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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro Biomédico
Instituto de Medicina Social
CRISTIANE BRANDÃO AUGUSTO MÉRIDA
O Cérebro Criminógeno na Antropologia Criminal do Século XIX:
Um Estudo sobre a Etiologia do Crime a partir da
Medicalização da Sociedade
Rio de Janeiro
2009
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CRISTIANE BRANDÃO AUGUSTO MÉRIDA
O Cérebro Criminógeno na Antropologia Criminal do Século XIX:
Um Estudo sobre a Etiologia do Crime a partir da
Medicalização da Sociedade
Tese apresentada como requisito para
obtenção do título de Doutor, ao Programa
de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, do
Instituto de Medicina Social da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Área de concentração: Ciências Humanas
e Saúde.
Orientador: Prof. Dr. Francisco Javier Guerrero Ortega
Rio de Janeiro
2009
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Cristiane Brandão Augusto Mérida
O Cérebro Criminógeno na Antropologia Criminal do Século XIX:
Um Estudo sobre a Etiologia do Crime a partir da Medicalização da Sociedade
Tese apresentada, como requisito para obtenção
do título de Doutor, ao Programa de Pós-
Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de
Medicina Social do Estado do Rio de Janeiro.
Área de Concentração: Ciências Humanas e
Saúde.
Aprovado em _______________________________________________________
Banca Examinadora:
______________________________________________
Prof. Dr. Francisco Javier Guerrero Ortega (Orientador)
Instituto de Medicina Social da UERJ
______________________________________________
Prof. Dr. Kenneth Camargo
Instituto de Medicina Social da UERJ
______________________________________________
Prof. Dr. Humberto Dalla
Faculdade de Direito da UERJ
______________________________________________
Profa. Dra. Beatriz de Moraes Vieira
Universidade Candido Mendes – UCAM
______________________________________________
Prof. Dr. Paulo Jorge da Silva Ribeiro
Pontifícia Universidade Católica – PUC-RJ
Rio de Janeiro
2009
Ao Zé, um companheirão.
A Giu, minha lindinha.
A Lica, minha florzinha.
Somos loucos uns pelos outros.
AGRADECIMENTOS
A todos aqueles que, diretamente ou indiretamente, contribuíram para a realização deste
trabalho, MUITO OBRIGADA.
Zé, Giu e Lica, desculpe pela impaciência e pela falta de tempo. Mamãe agradece o olhar, o
gesto carinhoso e a compreensão de sempre. Vocês estavam ao meu lado ao longo desses
anos, me estimulando a todo instante. São criaturas adoráveis, de quem tenho muito orgulho.
Amo vocês.
Iaiá e Quincão, companheiros da minha vida desde a nascença, o agradecimento pela base
sólida, pela união e pela força que nunca falta.
Kako e Bile, por vocês existirem como irmãos de verdade.
Tia Ita e Vivi, valeu pela torcida, pelo carinho e pela disposição de ajuda constante.
Tia Nyzinha, pelas orações, pelo exemplo, pelo estímulo ao estudo e pela criação.
Jheca, Ninha e Didi, meus docinhos, agradeço pela tolerância ao meu cansaço e pela
compreensão nos momentos de me recolher para estudar. Ah, também e principalmente
por me acolherem tão bem em suas vidas.
Meus colegas de profissão, companheiros de caminhada intelectual e amigos de longa data,
especialmente, Sodré, Bia, PJ, Mauro, Lu e Rossano.
Meus mais novos amigos de infância do Gabinete 1, particularmente Cláudio e Cissa.
Meu “estagiário”, Rafael, pela cautela, pela dedicação e pelos empurrões.
Francisco Ortega, por suas observações pertinentes, por sua paciência e atenção invariável.
Obrigada por me dar a chance de ser sua orientada.
Fernando Vidal, por seu acolhimento, incentivo, apoio em um momento tão extraordinário.
Obrigada por sua simplicidade e por seu sorriso.
Equipe de Secretaria e Professores do IMS, por um aprendizado menos complicado, em vários
sentidos.
Flávio Edler, por sua generosidade no empréstimo dos livros e pelas dicas valiosas.
Equipe do Instituto Max Planck de História da Ciência de Berlim, pela rica troca e estrutura
impecável.
A todos aqueles que, diretamente ou indiretamente, não contribuíram para a realização deste
trabalho, fica para a próxima...
RESUMO
MÉRIDA, Cristiane Brandão Augusto. O Cérebro Criminógeno na Antropologia Criminal do
Século XIX: Um Estudo sobre a Etiologia do Crime a partir da Medicalização da Sociedade.
2009. 175f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) Instituto de Medicina Social,
Universidade do Rio de Janeiro, 2009.
O presente trabalho se dedica a realizar uma incursão na história do pensamento
criminológico a fim de contribuir para um mapeamento das justificativas do surgimento de
certas normas penais, algumas ainda em vigor, e o mapeamento das razões da edificação de
muitas instituições jurídicas e administrativas, algumas ainda em funcionamento. A análise
tradicional da biografia da Criminologia costuma, todavia, omitir certas ideias que deveriam
ser integradas ao percurso da sua vertente científica. Vários são os autores que apontam para a
origem da trajetória cientificista criminológica na Europa do fim do século XIX. No entanto,
quando se aprofunda na identificação das raízes das referências positivistas na implicação
Medicina-Pessoa-Sociedade da era moderna e sua influência na seara criminológica, percebe-
se que uma tímida Criminologia estava nascendo no início do século XIX com os estudos
sobre a fisiologia cerebral. Em meio a um processo político amplo de fortalecimento do
Estado e da burguesia, dá-se a formação de um aparato médico-jurídico, pelo qual se
demonstra a tentativa de reconhecimento da autoridade médica para além dos limites
legítimos da atividade. Preocupa-se, portanto, em chamar a atenção para o movimento de
“medicalização” do criminoso por uma leitura histórica do impacto do “cientificismo
cerebral” na esfera criminal. O material desenvolvido pela Frenologia e, depois, pela
Antropologia Criminal, é emblemático dessa onda cientificista do século XIX, na qual as
pesquisas cerebrais imprimem a visão sobre a etiologia do crime a partir de seus marcadores
biológicos. Mais particularmente, atenta-se para a recepção das teorias de Franz Joseph Gall e
de Cesare Lombroso sobre o cérebro (do) criminoso na criminologia do século XIX, através
da discussão da noção de livre arbítrio, do debate sobre retribuição versus tratamento, bem
como das propostas de medidas preventivas em caso de tendências à violência e das políticas
públicas voltadas para o cerceamento de direitos em nome de uma suposta defesa social.
Palavras-chave: Frenologia. Antropologia Criminal. Cérebro. Crime. Medicalização.
ABSTRACT
The current work aims at performing an analysis of the history of criminological
reasoning in order to contribute to an overview that justifies the appearance of certain
criminal rules, some of them still ongoing, together with the mapping of the reasons for the
building of many juridical and administrative institutions, some of which are still functioning.
Traditional analysis of the genesis of Criminology is accustomed to, nevertheless, omitting
certain ideas, which ought to be integrated into the current scientific scope. There are several
authors who point to the origin of the scientificist trajectory in Europe, at the end of the 19
th
-
century. However, when we go deeper into the identification as to the roots of the positivist
references in the implication Medicine-Person-Society of modern times and its influence on
the criminological domain, we realize that a timid Criminology was about to be born at the
beginning of the 19
th
-century, following the studies on brain physiology. Amidst the vast
political process of the strengthening of the State and the bourgeoisie, a medical-juridical
apparatus is originated, through which the attempt of recognition of the medical authority is
demonstrated, beyond the legitimate limits of the activity. It is concerned, therefore, in
drawing attention to the criminals “medicalisation” movement by means of a historical
reading of the impact of “ brain scientificism” in the criminal sphere. The material developed
by Phrenology and, afterwards, by Criminal Anthropology, is a significant sign of such a
scientificist trend in the 19
th
-century, in which brain researchers put forward their vision on
the etiology of the crime from its biologic markers. More particularly, there is an emphasis on
the reception of the theories of Franz Joseph Gall and Cesare Lombroso about the criminal
brain in 19
th
-century Criminology, through discussion of the notion of free will, the debate on
retribution versus treatment, as well as the proposition of preventive measures in cases of
tendencies to violence and public policies towards controlling rights in the name of a so-
called social defense.
Key-words: Phrenology, Criminal Anthropology, Brain, Crime, Medicalisation.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................ 9
1 A MEDICINA EUROPEIA E O CÉREBRO (DO) CRIMINOSO NO
SÉCULO XIX ................................................................................................... 17
1.1 Abrindo corpos: as racionalidades médicas ...................................................17
1.1.1 O impacto da Medicina européia na sociedade oitocentista ...............................18
1.1.2 O impacto da Neurologia na constituição da identidade do ser vivente ............ 20
1.2 Abrindo crânios: o localizacionismo cerebral e a Frenologia
Criminológica ................................................................................................... 24
1.2.1 A Organologie de Franz Joseph Gall e os 27 pontos do localizacionismo
cerebral .............................................................................................................. 25
1.2.2 Das sementes de mostarda aos projetos eugênicos: a influência da Frenologia
em diversos campos .......................................................................................... 29
1.2.3 A Frenologia Criminológica ............................................................................. 33
1.2.3.1 O criminoso, seu crânio e seu cérebro .............................................................. 34
1.2.3.2 Livre arbítrio e responsabilidade ...................................................................... 37
1.2.4 A Frenologia Criminológica Aplicada .............................................................. 41
1.3 Abrindo crânios (2): o cérebro (do) criminoso na Antropologia
Criminal ........................................................................................................... 46
1.3.1 A recepção dos fundamentos frenológicos pelos postulados da Antropologia
Criminal ............................................................................................................ 48
1.3.2 A Antropologia Criminal .................................................................................. 51
1.3.2.1 O criminoso na obra de Lombroso .................................................................... 61
1.3.2.2 O crânio e o cérebro (do) criminoso para Lombroso e outros autores .............. 69
1.3.2.3 Livre arbítrio e responsabilidade ....................................................................... 77
1.3.3 O Poder Médico-Judiciário ................................................................................ 85
1.3.4 A Antropologia Criminal aplicada ..................................................................... 95
2 A MEDICINA BRASILEIRA E O CÉREBRO (DO) CRIMINOSO NA
VIRADA DO SÉCULO XIX-XX ................................................................... 100
2.1 A recepção do cientificismo pela intelectualidade brasileira ...................... 100
2.1.1 O impacto da Frenologia na Academia Nacional ............................................. 105
2.1.2 Uma tese polêmica: Guedes Cabral .................................................................. 109
2.2 A Escola Positiva da Criminologia nacional ................................................ 113
2.2.1 O criminoso na obra de Nina Rodrigues .......................................................... 113
2.2.2 O criminoso na obra de outros autores brasileiros ........................................... 120
2.3 “Puffy, ugly, slothful and inert”..................................................................... 129
2.3.1 O paradoxo: mestiçagem e evolução ............................................................... 129
2.3.2 O perfil anti-democrático ................................................................................. 131
2.3.3 As práticas policiais de fins do Império e da República Velha ....................... 134
2.4 A Medicalização do criminoso aplicada ...................................................... 137
3. CONCLUSÃO ............................................................................................... 161
REFERÊNCIAS ........................................................................................... 167
9
INTRODUÇÃO
Estudar a criminologia, além de tarefa estimulante, nos permite compreender melhor a
estreita relação entre o direito e o positivismo, entre a esfera penal e a medicina. Estudar a
criminologia dentro de um Instituto de Medicina Social proporciona um olhar mais
abrangente e interdisciplinar das condutas anti-sociais, visualizando mais claramente a
multiplicidade de teorias médicas sobre o desvio, sobre a anormalidade e as medidas
terapêuticas ou profiláticas que vêm sendo propostas ao longo dos séculos para a prevenção
do delito e o tratamento da violência, reconhecida como uma das mais graves doenças da
atualidade.
Uma incursão na história do pensamento criminológico possibilita o mapeamento das
justificativas do surgimento de normas penais, algumas ainda em vigor, e o mapeamento das
razões da edificação de diversas instituições jurídicas e administrativas, algumas ainda em
funcionamento, como os Manicômios Judiciários, agora Hospitais de Custódia e Tratamento.
A análise tradicional desta história, todavia, costuma omitir certas ideias que deveriam
ser integradas ao percurso da criminologia científica. Vários são os autores que apontam para
a origem da trajetória cientificista criminológica na Europa do início do século XIX e não do
final do mesmo, como costumeiramente repetem as publicações.
Foi justamente no começo dos oitocentos que fisiologistas, ao se aprofundarem na
fisiologia do cérebro, ultrapassaram os diagnósticos médicos para prescreverem receitas para
as transformações sociais. Se os corpos sociais se apresentavam doentes, os médicos seriam as
autoridades competentes para sanar os problemas, para prevenir patologias e para curar as
moléstias.
Esse paradigma naturalista da medicina, estendido ao organismo da sociedade,
também alcançou a conduta delituosa, suscitando revisões dos parâmetros da teoria clássica.
Ao se desmistificar a igualdade de todos por meio da naturalização das diferenças,
reforçaram-se os componentes biológicos causais e, por conseguinte, uma visão mais
fisicalista, menos abstrata fora incorporada nas explicações da ação criminosa.
Assim, se o ambiente oitocentista favoreceu uma cultura receptiva aos padrões
naturais-causalísticos, um ramo da ciência, a medicina, alargou seus tentadores tentáculos a
10
outros saberes, incluindo a seara criminológica, e construindo uma rede de poder a que
podemos denominar “medicalização do crime”.
Considerando uma tendência contemporânea de traduzir as ações/omissões humanas
por meio dos mecanismos cerebrais exclusivamente e, consequentemente, de fazer-se a leitura
da causa biológica do crime na hipo/hiperatividade dos lobos (ou dos “órgãos”, ou das regiões
ou dos córtices), é que surgiu a intenção de desenvolver o presente trabalho, demonstrando,
num retrocesso ao início do século XIX, a relação entre o cérebro, o delito e a anormalidade.
Algumas especulações sobre o cérebro e o comportamento violento vêm sendo
inseridas na dinâmica da biologia totalizante dos distúrbios ou anomalias mentais e a
incorporação das neurociências no imaginário e na práxis da sociedade ocidental justifica a
preocupação em se questionar o limite e o impacto dessas referências na cultura hodierna: é
possível extrair fatos credíveis sobre uma mente criminosa da leitura de neuroimagens? Quais
as consequências da adoção desse método neurocientífico na política criminal e nos tribunais?
Se o indivíduo for considerado portador de alguma tendência delinquente, a reação social
poderia verter para medidas de prevenção e repressão à la Minority Report
1
?
O estudo de novas técnicas de controle social e penal, notadamente no contexto das
sociedades de conflito, da guerra contra o terrorismo e da violência urbana, tem trilhado um
rumo cuja direção desemboca, mais cedo ou mais tarde, nas tecnologias digitais de
visualização. As mais diversas alternativas de seu uso tornam a versatilidade dos tomógrafos
uma poderosa arma na prevenção, punição ou correção das condutas anti-sociais, ilícitas ou
anormais.
Por toda a trajetória da cientificidade da medicina e a autoridade atribuída aos médicos
na produção de verdades, o paradigma da racionalidade biológica ocupou, historicamente,
espaço privilegiado na fabricação de certezas não limitadas à esfera médica. Uma
medicalização da sociedade, então, não se encontra nessa posição privilegiada somente nos
dias de hoje e sua estreita relação com a criminologia também não é recente.
Acreditando que a análise histórica nos permitirá perceber a influência dos discursos
médico-científicos na seara criminal a partir de 1800, é que se busca o enfoque atribuído ao
cérebro
2
nas teorias sobre o comportamento humano desde a sua versão mais rudimentar da
“organologia”.
1
Produção cinematográfica norte-americana, de 2002, do diretor Steven Spielberg, baseada na obra de Philip
Kindred Dick.
2
Obviamente, não se trata de negar a influência de outras áreas da medicina, como é o caso da genética, onde, inclusive,
teste de DNA é hoje um lugar comum. No entanto, na tentativa de restringir o objeto de estudo, me concentro no que se
11
O presente trabalho se preocupa, portanto, em chamar a atenção para o movimento de
medicalização do criminoso por uma leitura histórica do impacto do “cientificismo cerebral”
na esfera criminal. Mais particularmente, atenta-se para o impacto das teorias de Franz Joseph
Gall e de Cesare Lombroso sobre o cérebro (do) criminoso na criminologia do século XIX,
através da discussão da noção de livre arbítrio, do debate sobre retribuição versus tratamento,
bem como das propostas de medidas preventivas em caso de tendências à violência e das
políticas públicas voltadas para o cerceamento de direitos em nome de uma suposta defesa
social.
Estou convencida de que a leitura histórica do papel do cérebro na medicina do crime
nos informado processo que se desenrolou a partir do século XIX com os estudos sobre a
fisiologia cerebral e sobre o criminoso. Torna-se importante, entendo, levantar as ideias
explicativas de predisposições violentas, de tendências delinquentes, de alocação de aptidões
morais ou intelectuais no cérebro, mapeando os contornos de duas expressivas correntes
médico-criminológicas: a frenologia e a antropologia criminal.
Frenologia e Direito
Tanto o conteúdo envolvente da doutrina frenológica seduziu o âmbito penal, como a
sua própria estrutura discursiva impositiva de certo respeito e prestígio propiciou uma
aproximação entre a frenologia e o Direito. Falando sobre os pontos coincidentes na
emergência dessas disciplinas como campos do saber, Pierre Schlag enfatiza a busca ao
reconhecimento da cientificidade, a autoreferência, o linguajar de crenças populares, um
certo corporativismo para a manutenção da atmosfera de produção de verdades e uma certa
organização fundada “nos caminhos pelos quais o paradigma frenológico foi construído. Foi
uma amálgama entre animismos e reificações; complexidade auto-referencial, auto-
legitimação e folclore” (SCHLAG, 1997: 6).
A elaboração de jargões jurídicos com independência e força retórica auxiliou a auto-
conservação, a prevenção e a defesa dos ataques externos dos críticos opositores. Também a
elevação de um complexo sistema de especificações, subdivisões à condição de potentes
entidades reificadas, como as doutrinas e os princípios do Direito, contribuiu para a formação
supõe serem as causas ou os correlatos cerebrais do crime. Ainda, conforme bem declarado por Eastman e Campbell (2006),
concordamos que cérebros e suas imagens exercem uma particular atração no Direito Penal.
12
de um esquema que se auto-sustentava nas pretensas evidências fáticas e cientificamente
consubstanciadas.
Schlag ainda deixa claro que no início do século XIX o Direito era frequentemente
visto como algo artesanal, apesar de algumas escolas existirem alguns anos. A
sistematização e conotação de ciência às disciplinas jurídicas nos Estados Unidos são
atribuídas a Christopher Columbus Langdell, de Harvard, o qual reproduzia a noção da
cientificidade daquele século
3
e a analogia às ciências naturais, recorrendo à observação e ao
método empírico. Assim, o mecanismo de atuação do Langdellianismo é o mesmo da
frenologia: abstrai-se um certo padrão de dados, como as decisões judiciais, e tal padrão é
projetado de volta para as entidades reificadas, como as doutrinas e os princípios, que, então,
equiparadas à lei, funcionam como agências de constrição das decisões jurídicas e de outras
instâncias oficiais.
Guardadas as diferenças entre os sistemas jurídicos do common law” e do “civil
law”, fato é que o paradigma da produção científica e do indivíduo em sua natureza humana
laica norteava o pensamento ocidental dos anos oitocentos. Franz Joseph Gall, reconhecido
como o fundador da “organologia”, depois batizada de frenologia, incorpora bem a
personagem do médico materialista desta época, de cujas premissas se extraíam o empirismo,
o localizacionismo, as tendências inatas e os reflexos cranianos. Por conseguinte, enveredou
sua doutrina pelos trilhos das reflexões criminológicas, transferindo o foco para o criminoso,
bem como passando ao questionamento do livre arbítrio, da responsabilidade e das formas de
punição.
Com efeito, o materialismo inscrevia a mente no cérebro, tendo as manifestações
mentais determinadas pela própria organização cerebral. Ao desenvolvimento dos órgãos
cerebrais corresponderiam o caráter e a conduta do indivíduo, logo o comportamento
delinquente resultava da predominância de certos órgãos sobre outros. Como o crânio refletia
o seu interior, a fisionomia da pessoa denunciava sua personalidade e suas propensões. O
aspecto crânio-facial mostrava o criminoso e o crime que cometeu ou que, algum dia, poderia
cometer.
Assim como a frenologia guarda estreitas relações com o Direito e especialmente com
o Direito Criminal, sua influência alcançou também a antropologia física, a qual desemboca
na antropologia criminal.
3
Haney (1982) corrobora esse pensamento, afirmando que Langdell se valeu dos casos concretos para transformá-los em
“dados empíricos” de observação e análise no “laboratório legal” da sala-de-aula.
13
Antropologia e Direito
Além da similitude de ser um sistema fisicalista e pertencer ao viés da natureza, no
“nature-nurture spectrum”, podemos enumerar, como semelhanças entre a antropologia e a
frenologia, as técnicas de medida de desenvolvimento cerebral, a tentativa de dissociação da
teologia, a proposta de reconhecimento de uma autoridade científica e a comum preocupação
com as cabeças humanas.
O caldo de cultura cientificista, o método empírico pujante e o projeto positivista forte
em fins do século XIX criaram o ambiente propício para a eclosão da Antropologia Criminal,
mais tarde denominada Criminologia (Positiva, Científica ou Nova Escola). Além do contexto
teórico-filosófico favorável, a ideologia política e os índices concretos de violência, de
delitos, de conduta anti-sociais fomentaram a formação de novos roteiros de ideias da
academia e da intelectualidade a partir dos quais se daria a atuação dos poderes instituídos.
Foi assim que assistimos a uma enxurrada de publicações médicas acerca do
tratamento que deveria ser aplicado aos delinquentes e aos anormais em geral, tanto como
medidas de prevenção a ocorrência de comportamentos social ou moralmente inaceitáveis,
quanto como medidas terapêuticas, de cura, de regeneração dos degenerados recuperáveis ou
de exclusão dos degenerados reincidentes irrecobráveis.
No Brasil, o movimento médico-legal também exemplifica o cientificismo positivista
que contagiou o mundo jurídico-criminal. O clima de anseios por novidades nas mais diversas
áreas, especialmente instaurado desde as décadas de setenta e oitenta do século retrasado,
marcou a substituição do romantismo pelo realismo, na literatura; da monarquia pela
república, na forma de governo; do privilégio pelo liberalismo, na economia; da escravidão
pelo trabalho livre, nas relações empregatícias.
Na esfera penal, permitiu a inserção da medicina na individualização da aplicação da
sanção e de sua execução, através dos laudos periciais sobre a (in)imputabilidade do agente,
sobre a concessão do livramento condicional, sobre o estabelecimento adequado para o
confinamento; bem como verifica-se tal inserção nos procedimentos de identificação pessoal e
criminal, nas tabelas classificatórias dos criminosos para o direcionamento da pena ou do
tratamento e nos laboratórios ou demais instituições criadas para o controle social e penal,
principalmente pós-40, com a entrada em vigor do nosso Código Penal. Este, aliás,
contemporizando as Escolas, não abandonou a base clássica da responsabilidade moral,
contudo introduziu as medidas de segurança e aperfeiçoou outros instrumentais relativos à
determinação da culpabilidade, à fixação da pena e ao cumprimento da sanção penal.
14
Assim, considera-se apropriada a aplicação do termo medicalização nesta tese no
mesmo sentido que o emprega Ferla (2005), ou seja, não necessariamente como um processo
de completa mudança social, mas como um olhar sobre a atitude que os médicos passaram a
ter quanto a seu objeto não limitado às doenças, determinando a mudança de postura com
enfoque no que pudesse, de qualquer modo, interferir na vida humana, constituindo um
grande projeto ou “programa de ação”.
A fim de propiciar a efetivação deste programa de ação e ultrapassar a mentalidade do
abstracionismo ilusório das concepções clássicas, muitos médicos se empenharam em
promover a criação de “sociedades”, “escolas”, “institutos” (SCHWARCZ, 2008), espaços,
enfim, de debate e oxigenação das teorias, de influência política e de infiltração nos poderes
públicos, incluindo aí o Poder Judiciário.
Não se pretende, todavia, afirmar que a medicina é uma entidade dotada de uma
essência – e de uma essência negativa –, cuja razão de existir estaria reduzida às conspirações
políticas de controle e de poder. É por isso que, apesar deste termo medicalização” ter sido
utilizado amplamente pelas ciências sociais com uma conotação crítica à patologização da
sociedade e seus desdobramentos, implicando uma censura ao reducionismo, outras
questões envolventes que merecem não ser apagadas dessa análise.
Melhor explicando, em que pesem as tradicionais leituras sobre a “medicalização” das
últimas décadas, alguns autores vêm alertando para uma utilização desmedida, pouco precisa
do termo, bem como para relevância de se perceber uma relação bidirecional entre a medicina
e a sociedade, que aponta para novas valorações nos dias de hoje (ROSENBERG, 2006;
ROSE, 2007). Não se trataria de uma via de mão única, como a manifestação de um saber-
poder soberano que submeteria seus súditos e nenhum impacto sofreria. Trata-se, em verdade,
de um movimento de ida e volta, que gera ações e que também é gerado por ações dos
indivíduos e dos grupos (ROSENBERG, 2006). Por exemplo, o processo de incursão da
medicina na sociedade, fortemente estabelecido a partir do século XIX, nos permitiu ser o que
atualmente somos, e agirmos, individual ou coletivamente, como agimos: as práticas
cotidianas de higiene, dieta, vacinação; metáforas médicas e formas de compreensão dos
problemas sociais a partir do organismo; a introdução de terapêuticas para controle e
estabilização dos humores, emoções e desejos etc. (ROSE, 2007).
Ademais, é de se convir que o projeto médico de alcançar autoridade para além dos
limites de sua competência talvez não integrasse as aspirações de todos os médicos, nem,
realmente, tenha se concretizado por completo. Assim, se é possível admitir não ter havido
15
uma medicalização de todas as esferas da sociedade, é necessário checar quais categorias
médico-positivistas de fato foram incorporadas ao nosso cotidiano e à legislação brasileira.
A Organização da Tese
O trabalho em tela é dividido em duas partes, organizadas de modo a privilegiar o
critério espacial: a primeira se dedica às doutrinas europeias oitocentistas e a segunda, à
doutrina nacional da virada do século XIX para o XX.
Como certamente já se percebeu, o foco está na análise das teorias da medicina
científica sobre o criminoso e, especificamente, nas teses sobre o seu cérebro, isto é, uma
análise sobre a influência da medicina na órbita criminal a partir dos estudos da fisiologia,
anatomia e patologias cerebrais.
Na era do cientificismo médico, com as dissecações e o empirismo anatomo-
patológico, o discurso frenológico, notadamente a obra de Franz Joseph Gall, sobressai como
uma primeira tentativa de construção de um discurso criminológico. Por isso, após o capítulo
preliminar destinado a traçar um panorama introdutório sobre as categorias “medicina” e
“cérebro” no período em destaque –, a doutrina da frenologia vem examinada em perspectiva
geral e criminológica.
Não obstante os demais ensaios do meio do século, temos que a outra grande
referência do XIX sobre o tema está nos trabalhos da Antropologia Criminal. A opção pela
obra lombrosiana se justifica em razão de ter sido César Lombroso o grande divulgador de um
tipo particular da raça humana, o homem delinquente, cujos traços biológicos e psicológicos
são determinados por atavismo e degeneração facilmente perceptível em sua constituição
orgânica, física e, consequentemente, cerebral. É, pois, no terceiro capítulo que me debrucei
sobre esta Escola Positiva.
Na segunda parte, o estudo do criminoso nato à brasileira ressalta as teorias nascidas
nas Faculdades de Medicina e as interpretações dos intelectuais nacionais sobre o movimento
positivista criminológico adaptado à nossa realidade oitocentista. Para isso, analisei, primeiro,
a preparação do terreno com a influência da frenologia na academia e, por conseguinte, a
divulgação dos postulados científico-cerebrais e não metafísicos para o tratamento dispensado
à causa criminal. Nesta oportunidade, também se adverte para o possível impacto da lógica da
fisiologia cerebral na determinação do comportamento delinquente via Guedes Cabral.
Frisam-se alguns aspectos antropológicos de sua tese e a repercussão que atingiu na
Faculdade de Medicina da Bahia para demonstrar a similitude do trajeto percorrido pelas
16
ideias médicas na Europa: fisiologia cerebral comportamento delinquente antropologia
criminal.
No segundo capítulo, o enfoque recai sobre o nome mais exaltado da Antropologia
Criminal brasileira, Nina Rodrigues, e alguns de seus contemporâneos, seguidores ou não do
“tipo” criminoso nacional. Não se descuida ainda da apresentação do ambiente vivido pela
sociedade naquele momento, nem da associação constantemente travada entre criminosos,
degenerados, negros, mestiços, vadios, preguiçosos e de toda a gama de apelidos
depreciativos e discriminatórios. Encontrei espaço para esta discussão, de forma mais
detalhada, no capítulo três.
Em seguida, é dedicado todo um capítulo para a ilustração de um dos campos de
forças, simultaneamente de disputas e de cumplicidades, em que se concretiza a interrelação
Medicina-Direito Penal: um caso do Tribunal do Júri. A seleção do fato pautou-se em critérios
não só temporais e espaciais, mas que também levaram em consideração a arguição de
inimputabilidade com a intervenção médica no caso jurídico e a existência de documentação
histórica
4
. Para feliz surpresa dos pesquisadores e infeliz sorte das vítimas, o caso de D.
Francisca é ainda mais emblemático, porquanto imprime a marca da discussão racial presente
nos vários segmentos de então.
Por fim, esta tese traz, na conclusão, um apanhado das manifestações da medicina
sobre o cérebro (do) criminoso. Coloca-se entre parêntesis o “cérebro (do) criminoso” para
dar ênfase a uma visão reducionista que permeia muitas das teorias sobre o papel ou o poder
totalizador do cérebro. Nessa parte final, sintetiza-se o pensamento, que, numa incursão
“neurocriminológica” – se fosse usar termos contemporâneos –, vitaliza os debates sobre livre
arbítrio versus determinismo, prevenção versus retribuição, punição versus tratamento, com
aparatos tecnológicos e promessas terapêuticas da época.
Com sinceridade, foram as leituras das neurociências do século XXI que, de início,
alertaram para a relevância do campo e me impulsionaram para um mergulho numa tradição
científica mais antiga, a qual me seduziu pela rica experiência que uma pesquisa histórica
proporciona quanto à visão alargada de mundo e à compreensão crítica da realidade
atualmente em evidência. Olhar o passado para entender o presente e projetar o futuro foi,
resumidamente, o desafio encarado neste trabalho.
4
Foram realizadas pesquisas no Arquivo Nacional, onde localizei o processo de interdição de D. Francisca (a acusada); na
Biblioteca Nacional, na qual tive acesso aos periódicos que relatavam os acontecimentos de 1886; no Museu da Justiça e no
Arquivo do Estado do Rio de Janeiro. Nestes dois últimos, nenhum documento relativo ao caso escolhido foi encontrado,
porque, em razão de obras, boa parte dos processos judiciais do século XIX estava empilhada em caixas inacessíveis, no
Fórum da Rodoviária de Niterói, segundo informações prestadas por funcionário do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
janeiro, e, no segundo, a alegação foi de impossibilidade de consulta ao acervo por força de trabalho interno.
17
PARTE 1
A MEDICINA EUROPEIA E O CÉREBRO (DO) CRIMINOSO NO SÉCULO XIX
1.1
ABRINDO CORPOS: AS RACIONALIDADES MÉDICAS
A construção do conhecimento, a partir de fins do século XVIII, obedeceu a uma
organização comum ao saber pós-revolucionário de formalização do pensamento. O contexto,
favorecido pelas indagações sobre a vida do indivíduo
5
, propiciou a inserção de diversos
ramos do conhecimento numa matriz epistemológica laicizada que abrangeu as inúmeras
ciências que se estruturavam nesse momento.
O clima classificatório herdado do método de catalogação e de observação havia
manifestado a necessidade de fornecer preciso significado às palavras e de nomear
corretamente as coisas. A experiência das enciclopédias de rotular, de hierarquizar, de medir,
igualmente não abandonada pelo positivismo, condizia com a tendência de elaboração de um
caminho científico que substituísse Deus pelas explicações empíricas e racionais, antes
predominantes na geometria, nos cálculos, na química e na mecânica, depois, fortes no
vitalismo, nas ciências da vida.
Um ponto de partida relevante, então, passou a ser o homem vivente, em toda sua
complexidade orgânica, e a medicina anatomopatológica, bem como as ciências humanas que
se formavam aqui também iniciaram esse trajeto inscrito na nova ordem epistêmica:
pela primeira vez, desde que existem seres humanos e que vivem em sociedade, o homem,
isolado ou em grupo, se tenha tornado objeto de ciência isso não pode ser considerado
nem tratado como um fenômeno de opinião: é um acontecimento na ordem do saber. E esse
acontecimento produziu-se, por sua vez, numa redistribuição geral da epistême: quando,
abandonando o espaço da representação, os seres vivos alojaram-se na profundeza específica
da vida, as riquezas no surto progressivo das formas da produção, as palavras no devir das
linguagens. (FOUCAULT, 1987: 362)
5
Pretende-se fazer histórias da biologia no século XVIII; mas não se tem em conta que a biologia não existia e que a
repartição do saber que nos é familiar há mais de 150 anos não pode valer para um período anterior. E que, se a biologia
era desconhecida, o era por uma razão bem simples: é que a própria vida não existia. Existiam apenas seres vivos e que
apareciam através de um crivo do saber constituído pela história natural(FOUCAULT, 1987:141).
18
Com essa mudança de perspectiva, o enfoque sobre o ser humano como objeto
científico demandou a organização de certos ramos do saber a partir de categorias que melhor
pudessem explicá-lo racionalmente. A biologia e a medicina se apresentaram aos doutos como
um dos recursos estratégicos de elaboração dos constructos que atenderiam a essa exigência
histórica.
1.1.1 – O IMPACTO DA MEDICINA EUROPEIA NA SOCIEDADE OITOCENTISTA
A modernização do Ocidente fez eclodir novas concepções e novos olhares sobre a
vida humana. Evocando as referências biológicas supostamente, a ciência competente
para as explicações sobre as questões cotidianas e sobre as mais eruditas, o ambiente social
sustentou a autoridade médica, à qual se recorreu no tratamento clínico e político. A projeção
da medicina, a partir desse momento, reflete o grau de importância e respeito atribuídos ao
saber biológico que se operacionaliza socialmente através daquela, a tal ponto de projetar
também as medidas públicas de ação coletiva e individual na área da saúde, fiscalizadas pelo
poder de polícia. A leitura sobre esse forte processo de medicalização ocidental é corroborada
pelo surgimento da medicina social e pela biopolítica
6
.
A pretexto de resguardar a vida e instituir condições para que ela se desenvolvesse
com qualidade, o saber da medicina disponibilizou instrumentos e técnicas reguladores do
comportamento e disciplinadores do corpo, numa auto-sustentação e autofomentação do
próprio poder médico. À medida que se distanciaram dos fundamentos divinos, as
racionalidades médicas passaram a ocupar o local da autoridade
7
teórica e prática da natureza
dessacralizada.
O modelo dessa medicina do século XIX reestruturou a clínica, associando o
conhecimento adquirido nas faculdades com as conclusões oriundas das dissecações de
6
Foucault, em seu História da Sexualidade, nos oferece um painel sobre o biopoder, apresentando um polo focado na política
anatômica do corpo e outro focado numa biopolítica da população. Então, no campo do biopoder, a biopolítica, como uma
regulação dos mecanismos da vida, consiste em estratégias específicas sobre o nascimento, a vitalidade, a morbidade, a
mortalidade, a longevidade. As leituras atuais do biopoder sugerem a inclusão de, pelo menos, três elementos para melhor
esclarecer este conceito: a existência de discursos híbridos (biológicos, demográficos, sociológicos) elaborados por
autoridades a quem se atribui competência para tratar de verdades; estratégias de intervenção na existência coletiva em nome
da vida e da saúde, em geral destinadas a populações, que podem ser agrupadas por categorias como raça, etnia, gênero ou
religião; modos de subjetivação pelos quais os indivíduos são levados a práticas saudáveis de vida. Ademais, em pesquisas
recentes, pode-se perceber que, na “nova economia política da vitalidade”, o biopoder não se restringe a uma dominação no
estilo “de cima para baixo”, tradicionalmente analisada. Grupos formados por pessoas com uma mesma problemática, com
uma mesma doença por exemplo, se mobilizam em busca da superação de obstáculos locais e para definir reivindicações
específicas individuais e coletivas. Desse modo, a subjetivação é também ativa, móvel e transnacional (Rabinow; Rose,
2006).
7
O termo “autoridade” aqui possui o mesmo sentido atribuído por Wyhe (2004: 2) quando se refere aos atributos universais
do ser humano: “força diferenciada, influência, status, ou reivindicação de pronunciamento de verdades e de fatos”.
19
cadáver. Mais relevantes que os sintomas narrados pelos pacientes, eram as buscas aos
agentes etiológicos da patologia, geralmente localizados em alguma parte específica do corpo.
O domínio da anatomia e da fisiologia, pois, tornou-se fundamental no desenvolvimento dessa
epistême, a qual, valendo-se da empiria e da observação no exame físico do cadáver, gerou
novos conceitos, diagnósticos e tratamentos.
Conceitos, diagnósticos, tratamentos e punições. O fato da maioria dos corpos
dissecados pertencer a criminosos nos traz também a dimensão jurídica e moral das aulas
públicas de anatomia. Ortega nos esclarece muito bem a “segunda morte”, “parte da pena que
teria de ser expiada no purgatório”, como metáfora das práticas disciplinares do poder
soberano
8
(ORTEGA, 2008: 96).
Assim, quando a medicina interveio no corpo, diagnosticando a doença, superando a
concepção naturalista de auto-regulação do organismo, evoluindo com os estudos da anatomia
patológica, as variações entre o normal e o patológico adotaram uma perspectiva mais
filosófica, política, jurídica e, ao mesmo tempo, mais quantitativa: “o patológico é designado
a partir do normal, não tanto como a [teoria ontológica] ou dis [teoria dinamista] mas como
hiper ou hipo.(CANGUILHEM, 2000: 22). O dogma criado em torno desses fenômenos
vitais fora apropriado, de modo bastante significativo, por Claude Bernard, em suas
pretensões fisiológicas, e por Augusto Comte em sua doutrina sociológica, o qual tomou de
Broussais o princípio segundo o qual “todas as doenças consistem basicamente ´no excesso
ou falta da excitação dos diversos tecidos abaixo ou acima do grau que constitui o estado
normal`.” (CANGUILHEM, 2000: 28).
Importando essas premissas para as concepções sobre o organismo social, a teoria
Comteana ilustrou o impacto das “verdades” biológicas e médicas nas categorias das ciências
sociais e humanas. O princípio de Broussais, elevado à magnitude de um axioma universal,
traduziu a tentativa de construção de uma doutrina política científica. É Canguilhem que nos
explica o raciocínio de Comte quando este afirma que, nos momentos de crise política, a
terapêutica visa à reestruturação das sociedades, devolvendo-lhe sua essência vital. Aquele
8
Outra passagem interessante explica essa vinculação com o poder soberano e o fim das dissecações punitivas: “O ‘Murder
Act’ vincula inexoravelmente o anatomista com o poder soberano. Ao mesmo tempo, implica a passagem para um novo
regime de poder, o biopoder, pois promove o desenvolvimento da ciência anatômica, garantindo o fornecimento regular de
cadáveres para a dissecação. Porém, o fato de unicamente poderem ser anatomizados os cadáveres dos condenados à morte
pelo “Murder Act” provocou a escassez de corpos para os anatomistas, o que tornou o roubo e venda de cadáveres uma
prática lucrativa e amplamente difundida, amparada pela falta de leis que explicitamente a proibissem. Os esforços em
revogar a lei, tais como os de Jeremy Benthan, que acreditava que a vinculação tradicional do anatomista com o carrasco,
oficializada pelo Ato de 1752, e com o ladrão de cadáveres eram um empecilho para o desenvolvimento da ciência
anatômica,
levaram à publicação em 1832 do ‘Anatomy Act’, anulando a prática da dissecação punitiva” (ORTEGA, 2008:
98).
20
princípio, portanto, é uma ideia subordinada a um sistema que, na tradição positivista, fora
divulgada como “concepção independente” (idem, ibidem: 42).
É mais uma vez a noção da biopolítica que está em jogo, com o Estado moderno
gerenciando o poder sobre a vida e a morte dos viventes, em nome de uma composição social
sadia. O controle sobre os focos de doenças da sociedade se impunha pela necessidade de
promoção do higienismo a fim de se evitar a propagação do mal pela contaminação dos
indivíduos saudáveis.
A tentativa, então, de construção de um discurso político-jurídico que legitimasse a
permanência do estado burguês europeu e dos paradigmas pós-revolução na sociedade
baseada na igualdade, encontrou, no determinismo biológico empírico-racional, uma resposta
racional para justificar as diferenças “naturais” entre os indivíduos. Tornou-se possível
explicar “cientificamente” as desigualdades das classes sociais a partir da própria
desigualdade natural dos indivíduos, estendendo tal concepção para todo o organismo social:
As raízes históricas desta forma de determinismo devem coincidir, portanto, com as raízes
da sociedade burguesa. Esta, que se constituíra a partir da luta contra a herança dos
privilégios sociais e políticos na aristocracia, acabará por recorrer a uma outra forma de
hereditariedade natural, biológica, científica e anti-clerial que a legitime, face as suas
incoerências (SERPA Jr., 1998: 332).
1.1.2 – O IMPACTO DA NEUROLOGIA NA CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DO
SER VIVENTE
Se a medicina impactou a sociedade oitocentista através das autoridades médicas e de
seus discursos, grande parte deste impacto se deu pela neurologia. Se não a mais competente,
a neurologia se consagrou como uma das mais competentes para conjugar alma e corpo ou,
especificamente, mente e cérebro, atuando nas explicações sobre a personalidade e a
identidade do ser vivente.
Nesse sentido, sendo um dos objetivos desse trabalho demonstrar o contexto tempo-
espaço que proporcionou os estudos sobre a localização cerebral da personalidade e a
influência destes estudos na política criminal, torna-se relevante um breve retrospecto sobre
os critérios de identidade pessoal. Assim, antes de entrar propriamente nas considerações
sobre a cerebralização do self, acompanhemos Vidal (2005; 2009) numa análise retrospectiva.
Na tradição cristã ocidental, podemos resumi-los em dois momentos teóricos
principais: até o final do século XVI, em que a alma era definida em termos aristotélicos
como a forma de um corpo natural que, como princípio de vida, permite a realização de certas
21
potencialidades e jamais se encontraria fora do corpo; a partir do século XVII, com a
introdução das idéias cartesianas, em que a alma perde a responsabilidade das funções
vegetativas, nutritivas e sensitivas, tornando-se alma racional.
A maneira de se relacionarem alma e corpo, assim, durante vários séculos, residiu na
tradição galênica, amparada em Hipócrates, da teoria humoral, definindo-se a saúde, a
harmonia do corpo e os temperamentos da pessoa pelo equilíbrio dos quatro seguintes
humores: sangue, quente e úmido, tendo como centro regulador e atrativo o coração; pituíta
(fleuma ou catarro), fria e úmida, regulada pela cabeça; bile amarela, quente e seca, regulada
pelo fígado; e bile negra (atrabile ou melancolia), fria e seca, regulada pelo baço. Os espíritos
animais, fabricados e vigiados pelo cérebro, bem como o temperamento, determinado pelo
balanceamento desses fluidos, ditariam a personalidade, as capacidades, os caracteres e as
atitudes de um indivíduo. A filosofia moral, portanto, compreendia a associação dessa
medicina galênica à filosofia aristotélica e ao dogma da não abertura dos corpos.
A partir do século XVI, com a reintrodução da dissecação de cadáveres, alguns
teóricos, especialmente Versálio, passaram a contestar a autoridade de Galeno e suas lições
começam a perder importância (ORTEGA, 2008). É o momento propício para a inauguração
de novas idéias em um processo de construção de uma original epistême dualista e
materialista.
No século seguinte, então, as formulações de René Descartes sobre a glândula pineal
(Epífise – imagem abaixo
9
) despertaram o interesse para um suposto localizacionismo cerebral
da alma. Para ele, a razão de considerar essa glândula
como a sede da alma contrariando Galeno que a
concebia somente como função linfática parte de uma
premissa anatômica de que somente um lugar central e
em meio a todas as concavidades do cérebro, seria capaz
de recepcionar os sentidos proporcionados por nossos
órgãos duplos.
9
Imagem extraída de http://www.guia.heu.nom.br/glandula_pineal.htm.
22
Na perspectiva materialista cartesiana
10
, aquele ponto físico do nosso organismo seria
responsável pela interação entre essas distintas substâncias: a mente, imaterial, res cogitas; e
a matéria, a máquina, res extensa. Na dicotomia artificialidade-realidade, a racionalidade da
medicina (corpo-objeto), que possui o modelo do corpo-cadáver, sem subjetividade,
representa essa contradição: “Esse é um universo morto, desconstituído de subjetividade e de
intenção. O corpo humano é então visto corpo uma parte da res extensa e conseqüentemente
moldado sobre uma máquina sem vida” (LEDER, 1992: 20). O modelo cartesiano, portanto,
paradoxalmente transformou o cadáver em referência para a medicina, ou seja, consolidou o
paradigma médico-científico sobre aquilo que frequentemente é símbolo de falência do
projeto terapêutico, desmerecendo a experiência subjetiva do paciente, a sua vivência, o
entrelaçamento da intencionalidade e da materialidade (idem, ibidem).
Desses argumentos dualistas da relação corpo-espírito, podemos retirar o problema
filosófico da personalidade consubstanciada em pressupostos fisiológicos, cujas origens
remontam a Newton. Com Crossley (2001), percebemos que o trabalho de Newton pressupõe
o corpo dualista para fundamentar suas teorias mecanicistas e as relações das causações
físicas. O corpo como matéria é desprovido de conteúdo subjetivo e de propósitos. Os
componentes clássicos e judaico-cristãos de nossa herança cultural (re)afirmaram o dualismo
psiquê-soma (BURKE, 1991: 292).
Na segunda metade do século XIX, John Locke reacendeu a discussão sobre o self ao
desvincular a identidade psicológica da identidade corporal, sendo aquela a responsável pela
identidade da pessoa e esta, pela identidade humana. Não se trataria, portanto, de atribuir à
individualidade pessoal critérios puramente evidenciais e empíricos, como os pertinentes ao
corpo na posse de suas qualidades primárias solidez, extensão, figura, movimento e
número. De acordo com estes critérios empírios, P2 no tempo T2 é exatamente a mesma
pessoa que P1 no tempo T1 se, e somente se, P2 possuir o mesmo corpo que P1 possuía (The
Bodily Criterion). Tratar-se-ia, em via alternativa, de atribuição de um critério de
continuidade da consciência e da memória (The Memory Criterion), constituído por fatores
psicológicos, em que P2 no tempo T2 é exatamente a mesma pessoa que P1 no tempo T1 se, e
10
Nessa mesma direção, nos dias de hoje, se posicionam alguns médicos espíritas, como é o caso do psiquiatra, diretor-
clínico do Instituto Pineal Mind, diretor presidente da AMESP (Associação Médico-Espírita de São Paulo) e pesquisador na
área de Psicobiofísica da USP, Sérgio Felipe de Oliveira: “Nós vivemos em três dimensões e nos relacionamos com a quarta,
através do tempo. A pineal é a única estrutura do corpo que transpõe essa dimensão, que é capaz de captar informações que
estão além dessa dimensão nossa. A afirmação de Descartes, do ponto em que a alma se liga ao corpo, tem uma lógica até
na questão física, que é esta glândula que lida com a outra dimensão, e isso é um fato”. Trecho extraído da página eletrônica
http://www.espirito.org.br/portal/publicacoes/esp-ciencia/index.html, acessada em 28.03.2007.
23
somente se, P2 em T2 estiver ligada por continuidade de experiência-mnemônica com P1 em
T1 (NOONAM, 1991).
Não tardaram as críticas. No que tange ao corporal, mesmo sendo aquele adotado nas
nossas experiências cotidianas the standard view, nas palavras de Parfit (1986: 203) –,
reflexões sobre possíveis transfigurações físicas, amputações, cirurgias plásticas, por
exemplo, suscitaram os questionamentos sobre a manutenção da identidade nesses casos. Em
outras palavras, como será possível reconhecer uma pessoa corporalmente sem que ela possua
os mesmos atributos físicos de antes? Até que ponto a retirada de um órgão ou de partes de
seu corpo interfere na identidade pessoal? Quais particularidades somáticas poderiam ser
extraídas da pessoa sem que ela perdesse a própria individualidade?
Por outro lado, no que diz respeito ao critério psicológico, caberiam também essas
indagações em situações de amnésia, de coma ou de fortes danos causadores de mudanças
radicais na personalidade, por exemplo. Se a pessoa, por ela mesma, não se lembra de suas
experiências e vivências passadas, como reconhecer sua identidade? Ou em situações
especulativas de transplantes cerebrais, se é no cérebro que se encontra a memória e ele é
transferido para outra pessoa, forçosamente seríamos levados à instigante conclusão de que é
o cérebro que recebe novo corpo.
Enfim, anotações sobre a localização do espírito no cerebellum podem ser datadas de
há muito, como as referências às antigas suposições de Herophilus da Alexandria, de 300 a.C.
Clarke e Jacyna (1987) ressaltam, todavia, que foi com as especulações de Thomas Willis
(1672) sobre a capacidade de armazenamento de memória do córtex, que se iniciou um novo
esquema sobre o sistema neural.
A partir das novas descobertas neurológicas sobre a construção de uma localização
concernente às atividades motores no córtex, ganhou fama a tentativa de Gall, em colaboração
com Spurzheim, de localizar a moral, o caráter e as propensões psicológicas na superfície do
cérebro.
24
1.2
ABRINDO CRÂNIOS: O LOCALIZACIONISMO CEREBRAL
E A FRENOLOGIA CRIMINOLÓGICA
Com a consolidação da sociedade burguesa nos anos oitocentos e a promessa de
certezas trazida pelos doutores dos estudos biológicos, construiu-se uma tradição ocidental
europeia de pensamento com perspectiva localizacionista: os pontos do cérebro que
denunciam as atividades mentais e a separação por zonas catalogadas como responsáveis pelo
comportamento humano, tanto no aspecto sensório-motor quanto nas sensações intuitivas,
emocionais, (ir)racionais etc. Tal doutrina, divulgadora da noção de que várias partes
cerebrais possuíam distintas funções mentais, comportamentais e fisiológicas, é hoje
conhecida como “frenologia”.
Torna-se importante analisar essa tradição historicamente, a partir dos autores do
início dos oitocentos que lançaram os pressupostos desses projetos frenológicos e avaliar o
impacto dessas concepções na estrutura social, política e, especificamente, nas teorias
jurídico-criminais: “o todo desse iluminismo do século XVIII foi uma magistral nota de
rodapé sobre a fisiologia dos nervos, uma notável tentativa de secularizar a cognição e a
percepção por meio do cérebro e de seus vassalos, os nervos” (ROUSSEAU, 1993: 294).
Com efeito, a frenologia emergiu junto com a evolução de um naturalismo
11
fundacional e foi parte de uma engrenagem de desenvolvimento mais ampla que substituía os
dogmas teológicos pelos argumentos científicos (WYHE, 2004).
Na síntese de Parssinen (1974: 14), a coincidência de três fatores foi fundamental para
a propagação e recepção da frenologia tanto pela classe profissional, intelectual, pela elite,
quanto pela baixa classe média e popular: o declínio das tradicionais teorias filosóficas e
teológicas da mente, a necessidade de bases empíricas na justificativa das reformas que
seriam implementadas em razão das rápidas mudanças da estrutura social que se
11
Nas explicações de Wyhe (2004: 3), “naturalismo” se refere ao conjunto de idéias e retóricas sobre a natureza, confiante
em sua consistência, regularidade e nas leis naturais como verdadeiras causas dos fatos do mundo. O autor ainda utiliza o
termo “naturalismo frenológico” para demonstrar as novas formas de naturalismo que foram se constituindo à medida em que
a frenologia recorria à Natureza, nos diversos momentos de crise de sua autoridade, para provar suas verdades: “O apelo à
Natureza foi a solução imediata para a crise de autoridade dos frenologistas. Por sobre o curso das controvérsias da
frenologia, a contínua confiança e ênfase na Natureza se transformou numa nova forma de naturalismo, que é chamado de
‘phrenological naturalism’” (idem, ibidem: 20). O naturalismo frenológico, como parte do naturalismo científico (e suas
diversas manifestações: agnosticismo, materialismo e positivismo), se tornou um dos movimentos ideológicos e culturais
mais influentes na Grã-Bretanha do século XIX (idem, ibidem: 11).
25
operacionalizavam, bem como a variedade de novas oportunidades pessoais promovidas pela
ruptura com a sociedade tradicional.
1.2.1 A ORGANOLOGIE DE FRANZ JOSEPH GALL E OS 27 PONTOS DO
LOCALIZACIONISMO CEREBRAL
A concepção de que o cérebro é o local da alma, da mente, do self tem suas primeiras
origens na filosofia da matéria e da identidade pessoal do fim do século XVII, conforme
vimos. No entanto, apenas no século XIX se iniciaram as especulações científicas empíricas.
Lembra-nos Vidal (2005) que a frenologia foi o primeiro sistema a atribuir qualidades e
comportamentos a regiões localizadas nos córtices cerebrais. A crença de que atributos
negativos ou positivos estariam inscritos nestas regiões fundamenta até hoje a correlação entre
estados cerebrais e estados psicológicos.
A Organologie de Franz Joseph Gall (1758-1828), também denominada Schädellehre
(doutrina do crânio)
12
ou Fisiologia do Cérebro
13
, se traduz numa teoria orgânica e vital da
mente e do corpo. Constituindo uma filosofia da natureza nos moldes propostos por Johann
Gottfried von Herder, a premissa frenológica exigia a verificação concreta da relação entre as
forças vitais e os órgãos corporais a fim de construir uma verdadeira ciência fisiológica,
através da dissecação do sistema nervoso, que realizasse estudo consistente sobre a mente e a
alma, e não meras conjecturas como havia feito a fisionomia de Giovanni Battista della
Porta e Johann Caspar Lavater (WYHE, 2002).
A trajetória de della Porta e de Lavater e as leituras das qualidades internas pela
aparência externa inspiraram o médico austríaco, assim como muitos autores, artistas e poetas
do século XIX, dentre os quais Goethe, Dickens, Balzac, Charlotte Brontë, Jane Austen,
George Eliot e Oscar Wilde (TWINE, 2002: 72); ou ainda Honoré de Balzac, A. R. Wallace,
Horace T. Mann, George Eliot e também escritores portugueses, como Camilo Castelo Branco
(CASTRO-CALDAS e GRAFMAN, 2000: 297). Contudo, a organização e o método
12
Para Lanteri-Laura, a frenologia apresenta uma distância social da cranioscopia: “o frenologista é homem de ciência”
(1993: 123).
13
Wyhe (2002: 22) afirma que Gall não concordou com outros nomes, tais como craniologia e frenologia. Este último, dado
por Thomas Ignatius Maria Forster, se disseminou a partir de 1820. Na leitura de Clarke e Jacyna (1987: 223), porém, pode-
se dizer que, já em 1805, “frenologia” aparecia nos trabalhos de Benjamin Rush, na Filadélfia. Para Twine (2002: 76),
todavia, quem cunhou este termo foi Johann Caspar Spurzheim.
26
pretensamente científico de Gall, associados à sua independência
14
, tentaram fazer a
diferença.
Ao contrário dos filósofos metafísicos da mente, dos filósofos “idealistas e
românticos”, o trabalho de Gall sobre as faculdades psicológicas na organologia cerebral se
calcava na empiria e na observação comparativa de casos dos asilos e prisões vienenses e de
seus próprios pacientes, refletindo a preocupação com a ligação material entre as categorias
da experiência fixadas pelas faculdades inatas e os diversos órgãos
15
ou regiões do córtex
cerebral, onde existiriam módulos hipotéticos determinantes das atitudes e das tendências da
natureza humana (WYHE, 2002: 21 e 38). Se, portanto, não havia dúvidas de que os
fenômenos da natureza dos seres animados dependiam do organismo em geral, os fenômenos
intelectuais dependeriam do cérebro em particular (CLARKE e JACYNA, 1987: 226).
Tal sistema foi justamente o responsável pela catalogação dos primeiros 27 pontos ou
órgãos cerebrais, os quais representavam funções específicas: 1) instinto de reprodução; 2)
amor aos filhos; 3) amizade; 4) autodefesa e coragem; 5) instinto carnívoro, tendência ao
homicídio; 6) astúcia, esperteza; 7) cobiça, apego à propriedade, tendência à subtração; 8)
orgulho, arrogância, soberba, amor à autoridade; 9) vaidade, ambição, amor à glória; 10)
cautela, precaução; 11) memória para coisas e fatos, educação; 12) senso de direção e
temporal; 13) memória e senso de pessoas; 14) memória para palavras; 15) senso de
linguagem e discurso; 16) senso de cores; 17) senso de som e música; 18) senso de números,
matemática; 19) senso de mecânica, arquitetura; 20) sabedoria (juízo); 21) senso de
metafísica; 22) sarcasmo, gracejo; 23) talento poético; 24) bondade, compaixão, moralidade;
25) imitação (paródia); 26) religião; 27) firmeza de propósito, obstinação, constância.
Especificamente, os órgãos que são encontrados apenas nos homens e, por isso, os
diferenciariam dos animais, presentes na parte anterior-superior são esperteza, senso de
metafísica, sabedoria, talento poético, bondade, imitação, sentimento religioso e firmeza. O
resultado do bom desenvolvimento dessa parte é a reason”, definida como a habilidade de
reconhecer leis e princípios gerais (TEMKIN, 1947: 284).
As premissas desse sistema se traduziam em alguns postulados. Primeiramente, as
atitudes e tendências são inatas no homem e nos animais. Na metáfora de Pierre Cabanis, para
14
O fato de Gall não estar vinculado a alguma escola ou movimento intelectual, não o comprometia profissionalmente, nem o
tornaria dependente financeiramente. Como ele constantemente promulgava, era livre para “perseguir a verdade”, ou melhor,
para permitir que “a natureza o guiasse para a verdade” (idem: 35 e 37).
15
Um órgão cerebral, para Gall, constituía num ´aparato nervoso` ou numa ´região cerebral`(´a nervous apparatus` or
´cerebral region`) e era composto de matéria cinza e branca, mas sem fronteiras bem delimitadas entre esta e seus vizinhos.
Elas [as regiões], entretanto, não eram contíguas e as fendas entre elas cobriam em torno de um terço do total da superfície
cerebral” (CLARKE e JACYNA, 1987: 237).
27
ilustrar que as disposições morais e intelectuais fazem parte de nossa natureza, diz que o
cérebro digere experiência da mesma forma que o estômago digere a comida (BURREL,
2004: 48). Nesse sentido, os instintos naturais explicariam a propensão à reprodução, à
autodefesa, à caça, ao afeto, enfim, às atitudes dirigidas à manutenção da sobrevivência e à
perpetuação da espécie. Apesar de sustentar a natureza inata, Gall não se fechou ao
reconhecimento de que influências externas poderiam incrementar ou fortalecer alguma
faculdade humana.
Em segundo lugar, o cérebro é o órgão de tais faculdades inatas da mente. A
identificação entre cérebro e mente implicou o rótulo do materialismo à doutrina de Gall
16
. A
materialização da mente no cérebro afastou o cunho metafísico tradicionalmente atribuído e,
ao mesmo tempo, conferiu a concretude necessária às explorações empíricas. No aspecto
teológico, favoreceu a dissociação entre mente (ou alma) e Deus, resultando na perseguição
religiosa e política ao herege Gall.
A terceira premissa dispõe que as faculdades variam e são independentes,
demonstrando a ausência de uniformidade. A massa indivisível agora era substituída pelos
órgãos ou regiões cerebrais, as quais seriam responsáveis pelas faculdades. É justamente aqui
que reside a quarta premissa: cada faculdade tem sua própria localização ou “órgão” no
cérebro.
Em quinto lugar, a assertiva de que o tamanho de um órgão é proporcional à força da
faculdade correspondente nos permitia compreender a elasticidade cerebral, formatando as
regiões de acordo com o maior ou o menor estímulo que recebe. O exercício de dada
faculdade impõe seu consequente desenvolvimento, logo o cérebro é moldado pelo
crescimento diferencial desses órgãos, conforme conclui a sexta premissa.
Por fim, se o cérebro é composto por órgãos que são moldados pelas faculdades e a
forma do crânio depende do cérebro subjacente, então sua superfície, ou “protuberância”,
revela as atitudes psicológicas e as inclinações do indivíduo.
Essas investigações médico-filosóficas, pois, trabalhavam com a suposição de que
eventos físicos, nos quais se incluíam os fenômenos mentais/psíquicos, poderiam ser
localizados em pontos específicos do cérebro, os quais, por seu maior ou menor grau de
desenvolvimento, poderiam se apresentar nos contornos externos do crânio. Dessa forma, uma
maior ou menor atividade de determinado ponto (ou organ) cerebral estaria demonstrada na
16
Em defesa de Gall, Temkin argumenta que “os órgãos cerebrais eram apenas instrumentos através dos quais as
qualidades básicas se manifestavam. De fato, Gall estava longe de ser um materialista, no sentido estrito do termo. Mas, ele
elaborou um conceito de instrumentalidade do cérebro de uma forma que parecia destrutiva da entidade espiritual do
homem e de sua liberdade de ação”. (TEMKIN, 1947: 283)
28
aparência de cada pessoa, perceptível também pelas medições, apalpações, protuberâncias da
cabeça. Sua forma física constataria, assim, vários de seus aspectos internos, incluindo seu
caráter, já que a parte exterior da cabeça denunciara o interior do indivíduo.
Em outras palavras, podemos dizer que, para Gall, no cérebro das pessoas
encontraríamos pontos específicos responsáveis por mecanismos sensórios-motores e por
mecanismos complexos de cognição. Assim, uma espécie de ginástica cerebral seria realizada
quando cada ponto do cérebro estivesse em atividade e seu crescimento ou atrofia seria o
reflexo desse maior ou menor estímulo. Por conseguinte, o crescimento ou a atrofia do ponto
imporia uma adaptação do crânio, o qual, por sua vez, refletiria a personalidade ou o perfil
psicológico do indivíduo.
A vertente cranioscópica da frenologia seduzia o público em geral pelo espetáculo que
promovia. Gall estudou bustos e retratos na tentativa de traçar esse suposto perfil psicológico.
Para reforçar sua teoria de que os olhos refletem o estado dos lobos frontais e, por
conseguinte, do poder de memória, analisou pinturas de Milton, Strabon, Bacon, Galileu e
Rabelais. E, “depois de estudar o retrato de Cristo, Gall chegou à conclusão de que o
conhecimento da existência de Deus está baseado no órgão localizado na base da
circunvolução pré-central” (CASTRO-CALDAS e GRAFMAN, 2000: 298).
Por suas inovações, a fama e o sucesso chegaram à vida de Gall. Associadas às suas
leituras, aulas de anatomia e de fisiologia cerebral que, muitas vezes, eram públicas e
gratuitas, estavam suas passagens por Viena, Zurique, Bern, Copenhagen, Amsterdã, diversas
cidades da Alemanha e por Paris, que lhe renderam publicidade e divulgação. Suas teorias e
de seus discípulos, pois, conquistaram platéias, projeção e autoridade notadamente por três
décadas.
Após as veementes objeções de Pierre Flourens
17
, fisiologista protegido de George
Cuvier, e após certos exageros desacreditados pelo status de pseudociência a que foi
renegada
18
, a frenologia declinou consideravelmente a partir da década de 1840, atingindo um
segundo período de debates e controvérsias em 1870 (CLARKE e JACYNA, 1987:
238).
17
“A disputa entre Flourens e Gall é constantemente simplificada como uma rivalidade entre estrito localizacionismo e o
que hoje é chamado de holismo – a noção de que o cérebro se articula em todas as suas partes para produzir pensamentos”
(BURRELL, 2004: 51).
18
Até Napoleão se pronunciou sobre a frenologia: “E veja a imbecilidade de Gall: ele atribui a certas protuberâncias as
inclinações e crimes que não são da natureza, mas apenas vêm da sociedade e da convenção dos homens. O que se tornaria a
protuberância do roubo se não existisse nenhuma propriedade? E a protuberância da bebedeira, se não existisse de modo
algum os licores fermentados? E a da ambição se não existisse de fato a sociedade? (“Et voyez l’imbécillité de Gall: il
attribue à certaines bosses des penchants et des crimes qui ne sont pas dans la nature, qui ne viennent que de la société et de
la convention des hommes: que devient la bosse du vol s’il n’y a point de propriétés? La bosse de l’ivrognerie, s’il n’existait
point de liqueurs fermentées? Celle de l’ambition, s’il n’existait point de société?”) (Maximes de Napoléon, publicadas pelo
Dr. K.J.Frederiks, II, p. 39-40 apud BONGER, 1936: nota de rodapé 1, p. 46).
29
1.2.2 DAS SEMENTES DE MOSTARDA AOS PROJETOS EUGÊNICOS: A
INFLUÊNCIA DA FRENOLOGIA EM DIVERSOS CAMPOS
Pelo paradigma das ciências naturais, conforme tive a oportunidade de contextualizar
anteriormente, instaurou-se o fluxo da medicalização ocidental. O discurso político se
legitimava por esse discurso científico e os médicos se tornaram grandes referências no
pronunciamento das certezas sobre o mental e sobre os assuntos em geral, como o legislativo
e o executivo.
Além de Gall, outros pesquisadores do século XIX como Johann Gaspar Spurzheim,
George Combe, Paul Broca, Louis Agassiz, Samuel George Morlon etc., acreditando estarem
fazendo ciência, valeram-se da projeção proporcionada pela frenologia ou pelas medições,
pela craniometria, pela fisionomia, para darem suporte às suas teorias. Independentemente do
que vieram sustentar, merece ser destacado o fato de que muitos autores se valeram do
método empírico, de observação e de mensuração, pois o status científico lhes elevava à
condição de autoridade e, por conseguinte, preparavam o terreno para melhor recepção de
seus argumentos como fortes verdades naturais.
Especialmente Spurzheim, assistente direto de Gall e seu auxiliar nas dissecações,
crendo na potencialidade do sistema, fomentou a promoção da doutrina para além dos limites
técnicos e das fronteiras continentais. Com terminologia própria, simplificou a compreensão
das funções dos órgãos cerebrais, substituindo termos neurológicos complexos por expressões
mais acessíveis aos que não pertenciam à comunidade científica. Ao ganhar espaço para
desenvolver suas ideias
19
, Spurzheim foi se infiltrando em discussões dos mais variados temas
e das mais diversas áreas.
Pautando-se na “incontestabilidade” da Natureza, na premissa de que o homem
deveria ser tratado naturalmente como todos os outros seres naturais e utilizando-se dos
métodos das ciências físicas, Spurzheim buscou consenso através do sistema fisiognômico,
“the physiognomical system”, o qual providenciaria respostas para o conhecimento da
natureza humana, suprimindo as lacunas das prévias teorias filosóficas (WYHE, 2004: 31).
19
“Faz-se necessário, portanto, considerar a frenologia de Spurzheim e de muitos de seus seguidores como um culto
separado da organologia de Gall, com sua própria história e impacto na atividade humana. É para a frenologia que muitos
historiadores têm focado sua atenção em função de seus fascinantes e socialmente importantes emaranhados” (Clarke e
Jacyna, 1987: 224-225).
30
Imagens
20
Ao rumar para a Grã-Bretanha, em 1814, Spurzheim adotou o termo “frenologia”
(phrene: mente, logos: discurso) para designar a “doutrina das faculdades especiais da mente
e as relações entre suas manifestações e o corpo, particularmente, o cérebro” (CLARKE e
JACYNA, 1987: 223). Associado à produção de um discurso carismático e de artefatos
tecnicamente menos complexos, como bustos frenológicos com design de mais fácil
compreensão, o sistema de Spurzheim e de seus discípulos britânicos, nas leituras de Wyhe
(2004: 57), foi o que, de fato, ganhou repercussão e impulsionou a criação das sociedades
frenológicas e de suas inerentes atividades sociais.
Com Burrell (2004: 43), podemos sintetizar as três encarnações da doutrina de Gall:
organologia, frenologia teórica, frenologia prática. Certamente, Spurzheim foi o grande
incentivador da última, principalmente com o espaço que abriu em terras inglesas na segunda
década dos oitocentos. Ele mesmo chegou a sustentar que Gall teria admoestado a sua
audiência a não praticar sua doutrina por ser muito difícil; Spurzheim, ao contrário, convidou
todos os arguentes a repetir as observações a fim de que cada um pudesse obter suas próprias
convicções (WYHE, 2004: 37). Sobre o localizacionismo, além de conseguir popularizar o
discurso frenológico com uma linguagem perceptível pelas pessoas leigas, acrescentou outros
órgãos ao primeiro mapeamento feito por Gall.
George Combe, após contato com Spurzheim, tornou-se também árduo defensor da
frenologia. Em carta escrita durante o tour que Combe realizou pelos Estados Unidos o que
o transformou em grande referência da frenologia americana para o professor Silliman, de
Yale, chega a afirmar que a frenologia foi responsável por dotar a fisionomia de um viés
20
Disponíveis em http://www.cerebromente.org.br/n01/frenolog/frenmap_port.htm e
http://brightbytes.com/past_tense/images/phrenology.jpg, acessadas em 29.06.2008.
31
filosófico e que, sem ela, a leitura do caráter seria mero trabalho de “adivinhação” (STOEHR,
1974: 357).
De qualquer modo, seja o sistema de Gall, o de Spurzheim ou os que
subsequentemente foram desenvolvidos, não é incorreto afirmar que a frenologia
21
,
especialmente na Inglaterra Victoriana e depois na América do Norte, prestou-se a inúmeros
usos: no campo da educação, a atenção às faculdades apropriadas do intelecto e à regulação
do caráter moral; no campo das punições, a aproximação entre o crime e as condições
pessoais do agente; no campo do tratamento, as medidas mais apropriadas aos insanos; pôde
ser utilizada até na interpretação dos sonhos ou na escolha de uma profissão. Era, portanto, do
interesse de pessoas leigas e curiosas
22
, e também de profissionais da fisiologia cerebral,
psicologia, psiquiatria, biologia, antropologia, penalogia, educação, filosofia, estrutura social,
literatura, política e religião.
Concordando com Hagner (2003: 209), também é certo concluir que os muitos papéis
desempenhados pela frenologia na vida social e cultural do século XIX tornaram-na um
contributo significativo para as modernas ciências humanas. Nesse sentido, então, mesmo
com as ferozes críticas dos adversários
23
(sendo desclassificada para a categoria de
pseudociência e desqualificada como charlatanismo) e seus momentos de altos e baixos,
Spurzheim estava certo ao confiar na potencialidade de sua doutrina. Compatível com as
expectativas de prosperidade e conveniente aos projetos sociais de reforma e reestruturação
das Instituições
24
, a frenologia oferecia ainda as bases técnicas para os argumentos sobre o
aperfeiçoamento pessoal, atribuindo a cada um a responsabilidade de aprimoramento em
nome de uma também melhor vida coletiva: se as faculdades de cada órgão eram capazes de
desenvolvimento através de exercícios, o indivíduo poderia promover suas expectativas
sociais e, simultaneamente, inibir seus egoísmos, suas propensões negativas por meio do
estímulo das áreas cerebrais correspondentes.
21
Depois da morte de Gall em 1828, o termo “organologia” foi suplantado por “frenologia” de Spurzheim, termo que acabou
se tornando aceito para a explicação dos dois sistemas.
22
Um divertido exemplo encontramos nos relatos de Madeleine B. Stern sobre o exame frenológico da cabeça do famoso
humorista Mark Twain em “Mark Twain had his head examined”, in American Literature, vol. 41, no. 2 (maio, 1969), pp.
207-218.
23
François Magendie, fisiologista responsável pela preservação do cérebro do matemático Pierre Simon Laplace, certa vez,
resolveu testar a ciência da frenologia, entregando para análise não o cérebro do cientista, mas o de um imbecil. Segundo
consta da narração de Flourens, Spurzheim teria se entusiasmado e se admirado do suposto cérebro de Laplace! (BURRELL,
2004: 51).
24
“Na França, a frenologia foi o ponto de encontro dos movimentos democrático e anticlerical. Contrariamente, os inimigos
de Gall e do materialismo, como Pierre Flourens e o filósofo Victor Cousin, defenderam a monarquia, o catolicismo e a
idéia da imortalidade da alma” (HAGNER, 2003: 209). Na Alemanha, as teorias de Rudolph Wagner “associaram a cultura
de coleção de biografias cerebrais com o programa do Iluminismo tardio de estudar cérebros de homens e mulheres,
criminosos, pessoas insanas e de diferentes raças a fim de estabelecer uma política de diferenças. Essa combinação foi a
consequência de sua estratégia de conceber a ciência como um caminho para fornecer o suporte para a hierarquia social e
cultural, na qual a celebração dos heróis nacionais e religiosos era dominante” (idem, ibidem: 214).
32
Talvez não conscientemente voltadas para a produção de uma explicação científica
com comprometimento político e com objetivos claros de dominação e colonização, fato é
que tais teorias confirmaram uma sobreposição da inteligência masculina branca e, em
consequência, a apropriação desses discursos a quem interessava a manutenção do controle
sobre o ambiente social, político e econômico em expansão
25
. Se do crânio se deduz o cérebro
e deste se deduz a mente, podemos concluir pela associação entre fisicalismo e
localizacionismo ou entre fisionomia e frenologia
26
. Com a predominância de alguns dados
corpóreos como objeto de estudo na busca dos fundamentos e das bases da natureza humana,
surgiram igualmente as conclusões que sustentaram a supremacia do homem branco. Na
hierarquia biotipológica, através do método de observação da cor da pele, da forma do nariz,
de protuberâncias na cabeça, tamanho do crânio (volume) e tamanho do cérebro (peso),
pessoas do sexo feminino e/ou de raças ou etnias que não a do puro europeu poderiam ser,
cientificamente, consideradas inferiores e, justamente por isso, deveriam se submeter à
melhor doutrina dos dominantes inteligentes (ROUSSEAU, 1993).
Além de Rousseau, Gould também, em seu famoso livro A falsa medida do homem
(1981), é um dos autores que, com muita propriedade, destaca o sentimento apriorístico das
muitas pesquisas desenvolvidas ao longo do século XIX. A (in)consciente tendência à
confirmação a qualquer custo de tal supremacia lançou mão de métodos mensurativos aptos a
apontar para uma maior capacidade craniana do homem branco americano na crença de que,
quanto maior a inteligência, maior o tamanho do cérebro e, consequentemente, do crânio.
entram as sementes de mostarda como um instrumento possível de medição. O
processo era simples e consistia em acondicionar as sementes dentro da caixa craniana para,
depois, transbordá-las para um utensílio medidor. O problema, entretanto, residia na tentação
de se introduzir um pouco mais ou um pouco menos de sementes, conforme a reputação e a
história de vida do ex-detentor do crânio em estudo. As pesquisas, assim, acabavam por
denunciar a predisposição de se atingirem números previamente desejados: “teorias são
construídas sobre a interpretação dos números, e interpretações são constantemente
25
A ideologia nacionalista do século XIX baseou-se no código fisionômico do corpo como um local indubitável de verdades
a produzir narrativas que eram importantes ao nacionalismo e a legitimação tanto do eurocentrismo quanto do
colonialismo. Através do século XIX, a fisionomia era um clássico discurso capilar, percorrendo toda a constelação de
saberes, notadamente a frenologia, antropometria, antropologia, criminologia e eugenia” (TWINE, 2002: 74).
26
“No entanto, enquanto o fisionomista sustentava que as características físicas, corporais e faciais da pessoa, refletiam sua
personalidade, disposição, habilidade, instintos, e daí por diante, sendo tudo expressão de sua alma, Gall estava
primeiramente preocupado com o cérebro, as funções que eram refletidas na caixa craniana, onde o efeito representava uma
parte secundária de seu esquema. Como ele insistia: ‘o objeto de minhas pesquisas é o cérebro; o crânio é uma confiável
impressão da superfície externa do cérebro e consequentemente somente uma parte do objetivo principal’” (CLARKE e
JACYNA, 1987: 233).
33
enganadas por sua própria retórica(...) [Paul Broca] usou números não para construir novas
teorias, mas para ilustrar conclusões a priori” (GOULD, 1981: 74).
A apropriação do corpo pelos fundamentos médico-científicos convincentes
fomentava um olhar segregador daquilo que se afastava do padrão, da referência, do ideal. A
introjeção dessa lógica por significativa parte da cultura ocidental oitocentista favoreceu, mais
tarde, a aceitação relativamente confortável da eugenia através da popularização dos
determinismos hereditários. O discurso sobre o desviante e sobre o anormal se legitimava e,
por consequência, legitima um agir político de repressão e de exclusão daqueles considerados
doentes pela racionalidade da época (FOUCAULT, 2002).
A “racionalidade” da medicina ainda informou e consagrou a fundamentação teórica
necessária às novas agências estatais de controle e punição: as polícias não possuem um
discurso criminológico próprio e, por isso, o discurso criminológico policial foi elaborado
por médicos em aliança com as polícias e contra os juízes, juristas e filósofos”
(ZAFFARONI, 2005: 32). A incorporação da teoria e da prática frenológica ao sistema
punitivo se demonstra em práticas institucionais do século XIX, conforme exemplificarei
adiante.
Por ser a frenologia uma abstração que se refere a ideias, comportamentos e artefatos,
poderíamos falar em frenologia criminológica para expressar o impacto do paradigma das leis
naturais localizacionistas, das medidas craniométricas, das tendências morais ou intelectuais
inscritas no cérebro, bem como das metáforas e verdades cerebrais construídas ou adotadas
pelos frenologistas, nas políticas criminais e nas instituições penais que pretendiam se
legitimar naquele momento.
1.2.3 – A FRENOLOGIA CRIMINOLÓGICA
27
Para se compreender a natureza humana era necessário investigar suas
excepcionalidades. Estudar o homem de forma apropriada exigia conhecimento também dos
casos extremos, como o de gênios e de criminosos. Assim, os estudos da frenologia se
voltaram para três fenômenos antropologicamente relevantes: a genialidade, a insanidade e a
criminalidade (HAGNER, 2003).
27
Nesse momento, não se pretende ainda avançar para as considerações da Escola Positiva da Criminologia, que apenas
surgiu mais tarde, em fins do século XIX. Tão somente, pretendo mapear algumas análises e conclusões dos antecessores de
Lombroso a fim de se proporcionar, depois, uma compreensão mais fácil da eventual ligação entre a frenologia e a
antropologia criminal.
34
Apontando especificamente para este último fenômeno, atribuímos o termo frenologia
criminológica ao conjunto de princípios, métodos, crenças e especulações sobre as faculdades
e tendências criminosas inscritas na mente, suas relações com o cérebro e sua conformação
anatômica no crânio.
Dentro dos pressupostos frenológicos, conforme ressaltei anteriormente, os órgãos
cerebrais responsáveis por determinadas predisposições a comportamentos violentos e
atitudes delituosas, excitados e exercitados constantemente, apresentariam maior
desenvolvimento do que outros e este seu maior tamanho imporia uma adaptação craniana que
revelaria, em seus “galos” e protuberâncias, o caráter criminoso do indivíduo. Poderia se
chegar a esse diagnóstico, portanto, por meio de apalpações e da leitura detalhada dos sinais
externos demonstrados por um grupo de detalhes anatômicos, a que Dunlap denomina padrão
fisionômico (DUNLAP, 1922: 157).
Se, internamente, os órgãos cerebrais obedeciam a uma justaposição natural e não
acidental, seria possível classificar as regiões do cérebro que acomodavam tais órgãos e
verificar sua atrofia, ou não, refletida no crânio:
a parte frontal do córtex acolhia propriedades cognitivas e talentos; a occipital, emoções e
instintos. Consequentemente, um cretino com enorme propensão sexual teria uma tremenda
parte posterior da cabeça porque o cerebelo era o local dos impulsos sexuais, de acordo com
a classificação organológica. (HAGNER, 2003: 200)
1.2.3.1 – O CRIMINOSO, SEU CRÂNIO E SEU CÉREBRO
Por todas as especulações de Gall sobre o criminoso, não seria injusto dizer que talvez
merecesse concorrer com Lombroso, Topinard, Garófalo e Quetelet à paternidade da
Criminologia científica
28
. Shecaira (2004: 73) relata que não unanimidade sobre o
momento em que surgiram os estudos científicos criminológicos, pois são muitos e distintos
os critérios e os pontos de referência. Seguindo, contudo, a referência antropológica e
deixando de lado as críticas a uma pseudociência, Gall poderia figurar dentre os nomes dos
responsáveis por uma leitura não metafísica do fenômeno natural do crime, focando nas
características do criminoso e não no fato descrito em lei, como entidade jurídica abstrata.
Partindo do método experimental que se iniciou com a análise do crânio dos animais,
logo chegou ao crânio e também ao cérebro dos homens com intuito comparativo. Para
28
Figueiredo Dias e Costa Andrade explicam porque os manuais de criminologia não cogitam indicar a paternidade à Gall:
“é a ausência de dimensão sistemática que impede a possibilidade de falar de criminologia antes da escola clássica, não
obstante a história e a antropologia cultural demonstrarem que o crime constitui preocupação de todas as sociedades”
(1992: 6). No entanto, Smith defende que Gall tem sido apontado o fundador da antropologia criminal (“Dr. Francis Joseph
Gall (1758-1828) has been described as the founder of criminal anthropology”) (SMITH, 1943:701, nota de rodapé no. 40).
35
compreender uma violência humana homicida, por exemplo, o caminho passava pela
compreensão fisiológica e anatomopatológica dos carnívoros assassinos. As premissas da
frenologia poderiam explicar o caráter homicida através das observações que diferenciariam
este indivíduo da pessoa normal pelo grande desenvolvimento dos caracteres que distinguem
o carnívoro de um herbívoro; portanto, quanto maior a parte do crânio relacionada ao órgão
das tendências sanguinárias, mais desenvolvido o instinto carnívoro.
A resposta, de todo modo, estava na organização cerebral. Quanto mais imperfeita a
organização, mais propensões à delinquência. É a diferença de desenvolvimento das partes do
cérebro que distingue o caráter dos homens e das mulheres. Por exemplo, o baixo
desenvolvimento do órgão do amor aos filhos ou a crianças deve ser uma das causas do
infanticídio e em contrapartida o seu excesso deve ser avaliado como uma das causas de
subtração de menores; o instinto de auto-defesa, quando exaltado, traduz coragem e,
contrariamente, reflete intimidação; o sentimento de propriedade, quando exagerado, inclina a
pessoa a fraude, usura, corrupção, etc. (GALL, 1835: 216-7).
Pelas considerações expostas, arrisco, com Temkin, o sentido do crime para os
frenologistas. O crime era, portanto, resultado de um preponderante desenvolvimento dos
órgãos cerebrais inerentes aos animais e, em parte, da omissão da sociedade em estimular o
incremento dos órgãos de ordem superior (TEMKIN, 1947: 288).
Numa aproximação à filosofia moral, base das ciências sociais e psicológicas do início
do século XIX
29
, Sampson explica que uma boa e saudável formação do cérebro se coaduna e
é consistente com a virtude (virtue). Se toda manifestação da mente é consequência direta da
condição do cérebro, logo “todos os atos de uma natureza oposta virtude] devem ser
atribuídos a um correspondente silêncio deste órgão”. Na sequência, esclarece que os crimes
são comportamentos correspondentes à desordem ou ao defeito de órgãos pontuais e,
portanto, não se diferenciam em grau como seria o caso de uma doença pulmonar, que
começa com uma tosse, passa para uma pneumonia e evolui para tuberculose mas em
direção:
o crime de homicídio resulta de uma mórbida atividade da porção do cérebro que manifesta a
propensão à destruição, enquanto o estupro provém de uma mórbida atividade da porção que
manifesta a propensão amorosa (amative), e a intensidade da excitação deve ser igual em
ambos os casos. (SAMPSON, 1843: 10)
29
Haney, em seus estudos sobre a era da formação de diversas ciências nos Estados Unidos, afirma que a mais importante
psicologia popular do século XIX, a frenologia, diferenciava-se da psicologia acadêmica por se concentrar na doutrina do
crânio, enquanto esta se voltava mais para a religião e o livre arbítrio. De qualquer modo, Haney sustenta que “as origens das
ciências sociais estão numa disciplina chamada ´filosofia moral`” (idem: 202).
36
Fink sintetiza em cinco as principais tendências responsáveis pela natureza criminosa,
sendo elas amorosidade, filoprogênese, combatividade, introspecção e a cobiça
(“amativeness”, “philoprogenitiveness”, combativeness”, “secretiveness” e
“acquisitiveness”). Narra, por exemplo, no tocante à filoprogênese, que, de vinte e nove
mulheres condenadas por infanticídio, vinte e sete possuíam um desenvolvimento defeituoso
deste órgão (FINK, 1984: 5).
Chama a atenção, contudo, para a ressalva feita pelos próprios frenologistas quando
tais propensões fossem alteradas em sua expressão ou subservientes a outras faculdades
dominantes ou sentimentos mais nobres, ou seja, ainda que o indivíduo fosse portador de
certo órgão tendente à prática de determinado delito, esta tendência não se desenvolveria caso
fosse contrabalançada
30
pela alta atividade de órgão relacionado à benevolência, à
consciência, à piedade, à auto-estima, ao anseio de aprovação e por todo o conjunto das
faculdades intelectuais.
Seria correto então concluir que se a destruição não fosse propriamente balanceada e
regulada por faculdades superiores, levava-se ao homicídio; e, quando não limitada ou
propriamente dirigida por faculdades superiores, a cobiça (“covetiveness” ou
“acquisitiveness” para outros escritores) levaria a exacerbado egoísmo e até mesmo ao roubo
(idem, ibidem: 5).
Ao se apalpar a cabeça de um delinqüente, então, se extrai um retrato interior de sua
condição psicológica, através do qual se poderia apurar qual região cerebral estaria mais
enfraquecida ou mais fortalecida.
De notar-se que o crime resultaria menos de um cérebro leve ou pequeno do que do
inchaço ou da atrofia de certos órgãos, ao se olhar para um infrator, enxerga-se sua tendência
e sua eventual personalidade voltada para o delito. Esse era o ponto crucial do observador
frenológico, ver as condições inatas do agente e não exatamente o fato por ele praticado ou o
fato que pudesse vir praticar:
Foi em conformidade com essas máximas que na prisão (stadtvogtey) de Berlim, eu
pronunciei não a natureza do crime do prisioneiro, mas também a grande dificuldade de
corrigir sua obstinada propensão à subtração. Eu declarei que este prisioneiro, chamado
Columbus, era o mais perigoso ladrão entre os adultos que já nos haviam apresentado.
(GALL, 1835: 247)
30
Fink lança, nesse ponto, uma questão por ele não respondida: teria sido em função desse sistema de “checks and balances”
que a frenologia se mostrou “mais favorável à liberdade do que qualquer outro sistema da filosofia mental?” (idem, 1984: 6,
nota de rodapé 8). Cabe, todavia, uma observação: ou esta pergunta não contém uma premissa verdadeira ou o sentido
atribuído pelo autor à palavra liberdade não nos foi alcançado, pois torna-se difícil conciliar liberdade plena da pessoa com as
teorias que advogavam a indeterminação do tempo de segregação ou prisão (internação) perpétua.
37
Em compensação, ainda através de apalpações, Gall identificou, na prisão de Torgau,
uma mulher sem anomalias aparentes que, entretanto, estava presa por ter matado seu filho.
Após seu diagnóstico de que a prisioneira tinha o órgão do amor maternal bem desenvolvido e
de que o órgão do homicídio era muito pequeno, concluindo por um cérebro bem organizado,
apresentou um relato do Journal du Beau Monde, o qual narrava as desgraças particulares da
mulher que, por piedade do filho no estado de miserabilidade que se encontrava, resolveu
poupar-lhe de mais sofrimento. Dessa forma, Gall pretendia demonstrar que estava certo ao
não identificar o órgão da maldade que pudesse qualificá-la como portadora de más
inclinações (GALL, 1835: 296-9).
Por conseguinte, se a tendência a delinquir é resultado do organismo e, precisamente,
de alguns órgãos cerebrais, os conceitos relacionados à culpabilidade e à pena deveriam ter
em conta a periculosidade do delinquente e, por isso mesmo, viabilizariam um tratamento
adequado à doença. O comportamento delinquente deveria ser tratado como um desarranjo
orgânico, com a tendência a se diminuir o horror da culpa e, nessa orientação, ser visto como
um fato natural.
Tal era a crença que sustentava os pareceres frenológicos, que atribuía autoridade a
seus filiados e que conquistava adeptos em diversas partes da Europa Ocidental e da América
do Norte, influenciando o Direito não na esfera civil (especialmente, quanto a situações
que exigiam o reconhecimento de capacidade jurídica), mas também na esfera da Política
Criminal, Criminologia, do Direito Penal e do Processo Penal.
1.2.3.2 – LIVRE ARBÍTRIO E RESPONSABILIDADE
A história, assim, nos mostra o quanto a frenologia impactou as percepções públicas e
jurídico-penais sobre o delinquente. Concordando com Pustilnik, quando cita exemplos de tal
impacto, além de técnicas supostamente precisas para a identificação de criminosos e de
insanos, o testemunho frenológico foi introduzido na atenuação do julgamento e a frenologia
“profilática” foi proposta para determinar quem poderia estar em risco de ter comportamento
criminoso no futuro (PUSTILNIK, 2008: 12)
Ademais, a frenologia não fomentou debates acerca da natureza da punição, como
também inaugurou o espaço de reflexão médica sobre o livre arbítrio. Gall substituiu o
clássico enunciado metafísico de liberdade moral por um conceito fisiológico e agregou
verdades científicas às explicações, agora empíricas, sobre o determinismo: o homem livre é o
38
que goza de boa saúde, o homem determinado ou está doente ou está em uma idade
fisiológica anormal.
Nas interpretações de Lanteri-Laura, contudo, o problema da liberdade individual
envolve menos questões postas em termos de determinismo cerebral do que a condição do
indivíduo de exercer uma liberdade de resistência. Assim, “a liberdade consiste sobretudo na
possibilidade dada ao homem de se abandonar ao seu natural ou de organizar uma certa
resistência contra si (idem, 1993: 118). É de se lembrar que tal organização é em parte
dependente de elementos exteriores, logo a possibilidade de resistir guarda relação com os
estímulos disponíveis em sociedade e na vida particular do sujeito.
Para a frenologia, portanto, a educação e as circunstâncias ambientais podem agir
sobre o homem. Tal como os limites moldam a criança, a punição pode moldar o adulto. O
sucesso dessa empreitada depende, todavia, da organização de cada um (GALL, 1835: 167,
§1º). Considerando que essas peculiaridades organizativas são orgânicas, são físicas, são
transmissíveis hereditariamente tal como certas doenças o são, incluem-se nessa probabilidade
a propensão ao roubo, à embriaguez, ao homicídio e até ao suicídio (idem, ibidem: 185).
Quando as propensões a cometer o mal são inatas, não educação, legislação, religião,
prisão ou trabalho duro que consiga desenvolver boas ou más inclinações se os germes não
constarem da natureza humana. Será em vão, neste caso, tentar transformar um “pombo em
uma águia ou uma águia em um pombo” (idem, ibidem: 212, §1º).
Liberdade e responsabilidade são termos correlacionados e descritivos do
comportamento humano, o qual é uma manifestação da atividade das faculdades mentais: “o
que normalmente vem sido visto como demônio ou criminoso nada mais é do que o resultado
de fraco desenvolvimento cerebral pelo qual o indivíduo não pode ser culpado” (GRANT,
1965: 144).
Em correspondência escrita a Combe aos 16 de agosto de 1842 e publicada no
Phrenological Journal, no. LXXIV, new series no. XXI, o Professor de Direito Penal da
Universidade de Heidelberg, C. J. A. Mittermaier, demonstra ter alcançado a explicação
frenológica para o crime ao dizer que a predominância de um órgão particular, supondo o da
destruição, combinada à fraqueza dos órgãos morais e intelectuais, realmente ab-roga a
responsabilidade. Ao dissertar sobre a importância da frenologia para a esfera criminal, afirma
que esta doutrina é especialmente relevante nas questões relativas à responsabilidade,
porquanto nos ensina que as punições merecem individualização a fim de se compatibilizarem
com as disposições peculiares de cada agente. Considerando as condições dos órgãos, os
juristas, os juízes, os administradores das penitenciárias devem atentar, por exemplo, para a
39
eventual deficiência dos órgãos ligados à virtude ou dos órgãos ligados à percepção da
natureza criminosa da ação; ou, por outro lado, para a eventual hiperexcitação dos órgãos que
conduzem ao delito.
Nesse sentido, várias foram as tipologias criadas em cima das variações biológicas dos
graus de responsabilidade criminal, daqueles que mereceriam uma pena e dos outros que
deveriam ser tratados. Como explica Lanteri-Laura, Gall não afirmou em parte alguma que
todos seriam moral e penalmente irresponsáveis, ressaltando, inclusive, os casos
intermediários, nos quais não se poderia falar propriamente em lesão cerebral, nem em
alienação mental stricto sensu, e os delitos praticados por pessoas que não possuem uma
predisposição orgânica, mas que cedem à pressão das circunstâncias exteriores (LANTERI-
LAURA, 1993: 118-120).
Combe também sustentou sua classificação, pela qual os homens deveriam ser
divididos em classes: a) daqueles que possuem grandes órgãos morais e intelectuais, com
pequenos órgãos relacionados às propensões; b) daqueles que possuem todos os órgãos em
grande tamanho; c) e daqueles cujos órgãos das propensões são grandes e os das faculdades
morais e intelectuais, pequenos.
Os primeiros seriam portadores de livre arbítrio e deveriam ser punidos se praticassem
crimes. Os segundos se caracterizariam por fortes impulsos ao crime, mas ainda seriam
considerados responsáveis. Os homens da terceira classe, contudo, seriam criminosos
habituais, incorrigíveis, pacientes “morais” que não mereceriam punição.
No Phrenological Journal
31
, também se destaca a estratégia de disciplina prisional e
de reforma dos internos proposta por Combe. Esquematicamente, sugere o confinamento por
prazo indeterminado, com dieta rígida até que o cérebro e o sistema nervoso estejam
suscetíveis a receber instruções morais, intelectuais e religiosas, sem colocar em perigo a
constituição física e mental. O trabalho diurno viria combinado com o isolamento noturno. À
medida em que o desejo de auto-reforma for se manifestando, a severidade da disciplina vai
se minimizando para que, aos poucos, seja adquirida a liberdade progressiva, exceto nos casos
de incorrigíveis cujo confinamento é perpétuo.
Vale trazer à transcrição as considerações de Rafter quando defende uma posição
balanceada da frenologia entre o determinismo e o livre arbítrio. Acreditando na
maleabilidade cerebral, diz ela, os frenologistas pós-Gall “combinavam o determinismo com
uma perspectiva otimista e de reabilitação para o crime e outros problemas sociais sem um
31
Trata-se, na verdade, de carta em resposta a Mittermaier e que consta do mesmo no. LXXIV citado anteriomente.
40
sentido contraditório” (RAFTER, 2005: 77). Concebiam um caráter hereditário não fixo, o
que admitia o argumento do tratamento visando a cura para certos casos.
Em emblemática carta escrita em 1843, como resposta às críticas feitas por John
Forbes Winslow
32
ao Tratado sobre Jurisprudência Criminal, M.B.Sampson expõe,
resumidamente, as proposições frenológicas contidas neste seu tratado e as justificativas para
o tratamento dos delinquentes. Após reafirmar que as manifestações da mente dependem da
conformação e da saúde de seu instrumento material, o cérebro, bem como que as leis que
governam a conformação e a saúde do cérebro são as mesmas que administram os outros
órgãos de nosso sistema, Sampson defende que o tratamento deve então seguir os mesmos
princípios dos tratamentos destinados a manifestações mórbidas de outros órgãos.
Certos crimes, prossegue ele, resultam de uma defeituosa organização e, neste caso,
deveriam ser concebidos sob o manto da irresponsabilidade penal, fornecendo-se ao agente
um devido tratamento, e não punição, pois seria irracional punir quem sofre por um cérebro
em condição doente. Deveríamos exercitar nossa compaixão da mesma forma que dedicamos
nosso “maior cuidado e nossa maior piedade à vítima de uma doença pulmonar”
(SAMPSON, 1843: 6).
Sampson defende uma associação ainda mais estreita entre crime e unsound state of
mind”. Em suas proposições, afirma que se as leis da sociedade definem aquilo que deve ser
uma manifestação apropriada da mente e dos atos, o homem que age dentro dessa
conformidade é tido socialmente como um mente-correta (“right-minded man”), enquanto o
contrário acarreta a taxação de mente depravada (“depraved mind”); logo, o simples fato de
praticar um crime (unsound act) evidencia o seu estado cerebral alienado (unsound brain),
enquanto a obediência às leis e aos costumes seria o verdadeiro teste de sanidade mental
(idem, ibidem: 7).
Parssinen também advoga interpretação fisicalista. A partir da leitura deste autor,
podemos concluir ainda que a sustentação da causa orgânica como agente etiológico do crime,
associada à influência dos estímulos externos aptos a exercitar as regiões do cérebro,
configurava uma estratégica explicação das bases biológicas da natureza humana, sem
desmerecer as condições socioculturais (e sem adotar a sociologia radical), de cuja gica
(ainda que ambígua) se extraíam os argumentos que casavam com as propostas reformistas
Victorianas e que, simultaneamente, representavam discursos capazes de suprir as
32
O médico Forbes Winslow (1810-1874) foi o autor de O acordo de loucura em casos criminais (1843). Por suas opiniões
sobre a dupla personalidade de certos criminosos, a qual deveria ser decidida por médicos e não por juízes, desconfiou-se que
Winslow seria Jack, o estripador (ANITUA, 2007: 250-1).
41
necessidades da época ao se demonstrar eficiente por “diagnosticar os talentos excepcionais
ou as deficiências dos indivíduos e por revelar o caminho para o aperfeiçoamento”
(PARSSINEN, 1974: 5). Nesse sentido, a frenologia se mostrava altamente apropriada à
reforma dos asilos, das escolas e das instituições penais.
1.2.4 – A FRENOLOGIA CRIMINOLÓGICA APLICADA
Ainda que a dificuldade de aceitação da cientificidade da frenologia nos meios
acadêmicos pudesse formar uma legião de árduos críticos, a verdade é que muito de sua
doutrina contagiou os corredores forenses. Seja pelo fascínio da espetacular idéia da mente
criminosa, seja pelas considerações sobre uma inimputabilidade associada à mente doentia,
fato é que se encontram registrados na história casos em que a perspectiva frenológica teve
voz nos tribunais.
O caso Mitchell
Em meados de 1830, em Durham, Estados Unidos, David Crawford, aos oito anos de
idade, foi torturado por seu colega de escola, Major Mitchell, de apenas nove anos. Tendo
sido noticiado como um caso extraordinário de crueldade, recebeu, talvez por isso, a atenção
de Isaac Ray, o fundador da psiquiatria forense na América. Admirador da frenologia, fez
questão de, pessoalmente, analisar Mitchell poucos meses antes do julgamento, na prisão de
Portland, por duvidar da qualidade das medidas craniométricas das análises anteriores de Mr.
Jones e John Neal, este último advogado do réu. Concluiu que não era necessário um
especialista altamente experiente para verificar a tendência sanguinária e covarde daquele
competente vilão, cujo órgão da destruição se mostrava realmente bem desenvolvido, pela
deformação logo acima da orelha, conforme aponta o desenho ao lado.
As conclusões de Ray, todavia, não se coadunavam por completo com
as leituras frenológicas e com as intenções de Neal. Além de divergirem quan
to à dimensão de alguns órgãos de Mitchell, o advogado desejava introduzir,
pela primeira vez nos Estados Unidos, a admissão do testemunho de experts,
não como médicos, mas sim como frenologistas.
Numa passagem muito interessante destacada por Weiss, Neal explica seu modesto
propósito de descobrir a verdade, de promover a Justiça e de ampliar a Ciência Jurídica:
42
acreditando agora que havia uma boa base para proceder assim, eu estou determinado a
introduzir uma nova questão na jurisprudência médica; e estaria satisfeito que, se pudesse
provar o dano na cabeça da criança, ou ter como provável pelo testemunho médico que
sustente o dano, ou que havia uma formação da cabeça ou que a marca, por falta de
simetria (uma orelha maior que a outra e o desenvolvimento dos órgãos da destruição e da
introspecção consideravelmente largos daquele lado), indicava algo de dubitável à condição
saudável do cérebro estaria satisfeito, eu digo, que se eu pudesse fazer uma dessas quatro
coisas, eu seria capaz de introduzir a frenologia, pela primeira vez, numa Corte de Justiça.
(WEISS, 2007:341)
Ray não concordava que o julgamento em questão fosse o momento ideal para a
inauguração da frenologia nos tribunais, tendo em vista a fragilidade probatória dos
argumentos e a particularidade das circunstâncias que envolviam o caso. Corroborava, nesse
sentido, o entendimento do Juiz que presidia a causa ao sentenciar:
Foi dito que a cabeça tem uma larga peculiar formação chamada órgão da destruição. o
há disposição de se manter fora das Cortes de Justiça a verdadeira ciência, mas, ao contrário,
a de se fazer marcante deferência. Se uma questão tivesse sido levantada aqui, sobre um fato
cometido nas Índias Orientais, e por duas pessoas, talvez fosse dito que havia lua cheia
naquela noite; e Astrônomos seriam chamados para demonstrar por cálculos que não havia
lua cheia naquele momento, isso seria uma evidência apropriada para o júri. Então, se
pintores forem chamados, quanto aos efeitos de combinações químicas sobre cores; ou se
médicos forem chamados para mostrar os efeitos do veneno sobre o humano, isso é um
testemunho competente. Mas, o que viria ser demonstrado por provas como essa de que um
caroço aqui ou ali iria afetar a mente, tanto para destruir seus poderes ou decididamente para
alterar seu caráter, aí, e somente aí, poderia essa prova se tornar evidência a ser submetida
ao júri. Onde as pessoas não falam de conhecimento, não podemos submeter uma mera
teoria como se fosse evidência, ao júri; especialmente onde alguém diz que crê no sistema,
mas não possui conhecimento algum sobre o tema. Nossas decisões são tomadas à luz do dia
e jurados são juízes, tanto da lei quanto dos fatos (WEISS, 2007: 343).
O caso Pritchard
Em 1865, o Daily Telegraph
33
publicou a análise frenológica das características
crânio-faciais de Edward William Pritchard, um médico e homicida confesso, que teria
envenenado sua esposa e sua sogra, após se envolver em sedução extraconjugal com uma
jovem mulher. As comparações feitas entre suas particularidades anatômicas e as do tipo
criminoso revelaram uma indubitável inserção na família da pior classe de malfeitores.
Dr. M’Nish foi convocado para emitir sua opinião no caso e categoricamente afirmou
que a forma da cabeça que todos os criminosos perigosos e inveterados possuem é peculiar.
Existe uma enorme massa cerebral atrás da orelha e, comparativamente, uma pequena
porção na região frontal e coronal”.
Após minuciosas observações sobre a conformação do cérebro de delinquentes, Dr.
Robert Verity, escrevendo sobre as mudanças que a civilização produzia no sistema nervoso,
33
Comentários sobre tal publicação estão disponíveis em http://sites.scran.ac.uk/lam/crime-pages/L313(8-2).htm, acessado
em 01.05.2008.
43
pontuou que no pior exemplar do tipo criminoso, “a base do cérebro predomina. Esses são os
cérebros de tribos selvagens e até as características de degradação das populações
civilizadas; esses são também os cérebros daqueles encontrados nas prisões, nas galés, nas
colônias penais etc”.
Dr. Marshall Hall, ao tratar das doenças do sistema nervoso, também associou todas as
formas de delírio, de perversão de ato violento à “condição primária ou secundária do
cérebro ou do cerebelo”. Por fim, o artigo muito diretamente sugere àqueles que gostariam de
atirar pedras no famoso homicida que se lembrassem do infortúnio que seria se eles próprios
tivessem nascido com um cérebro de qualidade e conformação semelhantes a do Dr.
Pritchard: submetidos às mesmas influências externas, agiriam precisamente de maneira
similar”.
O caso Dunbar
Talvez a mais curiosa das publicações seja o trabalho de Margaret Thompson, de
1851, sobre o caráter de Reuben Dunbar, com singelas considerações sobre as causas e a
prevenção do crime
34
. Após uma detalhada e extensa avaliação de todas as faculdades deste
preso que, numa escala de um a sete foram resumidas quantitativamente, a frenologista
afirma:
se o prisioneiro cometeu o crime do qual está sendo acusado, sua larga tendência à
destruição, à combatividade, à aquisição, à introspecção e à firmeza, com pequena
filoprogênese, teria sido a causa. O tamanho destes órgãos, combinado com outras
faculdades, especialmente se pervertidas, indica uma infeliz organização; na qual as
propensões animais governam porque as faculdades morais não são suficientemente grandes
para contrabalançarem e controlarem. (...) É a lei da constituição humana, que a saúde, a
condição fisiológica do homem, afeta o desenvolvimento cerebral. (Este é um fato que até
mesmo o cético da frenologia não tentará negar). Existe uma correspondência recíproca
entre o mental e o físico, entre o corpo e a mente. (...) Para se produzir uma reforma moral, é
necessário, primeiro, uma reforma física. (...) A fim de punir o crime da maneira mais
legítima e apropriada, a natureza e a filosofia do homem, da constituição do homem, junto
com sua relação com os objetos externos, deve ser perfeitamente averiguada. Isso, a
frenologia ensina. Um minucioso conhecimento da filosofia da natureza humana nos
permitiria adotar um sistema de reforma moral em vez de punição corporal. Indivíduos que
são, pela natureza ou pelo hábito, tão depravados que nem têm o poder de se autogovernar
deveriam ser colocados sob o governo moral de pessoas com a predominância de faculdades
intelectuais e morais. Instituições fundadas nesse princípio de reforma seriam muito mais
benéficas para toda a sociedade do que as prisões. Indivíduos portadores de propensões à
perversão animal deveriam ser colocados fora do alcance da tentação de cometer crimes;
deveriam ser ensinados hábitos de produção, de uso de uma dieta apropriada, propósitos
intelectuais e exercícios das faculdades morais (THOMPSON, 1851: 8, 11 e 12).
34
Phrenological character of Reuben Dunbar with a short treatises of the causes and prevention of crime, Albany: P.L.
Gilbert, Museum Building, 1851.
44
Outras notícias
Na continuidade da ilustração da frenologia na seara criminal, outros curiosos casos
merecem apresentação. Citado por Pustilnik, relata-se que, no julgamento de um homicídio
praticado em 1853 por uma empregada doméstica que teria envenenado um menino, o Juiz se
pronuncia quanto à marcante feiúra da , acrescentando que “um frenologista somente teria
que olhar para a forma de sua cabeça para saber que ela era criminalmente insana, com
impulsos homicidas” (idem, 2008: 13).
No American Phrenological Journal and Miscellany,
também encontramos publicações que relatavam pesquisas
sobre a personalidade de alguns prisioneiros, cujas conclusões
foram tiradas a partir do exame frenológico de seus crânios.
Fink (1984) cita os perfis craniométricos de Le Blanc, um
latrocida; de Tardy, umpirata; de Miller, Robert Morris e Peter
Robinson, homicidas; e de Fieschi, outro homicida, que
tentou assassinar o rei da França. Em comum, todos
demonstraram possuir um bom desenvolvimento do órgão da
destruição e, em certos condenados, tal dimensão se repetia em
outras tendências relacionadas às baixas propensões.
Não renomados técnicos e especialistas em frenologia contribuíram para as análises
na seara criminal, mas também muitos populares encaminhavam suas considerações para
publicação ou para discussão nas sociedades frenológicas. Rafter, em suas pesquisas
descobriu, no American Phrenological Journal, considerações sobre o repercutido caso
Phineas Gage. O autor do texto fez referências expressas às categorias frenológicas na
tentativa de fornecer explicações para a marcante alteração de personalidade do trabalhador
que, em 1848, em razão de uma explosão, teve uma barra de ferro perfurando sua cabeça.
Considerando que a barra atingiu as regiões da benevolência e da veneração, tornando-as
ineficazes na determinação do caráter, Gage passou a ser controlado por suas propensões
animais, pela grosseria, pela vulgaridade, quando antes era pessoa respeitável e gentil
(RAFTER, 2005: 15).
No Chambers´s Journal de março de 1878, no artigo intitulado “Pesquisas Curiosas
sobre a Personalidade Humana”
35
, destaca-se o trabalho de Galton sobre hereditariedade
35
“Curious Researches into Human Character” in Chambers´s Journal of popular literature, science and arts, 743 (1878:
mar), p. 184.
45
criminosa, atribuindo-lhe a convicção de que a fisionomia e os contornos da cabeça
ofereceriam evidências para a classificação dos criminosos em classes: “certos tipos gerais de
cabeça e de rosto são peculiares a certos tipos de criminosos. A conformação física de um
tipo geral se torna, portanto, uma maneira geral de relacioná-lo ao tipo mental”.
Os meios de comunicação da época, todavia, também divulgavam descrenças sobre a
frenologia. Em despojado artigo escrito por autor identificado simplesmente por “H”, a
Newcastle Magazine de junho de 1824 publicou a forte ironia à frenologia em razão da
esperteza de seus argumentos:
Deixe-nos, por exemplo, supor um homem que foi trazido para o cadafalso para um ato de
destruição humana: se fosse descoberto que ele possui o órgão da destruição, o craniologista
estaria em êxtase; mas, se outrem morre naturalmente e ninguém reconhece que ele vinha
sendo senão bom, amigo, um ser pacífico, ainda assim seria achado o órgão em questão,
‘O!’, diria o perspicaz filósofo, ‘você está olhando superficialmente para a matéria; este
homem deve ter tido alguns outros órgãos indicativos de grandes faculdades e virtudes; e
então, como meu sistema diz, a destruição é neutralizada e até irá assistir na formação do ser
cujas ações podem ser devotadas aos mais virtuosos propósitos (idem, ibidem: 265).
Por ter sido alvo de desprezo ou chacota, a frenologia, muitas vezes, é ignorada no
estudo da história da criminologia. Como esclarece Rafter (2005), o criminólogo tem três
opções frente à frenologia: ignorá-la, considerá-la relevante ou concordar, dependendo de
como se concebe a criminologia e a noção de ciência. Resguardado o contexto temporal e
espacial, os anseios sociais e a própria formação dos cientistas, entendo ser sim importante o
estudo da frenologia. Importante porque conjuga uma série de teorias sobre o cérebro (do)
criminoso, constantemente negligenciada por vários criminólogos; porque reúne dados
históricos relevantes para se questionar a própria paternidade da criminologia científica;
porque influenciou autores do século XIX que ajudaram a consolidar as ciências penais;
porque apresenta forma organizativa autoreferencial semelhante ao Direito e ao Direito
Criminal; e porque impactou a formação da nova Escola Positiva da Criminologia, à qual
pretendo me dedicar no próximo capítulo.
46
1.3
ABRINDO CRÂNIOS (2): O CÉREBRO (DO) CRIMINOSO NA
ANTROPOLOGIA CRIMINAL
No capítulo anterior, pudemos verificar a influência da frenologia na política criminal,
nos discursos sobre as tendências e atitudes criminosas, bem como nas formas de punição ou
tratamento a serem adotadas para a reforma dos sistemas penal e penitenciário. O cérebro
exercia, no início do século XIX, um papel fundamental na identificação do delinquente e na
determinação de seu caráter, personalidade e comportamento.
Com a consolidação e perpetuação da burguesia no poder, também ficou claro que o
Estado moderno passou a necessitar de um discurso que justificasse as novas formas
coercitivas institucionalizadas em uma sociedade que não podia mais encobrir a notória
desigualdade socioeconômica, sendo urgente a adoção de uma retórica que reafirmasse o
Estado liberal e tentasse explicar alguns fenômenos, dos quais a ideologia clássica não dava
conta.
A fertilidade desse discurso deu margem ainda à evocação a um embasamento jurídico
científico, calcado na lógica e no empirismo das ciências da natureza. Aliam-se, assim, o
positivismo e o racionalismo para estruturarem o direito moderno e atribuírem fundamentação
científica ao monismo jurídico estatal
36
. Historicamente, portanto, encontramos as bases do
nosso sistema jurídico unicista que, ao abandonar as referências cristãs transcendentais,
buscou, através da razão, a construção de novos mitos.
Outro fator importante para compreender o processo que propicia a emergência das
ciências fundadas na natureza do homem e, como tal, da frenologia e da antropologia
criminal, foi, de acordo com Haney, o “paradigma da independência individualista e da
autonomia humana (...), recurso tanto de inspiração quanto de legitimação da lei” (1982:
192). Em sua opinião, ao lado das transformações sociais e econômicas que se desenrolaram a
partir do final do século XVIII, o papel do individualismo foi crucial para uma mudança do
foco das novas teorias filosóficas, políticas, psicológicas, com forte influência na teoria do
livre arbítrio e da responsabilidade criminal.
Na análise do individualismo na formação das ciências, Haney discorre sobre a
influência do capitalismo e da visão burguesa na construção da figura do indivíduo, que
36
Cf. Wolkmer, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico – Fundamentos de uma Nova Cultura do Direito, 3
a
. ed., São Paulo:
Alfa-Omega, 2001.
47
carregaria a atenção jurídica e assumiria sozinho as conseqüências de seus atos livremente
realizados, diferentemente das referências coletivas sobre a culpabilidade legal da era feudal.
Essa mudança de perspectiva implicou três considerações específicas que se repercutiram na
implementação de medidas políticas e sociais: indivíduos são o locus causal do
comportamento; o comportamento socialmente problemático e ilegal consequentemente surge
de alguns defeitos nos indivíduos que o realizam; esse comportamento pode ser modificado
ou eliminado somente pelas mudanças efetuadas na natureza ou nas características dessas
pessoas (HANEY, 1982: 195).
As doutrinas criminais que se desenvolveram a partir desse momento igualmente
seguiram esse roteiro. A “racionalidade” da frenologia, com a promessa de apoio no método
científico e com o estudo do cérebro, criou as primeiras bases de uma teoria sobre a
criminalidade individualizada do século XIX.
Apesar das sérias críticas opostas às doutrinas de Gall, Spurzheim e outros, o
surgimento de provas experimentais sobre a localização no córtex cerebral impulsionou a
ressurgência de novos debates em torno das idéias frenológicas a partir de 1870, como vimos.
Com essa segunda fase de projeção, acredita-se numa influência verdadeiramente forte e
contundente na esfera criminológica e seus desdobramentos na criação de uma nova Escola. A
corrente que então surgia sustentava que os aspectos físicos e biológicos se revelavam os
manipuladores do comportamento através da atividade cerebral em um corpo degenerado,
essencialmente doente, suscetível à ação violenta inesperada, por isso passível de segregação
e isolamento em nome da defesa social.
César Lombroso, na esteira desses acontecimentos históricos, teria sido diretamente
influenciado pela onda localizacionista, pelas inscrições psíquicas no cérebro e,
consequentemente, no aspecto crânio-facial. As tendências inatas, o comprometimento das
faculdades morais e intelectuais tidas como naturais, criariam as bases do criminoso nato, na
classificação biotipológica lombrosiana. O cérebro se apresenta, mais uma vez, como fetiche,
como o órgão-alvo do estudo materialista, sobre o qual recaem as especulações acerca das
características físicas, orgânicas e anatômicas que denunciariam o indivíduo delinquente. O
cérebro, assim, permite especularmos sobre uma forte concentração dos enunciados médicos
sobre a criminalidade na esfera psiquiátrica, bem como ilustra o processo de psicologização
ou psiquiatrização do anormal.
A seara jurídica, dominada por referenciais filosóficos, não contava com contribuição
significativa do positivismo médico, o qual foi se infiltrando lentamente, convencendo juristas
48
e magistrados a adotar modificações e a substituir o espiritualismo abstrato por um
materialismo biológico, a quê a autoridade médica devotava atenção e saber.
1.3.1 A RECEPÇÃO DOS FUNDAMENTOS FRENOLÓGICOS PELOS
POSTULADOS DA ANTROPOLOGIA CRIMINAL
O pensamento antropológico iniciado na época de Gall, com ênfase no criminoso e
não no crime, é retomado pela Antropologia Criminal
37
, a qual recepcionou os padrões
normativos dos sistemas físico-naturais, reforçando as diferenças biologicamente explicáveis
e a inevitável hierarquização dos indivíduos. A tradicional oposição entre espiritualistas e
positivistas, por isso, deve remontar ao início do século XIX e não, isoladamente ao final do
mesmo.
Com essa mesma linha de pensamento, concordam Becker e Wetzell quando
mencionam que “recentes estudos sobre a história da criminologia têm descoberto uma
tradição criminológica negligenciada, como a medicina forense e a frenologia, que focaram
claramente no delinquente”, impondo revisões nas abordagens históricas tradicionais de que a
corrente pré-lombrosiana preferia o estudo do crime ao do criminoso (BECKER e
WETZELL, 2006: 6). A mesma revisão é defendida por Savitz, Turner e Dickman no texto
com o sugestivo título “The Origin of Scientific Criminology. Franz Joseph Gall as the First
Criminologist”.
A Escola Positiva da Criminologia surgiu com propostas sistematizadas e organizadas
sob um formato classificatório do delinquente – que começou a se delinear com a frenologia e
percorreu todo o século XIX com outros autores que direcionaram seu alvo para o indivíduo.
Por isso, Burrel afirma o caráter pouco inovador de Lombroso, o qual teria muito mais
popularizado a apresentação do cérebro por Broca e as reminiscências da escola de Gall: “A
teoria do criminoso nato vinha pairando no ar há algum tempo antes dele [Lombroso] decidir
torná-la de sua autoria” (BURRELL, 2004: 121). As medidas políticas de prevenção e de
tratamento do agente criminoso corroboram o olhar médico sobre este (tipo) humano,
ofuscando o fato delituoso em si.
Assim, se no curso da história, certos momentos foram propícios para a eclosão de
teorias dadas como novas, o final do século XIX pareceu perfeito para culminar o processo da
37
Neste ponto, não pretendo me estender muito nas considerações sobre Lombroso, o qual merecerá dedicação à parte. Farei
somente comentários gerais sobre a recepção de certas premissas frenológicas pela Antropologia Criminal. É inevitável,
contudo, citar Lombroso, uma vez que ele é apontado, convencionalmente, como o pai da Criminologia.
49
relação entre medicina e direito e, mais especialmente, para o sucesso da relação entre a
antropologia física e a criminologia. A experiência da secularização do direito, do triunfo das
verdades científicas, do referencial da autoridade médica e do paradigma do individualismo
criaram o ambiente rtil para a proliferação sistematizada dos estudos sobre o homem
delinquente e tal ambiente fora aproveitado muito apropriadamente pelos criminólogos.
É desse modo que um ordenamento de idéias médico-científicas muito bem
propagadas, publicizadas e auto-referenciadas passa a ocupar realmente um espaço, um
espaço preponderante nas discussões acadêmicas e jurídicas, antes privilégio de juristas e
filósofos. É desse modo que a Escola Positiva surge da conjugação dos interesses de um
estado capitalista avançado, de uma cultura urbana higienista, de um direito laico positivista e
de um olhar médico sobre o sujeito e destinatário principal da fraternidade liberal burguesa: o
indivíduo, biologicamente caracterizado e desigual em suas especificidades.
As premissas antropológicas da arqueologia médica-crimonológica explicavam, pois,
essas desigualdades. Separavam os indivíduos de acordo com seu biotipo, classificavam em
não-criminosos e criminosos, e estes, por sua vez, em criminosos de diversas classes. Em
geral, o princípio norteador sustentava que as tendências inatas do delinquente estavam
inscritas em seu cérebro e eram perceptíveis externamente por meio de sua estrutura física, de
sua fisionomia, da morfologia de seu crânio e da anatomia de seu cérebro, dentro da matriz
epistemológica fisicalista anteriormente comentada. As características físicas, portanto,
expressavam os aspectos internos da pessoa e o cérebro seria o responsável pelas atitudes,
comportamentos, emoções.
A ênfase na cerebralidade cunhou a empiria de frenologistas e positivistas na busca da
etiologia criminógena, bem como promoveu a crença leiga e erudita no reflexo físico-craniano
da composição e morfologia das áreas cerebrais. Em outras palavras, uma espécie de
organização cerebral fixada no sujeito imporia uma adaptação craniana, de cujo formato
poderiam ser extraídas as conclusões de seu interior.
É considerável, nesse sentido, a relação entre a frenologia e a antropologia criminal.
Em Os precursores de C.Lombroso, Antonini diz da significativa influência de Gall na obra
da Antropologia Criminal, mencionando as inúmeras observações que foram feitas pelos mais
expressivos seguidores dessa escola antropológica: a insensibilidade do delinquente e a
divisão em delinquente passional e delinquente nato (idem, 1900: 144). Quando examina os
resultados apresentados pela pesquisa de 689 crânios feita por Lombroso, especialmente
quando este se refere ao índice encefálico, Antonini também lembra os frenologistas que
50
alcançaram os mesmo valores em pesquisas feitas com assassinos:(...) frenologistas que
concluíram que o lobo temporal seria o órgão da crueldade” (idem, ibidem: 13).
Wolfgang (1961) reforça esse entendimento quando nos informa do interesse de
Lombroso, durante seus anos de estudo na Universidade de Viena, em psicologia e
psiquiatria, a qual concentrava grande peso na anatomia e fisiologia do cérebro. Ademais,
contrária à filosofia do livre arbítrio, a ideologia antropológica vertia para as correntes dos
positivistas franceses, dos materialistas alemães e para os evolucionistas ingleses, incluindo
Augusto Comte, que, além de ter baseado muito de sua teoria sociológica na biologia, “até
encontrou motivo para dar suporte a Gall” (idem, ibidem: 362).
Pierre Darmon compartilha conosco desse pensamento, ressaltando a originalidade da
criminologia de Gall quando este foca no criminoso (não no crime) a medida da pena, de
acordo com os graus de culpabilidade e de expiação segundo a condição individual, bem
como reconhecendo no delinquente “à base de organização” o “criminoso nato”: “no
pensamento de Gall existem em germe não apenas as concepções fundamentais da futura
escola italiana de antropologia criminal no que concerne ao tipo criminalóide, mas também
uma identidade de ponto de vista em matéria de penas e de prisões-clínicas” (DARMON,
1991: 25). Chega este autor a repetir com outros que “a criminologia de componente
antropológico afirma-se com Gall” (idem, ibidem: 40).
Mayrink da Costa também elenca alguns pontos comuns nas obras dessas Escolas. Diz
das comparações entre as formas dos crânios de animais e de homicidas; do prazer
sanguinário de certos réus
38
; da classificação dos delinquentes; da insensibilidade de
assassinos; da relação entre epilepsia e delito; e do critério de periculosidade como medida da
sanção (idem, 1989: 208-9).
Emblemático ainda é, dentre as publicações de Lombroso, um de seus estudos sobre a
relação entre desenvolvimento sexual e cerebral a partir de consistente avaliação das idéias de
Gall. Di un fenomeno fisiologico comune ad alcuni neurotteri ed imenotteri, publicado em
Verona em 1853, quando Lombroso tinha apenas dezoito anos, traz as marcas dessa interação.
Não se nega que Lombroso tenha divergido de algumas conclusões de Gall, contudo o que se
mostra mais evidente é a defesa da originalidade de teses deste e a concordância com muitos
de seus fundamentos: “muitos autores acreditavam haver descoberto, na disposição anormal
38
Lombroso transcreve um episódio contado por Gall, no qual revela a “maldade pura” dos animais, tal e qual nos homens:
“Gall conta que um barbet muito amado por seu dono que o nutria abundantemente procurava em toda a parte, nas ruas,
ocasião de brigar. Todos os dias, retornava à casa com novos ferimentos. Tentaram prendê-lo durante semanas inteiras: tão
logo posto em liberdade, atirava-se sobre o primeiro cão que encontrava e que vencia, caso não fosse posto fora de
combate” (idem, 2001: 56).
51
das circunvoluções, o segredo das tendências criminosas. Sem remontar ao exageros de Gall,
os quais não eram, todavia, sempre infundados, vemos, ainda em nossos dias, repetir-se a
mesma afirmação” (LOMBROSO, 2001: 200). Ellis também não deixa de atribuir o mérito
ao frenologista quando reconhece ter sido Gall o primeiro a suspeitar da significativa relação
entre as circunvoluções, as suas condições, o desenvolvimento e o formato do cérebro
(ELLIS, 1890: 61).
Mesmo que o positivismo criminológico tenha apresentado mensurações inovadoras
da estrutura física do delinquente como um todo partindo para uma tipologia biológica que
incluía características auriculares, nasais, dos membros inferiores, dos membros superiores,
da mandíbula etc. – e tenha demonstrado preocupações com os fatores externos ao indivíduo –
que não se restringiram à educação ou à condição econômica, mas abarcaram também o meio
social, a nutrição, o clima e a geografia, por exemplo seria imprudente afastar
completamente as suas matrizes frenológicas.
Seja pela alusão recorrente às pesquisas craniométricas ou pela etiologia do crime na
organicidade do criminoso, seja pela base na cientificidade médica ou pelo método
experimental, seja ainda pelas considerações acerca da culpabilidade e das formas de
tratamento e prevenção, concluímos, com Temkin, que Gall
tem sido corretamente chamado de predecessor das idéias de Lombroso sobre o criminoso
nato. Com igual justiça, ele pode ser chamado de predecessor da idéia de que o crime é um
problema médico e o criminoso, uma vítima de suas disposições e um objeto de considerável
tratamento mental. (TEMKIN, 1947: 288)
O criminoso cerebral, nascido das obras de Franz Joseph Gall, adquire reconhecimento
acadêmico, atinge prestígio jurídico e amadurece seu status científico com a Antropologia
Criminal, no final do século XIX.
1.3.2 – A ANTROPOLOGIA CRIMINAL
O criminoso, desse modo, passou a ocupar o centro das atenções na nova era da
criminologia científica. Se, antes, com Beccaria, Bentham, Feuerbach, Blackstone, Rossi,
Carrara, Mello Freire, Romilly e outros, o foco estava no delito, formalmente definido como
uma conduta descrita na lei, o positivismo criminológico nascido no início dos oitocentos
rompeu com a exigência da prática de tal comportamento delituoso para etiquetar a pessoa
como delinquente, uma vez que o criminoso nato era assim definido por sua constituição
52
biológica, independentemente do momento em que esse determinismo
39
viesse a se manifestar
e a se externalizar através da conduta.
Assim, num quadro comparativo sintético entre os princípios da Escola Clássica e os da
Escola Positiva, amplamente identificados na Escola Italiana, teremos:
PRINCÍPIOS/ESCOLA CLÁSSICA POSITIVA
Quanto ao delito Entidade Jurídica Fenômeno Biológico
Quanto à Ciência do Direito
Penal
Normas emanadas da Lei Moral
Separação entre o Direito e a
Moral
Quanto ao Método Dedutivo-lógico Indutivo-quantitativo
Quanto ao Fundamento da
Sanção
Tutela Jurídica Tratamento/Cura
Quanto à Dosimetria da Sanção
Proporcionalidade ao Dano Periculosidade do Agente
Quanto à Finalidade da Sanção
Repressão, baseada na
imputabilidade moral
Prevenção, baseada na
inimputabilidade biológica
Quanto ao Livre Arbítrio Dogma relacionado à
Racionalidade dos Homens
Entidade Metafísica, Abstrata,
Carente de Cientificidade
O aumento da dimensão da criminalidade
40
, dos índices de reincidência e a constatação
de uma certa falência dos sistema penal e penitenciário baseado nas propostas espiritualistas
levaram à rediscussão do fenômeno criminal, mudando a perspectiva do olhar do cientista: do
fato para o agente. Traduzindo a angústia dos pensadores da época, apontava-se até para um
contra-senso do próprio sistema punitivo clássico, em que o juiz tentaria separar o delinquente
do delito e o delinquente, por outro lado, trazia provas de que tal separação era impossível.
A nova Escola que se firmava se tornou uma verdadeira disciplina inscrita na ordem da
história natural, como alargamento da própria antropologia pelo estudo do homem e de suas
variedades, e “é, ao mesmo tempo, uma fusão do conhecimento dos seres normais, ou seja da
biologia, com o conhecimento dos seres anormais, ou seja com a patologia e a teratologia”
(MORSELLI, 1906: 11). A preocupação deixou de recair sobre a definição do delito para se
endereçar com força total às causas etiológicas explicativas do comportamento criminoso e o
momento histórico era propício para a pujança dessa perspectiva que a experiência anterior
de Beccaria não se mostrou suficientemente satisfatória. Além disso, o método experimental,
39
Os tradutores brasileiros de O Homem Delinquente (2001), em nota de rodapé na página 152, afirmam: “Cabe aqui
salientar que muitas vezes Lombroso foi acusado injustamente quanto a esse aspecto. Na verdade, não se encontra na obra
nenhum vezo exageradamente determinista, mas, ao contrário, apenas a afirmação de que certos caracteres encontráveis
nos seres humanos trariam consigo a probabilidade de manifestação de tendências criminosas. Certos doutrinadores,
porém, viram aqui uma oportunidade de dar sustentação às teorias extremistas, aproveitando-se de trechos isolados da
obra, onde fragmentos, separados do todo, ao perder seu sentido original, eram desvirtuados com finalidades nada
louváveis”.
40
Na Conferência de Enrico Ferri na Universidade de Nápolis, em 9 de março de 1885, as estatísticas mostravam que, em
1862, havia cerca de 28.000 detentos condenados; em 1872, eram 43.000; em 1882, eram 51.000.
53
vigoroso no século XIX, associado à autoridade médica, reclamava um imperativo prático e
um objeto concreto de estudo: o indivíduo delinquente.
Nesse nível individual
41
, as teorias da corrente lombrosiana se enquadrariam na linha
bioantropológica de uma antropologia natural mais ampla, pela qual o conceito de homem
compreende o de um organismo ligado genealogicamente a todos os outros seres vivos. D
derivam as mais expressivas opiniões no campo da antropologia criminal, derivam, pois, das
próprias premissas na seara antropológica, de um olhar estritamente físico ou de uma visão
mais cultural e que repercute nas divergências sobre a existência ou não da figura diferenciada
de um tipo humano de criminoso.
As teses que se dedicaram a estabelecer as diferenças entre os cidadãos normais e o
homem delinquente consideram que o criminoso é “um indivíduo cuja ontogênese não
obedece aos ritmos de evolução da filogênese” (FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE,
1992: 172). As variáveis bioantropológicas são, então, de natureza hereditária (contributo
previsível a partir dos progenitores), inata (mutação e segregação dos genes), congênita
(adquirido no útero) ou ainda constitucional (alterações do estado do corpo pela experiência da
vida).
Nas explicações de Antonini, são causas internas as inatas e as adquiridas, sendo que
estas últimas, na sua maior parte, dependem do alcoolismo crônico, de lesões da cabeça, de
doenças cerebro-espinhais, da epilepsia ou dos estados nevropáticos em geral dos progenitores
(idem, 1900: 11).
Seguindo a tendência naturalista, dois grandes nomes italianos dessa Escola Positiva
foram Enrico Ferri e Rafaelle Garófalo. Geralmente, quando os autores dessa escola italiana se
deparavam com alguma anomalia, propunham as seguintes perguntas:
1) essa peculiaridade era presente em algum homem pré-histórico e, em caso positivo, com que
frequência era encontrada em comparação com a frequência com que se encontra hoje nos
corpos dos criminosos?
2) essa peculiaridade era encontrada nas raças inferiores de humanos e com que frequência?
3) essa peculiaridade era encontrada nos macacos mais evoluídos e, em caso afirmativo, era
ocasional ou constante?
41
Segundo Figueiredo Dias e Costa Andrade, as teorias criminológicas, no nível individual, podem ser subdivididas em
bioantropológicas, psicodinâmicas (pela qual não haveria diferença propriamente congênita entre criminosos e cidadãos
normais, mas sim diferença quanto ao sucesso ou não dos processos de aprendizagem e socialização) e psico-sociológicas (na
qual o delinquente é visto como um indivíduo que sublima sua personalidade ao privilegiar sentimentos de frustração,
agressão e injustiça impostos pela sociedade). O outro seria o nível sociológico, em que as teorias etiológicas (ecológicas, da
subcultura delinquente e da anomia) e interacionistas se pautam na sociedade criminógena. Não há, verdadeiramente, uma
contraposição entre elas, mas respostas diferentes a perguntas diferentes sobre o comportamento criminoso (idem, 1992: 165-
6).
54
4) é localizada em alguma outra espécie do grupo dos primatas?
5) é encontrada em animais anteriores aos selvagens?
6) é localizada em seres humanos que apresentem anomalias congênitas mórbidas; mais
especialmente, é localizada em epilépticos e em idiotas?
Hans Kurella (1911: 19-20) sintetizou as questões que mais marcaram essas pesquisas
positivistas. A propósito, posso apresentá-lo como outro nome significativo da antropologia
criminal que, por sua nacionalidade, representa a influência da Antropologia Criminal na
Criminologia alemã. Em seu Cesare Lombroso, a Modern Man of Science, expressa o quanto
sua forte ligação ideológica com a Escola italiana conduziu seu trabalho sobre os delinquentes.
Resumindo o tipo delinquente, ele explica que, antropometricamente, o tipo representa os
valores extremos; zoologicamente, o caráter primatoid e, evolutivamente, casos de
desenvolvimento incompleto (idem, 1911: 50).
Sobre a mulher delinquente, Kurella remete às considerações de Lombroso a respeito
de duas grandes característica antropológicas, quais sejam a de que as mulheres apresentam
menos variações entre si e, consequentemente, exibem diferenciações especiais menos
marcantes do que nos homens, porém mais significativas quando estas surgem. Ademais, em
geral as mulheres teriam menos sensibilidade e, por conseguinte, menor sensação de dor.
Quanto à prostituição, interpretando essa atividade como uma regressão ao período pré-
histórico, considera a prostituta, por seu atavismo, o protótipo do ser criminoso: “uma mulher
do tipo genuinamente criminoso é, ao mesmo tempo, tanto uma prostituta como uma
criminosa, ou se sua posição social a salvou de tornar-se uma prostituta profissional ela
aparenta marcante semelhança antropológica e psicológica com a prostituta” (idem, ibidem:
62).
Uma referência austro-húngara
42
no assunto é Moriz Benedikt que, em seus estudos
anatômicos sobre os rebros dos criminosos, seguiu os passos da tradição empírica para
corroborar a premissa lombrosiana do “cérebro criminoso”. Esse anatomista estudou vinte e
três presos mortos e concluiu pela existência da variedade antropológica do criminoso em
razão da morfologia inferior de seu cérebro.
Cite-se, ainda, o inglês Havelock Ellis, com grande expressão em seu The Criminal
(1890). Associava-se integralmente às idéias sobre as causas bioantropológicas, se bem que
42
Para detalhes sobre o lombrosionismo na Alemanha, ver Bondio, Mariacarla G. “The Impact of Lombrosian Theory in
Germany” in Criminals and Theirs Scientists, The History of Criminology in International Perspective, org. Becker e
Wetzell, Nova Iorque: Cambridge Univ. Press, 2006.
55
adotava uma classificação em que antecipava a preocupação com os delinquentes políticos, os
quais se distinguiam dos criminosos loucos e dos passionais.
Além do suíço E. Bleluer, do austríaco A. Lenz, dos holandeses C. Winkler e A.
Aletrino e de outros tantos europeus
43
, na América a Escola italiana também marcou história.
Arthur MacDonald, quem publicou O Homem Anormal em 1893, merece citação. Ao seu
lado, H. Boies, C. R. Henderson, E. Talbot, A. Drähms, W. D. McKim, G. F. Lydston e P.
Parsons
44
.
Mais tardiamente, Albert Hooton se tornou referência das idéias antropológicas nos
Estados Unidos. Sua pesquisa de doze anos resultou na publicação de O Delinquente
Americano: um estudo antropológico, de 1939. Como ironiza Anitua, provavelmente, suas
conclusões teriam feito rir o próprio Lombroso. Por exemplo, os delinquentes que matam são
altos e fracos, e os que cometem fraudes, altos e gordos” (idem, 2007: 365).
Os representantes franceses da Antropologia Criminal
45
, por outro lado, divergindo
sobre o tipo criminoso, apesar de não negarem a importância das análises fisiológicas,
atribuíram maior valor ao estudo das causas ambientais, dos fatores sociais. A perspectiva
permanecia a do indivíduo delinquente, o indivíduo inserido em um ambiente que estimularia a
carreira criminal pela falta de oportunidades, pelos vícios, pela pobreza. Como disse Anitua, na
verdade, tanto os franceses quanto os italianos se centraram no homem criminoso, contudo os
primeiros focaram mais nas atitudes deste homem, enquanto os segundos mais na sua
composição biológica e predisposição
(idem, 2007: 317)
.
Alexandre Lacassagne, em sua famosa frase “toda sociedade tem os criminosos que
merece”, sustenta a falta de resistência às pressões sociais como a grande causadora dos
delitos. Lacassagne, aliás, fundador da Escola de Lyon e um dos maiores representantes do
movimento francês ao lado de Léonce Manouvrier, desenvolveu a “teoria microbiológica do
43
Lombroso agradece expressamente a divulgação da Antropologia Criminal pelos trabalhos desenvolvidos por Liszt,
Kraepelin, Biliakow, Troiski, Knecht, Holtzendorf, Sommer, Mendel, Pulido, Echeverria, Brill, Kowalewshi, Likaceff,
Minzloff, Kolokoloff, Espinas, Letourneau, Tonnini, Reinach, Soury, Sorel, Motet, Marandon, Fioretti, Le Bon, Bordier,
Tarde, Roussel, Heger, Albrecht, Warnott, Tamburini, Frigerio, Laschi, Mayor, Majno, Benelli, Fulci, Pavia, Aguglia, Sergi,
Tanzi, Lessona C., Cosenza, Lestingi, Turati, Venezian, e sobretudo por Laurent, Marro, Flesch, Benedickt, Beltrani-Scalia,
Virgilio, Morselli, Garofalo, Puglia, Sighele, Ferri, sra. Tarnowski, Ottolenghi, Dotto, Carrara, Roncoroni e Kurella
(LOMBROSO, 2001: 22).
44
Para um excelente mapeamento da influência da Antropologia Criminal nos Estados Unidos, incluindo a análise das
Instituições de Correção criadas a partir do século XIX ver RAFTER, Nicole: Creating Born Criminals, Urbana e Chicago:
University of Illinois Press,1997.
45
Laurent Mucchielli nos dá um panorama da Antropologia Criminal francesa em “Criminology, Hygienism, and Eugenics in
France, 1870-1914. The Medical Debates on the Elimination of ‘Incorrigible’ Criminals”, nos trazendo a definição do que se
denominou utilitarismo médico-social (“sociomedical utilitarianism”) para substituir o conceito de punição: “o princípio de
defesa e progresso da sociedade, vista não como um corpo organizado de indivíduos autônomos que possuem direitos
inalienáveis, mas como um organismo vivo com membros ou células a serem eliminadas a fim de manter o organismo
saudável” (2006: 227). Outra boa indicação é
Renneville, Marc. La médecine du crime. Essai sur l'émergence d'un regard
médical sur la criminalité en France (1785-1885). Presses Universitaires du Septentrion, Lille, 1997, além do relevante texto
do mesmo autor “L’Anthropologie du Criminel en France” in Criminologie, XXVII, 2, 1994.
56
delito”, comparando o delinquente a um micróbio, que necessita do ambiente propício para se
desenvolver. Foi o primeiro a criticar frontalmente Lombroso no I Congresso de Antropologia
Criminal, congresso, este, organizado em 1885 em Roma, a fim de concentrar o maior número
de adeptos à teoria sobre o criminoso nato, visando a influenciar a reforma do Código Penal
italiano
46
e a ofuscar o III Congresso Penitenciário Internacional, que era dirigido pelos juristas
da Escola Clássica. Estrategicamente, o encontro capitaneado por Lombroso foi estruturado
para favorecer as teses da preponderância da hereditariedade no comportamento criminoso e
das causas endógenas da criminalidade, como o atavismo, a degeneração e a epilepsia, a que
corresponderiam certas características morfológicas. não se contava com o franco ousado
ataque ao enfoque puramente biológico dos fatores criminógenos.
Poder-se-ia suspeitar desde o princípio que o II Congresso, em 1889, tendo sido
sediado em Paris, reuniria ainda mais adeptos de Lacassagne
47
. Não mais franceses estavam
presentes, como também mais estudiosos internacionais participaram. Dentre os primeiros, o
antropólogo Paul Topinard, o professor de medicina legal Paul Brouardel, o juiz criminal
Gabriel Tarde e, claro, Manouvrier, cujas observações foram as mais contundentes. Este
antropólogo da Escola Independente de Antropologia de Paris não poupou Lombroso ao dizer
que o tipo criminoso era um “palhaço ideal” e, comparando-o com Gall, rotulou sua teoria
como revival do empirismo frenológico. Após questionar o modelo normal de homem, o
“honesto”, do qual partia Lombroso para estabelecer os desvios ou anormalidades do
patológico, Manouvrier acusou aquele de ter, pela antropologia, prestado um desserviço ao
criminalizar as características anatômicas (NYE, 1976: 341).
Tal acusação estava relacionada às mudanças internas da antropologia francesa. No
final do século XIX, aspectos culturais e etnológicos orientavam os estudos antropológicos,
de modo que a reação francesa ao retorno às ideias de fisiologistas do início ou do meio do
século, que adotavam as premissas fisicalistas e que impactaram a obra de Lombroso (como
veremos adiante), refletia o receio do retrocesso a um estágio inicial da antropologia que, na
visão destes autores, já havia sido ultrapassado. Receio, simultaneamente, de serem
confundidos com pesquisadores frenológicos, a quem a tradição francesa opôs sérias
46
Na leitura de Nye, apesar do Congresso de Roma, o positivismo pouco influenciou a legislação penal do país de Lombroso
no primeiro momento. O novo Código Criminal italiano, de 1889, “era um arquétipo da teoria clássica; de algum modo, o
código representou uma regressão a um estágio anterior da história penal européia quando níveis de responsabilidade penal
limitada não eram admitidos” (idem, 1976: 345).
47
Segundo Darmon, Lacassagne também recorre a Gall para explicar as pulsões criminais localizadas no cérebro, entretanto
vê o cérebro numa ligação mais efetiva com o ambiente, sendo este responsável pela alteração daquele. Assim, diz Darmon,
“no plano biológico e anatômico, as escolas de Lyon e de Paris não põem, portanto, verdadeiramente em dúvida as
observações de Lombroso, mas elas invertem sua lógica fazendo dos estigmas da criminalidade não a causa do crime, mas o
efeito de fatores sociológicos predispondo ao crime” (idem, 1991: 102).
57
resistências. A antropologia criminal francesa continha, portanto, elementos da antropologia
cultural que se voltavam para a influência do ambiente social em detrimento de uma fatalista
hereditariedade do processo de evolução Darwiniano. Por isso, Topinard
48
opinou pela
alteração do nome da ciência, o qual, dizia ele concordando com Garofalo, deveria mudar de
Antropologia Criminal para Criminologia
49
, ou melhor, “Criminalogia”, uma vez que se
estudava a criminalidade e não a “criminolidade” (ANITUA, 2007: 319).
é possível perceber a importância política desses Congressos. Reuniões como estas
favorecem o reconhecimento da autoridade, a divulgação das escolas, a multiplicação de
pesquisas sobre as teorias difundidas e de convites para novas palestras, novas pesquisas,
novos nichos de catequese, novas infiltrações institucionais. Assim, a tradição permaneceu no
III Congresso de Antropologia Criminal, que teve lugar na cidade de Bruxelas, em 1892. Foi,
contudo, marcado pela ausência dos italianos possivelmente em razão dos ataques pessoais
que sofreram nos Congressos anteriores de Roma e Paris, sinais das consequências emocionais
pelo suposto enfraquecimento de suas autoridades –, e pelo maior espaço conferido aos
debates sobre as psicopatologias. Num clima de maior contemporização entre os presentes,
parece ter vingado a orientação pluralista das causas do crime.
Em Genebra, 1896, deu-se o IV Congresso, com o retorno de Lombroso e seu secto. A
repetição incansável da existência de um tipo criminoso e a resistência dos seus opositores
imprimiram, mais uma vez, a marca registrada desses encontros, o quê prometia se repetir nas
reuniões agendadas para 1901, em Amsterdã, e 1906, em Turim
50
. Darmon resume os pontos
principais nos seguintes termos:
O primeiro congresso havia consagrado o nascimento da antropologia criminal e colocado o
problema do homem criminoso. O segundo havia focalizado a importância dos fatores
sociológicos na gênese do crime. O terceiro havia enriquecido a antropologia criminal com as
últimas teorias psiquiátricas em matéria de delinquencia. Sob o efeito das ofensas dos
italianos e de seu contra-ataque desordenado, o quarto congresso tendia à cacofonia (idem,
1991: 108).
Que fique claro que os opositores aos italianos não eram apenas os franceses. Por
exemplo, outro grande oponente, agora inglês, foi Charles Goring, a partir de seu The English
Convict. A constante atribuição que faz ao caráter de “superstição” da corrente italiana e a sua
48
“Topinard recusou-me o direito de afirmar a existência de um tipo criminal, pois que eu mesmo convenho que o tipo falta
completamente algumas vezes. Ora, não há dúvida de que, se a acepção da idéia de um tipo liga-se a sua completa
universalidade, não a podemos aceitar. Mas já escrevi, em minhas primeiras obras, que se deve acolher tais idéias com a
mesma reserva com que nos colocamos a apreciar as médias estatística” (LOMBROSO, 2001: 266). Lombroso diz que
Topinard foi “o mais obstinado de meus adversários”.
49
Para aprofundar a distinção entre as concepções de Antropologia Criminal e Criminologia, ver o supracitado texto de Marc
Renneville (1994).
50
Houve, ainda, o Congresso de Colônia (1911) que aconteceu após a morte de Lombroso em 1909. O Congresso de
Budapeste estava programado para 1914, mas a primeira Guerra Mundial interrompeu a sequência desses encontros.
58
comparação com alquimia, frenologia, quiromancia e fisionomia, mexeu com os brios de Sante
de Sanctis, professor da Escola de Ciências Criminais e Jurídicas Aplicadas, de cujo texto An
Investigation of English Convicts and Criminal Anthropology (1914) se extraem verdadeiras
indignações. Essa curiosa réplica é bastante emblemática das teses e antíteses que se
estabeleceram nos debates entre “lombrosianismoe “não lombrosianismo”, em que os pontos
mais marcantes se alocariam:
1) na premissa da existência de um tipo criminoso morfologicamente caracterizado ou da
inexistência de uma espécie criminosa determinada biologicamente, mas socialmente
influenciada;
2) na cientificidade dos métodos empregados, na aplicação da estatística, na comparação entre
os sujeitos pesquisados com o indivíduo normal ou na anti-cientificidade de uma metodologia
acriteriosa, com resultados inválidos e inconclusivos, que não traduzem a anormalidade uma
vez que há evidente dificuldade em se definir a própria normalidade;
3) no conceito de criminoso a partir de sua essência ou natureza hereditária, inata, congênita ou
por um parâmetro legal e ético, o quê desencadearia, no primeiro caso, a aceitação das medidas
preventivas e, no segundo, a exigência da prática do fato descrito em lei como crime.
Em que pesem as críticas – construtivas ou destrutivas, irônicas ou ferozes, fundadas ou
levianas, desinteressadas ou comprometidas, gratuitas ou corrompidas, leigas ou técnicas , a
teoria positivista surgida na Itália conferiu a seus adeptos, em muitos países, um status
invejável de respeitabilidade e de referência. Muitas, muitas obras e revistas especializadas,
escritas pelos italianos em vários idiomas, foram publicadas para divulgar ao máximo suas
idéias. Outras foram organizadas em homenagem ao fundador da Antropologia Criminal, como
L’Opera di Cesare Lombroso nella scienza e nelle sue applicazioni (1906), a qual contou com
capítulos de G. Antonini, S. De Sanctis, A. Marro, E. Morselli, P. Tarnowsky, H. Kurella, E.
Ferri etc. No prefácio deste tratado, Leonardo Bianchi finaliza um parágrafo dizendo: “César
Lombroso foi para a psiquiatria na Itália aquilo que foi Charcot para a neuropatologia na
França” (idem, ibidem: VI).
Quando pouco, a Escola Italiana suscitava inquietações
51
e curiosidades, o que
despertava para reflexão sobre as clássicas questões criminais num outro paradigma. Noyes
(1888: 32), por exemplo, em seu texto publicado pela Associação Americana de Ciência
Social, sentencia: será com o trabalho de Lombroso que estaremos principalmente
51
É famosa a opinião de Gabriel Tarde sobre Lombroso quando, no congresso de Bruxelas, o compara ao café: não nutre,
mas excita e impede que se morra de inanição.
59
preocupados e serão suas teorias e fatos, com as críticas que os outros vêm fazendo deles, que
serão considerados”.
Mesmo entre os italianos, apesar das premissas positivistas em comum, suas obras
divergiram consideravelmente. A experiência de vida de cada um deles conduziu a uma
percepção diferente dos criminosos, levando a classificações distintas, à apreciação
diversificada sobre causas endógenas e exógenas e às formas de sanção.
A Enrico Ferri (1856-1929), atribui-se a primazia das condicionantes sociológicas, que
são destacadas em sua notável obra Sociologia Criminale (1892), na verdade, o novo título
para a terceira e seguintes edições de Novos Horizontes do Direito e o Procedimento Penal
(1877, 1
a
. ed; 1880, 2
a
. ed). Segue, ele, a matriz positivista ao imputar ao livre arbítrio uma
ilusão subjetiva. Ademais, segue a premissa antropológica ao reconhecer que o delinquente
não corresponde ao tipo de homem normal, mas pertencente a uma classe especialmente
definida por anomalias orgânicas, com raízes selvagens que não permitem desenvolver a
moralidade. No entanto, percebendo as suscetibilidades do radicalismo biológico, remodela o
positivismo criminológico ao reconhecer a influência dos fatores ambientais, que dão forma ao
delito. Sua marcante face (socialista e) sociológica se deve às suas teorias sobre estes outros
fatores sociais do delito (dependentes, em qualquer caso, dos fatores físicos) e sobre a
localização da Escola Criminal Positiva num “novo método científico” de estudo da “patologia
social criminosa” em uma ciência de observação positiva que se vale da psicologia, da
antropologia e a estatística, do direito penal e da disciplina carcerária, à qual ele denominou
“Sociologia Criminal”.
Frances Alice Kellor, em seu Criminal Anthropology in its Relation do Criminal
Jurisprudence, concordava com Ferri que a antropologia criminal era um ramo da sociologia,
com o propósito de investigar o crime cientificamente: “para estudar suas origens e causas, e
determinar, se possível, qual proporção de responsabilidade pertence à sociedade e qual
pertence ao criminoso. Os remédios serão estudados tanto quanto as causas e ainda os efeitos
da punição no sentido de reforma e prevenção” (idem, 1899a: 515).
Em Princípios de Direito Criminal (1928), Ferri consolidou seu ponto de vista sobre a
necessidade deste ramo do Direito considerar a ilusão do livre-arbítrio e adotar os
“substitutivos penais” ou as “medidas pré-delituais” na defesa da sociedade contra a
periculosidade de algumas pessoas. O delito se constituía pela manifestação dessa condição
“perigosa” e a punição, tanto na qualidade quanto na quantidade, dependeria mais disso do que
do tipo de crime em si. Afinal, a punição estava relacionada à responsabilidade social de
promover a cura ou a reeducação, conforme o caso.
60
A Rafaelle Garófalo (1851-1934) coube a primazia dos elementos psicológicos. A ideia
de que ao agente faltariam sentimentos básicos e universais, pode ser encontrada em seu
renomado Criminologia (1885). A teoria do delito natural desenvolvida por ele se relaciona
com o desvio ou a insuficiência dos sentidos morais, tais como altruísmo, piedade, probidade,
comuns aos indivíduos saudáveis de uma sociedade. Por conseguinte, os criminosos são
pessoas não adaptadas à civilização, quer seja permanente ou transitoriamente, e a defesa
social, uma reação justa aos seus “inimigos naturais”.
As sociedades que reconhecerem esses sentimentos naturais são evoluídas, mas os
deliquentes que não os possuírem são degenerados. Pela falta de piedade, lesam a vida ou a
saúde. Pela falta de probidade, dão-se os crimes contra o patrimônio. Segundo “la temeritá”,
termo incluído por ele na Escola italiana, a pena de morte para os incorrigíveis até se
justificava a fim de impedir a degeneração total do organismo social. Num paralelo com a
seleção natural dos animais, os inadaptados naturalmente seriam eliminados da vida ou do
convívio com os homens civilizados, casos em que se admitiria a deportação ou a expulsão. O
confinamento, na visão dele, constituiria uma “punição” para a vítima e para a sociedade, as
quais teriam que arcar com os custos da manutenção do “inimigo”. Por isso, advogou também
a favor da pena de multa.
De qualquer modo, Garófalo também se mostrou convencido de que anomalias
somáticas predispõem à prática dos delitos mais graves. Assim, para ele, as grandes categorias
de criminosos seriam três: os natos (privados de sentimentos altruísticos), os violentos ou
enérgicos (com defeito de piedade) e os ladrões ou neurastênicos (defeito de probidade).
O próprio Lombroso aos poucos foi modificando as categorias e reconhecendo a
influência multifatorial, como se pode extrair das edições de O Homem Delinquente e dos
Anais dos Congressos de Antropologia Criminal. Após as críticas recebidas no primeiro
Congresso em Roma, seus estudos apresentados a partir do segundo Congresso em Paris
passaram a incorporar mais elementos sociais na discussão das causas do comportamento
criminoso. No entanto, suas preocupações permaneciam voltadas para os determinantes
físicos, para o atavismo, para a degenerescência e para as anomalias cerebrais. Por isso,
parece possível sustentar que, mesmo não negando a variação das causas do crime, os fatores
de ordem não biológica não eram tão representativos e, de qualquer modo, alguma
predisposição intrínseca deveria existir.
Se o principal objetivo do presente trabalho reside na análise da trajetória do papel do
cérebro na criminologia a partir do século XIX, justifica-se a opção de concentração dos
esforços nos trabalhos de Lombroso que se dedicaram mais avidamente ao tema. A sua busca
61
pelos sinais atávicos no cérebro dos criminosos espelha a importância deste órgão nas teses
centrais do fin de siècle.
1.3.2.1 – O CRIMINOSO NA OBRA DE LOMBROSO
A Lombroso
52
coube a primazia do fator bioantropológico em suas obras mais
relevantes ao estudo do tema, tais como L’Uomo Delinquente (1876-1897, em cinco edições,
sempre reformuladas e ampliadas a primeira com 252 páginas e a última com 2000 páginas,
divididas em três volumes), La Donna Delinquente, la Prostituta e la Donna Normale (1893),
Genio e Degenerazione (1897) e Le Crime, Causes et Remèdes (1899).
Antecessoras da teoria lombrosiana são algumas ideias que constituíram fontes de
inspiração para que ele explicasse o comportamento criminoso. Além das doutrinas de
Aristotle della Porta (1536-1615), de Lavater (1741-1801) e de Gall já comentadas, não
podemos nos esquecer dos nomes relacionados à teoria da evolução como J. Lamarck (1744-
1829), E. Geoffroy Saint Hilaire (1772-1844), Charles Darwin (1809-1882) e Herbert Spencer
(1820-1904)
53
. É então conveniente citar alguns outros autores tidos como predecessores da
Escola italiana e que foram influentes na obra lombrosiana.
Foram, por exemplo, as considerações da medicina mental que renderam observações
sobre a loucura de uma forma objetiva. Não mais como uma possessão demoníaca ou maligna
e como uma das possíveis causas do crime, a alienação do louco lhe retiraria a capacidade de
se autocontrolar. Em seu Tratado sobre o Tratamento de Alienados (1836), Philippe Pinel
(1745-1826) assinalava a necessidade de conferir tratamento diferenciado aos “doentes
mentais”, inclusive quando viessem a praticar atos definidos na lei como crimes. A tradicional
pena não seria necessária, nem suficiente, aliás incoerente mesmo com a proposta de
tratamento que deveria preponderar. Consequentemente, Pinel e depois também Lombroso
defende que os estabelecimentos de confinamento destinados aos delinquentes reclusos não
satisfazem às exigências para a disciplina ou a cura dos doentes. De acordo com Bonger (1936:
44), foi graças às atividades de Pinel que o art. 64 foi incorporado ao Código Penal francês: “Il
52
Para um completo panorama sobre a biografia de Lombroso, ver Renzo Villa, Il Deviante e i suoi Segni: Lombroso e la
Nascita dell’Antropologia Criminale, Milan, 1985.
53
Hans Kurella acrescenta, na lista dos antecedentes, outros nomes que influenciaram a obra de Lombroso, como o do
filósofo Vico, relevando o princípio do desenvolvimento orgânico relacionado à estrutura e à vida da sociedade humana; do
médico Marzolo, nas explicações da origem das instituições jurídicas a partir da filologia comparativa; de Burdach, por seu
Manual de fisiologia, repleto de idéias antropológicas; do médico Bartolomeo Panizza, por suas aulas de Anatomia; de
Moleschott, com seu materialismo germânico; de Skoda, quando, em 1856, Lombroso foi aprovado no seu exame oficial para
a graduação em medicina (idem, 1911: 1-17).
62
n’y a ni crime, ni délit, lorsque le prévenu était en démence au moment de l’action”
54
. Assim,
patente é a relação que fortemente se consolidava entre medicina e direito.
Jean-Étienne Dominique Esquirol (1772-1840), quem originou a teoria da monomania
em seu Tratado de Doenças Mentais (1838), igualmente teve forte influência na política
criminal e na relação judiciário-psiquiatria. A monomania, que consistia em distúrbios parciais
nas forças mentais, foi inserida na nosologia da loucura como subdivisão da melancolia.
Recebeu inúmeras atenções, sendo incluída na teoria de outros autores com terminologias
diversas. É, por exemplo, a aceitação da monomania racional na teoria sobre a loucura moral
(“moral colour-blindness”), primeiramente feita por J. C. Pritchard (1786-1848).
Suspeita-se também da influência de Adolphe Quetelet (1796-1874) com os seus
Ensaio de Física Social (1835) e Sobre o Sistema Social e as Leis que o Regem (1848), porém
por via indireta, por meio da Estatística Moral (1868) de Alexander von Oettingen (1827-
1905), o qual foi citado expressamente por Lombroso. Piers Beirne (1987) não suspeita, mas
certifica que o estudo estatístico aplicado às análises sociais, a fim de medir também a
constância, os fluxos, as propensões e as causas do crime, correlacionando clima, sexo, idade,
condição social com os tipos de delito, reforçou a oposição entre normalidade e desvio adotada
por Lombroso, bem como consagrou o termo homem médio.
O Tratado filosófico e fisiológico da hereditariedade natural de Prosper Lucas (1805-
1885) inseriu a criminalidade no plano das doenças hereditárias. Complementado pela crítica
feroz de E. Dally (1833-1887) ao livre arbítrio, descreveu-se o crime e a insanidade como
formas orgânicas de decadência mental, marcando a conduta humana pelos impulsos das
propensões hereditárias.
Lombroso igualmente formulou pensamento confluente com as obras de Isaac Ray. No
Tratado de Jurisprudência Médica da Loucura (1853), Ray agrupa, sob o termo insanidade,
todas as condições anormais das forças mentais, para depois explicar que a expressão doença
mental abarca dois tipos gerais. No primeiro, como um incompleto ou defeituoso
desenvolvimento das faculdades, por razões congênitas ou adquiridas na infância, se localizam
a idiotice e a imbecilidade. No segundo, como um desarranjo das faculdades após seus
desenvolvimentos, estão incluídas a mania, intelectual e moral, e a demência. Com essa
organização, parte para a análise das características de cada classe, sendo forte a sua premissa
sobre o fato de que o cérebro é a conexão entre mente e matéria”, portanto um “desarranjo,
54
“Não há crime, nem delito, se o acusado estiver em estado demencial no momento da ação”.
63
tanto orgânico quanto funcional, do cérebro virá acompanhado por manifestações anormais
da mente” (RAY, 1853: 330).
A categoria da degenerescência divulgada por Benoit-Augustin Morel (1809-1873),
com profundo impacto na obra de Lombroso a partir de seus Tratado sobre a Degeneração
(1857) e Sobre a Formação de Tipos (1864), consagrou a inferioridade dos delinquentes. A
idéia original de Morel sobre a degeneração como uma forma de evolução retrógrada foi
modificada e adaptada por diversos autores a outras instâncias.
No âmbito da “psicologia criminal”, Prosper Despine (1812-1892) com seu Estudo
sobre o Estado Psicológico dos Delinquentes (1872) e Henry Maudsley (1835-1918) sobre a
identidade degenerada do criminoso, em O Crime e a Loucura (1872) e Responsabilidade na
Doença Mental (1874) também se tornaram relevantes. Este último, por suas noções
neurológicas, se apegou à epilepsia como explicação do comportamento criminoso, quando
não fosse encontrada outra causa. O “theromorphism” de Rudolf Virchow (1821-1902),
defendendo a existência de peculiaridades de animais antigos nos crânios de determinados
delinquentes e os trabalhos de Paul Broca (1824-1880) amparados numa antropologia
científica, teriam estimulado Lombroso a seguir a tradição do exame de crânios.
A “lei fundamental da biogenética”, formulada por Haeckel (1834-1919), foi utilizada
por Lombroso na comparação entre a criança e o criminoso. O crescimento da criança
simboliza a história natural da evolução das espécies, isto é, o estágio mental das crianças
corresponderia ao dos ancestrais, os selvagens. Quando o desenvolvimento da criança é
interrompido, seu estágio mental também não desenvolve, logo persistem as características
típicas da inexistência de senso moral. Sua vida, carente deste senso moral presente na vida
adulta de um ser humano normal a que correspondia àquele momento da civilização
oitocentista; presente na vida do cidadão moderno, livre, ativo da sociedade industrial –, é
marcada por comportamentos perversos, antisociais, anormais, os quais lhe imprimiriam uma
personalidade vingativa, egoísta, imprudente, inconsequente, desde sua infância. A este
homem, os alienistas atribuem o rótulo de louco moral e os criminólogos, criminoso nato:
Dêem um pouco mais de força a esses músculos, um pouco mais de energia a esses instintos e
vocês terão as mais cruéis formas das manias impulsivas e racionais sempre unidas ao espírito
mais lúcido. Por mais que se diga, estão casos de loucura: tais casos, entre os adultos,
seriam bem facilmente chamados de crimes. De qualquer sorte, eles provam que, em sua
primeira manifestação, o crime e a loucura moral não oferecem qualquer diferença
(LOMBROSO, 2001:144-5).
O momento histórico em que se permitiu reunir muitas dessas e de outras teorias do
século XIX foi propício para a retórica lombrosiana. Autores como Anitua defendem que
Lombroso não construiu uma criação original, contudo teve o mérito de resumir e concluir as
64
ideias frenológicas e psicofísicas oitocentistas, atribuindo-lhe a qualidade de uma ciência
“nova” em meio à crise do penalismo de sua época que ansiava por soluções inovadoras
(ANITUA, 2007: 298).
Todo esse conjunto de constructos fisicalistas e materialistas, associado a uma
inquietação subversiva com as tradições estabelecidas (marcante em sua juventude e que
lhe fixou a característica de revolucionário, segundo Kurella), conduziu Lombroso ao
rompimento com a interminável discussão em torno do livre arbítrio, considerada metafísica e
carente de cientificidade. Com forte base empírica, foi inevitável a aplicação de seus métodos
mensurativos e descritivos, especialmente dos cérebros e dos crânios dos criminosos e dos
lunáticos, confiante de que as peculiaridades e diferenças antropológicas resultariam em
conclusões sobre os traços físicos e psíquicos de
cada grupo e sobre as causas orgânicas do delito.
O contato com internos de
estabelecimentos penitenciários e seu trabalho
também como professor de medicina forense
facilitaram a efetivação destas suas pesquisas,
que não foram poucas. como médico da
prisão de Turim, Lombroso teria examinado
mais de duzentos prisioneiros provisórios por
ano. No total de sua vida profissional, estima-se
em torno de seis mil observações em pessoas
vivas. Ademais, suas pesquisas não se
restringiram aos seus locais de atuação. Com o
auxílio de burocratas de outros países, as
expectativas de classificação dos delinquentes também de forma regional cruzaram fronteiras,
conforme aparece na correspondência acima
55
escrita pelo Inspetor Geral do Departamento
55
Disponível em http://www.prov.vic.gov.au/deeming/documents/vprs8369-p1-lombrosoresearch.htm, acessado em
01/05/2008, com a transcrição do original: “Penal and Gaols Department, Inspector-General's Office, Spring-Street,
Melbourne, 16th April 1898 re Papers 90/1178, H 3155. Two photographs with criminal history sheets of 40 prisoners
amongst those on the attached list furnished by Mr Marshall Lyle, are to be forwarded when convenient. One set is to have
the name and number. [crossed out: give] The second set the number but no name. The photographs are required for
Professor Lombroso of Italy. A selection is to be made so as to include prisoners of the undermentioned types 1. Sexual
Criminals, including criminals committing rape, indecent assault, unnatural crime, indecent exposure incest. 2 Bushranger
type, Capt. Moonlight, Ned Kelly 3 Burglar type. 4 Sneak thief type. The theodolite man. 5 The criminal larrikin type,
including dangerous assaulters and violent criminals. 6 Homicidal criminals. In the case of Fredk. Baker coming under No.1
it is to be ascertained whether there is any peculiarity in regard to the shape of the body, especially about the lower part of the
trunk. J Evans Inspector General [Annotations: top right-hand corner] 82450 98/D551 [Annotations: left margin] M.5307
Instructions complied with - Two sets of Photos 40 each forwarded herewith. The Inspr General Penal Depnt Fred Wm Bull
Gov. P.E.P.
11/7/98 The Governor P E Pentridge”.
65
Penal de Melbourne, de 16 de abril de 1898, relatando que os anexos continham fotografias de
prisioneiros requeridas pelo “Professor Lombroso”.
Assim se iniciou sua tarefa de separar, classificar e procurar substratos comuns, tarefa
esta, que cientificamente relevante desde a cultura das Enciclopédias, desencadeou em
Lombroso a necessidade de criar as classes principais dos tipos criminosos, os quais se
reuniam por certas características gerais, e de redividi-las para melhor análise metodológica e
melhor estudo criminológico. Tal classificação não resultou estanque, tendo sido revista e
ampliada nas subsequentes edições de O Homem Delinquente.
Na primeira edição de 1876, Lombroso estava focado na apresentação das
características físicas dos criminosos. Foi com as publicações de 1871 e de 1872 do Archivio
Italiano delle Malattie Nervose e do Rendiconti dell’Istituto Lombardo, junto com Affetti e
Passioni dei Delinquenti (1874), que Lombroso formou o núcleo desta sua obra mais
referenciada. As particularidades anatômicas, tais como crânios pequenos e deformados,
orelhas grandes, cabelos e olhos escuros, pesos e alturas maiores, menor sensibilidade a dor
etc. formavam perfis na definição dos criminosos.
O mais famoso tipo de delinquente categorizado por Lombroso foi o “criminoso nato”.
A terminologia, na verdade, foi cunhada por Ferri em 1880 e incorporada pela Escola Positiva
para designar o ser atávico, fruto de uma regressão na evolução natural das espécies, marcado
por uma série de estigmas, de anomalias físicas e orgânicas, que denunciam sua degeneração,
muitas vezes produto de transmissão hereditária. Suas particularidades psicológicas remetem
aos seres inferiores na escala evolutiva, impedidos de se desenvolverem afetiva e
intelectualmente por força de sua anatomia cerebral, com a qual se conforma seu crânio e que
espelha seu aspecto fisionômico
56
.
Lombroso estabeleceu, então, comparações entre as ações deste delinquente e aquelas
que marcaram os seres “inferiores”, os primatas, outros animais e até vegetais. Nas
comparações entre o comportamento humano e outros seres vivos, portanto, entende que o
delito é um fenômeno natural também entre as plantas:
Eu cito em detalhes esses fatos [sobre plantas carnívoras] onde acredito entrever o primeiro
esboço do crime; porque, se não se conhecesse sua dependência absoluta das condições
histológicas, poderíamos supor aqui a premeditação, a armadilha, o assassinato por cupidez e
mesmo, até certo ponto, esta liberdade de escolha (recusa de insetos muito pequenos e de
56
Darmon complementa: “Nesta vasta perspectiva, o criminoso nato, que começava a ser chamado também de ‘criminoso
instintivo’, seria então um ‘subproduto’ do atavismo, o funesto fruto de uma espécie de seleção às avessas, um monstro
híbrido aparentado ao homem e ao animal, portador de estigmas regressivos cujas raízes estariam perdidas num passado
longínquo e obscuro. A tendência criminal, os instintos sanguinários e anti-sociais desse homem das cavernas, desse fóssil
vivo perdido no mundo civilizado, seriam outro tanto de reminiscências, de restos de uma organização ancestral imperfeita,
ela mesma tributária de atavismos animais” (idem, 1991: 52).
66
materiais não azotados) onde muitos teóricos do Direito atrevem-se, erroneamente, a ver a
base da responsabilidade (LOMBROSO, 2001: 50).
Em algumas sociedades industriais do mundo zoológico, ele reconhece o instinto
criminal pronunciado na formiga, na abelha e no elefante. Mesmo nas espécies mais dóceis,
Lombroso destaca a estrutura orgânica como sintomática da ferocidade, que é visível nos
“criminosos” [bichos] nascidos com anomalias do crânio, por modificações congênitas do
cérebro. Tais anomalias, quando acentuadas, não deixam dúvidas ao veterinário de que os
maus instintos decorrem de uma organização viciosa do cérebro, como em certas raças
equinas:
Esta ferocidade, mesmo não provocada, que reproduz entre os animais domésticos o tipo de
maldade brutal dos delinquentes, pode muito bem se explicar pela reprodução das
tendências atávicas (como entre os cães que se ligam ao lobo), por um efeito de condições
orgânicas do cérebro, como se encontra evidentemente nos cavalos nez busqué. E então, que
diferença pode haver entre esses atos e os assassinatos que as Rossolis e as Dionéias
cometem por causa de sua estrutura orgânica?
Como não concluir que, desde sua primeira manifestação, o crime está ligado às condições
orgânicas das quais é efeito direto? (idem, ibidem: 67).
Assim, estabelecendo analogia com os crimes dos homens, chama a atenção para a
semelhança pela individualidade dos atos, pelo prejuízo causado por esses atos à espécie ou
ao próprio indivíduo, pela forma do delito como nas predisposições ou tendências e pelas
causas como a vingança, o amor, o álcool ou a hereditariedade.
Entre os primitivos, o delito não era a exceção, mas a regra. A falta de normas e de
padrões morais na pré-história admitiria condutas que, hoje, são rotuladas como criminosas,
religiosa ou socialmente reprováveis pela cultura ocidental, como o incesto, a poligamia, o
aborto, o infanticídio. Essa ausência do senso moral entre os primitivos, que nas sociedades
civilizadas se verifica entre os indivíduos normais, seria a marca da inferioridade e da falta de
desenvolvimento daqueles. O fio condutor de sua teoria passa, portanto, pela noção do
atavismo (do latim atavus, ancestral, tataravô; avus, avô), como reversão ao primitivo,
subtipo humano com características morfológicas e com mentalidade dos selvagens não
adaptados à civilização moderna.
Morfologicamente, o delinquente nato apresenta particularidades físicas que lhe
rendem fisionomia e anatomia peculiares. Além do formato do crânio e do peso do cérebro
(dos quais se falará com mais detalhes em ponto abaixo), as orelhas de abano, os cabelos
fartos e grande mandíbula, dentre outros, eram fortes sinais atávicos:
Em formas análogas e em iguais proporções às dos selvagens, nos é dado notar outras
alterações atávicas, sobretudo da face e da base do crânio: sinos frontais enormes, fronte
fugidia, fossa occipital média, soldura do atlas, aspecto viril dos crânios de mulheres, dupla
face articular do côndilo occipital, achatamento do palatino, osso epactal, órbitas volumosas
e oblíquas. Tais lesões, que variam de 2 a 58%, encontram-se reunidas num mesmo
67
indivíduo, de modo a formar um tipo, na proporção de 43%
57
. Isoladas, num mesmo
indivíduo, atingem 21%. Aparecem mais raramente entre as mulheres, onde quase não se
encontram fossas occipitais médias nem plagiocefalias.
O cérebro sofre tais anomalias em ordem análoga: apresenta, em geral, um volume inferior à
regra normal, salvo um pequeno número de casos de hipertrofia; as circunvoluções oferecem
frequentes anomalias atávicas, como a separação da cissura calcária do occipital, a formação
de um opérculo do lobo occipital, o vermis conformado como no lóbulo médio dos pássaros
e desvios absolutamente atípicos, como sulcos transversais do bulo frontal (LOMBROSO,
2001: 287).
Psiquicamente, esse tipo humano, por seu atavismo, teria uma personalidade egoísta e
cínica. Por não compreender a anormalidade, a amoralidade e a injustiça de suas ações, é
privado de sensibilidade moral, de remorso, de piedade, de compaixão, de pudor, freios
ineficientes diante dos instintos cruéis do homem primitivo. Quando presentes afeições
nobres com relação à sua vítima, é sempre de forma impetuosa, instável e mórbida, o que
poderia caracterizar os crimes passionais. Por isso, é capaz de matar ou de morrer, com a
mesma facilidade, característica que, na visão de Lombroso, explicaria o grande percentual de
suicídios. No entanto, o criminoso não é desprovido de vaidade, nem da vaidade do seu
delito, sentimento correlato à vingança: “a inclinação à vingança, pelas menores causas, é a
consequencia natural de uma vaidade tão desmesurada, de um sentimento tão exagerado, de
valor pessoal” (idem, ibidem: 387). Outras tendências são citadas pelo médico, como a
paixão por bebidas alcoólicas, pelo jogo, pelo tabaco, pela lascívia, e até pela comida e pela
dança, ou a preguiça própria dos selvagens.
O fato de Lombroso ter traçado perfis dos delinquentes pela análise dos presos
induziu, simultaneamente, a ação policial sobre aqueles que se encaixavam nos tipos, ou seja,
“na realidade, as categorias se retroalimentavam, pois eram concebidas com base nas
pessoas efetivamente detidas e seus aspectos justificavam que aqueles eram os ‘tipos’ que
tinham de ser detidos” (ANITUA, 2007: 305).
Somada ao atavismo, a teoria da degenerescência incluiu uma condição de
hereditariedade mórbida ao criminoso e ao seu processo de involução. Ao lado da fisionomia
e da frenologia, a concepção de degeneração envolvia a revelação do caráter (a)moral pela
conformação externa, composta de um complexo conjunto de caracteres.
Explicada a teoria do criminoso nato, Lombroso, na segunda edição de O Homem
Delinquente (1878), parte para a diferenciação entre este e o criminoso passional
58
e, a partir
desta publicação, vê-se a inclusão dos fatores climáticos, raciais, regionais, na etiologia do
57
Em Crime, suas Causas e Remédios, Lombroso considerava uma proporção menor, de “33% de características específicas
que quase sempre são atávicas” (1968: 365).
58
Antonini esclarece que psicológica e fisiologicamente, deve-se distinguir os criminosos em delinquente nato e por paixão:
“o primeiro identificado com o louco e com o delinquente epiléptico dá, como variedade antropológica, o delinquente
alienado, o segundo, o delinquente de ocasião. O delinquente habitual é um ponto de união entre o primeiro e o segundo
tipo” (idem, 1900: 9).
68
crime. O clima quente favoreceria delitos contra a pessoa, como as lesões, os homicídios e os
estupros, enquanto o frio, crimes contra a propriedade. No tocante ao exame dos crânios,
ampliou de 832 para 1279
59
a citação aos indivíduos analisados por ele e por colegas para
confirmar suas conclusões sobre a correspondência entre o formato anatômico, a
craniometria, e a personalidade criminosa. A hereditariedade permanece como forte
argumento dentro dessa doutrina. O trabalho de Richard Louis Dugdale, publicado em 1877,
por exemplo, é citado por Lombroso como prova do determinismo biológico. Este trabalho,
intitulado Os Jukes: um Estudo sobre Delito, Miséria, Doença e Herança, foi o resultado de
um estudo maior sobre a penitenciária de Nova Iorque, no qual foram recolhidos dados sobre
um grande número de presos da mesma família Juke, concluindo pela criminalidade herdada
do pai alcoólatra e da mãe prostituta: “o maior número de criminosos vem de criminosos, ou
de alcoólatras ou de tísicos, etc. e retornam todos à degenerescência sob outro nome”
(LOMBROSO, 2001: 37).
A loucura moral, que havia sido mencionada desde a primeira edição porém não tão
relevantemente, se tornou um conceito chave na terceira edição, de 1884. Nesta oportunidade,
Lombroso distinguiu com mais firmeza o delinquente nato daquele de ocasião, bem como o
criminoso louco do alcoólatra, da histérica e do “mattoide” (“meio-louco”)
60
, além de
acrescentar novos dados aos estudos anatômicos e de iniciar os estudos fisiológicos das
anomalias da sensibilidade.
Na síntese de Mayrink da Costa (1989: 194-5 e 199), a descrição lombrosiana do
criminoso nato, em 1887, estabelecia características diferenciais de ordem psíquica, moral,
bem como de ordem intelectual: 1) o criminoso, propriamente dito, é nato; 2) é idêntico ao
louco moral; 3) apresenta base epiléptica; 4) é constituído por um conjunto de anomalias, é
um tipo especialmente diferente.
A quarta edição do L’Uomo Delinquente, em 1889, se dedicava, no primeiro
volume, ao “delinquente nato e pazzo morale” e, no segundo, ao “delinquente epilettico,
d’impeto, pazzo, criminaloide”. Aqui, foi incluída a categoria do criminoso ocasional, o qual
se caracterizava por uma deficiência de senso moral, cuja constituição, em conjunto com as
circunstâncias externas, favorece ao aparecimento tardio da conduta delituosa. A presença ou
ausência de precocidade e de reincidência, pois, servem como critérios de distinção entre as
classes dos criminosos.
59
Mais tarde, a craniologia publicada por Lombroso se apoiou em medições de 350 cadáveres e de 5.907 criminosos vivos
estudados por ele e outros pesquisadores como Ferri, Corre, Ottolenghi e Lacassagne.
60
A inclusão dessas categorias tornou mais marcante a tendência de, a partir da terceira edição, “psicologizar o desvio”,
como disse Villa (1985).
69
Na quinta e última edição, de 1897, o “criminoso ocasional” de Ferri é incluído na
classificação de Lombroso e passa a se desdobrar nos grupos díspares do pseudocriminoso, do
criminalóide e do habitual. A organização da obra demonstra que Lombroso, ao longo do
tempo, foi recepcionando cada vez mais os fatores ambientais e sociais, como evidenciam os
títulos dedicados à Política Criminal, à Densidade Urbana e à Religião. E na publicação de
seu O Crime: Causas e Remédios (edição francesa de 1906), fez referência também à
imprensa, à imigração, à orfandade, à geologia, dentre outras.
Sobre a sustentação de Lombroso quanto ao tipo diferente de humano, William Noyes,
em Journal of Social Science no. 24 de abril de 1888, lhe dava o crédito de ter conseguido
reduzir a um sistema o conhecimento sobre o tipo criminoso, um sistema traduzido e
organizado em inúmeras páginas de um tratado científico moderno: “nos foi dada a
embriologia do crime, a história natural do criminoso, as peculiaridades anatômicas e
fisiológicas, o modo de vida, os sentimentos, as paixões, a moralidade, a religião, a
inteligência, a linguagem, a literatura, a escrita e o discurso; a psicologia de fato de uma
classe altamente distinta e individualizada” (NOYES, 1888: 32).
1.3.2.2 O CRÂNIO E O CÉREBRO (DO) CRIMINOSO PARA LOMBROSO E
OUTROS AUTORES
Com as referências do materialismo, do fisicalismo e do localizacionismo, Lombroso
aprofundou suas investigações antropológicas de prisioneiros a partir do que supôs encontrar
ao examinar o crânio do criminoso Villella. Na verdade, bem antes disso, já havia
demonstrado interesse no estudo do cérebro como no acima comentado texto de 1853
mas, foi efetivamente com Esistenza di una Fossetta Cerebellare Mediana nel Cranio di un
Delinquente (1871) e Antropometria di 400 Delinquenti Veneti (1872) que Lombroso, ao se
indagar sobre a formação da identidade desviante, seguiu sua busca nos cérebros na tentativa
de estabelecer um padrão de correspondência anatômica entre os delinquentes como uma
possível resposta etiológica para a criminalidade. Uma série de dados sobre o crânio, o
cérebro e traços psicopatológicos dos presos coletados nesse período transparecem a forte
convicção de que a resposta para o comportamento anti-social estava na cabeça. Reavivando a
questão de Gall e de outros autores, Lombroso se pergunta se existiria algo como um “cérebro
criminoso”.
70
No primeiro texto, Lombroso descreve a descoberta de uma fissura occipital média,
típica dos símios, no crânio de Villella
61
. Este criminoso condenado três vezes por furto e
uma por incêndio, era um homem de 69 anos, alto, de pele escura, com caráter hipócrita,
astuto e taciturno, sem agilidade muscular extraordinária, nem ferocidade ou espírito de
vingança, que morreu tísico, de escorbuto e tifo. Suas particularidades cranianas formam um
dolicocéfalo, com suturas não soldadas, que não diferenciam muito na forma e na capacidade
em geral dos calabreses, mas sim nos senos frontais, no arco supraciliar, na atrofia cerebral e
nas graves anomalias: 1º.) a fusão congênita do atlas (com arcos anterior e posterior
atrofiados e rudimentares) com a parte correspondente ao occipital; 2º.) a ausência da
occipital interna, cujo espaço é convertido em uma longa, larga e profunda cavidade. Neste
texto ainda, Lombroso, demonstrando conhecimento dos postulados frenológicos, contesta a
hipótese de localização do apetite sexual (l’appetito venereo”) no lobo mediano e no
apêndice “vermicolare”, uma vez que Villella não possuía exagerado desejo libidinoso.
Como era de se esperar, em sua maior obra Lombroso retoma as observações sobre
Villella:
A fosseta occipital limita-se dos dois lados por saliências ósseas que se dirigem primeiro,
paralelamente, figurando um trapézio e terminando próxima à cavidade occipital por um
pequeno promontório triangular. Tais fatos e outros nos permitem concluir que se configura,
aqui, uma verdadeira hipertrofia do vermis, um verdadeiro cerebelo médio, de sorte que este
órgão descenderia daquele dos altos primatas, ao nível dos roedores, dos lemurianos, ou bem
do homem entre o terceiro e o quarto meses de sua vida fetal (idem, 2001: 195-6).
No segundo trabalho, que contou com a colaboração de dois médicos da Penitenciária
de Pádova, os Drs. Pellizzari e Berretta os quais, segundo Lombroso, sabem bem a missão
do médico carcerário, que deve ser também “o antropólogo desta espécie nova e infeliz de
homens que são chamados de delinquentes” (LOMBROSO, 1872: 574) –, Lombroso relata os
dados antropométricos colhidos. Maiores alturas, maiores pesos, maiores medidas toráxicas e
maior robustez geral do corpo são atributos dos condenados por homicídio, que Lombroso
interpreta como características inerentes a estes grupos por acreditar que a força física
garantiria a obtenção do intento criminoso. Índices corporais menores são encontrados entre
os furtadores, cuja conduta delituosa não pressupõe desenvolvimento físico avantajado, aliás
“a falta de força e de saúde deve ser um incentivo ao furto, não permitindo um trabalho
longo e contínuo” (idem, ibidem: 575).
Lombroso continuou concentrando suas forças na antropometria e, especialmente, na
craniometria dos presos. Dois anos depois do estudo sobre 400 delinquentes, o médico
61
Mary Gibson desconfia que Lombroso “fabricou, ou ao menos ornamentou, a história do crânio de Villella, a fim de
montar um evento de descoberta dramática para a sua nova disciplina da antropologia criminal” (2006: 139).
71
publicou Antropometria di 832 Delinquenti Italiani, dando ainda maior ênfase à relação entre
as medidas e a origem regional dos analisados.
Em O Homem Delinquente, o autor divulga um estudo comparativo entre crânios de
121 criminosos italianos e de 328 italianos em “estado normal”. Dentre os números
apresentados, nas capacidades cranianas mínimas (de 1.101 a 1.200), os criminosos superam
os “honestos”, sendo poucos os que possuem capacidade muito grande. Como regra geral,
conclui que uma das características do criminoso é o pequeno crânio e, por isso, acreditou que
o estudo da microcefalia poderia contribuir significativamente para a Ciência
62
.
Quando, excepcionalmente, o crânio apresenta grande capacidade, tal se deve à
hidrocefalia (crânio volumoso, arredondado em cima e estreito na base) ou à inteligência bem
desenvolvida (em geral, “os chefes de bandidos”, os falsários”, “célebres escroques” ou
ainda “a aristocracia do crime”). Medindo as circunferências e semi-circunferências de 93
criminosos estudados por Lombroso, 76 apresentaram a curva pré-auricular menor do que a
posterior, confirmando a característica relativa à estreiteza da fronte.
Fazendo menção ao índice cefálico, vêem-se em maior número os braquicéfalos
63
, nos
quais este índice é de pelo menos 90
o
e, em menor, os mesocéfalos (índice entre 76 e 80,9) e
os dolicocéfalos (índice inferior a 75).
Lombroso advoga claramente que a junção de várias características anômalas nos diz
mais do que a existência de uma ou outra anomalia isolada. É, portanto, o conjunto de
caracteres que nos dá a convicção de um tipo criminoso.
Em todo caso, demonstra atenção constante às assimetrias cranianas e faciais. Em
alguns croquis feitos por Dr. Vans Clarke, diretor da prisão Woking, publicados no livro de
Ellis (1890) em seis quadros diferentes e resumidos por Lombroso em duas pranchas, temos
exemplos dos conjuntos de anomalias degenerativas:
62
Ver “Tre Casi di Microcefalia” in Rendiconti, 1871.
63
Os tradutores brasileiros de O Homem Delinquente (2001) trazem a seguinte nota (n. 3), na p. 138: “Braquicefalia em que
o índice cefálico é de pelo menos 90
o
. Vale dizer que a braquicefalia como tal implica na conformação do crânio
caracterizada pelo índice cefálico acima de 80
o
. e com largura superior a 80% do comprimento. Logo, para índices
superiores a 90
o
., diz-se haver ultrabraquicefalia”.
72
Deformações de crânio (prancha I, 2, 3; prancha II, 1, 2, 5 e 6), platicéfalos (prancha I, 1, 3, 5; prancha II, 1, 5), sinos frontais
cheios (prancha I, 1, 3, 5; prancha II, 2, 5, 6), enormes mandíbulas prognatas (prancha I, 1, 2, 3) ou oblíquas (4), zigomas
salientes, orelhas enormes e deformadas (prancha I, 2, 3, 5; prancha II, 2, 6), cabeça pequena em relação ao rosto enorme
(prancha I, 1, 2; prancha II, 1, 2, 5, 6) (Lombroso, 2001: 272-4).
A dificuldade de concentrar todas as respostas no atavismo especialmente quanto à
frequente obliquidade do crânio e da face, quanto à fusão e a soldura do atlas com o occipital,
quanto à plagiocefalia, quanto à esclerose exagerada propulsionou a busca de outras
condições patológicas do delito. Lombroso suspeitou que tais anomalias seriam provenientes
de um erro no desenvolvimento do crânio fetal ou provenientes de doenças desenvolvidas no
sistema nervoso. Foi nesse contexto que o caso do jovem soldado Misdea, de vinte e um anos,
que matou oito de seus oficiais superiores, levou Lombroso a desembocar na epilepsia.
No prefácio que escreveu à quinta edição italiana de O Homem Delinquente, o médico
mostra que, além dos caracteres atávicos, existem os adquiridos e os completamente
patológicos: “acrescentem-se as meningites, os amolecimentos do cérebro que não provém,
certamente, de atavismo” (LOMBROSO, 2001: 25).
Vários outros autores publicaram estudos sobre o crânio, sobre o cérebro e sobre
patologias causadoras do comportamento delinquente. Noyes nos informa de um pesquisa
realizada por uma médica russa com cinquenta prostitutas habituais e cinquenta mulheres não
prostitutas com, aproximadamente, a mesma idade. Dr. Prascovia N. Tarnovskaia apresentou
seus resultados no I Congresso de Alienistas Russos, em 1887, pelos quais concluía que em
torno de oitenta e quatro por cento das prostitutas possuíam vários sinais de degeneração física,
73
tais como as irregularidades do formato do crânio, e tais dados lhe permitiam crer que as
prostitutas, como classe, são as que apresentam maior predisposição a afecções nervosas e
mentais (NOYES, 1888: 40).
Em seu The Science of Crime, de 1892, MacDonald demonstra concordar com a tese de
que as assimetrias cranianas indicam tendência à degeneração da mente e com as observações
do francês Dr. Corre sobre os sinais de degeneração colhidos de estudos em criminosos, dentre
eles: frequente persistência da sutura média frontal, frequência dos ossos “Wormian” e
depressões da protuberância intermediária (idem, ibidem: 83).
Opiniões sobre o crânio do (possível) criminoso eram proferidas também, sem muito
rigor técnico, por quem se aventurava em fazer diagnósticos sobre seu aspecto físico. Enquanto
a análise do cérebro dependia de conhecimentos mais apurados, sobre medicina e neurologia, a
avaliação do tamanho, forma e contorno da cabeça era mais facilmente realizada por
“qualquer um que tivesse olhos para enxergar” (FINK, 1984: 114).
Evidentemente, implicava-se uma correlação entre os estudos do cérebro e do crânio,
incluindo a recorrente controvérsia sobre qual deles conferiria a forma e as dimensões ao
outro. À la Gall, poderia se sustentar que a causa da assimetria craniana se verifica no super ou
subdesenvolvimento de certas áreas cerebrais. Então, a propensão a encontrar as respostas para
o comportamento criminoso nas particularidades anatômicas e fisiológicas levou alguns
autores a se dedicarem ao estudo experimental do cérebro. Afinal, aqui estariam localizados os
estigmas da hereditariedade, da degenerescência, do atavismo que explicariam a anulação ou
atenuação dos processos intelectuais e cognitivos mais complexos. É a pergunta de Lombroso:
É possível que os indivíduos atingidos por tão grande número de alterações tenham o mesmo
grau de inteligência e os mesmos sentimentos que os homens de crânio normal? E note-se que
tais alterações cranianas são apenas as mais visíveis modificações do centro intelectual,
alterações de volume e de forma (idem, 2001: 198).
Aliás, de muitas questões pouco respondidas são feitas as obras lombrosianas. O
excesso de dados, estatísticas, referências a outras pesquisas
64
encobre, de certa forma, um
compromisso com os desdobramentos conclusivos que se espera de uma nova teoria. Nas
análises dos cérebros, o autor também se desdobra em atenção aos resultados de mensuração
obtidos em seus estudos e de seus colegas sem se comprometer com conclusões que poderiam
ser precipitadas. Como ele próprio diz, “seria muito audacioso concluir que encontramos,
64
“Numa obra cheia de contra-sensos e disparates, são representados os mesmos crânios estudados por diversos autores,
esquemas e gráficos são inseridos sem comentário, os princípios fundamentais do método antropológico são aviltados
quando séries de crânios são fotografadas sem o cuidado de dar-lhes a mesma orientação”, concorda Darmon (1991, 93).
74
enfim, com certeza, as anomalias específicas das circunvoluções cerebrais dos criminosos”
(LOMBROSO, 2001: 206).
Chegou-se igualmente a certa ponderação sobre o desequilíbrio dos hemisférios
cerebrais, sendo predominante o lado direito nos delinquentes: “É provável que o criminoso
trabalhe mais com o lado direito do cérebro e o homem normal, com o esquerdo” (idem,
ibidem: 361). Resultado disso poderia ser, inclusive, a analgesia física a ser estudada pelo
método de algometria inventado por Lombroso, com o aparelho Du Bois-Reymond, com
descarga elétrica no dorso da mão –, a insensibilidade moral e o mancinismo, afinal “quando o
povo desconfia de um canhoto e o trata como um homem sinistro o faz mais do que
exagerar e generalizar um fato verdadeiro no fundo e que uma longa observação pode
fazer conhecer e confirmar” (idem, ibidem: 361).
Entre 1894 e 1900, Lombroso também se engajou nas pesquisas sobre as estruturas
cerebrais microscópicas. Considerando que a responsabilidade está ligada ao funcionamento
do cérebro, o médico se interessou em esmiuçar a ação psicoquímica das células cerebrais.
As peculiaridades atávicas dos criminosos presentes em seus cérebros impediriam,
pois, o desenvolvimento do processo mental de inibição das condutas socialmente
indesejadas
65
. Assim, os estudos dos cérebros dos criminosos seguiram duas principais linhas
que, coordenadas por Lombroso e por Benedikt, se dedicaram mais à análise das anomalias
relacionadas aos primatas e às fissuras e sulcos pelas quais a superfície do cérebro humano é
dividida. As circunvoluções dos cérebros estudados demonstraram, segundo os pesquisadores,
que o cérebro humano, em geral, é uma espécie de cérebro evoluído dos primatas, exceto o
cérebro dos criminosos, em que as semelhanças com os dos macacos são mais fortemente
marcadas.
Os delinquentes, logo, seriam possuidores de uma personalidade “primatoid”. Seus
cérebros denunciariam, então, a incapacidade inata de um desenvolvimento humano completo,
sendo impossível a eles atingirem o estágio avançado dos indivíduos normais de uma raça
civilizada
66
.
Também Kurella se debruça sobre os cérebros e cita interessantes descobertas de
Roncoroni publicadas em La Fine Morfologia del Cervello degli Epilettici e dei Delinquenti,
depois confirmadas por Pelizzi em Idiozia ed Epilessia (1900), sobre as características de
65
“No crânio do delinquente não há lugar para um cérebro capaz de abranger os sentimentos (ou, fisiologicamente falando,
um aparato inibidor) necessários para induzir ao comportamento social normal” (KURELLA, 1911: 42).
66
Kurella (1911) traz várias passagens emblemáticas da crença antropológica. Na p. 46, divertidamente irônico, alertou para
o fato de que as características do tipo criminoso, no âmbito da valoração social e legal que este mesmo faz dos valores, não
retiram sua convicção de ser um superhomem (“in the light of his own peculiar valuation of social and legal value, is apt to
be firmly convinced that his is a superman”).
75
certas células do córtex cerebral dos criminosos
67
. Menciona, ainda, particularidades cerebrais
desvendadas, porém não explicáveis em 1893, quando da publicação de seu Natural History of
the Criminal, que ele descreveu como atípicas (idem, 1911: 45).
Sobre os levantamentos de Kurella, cabe acrescentar seu trabalho de comparação entre
oitocentos casos, selecionados entre os cinco mil casos descritos na literatura por Lombroso e
seus colaboradores, e os que ele próprio estudou nas prisões de Upper Silesia. Desse quadro
comparativo, os números mais expressivos indicavam a existência de o menos que sessenta
por cento de portadores de predisposição congênita anormal, noventa e oito por cento com ao
menos uma característica “cerebrogenous” e cem por cento com características “primatoid”
(idem, ibidem: 54).
Charles K. Mills e Benedikt concordam que existem tipos diferentes de cérebros, os
normais (“normal separated-fissure type”) e os confluentes (“confluent-fissure type”). De
acordo com as pesquisas deste último psiquiatra, em dezenove cérebros de criminosos, foram
encontradas deficiências de substância e confluência das três mais importantes fissuras, a
central (“sulcus centralis”), a terceira frontal (“sulcus frontalis perpendicularis”) e a parietal
(“sulcus interparietalis”), tendendo a unir com a “Sylvian”. Nas suas conclusões, os cérebros
examinados apresentavam conformação relativamente simples, como os dos negros e de outras
raças primitivas. Mills, em março de 1882, publicou no Medical Bulletin (vol. IV), um estudo
sobre cérebros de criminosos, incluindo observações sobre o cérebro de Guiteau
68
, o qual seria
enquadrado no tipo de fissuras confluentes.
Noyes também chama atenção para irregularidades cerebrais, destacando a maior
ocorrência quanto à inferioridade do volume e quanto às circunvoluções atávicas. Estas
apresentariam anomalias na separação de algumas fissuras, na formação de um “operculus” do
lobo occipital e peculiaridades atípicas do lobo frontal (1888: 39).
Em 04 de março de 1905, a New York Times publicou matéria sobre Dr. Spitzka
intitulada Looking for the Face within the Face” in Man, na qual ele diz No such thing as a
‘Criminal Brain Type’”, incluindo ilustrações
67
Lombroso também faz referência às anomalias histológicas encontradas por Roncoroni: “a ausência frequente de estratos
granulares e a presença de células nervosas na matéria branca e imensas células piramidais” (idem, 1968: 368).
68
Veremos o caso Guiteau mais adiante.
76
O médico Edward Anthony Spitzka, filho do notório alienista Dr. E. C. Spitzka, não era
fiel seguidor das ideias de Lombroso. Na matéria, ele diz literalmente que “das amostras dos
cérebros de dezessete homicidas que eu estudei, alguns dos quais estão nas jarras que você
está vendo, eu não fui capaz de encontrar um que mostrasse algo anormal ou que pudesse ser
considerado de uma maneira que corroborasse o tipo de cérebro criminoso”. No entanto,
Spitzka também parte de um localizacionismo atualizado e da certeza de que as pessoas com
mais inteligência e criatividade possuem cérebros maiores, mais pesados e com circunvoluções
mais complexas. As pesquisas sobre os cérebros de acordo com a raça e o sexo poderiam
ajudar a descobrir as características de uma fisionomia cerebral (“cerebral physiognomy”).
Nas palavras dele
A ideia de que calombos ou depressões na cabeça de um homem indicam a presença ou a
ausência de certas características morais em seu equipamento mental é um dos absurdos
desenvolvidos pelos estudos nesse campo que vem sendo descartado pela ciência. As idéias
do frenologista Gall, apesar de parecerem ridículas agora à luz de um século de progresso,
foram entretanto destinadas a serem transformadas dentro dos princípios modernos da
localização cerebral. Isso é já uma doutrina firmemente estabelecida, ampliada e sistematizada
77
pelas contribuições vindas de muitas fontes, e muitos resultados importantes devem ser
esperados dos estudos dos cérebros de várias raças, sexos e indivíduos, com traços mentais
marcantes. (...) Existe uma fisionomia do cérebro que retrata a intelectualidade quase tanto
quanto a fisionomia exterior (...) (SPITZKA, 1906).
Além dos autores supracitados, a estreita associação feita por G. Frank Lydston entre
uma degradação do desenvolvimento a partir de um tipo normal médio e a neuropatia (essência
da degenerescência) também parece bem apropriada à explicação da onda oitocentista sobre “o
delito no cérebro” e deste como a causa fundamental da maioria dos crimes.
1.3.2.3 – LIVRE ARBÍTRIO E RESPONSABILIDADE
Historicamente, a noção de livre arbítrio e a de responsabilização daquele que vem agir
na conformidade de seus desejos e vontades encontram recepção nas correntes filosóficas da
criminologia desde o iluminismo. No entanto, a antropologia criminal, contextualizada no
paradigma etiológico da medicina moderna, exclui o livre arbítrio deste paradigma, rotulando-
o como categoria metafísica e ilusória: Os roubos crescem em tempo de penúria; as
violações, em anos bons. Mas o que é que isso prova em favor do livre arbítrio? Se a vontade
humana varia segundo as ocasiões, não é ela, evidentemente, escrava?” (LOMBROSO, 2001:
38).
O olhar de um médico, de um fisicalista ou de um biólogo sobre a conduta delituosa em
geral a insere no gênero do comportamento humano mecanicamente compreendido e
organicamente naturalizado. Desse ponto de vista, é apenas mais uma forma de
comportamento criminoso, é uma forma de comportamento que serve aos propósitos do
organismo. Consequentemente, o livre arbítrio não se compatibilizava com outras ciências,
senão as do espírito, não devendo ser a base de sustentação de uma ciência que exige o
conhecimento empírico do homem, da sua forma de agir e de pensar.
Criticando seus adversários, os quais reclamavam a fundação da Criminologia por
pensadores do Direito, Lombroso alerta para o erro que cometiam ao tentarem afastar a
medicina sem perceber a “ditadura” da metafísica:
enquanto os mesmos críticos protestam contra toda tentativa feita para suprimir o perigo de
legislar sem haver estudado o homem e sem conhecê-lo e isso unicamente por horror a uma
aliança com uma ciência estranha – vemos a parte deles suportar, mesmo procurar, não apenas
uma aliança, mas a ditadura de uma ciência alheia ao Direito e talvez alheia ainda a todas as
outras ciências: vou falar da metafísica (idem, ibidem: 28).
No predomínio dessas referências biológicas, associadas às também paradigmáticas
premissas das ciências físicas, as explicações da dogmática jurídico-penal assumem a mesma
78
perspectiva. Os criminalistas também se deixaram seduzir pelos criminólogos positivistas e
uma emblemática obra dessa tentativa de aproximação de ambos, o Tratado de Direito Penal
Alemão de Franz von Liszt, traz a “ciência total do direito penal”, compreendida pela parte
dogmática (ou jurídica), científica (ou criminológica) e política-cultural (ou valorativa).
A ação humana, base do comportamento delinquente, consistia na representação de um
movimento corpóreo. A conduta é traduzida pela manifestação do corpo, o qual, através de
seus componentes (cérebro, nervos, músculos etc.), realiza uma força física capaz de produzir
um evento externo, uma modificação no mundo exterior. A conduta, portanto, reúne em sua
definição, elementos de ordem físico-natural. A sua apreciação, dentro dessa esfera biológica,
se contenta com uma explicação puramente mecânica do funcionamento corporal e seus
efeitos, prescindindo de um diagnóstico valorativo. Por ser da constituição física da pessoa
humana e independente, pois, de eventuais finalidades, sua neutralidade afasta qualquer juízo
de valor. Mesmo à vontade de realizá-la se reservava um lugar de impulso para a
movimentação corpórea, de estímulo para que o cérebro, então, desencadeasse o processo
necessário para o corpo sair da inércia.
Se a conduta, assim, é algo inerente ao sujeito, intrínseco ao ser humano, quando
passaria a ter relevância penal? No momento em que o agente, com sua manifestação física,
provoca um resultado concreto, visível, perceptível e juridicamente inadmissível, ingressa na
órbita criminal. Vê-se, com isso que, para a teoria causalista, a ação humana exprime
interesse para a intervenção do direito penal quando ocorre um resultado material e quando se
estabelecer, entre ela e o evento por ela produzido, uma relação de causa e efeito. Daí o nome:
causalismo.
Concebida por von Liszt, Ernst Beling e Radbruch, influenciados pela filosofia da
época, a teoria causalista da ação estruturou, portanto, o conceito de crime nessas referências
naturais e causais. Por ter, a conduta, uma apreciação objetiva, material, e pela condição dela
pertencer ao primeiro caractere do crime, que é o fato típico, qualquer análise relativa à
subjetividade, isto é, à relação psíquica no processo interno de ligação entre o agente e o ato
por ele praticado, residiria somente no plano da culpabilidade. Por isso, nessa primeira fase do
causalismo
69
, dolo e culpa constituem espécies deste terceiro caractere do delito, cujo
pressuposto era a imputabilidade.
69
Críticas, entretanto, não tardaram a vir. Inicialmente, se a conduta só se torna penalmente relevante, para a teoria ora em
estudo, se produzisse um resultado, os casos de tentativa careciam de explicação: como justificar a punição quando o delito
não se consuma por circunstâncias alheias a vontade do agente, não provocando, assim, efeito naturalístico algum? Como nos
ensina Bitencourt, “com o reconhecimento de que na tentativa o dolo é um elemento subjetivo do injusto, desintegrou-se o
sistema clássico, que se fundava nessa distinção básica entre causal-objetivo e anímico-subjetivo (idem, 2006: 272). Em
segundo lugar, o sistema causal não poderia ser acolhido nos casos de omissão, já que o não-fazer, não acarretando um
79
Ainda que tal noção de conduta pudesse promover certo contra-senso com as teorias
sobre a moral, a idéia de que as particularidades biológicas eram determinantes do
comportamento também sustentava uma igualdade puramente formal que não contradizia, ao
contrário, permitia a ação individualizadora da repressão conforme as características físicas do
indivíduo.
Assim, na nossa tradição individualista e na cultura liberal urbana autorizadora de
todos os comportamentos não vedados por lei, impunha-se ao agente a responsabilidade por
seus atos, livremente desejados. O problema se coloca, todavia, quando o ato é influenciado
ou determinado por sua particularidade biológica, posto que a discussão, no primeiro
momento em torno da liberdade ou não de ação, envolve consequentemente a pergunta
posterior sobre a punição ou não do agente. Em outras palavras, se houver o reconhecimento
de anomalias mentais, ao agente pode ser imputada alguma pena? Em caso negativo, alguma
outra espécie de cerceamento poderia se instituído? Em que caso, se existir, pode o absolvido
por razões de insanidade sair em liberdade?
Desde o caso Hadfield, que a Inglaterra
70
estabeleceu o “Criminal Lunatics Act”
(1800), reconhecendo a compatibilidade entre insanidade mental e o confinamento criminal.
A pena, propriamente dita, não deveria incidir, pois se a mesma tinha a finalidade de
reprovar, retribuir e restaurar a ordem, esse não deveria ser o tratamento jurídico dado àqueles
considerados doentes (ao menos não na visão de alguns autores que defendiam a inutilidade e
até mesmo a crueldade desta espécie de sanção
71
). Não se afastaria, contudo, a aplicação de
uma medida de caráter sancionatório, pela relação com o fato definido como crime, e de
segurança, “em prol dele mesmo e de toda a sociedade”. Doentes, ainda que doentes morais,
resultado, não promovia a relação de causalidade e, assim, o próprio conceito de ação não se formava. Em terceiro lugar,
criticou-se a incoerência de se alocar, num só gênero, culpabilidade, duas espécies tão antagônicas. A contradição reside no
fato de que a culpa, especialmente aquela chamada inconsciente, em que o resultado não foi previsto pelo agente, não pode
pertencer ao aspecto psíquico da definição do delito uma vez que não há vínculo psicológico possível entre o agente e o fato
nestas circunstâncias. Como estabelecer ligação subjetiva se o sujeito nem mesmo possuía previsibilidade?
Diante da dificuldade de se responder a estas indagações, o autor alemão Edmund Mezger, sob a influência da filosofia do
neokantismo, no início do século XX, propõe uma reformulação da estrutura do delito. Apesar de manter a lógica do
causalismo – o que a atribuiu o título de teoria neoclássica – permitiu uma análise mais sistematizada da a) tipicidade,
conferindo ao tipo penal elementos normativos, e não simplesmente elementos objetivos; b) antijuridicidade, que passa a
admitir elementos subjetivos; c) culpabilidade, a qual passa a conter, como elementos: a imputabilidade, a consciência da
ilicitude – abrangendo o dolo e a culpa – e a exigibilidade de conduta diversa. Assim, ao transformar em elementos da
culpabilidade aquilo que, antes, representava suas únicas duas espécies, Mezger contribuiu para conferir ao dolo sua face
psíquica e para atribuir à culpa sua vertente normativa. Não obstante a tentativa de superação das incongruências, os
postulados causalistas exigiram revisão mais intensa. Alguns pensadores, pois, descontentes com as explicações
excessivamente fisicalistas do causalismo, se direcionaram para um estudo mais pluralístico, que não negasse o aprendizado
com as experiências das relações de causa e efeito, mas que, também, desse conta do envolvimento psicológico e das
intenções subjacentes ao próprio comportamento humano. Nascia o finalismo.
70
Para um excelente mapeamento das práticas no judiciário inglês no século XIX com relação à arguição de insanidade, ver
Weiner, Martin J. “The ‘Criminology’ of the Victorian Judiciary” in Criminals and Their Scientists. The History of
Criminology in International Perspective, org. Becker e Wetzell, Nova Iorque: Cambridge Univ. Press, 2006.
71
Smith defende, por exemplo, que, na prática, as regras McNaghten (ver 3.3 da parte 1) se apresentavam como uma forma
generosa de substituir a pena capital por confinamento indeterminado (idem, 1943: 698).
80
mereceriam terapêutica apropriada, tal como os enfermos físicos ou os infectados que são
internados em busca da cura. O prazo da internação no manicômio dependeria do tempo
necessário para restaurar a saúde, daí porque indeterminado, em princípio; ou, conforme dizia
o Ato inglês, “during His Majesty’s pleasure”.
Antonini estabelece bem quais as respostas oferecidas pela Escola Italiana, afastando a
confusão que se criou na interpretação que outros fizeram sobre as consequências da
constatação da ausência de capacidade mental. Para ele, o preconceito gerado pela
repugnância de alguns a ideias do delinquente nato, impediu-os de perceber que a Nova
Escola não pretendia atribuir liberdade à irresponsabilidade, mas a aplicação de substitutivos
penais com o sequestro indeterminado, calculado pela temibilidade do sujeito (idem, 1900:
24).
Mais uma vez, ressaltam-se as atenções voltadas para as particularidades do agente. Se
a penalidade seria aplicada não de acordo com a ofensa, mas de acordo com o ofensor, não
subsistiria tanto propósito em cominar penas dentro de limites, uma vez que seria incoerente,
com a própria lógica da doença, se predeterminar em quanto tempo se atingiria a cura. Aliás,
até mesmo se admitiria a perpetuação da internação para os “incuráveis”. Como se vê, as
longas sanções existiriam não em razão da natureza do crime em si, mas em função da
personalidade, da graduação da culpabilidade, das condições pessoais do agente. Numa pérola
de Ferri, colhida por Lombroso (1968: 386), vemos a analogia sumária
O crime é como a doença. O remédio deve ser ajustado à enfermidade. Essa é a tarefa do
antropólogo criminal, determinar em que medida isso deve ser aplicado. O que nós diríamos
de um dico que, parando na porta da enfermaria de um hospital, dissesse aos pacientes,
‘Pneumonia? Xarope de “rhubard” por 15 dias. Tifo? Xarope de “rhubard” por um mês’; e
então, ao término do período estipulado, os colocasse para fora, curados ou não?
Não longe desta linha se posiciona Austin Flint. No New York Medical Journal, de 19
de outubro de 1895, o professor de fisiologia sustenta que boas razões para tratar os
criminosos como pacientes e o crime como doença, bem como para estudar o crime nas
prisões com o mesmo espírito com que se estuda a doença no hospital e a loucura no asilo. Ao
defender a relevância do papel da medicina no tratamento científico do crime e do criminoso,
destaca as classificações positivistas e as medidas aplicáveis para cada tipo de delinquente.
Noyes radicaliza, em certo momento de seu texto, deixando transparecer sua
convicção no indispensável cerceamento de todos os direitos individuais dos intelectualmente
anômalos, pois seus erros e vícios constituem prova suficiente de que não devemos conceder-
lhe sequer o benefício da dúvida sobre sua potencialidade lesiva (idem, 1888: 42).
81
Cerceiam-se, assim, os direitos da pessoa pelo que ela é, não pelo que fez e, nesse
sentido, advogou-se a imprescindibilidade de medidas que contivessem, eficazmente, o
impulso feroz desses anormais. Dependendo, portanto, da etiqueta fixada quanto ao tipo
anormal, a punição deveria vir na proporção de sua temibilidade ou periculosidade. Lombroso
sustentava, como vimos, que o criminoso nato reclamava confinamento contínuo, que sua
natureza irremediável nos dava a certeza de que qualquer benefício concedido em favor de
sua liberdade reverteria negativamente para ele próprio e para a sociedade. com relação a
outra espécie, ele confessa:
vejo-me embaraçado por outros juristas que me censuram haver reduzido o Direito Criminal
a um capítulo da Psiquiatria e de arruinar a penalidade, o regime das prisões! Isso não é
verdade senão em parte. Para os criminosos de ocasião, conformo-me com a esfera das leis
comuns e contento-me em reclamar seu alcance a métodos preventivos. Quanto aos
criminosos natos e loucos morais, as mudanças propostas por mim não fariam senão
aumentar a segurança social, pois reclamo, para eles, uma detenção perpétua (LOMBROSO,
2001: 28).
Lombroso realmente pensou na modificação do regime das prisões, propondo
substitutivos como o confinamento domiciliar, trabalhos pesados, multas, o sistema do
“probation”, parole, instrução em reformatórios e colônias agrícolas, bem como asilos
criminais
72
próprios para os loucos criminosos e delinquentes natos (marcados por insanidade
moral ou epilepsia), tudo, pois, de acordo com a classificação atribuída ao delinquente.
Nas hipóteses de criminosos por paixão, uma multa, uma reprimenda judicial, um
afastamento da cidade ou da pessoa a quem prejudicou seria suficiente. Por serem o contraste
com o criminoso nato tanto na harmonia das linhas do corpo, na beleza da alma”, quanto
nos “motivos nobres e poderosos de seus delitos como o amor e a política” – possuem
sensibilidade emocional e, por isso, o remorso pelo crime já é enorme punição. Em certos
casos, merece atenção específica por lembrarem os epilépticos nos excessos, na
impulsividade, na falta de controle e na amnésia.
Os criminosos por ocasião, espécie não propriamente “criminosa”, mas pseudo-
delinquente que “escapa a toda conexão com o atavismo e a epilepsia”, dependendo do
motivo que o levou à prática do fato definido em lei como crime (por exemplo, furtar por
fome), pode até não sofrer sanção.
72
Lombroso resume o público-alvo desses asilos: 1º.) todos os prisioneiros que tenham se tornado loucos; 2º.) todos os
loucos que tenham tido seus processos criminais suspensos em função de sua insanidade; 3º.) todos os acusados de crimes
atrozes ou sem motivo aparente, a quem tenha se suspeitado de loucura ou de uma séria afecção mental, atestada por três
psiquiatras; 4º.) todos os que cometeram crime em estado epiléptico ou que pareça epiléptico; 5º.) todos os que são levados
ao crime por habitual e evidente fraqueza,
como alcoolismo crônico, principalmente se seus pais forem epilépticos ou
mostrarem marcas de degenerescência (1968: 423).
82
Quanto aos criminalóides, que diferem dos criminosos natos em graus, e não em
espécie, possuindo caracteres epilépticos e atávicos, podem ser concedidas medidas
suspensivas da sentença e obrigação de reparação do dano através do trabalho. Para os
reincidentes, todavia, o tratamento deve ser o mesmo atribuído aos criminosos habituais que,
por sua vez, são tratados como criminosos natos, porém com disciplina menos severa.
O extremo é a pena de morte, aplicada quando os outros mecanismos falham e os
delinquentes atentam três ou quatro vezes contra a vida de um honesto: “não resta outra
saída senão a última seleção, dolorosa mas certeira a punição capital” (LOMBROSO,
1968: 426).
As punições também deveriam variar conforme outras circunstâncias como a idade do
agente e seu sexo. Para Lombroso, a maioria das mulheres delinquentes estava na categoria
dos criminosos passionais ou por acidente, logo as penalidades poderiam se limitar a
reprimendas e sursis, exceto quando se tratasse de prostitutas (as criminosas natas) ou de
delitos graves como homicídios, em que “seria necessário confinar a agressora num
convento, onde, considerando sua grande suscetibilidade à sugestão, a religião poderia
substituir o erotismo, que é a mais frequente causa dos crimes” (idem, ibidem: 406). Outra
maneira de punir mulheres seria atingi-las em sua vaidade, cortando seu cabelo por exemplo,
ou separando-as de seus amantes quando a ação tivesse se dado por influência deste
73
.
Suplantava-se, portanto, a finalidade de reprovação da punição com o objetivo da
prevenção. O agente seria retirado do convívio social por se mostrar inadaptado. A sociedade
reagiria naturalmente à ação ofensiva (igualmente natural), segregando-o. Por isso, a sanção
reflete a intenção de autopreservação da sociedade, a qual estaria legitimada a reagir e, se a
sociedade tem o direito de reagir contra seus agressores, possui o direito de punir. Isto
representava a Justiça para Lombroso, de certa forma respaldando o confisco do conflito pelo
Estado, que agiria representando a sociedade.
Em nome de uma defesa social, o discurso oficial do perigo de se manter à solta o
homem delinquente imporia um afastamento daquele agressor, o qual, às vistas do poder
público, ficaria coibido de provocar outras ofensas. Simultaneamente, os estabelecimentos de
confinamento deveriam ser dotados de estrutura que pudesse atingir as finalidades agora
propostas: “Não é, por certo, o sistema penitenciário que previne as reincidências; as prisões
são, ao contrário, sua causa principal” (LOMBROSO, 2001: 403). A ideia aqui defendida
73
Sobre a mulher delinquente, ver Lombroso, C. e Ferrero, G. La Donna Delinquente – La prostituta e la donna normale,
Torino: Roux, 1893; Gregory, J. Robinson. The Criminology Series in Wesleyan-Methodist Magazine, 118, nov. 1895, 858-
863.
83
por Lombroso tinha como premissa o poder de contágio da criminalidade, que, tal como as
doenças infecciosas, se vale de locais propícios e variados.
No caso dos doentes, que tivessem ou não praticado atos definidos em lei como crime,
a internação deveria ser eficiente na promoção da cura, logo um tratamento personalizado
visava também à reforma, à recuperação, à correção coercitiva do agente. As instituições
penais foram, aos poucos, recepcionando as medidas reivindicadoras das ideologias “re”:
readaptação, reabilitação, reeducação, ressocialização.
Por conseguinte, as teorias sobre reforma e prevenção passaram a representar o alvo
do sistema penitenciário. Percebe-se o quanto a Escola italiana influenciou os juízes em suas
sentenças a partir de conclusões extraídas por uma Comissão constituída no Congresso
Internacional de Direito Comparado, em 1900 em Paris, composta por seis juristas franceses e
um inglês: The Criminal Sentences Commission. O objetivo era criar uma rede de
comunicação entre magistrados e especialistas em questões criminais de vários países, a
começar por um levantamento sobre como as sentenças eram determinadas por concepções de
punição, por concepções sobre a ofensa propriamente ou sobre a personalidade do indivíduo
que a cometeu. Para tal, foram enviadas circulares contendo perguntas específicas e foram
recepcionadas as respostas vindas de diversos pontos da Europa e da América. Qualificando
como “Lombrosoists” os seguidores deste médico, a Comissão expressamente relata que
aqueles que se dedicaram mais profundamente à matéria comungam da mesma visão sobre os
princípios em que a punição deve se basear, tendo como opinião majoritária a finalidade da
prevenção; em segundo lugar, a de reforma do ofensor e, atrás de todas, as de retribuição e
expiação.
Do relatório norte-americano em educação (1893-4), Kellor (1899a: 525) retira as
conclusões que apontam indubitavelmente nessa direção, sendo algumas selecionadas: a
antropologia criminal renuncia inteiramente à lei da retaliação como fim, princípio ou base da
punição judicial; o propósito da punição é a necessidade de proteção da sociedade contra as
consequências do crime e não a vingança; os sistemas e as instituições devem ser modificados
para atender à igualdade de direitos dos criminosos; não há razão para a incidência de
medidas repressivas temporalmente pré-estipuladas quando as características individuais são
a razão de ser da punição, logo esta deverá persistir enquanto durarem as causas que a
determinaram; a certeza, não a severidade, da punição opera como um impedimento do crime;
a prevenção é o objeto das medidas punitivas.
Na implicação Medicina-Justiça, convenceu-se também o setor público da necessidade
de eficazes técnicas de identificação que agrupariam informações relevantes sobre o perfil
84
físico e psíquico do preso, a para se proporcionar maior controle dos internos e aferir
eventuais reincidências. Lombroso defende a implementação de novo sistema para melhor
medir a reincidência, a qual, segundo ele, se apresentaria em pequenas cifras em certos países
pela ineficácia do controle adotado: “esta fraca proporção resulta menos da falta de
reincidentes que da ausência de todo controle. Pode-se constatar que as cifras se elevam nos
mesmos países à medida em que as instituições judiciárias se aperfeiçoam e introduzem
fichários judiciais” (idem, 2001: 401).
A reincidência era uma categoria-chave na obra lombrosiana, considerando que o
criminoso nato assim se imprimiria por sua incorrigibilidade, pela prática reiterada de ações
criminosas. Analisando os casos mais frequentes de reincidência na França, em tabela
apresentada por Reinach segundo os tipos de crimes praticados em 1878 e 1879, Lombroso
conclui:
Essas proporções, numa boa parte, correspondem àquelas de criminosos que nos dão uma
maior frequencia de anomalias no cranio, da fisionomia, de anomalias algométricas, etc.;
servem para completar e controlar, do ponto de vista jurídico, a concepção do criminoso nato
que, por certo, fora da antropologia teórica pura, não pode ser considerado como tal antes de
haver cometido uma ou várias reincidências, tanto mais que as anomalias anatômicas podem
se encontrar em quase todas as formas psiquiátricas degenerativas, mesmo no cego de
nascença e no surdo-mudo – e as tendências criminosas são comuns na primeira idade
(LOMBROSO, 2001: 411).
A proposta aceita por algumas
penitenciárias a partir de fins do século
XIX foi o sistema Bertillon, nome dado a
seu criador, o conservador francês
Alphonse Bertillon, pelo qual inúmeras
medidas eram tiradas para apurar as
dimensões físicas dos apenados.
Nesse clima de categorizações e
individualizações, os instrumentos médicos
utilizados para a assimilação da identidade
e da personalidade do sujeito se tornavam
úteis também para o olhar panóptico dos
estabelecimentos de confinamento, cuja
marca registrava uma fiscalização
continuada das
atitudes de seus reclusos de
Imagem extraída de Rafter, N. “Criminal Anthropology in the
United States” in Criminals and Their Scientists, 2006: 165.
85
acordo com os padrões de normalidade reconhecidos por médicos, psiquiatras, higienistas e
adotados pela polícia científica e política de encarceramento do sistema penitenciário. Com a
codificação e a classificação das impressões digitais aperfeiçoadas por Juan Vucevitch que,
por ser funcionário da polícia de Buenos Aires, consagrou a Argentina
74
como o primeiro país
a adotar a identificação pessoal pelas digitais, como explica Darmon (1991) – e com o auxílio
da foto, que havia sido inventada por Louis Daguerre, surgia uma “nova etapa de
burocratização do mundo, na qual seriam necessárias fichas e documentações às quais se
adicionaria a fotografia correspondente para evitar superposições e falsas atribuições de
identidade” (ANITUA, 2007: 321).
Recorrendo a Foucault, alerta-se justamente para o fato de que a defesa social bradada
pelo quadro de penalidades da época constituía o discurso oficial, agregador do consenso e da
legitimidade. No entanto, tinha-se em vista muito menos este objetivo defensivo geral do que
o controle e a reforma psicológica e moral das atitudes e do comportamento do indivíduo. A
penalidade do século XIX passa a ser muito mais um controle sobre o que as pessoas são
capazes de fazer e, nem tanto sobre o que fizeram realmente (daí a distinção entre direito
penal do autor e direito penal do fato). Nessa sociedade disciplinar em que se impõe o que
Foucault denomina “ortopedia social”, a vigilância e a correção das virtualidades não devem
ser efetuadas apenas pela Justiça, mas devem se estender a uma série de outros poderes
laterais como a polícia, a escola, o manicômio, a psiquiatria atentos ao grau de
“periculosidade” do sujeito
75
.
1.3.3 – O PODER MÉDICO-JUDICIÁRIO
As repercussões político-jurídicas do novo saber científico foram sendo recepcionadas
aos poucos pela doutrina, pela legislação penal e pelo aparelho judiciário de alguns países.
Claro que não sem muitas discussões, resistências e oposições francas, notadamente em
função de certos exageros ingênuos de Lombroso, bem como de sua origem médica: a disputa
acirrada pelo território das autoridades, pela marcação da posição acerca de quem proferia os
discursos das verdades, polarizava juízes e médicos na solução dos casos concretos.
Magistrados e jurados reivindicavam o exercício pleno de seu poder de decisão e médicos
74
Sobre a Escola Positiva na Argentina, ver Caimari, Lila. La Ley de los Profanos. Delito, justicia y cultura en Buenos Aires
(1870-1940), Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007 e Salvatore, Ricardo D. “Positivist Criminology and State
Formation in Modern Argentina, 1890-1940” in Criminals and Their Scientists, The History of Criminology in International
Perspective, org. Becker e Wetzell, Nova Iorque: Cambridge Univ. Press, 2006.
75
Ver também Foucault, Michel. “A Evolução da Noção de ‘Indivíduo Perigoso’ na Psiquiatra Legal do Século XIX” in
Ditos e Escritos, V, Rio de Janeiro: Forense, 2004.
86
reivindicavam maior inserção no plano do judiciário, especialmente quando a questão
envolvia a apreciação da responsabilidade criminal, a qual dependia de apreciação técnica e
parecer científico: sem a opinião médica, os magistrados estariam praticando “exercício ilegal
da medicina legal”
76
. Era, no fundo, disputa de reconhecimento de saber-poder e de mercado
de atuação. Disputa, esta, não exclusiva do final do século, como podem ilustrar os casos
Hadfield e McNaughten.
Notadamente no que tange à aceitação de atestados ou de depoimentos técnicos sobre
a insanidade de alguns réus ou de suas repercussões na determinação da responsabilidade
77
,
extraem-se estes dois casos históricos emblemáticos, que simbolizam a fundação moderna do
argumento de insanidade na defesa de réus, especificamente na defesa dos réus James
Hadfield (1800) e Daniel McNaughten (1843).
No curso dos debates jurídicos relativos ao primeiro caso, a tentativa de homicídio do
Rei George III, o advogado sustentou que a insanidade de Hadfield não se deu por culpa dele
mesmo, mas em razão dos serviços prestados ao Rei e a seu País na Batalha de Lisle.
Amparado por várias testemunhas, incluindo dois cirurgiões e um médico, o argumento
ganhou força pela certeza demonstrada pelos experts de que a insanidade decorrente de danos
cerebrais adquiridos na campanha contra a França existia e, muito provavelmente, teria sido
provocada pelos traumas em sua cabeça.
Henry Cline, um eminente cirurgião, afirmou que lesões drásticas na cabeça seriam
suficientes para causar danos ao cérebro e que, uma vez persistindo por certo tempo, seriam
permanentes e irreversíveis. O médico Dr. Creighton disse não ter a menor dúvida de que o
réu era insano e que, com muita probabilidade, seria em decorrência dos traumas (MORAN,
1985a: 506).
Thomas Erskine, o advogado, chama a atenção dos jurados para a natureza das lesões
ao apalpar a cabeça do réu e mostra aos mesmos a membrana do cérebro de Hadfield exposta
em razão de uma fratura em seu crânio feita pela espada de um francês.
Apesar da absolvição, o caso gerou a formulação do “Criminal Lunatics Act of 1800”
o qual, além de conceder tratamento igualitário entre os crimes contra o Rei e os crimes
comuns, impôs o confinamento e a prisão preventiva àqueles a quem fosse reconhecida a
inimputabilidade em razão de insanidade (“not guilt by reason of insanity”), inclusive de
forma retroativa (idem, ibidem: 34).
76
A expressão é do Prof. Tripier, colhida de citação feita por Darmon (1991).
77
Ver também Soule (1854), Keedy (1910) e Smith (1943).
87
No segundo caso, na tentativa de homicídio do primeiro Ministro inglês que culminou
na morte de seu secretário particular, a defesa sustentou que McNaughten sofria de
monomania homicida que, como espécie de insanidade parcial, admitia a isenção da
responsabilidade penal. A fim de fundamentar bem sua alegação, foram convocados quatro
dos melhores advogados de Londres, nove proeminentes médicos e oito testemunhas. A linha
defensiva pretendia retirar qualquer conotação política da conduta do agente, o qual, sem
motivo racional aparente para a prática de tal ato, poderia ser considerado um lunático.
Seus argumentos convenceram.
Convenceram, absolveram e consternaram, a ponto da Times inglesa, de 11 de março
de 1843, publicar que os médicos invadiram a tradicional província do júri e se tornaram os
jurados, bem como da Casa dos Lordes estabelecer regras para a validade dessas opiniões:
1
o
.) se uma pessoa comete um ato criminoso sob a influência de insanidade, é entretanto
punível se sabia, ao tempo da ação, que agia contra a lei;
2
o
. e 3
o
.) a pessoa é presumidamente sã, a não ser que claramente seja comprovada que, no
momento da prática do ato, estava agindo sob incapacidade de compreensão em função de
doença mental, em que não sabia a natureza ou a qualidade do ato que estava praticando ou,
se sabia, não conhecia que estava fazendo o que é errado;
4
o
.) a pessoa que age sob erro parcial deve ser considerada na mesma situação de
responsabilidade, como se os fatos, relativos aos quais o erro existe, fossem reais;
5
o
.) ao médico, que nunca tenha examinado o acusado, não se pode questionar sobre o estado
mental deste ao tempo do crime, pois tal questão envolve o julgamento sobre a verdade dos
fatos que somente cabe ao júri.
Essas regras passaram a ser tratadas como McNaughten Rules (MORAN, 1985b: 41),
exigidas como um teste de legitimidade e legalidade da escusa da insanidade (WHITE, 1985:
44).
Além da Times, a Fraser´s Magazine for Town and Country de abril de 1843
78
também dedicou atenção ao caso McNaughten, posicionando-se acerca da insanidade de
homicidas e defendendo a sede cerebral das patologias como a mania (em que a irritação seria
seu estágio inicial e o homicídio uma de suas formas) e que, como tais, mereceriam adequada
terapêutica. Com duas inquietantes perguntas, a revista resume uma preocupação recorrente
da época:
78
Disponível em http://pao.chadwyck.co.uk, acessado em 27.12.2007.
88
por que, em princípios gerais, s não deveríamos tratar as irregularidades da mente do
mesmo modo como tratamos todas as desordens físicas, nos concentrando somente nas
tentativas de curar o paciente? Por que nós falamos em punição quando nós estamos
considerando um caso de ação mórbida do cérebro, não mais do que quando estamos
considerando um caso de ação mórbida do coração, do pulmão ou de qualquer outro órgão?
As principais polêmicas práticas, então, giravam em torno da imprescindibilidade ou
não do exame médico para a aplicação da pena, bem como da determinação judicial para a
internação de alguém; da obrigatoriedade ou não da vinculação do juiz à opinião médica; e da
posição do médico que se manifestava nos autos, como parecerista contratado por uma das
partes ou como agente público nomeado pelo Tribunal. Diante, portanto, de um caso em que
se alegava a insanidade, como proceder? O médico deveria ser chamado para atestá-la ou
como, questão de fato, caberia somente ao órgão julgador o reconhecimento ou não da
condição mental do agente? Caso houvesse laudo médico, o julgador deveria seguir
exatamente a prova técnica ou o princípio do livre convencimento do juiz lhe permitia
divergir? Poderia se confiar em exames feitos por médicos pagos pela defesa que alegava a
irresponsabilidade, por exemplo? Não deveria, o poder judiciário, possuir uma equipe médica
que atuasse em nome do Estado nesses casos (aliás com uma remuneração digna, como
muitos bradavam)?
Simultaneamente às desavenças, vinha a mútua cooperação, pois os juristas
necessitavam do apoio da ciência para tentar compreender questões que fugiam à sua alçada.
E novas demandas eram, cada vez mais, submetidas à sua apreciação no novo contexto
político moderno, nas novas relações econômicas, nas novas disposições sociais e nos novos
avanços tecnológicos. Podemos dizer com Foucault, então, que está em cena uma prática
judiciária inserida na nova economia do poder de punir
79
.
Esta nova tecnologia, preocupada com uma punição que não excedesse o necessário
para que o delito não recomeçasse, passou a trabalhar com a premissa de que à sanção deveria
corresponder uma medida justa não os exageros dos suplícios da fase anterior , aplicável
após análises individualizadas sobre normalidade ou patologia. Evidente que era
imprescindível a criminalidade, formalmente definida, para a aplicação de uma resposta penal
estatal, em respeito ao princípio da reserva legal, mas, independentemente disso, a pesquisa
79
Foucault intitula “nova economia do poder de punir” um conjunto de procedimentos, de análises, instituídos pela revolução
burguesa, que majorou os efeitos do poder, reduzindo-lhe os custos. Esta nova dinâmica proporcionou uma densa rede de
vigilância sobre os comportamentos, uma nova tecnologia punitiva que liga inderrogavelmente o crime à sua punição e uma
idéia de medida de pena justa e suficiente para reprovar e prevenir. As punições devem, portanto, seguir rituais menos
dispendiosos e sem as atrocidades da Idade média, seguindo um sistema calculado em função da racionalidade da conduta
criminosa, da sua “inteligibilidade natural”: Eis o crime, pelo jogo mesmo da nova economia do poder de punir, lastreado
do que nunca havia recebido ainda e do que não podia receber na antiga economia do poder de punir; ei-lo lastreado de
uma natureza. O crime tem uma natureza e o criminoso é um ser natural caracterizado, no próprio nível da sua natureza,
por sua criminalidade. (...)Vai ser preciso fazer a história natural do criminoso como criminoso” (idem, 2002: 111-2).
89
sobre eventual patologia era bem-vinda na tentativa de explicação das ações horrendas,
descabidas, incompreensíveis por uma racionalidade burguesa. Que tipo de interesse ou de
doença poderia ter aquele que prefere romper com o coletivo e se expor aos riscos de ser
punido? Qual a natureza dessa condição da criminalidade que subjuga as liberdades alheias e
fere os direitos de um e de todos os cidadãos?
Assim, ao mesmo tempo em que a medicina e o judiciário buscavam estabelecer seus
espaços, o século XIX fundou a congregação e a consolidação da figura do médico-juiz, numa
interdependência de novas tecnologias de saber que se concretizavam em ações de poder.
Através dos exames psiquiátricos também se permitiu a reconciliação dos discursos, que, aos
poucos, foram atingindo denominadores comuns, tais como a noção de indivíduo perigoso; de
sequestro de liberdades para a readaptação, ainda que ausente a culpabilidade, em nome de
uma proteção da sociedade; e a aproximação entre comportamento criminoso e condutas
anormais
80
.
O olhar das instituições de correção do século XIX estava voltado, portanto, para esse
ser não necessariamente doente, não necessariamente criminoso, mas, de todo modo,
perigoso, perverso. O foco dos debates médico-jurídicos reside na ausência de “categorias
elementares da moralidade”, sendo o crime apenas uma das manifestações desta ausência e a
afirmação da perversidade e do perigo, os quais seriam constatados pelo psiquiatra e
submetidos ao judiciário. Seguindo Foucault, a relação médico-judiciária passa a representar
uma “instância de controle do anormal”, anormal este cuja expressão se dá no monstro
humano, no indivíduo a ser corrigido e na criança masturbadora.
A monstruosidade humana dos oitocentos aparece na violação das leis da natureza e
se encontra na anormalidade do cotidiano. Por conter a característica de infração à lei,
pertence ao domínio jurídico, e por violar a lei natural, pertence simultaneamente ao domínio
biológico. O monstro assim colocado reforça a interpenetração de um domínio no outro e
fertiliza o terreno para a proliferação das concepções criminais antropológicas: “Descobrir
qual o fundo de monstruosidade que existe por trás das pequenas anomalias, dos pequenos
desvios, das pequenas irregularidades (...) é a questão, por exemplo, que Lombroso
formulará ao lidar com os delinquentes” (FOUCAULT, 2002: 71).
O anormal também se encontra no indivíduo a ser corrigido quando as técnicas
tradicionais presentes no seio da família e da educação falham. Quando todos os instrumentos
80
Diz Lombroso: “O conhecimento científico, entretanto, felizmente não está em guerra, mas em aliança com a ordem e a
prática sociais. Se o crime é algo necessário, então também o é a resistência da sociedade a ele e, consequentemente, a
punição do crime, a qual deve ser medida pela quantidade de apreensão que inspira o indivíduo. A punição, assim, se torna
menos detestável, mas também menos contraditória e certamente mais eficaz (idem, 1968: 379).
90
de controle do comportamento são empregados sem resultado, quando os procedimentos
educacionais fracassam, apela-se para a correção por outros meios compulsórios, como é o
confinamento. Na inteligente conclusão de Foucault, o indivíduo a ser corrigido é o
incorrigível e o eixo da corrigibilidade incorrigível vai servir de suporte a todas as
instituições específicas para anormais que vão se desenvolver no século XIX” (idem, ibidem:
73).
Foi nesse sentido que Lombroso e seus adeptos alertaram para a ineficácia da
educação para os anormais. O médico define a educação como “uma série de impulsos
reflexos, que lentamente substituem outros que engendram diretamente as tendências
depravadas (...)” tão marcantes da infância (LOMBROSO, 2001: 157). Entre os honestos, a
educação, através da imitação, das precauções e do convívio com outros honestos, impede
que as infrações infantis se perpetuem e se transformem em crimes na fase adulta. No entanto,
entre os anormais, as anomalias cerebrais impossibilitariam esta substituição lenta das
tendências depravadas pelas tendências nobres: A educação pode, com efeito, impedir um
bom natural de passar do crime infantil e transitório ao crime habitual mas ela não pode
mudar aqueles que nasceram com instintos perversos” (idem, ibidem: 158).
Ainda nesse eixo, alicerçando o monstro (in)corrigível foucaultiano, Lombroso
ressalta a inerente reincidência do criminoso nato. Se seu estado degenerativo retém a
capacidade de evolução o que seria normal no desenvolvimento humano –, se a educação é
ineficiente e se os instintos selvagens deste ser atávico afloram constantemente, é lógico que
se trata de um reincidente de direito, de fato ou ainda em potencial, é apenas uma questão de
tempo. O criminoso nato reincidente é, pois, um monstro infrator das leis naturais,
incorrigível, perigoso e perverso que, por tudo isso, merece o confinamento aos auspícios do
poder médico-judiciário.
A terceira manifestação da anomalia é encarnada no masturbador. As anomalias
sexuais vêm incorporar o quadro-foco das instituições psiquiátrico-jurídicas que veem o
delinquente anormal como a reunião, em geral, dessas três figuras, ou seja, do monstro, do
incorrigível e do onanista. Em uma passagem de Lombroso, depreende-se claramente que as
“obscenidades precoces” estavam longe da raridade:todos os casos monstruosos do amor
sexual (sem excetuar aqueles produzidos pela decrepitude) estão em germe no cérebro da
criança e se mesclam a outras tendências criminosas” (idem, 2001: 140-1). Pouco mais
adiante, explica a relação entre as anomalias sexuais e a impulsividade do comportamento
criminoso:
91
Todos esses fatos [obscenidade entre as crianças] foram observados entre neuropatas ou
entre criminosos e sempre, ou quase sempre, vemo-los acompanhados de masturbação. Em
todos surpreendemos como ocorre nas manias impulsivas e nas idéias fixas uma
sensação inicial que surge num dado instante de sua infância. Tal revela, num grande
número de homens, o erotismo como um elo secundário pela associação de idéias que depois
se substitui à idéia mãe. Isso pode, pouco a pouco, tomar feição de certos vírus, não apenas
fixar-se, mas invadir, mais e mais, o conjunto de seu organismo, tornando-se mestre
soberano, irresistível, que lhes impele aos atos mais criminosos (idem, ibidem: 142).
O criminoso nato lombrosiano, fica claro, é capaz de reunir as três vertentes do
anormal e é a medicina psiquiátrica que apontará as anomalias psíquicas, anatômicas,
orgânicas, fisiológicas para a Justiça. A psiquiatria do final do século, por meio da neurologia
o cérebro anormal e a epilepsia são fortes marcadores dessa articulação –, se firma como
instância discursiva sobre a conduta humana, incluindo o crime no perfil físico, moral e
psicológico do criminoso.
Esse estágio da psiquiatria favorece, então, a construção de um “duplo psicológico-
moral” do delito, enfraquecendo o aspecto puramente jurídico da infração para fazer
prevalecer sua vertente de irregularidade, irregular em relação a regras psicológicas,
fisiológicas, morais etc. É sobre o histórico da conduta psicológica e moralmente irregular
que irá recair a ação punitiva e não exatamente sobre o delito, que configura um mero efeito
de um processo causal. É com o exame psiquiátrico que o perito possibilitará a identificação
do caráter moralmente defeituoso do sujeito, por meio da reconstituição de sua vida de faltas,
em que as infrações são meros detalhes. Constitui-se o sujeito delinquente por esta série de
faltas que Foucault chama de “parapatológicas”, uma quase-doença, que pode não ser doença
por consistir em mero defeito moral. Este defeito moral impõe uma série de irregularidades,
que mesmo não sendo formalmente ilegais, serão consideradas no momento da submissão ao
judiciário quando da prática da infração. Ou seja,
a partir dessa seriação do crime com a infrapenalidade e o parapatológico, a partir desse
relacionamento, vai-se estabelecer em torno do autor da infração uma espécie de região de
indiscernibilidade jurídica. Vai se constituir, junto com suas irregularidades, suas
ininteligências, seus insucessos, seus desejos incansáveis e infinitos, uma série de elementos
a propósito dos quais a questão da responsabilidade não pode mais ser formulada ou nem
sequer pode ser formulada, porque, no fim das contas, nos termos dessas descrições, o
sujeito fica sendo responsável por tudo e responsável por nada. É uma personalidade
juridicamente indiscernível a que a Justiça é, por conseguinte, obrigada a rejeitar de sua
alçada. Não é mais um sujeito jurídico que os magistrados, os jurados, têm diante de si, mas
um objeto: o objeto de uma tecnologia e de um saber de reparação, de readaptação, de
reinserção, de correção (FOUCAULT, 2002: 27).
O anormal é, assim, estruturado por estigmas permanentes, presentes desde a infância.
É o adulto estigmatizado pelos mesmos sinais da criança que fora. E o que é o criminoso nato
senão a maldade pura da infantilidade no adulto involuído?
92
Neste momento, cabe abrir um grande parêntese para destacar dois pontos
mencionados neste trabalho sobre os quais se assenta a medicina psiquiátrica do fim do século
XIX e, por lógico, a linha de Lombroso. Estes dois pontos nos auxiliam a compreender
melhor a histórica relação entre a cientificidade médica e a esfera criminal:
1º.) A correlação da psiquiatria com a neurologia
Foucault esclarece como a psiquiatria se estabelece como saber médico e científico
quando se correlaciona à neurologia no final do século. No início do mesmo, nos tempos de
Pinel e Esquirol, a medicina mental se caracterizava pela imitação dos processos de
classificação, pela metodologia organizativa das doenças da medicina orgânica, sendo
imprescindível, portanto, a patologia para justificar o objeto do domínio médico.
Nesses primórdios, a medicina via a patologia mental associada à alienação. Era no
curso desta alienação que o sujeito poderia praticar um fato definido em lei como crime, sem
ser punido. Era a loucura classicamente vinculada à alienação, aos delírios, pelas descrições
dos alienistas, de cujas lições se extraíram o postulado principal da culpabilidade: o doente
mental é isento de racionalidade e, por isso, de punição, que incapaz de compreender a
ilicitude de seu ato.
Mas, e se o agente não fosse totalmente incapaz? Se sua loucura fosse “parcial”, se
manifestando apenas em dados momentos, em geral revestidos de perplexa monstruosidade,
ele seria considerado doente? Seria considerada, consequentemente, punível sua ação?
Uma questão que muito intrigava a medicina e o direito era, portanto, a monomania,
que Esquirol procurou definir. Fez-se muito marcante o debate sobre a loucura moral, pois
condutas extraordinariamente loucas, cometidas por pessoas não dementes, questionavam
como se daria a aplicação da lei. Diante da conduta sem razão, realizada por um sujeito
eminentemente racional, falta a inteligibilidade do ato que justificaria a punição e, por outro
lado, falta também a alienação típica da doença.
Como saída pragmática, recorreu-se à percepção comum do risco de se deixar à solta
uma pessoa perigosa, fortalecendo e autorizando um agir médico como ramo da higiene
pública, por meio do fundamento da defesa social. Nada impedia, assim, que se confiscasse a
liberdade do agente, pela presunção ou real verificação do perigo que o demente ou o louco
moral apresentasse à sociedade. Como disse Franz Von Liszt em 1893, uma forma de acabar
com toda a parafernália de livros, manuais, monografias, controvérsias etc. é substituir as leis
93
penais por este artigo único: Todo homem perigoso para a sociedade deve ser posto na
impossibilidade de prejudicá-la, e isto pelo tempo que for necessário”
81
.
Como recurso teórico etiológico, encontramos a noção de instinto. Os instintos
homicidas, por exemplo, passam a permitir uma explicação para o ato sem razão no impulso
do sujeito que age momentaneamente obliterado.
Feito o mapeamento do contexto em que aparece a medicina mental na primeira
metade do século XIX, voltemos, agora, à frenologia, doutrina desta época. ficou claro na
parte anterior que Gall era um fisiologista preocupado com a localização das tendências e dos
instintos no cérebro. Como tal, não tinha como foco principal as doenças mentais, mas sim a
fisiologia cerebral e as decorrências de sua organização.
Recorrendo constantemente à categoria do instinto, Gall defende serem eles inatos,
antecipando a figura do ser constitucionalmente perigoso. Dar livre curso aos instintos
perversos torna a pessoa perigosa por ela não demonstrar capacidade de se auto-controlar; sua
(des)organização cerebral impede que seu impulso instintivo seja abafado, posto que as
regiões-freio desse instinto não são bem desenvolvidas. De acordo com essa sistemática, a
condição que levava ao ato delinquente era determinada por uma organização desarranjada
do cérebro, isto é, as faculdades inatas encontravam-se desequilibradas, pendendo para uma
ou outra ação criminosa conforme o órgão mais ou menos estimulado.
Vimos que, com a “frenologia criminológica” e com a psiquiatria do século XIX,
muitos médicos entraram no campo dos acontecimentos judiciários para apontar os
desajustes, os desequilíbrios cerebrais dos delinquentes. A Escola de Gall, é certo, não tinha a
repercussão e a credibilidade que a neurologia apresentou depois, nem o mesmo impacto de
uma neuropsiquiatria avançada no plano jurídico. No entanto, no princípio do século,
paralelamente à Escola Clássica dos espiritualistas e da Medicina Mental de Esquirol, se
ensaiava uma nova tecnologia que pretendia entender a natureza humana fisicamente para, a
partir daí, responder às questões sobre a criminalidade do anormal necessaria ou não
necessariamente doente mental ou monomaníaco
82
.
81
Citação tirada de Darmon (1991: 150).
82
“A psiquiatria pode tornar psiquiátrica toda conduta sem se referir à alienação. A psiquiatria se desalienaliza. É nesse
sentido que podemos dizer que Esquirol ainda era um alienista; que Baillarger e seus sucessores não são mais alienistas,
são psiquiatras, na mesma medida em que não são mais alienistas. E vocês estão vendo que, com isso mesmo, com essa
desalienalização da prática psiquiátrica, pelo fato de não haver mais essa referência obrigatória ao núcleo delirante, ao
núcleo demencial, ao núcleo da loucura, (...) a psiquiatria vê finalmente se abrir diante de si, como domínio de sua
ingerência possível, como domínio de suas valorizações sintomatológicas, o domínio inteiro de todas as condutas possíveis.
(...) Tudo o que é desordem, indisciplina, agitação, indocilidade, caráter recalcitrante, falta de afeto, etc., tudo isso pode ser
psiquiatrizado agora” (FOUCAULT, 2002: 201 e 203).
94
Com Renneville, concordo que a frenologia estava na origem do paradigma dos
estudos biológicos sobre os criminosos: “Gall foi, com efeito, o primeiro intelectual a
desenvolver a ideia de que poderia existir uma correspondência entre os comportamentos
agressivos e a constituição dos indivíduos que os cometem” (RENNEVILLE, 1994: 188). A
partir da noção de instinto, que também foi trabalhada por Gall, o crime apresenta uma
inteligibilidade natural, no sentido de que apresentava uma explicação natural. O anormal,
um tipo de monstruosidade porquanto violava a ordem normal das coisas, porquanto fugia aos
padrões de normalidade do comportamento do cidadão moderno, poderia ser explicado
biologicamente.
2º.) A biologia, em geral e a evolucionista, em particular.
Ultrapassada a inevitável pergunta de se “dar livre curso aos instintos é ou não
doença”
83
, outra questão que essa organização não-alienista do saber-poder traz é: o instinto
do homem é o instinto do animal?
Lombroso deu continuidade à ingerência médica na criminalidade, às explicações
fisicalistas sobre um cérebro criminoso valendo-se da autoridade científica, fortaleceu o
paradigma da constatação da personalidade e do caráter através das particularidades externas
cranianas, fisionômicas e seguiu a trilha dos instintos humanos buscando as respostas nos
instintos animais.
Foi, então, ao agregar as categorias do atavismo e da degenerescência ao perfil do
criminoso nato que Lombroso imprimiu novo sentido psiquiátrico-biológico-evolutivo e
jurídico à conduta anormal. Em outras palavras, quando Lombroso define o criminoso nato
como um degenerado e atávico, permite a leitura de que este criminoso é um monstro por
violar a lei natural, por infringir a evolução natural das espécies. Ele é naturalmente um tipo
contranatural. Como dito anteriormente, através da terminologia empregada (infração, lei),
entra-se no domínio jurídico, favorecendo a compreensão e aceitação pelos juristas de que
este criminoso é um anormal. Ademais, se o ponto agora não é mais o da incapacidade
alienada no vel da consciência, mas o dos instintos, do que a pessoa é capaz de cometer por
seus impulsos primitivos, apenas o médico teria competência para medir o grau de
periculosidade. Completaram-se as lacunas que faltavam para maior ligação entre o poder
médico e judiciário.
83
“Ultrapassada”, força de expressão. Muitos autores, no decorrer do século, continuaram a discutir sobre a natureza
patológica ou não da loucura moral e também foram frequentes os debates entre acusação e defesa no curso de processos
criminais para a apuração da responsabilidade do agente. Voltarei a isto no próximo ponto.
95
Paradoxalmente, infiltrando-se no judiciário inscrito na nova economia do poder de
punir, a categoria do anormal instintivo fortaleceu o papel dos psiquiatras evolucionistas, os
quais seriam as pessoas competentes para atestar a natureza degenerada e a força da
hereditariedade; atestar os instintos atávicos do cérebro degenerado em função da herança
deixada por ancestrais doentes, viciados, defeituosos, primitivos. A rede da hereditariedade
como origem do estado anormal, em qualquer geração ou grau de parentesco, possui “um
laxismo causal indefinido”, em que “tudo pode ser causa de tudo” (por exemplo, a
embriaguez pode imprimir, nos descendentes, o alcoolismo ou a tuberculose ou a demência
ou a criminalidade...), constitui a “metassomatização” de que Foucault fala.
Estando Lombroso inserido nesse caldo de cultura do fim do século XIX, aproveitou o
momento extraordinariamente, para dar um passo além dos de Gall: inserir a psiquiatria
criminal na biologia evolucionista e, com isso, incluir as categorias relacionadas à
hereditariedade para continuar explicando os instintos e o cérebro (do) criminoso, para
continuar o processo de “medicalização” do criminoso.
1.3.4 – A ANTROPOLOGIA CRIMINAL APLICADA
Alguns casos concretos servem como ilustração dos debates psiquiátricos nas práticas
judiciárias. Analisá-los é tarefa que completa as explanações teóricas e que nos a prova
irretocável da relação medicina-direito.
Um caso de grande repercussão que bem cabe aqui, neste momento, é o do assassino
Guiteau. O debate acerca dos limites da responsabilidade criminal ilustra o papel
desempenhado pela psiquiatria americana e pelo psiquiatra na década de 1880, o qual o livro
de Rosenberg, The Trial of the Assassin Guiteau: Psychiatry and the Law in the Gilded Age,
de 1968, pretendeu mostrar no microcosmo do assassinato do Presidente Garfield. Os
testemunhos dos especialistas nos autos do processo, por exemplo, deixam claro o
antagonismo entre as orientações sobre a sintomatologia e a etiologia da insanidade existentes
na psiquiatria desses anos.
Guiteau não negava que havia atirado no Presidente, não negava a premeditação e
também não alegava legítima defesa; o motivo que apresentava com orgulho era o fato de ter
sido o escolhido por Deus para uma tarefa tão importante e este argumento do “instrumento
divino” parecia, para alguns americanos, uma “tentativa cínica de evitar a punição”. A
alegação de insanidade era, portanto, vista por muitos como o último recurso para escapar à
punição. Nos casos em que a condenação era praticamente certa, esta alegação era, na
96
linguagem popular, a “insanity dodge”. Mesmo assim, a concepção popular e legal de
loucura não era maleável, uma vez que alguém poderia ser excêntrico, mas não apresentar
deficiência mental, mania ou estupor, crenças ou ações irracionais. Aliás, as regras legais para
a determinação da (in)sanidade e, por conseguinte, da (ir)responsabilidade criminal eram as
comentadas M’Naghtan rules. Ao júri, então, caberia pressupor a sanidade, até que se
provasse o contrário; logo, a defesa deveria provar que, ao tempo da ação ou da omissão, por
motivo de doença mental, o acusado era incapaz de compreender a natureza, a qualidade e as
consequências de seu ato ou de compreender que o que fazia era errado, proibido por lei.
O caso Guiteau oferecia um difícil problema a ser solucionado porque se encaixava no
quadro clássico da loucura moral e, como tal, a premeditação e a consciência de ilicitude de
seu ato eram incompatíveis com a noção comum de conduta insana. Aqueles que defendiam a
sanidade de Guiteau diziam que ele teria agido motivado por sentimentos de vaidade,
vingança e desejo de notoriedade. Por outro lado, a ausência de um motivo para a violência
perpetrada contra o Presidente ou melhor, o motivo apresentado por ele: a vontade divina
que o guiou como instrumento para o assassinato (“Ele colocou a inspiração em meu cérebro
e em meu coração, e me deixou realizar do meu próprio jeito”) , os textos que escrevia, o
errático curso de sua vida, sua guinada abrupta do Direito para a Teologia faziam crer se tratar
de um louco, irracional
84
. Os contrastantes diagnósticos dos exames psiquiátricos exprimiam
as orientações clínicas e morais da medicina da época.
Muito se opunham à absolvição de Guiteau por recriminar moralmente seu estilo de
vida, seus vícios, suas instabilidades e imoralidades. Se ele tinha chegado ao ponto de realizar
um homicídio, quer por loucura ou não, foi por culpa dele mesmo que não exercitou a virtude
e a moderação.
Tais argumentos não eram inovadores, pois, como vimos, desde o início do século
se apresentavam. No entanto, algumas mudanças eram notadas, como a ênfase no
humanitarismo, as novas teorias sobre o criminoso nato e principalmente a correlação
psiquiatria-neurologia, a qual também admitia em sua especialidade qualquer condição
“nervosa”, incluindo as psicoses e neuroses, que deveriam ser tratadas nos hospitais.
A batalha judicial, nesse sentido, já havia começado antes do julgamento propriamente
dito, na “ante-sala” dos tribunais, nos espaços de autoridade e poder dos discursos dos
médicos que viriam atuar no processo. Como testemunhas de acusação ou de defesa, a
84
Como exemplo, na classificação de J. B. Ransom, em texto intitulado “The Physician and the Criminal”, Guiteau era um
louco paranóico, o qual se caracterizava por grande exaltação própria, por escritos de documentos políticos insanos e pela
tendência a homicídios políticos em geral consistentes com suas paranoias.
97
aceitação da opinião do psiquiatra no caso concreto passava a depender muito mais de sua
reputação, de seu prestígio, de seu nome, da competência a ele concedida pelo senso comum,
do que, propriamente, de uma previsão legal de recepção dos laudos desses então
“protoespecialistas”
85
. Por outro lado, como a questão da loucura moral
86
estava em voga e
era algo mais complexo, mais difícil de ser diagnosticado, a atuação do psiquiatra no
judiciário parecia estar se expandindo e diminuindo o diagnóstico dado pelos homens do
Direito.
Edward Charles Spitzka (ao seu lado Beard, Kiernan and Godding), pela defesa, e
John P. Gray, como “chief advisor” da acusação, se encararam no tribunal no caso Guiteau, o
qual se mostrou um campo de guerra das ideias e personalidades destes dois médicos.
A defesa, então, mostrando que em substituição às regras M’Naghten
87
caberiam
outras podemos citar a doutrina do ‘impulso irresistível’ (o controle emocional era a chave
da responsabilidade criminal) e a nova regra que havia sido adotada em New Hampshire (a
questão sobre a doença mental era uma questão de fato e não de Direito, sendo apurada pelas
evidências e não por um teste jurídico
88
) , sustentou que toda a questão sobre a
criminalidade de Guiteau dependia da análise de se o ato foi praticado por uma pessoa insana
ou não e esta decisão, versando sobre uma questão de fato, caberia aos jurados. Ademais,
procurando mostrar o nebuloso estado mental dos pais de Guiteau (especialmente, de seu pai),
a defesa procurava reforçar a noção do determinismo hereditário, que deveria impor a
absolvição. No depoimento, Spitzka, utilizando um termo popular, diz que Guiteau era uma
“monstruosidade cerebral”, um cérebro mal-formado que o tornava um “monstro moral”:
“pessoa que nasce com uma organização nervosa tão defeituosa que é toda privada daquele
85
O autor explica que, em 1881, a psiquiatria ainda não estava bem estabelecida nos EUA e seu papel no Judiciário também
não estava bem definido. De um modo geral, os psiquiatras concordavam com a necessidade de se criar uma comissão de
especialistas do Tribunal, até para evitar parcialidade das opiniões. No entanto, essa não era a prática corrente no meio
judiciário.
86
“No contexto legal, o termo ‘insanidade moral’ implicava uma incapacidade para estar conforme os ditados morais da
sociedade – como consequencia de uma doença, não de depravação e apesar da ausência de sinais tradicionalmente aceitos
de distúrbios mentais. O louco moral agressor pode parecer bem racional na conversa, até inteligente, ser capaz de resolver
problemas e não estar sujeito a paranoias ou erros sensoriais – mas, ainda ser enfermo mental” (ROSENBERG, 1968: 68).
87
“Esse era, entretanto, um teste puramente cognitivo, um teste de ‘compreensão’, num período em que médicos,
preocupados com a medicina psicológica, estavam bem atentos a que doença mental seria frequentemente, se não
ordinariamente, originada das e manifestada pelas faculdades emocionais, bem como intelectuais do indivíduo” (idem,
ibidem: 55). Assim, muitos psiquiatras consideram essas regras irrelevantes. Irrelevantes e inadequadas, posto que a chave da
responsabilidade era o controle, ou seja, o mais importante era saber se a pessoa conseguiria ou não se colocar de acordo com
o entendimento de que o fato apresentava caráter ilícito. Outro ponto atacado era a ausência legal de previsão de graus de
responsabilidade.
88
“A questão de se o teste de insanidade deveria ser o legal ou o médico não é tão considerada quanto se o absolvido por
motivo de loucura deveria ser liberado. Loucura não deveria ser defesa, apesar de poder ser uma explicação. O louco
criminoso é tão perigoso para a sociedade quanto o criminoso são e, sendo igualmente incorrigível, deveria ser
encarcerado. A liberdade absoluta dos criminosos loucos tem levado a um abuso do argumento de insanidade, e se os crimes
devem ser diminuídos pela prevenção de futuros atos, e a transmissão de organismos defeituosos aos descendentes, o
encarceramento deve ser assegurado” (KELLOR, 1899b: 635).
98
senso moral que é elemento integral e essencial da mente humana normal” (ROSENBERG,
1968: 163). Mostra, ainda, os estigmas físicos que indicam a condição mental peculiar e a
“monomania primária”: o molde da cabeça e da face, outro defeito de inervação dos
músculos da face, uma terceira assimetria facial e um desvio pronunciado da língua para a
esquerda”, além de uma aparente diferença entre os lados do cérebro (idem, ibidem: 163).
Tomando tudo isso em conjunto, além de seu comportamento ao longo da vida e as
demonstração de insanidade de seus parentes, Spitzka estava fortemente convencido de um
defeito moral congênito.
Muitos médicos americanos e de outras nacionalidades foram estudar neurologia na
Europa e, quando (re)ingressaram nos Estados Unidos, se estabeleceram principalmente em
Boston, Nova Iorque e Filadélfia. Estes médicos estavam influenciados por Lombroso e
acreditavam que a insanidade moral era um defeito constitutivo ou de má-formação que
impedia os loucos de se auto-controlarem. Um dos nomes mais expressivos senão o mais
expressivo – dentre esses neuroanatomistas foi justamente o de Spitzka: “Spitzka estava
profundamente interessado na questão de se os cérebros dos criminosos e dos loucos
mostravam padrões estruturais característicos” (idem, ibidem: 71). Nessa linha, Guiteau era
o exemplo de paralisação da faculdade moral, por uma vida repleta de atos imorais que,
todavia, tiveram sua origem na hereditariedade, que seus pais não lhe transferiram uma
estrutura neural perfeita. A partir daqui, propunha-se a exculpação
89
pela degeneração
neurológica hereditária que determinaria a loucura, deficiência mental e comportamento anti-
social.
Essa corrente divergia da outra, pessoal e institucionalmente, e se materializou nos
argumentos da acusação. Spitzka chegou a ofender Gray, superintendente do asilo Utica do
Estado de NY e editor do American Journal of Insanity, chamando-o de incompetente,
extravagante e fazendo outras acusações. Gray, defensor da regra M’Naghten e opositor às
teses de insanidade moral, da hereditariedade da loucura (havia apenas uma predisposição) e
da loucura como doença inata ou congênita, dizia que as idéias do outro grupo eram perigosas
pela falta de base religiosa e pelo sentimentalismo pelos criminosos, típicos do materialismo
europeu. Ademais, ainda que houvesse um defeito neuronal, não caberia a exculpação porque
o sujeito deveria ter exercitado sentimentos nobres, ter feito um treinamento apropriado e não
ter levado uma vida sem virtudes.
89
“Quanto aos advogados de defesa, muitos deles verão nas ideias da nova escola uma tábua de salvação capaz de livrar
seus clientes da pena capital. Bastava-lhes pleitear a irresponsabilidade com base em sua criminalidade constitucional.
Pouco lhes importava que estivessem traindo a filosofia da nova escola quando deixavam de especificar que ela via na
liquidação física dos criminosos natos o único meio de purgar a humanidade” (DARMON, 1991: 175).
99
Gray, então, começou seu testemunho com a definição de loucura: “uma doença do
cérebro”, na qual existe uma “mudança de seu padrão ordinário de ação mental”, uma
mudança “na sua maneira de sentir, pensar e agir”
90
. Como não teria havido alteração do
caráter de Guiteau, que era normal, embora repreensível, ele não poderia ser considerado
louco, doente: “doença é algo do corpo”. A influência moral até poderia alterar a quantidade e
a qualidade do sangue que passa pelo cérebro, causando a insanidade, mas, de qualquer modo,
deveria existir a constatação física da doença.
Para Guiteau, que solicitou por várias vezes a aceitação de seu pedido de auto-defesa,
que havia cursado Direito, a loucura não estava no cérebro doente, mas numa espécie de
encarnação de outro espírito que toma conta das pessoas e diz o que fazer: Não
‘brainology’ neste caso, mas sim ‘spiritology’ (idem, ibidem: 196). Indiretamente, ele
também sustenta que os médicos tinham interesse na condenação e consequente morte dos
acusados a fim de estudar seus cérebros depois: “aqueles especialistas, Guiteau acrescenta
sarcasticamente, enforcam o homem e examinam seu cérebro em seguida” (idem, ibidem:
211).
Nesse ponto, Guiteau estava correto. Ele foi condenado, morto e seu cérebro foi
examinado. A necropsia, dentro do paradigma positivista, parecia concordar com a tese de
insanidade a partir do relato de degeneração de algumas células nervosas, de malária crônica e
de sífilis cerebral. Lombroso também fez referência ao cérebro do infeliz assassino (idem,
2001: 200 e 214).
Cérebros, objetos de desejo. Crânios, fetiches macabros. A história do século XIX
também pode ser a história das relíquias científicas: das cabeças dos cadáveres nos mercados
lícitos e ilícitos
91
do horror; dos cérebros encarcerados atrás de grade e, depois, em redomas
de vidros
92
, tudo em nome da ciência e da defesa social.
90
“Loucura, os médicos americanos concordavam, era uma doença do cérebro. E doença, nenhum médico duvidava, era
necessariamente um fenômeno físico; loucura era essencialmente uma desordem material” (ROSENBERG, 1968: 64). Esse
entendimento estava presente desde o início do século XIX. Se a loucura não fosse física, não era um problema médico, mas
para os padres ou até exorcistas.
91
A propósito, vale a leitura de STEVENSON, Robert Louis. O ladrão de cadáveres, Rio de Janeiro: Newton Compton
Brasil Ltda. s/d.
92
No site www.scienzaonline.com/antropologia/giovanni-passannante.html, acessado em 15.11.2007, encontramos a matéria
intitulada “Giovanni Passannante: il carcerato con la più lunga detenzione della storia d’Italia” sobre um anarquista preso, em
1878, por atentar contra a vida do rei Umberto I, provocando ferimentos leves. No curso da prisão, foi submetido a exame
psiquiátrico e declarado insano. Morreu em 1910, no manicômio criminal de Montelupo Fiorentino. Seu cérebro e seu crânio
passaram a integrar o acervo do Museu Criminológico de Roma e, até hoje, está exposto para visitação. Segundo a revista
Scienza on line, são, portanto, 129 anos (o texto é de 2007) de encarceramento.
100
PARTE 2
A MEDICINA BRASILEIRA E O CÉREBRO (DO) CRIMINOSO NA VIRADA DO
SÉCULO XIX-XX
2.1
A RECEPÇÃO DO CIENTIFICISMO PELA INTELECTUALIDADE BRASILEIRA
Roque Spencer Maciel de Barros iniciou seus estudos sobre a “ilustração brasileira”,
considerando que a partir de 1870
93
tivemos anos bastante representativos em função de
acontecimentos externos (a terceira república francesa e a guerra franco-alemã) e internos
(fim da guerra com o Paraguai e fundação do Partido Republicano). Sem deixar de reconhecer
as “raízes em passado pouco longínquo”, as duas últimas décadas do Império
94
corresponderam ao momento em que “ganham corpo as novas idéias do século – positivismo,
darwinismo, materialismo etc. –, a ‘reação científica’, enfim, para usar de uma expressão
empregada por Clóvis Bevilaqua” (idem, 1986: 7).
O clima de um iluminismo atrasado absorve boa parte de nossos estudiosos que
passam a focar na ciência para responder às questões sobre os caminhos a serem trilhados pela
literatura, pela política, pelo direito, pela educação e pelo aprimoramento moral. No processo
de adequação da mentalidade brasileira ao positivismo, era preciso, agora, resgatar o “tempo
perdido” através da formação intelectual e da cultura. O propósito era atingir os níveis de
aprimoramento da “civilização”, atingir o “nível do século”, desembocando, inevitavelmente,
na forma republicana de Governo para superar o “atraso cultural” e fazer-nos acompanhar o
progresso mais evoluído das sociedades. Consequência inarredável era a laicização do Estado,
do Direito, da Medicina, da Educação, enfim, da vida.
93
Esta década também é comentado por Paim, o qual, citando Silvio Romero, diz que ela “caracteriza-se sobretudo pelo fato
de que ‘um bando de idéias novas esvoaçou sobre nós de todos os pontos do horizonte’” (Paim, 1987: 375). Schwarcz
compartilha desse entendimento, mencionando a Lei do Ventre Livre, de 1871, o fortalecimento de centros de ensino que
ocorreu nesta década, além de representar um marco na história das ideias brasileiras pois sintetiza o “momento de entrada
de todo um novo ideário positivo-evolucionista em que os modelos raciais de análise cumprem um papel fundamental”
(Schwarcz, 2008: 14).
94
Interessante o comentário desse autor também relativamente ao fim do Império: “Poder-se-ia dizer mesmo que o Império
terminara em 1870: desde então as novas idéias exigiam uma forma de governo mais consentânea com as aspirações de
liberdade; mais ‘moderna’ em relação ao espírito científico” (BARROS, 1986: 7).
101
Em sentido macro, portanto, a civilização obedeceria a um processo histórico único de
evolução, mas o estágio de desenvolvimento de cada sociedade corresponderia à sua fase
evolutiva neste processo.
Significava um alto grau evolutivo social o reconhecimento concreto das liberdades e
da igualdades. No caso brasileiro, diferentemente do que aconteceu com a introdução do
liberalismo europeu, pleiteava-se ainda a efetivação de direitos básicos através da
remodelação ou eliminação de instituições inconciliáveis com as novas pretensões, como era
o caso, por exemplo, da escravidão e da vinculação entre Igreja e Estado.
Ao lado do liberalismo, o cientificismo angariou seus representantes brasileiros. Mais
uma vez, Barros distingue um do outro pelo ponto de partida, se bem que, em geral, o ponto
de chegada era o mesmo: o primeiro partia do valor para implementar ações (“a legislação
adequada pode transformar o povo”), enquanto o segundo partia do ser, do conhecimento do
real, para o dever-ser (“o povo adequado pode transformar a legislação”).
De acordo com os valores cientificistas, a “marcha fatal” do universo físico também se
verifica no universo humano, pois este pertence ao mesmo mundo daquele, porém em nível
mais complexo. Daí porque Barros entende ter o novo cientificismo, o do final do século
XIX, uma perspectiva dinâmica, histórica, de desenvolvimento, de evolução, ou seja, “o
mundo humano, enquanto objeto de conhecimento, não é mais dado como algo que é, mas
como algo que vem a ser(idem, 1986: 109). O objeto dinâmico de conhecimento integra a
sociologia, a biologia, a psicologia, a criminologia etc.
A conduta humana passa a ser apreciada de forma individualizada, contudo em relação
à etapa do progresso da humanidade. Em outras palavras, o comportamento do indivíduo deve
ser avaliado na conformidade de suas particularidades biopsicológicas, mas, ao mesmo tempo,
os “biologismos” e os psicologismos” estavam imersos na dinâmica universal da evolução,
pelo contributo do materialismo, positivismo
95
, darwinismo, spencerismo e haeckelianismo.
Se o Brasil da primeira metade do século retrasado estava começando a receber os
informes de um cientificismo, nosso país, na segunda metade daquele mesmo século, estava
começando a se inscrever num cientificismo positivista e darwinista, pelo qual se
proporcionou ultrapassar eficazmente os umbrais da Faculdade de Medicina para se estender a
outros campos, como a política, a educação, o direito. Ao associar o estado individual do
nacional com o estágio de desenvolvimento universal, a intelectualidade permitiu a
visualização de um papel maior da ciência médica, não circunscrito ao organismo pessoal,
95
Barros reduz o termo “positivismo” à doutrina de Comte, mas concorda que, em termos mais gerais, poderíamos substituir
“cientificismo” por aquele.
102
mas prescrevendo a terapêutica ao organismo social. Este movimento de ampliação da
intervenção médica é também registro indireto do objetivo de se elevar a nação brasileira à
mesma fase de algumas nações europeias, notadamente a França ou a Alemanha.
Trazendo para âmbito da Antropologia Criminal, a qual ganhou repercussão
internacional também na década de setenta dos oitocentos, é forte a suposição de que o
contexto vivido pela intelectualidade nacional favoreceu a recepção das teorias estrangeiras e
inverteu a sequência dos fatos: o positivismo fez-se cientificismo (idem, ibidem: 145). Por aí,
talvez exista uma suspeita de que a Criminologia francesa teve mais impacto sobre as
produções nacionais do que a italiana, excetuando as construções de João Vieira de Araújo,
Nina Rodrigues e outros que veremos no capítulo seguinte.
De qualquer modo, no Brasil, a tutela do criminoso também passou a ser disputada
pela Justiça e pela Medicina. Se, de início, esta era mais neurológica do que propriamente
psiquiátrica, foi aos poucos, com a maturidade da tecnologia médica do século XX,
incorporando mais esta última e dispensando os parâmetros antropométricos. Os chamados
crimes sem razão abriram grandemente a porta para a entrada da psiquiatria na esfera criminal
e, à medida em que ela foi adentrando, foi diminuindo a importância das medições e da
antropometria: “uma das consequências da psiquiatrização crescente do exame médico-legal
foi o recuo da antropometria. Dos tempos gloriosos de fins do XIX, quando Lombroso era
vivo e a superfície do corpo, sua aparência e suas medidas podiam representar as janelas da
alma, quase nada sobrevivia nos anos 30 e 40”. (FERLA, 2005: 169). Não que elas tenham
deixado de perfazer o conteúdo dos exames médico-legais, mas a relevância de outrora não
mais se punha.
Antes de 1870, portanto, a intervenção médica no campo criminológico era bem
tímida, resguardada aos casos em que era necessária a constatação de que o agente era um
louco de todo gênero para efeitos de desculpabilização constatação, esta, reclamada como
questão de fato (a evidência da alienação pelo senso comum), por alguns, e questão de direito,
por outros (a avaliação técnico-científica não condicionaria a decisão judicial
96
). Depois, a
partir da generalização da patologias mentais, com um certo número de “doenças
comportamentais principalmente, a partir das teorias do atavismo e da degeneração –, a
figura do médico-perito se tornou indispensável tanto para proceder ao diagnóstico do louco
(fosse o louco moral, o degenerado, o alienado etc.), quanto para o tratamento mais
96
Quando requerido, o exame de sanidade deveria ser feito e explicado perante o júri, obrigando o Juiz a quesitar. No
entanto, ainda que de notoriedade pública, somente o júri poderia considerar a loucura para os efeitos de irresponsabilidade
criminal (PERES e NERY FILHO, 2002: 337).
103
humanizado e mais adequado no que tange à resposta penal correta e suficiente para quem
realizou o fato definido em lei como crime.
Ademais, com o programa higienista, a medicina social construiu planos de ação
preventiva, unindo a “limpeza” dos focos de doença a padrões de comportamento moral, que
exigiam a adequação da população ao que teria sido rotulado de puro, sadio, saudável. Fugir
desses padrões caracterizava infração penal e, no fundo, representava uma certa forma de
loucura: o que podia levar alguém a o aderir às normas da sociedade, as quais pretendiam,
no final, a sua própria proteção e bem-estar? A classe intelectual dominante tinha dificuldades
de compreender a “renúncia racional” aos códigos vigentes por certas camadas sociais e, por
conseguinte, as tentativas de responder a tais inquietantes perguntas vinham, geralmente, pela
desvinculação dos comportamentos aos valores morais.
Nesse ponto, o Judiciário e a Medicina se aproximavam. As explicações por certa
amoralidade comportamental agradavam aos parâmetros com que o Judiciário estava
habituado a lidar e, por outro lado, possibilitavam os médicos a definir a (ir)responsabilidade
do agente com base em sua “vida pregressa”, o histórico de sua existência e ainda de seus
parentes. Ao mesmo tempo, a confusa relação entre medicina e direito penal, que tanto
favoreceu as publicações da Criminologia Científica ou Positiva, ao ser transplantada para os
Asilos de Alienados ou para, depois, os Manicômios Judiciários, transpareceu o obscuro
limite entre o tratamento psicopatológico e o tratamento moral ou a ambiguidade entre a
instituição da prisão e a instituição do asilo.
Assim, se no texto legal parecia clara a diferença entre os imputáveis e os inimputáveis
e, consequentemente, o tipo de reclusão/internação que deveriam receber, bem como o
cuidado técnico a ser-lhe dirigido, se médico ou jurídico, no plano concreto, todavia, as
práticas institucionais eram dúbias e pouco definidas. Primeiramente, não havia consenso
sobre a elasticidade da interpretação da legislação, pois, afinal, qual o alcance da expressão
louco de todo gênero? Ou com o Código de 1890, o alcance da expressão completa privação
de sentidos e de inteligência? Em segundo lugar, exigia-se adequação “moral” ao louco, bem
como superação à “patologia” do criminoso. Falava-se em Manicômio ou em seção especial
no Hospício para os “loucos-criminosos” e presídios específicos para “reincidentes
incorrigíveis”, ou seja, de certo modo, a prisão se fez asilo e o asilo se fez prisão, guardando
entre si a característica das instituições totais (GOFFMAN, 2008).
Com efeito, a progressiva intervenção da medicina psiquiátrica na justiça vai, aos
poucos, incorporando outros comportamentos delituosos em que se põe a questão da
culpabilidade. Tradicionalmente, não praticava crime aquele que sofria de delírio e que
104
possuía distúrbios, mas, diante das monomanias, degenerações, atavismos e outras
complexidades mentais, o médico se na legitimidade de questionar o funcionamento do
direito de punir, quando aplicado em situações onde os motivos desaparecem e o fato parece
sem explicação plausível, racional
97
. Vê-se também perante o desafio de averiguar a
responsabilidade ou não do agente, de evitar o erro de se condenar um louco ou de se
inocentar um criminoso que pudesse estar tentando se passar por louco.
Por seu turno, a “interferência” do saber-poder médico e sua “pretensão” em ampliar
os casos de desculpabilização, incomodou muitos juristas. Questionável, por si só, a
competência da Medicina e questionável também sua legitimidade para decidir o destino de
alguém que está submetido à Justiça. Os conflitos de atribuição entre os médicos e os juristas
foram, então, inevitáveis igualmente aqui, quando os exames passaram a constituir um
instrumento de poder sobre o destino das pessoas. E, como instrumento de poder, se tornaram
alvo de disputa e de conflitualidade, tanto internamente, pelas divergências teóricas entre os
próprios médicos, quanto externamente, no embate com a polícia e com o judiciário.
Pondera Ferla (2005) que os principais “adversários” desta produção médico-
científica, em que o laudo se concretizava como diagnóstico da verdade, se personificavam no
material policial produzido, muitas vezes por meio de tortura; nos veredictos leigos do júri;
nas provas atécnicas, como a testemunhal.
De fato, além das veementes opiniões contrárias ao Tribunal do Júri, os cientistas da
época também se voltaram contra os testemunhos, a ponto de propor a realização dos exames
de sanidade mental também nas testemunhas, conforme propunham Ferreira Antunes e
Juliano Moreira.
A crença na certeza da perícia motivou esse projeto de estender os exames médico-
legais para outros indivíduos relacionados ao processo, bem como instigou médicos influentes
a propor a obrigatoriedade destes exames a todos os delinquentes e não quando houvesse
requisição judicial.
A medicalização do criminoso brasileiro eclodiu no fim do século XIX, portanto, por
uma série de fatores presentes nesse momento histórico de profusão científica, que permitiria
a “elevação” de nosso país à categoria de nação civilizada. Seriam necessárias várias medidas
97
Trata-se de casos como o de Henriette Cornier e Pierre Rivière, estudados por Foucault. Para Robert Castel: “Essas
exceções literalmente transtornantes questionam o direito de punir ao nível de seu funcionamento. Atos tão deslocados que
não podem mais ser recodificados em termos de motivos. Eles desconcertam toda e qualquer justificativa racional da
sanção, pois não podem ser referidos a nenhum cálculo. Que o aparelho da gestão da loucura o assuma, portanto” (Castel,
1978: 169).
105
não só no campo do Direito e da Política, mas também da Literatura, da Economia, da
Filosofia e da Educação
98
.
Acontece que, enquanto na Europa, a Escola Positiva da Criminologia veio cem anos
depois da conquista de direitos civis pelo reconhecimento das liberdades e igualdades, no
Brasil, a reivindicação pela Escola Científica-Liberal veio simultânea às reivindicações pela
efetivação das garantias básicas, como a liberdade de consciência
99
. Não é de se estranhar,
pois, que o primeiro Código Criminal da República, apesar de datar de 1890, tenha
incorporado pouco da doutrina Positiva, sendo mais fiel à Escola Clássica. Era necessário,
primeiro, implementar o novo Estado e, paulatinamente, aprender a lidar com a nova estrutura
para, depois, avaliar a conveniência da adoção das teorias de Lombroso, Ferri e Garófalo, cuja
resistência já era manifestada por muitos.
Este trio italiano, entretanto, teve a capacidade de estimular novas reflexões e de
avançar na medicalização do criminoso, garantindo o espaço do saber médico no Judiciário.
Como tais questões muito se desenvolveram em razão do estudo do cérebro, principiando com
a fisiologia, optei pela análise de como o sistema de Gall pode se constituir em um primórdio
da Antropologia Criminal, quer seja pela crença na ciência; pelo questionamento da noção de
livre arbítrio; pelo enfoque no delinquente e não no delito; pela proposta de classificá-los;
pela afirmação a respeito de tendências inatas; pelas explicações fundadas na organização
cerebral; pelo reflexo craniano dessas tendências; pelas mensurações e aspecto crânio-facial;
pelas medidas preventivas propostas; pelo tratamento em vez de punição.
Busquei, assim, uma possível recepção das ideias frenológicas pela medicina brasileira
a fim de verificar se alguns intelectuais brasileiros foram tão influentes na Escola Positiva da
Criminologia nacional quanto suponho que Gall tenha sido para Lombroso.
2.1.1 – O IMPACTO DA FRENOLOGIA NA ACADEMIA NACIONAL
Ficou claro que a reação científica fincou seu caule nos últimos anos do Império, se
associando aos novos valores “liberais” e “modernos” para defender a elevação do Brasil ao
98
“é preciso substituir o romantismo pelo naturalismo, em literatura; o direito natural pelo direito positivo, na
jurisprudência; o espiritualismo pelo monismo, positivista ou materialista, em filosofia; a monarquia pela república, em
política; o privilégio pela livre concorrência, em economia, em educação; é preciso libertar a consciência do artificialismo
das imposições constitucionais, para submetê-la apenas ao seu determinismo natural e às legítimas injunções coletivas; é
preciso tornar livre o trabalho, rever a situação da mulher, reexaminar a concepção do Estado” (BARROS, 1986: 172).
99
“A própria Constituição, o código criminal, os estatutos das faculdades imperiais – aquela consagrando o culto oficial,
esse a ilegalidade do ateísmo, estes o juramento católico, a proibição de ofensas à religião do estado – não limitavam a
ponto senão de anular, de tornar pelo menos irrisória a liberdade de consciência garantida pela lei fundamental do país?”
(idem, ibidem: 92).
106
nível de “civilidade” de alguns países europeus, preparando o terreno para o advento da
República. No entanto, também convém restar claro que as raízes deste caule começaram a se
desenvolver um pouco antes, notadamente na primeira metade do século XIX.
Exemplos desse movimento inicial na direção da “Ciência Médica” estão em teses das
Faculdades de Medicina, buscando na realidade dos fatos, na metodologia empírica, nos
paradigmas anatomopatológicos, o fundamento para o abandono das especulações
metafísicas, inclusive no que tange aos valores morais, aos aspectos psíquicos e às
considerações sobre a alma.
Exemplos de aceitação do cientificismo no campo cerebral estão em duas teses
elaboradas no Rio de Janeiro e outra escrita na Bahia, mesmo com as críticas desta última ao
sistema de Gall.
Domingos Marinho de Azevedo Americano defendeu Dissertação sobre Phrenologia
perante a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 15 de dezembro de 1838. Logo na
apresentação, comenta sobre o estudo da “maior importância” de que se têm ocupado os
“gênios de todos os tempos e países”; um estudo sobre o conhecimento do homem e as
estreitas relações que unem entre si sua parte física e moral; e se “nenhuma outra sciencia
melhor que a phrenologia pode conduzir-nos á estes resultados, claro fica, que não deixava
de ser util huma these, que, concebida debaixo deste ponto de vista, começasse a divulgar
entre nós os principios de huma sciencia nova, e de tanta importancia e originalidade”
(idem, 1838: III). Errar com a frenologia era preferível, segundo Americano, a acertar com a
filosofia, pois para ele “o philosopho, que não for medico, he incapaz para estudar o homem,
e deve ser expulso deste dominio como invasor de alheias propriedades”
100
(idem, ibidem:
III).
Como discente da renomada Faculdade de Medicina da Capital do Império, teve ele a
oportunidade de estar em contato com as obras de Manoel do Valadão Pimentel, um dos
primeiros autores de língua portuguesa a estudar a frenologia. De forma bastante sintética,
entretanto, a conceitua como “sciencia, que trata das faculdades intellectuaes e moraes do
homem, e dos orgãos, que servem para seu exercicio, e manifestação” (idem, ibidem: 1).
100
Mais adiante, explica sua premissa: “Sendo a alma humana huma substancia espiritual, inaccessivel aos nossos sentidos,
e por conseguinte fora da esphera das observações directas, claro fica que a manifestação de suas faculdades não se
effectuando se não por meio da organisação, esta deve ser a mais importante base de huma philosophia racional. E se a
organisação he a condição indispensavel para a effectividade da intelligencia, se o estudo material e funccional de suas
partes he da alçada da anatomia, e physiologia, estas duas sciencias devem igualmente entrar nos calculos dos philosopho, e
do moralista. Se isto he ínnegavel, o homem deve ser estudado como os de mais seres organisados, e por conseguinte
submettido aos mesmos processos, ás mesmas analyses, que emprega o anatomista, o chimico, e o botanista na pesquiza das
propriedades, e funcções da materia. He necessario portanto estuda-lo, não no gabinete como fazem os metaphysicos, mas
sim no theatro do natureza. He necessario ve-lo nascer, crescer, florecer, decair, e morrer” (AMERICANO, 1838: 2).
107
Sua tese traz divisão didática: na primeira parte, o autor faz a “analyse philosophica”.
Na segunda, apresenta as “Bases fundamentaes da phrenologia” e, na terceira, a “Organologia
Especial”, com a classificação e a descrição das faculdades, estabelecendo aquelas que são de
primeira ordem (os instintos: amatividade, philogenitura, habitatividade, affeccionividade,
combatividade, destructividade, alimentividade, vitalidade ou amor da vida, secretividade,
acquisividade, constructividade), de segunda ordem (os sentimentos: estima de si,
approbatividade, circunspectividade, beneficencia, veneratividade, firmez, conscienciosidade,
esperança, maravilhosidade, idealidade, causticidade, imitatividade) e de terceira ordem
(inteligência: a) das faculdades perceptivas: individualidade, configuratividade, extensão,
tactividade, coloridade, localidade, numeratividade, ordenatividade, eventualidade, tempo,
melodia e tons, linguagem; b) das faculdades reflectivas: comparatividade e causalidade). Ao
fim, resume as proposições frenológicas em onze postulados
101
.
Sobre “proposições frenológicas” também disserta Antônio Pereira D’Araujo Pinto,
todavia de modo bem mais extenso. Aliás, o tulo de seu trabalho era justamente Algumas
Proposições de Phrenologia, precedida de considerações muito geraes sobre a matéria,
trabalho, este, apresentado aos 15 de dezembro de 1841 na mesma Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro. Para o então candidato à formatura, os frenologistas eram inimigos de
hipóteses e teorias vãs, posto que viam exclusivamente no cérebro o móvel e o instrumento da
atividade humana:
Quando lhes fallecessem os feitos da organisação cerebral, quando as manifestações
phisiologicas d’este orgão não viessem em seu abono, bastavão as seguintes considerações
para dar-lhes por huma vez a convicção firme e positiva, de que o cerebro he tudo para o
101
“Proposiçoens phrenologicas:
I – Todos os phenomenos do mundo material são primitivamente effeitos da combinação e da forma das partes elementares,
e não existe força ou qualidade sensivel sem materia.
II – Existèm tantas forças ou qualidades differentes, quanto ha de principios elementares differentes, e quanto suas
combinações e suas fórmas differem; consequentemente deve-se inferir de huma organisação differente qualidades
differentes, e de qualidades differentes huma differente organisação.
III – As forças ou as qualidades dos principios elementares, assim como as qualidades, que resultão da diversidade de suas
combinações, de suas fórmas, e de suas relações, não podem ser conhecidas senão pela experiencia.
IV – Todos os phenomenos da materia vivente não podem ser attribuidos aos nervos; nos animaes mais perfeitos, sobre tudo,
os nervos contribuem para a nutrição, a digestão, a respiração, a producção do calor etc.; porem elles não executão sós
estas operações.
V – Cada systema nervoso parcial tem suas funcçoens particulares, posto que elles exerção todos huma influencia reciproca,
e que sejão todos mais ou menos subordinados huns aos outros.
VI – Todos os systemas nervosos podem debaixo de certas condiçoens produzir sensaçoens no cerebro; porem todos não
podem ser empregados no movimento voluntario.
VII – Todos os systemas não transmittem todas as irritaçoens ao cerebro; porem cada systema recebe e transmitte principal
e especialmente tal ou tal irritação.
VIII – Os ganglios e os plexos não ambaração nem em totalidade nem em parte a acção reciproca de cerebro e dos outros
systemas nervosos.
IX – As funcçoens de cada systema nervoso em particular não se manifestão senão em proporção de seu desenvolvimento.
X – A potencia de cada systema está na razão directa de seu desenvolvimento.
XI – A pluralidade dos orgãos, que são necessarios para hum fim commum, não exclue a unidade de sua acção; assim huma
vida tem lugar com muitos orgãos, e huma só vontade com muitos instrumentos do movimento voluntario” (Idem, ibidem:
67-8).
108
homem, e que sem o cerebro seria elle, quando muito, hum mero automato. 1ª. Todas as
partes do corpo podem–se lesar, sem que os phenomenos affectivos e intellectuaes se
aniquilem. 2ª. Não se observa huma manifestação de intelligencia sem cerebro. 3ª. Hum
desenvolvimento anormál da massa encephalica prejudica e impede phenomenos affectivos e
intellectuaes. 4ª. A experiencia tem demonstrado, que a mór parte das grandes intelligenciais
tem tido por instrumento hum cerebro mais volumoso. 5ª. Algumas faculdades mentaes são
mais activas nos homens, e outras nas mulheres, a medida que o cerebro de hum e outro sexo
igualmente varia. 6ª. Que ha caracteres nacionaes assim como ha cabeças nacionaes. 7ª. Que
os phenomenos da percepção e conhecimento varião na rasão directa da desigualdade do
cerebro nos diversos periodos da vida” (PINTO, 1841: 5-6).
Estendendo as proposições para cinquenta
102
, Pinto deixa transparecer que, ao longo
do tempo, médicos brasileiros também se debruçaram mais sobre a doutrina frenológica,
102
“1º. A Phrenologia he a phiziologia do cerebro; 2º. As faculdades são multiplas: o cerebro he seo instrumento; 3º.
Segundo as experiencias de Gall e Spurzhein, em harmonia com as idéas de muitos philosophos, ha substancia branca do
cerebro, que forma os orgãos que presidem a estas faculdades. Broussais adopta esta propozição, e eu a creio; 4ª.
Despresando as muitas divisões genericas, que tantos psycologistas apotheozárão, a phrenologia as classifica em tres
ordens: instinctos, sentimentos, e faculdades intellectuaes propriamente dictas. Esta doutrina me lisongéa e convence; 5ª. As
tres ordens de faculdades tem por instrumento massas distinctas; 6ª. Conforme as experiencias já mencionadas, o cerebello e
seos lobolos, bem como os posteriores e lateraes do cerebro, são os que servem á manifestação dos instinctos: a parte
superior dos hemispherios, a dos sentimentos, e a porção anterior, a das faculdades intellectuaes propriamente dictas; 7ª. Os
orgãos para cada huma das faculdades nascem, neste caso, da subdivizão das massas; 8ª. Estes orgãos, guardadas as
proporções de vitalidade, apenas impressionados, entrão em acção; 9ª. As impressões dispertão e exaltão a funcção
cerebral: logo compete-lhes o nome de estimulo; 10ª. He bem reconhecido que estes estimulos nascem humas vezes do
interior e outras do exterior; 11ª. Delles resultão, como já está sub-entendido, os instinctos, sentimentos e faculdades
intellecutaes; ao que se deve reunir os movimentos; 12ª. Os instinctos, que nascem por occasião do estimulo na massa
posterior e lateral do cerebro, provocão os movimentos necessarios á conservação da vida. Elles dividem-se em instinctos
propriamente dictos e inclinações; e são communs aos homens e aos animaes; 13ª. Os instinctos, que resultão do estimulo
sobre a massa superior do cerebro, segundo as idéas de Gall, não são outra cousa mais do que instinctos de huma ordem
mais elevada. Por elles busca o homem a vida em sociedade. 14ª. Destes sentimentos huns partilha o homem com o resto dos
animaes, outros são o apanagio exclusivo delle. Broussais porêm pensa que os animaes das classes mais elevadas parecem
possuir tambem os ultimos; 15ª. As faculdades intellectuaes dividem-se em perceptivas e reflectivas; 16ª. As faculdades
perceptivas nos fazem conhecer as sensações internas e o mundo externo; 17ª. As reflectivas, dom exclusivo do homem,
elabórão as impressões e os sentimentos para a formação dos actos, que nos elevão á cathegoria de racionalidade, em que
nos achamos; 18ª. Os movimentos partem do cerebro depois de estimulado; 19ª. He por meio dos nervos, que lhe são
proprios, que o cerebro transmitte sua vitalidade: destes huns fazem-se sentir nos orgãos interiores, outros externamente.
Aqui he bem apreciado o valor dos musculos; 20ª. Os orgãos de cada faculdade são pares e symetricos; 21ª. A maioria dos
casos diviza-se mais ou menos na superficie externa do craneo o signal das elevações da massa encephalica; 22ª. O
exercicio provóca o desenvolvimento material os orgão, e subministra-lhes facilidade de acção; 23ª. O poder de
manifestação de hum orgão está na razão directa de seo desenvolvimento; e tambem do gráo de excitabilidade; por que póde
acontecer que em volume igual as fibras nervozas movão-se com mais facilidade em huns individuos que em outros sob a
influencia do mesmo poder estimulante; 24ª. Como explicar esta excitabilidade nervosa particular a certos individuos não só
de differente, mas ainda da mesma especie? No estado actual da sciencia só poderemos responder com hypotheses; 25ª. A
natureza dando-nos algum regozijo nos trabalhos de nossas faculdades, quiz desta sorte, como que obrigar-nos a exercel-as,
a fim de as termos sempre em gráo conveniente de excitabilidade; 26ª. Nenhuma faculdade he má em si mesma: ao contrario
são todas origem de prazer legitimo, quando devidamente exercitadas; 27ª. Huma faculdade obrando com energia, póde
servir para excitar outra ou muitas outras; 28ª. A alteração de hum orgão perverte a funcção, mas não aniquila a faculdade;
29. Pode hum orgão ser mais desenvolvido em hum individuo que em outro, sem comtudo dominar no primeiro; 30ª. Hum
orgão póde ser mais desenvolvido que outros, sem comtudo dominar; 31ª. Gall admitte vinte e sete orgãos; Spurzhein trinta
e cinco, e depois d’elles alguns tem admittido trinta e sete; 32ª. Não penso que se tenha chegado a huma divizão exacta; mas
julgo que he forçozo admittil-a por momento, afim de melhor se averiguarem os factos sobre que ella se apoia, e então
conhecermos a verdade; 33ª. Ha circumvolações no cerebro, cujo volume durante a vida não se póde apreciar; mas que por
analogia suppõe-se corresponder á algumas faculdades affectivas; 34ª. As faculdades que primeiro se manifestão no homem,
são os instinctos; depois os sentimentos; e muito mais tarde a intelligencia. PROPOSIÇÕES DE PHRENOLOGIA
APPLICADA: 35ª. A phrenologia dirige o homem no cumprimento de seos deveres: revéla seos direitos; e lhe mostra quanto
elle, superior as vicissitudes de sua organisação, póde conseguir da subida intelligencia, que lhe deo a natureza; 36ª.
Estudando as nossas faculdade e as relações entre ellas reconhecidas, a phrenologia demonstra a influencia secundaria, que
tem a organisação cerebral sobre os actos da intelligencia; 37ª. A phrenologia póde mesmo determinar a organisação
phizica mais favoravel á boa moral do homem; 38ª. Exercitar e manter todas as nossas faculdades com harmonia he o
grande desideratum da educação; e quem melhor o consegue do que a sciencia phrenologica?; 39ª. Na applicação desta
sciencia aos principios de educação, deve-se ter bastante cuidado em conservar o predominio da intelligencia e dos
sentimentos moraes, 40ª. Não convêm de modo algum desenvolver disproporcionalmente hum só orgão: da falta de
equilibrio das faculdades pode resultar a mania ou a loucura; 41ª. A proposição precedente he tanto mais verdadeira,
109
investindo energia intelectual na compreensão dos princípios e no convencimento dos colegas
da utilidade de uma tese como aquela que apresentavam.
Não obstante, tanto na literatura secundária quanto na relação do conjunto de teses
defendidas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, algumas disponíveis na Biblioteca
Nacional, não se faz parecer que a frenologia tenha tido a mesma repercussão que alcançou na
Europa e nos Estados Unidos. Fosse para aplaudir ou para questionar, fato é que ela foi mais
expressiva quantitativamente no estrangeiro do que em nosso país. Não encontrei registros
sequer de que esta prática tenha sido aceita popularmente, como nos espetáculos de
adivinhações de Spurzheim, com plateia geralmente numerosa. Talvez pela pouca
credibilidade científica, talvez pela incriminação do charlatanismo a que poderiam ser
acusados seus praticantes, parece mesmo que na região sudeste não obteve tanto sucesso.
No entanto, cogita-se da influência nas obras de Nina Rodrigues via Lombroso e via
Guedes Cabral, este a contrário senso. Como veremos a seguir.
2.1.2 – UMA TESE POLÊMICA: GUEDES CABRAL
Sobre uma terceira tese, escrita por Domingos Guedes Cabral, na Bahia, convém traçar
sublinhados porquanto promoveu grande polêmica na Faculdade de Medicina daquele Estado.
Por pressão e organização dos próprios alunos, os quais assinam nota introdutória como “os
doutorandos de 1875”, foi dada “à publicidade a obra que aquele nosso colega destinara
para sua tese inaugural, e que foi reconhecido não poder sê-lo, em vista de disposições
regulamentares da Faculdade”. À rejeição de sua tese por questões legais, se opôs a
comunidade discente que, como manifesto, fez publicar o trabalho.
Não se trata, exatamente, de uma tese sobre frenologia, mas sim sobre “Funções do
Cérebro”. Nos moldes do cientificismo que informou o pensamento social e político da
“ilustração brasileira” (BARROS, 1986), Guedes Cabral uniu materialismo, positivismo e
darwinismo, numa roupagem pretensamente menos atécnica e menos adivinhativa, dando-nos
a dimensão do impacto no Brasil das teorias em voga na Europa.
quanto as faculdades affectivas forem menos desenvolvidas em qualquer sugeito; 42. Na educação póde-se combater o
predominio excluzivo e vicioso de um orgão com o exercicio e desenvolvimento do que lhe he opposto; 43ª. A falta total de
actividade de um orgão póde dar nascimento á molestias, e mesmo á morte; 44ª. O homem nascido e educado em sociedade,
e tendo seos orgãos cerebraes bem desenvolvidos, póde perecer, sendo condemnado ao retiro e á solidão; 45ª. O bem estar
do individuo está ligado ao exercicio de todos os seos orgão; 46ª. Quando a razão se perde, cada orgão toma a sua acção
predominante; 47ª. Na monomania e na loucura a lezão póde estar em orgão diverso d’aquelle que predomina; 48ª. Em
algumas alienações mentaes podem não soffrer os orgãos intellectuaes; e assim o alienado tem consciencia de sua loucura;
49ª. Hum systema de correcção fundado sobre bases phrenologicas, não deixará de ser eminentemente util; 50ª. A
phrenologia póde prestar valiosos socorros no tratamento da monomania, e algumas vezes no da loucura.” (PINTO, 1841:
23-9).
110
Cabral parte de uma premissa evolucionista em que atribui ao grau de perfeição animal
a complexidade da organização do cérebro. Dedica-se à relação entre cérebro, sensação,
movimento, pensamento e passa às análises fisio-patológicas, à mecânica cerebral, para
chegar ao campo das ideias. Em capítulo adiantado, questiona “há sedes distintas para as
faculdades intelectuais?” e sua resposta, apoiada nas lições de Flourens e no microscópio de
Luys, mostra divergência às conclusões de Gall: “conseguintemente, em rigor fisiológico, o
sistema de Gall aplicado à inteligência não se justifica” (CABRAL, 1876: 114).
Mais à frente, indaga se se localizam no cérebro as faculdade afetivas, as aptidões
morais, as inclinações, e sua negativa repousa nas mesmas “razões que nos fizeram repugnar
esse sistema aplicado à inteligência” (idem, ibidem: 124).
É forte, então, a conclusão de que Cabral não comunga do localizacionismo proposto
por Gall, todavia é bastante claro o destaque que ao cérebro como órgão precípuo do
sistema sensório-motor, bem como das emoções e das condutas. Na ênfase atribuída ao
cérebro totalizante, logo no capítulo I traz epígrafe em que cita Ficher: “O cérebro!...é o
homem” (idem, ibidem: 15).
Na linha de desenvolvimento de seu trabalho, dedica o último capítulo às paixões, no
qual faz considerações sobre o comportamento criminoso. Paradoxalmente, apesar de dizer
não acatar o sistema frenológico, Cabral se apropria de certas categorias para falar em “vício
na estrutura ou no mecanismo do órgão do pensamento” ou para dizer que “o ignorante é o
homem em que se não exercitaram convenientemente, totalmente os elementos do cérebro”
(idem, ibidem: 129).
Nesse ponto, Cabral encarna bem o espírito conflituoso do cientista do terceiro quartel
do século, pois, após as derrocadas da frenologia, era arriscado intitular-se um frenologista.
Ao mesmo tempo, porém, a doutrina de Gall fornecia as ferramentas de onde se poderia partir
para conjugar fisiologia cerebral e moralidade, organização fisiológica e conduta. De fato,
entretanto, outras referência da época poderiam ser invocadas para dar sustentação à sua tese
científica, referências menos problemáticas em termos de críticas a um pseudocientificismo
ou a charlatanismo.
Amparando-se em Darwin e Haeckel, o autor baiano impulsionou seus colegas da
medicina a trilharem os rumos evolucionistas, preparando o terreno para que novos trabalhos
dessa vertente positivista pudessem ter acolhida.
Com a rejeição da tese pela Faculdade da Bahia, o que, a princípio, tenderia a ficar
abafado, teve, ao contrário, uma repercussão ainda maior. A projeção deste episódio para fora
dos corredores da universidade, proporcionou, supõe-se, um alcance a número maior de
111
leitores e de curiosos. Ademais, o mal estar causado aos dirigentes da Instituição de Ensino
pela oposição ferrenha dos alunos ao ato de rejeição, provavelmente motivou aqueles a, a
partir de então, pensar e repensar qualquer decisão “punitiva” e radical como esta.
Considerando que além do Rio de Janeiro, o Nordeste brasileiro estava
tradicionalmente bem representado pela Bahia nas discussões do campo médico, é de se
suspeitar que a fama de Guedes Cabral tenha ultrapassado a divisão regional para alertar a
todos sobre outro ponto de conflito ainda no Brasil considerável: os limites entre o poder da
Ciência e da Religião, o risco de admitir-se materialista num Estado ainda não totalmente
desvinculado da Igreja. A prudência impunha reservas aos cientistas mais cautelosos,
contudo, simultaneamente, inflamava os mais convictos dos postulados liberais e da
laicização do Estado.
Não seria demasiado sugerir que no plano da relação medicina-crime no Brasil da
segunda metade do século XIX, especialmente da análise da conduta delituosa pela fisiologia
cerebral, a obra de Guedes Cabral reuniu condições para lhe atribuirmos o título de precursor
da Escola Positiva da Criminologia brasileira. Citando Roque Spencer em sua fala sobre
Pereira Barreto, porém adaptando-a a Cabral:
A obra de Pereira Barreto, em que pese a sua debilidade filosófica, revela, entretanto, o
amadurecimento da idéia positivista na consciência nacional (...). O terreno estava preparado
para a ofensiva positivista, que não iria fazer apenas por meio do futuro Apostolado, mas
principalmente pela ‘heterodoxia’ dos bacharéis, fiéis aos postulados básicos do liberalismo
mas acreditando convictamente na verdade incontestável da lei dos três estados
103
(BARROS, 1986: 127).
A originalidade de Cabral, portanto, também se manifesta na abordagem
criminológica. Sem citar Lombroso cuja obra provavelmente não lera que Lombroso se
popularizou internacionalmente com O Homem Delinquente, justamente em 1876 –, contribui
para a reflexão sobre a “infantilidade” do comportamento delituoso, valendo-se da mesma
estratégia de paralelismo que o autor italiano, e da consequente irresponsabilidade dos loucos
morais:
desde que não pensamento não há ação verdadeiramente dita, - segue-se que o ignorante,
como a criança em que se não desenvolve o cérebro com o ensino, é um ser irresponsável,
um homem com o cérebro incapaz de funcionar. E um ser nestas condições é
incontestavelmente um doente. Doente que não tem febre nem frio, nem convulsões, nem
dores, mas um hemiplégico talvez da inteligência, um desgraçado que sofre do que se
poderia chamar, e que se chamará talvez um dia – paralisia moral.
E fica o mísero entregue à potência que faz mover o músculo, ao domínio bárbaro da
substância branca... Fica a força muscular... o braço, que não tem mais um senhor a
obedecer... fica a besta, o tigre, a fera! (idem, ibidem: 130).
103
A lei dos três estados desenvolvida por A. Comte, explicando a passagem histórica do momento teológico, metafísico e
positivo.
112
Dando o tom da medicalização do criminoso, o autor expressamente declara que, se o
homem age dominado por causas orgânicas, sob o império da paixão, se seu cérebro não se
presta ao pensamento, anulando o conhecimento do ato, a questão é patológica; logo, cabe à
“mão sábia” do médico e à “droga do farmacêutico”, às “casas de saúde” e aos “hospícios de
caridade” dar o tratamento humanitário àqueles a que a “a sociedade chama um perverso, ao
que os códigos chamam um criminoso, [e que] a ciência chamará um dia apenas um
doente” (idem, ibidem: 135).
Com tais observações, ainda que quantitativamente não significativas (não mais que
dez páginas dedicadas a um positivismo criminológico), podemos atribuir a Cabral o mérito
da ousadia de antecipar, em solo brasileiro, as repercussões da antropologia criminal e as
conclusões tão aclamadas por Nina Rodrigues, o qual, por ser também baiano, provavelmente
teve acesso aos escritos de seu conterrâneo.
113
2.2
A ESCOLA POSITIVA DA CRIMINOLOGIA NACIONAL
2.2.1 - O CRIMINOSO NA OBRA DE NINA RODRIGUES
Os louros ficaram mesmo para Raimundo Nina Rodrigues. O médico e professor era
considerado por Lombroso o “Apóstolo da Antropologia Criminal no Novo-Mundo”. Uma de
suas obras de maior relevância foi As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brazil,
de 1894, cujo título já demonstra sua preocupação recorrente com as possíveis interrelações
entre características físicas-raciais e criminalidade. Organizada em sete capítulos, o autor
destaca 1º.) a criminalidade e a imputabilidade à luz da evolução social e mental; 2º.) o livre
arbítrio relativo nos criminalistas brasileiros; 3º.) as raças humanas nos códigos penais
brasileiros; 4º.) o Brasil antropológico e étnico; 5º.) a população brasileira no ponto de vista
da psicologia criminal índios e negros; 6º.) a população brasileira no ponto de vista da
psicologia criminal mestiços; 7º.) a defesa social no Brasil. Em homenagem, dedica o livro
aos chefes da nova escola criminalista, “Srs. Professores Cesare Lombroso (de Turin), Enrico
Ferri (de Pisa) e R. Garofalo (de Napoles); Ao chefe da nova escola medico-legal franceza,
Sr. Professor Alexandre Lacassagne (de Lyon); Ao Sr. Dr. Corre (de Brest), o medico-legista
dos climas quentes”.
Com o mesmo modelo evolucionista, Nina Rodrigues parte do princípio de que foi
com o aperfeiçoamento da série animal que se deu crescente complicação do sistema nervoso,
cuja composição histológica ou bioquímica da massa cerebral dependia de muitas cadas de
adaptação e de transmissão hereditária por muitas gerações. Nisso se incluíam os graus
sucessivos do desenvolvimento mental dos povos, os quais, dependendo de seu estágio
evolutivo, não estariam aptos a receber, de uma hora para outra, a civilidade de uma cultura
muito diferente. Assim como cada indivíduo tem seu ritmo de evolução, os povos têm seus
graus de evolução mental, daí “a impossibilidade de supprimir a intervenção do tempo nas
suas adaptações e a impossibilidade, portanto, de impor-se, de momento, a um povo, uma
civilisação incompatível com o gráo de seu desenvolvimento intellectual” (idem, 1894: 3).
Para exemplificar o atropelo do tempo e o insucesso de adaptação social, o autor se
refere aos aborígenes, dizendo estarem eles incapacitados organicamente para atender ao que
exigia a civilização. Tratava-se, portanto, de uma realidade material a que o estudo das raças
inferiores” poderia contribuir, fornecendo à ciência os casos em que as observações positivas
114
constatariam tal incapacidade orgânica, cerebral, afastando as especulações metafísicas da
filosofia espiritualista:
Applicado á genese das idéas do bem e do mal, do justo e do injusto, do direito e do dever
base moral e supposto fundamento do direito de punir da escola criminalista classica , o
methodo comparativo, que vimos operar tão grande revolução na psychologia, demonstra
que, longe de uma procedencia sobrenatural ou supra-sensivel, essas idéas não são mais do
que o resultado ideal da elaboração psychica por que passou o sentimento instinctivo de
defeza fatal e mesmo inconsciente nas suas manifestações reflexas primordiais.
A inneidade dellas, verificada pela analyse subjectiva nas raças superiores e que pareceu
justificar a crença na sua proveniência extra-natural, se explica ao contrario muito
naturalmente pela procedencia hereditaria, legado que foi de muitos seculos de repetição e
aperfeiçoamento, o que acabou por identifical-as e tornal-as inherentes ao aperfeiçoamento
psychico da humanidade (idem, ibidem: 8).
Argumentando a favor da relativização das ideias tidas como universais do bem e do
mal, do justo e do injusto de acordo com o país e a raça, contrapõe-se ao ensino oficial e
clássico do qual ainda estava impregnada a legislação brasileira. A antropologia, dizia ele,
seria a ciência capaz de desmentir essa universalidade através da comparação entre os povos
dos sentimentos de reprovação ou louvor, de criminalidade ou permissão, de punição ou de
prêmio, presentes em uma mesma época ou os sentimentos que um mesmo povo teve ao
longo de diversas épocas.
Assim é que a ideia de justiça, por exemplo, se apresenta hoje para nós diferentemente
de como se apresentava em momentos mais remotos e também se apresentava hoje para nós
diferentemente de como se apresenta ainda hoje para outros povos que tenham graus
diferenciados de evolução mental. Disso dependeria um aperfeiçoamento social que
paulatinamente, ao longo de gerações, vai inculcando no cérebro humano uma determinada
noção compartilhada entre aqueles que se encontrem no mesmo nível evolutivo. O mesmo se
daria com a noção de crime e de pena:
Por conseguinte, para que se possa exigir de um povo que todos os seus representantes
tenham o mesmo modo de sentir em relação ao crime, que formem todos da acção delictuosa
e punivel o mesmo conceito, para que a pena, aferida pela imputabilidade, não se torne um
absurdo, um contrasenso, indispensavel se faz que esse povo tenha chegado ao gráo de
homogeneidade que Tarde, inspirando-se nas suas theorias sobre a imitação, descreveu
magistralmente como o elemento social da identidade em que, em sua teoria, faz elle
consistir o criterio da responsabilidade penal (idem, ibidem: 16).
115
Ao se contrapor à uniformidade universal da legislação, defende um conjunto de leis
específico para determinadas regiões. Um Código Penal nacional e isonômico ofenderia um
postulado médico básico, o de que as pessoas são biologicamente distintas e, por isso, também
o são os sistemas culturais.
Nisso, Nina Rodrigues não estava sozinho. Os
redatores da Gazeta Médica da Bahia concordavam com
a imprescindibilidade de se criticar a igualdade jurídica
de nossa legislação. Não pra menos porque o chefe da
redação era justamente Nina. Ali, encontrava espaço para
defender seus ideais, publicando não seus comentários
à nova lei de higiene pública ou à pouca adesão da
comunidade médica à esta Revista, por exemplo, mas
também seus estudos evolucionistas e positivistas,
consoante a moderna ciência. Nesse sentido, encontramos
a publicação de Estudos de craniometria. O craneo do
salteador Lucas e o de um indio assassino, na edição de
junho de 1892.
As premissas do estudo de Nina Rodrigues foram
resumidas por ele da seguinte forma: a) a cada fase da evolução da humanidade, se se
comparam raças antropologicamente distintas, corresponde uma criminalidade própria,
compatível com o grau do seu desenvolvimento intelectual e moral; b) existe uma
impossibilidade material, orgânica, dos representantes das fases inferiores da evolução social
passarem bruscamente, em uma geração, sem transição lenta e gradual, ao grau de cultura
mental e social das fases superiores; c) perante as conclusões tanto da sociologia, como da
psicologia moderna, o postulado da vontade livre como base da responsabilidade penal se
pode discutir, sem flagrante absurdo, quando for aplicável a uma agremiação social muito
homogênea, que esteja num mesmo grau de cultura mental média (idem, ibidem: 19).
Ao considerar o acentuado desnível em que vivem as raças inferiores, o médico
sustenta que a organização fisiopsicológica destes indivíduos não comporta uma mesma
consciência do direito e do dever de que seriam possuidores os povos cultos em razão do
acúmulo de aperfeiçoamento transmitido hereditariamente durante a sua passagem da
selvageria ou da barbárie à civilização. Por isso, nada justifica responsabilizar os selvagens e
os bárbaros pela falta dessa consciência, do mesmo modo que não justificaria punir os
menores por não serem adultos ou os loucos por não serem sãos. Nina Rodrigues, nesse
116
sentido, se mostra em sintonia com a teoria do atavismo empregada por Lombroso, não se
fazendo de rogado ao declarar que constitui fonte dos atos violentos e anti-sociais a
impulsividade primitiva típica das raças inferiores; típica, pois coerente com os atos reflexos e
automáticos das espécies menos evoluídas. Ao contrário, quanto mais subirmos na escala
evolutiva, mais se esperam ações refletidas, amparadas em arranjos psíquicos de ordem mais
elevada.
Dentre os elementos antropológicos puros da população brasileira, o desafio residia na
averiguação da responsabilidade criminal do negro (representada pelos povos africanos e
pelos negros crioulos não mesclados) e do índio (ou raça vermelha, representada pelo
brasileiro guarani e por seus descendentes civilizados) incorporados à nossa sociedade, que
a raça branca (representada pelos brancos crioulos não mesclados e pelos europeus, ou de raça
latina, principalmente os portugueses e os italianos, ou de raça germânica, os teuto-brasileiros
do sul da republica) era o exemplar dos povos superiores. Os mestiços
104
também, por
carecerem de unidade antropológica, reforçavam a prova da necessidade de que a questão da
responsabilidade fosse solucionada sempre no nível individual. Senão, vejamos, diante da
perpetração de um crime por um negro ou por um índio excepcionalmente evoluído:
Para logo surgirá a duvida muito bem fundada, o problema imperioso de saber: se o conflito,
que a imposição, mais ou menos violenta, de uma civilisação superior, creou entre os
sentimentos moraes novos, superficiaes e ainda não completamente radicados de um lado, e
os instinctos antigos, cimentados e estratificados pela herança de uma longa cadeia de
antepassados, de outro lado, é ou não de ordem a perturbar tão profundamente o mecanismo
da determinação voluntaria, de modo a dar ganho de causa e predominio ás impulsões
instinctivas e indomaveis, criminosas no novo meio –, mas completamente inimputaveis”
(idem, ibidem: 84-5)
Se, à primeira vista, negros e índios merecem, por sua inferioridade a priori, uma
responsabilidade atenuada, certo é que outros negros e índios em estado selvagem são
totalmente irresponsáveis, segundo Nina Rodrigues. Quanto aos mestiços, dependendo do
estágio que o indivíduo se encontre na escala
105
evolutiva que vai do produto “inteiramente
104
“O conflicto, – que se estabelece no seio do organismo social pela tendencia a fazer, á força, iguaes perante a lei e seus
effeitos, raças realmente tão distinctas e desiguaes –, tem o seu simile e se deve realisar no seio do organismo individual, nos
casos de mestiçamento, que combina e funde de momento em um mesmo individuo qualidades physicas, physicologicas e
psychicas, não só distinctas, mas ainda de valor muito differente no ponto de vista do conceito evolutivo do aperfeiçoamento
humano. É verdade biologica bem conhecida que nos cruzamentos de especies differentes o exito é tanto menos favoravel
quanto mais afastadas na hierarquia zoologica estão entre si as especies que se cruzam” (idem, ibidem: 91).
105
Percebemos que a escala a que Nina Rodrigues se refere está relacionada aos três grupos de mestiços que ele
estabelece:“Entendo que se podem distribuir os mestiços por tres grupos distinctos. Primeiro, o dos mestiços superiores,
que, ou pela predominancia da raça civilisada na sua organisação hereditaria, ou por uma combinação mental feliz, de
accordo com a escola classica, devem ser julgados perfeitamente equilibrados e plenamente responsaveis. Segundo, o dos
mestiços evidentemente degenerados, que, em virtude de «anomalias de sua organisação physica, bem como de suas
faculdades intellectuaes e moraes», devem ser considerados, na phrase de Morel, «tristes representantes de variedades
doentias da especie». Estes, como já affirmava o eminente psychiatra, «não podem ser considerados como casos dessas
molestias ordinarias que teem a sua panacéa nas officinas pharmaceuticas, nem como a expressão de uma dessas tendencias
perversas cujo castigo se acha fixado nas disposições penaes de nossos codigos judiciarios». Dentre elles, uns devem ser
total, outro parcialmente irresponsaveis. Terceiro, finalmente a dos mestiços communs, productos socialmente aproveitaveis,
117
inaproveitável e degenerado” ao produto “válido e capaz de superior manifestação da
atividade mental” igual correspondência terá a responsabilidade moral e penal, desde a sua
completa negação em um extremo, até a sua afirmação no lado oposto. A intuição, todavia, é
a de que, por ser o mestiço um “híbrido social”, conta com um “defeito de organização”, uma
“insuficiência” ou “desarmonia do desenvolvimento fisiopsicológico”, devendo ser menos
responsável do que os brancos civilizados. Às raças inferiores
Falta-lhes a consciencia plena do direito de propriedade. E a consciencia do direito é
momento capital, elemento constitutivo da qualificação de criminalidade (Berner, Tobias
Barreto).
Domina-os a impulsividade. E a impulsividade, – seja pathologica por destruição morbida do
freio superior dos motivos psychicos de ordem mais elevada, das emoções nobres, seja
congenital ou constitucional por falta ou por insufficiencia do desenvolvimento desse freio –,
é sempre a mesma e tem o mesmo alcance. Em ambos os casos ella mantem dominada a livre
determinação voluntaria e destroe pela base toda e qualquer responsabilidade que se funde na
liberdade do querer” (idem, ibidem: 104-5).
Tendo a inferioridade de certas raças como forte convicção, Nina Rodrigues se
entusiasmou com a história de Antônio Conselheiro. Apesar de defender a análise
individualizada, o médico tomou todo o grupo de jagunços como objeto e generalizou o
diagnóstico ao intitular o episódio “a loucura epidêmica de Canudos”. Em primeiro plano, põe
a “vesania” que aflige a personagem principal e o meio propenso à sua proliferação: “é
examinada por este prisma que a cristalização do delírio de Antonio Conselheiro no terceiro
período da sua psychose progressiva reflete as condições sociologicas do meio em que se
organizou” (RODRIGUES, 1897: 4). A saga de Antonio Maciel é, então, estudada com
detalhes.
Sua história de missionário delirante pelos sertões da Bahia parece consubstanciar a
fase megalomaníaca do final de sua vida, após alguns meses de propaganda religiosa no
Ceará, de prisão por suspeição de crime com posterior absolvição e de descontentamento com
as mudanças políticas de secularização do fim da década de 1880. A instituição do governo
republicano provocou sua insubordinação ao governo civil e o reconhecimento deste governo
pelo clero incitou a revolta contra os poderes eclesiásticos. A luta armada começou.
Quando Nina Rodrigues escreveu esse relato, o exército se encontrava há três meses
em Canudos sem conseguir dar cabo da revolta. Intrigava-lhe, portanto, como um louco como
Conselheiro conseguira mobilizar tantas pessoas com sua palavra. A resposta, ele encontrou
nas características raciais dos jagunços, o qual
superiores ás raças selvagens de que provieram, mas que, já pelas qualidades herdadas dessas raças, já pelo desequilibrio
mental que nelles operou o cruzamento, não são equiparaveis ás raças superiores e acham-se em imminencia constante de
commetter acções anti-sociaes de que não podem ser plenamente responsaveis. São todos casos de responsabilidade
attenuada” (idem, ibidem:122).
118
é um producto tão mestiço no physico que reproduz os caracteres anthropologicos
combinados das raças de que provém, quanto hybrido nas suas manifestações sociaes que
representam a fusão quasi inviavel de civilizações muito desiguaes (...) revelam-se inteiriços
o carater indomavel do indio selvagem, o gosto pela vida errante e nomade, a resistencia aos
soffrimentos physicos, á fome, á sede, ás intemperies, decidido pendor pelas aventuras da
guerra cuja improvização elles descobrem no menor pretexto, sempre promptos e decididos
para as razzias das villas e povoados, para as depredações á mão armada, para as correrias de
todo o genero que os interesses do mando, as exigencias da politicagem e as ambições de
aventureiros fazem succeder-se de continuo por toda a vasta estensão das zonas pouco
habitadas do paiz (idem, ibidem: 11-2).
O ambiente era ideal para estimular os instintos guerreiros desses mestiços. Faziam o
que determinavam suas peculiaridades atávicas sem possuírem a capacidade mental por
desenvolvimento intelectual, ético e religioso insuficiente ou incompleto para compreender
as mudanças políticas que sofisticaram a encarnação do poder na lei republicana. A
dependência de uma voz de comando, da figura tradicional do monarca, foi, nas explicações
de Nina Rodrigues, a origem da força sugestiva de Conselheiro.
Em outro trabalho, o autor, além de aprofundar o estudo sobre as “collectividades
anormaes”, examina os casos de loucura a dois e, especialmente, o atentado da Praça Mauá:
Aos 5 de novembro de 1897, Marcellino Bispo tenta assassinar o então Presidente
Prudente de Morais, a mando de Deocleciano Martyr. Nina Rodrigues estuda o perfil do
executor e o classifica como um “regicida”, pois
Aos regicidas pertence elle [Marcellino] pela idade, pois contava apenas 22 annos e os
regicidas raramente têm mais de 30, oscillando de ordinario entre 20 e 25. Entre os regicidas
celebres tinham (...) Guiteau, 40, etc. E esta precocidade é a melhor prova de que as
solicitações psychicas que conduzem ao regicidio se encontram especialmente nos jovens,
exactamente como as demais manifestações da degenerescencia.
Pelos laços hereditarios, Bispo pertence tambem aos regicidas. É elle mestiço em sangue
muito proximo dos indios brasileiros, pois seus pais descendiam de indios do extincto
aldeiamento do Urúcú, em Alagôas. desta circumstancia se pode induzir o grau da sua
impulsividade hereditaria. Mas a autoridade que, por ordem do governo, abriu inquerito
sobre a familia de Bispo, informa que si os pais do assassino eram honestos, pacificos e
laboriosos, ‘houve outros parentes do criminoso, caboclos perversos e assassinos e dentre
estes um que ha tempos assassinou o proprio irmão’.
Aos regicidas pertence principalmente Marcellino Bispo por sua natureza, pois como todos
os regicidas é evidentemente um degenerado. (idem, 1939: 172-3)
119
Resumindo os três “acentuadíssimos” caracteres de Marcellino, o médico destaca a
degeneração psíquica dos regicidas:
a) Pelo desequilibrio ou desharmonia mental, que nos mostra em Bispo um fraco de espirito
em que a mais exagerada energia e firmeza de execução voluntaria se combina com a mais
ingenua boa-fé;
b) Pela instabilidade doentia que o leva a não se fixar em parte alguma, adoptando uma vida
errante e mutadiça. Aos 15 annos apenas fugiu da casa paterna e vagou por diversas
localidades em Alagôas e Pernambuco, occupando-se em varios trabalhos, como soem fazer
os descendentes dos indios, em satisfação, parece, aos instinctos nomades de seus avós
selvagens. Por fim alistou-se no exercito e de Pernambuco foi transferido para Maceió, de
onde seguiu inopinadamente para o Rio de Janeiro, ao tempo em que fazia projecto de fixar-
se naquella cidade, para onde queria mandar buscar a familia;
c) Pelo mysticismo exagerado [exaltar as coisas da religião ou da política de forma doentia],
a nota mais saliente do caracter de Marcellino Bispo e pedra angular da constituição mental
dos regicidas” (idem, ibidem: 174).
Este regicida, que possuía inteligência “acanhada” e instrução “rudimentar”, deixava
morbidamente se sugestionar, e seus impulsos naturalmente selvagens, violentos, eram
perfeitos para transformá-lo em prisioneiro moral de quem o explorasse nessas tendências
inatas. Nisso residia o fundamento do crime a dois e não muito longe estava o crime das
multidões.
Voltando, assim, às coletividades anormais e ao livro que recebeu este título, Nina
Rodrigues complementa as anotações sobre Canudos. Seguindo a crença nas explicações
comportamentais por meio da conformação do cérebro, ele acrescenta às conclusões
anteriores sobre os jagunços o estado de exaltação passional coletiva em que se encontrava
aquela multidão, desaparecendo “o controle da vida cerebral, e com elle, a personalidade
consciente e o discernimento” (RODRIGUES, 1939: 89). Nesse sentido, a sugestão de
Antônio Conselheiro não teria provocado simplesmente uma adesão consciente, mas sim “um
estado delirante collectivo, de carater politico-religioso, dotado de uma tal intensidade que
poude impellir os sectarios a todos os sacrificios. Foi um verdadeiro estado de multidão
vesanico que se formou nesta seita de predispostos, de desequilibrados e loucos (...)” (idem,
ibidem: 130).
A excitação causada por Conselheiro se faria cessar por ele próprio ou com sua morte,
o que acabou por acontecer em 1897. A cabeça foi separada do corpo e seu crânio foi
oferecido a Nina Rodrigues. Nos parâmetros das pesquisas craniométricas, registrou-se:
nenhuma anomalia que denunciasse traços de degenerescencia: é um craneo de mestiço onde
se associam caracteres anthropogicos de raças differentes. Só relataremos aqui, pois, as
indicações mais importantes. É um craneo dolichocephalo e mesorrhyno, quasi sem dentes, e
com notavel atrophia das arcadas alveolares. Tem uma capacidade de 1670 cc. (...) É pois um
craneo normal. Esta conclusão, que esde accordo com as informações recolhidas sobre a
historia do alienado, confirma o diagnostico de delirio chronico de evolução systematica”
(idem, ibidem: 133).
120
Por mais que Conselheiro fosse o comandante, não seria afastada, classicamente, a
responsabilidade dos jagunços. Nossa legislação adotava o princípio do livre arbítrio, logo os
mestiços maiores e não doentes mentais seriam considerados imputáveis. As concepções de
Nina Rodrigues, todavia, amparadas nas teorias do atavismo, da hereditariedade, da
degenerescência, da inferioridade, enfim, na Escola italiana de Lombroso, firmavam nova
doutrina e intentavam transformações nas Instituições penais que levassem em consideração a
ausência ou diminuição da culpabilidade de determinados indivíduos por força de sua raça, de
sua mestiçagem não evoluída ou de seu “estado de multidão”, como no exemplo de Canudos:
Qual a conclusão pratica de tudo o que precede? É que a responsabilidade juridica das
multidões desapparece completamente nos casos em que é indiscutivel o verdadeiro delirio
collectivo, devendo ser attenuada a pena nos estados de multidão menos intensos, porque os
instigadores e os chefes são sempre suspeitos de um forte desequilibrio mental (idem,
ibidem: 151-2).
2.2.2 – O CRIMINOSO NA OBRA DE OUTROS AUTORES BRASILEIROS
Se, proveniente da medicina, foi Nina Rodrigues quem mais se projetou como o
“Apóstolo da Antropologia Criminal”, no campo do Direito Penal não consenso sobre
quem primeiramente introduziu as ideias de Lombroso no Brasil. Alguns apontam para João
Vieira de Araújo, como sustenta Viveiros de Castro, em razão de seus comentários no livro
Ensaio de Direito Penal ou Repetições Escritas sobre o Código Criminal do Império do
Brasil, de 1884.
Criticando a atribuição do pioneirismo a Vieira de Araújo, outros, como Silvio
Romero, apontam para Tobias Barreto com o título do primeiro a revelar os estudos
inovadores da Nova Escola, em 1884 também, ainda que não concordasse totalmente com
seus pontos de vista.
Diante, então, da possibilidade de se estender mais e mais as atenuantes e dirimentes
da responsabilidade com base nos preceitos da psiquiatria da época, Tobias Barreto divergia
da escola lombrosiana especialmente pelo receio de impunidade generalizada. O próprio Nina
Rodrigues contesta arduamente a relativização que Tobias Barreto, por exemplo, concede à
noção de livre arbítrio, pela qual este defende que o crime é uma manifestação do princípio da
hereditariedade, entretanto o homem poderia eliminar essa índole através da adaptação. Nas
suas palavras, o livre arbítrio é produto da “organização cerebral originária e das influências
exteriores, antagônicas ou sinérgicas, que afetaram essa organização” (BARRETO, 2003:
84-5). Considerando os limites da fragilidade humana, o Direito não poderia exigir a liberdade
absoluta, logo satisfaz-se com uma imputabilidade relativa plenamente compatível com a
121
atribuição de responsabilidade ao homem que possui o conhecimento da ilegalidade da ação
desejada (libertas judicii) e o poder de deliberar-se a praticá-la (libertas consilii), diz Barreto.
Tobias Barreto, aliás, em sua obra Menores e Loucos em Direito Criminal, com
primeira edição de 1884, se dedica ao estudo dos artigos do Código Criminal do Império
(1830) que tratam da imputabilidade e de suas excludentes, incluídas a menoridade e a
loucura. Assumindo-se contrário à interpretação exageradamente extensiva da expressão
“loucos de todo gênero (art. 10, par. 2º.)
106
, não admite a exclusão da responsabilidade de
“todos os casos de perturbação de espírito, ou de anomalia mental, todos os afetos, desvarios
e psicoses” (Barreto, 2003: 80). Ironicamente denominando aqueles outros autores de
“pathologos do crime”, entende que a pena é sempre necessária, é uma espécie de “seleção
jurídica” que põe à parte do organismo social os corruptos: Enquanto, pois, os defensores da
patologia criminal, em cujas obras a sociedade inteira aparece como uma imensa casa de
orates, enquanto estes ilustres savantissimi doctores, medicinoe professores, como diria
Molière, não descobrirem o meio nosocrático suficiente para opor barreira ao delito, a pena
será sempre uma necessidade” (idem, ibidem: 43-4).
Essas e outras questões, extraídas dessas espécies de acusações e réplicas que
constituem os “diálogos” publicados em forma de livros, espelham algumas das muitas teses
europeias sustentadas no final do século XIX. Aqui também a disputa pela reserva de mercado
entre médicos e juristas no Poder Judiciário se colocava e, enquanto Tobias Barreto era
reticente quanto à imposição da verdade médica ao legislador, Nina Rodrigues e demais
médicos defendiam a sua parcela de participação crescente.
Sobre esse ponto particularmente, mesmo no decorrer do século XX, vários
profissionais interessados na implicação Medicina-Judiciário se posicionaram. Oficial
representante do Brasil em Paris e Portugal, Leonídio Ribeiro, no decorrer de 1937, chamou a
atenção para a relevância cada vez maior da Medicina na “obra contra o crime”. Fruto das
pesquisas realizadas no Instituto de Identificação do Rio de Janeiro e no Laboratório de
Biologia Infantil, ambos dirigidos por ele, suas conclusões fundamentam a retórica de que era
possível diminuir, evitar ou prevenir a criminalidade através da medicina e da higiene sociais:
106
Art. 10 – Também não se julgarão criminosos: §1º. – os menores de catorze anos; §2º. – os loucos de todo o gênero, salvo
se tiverem lúcidos intervalos, e neles cometerem o crime; §3º. – os que cometerem crimes violentados por força ou por medo
irresistíveis; §4º. – os que cometerem crimes casualmente, no exercício ou prática de qualquer ato lícito, feito com atenção
ordinária.
122
1) São causas da criminalidade, em geral, e particularmente da delinquência infantil, ao lado
das ambientais, as de ordem biológica. Reivindica-se, por isso, a atuação da medicina na
“profilaxia do crime”;
2) É pressuposto da prevenção criminal a existência, por toda parte, de institutos e
laboratórios de estudos da criança e do adolescente, sob o ponto de vista medico,
antropológico, psicológico e pedagógico para descobrir os sinais e tendências da ‘constituição
delinquencial’, na expressão de Di Tullio;
3) Todas as quinhentas crianças abandonadas e criminosas analisadas na primeira estatística
brasileira não se apresentaram sãs, cada qual com, pelo menos, duas doenças geralmente
graves, atingindo seu desenvolvimento físico e mental;
4) Os menores delinquentes e abandonados, antes de serem internados em institutos de
reforma ou escolas profissionais, devem ser submetidos previamente à observação médica,
diagnosticados e tratados por especialistas idôneos, com colaboração íntima entre o juiz, o
médico e o pedagogo (RIBEIRO, 1937).
Esta colaboração íntima era objeto de divulgação também por Afranio Peixoto. O
antigo assistente da cadeira de Medicina Legal na velha Faculdade da Bahia e discípulo de
Nina Rodrigues foi grande incentivador da regulamentação das perícias médico-legais no
Distrito Federal. Ao deixar seu Estado e rumar para o Rio de Janeiro, Afranio Peixoto teve um
papel crucial na divulgação do trabalho do mestre e na estruturação da medicina judiciária no
Brasil que contava apenas com uma seção de assessoria médica na Secretaria de Polícia da
Corte, instalada pelo decreto no. 1740, de 16 de Abril de 1856, e destinada a realizar os
exames necessários e os de corpos de delito para a averiguação dos crimes. Dentre as
condições indispensáveis para atender a uma boa organização parecem, até hoje, ecoar alguns
brados dos peritos: garantir aos peritos a instrução técnica necessária; oferecer aos
especialistas remuneração que justifique as preferências dos candidatos; regular o
funcionamento do exame pericial, para que a magistratura adquira confiança na idoneidade
dos peritos, respeitando-se a escolha conveniente por parte dos juizes.
Após uma tentativa frustrada de reforma do Serviço Médico-Legal da Policia, em
1888, algumas iniciativas se fizeram imprimir: o decreto no. 463, de 7 de Junho de 1890,
aumentando para seis os lugares de médicos legistas e nomeando um médico consultor; o
decreto no. 3640, de 14 de Abril de 1900, reorganizando o serviço policial e ampliando as
funções dos médicos legistas até o exame dos indivíduos suspeitos de alienação mental; o
Decreto no. 4864, de 15 de Junho de 1903, que determinou a observância do Regulamento do
123
Serviço Médico Legal do Distrito Federal
107
, organizado por Afranio Peixoto e, depois,
ampliado pelo Decreto no. 6440, de 30 de março de 1907.
Não obstante ser considerado discípulo de Nina Rodrigues, a posição de Afranio
Peixoto dificilmente poderia ser taxada de puramente lombrosiana. Em seu Medicina Legal,
na edição de 1931, várias passagens denunciam sua maturidade perante dogmas da
Antropologia Criminal italiana e sua reação a certas conclusões do fundador desta: (...)
Lombroso, exagerado e intolerante, como todos os propagandistas que reuniu em torno de si
copiosos prosélitos (...)” (PEIXOTO, 1931: 17), ou ainda Lombroso, cujo precipitado genio
não deixava amadurar as idéias antes de as expor, e daí tantas e pêcas (...). Contradições
não faltam a estas fantasias” (idem, ibidem: 22-3).
Rótulos à parte, a linha seguida por Peixoto é claramente positivista, em oposição à
concepção clássica. Sustenta taxativamente que o livre arbítrio é intolerável na ciência e que o
crime não consiste em uma abstração jurídica, mas sim num ato do criminoso, homem que
obrou determinado por numerosos motivos, que lhe dão a ilusão de liberdade e
espontaneidade, mas que resulta, na verdade, de um “magma de impressões anteriores”
aglutinados nas células recebidas hereditariamente. A vontade do homem é a consequência de
tendências orgânicas despertadas no “plasma de nossa organização”:
A vida intrauterina, o nascimento, a criação, a educação, a ambiencia física, moral e social,
acabam por imprimir, corrigir, mudar, sobre o complexo celular que é o organismo, as outras
infinitas ascendencias. Resulta um homem, que, por uma ironia, se julga livre...
(idem, ibidem: 21).
Mesmo crendo em influências atávicas, influências imediatas dos pais e influências do
meio físico e social, durante a gestação e no decorrer da vida, afirma que o determinismo
absoluto não fora provado cientificamente e que o atavismo bestial ou pré-humano é
desarrazoado. Sinais atávicos dos selvagens tais como a fosseta occipital media, a saliência
da arcada superciliar, a fronte fugidia, o desenvolvimento dos maxilares, o prognatismo, as
orelhas de abano, o mancinismo, a analgesia que seriam encontrados nos criminosos
também foram localizados nos indivíduos normais e, por isso, descartados como
características fenotípicas dos delinquentes.
Além das hipóteses atavísticas, decorrentes das biológicas, Peixoto explica as
hipóteses patológicas, as quais terminaram e se acomodaram na degeneração. Para ele,
contudo, o diagnóstico de degenerescência não expõe uma causalidade inevitável à loucura ou
107
“Este Regulamento incluía uma technica de autopsias decalcado do modelo prussiano de Virchow. Foi, effectivamente, a
realização do sonho de Nina Rodrigues” (RAMOS, 1936: 5).
124
à criminalidade, porém indica a predisposição a atos impulsivos e violentos. Ademais, ao
diagnóstico é imprescindível considerar a herança nevropática, o alcoolismo, as intoxicações,
as doenças graves, eventuais acidentes graves mesmo que no período da gestação ou do
nascimento, estigmas físicos ou mentais persistentes indicativos de degeneração “do corpo e
do espírito”.
O autor expõe a manifestação destes estigmas na fisionomia, citando até os escritos da
Bíblia sobre a identificação das tendências fratricidas no rosto de Caim, por Deus. Os
fisionomistas gregos também são lembrados, mas o que mais chama a atenção é a referência
aos nomes de Gall e Lavater, bem como sua associação aos positivistas italianos (idem,
ibidem: 36-7).
Paralelamente à natureza biofísica, Peixoto ressalta também a concepção do caráter
social do crime. Socialmente anormal, então, seria o criminoso por causas econômicas; por
inadaptação jurídica; ou por influências complexas, incluídas as causas físicas e biológicas,
segundo as teorias de Tarde, Lacassagne, Topinard, Manouvrier e outros.
Após longa explanação dessas vertentes, Peixoto surpreende com a perspicaz
afirmação: “A antropologia criminal não existe; foi uma ficção, trabalhosamente inventada,
teimosamente mantida, mas insubsistente” (idem, ibidem: 41). Discordando, assim, dos
lombrosianistas puros, se põe mais ao lado dos franceses quando nega a existência do tipo
criminoso, por inexistirem particularidades anatômicas ou fisiológicas que denunciem os tipos
profissionais (não pode haver um “tipo advogado nem mercador-nato”). Também mais
próximo desta Escola, admite que as aptidões são inatas, hereditárias e adquiridas,
concorrendo com as circunstâncias sociais para os comportamentos humanos, inclusive para a
profissão.
Com aparente independência e autonomia em suas posições, Peixoto, além de criticar
o tipo do delinquente, faz objeções ao fundamento da pena como defesa social. Qualificando
este “subterfúgio” como “ilogismo” ou “retrocesso”, defende que a filosofia positivista e
evolucionista do culo XIX, ao impactar a escola positivista do direito penal, trouxe consigo
a negação do livre arbítrio pelo determinismo, acarretando a exclusão da culpa do criminoso
e, consequentemente, a sua irresponsabilidade. Se as investigações científicas, portanto,
alcançaram estas conclusões, seria extremamente injusto punir aqueles malfeitores
inimputáveis pelo argumento da responsabilidade social, do qual se extrai a legitimidade (ou
necessidade) da sociedade de reagir a uma ofensa de um indivíduo, ainda que esta ofensa se
por razões de seu determinismo biológico (ou de necessidade orgânica). Afrânio Peixoto
vê nesses fundamentos a “ressurreição social do talião”.
125
Quanto aos limites legais da responsabilidade, recai a análise especialmente sobre os
artigos 7º, 27 e 29 do Código Penal de 1890
108
, ao qual se juntam o Decreto n. 4294, de 6 de
julho de 1921 (criando, no antigo Distrito Federal, um estabelecimento especial com
tratamento médico e regime de trabalho, contendo duas seções: de internados judiciários e de
internados voluntários); o Decreto n. 4780, de 27 de dezembro de 1923 (substituiu a palavra
“privação” por “perturbação” no art. 27, §4º., do C.P.); e o Decreto n. 5148 A, de 10 de
janeiro de 1927 (definindo outras normas para a internação de doentes mentais).
As explicações “jurídicas” trazidas por Peixoto para interpretar esses dispositivos se
calcam na medicina. Para o médico, é com base no desenvolvimento paulatino do cérebro, da
constituição dos neurônios e especificamente “na noção psicológica de um cérebro em
formação” que se deve compreender as dirimentes previstas na lei. Em relação aos alienados,
pontuou:
Não importa que a viscera doente seja o cérebro, o órgão da vontade, da inteligência, da
consciência: será alienado aquele cujo sofrimento o torne incomportável no meio social.
Pouco importa a espécie de doença mental de que isso resulta: a consequencia será a mesma.
Isso interessa aos que tratam, para curá-lo; para a sociedade é apenas um individuo que
pratica actos extravagantes, sem motivação razoável, perigoso para si, e para os outros que
ela protege, e do qual se defende, pelo direito penal, pelo direito civil, pelo direito
administrativo (idem, ibidem: 150).
Mais do que à repressão do crime, são dedicadas páginas
à prevenção do mesmo. Analisando pontos como eugenia,
regeneração, recursos sociais, educação, assistência aos menores
abandonados, vagabundagem, mendicidade, prostituição,
alcoolismo, trâmites judiciários, júri e polícia científica, chega à
identificação através da fotografia e da datiloscopia, principais
aliados das autoridades no reconhecimento (e controle) da
criminalidade profissional.
108
Art. 7º – Crime é a violação imputável e culposa da lei penal.
Art. 27 – Não são criminosos: §1º. – os menores de 9 anos completos; §2º. – os maiores de 9 e menores de 14, que obrarem
sem discernimento; §3º. – os que por imbecilidade nativa ou enfraquecimento senil, forem absolutamente incapazes de
imputação; §4º. – os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime;
§5º. – os que forem impelidos a cometer o crime por violência física irresistível ou ameaças acompanhadas de perigo atual;
§6º. – os que cometerem o crime casualmente, no exercício ou prática de qualquer ato lícito, feito com atenção ordinária; §7º.
– os surdos-mudos de nascimento que não tiverem recebido educação nem instrução, salvo provando-se que obraram com
discernimento.
Art. 29 – Os indivíduos isentos de culpabilidade em resultado de afecção mental serão entregues a suas famílias, ou
recolhidos a hospitais de alienados se o seu estado assim exigir para a segurança do público.
In Medicina Legal
-
Peixoto, 1931: 96
126
Grande entusiasta da obra de Afranio Peixoto foi Arthur Ramos. Seu Loucura e
Crime, de 1937, mostra a divisão clássica entre “hippocratismo” e “galenismo” o total
contra o parcial, o sintético contra o fragmentário, o homogêneo contra o heterogêneo, a
unidade contra a multiplicidade com nova roupagem. A reação aos múltiplos
fracionamentos do organismo no trabalho analítico dos pesquisadores, os quais tanto
frutificaram cientificamente na segunda metade do século XIX, sugeriu a recomposição deste
organismo analisado.
Ramos, escrevendo na década de 30 dos novecentos, expressa essa nova intenção
teórica de olhar com certas reservas o lombrosianismo desenfreado, mas com parâmetros que
não se desvinculavam totalmente da matriz positivista e evolucionista. Buscando uma
terminologia própria que explicasse a aproximação entre “alma ancestral” e “pensamento
arcaico”, crendo, portanto, numa espécie de atavismo na psique, ele propôs o conceito de
“inconsciente folk-lorico”, englobando a noção do “ancestral” e do “interpsíquico”. Para este
autor, o estudo da psicologia individual somente seria completo caso se considerassem a
psicologia coletiva e étnica, cuja interpenetração nos auxiliaria a compreender as restrições à
liberdade de pensar, de agir e de querer. A psique humana, por estar presa a uma
ancestralidade, não conseguiu atingir a verdadeira liberdade: “O cérebro do homem mais
erudito não se pode libertar das influências complexas do inconsciente folk-lórico, que o
constringe, circundando-o num abraço de ferro” (RAMOS, 1937: 20).
Como Arthur Ramos fora médico-legista, atuando inclusive no Hospital de São João
de Deus e no Instituto Nina Rodrigues, na Bahia, alguns laudos foram publicados na obra
supracitada
109
. Em um deles, com o título “Psychose arterio-esclerotica e reacção uxoricida”
(1932), a introdução ilustra o caldo de cultura vivenciado por muitos profissionais da área.
Depois de citar Morselli e Ferri dentre outros, ele diz: “Cabe ao alienista, amparado ainda na
anthropologia criminal, desvendar estas motivações criminosas na personalidade doente que
vae descendo a rampa do desmoronamento dos valores” (idem, ibidem: 43). Não se trata,
simplesmente, de constatar a (ir)responsabilidade do agente, mas também de analisar as
“razões profundas”, guardadas em sua “personalidade antropológica”, que somente o técnico
capaz de desvendar o inconsciente poderia alcançar.
109
Muito semelhante ao caso de Antônio Conselheiro estudado por Nina Rodrigues, Ramos relata também o exame clínico,
sociopsicológico, etnográfico e folclórico de José Cavalcanti Reis, um andarilho fanático contagiando multidões anormais.
Diferentemente de rotulá-las como degeneradas ou etnicamente inferiores, Ramos preferiu dar outra abordagem às
populações nordestinas ingênuas ou sugestionáveis, considerando-as “vítimas de atraso cultural”.
127
Em referência ao Instituto de Criminologia de Buenos Aires, onde funcionavam as
seções de Etiologia Criminal, Clínica Criminológica e Terapêutica Criminal, Ramos
menciona o que Saporito chamou de “clínicos da criminalidade”, cujo estudo de vanguarda
consistiria em um ponto de vista antropopsicológico, sucedendo ao “lombrosianismo puro
das simples anomalias morphologicas” (idem, ibidem: 167). Na opinião de Ramos, tal como
era a opinião de Afranio Peixoto, renunciava-se ao lombrosianismo primitivo para avançar
para um neo-lombrosianismo não restrito à morfologia atávica.
Nome de semelhante exaltação foi o de João Carlos Teixeira Brandão. Contemporâneo
de Nina Rodrigues, bebeu na mesma fonte positiva e legitimava a ação das autoridades em
defesa da sociedade perante “a imminencia de uma perturbação da ordem ou de uma offensa
á moral publica, que a inconsciencia dos actos ou o impulso irresistivel do alienado podem
determinar” (BRANDÃO, 1897: 63).
Notabilizou-se, entretanto, segundo relatos de época, pela “luta em favor dos loucos”,
conforme registra em sua Exposição dirigida ao Governo em prol dos alienados, de 24 de
abril de 1896, publicada pela Imprensa Nacional no ano seguinte, e por sua atuação no
Hospício Nacional
110
, em nome do qual exigia, ao Poder Público, pavilhões e assistência
especiais para os alienados criminosos.
As reivindicações de Teixeira Brandão se justificavam pelo “excessivo perigo”, pela
probabilidade de atos violentos, pela ofensa aos sentimentos dos outros alienados e de suas
famílias provocadas pelos condenados. Ademais, estes alienados são propensos à reincidência
“attento que, antes de reconhecido o estado morbido, a perversidade do caracter, a ausencia
de senso moral e a instabilidade das funcções cerebraes constituiam-lhes o triste apanagio da
esphera moral e certo presagio de futuros delictos” (idem, ibidem: 89).
O “Doutor Teixeira Brandão” também ficou conhecido internacionalmente. Nos
Archivio de Psichiatria, Scienze Penali ed Antropologia Criminale, na página 185 do vol. XX
(vol. IV da série II) de 1899, encontramos citação a seu estudo “O cérebro de um idiota
microcephalo” feita por Carrara. No mesmo Archivio, outros autores brasileiros tiveram
reconhecimento, servindo essas citações para demonstrar o efetivo intercâmbio entre o Brasil
e a Itália na troca de observações experimentais e experiências de vida no campo da
criminologia ou antropologia criminal. Outro artigo, então, é emblemático da atenção
devotada aos estudos brasileiros pelos positivistas italianos. Pio Viazzi, no vol. XIX (vol. III
110
Sua atuação no Hospital foi duramente criticada pela Imprensa e pelas irmãs de caridade da Irmandade de São Vicente de
Paulo, que detinham o poder do asilo antes de Brandão. Um fato histórico que colocou em xeque a atuação do ilustre alienista
foi a fuga de Custódio Serrão (CARRARA, 1998).
128
da série II) de 1897, ganhou espaço para publicar o seu La Scuola Positiva e la nuova
legislazione penale brasiliana, o qual se dedica principalmente aos projetos de reforma do
Código Penal, às análises de João Vieira de Araújo e de Viveiros de Castro.
É de se discordar parcialmente, portanto, de Dain Borges quando diz que “os
intelectuais brasileiros ouviram os europeus, mas raramente foram ouvidos por estes”,
exceto Nina Rodrigues e Oswaldo Cruz (1993: 239). De fato, os intelectuais brasileiros
ouviram, leram, degustaram as ideias europeias
111
, contudo mais do que estes dois nomes
citados por Borges como exceções foram objetos de considerações não pelos italianos, mas
também por portugueses, espanhóis, franceses e alemães. Concordando com este
posicionamento, Laurinda Maciel diz que “muitos pesquisadores brasileiros tinham espaço
para a publicação de seus artigos fora do território nacional, principalmente França,
Alemanha e Estados Unidos (idem, 1999: 55).
111
Na América Latina também houve um cruzamento intenso de informações, levando Mariza Corrêa a dizer que existiu uma
atuação conjunta dos aparelhos de repressão do Cone Sul, que se “expressava, em termos teóricos, pelo uso de certas ‘noções
capitais’, como eram chamadas, postas em circulação desde o século passado: a periculosidade, a constituição, a defesa
social, a indeterminação das penas, todas elas presentes nas discussões dos projetos dos novos códigos penais que vários
países latino-americanos preparavam na mesma época. A essas noções, que combinavam análises feitas por juristas e por
médicos da questão da criminalidade e que se cristalizariam em códigos penais autoritários na Argentina, Brasil, Chile e
Uruguai, se acrescentava uma bateria de outras, produzidas por educadores, psicólogos e biólogos” (CORRÊA, 2001: 192).
129
2.3
“PUFFY, UGLY, SLOTHFUL AND INERT”
Em referência a Dain Borges, aproveitei parte do tulo de seu trabalho, Puffy, Ugly,
Slothful and Inert: Degeneration in Brazilian Social Thought, 1880-1940, para exemplificar
os adjetivos atribuídos aos degenerados no Brasil. Inertes, preguiçosos... foram atributos da
personalidade visíveis no corpo das raças inferiores” e identificados em seus crânios. A
teoria da degenerescência em nosso país se destinou fortemente aos índios, aos negros e aos
mestiços na tentativa da explicação da inferioridade e suas consequentes manifestações,
adaptando o princípio da igualdade para a realidade biológica: é preciso tratar desigualmente
os desiguais (ALVAREZ, 2002).
Como podemos perceber com Nina Rodrigues, o contexto sociopolítico de fins do
século XIX e início do XX favoreceu a consolidação da Antropologia [criminal] brasileira e
sua atualização pelas mãos de Afranio Peixoto, Juliano Moreira, Arthur Ramos e outros, bem
como a adoção de medidas públicas que consideravam as teses raciais em voga no
pensamento social leigo e culto.
É impossível, portanto, falar do Brasil desta época e não fazer referências sobre o tema
racial.
2.3.1 – O PARADOXO MESTIÇAGEM E EVOLUÇÃO
Lilia Schwarcz, em seu O Espetáculo das Raças, nos traz um panorama aprofundado
do desafio enfrentado pela intelectualidade brasileira de conjugar os ideais darwinistas e
evolucionistas, sempre na marcha do progresso europeu, com a realidade da miscigenação
nacional; ou seja, criar uma nação brasileira evoluída e civilizada com um povo
biologicamente inferior, miscigenado e doente.
A saída, em parte, se deu pela aceitação do darwinismo social
112
no que tange à
diferença entre as raças, auxiliando a construir a justificativa para a hierarquia da sociedade,
sem avançar no mérito do resultado negativo do cruzamento racial. De outra parte, pela
112
Ou “teoria das raças”, segundo o qual haveria uma distância biológica entre as raças, na mesma proporção da distância
entre o cavalo e o asno; as diferenças de caracteres físicos determinaria uma diferença moral e cultural; esse determinismo
“racio-cultural” ou étnico se sobreporia ao livre arbítrio. Disso se extrai que a mestiçagem, por fugir ao “tipo puro”, constitui
uma forma de degeneração racial e social. Os darwinistas sociais revitalizaram o poligenismo que, desde o início do século,
fortaleceu uma visão biológica das condutas humanas determinadas pelas leis naturais, como encontrada na frenologia, na
antropometria e, mais tarde, na antropologia criminal (SCHWARCZ, 2008).
130
recepção do evolucionismo social
113
no que se refere ao constante aperfeiçoamento das raças
humanas, ocultando a premissa da unidade da humanidade.
Essa brecha original criada pelos “homens de sciencia” permitiu alavancá-los como
cientistas missionários, autoridades competentes nas questões políticas, que, no interior de
seus Institutos, Museus, Faculdades, Escolas
114
, “tomaram para si a quixotesca tarefa de
abrigar uma ciência positiva e determinista, e, utilizando-se dela, liderar e dar saídas para o
destino desta nação” (SCHWARCZ, 2008: 18).
Exemplo significativo destes homens originais foi Silvio Romero, que conseguiu a
proeza de juntar Haeckel, Darwin e Spencer para defender a mestiçagem como fato positivo
para o futuro da nação brasileira
115
. Não que ele visse nisso uma condição de igualdade, mas
sim uma questão indiscutível: o Brasil é um país de mestiços (“no sangue, na alma e nas
ideias”) e ponto. Cumpria, agora, encontrar o caminho da civilidade dentro desta realidade
inexorável.
Se a mestiçagem, de certa forma, atingiu todo o nosso povo, é o resultado dela que
deve ser incluído no processo de evolução da humanidade. Com isso, Romero afirma um
poligenismo darwínico não incriminador da miscigenação, em que produto do cruzamento foi
o mestiço, e, ao mesmo tempo, se apropria do evolucionismo social, incluindo este mestiço no
curso do progresso:
Utilizando de forma pouco ortodoxa as máximas poligenistas da época, Romero encontrava
na mestiçagem o resultado da luta pela sobrevivência das espécies, como estabeleciam as
teorias deterministas da época. Porém, paradoxalmente, ao invés de condenar a hibridação
racial, seguindo os modelos evolucionistas sociais, esse autor encontrava nela a futura
“viabilidade nacional” (SCHWARCZ, 2008: 154).
Schwarcz atribui a Romero a fundação da “cientificidade” do Direito no Brasil a partir
dos parâmetros evolutivos e deterministas da Antropologia. Especialmente a área criminal
congregou variados estudos sobre essa “viabilidade nacional” numa perspectiva racial,
contando 47% dos ensaios da Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife entre
1891 e 1930 (idem, 2008: 159).
113
Para o evolucionismo social, toda a humanidade deveria passar por estágios inevitáveis que partiriam do mais simples
para o mais complexo. O progresso, então, era obrigatório, sendo cada estágio meramente contingencial. Nesse sentido
otimista, a humanidade era vista como única (SCHWARCZ, 2008: 57).
114
Schwarcz (2008) e Corrêa (2001) explicam a importância do pertencimento a uma entidade de ensino ou pesquisa ou da
filiação a uma corrente ou escola de pensamento. Ainda que a homogeneidade interna lhes faltasse, pelos interesses
particulares e regionais acirrados com as mudanças políticas e econômicas, os espaços científicos proporcionavam a
legitimidade para opinar sobre diretrizes mais amplas da vida social e nacional, não circunscritas ao seu campo da ciência.
115
Nina Rodrigues, ao contrário, entende ser um fato negativo. Embora este médico tenha adotado também o darwinismo
social, “negou o suposto do evolucionismo social de que a ‘perfectibilidade’ era possível e presente em todas as ‘raças’.
Além do mais, ao conferir às raças o estatuto de realidades estanques e ontológicas, passou a advogar que toda mistura de
espécies era sinônimo de degeneração” (SCHWARCZ, 2006: 2).
131
Se essa era a feição assumida por esta Instituição na capital de Pernambuco, bem
menos entusiasmados com o determinismo que os “seguidores de Romero” eram os autores da
Revista da Faculdade de Direito de São Paulo.
Apesar da Antropologia Criminal despertar o interesse dos estudiosos, muitos se
opunham expressamente à leitura “anti-humanitária” do determinismo racial:
Em nome do livre arbítrio do indivíduo e da análise social do fenômeno criminal, é com
prevenção que os modelos deterministas penetravam nos circuitos acadêmicos paulistas. O
que em Recife significava uma interpretação de vanguarda, em São Paulo era assimilado
com cautela (...) (SCHWARCZ, 2008: 179).
As particularidades locais talvez nos ajudem a compreender essa diferença de postura
teórica, porquanto a região cafeicultora brasileira se apegava ao liberalismo político e
econômico. No entanto, como se encontrava mais próxima geograficamente do Poder e mais
elitizada, a representação científica da Faculdade de Direito assumiu a teoria evolucionista
também nas explicações do período republicano, favorecendo o surgimento de um liberalismo
conservador e de um Estado centralizado e autoritário. Assim, “os homens continuavam
desiguais, porém passíveis de ‘evolução e perfectibilidade’ em função da ação de um Estado
soberano e acima das diferenças não só econômicas como raciais” (idem, ibidem: 182).
2.3.2 – O PERFIL ANTI-DEMOCRÁTICO
A modificação do cenário brasileiro, então, em fins do século XIX, se fez mostrar por
uma série de novos acontecimentos no campo literário, educacional, intelectual, jurídico,
político, notadamente no que se refere à proclamação da República do Brasil. Acompanhado
pela recente abolição da escravatura, pela separação da Igreja e do Estado, pela destituição do
poder dos grandes proprietários, pela burocratização, enfim, pelo conjunto de iniciativas
típicas da construção do Estado moderno, o processo de consolidação desse regime inovador
superou sua própria base teórica democrática
116
. Com o propósito de garantir o novo modelo,
valia mesmo organizar a República “por cima das multidões agitadas” da Capital Federal,
como bem divulgava Campos Salles (citado por CARVALHO, 1985: 73).
Essa afirmação do Estado a qualquer custo transferiu para as instituições um papel
político de representar fielmente sua ideologia, atribuindo-lhe, ao mesmo tempo, força e poder
necessários a coibir as resistências e críticas que surgissem. Nenhuma outra instituição
116
Diz-se mesmo que, na verdade, a modernização do final do século XIX não se “inspirou” na democracia: “Na América o
Estado seguiria fornecendo a realidade orgânica a que se somariam, secundariamente, os indivíduos, os quais, aliás, se
reconhecem como parte submissa e passiva dessa “entidade coletiva”, dessa razão “superior”, que opera acima dos apetites
particularistas nos trópicos” (CARVALHO, 1994: 22).
132
poderia melhor desempenhar esta função repressora, em nome da ordem, do que aquela
propriamente investida de fazê-lo: a polícia. Parecia, então, haver uma guerra permanente, um
conflito entre a nova sociedade constituída, agora, por trabalhadores livres, ex-escravos e
imigrantes – e a nova ordem estatal. Em contraposição ao que seria uma transformação
consensual da estrutura vigente, a tradição cultural dos “excluídos”, aliada a uma classe
intelectual expressiva, resistia às modificações drásticas e profundas, gerando esta rivalidade,
mesmo que pacífica, entre os atores desse processo.
Dessa forma, o avanço do Estado moderno brasileiro na regulação da sociedade, ao
provocar também reações negativas, refletiu um modo de cidadania em negativo, pois os
cidadãos reagiam às mudanças impostas que desrespeitavam os costumes e os valores
tradicionais, afastando-os da participação dentro arcabouço institucional sem alternativas para
articular arcabouço alternativo (CARVALHO, 1996).
O Brasil presenciou, assim, a explosão do Estado de uma forma pouco positiva:
agindo desconforme as regras em questão, introduziu novos deveres, porém sem a lealdade
essencial para o efetivo cumprimento destes novos deveres. Na medida em que se ampliava o
espaço público e o domínio do Estado moderno, impunha-se, portanto, o movimento de
construção da cidadania e, a toda cidadania imposta e construída pelo Estado, dá-se a idéia de
“vir de cima”, de uma “razão superior”. Para melhor compreendermos esta classificação da
cidadania, recorro à tipologia defendida por Bryan S. Turner e ensinada por José Murilo de
Carvalho
117
.
Tal movimento de construção sugere a imagem do cidadão subordinado ao Estado
(cidadão-súdito), passivo e receptor das ações políticas decididas dentro de uma outra esfera
inimaginável, intangível da sociedade. Sugere, pois, a passagem de uma cultura política
paroquial para uma outra a que se denomina súdita, isto é, de uma “completa alienação em
relação ao sistema político”. É o cidadão à margem do poder decisório do Estado, convicto de
que somente este será capaz e competente de solucionar as pendências sociais.
Além dessa cidadania súdita”, a pretensão de “elevar” o Brasil à categoria de país
civilizado convivia com a contradição que seus próprios cientistas reconheciam: tratava-se de
um território composto majoritariamente por pessoas pertencentes a “raças inferiores”, as
quais, portanto, necessitavam passar por um “aprimoramento” ou “branqueamento”, um
117
Identificando as cidadanias e associando-as aos percursos seguidos em diversos países, o Brasil poderia ser posto ao lado
da Alemanha, tendo em vista que a “centralidade do Estado não indica seu caráter público e universalista” e, do mesmo modo
que nos países germânicos, a cidadania brasileira também fora construída de cima para baixo (CARVALHO, 1996: 339).
133
“choque de sangue nobre”, um processo hereditário de organização de seu cérebro e evolução
de seu organismo que lhes permitiria alcançar estágios mais avançados.
Associada à busca da civilidade estava a preocupação com a “identidade nacional”,
cujo pressuposto identitário esbarrava na questão racial. Mais uma vez, alguns intelectuais
“só viam num programa intenso de imigração uma saída favorável para a nação brasileira.
Nessa perspectiva, o grande problema da nacionalidade radicava-se no povo que, no limite,
deveria ser substituído” (LIMA e HOCHMAN, 1996: 27).
Os “bestializados”
118
, condição agravada pela miséria, pela sujeira, pelo alcoolismo,
representavam focos de ação de políticas públicas, incluindo as de saneamento e higienismo.
Apresentava-se um quadro de doença generalizada, uma “enfermidade social”, que marcava a
identidade nacional a ser substituída por referenciais de saúde e de limpeza com suas
metáforas na pureza e no branco. Daí para projetos do tipo eugênico, foi um pulo
119
. Daí para
a aproximação com a esfera jurídica, foi uma estratégia. Daí para a constituição de um saber-
poder Médico-Judiciário, foi uma consequência:
Tratava-se, antes, de uma ciência médica que, desiludida com as promessas de igualdade da
Abolição e da República, se perguntará pelas causas das desigualdades observadas.
Utilizando uma teoria que deslocava a ênfase da saúde, ou da doença, para o doente,
transformava-o em objeto individualizado de um saber autorizado e autoritário porque
individualmente se podiam aferir as minúcias de uma contaminação social, mas proveniente
do mundo da natureza. O modelo jurídico e o médico deixavam também de ser heterogêneos
entre si e, absorvendo um do outro seus saberes específicos, juntavam-se ambos na produção
de mecanismos técnicos para diagnosticar e punir os danos que o indivíduo pudesse causar à
sociedade (CORRÊA, 2001: 73).
No Brasil, assim, também presenciamos a proximidade entre a Medicina e o Poder
Judiciário, onde médicos reclamam o posto de peritos, cientistas imparciais não subordinados
ao chefe de polícia e não desacreditados em sua isenção e competência. Na visão médica, o
homem do direito era como um “assessor que colocaria sob a forma da lei o que o perito
médico diagnosticara e com o tempo trataria de sanar” (SCHWARCZ, 2008: 190). Nina
Rodrigues muito se empenhou nessa missão de ampliação da Medicina Legal e, de concreto,
encontramos relatos de sua atuação em processos, cujas decisões foram muito influenciadas
por seus pareceres (CORRÊA, 2001). Na visão jurídica, a questão se inverte, pois o homem
118
A propósito, ver Carvalho, J.M. Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi, São Paulo: Companhia das
Letras, 1987.
119
De 1 a 7 de julho de 1929, a Academia Nacional de Medicina promoveu, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro –
cujo Direito era o Dr. Roquette-Pinto – , o I Congresso Brasileiro de Eugenia, proposto por Miguel Couto. Desde a década de
10, todavia, tivemos grupos organizados em torno dos ideais de saneamento, higiene e eugenia: Liga de Defesa Nacional
(1916), Liga Nacionalista de São Paulo (1917), Liga Pró-Saneamento (1918), Sociedade Eugênica de São Paulo (1918), Liga
Brasileira de Higiene Mental (1923). Muitos tinham em seus quadros os nomes mais expressivos da medicina da época, como
Juliano Moreira, Afrânio Peixoto e Heitor Pereira Carrilho (MACIEL, 1999: 66).
134
da medicina era como “um técnico que auxiliaria no bom desempenho desses profissionais
das leis” (SCHWARCZ, 2008: 190).
Vê-se, claramente, um campo de disputas entre médicos e juristas que, todavia, mais
se complementam, no projeto de construção da nação, do que se excluem. A interferência de
uma área do saber na outra aproximou-as em certos pontos (como na questão racial defendida
pela “Escola” baiana de Nina Rodrigues e a “Escola” pernambucana de Silvio Romero) e
distanciou-as em outros (como na questão da igualdade ou da unificação dos Códigos). Isso,
entretanto, só revela um fluxo e contra fluxo normal no plano intelectual e ressalta as
orientações regionalizadas de que falei anteriormente.
2.3.3 AS PRÁTICAS POLICIAIS DE FINS DO IMPÉRIO E DA REPÚBLICA
VELHA
Inserida na dinâmica liberal conservadora anti-democrática, na lógica da desigualdade
entre as pessoas, nas promessas do higienismo e da medicina social, estava a prática policial.
O poder punitivo, portanto, não se furtava de determinar reclusões e internações e a
empregar castigos físicos ou maus tratos
120
como rotina desmedida de controle dos
inferiorizados, dos perigosos, dos perversos, dos bêbados, dos anormais em relação ao padrão
de modernidade e civilização que a burguesia capitalista brasileira pretendia alcançar. Os
hospícios pareciam representar somente mais um local de destinação do público alvo da
justiça criminal: “Ao contrário do que estava ocorrendo na França, aqui o poder judiciário
parecia ansioso pela criação de novos espaços onde alocar parte da população encarcerada
que lhe cabia gerir” (MACIEL, 1999: 132).
No Brasil, ainda a prática dos Delegados de destinar os criminosos ao hospício,
independentemente da opinião do médico, dotava este hospital de características punitivas até
porque ausentes sessões específicas para os loucos condenados. Em outras palavras, ao se
atribuir à polícia o poder de internar ou liberar por vezes a pedido da própria família –, a
percepção que os policiais tinham do hospício era muito semelhante ao sentimento que
possuíam das prisões e outros depósitos de “vadios”, “capoeiras”, “malandros” etc.:
120
A história nos conta como a fuga de Custódio Alves Serrão do Hospício Nacional de Alienados, em 1896, despertou a
opinião pública para os problemas dessas Instituições. Tendo sido acusado de homicídio, reivindicava o direito de não ser
tratado como alienado, de ver seu processo seguir normalmente e de ir para a Casa de Detenção e não para o Hospício. O
Jornal do Brasil de 28 de maio de 1896 narra as razões de sua fuga: “Viver como uma fera dentro de uma grade de ferro,
tragar comidas mal temperadas, dormir ao chão nu de cimento frio, ser tratado como um irracional a varadas (...)”
(MACIEL, 1999: 105). Outro episódio de fuga, agora dos pacientes da Seção Lombroso do mesmo Asilo, em 1920, foi
determinante para a criação do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, inaugurado em 30 de abril de 1921 no complexo
penitenciário da Rua Frei Caneca (idem, ibidem).
135
Entre os admitidos no asilo, havia desde mendigos até criminosos levados pela polícia. Essa
relação com a polícia, por exemplo, sempre foi meio dúbia, com o hospício por vezes
representando certa duplicidade entre instituição terapêutica ou correcional. Com isso, não
havia espaço para uma separação entre, por exemplo, os loucos e os criminosos (idem,
ibidem: 57).
As prisões se revela(va)m, sem dúvida, instrumento de controle social. Boris Fausto
(1984), em levantamento minucioso sobre a criminalidade entre 1880 e 1924, mostra que
muitas detenções versavam sobre contravenções penais (vadiagem, desordem, embriaguez,
mendicância etc.) ou outras infrações de menor importância que nem chegavam a motivar
instauração de inquérito policial.
O papel exercido pelos serviços das Delegacias de Polícia no Estado contemporâneo,
com todas as suas particularidades históricas, transpareceu a resposta rápida, informal, não
dispendiosa, a questões corriqueiras cotidianas. Problemas familiares ou entre vizinhos, o
desapego ao trabalho pelo vadio, a dependência do álcool, eram fatos levados à autoridade
pública que, no seu uniforme e distintivo, carregava a intimidação necessária para ditar as
regras da boa convivência. A Polícia se sobressaía no controle social dentro do Estado liberal
e burocrático brasileiro em razão de inúmeros fatores, entre eles: dificuldades de outras
Instituições Públicas de adquirir a confiança e a adesão da sociedade; sua posição de “fronte”
nas demandas para a resolução de litígios nas novas relações sociais que, por conseguinte,
acarretam novos conflitos jurídicos; demais antigas Instituições elitizadas e despreparadas
para acolher as demandas; um baixo nível de associativismo social e de divulgação dos
direitos civis, que implicava até desconhecimento dos caminhos judiciários para assegurar tais
direitos; a existência de uma cultura jurídica oficialmente dominante descompassada com a
cultura jurídica popular (o que as classes populares entendem como “justo” e o que esperam
da “justiça”); e um alto grau de pluralismo jurídico, que se soma à propensão a um expandir
de métodos não oficiais e informais de resolução dos litígios.
Nesse contexto, presenciamos as Delegacias como uma Instituição do Poder Executivo
que não se incumbia, tão somente, de suas funções investigadoras e administrativas previstas
em lei. Reveste também uma função judicante que não se restringe ao julgamento dos
processos administrativos por seus funcionários, mas que engloba a função jurisdicional
constitucionalmente atribuída ao Poder Judiciário. Quero dizer com isso que a Delegacia
Policial tal como compreendida hoje, no Estado Democrático de Direito, assumia, de fato, a
competência para resolver as questões jurídicas e potencialmente judiciais a ela deduzidas e a
própria autoridade policial, quando se propunha julgadora, representava, mesmo, a figura do
Juiz de Direito, com todas as suas funções e poderes (BRETAS, 1985).
136
Anexada esta efetiva função jurisdicional (juris diccional: dizer o direito) atribuída
aos comissariados de polícia – tradição, diga-se, presente desde o Código Criminal do Império
– a atividade policial ultrapassava a competência da repressão à criminalidade para se juntar a
ela uma premente atuação na garantia da ordem pública. A discrepância entre os números de
prisão e os números de inquéritos efetivos talvez seja um dado conclusivo para conferir a
sobreposição do controle social ao controle penal: em 1893, na Capital de São Paulo, foram
3466 pessoas presas contra 329 inquéritos abertos; em 1905, 11036 contra 794; em 1907,
9361 contra 1441 (FAUSTO, 1984: 31).
No Rio de Janeiro, a atenção voltada para as “classes perigosas” focava a
capoeiragem, fato previsto como infração no art. 402 do Código Penal de 1890
121
e também
como circunstância agravante de outros delitos.
Assim, percebemos que, a partir do final do século XIX, uma série de novas
Instituições e de novas tecnologias médico-judiciárias estava à disposição da República para
agir no controle das “pestes”, na limpeza da população brasileira, na prevenção do contágio
de novas doenças (e dos criminosos) e na ordenação da cidade e do meio rural em defesa de
todos. A leitura do delinquente como ser degenerado, atávico, inferior, selvagem, bárbaro
espelha parte de uma concepção mais abrangente de raça (e também de classe) e, por isso, o
incluía dentre os destinatários das medidas sanitárias da medicina social.
121
Art. 402, CP – Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecido pela denominação de
capoeiragem.
Parágrafo Único. Andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando
tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal.
137
2.4
A MEDICALIZAÇÃO DO CRIMINOSO BRASILEIRO APLICADA
Buscando ilustrar a discussão presente no Brasil sobre o cientificismo médico
criminológico e sua recepção pelo Poder Judiciário, procurei encontrar um caso concreto que
tivesse levado ao Tribunal os argumentos científicos e positivos sobre irresponsabilidade
criminal por doença (mental) cerebral e que tivesse reunido naquele microcosmo o contexto
social e político no qual se inseriam os conflitos da sociedade do fim do século. Depois de
algumas pesquisas, conclui-se pela apresentação de um fato ocorrido em 1886 que envolvia
uma senhora de escravos e duas de suas escravas. Tal fato é emblemático de um momento de
grandes embates em torno da escravidão e, ao mesmo tampo, é excepcional por apresentar o
julgamento de uma mulher de posse. “Mulhere “de posse” não representava o público alvo
do poder punitivo, salvo se fosse prostituta, jogadora, alcoólatra, negra ou mestiça, o que não
era o caso de nossa ré.
Assim, podemos delinear as artimanhas da defesa na conjugação do argumento da
inimputabilidade com o perfil social de uma senhora da sociedade e a receptividade deste
argumento pelo júri, bem como analisar os artifícios utilizados pelos atores do processo na
condução de um veredicto favorável à acusação ou à acusada. Vamos aos fatos.
Era fevereiro de 1886, poucos anos antes da abolição da escravatura. O ambiente,
inflamado pelas publicações contrárias à escravidão e pelas denúncias de maus tratos aos
escravos, fervilhou com a notícia dos acontecimentos contra as escravas Eduarda e Joanna.
Narra-se que, precisamente no dia 11, a primeira se apresentou na redação do Gazeta da
Tarde para buscar ajuda. Ia à Chefatura de Polícia reclamar dos espancamentos sofridos por
ela e Joana, mas lhe aconselharam o Jornal porque lhe dariam atenção. A Confederação
Abolicionista do Gazeta, de fato, a acolheu e, mais do que isso, iniciou o movimento de
sensibilização da comunidade e a assessoria jurídica imprescindível às suas defesas.
As marcas das atrocidades sofridas foram apresentadas ao público por José do
Patrocínio, João Clapp e outros que, após cortejo até o juiz Monteiro de Azevedo, exigiram as
medidas criminais cabíveis. Vejam trecho do que fora noticiado na Gazeta de Notícias de 12
de fevereiro de 1886:
A população d’esta capital assistiu hontem a mais uma scena triste e horrivel, que tem
origem na nefanda instituição da escravidão, a que o Sr. chefe de policia tem prestado os
mais relevantes serviços. Hontem pela manhã apresentou-se no escriptorio da Gazeta da
Tarde uma miseravel creatura de nome Eduarda, escrava da Sra. D. Francisca Silva Castro,
138
mulher de JoJoaquim de Magalhães Castro e moradora à praia de Botafogo. A infeliz
queixava-se de que tinha recebido de sua senhora os mais barbaros castigos. O rosto d’essa
desgraçada creatura apresentava um aspecto horroroso: os olhos completamente fechados por
causa de inflammação das palpebras; a testa coberta de chagas; a face entumecida e
gottejando sangue; os pulsos cobertos de profundas feridas e largas escoriações, feitas com
cordas ou qualquer outro instrumento de supplicio; no corpo e braços signaes evidentes de
sevicias, alguns antigos e outros muito recentes. Mal cobria-a um vestido rasgado, que lhe
deixava vêr o emmagrecido corpo, e a deixava descomposta; pois não vestia camisa. O
miserando aspecto da desventurada creatura causava ao mais empedernido coração! Do
escriptorio da Gazeta da Tarde, onde foi ella vista por muitas pessoas, representantes da
imprensa etc., foi a desgraçada levada pelo Sr. Clapp, presidente da Confederação
Abolicionista, e muitos outros cavalheiros, à presença do Sr. Dr. Monteiro de Azevedo, juiz
do 11º districto criminal, afim de promover a sua libertação e intentar acção criminal contra
os seus algozes. Eduarda declarou em presença d’aquelle juiz, que em casa de sua senhora
estava uma sua companheira, que se achava no mesmo estado que ella, em virtude de
barbaros castigos que lhe foram applicados por sua senhora, pelos motivos mais futeis, -
como por exemplo esquecer-se de limpar um movel! À vista dessa declaração, o Sr. Juiz
expediu um mandado, requisitando a presença da outra infeliz.
In A Vida Turbulenta de José do Patrocínio – Magalhães Jr., 1969.
Assim, o magistrado ouviu o depoimento de Eduarda, ordenou a apreensão de Joanna,
as depositou na casa de Bartolomeu França e viu-se diante de um desafio: romper com a
tradição escravocrata de poder absoluto sobre a sua propriedade escrava e lançar o poder
judiciário na vanguarda do humanitarismo, da atenção aos debilitados e da atribuição do papel
de vítima a quem constantemente era visto como agressor.
Joanna não resistiu, morrendo no dia 14 do mesmo mês. A notícia veio no dia
seguinte: na casa n. 65 da Praça da Acclamação, faleceu, ontem, às 4 horas da tarde, onde se
139
achava depositada, a “desditosa” escrava Joanna. A Gazeta de Notícias acompanhou a
necropsia, publicando, no dia 16 de fevereiro:
Muitas pessoas foram hontem ao necroterio, com o fim de vêr o cadaver da libertanda
Joanna, que tinha que ser autopsiado, para se verificar qual tinha sido a causa immediata da
morte da infeliz victima da escravidão. Ao meio-dia, quando chegaram os Srs. Drs.
Hermenegildo d’Almeida, delegado, Thomaz Coelho e Autran, medicos da policia, alli se
achavam representantes da imprensa, varios medicos, estudantes de medicina, presidente da
Confederação Abolicionista, senador Ignacio Martins, advogado de Magalhães e muitos
curiosos. Pouco depois começaram os medicos o exame do cadaver, verificando pela
autopsia feita as lesões consignadas no seguinte auto: Joanna, creoula, 17 annos, fallecida
ante-hontem na casa n. 65 do campo da Acclamação. Habito externo: Face anterior: na fronte
apresentava 10 cicatrizes em sentido differente, tendo a maior 2 centímetros para a esquerda;
outra recente de fórma arredondada, de 12 millimetros de maior diametro. Face, nariz,
palpebra superior direita, labios e mento, pavilhões das orelhas com cicatrizes, sendo a maior
de 2 centimetros. Ante-braço direito, face anterior, terço superior e médio, apresentava
quatro ferimentos contusos em supuração, tendo o maior quatro centimetros em extensão, e
de largura em um ponto dois millimetros e em outro 25, notando-se no mesmo ante-braço
outras cicatrizes provenientes de ferimentos identicos. Ante-braço esquerdo, face anterior e
terço superior, tinha diversas cicatrizes irregulares, notando-se também um ferimento de 14
millimetros sobre 10 de largura, em supuração, e tambem de forma irregular. Nos membros
inferiores, tanto nas coxas como nas pernas, algumas cicatrizes antigas. Na cabeça, face
posterior, havia cinco cicatrizes recentes de ferimentos contusos, cobertos de uma crosta
purulenta, sendo a maior de 2 centimetros. Sobre ambas as regiões escapulares e colunna
vertebral ao nivel das escapulas, varias contusões superficiaes com perda da epiderme, na
extensão de oito centimetros sobre cinco de largura na esquerda, e de sete centimetros de
comprimento sobre seis de largura na direita. Sobre o sacro e regiões gluteas seis cicatrizes
antigas. Ante-braço direito, face posterior, apresentava quatro ferimentos contusos, de forma
irregular, em supuração, sendo o maior de dois centimetros. No mesmo ante-braço algumas
cicatrizes antigas de ferimentos contusos. Na face dorsal da mão respectiva dous ferimentos
identicos. Habito interno: Pulmão esquerdo com granulações tuberculosas no apice, onde
tambem existia uma caverna do volume de um ovo de pomba; no lobulo inferior, signaes de
congestão; grande quantidade de liquido sero-sanguinolento, na cavidade thoraxica. Figado
volumoso e congesto; baço congesto; intestinos normaes; rins volumosos, o esquerdo mais
que o direito. O pulmão direito completamente crivado de tuberculose com uma enorme
caverna no lobulo superior. Encephalo e cerebelo normaes; meningeas adherentes, expessas
e com pequeno numero de granulações no ponto correspondente à base do encephalo:
Terminada a autopsia, o presidente da Confederação Abolicionista pediu ao delegado para
que fosse concedido àquella associação fazer o enterro de Joanna.
O enterro effectuou-se hontem às 5 horas da tarde, sahindo o feretro do necroterio para o
cemiterio de S. João Baptista (...).
Pela natureza das lesões e pelas circunstâncias do delito, a acusação recaiu sobre D.
Francisca da Silva Castro, dona das moças violentadas. Com o propósito, de início frustrado,
de alegar irresponsabilidade, D. Francisca internou-se. Magalhães Jr. nos conta que seu
amante gastou fortunas com a Casa de Saúde Dr. Eiras e “pagou a pêso de ouro atestados
médicos que a davam como desequilibrada mental. Mas o processo prosseguiu, pois os
abolicionistas obtiveram laudos contrários, de outros especialistas de renome, por quem
fizeram examinar a acusada” (idem, 1969: 198).
Ratifica, a internação, a Gazeta de Notícias, de 28 de fevereiro:
Hontem, às 5 horas da tarde, o Sr. Dr. Gusmão, delegado de policia, dirigiu-se à casa de
saude do Dr. Eiras, onde foi recolhida Francisca da Silva Castro, indigitada auctora dos
ferimentos nas escravas Eduarda e Joanna, falecida, afim de a interrogar e juntar o seu
depoimento aos autos, antes de encerrar o inquerito a que está procedendo. Estava quasi
concluido o depoimento, quando se apresentou o Sr. Senador Ignacio Martins, advogado da
140
indiciada e protestou contra a legalidade da diligencia do Sr. delegado. Respondeu este que o
seu acto era fundado na lei e, como a indiciada, que havia sempre respondido com a maior
lucidez, allegasse não poder assignar o seu depoimento, o Sr. delegado pediu ao seu
advogado que o fizesse a rogo. Então o Sr. Senador Ignacio Martins, no logar destinado à
assignatura, lavrou o seu protesto por escripto. Não concordando com isto, o Sr. delegado
mandou que o escrivão lavrasse o termo de declaração de haver o advogado escripto contra a
lei, um protesto no interrogatório. Esta declaração foi testemunhada e firmada pelos medicos
presentes. A indiciada foi recolhida a pedido do seu marido àquella casa de saude ha oito
dias, e até hontem os medicos que a tem observado não haviam podido affirmar o seu estado
de loucura.
Ocorre que, em 20 de fevereiro do mesmo ano, o marido de D. Francisca, o Sr. José
Joaquim de Magalhães ingressou com processo de interdição da mesma e com requerimento
de sua nomeação como curador, alegando que sua mulher sofria de alienação mental.
A estratégia estava montada
e era evidente. Ao se discutir o
estado de saúde mental,
invariavelmente se discutiriam as
consequências criminais de sua
conduta. O processo de interdição
seria um instrumento, com a
autoridade dos pares do Judiciário e
da Medicina, altamente impactante
na apreciação dos fatos na órbita
penal.
Na petição inicial do
processo de interdição, o requerente
afirma que D. Francisca se encontra
anos em estado de loucura que a
incapacita para reger a si própria e
seus bens. Que, em função deste
estado, vem causando grandes
prejuízos aos negócios de seu marido e constantes “incômodos de espírito”. Ao longo do
feito, pretendia justificar o pedido, demonstrando, primeiramente, que a justificada sofria de
alienação mental permanente proveniente de incômodos uterinos; depois, que na completa
loucura havia praticado atos sem deles poder ter a imputabilidade; em terceiro, que não é
capaz para a regência sua e de seus bens. Para tanto, requer sejam ouvidas as testemunhas
indicadas e nomeados os peritos pelo Juízo.
141
Assim, deu-se início aos procedimentos burocráticos necessários e, na data
determinada, foram colhidos os depoimentos testemunhais.
A primeira testemunha foi Anselmo Pinto de Magalhães, empregado de José Joaquim.
Afirmou que D. Francisca era mesmo louca e incapaz, que costumava rasgas vestidos, quebrar
móveis e descompor os empregados sem motivos.
A segunda, o artista português Antonio Pereira Alves, disse que, antes, eram apenas
perturbações mentais e que, cessado o ataque, D. Francisca voltava ao “juízo perfeito”.
Depois, porém, os ataques ficaram mais intensos e era constante o estado de loucura. Houve
tentativas de suicídio, quando ela ficou nove dias sem se alimentar e quando tentou enfocar-se
com toalhas.
A terceira testemunha, Antonio Francisco da Conceição Reis, outro empregado de
José Joaquim, disse que não conheceu D. Francisca, mas sempre ouviu falar que era louca.
Por fim, a quarta, também subordinado do requerente, o português Adolpho Ehrhardt,
confirmou os relatos anteriores.
Após a inquirição das testemunhas, foram juntados ao processo os laudos dos peritos.
O primeiro laudo, datado de 31 de março de 1886, foi assinado pelos Drs. João Pires
Farinha e Nuno de Andrade. Logo de imediato, manifestam-se pela não apreciação do fato
incriminado por temerem que o resultado das investigações fosse “arrancado da esphera
impessoal e tranquilla da sciencia e transplantado indevidamente para o terreno quente e
humoso das recriminações injuriosas e das suspeições, insubsistentes embora, mas
desagradaveis sempre”. Explicam, pois, o difícil encargo de realizar a pesquisa médico-legal
nas circunstâncias que provocaram o exame, com demasiados comentários na imprensa,
opiniões públicas inflamadas, o sentimento de cólera nos testemunhos, pela simples
dificuldade humana de subtrair-se à indignação e tristeza diante de um fato criminoso.
Principalmente, pela fermentação das ideias na luta travada entre abolicionistas e não-
abolicionistas, em que resultou numa polaridade extremada de “victimas e expoliadoressem
uma attenuante sequer para estes e sem um defeito que seja n’aqueles”. Procurariam,
portanto, não avaliá-lo.
Em seguida, descrevem os peritos como fora a primeira visita à D. Francisca na Casa
de Detenção. Pela aparência, tratava-se de senhora de 35 anos de idade, temperamento “bilio-
nervoso”, constituição forte e corpulência regular. Encontrava-se deitada, queixando-se
apenas de dor de cabeça e cansaço, provavelmente decorrente do episódio convulsivo do dia
anterior, a que cabia aos peritos investigar.
142
Diagnosticou-se “moléstia medular de Stieling” e verificou-se “dupla hiperesthesia
ovariana”, logo era grande a probabilidade de “hysteria”. Pelas placas de anestesia irregulares
e disseminadas pela pele, constatou-se a baixa sensibilidade cutânea e, consequentemente, a
forte tendência à modalidade grave de histeria. Para confirmá-la, procederam os peritos à
compressão demorada do ovário esquerdo, o que provocou um “ataque de nervos”, com
violenta crise convulsiva, tremor da mandíbula e formação de espuma, cessando prontamente
à pressão do órgão de onde partiu a “aura”. No dia seguinte, sua confirmação também veio
pela provocação de outro ataque menos intenso pela pressão do “ponto hiperestherico do
vertex” e, subsequentemente, pelo hipnotismo com insensibilidade geral. Sentenciam, então,
que “achava-se resolvido um dos problemas clinicos e diagnosticada a grande hysteria”.
Cumpria-lhes, agora, procurar datar o aparecimento da histeria, percorrendo a história
da doença e, para tal, deveriam se valer do testemunho da própria paciente, de conhecidos
dela e/ou de médicos. Descartaram, de imediato, o depoimento de D. Francisca, porquanto
havia dúvidas sobre a integridade mental e pela tendência das histéricas à mentira, e as
informações de conhecidos da paciente, “conquanto utilissimas aos intuitos da Justiça, pouco
esclareceriam a questão do diagnostico por falta de competencia profissional das
testemunhas para a apreciação dos symptomas e referencia exacta do ocorrido”. Assim, se
circunscreveram às opiniões dos colegas que, alguma vez, durante um período aproximado de
vinte anos de doença, examinaram D. Francisca. Somam-se, ao todo, vinte e um nomes na
lista fornecida por José Joaquim, da qual extraem-se médicos que, voluntariamente,
proferiram “certificados”. No certificado do Dr. Isidoro de Moraes, que tratou da paciente por
mais de quinze anos, o diagnostico de hysteria chronica” estava firmado. No certificado do
Sr. Dr. Figueiredo Magalhães se que D. Francisca “soffre de hysteria ha longos annos” e
nos certificados dos Srs. Drs. Alfredo Valdetaro e Felippe Meyer se consigna a “chronicidade
da mesma molestia”.
Nessa análise pregressa da doença (ou da vida da paciente), os peritos fixam o começo
da puberdade, aproximadamente aos quinze anos de idade, como um marco para os frequentes
e duradouros ataques. A partir daí, D. Francisca passou a protagonizar cenas de “escandalosa
insubordinação”, firmando um caráter caprichoso e exigente. Após duas gestações, com um
aborto, D. Francisca contraiu meningite, consecutiva à supressão catamenial. Apesar da cura
desta doença, não cessaram as crises histéricas. Contava, apenas, dezoito anos.
Outro dado importante para os peritos era avaliar o impacto dos últimos
acontecimentos no “espírito” de D. Francisca, indagando se ela se achava em sua normalidade
psíquica e se estas condições normais eram as de sanidade ou não, pois
143
Uma mulher hysterica e impressionavel, dominada por todas as tyranias da superexcitação
nervosa, poderia, por motivo dos factos que lhe foram arguidos e cahiram sob a apreciação
publica, sentir as irritações da colera ou deixar se vencer pela adversidade e pelo medo; e em
qualquer das duas situações oppostas manifestar symptomas de desequilibrio cerebral, capaz
de determinar operações anomalas da vontade, desvios de imaginação e desordens no
raciocinio.
Dois caminhos alternativos para essa avaliação eram o dedutivo, cotejando o estado de
então com o anterior, e o experimental, estimulando operações mentais sobre um fato
concreto. era de se esperar que os peritos preferissem o segundo, cuja técnica indicava a
exploração das faculdades afetivas do examinando. Nesse ponto, D. Francisca não manifestou
saudades de casa, nem dos filhos, demonstrando uma forma de “entorpecimento emocional”,
que se estendia para a indiferença quanto à sua reclusão: a situação moral da paciente foi
sempre a mesma, não tendo revelado nunca, nem desgosto por estar separada de seus filhos,
nem temor das consequencias do processo que se lhe instaura, nem vexame por estar presa”.
Nas conversas com os peritos sobre o fato incriminado, agia sem emoção e com
sorrisos, o quê levava a concluir que não compreendia o quão grave era a acusação ou o quão
fundamental era o exercício de sua defesa.
Quanto ao marido, não revelava prazer em vê-lo ou lástima por deixá-lo. Impunha-lhe
destrato que transformavam a ordem em desordem doméstica, embora materialmente tudo
recebesse. Vivia confortavelmente, mas isolava-se em seu quarto, dando pouca importância à
tranquilidade do lar, à educação dos filhos ou a seus deveres conjugais, restringindo-se à
“faculdade de gastar dinheiro e ao decubito continuo!, desabafam os peritos.
Se essas eram as condições “normaes” de D. Francisca, refletiriam, por sua vez,
alguma insanidade?
Didaticamente, explicam os peritos que a
sanidade de espirito consiste no justo equilibrio das faculdades intellectuaes e affectivas sob
o ponto de vista de sua influencia reciproca e do gráo de perfeição cerebral de cada um. Ella
revela-se, na esphera do pensamento, pela equação dos meios aos fins, o que constitui a
sabedoria; e, em relação á sensibilidade, pela reacção proporcionada á energia das cauzas de
um estado emocional qualquer. A dependencia reciproca em que se acham os factos da
ordem intellectiva dos da ordem moral, e vice-versa, estabelece no espirito humano a
solidariedade das funcções, de modo que o trabalho incumbido a cada operação psychica é
um factor do producto final, realisado na idéa si se trata da verdade, no sentimento, si se
trata do – bem. Em analyse ultima os dois objectivos se fundem, indicando assim a harmonia
essencial dos processos mentaes. Si essa harmonia se desfaz e a solidariedade se fragmenta,
as operações do espirito desviam-se, porque ficam umas sem o correctivo das outras; e por
isso a colera perturba a razão, como o enthusiasmo póde produzir o extase, o vicio géra a
loucura, como a idéa fixa pode impellir ao crime.
Se a causa da desarmonia dos processos mentais age por longo tempo, o desequilíbrio
gera o estado de loucura permanente, como morbidez constitucional transmissível
144
hereditariamente: “a unidade psychologica se esfuma perante a unidade funccional organica,
e sob tal aspecto, uma familia de loucos constitue facto tão natural como uma familia de
tisicos”. Nesse sentido, apuraram os peritos que a examinanda era filha de mulher epiléptica e
louca; neta e sobrinha, ambos pelo lado materno, de homens com afecção cerebral; além de
irmã de um imbecil, internado no Asilo de Mendicidade. Se D. Francisca possuía o “selo”
de uma origem mórbida, o ambiente “defeituoso” em que foi criada contribuiu para o
aperfeiçoamento das “tendencias nativas ao favor da culposa condescendencia materna e
descuidado de toda e qualquer preoccupação que não fosse a de agradar pelo physico e pelo
vestuario”.
Associados à veia familiar estão outros fatos que os peritos apontam como
característicos de instabilidade: o hábito de maquiar seus filhos, inclusive o recém-nascido, e
as frequentes mudanças de endereço que, num período de vinte anos, totalizam trinta
residências distintas, mesmo possuindo, eles, casa própria. Juntando todas as informações
colhidas diretamente nas visitas, com os atestados e certificados de colegas e mais o histórico
apurado, concluíram os peritos que o “estado normal de D. Francisca da Silva Castro é o de
insanidade de espirito”.
Ao final da exposição, os peritos passaram a responder à quesitação formulada pelo
Dr. Curador Geral de Órfãos. Ao primeiro quesito se a paciente sofria de moléstia crônica
há muitos anos –, a resposta foi afirmativa, indicando-se a forma grave de histeria crônica. Ao
segundo se esta moléstia poderia determinar alienação mental –, responderam
afirmativamente, ressaltando que, na maioria dos casos, a determina em situações onde existe
“herança cerebropathica”. Ao terceiro – se esta alienação se verificaria na paciente –, também
se afirmou que sim, apontando-se para a forma de loucura emocional contínua com acessos de
mania aguda (“histeromania mixta”). Ao quarto se a alienação era constante ou não –,
concordaram que, não obstante sua constância, o delírio agudo era intermitente. Ao último
caso não fosse constante a alienação, se poderia a paciente reger sua pessoas e seus bens –,
declarou-se prejudicado.
No segundo laudo, de 30 de março daquele mesmo ano, assinado pelo Dr. Cincinato
Lopes, há até transcrições do que seriam falas da examinanda. Parecia haver uma maior
interação entre ela e este médico, o que proporcionava maior espaço para sua expressão
verbal, como certa vez confessou: “se não fosse o Senhor mas o outro doutor o de olhos
verdes eu me mettia debaixo da cama para não apparecer-lhe ou então não lhe falava”.
Assim, enquanto quase nada se queixou aos dois outros peritos, ao Dr. Cincinato disse sofrer
145
de problemas hepáticos e gástricos, de cólicas renais, insônias ou sonhos desagradáveis, de
vertigens, de “dor do lado (pleuralgia)”, de “cephalalgias” constante, de “ambliopia” etc.
Por observação própria, o médico constatou zonas histerógenas difusas e placas de
anestesia cutânea como somatização nervosa. Igualmente como seus pares, o perito consignou
o fenômeno de que a compressão ovariana desencadeia ataque de histeria “major”, também
revelado pela “excitação hyperesthesica” de um ponto da parte superior da cabeça.
Não passa despercebido, aqui também, o histórico familiar e as informações de outros
médicos, bem como a indiferença dela à vida comum e seus caprichos indóceis. Por ter como
incompreensíveis as atitudes de D. Francisca perante as regras usuais da moral, o perito as
atribui a uma série de “perversões mentaes”, exemplificando com seu descaso pela família e
pela acusação que lhe recai: “totalmente indifferente a uma accusação que sobre ella pesa e
pintada a triste situação em que ella se acha com as cores as mais carregadas, leal e
impassivel a acceita, sem entretanto, se julgar criminosa porque, diz ella, <Eu não bati
mandei bater>”.
Entrando nos detalhes do caso, o Dr. Cincinato explora eventuais motivos que tenham-
na levado ao açoitamento das escravas. Consegue arrancar de sua examinanda que “as pretas
eram perversas”, que às vezes colocavam agulhas nos lençóis e nos travesseiros e que chegou,
uma delas, a destroncar-lhe um dedo com os dentes.
Mesmo na Casa de Detenção, manifestou a intenção de castigar uma negra que a
acompanhava, consoante determinação do Administrador, unicamente porque, segundo disse,
“não gosto desta gente. Alem disso, esta preta é tambem atrevida, senta-se nas cadeiras, bebe
agua nos copos como se fosse branca”. A intenção se concretizou alguns dias depois.
Diante dos fatos, sintetiza o perito a sua observação com as seguintes palavras:
educação viciada, juízo nulo, delírio nos atos, incoercibilidade, perversões instintivas,
perversões afetivas, impulsões inconscientes, alienação mental, aberrações da sensibilidade,
desordens de concepção, desordens de percepção, reconhecendo nela um “estado de não valor
social”, uma “tributária da psiquiatria”.
Por ser imprescindível a compreensão da influência da histeria e de outras nevropatias
sobre as faculdades mentais, o perito rechaça as conclusões simplórias do “bom senso
commum” e se aprofunda nas explicações técnicas. Busca, portanto, esclarecer ao Juiz como a
falta de equilíbrio entre as “faculdades mentaes superiores” (as faculdades mentais
propriamente ditas, a vontade, a consciência) e as “faculdades mentaes inferiores ou de
segunda ordem” (os instintos, as paixões, os desejos, o querer) pode se manifestar em uma
pessoa que aparentemente goza de uma liberdade moral.
146
Com efeito, sustenta que uma organização defeituosa antiga como a de D. Francisca
produz consequências nocivas ao longo da existência da pessoa e que entregue as suas
proprias forças, deve ter se achado na impossibilidade de se condusir livre no terreiro da
sociedade e de se dirigir de accordo com os seus interesses, não podendo se exigir della
respeito aos interesses alheios”. Assim, ainda que a alienação mental não se torne aparente,
há uma forte conexão entre loucura e razão que não extirpa a irresponsabilidade, configurando
o que se denomina loucura lúcida, mania que raciocina, loucura sem delírio, estado misto ou
pseudomania:
Ora, se é verdade que o ser humano encarado em sua natureza e sob o ponto de vista que se
queria considerar a sua lucidez mental, é responsavel pela suas acções, não é menos verdade
que casos ha, em que apezar da lucidez intellectual faltam-lhe varias faculdades a refrear as
incitações que surgem em seu coração (...). Admittidas ou melhor, comprehendidas estas
verdadeiras lacunas na constituição mental do individuo, desapparece, nestas condições, o
sentimento moral, e elle não tendo da moralidade senão uma ideia vaga, variavel e
inconsistente, se acha portanto, em um estado incapaz de dominar a impulsões energicas e
repetidas, provenientes das suas paixões e que uma vez em jogo fazem desapparecer a sua
consciencia e com ella o livre arbitrio.
À quesitação, as respostas deste perito não diferem substancialmente das dos peritos
anteriores, destacando-se, todavia, os últimos parágrafos de seu laudo, nos quais fez
observações ao que a petição inicial pretendia justificar. Assim conclui o resultado de suas
investigações: 1º. – D. Francisca da Silva Castro há muitos anos deve sofrer da forma especial
de alienação mental de que é hoje constantemente vítima, se bem que esta modalidade clínica
não provenha, no caso presente, de incômodos uterinos; 2º. Neste estado não de completa
loucura, mas de insânia moral, pratica atos sem deles poder ter a imputabilidade; 3º. Ipso
facto, não tem absolutamente capacidade para reger sua pessoa e bens.
Feita a juntada dos laudos, foram os autos conclusos ao juiz para a sentença. O
magistrado acatou as perícias não contestadas, afastou a avaliação da responsabilidade moral
quanto ao fato delituoso por escapar de sua competência e, ao final, decretou a interdição
pleiteada por José Joaquim Magalhães, a quem nomeou a curadoria. Isto aos 20 de maio de
1886.
No dia 23 de outubro do mesmo ano, ao meio-dia, a “torturadora de menores de
Botafogo” começou a ser julgada. Em vez da sala do Tribunal do Júri, fora deferido, a pedido
de seu próprio Presidente ao Ministro da Justiça, a sala de sessões da Câmara Municipal.
Foram destinadas as cadeiras das primeiras filas a famílias que requisitaram lugares e, atrás,
para os demais ouvintes. Ao lado das tribunas da imprensa foram alojadas as tribunas da
acusação e defesa. Como sala secreta para o momento do julgamento, o gabinete do
147
Presidente da Câmara. O salão nobre fora dispensado ao Juiz, Promotor, Advogados e
Médicos e a sala do arquivo à acusada.
Sizenando Nabuco fora nomeado tutor da menor Eduarda e, pela falecida Joana,
estava o Promotor Público, Dr. Carvalho Durão.
Em defesa da ré, um ex-ministro, o
Conselheiro Candido de Oliveira, e um
Senador, o advogado Ignácio Martins,
constituídos procuradores de José Joaquim
desde o processo de interdição, como mostra
a foto ao lado.
Em prol de D. Francisca,
basicamente três argumentos.
Primeiramente, o de que tal acusação
existia por pressão dos abolicionistas que
estes imputaram os delitos a D. Francisca
porque ela teria se negado a ceder à extorsão
de vinte contos que Patrocínio, Clapp e Nabuco lhe teriam feito. Em segundo lugar, a negativa
de autoria, alegando que Eduarda e Joanna é que teriam provocado as lesões entre si. Por fim,
sob o pretexto do distúrbio mental, tentava-se alcançar, inicialmente, a) a paralisação do
processo; ou b) a absolvição pelo júri em decorrência de sua irresponsabilidade criminal.
Quanto à paralisação do processo (a), em Memorial do Recurso datado de 25 de
agosto de 1886, interposto pelo advogado da Ré, além da menção a exames feitos por médicos
renomados como Hilario de Gouvêa, Moura Brazil e laudos do conselheiro Dr. Torres
Homem e Dr. Felicio dos Santos, opiniões de tantos outros profissionais para embasar os
fortes argumentos relativos à loucura da acusada.
A começar pela interdição proferida pelo Juiz de Órfãos, declarando-a louca, com base
em “loucura emocional contínua” e “alienação constante”, conforme atestaram os peritos.
Ilustrando a discussão que já mencionei antes sobre a (im)parcialidade pericial, neste ponto do
Memorial o advogado, Dr. Ignácio, ressalta que tais peritos foram nomeados judicialmente e,
por isso, seriam mais isentos do que os experts nomeados pelas partes. Inclusive, contesta o
laudo emitido pelos peritos da Promotoria, que responderam negativamente ao quesito em que
se indagava se a acusada sofria de alienação mental e que afirmaram “a Recorrente na
occasião em que commeteu os crimes estava no gozo pleno das suas faculdades intellectuaes”
(fls. 349 do processo crime e fls. 11 do Memorial). Contesta argumentando que, além da
148
suspeição, são os peritos da promotoria em menor número do que os médicos que atestaram a
favor da loucura e que estes conhecem a história da ré, tendo acompanhado seu quadro,
alguns mais de quinze anos (Dr. Julio Brandão, Francisco Furquim Werneck de Almeida,
Felippe Frederico Meyer, Pedro Izidoro de Moraes, José Roiz dos Santos, Francisco de
Figueiredo Magalhães, Barão de Motta-Maia, Alfredo C. Valdetaro, Erico Coelho, Barão de
Saboia, Francisco Carlos de Sá Ferreira e outros). Ademais, a inegável competência dos
peritos da denunciada (Drs. Nuno de Andrade, Pires Farinha e Cincinato Lopes) é
comprovada pelos graus científicos obtidos, iguais, aliás, aos graus dos peritos da acusação.
A tentativa de arquivamento do processo, todavia, não frutificou. D. Francisca foi a
julgamento.
Quanto à estratégia da absolvição pela doença mental (b), em que pesem os inúmeros
laudos e atestados acostados pela defesa, outros nomes de reconhecida autoridade e referência
na seara acadêmica, científica e política, se postaram na posição da imputabilidade da ré. No
dia 24 de outubro de 1886, a Gazeta de Notícias publicou parte da anamnese da acusada
realizada pelos Drs. Teixeira Brandão, Souza Lima e Teixeira de Souza:
Soubemos que D. Francisca de Castro, filha de uma união illegitima, cresceu e desenvolveu-
se em um ambiente pouco apto para arvorecer a expansão das forças virtuaes congenitas,
que, depois, sob a fórma de sentimentos ethicos, deveriam constituir o centro regulador de
todas as suas acções. Descendendo de uma senhora que, segundo nos referem, succumbiu a
uma molestia cerebral, D. Francisca de Castro se distinguiu desde a infancia pela
excitabilidade do systema nervoso e instabilidade do caracter. Sem cultivo intellectual, nem
correctivo que pudesse subordinar os seus instinctos, desejos e sentimentos, ao imperio das
leis que consubstanciam o progresso moral, habituou-se ella a governar sem
constrangimento; e, se por acaso encontrava reluctancia ao menor de seus caprichos, vencia
facilmente todos os escrupulos com um ataque hysterico ou uma tentativa apparatosa de
suicidio. Vendo satisfeitas as suas fantasias e realisados sem discrepancia todos os seus
votos, D. Francisca de Castro tornou-se despotica e avessa aos estimulos da piedade e do
bem. A falta de uma direcção determinada à actividade physica creou para ella uma serie
ininterrompida de necessidades ficticias, physicas e moraes, que acarretavam por uma vez o
desenvolvimento anomalo da esphera emocional, bem como a continua mutação da
tonalidade affectiva. Eis ahi por que sua vida tem sido tão accidentada de episodios
exquisitos e peripecias romanescas. Cedo se desenvolveu n’ella a funcção catamenial, e logo
após seguiu-se uma concepção que chegou a termo; depois outras evoluiram normalmente,
tendo apenas, por circumstancias accidentaes, dous abortos. Devemos consignar como um
facto digno de nota a ausencia de phenomenos convulsivos durante os partos. Amamentou
quatro de seus filhos, que atravessaram sem accidente morbido do systema nervoso a phase
da dentição e a primeira infancia.
Discordando dos diagnóstico dos médicos particulares de D. Francisca e dos peritos da
defesa a respeito da configuração de histeria com convulsões e delírio e de loucura emocional,
o Dr. Teixeira Brandão é sarcástico quando, em seu depoimento no processo criminal, diz que
a acusada “viu-se por encanto curada de tão graves males, desde que os peritos da justiça
declararam-na responsavel”.
149
O depoente aduz, ainda, sua incredulidade quanto à forma de loucura emocional,
declarando-a “insubsistente” clinicamente e “absurda” filosoficamente. Explica que, se é certo
que as funções psíquicas são solidárias, não haveria como fracionar tal solidariedade,
alterando-se umas, enquanto outras permaneceriam intactas. Ademais, caso se viesse admiti-
la, pergunta impiedosamente, onde estariam, na acusada, os estigmas físicos e mentais
indicativos do profundo grau da degeneração psíquica, que, segundo os crédulos, é sua
condição necessária.
Com certa percepção crítica, Dr. Teixeira Brandão, em dado momento, parece dirigir
sua fala para contestar uma visão étnica ou relativa das patologias. Sustenta que se o critério
para o reconhecimento da doença estiver vinculado filosoficamente ao grau de moralidade,
“não deixará a molestia de ser considerada segundo a especie, para sel-o segundo as raças,
os tempos e o gráu de civilisação dos povos?”.
Como contraditor do primeiro médico depoente estava o Dr. Nuno de Andrade. Sua
oratória forte e ácida deu um tom de rivalidade pessoal aos debates “científicos”. Rejeitando
os dados corpóreos como marcadores imprescindíveis de um estado psíquico degenerativo,
duela:
Em sua locução primeira o Sr. Dr. Brandão declarou regeitar o diagnostico de loucura moral,
porquanto, sendo esta uma vesania hereditaria, não se encontrava na as stygmatas
physicos caracteristicos da degeneração psychica; mas o orador desafia os peritos da
accusação a lhe apresentarem um autor de credito que haja dito serem taes stygmatas
phenomenos constentes da mesma degeneração. Os peritos não serão capazes de fazel-o. E
portanto, a ausencia de taes stygmatas nunca será razoavelmente invocada para por si
refutar o diagnostico de loucura emocional.
Convocado pelo juiz para seu depoimento, o Dr. Souza Lima mostrou-se mais polido e
menos provocador. De início, reforçou sua isenção de ânimo quanto ao êxito do processo,
ressaltando sua competência profissional e imparcialidade técnica. A seguir, chamou a
atenção para uma aparente contradição entre os argumentos da defesa – ao negar a autoria dos
fatos e insistir na irresponsabilidade da ré e para a leitura imprópria que se fez sobre a
ausência de consenso acerca da “nevrose” da paciente pelos próprios peritos da defesa, tendo
os primeiros indicado uma “grande hysteria” ou “hystero-epilepsia” e o segundo, uma histeria
pequena ou vulgar. Quis dizer, em outras palavras, que tanto uma quanto outra poderiam
causar alienação mental, mas que os peritos não esclareceram que desordem causou ou que
influência exerceu sobre o estado mental da examinanda no momento em que o ato foi
cometido. O estado mental de uma histérica, por ser muito variável, pode torná-las
responsáveis ou parcialmente responsáveis em certas épocas e inimputáveis em outras.
150
Se, na oportunidade em que esteve com a paciente, ela se colocou de modo desenvolto,
coerente e conecta em seus atos e palavras, a resposta precisa exigia o emprego de um
advérbio: “actualmente não estava louca D. Francisca de Castro”, não sendo possível,
todavia, afirmar se permaneceu constantemente lúcida ou se, mais importante, encontrava-se
em estado de insanidade ao tempo do crime. Para ele, a apatia ou insensibilidade moral não
constituíam prova irrefragável de loucura, porquanto compatíveis com os precedentes da
educação e da vida doméstica da acusada e, nesse sentido, concluía lhe caber responsabilidade
pelo menos parcial ou proporcional.
Em réplica aos comentários do Dr. Nuno de Andrade, o Dr. Teixeira Brandão
“lastima” a falta de maior “somma de sciencia” pelos peritos da defesa, admirando-se ouvir
sobre a anacrônica figura da loucura histérica, apenas aceitável no período “embryonario” da
psiquiatria, quando nem havia “classificação racional das psychopathias”. Em seu socorro,
cita Moreau, Tours, Déjerine, Kraepelin e outros.
Considerando a provocação de apresentar um autor que firmasse a identidade entre o
louco moral e o delinquente, mostra como
Lombroso procurando, como adepto que era da doutrina de Pritchard, estabelecer differenças
entre os loucos moraes e os delinquentes, encontrou tantas analogias entre uns e outros que,
ao envez do que pretendia, foi obrigado a confessar o seu equivoco e a reconhecer a
identidade entre elles.
Antes de passar à “tréplica”, o presidente do Júri a palavra ao Dr. Teixeira de
Souza, o qual satiriza a loucura “sui generis, apparecendo e desapparecendo à vontade da
defesa”: apareceu no momento do crime, mas desapareceu quando do casamento com o Dr.
José Joaquim; apareceu para os fins de interdição e desapareceu durante o processo. Explica,
em seguida, que o ataque “hystero-epileptico” somente existiu, segundo o primeiro exame,
após provocação, mas o que D. Francisca teve no momento da formação da culpa e no
Tribunal foram ataques simples, fugazes. O delírio histérico não se confunde com os delírios
vesânicos ou dos loucos, continuou ele, e a histeria não é causa determinante da loucura,
sendo certo que a acusada não possuía os sinais especiais da imbecilidade moral.
Sendo interrompido pelo Dr. Nuno que lhe perguntou quais seriam estes sinais, o Dr.
Teixeira de Souza aponta para as obsessões, as ideias fixas, os impulsos mórbidos, dentre
outros. Na acusada, a insensibilidade moral seria proveniente dos antecedentes de sua vida, da
sua educação. A irregularidade afetiva demonstra uma natureza corrompida que não deve ser
admitida como fator de irresponsabilidade. Ainda na opinião dele, advogar tal doutrina da
irresponsabilidade das histéricas é uma excentricidade da defesa que não compete à medicina
151
legal: “as vantagens que a psychiatria tem adquirido perante os magistrados, sua legitima
intervenção nos tribunaes perderia com isso”.
Na vez do Dr. Nuno de Andrade, novas contundentes palavras são proferidas. O tom
das disputas entre as linhas psiquiátricas teóricas permanece. Por exemplo, ele afirma que o
Dr. Teixeira Brandão sustentou francamente que a loucura histérica deixou de existir não em
razão da inadmissibilidade de sua morbidez, mas pelo fato de ter sido incluída na classe das
degenerações. Sarcasticamente, sentencia: “entende o orador que este argumento do Sr. Dr.
Teixeira Brandão equivale ao de suppor-se morto o individuo simplismente porque elle
mudou de domicilio”. Quanto ao argumento invocando a opinião de Lombroso acerca da não
distinção entre a loucura moral e o estado próprio do criminoso nato, o Dr. Nuno entendeu
que isso apenas ratificaria a anormalidade psíquica perene.
Às 5h12, o conselho de sentença se reuniu na sala secreta para o veredicto. Logo ao
primeiro quesito, os jurados responderam “não” em consenso. Esta negativa de que D.
Francisca não produziu, nem mandou produzir, as ofensas em Joanna e Eduarda tornou os
demais quesitos, quarenta e oito no total, prejudicados. A sentença, a seguir, encerra o caso:
“de conformidade com a decisão do jury, foi a accusada absolvida por unanimidade de
votos”.
Os Jornais não pouparam páginas para relatar detalhes do julgamento. O grande
acontecimento de fins de outubro de 1886 terminaria com essa decisão, de certa forma
esperada. Apesar das possíveis nulidades processuais não reconhecidas, D. Francisca foi
absolvida por negativa de autoria. E, ainda que tenha sido este o argumento acolhido e não o
de doença mental, o caso se apresenta como um fato histórico importante por reunir, em um
julgamento criminal, vários aspectos que vêm sendo discutidos ao longo deste trabalho:
1º.) A incorporação da doutrina médica à esfera penal e a eclosão da criminologia a
quantidade de médicos que recheiam o processo com suas opiniões é emblemática de um
contexto científico-político de projeção da medicina para além de seu próprio campo e da
autoridade médica nas questões jurídicas, principalmente na relação crime-doença. A
dificuldade de precisão de “diagnósticos” leigos sobre a loucura associada à própria
dificuldade de interpretação da lei penal que, à época, usava a expressão “louco de todo
gênero”
122
, firmou corrente doutrinária no sentido de que se tratava de questão de direito” e
122
“Mas a mesma expressão sintética loucos de todo gênero –, conquanto simples e clara, larga e fecunda em sua
simplicidade, não é, todavia, bastante compreensiva para abranger a totalidade não dos que padecem de qualquer
desarranjo no mecanismo da consciência, como também dos que deixaram de atingir, por algum vício orgânico, o
152
não de “questão de fato”, ou seja, algo que poderia ser merecedor de uma apreciação técnica,
e não meramente de uma avaliação subjetiva dos jurados, mas que não vincularia a decisão
soberana do Juiz ou do Júri.
Assim, as questões atinentes à culpabilidade e à responsabilidade no campo penal
deveriam passar pelo crivo da perícia, de cuja racionalidade empírica poderiam surgir as
conclusões pela inimputabilidade ou não do agente.
A medicalização do crime encontrou, no final do século XIX também no Brasil,
terreno fértil para o avanço da medicina na cooptação de outras competências e para sua
infiltração em solos áridos, já tomados por grupos também poderosos, os juristas.
A fissura por onde essa “água” se infiltrou fora proporcionada por uma mudança de
paradigma do crime para o criminoso, da pena retributiva para a sanção preventiva-curativa,
da abstração jurídica para a concretude da reprimenda que deveria ser individualizada. A
medida correta dessa sanção somente poderia ser fornecida pelos médicos, pelos doutores das
ciências psiquiátricas, psicopatológicas, cujas leituras obedeciam, em regra, a uma perspectiva
biológica da mente reduzida ao cérebro.
Não ao acaso o Dr. Teixeira Brandão, juntamente com os outros peritos, relata que D.
Francisca descende de mãe com moléstia cerebral e que, desde a infância, sofre de
excitabilidade do sistema nervoso, o que pode sugerir sua condição psíquica e seu caráter,
logo suas impulsividades, caprichos e despotismo.
Os detalhamentos nos levam a acreditar que a autoridade publicamente reconhecida de
certos médicos inclinava as decisões judiciais na conformidade de suas atestações. Evidente
que não se resumia ao lugar ocupado por ele social e politicamente, mas ao próprio caldo de
cultura vivenciado na segunda metade da década de 1880 que, inclusive, tentava encaminhar a
opinião pública a opor-se ao sistema escravocrata. Gerando uma conotação negativa à
escravidão, os dados médicos poderiam vir corroborar ou, por outro lado afastar, uma análise
moral e ética das condutas das partes envolvidas, influenciando os jurados.
A ideia da abolição, contudo, não era pacífica. No dia 14 de fevereiro, sob o título
“Chronica da Semana”, a Gazeta de Notícia publicou: “Outro caso da semana será o
mesmo foi o do Honório e da Eduarda, dois miseros escravos victimas.... disseram que de
escravocratas terríveis”. Pela notícia, a publicação não demonstrou incômodo com as
agressões em si, pois acreditava ser isso inverdade. Nesse inconsciente coletivo, a escravidão
era aceitável culturalmente e não faria sentido destruir uma mercadoria tão cara, como os
desenvolvimento normal das funções, ditas espirituais, sendo uns e outros isentos de imputação jurídica (BARRETO, 2003:
80).
153
escravos. Então, seguiu dizendo: “Mentira, diz, affirma e jura a “Chronica”! Os
escravocratas não maltratam escravos, porque não querem estragar a fazenda... Ora, com
franqueza: quanto vale a Eduarda, toda cheia de ulceras, estragada, sem porte de gente, sem
“representação pessoal”?
Em outras palavras, se o sentimento pessoal do jurado fosse de repulsa ao sistema
escravocrata, mais facilmente aceitaria a versão déspota da ré, resultando num repúdio aos
seus atos no plano da amoralidade. Os dados médicos poderiam corroborar a vitimização das
negras, admitindo-se os laudos periciais que ou afirmavam a lucidez da algoz ou vasculhavam
sua vida pregressa para ressaltar comportamentos de vida inaceitáveis pelos padrões rígidos
da época, independentemente do aspecto patológico.
Se, ao contrário, o sentimento de adesão ao sistema falasse mais alto, a tendência de
proteção à senhora de escravo inverteria a figura da vítima. A pessoa vitimizada seria o alvo
de uma conspiração contra o sistema que necessitava de um “Cristo” para crucificar,
manipulada por pessoas habilidosas e oportunistas, que viram na tragédia causada pelas
próprias negras a chance de perseguição de interesses privados ou até de enriquecimento
ilícito.
Percebemos, portanto, que as avaliações médicas do sujeito do processo penal e as
análises do judiciário sobre essas avaliações médicas reivindicam muito mais um espaço
moralizador e político do que propriamente a busca de um consenso científico sobre a saúde
ou a patologia.
Por outro lado, o diagnóstico da patologia contribuiria para tentar explicar o
inexplicável: como uma senhora, que sempre gozou dos melhores requintes proporcionados
por seu marido, ousa fazê-lo sofrer e à sua família? O que poderia levar alguém a provocar
inquietudes no lar, na vida doméstica, com atitudes caprichosas e ameaçadoras? O que
justifica a prostração e o decúbito diários sem a mínima preocupação com a educação dos
filhos, nem sentimentos quanto a seu cônjuge? O que determina o isolamento em vez da
instrutiva vida social, ou gastos excessivos com roupas e jóias em vez do aprimoramento
moral? Apenas... a loucura!
2º.) A utilização da cientificidade dica nos tribunais como instrumento de constituição de
teses defensivas ou acusatórias e a emergência de um novo campo do saber-poder No caso
apresentado, vimos que o recurso aos laudos médicos e ao processo de interdição representava
uma forte estratégia de defesa para o embasamento substancial da argumentação a favor da
irresponsabilidade da acusada.
154
Em não sendo aceito pelo júri o argumento de lesões recíprocas entre as próprias
vítimas, que, pela natureza das ofensas e as circunstâncias do fato, viessem indicar realmente
a brutal ação de D. Francisca, entraria em jogo a explicação científica dos médicos signatários
dos laudos elaborados de modo criterioso, didático, positivo, cauteloso e convincente, tendo
em vista os relatos detalhados das inúmeras visitas à examinanda tanto na Casa de Saúde Dr.
Eiras, quanto na Casa de Detenção.
Ficou claro que os três peritos da defesa, respaldados pelas informações colhidas in
loco e pelas observações de muitos colegas, afirmaram a existência da alienação mental e,
conseguintemente, a incapacidade da paciente de reger a si mesma e a seus bens.
O Dr. Cincinato Lopes reconheceu, além da hysteria, a loucura moral, a mania que
raciocina, a pseudomania, diagnóstico instigante, embora nada inovador no cenário jurídico-
penal internacional. Comparativamente, guardadas as particularidades de cada caso, D.
Francisca é o nosso Guiteau. Claro que seria mais pertinente atribuirmos este título a
Marcellino Bispo, pelas semelhanças ainda maiores entre os fatos, mas sua morte precoce não
permitiu avaliarmos o tratamento que a questão teria no Judiciário.
Então, falava, D. Francisca é nosso Guiteau pela oportunidade que nos oferece de
identificarmos, em um julgamento no tribunal do júri, o mesmo tabuleiro de xadrez, com suas
variadas figuras, com movimentos estratégicos, com a organização do pensamento para levar
ao xeque-mate, ao triunfo da competência.
Na análise das peças processuais, dá-se a impressão, por vezes, de que os médicos
saem do status de “peçapara assumirem o posto do próprio jogador. A sobressalência dos
laudos no corpo do processo e o predomínio do enfoque sobre as questões médico-legais
também na imprensa nos leva a crer que a aposta, mesmo a da defesa, era a de não aceitação
da tese de negativa de autoria. Por isso, tanto investimento nos debates acerca da
(ir)responsabilidade.
Curiosamente, para os jurados, a questão da culpabilidade não foi a mais relevante e
isso representa, por si só, um dado importante nas minhas especulações. O fato do conselho
de sentença ter acatado o argumento de que não foi D. Francisca que bateu nas escravas pode
ser indicativo de que o saber-poder psiquiátrico criou uma cultura médico-legal tão
peculiarmente erudita que prevaleceu seu confinamento aos homens da ciência.
A atmosfera de alta cientificidade, por um lado, aproximou os saberes, consolidando
uma forma de poder, na manipulação dos dados científicos, no manejamento dos
instrumentos; por outro lado, pode ter distanciado a cultura médico-legal de uma cultura
jurídica popular, até no emprego de termos cultos, técnicos, confusos para os leigos que
155
compõem o Júri. Não é, aliás, tão difícil entender porque, em geral, os médicos tão duramente
criticavam esta Instituição.
Também não é difícil perceber o quanto a acusação se empenhou para lutar com as
mesmas armas. Destacou, nada menos, que o “lente” da Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro, Dr. Teixeira Brandão, para atestar a imputabilidade da ré. Valendo-se do mesmo
recurso à Ciência, atingiu, todavia, conclusões contrárias às dos peritos da defesa. Tal
escassez de consenso sobre a “verdade” transparece, ao mesmo tempo, uma certa fragilidade
dos argumentos científicos: duas leituras diferentes sobre o fato, admite-se; mas, duas
possíveis verdades contraditórias sobre a loucura não são compatíveis com a certeza
científica.
Talvez, portanto, a solução encontrada pelos jurados para se eximirem do encargo de
adentrar no mérito de toda essa discussão inatingível foi negar a autoria dos fatos à acusada.
3º.) A negação do livre arbítrio pelas explicações científicas das forças orgânicas se da
parte dos juristas havia alguma cautela da aceitação plena das teorias positivistas, tanto em
razão do ensino clássico filosófico do Direito quanto pela “reserva de mercado” com restrição
à invasão absoluta das premissas médicas, da parte dos médicos, encontravam-se bem mais à
vontade para declararem as “ilusões da liberdade”.
Assim, no caso concreto, é razoável imaginar que os depoimentos médicos trouxeram,
para os juristas, a tarefa de conjugar o papel de protagonistas e de figurantes, na dosagem
certa da utilização conveniente das teses médicas sem ofuscar a sua própria atuação e sem,
necessariamente, revelar suas próprias convicções. Nessa relação de amor e ódio, a negação
do livre arbítrio até poderia não estar incutida nas crenças do jurista, uma vez que sua
sustentação poderia caber exclusivamente aos peritos. Ou seja, ainda que os advogados da
defesa não compartilhassem do mesmo entendimento que os médicos sobre a liberdade de
escolha, sobre a vontade, a marcação do local da fala os eximiria das consequências de
assumirem posição absolutamente favorável ao determinismo. Esse microcosmo nos auxilia a
compreender a tensão e a cooperação entre estas duas classes.
Como vimos, os peritos da defesa consideraram D. Francisca uma mulher louca. A
alienação era proveniente de histeria, uma “nevrose” adquirida hereditariamente, uma
“herança cerebropathica”.
Na explicação técnica do Dr. Cincinato, a coexistência da aparente liberdade moral
com a “nevropatia” se daria pelo desequilíbrio entre algumas faculdades mentais, as ditas
superiores e inferiores. A desorganização cerebral influenciada pela histeria determinaria a
156
sobreposição das segundas às primeiras, ou seja, a sucumbência da vontade e da consciência
aos instintos e às paixões.
A impossibilidade orgânica de se ajustar às expectativas sociais pelo predomínio das
forças fisiológicas anularia a sua liberdade de autodeterminação, pelo quê não se poderia dela
exigir um respeito aos direitos alheios. Embora presente, na maior parte do tempo a
capacidade intelectual, a moralidade estava corrompida pelas impulsões instintivas.
Esse foi o diagnóstico corroborado por vários médicos, ressaltando o descontrole da
impulsividade nos “accessos” (grifos meus):
- Dr. Alfredo Valdetaro: «Durante os annos de 1880 e 1881, por vezes fui chamado a tratar da
Sra. D. Francisca da Silva Castro, a qual soffria de loucura hysterica, com accessos
impulsivos, que a levaram a practicar violencias contra a sua e as pessoas, que se lhe
approximavam»;
- Dr. Furquim Werneck: «A Sra. D. Francisca da S. Castro, da qual tenho tratado por muitas
vezes, soffre de hysteria, produzindo frequentemente accessos de mania com caracteres os
mais variados. Em um parto no qual fui o assistente tive de chloroformisal-a profundamente,
pois n’essa occasião tinha a mania de guardar no ventre o filho, que não queria que nascesse.
É pessôa que, em regra geral, não tem responsabilidade e que em muitas occasiões perde
completamente a razão»;
- Dr. Rodrigues dos Santos: «durante longo tempo tratou da Sra. Francisca, a qual apresentava
phenomenos de loucura hysterica, com exacerbações de tal ordem, que por mais de uma vez
tentou contra seus proprios dias»;
- Dr. Barão de Motta Maia: «prestei cuidados medicos á Sra. D. Francisca da Silva Castro,
que soffre ha muitos annos de hysteria com accessos os mais variados e bizarros, pelo que não
a julgo no uso perfeito das suas faculdades intellectuaes»;
- Dr. Figueiredo Magalhães: «soffre, ha longos annos, de hysteria, manifestada varias vezes
por accessos de verdadeira loucura em que as formas variadas da mania a mais exaltada
produzem n’ella extravagantes e terriveis effeitos»;
- Dr. Felippe Meyer: «tem sido chamado, por diversas vezes, para tratar da Sra. D. Francisca,
encontrando-a affectada de loucura hysterica com accessos impulsivos»;
- Dr. Pedro Isidoro de Moraes: «soffre de hysteria, que por muitas vezes tem tomado a forma
de loucura e mania»
Os “accessos”, como manifestação de loucura causada pela histeria, provavam o
estado de desorganização mental resultante desta nevropatia. Eram os nervos doentes que
determinam um cérebro doente e, portanto, um “espírito” insano.
157
4º.) O recurso ao tratamento em substituição às sanções retributivas No relato dos Drs.
Farinha e Andrade, tem-se um resumo emblemático do sentimento que os homens da
medicina costumam ter quanto à aplicação da pena a pessoas que consideravam doentes.
Averiguando as consequências da imputação do delito e da reclusão no estado mental da
paciente, retratam que
O meio novo, e desagradavel, em que de subito se achou nenhuma influencia deprimente
exerceu em suas condições moraes; e em vez de os peritos encontrarem uma senhora afflicta
pela grave accusação que se lhes fazia e vexada de ter sido reclusa em prisão, viram uma
mulher para quem os mais serios accidentes da vida passam como bagatela, despreziveis,
deixando occulta nas sombras de uma consciencia sonnolenta a noção da responsabilidade
pessoal.
Reforçam, com isso, o descabimento da atribuição de responsabilidade e, por
conseguinte, da aplicação da pena de prisão a alguém que não se sentiria moralmente
repreendida, nem intimidada à prática de novas infrações.
Para o modelo clássico, a pena representa castigo e prevenção geral. No modelo
positivo, o caráter de prevenção especial foi introduzido, forçando um olhar específico para
quem realizou a infração. Se a conduta não é culpável, o confinamento não se justificaria
como retribuição ao mal causado senão como defesa social ou medida preventiva a novos
fatos contra si mesmo ou contra outrem.
No caso apresentado, a intenção dos familiares e peritos de D. Francisca era a sua
internação e todo argumento de exculpação não a elidia. Tanto que, mesmo após a absolvição
de D. Francisca, seus advogados requereram ao Juiz de Órfãos, no dia 19 de novembro de
1886, fosse expedido ofício ao Provedor da Santa Casa de Misericórdia para que este emitisse
ordem de admissão da paciente no Hospital D. Pedro II. O Juiz deferiu, mas a petição foi
recebida pelo Provedor no dia 20 de maio de 1887, dizendo ele que nada mais tinha a fazer.
Os advogados, então, reforçaram o pedido, tendo o juiz acatado de novo o requerimento.
Nesta segunda petição, de 03 de junho de 1887, diz-se: o requerente sente pela “necessidade
de requerer a reclusão de sua infeliz mulher em uma casa de alienados, e se o faz é pelo
receio do perigo em que estão seus filhos, seus familiares e elle proprio”. O processo é assim
encerrado, sem nos dar a certeza do fim da história de nossa protagonista.
5º.) A não incidência da doutrina do atavismo, mas a atribuição da doença adquirida
hereditariamente Quando os peritos falam da hereditariedade mórbida, nos remetem às
considerações positivistas das doutrinas do atavismo e da degeneração. A semelhança entre as
descrições feitas pelos médicos do caso de D. Francisca e as narrativas positivistas tendem a
158
apontá-la mesmo como uma criminosa nata lombrosiana. A associação é ainda mais forte
quando o perito diagnostica a loucura moral, tanto que o Dr. Teixeira Brandão logo solicita os
sinais degenerativos ou os estigmas físicos da histérica delinquente.
No entanto, argumentar acerca de uma criminalidade nata era desnecessário e
conflituoso. Desnecessário porque, tal como se expressava a inimputabilidade no Código
Penal, bastava a loucura, independentemente de outra qualificação. Conflituoso porque, no
espectro feminino da delinquência, aquela que nascia criminosa por excelência era a
prostituta. Ademais, a própria figura do “tipo” criminoso vinha sendo combatida no meio
científico e ridicularizada por muitos teóricos, o que poderia trazer um adendo desnecessário
ao questionamento sobre a competência do perito.
Não obstante a referência expressa ao fator hereditário, não se percebeu o recurso à
teoria do atavismo. Além do que foi dito do parágrafo anterior, uma hipótese é que as
tipologias designativas dos delinquentes guardavam vínculo com cada raça ou classe. Nessa
esteira também se posiciona Ruth Harris, quando exemplifica que “decadente” era o
aristocrata ou o da classe média francesa, enquanto o “vagabundo” ou “selvagem”,
“‘subespécie’ que parecia confirmar a idéia de Lombroso acerca do criminoso nato”, era o
mais perigoso, o apache urbano (idem, 1993: 353). Assim, poderia soar meio escandaloso aos
olhos da sociedade atribuir à D. Francisca o adjetivo “atávico”, o qual, de qualquer modo,
nada acrescentava aos debates sobre a responsabilidade moral.
O que parece ser mais interessante neste debate é o reflexo de toda uma conjuntura
histórica na qual se presenciam as diversas opiniões sobre papel não só dos médicos e juristas,
mas também dos agentes sociais incorporados na figura do réu do processo penal, neste caso
na pele de D. Francisca. As avaliações da conduta violenta da ré, tanto pelos advogados,
promotores, jurados, quanto pelos peritos, ao rebuscarem os detalhes do comportamento
social e da vida pregressa, são avaliações tomadas a partir das percepções sociais de
feminilidade de acordo com o estado civil e político da acusada.
Com efeito, não se divergiu sobre o fato de D. Francisca não se preocupar com seus
filhos e com seu marido ou sobre o fato dela gastar exageradamente para satisfazer sua
vaidade, pontos destacados até pelos peritos da defesa. Isso, por si só, configurava fator de
repreensão social ou indicador de uma personalidade desajustada, que receberia interpretações
divergentes sobre o que fazer com essa mulher que ou era louca ou era má. Mas, a questão
central agora é explorar a reação do tribunal frente à senhora burguesa que se apresentava a
julgamento.
159
Diante dos jurados, uma pessoa com personalidade no mínimo duvidosa. Qualquer que
fosse a qualificação atribuída, a verdade era que o Juiz de Órfãos a havia interditado.
Outrossim, seu perfil de mãe e de esposa não denotava o zelo que se esperava de alguém em
sua posição e estrato sociais: “em qualquer discussão do réu, seja legal, médica ou
jornalística, a ênfase era colocada no sucesso ou fracasso da mulher ou homem em
representar determinados papéis sociais preestabelecidos” (Harris, 1993: 29). Nesse sentido,
retratava-se alguém merecedor de uma intervenção oficial, fosse através do sistema punitivo
(como desejava a acusação), fosse através do sistema de saúde (como desejava a defesa).
Este era o quadro pintado no polo do banco dos réus. Não seria imprudente arriscar um
palpite de que o veredicto se concentraria na questão da (in)imputabilidade caso não se
cogitasse a negativa de autoria e caso a(s) vítima(s) fosse(m) outra(s) pessoa(s).
Se houvesse a certeza de que D. Francisca foi quem provocou as lesões nas vítimas, o
fato se aproximaria ainda mais dos emblemáticos “causos” do fin de siècle, em que a
confissão do réu afastava as dúvidas quanto à autoria, mas as deslocava totalmente para o
plano da sanidade. Desde a mudança na percepção cultural da loucura não mais limitada à
“inteligência perturbada ou reduzida, isto é, incapaz de critérios racionais acerca do
mundo” (idem, ibidem: 16), mas ampliada para a monomania –, se tornou cada vez mais
comum a identificação indubitável dos autores do crime e, paralelamente, a infiltração com
mais constância das explicações neurofisiológicas nos tribunais. A questão, então, não era
quem praticou, e sim se aquele que praticou agiu sob estado de loucura ou de maldade, algo
apurável por um especialista, até para afastar simulações.
Quando o Dr. Cincinato relata uma confissão de D. Francisca, “eu não bati, mandei
bater”, de certa forma, está buscando trazer o debate para essa envolvência médica absoluta.
E, ainda, quando fala em histeria e descarta sofrimentos uterinos faz o movimento que Harris
denuncia: “o estudo ‘científico’ da histeria mudara ostensivamente o foco da investigação
médica do útero para o sistema nervoso (...)” (idem, ibidem: 46).
É, no fundo, a mente doente num cérebro desarranjado, desequilibrado, promovendo
um conjunto de anomalias no sistema nervoso, com consequências fisiológicas, físicas,
psíquicas e morais:
Quando esse sistema sutilmente harmonizado se desestabilizava pela degeneração, os vários
níveis de coordenação vertical e centros de comunicação horizontal não mais operavam em
série, nem ao longo do eixo cérebro-espinhal nem através dos hemisférios cerebrais.
Repetidamente fazia-se referência ao “desarranjo” do sistema, do desequilíbrio e
subseqüente surgimento de sintomas de falta de controle, “desinibição” e automatismo,
característicos dos doentes mentais (idem, ibidem: 47).
160
Ao preferir, o júri, acatar a tese de que não havia provas suficientes para condenar D.
Francisca, esquivou-se de analisar todo esse emaranhado de teorias tão sofisticadas,
complexas e controversas. Outro dado, contudo, foi relevante para que o julgamento
caminhasse nesse sentido: as “negrinhas”.
Dizia-se do quadro do banco dos réus. Agora, se falará do outro polo, o das vítimas.
Se, diante dos jurados, se apresentou uma mulher de personalidade duvidosa, também
diante deles estava uma senhora de escravos. Se seu papel de mãe e de esposa não era
exemplar, em nada se resvalava no papel de proprietária de súditos negros, conforme pensava
a tradição escravocrata. Talvez não fosse muito perspicaz açoitar brutalmente um trabalhador
que, lesado, não conseguiria trabalhar ou, morto, para nada serviria; todavia, na visão clássica
de “coisas personificadas”, era lícito castigar.
Por esse ponto de vista, se, realmente, D. Francisca mandou um terceiro bater nas
vítimas ou mandou que uma batesse na outra, o almejando as consequências advindas face
ao prejuízo que lhe causaria, não haveria motivos jurídicos para ser apontada como autora de
homicídio ou lesão gravíssima. Esse, provavelmente, foi o raciocínio dos jurados.
Nesse sentido, podemos observar de que modo o julgamento reflete uma percepção
social de classe, de gênero e de raça. O caldo de cultura em que se situava todo esse fato faz-
nos olhar o para a autora como também para as vítimas. O foco médico-legal estava na
primeira, porém o arsenal fisicalista, acentuador das desigualdades naturais e favorecedor das
degenerações raciais contido no discurso científico vinha promovendo, algum tempo,
justificativas para o tratamento diferenciado entre negros e brancos. O foco da exclusão,
portanto, recaía sobre as segundas.
Mesmo com o empenho de José do Patrocínio e outros ativistas, mesmo com
significativa ilustração brasileira clamando pelas reformas e pelo abolicionismo, tivemos, em
1886, esse caso de absolvição de uma mulher, branca, burguesa. Nesse tribunal, é suposto
pensar que venceu o projeto positivista de hierarquia e inferioridade racial a que os
antropólogos criminais tanto se dedicaram. Se a ala progressista conseguiu chamar a atenção
para os fatos e levá-los para o Judiciário, a ala da “modernidade conservadora” conseguiu
manter a tradição da impunidade escravocrata porquanto as vítimas eram, em essência, uma
res degenerada.
161
CONCLUSÃO
Ter um cérebro e ser um cérebro. Eis, aqui, aparentemente uma pequena diferença de
verbos que se traduz, todavia, em um imenso conjunto de significados apurados pelas
pesquisas que se dedicam a compreender a história, os motivos e as consequências da adoção
de uma cultura seduzida pela mitificação do órgão cerebral
123
. A contextualização apresentada
ao longo deste trabalho pretendeu nos auxiliar a compreender não só o papel do cérebro para a
ciência e para a sociedade, mas também a elaboração das políticas públicas de saúde coletiva
e de padrões de conduta que definem o que é ou não saudável, como ter ou não qualidade de
vida, o que é o normal e o patológico, como as redes de poder devem disciplinar o corpo,
como e quando punir os desviantes.
A matriz biológica da explicação da constituição orgânica do indivíduo se estendeu
para a sociedade fortemente no século XIX. A secularização através das Ciências organizou
uma forma de produção das verdades, de saber-poder, instituída a partir das revoluções
burguesas, cujo paradigma causal-naturalista, alastrando-se para diversas áreas do
conhecimento, consolidou um olhar fisicalista e reducionista do comportamento individual e
da composição-estrutura social.
Historicamente, portanto, foi possível identificar as raízes das referências positivistas
na implicação Medicina-Pessoa-Sociedade da idade contemporânea, cujos dogmas formaram
as lentes com que muitos estão habituados a olhar os fatos; e, politicamente, foi possível
identificar a legitimação da ingerência estatal sobre o corpo e sobre a vida dos indivíduos,
bem como sobre o organismo social, por aquilo que Foucault (1976) cunhou como Biopoder,
ou seja, um poder sobre a vida e sobre a saúde da população, por meio da estatização do
biológico, num processo biopolítico amplo de fortalecimento do Estado moderno e da
burguesia com o aparato médico-jurídico formado para a “medicalização” e a “normalização”
da sociedade (ORTEGA, 2006).
Nas leituras clássicas foucaultianas sobre o biopoder, a biopolítica e a medicalização
da sociedade, o marco temporal inicial foi o final do século XVIII.
123
Inúmeras publicações demonstram o avanço das abordagens médicas, psiquiátricas, psicanalíticas, filosóficas, teológicas,
educacionais, históricas, sociológicas, éticas e jurídicas sobre o novo paradigma da figura antropológica do “sujeito cerebral”,
cujo sentido contém a idéia de que o cérebro é a única parte do corpo de que necessitamos para sermos nós mesmos. O ser
humano, como sujeito cerebral, é caracterizado pela propriedade do “brainhood”, isto é, “a propriedade ou qualidade de ser,
e não simplesmente ter, um cérebro” (Vidal, 2009: 6).
162
Neste trabalho, buscando um microcosmo que exemplificasse esse processo e
trouxesse à reflexão a interrelação entre a normalização da vida individual/coletiva e as
práticas institucionais, numa perspectiva mais ampla, e entre a intervenção médico-judiciária
e o cérebro anormal do criminoso mais especificamente, o olhar dirigiu-se para o final do
século XIX, como corriqueiramente se faz no estudo da interseção entre a Medicina e o
Crime.
Ocorre que, no decorrer das pesquisas, percebeu-se a gênese de uma preocupação
antropológica secularizada, autodenominada científica, no início dos oitocentos. O foco no
cérebro (do) delinquente, com seus determinantes biológicos, e o postulado do
localizacionismo, com a premissa de maior ou menor desenvolvimento de órgãos refletido no
aspecto crânio-facial, chamou de imediato a atenção para o diagnóstico da criminalidade inata
e para as propostas frenológicas de prevenção e tratamento.
Em comum, as premissas da Frenologia e da Escola Positiva têm vários pontos. Além
do fetichismo em torno das cabeças, podemos ressaltar o percurso originado no método
empírico e comparativo entre os animais e os seres humanos, numa naturalização do
indivíduo; na laicização do olhar médico sobre o sujeito, o enfoque no criminoso e não no
crime; a perpetuação de um sistema auto-referenciado que se retroalimenta em suas
Sociedades, Revistas, Institutos, Laboratórios, Museus e espera o reconhecimento de sua
autoridade para além das fronteiras de suas atividades medicinais; a negação do livre arbítrio
para um criminoso nato; o procedimento classificatório dos delinquentes e a hierarquização
das pessoas.
Assim é que as leituras das pesquisas “craniométricas” deslocaram o alvo da igualdade
para, através da naturalização das diferenças, procederem a uma classificação dos indivíduos,
a qual, no contexto social que ansiava por explicações científicas da inferioridade dos negros,
índios e mulheres, foi facilmente recepcionada. Úteis, os discursos frenológicos, associados à
fisionomia, e os discursos da antropologia criminal autorizavam medidas políticas,
educacionais e psiquiátricas, de correção, controle, tratamento, exclusão e, até mesmo, de
extermínio, que se amparavam nas explicações patológicas para, estabelecendo diferenças
entre comportamentos morais, socioculturais, predisposição para as atividades intelectuais ou
tendências criminosas, agressivas, criar os “subtipos humanos”.
As expectativas quanto aos resultados que as pesquisas craniométricas e
anatomopatológicas poderiam fornecer cruzaram continentes, oceanos e desembarcaram em
nosso país. O papel que o cérebro desempenhou no estudo da Criminologia científica,
fortemente no final do século XIX, impactou a literatura médico-jurídica brasileira e, aqui, fez
163
escolas. Nomes da medicina como Raimundo Nina Rodrigues, Teixeira Brandão, Heitor
Carrilho, Juliano Moreira, aplicavam suas premissas no campo criminológico e renomados
juristas e advogados também se deixaram seduzir por tais idéias. Entre eles, a título de
exemplificação, João Vieira de Araújo, Augusto Olympio Viveiros de Castro, Cândido Mota,
Esmeraldino Olympio Torres Bandeira, Antônio Moniz Sodré de Aragão e Pedro Lessa
(Tórtima, 2002).
Evidente que, antes destes, outros estudiosos vinham acompanhando as produções
européias oitocentistas, inclusive as publicações dos frenologistas. Aqui no Brasil, teses a
sustentação de “these” era igualmente condição legal para obtenção do diploma de graduação
em Medicina – frenológicas foram elaboradas, divulgando os postulados de Gall e seus
discípulos.
Por isso, se o material desenvolvido pela frenologia e, depois, pela Escola Positiva
reflete a onda cientificista do século XIX, na qual as pesquisas cerebrais marcam a visão
sobre a etiologia do crime a partir de seus marcadores biológicos, tornou-se relevante
perceber como o cientificismo europeu fora recepcionado pelos estudos nacionais.
Considerando que a racionalidade dos doutores poderia estar atrelada a uma
mentalidade elitista, a uma opção política do tipo monarquia versus república ou escravidão
versus abolicionismo, não se pode mesmo descartar a hipótese dessa construção teórica do
século XIX ter referendado uma dominação social e uma garantia de ordem higienista que
lavava, para fora da normalidade, os mestiços, os capoeiras, os degenerados, os vadios, os
inertes, os malandros, os criminosos.
No Brasil, então, tínhamos a especificidade de uma intelectualidade médica voltada
para a adequação de um programa de inclusão do nosso país no mundo “evoluído” com o
perfil de uma população miscigenada e tropical. O processo de embranquecimento da nossa
sociedade, com incentivos à imigração, exercia um papel biológico de disseminar novo e puro
sangue para a melhoria e o desenvolvimento social.
Nesse ambiente, fica claro que negros ocupavam um espaço de inferioridade, os
porões das classes sociais. Muitas vezes ainda vistos como “coisa”, serviam a seus senhores
na medida das necessidades destes. Desde a década de setenta de 1800, todavia, o cenário
começou a mudar. O contexto externo e interno, bem como o fortalecimento do movimento
abolicionista favorecerem o surgimento de novas reivindicações e de novas orientações
políticas, literárias, artísticas, econômicas etc.
Essa tempestade de ideias alcançou a Criminologia, o Direito Penal, o Processo Penal
e a Política Criminal. Como exemplo dessa “brainstorm” nas práticas criminalistas e no
164
Poder Médico-Judiciário do Rio de Janeiro, vimos, no caso Joanna e Eduarda, a incorporação
de uma elite escravocrata na figura de D. Francisca. O caso é, pois, emblemático de um
conflito de interesses de classes e raças, mediado pela autoridade médica que, na sua crença
científica ou na sua filiação ideológica –, procurava esclarecer os limites entre a falta moral
e a loucura ou os dois (loucura moral) como doença ou como pura perversidade – e
procurava apontar para os Juízes a forma correta (científica) de se sancionar ou de se tratar.
Na virada do século XIX para o XX, a República brasileira estava bem estruturada
numa concepção individualista, positivista e laica, cujas premissas auxiliaram na
fundamentação de um discurso técnico para as instituições de controle social formadas à
época. Os diálogos entre medicina e polícia são exemplos dessa simbiose e, também aqui, se
revelaram muito apropriado na seleção punitiva estatal.
Algumas tentativas de desconstrução dos paradigmas puramente causalistas surgiram
no século XX. Constatamos, por exemplo, uma tentativa de minimizar a referência físico-
naturalista com o movimento proporcionado pela teoria finalista da ação, de Hans Welzel
124
,
considerando legítima a intervenção do Estado sobre a ação finalisticamente dirigida para
realização de uma conduta proibida por lei. Além disso, o contexto de surgimento das ideias
psicanalíticas, de enfoque à subjetividade e à fenomenologia e a eclosão do pensamento
holístico nos permitem configurar essa tentativa de reação ao positivismo. No entanto, ainda
são fortes as referências do século XIX. Como muito propriamente diz Alessandro Baratta,
“não obstante a reação que, dos anos 30 em diante, se seguiu à concepção patológica da
criminalidade (...), a matriz positivista continua fundamental na história da disciplina, até
nossos dias” (Baratta, 2002).
Com efeito, a empatia que nosso mundo jurídico tem com a biologia não é recente e,
atualmente, vem se revitalizando na ligação estreita entre o direito e as novas descobertas
surgidas no plano da biotecnologia. Atentos, assim, à retomada do movimento biologizante
das neurociências e da genética modernas, torna-se urgente um enfoque às formas
contemporâneas de interpretação do fenômeno do crime pela Medicina.
As pesquisas voltadas para a descoberta do gene da criminalidade ou da acentuação de
determinada particularidade do indivíduo criminoso nos remetem a essa necessidade de
identificação de propriedades inatas, irreversíveis, que poderiam validar novas classificações
e hierarquizações das pessoas, habilitando e legitimando eventuais medidas sociopolíticas
discriminatórias e de seleção punitiva.
124
Welzel, Hans. Derecho Penal Alemán, Santiago: Ed. Jurídica de Chile, 1970.
165
Diante de uma inflação legislativa que não poupa recursos para a criação de tipos
penais e diante das altas taxas de criminalidade, opera-se uma rotina seletiva daqueles fatos
que serão apurados pelos mecanismos policiais, daqueles indivíduos que serão encaminhados
ao judiciário, daqueles que serão processados e daqueles que chegarão ao final, dando
início à execução da pena.
Essas reflexões nos permitem questionar se as agências estatais de produção legislativa
e de repressão criminal não pautariam suas ações em discursos cientificamente produzidos
que autorizassem a operação velada de tal seleção. Se num dado momento esses discursos se
firmaram no determinismo biológico, é razoável questionar se a retomada desse movimento
“biologizante”, com as neurociências e a genética, não nos levaria à apropriação dessa lógica
pela política criminal.
De fato, algumas premissas clássicas, como é o caso do livre arbítrio, vêm sendo
revistos por aqueles que aceitam a idéia de que todo comportamento humano, inclusive a
conduta criminosa, é produto de nosso cérebro. Como pode existir responsabilidade criminal
se todas as nossas ações são determinadas por mecanismos orgânicos neurológicos acima de
qualquer escolha e controle racional? E, se não há nem responsabilidade individual, nem livre
escolha, a justiça retributiva não deveria ser abolida?
Na história da humanidade, viveram-se momentos de grandes questionamentos em que
se buscaram novos caminhos, novas soluções. Em muitos deles, como diante de índices
alarmantes de reincidência e de ineficiência do aparato repressor, foi imprescindível que o
direito penal acompanhasse as novas reflexões e se conformasse às novas estruturas de poder
estabelecidas, até para justificar parte deste processo. Esta busca de produção de novas
possibilidades teóricas se insere, na verdade, na dinâmica da legitimidade e da coerência da
incidência do sistema penal nas nossas relações cotidianas.
Limites filosóficos e constitucionais devem pautar tal dinâmica. A Bioética e o
Biodireito são suscitados por uma “nova economia do poder de punir” e seus
pronunciamentos devem enriquecer a discussão mostrando toda a experiência de como a
medicalização, o biopoder e a biopolítica clássicos foram apropriados por uma lógica perversa
de dominação radical em Estados totalitários e de como uma recente leitura (ORTEGA, 2006)
sobre estas categorias demonstra um autoritarismo mais sutil, mais subliminar, de um
biopoder capaz de fomentar um associativismo ou uma biossociabilidade apolítica e de risco.
A apropriação de “fatos cientificamente comprovados” pelas instituições políticas,
sem maior critério, rigor, debate, crítica, deixou rastro nem sempre desejável de um ponto de
166
vista humanitário e ético. É nesse sentido que o sujeito (criminoso) cerebral, na sua condição
inata de ser um cérebro criminógeno, merece reservas.
167
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