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Eneida de Almeida
O “construir no construído” na produção
contemporânea: relações entre teoria e prática
São Paulo
2009
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Universidade de São Paulo
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
Área de Concentração: História e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo
O “construir no construído” na produção contemporânea:
relações entre teoria e prática
Tese de Doutorado
Eneida de Almeida
Orientador:
Prof. Dr. Luiz Américo de Souza Munari
São Paulo, 2009
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Para Marta e Paolo
Agradecimentos
Esta pesquisa ganhou forma durante o exercício do ensino na
Universidade São Judas Tadeu. A Luiz Augusto Contier, coordenador
do Curso de Arquitetura e Urbanismo, agradeço a confiança e apoio
no desenvolvimento dos estudos. A Kátia Azevedo Teixeira sou
imensamente grata pela possibilidade de compartilhar estudos e
discussões relativas ao ensino e pesquisa de arquitetura. A Marta
Bogéa o diálogo fértil e instigante no convívio em sala de aula e no
grupo de pesquisa. A Alessandro Castroviejo Ribeiro agradeço o
incentivo e companheirismo durante o desenrolar dessa pesquisa. A
Beatriz Mugayar Kühl e Luís Antônio Jorge a generosa contribuição
para o aprimoramento deste trabalho. A Natália Roque agradeço a
atenção e o cuidado no tratamente gráfico deste trabalho. Aos alunos
o estímulo do aprendizado recíproco. Por fim, a Luiz Américo de
Souza Munari, meu orientador, agradeço a possibilidade de uma rica
interlocução.
Resumo
A pesquisa busca avaliar possíveis relações entre o projeto arquitetônico
e o restauro de bens culturais. Tendo em vista que esse leque de relações é
bastante amplo, procurou-se delimitar o estudo à atuação de dois arquitetos
contemporâneos que tenham optado pela aproximação dos critérios de projeto com
a análise das preexistências e a observação da cidade histórica. Dentro desse
universo foram escolhidos Aldo Rossi (1931-97) e Lina Bo Bardi (1915-92). Rossi,
com sua obra A arquitetura da cidade (1966), desperta interesse pelo
questionamento aos preceitos do movimento moderno e pela busca de estruturas
essenciais permanentes presentes nas cidades em seu devir histórico. Lina Bardi
chama atenção pela tentativa de superação da fratura histórica entre o “antigo” e o
“moderno” e pela ativação de um pertinente exercício crítico aplicado na intervenção
relacionada a preexistências de valor documental. O estudo procura explorar os
vínculos que os dois arquitetos estabelecem com os respectivos contextos de
formação e com a tradição crítica italiana de modo mais amplo. A investigação adota
uma abordagem histórica a partir de um recorte temporal que privilegia três
momentos específicos: traça inicialmente um panorama do século XIX e da origem
das teorias e práticas de conservação dos bens culturais; analisa, a seguir, a década
de 1930 como momento de tensão entre duas posturas antagônicas a
conservação e a inovação – mediante a análise dos seguintes documentos: Carta de
Restauro de Atenas (1931) e Carta de Atenas CIAM (1933); por fim, enfoca o
período do pós-guerra com ênfase nos anos 1960 como época de reconciliação
entre memória e invenção, tendo como pano de fundo o ambiente cultural italiano,
com atenção especial à revisão do movimento moderno no que se refere à relação
com a história, bem como às discussões ligadas aos temas da conservação dos
bens culturais e os desdobramentos desse debate na obra de Aldo Rossi e de Lina
Bardi. Entre os objetos de estudo do campo do patrimônio arquitetônico,
relacionados à produção de Lina Bardi, destacam-se: a Carta de Veneza (1964), as
noções do “restauro científico e “restauro crítico”, além da Teoria del Restauro de
Cesare Brandi (1963). O enfoque dos debate recentes sobre a ampliação da noção
de patrimônio e suas implicações na cidade contemporânea suscita
questionamentos quanto às abordagens centradas em aspectos econômicos e
turísticos que relegam a segundo plano as ações de cunho cultural.
Palavras-chave: memória, patrimônio arquitetônico e urbano, restauro e intervenção
arquitetônica.
Abstract
This study aims to evaluate possible relations between architectonic
design and cultural heritage restoration. In the light of the wide range of relations, this
study has been limited to the work of two contemporary architects who opted for
approaching design criteria to both pre-existence analysis and historical city
observation. Within such universe, Aldo Rossi (1931-97) and Lina Bo Bardi (1915-92)
are the object of this study. Rossi, with his work The Architecture of the City (1966),
(‘L'architettura della Citta’) shows interest in both questioning the principles of
modern movement and searching for permanent essential structures in the cities
related to their historical future. Lina Bo Bardi stands out for her attempt to overcome
the historical fracture between the “old” and the “modern” as well as, the activation of
a pertinent critical exercise applied to the intervention related to the preexisting
documental values. This study tries to explore the bounds that both architects
establish with their respective upbringing contexts and with the Italian critical
traditions in a broader manner. The investigation adopts a historical approach from a
time period which privileges three specific moments: first delineates a panorama of
19
th
century and the origin of theories and practices of cultural heritage preservation;
then, it examines the 1930’s as a moment of tension between the two opposite
approaches preservation and innovation upon the following documents analysis:
Athens Charter (1931) and Charter of Athens CIAM (1933); and finally, it focuses
the post-war period – with emphasis on the 1960’s – as a reconciliation time between
memory and invention, having as background the Italian cultural environment, with
special attention to the modern movement reviewing in addressing History as well as
to the discussions related to cultural heritage preservation and the unfolding of such
debate in the work of Aldo Rossi and Lina Bardi. Among the studied objects in the
field of architectonic heritage, related to the production of Lina Bardi, stands out: the
Venice Charter (1964), the notions in the “scientific restoration” and “critical
restoration”, in addition to the Teoria del Restauro by Cesare Brandi (1963). The
recent debates focus on the expansion in heritage notions and its implications in the
contemporaneous city trigger questionings on the approaches focused on
economical and tourism aspects which relegate to second plan the cultural character
efforts.
Key-words: memory, architectonic and urban heritage, restoration and architectonic
intervencion.
Sumário
Introdução 05
Parte I
1. Metrópole e memória: origem dos conceitos e das práticas de conservação do
patrimônio arquitetônico 15
Um panorama geral. Passado e presente: dilema entre divisão e conexão. O interesse pela
memória. Memória e coletânea. Memória, nomenclatura e significados. Memória, conservação
e restauro. Uma concepção moderna de restauro.
2. Os anos 1930: as Cartas de Atenas e a contraposição entre conservação e
inovação 42
Arquitetura, invenção e memória. Antecedentes: urbanismo versus conservacionismo. O
panorama internacional: as diferentes posturas urbanísticas de Le Corbusier e de Gustavo
Giovannoni. O panorama nacional: a peculiaridade da aproximação entre modernização e
preservação. A Carta de Restauro de Atenas 1931 (Escritório Internacional dos Museus
Sociedades das Nações). A Carta de Atenas – 1933 (CIAM). O cotejo dos documentos.
Desdobramentos nos debates recentes.
Parte II
1. Os anos 1960: a Carta de Veneza e o anúncio da conciliação entre memória e
invenção 74
A discussão da área específica: antecedentes e desdobramentos. As preexistências e a
intervenção arquitetônica. Os novos motes da produção arquitetônica. As discussões urbanas.
Alguns questionamentos ligados à prática do “construir no construído”.
2. Lina Bo Bardi: um olhar voltado ao patrimônio 91
Um primeiro olhar. Os caminhos trilhados. O Solar do Unhão, Salvador (1959-62). O SESC
Pompéia, São Paulo (1976-86): os edifícios fabris preexistentes; o reconhecimento de valor; as
operações realizadas; os critérios de intervenção; o significado renovado de uma fábrica. A
Ladeira da Misericórdia (1987): o “construir no construído”; a celebração do restabelecimento
de um diálogo interrompido; a retomada do diálogo; um diálogo de tempos solidário às teorias
de restauro; as escolhas transitam entre o “restauro científico”, o “restauro crítico” e a teoria de
Brandi; o patrimônio urbano. Um balanço crítico.
3. Aldo Rossi: o projeto arquitetônico como tensão entre permanência e
transformação 165
A “Escola de Veneza” e a “arquitetura analógica”: uma trajetória profissional entre o projeto e a
pesquisa. A Arquitetura da Cidade: o “tipo”, a crítica ao funcionalismo ingênuo, o binômio
transformação/permanência. O Cemitério de São Cataldo, Módena (1971-76). O Teatro del
Mondo, Veneza (1979-80). A Escola E. De Amicis, Broni (1969-70). O Teatro La Fenice,
Veneza (1997-98). Algumas observações.
Conclusão 221
Bibliografia 231
5
Introdução
Por muito tempo pode-se dizer, desde os primórdios da civilização
ocidental perdura entre os homens a postura de lidar livremente
com os legados do passado no sentido de adaptá-los às exigências
do presente, sem impor qualquer limitação às alterações ou mesmo
às demolições. Essa conduta, no entanto, altera-se a partir do
momento em que se configura uma nítida separação entre passado e
presente, e, concomitantemente, os legados do passado passam a
ser objeto, não apenas de estudo sistemático, mas também de
interesse de conservação. Isso ocorre a partir de meados do século
XVIII e afirma-se concretamente durante o século XIX, quando tende
a se constituir a autonomia disciplinar do restauro dos monumentos
históricos.
Este estudo pretende realizar uma investigação que relacione as
reflexões produzidas no campo disciplinar da preservação e restauro
do patrimônio arquitetônico, com aquelas elaboradas no âmbito mais
geral do projeto de arquitetura. Indagar sobre as relações entre o
‘projeto’ e o ‘restauro’, entre a criação do novo e a preservação do
antigo, analisar a fronteira entre essas atuações e as possibilidades
de conciliar os interesses de conservação com os anseios de criação
são, portanto, os focos centrais dessa pesquisa.
Considerando que esse leque de relações é bastante amplo, buscou-
se delimitar a pesquisa ao estudo da produção de dois arquitetos:
Aldo Rossi na articulação que estabelece entre teoria e
prática, especialmente no que diz respeito à atenção às
questões da memória materializada na arquitetura da cidade.
Lina Bo Bardi em sua produção que atenta para as
preexistências de valor histórico, tendo como referência as
noções elaboradas em seus escritos e o confronto com as
teorias do campo disciplinar do restauro a que se refere nos
seus memoriais de projeto.
Um dos principais objetivos do estudo é percorrer os raciocínios que
amparam as decisões de projeto, com o intuito de relacionar, sempre
que oportuno, os critérios de intervenção adotados pelos arquitetos
6
mencionados acima, às discussões teóricas travadas no âmbito da
conservação do patrimônio dos bens culturais.
A pesquisa se estrutura a partir de três hipóteses básicas:
1. A hipótese inicial parte da constatação de que a intervenção
de restauro, voltada ao monumento histórico, exige limites
mais rigorosos em relação ao exercício de projeto de
arquitetura. Isto se deve justamente em sinal de respeito ao
valor figurativo e ao documento histórico contido no objeto de
intervenção. A demarcação mais nítida dessas diferenças,
como mencionado, surge a partir da constituição do
‘restauro’ como disciplina autônoma e se acentua à medida
em que o ‘projeto’ é reconhecido principalmente a partir da
afirmação do movimento moderno – como experiência de
criação guiada essencialmente pelas exigências do presente
e por um estatuto interno, “racional”
1
. Assim sendo, as
prerrogativas ditadas pelos interesses de conservação
tendem a ser consideradas, pelos arquitetos não
especialistas, imposições que ferem sua liberdade de criação.
2. a segunda hipótese formulada relaciona-se à convicção de
que o pensamento produzido na esfera mais específica do
conhecimento, não obstante as divergências mais imediatas,
estabelece forçosamente relações com as idéias mais gerais
dominantes no ambiente cultural dos momentos analisados.
3. a terceira parte do entendimento de que toda e qualquer ação
de recuperar, rever e resignificar a memória do passado, dá-
se à luz da compreensão do presente, e deve,
necessariamente, prever a continuidade do tempo que implica
na legitimidade de se considerar a dimensão não analítica,
mas sobretudo propositiva contida na ação arquitetônica, o
que necessariamente comporta, além da conservação do
passado, a prospecção de futuro e de projetos futuros
1
HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes,
2002, p. 4. O autor, ao discorrer sobre a modernidade, cita Weber e sua descrição
do “racional” como um “processo de desencantamento ocorrido na Europa que, ao
destruir as imagens religiosas do mundo, criou uma cultura profana. (...) as artes
tornadas autônomas (...) formaram esferas culturais de valor que possibilitaram
processos de aprendizado de problemas teóricos, estéticos, ou prático-morais,
segundo suas respectivas legalidades internas.”
7
conciliada com a preocupação de preservação. De fato, não
teria o menor sentido aportar valor exclusivamente no
passado, como se toda a criação humana relevante tivesse
sido realizada, ou como se não houvesse a possibilidade de
compatibilizar a conservação com a continuidade histórica, ou
seja, de se adicionar uma nova camada de tempo que se
evidencia e dialoga criticamente com a preexistência
conservada
2
. Aliás, a discussão teórica acumulada, já não
mais considera patrimônio unicamente o passado remoto,
exemplar, grandioso, o monumento histórico no sentido
empregado no século XIX, mas, nessa nova compreensão,
incorpora um passado mais recente, produzido em etapas
sucessivas de um devir histórico que aproxima passado e
presente, em síntese, o bem cultural entendido como produto
da atividade humana, sem fazer distinção entre a obra de arte
e as outras formas derivadas do fazer humano
3
.
É justamente a afirmação do projeto do presente, em concomitância
com a conservação do passado, que sugere a necessidade de
extrapolar os limites da investigação no campo específico do
restauro, para relacioná-la com a compreensão da produção
arquitetônica contemporânea naqueles pontos de tangência e de
convergência entre esses dois níveis de abordagem.
Convém considerar que os debates sobre os temas do patrimônio
cultural e seus desdobramentos na prática profissional tendem, na
atualidade, a se tornar cada vez mais relevantes, uma vez que a
reciclagem, a revitalização, a requalificação, apresentam-se como
ações que extrapolam os limites da discussão de especialistas, para
tornarem-se problemas cotidianos da agenda do arquiteto
contemporâneo.
2
Essa posição encontra afinidade com a postura defendida por Marco Dezzi-
Bardeschi, um dos teóricos da atualidade que contribui para enriquecer os debates
recentes nessa área, mediante a proposição da “conservação integral”. Para
aprofundar essa abordagem, consultar KÜHL, B. Preservação o patrimônio
arquitetônico da industrialização. Problemas teóricos de restauro. Cotia, S.P., 2008 e
CARBONARA, G. Avvicinamento al restauro. Teoria, storia, monumenti. Nápoles:
Liguori, 1997.
3
Beatriz Mugayar Kühl, op. cit., p. 82, aborda a conotação atual do termo
‘monumento’ e justifica o uso da expressão ‘restauro de monumento’ em uma
acepção atualizada em relação ao emprego na origem da formulação teórica, em
que o termo ‘patrimônio’ correspondia a um sentido mais restrito. As mesmas
considerações são tecidas por Giovanni Carbonara, op. cit., p. 23.
8
Essa condição está ligada diretamente à ampliação da noção de
patrimônio, ocorrida a partir do pós-guerra, e ao crescente interesse
pelo tema no contexto contemporâneo. O destaque dirigido às
questões da conservação pode ser compreendido como uma espécie
de reação à condição de aceleração das transformações, que
tendem muitas vezes a cancelar e substituir rapidamente os traços
materiais e os valores adquiridos do passado.
Nessa perspectiva, a importância da preservação da memória
coloca-se como meio de garantir não só a própria identidade do
indivíduo, mas também a sua ligação a uma coletividade atual e
histórica, bem como a noção de “pertença”
4
que configura o
enraizamento não apenas no tempo, mas também no espaço.
A conservação corresponde então à resistência ao esquecimento dos
registros do passado, assim como ao cancelamento das idéias e
princípios que acompanharam a sua criação e desenvolvimento.
Entende-se, portanto, que se verifica na cultura contemporânea,
como decorrência da constatação de que é impossível preservar
absolutamente todos os elementos do passado
5
a afirmação de uma
espécie de programa de esquecimento seletivo, metódico e
fundamentado, em um contexto em que passado, presente e futuro
tendem a se conciliar, sem primazia ou prejuízo de um ou de outro,
como nunca se deu em outros tempos.
No que concerne às divergências entre os especialistas em restauro
e os arquitetos ligados ao projeto de arquitetura, é possível observar
algumas questões recorrentes. Uma delas é a percepção de que
prevalece entre os arquitetos envolvidos com a experiência de
projeto, não o descontentamento ao verem limitadas suas
possibilidades de invenção, mas também a relutância em confrontar
seus critérios de intervenção com as posições formuladas no âmbito
da restauração.
4
Nos termos empregados por Ulpiano Bezerra de Menezes, conforme depoimento
incluído em apêndice da Tese de Doutorado de Luís Antônio Jorge initulada O
espaço seco. Imaginário e poéticas da arquitetura moderna na América. (FAUUSP,
1999). O termo corresponde ao vocábulo appartenenza do idioma italiano.
5
Entre outros autores, Paul Ricoeur na obra A memória, a história, o esquecimento.
São Paulo: Unicamp, 2007 trata desse tema.
9
A saída entrevista para esse impasse é, portanto, explorar a
possibilidade de estabelecer relações entre essas experiências
conduzidas dentro de cada um desses campos de atuação. Por esse
motivo, o estudo concentra-se na atuação de arquitetos
contemporâneos que tenham optado pela mediação dos critérios de
projeto com a análise das preexistências e da cidade histórica,
procedimentos tidos como verdadeiros motes de criação.
Certamente, não interessa aqui optar pela análise daquelas
intervenções que permanecem no terreno do empirismo ou da
arbitrariedade e que refutam qualquer diálogo com a reflexão o
domínio do restauro.
A pesquisa adota uma abordagem histórica e estabelece como
recorte temporal o enfoque de três momentos distintos: o século XIX
como período de formulação das teorias e práticas de restauração;
os anos 1930 como momento em que se acentuam os contrastes
entre a invenção do novo e a conservação do antigo; os anos 1960
como época em que se reconciliam as tendências de criação do
projeto contemporâneo e a preservação do patrimônio construído.
Os capítulos foram escritos de maneira que cada um se
apresentasse, de certo modo, independente dos demais no que se
refere às notas e referências conceituais. Essa orientação pode ter
acarretado uma certa repetição na abordagem de certos assuntos,
um risco a ser enfrentado, diante do intento de se propiciar
autonomia a cada capítulo.
Assim foi definida a estrutura e a abordagem dos capítulos:
Parte I
1. Metrópole e memória: a formulação dos conceitos ligados
à idéia e à prática da conservação. Capítulo em que se
apresenta o processo de formação das metrópoles pós-
industriais, típico dos séculos XVIII e XIX, como momento
propício para uma nova compreensão da história. A atitude
crítica do indivíduo frente ao seu passado cria uma nítida
separação entre passado e presente, em substituição à
noção de continuidade assegurada pela tradição. O
fenômeno metropolitano, com seus novos modos de convívio
10
sociocultural, é analisado naqueles aspectos diretamente
relacionados a novas formas de ativação da memória,
reorganização e releitura dos legados do passado que
acompanham o desenvolvimento dos conceitos e das
práticas de conservação do patrimônio cultural. Busca-se
situar as posturas de figuras-chave no contexto cultural desse
período histórico. Entre os personagens de maior interesse
para essa abordagem estão: 1) Viollet-le-Duc e John Ruskin
como iniciadores do debate relacionado à legitimidade do
restauro, a partir de diferentes posicionamentos frente aos
testemunhos do passado; 2) Camillo Sitte e George-Eugène
Haussmann como urbanistas do final do século XIX a suscitar
a controvérsia urbanismo versus preservacionismo que se
acentua nas primeiras décadas do século XX.
2. Os anos 1930: as Cartas de Atenas e a contraposição
entre conservação e inovação. Capítulo que aborda a
tensão entre duas posturas contrapostas: 1) a consolidação
das prerrogativas da preservação do patrimônio arquitetônico
por ação de especialistas, com destaque para a atuação de
Gustavo Giovannoni; 2) a afirmação dos postulados do
movimento moderno, tomando-se por referência a
contribuição de Le Corbusier. Os dois documentos
internacionais produzidos nessa época, conhecidos como
“Carta de Atenas”, sinalizam essa polarização das discussões
e a participação dos arquitetos acima citados, na condição de
protagonistas dos debates e da elaboração final dos textos. O
primeiro documento é a Carta de Restauro de Atenas,
elaborada pelo I Congresso Internacional de Arquitetos e
Técnicos de Monumentos Históricos, de 1931. O segundo é a
Carta de Atenas do IV CIAM, Congresso de Arquitetura
Moderna, de 1933. Pretende-se, além de cotejar o conteúdo
desses documentos entre si, situá-los no contexto cultural do
momento em que foram produzidos. Interessa ainda analisar,
em linhas gerais, a especificidade com que se a discussão
desses temas no panorama brasileiro, em relação ao cenário
europeu. Nesse sentido, é pertinente assinalar a atuação de
11
Lucio Costa, pelo fato de representar a conciliação de
posições até então tidas como inconciliáveis: a de
conservação das heranças culturais do passado e a de
modernização.
Parte II
1. Os anos 1960: conciliação entre memória e invenção.
Capítulo que trata do momento em que se reconciliam as
tendências de criação do projeto contemporâneo e a
preservação do patrimônio arquitetônico. Analisa-se aqui a
ampliação do conceito de patrimônio e a maior aceitação
acerca da legitimidade da preservação. A Carta de Veneza
(1964) é o documento que sintetiza um novo entendimento
das questões relativas à preservação do patrimônio ao selar o
compromisso entre a arquitetura e o contexto urbano, entre a
cidade histórica e a cidade contemporânea. Uma visão geral
das noções debatidas entre os principais teóricos do restauro
é confrontada com as discussões do panorama arquitetônico
e urbano.
2. Lina Bo Bardi: um olhar voltado ao patrimônio. Capítulo
que analisa as intervenções de Lina Bo Bardi voltadas a
preexistências de interesse cultural, de modo a estabelecer
um confronto entre as referências conceituais presentes em
seus textos e os parâmetros contidos nas teorias do campo do
restauro dos bens culturais e na Carta de Veneza. A produção
de Lina Bo Bardi é aqui vista por sua relevância no panorama
nacional e pela atuação que faz surgir o projeto do novo a
partir de uma complexa urdidura entre erudição e cultura
popular, entre presente e passado.
3. Aldo Rossi: o projeto arquitetônico como tensão entre a
permanência e transformação. Capítulo que enfoca, fora do
âmbito específico da conservação do patrimônio cultural, a
atuação de Aldo Rossi (1931-1997) como uma das relevantes
investigações que atentam para as questões ligadas à
memória evidenciadas na arquitetura da cidade. Nesse
sentido, revela-se pertinente a abordagem acerca do arquiteto
12
pesquisador, alinhado ao neoracionalismo” da Escola de
Veneza, autor do livro Arquitetura da cidade (1966), que
alcança grande repercussão, seja pela capacidade de revisão
crítica das proposições do movimento moderno, seja pela
relação teórica e operativa que estabelece entre a análise
urbana e o projeto de arquitetura.
Convém ressaltar que tanto as atuações de Lina Bo Bardi, quanto as
de Aldo Rossi manifestam em comum firmes vínculos com a tradição
crítica italiana iniciada por Benedetto Croce e continuada por Giulio
Carlo Argan (1909-1992) e, da mesma forma, dialogam com as
contribuições de Cesare Brandi (1906-1988).
Quanto aos debates da atualidade, da mesma forma que ganha
contornos de senso comum, em tempos recentes, a idéia de
valorização do patrimônio cultural sofre um certo desgaste, em
múltiplos aspectos: a ampliação excessiva de repertório e a
apropriação inadequada de setores da indústria cultural e do turismo
de massa, acabam por privilegiar as questões econômicas, as
estratégias de marketing, relegando a plano secundário o rigor dos
princípios elaborados pela reflexão teórica consolidada.
Nesse sentido, o ambiente das cidades contemporâneas favorece
uma ambigüidade de conceitos que deve ser reconhecida a fim de
evitar a conseqüente confusão de significados e a própria deturpação
dos termos: patrimônio vivo e espetáculo, materialidade autêntica e
simulacro, objeto real e imagem.
Essa imprecisão tende a banalizar as noções de patrimônio
arquitetônico e urbano, assim como as práticas de intervenção.
Desse modo, coloca-se aqui a necessidade de, não apenas rever
conceitos e práticas, mas também indicar os aspectos discutíveis da
ação patrimonial mais recente, à luz das contribuições de autores
como Françoise Choay e Michel Sorkin. A reflexão presente em
Ignasi de Solà Morales interessa pela tangência que estabelece entre
os critérios de projeto arquitetônico e os da restauração. Convém
notar que essas ressalvas indicadas acima se dirigem a uma ação de
mais largo alcance que não tem relação direta com os preceitos
amadurecidos e aceitos hoje pelos especialistas.
13
A partir dessas considerações, podem ser colocadas algumas
questões. Quais os limites que separam a criatividade” invocada
pelo “restauro crítico” e a “inserção do novo” reivindicada pelo
arquiteto contemporâneo? Se a restauração admite hoje a
estratificação de diferentes temporalidades como camadas de um
devir histórico, incorporando, conforme os preceitos da “conservação
integral”
6
, acontecimentos fortuitos, acidentais, como dados a serem
considerados para efeito de conservação, por que não admitir então
a continuidade do fluxo do tempo para os bens culturais mediante o
aporte de ações comprometidas com a experiência crítica? Como
avaliar a prática contemporânea do “construir no construído”? Em
que termos essa ação pode ser tida como legítima?
6
As vertentes mais recentes são apresentadas em linhas gerais no capítulo 1, parte
II. Para aprofundamento do tema consultar as obras mencionadas acima de
Giovanni Carbonara e Beatriz M. Kühl.
Camillo Sitte. Página do original "L'art de bâtir les villes" publicado em 1889. Fonte: http://utopies.skynetblogs.be/post/6530994/camillo-sitte-18431903-lart-de-batir-les-vill. Acesso 26/10/09.
" O homem anda em linha reta porque tem um objetivo." Le Corbusier. Fonte: http://fabiobola.multiply.com/photos/album/102 falcon.jmu.edu/.../23.corbu.city.plan.jpg. Acesso 26/10/09.
Foto aérea da Ópera de Paris. Fonte: www.operadeparis.fr/cns11/live/onp/resources/. Acesso 26/10/09.
15
Metrópole e memória: a origem das práticas de
conservação
O panorama geral
A metrópole em sua formação configura um complexo quadro cultural
que aproxima e potencializa fenômenos significativos para a
definição das raízes da problemática moderna do restauro: a criação
da estética como disciplina filosófica e específica, a história da arte
como história do estilo, a difusão dos museus, o surgimento do
urbanismo e da arqueologia como disciplinas autônomas, a
iconoclastia dos sans culottes e a pronta reação das instituições
republicanas francesas, enfim, a crença no progresso científico, junto
à valorização romântica do passado.
Este artigo trata das relações entre o ambiente cultural de formação
das metrópoles e o surgimento das primeiras teorias voltadas à
preservação dos bens culturais. O interesse do estudo é apresentar o
fenômeno metropolitano, com seus novos modos de convívio
sociocultural, como um dos elementos fundamentais a desencadear
o processo de reorganização da memória que está implícito no
pensamento do restauro moderno.
O objetivo principal dessa abordagem é recuperar e contextualizar a
origem da construção de idéias que contribuem para constituir o
campo disciplinar do restauro, com base na compreensão de valores
e práticas elaborados a partir do final do século XVIII e durante o
XIX. Retomar esse momento histórico, detendo-se nas premissas
que se apresentam para a formulação do problema da conservação e
do restauro, propicia investigar tanto a semântica dos conceitos
elaborados, quanto a maneira como esses temas ecoam na
atualidade. Não se trata aqui de esgotar o tema, uma vez que foi
amplamente abordado em inúmeras publicações. Busca-se, isto sim,
sintetizar os aspectos essenciais desse contexto cultural,
aproximando as interpretações do campo específico do restauro
daquelas do campo mais geral da historiografia da arquitetura.
16
A idéia de preservação é aqui reconhecida como fruto da
modernidade, uma noção que nasce no mesmo momento em que o
movimento da arte moderna arrisca seus primeiros passos.
Memória e invenção, nesse contexto, são dados entrelaçados
ainda que por vezes sejam considerados como opções incompatíveis
entre si – e a cidade é matriz de transformação.
Como se sabe, as expressões do pensamento e as manifestações
artísticas desse período histórico estão intimamente ligadas ao
quadro de transformações profundas da ordem social, econômica e
política que remonta à transição do feudalismo para o capitalismo.
Nesse panorama, o despotismo esclarecido e o iluminismo
1
têm
grande relevância: o primeiro por mudar a concepção do Estado, o
segundo por propiciar o desenvolvimento das correntes racionalistas
e empiristas que constituem a base teórica das revoluções política e
industrial.
Paris “local onde habita a Razão”
2
, onde se prepara a Enciclopédia
(1751-72) e a Revolução, cidade do Homem Universal – é centro vital
desse quadro e continuará a sê-lo na condição de capital das
vanguardas modernistas, no início do século XX. A capital
indiscutivelmente figura como símbolo do século das Luzes que,
aliás, reúne condições privilegiadas tanto para a difusão do
conhecimento, como para a criação de uma nova consciência
histórica. Trata-se de uma nova mentalidade que privilegia formas
dedutivas de conhecimento como meios adequados para a
compreensão da realidade, em detrimento da intuição, misticismo,
ou revelação religiosa, o que concorre de forma definitiva para o
questionamento da tradição.
É o que Marvin Perry
3
identifica como afirmação da razão e da
liberdade, nascida no ambiente cosmopolita de Paris, capital do
Iluminismo, e que se difunde às principais cidades da Europa
ocidental e da América do Norte. Assim explica o autor:
1
Conforme Franco Venturi em Utopia e riforma nell’illuminismo, Turim: Einaudi,
1970, p.151.
2
Essa expressão comparece em AZEVEDO, Ricardo M. de. Metrópole e abstração.
São Paulo: Perspectiva, 2006, p.10, referindo-se ao discurso de Cloots na
Assembléia de Paris.
3
Em: Civilização ocidental. Uma história concisa. o Paulo: Martins Fontes, 1985,
p. 296.
17
“Newton descobrira leis universais que explicavam os
fenômenos sicos. Os ‘philosophes’ então indagavam: não
haveria também regras gerais que se aplicassem ao
comportamento humano e às instituições sociais? Seria
possível criar uma ‘ciência do homemque correspondesse
à ciência da natureza de Newton? (...) Ao defenderem a
metodologia científica, os ‘philosophes’ afirmaram o respeito
pela capacidade da mente e pela autonomia humana (...)
rejeitando a intervenção do clero e da autoridade
principesca, ela (a mente) conta com a sua própria
habilidade de pensar e confia nas evidências de sua própria
experiência.”
Em tempos mais distantes predomina a prática generalizada de se
dispor das obras do passado para adaptá-las sem restrições às
necessidades do presente. Contribui para esse comportamento
usual, a ausência de uma demarcação mais evidente entre passado,
presente e futuro.
[1] [2]
[1] O antigo teatro de Marcello transformado em Palazzo Orsini por Baldassare Peruzzi no séc.
XVI.
[2] A igreja de San Lorenzo in Miranda, inserida no pórtico remanescente de um antigo templo
romano, projeto de Orazio Torriani, 1602. Fonte: Dell’Orto, 1982, p. 52 e 31.
18
Se até então persistia uma noção de continuidade no transcurso do
tempo, o pensamento iluminista contribui efetivamente para
contrapor-se a essa condição. Ao negar a autoridade incontestável
da tradição e buscar a aplicação do método científico ao universo
humano, propicia uma tida separação entre passado e presente. É
justamente a manifestação de uma atitude crítica do homem frente
ao seu passado a configurar essa nítida separação.
Passado e presente: dilema entre divisão e conexão
Se, por um lado, a observação distanciada de sua vivência permitiu
ao indivíduo uma condição mais objetiva de análise histórica, por
outro, a continuidade entre seu passado e o presente, antes
propiciada pela tradição, acaba por ser restabelecida de uma nova
forma. Por isso a necessidade de se instaurar outra espécie de ponte
entre o ontem e o devir, agora baseada no sentimento de que o
passado continuava a viver através da nostalgia
4
.
Sob essa perspectiva, o sentimento romântico de apego ao passado,
que concilia historicismo e nacionalismo e conduzirá aos diversos
revivals estilísticos do século XIX corresponde a um meio de
preencher o hiato criado entre passado e presente.
É característica marcante dos tempos de mudanças não se encontrar
uma congruência rigorosa de idéias: em meio às significativas
transformações técnicas e sociais, observam-se também importantes
focos de resistência às mudanças. Se uma vertente racionalista
que tende a cultivar o mito do desenvolvimento linear do progresso,
mantendo sua atenção voltada a um futuro promissor para a
humanidade, há, por outro lado, uma corrente romântica mais
interessada em reatar os vínculos com o passado.
A produção cultural dos séculos XVIII e XIX, portanto, traz em seu
bojo essa oscilação entre o espírito racionalista, como expressão de
um conhecimento universal, e o espírito romântico, enquanto
manifestação de sentimentos nacionalistas e estímulos individuais.
4
Paul Philippot em artigo: Restauro: filosofia, criteri, linee guida. Em revista
Strumenti 17, 1998, p. 43.
19
A propósito de contraposição de idéias, Giulio Carlo Argan
5
, ao tratar
das manifestações artísticas que antecedem a produção moderna do
início do século XX, refere-se a dois termos recorrentes: “clássico” e
“romântico”. Designam, segundo o autor, duas visões de mundo que
estabelecem entre si uma relação dialética e estão presentes na
origem da cultura artística moderna. O “clássico”, explica Argan, está
ligado à arte do mundo antigo greco-romano, assim como à cultura
humanística do século XV e XVI; o “romântico” associado à arte
cristã da Idade Média, especialmente às manifestações românicas e
góticas.
Ao discorrer sobre essas diferentes concepções de arte, Argan
retoma Wilhelm Wörringer (1881-1965)
6
, segundo o qual cada uma
dessas visões está relacionada a uma condição cultural e geográfica
que sintetiza a relação entre o homem e a natureza: a clássica
reporta ao mundo mediterrâneo, onde essa relação é clara e positiva;
enquanto a romântica alude ao mundo nórdico, onde a natureza é
força misteriosa e muitas vezes hostil.
Cada uma dessas posições vai ser investigada por outros autores,
sob pontos de vista diversos, a partir da criação do campo disciplinar
da estética. Esse é, sem dúvida, o momento de teorização da arte
sob a forma de uma filosofia da arte, a estética, em substituição ao
viés tratadista que vigorou desde o Renascimento. Como observa
Argan
7
:
“Teorizar (sobre) períodos históricos significa transpô-los da
ordem dos fatos àquela das idéias ou dos modelos: é de
fato a partir da metade do século XVIII que aos tratados ou
às preceptivas do Renascimento e do Barroco substitui-se, a
um mais elevado nível teorético, uma filosofia da arte
(estética).”
O autor esclarece que inicialmente o tratado da arte atendia ao
pressuposto da arte universal, como norma a ser colocada em
prática, um raciocínio pertinente ao pensamento clássico. Nos novos
5
Em: L’Arte moderna. Florença: Sansoni, 1988, p. 3.
6
Em obra intitulada Abstração e Natureza.
7
Op. cit., p.3. (tradução da autora)
20
tempos em que a arte não é mais considerada um meio de
conhecimento da realidade, nem tampouco um meio de
transcendência religiosa, mas sim um modo de ser do espírito
humano, a investigação teórica toma novos rumos. Enquanto a
noção de arte calcada no pensamento antigo pressupõe o dualismo
entre o modelo e a imitação, recorrendo à mimesis, a concepção
romântica invoca a poiesis, ou seja, o próprio fazer artístico, centrado
agora na intencionalidade do artista, na criação propriamente dita.
Aqui está, segundo Argan, a origem da autonomia da arte, própria do
movimento moderno. Refere-se à compreensão da arte como uma
experiência primária que não tem outra finalidade senão a própria
criação.
Ao discorrer sobre o pensamento romântico, autores, entre os
quais Azevedo, que fazem uso do plural – ‘romantismos’ – a enfatizar
a ausência de um programa coeso e unitário para as várias
manifestações artísticas relacionadas a esse universo peculiar. De
todo modo, a historiografia da arte em geral destaca a predominância
de um sentimento que se evidencia na confluência de correntes que
renegam as preceptivas artísticas da tradição clássica, em favor de
uma valorização da capacidade ilimitada do gênio.
O interesse pela memória
A memória e sua prática interessam tanto aos românticos quanto aos
racionalistas, se é que podem ser identificados em posições
rigorosamente contrapostas. Para os românticos, a memória é motivo
de encantamento. Conforme explica Le Goff, “o romantismo
reencontra, de um modo mais literário que dogmático, a sedução
pela memória
8
. Para exemplificar, recorre a Michelet que, na
tradução da obra de Vico, De antiquissima italorum sapientia (1710),
encontra a ligação entre memória e imaginação, memória e poesia.
Fantasia e invenção são atributos indissociáveis da produção de
Giovanni Battista Piranesi (1720-78), figura de destaque no cenário
cultural da época. Célebre por suas gravuras, entre as quais as
Vedute di Roma (Vistas de Roma), visões panorâmicas das ruínas
8
LE GOFF J. Memória-História. Enciclopédia Einaudi. Vol. I Lisboa: Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 1984, p. 37.
21
romanas, estimulou a imaginação dos seus contemporâneos e
inspirou com suas reconstruções fantásticas os adeptos das
concepções neoclássicas e românticas. Os seus Carceri d’invenzioni
(Projetos de prisões imaginárias)
[3] [4]
prefiguram, segundo Scully
9
,
“o fim do velho mundo humanista, centrado no homem, com seus
valores fixos é o começo da era das massas da história moderna,
com seus ambientes enormes e continuidades precipitadas.”
Imagens de espaços ameaçadores, continuam a ser fonte de
inspiração de vários autores do século XX, entre os quais o cineasta
Serge Eisenstein e o dramaturgo Peter Weiss
10
.
Para os racionalistas, a memória é importante instrumento de
conscientização coletiva, não de rememoração e comemoração,
mas também de reordenação e reedição de situações e informações
passadas. Nesse sentido, a função da memória não é
exclusivamente de celebração, mas principalmente de releitura e
reinterpretação dos acontecimentos.
9
Em Arquitetura moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 19.
10
Em THOENES, C. Et al. Teoria da arquitectura. Do renascimento até nossos dias.
Lisboa: Taschen, 2003, p. 164, comenta-se a respeito da evocação da obra de
Piranesi presente em autores contemporâneos.
22
Por essa razão na França, após a Revolução, são criados os
arquivos nacionais que reúnem os documentos da memória da
nação. Criam-se também instituições responsáveis pela formação de
especialistas aptos a organizar e fazer funcionar esses arquivos. O
mesmo acontece com os museus, como se observa na análise a
seguir.
Ganha assim importância, no contexto das principais metrópoles, a
ação de historiadores, colecionadores, antiquários, arqueólogos,
além de literatos, pintores e arquitetos que se dedicam à
investigação, apreciação e conservação de obras de arte,
documentos e ruínas. São intelectuais estimulados pelo projeto de
democratização do conhecimento que acompanha o iluminismo,
empenhados em atividades de diversa natureza, mas que contribuem
em conjunto para fortalecer a ligação entre memória e identidade e,
por extensão, a noção de preservação.
Memória e coletânea
Nessa condição de difusão do saber, ou dos “saberes”, com o
desenvolvimento de áreas específicas do conhecimento, a
arqueologia afirma-se pouco a pouco como disciplina autônoma.
Ciência que, a partir das evidências materiais criadas pelos homens,
investiga os costumes e culturas dos antepassados, a arqueologia se
estabelece como especialização do estudo da história. Sua
consolidação requer a adoção de métodos sistemáticos de
levantamento e classificação, além dos processos de coleta e
escavação.
O interesse pelos vestígios específicos da antigüidade clássica se
intensifica após os trabalhos de escavação da cidade de Paestum
(1746), na Magna Grécia, assim como das antigas cidades romanas:
Pompéia (1748) e Herculano (1755). A descoberta desses sítios
que permaneceram enterrados por muitos séculos além de causar
grande comoção, foi um dos fatos decisivos para confirmar o sentido
de separação entre passado e presente. Mostrava-se evidente a
descontinuidade entre o momento do sepultamento e o da
descoberta: Paestum vinha desbravada; Pompéia e Herculano
voltavam, literalmente, à luz.
23
A propósito da arqueologia, convém destacar o papel do historiador e
arqueólogo Johann Joachim Winckelmann (1717-68), por estabelecer
em sua obra História da arte na Antigüidade (1764) as bases da
história da arte como história do estilo, e exercer forte influência
sobre o desenvolvimento da arquitetura neoclássica
11
.
São, portanto, inúmeros os fatores a mobilizar o interesse e a
institucionalizar a conservação material sistemática dos bens
culturais. A reflexão sobre a arte, as descobertas arqueológicas, a
criação dos arquivos e dos museus
12
destinados ao grande público,
são os agentes mais significativos a interferir nesse processo.
O museu, importante instituição desse contexto cultural, como
observa Françoise Choay
13
, começa a aparecer na sua acepção
atual, durante o século XVIII, seja pela ampliação e transformação
dos espaços privados de coleção em espaços abertos à visitação
pública, seja pela transferência de bens da Coroa e do Clero para a
nação, em um procedimento de expropriação comum na França pós-
revolucionária.
Memória, nomenclatura e significados
Museu e Encyclopédie têm em comum um propósito didático. Nas
páginas de introdução do Dictionnaire raisonné des sciences, des
arts e des métiers, conforme aponta Paolo Rossi, D’Alembert enfatiza
a importância “de um trabalho continuamente iluminado pelo
conhecimento dos princípios teóricos que lhe servem de base, e de
uma pesquisa teórica capaz de ceder lugar a aplicações práticas e
de se reconverter em obras (...). Observa-se que os enciclopedistas
quando “se voltavam aos artesãos da França, interrogando técnicos
e operários e, a seguir, tentando definir com exatidão os termos,
métodos e procedimentos próprios das várias artes, para inseri-los
11
Paul Phillipot em artigo: Storia e attualità del restauro. Em: Strumenti 17, 1998, p.
101
12
Idem, p. 89. Museus criados no séc. XVIII: British Museum, Museo Pio Clementino
em Roma e Louvre em Paris.
13
Em Alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade: UNESP, 2001,
especialmente nas páginas.62 e 97, a autora tece considerações sobre a criação
dos museus na França.
24
num ‘corpus’ orgânico e sistemático de conhecimento”
14
, buscavam
estabelecer um vínculo estreito entre teoria e prática.
Confirmação dessa preocupação em promover os fatos da prática,
relegados tradicionalmente a segundo plano, prossegue Rossi, é o
próprio verbete “Art” da Encyclopédie, em que se critica a distinção
tradicional entre artes liberais e artes mecânicas, por reforçar o
preconceito de que a atenção aos objetos sensíveis e materiais
constitui uma renúncia à dignidade do espírito humano.
Diretamente ligada ao tema deste estudo, a ampliação da
terminologia referente à análise histórica ocorre impulsionada
justamente pela influência do espírito da Enciclopédia. Novos
significados são incorporados ao vocabulário corrente: documento,
monumento, patrimônio, preservação, restauro. São vocábulos cujo
emprego freqüente remete aos novos métodos da memória coletiva e
do estudo da história, um reflexo das preocupações do homem de
manter contato vivo com as obras produzidas pela cultura do
passado.
Documento e monumento têm primazia entre os materiais da
memória coletiva e da história
15
. O vocábulo latino documentum,
derivado de docere, ‘ensinar’, com o tempo adquire o sentido de
‘prova documental’ e, a partir do século XIX, o de ‘testemunho
histórico’. o termo “monumento”, do latim monumentum, derivado
de monere, ‘lembrar’, ‘rememorar’, em origem indica aquilo que traz à
lembrança acontecimentos, ritos, crenças. Logo, genericamente o
monumentum é um ícone do passado, enquanto obra representativa
construída para fins simbólicos e não para atender a usos
específicos. Desde a antigüidade romana, o monumento tende a
dividir-se em dois tipos: uma obra comemorativa ou um monumento
funerário. Veyne
16
ressalta a usual manipulação da memória coletiva
exercida pelos imperadores romanos e a conseqüente reação do
senado contra a tirania imperial, ao criar um expediente que permite
cancelar o nome do imperador defunto dos documentos de arquivo e
das inscrições monumentais, a damnatio memoriae. Ao poder da
14
Em Os filósofos e as máquinas.São Paulo: Cia das Letras, 1989, p. 112.
15
A respeito da importância e da variação de significados, consultar LE GOFF, op.
cit., pp. 95-104.
16
Apud LE GOFF, op. cit., p. 37.
25
memória contrapõe-se a destruição da memória, mecanismo
empregado por diversas vezes, no século XX, em circunstâncias
ligadas a regimes totalitários. Com o transcurso do tempo, o
monumento não consolida o sentido de obra grandiosa construída
com o objetivo de contribuir para a perpetuação memorialística de
uma pessoa ou acontecimento relevante na história de uma
comunidade, mas incorpora também uma conotação estética.
O “monumento histórico” do século XIX, contemporâneo à nomeação
da Comissão dos Monumentos Históricos da França, em 1837, inclui
três categorias de edifícios: os remanescentes da antigüidade, os
edifícios religiosos medievais e alguns castelos. Trata-se de uma
classificação formulada para fins de inventário e tutela de bens que
constituíram alvos de ataques da população contra os símbolos do
Ancien Régime.
De início, o monumento associado a um passado remoto, ao status
de raridade e suntuosidade, aos poucos vai adquirindo um sentido
mais abrangente, equiparável à conotação de outro vocábulo
também aplicado ao universo da conservação da memória:
patrimônio.
Etimologicamente o sentido do termo ‘patrimônio’
17
, proveniente do
latim patrimonium, corresponde ao conjunto de bens pertencente ao
pai, o pater. O significado consolida-se como conjunto de bens
transmitidos dos pais aos filhos por herança. Com o tempo, seu
emprego não se limita às estruturas familiares, mas passa a ser
aplicado às empresas e instituições públicas. Entre os séculos XVIII
e XIX, o termo ganha uma nova compreensão: “patrimônio histórico”.
Assim explica Choay:
“A expressão designa um bem destinado ao usufruto de
uma comunidade que se ampliou a dimensões planetárias,
constituído pela acumulação contínua de uma diversidade
de objetos que se congregam por seu passado comum:
obras e obras-primas das belas-artes e das artes-aplicadas,
17
COLONNA, B. Dizionario etimologico della lingua italiana. Gênova: Newton &
Compton, 1997, p. 283.
26
trabalhos e produtos de todos os saberes e ‘savoir-faire’ dos
seres humanos.”
18
Considerado suporte da memória, fonte da história dos homens,
portador de significado, o patrimônio - para se constituir como tal -
pressupõe o reconhecimento de valor, a adoção de critérios de
seleção, e, implicitamente, a importância da conservação. Sob esse
aspecto, só a preservação possibilitará o usufruto do legado recebido
do passado e a sua conseqüente transmissão às gerações futuras.
Memória, preservação e restauro
Pode-se afirmar que antes da revolução, na França, a idéia de
conservação nasce a partir da visão crítica da história. No período
sucessivo, entre 1790 e 1820, no entanto, a preservação passa a ser
uma ação necessária e imprescindível para evitar o cancelamento do
passado. Trata-se de impedir a destruição provocada pela onda de
vandalismo por parte da população perigosa, a turba
19
, que atinge os
monumentos considerados símbolos do antigo regime e de suas
classes dominantes: o clero e a nobreza.
Processos históricos emblemáticos, a Revolução Francesa e a
Revolução Industrial, da mesma forma que apontam para o futuro,
para transformações de ordem prática e conceitual, reconstroem o
vínculo com o passado.
Na Inglaterra, dois aspectos contribuem especialmente para
despertar o interesse pela conservação: a indignação provocada pela
lembrança do vandalismo religioso da Reforma; a reação às rápidas
e radicais transformações causadas pela revolução industrial, seja na
forma de produção artística, seja no ambiente urbano.
França, Inglaterra e Itália, não por acaso, são palco dos primeiros
debates e ações voltadas à preservação do patrimônio cultural. As
condutas são diferenciadas pela própria condição de cada país:
França e Inglaterra envolvidas com os respectivos processos
18
CHOAY, op. cit., p. 11.
19
Expressão corrente com que se designa a multidão exaltada na época da
Revolução. Cf. AZEVEDO, op. cit., p.7.
27
históricos revolucionários e a Itália diretamente relacionada à
afirmação da arqueologia.
As teorias formuladas pelos pioneiros o francês Eugène Viollet-le-
Duc e o inglês John Ruskin apesar de assumirem posições
antagônicas, têm uma origem comum: a correlação com o espírito
nostálgico dominante no período. A posição dos italianos, por sua
vez, reflete a conduta sistemática que acompanha os trabalhos
mencionados de escavação arqueológica.
Viollet-le-Duc (1814-1879), historiador, teórico e restaurador, atua
num momento em que a ação do Estado francês faz-se necessária
para impedir a continuidade da escalada de vandalismo que se
desenvolve após a Revolução Francesa.
Após integrar uma comissão que elaborou um levantamento
criterioso das edificações de interesse patrimonial e das condições
de conservação, passou a participar das primeiras iniciativas de
restauração, entre as quais, as catedrais de Paris, Chartres e
Amiens. Estabeleceu então uma conduta de intervenção, após
dedicar-se atentamente ao estudo das técnicas construtivas,
especialmente das catedrais góticas.
[5] [6]
Ao propor a recuperação dos edifícios, reporta-se ao conceito de
estilo, entendido como uma realidade histórico-formal unitária e
coerente circunscrita no tempo e bem definida nas suas
características físicas. O estilo seria uma expressão direta de uma
época, de um momento histórico, o que autorizaria a hipótese da
reconstrução de partes não mais existentes. Com base nesse
conceito, a posição de Viollet-le-Duc, que se torna conhecida como
“restauro estilístico”, autoriza a restabelecer o estado primitivo
unitário do edifício. Em outras palavras, legitima as livres
experiências de reconstrução e de livre composição em nome da
exaltação de uma hipotética unidade estilística.
No Dictionnaire raisonné de l’architecture française du XI au XVI
siècle (editado entre 1854 e 1868), de Viollet-le-Duc, assim diz o
verbete ‘restauração’
20
: “restaurar um edifício não é mantê-lo, repará-
20
O verbete foi traduzido para o português por Beatriz M. Kühl e publicado em 2000,
na coleção Artes&Ofícios da editora Ateliê Editorial, que têm reunido relevantes
28
lo ou refazê-lo, é restabelecê-lo em um estado completo que pode
não ter existido nunca em um dado momento.”
21
Giovanni Carbonara
22
comenta que a postura de Viollet-le-Duc
parece mudar com a continuidade de suas ações. Passa de uma
intervenção mais cautelosa, de caráter conservativo, para uma
atuação mais livre e radical de recomposição e reconstrução. Como
se fosse possível inferir a ocorrência de uma maior liberdade de
ação, a partir da prática mais intensa.
contribuições de autores estrangeiros, importantes alicerces das teorias da
conservação.
21
Em KÜHL, B. M. Apresentação e tradução.Restauração. E. E. Viollet-le-Duc.
Cotia: Ateliê Editorial, 2000, p. 17.
22
Arquiteto e teórico italiano, autor de várias publicações sobre o tema da
conservação, é atualmente diretor da Scuola di Specializzazione per lo Studio ed il
[5] A catedral ideal de Viollet-le-Duc.
[6] Corte do coro da Catedral de Beauvais. Desenho de Viollet-le-Duc interessado em investigar
as razões do desmoronamento em 1284. Fonte: Thoenes et. al., 2003, p. 347 e 348.
29
Enquanto, na França, Viollet-le-Duc defendia o restauro estilístico,
Ruskin (1819-1900), figura notável da Inglaterra vitoriana, posiciona-
se contra aquela conduta. Sustenta o absoluto e religioso respeito ao
monumento, traduzido por uma admiração contemplativa, como
única forma possível de reverência aos objetos dos antepassados
advindos ao presente.
Voltado para uma posição que concilia a experiência estética e
moral, Ruskin
23
concebe a exigência de preservação da produção
humana a partir de uma visão bastante abrangente que coincide com
a idéia de abnegação por amor da posteridade” e que, ao mesmo
tempo, renega a ação de restauro:
“Nem o público, nem aqueles a quem é confiada a tutela dos
monumentos púbicos compreendem o verdadeiro significado
da palavra restauro. Essa significa a mais total destruição a
que um edifício possa submeter-se: uma destruição que ao
final não permanece nem mesmo um resto autêntico a ser
recolhido, uma destruição acompanhada da falsa descrição
da coisa que destruímos (falso entendido aqui como
paródia). Não enganemos a nós mesmos em uma questão
tão importante; é impossível em arquitetura restaurar, como
é impossível ressuscitar os mortos, por mais grandes e
belos que tenham sido.”
24
Tal concepção deriva da atitude literária que confere ao passado e às
obras antigas, um valor exclusivo frente ao presente. Ao reconhecer
a singularidade e a autenticidade (hinc et nunc) como valores
fundamentais da preexistência de caráter monumental, Ruskin
desautoriza não apenas a reconstrução nos moldes do restauro
estilístico, mas toda e qualquer intervenção do homem.
[7]
Na Itália, por outro lado, as descobertas dos sítios arqueológicos
anteriormente mencionados foram decisivas para o início de uma
atuação prática criteriosa de conservação, reconstituição e
Restauro dei Monumenti da Universidade La Sapienza de Roma. A afirmação
comparece em Avvicinamento al restauro. Teoria, storia, monumenti,1997, p. 141.
23
Em ensaio intitulado “The seven Lampsof architecture” (As sete lâmpadas da
arquitetura) de 1849. As referências aqui mencionadas foram extraídas da
publicação italiana da obra de Ruskin, Le sette lampade dell’architettura. Milão: Jaca
Book, 1997 (tradução da autora).
24
Idem, p. 226.
30
consolidação dos componentes redescobertos. O trabalho
desenvolvido contribui para a conduta sistemática de inventário,
coleção e classificação das peças. Além disso, realiza-se a
anastilose e a recomposição das partes originais, desde que se
diferenciem os elementos preexistentes das partes de recomposição.
Esse procedimento, chamado restauro arqueológico, tem como
principais protagonistas Raffaele Stern e Giuseppe Valadier.
[8] [9]
Na transição do século XIX para o XX, Camillo Boito
25
(1835-1914)
põe fim à aporia criada pelas posições de Viollet-le-Duc e Ruskin, ao
colher contribuições de cada um deles, para compor uma síntese
mais equilibrada.
25
Arquiteto, crítico, professor e restaurador italiano. Formulou em linhas gerais o
conceito de “restauro científico” posteriormente aprofundado por Gustavo
Giovannoni. A esse respeito, consultar a obra Os restauradores. Conferência feita na
Exposição de Turim de 1884. Trad. Beatriz M. Kühl. Cotia: Ateliê Editorial, 2002.
[7] Colunatas do claustro Catedral de Ferrara. Um dos quatorze desenhos presentes no livro As
sete lâmpadas da arquitetura (4ª Ed. Londres, 1894), elaborados por Ruskin para ilustrar a
riqueza formal da arquitetura por ele admirada. Fonte: Thoenes, et. al., 2003, p. 469.
31
A partir de Ruskin, considera o reconhecimento e respeito à
autenticidade e à materialidade de que é feita a obra, o que implica
em dois procedimentos fundamentais: a diferenciação das partes
recuperadas em relação às partes originais e a preservação dos
acréscimos estratificados ao longo do tempo.
Em relação à posição de Viollet-le-Duc, opõe-se à reconstrução de
partes desaparecidas com base no conceito de estilo, por defender a
singularidade de cada obra; por outro lado, acolhe sua conduta de
valorizar o presente frente ao passado, legitimando o restauro, em
oposição à postura anti-intervencionista de Ruskin.
Uma concepção moderna de restauro
Uma oposição de idéias de natureza diferente daquela observada
entre Viollet-le-Duc e Ruskin pode ser identificada ao analisarem-se
as posturas de dois urbanistas do século XIX: Camillo Sitte e
George-Eugène Haussmann.
[8] Arco de Tito no Fórum Romano em gravura de Piranesi que ilustra a condição precedente ao
restauro. Fonte: Carbonara, 1997, ilustração n. 36.
[9] Foto do Arco de Tito na configuração após os trabalhos de recomposição realizados por
Valadier (1818-34). Um exemplo de diferenciação de materiais e formas simplificadas adotados
nas extremidades, em comparação com os elementos originais situados na parte central. Fonte:
Dell’Orto, 1982, p. 30
32
Essas posições delineiam um primeiro confronto entre as duas
visões contrastantes que irão reermergir no contexto de consolidação
do movimento moderno, a partir da década de 1930: de um lado, a
observação atenta do patrimônio arquitetônico construído no
passado, associada à apreciação estética da paisagem urbana; de
outro, a necessidade de modernização urbana e, portanto, a
exigência de transformação das cidades antigas, pré-industriais.
O arquiteto e urbanista austríaco Camillo Sitte (1843-1903) reflete
uma visão culturalista ao criticar a rigidez e simetria dos projetos
urbanísticos contemporâneos e destacar as qualidades das cidades
antigas. No outro extremo, Georges-Eugène Haussmann (1809-91),
responsável pelas propostas de remodelação do centro antigo de
Paris, expressa o ideal de renovação do cenário urbano.
O concomitante surgimento do urbanismo, como disciplina
autônoma, fortalece a convicção de que é necessário elaborar um
novo modelo de cidade mais eficiente e mais saudável, segundo
parâmetros daquele momento histórico: um novo desenho e uma
nova escala com condições satisfatórias de circulação do tráfego das
mercadorias, do transporte público de massa e, ao mesmo tempo, a
proposição de uma cidade dotada de equipamentos coletivos e de
infra-estrutura adequada aos novos padrões sanitários.
Como se sabe, Georges-Eugène Haussmann é conhecido como um
dos mais emblemáticos e polêmicos protagonistas dessa tendência
de renovação das cidades. Prefeito do Departamento do Senna em
Paris, entre 1853 e 1870, é encarregado por Napoleão III de
implantar as diretrizes de urbanismo fixadas por Henrique IV e
desenvolvidas por Luís XIV, através do chamado “Plano dos
Artistas”, criado em 1797.
26
Os principais elementos desse plano urbanístico são os boulevards
amplos e retilíneos que confluem para os round-points estelares.
Dois aspectos principais orientam esse redesenho da malha urbana
parisiense. Primeiramente aqueles ligados à ordem pública, ou seja,
impedir a formação de barricadas, além de conter as revoltas
26
PEVSNER et. al. Dizionario di architettura. Turim: Einaudi, 1992, p. 306.
33
populares
27
. Em segundo lugar os de natureza técnica, ditados pelas
necessidades de melhorar as condições de higiene principalmente
quanto à iluminação natural e ventilação dos edifícios e de
circulação do tráfego nas áreas centrais.
[10] [11]
A postura de Haussmann pontua, portanto, um viés tecnicista e
higienista que determina a destruição do tecido urbano histórico, para
dar lugar à nova configuração espacial definida pelos largos e longos
boulevards, ladeados por corpos de construção de gabarito
homogêneo e fisionomia uniforme. Cria-se então um conjunto
construído unitário, ao qual se relaciona, em posição de destaque, o
monumento (ou edifício de caráter monumental) que desponta na
perspectiva regular.
27
As revoltas mencionadas referem-se aos eventos ligados à Revolução Francesa,
às rebeliões da população exaltada, a “turba”, que assaltava as ruas e criava as
barricadas, ou seja, obstáculos para a ação da polícia.
[10] Planta do traçado e desapropriações para a abertura da avenida
diante da Ópera de Paris, definida pelo plano de Haussmann,
1876.
[11] Foto da avenida já realizada. Fonte: Gamarra (2008), em
www.bifurcaciones.007.Gamarra.htm. Acesso em 03/10/08.
34
As rotatórias de circulação dão origem a pontos focais de conjunção
de várias vias em disposição radial que favorecem a condição de
isolamento e de destaque do monumento situado na ilha central.
As gravuras do artista Charles Meyron retratam Paris nas vésperas
das demolições promovidas por Haussmann. Essas imagens foram
admiradas por Baudelaire
28
pelo cunho de documentação que
contêm e pela capacidade de representar o caráter fugaz daqueles
tempos de modernidade.
Walter Benjamin
29
diz a respeito dessa produção que, ao realizar
esses registros, o artista transforma casas comuns em monumentos.
Observa-se aqui não a compreensão de que indiscutivelmente as
transformações comportam significativos cancelamentos, mas,
sobretudo, a percepção do poder de evocação do passado contido
na arquitetura do cotidiano.
[12] [13]
Camillo Sitte colabora para concretizar a compreensão da cidade
como conjunto orgânico detentor de um forte caráter artístico,
impossível de ser reduzido a episódios isolados. Diretor da Escola de
Salisburg e posteriormente da de Viena, obtém notoriedade com a
obra “Der Städtebau nach seinen künstlerischen grundsätzen” (A
reforma urbana para sua valorização artística), 1889, um ensaio
sobre a imagem e o desenho urbanos. Com a ajuda de vários
diagramas, o autor analisa espaços urbanos abertos e destaca os
efeitos positivos e atraentes obtidos pela irregularidade dos tecidos
urbanos. Sitte observa a riqueza da composição mais livre e irregular
dos traçados das cidades históricas. Reconhece, portanto, na cidade
antiga, a dignidade de objeto histórico que de um lado inspira
reverência, e de outro instiga a investigação. Daí a valorização da
sua obra pelos teóricos da preservação e restauro, pois passa a ser
referência importante e uma das bases para a elaboração do
conceito de patrimônio que se amplia do edifício ao território urbano.
28
Apud GAMARRA, G. "Benjamín y Paris: de las ciudades a las barricadas ". Em
bifurcaciones [online]. n. 7, 2008.
29
Idem. Esse texto cita Benjamin ao discorrer sobre a relação entre o plano
urbanístico de Haussmann e os mecanismos de controle ligados à repressão das
revoltas populares. Sua obra inaugura uma rica abordagem sobre Paris do século
XIX e a cultura cosmopolita das metrópoles, sobre os instrumentos de controle e os
comportamentos de desvio às regras estabelecidas.
35
Colocar lado a lado as visões de Sitte e Haussmann permite
identificar claramente os dois posicionamentos antagônicos contidos
em suas propostas: um procedimento de análise e reconhecimento
favorável à valorização de uma memória materializada nas formas e
proporções das cidades pré-industriais; uma conduta de valorização
de um novo modelo estético para a cidade pós-industrial, apoiado no
tecnicismo e higienismo que concorrem, sobretudo, para a eficiente
circulação do tráfego e a afirmação de novas normas sanitárias.
Cabe aqui destacar que a posição de Sitte, como aponta Françoise
Choay, reflete a plena consciência de que essas cidades do passado
estão fadadas ao desaparecimento, e de conseqüência ao
esquecimento, se não houver uma ação deliberada de resgate
cultural.
[12] Le Petit Pont, Charles Meyron, 1854.
[13] Le Pont Neuf, Charles Meyron, 1854. Fonte: GAMARRA, Garikoitz. "Benjamín y Paris: de
las ciudades a las barricadas ". Em bifurcaciones [online]. n. 7, 2008.
<www.bifurcaciones.cl/007/Gamarra.htm>. Acesso 03/10/08.
36
Haussmann, conforme relata Choay, refuta as críticas recebidas por
ter destruído a velha Paris e desafia seus opositores a apontar um
único monumento antigo digno de interesse, ou edifício de valor
artístico, que tenha sido destruído em sua administração. Afirma, em
favor de sua ação, ter demolido exclusivamente, em nome da saúde
pública e do progresso, construções degradadas, ruelas insalubres.
Relembra a autora:
“O próprio Victor Hugo, poeta da Paris medieval, que
escarneceu cruelmente dos largos espaços
haussmannianos e da monotonia das novas avenidas da
capital, nunca critica em seus artigos ou em suas
intervenções na Comissão dos Monumentos Históricos a
transformação geral da malha das velhas cidades (...) ele
limita-se, se for o caso, a propor algum desvio das vias
projetadas, a fim de poupar não a continuidade do conjunto
urbano, mas de um monumento (...)”
30
A partir de Sitte, pode se desenvolver outra compreensão de
patrimônio que incorpora o espaço urbano, superando a seleção
exclusiva dos edifícios de caráter monumental de reconhecido valor
artístico, para considerar a própria morfologia da cidade, o conjunto
construído, suas relações espaciais, seu gabarito, sua fisionomia,
seu traçado.
Uma concepção moderna de restauro
Sabe-se que em tempos remotos os homens intervieram em obras
construídas pelos seus antecessores para adaptá-las à vida e aos
usos do seu tempo. Era o presente que contava e não a
preexistência, raros foram os casos em que as intervenções se
voltavam à conservação de edifícios de épocas precedentes. Os
séculos XV e XVI trouxeram algumas mudanças, dado o interesse e
respeito pela cultura antiga, no entanto, as ações de conservação
ainda eram parciais e esporádicas.
[14] [15]
30
CHOAY, op. cit. p. 176.
37
O restauro arquitetônico afirma-se, de fato, como uma concepção
moderna que consiste em um modo novo de considerar e de intervir
sobre os bens do passado.
O austríaco Alois Riegl (1858-1905) representa, no início do século
XX, uma original contribuição para a recondução das primeiras
iniciativas na formulação do conceito de restauro. Uma posição que
se sobrepõe à revisão de Camillo Boito e que assinala, no momento
em que nasce a arte moderna, a transitoriedade dos critérios de
valoração de um objeto material. Diz não haver o valor perene da
obra de arte em si, ao contrário, declara existir, isto sim, um valor
relativo, um valor contemporâneo, de natureza subjetiva conferido
pelo observador moderno.
[14] Interior. Alterações nas decorações dos muros internos foram realizadas por Vanvitelli, em
1749.
[15] Planta com destaque para os recintos do tepidario das Termas de Diocleciano, transformados
na igreja de Santa Maria degli Angeli (1561-68), após intervenção sutil de Michelangelo. Fonte:
Boner, 2002, p.72 e p.74.
38
Historiador e crítico de arte de formação jurídica é encarregado de
elaborar uma reforma técnica e político-administrativa de
salvaguarda dos edifícios históricos. Sua experiência pessoal na
institucionalização da história da arte como disciplina autônoma, em
relação à história geral, o credencia para ocupar-se dessa tarefa.
Estabelece como prioridade a definição de uma nova competência, a
tutela dos monumentos, com base em um valor do antigo, fundado
em uma percepção intuitiva, própria da cultura de massa.
Como destaca Sandro Scarrocchia
31
, Riegl distingue diferentes
atribuições de valores calcadas em apreensões psicológicas,
sensoriais. Com isso quer sinalizar que o cidadão da metrópole,
apesar de ignorar o conhecimento aprofundado dos especialistas,
não deixa de manifestar atenção e interesse pelos artefatos
produzidos pelo homem em outros tempos.
Entre as categorias de valor definidas estão: valor de antiguidade,
valor de historicidade, e valor de novidade (resultante da
“Kunstwollen”, vontade artística
32
). Vale ressaltar que, na visão de
Riegl, essas atribuições de valor não dizem respeito tão somente ao
indivíduo singular, nem exclusivamente aos meios eruditos, mas sim
a uma coletividade, e relaciona-se diretamente com a fruição da
produção artística, em um contexto de cultura de massa.
O ‘valor de antiguidade’ refere-se, portanto, a uma satisfação
psicológica emanada por uma identificação de qualidade dos
edifícios mais antigos, associada à capacidade de sobreviver à ação
do tempo e à erosão da história. Desse modo, indica uma nova
apreensão, ditada não apenas pela observação da forma, do estilo
do passado, mas especialmente por uma apreciação da aparência
consumada da produção humana.
O ‘valor de historicidade’ ou ‘valor histórico consiste no fato de
representar um estágio particular do desenvolvimento criativo da
atividade humana.
31
Em artigo intitulado L’autonomia della conservazione in forma di colloquio con
Alois Riegl na revista Casabella n.584, p.29-33.
32
Também traduzido por ‘volição da arte’ em nota de esclarecimento sobre o
conceito em Kühl, 2008, p.64.
39
Ao valor de antigüidade’ contrapõe-se o valor de novidade’,
decorrente de uma nova sensibilidade do século XX, o Kunstwollen”,
vontade artística, que se estabelece em contraposição às noções de
desenvolvimento linear da produção artística calcada na sucessão ou
evolução de estilos.
Importante destacar que Riegl realiza uma rigorosa análise das
razões da conservação, embora não chegue a criar uma nova
normativa para as ações práticas. Sua importância deve-se
essencialmente ao fato de acenar à complexidade do tema e sugerir
inúmeras possibilidades de intervenção, de pertinência relativa, mas
devidamente amparadas por critérios de valores.
Conforme assinala Renato Bonelli
33
em uma análise retrospectiva:
“o princípio fundamental do restauro, mantido
constantemente nas bases das doutrinas que se sucederam
no curso do século XIX, é aquele de restituir a obra
arquitetônica ao seu mundo historicamente determinado,
recolocando-a idealmente no ambiente onde surgiu e
considerando as relações com a cultura e o gosto do seu
tempo; e contemporaneamente aquele de operar sobre essa
(obra) para torná-la viva e atual, qual parte válida e
integrante do mundo moderno.”
Estão implícitos nessa reflexão dois aspectos essenciais: o primeiro
é o entendimento de que a atribuição de valor artístico se estabelece
a partir da compreensão das relações entre a obra e a cultura do seu
tempo; o segundo é a consciência de que o restauro é uma ação do
presente, condicionada pela interpretação e releitura da própria obra
a ser submetida a essa intervenção.
A aproximação entre ‘metrópole’ e ‘memória’ permite, em síntese,
identificar uma associação entre as transformações do mundo
moderno e a necessidade de se conservar, ordenar, rever e atualizar
experiências passadas e conhecimentos adquiridos.
33
Renato Bonelli, arquiteto e teórico italiano que, junto com Roberto Pane e
Agnoldomenico Pica, desenvolve nos anos 1940-50 o conceito de “restauro crítico”,
superando o enfoque positivista do chamado “restauro científico”. Em verbete
restauro architettonico’ da Enciclopedia Universale dell’Arte, v. XI, 1983, p. 344.
(Tradução da autora). Essa vertente é analisada no capítulo referente à atuação de
Lina Bo Bardi.
40
A ativação da memória, implícita nos movimentos preservacionistas,
nestes tempos de transformações e de aceleração da História, diante
da perspectiva da perda, do esquecimento, configura-se como uma
necessidade premente de reconstrução da própria identidade do
indivíduo no seio da nascente sociedade de massa.
A idéia de patrimônio desponta como elemento de cultura associado
ao seu contexto de produção, através do qual o homem afirma sua
identidade, articula a noção de “si mesmo”, e, ao mesmo tempo,
organiza sua prática social e a representação de sua linguagem
simbólica. O tema do patrimônio construído envolve, portanto, uma
consciência coletiva de apropriação do passado pelo presente e,
necessariamente, a perspectiva de transmissão ao futuro, garantida
pela idéia de preservação.
Casa paroquial de Sommariva (Cuneo - Itália), aspecto de "colcha de retalhos" resultante da sobreposição de camadas de tempo. Fonte: Revista Strumenti n. 14, Roma, 1995.
O museu do crescimento ilimitado, Le Corbusier, 1931. Fonte: . www.camillotrevisan.it/cad2000/fedora1/fedora.htm, acesso em 29/10/09.
42
As Cartas de Atenas
Arquitetura, invenção e memória
“Na verdade, os ambientes construídos pelos homens
guardam, através da sua materialidade, a memória tanto das
idéias referentes ao grupo social, como do sistema de
representações ao nível do indivíduo. Em outros termos é
através da matéria, nas suas diversas formas, que os
indivíduos, pertencentes a grupos sociais, expressam sua
visão de mundo, suas expectativas, sentimentos e
experiências. É na materialização, e através dela, que as idéias
se concretizam, colocando o indivíduo frente a seu tempo
histórico, ou melhor, é através da representação que o
indivíduo comunica socialmente.”
1
Um dos objetivos centrais da ação conservacionista é garantir a
compreensão da memória social impregnada na materialidade das
coisas produzidas pelos homens e a um só tempo afirmar a noção de
identidade e pertencimento dos indivíduos, através da preservação
daquilo que for considerado significativo dentro do vasto repertório de
elementos componentes do patrimônio cultural.
Os temas ‘memória’ e ‘patrimônio cultural’ relacionados entre si
configuram uma consciência coletiva de apropriação do passado pelo
presente e necessariamente uma perspectiva de transmissão ao
futuro, garantida pela idéia de preservação.
Como observa Cesare Brandi (1906-1988)
2
, em seu livro Teoria da
restauração, o indivíduo que frui da revelação” do bem cultural de
interesse patrimonial impõe a si próprio o imperativo categórico da
conservação, que se desdobra em diferentes ações, que vão desde o
simples respeito, até a intervenção mais radical, o restauro. O
1
MILET, Vera. A teimosia das pedras. Olinda: Prefeitura de Olinda, 1988, p. 14.
2
Crítico de arte e teórico da restauração, foi diretor do Istituto Centrale del Restauro
di Roma entre os anos de 1939 e 1961, professor de História da Arte da
Universidade de Palermo e da Universidade de Roma, autor da Teoria del restauro
(1963).
43
problema da preservação dos bens culturais relaciona-se, portanto, a
um reconhecimento de valor. É este reconhecimento que condiciona
e legitima a ação de conservação. Entre as obras produzidas pelo
homem, selecionam-se aquelas entendidas como portadoras de valor
cultural, de significado artístico, histórico e documental, e das quais,
conseqüentemente, tem-se o interesse de lembrar, manter, transmitir
às próximas gerações. Disso decorre a importância da reflexão que
aproxima as preceptivas artísticas às noções de patrimônio e
conservação cultural. A indagação sobre os critérios de
discernimento do que é “arte” e não-arte”, sobre a formulação, a
transformação e a dissolução dos preceitos que orientam a produção
e a crítica, é pressuposto necessário para a investigação no campo
da restauração.
Este capítulo analisa os documentos internacionais conhecidos como
Carta de Atenas”, escritos na década de 1930. Essa denominação
indica pelo menos dois escritos distintos, produzidos por instâncias
diferentes: o primeiro é a Carta de Atenas elaborada pelo
Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos
Históricos em 1931
3
; o segundo é aquele redigido no âmbito do
CIAM Congresso Internacional de Arquitetura Moderna a bordo
do navio Patris II em 1933.
Desse segundo documento, conhecem-se várias versões
4
. A primeira
corresponde à ata do IV CIAM, publicada nos Anais Técnicos da
Câmara Técnica de Atenas. A segunda versão foi publicada por Le
Corbusier em 1941, sob o título de “A Carta de Atenas”, em que o
autor acrescenta tópicos e ênfases particulares ao conteúdo do
documento dos Anais. A terceira, de autoria de José-Luis Sert, foi
publicada nos Estados Unidos em 1942, como parte da obra: Can
Our Cities Survive?”. referência ainda a uma quarta versão
publicada em holandês, cujo conteúdo confronta o texto de Le
Corbusier com o da ata do IV Congresso. Entre as várias versões,
este estudo considera o texto produzido por Le Corbusier.
3
Constitui um primeiro documento internacional a reunir deliberações de consenso
entre vários países, referentes aos temas do patrimônio e restauro.
4
A menção a essas várias versões relativas às resoluções do IV CIAM é encontrada
na apresentação da tradução da Carta de Atenas de Le Corbusier para o português,
publicada pela HUCITEC/edusp, s/d.
44
Interessa a esta análise não apenas repercorrer as linhas de
raciocínio de cada uma das Cartas referidas acima, mas também
cotejar os seus conteúdos entre si e relacioná-los, em linhas gerais,
ao pensamento arquitetônico dominante no momento em que os
documentos foram produzidos.
O foco principal do estudo é confrontar as abordagens particulares
de dois segmentos distintos do ambiente arquitetônico atuantes
naquele contexto: de um lado, os arquitetos voltados especificamente
à ação de conservação do patrimônio arquitetônico e urbano e, de
outro, os setores engajados com as propostas de inovação do
chamado Movimento Moderno, tanto no âmbito da arquitetura como
no urbanismo.
Além de estabelecer relações entre as idéias contidas nos
documentos e o contexto cultural do qual são partes indissociáveis a
produção e a crítica arquitetônica, pretende-se apresentar, de modo
sintético, como se situa o ambiente cultural do Brasil, face às
discussões e experiências internacionais daquele momento.
Antecedentes da década de 1930: urbanismo versus
preservacionismo
Como já tratado no capítulo anterior, o século XIX apresenta-se
como marco inicial de um primeiro confronto entre duas posições
contrastantes que irão reermergir justamente no contexto de
produção dos documentos aqui analisados:
de um lado a atenção à qualidade da paisagem da cidade
pré-industrial que constitui a base para a formulação do
conceito de patrimônio urbano;
de outro, a necessidade de modernização urbana e, portanto,
a exigência de transformação das cidades antigas,
sinalizando a prioridade da construção da nova cidade
moderna em relação à possibilidade de preservação do
legado do passado.
Cabe aqui relembrar a postura de duas figuras-chave a conduzir as
discussões e propostas urbanísticas desenvolvidas nesse período e
que, portanto, sintetizam as duas posições acima mencionadas:
45
Camillo Sitte, crítico da rigidez e simetria dos projetos urbanísticos
contemporâneos, reflete uma visão culturalista que destaca as
qualidades das cidades antigas; e Georges-Eugène Haussmann,
responsável pelas propostas de remodelação do centro antigo de
Paris.
Conforme relato do primeiro capítulo, sabe-se que em meados do
século XIX, assistiu-se ainda à formulação da noção do patrimônio
histórico e à condução de ações sistemáticas ligadas à conservação
dos testemunhos do passado. Convém observar que mesmo no
interior da cultura preservacionista presencia-se um debate entre
duas posições conflitantes: a do restauro estilístico do francês E.
Viollet-le-Duc e a anti-intervencionista do inglês J. Ruskin
5
.
Convém, entretanto, assinalar que a aquisição de uma consciência
do devir histórico que marca a constituição do conceito de
‘patrimônio’, nesse momento, limita-se ao ‘patrimônio arquitetônico’,
isto é, ao edifício. Não há, até esse momento, uma clara
compreensão da noção do ‘patrimônio urbano’, ou seja, a percepção
de continuidade do conjunto urbano como valor a se preservar nos
termos hoje concebidos, como se pretende abordar mais adiante.
A necessidade de afrontar a complexidade das transformações já
ocorridas, de planejar novos modelos urbanos compatíveis como
essa nova escala de cidade, faz surgir uma disciplina específica, o
urbanismo, que irá se ocupar da nova organização das cidades, das
propostas de reformulação dos padrões vigentes, dos grandes temas
sociais e urbanos da modernidade. Na realidade, os postulados
elaborados pelo Movimento Moderno, no século XX, nascem para
solucionar os problemas concretamente vividos ao longo século XIX.
O antigo modo de vida da sociedade européia calcado em séculos de
feudalização, produção agrícola e baixo adensamento urbano
mostram-se superados pela urgência das transformações.
As precárias condições de habitabilidade, os problemas sociais
decorrentes dessa nova condição de vida, a necessidade de atender
a exigências de trabalho e lazer, em resumo, a busca de uma melhor
5
As primeiras formulações do conceito de patrimônio histórico e as posturas iniciais
de atuação no campo do restauro são tratadas em várias publicações, entre as quais
destacam-se CHOAY (2001) e KÜHL (1998)
46
qualidade de vida urbana é questão fundamental a ser enfrentada
nesse momento.
As atuações de Haussmann e Sitte constituem referências
emblemáticas da especialização do conhecimento ocorrida nesse
momento. Mostra-se fundamental a delimitação de campos distintos
para enfrentar e aprofundar diferentes naturezas de investigação que
envolvem o território urbano: de um lado, a atenção à memória
materializada no patrimônio construído e, de outro, a urgência de
reformulação dos padrões e modelos das cidades existentes.
Aproximar o pensamento de Sitte e de Haussmann possibilita
identificar com clareza os dois posicionamentos antagônicos contidos
em suas proposições que, de certo modo, se reapresentam no
período em que se elaboram dos documentos aqui analisados:
uma atenção à pesquisa morfológica e, conseqüentemente,
ao valor documental da cidade antiga, o que contribui para
afirmar a valorização da cidade em sua perspectiva histórica
por contraste à nova cidade do presente;
uma preocupação relativa em relação às marcas e
testemunhos cotidianos do passado, para valorizar
monumentos históricos de excepcional valor destacados
como pontos focais isolados, em meio ao conjunto uniforme
redefinido por novos padrões técnicos e formais.
A esse propósito, Françoise Choay, ao tratar da invenção do
patrimônio urbano
6
, comenta sobre o posicionamento de intelectuais
contemporâneos de Haussmann, entre os quais Balzac e Victor
Hugo, que concordam com a necessidade de modernização radical
da malha urbana antiga. Esclarece que os ilustres escritores
manifestam apenas leve discordância em relação à monotonia das
novas avenidas e à situação de isolamento de algum monumento,
mas não chegam a se colocar como críticos ferrenhos dessa ação de
renovação urbana que impõe extensas áreas de demolições. Isso
ocorre justamente por não haver, até aquele momento, a percepção
comum de que a continuidade do conjunto urbano constitui valor a se
6
Em A alegoria do patrimônio, p. 175-203.
47
preservar. Prevalece, portanto, a exigência de renovação urbana,
frente à idéia de conservação.
Nesse sentido, o plano de modernização de Haussmann para Paris,
de meados do século XIX, ao privilegiar os requisitos técnicos de
mobilidade e higiene; adotar uma visão estética que identifica a
qualidade em parâmetros mais rígidos como simetria, regularidade e
uniformidade da paisagem urbana; além de dirigir atenção especial
aos “monumentos”, preterindo o conjunto urbano em sua
continuidade, pode ser entendido como uma antecipação do
urbanismo funcionalista, um dos principais temas de discussão
levantados pela Carta de Atenas do CIAM.
Para Choay, a invenção do “patrimônio urbano” nasce da dialética
entre história e historicidade, perceptível através de três diferentes
abordagens da cidade antiga, identificadas com as três figuras a
seguir:
a figura memorial reconhecida na reflexão de John Ruskin
(1819-1900)
a figura histórica identificada com a posição de Camillo Sitte
(1843-1903)
a figura “historial” associada à contribuição de Gustavo
Giovannoni (1873-1943)
A figura memorial, para Choay, refere-se à compreensão de Ruskin
de que, mesmo sem as pessoas perceberem, as cidades
desempenham um papel memorial, ou seja, têm o poder de enraizar
seus habitantes no tempo e no espaço. Por considerá-las investidas
de valor de reverência, Ruskin não admite que as cidades possam
sofrer transformações. Por esse prisma, observa Choay, Ruskin
pretende viver a cidade histórica no presente e acaba por encerrá-la
no passado e assim perde de vista a cidade “historial”, a que está
engajada no devir da historicidade.
A figura histórica na obra de Sitte, conforme assinala Choay, assume
um viés propedêutico, isto é, destaca os requisitos da cidade do
passado como referência paradigmática para o desenho da cidade
do futuro. Indaga sobre as possibilidades de se preparar o advento
48
de uma arte urbana ajustada ao devir da sociedade industrial. Quer
extrair lições das cidades antigas, do seu estudo morfológico. Indica
entre os aspectos relevantes: a diversidade de configurações, a
irregularidade, a sinuosidade de traçados, a assimetria.
A autora estabelece relação entre a pesquisa de Sitte para o território
urbano e a pesquisa de Viollet-le-Duc para o campo da arquitetura
explicitada em sua obra, Entretiens sur l’architecture (1863-72). Essa
é uma aproximação ignorada pelo conjunto dos historiadores,
constata Choay. Ambos os estudos tem seus objetos organizados
pela oposição entre passado (consumado) e presente (em gestação).
“Ambos os autores estabelecem antinomia entre razão e arte.
Procuram saídas para uma postura racional, um método heurístico”.
7
Se Viollet-le-Duc contribui com um aporte significativo à construção
da figura histórica, Sitte fica na incerteza. Para Sitte, o papel das
cidades do passado acabou, sua beleza plástica permanece. Sua
lógica de preservação inscreve-se na atitude semelhante à
conservação dos objetos de um museu. Sitte não militou pela
preservação dos centros antigos. Outros o fizeram, divulgando sua
obra.
O papel desempenhado por Giovannoni será analisado a seguir em
comparação com a conduta preponderante do “urbanismo
racionalista”.
A década de 1930: o panorama internacional
O período entre as duas Guerras Mundiais, especialmente as
décadas de 1920-30, corresponde a um momento de grande
prestígio do Movimento Moderno. Um prestígio que se reflete na
autoconfiança dos arquitetos de explorar o potencial dos novos
materiais, tecnologias e de afrontar as necessidades da população
em geral. Acredita-se que a carência habitacional e outros problemas
sociais das metrópoles industriais podem ser solucionados com os
baixos custos obtidos com o emprego de formas mais simples,
superfícies lisas, estruturas racionais e a industrialização dos
diversos componentes da construção.
7
Choay, op. cit. p.189.
49
A esse respeito, assim discorre Diane Ghirardo
8
:
“Embora marcadas por ênfases diferentes de um lado, o
determinismo tecnológico e, de outro, a idéia de auto-
expressão estética as idéias de muitos arquitetos
modernistas mantiveram, como constante básica, a crença
no poder da forma para transformar o mundo, ainda que
geralmente vinculada a alguns objetivos amplos e vagos de
reforma social. (...) Esses pressupostos constituíam o
embasamento ideológico dos projetos urbanos de Le
Corbusier para Paris, Marselha, e norte da África, mas
também de seus projetos menores de residências
particulares, como a Villa Savoye.”
A autora observa ainda que, em meados da década de 1930, a
doutrina do Movimento Moderno é reinterpretada como classicismo
monumental, especialmente com o patrocínio dos regimes
totalitários, tais como: a Rússia soviética, a Alemanha nazista e a
Itália fascista. Contemporaneamente, grandes expoentes do
modernismo europeu, dissidentes dos governos autoritários, exilam-
se nos Estados Unidos e ganham o incentivo de importantes críticos
como: Giedion, Pevsner, Zevi e Hitchcock, entre outros. Essa
produção adquire, portanto, um “significado mítico” muito maior que
suas realizações concretas.
Ricardo Marques de Azevedo, em seu livro Metrópole: abstração,
refere-se a essa vertente da crítica como “historiografia apologética”.
Assinala que esses autores condicionam de modo direto a afirmação
do modernismo às transformações da ordem social e econômica,
assim como às inovações operativas trazidas pela revolução
industrial. Pondera que, embora seja incontestável a ligação dos
procedimentos modernos nas artes com as circunstâncias
relacionadas à industrialização, as origens das propostas estão
relacionadas às correntes do pensamento iluminista. As vanguardas
artísticas e ‘positivas’ corresponderiam, portanto, a um modo de
8
Em Arquitetura Contemporânea, uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes,
2002, p. 4.
50
elaboração conceitual que teria seu raciocínio herdado do Século das
Luzes.
Oportuno mencionar as colocações de William Curtis
9
, a respeito da
interpretação dos primeiros historiadores da arquitetura moderna
que, segundo o autor, tendiam a isolar seu objeto de estudo, a
simplificá-lo, a ressaltar sua singularidade, buscando mostrar como a
“nova criatura” era diferente de suas antecessoras (produtos da
continuidade das Beaux Arts de herança clássica, representantes
dos estilos históricos e do ecletismo). Trata-se, conforme Curtis, de
um “mito” cultivado por esses críticos a noção de que as formas
modernas emergiam “imaculadas” de tais precedentes, uma visão
que combina com o conceito progressista de história e que sugere
um recomeço do zero”. O autor observa que os arquitetos mais
conscientes não rejeitam exatamente a influência da tradição, mas
sua reutilização superficial. Destaca também que nesse período a
própria arquitetura moderna passa a lançar as bases para uma nova
tradição com seus próprios temas, formas e motivos.
É importante para esse estudo considerar, além dos postulados de
projeto atinentes ao edifício, as noções básicas que acompanham a
inovação funcional da cidade pós-industrial, pela radical reformulação
dos problemas de projeto e desenho urbano que implicam a criação
lógica da metrópole moderna e, por contraposição, a negação da
‘cidade histórica’. São questões intimamente ligadas ao conflito
existente entre as posturas que aportam valor na reformulação do
modelo de cidade, alinhadas com o movimento moderno, e aquelas
identificadas com a preservação do patrimônio.
Ao tratar dessa questão, o urbanista Benedetto Gravagnuolo
identifica na quadrícula urbana a mais adequada metáfora do
funcionalismo, uma das mais significativas linhas de pensamento que
orientam o projeto urbanístico do século XX. Nessa imagem, destaca
o autor, encontram-se condensados traços marcantes dessa atitude
mental:
“(...) desde o gosto pela abstração, até a extrema
essencialidade de um racionalismo exibido na sua pureza
9
Em Arquitetura moderna desde 1900. Porto Alegre, Bookman, 2008, p. 13.
51
esquemática; desde a exigência de uma ordem sintática e
estrutural subjacente à composição até o princípio do elenco
e da separação dos elementos como metodologia de
projeto.”
10
Sabe-se que na raiz do funcionalismo está o desejo explícito de uma
inovação radical. O resultado é a adoção da tabula rasa cultural que
conduz à absoluta rejeição da tradição, entendida como bagagem de
experiências e normas transmitidas de geração à geração. Desse
modo, assume-se uma postura de projeto equivalente à solução de
um teorema abstrato a ser enfrentado pela primeira vez, um
recomeçar “desde o princípio”. Essa conduta reflete uma
compreensão, por parte dos arquitetos e urbanistas, de que as
condições do presente são absolutamente inéditas em relação ao
passado e que, portanto, os precedentes históricos não devem ser
tidos em conta para afrontar as novas aspirações.
O ideograma da ‘cidade nova’ termina, neste sentido, por
lançar também a hipótese de um ‘homem novo’
absolutamente racional, livre de laços sentimentais com o
passado e feliz de viver no ‘novo universo’ do triunfo da
mecanização e na ‘nova era’ projetada em direção a uma
harmonia tecnológica futura e a uma imaginária igualdade
social.”
11
No panorama internacional, Le Corbusier é um dos mais convictos da
pertinência da propagação do ideal desse esprit nouveau, conforme
Gravagnuolo. É com essa convicção que o arquiteto defende a
produção de casas em série, a máquina de morar, como forma de
erradicação dos modelos superados do passado, para adotar um
ponto de vista crítico e objetivo da casa-instrumento, “uma casa
saudável (inclusive moralmente) e bela conforme a estética dos
instrumentos de trabalho que acompanham a nossa existência.”
12
O ideograma abstrato de cidade moderna, conforme observa
Gravagnuolo, tende a permanecer restrito ao plano teórico da utopia,
10
Em Historia del urbanismo en Europa 1750-1960, Madri: Akal, 1998, p. 333
(tradução do autor).
11
Idem, p.334.
12
Em Por uma arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1994.
52
ou acaba por se enraizar no humus das cidades históricas e na
vocação morfológica dos lugares, ou então, limita-se a configurar
certos fragmentos da cidade, uma vez que corresponde a um modelo
tido como superado pelas teorias urbanas contemporâneas.
[1]
O estudioso Alan Colquhoun representa uma nova leva de críticos
que começa a atuar na cena inglesa a partir dos anos 1960 e procura
reexaminar a cultura arquitetônica moderna sob um enfoque mais
rigoroso e distanciado em relação aos críticos engajados na defesa
dos princípios do movimento moderno, mencionados acima.
[1] Plan Voisin para Paris (1922-29). À esquerda, o projeto em relação à
estrutura urbana existente; à direita, o projeto situado no contexto do
centro da cidade (Ilustração de Euvre complete, 1929-34, p. 91). Fonte:
Thoenes et. al., 2003, p. 711.
53
Nesse sentido, Colquhoun
13
, discorrendo sobre a contribuição de Le
Corbusier, destaca não só a ruptura em relação à tradição, mas
alerta para a tensão que se instaura na tentativa de mediar entre
passado e presente:
“O discurso de Le Corbusier tentava sintetizar, no que dizia
respeito ao problema da arquitetura, as contraditórias visões
de mundo que eram correntes na época de sua formação
intelectual. Para compreender essas visões de mundo e
suas decorrentes ideologias e contradições, deve se voltar
ao discurso arquitetônico do século XVII, no momento em
que a tradição de Vitrúvio foi desafiada pela primeira vez (...)
Ao dividir a beleza arquitetônica em dois tipos, beleza certa
e beleza arbitrária, Claude Perrault introduziu no discurso
arquitetônico a distinção epistemológica entre o
conhecimento a priori e o conhecimento empírico, entre o
signo natural e o signo arbitrário, distinção que ocorreu
paralelamente na filosofia contemporânea e na teoria
lingüística.”
O método empírico, assinala o autor, põe em dúvida as antigas
certezas estabelecidas a priori, configuradas pela continuidade da
tradição, mas coloca outras certezas no lugar daquelas. Relembra
que uma importante vertente do século XVIII criara a convicção de
que o gosto e o juízo estético fundamentavam-se em princípios
naturais.
No entender de Colquhoun, no final do século XIX, porém, essa visão
modifica-se. De um lado, o historicismo tenta conciliar a verdade
absoluta com a mudança e a noção de progresso histórico, de outro,
o positivismo afirma que o conhecimento encontra sua comprovação
e significado na ação com o mundo material.
A leitura do texto de Colquhoun oferece alguns indícios de
aproximação entre a experiência de Le Corbusier e a de Lúcio Costa
sob um enfoque talvez pouco explorado: a combinação dos
elementos da tradição com a adoção de formas puras e abstratas,
tão caras ao racionalismo modernista.
13
Em Modernidade e tradição. São Paulo: Cosac & Naify, 2004, p.100.
54
Como observa o autor, especificamente em relação a Le Corbusier, a
tradição a ser preservada e transformada não é propriamente um
conjunto de preceitos morais, mas acima de tudo um conjunto de
exemplos concretos. O desenho é o meio de comunicação e registro
desse conhecimento.
A influência de Le Corbusier na obra dos arquitetos modernistas
brasileiros, especialmente na de Lúcio Costa, é notoriamente
reconhecida pela aplicação dos materiais e técnicas modernas, pelo
emprego dos princípios de racionalidade e pureza das formas dos
edifícios, pela aplicação dos preceitos do urbanismo racionalista,
entre os quais, o zoneamento dos usos, a implantação dos edifícios
isolados em meio ao verde, o uso de pilotis que possibilitam liberar o
solo para favorecer o livre trânsito ao rés-do-chão. No entanto, não é
recorrente a aproximação das experiências de ambos arquitetos a
partir do interesse pela tradição e sua apropriação no
desenvolvimento dos projetos de arquitetura.
Assim como Lúcio Costa, que viaja por Minas Gerais e outros
estados brasileiros e se encanta com os exemplos mais simples e
genuínos de uma arquitetura tradicional desde elementos
característicos, como os muxarabis, os alpendres, até os princípios
construtivos usados também Le Corbusier demonstra interesse de
investigação que se traduz no registro das casas da Turquia, de
Pompéia, dos mosteiros de Monte Athos, entre outros exemplos.
[2]
[3]
Como destaca Colquhoun, não se trata unicamente de interesse por
tipos históricos:
“Seu baú mental está cheio de objetos que estão prontos
para serem utilizados em um bricolage objetos que
parecem ter sido todos gravados em sua memória em um
momento de epifania.”
14
O interesse de Le Corbusier pela arquitetura brasileira e a sua
contribuição para a definição do projeto da sede do Ministério da
Educação e Saúde, enquadram-se, na compreensão de Colquhoun,
em um momento da década de 1930 em que o arquiteto francês volta
14
Idem, p. 104.
55
sua atenção ao desenvolvimento de culturas regionais e periféricas,
como as do Rio de Janeiro e de Argel. Destaca o autor que é
possível observar uma singular abordagem nos seus planos de
cidades, em que abandona a geometria mais rígida, em favor de um
urbanismo mais “orgânico” e “geográfico”, no qual gigantescas
mega-estruturas lineares” seguem os contornos naturais de uma
natureza primordial.
Nesse contexto internacional, merece atenção a figura de Gustavo
Giovannoni (1873-1943) por estabelecer uma conduta de
contraponto à preponderante visão modernista da primeira metade
do século XX, através de sua relevante atuação no campo específico
da restauração. Formado em Engenharia em Roma (1895), dedica-
se ao ensino de arquitetura após freqüentar o curso de História da
Arte de Adolfo Venturi (1897-99). Mantém ao longo da carreira esse
dúplice interesse voltado às questões do projeto e da história, que o
faz desempenhar o exercício profissional tanto na produção do novo,
quanto em obras de restauro. No entanto, é na reflexão teórica no
âmbito da restauração que adquire maior projeção e reconhecimento.
Foi diretor da Faculdade de Arquitetura de Roma de 1927 a 35,
período em que introduz a disciplina “Restauro dos Monumentos”,
novidade absoluta no ensino de graduação.
[2] Lúcio Costa, desenhos do casario de São Luís (MA). Fonte: Costa,
1995, p. 500.
[3] Le Corbusier, rua de Istambul, croqui de viagem. Fonte: Colquhoun,
2004, p.104.
56
É amplamente comentada, entre os estudiosos da conservação do
patrimônio, sua participação no congresso responsável pela
elaboração da Carta de Atenas de 1931. Conhecido seguidor de
Camillo Boito, dedica-se a aprofundar a definição do chamado
‘restauro científico’ ou ‘restauro filológico’, conceito elaborado na
passagem do século XIX para o XX, conforme será analisado mais
adiante.
Entre os teóricos que se dedicam a rever a sua contribuição,
destacam-se Françoise Choay e Guido Zucconi. Ambos ressaltam
que, até os anos 1970, a importância de Giovannoni foi subestimada
devido a paixões ideológicas e políticas. Trata-se obviamente, mais
do que uma questão de postura crítica, de um problema de
aceitação, pois em função de sua presumida ligação com o regime
fascista, foi tido como adversário da arquitetura moderna.
Nos anos 1990, como prova do renovado interesse, uma de suas
principais obras, Vecchie Città ed edilizia nuova, ganha reedições em
italiano e francês coordenadas por Franco Ventura e Françoise
Choay, possibilitando assim a ampliação do conhecimento sobre sua
reflexão.
Sob coordenação crítica de Zucconi, em 1997 é relançado Dal
Capitello alla città. Nessa obra, Giovannoni manifesta a intenção de
afrontar diversos campos de atuação sob uma visão metodológica
única: os problemas do restauro, com enfoque na ótica urbana e, por
outro lado, os problemas urbanos, vistos na perspectiva de
valorização não apenas dos episódios isolados, mas sobretudo do
ambiente construído.
Choay refere-se à polêmica travada entre Giovannoni e Le Corbusier,
destacando a importância de seu posicionamento frente à visão
modernista mais ortodoxa. A autora enfatiza aspectos atuais de suas
reflexões sobre o urbanismo que evidenciam a validade de seu
pensamento. São estudos que ressaltam o papel inovador das novas
técnicas de transporte e de comunicação, das redes de infra-
estrutura, do urbanismo territorial, da cidade difusa, não mais
circunscrita no espaço, destacando o caráter contemporâneo da
cidade em movimento, como um organismo cinético.
57
Segundo Choay, Giovannoni prevê planos e estudos menos
redutivos que os de Le Corbusier e do urbanismo racionalista
funcionalista, pois revela uma abordagem mais complexa das
questões urbanas a serem enfrentadas. Sendo assim, questiona a
rigidez das diretrizes do zoneamento, manifestando-se a favor da
convivência entre movimento, mutação e estabilidade. Além disso,
rejeita a cisão entre centro histórico e núcleos de modernização, mas
passa a considerar fundamental a comunicação multipolar.
No que se refere ao campo específico do patrimônio, Giovannoni
distingue dois valores essenciais que constituem os conjuntos
urbanos antigos: o ‘valor de uso’ e o ‘valor museal’. Este último é
concebido a partir da identificação da cidade como objeto raro,
precioso, equivalente às obras conservadas em museus, adquirido
em correlação com a perspectiva de desaparecimento. Enfatiza, no
entanto, a necessidade de relacioná-los entre si, o que implica
entender o ‘patrimônio urbano’, não como objeto autônomo de
disciplina própria, mas como elemento e parte do campo urbanístico.
[4] Reestruturação urbana prevista pelo plano de 1931 com a abertura da via della Concilazione
nas imediações da praça São Pedro. Vista aérea de 1925, em que se vê a Spina di Borgo ainda
intacta. Fonte: Gravagnuolo, 1998, p.319.
58
É com essa argumentação que se posiciona contrariamente às
demolições previstas no âmbito do programa de transformações para
a cidade de Roma, dos anos 1930, em pleno regime totalitário,
segundo o qual Roma deve converter-se em capital-símbolo do
fascismo. Da mesma forma, opõe-se às destruições da spina del
Borgo, nas imediações da praça São Pedro.
[4]
Confirmação de sua postura mediadora em meio à polarização de
opiniões que divide progressistas e conservadores é sua proposta do
“diradamento” para as iniciativas de transformação previstas nos
planos de remodelação e reabilitação urbana que incidem em tecidos
urbanos consolidados. O conceito de “diradamento” evoca a
metáfora de um desbastamento de uma floresta. Corresponde a uma
medida conciliatória de articulação, desobstrução e recomposição da
malha urbana em pontos estratégicos em que se impõem reformas,
contendo as modificações radicais e as conseqüentes destruições.
A década de 1930: o panorama nacional
Os anos 1920 são marcados por movimentos de contestação em
praticamente todos os campos da vida nacional. No âmbito político, a
política conservadora do governo central acaba por encorajar
movimentos de oposição que, juntamente com a crise econômica
mundial de 1929, desencadeiam a Revolução de 1930 e o fim da
chamada República Velha. Cria-se, a partir de então, uma conjuntura
favorável à mais completa renovação cultural, o que coloca o Rio de
Janeiro, enquanto capital do país, na condição de palco privilegiado
da gênese da arquitetura moderna no Brasil.
Nota-se, particularmente nesse contexto, uma incomum combinação
de tendências: ao mesmo tempo em que se verifica um significativo
impulso ao Movimento Moderno, dá-se a criação de uma legislação
de tutela do patrimônio cultural. Assim, o debate sobre a
conservação, no cenário brasileiro, surge defasado em relação às
primeiras manifestações européias a esse respeito. Além disso, aqui
se desenvolve num contexto de conciliação de posições
aparentemente incompatíveis: a de modernização e a de
preservação das heranças culturais.
59
Como evidencia a análise das visões de Haussmann e de Sitte, de
meados do século XIX, um confronto de duas tendências: uma
pela modernização e outra pela conservação. No Brasil, no início do
século XX, sucede algo diferente: a emergência dos temas da
preservação acontece paralelamente à afirmação da modernidade,
ambas enunciadas pelos mesmos protagonistas, numa perspectiva
de interação e não de contraposição de tendências, como havia se
verificado anteriormente na Europa.
Isto significa que o Movimento Moderno expressa, no Brasil, em
consonância com o desenvolvimento das vanguardas européias, os
anseios de inovação, de criação de uma nova linguagem estética.
Essa aspiração ao novo, no entanto, convive com uma necessidade
particular de reconfigurar a identidade nacional e de resgatar as
raízes da cultura popular e com um sentido de continuidade e
reelaboração da tradição.
Confirmação dessa conduta é a trajetória de figuras centrais como
Mário de Andrade e Lúcio Costa. O primeiro foi responsável pela
elaboração do plano de proteção ao patrimônio cultural, juntamente
com a criação do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional). Lúcio Costa, por sua vez, esteve à frente, ainda que por
breve tempo, da modernização da Escola Nacional de Belas Artes do
Rio de Janeiro (1930-31) e liderou a equipe do projeto pioneiro do
edifício do Ministério da Educação e Saúde em 1936, o mesmo ano
em que foi chamado a assumir a direção da Divisão de Tombamento
do SPHAN. O edifício emblemático da modernidade é também sede
do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional.
Coube ao ministro Gustavo Capanema, titular do Ministério da
Educação e Saúde, entre os anos de 1934 e 45, a tarefa de retomar
as discussões relativas à preservação do patrimônio cultural, até
então desenvolvidas de modo descontínuo e pouco conclusivo do
ponto de vista da legislação e tutela efetiva. Dois ícones dessa
condução que concilia conservação e modernidade são o Museu das
Missões e o edifício do MES.
[5] [6]
60
O desafio desse período inicial, conhecido como “fase heróica”
15
, é
enorme, ainda que de início, a atuação do IPHAN e o uso do
expediente do tombamento, como instrumento necessário de
proteção, tenha se voltado especialmente aos bens de interesse
nacional representativos do período colonial.
A elaboração dos inventários, seguida dos levantamentos e das
propostas de tombamento, embora restritos às obras de valor
excepcional, diante da vasta extensão do território nacional, por si só,
configuram um volume muito grande de trabalho. A equipe recém
constituída, não tendo experiência acumulada, conta acima de tudo
com dedicação e entusiasmo
16
.
15
A locução “fase heróica” é também empregada usualmente em referência ao
desenvolvimento do modernismo em sua fase inicial, em que se reconhece, na ação
dos arquitetos, uma espécie de militância em favor de causas inquestionáveis.
16
Vários estudos têm sido elaborados sobre a preservação no Brasil e o papel dos
órgãos de tutela. Entre eles destaca-se Maria Cecília Londres Fonseca. O patrimônio
em processo: trajetória política federal de preservação no Brasil. UFRG, Minc,
IPHAN, 1997, que aborda as políticas da gestão do ministro Gustavo Capanema e o
diálogo com intelectuais do movimento moderno.
[5] Prédio do ministério da Educação e Saúde, R.J., 1936. Projeto de Lúcio Costa com Affonso
Eduardo Reidy, Carlos Leão, Ernani Vasconcellos, Jorge M. Moreira e Oscar Niemeyer.
[6] Museu das Missões, R.S., 1937. Projeto de Lúcio Costa com colaboração de Lucas
Mayerhofer e Paulo Thedim Barreto. Fonte: G. Wisnik, Lúcio Costa. São Paulo: Cosac & Naify,
2001.
61
Carta de Restauro de Atenas (1931)
A recomendação da Conferência Internacional de Atenas reafirma as
colocações enunciadas por Camillo Boito
17
em 1884, como
princípios fundamentais do restauro na acepção moderna do termo.
Reflete a posição de destaque de Gustavo Giovannoni
18
seguidor
de Boito e a sua capacidade de conduzir as discussões a uma
posição consensual que resultaria mais tarde na formulação do
chamado “restauro científico”. Este compreende a superação das
visões românticas consubstanciadas nas duas distintas condutas que
dominaram os debates da primeira metade do século XIX: a
estilística de Viollet-le-Duc e a anti-intervencionista de John Ruskin.
Um importante aspecto contido no documento é a preocupação com
a legislação de cada país e com a necessidade de se estabelecer
princípios comuns entre os signatários, ainda que adaptados às
circunstâncias locais. Uma das questões mais controversas, nesse
campo, corresponde à conciliação dos interesses públicos e
particulares.
Destaca-se ainda a necessidade de colaboração internacional no
sentido de salvaguardar os “monumentos de interesse histórico,
artístico ou científico”.
Os principais tópicos da pauta do encontro são tratados conforme
segue:
valorização dos monumentos: recomenda-se o respeito ao
caráter e à fisionomia das cidades, sobretudo nas vizinhanças
dos monumentos antigos, no que se refere à construção de
novos edifícios.
17
Camillo Boito (1835-1914) é arquiteto italiano cuja formação e experiência situa-se
na confluência de dois campos: o da arte do passado e o da técnica moderna.
Formula diretrizes para a conservação de monumentos históricos, apresentadas em
Congressos que consistem em uma síntese elaborada a partir da reflexão sobre as
posturas dominantes na primeira metade do século XIX. Consultar: Os
restauradores. Conferência feita na Exposição de Turim em 7 de junho de 1884.
Trad. Paulo M. Kuhl e Beatriz M. Kuhl. Cotia: Ateliè Editorial, 2002.
18
Gustavo Giovannoni (1873-1943) arquiteto italiano cuja contribuição foi
menosprezada por muito tempo, seja por motivos políticos (injusta acusação de
participação no regime fascista), seja por ter polemizado com Le Corbusier, arquiteto
de prestígio internacional.
62
materiais de restauração: aprova-se o uso de recursos
técnicos e materiais modernos, especialmente o concreto
armado, para os casos de consolidação estrutural.
deterioração dos monumentos: constata-se a agressividade
dos agentes atmosféricos, manifesta-se a dificuldade de se
formular regras gerais e recomenda-se a troca de
informações e publicação de trabalhos realizados nessas
áreas.
técnica da conservação: antes de se proceder à
restauração, sugere-se analisar escrupulosamente a
existência de patologias; para as ruínas destaca-se a
tendência à recolocação dos elementos originais encontrados
(anastilose), sempre que possível e, ao mesmo tempo,
recomenda-se a diferenciação dos novos materiais de
completamento.
colaboração internacional: estima-se a importância de
ações educativas de sensibilização e divulgação do interesse
de preservação dos testemunhos de toda a civilização;
afirma-se a necessidade de constituição de inventários
devidamente documentados a serem realizados por
instituições competentes; considera-se desejável que
instituições qualificadas colaborem entre si e manifestem
publicamente o interesse em favorecer a conservação dos
monumentos de arte e de história; indica-se para esse fim, a
Comissão Internacional de Cooperação Intelectual da
Sociedade das Nações e o Escritório Internacional de
Museus.
Uma avaliação geral do conteúdo permite destacar o foco das
principais preocupações enfrentadas naquele momento: os aspectos
legais, os técnico-construtivos e os princípios norteadores da ação de
conservação. O documento declara a necessidade de criação e
fortalecimento de organizações nacionais e internacionais, de caráter
operativo e consultivo, voltadas à preservação e restauro do
patrimônio. Recomenda a criação de legislação normativa a nível
nacional, que encontre respaldo e ressonância nos fóruns
63
internacionais. A importância da legislação é sobretudo para garantir
a prevalência do direito coletivo sobre o individual e, ao mesmo
tempo, mediar eventuais conflitos de interesses, de modo a encontrar
a menor resistência possível aos sacrifícios impostos aos
proprietários de bens tombados.
A eleição dos objetos de interesse está subentendida nos termos
empregados para nomear o patrimônio: monumentos, monumentos
antigos, monumentos de arte e de história, estatuária e escultura
monumentais, monumentos históricos, obras-primas da civilização,
testemunhos de toda a civilização. O entendimento de patrimônio
cultural é inegavelmente associado aos bens de valor excepcional,
de caráter monumental. A referência ao conjunto arquitetônico,
textualmente expressa nos termos da fisionomia das cidades antigas
e das vizinhanças dos monumentos antigos, revela uma
preocupação de manutenção de uma “ambiência urbana”
característica, quando da inserção de elementos novos em uma
paisagem antiga consolidada.
O edifício novo a ser implantado no tecido urbano antigo, deveria,
segundo recomendação formulada pelo documento, curvar-se à
uniformidade do conjunto e respeitar seu caráter peculiar, suas
perspectivas pitorescas.
[7]
Condena-se a remoção e deslocamento arbitrário de peças e obras
dos seus lugares de origem. A mudança de local deve ser feita única
e exclusivamente por motivo de conservação.
Priorizam-se as ações de conservação e manutenção, observa-se
uma tendência a abandonar as “reconstituições integrais”. Sendo
assim, as resoluções do documento recomendam o respeito à
autenticidade dos elementos originais e a diferenciação dos novos
elementos introduzidos para completar partes ou lacunas.
Aqui convém enfatizar que é justamente essa orientação o principal
ponto de contraste com a conduta anteriormente aceita do restauro
estilístico. Inúmeras experiências realizadas pelo próprio idealizador,
Viollet-le-Duc, acabam por difundir a condução de obras de restauro
como reconstituição de um estado hipotético original que valoriza a
unidade de estilo.
64
A Carta de 1931, ao contrário, sugere o respeito às transformações
ocorridas no decorrer do tempo e à autenticidade dos materiais
originais. Exige, portanto, a distinção dos novos materiais aplicados
à restauração e condena, de conseqüência, qualquer tentativa de
reconstrução, falseamento ou imitação do aspecto primitivo.
Importante notar, entretanto, que a exigência de respeito à
autenticidade da matéria original e a decorrente diferenciação dos
materiais e elementos novos a serem acrescentados nas
intervenções de restauro, limita-se à arquitetura, não se aplicando,
portanto, à intervenção urbana.
Vale ressaltar que as deliberações que valorizam a continuidade do
conjunto urbano, quando da construção de edifícios novos, podem
condicionar a produção do simulacro, do cenário artificial, no lugar de
um conjunto urbano autêntico, em que o novo se distingue e dialoga
com o antigo.
[7] Edifício do Hotel Danieli Excelsior, Veneza, 1948. Um exemplo de
“moderno ambientado”. Fonte: Strumenti 6, 1993, p. 105.
65
Tanto é que as revisões do restauro científico conduzidas pelo
restauro crítico
19
e sua mais recente atualização, a teoria de Brandi,
consideram superada a proposição de uma “arquitetura neutra”
que desaparece como presença e individualidade para não
comprometer a uniformidade da paisagem dos sítios históricos
consolidados.
Carta de Atenas - CIAM (1933)
Como já dito, este documento corresponde às resoluções do IV
CIAM, inicialmente programado para realizar-se em Moscou, em
razão de a União Soviética constituir então território privilegiado para
os programas da nova arquitetura.
Precede a realização desse evento, sempre em Moscou, em 1931, o
concurso para escolha do projeto do Palácio das Nações. A
premiação de projetos alinhados com princípios acadêmicos, ao
invés de prestigiar soluções inovadoras, comprometidas com as
idéias modernistas, cria uma divisão entre a posição do júri e a dos
arquitetos participantes
20
. A relação entre os profissionais e o Estado
Soviético sofre um significativo desgaste. Diante da impossibilidade
de realização do congresso em Moscou, decidiu-se por um local
insólito: o congresso aconteceria a bordo do navio “Patris II”, com o
apoio do governo grego.
O documento sintetiza a visão do “Urbanismo Racionalista”, também
chamado “Urbanismo Funcionalista”. Reúne as contribuições de
praticamente um século de reflexões, desde o socialismo utópico até
a Bauhaus, incorporando as propostas de William Morris, Tony
Garnier, Ebenezer Haward, entre outros
21
.
19
Vertente do restauro elaborada por Renato Bonelli e Roberto Pane, desenvolvida
nas cadas de 1940 e 50, a partir das transformações trazidas pela II Guerra
Mundial. Consultar: Verbete ‘restauro’ em Enciclopedia Universale dell’Arte, v. XI.
Novara: Istituto Geografico de Agostini, 1983. A análise dessa posição será
enfrentada no capítulo seguinte, referente à atuação de Lina Bo Bardi.
20
Situação semelhante tinha sido criada em Genebra, em 1927, em ocasião do
Concurso internacional de arquitetura para o projeto do Palácio da Sociedade das
Nações.
21
A esse respeito consultar: BENEVOLO, L. História da arquitetura moderna.
Tradução de Ana M. Goldberger. São Paulo: Perspectiva,1974 e CHOAY, F.
Tradução de Dafne N. Rodrigues. O urbanismo. Utopias e realidades. Uma
antologia. São Paulo: Perspectiva, 2003.
66
Sabe-se que os tópicos relativos ao patrimônio histórico foram
introduzidos por solicitação dos delegados italianos.
Os principais aspectos discutidos na Carta, defendidos pela vertente
funcionalista, eram:
a necessidade de planejamento regional e intra-urbano
a implantação do zoneamento, através da separação de usos
em zonas distintas, de modo a evitar o conflito de usos
incompatíveis
a submissão da propriedade privada do solo urbano aos
interesses coletivos
a verticalização dos edifícios situados em amplas áreas
verdes
a industrialização dos componentes e a padronização das
construções.
O Estado e a administração pública, segundo a ótica do documento,
são organismos neutros que, voltados à realização do bem comum,
pautariam sua ação pela suposta racionalidade inerente ao
conhecimento técnico e científico.
O conteúdo específico referente às questões do “patrimônio histórico
das cidades” é sintetizado como segue:
destaca-se que “a vida e a alma das cidades” manifestam-se
nas obras e nos traçados, constituindo testemunhos do
passado respeitados por valores históricos, sentimentais e
artísticos; os que os detêm são responsáveis pela proteção e
transmissão dessa herança ao futuro
assinala-se que nem tudo o que é passado, no entanto, tem
por definição direito à perenidade; é necessário saber
reconhecer e discriminar as obras que se mantêm vivas,
distinguindo daquelas presenças que lesam os interesses da
cidade
considera-se importante conciliar a preservação com as
decisões de renovação: em casos de construções repetidas
podem ser conservados alguns exemplares a título de
67
exemplificação; em outros casos poderá ser isolada uma
única parte como lembrança de um valor real (o restante
modificado para atender a novos usos); em casos
excepcionais, recomenda-se transplantar elementos
incômodos à configuração de novos traçados
afirma-se que o culto do pitoresco e da história não deve ter
primazia sobre a salubridade da moradia
diante da prioridade do redesenho urbano, aponta-se a
seguinte ressalva: em casos específicos de grande interesse
(verdadeiros valores arquitetônicos, históricos ou espirituais)
deve-se modificar o projeto, adaptá-lo, mudando o curso das
vias de circulação, ao invés de demolir antigas presenças
marcantes
defende-se a criação de superfícies verdes ao redor de
monumentos históricos com a demolição de conjuntos de
casas insalubres e cortiços que estejam ao redor; nesses
casos, aceita-se como inevitável a destruição de ambiências
seculares
condena-se o emprego dos estilos históricos para as novas
construções: “copiar servilmente o passado é condenar-se à
mentira, é erigir o falso como princípio”; tal procedimento, ao
invés de garantir a pureza de estilo acaba por desacreditar os
testemunhos autênticos.
A análise da Carta de Atenas do CIAM possibilita identificar
afinidades entre a conduta de Haussmann e as propostas do
Urbanismo Racionalista. As idéias de Camillo Sitte, ao contrário,
serão duramente criticadas por Le Corbusier, em nome dos CIAM,
identificadas com um espírito passadista e retrógrado.
A preservação da herança do passado, para o CIAM, é uma espécie
de concessão que se faz à história. Reconhece-se que
testemunhos históricos que o devem ser desprezados, mas a
avaliação é altamente seletiva e observa os mesmos critérios do
68
século XIX: a observância ao bem monumental isolado do contexto
urbano em que se insere.
A arquitetura de caráter ordinário e vernacular em mau estado de
conservação, segundo esses parâmetros, é tida como precária e
insalubre, inadequada aos novos padrões sanitários. Da mesma
forma que ainda não se considera a relevância do tecido urbano,
também não se aventa a possibilidade de recuperar áreas
degradadas. Não sendo prevista a reabilitação urbana, a solução de
saneamento proposta corresponde à demolição desses conjuntos.
O cotejo dos documentos
A principal distinção entre as duas Cartas de Atenas aqui analisadas
diz respeito aos objetivos específicos de cada um dos documentos. A
Carta de 1931 corresponde ao primeiro documento internacional
redigido por especialistas da restauração, com o propósito de
estabelecer diretrizes gerais de orientação. A Carta de 1933 (CIAM),
por sua vez, corresponde às resoluções de um congresso reunido
para discutir e promover os novos rumos para a cidade moderna.
Nesses termos, estabelece como condição para a preservação dos
testemunhos do passado a não contrariedade às novas posturas do
urbanismo funcionalista. Reflete então uma tensão cultural que se
traduz na valorização da aspiração ao novo para se sobrepor ao
respeito do antigo.
O avanço da Carta de 1933 (CIAM) em relação à de 1931, no que se
refere à condenação ao emprego dos estilos históricos para a
construção de novos edifícios em sítios históricos, é decorrência
natural da afirmação dos modelos estéticos modernistas. Uma
afirmação que se traduz em relativa indiferença à história e à
tradição, a uma tentativa de dissolver e abandonar a crença nas
preceptivas artísticas que vigoraram até então. A contraposição entre
o novo e o antigo circunscreve-se nessa ordem de raciocínio. O novo
é identificado com os valores assertivos dos tempos hodiernos de
industrialização e modernidade.
[8]
Na atualidade entende-se que a posição da Carta de 1931, quanto à
aceitação das “ambientações” e “simplificações” dos edifícios novos
a serem implantados nos conjuntos antigos, tenha sido equivocada.
69
A defesa de uma pseudo neutralidade nas ações de reintegração do
tecido urbano, em nada contribuiria para a qualidade da intervenção,
ao contrário, poderia ter comprometido a autenticidade do conjunto a
preservar. Da mesma forma que se critica hoje a “supervalorização”
do novo sobre o antigo, segundo a visão dos modernistas, é passível
também de crítica a preponderância intransigente do passado sobre
o presente, conforme sugerem as recomendações da Carta de 1931,
nesse item particularmente.
Desdobramentos nas discussões atuais
A criação do ‘monumento histórico’, no século XIX, não implicou a
legitimação imediata do ‘patrimônio urbano’ como extensão e
continuidade do primeiro conceito. Com certeza, contribui para esse
descompasso o fato de os estudos históricos privilegiarem a
produção arquitetônica de caráter exemplar em relação aos estudos
urbanos e à pesquisa morfológica, ou mesmo em relação à
arquitetura do cotidiano e sua relação com o espaço urbano. Como
destaca Choay
22
, por muito tempo a cidade foi vista unicamente
pelas suas instituições, carecendo inclusive de dados essenciais
para a investigação e disponibilização de informações sobre o
território urbano tais como cartografia e levantamentos cadastrais.
O próprio desenvolvimento disciplinar do urbanismo, embora
favoreça o estudo dos temas urbanos, privilegia o enfoque do
planejamento das cidades novas e da renovação dos tecidos
urbanos antigos. Exemplo patente dessa orientação é o plano de
modernização de Haussmann para Paris, de meados do século XIX,
que privilegia os requisitos técnicos de mobilidade, higiene e adota
uma visão estética que identifica qualidade na uniformidade da
paisagem urbana, associada ao destaque focal para monumentos de
caráter excepcional.
A ampliação da noção de patrimônio, ocorrida a partir dos debates da
segunda metade do século XX – a ser examinada no capítulo a
seguir determina que se incluam nos elencos de bens a se
preservar os edifícios mais modestos, a arquitetura vernacular,
edifícios mais recentes, conjuntos urbanos e rurais, além do conjunto
22
CHOAY, op. cit. p. 178.
70
construído (compreendido em suas relações com os espaços
abertos) e da paisagem natural, aspectos já enunciados por Gustavo
Giovannoni.
Com essa visão mais abrangente muda a compreensão da relação
entre o bem cultural e o espaço físico em que este se insere. É
estabelecido um nculo indissociável entre o edifício de interesse
histórico e estético e o ambiente em que se situa. Desloca-se o foco
do monumento considerado isoladamente para a noção de conjunto
urbano, sítio histórico. Consideram-se portanto as relações espaciais
entre a construção e os espaços livres, os gabaritos dos edifícios
construídos e os traçados urbanos.
A Segunda Guerra Mundial apresenta-se como um dos fatores
decisivos para a revisão das posturas rigorosas e inflexíveis do
“restauro científico” sintetizado por Giovannoni: exige a reformulação
da teoria e dos procedimentos práticos na área de preservação e
restauro. A magnitude da destruição impõe a reavaliação da
intervenção, seus critérios, sua duração, seus custos e métodos. A
perda de referenciais insubstituíveis leva a uma maior valorização de
aspectos simbólicos, afetivos, frente a avaliações mais objetivas de
valor artístico e histórico.
[8] Plan Voisin para o centro de Paris. Le Corbusier, 1925. Maquete da
proposta. Fonte: Lopes et. al., 2006, p. 153.
71
A Carta de Veneza
23
, como análise a seguir, será o documento a
recolher e sintetizar essas novas contribuições e reflexões. Se a
Carta de 1931 prioriza os aspectos ligados à história, ou seja, os
aspectos documentais do bem cultural a ser conservado, a Carta de
Veneza destaca em condição de igualdade os valores estéticos e
históricos.
Considera-se importante atentar à tendência manifestada em tempos
mais recentes de diluir as separações entre as ações de preservação
do antigo e a construção do novo. Entre os vários fatores que
concorrem para essa visão destacam-se os seguintes:
a ampliação do universo de ação e interesse do patrimônio
cultural
a necessidade de propor novos e diferentes usos para as
construções antigas, em condição de abandono, que
apresentem um programa de uso obsoleto
a decisão de ampliar um edifício antigo de valor documental
ou arquitetônico, em que a aproximação de elementos
construtivos novos e antigos passa a ser inevitável.
Hoje entende-se como patrimônio arquitetônico tudo aquilo que
concerne à relação sinérgica entre o edifício, a sua história, o seu
uso e o contexto urbano no qual se insere. A intervenção deve levar
em conta as ligações entre todos estes elementos para que o objeto
de interesse não seja considerado isoladamente, mas associado ao
conjunto do qual faz parte.
O arquiteto contemporâneo é chamado a posicionar-se como
intérprete dos projetos que a sociedade do seu tempo formula e
deseja. As noções de memória e patrimônio, articuladas entre si,
afirmam-se como conceitos que emanam do coletivo, por outro lado,
as exigências por transformações impõem-se em tempos cada vez
mais breves.
23
Documento deliberado pelo II Congresso Internacional de Arquitetos e técnicos de
Monumentos Históricos em 1964, reunido em Veneza, e referendado pelo ICOMOS
Conselho Internacional de Museus no ano seguinte. Seu conteúdo seobjeto de
análise no capítulo referente à atuação de Lina Bo Bardi.
72
A fronteira entre os termos ‘restauro’ e ‘projeto’ (e relativas
intervenções) tende a diluir-se, a dissolver-se. O restauro vem sendo
chamado a intervir, deixando para trás seu caráter meramente
conservativo, deve modificar, requalificar, para atender as exigências
do presente, aproximando-se da ação de projeto. Da mesma forma, a
intervenção de projeto vem sendo chamada a considerar as
preexistências, a se contextualizar, a tirar partido da experiência
histórica, a se ancorar nos valores do passado e a conviver e
compartilhar o acúmulo de experiências, a avaliar cada demolição,
cada destruição.
Nesse sentido, é quase impraticável a página em branco, o território
livre, o campo aberto à franca experimentação. O peso do passado,
o consenso do seu valor, tendem a impor-se ao arquiteto
desbravador de novos caminhos, obrigando-o a encarar sua ação
como poética de construir no construído.
Se a arquitetura é produto tanto da memória como da invenção,
então as ações de preservar o antigo e construir o novo não podem
ser consideradas antitéticas. É necessário, ao contrário, reconhecer
que estratégias de preservação precisam estar absolutamente
entrelaçadas com as dinâmicas de inovação. Improcedente, portanto,
a defesa de posições extremadas, como se fosse possível preservar
tudo, ou seu contrário, destruir tudo para construir o novo.
Bonnefantenmuseum em Mastrich (Holanda), 1994. Fonte: revista Domus 762, p. 12.
Museu de Castelvecchio em Verona (Itália), 1956-64. Fonte: Los, 2002, p. 82.
74
Os anos 1960: o anúncio da conciliação entre
memória e invenção
A discussão da área específica: antecedentes e
desdobramentos
Os anos 1960 são aqui analisados principalmente nos aspectos
ligados à ampliação e “naturalização” da noção de preservação, que
supera a valorização do “monumento histórico” como era entendido
no século XIX, para incorporar o valor documental da arquitetura
ordinária e da própria morfologia das cidades: reflexão desenvolvida
em concomitância à formulação da revisão crítica do movimento
moderno.
As discussões da atualidade concentram-se na tendência à
conciliação entre restauro e invenção, fenômeno que ocorre a partir
da própria ampliação do corpo constituído como patrimônio a se
preservar. Um alargamento conceitual que acaba por não
estabelecer diferenças significativas entre o bem cultural de valor
inestimável e a comum preexistência.
No domínio disciplinar da conservação dos bens culturais a Carta de
Veneza (1964) reafirma as recomendações da Carta de Restauro de
1931 quanto à conservação das sobreposições das diversas épocas,
desde que não deturpem ou descaracterizem o objeto de
intervenção. Da mesma forma, ratifica a compreensão de que os
elementos de recomposição de lacunas, ou acréscimos
indispensáveis em uma ação de restauro arquitetônico, devem ser
reconhecíveis e ter a linguagem do próprio tempo. Confirma-se a
tendência de internacionalização das discussões, através da atuação
de organismos internacionais, como a UNESCO, e a conseqüente
difusão da consciência de conservação que extrapola os bens de
caráter excepcional, para incluir a arquitetura do cotidiano, o traçado
urbano, a fisionomia das cidades, além dos bens ambientais. Outra
conseqüência importante da difusão desses temas é a ampliação do
público interessado nesses debates.
75
As deliberações desse documento, efetivamente incorporam a
releitura das posturas precedentes elaborada pelo “restauro crítico”,
proposta por Roberto Pane e Renato Bonelli em meados dos anos
1940, assim como as atualizações representadas pela contribuição
de Cesare Brandi e sua Teoria del restauro (1963). São essas
credenciais que contribuem para que esse documento, ainda hoje, se
situe em uma posição de destaque. Esses assuntos são tratados
especialmente no capítulo que enfoca a atuação de Lina Bo Bardi.
A respeito das posições mais recentes, pode ser conveniente
distinguir, como observa Giovanni Carbonara
1
, o que diferencia o
restauro das intervenções de outra natureza. Assim se estabelece
com maior clareza o que não é restauro: não é ato arbitrário
realizado em detrimento de um bem, não é seguramente a pura e
simples recuperação do aspecto visual e da funcionalidade da obra;
não é o ato de refazer ou reconstruir; não é a manutenção, nem a
prevenção ações importantíssimas, mas que se enquadram no ato
de conservação não é a requalificação, ou ações equivalentes de
reutilização ou reciclagem, tão em voga na atualidade, que
comportam adaptações indiscriminadas no edifício preexistente.
Essas podem constituir um meio a ser empregado com
comedimento, mas fazendo uso do exercício crítico, cuja motivação é
assegurar o reconhecimento dos valores figurativos e documentais
do bem submetido à intervenção. Não podem, no entanto, constituir
propriamente a finalidade da ação de preservação, mesmo porque
não esgotam em si toda a problemática do restauro.
Entre as definições modernas de restauro que permanecem atuais,
de acordo com Carbonara
2
, destacam-se, com indicação de data e
autor, conceitos formulados antes e depois dos anos 1960:
1938, G. C. Argan: “O restauro (...) é hoje usualmente
considerado como atividade científica e precisamente como
indagação filológica dirigida a reencontrar e recolocar em
evidência o texto original da obra, eliminando alterações e
1
Em Avvicinamento al restauro...Nápoles: Liguori, 1997, pp. 23-33, dedica-se ao
tema das definições atuais de restauro. Ao lado de importantes definições, elenca
uma série de ações que não podem ser confundidas com o restauro, p. 27.
2
Idem, pp. 28-29. As definições acima mencionadas correspondem a conceituações
formuladas por importantes teóricos do ambiente cultural italiano. (Tradução da
autora).
76
sobreposições de qualquer gênero até consentir que se
obtenha, daquele texto, uma leitura clara e historicamente
precisa.”
1959, P. Philippot: O restauro, visto em espécie como
problema de reintegração de lacunas, é um ato de
interpretação crítica, destinado a restabelecer uma
continuidade formal interrompida, (...) desde que reste latente
na obra mutilada aquilo que perdeu. Tal interpretação crítica
não se limita a um juízo verbal, mas se concretiza em ato (...)
sem alteração do original.”
1963, G. Urbani: “No restauro têm parte preeminente as
operações de caráter estritamente conservativo, voltadas a
preservar da degradação, natural ou ocasional, os materiais
que concorrem à construção física das obras de arte.”
1963, R. Bonelli: O restauro entendido como avaliação crítica,
se identifica com a história artística e arquitetônica”.
1981, M. Dezzi-Bardeschi: (O restauro) “deve operar com o
único fim de assegurar a conservação da autenticidade da
obra, que é constituída de todos os aportes relativos à
matéria que lhe são estratificados no próprio corpo e que
justamente representam (...) aquele insubstituível e irrepetível
hic et nunc que caracteriza e distingue em modo específico
aquele e não outro artefato: perdido ou comprometido, do
qual é perdido ou comprometido o texto, o valor de
testemunho e a própria credibilidade do objeto.”
O próprio Carbonara apresenta sua definição através do confronto
entre ‘restauro’ e ‘conservação’:
“(...) ‘restauro’ entendido, em primeira definição, como
intervenção voltada à obra e também como sua eventual
modificação, conduzida sempre sob um rigoroso controle
histórico-crítico; ‘conservação’, como obra de prevenção e
salvaguarda, a ser atuada exatamente para evitar que se
77
deva intervir com o restauro, o qual constitui sempre um
evento traumático.”
3
O restauro não pode, portanto, ser reduzido à mera operação prática,
mas corresponde obrigatoriamente a “ato de cultura e
especificamente de compreensão histórico-crítica, antes de ser visto
como procedimento técnico.”
O autor justifica o uso atual do termo ‘monumento’ e, por extensão, a
expressão ‘restauro dos monumentos’, pelo fato de terem passado
por um processo de renovação semântica e por uma equivalente
atualização. Nesse sentido, Carbonara defende que o emprego da
palavra ‘monumento’ pode atender à ampliação da totalidade dos
bens culturais e arquitetônicos hoje compreendidos como patrimônio
desde obras mais modestas, exemplos da chamada “arquitetura
menor”, até expressões áulicas e nobres de arquitetura maior.”
Com base nessas considerações, Carbonara endossa o restauro
como ato decorrente do prévio reconhecimento de valor:
“(...) uma série de objetos que possuem um ‘valor’
particular, artístico ou documental, estético ou histórico,
porque são considerados pela cultura atual como obras de
arte, como testemunhos de história ou também como as
duas coisas juntas. Em cada caso como ‘objetos de ciência,
ou em outras palavras, como ‘objetos de cultura’,
testemunhos materiais com ‘valor de civilização’, bens
culturais, conforme o termo mais difundido e consolidado.”
4
Resta analisar, de modo geral, em que medida há solidariedade
entre as reflexões do campo específico da preservação do patrimônio
construído e a visão mais ampla da crítica arquitetônica,
especialmente aquela interessada no diálogo com os temas da
memória e da análise histórica.
3
CARBONARA, op. cit., p. 23 (tradução da autora).
4
Idem, pp. 30-31 (tradução da autora).
78
As preexistências e a intervenção contemporânea
Solà-Morales é referência significativa da crítica contemporânea. Em
seu livro Intervenciones associa o conceito de “intervenção
arquitetônica” aos projetos de arquitetura que lidam com
preexistências no contexto da atualidade. Uma das primeiras
questões levantadas pelo autor é a de que a relação existente entre
a nova proposta e a arquitetura preexistente depende dos valores
culturais e dos significados atribuídos tanto ao “antigo” como ao
“novo”
5
. Toda intervenção cria relações inevitáveis com a obra
existente, seja de ordem visual que espacial, além disso elabora uma
interpretação do material histórico com que intervém. Adverte que
seria um equívoco pensar em uma doutrina permanente, ou mesmo
em uma definição científica para a “intervenção arquitetônica”. Até
aqui suas colocações não estabelecem claro conflito com as
posições dos especialistas acima assinaladas.
Porém, quando Solà-Morales observa que diante da impossibilidade
de se definir uma doutrina permanente, não resta outra possibilidade
que atuar caso a caso, convém destacar uma sutil distinção entre
sua posição e a de Carbonara, referência do campo do restauro.
Para Carbonara, o exame do “caso a caso” está diretamente
vinculado aos parâmetros dos postulados fundamentados no campo
disciplinar e não ligado exclusivamente ao arbítrio do arquiteto
projetista.
Solà-Morales, ao comentar a tendência de se estabelecer uma
relação de contraste entre o “velho” e o “novo”, faz menção aos
projetos urbanos das décadas de 1920 – como o projeto de Mies van
der Rohe para a Alexaderplatz (1921), ou o Plan Voisin de Le
Corbusier (1925) – que se valem das técnicas de fotomontagem e de
desenhos em perspectiva para acentuar os contrastes entre a antiga
e a nova arquitetura. Associa esse procedimento à recusa em
relação ao pastiche histórico que saturou a produção do século XIX e
ao concomitante apoio ao Zeitgeist (espírito do tempo) de matriz
5
SOLÀ-MORALES, I. Intervenciones. Barcelona: Gustavo Gili, 2006. Em texto cujo
título é “Del contraste a la analogia. Transformaciones en la concepción de la
intervención arquitectónica”, pp. 33- 50.
79
hegeliana. Como visto no capítulo referente à década de 1930, essa
conduta prevaleceu naqueles anos.
O autor enfatiza que atualmente esse contraste entre “velho” e
“novo”, antes proposto como único princípio estético a ser adotado, é
coisa do passado. Destaca que esse conceito passa por uma
mudança relacionada à percepção pela qual a arquitetura
estabelecida define sua importância dialética no contexto da cidade
metropolitana. Observa que a partir dos anos 1960, passa a vigorar
uma nova e mais complexa relação entre a sensibilidade
contemporânea e a arquitetura do passado. Sinaliza que, de certo
modo, essa nova percepção já tinha sido anunciada nas reflexões de
Alois Riegl, no início do século XX, referentes à apreensão de uma
natureza mais intuitiva dos critérios de valoração do bem cultural por
parte do observador moderno
6
.
Um exemplo dessa postura mais recente, segundo Solà-Morales, é a
atuação de Giorgio Grassi no Castelo de Abbiate Grasso (1970). O
crítico menciona que o arquiteto cria uma base metodológica para a
intervenção a partir da própria arquitetura do edifício existente, ou
seja, a partir da interpretação de suas leis internas. Não dúvidas
de que a metodologia desenvolvida por Grassi, para as intervenções
em preexistências, tem ligações com os princípios empregados por
Rossi, pois ambos participam do mesmo ambiente, integram o grupo
Tendenza, e condividem a defesa das mesmas teorias de análises
tipológicas que inspiram os seus respectivos projetos de arquitetura.
Sob esse ponto de vista, o projeto contemporâneo surge como
compromisso entre os modos peculiares à tradição moderna, que se
baseiam na independência da velha e da nova estrutura, e os
conceitos tipológicos que criam uma correlação mútua capaz de dar
certa unidade ao conjunto submetido à intervenção. Sincronia,
similaridade, mas não identidade, ou eliminação completa da
diferença entre o novo e o antigo.
Esse mesmo método é empregado por Rafael Moneo, no sentido de
seguir as pistas dadas pelo próprio edifício, percorrer sua lógica de
composição e de organização espacial, para então estabelecer uma
tênue analogia entre a preexistência e a nova estrutura.
6
A contribuição de Alois Riegl é abordada no capítulo I - parte I.
80
Como ressalta Solà-Morales, a crítica da linguagem de Wittgenstein
desmonta a pretensão de generalidade e permanência contida nos
processos culturais do modernismo em sua formação. Prevalece,
segundo autor, uma divisão entre o reconhecimento do valor estético
e material, a dimensão factual da obra concreta e o sistema infinito
de referências que povoa o imaginário coletivo.
Na atualidade se reconhece que o mecanismo de análise morfológica
desenvolvido pela “escola” de Rossi não assegura necessariamente
um patamar elevado para o projeto quanto à qualidade arquitetônica.
No entanto, há de se convir que o abandono de critérios e de
princípios orientadores da intervenção incorre em maior chance de
conduzir à superficialidade e à casualidade dos procedimentos
adotados.
É comum observar alguns cios de conduta em ações de
intervenção em preexistências entre os quais o arbitrário
“descascamento” do revestimento com o intuito de se evidenciar os
materiais e as técnicas construtivas. Essa atitude permanece por
algumas décadas como extensão de um gosto moderno, em lugar de
se optar por uma diagnose crítica.
Sobre a visão multifacetada do pensamento contemporâneo, autor
observa que:
“El conocimiento histórico, al igual que las técnicas
analíticas del proyecto, se mueve en la contradicción entre
el sofisticado desarollo de sus áreas de conocimiento y la
depauperación metodológica más absoluta. Microhistoria,
historia antropológica o historia de las mentalidades son, en
el fondo, las respuestas privadas, reduccionistas y
fragmentarias que se producen ante la impossibilidad de
sostener modelos interpretativos de más vasto alcance.”
7
É possível, portanto, criar uma rede de significados cuja ativação
pode ser propiciada pela obra em si, como suporte dessa
manipulação de significados, hoje exercida com ampla liberdade de
interpretação, pela própria natureza da transformação do estudo da
7
Idem, p.49.
81
história na atualidade, como assinala Solà-Morales. A questão mais
polêmica gira entorno da margem de liberdade na interpretação de
significados e na leitura crítica que se faz da obra preexistente como
fundamento para a intervenção. Os significados que nos propõem as
obras não são únicos, nem são únicas as interpretações, aliás, estas
podem ser, no máximo, coerentes, convincentes e consistentes, mas
dificilmente serão definidas categoricamente como verdadeiras ou
falsas, como certas ou erradas.
Segundo o autor, a intervenção como operação estética é:
“(...) la propuesta imaginativa, arbitraria y libre por la que se
intenta no sólo reconocer las estructuras significativas del
material histórico existente, sino también utilizarlas como
pauta analógica del nuevo artefacto edificado.”
8
Solà-Morales aceita como dado irrefutável a arbitrariedade e
aleatoriedade da intervenção: “el sistema particular definido por el
objeto existente es el fundamento de toda analogia, y sobre esta
analogia se constuye todo significado possible y aleatorio.”
Essa é justamente a controvérsia que se cria com as posições do
campo do restauro que não admitem a arbitrariedade. Basta citar as
observações de Phillipot
9
sobre o quanto são raros os arquitetos que
dispõem de uma formação histórica suficiente a permitir que
reconheçam os valores a salvaguardar. Ao contrário, sinaliza o autor,
o arquiteto normalmente quer permanecer criador em todas suas
intervenções. Raramente tem a modéstia de se submeter às
exigências ditadas pelo respeito dos valores históricos e estéticos da
obra preexistente.
Vale destacar, entretanto, o quão é significativa a revisão de critérios
e métodos de projeto realizada por arquitetos da segunda e terceira
geração do movimento moderno, no que se refere à reflexão e
interpretação a respeito da herança cultural do passado.
8
Idem, p. 50.(O grifo é nosso).
9
PHILLIPOT, P. Em Strumenti 17, Saggi, sul restauro e dintorni. Antologia. Roma:
Bonsignori, 1998. Artigo: “Restauro: filosofia, criteri, linee di guida”, p. 106.
82
Os novos motes da produção arquitetônica
Os arquitetos que atingem a maturidade nos anos 1960 têm alguns
traços comuns: nasceram entre 1915 e 1930, logo, seus primeiros
anos de vida foram marcados pela segunda guerra mundial; seus
vocabulários se estabelecem tendo como pano de fundo o declínio
do Estilo Internacional; têm como referência o trabalho dos mestres
não apenas no início da carreira, mas em momentos posteriores em
que é mais evidente a busca de uma expressão pessoal.
Essas considerações podem ser aplicadas à análise das afinidades
entre a obra de Lina Bo Bardi e Aldo Rossi. Ainda que Lina Bo Bardi
respeite alguns princípios da arquitetura moderna, não defende a
certamente a ortodoxia servil, capta à distância as discussões do
panorama europeu. Sua posição é marcada pela tensão entre a
fidelidade aos mestres fundadores e a necessidade de atentar para
uma nova situação que reclama a auto-expressão e que reata os
vínculos com a história. Rossi, mais jovem e atuante no próprio
ambiente cultural onde ocorrem os debates, participa mais
intensamente da revisão crítica do modernismo.
Sigfried Giedion, conforme informa William Curtis
10
, identifica a
presença de uma “terceira geração” a reconhecer a continuidade de
um espírito interno do projeto moderno transmitido de uma geração à
outra.
Indiscutivelmente os anos 1950 e 60 sinalizam a complexidade do
período pós-guerra no que tange às exigências de reorganização e
reconstrução das cidades, bem como à tendência de vulgarização e
reducionismo de certos modelos seminais da arquitetura moderna.
Nota-se a difusão de uma versão simplista dos projetos modernos,
encampados de modo superficial por setores do mercado imobiliário,
envolvidos com a tarefa de solucionar com agilidade os problemas
urbanos daquele momento. Os arquitetos dessa geração devem
distinguir o “bom” do “mau” exemplo e se vêem incertos diante das
possibilidades de prosseguir no aprofundamento e ampliação dos
princípios arquitetônicos modernos ou optar pela busca constante de
inovação de valores e tecnologias.
10
CURTIS, W. Arquitetura moderna desde 1900. Porto Alegre: Bookman, 2008, p.
547.
83
A arquitetura moderna, em suas mais diversas manifestações,
continua a oferecer a promessa de transformação social ou, ao
menos, a fornecer inspiração formal para os anseios de mudança.
Os anos 1960 não mostram, entretanto, uma linha única de
pensamento, ao contrário, evidenciam abordagens pluralistas em
meio a um contexto em que prosperam os questionamentos e, mais
do que as certezas, destacam-se as controvérsias e debates.
Alguns dos dilemas desses anos têm origem na discussão sobre os
problemas urbanos, no rápido desenvolvimento econômico e
tecnológico e na nova visão da história.
Curtis observa que:
“tanto dos discursos críticos do período se referem à
necessidade de se criar uma esfera pública viável, de
combinar o novo com modelos preexistentes de ruas e
praças, de se valer das camadas e memória e hábitos
sociais inerentes a lugares específicos.”
11
Reyner Banham
12
(1922-1988) agrupa importantes obras do fim dos
anos 1950 e início dos anos 1960 sob a identificação de uma nova
tendência, o “neobrutalismo”, segundo o qual a arquitetura apresenta
uma maior contundência estrutural, combinada com o uso de
materiais brutos, sem decoração e tratamento, deixando à vista as
instalações dos edifícios. Lina Bo Bardi vem freqüentemente
associada a essa concepção de projeto.
A esse respeito, Curtis manifesta uma percepção, não propriamente
uma certeza, de que uma sensibilidade compartilhada, no
período, pela expressão dos materiais, “da coisa em si”, como denota
a recorrência às superfícies de concreto aparente propositadamente
marcadas pelos sinais das formas de madeira.
Na Itália, apesar da retórica demolidora do futurismo das primeiras
décadas do século XX, a tradição nunca foi completamente banida.
O discurso mais ortodoxo do movimento moderno tem, nesse país,
diversos opositores entre os quais se destacam: Bruno Zevi e sua
11
CURTIS, op. cit. p. 549.
12
Em El brutalismo en arquitectura (1966).
84
defesa da arquitetura orgânica; Paolo Portoghesi e sua proposta
formalista de linhagem neobarroca; as vertentes críticas esquerdistas
de diversas matizes representadas por Leonardo Benevolo,
Manfredo Tafuri, entre outros.
Convém ressaltar a presença de uma corrente neoracionalista
caracterizada pela fusão de princípios abstratos da vanguarda
racionalista com a tradição clássica sempre presente na cultura
italiana. Um dos principais representantes dessa vertente é Ernesto
Nathan Rogers que, aliás, exerce grande influência no ambiente
milanês dos anos 1950 e 60, através de sua atividade editorial, à
frente da revista Casabella.
A influência de Rogers pode ser colhida seja na obra de Lina Bo
Bardi que na de Aldo Rossi, como será exposto a seguir. De modo
equivalente, ecoam nas reflexões de ambos os arquitetos as
proposições de Benedetto Croce sobre a arte e a história, bem como
as idéias de Giulio Carlo Argan sobre os vínculos entre a arquitetura
e o “contexto” da cidade.
Aldo Rossi segue uma via alternativa frente às vertentes que
defendem o avanço e sofisticação da tecnologia, como também em
relação às tendências que apontam para a fragmentação e a ruptura
mais incisiva dos princípios fundadores do movimento moderno. Sua
reflexão e aplicação prática estão preocupadas com noções como
“memória”, monumento”, “tipologia” e “lugar”, vinculadas às cidades
tradicionais e, ao mesmo tempo, inspiradoras da arquitetura do
presente, são abordadas a seguir.
Lina Bo Bardi, apesar de deixar a Itália, traz na bagagem preciosas
referências culturais. Enfrenta o desafio de lidar com as
preexistências de interesse histórico em um território em que as
discussões sobre o patrimônio ainda são incipientes. Não afronta
apenas o edifício isoladamente, mas atua em intervenções de caráter
urbano. Assim, a análise de sua atuação permite confrontar seus
critérios com aqueles do campo específico do restauro do edifício,
além de abordar as motivações culturais de um rigoroso trabalho de
recuperação urbana.
85
As discussões urbanas
O Team X, atuando no próprio interior do espaço de discussões dos
CIAMs (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna), constitui
um dos grupos mais ativos no enfrentamento do que considera ser
um excesso de racionalismo e funcionalismo do urbanismo esboçado
pelo movimento moderno.
No pós-guerra, a tão propalada tabula rasa torna-se uma dura
realidade a ser enfrentada. Além disso, a enorme demanda
habitacional acaba por favorecer a massificação os conjuntos
habitacionais. A urgência da reconstrução das cidades européias põe
em cheque a Carta de Atenas como doutrina a ser seguida.
Nos primeiros CIAMs do pós-guerra, a tônica das discussões é a
reorganização do movimento que havia se desestruturado na década
anterior. Um primeiro questionamento começa a surgir na ação do
arquiteto holandês Aldo Van Eyck (1918-1999) que, em 1947, diz: “o
CIAM sabe que a tirania do consenso cartesiano chegou à sua última
fase”.
13
O evento de 1949, realizado em Bérgamo, cidade histórica italiana,
influencia a escolha do próprio tema do colóquio seguinte (CIAM
VIII), The heart of the city, organizado pelos ingleses em 1951, e que
marca uma nova fase. Esse congresso, ao eleger como tema os
centros das cidades (em grande parte destruídos pela ação da
guerra), impõe o questionamento sobre como atuar diante das ruínas
e sobre como lidar com as preexistências, temas pouco comuns
nesses encontros até então.
Começa também a ganhar ênfase a preocupação com o usuário real
das cidades, em contraposição a uma visão generalista que situava
as discussões no plano mais abstrato do homem ideal. A partir do
momento em que se intensifica o enfoque das questões ligadas à
singularidade e diversidade, as doutrinas genéricas e
internacionalmente aceitas, como a Carta de Atenas e a própria
13
Em MUMFORD, E. The Ciam discourse on urbanism, 1928-1960. Cambridge
Mass., MIT, 2000. apud JACQUES, Paola Berenstein. Apologia da deriva. Escritos
situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da palavra, 2003, p. 26. Van
Eyck demonstra grande interesse pelo que é considerado arquitetura vernacular ou
popular. È uma das referências de Lina Bo Bardi.
86
instituição do CIAM
14
, passam a ser tidas como inadequadas para
afrontar a questão urbana sob novos pontos de vista.
Entre os grupos envolvidos nos debates dos anos 1960 convém
incluir os Situacionistas. Apesar dos métodos distintos, é possível
identificar afinidades entre esse grupo e o TEAM X. Entre os pontos
comuns podem ser destacados: a opção pela diversidade e mistura
de usos contra a ortodoxia da separação das funções; a atenção às
singularidades, sobretudo das pessoas comuns e reais das cidades
existentes, à busca de identidade em substituição à impessoalidade
simbolizada na figura do Modulor de Le Corbusier; uma volta à
pequena escala, à escala humana e à participação dos habitantes.
Se hoje as duas figuras representativas das correntes hegemônicas
do pensamento urbano contemporâneo, como identifica Paola
Berenstein Jacques
15
, são a cidade-museu e a cidade genérica a
primeira propensa ao congelamento; a segunda à difusão e
urbanização generalizada, ambas unidas pelo fenômeno da
espetacularização talvez seja de fato pertinente retomar as
iniciativas dos Situacionistas em relação à cidade. Nesse sentido, é
oportuno citar a apresentação de Jacques que pontua os moventes
dessa ação.
“A Internacional Situacionista (IS) grupo de artistas,
pensadores e ativistas lutava contra o espetáculo, a
cultura espetacular e a espetacularização em geral, ou seja,
contra a não-participação, a alienação e a passividade da
sociedade. O principal antídoto contra o espetáculo seria o
seu oposto: a participação ativa dos indivíduos em todos os
campos da vida social, principalmente no da cultura. O
interesse dos situacionistas pelas questões urbanas foi uma
conseqüência da importância dada por estes ao meio
urbano como terreno da ação, de produção de novas
14
O último encontro ocorre em 1959, na Holanda, quando os membros decidem
encerrar suas atividades.
15
JACQUES, op. cit.
87
formas de intervenção e de luta contra a monotonia, ou
ausência de paixão, da vida cotidiana moderna.”
16
Assim como se nota no terreno da arquitetura o surgimento de
correntes pós-modernas interessadas em recuperar os modelos
históricos das culturas preexistentes, através do emprego de motivos
reconhecíveis como espécies de citações compositivas, também é
possível reconhecer no plano urbano uma tendência à museificação
e patrimonialização que oscila entre a petrificação do espaço e o
pastiche histórico, privilegiando a visão cenográfica da cidade. Essas
duas abordagens são comentadas respectivamente em linhas gerais
nos capítulos a seguir que tratam das atuações de Aldo Rossi e Lina
Bo Bardi, vistas como alternativas mais consistentes a essas ações
acima descritas.
Alguns questionamentos ligados à prática do ‘construir no
construído’
Como observado, na situação contemporânea os temas da
conservação e restauro ganham maior repercussão e consenso na
sociedade, superando, portanto, os limites do campo de estudo
especializado, para tornar-se matéria de ampla discussão
interdisciplinar. Na mesma medida em que ganham destaque, os
temas da preservação cultural sofrem certo desgaste pela maneira
como são encampados por abordagens ligadas a aspectos
econômicos e turísticos que envolvem o planejamento e a gestão das
cidades contemporâneas, distanciando-se, por conseqüência, da
orientação mais rigorosa de cunho conceitual estético e filológico.
Essa preocupação comparece em autores importantes, na análise
das cidades atuais tendo em vista seu devir histórico. As abordagens
envolvem seja a atenção específica do tema do patrimônio, como o
faz Françoise Choay, seja o estudo das questões mais gerais
relacionadas às cidades contemporâneas, entre as quais se situa o
convívio com as preexistências, como em Michel Sorkin. Esses
autores são citados na análise das intervenções de Lina Bo Bardi.
16
Idem, p. 13.
88
Pode-se dizer que persiste na atualidade uma dupla interrogação
sobre a relação que o presente instaura com o passado. Por que
hoje se fala tanto em memória, conservação, resgate? Como pode
ser encarada a pesquisa histórica em tempos de pós-modernidade,
quando se considera superada a noção de que a tarefa dos
historiadores deve estabelecer a verdade dos fatos ocorridos no
passado?
Uma terceira questão se coloca especificamente ligada ao patrimônio
construído. Como distinguir os bens culturais das genéricas
preexistências, quando o campo da ação patrimonial se amplia,
incorporando as noções da micro-história, da antropologia?
Sabe-se que a intervenção de restauro, entendida na acepção
moderna, é a ação diretamente ligada à pesquisa histórica e, de
conseqüência, distinta das demais operações manutenção,
reforma, recuperação e reuso (também denominado reutilização,
requalificação ou reciclagem) e, portanto, não pode ser equiparada
tampouco às práticas, tão comuns no passado, de reconstrução e
reconfiguração livres e arbitrárias. Logo, é necessário identificar
essas operações discutíveis que ignoram os princípios e as
contribuições acumuladas no campo disciplinar do restauro e que,
por isso, lidam de modo descompromissado com a arquitetura tida
como bem cultural.
Ao contrário, observam-se intervenções dignas de nota e de estudo
exatamente por surgirem de uma aproximação crítica rigorosa em
relação às preexistências de interesse cultural e, conseqüentemente,
têm em conta e respeitam essas preexistências em seus valores
plásticos e construtivos, sem, no entanto, encará-las como um ciclo
fechado, mas reinserindo-as no presente.
Não como negar também que certa arquitetura pode ter seu uso
adaptado para novas funções, na medida em que o abandono é um
importante inimigo da preservação. Não se trata, contudo, de aceitar
toda e qualquer adaptação que implique descaracterização e perda
de valor para o objeto de intervenção.
Tudo se inscreve na questão dos valores e do metódico
reconhecimento desenvolvido através do estudo atento do bem
89
cultural – de sua natureza, de sua qualidade – considerado em
relação aos interesses da cultura hodierna e tendo em vista as
exigências de tutela desse bem enquanto testemunho do passado e
não certamente por fetichismo, nem tampouco por razões
econômicas, mas sim por motivos culturais mais profundos.
A partir dessas considerações, não seria legítimo avaliar a afinidade
de princípios e métodos do campo disciplinar do restauro com a
metodologia de Lina Bo Bardi, cuja ação de projeto desenvolve-se
em diálogo com a história e comprometida com a experiência crítica?
Não seria pertinente considerar, nesses casos, o rigor de método e a
paciente pesquisa que antecede a intervenção, em favor do interesse
histórico e figurativo da preexistência sobre a qual se atua?
A restauração hoje admite a estratificação de diferentes
temporalidades, incorporando inclusive acontecimentos fortuitos,
acidentes, desastres e catástrofes, como dados a serem
considerados para fins de conservação. Por que então não
considerar a continuidade do fluxo do tempo histórico para os bens
culturais? O que dizer de ampliações necessárias realizadas em
obras de interesse cultural?
Ilustração da revista “Grazia”, 1941 / Comunicação visual do restaurante do SESC Pompéia dedicada a Torres Garcia / Ilustração da revista norte-americana “Interiors” / Comunicação
visual do SESC Pompéia executada pelo pedreiro “Paulista” / Objetos utilitários artesanais / Projeto de um dodecaedro. Fonte: FERRAZ, 1996, p. 28, 228, 77, 228, 236, 260.
91
Lina Bo Bardi: um olhar voltado ao patrimônio
“(...) o que reputamos necessário, hoje em dia, é um justo meio,
é pois nem o ‘dogmatismo’ nem o ‘impressionismo’, mas uma
espécie de medida, naturalmente crítica que, levando em
consideração a história como herança e continuidade, abra as
mais amplas liberdades às possibilidades do arquiteto, hoje
mais do que nunca mediador responsável pelo ‘modo de viver’
dos homens.”
1
Um primeiro olhar
Definitivamente uma trajetória singular. Não somente pela condição
livre de profissional que decide migrar, mas também pelo prazer da
descoberta, pela inquietude, um dos traços marcantes do caráter de
Lina Bo Bardi, sempre pronta a captar a riqueza das situações mais
corriqueiras a que um nativo nem sequer daria atenção.
Lina Bo Bardi é uma exploradora dos tempos modernos, aliás, os
Bardi juntos atuaram como exploradores de tempos recentes.
Valendo-se da condição de intelectuais europeus que são recebidos
de portas abertas, através dos vínculos mantidos fora,
estabelecem um circuito de relações internacionais e encontram no
Brasil um território aberto a pesquisas e experimentações.
Aproveitam essas oportunidades e esse circuito privilegiado de
amizades para realizar um trabalho de grande relevância cultural.
O olhar estrangeiro concede-lhe a capacidade de enxergar a
peculiaridade e a vitalidade da cultura popular sem confundi-la com
folclore, com as sacramentadas interpretações oficiais. Nada em
comum com a visão estereotipada do forasteiro frente às diferenças
culturais, sua percepção aguda possibilita o reconhecimento de
valores como autenticidade e singeleza, muito distante da ideia
1
Lina Bo Bardi em Contribuição propedêutica ao ensino da teoria da arquitetura.
São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 2002, p.51. O escrito corresponde à tese
apresentada ao Concurso da disciplina de Teoria de Arquitetura da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em 1957. (O texto tinha sido
publicado em tiragem limitada, em italiano, em 1992).
92
banalizada sobre a produção artesanal brasileira. Ao contrário do
lugar-comum, sua avaliação é surpreendente, acurada e profícua,
identificando qualidade nas soluções inventivas com os meios mais
escassos e nelas colhendo inspiração.
Uma sólida formação humanística permite-lhe dominar as mais
diversas situações: afere com atenção as possibilidades a explorar,
os eventuais entraves a superar, para então estabelecer um
diagnóstico preciso e traçar um projeto não possível, mas
concretamente criativo. O conhecimento técnico e construtivo conduz
sua disposição em contornar dificuldades e transformar as limitações
em estratégias particulares, dispondo dos recursos disponíveis e
apropriando-se das habilidades dos construtores, dos colaboradores
em geral, de seus conhecimentos, de sua experiência pessoal. Até
mesmo a consciência do despreparo da mão-de-obra, decorrente
das não raras condições precárias de instrução e formação
profissional, não a faz subestimar nem depreciar as potencialidades
naturais e as possibilidades reais de aprendizado dos trabalhadores.
Lina Bo Bardi capta o vigor da miscigenação cultural, a força criativa
das soluções sincréticas autóctones. Coleta, coleciona, mapeia,
musealiza e reinventa não o monumental, mas sobretudo o
cotidiano. Não por acaso é identificada como caso brido” por
Eduardo Subirats
2
, para quem o hibridismo é a palavra de ordem das
culturas divididas entre a vitalidade local e as influências dos grandes
centros corporativos de produção de tecnologia e informação. Uma
obra que une a “extrema fantasia à sobriedade extrema”, nas
palavras do autor.
De início, pouco explorada, a produção de Lina Bo Bardi,
repentinamente nos anos 1990 e, mais intensamente, a partir dos
anos 2000, desperta interesse renovado seja no Brasil que na
Europa. Surgem a partir desse período vários ensaios críticos,
pesquisas acadêmicas
3
e exposições de divulgação do seu trabalho.
2
GALLO, A. (org.) Lina Bo Bardi architetto. Venezia: Marsílio, 2004. O livro foi
publicado por ocasião da Bienal de Arquitetura de Veneza e conta com a
participação de vários autores, entre os quais Eduardo Subirats, filósofo e poeta,
amigo de Lina Bo Bardi, que assina o texto: “Lina Bo: Un’epoca nuova e già
cominciata”, pp. 21-52.
3
Entre as pesquisas concluídas em tempos mais recentes, que abordam sua
atuação, destacam-se: OLIVEIRA (Dissertação de Mestrado, FAUUSP, 2008);
93
É de certo modo repelida pelos ambientes acadêmicos,
especialmente pela USP, quando se candidata a ocupar uma vaga
como professora do curso de arquitetura em 1957
4
. Conforme relata
Marcelo Ferraz
5
, um de seus diletos colaboradores, Lina Bo Bardi é
submetida a uma espécie de ostracismo, tima não do regime
militar, mas também “das vistas grossas da arquitetura oficial”. Isso
ocorre, certamente, por ela não se alinhar ao pensamento
dominante, aos grupos e suas lideranças, por manter-se fiel às suas
convicções pessoais e à sua formação consistente e autônoma.
Manifesta-se sempre com franqueza, sem hipocrisias nem
sectarismos, não somente sobre os temas da sua profissão. Avessa
aos reducionismos, não teme o debate, ambiciona a transformação,
a prática da cidadania, e com absoluta propriedade combina utopia e
realidade, rigor e liberdade.
A este estudo interessa analisar a atuação de Lina Bo Bardi sob um
enfoque mais diretamente ligado às questões discutidas no âmbito
da conservação do patrimônio cultural. Para tanto, inicia-se com o
enfoque de sua formação e prossegue-se com a análise de três
intervenções específicas selecionadas como objeto de estudo: o
SESC Pompéia (1977-86) em São Paulo, o Solar do Unhão (1962) e
a Ladeira da Misericórdia (1987), ambos em Salvador, Bahia. Os dois
últimos projetos constituem parte de um ambicioso plano de
recuperação do centro histórico de Salvador executado em duas
etapas distintas.
É a própria atividade do arquiteto que acaba por constituir o interesse
central do estudo, na medida em que se estabelecem relações entre
as intervenções analisadas. Nesse sentido, pretende-se repercorrer a
lógica de elaboração dos projetos, reconstituir a poética contida
ROSSETTI (Dissertação de mestrado, UFBA, 2002; Tese de Doutorado, FAUUSP,
2007); RUBINO (Tese de Doutorado, UNICAMP, 2002). Entre os livros publicados:
OLIVEIRA, O. Lina Bo Bardi, sutis substâncias da arquitetura. São Paulo: Romano
Guerra: Barcelona: Gustavo Gili, 2006; GALLO, A. (org.) Lina Bo Bardi architetto.
Veneza: DPA: Marsílio, 2004.
4
Lina Bardi, em debate que segue sua conferência intitulada: Aula de arquitetura,
publicada pela Revista Projeto n. 133, 1990, ao falar sobre a impossibilidade de
afrontar um tema complexo em exíguo intervalo de tempo, diz textualmente: “Para
isso, eu precisaria ainda dar aula na FAU. Mas me jogaram fora, não me quiseram
mais lá, na rua Maranhão. Não foi o corpo discente, mas as pessoas importantes.”
5
Em texto intitulado “Numa velha fábrica de tambores...”, publicado no portal
<www.vitruvius.com.br> seção: Minha cidade. Acesso em 20/04/2009
94
nesses processos de trabalho, confrontar e cotejar os critérios de
intervenção.
A escolha dos projetos a serem analisados foi pautada
essencialmente pela importância e pioneirismo devidos, entre outros
motivos, à antecipação de condutas e à discussão de conceitos
propiciada a partir da elaboração de escritos que acompanham o
desenvolvimento dos projetos. Trata-se da ação de um arquiteto não
especialista na área da conservação, com uma postura que
surpreende não os técnicos dos serviços de tutela do patrimônio
cultural, mas os arquitetos em geral. Lina Bardi demonstra ter um
preparo teórico sólido e amplo em sua formação européia: em seus
textos menciona Gustavo Giovannoni, o “restauro científico”, o
“restauro crítico e a Carta de Veneza
6
, temas sobre os quais este
estudo pretende deter-se.
A esta pesquisa interessa, sobretudo, a discussão sobre as vertentes
mencionadas por Lina Bo Bardi ao discorrer sobre os princípios que
norteiam suas intervenções especialmente o restauro “científico” e
o “crítico” além de uma análise comparativa entre os
procedimentos por ela adotados e as deliberações da Carta de
Veneza. Outro aspecto a ser investigado é a aproximação entre sua
conduta e a reflexão de Cesare Brandi (1906-1988)
7
. Todas essas
referências teóricas são muito pouco divulgadas no Brasil na época
em que Lina Bardi desenvolve os projetos mencionados. Nesses
trabalhos, ela faz questão de adaptar esse conhecimento não às
circunstâncias específicas de cada situação, mas principalmente à
sua convicção e interpretação pessoal.
Não se deixa levar por uma concepção superficial que confunde
respeito histórico com timidez de ação, nem cai no equívoco de
repetir uma prática corrente que funde as operações de recuperação
e reconstrução de elementos preexistentes, sem distingui-las entre
6
A Carta de Veneza reúne as deliberações do Congresso Internacional de
Arquitetos e técnicos de Monumentos Históricos realizado em 1964 e foi adotada
pelo ICOMOS (Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios da UNESCO) em
1965.
7
Autor do livro Teoria del Restauro (1963), é um dos intelectuais italianos mais
expressivos do século XX, no campo da crítica da arte. Dirigiu o Istituto Centrale del
Restauro de Roma entre 1939 e 1961. Sua reflexão teórica acerca do restauro, não
obstante ter mais de quarenta anos completos, continua essencial e ainda atual. Seu
livro foi traduzido para o português com o título Teoria da restauração por Beatriz M.
Kühl e publicado em 2004.
95
si, sem diferenciá-las dos novos componentes introduzidos. Reafirma
sua posição contrária a uma conduta que impera até hoje, o conceito
de matriz violletiana de volta a um estado original
8
. Reflete e expõe
seus pontos de vista em confronto com as referências teóricas
acumuladas, na forma de memoriais explicativos, abrindo assim a
possibilidade de discussão e debate sobre suas condutas de
intervenção.
Os caminhos trilhados
Seu modo de ser independente e irreverente pode dar a entender, a
princípio, que Lina Bo Bardi não se importa com a cultura oficial
consolidada. Engano pensar que ela desconheça ou ignore a
produção teórica dos seus conterrâneos, ou pensar que seus
projetos sejam fruto de pura e simples intuição. Um denso preparo
teórico e técnico ampara suas decisões.
Convém, portanto, ressaltar os aspectos ligados à sua formação e à
experiência profissional que possam iluminar a compreensão de seu
trabalho relacionado aos temas da memória e da intervenção voltada
à arquitetura preexistente.
Lina Bo Bardi nasceu em Roma em 1915 e morreu em São Paulo em
1992. Formou-se em 1939 pela Faculdade de Arquitetura de Roma
cuja tradição de ensino centrava-se nas “disciplinas histórico-
arquitetônicas”, reflexo da própria condição da cidade enquanto
estratificação de tempos históricos, conforme seu relato pessoal
9
:
“O fato de Roma ser um dos centros da cultura clássica,
fazia com que os alunos aplicassem a maior parte do tempo
de seu estudo à observação dos monumentos antigos.”
A formação ligada à escola romana, sob influência de Gustavo
Giovannoni, explica o apreço pelo sentido histórico do ofício do
arquiteto
10
. No entanto, a jovem arquiteta não se deixa acomodar: a
8
A persistência do conceito violletiano de restauração é analisada por Antônio Luiz
Dias de Andrade em sua Tese de Doutorado, cujo título é: Um estado completo que
pode jamais ter existido, FAUUSP, 1993.
9
Conforme relato da própria Lina Bo em seu Curriculum Literário, em FERRAZ
(org.). Lina Bo Bardi. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1993, p. 9.
10
OLIVEIRA, Olívia de. “I mondi immaginari e i modi reali”, em GALLO, op. cit., p.
84.
96
atmosfera de Roma, capital do fascismo, a presença sufocante de
sua história e de suas ruínas faz Lina Bardi procurar um ambiente
mais dinâmico, mais propenso a acolher as propostas inovadoras do
movimento moderno, diferente daquele racionalismo monumental
das obras de Marcello Piacentini. Muda-se então para Milão, para
“adquirir prática”. Colabora Gio Ponti, o “último dos humanistas”
11
,
diretor das Trienais de Milão e da revista Domus. Essa atividade
rendeu-lhe uma rica e variada experiência: desde o design de
mobiliário, passando pela moda, até projetos urbanísticos.
A guerra, no entanto, paralisa a produção arquitetônica, o que faz
com que se concentre na atividade de pesquisa (especialmente
sobre artesanato e Desenho Industrial) e de ilustração, colaborando
com diversas revistas e jornais, alguns deles de relativa importância.
Essa circunstância específica da guerra, que paralisa a atividade de
projeto, não a imobiliza: ainda muito jovem, com a impossibilidade de
projetar, Lina Bardi dedica-se a intenso trabalho na área editorial.
Seleciona temas, recolhe material, documenta, edita e publica.
Cultiva, assim, a prática da escrita que não será abandonada quando
terá a chance de voltar à atividade de projeto. Ao contrário, concilia o
pensar e o fazer arquitetura pela mediação do texto escrito,
explicitando critérios, motivações, raciocínios que orientam a prática.
A duríssima prova da guerra impõe um claro posicionamento político:
“Em tempo de guerra, um ano corresponde a cinqüenta
anos, e o julgamento dos homens é o julgamento dos
pósteros. Entre bombas e metralhadoras fiz um ponto da
situação: importante era sobreviver, de preferência
incólume, mas como? Senti que o mundo podia ser salvo,
mudado para melhor, que esta era a única tarefa digna de
ser vivida, o ponto de partida para sobreviver. Entrei na
Resistência, com o Partido Comunista clandestino. via o
mundo em volta de mim, como realidade imediata, e não
como exercitação literária abstrata.”
12
11
Assim se definia o arquiteto, conforme declara a própria Lina Bardi.
12
FERRAZ, M. C. (org.) Lina Bo Bardi. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi,
1993. Fragmento de seu Curriculum Literário, p. 10.
97
Ao exercício da escrita agrega-se o da ilustração
[1]
,
possibilitando o
desenvolvimento de uma forma especial de expressão que
caracteriza seus projetos, como assinala Luís Antônio Jorge, ao
definir seus croquis:
“(...) narrativa literária, onde Lina dialoga com seus distintos
interlocutores, através de inumeráveis anotações, evocando
idéias, imagens, referências, montando uma espécie de
story-board, voltado muito mais à demonstração dos
fundamentos do projeto, dos conceitos da proposta, do que
à sua melhor representação. A ênfase nas idéias e a
coerência entre elas e as imagens geratrizes do projeto, ao
mesmo tempo em que evitam a retórica do desenho pelo
desenho, desmistificam o ato criador em prol de uma
pedagogia poética.”
13
13
JORGE, Luís Antônio. Tese de Doutorado intitulada: O espaço seco. Imaginário e
poéticas da arquitetura moderna na América. FAUUSP, 1999, p. 105.
[1] Ilustração Revista “Illustrazione Italiana”, 1942.
Fonte: FERRAZ, 1993, p. 29.
98
Sugestiva e precisa a observação sobre a singularidade do seu
desenho:
“Desenho que pretende ser minucioso sem perder o
despojamento quase irreverente de quem e cria.
Desenho criador. Retrato criativo. Por isso, feliz. Felicidade
que, como afirma Bachelard, provém da vontade e da
imaginação criativa e não do conteúdo, do que se quer
retratar.”
14
Com Bruno Zevi, Lina Bo Bardi funda a revista semanal La cultura
della Vita”, editada em Milão pelo mesmo editor de Domus, antes de
vir para o Brasil, em 1946, já casada com o jornalista e crítico de
arte, Pietro Maria Bardi. Aqui, no país inimaginável onde tudo era
possível”, encontrou território adequado para viver e realizar sua
atividade inventiva. Com a revista Habitat
15
passa a ocupar um
espaço no mundo editorial brasileiro.
Entre os vários autores que se dedicam à análise de sua obra
destacam-se aqui Montaner (1997) e Oliveira (2006). Josep Maria
Montaner a situa junto a Louis Khan, Jorn Utzon, Aldo van Eyck, Luis
Barragán e Fernando Távora, representantes de uma terceira
geração do movimento moderno que “rechazan el formalismo y el
manierismo del estilo internacional y reclaman mirar de nuevo hacia
los monumentos, la storia, la realidad y el usuario, hacia la
arquitectura vernacular”
16
Lina Bardi, para o crítico, representa uma das experiências mais
originais e significativas entre os arquitetos dessa terceira geração.
Assim sintetiza a essência de sua obra:
“(...)consiguió superar los límites del mismo arte moderno, sin
romper con sus principios básicos. Si la arquitectura moderna
era antihistórica, ella consiguió hacer obras en las que
modernidad y tradición no eran antagónicas. Si el arte
moderno era intelectual, internacional y reacio
14
Idem, p. 105.
15
Lina Bardi participa do corpo editorial da revista Habitat, revista do MASP,
publicada de 1950 a 1959.
16
Em MONTANER, J. M. La modernidad superada. Arquitectura, arte y pensamiento
del siglo XX. Barcelona: Gustavo Gili, 1997, p. 12.
99
al gusto establecido y a las convenciones, en Brasil han sido
possibles una arquitectura y un arte modernos enraizados en
la experiencia del arte popular, negro e indígena,
rigurosamente distintos del folclorismo, el populismo y la
nostalgia. Si la arquitectura racionalista se basaba en la
simplificación, la repetición y los prototipos, Lina Bo Bardi
supo introducir sobre un soporte estrictamente racional y
funcional, ingredientes poéticos, irracionales, exuberantes e
irrepetibles. Concilió funcionalidad con poesía, modernidad
con mímesis.”
17
Destaca ainda que sua arquitetura mantém os valores básicos da
arquitetura do movimento moderno: humanismo, projeto social,
vontade de renovação formal, construção utilitária, funcionalista, mas
com uma característica fundamental: a marca da expressão do
trabalho artesanal.
Conforme lembra Montaner, Bruno Zevi havia defendido uma
necessária liberação dos limites e rigores da arquitetura moderna
racionalista, em favor da peculiaridade da arquitetura orgânica.
Ernesto Nathan Rogers havia afirmado que o único modo de ser
moderno na condição contemporânea era fazer presente o sentido
vivo da história, evitando os automatismos e vícios da experiência
passada.
Olívia de Oliveira, assim como Montaner, observa no trabalho de
Lina Bardi a superação do esquematismo abstrato da linguagem
moderna. Dessa forma explica o compromisso do “architetto”
18
com a
reconsideração da relação com a história, a atenção à tradição
popular e ao ambiente preexistente, seja natural, seja construído.
Traços essenciais de seu trabalho que guardam afinidade com as
idéias postuladas por Rogers.
Como bem coloca a autora, essa aproximação com os elementos
artesanais e o uso dos materiais recorrentes na arquitetura popular,
17
Idem, p. 13.
18
Era assim que Lina Bo gostava de ser chamada, architetto, no masculino como se
diria no idioma italiano, em que a maioria das profissões não possui denominação
feminina.
100
no entanto, nada têm a ver com o ideal romântico de Ruskin e Morris.
Não se trata de mitificar o artesanato, mas sim privilegiar a
simplicidade das soluções, o uso de recursos disponíveis e de baixo
custo combinados à valorização da criatividade.
O Solar do Unhão (1959-1962)
A principal publicação do Instituto Lina Bo e P. M. Bardi que reúne as
memórias de seu trabalho traz uma documentação parcial da obra e
um texto que descreve sucintamente as suas operações técnicas e
as decisões conceituais que envolvem o projeto
19
. Destaca o
importante conjunto arquitetônico do século XVI, modificado no
século XVII e que no século XIX recebe a instalação de uma das
primeiras manufaturas do Brasil. Informa que o conjunto foi objeto de
tombamento pelo SPHAN em 1940 e comenta a pretensão em
incorporar as intervenções significativas que o conjunto sofreu
durante sua história: “todos os aspectos dramáticos do ambiente
foram respeitados”
20
.
As operações de conservação realizadas no solar são voltadas a
recuperar e sublinhar a “belíssima” estrutura interna de madeira de
lei (pilares, piso superior assoalhado e estrutura de sustentação da
cobertura de telhas de barro tipo capa e canal). Mantém-se o monta-
carga existente, substitui-se a velha escada pela nova com pilar
central e detalhe de encaixe dos pisos com as traves laterais
emprestado dos “carros de boi. Um projeto que, como o descreve
Subirats, enfrenta o problema tecnológico não do ponto de vista da
tecnologia avançada, mas essencialmente do domínio e
transformação das tecnologias arcaicas.
Elementos funcionais e escultóricos, as escadas são exploradas em
sua engenhosidade, na peculiaridade dos materiais e na forma de
articulação dos diferentes níveis e, especialmente, na plasticidade
desses elementos que se destacam como presenças marcantes no
conjunto de sua arquitetura.
[2]
19
FERRAZ, op. cit., pp. 152-157.
20
Em seminário promovido pelo Programa de Pós-Graduação da USJT sobre o
tema: Cidade e indústria: ações contemporâneas, realizado em 13/10/09, Silvana
Rubino menciona a desmontagem da brica de rapé que funcionava nesse local.
Assinala a atitude seletiva de Lina Bardi que considera pouco relevante a atividade
e, portanto, não digna de manutenção.
101
[2] Escadas: Escada-flor do Centro de Convivência Vera Cruz, escada-rampa do
MASP e escada de acesso da casa de vidro.
Fonte: FERRAZ, 1993, p. 371, 108 e 80.
102
As ilustrações reunidas no livro mostram alguns desenhos de projeto
e fotos que documentam, entre outros aspectos: o solene solar
recuperado com as paredes brancas caiadas e as janelas de madeira
pintadas de vermelho; os operários recuperando os azulejos
“holandeses” dos guarda-corpos que ladeiam o acesso principal
[3]
; a
“velha” e acanhada escada ao lado da nova
[5]
; o terreiro antes e
depois da liberação do espaço aberto para possibilitar o
desenvolvimento de manifestações tradicionais, como “cheganças,
ranchos, sambas de roda e capoeira” (conforme assinala a legenda
da imagem)
[4]
;
um velho guindaste deixado como “monumento” no
espaço recém liberado do terreiro; os rústicos pavilhões industriais
também recuperados.
[4] Pátio lateral antes e depois da liberação. Fonte: FERRAZ, 1993, p. 152 e 153.
[3] Solar do Unhão e recuperação dos azulejos do guarda-corpo junto à
entrada. Fonte: FERRAZ, 1993, p. 156.
103
Alguns poucos elementos novos introduzidos no conjunto como
intervenções mínimas reaparecerão no projeto do SESC Pompéia,
entre os quais, o piso cimentado salpicado com seixos rolados e as
divisórias de treliças de madeira.
Importante enfatizar a operação de liberação do terraço debruçado
sobre o mar, disposto em um dos lados do solar. Se uma das
imagens mais características desse projeto é a escada que, de modo
criativo, reinventa o encaixe dos carros de boi, provavelmente a ação
mais contundente é justamente a demolição dos edifícios acrescidos
de forma aleatória que determinavam a obstrução da continuidade
daquele espaço inicialmente aberto. Uma decisão que exerce a
legitimidade de eliminar elementos descaracterizadores que implicam
perda de valor para a preexistência. Ações como essa devem ser
identificadas nos desenhos e nos documentos que registram as
operações previstas na intervenção, como recomenda
expressamente a Carta de Veneza de 1964
21
.
A publicação destaque ao ambicioso projeto cultural que faz da
recuperação desse conjunto um dos pontos de apoio de um
“triângulo” cultural que pretende articular a Bahia à Pernambuco e à
Fortaleza.
21
Ver tópico Documentação e Publicação, art. 16º.
[5] Escadas velha e nova. Fonte: Ferraz, 1993, p. 157 e 158.
104
O texto de Lina Bardi menciona o período de “1958 a 1960 e pouco”
como um momento proveitoso em que “a Bahia viveu o esplendor de
um conjunto de iniciativas que representou uma esperança muito
grande para o país todo (...)”. Cita as instituições que compõem
essas iniciativas: a Escola de Teatro, de Dança, a Escola Superior de
Música e o Museu de Arte Moderna (cuja sede ocupa o Solar do
Unhão) e comenta o programa de cunho sócio-político elaborado
com representantes dos poderes públicos e personagens ligados à
cultura da região
22
. O intuito é incorporar certas manifestações do
reconhecido “fermento cultural” local e associá-las a exposições
itinerantes que dialogam com eventos de natureza análoga
existentes em outras localidades. Um movimento que busca explorar
aspectos genuínos da cultura tradicional.
O projeto de arquitetura inscreve-se, portanto, em um amplo
programa de estímulo à reconfiguração da identidade nacional,
partindo das bases da cultura popular
23
. Nesses termos, a
implantação do Centro de Documentação sobre Arte Popular e
Centro de Estudos Técnicos do Nordeste, “visando à passagem de
um pré-artesanato primitivo à indústria moderna”, promove uma
política pública de incentivo à cultura, articulada a uma nova política
de industrialização. Como enfatiza Lina Bardi: não se pensa em um
museu do folclore como interpretação de um “fazer” popular pelo
olhar da cultura erudita, mas um autêntico centro de documentação e
produção dos artefatos do cotidiano, um centro de experimentação
que incorpora as práticas vernaculares.
Eduardo Subirats discorre sobre esse projeto cultural e político
radical desenvolvido entre os anos 1958 e 1964, associando-o aos
anos admiráveis em que conhece Glauber Rocha, Caetano Veloso,
22
Os vínculos com o cenário cultural da Bahia na passagem dos anos 1950-60
(alimentados pela atuação da UFBA), a relação com Glauber Rocha e a afinidade
com as teses do Cinema Novo, são temas tratados por Antonio Risério em Avant
Garde na Bahia. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1995, bem como na
Tese de Doutorado de Luís Antônio Jorge, intitulada: O espaço seco imaginário e
poéticas da arquitetura moderna na América. São Paulo: FAUUSP, 1999, pp. 99-
102.
23
A esse respeito, ver texto de Lina Bo Bardi em FERRAZ, op. cit., “Cinco anos
entre os brancos”, pp. 161-162. O relato comenta essa experiência (motivações,
iniciativas, instituições e parceiros envolvidos) e discorre sobre o desmantelamento
da proposta após o golpe militar de 1964. A dissertação de Mestrado de Raissa de
Oliveira (FAUUSP, 2008) aborda o período de abertura política que marcou a
transição do governo militar para a redemocratização do país e o posicionamento de
Lina Bo Bardi frente às circunstâncias desse momento particular.
105
Gilberto Gil e outras figuras notáveis. Retoma as palavras de Lina
Bardi para comentar o programa formulado:
“a criação dum movimento cultural que assumindo os
valores duma cultura historicamente (em sentido áulico)
pobre, superando as fases “culturalista” e “historicista” do
Ocidente, apoiando-se numa experiência popular
(rigorosamente distinta do folclore), pudesse lucidamente
entrar no mundo da verdadeira cultura moderna, com os
instrumentos da técnica e dum novo humanismo.”
24
Afirma que, com a criação do Museu de Arte Moderna da Bahia e do
Museu de Arte Popular do Unhão, Lina Bardi cristaliza a síntese
entre o elemento popular e a vanguarda.
Sobre a pertinência de uma arquitetura capaz de aglutinar pessoas,
escreve:
“Lina é arquiteto de espaços para a reconstrução e
redefinição da cidadania da sociedade civil militarmente
destruída pelos regimes autoritários. Engloba memórias
populares, capazes de transformar um episódio casual (...)
em um momento crucial de poética do espaço, e concebe
sempre a arquitetura como um instrumento de integração
da existência humana com a natureza e com seus
mistérios, e como meio de confronto com a cidade e seus
conflitos.”
25
O projeto do Solar do Unhão, segundo o filósofo, apesar de
conservar os sinais que o definiam como mercado de escravos,
como lugar de sacrifício humano, não é um mausoléu. É um lugar de
recreação da memória e recuperação da dignidade humana através
da arte. O projeto, destaca o autor, pode ser reconhecido como
alternativa ao espetáculo da arquitetura contemporânea, ao fetiche
ligado ao acrítico consumo cultural. Uma espécie de manifesto de
exaltação da imaginação poética, tida como componente
24
Subirats em texto intitulado: “Lina Bo: un’epoca nuova è già cominciata”, em
GALLO, op. cit., faz referência à citação de Antônio Risério em Cultura aqui, ali,
cultura além, em cópia datilografada do arquivo de Lina Bo Bardi, p. 31.
25
Idem, p. 25.
106
indissociável da condição essencial de sobrevivência da
humanidade. Nesse sentido, é apropriada sua ntese a respeito da
intervenção que afronta o tema da ‘memória’ sem sobrepujar a
preexistência: Uma reconstrução arquitetônica que não destrói nem
nega as memórias, os seus lugares e as suas ruínas, para afirmar
narcisicamente a temporalidade absoluta e tua do eternamente
novo.”
26
Como destaca Bierrenbach
27
os edifícios testemunham a rotina de
labor nas suas dependências, uma densa história que deixa marcas
de modificações e acréscimos decorrentes de diferentes usos nos
séculos de existência, traços marcantes da produção humana como
marcas do tempo e da cultura. É justamente essa leitura que
caracteriza o reconhecimento de valor elaborado por Lina Bardi e,
essencialmente, o que chancela a proposição do novo uso.
O SESC Pompéia (1976-86)
Muitos autores se detiveram sobre o projeto do SESC Pompéia,
muito foi escrito sobre a intervenção de Lina Bo Bardi. que se
enfrentar então o risco de cair na repetição. Ou melhor, passados
mais de vinte e cinco anos de sua inauguração (1982), que se
buscar uma síntese do que foi destacado e mais: arriscar uma
nova leitura, mesmo que despretensiosa.
De início, esse projeto causou muita surpresa quer pela precisa e
absolutamente reconhecível inserção de novos elementos nos
espaços dos edifícios fabris, com o intuito de dotar de novo uso
aqueles ambientes, quer pelo contraste produzido entre os novos
edifícios construídos e os galpões industriais preexistentes. Hoje,
embora bastante conhecido e usufruído, o lugar conserva a mesma
vitalidade dos anos 1980, quando foi finalizada a primeira etapa da
intervenção.
26
Idem, p. 26.
27
BIERRENBACH, A. C. de Souza. Os restauros de Lina Bo Bardi e as
interpretações da história. PPG-AU/FAUFBA, Dissertação de Mestrado, 2001.
107
Os edifícios fabris existentes
Situado em um bairro de origem industrial, em terreno que tinha
pertencido à Chácara Bananal depois loteada pela Companhia
Urbana Predial proprietária do terreno entre os anos de 1911 e
1913 – o edifício principal foi projetado em 1938 para a família alemã
Mauser. No ano seguinte, foi vendido à Fábrica de Nacional de
Tambores Ltda., de propriedade da Indústria Brasileira de
Embalagens (IBESA) que posteriormente abrigaria em seu espaço a
linha de montagem de uma indústria de geladeiras.
[6]
Entre 1962 e
1963 o prédio principal sofreu transformações, além disso, foram
construídos outros dois galpões menores. Em 1967, a indústria ali
instalada encerra suas atividades e, em 1971, o SESC adquire o
terreno (17.000 m²), iniciando suas atividades em 1973, em caráter
provisório.
Os três anos seguintes podem ser entendidos como um intervalo de
maturação da idéia de intervenção. Nesse período estava em estudo
o traçado da linha oeste do metrô que, eventualmente, poderia
interferir na área em questão, motivo pelo qual a definição do projeto
teve que ser adiada. Lina Bo Bardi é convidada a apresentar sua
proposta em 1976. Atuam como seus colaboradores os arquitetos
André Vainer e Marcelo Ferraz. Com a aprovação do projeto em
1977, o SESC interrompe o funcionamento provisório para dar início
às obras.
[6] A antiga fábrica de tambores. Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 14, 17 e 23.
108
As fotos aéreas evidenciam a potência desses edifícios, que se
distinguem na massa informe e heterogênea do entorno em
transformação desordenada, mas que encontram alguns similares
em quadras vizinhas e que mantiveram a fisionomia primitiva. A
morfologia pode ser decomposta em vários elementos: a tipologia
comum do edifício fabril (composta por blocos extensos cobertos por
telhas de barro, com inclinações de quatro ou duas águas, dotadas
de lanternim); os volumes compactos de feições sóbrias e uniformes;
a disposição regular dos blocos independentes de planta retangular
que estabelece uma hierarquia entre edifícios e espaços abertos (o
eixo longitudinal é o principal, os transversais secundários) e que,
sem recuos frontais, acompanha o alinhamento das calçadas,
reproduz o traçado urbano.
[7]
[7] Vista aérea do conjunto: antes e depois da intervenção. Fonte: FERRAZ, 1993, p. 220.
109
O reconhecimento de valor
Durante a fase inicial de funcionamento, as instalações fabris
revelam sua força expressiva associada à sobriedade e solidez dos
primeiros exemplares industriais, à distinta estrutura de concreto
28
,
como também à possibilidade de uso vislumbrada pela generosidade
de seus espaços, após a demolição das divisões internas. Desse
modo, percebe-se a versatilidade necessária à prática de diferentes
atividades, mas principalmente a empatia instaurada entre a
população e a atmosfera daquele lugar. Dificilmente um novo projeto
teria suscitado o mesmo efeito. Pode-se dizer que as construções
aliadas à ambientação estavam arraigadas na memória das pessoas
que, familiarizadas, estabeleciam vínculos afetivos com aquela
estrutura existente. Trata-se de uma espécie de memória profunda,
uma memória involuntária, nos moldes proustianos, distinta da
memória voluntária, dada pela inteligência, pela racionalidade.
Para Proust:
“(...) um odor, um sabor, reencontrados em circunstâncias
diferentes, revelam em nós, a despeito de nós mesmos, o
passado; nós sentimos o quanto esse passado era diferente
daquilo que acreditávamos nos recordar, e que nossa
memória voluntária pintava, como os maus pintores, com
cores sem verdade.”
29
Um misto de sabedoria e intuição indica um caminho distinto daquele
a que levaria a vaidade ou presunção: a demolição dos edifícios
antigos para dar lugar a um projeto todo novo. Indo na direção
oposta, Lina Bardi chega à solução que entrevê o poder de evocação
da memória impregnada nos muros daquelas construções, decidindo
mantê-las. Recorrendo mais uma vez a Proust, o procedimento é
avalizado:
28
Lina Bardi associa as características dos elementos estruturais de concreto
armado dos edifícios industriais aos projetos pioneiros de Hennebique.
29
Essas declarações comparecem na revista Espaços & Debates n. 33, 1991 na
seção Entrevista intitulada “Marcel Proust e a memória”, pp. 80-81. Segundo texto
introdutório, a referida entrevista foi concedida por Proust em 1912 e extraída da
revista Globo n. 59, jul/ago 1991. (O grifo é nosso).
110
“(...) eu creio que é quase somente nas recordações
involuntárias que o artista deveria buscar a matéria-prima
de sua obra. Primeiro, precisamente, porque elas são
involuntárias, porque elas se formam por si mesmas,
atraídas pela semelhança de um minuto idêntico: elas
possuem a marca de autenticidade. Depois, elas nos
relembram as coisas numa dosagem exata entre a memória
e esquecimento. E, enfim, como elas nos fazem provar uma
mesma sensação numa circunstância inteiramente outra,
elas liberam-na de toda contingência, dando-nos a sua
essência extratemporal (...)”
30
O escritor refere-se à literatura, mas não unicamente a ela. Se usa a
metáfora do pintor, autoriza, de conseqüência, a se estabelecer uma
analogia com o procedimento do arquiteto (assim, genérico, sem
diferenciação de gênero, com queria a autora do projeto).
nas primeiras visitas, declara Lina Bo Bardi, como num relato de
memórias:
“Entrando pela primeira vez na então abandonada Fábrica
de Tambores da Pompéia, em (19)76, o que me despertou
curiosidade, em vista de uma eventual recuperação para
transformar o local num centro de lazer, foram aqueles
galpões distribuídos racionalmente conforme os projetos
ingleses do começo da industrialização européia (...).
Todavia, o que me encantou foi a elegante e precursora
estrutura de concreto. Lembrando cordialmente o pioneiro
Hennebique, pensei logo no dever de conservar a obra.”
31
É como se a memória involuntária que ativa a criação de Lina Bo
Bardi se sobrepusesse à memória involuntária dos usuários, que
acolhem e confirmam o acerto da decisão de projeto. Assim continua
o relato, arrolando os outros motivos, não menos importantes,
referentes à manutenção também das práticas que animam aquele
local:
30
Idem, p. 81.
31
Em FERRAZ, op. cit., p.220. (O grifo é nosso).
111
“Na segunda vez que estive, um sábado, o ambiente era
outro: não mais a elegante e solitária estrutura
“hennebiqueana” mas um público alegre de crianças, mães,
pais, anciãos, passava de um pavilhão a outro. Crianças
corriam, jovens jogavam futebol debaixo da chuva que caía
dos telhados rachados, rindo com os chutes da bola na
água.(...) Pensei: isto tudo deve continuar assim, com toda
essa alegria.”
32
Uma intervenção que faz “numa cidade entulhada e ofendida (...) de
repente, surgir uma lasca de luz, um sopro de vento.”
Nada melhor do que retomar as palavras de Lina Bardi para
descrever os elementos essenciais desse projeto:
“E está a Fábrica da Pompéia, com seus milhares de
freqüentadores, as filas na choperia, o ‘Solarium-Índio’ do
Deck, o Bloco Esportivo, a alegria da fábrica destelhada que
continua: pequena alegria numa triste cidade.”
33
Vale lembrar que não havia, naquela ocasião, nenhuma restrição à
demolição dos antigos galpões. A decisão de mantê-los foi
exclusivamente da arquiteta que ali reconheceu a autenticidade e
dignidade de um conjunto fabril de valor documental: um testemunho
da história da industrialização da cidade de São Paulo.
As operações realizadas
A intervenção começa no cimentado da calçada salpicado de seixos
rolados divertente como repetia Lina Bardi àqueles que a
ouviam descrever seu processo de trabalho “amistoso e afetivo
ofertado à sociedade.”
34
O acesso dá-se pela ‘rua-corredor’ no interior do lote que assume
importância estratégica de ligação entre os edifícios e as diversas
atividades que se desenvolvem em cada um deles, conduzindo ao
final do percurso ao solarium, também chamado de ‘praia’, que, por
sua vez, leva aos novos edifícios. Singulares canaletas revestidas de
32
Idem, p. 220.
33
Idem, p. 220.
34
Conforme depreende Luís Antônio Jorge, op. cit., p.87.
112
seixos rolados flanqueiam o caminho de paralelepípedos, rentes aos
edifícios, captam e conduzem as águas pluviais.
[8]
Os pavilhões, inicialmente rebocados nas faces voltadas para a rua,
foram descascados, deixando à vista as alvenarias de tijolos de barro
maciços e a estrutura interna de concreto, permanecendo o
invólucro, após a liberação do espaço interno. Além da estrutura de
concreto, é mantida e recuperada a estrutura de madeira que
sustenta a cobertura de telha-vã (de barro, tipo francesa).
[8] Totem sinalizador e rua interna com canaleta de seixos rolados. Fontes: VAINER e
FERRAZ, 1996, p. 66 / FERRAZ, 1993, p. 223.
[9] Espaço reservado à leitura e recreação. Fonte: FERRAZ, 1996, p. 225.
113
No maior dos galpões (com área de 50 x 70 m), módulos justapostos
de concreto aparente, delimitados por muretas baixas, dispostos nos
vãos entre a primeira e terceira fileiras de pilares, independentes das
estruturas preexistentes, criam espaços para leitura, reunião e
projeção de audiovisuais. Implantada em quotas de nível acima do
piso térreo, em dois lances com alturas diferentes, como uma
espécie de mezanino, essa área possibilita, para quem ali se instala,
uma visão de conjunto do pavilhão. Locadas próximas da entrada, as
estantes que acomodam o acervo de livros e revistas já sofreram
várias transformações em seu lay-out o que, no entanto, não
compromete o todo.
[9]
O mobiliário de madeira, a lareira, o traçado sinuoso do espelho
d’água “o rio São Francisco” desenhado no piso de pedra Goiás
de variados tamanhos (que substitui o piso anteriormente existente,
ao que tudo indica um cimentado comum), preenchido com seixos
rolados (os mesmos da calçada e das canaletas) como convém a um
rio, complementam a ocupação desse grande ambiente de estar que
também acolhe exposições temporárias, espetáculos, salão de jogos
e brinquedoteca, além da recepção ao público em geral.
[10]
[10] Espaço de convivência. Fonte: VAINER E FERRAZ, 1996, p. 78 e 79.
114
Os acréscimos, elementos criados para propiciar os novos usos
propostos, distinguem-se com clareza das estruturas existentes e, a
rigor, podem ser removidos sem prejuízo da construção primitiva. O
caráter de simplicidade desses ambientes foi preservado com a
manutenção das tubulações e instalações à mostra, com a colocação
de elementos singelos e, ao mesmo tempo, duráveis como os painéis
em treliças ou as básicas portas de correr em madeira que, isentas
de guarnições e acessórios desnecessários, deixam à vista as
roldanas e cabos de escorrimento.
Restaurante, teatro
[11] [12]
e oficinas-ateliês
[13]
são os usos
propostos para os outros edifícios menores dispostos ao longo do
eixo principal. Ao descrever o projeto do “teatro-auditorium”, espaço
organizado a partir do palco central e de duas arquibancadas
dispostas em lados opostos, Lina Bardi considera importante explicar
os motivos da utilização de cadeiras de madeira, ao invés de
poltronas estofadas:
“(...) os Autos da Idade Média eram apresentados nas
praças, o público de e andando. Os teatros greco-
romanos não tinham estofados, eram de pedra, ao ar livre e
os espectadores tomavam chuva, como hoje nos degraus
do estádio de futebol, que também não têm estofados. Os
estofados apareceram nos teatros áulicos das cortes, no
Settecento e continuam até hoje no ‘confort’ da Sociedade
de Consumo.”
“A cadeirinha de madeira do Teatro da Pompéia é apenas
uma tentativa para devolver ao teatro seu atributo de
‘distanciar e envolver’, e não apenas de sentar-se.”
35
É a idéia da chamada “Arquitetura Pobre, isto é, não no sentido da
indigência mas no sentido artesanal que exprime Comunicação e
Dignidade máxima através dos menores e humildes meios.”
36
35
FERRAZ, op.cit., p. 226.
36
FERRAZ, op. cit., p. 220. Os teatros são programas arquitetônicos recorrentes na
trajetória de Lina Bo Bardi. O tema é enfrentado em casos específicos como no
Teatro Politheama de Jundiaí ou no Teatro Oficina em São Paulo. O primeiro
corresponde a uma restauração nos termos declarados por Lina de compromisso
entre “os critérios da restauração de hoje e a “plena realização de uma
Continuidade Histórica no Tempo e na Memória.” (FERRAZ, p. 264). O segundo é
115
encarado não só como reconstrução de uma estrutura “Física e Tátil, mas persegue
a reconstrução de uma identidade cultural destruída pela “Tempestade”, uma alusão
aos tempos difíceis do regime ditatorial. (FERRAZ, p. 258).
[11] Corte transversal do teatro. Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 60.
[12] Foyer e interior do teatro. Fontes: VAINER E FERRAZ, 1996, p. 90 /
FERRAZ, 1993, p. 227.
[13] Oficinas. Fonte: FERRAZ, 1993, p. 229.
116
Com esse mesmo espírito de resgate de uma dignidade popular
organiza o espaço dos ateliês/oficinas é a articulação entre o
trabalho artesanal e o “saber-fazer”. A arquitetura é aquela que extrai
da escassez de meios a sua expressão genuína: recintos autônomos
distribuídos ordenadamente no espaço livre, de um lado e outro da
fileira central de apoios, com formas e dimensões diversificadas,
constituídos de alvenaria em blocos de concreto aparentes de altura
limitada, para que seja visível o desenvolvimento das atividades por
quem circula entre os recintos dos ateliês. O procedimento utilizado
permite mais uma vez distinguir o espaço das oficinas como uma
inserção mais recente em uma estrutura preexistente. A técnica e
materiais empregados eliminam revestimentos e exigem um trabalho
primoroso de aparelhamento dos blocos, rigoroso inclusive por não
corrigir com a espátula as “rebarbas” da argamassa do rejunte das
peças. Um detalhe que representa não a falta de cuidado na
execução, mas uma operação essencial em que são subtraídos
elementos e gestos desnecessários.
A imposição da área non-edificandi, de grande empecilho à
acomodação do novo programa de uso, converte-se em importante
espaço lúdico constituído pelo grande deck de madeira a praia.
Assim explica Lina Bo Bardi o raciocínio que conduz o projeto:
“Uma galeria subterrânea de ‘águas pluviais’ (na realidade o
famoso córrego das Águas Pretas) que ocupa o fundo da
área da Fábrica da Pompéia, transformou a quase
totalidade do terreno destinado à zona esportiva “non
edificandi”. Restaram dois ‘pedaços’ de terreno livre, um à
esquerda, outro à direita, perto da ‘torre-chaminé-caixa
d’água’ tudo meio complicado. Mas, como disse o grande
arquiteto norte-americano Frank Lloyd Wright: ‘as
dificuldades são nossos melhores amigos’. Reduzida a dois
pedacinhos de terra, pensei na maravilhosa arquitetura dos
‘fortes’ militares brasileiros, perdidos perto do mar (...).
Surgiram, assim, os dois ‘blocos’, o das quadras e piscinas
e o dos vestiários. No meio, a área ‘non edificandi’. E...
como juntar os dois blocos’? Só havia uma solução: a
117
solução aérea, onde os dois ‘blocos’ se abraçam através de
passarelas de concreto protendidos.”
37
[14]
Uma invenção que se nutre da memória, um projeto com profundo
sentido poético, ou seja, compreendido como um “fazer”, um modus
operandi’ que se ampara em conhecimento acumulado, em
experiência vivida, uma operação que, nos termos colocados por
Alessandro Castroviejo
38
, articula o universal e o particular.
37
Idem, p. 231.
38
RIBEIRO, Alessandro J. Castroviejo. Arquitetura: poéticas nos anos 90 vistas
através da arquitetura. Dissertação de Mestrado pela FAUUSP, 2001.
[14] A “praia” e ao fundo os dois novos blocos unidos pelas passarelas.
Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 101.
118
Os critérios de intervenção
Os textos de Lina Bardi apresentam a mesma índole de sua
arquitetura: concisos e enfáticos tocam nos aspectos cruciais para
explicitar os fundamentos que orientam as escolhas de projeto:
“Ninguém transformou nada. Encontramos uma fábrica com
uma estrutura belíssima, arquitetonicamente importante,
original, ninguém mexeu... o desenho de arquitetura do Centro
de Lazer Fábrica da Pompéia partiu do desejo de construir uma
outra realidade. Nós colocamos apenas algumas coisinhas: um
pouco de água, uma lareira”.
39
Mais uma vez, as próprias palavras de Lina Bardi exprimem o
espírito da ação quanto à relação passado/presente:
“Não se trata de devolver o prédio como uma máquina
do tempo no passado. Isso é preciso esclarecer porque a
retromania está tomando conta do mundo, não é isto que
estou fazendo (...) se formos tomar por princípio absoluto o
uso que fizemos dos espaços da fábrica da Pompéia,
haverá gente querendo recuperar e proteger uma salada de
edifícios que são velhos e não históricos. Assim a cidade
transformar-se, por excesso de zelo, numa cidade de
cacarecos, o que não é desejável. É preciso deixar também
florescer a nova arquitetura.”
Assim atua, mantendo os antigos pavilhões industriais e
reconfigurando o conjunto com a concepção dos novos blocos
verticais monolíticos de concreto aparente, voltados às funções
esportivas. A carga expressionista dessa nova arquitetura foi
destacada por vários autores, entre os quais Bruno Zevi
40
e Eduardo
Subirats
41
.
[15] [16] [17]
39
FERRAZ, op. cit., p.220.
40
Em artigo intitulado “A fábrica dos signos”, publicado na revista L’Espresso
(maio/1987), em coluna dedicada à crítica de arquitetura que o autor manteve por
vários anos.
41
Em vários textos entre os quais o já mencionado na nota 1.
119
[15] Planta do conjunto. Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 60.
[16] Corte longitudinal do galpão das oficinas. Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 60.
[17] Elevações. Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 61.
120
O significado renovado de uma fábrica
Um texto de Ruth Verde Zein, publicado em uma edição especial da
revista Projeto
42
dedicada a Lina Bo Bardi, sob o título “Fábrica da
Pompéia, para ver e aprender”, é particularmente instigante. Inicia
discorrendo sobre a cidade “um confuso amálgama de signos (...)
em permanente mutação” que, segundo a autora, praticamente
impede de se falar em contextualismo, o que impõe ao projeto a
estratégia de dotá-lo, diante da impossibilidade de adotá-lo (o
contexto). No SESC Pompéia, aponta Ruth Verde Zein, Lina Bo Bardi
consegue o duplo feito: não adotar o contexto do bairro de caráter
industrial, como também dotá-lo de um sentido próprio,
“transformando seu significado de espaço introvertido de produção
em espaço extrovertido de lazer”.
A extroversão se materializa na reconfiguração da rua-corredor de
paralelepípedos no interior do lote, como um convite ao público a
entrar, propiciando a continuidade entre o espaço urbano e a viela
interna.
Os galpões são mantidos em sua configuração volumétrica como
grandes recipientes capazes de abrigar diferentes atividades. Os
novos elementos e instalações indispensáveis para os novos usos
propostos não rompem com a amplitude e a continuidade espacial
originárias.
Um dos primeiros aspectos surpreendentes na decisão da arquiteta
certamente foi a reutilização dos galpões. A resolução antecipa uma
tendência que vai se tornar mais comum na década seguinte, com
projetos notáveis, promovidos pelo poder público, como o da reforma
da Pinacoteca do Estado (1993-98), projeto de Paulo Mendes da
Rocha, e a criação da Sala São Paulo (1997-99), nas antigas
dependências da Estação Júlio Prestes, projeto de Nelson Dupré.
Opta pela reutilização que não se mimetiza, ao contrário, distingue-
se com clareza através da inserção de elementos precisos a
desempenhar funções definidas por um programa arquitetônico
rigoroso, atento às diferentes atividades e, ao mesmo tempo flexível,
polivalente, deixando também espaço para o imprevisto e para as
42
Revista Projeto n. 149, pp. 24-35
121
imprevisíveis possibilidades criadas tanto pelos gestores, como pelos
usuários habituais do lugar.
O crítico Bruno Zevi, amigo de Lina Bardi, em artigo mencionado,
cita Ruth Verde Zein e refere-se ao projeto como “um corajoso
restauro inventivo” que investe de novos conteúdos a arquitetura
preexistente. Conclui sua descrição enfatizando o espaço “denso de
humanidade e poética fantasia”:
“O objetivo não é o da mundana inclusividade”, mas um
confronto entre eventos de matriz e carga expressiva
heterogêneas. Apesar dos pressupostos ideológicos de
uma estética do choque, emerge “um equilíbrio quase
prefeito”. Bo Bardi usou magistralmente os ingredientes
lingüísticos à sua disposição: a flexível planimetria
oitocentista, o vernáculo do bairro, os ótimos multicoloridos
dos camponeses imigrados, os códigos da vanguarda, além
de citações de Sant’Elia, Le Corbusier, Mies van der Rohe e
das “Höfe” vienenses. Extraordinária montagem de
fragmentos, que evita virtuosisticamente qualquer aspecto
Kitsch. Renunciando declaradamente à mitologia da beleza
clássica, este centro sociocultural de São Paulo joga a carta
das dissonâncias com atrevimento e espontaneidade.”
O “direito ao feio” é uma reivindicação recorrente em Lina Bardi, uma
alternativa ao belo que comparece em um manifesto apresentado
como peça de divulgação de uma exposição organizada no próprio
SESC, em 1982 – I Exposição de Artes dos Funcionários do INAMPS
– cujo texto afirma:
“A expressão Kitsch surgiu na Alemanha no fim do século
XIX quando a Revolução Industrial tomou definitivamente o
poder. É o estigma da alta burguesia culta contra os setores
da mesma classe, menos afortunados, que através da
industrialização começavam a ter acesso aos “Tesouros da
Arte”, ao “Belo”.
Esta pequena exposição não é uma Integração do Kitsch
é apenas um pequeno exemplo do DIREITO AO FEIO,
122
base essencial de muitas civilizações, Desde a África até o
Extremo Oriente que nunca conheceram o “conceito” de
Belo, campo de concentração obrigado da civilização
ocidental.
De todo esse processo foram excluídos uns ainda menos
afortunados: o povo.
E o povo nunca é Kitsch.
Mas esta é uma outra história.”
São idéias como essa que fazem de Lina Bo Bardi um personagem
admirável que não obstante sua erudição empenha-se em
estabelecer, em sua incansável busca criativa, uma comunicação
direta entre o repertório moderno e a tradição da cultura popular.
43
A Ladeira da Misericórdia (1987)
Dois aspectos essenciais são destacados na análise desse projeto: a
aproximação entre a visão de Lina Bo Bardi acerca da história e o
pensamento produzido no campo da restauração; a correlação entre
o projeto de Salvador e a experiência de recuperação do centro
histórico de Bolonha dos anos 1970-80, sob coordenação de Pier
Luigi Cervellati e Roberto Scannavini, enquanto adoção de uma
política atenta à estrutura tipológica da arquitetura existente e ao
cidadão usuário.
Construir no construído
A análise desse projeto, juntamente com a do SESC Pompéia,
presta-se de modo especial ao reconhecimento de que a ação de
Lina Bo Bardi e equipe (formada por Marcelo Ferraz e Marcelo
Suzuki) envolve uma expressiva poética do “construir no construído”.
Esse é, sem dúvida, um dado relevante e oportuno para afrontar a
delicada questão da fronteira entre o restauro e a intervenção que se
coloca não apenas como operação meramente conservativa, mas
43
Esse tema é abordado por Eduardo P. Rossetti no artigo “Tensão
moderno/popular em Lina Bo Bardi: nexos de arquitetura”. Em Cadernos PPG-AU,
FAUFBA, ano I número 1 2003, pp. 11-26. Em texto intitulado: “Centro histórico
da Bahia, antigo e moderno”, publicado nos anais do XIII Simpósio Multidisciplinar
da USJT (set. 2007), Marta Bogéa refere-se à “sofisticada edição entre o erudito e o
popular” presente na sua obra.
123
que admite a transformação da preexistência, ainda que controlada
por critérios rigorosos.
[18]
Nesse sentido, o estudo recorre à reflexão representada pelos
chamados “restauro científico” e “restauro crítico” e, em especial, à
contribuição de Cesare Brandi, importante crítico de arte do século
XX, italiano, interlocutor de Giulio Carlo Argan
44
, autor do livro Teoria
del restauro, publicado em 1963. Brandi é aqui lembrado por sua
reflexão filosófica sobre o problema do restauro que, de certa forma,
prosseguimento à concepção do chamado restauro crítico
45
. O
autor representa fonte necessária e fundamental de pesquisa na
atualidade: elabora uma análise rigorosa que busca definir princípios
gerais orientadores da prática a partir do conceito que se tem da obra
a ser submetida ao restauro tida como objeto de interesse histórico e
artístico.
44
Em História da arte como história da cidade. No cap. 1: “História da arte” Brandi é
mencionado em várias passagens, entre as quais a da p. 27, em que Argan
relaciona o juízo estético de matriz idealista, à compreensão fenomenológica da
produção artística de Brandi. Em Projeto e destino comparece um texto intitulado:
“Eliante” ou da arquitetura (Carta a Cesare Brandi) de 1956, uma réplica à sua crítica
ao modernismo racionalista.
45
Entende-se por restauro crítico a elaboração teórica, produzida por Roberto Pane,
Agnoldmoenico Pica e Renato Bonelli, na Itália em meados do século XX, em meio
aos debates do pós-guerra. Define o restauro como um ato de cultura e ato criativo
cujo escopo é conservar e reintegrar o valor expressivo da obra, apoiado em
critérios de identificação da qualidade artística. Para uma análise aprofundada,
consultar verbete ‘restauro architettonico’ em Enciclopedia Universale dell’Arte, vol.
XI, Veneza-Roma, Istituto per La colaborazione culturale, 1963.
[18] Implantação geral do Plano de Salvador.
Fonte: FERRAZ, 1993, p. 273.
124
A outra perspectiva de investigação refere-se às relações
indissociáveis das áreas centrais de interesse histórico com o tecido
urbano e metropolitano. Uma compreensão diferente daquela
hegemônica até pelo menos as décadas de 1960-70, segundo a qual
essas áreas eram consideradas como elementos estanques, cindidos
de continuidade com a realidade urbana da cidade difusa e
policêntrica. Esse novo enfoque possibilita conciliar a preocupação
preservacionista, às diretrizes mais gerais do planejamento urbano.
Entretanto, se até meados do século XX a ação conservacionista
afirmava-se principalmente como reação ao abandono e às
demolições injustificadas, hoje se identificam excessos em certos
processos chamados de “patrimonialização”
46
que devem ser
contidos.
A celebração do restabelecimento de um diálogo interrompido
Ao saber da iniciativa do prefeito Mário Kertézs que, em 1986, decide
retomar a profícua relação de Lina Bo Bardi com a cidade de
Salvador e com a cultura baiana, Jorge Amado manifesta grande
entusiasmo. Reconhece a importância da ação iniciada no Museu de
Arte Moderna e no Museu de Arte Popular, integrantes do projeto do
Solar do Unhão e comemora a realização do projeto da Casa do
Benin.
Assim recorda o autor a situação que antecede a intervenção:
“(...) processo de abandono e devastação, o contínuo
vandalismo, a memória apodrecendo em esquecimento, o
patrimônio o do povo, o que pertence à nação posto à
venda a preço vil.”
47
Em poucas palavras o escritor consegue reunir aspectos centrais
ligados ao tema da conservação: a consternação derivada do
46
Conceito elaborado por JEUDY, 2005: refere-se ao processo de fruição do
patrimônio cultural, banalizado por estratégias de marketing e políticas culturais de
consumo e turismo de massa que privilegiam a imagem, o simulacro, em detrimento
do fato material genuíno, além de preterir a população local, em favor dos visitantes
ocasionais. Em CHOAY, op. cit., o tema é igualmente abordado. A autora refere-se
ao fenômeno resultante da expansão e banalização do conceito de patrimônio como
“um complexo de Noé”, p. 209.
47
Texto publicado na revista Projeto n149, em edição especial dedicada à obra de
Lina Bo Bardi, p. 46.
125
descuido, o apropriado sentido coletivo associado à idéia do
patrimônio cultural e a crueza dos interesses econômicos que
solapam as bases de uma herança comunitária.
[19]
A retomada do diálogo
Outro texto, de Lina Bo Bardi, datado de março de 1987
48
, expõe os
critérios de condução do projeto de recuperação do centro histórico
de Salvador, descrevendo a “idéia geral” que permeia a intervenção:
“A palavra restauração lembra, em geral, as tristes
restaurações. Dentro de um certo período histórico
precedente a destruição de um edifício, isto é, a
destruição pelo Tempo, ou pelos homens, por incidentes,
por uma guerra, um terremoto...
Em geral, a restauração é a restituição a um estado
primitivo de tempo, de lugar, de estilo. Depois da Carta de
Veneza, de 1965, as coisas melhoraram, mas aquele marco
de ranço de uma obra restaurada sempre continua. É muito
difícil não perceber ou sentir isso entrando num restauro.
O que estamos procurando na recuperação do Centro
Histórico da Bahia é justamente um marco moderno,
respeitando rigorosamente os princípios da restauração
histórica tradicional.”
48
FERRAZ, op. cit., p. 292. Texto também publicado na revista Projeto n.º 149, p.
48.
[19] Salvador. Imagens do centro histórico degradado.
Fonte: Couto, [et al.], 2000, p.100.
126
“Para isso, pensamos num sistema de recuperação que
deixe perfeitamente intacto o aspecto não somente exterior,
mas também o espírito, a alma interna de cada edifício.
Será um sistema de pré-moldados, perfeitamente distinto da
parte histórica, denunciado pela sua estrutura e pelo tempo
atual. Não vamos mexer em nada, mas vamos mexer em
tudo.”
O arrazoado de Lina Bardi inicia com uma associação entre
restauração e tristeza, refere-se textualmente à lembrança de “tristes
restaurações”. A menção deixa espaço para interpretações. A
tristeza tanto poderia estar ligada ao processo desencadeado antes
da intervenção de restauro a destruição por ação do tempo, do
homem ou de incidentes traumáticos, entre os quais as guerras
como também poderia referir-se a uma visão saudosista que,
descontente com a ação do tempo que tudo transforma, pretenderia
restabelecer uma condição ideal originária, como se fosse possível
retroceder, ou interromper a passagem do tempo. Uma alusão clara
às proposições fantasiosas de Viollet-le-Duc
49
. Chega a atribuir
avanços à contribuição da Carta de Veneza, mas não motivos
para muita animação. Detecta a presença de certo “ranço” atribuído à
obra restaurada. Esse ranço, que remete à idéia de
conservadorismo, é tudo o que ela quer evitar.
Certamente Lina Bardi não se identifica com uma posição romântica,
saudosista, de apego ao passado, nem tampouco com uma visão
conservadora de oposição a inovações de modo geral.
Sua intervenção é fortemente marcada pela contraposição a uma
conduta que vigorou no passado, mas que ainda continua fortemente
arraigada ao senso comum de restauração, compreendido como
cancelamento das vicissitudes do tempo, em favor da restituição de
um estado mítico primitivo. Algo muito próximo da posição defendida
pelo francês Viollet-le-Duc que, no século XIX, juntamente com John
49
A definição de Viollet-le-Duc sobre o termo ‘restauração’, conforme consta no
primeiro capítulo desta pesquisa, está presente no Dictionnaire Raisonné de
l’Architecture Française du XI au XVI Siècle, traduzido para o português:
Restauração. E. E. Viollet-le-Duc. Cotia, S.P.: Ateliê Editorial, 2000, p. 17. Em
síntese: “Restaurar um edifício (...) é restabelecê-lo em um estado completo que
pode não ter existido nunca em um dado momento”.
127
Ruskin, protagoniza o debate ligado à preservação da herança
adquirida do passado.
50
O inglês, por sua vez, radicaliza sua posição,
não admite sequer uma mínima intervenção, em nome de uma
deferência absoluta à materialidade e ao conhecimento histórico. O
respeito à autenticidade histórica prescreve a intocabilidade dos
vestígios do passado. Entre as duas posições, aquela que obtém
maior ressonância é a de Viollet-le-Duc, o que determina uma maior
popularidade e também uma espécie de renitência.
Lina Bo Bardi, ao afirmar que pretende respeitar “rigorosamente os
princípios da restauração histórica tradicional”, mostra que tem plena
consciência dos passos dados por Camillo Boito e consolidados por
Gustavo Giovannoni
51
, no sentido de superar o impasse criado pelas
visões contrapostas dos primeiros teóricos. Sabe que esses
arquitetos asseguram uma visão moderada que acolhe os
ensinamentos da arqueologia e do estudo rigoroso dos documentos
históricos. Tal posição afirma-se na primeira metade do século XX
como “restauro histórico-filológico” que se desdobra no chamado
“restauro científico”, cuja contribuição será analisada a seguir.
A menção à Carta de Veneza é indicação de que Lina Bardi está
ciente da ampliação da noção de patrimônio que ultrapassa o limite
do monumento, das “grandes criações”, para nela incluir a produção
arquitetônica ordinária, ou seja, as “obras modestas, que tenham
adquirido, como o tempo, uma significação cultural”
52
. Uma
ampliação que passa a considerar dignas de interesse de
preservação as edificações mais recentes, o conjunto urbano, seu
traçado, suas relações entre volume construído e espaços abertos,
além do próprio ambiente natural. Essa maior extensão do acervo
dos bens patrimoniais, assim como a vasta destruição provocada
50
As condutas iniciais voltadas à preservação e restauro, elaboradas no século XIX,
são tratadas no primeiro capítulo deste trabalho. Vale relembrar que tema é
abordado em várias publicações, entre as quais se destaca: KÜHL, B. M. Arquitetura
do ferro e arquitetura ferroviária em São Paulo. Reflexões sobre sua preservação.
São Paulo: Ateliê Editorial, 1998, pp. 179-197.
51
Camillo Boito (1836-1914) tem grande relevância no panorama cultural do século
XIX como arquiteto, restaurador, crítico e professor. Sua obra Os restauradores,
apresentada na conferência de Turim de 1884, constitui uma das bases essenciais
da teoria contemporânea da restauração. Seu discípulo, Gustavo Giovannoni,
aprofunda a reflexão iniciada por Boito, dando sua decisiva contribuição para a
redação da Carta de Restauro de 1931. A vertente criada por ambos ficou
conhecida como “restauro científico.”
52
Carta de Veneza: Artigo 1º. Consulta ao site www.iphan.br, acesso em 2/04/2008.
128
pela Segunda Guerra Mundial, contribuem para a crise metodológica
que atinge o restauro científico, abrindo caminho para a revisão
conduzida pelo restauro crítico.
Um aspecto relevante do projeto da Ladeira da Misericórdia envolve
a técnica aplicada à consolidação e travamento das estruturas
existentes, resultado da parceria com João Filgueiras Lima, o Lelé.
Uma solução que obedece às orientações da Carta de Veneza que
no artigo 10º afirma:
“Quando as técnicas tradicionais se revelarem
inadequadas, a consolidação do monumento pode ser
assegurada com o emprego de todas as técnicas modernas
de conservação e construção cuja eficácia tenha sido
demonstrada por dados científicos e comprovada pela
experiência.”
Neste caso, o procedimento técnico inovador corresponde à
utilização dos painéis plissados em argamassa armada, ora usados
como divisórias internas, ora como lajes que substituem os
assoalhos irremediavelmente deteriorados, ora empregados como
contrafortes de estabilização dos edifícios existentes, recompondo a
continuidade do conjunto naqueles lotes vazios em que as
construções primitivas foram demolidas.
[20]
Esse é um sistema de consolidação estrutural que nasce a partir de
uma triangulação conceitual proposta por Lina Bardi que,
conhecendo o processo de concepção estrutural de Lelé,
recomenda-lhe de observar o trabalho de Pier Luigi Nervi, a respeito
da reelaboração do processo construtivo do ferro-cimento
53
. Um
dado curioso testemunha essa articulação operada por Lina Bardi.
Na impossibilidade de comparecer a um primeiro encontro de
trabalho com Lelé que deveria acontecer na Fábrica de Escolas, no
Rio de Janeiro, Lina envia, por intermédio de seus colaboradores,
uma folha de “capim-palmeira” dentro de uma caixa, com o seguinte
53
A esse respeito consultar texto dos Anais do XIII Simpósio Multidisciplinar da
USJT, o Paulo, 2007, intitulado: “Projeto Piloto Ladeira da Misericórdia pela lente
de um caleidoscópio. Lente 3: Longe dos olhos e perto da criação: Lina, Le e
Nervi.” A aproximação entre o sistema idealizado por Nervi e o das peças pré-
fabricadas de argamassa armada de Lelé, intermediada por Lina Bo Bardi é descrita
em detalhes.
129
recado: “entreguem isso a Lelé e digam que eu penso em uma
estrutura assim. Ele vai entender (...)”. Em carta de resposta a Lina
Bardi, acompanhada de estudos das peças pré-fabricadas em ferro-
cimento, Lelé demonstra ter entendido a sugestão e explicita a
referência de consulta em forma de um P.S.: “Foi muito importante
examinar o material que você me mostrou do Nervi.”
54
[21] [22]
Talvez seja justamente o back-ground teórico, associado a um
consistente preparo técnico, o que impede o diálogo com as equipes
do SPHAN local, dificuldade mencionada por Cecília Rodrigues dos
Santos
55
ao comentar o veto à continuidade de implantação do
projeto.
Ainda hoje é comum deparar-se com posições datadas em
discussões com especialistas. Quando o tema é o patrimônio urbano,
é recorrente a evocação de argumentos enunciados pelo chamado
restauro científico, marcados por uma visão positivista, de certo
modo esquemática, das questões estéticas.
54
Cf. LATORRACA, Giancarlo (org.). João Filgueiras Lima Lelé. São Paulo: Blau:
Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, em texto em que é descrito o processo de concepção
dos elementos pré-fabricados, intitulado: “Recuperação do Centro Histórico FAEC.
Salvador, BA, 1988”, p. 166-170.
55
Revista Projeto n.º 149, jan./ fev. 1992, p. 54.
[20] Contrafortes em argamassa armada. Fonte: FERRAZ, 1993, p. 296.
130
O respeito histórico como culto desmedido ao passado determina
proposições de “ambientamento”
56
, com o uso de formas de estilo
simplificado para os elementos novos. Medidas fundadas em uma
pretensa neutralidade na inserção do novo, no contexto histórico
consolidado, estabelecem a adoção de normas muito gidas e
genéricas que priorizam volumes, alturas, mas não garantem a
qualidade arquitetônica da intervenção contemporânea.
56
O termo é do idioma italiano e refere-se à conduta sugerida pelos teóricos do
“restauro científico”, com respeito à tutela dos ambientes de reconhecido valor
histórico. Recomenda que na construção de novos edifícios na recomposição de
lacunas no tecido urbano (por demolição ou perdas de continuidade), mantenham-se
os volumes dos edifícios preexistentes, assim como os elementos estruturadores da
forma que integram o repertório tradicional. O interesse declarado é o de preservar a
uniformidade, ou seja, evitar a discrepância de linguagem entre o “velho” e o “novo”.
Esse tema é tratado no segundo capítulo desta pesquisa.
[21] Plantas com indicação dos painéis de argamassa armada.
Fonte: FERRAZ, 1993, p. 296.
131
Um diálogo de tempos
Indiscutivelmente a análise de intervenções em preexistências de
valor artístico e documental requer necessariamente o balizamento
dos critérios adotados no projeto com aqueles preceitos
desenvolvidos no campo disciplinar da preservação de bens
culturais. Nesse sentido, é fundamental considerar a reflexão teórica
produzida e consolidada, como instrumento que formula os
princípios gerais a serem reelaborados nas circunstâncias
específicas dos casos analisados.
Uma abordagem preliminar desatenta pode sugerir uma completa
independência de Lina Bardi em relação ao pensamento produzido
no terreno da preservação e restauro. A sua postura livre,
contestadora, e sua personalidade controversa corroboram essa
tese. De fato, não é o caso de rotular seu procedimento de projeto
conforme esta ou aquela vertente da restauração. A este estudo
interessa, entretanto, identificar certas tangências de raciocínio.
Interessa, sobretudo, investigar como Lina transita entre o rigor
exigido pelo respeito histórico e a liberdade que tanto preza.
A esse propósito, convém retomar as posições do “restauro
científico” e “crítico”, no intuito de entender de que modo são
incorporadas ao fazer arquitetônico de Lina Bo Bardi.
[22] Conjunto antes e depois da recuperação. Fonte: FERRAZ, 1996, p. 292 e 293.
132
Giovanni Carbonara
57
, em seu livro Avvicinamento al restauro (1997),
dedica um capítulo ao tema do “restauro científico”
58
. Observa
inicialmente a ascendência do chamado “restauro histórico”, espécie
de transição que, a partir das primeiras proposições, impõe certos
limites às reconstituições, na medida em que as atrela à análise
cuidadosa de documentos e de iconografias existentes, além de
atentar não exclusivamente à condição primitiva do edifício a ser
restaurado. Compreensão que destaca o valor documental da
arquitetura, o “restauro científico” afirma-se nas primeiras décadas do
século XX e consolida a convicção de que se devam preservar as
diversas passagens que marcam a existência de um edifício, como
camadas de tempos distintos que sinalizam a trajetória da história.
Colocando-se como mediação de posições conflitantes: opõe-se à
visão de Viollet-le-Duc de que o restauro deva passar inobservado ao
recomendar que a intervenção seja distinguível da preexistência,
mas, do mesmo modo, opõe-se à posição de Ruskin ao afirmar a
legitimidade da restauração. Como “teoria intermediária” propõe rigor
e cautela na intervenção, ou seja, priorizar as obras de manutenção,
reparo e consolidação, nessa ordem, deixando as ações mais
invasivas para os casos indispensáveis.
Por respeito à autenticidade do material original é que se impõe a
diferenciação dos acréscimos em relação às partes antigas e, da
mesma forma, que as reconstruções se baseiem em dados precisos,
refutando hipóteses incertas. Tanto a distinção entre o antigo e o
novo nas operações de restauro, como a manutenção da
sobreposição de passagens sucessivas, contribuem para que o
restauro científico promova o diálogo de tempos.
57
Carbonara é professor, diretor da Scuola di Specializzazione per lo Studio ed Il
Restauro dei Monumenti della Facoltà di Architettura dell’Università degli Studi di
Roma – La sapienza. Contribui de modo significativo para a reflexão no campo
disciplinar da restauração com diversas publicações, entre as quais se destaca os
livros consultados: Avvicinamento al restaro: Teoria, storia, monumenti. Nápoles,
Liguori, 1997 e La reintegrazione dell’immagine. Roma: Bulzoni, 1976. Em
Avvicinamento... contempla, mais do que as técnicas, os princípios reguladores da
prática no trato da restauração, no sentido de garantir “aquela operosidade
consciente dos próprios deveres e dos próprios limites dos quais se adverte,
frequentemente, a ausência.”
58
CARBONARA, G. Avvicinamento... em parte II, cap. 8, trata do “Restauro
Científico”, pp. 231-268. Na parte III, cap. 2, aborda o “Restauro Crítico”, pp. 285-
301.
133
Assinala Carbonara que durante várias décadas o “restauro
científico” é visto como postura de absoluto rigor, justamente pelo
fato de representar importantes reparos às imprecisões e arbítrios
possibilitados pelas interpretações das primeiras teorias. Dois
fatores, no entanto, concorrem para que essa conduta seja
considerada superada, em meados do século XX, como ocorre
inevitavelmente com os postulados históricos:
- o primeiro é a afirmação de novas teorias estéticas, entre as quais a
de Benedetto Croce
59
, uma compreensão crítica atenta às
especificidades de cada obra e à sua trajetória no tempo, mais do
que aos aspectos estilísticos e enfoques evolutivos priorizados por
uma leitura de matriz positivista, como o era a do restauro científico;
- outro fator que contribui para o questionamento dessa posição é a
destruição avassaladora provocada pela Segunda Guerra Mundial,
que exige respostas rápidas e urgentes, ações em larga escala, não
compatíveis com a ação cautelosa e inflexível de selecionar
criteriosamente cada objeto de intervenção, de realizar estudos
(bibliográficos e de arquivos) e levantamentos (in-loco) rigorosos e
demorados antes de proceder à intervenção propriamente dita, como
querem os preceitos dessa linha de atuação.
Mesmo porque, nessas circunstâncias excepcionais não se trata
exclusivamente de reparo, recuperação e reconstrução de obras de
valor arquitetônico consagrado: as ações voltam-se de modo geral
aos bens comuns de caráter ordinário e devem suprir carências mais
imediatas. O próprio Giovannoni admite adaptações: “melhor um
restauro cientificamente imperfeito, que represente uma ficha perdida
na história da arquitetura, que a renúncia completa, a qual privaria as
nossas cidades do seu aspecto característico nos mais significativos
monumentos de arte.”
60
que se considerar um aspecto novo que aflora de forma
contundente: a questão emotiva, sentimental. A guerra comove,
revolve sentimentos, faz emergir motivações de caráter afetivo,
tornando discutíveis as prerrogativas ditas “científicas” da postura até
então em vigor.
59
Ver CROCE, B. Breviário di estética, 1931.
60
CARBONARA, op. cit., p. 248 (tradução da autora).
134
São esses questionamentos a colaborar para o desenvolvimento do
“restauro crítico”, entre os anos 1940 e 1960, principalmente por
mérito dos teóricos: Renato Bonelli, Roberto Pane e Agnoldomenico
Pica, que nesses anos apontam as dificuldades de aplicação das
orientações previstas pelo restauro científico e defendem a
necessária revisão. Os aspectos mais discutidos, segundo
Carbonara, eram: a orientação classificatória e positivista no modo
de entender as manifestações artísticas, a ênfase em uma
abordagem “evolutivana condução da análise histórica da produção
artística, um substancial desinteresse pelo componente estético do
problema, especialmente no que tange às recomendações de
soluções formais neutras, no aconselhamento ao “ambientamento”,
que acabam por subestimar as qualidades figurativas dos
monumentos. Destaca o autor que os debates mais expressivos do
ponto de vista filosófico, especialmente estético, ocorrem em
Nápoles e Roma.
Conforme destaca Carbonara, o restauro crítico parte da premissa de
que:
“cada intervenção constitui um caso em si, não enquadrável
em categorias (como aquelas meticulosamente indicadas
pelos teóricos do chamado restauro “científico”:
‘completamento’, liberação, inovação, recomposição, etc.),
nem adaptável às regras preestabelecidas ou a dogmas de
qualquer tipo, mas a se reinventar com originalidade, caso a
caso, nos seus critérios e métodos.”
61
De acordo com esse entendimento, o restaurador deve ter, além de
competência técnica, um profundo conhecimento da história da arte e
da arquitetura, condições que lhe permitem distanciar-se de decisões
arbitrárias, para encontrar a escolha apropriada, condizente com uma
adequada investigação histórico-crítica.
A discussão versa sobre os procedimentos mais comuns: a
reintegração de lacunas, a remoção de acréscimos inconvenientes, a
diferenciação de elementos novos, a reversibilidade e a escolha da
técnica a ser adotada nas operações a serem realizadas.
61
Idem, p. 285 (tradução da autora).
135
A qualidade da solução aplicada em cada operação está
necessariamente ligada à criatividade e à capacidade de invenção,
requisitos essenciais da ação arquitetônica. Uma criatividade que
deve ser orientada, ainda que não exclusivamente, mas em grande
medida para a conservação.
Uma das preocupações básicas é, através do juízo crítico, diferenciar
a obra arquitetônica de caráter excepcional, enquanto qualidade
artística e valor estético, da obra de valor documental, testemunho da
atividade humana, pois, segundo a concepção do restauro crítico, a
finalidade da ação é justamente liberar a “verdadeira imagem”. Uma
vez que os conceitos de qualidade não são permanentes, mas se
transformam com o tempo, estes exigem, portanto, o esclarecimento
dos motivos e dos critérios que amparam o reconhecimento de valor.
Conforme observa Carbonara, o restaurador alinhado com essa
vertente mostra-se mais confiante na sua própria capacidade crítica e
atribui prioridade ao valor artístico, pois a ele não interessa preservar
unicamente o valor da obra enquanto documento, mais do que isso,
o que realmente interessa é o esforço de atualizar o ato criativo.
Nesses termos, o restauro é entendido como processo crítico e ato
criativo, duas operações aproximadas em uma relação dialética, em
que a segunda é subordinada à primeira. Assim sintetiza o autor
essa atitude voltada a tornar viva e presente a obra de arte e de
arquitetura:
“Aqui se unem o reconhecimento e a satisfação derivada do
valor artístico-histórico com a necessidade de restituir à
obra a eficácia e a pregnância
62
que o tempo corroeu e
diminuiu. O restauro como avaliação crítica é paralelo à
história da arte, da qual extrai princípios e métodos;
representa, em essência, um caso particular, em que a
ação crítica se prolonga na prática. (...) demonstra o
62
Conforme definição do Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa
1.0.10: forma e estabilidade de uma percepção; lei ou princípio geral da teoria da
Gestalt segundo o qual a configuração perceptiva particular que reponta, entre todas
as outras potenciais, é tão boa quanto o permitirem as condições prevalentes, e
suas propriedades são a simplicidade, a estabilidade, a regularidade, a simetria, a
continuidade, a unidade, a concisão (p.ex., uma circunferência com pequenas falhas
no traçado é vista como se fosse perfeitamente fechada)
136
conhecimento do momento histórico e uma consciente
continuidade com o passado”
63
Sem dúvida, as definições carregam o peso de incorrer em
interpretações pessoais pouco rigorosas, pelo próprio vocabulário
usado pelos teóricos dessa vertente, (atualização, valorização, forma
completa, liberação da verdadeira forma, verdadeira unidade
figurativa), quando apropriado por agentes motivados por ações de
modernização e transformação arbitrária ou duvidosa.
Uma contribuição no sentido de aprimorar essa conduta e de conter
as imprecisões a que inadvertidamente induz pode ser reconhecida
na teoria de Cesare Brandi. Apelando mais uma vez a Carbonara,
admite-se que a filosofia do restauro na Itália, ainda hoje seu
ponto de referência no pensamento de Brandi, fundador e diretor do
Istituto Centrale di Restauro di Roma, o mais prestigioso organismo
nesse campo. A partir de uma orientação crítica de ascendência
kantiana e inspiração crociana, organiza seu pensamento, com
amplas e originais aberturas à fenomenologia de Husserl e ao
estruturalismo de Heidegger.
As escolhas transitam entre as teorias
Para situar os procedimentos de Lina Bardi em confronto com as
posturas a que faz referência, nada mais oportuno que iniciar com a
sua compreensão a respeito das conexões entre a história e as
memórias coletivas, entre a narrativa oficial e as diferentes
interpretações que constituem o cotidiano:
“Mas o tempo linear é uma invenção do Ocidente, o tempo
não é linear, é um maravilhoso emaranhado onde, a
qualquer instante, podem ser escolhidos pontos e
inventadas soluções, sem começo nem fim.”
64
Tempo e história nessa citação são sinônimos, o que equivale a
entender a história, como passado vivo que incide diretamente no
presente e conduz à reflexão. Vale observar que essa é uma das
63
Carbonara, op. cit. p. 278 (tradução da autora).
64
FERRAZ, op. cit. Citação de fechamento da publicação.
137
discussões propostas pela chamada “Nova História”
65
, uma
abordagem contemporânea que renuncia à temporalidade linear,
detendo-se nos múltiplos tempos vividos, entendendo que a
experiência individual se enraíza no social e no coletivo, como se
pretende analisar.
Fundamental para esta análise investigar o seu entendimento acerca
da locução “presente histórico”: “Existe porém outro tipo de Passado
que pode ser conservado mas deve viver ainda em forma de
‘Presente Histórico’, acompanhando o presente real da vida de todos
os dias.”
66
O termo já tinha sido nominado na mencionada Aula de arquitetura
67
e reaparece no texto sobre a intervenção que transforma o antigo
Palácio das Indústrias em nova sede da Prefeitura do Município de
São Paulo
68
nos seguintes termos:
“É preciso se libertar das ‘amarras’, não jogar fora
simplesmente o passado e toda a sua história: o que é
preciso é considerar o passado como presente histórico. O
passado, visto como presente histórico, é ainda vivo, é um
presente que ajuda a evitar as várias arapucas... Frente ao
presente histórico, nossa tarefa é forjar um outro presente,
‘verdadeiro’, e para isso é necessário não um conhecimento
profundo de especialista, mas uma capacidade de entender
historicamente o passado, saber distinguir o que irá servir
para as novas situações de hoje que se apresentem a
vocês, e tudo isto não se aprende somente nos livros.
Na prática, não existe o passado. O que existe ainda hoje e
não morreu é o presente histórico. O que você tem que
65
Ver a esse respeito texto de Jacques Le Goff em Enciclopédia Einaudi. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984. Verbete Memória, p.44. A revista Annales
d’histoire économique et sociale, criada em 1929 por Marc Bloch e Lucien Febvre,
provocou polêmica e surpreendente transformação nos domínios da historiografia.
Da Escola dos Annales, como passou a ser chamada, nasce a Nouvelle Histoire,
associada a importantes nomes como Emmanuel Le Roy Ladurie, Fernand Braudel,
Pierre nora, além do próprio Le Goff.
66
FERRAZ, op. cit., p. 276, em texto sobre o “Projeto Barroquinha”.
67
O primeiro parágrafo consta no texto da Aula Inaugural da FAUUSP de 1990,
publicada na revista Projeto n. 133, p. 105.
68
Sobre o projeto para a instalação da sede da Prefeitura Municipal de São Paulo no
antigo Palácio das Indústrias (1990-92), convém destacar a sugestiva ideia da
instituição “antikafkiana” mencionada por ela.
138
salvar aliás, salvar não, preservar são certas
características picas de um tempo que pertence ainda à
humanidade.
Mas, se a gente acreditar que tudo o que é velho deve ser
conservado, a cidade vira um museu de cacarecos. Em um
trabalho de restauração arquitetônica, é preciso criar e fazer
uma seleção rigorosa do passado.
O resultado é o que chamamos de presente histórico.”
69
Essas colocações fazem pensar à apreensão de uma dimensão
histórica que não se reporta a um passado idílico, o dos tempos idos
“que os anos não trazem mais”, como lastimava o poeta, mas que,
ao contrário, enxerga as coisas vivas do presente como resultantes
de todo um acúmulo de experiências passadas que lhe conferem
peso e significado cultural. Remete ainda à fronteira entre lembrança
e esquecimento, à imprescindível seleção implícita no processo de
reconhecimento daquilo que se elege para conservar. É natural
também associar essas reflexões com a visão do “restauro crítico”
acima discorrida.
Por outro lado, tal noção sugere de pronto uma aproximação com
aquela enunciada por Brandi em seu livro, Teoria da restauração
70
,
ao apresentar a história e a estética como os elementos centrais da
obra de arte ou do bem cultural sujeito aos interesses de
preservação.
Rever as contribuições de Cesare Brandi revela-se oportuno em
razão da autoridade representada pelo autor no domínio da
preservação e do restauro. A relevância de sua obra dá-se pela
busca de princípios e métodos de intervenção filiados ao
pensamento crítico e científico. Defende a postura rigorosa de que
toda e qualquer intervenção deva se apoiar na filologia e na
hermenêutica, ou seja, no estudo dos fenômenos da cultura por meio
69
FERRAZ, op. cit., p. 319.
70
BRANDI, C. Teoria da restauração. Trad. Beatriz M. Kühl. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2004. A tradução do livro para o português permitiu a maior divulgação
dessa obra fundamental no Brasil, bem como a ampliação e atualização das
discussões, conforme os debates mais recentes do panorama internacional.
139
de textos, documentos e, desse modo, se contrapor ao empirismo e
à arbitrariedade.
Uma primeira contribuição do autor equivale à apreensão da
peculiaridade da ação de conservação voltada ao bem cultural,
distinta daquela dirigida ao artefato comum. Em uma acepção
corrente a noção de restauro pressupõe a recuperação de uma
condição de uso. Se, para o artefato comum esse aspecto é
relevante, para a obra de arte, de acordo com Brandi, essa condição
pode ser secundária, tendo em vista a preponderância de sua
expressividade figurativa, frente às questões utilitárias.
Dessa apreensão decorre o primeiro corolário enunciado pelo autor:
“(...) qualquer comportamento em relação à obra de arte
71
,
nisso compreendendo a intervenção de restauro, depende
de que ocorra ou não o reconhecimento da obra de arte
como arte.”
72
O valor atribuído ao objeto de intervenção condiciona definitivamente
a ação, isto é, a própria intervenção deverá articular seu conceito não
com base nos procedimentos operativos, mas com base no conceito
que se faz da obra.
Assim conclui Brandi:
“Chega-se, desse modo, a reconhecer a ligação indissolúvel
que existe entre a restauração e a obra de arte, pelo fato de
a obra de arte condicionar a restauração e não o contrário.”
73
Para compreender o alcance da reflexão de Brandi, convém, em
primeiro lugar, retomar a sua definição de restauro:
“(...) a restauração constitui o momento metodológico do
reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física
71
A referência de Brandi à obra de arte deve ser contextualizada. Na atualidade
essa compreensão é mais alargada, subentende a noção do patrimônio numa
acepção mais ampla, equivalente a de bem cultural.
72
BRANDI, C. op. cit., p. 28.
73
Idem, p. 29.
140
e na sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas
à sua transmissão para o futuro.”
74
Conforme sugere Carbonara, da definição depreende-se que:
restauro é ato crítico, atento ao juízo de valor, dirigido ao
reconhecimento da obra na sua dupla polaridade estética e
histórica;
do reconhecimento surge o dever
75
de conservação;
por tratar de obras de arte (como mencionado, vale
estender a compreensão à noção de bem cultural, ou seja,
particulares expressões do fazer artístico, portadoras de
significado cultural), a restauração deve privilegiar a instância
estética, por constituir o fato basilar da “artisticidade”, aspecto
fundamental que define a obra de arte como tal;
a obra é entendida na sua totalidade indissociável de forma,
imagem e matéria (que veicula a imagem consubstanciada na
forma).
Cabe aqui esclarecer acerca do “momento metodológico”
mencionado na definição de Brandi. Segundo o próprio autor, a ação
de preservação se impõe como um imperativo categórico no próprio
instante do reconhecimento da obra. Tal reconhecimento advém de
modo intuitivo na consciência individual, representando porém uma
consciência coletiva que exige a conservação. O caráter
metodológico vinculado à ação impõe uma postura científica, a
adoção de um corpo de regras e diligências que orientem os
trabalhos, como único modo de conter o “casuísmo” da intervenção.
No entender de Brandi, o restauro está situado no momento da
manifestação da obra de arte como tal na consciência de cada um. A
ação encontra origem no momento de reflexão, nessa súbita
revelação que impõe a necessidade de transmissão ao futuro.
74
Idem, p. 30.
75
Nos termos colocados por Emannuel Kant (1724-1804), conforme Houaiss: “(...)
obrigação de agir segundo uma lei moral ditada pela pura razão, a despeito de
quaisquer inclinações sensoriais ou afetivas, ou mesmo de regras e valores de
origem religiosa ou política”
141
Restauro é, portanto, providência vinculada ao reconhecimento de
valor que, por sua vez, requer um processo organizado, lógico e
sistemático de instrução.
Essa idéia sobre a formulação do juízo estético, enquanto
reconhecimento de valor da obra de arte, apresenta afinidades com
as de Giulio Carlo Argan:
“O valor é, obviamente, um algo mais de experiência da
realidade ou da vida, pelo qual o objeto transcende a
própria instrumentalidade imediata; e este algo mais não
passa do objeto para o sujeito se a consciência, no
momento em que o recebe, não reconhece que ele se situa
além da esfera da contingência, na esfera dos valores
permanentes da civilização, da história.”
76
Sobre os componentes constitutivos do objeto de intervenção, assim
discorre Brandi:
“Como produto da atividade humana, a obra de arte coloca,
com efeito, uma dúplice instância: a instância estética, que
corresponde ao fato basilar da artisticidade pela qual a obra
de arte é obra de arte; a instância histórica que lhe compete
como produto humano realizado em um certo tempo e lugar
e que em certo tempo e lugar se encontra.”
77
Mais adiante pontua o caráter dúplice da historicidade:
“Foi dito que a obra de arte goza de uma dúplice
historicidade, ou seja, aquela que coincide com ato de sua
formulação, o ato de criação, e se refere, portanto, a um
artista, a um tempo e a um lugar, e uma segunda
76
ARGAN, G. C. História da arte como história da cidade. Trad. Píer Luigi Cabra.
São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 17. Com já mencionado, autor explicita a
afinidade ao mencionar Brandi diversas vezes, como na p. 28, quando afirma que
“Brandi reconhece que a obra de arte é percebida pela consciência em sua
historicidade”. Em outro trecho afirma: “O próprio Brandi exclui que a obra de arte
seja comunicação de mensagens ou conteúdos dados, os quais, de fato, se fossem
fielmente retraduzidos em palavras e conceitos, resultariam com freqüência
insignificantes ou incoerentes.” (p. 29-30).
77
Idem, p. 29. Conforme Argan, em Projeto e destino, p.59, o conceito de
“artisticidade”, em sentido fenomenológico, foi posto com clareza por Dino
Formaggio em L’idea di artisticità (1962). Argan aconselha ainda consultar a obra:
L’integrazione estética, de 1959, de Rosario Assunto.
142
historicidade que provém do fato de insistir no presente de
uma consciência (...)
O período intermediário entre o tempo em que a obra foi
criada e esse presente histórico que de modo contínuo se
desloca para frente, será constituído de outros tantos
presentes históricos que se tornaram passado, mas de cujo
trânsito a obra poderá ter conservado traços.”
78
O entendimento do presente histórico, formulado por Brandi, é
fundamental para a definição do momento adequado para situar a
intervenção de restauro.
“(...) o único momento legítimo que se oferece para o ato
da restauração é o do próprio presente da consciência
observadora, em que a obra está no átimo e é presente
histórico, mas também é passado e, a custo, de outro
modo, de não pertencer à consciência humana, está na
história. A restauração, para representar uma operação
legítima, não deverá presumir nem o tempo como
reversível, nem a abolição da história. A ação de restauro,
ademais, e pela mesma exigência que impõe o respeito da
complexa historicidade que compete à obra de arte, não se
deverá colocar como secreta e quase fora do tempo, mas
deverá ser pontuada como evento histórico tal como o é,
pelo fato de ser ato humano e de se inserir no processo de
transmissão da obra de arte para o futuro.”
79
Vale destacar a clara intenção de evidenciar a intervenção, não
mimetizar, não esconder, não confundir o público em geral, seja
composto por iniciados ou não.
Difícil saber se o presente histórico de Lina Bardi tem por base a
expressão brandiana
80
. Contudo sua origem e formação apontam
para uma familiaridade com a notável produção desse intelectual
78
Idem, pp. 32-33.
79
Idem, p. 61. (O grifo é nosso.)
80
Em debate realizado no MASP, em 25/08/09, por ocasião do lançamento do livro
Lina por escrito, Silvana Rubino (umas das organizadoras da publicação junto com
Marina Grinover) comenta a respeito da acepção crociana dessa expressão.
Benedetto Croce representaria certamente um dos pontos de contato entre os
presentes históricos de Lina Bardi e de Cesare Brandi.
143
italiano. Fato é que a citada Carta de Veneza surgiu na esteira do
debate criado entorno do chamado “restauro crítico” e tanto o
documento, como as idéias defendidas por essa tendência, são
materiais burilados pelo pensamento de Brandi e ainda permanecem
nos dia de hoje como referências válidas para aqueles que atuam no
campo disciplinar do restauro. Mais relevante que apontar essas
aproximações, talvez seja observar que a orientação geral do projeto,
sob certos aspectos, afina-se com os princípios apresentados pelo
teórico.
É oportuno reafirmar que não se trata aqui de pretender enquadrar
forçosamente a conduta de Lina como arquiteto disposto a lidar com
as preexistências conforme as diretrizes de uma precisa vertente da
teoria da restauração, e sim buscar afinidades no encadeamento
lógico do problema. Mesmo porque não se pode subestimar o peso
de sua formação, inclusive no tocante ao campo específico da
restauração, tão relevante na produção acadêmica de Roma, cidade
em que se formou. Os ensinamentos de Gustavo Giovannoni, aliás,
eram freqüentemente mencionados e confirmados pelo relato de
seus colaboradores mais próximos, enquanto referência de uma
significativa herança cultural adquirida. Daí o apreço pelo sentido
histórico do ofício do arquiteto, contra as posições mais abstratas e
simplistas do movimento moderno que defendiam fazer do passado
tábula rasa.
A história entendida como presente histórico e memória viva é o
mote da intervenção que promove um diálogo de tempos no território
da Ladeira da Misericórdia. Uma recriação, algo indicado como
pertinente pelo próprio Brandi, não obstante sua postura rigorosa:
“apesar de não entrar no campo da restauração, pode ser
perfeitamente legítimo também do ponto de vista histórico,
porque é sempre testemunho autêntico do presente de um
fazer humano e, como tal, monumento não dúbio de
história.”
Importante ainda analisar como é abordado pelo autor o problema da
conservação ou remoção de acréscimos extemporâneos sob os dois
elementos essenciais que constituem as obras objetos de
144
intervenção: o da história e da estética. Indagar em que medida se
aplica a razão histórica ou prevalece a razão estética, e buscar uma
alternativa em caso de eventual discrepância.
Observa Brandi que segundo a instância da historicidade, a princípio,
a adição é um novo testemunho do fazer humano e, portanto, da
história e como tal tem o direito de ser conservada. A remoção, ao
contrário, deve ser justificada, pois apesar de se inserir igualmente
na história, destrói um documento e não documenta a si própria, o
que equivaleria a um cancelamento de uma passagem histórica.
Disso decorre que, para a historicidade, a conservação da adição é
norma enquanto que a remoção é excepcional.
Do ponto de vista da estética, inverte-se o raciocínio: o acréscimo
reclama a remoção. Delineia-se, assim, o conflito entre as duas
instâncias e a resolução é determinada por aquela que tem maior
peso.
“E como a essência da obra de arte deve ser vista no fato
de constituir uma obra de arte e em segunda instância
no fato histórico que individua, é claro que se a adição
deturpa, desnatura, ofusca, subtrai parcialmente a vista,
essa adição deve ser removida (...)”
81
Vale enfatizar que será sempre um juízo de valor a determinar a
prevalência de uma ou de outra instância histórica ou estética na
conservação ou remoção dos acréscimos.
Lina Bo Bardi não cai na armadilha do excesso de zelo do presente
frente ao passado. Não acata as recomendações de
“ambientamento”, nem tampouco os clichês de um “novo
envidraçado” que, fingindo-se discreto, se apresenta com
espalhafato. Opta por uma calculada intervenção em que a ruína
continua ruína, assegurando assim sua presença como vestígio de
um tempo humano, ao mesmo tempo em que impede o avanço da
corrosão, do desmantelamento, por meio da consolidação estrutural
com o emprego dos contrafortes de argamassa armada, uma técnica
nova e apropriada. Os terrenos baldios propiciam projetos de novos
81
Idem, p.84. (O grifo é nosso).
145
edifícios que convivem com muros e vegetação preexistentes. Novos
usos diversificam e animam as atividades ali presentes.
É importante destacar a atenção do projeto ao espaço interno dessas
construções em que as modificações são claramente perceptíveis: as
paredes novas, que empregam a mesma técnica dos contrafortes,
distinguem-se daquelas mantidas. A transformação não ofende, mas
dialoga como o existente.
As escolhas notadamente pessoais, descoladas das posições aceitas
no campo da restauração, podem ser identificadas nas decisões de
pintar de branco as paredes, de remover as tintas da madeira dos
caixilhos, deixando evidentes o aspecto e a cor do material. Estas
atitudes são facilmente reconhecidas como marcas de um raciocínio
moderno. Coincidem com as estratégias de valorizar a autenticidade
dos materiais, de optar pela simplicidade e pela ausência de cor.
O patrimônio urbano
Ao se tratar da Ladeira da Misericórdia, fala-se de uma intervenção
em um trecho de cidade, uma ação que extrapola o edifício para se
reportar ao urbano, um contexto marcado pelos testemunhos da
arquitetura tradicional.
O entendimento da relação inseparável que atrela a arquitetura ao
território é condição essencial para a formulação do conceito do
patrimônio urbano, considerado em sua dimensão de bem cultural
coletivo, que ultrapassa os limites estritos do valor econômico, da
mercadoria. Tomar por referência a notável reabilitação do centro
histórico de Bolonha é indicação clara desse pressuposto. Trata-se
de uma ação exemplar elaborada em fins dos anos 1960 e realizada
ao longo das décadas de 1970-80: uma das primeiras ações de
grande repercussão internacional a reverter um fenômeno de
degradação e desvalorização que acomete não só Bolonha, mas
outras áreas centrais de importantes cidades européias. A situação
de desgaste agrava-se na mesma medida em que se pronuncia um
mecanismo de expansão urbana, associado à especulação
imobiliária que, ao privilegiar áreas periféricas para implantação de
novos projetos e serviços, relega os centros históricos à condição de
abandono.
146
A falta de investimentos particulares (e também públicos) contribui
para uma evasão acentuada de habitantes e para uma limitação de
uso, o que determina a permanência preponderante daqueles
usuários com poucos recursos financeiros para arcar com as
despesas das obras de recuperação e modernização das
edificações. Faz-se então necessária a intervenção do poder público
para promover investimentos e alterar aqueles processos gerados
pela atividade do mercado imobiliário.
No diagnóstico elaborado pelos idealizadores do programa, entre os
quais havia políticos, arquitetos e urbanistas ligados ao Partido
Comunista Italiano que administrava o município desde o pós-guerra,
pode ser notado o tom cético em relação ao modelo vigente de
expansão urbana e à situação dos sítios históricos:
“(...) conviene subrayar la necesidad de tener una visión
global del problema del centro histórico y su recuperación,
partiendo de un análisis crítico del sistema de desarrollo de
nuestro país y de las consecuentes tendencias en la
ordenación del territorio como causa primordial de la
destrucción actual de los centros históricos y de la
marginación de las clases sociales menos pudientes y de las
actividades más humildes. Dentro de este sistema, que se
traduce, por su parte, en un constante aumento de la
producción de casa nuevas e, por otra, en una
concentración de las instalaciones productivas dentro de las
áreas metropolitanas, está claro que el centro histórico
reviste hoy un valor marginal y subalterno.”
82
Parte-se então da premissa de que não se pode definir uma política
de conservação urbana desvinculada da política econômica e
territorial, ou seja, entende-se que os aspectos da conservação
estejam intimamente ligados aos fenômenos econômicos e sociais.
Nesse sentido, o centro histórico é considerado como um bem
cultural inalienável, como um notável patrimônio econômico edificado
que não pode ser desperdiçado, nem deixado nas mãos da
82
Na edição em espanhol de CERVELLATI, P. L., SCANNAVINI, R. Bolonia politica
y metodologia de la restauración de centros históricos. Barcelona: Gustavo Gili,
1976, p.1
147
especulação, mas que pelo contrário deve ser conservado e
recuperado para fins de habitação social, alijado de transformações
estruturais e funcionais a que, na ausência de uma ação tutelar de
natureza conservativa, estaria espontaneamente submetido.
Estão lançadas as bases da chamada “Conservação Integrada” que
obterá grande repercussão internacional após a “Declaração de
Amsterdã” (1975) que, sob influência das ações em Bolonha,
recomenda expressamente a conciliação entre as preocupações de
conservação e as diretrizes do planejamento urbano e territorial.
O resultado é uma intervenção cuidadosa que dispensa a devida
atenção à população residente e aos grupos de baixa e média renda,
que procura viabilizar a execução das obras de recuperação sem
provocar a expulsão dessa mesma população. O mecanismo de
gentrification
83
tão acentuado em ações mais recentes, em que essas
preocupações não são postas em evidência, é assim contido.
Outra questão pertinente na análise desse plano é o cuidado com a
materialidade arquitetônica e o trabalho meticuloso de levantamento
e análise das tipologias construtivas que antecederam as
intervenções. Esta é uma orientação fundamental, ditada pelo
respeito histórico, pelo reconhecimento de que o valor daquele
conjunto edificado está aportado em aspectos interligados entre si,
tais como: a configuração espacial, a técnica construtiva, o emprego
dos materiais, a organização interna dos edifícios. Isto significa que a
atenção está muito além da simplificação que considera tão somente
o volume, seu contorno, ou a aparência externa, para levar em conta
a arquitetura em toda sua inteireza.
[23]
Os rumos tomados pela experiência, em certos aspectos, se
distanciaram das premissas iniciais. Observou-se, por exemplo, que
a própria expansão da universidade colaborou para uma procura por
habitação nas áreas centrais, por parte de estudantes e professores
que necessariamente desalojaram antigos moradores de menor
83
O significado do termo, usado genericamente para indicar um processo de
transformação de uma zona popular em região nobre, é analisado em detalhes, nas
diversas nuances dadas por diferentes autores em texto de Silvana Rubino:
Gentrification: notas sobre um conceito incômodo”. In: SCHICCHI, M. C. et al. (org),
Urbanismo: dossiê São Paulo-Rio de Janeiro. Campinas: Rio de Janeiro: PUC-
Campinas, PROURB-UFRJ, 2003. A autora informa que o termo foi usado foi pela
primeira vez pela socióloga inglesa Ruth Glass em 1964.
148
poder aquisitivo. Esses dados confirmam que a cidade é organismo
vivo, sujeito a pressões e conflitos, que nem tudo pode ser decidido
na mesa dos planejadores e que deve haver espaço para
negociação. Provavelmente Lina Bardi alude a esses aspectos,
quando lamenta as limitações dos resultados obtidos
84
. Ainda assim,
essa intervenção continua a ser uma importante referência, e mesmo
com todas as ressalvas, mostra-se pertinente evocá-la por suas
preocupações sociais, por sua atenção aos habitantes do local, aos
usos peculiares e principalmente por respeitar os testemunhos
autênticos da cidade antiga, sem transformá-los em réplicas ou
simulacros.
84
FERRAZ, op. cit., p. 270: em texto que descreve o projeto da Ladeira da
Misericórdia, Lina Bardi menciona os erros cometidos em planos de recuperação
urbana de diversas cidades européias, entre as quais Roma e Bologna, em que os
moradores antigos são substituídos por populações de maior poder aquisitivo.
[23] Bolonha. Trecho do bairro de S. Leonardo. Levantamento e foto das obras de
recuperação. Fonte: FAZIO, 1997, p. 166.
149
A esse respeito, Giulio Carlo Argan ressalta os avanços obtidos pela
prefeitura de Bolonha e destaca que essa experiência foi tida como
modelo para intervenções análogas no centro histórico de Roma, no
período em que esteve à frente da administração municipal da
capital. Enfatiza o processo:
“de uma regeneração integral do tecido urbano do centro
através de procedimentos que, ao mesmo tempo, destinam-
se a restabelecer um grau de dignidade social e a submeter
os edifícios a uma restauração propriamente dita.”
85
Observa que nas camadas populares bolonhesas um grande
apego à cidade e ao bairro de origem, o que convalida a intervenção.
Assinala ainda que a administração pública consegue conter e
reprimir significativamente a especulação na construção civil.
É mais uma vez Argan quem formula questionamentos válidos para
afrontar a problemática articulação entre as ambições de projeto para
o futuro das cidades e a legitimidade de conservação do patrimônio:
“Podemos acaso dizer que nossas escolas de história da
arte preparem estudiosos capazes de participar de equipes
de projetistas, de colaborar no estudo dos processos vitais
da cidade, e não somente de colocar obstáculos e limites,
os quais têm, com certeza, sua razão de ser, mas apenas
na medida em que os pontos da conservação forem
enquadrados e, de certo modo, garantidos por um tipo de
cultura urbana que não repudie a sua historicidade, mas
dela tenha consciência dela?”
86
Argan defende uma postura ativa, ética, um compromisso político, e
não meramente analítico do próprio historiador da arte que para ele é
o mesmo que historiador da cidade. Se não fosse assim,
provavelmente não teria aceitado o desafio de atuar como prefeito de
Roma entre 1976 e 1979. Decididamente propõe uma reformulação
da história da arte como disciplina, quando coloca o “problema de
85
ARGAN, op. cit., p. 80.
86
Idem, p. 82.
150
uma nova (ou antiga) ética profissional, que reconheça como capital
a atividade do besorgen, de cuidar das coisas”.
Prossegue, definindo um novo papel para o historiador:
“Portanto, é necessário que os historiadores da arte
considerem o estudo científico de todos os fenômenos da
cidade como inerente à sua disciplina; a conservação do
patrimônio artístico como metodologia operativa inseparável
da pesquisa científica; a sua intervenção no devir da cidade
como o tema fundamental da sua ética disciplina (...)”
87
Importante destacar que Argan reitera sua convicção sobre a
complementaridade de ação entre o planejamento e a conservação:
“para revitalizar os centros históricos não se pode contar
apenas com as possibilidades técnicas de recuperação. Se
a reanimação deve traduzir-se numa refuncionalização mais
orgânica, é claro que a intervenção dos técnicos do
patrimônio cultural é necessária desde a primeira fase do
estudo do projeto e que tal intervenção não deverá ser
limitada aos centros históricos propriamente ditos, mas
estendida a toda a área da cidade na medida em que influa
no centro histórico e o condicione. E, restaurar, é bom
lembrar, não significa recuperar, nem modernizar.”
88
Essa é uma interação vislumbrada por Argan para o desempenho
profissional do historiador, mas que cabe com maior pertinência ao
arquiteto, pela própria natureza propositiva de sua profissão: uma
ação que não pode ser exclusivamente defensiva e inibidora, mas
que deve entrar no mérito das propostas, dos projetos para o futuro
da cidade.
Diferente dos critérios de intervenção adotados na experiência de
Bolonha, assim como das oportunas observações de Argan, que
encontram afinidade com a atuação de Lina Bo Bardi cuja atenção
volta-se ao centro histórico comprometido com suas raízes culturais
e com a população que nele habita – o Programa de Recuperação do
87
Idem, p. 83.
88
Idem, p. 80.
151
Centro Histórico de Salvador (plano iniciado em 1992), considera
prioritariamente o território urbano como um produto econômico.
Vale-se de estratégias de marketing para a construção da imagem de
uma administração pública ancorada em uma pseudovalorização da
identidade cultural e das tradições da Bahia em seus aspectos mais
estereotipados. Um procedimento muito em voga no panorama
internacional que aponta para o consumo cultural e o turismo de
massa como elementos fundamentais para reverter processos de
degradação e abandono das áreas centrais.
Conforme sinaliza, ainda que sem ampla divulgação, o texto de um
documento elaborado pela CONDER (Companhia de
Desenvolvimento da Região Metropolitana de Salvador), órgão do
governo estadual que, com o IPAC (Instituto do Patrimônio Artístico e
Cultural da Bahia), é encarregado de gerenciar a intervenção, a área
recuperada deve assumir as características de um “shopping center
ao ar livre”, gerando uma dinâmica que contaminaria saudavelmente
as quadras vizinhas (...) viabilizando o Centro Histórico”
89
. No
entanto, essa visão da área como empreendimento comercial, mas
que depende do investimento público para sobreviver, revela a
incoerência, a hipocrisia e inadequação da intervenção.
A implantação do programa determina a remoção e indenização de
cerca de mil e novecentas famílias que vivem precariamente nessas
áreas degradas. Essas pessoas vivem, até então, naqueles locais
justamente por pagarem preços muito baixos de aluguel em
habitações insalubres, ou por ocuparem construções invadidas. Vale
destacar que não se verifica, por parte dessa população, resistência
ao desalojamento. Entre outros motivos, a oferta de indenização, por
mais baixa que seja, é um atrativo. Além disso, não nenhuma
forma de organização comunitária que favoreça uma reação
minimamente programada. Lamentavelmente não há preocupação
do poder público com o destino dessa população que se desloca
para outras regiões em condições igualmente precárias.
89
Apud Sant’Anna, 2003.
152
Como assinala Márcia Sant’Anna
90
o que determina o perfil
centralizador da gestão da administração pública é essencialmente:
“(...) a possibilidade de controlar e manter a área
recuperada como uma espécie de out door permanente da
administração estadual e uma ‘sala de visitas’ sempre
arrumada para o turista. Para que funcione desse modo, o
Pelourinho tem de ser pintado constantemente e se parecer
o tempo todo com uma fotografia. Tem que ser um hiper
Pelourinho, sempre novo em folha e isento das marcas de
suas próprias contradições, a fim de cumprir essa função
midiática e múltipla de signo da baianidade, ícone do
turismo e do lazer e de símbolo do consenso e do bom
governo.”
91
Convém ressaltar o equívoco da concepção cenográfica que ignora
as tipologias tradicionais, as relações de parcelamento do solo que
compõem a substância histórica do espaço urbano. Nesse sentido é
igualmente discutível a estratégia de permeabilidade para uma nova
configuração espacial de certas quadras associadas a novos usos
(encontro e lazer), modificando o caráter peculiar dos quarteirões na
estrutura espacial da cidade tradicional. Vale-se da aplicação acrítica
de um mecanismo recorrente nas ações contemporâneas que
privilegia a articulação entre os lotes, a ligação entre o edifício e a
cidade. Ignora, por outro lado, a estrutura urbana consolidada no
tempo, as relações entre espaços construídos e espaços abertos,
certos elementos de valor documental como os anexos que formam
conjuntos de construções enfileiradas nos fundos de lotes,
construídas para os ex-escravos após a libertação.
[24]
A concepção de lugar turístico apartado do cotidiano e da vida da
cidade, com seu caráter superficial, não colabora para vencer as
dinâmicas de esvaziamento que constantemente ameaçam esses
90
Em texto intitulado: “A recuperação do Centro Histórico de Salvador: origens,
sentidos e resultados”, publicado na revista RUA Revista de Urbanismo e
Arquitetura, n. 8, Salvador, jul/dez 2003. O artigo desenvolve uma análise
aprofundada do programa de recuperação, de seus critérios e etapas de
implantação.
91
Idem, p. 52.
153
territórios, nem contribui para solucionar os sérios problemas
estruturais ligados à pobreza urbana.
Todo projeto de arquitetura e urbanismo, depende de um conjunto de
ações políticas de valorização humana para se concretizar.
Impossível requalificar e recuperar cidades se degradação das
condições mais gerais de vida.
Nesse sentido, nem o projeto de Lina Bo Bardi se mostra imune à
persistência das graves questões estruturais e da degradação social.
De qualquer forma, sua ação se contrapõe ao espetáculo, evita
transformar o Pelourinho em alegoria turística.
Em sua proposta para a Ladeira da Misericórdia, Lina Bardi mantém
o uso comercial e de serviços no pavimento térreo. Nada em comum
com as atividades voltadas unicamente para turistas, associadas a
um novo agente empreendedor. Por outro lado, não exclui a
presença de visitantes, atraídos por novos usos propostos para os
terrenos vagos, como o restaurante Coaty. Desse modo, projeta uma
nova arquitetura que se coloca como afirmação de um novo tempo.
Como sugere Michael Sorkin: “a melhor defesa de uma arquitetura
histórica autêntica é o complemento de uma autêntica arquitetura
contemporânea.”
92
92
Em artigo publicado na revista RUA, n. 8, Salvador, jul/set. 2003.
[24] Salvador. Vista aérea mostra espaços requalificados no interior das quadras.
Proximidade do largo do Pelourinho ilustra a concepção cenográfica da intervenção.
Fonte: COUTO, [et al.], 2000, p. 101 e 105.
154
Algumas considerações
A história entendida como memória viva é a matéria-prima da
arquitetura de Lina Bo Bardi, cuja síntese pode ser reconhecida na
busca de superação da fratura histórica entre “antigo” e “moderno”,
na construção de uma continuidade entre passado e presente.
Supõe-se, portanto, que a chave de leitura para a compreensão de
sua atuação em bens culturais passe por essa noção de
continuidade histórica. Não se trata do restabelecimento daquela
condição de tempos mais distantes em que a intervenção sobre as
preexistências obedecia unicamente aos ditames e conveniências do
presente, mas um processo de ativação do exercício crítico atento e
indispensável em relação aos testemunhos do passado que não
norteie a conservação, mas, sobretudo, oriente a transformação
criteriosa do bem a ser submetido à intervenção.
Sua compreensão sobre a história é, portanto, tida aqui como
condição central para entender a postura de intervenção em
preexistências associadas à noção de patrimônio arquitetônico. No
prefácio de sua obra, Contribuição propedêutica ao ensino da teoria
da arquitetura, ao discorrer sobre a atuação recomendável do
professor em fazer despertar no estudante o desejo de reflexão e
pesquisa, tece considerações sobre a relação entre a arquitetura e a
história:
“(...) a arquitetura moderna é, como todas as atividades
humanas, o produto da experiência do homem no tempo, e
de que não existe fratura entre o assim chamado “moderno”
e a história, visto ser o “moderno” antes o produto da
história mesma, através da qual somente é possível evitar
as repetições de experiências superadas. É a história,
quando não entendida como ‘uma coisa de tesouras e cola’,
mas como coisa viva e atual, revivida em seus problemas
fundamentais dotados de transmissibilidade e fecundos
ensinamentos, essa história que, como é óbvio, não é
aquela dos manuais escolares, monótona e de segunda
mão, capaz apenas de sugerir a idéia de que o ‘passado’
passou e não tem mais validade, e que o mundo começou
155
hoje, atribuindo-se ao homem, assim, a tarefa de refazer,
sozinho, a experiência do ‘paraíso perdido’; mas, assim a
história que não seja a mera ‘História’ abstrata e sim a vida
concreta e fecunda.”
93
Ao mesmo tempo em que seu entendimento de história mostra-se
afinado com a concepção da mencionada Nova História, suas
palavras também comprovam a percepção de que o panorama
contemporâneo impõe a revisão crítica do modernismo ortodoxo, o
que corresponde à antecipação dos debates mais recentes,
principalmente naquilo que diz respeito ao questionamento da
dominante visão anti-histórica que permeia o ambiente cultural da
primeira metade do século XX
94
.
A história como vida “concreta e fecunda” é a mola essencial da
intervenção em edifícios ligados às discussões do patrimônio
construído, em que se aplica a noção do presente histórico. Uma
noção que se apresenta como a motivação essencial para subordinar
a preexistência e sua representação, enquanto conjunto de valores e
costumes, à fruição do presente.
A atenção à arquitetura como fato cultural, como “organismo apto à
vida”, que se traduz na sua acuidade profissional em elaborar um
programa de usos pertinente, exeqüível e duradouro, bem como no
devido equacionamento do espaço arquitetônico pronto a acolher as
atividades programáticas, é o motor de sua ação.
Vale relembrar sua habilidade em reconhecer e ativar práticas
sociais, especialmente no tocante ao articular conhecimentos e
experiências eruditas àquelas populares. Pois bem, a intervenção
resulta dessa combinação entre a visão contemporânea da história e
essa percepção profissional aguda que se apropria dos meios
convenientes para materializar suas intenções plásticas e
construtivas, articuladas à configuração de um programa funcional
93
Em BARDI, Lina Bo. Contribuição propedêutica... pp. 5-6. Texto elaborado em
1957.
94
É necessário ponderar que na passagem dos nãos 1970 para os 80, anos em que
a autora freqüenta o curso da FAUUSP (precisamente entre 1977-81), ainda se
pensava e fazia arquitetura como se a vertente racionalista e funcionalista fosse a
última palavra de referência metodológica para a produção. Os ventos pós-
modernistas agitavam o ambiente acadêmico, de modo geral, como uma espécie de
modismo, uma adesão às novas tendências da forma, sem a necessária discussão
conceitual.
156
rico e versátil. É o que Marta Bogéa reconhece como competência
em edificar”, recorrendo a Choay.
95
Sem dúvida, sua ação colabora para maturar outra condução das
políticas culturais do SESC. Com uma visão que valoriza as
atividades esportivas como chances de encontro e recreação, ao
invés de competição e práticas agonísticas, acaba por contribuir para
o novo enfoque da instituição, agora centrado em atividades culturais
e práticas sociais, mais do que em práticas esportivas, como de
início.
Convém, contudo, enfatizar mais uma vez que o exercício do
restauro e de intervenções correlatas impõe, ao contrário da
confiança exacerbada na capacidade de criação e na aspiração à
novidade contida na invenção do projeto do novo. Imprescindível,
portanto, considerar a importância estética e histórica da obra a ser
submetida à intervenção, além de cotejar os critérios de projeto com
as teorias da restauração. Como já destacado, esse exercício
reclama não só conhecimento das teorias, mas também das técnicas
tradicionais e contemporâneas, e principalmente a contenção da
vaidade para impedir a adoção de soluções descomedidas que
sobrepujem os valores reconhecidos na preexistência. O diálogo de
tempos não admite suplantar o significado cultural de uma herança
do passado, mas sim a aceitação do transcorrer do devir histórico e
da convivência respeitosa entre as diferentes épocas.
Os projetos aqui analisados evidenciam uma combinação de
comedimento e ousadia na atuação. Comedimento próprio de quem
busca a simplicidade, a intervenção nima indispensável para
possibilitar o desenvolvimento das atividades previstas no programa
arquitetônico. Ousadia própria da atitude corajosa de quem abre
caminhos, inaugura procedimentos novos. O SESC Pompéia,
particularmente, surge como marco do reconhecimento da dignidade
da arquitetura de caráter ordinário, um exemplar da arquitetura
industrial, até então visto com certo desprezo pelos críticos, pelos
técnicos responsáveis pelos inventários do patrimônio arquitetônico.
95
Em artigo já citado, publicado nos Anais do XIII Simpósio Multidisciplinar da USJT,
São Paulo, set. 2007, cujo título é “Lente 2: Centro histórico da Bahia: antigo e
moderno.”
157
É o projeto de Lina Bardi a valorizar aquela arquitetura, o
tombamento reconhece a intervenção como um acréscimo de
significado, uma ulterior qualidade a ser preservada, na medida em
que sua ação tinha explicitado o juízo de valor acerca da arquitetura
existente.
O conjunto após a intervenção, além de ser referência obrigatória
nos debates sobre revitalização de edifícios históricos, passa a ser
objeto de uma discussão mais ampla que extrapola os limites do
âmbito da conservação do patrimônio arquitetônico. Como observa
Luís Antônio Jorge:
“Este projeto é um acontecimento para a geração de
arquitetos formada nos anos 1980, que reconhecia na obra
um ponto de inflexão na história da arquitetura
contemporânea; dissonante num contexto de afasia;
extravagante, provocativo e delirante onde se via
repetição; poético e criativo, ocupando um vazio de debates
e reflexão.”
96
Não resta dúvida de que atribuir um uso compatível com as
características do edifício, reintegrando-o a um circuito dinâmico de
fruição que, aliás, é aspecto essencial da arquitetura, é um passo
importante para o resgate da arquitetura, removendo-a do “limbo”
representado pela condição de abandono.
Não há como negar, entretanto, que a decisão de demolir as paredes
internas e de descascar as fachadas voltadas para a rua, bem como
o descarte das máquinas
97
são atitudes que contrariam as
orientações ligadas à conservação dos bens identificados como
patrimônio industrial.
Importante, portanto, confrontar os critérios de intervenção com as
recomendações de um documento arrolado como referência
fundamental: a Carta de Veneza. A questão do uso dos bens
culturais, abordada no artigo 5º, enfatiza a importância do uso para a
96
Op. cit., p. 108.
97
Provavelmente, quando Lina Bardi é contratada para desenvolver o projeto, as
máquinas já não estão mais lá, no espaço da fábrica desativada.
158
conservação, mas estabelece limites precisos para as
transformações:
“A conservação dos monumentos é sempre favorecida por
sua destinação a uma função útil à sociedade; tal
destinação é portanto, desejável, mas não pode nem deve
alterar à disposição ou a decoração dos edifícios. É
somente dentro desses limites que se deve conceber e se
pode autorizar as modificações exigidas pela evolução dos
usos e costumes.” (o grifo é nosso)
Além das modificações realizadas nos antigos galpões, a solução
arquitetônica dos novos edifícios projetados por Lina Bo Bardi para
as atividades esportivas também diverge do artigo da Carta de
Veneza, conforme segue:
“A conservação de um monumento implica a preservação
de um esquema em sua escala. Enquanto subsistir, o
esquema tradicional será conservado, e toda construção
nova, toda destruição e toda modificação que poderiam
alterar as relações de volumes e de cores serão proibidas”.
Dois aspectos, no entanto, devem ser destacados: o primeiro refere-
se à atribuição de valor, o segundo, à natureza da intervenção em si.
Quanto ao reconhecimento de valor, convém destacar que os
edifícios industriais do SESC Pompéia não configuram obras-primas
inconfundíveis, de valor inestimável, obras que exigiriam limites mais
severos de intervenção, ou até mesmo uma postura de conservação
integral. Ao contrário, representam alguns entre tantos exemplares
de edifícios industriais, de valor documental. É necessário
reconhecer que a atuação de Lina Bardi impediu a demolição, fim
previsível reservado à maioria dos edifícios semelhantes,
especialmente os não tombados. Quanto à natureza da intervenção,
admite-se, a princípio, que o uso do termo ‘restauro’, em sentido
estrito, seja impreciso e inadequado. O projeto de Lina Bo Bardi
corresponderia, a rigor, a uma ação de requalificação, reutilização ou
reciclagem, na medida em que reconhece a dignidade e o valor
documental da arquitetura preexistente e, mediante a transformação
159
elaborada, potencializa e resignifica a preexistência, reanimando e
reinventando tanto o programa, quanto a qualidade do espaço.
A relevância do novo uso prepondera em relação à predisposição de
conservação da arquitetura preexistente, o que acaba por conduzir
as modificações operadas nos edifícios da antiga fábrica.
Certamente, o caráter da arquitetura industrial, que se afirma como
recipiente capaz de abrigar grandes máquinas em amplos e
contínuos espaços de trabalho, marcados pela grelha estrutural
colabora para ratificar a decisão de deixar intacto o volume
constituído pela cobertura e paredes externas, além da estrutura
interna composta pelas vigas e pilares de concreto.
Vale ressaltar a integridade da ação de Lina Bardi no tocante ao juízo
de valor atribuído “não só às grandes criações, mas também às
obras modestas”, nos termos referidos pela Carta de Veneza. Do
mesmo modo, é importante admitir a atenção à autenticidade da
arquitetura preexistente e o rigor empregado na inserção dos
elementos novos que segue as recomendações do artigo 9º da Carta
de Veneza: “todo trabalho complementar reconhecido como
indispensável por razões estéticas ou técnicas destacar-se-á da
composição arquitetônica e deverá ostentar a marca do nosso
tempo.”
Embora seja possível identificar pontos de concordância entre as
posturas teóricas e os critérios de intervenção adotados por Lina Bo
Bardi, é, por outro lado, indiscutível certa desenvoltura na
apropriação e reinterpretação dessas noções a que faz menção.
Importante, entretanto, notar que ela tende a acolher com maior
entusiasmo as posições do restauro crítico, não por serem mais
favoráveis à estratificação das temporalidades, mas principalmente
por permitirem atualizar o ato criativo.”
98
Convém notar que, no caso específico do Brasil, é prática comum
confundir recuperação e reconstrução, o que possivelmente se deve
ao freqüente descaso concedido às operações de manutenção
ordinária em bens culturais. As intervenções em geral ocorrem
98
Em Il restauro architettonico, verbete da Enciclopédia Universale dell’Arte, vol XI,
Veneza-Roma, 1963, reeditado em BONELLI, R. Scritti sul restauro e sulla critica
architettonica. Roma: Bonsignori, 1995, p. 30.
160
quando o estado de deterioração é tão avançado que a intervenção,
assumindo grandes proporções, revela a necessidade de efetuar
várias substituições de elementos originais. Tratando-se de práticas
freqüentes, acaba-se perdendo a preocupação com a autenticidade
das peças componentes. Nessas circunstâncias, os elementos
antigos autênticos acabam por se confundir com peças substituídas e
refeitas. Tudo ganha um aspecto uniforme, renovado, com se tivesse
sido recém acabado. Além disso, as transformações descuidadas,
lamentavelmente, ainda se apresentam como procedimentos
comuns, sejam resultantes de acréscimos, que de subtrações, sem a
devida atenção ao reconhecimento de valor da preexistência.
A experiência de Lina Bo Bardi é, portanto, diferente dos
procedimentos usuais, seja dos especialistas, seja dos arquitetos em
geral. Diferente das reconstruções que se fazem necessárias em
função da precariedade e estado de degradação a que chegam os
edifícios, depois de um longo e tortuoso percurso de desleixo e
abandono, de ausência de manutenção ordinária, quando finalmente
são submetidos à intervenção. Difere também do emaranhado entre
restauro e reconstrução, quando a necessidade de substituição é
incontornável, quando a reparação não é mais possível, quando as
lacunas são numerosas a comprometer a integridade e autenticidade
do conjunto. Coloca-se, isto sim, como intervenção afirmativa que se
distingue da preexistência, possibilitando não só a diferenciação,
mas também a reversibilidade, na medida em que os acréscimos são
autônomos e independentes da estrutura primitiva.
Nesse sentido, é louvável reconhecer a pertinência da ação que
distingue o novo do antigo e se reserva o direito de introduzir novos
elementos com parcimônia e deferência à arquitetura existente para
viabilizar uma nova apropriação desse espaço arquitetônico.
Desse modo, é cabível aqui comparar a atuação de Lina Bardi com a
de Carlo Scarpa (não obstante as evidentes diferenças de valoração
do bem submetido à intervenção): assim como ele que, em sua
intervenção no Castel Vecchio de Verona, contribui para a
configuração de uma narrativa arquitetônica ativada com o
deslocamento do usuário no espaço, deixando rastros para uma
releitura da preexistência, também Lina Bo Bardi favorece uma
161
apropriação pessoal, assegurando as possibilidades de novas
interpretações, pessoais e coletivas.
O crítico italiano Francesco Dal Co, ao comentar a obra de Scarpa
99
,
marca sua posição contrária à interpretação de certo crítico anglo-
saxônico, não nomeado, mas cujas pistas levam a Reyner Banhan. O
que a crítica anglosassone interpreta erroneamente como falta de
erudição, no entender de Dal Co representa a apreensão de uma
cultura genuína, o domínio do ofício, equivalente à afirmação de uma
espécie de dialeto do fazer arquitetônico. Destaca, dessa forma, a
atuação de Scarpa como resultado da apropriação do saber dos
artífices revisitado pela linguagem moderna. Uma experiência que
articula, portanto, os princípios do movimento moderno com a
tradição vernacular. Um traço que se evidencia em diversos aspectos
do seu trabalho, tais como: nos desenhos vistos como processos
contínuos de aprimoramento, como pensamento expresso
graficamente, voltado à invenção; no cuidado com o detalhe,
elemento essencial de articulação entre as partes e o todo; na
narrativa poética presente na sua composição arquitetônica.
Todos esses aspectos mencionados permitem aproximar as
atuações de Lina Bardi e Carlo Scarpa. Interessante atentar para
esse operar de outros tempos, do imprescindível desenho elaborado
à mão, dos croquis aparentemente exaustivos para Scarpa, lúdicos
para Lina, expressivos e absolutamente resolutivos para ambos.
No que concerne às teorias do campo disciplinar do restauro, hoje se
mostram evidentes os limites do restauro científico, principalmente
quanto à prescrição de esquemas redutivos, como a proposição de
elementos neutros e as soluções de ambientamento”. Da mesma
forma, questiona-se o menosprezo dos valores estéticos em relação
aos históricos, como se o respeito histórico impusesse uma ação
tímida de projeto, o que acaba por distanciar de uma solução mais
corajosa, para enveredar por um caminho ambíguo, incerto, que não
assegura certamente a obtenção de qualidade na intervenção. Não
obstante o reconhecimento desses equívocos é, por outro lado,
99
Em palestra proferida sobre a obra do arquiteto veneziano, na Bienal de
Arquitetura de São Paulo, 2005.
162
visível o avanço obtido em relação às posturas precedentes,
justamente no que se refere ao respeito histórico. Antes dessa
postura, as ações oscilaram entre a incúria e o imediatismo das
intervenções de cunho viollettiano, propensas a eliminar os sinais da
passagem do tempo, para recobrar a unidade de estilo ou a condição
primitiva, identificando valor exclusivamente na origem do objeto de
intervenção.
A crise do pós-guerra acelera a revisão do restauro científico e
alimenta a formulação do restauro crítico a partir dos anos 1950.
Carbonara
100
alerta para as críticas dos anos 1960-70 que alegam
superação das bases filosóficas sobre as quais estava fundado o
conceito do restauro crítico. Isso ocorre, provavelmente, pelo retorno
dos interesses pragmáticos, de um lado, e neo-positivistas, de outro.
Como se diante de questões prementes a teorização representasse
um acovardamento.
Os debates mais recentes vinculam a teoria de Brandi ao restauro
crítico, afirmando que o restauro, longe de ser uma ação empírica,
acha seu fundamento na história e na crítica e, antes ainda em uma
reflexão estética.
101
Giovanni Carbonara indicações precisas a respeito de uma
possível ação de restauro que supera o limite da pura conservação”
para afrontar o problema da criação:
“A diferença entre o antigo agir espontâneo e instintivo sobre
os monumentos e a ação requisitada pela cultura moderna,
consiste no constante controle crítico sobre o projeto; nesta
perspectiva,(...) o restauro poderia ser também pensado
como operação crítica desenvolvida fazendo-se uso do
mesmo sistema lingüístico que caracteriza o objeto da
investigação-restauro,(...) recorrendo-se ao sistema verbal:
sob este aspecto a operação de restauro se apresentaria
como ato de ‘metalinguagem’, isto é, como meditação e
100
Em Avvicinamento..., p. 295.
101
Idem, p. 292.
163
reflexão, figurativamente expressa, sobre outro fato
figurativo.”
102
Coloca-se então em discussão uma concepção de restauro como
ação complexa e aberta a adições criativas, tal qual uma gina de
crítica literária que pode ser plena e legítima literatura. Uma ação
análoga àquela chamada por Brandi de “recriação”, mas que o autor
situa fora do âmbito da restauração.
Vale destacar que essa compreensão é elaborada no interior do
campo disciplinar do restauro arquitetônico, naturalmente mais
restritivo às transformações. No entanto, mais incisivo que o debate
interno, a reflexão sobre o projeto, nos dias de hoje, colabora
decididamente para a diluição da fronteira entre restauro e projeto.
Uma tendência contemporânea corrobora essa aproximação:
enquanto o restauro é chamado a intervir, requalificar, modificar para
atender a necessidades vitais de transformação, o projeto é chamado
a considerar as preexistências, a levar em conta o contexto em que
se insere, a tirar partido da experiência histórica, a avaliar cada
demolição, cada destruição.
A força do passado e a concordância acerca do seu valor tendem a
se impor ao arquiteto deus ex machina construtor de um mundo
novo, obrigando-o a enfrentar o conflito entre preservação e
inovação. Assim faz Lina Bo Bardi com coerência e desenvoltura, por
entender que memória não é relíquia, mas sim lugar do imaginário e
da recriação.
102
CARBONARA, G. La reintegrazione dell’immagine. Roma: Bulzoni , 1976, p. 108.
(Tradução da autora.)
Quarteirão em Schutzenstrasse, Berlim (1992-1997). Fonte: http://www.artnet.com/artwork/425157305/137232/estate-of-aldo-rossi-teatro-genova-detail-study.html . Acesso 09/10/09
Desenho Teatro Del Mondo. Fonte: ARNELL e BRICKFORD, 1991, p. 237. / Croqui Cemitério de Modena. Fonte: http://www.artnet.com/artwork/425157305/137232/estate-of-aldo-rossi-teatro-
genova
-
detail
-
study.html
. Acesso 09/10/09.
165
Aldo Rossi: o projeto arquitetônico como reflexo
da tensão entre permanência e transformação
A “Escola de Veneza” e a arquitetura analógica
“(...) qualquer cultura de projeto vive de uma intensa dialética
entre continuidade e descontinuidade, entre permanência e
mutações, entre recorrências e casualidades. Por um lado não
pode existir um autêntico avanço de uma pesquisa se esta não
goza de uma relativa estabilidade no tempo confirmando os
paradigmas, os temas e os instrumentos disciplinares de que se
alimenta; por outro, se não interviessem ciclicamente improvisas
reviravoltas ou adaptações talvez traumáticas dos quadros
teóricos e operativos consolidados, a própria pesquisa arriscaria
repetir-se em fórmulas experimentadas, caindo em uma
imobilidade perigosa.”
1
Nos anos 1970, a arquitetura italiana ocupa uma posição significativa
no panorama internacional por conta da ação de arquitetos que
convertem em invenção e novidade conteúdos de caráter fortemente
identitário, ancorados no estudo das tipologias da cidade tradicional.
Aldo Rossi (1931-1997) é um desses arquitetos que, junto com Carlo
Aymonino, Giancarlo De Carlo, Vittorio Gregotti e Giorgio Grassi,
formam o grupo La Tendenza, também conhecido como Escola de
Veneza. A partir da herança deixada por Ernest Nathan Rogers
(1909-1969), importante ponto de referência da cultura arquitetônica
italiana dos anos 1950-60, reintroduzem conceitos como ‘tradição’,
‘história’ e ‘monumento’, termos praticamente banidos da linguagem
moderna teorizada e experimentada na primeira metade do século
XX.
Entre outras correntes neoracionalistas, esse grupo revê os temas da
modernidade, procurando constituir uma relação teórica e operativa
entre a análise urbana e o projeto de arquitetura. Uma pesquisa que
1
Em PURINI, F. Permanenze e mutamenti nell’architettura italiana. Roma: Palombi,
2004, p. 5. (Tradução da autora).
166
se desdobra em três enfoques principais: a conexão entre a tipologia
arquitetônica e a forma urbana; a concepção do projeto como
expressão da cidade; a correlação entre tradição e inovação.
[1]
O arquiteto Franco Purini
2
observa, de modo apropriado, que essa
orientação se manifesta em uma zona de eqüidistância entre três
diferentes pólos, indicados a seguir, sem entretanto se confundir com
nenhum deles:
a posição que se identifica com a radical negação da história
defendida pelas vanguardas modernistas;
a orientação historicista do pósmodernismo, um historicismo
muitas vezes culto e emotivo, mas que não tem
necessariamente compromisso com o rigor da releitura, nem
com a coerência construtiva;
a atuação do campo disciplinar da conservação e restauro.
2
PURINI, op. cit., p. 12.
[1] Rossi. Estudo para quarteirão em Schutzenstrasse, Berlim.
Fonte: Revista Casabella 654, p. 17.
167
Dentro dessa perspectiva, a arquitetura de Aldo Rossi afirma-se
como expressão da cidade e, conseqüentemente, transita numa
posição de centralidade entre inovação e tradição. Valendo-se da
primazia da cultura humanista impregnada na experiência italiana, da
referência da escala humana, forte elemento de identidade da cidade
tradicional, busca parâmetros de criação duradouros, procedentes da
reinterpretação da herança clássica. Parâmetros esses que se
propõem como modelos de uma ação disciplinar de projeto em
estreita ligação com a investigação teórica e com a observação da
cidade existente.
Vale destacar as considerações de Purini
3
acerca desses parâmetros
de projeto que, segundo ele, se apresentam imbuídos de realismo.
Um realismo que, conforme destaca o autor, não se confunde com a
prática que reduz a arquitetura a ofício correto, mas sempre
subalterno, porque submetido exclusivamente a decisões externas.
Não se confunde tampouco com a concessão “remissiva” do projeto,
preso às normativas, como o da escola ligada a Benevolo, Cervellati,
entre outros, vista com reservas, no entender de Purini, por encarar a
arquitetura como um serviço social, subestimando sua natureza
artística. Um realismo também distante do projeto como resposta
puramente técnica e, portanto, “desproblematizada”. Ao contrário,
conclui Purini, trata-se de uma concepção de realismo que
estabelece um compromisso de projeto no limite entre o peso dos
condicionantes e as potencialidades dos recursos.
Uma trajetória profissional entre projeto e pesquisa
Formado pelo Politécnico de Milão em 1959, Aldo Rossi desenvolve
desde cedo uma experiência dividida entre o projeto e a pesquisa.
Ingressa na universidade em 1949 e, ainda estudante, em 1955,
participa como Delegado no Congresso da UIS (Unione
Internazionale degli Studenti di Roma), viajando para Praga e União
Soviética. Nesse mesmo ano, atendendo a convite de Ernesto
Nathan Rogers, inicia uma colaboração duradoura com a revista
Casabella-continui, chega a ser membro do conselho editorial,
entre os anos 1961 e 1964, ano em que a publicação é interrompida.
3
Idem, p. 14.
168
Nos anos 1956-57 colabora com Ignazio Gardella e com Marco
Zanuso. Convidado por Hans Schmidt, diretor da Deutsche
Bauakademie em Berlin, visita a República Democrática da
Alemanha em 1961.
Torna-se assistente de Ludovico Quaroni na Scuola di Urbanismo di
Arezzo e de Carlo Aymonino no IAUV (Instituto de Arquitetura da
Universidade de Veneza) em 1963. Sua experiência ganha impulso
justamente à frente do IAUV, no período de 1963-65, onde inicia a
carreira acadêmica na condição de pesquisador e retorna como
professor em 1975.
No período entre 1965 e 1975 ensina no Politécnico de Milão. A
atuação como diretor da seção internacional de arquitetura da Trienal
de Milão de 1973 marca o início de uma experiência de grande
repercussão, não só na Europa, mas também fora do continente
europeu. Nessa ocasião, realiza o filme Ornamento e delitto,
parafraseando Adolf Loos.
Em meados da década de 1960, Rossi traduz para o italiano, além
de editar e prefaciar a obra Architecture: essai sur l’art, de Étienne-
Louis-Boullée. Seu interesse pela arquitetura do iluminismo confirma-
se no decorrer de sua trajetória, como é possível notar nas
referências explícitas presentes em seus textos.
Em 1970 é aprovado em concurso para a cátedra de Caratteri degli
edifici na Scuola di Urbanística di Palermo, atividade que concilia
com o ensino no Politécnico de Milão. Arquiteto, professor e teórico,
Rossi desenvolve essas três frentes de atuação profissional.
L’Architettura della città, livro de sua autoria cuja primeira edição é de
1966, conforme destaca Braghieri
4
, canaliza uma significativa
expressão de alento especialmente nos estudantes e jovens
arquitetos daqueles anos próximos à publicação, motivando-os a
redescobrir, estudar e analisar a cidade no seu devir histórico. Esse
procedimento é visto como uma possibilidade concreta de enfrentar o
impasse a que chega a cultura arquitetônica, imersa em uma
4
Em BRAGHIERI, G. Aldo Rossi. Barcelona: Gustavo Gili, 1986, p. 12. Entre os
anos 1971 e 1984, Aldo Rossi desenvolve projetos em parceria com Gianni
Braghieri.
169
atmosfera de reducionismo e esgotamento em relação aos
postulados da vanguarda modernista, a partir da banalização do
assim chamado “Estilo Internacional”. A discussão desencadeada por
essa publicação, principalmente após a edição em língua inglesa,
impulsiona um movimento de investigação sobre os textos e obras de
Rossi, que se difunde com grande intensidade pelas principais
escolas da Europa e da América do Norte.
Entre 1978 e 1980 Rossi participa de vários eventos, entre os quais,
lembram-se as conferências realizadas na Venezuela, Argentina e
Brasil. Nesse último ano leciona na Yale University e em 1983 em
Harvard. Em 1990 recebe o prêmio Pritzker.
Sobre a experimentação a que se dedicam os jovens arquitetos
motivados por seu trabalho, afirma o próprio Rossi: “na realidade as
formas arquitetônicas elaboram-se no tempo e tornam-se patrimônio
comum da arquitetura como acontece com qualquer técnica ou
ciência. Alguém antes de nós viu certas coisas e no-las transmite.” A
respeito da invenção que se apropria da experiência acumulada,
continua Rossi: “engano pensar que a criação nasce do nada ou de
cada um”.
Crê, paradoxalmente, que continuidade e firmeza são os mais claros
pressupostos para se atingir a mudança. Indica entre seus mestres:
Mies van der Rohe, Adolf Loos e Heinrich Tesenow. Do primeiro, diz
ter aprendido que o detalhe é invenção na medida em que é
aplicação da mente à clareza do resultado e que desta forma nos
preservamos de todas as falsidades do êxito”; do segundo, declara
ter aprendido “a temer o engano que se esconde também naquilo
que cremos ser ótimo porque o engano consiste não no
ornamento mas também no hábito e naquilo em que nos deleitamos
sem que nós mesmos nos engrandeçamos.”; do terceiro afirma ter
aprendido que “o ofício é parte da região e que pode realizar-se com
meios diversos como a ironia ou a redução ao elementar, para fazer
frente aos limiares últimos do inexprimível.”
5
Conforme observa Braghieri: “a arquitetura de Rossi destaca-se pelo
extremo rigor, pela simplicidade na composição, rigor e simplicidade
5
BRAGHIERI, G. op. cit., pp.5-6.
170
que não devem confundir-se com esquematismo.” O desenho para
Rossi, continua o autor, não é nunca um fim em si mesmo, é sempre
arquitetura porque reflete uma condição, um momento da própria
vida, da realidade. O contínuo redesenhar dos elementos fixos
propicia escolher o lócus ao qual devem pertencer. È a partir daí que
se tornam arquitetura de fato, conclui.
[2]
Kate Nesbitt
6
, na apresentação do texto de Aldo Rossi “Uma
arquitetura analógica”, destaca sua condição de líder do grupo La
Tendenza, situado no contexto do movimento neoracionalista
italiano. Comenta a respeito do grande êxito do livro L’architettura
della città, publicado na Itália em 1966, depois traduzido para o inglês
pela Oppositions Book em 1982, quando adquire notável projeção
internacional.
6
Em NESBITT, K. Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica da
arquitetura de 1965 a 1995, São Paulo: Cosac & Naify, 2006, p. 377-378.
[2] Rossi. “Città con cupole e torri”. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991,
p. 66.
171
A autora aponta essa obra de Rossi como um texto fundamental do
pensamento pós-moderno. Atribui o grande sucesso obtido,
essencialmente, por se tratar de uma obra teórica que estabelece
uma relação indissociável entre as idéias enunciadas e o trabalho de
projeto desenvolvido pelo arquiteto, uma prática que se fortalece
precisamente como concretização dos conceitos elaborados.
O texto de Rossi “Uma arquitetura analógica”
7
discorre sobre o seu
método de projeto, com base na operação de lógica formal”
estruturada a partir da definição do psicanalista Carl Gustav Jung
(1875-1961) em uma correspondência com Freud:
“(...) pensamento ‘lógico’ é o que exprime em palavras
dirigidas ao mundo exterior na forma de discurso. O
pensamento ‘analógico’ é percebido ainda que irreal, é
imaginado mesmo que silencioso; não é um discurso, mas
uma meditação sobre temas do passado, um monólogo
interior. O pensamento lógico é um ‘pensar em palavras’. O
pensamento analógico é arcaico, inexplícito e praticamente
inexprimível em palavras.”
8
A definição de Jung dá a entender que o pensamento analógico
distingue-se daquele lógico pela sua condição intuitiva que, mais do
que estabelecer relação efetiva com a realidade, corresponde a um
subjetivo e introspectivo exercício de memória. Inevitável a
associação com a “memória involuntária” de Proust
9
que, ao
contrário da “memória voluntária” ditada pela inteligência forma-
se por si mesma, e assim se desvincula de uma condição específica
de tempo e espaço, para remeter a uma condição extratemporal.
Com base nessa compreensão, Rossi atenta às formas
permanentes, às estruturas urbanas essenciais, ao valor do limite
7
Ensaio publicado originalmente na revista japonesa Architecture and Urbanism 56,
maio 1976, pp.74-76.
8
Apud ROSSI, “Uma arquitetura analógica”, em NESBITT, 2006, p. 379. A palavra
“analógico” em grego formada por "ana" que significa "no alto" ou "por alto" e
"logos" que é "pensamento", "palavra" significa "proporcional, o que é em relação
com". Nesses termos, análogo” não é precisamente “igual”, nem parecido”, mas
significa “aquilo que pode estabelecer uma relação com”. Portanto, Jung refere-se à
analogia como uma relação entre coisas diferentes, talvez por isso inexprimível em
palavras.
9
O conceito de memória involuntária de Proust é mencionado no capítulo que
analisa o projeto do SESC Pompéia de Lina Bo Bardi.
172
entre o espaço público e o privado, aos traços da vida que restam
impressos nos muros dos edifícios de uma cidade em constante
transformação. Ao invés de se resignar diante das perdas, ou
prender-se unicamente ao passado, expressa sua busca pela
permanência das coisas relevantes justamente na reedição da
memória, atuada na construção do próprio presente, na elaboração
do projeto contemporâneo.
O conceito de “cidade analógica” de Aldo Rossi é elaborado a partir
da articulação entre a definição de pensamento analógico, formulada
por Jung, e a imagem de Canaletto intitulada “Capricho com edifícios
palladianos”. A tela de Canaletto representa uma paisagem
imaginária, distinta da cidade real, em que o projeto do arquiteto
Andrea Palladio para a ponte de Rialto, não construído de fato,
aparece em meio a dois célebres edifícios palladianos Palazzo
Chiericati e Palazzo della Ragione na realidade, construídos em
Vicenza, mas que na pintura de Canaletto comparecem como parte
do cenário do Canal Grande veneziano. Como Piranesi, ao retratar o
sugestivo cenário de ruínas em suas Vistas de Roma”, Canaletto
mistura realidade e fantasia nesse retrato de Veneza.
[3]
[3] Canaletto. “Capricci con palazzi palladiani”, 1755 ca. Fonte: GRECCO,
2005, p. 128.
173
Assim analisa Rossi:
“Os três monumentos, dos quais um era apenas projeto,
constituem um análogo da Veneza real composto de
elementos definidos que se relacionam simultaneamente
com a história da arquitetura e com a história da própria
cidade. A transposição geográfica dos monumentos
realmente existentes para o local da pretendida ponte
compõe uma cidade visivelmente construída como um local
de valores puramente arquiteturais.”
10
Instigante a articulação elaborada por Rossi. Sua observação
evidencia o encantamento diante da obra de Canaletto que, com o
deslocamento de obras emblemáticas da arquitetura de Palladio de
Vicenza para Veneza, configura uma “representação analógica”
impossível de ser traduzida em palavras. Confere assim uma
dimensão conceitual à obra do artista e, ao relacionar essa atitude ao
pensamento “analógico” de Jung, transforma essa operação em um
método de projeto.
A partir desse entendimento, encontra um sentido diferente da
história concebida não somente como fato concreto, “mas como uma
série de coisas, objetos afetivos a serem usados pela memória ou na
concepção de um projeto.” Assim a analogia explica como o recorrer
a uma diversidade de aproximações entre as quais se destaca a
associação entre os tipos e determinadas formas arquetípicas
desperta a memória não só individual, mas de ressonância coletiva.
Nas palavras de Rossi:
“Hoje (1976) penso minha arquitetura no contexto e nos
limites de uma grande diversidade de associações,
correspondências e analogias. Quer no purismo de minhas
primeiras obras, quer na atual investigação de ressonâncias
mais complexas, sempre considerei o objeto, o produto, o
projeto como dotado de uma individualidade própria, que
tem relação com o tema da evolução material e humana. Na
realidade, a pesquisa sobre os problemas da arquitetura
10
NESBITT, op. cit., p.379.
174
significa para mim pouco mais que a de uma natureza
humana mais geral, pessoal ou coletiva, aplicada a um
campo específico.”
11
Aspecto importante de sua reflexão enfatizado no seu discurso é o
‘contexto’ entendido em sua dúplice acepção: de ‘lugar’ e de ‘cultura’.
A esse respeito, cita Walter Benjamin, o teórico da Escola de
Frankfurt, que diz: “Eu sou indiscutivelmente deformado pelas
relações com tudo que me cerca”. Declara expressamente que a
frase encerra o pensamento daquele ensaio e traduz sua arquitetura
daqueles anos. Não essa citação indica a existência de um
vínculo entre o IAUV e a Escola de Frankfurt, explicitado e reforçado
pela obra de ilustres representantes da Escola de Veneza, como
Francesco Dal Co e Manfredo Tafuri.
À maneira de um Cézanne
12
que descreve sua tensa busca por uma
geometria latente nos objetos, a ser traduzida na espacialidade
tangível da tela, ou de um Morandi que explora incansavelmente as
formas dos objetos do cotidiano como protagonistas de um “teatro da
realidade”, Rossi ilustra seu método de trabalho. Reflexo de tensões
gerais e pessoais, a deformação das relações aflora, segundo Rossi,
nas inquietações que circundam o tema principal. Vários desenhos
seus possibilitam notar essas desfigurações dos elementos e de
suas diferentes partes sobrepostas a uma ordem geométrica,
inicialmente adotada como matriz de composição.
“Essa deformação atinge os próprios materiais e lhes
destrói a imagem estática, acentuando seu caráter
elementar e sobreposto. A questão das coisas em si, como
composições ou componentes desenhos, edifícios,
modelos ou descrições me parece cada vez mais
sugestiva e convincente. Mas não se deve interpretar isso
no sentido do vers une architecture’, tampouco como uma
nova arquitetura. Estou pensando em objetos familiares,
cuja forma e posição são fixas, mas cujos significados
podem ser modificados. Celeiros, estábulos, abrigos,
11
Idem, p. 380.
12
A esse respeito consultar: “Dallo sferoide al poliedro” in BARILLI, R. L’Arte
contemporanea. Da Cézanne alle ultime tendenze. Milão: CDE, 1987, pp. 27-33.
175
oficinas etc., objetos arquetípicos cujo apelo emocional
comum desvenda preocupações eternas. Esses objetos
situam-se entre o inventário e a memória.”
13
Oportuno associar essa postura de investigação de Aldo Rossi,
interligada à sua prática de relacionar formas arquetípicas a
diferentes usos e significados, a determinada fase da trajetória de Le
Corbusier, a partir da década de 1930, destacada por Colquhoun,
como momento em que o arquiteto abandona a geometria mais
abstrata, estereométrica, em favor da recorrência a motivos
armazenados na memória. Ao comentar essa conduta, o autor evoca
a imagem de um baú mental repleto de referências a serem
selecionadas para compor uma espécie de bricolage compositivo
14
.
Situada entre a memória e o inventário, a arquitetura analógica de
Rossi é a negação do culto à personalidade associada à
originalidade, à singularidade, como querem os primeiros arquitetos e
historiadores da arquitetura moderna
15
. Amálgama entre o geral e
particular, entre o racional e o surreal, entre a analogia e o contraste,
suas obras, radicadas na cultura da cidade européia, entretanto, não
renunciam ao imprevisto, à invenção e, nesse sentido, afirmam-se
como criações incontestavelmente contemporâneas.
A Arquitetura da cidade
“A cidade, objeto deste livro, é nele entendida como uma
arquitetura. Ao falar de arquitetura não pretendo referir-me
apenas à imagem visível da cidade e ao conjunto de suas
arquiteturas, mas antes à arquitetura como construção.
Refiro-me à construção da cidade no tempo. Considero que
esse ponto de vista (...) remete ao dado último e definitivo
13
Idem, p. 380.
14
A menção a essa imagem do “baú mental cheio de objetos que estão prontos a
serem utilizados em um bricolage(...)” foi citada em passagem da pesquisa em que
se analisa a atuação de Le Corbusier .
15
CURTIS, W. em seu livro Arquitetura moderna desde 1900. Porto Alegre:
Bookman, 2008, p. 13, comenta a respeito do mito dos primeiros historiadores da
arquitetura moderna de que suas formas tinham emergido “imaculadas”, como um
“recomeço do zero”, menosprezando a influência da arquitetura do passado.
176
da vida da coletividade: a criação do ambiente em que esta
vive.”
16
A arquitetura, vista sob esse prisma, é construção inseparável da
vida civil e da sociedade e é, por natureza, expressão coletiva. Como
destaca Rossi, desde tempos mais remotos o homem constrói não
apenas para criar um ambiente mais favorável à vida, mas também o
faz conforme uma intencionalidade estética. A arquitetura surge,
portanto, junto com as primeiras formas urbanas e, sendo
inseparável da formação da civilização, constitui um fato permanente,
universal e necessário, pois dá forma concreta à sociedade.
Continua Rossi:
“Mas com o tempo a cidade cresce sobre si mesma,
adquire consciência de si. (...) Na sua construção
permanecem os motivos originais, mas, simultaneamente, a
cidade torna mais precisos e modifica os motivos de seu
desenvolvimento.”
17
Da mesma maneira que se transforma, a cidade preserva seus
elementos essenciais:
“(...) os lugares são mais fortes que as pessoas, o cenário
mais que o acontecimento. A possibilidade da permanência
é o único critério que permite que a paisagem ou as coisas
construídas sejam superiores às pessoas.”
Rossi analisa a construção de certas cidades no tempo através de
imagens, gravuras e fotografias que ilustram a dinâmica de
transformação resultante, quer da criação, quer da destruição. Dessa
forma, observa que o devir histórico motiva tanto as transformações
que incidem sobre o território, quanto a permanência de elementos
que asseguram unidade na expressão urbana e sua continuidade no
espaço e no tempo.
A cidade é fato material, mas é também o locus da memória coletiva.
Analisar a cidade, para Rossi, implica reconhecer a distinção entre a
16
ROSSI, A. A arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 1.
17
Idem, p.2.
177
cidade concreta, da imagem e da memória que se cria da própria
cidade, isto é, reconhecer a construção que supera e transcende a
própria materialidade, um processo que nasce da relação entre o
indivíduo e sua cultura. Essa compreensão comporta a identificação
de diferentes valores em jogo: o valor da cidade real, enquanto
artefato, e o da representação da cidade, isto é, o de significados
simbólicos aos quais se associa a sua materialidade.
A análise remete a outra natureza de diferenciação: à oposição entre
o particular e o universal, entre o individual e o coletivo. Nesses
termos, analisa as relações entre esfera pública (identificada como
elementos primários) e privada (classificada como área-residência),
entre edifícios públicos e privados, entre o projeto racional da
arquitetura urbana e os valores do locus.
Noção de origem antiga, a ‘res pubblica’ refere-se, em sentido geral,
a valores compartilhados por integrantes de uma sociedade fundada
sob leis de igualdade e justiça respeitadas pela maioria, tendo em
vista uma convivência pacífica. Nesse sentido, o conceito de ‘res
pubblica’ resguarda tanto o interesse comum, a coletividade, quanto
o indivíduo em particular.
O locus é entendido por Rossi como “aquela relação singular mas
universal que existe entre certa situação local e as construções que
se encontram naquele lugar.” Relembra que a escolha do lugar para
fundar uma cidade ou mesmo para implantar um novo edifício, tinha
uma grande importância no mundo clássico, uma vez que se
considerava ser o sítio governado pelo “genius loci”, divindade que
presidia o lugar. Observa ainda que o conceito de locus continua
presente tanto nos tratados renascentistas, como nos dos séculos
seguintes, como o de Palladio, ou de Milizia. Mesmo em Viollet-le-
Duc, continua Rossi, o esforço para entender a arquitetura como uma
série de operações lógicas baseadas em poucos princípios racionais,
refere-se ao lugar como espaço singular e concreto, mas que
também faz parte da idéia geral de arquitetura. A identificação
desses pontos singulares” pode ser atribuída a um acontecimento
determinado que tenha sucedido naquele sítio, ou pode depender de
inúmeras causas que de alguma maneira possam ter contribuído
para o reconhecimento da peculiaridade do lugar.
178
Ao comentar sobre a relação entre a arquitetura e o lugar, Rossi faz
menção às pinturas do Renascimento:
“(...) onde o lugar da arquitetura, a construção humana,
adquire um valor geral de lugar e de memória, porque assim
fixado numa hora única; mas essa hora também é a primeira
e mais profunda noção que temos das praças da Itália,
estando pois ligada à mesma noção de espaço que temos
das cidades italianas. Noções desse tipo estão ligadas à
nossa cultura histórica, à nossa vida em paisagens
construídas, às referências que fazemos em cada situação à
outra situação.”
18
Essa observação faz pensar à idéia geral de ‘lugar’ arraigada na
cultura italiana presente em obras célebres da Renascença, como as
imagens da Cidade Ideal. Não como dissociar essas imagens de
uma incisiva lembrança de lugar primordial e ao mesmo tempo
eterno, atemporal.
[4]
18
Idem, p.149.
[4] Luciano Laurana (atribuição). “Città Ideale”. c. 1580. Fonte: GRECO, 2005, 82.
179
O tipo
Articulado ao conceito de lugar comparece o de tipo que constitui,
para Rossi e os neoracionalistas italianos, um dos fundamentais
componentes da morfologia da cidade. O interesse pelo tema da
tipologia é reintroduzido, no início da década de 1960, com a
publicação de um notável ensaio de Giulio Carlo Argan
19
sobre o
teórico francês do século XIX, Quatremère de Quincy.
Dentro da tradição acadêmica, Antoine-Crysostome Quatremère de
Quincy estabelece no Dictionnnaire historique de l’architecture (Paris,
1832) uma diferenciação entre o tipo ideal (type) e modelo físico
(modèle), retomada por Argan. ‘Tipo’ corresponde aqui à idéia de um
elemento que deve servir de norma para o modelo que, portanto,
equivale à idéia genérica, platônica, arquetípica, à forma básica
comum da arquitetura como, por exemplo, um edifício que se
organiza ao redor de um pátio. ‘Modelo’ é aquilo que pode
continuamente ser repetido tal qual se apresenta, como um carimbo
que possui uma série de caracteres expressivos. Por exemplo,
dentro da espécie de construção ao redor de um pátio, certos palazzi
da renascença correspondem a modelos que podem ser
reproduzidos.
Os tipos arquitetônicos de Quatremère de Quincy são reduzidos por
Argan a uma forma original comum identificada a partir de obras
específicas de um contexto cultural particular, portadoras de
propriedades funcionais e formais semelhantes. Desse modo, para
Argan, o ‘tipo’, mais do que um conjunto de entidade fixas
estabelecidas a priori, corresponde a um princípio passível de
variações definidas como respostas relacionadas a mudanças
tecnológicas e socioculturais.
Josep Maria Montaner
20
lembra que entre os primeiros filósofos que
teorizaram a respeito da noção de ‘tipo’ no pensamento moderno,
está Wilhelm Dilthey (1833-1911) e sua escola. A partir da influência
de Kant, esses teóricos estabelecem, no final do século XIX, a teoria
dos “três tipos de visão do mundo”: o naturalismo, o idealismo da
19
Ensaio intitulado “Sobre o conceito de tipologia arquitetônica”, publicado
originalmente em 1962, inserido no livro Projeto e destino. o Paulo: Ática, 2004,
pp. 65-70.
20
Em As formas do século XX. Barcelona: Lisboa: Gustavo Gili, 2002, p.148.
180
liberdade e o idealismo objetivo. Perseguem, conforme indica
Montaner, a intenção de encontrar um compromisso entre o
positivismo e o espiritualismo; entre o realismo naturalista e a
generalidade metafísica; entre a quantidade dos fenômenos e a
qualidade de suas interpretações. Em suma, pretendem sintetizar
aquilo que mais tarde vai se configurar como a historicidade e a
permanência do estruturalismo com a vitalidade dinâmica definida
por Henri Bergson
21
.
O conceito de ‘tipo’, anunciado por Dilthey, é retomado na cultura
contemporânea por Max Weber (1864-1920) e aplicado à história, às
ciências sociais e à cultura. Segundo essa visão, é possível
estabelecer conceitos extremos ideais que podem dimensionar,
ordenar e relacionar a realidade empírica com a finalidade de ilustrar
determinados elementos significativos. Os ‘tipos’ de Weber são
construções conceituais, puramente ideais, entendidas como meios
de compreensão de uma realidade complexa. Um aspecto essencial
da noção weberiana do ‘tipo ideal’ é que tal categoria pode ser
submetida a uma verificação contínua. Pressupondo a mutabilidade
que acompanha o fluxo da história e a transitoriedade das sínteses
estabelecidas, o autor defende a reformulação da noção de ‘tipo’,
transformada em nova construção típico-ideal, sempre que
comprovada sua inadequação.
A noção weberiana está presente no substrato de grande parte das
interpretações da arquitetura moderna e contemporânea. Um dos
autores a se valer do conceito para aplicá-lo à metodologia de
análise da arquitetura contemporânea é Renato De Fusco
22
.
O conceito de tipologia arquitetônica, da maneira como foi utilizado
pelos italianos, aplica-se tanto para o momento analítico, quanto para
o momento do projeto. Racionalidade e poética, memória e criação
podem ser conciliadas na prática da crítica tipológica. Para Rossi,
Grassi ou Aymonino, o elemento mais racional da arquitetura é a sua
tradição interna revelada nas estruturas tipológicas. O fenômeno
arquitetônico, para esses arquitetos, é concebido como uma série de
21
Em BERGSON, H. Matéria e memória. Ensaio sobre a relação entre o corpo e o
espírito. Tradução de Paulo N. da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
22
Em Storia dell’architettura contemporanea, Roma: Laterza, 1982, p. 443.
181
estruturas inicialmente reconhecidas, dissecadas na análise e
reelaboradas no projeto.
A propósito da diferença do emprego do conceito de ‘tipo’ para
Gregotti e Rossi, Nesbitt cita Alan Colquhoun:
“Mantendo-se aberto à contingência, Gregotti parece
mostrar o ‘tipo’ no processo de sua erosão ou
transformação. Rossi mostra-o em tal nível de generalidade
que, não sendo mais vulnerável à interferência da tecnologia
ou da sociedade, [o tipo] permanece congelado numa
eternidade surreal”.
23
Aqui se encontra provavelmente a proximidade da arquitetura de
Aldo Rossi, mais precisamente de seus desenhos, com as obras do
pintor Giorgio De Chirico. O projeto afirma-se como uma espécie de
convergência e sobreposição entre a observação da cidade existente
e uma memória atemporal, uma recorrência atávica incontornável. A
esse respeito, comenta Nesbitt que, embora Rossi declare-se
racionalista, sua obra tem uma forte componente poética pela
constante conjunção entre universal e particular, entre racional e
intuitivo.
[5] [6]
A crítica ao funcionalismo ingênuo
Rossi, ao adotar uma posição crítica frente às certezas estabelecidas
pelo movimento moderno, subverte a relação forma/função como
entendida pelos arquitetos desse movimento: uma relação simplista
de causa e efeito desmentida pela realidade, segundo a qual a
função “determina” a forma. Afirma que a função é aspecto
secundário, insuficiente, para esclarecer a respeito da constituição e
conformação da arquitetura enquanto fato urbano. Exemplo disso é a
recorrência de arquiteturas de interesse histórico e artístico em que a
função muda no tempo sem, por esse motivo, perderem a
importância.
A sua convicção de que está definitivamente superada a idéia de
função e forma, vinculadas por uma relação unívoca, é tal que Rossi
23
COLQUHOUN, A. “Rational architecture”, Architectural Design 45, n. 6, 1975.
Apud Nesbitt, 2006, p. 378.
182
elabora projetos com formas similares para funções completamente
diferentes. Isso se justifica na medida em que reitera que são as
relações ou o contexto a determinar o significado, portanto, os
objetos fixos (formas) podem ser submetidos a mudanças de sentido.
Assim, as formas arquitetônicas elementares podem ser reutilizadas
para fins diferentes em situações diferentes. Isso corresponde à idéia
estruturalista do papel dos elementos fixos (estruturas reconhecidas)
na linguagem.
Essa questão referente à crítica do funcionalismo é uma das
discussões mais relevantes levantadas pela cultura pós-moderna em
relação a um dos conceitos-chave da vertente racionalista da
arquitetura moderna. A opinião de que a função de um edifício pode
mudar, sem que essa alteração de uso comporte necessariamente
em perda de significado, reafirma-se no contexto da cidade
contemporânea com a adoção usual dessa estratégia nas
intervenções de reutilização e requalificação de certos exemplares de
arquitetura preexistente dotadas de interesse histórico e figurativo.
[5] Giorgio De Chirico. “La nostalgia dell’infinito, 1913.
[6] “L’enigma di una giornata”, 1914. Fonte: Revista Art Dossier, n. 28.
183
É importante notar que em muitos casos trata-se de uma apropriação
inadequada do tema com vistas à utilização descompromissada da
preexistência, visível, por exemplo, na proliferação dos centros
culturais. Quanto aos edifícios de interesse patrimonial, convém
reafirmar que a intervenção deve, antes de tudo, ser avaliada em sua
conveniência, para posteriormente ser controlada por critérios
precisos que levem em conta tanto o significado cultural do objeto de
intervenção, quanto às suas qualidades formais, para que
efetivamente essa mudança de uso não comporte alterações e
adaptações inadequadas e, de conseqüência, implique subtração de
valor arquitetônico.
O binômio transformação/permanência
Ao desenvolver a hipótese da cidade como artefato
24
, Rossi sustenta
três proposições:
afirma que o desenvolvimento urbano é correlato em sentido
temporal, ou seja, é possível conectar situações de diferentes
tempos como fenômenos comparáveis entre si;
aceita a continuidade espacial da cidade, o que implica em
não distinguir como fatos de natureza diversa o centro
histórico e as áreas periféricas ou de ocupação mais recente;
admite que no interior da estrutura urbana alguns
elementos de natureza particular que têm o poder de retardar
ou acelerar o processo urbano e que, por sua peculiaridade,
são relevantes.
Dessa compreensão decorre a divisão da cidade em elementos
primários” e “área-residência”, esta última identificada como “área-
estudo”, quando reconhecida como elemento qualitativo do entorno
urbano de um local de intervenção. Mediante esse procedimento
analítico, recorre à abstração com respeito ao espaço real da cidade,
como estratégia de investigação. Desse modo, Rossi distingue duas
categorias fundamentais da estrutura dos fatos urbanos, reflexos das
24
Este é, entre outros, um conceito que guarda afinidade com as teses defendidas
por Giulio Carlo Argan em seu livro História da arte como história da cidade. São
Paulo: Martins Fontes, 1995.
184
esferas públicas e privadas que não só se contrapõem, mas às vezes
se confundem na cena urbana.
Os primeiros, sinais de vontade coletiva, são cleos de agregação
identificados com os monumentos, pontos de referência da dinâmica
urbana, marcados pelo caráter de permanência. Distinguem-se com
base na sua forma e com base na sua excepcionalidade no tecido
urbano.
a área-residência refere-se a uma porção substancial da
arquitetura da cidade, constituída pelo conjunto ou soma de muitas
partes: sítio, ruas, bairros, casas. O bairro torna-se um setor da
forma urbana intimamente ligado à sua evolução física e social. A
residência é o fato preeminente na composição da cidade que
representa o modo concreto de vida, a manifestação pontual de uma
cultura, e interfere intimamente na sua forma física, na sua imagem e
na sua estrutura. Princípios e modificações do real constituem a
estrutura da criação humana.
Baseando-se nos escritos de Carlo Cattaneo
25
, conclui que a
continuidade dos fatos urbanos – fundamento de sua ação de projeto
deve ser buscada nas camadas profundas, onde se entrevêem
certas características fundamentais que são comuns a toda dinâmica
urbana.
O “monumento”, identificado como “elemento primário”, destaca-se
em meio à trivialidade da “área-residência”. Esta por sua vez abriga a
linguagem e as técnicas tradicionais, reconhecidas como formas
vernaculares. Convém aqui lembrar que o termo ‘vernáculo’, derivado
do latim vernaculus, empregado para designar o escravo nascido na
casa do amo, passa a indicar algo produzido no país. Em sentido
figurado, diz-se da linguagem correta, sem estrangeirismos na
pronúncia, o idioma castiço, tanto no que se refere ao vocabulário,
quanto às construções sintáticas. Sua larga aplicação no campo da
produção artística, principalmente arquitetônica, consagrou o sentido
de “arquitetura vernacular” como aquela produção própria da cultura
do lugar, que se conserva ligada às raízes locais, ao saber e às
25
CATTANEO, C. La città come principio ideale delle istorie italiane. Milão, 1858.
Ensaio publicado pela primeira vez em 1858, dividido em quatro números do jornal
“Crepuscolo”, e reeditado em 1931.
185
técnicas populares. Uma visão assertiva que procura a valorização
desses exemplares, como uma espécie de alerta aos estudiosos a
não se atentar exclusivamente à produção erudita, nem se limitar à
observação isolada dos edifícios de caráter monumental.
Nesse sentido, a compreensão da cidade como história contrapõe-se
à retórica racionalista-funcionalista do urbanismo moderno. Com
base na concretude histórica, na observação dos registros
disponíveis, conforme observa Rossi:
“dever-se-ia evidenciar melhor o significado de certas
intervenções tendentes a qualificar a cidade em sentido
moderno e a estabelecer uma relação entre seu passado e
a fisionomia das principais cidades européias.”
Citando Halbwachs:
“Quando um grupo é inserido numa parte do espaço, ele a
transforma à sua imagem, mas, ao mesmo tempo, dobra-se
e adapta-se a coisas materiais que resistem a ele. A
imagem do meio exterior e das relações estáveis que este
mantém com aquele passa para o primeiro plano da idéia
que o meio faz de si mesmo.”
26
Ampliando a proposição de Halbwachs, Rossi afirma:
“Essa relação entre o ‘locus’ e os citadinos torna-se, pois, a
imagem predominante, a arquitetura, a paisagem; e, como
os fatos fazem parte da memória, novos fatos crescem
juntos na cidade. Nesse sentido, de todo positivo, as
grandes idéias percorrem a história da cidade e a
conformam.”
27
Se a memória é vista como fio condutor da complexa estrutura
urbana, então a análise histórica deve permitir uma melhor
compreensão do significado da estrutura urbana, da sua
individualidade, enfim, da arquitetura da cidade.
26
HALBWACHS, La mémoire collective, p.132, apud ROSSI, op. cit., p. 198.
27
ROSSI, op. cit, p. 198.
186
Prossegue Rossi:
“Assim, a união entre o passado e o futuro está na própria
idéia da cidade, que a percorre tal como a memória
percorre a vida de uma pessoa e que, para concretizar-se,
deve conformar a realidade, mas também conformar-se
nela.”
28
Importante atentar para o sentido dessa afirmação, tão consonante
com a noção de “continuidade histórica” de Lina Bardi.
Aqui está seu mote de invenção para o projeto do novo,
definitivamente calcado na análise da estrutura urbana e, mais do
que isso, na tentativa de compreensão dos nexos nela contidos.
O Cemitério de São Cataldo, Módena (1971-76)
O projeto de Aldo Rossi
29
corresponde à ampliação do cemitério
neoclássico preexistente, projeto de Cesare Costa, realizado entre os
anos 1858-76. A estrutura do século XIX adota uma tipologia
tradicional do grande pátio retangular delimitado por colunatas onde
se reúnem os nichos fúnebres.
[7]
28
Idem, p. 200.
29
Vencedor de um concurso público, o projeto foi elaborado em parceria com Gianni
Braghieri, desenvolvido entre os anos 1971-76 e construído entre os anos 1980-85.
[7] O antigo cemitério. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 91.
187
Os pórticos, elementos característicos da morfologia urbana das
cidades da região da Emilia Romagna, presentes na configuração
do antigo, são também os elementos centrais da arquitetura do novo
cemitério de Rossi. Constituem os columbários que delimitam o
espaço do novo conjunto e criam percursos retilíneos ora perimetrais,
ora centrais, ora ao rés-do-chão, ora em níveis superiores.
[8]
No centro da área estão situados os ossários, dispostos em minas
paralelas entre si de diferentes comprimentos que definem, no
conjunto, uma seqüência planimétrica de formato triangular, a sugerir
uma espinha dorsal que se amplia na direção da base. Esses
paralelepípedos, que inscrevem um triângulo isósceles em planta,
elevam-se progressivamente em altura, em sentido contrário à
progressão em planta. Assim o elemento mais longo é o mais baixo,
enquanto que o mais curto é o mais alto, configurando um triângulo
também na seção transversal do conjunto.
No centro, um eixo transversal interliga as extremidades dessa
espinha, onde se encontram dois elementos construtivos
fundamentais com forma definida: o cubo e o cone. O primeiro abriga
o sacrário dos mortos da guerra e dos restos do cemitério antigo. O
cone, por sua vez, acolhe a fossa comum.
[8] Planta do novo cemitério implantado ao lado do antigo. Fonte: ARNELL
e BICKFORD, 1991, p. 90.
188
Esses dois elementos, unidos pela espinha central, encerram
significados importantes: a construção cúbica, sem teto, nem
andares, cujas aberturas regulares evocam portas e janelas que não
se abrem, nem fecham, mas somente recortam os muros, simboliza
a casa dos mortos; o volume cônico, que domina a fossa comum,
unindo-se ao percurso central da espinha dos ossários, representa a
recordação. Um pórtico maior em forma de “U” envolve todo o
conjunto descrito.
Uma cidade em miniatura, para Jonathan Glancey
30
, constituída de
lembranças, de sonhos, uma seqüência soberba de monumentos
hipnóticos delineados com sombras profundas e dispostos ao longo
de eixos inflexíveis.”
[9]
30
GLANCEY, J. A história da arquitetura. São Paulo: Loyola, 2007, p. 203.
[9] Rossi. Estudo de projeto. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 88.
189
Sugestivo é o relato do arquiteto que, ao descrever o andamento do
trabalho, ressalta a autonomia dos desenhos, como se durante o
processo contínuo de reformulação, estes adquirissem a capacidade
de se autogovernar:
“No processo de redesenhar o projeto, colocar os vários
elementos e aplicar cores às partes que exigiam destaque,
o desenho foi adquirindo tão completa autonomia em
relação ao projeto original que se poderia dizer que a
concepção inicial era somente um análogo do projeto
concluído. O desenho sugeriu uma nova idéia baseada no
labirinto e na noção contraditória de distância percorrida (...)
Mais tarde me ocorreu que o quadrado ‘morte’ é
especialmente visível, como se contivesse algum
mecanismo automático profundo muito distante do espaço
pintado em si.”
31
Autonomia do desenho à parte, permanece o método que privilegia a
contínua variação da mesma forma, a repetição de motivos como a
traduzir a persistente busca de aperfeiçoamento. Às claras
referências do antigo cemitério existente, Rossi associa as leituras de
visões utópicas de Étienne-Louis-Boulée e Claude Ledoux e a
memória dos pórticos das cidades italianas, configurando um
itinerário análogo, uma expressiva metáfora da cidade dos mortos,
com a mesma intensidade dramática das paisagens de De Chirico.
[10] [11] [12] [13]
31
Rossi, “Uma arquitetura analógica”, em NESBITT, op. cit., p. 381.
[10] Vista do cemitério de Rossi. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 89.
190
[11] Columbário. Interior e vista externa. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 97 e
http://www2.polito.it/didattica/01CMD/catalog/034/1/html/037.htm. Acesso 16/09/2008.
[12] Escadas. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 101
[13] Pórticos. Vista frontal e do interior.
Fonte: http://www2.polito.it/didattica/01CMD/catalog/034/1/html/037.htm.
Acesso 16/09/2008.
191
O Teatro del Mondo, Veneza (1979-80)
Encarando o projeto de arquitetura como continuidade e extensão da
análise teórica, Aldo Rossi vale-se do profundo conhecimento de
Veneza para criar o seu Teatro del Mondo. Um projeto que combina
dois dos conceitos fundamentais elaborados por ele: o da arquitetura
como “fato urbano” inseparável da vida civil; e o da “construção
analógica”, resultante de um exercício de imaginação situado entre a
memória individual e coletiva.
Assim, o Teatro del Mondo se apresenta como novo fato disposto a
dialogar com a cidade, a recompor sua paisagem e a reinventar
imagem que dela se tem, num procedimento equivalente ao
mencionado “capricho” de Canaletto.
Pertinente a descrição de Marta Bogéa
32
:
“Como um fragmento que se destaca do corpo do qual faz
parte, o Teatro del Mondo navega pelas águas e aporta em
diferentes locais com a naturalidade de quem é parte do
lugar. Projetado enquanto corpo itinerante, autônomo, o
Teatro del Mondo traz em seu desenho elementos da
cidade, transformados, porém reconhecíveis. Constitui-se
assim como parte de Veneza, uma forma a um tempo
nova e familiar, que reinterpreta os dados da cidade, e ao
se reinventar, reinventa também a cidade.”
Construído sobre uma balsa, o teatro de madeira dotado de estrutura
metálica desmontável, nasce como uma arquitetura efêmera, mas
que se conserva na memória e na iconografia da cidade
essencialmente pela capacidade de síntese do caráter veneziano
que congrega em sua própria imagem.
[14] [15]
Inspirado em uma antiga tradição veneziana dos teatros flutuantes,
documentada na iconografia dos séculos XVI e XVII, Rossi atualiza
essa proposta, reinserindo-a em uma reflexão mais ampla que se
desdobra em três aspectos: a meditação sobre o teatro, sobre a
cidade e, por fim, sobre a memória, através da possível relação com
o teatro da memória’ ou ‘teatro da sabedoria’, uma alegoria da
32
BOGÉA, M. Cidade errante:... Tese de Doutorado, FAUUSP, 2006.
192
arquitetura do conhecimento, do saber enciclopédico, como se
observa a seguir.
Inaugurado oficialmente em 1979
33
, o Teatro foi colocado diante do
prédio da antiga Alfândega, por ocasião da Bienal de Veneza. A
estrutura tubular de ferro soldada à balsa, revestida de madeira,
define prismas justapostos: o cubo central ladeado pelos volumes
das escadas. Sobre o prisma central apóia-se o volume de planta
octogonal das galerias superiores, encimado por uma cobertura
piramidal. No alto da cobertura destaca-se a haste com uma esfera e
uma bandeira, motivos que reverberam o coroamento de edifícios
vizinhos identificados por Rossi como “elementos primários”.
33
O Teatro del Mondo, conforme relata Arantes, foi encomendado para o carnaval
de 1979 e incorporado à Bienal de Veneza do ano seguinte.
[14] Desenho de Aldo Rossi. Fonte:
www.designboom.com/history/teatrodelondo.html e www.vitruvio.ch.
Acesso 16/09/2008.
[15] Imagem do Teatro Del Mondo no Canale della Giudecca, atrás da
igreja de Santa Maria della Salute, Veneza. Fonte: ARNELL e BICKFORD,
1991, p.
237.
193
Tipologicamente o teatro combina o sistema de arquibancadas (que
se desenvolvem em lados opostos do palco central) com o de
galerias aéreas (dispostas em três andares), correspondendo a uma
capacidade de 250 lugares.
Otília Arantes
34
assim o descreve:
“Com sua planta em forma de cruz, encimada por uma
cúpula octogonal, esse Teatrinho, ancorado ao lado da
antiga Alfândega, como foi lembrado no início de nosso
itinerário, rima com a igreja de San Giorgio ao fundo, ao
mesmo tempo que reproduz parcialmente as formas e
planos do prédio aduaneiro em estilo barroco, que, situado
na entrada de Veneza, se não tem a função, aos poucos foi
assumindo a fisionomia familiar de um farol.”
35
[16] [17] [18]
Importante reexaminar as relações entre a arquitetura do Teatro e o
contexto cultural do qual é parte integrante, a Bienal de Veneza de
1980, como faz Otília Arantes.
O próprio título do evento, – “Presença do Passado” – relembra
Arantes, anuncia uma aparente contradição em relação ao que se
espera dessas mostras, ou seja, novidade. É preciso observar, no
entanto, que o imperativo do novo, ostentado pelo movimento
moderno desde as primeiras décadas do século XX, transformado
numa “tradição do novo”, mostra-se nesse momento um tanto
desgastado. Nada mais compreensível, portanto, que explicitar na
própria denominação da mostra o dissenso em relação à repetição
das fórmulas identificadas com o “Estilo Internacional”, ou ao que
identificam com uma “ortodoxia servil” em relação aos princípios da
arquitetura moderna
36
.
34
Em ensaio intitulado “Arquitetura simulada”, inserido no livro, O lugar da
arquitetura depois dos modernos. São Paulo: Edusp, 1993, pp. 17-72.
35
Arantes, op. cit. p. 43.
36
Cf. CURTIS, op. cit., p. 547, a expressão “ortodoxia servil” exprime a repetição de
formas que acabam por serem esvaziadas de seu conteúdo polêmico inicial e
vulgarizadas por interesses comerciais ou burocracias estatais, resultando na
adoção de clichês identificados como uma espécie de academicismo moderno.
194
[18] Cortes. Fonte: ARNELL e BICKFORD,1991, p. 225.
[17] Plantas. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 223.
[16] Elevações do projeto. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 223.
195
A presença do passado aparece nas fachadas alinhadas da Strada
Nuovissima, uma rua cenográfica composta de citações da
arquitetura italiana do passado, reconhecíveis porque incorporadas à
cultura não dos especialistas, mas do público em geral. Situada
no espaço da Cordoaria do Arsenal, ao longo dos 320 metros da
nave central, essa “rua-manifesto” é resultado da intervenção de
vinte arquitetos conhecidos internacionalmente.
Não há, nessa proposta, o rigor de uma reconstituição fiel. Ao
contrário, é a “brincadeira”, o que move a iniciativa dessa colagem de
fachadas extraídas de diferentes contextos urbanos. Uma ironia que
ressuscita, em forma de alegoria, a “rua corredor”, cuja morte tinha
sido decretada por Le Corbusier, ao propor o novo urbanismo
racionalista-funcionalista da Carta de Atenas do CIAM em 1933.
A entrada da exposição, obra de Aldo Rossi, relembra um fragmento
de muralha antiga, pontuado por espécies de torres-contrafortes, que
se ajusta discretamente ao espaço disponível do acesso principal.
Estabelece uma ligação com o Teatro, enquanto componentes da
“cidade análoga” que temporariamente são incorporados à cidade
existente.
[19]
[19]
Processo de construção. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 222.
196
Se por um lado, o portal de entrada aparentemente antecipa a
proposta da rua desenhada no interior, por outro se distingue, da
mesma forma que o Teatro, daquilo que Arantes denomina
“arquitetura simulada”, como se explica a seguir.
Otilia Arantes, assinala a inserção desses dois elementos portal e
teatro ao contexto urbano, não apenas com respeito às relações
físicas ou topográficas, mas também do ponto de vista das
articulações estabelecidas entre a morfologia local e uma tipologia
atemporal, entre as formas puras e as arquiteturas concretas. Nesse
sentido é que se refere ao Teatro de Rossi, como um significativo
exemplo de arquitetura “situada em contraponto com a arquitetura
“simulada”, nascida de um ambiente cultural ligado ao pós-
modernismo, que abusa das colagens e das citações historicistas,
em uma atmosfera de culto ao humor pop e, portanto,
“descontextualizada”.
A proposta de Rossi, por sua vez, revela-se como uma espécie de
paradoxo a esta perspectiva, na esteira do pensamento italiano do
grupo Tendenza, como afirmação de uma arquitetura comprometida
com o lugar.
[20] [21]
Da mesma forma que redefine a paisagem ao navegar pelas águas
do Canal Grande, o Teatro del Mondo possibilita, através de
pequenas aberturas dispostas no corpo do edifício, ao espectador
assistir, do seu interior, ao espetáculo da própria cidade.
Teatro, mirante, farol, signo urbano, o edifico navegante de Rossi
encerra muitos significados e evoca outro mais antigo, obra de um
curioso personagem veneziano, célebre a seu tempo: Giulio Camillo
Delminio (c.1480 1544), também conhecido como “Il Divino
Camillo”. Trata-se do Teatro della Sapienza, do qual relatos de
que tenha sido elaborado um modelo em madeira, além do projeto e
do texto que o descreve: L’Idea del teatro. Seus escritos têm
despertado interesse renovado, após reedições recentes, pois
denotam a figura de um estudioso que se alinha com o ideal
renascentista de criar um sistema de conhecimento desvinculado da
197
hierarquia do modelo teológico medieval, recorrendo à cultura antiga,
especialmente ao modelo retórico.
O projeto do Teatro da Sabedoria, enquanto local que reúne e
organiza toda a sabedoria humana, baseia-se no modelo clássico
descrito por Vitrúvio (cuja estrutura reflete a concepção do universo)
e incorpora as noções da mnemotecnia antiga. Constituído por sete
ordens horizontais subdivididas em sete partes (correspondentes aos
planetas) encerra quarenta e nove compartimentos (câmaras de
memória, loci do saber), cada um deles identificado por uma imagem
extraída da mitologia.
[21] Vistas do Teatro. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 237.
[20
] Desenho e vista do Teatro. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 220 e 237.
198
A historiadora inglesa Frances Yates
37
descreve detalhadamente não
as peripécias de Giulio Camillo em busca de patrocínio para sua
invenção, como também particularidades do projeto detraídas de
documentos examinados a respeito do assunto.
[22] [23]
Em seus estudos, a historiadora investiga a fundo a mnemotécnica
antiga e sua transformação no tempo, enquanto capacidade de
associar mentalmente imagem de coisas a lugares organizados em
sistemas arquitetônicos rigorosos.
Como relata Yates, de acordo com esse procedimento, o bom orador
antigo seria aquele capaz de mover-se em imaginação, durante seu
discurso, através de uma edificação construída mentalmente,
extraindo dos lugares memorizados as imagens ali colocadas de
objetos, argumentos e personagens
38
.
37
Em A arte da memória. Tradução de Flavia Bancher. São Paulo: Editora Unicamp,
2007. No capítulo intitulado “Teatro de Camillo e o Renascimento Veneziano”, pp.
205-218, a autora discorre sobre o tema.
38
Conforme Yates, a criação da técnica de ativar e conservar a memória – a
mnemotecnia é atribuída a Simônides de Céos (c. 556-468 ªC.). A autora relata
que Cícero, no seu De oratore [2, 86], conta sob a forma de lenda religiosa a
invenção da mnemotécnica: durante um banquete em que Simônides canta um
poema em honra de Castor e Pólux, o anfitrião diz que pagaria somente a metade
do valor estabelecido, deixando que os deuses pagassem o restante. Logo em
seguida, Simônides retira-se do local, chamado por dois jovens (uma alusão aos
deuses homenageados), pouco antes que o teto desabasse. O reconhecimento dos
corpos, após a tragédia, é feito por Simônides que se lembra do lugar ocupado por
cada um ao redor da mesa, antes do desabamento.
[22] Teatro da memória reconstrução por Yates.
[23] Ilustração extraída da edição veneziana de 1552 das obras de
Giulio Camillo. Fonte: wwwI-camillo.com/Camillo/Cam-IT-6htm.
Acesso 10/09/06.
199
Tal estratégia baseia-se na concepção de que a memória é
constituída a partir de um processo de espacialização, como
constituição de um espaço mental em que as imagens são
arquivadas, exatamente como no Teatro da Sabedoria, idealizado
pelo Divino Camillo. Um modelo que articula os lugares da memória
à construção de esquemas de relações, como se a memória pudesse
corresponder a um espelho da totalidade do mundo, uma espécie de
reprodução esquemática do mundo exterior.
Nesses termos, o teatro de Camillo pode ser interpretado como a
própria alegoria da enciclopédia universal, como lugar do saber
alicerçado na memória.
A aproximação dos dois teatros aquele de Camillo e o de Rossi
permite relacionar um e outro nas associações que estabelecem
entre memória, conhecimento e invenção. O sentido de
espacialização do conhecimento do Teatro della Sapienza, presente
na elaboração mental do Teatro Del Mondo, reforça os nculos
existentes entre ambos e, o que é mais importante, acentua os
vínculos que o teatro de Rossi estabelece com a cidade, na medida
em que este se transforma de teatro efêmero em herdeiro de todas
as arquiteturas de Veneza.
Paul Ricoeur
39
, filósofo francês que estuda a relação entre memória e
imagem (importante, segundo o próprio autor, para a consciência
moderna que o indivíduo tem de si mesmo), observa que a redução
da memória à condição de arquivamento de imagens, mera
lembrança de impressões vagas das coisas, corresponde a um
equívoco. Isso ocorre não por se ignorar a dimensão temporal,
mas também por se destituir a capacidade de representação e
interpretação do passado, condição imprescindível da análise
histórica. Esse é justamente o aspecto levantado pela crítica que
reconhece nessa mostra da Bienal de Veneza, como em certa
produção dos anos 1980 rotulada genericamente de pós-moderna, a
convalidação de um historicismo efêmero, um modismo que se
39
Em A memória, a história, o esquecimento. São Paulo: Editora Unicamp, 2007.
200
sustenta unicamente de imagens: “mistura de simulacros e cópias,
tons áulicos e vernaculares, academia e regionalismo.”
40
Importante, porém, considerar a alternativa apresentada por Ricoeur
para reparar o equívoco anteriormente mencionado, ou seja, atentar
para a memória como modo de acesso à realidade ontológica do
indivíduo que é fundamentalmente “condição histórica”. Tal estratégia
permite articular conhecimentos muitas vezes apreendidos de modo
estanque: a fenomenologia da memória, a epistemologia da história e
a hermenêutica da condição humana, a fim de constituir o campo de
reflexão sobre a natureza constitutiva da representação do passado,
da referência ao ausente, enquanto fundamento para a determinação
da experiência moderna do “si mesmo”.
[24]
A reflexão proposta por Ricoeur desperta interesse pelo fato de
entender o resgate da memória em relação de reciprocidade, e não
de oposição ao estudo da história, como já foi entendida no passado.
40
Bruno Zevi, apud Arantes, op. cit., p. 29.
[24] Interior do Teatro. Fonte: http://www2.polito.it/didattica/01CMD/catalog/034/1/html/037.htm.
Acesso 16/09/2008, e ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 237.
201
À luz das considerações de Ricoeur, seria injusto e redutivo
interpretar o exercício analítico de Rossi como uma mera evocação
de imagens, como afirma Moneo referindo-se à arquitetura
Improcedente portanto igualar a investigação de Rossi aos exercícios
historicistas de um pós-modernismo passageiro, cujo ápice
manifesta-se justamente nos anos 1980. Sua arquitetura não se
limita a reproduzir simulacros, a ater-se unicamente à vestimenta, à
epiderme da arquitetura. Talvez pretensiosa, não certamente
superficial, sua produção explora e concilia a tratadística neoclássica
sobre a cidade (Poete, Lavedan, Habwalchs), com as visões utópicas
de Ledoux e com os estudos sobre a tipologia arquitetônica (de
Quatremère de Quincy, revisitados por Argan). Uma tipologia que
não se relaciona apenas com as questões construtivas ou funcionais,
mas essencialmente se vincula à estrutura espacial básica do edifício
inserido na trama da cidade.
[25]
[25] Rossi. Estudo para Escola Broni. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 201.
202
Recorrendo mais uma vez a Bogéa: “quer para endossar o caráter do
lugar, quer para reinventá-lo, esse projeto reconhece a preexistência
como mote de invenção e dessa forma edita tempos distintos da
cidade.” Atento ao presente, o Teatro del Mondo de Rossi, concilia
memória e história, tendo em vista sua continuidade no tempo. Assim
permite que a nova obra, além de reapresentar e resignificar o
passado, constitua uma marca incontestável da produção
contemporânea.
Escola Edmondo De Amicis, Broni (1969-70)
Um projeto de recuperação e ampliação de pequeno porte, mas
especialmente importante pela atenção dirigida ao edifício
preexistente que se traduz em uma intervenção singela, mas que, ao
mesmo tempo, corresponde a um aporte significativo.
O edifício transformado em escola no final do século XIX apresenta
uma sóbria fachada umbertina
41
. A proposta de Rossi reconstrói o
pórtico de entrada, a escadaria principal e o pátio interno, conforme
indicação em destaque na planta e imagem da fachada principal.
[26]
41
O termo umbertino refere-se ao estilo arquitetônico usado no final do século XIX
na Itália, durante o reinado de Umberto I de Savóia.
[26] Planta da Escola De Amicis. Em destaque modificações propostas por
Rossi. Fonte: Revista a+u, Nov/1982.
203
Esta é uma intervenção particularmente interessante para o estudo
que pretende articular as reflexões do campo disciplinar do restauro
com a compreensão do arquiteto envolvido mais diretamente na
prática de projeto e, por isso, não necessariamente informado a
respeito das discussões conceituais da área específica.
A intervenção de Rossi estabelece um sutil contraste com o edifício
preexistente, fazendo com que o novo seja entrevisto dentro do
antigo. Conserva o pátio e destaque aos elementos verticais: o
pórtico do térreo, a galeria superior coberta e o saguão de entrada.
Ilumina as escadas centrais que saem do pátio, fazendo a luz
penetrar no interior.
[27] [28]
Embora não se trate de uma preexistência de caráter monumental,
nem de uma obra de valor inquestionável do ponto de vista
arquitetônico, merece de Rossi o devido respeito, propriamente por
ser um exemplar de uma arquitetura do cotidiano que encerra um
não desprezível valor documental.
[27] Escola De Amicis. Galeria voltada para o pátio interno e escada
redesenhada. Fonte: Revista a+u, Nov/1982.
204
Segundo relato do próprio Rossi:
“(...) o movimento diário fundiu logo em seguida os dois
corpos, o velho e o novo, num todo único, mas com certa
ambigüidade. Isso a impressão de que minha intervenção
contém uma proposta completamente nova para o edifício.”
42
A referência a “uma proposta completamente nova”, contida na frase
de Rossi, remete à tentativa de extrair uma regra de caráter mais
geral de um processo particular, como sugere sua menção ao
procedimento, enquanto um método a adotar em projetos de
conservação e renovação de edifícios preexistentes ou de centros
antigos:
“O mesmo método pode ser usado para a conservação de
prédios antigos e para a renovação de centros históricos
urbanos. Nesse último caso, cada novo acréscimo, por
independente que seja a sua concepção, tem uma existência
física dentro de um contexto predeterminado. Esse contexto é
não somente diverso em termos formais, mas também tem
uma dimensão própria no tempo, que deve ser levada em
consideração toda vez que se quiser modificar o contexto.”
43
42
Em Nesbitt, op. cit. p. 386.
[28] Escola De Amicis. Pátio interno e detalhe da fonte. Fonte: revista a+u,
Nov./1982.
205
O interesse desse projeto é justamente o raciocínio explicitado na
solução proposta. Um exercício de intervenção em preexistência que
propicia refletir a respeito de um possível método a ser aplicado em
situações análogas. O novo e o antigo não se confundem, mas
dialogam sem conflito
44
.
Teatro La Fenice, Veneza (1997-2003)
O projeto de reconstrução do teatro veneziano La Fenice permite
discutir um tema controverso do campo disciplinar da restauração
que emerge no período do pós-guerra: a proposta de reconstrução
“com’era, dov’era” (como era, onde estava).
[29]
A orientação inicial é
voltada a edifícios desaparecidos por ação dos bombardeios,
portanto de modo repentino e traumático.
[30] [31]
A discussão acaba
se ampliando para casos em que a perda seja resultante de um
episódio abrupto e acidental. É evidente que em situações extremas
de crise e trauma os argumentos que apelam à razão podem perder
terreno para aqueles carregados de emoção.
43
Id. p. 386.
44
Convém observar que, embora Rossi não faça qualquer menção a respeito,
poucos anos antes da realização desse projeto, ou seja, em 1964, tinha sido votada
no II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos monumentos históricos
promovido pelo ICOMOS (Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios) a Carta
de Veneza que recomenda, entre outras medidas, que os acréscimos indispensáveis
em obras de restauração devem ser reconhecíveis e ter a linguagem do próprio
tempo.
[29] Gravura do interior do teatro do século XIX. Fonte:
http://vec.wikipedia.org/wiki/Teatro_%C5%81a_Fenicehttp://vec.wikipedia.o
rg/wiki/Teatro_%C5%81a_Fenice. Acesso 08/09/09.
206
Essa é a situação que envolve o La Fenice de Veneza que, em 1996,
sofre um incêndio doloso devastador o segundo de sua história, o
primeiro tinha ocorrido em 1837. Após o acontecido, a Prefeitura
local não tem dúvidas: institui um concurso nos moldes de uma
concorrência pública para execução de obras em que o projeto e a
construção estão interligados entre si. Determina-se, desta forma,
que os concorrentes sejam empresas do ramo da construção civil
que, por sua vez, contratam escritórios de arquitetura para
desenvolver os projetos a serem submetidos à avaliação do júri.
A rápida ação da administração pública gera polêmicas por dois
motivos principais: o primeiro ligado à modalidade de seleção que
elimina o concurso de projetos, para optar pelo processo de
concorrência que atrela a solução de projeto aos custos de
execução; o segundo motivo está relacionado a um dos pontos do
edital que dispõe que o teatro seja reconstruído no mais breve
período de tempo, conforme a lógica da reconstrução “com’era
dov’era”, ou seja, como se o teatro devesse quase que literalmente
ressurgir das cinzas tal qual era antes do infortúnio
45
.
45
A polêmica que envolve o concurso não se limita a esses aspectos que
antecedem a escolha do primeiro colocado. A construção do projeto vencedor, que
reunia a empresa L’Impregilo (Grupo Fiat) e o projeto da arquiteta Gae Aulenti, foi
embargada judicialmente pelo fato de não ter sido contemplado, naquela proposta, o
projeto para a ala sul prevista no edital. Com o veredicto final define-se a
continuação da obra conforme o segundo classificado: o consórcio das empresas
Hotzmann-Romagnoli com projeto de Rossi.
[30] Imagem aérea, o teatro destruído. Fonte:
http://www2.polito.it/didattica/01CMD/catalog/034/1/html/037.htm.
Acesso 08/09/09.
207
Além das dificuldades de reconstituição de praticamente todo o
interior do edifício, pois permanecem intactos apenas os muros
perimetrais de tijolos maciços de aproximadamente um metro de
espessura, a obra envolve questões ligadas à logística da
construção: a necessária montagem do canteiro em Mestre para
armazenamento do material por absoluta falta de espaço no próprio
local, o que determina que o transporte deva ser obrigatoriamente
por via aquática.
As estruturas da platéia, dos palcos e da cobertura originalmente em
madeira com previsão de reconstrução pelo edital, não contam com o
aval dos bombeiros que exigem o uso de material resistente ao fogo.
Os ambientes do foyer, bilheteria, as salas de dança e ensaio, assim
como as Salas Apolíneas devem, conforme o edital, ser
reconstruídos de acordo com o método filológico. Isto significa que
um estudo rigoroso de documentos e levantamentos iconográficos
existentes deve amparar a reconstrução, e que a partir da
interpretação desse material devem ser estabelecidos
criteriosamente todos os elementos figurativos a serem refeitos e os
métodos empregados na reconstituição.
[31] O teatro em ruínas.
Fonte: http://www2.polito.it/didattica/01CMD/catalog/034/1/html/037.htm.
Acesso 08/09/09.
208
Sobre a decisão de reconstrução do teatro na sua configuração
primitiva, assim se manifesta Aldo Rossi antes mesmo da definição
do resultado do concurso
46
, declarando-se favorável ao partido do
“com’era, dov’era”:
[32]
“É a única escolha sensata para Veneza, se não fosse
reconstruída a torre campanária de San Marco com’era
dov’era não seria a mesma Veneza
47
. Se Roma perde um
monumento é um drama mas Veneza não é cidade de
grandes monumentos, é composta de pequenos episódios.”
46
Em entrevista concedida a G. Leoni, publicada no periódico “AREA”, 32, maio-
junho de 1997, pp. 44-47. (Tradução da autora).
47
Rossi refere-se à reconstrução da Torre campanária de San Marco após o
desmoronamento ocorrido em 14/07/1902. A reconstrução (1903-12) foi realizada
com base nos desenhos de G. Spavento (c.1504), sob supervisão de Gaetano
Moretti (1860-1938), cf. Carbonara, 1997, p.183.
[32] Imagem do interior. Fonte:
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/f/f8/Teatro-la-
fenice-sala.jpg/280px-Teatro-la-fenice-sala.jpg. Acesso 08/09/09.
209
Conforme essa observação entende-se que, para o arquiteto, a
excepcionalidade da obra monumental constitui a principal condição
a exigir uma atitude de cautela em relação à reconstrução.
Subentende-se, portanto, que a preocupação central esteja ligada à
autenticidade, a não se incorrer em falsificação
48
. Aldo Rossi, por
outro lado, não problemas em reconstruir um edifício não mais
existente se este não se trata de um monumento de caráter singular,
marcado pela atribuição de autoria. Adota, portanto, segundo essas
declarações, uma atitude diferente para obras de caráter ordinário,
de ascendência vernacular, como qualifica o próprio teatro em
questão.
De todo modo, Rossi afirma que o edital não deveria ser tão
restritivo:
“Eu penso que se devesse limitar ao respeito à volumetria
originária, para o prejudicar o skyline veneziano. Refazer
o interior filologicamente, como prescreve o edital por uma
precisa determinação da tutela municipal [de proteção do
patrimônio], é em certo sentido paradoxal. Naturalmente
cada um levará a experiência própria, também o tapeceiro
particular, e será um elemento de novidade. A torre cênica
será, ao contrário, totalmente refeita, inclusive nos limites
volumétricos, e é a única parte projetável ex novo.”
Rossi lamenta a respeito das rígidas restrições definidas pelos entes
públicos ligados à tutela do patrimônio arquitetônico que se valem do
princípio da intocabilidade da cidade museu” conforme expressão
do próprio arquiteto e faz ressalvas explícitas à noção do
“patrimônio ambiental”:
“Diria que nunca me interessei muito aos valores
ambientais. Ainda que em polêmica com meu mestre
Rogers, nunca condividi a idéia das preexistências
ambientais; é um conceito de sabor cenográfico.”
48
A esse respeito consultar o conteúdo do apêndice dedicado ao tema, presente no
livro de Cesare Brandi Teoria del restauro (1963). Por comodidade e adequação faz-
se aqui mais uma vez referência à tradução para o português de Beatriz Kühl: Teoria
da restauração (2004), ver Falsificação, pp. 113-120. Nesse texto a falsificação é
analisada a partir do juízo de falsidade que pressupõe a não congruência do sujeito
ao seu conceito, às determinações que deveria possuir.
210
Sobre o traço característico do território veneziano afirma: “Aliás,
Palladio foi o primeiro a entender que Veneza é feita de elementos
isolados, enquanto Sansovino procurava por em comunicação, unir.”
A partir dessas considerações mencionadas pode-se ter uma idéia
do conteúdo controverso daquele depoimento. Quando se decide
pelo projeto de Rossi, o arquiteto tinha falecido, mas perdurava a
polêmica sobre a reconstrução.
A execução do projeto não obedece literalmente ao princípio do
“com’era, dov’era”. Basta analisar a atual Sala Nuova”, local onde
antes do incêndio estavam as instalações de aquecimento, para se
dar conta da transformação: adaptada a sala de ensaios para
orquestra e coro, essa sal ganha uma instalação sui generis que
constitui uma cenografia em madeira da Basílica Palladiana de
Vicenza.
[33]
[33] A cenografia Palladiana. Fonte:
http://www2.polito.it/didattica/01CMD/catalog/034/1/html/037.htm.
Acesso 09/10/09.
211
O método empregado na reconstituição da decoração interna opta
pela “evocação” do teatro de Gianbattista Medusa o cenógrafo que
decorou internamente a sal principal do teatro. Ao invés de refazer os
elementos decorativos (estuques e baixo-relevos que constituem a
decoração superposta à estrutura muraria), prefere-se recorrer à
pintura. Adota-se o recurso ilusório da própria cenografia como meio
não de se respeitar a autenticidade do teatro existente antes da
destruição, mas também pela constatação da impossibilidade de se
recriar o teatro desaparecido. Inicialmente se trabalha sobre um
esqueleto geométrico desenhado sobre a estrutura arquitetônica, a
ser posteriormente preenchido com a pintura para chegar ao efeito
visual equivalente à decoração primitiva
49
.
Algumas observações
“De Quincey afirma que el cerebro del hombre es un
palimpsesto. Cada nueva escritura cubre la escritura anterior y
es cubierta por la que sigue, pero la todo poderosa memoria
puede exhumar cualquier impresión, por momentánea que haya
sido, si le dan el estímulo suficiente.
La memoria del hombre no es una suma: es un desorden de
posibilidades indefinidas.
Comprendí que las tres facultades del alma humana, memoria,
entendimiento y voluntad, no son una ficción escolástica.”
(Jorge Luís Borges em La memoria de Shakespeare)
Atento, em seus anos de formação e de início de carreira, às
primeiras críticas formuladas à recente tradição moderna, Aldo Rossi
procura um fundamento próprio e específico para a arquitetura.
Movido pela busca do conhecimento, recorre a fontes de pesquisa de
diferentes áreas, compondo um rico mosaico de ascendências,
influências e derivações, que se refletem na sua elaboração teórica e
na metodologia de projeto adotada. Esse é justamente um dos
aspectos mais relevantes da sua produção: a explícita ligação entre o
pensar e o fazer arquitetura.
49
Todo esse trabalho foi amplamente documentado e está disponível na internet, no
site http://www.ricostruzionefenice.it. Data de acesso: 09/08/2009.
212
No início da trajetória profissional, é inegável, sobre Rossi e os
arquitetos de sua geração, a influência das idéias de Ernest Nathan
Rogers
50
professor e diretor da revista Casabella. Rogers é uma
das figuras mais ativas do ambiente arquitetônico de Milão, uma
espécie de mentor dos jovens arquitetos que se formaram nos anos
1950.
As influências, no entanto, não se limitam ao campo estrito da
arquitetura. É grande a atração que o pensamento marxista exerce
sobre os jovens italianos naqueles anos. As leituras de Gramsci, as
teorias de Lukács, formam um corpo de doutrinas significativo para a
elaboração de sua teoria urbana.
Outra fonte de pesquisa essencial é o pensamento estruturalista que
se expande ao longo do século XX, especialmente após a Guerra
Mundial, e se manifesta nas teorias e nas obras dos autores ligados
às manifestações da arte e da arquitetura, orientando o estudo das
cidades e dos fenômenos históricos associados à permanência de
estruturas formais.
Essa busca pelas formas permanentes, pelas estruturas essenciais,
através da ativação da memória e da recorrência aos mecanismos
tipológicos, teve alguns antecedentes entre os quais se destaca a
obra de Louis Kahn (1901-1974). Este, entretanto, considera o ‘tipo’
como organismo autônomo em sua forma e escala em relação ao
lugar. Procura discernir a hierarquia que permite distinguir
funcionalmente os espaços de circulação e serviços dos espaços de
permanência e estar, recorrendo aos instrumentos da geometria e da
ordenação axial, bem como à lógica construtiva observada nos
diversos períodos históricos, para então configurar a matriz de
composição de seus projetos. Introduz volumes que fazem referência
a elementos históricos sem, no entanto, realizar um retorno
historicista: as estruturas espaciais e o valor simbólico das formas
tornam-se assim os elementos soberbos, independentes do contexto
de inserção.
Desde o início de sua carreira, Aldo Rossi entende o trabalho dos
arquitetos como semelhante aos dos profissionais das ciências
50
Cf. depoimento do próprio Rossi, Rogers é chamado “o meu mestre” (em
entrevista já mencionada).
213
naturais e humanas, o que lhe permite resgatar a visão iluminista
enquanto ponto de partida para identificar o território próprio da
arquitetura, estabelecendo analogias com o todo das ciências
naturais.
Nesse sentido, Rossi polemiza frontalmente com críticos como Bruno
Zevi, que representa uma crítica engajada com os ideais
modernistas. Historiador e crítico de grande repercussão naquele
momento, Zevi é particularmente conhecido pelo gosto em cultivar
controvérsias e pelo modo impetuoso com que defende suas idéias.
Encara o modernismo como um desfecho triunfante da arquitetura e
das atividades artísticas em geral, como momento de plenitude após
um longo percurso de evolução e progresso tanto social, quanto
tecnológico, que coincide com a evolução em termos visuais e
figurativos da arquitetura associada à primazia do espaço. Bom
contestador, não se alinha, entretanto, com a corrente hegemônica
o racionalismo mas cultiva a produção de outra vertente, o
organicismo.
Rossi, por sua vez, distanciado do pensamento modernista,
empreende uma ambiciosa tarefa de elaborar um tratado de
arquitetura, e após concluir que o território da arquitetura é a cidade,
declara que é preciso explorar sua gênese, os princípios que
conduzem o seu desenvolvimento e investigar de que modo vão se
formando as distintas áreas e bairros que as compõem. Sua
pesquisa é marcada pela posição que na descrição da cidade a
chave para explicar e produzir a nova arquitetura.
Conforme destaca Montaner
51
, para a elaboração do seu livro A
arquitetura da cidade, Rossi baseou-se essencialmente em três
metodologias: o pensamento neopositivista propenso a recuperar a
experiência dos arquitetos iluministas para criar uma ciência urbana;
as idéias marxistas que se refletem na procura por uma objetividade
que possa romper com uma orientação essencialmente artística da
arquitetura e assumir um responsável papel social; e, por fim, o
estruturalismo que, através do estudo de Lèvi-Strauss e do lingüista
Ferdinand de Saussure, conduz sua análise da morfologia urbana e
da permanência das formas.
51
Em As formas do século XX, 2002, p. 150.
214
Rossi interliga ainda os tratados urbanos de Sitte, Poète, Lavedan e
Mumford, para defender a complexidade dos episódios urbanos,
aproximando geografia, urbanismo, política e literatura. Considera as
contribuições da teoria da Gestalt, as ligações com a psicologia
estabelecidas por Kevin Lynch no livro A imagem da cidade (1960).
O mecanismo poético da analogia, da maneira como foi utilizado por
Aldo Rossi, fundamenta-se nos estudos de Carl Gustav Jung. Dessa
maneira, Rossi o expressa com elementos e objetos encontrados em
sua experiência de observação da cidade cúpulas, silos, faróis,
torres, casas antigas, galerias, e assim por diante elementos que
se configuram como motivos recorrentes em seus projetos.
A idéia de ‘tipo’ pode ser relacionada ao conceito antropológico e
psicanalítico de arquétipo. Recorrendo mais uma vez a Montaner
52
, o
autor assinala que Jung pesquisa o caráter arcaico e mitológico do
inconsciente, em uma condição contemporânea na qual a
complexidade da psique aumenta proporcionalmente à perda da
espiritualidade e ao crescente empobrecimento dos signos. Continua
Montaner, o inconsciente coletivo, para Jung, é inato, tem um caráter
universal e procede da busca de imagens protetoras e benéficas
para o homem.
Nesse sentido, Aldo Rossi, Claude Levi-Strauss e Carl Gustav Jung
participam de uma mesma linha de pensamento que recorre ao
inconsciente coletivo, aos mitos, à memória coletiva, para se situar
no mundo contemporâneo.
A crítica tipológica interliga-se, portanto, às teorias da linguagem. As
metodologias estruturalistas aproximam a lingüística estruturalista
criada por Saussure e a crítica tipológica
53
que investiga o
fundacional e o intemporal. Essas pesquisas envolvem
interpretações transcendentais que buscam valores essenciais e
permanentes, princípios únicos e constantes. Muitos dos autores
citados por Rossi mitificam a experiência da viagem à origem. Uma
viagem iniciática que, depois da ida tortuosa, permite voltar à
realidade presente com a bagagem de certezas essenciais.
52
Idem. p. 152.
53
A crítica tipológica foi batizada por Manfredo Tafuri em Teorias e história da
arquitetura (1968).
215
Do mesmo modo que Aldo Rossi, também Rafael Moneo estabelece
uma relação de reciprocidade entre a atividade crítica e o exercício
de projeto. Sem dúvida, seu método descende, dentre outras
influências, do aprendizado com a Escola de Veneza e, por isso
mesmo, seu trabalho apresenta afinidades com o de Rossi no que
diz respeito à estratégia de reportar-se continuamente à experiência
concreta da história da arquitetura, à tentativa de compreender as
razões profundas que motivam certas escolhas formais e
construtivas, à preocupação com a inserção urbana do edifício.
É interessante notar que, apesar das afinidades, Moneo
54
questiona
a relação entre a crítica ao funcionalismo, elaborada por Rossi, e o
emprego do ‘tipo’ como mote de invenção. Observa que a partir do
momento em que Rossi elimina qualquer relação determinista entre
função e forma, acaba por admitir a irrelevância da função e, de
conseqüência, concede à forma valor em si mesma. Desse modo,
afirma Moneo, a noção de ‘tipo’ (para Rossi) deixa de ser pura
referência instrumental para converter-se propriamente em imagem,
deixa de ser sistema classificatório, para se tornar recurso
interpretativo articulado com o processo criativo. Os ‘tipos’, conclui
Moneo, dão valor à forma arquitetônica e configuram essencialmente
a trama da cidade pensada e projetada por Rossi.
Montaner alerta para a dissolução da força crítica dos conceitos de
tipologia, ao longo dos anos 1970-80
55
. Observa que esse desgaste
ocorre em decorrência da multiplicação de uma espécie de
maneirismo tipológico que acaba banalizando essas propostas. É
possível reconhecer que esse fenômeno de expansão apresenta
uma insuficiência congênita: um peso excessivo à análise histórica
não plenamente correspondido pelo interesse dirigido ao projeto,
concebido como conhecimento técnico e construtivo.
Além desses aspectos ligados à banalização da releitura histórica e
tipológica, que se considerar outras ressalvas apontadas pelos
críticos com relação à produção arquitetônica de Aldo Rossi: a
54
Em Inquietud teórica y estrategia proyetual…Barcelona: Gustavo Gili, 2004, pp.
101-143.
55
Em Después del movimiento moderno. Barcelona: Gustavo Gili, 1993, p. 151. Cita
entre outros autores Micha Bandini e seu artigo “Typology as a form of convention”
(1984), em que comenta a diluição dos conceitos relacionados à crítica tipológica
que, segundo o autor, tende a se converter em uma nova convenção.
216
primeira refere-se ao caráter eurocentrista de suas análises
históricas; outra crítica recorrente diz respeito ao uso repetitivo das
formas primárias, simples e elementares, muitas vezes tido como
procedimento empobrecedor.
Convém, no entanto, salientar que o interesse despertado por sua
arquitetura suplanta o alcance dessas observações depreciativas.
Nesse sentido, vale ressaltar as palavras de Arduino Cantàfora
56
no
intuito de sintetizar a essência ontológica atribuída à produção de
Rossi, isto é, a relação indissociável entre o pensamento, a
linguagem e a realidade observada presente em sua obra:
“Poucas e profundas coisas, isto me aconselhava Aldo
Rossi (...). Por isto a sua arquitetura da cidade é a
arquitetura da vida e sobretudo da vida dos mais humildes,
que tanto respeitou em sua vida. Rossi sabia ser duríssimo
com os arrogantes, sempre intimamente participe da
honesta simplicidade. E a sua arquitetura é um canto
dirigido a esta humanidade sofrida, dando-lhe espaço no
palco da vida. (...) não dava a ilusão de redenção através
de presuntos jogos formais, como se algum achado
pudesse bastar para tornar menos dramática a fatiga do
viver. Utilizava, ao contrário, aquele repertório que significou
a arquitetura desde sempre, para pô-lo como espelho do
ser, para que cada um pudesse reconhecer-se como
pertencente.”
Cantàfora destaca nesse texto o sentido ético do profissional cuja
marca não é a procura de um repertório de grandes achados, mas ao
contrário uma contínua evocação, uma transmissão a outro sentido,
uma metalinguagem profunda e “ao mesmo tempo leve como uma
dádiva necessária, um olhar atento à permanência das poucas e
profundas coisas que interessam, aos traços de vida retidos nos
muros das construções, “ao valor do limiar entre espaço público e
privado, no qual sempre entrou em ponta dos pés”.
56
Um de seus discípulos, em artigo intitulado ”Poche e profonde cose” da revista
Casabella 654 (março 1998), pp. 4-7. (Tradução da autora)
217
A força expressiva dos desenhos de Rossi amplia-se quando
considerada sustento cotidiano da sua paciente pesquisa de
repertório, qual formação de um vocabulário plástico essencial que
parte do inventário de formas conhecidas, para se transformar na
invenção do novo. Considerando que o termo latino inventàre,
provém de invenire (= achar, encontrar) e inventário, do latim
inventarium, corresponde a elenco para achar”, Rossi estabelece
uma correlação pertinente, própria de quem não considera o
inventário como um fim em si mesmo, um retorno ao passado, mas
faz desse elenco de achados a fonte de conhecimento para atuar no
presente.
A esse respeito, oportuno lembrar as observações de Ulpiano
Bezerra de Meneses
57
, para quem o que interessa de fato é o
processo de ativação da memória e não o produto ou o objeto de
rememoração. É por isso que a valorização da cultura material não
interessa apenas como listagem de bens, mas, sobretudo, como
busca do entendimento da produção individual e de sua
representação social. A proposta de Ricoeur, mencionada acima a
propósito do Teatro del Mondo, coincide com essa postura de
ativação da memória entendida como compreensão ontológica, qual
reflexão mais abrangente a respeito do ser.
Ao destacar que a memória opera sobre o passado, mas se faz no
presente, em função do presente, Meneses assinala que, ao mesmo
tempo em que, corresponde a um processo de acúmulo, de
armazenamento de dados, é também exclusão, filtragem. Sob esse
aspecto, menciona Montaigne e sua advertência para a inadequação
do conceito de biblioteca como repositório da memória da
humanidade, uma vez que enfatiza o processo de exclusão implícito
no mecanismo de seleção aplicado na formação do acervo. Ressalta
que, do mesmo modo que preserva, ao reunir e conservar em um
local de estudo e leitura um número significativo de obras, a
biblioteca, em igual medida, exclui outros tantos exemplares,
57
Cf. depoimento presente na forma de apêndice em Tese de Doutorado de Luís
Antônio Jorge, intitulada O espaço seco. Imaginário e poéticas da arquitetura na
América, FAUUSP, 1999.
218
impedindo o acesso dos homens a esse conhecimento deixado do
lado de fora do seu recinto.
Nesse sentido, sinaliza Meneses, todo museu pode ser visto como
registro da experiência humana segundo algum critério. Museu é,
portanto, lugar em que a memória se transforma em objeto de
análise de como a sociedade ou os grupos constroem suas
memórias e as operam. Menciona Pierre Nora, para quem os
museus, entre outros organismos, correspondem a “lugares da
memória”, isto é, são instituições, coisas e ações que ativam a
lembrança, enquanto suportes da memória não mais vivenciada e
que por isso mesmo necessita de elementos externos para se
manifestar. Uma memória necessariamente objetivada, porque não
estar mais na prática, imersa no cotidiano.
A partir dessas reflexões, observa-se que todo processo realizado
por instituições de caráter memorialístico, como o são, além das
bibliotecas, os museus, os arquivos históricos, os próprios
procedimentos que caracterizam as ações de conservação do
patrimônio cultural, resulta de um mecanismo, não de
armazenamento, mas também de seleção e, portanto,
essencialmente de exclusão.
Cabe aqui retomar uma constatação equivalente advinda da literatura
de Borges: impossível pretender manter uma memória integral como
aquela de Irineo Funes, o memorioso, cuja capacidade ilimitada de
arquivar e reevocar os dados retidos na memória, de preciosa
qualidade, acaba por se converter em incontornável transtorno. De
tal modo que o impede de pensar, porque incapaz de abstrair e
generalizar, preso à contingência e à inteireza do ocorrido, do dado
circunstancial.
Como bem coloca Meneses, a memória está para o tempo, assim
como a pertença está para o espaço. Tudo indica que seja
justamente a articulação entre memória e pertença o aspecto
fundamental a se destacar no trabalho de Aldo Rossi, como aliás
observa Cantàfora.
Retomando as explicações do próprio Rossi:
219
“Sempre me interessou a mudança artística de uma palavra
ou de uma frase, partindo do significado próprio para um
outro, operação que os gregos chamavam metáfora (...). E
entre os arquitetos, o sublime Palladio usou com extrema
consciência este trasladar de significado, transportando os
elementos da arquitetura com uma função a outra e
acrescentando e mudando com simples transferências as
partes elementares do edifício, modificando-lhe o
significado próprio num outro. Assim, através da sua obra, a
arquitetura grega reaparece em Veneza e no mundo inteiro,
e a transferência não foi construção mental mas história
viva dos homens: encontramo-la indiferentemente nas
construções cultas e naquelas que nos parecem não
eruditas.”
58
São considerações que se prestam tanto à conceituação da sua
arquitetura analógica, como possibilitam elucidar o sentido do seu
Teatro del Mondo. Rever suas reflexões e reexaminar esta entre
outras obras hoje, passados trinta anos de sua criação, permite
detectar a consistência e coerência de uma arquitetura sensível às
vicissitudes humanas.
Retornando a Cantàfora
59
:
“A arquitetura de Aldo Rossi é ética, por isto é trágica, e é
disto que nasceu o Teatro del Mondo, como mais belo não
se podia imaginar. Mas os ‘Teatri del Mondo’ tinham sido
os teatros da vida, feitos para tentar ligar mais uma vez o
homem à natureza. E Rossi conseguiu recriar o encanto
shakespeariano, giocando sui gabbiotti, brincando com os
volumes entorno aos quais vagueiam os gondoleiros
venezianos.”
Mais do que a qualidade figurativa das obras tanto as suas, quanto
as preexistentes que observa e perscruta o que interessa à
arquitetura de Aldo Rossi é especialmente a motivação presente nas
suas materialidades. Do mesmo modo observa as diferentes
58
Em BRAGHIERI, op. cit. p. 6.
59
Em artigo já mencionado na nota 55 (tradução da autora).
220
atribuições de significados advindas no curso do tempo. A criação
arquitetônica é vista então como prolongamento da história e se
reapresenta como variação do conhecido, como seleção de
objetos retidos na memória, e não como novidade absoluta, como se
pretendeu nas propostas da vanguarda modernista. A obra de Rossi
procura um outro sentido de originalidade, agora associado à
singeleza do gesto essencial presente na origem das coisas e
reelaborado nos artefatos feitos pelo homem no decorrer dos
tempos.
Contrariando a idéia de que Rossi e Bruno Zevi nada têm em
comum, retoma-se aqui uma observação do crítico que se aproxima
da postura do arquiteto:
“Se a história acha uma saída como componente
metodológica do projeto, por sua vez o projeto prolonga na
história seus critérios e seus instrumentos. Isto significa que
o projeto propõe uma operação histórico-crítica de novo
tipo, uma história da arquitetura redigida com os
instrumentos expressivos do arquiteto e não somente com
aqueles do historiador da arquitetura”.
60
A intervenção sobre a preexistência não poderia então ser
compreendida como ação de projeto mediada pelo conhecimento
histórico? Coloca-se, desse modo, em pauta uma ação de projeto
distinta da reivindicação da “página em branco”: nada em comum
com o palimpsesto que cancela o texto primitivo para dar lugar ao
novo, mas, ao contrário, como um diálogo de tempos, uma
convivência cordata, favorável à continuidade histórica, resultado da
estratificação das temporalidades e da postura crítica implícita na
escolha da solução proposta.
60
ZEVI, B. La storia come metodologia del fare architettonico. Conferência proferida
na Aula Magna da Universidade de Roma em 18-12-1963. Apud TAFURI, M. Teoria
e storia. Bari: Laterza, 1970, p. 125. (Tradução da autora).
221
Conclusão
Del rigor em la ciencia
…En aquel Imperio, el Arte de la Cartografía logró tal Perfección
que el Mapa de una sola Provincia ocupaba toda una Ciudad, y
el Mapa del Imperio, toda una Provincia. Con el tiempo, estos
Mapas Desmesurados no satisficieron y los Colegios de
Cartógrafos levantaron un Mapa del Imperio, que tenía el
Tamaño del Imperio y coincidía puntualmente con él. Menos
Adictas al Estudio de la Cartografía, las Generaciones
Siguientes entendieron que ese dilatado Mapa era Inútil y no sin
Impiedad lo entregaron a las Inclemencias del Sol y los
Inviernos. En los Desiertos del Oeste perduran despedazadas
Ruinas del Mapa, habitadas por Animales y por Mendigos; en
todo el País no hay otra reliquia de las Disciplinas Geográficas.
Suárez Miranda: Viajes de varones prudentes,
libro cuarto, cap. XLV, Lérida, 1658.
O conceito de restauro, a partir de uma análise etimológica
1
, significa
restabelecer e traz consigo um componente de projeto indiscutível
representado pelo prefixo re(staurare), como re(fazer). O termo
reporta, portanto, desde a origem, à recomposição de um hiato
criado entre passado e presente, ou mesmo entre passado e futuro,
se considerada a perspectiva de que o projeto subentende
necessariamente a idéia de concepção, de intenção de realizar algo
no futuro.
É oportuno, entretanto, relembrar que a noção moderna de restauro,
ratificada pela concepção brandiana, formulada nos anos 1960, ao
contrário do que pode inferir uma primeira aproximação ao tema,
admite que o interesse de preservação, atrelado à idéia de restauro,
1
Em COLONNA, B. Dizionario etimológico della língua italiana. L’origine delle nostre
parole. Roma: Newton & Compton, 2005, p.188-189. Conforme verbete
restaurare/staurare, do latim, instaurare (= dare in compenso, poi ristabilire), da
staurare (stare), associável ao grego staurós (=palo), stylos (=colonna).
222
surge não propriamente para estabelecer uma continuidade com o
passado, mas decorre justamente da percepção de uma nítida
separação entre passado e presente propiciada pela investigação da
história, isto é, pela atitude crítica do indivíduo frente a seu passado.
Contribui para essa percepção, a descontinuidade provocada pelos
processos revolucionários
2
. É da ruptura com a tradição e com o
fluxo ininterrupto do tempo, portanto, que se configura também a
interrupção de uma prática comum de apropriação das obras
herdadas do passado para adaptá-las sem restrições às
necessidades do presente
3
.
A questão fundamental que se coloca é a reclamação por uma
necessária dimensão de projeto via de regra, de transformação
incorporada à ação de restauro, desde que não conflite com a
intenção de conservação. É a proposição de equilíbrio contida na
postura de conciliação entre permanência e transformação. É
também resultado de uma inevitável constatação heraclitiana: a de
que é impossível deter o curso do tempo e as transformações que
esse desenvolvimento comporta.
Para Marco Dezzi-Bardeschi
4
, considerar unicamente a conservação,
especialmente para os edifícios gravemente danificados, implica
abdicar da possibilidade de restituir ao objeto de intervenção sua
plena identidade, ou seja, sua capacidade de viver de modo
completo no presente e no futuro. Não defende com isso uma ação
arbitrária, mas impõe como condição a ação filológica, isto é, aquela
2
Conforme abordado no primeiro capítulo desta pesquisa, essa mentalidade
manifesta-se como uma reação de certos setores da sociedade às significativas
transformações, ocorridas na Europa na passagem do século XVIII para o XIX.
Decorre da difusão de dois processos revolucionários que se iniciam
respectivamente na França e Inglaterra: o primeiro, de busca pela liberdade e
igualdade, deflagra a contestação ao Ancien Régime e condiciona o vandalismo
voltado aos edifícios-símbolo dessa antiga ordem; o segundo, marcado pelo
nascimento da indústria moderna que, além de modificar radicalmente os modos de
produção, implica importantes mudanças nos costumes e no ambiente urbano.
3
A esse respeito discorre o teórco Paul Phillipot, com já mecionado no primeiro
capítuio, em artigo: “Restauro: filosofia, criteri, linee di conduta”, em Revista
Instrumenti n. 6, 1998, pp. 43-50.
4
Em www.antithesi,info/test/categorie/s_comm_aut.asp?autoreID=Dezzi_Bardeschi,
acesso em 10/09/09.
223
que se vale de todas as investigações e documentações necessárias
para estabelecer as premissas de intervenção.
Trata-se de não reconhecer a intocabilidade da obra deturpada ou
desfigurada por alegação de se pretender preservar a sedimentação
histórica, pois renunciar a intervir com linguagem e meios
contemporâneos, muitas vezes, significa pretender conceder
dignidade à própria deturpação, à incúria, como se esta fosse um
legítimo componente da evolução do organismo arquitetônico,
favorecendo praticamente ulterior desmazelo. Nesse caso, a falta de
manutenção ordinária passaria a fazer parte decisiva da história da
obra arquitetônica, parte da estratificação histórica, como estado que
não se admite remover, alterar, em nome da estrita e exclusiva
conservação.
Em última análise, para as obras gravemente danificadas, a
aceitação exclusiva da conservação, corresponderia a acolher,
conforme Dezzi-Bardeschi, não obstante a reflexão dos últimos cento
e cinqüenta anos, as teses de John Ruskin que, por excesso de zelo
e respeito pelo passado, preferia decretar a morte dos bens de
grande interesse artístico e histórico, a admitir a intervenção.
Em latim, tradire deriva de tradere (=consegnare), equivalente ao
‘trazer’ do português, e provém da narrativa evangélica em que
Cristo é entregue às autoridades por Judas (daí o sentido de ‘trair’
consolidar-se como atraiçoar).
Como esclarece Ada Cortese
5
, socióloga e psicanalista, o verbo
carrega o sentido de transmitir uma ordem preestabelecida, em nome
de um novo sistema de valores:
“Sanciona portanto o drama da passagem do velho ao novo
e em essência o eterno drama do processo evolutivo. A
traição tem algo em comum com o abandono por parte de
um sistema de precedentes regras ou configurações a favor
da novidade.”
5
Apud Vilma Torselli “Tradimento e tradizione” disponível em site da internet:
www.antithesi.info/testi/testo__pdf.asp?ID=334, acesso em 10/09/09. (Tradução do
autor).
224
A palavra tradizione (tradição), também em arquitetura, tem o
significado de transportar, de entregar aos pósteros uma ordem, um
conjunto de regras, de normas consolidadas, sem perder de vista
também o sentido de passagem, de conversão do velho ao novo, de
abandono no sentido de trair aquilo anteriormente aceite, em favor de
algo que passará a vigorar.
Continua Cortese: “quando a nova regra ou configuração se afirma, a
traição se transforma em tradição (...). É exatamente esse o
significado etimológico da palavra tradição: é a história das traições
passadas”.
6
Esse processo de transformação manifesta-se no interior de uma
inelutável dinâmica tradição/traição, isto é, através do abandono da
última “entrega” herdada do passado, que será traída em nome da
próxima. Sem tradição não aquisição de conhecimento, não
continuidade, mas sem traição não mudança, modernidade.
Diferente é o sentido de traduzione (do latim trans-ducere,
transportar) que em campo cultural, especialmente o literário, não
deve se confundir com tradimento (traição), sob o risco de tradire
(trair) em lugar de tradurre (traduzir), subvertendo ou subtraindo o
sentido do texto original, adotando uma indesejável dinâmica:
tradução/traição, não aceitável por ocorrer em detrimento e não a
favor da plena compreensão da obra que se pretender traduzir.
Vale lembrar que o interesse pela preservação da arquitetura não
nasce de um fenômeno natural, nem corresponde a um simples
capricho cultural, tampouco se apresenta como um efêmero
modismo. Como se sabe, as primeiras formulações teóricas e as
práticas de conservação ganham expressão em um cenário cultural
movido por rápidas e profundas mudanças, como um necessário
compromisso para evitar perdas irreparáveis na transmissão da
herança cultural do passado às futuras gerações, ou seja, a partir de
um processo construído sobre bases culturais.
7
A visão atenta à produção humana de tempos passados
corresponde, portanto, a uma reação às alterações, demolições e
6
Idem. (O grifo é nosso).
7
O relato da origem do conceito de restauro e do histórico da conservação do
patrimônio cultural é abordado no primeiro capítulo desta pesquisa. Ali o
mencionadas fontes de consulta para um aprofundamento do assunto.
225
descaracterizações de edifícios antigos e de partes da cidade como
ações corriqueiras em um contexto em que vigora uma visão
progressista voltada ao futuro. Entretanto, como já observado, é
comum reconhecer a contraposição de idéias em tempos de
mudanças. Assim, em meio às significativas alterações técnicas e
sociais, identificam-se as reações a essas mesmas alterações.
À primeira vista, essa resistência às mudanças poderia ser
identificada como uma ação conservadora de recusa em aceitar
novos valores. Nesse sentido, assumiria uma genérica conotação
pejorativa de obstrução ao progresso.
No entanto, convém observar outra conotação de conservação
cultural: aquela ligada à idéia de identidade e à articulação entre
memória individual e coletiva na apreensão do processo histórico. A
esse respeito, é oportuno recorrer às colocações do historiador
Ulpiano Bezerra de Menezes:
“A História não é a disciplina do passado, mas da diferença.
Claro que ela necessita do passado para identificar e
explicar a diferença. Porque pela diferença se compreende
a transformação, a dinâmica que rege novas vidas. Sem
uma idéia de passado que assegure divisar os sentidos, os
mecanismos, as lógicas, os vetores, os agentes da
diferença e da transformação, a mudança é ininteligível, e
apenas fator de angústia.”
8
A consciência histórica permite, conforme esse entendimento,
elaborar a noção de identidade, não pela negação das mudanças ou
simplesmente pela contraposição a elas, mas sim pela capacidade
de identificar, em meio a um contexto em transformação, uma
matriz
de reconhecimento constituída por elementos com caráter de
permanência.
Frente a essa nova condição da sociedade de massa, a ativação da
memória implícita na conduta preservacionista configura-se então
como uma necessidade de reconstrução da própria identidade por
parte do indivíduo. São inúmeros os agentes a mobilizar o interesse
pela memória e a conciliá-lo com a apreciação das artes, condição
8
Em MIRANDA, D. (org.), 2007, p. 22.
226
fundamental para aceitar a pertinência da conservação dos bens
culturais. Entre esses ativos partícipes se destacam: historiadores,
arqueólogos, colecionadores, literatos, artistas e arquitetos. Não por
acaso, o museu é uma das principais instituições a integrar esse
mecanismo de estímulo e processamento da memória e de
interligação desta com a história.
É o próprio Meneses quem orienta a reflexão sobre a identidade: um
conceito que, a princípio, se define pela semelhança consigo mesmo.
No entanto, como alerta o historiador, o universo é por excelência
dinâmico. Diante da impossibilidade de se encontrar essa referência
imutável na realidade, pelo constante processo de transformação a
que está sujeita, seria então necessário reconhecer que a identidade
corresponde a um eixo de permanência em meio à transformação.
De modo equivalente, assinala um aspecto dual contido na noção de
identidade: a dialética entre a remissão a si mesmo e a relação com
o outro. Isto significa que não como conceber a idéia de
identidade sem considerar a alteridade.
Essa compreensão, observa Menezes, pressupõe um processo
dinâmico de demarcação de fronteira entre a semelhança e a
dessemelhança, que não existem focos de identidade absolutos,
mas sim conotações diversas de identidade, conforme as situações
em que os indivíduos envolvidos interagem.
Admitindo, portanto, a transformação como a dinâmica essencial da
vida, não está colocada a possibilidade de interromper esse
processo, mas unicamente de contê-lo, de contemporizar entre a
mudança e a conservação e, mais do que isso, participar ativamente
através da investigação, da atribuição de significados aos
mecanismos e agentes de mudança, assim como da seleção
criteriosa daquilo que se pretende preservar.
Fronteiras, abolição de fronteiras, restauro e projeto, novo e antigo,
manter e transformar.
Algumas das questões a serem postas seriam as possíveis
aproximações e inevitáveis contradições a serem destacadas neste
estudo que investiga as atuações de Lina Bo Bardi e Aldo Rossi,
como posturas que se reportam à experiência concreta da história da
227
arquitetura para embasar a concepção de projeto. A análise de Bo
Bardi é centrada nos projetos que envolvem preexistências de valor
documental e figurativo; o estudo de Rossi focado em seu método de
projeto que extrai da observação da cidade existente os elementos
essenciais para a formação de um repertório a ser empregado no
projeto do novo.
O primeiro aspecto a se destacar são as raízes culturais comuns que
envolvem a formação de ambos e que, apesar da diferença de idade
de cerca de dezessete anos, preservam vínculos com uma renovada
cultura humanista que se afirma a partir de meados do século XX.
Ambos podem ser identificados como herdeiros do ambiente cultural
milanês, marcado pela presença de personagens como Ernesto
Nathan Rogers, assim como pela influência de importantes veículos
de divulgação e discussão de idéias, entre os quais se destaca a
revista Casabella Continuità e o prosseguimento da versão atual,
Casabella, cujo corpo editorial representa importante posicionamento
favorável à aproximação entre tradição e inovação.
Além desses vínculos mais imediatos, convém sinalizar referências
teóricas comuns aos dois arquitetos presentes no cenário italiano a
se apresentarem como importantes fontes de posicionamento
ideológico. Citam-se entre os autores mais importantes Gramsci,
além de intelectuais como Claude Lèvi-Strauss e Jean Paul Sartre.
Com os mestres italianos aprenderam a não menosprezar a história,
ao contrário, a considerar os exemplos concretos da produção
arquitetônica não só erudita, mas especialmente a produção popular.
Quanto à consideração da história, Lina Bardi fala em “história
concreta e fecunda” e enfatiza o sentido da história como uma justa
medida entre a herança e a continuidade que, entretanto, não cerceie
as “amplas liberdades às possibilidades do arquiteto, hoje mais do
que nunca mediador responsável pelo modo de viver dos homens.”
Aldo Rossi, mais do que ao registro concreto da herança adquirida,
atenta à memória involuntária, à uma percepção afetiva e intuitiva,
como destaca em sua definição de “arquitetura analógica”.
228
Apesar dessa aparente contradição, de certo modo, é possível notar
confluências nos trabalhos de Rossi e Bo Bardi, na medida em que
ambos transitam no limiar entre o racionalismo e a intuição.
Pode-se indicar como afinidade entre a postura dos dois arquitetos a
valorização do ofício na associação que estabelecem entre certas
matrizes eruditas e as raízes populares materializadas na produção
vernacular.
Cada um a seu modo busca a simplicidade e comedimento, sem
abdicar da expressão pessoal. Se Lina Bo Bardi prioriza reexaminar
o procedimento técnico como manufatura, Aldo Rossi persegue a
estrutura permanente, a geometria básica, os ‘tipos’ da arquitetura
que se reapresentam no correr dos tempos. Um se atém às questões
mais concretas de um fazer, enquanto o outro evade para um
território fugidio do imaginário coletivo. Nem por isso é correto afirmar
que Lina Bo Bardi se distancie de uma ação poética, de um
componente surrealista e da recorrência à memória involuntária.
Lina Bardi, lúdica, diz que o interessante são as pessoas e portanto a
arquitetura deve amparar as atividades que animam a vida e que
proporcionam encontros. Rossi, trágico, apesar de afirmar que a
arquitetura é inseparável da vida civil, acaba por admitir que os
lugares são mais fortes que as pessoas”. Dessa atitude decorre a
insistência nos motivos atemporais.
A esse respeito vale retomar Solà-Morales
9
que cita David Hume,
segundo o qual a “experiência estética surge a partir da comoção
inesperada provocada por um reconhecimento aleatório, por uma
acumulação de imagens, por um excesso de sensações.” Como se a
referência a uma obra estivesse fora dela mesma, buscada através
de uma recordação, de um acontecimento, de um tempo histórico,
das origens, de determinados valores eleitos. Solà-Morales afirma
que todo debate sobre a técnica é um debate ético. Segundo o autor,
Heidegger entre outros pensadores ao refletir sobre a técnica e
seus produtos o faz a partir de um ponto de vista ético, na
perspectiva de uma reconstrução depois do niilismo nietzescheano.
9
Em Diferencias. Topografia de la arquitectura contemporânea. Barcelona: Gustavo
Gili, 2003, p. 38.
229
Essa preocupação com a ética é latente na obra dos arquitetos
estudados.
O desenho para Lina é informação, representação necessária à
execução, mas nem por isso impessoal e desprovido de expressão.
Para Rossi é essencialmente força de comunicação que supera a
representação técnica para adquirir autonomia, como afirma o
próprio Rossi, a conduzir o rumo do projeto. Quase mais encantador
que a própria obra construída, agrada pela beleza e pela força
expressiva, trágica, appunto.
Nenhum dos dois ignora, nem tripudia a preexistência. Buscam as
razões profundas que motivam as escolhas formais. Rossi, mais do
que Bardi, mitifica as origens e seus ecos na história.
Vale destacar que as tendências atuais do campo do restauro
compartilham de uma premissa básica: os bens legados do passado
requerem uma aproximação de cunho cultural que deve prevalecer
em relação às exigências práticas e às questões de ordem
econômica. As ações voltadas à preservação dos bens culturais
entendidos como patrimônio a se deixar enquanto herança cultural
para as gerações futuras envolvem um leque muito amplo que
compreende: registros, levantamentos, inventários, medidas de
manutenção e conservação (que, a rigor, evitam e retardam
intervenções mais invasivas). Incluem ainda a própria reflexão
teórica, as providências legais, as políticas públicas e as atividades
de educação patrimonial.
Beatriz Mugayar Kühl
10
sintetiza as três vertentes principais a se
destacar no ambiente italiano da atualidade
11
: a crítico-conservativa,
a conservação integral e a manutenção-repristinação.
Como adverte a autora, apesar de a reflexão sistemática no campo
disciplinar do restauro existir pelo menos dois séculos, mesmo na
10
Para aprofundar essa abordagem, consultar: Preservação do patrimônio
arquitetônico da industrialização. Problemas teóricos de restauro. Cotia: Ateliê
Editorial, 2008, pp. 81-101.
11
Idem. A autora explica o motivo pelo qual prioriza a análise das vertentes
debatidas na Itália, nos dias de hoje: especialmente pelo fato de esse país se
destacar no esforço de conceituação do restauro e na consolidação do seu estatuto
disciplinar, além de apresentar-se como um dos principais ambientes culturais
favoráveis à solidariedade entre a reflexão teórica e as práticas de conservação.
230
Itália, mas com maior intensidade no Brasil, grande parte das
intervenções atuais nos bens de valor patrimonial não considera os
preceitos consolidados ao longo dessa experiência. Não raras vezes,
prevalece o desrespeito ao bem que se declara querer preservar.
Como relata Kühl, nos últimos anos tem ocorrido um maior
intercâmbio de experiências e discussões entre os representantes da
corrente crítico-conservativa e da conservação integral, buscando-se
pontos de aproximação sem, contudo, anular os diferentes pontos de
vista entre essas duas vertentes.
Provavelmente o caminho de conciliação entre a reivindicação da
inserção do novo requerida pela intervenção contemporânea e o
respeito histórico-crítico ditado pela reflexão sistemática do campo do
restauro seja a posição defendida por Dezzi-Bardeschi: uma vez
assegurada a “conservação integral” das diferentes camadas de
tempo depositadas na obra, aceita também a ação de projeto como
mais uma camada a se sobrepor, isto é, “um projeto do novo,
compatível mas não mimético, isto é respeitoso, dialeticamente
consciente e, ao mesmo tempo, declaradamente legível e
autônomo”.
12
Da epígrafe selecionada entre os escritos de Borges invoca-se um
necessário relativismo no curso das investigações, pela simples
certeza de que os conceitos mudam com o tempo, de que a história é
movida por tradição, mas também por traições. O que revela ser inútil
defender uma posição irredutível, de modo absolutamente inflexível,
apegar-se com unhas e dentes a aspectos que hoje se apresentam
imprescindíveis, irrefutáveis, sabendo-se que os conceitos não são
permanentes, mudam, como tudo, como a vida.
12
Apud KUHL, p. 85.
231
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