são decisivas porém Fahle (2005) está focado no descentramento, na
desvinculação e dissolução dos limites das condições representativas. É importante saber
quais as novas possibilidades da imagem a partir da diferença entre a imagem e o visível no
que ele denomina de neotelevisão.
Uma das experiências mais bem sucedidas sobre o uso de novas tecnologias pelos
povos indígenas é o Projeto Vídeo nas Aldeias, criado em 1987 no CTI Centro de
trabalho indigenista. O objetivo do Projeto foi disponibilizar para algumas comunidades
indígenas novas informações e novas tecnologias para que pudessem manipular e construir
sua própria imagem. O projeto construiu uma rede de videotecas nas aldeias, incentivando
o intercâmbio e treinando os indígenas no manuseio das câmeras que passam a ser
designadas por ‘câmeras indígenas’.
Na percepção dos idealizadores e executores do projeto, o vídeo representou um
instrumento de comunicação, assim como um meio de informação apropriado ao
intercâmbio entre grupos que mantêm tradições culturais diversas que desenvolvem formas
diferenciadas de adaptação ao contato com brancos.
De acordo com os autores do projeto:
“A experiência do projeto Vídeo nas Aldeias mostra que
quando colocados sob controle dos índios, os registros em
vídeos são principalmente utilizados em duas direções
complementares: para preservar manifestações culturais
próprias a cada etnia, selecionando-se aquelas que desejam
transmitir às futuras gerações e difundir entre aldeias e povos
diferentes para testemunhar e divulgar ações empreendidas por
21
cada comunidade para recuperar seus direitos territoriais e
impor suas reivindicações”. (Gallois e Carelli:1995: 206)
A experiência do projeto Vídeo nas Aldeias retrata o interesse e incorporação das
câmeras pelos indígenas e a apropriação coletiva desses instrumentos. As imagens são
apropriadas e apreciadas coletivamente, e segundo os autores o vídeo “(...) potencializa a
transmissão participante, própria às sociedades de tradição oral. A difusão de imagens em
vídeos nos pátios das aldeias favorece a continuidade na transmissão de símbolos propensa
a cada cultura, na medida em que as imagens reiteradas por um são também vistas e
realimentadas por outros”.
22
A analise de Gallois e Carelli seguem a reflexão sobre o significado de tradição e
oralidade e a conceituação de antropologia interativa ou compartilhada de Jean Rouch, em
que as experiências são construídas com e para os sujeitos de pesquisa, os indígenas
23
.
Segundo os autores, a expectativa do projeto é a troca que se estabelece por meio da mídia
audiovisual e o que, exatamente, produz conhecimento de um lado e do outro. Produz-se,
assim, um encontro entre diferentes pontos de vista (diferentes olhares e pensamentos)
ampliando as possibilidades de comunicação, de identificação ou mesmo de confronto.
O uso destas novas tecnologias digitais em aldeias indígenas traz novas questões
que envolvem sobretudo uma nova constituição da relação entre antropólogo e nativo
desafiando as ‘clássicas’ conceituações antropológicas sobre representação e apresentação
uma vez que a capacidade de produzir ‘representações’, auto-representações’ e críticas às
‘representações’ é agilizado a partir do meio digital que aproxima os sujeitos que
interagem, dissolvendo a antinomia sujeito/objeto que garantia uma determinada forma de
22
Sobre uma reflexão sobre o Vídeo nas Aldeias e uma determinada obsessão pelo conceito
de cultura ver Tatiana Bacal (Bacal, 2009).
23
Para maiores detalhes ver Gallois e Carelli, 1995: 256.
22
‘representar’ o outro e ‘apresentá-lo’. Neste novo contexto das mídias digitais questões
como ‘preservação cultural’, ‘mudanças culturais’, ‘experimentação’, ‘criação’ são
ressignificadas e atualizadas.
Gallois
24
destaca a questão:
“Abordar, por exemplo, o fascínio que tecnologias e saberes de
nossa sociedade exercem sobre as populações indígenas, pode
ser tratado no registro das ameaças que estaria pairando
sobre“técnicas ancestrais” em vias de desaparecimento;
inversamente pode ser entendidas enquanto demandas e
alternativas dos próprios índios diante da ampla convivência
com nossas formas de “desenvolvimento”. Nesse caso,
descrever seus interesses particulares em adquirir novos
saberes, o modo como estes conhecimentos são traduzidos e
adaptados, através de processos criativos, nos traz revelações
muito mais esclarecedoras acerca das diferenças culturais”
(Gallois:2000: 04)
25
.
Gonçalves (2008) e Gonçalves e Head (2009) percebem a importância do sujeito na
produção e criação das ‘representações’ e por isso enfatizam a imaginação enquanto
potência criativa. Esta perspectiva abre espaço para se pensar a produtividade da ficção e da
fabulação na produção de ‘representações’. A ficção é a possibilidade de introduzir a
dimensão do imaginário nos processos narrativos.
24
Artigo: “Intercâmbio de Imagens e reconstruções culturais”. In. www.institutoiepe.org.br
25
Ver também Gallois 1998.
23
A idéia de imaginação enquanto categoria analítica possibilita perceber a
representação que os Guarani possuem e atribuem a sua imagem e o que pensam sobre o
que é o ‘real’. Imaginação e realidade caminham juntas num cotidiano marcado por fortes
relações sociais (nas danças, nos rituais, nas histórias, nos mitos entre outros). A etnografia
ficará aberta para dialogar com a ‘ficção’ e ou/ fabulação apontada e vivida pelos sujeitos
26
.
E continuam sua reflexão:
“É o que acontece quando a abordagem etnográfica busca não
representar as ‘categorias nativas’, mas reformular as suas
próprias estratégias de representação através de sua
aproximação mimética das formas ‘nativas’ as formas e
processos através dos quais os outros estudados se
‘representam’ a si e entre si mesmo e a nós, assim como estes
26
Um exemplo são os nomes Guarani. Apesar da escassa bibliografia, o que me permite
ancorar nos meus dados de campo, é possível perceber essa relação imaginação versus real
nos nomes que os Guarani atribuem aos seus filhos após um ano ou mais de vida. A criança
é observada, e no ritual do Nhemongarai é batizada com um nome que a vincula a uma das
regiões de Tupã (Divindade, segundo Seu João, Cacique e líder ‘espiritual’ dos Mbyá de
Sapukaia, é a maior divindade, por possuir mais força), quais são: Karay, Jakairá, Tupã e
Karaí. Nhanderu, considerado um Deus para eles e associado a Jesus por algumas
lideranças está presente no opy. O opy é uma casa cerimonial que junta essas regiões, onde,
segundo Seu João, o nascente é Kuaray, o poente é Tupã, que segundo ele “cuida de tudo,
por isso a dança do xondáro antes de se entrar para o opy à tardinha”, nos outros lados do
opy ficam Jahairá e Karai. Todas as pessoas recebem um nome que as associam a essas
regiões e, apesar das mudanças culturais dos Guarani, os nomes persistem (mais detalhes
ver Oliveira, 2002). É importante frisar que essa relação entre nomes e ‘Deuses’ Guarani
encontra-se em importantes percepções sobre a imagem entre os Guarani e o modo como as
representam, como no Coral Guarani, o de Sapukaia Nhe rapy ta que significa
‘caminho da luz’ que atualiza essas relações imagéticas no plano das músicas e das danças.
Voltarei adiante com maiores explicações sobre os nomes e os Deuses, mas quero apenas
destacar a importância da fabulação no modo de construção do imaginário Guarani no qual
este universo imagético e as imagens sócio-cosmológicas Guarani estão presentes no dia-a-
dia e, em especial, nos rituais ainda praticados pelos Guarani.
24
nos representam em relação ao seu próprio mundo” (idem:
07)
27
.
Essas formas de ‘representação’ de si e do outro, apesar de coletivamente
experienciada, enfatiza a dimensão autônoma do indivíduo e suas vivências. Nesse sentido,
o devir-imagético sugerido por Gonçalves e Head (2009) nos ajuda a pensar a autonomia do
indivíduo Guarani e suas formas de representação e imaginação. A explicação, apropriação,
curiosidade e interpretação do que se vive (das relações vividas com outros povos, com os
não-índios e o que aprendem e transmitem) são acentuadas de uma autonomia própria, o
que possibilita o indivíduo viver suas próprias experiências enquanto potência criativa.
28
A experiência do que é imagem para os Guarani está associada a sua percepção
sociocosmica e sua própria noção de ser Mbyá.O conceito nativo de imagem é anga – alma,
representação, imagem
29
. Em Sapukaia, os Mbyá fazem uso de anga para significar também
uma imitação. Observamos, assim, uma associação nativa entre o conceito de imagem e o
27
Nesse contexto é interessante pensar que as monografias dos professores Guarani das
Aldeias de Sapukaia, Parati-Mirim e Araponga se enquadram nesse ‘representar a si e entre
si mesmo’ o que gera uma nova problemática pois as ‘monografias’ são uma forma de
representar ‘a si’ próprio o que era antes capacidade de outrem: antropólogos, indigenistas,
entre outros. Através de filmes, desenhos e narrativas na língua Guarani, os professores
estão elaborando monografias para conclusão do Magistério Indígena, do qual participei
recentemente na orientação das monografias. Sergio, professor da Aldeia de Parati-Mirim,
está realizando uma pesquisa sobre os nomes Guarani; Nirio, professor de Araponga,
pesquisa o ritual do Nhemongarai (a festa do milho); Algemiro, professor da Aldeia
Sapukaia, reflete sobre a alimentação atual Guarani; Valdir, também professor da Aldeia
Sapukaia, pesquisa sobre o milho e as formas tradicionais da alimentação; Isaac da Aldeia
Parati-Mirim escreve sua monografia sobre educação Guarani que se baseia em narrativas
de sua família; Alessandro, da aldeia Sapukaia, pesquisa sobre o tema da natureza.
28
Sobre autonomia do individuo Guarani ver Oliveira (2002), Schaden (1962); mais adiante
retorno ao assunto.
29
Ver Assis (2006) e Pissolato (2007) para esta concepção nativa de anga como imagem.
25
do mímesis o que, efetivamente, potencializa esta percepção da imagem e as implicações
do que significa ‘representar’ e ‘apresentar’ para os Guarani
30
.
A produção de imagens se estabelece sob várias vias: danças, narrativas oníricas,
produção de artefatos, dentre os quais destacam-se imagens esculpidas em madeira de
animais e homens chamadas ava ra’anga (imagem do homem ou mulher mbyá). Essas
imagens ava ra’ anga
31
são confeccionadas para comercialização e/ou uso próprio, como a
imagem ava ra’ anga (ver Foto 03, p. 60, 61) exposta na prateleira da padaria em Sapukaia.
A foto mostra uma imagem de um ‘índio tradicional’, portando um arco e flecha. Ao
observar esta imagem nos deparamos com uma imagem ‘idealizada’ dos Mbyá em relação
ao que significa índio
32
.
Durante meu trabalho de campo para minha dissertação de mestrado, emprestei
minha máquina fotográfica para Alexandre e Valdir e disse que podiam fotografar o que
quisessem. Ao revelar o filme deparei-me com a foto de Alexandre (xondáro e opitaive)
portando o arco e flecha do Cacique e Pajé João da Silva, no meio da mata. Embora
Alexandre seja um xondáro e, assim, possui as qualidades do que significa ‘guerreiro’ na
atualidade Guarani, buscou reproduzir e se representar para mim através de uma imagem
‘idealizada do guerreiro’. Neste sentido, a imagem produzida por Alexandre atualizava uma
relação de ser ‘representado’, de ‘representar a si próprio’ e de se ‘apresentar’ como ‘índio’
em um contexto que implica uma percepção da alteridade: a de ‘representar’ através do
‘guerreiro’ uma representação sobre si próprio.
30
Para esta discussão sobre representação, apresentação e mimesis ver Taussig (1993),
Gonçalves (2008), Gonçalves & Head (2009).
31
Termo, também, usado por Assis (2006).
32
É interessante observar que a ‘representação’ do ‘índio’ em termos de uma apresentação
de uma imagem idealizada é recorrente entre os Guarani sobretudo em sua relação com
alguns setores da sociedade envolvente.
26
Mas retornemos ao conceito nativo de anga
33
. Nas palavras de Langon: “A relação
a’ anga é sensível: ambos os níveis (ou lugares) se imitam mutuamente, cada um reenvia ao
outro; se explicam ou se aclaram mutuamente, não diferença de realidade ou grau de ser
entre eles”. (Langon, 1993: p.330).
Aprofundemos, ainda mais, a concepção de anga
34
relacionada à idéia de imitação.
Segundo Valeria Assis:
“(...) anga pode comportar o sentido de imagem icônica,
simbólica ou indiciaria, combinada ou não com o sentido de
substituição. Os vicho ranga e os ava ranga, artesanatos
produzidos para a comercialização, são exemplos de
representação icônica sem o sentido da substituição. Por
outro lado, as fotografias são as representações icônicas
dotadas de agência. Ou seja, uma representação que é
entendida como um duplo, um substituto da pessoa, ou ainda
uma metáfora dela”
35
. (Assis, 2006: p.149).
33
Estas percepções sobre anga, imagem, também observada nos mitos ao se referir a
criação do corpo como imagem, nos ajudará, sobremaneira, a refletir sobre as imagens
televisivas (programas, vídeos e filmes nos quais eles são os sujeitos) e sua recepção pelos
Guarani.
34
Pissolato (2006, 2007) percebe a ‘duração da pessoa’ através da junção de três categorias
que se relacionam (mobilidade, parentesco e xamanismo) que dão profundidade e
amplitude a noção de pessoa Guarani. Pissolato percebe nos textos míticos a presença do
termo ta’anga o que sustenta a qualidade “não plenamente ‘verdadeira’ do que tem
existência terrena atual - que os seres divinos e os habitantes de suas moradas teriam - e
o caráter de ‘imitação’ da existência atual em relação ao tempo mítico. Não sendo
absolutamente divina, esta existência, contudo, reflete condutas e criações das divindades.
Isto tanto explicaria a presença atual de comportamentos bastante comuns que teriam
começado com o feito de algum deus, quanto afirmaria a capacidade divina inscrita na
experiência da humanidade atual” (Pissolato, 2006; 331).
35
Assis se apóia na noção de imaginário elaborada por Bazco (1985): um vasto sistema
simbólico produzido e controlado pelo coletivo. Para Assis (2006) a análise dos objetos
rituais, a representação destes objetos não se restringe ao corpo uma vez que os objetos são
27
Esse duplo da pessoa, suas formas de representação, metafóricas ou não ganham
espaço no universo televisivo e da imagem em suas várias formas de representação, como o
cinema.
Na perspectiva do neo-realismo cinematográfico e de um novo tipo de imagem que
ele produz, Deleuze destaca que: “Tudo parece real nesse neo-realismo, porém, entre a
realidade do meio e da ação, não é mais um prolongamento motor que se estabelece é antes
uma relação onírica, por intermédio dos órgãos e dos sentidos, libertos” (Deleuze, 1990:
p.13). O autor cita o exemplo de Rocco e seus irmãos
36
, “os personagens flutuam num
cenário sem atingir seus limites. Eles são reais, o cenário também o é, mas a sua relação
não o é e se aproxima do que existe num sonho”.( Deleuze, 1990: 13 apud Duloquin, :86).
Segundo o autor,
“A distinção entre o subjetivo e objetivo, ela também tende a
perder importância, à medida que a situação ótica ou a
descrição visual substituem a ação motora. (...) não se sabe
mais o que é imaginário ou real, físico ou mental na situação,
não que sejam confundidos, mas porque não é preciso saber, e
nem mesmo lugar para a pergunta. É como se o real e o
imaginário corressem um atrás do outro, em torno de um ponto
de indiscernibilidade”. (Deleuze, 1990:16).
A imagem em movimento leva Deleuze a uma reflexão sobre a imagem tempo, na
qual o tempo se torna uma forma de representação indireta por resultar da montagem que
liga uma imagem à outra imagem, em suas palavras:
uma espécie de materialização da pessoa Guarani.
36
Ver artigos de Bernard Dort e René Duloquin in Visconti I Estudes Cinematographiques.
L’ e crant la Memorie. Seuil
28
“(...) a imagem ótica (e sonora) no reconhecimento atento não
se prolonga em movimento, mas entra em relação com uma
“imagem lembrança” que ela suscita. A tal ou qual aspecto
da coisa corresponde uma zona de lembranças, de sonhos ou
de pensamentos: a cada vez é um plano ou um circuito, de
modo que a coisa passa por uma infinidade de planos e
circuitos que correspondem a suas próprias “camadas” ou
aspectos”. (ibid: 61).
Esta percepção apresentada por Deleuze nos remete à concepção de corpo Guarani
na agência do sonho, em que se desloca, vivencia situações e seus duplos sentidos. Para
sonhar, guardar lembranças, ter uma ‘alma’ é necessário, antes de tudo, ter corpo ou pelo
menos são estas manifestações (lembrar, sonhar e produzir imagens) que se associam a
aspectos do que seria uma corporalidade para os Guarani.
A TV ao ser associada pelos Guarani aos sonhos assume, também, uma propriedade
corporal: a de produzir imagens, ações, movimentos, captar os anseios e poder lembrar e
guardar uma memória de uma experiência vivida. Na TV, o que se assiste repete-se
amanhã, ela lembra, guarda na memória, ou seja, registra, vivencia e faz vivenciar (veja as
várias repetições de programas, como o pica-pau ou as lembranças de personagens diversos
em seus flash-back).
Seguindo a reflexão de Deleuze
37
,
“(...) a imagem lembrança vem preencher a separação, supri-la
efetivamente, de tal modo que nos leva individualmente à
37
O autor partilha das idéias de Jean Rouch sobre o sujeito e a nova percepção de cinema
etnográfico com ênfase na ficção.
29
percepção em vez de prolongá-la como movimento genérico. A
subjetividade ganha novo sentido, agora espiritual e temporal,
por exemplo o flash-back (ibidem: 63).
Deleuze percebe o espaço que o corpo ganha filosoficamente nessa representação do
ser no cinema e na vida, o corpo é a forma de vivenciar o impensado, ‘a vida’. Nas palavras
do autor,
“não mais se fará a vida comparecer perante as categorias do
pensamento, lograr-se-a o pensamento nas categorias da vida,
que são precisamente as atitudes do corpo, suas posturas,“não
sabemos sequer o que um corpo pode”, no sono, na
embriaguez, nos espaços e resistências. Pensar é aprender o que
pode um corpo; o corpo nunca está no presente, ele contém o
antes e o depois, o cansaço, a espera (...)” (idem: 227).
O autor nos faz perceber a importância e a capacidade que o cinema tem de fazer o
‘corpo cotidiano’ passar por cerimoniais, de fazê-lo nascer ou desaparecer, de transformá-lo
em corpo banal ou cerimonial, cuja capacidade final é o desaparecimento do ‘corpo
visível’.
Estas concepções sobre imagem, cinema e corporalidade elaboradas por Deleuze
não perecem estar tão distantes do pensamento ameríndio sobre corpo e corporalidade.
Muitos etnólogos perceberam esta importância do ‘corpo’ para os ameríndios elaborando
uma verdadeira fenomenologia sensorial-estética-corporal em que o ‘corpo’ surge como
suporte, matéria, conceito que engendra relações e é, sobretudo, esta capacidade relacional
atribuída à corporalidade é que possibilita articular um discurso sócio-cosmológico
30
ameríndio, isto é, a possibilidade de criação de um socius. O corpo atua como um
diferenciador, o que distingue os seres e o aproxima de outros corpos ao produzir
‘perspectivas’ (Viveiros de Castro, 1996).
O corpo é o local no qual sentimentos e segredos são guardados e fixados (Clastres,
1978). O corpo é produzido dentro de uma lógica de eventos na qual a produção dos corpos
perfeitos (humanos) produzem ‘corpos imperfeitos’ (deuses) (Gonçalves, 2001). A
corporalidade é vista, na perspectiva de Viveiros de Castro, Seeger e Da Matta (1986) como
instrumento capaz de atuar como ‘uma matriz de símbolos e um objeto do pensamento’. A
ausência de corpo pode significar ou apontar o ser anti-social, no sentido de Overing
(1991), ou na produção do ser enquanto pessoa como ocorre com os Kaxinawá, cujas
substancias, sangue ou yuxin, sustentam a noção de corporalidade em que o corpo é,
eminentemente, uma unidade pensante (Lagrou, 2007). Segundo Lagrou, “Da mesma forma
que os homens são complementares às mulheres, as imagens são aos corpos, e a noite ao
dia” (Lagrou, 2007: 291).
Em minha dissertação de mestrado (Oliveira, 2002) chamei atenção através da
dança do xondáro para a produção ritual do corpo, cuja leveza e força ultrapassam o ritual
em si e engendram uma forma sócio-cósmica de produzir o corpo Guarani que se completa
na ‘educação’ diária pautada em uma ênfase na autonomia, nos rituais do opy e de
iniciação. Pissolato (2007) destaca o cuidado com o corpo através da dimensão ampla que
estabelece o conceito oguata (caminhar, mover-se), cujos cuidados para se ‘levantar’,
‘erguer-se’ e ‘caminhar’ são qualidades importantes para a construção da pessoa Guarani.
O corpo construído é construído da mesma forma que constrói a si mesmo,
construção esta fruto da própria experiência em si. O espaço para as novas experiências
31
estão de certa forma garantidos no individuo cultural. Segundo França os filmes produzidos
pelo Vídeo nas Aldeias, assim como outros filmes mostram que:
“Para além da intimidade e da cumplicidade entre aquele que filma e
aqueles que são filmados, patente em todos os planos de cada um
desses documentários, existe um desejo de filme que não está
somente do lado dos índios videastas, mas do outro lado da câmera
também: um desejo de filme tão grande quanto o desejo daquele
que filma e, ao tornar esse desejo visível, atuante, falante, essas
imagens criam um cinema absolutamente igualitário, um cinema
onde cada corpo - seja ele da planta, da concha, do jacaré, da cutia,
da criança, do velho - tem o mesmo valor que um outro para a
câmera, todos eles igualmente diferentes, importantes e únicos”.
(França, 2006: 05
Ainda de acordo com a autora,
“São filmes cujos realizadores estão estreitamente integrados a tudo
que se passa todo o processo de produção; pesquisam e escolhem
seus personagens, filmam e editam suas narrativas, suas relações
com o corpo, com a comida, com o trabalho, supervisionados por
instrutores que questionam suas escolhas, discutem, sugerem,
acolhem e aprendem”. (França, 2006: 05).
32
O ‘encantamento’ dos Guarani ao assistirem os filmes “Das crianças Ikpeng para o
mundo” (2002) e “Um dia na Aldeia” (2004) é absoluto assim como o é quando assistem a
reprise do documentário produzido pela TVE sobre o Nhemongarai em São Paulo nas
Aldeias de Boa Vista e Rio Silveira (retornarei a essa questão em breve). O interesse dos
Guarani em relação a estas imagens parece ser devido à própria conceituação nativa de
imagem, anga que é ao mesmo tempo imitação e imagem. Deste ponto de vista “através da
mímesis produz-se uma compreensão do que é estranho do outro via o exagero de
semelhanças” (Gonçalves, 2008), mas que inclui, também, um estranhamento e uma nova
possibilidade de percepção do ‘eu’ enquanto ‘outro’ (Gonçalves e Head, 2009). Portanto,
parece ser esta capacidade da imagem, de sua corporalidade, de sua agência, no sentido de
reviver, de experienciar, de compreender que fascina os Guarani.
O corpo estabelece a imagem do ser.‘Dar ao corpo uma câmera’ no sentido de
Deleuze (1990) é abrir espaço para uma nova relação, uma relação entre sujeitos. Perceber
esses sujeitos e como eles se vêem, como percebem essa nova forma de olhar e produzir
imagens é um desafio que se coloca.
Visível, ‘real’ ou não, as imagens produzidas pela televisão adquirem um
significado de realidade. É deste modo que os Guarani percebem a imagem, sobretudo a
televisiva, como visível que engendra uma realidade. A TV é ‘algo’ como um corpo, capaz
de produzir imagens, ou melhor, realidades (na perspectiva Guarani). Ela possui força
enquanto agência devido sua capacidade de produzir outras realidades, assim como, o
imaginário Guarani ao sonhar
38
. A partir desta percepção Guarani sobre o sonho, o visível,
os planos da realidade é que criam sua relação própria com o ‘objeto-sujeito’ TV.
38
Ver o quarto capítulo da tese.
33
Portanto, essa relação com os objetos eletrônicos, eletrodomésticos, e a percepção
Guarani sobre estes objetos e como vivenciam estas práticas é o tema primordial desta
etnografia.
Aspectos Metodológicos.
Após a realização de minha dissertação de mestrado, iniciei uma investigação
conceitual a fim de realizar uma pesquisa de doutorado sobre a “mulher Mbyá”. Esse
desejo de estudar o universo feminino Guarani surgiu a partir da constatação de que meu
primeiro trabalho de campo e, conseqüentemente, minha dissertação estavam orientados
por uma forte percepção masculina, o que orientou os dados coletados e a compreensão da
Aldeia Sapukaia sob essa ótica, a masculina. Um dos aspectos refletidos para a ‘ausência’
feminina fora à incompreensão do idioma guarani, falado 100% pelas mulheres.
Os homens, por serem fluentes em português estavam sempre prontos a me orientar
nas informações, explicações sobre os hábitos, nas caronas para a cidade, na escolha do
local que eu iria residir na aldeia, entre outros. Este universo masculino permeou a
etnografia. Em visitas a aldeia, após a defesa da dissertação, percebi que por trás das
questões evocadas pelo universo masculino estavam as vozes femininas.
Escutar essas vozes e como as mulheres pensavam e organizavam suas vidas passou
a ser o objetivo do projeto de pesquisa do doutorado. Nas palavras de Overing:
“In short, it has mode all the difference for a ethnographic
endevour to include the subject of women and especially
women’s voices. In the process we have time and again
34
discovered a rich simbolic wored that demands a understating
of the interplay of men and women, and their respective
knowledges, that makes a travesty of the simplistic ‘male only’
models od yesteryear.” (Overing, J.; Rapport, N., 2000: 152).
Na volta à aldeia os mbyá me questionaram:
“Kunã Mbaraete, as mulheres querem saber por que você demorou...”, disse Seu João. Foi
quando percebi que estava inserida no universo masculino e o quanto era motivo de
conversas entre mulheres. Nesse período, Seu João me convidou para o encontro das
parteiras, organizado pela FUNASA, na Aldeia Boa Vista, em Ubatuba
39
, São Paulo
realizado em 2003. O encontro reuniu mulheres de vários estados para debater sobre o parto
e suas condições na aldeia. Regressei deste encontro convicta em trabalhar sobre “a mulher
Guarani”. Elaborei um projeto de doutorado que se qualificou com o titulo “Kuña: a
essência feminina do teko’a porá Mbyá Guarani”. Após qualificação regressei ao campo e
me deparei com a chegada da luz elétrica na aldeia e o advento da televisão.
Os Guarani não queriam falar sobre nada que não fosse televisão. Aliás, eles
queriam “olhar”, assistir a TV. Neste sentido, o interesse dos Guarani reorientavam, mais
uma vez, minha pesquisa. Em minha dissertação de mestrado desejava pesquisar os
“sonhos” e os mbyá mostraram a importância da alegria (vy’a)
40
. Diante dos fatos, desisti
do projeto sobre ‘a essência feminina’
41
e passei a me interessar pelo o que os mbyá
estavam querendo discutir: a televisão e novo mundo de imagens que invadiam a aldeia.
39
Eu iria realizar pesquisa de campo na Aldeia Sapukaia e na Aldeia Boa Vista em
Ubatuba.
40
Oliveira 2002.
41
Sobre essência feminina e/ou xamanismo e mulheres Mbyá ver Ciccarone (2001), entre
outros.
35
Os problemas advindos deste novo objeto de pesquisa eram de caráter metodológico
e epistemológico, pois, para quem pretendia ‘mergulhar na vida nativa’ (no sentido de
Malinowski, 1978) como poderia, agora, após todo um investimento de tempo entre outros,
pesquisar o universo das imagens da TV e sua apreciação pelos Guarani? .
Entretanto, durante os primeiros dias de trabalho de campo, ainda na construção do
objeto, ao assistir televisão com os Guarani (os corpos em movimento, os vôos dos
personagens, os dramas dos noticiários, os risos do Pica-pau) percebi que aquele fascínio
‘dos olhos fixos na TV’ apontava para a potencialidade do quanto as imagens televisivas
tinham a dizer sobre os Guarani.
42
Esta tese teve como base um trabalho de campo dividido em três fases: julho de
2006; agosto, setembro, outubro e novembro de 2007; janeiro, fevereiro e março de 2008.
A observação participante foi possível devido à convivência num joapigua e numa casa
Guarani (casa de Jandira e Alexandre), fundamental para observar e vivenciar esse mundo
de informação e imagem trazidos pela televisão e pela tecnologia juruá (não índios).
Realizei um Workshop
43
sobre “O que é a TV e quais os programas preferidos pelos
Guarani”, no mês de fevereiro de 2008
44
.
A ideia era investigar como todos os membros percebiam a televisão, qual o
entendimento deles sobre o que é uma TV? O que gostam na televisão? O que passa na
42
Dessa forma, mesmo diante dos imponderáveis e problemas que envolveram esta
pesquisa, foi possível construir um dialogo que não se esgota aqui devido à complexidade
que envolve um estudo amplo sobre recepção e imagem.
43
Ver em anexo as questões levantadas durante o workshop que, além de esclarecer várias
questões, me possibilitou a coleta dos desenhos usados nesta tese e que serão
reaproveitados posteriormente na cartilha sobre a televisão em terras Guarani.
44
Realizado no dia 12/02/2008 como complemento as observações de campo. Durante o
trabalho de campo, fiz uso constante do gravador de meu celular.
36
televisão é real? Que programas gostam de assistir? Quem assiste? Adultos, crianças,
homens e mulheres? Os Guarani responderam as indagações com os desenhos.
Posteriormente, realizamos vários diálogos sobre os desenhos, ou seja, sobre os programas
ali representados. Após este dialogo foi feito um investimento sobre a cultura, o espaço
Mbyá: Como estão os joapyguá? Plantio, novas casas, doenças, nascimentos, visitas, e a
produção de artefatos para comercialização e uso próprio.
Os Guarani estavam do mesmo modo que eu engajados em discutir sobre a televisão
no momento de minha pesquisa e foi isso que os motivou a organizar em conjunto uma
cartilha sobre o uso da televisão na aldeia
45
.
Os capítulos da tese visam demonstrar esse mundo, um cotidiano marcado pela
experiência da televisão e de uma estrutura sóciocósmica capaz de vivenciar novas escolhas
e de se recriar através dos discursos via as imagens míticas.
O primeiro capítulo aborda a criação o projeto Luz para todos, sua introdução na
aldeia, a participação dos Guarani no processo em si e as perspectivas da aldeia com a
introdução da luz. O que mudou com a iluminação da aldeia e como os Guarani conviveram
com essas mudanças, em especial, as contas de luz e a introdução de aparelhos eletrônicos.
Quais os aparelhos desejados e usados? Celulares, DVD, geladeiras e televisão.
O segundo capitulo explora os novos aparelhos e a nova paisagem da aldeia diante
dos novos hábitos.
O primeiro e o segundo capitulo descrevem a relação dos Mbyá Guarani com o
consumo, e como vivenciam as relações econômicas da sociedade envolvente; através dos
45
Essa cartilha será elaborada no mês de março e abril com o apoio dos professores
indígenas da aldeia.
37
depoimentos podemos perceber a descoberta, os sentimentos e desejos que impulsionam as
relações econômicas que eles acabam por aperfeiçoar diante das relações de consumo.
O terceiro capítulo narra a relação dos Guarani com o aparelho de TV, onde e como
surge o desejo de possuí-la. Descreve, também, a entrada da TV na Aldeia Sapukaia, como
os Guarani reagiram aos aparelhos e qual o espaço ocupado pela televisão no cotidiano da
aldeia. O capítulo aborda as influências no cotidiano através de novas brincadeiras e das
palavras aprendidas através da televisão, o encontro e a possibilidade de se conhecer mais
sobre o universo jurua. Esse diálogo estabelecido entre os Guarani e os brancos será
descrito através dos programas assistidos e comentados pelos Guarani.
O quarto capítulo reflete a noção de imagem Guarani e a imagem transmitida pela
televisão. Descrevo os programas mais assistidos e procuro interpretar sua recepção:
Caminhos do Coração (Os Mutantes) e o desenho animado do Pica pau. Neste capítulo,
portanto, reflito sobre o imaginário Guarani e a TV, dando ênfase aos mitos Guarani. A
visibilidade da narrativa mitológica e onírica para os Guarani parece ser crucial para
apreender o que pensam sobre a televisão e as imagens que ela produz, o modo que esta
relação se estabelece e propicia uma ressignificação da cosmologia Guarani diante dos
novos aparatos tecnológicos.
Por fim, o trabalho que apresento é fruto do espírito investigativo, da paixão pela
antropologia e de uma intensa relação e diálogo com os Guarani que do mesmo modo que
eu estavam mobilizados para compreender e significar o surgimento da televisão em sua
aldeia. A percepção deles das imagens televisivas nos remetem a sua própria percepção de
imagem e de ‘olhar’. Através da televisão foi possível compreender a concepção de imagem
mbyá Guarani o que pode contribuir para a compreensão dos usos das novas tecnologias pelos
ameríndios.
38
1 - A Introdução da Luz Elétrica na Aldeia Sapukaia: novas
perspectivas.
39
Desenho do professor Alessandro sobre a televisão.
1.1. O Projeto luz para todos e a introdução da eletricidade.
40
Ao retornar à Aldeia Sapukaia encontrei as residências com luz elétrica. A aldeia,
antes caracterizada pelo silencio, apenas interrompido pelos ‘gritos’ dos Guarani, com o
intuito de comunicar aos demais a presença de um não-índio na aldeia, abriu espaço para os
sons oriundos dos aparelhos de televisão e DVD.
Os objetos tecnológicos foram introduzidos na aldeia após a instalação da Luz
elétrica durante 2004 e 2005, e 2006 pelas empresas ELETRONUCLEAR e
ELETROBRÁS responsáveis pela execução do projeto Luz para Todos do Governo
Federal.
Foto 1. Crianças Mbyá em momento de lazer. Acima fios que levam a eletricidade para as
casas.
O Programa Luz para todos LPT é um programa Nacional de Universalização
do Acesso e uso da energia elétrica para todas as regiões do país, o programa foi instituído
41
pelo Decreto n* 4.873 de 11 de novembro de 2003
46
. O objetivo do programa é atender até
o ano de 2008, 2,5 milhões de famílias brasileiras, cuja porcentagem maior encontra-se em
área rural; a idéia é beneficiar 12 milhões de pessoas, segundo nota da Eletronuclear, cujo
acesso à energia elétrica por parte dessas famílias irá facilitar a integração das mesmas aos
serviços de saúde, educação e abastecimento de água e saneamento, bem como aos
programas sociais.
O objetivo principal com o programa LPT é favorecer a permanência das famílias
no meio rural com uma qualidade de vida melhor, pois segundo a lógica do programa, com
a chegada da energia, as pessoas adquirem eletrodomésticos e equipamentos diversos, o que
possibilita um aumento da renda familiar. A expectativa dos órgãos com a instalação da luz
na aldeia, além das que acompanham o ideal e objetivo do projeto LPT, é a de que as
pessoas atingidas possam desenvolver outras atividades e gerar renda para a subsistência da
comunidade.
De acordo com o decreto, o programa é coordenado pelo Ministério de Minas e
Energia (MME) e operacionalizado com a participação das Centrais Elétricas Brasileiras
Eletrobrás. A execução do projeto tem como executores as concessionárias e
permissionárias de distribuição de energia elétrica e as cooperativas de eletrificação rural,
autorizadas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Participa ainda a
Comissão Nacional de Universalização (CNU), o Comitê Gestor Nacional (CGN), os
coordenadores regionais, Comitês Gestores Estaduais (CGE), Agentes Luz para Todos e
46
O programa LPT terá uma continuidade, pois faz parte do Programa de Aceleramento do
Crescimento (PAC) do Governo Federal.
42
governos estaduais
47
. A Eletrobrás é responsável por administrar e gerir os recursos
financeiros.
48
A Ligação da Luz elétrica nos domicílios é gratuita. De acordo com a nota:
“A ligação da energia elétrica nas residências, com a
instalação de um ponto de luz cômodo (até o limite de três), e
duas tomadas, é gratuita e pode ser solicitada à concessionária
de distribuição de energia elétrica ou à cooperativa de
eletrificação rural que atende ao município, por qualquer
família residente na área rural”.
Dessa forma, o programa acredita garantir o acesso de famílias vulneráveis ao
programa, ou seja, as que possuem pouca renda. O Programa se destina a todos, entretanto
prioriza famílias que se beneficiam do programa Bolsa Família nos Municípios atendidos
pelo LPT.
Segundo uma avaliação do Governo em 2006 sobre o programa, ele possibilitou
uma melhoria na vida das pessoas. Em 65% das famílias atendidas a energia melhorou as
condições de trabalho, de saúde e de educação; em torno de 375 mil pessoas adquiriram
geladeiras, 440 mil adquiriram televisores, e a permanência das pessoas no campo
aumentou.
49
As terras indígenas foram focadas pelo programa como áreas rurais carentes de
melhores condições de vida.
A implementação do programa, nas terras indígenas, acompanhou as diversidades
locais, em algumas localidades, trabalhou em conjunto com as comunidades indígenas.
47
Os governos estaduais também participam com recursos para a eletrificação das
comunidades.
48
Esse projeto proporcionou mão de obra local, atuando também como um gerador de
novos empregos.
49
PLPT informes. Dezembro de 2006.
43
A participação da comunidade através da parceria entre empresas e comunidades
pode resultar no sucesso da inclusão de energia em algumas aldeias, possibilitando aos
indígenas um entendimento sobre o uso da energia. Para ter uma resposta positiva da aldeia,
as empresas proporcionaram reuniões com as comunidades, e elaboraram cartilhas sobre o
uso adequado da energia elétrica.
Em São Paulo a FURNAS, empresa responsável pela eletrificação nas aldeias
Guarani do Litoral sul e Vale do Ribeira providenciou um levantamento antropológico para
avaliar as reais necessidades, a disponibilidade financeira e as expectativas das aldeias em
relação à luz elétrica.
O levantamento possibilitou refletir como anexar a eletricidade, e que tipo, levando
em consideração os aspectos culturais de cada grupo envolvido, como por exemplo, a
mobilidade
50
.
“Tratando-se de grupos diferenciados, mesmo referindo-se a
grupos locais (aldeias), detentores de uma mesma cultura, não é
possível estabelecer um padrão de tratamento homogêneo para
determinados aspectos como a tecnologia mais adequada
em virtude de diversidade de aspectos pontuais a serem
considerados, como por exemplo, a expectativa da comunidade
em relação à sede do município, a distância da aldeia até a rede
de distribuição local, as características ambientais, aspectos
econômicos, entre outros” (Eliana: 2004:13).
50
Nesse aspecto a conta de consumo de energia fica no nome do morador que ali habita no
período da instalação.
44
Eliana (2004) discutiu os seguintes temas durante as visitas realizadas, por ele e
uma equipe técnica com profissionais das FURNAS e da ELEKTRO, às aldeias:
- os benefícios gerados pela chegada da energia elétrica: conforto, possibilidade de produzir
artefatos durante a noite, e o uso de aparelhos eletro-eletrônico, assim como possíveis ações
integradas na construção de um centro cultural, ou projetos que possam beneficiar a
agricultura; no caso do Vale do Ribeira o cultivo e a comercialização de mudas de pupunha.
- riscos de acidentes e informações sobre o uso da eletricidade, como por exemplo, os
riscos com o uso indevido de ‘gato’ (instalações clandestinas).
- uma avaliação das possíveis tecnologias a serem utilizada no repasse de energia, como por
exemplo, a tecnologia fotovoltaica. Essa tecnologia é preferida por comunidades de difícil
acesso á aldeia, devido vegetação local, o que gera empecilhos para a colocação de postes.
A tecnologia convencional foi incluída nas aldeias de: Aguapeú (Mongaguá), Bananal
(Peruibe), Piaçaguera (Peruíbe), Uruity (Miracatu), Pindoty (Pariquera-açu), Guavitary
(Iguape) Jakarei (Cananéia) e Tukamby (Cananéia).
O levantamento antropológico possibilitou medidas necessárias voltadas à
introdução da energia elétrica nas aldeias do Litoral sul e Vale do Ribeira priorizando, no
ponto de vista deles, o modo de vida tradicional, ao mesmo tempo, suprindo as expectativas
que as aldeias possuíam com a luz elétrica. O dialogo entre técnicos, antropóloga e
indígenas possibilitou, naquela região uma orientação continuada para o uso seguro e
eficiente da energia, por meio de material gráfico
51
; O levantamento realizou um estudo
sobre a renda familiar e a possibilidade das famílias arcarem com a conta mensal de
energia.
51
A idéia é de confeccionar cartilha bilíngüe sobre o uso da energia. Essa idéia foi
incorporada pelos Guarani de Sapukaia, que estão discutindo a produção desse material
com o Comitê de Energia e a Eletronuclear.
45
Na Aldeia Sapukaia o projeto do LPT foi bem recebido pelos Guarani, mas sem
uma discussão ou um levantamento prévio de seu uso e beneficio. Segundo meus
interlocutores, o projeto foi anunciado na aldeia por técnicos e dirigentes de várias
instituições, dentre as quais a FUNAI, ELETRONUCLEAR, e ELETROBRÁS,
posteriormente, após a apresentação do programa, ele entrou em execução. Assim que a
instalação da luz elétrica nas residências foi concluída, eles realizaram a inauguração, com
a presença das instituições idealizadoras, de representantes da SEE entre outros.
A inauguração do termino das obras e da luz nas residências ocorreu na escola
indígena Karai Kuery Renda, praticamente todas as famílias se fizeram presentes no evento
e os Mbyá manifestaram um pouco dos anseios e desejos com a introdução da eletricidade
na aldeia. O pajé admitiu que “a luz assusta um pouco. Em entrevista à repórter Cristiane
Ribeiro da Agência Brasil, Seu João admitiu, vamos precisar da ajuda da Funai e também
desse pessoal que colocou os postes e os fios aqui na aldeia. Eu não sei nem ligar a
televisão e tenho que aprender para ensinar o meu povo, referindo-se as instalações
elétricas e ao uso de aparelhos eletrônicos.
O programa LPT beneficiou toda a aldeia com a instalação de um marcador de
energia da distribuidora Ampla em cada residência; A tarifa a ser paga pelos Guarani é a
tarifa cobrada em áreas rurais, 0,29 contra 0,49 em área urbana.
De acordo com Algemiro, após essa inauguração, aconteceram duas reuniões com
técnicos da ELETRONUCLEAR e ELETROBRÁS cujo intuito era explicar sobre o uso da
luz, e os cuidados necessários com fios e aparelhos, e criar uma cartilha com essas
explicações. Passaram-se três anos e a cartinha ainda não foi elaborada, entretanto as
46
duvidas dos Guarani continuam, principalmente após a queda de um relâmpago, que
queimou alguns aparelhos eletrodomésticos
52
.
52
Os Guarani deram a sua própria interpretação sobre os relâmpagos, sobre esse tema ver o
quarto capítulo.
47
Foto 2. O trajeto para Aldeia Sapukaia.
O trajeto para a aldeia não possui iluminação pública, para adquiri-la é preciso um
pedido formal dos Guarani à prefeitura, e isso implica mais uma taxa para as famílias
pagarem, segundo um dos meus interlocutores, os Guarani deixaram assim, pois apesar da
taxa ser barata, muitos não podem pagá-la. A situação segundo ele é critica, e citou um
exemplo: disse que uma família o procurou avisando que não pagaria sua conta porque não
tinha dinheiro, ele me explicou que a conta era apenas a taxa, no valor de 8,00 e que a
família usou muito pouca a luz. Muitas famílias possuem dificuldade de pagar a taxa única,
em especial, as famílias que vivem somente da comercialização do artesanato.
Algemiro não tem dificuldade em pagar sua conta, e possui um controle de seus
gastos; a sua ultima conta foi no valor de 14,00, sendo 8,00 de taxa e o restante de um
programa que aderiu e ainda não cancelou. Mas ele alerta que usa pouco a luz, apenas
durante toda noite para manter a casa iluminada, não possui televisão e não tem geladeira,
ambos os eletrodomésticos, ele usa na casa de sua filha, que fica próxima da sua e no seu
joapyguá (espaço, terreno que abriga todas as famílias).
48
Sua filha Sueli paga mais de 20,00 de conta, o valor de cada conta de luz varia,
conforme o consumo do mês; a variação no valor das contas ocorre com as demais famílias,
algumas famílias que usaram muito a energia ao se depararem com a conta alta diminuiram
o uso do chuveiro elétrico. Após a instalação da energia, os Guarani adquiriram vários
aparelhos de televisão, que ficavam ligados por horas à fio, praticamente dia e noite.
A expectativa dos Guarani com a implementação e uso da eletricidade era grande,
assim como, em muitas outras populações indígenas; no Rio Grande do Sul, os índios
Kaigang e os Guarani da Terra Indígena Guarita criaram uma expectativa visando
melhorias com a eletrificação em suas aldeias. Para eles, a luz possibilitará comprar
máquinas e equipamentos para auxiliar na agricultura e na preservação das carnes. A
expectativa em aldeias do sul do país é, também, a de impulsionar a produção de artefatos.
Esses povos tiveram 1.071 ligações residenciais.
49
1.2. Os desejos e expectativas para com a eletricidade.
A introdução da eletricidade na Aldeia Sapukaia aconteceu sem um dialogo intenso
e participativo com a Aldeia. A luz era um desejo da maioria dos Mbyá Guarani, cuja
expectativa maior estava em poder fazer uso dos aparelhos eletrodomésticos. Durante anos
de trajetória e mobilidade desse povo, um dos aspectos que caracterizou e distinguiu a
relação deles para com a cidade fora à ausência da eletricidade na aldeia, e o
desconhecimento de suas técnicas e objetos. Narra
53
Luis, uma das lideranças,
“A cidade tinha luz, quando vi a cidade pela primeira vez
ficou feliz, tudo claro, as luzes clareava tudo, podia ver tudo a
noite”, “muito bom isso, e a televisão?” Diz, “era muito
bonito, ia dormir perguntando: como era diferente, como
faziam aquilo tudo, era magia? Como funcionava? Porque
não tínhamos todas aquelas coisas?”e ainda frisa: “quando
estava diante do objeto não sabia mexer, e meu avó? tinha até
medo, hoje não, a geração está sabendo, um aprende e ensina
pro outro, mas no meu tempo, tudo era diferente”.
Luis via a importância da luz, assim como a desejava, segundo ele,
“Nossa Aldeia podia ter uma luz, não? Será que nós vamos
acabar com a chegada da luz? A comunidade fica preocupada
sim, mas só pensa nas coisas boas que a luz tráz”.
- O que? Averigüei, e a resposta foi clara:
53
Os depoimentos foram transcritos seguindo as falas Guarani.
50
“Ter luz durante a noite, pois torna o teko’a seguro durante
toda à noite, é bom a casa dormir com a luz acessa, e assistir
televisão, gelar os refrigerantes, escutar música, nossa, a
comunidade gosta”.
Apesar do desconhecimento de como usar a eletricidade, os perigos de fio
desencapado, entre outros, as Mb desejavam a luz, e sua introdução na aldeia gerou
otimismo e satisfação por parte da comunidade. Um Mbyá comentou sobre seu otimismo,
disse:
“Eu estou feliz, tenho uma televisão, é tão bom assisti-la,
porque o jurua (não-índio) critica isso? Eu fui vender
artesanato em Parati, o jurua perguntou: - Hei índio, você
tem televisão? E disse, você está igual ao branco. Eu pensei,
poxa, estou feliz de ter uma TV, índio não pode ter? Porque
tudo só o jurua?”
Existe um desejo dos Guarani em possuir eletrodomésticos, em especial televisão,
quem consegue adquirir um desses objetos fica feliz, alegre, a satisfação é compartilhada
com os demais membros da família, quem não a possui assiste os programas nas casas dos
parentes.
Antes de possuírem eletricidade, os Guarani faziam uso do lampião e o gasto com o
querosene era alto, em 2003 cada litro custava 2,75 centavos, atualmente custa 3,80
centavos nos estabelecimentos locais. Costumavam gastar três litros por mês para iluminar
a casa durante a noite e para economizar o querosene, apagam o lampião por volta da 22:00
51
horas. O valor
54
entre o querosene e a luz pode ser equiparado, mas nada se compara a
possibilidade de usar equipamentos como a televisão.
A tecnologia não era de desconhecimento dos Mbyá Guarani (ver próximo capítulo
sobre a televisão) e muitos dos Mbyá Guarani conheciam os aparelhos da tecnologia não-
índia. Televisão, geladeira, fogão, DVD, celulares e computadores são conhecidos e
desejados pelos Mbyá. A Mbyá Guarani Maria, mãe de cinco filhos, sempre quis um fogão,
quando ganhou um ficou feliz, e sempre que pode comprar o gás, quando não pode
comprar, pede o dinheiro para um não índio, mas faz de tudo para usar diariamente o fogão.
Segundo ela,
“Quando disseram, a luz vai chegar, pensei logo na televisão,
em ganhar uma geladeira, mas depois pensei: se for como o
gás? De onde arrumar dinheiro para usar sempre? Se quebrar?
Ninguém sabe arrumar, não entendemos”.
À vontade de usar o objeto, após sua aquisição é grande. A preocupação de Maria
tem seus motivos, e se revelou surpreendentemente necessária após a introdução da
eletricidade na aldeia. Para faz de tudo para pagar sua conta de luz em dia, pois não quer
ficar sem assistir televisão
55
. Manter um eletrodoméstico ou outro objeto como os DVDs é
bem mais complexo para os Guarani do que adquiri-los. A aquisição de um aparelho
televisor, ou um outro aparelho tecnológico, por parte dos Guarani tinha como o maior
empecilho além de poder usá-lo na aldeia, a negociação para adquiri-lo, pois os Guarani,
54
A eletricidade pode sair em conta para os Guarani, se comparada com o valor do
querosene, entretanto, os Guarani acabam gastando mais com outros objetos oriundos de
propagandas e programas televisivos. Esse tema será abordado no próximo capitulo.
55
Isso irá repercutir na alimentação Mbyá.
52
em grande parte, não compreendiam, e muitos não compreendem a abertura de contas,
crediários ou empréstimos e muitos realizam estas negociações sem compreender os
processos envolvidos, apenas sabendo que podem levar os objetos desejados para casa.
Vejamos o que diz a jovem mãe Ará sobre o que significa a aquisição de um
eletrodoméstico: “eu não sabia que podia entrar numa loja sem dinheiro e comprar, isso é
bom”.
Essa facilidade em realizar uma compra gerou entre os Guarani um interesse em
adquirir vários produtos e artefatos. O Cacique e lider espiritual da aldeia, João da Silva
Vera, narrou-me sua vontade e a dificuldade em levantar um empréstimo.
“Recebi do banco uma oferta, nossa, mas não achei que fosse
uma oferta, achei que o dinheiro era meu. Fui correndo, nossa,
descobri que não, estava ali na carta, podia ser meu, mas eu teria
que pagar ao banco, em parcelas. Nossa, fiquei pensando, como
pode? O banco vai fazer isso para um índio? que bonzinho, o
banco. pensei , você sabe da história do jurua, lembra? eu te
disse, ela toda, então, o jurua não é bonzinho, ele não dá dinheiro
pro índio, nem terra, conseguir essa terra aqui foi difícil, muito
difícil, isso porque ela não tem mais nada, não tem caça, não
para plantar muito, nossa, mais mesmo assim tinha jurua que não
queria dar a terra para o índio, então porque o banco era
bonzinho? Fiquei muito tempo pensando, pensando...”.
No meio da narrativa ele deu uma pausa para risos, retomando a fala posteriormente:
“Passei muito tempo pensando, o outro parente falou, faz um
empréstimo, eu vou fazer, nós pagamos aos poucos para o banco,
53
uma vez por mês com a aposentadoria, é certo ter para pagar, o
banco faz isso para facilitar”, disse o meu parente. Eu ainda
pensei mais, ai jurua me explicou que o banco cobrava esses
juros, que tinha o lucro dele. Eu estava certo, jurua não pode ter
banco bonzinho, rs. Ai eu fiz um empréstimo para o meu filho,
para ele comprar coisas e ter dinheiro, ele comprou colchão,
muitas coisas. Mas foi difícil, eu fui ao banco e não entendia
nada, o moço explicava e eu não entendia”.
Ele pára, olha e diz:
“Meu filho entendia tudo, eu não. Tinha que assinar, nossa,
mais uma coisa difícil, assinar, e será que depois iriam dizer que
eu assinei coisa errada? Bom, eu fiz sem entender o que estava
escrito, confiando no meu filho. Foi bem, ninguém me cobrou
mais nada. Isso tem um tempinho, depois fiz mais, rs”.
De acordo com João da Silva pagar a conta não foi tão simples como o seu parente
falava. Nenhum dos empréstimos que fez foi fácil de pagar. O primeiro empréstimo que fez
foi difícil assim como os outros, mas não passou o aperto do último. Nesse ele teve
dificuldade, atrasou a conta, teve que pagá-la em duas vezes, nesse mês, ele recorda que
fazia uma alimentação por dia, pois o artesanato não vendia bem. Esse mesmo problema é
enfrentado por vários outros Guarani.
54
Duas famílias que não quiseram se identificar disseram que fizeram empréstimos
para comprar televisão, entretanto, o artesanato não vendeu bem, gastaram dinheiro com as
passagens para Parati a fim de comercializá-los, mas não obtiveram nenhum retorno
financeiro. Eles tiveram que pagar a conta com o dinheiro da aposentadoria. Então
disseram: “O que sobrou? Muito pouco, mal dava para comer”. Resolveram investir mais
na comercialização dos artefatos, mas novamente não foram bem sucedidos, vendendo
muito pouco. Em suas palavras:
“Comer foi difícil então o jeito era visitar um parente. Ia e
comia um pouco, as crianças comiam na escola. Difícil, eu não
tinha bolsa família, aposentadoria. Depois tive sorte, ganhei
a bolsa família, um alivio, as crianças ficaram alegres”.
Indagado se houve arrependimento em fazer o empréstimo para comprar o
eletrodoméstico e usufruir um pouco do dinheiro, ele foi enfático ao dizer que não, que
todos gostam de assistir TV. Mas disse que não vale a pena fazer o empréstimo para ter
dinheiro, pois acaba logo e a conta demora meses, o mesmo não ocorre com os aparelhos,
que duram mais; de forma que para adquirir dinheiro ele não fará mais empréstimos, mas
para comprar outros eletrodomésticos sim.
Seu plano é adquirir primeiro uma geladeira. Segundo ele,
“É possível fazer a conta na própria loja e ficar pagando
meses à loja. Eu paguei doze meses o empréstimo, agora vou
comprar direto na loja. Agora estou esperando um pouco,
pois tenho muita coisa, mas vou comprar e pagar na
prestação”.
55
Negociar com a própria loja foi difícil no inicio, conversando com Pedro, um jovem
pai, pude observar essa dificuldade, segundo ele,
“As lojas sempre existiram, mas nós não entravamos nela, não
comprávamos as coisas como agora. Antes da eletricidade,o
Vera (nome de um parente em Guarani) que comprou um
fogão, mas não foi da loja. Outros ganharam os objetos, até
celulares nos ganhávamos. Agora, acho que de 2004 até hoje
foi que passamos a entrar nas lojas e comprar. Mas também
agora não fico com vergonha”.
O receio de entrar num estabelecimento existia entre os Guarani, ainda segundo
Pedro,
“Dava vergonha, as mulheres são as que mais tem vergonha
de entrar, é sério, parece que as pessoas olham estranhas,
pensam que vamos roubar. Agora a gente entra e compra. Eles
olham e atendem bem, mostram o produto”.
Pedro da uma pausa para risos, e continua:
“Agora eles até nos ensinam a usar os aparelhos. Eles
explicam sobre a prestação, eu entendo, mas tem parente que
não, mas compram assim mesmo e vão pagando. Agora
compro pouco, mais comida, mas tenho TV, DVD, Fogão, e
geladeira. As mulheres quando vão as lojas adoram, e acham
bonitos os aparelhos”.
56
Poucos Guarani se recusam a realizar empréstimo ou possuir prestações em lojas,
geralmente mulheres, os homens mais velhos e os mais jovens e que possuem renda,
realizam compras a prestação para diversos fins, até mesmo para comprar chuteiras e
roupas para jogar futebol. Entretanto os Guarani que possuem renda fixa (aposentadoria)
acabam realizando compras em seu nome para um filho que não pode adquirir o produto,
seja por não possuir renda comprovada ou por já estar devendo à loja. Assim, mesmo sendo
contra o excesso de objetos, considerados pelos mais velhos, como do mundo jurua, eles
acabam realizando compras para filhos e netos, que por outro lado, pagam as contas com
dinheiro ganho na venda de artefatos Guarani.
No entanto os Guarani não se sentem à vontade para falar sobre suas compras e
empréstimos, o que dificulta um panorama das famílias e o uso que fazem do dinheiro,
alguns que realizaram as compras dizem ter uma certa vergonha em demorar para pagá-las,
pois o jurua paga e à vista, Pedro frisa que,
“O Guarani tem dificuldade em pagá-las e depois sente isso
quando não consegue comprar comida”.
No entanto o desejo de possuir os eletrodomésticos, os objetos como os cd, as fitas
de vídeos e os DVD, é enorme. “É vontade”, diz Pedro, Mauricio comenta: “é bom ver e
ouvir as músicas do jurua”; o desejo frisa Antonio, “me fez perder a vergonha e entrar na
Insinuante”. Comenta:
“Eu nunca entrava na loja, mas um parente comprou lá, então
eu passava, passava, olhei uma televisão enorme, que bonita.
Fiquei olhando, a vendedora veio e disse: - entra! Pode entrar!
Isso sorrindo, alegre. À vontade de ver uma TV enorme de
perto me fez entrar. Nossa tudo era muito bonito, ela mostrou
57
tudo, DVD, eu vi um karaoque, tudo, mostrou tudo, eu ficava
sem graça, não sei explicar, quando a vendedora ofereceu café,
eu queria, mas não aceitei de vergonha. Mas fiquei feliz
naquele dia. Comprei em doze vezes uma televisão pequena e
um DVD”.
A expectativa que grande parte da comunidade de Sapukaia tinha com a chegada da
eletricidade se concretizou: fazer uso das lâmpadas durante a noite, usar os
eletrodomésticos, e garantir iluminação para o posto de saúde e à escola.
Alem dessas expectativas, eles acreditam que possíveis projetos possam se
concretizar para o benefício da aldeia, mas mantiveram-se receosos em criar expectativa.
“Projeto é coisa de jurua e funciona do jeito dele”, diz um Guarani, descrente com as
ações não-índias na aldeia.
Apesar dessa descrença nos projetos, alguns estão em andamento na aldeia com a
autorização dos representantes da comunidade (forma como se referem internamente à
aldeia). Mas existe uma dificuldade para acompanhar o andamento do projeto no dia-a-dia,
ou melhor vivenciá-los. Os indivíduos Mbyá Guarani, em especial, as mulheres, preferem
ficar em casa e dar continuidade a suas atividades diárias. Estar nas reuniões, assim como,
auxiliar na elaboração e execução de projetos, cabe às lideranças que ficam sobrecarregadas
e, muitas vezes, não possuem um retorno da comunidade que está ocupada em realizar o
plantio, olhar as crianças, produzir artefatos próprios da cultura e conversar com filhos e
familiares
56
.
56
E em grande maioria, à noite ou pela manhã, ficam assistindo televisão.
58
Dessa forma, eles não realizam uma avaliação desses projetos e quando o projeto
deixa de beneficiá-los deixam-no de lado. Os idealizadores e as lideranças ficam sem um
retorno da comunidade, sobre o que não funcionou e o porque, para então tentar em
conjunto alternativas para melhorar o projeto.
Atualmente os Mbyá estão engajados em novos projetos para a aldeia e na
continuidade de outros projetos, dentre os quais a padaria. A padaria faz parte de um
projeto que visava uma melhoria na alimentação Guarani proporcionando uma geração de
renda para uso comum. Criada em 2006, com o apoio da Irmã Eunice, a padaria tem os
Mbyá como gestores, são eles que fazem os pães
57
, vendem e administram
58
as compras
para a padaria. A padaria produz pães para comercialização entre os Guarani, no entanto ela
também vende: melancia, água, macarrão, frango, arroz, café, pastéis, salame, óleo de
cozinha, ovos, refresco guaravita, sucos, refrigerante diversos e doces: Maria mole, pé-de-
moleque, doce de leite, goiabada, suspiro e balas diversas.
Veja abaixo algumas fotografias da padaria:
57
Apesar de possuírem a padaria, grande parte das famílias Guarani, preparam como
alimento, para acompanhar o café matinal, ou seu lanche noturno, o tipa, cuja massa é
elaborada com trigo, sal e água.
58
O lucro obtido com a venda dos produtos é depositado na conta da associação, entretanto
não tive nenhum acesso a documentos sobre esses lucros e sua possível distribuição, ao
contrario, as informações que chegaram é que o dinheiro fica restrito à manutenção da
padaria e às pessoas envolvidas. Ao que me parece, o projeto caiu no desinteresse, como
citado acima, de forma que a maioria não participa, apenas consome os alimentos, tratando
a padaria como uma espécie de venda na aldeia.
59
60
61
62
Foto 3. A padaria.
A esse projeto de “Segurança Alimentar Indígena”
59
se amplia ao eco-turismo; O
turismo ecológico, patrocinado pela Petrobrás faz parte de um turismo eco-cultural
sustentável, ação no âmbito de geração de renda.
O objetivo desse projeto é apresentar as danças, as músicas e tradições Guarani,
com a venda do artesanato, assim como, proporcionar ao turista, banhos de cachoeira e
passeios pela aldeia
60
. O pacote do projeto, com direito a almoço e a apresentação do
grupo de dança custa 17,00 reais por pessoa. Os artesanatos são expostos no local para que
o visitante, enquanto aguarda a apresentação do grupo, possa adquiri-los.
Outros trabalhos tiveram continuidade, dentre os quais o trabalho do Posto de
Saúde da aldeia, o Oonhanemo ma’endu’a Porarêi Casa para lembrar do remédio. O
Posto de Saúde é um projeto da Prefeitura com o Governo do Estado e Governo Federal e
59
O projeto se inicia concomitantemente com a instalação da luz e faz uso da mesma no
funcionamento da padaria, entretanto é fruto de idéias e propostas dos Guarani e de alguns
jurua ao longo dos anos.
60
O evento ocorre num espaço próprio, construído próximo ao posto de saúde para esse
fim. No local eles fizeram duas casas, uma replica do opy, outra, replica da casa tradicional
onde vivem.
63
que hoje possui uma médica para o atendimento das mulheres, pois estas não deixavam o
médico examiná-las. Dois médicos, dois agentes de saúde, uma enfermeira e duas
auxiliares de enfermagem compõem a equipe de saúde da aldeia. As doenças são poucas e
restringem-se a infecção urinaria nas crianças e gripe, os problemas respiratórios tiveram
uma grande queda, talvez, devido uma intensa campanha do posto de saúde com o intuito
de diminuir o uso intenso do petyngua (cachimbo Guarani, usado para dialogar com
Ñanderu (Deus)) e do fogo no interior das residências guarani.
A escola também mantém suas atividades, embora coordenada pela Secretária de
Educação do Estado procura seguir o currículo diferenciado trabalhado pelos Mbyá. Os
professores Algemiro, Valdir e Alessandro (Karaí, Vera Poty e Vera Mirim), identificados
no decorrer desta tese pelos seus nomes em português, fazem uso constante dos objetos
tecnológicos. Todos esses futuros professores
61
possuem celulares, fazem uso de câmeras
fotográficas, tanto dos celulares quanto das câmeras digitais, sabem filmar (as aldeias
possuem filmadoras), e sem exceção, fazem uso do aparelho de televisão. Alguns como
Valdir e Nirio (da Aldeia Araponga) estão realizando parte da monografia em vídeo, onde
expressam as narrativas dos mais velhos sobre o nhemongarai
62
e o milho guarani.
Da mesma forma que esses professores hoje vivenciam a realidade da aldeia diante
dos novos objetos eletrônicos, esses professores criam suas próprias indagações sobre a
cultura Guarani diante dessas mudanças
63
, a necessidade em preservar os rituais, e a
própria atuação deles como professores e sua participação na comunidade.
61
Eles atuam nas aldeias como contratados e estão na etapa final da formação de
professores coordenado pelo Protocolo Guarani – MEC/ FUNAI/SEE-RJ, ES, SP, SC, RS,
PR.
62
Ritual de batismo Guarani que pode ser um nhemongarai de nominação da criança, e um
nhemongarai do milho.
63
No quarto capítulo abordaremos sobre essas angustias, conflitos e reflexões dos Guarani,
inclusive dos professores.
64
Desses professores, em especial os mais velhos, presenciaram momentos
opostos à realidade atual de ‘valorização’ da cultura, momento em que a sociedade não-
índia sequer queria ouvir falar de ‘índios’, negando-lhe assistência institucional. À época,
existia apenas o SPI (Serviço de Proteção ao Índio) para dar conta de diversas realidades
locais e de toda a diversidade indígena do país. Os Guarani, apesar da resistência,
mantendo sua língua e suas famílias, tinha como idéia aprender mais, aprender o
português. Por isso, Algemiro foi aos nove anos de idade, assim como seus irmãos,
estudar na escola do jurua por orientação dos pais e depois deu continuidade aos estudos
por interesse próprio. Ao se deslocar para Paranaguá, continuou estudando, e quase foi
pastor. Nesse momento, o mais importante era tentar algo novo
64
, diz ele.
Posteriormente a conjuntura mudou, a política indigenista ganhou força e apoio de
várias instituições e da sociedade civil. Com a abertura democrática, a sociedade não-índia
buscou os ‘índios’, ‘índios’ esses que os Guarani não conheciam
65
. O reflexo dessas
mudanças fez com que eles se voltassem mais para a questão ‘de ser índio’ trocando
informações entre Aldeias Guarani e criando projetos em conjunto, como a elaboração do
primeiro Cd com músicas tradicionais Guarani, que reuniu as Aldeias de Boa Vista,
Sapukaia, Rio Silveira e Itaoca. Passaram a buscar os ‘costumes’ referente à vestimenta
dos ‘antigos’, à memória, resgatando antigas tradições e anexando outras à cultura
Guarani, como o uso de cocares
66
. Os mais velhos passaram a mostrar os tetymankua, um
artefato de uso pessoal, confeccionado com fios de cabelos e entrelaçados nos tornozelos
64
Não possui seu canto e não dança, apenas acompanha os demais, mas conhece bem o
português, sendo o maior contato dos não-índios com a Aldeia Sapukaia.
65
Os ‘índios idealizados’.
66
Atualmente os Mbyá Guarani estão se referindo apenas como Guarani. É uma espécie de
busca por representações objetais, no sentido de Bourdieu (1996) cuja busca é pelo
consenso sobre o sentido, em particular sobre a identidade do grupo através de um discurso
performativo que enfatiza a unidade.
65
(mulheres) ou joelhos (homens); atualmente, eles relembram os que os avos contavam
embora se questionem
67
diante do ‘novo’. A quantidade de visitas às aldeias assim como
as várias alternativas dos jurua para ‘ajudar os Guarani’ produziram novas configurações
sociais nas relações com a sociedade envolvente.
No entanto essa relação com o não-índio através de reuniões e apoio para os
projetos, o uso de artefatos e eletrodomésticos da cidade, ou seja, lidar com pessoas
diferenciadas e com as mudanças oriundas de novos aprendizados e observações
68
, geram
vários questionamentos e dúvidas para os Mbyá em que passam a indagar sobre a essência
Mbyá Guarani e a forma de ser Mbyá.
Da mesma forma que refletem sobre as novidades eles as vivenciam. Assim, todos
admiram e gostam das imagens na TV, se divertem, riem muito e se informam com os
programas, se distraem, como revela Kuaray, um de meus interlocutores, da mesma forma
que aprendem palavras novas, jogos novos, comportamentos novos (essas questões serão
abordadas no próximo capítulo).
O fluxo de imagens oriundas da televisão foi intenso logo após a introdução da
eletricidade na aldeia, sendo necessário uma nova introdução tecnológica: as antenas
parabólicas. Maria narra que após ganhar seu aparelho mal conseguia ver as imagens da
televisão.
“Nossa consegui ganhar um aparelho de televisão, muito
bom, fui correndo ligar, mas depois de conseguir ligar, na hora
fiquei com medo, mas ai ligou e nada, confusão, não
conseguia ver a imagem, tinha umas coisas no meio da tela,
67
Essa reflexão retorna no quarto capítulo.
68
As questões retornam no terceiro capitulo desta tese.
66
um canal dava para ver, mas o canal que eu queria assistir não
dava para ver nada. O parente falou para comprar uma antena,
todos estavam com dificuldade de ver a televisão. Então fui ver
e comprar essa antena”.
Decepção geral, a maioria dos Guarani estavam limitados a assistir a TV através da
péssima imagem dos canais televisivos que não eram captados por uma antena parabólica.
Segundo Maria, não era possível assistir televisão, os vizinhos jurua que residem próximos
da aldeia explicaram para os Guarani a necessidade de uma antena parabólica, “com a
antena grande, poderíamos ver tudo”, disse Maria e, realmente, com a antena eles
conseguiriam ver as imagens com definição e a Tv passava a ter um outro significado. Os
Guarani não tardaram a se informar sobre essas antenas, alguns foram nas lojas, outros
receberam vendedores na aldeia.
Fotos 4. Casa com antena parabólica
67
Valdir comprou sua antena na loja, escolheu a Century por ser uma das melhores,
disse que a maioria das antenas na aldeia Sapukaia são Century, custou 500,00 reais, pagos
em 12 vezes sem juros.
Considera ter realizado uma boa compra, mas disse:
“Tem pessoas que compraram antenas de segunda mão, do
jurua que mora perto do campo, as antenas estavam boas, mas
para comprar uma antena de segunda você tem que pagar com
dinheiro e na hora sai mais barato, 200,00 ou 250,00. Isso eu
não tinha, ai fiz prestação”.
Todas as casas que possuem televisão em Sapukaia possuem uma antena parabólica,
o mesmo ocorre na Aldeia Guarani Paraty Mirim, em Parati, estado do Rio de Janeiro.
Segundo Sérgio,“Quase todos possuem televisão, e uma antena parabólica. As antenas são
todas da Century, que é a melhor”.
A inclusão da eletricidade na aldeia proporcionou um ‘universo novo’ na Aldeia
Sapukaia através do uso constante de novos aparelhos que implicam novas tecnologias,
principalmente os aparelhos de televisão que foram absorvidos como bens de consumo
primário por quase todas as aldeias Guarani. Esse novo hábito, ainda não regrado,
proporciona um acesso a um novo mundo através dos programas televisivos. No segundo
capitulo abordaremos como esse “corpo da Tv ou este objeto material se insere no
cotidiano e o que vem a ser esse novo mundo de imagens.
A inclusão da eletricidade proporcionou, sem dúvida, uma espécie de orgulho e
auto-estima (na ausência de outras palavras para refletir um desejo adquirido, a sensação de
crescer, de possuir um pouco do que o ‘outro’ criou) em possuir objetos do mundo dos não-
índios, uma espécie de apropriação via objetos, posteriormente transformados em objetos
68
com agências próprias no sentido de que passam a interagir com os Guarani gerando uma
nova modalidade de relação social mediada sobretudo por este objetos tecnológicos
69
.
Sobre esse ‘desejo’ de possuir os aparelhos, ele aparece de forma evidente em todas
as ‘falas’, até mesmo o fogão é um objeto de desejo. Um dia Jandira preparava o almoço no
fogão, algumas mulheres chegaram e ficaram para o almoço, essas mulheres, com filhos,
não possuíam fogão. Perguntei o que achavam do objeto, todas as mulheres foram enfáticas
ao dizer que querem o fogão, Irani, uma das visitantes se expressou da seguinte forma:
“Me arruma um fogão, se tiver bujão é bom, se não tiver eu
aguardo e vejo com outra pessoa. Eu quero muito um fogão.
Se você tiver também uma televisão usada trás, eu preciso
muito”.
João, certa vez, em 2004, expressou o orgulho de ter sua casa limpa, disse que sua
mulher varria todos os dias, que a casa ficava como a do jurua, bem limpa e que sua mulher
usava bem o fogão. O ‘mundo’ do jurua atua como um referencial, um modelo e apesar de
viver em contato constante com nossa sociedade essa distância fôra marcada até então pelos
Guarani através dos objetos.
Os Guarani possuem orgulho ao declarar possuir uma TV e ficam indignados
quando um não-índio questiona os novos objetos que possuem: “parece que não podemos
ter TV”, disse Mauricio, que ainda acrescentou:
“O jurua, veio olhou, e perguntou: - hei, você ainda é índio? Eu
disse: sou, sou índio, porque? Ele falou: Ah, você não é mais
69
Ver Lagrou (2007) para a idéia de agência através dos objetos. Ver também Gell (2000) e
Assis (2006).
69
índio não, você tem televisão, geladeira, celular, você está igual
o branco”.
Esses comentários, após a inclusão da eletricidade na aldeia foram frequentes e os
Guarani sentem o peso dessas indagações dos não-índios sobre as aquisições dos novos
objetos tecnológicos, como reflete João da Silva:
- “Será? Será que jurua está com inveja?”
Maria disse:
- “É perigoso isso”.
João da Silva comenta:
- “Mas jurua não está errado, ainda somos índios? Claro que somos, mas o jovem
está deixando costume do índio, quer ficar vendo televisão (...)
70
”.
Duvidas, receios e reflexões dominam os pensamentos de vários Guarani, os mais
velhos ficam preocupados e buscam uma forma de refletir sobre o comportamento dos mais
jovens, esses, por sua vez, são os que mais absorvem os aparelhos tecnológicos como DVD
e celulares. Mas é ilusão achar que os mais velhos ou as mulheres não façam uso das novas
tecnologias.
71
A preocupação do lider João da Silva é compartilhada com as outras lideranças das
Aldeias Itaxin em Parati-Mirim e Aldeia Guarani Araponga
72
, em Patrimônio, ambas em
Paraty – RJ.
Durante uma visita a Aldeia Araponga com o professor Guarani Nirio, filho de
Augustinho, ‘cacique’ (denominação jurua utilizada pelos Guarani, mas que não da conta
70
Esse diálogo continuará no quarto capítulo da tese.
71
No decorrer do trabalho essas relações serão descritas assim como o sentido atribuído aos
objetos.
72
A Aldeia Araponga adquiriu uma Placa Solar em 2004 e seus habitantes possuem vários
aparelhos tecnológicos.
70
do complexo sistema de lideranças dos Guarani) da aldeia, presenciei seu desabafo sobre a
mudança que os Guarani sofreram. Segundo Auguostinho,
“A cultura mudou, mas o Guarani não pode deixar ela acabar.
Tudo está acabando. O rezador entra no opy, cadê os yvyrayja?
Não tem ninguém, ele fica ali sozinho, até dorme, não tem
jovem mais. O jovem não acredita mais, prefere fazer as coisas
de branco. Se não fosse os jurua a nos escutar... O Vera, ah, o
Cacique João disse, que jurua vai pra aldeia e escuta cacique,
aprende, porque o Guarani não quer escutar os mais velhos?”.
Augustinho fitou-me firme. Eu estava usando meu petyngua, o que chamou sua
atenção, e ele disse:
“Você, eu gosto disso, olha, você é jurua mais faz uso do
petyngua, na hora certa, o jovem não quer mais usar o
petyngua. O jovem e muitas crianças querem ir para cidade,
usam muitos brincos nas orelhas, olha o cabelo, olha aquele
ali?”.
Augustinho apontou na direção de um jovem de sua aldeia com os cabelos
avermelhados e disse:
“Aquilo ali é cabelo de índio? Não, é cabelo de jurua, todo
pintado, eles ficam pintando cedo, querem ficar igual o jurua
da cidade. O cacique João reclama também, diz que a
71
juventude não quer mais fazer como antes, e agora? Agora
eles só querem televisão e escutar rádio
73
”.
2. O Uso das tecnologias.
As tecnologias ganham destaques na Aldeia Sapukaia e fascinam os Guarani com
seus novos produtos, como por exemplo, os telefones celulares que não dependeram da
eletricidade para fazer parte do mundo das relações Guarani. Porém, foi preciso tempo para
que os Celulares e os computadores pudessem ser incorporados no espaço Guarani como
ocorrera com a televisão.
2.1. Os computadores.
Os Mb tiveram seu primeiro contato com um computador em 1998, através do
Projeto do Comitê Democrático de Informática. O projeto de inclusão social da informática
fez a doação de três computadores e organizou o primeiro curso de informática na aldeia
para os Guarani. O curso foi realizado no Posto de Saúde, onde os computadores ficaram
primeiramente. Após o curso, e um pequeno período no Posto de Saúde, os computadores
73
Esse depoimento do Cacique e pajé da Aldeia Araponga Augustinho continua no quarto
capítulo.
72
foram deslocados para a escola que não possuía na época lugar adequando, o que levou os
Guarani a deixar os computadores na casa de Irmã Eunice, coordenadora do projeto e
missionária do CIMI. Os computadores ficaram na casa da Irmã por quatro anos, quando
um Guarani precisava usar o computador ia até a casa de irmã Eunice que ficava em
Bracui, próximo da estrada que leva até a aldeia. O computador era procurado apenas pelas
lideranças, em especial os professores e os membros da associação, que realizavam
reuniões na casa da Irmã Eunice, mas acabavam usando bem pouco os computadores.
Esse projeto de Inclusão propiciou uma experiência em ensino de informática com
os Guarani na própria aldeia; o curso foi ministrado por técnicos em informática que
transmitiram o conhecimento técnico do que era um computador e como os Guarani
deveriam utilizar o teclado.
Segundo Bárbara
74
, a professora de informática, os Guarani se mostraram surpresos
e felizes com o computador, mas na prática davam pouca importância ao curso não
conseguindo compreender bem como utilizá-los. Dizia que muitos apenas olhavam o
computador nos primeiros dias e não se arriscavam a mexer em nada; os alunos, mal
tocavam nos teclados. Bárbara salienta que o que gostavam mesmo era de comercializar
seus artefatos e ofereciam várias peças ao término de cada aula. A avaliação que Bárbara
faz é de que o mundo dos teclados era de difícil compreensão para a comunidade pela sua
ausência no cotidiano, segundo ela:
“As pessoas não precisavam de computador e sim de comida,
quem chegava com comida e roupa era bem recebido, eles
usavam, e o tempo gasto com o curso era importante para
outras atividades”.
74
Comunicação pessoal.
73
Ela também avalia, que poderia ter ajudado mais os Guarani se tivesse um preparo
adequado, mas o projeto era pioneiro e ela ainda imatura nas experiências com a profissão,
não conseguindo, portanto, avançar no aprendizado deles com os computadores; e apesar de
saber informática, ela acredita que deve-se buscar uma forma melhor de se aplicar a
informática em populações indígenas.
O que Bárbara não sabe, é que esses computadores se tornaram obsoletos, pois os
cursos não tiveram continuidade e os Guarani que foram seus alunos não levaram adiante o
uso do aparelho. Quando o computador começou apresentar problemas, foi deixado de
lado, até chegar um não-índio para consertá-lo.
Em 2004 eles obtiveram mais três computadores. Todos esses computadores foram
alocados no posto de saúde, onde permaneceu por uma semana. Posteriormente os
computadores foram levados para a escola, onde permaneceu até 2006; recentemente, os
computadores ganharam uma das salas anexas à padaria
75
que também possui um espaço
para lanches e recreação (duas mesas grandes com bancos). O fato dos computadores não
terem permanecidos na escola visto que se trata de base para a educação dos professores
não foi esclarecido, entretanto pode estar associado à falta de espaço. Os Guarani ganharam
em 2007 novos cursos e aprenderam Word, Excel e a trabalhar com desenho; num curso
dado recentemente, eles aprenderam a gravar um cd no computador.
Apesar do envolvimento de alguns Guarani, em torno de oito indivíduos
76
na sua
maioria jovens, em participar dos cursos, o uso desses computadores acaba restrito, os
demais não participam, tornando os computadores sem uso para a maioria. A sala dos
75
Esse projeto de Inclusão da informática foi desenvolvido por Irmã Eunice, a mesma que
ajudou e participa do projeto de eco-turismo, do qual a padaria faz parte.
76
Apesar de alguns Guarani saberem digitar, quando necessitam redigir um ofício procuram
um jurua para elaborá-lo devido sua complexidade.
74
computadores permanece fechada por semanas. Varias vezes tentei conhecer a sala e estava
sempre fechada.
Foto 5. Sala de informática fechada.
Segundo Ernesto,
“É difícil usar o computador, eu não entendo e fiz um curso,
mas muito complicado. Eu fico querendo entender como pode
isso, ele faz como? Depois, ele é difícil de usar, se eu mexo em
algo que não sei muda tudo. Mas eu também não tenho tempo
para ficar ali digitando, eu tenho que pegar lenha, fazer outras
coisas. Saber usar o computador é bom para o professor, para
fazer oficio, mas eu tenho que fazer artesanato para vender. Ai
quando vou logo desanimo e paro de digitar. Mas quando
apareceu eu gostei, mas agora, não uso”.
Alguns dizem não entender o que fazer com os computadores; esses aparelhos
penetraram na aldeia antes mesmo da luz ser fixada.
Maria comenta que não entende nada, “não sei como meu irmão consegue fazer
isso”, ela ressalta que prefere ficar fazendo artesanato. Apesar dessa relação ainda
75
insipiente com os computadores se comparada às relações com os telefones celulares e com
a televisão, seu uso possibilitou conhecê-lo um pouco mais e os Guarani de Sapukaia
arrumaram nomes
77
em Guarani para as partes dos computadores, nomes que surgiram por
orientação de idealizadores do projeto
78
e do professor de informática, cuja denominação é:
- Computador: auvu reru (palavra ou memória);
- Visor: ovtan (janela);
- Mouse: anguja (rato);
Embora os cursos tenham proporcionado um pequeno retorno no processo de
aprendizado do uso da informática
79
, os Guarani desconhecem muito das técnicas que
possam ajudá-los a reforçar o estudo e importância da oralidade entre eles como o uso do
VoIP
80
para a comunicação entre aldeias. Na Aldeia Morro dos Cavalos em Santa Catarina
a situação é diferente, pois teve (e tem) um trabalho pedagógico centrado na cultura e na
oralidade, em uma ação conjunta com a escola e, assim, foi possível adequar o computador
a um entendimento por parte dos Guarani.
Experiência desses Guarani com os computadores é descritas por Junior (2007). Em
setembro de 2004 o autor foi ministrar a disciplina de Comunicação e Informática na
comunidade, após negociações e encontros com os Guarani. Ficou latente para Junior a
necessidade de adequar a informática à compreensão da cultura Guarani.
77
O mesmo não ocorre com a televisão e os celulares, idem a geladeira.
78
Ou troca de experiências entre os Guarani das várias aldeias, fato este que tem ocorrido
nas aulas proporcionadas pelo Protocolo Guarani que reúne professores Guarani do Sul e
do Sudeste.
79
Os jovens ainda usam pouco porém quando estão em cursos e locais de acesso fazem uso
dos bate papos na Internet e não participam mais pela dificuldade em digitar.
80
Voice over IP (Voz sobre IP – é um sistema que possibilita a transmissão de voz sobre o
protocolo Internet).
76
Junior ministrou a disciplina de informática para crianças de 1* a 4* séries, assim
como, aos alunos do EJA (Educação de Jovens e Adultos). O professor de informática
dialogou com os indígenas ensinando a história do computador e porque foi criado pelos
não-índios, explicando que o computador surgiu como uma ‘arma’
81
de comunicação para a
guerra, segundo o Junior:
“A decisão, portanto, passava a ser de cada um ali presente que iria adquirir o
conhecimento daquilo que era uma arma, podendo ser apontada contra si, ou desengatilhada
e reconceituada, utilizando-a para um novo fim”. (2007: 03)
Os Guarani, segundo o autor, entenderam o significado do computador e a
necessidade de resignificá-lo para sua cultura e, dessa forma, passaram a dar nome em
Guarani para o computador que passou a chamar-se arandu omõi Porãa (guardador de
conhecimentos).
As partes principais do computador foram denominadas pelos Guarani: angudja
(rato/mouse), ombopararaa (escrevedor/teclado), djetxauaka (que se deixa ver/monitor),
owetã (janela) e nhandu kya (teia de aranha/rede de computadores).
82
Dessa forma os
Guarani da Aldeia Morro dos Cavalos se familiarizaram mais com os computadores, o
avanço das aulas despertou a necessidade do uso da tecnologia em função da oralidade, a
possibilidade de falar e escutar-se via VoIP. O autor constatou em sua experiência a
necessidade de elaborar Softweres Livres nos computadores da escola e a tradução de parte
desses Softweres para a língua Guarani-Mbyá.
83
.
Toda essa compreensão dos Guarani de Santa Catarina sobre os computadores,
assim como outros conhecimentos é repassada de Guarani para Guarani e, atualmente, eles
81
O autor se baseia em Mattelart. A. A comunicação-mundo. Vozes, Petrópolis, 1994.
82
Ver 2007:04
83
O autor continua avançando com esse trabalho na Aldeia Morro dos Cavalos.
77
usam além das visitas tradicionais, o espaço dos cursos para professores indígenas para
trocarem essas experiências. Em Bracui, o computador ganhou um nome Guarani, mas
consideram difícil denominar algo que não é da própria cultura; se recusam, por exemplo,
aos casamentos com jurua, assim como, batizar e nominar (nhemongarai) qualquer não-
índio (esse fato ocorre em outras aldeias Guarani do Rio de Janeiro e de São Paulo)
84
.
Apesar do nome e de um grupo de Guarani interessado, a relação entre o
computador e eles caminha de forma lenta. O computador continua a ter problemas, fica
esperando dias e meses por um técnico Juruá, que possa consertá-lo, visto que os Guarani
não possuem qualquer noção técnica, nem mesmo Leandro, responsável atualmente pela
sala e possuidor de um bom conhecimento de informática. Seu conhecimento foi adquirido
quatro anos em sua Aldeia de origem, Ka’guy Poty na Argentina, no Laptop de um
pesquisador inglês que o ensinou a manuseá-lo. Leandro, Guarani Mby’a cujo nome é
Kuaray Mimbi, está na Aldeia Sapukaia há mais ou menos dois anos, ele chegou na aldeia e
foi incorporado pelo projeto.
A sala de computadores é aberta conforme o tempo que Leandro tem para ser
disponibilizado ao projeto. E o tempo de Leandro é curto para tantas atividades, ajuda na
casa em que vive e da qual pretende fazer parte como genro de Seu José, ele ajuda pegando
lenha, fazendo casa, participando do preparo da terra para o plantio e fazendo companhia
aos mais velhos, isso, sem mencionar as idas e vindas à cidade para vender os artefatos por
ele confeccionado; por fim, a dedicação à sala de informática
85
é o que sobra de suas
obrigações sociais.
84
O mesmo ocorre nas aldeias do Sul do país e no Mato Grosso.
85
Onde trabalha sem nenhum retorno financeiro, o que dificulta uma maior dedicação.
78
Fotos 6. A Sala de Informática
Leandro informou-me sobre o objetivo do projeto
86
, cuja idéia é a produção de
vídeos sobre o cotidiano da aldeia, filmes esses produzidos pelos próprios Guarani. A idéia
é aproveitar a TV de forma positiva e não ‘para passar a cultura do juruá’. Dessa forma, o
uso e aprendizado do computador voltado à produção de vídeos é a tecnologia como forma
de combater a outra forma de tecnologia. Apesar dessas idéias, os computadores são usados
86
Interrompido no primeiro semestre de 2008 esperando uma possível renovação.
79
para consultar e-mails e para se informarem sobre o que ‘acontece no mundo’.
Foto 7. Leandro na Sala de Informática.
80
Quando Leandro abre a sala, os Guarani que estão na padaria se dirigem para
a sala, outros, sabendo que a sala está aberta, fazem uma visita. Alguns apenas olham
animados o monitor do computador, sempre com uma foto deles ou com um vídeo; outros,
fazem uso lendo seu e-mail ou MSN. Depois olham os sites, o bate papo não é comum ali,
segundo Leandro eles tem medo de alguém que eles não conhecem, “não se conversa com
quem nunca conheceu”, mas desconhecem a realidade de outras aldeias.
O fato de ter MSN não significa que façam uso, e muitas vezes não sabem como
usá-lo. Segundo Algemiro, no último encontro de formação dos professores indígenas da
região Sul e Sudeste, ocorrido no Paraná, havia uma sala com computadores e Internet
disponível, segundo ele, ‘tudo mal usado’, pois os Guarani estavam ‘curtindo’ um bate
papo na Internet.
“Eu quis fazer trabalho e quando entrei olhei, sala cheia,
nossa, todo mundo aproveitando, pensei. Então entrei para usar,
olhei, hum, todos só no bate-papo”.
Do que eles mais gostam no computador? Indaguei. Ele sugere: “Não sei, mais eles
gostam da tela, é bonito. Gostam de ler os e-mails”. Com MSN nos computadores fica uma
dúvida se fazem uso do bate papo ou não, entretanto, fica claro, não possuírem uma
urgência em usar a sala. Segundo Leandro:
“Só quando eu venho e abro a sala que os outros vem. Mas se
eu não abro por umas duas semanas, fica fechado, e ninguém
chama. Se for urgente pode chamar, mas não me chamam. Eu
fico fazendo minhas coisas, meu artesanato para vender”.
Entender e buscar um lugar para o computador no cotidiano da aldeia parece-me um
desafio para os Guarani, assim como o próprio processo de absorção da tecnologia.
81
Segundo Algemiro,
“A tecnologia faz desviar o pensamento, como o professor
vai ensinar a usar a tecnologia? O celular, a partir de que ano
se nas mãos da criança? E mais, ela pode possuir um? A
família não vê, e quando não entende os problemas que
isso tudo tráz para a cultura
87
. O jovem a televisão bem de
perto, ninguém, nenhum Guarani diz que não pode ficar
perto, isso é responsabilidade do professor, na aldeia, eles
acham tudo legal, propaganda, programa para criança, o pai
deve controlar, como? O professor deve estar preparado para
lidar com isso, e o computador? Como vamos usar na
escola?”.
As indagações de Algemiro refletem os conflitos gerados pela tecnologia, como
passar por cima da autonomia do Guarani, com a qual ele pode agir e tomar uma decisão
sozinho sem ninguém para recriminá-lo, outro problema é como regrar o uso dos aparelhos
eletrônicos, dos quais o DVD e a televisão são ‘campeões’ de uso diário.
O computador ainda esta em processo de uso por uma minoria, até os professores
usam pouco, segundo Algemiro, mesmo sendo professor, não conseguiu colocá-lo no seu
dia-a-dia, mas visualiza a elaboração de tarefas com fotografias e digitação de textos para
elaborar no computador. Segundo ele, seu tempo é curto, devido aos cursos e viagens, mas,
87
Devido o intenso contato de Algemiro com os jurua, ele apresenta indícios de um
discurso não-índio bem elaborado, no qual a tecnologia na aldeia leva a um
enfraquecimento da cultura, podendo até mesmo acabar com ela. Isso gera um problema
para ele no interior da aldeia, pois não consegue passar esse discurso e impedir o uso de
novas tecnologias por parte dos Guarani. Ele mesmo se deixa seduzir por essas tecnologias.
82
“Quando estou na aldeia quero ficar em casa, olhar minha
mulher, minhas filhas, fazer algum artesanato e assistir um
jornal, rsrs”.
Diante da distância de Algemiro, professor, para com o computador, resolvi indagar
sobre a dimensão que faz de aparelhos tecnológicos.
- Qual o objeto tecnológico você não deixa de usar? Perguntei.
- “O celular”, disse ele, e frisou: “eu não posso ficar sem o celular para falar.
2.2. Os celulares e Dvds.
Diferente dos computadores, os celulares assumem um papel cada vez mais
importante com o passar do tempo na vida dos Guarani; os Guarani passaram a usar bem
mais os celulares, da mesma forma que passaram a atribuir um tratamento para esses
objetos. Mas isso demorou um bom tempo, antes, no período de 1998 - 2003, os Guarani
não atribuíam valores aos celulares.
Atualmente, eles atribuem valor ao celular, valores de cuidado e necessidade, assim
como diversão; os celulares possuem múltiplas funções para os Guarani; na Aldeia
Sapukaia muitos Guarani possuem seu celular, em especial os jovens. Segundo Vera Mirim
“quem não possui um celular quer um”.
Os Guarani atribuem ao celular a importância de se comunicar, a possibilidade de
falar com um parente na hora que desejam é a base da justificativa dos mais velhos e dos
professores para fazer uso desses objetos.
83
Marcelo diz:
“Não tem como ficar sem celular é muito importante, tem
que fazer contato com a aldeia, falar com o parente que está
longe, avisar se acontecer algo”.
Algemiro foi um dos primeiros Guarani a possuir um celular. O primeiro foi Aldo,
agente de saúde, também o único que possui um celular antigo. Algemiro trocou de
celular, atualmente possui um moderno que adquiriu dois anos e meio. Comprou seu
celular na Rede de Lojas Casas Bahia
88
, loja essa preferida dos Guarani, pois é que
grande parte deles adquirem em parcelas seus eletrodomésticos e celulares. Algemiro
comprou seu celular por 490,00 para pagar em doze vezes, pagou 49,00 por mês e seu
celular saiu por 588,00. Segundo ele,
“Eu fui vendo depois de duas prestações que tinha uma coisa
a mais, que eu estava pagando mais, o vendedor falou que ia
sair mais caro por causa dos juros, mas falou dos 49, 00 por
mês, isso dava para pagar, então eu preferi comprar, mas
descobri pagando o que era o juro, e que ele saia mais caro, o
celular que comprei estava na promoção. Comprei e depois que
paguei tudo comprei mais, agora consciente do que é pagar
mais, porém a prestação pequena da para pagar”.
Sua filha adquiriu um celular logo após, comprou nas Lojas Cem Mil, em Angra dos
Reis muito parecido com o de seu pai. A loja tem realizado promoções e tentando atrair os
Guarani às compras, tarefa esta, com grande êxito, pois a loja divide hoje, com as Casas
88
Alguns costumam comprar nas Lojas Cem Mil, uma loja nova da própria localidade de
Angra, em torno de quatro anos, se comparado aos anos da Casas Bahia.
84
Bahia, o mercado consumidor da aldeia; O celular comprado por Célia, sua filha, foi por
um valor menor, enquanto ele pagava 49,00, ela pagava 39, 00, entretanto ele observou
mudanças entre um celular e outro, mas os vendedores segundo eles, “fazem de tudo para
vender, e parece que um celular é melhor do que o outro”.
Ainda segundo Algemiro,
“Eu olho o celular hoje, está ficando velho, eu vou ter que
comprar outro em breve. Ele está bom, mas eu deixei ele cair,
ele ficou um pouco sujo, mas eu consigo usar mais um pouco
antes de trocar”.
O celular de Algemiro apresenta os sinais de que várias crianças brincaram com
ele, e que de certo levou um tombo o que era muito comum entre 1998 e 2003, porém
não existia a preocupação em adquirir um novo e tão pouco cuidavam de retirar o celular da
criança quando ela o pegava para brincar. Atualmente, se eles vêem a criança com o
celular, ficam próximos e mexem no celular com ela, muitos tiram o celular da mão da
criança. Hoje existe um cuidado para não quebrar o celular, principalmente antes de pagar
todas as prestações.
Alexandre possui um celular Nokia da Vivo, comprou apenas três meses, mas a
tela está um pouco quebrada, “isso foi no jogo”, explicou Alexandre, que comprou seu
celular por 390,00 em 8 vezes, com juros, nas Casas Bahia. Ele preferiu adquirir lá, pois
seu pai já tem credito na loja e todos o conhecem. O que tinha vendeu para Alessandro.
Jovens, adultos e mais velhos fazem uso dos celulares. Os mais velhos e poucos
adultos usam os celulares para telefonar avisando se vão para a aldeia, para conversarem
com não-índios ou mesmo sobre datas de possíveis reuniões com os jurua, que telefonam
muito. Os demais usam o celular para o mesmo fim: para marcar e avisar de possíveis jogos
85
de futebol na aldeia ou campeonatos na cidade. Com parente se conversa de tudo:
telefonam para consultar sobre uma possível compra, para marcar uma visita aos familiares
que estão distantes e para conversar sobre diversos assuntos, como filhos, doenças e
problemas.
O celular virou um meio de comunicação na própria aldeia pois ao invés de ir até a
casa da pessoa, a tradicional visita, simplesmente ligam à noite. É comum ligar para dar um
alô, rir e desligar (com exceção dos mais velhos). As poucas mulheres que possuem
celulares fazem uso dele como forma de comunicação na aldeia e para falar com seus
maridos; as solteiras, aproveitam para receber ligações dos Guarani, pretendentes ou
namorados. Estão, sobretudo preocupadas com a aparência e marca do celular.
A filha de Algemiro adquiriu três celulares. Após adquirir o primeiro, Célia gostou
da cor de um celular e resolveu comprá-lo. Depois comprou outro, pelo mesmo motivo,
pela cor e pelas músicas. A cor era rosa, como as meninas da cidade e o celular tinha um
desenho de uma bonequinha. Seu celular era admirado pelas outras meninas Guarani. As
crianças querem o celular para brincar, contentam-se em abri-lo e fechá-lo e a luz que o
celular proporciona com esse movimento é motivo de risos. Também gostam de escutar
musica no celular. Alguns homens também se preocupam com a ‘estética do celular’.
Alessandro decorou seu celular com uma espécie de decalque do seu time de futebol, o
Palmeiras.
86
Foto 8. O Celular de Alessandro.
A beleza do celular expressa na cor e no tamanho do visor (maior, com um visor na
frente é o ideal), chama mais atenção e desperta um interesse maior. Entretanto o que faz
um Guarani escolher um celular x ao invés de um y hoje é a possibilidade de
entretenimento. Os celulares modernos seduzem os Guarani pelas várias possibilidades de
uso; sabemos que todos os celulares possuem a função primordial de comunicar, motivo
esse alegado pelos Guarani para adquirir um celular. Neste caso, qualquer celular serve, não
precisando de muitos recursos, porém o que se observa é a aquisição de celulares capazes
de armazenar jogos e que possibilite os recursos de áudio e fotografia.
Os jovens e vários adultos usam os celulares para escutar música, para fotografar,
enviar mensagens e jogar. Assim que cheguei na aldeia Ernesto e Alexandre, ambos adultos
e pais de família, mostrou-me o quanto dominavam o recurso de fotografia de ambos os
87
celulares, Ernesto não demorou a fotografar-me e depois riam dizendo que eu ficara
diferente na fotografia.
As crianças se encantam ao verem seus pais jogando e fotografando e, também,
querem brincar, mas atualmente os pais não deixam os celulares em suas mãos como
faziam antes. Alguns iniciam um jogo e deixam seus filhos brincar mas ficam ao lado,
ajudando ou olhando. As crianças gostam e pedem aos pais um celular, mas esses além de
não poderem comprar, não sabem se uma criança deve ou não usar um celular
89
. Muitos
pais compraram celulares de brinquedos para seus filhos que usam mas se desencantam por
não possuírem as vozes e cores do celular dos pais. É comum ver os pais usando o celular
para se distraírem.
Segundo Alexandre
“Tem um Guarani que tirou fotos dos parentes que possuem
telefone, e que quando você liga para esse parente a fotografia
e o nome aparece, ele também gostou disso, rs”.
Alexandre queria que eu explicasse como fazer uso desse recurso, eu fiquei de
aprender para ensiná-lo. Meu celular foi motivo de criticas pois era considerado
‘velho’. Vejamos meu dialogo com Ernesto:
- “Deixa-me fotografar no seu celular”, disse.
- Meu celular não possui câmera, respondi.
- “Não? Puxa seu celular é muito antigo, até o meu tem foto, porque não compra um
novo?” Indagou e disse:
- “Compra outro, se você não trocar, eu vendo o meu pra você daqui a uns meses”.
89
Esse tipo de dúvida é freqüente nos professores indígenas, que são indagados pelos pais
como o jurua faz uso do celular, e se isso é prejudicial às crianças.
88
Meu celular além de não fotografar possui poucos recursos de áudio, o que muitos
consideram péssimo, pois não tem como escutar música.
O líder João da Silva tem um celular cujo aparelho é bem vistoso, preto, o modelo é
um dos últimos da Ericsson, que faz de tudo, o visor é grande e as fotografias saem com
boa qualidade. Alexandre sabe fazer uso de todos os recursos, tira muita fotografia e está
sempre a configurar a tela do celular com uma nova paisagem ou fotografia. Usa a
ferramenta notas de voz do celular para gravar conversas e sua voz; depois eles ficam a
escutar a gravação no celular, motivos de risos e alegria. Ele também faz uso do alarme e
do calendário, assim como seu irmão. A agenda do celular, com calendário e alerta,
despertando para o compromisso, chama atenção dos Guarani, que querem usá-la mais.
Os Jovens João e Adilio aprenderam a usá-lo e consultam quase que a cada
momento o calendário, olham sempre a hora e os dias. O que antes era uma confusão, no
caso os dias da semana e as datas para eventos, hoje é uma diversão se ajustado à agenda do
telefone que sempre toca avisando de um eventual compromisso.
Esse aprendizado é recente, Alexandre, em 2005 com seu celular antigo não fazia
uso desses recursos, nem sabia se o seu celular possuía tais recursos, segundo ele, “era um
celular feio, era muito grande, esse aqui é porã (bonito)”, após uma pausa, ele comentou,
“esse é pequeno”. Assim que aprendeu a manusear as ferramentas do celular ele não parou
mais de fazê-lo e quer descobrir o que falta aprender, ele ainda não sabe baixar arquivos da
Internet, apenas sabe baixar jogos, como a maioria, mas para isso tem que possuir no seu
celular muito crédito. O sistema Web Wap no celular ainda não foi explorado por ele e pela
maioria, mas ele já presenciou o uso que um juruá fez desse sistema no bate-papo:
89
“É bom ver tudo, o Juruá mostrou noticias do jogo ali, é uma
espécie de televisão pequena, muito legal, que quero
aprender”.
Alexandre
90
gosta de usar de celular, trocou o que tinha por um bem melhor, em seu
atual celular ele baixou Labirinto, Canal Control, Brothes e Pró Moto, depois colocou na
tela de descanso de seu celular um vídeo. Ele filmou trechos do DVD da Banda de Forró
Rasta Chinelo para o descanso e sempre que abre seu celular a banda aparece e toca por
alguns minutos.
Alexandre me explicou como usar o vídeo, mas meu celular não possuía esse
recurso. “É simples”, disse,
“É só você ir ao cartão de memória, procurar o vídeo e vai em
usar vídeo, aparece a tela, depois clica em como descanso, e
pronto, filma e salva. Eu filmei ali do DVD na televisão”.
Não é raro caminhar em vários joapyguá da aldeia e se deparar com jovens e
adolescentes usando o celular para jogar, as crianças ficam ao lado, aprendendo e
acompanhando. Eles costumam fazer uso dos jogos indicados pelo celular, alguns vem com
o Jogo da Velha, Paciência anexados, mas muitos possuem jogos que carecem de
downloads. Os jogos mais utilizados pelos Guarani, baixados através de downloads são:
- O Jogo da Força;
- Java;
- Canal Control (um jogo de canos, onde esses devem evitar vazamento de água);
- Brothes;
90
Alexandre é Agente de Saúde, é oporaive (curador), bom pai e responsável pelo joapyguá de seu pai,
casado, ele possui quatro filhos.
90
- Colin;
- Pró Moto (corrida de motocicleta);
- Labirinto;
Eles não costumam emprestar o celular para alguém jogar, se alguém quiser jogar o
faz na sua casa ou com o dono próximo. O celular não circula mais entre eles, “cada um
que gosta tem o seu”, disse Ernesto.
Adultos também jogam, Roberto ao se deitar ficou jogando por horas. Estávamos
assistindo o final da novela Caminhos do Coração quando ele iniciou seu jogo. Perguntei o
que fazia e ele ficou em silêncio, então fiquei observando e perguntei a um outro Mbyá, que
disse: “ele está jogando”. Após a novela, nos preparamos para dormir e ele ficou ali,
jogando e se distraindo.
Durante o dia, em alguns momentos observei outros Guarani jogarem, se distraem
por horas. Marcelo estava na padaria e conversava com outros Guarani, ao mesmo tempo
em que tomavam um refrigerante, falavam e brincavam com os celulares, ele não soube
explicar porque gostava tanto de jogar e ficar brincando com seu celular, novo, ele tem
planos de estudar e ganhar dinheiro. Mas reclama:
“Eu não tenho dinheiro para por credito no meu celular,
vendo artesanato, mas às vezes não vendo. Quero ser professor
para ter um salário, a venda não é certa. Fico querendo por
credito. Ponho como todos os outros, 12,00, às vezes 15,00,
agora eu quero comprar um telefone da Oi, meus parentes
dizem que é o melhor, o meu é da Vivo”.
Marcelo cita as duas operadoras usadas pelos Guarani, a Vivo e a Oi. Segundo ele,
os Guarani não percebem muita diferença entre as duas, ele continua com a Vivo porque
91
seu primeiro celular foi da Vivo, neste caso seu primeiro número de telefone; essas
operadoras são as mais utilizadas, já os aparelhos variam de fabricante, eles usam aparelhos
da Nokia, Motorola e Ericsson. Como Marcelo, muitos Guarani permaneceram fiéis a Vivo,
mas vários trocaram. Ele não sabe porque. Mauricio explica que com a Vivo eles falam
bastante, os créditos duram mais. O argumento de Marcelo foi contestado por Roberto,
segundo ele:
“Esses créditos acabam logo, você não pode fazer nada que
vem a mensagem para recarregar o celular, puxa eu penso:
usei tão pouco, porque acabou?”.
Um dia após escutar Roberto e Marcelo, pude observar, em estado de alerta,
Mauricio fazendo uso de seu celular à noite. Ele estava deitado, assistindo televisão, assim
como todos os demais da casa e na cama estava mexendo no celular e de repente passou
uma propaganda sobre lance, o menor lance enviando via torpedo MSN no celular ganhava
como prêmios: televisão, geladeira, maquina de lavar roupas, secadora, uma casa e um
carro. Descobri que muitos Guarani ficam enviando esse tipo de mensagem, cuja tarifa é de
4,76 a ser descontado dos créditos do celular. Mauricio não se dava conta que pagava a taxa
e por esse motivo os créditos se esgotavam. Agora ele está consciente da taxa mas não
deixa de participar da promoção quando tem credito no celular, fazendo seu lance
91
.
Nesse dia, Marcelo também comentou sobre a dificuldade de por créditos em seu
celular e diz que a dificuldade é geral, querer falar todos querem, mas de uma hora para
outra os créditos vão se esgotando. Segundo eles o uso é pequeno, “não deveria acabar tão
rápido!” Indaga. Mas Marcelo usa muito o telefone, sempre está conversando com alguém;
91
O desejo de ganhar prêmios na televisão é enorme, sobre esse assunto ver próximo
capitulo, quando descrevo as propagandas e os sorteios.
92
Entretanto, é bom frisar que ele é de uma família que tem aposentadoria e bolsa família,
quando vende um artefato ele faz uso do dinheiro para adquirir objetos como celulares,
roupas, tênis e cartão para o telefone. Mas nem todos podem realizar esse tipo de compra.
Os Guarani gastam muito com créditos para os celulares, pelo menos duas vezes ao
mês eles repõem os créditos, esse é o caso dos professores, dos agentes de saúde e de outras
lideranças, como João da Silva, que sempre pede dinheiro a algum jurua para por em seu
celular. Quem pode recarregar mais de uma vez seu celular se destaca, quando ocorre uma
urgência essa pessoa é logo procurada. Muitos adolescentes tentam telefonar, pedem o
celular emprestado mas tem dificuldade em poder usar o celular de outro Guarani.
Presenciei um destes momentos quando Marcelo pegou seu celular, e após ir até a pista e
colocar créditos no celular, regressou para a aldeia e se pôs a conversar, falava, falava, as
mulheres dentro da casa começaram a rir. Eu não entendia o porque, até que ele parou de
falar, e saiu reclamando, o credito tinha acabado, então, fiquei sabendo que eles estavam
brincando no celular, ou melhor, estavam contando algo parecido com piadas.
Essa ousadia em manusear um celular e todos seus recursos, foi uma iniciativa dos
jovens e de alguns adultos
92
Guarani, a maioria na faixa etária de 14 a 22 anos, esses jovens
mudaram a relação com o celular. Muitos adultos, como Algemiro, aprendem as novas
técnicas com os jovens, alguns como Alexandre aprendem sozinho e repassam para os
jovens, mas o valor atribuído ao celular e aos cuidados implicados ganharam força na
aldeia devido ao uso que os jovens passaram a fazer desses objetos. Essa relação com os
celulares foi construída aos poucos, o jovem Luis, de 17 anos, sabia mexer e manusear bem
92
Considero jovem aqueles que são solteiros pois uma pessoa de 18 anos pode possuir
atribuições de um adulto quando é casado. O casamento os inseri no universo das
responsabilidades para com a família através de varias atribuições dentre as quais prover o
sustento da mulher.
93
um celular quando adquiriu o seu, ele comprou de segunda mão de um tio, compra essa
muito comum na aldeia pois quando o Guarani quer um novo celular se o que está em uso
não estiver quebrado pode vender mais barato e comprar outro a prestação.
cinco anos atrás era comum ver os celulares quebrados, os Guarani não davam
valor a esse objeto, de forma que ele passava de mão em mão, as crianças podiam mexer à
vontade, o telefone caia na cachoeira, na bacia cheia d’água (foi o caso que observei de
uma criança que brincava com um celular e o levou consigo quando foi tomar banho),
mexer até desconectá-lo, depois e deixavam-no de lado.
Recordo-me do meu primeiro contato com o Cacique João Silva, ele, com todo
cuidado, após permitir a minha entrada na aldeia para realizar o trabalho de campo para
minha dissertação de mestrado, me pediu um presente. Perguntei o que ele queria, e ele
pediu um celular. Isso foi em 2001. Eu o presenteei com um motorola, não recordo o
modelo, mas era um tamanho médio, comprei a vista por 299,00 na época e ele gostou
muito. João da Silva queria conversar com sua irmã, desejava falar com os parentes que
deixaram a aldeia e foram viver numa outra aldeia em São Paulo.
O celular de João da Silva ficava de mão em mão, as crianças pegavam, brincavam,
mexiam nos botões, discavam, abriam e fechavam o celular a cada momento, da mesma
forma que o carregavam por toda a aldeia. Enfim era um objeto para brincar em suas mãos
e nessas brincadeiras, deixavam-no cair.
Após sete meses ele me chamou e entregou o celular, disse que ele não funcionava
mais e, realmente, o celular não ligava. Eu não entendia bem de celulares mas achava que o
problema poderia ser na bateria. Recordando meu primeiro diário de campo, releio o que
ele disse na época:
94
“Toma Kunhã, pode levar de volta, ele estava bom, mas de
repente parou de funcionar, não sei o que houve, ficou assim,
não sei? Se criança mexeu, ele está estragado. Você pode
levar para arrumar”.
Acabei anotando a fala de João da Silva, por ficar impressionada em ter que arrumar
o celular, e por perceber a ausência de cuidado e valor, se comparado ao valor que nós, não-
índios, atribuímos aos nossos objetos. Cheguei a comentar em minha dissertação de
mestrado a ausência de cuidados com os objetos da cultura não-índia versus o zelo pelos
objetos e artefatos da cultura Guarani e indígena. Tamanho foi meu espanto e surpresa ao
retornar para o trabalho de campo e me deparar com a aldeia envolvida pelos cuidados em
relação aos objetos tecnológicos.
Perguntei a Ernesto o que aconteceu:
“Nossa Kunhã Mbara ete, hoje nós sabemos mexer, cuidar,
não temos medo de ficar mexendo. Nós ainda temos medo
dos fios, nisso não mexemos, mas temos que aprender para
arrumar o chuveiro, pois eu uso a água está quente, e logo
fica fria. Mas aos poucos aprende, um pouquinho na
televisão”.
Ernesto completa, que não se pode maltratar o celular, pois se ele quebrar vai ficar
sem, e pior, se ele quebrar antes do fim da prestação. Segundo ele,
“Teve um parente que ainda estava pagando o celular e o
celular estava quebrado, ele não deixa mais a criança quebrar
95
o celular. Assim que terminou de pagar o celular quebrado,
ele começou a pagar o outro que comprou”.
O custo para manter os aparelhos eletrônicos fez com que o Guarani aprendessem a
lidar com esses objetos, e o aprendizado teve um único objetivo: possuir o objeto e mantê-
lo em uso.
Os Guarani fazem uso dos aparelhos de DVD. Na aldeia várias famílias possuem
um aparelho e quem não tem quer um. O DVD possibilita assistir filmes que não passam na
TV assim como os shows. Os aparelhos são modernos e todos adquiridos nas Lojas Casas
Bahia e Cem Mil, por preços promocionais. Alexandre comprou o seu por 190,00 em dez
vezes, João comprou o seu aparelho por 100,00 em quatro vezes. Aprenderam a usá-lo
rapidamente, atentos ao realizarem suas compras, eles tiram as duvidas com a vendedora,
mas João frisa que “aprende mesmo é mexendo”. João usa muito o DVD para assistir
filmes a noite.
Não costumam assistir filmes na TV, a maior parte dos filmes que assistem são em
DVD. Também gostam de assistir os vídeos produzidos nas aldeias
93
.
Os Guarani, em especial crianças, jovens e alguns adultos, preferem os shows.
Durante um mês de trabalho de campo escutavam somente o DVD da Banda Calypso,
oriunda do Estado do Pará. Eu acordava, por volta de 08:30 da manhã escutando:
“Não para não vem cá, me da a tua mão/ quero que sinta toda
essa emoção/ Cavalo manco agora eu vou te ensinar/ Isso e
muito mais você vai encontrar no Pará (...)”. Trecho da
Música ‘A Lua Me Traiu’ da Banda Calypso.
93
Sobre os vídeos que assistem sobre as aldeias despertou o interesse para a própria
produção de seus vídeos.
96
Um certo dia eles perceberam que eu não me sentava próxima da televisão para
assistir o DVD, cujas partes, eles selecionavam para assistir novamente.
- “Você gosta?”.
Perguntou Marcelo.
- Estou me acostumando, vocês entendem o que eles cantam?
- “Eu não entendo muito, meu irmão mais. Acho bonito”.
- o que é bonito?
- “Tudo! O som, as cores, a dança, não da vontade de parar, só ficar olhando”.
Beleza é o que mais chama a atenção, os shows são super produzidos, tanto o da
Banda Calypso, quanto outros, como o Bonde do Forró que foi o mais assistido depois da
Banda Calypso, seguido pela Banda Rasta Chinelo.
Em vários passeios pela aldeia, o que eu mais escutava eram as musicas dessas
bandas, o estilo preferido dos Guarani é esse tipo de forró. De uma casa a outra, enquanto
se caminha pela aldeia, o silêncio é a lembrança de tempos atrás, pois de uma ponta a outra
da aldeia o que se escuta é música oriunda dos aparelhos de DVD. As crianças gostam, e no
inicio, quando desconhecem a banda assistem o musical por várias vezes, mas depois, vão
brincar no quintal da aldeia, as vezes, deixam a televisão ligada e assistem do próprio
quintal.
97
Foto 9. Televisão ligada durante a tarde.
A maioria dos Guarani assistem shows e filmes no DVD. Alexandre e João possuem
vários CDs e DVDs piratas de filmes e shows e um aparelho de última geração. No entanto,
estes aparelhos circulam de casa em casa, no joapyguá
94
, quem possui empresta para quem
não tem.
Os CDs ficam guardados numa caixa ou próximos do DVD, onde todos possam ver
e pegar, inclusive as crianças. Esses CDs ficam sem capa e, freqüentemente, caem no chão.
Os CDs assim como os DVDs não são tratados com o mesmo cuidado (nhanhanga reko
porave’ia) dispensado aos demais aparelhos eletrônicos como televisão e os celulares.
94
Se a televisão apresentar problemas, o aparelho de DVD é levado para outra residência,
onde permanece por dias ou semanas.
98
O gênero de filme preferido por eles é o de ação, todos referentes à luta e à arte
marcial. Alexandre e João possuem vários do Shaolin, do Bruce Lee e os do ator e lutador
Jean Claude Van Damme. A lista de CDs de DVD é intensa. Eles possuem:
- Com Shaolin: Discípulos da Câmara 36; Shaolin contra Os Filhos do Sol; O
Templo de ShaolinII; O Templo de Shaolin III (1978); O Dragão de Shaolin.
- Bruce Lee: Operação Dragão (1973); Bruce Lee; Jogo da Morte.
- Com Jean Claude Van Damme: Garantia de Morte (1990); Vencer ou Morrer
(1993); O Alvo (1993); Risco Máximo (1996); A Colônia (1997) e Soldado Universal o
retorno (1999).
Muitos Cds que gostavam foram aranhados, vários, mas não se recordam dos
nomes; as capas foram perdidas (inclusive as capas dos atuais cds) e não tem como
identificar os filmes de maior preferência. Um dos filmes que tive oportunidade de assistir
com eles (antes do cd aranhar e travar) foi ‘Os Condenados’, o qual destaco para um breve
comentário.
Assim que o filme chegou na aldeia foi logo assistido (procedimento este para com
todos os filmes novos) por Alexandre e os demais. Depois, no outro dia, Luis, que
assistira ao filme, colocou-o novamente e, nesta ocasião as crianças e os demais foram
assisti-lo novamente (no mesmo dia, à noite, Marcelo colocou o filme e, novamente, quem
havia assistido tornou a vê-lo) e assim o filme foi assistido por dias. Do que eles
gostavam no filme? Diziam que gostavam de tudo, das imagens, da ação do filme, que
poucos entendiam as frases pois era dublado. a violência do filme era vista de forma
tranqüila. Alexandre disse entender o filme e explicou tratar-se de um jogo como o que a
Rede Globo de Televisão exibe (BBB), mas que eles não costumam assistir em seu
99
joapyguá: “não gostamos, não sei porque, acho que deveriam sair, porque numa casa?”
E explica que, apesar do filme ser um jogo, ele é bom porque tem ação.
Foto 10. Kerechu assistindo o DVD.
O filme é de pura ação, como os demais. Eu fiquei surpresa, pois assisti o filme após
seu inicio, o que suscitou por parte dos demais longas explicações sobre o filme, resumidas
da seguinte forma:
- “O filme é difícil de entender”, disse Alexandre.
- Sim eu não entendi direito, porque eles brigaram e se mataram, não havia motivo;
respondi.
- “Mas é assim, você vai entender depois, o filme é um jogo, mas eles ainda não
sabem, ganha quem sobreviver”;
- Como assim?
- “É um jogo”.
100
- Vocês gostam?
- “Sim”.
- E as crianças?
- “Também”.
- Elas entendem?
- “Não, mas gostam”.
- Como gostam?
- “Gostamos, é bom”.
E ficamos ali assistindo, atentos e com os olhos na televisão. As crianças em
silencio, faziam um comentário ou outro. O filme sob direção de Scott Wiper mostra um
reality shows elaborado por um grande produtor de televisão cujo jogo é a sobrevivência
diante do limite, onde o mais forte sobrevive. O produtor compra prisioneiros em dez
prisões de diferentes paises e joga numa ilha deserta apenas monitorada por diversas
câmeras.
Um dos prisioneiros era militar americano em missão que todos imaginavam morto,
porém encontrava-se em uma prisão corrupta situada na América Central. Cada prisioneiro
é jogado na ilha, e vivencia seus limites com brigas, mortes e estupros. Ação é o que não
falta, inclusive por parte de quem está assistindo, pois o reality show torna-se o campeão de
audiência. Alguns personagens vão descobrindo que estão sendo filmados e buscam
desmontar o programa
95
. Os Guarani que não assistiram o filme nas primeiras três semanas
logo após a compra do DVD estão impossibilitados de assisti-lo, visto que o DVD esta
arranhado e num determinado momento trava.
95
Ainda no programa, dentro do filme, existe um esquema de corrupção para mantê-lo no
ar.
101
Quando o DVD estraga, eles dão um jeitinho de comprar outro. A compra dos DVD
é realizada com vendedores ambulantes que comercializam os produtos no centro de Angra
dos Reis, cada DVD custa 5,00. Os guarani sabem muito bem que para fazer uso do
aparelho de DVD é necessária uma televisão, e que não é qualquer TV que serve, pois o
aparelho ideal deve possuir uma entrada para o DVD.
Atualmente mulheres, crianças e os jovens Guarani não conseguem imaginar seu
cotidiano na aldeia sem escutar música e assistir televisão. De acordo com Ernesto, Pedro,
Mauricio, Algemiro, Valdir e Alexandre é algo hoje difícil do Guarani deixar de lado, pois,
de acordo com o jovem Marcelo, “nós gostamos” e “vamos sempre ter uma televisão para
assistir as músicas, agora tem luz”. A questão que preocupa os Guarani é como manter os
objetos em uso.
102
2.3. O Impacto dos novos hábitos na Aldeia Sapukaia.
Com a introdução da eletricidade e com o uso dos novos aparelhos eletrônicos, a
primeira pergunta que fazemos é: o que mudou na Aldeia Sapukaia? Qual o impacto dessas
mudanças na vida cotidiana dos Guarani? Deixaram seus costumes? No período de agosto
de 2001 até março de 2002, quando realizava meu trabalho de campo para minha
dissertação de mestrado a aldeia não possuía luz elétrica e nem gerador. Apenas faziam uso
de uma lamparina (lampião), que era num vidro de remédio onde era introduzido um pano
entrelaçado com uma ponta para fora da tampa, o querosene era adicionado no vidro, e
posteriormente acendiam a ponta do pano que permanecia acesa por algumas horas;
costumavam acendê-lo por volta das seis horas, quando iam conversar e fazer a última
refeição do dia. Também faziam, e ainda fazem, uso do lampião na opy (casa cerimonial)
96
,
durante a realização dos rituais e após esses rituais até se recolherem para dormir, o
lampião ficava aceso até acabar o querosene.
Às vezes eles apagavam antes, pois faziam uso planejado do querosene para que o
mesmo não faltasse. Dessa forma, colocavam pouco do querosene no vidro e sempre
aproveitavam o que sobrava, apagando o lampião após um tempo. Nas residências observei
o ritmo do lampião, ele ficava aceso de 18:00 até mais ou menos 21:00.
Várias vezes me foi possível observar conversas animadas entre os casais e os
primos após apagarem o lampião. Esses dormiam um pouco mais tarde, porém nunca
passavam das 22:00. Nesse tempo, eles narravam várias histórias, se alimentavam e então
96
Na Aldeia Sapukaia a opy é feito de barro sob armação de bambu, tem por cobertura um
telhado de kapi’i (sapé), tem um mastro (esteio principal) no centro, onde é anexado o
lampião, e bancos à volta. Num canto dos bancos (varia o local) tem-se o mbaraka (violão),
o ravé, o mbaraka mirim (chocalho). No lado oeste, no canto, um fogo; embaixo dos
bancos tem pequenas flechas dentro de um cesto.
103
iam dormir. Acordados ficavam apenas os xondáro (espécie de vigia, que cuida da aldeia
durante a noite)
97
.
Após a introdução da eletricidade, num primeiro momento, movidos pelo
encantamento com a televisão, passaram a dormir muito tarde, às vezes, de madrugada.
Depois de um período, voltaram a dormir cedo, em especial no joapyguá de Jandira, onde
ficam acordados até desligarem o aparelho de televisão, por volta das 23:40. A luz
permanece acesa por toda noite, o mesmo ocorre nas demais residências. Se antes eles
lembravam os mais velhos e narravam suas historias míticas, atualmente conversam sobre
os programas que assistem (sobre os comentários que fazem dos programas, ver o próximo
capitulo).
Atualmente os xondáro continuam cuidando da aldeia, ficam acordados durante
toda à noite, vigiando e cuidando da aldeia, entretanto, agora eles também fazem uso dos
celulares e se ocorre um problema, como por exemplo, de uma pessoa estranha entrar na
aldeia, ou um Guarani chegar bêbado perturbando sua família e todo o joapygua, o primeiro
que percebe e o fato telefona para os demais. Quando nada acontece, ficam em seus
postos, às vezes, o que é raro, eles jogam um pouco, mas geralmente ficam atentos e
deixam para jogar durante o dia após término do trabalho.
Os diálogos, assim como, as histórias míticas eram narrados quando estavam em
suas casas, e não quando estavam na opy. Na opy eles também conversam, mais as crianças
97
Xondáro também é o nome da dança dos Guarani responsável pelos cuidados corporais. Essa dança é fonte
de força (mbaraete) para entrar na opy, de leveza (era’ a) para o corpo fluir na opy e no dia-a-dia, e de alegria
(ya’a). Na dança dos xondáro os Guarani representam vários animais, as representações mais freqüentes são
do jaguaretê e do macaco, ambos povoam o mundo mítico dos Mbyá Guarani em várias narrativas. O macaco
é sinônimo de leveza. Imitando-o, estão trazendo sua leveza. Ao imitarem o jaguaretê, estão trazendo sua
força. Usam a força da onça e a leveza do macaco para se prepararem para a vida, conforme afirmou Ernesto.
Após a dança, com o corpo leve, os xondáro podem cantar. Segundo eles, o corpo está leve, limpo e saudável,
o que os torna fortes guerreiros. Mais detalhes, ver o quarto capítulo da tese.
104
e os adolescentes, os adultos buscavam o silêncio e o diálogo com o Ñanderu (‘Deus’
Guarani) através dos cantos (poráei) e das danças (jeroky). O tempo do cerimonial das
conversas e dos diálogos fôra ‘interrompido’ cedendo espaço às imagens, que mostravam
vários tempos e múltiplos espaços num momento, materializado no aparelho de
televisão. As imagens via televisão não eram desconhecidas de muitos, no entanto, nunca
foram possíveis de serem apropriadas pelos Guarani antes da chegada da energia elétrica.
Este espaço, antes reservado a Ñanderu foi modificado com a chegada da
eletricidade na aldeia. A televisão despertou o interesse sobre esses ‘outros mundos’, vê-los
através de noticiários e programas ganhou prioridade. Essa nova possibilidade, resultou na
quebra de espaços, requerendo dos Guarani uma readaptação, ainda de forma confusa de
seus ‘velhos’ costumes e dos ‘novos’ hábitos.
O tempo da opy foi o primeiro a ser afetado. Durante o período 2001 até 2003 a opy
estava em pleno uso por parte dos Guarani, as vezes, ainda que a contragosto de muitos
jovens
98
, eles cumpriam as regras de yvyrayja e iam para A opy a fim de participarem do
cerimonial de dialogo com Ñanderu, o que ocorria quase todos os dias. Havia semanas em
que ficavam todos os dias, mas isso ocorria devido ao revezamento entre as famílias, de
forma que, alguns participavam do ritual apenas aos domingos. Após a inclusão da
eletricidade e das aquisições de alguns aparelhos de televisão, a reação da aldeia foi de total
encantamento com os programas televisivos. Pela manhã logo após acordarem, ligavam o
aparelho de televisão. Não se fazia mais nada, apenas as mulheres se revezavam em cuidar
da alimentação para os demais. Fazia-se pouquíssimo artesanato.
Os jovens e as crianças foram os que mais se encantaram e ficavam na frente do
aparelho assistindo os desenhos animados, as novelas e tudo o mais que a televisão
98
Que desejavam ir à cidade, participar de festas e shows, ou arrumar um emprego.
105
proporcionava. Aos poucos, após três meses de contato direto e intenso com o aparelho é
que foram aprendendo sobre os canais e podiam, então, escolher os programas que
consideravam os mais interessantes. Nesse período, os rapazes não confeccionaram os
artefatos de madeira e taquara. As mulheres, poucas, ainda confeccionaram alguns cestos,
mas tudo num processo lento. Foram mais ou menos oito meses de ‘relacionamento’ com a
televisão de forma intensa. Os diálogos com Ñanderu na opy foram modificados.
Nesse período, os Guarani foram aos poucos deixando de ir na opy para ficar em
casa assistindo televisão. Nesse processo, foram adquirindo os primeiros DVDs, o que fez
com que pudessem assistir aos filmes nos horários em que não havia programas
considerados interessantes na TV, como as novelas e os desenhos. A televisão era assistida
até altas horas da madrugada, não existindo um controle por parte dos Guarani. A televisão
ocupou um ‘espaço’ tão grande no cotidiano Guarani que por um momento congelou o
tempo e os espaços dos rituais. A opy foi esvaziando a tal ponto de não ter mais
freqüentadores para que o ritual pudesse ser realizado. Os mais velhos, preocupados,
imaginaram ser um problema ‘espiritual’ que atribuíam a um fato que sucedeu há anos atrás
quando alguns jurua entraram na opy para filmar e isso ocasionou a doença na opy,
revelada agora com ‘buracos’ nas laterais, necessitando assim de uma reforma.
A necessidade de reforma era a justificativa para o esvaziamento da opy, as
lideranças
99
estavam preocupadas em resolver a nova escolha dos Guarani em fazer uso
diário e em excesso dos objetos do jurua. O controle antes exercido pelas lideranças era
impossível diante da autonomia dos Guarani em optarem pela aquisição dos objetos. O
99
O líder João da Silva, também perdera a esposa, o que ocasionou uma tristeza e um
período em silencio, até arrumar sua segunda esposa.
106
lamento, assim como, o receio era grande por parte de João da Silva, quando fiz minha
primeira pesquisa de campo para a realização desta tese. Em 2005 ele me dizia:
“Não sei, você chegou para visitar e encontrou televisão,
agora é assim, não sei, quando olhei, vi que parente tinha
um aparelho, como pode? Não sei, ele gosta, mas eu estou
preocupado, e agora?”.
Todas as preocupações das lideranças que tinham como discurso à não aquisição
dos aparelhos
100
não ajudaram a evitar seu uso e sua interferência no dia-a-dia da aldeia,
principalmente no joapyguá do Cacique, que também ficou adepto dos jornais. Com a TV
ligada diariamente era impossível não assisti-la um pouco, mesmo diante de ressalvas. Os
demais assistiam TV pela manhã, e durante toda à tarde. À noite não saiam das casas e
ficavam assistindo as novelas. Grande parte dos homens assistia à televisão até a
madrugada e desligavam os aparelhos por volta de três horas da manhã. João, pai de três
filhos, que vive com sua esposa no joapyguá de seu pai narrou a dificuldade com a hora de
em dormir, pois queria assistir televisão.
“Hoje, eu não assisto televisão, assisto alguns filmes, mas
logo que minha família comprou um aparelho, ficamos
assistindo. Tudo era bom, a cor, como acontecia. Ligava de
manhã, no período da tarde e durante a noite. Quando
chegava do trabalho não precisava ligar, estava ligada,
alguém, a mulher, a criança, o jovem, alguém sempre ligava”.
100
Algumas lideranças como Algemiro, João da Silva e outros tinham receio de lidar com a
tecnologia na aldeia, mas os demais Guarani ansiavam por essa tecnologia e suas ações se
colocaram à frente de qualquer discurso, seja do jurua ou do próprio Guarani na aldeia.
107
A aldeia se viu num determinado momento envolvida pelas imagens, até as visitas
que os parentes realizavam pela manha na aldeia deixou de acontecer. Ao invés de se
visitarem, os Guarani passaram a ficar em casa assistindo aos jornais televisivos, aos
desenhos animados. Também as visitas para narrarem seus sonhos deixaram de acontecer.
As famílias, cada uma ficava em seu joapyguá, ou seja, em seus espaços e casas assistindo
aos programas.
As visitas internas realizadas pelos Mb eram freqüentes e tinha como objetivo
comunicar os novos acontecimentos na aldeia, dentre esses acontecimentos, existia a
preocupação em revelar os sonhos para os demais parentes e amigos assim como escutar
e participar de seu significado e conversar assuntos diversos, sobre filhos, doenças,
maridos e artefatos. Mesmo sendo uma pratica de grande importância de comunicação para
a aldeia, as visitas passaram a ter uma freqüência mínima nesse período, pois os Mbyá se
deslocavam apenas para assistir televisão em outro joapyguá, isso ocorria no inicio quando
da ausência de aparelho ou diante de uma imagem ruim.
Nesse período (2005), a opy chegou a ficar em torno de oito meses sem um opyguá
(oporaive espécie de grande rezador responsável pela casa cerimonial),
conseqüentemente sem realizar os rituais.
Num dialogo com Ernesto
101
interroguei:
- O que aconteceu? Não tem ninguém na opy?
- “Não, o pessoal estão nas casas”.
- Porque?
- “Não sei”.
101
Ernesto é uma das poucas lideranças que aceita com tranqüilidade as novas tecnologias e
acredita que os Guarani devem ter espaço utilizá-las, para ele é necessário tempo para
entender, compreender, e não vê as mudanças como uma ameaça a vida da cultura.
108
Após risos e uma pausa disse:
- “Estão em casa, é longe, não sei, mas deixa, depois as pessoas voltam, eu mesmo,
vou voltar, deixei por falta de tempo, mas vou voltar”.
Mesmo com os ‘velhos’ hábitos congelados, deixei a aldeia com a certeza de que os
Guarani estavam se divertindo com as imagens. Minha questão agora era, será que vão dar
conta de enquadrar a televisão no cotidiano resgatando os rituais? Será que não vão realizar
seus diálogos com Ñanderu? A preocupação de Seu João, cacique e ‘pajé’ da aldeia me
fazia crer que algum rearranjo mítico
102
se revelaria nesse processo, visando resgatar
‘velhos’ costumes, mas era preciso esperar. Os costumes se tornaram ‘velhos’ e até
‘conservadores’, palavras essas usadas por alguns Guarani.
“Os mais velhos querem que agente para A opy, mas eu
quero jogar bola. Isso os antigos faziam, mas nos temos que
fazer?”.
O jovem Luis refere-se aos diálogos na opy. Mesmo quem nunca participou dos
cantos na opy de forma direta (dialogando/rezando) questiona este comportamento:
“É opção, um costume dos antigos. Eu não faço, outros
fazem. Aqui todos faziam, mas agora querem jogar bola
ou assistir televisão”.
E comenta:
“Os conservadores rezam de uma forma, eu vou, e penso,
peço a Deus, só”
103
.
102
Ver o quarto capítulo.
103
Essa é uma das palavras aprendidas e usada por algumas lideranças, em especial
Algemiro que sabe seu significado.
109
pouco tempo (2006-2007), as visitas e a participação dos Mb nos rituais da
opy passaram a acontecer, no entanto ainda de forma lenta. Ernesto revelou-me que um
mês não visita alguns de seus parentes que vivem na aldeia, alega que seu trabalho para a
FUNASA, no posto, é cansativo e quando chega em casa quer descansar assistindo um
programa de televisão e posteriormente ir dormir, mas quando está disposto ou tem que
cuidar de alguém, como líder espiritual, vai para a opy. Nos finais de semana, ele se reveza
trabalhando no posto quando é chamado, em casa e na opy. O mesmo ocorre com outros
Guarani que após vender artefatos ou trabalhar, chegam em casa cansados e não vão para a
opy.
Existem, também, pessoas que simplesmente não querem ir para a opy. É o caso de
Leandro, que atualmente não vai a opy e assegura que não é por causa da televisão, ou
melhor, para ficar em casa assistindo TV. Não sabe explicar bem o porque, mas não vai a
opy faz três meses.
Ernesto, mesmo sobrecarregado de trabalho, foi aos poucos reativando a opy, como
bom oporaive, indicado foi indicado por Ñanderu através do Cacique e líder espiritual João
da Silva, que é seu pai, para assumir o posto de opyguá (guardião da opy). Ao assumir,
Ernesto conseguiu fazer com que alguns Guarani voltassem a freqüentar a opy.
Ernesto relatou a dificuldade de retomar o ritmo antigo da aldeia e diz que as coisas
não acontecem mais como antes (referindo-se aos rituais). Segundo ele,
“As pessoas também querem ficar em casa, assistindo
televisão, e sair, andar até aqui no centro é longe”.
Assim, tanto os rituais na opy como as visitas Mb tiveram continuidade no
cotidiano Mbyá porém resistiram aos momentos turbulentos em que ambos foram deixados
110
em segundo plano pelos Mbyá e, posteriormente, adequaram-se ao novo ritmo da aldeia, ou
seja, não mais de forma intensa e diária. Atualmente, a opy funciona com uma boa
participação da aldeia nos finais de semana, durante a semana, poucas famílias vão a opy. A
família de Ernesto
104
se encarrega de mantê-lo funcionando grande parte da semana, outros
Guarani, em especial jovens de passagem pelo centro da aldeia entram e participam, o que
gera mais tranqüilidade aos mais velhos e ao próprio Ernesto.
Segundo Ana, “Muitas vezes o carro tira Ernesto da aldeia, e ele não vem, a opy
fica vazio, as pessoas não vão”.
Ela acredita, que se Ernesto estivesse mais na aldeia, todas as noites os demais
estariam mais presente na opy, mas faz uma ressalva importante: “não todos porque muitos
querem assistir televisão durante a semana”, referindo-se as novelas.
Quando retornei por um tempo curto à aldeia em 2007, os Guarani estavam
ressignificando seus espaços, tentando moderar o tempo diante da televisão
105
e buscando
compreender mais sobre as tecnologias, realizando cursos e filmando a si próprios. Os
Guarani procuravam absorver as tecnologias e reservavam um espaço para este novos
aparelhos em seu cotidiano. Os cursos e as tentativas de dominar estes aparelhos era uma
forma de se apropriar deles e enquadrá-los dentro de uma lógica Guarani.
Apesar do interesse pelas novelas e programas, os Guarani resgataram o ritual da
opy, principalmente as mulheres, mais velhos e as crianças levadas pelos pais. Se num
determinado momento eles assistiam em demasia televisão, ao receberem as contas de luz
atestaram que o mau uso do aparelho interfere no valor das mesmas assim como pode
104
Em volta da opy ficam alguns núcleos residenciais: a de Ernesto, Algemiro, Adilio, Aldo.
Atualmente essas famílias, entre outras, freqüentam intensamente a opy.
105
Que ocorreu após um fato climático que foi relacionado como um novo evento mítico,
ver o quarto capítulo.
111
danificar o aparelho. Assim, passam primeiramente a cuidar do aparelho, o que resultou na
diminuição do consumo e, posteriormente, a retornar aos ‘velhos’ costumes como a
produção de artefatos para a comercialização o que garante renda para manter os ‘novos’
objetos e, conseqüentemente, os novos hábitos.
A dependência econômica na aldeia é semelhante a de outras terras indígenas,
devido a uma forte injeção de capital externo a cada trinta dias constituída por:
1- aposentadorias;
2- salários de professores indígenas, agentes de saúde, serventes, agentes indígenas
de saneamento e trabalhadores esporádicos em projetos (como por exemplo o de
ecoturismo);
3- benefícios sociais, como bolsa-família (50% das famílias recebem o auxílio);
4- venda de artesanato.
112
2.4. A Nova paisagem.
A paisagem da aldeia mudou devido o aumento no número de residências.
Atualmente a aldeia possui 70 residências e 80 famílias. Os Guarani construíram mais casas
e intensificaram o plantio nos joappygua
106
abrindo espaços, derrubando árvores, retirando
mato e construindo novas residências.
A aldeia mudou não somente pelo seu aumento no número de habitantes e famílias,
ou pela inclusão da eletricidade, mas também pela idealização e elaboração de um ‘melhor’
uso do espaço através da criação de uma ‘estrada’ que fosse além do centro da aldeia. A
estrada que vai para a aldeia prosseguia até o posto de saúde e a cachoeira (atualmente
próximo da padaria). Ir para o centro da aldeia era impossível devido à ausência de espaço
para trafegar um carro. Havia apenas uma trilha pequena que passava sobre a cachoeira,
sobre a base da trilha havia uma pedra.
Os Guarani queriam a explosão dessa pedra. Para se dirigir ao centro da aldeia, era
necessário passar por este caminho cruzando a cachoeira. A quebra da pedra e elaboração
da nova passagem foi idealizado por um técnico da EMBRAPA que atendia ao desejo dos
Guarani que ansiavam que os carros pudessem chegar até ao centro da aldeia (os carros da
aldeia e de visitantes). A explosão da pedra foi bem sucedida, abrindo espaço sobre a
cachoeira sem bloqueá-la ou danificá-la. Agora, os carros transitam mais pela aldeia e
alguns Guarani possuem seu próprio automóvel como é o caso de Kuaray e de
Domingos, vice-cacique da aldeia.
Em 2007 foi criado o campo de futebol. Os Guarani providenciaram uma máquina
para arrumar o campo de futebol. O campo de futebol melhorou as relações entre homens e
106
Que tomou força em 2004 e 2005.
113
mulheres na aldeia, pois parte das brigas entre os casais acontecia devido à descida dos
homens para Bracui a fim de utilizarem o campo de futebol.
Cada vez que os Guarani desciam para as partidas de futebol interagiam com os
brancos jogando bola, sinuca nos bares e consumindo bebidas alcoólicas em demasia. Os
jovens e as crianças os acompanhavam, às vezes algumas mulheres desciam para assistir as
partidas de futebol entre os Guarani e os times locais. No entanto, essas partidas aconteciam
somente com o pagamento da taxa ao proprietário do campo, o que seria equivalente hoje a
vinte reais. O outro campo de futebol, no qual os Mb jogavam de vez em quando sem
pagar qualquer taxa ficou fora de uso pela comunidade porque o campo foi adquirido pela
Igreja Católica local para construir a primeira igreja da localidade, a Paróquia Santo
Antonio de Bracui.
O fim do campo de futebol comunitário e o alto custo do outro campo de futebol
fizeram com que os Guarani providenciassem o quanto antes o desejado campo de
futebol dentro da aldeia. Buscaram uma alternativa que foi a construção do próprio campo
de futebol
107
.
O interesse e a paixão dos Mbyá pelo futebol foi uma das poucas coisas que não
mudou para os Mbyá Guarani. Após a construção do campo de futebol os jovens e crianças
não saiam mais da aldeia e passaram a se reunir todo final de tarde para jogar bola e se
distrair. No campo eles ficam à vontade, alguns levam o rádio ou fazem uso do DVD ou
rádio da casa próxima ao campo em que escutam músicas sertanejas. Os Mbyá
reproduziram um pouco o ritmo do campo dos não índios na aldeia, colocando música e
fazendo do local mais um ponto de encontro entre eles. No entanto, a partir do momento em
107
Atualmente organizam torneios entre várias equipes Guarani e se orgulham de possuir
uma boa equipe, atribuindo o bom desempenho aos treinamentos no próprio campo.
114
que possuíram o campo, passaram a jogar mais e toda à tarde e não apenas nos finais de
semana, como faziam quando desciam da aldeia para o campo de Bracui.
Os deslocamentos e as novas famílias que foram viver na aldeia tornou possível um
reaproveitamento dos espaços. A chegada dos primos de João da Silva de Chapecó e da
família de Domingos, impulsionou uma reorganização e revitalização dos joapyguá. As
novas famílias chegaram plantando, o que motivou os demais. O plantio de milho tomou
fôlego e 90% dos joapyguá realizaram o plantio de milho, cuja colheita fora dividida e bem
aproveitada por eles que passaram a cuidar mais do roçado.
Foto 11. O roçados e seu pomar Joapyguá do Cacique João da Silva e sua filha
Jandira.
A família de Raimundo chegou de Santa Catarina após adquirir seu joapigua por
intermédio de seus parentes iniciou imediatamente o roçado. Primeiro plantou a mandioca e
115
o milho (avati), em seguida plantou mudas de limão, jaca e goiaba. Depois, iniciou o
pequeno plantio de ervas, umas para benzer doentes, outras para temperar os alimentos,
como o cheiro verde e a cebolinha. As demais famílias que se dedicavam a confeccionar
seus artefatos para comercialização iniciaram um plantio, mesmo que pequeno, como
ocorreu com Maria. Outras famílias se limitaram a observar pois achavam que a terra não
iria proporcionar nada. A primeira colheita de Raimundo foi boa, apesar do milho não ser
bem graúdo estava bonito e bom para o consumo. Vários Guarani foram pedir milho e
algumas famílias que estavam sem ter o que comer sensibilizaram-se com a colheita após
comerem do milho. As famílias que plantavam em pequena quantidade, apenas para não
perder o hábito, passaram a estender seu roçado. A família de Maria, que sempre cultivou
em pequena quantidade, mas que sempre usufruiu desse alimento nas horas difíceis ficou
feliz ao ver outras famílias realizando o plantio da mandioca e do milho. O comentário
passou a ser o seguinte: “A terra pode não ser boa, mas da um alimento. Pode não ser
muito, mas ajuda na hora da fome”.
Para as famílias que mantém a pratica do cultivo, o mais importante é ocupar o
tempo, segundo Raimundo e Domingos é importante manter o plantio como trabalho na
aldeia. Domingos, vice cacique e agente de saúde fala sobre as dificuldades:
“Os jovens não querem mais ajudar, não plantam, quando
vão ficar mesmo com a menina é que vem e ajuda, fazendo
de tudo, mais a gurizada não quer mais fazer esses serviços”.
Ele frisa,
“Em meu joapyguá eu chamo, não deixo sem fazer um
serviço no quintal, limpar, plantar, ver se pode colher o
alimento, como a cana, eu chamo e explico, porque se deixar,
116
não faz nada. Mas eles fazem, alguns ajudam, mas dia de
semana eu não sei, fico trabalhando lá no posto e não vejo”.
Apesar de chamar os mais jovens para o trabalho estes o evitam e o preparo da terra,
assim como o plantio, é realizado pelas mães e pelos pais. Os mais velhos acabam
realizando o cultivo sempre chamando os mais novos que, por outro lado, querem trabalhar
nos projetos, ser professor ou agente de saúde visando sempre uma remuneração. Conversei
com Ricardo de 16 anos:
- Não vai plantar?
- “Não. Não gosto”.
-Porque?
- É difícil, quero fazer outra coisa.
- Se seu tio chamar para trabalhar?
- “Eu vou, mas não quero”.
Uns meses depois andando pela aldeia, observei uns jovens limpando o terreno para
o roçado, ele estava presente, fui conversar com eles que trabalhavam ao som da banda
Calypso.
- Jaudy (bom dia), você aí Ricardo, o que estão fazendo?
- “Jaudy, estou ajudando, limpando para plantar a mandioca”.
Depois fiquei sabendo do seu interesse pela filha de João, a quem ajudava a preparar
o terreno para o plantio.
O que mais surpreendeu é que em 2007 a aldeia estava com maior índice de plantio
nos joapyguá. O plantio se inicia cedo, após o dejejum que é feito assistindo televisão,
partem para o trabalho. As famílias Guarani estavam cada uma com seu roçado, pequeno ou
117
grande, em conjunto com todos os membros do joapyguá ou não, a família interessada não
deixou de plantar; no joapyguá de Jandira, o preparo e plantio foi realizado por todos e a
colheita será distribuída entre todos, assim como ocorre com a coleta do coco, do palmito,
da jaca, das laranjas, dos limões, das amoras, do abacate, e das ervas diversas. No roçado,
eles plantam: mandioca e milho, e passaram a plantar a batata doce, o cará e abóbora.
O cultivo dessas culturas também ocorre em outros joapyguá, como o de Domingos.
No roçado dele e de Raimundo eles plantam: inhame, jerimum, cará, pepino, pimentão,
tomate
108
, mandioca e milho.
O plantio não se limitou aos tubérculos, foi além chegando ao plantio de árvores,
por exemplo, o plantio do palmito Jussara (como é conhecido) e do açaí, bem próximo das
casas. Atualmente a Aldeia Sapukaia possui uma grande plantação de frutíferos em seus
quintais; o enriquecimento das roças com frutíferas também transforma os locais em ricos
pomares. Esse tipo de trabalho se assemelha ao das agroflorestas que enriquecem o
ambiente proporcionando alimentos permanentemente e até mesmo gerando alguma renda.
Diversas plantas algumas tradicionalmente plantadas, como a banana, a goiabeira e
o limão, outras mudas novas, como o açaí é plantado nos quintais de forma que tanto as
arvores frutíferas nativas quanto as domesticadas pelos Guarani são plantadas
109
. Veja
abaixo algumas dessas árvores frutíferas e sua utilidade no cotidiano Guarani.
108
Em 2001, os Guarani plantavam muito pouco, apenas a mandioca e o milho, e isso em
poucos joapyguá.
109
É o caso do açaí, que pegou bem, os Guarani lamentam a falta de sementes para
investir no plantio, cujo intuito é o consumo e a comercialização, de forma que pretendem
desenvolver um projeto de mudas para cultivá-lo.
118
Plantas
Utilidade
Forma de consumo
Ingá
Alimento
Fruto
Abacate
Alimento
Fruto
Limão
Alimento e uso medicinal
Frutos e folhas
Goiaba
Alimento e uso medicinal
Frutos, folhas e brotos
Coqueiro
Alimento
Amoreira
Alimento e uso medicinal
Frutos e folha
119
Apesar do crescimento do plantio na aldeia, o que plantam não supre suas
necessidades diárias, a maior parte da alimentação provém da cidade. Os Mbyá Guarani
dispendem seu dinheiro comprando material de higiene e limpeza (detergente, sabão),
roupas, diversos outros utensílios domésticos (panela, garfos, etc), produtos eletrônicos e
alimentos. Consomem frango, porco, peixe (do próprio açude
110
), arroz, macarrão, feijão,
melancia, biscoitos diversos, doces, refrigerantes, margarina, ovos, café, leite e,
recentemente, balas e doces industrializados. A maioria destes alimentos são adquiridos no
supermercado e quando precisam com urgência podem adquiri-los na padaria da aldeia. O
preço desses produtos é alto, tanto nos mercados próximos quanto na padaria.
A caça, antes não praticada, passou a ocorrer esporadicamente. Osvaldo, regressou a
três anos da Argentina para onde fôra após uma briga com Virgílio (que também voltou à
aldeia). Osvaldo sempre sai em busca de caça pela mata. Virgílio
111
que também é caçador
anda menos na mata pois assegura não ter mais caça. Embora seja escassa desse lado da
Serra da Bocaina em março de 2008, ao chegar na casa de Domingos, me deparei com um
porco do mato assado e cozido, o animal fora caçado por Osvaldo, que para caçar
112
sai
cedo e fica à espera de um animal na mata. Apesar da dificuldade de caça ele não perde o
hábito.
110
O açude possui um sistema pesque-pague, um Kg de peixe pescado sai pelo valor de
3,00. Os Guarani pescam com uma freqüência razoável, não-índios que vivem próximos a
aldeia pescam com mais intensidade. A preferência Guarani é pelos frangos
comercializados. As galinhas que são criadas na aldeia são alimentos do resguardo
feminino, também são consumidas pelas mulheres no pós-parto. Atualmente estão
negociando um projeto com a prefeitura de Angra dos Reis para a criação de dois
galinheiros na aldeia.
111
Vai muito à cidade, onde acaba bebendo muito.
112
Não tem televisão e não quer mas assiste uma vez ou outra na casa de Domingos.
120
Foto 12. O joapyguá de Domingos visto da estrada.
O ritmo da aldeia favorece um equilíbrio na economia Guarani e vai ajustando
tempo e espaço na aldeia. Os homens continuam freqüentando a mata
113
para pegar lenha
bem cedo enquanto as mulheres, na sua maioria, preparam as refeições e confeccionam, em
etapas e sem muita intensidade, os artefatos na parte da tarde, ou melhor, após o descanso
do almoço; as crianças ainda brincam no joapyguá, inventam brincadeiras e participam dos
rituais na opy quando são levadas por seus pais; os homens continuam a fazer e refazer suas
casas, a produzir artefatos no momento que lhes convém (em especial quando precisam
pagar algo).
Neste espaço e tempo Guarani, a televisão encontrou seu espaço na casa, como um
‘corpo’. É ligada cedo, por um jovem ou adulto. Podem ligar para assistir um jornal, outros
ligam e colocam um DVD e depois assistem desenhos. Por volta de onze e meia o aparelho
113
Entretanto, vários jovens estão se distanciando da mata assim como a dança do xondáro
perde espaço para os jogos de futebol no campo.
121
é desligado. Porém, pode ser religado por algum jovem. Não existe uma hora específica
para ligar a TV, principalmente se o tempo estiver chuvoso.
Nos dias ensolarados, quando os Mbyá estão trabalhando (os homens no roçado, ou
construindo uma nova residência; e as mulheres sentadas no chão sob um forro, a conversar
entre si enquanto confeccionam artefatos) o aparelho de TV permanece desligado até a
noitinha, que é quando começam a se retirar do quintal para o interior da casa (dependendo
do joapyguá). Nesse momento, alguém entra e liga o aparelho de TV, enquanto as mulheres
olham a TV ao mesmo tempo em que preparam café e depois cada um vai tomar o seu
banho. De banho tomado, vão ajeitando um lugar bem na frente da televisão e ali ficam, por
horas a fio, assistindo os programas e rindo (comum no joapyguá de Jandira).
Os Mbyá Guarani descobriram vários mundos num mesmo espaço: a televisão. A
eletricidade produziu uma transformação nos Guarani possibilitando uma reinvenção de seu
cotidiano.
Quem possui seu aparelho de TV considera-se uma pessoa ‘alegre’ por chegar em
casa após um logo dia de trabalho, seja no roçado, construindo uma casa, ou trabalhando na
instituição do não-índio, e poder assistir a um programa. Perguntei a Valdir:
- Porque está assistindo?
- “A imagem do aparelho é bonita, disse Valdir”. E frisou:
- “Tudo o que eles fazem é bom”;
- Você gosta do programa?
- “Sim, muito”.
122
Quem não possui TV e não tem uma casa próxima para assisti-la
114
, geralmente
famílias que vivem somente da comercialização dos artefatos, acabam por enfatizar o
contra-discurso sobre a televisão:
“A cultura está acabando, que os parentes não são mais
guarani, nós sim vivemos como antigamente, não temos nada,
comemos mandioca, não temos celulares, nem televisão”.
Depois desta afirmação, perguntei a Ara se ela desejaria ter uma televisão, então ela
me disse: “Quero sim, pode trazer uma que eu aceito”.
Aceitar e absorver o uso das novas tecnologias é ‘algo’ ainda de complexo
entendimento para os Guarani. Resulta não somente enfrentar os novos desafios
provenientes do uso dos aparelhos mas adequar o tempo da aldeia ao tempo da televisão,
assim como compreender os vários discursos sobre os benefícios dessa tecnologia para a
aldeia e seus possíveis ‘estragos’, questionando a si próprios a sua própria identidade,
fazendo com que as lideranças encontrem alternativas para os vários discursos externos, ora
apropriados pelos próprios Guarani.
Nesse processo, a tecnologia penetra através dos interesses individualizados e marca
seu espaço através das imagens: que fazem rir, chorar e pensar. E mesmo os Guarani que
consideram a TV como algo ruim (pela forma que é utilizada) para a sua cultura como
Algemiro, pois para ele a televisão desvia o pensamento, o Guarani deixa de fazer muitas
coisas”, admite que assiste aos jornais, aos jogos de futebol e outros programas no aparelho
de sua filha, que mora em seu joapyguá. Algemiro, apesar da necessidade reflexiva sobre o
uso da TV completa:
114
Apenas três joapyguá, todos pequenos, não possuem um aparelho eletrônico.
123
“Eu ganhei uma televisão, de uma professora do Rio, mas
tenho que ir buscar, não tenho como trazer no ônibus. Sempre
que vou ao Rio penso em buscar a televisão”.
O espaço da televisão se ajustou ao gosto do Guarani pelas imagens e pela ação e
acabou por construir um lugar para si, junto ao fogo (ainda no interior de muitas casas), ao
uso do chimarrão, ao uso do petyngua à noite como acontece na casa de Jandira que vivem
yvyraija, oporaive, opitaive, e as Kunã Karai (mulheres que dialogam com Ñanderu).
Nesse joapyguá de Jandira todos assistem a TV enquanto o petyngua circula entre eles.
3 – A Televisão no cotidiano Guarani Mbyá.
124
Foto 13 - Os Mbyá assistindo televisão.
Este capítulo descreve a trajetória da televisão na vida dos Guarani Mbyá.
Abordarei o primeiro contato com um aparelho eletrônico, a entrada da televisão na Aldeia
Sapukaia, como os Guarani reagiram aos aparelhos, a reação das mulheres, das crianças e
dos homens procurando mostrar o espaço da televisão no cotidiano da aldeia. Foco sobre o
cotidiano com a televisão, quais os programas selecionados pelos Guarani e o que fazem ou
deixam de fazer para assistir televisão. Enfim, procurei realizar uma etnografia da recepção
mergulhando no cotidiano da aldeia.
125
Os Guarani Mbyá passam por um momento em que se instaura um novo tipo de
‘diálogo’ em seu cotidiano, um ‘diálogo’ com as imagens oriundas da televisão. O
‘diálogo’ é expresso por palavras soltas, aprendidas, acrescidas com comentários que
expressam a percepção que têm sobre o mundo do juruá captadas através dos filmes,
desenhos animados, que se fixam no imaginário das crianças por meio de brincadeiras. É
um ‘dialogo’ com as imagens do ‘outro’, expandindo as possibilidades de relação com o
mundo não índio. O que é assistido varia muito: corridas de automobilismo, jogos de
futebol, novelas, documentários e reportagens. Esses programas ocupam parte das atenções
dos Mbyá e muitas conversas giram em torno desses programas, de suas imagens e do que
puderam entender do programa. Muitos não manifestam curiosidade com o que os
programas apresentam; outros comentam o que entenderam e o que assimilaram.
3.1. O contato com o aparelho de televisão e sua trajetória no imaginário
Guarani.
126
Atualmente os Guarani da Aldeia Sapukaia fazem uso dos aparelhos de televisão em
proporção moderada, assistindo shows e filmes no DVDs e, recentemente, aos DVDs
produzidos por eles na aldeia
115
.
Foto 14. O espaço da televisão na casa de Jandira.
A televisão ocupou um lugar especial na aldeia. Em 2006, 64 residências possuiam
um aparelho de TV. Os aparelhos adquiridos ganharam um espaço de destaque em cada
residência, o local escolhido visa proporcionar uma melhor visibilidade das imagens no
interior da casa de forma que qualquer pessoa, independente do local que esteja, possa ter
115
Foram dois DVDs produzidos por eles recentemente, ambos sobre o coral e a tradição Guarani.
127
uma boa visibilidade das imagens. Durante o dia assistem televisão sentados próximo ao
aparelho, mas é comum alguns dos adultos assistirem sentados ou deitados em sua própria
cama, geralmente mulheres com seus recém nascidos e os homens, maridos ou visitantes. À
noite, todos preferem assistir televisão na cama, confortavelmente, preparados para
dormir.
O interesse em possuir uma TV não é novo entre os Guarani. A curiosidade e o
prazer ao assistir as imagens
116
fez com que diante de uma primeira oportunidade, os
Guarani adquirissem seu próprio aparelho de televisão, o mesmo fato ocorreu em outras
aldeias guarani.
117
O tamanho e modelo do aparelho varia de família para família, mas os
desejos convergem para ter uma televisão de preferência ‘grande’, pois a consideram ideal
para assistir aos programas.
O aparelho de segunda-mão foram bem aceitos no primeiro momento que a
eletricidade foi instalada na aldeia, pois todos queriam possuir uma televisão. Entretanto, a
necessidade de uma antena parabólica e o estado precário de muitos dos aparelhos, fizeram
emergir o desejo de possuir uma TV nova comprada na loja. Ará ganhou um aparelho velho
de um juruá, mas o aparelho quebrou depois de seis meses. O mesmo ocorreu com outras
famílias que resolveram comprar o aparelho. A preferência entre comprar um aparelho é
bem maior do que a de ganhar. Segundo Ana,
“Você ganha o aparelho, é bom, índio não tem dinheiro.
índio vai à cidade, comprar coisas, pegar pensão, e olha a
116
Sobre as imagens propriamente, e o que pensam de sua produção ver o próximo capitulo.
117
Na Aldeia em Parati-Mirim eles receberam doações de aparelhos logo após a inclusão da
eletricidade. As primeiras famílias a possuírem um aparelho de TV grande haviam tido,
num outro momento, experiência com a televisão pequena (com bateria) trazida do
Paraguai por outros Guarani. Essas TVs circulavam entre famílias que as trocava por outros
objetos.
128
televisão da loja. Nossa! É diferente, grande, parece bem real,
é bonito. É melhor do que a velha. índio tem que guardar,
ou fazer empréstimo, se tem dinheiro, pouco, deve fazer,
melhor do que a velha, tudo pequeno. Eu ajudei meu genro a
comprar TV bem melhor”.
Entre ganhar um aparelho velho ou usado e não possuir TV eles aceitam o aparelho
usado. João da Silva me explicou:
“É diferente assistir um filme num aparelho velho e usado,
um filme de luta, bom, nossa, você o Batman na TV
grande, que imagem, tudo que você na TV grande é
bonito, diferente, e muito real”.
Percebem a televisão como fonte dessas belas imagens. A mesma percepção não
ocorre com os computadores, que apesar de possuírem um visor, não oferecem as várias
possibilidades, ou melhor, alternativas que a televisão proporciona; por este motivo, a
televisão despertou interesse nos Guarani desde que a viram pela primeira vez.
Segundo João da Silva:
“Eu vi pela primeira vez muito tempo, o aparelho era
diferente de agora, mas quando eu vi fiquei impressionado,
como pode? Parecia coisa de outro mundo, magia? Vocês usam
essa palavra, você conhece? Pode ser isso? Na época eu
pensava, hoje ainda não entendo”.
E completa:
“Era do tamanho da TV de Jandira, assim, mas era diferente,
o botão era grande, não como esses que você não sabe o que é
129
o botão, e as pessoas estavam lá, naquele negocio quadrado,
pessoas de verdade”.
João da Silva não lembra a idade que possuía na época, mas tinha uma filha com
sua primeira mulher. Mas não foi apenas João da Silva que estranhou aqueles objetos,
vários ficaram impressionados, como tudo cabia em algo tão pequeno?
118
Estranhamento,
fascínio, distancia e apropriação. Podemos assim resumir as etapas da relação dos Guarani
com a televisão. O estranhamento e fascínio foram às primeiras impressões, depois à
distância entre eles e os aparelhos se impôs uma vez que era considerada um objeto de não-
índio. Algemiro lembra quando perguntou ao pai, após ver uma TV pela primeira vez na
rodoviária, porque não possuíam uma:
“É, eu lembro, vi uma televisão na rodoviária, passava uma
novela. Achei bonito, não entendi, as pessoas falavam ali e
todos olhavam, fiquei impressionado, queria ver mais. Depois
perguntei porque não arrumávamos uma para levar, meu pai
falou: - olha, isso é coisa de jurua, ele pode ter, ele pode
usar. Não podemos ter coisa de jurua”.
Passado muito tempo, em outra região, o sobrinho de Algemiro, Pedro resolveu
averiguar sobre o estranho objeto que ‘não deixava de ser alvo
119
’, perguntando ao dono de
um botequim, que tinha uma televisão acessível a quem quisesse assisti-la no próprio bar,
como fazia para adquirir uma: “o juruá respondeu que era comprar”, disse o preço e
acrescentou que qualquer pessoa com dinheiro poderia entrar na loja e adquirir o aparelho.
Ele fez as contas, refez, até chegar ao cálculo. Lembra que seria preciso vender muito, mas
118
Essa questão proposta por João da Silva terá continuidade em sua reflexão quando
retornamos a este ponto no quarto capitulo
119
Por fixar o olhar (ipy’igua) o mesmo que começar.
130
muito artesanato para comprá-la na época, pois era muito cara e “isso era impossível”,
disse. A aldeia, naquele tempo, não tinha eletricidade de modo que mesmo se pudesse
comprar não poderia usufruí-lo. A falta de eletricidade o consolava e passou, então, a
assistir TV de vez enquanto no botequim. Assim como Pedro, vários Guarani possuíam o
desejo de ter uma televisão.
Dos Guarani que vivem atualmente na Aldeia Sapukaia, poucos foram os que
conheceram o aparelho de TV quando ainda viviam em Santa Catarina, na Aldeia de
Limeira. Aqueles que tiveram contato com a televisão nesse período eram os que mais
circulavam pela cidade ou que tiveram oportunidade de entrar ou freqüentar as residências
de jurua. Esses Guarani eram lideranças ou indivíduos que vendiam com freqüência seus
artefatos e que podiam entrar nos bares, beber alguma coisa e assistir TV. Eles conheciam
pouco a TV mas em compensação conheciam e escutavam o rádio de pilha e adoravam
escutar músicas, noticias e o futebol. Poucos tinham rádio, que na época era usado por
alguns Kaigang.
O rádio era bem pequeno e necessitava da pilha, por isso quem o possuía usava
pouco. A reação dos demais com o rádio era de curiosidade e quem queria escutar o rádio
iam à casa de parentes que possuíam o objeto. O fato é que gostavam do rádio. Os mais
velhos sentem falta do rádio mas não o compram mais, pois agora tem o DVD e com ele é
possível escutar a música e assistir ao show, como diz Pedro: “hoje não pra comprar,
um vai usar, é melhor a TV e o DVD, os jovens gostam e é bom ver os outros cantando”.
Se os aparelhos de TV eram conhecidos por alguns Guarani estavam ainda
distantes de seus hábitos. O interesse por objetos eletrônicos que fora despertado pelo rádio
de pilha teve continuidade na televisão, nos celulares e nos DVD. João da Silva não
131
entende, “como juruá faz isso? Como fez a televisão?”. De todos os aparelhos visto por Seu
João, a televisão é o que mais o impressiona
120
.
Algemiro lembra quando assistiu televisão pela primeira vez, foi no ano de 1982, na
rodoviária de Xaxim e lembra que foi um jogo de futebol. Ele diz que ficou “admirado” e
“gostou muito” e acrescenta que até hoje, toda vez que assiste a uma partida de futebol, a
televisão lhe proporciona essas sensações agradáveis.
Seu João explicou que quando deixou a aldeia de Limeira havia, à época, muitos
projetos e benfeitorias:
“Eles iam por gerador, primeiro fizeram casas, arrumaram
tudo, colocaram os banheiros, assim, como aqui, fizeram
muitos projetos. Nós não tínhamos TV, era coisa de branco,
mas os brancos diziam que podíamos ter”.
Quando foram para Paranaguá, parte dos Guarani, alguns jovens, conheceram a
televisão. Na cidade de Paranaguá, a maioria dos estabelecimentos de rua, dentre os quais,
restaurantes, bares e lanchonetes possuíam um aparelho de TV. Nesse período, os Guarani,
se deslocavam da Ilha da Cotiga, onde possuíam aldeia, para a cidade para realizar
compras, vender artesanato, entre outros; ao término dos compromissos, alguns assistiam
televisão nos bares. Jovens e crianças que acompanhavam os adultos, assistiam, também, os
programas televisivos. No entanto, esse hábito de entrar em um estabelecimento comercial
na cidade para assistir televisão não era comum a totalidade dos Guarani, apenas alguns
Guarani se sentiam à vontade na cidade.
Explica Algemiro que:
120
No quarto capitulo, analisaremos a imagem propriamente dita. Exploraremos uma
associação elaborada pelos Guarani que associa a televisão à tupã (divindade Guarani),
devido ambos serem energias captadas no ar.
132
“A cidade era grande, nosso avó falava, cuidado! Guarani
tem que ter cuidado ao ir na cidade, e voltar logo. Na cidade as
pessoas ficam olhando estranho, tem juruá que fica
perguntando coisas, eu achava legal, eu estudava na cidade,
estudei um tempo, eu e outros parentes, era bom. na sala
tinha uma menina que gostou de mim, eu era solteiro, queria
namorar, mas a mãe dela não deixou porque eu era índio. Eu
gostava e gosto de ir a cidade, mais sei que é perigoso”.
E ainda completa, “tem parente que vai para vender o artesanato e pronto, até
vergonha de falar ele tem”.
Ao se deslocarem da Ilha da Cotiga em Paranaguá para Bracui no Rio de Janeiro,
esses jovens e adultos obtiveram experiência com a cidade conhecendo alguns dos vários
objetos usados pelo jurua em suas casas e, desses objetos, o que mais impressionava era a
televisão. Em Bracui, na Aldeia Sapucaia, nem todos conheciam um aparelho de televisão,
este era o caso das crianças que nasceram na aldeia e, muitas, ainda pequenas não tiveram
contato com o universo jurua e seus costumes. Dos adolescentes que conheciam o aparelho,
grande parte nunca havia assistido um programa inteiro e menos ainda chegaram a
acompanhar uma novela e programas sequenciados.
133
O primeiro contato das crianças da Aldeia Sapukaia com uma televisão ocorreu com
o aparelho de TV portátil
121
, adquirido por Aldo, no ano de 1999. O aparelho era pequeno e
funcionava a bateria.
Aldo era um dos adultos que conhecia o aparelho e desejava muito possuir um.
Quando teve a oportunidade adquiriu um aparelho portátil trazido por um outro Guarani
que esteve no Paraguai.
O uso da televisão era bastante descontínuo uma vez que Aldo não conseguia
carregar sempre a bateria (perdeu várias vezes o carregador) e não tinha dinheiro suficiente
para comprar pilhas. Mas os Guarani conseguiam, quando a TV estava boa (pois ela tinha
problemas de recepção da imagem), assistir ao futebol e ao jornal.
As crianças que não conheciam a televisão ficaram ‘admiradas’ com os programas,
a ‘admiração’ que era proveniente da sucessão de imagens em movimento. As crianças que
possuíam um entendimento mínimo da dinâmica dos programas conseguiam e
conseguem atualmente acompanhar os programas e riem muito diante da televisão.
Escutam atentamente a TV, repetem palavras e cânticos, numa verdadeira interação com o
aparelho.
O espaço e as preferências.
121
O primeiro contato dos Guarani da Aldeia Araponga, em Paraty RJ também ocorreu
com o aparelho de TV portátil, usado para assistir jogos e novelas. No caso de Araponga,
eles conseguiam manter o aparelho em uso com uma certa constância, recarregando a
bateria da televisão.
134
Os homens durante o dia, em especial os jovens, assistem filmes e DVD (dos
programas televisivos, preferem Jornais e futebol). Na casa de Jandira, o DVD é assistido
por todos até umas oito ou nove horas da manhã. Os Guarani gostam de ver e ouvir shows
de bandas de tecno-forró, alegam gostar do som, da música em si e têm grande interesse
em visualizar os cantores e o espetáculo. Os homens jovens e adultos repetem refrões de
várias das músicas e muitas vezes quando não estão escutando o DVD as cantam, em certos
momentos do dia, quando estão confeccionando artefato ou ajudando na construção de uma
casa.
Nunca observei durante todo o trabalho de campo uma mulher colocar um DVD,
principalmente no joapyguá de Jandira; entretanto, pode ser que na casa de Sueli tal fato
possa ocorrer, pois segundo informações a filha mais nova de Algemiro sabe manuseá-lo.
Celulares, apenas Ará, agente de saúde, Sueli e sua irmã mais nova, ambas filhas de
Algemiro os possuem e sabem fazer uso de alguns dos recursos; as demais mulheres não os
possuem. As jovens meninas manifestam, frequentemente, o desejo de possuir um celular,
em especial, celulares coloridos. As mais velhas não possuem curiosidade ou interesse em
mexer ou manusear aparelhos tecnológicos, como computadores, celulares e DVDs.
Manusear os aparelhos eletrônicos tornou-se uma tarefa masculina em Sapucaia. Os
homens ligam e desligam o aparelho de televisão, inclusive os meninos. A televisão passa a
ser um veiculo para que possam assistir a seus DVDs preferidos, tanto das bandas musicais
quanto dos filmes. E suam a televisão de forma planejada que poderia ser dividida em
horários escalonados: as crianças assistem os desenhos animados pela manha após
assistirem o DVD da Banda Calypso.
O que mais diverte as crianças Guarani são os programas de TV em que aparecem
brincadeiras com outras crianças e os desenhos animados. Observam atentamente cada
135
gesto e palavras emitidas pelos seres que aperecem na televisão que são prontamente
reproduzidos no cotidiano.
Das atitudes e ações, destaco as brincadeiras e os jogos. Os Guarani assistiram jogos
e partidas de golfe e basebol transmitidos por uma rede de televisão e observaram os
mesmos esportes no desenho animado preferido por eles, o pica-pau. No dias em que as
partidas de golfe e os jogos de basebol foram transmitidos eu infelizmente não estava
presente na aldeia. Quando cheguei fui surpreendida ao ver as crianças desenvolverem uma
brincadeira que mesclava ambos os jogos. Os adultos conversavam e observavam a
brincadeira das crianças. Por ser uma brincadeira criada recentemente, ainda estavam
aprendendo e quem a tinha inventado ensinava para os demais.
A brincadeira foi construída a partir dos jogos assistidos na TV e era realizada pelas
crianças de 07 a 12 anos e por adolescentes entre 13 a 18 anos. As crianças e adolescentes
ensaiaram os primeiros passos juntos; arrumaram uma madeira de mais ou menos um
metro, uma bola pequena e num espaço aberto de mais ou menos vinte metros
improvisaram um campo de basebol. Uma criança se posiciona em uma das extremidades
do campo com o taco de madeira e a bola que é arremessada para o outro lado, imitando um
arremesso típico de basebol. Do outro lado, a outra criança espera a bola para pegá-la; com
o taco improvisado ela rebate a bola na direção da outra criança que a pega com a mão. O
taco usado pelas crianças lembra mais o taco de golfe, porém o arremesso e a captura da
bola se assemelham com o basebol. A brincadeira não ganhou um nome específico na
língua Guarani, mas ocupou o espaço do joapyguá Guarani. Em um passeio pela aldeia à
tarde é possível ver as crianças brincando com essa nova invenção
122
.
De acordo com Marcelo a brincadeira é oriunda da televisão e comenta:
122
Atualmente a brincadeira é realizada pelas crianças mbyá durante à tarde ou manhã.
136
“As crianças viram isso na televisão, elas vêem muita coisa, e
de repente fizeram essa brincadeira. Eles agora jogam essa
bola, ficam ali, os menores ficam do lado, olhando, quando
os outros terminam, eles vão jogar. O Guarani aprende assim:
olhando e escutando”.
Esta dimensão do conhecimento através do olhar, do escutar e o imitar remete-se à
discussão proposta por Taussig à propósito do conhecimento enquanto conhecimento
corporal, sensorial, que depende sobretudo da mimese e dos processos de imitação. Neste
sentido, enquanto as crianças ‘imitavam’ os jogos do jurua elas refletiam e ‘encorporavam’,
literalmente, este novo conhecimento que apreendiam na TV.
O que as crianças escutam também é aprendido. Segundo Marcelo eles escutam o
que o jurua pronuncia na televisão e quando aprendem uma palavra sempre a repetem.
Explica:
“A criança se distrai, ela fica ali assistindo o desenho, as
Chiquititas, gostam e ficam atentas. que não é toda hora, as
crianças também querem brincar, depois do almoço elas
querem ficar aqui no pátio, brincando. Mas pela manhã ou a
noitinha ficam quietas assistindo o pica-pau, as Chiquititas, o
Chaves e os desenhos. aprendem, mas não falam, as que
não tem vergonha falam, quando fala, todos olham”.
Presenciei Liana repetindo palavras enquanto assistia o último capítulo de
Chiquititas, todos riram muito quando ele repetia em alto e bom som: ‘querida’. A
‘admiração’, o receio e o desejo de adquirir uma televisão foi incorporado pelos Guarani no
137
próprio processo de contato com os brancos e na sua aproximação gradual das cidades. O
jovem João narra o desejo entre as gerações, nesse caso ele, seu pai e seu avô:
“Eu achava bonito, desde que vi a televisão, eu sempre tive
vontade de ter uma. parei em qualquer lugar para assistir
televisão, jogo de futebol, propaganda, ficava ali assistindo e
quanto mais assistia dava vontade de ter. Hoje eu tenho, mas
tenho DVD e posso escolher o que assisto, e fico vendo
filmes. Meu pai gostava, achava importante, e sempre quis
uma, hoje usa para se informar, ele adora jornais. Mas meu avô
não, nossa, ele sempre olhou a televisão de longe, dizia que era
coisa de branco e que não queria. Quando chegou a luz, ele que
fez a casa longe, dentro da mata não queria nem a luz, até que
um dia ficou aqui assistindo a televisão, viu filme, viu jornal e
não parou de ver mais televisão. Veio até aqui pra casa do meu
pai”.
Desejo de alguns, estranhamento e receio de outros. Os mais velhos da aldeia, de
acordo com João, “sentam e ficam ali vendo, é bom ver”.
3.2. Assistindo televisão ou escutando música na aldeia: os
programas e os gostos entre os Guarani.
138
Marcelo dirigiu-se ao balcão onde ficava os aparelhos de TV e DVD, desligou o
DVD e ligou a TV, pôs no canal da Rede Record de Televisão para assistir o programa do
Chaves. Nesse momento, o café estava sendo servido. Crianças e adultos pegaram seu tipa
e sua caneca de café e se sentaram na frente da televisão para assistir aos desenhos.
Na casa de Kerethu a televisão fica ligada durante a manhã para assistir os desenhos
e programas, à tarde para assistir DVD e à noite para assistir as novelas. o mesmo ocorre
nas casa de Jandira. A única programação que não se altera de forma alguma são as
novelas.
Atualmente, no joapyguá de Jandira, os desenhos assistidos durante o dia são os
mesmos de 2006 e 2007 o que demonstra uma permanência nos gostos e interesses dos
Guarani.
Durante a semana eles assistem:
- TV Globinho – 09:37 (com pouca freqüência);
- Chaves – 07:00 (Muita freqüência, 90% das casas);
- Carrossel animado – 08:00 (Relativa freqüência, 70% das casas);
- Chapolin – 13:30 (Muita freqüência, 90% das casas);
- Pica-Pau – 18:30 (Muita freqüência, 100% das casas);
- Jornais, Câmera Repórter e noticiários diversos (ver mais adiante).
- Novelas (Amor e Intrigas, Caminhos do Coração, Irmãs e Rivais, entre outras).
- Futebol (campeonato Estadual, Campeonato Brasileiro, e Campeonato Europeu de
futebol).
Nos sábados eles assistem:
139
- O Pica-Pau – 14:30 (Muita freqüência, 100% das casas);
- Programa Melhor do Brasil é apresentado aos sábados, inicia 14:30 possui
entrevistas com atores, apresentação de bandas e cantores diversos e os quadros: “Vai dar
namoro” e “Contra tudo e contra todos”, ambos apreciadíssimos pelos Guarani. O programa
foi criado e apresentado por Marcio Garcia, atualmente é apresentado por Rodrigo Faro
(que passou a apresentá-lo dia 12 de abril de 2008).
Podemos observar, além da programação, uma tendência Guarani para aprimorar a
técnica do desenho quando se trata de desenhar sobre a imagem da televisão, isto é,
procuram desenvolver um desenho que seja o mais parecido possível com a imagem que
querem retratar. Quando desenham sobre a televisão e sua programação procuram usar
régua para que o desenho possa expressar a perfeição de sua forma atual o que reflete uma
determinada concepção de imagem associada à televisão: as imagens nítidas de seres e de
outros mundos desenvolvendo em tempo real suas atividades e ações naqueles mundos.
Vejamos alguns desenhos sobre os programas mais assistidos na aldeia, resultado e uma
reflexão do que vem a ser uma televisão. O objeto é sempre associado a um programa, ou
seja a sua capacidade agentiva.
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147
Em uma das minhas primeiras semanas no joapyguá de Jandira
123
, com a aldeia
iluminada, pude observar a paisagem sonora e imagética advinda da TV no cotidiano. No
primeiro dia acordei ao som da Banda Calypso.
“Atravessou no meu caminho, feito um vendaval, revirou tudo
de perna-cabeça, foi meu bem, meu mal” (Banda Calypso).
Olhei a hora no celular: 07:10 da manhã. Jandira estava de pé, arrumando gravetos
para acender o fogo, Para estava se levantando e após a higiene matinal foi preparar o café.
Pôs água no fogo e iniciou o preparo do tipa, enquanto preparava a massa, ficava olhando a
televisão e assistindo o vídeo da banda. Os meninos, meninas e alguns adultos como
Marcelo e Alexandre estavam assistindo o DVD do Calypso. O DVD ficou ligado, passou
uma, duas músicas, e depois alguém repetia a primeira música e de novo ouvíamos
“Atravessou no meu caminho, feito um vendaval...”. As crianças assistiam atentamente
sentadas próximo ao aparelho com os olhos fixos na tela. O mesmo ocorria com Luis,
Pedro e Roberto. Os dois primeiros riam e de vez enquanto faziam comentários sobre o
show. Todos assistiam ao vídeo enquanto aguardavam o café. Vejamos um dos diálogos
com Marcelo sobre o interesse Mbyá nessa Banda e em especial sobre o ritmo e estilo
musical do Brega que mescla um pouco de forró com o rock.
- Vocês assistem bastante esse DVD, porque?
- ‘Porque é bom. Eu gosto, as crianças gostam’, disse Marcelo.
- Gostam do que?
- ‘Ah, de tudo. As crianças gostam das pessoas dançando, como dançam’.
123
No joapyguá de Jandira vivem três famílias totalizando 36 Guarani, distribuídos em
quatro casas no período de 2005 e 2006 e meados de 2007, e três casas no período de 2008
(estão reformando as casas). Ali vivem três filhos do Cacique João e suas respectivas
famílias. Foi o joapyguá que me abrigou durante todo o meu trabalho de campo de
doutorado e mestrado.
148
- E você? Perguntei.
- Depois dos risos, a resposta. “Eu gosto do som, quero aprender dançar. Também
acho bonito como se vestem, as roupas, as cores”.
Percebe-se que o ritmo da música é um apelo envolvente para os Guarani. No
entanto o significado da música, sua letra também chama sua atenção. Muitos tentam
entender o que as bandas cantam. A dificuldade e a curiosidade para entender as letras
ocorre devido o duplo significado que segundo eles, “confunde bastante”, pois “existe a
palavra, mas essa palavra diz outra coisa, que não entendemos” comenta Alexandre.
Entretanto, segundo Marcelo, tem palavras que se entende bem, por exemplo: saudade,
amor, dengo, gostosão, flor, morrer, vida; segundo eles, é compreensível quando alguém
diz que está com saudades, seja na novela, seja na vida real. Quando estou na aldeia sou
abordada frequentemente pelas mulheres que me indagam se não estou com saudades de
minha família. As palavras amor, dengo, flor e gostosão, segundo eles é do jurua, “não tem
isso com o Guarani”, diz Marcelo, mas são palavras aprendidas do vocabulário jurua e
segundo Marcelo “nós entendemos o que o juruá quer dizer, quando fala essas palavras na
novela, ou pessoalmente, quando ama, no entanto quando diz que é o gostosão, não. Risos”.
Continua refletindo: “Eu fico pensando, pensando. O tipá é gostoso, refrigerante é gostoso,
Guarani gosta muito, mas jurua chama a pessoa de gostosão. Risos”. E conclui: “isso diz a
música”.
Refere-se ao uso da palavra ‘gostosão’ porque ela título a uma música da Banda
Rasta Chinelo. havia percebido que Marcelo, quando entrava na casa de Jandira cantava
o refrão da música e depois é que associei com o DVD da banda Rasta Chinelo:
“Quem é gostosão daqui? Sou eu! Sou eu! Sou eu!
Quem é gostosão daqui? Sou eu! Sou eu! Sou eu!”.
149
Cada vez que Marcelo canta o refrão, as crianças e as mulheres riem muito, quando
assistem a banda no DVD observam quietos a performance do grupo. Os risos das crianças
e mulheres provocados quando Marcelo canta o refrão da música se deve ao fato de fazer
uso do português em um ambiente primordial da língua Guarani, o mesmo ocorre quando
uma criança repete uma palavra do desenho ou da novela. Geralmente, quem imita a TV,
falando ou cantando muda o tom de voz e realiza uma pantomima especialmente com o
rosto, um sorriso no final, uma olhada diferente, algo que desperta o riso geral.
Pediam explicações a mim sobre o significado de ‘gostosão’, porque um homem se
dizia ‘gostosão’? A curiosidade sobre o significado das novas palavras e sobretudo
compreender o duplo sentido que as palavras podem ter é uma das inquietações
contemporâneas advindas do hábito de assistir televisão. Perguntavam, também, sobre o
significado da parte da letra da música que diz “vou morrer se você não voltar” ou “não me
deixa, eu não sei viver sem você”. Não compreendem, também, o trecho da música da
Banda Calypso que mais cantam que é: “(... )Cavalo manco, agora. Eu vou te ensinar. Isso
e muito mais. Você só vai encontrar no Pará... (...)”.
Presenciei em vários momentos o interesse e curiosidade deles expressos por meio
de perguntas aos moradores da localidade próxima com os quais, através dos próprios
diálogos propiciados pelo universo comum partilhado via a televisão, tornaram-se ‘amigos’
(no sentido de relações cordiais). Eles indagaram o que é o cavalo manco e pensavam se
tratar de um cavalo manco literalmente. Marcelo comenta:
“Esse cavalo manco é outro, tem nesse Pará, onde dizem, eu
vi na TV, tem muito índio diferente. Então o cavalo é
diferente? Pois é, você vê, é uma palavra que o Juruá usa mas
quer dizer outra coisa, na música tudo é assim”.
150
Refletem sobre o interesse do indivíduo em querer morrer caso a pessoa que com
ele vive o deixar para viver com outra pessoa. Não entendem, acham que o individuo deve
continuar sua vida, arrumar outra pessoa caso a outra pessoa não retornar casa novamente.
Roberto comentou: “jurua é muito fraco, quer morrer por isso”.
Roberto percebe, assim, como os demais que existe um duplo sentido das palavras,
ele simplesmente escuta e gosta. Podemos afirmar que 70% das músicas escutadas pelos
Guarani são músicas cujas palavras têm duplo sentido, músicas do estilo tecno-forró ou
tecno-brega.
Os Guarani possuem uma dificuldade em compreender o duplo sentido, o universo
das metáforas e, conseqüentemente, a ‘cultura’ jurua
124
. Mas a TV e os DVDs são de fato
uma nova forma de aprendizado da cultura juruá que se apresenta aos Guarani através do
duplo sentido e das metáforas. Enquanto pesquisadora e jurua que habitava com os Guarani
me deparava com muitas indagações sobre ‘nossa cultura’, questionamentos suscitados pelo
mundo televisivo que agora era parte, também, do cotidiano da aldeia.. As perguntas
variavam e poderiam ser sobre o que eu gostava, o que eles gostavam e não entendiam. De
certo modo compreendiam o significado do que era ser ‘telespectador’ no que implica de
algum modo partilhar um universo comum mesmo que a ele fossem atribuídos diferentes
significados. Nessa época eles assistiam a novela Alma gêmea transmitida às 18:00 na Rede
Globo de Televisão.
124
Veja por exemplo a concepção de Wagner (1972) sobre a cultura enquanto processo de
metaforização.
151
A novela fôra assistida por todas as mulheres e crianças da aldeia que se encantaram
com os personagens e com a narrativa. Tratava-se da história da alma de uma mulher
assassinada por uma outra mulher que desejava seu esposo e toda sua fortuna. A alma dessa
pessoa reencarna em uma bebê nascido e posteriormente criado numa aldeia indígena.
Batizada de Luna, a jovem aprende tudo da sua cultura porém sofre com os sonhos, que
indicam, através de uma flor, uma localidade e uma vida perdida que deveria ser resgatada.
Alma Gêmea foi uma novela que mobilizou muito a atenção e reflexão dos Guarani,
do mesmo modo que a novela Caminhos do Coração e sua continuidade com o nome de Os
Mutantes, ambas serão tratadas com maior profundidade no próximo capítulo. A narrativa
da novela Alma Gêmea foi bem assimilada pelos Guarani pelo simples fato de se
identificarem co o tema das almas, dos índios e dos sonhos. A narrativa proporcionava aos
Guarani a estabelecer de imediato uma analogia entre a sua cultura e os valores professados
pela televisão. Os sonhos e a possibilidade de deslocamento devido a sua influência (sonhos
que levam a uma ação)
125
é o que eu mais identificava os Guarani e protagonista da novela,
Luna (Interpretada por Priscila Fantini), que era filha de uma não-índia que fôra acolhida
pela aldeia. Para os Guarani, Luna era uma índia devido ao ensinamento cultural que teve e
por ter assimilado a cultura indígena e vivido na aldeia desde pequena.
Segundo Kerethu,
“Luna é índia, olha ela foi para a cidade viver o amor dela, mas
ali ela tem sonhos, sente o mal, não entende a maldade contra
ela, tudo ela pensa no bem, ela não entende porque o Juruá age
do jeito mal. Eu também, quando vou a cidade não sei porque o
125
Sobre a influência dos sonhos no cotidiano Guarani Mbyá ver Oliveira: 2002,
Nimuendaju: 1987, entre outros.
152
Juruá fala brigando, porque me olha estranho, não entendo o
que falam. Ela é bonita”.
A identificação com a novela se deu de forma direta: os sonhos da protagonista, seu
amor pela cultura indígena, a saudade que sentia e os ensinamentos da aldeia para viver
bem na cidade. Esses elementos mobilizaram os Guarani. Identificavam-se com a
protagonista e sua beleza era, também, muito comentada assim como suas pinturas
corporais.
A novela trata, assim, de espiritismo e se desenvolve através de uma complexa
narrativa que apresenta uma época com trajes e objetos diferentes dos objetos de nossa
atualidade. As primeiras perguntas elaboradas pelos Guarani foram as seguintes: “O que é
alma Kunha?” disse Marcelo. Outros perguntaram:“a flor que eles plantam existe?”, “o que
é tempo?”, “o que é veneno?”, “piano”, “dor de saudade, ele pensa muito no morto, o jurua
é assim?”, “porque as mulheres usam isso na cabeça?”, referindo-se ao chapéu e após
explicar a palavra queriam saber porque as mulheres não o usavam. Queriam saber em que
localidade a novela foi filmada, pois acreditavam que o espaço filmado era um espaço real
e não cenográfico. A interpretação dos Guarani sobre as narrativas televisivas põe em
evidência a tensão entre o real e o ficcional, crêem que tudo ali é real e outros acreditam
que é uma invenção
126
.
126
Ver, por exemplo, a discussão empreendida por Gonçalves (2008: 140) a partir das
questões propostas por Jakobson (1970) que aponta para dualidade constitutiva da imagem
em movimento, isto é, o ‘cão late para a imagem em movimento mas não para uma imagem
pintada’ que para Jakobson é que permite compreender as imagens da televisão e do cinema
enquanto imagens agentivas, com capacidade de produzir ações e reações.
153
Indaguei sobre o fato dos Guarani não dançarem (pouquíssimos dançam
127
) ao ritmo
de suas músicas preferidas imitando as performances das bandas. Algumas respostas foram
do tipo “é dança de jurua mas com a resposta de Marcelo parece ser possível entender a
preferência por um ritmo dançante para apenas observar:
“Nossa é bom olhar, olhar, você dança sim. O olho tem
que ficar ali, na dança, você não quer nem fazer outra
coisa, quando a música está tocando, o show, ao vivo?
Melhor, você fica olhando”.
É como se os olhos fossem postos em movimento, acompanhando o ritmo. O ritmo
envolve os Guarani de tal forma que vários dos jovens Guarani, muitos com uma vida
matrimonial estável, foram assistir o show da Banda Calypso na praia do Anil em Angra
dos Reis. Quando vão assistir shows ficam observando, mantendo um comportamento
austero e silencioso. O interesse pelo ritmo do forró é antigo, quando estive na aldeia, no
período de 2001, tive oportunidade de presenciar a reação de alguns Guarani ao show de
encerramento do ano de 2001 na mesma praia do Anil, em Angra dos Reis. O show teve a
presença de várias bandas, tocando pagode e forró com músicas diversas
128
. Entramos 2001
assistindo a queima de fogos na praia e a algumas bandas. Após o espetáculo de luzes, nos
retiramos do local. Antes da passagem do ano, tocava uma música da Banda Forró Sacana,
mas os Guarani não dançaram, apenas observaram. Em outras oportunidades observei o
127
Na Aldeia Itaoca em São Paulo os Guarani dançam forró e fazem festa onde a música
e a dança é a atração. Alguns jovens da Aldeia Sapukaia quando estão em Itaoca dançam
muito, mas quando retornam para a aldeia, mesmo diante de uma festa num bar de jurua ou
ao escutar a música na aldeia ficam contemplativos, apenas escutando.
128
Os jovens Guarani adoram passear no carro da aldeia. Assim que entram no carro pedem
a Ernesto para colocar o Cd do Raça Negra, o primeiro cd da Banda de pagode. No entanto
não possuem outros Cds de pagode, a empatia foi com a Banda Raça Negra até hoje
lembrada por alguns que conseguiram o DVD.
154
mesmo comportamento, quando me desloquei com alguns Guarani que tinham intenso
contato com a cidade, freqüentando bares que possuíam máquinas de karaoque
129
e DVD.
De longe, ou de perto, eles apenas bebiam (os que bebiam) e observavam os não-índios
dançando, conversando e namorando. O comportamento dos Guarani era de risos, poucas
palavras e atenção nos movimentos.
Em 2006, já investigando sobre o uso de tecnologias na aldeia, foi possível observar
muitas mudanças nos hábitos exceto a introdução da dança. Alexandre me explicou que os
jovens estão aprendendo e alguns dançam o forró, mas têm vergonha de dançar, a
maioria acha muito bom o movimento rápido. Segundo ele, é comum um jovem ou adulto
dizer que dança, mas quando vai para a cidade, numa festa, num bar onde as pessoas
dançam forró, ou até num rodeio, o Guarani fica num canto olhando e bebendo. Alexandre
nos diz que:
“Eu fiz isso, mas foi em outra aldeia, fiquei olhando, mas
até pode dançar com parente, isso em São Paulo. Mas a
maioria que vai para a cidade se divertir fica olhando.
Diverte-se porque olhar é bom, agente gosta de olhar”.
Para Alexandre as pessoas deixavam a aldeia e iam para a cidade em busca de
diversão pelo fato de não terá ainda televisão na aldeia. Depois que a luz elétrica foi
instalada e a grande maioria
130
adquiriu seu próprio aparelho de televisão, passaram a se
divertir com os filmes, programas e shows; a maioria, segundo ele vai a cidade somente
129
Os Guarani não conseguem fazer uso do karaoque, ficam tímidos diante do microfone
mesmo entre eles. No entanto, olhar um jurua cantando é um bom motivo para risos e
diversão.
130
Atualmente poucos saem da aldeia para fazer uso de bebidas alcoólicas nos pequenos
estabelecimentos próximos da aldeia.
155
para realizar compras (dentre as quais os DVDs), pagamentos, visitar um doente que
encontra-se hospitalizado
131
, resolver pendências, realizar contatos e participar de reuniões
ou eventos, assim como receber aposentadorias e vender os artefatos produzidos na aldeia.
Enquanto não aparece um DVD novo da Banda do momento na vida dos Guarani,
vão escutando os que possuem, incansavelmente. Quando descobrem um novo DVD da
banda (ou um que não conhecem), ou mesmo uma nova banda, passam a escutá-la com a
mesma freqüência.
Depois da Banda Calypso foi à vez da Banda Bonde do Forró ocupar as telas da TV
na maioria das casas da Aldeia Sapukaia; o DVD é colocado por jovens ou adultos, as
crianças e mulheres não mexem no DVD, são apenas telespectadoras dos programas
televisivos como as novelas e , por isso, as mulheres monopolizam a televisão no período
noturno. As mulheres não tomam iniciativa de ligar qualquer objeto que não seja a
televisão. Público assíduo das novelas, elas manuseiam bem uma televisão não importando
o modelo, dedicam-se a aprender e conhecer os botões que regulam a imagem e que
acionam o liga e o desliga, o uso da antena e o cuidado com a tomada.
O espaço ocupado pela televisão na aldeia se desenrola concomitantemente ao
espaço ocupado pelas novelas na vida dos Guarani. As demais programações, com exceção
do desenho pica-pau, podem variar caso tenha algum programa que desperte um interesse
maior na vida e no momento dos Guarani. Um dia estávamos assistindo o Programa Melhor
do Brasil, quando, de repente, alguém liga para Mauricio. Assim que atende seu celular,
corre para a televisão e muda o canal de transmissão, colocando na TV futura. Quem ligou
para Mauricio foi Valdir, professor Guarani, telefonou para avisar da exibição de um
programa sobre os rituais de batismo Guarani que estava sendo transmitido pela TV Futura.
131
Ou aguardar o nascimento de um filho, cujo trabalho de parto se realizará no hospital.
156
Assim, que aciona o comando para mudar para o canal TV Futura, Mauricio desliga o
telefone e junto com os demais assistem com atenção o programa exibido.
O programa foi gravado em Ubatuba no nemongarai de 1998 e, segundo eles, foi
transmitido duas vezes na TV Futura. Alguns dos Guarani de Sapukaia estavam presentes,
como a mãe de Mauricio. Esse programa abordou o batismo do milho nas aldeias de
Ubatuba, Rio Silveira e Itaoca
132
. A alegria e o contentamento dos Guarani ao reverem seus
parentes na televisão, ao observarem as lideranças foi enorme. Os comentários durante a
exibição do programa eram frequentes. Às vezes Mauricio me dizia algo, mostrando, por
exemplo, o grande Pajé (curador e rezador Guarani) ou explicava de qual aldeia se tratava.
Os demais comentários entre eles na língua nativa mostraram o grande interesse e
satisfação em vê-los na TV. Ver-se na televisão é para eles poderem compartilhar também
este mundo das imagens e uma forma de relação com o mundo dos jurua via as imagens
televisivas, se sentiam ‘orgulhosos’ pelo feito.
Os Guarani comentavam muito sobre sua participação na minissérie A Muralha.
Todas as vezes que estava realizando trabalho de campo falavam sobre a minissérie. Em
abril de 2008 a minissérie foi reprisada na TV Futura. Assim que cheguei na aldeia, Valdir
me avisou da reprise, queria que eu visse a participação dos Guarani representados no coral.
Explicaram que atuaram bem, pois, segundo eles, é difícil fazer televisão, era difícil ficar
ali, por horas, “atuar mesmo, não”, disse, e frisou: “o elenco gostava de nós. A Alessandra
Negrine é linda e conversava muito com nós, queria saber da cultura e o elenco respeitava
nós Guarani”, disse Mauricio que estranhara a demora e a complexidade para gravar a cena.
A paixão em se ver na TV resultou na curiosidade em produzir seu próprio filme, os
Guarani diante de uma oportunidade não abrem mão de aprender a usar a câmera de vídeo.
132
Aldeias de Itaoca.
157
No inicio do ano de 2008, foi realizado na aldeia uma oficina de vídeo com uma equipe de
profissionais Canadenses. Os Guarani mostraram e enfatizaram o entusiasmo com o curso e
com o uso dos equipamentos, sobretudo com a câmera de vídeo. A possibilidade de
aprender a manusear uma câmera de vídeo foi bem recebida por eles, que confundem num
primeiro momento o dominar a técnica do objeto com a narrativa dos programas. O fato é
que manusear uma filmadora não foi difícil para os Guarani que fizeram o curso, assim
como não é para Valdir que manuseia a filmadora da aldeia. O problema, segundo ele é
que:
“É difícil ver o que vai filmar, como na televisão, nós sentimos
dificuldade em filmar nosso vídeo e filmamos o coral, mas esse
era um projeto meu, filmei eu e meu irmão”.
Valdir também reclama da diferença entre seu vídeo e o que viu na televisão. Mas
confessa que gostou. Pedi que colocasse o vídeo, ele colocou. Então assistimos
atentamente: eu ele e Mauricio. Um ou outro Guarani saiu da sala durante a exibição do
filme. Valdir perguntou se eu queria que adiantasse, eu disse que não. O vídeo mostrava a
apresentação do coral cantando várias músicas. Valdir perguntou se o vídeo cansava, eu
disse que não. O vídeo terminou de forma belíssima, após o termino da apresentação do
coral, enquadraram os Guarani que estavam próximos assistindo a filmagem, no caso
Jandira, Kerethu, Para e as crianças; o vídeo acabou mostrando uma cena rara de se
presenciar (quando não se esta na aldeia após as 18:00) e de ser gravada por outrem: o
anoitecer, as mulheres próximas ao fogo, confeccionando os artefatos e Alexandre
dançando o xondáro.
A idéia do vídeo era mostrar o Coral Guarani a fim de valorizá-lo, buscando,
posteriormente, um apoio para sua reprodução em série cujo objetivo seria a venda do DVD
158
durante as apresentações do Coral. Cabe assinalar que após a elaboração do vídeo, Karai e
Mauricio estão empolgadíssimos em elaborar novos vídeos porém desejam adquirir um
domínio maior da técnica.
Em 2007 eles produziram o Vídeo Sapukaia; o vídeo narra as preocupações do
Cacique João da Silva sobre a vida na aldeia, os problemas enfrentados, como o impacto da
usina de Angra dos Reis, relembra sua trajetória até Bracui e expressa sua preocupação com
o excesso de lixo na aldeia devido ao aumento do consumo de objetos provenientes da
cidade.
Quando não assistem a um DVD logo cedo pela manhã, ligam a televisão para
assistir aos desenhos (abaixo segue a lista dos programas e os respectivos comentários).
nesse momento entendimento e desentendimentos sobre o que assistir e o que não assistir.
Muitas vezes buscam um certo consenso para estabelecer uma preferência da programação:
adultos, adolescentes e crianças aguardam seu próprio momento para assistir seu programa
favorito não interrompendo a programação do outro. Desta forma os adultos assistem o
Programa do Chaves e os desenhos com as crianças. No joapyguá de Jandira, apenas Adílio
assiste o jornal matutino até ser interrompido por uma criança que pede para mudar de
canal para assistir seus desenhos, que Adílio consente prontamente. O interesse das crianças
pelos desenhos ocorre na maioria das casas. Algemiro, no seu joapyguá, gosta de levantar
cedo e ir para a casa de sua filha Sueli (ao lado) assistir ao jornal, porém no meio do
programa as crianças querem assistir desenho. Algemiro deixa mas ressalta a importância
do jornal.
no joapyguá do vice-cacique Domingos, todos esperam o término do jornal e
somente após o programa é que as crianças assistem aos desenhos. Os programas preferidos
são: Popeye, Simbá, Chaves e os Jornais (no caso os adultos).
159
Os programas Chaves e Pica-pau tiveram alterações em seus horários, quando eram
transmitidos pela manhã eram campeões de audiência. Nenhum Guarani deixava de assisti-
lo para por um filme ou DVD (o mesmo ocorre no período noturno, ninguém da aldeia
deixa de assistir ao pica-pau).
Observamos que a idade do individuo não interfere diretamente em suas escolhas
televisivas, os desenhos, por exemplo, são assistidos por todos. Desenhos, cujo conteúdo
seja uma briga ou a vitória do bem contra o mal, que apresentam perdedores e ganhadores
são os que mais mobilizam à atenção dos Guarani.
As mulheres não assistem a outros programas além dos desenhos e jornais.
Programas sobre culinária não as mobilizam preferindo, assim, dedicar-se aos afazeres
domésticos, as conversas ao ar livre. As mulheres assistem aos DVDs e adoram as novelas.
Demonstram grande interesse pelas novelas, divertem-se ao observar as roupas dos
personagens, com o que falam e o horário da novela a mulher está em sua casa diante da
TV até mesmo podendo interferir no hábito noturno Guarani de freqüentar a casa de reza
opy . O envolvimento das mulheres com a televisão é surpreendente considerando que as
mulheres sempre questionaram a cidade e o mundo dos jurua procurando sempre falar
apenas a língua Guarani e insistindo para que os homens evitassem deixar a aldeia.
Quando as mulheres assistem televisão na casa de algum parente, assistem o que o
anfitrião está assistindo não se incomodando por não assistir sua programação habitual
visto que receber bem um parente é muito importante para os Guarani.
Mas quando estão em suas residências, assistem o de costume, ou seja, o que
aprenderam a selecionar. O período da tarde é propício aos filmes em DVD, à noitinha, os
desenhos e, posteriormente, as novelas.
160
Dentre o estilo novelesco, destaca-se para as crianças o programa “Chiquititas”, que
em suas versões, desde 2005, ganhou destaque e notoriedade entre as crianças Guarani que
o assistem atentamente. O programa narra a vida de meninas e meninos num orfanato, os
problema e os conflitos, principalmente diante da incompreensão dos adultos.
As crianças, em especial meninas de dois até dez anos, alguns meninos (poucos) e
as crianças de colo que neste momento estão sob os cuidados das irmãs, assistem o
programa, sempre, com a presença de alguma mãe que por está amamentando e cuidado de
um recém nascido fica, a maior parte do tempo, no interior da residência.
As crianças, meninos ou meninas assistem televisão durante o dia (determinadas
horas). Na parte da noite, acompanham as mães assistindo novela, mas sem prestar muita
atenção ficam, apenas, no aconchego da mãe até dormirem. No entanto, quando estão
diante de seus programas favoritos, não são capazes de conversar ou desviar a atenção da
TV.
As crianças olham atentas e comentam o que vêem. Repetem algumas palavras das
músicas que são representadas e cantadas pelos atores mirins. Grande parte das crianças
que assistem ao programa não compreende muito o que os atores dizem, mas sabem o que
esta acontecendo, identificam se uma criança do programa está em perigo ou não, sabem se
a criança está feliz ou quando a criança esta brincando, assim como quando as crianças do
orfanato estão enfrentando adversidades. Em outros momentos as meninas repetem as
palavras faladas pelos atores. As meninas se identificam com os atores, Lívia e Liana
observam e tem seus atores preferidos. O encantamento das crianças com as roupas, os
brinquedos é enorme o que desencadeia muitos comentários com a mãe sobre o que
desejam adquirir. Atualmente na aldeia é comum encontrar vários brinquedos e utensílios
161
usados pelos jurua, em especial bonecas, miniaturas de utensílios domésticos e batons
(maquiagem para criança) e carrinhos.
Foto 15 – Criança Mbya
Os momentos de tristeza do ator em cena, seu choro, chama a atenção das crianças
assim como as cores e a cenografia do programa. As crianças não entendem bem porque as
crianças fazem tudo sozinhas e não tem pais.
A preferência por determinados programas televisivos se deu no processo de relação
com a televisão. Em 2006 ainda percorriam os canais, assistiam um dia um programa, no
dia seguinte outro; trocavam de canais e programas como que testando, explorando e
descobrindo as potencialidades da Televisão até que estabelecerem uma programação
própria que priorizava a continuidade dos programas. Perceberam, por exemplo, que os
jornais repetiam as informações, por isso escolheram apenas um para assistir, nos demais
162
horários dos jornais assistem outros programas ou os DVDs que ocupam mais os horários
vagos da manhã e da tarde. Apenas alguns adultos, dentre os quais João, que trabalha
durante todo o dia no posto, assiste um filme à noite, mas não é sempre pois prefere assistir
os filmes nos finais de semana.
Após observarem os conteúdos dos jornais (noticiários), optaram pela forma como
os conteúdos são transmitidos e, deste modo, estabeleceram a preferência pelo Jornal da
Record uma vez que ali as reportagens assumiam a forma investigativa e são transmitidas
ao vivo, o tempo real da transmissão parece ser um fator decisivo pela preferência por este
telejornal. Assistir aos acontecimentos ao vivo é, para os Guarani, diferente do que ter
apenas a informação narrada. O telejornal da Record acompanha a ação, apresenta os fatos
e procura solucioná-los o que mobiliza os Guarani que acentua que este jornal além de
mostrar a cena ao vivo o repórter repete as mesmas palavras em vários momentos. Porém,
depois de um ano assistindo ao jornal da Rede Record, muitos passaram a assistir aos
noticiários da Rede Globo de televisão, no período da manhã (que também passou a
apresentar de uma forma dinâmica suas reportagens).
As famílias dos joapyguá de baixo, que vai do centro da aldeia até o joapyguá de
Domingos (três joapyguá), assistem o jornal pela manhã da Rede Globo Bom Dia Rio e
Bom Dia Brasil. Os demais joapyguá (cinco), assistem ao jornal à noite nas redes de
televisão Band (Jornal da Band 19:05) e Record (Jornal da Record 20:00). A
preferência da maioria dos Guarani é pelo Jornal da Record pois o programa começa
justamente quando termina o desenho animado do pica-pau. Muitas famílias, também,
assistem ao programa Balanço Geral – 12:30, apresentado por Wagner Montes na Record.
Assistindo o noticiário com os Guarani pude observar o interesse, medo e
curiosidade que manifestavam sobre o cotidiano conturbado das grandes cidades.
163
Às 20:00h começa o Jornal da Record. O estilo do telejornal é inovador, repórteres
diante do fato, anunciando e acompanhando-os por todo o momento. É pura ação, as
pessoas se sentem no local, acompanham cada detalhe do que está acontecendo. Se o jornal
filma uma enchente, um crime, um seqüestro e o desenrolar do mesmo nada se perde do
olhar atento da mera. Os Guarani gostam do jornal pois preferem assistir a uma notícia
em seus mínimos detalhes e acompanhar seu desenvolvimento ao invés de ouvir uma
notícia e rapidamente passar para a próxima, como fazem a maioria dos telejornais. Muitas
famílias assistem ao programa Balanço Geral – 12:30, apresentado por Wagner Montes, e o
que mais chama atenção dos Guarani é o modo como apresentador dialoga diretamente com
os telespectadores, o que suscita entre os Guarani uma interação expressada em risos,
comentários e debates sobre o que é apresentado diretamente ‘para eles’ através da TV.
O mesmo ocorre com o repórter ação da Rede Record que mobiliza a tenção dos
Guarani que, atentos às cenas, aguardam ansiosamente o desfecho dos fatos. Este foi o caso
da reportagem sobre o uso indiscriminado de Balões em junho de 2007 no Domingo
Espetacular. Fabricar e soltar balões no Brasil é crime mas mesmo assim essa prática é
comum e considerada um hobby ou uma arte por quem a pratica. A reportagem mostrou o
momento da queda de dois balões na periferia de São Paulo, um dos balões caiu na rua
enquanto o outro caiu sobre uma laje de uma casa provocando um incêndio. A laje, mesmo
em chamas, é invadida pelos baloeiros que querem recuperar a armação do balão.
O tema ganhou destaque em 30 setembro 2007 no programa Domingo Espetacular
da Rede Record apresentado por Paulo Henrique Amorim com edição de Denise Silveira.
Os Guarani perceberam o perigo de uma atividade proibida por lei no país, os Guarani
acompanharam a reportagem fazendo vários comentários sobre a atitude dos juruá. A
164
reportagem abordou a proibição de tal brincadeira, os perigos, como os adeptos se dividem
na atividade de construção do balão entrevistando-os. Flagrou o socorro dos adeptos ao
resgatar um balão enorme do meio de uma fiação elétrica na cidade de São Paulo. Os
Guarani comentaram a habilidade desses adeptos em se dividir em grupos a partir de suas
especialidades: os que constróem o balão e o solta, e os que resgatam o balão para que
possa ser consertado e solto novamente. Os Guarani se impressionam com à técnica de
construção, identificada como complexa que exige grande habilidade sobretudo para
confeccionar os desenhos, adaptar os fogos de artifício e se indagam como podem “fazer
um objeto tão grande assim com o papel?”. Mas não tardaram a demonstrar seu
desinteresse total em aprender a usar esta técnica pois a queda do balão e suas
conseqüências entristecem os Guarani como demonstraram seus comentários durante a
reportagem. Porém, ficaram surpresos com o empenho dos adeptos em resgatar o balão e o
modo que esta ação era apresentada pela reportagem que filmava cada detalhe: o corre-
corre das pessoas que se deslocavam ate o local na tentativa de recuperar o balão.
Muitos desses indivíduos que têm o intuito de resgatar o balão vêm, em sua maioria,
de longe do local; essas pessoas são avisadas da possível queda do balão por outros da
localidade onde o balão foi solto; analisam a corrente de ar e partem para o local da
possível queda. Esses especialistas possuem uma rede, sabem quem e onde estão soltando
balões. Os Guarani não sabiam da existência de resgate do balão no mar. A reportagem
descreve como o grupo de resgate atua no mar, sendo possível perceber a organização e
empenho desses praticantes, conhecidos como ‘baloeiros’: "O que a gente faz é apenas uma
arte, um hobby, que a gente gosta, a gente está até limpando aqui o mar, não deixa cair nada
na água, não deixa sujar o mar".
133
133
Reportagem da Rede Record, de 30 set 2007.
165
O comentário final dos Guarani sobre a reportagem foi: “puxa é perigoso, mas o
jurua inventa muita coisa perigosa e ele faz tudo?” E frisa “é coragem, o que é?”.
A maioria dos programas escolhidos pelos Guarani os colocam diante do
desconhecido, os jornais os informam de coisas, situações e relações distantes do seu
cotidiano e que, de certa forma, alguns não saberiam como lidar, de acordo com Mauricio:
“tudo leva a informação, e nós podemos saber mais, os parentes, todos querem saber, ver e
escutar televisão por isso”.
Essa amplitude que o telejornalismo da Rede Record proporciona faz com que um
grande número de Guarani optem por assisti-lo pois anseiam por assistir novidades, o que
não conhecem, no Jornal da Record.
Dos vários programas assistidos, podemos destacar ainda a cobertura jornalística em
janeiro de 2007 sobre a chuva na cidade de São Paulo que apresentava uma cidade com
ruas alagadas e pessoas com dificuldades de retornar para suas casas. Posteriormente, o
noticiário comenta o índice de violência na capital. Os Guarani assistem atentos e, depois,
Marcelo pergunta:
- “Você já foi assaltada, não tem medo de andar agora?”.
- Não, disse, enfatizando: - Preciso fazer as coisas.
Todos os Guarani presentes no recinto olhavam atentos, aguardando minhas
respostas. De repente, Marcelo comentou:
“Nossa depois que eu comecei assistir o jornal, ver o que
acontece em cidade, fiquei com medo. Tenho muito medo de
ir para cidade e algum jurua fazer maldade, matar, roubar ou
apanhar. Agora fico em casa, antes eu ia, e queria andar no
Rio, agora quero ficar na aldeia, sair com o coral, o ônibus
166
vem aqui e pega Guarani. Tem jurua bom, mas tem muito
jurua mau”.
O medo e o receio de visitar a cidade pode ser encontrado em alguns jovens que,
anteriormente, iam para a cidade para passear. Atualmente, esses jovens preferem ficar em
casa e investir em um trabalho na aldeia, como a ocupação como professor. Sobre a
violência, cabe ressaltar a repercussão na mídia do caso de Isabela Nardoni (abril de 2008)
e a reação dos Guarani. Isabela Nardoni foi assassinada na residência de seu pai e os
principais suspeitos foram o próprio pai e a madrasta.
O fato tomou a cena televisiva permaneceu por dias no noticiário. A Record
acompanhou todo o processo, as suspeitas, o enterro da menina Isabela. Os Guarani
acompanhavam e teciam comentários. Na aldeia, todos ficaram chocados com o acontecido
e antes mesmo do laudo pericial e da prisão do casal Nardoni formulavam sua p´ropria
versão que sustentava que o assassino não poderia ter sido o pai mas a madrasta uma vez
que acentuavam que madrasta não tinha vínculos consangüíneos com a menina.
Cautelosos, os Guarani somente se convenceram do feito do casal após a comprovação e
pedido de prisão do casal.
Os Guarani, também, manifestaram sua opinião sobre o fato do pai de Isabela,
durante uma festa, tê-la ameaçado no momento em que fazia ‘pirraça’. O caso foi
comentado durante semanas e as mulheres foram as que mais se chocaram com o ocorrido
que gerava comentários do tipo: “criança faz as coisas, o pai não pode brigar, tem que
ensinar, corrigir”, “criança tem que ser cuidada, não maltratada. Este era um momento de
ressaltar o ethos de vida Guarani que estabelece uma educação pautada na dedicação,
exemplo e diálogo dos filhos com os pais até a fase dos dez anos. A socialização da criança
167
visa passar um conhecimento que ressalta a autonomia e o respeito das pessoas entre si para
uma boa convivência do coletivo
134
.
Os Guarani se lembraram do caso de Suzane Louise Von Richthofen que
acompanharam pouco pois, à época, não tinham televisão. Muitos assistiram TV venda
próxima da aldeia e na casa de jurua e manifestaram a mesma desaprovação quanto ao fato
da moça ser responsável por permitir e planejar juntamente com os irmãos Daniel (seu
namorado) e Cristian Cravinhos a morte dos seus pais no dia 31 de outubro de 2002,
alegando que eram contra seu namoro.
Para os Guarani estes dois casos de violência no interior da própria família parecia
algo impensável
135
e impossível de acorrer entre os Guarani. Sobre estes fatos as pessoas
comentavam que se os parentes próximos podem brigar, jamais podem chegar a matar uns
aos outros pois o fundamental é que os pais ensinem aos seus filhos a controlar a raiva
136
.
Este é um sentimento bastante perigoso para os Guarani uma vez que fora do controle pode
ocasionar homicídios. A raiva
137
deve ser sempre controlada e cabe aos pais desenvolver
esse controle nos filhos.
Quando a policia concluiu o laudo e pediu a prisão preventiva do casal Nardoni, os
Guarani acompanharam as imagens pelas televisão que provocaram mais comentários e
reflexões sobre os brancos. Alexandre disse:
134
Mais detalhes sobre a autonomia do individuo Guarani ver Oliveira 2002.
135
Lembraram, também, de uma outra história de um branco (jurua) que havia matado e
ferido seu próprio irmão por inveja e raiva.
136
O que impressiona mais aos Guarani diante deste casos de violência entre parentes
próximos é que os brancos não conseguem controlar a sua raiva.
137
Mais detalhes ver Oliveira 2002; outros povos, dentre os quais os Airo-Pai (Belaunde
2001) possuem uma preocupação e uma forma de regulação da raiva, seja com cantos, rezas
e outros rituais visto que seu controle possibilita uma boa convivialidade.
168
“Não é todo mundo igual, mas eles tem dinheiro, estudo,
porque fizeram isso com a criancinha? Por isso que s
cuidamos das nossas crianças e não deixamos ela ir para
cidade, pode encontrar um jurua perigoso”.
Outro programa que mobilizou a atenção dos Guarani provocando uma reflexão
sobre seus sentimentos diante das imagens apresentadas pela TV foi o Documentário sobre
o Camboja.
O Documentário sobre o Camboja foi exibido em um outro programa muito
apreciado pelos adultos Guarani:a Câmera Record. Este programa exibe vários
documentários sobre fauna, flora, conflitos sociais e geografia mundial. Tive a
oportunidade de assisti-lo no dia 23 de maio de 2008 em companhia de Mauricio e Liana e
outras pessoas da aldeia. Os Guarani ficaram impressionados com a beleza do lugar e com
os problemas sociais sobretudo com a pobreza generalizada assim como a exploração
infantil. O programa mostrou os problemas vivenciados no dia-a-dia, a falta de comida e
seu ponto alto foi a tentativa de um pai de família Cambojano em vender sua filha para a
equipe de reportagem.
Esse tema ganhou ênfase no programa que procurava mostrar a dignidade perdida
da família diante de uma necessidade imperiosa que era a fome. Mauricio me fazia muitas
perguntas: “onde fica esse lugar?”, “Fica longe daqui?” ,“Você conhece ou tem vontade de
conhecer?”,“Se você estivesse trabalhando lá como ia fazer, ia falar o que?”.
Mauricio ainda mobilizado pelo Documentário lembrou que a falta de comida
assolou os Guarani e que muitos brasileiros sofrem também com isso, porém enfatizava que
achava triste as imagens veiculada pela TV, principalmente a tentativa de um pai em vender
169
sua filha. Comenta que diante da fome pode-se fazer coisas absurdas, “a fome não deixa
pensar”, mas enfatiza que jamais faria o mesmo acrescentando entre os Guarani as crianças
são orientadas a casar nessa idade e os pais jamais iriam vendê-las.
Valdir, assim como vários outros Guarani, assistiu a este programa Câmera Repórter
e justifica o fato de ser um telespectadores assíduos pelo desejo de ‘conhecer mais sobre o
mundo’. Valdir, professor da Escola Guarani, comenta que a pobreza existe também no
Brasil, mas considera a pobreza no Camboja mais aguda a ponto dos pais quererem vender
suas crianças. Valdir refletia o que viu nas imagens tentando se colocar na posição dos pais
da criança:
“Sim isso choca. Mas se for ver, às vezes não, o pai e a mãe
ganham dinheiro da venda para conseguir alimento. É o
caminho, outra coisa não tem”.
E, logo em seguida, cita o exemplo do trafico nas favelas que passou a conhecer
assistindo aos telejornais:
“O trafico no Rio, já é trabalho para o filho, comprar e vender
dinheiro, na favela não tem outra coisa pra fazer, não tem
de onde tirar dinheiro e usam essa solução”.
E continua:
“O pai vende a criança para comprar alimento para os outros
filhos. Se tivesse alimento não faria, e na favela se tivesse
emprego as mães não deixavam o filho comprar e vender
coisas”.
E conclui:
170
“Nos Guarani jamais faremos isso, somos diferente do
branco, para mantermos a família nós plantamos, por isso
temos que ter terra pra plantar”.
A reflexão elaborada por Valdir é importante para perceber como as imagens
televisivas propõe uma reflexão que, em última instância, elabora esta relação complexa
entre os Guarani e os jurua: contrastando e ao mesmo tempo desconstruindo fronteiras e
identidades. Pois se a TV é ‘coisa de branco’, suas imagens veiculam todo o tempo as
imagens deste mundo que agora fazem parte do cotidiano Guarani, que adentra suas casas e
os fazem refletir sobre a alteridade, a diferença: o que siginifica os ‘costumes’ do ‘outro’ e
os ‘seus próprios costumes’ diante das imagens exibidas pela TV.
A televisão e as imagens veiculadas, pelo menos neste primeiro momento de sua
introdução no cotidiano Guarani, são fonte permanente de indagação e reflexão que força
os Guarani a pensarem sobre estes outros mundos apresentados e como estes mundos são
ressignificados através da recepção Guarani destas imagens.
Alguns programas como os da Playboy
138
são assistidos mas pouco comentados. São
programas que exibem cenas de sexo e são assistidos nas madrugadas das quintas-feiras e
dos domingos. Na casa de Jandira, por exemplo, os homens alegavam que não estavam
interessados em assistir por serem rezadores e que este programa era mais coisa de jovem
que queiram conhecer a mulher branca. Em outra casa, João ficava silencioso ao assistir ao
programa que exibia imagens de um casal tendo relações sexuais. João comenta que muitos
jovens assistem porque “tem vontade de saber como o juruá faz suas coisas, e isso é com
tudo”.
138
Conforme foi narrado por João.
171
Essa mesma curiosidade em saber como os jurua fazem suas coisas’ ocorre em
relação ao tratamento dispensado pelos jurua para com os animais, como foi possível
observar no Câmera Repórter assistido no dia 07 de janeiro de 2008 que exibia imagens
sobre os animais que viviam no ártico e nas savanas.
Nos Domingos costumam assistir TV somente pela manhã e assistem filmes no
período noturno, quando ficam em casa embora a noite de domingo é dedicada ao
cerimonial no opy. Segundo Marcelo “não achamos nada no domingo”. Domingo querem
se divertir correndo no joapyguá e as lideranças organizam trabalhos como plantio,
reformar casas sempre solicitando a participação dos membros da aldeia. Marceloí diz que
“sempre tem o que fazer aqui fora”, como “ir para o campo jogar futebol”.
Antes de possuírem um aparelho de televisão, os Guarani assistiam as partidas de
futebol na venda próxima ao antigo campo no qual jogavam com times da região.
Assistiam, também, as partidas na casa de Irmã Eunice quando eram convidados para uma
reunião. Quando a luz foi introduzida, o primeiro local a possuí-la foi o Posto de Saúde.
Nos finais de semana, Ernesto ou Alexandre transportavam suas televisões para o Posto e lá
se reuniam para assistir aos jogos, geralmente do Campeonato Brasileiro. A maioria dos
homens (jovens, adultos e crianças) gosta de futebol e aprendem a jogar desde a mais tenra
idade. Algumas mulheres gostam de assistir as partidas e as consideram divertidas,
enquanto outras acham desinteressantes enfatizando que não gostam dos gritos proferidos
pelos homens enquanto assistem ou mesmo quando estão jogando no campo alegando que
no futebol sempre ocorrem brigas. Criticam os homens dizendo que agora querem apenas
jogar futebol deixando de dançar o xondáro. Geralmente, são as recém-casadas ou as
solteiras que assistem e acompanhem as partidas seja no campo do bairro quanto na aldeia.
172
Os homens de todas as gerações se juntam no campo de futebol à tardinha para organizar
uma partida.
Para assistir futebol na TV os homens de um joapyguá se concentram numa das
casas. Assistem atentamente tecendo comentários seja de incentivo ou de crítica.
Comentam cada lance do jogo observando as técnicas, e assim fazendo, assimilam as
táticas e estratégias usadas pelo técnico. São enfáticos em dizer que aprenderam a jogar
futebol olhando: “tudo, vocês não tem o objetivo? Isso para nós significa olhar no alvo”,
Esse comentário de Algemiro foi reiterado quando ministrei um curso para orientação das
monografias dos professores Guarani (julho de 2008), cujo objetivo foi comparado ao
“alvo” dos antigos (ymã) quando iam caçar.
O aprendizado e o conhecimento se realiza através do olhar, do escutar. A
importância do ‘ver’, do ‘observar’, do ‘olhar’ acaba por valorizar a imagem e, sobretudo, a
experiência com a televisão se enquadra nesta concepção Guarani do que significa o
aprender e o modo como se aprende. É o que se passa quando assistem a uma partida de
futebol na televisão. Na casa de Jandira a televisão estava sintonizada em um jogo do
Campeonato da União Européia. Neste caso, assistiam a Tv não para torcer por algum time
mas para olhar, observar e aprender as táticas do jogo. Segundo Marcelo, “não entendemos
o que ele fala, mas estamos olhando e todos os movimentos sabe, não precisa nem falar”.
173
A mobilidade Guarani interfere diretamente na escolha dos times de futebol para os
quais irão ser torcedores. As passagens dos Guarani por São Paulo, Espírito Santo, Rio de
Janeiro e Santa Catarina, os fazem torcer por dois ou três times. A maioria opta por torcer
pelo time do estado onde vive atualmente. Este é o caso de Algemiro, Ernesto e Valdir, que
torcem pelo Flamengo no Rio de Janeiro. Marcelo torce pelo Corintians em São Paulo e
174
Flamengo no Rio de Janeiro. Tem pessoas que torcem ao mesmo tempo pelo Fluminense
(RJ), pelo São Paulo (SP) e, ainda, pelo Figueirense (SC).
Nos desenhos confeccionados pelos Guarani sobre os programas favoritos de
televisão destacam-se o futebol, o desenho animado, a novela e o noticiário.
Aos sábados muitos Guarani estão sintonizados no Programa Melhor do Brasil
apresentado por Rodrigo Faoro que é para eles um divertimento garantido. O quadro “Vai
dar Namoro” é o preferido do programa. Este quadro apresenta mulheres que estão
buscando namorados. Maquiadas, penteadas e com roupas elegantes, falam sobre suas
qualidades para o telespectador. Os Guarani ficam atentos, sérios, escutando. Minutos
depois, o apresentador começa a chamar os homens que estão buscando uma namorada.
Cada um é apresentado para o publico e para as moças pretendentes.
Cada um dos homens são avaliados individualmente pelas candidatas. Quando estas
não estão interessadas dispensam os homens de forma delicada. O rapaz dispensado recebe
uma vassoura e senta-se em um tronco de madeira, o que provoca muitos risos dos Guarani.
A apresentação dos rapazes provoca, também, muitos risos dos Guarani. Os homens riem
do corte de cabelo, das roupas dos pretendentes participando ativamente com palpites e
comentários, antecipando assim o aceite das moças: “esse é muito feio! Não!”.
Em um desses programas Marcelo comentou: “eu vou arrumar uma namorada”, o
que provocou risos na audiência. E Marcelo continuou: “será que eu arrumo uma namorada
Kunhã Mbaraete?” Perguntei para as mulheres: “vocês vão deixar? A mulher Guarani
deixaria?”. Uma mulher respondeu: “pode, nós vamos ver ele lá, ele vai dançar depois se
não ficar no tronco”, e todos riram muito.
Neste quadro do programa quando a mulher aceitava conversar com o rapaz,
demonstrando interesse pelo pretendente, ambos se dirigem para a ‘paquera no restaurante’,
175
que faz parte do cenário do programa e conversam buscando afinidades. Os Guarani
ficam atentos observando a cena quando uma moça escolhe um dos rapazes para conversar
e ficam na expectativa do que vai se passar em seguida. No restaurante, os casais
conversam e, alguns, chegam mesmo a trocar caricias. Depois, o apresentador chama o
casal e pergunta, vai dar namoro? Dos que dizem sim, é comum selarem o novo
relacionamento com um beijo, as vezes um beijo intenso e prolongado o gera comentários
do apresentador e reação imediata dos Guarani que riem muito desta situação. O programa
termina com um baile geral, todos dançam, inclusive aqueles que ficaram sozinhos dançam
com a vassoura.
176
4 Desenho e Novela: associações míticas através das imagens e
narrativas televisivas.
No capitulo anterior nos deparamos com o estranhamento e o desejo dos Guarani
em conhecer e compreender mais o universo do jurua. Neste capítulo iremos apresentar a
experiência televisiva dos Guarani percebida como proximidade e semelhança com a
cultura jurua é, isto é, imagens que os Guarani vêem e que não precisam de explicações
pois os Guarani as associam diretamente com planos reconhecíveis em sua cultura.
Refiro-me a programas e desenhos animados nos quais as narrativas apresentam o
impossível, o invisível, poderes sobre humanos, a força da terra, seres do céu sobre a terra,
ou seja, situações e vivências próximas das narrativas míticas Guarani, em que o invisível
encontra-se visível, a força dos ‘deuses’ pode estar em um objeto ou no nome de uma
pessoa, a alma pode se deslocar do corpo e os sonhos são uma via de diálogo entre esses
mundos. Mesmo neste universo de semelhanças entre as imagens advindas dos jurua e as
percepções Guarani do mundo, um estranhamento por parte dos Guarani ao perceberem
que podem encontrar no universo jurua elementos próprios da cultura Guarani, o que gera
em alguns certo receio e, diríamos, uma confusão ‘filosófica’ entre os Guarani.
O desenho animado do Pica-pau e a novela Caminhos do Coração Os Mutantes
serão aqui nosso guia de reflexão para estabelecer relações entre as concepções oníricas e
mitológicas Guarani e as imagens apresentadas por estes programas televisivos.
177
4.1. O programa Pica-pau.
178
À tardinha, após o banho, as crianças se recolhem em suas casas para assistir o
desenho animado Woody Woodpecker (O Pica-pau). O Pica-pau é o campeão de audiência
em toda a aldeia. Independente da idade ou gênero do telespectador os Guarani adoram o
desenho Pica-pau.
Certo dia, o jovem Alexandre, ao chegar da mata onde coletava palmito se
encaminhou em direção à televisão para ligá-la uma vez que estava próximo do horário do
desenho animado começar. As mulheres e crianças ainda estavam do lado de fora da casa.
As mulheres estavam sentadas sobre um cobertor, Kerethu com seu filho recém nascido,
Jandira com sua neta no colo e Liana a preparar taquara para a confecção dos adjaka
(cestos). Conversavam enquanto observavam Alexandre preparar lenha. Depois do banho
tomado, todos entraram na casa. As crianças
139
arrumadas estavam diante da TV para
assistir o desenho Pica-pau, os adultos chegaram depois.
A preferência dos Guarani pelo desenho animado do Pica-pau foi a que mais se
destacou na percepção dos Guarani em relação ao que gostam e preferem assistir na
televisão. Podemos observar nos desenhos confeccionados pelos Guarani sobre o que
assistem e pensam sobre a televisão a recorrência ao Pica-pau que figura na maioria dos
desenhos.
139
Algumas crianças assistem o desenho em todos os horários transmitidos.
179
No desenho se observa um Pica-pau muito semelhante ao apresentado pela
televisão. Indagados sobre como é um Pica-pau da mata atlântica, dizem ser diferente do
que aparece no desenho.
- Que desenho é esse? Perguntei após ver o desenho sem o nome da programação
Ana respondeu:
- “Esse é o passaro, o Pica-pau”.
- Você assiste?
- “Eu vejo todos os dias o desenho”.
- Porque?
- “É engraçado, muito bom, nós gostamos muito”.
Na maioria dos diálogos sobre o desenho do Pica-pau não foi possível conseguir
uma reflexão dos Guarani que fosse além do “eu gosto”, “é bom”, “é engraçado”
180
As mulheres, os homens e as crianças tem uma atitude e comportamento semlhantes
diante das imagens do Pica-pau: riem e se divertem muito. Minha questão desde o início de
minha observação sobre a relação dos Guarani com este desenho era a de saber o que havia
na narrativa e nas imagens apresentadas pelo Pica-pau que mobilizava tanto o interesse dos
Guarani.
O desenho do Pica-pau foi criado em 1940 por Walter Lantz e possui uma série com
195 episódios.
quase amoral.
O d
Os Guarani não se cansam de assistir o Pica-pau mesmo sabendo que a maioria dos
episódios foram exibidos e assistidos, cada episódio lhes parece único o assistem como
um acontecimento em que atentos e concentrados, comem pipoca ou tipa, tomam café, riem
e se divertem imensamente. Segundo os Guarani os jurua também gostam do programa.
Ana disse que toda vez que retorna tarde para a aldeia passa na casa de jurua, descansa um
pouco olhando a televisão do jurua, ficava próximo e as crianças assistindo o Pica-
pau. Alexandre também comenta que conhece muito jurua que assiste ao programa.
O desenho é, atualmente, vice-campeão de audiência na Rede Record de televisão e
sempre foi sucesso mesmo quando era transmitido pelo SBT. O sucesso foi tanto que o
desenho ganhou destaque e Walter Lantz criou personagens próprios para contracenar com
181
o Pica-pau, entre eles o Zeca Urubu, Jacaré, Leôncio (o Leão Marinho) e outros.
Abaixo, os personagens
140
criados para contracenarem com o Pica-pau.
Pica-pau Zeca Urubu Jacaré
Toquinho
e Lasquita
Dooley Leôncio
Meany
Ranheta
Andy Panda
Inspetor
Willoughby
Roberto disse: “Eu quero assistir o pica-pau, mas quero assistir com o Zeca Urubu, eu
gosto muito”. Outros Guarani anseiam em assistir o desenho com a participação do
Leôncio. Na aldeia, não um Guarani que não goste do Pica-pau. Atualmente, o desenho
passa em dois horários na Rede Record: às 18:43 até às 19:55 durante a semana e às14:00
aos sábados. Sucesso entre os não-índios e entre os Guarani, o Pica-pau é um personagem
que se destaca por ser um animal com propriedades humanas, como a linguagem, pelo
modo de ser audacioso e ‘politicamente incorreto.
140
Site www.retrotv.uol.com.br/picapau/index2.html
182
O Pica-pau quebra todas as regras sociais. Nas estórias ele aparece mentindo,
roubando (pega sem pedir, como se o ato se justificasse por si), enganando, seduzindo e faz
qualquer coisa para obter comida. Enfim, seu personagem não tem ética, não tem lar e
mesmo quando aparece sensível à ética e tem até uma casa é apenas provisório pois ao final
do enredo volta novamente a assumir seu caráter de trickster. Em grande parte dos
desenhos uma grande variação no final da estória, em algumas o final é do tipo happy
end e o Pica-pau sai na melhor, em outras o final é triste e melancólico.
O Pica-pau é um personagem ativo, adepto à prática do momento, ao instante e ao
que esse momento pode oferecer; o personagem é ‘solto no mundo’, ganhou o apelido de
Pica-pau maluco nas narrativas devido suas loucuras e absorveu essa denominação de
maluco para si. Numa espécie de rompante consciente de si ele simplesmente gosta de ser e
agir assim, ele é assim, se como louco e isso justifica suas ações e aventuras; nesse
aspecto, o personagem faz uma reflexão sobre seu ser, um ser diferente que ao mesmo
tempo sente prazer e repulsa pela sociedade em que vive, um ser considerado ‘maluco’ mas
que gosta e assume essa relação ambivalente e irreverente diante da sociedade e assim o
Pica-pau se ‘joga’ nas ações no mundo, incorretas ou não, o fato é que dessa forma e por
meio destas ações que o personagem parece ser aceito por todos, sendo sucesso na aldeia
Guarani de Sapukaia, no país e no exterior.
Bagunceiro brincalhão e esperto, o Pica-pau desperta paixões na aldeia. Roberto
acrescenta que gosta do Pica-pau “porque é engraçado”. E eu aproveito para perguntar:
- Sim, mas como é o desenho? O que ele faz que é engraçado?
- “O desenho é bom, aqui a garotada toda assiste, nós também”. Pausa para risos.
Continua Roberto: “é bom de assistir, é engraçado, o Pica-pau é rápido não deixa ninguém
passar ele pra trás. Eu gosto muito de assistir”, enfatizou.
183
Roberto prosseguiu falando do episódio que acabáramos de assistir:
“Esse desenho que passou, você viu que o Pica-pau estava
famoso, astronauta, então ia para o alto, e o Jacaré ficou
louco, ao ver ele na televisão, queria comer ele”.
Roberto ao explicar sua preferência pelo Pica-pau procura descrever como percebe
o personagem e porque se identifica com o mesmo:
- “Ele queria devorar o Pica-pau, coitadinho do Pica-pau, é magrinho, não tem nem
carne”. Após esse comentário, o riso foi geral. Prossegue:
“O jacaré muda o caminho e o Pica-pau chega na casa dele, e
ele tenta cozinhar o Pica-pau. Mas o Pica-pau é esperto, e o
Jacaré se deu mal”. E continua “tem desenho que o Pica-pau
está muito danado, começa fazendo trapaça. Aquele desenho
em que ele se veste de mulher para entrar na festa do Leôncio
de Natal (risos) ele vai para comer (risos), coloca tudo
dentro do vestido, eu já coloquei doce no bolso, fiz quase como
o Pica-pau! Risos. E quando o Pica-pau olhou para a mesa e
viu um frango grande, bem gordo todo bonito na mesa? Ainda
saindo a fumaça... Ele quis comer, ah eu também queria aquele
frango!”.
Os episódios com o Jacaré e o Zeca Urubu são os mais apreciados. O Jacaré tem
uma voz engraçada, é desajeitado, tem um olhar forte e é esperto, as mesmas qualidades se
estendem, também, ao Zeca Urubu. Ele é engraçado, segundo os Guarani, e sua graça
provém de seu corpo desajeitado, é magro, tem olhos profundos e é esperto, rápido e assim
como o jacaré quer sempre ‘se dar bem’.
184
Os personagens do Pica-pau, do Zeca Urubu e do Jacaré são facilmente transpostos
para o universo mítico Guarani em que os personagens animais como o jacaré, o urubu e os
pássaros tem comportamentos que são atribuídos aos humanos. A esperteza do Pica-pau é
lembrada a todo momento, assim como, sua capacidade de falar. João da Silva disse não
estranhar um animal falando no desenho animado e comenta:
“Viu? Juruá esperto sabia que os animais falavam. Eu disse
pra você, da outra vez, que você ficava aqui, lembra? A
historia da onça? Eu disse que antigamente era assim, todos
os animais sabiam falar como nós, depois que perderam, não
sei porque, não falam mais. Na historia do Kuaray, lembra,
nela eu sei, depois que a onça comeu a mãe de kuaray, não
teve mais jeito, por isso Kuaray fez ela e os animais não falar
mais. Mas eles falavam muito, como nós, agora as crianças
acreditam, eles estão vendo no desenho”.
João da Silva continua:
“Todo parente está vendo como os animais falavam, eles eram
espertos, mas perderam esse poder de falar. Foi depois da briga
com Kuaray? Não sei, tenho que lembrar. Até eu esqueço, fico
sem contar para os parentes, as coisas mudaram um pouco e
Tupã não gosta”.
João da Silva sorri, mas fica pensativo. O grande líder da aldeia associa diretamente
o desenho animado ao tempo e espaço mitológico. O Pica-pau o faz lembrar Kuaray (Sol),
o primeiro Guarani, irmão de Jachy (Lua) pela forma ágil de ser e se recorda, também, dos
185
animais que Kuaray e Jachy encontram no seu caminho e como dialogam com os mesmos.
Lembra, ainda, que era ‘assim nas histórias’, e era assim antigamente’.
141
Essa associação
com os mitos através das várias formas que o Pica-pau assume no desenho animado
enfatiza sua condição de pássaro e, assim, sua agilidade para enfrentar qualquer animal e
situação como Kuaray: “isso mostra que o Pica-pau é forte e alegre mesmo diante dos
inúmeros problemas e desafios vivenciados nos episódios.
O personagem mítico
142
Kuaray denominação para sol e para grande guerreiro é
um ser que interage com os animais, sempre encontra em seu caminho animais para ajudá-
lo ou prejudicá-lo. No mito Kuaray surge ora faceiro, brincalhão, ora triste, sofredor.
Estados de espírito derivados diretamente de suas relações com os animais.
O Pica-pau enquanto personagem possui as mesmas habilidades dos personagens
míticos e enquanto narrativa. Assistem ao desenho animado não mais para aprender coisas
novas como ocorre com os demais programas (vistos no capítulo anterior) mas como uma
possibilidade de ver imaginar uma narrativa mitológica através das imagens do Pica-pau.
141
Ver em anexo o mito de Kuaray e Jachy.
142
Segundo Litaiff “os mitos guarani podem ser divididos em dois gêneros: 1- os
considerados “sagrados”, que tratam da criação de Yvy Tenonde, a “primeira terra” e
Ne’eng o “espírito humano”; e 2 – os considerados “não sagrados”, que se dividem em dois
tipos: I. os mitos que tratam da criação de Yvy Pyau, “terra nova”, ou “segunda terra”, a
terra atual, compreendendo especificamente o “Mito dos Gêmeos” ou “Ciclo dos Irmãos”; e
II os relatos históricos, que tratam de eventos considerados mais recente como a conquista
da América, a Guerra do Paraguai, os deslocamentos guarani em direção ao litoral
brasileiro, entre outros”. (Litaiff, 2004: 23).
O Mito dos Gêmeos lembrado pelos Guarani diante dos personagens televisivos, encontra-
se em anexo. A narrativa mítica de Kuarai e Jachy (ou Jacy) são recorrentes na
compreensão da sua própria visão de mundo e de acordo com Litaiff “assim como os
“mitos sagrados” são a exegesse de rituais como a poraei, negociadas num contexto de
ação, as unidades mínimas do Ciclo dos Irmãos podem justificar e orientar praticas, no
momento em que são apresentadas aos indivíduos, mesmo de forma fragmentada, em sua
vida cotidiana” (Litaiff, 2004:25).
Sobre o mito dos “gêmeos guarani”, a diferença entre eles um nasce depois do outro, nos
remete a ideia a ideia de duplo, enquanto uma diferença, apontado por Lagrou (1998).
186
Assim, o Pica-pau os faz retornar aos “tempos de antigamente” em que os animais falavam,
existiam os tricksters e os demiurgos que muitas vezes assumiam a forma dos animais.
Os animais míticos que mais aparecem nos mitos Guarani são a onça, o urubu e o
Jacaré. Segundo João da Silva,
“Antigamente nós falávamos muito com os animais, e ao passar
pela onça deveria falar com ela, cumprimentá-la,
principalmente quando ela falava com um Guarani, a onça era
danada”. (...) ela sempre queria algo mais, alguma coisa, dava
medo, uma vez um caçador estava subindo o caminho da
aldeia, ele ia sozinho, caminhando na estrada e de repente
escutou um barulho no mato, se assustou, ele continuou
caminhando e logo escutou o barulho novamente, era a onça,
então ela apareceu e chamou: hei, você! Pausa. Você viu um
bicho passando aqui nesse lugar? O caçador disse: não, eu não
vi não. Ah, a onça olhou suspeitando dele, então perguntou:
você é um caçador? Ele disse: não sou não, virou e foi embora.
Ele saiu logo para ela não descobrir que ele era caçador, pois a
onça iria querer comer ele, e isso existia...”.
Recorda, também, a participação do urubu como personagem central na narrativa
“A estória do jurua”. Na estória o urubu possui a habilidade de sonhar
143
e, por isso, são
denominados ‘pajé’. O sonho e suas interpretações é uma habilidade própria dos pajés
143
É importante ressaltar esta dimensão da experiência onírica visto que pode nos ajudar a
compreender o que significa imagem para os Guarani Mbyá. Essa reflexão será elaborada
adiante, no final do capítulo.
187
Guarani. Os urubus vivem em aldeias, possuem um líder, narram os sonhos e seus sonhos
são premonições típicas da complexa estrutura onírica dos Guarani.
144
Os animais ao falarem com os humanos transmitiam o conhecimento, uma espécie
de troca de perspectivas que configuram estas relações
145
. O único animal que falava com
os Guarani mas que estes deviam manter distância é a onça, pois ela quer comê-los e o foi o
que se passou no mito de Kuaray e Jachy em que a onça come os ossos da mãe de Kuaray,
provocando em Kuaray o desejo de vingança. Movido pela raiva Kuaray mata o animal,
vinga sua mãe mas não pôde devolver-lhe a vida, sem os ossos não poderia reconstruir seu
corpo.
De acordo com João da Silva é difícil para eu compreender o desenho do Pica-pau
uma vez que os jurua não falavam com os animais como os Guarani
146
o faziam. Ao mesmo
tempo o cacique se inquieta com o fato de porque o jurua elaborou um desenho tão perfeito
como o do Pica-pau que é “muito parecido com antigamente”.
Os mitos e as ações que põem em relação são relembradas através do desenho do
Pica-pau assim como a raiva e os processos de transformação dos seres são lembrados
através das imagens da novela Caminhos do Coração Os Mutantes. Os Guarani não
apresentam dificuldade em compreender esta novela e procuravam, em cada momento que
assistíamos conjuntamente, me explicar do que se tratava, quais eram seus princípios e o
porque do comportamento das pessoas e suas respectivas transformações.
144
Ver em anexo “A estória do Juruá”, retirado de Oliveira (2002).
145
No sentido de perspectivismo conceituado por de Viveiros de Castro (1996).
146
Nossa distância do universo mítico, atualmente resgatado em alguns programas, filmes e
publicidade, que buscam nos símbolos míticos uma forma de chamar atenção e prender o
individuo na televisão.
188
4.2. Caminhos do Coração – Os Mutantes.
189
A novela apresentada pela rede de televisão Record, inicialmente no horário das
20:40 e, posteriormente, às 22:00, é assistida por 90% dos Guarani da Aldeia Sapukaia. O
tema da novela trata, grosso modo, de mutações genéticas. Os poderes mágicos adquiridos
190
pelos mutantes e sua a capacidade de transformação é o que mais é enfatizado e comentado
pelos Guarani como algo que pode acontecer a uma pessoa Se não souber controlar a raiva
e o mal. O mal e a raiva podem, portanto, transformar a pessoa e isso, segundo eles,
acontece com os personagens mutantes da novela.
A novela Caminhos do Coração começou em agosto de 2007 ocupando o lugar da
novela "Vidas Opostas”, uma novela que explorava os temas da violência e da traição.
Caminhos do Coração apostou numa narrativa de realismo fantástico, em que os super
poderes e as transformações são possíveis. Em Entrevista à Marina Campos (20/08/2007) o
autor da novela justificou que sua estória era um reflexo do tempo em que vivemos: "Este é
um momento muito especial na história da humanidade. Criaturas mitológicas sempre
existiram em todas as culturas, mas vivemos o momento em que as quimeras ficaram
possíveis".
O sucesso da novela foi imediato em São Paulo passando a ocupar o primeiro lugar
no Ibope. Na Aldeia Sapukaia é assistida por 90% dos adultos. As crianças nesse horário
estão, em sua maioria, dormindo. Nas demais Aldeias Guarani no litoral do Rio de Janeiro
foi possível perceber, através das conversas com Nirio da Aldeia Araponga e Sergio da
Aldeia de Parati Mirim, o mesmo interesse demonstrado por outros Guarani pela novela
que parece ser bastante popular em outras aldeias.
O sucesso da novela coincide com o sucesso atual de filmes que tem como
personagens seres fantásticos com poderes e forças inimagináveis como os filmes: Senhor
dos Anéis, Henry Potter, X-Men. A novela se divide em duas fases, a primeira Caminhos
do Coração e a segunda, Caminhos do Coração Os Mutantes. Em ambas as fases, a ação,
mistério, violência, o mal e os processos de transformação se fazem presentes.
191
A primeira fase da Novela
A primeira fase enfatizava dois núcleos distintos: um, voltado para a ciência, cujas
famílias estavam envolvidas com a transmutação genética e, outro núcleo circense que
procurava apresentar ‘toda a essência do ser humano’ que se desenvolvia através do corpo e
dos cuidados corporais que envolviam acrobacias levando a superação dos limites corporais
tornando o ser humano em ‘belo’ e ‘forte’. A transformação do corpo via os exercícios era
um tema que mobilizava o interesse dos Guarani conforme observamos nos comentários de
Vera à propósito das imagens da novela: “o corpo pode mudar, você pode controlar o
corpo, nos fazemos jeroky”.
Paralelamente as estes dois núcleos o autor da novela acrescentou um ingrediente
misterioso ao introduzir na narrativa uma série de crimes envolvendo o núcleo responsável
pela clinica Progêneses, responsável pelas pesquisas genéticas e pela criação dos mutantes.
A partir da morte do dono da clinica Dr. Sócrates (Walmor Chagas) começa, então, a
disputa pela herança entre o irmão Aristóteles (André di Biase) e sua cunhada Irma
(Patrícia Travassos). Paralelo a isto, a médica responsável pelas pesquisas continua
trabalhos.
Os protagonistas da novela são Marcelo, interpretado por Leonardo Vieira, cujo
personagem é um investigador da polícia federal, pai de uma menina mutante, cuja mulher
foi assassinada pela quadrilha responsável pela morte do Dr. Sócrates e Maria, interpretado
por Bianca Rinaldi, uma mutante criada no circo. A narrativa é bastante complexa e
intrincada mas isso não pareceu uma dificuldade para os Guarani compreendem a trama da
novela.
Dos personagens vampiros, destaca-se o garoto Váva.
192
Vavá (Cássio Ramos) é o
menino-lobo. O personagem
desperta muito interesse nos
Guarani, que acompanham
atentamente sua trajetória na
novela.
O jovem Vavá adquiriu o vírus da Licantropia e acabou mordendo uma pessoa,
sendo, com isso, responsável por contaminar as demais com o vírus. O jovem adquire uma
força extrema em momentos de raiva, ao mesmo tempo que demosntra sua fragilidade de
criança que tem medo e quer proteção, apoio e cuidado. A capacidade desses personagens
se transformarem e a dos protagonistas demonstrarem agilidade e bondade parecem ter sido
os ingredientes centrais para que os Guarani passassem a ser assíduos telespectadores da
novela.
Mauricio sugere este fenômeno apresentado pela novela é real, acredita que isso
pode acontecer. Karai percebe como uma estória, mas não sabe dizer se considera real ou
não, entretanto comenta sobre a ambivalência e os dilemas do ser humano entre o bem e o
mal: “ainda bem que tem pessoas boas na novela, é muita maldade que fazem, matar,
porque matam?”. A indagação do porque as pessoas não conseguirem controlar seus
instintos, no caso a raiva que transforma as pessoas em “coisas ruins” é um comentário
193
geral sobretudo entre os mais velhos da aldeia. A primeira fase da novela termina com
ênfase no núcleo mutante.
A segunda fase da novela.
A segunda fase se inicia com a divisão do núcleo mutante em liga do bem e em liga
do mal. Maria, a protagonista, possui uma irmã criada em cativeiro que não conhece e
nunca viu o mundo, cujos instintos estão voltados para o mal. Os Guarani continuaram
assíduos telespectadores da novela e continuam a explicar todos os acontecimentos com
clareza. Para explicou-me que a Dra. Julia era responsável pelas mortes e que todos na
novela já sabiam do fato. A Dra. Julia se transformará numa nova pessoa, a Juli, após tomar
um soro que a fez rejuvenescer 30 anos e que Samira tinha uma irmã. Os Guarani me
incentivavam a assistir sempre e não perder nenhum dos capítulos.
Nessa nova fase da novela Os Mutantes - Caminhos do coração, as mutações
ganham ainda mais ênfase, seres estranhos, perigosas criaturas, algumas metade homem
metade animal, outras somente animal se espalharam pela sociedade transformando homens
e mulheres em vampiros, felinos, cobras, lobisomens e aranhas que atacam pessoas
inocentes espalhando o virus. A narrativa se passa na cidade de São Paulo que, em pânico
com as mutações, passa a perseguir mutantes bons e maus.
A Liga do Bem atua em defesa da população, e é composta pelos personagens
Maria, Marcelo, Nati, Valente, Lucas,Toni, Beto, Aristóteles, Noé, Pachola, Perpétua,
Bianca, Leonor, Gaspar, Ísis, Cléo, Danilo, Ágata, Aquiles, Janeti, Cris, Nati, Simone,
Newton, Erica,Vavá, Tati, Eugênio, Ângela, Clara, Lúcio e Juno
147
. A Liga do bem conta
com a ajuda dos policiais Miguel, Aline, Marta, Beto e Ernesto.
147
Sobre os nomes dos atores veja a lista nos anexos.
194
Os poderes mutantes da liga do bem variam de mutante para mutante. Maria, por
exemplo, absorve poderes dos outros mutantes tem a capacidade de pressentir. Janeti tem o
dom da clarividencia e Lucas lê o pensamento dos outros.
A liga do mal é formada por Juli, Gór, Eric, Metamorfo, Draco,Telê, Fernando,
Ariadne e Taveira e Samira, irmã gêmea de Maria, que é considerada a mutante mais
perigosa pois possui o poder de absorver todos os poderes dos outros mutantes e ajuda os
mutantes reptilianos a dominar o planeta. Ainda existem os mutantes Fredo e Adolfo que
querem simplesmente exterminar todos os mutantes incluindo os pacíficos.
A segunda fase da novela acrescenta à narrativa uma lenda, ‘Salvem os bebês,
salvem o mundo!’ profetizada por Janete, cuja profecia alerta que a sobrevivência da
especie humana depende da dos bebes Lucio e Luci, filho de Leonor (o menino de luz) e de
Bianca (a menina da supercomunicação), O futuro da espécie depende da proteção dessas
crianças ou toda a humanidade poderá ser dominada pelos mutantes ferozes.
A narrativa aborda a viagem ao centro da terra, o contato com outras civilizações e
uma luta constante contra seres estranhos. Dentre esses seres, destacam-se: homens
formigas, homem tarântula, aranhas gigantes e o sapo-bufo que está encantado. Juno e
Lúcio usam seus poderes para fazer com que o sapo volte a ser Melquior, o príncipe de
Agarta. O principe Melquior irá ajudar a Liga do Bem na luta contra os extraterrestres.
Os Guarani se impressionam com as lendas, com os outros mundos no interior da
terra e comparam tudo isso à cosmografia Guarani. Dizem que acreditam existir um povo
que vive embaixo da terra e, assim como na novela, são perigosos e fazem o mal. Marcelo
pergunta: “o jurua assim? acha que isso existe?”. Também acreditam em um mundo
superior, para além do céu, onde está Tupã (seu Deus Ñanderu). Frisam que neste
mundo de cima tudo é bonito e bom, não existe maldade, as pessoas não praticam o mal.
195
Mauricio acredita que a novela narra esta realidade e diz acreditar que esses seres realmente
existem. A cosmografia da novela encontra, neste ponto, a dos Guarani.
Os Guarani se impressionam por aquilo que designam de ‘ganância dos jurua’, visto
que em todas as novelas as narrativas apresentam a busca pelo dinheiro e pelo poder
provocando mortes, desentendimentos. Assim, a raiva e a inveja não controlada dos juruá
podem levar as pessoas a matar e roubar e cometer uma serie de atitudes negativas que
sempre estão justificadas pelas necessidades que os jurua tem de ‘possuir’ e ‘mandar’, de
conquistarem a fortuna do outro. Mauricio diz “não entendo por que o juruá busca tanto o
dinheiro, medo. Roberto complementa “no dia a dia isso se repete, o juruá rouba nas
ruas, nas casas”, como testemunham os telejornais da TV. A novela Caminhos do Coração,
apesar das fantasias, não é uma exceção à regra das narrativas novelescas em que a inveja,
os assassinatos e as mentiras estão presentes na trama. Nos Mutantes, Maria é acusada de
ter matado o próprio pai para ficar com sua fortuna e foi vítima da inveja do verdadeiro
assassino de seu pai que tenta incriminá-la ao preparar uma armadilha ardilosa em que
Maria depois de ingerir um sonífero é encontrada desmaiada ao lado do corpo de seu pai.
Assim, a jovem é acusada de matá-lo. A trama enfatiza a maldade cometida contra Maria e
na primeira fase da novela Maria foge constantemente ajudada por Marcelo, o que a
imopedia de receber a herança a que tinha direito. Ao ajudar Maria a fugir da prisão,
Marcelo torna-se, também, fugitivo da polícia e os dois passam por várias aventuras
procurando escapar do inescrupuloso delegado Taveira, que é obsecado por Maria e que,
posteriormente, se associaou à liga do mal.
Os Guarani enquanto assistem esta comoplexa trama torcem por Maria, as mulheres,
num momento ou outro comentam entre si o que está acontecendo e torcem pelo amor do
casal, manifestando o desejo do reencontro deles. As ações da polícia, as lutas e a
196
perseguição de Maria e Marcelo prendem a atenção dos Guarani que sempre desejam
assistir a novela no dia seguinte para saber o que vai acontecer. Alguns personagens são
criticados pelos Guarani, como o delegado Taveira pois mentiu, subornou e ‘caçou’ Maria
de forma injusta.
Em ambas as fases da novela, alguns ‘avisos’ aparecem em sonhos, o personagem
sonha com algo ou com uma situação que depois acontecerá na vida real, como por
exemplo alguém correndo, o rosto de uma pessoa.
O mesmo ocorre com as premonições, ambos, sonhos e premonições, são comuns
entre os Guarani. De acordo com seu João, uma pessoa bem preparada, ou seja, que possui
um ‘bom corpo’, que se alimenta bem, ingerindo poucos produtos industrializados e que
pratica sempre os rituais no opy é capaz de sonhar e de prever acontecimentos bons ou
ruins. João da Silva, em paralelo à narrativa da novela diz que a ‘intuição’ (palavra muito
recorrente na trama da novela) para os Guarani é a previsão que se estabelece através dos
sonhos mas que dependem em ultimas instância do preparo corporal. Segundo ele, quando
os personagens sonham e têm “pressentimento, nós olhamos e dissemos sim isso é real, nós
também temos isso”.
Para os Guarani não consenso sobre a compreensão do que significa real e
ficcional para os jurua. Muitos Guarani acreditam que os fatos da novela são fatos reais
considerando sua própria concepção cosmológica para estabelecer o que significa real e
ficcional, ou real e irreal. Outros Guarani adotam a significação de real e ficcional do jurua.
É o caso do vice-cacique Domingos. Para ele os jornais mostram a enquanto as novelas,
filmes são ‘irreais’ e procura convencer os demais que tudo na TV é ficção. Sua tentativa
de revelar o segredo da TV não obtém muito êxito pois a força da imagem da TV, para os
197
Guarani, está relacionada à perspectiva da corporalidade ou materialidade dos sonhos e esta
é uma realidade para os Guarani
148
.
4.3. Em busca da tradição e da trajetória: um olhar sobre a
imagem.
148
Seguimos, aqui, a percepção de Gonçalves (2008:119) quando discute, a partir de uma
reflexão de Sztutman sobre Rouch e Vertov, a concepção de visibilidade, verdade e
imaginação. Em suas palavras: “O que Sztutman (2005:122), seguindo a intuição rouch-
vertoviana, conceitua não como “uma verdade visível, mas uma verdade que deve ser
descortinada, inacessível ao olho senão pela mediação da câmera. A essa verdade se acede
(...) pelo imaginário, pela imaginação” (Gonçalves, 2008:119).
198
A televisão possibilita aos Guaranis “conhecer” mais do universo jurua..
Percebemos o quanto interessa aos Guarani conhecer, ‘olhar’ esse outro mundo de uma
outra perspectiva, agora, a através das imagens da TV. Apesar do interesse nestas imagens,
os Guarani estão cientes dos conflitos e tensões que elas trazem para o cotidiano da aldeia.
A televisão propõe para os Guarani uma série de questões ao introduzir comportamentos e
imagens que os fazem pensar e refletir sobre sua própria cultura. Medo’ e ‘prazer’ são
sentimentos associados à televisão que proporciona uma reflexão sobre si e sobre o jurua.
O ‘medo’ das lideranças se manifesta em relação à ‘força da televisão’ e ao seu
possível impacto nos hábitos ‘tradicionais’ dos Guarani e no cotidiano da aldeia. Essas
199
lideranças não são apenas professores e agentes de saúde que mantém contatos constantes
com jurua e cujo discurso muitas vezes se confunde com o dos brancos, são também e,
principalmente, as lideranças dos cerimoniais no opy, os oporaive (xamã do canto),
opytaive (xamã da cura) e opygua (possui ambas ou uma das qualidades, cura ou canto).
Estas são denominações para xamã (‘pajé’), pois curam, sonham e vivenciam os rituais no
opy. Há, portanto, um receio no imaginário da aldeia de que os Guarani possam abandonar
a própria cultura. Este receio está associado diretamente à critica ao uso excessivo dos
aparelhos de televisão na aldeia que ganham no discurso das chamadas lideranças uma série
de justificativas míticas e reflexões sobre a importância de participar diariamente do opy. A
participação dos jovens nos rituais do opy foi reduzida sensivelmente tanto na Aldeia
Sapukaia quanto na Aldeia Araponga Paraty a partir do advento da TV. A preocupação
das lideranças é sobretudo com os jovens e com a absorção de comportamentos da cultura
do jurua que se manifestam em seus corpos (uso de brinco, pintar cabelo, novas roupas
etc) alterando sensivelmente ‘o visual’, a busca pela cidade e a não permanência na aldeia
e o descuido no aprendizado dos rituais. Segundo Augustinho
149
, liderança da Aldeia
Araponga:
“É importante escutar o que os mais velhos dizem sobre a yvy
maraey, por isso temos a casa de reza e o nhemongarai, mas
os mais novos não acreditam, os jovens não acreditam mais
nesse mundo, eles não compartilham”.
E frisa:
149
O depoimento do Cacique Augustinho foi coletado em julho de 2008 em uma visita que
fiz à Aldeia Araponga acompanhada de Algemiro, Sergio, Valdir, Nirio, Alessandro e
Lúcio, todos professores Guarani e do Coordenador do Protocolo Guarani Paulo Roberto
Bahiense.
200
“Eles não querem escutar nosso povo que procurava o mar, o
que os Ñanderu usavam para se cuidar, se proteger, as ervas,
o petyngua (cachimbo), até o petyngua, hoje tem jovem que
quer cigarro, não pode, se eles não me escutar, como será
amanhã”.
As lideranças Guarani põem as questões de forma a criar uma oposição entre a
televisão e a cosmologia Guarani. Entre os professores, o tema sobre a preservação cultural
ganha ênfase, está presente nos discursos, nas indagações aos novos projetos para a aldeia
e nos trabalhos de monografia para a conclusão do curso de formação de professores.
Buscam ressaltar a importância do milho, da alimentação, dos cantos e do cerimonial
religioso, atualmente deixado de lado por grande parte dos jovens. Os professores refletem,
como educadores, sobre a introdução desta nova tecnologia e as imagens a elas associadas e
seu possível impacto na cultura Guarani. O que parece interessante é que paradoxalmente a
‘cultura Guarani’ vai ganhar concretude e mesmo vai ser criada (inventada no sentido que
Wagner (1981) atribui a este termo) no contexto das imagens e da ‘ameaça’ da televisão.
Os professores
150
Guarani somente neste novo contexto estão ‘descobrindo’ o significado
de sua ‘própria’ cultura até então que até não a compreendiam. Este novo conhecimento de
sua ‘própria’ cultura advém de uma grande insistência dos professores para com os mais
velhos que passam a explicar, em forma de narrativas míticas, a cultura Guarani.
Esta questão de ‘explicar’, ‘refletir’ e entender’ a cultura Guarani nos leva a uma
outra, qual seja, o estatuto do que significa ‘explicar’, ‘pensar’ e ‘compreender’ para os
Guarani. O que se associa, por sua vez, à questão do conhecimento ‘encorporado’ e o que
150
De acordo com os Guarani, os professores são sempre requisitados pelos órgãos do
Estado e pelos não-índios e por isso passam pouco tempo na aldeia e quando retornam
ficam com suas famílias deixando de participar, por falta de tempo, dos rituais.
201
isso deriva de uma outra noção de corporalidade. Portanto, os Guarani percebem que o que
significa ‘pensar’ em sua cultura não é a mesma coisas que ‘pensar’ na cultura dos jurua.
Nas palavras de um Guarani:
“Esse preocupação do juruá é diferente, e para nós professores, muito difícil de
entender, esse ‘pensar’ é difícil, associar a elementos da cultura uma questão às vezes
funciona, mas esse conhecimento é difícil”.
Ernesto explicou-me certa vez que ‘pensar’, ‘ficar pensando em algo’, “isso era
difícil”, que ele não compreendia as coisas que o jurua diz como “vou pensar nisso”, “o que
é isso?”. Tentamos refletir esta questão através do feitiço. Ele disse:
“Isso acontece, pessoa fica doente, vocês dizem sintomas, o
doente tem sintomas, então faz remédio e reza, e vê, a pessoa
vai melhorar, se não melhorar, faz outra reza, isso nós
fazemos. A imagem, quando você sonha, você pode ver o
corpo, o doente, o morto, a pessoa que fez mal”.
O ‘pensar’ é expresso via as imagens, o que não surpreende o fascínio pela
televisão. O ‘pensamento’ precisa ‘ver’, ‘focar’ e o que se ‘vê’, as imagens são reais. As
imagens imaginadas nos sonhos, nos cantos, nos diálogos com as divindades tem um
estatuto de realidade sobretudo porque estão ancoradas em uma materialidade que é o
corpo, responsável mesmo pela produção destas realidades.
Sonhos
202
Os Guarani possuem uma elaborada concepção imagética experienciada a partir dos
cantos
151
, das estórias, dos mitos e da interpretação dos sonhos. Através dos sonhos
152
pude
perceber, em minha dissertação de mestrado (Oliveira, 2002), a complexa e elaborada
interpretação onírica Guarani em que a percepção imagética é central. Quando sonham,
seus corpos se deslocam e passam a experienciar os novos acontecimentos proporcionados
pelo sonho. Acordar é antes de tudo, retornar ao estado de vigília, a um mundo de imagens
associado ao cotidiano Guarani. A experiência onírica aponta para uma percepção
imagética em que a pessoa, seu corpo, está presente e pode ser visto, o que assegura para os
Guarani uma noção de ‘realidade’ do sonho, aquilo que pode ser visto e materializado em
imagens.
Assim, os sonhos
153
para os Guarani são imagens, e esta característica parece ser
central para a compreensão do significado das imagens veiculadas pela televisão
154
. Este
acesso ao mundo imagético é obtido através do que designam como ‘sonho bom’
(aechara’u porã). O sonho verdadeiro (ou bom), permite ‘ver’, produz a visão quando o
corpo (alma) anda, passeia
155
. Nesse ‘sonho bom’, o corpo se desloca, sai “de um lugar e
vai até outro”. Vejamos uma reflexão sobre o sonho em minha dissertação de mestrado:
151
Analisado de forma bastante aprodundada por Montardo (2002).
152
Nimuendajú (1987) observou, também, entre os Apapocúva (Chiripá) a importância dos
sonhos e sua interferência na escolha do novo lugar para construir a aldeia.
153
Outros autores registram a importância dos sonhos nos contextos de deslocamento
(sonhar com o novo teko’a) e/ou de um conhecimento xamânico. Ver Garlet (1997),
Ciccaroni (2001), Assis (2006) e Pissolatto (2006, 2007).
154
Segundo Verá Mirim, Cacique da aldeia, existem dois tipos de sonho entre os Guarani: o
sonho verdadeiro (ou sonho bom) e o sonho comum, com premonições que indicam um
acontecimento futuro.
155
La teoria clássica indígena de los sueños sostuere que la alma, u outra entidad como el
doble de la persona, que pertence al soñador, abandona el cuerpo durante el sueño y tiene
experiencias en el mundo de los espíritos” (Williams y Degarrod, 1990:.289). Ver também
Kracke (1990, 1981).
203
“Busquei entender o que eles queriam dizer sobre
essa saída e não perguntar se é a ‘alma’ que vai, ou a
‘energia’ que cura. Percebi uma dificuldade dos informantes
de explicarem sobre esse deslocamento. Perguntei: “como
vai passear quando tem esse tipo de sonho”? A resposta foi:
“vou com roupa, às vezes com flechas”. Perguntei: “como
assim? É você “?” Sim, sou eu que vou, como estou agora”.
“Você se no sonho”? “Sim, o sonho é como aqui, eu vejo
tudo, é real. Muitas vezes vejo os parentes, outras corro de
algo, escuto tudo”. “Então no sonho você pode correr
perigo”? “Sim, se encontrar algo ruim sim. No sonho o
corpo alcança outros espaços “”.( Oliveira, 2002: 104)
No sonho o corpo tem contato com parentes, com os animais e possuem a
capacidade de diálogo como ‘antigamente’. Segundo João da Silva “podemos entender o
animal e falar com ele”. Nesses deslocamentos do corpo ele conhece novos espaços,
lugares e paisagens que, num outro momento de sua vida neste mundo podem conhecer,
isso geralmente ocorre com o espaço desejado para um novo teko’a (aldeia) que é
primeiramente conhecido em sonho.
As imagens oníricas, por sua visibilidade, são consideradas reais para os Guarani.
Com a entrada da televisão na aldeia a associação entre as imagens oníricas e as da TV se
aproximam. Do mesmo modo que nos sonhos os Guarani se deslocam para outros mundos
e relações, as imagens da TV proporcionam um experiência do mesmo tipo que se traduz
em forma de deslocamento e conhecimento de outros mundos e relações. A partir da TV os
Guarani também passam a sonhar com este ‘novo mundo’, com novos perigos o que
204
estabelece ainda mais uma continuidade, via as imagens, entre a narrativa onírica e a
narrativa da TV, aquilo que torna visível para os Guarani os múltiplos mundos contidos em
sua cosmografia
156
.
A preocupação dos xamãs: corpo e cosmologia Mbyá.
As preocupações de João da Silva, e de Augustinho e de outros grandes xamãs,
como os da Aldeia de Rio Silveira, estão centradas no esvaziamento da opy e no
comportamento dos jovens na aldeia diante dos novos objetos tecnológicos. Essa
preocupação vem à tona diante das novas imagens (ou as novas imagens evidenciam velhos
problemas) trazidas pela televisão. Entretanto, essa tensão que aponta para o que seria
‘tradicional’ e ‘moderno’ e as mudanças culturais advindas da ‘modernidade’ não é
resultado da televisão, acompanha os Guarani em seu longo processo de contato com a
sociedade envolvente. Seu Agostinho apontou a dificuldade em manter o jovem na opy,
assim como outras lideranças. Destacou que o meu trabalho (leia-se dos antropólogos)
‘animavam’ os mais velhos pois a partir do reconhecimento do saber dos velhos os jovens
passam a valorizar a ‘cultura’ Guarani (cultura aqui concebida enquanto temas clássicos da
antropologia; rituais, mitologia, religião, xamanismo).
João da Silva diz: “os jovens não estão se aconselhando, não pedem orientação,
nada. Não vão ao opy, jovem está ‘rezado’ pouco, quem vai dar os nomes às crianças
depois? Tem curador, mas não têm muitos para escutar os nomes, aqui, eu, um morreu, tem
156
As imagens guarani e as imagens cinematográficas se encontram, pois se ‘os sonhos são
como a televisão’ na percepção Mbyá, as imagens são como os sonhos, pois o cinema,
transforma as imagens em algo real e ao mesmo tempo como ‘sonhos’. Segundo Benjamin
(1996b: 192-194, apud Gonçalves: 2008:145) “atentava que a percepção do cinema o
aproximava do sonho pelo modo que os planos eram construídos por ‘efeito choques’ que
golpeiam o expectador. Nesse sentido, o cinema estaria aderido desde o seu começo a uma
estética surrealista”.
205
meu filho, (João da Silva refere-se à Aldeia Araponga) tem Augustinho, é muito pouco.
Os parentes de São Paulo reclamam muito”
157
A grande preocupação é com o desinteresse pela opy e pelas ‘rezas’. A opy é uma
casa cerimonial onde os Guarani realizam os rituais do milho, a nominação das crianças, os
processos de cura e os rituais diários de cantos e danças e a comunicação com outros
mundos cósmicos. É um espaço que congrega um conjunto de forças e agências que
estabelece ao espaço uma significação sócio-cosmológica. Segundo Seu João, a opy
158
é o
espaço das divindades. No nascente está Kuaray, no poente está Tupã, aos lados Jakaira e
Karai, e no meio Ñanderu.
159
Para saber sobre essas divindades é preciso freqüentar a opy, preferencialmente,
todos os dias. É na opy que o avati (milho) recebe o tratamento de defumação. O milho, ou
seja, o ‘complexo’ que engendra é crucial para a compreensão e aprendizado da cosmologia
Guarani. O ciclo do avati (plantio/colheita) é marcado pela passagem da semente quando
plantadas aos sabugos quando colhidos que são ‘defumados’ com o petyngua. No período
157
Sobre escutar os mais velhos, presenciei várias vezes, após as narrativas míticas, o
cuidado com o que diz o xamã ou o a esposa do individuo.
158
No opy encontram-se os seguintes objetos: o mbaraka/violão, o rave/violino, o
popygua/clave, o takuapu/bastão de ritmo, o apyka/banco.
159
Assim como os nomes, as regiões possuem especificidades de acordo com a área em
estudo. Por exemplo, sobre as regiões e divindades, Assis (2006) percebe quatro dimensões
masculinas, acompanhadas de suas respectivas esposas com potencialidades para enviar
almas ao mundo dos homens, são elas: Jakaira Ru Ete, Ñamandu Ru Ete, Karaí Ru Ete e
Tupã Ru Ete. A autora, ainda, salienta que estas potencialidades possuem cada uma sua
esposa. Segundo ela a posição espacial cósmica esta relacionada à morada das divindades
na qual Ñanderu mora no “nascente” leste), Tupã no “poente” oeste). Eles se visitam
mais porque Tupã é casado com a filha de Ñanderu (Assis, 2006: 108). Nimuendaju
descreve, também, esta especificidade do espaço cosmológico Guarani do seguinte modo:
Papa Miri criador desta terra, de Pa’i Rete Kuaray, o filho de Namandu com sua esposa
humana e de Karai Ru ete Miri, herói divinizado que, provavelmente como outros destes,
enviariam palavras-nomes para se encarnarem. As mesmas três direções celestes ligadas ao
envio de almas seriam reconhecidas pelos Apapokúva, que vinculam, contudo, o zênite a
Nhanderyquéy; o ocidente igualmente a tupã e o oriente a Ñandecy (Nimuendaju,
1987:32-33).
206
de colheita o avati é levado para opy e no seu auge, ocorre o ritual de nominação das
crianças, o keringue ñemongarai. Este ritual ocorre dentro de um evento maior, o tembui
aguyje, como me foi informado por Seu João, Algemiro e por Nirio (da Aldeia Araponga).
O ritual de nominação é importante para revelar o nome da criança Mbyá. Esses nomes
(definidos na literatura etnológica Guarani como alma/palavra - alma (ñe’e)
160
possuem as
características relacionadas com o perfil da divindade a ela relacionado
161
.
A presença do milho
162
neste ritual é, entre outros aspectos, devido sua importância
na construção da pessoa guarani, o que pode ser percebido no mito dos heróis civilizadores
guarani, Kuaray (o irmão mais velho/Sol) e Jachy (irmão caçula/Lua). No mito, Kuaray
pega os ossos de sua mãe morta pelas onças e tenta devolver-lhe a vida reconstruindo
seu corpo com massa de avati (milho), o que uniria as articulações e os ossos. O milho,
também, serve através do kaguijy para alimentar as mães no período de resguardo ou para
ser consumido como bebida nos rituais do ñemongarai. Este é o ritual de nominação dos
Guarani.
No ritual de nominação observa-se a finalização do processo de “estudo” realizado
pelo xamã para proceder à revelação do nome. Nesse estudo, as informações sobre a
criança são levadas em consideração. Ao longo dos seus primeiros meses de vida a criança
foi observada em seu comportamento, seu aspecto corporal, seu humor, preferências
alimentares, afinidades e repulsa por pessoas, animais e ambientes. Todas essas
160
A dualidade alma versus corpo perde força diante de uma noção de alma cuja espiritualidade não é
desprovida de uma imagem corporal. De acordo com Cadogan (1959), alma (ãgã) da pessoa vivente difere de
angue, alma do difunto. O Cacique João da Silva alerta que angue não tem corpo, e quando não retorna a
morada de tupã, fica em busca de um. Segundo Cadogan (...) en Mbyá Guarani ñe’eng significa ‘alma
humana de origem divino’, ‘voz humana’ y eloqüencia’, e decir y ‘alma’ (de origen divino); y ayuu lenguage
humano y fundamento, origem Del alma de origem divino” (1959: 33). Mas alma possui também na
concepção de Nimuendaju (1987) uma origem divina (ayuu’kue) e de origem animal (asygua).
161
Assis (2006) registra essa relação entre nomes e características adquiridas para com a
divindade que envia seu nome à criança.
162
Ver Cadogan (1959), Nimuendaju (1987), Fausto (2002), Meliá (1976, 1989).
207
observações são informadas ao xamã
163
pelos familiares da criança. Em Sapukaia, o xamã e
líder João da Silva visita as residências da aldeia para observar as crianças e saber como
estão se comportando.
Posteriormente, cruza suas observações com as informações recebidas pelos pais da
criança. Aos nomes básicos são adicionados complementos. Por exemplo: Kuaray Papa,
Papa é o complemento. O uso dos nomes é comum quando criança até o momento em que a
criança aprende a olhar, escutar, responder, fazer sem precisar ser chamada. A relação entre
os nomes e a cosmologia é pouco conhecida, seja pelos Mbyá (que falam pouco sobre o
tema), seja pelos etnólogos. Concordamos, porém, com a observação de Pissolato:
“(...) o desinvestimento sobre o conhecimento dos
lugares divinos de origem das almas-nomes não anula a
importância posta no ato mesmo de determinar um
nome. Mais do que poder caracterizar essa “alma que
viria a ter conosco” (Nimuendaju, [1914] 1987, p.30)
com base no conhecimento sobre sua origem divina,
tratar-se-ía de afirmar a posição de uma determinada
virtualidade de existência que se “levanta” (pu’ã) entre
os que aqui estão”. (Pissolato, 2007:304).
Baseando-me nos meus dados de campo, obtidos com Seu João, destaco em minha
dissertação de mestrado uma presentificação de Deus, divindades com as quais os nomes
são estabelecidos associados ao comportamento, ou ao que seria o comportamento ideal do
indivíduo. As pessoas deveriam ter as qualidades das divindades das quais portam o nome;
163
Esta percepção sobre o xamã vai ao encontro da concepção de xamanismo Guarani
formulada por Pissolato (2007).
208
contrariar o comportamento ideal faz com que a pessoa adoeça, sendo necessário, às vezes,
trocar o nome. Três dos meus principais interlocutores Guarani tiveram seus nomes
trocados e um deles chegou mesmo a trocar duas vezes de nome.
Os Guarani afirmam que quando ocorre a troca de nomes é porque a pessoa não
estava portando o nome certo. Existe, portanto, uma relação ou uma tentativa de adequação
entre os hábitos comportamentais do individuo e aos ideais das divindades. Essa relação
nome-divindade não retira do indivíduo sua autonomia, ao contrário, a fortalece. Enfim, o
nome define o comportamento e o ideal é que a pessoa tenha uma postura comportamental
de acordo com a da divindade da qual porta o nome.
Corpo e imagem
Sabemos pouco sobre o corpo (rete) e sua relação com a alma, ou seja, com a
aquisição de nomes. Porém, sabemos que o corpo passa por transformações e que é cuidado
e tratado para não adoecer (doença = mba’eaxy), não ser levado por angue (espectro, o que
não tem corpo). Através do xamanismo, das danças e dos rituais no opy o corpo/ ‘imagem
divina’
164
é cuidado. Portanto, ter corpo (ou imagem) é uma condição mesma do ser Mbyá.
As danças, rituais de cura e rituais de rezas na opy, assim como as narrativas
míticas, são modos estabelecer o bem estar corporal, ou seja, adquirir os estados de leveza e
alegria tão importantes para os Guarani.
164
Já trabalhado por Oliveira 2002, onde os nomes são percebidos como uma
presentificação de Deus (divindade a qual o nome comporta).
209
No saber mítico Guarani, a percepção imagética se faz presente na própria
concepção de mundo, a criação da segunda Terra, Yvy Pyau (Terra Nova)
165
. A Terra
constituída por “imagens” (ta’anga) da primeira, Yvy Pyau, a morada segunda e atual desta
humanidade “verdadeira” dos filhos e filhas das divindades, surge segundo o mito, para não
durar eternamente, quando Karai Ru Ete prevê o mau comportamento dos habitantes
futuros da nova terra. Jakaira ao fazê-la, (a Terra Nova), cria também os instrumentos
necessários para seus habitantes.
A construção do corpo Guarani é um processo que se inicia nos primeiros dias de
vida e perdura por toda a vida adulta com cuidados específicos, como a dança, os cantos e
as danças no interior do opy. Nos primeiros dias de vida a criança recebe os devidos
cuidados para protegê-la e ajudá-la no crescimento. Enquanto a criança
166
não anda todos os
cuidados são tomados pelos pais. Além de restrições alimentares usam objetos como o
kuasã (cordão de cintura/ de uso masculino) e o tetymakua (cordão anexado abaixo dos
165
Conforme coletou Cadogan entre os Mbya do Guairá. Veja o dialogo de Nhamandu Ru
Ete, o deus criador primeiro com seus filhos auxiliares, os Nhe’ë Ru Ete, “Pais das ‘Almas”
sobre a possibilidade de criação de uma morada terrena em substituição a Yvy Tenonde.
Seguem-se os trechos em que Karai Ru Ete (o “Pai Verdadeiro Karai”) e Jakaira Ru Ete (o
“Pai Verdadeiro Jakaira”) se manifestam respectivamente diante da proposta de Nhamandu:
Cheé nañonói ete vaerã iare i vaerã eÿ. Cheé yvy aropochy ne. A’e va re: ‘a’e noñono
reeguái o yvy rupa i’, ere chupe” (Karai Ru Ete).“Cheé añono pota ma che yvy rupa
i. Che yvy o’ãyvõ ma ñande ra’y apyre pyre ve i kue: a’e ramo jepe, aroatachina vaerã;
tataendy tatachina ambojaity i pota mba’ete i oiny vaerã tape rupa reko achyre (Jakaira
Ru Ete). A tradução: “Yo em ninguma manera estoy dispuesto a crear algo predestinado a
no perdurar; yo descargaría mi cólera sobre la tierra. Por consiguiente: ‘El no tiene
intención de crear para su morada terrenal’, dile (Karai Ru Ete)”. “Yo ya estoy dispuesto a
crear para mi futura morada terrenal. Mi tierra contiene ya presagios de infortunios para
nuestros hijos hasta la postrer generación: ello no obstante, esparciré sobre ella mi neblina
vivificante; las llamas sagradas, la neblina he de esparcir sobre todos los seres verdaderos
que circularán
por los caminos de la imperfección (Jakaira Ru Ete)”. (Cadogan 1959: 61-62).
166
Os cuidados alimentares necessários para uma boa formação do corpo da criança pode
ser encontrado no mito do Colibri (ver Cadogan, 1959).
210
joelhos), ambos confeccionados com miçangas. O uso dos objetos é proporcionar equilíbrio
para a criança e firmeza nas pernas.
167
A importância do corpo na mitologia Guarani pode ser percebida em um mito
narrado a Valéria Assis em 1995. Neste mito podemos observar a estreita relação entre
artefatos (objetos) e a produção dos corpos.
“O mito relata que Chaíra, divindade com características opostas a Ñanderu
Tenonde, é um ser solitário, sábio e com poderes semelhantes aos de Ñanderu Tenonde
(hierarquicamente superior as demais divindades) estava concluindo a criação do mundo,
decidiu produzir um ajaka cujo desenho expressa o maxilar de peixe (pira ry nykaí).
Observando o que Ñanderu tinha feito, Charia resolve imitá-lo mas não era de se esperar
(pelas características da divindade), ele produz vários ajaka e com traçados que formavam
desenhos mais elaborados e detalhados, com motivos de cobra cascavel (mbói chin ra’anga
representação da pelo de cobra cascavel), com motivos de cobra jararaca (mbói jarara
ra’ anga representação da cobra jararaca), e tanambi pepo ra’ anga (representação da asa
de borboleta, maripousa. Quando Ñanderu Tenonde os ajaka de Charia, enfurece-se.
Toma seu arco e golpeia seu ajaka uma vez. Desta ação teve origem Guyrapa Rete (corpo
em forma de arco = homem). Tomando uma taquara, Ñanderu Tenonde golpeia o ajaka
pela segunda vez. Teve origem então, Ajaka Rete (corpo em forma de cesto = mulher)”.
(Assis, 2006: p.247)
168
167
Ver também a discussão de Pissolato (2007) sobre aguata e pôr a caminho.
168
Ver Assis (2006: 259) quadro que apresenta as imagens (ra’anga) dos animais nos cestos e sua
classificação.
211
Na vida adulta o corpo é cuidado nos rituais da opy e nas danças diversas (dentre as
quais a dança do xondáro
169
), nos sonhos e nos rituais de cura em que se destacam as
experiências imagéticas.
O angue é uma espécie de alma, espectro. João da Silva fez uso da palavra aña, para
significar angue. O que mais caracteriza o angue é a ausência de um corpo e o desejo em
possuí-lo. Sua presença é percebida pelo xamã quando a pessoa encontra-se doente, diante
da reação dos animais para com as pessoas, quando recusa alimentos ou, ainda, quando o
indivíduo procura o xamã para ‘rezá-lo’ após ter sonhado com um morto.
Pensar, ou sonhar com o morto significa contato com seu angue. O angue é retirado
de uma pessoa ou afastado do espaço doméstico através do uso do petyngua, cuja fumaça
169
Espécie de guerreiro, os xondáro são pessoas responsáveis por cuidar da aldeia, associados a uma espécie
de ‘policia Guarani’. São homens treinados com conhecimentos da mata e da cosmologia. Os que eu conheci
possuíam seus cantos e, portanto, eram oporaive ou opitaive. Possuem técnicas de luta e dançam muito e por
isso ganham seu nome: ‘a dança do Xondáro’. Na dança, como dito anteriormente, os homens imitam e
duelam com vários animais da mata. A dança dos xondaro relatada a seguir ocorreu no pátio central da Aldeia
Guarani Mbyá Sapukaia: “Era fim de tarde, os Guarani que participariam da dança foram chegando.
Formaram um círculo e começaram a dançar ao som do mbaraka, mbaraka mirim e do ravé, num ritmo
suave, sob a orientação do mestre do xondáro. Todos dançavam, inclusive o mestre. Em círculos, todos
“dançavam como pássaros” e se preparavam para entrar na mata (imaginária). No momento em que
adentraram a mata o ritmo da música acelerou, ficando tenso e muito rápido. Os xondaro seguiram pela mata,
com a leveza de pássaros, porém atentos, olhando bem para o chão, para ver se havia cobras. De repente, o
mestre do xondaro, usando o bastão foi para o centro do círculo e os participantes se prepararam para
defender-se imaginariamente de animais da floresta. O mestre fez movimentos corporais com o auxilio do
bastão, os demais se defenderam da chuva, do sol e dos animais. O mestre fez mais gestos e os participantes
imitaram o jaguaretê (onça), o macaco, o sapo entre outros animais. Na dança, os animais representados
pelos dançarinos ora atacavam, ora eram atacados pelo mestre e os demais se defendiam dos animais da
floresta e de qualquer inimigo por ele representado. O mestre atacava o “animal” que representava
momentaneamente o xondáro, este se defendia e o mestre respondia, encarnando o animal que seria
representado a seguir. O jaguaretê e o macaco foram os mais representados. Essa etapa era individual. O
mestre chamava um xondaro para o centro, fazia um gesto de onça e o atacava com o bastão; o xondaro se
defendia, se levantava, se abaixava e se esquivava ao máximo. A luta com os animais era simbolizada pelos
gestos. Posteriormente, o mestre passou o bastão para outro (isso acontece quando há um iniciante à função de
mestre ou outro mestre ou, ainda, um importante xondaro) que desenvolveu a mesma performance até
completar o círculo. Os xondaro dominaram os animais e a dança terminou com todos em círculo novamente
preparando-se para entrar na Opy. Passaram por todos que estavam do lado de fora da Opy dizendo
aguyjevéte (um agradecimento); depois, circulando em fila, ao som mais suave dos instrumentos os xondaro
entraram na Opy”. Outras informações sobre os xondáro, ver Oliveira (2002, 2008), Assis (2006), Garlet
(1997) e Montardo (2002)
212
afasta o angue e cura o doente de seus efeitos. Mas é preciso saber usar o petyngua, “o
jovem precisa aprender, mas quer ver televisão”.
De acordo com João da Silva, as lideranças querem ‘manter a tradição’, cuidar da
opy e dos rituais, preocupam-se com o que “o jurua vai pensar do índio usando tudo que o
jurua usa” e acrescenta que “até o índio Guarani mais velho vai estranhar esse índio novo
dentro da aldeia, “os mais velhos estranham um jovem ali fora, sem querer participar do
opy, falando como jurua, vestido como jurua, querendo dinheiro para comprar
coisas do jurua”. E complementa sua reflexão:
“Ñanderu não gosta, ele não gosta de televisão não.
Eu vou contar pra você, foi depois que botou luz, os parentes
estavam em casa, ah, tudo assistindo televisão, ninguém no
opy. E os relâmpagos começaram, e todo mundo assistindo
televisão, tudo o aparelho da aldeia ligado, e de repente, um
raio forte veio, e bummm, escutei o barulho, então ficou tudo
escuro. Televisão, apagou com a luz. É, depois no outro dia
tudo bem, mas a maioria ficou com o aparelho quebrado, é
como se diz? O jurua me explicou, queimou tudo. Pois é
agora será que tem como pedir outro aparelho?”
A narrativa de Seu João explicita a preocupação com os aparelhos de TV ao mesmo
tempo que os impregna com um novo sentido ancorado nas concepções cosmológicas dos
Guarani. E seu João continua:
213
“Ñanderu Tupã acabou com a luz, com tudo, ficou brabo ele? Deve ter ficado, ele é
mais forte que televisão, ele acabou com tudo, desligou todas as televisões, isso, porque
Guarani não estava no opy”.
214
Esse evento
170
foi importante para as lideranças Guarani para resgatar a atenção para
Tupã
171
e para o opy fazendo com que muitas famílias voltassem a freqüentar o opy. Seu
João desenha este acontecimento dos raios, da revolta de Ñanderu Tupã:
170
Essa busca de João da Silva por uma explicação mítica para o evento (que revela um
conflito ‘filosófico’), nos remete a Sahlins (1990:174): “Essa colisão de havaianos não é
somente um paradigma, mas também resume uma possível teoria da história, da relação
entre estrutura e evento, que se inicia com a proposição de que a transformação de uma
cultura também é um modo de sua reprodução”. Saber interagir [se relacionar de uma
forma ou de outra] com o novo é algo complexo produz novas ‘estruturas conjunturais’
Mbyá. Garlet (1997) fez uso da perspectiva de Sahlins (1990), em sua análise sobre a
relação entre estrutura e evento sugerindo uma reelaboração da memória mbyá em relação
aos vários eventos históricos e a uma possível interpretação da mitologia. Segundo Garlet
“a permeabilidade das fronteiras geográficas tem como seu contraponto, no caso mbya o
fortalecimento dos aspectos internos da cultura” (Garlet, 1997: 25).
Seguindo o raciocínio de Sahlins “(...) no mundo ou na ação tecnicamente, em
atos de referência categorias culturais adquirem novos valores funcionais. Os significados
culturais, sobrecarregados pelo mundo, são assim alterados. Segue-se então que, se as
relações entre as categorias mudam, a estrutura é transformada” (1990:174).
Ainda segundo o autor: “O esquema cultural é colocado em uma posição duplamente
perigosa, isto é, tanto subjetiva quanto objetivamente: subjetivamente pelo uso motivado
dos signos pelas pessoas para seus projetos próprios; objetivamente, por ser o significado
posto em perigo em um cosmos totalmente capaz de contradizer os sistemas simbólicos que
presumivelmente o descreveriam. A aposta objetiva reside, portanto, nas desproporções
entre palavras e coisas (...) O risco subjetivo consiste da possível revisão dos signos pelos
sujeitos ativos em seus projetos pessoais” (idem: 186). Assim, “(...) na ação, o signo
também é determinado como um “interesse”, que é seu valor instrumental para o sujeito
ativo” (ibidem:187).
Nesse sentido, quando uma pessoa é responsável por suas ações, isto é, possui
autonomia para decidi-las (autonomia pessoal ou social, gerada por projetos, rendas como
ocorre entre os Guarani) tornam-se, também, autoras e produtoras de seus próprios
conceitos. Esta percepção Guarani encontra eco nas conclusões de Sahlins sobre autoria de
novos conceitos e percepções culturais: “Porque, se sempre um passado no presente, um
sistema a priori de interpretação, também “uma vida que se deseja a si mesma” (como
diria Nietzsche). Isto é o que Roy Wagner (1975) deveria estar querendo dizer com “a
invenção da cultura”: a inflexão empírica especifica de significado dada a conceitos
culturais quando estes são realizados como projetos pessoais” (...) “a possibilidade do
presente vir a transcender o passado e ao mesmo tempo lhe permanecer fiel depende tanto
da ordem cultural quanto da situação prática”. (idem:189).
215
Os próprios Guarani estão interessados em refletir sobre a televisão e o porque
conquistou um espaço tão grande no cotidiano da aldeia. O sucesso da televisão é atribuído
às imagens que veicula: “ali, na televisão, você o que acontece”. A capacidade da TV
produzir imagens sem cessar intrigam os Guarani que se perguntam constantemente: como?
Como fazem isso? Essa criação vem da onde? Da pessoa? Independe do aparelho? A
queima dos aparelhos pelos raios foi um exemplo que os fez refletir. O aparelho, criado por
jurua, possui uma força. Segundo João da Silva o aparelho é forte mas queimou, não
171
Descrevi em minha dissertação de mestrado essas divindades e seus os nomes que as
pressentificam no mundo através dos nomes que os Guarani recebem no batismo.
Entretanto ressaltei e ressalto a importância de uma etnografia sobre as percepções e
imagens dessas divindades para os Guarani.
216
resistiu à força de Tupã. Somada a estas questões existe a explicação técnica dada aos
Guarani que diz que a televisão chega até eles como uma ‘energia’, as imagens são
energias. Essa explicação gerou mais indagações pois a TV passa a ter um dos atributos de
Tupã, ‘a energia’ e ganha, assim, um significado especial. Ernesto reconhece esta força de
atrair da televisão e comenta: “é difícil parar de ver a televisão, sempre acabo ligando”.
Uma reflexão sobre os efeitos da televisão na aldeia é cobrada pelas lideranças
‘religiosas’ (Pajé, Kunha Karai
172
e pelos mais velhos) que buscam manter o ‘tradicional’.
Mas estas mesmas lideranças deparam-se com os desejos dos mais novos, e com seus
próprios desejos de assistir televisão. Percebem que as pessoas querem ‘algo novo’, não
querem mais ‘reuniões’ e sim usufruir o tempo livremente podendo assistir televisão.
A partir desta chave interpretativa sobre a TV ela pode gerar medo e uma certa
impotência frente a sua força atrativa, à ‘energia das imagens. Mesmo não sendo tão forte
quanto Tupã sua ‘energia’ se impõem no cotidiano Guarani. Ressaltamos aqui que a
percepção das lideranças Guarani não podem ser considerada como um discurso nativo anti
TV mas sim um questionamento sobre seu significado ou mesmo uma tentativa de produzir
uma significação para o advento da TV para os Guarani. Apesar de todo esse receio dos
mais velhos e das lideranças com esse ‘corpo estranho’ e ‘forte’, cujo local de destaque no
teco’a se impõem na vida dos Guarani, observa-se um movimento de interelação entre esse
‘novo’ e o ‘tradicional’ na aldeia. Em minhas observações e conversas com os mais jovens
e alguns pais de família (em torno dos 35 anos) foi possível perceber que aceitam essas
mudanças de uma outra forma, em que não existe o conflito e a preocupação expressada
pelas lideranças e pelos mais velhos de acabar com a forma tradicional de educar os filhos
por influência da televisão. De certa forma, parte dessas preocupações são, também, as
172
Mulher guarani que possui cantos, sonha e acompanha o ritual no opy.
217
mesmas preocupação dos jurua, correntes em nossa sociedade contemporânea que sempre
se questiona sobre o novo e o tradicional a partir de revoluções tecnológicas como se
passou com o advento dos computadores e da Internet.
Os Guarani estão vivenciando e desfrutando o novo (assistem TV, fazem uso das
novas tecnologias como os celulares e DVDs, usam brincos nas orelhas, pintam os cabelos,
escutam forró) ao mesmo tempo que buscam o ‘tradicional’ furando o lábio inferior para
anexarem o tembeo, demonstrando interesse e conhecimento pelo que consideram
tradicional. Muitas vezes esses conflitos entre o ‘novo e o ‘tradicional’ se expressam como
conflitos de gerações, os mais velhos defendem a tradição e os mais novos querem poder
decidir sobre seus interesses e, neste contexto, surge a televisão como um meio dos mais
jovens poderem expressar suas novas conexões a cultura jurua.
Os professores e agentes de saúde, ao adquirirem essa nova forma de ‘pensar’ do
mundo jurua, este novo conhecimento, põem ele em funcionamento quando querem se
fazer entender sobre um projeto ou sobre o próprio trabalho que realizam na aldeia. Esses
conflitos entre diferentes modos de ‘pensar’ parece ser um conflito essencial que acentua
ainda mais a divisão entre os jurua e os Guarani. Este conflito pré-existe na aldeia antes da
entrada da televisão, faz parte da própria trajetória de constituição das lideranças Guarani.
A televisão veio a dar novos contornos a esses conflitos propondo novos desafios aos
Guarani, sobretudo provocar uma reflexão e compreensão sobre o mundo dos jurua e o
mundo Guarani.
As lideranças, dentre as quais os professores procuram adquirir o domínio dessa
tecnologia para utilizá-la a partir dos interesses chamados próprios dos Guarani como
possibilidade de filmar (visto no capitulo anterior) como os filmes produzidos por Mauricio
e Karai sobre o coral Guarani. João da Silva entende, também, o potencial que tem a TV
218
quando utilizado pelos próprios Guarani e pensa na possibilidade de passar as históricas
míticas para a linguagem televisiva, imaginando seu poder de atração e convencimento:
“Tem coisa certa na TV, mas não pode ficar assistindo
televisão. Agora todos querem assistir, mas eu quero contar
história, eles precisam aprender, escutar as histórias. (Pausa e
risos) Isso tudo não é história? É parecido com Guarani, mas é
diferente, sim animais falavam, na televisão ainda falam, será?
Será que se eu contar pra televisão eles vão ficar passando?”.
Possuir domínio, conhecimento e a direção na produção de imagens em vídeos para
TV é um desejo de 70% dos Guarani, a maioria gostaria de produzir filmes, seriados sobre
eles e desenhos animados. O que alimenta este desejo é também a possibilidade de
transformar as narrativas diretamente em imagens, como ocorre com os sonhos, que é uma
das formas de expressão imagética entre os Guarani.
Com a televisão os Guarani buscam esse novo ‘saber’, ‘conhecer’ e ‘ver’ como são
os jurua, uma forma de ‘estar no mundo do jurua’. Porém, ‘conhecer’ e ‘ver’ não significa
para os Guarani ‘ficar como’ ou ‘querer estar lá’, ao contrario, o que percebi nas conversas
que tive com trinta e dois jovens foi que o cotidiano do jurua os assusta, aquilo que
assistem na Tv através das imagens dos telejornais. Como bem expressa a fala do jovem
Luis:
“Eu escutei meu avô, meu pai, eles disseram: não vai
pra cidade, é perigoso. Mas eu ia passear, sempre ia, as vezes,
tinha carona no carro, eu ia ver como é sempre gostava, mas na
televisão, eu vejo o perigo que meu avô e que meu pai falava. É
a única coisa que tenho medo, ir para cidade e alguém fazer
219
mal a mim, pois fazem mal para eles, o que vão fazer com o
índio?
173
O mesmo ocorreu com Marcelo e outros jovens depois que passaram a assistir
televisão. Preferem ver o mundo jurua pela TV e passam a ficar mais tempo na aldeia.
Marcelo disse que tem pessoas que querem ir na cidade mas estas não são seus primos,
gente de sua geração, mas sim seus tios, ou seja, pessoas mais velhas que tem uma
relação consolidada com a cidade antes da introdução da televisão.
São os mais jovens e algumas lideranças que se empenham na produção de vídeos e
fotografias da própria cultura Guarani, dizem que ‘sentem falta de algo’, isto é, aquilo que
para os mais velhos encontra-se nas estórias e mitos do povo Guarani que os mais jovens
procuram resgatar. Porém, deve-se salientar que mesmo buscando o ‘tradicional’ desejam
experimentar o ‘novo’, aquilo que a televisão proporciona e relacionar o ‘novo’ com o
contexto de suas vidas e de sua cultura. Talvez resida, aqui, o grande desafio para os
educadores Guarani, estabelecer esta comunicação na própria aldeia com o mundo jurua
via a TV e o que pode ser transformado na cultura Guarani.
173
Luis, assim como, Pedro e Marcelo estão impressionados com as reportagens que
assistem nos telejornais e programas aonde crimes, tragédias e roubos são mostrados com
ênfase.
220
221
V - Conclusão.
As novas expectativas e hábitos criados a partir do uso de novas tecnologias pelos
Guarani Mbyá propiciou no cotidiano da aldeia vários questionamentos que implicam
repensar sua forma de ser e estar no mundo colocando-os diante de novos desafios novas
fontes de prazer e entretenimento. Se novas expectativas surgiram, observa-se, também,
que velhas questões emergiram na pauta de discussão e reflexão dos Mbyá.
A TV ocupou um espaço e tornou-se referência na vida dos jovens que passam a se
identificar através de novos símbolos como brincos, roupas, novas palavras e músicas.
Através da televisão os Guarani buscam compreender mais a língua e a cultura jurua e,
neste contexto, a televisão é uma espécie de catalizador de uma reflexão permanente sobre
alteridade. Sobre o que significa ser Guarani, ser o jurua e o quanto pode haver de
semelhança e diferença, o quanto podem estabelecer contato via a televisão. Podem assim
descobrir coisas inteiramente novas e desvendar novos códigos culturais via a televisão mas
podem também simplesmente reconhecer em seus programas semelhanças com o modo de
pensar Guarani, sobretudo quando assistem o desenho animado do Pica-pau e a novela
Caminhos do Coração que enfatizam o mundo das ‘transformações’ vivenciados por eles
nos sonhos e nos mitos.
A televisão, assim, é o veículo entre esses mundos Guarani e jurua,
revelando facetas de ambos permitindo que através de suas imagens tudo possa ser visível,
“ela mostra o que existe”. Essa capacidade de tornar o mundo visível através das imagens
impregna o objeto televisão de subjetividade traduzida como ‘força’ por Karai: “ela possui
uma força... Como a TV mostra tudo isso?, ela possui a força de mostrar tudo”.
222
No universo imagético Guarani, a ‘força’ é denominada mbara’ete e atua em todas
as dimensões cosmológicas do ser Guarani. A mbara’ete é atribuída ao corpo
174
, ou seja, o
corpo é na cultura Guarani a forma de contato entre o invisível e o visível, como as ‘forças’
e poderes dos ‘deuses’.
O corpo, nesta concepção é pura agência, no sentido que Gell (2005) e Lagrou
(2008) definem esta capacidade de influir sobre outros corpos estabelecendo uma
comunicação. O corpo e o saber a ele agregado tem inicio durante o parto e por isso o
cuidado das rezadoras
175
em preparar o chá para a mãe se acalmar, entoar os cantos para
trazer o recém nascido à vida, retirar a placenta que é enterrada com cinzas de carvão em
um local da casa voltado para o nascente, para que Ñanderu (Deus) proteja o recém nascido
até o momento de adquirir seu nome (o primeiro nome Guarani está relacionado ao ‘Deus’
para quem essa pessoa pertence). Após adquirir seu nome Guarani no batismo
(nhemongarai) a criança está protegida e comprometida com esse Deus e todas as ações do
individuo são observadas, moldadas e fabricadas. Esses nomes são fortalecidos com os
cantos a Ñanderu nos cerimoniais, quase que diários, no opy. A mbara’ete também está no
cachimbo e na fumaça e esta última é responsável por um dialogo entre o xamã e Ñanderu.
174
Ver Oliveira 2002.
175
Assim como os Kaxinawa estudado por Lagrou (1998, 2008) o corpo não é pensado de
forma independente, separado de outros corpos mas é fruto de uma ação coletiva que irá
tomar maior força após a criança adquirir seu nome. Dessa forma enfatiza-se a fabricação
conforme a criança constrói vínculos sociais e possa se inserir em uma rede de relações
com os parentes de ‘nomes’. Os nomes Guarani são atribuições e pressentificações divinas
via o nome na pessoa Guarani. O meu nome de batismo Guarani (Kunhã Mbaraete) e minha
vivência entre os Mbyá Guarani me fez pensar sobre o significado e as atribuições dos
nomes entre os Guarani. Eu percebi que as relações entre pessoas que portavam o mesmo
nome envolvia favores e prestações de serviços. Penso que um estudo sobre a nominação
Guarani baseado em pesquisa etnográfica poderia revelar a complexa dinâmica de sua
sociedade, uma vez que os nomes vinculam pessoas e pessoas e pessoas e deuses.
223
Enfim, esses cerimoniais e estas concepções é que estão hoje em dia em
profundo diálogo coma introdução da televisão na aldeia de Sapukaia. Muitas vezes esta
nova relação entre o opy e a televisão aparece com o disputa de espaço quando jovens e
adultos preferem assistir televisão, jogar bola ou passear na cidade ao invés de freqüentar o
opy. Fatos que provocam uma reflexão das lideranças Guarani que acabam por criticar o
uso da televisão, deste novo ‘corpo’ que convive com as pessoas nas aldeias. Assim,
televisão entrou na aldeia e fez parte do cotidiano a partir do próprio interesse dos Guarani
na busca destes novos mundos oferecidos pelas imagens televisivas.
Ao se apropriarem deste novo objeto que é a televisão os Guarani o dotam de
agência. A exposição às imagens possibilita novos conhecimentos e resignificação de suas
próprias idéias engendrando uma reflexão da imagem de si e dos ‘outros’ o que propõe,
uma renovação da cosmologia que inclui, definitivamente, a cultura jurua no cotidiano e no
centro da vida Guarani.
Se existe um conflito conceitual sobre o que significa a televisão para as lideranças
e para as pessoas que as assistem diariamente, existe a prática da recepção televisiva que
ultrapassa o conflito instaurando uma possibilidade de ser Guarani assistindo TV, o que se
coaduna com um dos princípios basilares da cultura Guarani que está centrada na
autonomia do individuo que a partir de sua experiência pode fazer escolhas e empreender
suas ações no mundo. Assim, a introdução da televisão entre os Guarani passa rapidamente
de uma esfera pública e coletiva para a esfera doméstica, das casas em que as pessoas tem
autonomia na escolha dos programas, das imagens que querem ver ou não na televisão.
Aprender jogos e brincadeiras resignificando-os assim como a busca em conhecer
os hábitos e modos do jurua são os pontos fortes da televisão entre os Guarani. A
percepção da televisão está voltada para compreender o modo de ser do outro, seus hábitos,
224
seus costumes, com falam, do que gostam, como sentem. Isso fica patente na busca dos
Guarani via a TV em compreender as palavras e as metáforas usadas pelos jurua e nesta
dialética repensar o próprio universo da cultura Guarani Assim, os Guarani apreendem a
lidar com este ‘corpo’ que está presente em suas vidas e que lhes propõe, diariamente,
novos desafios sobre o que significa ser Guarani e ser jurua.
225
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http://televisao.uol.com.br/utnot/2007
www.wikipedia.org/oliverfahle
www.wikipedia.org/wiki/caminhos_do_cora%C3%A%C3%A3%
234
Lista de Anexos.
235
Anexo I. Lista de Atores e respectivos personagens.
Personagens e atores da Novela Caminhos do Coração – Os Mutantes.
I Fase.
Bianca Rinaldi - Maria Mayer & Samira Mayer
Leonardo Vieira - Marcelo Duarte Montenegro
Marcos Pitombo - José da Silva Valente
Maytê Piragibe - Natália (Nati)
Babi Xavier - Juli di Trevi
Julianne Trevisol - Górgona (Gór)
Felipe Folgosi - Roberto Duarte Montenegro (Beto)
Nanda Ziegler - Bianca Fischer
Lígia Fagundes - Leonor Batista
Tuca Andrada - Éric Fusili (Lobão)
Carolina Holanda - Dra. Gabriela
Giselle Policarpo - Cléo Mayer
Paulo Nigro - Antônio Mayer (Toni)
Cláudio Heinrich - Danilo Mayer (Danilinho / Dan)
André de Biase - Aristóteles Mayer
Maurício Ribeiro - Cristiano Pena (Cris)
Louise D'Tuani - Ísis
Sacha Bali - Matheus Morpheus (Metamorfo)
Fernando Pavão - Noel Machado (Noé)
Milena Ferrari - Aline Reis
Jonathan Haagensen - Miguel Ângelo
André Segatti - Ernesto Justo
Thiago Gagliasso - Gaspar
Paloma Bernardi - Luna Reis
Pedro Nercessian - Tarso Borba Gato de Albuquerque Andrade
Taumaturgo Ferreira - Tarcísio Batista (Batista)
Raul Gazola - João Ricardo Borba Gato de Albuquerque Andrade
Cláudia Alencar - Sandra Gisa de Albuquerque Andrade
Flávia Monteiro - Viviane Menezes
Élcio Monteze - Príncipe Melquior
Rômulo Estrela - Draco
Rômulo Arantes Neto - Telê
Arthur Lopes - Luciano Solar
Ingra Liberato - Rainha Sibila
Victor Wagner - Rei Adamastor
André Mattos - Paulo Pachola
Andréa Avancini - Érica Figueira
Helena Xavier - Simone dos Santos (Dona Pequenina)
Rocco Pitanga - Armando Carvalho
Patrícia de Jesus - Perpétua Salvador
236
Zé Dumont - Teófilo Magalhães
Lívia Rossy - Ceres
Diego Cristo - Hélio Bezerra
Mário Frias - Drácula
Antônio Pitanga - Newton Carvalho (Nil)
Marina Miranda - Marisa Gama
Marcelo Reis - Bram
Fernanda Paes Leme - Cinésia
As crianças e os adolescentes
Letícia Medina - Tatiana Montenegro (Tati)
Shaila Arceni - Clara Figueira (Clarinha)
Júlia Magessi - Angela Figueira (Anjinha)
Pedro Malta - Eugênio Figueira
Juliana Xavier - Ágata Magalhães
Sérgio Malheiros - Aquiles Magalhães
Cássio Ramos - Valfredo Pachola (Vavá / Menino-Lobo)
Elenco
II Fase.
Bianca Rinaldi - Maria Beatriz dos Santos Luz (Maria Mayer)
Leonardo Vieira - Marcelo Duarte Montenegro (Gabriel Lage)
Ítala Nandi - Dra. Júlia Zaccarias
Gabriel Braga Nunes - Taveira (Sigismundo Taveira)
Tuca Andrada - Eric Fusilly (Lobão)
Cássio Scapin - César Rubicão
Julianne Trevisol - Górgona (Gór)
Felipe Folgosi - Roberto Duarte Montenegro (Beto)
André de Biase - Aristóteles Mayer (Ari)
Patrycia Travassos - Irma Mayer
Angelina Muniz - Cassandra Fontes Martinelli
Giselle Policarpo - Cléo Mayer
Liliana Castro - Janete Fontes Martinelli
Jean Fercondini - Lucas Fontes Martinelli
Paulo Nigro - Antônio Mayer (Toni)
Ângelo Paes Leme - Rodrigo Mayer
Claudio Heinrich - Danilo Mayer
Fernanda Nobre - Lúcia Rocha Mayer
Natasha Haydt - Paola Riccete
Jéssica Golcci - Alice Bandisnki
Thaís Fersoza - Célia (Celinha)
Mônica Carvalho - Amália Fortunato
237
Daniel Aguiar - Vladmir (Vlado)
Karen Junqueira - Fúria
Sacha Bali - Matheus Morpheus (Metamorfo)
Preta Gil - Helga Silva da Silveira
Lana Rodes - Esmeralda Nascimento Justo
André Segatti - Ernesto Justo
Rafaela Mandelli - Regina Mayer
Taumaturgo Ferreira - Batista (Tarcísio Batista)
Eduardo Lago - Luís Guilherme Batista Figueiredo (Guiga)
Andréa Avancini - Érica Figueira
Pedro Malta - Eugênio Menezes Figueiredo
Maurício Ribeiro - Cristiano Pena (Cris)
Fafá de Belém - Ana Gabriela dos Santos Luz
Perfeito Fortuna - Pepe Luz
Fernando Pavão - Noel Machado (Noé)
Guilherme Trajano - Dino Malafatti
Anna Markun – Juanita Biavatti (Mulher-Cobra)
Théo Becker - Fernando Biavatti (Cobrão)
Natália Guimarães - Ariadne
Allan Souza Lima - Meduso
Maria Carolina Ribeiro - Silvana Madiano
Louise D'Tuani - Ísis
Helder Agostini - Demétrio
Bruno Miguel – Lúpi / Lobo
Patrícia de Jesus - Perpétua Salvador
Suyane Moreira - Iara
André Mattos - Pachola (Paulo Pachola)
Helena Xavier - Simone dos Santos
Sebastião Vasconcellos - Mauro Fonte
José Dumont - Teófilo Magalhães
Juliana Xavier - Ágatha Magalhães
Sérgio Malheiros - Aquiles Magalhães
Rômulo Estrela - Draco
Rômulo Arantes Neto - Telê
Diego Christo - Hélio Bezerra
Rocco Pitanga - Carvalho (Armando Carvalho)
Marina Miranda - Marisa Gama
Marcos Suhre - Homem-Gelo
Juliana Martins - Marlene França
João Paulo Silvino - Leão
Joaquim de Castro - Adolfo
Ricardo Macchi - Golias
Daniel Marinho - Capeletti
Fábio Nascimento – Minotauro
Carolina Chalita - Marialva
Márcio Libar - Mendigo
238
Crianças
Letícia Medina - Tatiana Duarte Montenegro (Tati)
Shaila Arceni - Clara Menezes Figueiredo
Júlia Magessi - Ângela Menezes Figueiredo (Anjinha)
Cássio Ramos - Valfredo Pachola (Vavá)
Pedro Malta - Eugênio Menezes Figueiredo
Sérgio Malheiros - Aquiles Magalhães
Juliana Xavier - Ágata Magalhães
239
Anexo II. Mito dos Gêmeos Kuaray e Jachy.
I Versão. Janeiro de 2001. Cacique João da Silva
“A mãe de Kuaray chegou onde tinha muitas onças, e as onças mataram a mãe do
Sol, que estava na barriga. A vovó onça pediu para o filho pegar o Sol que ela queria ver,
mas queria mesmo era comer. O filho acreditou e foi pegar o Sol, bichinho novinho,
novinho para comer.
Ela pegou e o colocou no fogo, queria comer, mas não conseguiu. Disse a velhinha:
soca no pilão! Mesmo socando ele não morreu, ficou na borda. a velhinha disse: pode
enxugar pra mim. Logo Kuaray se levantou, andava, criancinha, ele não sabia o que
aconteceu com sua mãe. Andou, ele viu o sangue da mãe e o osso, e viu bicho sentar nele.
Ele pediu a vovó para fazer uma flechinha para ele e com ela matou tudo o que estava no
sangue da mãe. Ele parou e perguntou: o que aconteceu comigo? Ele pediu a onça para não
mastigar todo o osso, mas a onça havia mastigado o joelho. O sol ficou sozinho, andando
sofrendo, querendo um irmão para andar com ele.
Então Deus fez a imagem, fez Jachy. Jachy um garoto, andou com o Sol, ele
também tinha uma flechinha e ambos iam caçar. Com quatro e cinco anos eram rapazes.
Ai vovó onça proibiu eles de subirem um morro bem alto, não podiam ir até lá. Ai, algum
tempo, o Kuaray disse ao irmão, porque não podemos ir lá? Vamos até disse para Jachy.
E foram. Subiram. Você vai por aqui e eu por ali, disse Kuaray. Então Jachy chegou onde
tinha um papagaio e sem avisar ao irmão atira a flecha. Errou e o papagaio falou.
Jachy chamou Kuaray e disse que o papagaio falava. Jachy tentou de novo, errou e o
papagaio falou: vocês não sabem que foi a vovó de vocês que comeu sua mãe? Como vocês
caçam para ela? O Kuaray sentiu, sentiu muito e foi embora. Ele desceu e chorou. Disse:
240
não podemos levar o pássaro para ela, que matou minha mãe, ai ele soltou tudo que tinha
pego.
Disse Jachy: vou levantar sua mãe. Se esconde meu irmão. Achou o osso, e levantou
a mãe, criou a imagem, Kuaray viu e ficou contente, mas ela caiu. Tentou quatro vezes mas
não foi possível pois a onça tinha comido o joelho. Ai Kuaray disse: vamos matar todos.
Vamos fazer armadilha. A onça veio e viu, o que esta fazendo? Será que morre? Não disse
Kuaray. Vou ver disse a onça. E foi passar em baixo da cana, pisou no sabugo, a cana bateu
encima, ela caiu, matou a onça. Esconderam, depois veio outra...até acabar as onças macho.
Ficaram as fêmeas. Kuaray estudou uma armadilha. Atravessou um rio largo e fundo e
achou frutas bonitas. Trouxe um pouco para as mulheres. Elas gostaram queriam mais e
Kuaray mandou elas buscarem, disse: é do outro lado do rio, mas espera que eu vou
arrumar um bote para vocês atravessarem o rio. Aí fez o bote, ele e Jachy, e combinaram de
virá-lo quando Kuaray avisar, ele ia olhar de lado na hora.
Então levaram as mulheres para o bote. Disse para Jachy eu fico aqui e você lá,
quando eu olhar você vira. desceram todos, e quando o último ia descer a madeira fez
barulho, Kuaray olhou para ver o que foi e Jachy virou o bote. uma não foi morta, ela e
o que esperava em sua barriga. Kuaray disse: e a onça viveu mas não falou mais.
que Jachy ficou do outro lado do rio. E agora? Subiram, e Kuaray estudava,
como? Viu frutas e disse: ei irmão come fruta, ela tem umbigo, é guabiroba, é fruta boa
para comer. Subiram, Jachy gritou: ei irmão tem outra fruta, é vermelha e tem umbigo; é
pitanga, disse Kuaray, pode comer. Depois ele gritou: tem muita madeira com fruta e
moranga, mas acho que não é para comer. Kuaray disse: é cedro, não é para comer.
Subiram e acharam outra fruta, Jachy gritou: parece melão. Kuaray disse: pode comer, assa
no fogo toda a semente que comer. Kuaray disse para botar a semente encima do fogo e ir
241
para cima dela, Jachy foi e de repente um estouro, e Jachy pulou, quando viu estava com o
irmão. Ficaram alegres e seguiram. Daqui a pouco viram um homem pescando, esperando o
peixe. Kuaray disse: vamos lograr* este homem. Primeiro foi Kuaray e fez o homem errar o
peixe. Ele botou o dedo entre o anzol e o homem pensou que fosse o peixe, ele puxou e não
era nada.
Depois foi Jachy. Kuaray disse para não levar a boca, por o dedo. Mas Jachy
botou a boca e o homem puxou, veio o peixe grande, Jachy morreu e o homem que pescava
era Anã. Kuarai ficou só, disse depois eu vou lá. Anã colocou o peixe no cesto e levou.
Partiu, cozinhou o peixe e tirou para comer com o filho. Aí chegou Kuaray, e o outro falou:
oi irmão chegou na hora, vamos comer o peixe. Você come? Como, respondeu. Kuaray
guardou e pediu: o osso vocês não mastiga, entrega para mim. E Anã disse para o filho
entregar todo o osso. na frente, ele pegou todo o osso, juntou o pedaço de carne e fez
outra imagem e Jachy levantou de novo. Ele disse: eu falei para não por na boca. Kuaray se
cansou de tudo e pediu para o pai para ficar lá em cima, trabalhando, direto, e ele foi, o Sol.
Jachy também foi, mas como ele foi comido por Anã ele volte e meia é comido de novo”.
* Palavra citada pelo próprio Seu João, assim como toda a narrativa.
II Versão. Novembro de 2007. Cacique João da Silva
“A mãe de Kuaray andava na mata, chegou onde tinha muitas onças, as onças
mataram a mãe do Sol, que estava na barriga. Ele saiu, pequeno, não viu quem matou a
mãe. A vovó onça queria comer o Kuaray bichinho novinho, novinho.
Ela pegou e o colocou no fogo, queria comer, mas não conseguiu. Disse a velhinha:
soca no pilão! Mesmo socando ele não morreu, ficou na borda. Ela desistiu de comer.
Kuaray não demorou para levantar, levantou, andava, criancinha, ele não sabia o que
242
aconteceu com sua mãe. Andou, ele viu o sangue da mãe e o osso, e viu bicho sentar nele.
Ele pediu a vovó para fazer uma flechinha para ele e com ela matou tudo o que estava no
sangue da mãe. Ele parou e perguntou: o que aconteceu comigo? Ele guardou o osso que
sobrou da mãe mas a onça havia mastigado o joelho. O sol ficou sozinho, andando
sofrendo, querendo um irmão para andar com ele. Então ele fez um irmão igual a ele, uma
imagem, fez Jachy.
Jachy um garoto, andou com o Sol, ele também tinha uma flechinha e ambos iam
caçar. Com quatro e cinco anos eram rapazes. Ai vovó onça proibiu eles não irem para
longe, não subir morro. que Kuaray disse ao irmão, porque não podemos ir lá? Vamos
até disse para Jachy. E foram. Subiram. Você vai por aqui e eu por ali, disse Kuaray.
Então Jachy chegou onde tinha um papagaio e sem avisar ao irmão atira a flecha. Errou e o
papagaio falou.
Jachy chamou Kuaray e disse que o papagaio falava. Jachy tentou de novo, errou e o
papagaio falou: vocês não sabem que foi a vovó de vocês que comeu sua mãe? Como vocês
caçam para ela? O Kuaray sentiu, sentiu muito e foi embora. Ele desceu e chorou. Disse:
não podemos levar o pássaro para ela, que matou minha mãe, ai ele soltou tudo que tinha
pego. Kuaray pegou os ossos, de sua mãe. Disse Jachy: vou levantar sua mãe. Se esconde
meu irmão. Pegou o osso, misturou massa de milho, e levantou a mãe, criou a imagem,
Kuaray viu e ficou contente, mas ela caiu. Tentou quatro vezes mas não foi possível pois a
onça tinha comido o joelho. O mito continua...”
243
Anexo III
História do Jurua.
“(...) Ele ficou ali. era noite, ele dormia, então acordou com um barulho. Ficou quieto,
escutou mais barulho, muito barulho e ele se assustou, ficou quieto. Eram corvos, eles
dormiam lá, um bando. Dormiam, cada bando de corvo tem um cacique. Quando foi três
horas da manhã o cacique levantou e disse: - Levanta minha comunidade, o que vocês
sonharam?
O primeiro começou. Hoje, sonhei que um rapaz novo está cego. Mas depende, ele vai
saber se salvare vai enxergar de novo. Daqui a distância tem uma tapera. Aí chegasse lá tem
um terreno bom, e muita andorinha. Quando ele vai se sentar e elas vão pousar na cabeça
dele. Se ele pegar uma nova ele tira uma pena da asa, e o sangue que sair (o liquido) ele
joga nos olhos, e vai enxergar. Aí perguntou ao outro: - e voce, o que sonhou? (...)”*
* Oliveira, 2002: 83-86.
244
Anexo V. Glossário.
Aecha ra’u – vi em sonho
Aguyjevéte – agradecimento
Ayuury ru – caixa de guardar a língua - computador
Angudja – rato - mause
Apyka – banco, assento.
Arete – festas
Djetxauaka – o que se deixa ver - munitor
Ema’e – cuidados diversos (ma’ e – olhe)
Ete ou Rete – corpo/ Ete também é citado como verdadeiro.
Ete aeva’e – corpo com nome
Era’a – leve
Ipy’ igua – fixar o olhar, começar.
Yy porá – água boa
Jaudy – bom dia
Jeroky – dança
Jerovy’a - acreditar
Joapyguá – espaço da família, do Kuery
Kaguijy – bebida feita com o milho
Kuery – liderança, líder da família.
Mba evyky (a) o que a pessoa faz, também feitiçaria.
Mba’eaxy - doença
Mymba – porco do mato (kochi)
Mbaraete – força de tupã
Mbaracá mirim = chocalho
Mbo’ra ei – canto e reza
Nde vu i – a pessoa esta leve
Ñanderu – ‘Deus’, divindade maior.
Nhemongarai – Ritual de nominação Guarani Mbyá (ñemongarai)
Nandukya – rede de computadores
Omboparara’a – teclado
Opy – casa cerimonial
Opyguá – pessoa responsável pelo opy, curador ou rezador, ou ambos.
Opitaive – aquele que cura com a fumaça
Petyngua - cachimbo que auxilia com espíritos e divindades.
Porã – bom (a)
Poraéi – cantos para/ e ou diálogos com as divindades
Ra’ u - sonho
Tamoi – ancestral, ‘os antigos’.
Takuapu = bastões marcadores de ritmo
Teko’a – aldeia
Teko’a porá – aldeia boa
Tetymakua – cordão anexado ao joelho, feito de cabelo ou pedras ou sementes, seu uso
possibilita a força e cuidado da musculatura.
Tupã – divindade que controla a natureza – força
245
Vy’a – alegria
Ka’a – erva-mate
U’i – farinha.
246
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