Download PDF
ads:
ANTONIO GERALDO CANTARELA
O CAÇADOR DE AUSÊNCIAS
:
O SAGRADO EM MIA COUTO
Tese apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais,
como parte dos requisitos para obtenção
do grau de Doutor em Letras, área de
Literaturas de Língua Portuguesa.
Orientadora: Profª. Dra. Maria Nazareth
Soares Fonseca
Belo Horizonte
2010
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
1
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais
Cantarela, Antonio Geraldo
C229c O caçador de ausências: o sagrado em Mia Couto / Antonio Geraldo
Cantarela. Belo Horizonte, 2010
184f.
Orientadora: Maria Nazareth Soares Fonseca
Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, Programa de Pós-Graduação em Letras
Bibliografia.
1. Literatura moçambicana – Crítica e interpretação. 2. Couto, Mia, 1955-.
3. O Sagrado. 4. Teologia I. Fonseca, Maria Nazareth Soares. II. Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós- Graduação em
Letras. III. Título.
CDU: 869.0(679)
ads:
2
Antonio Geraldo Cantarela
O caçador de ausências: o sagrado em Mia Couto
Tese defendida publicamente no Programa de
Pós-graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, área de
Literaturas de Língua Portuguesa, e aprovada
pela seguinte Comissão Examinadora:
_________________________________________________________
Prof. Dr. Edimilson de Almeida Pereira (UFJF)
_________________________________________________________
Prof. Dr. Wagner José Moreira (CEFET-BH)
_________________________________________________________
Prof. Dr. Amauri Carlos Ferreira (PUC Minas)
_________________________________________________________
Profa. Dra. Melânia Silva de Aguiar (PUC Minas)
_________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Nazareth Soares Fonseca (PUC Minas)
Orientadora
Belo Horizonte, 16 de abril de 2010.
3
“Cozinhar é um ato de amor”
– é a justificativa encontrada por certa avó, personagem de um conto de Mia Couto,
para acompanhar seu neto à cidade grande e dedicar-lhe cuidados.
Não sei que voltas dar para dizer que também escrever uma tese é um ato de amor.
Viagens e brincadeiras adiadas – sem contar outros desassossegos –
teimam em contrariar a afirmação.
De qualquer modo, este trabalho dedico a vocês, Ju e Helô, meus amores.
4
AGRADECIMENTOS
À PUC Minas pela bolsa de estudos
e pelas horas do Programa Permanente de Capacitação Docente.
Ao ISTA (Instituto Santo Tomás de Aquino) pelas horas e
e pela aquisição, pela biblioteca, de livros de interesse à minha pesquisa.
À Professora Nazareth pela leitura atenta dos meus capítulos, ainda que apresentados
“às parcelas”, e pela dedicada orientação. Suas preciosas observações
me fizeram enxergar o dinamismo do sagrado no texto de Mia Couto.
Aos professores do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC Minas,
por sua simplicidade em partilhar conhecimentos e sabedoria.
Aos professores que participaram de minha banca de qualificação
– Prof.ª Melânia Aguiar, Prof.ª Terezinha Taborda, e Prof. Amauri –
pelas críticas que me ajudaram a acelerar o ritmo de escrita da tese.
Ao amigo Wolfgang Gruen, pela disponibilidade em participar de minha banca examinadora.
À Vera e à Berenice, secretárias do Pós-Letras, pelo primoroso atendimento.
Aos amigos e colegas de trabalho da PUC Minas, do ISTA e de outros lugares
– Helena, Sílvia, Pinheiro, Romilda, Cleto, Godoy, José Carlos, Flávio, Dejair,
João Lino, Jacil, Josimar, Romi, Konings, Viviani, Rafaela, Marcos, Porcina,
Kelle, Amarildo, Áurea, Edison, Roberlei, Flávio Senra, Paulo Agostinho, Leo,
Nilza, Márcio, Gilvander, Sérgio, Denise, Luzia, Vera Lins, Maria Helena, Chico,
Consolação, César, Júlio e outros de cujo esquecimento já vou me desculpando –
assim como aos colegas do doutorado e aos alunos da graduação,
pelo interesse ou pela paciência em ouvir meio dedo de conversa
sobre o inadiável assunto: tese.
5
Tenho em mim a religiosidade exigível a qualquer crente.
Sou religioso sem religião.
Sofro, afinal, a doença da poesia: sonho lugares em que nunca estive,
Acredito só no que não se pode provar.
(narrador do conto A velha engolida pela pedra, de Mia Couto)
6
RESUMO
Considerando o notável volume de índices textuais referentes ao sagrado e à religião,
na obra de Mia Couto, e afirmando o papel possível da literatura e da crítica literária de
propiciar certa interpretação do sagrado, a tese tem como objetivo geral destacar essas marcas
textuais e investigar os modos como elas se correlacionam com o texto literário do escritor
moçambicano. O principal material literário de estudo são os romances Um rio chamado
tempo, uma casa chamada terra (2003) e O outro da sereia (2006). Outros romances e
contos do escritor são focados, em menor escala.
A leitura dos textos literários de Mia Couto se faz com o apoio teórico da
fenomenologia da religião com seu interesse em compreender as experiências, as estruturas
e significados dos fenômenos religiosos – e da hermenêutica – cuja perspectiva permite
enxergar as imbricações dos dados religiosos com as construções de linguagem. Além desse
foco geral de leitura, a tese destaca também algumas vozes de teóricos africanistas e
africanos, em busca de explicitar o proprium africanum relativamente ao sagrado. Esse
quadro teórico, construído de encontros e contrastes entre diferentes olhares sobre formas
“arcaicas” de religião e sobre o mundo tradicional africano, oferece importantes nortes para a
leitura dos textos de Mia Couto no seu envolvimento com a linguagem do sagrado.
O trabalho de leitura do texto literário foca as sacralidades enquanto “encenação” do
sagrado, destacando as tensões, os hibridismos, os deslocamentos, indiciando estratégias
literárias marcadas por constante movimento. Sob esse foco, apontam-se: o aproveitamento
“performático” dos mitos e de outras tradições orais, o uso do “maravilhoso”, do insólito, na
construção dos espaços ficcionais, o emprego de recursos literários (metáforas e metonímias,
principalmente) para encenar as múltiplas “travessias” identitárias (culturais, políticas e
literárias), os discursos e configurações sobre Deus e os deuses, como traços de uma escrita
literária marcadamente crítica e politizada. Esses destaques indiciam, dentre outros aspectos,
um fazer literário que assume as vozes marginalizadas e recalcadas da sociedade
moçambicana. Ancorada no pressuposto de que esse aspecto da obra de Mia Couto tem
especial interesse para sua leitura teológica e destacando marcas textuais que relacionam
expressamente os processos da escrita e da leitura ao território do sagrado, a tese afirma esse
fazer literário e seu produto como expressão do sagrado, teopoesia.
Palavras-chave: Concepções literárias do sagrado. Teopoesia. Literatura moçambicana. Mia Couto.
7
ABSTRACT
Considering the remarkable amount of text references related to the sacred world and
to religion in Mia Couto’s work and affirming the possible role of literature and literary
criticism in providing some interpretation of the sacred, the general goal of the thesis is to
highlight these text marks and to investigate the ways in which they relate to the literary text
of the Mozambican writer. The main literary material for study are the novels Um rio
chamado tempo, uma casa chamada terra (2003) and O outro da sereia (2006). Other
novels and short stories of the writer are covered in a lesser degree.
The reading of Mia Couto’s literary texts is done with the theoretical support of the
phenomenology of religion– with its interest in understanding the experiences, structures and
meanings of religious phenomena and the hermeneutics which perspective enables to see
the overlaps between the religious data and the language constructions. Besides this reading
general approach, the thesis also highlights some voices of Africanist and African
theoreticians trying to explain the proprium africanum related to the sacred. This theoretical
frame, built upon similarities and contrasts among different views on the “primitive” religion
and on the traditional African world, provides important guidance for reading Mia Couto’s
texts in his involvement with the language of the sacred.
The work of reading the literary text focuses on the sacralities as “staging” the sacred,
highlighting the tensions, hybridism and dislocations and showing literary strategies marked
by a constant movement. From this approach, the “performative” use of myths and other oral
traditions, the use of the “wonderfulness”, the “unusual” in the construction of fiction spaces,
the use of literary resources (mainly metaphors and metonyms) to stage the many identity
“journeys” (cultural, political and literary ones) and the speeches and configurations on God
or gods, are pointed as features of a literary writing that is markedly critical and politicized.
Among other aspects, these points indicate a way of making literature that assumes
marginalized and repressed voices of the Mozambican society. Anchored in the assumption
that this aspect of Mia Couto’s work has a special interest for his theological reading and by
highlighting text marks that clearly relate these writing and reading processes to the territory
of the sacred, the thesis states that this way of making literature and its product are an
expression of the sacred, theopoetry.
Key words: Literary concepts of the sacred. Theopoetry. Mozambican literature. Mia Couto.
8
LISTA DE ABREVIATURAS
CHR ........................ Cada homem é uma raça: estórias (1998)
Cron..........................Cronicando (1991)
Est.Aben. ................. Estórias abensonhadas: contos (1996)
FM ........................... O fio das missangas: contos (2003a)
Marmequer ............. Mar me quer (2000)
OPS ...........................O outro pé da sereia (2006)
RCT ...........................Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2003b)
TS.............................. Terra sonâmbula (1995)
UVF ...........................O último voo do flamingo (2005)
VF ............................. A varanda do frangipani (2007)
VDRD .......................Venenos de Deus, remédios do Diabo (2008)
VA..............................Vozes anoitecidas: contos (1995)
Ao citar literalmente uma passagem de romance ou conto de Mia Couto, na chamada entre
parênteses, em lugar de sobrenome, data e página, indicaremos abreviatura, data e página.
Assim, por exemplo, uma citação literal de O último voo do flamingo, será indicada por
(UVF, 2005, p. n), e não pelo usual (COUTO, 2005, p. n).
9
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..........................................................................................................p. 10
2 O PROPRIUM AFRICANUM RELATIVAMENTE AO SAGRADO .................. p. 21
2.1 A trajetória de Antunes: de padre branco a feiticeiro negro .............................. p. 22
2.2 Concepções europeias acerca do sagrado ............................................................. p. 27
2.2.1 A expansão colonial do século XIX
e as primeiras formulações sobre a religião e o sagrado ........................ ............ p. 27
2.2.2 Abordagens “clássicas” sobre o sagrado e a religião................................. ......... p. 32
2.2.3 Limites e possibilidades ......................................................................................... p. 37
2.3 Concepções africanas acerca do sagrado .............................................................. p. 42
2.3.1 Concepções africanistas do sagrado:
primeiros passos para o descentramento do olhar ............................................... p. 42
2.3.2 Vozes africanas sobre o sagrado ........................................................................... p. 50
2.3.3 Há um proprium africanum relativamente ao sagrado? ..................................... p. 57
3 DEUS E OS DEUSES ................................................................................................. p. 63
3.1 A recriação literária das tradições orais ............................................................... p. 70
3.1.1 O aproveitamento inventivo de tradições orais..................................................... p. 72
3.1.2 O aproveitamento performático do mito................................................................p. 77
3.2 O maravilhoso – do sagrado e do literário .............................................................p. 88
4 TRAVESSIAS ............................................................................................................p. 100
4.1 A travessia dos mortos ...........................................................................................p. 107
4.2 A travessia do tempo ..............................................................................................p. 116
4.3 O trânsito das identidades .....................................................................................p. 119
5 LITERATURA COMO LUGAR DO SAGRADO .................................................p. 128
5.1 Antroponímia em Mia Couto ................................................................................p. 134
5.2 Discursos e figurações literárias sobre Deus e os deuses ....................................p. 145
5.3 O território sagrado da poesia ..............................................................................p. 160
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................p. 165
REFERÊNCIAS .............................................................................................................p. 174
ÍNDICE DE CITAÇÕES DE MIA COUTO ................................................................p. 184
10
1 INTRODUÇÃO
O campo da literatura tem se estabelecido como “área de fronteira” em relação a
diversos domínios, especialmente aqueles que constituem o assunto e o foco das ciências
humanas e sociais. Basta lembrar, como exemplo óbvio, o grande volume de teorizações
acerca da relação entre literatura e história, ou entre literatura e antropologia social. se
discute, por exemplo, o caráter de construção que marca o discurso historiográfico e o
discurso antropológico, o que os aproxima do fazer literário; ou, no outro polo, os modos
como a memória histórica ou os traços identitários de um grupo social transitam pelos textos
literários, que podem assim ser lidos como “documentos” de seu tempo.
A posição fronteiriça da literatura em relação a outros domínios se faz também em
relação ao âmbito do sagrado e da religião. A obra de Mia Couto, objeto da leitura que esta
tese propõe, porta marcas incontestáveis e frequentes do que pode ser identificado com traços
do âmbito do sagrado em geral: referência a deuses, anjos, demônios, espíritos, antepassados,
feiticeiros, padres, beatas, hierofanias de toda espécie, mitos e lendas de caráter religioso e
muito mais. Via de regra, assuntos dessa natureza fazem parte do interesse dos campos das
ciências das religiões e da teologia. Todavia, porque constituem indicadores textuais de obras
literárias contos e romances de Mia Couto, em nosso caso –, passam a interessar também à
crítica literária. Assim, sob o prisma da relação com a religião e o sagrado, a obra literária de
Mia Couto oferece-se como fértil terreno de pesquisa. A propósito, em provérbio atribuído a
uma de suas personagens, o autor avisa o quanto de interesse e ao mesmo tempo de
dificuldade residirá na tarefa de compreender o sagrado: “Deus é assunto delicado de pensar,
faz conta um ovo: se apertarmos com força parte-se, se não seguramos bem cai.” (COUTO,
2000, p. 7).
Ao afirmar a proximidade ou a possibilidade de diálogo entre os campos das ciências da
religião e da teologia de um lado e o da literatura de outro –, reconhecemos que
igualmente, os dois campos constroem discursos sobre a experiência humana, situando-se,
ambos, entre os limites da imaginação e das instituições, corporificando-se ao mesmo tempo
em ação e encenação, história e ficção, vivência e simbolismo. Entendemos que o caráter de
construção/encenação partilhado por ambos os domínios permite particularmente à
literatura transitar pelo domínio do sagrado sem a pretensão de cientificidade. Assim, a
abordagem do sagrado, pelas vias da leitura crítica de suas representações no âmbito da
11
literatura, facilita a percepção do caráter de construção, móvel e ambígua, do discurso do
saber do/sobre o sagrado.
Durante o último século, multiplicaram-se as tentativas de explicar o fenômeno
religioso pelas vias das leituras antropológicas, sociológicas ou psicológicas, cada uma com
pressupostos e métodos próprios. Alcançaram-se novas e variadas percepções do fato
religioso, quase sempre indiciando sua complexidade, no sentido de afirmar suas inter-
relações com o conjunto das circunstâncias, instituições, valores e vivências dos grupos
sociais, em seus contextos históricos específicos. Entretanto, a percepção, mais ou menos
generalizada, de que o fenômeno religioso não se compreende como fato estanque em relação
ao conjunto social, não foi suficiente para evitar inúmeros reducionismos, marcados, nos
extremos por sociologismos e essencialismos diversos.
Sob tais considerações, a questão que se coloca não diz respeito, de qualquer modo, a
presumíveis lacunas da teologia, das ciências da religião ou mesmo das ciências sociais em
interpretar o sagrado lacunas que seriam então preenchidas pelo discurso literário. Trata-se
tão somente de seguindo a sugestão de Magalhães (2000, p. 18) declarar moratória ao uso
das ciências sociais e buscar uma interlocução mais livre de dogmatismos teológicos ou
científicos para a construção do discurso sobre o sagrado; ou, dito de outro modo, afirmar o
papel possível da literatura e da crítica literária de propiciar, ao lado do conhecimento teórico-
científico oferecido pela teologia sistemática e pelas ciências da religião, uma interpretação do
sagrado.
Considerando o interesse e a importância dessa possibilidade de leitura, ressaltamos
que nossa problemática pende para o literário. Certamente, poder-se-ia proceder à leitura da
obra literária de Mia Couto sob um enfoque teológico ou das ciências da religião. Entretanto
nosso foco é outro: que marcas da obra de Mia Couto poderiam ser destacadas sob a
caracterização do sagrado enquanto traços que “visitam” sua construção literária? Assim, em
vista da pergunta que constitui a problemática central, o objetivo geral desta tese se formula
em termos de ler criticamente a obra de Mia Couto, investigando marcas textuais que
permitam construir correlações entre o texto literário e o campo do sagrado.
Nesta introdução e alhures, adota-se reiteradamente o termo “leitura” no sentido amplo
de pesquisa ou crítica literária. Mais especificamente, “leitura” indica aqui o processo de
interpretar romances e contos de Mia Couto em seu envolvimento com a linguagem do
sagrado. Aponta também o resultado final do processo, que se concretiza nesta tese.
Na busca por alcançar o objetivo, inúmeras questões se entrelaçam, marcando o
processo e os resultados da pesquisa: Quais romances de Mia Couto escolher para a leitura?
12
Qual concepção de sagrado serviria de base para identificar e destacar os indicadores textuais
do sagrado presentes no texto do romancista? Em que aparato teórico se sustentaria a proposta
de ler o sagrado presente no literário, sem contudo confundi-lo com um “documento” cultural
do âmbito religioso? Vejamos mais detalhadamente as questões.
A escolha dos romances Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2003) e
O outro pé da sereia (2006) como objeto principal de nossa leitura se deveu a um motivo
prático: eram, quando da elaboração do projeto da tese, os dois mais recentes romances de
Mia Couto. Tratava-se, nesse sentido, de ler o que tinha sido ainda pouco lido, em vista da
originalidade que se costuma exigir para as teses. Aliou-se a isso uma razão de maior
interesse para nossa proposta de leitura: os dois romances eram marcados, a cada página, por
referências ao universo das sacralidades. Contudo, uma primeira leitura de outros romances e
contos do escritor moçambicano já permitia vislumbrar a constante presença de figurações do
sagrado no conjunto de sua obra. Por essa razão, o foco da leitura se dirigiu também a outros
romances e contos do escritor. De qualquer forma, em vista de não abrir excessivamente o
leque da pesquisa com a inclusão de novos assuntos e aspectos do sagrado correlacionados ao
fazer literário, que emergiam de cada nova leitura, alguns romances e a maior parte dos contos
de Mia Couto não se incluem no recorte material da tese; e não são sequer citados.
Feita a escolha do material literário, urgia estabelecer os aparatos teóricos sobre cujos
pressupostos se sustentaria a leitura. num primeiro momento, o de “mapeamento” dos
textos literários, a pesquisa buscaria identificar objetos, personagens, espaços, falas e
situações que poderiam ser associadas ao sagrado. Para isso, buscou-se o auxílio de
instrumentos teóricos da fenomenologia da religião. De fato, a fenomenologia religiosa,
enquanto estuda as experiências, estruturas e significados dos fenômenos religiosos, oferece
ferramentas capazes de identificar, descrever e classificar os dados religiosos, irredutíveis em
seu caráter sagrado.
Em contraposição a interpretações sociológicas ou psicológicas da religião que a
explicam respectivamente como produto social ou como projeção da mente do indivíduo –, a
fenomenologia busca compreendê-la em seu significado de experiência ou vivência religiosa.
Tomando como ponto de partida as configurações particulares do mundo vivido, em especial
aquilo que expressa a autocompreensão humana no mundo, a fenomenologia dedica-se a
estudar os componentes fundamentais das vivências humanas. Em relação às expressões
culturais do âmbito religioso, partindo da diversidade de vivências manifestadas externamente
nos atos e lugares de culto, nas doutrinas e em outras expressões religiosas, a fenomenologia
busca compreender e apontar o significado do “fenômeno” religioso, enquanto expressão da
13
“consciência” religiosa. Não se trata de banal descrição e catalogação das “coisas” religiosas,
mas da busca por captar o sentido da experiência religiosa.
Entretanto, no processo das sucessivas leituras, no esforço de permitir que os
indicadores literários fossem a principal guia de leitura, observou-se que, nos textos de Mia
Couto, o sagrado irrompe de modo dinâmico, inesperado, por vezes irônico, cheio de mesclas
de toda espécie. Diante disso, anteviu-se uma possível limitação no método de leitura
utilizado, que poderia não ultrapassar o nível descritivo e taxonômico, o mero mapeamento
dos assuntos relativos ao sagrado. Corria-se o risco de cair numa visão essencialista do
fenômeno religioso, em relação ao qual o texto literário seria aduzido como testemunho.
Diante disso, que novas perspectivas teóricas adotar, no sentido de escapar de uma visão
essencialista e descritiva do sagrado? Que perspectiva seria capaz de abarcar o sagrado em
movimento, em tensão, híbrido? Que foco teórico teria condição de considerar a dinâmica
própria da linguagem, sendo capaz de apontar os processos de recriação literária do sagrado?
Que apetrecho teórico demonstraria, por fim, que a descoberta desse movimento do sagrado,
na obra de Couto, se atrelava também a escolhas de leitor?
No intuito de municiar a leitura do texto literário com pressupostos teóricos mais
ampliados, buscou-se acrescentar à perspectiva fenomenológica uma chave hermenêutica de
leitura, isto é, uma perspectiva que compreendesse os dados religiosos no seu envolvimento
com as construções da linguagem. Afinal, não estaríamos lidando com experiências religiosas
ou hierofanias singulares, mas com sua encenação literária, como linguagem, portanto.
Em suas linhas teóricas fundamentais, a perspectiva hermenêutica compreende a
linguagem como o constitutivo fundante do humano. A linguagem se compreende como a
própria experiência humana de “mundaneidade”, não sendo possível afirmar, por conseguinte,
uma existência humana pré-linguística. Entretanto, na relação com o mundo, em relação ao
qual se eleva como alteridade autônoma, o homem, ainda que atribuindo nome às coisas, o
consegue com sua linguagem abarcar o mundo do qual faz parte. Constata-se, assim, uma
inadequação insuperável entre a realidade do mundo, tal qual o homem tão diversamente a
pensa, e a linguagem, enquanto mediação do pensamento humano sobre o mundo.
Desses pressupostos, decorre a compreensão de que toda leitura do mundo se faz como
interpretação parcial, limitada, marcada por escolhas, condições e pontos de vista de quem
empreende a leitura. Da mesma forma, a construção da obra literária, também ela uma leitura
de mundo, porta a condição perspectivista de qualquer outro modo de dizer o mundo. Sob as
mesmas condições, também a leitura de uma obra literária se compreende como interpretação
de um mundo, isto é, como um processo de recepção cujo polo dinamizador, em relação à
14
obra literária, é o leitor com seu horizonte de expectativas. Assim, as informações, as
circunstâncias, os modos, os sistemas de valores, os interesses e intenções sob os quais o
leitor realiza a leitura do texto literário agenciam uma interpretação não do texto literário e
de seu contexto de produção, mas de sua (do leitor) própria experiência de mundo. Mais
ainda: na dinâmica da leitura, o leitor poderá vivenciar um mundo possível, aquele encenado
pela obra literária, que vai além de sua própria vivência de mundo.
A afirmação do caráter estruturalmente dinâmico da linguagem talvez seja uma das
maiores contribuições das teorias hermenêuticas mais recentes. Mostra-se também como uma
das marcas mais relevantes das modernas ciências literárias, destacando-se dentre estas a
chamada estética da recepção. Tal perspectiva certamente se mostraria adequada à consecução
do objetivo geral da tese, de ler o sagrado enquanto traço que dialoga com a construção do
texto literário de Mia Couto.
A crítica ao positivismo historicista e às tentativas de adaptação dos procedimentos
metodológicos das ciências da natureza às chamadas ciências humanas e do espírito da qual
participaram as primeiras escolas fenomenológicas coloca-se na base da reviravolta
hermenêutica que traz a questão da linguagem para o centro de muitas discussões teóricas do
século XX. Filosofia, linguística, teoria literária, hermenêutica religiosa, psicanálise
transpõem os limites de seus respectivos objetos e se afinam na busca por compreender a
linguagem. Alcançam em comum a constatação de que, pela linguagem, a autocompreensão
humana no mundo apresenta-se na expressão de Ricoeur como um formidável conflito de
interpretações. No dinamismo do conflito das interpretações, se mostra o mundo do humano
no seu modo de ser como linguagem. No conflito das interpretações se coloca também, com
suas peculiaridades próprias, a linguagem do sagrado, inclusive em suas figurações literárias.
Não se dedicará, na tese, maiores espaços para a apresentação e discussão das linhas
teóricas mestras da fenomenologia e da hermenêutica. Contudo, a leitura dos textos de Mia
Couto se fará sustentada nesse aparato teórico. Em alguns momentos do trabalho, se apontará
expressamente o diálogo com alguns pensadores que forjaram essas teorias: Rudolf Otto,
Hans-Georg Gadamer, Mircea Eliade, Paul Ricoeur.
Afirmou-se acima que, sob pressupostos teóricos da fenomenologia religiosa,
ampliados por uma chave hermenêutica de leitura, pode-se proceder à leitura de Mia Couto,
buscando compreender as tensões, os conflitos, as mesclas que marcam o sagrado encenado
em suas obras. Mas, de qual “sagrado” estamos falando? Ora, os teóricos arrolados aqueles
da fenomenologia e da hermenêutica –, insignes representantes da academia europeia e de sua
tradição metodológica, bastariam para subsidiar o diálogo com o texto do romancista
15
moçambicano? Não haveria o risco de “colonizar” uma voz africana com o uso de
instrumentos metodológicos e epistemológicos tipicamente europeus?
Diante disso, novas questões se colocam: Há um proprium africanum relativamente ao
sagrado? Que aspectos se destacariam no olhar africano sobre o sagrado? Quais vozes
preferivelmente de teóricos africanos – expressariam aquele olhar? Haveria a possibilidade de
diálogo entre a visão europeia e a visão africana acerca do sagrado?
No prefácio de seu Tratado de história das religiões, o historiador das
religiões Mircea Eliade alude à afirmação de Roger Caillois segundo a qual “acerca do
sagrado em geral, a única coisa que se pode afirmar validamente está contida na própria
definição do termo: é aquilo que se opõe ao profano”. (ELIADE, 1993, p. 2, referindo-se às
afirmações de CALLOIS, 1988, p. 15).
A oposição entre sagrado e profano marca, de modo característico e geral, a concepção
europeia e ocidental acerca do sagrado. A dicotomia sagrado versus profano não constitui,
entretanto, de per si, um problema. Ao contrário, serve para explicar um grande número de
ritos e crenças, presentes em inúmeras tradições religiosas: bênçãos, consagração de pessoas e
objetos, oferenda aos deuses das primícias das colheitas e dos rebanhos, purificações,
segredos relativos a sociedades secretas, a corporações profissionais e a grupos de iniciação.
O problema da dicotomia se coloca quando serve de base para excluir pessoas que, por
alguma razão, não estão aptas a participar do círculo dos “puros” ou dos iniciados; ou quando
é manipulada no sentido de hierarquizar os “fatos religiosos” na escala que vai das hierofanias
mais “elementares” (totemismo, fetichismo), passando em seguida ao animismo e ao culto dos
antepassados, ao nível mais “elevado” das concepções monoteístas.
Tal manipulação não se restringiu ao âmbito religioso o que, no caso das culturas
africanas tradicionais, já significaria enorme perda. Referindo-se ao contexto de relações
desigualitárias que presidiu à formação das historiografias estrangeiras sobre a África, o
historiador Elikia M’Bokolo (2009, p. 50-51) aponta:
O maravilhoso, componente quase obrigatório de qualquer encontro com o Outro,
sempre se misturou, no contexto africano, com o nada mais absoluto, quer se trate
das trevas do paganismo, que seria necessário dissipar de qualquer maneira, ou de
homens cuja humanidade, custasse o que custasse, deveria ser negada para os
transformar em mercadorias.
Nesse contexto, a arbitrariedade da concepção “evolucionista” do fenômeno religioso,
construída muitas vezes sobre uma hipotética hierarquia das expressões do sagrado, será
apenas um elo da grande corrente de arbitrariedade geopolítica do século XIX que garantiu e
16
justificou a conquista colonial, a partilha da África “primitiva” entre “evoluídas” potências
europeias e o fim das soberanias africanas.
Antropólogos e missionários dentre os quais se poderia citar Marcel Griaule, Placide
Tempels e Raul de Asúa Altuna, dentre outros que estabeleceram longa convivência com
povos de África, deram efetivos passos no sentido de uma melhor compreensão das culturas
africanas. A eles se devem as primeiríssimas recolhas e sistematizações do pensamento
tradicional africano, de inegável valor acadêmico. Entretanto, na busca por escutar o mundo
africano, a cultura europeia ainda se colocou para eles como referência fundamental.
Em contraste com as perspectivas “colonizadoras”, teóricos africanos (como Kwame
Appiah, Honorat Aguessy, Joseph Ki-Zerbo, Amadou Hampaté e outros) indicam uma
visão mais ampla dos diversos domínios da cultura africana, em relação aos quais o sagrado e
a religião ocupam lugar preponderante. Ainda que utilizando ferramentas metodológicas das
escolas europeias, a visão “de dentro” proposta pelo olhar africano sobre África logrou
oferecer um novo discurso sobre a história e a cultura das sociedades africanas. Dentre outros
aspectos apontados pelos teóricos africanos, destaca-se o papel da religião.
Na concepção tradicional africana, a religião, assentada no mesmo arco da cultura oral,
funda todos os demais componentes da vida social. Tudo participa do sagrado, compreendido
como a força vital com a qual absolutamente tudo no universo se relaciona. Traço central da
imbricação entre cultura oral e o sagrado, a fala entende-se como dom que provém do Ser
Supremo e possui valor moral e caráter sagrado. Sobre ela se assentam as potencialidades do
poder, do querer e do saber. Sobre a palavra como sacralidade se assenta o especial valor das
histórias e mitos, com seu caráter fundador e doador de sentido à ordem social e às realidades
cotidianas.
Em que pesem os conflitos e contrastes entre os diferentes olhares o europeu e o
africano acerca de África e sua cultura, coloca-se, de outro lado, a dificuldade: o continente
africano não constitui uma unidade homogênea, também não podendo existir, por
conseguinte, uma visão de mundo essencialmente africana. Afirmar tal concepção seria cair
no mesmo tipo de armadilha da racionalidade científica triunfante europeia da era vitoriana: a
generalização manipuladora. Em resumo: pode-se certamente apontar limites das ciências
ocidentais na abordagem dos fatos culturais africanos. Pode-se, igualmente, reconhecendo no
entanto a amplitude da afirmação, falar da autocompreensão africana no domínio da religião.
Pode-se, também, evitando os focos especializados e preferindo as perspectivas mais
ampliadas, utilizar as ciências das religiões – típicas construções europeias na abordagem de
fatos religiosos africanos.
17
Da busca desses pressupostos teóricos, de grande importância para a leitura de Mia
Couto, nasce um panorama que apresenta e contrapõe diferentes olhares sobre a religião
considerada em suas formas mais simples e, mais particularmente, sobre o mundo africano e
suas religiões. O recorte inicial, delimitado pelo panorama, ganha sentido ao apontar alguns
aspectos e exigências para a percepção do fenômeno religioso no mundo africano. Tal
panorama, que constitui o primeiro capítulo da tese, não pretende discutir o cabedal teórico
proposto por todos aqueles pensadores nem, tampouco, debruçar-se sobre as religiões
africanas à guisa de uma pesquisa antropológica, de uma discussão filosófica sobre a cultura
africana ou de qualquer reflexão do interesse próprio das ciências das religiões. Trata-se de,
pressupondo a possibilidade de circunscrever e situar o fato religioso ou as hierofanias na
definição de Mircea Eliade, “qualquer coisa que torna manifesto tudo quanto é sagrado”
(1993, p. 2) em relação a outras “representações” do humano, considerá-los particularmente
em sua relação com a construção literária. Interessam os movimentos, as tensões, os diálogos,
as mesclas, as alterações relativas ao âmbito do sagrado presentes no texto literário. Busca-se
o mapeamento desses elementos, no sentido de subsidiar a leitura crítica dos textos de Mia
Couto no seu envolvimento com a linguagem do sagrado – africana, europeia, híbrida.
Ao longo deste trabalho, aparecerá algumas vezes o termo “primitivo”. Esse vocábulo
está em geral presente naquelas concepções de evolucionismo antropológico do século XIX,
fundadas nos critérios de progresso técnico e econômico alcançado pelo mundo europeu, em
oposição ao qual as sociedades de organização mais simples se colocam na posição de
“arcaicas”, “atrasadas”, “primitivas”. Qualquer que seja o modo de referir as culturas assim
chamadas “primitivas”, ele se assentará em pressupostos específicos e oferecerá apenas um
olhar parcial sobre esses povos. Entretanto, ainda que preconceituoso, etnocêntrico e
inadequado, o termo “primitivo” será usado, em sua acepção comum de nomear o mundo
tradicional, particularmente nas citações diretas ou indiretas de estudiosos que o utilizaram.
Nos argumentos e reflexões de nossa autoria, usar-se-á de preferência o termo “simples” ou a
expressão “de organização social mais simples”, para referir sociedades predominantemente
ágrafas, não europeias, por vezes resistentes às influências da civilização ocidental.
Desse aparato teórico e da leitura de contos e romances de Mia Couto, particularmente
os dois romances a que nos referimos anteriormente, nascem alguns assuntos que, além de
oferecer uma rota para a leitura de algumas obras do escritor, buscam responder à questão
fundamental: como o sagrado “funciona” na construção do texto literário daquele autor?
Assim, no capítulo Deus e os deuses, discute-se a utilização das tradições orais e do
“maravilhoso” típicos traços da linguagem religiosa tradicional de África na construção
18
dos espaços ficcionais de Couto. Mais que a recolha de materiais que traduzem um período
volvido do passado, importa como o autor os recria, devolve-lhes vitalidade, enforma com
eles seu imaginário e sua linguagem literária. A recriação literária das tradições orais, quer no
sentido de retomada manifesta de seus assuntos, quer na perspectiva “performática” de narrar
como os mitos tradicionais narram, não apenas ilustra o caráter ativo e dinâmico da mesma
cultura oral, como funda e dá vitalidade à escrita literária. No texto de Couto, crenças, valores
e saberes tradicionais são, a um só tempo, acatados e tensionados, valorizados e transgredidos,
indiciando estratégias narrativas marcadas por constante movimento.
Na mesma linha de reflexão, no capítulo Travessias, a partir de indicadores textuais
que apontam movimento, busca-se entrever uma concepção fundamental de religião como
abertura ao mistério: na relação com o mundo dos mortos, no dinamismo do tempo, nas
identidades em trânsito; e como esse movimento organiza a narração.
Em vista de não resvalar na interpretação do sagrado, expresso no texto literário, à
guisa de um trabalho de antropologia ou de sociologia da religião, vale observar que, para a
crítica literária e seus métodos, as hierofanias ou sacralidades, enquanto elementos da diegese,
não constituem propriamente um “documento” religioso da mesma espécie daqueles que o
estudados pelos cientistas das religiões.
Ao cientista da religião, interessam as hierofanias, em sua singular manifestação
histórica, enquanto “documento” religioso, passível de ser interpretado segundo métodos e
fundamentos epistemológicos próprios. No texto literário, as sacralidades fazem parte de uma
estratégia de criação. Beatas, missionários e feiticeiros, nos romances de Mia Couto, não
identificam pessoas consagradas; são personagens. Templos, embondeiros e cemitérios não
demarcam lugares santos; são configurações de espaços narrativos e, por isso, precisam ser
analisados levando-se em consideração os múltiplos sentidos que produzem. Falas sobre
Deus, ainda que se possam interpretar como expressão de crenças de grupos sociais
específicos, são, nos romances, expressões de personagens e de narradores e se situam na
encenação de realidade produzida pelos romances. Não constituem, pois, em sentido estrito,
“documentos” religiosos. Trata-se de “marcas textuais” acerca do sagrado também encenado
no texto. Com as expressões “marcas textuais” ou “índices textuais” acerca do sagrado
designam-se, na tese, desde vocábulos, expressões, figuras de linguagem como metáforas e
metonímias, até estruturas narrativas mais amplas, cujo sentido se correlaciona com o âmbito
do sagrado e da religião. Tais recursos, abundantes nos textos de Mia Couto, podem ser
percebidas como figuração do sagrado. Constroem um efeito discursivo que não exige do
19
leitor qualquer adesão religiosa, senão um pacto ficcional, uma poética” conforme a
expressão de Jorge Luiz Borges. (Apud CHIAMPI, 1980, p. 61).
Entretanto, ao considerar o funcionamento das hierofanias na construção do texto
literário, sob o foco das tradições africanas, em que tudo participa do sagrado, brota a questão
inversa: poder-se-ia compreender o texto literário, ele mesmo, como sacralidade? Ou,
perguntando de modo mais específico: sem negar o caráter de ficcionalidade da obra literária
de Mia Couto, como pensá-la sob uma perspectiva teológica?
Em Mia Couto, a construção do discurso literário é marcada pela referência à
colonização, à independência tardia, à guerra civil s-independência, à falta de rumos para a
nação, ao racismo, à agonia das tradições. Dessas marcas e de outras falas do autor, pode-se
inferir que a construção do seu discurso literário se faz como tarefa política que assume
criticamente as vozes dos marginalizados e aponta com lucidez os problemas sociais de sua
nação. A obra, clara e inquietante, que nasce dessa postura, certamente pode ser acolhida
como objeto de uma leitura teológica. Esta seria, certamente, a perspectiva das religiões
tradicionais africanas, caso buscassem sistematizar teologicamente suas crenças e valores.
Este é o foco também de perspectivas teológicas cristãs mais “abertas” e libertárias, dentre as
quais se destacam as sistematizações empreendidas por Paul Tillich e pelos teólogos latino-
americanos da chamada Teologia da Libertação. E, na linha desses pressupostos, o mister
poético e o seu produto, a literatura, não se colocariam, eles mesmos, no território do sagrado?
O capítulo Literatura como lugar do sagrado, que discute as questões, aborda a
invenção de nomes/personagens como expressão de uma visão de mundo que assume o
sagrado como matéria literária; considera os discursos e configurações sobre Deus e os deuses
como traços de um fazer literário marcadamente crítico e politizado; e aponta as metáforas e
outros recursos literários que relacionam os processos da escrita e da leitura ao território do
sagrado.
A leitura literária dos textos de Mia Couto se faz em diálogo com teóricos (Ana
Mafalda Leite, Gilberto Matusse, entre outros) que ressaltam a presença das tradições orais na
construção dos romances e contos do escritor. Para esses estudiosos, não se trata apenas de
reinvestir a memória da tradição oral de um estatuto literário, mas, para além disso, de
expressar uma mundividência que se relaciona, em última instância, com o projeto político
mais amplo de construção da nação. Seja como estratégia de uso manifesto das tradições
orais, seja como tarefa política, ambas as situações se imbricam com o mundo do sagrado. Em
vista de não confundir esse sagrado presente no literário com um “documento” cultural do
âmbito das sacralidades, insiste-se (com Fonseca, Cury, Chiampi, entre outros estudiosos) no
20
caráter de construção ficcional, de encenação do sagrado híbrido, em movimento, em tensão,
nos textos de Couto.
Em tempo: O caçador de ausências é o título de um conto de Mia Couto em O fio das
missangas (2003a, p. 93-95). Narra a estória de um gajo que, perdido muito tempo nos matos,
acorda certa manhã com os afagos de um leopardo, em cujos “olhos serenos e espantosos”
reconhece Florinha, a inesquecível e desaparecida comadre, com quem tivera um caso de
amor não curado. Na superfície episódica, o conto nada refere que possa se identificar com o
âmbito da religião e do sagrado. Entretanto, porque trata do maravilhoso, sugere e permite
conexão com o tema do sagrado. Por isso o aproveitamos como título de nossa tese.
Retirado de seu contexto original, o título carregará novas significações. Com as
liberdades e permissões que essa travessia oferece, atribui-se ao título do conto duas novas
significações. Da perspectiva da construção de sua obra literária, por parte do escritor, ser
caçador de ausências significa recriar, no âmbito da escrita literária, o sagrado das tradições
orais moçambicanas, particularmente quando a encenação literária traz à fala as vozes
ausentes, marginais, tresloucadas e afásicas da gente do povo, vozes que metonimicamente
portam as tradições. Da parte da recepção construída por nossa leitura, caçar ausências
concretiza-se no buscar o sagrado onde ele não se encontra como singularidade histórica,
senão como encenação. E conversa de caçador? afirmar que esta é a melhor presa: o
mesmo fazer literário como hierofania.
21
2 O PROPRIUM AFRICANUM RELATIVAMENTE AO SAGRADO
O trabalho dos homens de ciência produziu também de maneira
mais insidiosa, ao lado das reconstruções históricas mais
refletidas e mais duradouras, estereótipos tanto mais
persistentes pois apareciam aparelhados com todos os
emblemas de legitimidade “científica” ou acadêmica, ao
mesmo tempo em que confortavam as falsas evidências do
senso comum. (Elikia M’Bokolo)
Grande número de elementos e importantes marcas textuais presentes na obra de Mia
Couto podem ser destacados como construções discursivas relativas ao âmbito do sagrado.
1
As sacralidades, hierofanias ou fatos sagrados afloram com abundância no conjunto da obra
do escritor moçambicano: ritos e sacrifícios, mitos e lendas, Deus e deuses, divindades
familiares e antepassados, objetos sagrados, cosmogonias e hecatombes, plantas e animais
sagrados, símbolos, gestos e palavras com poder criador, mágico e conjuratório, pessoas
consagradas, lugares e tempos sacralizados. A circunscrição desse âmbito na sua particular
relação com a construção literária de Couto pede, certamente, leitura minuciosa e demorada
demanda a que se buscará responder adiante, a partir do próximo capítulo. Todavia, para
introduzir a problemática geral deste primeiro capítulo, adiantam-se algumas mostras das
referidas construções. Pode-se, nesse sentido, como uma primeira exercitação de leitura que
privilegia, na obra de Mia Couto, as referências ao sagrado, acompanhar a trajetória do padre
Manuel Antunes, personagem de O outro pé da sereia (2006). Será nosso primeiro passo.
Em seguida, em vista do escopo de circunscrever e situar as hierofanias, isto é, tudo o
que diz respeito ao âmbito do sagrado, na obra daquele escritor, o capítulo apresenta, em
linhas essencialíssimas, algumas concepções europeias acerca do sagrado. O quadro dessas
concepções alude a algumas das primeiras formulações teóricas sobre o sagrado no contexto
da expansão colonial do século XIX. E segue apresentando, em suas grandes linhas, os
debates “clássicos” europeus sobre a questão das religiões “arcaicas”, característicos da
primeira metade do século XX.
1
Uma delimitação conceitual das categorias sagrado e sacralidade, bem como de sua função na construção do
texto literário, será feita no próximo capítulo.
22
Segue-se, no capítulo, um outro panorama de compreensão do mundo africano e de
suas religiões, marcado pelo olhar africano. O novo quadro, também em linhas básicas,
apresenta o olhar de antropólogos e missionários europeus que estabeleceram longa
convivência com sociedades de diferentes regiões do continente africano. Destaca, finalmente,
algumas vozes, genuinamente africanas, política e intelectualmente envolvidas com a
autonomia dos povos africanos e com a valorização de suas tradições ancestrais.
Construídos os dois panoramas, com seus distintos olhares sobre a cultura dita
“arcaica” ou tradicional, o capítulo questiona o interesse e a validade dessas concepções para
a leitura crítica de textos do autor moçambicano.
Os panoramas propostos, extremamente reduzidos face à amplitude da questão, ainda
que construam uma “arqueologia” que possa ter algum interesse ao campo das ciências da
religião ou à história da antropologia, visam a, especificamente, fornecer elementos para a
consideração das sacralidades em sua relação com a construção literária de Mia Couto.
Comecemos, pois, pelo romance.
2.1 A trajetória de Antunes: de padre branco a feiticeiro negro
A importância do personagem Manuel Antunes, de O outro da sereia (2006), se
pode avaliar pelo espaço que ocupa nas cenas dos seis capítulos dedicados à viagem
missionária de Goa ao reino do Monomotapa, no interior da costa oriental africana. Com
exceção do segundo capítulo dedicado à viagem (cap. 6 do romance), no qual Antunes não é
sequer citado, nos demais a personagem recebe grande espaço, concorrendo com Dom
Gonçalo da Silveira, o protagonista da viagem. O missionário Silveira, a imagem de Nossa
Senhora e a mala com seus pertences, incluindo os diários da viagem missionária, estruturam
o romance a partir de um eixo construído entre o tempo da viagem, iniciada em 1560, e o
tempo demarcado pela referência a acontecimentos que se encenam em dezembro de 2002,
em Moçambique. Mas é Antunes que, na viagem referida, atua como escrivão, guarida à
imagem da Santa e estabelece contínuo contraponto com o provincial jesuíta. Aliás,
justamente se desvela o jogo entre o objetivo proposto para a missão e as interrogações
quanto a seu sentido. Silveira quer batizar o Monomotapa. Antunes questiona tal projeto. O
longo diálogo entre Dom Gonçalo da Silveira e Manuel Antunes (cf. OPS, 2006, p. 159-164)
ilustra a tensão entre as duas personagens. Uma pitada:
23
– Você, caro Manuel, põe na sua idéia a relevância da nossa missão no Monomotapa?
– É exatamente isso que eu me pergunto, D. Gonçalo: tem sentido tudo isto, D. Gonçalo?
– Que pergunta é essa?
– Tem sentido irmos evangelizar um império de que não conhecemos absolutamente nada?
– Você está cansado e o cansaço é inimigo do bem pensar.
Pois eu nunca estive mais lúcido. pensou bem? Estamos descobrindo terras que nunca
conheceremos, estamos mandando em gente que nunca governaremos.
– Cale-se, peço-lhe que não blasfeme.
Como iremos governar de modo cristão continentes inteiros se nem neste pequeno barco
mandam as regras de Cristo? (OPS, 2006, p. 160).
Se as dúvidas e as crises de Antunes são confessadas no diálogo, elas não surgem
entretanto neste momento do romance. Brotam desde que Kianda, a deusa das águas, lhe
aparece, quando ainda do embarque em Goa. Assim, na tensão entre as personagens, se se
convoca Dom Gonçalo por sua autoridade, em busca das necessárias licenças, são as crises, as
perguntas, os medos e as rebeldias de padre Antunes que conduzem a narrativa. Antunes
queima o diário de bordo, confessa seu distanciamento da fé, questiona o sentido da
evangelização do Monomotapa, condena a Inquisição pela morte de um cristão novo. Tudo
gira em torno do jovem sacerdote.
Ainda que seus gestos pareçam proféticos, Antunes personifica, a um só tempo, a
disponibilidade e a imaturidade própria do religioso jovem. Contracenando com seu
provincial, de origem nobre e vocação interior, o humilde Antunes é apenas seu
acompanhante, “um jovem noviço, de alma propensa a heresias” (p. 163), estreante até nas
andanças marítimas. A ambiguidade de sua duvidosa vocação religiosa, ainda que explicada
pelo lugar comum do amor frustrado, transparece na voz do narrador em deliciosa descrição:
Não se podia dizer que Antunes tivesse ido para padre por vocação. Adolescente,
por desgosto de amor ele se tentara suicidar. Os pais enviaram-no para um
seminário. Mas o moço não corrigia a sua paixão por uma menina de famílias, um
caso de amores insolúveis. Os Antunes optaram por medidas radicais: meteram-no
numa nau e enviaram-no em missão. Ir para África é longe. Para o Japão, mais longe
ainda. Mas ir para padre, isso é seguir para além do mundo. (OPS, 2006, p. 160).
Na imaturidade de sua vocação religiosa, Antunes se esforça para espantar o fantasma
dos sonhos eróticos. o sabe quem é Kianda, a moça nua que, dona do mundo das águas,
acompanha sua marcha de canoa a caminho da nau. (Cf. p. 56-58). Da vitalidade jovem que o
faz sonhar com mulheres nuas e da fragilidade que o faz buscar proteção em Silveira, brotam,
entretanto, ainda que marcadas pela imaturidade, as perguntas fundamentais: “Tem sentido
irmos evangelizar um império de que não conhecemos absolutamente nada? [...] Como iremos
24
governar de modo cristão continentes inteiros se nem neste pequeno barco mandam as regras
de Cristo?” (OPS, 2006, p. 160).
Para além da concepção da nudez como pecado, a personagem de Antunes denuncia o
sentido desumano da travessia
2
, concretizado na carga que viaja nos porões do navio: o
escândalo das quintaladas a carga ilegal a ser entregue aos comerciantes, tomando lugar dos
barris de água destinados aos escravos, obrigando estes ao seu racionamento. Na cena em que,
diante de grave tempestade, o capitão manda deitar fora a carga, comenta o narrador:
“Antunes quase sorriu. Não era apenas de um peso que se aliviariam. Mas de uma
manifestação do pecado.” (p. 158).
A dubiedade da personagem de Antunes assoma com grande evidência na alternância
de cenas em que ora agride, ora protege os escravos e outros interlocutores em relação aos
quais a narrativa o coloca em posição de superioridade. Assim, na cena em que o escravo
Nimi Nsundi tenta jogar ao mar a imagem de Nossa Senhora, Antunes, com a licença do
provincial, faz ao escravo um improvisado interrogatório: “És cristão?” (p. 56) Sua primeira
pergunta a primeira do catecismo tridentino –, agressiva, não se atenua pela emenda “És
crente em Deus?”, como recebe do escravo resposta que os vai aproximar para sempre: a
expressa revelação de que Nossa Senhora é Kianda, a deusa das águas; e a indicação de que
Deus não desce embaixo, onde dormem os escravos tecla que, até o fim do romance (cf.
p. 310), será referida por Antunes. No capítulo 9, quando das exalações do Corpo Santo o
romance se encarrega de explicar que se trata de fenômeno natural conhecido como fogo-de-
santelmo, que os antigos marujos atribuíam aos maus espíritos como prenúncio de grandes
tormentas –, Antunes tenta “fazer recuar a manifestação herética” dos marinheiros, que
pediam um cerimonial para aplacar os maus espíritos. Quase agredido pelos mais exaltados, é
salvo pela interposição de Nsundi, invertendo, em relação ao escravo, a posição de protetor a
protegido.
O “duplo lugar” ocupado por Antunes recebe especial destaque no capítulo 12 do
romance – duplicidade que o narrador, assumindo o olhar de Dom Gonçalo da Silveira, assim
caracteriza: “Antunes andava diluído em conflitos de consciência, esquecido do sentido da
missão que os conduzira para além dos oceanos.” (OPS, 2006, p. 200). Antunes protagoniza,
no capítulo, quase todas as cenas: lança-se contra o vulto do escravo Nimi Nsundi, que
serrava o pé da imagem; desce ao porão para interrogar o escravo; deita-se no chão com os
negros; sonha que seu corpo se torna em fonte de água a ser bebida por todos; pede a Dom
2
O termo designa aqui contrabando ou transporte de mercadoria ilegal.
25
Gonçalo que deixe Nsundi, em transe, tocar a mbira; benze o morto Nsundi; assume a voz do
defunto para ler sua carta à escrava indiana Dia Kumari. O narrador destaca que Antunes
ocupa o lugar de única exceção, dentre os brancos da nau, a aceitar a ruidosa “missa pagã”,
para purificar o navio, pela morte de Nsundi. O duplo lugar do personagem culmina,
finalmente, na cena final do capítulo, quando, incitado pelo médico goês, dança ao som dos
tambores. Na encenação tecida pelo narrador, evidenciam-se as mesclas, no jogo literário que
entrelaça a recusa e a entrega do sacerdote ao ritmo africano, o hibridismo de Maria e Kianda,
a tensão entre o peso da Europa que Antunes carrega no corpo e a leveza que faz dele “o peixe
voador emergindo das águas.” (p. 209)
A dubiedade de lugar representada por padre Manuel Antunes rompe-se, por fim, para
ceder espaço à assunção de nova identidade: ser negro. Em paradoxal contraste com sua
vocação sacerdotal, seu novo lugar vem de escolha interior. A dinâmica de tal escolha mostra-
se, no entanto, processual: primeiro, no inesperado balanço da nau, na tentativa de salvar os
manuscritos, suja suas mãos de tinta. “E com as mãos negras, ele se abandonou no rio dos
sonhos.” (p. 162). Por fim, a decisão de ser negro tinge por inteiro seu espírito: “Agora estou
certo: ser negro não é uma raça. É um modo de vida. E esse será, a partir de agora, o meu
modo de viver.” (p. 259). A dinâmica de Antunes em sua transição a negro tinha sido
antecipada pelo narrador, ao final do capítulo 9:
Até o dia 4 de janeiro, data do embarque em Goa, ele era branco, filho e neto de
portugueses. No dia 5 de janeiro, começara a ficar negro. Depois de apagar um
pequeno incêndio no seu camarote, contemplou as suas mãos obscurecendo. Mas
agora era a pele inteira que lhe escurecia, os seus cabelos se encrespavam. Não
restava dúvida: ele se convertia num negro.
Estou transitando de raça, D. Gonçalo. E o pior é que estou gostando mais dessa
travessia do que de toda a restante viagem. (OPS, 2006, p. 164).
Em expressivo contraponto ao uso do vocábulo “cafres”, com que os portugueses
designavam genericamente os africanos da costa oriental, Antunes submete-se à cerimônia
tradicional do magoneko e recebe a bênção de um novo nome, africano: Nimi Nsundi, em
homenagem ao escravo defunto. Mais: abdica de ser padre e autoriza para si o amor de uma
mulher. Diferentemente do personagem afro-americano Benjamin Southman, que busca na
África o seu passado, Antunes faz do novo lugar o seu futuro. Sua travessia a negro
metaforiza, de modo invertido, o projeto religioso da viagem: de missionário a convertido, de
branco a negro, de cristão a nyanga.
A essa mudança radical de viver, refere-se o narrador em termos de “decepar raízes e
fazer as pontes desabarem.” (p. 260). Será, no entanto, possível a Antunes apagar suas
26
origens? O último capítulo dedicado aos missionários (capítulo 18) sugere, com muitos
detalhes, a impossibilidade de uma identidade que não seja mesclada. Em pequeno trecho, a
mistura do sagrado português e do africano aparece com toda evidência. Observe-se, no
trecho, o detalhe do nome: demarcador da nova identidade, conserva no entanto suas
anteriores raízes:
O nome ‘Nimi Nsundi’ existia na cabeça do sacerdote. Na verdade, as pessoas da
aldeia chamavam-no de Muzungu Manu Antu e estavam lidando com ele como um
nyanga branco. Manuel Antunes, ou seja, Manu Antu, aceitara tacitamente ser
considerado feiticeiro, rezador de Bíblia e visitador de almas.
Aprendera a lançar os búzios e ler os desígnios dos antepassados. No terreiro, frente
à casa, o português misturava rituais pagãos e cristãos. (OPS, 2006, p. 313).
A trajetória de Antunes mostrada acima, ainda que construída à base de parafrasear o
texto de Mia Couto, pode ser lida como a ficcionalização da diversidade, da ambivalência e da
mescla de expressões acerca do sagrado. Quem não enxergaria, nas inúmeras referências ao
campo religioso expressas nas citações, o contraponto entre Europa e África, entre “a lógica
do rei de Portugal” e as “razões de Deus”? (Cf. p. 308). Uma pessoa consagrada e não
qualquer outro ator constrói a personagem que transita do lugar religioso português ao lugar
africano. Quem não julgaria adequada tal escolha? Um personagem pouco religioso – o
médico goês, por exemplo certamente não ofereceria a mesma dramaticidade ao múltiplo
sentido de travessia que o romance indicia. A leitura atenta da trajetória de Antunes permitiria
ainda descobrir/construir correlações entre o elemento água, compreendido como sacralidade,
e a constelação de vocábulos e metáforas que ligam a personagem a esse elemento. Assim, ao
vigiar a imagem da Santa, Antunes se posta a um tempo como protetor e protegido de
Kianda, a deusa das águas; vai para padre por causa de uma paixão insolúvel; anda diluído em
conflitos; ao começar a ser negro, abandona-se no rio do sonho; ao dormir com os negros, no
porão do navio, sonha ser fonte de água para saciar a todos; ao dançar, torna-se o peixe-
voador emergindo das águas; bebe o chá de dentes de peixe-mulher. Em relação à sua radical
mudança de vida, as metáforas falam de romper com elementos que ligam à terra: decepar
raízes, desabar pontes. Ainda que nyanga branco e rezador de Bíblia, Antunes não será
batizador, já que, segundo o romance, para os nativos a água dos cristãos e as palavras do
ritual cristão que a acompanham fazem contrair debilidades.
A problemática mais ampla da tese acerca de como a referência ao sagrado marca o
texto de Couto constituindo-o no literário esbarra, logo de início, na questão mais específica
a respeito de qual conceito de sagrado se está fazendo uso. Em relação a isso, podem se
27
multiplicar as questões: Que concepções estariam na base do “senso comum” com que certas
personagens referem o sagrado e suas estruturas, particularmente em suas expressões
africanas? Expressariam um lugar ocidentalocêntrico de compreensão da religião e do mundo
africano? Seriam senso comum? Nada teriam de perspectiva crítica? De quem são as inúmeras
vozes críticas encenadas na voz da escrava indiana, de Nimi Nsundi, do barbeiro Arcanjo,
de Lázaro Vivo, de Antunes –, ora ácidas, ora bem humoradas, presentes não em O outro
da sereia, mas praticamente em todos os romances do escritor? Expressam um “lugar
africano” de enunciação? Existe esse lugar? De que modo Mia Couto reinventa literariamente
esses espaços? Que tensões marcam os hibridismos religiosos, expressos no constante
“trânsito” do sagrado? Existirá um proprium africanum relativo à cultura tradicional que
ajude a compreender esse movimento e as inúmeras mesclas de perspectivas?
Essas questões impelem a buscar referenciais teóricos que permitam situar e
compreender os diferentes olhares sobre o sagrado, particularmente em relação ao mundo
africano, em vista de subsidiar a leitura crítica de textos de Mia Couto, em seu envolvimento
com a linguagem do sagrado. Passemos, pois, a circunscrever o quadro referencial que
interessa à nossa leitura.
2.2 Concepções europeias acerca do sagrado
2.2.1 A expansão colonial do século XIX
3
e as primeiras formulações teóricas sobre a religião e o sagrado
O período que cobre o último quartel do século XIX e as primeiras décadas do século
XX costuma ser designado na História Geral como “a era dos impérios”.
4
E à política
econômica expansionista, desenvolvida então por meia dúzia de potências europeias, em
3
Sem discutir as numerosas teorias que buscaram explicar o imperialismo do século XIX, o breve aceno que se
faz aqui ao assunto pretende apenas apontar o quadro histórico geral, com o qual se relacionam o nascimento das
ciências da religião e o início de uma discussão sistemática sobre a questão do sagrado.
4
A expressão “era dos impérios”, usada como título de livro pelo historiador Eric J. Hobsbawn, tem como
subtítulo a precisa indicação do período: “1875-1914”. (Cf. HOBSBAWM, 1988). Alguns historiadores
ampliarão o período até a crise econômica de 1929.
28
relação ao resto do mundo, chamar-se-á “imperialismo”.
5
As vítimas foram os povos da
África e do Oriente, particularmente a Oceania. O resultado foi a repartição da parcela mais
fraca e “atrasada” do mundo (segundo critérios imperialistas) em possessões e zonas de
influência entre estados fortes e “avançados”. No penúltimo decênio do século XIX, cerca de
um quinto do território africano se contava entre as posses coloniais de estados europeus,
nos moldes da livre conquista de territórios. Quinze anos depois, na virada do século, a quase
totalidade da África se repartia como posse monopolista daqueles estados.
6
A expansão colonialista de que foi vítima a África, no século XIX, diferiu entretanto
daquela colonização, do século XVI, empreendida por espanhóis e portugueses. A primeira,
concentrada nas Américas, lançava-se à busca de metais preciosos, de produtos tropicais e de
mercados consumidores das manufaturas europeias, particularmente as inglesas. As colônias
portuguesas em África, além de fornecer ao europeu os produtos tropicais e metais,
alimentaram o tráfico de escravos. O modelo vai perdurar até o século XIX. Agora, no limiar
do século XX, a realidade se mostrava outra. O Ocidente, em seu conjunto, passava por
profundas transformações, mormente aquelas trazidas pela revolução industrial. O crescimento
da indústria (ou, mais exatamente, do capital industrial), durante o século XIX, de modo
particular na Inglaterra da rainha Vitória (1837-1901), implicava a exigência de encontrar
fontes de matérias-primas industriais (como carvão, ferro e petróleo), mercados consumidores
para os excedentes da indústria, espaços para exportação de capitais e áreas de influência
econômica e política.
Segundo Hanna Arendt, a grande novidade do imperialismo diz respeito à expansão
econômica da burguesia realizada sob os auspícios políticos do estado-nação situação a que
muitos estadistas se opuseram. Na segunda parte de Origens do Totalitarismo (1989),
dedicada ao imperialismo, a autora explica que
O imperialismo surgiu quando a classe detentora da produção capitalista rejeitou as
fronteiras nacionais como barreira à expansão econômica. A burguesia ingressou na
política por necessidade econômica: como não desejava abandonar o sistema
capitalista, cuja lei básica é o constante crescimento econômico, a burguesia tinha de
impor essa lei aos governos, para que a expansão se tornasse o objetivo final da
política externa. (ARENDT, 1989, p. 156).
5
Da expansão imperialista participaram, em medida desigual, principalmente Grã-Bretanha, França, Alemanha,
Itália, Bélgica e, juntando-se depois a estas, Estados Unidos e Japão.
6
Em relação à África, a corrida imperialista iniciou com a conquista da Argélia pela França, entre 1830 e 1837.
Continuou, três décadas depois, com a posse da bacia do Congo, pela lgica de Leopoldo II. Aliás, a propósito
de interesses colonialistas conflitantes em relação à “legalidade” da posse do Congo, organizou-se a Conferência
de Berlim (1884-85), da qual participaram todos os estados colonialistas.
29
As grandes mudanças mundiais que marcaram a era do imperialismo não se
restringiram, obviamente, a seus elementos econômicos e políticos. Outros ingredientes se
fizeram presentes como produto das mudanças ou concorrendo ativamente para forjá-las.
Dentre eles, pode-se destacar a questão do racismo, explorado como ideia política, produto e
reprodutor do imaginário de pretensa superioridade racial. (Cf. ARENDT, 1989, p. 221 ss).
De modo diverso do que sucedeu nos dois ou três séculos anteriores, quando o
“selvagem” chegou a exercer certo fascínio sobre o europeu, o século XIX traçou o perfil das
sociedades não-europeias cunhando-as de inferiores, “primitivas”, atrasadas, aberrantes. Tal
ideologia se plasmou, em parte, de elementos iluministas do século XVIII, que excluíram as
sociedades “em estado de natureza” de toda possibilidade histórica.
As “lições sobre a filosofia da história universal”, ministradas e retomadas por Hegel
entre 1822 e 1830, ilustram bem a concepção de história natural pica do século anterior. Ao
introduzir a questão dos “fundamentos geográficos da história universal”, Hegel afirma
expressamente que o contexto natural é fundamento “essencial e necessário” da história, uma
vez que se pode considerá-lo o palco da atuação do espírito. Ao tratar da “África
propriamente dita”, aquela ao sul do Saara, Hegel refere-se a um “caráter” estagnante de
africanidade, explicado por fatores naturais, que coloca os “negros” na condição de objetos
sem valor, fora dos processos da história. Diz o filósofo:
A África propriamente dita é a parte característica deste continente como tal.
Abordamos em primeiro lugar este continente porque o podemos, por assim dizer,
deixar de lado. Não tem interesse histórico específico, a o ser o de vermos ali o
homem na barbárie, na selvajaria, sem subministrar qualquer ingrediente integrador
à cultura. A África, por mais que se retroceda na história, permaneceu fechada à
conexão com o mundo restante; é o Eldorado que em si permaneceu recolhido, o
país infantil que se encontra envolto na negrura da noite, para além do dia da história
autoconsciente. (HEGEL, 1995, p. 177).
Além disso, certas concepções de evolucionismo antropológico do século XIX
tenderam a medir a “primitividade” e o “atraso” das sociedades não-europeias pelos critérios
de progresso técnico, produção econômica, monoteísmo religioso e moral vitoriana. Tais
balizas teóricas servirão de justificativa para as práticas colonialistas, entendidas como “dever
civilizatório” do europeu para com as “raças inferiores”.
O processo “civilizatório” imperialista abriu caminho também à ação missionária de
diversas igrejas cristãs. O encontro/confronto da tradição cristã com outras tradições
religiosas, se não alcançou a igualdade na diferença, que se poderia esperar de sua catequese,
pelo menos ampliou o campo das discussões teóricas sobre o fenômeno religioso e o sagrado.
30
O empenho maciço dos missionários cristãos em conhecer (muitas vezes para mudar) a
religião dos nativos, somado à atividade acadêmica de pesquisadores metropolitanos, dentre
outros fatores, produziu fantástico volume de informações, cuja sistematização ambicionou
estabelecer um corpus etnográfico capaz de explicar “as origens” da humanidade.
7
No
conjunto, essas obras carregam em comum uma razoável parcela de herança iluminista do
século XVIII. De fato, o século das luzes havia construído certo número de conceitos
antropológicos e inaugurado um conhecimento positivo acerca do humano, de sua existência
empírica, de sua diversidade cultural, tudo abarcado como objeto de um saber específico.
Provêm igualmente daquele século os alicerces de uma metodologia que pretendia abordar o
objeto das “ciências do espírito” através da observação sistemática e direta – o método
indutivo. Esses primeiros passos não lograram, contudo, romper definitivamente com a ideia
abstrata de homem herdada do humanismo renascentista.
Da mesma forma, o discurso historicista do naturalismo, da concepção de uma história
natural – também ele herdado do século XVIII –, prometia um rompimento radical em relação
ao pensamento teológico herdado do período medieval. Também neste âmbito, ainda que o
século XIX possa ser avaliado por uma atividade epistemológica bem mais organizada que a
do século anterior, a concepção de história natural recebida do iluminismo não foi mais que
suplantada por outra concepção grávida de historicismo: a ideia de evolução.
A perspectiva evolucionista, que marcou a ideia de história no século XIX, certamente
bebeu do projeto positivista de busca de um paradigma de cientificidade para as ciências “do
espírito”. Inaugurou, no entanto, uma perspectiva nova: o nativo das colônias não se identifica
mais com o bom ou o mau selvagem dos registros etnográficos dos séculos anteriores,
naturalmente destinado à exclusão no movimento da história universal da humanidade. Ele
passa agora ao papel de “primitivo”, em cujas formas (pretensamente) simples de organização
social, de produção econômica, de relações de parentesco, de religião e de mentalidade, o
europeu encontrará a ancestralidade e as origens primeiras de sua própria civilização. É a
perspectiva que marca, no conjunto, muitas obras acadêmicas da segunda metade do século
XIX, frutos de um clima intelectual que Evans-Pritchard (1989, p. 16) caracterizou em termos
7
Podem citar-se, como integrantes daquela sistematização, dentre outras publicações: Ancient Law (1861),
clássica obra da jurisprudência e da antropologia, de Henry Maine (1822-1888), professor de Direito em Oxford
e Cambridge; La Cité Antique (1864), de Fustel de Coulanges; Primitive Culture (1871), de Edward M. Tylor
(1832-1917), professor de Antropologia em Oxford; Ancient Society (1877), do jurista Lewis H. Morgan; os
primeiros volumes do The Golden Bough (1890), obra considerada de grande erudição, de James George Frazer
(1854-1941); Introduction to de Science of Religion (1881), de Friedrich Max Müller (1823-1900), linguista e
professor de Filologia Comparada em Oxford e fundador da história comparada da religião.
31
de “uma curiosa mistura de positivismo, evolucionismo, e alguns remanescentes de uma
religiosidade sentimental”.
Marcadas pelas mesmas grandes mudanças que forjaram a expansão imperialista do
século XIX, sua política e sua ideologia, nasceram as primeiras ciências da religião misto
de anotações etnográficas e reflexões sobre o fato religioso, buscando explicar
“cientificamente”, conforme o espírito da época, dentre outros pontos, as formas “primitivas”
de religião e a superioridade do cristianismo. Destacam-se, dentre outras abordagens, a teoria
animista de Edward M. Tylor, apresentada em Primitive Culture (1871), e a volumosa
pesquisa de James George Frazer, expressa nos treze volumes do The golden bough
(volumes iniciais publicados em 1890).
A teoria animista, construída por Tylor gira em torno de duas ou três questões
fundamentais: Como se origina a ideia de alma? Como as almas se “transformam” em
espíritos? Como o culto aos espíritos deriva em culto da natureza? Segundo Tylor, a ideia de
alma nasceu do maravilhamento do homem simples frente a experiências como o sono, a
morte, o transe, as visões e os sonhos. A percepção racional de tais experiências lhe sugeriu a
ideia da existência de um “duplo”, a alma, distinta do corpo físico por sua maior mobilidade e
por ser feita de matéria maleável e etérea. Separando-se do corpo e sendo este destruído, a
alma, destituída de sua sede, torna-se espírito livre vagando no espaço, podendo intervir
invasivamente na vida dos homens, de modo benigno ou maligno. Finalmente, não sabendo
distinguir o animado do inanimado, o homem primevo estendeu também aos elementos da
natureza as características “espirituais”, tratando-as como deidades.
Sem acrescentar muito à teoria de Tylor, James George Frazer propôs a concepção da
magia, da religião e da ciência como estágios do desenvolvimento intelectual da humanidade.
Provavelmente Frazer calcou seu esquema no modelo da “lei dos três estados” de Comte, que
concebia a marcha humana na seqüência de sua cosmovisão teológica, metafísica e positiva.
Com extensa lista de exemplos, Frazer se propôs a mostrar a progressão constante de formas
mais grosseiras e sangrentas de expressão religiosa a formas cada vez mais espiritualizadas.
Frazer entendia que a passagem, de um estado precedente para outro mais avançado, resultou
da percepção, por parte de inteligências mais atiladas, da incapacidade que os elementos da
etapa inferior tinham de responder adequadamente a suas necessidades.
8
Com notável esforço
8
O ponto de partida do projeto que se concretizou no extenso The Golden Bough (13 volumes) pode parecer, à
primeira vista, apenas a busca de explicação para versos de Virgílio (Eneida) e Ovídio (Arte de amar e Fasti)
que referem o “ramo de ouroe o culto do santuário de Diana, próximo ao lago e ao bosque sagrado de Nemi,
perto de Roma. Conforme explica sua comentadora Mary Douglas (Cf. FRAZER, 1982, p. 18), a regra do
santuário permitia a qualquer homem tornar-se seu sacerdote e o consorte da deusa, tendo entretanto para isso
32
e grande erudição, conforme reconhecem seus críticos, perseguiu o objetivo de descobrir a
unidade original do pensamento religioso, para ele expresso no tema do deus imolado.
A crise do positivismo científico, nos inícios do século XX, a ampliação do
debate epistemológico das ciências humanas em geral, a multiplicidade e o dinamismo dos
métodos e abordagens, concepções mais amplas e flexíveis de história, trarão à cena novos
modos de compreender a religião e o sagrado.
2.2.2 Abordagens “clássicas” sobre o sagrado e a religião
As primeiras décadas do século XX representam, para as ciências humanas, em geral,
e para as ciências das religiões, em particular, um momento de notáveis avanços. As velhas
perspectivas positivistas e evolucionistas, da segunda metade do século XIX de buscar uma
explicação “natural” para o fato religioso ou de considerá-lo etapa superada na escala do
progresso humano –, cedem lugar a uma nova proposta interpretativa, herdeira do modelo
diltheyano das “ciências do espírito” (Geiteswissenschaften).
Na busca de um método universalmente válido para as ciências do espírito, livre das
influências das ciências físico-matemáticas, Dilthey (1833-1911), retomando a hermenêutica
universal de Friedrich Schleiermacher (1768-1834), propôs não uma explicação, paradigma
das ciências naturais, mas uma compreensão psicológica dos fenômenos, que se faz pela auto-
reflexão, ou no retorno do manifestado ao seu espírito interior. A crise do positivismo e o
surgimento de uma nova Wissenschaft interpretativa (tipicamente alemã), não chegaram,
entretanto, ao ponto de destronar a perspectiva “científica”, herdeira dos velhos paradigmas
iluministas, segundo a qual a religião poderia ser estudada como qualquer outro fato humano,
em suas formas institucionalizadas e históricas. Assim, nas primeiras décadas do século XX,
no debate epistemológico sobre a religião e o sagrado, identificam-se pelo menos dois modelos
interpretativos, aos quais se associam nítidas vertentes metodológicas e determinadas escolas.
O modelo “científico” da explicação (Erklären) entende que a religião, enquanto
expressão cultural do homem historicamente situado, distingue-se do objeto da (divindades
ou dimensões supra-temporais, não acessíveis à ciência). Organizando-se numa estrutura
que matar o sacerdote predecessor, com o visgo de ouro que brotava numa árvore sagrada do bosque. Desses
“artifícios da caixa mágica de um narrador talentoso” (conforme palavras de Mary Douglas), Frazer encontra
fôlego para percorrer um sem número de tradições religiosas, interessando-se particularmente pela religião
greco-europeia.
33
própria, como qualquer outro fenômeno humano empírico, a religião pode ser decomposta e
analisada em seus elementos estruturadores, sejam eles de caráter antropológico, psicológico,
linguístico, sociológico ou de qualquer outro âmbito das ciências. Qualquer que seja o foco,
entretanto, o corolário reza que a validade dos dados se estabeleça sob as condições de
“cientificidade”: imparcialidade, neutralidade, objetividade do pesquisador.
O modelo “experiencial” da compreensão (Verstehen), em contraposição ao anterior,
propõe uma espécie de “tato psicológico”, que, para além dos dados históricos e linguísticos de
uma tradição religiosa, busca captar a experiência fundante que lhes deu origem. O
pressuposto fundamental, neste modelo, traduz-se como a autonomia absoluta da religião, a
qual nada diz além de si mesma.
9
As divergências entre os eixos metodológicos e entre as diversas escolas produziram
expressivos e duradouros confrontos, dentre os quais o mais notável talvez possa ser
identificado com aquele da alternativa fenomenologia religiosa ou história das religiões
significando, de modo genérico, respectivamente, o estudo das experiências, estruturas e
significados dos fenômenos religiosos; ou o estudo dos fenômenos religiosos em relação ao
seu contexto histórico. Não podem deixar de ser citados, contudo, esforços no sentido de
integrar as duas perspectivas proposta reiteradamente perseguida pelo historiador romeno
das religiões Mircea Eliade (1907-1986).
10
Sobre isso, reflete Eliade (1989, p. 23):
[...] seria ingênuo supor que a tensão entre aqueles que tentam compreender a
essência e as estruturas e aqueles cuja única preocupação é a história dos
fenômenos religiosos será um dia completamente vencida. Mas tal tensão é criativa.
É em virtude dela que a ciência das religiões escapará ao dogmatismo e à
estagnação.
Os resultados destas duas operações intelectuais são igualmente valiosos para
um conhecimento mais adequado do homo religiosus. Pois se os ‘fenomenólogos’
estão interessados nos significados dos dados religiosos, os ‘historiadores’, por seu
lado, tentam mostrar a forma como esses significados foram experienciados e
vividos nas várias culturas e momentos históricos, como foram transformados,
enriquecidos ou empobrecidos no decurso da história.
9
Ao primeiro eixo interpretativo, incluindo nele as escolas históricas, se associam, grosso modo, dentre outras: as
escolas sociológicas clássicas, tendo como representantes mais ilustres, na França, Durkheim e Marcel Mauss
(1872-1950), e, na Alemanha, Max Weber (1864-1920); a escola histórico-cultural de Viena, de Wilhelm Schmidt
(1862-1954); a escola italiana de história das religiões, de Raffaele Pettazzoni (1883-1959); os estudos
americanos de psicologia da religião, de Stanley Hall (1844-1924); a metodologia de pesquisa direta de Bronislaw
Malinowski (1884-1942), no âmbito da antropologia da religião. Para ilustrar o segundo modelo, o da
compreensão participativa, citam-se, em geral, as tradições fenomenológicas: a de Marburg, na Alemanha, de
Rudolf Otto (1869-1937) e Friedrich Heiler (1892-1967); e a holandesa de Gerardus van der Leeuw (1890-1950)
e W. B. Kristensen (1867-1953).
10
Cf., v.g., o pequeno artigo de Eliade (1989, p. 15-25).
34
Em que pesem as divergências e o confronto entre os dois grandes modelos
interpretativos, as teorias da religião primordial, construídas nesse período “clássico” das
ciências da religião, portam em comum o interesse pelas “origens” do fato religioso.
11
Em
relação a tal interesse, as abordagens prenderam-se, em geral e durante algumas décadas, a
certos clichês que representavam, a um tempo, a rejeição de teorias do final do século XIX
e, paradoxalmente, a sua continuidade. No conjunto, a adoção de novas hipóteses não apagou o
que talvez se possa reconhecer como o clichê de base: a concepção mesma de que tenha
existido uma forma “inicial”, “elementar” ou “primitiva” de religião.
Representando o eixo interpretativo da explicação, podem-se destacar as contribuições
de Émile Durkheim (1858-1917), que estabeleceu a idéia de reciprocidade entre a religião e a
experiência social; e introduziu a distinção conceitual, amplamente acolhida, entre profano e
sagrado.
12
Em As formas elementares de vida religiosa (1989), publicado em 1912,
Durkheim propõe-se a estudar “a religião mais primitiva e mais simples que se conheça
atualmente”. (DURKHEIM, 1989, p. 29). Ao justificar, “por questões de método”, a escolha
das religiões “primitivas”, Durkheim coloca-se, no entanto, na perspectiva que contraria a
hierarquização das religiões em primitivas e elevadas e que se interessa pela questão da
“religião em geral”. Declara expressamente o autor:
Não há [...], no fundo, religiões que sejam falsas. Todas são verdadeiras à sua
maneira: todas respondem, ainda que de maneiras diferentes, a determinadas
condições da vida humana. [...]
Se nos voltamos para as religiões primitivas não é com a intenção de depreciar a
religião em geral; porque essas religiões primitivas não são menos respeitáveis que
as outras. Elas respondem às mesmas necessidades, desempenham o mesmo papel,
dependem das mesmas coisas. (DURKHEIM, 1989, p. 31).
Para ele, na base de todos os sistemas de crenças e de todos os cultos existiriam certas
representações fundamentais e certas atitudes rituais com o mesmo objetivo e que exerceriam
socialmente as mesmas funções. Esses “elementos permanentes” formariam o “conteúdo
objetivo da ideia que se exprime quando se fala da religião em geral”. (DURKHEIM, 1989, p.
33)
Sua tese fundamental concebe as representações religiosas como elementos
constitutivos da sociedade. Em oposição às perspectivas individualistas e psicológicas com
11
À reunião de seus artigos sobre a temática das origens da religião e das ciências da religião, Mircea Eliade
atribui o sugestivo título: The Quest [1969]. Cf. particularmente o artigo de 1964, intitulado A procura das
‘origens’ da Religião”. (ELIADE, 1989, p. 55-72)
12
A caracterização distintiva dos domínios do sagrado e do profano, proposta por Durkheim, de particular
interesse a este trabalho, será explicitada, em suas linhas gerais, na seção introdutória do próximo capítulo, Deus
e os deuses.
35
que certas abordagens anteriores explicaram a religião, Durkheim refere-se a um modo novo
ou a “condições diferentes” de retomar “o velho problema da origem das religiões”.
(DURKHEIM, 1989, p. 36). Não se trata de descobrir um “primeiro começo absoluto” da
religião, mas o estado social mais simples” em relação ao qual se identificariam as causas de
que dependem as formas do pensamento e da prática religiosa. Assim resume Durkheim sua
tese:
A conclusão geral deste livro é que a religião é coisa eminentemente social. As
representações religiosas são representações coletivas que exprimem realidades
coletivas; os ritos são maneiras de agir que surgem unicamente no seio dos grupos
reunidos e que se destinam a suscitar, a manter, ou a refazer certos estados mentais
desses grupos. Mas então, se as categorias são de origem religiosa, devem participar
da natureza comum a todos os fatos religiosos: também elas seriam coisas sociais,
produtos do pensamento coletivo. (DURKHEIM, 1989, p. 38).
Em expressa oposição às tendências positivistas e evolucionistas de abordagem do
fenômeno religioso, Rudolf Otto, com seu O sagrado (2007), publicado em 1917, coloca-se na
perspectiva que pretende compreender de dentro o fenômeno religioso. Sua perspectiva,
representando aqui o modelo interpretativo da compreensão, reage às concepções “científicas”
de religião, particularmente à tese psicológica de Feuerbach (1804-1872), de 1870, segundo a
qual os homens criam os deuses. Contra a busca de conceitos e noções racionais e naturalistas
para a religião, Otto invectiva:
Essa tendência para a racionalização prevalece até hoje, não na teologia, como
também nas ciências da religião de cima a baixo. Também a nossa pesquisa
mitológica, a investigação da religião do ‘ser humano primitivo’, as tentativas de
reconstruir as fontes e os primórdios da religião, etc. sofrem dessa tendência. que
então não se parte daqueles elevados conceitos racionais que foram nosso ponto de
partida, e sim se enxerga neles e em sua gradual ‘evolução’ o problema principal,
para então supor que seus precursores seriam noções e conceitos inferiores; mas o
que se busca sempre são conceitos e noções, e ainda por cima conceitos ‘naturais’,
isto é, do tipo que também aparece no imaginário humano comum. E com admirável
energia e habilidade se fecham os olhos para aquilo que é intrinsecamente peculiar à
vivência religiosa, inclusive em suas mais primitivas manifestações. (OTTO, 2007,
p. 35).
Seu intento evoca o elemento que ele algumas vezes refere como o “algo mais”, “vivo
em todas as religiões, constituindo seu mais íntimo cerne, sem o qual nem seriam religião”: o
sagrado. (OTTO, 2007, p. 38).
Ainda que acatando a ideia de etapas no desenvolvimento do homo religiosus, Otto
atribui o caráter apriorístico do sagrado a todas as formas de religião. Diz o autor:
36
Também aquelas primícias primitivas e ‘brutas’ do ‘receio demoníaco’ nos
primórdios da história da religião e da evolução histórico-religiosa são de natureza
inderivável a priori. A religião começa consigo própria e atua em seus ‘estágios
preliminares’ míticos e demoníacos. (OTTO, 2007, p. 169).
Seguindo o exame de Filoramo et Prandi (cf. 1999, p. 36-37) sobre a escola
fenomenológica de Marburg, de Rudolf Otto, pode-se citar seu livro O sagrado como o
marco do surgimento de uma fenomenologia da religião. De fato, sua concepção de religião
como experiência vivida de sentimento do numinoso que pode ser experimentado e
evocado, mas não explicado costuma ser apontada como o modelo fundante de análise
fenomenológica em chave hermenêutica da experiência religiosa.
13
O historiador das religiões Mircea Eliade situa-se na “perspectiva mais ampla” na
expressão do próprio autor que busca integrar as duas diferentes abordagens metodológicas
da fenomenologia e da história das religiões,
14
isto é, que busca compreender o caráter”
sagrado do fenômeno religioso, manifesto, entretanto, nas formas vitais da existência
histórica.
Retomando o princípio da ciência moderna, segundo o qual a escala cria o fenômeno”,
Eliade expressa, nas primeiras páginas do Tratado de história das religiões
15
(1993) sua
posição (fenomenológica):
[...] um fenômeno religioso somente se revelará como tal com a condição de ser
apreendido dentro de sua própria modalidade, isto é, de ser estudado à escala
religiosa. Querer delimitar este fenômeno pela filologia, pela psicologia, pela
sociologia e pela ciência econômica, pela lingüística e pela arte, etc... é traí-lo, é
deixar escapar precisamente aquilo que nele existe de único e de irredutível, ou seja,
o seu caráter sagrado. (...) não podemos contestar que o fenômeno religioso possa
ser em última instância encarado de ângulos diferentes; mas importa antes
considerá-lo em si mesmo, naquilo que contém de irredutível e de original.
(ELIADE, 1993, p. 1-2).
Ao compreender, assim, a experiência religiosa, em sua irredutibilidade ao dado
econômico, social ou político, ou a qualquer outra instância que a pretenda submeter e exaurir
sob seu foco, Eliade estabelece conforme se salientou estreitos laços de dependência em
13
Sua perspectiva certamente inspirou a Phänomenologie der Religion (1933) de Gerardus van der Leeuw,
considerada o manifesto da corrente fenomenológica da compreensão. Inspirou também inúmeros outros
estudiosos, os quais, em sua busca por compreender e definir a essência do fenômeno religioso, expuseram com
maior sistematização e amplitude os métodos fenomenológicos. Alguns aspectos mais específicos da
compreensão do sagrado proposta por Otto, assim como seu interesse para a leitura de Mia Couto, serão vistos
no próximo capítulo, na seção 3.2 dedicada ao maravilhoso.
14
Impõe-se aqui sobretudo o interesse por situar Eliade na posição integradora das duas correntes
metodológicas. À sua concepção sobre o sagrado e o profano, bem como à sua compreensão do mito, se voltará
em outras partes deste trabalho.
15
O argumento é retomado, quase que literalmente em As Origens (1989, p. 22).
37
relação a concepções do sagrado e da religião característicos do eixo fenomenológico da
compreensão. A elaborada morfologia religiosa proposta por ele no Tratado de história das
religiões (1993) passa, entretanto, muito distante do esforço taxonômico que caracterizou as
primeiras fenomenologias descritivas. Distancia-se, igualmente, do intento (também de
fenomenologias mais recentes) de definir o fenômeno religioso em sua pureza essencial, como
se este se organizasse numa estrutura a-histórica.
A busca eliadiana da perspectiva (metodológica) a um tempo não essencialista e não
reducionista de abordagem do fenômeno religioso poderia ser apontada neste seu resumo
programático:
O homo religiosus representa o ‘homem total’; consequentemente, a ciência das
religiões deve tornar-se uma disciplina total no sentido de ter de utilizar, integrar e
articular os resultados obtidos pelos vários métodos de abordar um fenômeno
religioso. Não basta apreender o sentido de um fenômeno religioso numa certa altura
e, consequentemente, decifrar a sua ‘mensagem’ (pois todo fenômeno religioso
constitui uma ‘cifra’); que estudar e compreender também a sua ‘história’, isto é,
deslindar as suas alterações e modificações e, em última análise, esclarecer a sua
contribuição para a cultura por inteiro. (ELIADE, 1989, p. 22).
Tarefa especial, nessa busca por uma compreensão totalizadora do sagrado e do homo
religiosus enquanto modo de ser no cosmos –, cabe à história das religiões, a qual o autor
convoca à tarefa de uma hermenêutica total, capaz não de “decifrar e explicar todo tipo de
encontro do homem com o sagrado” (ELIADE, 1989, p. 77), ao longo da história, como
também de produzir oeuvres (e não apenas monografias eruditas), que sejam criativos
convites a pensar uma cultura em sua vitalidade.
2.2.3 Limites e possibilidades
O esforço por construir um panorama acerca de diferentes concepções da religião e do
sagrado, que tenha certo interesse e validade para a leitura crítica da obra de Mia Couto, não
se faz sem esbarrar em inúmeras dificuldades. A primeira delas diz respeito ao percurso
histórico das diversas ciências das religiões, em sua constituição como ciências: foram
décadas de conflitos e embates entre pesquisadores e entre escolas, gerando volumes de
conceitos, teorias e taxonomias do sagrado e da religião, que se substituíram com certa
38
rapidez. Assim, a multiplicidade de teorias do fato religioso, de um lado, e as divergências
entre elas, de outro, acabam por dificultar as escolhas do leitor de literatura.
A propósito dessa dificuldade, pode-se citar a aguda consideração de Evans-Pritchard
acerca das teorias das religiões ditas “primitivas”, em pleno terceiro quartel do século XX,
quando se poderia pensar as ciências das religiões em sua relativa maturidade. Escreve o
autor:
Tenho o dever de ser crítico, antes de construtivo, para mostrar que as teorias [a
respeito do fenômeno religioso] aceitas durante algum tempo são hoje indefensáveis
e têm ou tiveram de ser rejeitadas no todo ou em parte. Se eu puder persuadir o leitor
de que muito é ainda incerto e muito ainda obscuro, meu trabalho não terá sido em
vão. Nem terá, o leitor, ilusões de que somos portadores de respostas definitivas para
as questões levantadas. (EVANS-PRITCHARD, 1989, p. 15-16).
Os desenvolvimentos do debate sobre o sagrado e a religião, a partir de meados do
século XX, cujas raízes se fincam nas discussões e nas matrizes teóricas daquela “era
clássica” das ciências da religião, não perderam de vista a questão, sempre premente, da
fundação do fato religioso, e a do estatuto metodológico das ciências que o buscam
explicar/compreender. Para o permanecer no mero “recitativo de títulos e nomes”
plagiando uma boa desculpa de Evans-Pritchard (1978, p. 15) bastaria lembrar dois ou três
aspectos da contribuição dada pelos continuadores do debate: sua produção acadêmica
mostrou-se, de um lado, prolífica e diversificada; na busca de uma interpretação “cabal” da
religião, mostrou-se, de outro lado, mais modesta que a de seus antecessores; as diferenças de
perspectiva foram geridas com maior integração, com expresso reconhecimento da
incapacidade de qualquer método ou abordagem em abranger plenamente seu objeto.
Frente a tais dificuldades e desenvolvimentos, ao fim e ao cabo importam as escolhas e
construções do leitor. Com seus arrazoados e justificativas, com sua capacidade de estabelecer
diálogos entre o texto literário e as circunscrições teóricas de seu interesse, o leitor tem
consciência, de antemão, do caráter provisório, transitório e incompleto de sua leitura. Assim,
em relação à utilidade para a leitura de Mia Couto – dos campos teóricos circunscritos e dos
autores sumariamente apresentados, torna-se necessário tecer algumas considerações.
Vejamos:
O aceno ao imperialismo, à teoria animista de Tylor e à obra de Frazer serve, neste
trabalho, apenas para construir um quadro genérico, em relação ao qual nasceu a ideia da
existência de povos “primitivos” e de formas “arcaicas” de religião concepções que se
disseminaram rumo à constituição do senso comum que ainda perdura a respeito do assunto.
39
Em relação à concepção de religião “arcaica”, uma das críticas que se faz a Frazer e a Tylor
diz respeito à falta de explicação para o que consideraram “erros” dos humanos primevos
relativos à magia, redundantes da associação “infantil” entre o real e o imaginário. Numa
perspectiva mais ampla, seria mais adequado pensar tais associações enraizadas em
estereótipos sociais e não como “erros” psicológicos, de uma mentalidade ingênua e infantil,
como pretenderam aqueles teóricos.
Retirando Frazer e Tylor de seu contexto, poderíamos certamente criticá-los por certa
arrogância com que trataram a mentalidade das comunidades “arcaicas”. Mas poderíamos
também desculpá-los por certo intelectualismo, que os eximiu da responsabilidade pela
observação in loco, e por certa superficialidade com que trataram questões complexas. De
qualquer modo, a notável produção “científica” de que são autores representa, dentro dos
limites e reais possibilidades daqueles intelectuais, sério esforço de autoreflexão sobre o seu
próprio tempo. Neste sentido, pode-se estender a Tylor (e quiçá a outros, aqui não citados) o
elogio (ainda que irônico) que Darcy Ribeiro tece a Frazer:
Seu interesse fundamental é alcançar uma compreensão mais profunda dos valores
do seu mundo. Então e sempre, ele é o inglês imperial metropolitanto, bem
assentado na convicção de que encarna o ápice glorioso da espécie humana. Como
tal, a marcha humana como uma progressão por ínvios caminhos, purificando-se
em mil fogos selvagens, para produzir afinal aquela sua última forma depurada: a
civilização britânica. (RIBEIRO. In: FRAZER, 1982, p. 6).
Em O outro da sereia (2006, p. 274), o personagem afro-americano Benjamin
Southman pergunta ao curandeiro: “O senhor se considera um animista?” A que o esperto
interlocutor responde: Do modo como está o mundo, eu me considero mais um desanimista.
Por exemplo, agora eu vejo uma desanimação na sua cara.” Segue-se, no romance, verdadeira
trapaça em vista de rebatizar o americano nos moldes tradicionais africanos a certo custo!
No trecho citado, é a visão preconceituosa, marcada pelo imaginário da teoria animista
de Tylor, que permanece na ótica de Southman. No domínio do literário, essa visão
preconceituosa é deslocada para reforçar o sentido irônico que o trecho deseja fortalecer
quando joga com os termos “animista” e “desanimista”. E, para o campo das ciências da
religião, mais que a intenção irônica construída pelo jogo de palavras, importa atentar à
utilização da trapaça pelo curandeiro.
Não se trata de negar qualquer crédito às teorias elaboradas por aqueles pesquisadores.
A teoria animista construída por Tylor, por exemplo, propõe uma definição mínima de
religião como crença em seres espirituais que destaca importantes aspectos da experiência
40
religiosa, como as visões, os sonhos, a relação com o mundo dos mortos, a ideia de alma. Tais
aspectos se fariam presentes, certamente, no estudo do mundo religioso africano. Rejeita-se,
nesses teóricos, sua leitura equivocada das formas mais simples de religião, no sentido de
considerá-la infantil e ilusória. Diante disso, dá-se preferência a teóricos cuja leitura do
mundo africano e de suas religiões mostras de maior consistência, particularmente porque
vêm “de dentro” do mundo tradicional. Servindo-nos dessas razões para justificar nossas
escolhas de leitor, optamos por não utilizar aqueles teóricos no diálogo com o texto literário.
De Durkheim se acolherá a distinção conceitual entre profano e sagrado. A concepção
de sagrado como algo santo, puro, separado, em oposição ao profano, como o que está fora
dos umbrais do sagrado, parece de fato ser um dos fundamentos mais característicos das
crenças e vivências de inúmeras tradições religiosas. Tal distinção, amplamente acolhida
também por estudiosos do fenômeno religioso, constitui-se certamente numa das categorias
básicas que marcam as concepções europeias sobre o sagrado e as religiões em suas formas
institucionalizadas.
Tal distinção se pode estabelecer, até certo ponto, também em relação às religiões
tradicionais do continente africano. Carece de limites a concepção de que na África, mesmo
em relação ao tradicional, tudo é sagrado. Referindo-se à religião tradicional banto, o
missionário cristão Raul de Asúa Altuna afirma expressamente que “nada pode ser profano”.
(1985, p. 378). Talvez fosse mais adequado dizer gradação que, aliás, o autor faz em outra
passagem que nas religiões tradicionais africanas tudo pode estabelecer relação com o
sagrado. A existência de rituais de bênção e sacralização de objetos e pessoas, assim como os
ritos de dessacralização de objetos e pessoas consagradas bastariam para comprovar a
concepção de profano, enquanto um âmbito distinto do sagrado.
Ao apresentar a personagem Tia Luzmina, o narrador de O outro da sereia (2006,
p. 67) refere-se a ela como a uma “dedicada beata”, que “dormia abraçada a postais de
santinhos e, mesmo contra a vontade do padre, dava banhos às figuras da pequena igreja”. E
conclui: “Para Luzmina tudo nascia da limpeza: até a santidade vinha da água e do sabão.”
Ora, o que temos na citação é uma típica mescla de concepções acerca da santidade,
entrelaçando traços judaicos relativos a abluções e limpeza rituais com elementos da devoção
católica aos santos. Considerando que o espaço africano encontra-se já de longa data marcado
por tais influências, dificilmente não se aplicaria a distinção entre puro e impuro, sagrado e
profano, também em relação ao mundo das tradições religiosas africanas.
De qualquer modo, merece atenção o que disse Caillois a respeito dessa distinção:
41
No fundo, sobre o sagrado em geral, a única coisa que se pode afirmar com validade
está contida na própria definição do termo: é que ele se opõe ao profano. Assim que
se tenta precisar a natureza e os modos desta oposição, tropeça-se nos mais graves
obstáculos. (CAILLOIS, 1988, p. 15).
Vale lembrar ainda que Durkheim já se referira à extensão variável dessa delimitação. (Cf.
DURKHEIM, 1989, p. 68).
A respeito da utilização de Rudolf Otto na leitura de Mia Couto, observamos: a
pesquisa fenomenológica, de que Otto é um dos mais insignes representantes, fundada em
geral sobre o pressuposto fundamental da autonomia absoluta da religião, teve certamente o
mérito de opor-se às tendências reducionistas herdadas do positivismo. Sua insistente busca
de uma essência da religião, entretanto, a manteve presa no entre-lugar da tradicional filosofia
idealista da religião e da teologia da religião, ambas marcadas pelo subjetivismo e pela
negação da história. Em que pese esse limite, o interesse de Otto pelas modalidades da
experiência religiosa, mais que pelas ideias de Deus e de religião, seria suficiente para
fornecer razoáveis paralelos entre sua perspectiva e a de religiões tradicionais africanas: o
desinteresse por uma teologia especulativa, a concepção religiosa ou mística do cotidiano e de
toda a existência. Para o escopo de nossa pesquisa, interessa verificar como o maravilhamento
frente ao numinoso se traduz literariamente em Mia Couto.
A escolha de algumas categorias de Mircea Eliade para a leitura de Mia Couto poderia
justificar-se por seu expresso reconhecimento de tensões entre as diversas operações
intelectuais que estudam o fato religioso; e pela busca de uma perspectiva ao mesmo tempo
não essencialista e não reducionista para sua compreensão. Tal postura intelectual,
reconhecidamente dinâmica, mostra-se especialmente válida na leitura das “mesclas”
religiosas que aparecem abundantemente na obra de Mia Couto. De Eliade serão utilizados,
basicamente, alguns elementos de sua morfologia do sagrado e sua leitura do mito.
Em que pese a grandiosidade das reflexões e teorias propostas por esses pensadores,
não se pretende forçar qualquer diálogo entre eles e a obra de Mia Couto. No entanto, suas
perspectivas de interpretação do fato religioso certamente podem oferecer algum subsídio
para a leitura crítica dos textos de Mia Couto, no seu envolvimento com a linguagem do
sagrado. De qualquer forma, outras concepções do sagrado se farão necessárias na abordagem
dos contos e romances do autor moçambicano. Dentre os vários estudos, podem ser
destacados aqueles que, ainda que provenientes de autores não-africanos, focam a África “de
dentro”, a partir de longa convivência com o ambiente tradicional africano. Destacam-se
42
ainda as leituras genuinamente africanas. Essa variedade de percepções terá, certamente,
importância para a leitura do texto literário de Couto.
2.3 Concepções africanas acerca do sagrado
2.3.1 Concepções africanistas do sagrado:
primeiros passos para o descentramento do olhar
As primeiras décadas do século XX, particularmente os anos 30, com Malinowski
16
e
outros, não apenas inauguram novos métodos da pesquisa etnográfica – a observação direta de
determinada comunidade, o aprendizado de sua ngua, a partilha de seus costumes , como
também transferem o foco de interesse da Austrália e do Pacífico, típico do século XIX, para
o continente africano. Tais desenvolvimentos, particularmente evidentes na antropologia
francesa, demonstrarão especial predileção pelo estudo dos sistemas de representação
(religião, mito, literatura de tradição oral). E marcarão particularmente também a atividade
catequética de alguns missionários.
Assim, os primeiros passos rumo a uma revolução do olhar – no sentido de certo
rompimento com a ideia de centralidade do mundo europeu e de uma melhor compreensão do
mundo africano – serão dados por antropólogos profissionais e por missionários europeus que
estabeleceram longa convivência com sociedades de diferentes regiões do continente africano.
Destacam-se os nomes de Marcel Griaule, Placide Tempels e Raul de Asúa Altuna.
Nem Max Müller, nem Tylor, nem Hegel, nem Frazer, nem Durkheim, nem Lévy-Bruhl,
nem Mauss este chegou a elaborar um manual de investigação etnográfica –, nenhum deles
logrou realizar uma investigação de campo, baseando suas teorias em observações e anotações
16
Bronislaw Malinowski (1884-1942), polonês naturalizado inglês, radicalizou, no âmbito da antropologia, o
método da “pesquisa de campo”, realizada diretamente pelo pesquisador. Sua estadia entre os nativos das ilhas
Trobriand produziu Os argonautas do Pacífico Ocidental, obra considerada um clássico da antropologia social.
Antes de Malinowski, contudo, muitos viajantes, administradores e missionários alcançaram certamente um
excelente nível de conhecimento dos povos entre os quais viviam. Basta lembrar, entre outros exemplos de
interesse à nossa pesquisa, Henri-Alexander Junod (1863-1934), missionário protestante suíço que realizou
trabalho etnográfico, publicado em 1898, sobre o grupo tsonga, do sul de Moçambique. Sua principal obra, Usos
e costumes dos bantos (1974), publicada em 1913, é reiteradamente citada como importante marco da pesquisa
etnográfica africanista.
43
de terceiros. Agora, antropólogos e missionários, em seu próprio e lento aprendizado de
inquirir, ouvir, compreender os povos africanos, na pessoa de seus chefes, de seus sábios, de
seus feiticeiros, se obrigarão a longas estadias de campo.
No período vitoriano, as teorizações sobre o fato religioso privilegiaram a busca das
origens da religião, concebendo-a em geral como estágio primeiro do desenvolvimento
humano. Agora, numa espécie de “inversão de perspectiva em relação à arrogância dos
julgamentos ocidentalo-cêntricos sobre o primitivo” – conforme expressão de Laplantine
(2006, p. 114) –, a prática etnológica, particularmente a francesa, e algumas abordagens
provenientes da mão de missionários, se ocuparão em estudar a dimensão simbólica expressa
nos utensílios cotidianos, a literatura de tradição oral (mitos, contos, lendas, provérbios), os
idiomas, a música, os cantos, as danças, as festas, os objetos rituais de sociedades africanas.
Interessa-lhes sobretudo compreender e mostrar a lógica dos saberes, a coerência dos sistemas
de pensamento, expressos pelos mitos, pelos ritos, pelas cosmogonias, típicos das sociedades
ditas “tradicionais” – edifício simbólico que aqueles antropólogos e missionários, em expressa
contraposição ao mundo europeu, ainda que o tomando como referência, não hesitam chamar
de “filosofia” ou “teologia”.
Nessa perspectiva, Marcel Griaule
17
pode ser apresentado como um dos mais
importantes nomes dentre os que pesquisaram a questão do simbólico em África. Ainda que
pouco realçado na história da antropologia, Griaule desenvolve um novo modelo de pesquisa
etnológica: aquele em que o pesquisador aprende, como num processo de iniciação, pela
escuta atenta das construções discursivas dos membros de uma sociedade, o modo pelo qual
ela se interpreta e se desvela a si mesma. Em Dieu d’Eau: entretiens avec Ogotemmêli
(1948) encontramos o que se pode considerar a novidade introduzida por Griaule na pesquisa
etnológica: o aprendizado da escuta. Publicada em 1948 e considerada sua principal obra,
Dieu d’Eau registra, na forma de narrativa literária, os mais de trinta encontros com
Ogotemmêli, o velho caçador dogon cego, conhecedor da sabedoria de seu povo.
Exaustivamente recomendada como um dos mais importantes estudos sobre a religião
tradicional do oeste africano, a obra ocupa o lugar de divisor de águas em relação às ideias
vigentes sobre a mentalidade das sociedades simples em geral e da África negra em particular.
As pesquisas de campo realizadas por Griaule entre os dogon, durante quase vinte anos,
trazem a público a riqueza de seus elementos religiosos, míticos e cosmogônicos: o culto das
17
Marcel Griaule (1898-1956), diplomado em religião pela École Pratique des Hautes Études e, ao fim da vida,
titular de Etnologia, na Sorbonne, é considerado o fundador da antropologia francesa. Entre 1931 e 1933, dirigiu
a Missão Etnográfica Dakar-Djibuti, com o objetivo de registrar costumes, línguas, festas, músicas, ritos e
“coletar” peças para o Museu Etnográfico do Trocadéro (chamado Museu do Homem, a partir de 1937).
44
máscaras, o culto dos ancestrais, o culto das “almas”, o simbolismo dos números. Merece
destaque a concepção dogon acerca da palavra, considerada de origem divina, com a qual se
relacionam o desenvolvimento das pessoas e o progresso das técnicas.
18
Contra a afirmação do caráter grotesco e ininteligível das formas “elementares” de
vida religiosa e contra a crença basilar de que não é possível compreender outra cosmovisão
senão aquela da própria cultura, Griaule entende as práticas simbólicas das comunidades
tradicionais (seus mitos, seus ritos) como os elementos fundadores da ordem cósmica e social.
Para ele, tais construções simbólicas, “não se caracterizam apenas por sua profunda coerência
– os sistemas de correspondência extremamente precisos entre os vivos e os mortos, o homem
e o animal, a natureza e a cultura... São elaborações grandiosas, de uma complexidade e
riqueza inestimáveis”. (LAPLANTINE, 2006, p. 112). Mais: Frente às instituições e
mitologias plenamente significantes da África tradicional, opõe-se, para Griaule, a
insignificância do Ocidente industrial. (Cf. LAPLANTINE, 2006, p. 107).
Na mesma linha de uma longa convivência com comunidades africanas, pode ser
destacado também o nome do missionário belga Placide Tempels.
19
Sua principal obra, La
philosophie bantoue (1949), publicada em 1945, introduz a questão geral acerca da
possibilidade de uma filosofia banto. A discussão acadêmica das questões levantadas pelo
autor, bem como a reiterada citação da obra de Tempels por africanistas atuais, indiciam a
importância da publicação e colocam o autor entre os pioneiros da filosofia africana, enquanto
sistematizador de uma forma de pensar distinta daquela da cultura europeia.
Entendendo que toda ação humana repousa sobre um sistema de princípios fundadores
e contrapondo-se às concepções que negam valor filosófico àquilo que esemoldurado pelo
misticismo, Tempels afirma a existência de uma filosofia banto. Mais: considera que uma
melhor compreensão do pensamento banto torna-se indispensável a todos os que são
convocados a viver próximo dos nativos os colonos, em geral, e particularmente os
magistrados, os dirigentes, os educadores e, de modo especial, os missionários. (Cf.
TEMPELS, 1949, p. 17). Com a condição básica da ‘escuta’: “Se não se penetra a
18
Não cabe aqui apresentar, ainda que em forma de esboço, o sistema religioso dogon, conforme as pesquisas de
Griaule. O interesse restringe-se a sugerir a “revolução do olhar” realizada por aquele pesquisador.
19
Frans Tempels (1906-1977), de nome religioso Placide, foi um missionário belga, padre católico franciscano,
que trabalhou no Congo Belga (atual República Democrática do Congo) de 1933 a 1962. Nesses 29 anos fez
apenas duas rápidas viagens à terra natal. Retornou definitivamente à Bélgica em 1962, passando a viver num
mosteiro.
45
profundidade de sua personalidade própria, se não se sabe sobre que substrato se movem suas
ações, não é possível compreender os banto.” (TEMPELS, 1949, p. 17).
20
Tempels introduz o conceito fundamental da ontologia banto: a força vital. Segundo o
autor, a força vital constitui o único valor central sobre o qual se sustenta a concepção de vida
entre os banto. Vida, força, vida pulsante, força vital retornam, como um leitmotiv, na
linguagem em geral, no pensamento, nas ações e nos gestos. Tradições rituais, orações,
invocações a Deus, aos espíritos e aos antepassados, práticas e remédios mágicos visam a não
mais que o fortalecimento da força vital. Trata-se de dirigir-se ao mundo do sagrado para
aprender palavras de vida em razão de reforçar a vida, a saúde, o vigor, a continuidade da vida
nos descendentes. Doença, sofrimento, cansaço, injustiça serão compreendidos pelo banto
como diminuição da força vital.
Segundo Tempels, a noção fundamental do banto a respeito do Ser identifica-se com o da
força vital: “o Ser É força.” (TEMPELS, 1949, p. 35). Daí a noção de Ser essencialmente
dinâmica. O conceito de ser-força estende-se hierarquicamente a todos os seres existentes,
numa estrutura relacional. Acima de todas as forças, encontra-se a Força suprema, o ser
divino que tem em si mesmo a plenitude da força e que a doa aos demais seres. Na hierarquia,
ocupam lugar superior os antepassados fundadores, partícipes em certa medida da força divina
primordial, que a comunicam aos descendentes. Abaixo dos primeiros ancestrais vem a
linhagem dos defuntos. Depois, em estreita relação com seu grupo social, encontra-se o
homem, para cujo benefício participam as forças animais, vegetais e minerais, cada uma
delas, como o homem, obedecendo a uma estrutura relacional de subordinação e
primogenitura. Interpretada sob foco tão amplo, a concepção de força vital sustentará, além
das crenças mais basilares, os demais aspectos da cultura banto: sua sabedoria ancestral, os
saberes técnicos úteis à vida cotidiana, os valores éticos da comunidade, a aplicação da
justiça.
Também o nome do missionário católico espanhol Asúa Altuna
21
pode ser incluído
entre os que, pela longa convivência com povos africanos, com a preocupação de os conhecer,
se tornaram importantes intérpretes de sua cultura. Em Cultura tradicional banto (1985),
Asúa revela a perspectiva de seus estudos ao considerar que “o etnocentrismo europeu negou,
descuidou e deturpou a realidade cultural negro-africana e banto”. (ASÚA A., 1985, p. 10). E
20
Tradução de: “Si l’on n’a pas pénétré la profondeur de leur personnalité propre, si l’on ne sait pas sur quel
fond se meuvent leurs actes, il n’est pas possible de comprendre les Bantous.” (TEMPELS, 1949, p. 17).
(Tradução nossa)
21
Raul Ruiz de Asúa Altuna, padre católico das Missões Diocesanas Vascongadas (País Basco, província do
extremo norte da Espanha), tornou-se missionário em Angola pelo final dos anos 50 e conviveu com aquele povo
por cerca de trinta anos.
46
aponta seu foco de interesse: “Insistimos na sacralidade que forma a medula da cultura banto.
A Religião Tradicional aparece como o constitutivo último e o fundamento mais profundo
desta cultura.” (ASÚA A., 1985, p. 11).
Ao traçar as linhas de conexão entre religião tradicional e cultura banto, Asúa afirma:
A Religião Tradicional não é apenas vida, mas é a vida. E até os seres mais
insignificantes e os acontecimentos triviais encerram virtualidades e ocupam um
lugar no imenso tecido sacro da participação. Como tudo participa, tudo é sagrado.
A Religião Tradicional resume-se na visão espiritualista (mística) de todas as coisas.
Esta é a medula da profissão de fé banto. (ASÚA, A., 1985, p. 384)
Em Cultura tradicional banto (1985), Asúa segue de perto a rota de La philosophie
bantoue (1949), de Tempels. Inicia o percurso de sua investigação com os fundamentos da
cultura tradicional banto a participação vital ou união vital, chamada por Tempels de força
vital. “A participação na mesma vida, ou união vital, aparece como o princípio-base da cultura
banto.” (ASÚA A., 1985, p. 46). Explicita com grande detalhamento, citando ora Tempels,
ora Senghor, ora alguma outra fonte,
22
o conceito de força vital e a hierarquia dos seres.
Explica Asúa:
Deus é o manancial e a plenitude da vida. Por isso a vida é para os banto o
maior dom de Deus e uma realidade sagrada e de preço inestimável. Os primeiros
antepassados receberam-na de Deus para a comunicar e defender. Esta vida, que é
energia, força e dinamismo incessante, impregna todo o universo.” Mais adiante
afirma: “Vida, força, existir, são uma idêntica realidade, o valor fundamental,
ontológico, donde deriva a sabedoria banto, com o qual elabora a totalidade dos
raciocínios, motiva os comportamentos, funda a sua religião, desenvolve e justifica a
magia, solidariza a sociedade e regula a ética. (ASÚA A., 1985, p. 46-47).
Como Tempels, Asúa faz decorrer do conceito fundante de união vital todo o conjunto de
ingredientes da vida político-social: a vida comunitária com suas estruturas de solidariedade, a
chefia, a administração da justiça, a concepção de pessoa, os nomes do indivíduo, os ritos de
puberdade, o casamento, o alambamento. Destaca a concepção banto sobre a palavra, cujo
poder de significação reside não na capacidade de representar, mas de sugerir, escolher e
criar. (Cf. ASÚA A., 1985, p. 84).
22
Sendo uma publicação relativamente recente e, até certo ponto, dependente de trabalhos mais antigos e
originais, o livro de Asúa não poderia ser considerado, estritamente, uma pesquisa “pioneirada cultura banto.
De qualquer forma, as constantes referências a, dentre outros, Tempels, Mulago, Ki-Zerbo, Aimé Césaire,
Kagamé, Senghor, Thomas, Bastide, Eliade, Hampaté , Cheik Anta Diop nomes de primeira grandeza da
reflexão africanista e da fenomenologia da religião – bastam para fazer de Asúa um dos mais importantes
divulgadores (europeus) da cultura negro-africana.
47
Sempre apoiado em rica bibliografia, Asúa apresenta de modo muito completo e
detalhado sua compreensão da religião tradicional, cuja estrutura e cujos componentes ele
mesmo resume assim:
Noção clara de um Ser Supremo Criador, crença em seres intermediários, tais com
espíritos não incarnados e gênios, antepassados muito activos e ligados ao mundo
visível e que por isso são honrados com profusão de cultos. A possessão reforça esta
crença e actua como reintegrador social.
Os dois mundos – o visível e o invisível – realizam-se comunitariamente,
porque são solidários e hierarquizados. A noção de transcendência do mundo
invisível não anula sua imanência.
A magia é exigida pela inter-acção vital; brota como uma necessidade e como
uma solução, conquanto resulte ambivalente, visto que explica e remedeia o mal e
também gera o medo e propaga o mal.
A vida social está regulada pela ética. Os sacrifícios, ritos, simbologia,
oferendas, altares, pequenos santuários, lugares sagrados e objetos mágicos
manifestam o fervor do fiel e da comunidade celebrante, presidida por
personalidades carismáticas (mestres de iniciação, especialistas da magia, chefia
sacralizada) com uma hierarquia respeitada. (ASÚA, A., 1985, p. 371).
O panorama, acima traçado, pretendeu demarcar os primeiros passos rumo a uma
mudança de perspectiva a partir da qual alguns etnólogos e missionários europeus “de boa
vontade” lograram compreender de modo mais adequado o africano e sua cultura. Não pairam
quaisquer dúvidas sobre a grandeza de seu empreendimento. A volumosa fortuna crítica
acerca de suas obras atesta sua importância.
Assim, Verçosa e Mascellani (1995) assinalam a importância da etnologia simbólico-
humanista fundada por Griaule para a moderna antropologia, para a discussão da questão do
multiculturalismo e para a educação em geral; e reclamam do descaso com que a escola de
Griaule costuma ser tratada por muitas obras referenciais da história do pensamento
antropológico ocidental. Vasconcelos (2004, p. 334) passa em revista a obra de Tempels para
afirmar “a força vital como metáfora estruturante para a compreensão das religiões afro-
brasileiras”. Diz o articulista:
Independentemente a qualquer comentário crítico que se faça ao empreendimento
desenvolvido por ele, a sua obra sobre a Filosofia Banto é uma referência obrigatória
para os estudos que se relacionam à cultura e religião africana e às suas diferentes
manifestações no continente americano. (VASCONCELOS, 2004, p. 334).
Os exemplos poderiam ser multiplicados às dezenas.
Mas nem tudo são flores. Um passeio por A África fantasma
23
(2007), de Michel Leiris
(1901-1990), o “secretário-arquivista” da expedição Dacar-Djibuti, fornece amostras mais que
23
Tradução brasileira de L’Afrique fantôme, publicado na França em 1934.
48
suficientes para se perceberem as ambiguidade do projeto de Griaule. Em meio aos
fragmentos diários que descrevem paisagens, tipos, costumes, festas, rituais, política
colonizadora e local, impressões e sentimentos pessoais, além do cotidiano do trabalho
etnográfico com suas mazelas, Leiris com a autoridade de membro permanente da missão
revela a artificialidade das relações entre o europeu e os dogon; (Cf. LEIRIS, 2007, p. 170); o
desrespeito diante de um ossuário do qual os pesquisadores roubam adornos; crise de riso
nervoso enquanto [Leiris] sacode uma tíbia com a mão; (Cf. LEIRIS, 2007, p. 190); as
negociatas com nativos para adquirir máscaras rituais, que não podem ser vendidas; (Cf.
LEIRIS, 2007, p. 189); a pilhagem generalizada de objetos rituais.
Invertendo a perspectiva em relação ao caráter de espetáculo que está por trás da idéia de
museus, Leiris refere-se ao ridículo e extravagante da presença européia entre os nativos
africanos: “Que distração poderosa os turistas devem representar para essas pessoas! De fato
devemos ser animais supercômicos, com nossos capacetes, nossas calças curtas...” (LEIRIS,
2007, p. 276).
Em sua autocrítica, misto de azedume e ironia, Leiris refere-se aos colonizados em
termos de “explorados”. (Cf. LEIRIS, 2007, p. 270). Às regiões não cristianizadas, chama
“recantos não corrompidos”. (LEIRIS, 2007, p. 268). Sobre a pesquisa etnográfica, avalia:
“Não nos aproximamos mais dos homens ao nos aproximarmos de seus costumes.” (LEIRIS,
2007, p. 297). Frente a trabalhadores e a prisioneiros acorrentados: “Somos nós, os campeões
da civilização. [...] Que dizer agora, diante destes prisioneiros que queremos fazer entrar à
força na golilha de nossa moral e que começamos e terminamos acorrentando...” (LEIRIS,
2007, p. 230).
Sobre o objetivo geral da colonização:
Recolher impostos, esta é a grande preocupação. Pacificação, assistência médica têm
um objetivo: amansar as pessoas para que paguem os impostos e não interfiram.
Corretivos às vezes sangrentos com um objetivo: recolher imposto. Estudo
etnográfico com um objetivo: ser capaz de conduzir uma política mais hábil, que
será melhor exatamente para recolher impostos. (LEIRIS, 2007, p. 251).
Vale lembrar que o livro de Leiris foi proibido na França, quando de sua publicação em 1934.
Em relação a Placide Tempels, observa-se que também ele focou a presença europeia
em África com certa visão autocrítica. No capítulo final de La philosophie bantoue (1949),
Tempels dirige-se expressamente aos educadores (europeus e cristãos). Reconhece que a
presença europeia na África foi portadora de “valores” e satisfez necessidades em termos de
melhoria das condições materiais de vida, das habilidades profissionais, das construções, da
49
alimentação e das vestes, da produção e do consumo, da higiene e da instrução escolar. (Cf.
TEMPELS, 1949, p. 114). “Mas será isto a civilização?pergunta.
24
Em que pese o título
paradoxal A filosofia banto e nossa missão civilizadora
25
o capítulo convida a uma
mudança de perspectiva:
Se nossa hipótese corresponde à realidade, e nos faz tocar o fundo da alma primitiva,
nós nos veremos obrigados a operar uma revisão de nossas concepções fundamentais
sobre os sujeitos não civilizados; seremos obrigados a corrigir nossa atitude frente
ao seu olhar. (TEMPELS, 1949, p. 111).
26
Entretanto, pode-se interpretar a preocupação de Tempels em tratar certos temas do
âmbito teológico e da moral como indício da busca de uma linguagem e um método
“adaptados” à catequese cristã na África. Ainda que baseado na escuta do africano, no esforço
por compreender suas ideias e crenças e rechaçando todo tipo de ensinamento conceptualista e
abstrato, o expresso desafio de Tempels se coloca em termos de cristianizar a cultura banto
literalmente “com Cristo e em Cristo”.
27
(TEMPELS, 1962, p. 19).
Em Notre rencontre, publicação de 1962 que retoma também alguns pontos de La
philosophie bantoue (1949), Tempels oferece o que se poderia considerar “um resumo de
uma catequese adaptada”:
28
a explicação e a justificativa do trabalho missionário e da
presença do sacerdote católico em África, os mistérios da Trindade, o pecado de Adão e Eva,
a Virgem Maria, José e algumas outras cenas bíblicas. O rol das matérias sugere um
descompasso em relação à sua proposta de escuta do mundo africano.
Em Asúa Altuna podemos identificar, com certa freqüência, a preocupação em
identificar e realçar, na cultura e na religião tradicional bantos, valores do cristianismo. Chega
a afirmar: “Apesar de suas sombras, por vezes bem densas, a Religião Tradicional contém
uma ‘preparação evangélica’ tão notória e vivida que, talvez, seja ela a religião não-cristã
mais próxima da Mensagem de Jesus de Nazaré.” (ASÚA A., 1985, p. 357). Na apresentação
do livro de Asúa, Eduardo André Muaca, arcebispo de Luanda, testemunha tal percepção:
“Lendo o livro do P. Raul Asúa, não podemos deixar de exclamar que a alma banto é
naturalmente cristã.” (In: ASÚA, 1985, p. 7-8).
24
Tradução de: “Mais est-ce la civilization?” (Tradução nossa).
25
Tradução de: La philosophie bantoue et notre mission civilisatrice. (Tradução nossa).
26
Tradução de: Si notre hypothèse correspond à la réalité, et nous fait toucher le fond de l’ame primitive, nous
nous verrons dans l’obligation d’opérer une révision de nos conceptions fondamentales au sujet des non-
civilisés; nous seron obligés de corriger notre attitude à leur égard. (TEMPELS, 1949, p. 111) (Tradução nossa).
27
Tradução livre de: “avec e dans le Christ”. (Tradução nossa).
28
Tradução de: “un resumè d’une catéchèse adaptée”. (Tradução nossa).
50
Daí, talvez, certa insistência no monoteísmo africano (sustentado em Junod, Mbiti,
Schmidt, Kagamé), referindo-se aos nomes africanos de Deus em termos de onisciente,
onipotente, transcendente, criador, espírito, eterno, fiel, misericordioso, justo atributos de
Deus expressos na tradição judaico-cristã. Da identificação brotam a valorização da família e
da procriação; e, paradoxalmente, a perplexidade e o esforço justificatório frente à poligamia,
ao divórcio e à compreensão do celibato voluntário como uma deformação reprovável.
Referindo-se especificamente ao papel ambíguo das escolas implantadas no oeste
africano pela colonização francesa, nas quais estudou, Hampaté tece com maestria um
julgamento geral sobre a colonização:
Um empreendimento de colonização nunca é filantrópico, a não ser em
palavras. Um dos objetivos de toda colonização, sob qualquer céu e em qualquer
época, sempre foi começar por decifrar o território conquistado, porque não se
semeia a contento nem em terreno plantado, nem em alqueive. É preciso primeiro
arrancar do espírito, como se fossem ervas daninhas, valores, costumes e culturas
locais, para poder semear em seu lugar os valores, costumes e cultura do
colonizador, considerados superiores e os únicos válidos. E que melhor maneira de
alcançar este propósito do que a escola? (BÂ, 2003, p. 326-327).
Em acérrimas “notas para a origem da antropologia”, o sociólogo Carlos Serra
29
afirma
que “a antropologia nasce nas colónias para ajudar os colonizados a pagar impostos e a
trabalhar nas plantações”; situa Placide Tempels no quadro geral que “tem vincadamente a
linha hegeliana”; e lembra que “o famoso missionário Henri Junod colecionou primeiro
borboletas antes de se dedicar a colecionar os ‘bantos’ da África Austral, com o mesmo fervor
taxidermista e biologizante”.
Exageros à parte, vale de qualquer forma considerar: ainda que se possa referir às
empresas desses “pioneiros” em termos de uma revolução do olhar e de uma autêntica escuta
do africano, a cultura europeia ainda se coloca, para eles, como um centro de referência. Falta
a voz genuinamente africana.
2.3.2 Vozes africanas sobre o sagrado
Em inícios de 2007, decorrido pouco tempo da morte do historiador burkinês Joseph
Ki-Zerbo, Lopes (2007) referiu-se a ele como a um “baobá” da cultura africana e o situou na
29
Do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane (Maputo, Moçambique). As notas são
datadas de 01/05/2006. Disponível em: http://oficinadesociologia.blogspot.com. Acesso em 12/12/2008.
51
“geração de africanos que utilizando as ferramentas metodológicas das escolas
européias operaram uma ruptura epistemológica profunda nos paradigmas
dominantes e construíram um discurso que permitiu desconstruir o discurso europeu
sobre o Outro que dominou as ciências históricas no período colonial” – geração que
empreendeu “um esforço gigantesco para ressuscitar o imenso e riquíssimo
patrimônio histórico e cultural das sociedades africanas.” (LOPES, 2007).
30
A afirmação, em sua amplitude, permite certamente incluir inúmeras outras vozes
(Hampaté Bâ, Honorat Aguessy, Kwame Anthony Appiah e outras) vozes política e
intelectualmente comprometidas com a luta pela autonomia dos povos africanos e com a
valorização de sua cultura, vozes que fizeram o mundo africano ser academicamente
reconhecido no Ocidente. Esses intelectuais portam em comum a herança tradicional africana;
vêm de dentro do mundo tradicional. Carregam também as influências da academia europeia.
Formam-se nela. Integram seus quadros. Onde quer que tenham atuado, são reconhecidos
como grandes mestres da tradição africana, a qual, como sistema de princípios fundadores da
totalidade da existência, abrange, na diversidade de suas formas históricas, a vida social, a
política, a religião.
Um dos nomes reconhecidamente mais ilustres a encabeçar o rol desses intelectuais
africanos é certamente o de Joseph Ki-Zerbo.
31
Em História da África Negra
32
(1978),
publicada em 1972, Ki-Zerbo mostra uma imagem de África diversa daquela impingida pela
colonização. A obra o consagrou como historiador, além de fazê-lo reiteradamente lembrado
como o primeiro africano a escrever uma história da África Negra. Foi também o primeiro
professor negro a lecionar História na Sorbonne, no final da década de 50, e um dos primeiros
a refutar, em bases acadêmicas, a tese hegeliana de uma África destituída de história.
A respeito de História da África Negra (1978), seu prefaciador, Fernand Braudel,
afirma:
Trata-se de um livro de esperança, tecido com carinho. Compraz-me pensar que a
história recompensará o historiador, que ele terá levado, de um lance, a um
continente inteiro, a uma enorme massa de homens simpáticos, a mensagem, as
palavras de identidade que lhes permitirão viver melhor. Porque, para ter esperança,
para prosseguir na caminhada, é necessário também saber donde se vem.
(BRAUDEL, F. In: KI-ZERBO, 1978, p. 5).
30
In: Cezame n. 2, fev. 2007. Disponível em http://www.proffint.com. Acesso em 23/12/2008.
31
Joseph Ki-Zerbo (1922-2006), filho do primeiro casal cristão do Alto Volta (atual Burkina Fasso), estudou em
escolas de missões católicas e, graças à excelência de seu desempenho escolar, obteve bolsa de estudos para um
curso universitário em Paris. Entre 1949 e 1956, estudou História na Sorbonne, diplomou-se em Ciências
Políticas no Instituto de Ciências Políticas de Paris e doutourou-se em História na Sorbonne. Para maiores
detalhes, cf. a nota biográfica escrita por René Holenstein em: KI-ZERBO, J. Para quando a África? Entrevista
com René Holenstein. Rio de Janeiro: Pallas, 2006, p. 163-170.
32
Tradução do francês Histoire de l’Afrique Noire: d’hier à demain (1972).
52
Na introdução geral ao primeiro volume de História Geral da África
33
(1982),
dedicado a questões metodológicas e à pré-história da África, Ki-Zerbo explicita os quatro
grandes princípios que devem nortear a pesquisa histórica em África: a interdisciplinaridade,
capaz de reunir fontes e métodos diversos; a exigência de que a história africana seja vista do
interior, do polo africano; a obrigatoriedade de abranger os povos africanos em seu conjunto,
como uma história de povos; o interesse maior por civilizações, instituições, estruturas
(técnicas, artes, comércio, forma de poder, cultos, concepções religiosas etc), evitando o
excessivamente fatual. Segundo Ki-Zerbo, ao fim e ao cabo, tratava-se de reescrever a história
da África desfigurada e mutilada pelos séculos de opressão, que projetaram e exacerbaram
uma imagem de miséria e de barbárie –, em busca de uma “consciência autêntica”, de um
“cenário verdadeiro”, de “modificar o discurso”. (Cf. KI-ZERBO, 1982, p. 22).
Seu último livro, Para quando a África? (2006), publicado em 2003, mostra-se um
retrato vivo da África em tempos de mundialização econômica. Nesta obra, particularmente,
sua perspectiva se expressa não apenas no sentido de resgatar o patrimônio histórico e cultural
da África, como também em refundar a história geral dos povos ocidentais a partir da matriz
africana. Assim, interrogado por René Holenstein sobre o princípio da reparação”, em vista
de quem deveria assumir responsabilidades perante a desestabilização deliberada de que foi
vítima o continente africano, particularmente através da instituição da escravatura e do tráfico
de negros, Ki-Zerbo responde:
Quando falo de reparações, não tenho como alvo sobretudo o aspecto econômico, o
aspecto, diria, dos “direitos de créditos especiais”. O que eu peço não é tanto o
reconhecimento do erro que foi cometido contra os negros como negros, mas o erro
cometido contra a espécie humana através dos negros. o creio que haja grupos
humanos que tenham sido mais inferiorizados do que os negros. No dia em que se
reconhecer isso, seremos integrados na espécie humana. o basta dizer
simplesmente: “Sim, são negros, fomos muito severos com eles, batemos demais
nesses pobres negros, temos de pedir desculpas...” A reparação de que falo comporta
várias etapas. É preciso conhecer e reconhecer o que se passou, assumir a
responsabilidade que se teve no que se passou e levar em conta o fato de que nós
próprios, os negros, temos uma responsabilidade neste assunto. (KI-ZERBO, 2006,
p. 32).
Ki-Zerbo tornou-se referência incontestável para os estudos africanos, particularmente
no campo das ciências da História. Sua perspectiva interdisciplinar, juntamente com o
trabalho de outros africanistas e africanos, ao pesquisar novas fontes de conhecimento
33
Ki-Zerbo integrou, a partir de 1965, o Comitê Científico Internacional para a Redação da História Geral da
África, criado pela UNESCO, responsável pela publicação da volumosa História Geral da África projeto,
realizado em oito volumes, do qual Ki-Zerbo assumiu a liderança e do qual coordenou o primeiro volume,
dedicado a questões metodológicas e à pré-história da África.
53
histórico e ao adotar novas perspectivas metodológicas de investigação, desvelou a
importância dos diversos gêneros da tradição oral, dos ritos tradicionais, das concepções
religiosas. Aí, particularmente, reside o interesse do seu legado para o estudo do sagrado
africano.
Somou à brilhante carreira acadêmica, de pesquisador e historiador, a militância política
em prol da independência das colônias e do desenvolvimento endógeno dos povos africanos.
Aliado a outros líderes africanos (Kwame Nkrumah, de Gana, Amílcar Cabral, de Guiné-
Bissau, Patrice Lumumba, do Congo, e outros), comprometeu-se com a luta anticolonialista e,
ao criar o Movimento de Libertação Nacional, esteve no epicentro de diversos movimentos
que lutaram pela independência das colônias
Menos pelos pequenos gestos e atitudes de bom católico que era e, certamente, muito
mais pelo seu engajamento como intelectual e político, Ki-Zerbo encarnou, com sua própria
vida, o sagrado no seu sentido mais profundo, o sagrado presente em qualquer réstia de
humanidade pela opção política em vista de mudar a ordem das coisas, pelo gesto político
como ato de fé, pela busca de não deixar se esvair a “energia vital” africana, pela esperança de
encontrar, como historiador, “em algum lugar sob as cinzas mortas do passado... brasas
impregnadas da luz da ressurreição.” (KI-ZERBO, 1982, p. 42).
Outra importante voz africana que se pode destacar é a do escritor e poeta, historiador
e etnólogo Amadou Hampaté Bâ,
34
um dos maiores especialistas da cultura africana,
particularmente das tradições das savanas. Dedicou boa parte de sua vida, particularmente os
últimos vinte anos, à coleta da tradição oral oeste-africana (contos, mitos, lendas, fábulas,
relatos e genealogias) e à transcrição e descrição de conhecimentos tradicionais, instituições,
costumes, ritos e cosmovisões religiosas. Como membro do conselho executivo da Unesco,
durante a década de 60, fez ouvir seu grito de alerta em favor do patrimônio cultural e
espiritual africano. Defendeu como Ki-Zerbo e outros o reconhecimento da oralidade
como fonte de conhecimento histórico. Apontou a urgência de reunir os testemunhos e
ensinamentos dos tradicionalistas africanos.
35
Ao alerta se associa seu conhecido asserto: “Na
África, quando morre um ancião, é uma biblioteca que se queima.”
34
Amadou Hampaté (1900-1991), filho de aristocrática família ‘peulde Bandiagara (Mali), de formação
islâmica, integrou a primeira geração de africanos da antiga colônia francesa do Alto-Senegal-e-Níger com
formação européia. [Observação: O nome Alto-Senegal-e-Niger data do estabelecimento da colônia, em 1904.
Depois, a partir de 1920, a colônia divide-se em Sudão Francês (atual Mali) e Alto Volta (atual Burkina Fasso)].
Hampaté foi pesquisador do Institut Français d’Afrique Noire, em Dakar, a partir de 1942. Com Ki-Zerbo e
uma grande equipe de pesquisadores, em sua maioria africanos, Hampaté fez parte do comitê científico da
Unesco para a redação de uma História Geral da África (1982).
35
Trata-se de um tipo particular de ofício tradicional, uma espécie de historiador da tradição oral, com sua
correspondente iniciação e seus misteres próprios. (Cf. BÂ, 1982, p. 208-212).
54
Em A tradição viva (História Geral da África, 1982, p. 181-218), capítulo de
especial interesse para uma compreensão adequada da tradição oral, justamente porque
produzido por alguém “de dentro” da tradição, Hampaté Bâ explica que, nas sociedades
tradicionais africanas, existe forte ligação entre o homem e a palavra. O homem é a palavra
que profere. A coesão social repousa no valor e no respeito pela palavra. A palavra falada
possui valor moral e caráter sagrado, devido à sua origem divina e às forças ocultas nela
depositadas. A fala entende-se como dom do Ser-um, o Vazio-vivo primordial.
36
Materializa
as vibrações das forças vitais. No universo tudo fala explica o autor. A fala pode ser vista,
ouvida, cheirada, saboreada, tocada. A tradição oral, que se constrói sobre tal concepção da
palavra como sacralidade, não se limita ao corpus de histórias e lendas ou de relatos
mitológicos e históricos. Trata-se, sim, de histórias, mitos e lendas, que se tornam
conhecimento vivo e de enorme eficácia pedagógica na vida das comunidades, abrangendo a
totalidade de sua existência. Diz o autor: “[A tradição oral] é ao mesmo tempo religião,
conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e recreação.” (BÂ,
1982, p. 183). “Na tradição africana, a fala, que tira do sagrado o seu poder criador e
operativo, encontra-se em relação direta com a conservação ou com a ruptura da harmonia no
homem e no mundo que o cerca.” (BÂ, 1982, p. 186).
Ainda que provenientes das mãos de um intelectual e especialista, seus escritos sobre
as tradições orais, quer na forma de relatos, quer na forma de registros etnográficos, esbanjam
a vitalidade da boa narrativa. Assim, por exemplo, em Amkoullel, o menino fula (2003), a
cosmovisão e os ritos religiosos transbordam em riqueza de detalhes e significações: Kadidja,
mãe de Amadou, consulta uma velha e respeitada marabu, conhecedora das ciências islâmicas
tradicionais, antes de empreender a busca pelo paradeiro de seu marido, preso pelos franceses.
(Cf. BÂ, 2003, p. 79-80). A descrição minuciosa dos ritos e festividades em torno da
cerimônia de circuncisão de Hammadoun, irmão de Amadou, ocupa várias páginas. (Cf. BÂ,
2003, p. 191-199). Outros elementos religiosos aparecem cada página, na fluência e
simplicidade próprias dos contadores de história: a descrição da saída do deus Komo,
37
com
sua máscara sagrada, para saudar o nascimento de uma criança. (Cf. BÂ, 2003, p. 122-125) ; a
identidade e a tolerância religiosa entre o islã e a religião tradicional; uma cerimônia de
entrada no islamismo. (Cf. BÂ, 2003, p. 135). Os exemplos são sem conta.
36
Expressões tiradas do mito bambara da criação. (Anotado por BÂ, 1982, p. 184).
37
Conforme explica Hampaté Bâ (2008, p. 121), “Komo é uma antiga sociedade religiosa bambara, reservada
aos adultos, e cujo deus, representado por uma máscara sagrada, também se chama Komo”.
55
Em seus escritos, em geral, ao lado de informações históricas e da descrição de
costumes, revela-se a intromissão’ de um narrador/autor que comenta e participa da
narrativa, fazendo-se expressamente personagem dela. Tais marcas textuais constroem
interessante ausência de limites entre a escrita literária e a pesquisa etnográfica. Se, conforme
Hampaté Bâ, qualquer tentativa de se conhecer a história e o espírito dos povos africanos deve
se apoiar na herança da tradição oral, ele mesmo se destaca, na cadeia de sua transmissão,
como uma referência das mais importantes.
Outro nome que não se pode olvidar, em prol de uma melhor compreensão do mundo
africano, é o de Honorat Aguessy.
38
Em Visões e percepções tradicionais (Introdução à
cultura africana,
39
1977), Aguessy oferece o que se pode considerar uma verdadeira síntese
acerca da cultura africana. Segundo ele, a Europa construíra algumas “visões e percepções”
sobre o continente africano, que se constituíram em edifício de característicos preconceitos:
pensar que as sociedades não europeias nunca tivessem ideias similares às dos europeus;
pensar que as similaridades advinham sempre de influência europeia. Na busca por definir o
proprium africanum, em comparação aos procedimentos e preconceitos europeus na
abordagem da cultura africana, e, por vezes, refutar aqueles preconceitos, o autor aponta,
entre outros aspectos, o caráter ‘diverso’ dessa cultura. Sem dúvida, o deslocamento do
escrito para o oral, além de outros elementos, aparece como marca comum, unitária, às
diversas sociedades africanas. Há, no entanto, um conjunto de variáveis que definem a
diversidade do proprium africanum: as influências físicas e ecológicas sobre as modalidades
de povoamento, de comunicação e de modo de pensar; a ‘dimensão’ e a ‘extensão’ das
sociedades (grupos mais isolados, grupos de múltiplos contatos); a mentalidade resultante da
história específica de cada uma das sociedades africanas.
Em relação aos estudos europeus acerca da cultura africana (Griaule, Tempels, Lévy-
Bruhl, Louis-Vincent Thomas, Janheinz Jahn et alii), particularmente no que diz respeito à
importância dada aos “princípios africanos” de vida, força e unidade, Aguessy questiona:
Como avaliar a exatidão, em todos os níveis, das teorias européias? Qual seu grau de
importância ou de ‘esterilidade’ para a cultura africana? Como explicar as correlações
arbitrárias entre a concepção africana e um sistema ocidental predileto? Acerca da
38
Honorat Aguessy, de Benin, doutor em Sociologia e em Letras e Ciências pela Sorbonne, fundador no seu país
do Instituto de Desenvolvimento e Intercâmbio Indígena, tornou-se mundialmente conhecido por suas pesquisas
em torno das questões que abrangem a relação entre cultura tradicional e biodiversidade. Sua marcante presença
em eventos internacionais que discutem os temas da agrobiodiversidade atesta o relevo de suas investigações.
39
AGUESSY, H. Visões e percepções tradicionais. In: AGUESSY, H. et alii. Introdução à cultura africana.
Lisboa: Edições 70, s.d. [©Unesco, 1977], p. 95-135. Este livro concretiza uma decisão da 18ª Seção da
Conferência Geral da Unesco, de publicar uma introdução à cultura africana destinada ao grande público,
abarcando valores literários, artísticos e culturais da África tradicional e moderna.
56
controvérsia entre europeus para saber se existe ou não uma ‘filosofia’ em África (Janheinz
Jahn, Griaule e Tempels versus Thomas), Aguessy afirma: As controvérsias europeias sobre
África não têm efeito sobre as culturas africanas; as declarações de um investigador sobre o
caráter ‘filosófico’ da cultura africana não põem em evidência o estatuto das culturas
tradicionais africanas; as declarações de que o pensamento africano é desprovido de síntese e
de abstração não farão desaparecer os valores produzidos e renovados pelo espírito africano; o
alto nível de uma cultura não se pode demonstrar apenas pela abstração e pela lógica; a
filosofia, por sua vez, tem origem não numa ordem lógica, mas também no delírio. (Cf.
AGUESSY, H. 1977, p. 101-103).
Contra a concepção fixista de tradição, geralmente presente nas leituras européias sobre
África, o autor mostra que a tradição não é a repetição das mesmas seqüências, não é um
estágio imóvel da cultura que se transmite de geração em geração. A tradição é sinônimo de
atividade. Resume Aguessy: “A cultura tradicional faz-se, desfaz-se, refaz-se.” (1977, p. 112).
Ao analisar os domínios do proprium cultural africano, Aguessy destaca o lugar
preponderante da religião. “A religião africana é, em certo sentido, o efeito e a origem da
civilização da oralidade.” (1977, p. 124). No domínio religioso, a iniciação, com seus ritos
próprios, desempenha papel fundamental enquanto instituição que se incumbe de informar e
formar o indivíduo. Nesse domínio, destaca-se o mito, como “o discurso fundamental em que
se baseiam todas as justificações da ordem e da contra-ordem sociais”. (1977 p. 128). A
narrativa mítica distingue-se de outras categorias de narrativas pelo seu caráter fundador e
doador de sentido às realidades cotidianas, por sua expressiva ligação com o domínio
religioso e por um tipo de linguagem ‘em aberto’ que obriga a sua atualização.
A concepção de sagrado que envolve a palavra, no contexto da cultura
predominantemente oral, garantiu que as aquisições culturais africanas não sofressem perdas e
degradações rápidas. No marco do sagrado, operou-se, segundo o autor, a fixação necessária
das normas e cosmovisões que regem a vida social. Afirma expressamente o autor:
Posto que a linguagem está constantemente ameaçada pelo risco de dizer, redizer e
contradizer e visto que toda comunidade necessita de um mínimo de estabilidade e
da exigência de um quadro normativo, as religiões africanas funcionaram, no marco
da cultura, como campo de referência quanto às normas, às idéias coletivas e aos
ideais, estabilizando os valores veiculados pela linguagem. (AGUESSY, 2002).
40
40
Tradução nossa de: “Puesto que el lenguaje está constantemente amenazado por el riesgo de decir, redecir y
contradecir y visto que toda comunidad necesita um mínimo de estabilidad y la exigencia de um cuadro
normativo, las religiones africanas funcionaron, en el marco de la cultura, como campo de referencia en cuanto a
las normas, las ideas colectivas y los ideales estabilizando los valores vehiculados por el lenguaje.” (AGUESSY,
2002).(Observação: A citação foi extraída da terceira parte do documento, que não traz indicação de página).
Disponível em http://amazonlink.org
. Acesso em: 22/11/2008.
57
A religião africana não é simples mística. Funda “cientificamente” e funda-se em
aspectos botânicos, zoológicos, biológicos, matemáticos, artísticos, humanos enfim. Significa,
ao mesmo tempo, o domínio do meio ambiente e o respeito que a ele se deve. Todo o
processo pedagógico e de domínio de conhecimentos, na cultura tradicional africana, se
sustenta sobre o mesmo marco da cultura oral e da religião. Para Aguessy,
É neste marco da precariedade da cultura baseada na oralidade e da preciosa garantia
e proteção que lhe aporta a religião, que se compreende a densidade da educação e
da formação das sucessivas gerações: graças aos grupos de iniciação, ao conteúdo
extensivo do campo dos conhecimentos, ao lugar da palavra, à concepção do mundo
dos espíritos, dos ancestrais e das divindades (ou mensageiros divinos), à
importância do ritual, ao lugar das proibições, ao significado “numinoso” do
psiquismo humano, ao “status” de todo defunto... (AGUESSY, 2002).
41
Em suas pesquisas em torno das questões que abrangem a relação entre cultura
tradicional e biodiversidade, Aguessy afirma que a religião tradicional africana pode oferecer
importante orientação aos estudos sobre o assunto. Frente ao caráter holístico da
biodiversidade, as práticas tradicionais, alicerçadas sobre o fator religioso, iluminam as
práticas ecológicas e as reflexões com seu foco cosmoteântrico, isto é, um foco que integra,
em qualquer circunstância, o cósmico, o divino, o humano.
2.3.3 Há um proprium africanum relativamente ao sagrado?
Quando se fala de cultura africana ou de tradição africana, não se deve generalizar. O
alerta vem de ninguém menos que Hampaté Bâ, um dos maiores especialistas da tradição
africana. Seria de fato um erro grosseiro imaginar uma unidade africana, sem levar em
consideração as variações presentes nas diversas regiões e nas diversas etnias africanas. Não
uma África, não há um homem africano, lembra aquele autor.
41
Tradução livre de: “Es en este marco de la precariedad de la cultura basada en la oralidad y de la preciosa
garantía y protección que le aporta la religión, que se comprende la densidad de la educación y de la formación
de las generaciones sucesivas gracias a los grupos de iniciación, el contenido extensivo del campo de los
conocimientos, la posición de la palabra, la concepción del mundo de los espíritus, los ancestros y las
divinidades (o mensajeros divinos), la importancia del ritual, el lugar de las prohibiciones, el significado
“numineux” del psiquismo humano, el “status” de todo muerto...” (AGUESSY, 2002). (Tradução nossa. A
citação foi extraída da terceira parte do documento, que não traz indicação de página). Disponível em
http://amazonlink.org
. Acesso em: 22/11/2008.
58
Ocupando lugar preponderante na cultura africana, em comparação com os domínios
dos jogos, das artes, da sabedoria dos provérbios, a religião, também ela, não pode ser
compreendida na perspectiva de uma cosmovisão unitária. Existem, certamente, na cultura
africana em geral e na religião em particular elementos que se apresentam com certa
constância: a presença do sagrado em todas as coisas (não se deve confundir com panteísmo),
a relação harmônica entre a arquitetônica do mundo visível e a do invisível, a relação
dinâmica entre os vivos e os mortos, o acesso às sucessivas etapas do amadurecimento técnico
e humano baseado nos processos pedagógicos de afiliação e de iniciação, a construção
identitária alicerçada sobre o sentido do comunitário. Isto não significa, entretanto, que as
divindades, a linguagem religiosa, os interditos, os costumes sociais decorrentes dessas
proibições sejam os mesmos. Assim, por exemplo, a organização arquitetônica do panteão
vodun no Daomé (atual Benim), com suas divindades e sua dinâmica, pouco tem a ver, na sua
linguagem própria, com as manifestações religiosas tradicionais do sul de Moçambique. As
diferenças não se explicam apenas pela distância geográfica. Algumas vezes, as variações
podem ocorrer de aldeia para aldeia, dentro de uma mesma etnia.
42
Honorat Aguessy lembra que as sociedades africanas “movem-se num quadro
dinâmico, onde a migração dos grupos constitui simultaneamente uma metáfora e uma
metonímia significativas”. (AGUESSY, 1977, p. 106). Neste sentido, o que se costuma
caracterizar como “religião tradicional” diz respeito não a um elemento puro e identitário da
“africanidade”, mas resulta de processos de enriquecimentos recíprocos e dialéticos entre as
sociedades africanas. Vale lembrar ainda os seculares processos de islamização e de
cristianização que marcaram a história do continente africano. Hampaté Bâ, em suas
memórias, refere as relações de boa vizinhança entre a religião muçulmana e as práticas
tradicionais do ambiente bambara.
43
Em suas pesquisas sobre religião banto, Placide Tempels
observava que muitos elementos que ele apresentava como parte da religião tradicional
não se encontravam, de fato, senão de modo muito descaracterizado em certos ambientes
urbanos.
Em que pese o esforço de Asúa Altuna em afirmar a “unidade fundamental” da religião
tradicional banto, ou mesmo que se leve em consideração a exigência do Colóquio de
42
Sobre a questão da diversidade dos povos da África e suas culturas, cf. Appiah (1997), particularmente o
capítulo inicial intitulado A invenção da África (p. 19-51).
43
Para os muçulmanos que viviam na região bambara, conta Hampaté Bâ, havia uma afiliação formal à religião
tradicional do Komo, a fim de que não ficassem isolados da comunidade. Os muçulmanos “eram dispensados de
sacrificar às imagens, não comiam os alimentos dos sacrifícios, não bebiam álcool e não assistiam às cerimônias,
mas ao menos também não eram obrigados a se fechar durante as saídas do Komo.” (BÂ, 2008, p. 135).
59
Cotonou
44
de se ater à nomenclatura ‘religião africana tradicional’, seria ingênuo pensar uma
religião africana, como se houvesse uma única ‘africanidade’. Ainda que se possam apontar
elementos constantes na variação das sacralidades que se documentam em África, o que
encontramos são necessariamente ‘mesclas’, resultado dinâmico de contatos interculturais que
um estudo mais detalhado da história do continente africano torna evidente.
Outro elemento, que exige tratamento menos reducionista, se se busca compreender
com mais adequação a cultura africana, diz respeito à oralidade. Hampaté lembra que
tradição, em relação à história africana, refere-se à tradição oral; afirma que qualquer tentativa
de conhecer a história e o espírito dos povos africanos deve se apoiar nessa herança. (Cf. BÂ,
1982, p. 181-183).
Graças à etnologia moderna e a outros esforços de pesquisa e divulgação da cultura
africana, começou a desmoronar, há algumas décadas, o conceito hegeliano, amplamente
difundido e tornado senso comum, segundo o qual povos sem escrita eram povos sem história
e sem cultura. Esse conceito, infundado, provinha obviamente de culturas onde a escrita e o
livro constituíam importante veículo de herança cultural. Essas culturas não concederam
enorme confiança à escrita, como levantaram o problema da validade dos testemunhos
baseados na oralidade. Hampaté Bâ responde à questão afirmando que nada prova a priori ser
o relato escrito mais fidedigno que o oral. Aliás, a escrita não nasce da oralidade,
cristalizando as tradições, como a não suplanta nem elimina. Vale lembrar que boa parcela
das nossas comunicações cotidianas, mesmo longe de ambientes tradicionais, se organizam no
âmbito da oralidade.
Ana Mafalda Leite (1998) discute uma série de preconceitos que é preciso evitar
relacionados à oralidade, presentes no discurso crítico sobre a literatura africana. Um dos mais
freqüentes diz respeito à dicotomia entre escrita e oralidade, correlacionando-se aquela a uma
‘essência’ europeia, e esta a uma ‘natureza’ africana. Conforme Aguessy (1977, p. 108), um
aspecto de particular importância, em relação à oralidade, diz respeito ao fato de ser ela uma
característica dominante, mas não exclusiva, do campo cultural africano. Em que pesem as
objeções – falta de acordo em integrar o Egito antigo na área cultural tradicional da África, as
influências do Islão para explicar o vigor intelectual de Tombuctu, as influências cristãs para
ratificar o nome de grandes doutores africanos, como Tertuliano, Orígenes e Agostinho –,
44
O Colóquio de Abidjan (1961), decidiu chamar às religiões tradicionais africanas “Religiões Tradicionais” ou
“Religião Africana”; e o Colóquio de Cotonou (de 1970) pediu que todos se ativessem à expressão “Religião
Africana Tradicional”, ou expressão equivalente, repelindo “termos depreciativos e sem fundamento, tais como
animismo, paganismo, feiticismo, ancestrismo, manismo, superstição, etc que serviram para identificar a religião
africana”. Colloque de Cotonou, 1970. Les Religions Africaines comme source de valeurs de civilization, p. 401.
Apud ASÚA A., 1985, p. 369.
60
“houve numerosos pensadores africanos que desenvolveram por escrito e durante séculos os
valores produzidos pela sociedade e os frutos das suas próprias inspirações e elaborações”.
(AGUESSY, 1977, p. 111).
Vale responder às objeções, com Aguessy, nestes termos: nenhuma cultura se
desenvolve e se expande de maneira autárquica; a síntese cultural, as simbioses, as mesclas
não são mera cópia ou repetição de outra cultura. E ainda que não tivesse existido a
Universidade de Tombuctu, ou que olvidássemos os doutores cristãos da África mediterrânea,
ainda assim teríamos que reconhecer: a oralidade não é a hipotética incapacidade do uso da
escrita. Lembra Aguessy que, mesmo conhecendo a escrita, muitas sociedades africanas não a
usaram, entretanto, do mesmo modo que outras culturas. A oralidade, em sua particular
correlação com a cosmovisão religiosa tradicional, apresenta-se, a um só tempo, efeito e causa
de certo modo de ser ‘africano’, definindo relações sociais, estratificações e diferenças
sociais, detenção da palavra, autoridade, iniciação e conhecimentos tradicionais. (Cf.
AGUESSY, 1977, passim p. 108-112).
Um terceiro aspecto a se considerar em relação ao proprium africanum envolve as
correlações entre política e questões culturais. Bastaria o exemplo de Ki-Zerbo – nas palavras
de Holenstein, “o intelectual africano que melhor conseguiu associar ciência e ação política” –
para compreendermos a imbricação dos campos político e cultural. Conforme palavras de
Jacqueline Ki-Zerbo, sua mulher: “Dizem que Joseph teria podido desempenhar outro papel
se não se tivesse metido na política. Mas não podia. Todas as suas análises levaram-no a
tomar posição contra o que observava. É precisamente o prolongamento do intelectual que
investe na política para alterar a ordem das coisas.”
45
Nos prolegômenos de Introdução à cultura africana (1982), Alpha Sow reclama da
falta de participação dos intelectuais africanos nos debates ideológicos sobre a cultura de seus
próprios povos. Tece um rol de perguntas que apontam a dimensão política que envolve as
questões culturais. Uma pergunta, em particular, revela a agudeza do problema: “Devemos
nos perguntar se a soberania nacional tem libertado e dado força às culturas que anteriormente
as potências coloniais haviam sufocado ou desfigurado. Gostaríamos de saber se a cultura do
povo, ontem ignorada, pode hoje florescer.” (SOW, 1982, p. 10).
46
45
Da nota biográfica elaborada por René Holestein. In: KI-ZERBO, 2006, p. 170.
46
Tradução nossa de: “Debemos preguntarnos si la soberanía nacional ha liberado y potenciado a las culturas
que anteriormente las potencias coloniales habían sofocado o desfigurado. Nos gustaria saber si la cultura del
pueblo, ayer rechazada o ignorada, puede florecer hoy.” (SOW, 1982, p. 10).
61
Para os ocidentais, em geral, as polarizações de caráter ideológico parecem ter sido
superadas, particularmente depois da queda dos regimes socialistas do leste europeu. Fala-se
mesmo de uma era ‘pós-ideológica’. Contudo, ainda que se pudesse transitar num mundo sem
ideologias, este universo, de qualquer modo, não seria a África. Assim, por exemplo, não é
possível pensar a literatura africana moderna – aquela que nasce a partir da entrada de
europeus no continente, que utiliza a língua do colonizador sem referir seu engajamento
político em prol das lutas de independência, da busca de uma identidade negro-africana, do
desenvolvimento endógeno. Algumas décadas depois das independências, os diversos
projetos literários africanos arrefeceram, obviamente, suas marcas de luta anti-colonial. As
guerras civis, as gestões pós-coloniais, a pobreza, a falta de rumos, a exclusão dos processos
de mundialização econômica para boa parcela das sociedades africanas continuam, no
entanto, a imprimir suas marcas na cultura africana mais recente.
Em Mia Couto, particularmente, a construção do discurso literário é marcada pela
referência à colonização, à independência tardia, à desorganização política, à falta de
liberdades, ao racismo, à agonia das tradições. Tais marcas, ainda que ficcionais, expressam o
diálogo com o contexto moçambicano e africano em geral sempre presentes em sua obra. No
bojo dessa linguagem, as incontáveis referências ao sagrado fazem parte do diálogo efetivo
que sua literatura realiza com as diferentes tradições do seu país e com os processos de
releitura da colonização na África e das conseqüências deixadas por ela em diferentes partes
do continente.
Uma última consideração relativamente ao proprium africanum propõe que seja
evitado, para fins de caracterizar adequadamente a cultura africana, o costumeiro confronto
Europa versus África. Repetiu-se, em momentos e circunstâncias diversos, que a emoção é
negra e a razão, branca; ou que a razão negra é intuitiva, enquanto a branca é analítica; que a
oralidade é africana e a escrita, europeia; que o ritmo é de África e a melodia, ocidental; ou
ainda que dançar é uma recreação tipicamente africana, em contraposição a ler, ler
solitariamente, como algo característico de Paris ou Londres.
47
Esse tipo de confronto revela duas atitudes opostas: uma, herdeira da antropologia
vitoriana, coloca a cultura africana no lugar da primitividade, em contraposição à civilizada
Europa; outra, a considera exemplar, ou mesmo superior, em relação ao mundo europeu.
Certamente, podem-se estabelecer paralelos e comparações, em vista de construir
algum perfil da cultura africana, baseado em elementos que se revelam constantes. Contudo,
47
Cf., v.g., COETZEE, 2004, p. 47.
62
estabelecer a bipolaridade extrema entre o ocidente industrial e a África tradicional significa
colocar mal o problema como se Europa fosse a cristalização da modernidade e África, a
essência da tradição; como se Europa ou África tivessem uma essência identitária ‘pura’, sem
mesclas de qualquer espécie. Vale, para rechaçar as costumeiras polarizações, o alerta que
Ana M. Leite (1998, p. 23) faz para o âmbito da literatura: Insistir numa visão monolítica e
indiferenciada de uma estética africana é uma forma também de negar a heterogeneidade e
complexidade do universo cultural africano.”
Evitar o confronto Europa versus África coloca-se como exigência também para o
âmbito da religião e do sagrado. Seria um absurdo imaginar que a escola sociológica de
Durkheim não pudesse oferecer qualquer contribuição para o estudo das religiões africanas.
Griaule prova o contrário. Seria absurdo pensar que a taxonomia das sacralidades sugerida por
Eliade não pudesse servir para organizar documentos sagrados de África; ou que a
cosmovisão religiosa de Rudolf Otto não tivesse elementos em comum com concepções
africanas acerca de Deus. Revelaria falta de senso acadêmico destituir de todo valor as
contribuições de Junod, Kagamé, Griaule, Tempels e outros ainda que europeus, filhos de
europeus ou africanos assimilados para o conhecimento dos mundos africanos. Seria
igualmente um absurdo, no outro extremo, pensar que opold Senghor, Ki-Zerbo, Hampaté
Bâ, Honorat Aguessy, Kwame Appiah e tantos outros teóricos africanos nada tivessem a dizer
de interesse para o ocidente.
No lugar da polarização, melhor seria reconhecer que as pesquisas e reflexões teóricas
sobre a cultura africana e, dentro dela, sobre o fato religioso, constituem uma edificação em
simultâneo, com a contribuição de africanos e europeus – edifício ainda inacabado, que
continua em obras igualmente na África e na Europa.
63
3 DEUS E OS DEUSES
Olhe para esses velhos, inspetor. Eles estão todos morrendo.
Estes velhos não são apenas pessoas. São guardiões de um mundo.
É todo esse mundo que está sendo morto. O verdadeiro crime que está
a ser cometido aqui é que estão a matar o antigamente.
(Falas da enfermeira, Marta, personagem de
A varanda do frangipani, de Mia Couto).
O capítulo anterior pretendeu construir um percurso que se estende metonimicamente
da concepção hegeliana de uma África alienada da autoconsciência histórica à rejeição de tal
tese, no trabalho do historiador burkinense Joseph Ki-Zerbo. Hegel propôs, no seu tempo,
uma concepção de história que atribuía aos povos africanos a condição essencial de
destituídos de história e fechados em si mesmos. Um século e meio depois, em bases
acadêmicas, Ki-Zerbo refutará tal tese. Entre um extremo e outro, nosso percurso apresentou e
contrapôs diferentes olhares sobre a religião “arcaica” e, mais particularmente, sobre o mundo
africano e suas religiões. Esse panorama foi construído com o particular intento de mapear
elementos que pudessem subsidiar a leitura crítica da obra de Mia Couto, que ressalta, em
seus textos, o envolvimento com a linguagem do sagrado.
A partir deste capítulo, pretendemos nos deter em algumas características da construção
literária de Mia Couto, destacando a sua relação com o mundo das sacralidades. Sem grandes
riscos de pecar por exagero, pode-se afirmar que as sacralidades aparecem a cada página dos
romances do escritor moçambicano. Os exemplos que serão arrolados neste e nos próximos
capítulos não esgotam, certamente, a abundância, a heterogeneidade e a diversidade de
“funções” com que as hierofanias aparecem nos romances de Mia Couto. A expressão “Deus
e os deuses”
48
que intitula este capítulo quer sugerir tal riqueza e diversidade, além de
apontar metonimicamente o âmbito das sacralidades, quer europeias, quer africanas, quer suas
mesclas.
Abramos, por exemplo, o romance Terra sonâmbula (2007). A cada passo da leitura,
deparamo-nos com o insólito, o maravilhoso, o fascinante, o mítico, visões e concepções
48
“Deus e os deuses” é também o título do capítulo 6 de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra
(2003). O capítulo do romance dedica-se a, entre outras coisas, caracterizar a personagem de padre Nunes.
Explica também alguns costumes e crenças africanas. O título sugere a mescla dos dois universos culturais.
64
características do universo religioso. Sejam palmeiras que produzem “frutos muito sagrados”,
nascendo num mar ressecado que volta a se encher, e tudo inunda; seja a volta, às escondidas,
do falecido pai de Kindzu à sua casinha solitária, para comer a comida que lhe é
diariamente oferecida. Guerreiros da justiça, os naparanas, abençoados por feiticeiros,
carregam nos braços panos vermelhos e pulseiras, capazes de protegê-los contra balas.
Perseguido pelo espírito do pai e castigado pelo mau-olhado, Kindzu seus remos deixando
pegadas na água. O pai de Kindzu, defunto desconsolado, reclama com o filho porque
ninguém lhe presta cerimônias, não lhe mata a galinha, não lhe oferece farinha, panos ou
bebidas; e acusa: “Deixaste a casa, abandonaste a árvore sagrada. Partiste sem me rezares.”
(TS, 2007, p. 44). No fragor de uma tempestade, o concho de Kindzu é invadido por “um
tchóti, um desses anões que descem do céu”. (TS, 2007, p. 59). Um velho aldeão, guardião
dos restolhos de vida de sua comunidade, no rito de inscrição de seu nome numa árvore,
transforma-se em semente e refunda a vida em sua aldeia. Um grupo de idosas, em secreta e
sagrada cerimônia para esconjurar gafanhotos, “violenta” ritualmente um rapaz. Vejamos um
trecho da cena:
Uma por uma, todas restantes vão tirando as roupas, trapos e sacos com que se
cobriam. Estão nuas, dançando frenéticas à sua volta. A mais idosa mais avanço a
seus intentos, puxando as íntimas partes do rapaz, abraçada como se lhe quisesse
arrancar a alma. [...] A primeira se sacia, abusa e lambuza. Depois, as outras se
seguem, num amontoado de corpos, gorduras e pernas. (TS, 2007, p. 101).
O ritual, chamado m’belele,
49
produz, no romance, diferentes efeitos de sentido no
campo das sacralidades. Tanto pode aludir à sedução dos chicuembo, espíritos perversos
causadores de secura, no sentido de afastá-los, ou à invocação dos espíritos benfazejos que
salvarão a aldeia da praga e da fome, quanto se mostrar como uma cerimônia que reintroduz
no corpo das “velhas profanadoras” a chama sagrada da vida que habita o corpo do jovem. Se
se tomar o corpo das velhas como uma metonímia da terra ressequida, os sentidos ritualísticos
tensionarão a mesma ideia de profanação. Quem é profanado? Os ritos tradicionais? O rapaz?
A terra? A jovem nação?
Ainda, no campo das sacralidades, é importante destacar o episódio em que um
homem, nascido dos amores vividos nas águas, começa a cavar um rio, capaz de limpar a terra
e servir de fronteira para a guerra e a morte. E muito mais: aves com poderes mágicos,
barcos espiritados, fantasmas, psipocos.
49
Sobre o ritual do m’belele, cf. Cipire, 1992, p. 20. Cf. também Fonseca; Cury, 2008, p. 76-78.
65
Com tal gama de exemplos, introduzimos uma primeira categoria analítica de
importância para a reflexão que se elabora neste capítulo: a das “sacralidades”, ou das
“hierofanias”, ou dos “documentos religiosos”.
A categoria das sacralidades diz respeito ao universo das “coisas” objetos, pessoas,
eventos que, por circunstâncias específicas e diversas, constituem o círculo do sagrado, ora
porque penetram e participam desse âmbito, ora simplesmente porque se separam, se
distanciam e se opõem ao profano. Tal categoria abarca, em geral, ritos e sacrifícios, mitos e
lendas de caráter religioso, deuses, demônios, espíritos, a relação entre o mundo dos vivos e o
dos mortos, plantas, animais, minerais e objetos sagrados, mas também padres, pastores,
feiticeiros, chefes e outras pessoas marcadas pela consagração religiosa. Ainda se consideram
os lugares e tempos sacralizados.
Pode-se inferir que o uso do adjetivo “sagrado” e seus correlatos: sacral, sacralizado,
consagrado, religioso –, para caracterizar o que se quer discutir no campo das sacralidades,
apenas indicia a dificuldade maior de se definir tal âmbito. Essa dificuldade marcou o debate
sobre o fenômeno religioso durante pelos menos cinco décadas, do final do século XIX a
meados do século XX.
A categoria das sacralidades, aqui proposta, sustenta-se com a perspectiva teórica de
Émile Durkheim (1858-1917) e Mircea Eliade (1907-1986). Dois aspectos, partilhados por
ambos os teóricos, podem ser considerados relevantes para configurar certo olhar sobre a
categoria das sacralidades, de interesse para nossa leitura do mundo africano e suas religiões:
a distinção fundamental entre o sagrado e o profano; e a afirmação da mobilidade dos limites
do âmbito do sagrado.
Nos capítulos iniciais de As formas elementares da vida religiosa (1989),
50
Durkheim coloca-se o problema metodológico da conceituação dos fenômenos religiosos.
Estes se ordenam, segundo ele, nas categorias fundamentais das crenças e dos ritos.
Caracterizando-se como modos de ação determinados, os ritos distinguem-se, no entanto, de
outras práticas humanas, pela referência a um objeto de natureza especial expresso na crença.
Durkheim introduz, assim, como traço distintivo do pensamento religioso, a conhecida
divisão do mundo nos domínios do sagrado e do profano. Afirma o autor:
Todas as crenças religiosas conhecidas, sejam elas simples ou complexas,
apresentam um mesmo caráter comum: supõem uma classificação das coisas, reais
50
Tradução de Les formes élémentaires de la vie religieuse, publicado em 1912. No livro, Durkheim aplica-se
ao tema, para ele central, do totemismo como religião elementar. A obra é considerada a primeira abordagem
sistemática acerca da distinção entre o sagrado e o profano.
66
ou ideais, que os homens representam, em duas classes ou em dois gêneros opostos,
designados geralmente por dois termos distintos traduzidos, relativamente bem,
pelas palavras profano e sagrado. (DURKHEIM, 1989, p. 68).
Na caracterização distintiva dos domínios do sagrado e do profano, Durkheim refere-se
a uma heterogeneidade absoluta entre “dois mundos entre os quais não há nada em comum” –
“gêneros opostos”, marcados por “naturezas distintas”, “dualidade essencial”, não apenas
“separados”, mas “hostis e rivais um do outro”. Enfim, “a coisa sagrada é, por excelência,
aquela que o profano não deve, não pode impunemente tocar”. (DURKHEIM, 1989, passim p.
70-72). Contudo, no mesmo texto, reconhece a possibilidade de relacionamento entre os dois
mundos. Daí, explicita um “critério” para definir as crenças religiosas:
As coisas sagradas são aquelas que os interditos protegem e isolam; as coisas
profanas, aquelas às quais esses interditos se aplicam e que devem permanecer à
distância das primeiras. As crenças religiosas são representações que exprimem a
natureza das coisas sagradas e as relações que essas mantêm entre si e com as coisas
profanas. Enfim, os ritos são regras de comportamento que prescrevem como o
homem deve se comportar com as coisas sagradas. (DURKHEIM, 1989, p. 72).
Apontando, com alguns exemplos, possíveis dificuldades relativas à delimitação do conceito
de sagrado, pondera que “o círculo dos objetos sagrados não pode (...) ser determinado de
uma vez por todas; sua extensão é infinitamente variável conforme as religiões”.
(DURKHEIM, 1989, p. 68).
A discussão acerca da distinção entre o campo do sagrado e o do profano poderá ser
encontrada, enriquecida por outras perspectivas e ainda mais elaborada, três ou quatro
décadas mais tarde, em Mircea Eliade. Para o autor, a distinção durkheimiana entre sagrado e
profano, aceita por ele, ainda que sirva para definir conceitualmente duas diferentes
modalidades de experiência humana no cosmos, não se aplica, entretanto, à “complexidade
labiríntica dos fatos”. Eliade toma de empréstimo a Roger Caillois (1988, p. 15) a constatação
de que “assim que se tenta precisar a natureza e os modos desta oposição [entre sagrado e
profano], tropeça-se nos mais graves obstáculos”. A dificuldade advém deste fato: quaisquer
que sejam as sacralidades ou hierofanias urânicas, líticas, aquáticas, da terra, da vegetação
etc, com sua variedade de ritos, mitos, interdições, cosmogonias e deuses –, elas não revelam
o sagrado como uma essência ou uma estrutura simbólica desvinculada da dinâmica da
história. Em outras palavras: O universo particular da religião, que constitui seu próprio plano
de referência, não se estabelece, entretanto, fora de uma história concreta – o que não
significa dizer, por outro lado, que a experiência religiosa se possa reduzir a aspectos
econômicos, sociais ou políticos, com os quais, certamente, mantém relações.
67
Para Eliade, a primeira tarefa que se impõe ao cientista da religião, mais que definir o
fenômeno religioso, concretiza-se no circunscrever e situar tal fato no conjunto das outras
manifestações culturais na história, portanto. Tal tarefa diz respeito à busca por
compreender
de que maneira o homem religioso se esforça por manter-se o máximo de tempo
possível num universo sagrado e, consequentemente, como se apresenta sua
experiência total da vida em relação à experiência do homem privado de sentimento
religioso, do homem que vive, ou deseja viver, num mundo dessacralizado.
(ELIADE, 2001, p. 19).
– ainda que esta seja uma experiência recente na história da humanidade. Uma simples
comparação por exemplo, entre a experiência da sacralização do espaço, fornecendo ao
homem religioso uma orientação, e a experiência do espaço profano, em sua homogeneidade
bastaria para sublinhar a afirmação de que o sagrado e o profano não se referem a opostas
qualidades ontológicas de determinadas coisas, mas a modos de ser no mundo.
Acatados tais fundamentos de sustentação para a categoria das sacralidades, passemos
a considerar como as hierofanias “funcionam” na construção do texto literário de Mia Couto.
Indicamos, com isso, um segundo instrumento operatório para a análise crítica do romance
coutiano: a função da sacralidade na construção diegética.
Entendemos aqui por função o desempenho específico dos elementos figurativos
(particularmente aqueles relativos ao círculo do sagrado) no plano da construção narrativa.
Articulados segundo constrições de diversas ordens, que podem variar de um texto para outro,
esses elementos não apenas participam da configuração global da narrativa, como ganham
lugar e peso específicos no conjunto. Importa aqui averiguar o funcionamento específico da
linguagem acerca do sagrado em cada evento diegético, permitindo postular hipóteses e
validá-las em seguida no exercício empírico da análise de textos concretos. A expressão
“evento diegético” é tomada como similar ao termo diegese, que, conforme Reis et Lopes
(2002), é sinônimo de história/narrativa ou, no sentido um pouco mais ampliado, de “universo
do significado, o ‘mundo possível’ que enquadra, valida e confere inteligibilidade à história”.
(REIS; LOPES, 2002, p. 107).
51
Chama a atenção, na obra de Mia Couto, já o apontamos, o grandioso volume de
referências ao sagrado. Tais hierofanias, entretanto, ainda que de um mesmo tipo, não
funcionam da mesma maneira na construção da narrativa. As personagens, padre Muhando,
51
Para outras formulações dos conceitos de função e diegese, cf. em Reis et Lopes (2002), os verbetes diegese,
estrutura, função, narrativa, representação.
68
de O último vôo do flamingo (2005), o padre Nunes, de Um rio chamado tempo, uma casa
chamada terra (2003) e o padre Manuel Antunes, de O outro pé da sereia (2006), poderiam
ser classificados, do ponto de vista de uma morfologia descritiva do sagrado, como pessoas
consagradas, do universo particular da instituição católica. Cada um deles, nas diferentes
narrativas, estabelece alguma aproximação com o universo religioso das tradições africanas.
Considere-se, todavia, que a simples referência aos dois universos institucionais, o católico e
o tradicional africano, assim como à sua mescla, por si o tensionaria uma categorização
do sagrado. No entanto, no espaço da encenação narrativa, as mesmas situações são
colocadas sob forte tensão. Mais: na organização específica de cada romance citado, as
relações entre a identidade da personagem-padre e seu movimento em direção à alteridade, ao
diferente, constituem estruturas narrativas entre si distintas. Vejamos:
Padre Muhando, personagem de O último vôo do flamingo (2005), tece um
movimento que se concretiza no universo religioso cristão, sem contudo deixar de ser
africano: celebra missas, ainda que pouco católicas; enterra os restos fálicos dos explodidos,
em parceria com o nyanga, a quem chama de colega; fala do inferno cristão, referindo-se à
situação política local. Muhando aparece praticamente em um único capítulo do romance
(UVF, 2005, capítulo 11, p. 119-127. Leia-se sobretudo p. 123-125), onde é caracterizado a
um tempo como crítico e lunático e apresentado como “o primeiro culpado” pela explosão
dos soldados das Nações Unidas. “O padre era uma criatura digna de descrédito”, comenta o
narrador. (UVF, 2005, p. 123). Muhando permite-se insultar a Deus, por causa da morte de
uma criança indefesa contra o sofrimento, beber com Deus, com quem partilha segredos, rezar
com Deus, junto ao rio, no meio dos caniços, ali onde estão as pegadas de Deus. Essa
sugestiva intimidade com Deus, marcada por alguns traços do imaginário religioso africano,
em contraposição à sua condição de padre católico, coloca a personagem num espaço de
tensão, que se amplia por suas posições críticas e azedas ao universo religioso cristão.
a mescla realizada pela personagem de padre Manuel Antunes,
52
de O outro da
sereia (2006), faz o caminho inverso: do mundo católico ao mundo africano, sem abandonar
definitivamente as raízes do primeiro. Conforme ressaltado no capítulo anterior, Antunes
transita de branco a negro, a pele lhe escurecendo, os cabelos encrespando. (OPS, 2006, p.
164). Entretanto, essa transição não lhe apaga em definitivo o mundo branco que conformou
sua identidade de português e católico. Essa condição de, a um tempo, preservar a
identidade originária e romper com ela se descreve metonimicamente na simultânea adoção
52
Sobre a trajetória de Antunes, de padre branco a nyanga negro, cf. a seção inicial do capítulo anterior.
69
de um nome novo e na manutenção do antigo. “As pessoas da aldeia chamavam-no de
Muzungu Manu Antu e estavam lidando com ele como um nyanga branco. Manuel Antunes,
ou seja, Manu Antu, aceitara tacitamente ser considerado feiticeiro, rezador da Bíblia e
visitador de almas.” (OPS, 2006, p. 313). O aparente sossego de nyanga branco, encontrado
finalmente por Antunes, ao mesmo tempo feiticeiro e rezador da Bíblia, não é suficiente para
extirpar a tensão que se mantém até mesmo no nome de Manu Antu, metáfora de uma mescla
sempre inacabada. Essa trajetória, perpassando vários capítulos do romance, pode ainda ser
apontada como um dos principais elementos da construção daquela parte do romance voltada
ao assunto da viagem ao Monomotapa. Tomando-se como tema central do romance a ideia de
viagem ou travessia, a trajetória de Antunes estabelece com a história da personagem de
Mwadia, encenada num Moçambique de 2002, um estreito paralelismo, passível de ser
apontado como o principal elemento da construção diegética mais ampla do romance.
Padre Nunes, de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2003), por sua
vez, curva-se aos deuses africanos, quando, por ocasião de um naufrágio, lhe falta totalmente
um norte. Em relação aos dois primeiros, pode-se falar na construção de movimentos de
busca. No caso do padre Nunes, não esse movimento; daí seu desespero. O deslocamento
vivido pela personagem, de modo distinto do que se mostra para os outros dois, ainda que
encenado em não mais que três páginas de Um rio chamado tempo, se constrói debaixo da
expressa capitulação frente a forças que o religioso não domina. Nunes pede ao feiticeiro que
leia nos búzios o seu destino. Comenta o narrador: “A que ponto estava desorientado para
sujeitar-se àquilo que sempre condenara?” (RCT, 2003b, p. 101).
No âmbito do interesse das ciências das religiões, poderíamos talvez referir com a
mesma expressão “sincretismo religioso” as distintas experiências religiosas vividas pelas três
personagens. “Sincretismo”, já na sua etimologia, indica a fusão de elementos diferentes ou
contraditórios em um elemento. No campo da teoria literária, o conceito de sincretismo
talvez deva ser olhado com desconfiança, que, na aproximação de diferenças, não fusão
e, sim, imbricações, misturas, sempre em processo. Melhor seria utilizar o termo
“hibridismo”, que sugere mescla cultural sem anular a tensão entre os contrários, sem abafar o
conflito que se evidencia em todo processo de mistura. A opção pelo termo “hibridismo” se
presta particularmente a ressaltar o conflito gerado pela ultrapassagem dos limites que a
cultura tende a estabelecer como métron identitário, isto é, o conjunto de traços culturais pelos
quais se pode caracterizar determinado grupo humano.
Sob tal ponderação, observa-se que a dinâmica de cada um dos movimentos das
aludidas personagens em direção a um hibridismo religioso ajuda a melhor compreender, de
70
modo específico e em grau de importância variado, a construção de cada romance. Nos três
casos, a tensão e o conflito são constantes e servem não na caracterização da personagem,
mas na estruturação do discurso narrativo em sua amplitude.
Vejamos outro exemplo de referência ao sagrado: Em Terra sonâmbula (2007, p.
45), aparece uma “ave que mata as viagens”, o mampfana. Enquanto “animal sagrado”, serve
à proposta literária do romance porque permite o entrelaçar de alguns episódios da viagem de
Kindzu. Já o pangolim, de A varanda do frangipani (2007), animal-totem de muitas culturas
e visto como elemento de interligação com os falecidos, se apresenta como o constante
interlocutor do protagonista-defunto-narrador Mucanga, que retorna ao mundo dos vivos
encarnado num inspetor de polícia.
53
As categorias da sacralidade e da função do sagrado na construção diegética cuja
validade se procurou demonstrar com algumas amostras de leitura possibilitam a reflexão
sobre dois aspectos da construção ficcional dos textos de Mia Couto, particularmente
envolvidos pelo círculo do sagrado: a coleta de inúmeros costumes, provérbios, lendas e mitos
das tradições orais, e sua recriação pela escrita; a utilização de elementos configurados pelas
mirabilia, na construção do espaço ficcional.
3.1 A recriação literária das tradições orais
Em A tradição viva, capítulo que integra o primeiro volume de História Geral da
África (1982), o historiador Hampaté apontou a urgência de reunir os testemunhos e
ensinamentos da “última geração dos grandes depositários” da tradição oral, frente à
iminência de desaparecerem “os grandes monumentos vivos da cultura africana” e, com eles,
“os tesouros insubstituíveis de uma educação peculiar, ao mesmo tempo material, psicológica
e espiritual, fundamentada no sentimento de unidade da vida e cujas fontes se perdem na noite
dos tempos.” (BÂ, 1982, p. 217-218).
Tais tesouros constituem os padrões de crenças, valores, comportamentos,
conhecimentos técnicos e saberes, passados de geração em geração através de variadas formas
e processos de socialização. A esses padrões e processos, encontrados em geral no universo
cultural negro-africano, ainda que mesclados a padrões de valores e conhecimentos oriundos
53
Sobre animais sagrados, cf. o capítulo O bestiário dos ritos, em Eduardo Medeiros (2007, p. 353-385). Sobre o
pangolim, cf. p. 376-377.
71
de outras culturas, costuma-se designar genericamente com o termo “tradição”. (Cf.
HONWANA, 2002, p. 23).
se passaram quase três décadas desde o alerta de Hampaté Bâ. Não vem ao caso
examinar o grau de pertinência do grito do historiador africano. Também não se faz
necessário contabilizar o que historiadores e antropólogos realizaram, em termos de “coleta”
de testemunhos da tradição oral. Aliás, seria apenas deles a responsabilidade por essa tarefa?
Entretanto, não se nega o risco de desaparecimento das tradições orais, engolidas ou abafadas
pelas modernidades introduzidas em África. A propósito, meio século antes do alerta de
Hampaté Bâ, Michel Leiris (2007, p. 211) denunciava, com ironia, que a região africana
estava “preparada” para a propaganda, a gasolina e o esboroamento dos mitos. Entretanto,
assinala-se que grande volume de material daquelas tradições vem sendo revitalizado por
escritores africanos, no espaço da produção literária e da crítica. De fato, a recolha de
tradições orais vem longo tempo tornando-se estratégia de produção da escrita literária. As
tradições orais não apenas têm-se efetivado na produção de poetas, contistas e romancistas
africanos, como já ensejou volumosa discussão teórica sobre o assunto.
54
Falamos de “coleta” de tradições orais. No entanto, referir essa tarefa com os termos
“coleta” ou “recolha” não sugeriria a idéia de se estar lidando com materiais dispersos ou
esquecidos? Ora, a tradição oral não se confunde com materiais cristalizados do passado. A
tradição, lembra Aguessy, é sinônimo de atividade, de vitalidade. “A cultura tradicional faz-
se, desfaz-se, refaz-se”, afirma expressamente o teórico. (AGUESSY, 1977, p. 118).
Na linha dessas reflexões, a reinvenção literária das tradições orais não deve, pois, ser
pensada como a “salvação” dos textos da oralidade pela escrita. Também não seria adequado
afirmar que mitos e lendas do âmbito da oralidade estejam sendo “elevados” à categoria da
escrita, entendida como marca de culturas mais “desenvolvidas”.
Seguindo a reflexão de Ana Mafalda Leite (cf. 2003, p. 50), pode-se entender, mais
adequadamente, que o recurso às fontes orais, reinvestindo a memória da tradição de um
estatuto literário, faz parte da estratégia africana de formar e firmar uma literatura autóctone,
no bojo mais amplo de uma “tentativa constante de partilhar de um sentido de identidade,
54
Uma mostra desse interesse pode ser encontrada em dois minuciosos estudos de Ana Mafalda Leite:
Oralidades & Escritas nas literaturas africanas (1998) e Literaturas africanas e formulações pós-coloniais
(2003). Nos dois livros, antes de dedicar-se particularmente à análise de algumas obras das literaturas das
nações africanas de língua portuguesa, notadamente de Moçambique, a autora situa os diversos pressupostos que
envolvem a discussão teórica acerca da relação entre escrita e oralidade. Sobre a relação entre tradição oral e
literatura escrita, no âmbito das escritas “lusófonas”, cf. também, dentre outros, Fonseca;Cury (2008, p. 63-82) e
Moreira (2005).
72
perante as rupturas que o colonialismo determinou na psique africana”. (2003, p. 36). A
reflexão da autora aponta a complexidade das relações entre os discursos culturais/orais e os
literários e as múltiplas possibilidades de tematizar a tradição. A recriação literária da
tradição, em suas complexas e ricas possibilidades, não ilustra justamente o caráter ativo e
dinâmico da cultura oral?
Se o aproveitamento das tradições orais pela escrita literária pode ser metaforicamente
afirmado, até certo limite, em termos de “salvação” dos documentos da oralidade, não se pode
esquecer, em contrapartida, que a tradição oral não apenas enriquece como funda e
vitalidade à escrita literária africana. A produção literária de escritores como Luandino Vieira,
Boaventura Cardoso, Manuel Rui e Ruy Duarte de Carvalho, de Angola, e outros demonstra
processos diferenciados de construção de uma escrita literária que se faz atenta aos usos da
oralidade. No âmbito da escrita ficcional das nações africanas de língua oficial portuguesa,
além dos escritores mencionados, Mia Couto pode ser destacado como um dos mais profícuos
“coletadores” de tradições orais. Considerando, contudo, os diversos modos de o autor
moçambicano incorporar os intertextos orais nas formas estruturantes de sua narrativa,
optamos por abordar a questão do uso literário da tradição, na esteira da problemática que
elegemos, enquanto registro da oralidade sob a acepção específica das sacralidades. Assim,
perguntamos: Que elementos ou aspectos das tradições orais podem ser tematizados sob a
acepção das sacralidades? E de que modo Couto reescreve/refaz as tradições?
3.1.1 O aproveitamento inventivo de tradições orais
Conforme as tradições da savana, a criação do primeiro homem se deu quando o Ser
Supremo, criador de todas as coisas, sentiu falta de um interlocutor. O mito da gênese
primordial, segundo a tradição bambara do Komo, do Mali, ensinado no decurso dos ritos de
iniciação dos jovens, narra que:
Não havia nada, senão um Ser.
Este Ser era um Vazio vivo,
a incubar potencialmente as existências possíveis.
O Tempo infinito era a moradia desse Ser-Um.
O Ser-Um chamou-se de Maa Ngala.
Então ele criou ‘Fan’,
73
Um Ovo maravilhoso com nove divisões
No qual introduziu os nove estados fundamentais da existência.
Quando o Ovo primordial chocou, dele nasceram vinte seres fabulosos que
constituíram a totalidade do universo, a soma total das forças existentes do
conhecimento possível.
Mas, ai!, nenhuma dessas vinte primeiras criaturas revelou-se apta a tornar-se o
interlocutor (kuma-nyon) que Maa Ngala havia desejado para si.
Assim, ele tomou de uma parcela de cada uma dessas vinte criaturas existentes e
misturou-as; então, insuflando na mistura uma centelha de seu próprio hálito ígneo,
criou um novo Ser, o Homem, a quem deu uma parte de seu próprio nome: Maa. E
assim esse novo ser, através de seu nome e da centelha divina nele introduzida,
continha algo do próprio Maa Ngala. (Citado por BÂ, 1982, p. 184).
O instrumento da criação foi a palavra, elemento vital que emana do próprio Ser
divino, força fundamental de toda interlocução, particularmente da relação entre o mundo dos
deuses e dos homens. Tal concepção não se restringe, contudo, à cultura das savanas. Nas
tradições africanas, em geral, a fala entende-se como uma manifestação da Força suprema que
deu ao homem o “dom da Mente e da Palavra”. (BÂ, 1982, p. 184). A tradição oral constrói-
se, de fato, sobre uma concepção da palavra como sacralidade. Conforme Hampaté (1982,
p. 186), na tradição africana, a fala “tira do sagrado o seu poder criador e operativo”,
conservando ou rompendo a harmonia no homem e no mundo que o cerca. Metaforicamente,
no romance O último vôo do flamingo (2005, p. 113) refere-se ao ato de contar histórias
como encantar, rezar. A lenda que nome ao romance, contada por uma personagem, abre-
se assim: “Rezava... havia um lugar onde o tempo não tinha inventado a noite...” Nesse
sentido, qualquer material das tradições orais, independentemente de expressar costumes ou
crenças do estrito âmbito religioso, pode ser considerado uma sacralidade, porque continua a
transmissão oral iniciada pela Força suprema primordial, como herança divina, porque
sacraliza as corporeidades, ascendendo-as ao diálogo com a Palavra primordial.
Acatando a validade de tal pressuposto, podemos ler a obra de Mia Couto, sob um
primeiro aspecto, como uma espécie de registro ainda que transfigurado pela encenação
ficcional de um sem número de “documentos religiosos” característicos da tradição oral
moçambicana/africana. Referimo-nos ao aspecto que Ana M. Leite (2003, p. 38) chamou de
“textualidade formal manifesta” ou, na expressão de Fonseca et Cury (2008, p. 63), “o
aproveitamento visível das máximas, lendas, mitos e provérbios”. Vejamos.
Em A varanda do frangipani (2007, p. 85-86), o narrador, identificado nesse ponto do
romance com a feiticeira Nãozinha, refere-se ao costume de segurar ramos de kwangula tilo,
durante tempestades, para prevenir contra o arrebentar dos pulmões. Na mesma cena, a
narradora fala da crença no wamulambo, “uma cobra gigantíssima que vagueia pelos céus
durante as tempestades”. (2007, p. 85). Vozes anoitecidas (1992, p. 48) alude a Ndlati, a ave
74
do relâmpago, que “vive nas suas quatro cores escondidas e se destapa quando as nuvens
rugem na rouquidão do céu”. Em Estórias abensonhadas (1996, p. 94-102), encontramos a
Lenda de Namarói, “a versão do mundo, razão de brotarmos homens e mulheres”, conto em
que se explica a origem da circuncisão. Em O último vôo do flamingo (2005, p. 124-125), a
personagem padre Muhando, negro, conta do motivo de ser sagrado o lugar dos caniçais
das margens do rio; trata-se do lugar em que, do rosto e da lágrima de Deus, surgiram o
primeiro homem e a primeira mulher.
Em vista de explicitar mais detidamente a utilização que o escritor faz do material da
tradição, particularmente dos textos orais marcados pelo sagrado, convocamos a Fala do
feiticeiro Andorinho, em O último vôo do flamingo. (2005, p. 149-155). Abundam no
capítulo, a começar dos vocábulos de uso popular e cotidiano, picas construções que
remetem ao mundo da oralidade. Vejamos:
Poderíamos abranger no leque das sacralidades, ainda que o sagrado não venha de
modo expresso, alguns recursos narrativos privilegiados que aparecem a cada duas frases do
depoimento do feiticeiro: “A vida é um beijo doce em boca amarga.” (p. 153). “Só chega ao
futuro quem vive devagarzito.” (p. 153). “Estou da forma como o jacaré: sou feio e gigantoso,
mas ponho ovo faz conta um passarinho.” (p. 153). “É o pescoço que carrega a cabeça ou
vice-versa?” (p. 153). A dimensão crítica das máximas e provérbios se mostra não em
relação aos assuntos tematizados (política, religião), como também nas formas inovadoras,
contraditórias e interrogadoras de seu uso: A expressão “Deus seja perdoável” (p. 151) brinca
com o “Deus seja louvado”, da tradição cristã. A assertiva “viver é fácil: até os mortos
conseguem” (p. 152) afirma, no tropo de um paradoxo, a crença no mundo dos mortos. “Será
que a hiena vira cabrito?” (p. 153); a forma interrogativa, aqui retórica, indicia a desconfiança
em relação aos novos tempos políticos, que não diferem muito do tempo colonial. A
propósito, o uso do provérbio materializa-se reiteradamente em palavra crítica e politizada.
Referindo-se às conseqüências da colonização, diz Andorinho: “Somos madeira que apanhou
chuva. Agora o acendemos nem damos sombra.” (p. 154). Sobre os novos gestores da
nação: “Têm mais raiz que folha. Tiram muito e dão pouco.” (p. 153).
Por fim, encontramos as expressas referências ao sagrado: a Deus, aos anjos, à morte,
ao mundo dos mortos. Em todas elas, percebe-se estreita relação entre os campos religioso e
político. “Nem a terra, que é propriedade exclusiva dos deuses, nem a terra é poupada das
ganâncias.” (p. 152). Confessando a impossibilidade de explicar a “morte relativa dos
soldados, o feiticeiro justifica: “Teria que falar na minha língua. [...] Para o que havia de falar
não palavras em nenhuma língua.” (p. 153). Ainda a propósito da morte, afirma: “A vida
75
não acaba do lado dos vivos.” (p. 155). Referindo-se à sua recusa em obedecer e prestar
contas ao dirigente local, um estrangeiro imposto pela ONU, diz Andorinho: “Minhas
obediências são a outros poderes”, os quais, em relação aos chefes do italiano, seu
interlocutor, “estão ainda mais fora”. (p. 152). Os poderes, aqui invocados, são certamente os
antepassados ou os deuses.
Sob o foco do uso manifesto das tradições orais, inúmeros intertextos da cultura oral,
registrados pela obra de Mia Couto, poderiam, com certo controle, ser interpretados como
estritos “documentos religiosos”. Em sua pesquisa sobre os gêneros orais presentes em Terra
Sonâmbula (2007), Ana Mafalda Leite (2003, p. 43) convoca a clássica obra do missionário
Henri Junod, Usos e costumes dos bantos (1974)
55
, para sustentar a afirmação de que
“grande parte das estórias relatadas em Terra Sonâmbula fundamentam-se em crenças dos
Tsonga do sul de Moçambique e na sua mundividência”. Alude então à ave mampfana e a
outros tabus de viagens, relacionados à viagem de Kindzu; à questão da fortuna de Farida,
por ser gêmea; à presença do Tchóti, o anão que cai do céu; ao ritual de caça ao gafanhoto,
das idosas profanadoras. E reitera: “O material temático fabuloso de Terra Sonâmbula se
fundamenta nas tradições dos povos do sul de Moçambique.” (A. M. LEITE, 2003, p. 44).
Em vista de melhor explicitar o aspecto da utilização visível, por Mia Couto, de
documentos religiosos da tradição, tomemos o caso da crença tradicional segundo a qual não
se deve enterrar os mortos em terreno úmido. O assunto aparece em vários romances do
escritor. Venenos de Deus, remédios do Diabo (2008) refere-se a um lugar interdito,
chamado “umbigo da água”, onde está o cemitério dos alemães. Usando a tradição, o narrador
explica o motivo da maldição do lugar: “Nenhum habitante de Cacimba enterraria os seus
mortos em terras molhadas, num lugar tão próximo de um curso fluvial. Aquele pode ser
um cemitério para estrangeiros, esses mortos que enlouquecem por nunca mais encontrarem o
caminho de regresso a casa.” (VDRD, 2008, p. 178). O mesmo tipo de crença encontra-se
registrado em O outro pé da sereia (2006, p. 303-304). Após arrastar o corpo do missionário
português Gonçalo da Silveira “para as terras lodosas da margem do rio Mussenguezi”, o
escravo Xilundo é tomado de torpor e de pavor; é envolvido pela visão arrepiante dos peixes
cegos e pela lembrança do pesadelo da noite anterior que lhe revelava antecipadamente os
acontecimentos. Tudo o fazia crer na evidência de que “enfrentava espíritos de mundos
longínquos”.
55
A edição de 1996 já traz, mais adequadamente, a forma “Bantu”.
76
A crença ainda pode ser encontrada no Moçambique atual. Em artigo no qual analisa a
relação entre a racionalidade tecnológica e as “racionalidades tradicionais”, Paulo Granjo
(2008, p. 229ss) estuda o caso da Mozal, uma grande e moderna fundição de alumínio, de
Maputo, construída no entanto em lugar interdito. “Trata-se de um sítio especial [...] explica
o autor –, devido a estar instalada junto de um cemitério claramente inadequado segundo os
princípios culturais vigentes, visto ser húmido e alagável, para além de nunca ter sido objeto
das devidas cerimónias propiciatórias.” (GRANJO, 2008, p. 229). A inadequação do sítio
explicaria a constante presença de cobras no recinto da fábrica, sobre as quais o imaginário
dos trabalhadores projeta diversas interpretações – feitiçaria, espíritos dos antepassados – para
os acontecimentos indesejáveis. Ao se referir ao úmido e alagável do lugar, Granjo, citando
Junod (1974), explica: “O enterro em solo húmido é reservado às pessoas que ‘secam o chão’,
como os nados-mortos, abortos, gêmeos e respectivas mães [...]. Não garantir a um defunto
um solo seco equivale a tratá-lo como uma dessas categorias com valoração negativa e, com
isso, a desrespeitá-lo.” (GRANJO, 2008, p. 229).
Os elementos da tradição, resgatados por Couto na construção de seus contos e
romances, podem certamente ser confirmados pelo viés das pesquisas antropológicas. Mas
não se pode entender esse aproveitamento da tradição como mero registro etnográfico e
documental. Para muito além desse interesse, coloca-se a livre criatividade do escritor, que, ao
retomar os “textos” da cultura oral, o faz contradizendo, tensionando e transgredindo as
mesmas tradições. Tal aspecto, reiteradamente salientado por Fonseca et Cury (2008), se
explicita neste resumo: a literatura de Mia Couto,
ao mesmo tempo em que bebe nos costumes mais tradicionais, não os assume
acriticamente. Na verdade, são estratégias de tratamento linguístico postas em
tensão. Há, simultaneamente, uma retomada da tradição, até com reverência, e sua
proposital rasura, como nos processos paródicos. Os pactos de leitura desalojam o
leitor dos lugares consagrados, levando-o a refletir sobre a situação compósita do
modo como a cultura se apresenta, atravessada por afirmações e negações.
(FONSECA; CURY, 2008, p. 76).
Voltemos à crença acerca do lugar adequado de enterrar os mortos. Referindo-se à
tradição, o narrador de Um rio chamado tempo (2003, p. 230-231) encaminha-se para a
lagoa Tzivondzene, onde “estão enterrados os líquidos restos” de seu irmão natimorto e de sua
mãe Mariavilhosa.. E explica: O “desnascido” é um ximuku, um “afogado”, e deve ser
enterrado junto a lugares que nunca secam. Em O outro da sereia (2006), a personagem
de Zero Madzero enterra os restos metálicos da estrela em terra lodosa. Como não sabe o que
é o objeto caído do céu, pois não tem nome, Zero o enterra como a um natimorto. O narrador
77
retoma a tradição: “É assim que se procede com os meninos mortos, nascidos tão tenros que
nem nome possuem. O túmulo dessas crianças não pode ser aberto em terra seca, requerendo,
antes, o chão informe e aquoso da margem dos rios.” (OPS, 2006, p. 36).
Tensionando a tradição, o texto de Mia Couto refere-se aos desnascidos e a
Mariavilhosa, condenada pela má sorte de ter parido um natimorto, com um tratamento que se
distancia da valoração negativa característica da tradição. A cena em que Marianinho está
sentado às margens da lagoa, no calado da tarde, relembrando a mãe e o irmão natimorto,
sugere, bem mais, ternura e carinho. Da mesma forma, a resistente oposição de Fulano Malta
a que Mariavilhosa se submetesse ao completo exercício da tradição traduz um misto de amor
e comiseração. (Cf. RCT, 2003b, p. 230-231).
Contrariando frontalmente a tradição, o avô Mariano é enterrado na margem, onde o
chão é basto e fofo”. (RCT, 2003b, p. 239). A transgressão se faz pelo livre aproveitamento
da tradição, funcionando como um jogo literário que coloca o mais velho Dito Mariano na
mesma categoria dos natimortos. Enquanto “morto abortado”, isto é, que não nasceu
plenamente para o mundo dos mortos, Mariano se assemelha ao ximuku, que não nasceu
plenamente para a vida. Aos desnascidos, como aos “desmorridos”, é destinado o chão
pantanoso e úmido. Além disso, em nenhum momento, a personagem do incompleto defunto
Mariano recebe qualquer valoração negativa, apesar de sua falsidade e de suas mentiras
confessas. Ao final do romance, em frontal contraste com a tradição, assim que o avô é
descido à campa úmida, o mundo não se desarranja, mas a terra recebe a bênção da chuva.
Assim, no enterro do avô e na chuva, a narrativa dialoga com a tradição, encenando-a, a um
só tempo, como transgressão e bênção.
3.1.2 O aproveitamento performático do mito
Em seus estudos sobre as relações entre oralidade e literatura, Ana Mafalda Leite
sugere que, para além do reconhecimento da representação literária das formas orais,
enquanto textualidade manifesta, o leitor crítico deve “tentar enquadrar e entender os sentidos
culturais subjacentes a essa representação, enquanto configuração simbólica de diferentes
modos de mundividência e de encarar o acto criativo”. (A. M. LEITE, 2003, p. 38).
Na linha da sugestão da pesquisadora, interessa-nos observar como certos elementos
da cultura tradicional, particularmente do campo do sagrado, configuram uma “textualidade
78
não manifesta” conforme expressão da autora representada em romances de Mia Couto.
Com outras palavras: para além da cultura tradicional tematizada nos romances e contos do
escritor, interessa-nos sua presença “performática”.
Usamos aqui o termo “performance” e o adjetivo correspondente no sentido de
caracterizar um modo de narrar, presente em Mia Couto, que toma das formas narrativas do
mito e do contexto de sua narração ritual alguns aspectos característicos: a postura bárdica de
um narrador autorizado, a íntima correlação entre a palavra oral e o acontecimento que ela
invoca, o movimento de busca de explicações fundadoras, as mudanças produzidas ou
alcançadas pelo mesmo ato de narrar. Sendo o mito uma história encenada e ritualizada,
adotamos aqui o conceito genérico de “performance” para caracterizar o modo narrativo
próprio do mito.
56
No primeiro aspecto, o de sua retomada manifesta, crenças, valores e saberes tradicionais
são, a um tempo e propositadamente, acatados e tensionados, valorizados e transgredidos.
Nesta nova perspectiva, a da textualidade não manifesta, a tradição se oculta como tema e se
revela estruturalmente como performance narrativa. Assim, encontramos amiúde na obra de
Mia Couto, a estrutura dialogal, a mescla de gêneros, a mobilidade temporal e espacial
57
características da técnica narrativa tradicional.
Dentre as formas de representação não manifesta da tradição, em Mia Couto,
destacamos o aproveitamento performático do mito, isto é, a construção narrativa que encena
aspectos da estrutura ritualístico-narrativa dos mitos. Referimo-nos, em primeiro lugar, às
inúmeras narrativas de origens, que tratam da gênese primordial de algo: um costume, um
lugar sagrado, o próprio povo. Benjamin Southman, de O outro da sereia (2006), busca
em África suas próprias raízes, uma inexistente africanidade essencial. Rosie, sua
companheira, ao compasso das batidas no almofariz, possuída pela dança, volta ao ventre
materno o “oculto umbigo”, onde “escutámos o primeiro tambor, escutámos os primeiros
movimentos de embalo”, o lugar em que “fomos peixes, fomos água, adormecida onda,
incessante maré”. (OPS, 2006, p. 173-174). Juca Sabão, de Um rio chamado tempo, uma
casa chamada terra (2003), sobe o rio até à nascente, para “decifrar os primórdios da água,
ali onde a gota engravida e começa o missanguear do rio”. (RCT, 2003b, p. 61). Nhamataca,
o fazedor de rios, de Terra sonâmbula (2007), busca, na história de amor que envolve seu
56
Para uma abordagem mais detalhada sobre performance, no sentido de explicitar o modo como são encenadas
as vozes narrativas na ficção moçambicana, cf. o estudo de Terezinha Taborda Moreira (2005, p. 29-96).
57
Ana Mafalda Leite (2003, p. 39) adota tais características, dentre outras propostas pelo ensaísta senegalês
Mohamadou Kane, para sua análise de Terra Sonâmbula. Pode-se, sem exagero, estendê-las ao conjunto da
obra narrativa de Mia Couto.
79
nascimento, as razões para cavar um novo curso, que “traga de volta o sonho àquela terra mal
amada”. (TS, 2007, p. 87).
Observa-se que os exemplos aludidos não tematizam mitos tradicionais. As narrativas
em que estão inseridos, entretanto, portam em comum, isto sim, um aspecto fundamental do
mito: um movimento de busca das origens. De fato, os mitos se caracterizam e se definem de
modo particular pela referência ao tempo prestigioso dos primórdios, ao tempo em que seres
sobrenaturais, por vezes identificados com os antepassados tribais, realizaram certas coisas
que fundam e o sentido aos costumes, crenças, valores e realidades do presente. Nessa
linha, Mircea Eliade oferece uma definição de mito que, como observa, por ser a mais lata,
parece satisfatória e “menos imperfeita”:
O mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo
primordial, o tempo fabuloso dos “começos”. Noutros termos, o mito conta como,
graças aos feitos de Seres Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, quer seja a
realidade total, o Cosmos, quer apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie
vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narração
de uma “criação”: descreve-se como uma coisa foi produzida, como começou a
existir. (ELIADE, 1994, p. 11).
Vale insistir em que não se encontram, nos exemplos aludidos, assim como em outras
passagens dos romances do escritor, aspectos característicos do mito, tais como a referência
aos seres sobrenaturais fundadores e à sua atividade criadora ab origine. Interessa-nos, tão
somente, apontar a performance coutiana de narrar como os mitos narram. Tal modo não
ostensivo de aproveitamento da tradição revela não apenas uma técnica narrativa como
também uma atitude mental que valoriza e acolhe, ainda que criticamente, um modo de
conhecimento do mundo diferente daquele disseminado pelo logocentrismo europeu.
No senso comum, a acepção de mito, construída com materiais da herança grega e
judaico-cristã, identifica-o com fábula, estória inventada, mentira, ilusão. Neste sentido, mito
opõe-se ao discurso racional do logos, à história, entendida como narrativa de fatos
acontecidos, e à verdade, como conteúdo doutrinário revelado nas escrituras sagradas.
Conforme aponta Eliade (cf. 1994, p.7-8), resquícios de tal acepção poderão ser encontrados
em trabalhos de antropólogos e naturalistas até o final do século XIX. Nesse contexto, referir-
se a uma visão tica de mundo equivaleria a classificá-la como etapa anterior, inferior ou
pré-científica do desenvolvimento humano.
A partir das primeiras décadas do século XX, etnólogos e cientistas das religiões
assumem a acepção de mito característica das sociedades tradicionais: “História verdadeira”,
preciosa, sagrada, exemplar, significativa. Explica Eliade (1994, p. 12):
80
O mito é considerado como uma história sagrada, e portanto uma “história
verdadeira”, porque se refere sempre a realidades. O mito cosmogônico é
“verdadeiroporque a existência do Mundo está para o provar; o mito da origem
da morte é também “verdadeiroporque a mortalidade do homem prova-o, e assim
por diante.
O caráter de verdade que o mito porta não se buscará na comprovação histórica dos
eventos fundantes que lhe teriam dado origem, mas na sua significação para o presente. Tudo
o que se narra nos mitos revela a dimensão de sacralidade que funda o mundo e que diz
respeito diretamente ao homem enquanto ser mortal, sexuado, organizado em sociedade,
submetido ao trabalho, regido por determinadas regras. (Cf. ELIADE, 1994, p. 16). O que
aconteceu in illo tempore importa porque os comportamentos e atividades humanas que
acontecem no hoje se fundamentam e se justificam por aqueles eventos primordiais. Este
parece ser, em suas grandes linhas, o sentido cultural de mito que subjaz às narrativas de Mia
Couto, particularmente enquanto estas figuram o movimento de busca das origens.
um outro aspecto do mito, particularmente relevante, utilizado por Couto como
estratégia narrativa: a reatualização ritual da tradição. Referimo-nos a uma característica
marcante e singular dos romances de Couto que coloca o mesmo ato de escrever (e não
simplesmente o de narrar oralmente) como forma ritual de atualizar a tradição oral.
Como se compreende a reatualização ritual da história mítica, nas culturas tradicionais?
Segundo Eliade (1994, p. 17), enquanto, para o homem moderno, os acontecimentos da
história têm um caráter irreversível, “para o homem das sociedades arcaicas, aquilo que se
passou ab origine é suscetível de se repetir pelo poder do rito”. Para o homem tradicional, o
conhecimento dos mitos não apenas lhe fornece
uma explicação do Mundo e da própria maneira de estar no mundo, mas sobretudo
porque, ao recordar, ao reactualizá-los, ele é capaz de repetir o que os Deuses, os
Heróis ou os Antepassados fizeram ab origine. Conhecer os mitos é aprender o
segredo da origem das coisas. Por outras palavras, aprende-se não como as coisas
passaram a existir, mas também onde as encontrar e como fazê-las ressurgir quando
elas desaparecem. (ELIADE, 1994, p. 17-18).
Em Mia Couto, o segredo da origem das coisas, o sentido da existência, a
interpretação dos caminhos se revelam inúmeras vezes no jogo performático no rito da
escrita-leitura.
Terra sonâmbula (2007) inaugura com sua estrutura/estratégia narrativa que
performatiza as circunstâncias e o modo de recitar dos mitos a reatualização ritual pela
escrita/leitura da memória cultural-oral. ao final do primeiro capítulo encontramos a
81
estrutura que vai emoldurar cada uma das narrativas: “... ao lado da fogueira, [o miúdo
Muidinga] ajeita os cadernos e começa a ler. Balbucia letra a letra, percorrendo o lento
desenho de cada uma. Sorri com a satisfação de uma conquista. Vai-se habituando, ganhando
despacho. [...]” (TS, 2007, p. 13). A pedido do velho Tuhair,
o miúdo em voz alta. Seus olhos se abrem mais que a voz que, lenta e cuidadosa,
vai decifrando as letras. Ler era coisa que ele apenas agora se recordava saber. O
velho Tuhair, ignorante das letras, não lhe despertara a faculdade da leitura.
A lua parece ter sido chamada pela voz de Muidinga. A noite toda se vai enluarando.
Pratinhada, a estrada escuta a estória que desponta dos cadernos: ‘Quero pôr os
tempos...’ (TS, 2007, p. 13-14).
A narrativa se abre a outras narrativas, na leitura dos cadernos de Kindzu.
Como num rito de iniciação – especial circunstância de recitação dos mitos –, o jovem
Muidinga em voz alta ao velho Tuhair os cadernos de Kindzu. Na ritualização do ato de
narrar, através da leitura em voz alta realizada pelo mais jovem, recria-se a tradição. O legado
da tradição, metaforizada no conjunto das histórias “depositadas” nos cadernos de Kindzu, se
atualiza na recitação ritual de Muidinga, tendo como destinatários o próprio Muidinga e o
velho Tuhair. Como nos processos iniciáticos, a aprendizagem, construída pela leitura/escuta
do legado de Kindzu/da tradição, integra e funda a experiência dos leitores/ouvintes do
presente com os valores e saberes da tradição. Ana M. Leite (2003, p. 52) enxerga nessa
estratégia narrativa o modelo da escola da sociedade tradicional que “consiste na aliança entre
o acto recriativo recitativo de uma palavra legada, e a educação pela palavra repetida”.
Ainda que a postura bárdica de Muidinga
58
recrie simbolicamente o lugar preeminente
da declamação dos mitos, na cultura oral, o texto de Couto indicia metaforicamene o lugar
novo da leitura, ato que se constitui pelo sentido da visão. Muidinga lê em voz alta, mas “seus
olhos se abrem mais que a voz”.
O cenário narrativo, de qualquer forma, sugere metonimicamente um característico
lugar em que a tradição se transmite: a educação iniciática, à noite, à volta da fogueira. E,
numa cosmovisão que faz todo o universo participar dos destinos humanos, “a lua parece ter
sido chamada pela voz de Muidinga” e até a estrada escuta a estória que desponta dos
cadernos”. (TS, 2007, p. 14).
A reatualização da tradição oral, pelo rito da escrita/leitura, não pára em Terra
Sonâmbula. Em quase todos os romances de Mia Couto encontramos, em maior ou menor
58
Ana Mafalda Leite (2003, p.51-52) refere-se a uma reabilitação da função bárdica aos tempos modernos,
fazendo com que o romance africano destaque a posição do narrador, como lugar estratégico de condução da
narrativa.
82
medida, a estratégia de “reinvestir a memória da tradição oral de um estatuto literário”
conforme a expressão de Ana Mafalda Leite (2003, p. 50). Vejamos:
Em A varanda do frangipani (2007), a conciliação dos sistemas oral e escrito pode
ser vista na longa confissão de Ernestina, que constitui o décimo primeiro capítulo do
romance. O título A confissão de Ernestina e o finalzinho do capítulo “Vou fechar este
escrito. [...] Esta é a minha última carta.” (VF, 2007, p. 112). sugerem tratar-se de uma
carta. Contudo, o texto mantém a mesma estrutura narrativa e dialogal das outras confissões
que dão o fio narrativo ao romance.
Em O último vôo do flamingo (2005), a página de abertura do romance configura o
testemunho escrito do narrador, tradutor oficial de Tizangara, a serviço das delegações
estrangeiras da ONU. Entretanto, ao fechar seu preâmbulo, ainda que se tratando de um
testemunho escrito, o narrador apela a uma fórmula característica da cultura oral: “Deixo-vos
na procura da resposta, ao longo destas páginas”. (UVF, 2005, p. 10). A fórmula funciona
como uma espécie de “enigma” que convoca e incita o ouvinte/leitor a acompanhar sua
narrativa.
Mais adiante, o título do sexto capítulo refere-se ao Primeiro escrito do administrador
Estevão Jonas. A narração em primeira pessoa e o tom dialogal e, particularmente, a leitura
em voz alta feita pelo tradutor ao ministro estrangeiro, indiciam, também aí, o caráter da
cultura oral. Muito a propósito, o capítulo traz como epígrafe uma confissão do administrador
que afirma: “Não sou mau lembrador. Minha única dificuldade é ter que escrever por escrito.”
(UVF, 2005, p. 71). E, num tom que aponta o esforço de conciliar escrita e oralidade, o
relatório do administrador começa assim: “Escrevo, Excelência, quase por via oral. As coisas
que vou narrar...” (UVF, 2005, p. 73).
Em alguns capítulos, as configurações entre escrita e oralidade são reduplicadas pela
presença do gravador essa “máquina que fotografa as vozes”. (UVF, 2005, p. 185). O
recurso ao aparato eletrônico aparece nas falas da prostituta Ana Deusqueira (capítulos 7 e 17)
e no depoimento de Sulplício (capítulo 18) – personagens sobre as quais paira alguma
suspeita. “Quero ver minha voz escrita aí”, pede Sulplício ao narrador/seu filho que manipula
o aparelho. “E Sulplício falou. [...] E falou para mim as inesquecíveis palavras. O que ele
disse, ficou registado.” (UVF, 2005, p. 186). Serviria o gravador para endossar a
autenticidade do testemunho oral, antes que este assumisse a forma de “manuscrita voz”?
Em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2003), o jogo entre as
mundividências da oralidade e da escrita se estabelece pela presença de uma dezena de cartas
“ditadas” pela voz do mais-velho, o quase-defunto Dito Mariano, e escritas pela letra do neto
83
Marianinho. A moldura narrativa na qual se encaixa uma das cartas se encarrega de explicar o
jogo. Diz o neto/narrador:
Vou anotando idéias, frases soltas. É então que sucede o que não é de acreditar: a
minha letra desobedece da mão que a engendra. Aquilo que vou escrevendo se
transfigura em outro escrito. Uma outra carta me vai surgindo, involuntária, das
minhas mãos. (RCT, 2003b, p. 170).
Segue-se o texto da carta, em tom dialogal, com narração em primeira pessoa.
No conjunto, as cartas de Mariano a Marianinho sugerem um processo iniciático que
começa em meio a inúmeras perguntas e dúvidas do neto moderno, cujas respostas vão sendo
desveladas e construídas, num crescendo, pela aprendizagem de Marianinho e pela voz do
mais velho Mariano, na forma de novas cartas/revelações. O sentido do jogo entre
modernidade e tradição e seu dinamismo processual podem ser lidos nos primeiros parágrafos
desta carta:
Estas cartas, Mariano, não são escritos. o falas. Sente-se, se deixe em bastante
sossego e escute. Vonão veio a esta Ilha para comparecer perante um funeral.
Muito ao contrário, Mariano. Você cruzou essas águas por motivo de um
nascimento. Para colocar o nosso mundo no devido lugar. Não veio salvar o morto.
Veio salvar a vida, a nossa vida. Todos aqui estão morrendo o por doença, mas
por desmérito do viver.
É por isso que visitará essas cartas e encontrará o a folha escrita mas um vazio
que você mesmo irá preencher, com suas caligrafias. [...] Esse é o serviço que
vamos cumprir aqui, você e eu, de um e outro lado das palavras. Eu dou as vozes,
você dá a escritura. Para salvarmos Luar-do-Chão, o lugar onde ainda vamos
nascendo. E salvarmos nossa família, que é o lugar onde somos eternos. (RCT,
2003b, p. 64-65).
Referindo-se ao dinamismo das relações entre modernidade e tradição, na mesma linha
das reflexões expressas por Honorat Aguessy (1977) e Hampaté (1982), a pesquisadora
Alcinda Honwana (2002) chega a falar de uma “tradição inventada”. Frente às novas
situações políticas e sociais, particularmente aquelas engendradas no processo de
descolonização, tornou-se necessário encontrar respostas novas, capazes de inculcar novos
valores, mais adequados aos novos tempos. Conforme a autora, as novas respostas,
coerentemente com os processos de socialização de valores da cultura tradicional, assumem a
forma de referência a situações históricas passadas interpretadas como “adequadas” o que
demonstra a natureza dinâmica, adaptável e até conflitiva da tradição. Explica a autora: “A
noção de tradição encontra-se fortemente ligada ao poder e ao conhecimento”, de tal sorte que
se verifica uma competição sobre o que é e o que deve ser a tradição seja ela inventada,
84
modificada ou reforçada –”, presente “nos conflitos entre diferentes forças sociais e políticas”.
(HONWANA, 2002, p. 25).
Em O outro pé da sereia (2006), a estratégia diegética de tornar presente o passado se
constrói já na macronarrativa que mescla dois distintos tempos históricos. O tempo da viagem
do missionário jesuíta Gonçalo da Silveira ao Monomotapa, em meados do século XVI,
entrecruza-se com acontecimentos narrados num encenado 2002. Nesse movimento de
tempos, ressaltado no romance, as “sombras” do passado se fazem presentes através das
ossadas e de alguns pertences do missionário português, encontrados por Mwadia Malunga e
Zero Madzero, personagens da narrativa datada de 2002, passada em Moçambique. Entre os
pertences do missionário, estão os diários de bordo daquela viagem. Assim, no jogo literário
que mescla o tempo passado com o tempo atual jogo no qual a referência à escrita recebe
lugar de destaque –, encena-se a relação estrutural entre o mito e o rito que o atualiza.
Também aqui, o tempo da oralidade se torna presente no rito novo da escrita-leitura.
Vejamos:
Como os cadernos de Kindzu em Terra Sonâmbula (2007), também os diários da
viagem de Silveira podem ser lidos como metáfora de tradições. Apresentam-se, de qualquer
forma, como um “depósito” do passado histórico. Na cena em que Manuel Antunes,
encarregado das escritas, deita ao fogo o caderno da viagem, encontramos a sugestiva
afirmação de que a escrita é capaz de portar o peso da história. Descreve o narrador:
As anotações da travessia, o registo diário dos acontecimentos e descobertas,
e mesmo os testamentos dos falecidos, tudo isso se consumia entre labaredas. [...]
Escrever para ele [Antunes] se tornara um fardo. O grão de areia, a gota do
mar, o elefante compacto e a lágrima leve, tudo se convertia em sua posse desde que
fixado em letra. O caderno de viagem, explicou Antunes [a Silveira], ganhara um
peso insuportável. Quando o lançou ao fogo foi para se aliviar desse peso. Afinal, as
palavras não enchiam apenas as folhas. Preenchiam-no a ele, proprietário de cada
coisa descrita. (OPS, 2006, p. 159-160).
Na mesma linha, anteriormente (no capítulo cinco), referindo-se ao “respeito quase sagrado”
que o goês Jesustino Rodrigues tinha pelos livros, comenta o narrador: O que ele sentia era
que os livros escondiam pegadas do passado, e que a tinta das páginas era saliva dos
extintos.” (OPS, 2006, p. 90).
Como em Terra Sonâmbula, também aqui (cf. capítulo 14), no ritual secreto, como
nas iniciações de subir ao sótão, onde ficava a biblioteca de Jesustino, e de ler em voz alta
os manuscritos e documentos da viagem de Silveira e do passado colonial, Mwadia e sua e
85
Constança, como Muidinga e Tuhair naquele romance, recriam e reinterpretam sua própria
história.
O caráter secreto e iniciático dessa viagem ao mundo da escrita é sugerido, em O
outro da sereia, pela afirmação de que Mwadia “espreitava, de noite”, os papéis do casal
de americanos e a velha documentação colonial; pelas proibições impostas por Jesustino a
Dona Constança de visitar a biblioteca e de fazer circular livro pela casa; pelos cestos bojudos
de livros retirados sigilosamente da biblioteca; pela leitura dos livros no retiro das sombras do
cemitério da vila.
Capítulos antes, referindo-se ao tempo em que Constança ainda não acedera ao mundo
das letras e numa clara alusão aos espaços culturais da oralidade, dissera o narrador: “Tinha
sido ali, no pátio da velha casa, que ela havia recebido lições do abecê. A terra tinha sido o
seu quadro-negro, o quintal tinha sido a sua escola. Mwadia sorriu, fingindo acreditar. A mãe
insistiu: Escreva na terra, filha. A terra é a página onde Deus .” (OPS, 2006, p. 175).
Expressa-se, aí, o contraponto entre dois espaços sagrados: a terra e o livro. A terra é o
depósito das sementes, de cuja germinação dependerá o sustento de homens e animais. O livro
é o depósito dos traços mágicos, de cujo manejo se constrói a vida das personagens. A escrita
a escrita ficcional, particularmente –, lida sob o prisma de um olhar sacralizador, torna-se
um outro espaço de inscrição da vida.
59
Reitera o narrador, em outra passagem: “Nesse outro
tempo, o seu livro era o chão imenso, por fora. Quem lhe virava as páginas eram as
estações do ano.” (OPS, 2006, p. 239). Chegado, entretanto, o novo tempo do acesso à letra,
Constança age em relação a ele como se de um fato religioso se tratasse. “O interesse de
Constança cresceu a tal ponto que começou a aprontar-se de propósito para a ocasião. Benzia-
se à entrada das sessões de leitura. E, de cada vez, escolhia um novo e cerimonioso vestido
que retirava da velha arca das donas.” (OPS, 2006, p. 239).
O aspecto ritualístico e religioso do ato de ler retorna com insistência. Num transe
encenado aos americanos, um livro ocupa o centro das revelações: Receba o livro, insistiu
Mwadia.” (OPS, 2006, p. 235). De fato, o que a possuída Mwadia tem a revelar nada mais é
do que o passado encenado nos livros. Perante os afro-americanos e os moradores de Vila
Longe, as sessões de transe e adivinhação realizadas por Mwadia, ainda que expressem o
universo religioso da oralidade, não passam, assim, de encenação de encenação. O narrador de
Couto (no capítulo 14) refere-se expressamente ao “inquérito previamente combinado” e aos
“diálogos previamente acordados” entre Mwadia e seu tio-empresário Casuarino; fala das
59
Sobre o caráter sagrado da escrita ficcional, cf. a seção 5.3 do último capítulo, intitulada O território sagrado
da poesia.
86
sessões de transe em termos de “farsa”, “encenação”, “representação”, “representação
teatral”, “exibição”, “lembranças fabricadas”. Frente às dúvidas da mãe, ao lhe revelar a
“verdade verdadeira”, Mwadia explica que não mais os espíritos dos antepassados familiares,
mas “os livros e os manuscritos eram as suas únicas visitações”. (OPS, 2006, p. 238). Ao
encenar a tradição ancestral, a voz que fala nela vai falar do que ela leu nos livros. De
qualquer forma, trata-se da mesma história do seu povo.
Finalmente, na cena que fecha o capítulo 14, a leitura ritual, em voz alta, nas sombras
do cemitério, em estreita comunhão com os antepassados (em Terra sonâmbula também a
lua e a estrada foram convocados pela voz de Muidinga), invoca expressamente a relação
entre o ato de ler e a experiência do sagrado: “Quem passasse ao largo, escutava trechos de
prosa, por vezes poemas rimados, lidos na voz pausada de uma jovem mulher. E acreditaria
que as duas mulheres estivessem rezando. E, no fundo, não estaria longe da verdade.” (OPS,
2006, p. 243).
Esse modo não ostensivo de aproveitar a tradição encenando o ato de narrar como
rito que investe a cultura da oralidade na ordem da escrita aparece em quase todos os
romances de Mia Couto. Já o afirmamos e procuramos demonstrar. Contudo, mais uma vez
em Terra sonâmbula (2007), encontramos um pequeno capítulo que se pode ler como uma
espécie de paradigma desse modo de narrar. Referimo-nos a A lição de Siqueleto ou, já
podemos adiantar, ao mito do renascimento da oralidade na escrita. Vamos ao texto de Mia
Couto. (Cf. TS, 2007, p. 63-69).
A narrativa inicia apontando “uma vez mais” o destino conturbado do velho Tuhair e
do jovem Muidinga. Os dois partilham a mesma experiência de fugir da “guerra que não
termina” e de andar por uma “estrada que não traz ninguém”. Para o velho, “morar” nessa
“estrada morta” se tece apenas de andar em círculos e de ir a lugar nenhum. Ainda que se
sinta seguro na estrada morta e comande os trilhos por onde o jovem avança, Tuhair pondera
tratar-se de “falsas viagens”, tecidas por bondosas mentiras. O jovem, por sua vez, “queria
uma vez mais partir, tentar descobrir nem sabia o quê, uma réstia de esperança, uma saída
daquele cerco”. (TS, 2007, p. 63). ele as mudanças de paisagem, as “novas vistas”
“miragens”, para o mais-velho. Poderíamos ler, nesses tropos – metáforas e metonímias,
principalmente –, a tensa convivência entre cultura tradicional e modernidade?
Em seguida, o velho Tuhair e o jovem Muidinga entram em contato com o mundo de
Siqueleto, o velho e solitário aldeão que deseja semear gente, para que nasça mais gente. Os
dois encontram-se presos em “enormíssima cova”, “dentro de uma armadilha”, “presos nas
malhas”, “enredilhados como peixes”, “arrastados pelo chão”, “iguais aos bichos caçados”.
87
Em seguida, Siqueleto, guardião de restolhos de vida, se “apresenta com sua estória”:
Eu sou como a árvore, morro de mentira.(TS, 2007, p. 66). Como num ritual, faz
acompanhar sua fala pela cantilena estridente da lata em que guarda seus arrancados dentes.
Num misto de raiva e lamento, amaldiçoa os que abandonam a terra. Muidinga, no esforço de
fazer-se escutar por Siqueleto, “se excede” e cobra do aldeão o cumprimento das velhas leis
hospitaleiras. Tuhair se coloca como tradutor da voz do jovem. E, em oposição à
mundividência do miúdo, Tuhair, recuperando e dinamizando a tradição, enxerga naquele
guardião dos restos da comunidade “pensamentos futuros”; desfia sua história “lento como
rosário” e “fala de um mundo que nem há, engraçando suas visões”. (TS, 2007, p. 67). A voz
de Tuhair encanta o desdentado aldeão e o próprio Muidinga. Segundo o comentário do
narrador, não é a estória que fascina o miúdo, mas a alma que está nela. E, ao ouvir os sonhos
de Tuhair, com os ruídos da guerra por trás, ele vai pensando:
não inventaram ainda uma lvora suave, maneirosa, capaz de explodir os homens
sem lhes matar. Uma pólvora que, em avessos serviços, gerasse mais vida. E do
homem explodido nascessem os infinitos homens que lhes estão por dentro. (TS,
2007, p. 67-68).
Finalmente, no gesto de Muidinga escrever no chão e depois no tronco da árvore o
nome de Siqueleto, a narrativa de Couto encena a reatualização da tradição pela escrita. Tudo,
na cena, lembra um rito de iniciação: a noite, a dor, o nome, a canção, o rezar, o ser conduzido
para longe, no mato, a grande árvore, a faca...
[Siqueleto] passa-lhe [a Muidinga] o punhal. No tronco Muidinga grava letra
por letra o nome do velho. Ele queria aquela árvore para parteira de outros
Siqueletos, em fecundação de si. Embevecido, o velho passava os dedos pela casca
da árvore. E ele diz:
Agora podem-se ir embora. A aldeia vai continuar, meu nome está no
sangue da árvore.
Então ele mete o dedo no ouvido, vai enfiando mais e mais fundo até que
sentem o surdo som de qualquer coisa se estourando. O velho tira o dedo e um jorro
de sangue repuxa da orelha. Ele se vai definhando, até se tornar do tamanho de uma
semente. (TS, 2007, p. 69).
Na escrita de seu nome, o velho aldeão termina/transmite a tarefa de zelar pelos restos
de vida de sua comunidade. Na escrita do seu nome, recupera-se a memória perdida. Na
escrita de seu nome, plantam-se novos homens. A escrita acolhe e perpetua os rituais da
oralidade. O gesto final, de vazar o ouvido, afirma metaforicamente a morte da cultura oral
fecundada no entanto pelos ritos da escrita. Que novos homens nascerão da tradição
explodida?
88
Passemos, agora, a outro aspecto da construção ficcional de Mia Couto que se pode
correlacionar com o círculo das sacralidades: o maravilhoso.
3.2 O maravilhoso – do sagrado e do literário
Em seu O sagrado
60
(2007), o teólogo Rudolf Otto cunhou a categoria o numinoso
para designar o elemento fundante constitutivo de todas as religiões e de toda experiência
religiosa. O numinoso, enquanto categoria, diz respeito ao dado fundamental e primordial da
experiência própria e exclusiva do campo religioso, sendo, neste sentido de dado fundante,
algo árreton, isto é, impronunciável. A esse elemento se tem acesso, em última instância,
apenas pela experiência do homo religiosus, e não se pode explicitá-lo senão por analogias
aproximativas.
Sendo uma categoria a priori e indizível, o sagrado/o numinoso não tem como
ser evocado senão a partir da experiência sui generis do mysterium, do totalmente outro,
diante do qual o homem religioso expressa sua autopercepção como “sentimento de criatura”.
Explica Otto:
Trata-se de um sentimento confesso de dependência que, além de ser muito mais do
que todos os sentimentos naturais de dependência, é ao mesmo tempo algo
qualitativamente diferente. Ao procurar um nome para isso, deparo-me com
sentimento de criatura o sentimento da criatura que afunda e desvanece em sua
nulidade perante o que está acima de toda criatura. (OTTO, 2007, p. 41).
Na introdução do pequeno O sagrado e o profano (2001)
61
, Mircea Eliade, referindo-
se à novidade e à originalidade da perspectiva de Otto, comenta:
Em vez de estudar as idéias de Deus e de religião, Rudolf Otto aplicara-se na análise
das modalidades da experiência religiosa. Dotado de grande refinamento
psicológico e fortalecido por uma dupla preparação de teólogo e de historiador das
religiões, Rudolf Otto conseguiu esclarecer o conteúdo e o caráter específico dessa
experiência. Negligenciando o lado racional e especulativo da religião, Otto voltou-
se sobretudo para o lado irracional, pois tinha lido Lutero e compreendera o que quer
dizer, para um crente, o ‘Deus vivo’. (ELIADE, 2001, p. 15).
Considerando a incapacidade humana de exprimir o totalmente outro, senão por frágeis
analogias, tomadas ao domínio natural e cotidiano, Otto aponta, através dessa linguagem de
60
Tradução brasileira de Das Heilige (1917).
61
Tradução do francês Le sacré et le profane (1957).
89
empréstimo, para dizer o numinoso, alguns de seus aspectos: O elemento repulsivo e
terrificante do tremendum;
62
a superioridade ou inacessibilidade absoluta da majestas; a
vivacidade, a paixão, a força, a comoção da or ou energia vital; o atrativo secreto do
estranho, do assombroso, do mysterium; o amor, a misericórdia, a compaixão, o encantamento
dionisíaco do fascinans; a santidade do augustum.
Ainda que acatando a idéia de etapas no desenvolvimento do homo religiosus, Otto
atribui o caráter apriorístico do sagrado a todas as formas de religião. Diz o autor:
Também aquelas primícias primitivas e ‘brutas’ do ‘receio demoníaco’ nos
primórdios da história da religião e da evolução histórico-religiosa são de natureza
inderivável a priori. A religião começa consigo própria e atua em seus ‘estágios
preliminares’ míticos e demoníacos. (OTTO, 2007, p. 169).
Diversos desses aspectos do numinoso, apontados pelo teólogo, estão encenados nos
textos de Mia Couto. Vejamos uma passagem de O outro da sereia (2006), cuja riqueza
de detalhes e dramaticidade ilustram alguns dos aspectos sugeridos por Otto. Trata-se da cena
de uma grave tempestade, durante a travessia do Índico, pelo missionário Gonçalo da Silveira.
Citamos parte do texto:
No vigésimo primeiro dia, os marinheiros, sem aviso nem explicação,
agitaram-se e os gritos no convés ecoavam:
O Corpo Santo! Apareceu o Corpo Santo!
O que se passa?, inquiriu, assombrado, o missionário Silveira.
As exalações! Surgiram as exalações!
Chamas de luz branca refulgiam na extremidade dos mastros e das vergas.
Eram sinais de uma luz feminina, quase lunar. O céu estava escuro, carregado: as
exalações eram, para os marujos, o anúncio de uma terrível tormenta. Era preciso um
cerimonial para aplacar os maus espíritos. O jesuíta opôs-se à realização dos rituais.
Os estrangeiros chamam a isto fogo-de-santelmo. Tudo isso são coisas
naturais, observou D. Gonçalo da Silveira.
Se estes rumores corressem entre os negros nós os acharíamos
demoníacos!, comentou, com acidez, o padre Antunes.
Não os contrarie, padre, pediu o contramestre. Da última vez que o
tentámos fazer, os marinheiros revoltaram-se de armas contra nós.
Enquanto se discutia, um grumete subiu ao cesto da gávea e testemunhou a
existência de pingos de cera verde. Era a prova que o navio tinha sido visitado. Em
estado de alucinação, os mareantes se concentraram por debaixo da vela grande e em
coro saudaram os espíritos: Salve! Salve! (OPS, 2006, p. 157).
A cena se apresenta repleta de pormenores que apontam para o aspecto do sagrado que
Otto chamou de mysterium tremendum: a inexplicável agitação e os gritos dos marinheiros, a
pergunta assombrada do missionário Silveira, a ideia de que poderia se tratar de maus
62
Mantivemos alguns termos latinos e gregos utilizados por Otto na conceituação dos aspectos do sagrado.
Julgamos que, no contexto em que os estamos utilizando, de retomada daqueles mesmos conceitos, sua tradução
se torna vez por vez desnecessária.
90
espíritos e de rumores demoníacos. Rudolf Otto refere-se ao tremendum em termos de um
“arrepio místico” ou a um “assombro” as expressões são do autor que “não é o medo
comum, natural, mas é a primeira excitação e o pressentimento do misterioso, ainda que
inicialmente na forma bruta do ‘inquietantemente misterioso’.” (OTTO, 2007, p. 47). Para
Otto, esse assombro apresenta-se numa gradação que vai do receio demoníaco, enquanto
“primeiro sentimento ingênuo e tosco” à forma infinitamente enobrecida” (OTTO, 2007, p.
49), capaz de arrebatar a alma da criatura e fazê-la proclamar com toda a força a santidade do
mysterium. No texto de Couto, esses extremos são encenados, na forma mais bruta, no receio
demoníaco que pede “um cerimonial para aplacar os maus espíritos”; e, na forma enobrecida,
na saudação em coro aos espíritos: “Salve! Salve!”
Pode-se observar ainda na perspectiva de Otto que o sentimento de criatura, isto é,
a sensação da própria nulidade, o receio de submergir diante do formidável e terrível,
experimentados na presença do sagrado, enquanto majestas tremenda, despertam naquele que
o experimenta, a orgé, isto é, “vivacidade, paixão, natureza emotiva, vontade, força, comoção,
excitação, atividade, gana.” (OTTO, 2007, p. 55). Trata-se, conforme Otto, daquele aspecto
do nume que, ao ser experimentado, desperta na pessoa o zelo, tomando-a de “assombrosa
tensão e dinamismo”, tornando-a capaz de qualquer enfrentamento. Na cena do romance, o
aspecto da orgé se mostra no estado de alucinação e exaltação dos marinheiros, em sua
predisposição à revolta armada e à agressão.
A cena do romance continua com padre Antunes avançando contra a multidão de
marinheiros, na tentativa de “fazer recuar a manifestação herética”. (OPS, 2006, p. 157).
Entretanto, frente à excitação que os marinheiros experimentam pela visitação do sagrado,
Antunes quase é agredido, não fosse protegido pelo escravo Nsundi. A autoridade dos
religiosos se anula frente à vivacidade do sagrado, ainda que esta seja a experiência de toscos
“energúmenos marinheiros”.
Ao descrever as exalações do Corpo Santo, o romance refere-se às “chamas de luz
branca”, “sinais de uma luz feminina, quase lunar”, que refulgiam nos mastros e vergas da
embarcação. E ainda que “um grumete subiu ao cesto da gávea e testemunhou a existência de
pingos de cera verde. Era a prova que o navio tinha sido visitado.” (OPS, 2006, p. 157). Na
linha de Otto, podemos atribuir a essas descrições mais uma característica do sagrado: seu
aspecto fascinans. Ainda que o tremendum represente a majestade e a inacessibilidade
absoluta do numinoso, este, em curiosa e estranha “harmonia de contraste” com o elemento
distanciador do tremendum, revela-se como algo avassalador, atraente, arrebatador, cativante,
encantador, dionisíaco, enfim, fascinante. Os adjetivos “feminino” e “lunar” para se referir às
91
chamas das exalações, a subida do grumete ao mais alto do navio, num movimento ao
encontro dos espíritos, a concentração dos marujos em oração por debaixo da vela grande,
como que constituindo um novo espaço (diverso daquele demarcado pela presença da imagem
católica no navio), sugerem a atração e o encantamento produzidos pelo sagrado.
O realismo da situação descrita na cena da tempestade, ainda que encenação literária,
faz com que todos os detalhes adquiram um caráter de plausibilidade. O eclodir da
tempestade, a embarcação fazendo água pelas variadíssimas frestas, a azáfama de todos,
durante a noite inteira, para bombear a água para fora do navio, a carga de fazendas, tinturas,
perfumes e temperos deitada ao mar, o elefante enjaulado lançado às águas revoltas, tudo o
que é narrado na cena teria podido acontecer em qualquer viagem marítima do século XVI.
Não há nada de insólito. Não há qualquer dose de surrealismo nas ações. O mesmo se pode
afirmar em relação aos aspectos religiosos que as envolvem. As atitudes dos marinheiros,
mesmo agressivas, expressando sua crença em que o navio tinha sido visitado por espíritos, o
que pedia um ritual para aplacá-los, a oposição dos religiosos Silveira e Antunes a que o culto
se realizasse, a explicação dada por Silveira de que as exalações do Corpo Santo eram “coisas
naturais”, certamente podem ser lidas como diferentes expressões de crenças religiosas. Não
há, em relação a isso, nenhuma excentricidade nos modos de comportamento das
personagens.
Até este nível de leitura do texto em que o mapeamento da linguagem sobre o
sagrado se coloca como tarefa necessária e prévia à discussão sobre seu funcionamento na
construção narrativa –, as categorias de Otto se mostram de grande utilidade, particularmente
porque constituem extenso e expressivo leque semântico de predicados do sagrado. Ocorre
que, para Otto, os nomes e qualificações que inventamos para designar o sagrado não passam
de “ideogramas de algo inefável”. (OTTO, 2007, p. 56). O numinoso, enquanto
mirum/mistério – incompreensível, inconcebível, paradoxal, antinômico, conforme termos
usados pelo teólogo é um “totalmente outro”. (OTTO, 2007, p. 62). Ora, “a realidade
lembra-nos Chiampi (1980, p. 91) –, ao ser nomeada ou qualificada, deixa de ser a realidade
para ser um discurso sobre ela.” Sob tal pressuposto, a perspectiva idealista e essencialista da
religião que se encontra na categorização do sagrado, proposta por Otto, não oferece, para
além desse nível descritivo, outros conceitos operatórios para a leitura do sagrado na
construção narrativa de Couto.
Voltemos no entanto à cena da tempestade. Na retaguarda da configuração realista que
marca o conjunto das ações, uma voz narrativa que revela outros aspectos que tangem o
sagrado que aparece. Um primeiro elemento pode ser apontado na expressa tensão entre
92
dois níveis de crenças: o dos marinheiros e o dos religiosos. Assumindo a perspectiva dos
religiosos, a voz narrativa, num primeiro momento, refere-se ao nível de crença dos
marinheiros em termos de agitação, gritos de energúmenos, alucinação, manifestação herética.
Em contraposição a esse vel “ingênuo” de crença, coloca-se a perspectiva “nobre” dos
religiosos que, com sua autoridade e compreendendo ser o fogo-de-santelmo apenas um
fenômeno natural, intentam coibir a manifestação herética dos marinheiros. Todavia, num
segundo momento, a mesma voz narrativa razão à excitação dos marinheiros, que
enxergavam nas chamas de Santelmo a visita de espíritos que prenunciam terrível tempestade.
Se, para os sacerdotes, as chamas eram “coisas naturais”, por que não aceitar também a
tempestade como um fato natural? Todavia, a perspectiva racionalista dos religiosos é
colocada em xeque frente à tormenta prenunciada pela fé dos marinheiros. Diz o narrador:
“Os religiosos não queriam aceitar o facto, mas nessa noite mesmo eclodiu a mais grave das
tempestades.” (OPS, 2006, p. 158).
Se os conceitos de Otto dão conta de reconhecer níveis de crenças, que vão do
grosseiro e ingênuo ao nobre e santo, do receio demoníaco ao temor de Deus conforme
termos do autor –, não são suficientes, entretanto, para averiguar o funcionamento do
discurso sobre o sagrado na construção da narrativa literária. A propósito, para Otto, o
universo semântico acerca do sagrado interessa tão somente enquanto expressão racional da
experiência e do sentimento do homem perante o absoluto/o numinoso. Assim, a tensão entre
os grupos de personagens marinheiros versus padres e a mudança de perspectiva do
narrador primeiro, do lado dos religiosos, depois, do lado dos marinheiros escapam ao
foco de interesse das teorias daquele teólogo.
Outro dado relativo ao sagrado, enquanto elemento estruturador da cena da
tempestade, pode ser identificado pelo lugar híbrido que a personagem de padre Antunes
ocupa, em relação às crenças dos marinheiros. Posta-se ao lado de Silveira, quando se trata de
coibir a manifestação herética daqueles homens. Assume, no entanto, uma posição autocrítica
que pende em favor dos negros, ao comentar com acidez: “Se esses rumores [de marinheiros
brancos, sobre as exalações] corressem entre os negros nós os acharíamos demoníacos.”
(OPS, 2006, p. 157). A propósito desse trânsito de lugar encenado pela personagem de
Antunes assunto sobre o qual falamos no primeiro capítulo –, observa-se que a cena da
tempestade serve ainda de solene intróito à tempestade maior que Antunes carrega em seu
interior, transtorno que o faz confrontar seu superior, revolta que o faz transitar de raça
convertendo-se em negro. Também aqui, onde a tematização do sagrado se apresenta
93
tensionada pela construção narrativa, a perspectiva essencialista dos conceitos elegidos por
Otto para dizer o sagrado os faz pouco úteis.
Passemos, pois, a complementar aquela perspectiva com a utilização de um novo
instrumento operatório para a leitura do sagrado em Mia Couto: o conceito de realismo
maravilhoso. Trata-se, como se pretende demonstrar, de uma concepção teórica capaz de
projetar luz não apenas na tarefa de identificar no texto literário expressões do sagrado
próprias da cultura oral e popular, mas, particularmente, de nomear tensões, transgressões e
hibridismos expressos por essa cultura.
Em sua acepção lexical, o termo “maravilhoso” (do latim, mirabilia) recobre a idéia
do que é admirável, isto é, daquilo que proporciona ou exige, para ser visto e experimentado,
a acuidade e a intensidade do olhar. Incorpora, neste sentido, a concepção mais tradicional de
milagre, enquanto algo que ultrapassa a ordem das naturalia, algo que resulta da intervenção
de seres sobrenaturais. Assim, enquanto expressa a epifania do divino, “maravilhoso”
relaciona-se com a ideia de perfeição e extraordinariedade; para falar da experiência humana
diante do numinoso, o termo traduz espanto e arrebatamento. Sob tal acepção, o maravilhoso
pode ser identificado com os vários aspectos do numinoso propostos por Otto: arrepiante,
assombroso, avassalador, misterioso, fascinante. nessa acepção identificamos um
imaginário religioso característico da cultura oral e popular.
Entretanto, para além de sua identificação e descrição através daquelas categorias, as
experiências de vida e as crenças que estruturam o imaginário (religioso) do povo, e suas
relativas expressões culturais, incorporam, no vel discursivo, uma grande capacidade de
mesclar elementos culturais díspares e, dessa forma, tensionar e subverter as significações
estratificadas da racionalidade ocidental. Em direção a esse aspecto mais dinâmico da cultura
oral e popular é que se configura, de modo particular, o conceito de real maravilhoso.
63
Esse dinamismo é particularmente destacado por Fonseca et Cury (2008, p. 122) ao
retomarem os conceitos de real maravilhoso conforme suas diferentes formulações em Alejo
Carpentier e em Stephen Alexis.
64
Referindo-se à percepção do conceito nesses estudiosos, as
autoras destacam (seguindo Carpentier) os processos “de alteração, de metamorfoses, de
deslocamentos, de ampliação” que configuram o maravilhoso; e apontam (com Alexis) a
expressão oral como seu contexto gerador. Detalham as autoras:
63
Sobre as diversas configurações do conceito de maravilhoso, cf. Chiampi (1980, p. 32) e Fonseca; Cury (2008,
p. 122).,
64
Para um histórico do conceito no escritor cubano Alejo Carpentier (1948), no teórico haitiano Jacques Stephen
Alexis (1956), assim como sua relação com o conceito de merveilleux dos surrealistas e sua distinção em relação
ao realismo fantástico, cf. a minuciosa tese de Irlemar Chiampi (1980). Uma apresentação mais condensada
desses conceitos pode-se buscar em Fonseca; Cury (2008, p. 121-123).
94
“É no universo da oralidade que o estranho, o mágico explodem a racionalidade,
envolvendo a realidade com as transgressões características do saber popular. O
mundo é explicado pelas lendas e pelos mitos, rituais de congraçamento do homem
com a natureza. É nesse contexto de expressão oral que o conceito de realismo
maravilhoso é produzido.” Nesse contexto, o maravilhoso “seria o conjunto de
imagens revelador da experiência e da concepção de mundo do povo: de sua fé, sua
vivência e sua maneira de explicar as forças antagônicas presentes na sociedade.
Essa percepção de mundo se rege pela mistura de elementos e pelo deslocamento de
significações imobilizadas, intensos no universo da oralidade.” (FONSECA; CURY,
2008, p. 122)
Ainda que os conceitos de real maravilhoso e mesmo de realismo maravilhoso possam
ser postos em diálogo em diferença com o movimento surrealista europeu e tenham sido
retomados particularmente para nomear os espaços da narrativa hispano-americana, eles
podem certamente ampliar a compreensão de espaços marginais, particularmente híbridos e
tensos, como é o caso da ficção africana/moçambicana. Tal possibilidade acha-se
demonstrada no estudo crítico de obras de José Craveirinha, Ungulani Ba Ka Khosa e Mia
Couto, feito pelo crítico moçambicano Gilberto Matusse.
65
O estudioso (que, seguindo
Todorov, adota o termo “fantástico” para discutir a presença do insólito nas narrativas dos
escritores moçambicanos estudados) refere-se a uma “apropriação de certos aspectos [...] da
narrativa hispano-americana pelos ficcionistas moçambicanos”. (MATUSSE, 1998, p. 160).
Para Matusse, a relação entre as literaturas africanas e as literaturas latino-americanas
“decorre fundamentalmente do facto de umas e outras nascerem e desenvolverem-se no
âmbito de situações coloniais, o que lhes coloca a necessidade de romperem com o
periferismo e vincarem uma identidade própria.” (MATUSSE, 1998, p. 159).
Um aspecto do maravilhoso, muito evidente na ficção de Mia Couto, se mostra na
criação de espaços que mesclam mundos reais com mundos “fantásticos”. Encontramos tal
aspecto, por exemplo, no conto O embondeiro que sonhava pássaros. (CHR, 1998, p. 59-71).
Um passarinheiro, negro, desconhecido, descalço e sem nome, adentrava o bairro de cimento
dos colonos brancos e enchia as casas de maravilhosas aves de doces cantos. Por graça da
sedução do passarinheiro, Tiago, uma criança sonhadeira, aproxima-se do negro e torna-se seu
amigo. Reprovado pelos colonos, o intruso homem se tornará objeto de ódios, espancamento e
prisão. Na busca pelo paradeiro do amigo que desaparecera, Tiago, vítima das labaredas dos
colonos, transita ao reino das árvores.
65
Sobre o uso do conceito de real maravilhoso para apreensão do espaço ficcional de Mia Couto, cf. também
todo o capítulo 6 (Visões e desconstruções do real) de Fonseca et Cury, 2008, p. 121-126.
95
No conto, o universo maravilhoso se constrói pela presença fascinante do
passarinheiro. A personagem carrega inúmeros atributos do sagrado/sobrenatural: é estranho e
inominável, habita a árvore sagrada do embondeiro, sua presença enche o mundo das belezas,
cores, fábulas e melodias. Na linha do imaginário religioso tradicional, em que tudo participa
da força vital do sagrado, o passarinheiro iguala-se à passarada, confunde-se com o
embondeiro, irmana-se às crianças brancas que, na obediência dos sonhos, “emigravam de sua
condição”.
66
Flores, pássaros, estrelas e crianças movimentam-se em coro ao ritmo da
numinosa presença do vendedor das aves maravilhosas. Sendo “natural, rebento daquela
terra”, o fascinante homem cumpre o sagrado dever da hospitalidade. Em respeito aos colonos
que o vêm visitar (de fato, prender), veste o fato mesungueiro. Na largueza do cumprimento
dos deveres de anfitrião, não apenas se apronta, mas, qual perfeccionista criador, “retoca o
horizonte”. O congraçamento do homem com outros homens e com a natureza revela-se em
plenitude.
Em tensa oposição a esse mundo sobrenatural, de irreal harmonia, o conto descreve o
“verídico mundo” do bairro de cimento, dos colonos brancos, da ordem imposta. O leque
semântico que aponta a dinâmica desse mundo real inclui termos como lástima, castigo,
reclamações, culpas, raivas, morte, receios, suspeições, desdenho, ciúmes, mandos, ameaças,
pancadas, chambocos, pontapés, prisão, vingança, labaredas, cinza. Em contraposição às
“gaiolas aladas, voláteis” do passarinheiro, opõe-se o calabouço dos brancos. À “gritaria das
aves” e ao chilreio das crianças” à volta do vendedeiro, opõe-se o vozeirio dos homens em
sua perseguição. Ao inominado intruso opõem-se as nomeadas funções e autoridade máxima
dos Silvas, dos Peixotos e do presidente do município, cujos resguardados espaços e sigilosos
assuntos são devassados pela livre presença dos pássaros do passarinheiro.
Que esperar da tensão construída por essa oposição entre o mundo harmonioso do
passarinheiro e o mundo verídico das relações (des)humanas? A presença de um deus ex
machina em socorro de Tiago e do passarinheiro? O desfecho gerado pelas irrevogáveis
sentenças da violência dos colonos brancos? Nem uma coisa nem outra. Vejamos o final do
conto:
As tochas [dos colonos brancos] se chegaram ao tronco, o fogo namorou as
velhas cascas. Dentro, o menino desatara um sonho: seus cabelos se figuravam
pequenitas folhas, pernas e braços se madeiravam. Os dedos, lenhosos, minhocavam
a terra. O menino transitava de reino: arvorejado, em estado de consentida
66
Todas as expressões entre aspas, citadas neste e no próximo parágrafo, são extraídas do conto (CHR, 1998,
passim p. 62-68).
96
impossibilidade. E do sonâmbulo embondeiro subiam as mãos do passarinheiro.
Tocavam as flores, as corolas se envolucravam: nasciam espantosos pássaros e
soltavam-se, petalados, sobre a crista das chamas. As chamas? De onde chegavam
elas, excedendo a lonjura do sonho? Foi quando Tiago sentiu a ferida das labaredas,
a sedução da cinza. Então, o menino, aprendiz da seiva, se emigrou inteiro para suas
recentes raízes. (CHR, 1998, p. 71).
O que lemos em nada se parece com uma solução “aceitável” na ordem da
racionalidade. De fato, no realismo maravilhoso, o prodígio não substitui sem mais o real. O
trânsito do menino ao reino das árvores e os espantosos pássaros que nascem das
mãos/braços/galhos do passarinheiro/embondeiro enquanto elementos sobrenaturais não
anulam a real violência dos colonos, com suas tochas assassinas. Entre a violência dos
colonos e as mirabilia que envolvem o menino e o passarinheiro não qualquer relação de
continuidade entre causa e efeito. Conforme Irlemar Chiampi (1980, p. 61), neste processo,
nesta “retórica de passagem”, que faculta ao discurso literário encenar o real como
sobrenatural e ler as mirabilia como naturalia, “suspende-se a dúvida, a fim de evitar a
contradição entre os elementos da natureza e da sobrenatureza”.
Como o homônimo bíblico Jacó cuja etimologia sugere calcanhar/pé –, que “passou
a perna” no irmão Esaú, roubando-lhe o direito de primogenitura, Tiago, a personagem de
Mia Couto, passa uma rasteira na ordem racional e obriga o leitor a uma interpretação não-
antitética dos elementos narrativos. Desde o seu começo, o conto encenou as diferenças, a
oposição e o movimento entre dois mundos: o do passarinheiro e o dos colonos brancos. Ao
final, o aspecto prodigioso do primeiro e a violência do segundo são levados ao paroxismo.
Deslocando a desarmonia real das relações, o trânsito do menino Tiago ao mundo do
passarinheiro/embondeiro, ao emigrar “inteiro para suas recentes raízes”, sugere cabalmente:
no sonho que nos irmana com a terra constrói-se também o convívio fraterno das diferenças,
capaz de unir povos e raças. Neste sentido, a dívida para com África é uma dívida para com a
humanidade – diria com outras palavras o historiador Ki-Zerbo. (Cf. 2006, p. 32).
Outro aspecto do maravilhoso, também freqüente na obra de Mia Couto, pode ser
apontado nos eventos e comportamentos insólitos. A definição lexical de insólito refere já sua
dimensão inusitada, estranha, não habitual, incrível. Entretanto, ainda que inclua o
extraordinário ou o estranho, o insólito não se confunde sem mais com o conceito de
sobrenatural, que também incorpora a dimensão do extraordinário. No âmbito da criação
literária, o insólito refere-se àqueles acontecimentos” (encenados pela diegese) que, por sua
excepcionalidade ou desproporção em relação ao que é esperado, conhecido, cotidiano,
97
considerado usual, normal e socialmente aceito, operam no leitor o efeito da surpresa, da
admiração, do fascínio.
Para Gilberto Matusse, que enxerga na literatura moçambicana uma postura de
empenhamento social e político, o insólito está intimamente correlacionado ao hibridismo de
elementos culturais, morais e ideológicos propiciado pela experiência colonial. Explica o
estudioso: “As atitudes perante o facto colonial, quer na sua vigência plena, quer após a sua
abolição formal, desencadeiam fenómenos de assimilação, de rejeição e de tentativa de
conciliação de valores, o que conduz a desequilíbrios, conflitos e tensões.” (MATUSSE,
1998, p. 175). Daí resulta, segundo o autor, “uma desagregação dos diferentes sistemas de
valores intervenientes na interacção” – que a literatura nomeia através do insólito, num
percurso que se inscreve “entre a desarmonia real e a harmonia ideal”.
No conto O dia em que explodiu Mabata-bata (Vozes anoitecidas, 1992), podemos ler
aqueles dois extremos do insólito. O conto se abre com um acontecimento extraordinário:
De repente, o boi explodiu, rebentou sem um múúú. No capim em volta
choveram pedaços e fatias, grãos e folhas de boi. A carne eram já borboletas
vermelhas. Os ossos eram moedas espalhadas. Os chifres ficaram num qualquer
ramo, balouçando a imitar a vida, no invisível do vento.
O espanto não cabia em Azarias, o pequeno pastor. Ainda um instante ele
admirava o grande boi malhado, chamado de Mabata-bata. (VA, 1995, p. 47).
nessa abertura, o insólito se escreve em seus extremos. Na seqüência de algumas poucas
orações, quase sempre curtíssimas, o insólito conjuga a explosão e o silêncio do boi, morte e
vida, dilaceração e beleza. Ao pólo da desagregação, feito dos pedaços e fatias de carne, ossos
e chifres do boi, contrapõem-se os elementos que sugerem vida e fartura: capim, chuva, grão,
folhas, borboletas, moedas, vida, vento.
A ão do conto prossegue com as indagações de Azarias quanto às causas do
acontecimento: Um relâmpago? De onde saíra o raio? Ou foi a terra que relampejou? Talvez o
ndlati, a ave do relâmpago. Para além das incertezas, havia a certeza das ameaças do tio Raul
para que nunca lhe aparecesse sem um boi que fosse. Azarias foge apavorado. Nesse
ínterim, os soldados vão à casa do tio comunicar o acontecimento: “Rebentou uma mina esta
tarde. Foi um boi que pisou.” (p. 47). Contrariando as recomendações dos soldados, tio Raul
sai à procura do menino. Sua preocupação, no entanto, é com o rebanho. No bojo desta
seqüência narrativa, instaura-se o insólito: o absurdo da guerra, a banalização de sua
tragicidade, a indiferença perante a morte, o valor da vida subordinado ao interesse pelos bens
e pela riqueza – temas reiteradamente presentes na obra de Mia Couto.
98
Finalmente, o encontro: frente às falsas promessas do tio de não castigá-lo, à
intervenção da avó Carolina que o chama, à falsa permissão de sua ida à escola,
o pequeno pastor saiu da sombra e correu o areal onde o rio dava passagem. De
súbito, deflagrou um clarão, parecia o meio-dia da noite. O pequeno pastor engoliu
aquele todo vermelho, era o grito do fogo estourando. Nas migalhas da noite viu
descer o ndlati, a ave do relâmpago. Quis gritar:
– Vens pousar quem , ndlati?
Mas nada não falou. Não era o rio que afundava suas palavras: era um fruto
vazando de ouvidos, dores e cores. (...) em volta tudo fechava, mesmo o rio
suicidava sua água, o mundo embrulhava o chão nos fumos bancos (...) e antes que a
ave do fogo se decidisse Azarias corrreu e abraçou-a na viagem da sua chama. (VA,
1995, p. 53-54).
Em plena coerência com a cena inicial da explosão do boi, o encontro de Azarias com
a ave de fogo revela, na visão do menino, o insólito que irmana a morte trazida pela mina com
a morte que o pequeno pastor trazia dentro de si. A morte de Azarias não é senão o
cumprimento pleno e radical (e coerente, do ponto de vista da construção narrativa) da morte
de sua infância, da morte de seus sonhos de miúdo. A rudeza da guerra é colocada na pauta do
insólito. Ainda que a tragicidade da guerra coloque a morte de Azarias no polo da desarmonia
real, a imagem mítica do ndlati, que marca o imaginário cultural do pequeno pastor, reveste
sua morte trágica de sentido e de beleza enquanto transgressão literária. O modo da escrita
desloca e inventa o real, em sua rudeza, lendo-o em outra pauta, construída a partir do olhar
do menino; o narrador o mundo através dos olhos do pequeno Azarias. Também pela
transgressão da escrita literária, para além das minas e da guerra, pode-se compreender a
morte do pequeno pastor como a intervenção de um desígnio estranho e poderoso que, no
extremo, faz superar todos os obstáculos e pensar num mundo possível. .
A leitura de Mia Couto, sob o foco do realismo maravilhoso, revela que a construção
literária permissão ao universo das coisas naturais de engravidar do mundo sobrenatural; e
à esfera do irreal de conduzir à apreensão do real. Conforme aponta Chiampi (1980, p. 61), a
não oposição entre o real e o irreal constrói uma imagem orgânica do mundo, em que as
personagens “não se desconcertam jamais diante do sobrenatural”, nem capitulam frente a
incertezas trazidas pelo insólito. A corrida de Azarias ao encontro do ndlati o ilustra. A
percepção da contiguidade entre as esferas do real e do irreal, possibilitada pela coerência da
narrativa, provoca no leitor um efeito de encantamento” que exige do leitor uma poética
conforme expressão de Jorge Luiz Borges. (Apud CHIAMPI, 1980, p. 61). A presença do
sagrado nas narrativas maravilhosas não exige do leitor uma fé religiosa. A presença do
sagrado não “contaminao texto literário tornando-o sagrado. Os objetos, seres ou eventos
99
extraordinários, estranhos, insólitos característicos do universo do sagrado –, são, no
realismo maravilhoso, “destituídos de mistério, não duvidosos quanto ao universo de sentido a
que pertencem” (CHIAMPI, 1980, p. 59): o universo do literário. Ainda que permitam alguma
apreensão do real, são, na expressão de Fonseca et Cury (2008, p. 121), desconstruções do
real, em vista da construção do literário.
100
4 TRAVESSIAS
A viagem não começa quando se percorrem distâncias,
mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores.
A viagem acontece quando acordamos fora do corpo,
longe do último lugar onde podemos ter casa.
(Narrador de O outro pé da sereia, de Mia Couto)
O capítulo anterior, ancorado nas categorias de sacralidade e de função do sagrado na
construção diegética, dedicou-se à leitura de textos de Mia Couto, destacando dois aspectos de
sua narrativa, particularmente envolvidos pela linguagem do sagrado: a recriação literária das
tradições orais e a utilização do “real maravilhoso” na construção do espaço ficcional. Em
ambos os aspectos destacados, observou-se uma constante: a encenação de movimentos
característicos de hibridismos e mesclas de toda espécie, sempre marcados por tensões e
conflitos os mais variados. Em relação às tradições orais, o movimento encenado pelos textos
do escritor moçambicano avaliza a concepção de tradição como dinamismo, processo que se
recria e se refaz. Em relação ao “real maravilhoso”, o movimento se dá em direção a suplantar
as contradições entre os elementos tirados do mundo real e os considerados insólitos,
inusitados. Sempre misturados, tais elementos reforçam recursos característicos da construção
do literário.
Essa estratégia literária leva as personagens a transitar por espaços intervalares e
conviver com fronteiras sempre esgarçadas, estratégias que, certamente, podem ser apontadas
como uma marca da obra de Mia Couto. Considerando-se tais movimentos sob o foco do
sagrado, poder-se-ia referir a eles como a “viagens iniciáticas”. E tomando tal expressão como
uma categoria interpretativa, pode-se certamente utilizá-la como chave de leitura para vários
textos do escritor.
O conceito de viagem implica não a ideia de um deslocamento físico, como
também, ao possibilitar o encontro com o outro, a percepção do diferente e a descoberta de
que seu próprio mundo e sua cultura não são únicos. Referindo-se às relações entre a
antropologia e a literatura, Laplantine (2006, p. 174) lembra que “uma parte importante da
literatura mantém, como a etnologia, uma relação – por sinal extremamente complexa – com a
viagem. Inumeráveis são os escritores para os quais o próprio ato de escrever implica uma
101
situação de deslocamento.” Cita, a propósito, obras de Chateaubriand, Nerval, Baudelaire,
Antonin Artaud, e as do explorador de diversas regiões do continente africano, René Caillié,
além de vários outros escritores-viajantes, inclusive contemporâneos.
Os romances e contos de Mia Couto não se enquadram propriamente na chamada
literatura de viagem, como, por exemplo, O itinerário de Paris a Jerusalém, de
Chateaubriand, ou A viagem para Tombuctu, de Caillié. Essas clássicas obras de literatura
de viagem revelam certo interesse pelo exotismo do outro e certa satisfação complacente
diante de sociedades de vida mais simples, ainda que a experiência de aproximar-se do outro
enseje perguntas sobre o significado da “civilização”. Explica Laplantine: “Nesse espaço fora
do espaço e nesse tempo fora do tempo, libertado das obrigações da sociedade, [o escritor] faz
a experiência de uma felicidade e sobretudo de uma liberdade de que não suspeitava,
enquanto se interroga sobre sua própria identidade.” (LAPLANTINE, 2006, p. 175). Em Mia
Couto, de modo diverso, a categoria viagem diz respeito bem mais a uma viagem iniciática,
uma viagem de caráter religioso, em que a travessia dos lugares e tempos marca as
personagens não apenas com o conhecimento do novo, pois, amiúde, as submete a tensão e
dor.
Sob o foco das “viagens iniciáticas”, pode-se ler Terra Sonâmbula (2007), onde o
jovem Muidinga e o velho Tuahir, companheiros de viagem, vivem experiências concretas de
deslocamentos como se fossem rituais de iniciação. Conforme se aludiu no capítulo
anterior,
67
na encenação da postura bárdica de ler/narrar os cadernos de Kindzu e contar
outras histórias, as personagens a um tempo reconstroem e põem sob tensão temas e
valores da cultura tradicional moçambicana. Nesse movimento, a idéia de viagem está
figurada, desde o início do romance, pela estrada calcinada, pelo ônibus e pela clara indicação
do narrador, na frase inicial do romance: “Um velho e um menino vão seguindo pela estrada”
(TS, 2007, p. 9). Entretanto, trata-se de uma estrada morta e de um machimbombo
incendiado, metonímias das perdas e dores de uma terra conturbada pelas guerras, terra insone
e sonâmbula.
Como nos processos de iniciação, a viagem de Muidinga e Tuahir constrói-se
entrelaçada a mitos e rituais da tradição oral, guardados pela escrita nos cadernos de Kindzu.
Mesclam-se, nessa viagem iniciática, a busca de doçura e experiências de sofrimento e dor,
características de alguns rituais de passagem. Conforme observa Felizardo Cipire (1992, p.
23-27) e outros estudiosos de costumes e rituais africanos (Tempels, Asúa, Hampaté Bâ,
67
Cf. a seção 3.1.2 O aproveitamento performático do mito, do capítulo anterior.
102
dentre outros), os ritos de iniciação masculina nas comunidades tradicionais africanas ou
nos ambientes ainda marcados por sua influência circunscrevem-se à realização da
circuncisão e a todos os demais ritos, atividades e interdições a ela inerentes. Nos ambientes
tradicionais, até que se processem os ritos da circuncisão, as crianças e adolescentes ignoram
o que lhes vai acontecer, senão que colherão eles próprios o néctar na “festa do mel” alusão
velada e metafórica ao sangue que se verterá ao lhes ser cortado o prepúcio. Assim, a
promessa de doçura, expressa pelo clima de festividade e pela referência ao mel, cede lugar à
experiência da dor, oriunda do corte do prepúcio e presente no posterior processo de
cicatrização. Segundo os pesquisadores, não raro ocorrem infecções e mortes.
Conforme a descrição de Cipire (1992, p. 25-26), no período da convalescença, da
cicatrização do prepúcio, ou depois, os circuncidados recebem certo corpus de conhecimentos
relativos às tradições, usos e costumes que compõem o patrimônio cultural de seu povo. Entre
músicas, cantos e danças, aprendem os mitos e lendas que fundam a história de sua tribo.
Recebem um nome novo a aprendem também as regras de convivência para com os mais
velhos, para com as mulheres, a esposa, os filhos. Aprendem a se relacionar com o mundo
invisível dos espíritos e antepassados. Com a circuncisão e o aprendizado a ela inerente,
tornam-se, enfim, participantes do mundo dos adultos, cidadãos por inteiro, socialmente aptos
a participar de cerimônias fúnebres, a casar e constituir família.
Esse corpus pedagógico, que se recebe no processo dos ritos da circuncisão, pode ser
lido, em Terra sonâmbula (2007), na encenação das inúmeras histórias inscritas nos
cadernos de Kindzu, bem como no movimento de Tuahir e Muidinga em busca de caminhos.
Como nos ritos tradicionais, o processo se dá no isolamento dos matos. O machimbombo
incendiado, onde os dois se refugiam, recupera os sentidos alocados na palhota de capim dos
ritos iniciáticos, residência provisória partilhada pelos circuncidados, lugar onde se recebem
os ensinamentos tradicionais. Como acontece na palhota, sempre queimada após o ritual, os
viajantes recebem, no machimbombo calcinado, os ensinamentos guardados nos cadernos de
Kindzu e com eles se preparam tanto para continuar a viagem, quanto para se inteirar dos
costumes e tradições que a guerra destruiu.
A estrutura diegética tecida como figuração de uma viagem iniciática pode ser vista
também n’O último vôo do flamingo (2005). No romance, Massimo Risi, italiano, membro
da delegação estrangeira encarregada de investigar os estranhos arrebentamentos de soldados
das forças de paz da ONU, perde-se em tensões e conflitos interiores, frente a inúmeros
acontecimentos e situações que sua lógica “de fora” não permite compreender. Entretanto,
como numa iniciação, o estrangeiro se abre à escuta de seus diferentes interlocutores: o jovem
103
tradutor oficial de Tizangara, a moça-velha Temporina, o aparentemente lunático padre
Muhando, o sábio velho Sulplício, cada um deles oferecendo alguma dose dos ensinamentos
tradicionais. Ao passar por essa educação completa” conforme expressão de Cipire (1992,
p. 25)
68
– Risi amadurece suas percepções do mundo africano.
Semelhante estrutura narrativa pode ser encontrada também em A varanda do
frangipani (2007). Nesse romance, o falecido carpinteiro Ermelindo Mucanga faz a travessia
de volta ao mundo dos viventes e ocupa o corpo do inspetor de polícia Izidine Naíta. Sua
missão será investigar o assassinato de Vasto Excelêncio, o mulato que fora diretor do asilo
de velhos em que se transformara uma antiga fortaleza colonial. Sobre esse cenário de fundo
se organiza a narrativa para encenar o aprendizado do inspetor Izidine. Entre “labirintos e
embaraços” (VF, 2007, p.19), imbricados com as sucessivas e contraditórias confissões dos
moradores do asilo, emergem os saberes da tradição. Na escuta atenta dessas vozes, logra-se
reconhecer o “sotaque do chão” (VF, 2007, p. 143).
Os ambientes tradicionais e os ritos iniciáticos demarcam a passagem da infância ao
mundo dos adultos em muitas culturas africanas. Mia Couto retoma esses processos de
travessia em direção à maturidade, encenando-os no espaço da literatura sem contudo
desprezar o viés político com que alude à autonomia da nação. Inverte todavia a perspectiva e,
ao invés de destacar os empenhos e responsabilidades próprios da idade adulta, assinalados
pelos ritos de iniciação, atribui às vozes do universo tradicional, ainda que febris e afásicas, e
a seus dinâmicos movimentos, ainda que desnorteados, as cores dos sonhos infantis. Nessa
perspectiva pode-se ler o finalzinho do capítulo de Terra sonâmbula (2007), que encerra (ou
dá início?) à viagem de Muidinga e do velho Tuahir:
As ondas vão subindo a duna e rodeiam a canoa. A voz do miúdo quase não
se escuta, abafada pelo requebrar das vagas. Tuahir está deitado, olhando a água a
chegar. Agora, já o barquinho balouça. Aos poucos se vai tornando leve como
mulher ao sabor de carícia e se solta do colo da terra, já livre, navegável. Começa
então a viagem de Tuahir para um mar cheio de infinitas fantasias. Nas ondas estão
escritas mil estórias, dessas de embalar as crianças do inteiro mundo. (TS, 2007, p.
195-196).
No conto Nas águas do tempo, que abre a coletânea de Estórias abensonhadas (1996,
p.9-13), encontra-se o que se pode considerar uma narrativa paradigmal, se se quer cunhar a
ideia de uma viagem iniciática. A travessia dos tempos e das gerações é metaforizada no
movimento das águas e nas viagens do pequeno concho ao grande lago. A comparação se
68
A ideia de educação completa, referindo-se aos processos de iniciação, encontra-se também em Hampaté
(1982), Honorat Aguessy (1977) e outros.
104
torna ainda mais expressiva quando se lhe acrescenta o movimento da memória: “Enquanto
remava um demorado regresso, me vinham à lembrança as velhas palavras de meu velho avô:
a água e o tempo são irmãos gêmeos, nascidos do mesmo ventre.” (p. 13).
O espaço onde se encenam os movimentos de travessia, o grande lago, se descreve
como sagrado: “lugar proibido” (p. 11), lugar de “receáveis aléns” (p. 11). “Tudo em volta
mergulhava em cacimbações, sombras feitas da própria luz, fosse ali a manhã eternamente
ensonada. Ficávamos assim, como em reza, tão quietos que parecíamos perfeitos.” (p. 10) A
sacralidade do grande lago é ainda reforçada pela idéia de que “aquele era o lugar de
interditas criaturas” (p. 10), moradia do namwetxo moha, o fantasma feito de metades.
Ademais, dos caniçais à margem do lago nascera o primeiro homem. A referência a estórias
fantásticas e à origem do homem lembra as narrativas míticas associadas aos ritos de
iniciação. A menção do tambor, instrumento sagrado, a cuja batida se compara o som
produzido pelos pés ao entrar na canoa, acrescenta importante componente ao cenário do lago
como um lugar de iniciação.
Entretanto, é na repetida alusão aos sonhos e aos acenos de panos brancos, da outra
margem do mundo, que o conto ganha definitivamente os contornos de uma viagem iniciática.
As palavras do avô, lembradas pelo neto, destacam sobejamente esse movimento, essa
viagem, de aprender a ver o que está além, na outra margem:
Nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos. O
que acontece, meu filho, é que quase todos estão cegos, deixaram de ver esses
outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses que nos acenam da outra margem. E
assim lhes causamos uma total tristeza. Eu levo-lhe nos pântanos para que vo
aprenda a ver. Não posso ser o último a ser visitado pelos panos. (Est.Aben., 1996,
p. 12).
Os processos iniciáticos – a circuncisão e os ritos e ensinamentos a ela correlacionados
– representam um dos mais importantes traços da cultura tradicional. Constituem sofisticado e
complexo mister pedagógico, sendo compreendidos, em todos os seus aspectos, em relação
com o sagrado. Tomados, pois, sob tal faceta, os ritos de iniciação organizam-se como
atividade religiosa.
Contudo, esse componente de participação no sagrado, de que se revestem os ritos de
iniciação, se explicita talvez de modo ainda mais profundo na idéia de abertura ao novo,
de abertura ao mistério da existência. Assim, na dinâmica da mesma existência levada a rio
que se pode compreender como uma travessia iniciática descobre-se dentro de si mesmo
“o rio que nunca haverá de secar”. Aprende-se a ser, como a personagem do avô, “um homem
105
em flagrante infância, sempre arrebatado pela novidade de viver”. (Est.Aben., 1996, p. 9).
Aprende-se e ensina-se a “vislumbrar os brancos panos da outra margem”. (Est.Aben., 1996,
p. 13). Em sentido muito amplo, essa atitude dinâmica do homem, frente aos rumos
fundamentais de sua existência, constitui sua fé. Nesse sentido, a atitude religiosa
fundamental confunde-se, como na imagem do avô nesse conto, com a disponibilidade ao
viver.
Diante dos temas e artifícios que constroem a obra de Mia Couto, no sentido de
encenar trânsitos que podem ser associados ao imaginário relacionado aos processos
iniciáticos, procura-se destacar, neste novo capítulo, alguns aspectos que se referem a
mudanças e passagens. São muitas as travessias figuradas na obra do escritor: da cultura
ancestral ao moderno, do lugar ocupado pela cultura europeia, particularmente a portuguesa,
ao da afirmação da cultura africana/moçambicana, da condição colonial à autonomia política,
do exótico e falso “africano essencial” às mesclas e alterações, do mundo dos vivos ao mundo
dos mortos e vice-versa. Também nessas travessias o sagrado ocupa lugar destacado. O
capítulo se ocupará dessas questões levando em consideração particularmente os dois
romances que constituem o objeto principal da pesquisa.
Em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2003), o desmoronamento do
espaço/tempo e a tarefa de salvar a terra e arrumar um lugar para as tradições oferecem um
possível fio condutor de leitura do romance. Aí, a sacralidade do tempo e do espaço aparece
com toda força. Marianinho o neto não iniciado e, no entanto, encarregado de manter a
tradição familiar metaforiza a mescla entre a ancestralidade e a modernidade. O rapaz saíra
de sua ilha natal e se tornara citadino. Atravessa agora o rio/tempo, em retorno à terra/casa de
seus antepassados, para “mestrar a cerimônia” do enterro do avô Mariano.
Inúmeros outros elementos do romance podem ser correlacionados com o atravessar
maior do rio do tempo. Assim, Dito Mariano transita entre o tempo/terra dos vivos e o dos
falecidos; o goês Amílcar Mascarenha, entre a medicina e a bebida; padre Nunes, entre as
rezas e a política. Espaços, tempos, personagens, ações, diálogos tudo pode ser lido à luz
desses “atravessamentosque, por exemplo, deslugareja” o padre do recinto da igreja e o
desloca para a beira do rio, em evidente mistura de espaços sagrados português e africano.
Também O outro pé da sereia (2006) apresenta-se reiteradamente marcado pelas
travessias, a começar pelo recontar da viagem do jesuíta D. Gonçalo da Silveira, de Goa a
Moçambique, com o propósito de “realizar a primeira incursão católica na corte do Império
do Monomotapa”. (OPS, 2006, p. 51). Em diálogo com o tempo histórico determinado
daquela viagem missionária (janeiro de 1560 a março de 1561), o romance situa o tempo atual
106
da ação em dezembro de 2002. Ambos os tempos são construídos, literariamente, pela
temática de uma peregrinação cujo “símbolo maior” é uma imagem amputada de Nossa
Senhora vista como Kyanda pelo olhar africano. A personagem da ação que se passa no
presente busca um lugar para abrigar a santa. Sugestivamente essa personagem chama-se
Mwadia, que quer dizer canoa. Na viagem em busca de uma morada para a santa, Mwadia faz
a travessia de Antigamente, o lugar onde mora, a Vila Longe, vilarejo que serve de cenário a
boa parte da narrativa. Aí, para desincumbir-se da tarefa de fingir possessões diante dos
estrangeiros que visitam África, Mwadia atravessa os tempos e visita os antepassados (ou é
visitada por eles) através da leitura de antigos documentos coloniais.
Outros elementos do romance podem ser focados sob o mote da travessia. Dentre
outros: a viagem do americano Benjamin Southman em busca de suas ancestrais origens; o
confronto entre o americano, em busca de sua africanidade essencial, e o barbeiro Arcanjo
Mistura, que aponta os equívocos daquela busca; o abandono do “lugar missionário” e a
adoção de costumes nativos pelo padre Manuel Antunes.
Ademais, a leitura sinótica dos dois romances permite ainda identificar/construir
extensa série de elementos em comum: a sacralidade da terra, a sacralidade do rio, a poluição
dos espaços sagrados pelo sexo ou pela nudez, as funções rituais desempenhadas por Mwadia-
canoa e por Marianinho, a presença politiqueira e enganadora de Tio Ultímio ou de Tio
Casuarino, a “impresença” de Tio Abstinêncio ou de Zero Madzero, as vozes discordantes de
Arcanjo Mistura e Fulano Malta, ambos críticos veementes da politicagem, a
“desimportância” de Antigamente, de Vila Longe e de Luar-do-Chão, os dialetos da miséria
de Nyembeti, a irmã do coveiro, e de Miserinha, a luta dos feiticeiros Lázaro Vivo e Muana
wa Nweti, pela sobrevivência de seus espaços, a busca por decifrar escritas enigmáticas.
Todos esses elementos convergem em direção ao movimento maior que entrelaça tradição e
modernidade, vida e morte, antigo e moderno, dependência colonial e autonomia política.
O capítulo focará, nos dois romances citados, em três seções, o tema da travessia: a
travessia dos mortos, a travessia do tempo, o trânsito das identidades. A primeira seção
percorre, em particular, os capítulos de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra
(2003), apontando aspectos do imaginário sobre a morte e o morrer. A segunda seção destaca,
na leitura dos dois romances, as marcas literárias relativas ao tempo. A última seção busca
apontar, principalmente a partir de algumas personagens de O outro da sereia (2006), a
dinâmica das buscas identitárias. Desnecessário lembrar que os três aspectos estabelecem
estreitas correlações com o âmbito da religião e do sagrado.
107
4.1 A travessia dos mortos
A maior aspiração do homem não é voar. É visitar o mundo dos mortos e regressar,
vivo, ao território dos vivos. Eu me tinha convertido num viajante entre esses
mundos, escapando-me por estradas ocultas e misteriosas neblinas. Não era João
Celestioso que tinha ultrapassado a última montanha. Eu também tinha estado lá.
(RCT, 2003b, p. 258).
A passagem, que vale por uma epígrafe, encontra-se nas últimas páginas de Um rio
chamado tempo, uma casa chamada terra (2003). Resume o percurso do narrador em torno
do tema da morte. De fato, no romance, a começar das primeiras epígrafes, o tema ocupa
lugar de destaque. A morte do avô Mariano, o mais velho do clã Malilane, as dúvidas quanto
a seu estado de morto, as dificuldades para enterrá-lo e, finalmente, seu enterro – tudo narrado
pelo neto Marianinho – oferecem um possível fio condutor para a leitura do romance.
O interesse da narrativa, construído em torno da dúvida acerca de o avô ter ou não ter
morrido, correlaciona-se com o imaginário do homem africano tradicional. Nesse contexto,
estar “bem morrido” coloca-se como condição fundamental para o ingresso no mundo dos
antepassados familiares, mantendo os laços que os unem ao mundo dos vivos. Conforme nos
explica Boaventura Cardoso, nos ambientes tradicionais, compreende-se que
a passagem de defunto a antepassado não é automática, para além de requerer
determinadas condições e requisitos. Regra geral, as pessoas que morrem de uma
“mauvaise mort”, isto é, de uma morte em anomia, não conforme as normas de
lugar, de tempo e de modalidade, dificilmente ascenderão ao estádio de
antepassados, o mesmo acontecendo com os defuntos a quem não tenham sido
consagrados os devidos rituais funerários. (CARDOSO, 2009, p. 101).
No romance, ao fio de miçangas feito das inúmeras dúvidas em torno da morte do avô,
acrescentam-se, imbricadas com a morte do mais velho, os fios de outras mortes: a de
Mariavilhosa, mãe de Marianinho, afogada no rio Madzimi, a do seu filho natimorto, a de
Juca Sabão, assassinado por traficantes, a de todos os passageiros do barco Vasco da Gama,
naufrágio do qual se salvou apenas um enigmático burro.
Os termos morrer, morte e morto com seus sinônimos e correlatos falecer, defunto,
cadáver, enterro, funeral aparecem no romance nada menos que 250 vezes. Sem contar as
referências à morte através de inúmeras outras expressões metafóricas: “findamento”,
“desfecho”, “apagar-se”, “comum fim de viagem”, “atravessar da última fronteira”. Esse dado
sugere que a morte configura o tema central da narrativa. Contudo, para além do interesse
108
temático limitado ao estrito evento da morte e do morrer, o dado aponta para um aspecto mais
amplo, traço característico da cultura tradicional africana: a relação entre o mundo dos vivos e
o dos defuntos. Referindo-se à relação com o mundo dos que morreram, José Boaventura
Cardoso explica que
O culto aos antepassados decorre da necessidade vital que o africano sente de se
manter em contato com o mundo invisível onde eles habitem. É um culto que exalta
a solidariedade comunitária, a vida em comunhão com os outros, em que as
oferendas aos antepassados m mais o significado de reactualização de um laço
familiar do que propriamente de um culto na perspectiva cristã. (CARDOSO, 2009,
p. 100).
Compreendida sob esse foco, a morte do avô Mariano apresenta-se imbricada com
toda a dinâmica da vida de Luar-do-Chão. Ainda que tema central na condução da narrativa, a
morte não é, pois, seu único assunto. Assim, entrelaçadas às dúvidas e discussões sobre a
morte de Mariano, o romance fala de seus amores: a avó Dulcineusa, a esposa oficial, Tia
Admirança, a preferida, Miserinha, a abandonada. Constrói detalhada memória sobre os
filhos: Abstinêncio, o tímido servidor público, Fulano Malta, o frustrado guerrilheiro,
Ultímio, o vaidoso novo rico. Tece a história dos amigos e de outros membros da
comunidade: Nunes, o padre que “deslugarejou” da igreja, Amílcar Mascarenha, o médico
goês beberrão, Juca Sabão, o coveiro assassinado, seu filho Curozero Muando, também este
coveiro, Nyembeti, com quem Marianinho faz amor em sonhos, João Felizbento, o catador de
papéis, João Celestioso, o mecânico, João Loucomotiva, o aposentado da via férrea, Tuzébio,
o taberneiro. Também os amores, os desejos, a camaradagem, as intrigas, os ódios que
constroem as relações entre elenco tão rico de personagens tudo marcado pela voz de um
narrador ora onisciente, ora néscio, ainda que assessorado por enigmáticas cartas “escritas
pelas falas do defunto – dão especial “vitalidade” ao esconde-revela da narrativa de Couto.
Acrescente-se a isso a minuciosa descrição do espaço-tempo da vila de Luar-do-Chão,
da casa mãe Nyumba-Kaya e do rio Madzimi e já se pode colocar em questão o asserto de que
a morte ocupa o posto de principal assunto. Alguns capítulos do romance, é certo, desfocam a
atenção do defunto Mariano e do tema da morte. Mas a suspeita não vem daí. Nasce, talvez,
de uma concepção ocidental de morte enquanto fim, em oposição à vida. Uma concepção
tradicional de morte, mais característica da cultura africana, talvez possa ser extraída do
próprio romance: “Em África, os mortos não morrem nunca. [...] Afinal, a morte é um outro
nascimento.” (RCT, 2003b, p. 30).
109
A relação dinâmica entre os vivos e os mortos talvez constitua um dos elementos mais
característicos do imaginário sobre a morte nas culturas tradicionais, em geral. Referindo-se à
cultura tradicional banto, Asúa afirma que a morte se compreende como acontecimento brutal
e, ao mesmo tempo, familiar. Enquanto elemento desagregador da vida social, a morte
patenteia uma ão hostil, dolorosa, denunciadora de ameaças para a comunidade, que
acarreta, enfim, uma diminuição da vida. Mas é na morte que se reconstrói o círculo vital
comunitário, que une o defunto aos antepassados. Explica Asúa:
A morte é misteriosa na sua causa, mas realizadora duma vida nova. [...] Depois da
morte encontrar-se-ão com os antepassados e continuarão unidos aos vivos. A
solidariedade não se dilui, viverão em família. A morte é uma viagem. No termo
voltarão a encontrar os seus, já que os laços vitais não se rompem. Vive-se morrendo
e morrendo vive-se. [...] Fatalismo irremediável, resignação, gozo pela passagem,
diminuição do ser, mistério e absurdo, desgraça, impotência, transtorno social,
consumação, nova realização individual e comunitária, revolta perante um violento
desastre antinatural, segurança, receio? Nenhuma destas definições esgota o
sentimento banto ante a morte, mas parece que, no seu conjunto, a definem.
(ASÚA, 1985, p. 437).
Um rio chamado tempo
69
(2003) traz um grande número de elementos que referem
ritos, interditos e imaginários sobre a morte e o morrer. Alguns exemplos: Tirar o telhado da
sala onde se encontra o morto. “É assim, em caso de morte. O luto ordena que o céu se
adentre nos compartimentos, para limpeza das cósmicas sujidades.” (RCT, 2003b, p. 28). A
incumbência do filho mais velho de anunciar a morte do pai. (RCT, 2003b, p. 15). A
iniciação, marcada pela circuncisão, como exigência para participar das cerimônias fúnebres.
(RCT, 2003b, p. 31-32). A interdição de não fazer amor em tempo de luto. (RCT, 2003b, p.
55; p. 112). A concepção de que os natimortos e os que morrem de morte violenta, os mal-
morridos, não deixam chover. (RCT, 2003b, p. 238). O costume de enterrar um caniço à
cabeceira da tumba para repetir a origem do Homem. (RCT, 2003b, p. 240).
Alguns desses costumes e imaginários, descritos no romance, encontram confirmação
em pesquisas antropológicas sobre a cultura africana. Referindo-se aos ritos fúnebres dos
banto, Asúa afirma que
são, junto com os ritos de puberdade, as cerimônias religiosas e os ritos melhor
observados e solenizados da sociedade banto. Como os ritos de iniciação, estão
cheios de conteúdo religioso, aparato litúrgico e participação comunitária. Nos ritos
fúnebres, nos quais sem desculpa devem participar todos os familiares e aos quais se
junta a comunidade, os banto patenteiam as suas raízes culturais, fundamentos
filosóficos, ‘dogmas’ religiosos e celebram com solenidade o mistério da vida
69
Por comodidade, o romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2003) será algumas vezes
citado apenas pela primeira parte de seu título.
110
participada. Nenhum outro rito chega a atingir a sua transcendência. Caracterizam as
suas crenças e consolidam um dos valores religiosos mais preciosos: a certeza da
sobrevivência do homem no além-túmulo.
[...] O seu valor principal radica em que os consideram ‘ritos de passagem’ porque
condicionam o trânsito normal deste mundo para o lugar onde o defunto continuará a
sua existência. Pelo nascimento, o banto ‘passou a este mundo e pelos ritos de
puberdade à sociedade. Pelos ritos fúnebres se restabelece a comunhão que lhe
assegura a sobrevivência. (ASÚA, 1985, p. 445).
Sobre o sentido da morte nas sociedades arcaicas, afirma Eliade:
O homem das sociedades primitivas esforça-se por vencer a morte transformando-a
em ‘rito de passagem’... sempre se morre para alguma coisa que não era essencial,
morre-se sobretudo para a vida profana... a morte vem a ser considerada como a
suprema iniciação, como o começo duma nova existência espiritual. Melhor ainda,
geração, morte e regeneração (re-nascimento) concebem-se como três momentos
dum mesmo mistério, e todo o esforço do homem arcaico vai para demonstrar que
entre este momentos não deve existir ruptura. Ninguém pode parar em nenhum
destes três momentos. (ELIADE. Apud ASÚA, 1985, p. 440).
Em correlação ao imaginário da cultura tradicional acerca dos rituais em torno da
morte, o romance, referindo-se à casa grande da família, comenta, na voz do narrador: “Uma
vez mais, matrona e soberana, a Nyumba-Kaya se ergue de encontro ao tempo. Seus antigos
fantasmas estão, agora, acrescentados pelo espírito do falecido avô.” (RCT, 2003b, p. 29). E
referindo-se à movimentação de gente, o narrador descreve: “No quintal e no interior da casa
tudo indicia o enterro. Vive-se, até ao detalhe, a véspera da cerimônia. Na casa grande se
acotovelam os familiares, vindos de todo o país. Nos quartos, nos corredores, nas traseiras se
aglomeram rostos que, na maior parte, desconheço.” (RCT, 2003b, p. 29).
Outro elemento, presente no romance e respaldado pela etnologia, diz respeito às causas
da morte. Asúa afirma que as mortes, em sua maioria, são atribuídas à ação mágica, sendo sua
origem mais comum a feitiçaria.
“O banto acredita que algum membro da comunidade, dotado de poderes mágicos ou
que deles se apoderou, fulmina a vítima e permanece oculto. Como a maioria das
mortes são atribuídas à magia desvirtuada, o adivinho deve personalizar a causa,
identificar o culpado, analisar as suas motivações e ditar o castigo, a reparação ou a
aplacação.Afirma ainda que “abunda a vingança mortífera do veneno.” (ASÚA,
1985, p. 441).
O romance refere-se ao medo da avó Dulcineusa de ser alcunhada de feiticeira (RCT, 2003b,
p. 35), ao cheiro de veneno farejado pelo médico (e não por um adivinho) na boca do defunto
(RCT, 2003b, p. 38), à suspeita de feitiço pelo fato do corpo de Mariano amanhecer fora do
caixão (RCT, 2003b, p. 41), à confissão de Dulcineusa de que matou o marido por causa das
amantes (RCT, 2003b, p. 92). Ainda em correlação às observações do missionário Asúa
111
(1985) sobre os significados da morte e seus rituais, outro exemplo, no romance, descreve
com minúcias o luto de Mariaviolhosa. Porque lhe sucedera parir um ximuku, um natimorto,
ela se torna “mulher condenada, portadora de má sorte e vigiada pelos outros para não
espalhar sua sina pela vila”. (RCT, 2003b, p. 231). Detalha o narrador:
Minha mãe ficara em estado de impureza. Meu pai se opusera ao completo exercício
da tradição. Todavia, dentro dele havia ainda algum resistência a virar página sobre
os antigos preceitos. Mariavilhosa estava interdita de pegar em comida. Evitava
entrar na cozinha. O simples segurar de um pano a obrigava a purificar as mãos.
Dizia-se que devia ‘queimar’ as mãos. Aquecia os braços numa chama da fogueira
para que os laivos da desgraça não conspurcassem os alimentos. Devido a essa
exclusão da cozinha eu não me recordava dela, rodopiando com as demais mulheres
junto ao fogão. Até no falar ela seguira o tradicional mandamento. Mariavilhosa
falava baixo, tão baixo que nem a si se escutava. Não mais ela ajudou nos campos.
Sua impureza podia manchar a terra inteira e afligir a fecundidade das machambas.
Minha mãe acabara sucumbindo como o velho navio de carga. Transportava
demasiada tristeza para se manter flutuando. (RCT, 2003b, p. 231).
Os exemplos poderiam ser multiplicados. Importa, no entanto, considerar a narrativa de
Couto não como um estrito “documento”, de interesse à antropologia ou às ciências das
religiões, capaz de ilustrar o imaginário tradicional africano sobre a morte e o morrer.
Certamente, como foi apontado acima, encontram-se no romance muitos elementos da
cultura tradicional relativas à morte e a seus ritos. Interessa, no entanto, mais que isso,
verificar como o romance de Mia Couto ficcionaliza aqueles ritos e aquele imaginário sobre a
morte.
Um primeiro aspecto a observar, nesse sentido, diz respeito às construções literárias
com as quais o autor refere a morte, ora através de graciosas metáforas, ora na invenção de
novos nomes para dizê-la, ora no tom jocoso com que trata o assunto. Alguns exemplos:
Expressando seu sentimento de perda do avô, Marianinho reflete: “A morte, essa viagem sem
viajante, ali estava a dar-nos destino.” (RCT, 2003b, p. 18). Em outra passagem, o sentimento
pela morte do avô se expressa em termos de não mais ouvir sua fala: “Custa-me vê-lo
definitivamente deitado, dói-me pensar que nunca mais o escutarei contando histórias.”
(RCT, 2003b, p. 43). Abundam as passagens em que o imaginário sobre o morrer adota a
forma de “brincadeira com palavras”, típica do escritor moçambicano. Assim, o romance
refere-se ao defunto Mariano como ao amortecido avô” e, por causa da dúvida se estava
morto, nas palavras profissionais do médico Amílcar Mascarenha, Mariano será um “portador
assintomático de vida”. (RCT, 2003b, p. 37). Tendo o avô morrido quando a família se
reunira para posar para uma fotografia, o narrador prefere recorrer à indicação de que seu
coração se suspendera em definitivo retrato”. (RCT, 2003b, p. 57). Frente ao duvidoso
112
desfecho da morte do velho, o narrador pergunta se para o avô se emitirá uma “incertidão de
óbito”. (RCT, 2003b, p. 113). E ainda: “Para Dito Mariano, com sua grande preguiça, morrer
devia ser muito trabalhoso.” (RCT, 2003b, p. 183).
Em certas passagens, além do característico recurso de brincar com as palavras, o
imaginário sobre a morte se amplia e se reinventa pelo jogo de relações entre as personagens.
Assim, por exemplo, referindo-se ao desejo da viúva, de que Mariano fosse abençoado pela
religião católica, a narrativa se constrói assim:
Logo na primeira noite após a sua morte, depositaram Dito Mariano num caixão.
Sobre aquela mesma mesa o encaixotaram, acreditando ter ele superado a última
fronteira. A Avó Dulcineusa intentou chamar o padre. Mas a família, razoável, se
opôs. O falecido nunca aceitaria óleos e rezas. Respeitassem esse descrer.
Dulcineusa não respeitou. A coberto da noite, ela se infiltrou na casa acompanhada
pelo padre. E olearam o defunto, tornando-o escorregadio para as passagens rumo à
eternidade. (RCT, 2003b, p. 41. Cf. também p. 89).
Outro exemplo semelhante pode ser encontrado no diálogo entre Marianinho e o coveiro
Curozero Muando:
– É a mim que vem procurar? [pergunta o coveiro]
– Sim, há outro coveiro por aqui?
– No outro lado do céu existem também os coveiros. Ou melhor, os descoveiros.
Despreza a minha ignorância. Que eu não sabia que a gente enterra aqui os
mortos e eles, lá, nos aléns, os desenterram e os celestiam. (RCT, 2003b, p. 157).
momentos, no romance, em que as falas sobre a morte adquirem tom reflexivo,
sapiencial:
Visto de mais perto, o Aparece apenas descansar. No sono engendra um outro
sono, o fatal fingimento da morte? Ou tivesse no escuro interior de si uma morte
verdadeira mas insuficiente? Certo, sim, ele dava desacordo de si. E até, salvo seja,
um riso lhe transflora nos lábios. Como se fosse uma vigília às avessas, como se ele,
divertido, nos presenciasse já falecidos. (RCT, 2003b, p. 42).
Ou ainda: “– Em velho, é o que mais tememos: a queda! Não é a queda no escuro da cova.
Mas o cair no próprio passo, como se o osso obedecesse à convocatória do chão.” (RCT,
2003b, p. 85). Ou o imaginário que mescla elementos da tradição africana e do culto católico:
A cruz, por exemplo, sabe o que me parece? Uma árvore, um canhoeiro sagrado
onde nós plantamos os mortos.
A palavra que usara? Plantar. Diz-se assim na língua de Luar-do-Chão. Não é
enterrar. É plantar o defunto. Porque o morto é coisa viva. E o túmulo do chefe de
família como é chamado? De yindlhu, casa. Exactamente a mesma palavra que
designa a moradia dos vivos. (RCT, 2003b, p. 86).
113
No entrelaçar de todas essas construções, e para além delas, a morte de avô Mariano
indicia metonimicamente a morte de Luar-do-Chão. na primeira página do romance, na
travessia de barco que o leva à ilha natal, reflete o neto-narrador: “Cruzo o rio, é quase
noite. Vejo esse poente como o desbotar do último sol. A voz antiga do Aparece dizer-me:
depois desse poente não haverá mais dia. E o gesto gasto de Mariano aponta o horizonte: ali
onde se afunda o astro é o mpela djambo, o umbigo celeste.” (RCT, 2003b, p. 15). Evidencia-
se aí a correlação entre a morte do avô e o poente.
Referindo-se aos cultos solares, Eliade descreve o domínio das crenças funerárias em
que o sol torna-se “protótipo do morto que ressuscita a cada manhã”. Explica o autor: “Se
bem que imortal, o Sol desce todas as noites ao reino dos mortos; ele pode levar consigo
homens e, ao pôr-se, dar-lhes a morte; mas, ao mesmo tempo, ele pode, por outro lado, guiar
as almas através das regiões infernais e no dia seguinte trazê-las para a luz.” (ELIADE, 1993,
p. 113). Conforme Asúa, ainda que não tenham mitos nem crenças astrais, os banto, na maior
parte das vezes, enterram seus cadáveres na orientação este-oeste. (Cf. ASÚA, 1985, p. 450).
No romance, as falas do coveiro Curozero Muando associam a morte ao sol: “A morte, sim,
era o intensíssimo clarão, o deflagrar de estrela. Um sol entrado na vista, ao ponto de tudo ser
visível por sombra.” (RCT, 2003b, p. 162). Tais falas do romance, mais a referência ao
poente e ao umbigo celeste, associadas ao testemunho de Asúa, podem certamente ser
interpretadas sob o foco das crenças astrais. Mas talvez não seja necessário percorrer esses
meandros.
Uma leitura mais simples e, talvez, mais de acordo com a cultura tradicional africana,
pode ser sustentada sobre o imaginário religioso da vitalidade, da qual participam todos os
elementos do mundo visível e do invisível. Tudo, pois, de algum modo, participa da morte de
Mariano. Ou, expresso de outro modo, a morte do velho Mariano metaforiza a morte da ilha
de Luar-do-Chão. Inúmeras passagens podem ser lidas sob tal foco. A primeira descrição
física da vila diz que “as casas de cimento estão em ruína, exaustas de tanto abandono. o
são apenas casas destroçadas: é o próprio tempo desmoronado.” (RCT, 2003b, p. 27). Em sua
falsa demência, a Avó Dulcineusa reclama: “Não pessoa viva na nossa terra. É tudo um
cemitério. Um cemitério é tudo o que agora. [...] falecidos, falecidos.” (RCT,
2003b, p. 44). Frente aos sinais de decadência, o narrador estabelece expressamente a
correlação entre a morte do Avô e a ruína da ilha: “Custa a ver o tempo falecer assim.
Levassem o passado para longe, como um cadáver. E deixassem-no lá, longe das vistas,
esfarelado em poeira. Mas não. A nossa ilha está imitando o Avô Mariano, morrendo junto a
114
nós, decompondo-se perante o nosso desarmado assombro.” (RCT, 2003b, p. 91). A tristeza
de Tia Admirança é assim descrita: “No fundo, ela sabia que, com o desaparecimento do
velho Mariano, todas as certezas ganhavam barro em seus alicerces. Se adivinhavam o
desabar da família, o extinguir da casa, o desvanecer da terra.” (RCT, 2003b, p. 147).
A morte de Luar-do-Chão, cristalizada no findar do Avô Mariano, suplanta finalmente
o campo mágico-religioso e busca explicação no âmbito da política, na frustração das
promessas da independência, na morte dos ideais políticos, na ganância dos novos ricos.
Assim, ao referir-se ao desmoronamento das casas e do tempo, o narrador completa: “Ainda
vejo numa parede o letreiro já sujo pelo tempo: ‘A nossa terra será o túmulo do capitalismo’.”
(RCT, 2003b, p. 27). Ou o “resto de pintura, em letra quase ilegível”, pintado pelo médico
goês: ‘Abaixo a exploração do homem pelo homem.’ (RCT, 2003b, p. 114). Sobre o processo
da revolução e os homens da política, o narrador resume: “Começamos por pensar que são
heróis. Em seguida, aceitamos que são patriotas. Mais tarde, que são homens de negócios. Por
fim, que não passam de ladrões.” (RCT, 2003b, p. 223). Metaforicamente, o romance associa
a Independência da nação ao nascimento do natimorto de Mariavilhosa: “Podia ser estranho,
mas o parto – chamemos parto àquele acto vazio – se deu na noite da Independência.” (RCT,
2003b, p. 191).
Também a desobediência às tradições se coloca nas trilhas de explicação da morte de
Luar-do-Chão. Assim, o novo rico Ultímio é acusado pelos irmãos de esquecer a família,
devastar a ilha e pretender vender a Nyumba-Kaya. Algumas vezes, entretanto, a quebra de
tradições sugere vida. Assim, ainda que o luto obrigue os cônjuges dos falecidos a despojar-se
de vestidos luxuosos e cobrir-se de panos humildes (cf. Asúa, 1985, p. 453), Dulcineusa
enverga antigos e arrojados vestidos, perfuma-se e provoca Mariano, com a desculpa de
certificar-se de seu falecimento. (Cf. RCT, 2003b, p. 129). Fulano Malta, em seu amor por
Mariavilhosa, que ficara em estado de impureza por causa do natimorto, “opõe-se ao
completo exercício da tradição”. (RCT, 2003b, p. 231).
Rompendo com o interdito de que não pode haver namoro em tempo de luto,
Marianinho e Nyembeti fazem amor. E por força do amor, a terra, que antes se tornara dura,
amolece, permitindo a travessia do Avô ao mundo dos antepassados. Interrogada acerca de
como encontrara um solo fofo para enterrar o defunto, Nyembeti nega. Comenta o narrador:
Os lugares não se encontram, constroem-se. A diferença daquele chão não estava na
geografia. [Nyembeti] apontou para nós dois e embrulhou as mãos para, em seguida,
as levar ao coração. Ela queria dizer que a terra ficou assim porque nela nos
amáramos? Seria o amor que reparara a terra? Fazer do chão um leito nupcial, seria
115
isso que amoleceria a terra e nos punha de bem com a nossa mais antiga morada?
(RCT, 2003b, p. 189).
A última carta de Dito Mariano tece, com beleza ímpar, a concepção tradicional da
totalidade da existência, em que vida e morte se imbricam e se conjugam. Ela encerra, como
que enlaçando as pontas de inúmeros fios, desatados de seus nós ao longo do romance, a
história de Luar-do-Chão. Diz um trecho da carta:
Todos necessitam de grandes causas, precisam de ter pátria, ter Deus. Eu não.
Me bastou ter esta árvore. Não é dessas de se domesticar em jardim. Esta árvore, tal
como eu, não tem cultura ensinada. Aprendeu apenas da embrutecida seiva. O que
ela sabe vem do rio Madzimi. Longe do rio, a maçaniqueira morre. É isso que a faz
divina. Foi por isso que sempre rezei sob esta sombra. Para aprender de sua
eternidade, ganhar um coração de longo alcance. E me aprontar a nascer de novo,
em semente e chuva. (RCT, 2003b, p. 259).
A morte do avô pode ser vista, na macronarrativa de Um rio chamado tempo (2003),
como um mote para que questões de vida e de morte que envolvem a ilha de Luar-do-Chão,
porque aparentemente mortas, porque ocultas, venham à tona. Nesse emergir de perguntas e
respostas, tecidas no bojo da espera pelos funerais do avô, as lembranças construídas em torno
do velho Mariano retomam, metonimicamente, a memória de Luar-do-Chão. Desvelam-se os
segredos que escondem as razões de mortes tangíveis e concretas. Na história de Mariavilhosa
e na sua morte trágica emergem a morte da maternidade e as ambiguidades da tradição,
particularmente no seu descaso para com a mulher. Na história de Fulano Malta revela-se a
morte da paternidade e das utopias políticas. Na história da morte de Juca Sabão cristaliza-se
a morte da terra que, em lugar das sementes, recebe as drogas. Na história de Curozero
Muando, que troca a profissão de coveiro pela de um tratorista encarregado de arrancar e
transportar árvores, metaforiza-se a morte das raízes e dos cuidados pela vida. Na história do
naufrágio no rio Madzimi, decorrente de escolhas que subordinam a vida ao lucro, se expressa
a morte dos valores. Ao tirar o véu que encobre os segredos das inúmeras histórias de morte
que rondam Luar-do-Chão, as revelações trazidas pelo avô, através das cartas, desafiam a
morte porque tecem fios com o renascer, com a vida que brota em cada detalhe. Por esse
artifício, a morte do avô e seu enterro configuram, finalmente, rituais de vida, de
renascimento.
116
4.2 A travessia do tempo
70
Conta-nos Leiris, em A África fantasma (2007, p. 258), que o sultão de Ray Bouba,
vilarejo de Camarões, convidara a equipe de Marcel Griaule para uma festa do fim do
Ramadã. Limpos e barbeados, esperaram pelos emissários do sultão, que prometera mandar
buscá-los. Depois de muita espera, ficaram sabendo, por acaso, que a festa fora adiada. Leiris
então comenta: O tempo não existe.” Em outra passagem do seu diário etnográfico, o autor
refere-se à dificuldade em entender-se com seus informantes: Algumas questões de datas
oscilam em um dia, uma semana, um mês ou um ano.” (LEIRIS, 2007, p. 255).
Em Um rio chamado tempo (2003), enterrado sob a maçaniqueira, Dito Mariano
convida o neto-narrador a dormir à sombra da árvore – sob a qual o Avô rezou para “aprender
de sua eternidade”, para aprontar-se “para nascer de novo, em semente e chuva”, nos “irmos,
infinitos, vidas afora”, invejados por Deus. (Cf. RCT, 2003b, p. 259).
A contraposição entre a fala de Leiris e a do defunto Mariano deixa entrever duas
concepções diversas de tempo. A primeira lembra o tempo cronológico, meticulosamente
medido e anotado nos detalhes, do qual o diário se apresenta como sintomático registro. A
outra sugere a noção de plenitude do tempo, a experiência da perenidade da vida mesmo
perante a morte. A levar em conta tal contraposição, estaríamos falando de uma concepção
ocidental de tempo, e, no outro polo, de uma típica compreensão tradicional africana?
Talvez a polarização não se imponha pelo menos não por razões relacionadas a uma
‘essência’ europeia em contraposição a uma ‘natureza’ africana. Parece certo que, na
diversidade das relações com os meios de que dispõem para sua sobrevivência e na
multiplicidade de modos com que se organizam em sociedade, os diferentes grupos humanos
experimentam a sensação do tempo de modo diferenciado. Neste sentido, poder-se-ia falar de
um tempo lento nas sociedades tradicionais agro-pastoris; e de um tempo acelerado nos
ambientes urbanos industrializados. Isto não significa, no entanto, que as sociedades
tradicionais estejam eternamente ‘deitadas à sombra da maçaniqueira’. Ainda que
experimentando o tempo cotidiano com admirável dose de gratuidade de um modo que o
ocidente industrializado em geral desconhece –, as sociedades tradicionais africanas têm,
também elas, um ritmo de vida marcado pelos ciclos sazonais, pelo calendário das festas
70
Este é também o título do quarto capítulo de O outro pé da sereia (2006, p. 63).
117
religiosas comunitárias, pelos processos de iniciação e de pertença às associações de mulheres
ou de homens.
Referindo-se ao papel da história na estruturação social do povo Kwandu,
71
Carlos
Medeiros destaca o que se poderia considerar um traço característico da noção de tempo nas
sociedades tradicionais: a mescla entre passado e presente. Afirma o pesquisador que, entre
aqueles pastores, ao contar a história de algum antepassado,
imperceptivelmente, o narrador passava a actor, o passado a presente, o acontecido a
parte de uma vida. [...] Todas as histórias, incluindo as que reproduzem os tempos
mais remotos que a memória colectiva dos Kwandu preserva, e que, certamente,
aconteceram alguns séculos são sempre contadas na primeira pessoa e no tempo
verbal presente. (MEDEIROS, 1987, p. 164).
Em correlação a essa mistura entre passado e presente, ao discutir a questão do tempo
sagrado, Eliade afirma que, na perspectiva das sociedades tradicionais, cada ação humana
como o pastoreio, o trabalho agrícola, os costumes sociais, as iniciações, a vida sexual, enfim,
a cultura adquire significação porque de algum modo repete gestos revelados pelos deuses e
antepassados. Assim, a história [...] coincide com o mito: todo acontecimento (toda
conjuntura dotada de sentido), pelo próprio fato de se ter produzido no tempo, representa uma
ruptura da duração profana e uma invasão do Grande Tempo”, o tempo mítico que todo rito e
todo gesto significativo buscam restaurar. (ELIADE, 1993, p. 320-321). Nessa perspectiva se
pode entender, em Um rio chamado tempo (2003), o trabalho cotidiano na cozinha como a
recriação do tempo primordial. Diz o romance:
E se refazia o eterno: na cozinha se afeiçoavam, sob gesto de mulher, o fogo e a
água. Como nos céus, os deuses moldavam a chuva e o relâmpago. A cozinha me
transporta para distantes doçuras. Como se, no embaciado dos seus vapores, se
fabricasse não o alimento, mas o próprio tempo. (RCT, 2003b, p. 145).
Também nessa perspectiva se pode ler, no mesmo romance, os pedidos de licença ao rio
Madzimi, verdadeira divindade do tempo. A travessia do rio/tempo, enquanto acontecimento
histórico cotidiano, sacralizada pelos rituais das licenças, revela o tempo primordial do
rio/tempo que tudo destrança; e que, ao se revelar, dota de sentido (religioso) o acontecimento
repetitivo e uniforme da duração profana o atravessar do rio. Referindo-se ao desembarque
em sua Ilha natal, descreve o narrador:
71
Povo de pastores do sudoeste de Angola, visitado por Carlos L. Medeiros na década de 70.
118
Quando me dispunha a avançar, o Tio me puxa para trás, quase violento.
Ajoelha-se na areia e, com a mão esquerda, desenha um círculo no chão. Junto à
margem, o rabisco divide os mundos de um lado, a família; do outro, nós, os
chegados. Ficam todos assim, parados, à espera. Olhando a berma do rio, o Tio
Abstinêncio profere:
– O homem trança, o rio destrança.
Estava escrito o respeito pelo rio, o grande mandador. Acatara-se o costume.
então Abstinêncio e meu pai avançam para os abraços. (RCT, 2003b, p. 26).
No romance, a busca do tempo tico primordial pode ser lida também na cena em que
Juca Sabão “se encomendou de uma expediçãopara “subir o rio até à nascente”. (RCT,
2003b, p. 61). “Ele desejava decifrar os primórdios da água – recorda o narrador –, “ali onde a
gota engravida e começa o missanguear do rio”. No regresso, disse:
O rio é como o tempo!
Nunca houve princípio, concluía. O primeiro dia surgiu quando o tempo
muito se havia estreado. Do mesmo modo, é mentira haver fonte do rio. A nascente é
já o vigente rio, a água em flagrante exercício. (RCT, 2003b, p. 61)
Além do sentido de atravessar o rio/tempo como relação entre o cotidiano histórico e o
tempo mítico primordial, o romance constrói, na metáfora do atravessar o Madzimi, a relação
entre dois tempos ou dois mundos: o da Ilha versus o da cidade. A contraposição entre os dois
espaços se patenteia expressamente já nas primeiras páginas do romance:
Nenhum país é tão pequeno como o nosso. Nele só existem dois lugares: a
cidade e a Ilha. A separá-los, apenas um rio. Aquelas águas, porém, afastam mais
que a sua própria distância. Entre um e outro lado reside um infinito. São duas
nações, mais longínquas que planetas. Somos um povo, sim, mas de duas gentes,
duas almas. (RCT, 2003b, p. 18).
Em outra passagem, referindo-se a Tia Admirança como a uma “mulher de mistério,
com mal-contadas passagens do viver”, o narrador invoca outra vez a separação estabelecida
pelo rio. “Ela estivera fora, antes do meu nascimento. Não fora muita a distância mas era o
além-margem, o outro lado do rio. E isso bastava para que nada soubéssemos dela. Que país é
este que a pessoa se retira um meio-passo e está no outro lado do mundo?”(RCT, 2003b, p.
146).
Os dois mundos separados pelo rio/tempo – a Ilha e a outra margem, da cidade – podem
ser lidos como figurações respectivamente do tecido das tradições, de um lado, e, de outro,
dos novos arranjos trazidos pela modernidade. Cada um desses espaços se reveste de suas
próprias ambiguidades. Assim, uma das primeiras enigmáticas cartas, referindo-se ao
119
significado da travessia – nas duas direções – realizada pelo neto, aponta os limites do mundo
das tradições:
Você despontou-se, saiu da Ilha, atravessou a fronteira do mundo. Os lugares são
bons e ai de quem não tenha o seu, congénito e natural. Mas os lugares nos
aprisionam, são raízes que amarram a vontade da asa.
A Ilha de Luar-do-Chão é uma prisão. A pior prisão, sem muros, sem grades.
o medo do que há lá fora nos prende ao chão. E você saltou essa fronteira. Se afastou
não em distância, mas se alonjou da nossa existência. (RCT, 2003b, p. 65).
Mais adiante, a mesma carta, referindo-se ao revoltado Fulano Malta, que se recusara a
ser um assimilado e que se embrenhara nos matos, nas guerrilhas anti-coloniais, acrescenta:
“Para seu pai, a outra margem do rio, onde iniciava ser cidade, era o chão do inferno. Mas
tudo isso que ele dizia era como o chifre do caracol: nascia da boca. Pois, no escondido da
noite, ele sonhava visitar aquelas luzes do lado de lá. Calcava o sonho, matava a viagem ainda
no ovo da fantasia.(RCT, 2003b, p. 66). Na mesma carta aparece ainda a revelação do
sumiço dos livros de Marianinho. Fulano Malta os teria jogado no rio. O romance associa o
peso e o volume daqueles livros ao aumento das distâncias e sugere que aqueles livros
portariam o mapa da travessia para a outra margem do rio. Metaforicamente, os livros
resistem às “fundezas” do rio/tempo, recusando-se a ser engolidos pelas águas. (Cf. RCT,
2003b, p. 66).
Lançados da outra margem, o novo e as luzes da modernidade, em sua ambiguidade,
portam também a politicagem, a morte pelas drogas, a devastação das riquezas da Ilha. No
bojo da tensão, se inscreve a ‘missão’ de Marianinho ele que, ainda o iniciado nos ritos
tradicionais, encarna o tempo novo dos iniciados na modernidade, a travessia à outra margem
do tempo. Na mesma carta supracitada, a voz lhe revela: “Você não veio a esta Ilha para
comparecer perante um funeral. Muito ao contrário, Mariano. Você cruzou essas águas por
motivo de um nascimento. Para colocar o nosso mundo no devido lugar. Não veio salvar o
morto. Veio salvar a vida, a nossa vida.” (RCT, 2003b, p. 64).
4.3 O trânsito das identidades
No primeiro capítulo da tese, referiu-se à trajetória de Manuel Antunes, personagem de
O outro da sereia (2006), transitando do estado de missionário branco ao de feiticeiro
120
tradicional. A mudança de lugar identitário, que se pode ler em relação a Antunes, constrói
inúmeras outras personagens de Um rio chamado tempo (2003) e de O outro da sereia
(2006). Nos dois romances, o trânsito se movimenta em várias direções: do lugar português
ao africano, do africano ao assimilado, do tradicional ao moderno, do cristão ao dos deuses
africanos da tradição ancestral. Como em outras travessias, também em relação ao movimento
das identidades, o sagrado pode ser destacado.
Conforme se mencionou no capítulo anterior,
72
a inversão de perspectiva que se
pode ver em Manuel Antunes – de missionário católico a adepto de costumes africanos
tradicionais –, pode ser comparada àquela mudança vivida por padre Nunes, personagem de
Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2003). Neste, todavia, a virada se
mostra inesperada, dramática. Em O outro da sereia (2006), a mudança de lugar
vivenciada por Antunes se dá de modo lento e gradual, ocupando inúmeras cenas do romance.
Em Um rio chamado tempo, a dramaticidade da mudança de lugar experimentada por padre
Nunes se condensa numa única cena. Da chegada de João Loucomotiva à igreja, com a notícia
do naufrágio, ao alheamento do padre, que passou a fazer da margem do rio seu novo lugar
sagrado, a cena ocupa não mais que quatro páginas. Certamente, o cenário construído pela
desabar da tempestade ambienta a falta de rumo do padre frente à tragédia. O ponto
culminante, contudo, se dá no encontro entre o religioso e o feiticeiro.
...pitosguiando aos tropeções, o sacerdote começou a deambular sem destino,
parecendo que, para ele, qualquer direcção lhe servia. Dulcineusa seguia-o à
distância, pesarosa por estar a assistir ao desintegrar do espírito do seu guia
religioso. Rezava baixinho para que fosse coisa passageira mas o padre não dava
mostras de recuperar. Perto dos pântanos, por fim, ele se deteve frente à casa do
feiticeiro Muana wa Nweti. Após uma hesitação entrou na obscuridade da palhota.
Pediu ao feiticeiro:
Atire os búzios, Muana wa Nweti.
O adivinho, intrigado, levantou os olhos. O padre insistiu, encorajando: ele que
atirasse os búzios que ele queria saber do seu destino, agora que os anjos o tinham
deixado tombar, sem amparo, no vazio da incerteza.
Deixe os búzios falarem.
Dulcineusa, por respeito, se retirou. Nunca chegou a saber que vaticínios o
adivinho tinha detectado no futuro do português. Mas isso não a incomodava tanto
quanto o clérigo ter aceitado sentar-se no tio do adivinhão. A que ponto estava
desorientado para sujeitar-se àquilo que sempre condenara? (RCT, 2003b, p. 100).
A cena citada oferece rico material para demonstrar o quanto se pode discutir, a partir
da narrativa de Couto, a questão da mobilidade dos lugares identitários. O cabedal, no
entanto, se estima para muito mais. Em O outro da sereia (2006), a questão marca muitas
personagens e cenas desde a mudança anual de nome do alfaiate goês Jesustino Rodrigues,
72
Cf. a seção inicial do capítulo Deus e os deuses.
121
até as encenações organizadas no vilarejo para que o afro-americano Benjamin Southman
descobrisse a exótica África que sonhava encontrar.
Um primeiro exemplo, oferecido pelo romance, refere-se a uma espécie de luta
identitária, em que o combatente, paradoxalmente, tanto mais se sente derrotado quanto mais
se certifica de sua identidade. Trata-se da luta interior da personagem de Zeca Matambira,
pugilista reformado. A cena, em contraste com o que descreve, faz mais realçar a tensão de
um interior e tenso combate.
Zeca Matambira, nessa noite, cumpriu o ritual: mãos e cabelo, reza e pente. Antes de
adormecer fez as orações. Em seguida, penteou-se. Depois, ficou contemplando o
pente na concha das mãos. Era uma cerimónia que repetia religiosamente desde a
infância. Era no pente, como num espelho, que ele contemplava a sua raça. Tempos
sem fim, estudava cada fio de cabelo que ficava prisioneiro nos dentes do pente.
Tocava neles para os sentir crespos, enroscados como gavinhas de trepadeira.
Aqueles fiozinhos, tão singelos, o empurravam para a certeza: ele era um preto, tão
irreversivelmente negro como todos os de Vila Longe. Depois, limpava o pente
como se a si mesmo se lavasse. Como se o cabelo fosse uma sujidade na alma, a
irrefutável prova de um crime sem perfeição. (OPS, 2006, p. 213).
“O silencioso pugilato contra a criatura que se escondia sob sua pele” e que “teimava
em se apropriar de sua vida” (OPS, 2006, p. 213) adquire ainda maior tensão ao se saber, em
meio ao recontar de suas lutas, de sua dolorosa certeza: “ele era capaz de bater num negro,
num homem de igual raça. A sua cabeça tinha sido ensinada a não se defender de um branco.
Nem de um mulato. Matambira, o promissor pugilista do Tete, tinha sido derrotado no palco
da vida antes de subir para o ringue do boxe.” (OPS, 2006, p. 219). Metaforicamente, Couto
costura as lutas da personagem com o desenrolar de outro encontro/combate: o combate pelo
amor de Rosie, também este um “encontro com muita expectativa e pouco enredo”. (OPS,
2006, p. 219).
Em contraposição à teimosa marca de Matambira, que dele não desgruda, a negritude
dos avós maternos do alfaiate Jesustino transita rumo a um arrefecimento. Percorrendo a
galeria de fotos dos ausentes, Constança explica o sentido da pose da matriarca, com seu
grande guarda-sol de linho branco, aberto no salão: “É para mostrar [...] que naquela altura já
não éramos pretos.” (OPS, 2006, p. 145).
Nos romances e contos de Mia Couto, a correlação entre identidade e nome se
estabelece, algumas vezes, de modo dinâmico e processual. Em muitos casos, como se verá
no próximo capítulo,
73
o nome serve para caracterizar, de modo criativo e bem humorado, as
personagens. Certamente não se mostra tarefa difícil imaginar personagens que carregam
73
No próximo capítulo, na seção dedicada à antroponímia na obra de Mia Couto, voltaremos ao assunto.
122
nomes como Admirança, Abstinêncio, Fulano, Ultímio ou Mariavilhosa, para ficar apenas
com nomes que aparecem em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2003). À
medida que se lê o texto de Couto, constata-se o perfeito casamento entre a personagem e seu
nome, muitas vezes incomum. Em diversos outros casos, porém, o nome ou a busca de um
nome novo, constrói uma rede de conexões com outros elementos da narrativa, de tal extensão
que, para além do interesse de apenas caracterizar a personagem, funciona como importante
estratégia de organização diegética. É o caso, por exemplo, de personagens como Mwadia,
Benjamin Southman ou padre Manuel Antunes. Vejamos o caso de Mwadia.
no primeiro capítulo, referindo-se a ela como o único convívio do burriqueiro Zero
Madzero, o romance O outro da sereia (2006) apresenta Mwadia Malunga como “essa
que tinha corpo de rio e nome de canoa”. (OPS, 2006, p. 16). Poucas páginas adiante, falando
dos saberes de Mwadia quanto a distinguir os verdadeiros dos falsos corpos celestes, o
romance detalha: “Ela sabia de suas certezas: o seu nome, Mwadia, queria dizer ‘canoa’ em
[língua] si-nhungwé. Homenagem aos barquinhos que povoam os rios e os sonhos.” (OPS,
2006, p. 19). Outra vez no segundo capítulo, entre outras belíssimas falas sobre canoeiros e
canoas, o diálogo traz: “Ser canoeiro, era esse o meu sonho” – diz Madzero. Responde
Mwadia: “Você não precisa sonhar, meu marido. Você é um canoeiro, eu sou a sua canoa.”
(OPS, 2006, p. 37).
Como canoa, Mwadia será incumbida de transportar a imagem de Nossa Senhora a uma
igreja, em sua terra natal de Vila Longe. A estátua fora trazida no século XVI pelo
missionário Silveira e encontrada por ela, no tempo atual de 2002, à beira do rio. Em
interessante correlação com a missão de Mwadia/Canoa de portar a imagem, o romance se
encarrega de explicar, pela voz do personagem-historiador Benjamin, que
Esta estátua devia ter vindo na proa de algum navio.
Segundo ele, era usual ornamentarem com figuras religiosas os barcos que
transportavam escravos. Era um modo de santificar o crime, mas também uma
maneira de se acrescentar um valor simbólico à viagem. Uma nau não era apenas
uma embarcação. Era um altar flutuante. (OPS, 2006, p. 193).
A missão de Mwadia/Canoa, de encontrar um lugar pra a Santa católica, poderia ser
lida na perspectiva de continuidade, séculos depois, do projeto missionário de Silveira, de
converter o Monomotapa. Afinal, Mwadia se apresenta no romance na condição de uma
convertida. Por isso, frente às explicações mágico-religiosas para as feridas de Madzero,
dadas pelo feiticeiro zaro Vivo, ela pode desacreditar e dizer: “Tenho outras crenças.”
(OPS, 2006, p. 43). No mesmo diálogo, entre Mwadia e o nyanga, as novas crenças e as
123
incertezas que a fazem romper com as tradições africanas são explicadas pelo seu contato com
o ambiente católico:
muito que lhe queria dizer isto, Mwadia Malunga: você ficou muito tempo
no seminário, perdeu o espírito das nossas coisas, nem parece uma africana.
– Há muitas maneiras de ser africana.
– É preciso não esquecer quem somos.
– E quem somos, compadre Lázaro? Quem somos? (OPS, 2006, p. 46).
Pouco antes, na cena em que Mwadia provoca Zero Madzero a fazer amor com ela,
conspurcando o espaço sagrado da floresta e do rio, o narrador justifica: “Ela fora educada na
cidade, na missão católica do Zimbabwe, perdera alguns dos temores que mandavam em
Zero.” (OPS, 2006, p. 36).
No capítulo 5, em boa parte protagonizado por Mwadia, referindo-se ao fato de a beata
Tia Luzmina subsidiar os estudos da sobrinha no seminário do Zimbabwe, o narrador
comenta: “A esperança de Luzmina não era apenas que a sobrinha ganhasse educação. Era
que ganhasse vocação. E que fosse para freira, que era um modo de sair não apenas daquele
lugar, mas de fugir da sua própria fatalidade.” (OPS, 2006, p. 83-84). Estabelecendo
contraponto com os projetos de Luzmina em favor da sobrinha, o capítulo descreve, em
seguida, a verdadeira vocação da menina: converter-se numa Nzuzu, uma divindade das
águas. “Ser água na água, ficar longe do mundo, mantendo-se no seu centro. E ter poderes que
nasciam de nenhum confronto, coroada pela simples aceitação de um mando sem voz. Era
isso o tudo que ela [Mwadia] queria.” (OPS, 2006, p. 86).
Adiante, no romance, a chegada dos afro-americanos se torna pretexto para que, na voz
do anfitrião Casuarino, se discorra sobre o mito de Nzuzu:
No leito do rio havia um lugar sem fundo, onde a própria água se afundava, afogada
nos abismos. Nessas profundezas morava Nzuzu, a divindade do rio. De quando em
vez, uma moça desaparecia nas águas. Não morria. Apenas permanecia residindo
nos fundos lodosos, aprendendo a arte de ser peixe e os sortilégios da adivinhação.
Ficava anos nessa submersa moradia até que, um dia, reemergia e se apresentava às
famílias para exercer, então, a profissão de curandeira. (OPS, 2006, p. 141).
Se não chega a transformar-se num espírito do rio, Mwadia assume, no entanto, com a
chegada dos afro-americanos, novo papel e, de certa forma, uma nova identidade: a daquela
que é visitada pelos espíritos, a de incorporar, em Vila Longe, a África exótica e arcaica com
que Benjamin Southman sempre havia sonhado. “Mentir não passa de uma benevolência:
revelar aquilo que os outros querem acreditar” comenta a propósito o narrador. (OPS, 2006,
p. 150). A trapaça, que implicava na leitura prévia de relatórios, despachos e outros
124
documentos do passado colonial, levava Mwadia a tal transfiguração que “os cúmplices da
farsa se interrogaram se os espíritos não estariam realmente tomando conta da moça”. (OPS,
2006, p. 233).
Boa parte do capítulo 14 dedica-se às dúvidas geradas pela encenação. Estaria a moça,
de fato, sendo visitada pelos espíritos dos antepassados familiares? No comentário do
narrador, a propósito das dúvidas, outra vez se realça a ponte entre nome e identidade: “A
própria Mwadia parecia ter ganhado gosto nesta representação teatral. Ela cumpria a vocação
do seu nome: como canoa ela estava ligando os mundos.” (OPS, 2006, p. 236). À mãe ela
confessa que os livros e os velhos documentos coloniais “eram as suas únicas visitações”.
(OPS, 2006, p. 238). Por tais vias, de canoa, transportadora dos espíritos, Mwadia transita em
canoeira. “Agora ela sabia: um livro é uma canoa. Esse era o barco que lhe faltava em
Antigamente. Tivesse livros e ela faria a travessia para o outro lado do mundo, para o outro
lado de si mesma.” (OPS, 2006, p. 238). Frente à confissão da filha, Constança pede: Leia
para mim. Eu também quero ir nessa viagem...” (OPS, 2006, p. 238).
Ao final do romance, no retorno a Antigamente, Mwadia encontra um lugar para a
imagem, junto a um grande embondeiro. Junto ao tronco sagrado e à margem do rio, a Santa
transitará em sereia, nzuzu. Antecipa-se com certa solenidade o narrador:
A viagem termina quando encerramos as nossas fronteiras interiores.
Regressamos a nós, não a um lugar. Mwadia sentia que retornava aos labirintos de
sua alma enquanto a canoa a conduzia pelos meandros do Mussenguezi. Na ida, ela
se preocupara em sombrear a Virgem. No regresso, ela já ganhara a certeza: ali
estava a Santa mulata, dispensando o sombreiro, afeiçoada ao sol de África. (OPS,
2006, p. 329).
Nesse transportar da Virgem e de si mesma, ainda que não mude de nome, Mwadia
corporifica a metáfora do sincrético, que se apresenta como dinamismo e não como mistura
acabada.
Outras personagens, ainda que não ocupem posição central no romance e sua identidade
não se mostre a partir de tantos entrelaçamentos com o conjunto das ações, como no caso de
Mwadia, oferecem inúmeros elementos que indiciam a multiplicidade e os deslocamentos de
papéis que um indivíduo pode viver na sua relação com o conjunto social. Vejamos, sob tal
perspectiva e destacando aspectos do âmbito do sagrado, os personagens Lázaro Vivo e o
casal de escravos Nimi Nsundi e Dia Kumari.
Lázaro Vivo é apresentado pelo narrador como o velho adivinho e curandeiro que,
desde os tempos da Revolução, “deixara de se apresentar como um nyanga” e passara a
125
designar-se “conselheiro tradicional”. (OPS, 2006, p. 18). A narrativa aponta, poucas páginas
adiante, algumas marcas externas de sua mudança: “As tranças deram lugar a um cabelo curto
e penteado de risca, a nica fora substituída por uma blusa desportiva.” (OPS, 2006, p. 21).
Lázaro mandara confeccionar uma placa onde se apresenta como “notável das comunidades
locais, curandeiro e elemento de contacto para ONGS”. (OPS, 2006, p. 21-22). Antes que
chegue a rede de telefonia celular, exibe orgulhoso seu aparelho, antecipando-se ao futuro;
espera ser “contactado para serviços internacionais”. (OPS, 2006, p. 24). Deseja saber como
colocar anúncio da televisão, para os seus serviços de curandeiro. (Cf. OPS, 2006, p. 46).
Instigado pelo empresário Casuarino, Lázaro Vivo, esconde, entretanto, seus impulsos
de modernidade e finge uma imagem de nyanga tradicional, quando se trata de arrancar
dólares do afro-americano Benjamin. Finalmente, frente à perplexidade dos outros, revela a
utilidade do celular, qual nova esteira de búzios, na descoberta do paradeiro do americano
desaparecido.
“– Como é que sabe que o americano está na fronteira? Adivinhou na esteira
dos búzios?
À pergunta desafiadora do barbeiro Arcanjo, “o curandeiro não respondeu logo.
Depois de uma pausa, agitou o telemóvel, com sorriso matreiro no canto dos lábios.
Ali estava a resposta, na concha de sua mão fulgurava o búzio mágico, o secreto
vencedor da distância. Um polícia das alfândegas, seu grande amigo e parceiro de
negócios, tinha-lhe telefonado a avisar que Benjamin Southman fora capturado junto
ao arame da fronteira.” (OPS, 2006, p. 292).
O trânsito identitário de Lázaro Vivo assume, no romance, especial significação,
exatamente por movimentar marcas identitárias situadas em posições extremas e ambíguas: o
representante do que se compreende como o mais tradicional se exibe como o que navega no
mais moderno. E quando lida com aquilo que se espera de suas funções religiosas de nyanga,
Lázaro encena um fingidor.
Passemos agora às personagens Nimi Nsundi e Dia Kumari. no primeiro capítulo
referente à viagem missionária de Gonçalo da Silveira (capítulo 3 de O outro pé da sereia), o
diálogo entre as personagens coloca o problema da identidade, a partir de sua correlação com
o idioma. Sabedora de que Nsundi seria o língua dos portugueses em Moçambique, a escrava
indiana o acusa de traição, uma vez que seus conhecimentos estarão a serviço da dominação
que se vai instalar contra os nativos.
No seguinte capítulo que trata da viagem missionária (capítulo 6 do romance), a relação
entre os dois escravos se descreve pontuada ora por aproximação, ora por acusações
recíprocas. “Você se ajoelha como um cachorro perante os deuses dos brancos. [...] Ao menos
126
eu não me esqueci dos meus deuses. [...] O meu marido foi assassinado pelos portugueses.
Quem o matou benzeu-se e ajoelhou-se perante a Virgem.” (OPS, 2006, p. 111). As farpas,
jogadas pela escrava indiana, amortecem diante da carta que Nimi Nsundi lhe dirige:
Condena-me por me ter convertido aos deuses dos brancos? [...]
Não, minha amiga Dia, eu não traí as minhas crenças. Nem, como vodiz,
virei costas à minha religião. A verdade é esta: os meus deuses não me pedem
nenhuma religião. Pedem que eu esteja com eles. E depois de morrer que seja um
deles. [...]
Critica-me porque aceitei lavar-me dos meus pecados. Os portugueses chamam
isso de baptismo. Eu chamo de outra maneira. Eu digo que estou entrando em casa
de Kianda. A sereia, deusa das águas. É essa deusa que me escuta quando me
ajoelho perante o altar da Virgem. (OPS, 2006, p. 113).
A carta de Nimi Nsundi a Dia Kumari expressa, literariamente, uma problemática
religiosa de primeira ordem: a que busca compreender os processos sincréticos entre religiões
entendidos, no romance, não como adesão obediente a deuses estranhos, mas como
resistência simbólica e eficaz a toda dominação.
Um último exemplo de identidade em movimento pode ser destacado através da
personagem do afro-americano Benjamin Southman. “Suspeito muito de estrangeiros,
principalmente dos que saem de suas terras...” (OPS, 2006, p. 129. A suspeita, na voz azeda
do crítico barbeiro Arcanjo Mistura, antecipa o clima de tensão e desarranjos que a presença
de Benjamin Southman e Rosie causará aos habitantes de Vila Longe. Desde o anúncio de sua
chegada (no capítulo 7), estarão presentes em oito dos onze capítulos restantes do romance.
Benjamin Southman e sua companheira Rosie representam uma Organização Não
Governamental, com recursos para ajuda à pobreza de África. Mais que com a salvação da
África, porém, Benjamin, particularmente enquanto historiador, “atravessava os séculos e os
mares” em busca de histórias de escravos e de degredos, com o intuito de encontrar suas
próprias ancestrais raízes. Para ele, África é sua exótica forgotten land”. (OPS, 2006, p.
144). Maravilha-se com as “visitações” de espíritos recebidas por Mwadia, expressão de
“África autêntica”. Enreda-se nas trapaças tramadas por Casuarino para que se submeta à
cerimônia do magoneko e ganhe ou mais exatamente “compre” o nome africano. Por fim,
perde-se em África.
A construção da narrativa, particularmente nos confrontos estabelecidos pela voz do
barbeiro de Vila Longe, vai paulatinamente revelando os inúmeros equívocos da busca
identitária de Benjamin. Um dos maiores foi, talvez, saber que a escravização de africanos
não foi só aquela imposta por europeus. O romance lembra os vangunis: “Esses negros vieram
127
do Sul e nos escravizaram, nos capturaram e venderam e mataram. Os portugueses, num certa
altura, até nos ajudaram a lutar contra eles...” (OPS, 2006, p. 149).
No longo e tenso diálogo em torno da complexa questão da afirmação da negritude,
Arcanjo Mistura invectiva contra Benjamin: “Vocês não saíram da África quando vos levaram
nos barcos como escravos. Vocês saíram quando entraram na igreja e se ajoelharam perante
Jesus.” (OPS, 2006, p. 188). Acusa Benjamin porque “o americano exibia a raça como uma
doença para que o mundo sentisse comiseração. E usava a cor da pele como empréstimo de
identidade.” (OPS, 2006, p. 189). Faz um convite: “Voltem para a América, lá é que é a vossa
casa. E vocês têm que lutar não é para serem africanos. Têm que lugar para serem americanos.
Não afro-americanos. Americanos por inteiro.” (OPS, 2006, p. 190). Ao fim e ao cabo, o
romance sugere que a África que Benjamin queria encontrar, ele a teria que procurar na
América, ou dentro dele mesmo. (Cf. OPS, 2006, p. 294).
Na voz da personagem Matambira, o texto de Couto sugere que a equivocada busca de
Benjamin metaforiza toda busca identitária uma espécie de “doença” na qual, por
conveniência ou por estratégia de sobrevivência, nunca somos exatamente aqueles que os
outros procuram, ainda que para isso tenhamos que, cerimonialmente, rodar três vezes a
árvore do esquecimento (cf. OPS, 2006, p. 276 e 295), isto é, inventar ritos para esquecer.
128
5 LITERATURA COMO LUGAR DO SAGRADO
Sou como a palavra: Minha grandeza é onde nunca toquei.
(Avô Mariano)
Em momentos anteriores deste trabalho, insistimos na afirmação do caráter ficcional
das referências ao sagrado em Mia Couto. Utilizamos expressões como “figurações do
sagrado”, “encenação do sagrado”, “reinvenção literária das tradições”. Dissemos
expressamente que “no texto literário, as sacralidades fazem parte de uma estratégia de
criação” e que “os espaços sagrados são configurações de espaços narrativos, ficcionais,
encenação de realidade, produzida pelos romances”.
74
Dissemos ainda que as referências
literárias ao sagrado não podem ser pensadas como um estrito documento religioso, como o
são as hierofanias em sua singular manifestação histórica. Continuamos a reafirmar todas as
asserções. Acrescentamos, todavia, a questão: sem negar o caráter de ficcionalidade da obra
literária de qualquer obra literária, em particular a de Mia Couto como pensá-la sob uma
perspectiva teológica?
Referindo-se às relações entre o terreno da teologia e o da literatura, Antonio
Magalhães (2000) situa o interesse do teólogo pela literatura em termos de uma crítica
possível à religião. Conforme o autor, particularmente no contexto europeu,
um Deus que era mostrado como inesperado foi cada vez mais sendo domesticado
pelos padrões teológicos voltados quase que unicamente para o desenvolvimento de
conceituações, deixando de lado a dinâmica da revelação de Deus nas situações
concretas da vida das pessoas. A santidade de Deus, motivadora de temor, foi-se
tornando de forma crescente uma quietude, um sedativo para nostalgias religiosas.
Um Deus causador de crise na vida das pessoas que o experimentam e vivenciam foi
sendo subsumido pelo narcótico religioso que apreende a experiência por meio de
formulações e tornam Deus algo à disposição de nossos sentimentos. Dessa questão
fundamental, origina-se o interesse da teologia pela literatura. (MAGALHÃES,
2000, p. 140).
Segundo o teólogo, alguns aspectos desse interesse dizem respeito, em geral, à crítica
à religião tecida pela literatura, expressa de inúmeras maneiras: “a ironia diante da ortodoxia
domesticadora”, a “relativização das conceituações sobre Deus”, o rechaço da religião
infantilizadora, a “rejeição de um Deus que privilegia uma raça em detrimento de outra.”
(MAGALHÃES, 2000, passim p. 141). Neste sentido, quer porque assume as ambiguidades e
74
Cf. o final da seção introdutória do capítulo Deus e os deuses.
129
as contradições das vivências e das instituições religiosas, quer porque “se apresenta como
reflexão sobre categorias importantes para a tradição teológica” (p. 196), a literatura torna-se
“o maior acervo bruto que a teologia tem para dialogar na atualidade.”
Sabemos, pelos teólogos profissionais, que o objeto primeiro ou objeto material, na
linguagem clássica da academia da teologia é “Deus e tudo o que se refere a ele, isto é, o
mundo universo: a criação, a salvação e tudo o mais”. (BOFF, 1998, p. 43). Ora, não é o
assunto Deus, o sagrado, as hierofanias que define a teologicidade dos discursos
religiosos, mas o aspecto, a faceta, a razão específica o objeto formal, segundo a distinção
epistemológica clássica sob a qual esses discursos são construídos. Isto vale para qualquer
ciência. Vejamos, por exemplo, o campo da antropologia. Afirma Laplantine:
A única coisa passível, a nosso ver, de definir uma disciplina (qualquer que
seja), não é de forma alguma um campo de investigação dado (a tecnologia, o
parentesco, a arte, a religião...), muito menos uma área geográfica ou um período da
história, e sim a especificidade da abordagem utilizada que transforma esse campo,
essa área, esse período em objeto científico. (LAPLANTINE, 2006, p. 96). (Os
grifos são do autor).
Em relação à teologia, resume Clodovis Boff: “A teologicidade de um discurso não consiste
no seu objeto material, mas sim no seu objeto formal. É esse que determina se um discurso é
ou não é teológico.” (BOFF, 1998, p. 45). Buscamos estudar, até agora, o modo como as
sacralidades funcionam na construção do texto literário de Mia Couto. Constatamos não a
abundância das referências ao sagrado como também a riqueza de modos com que o autor
delas faz uso. Entretanto, se quisermos mudar o foco de leitura e perguntar pela teologicidade
do discurso literário do escritor, teremos primeiro que afirmar: não será pelo grandioso
volume de referências ao sagrado que, em nossa opinião, a obra de Mia Couto será lida sob a
faceta de “teologia”. E depois perguntar: que elementos o estudioso buscaria na obra do
escritor para, daí, apontar-lhe o rosto teológico? Ou, de outro modo: em que consistirá a
dimensão que define o objeto formal do discurso teológico, particularmente quando este se
apresenta como construção ficcional?
Adianta-se que não se trata de pensar, de modo reducionista, a literatura como a
instância que propõe as perguntas para as quais o discurso teológico da revelação oferece
respostas; ou de pensar a literatura como provedora de exemplos didáticos ilustradores de
determinado discurso teológico. Propomos uma leitura do literário que visa a apontar na
própria arte a presença do sagrado. Sob o foco da pergunta sugerida por nossa leitura,
destacamos, na obra de Mia Couto, dois aspectos que podem compor os traços de um
constructo teológico: primeiro, o aspecto que chamaremos de atitude de perante o mundo;
130
depois, a faceta que se revela na estreita interligação entre as formas poéticas e o sagrado; ou,
mais exatamente, que compreende o mesmo discurso poético como manifestação do sagrado.
Vejamos cada uma das facetas.
O primeiro aspecto diz respeito, em primeiro lugar, ao fato de o texto literário poder-se
construir com elementos do mundo vivido. Com tal assertiva, não pretendemos, obviamente,
igualar a ficção à realidade. Falamos de correlação entre ficção e realidade enquanto processo
comunicativo, na linha das reflexões propostas por Wolfgang Iser. Explica o autor:
O texto ficcional adquire sua função, não pela comparação ruinosa com a realidade,
mas sim pela mediação de uma realidade que se organiza por ela. Por isso a ficção
mente quando a julgamos do ponto de vista da realidade dada; mas oferece caminhos
de entrada para a realidade que finge, quando a julgamos do ponto de vista de sua
função: ou seja, comunicar. Como estrutura de comunicação, não é idêntica nem
com a realidade a que se refere, nem com o repertório de disposições de seu possível
receptor. (ISER, 1979, p. 105).
Conforme Ricoeur,
75
por mais inventado que seja, o discurso literário está dependente
das coisas. Diz expressamente o teórico: “A possibilidade de o discurso metafórico dizer
qualquer coisa sobre a realidade esbarra com a constituição aparente do discurso poético que
parece não referencial e centrado em si mesmo.” (RICOEUR, 2000, p. 13). (Os grifos são
nossos).
Com Iser, propomos a leitura do texto literário de Couto como caminho de entrada
para o a realidade encenada pelo texto. Com Ricoeur, opomo-nos à idéia de uma concepção
não referencial do discurso poético. Mesmo não sendo a representação de uma realidade de
mundo, mas a projeção de um mundo, a obra não se compreende como objeto hipostático, um
mundo à parte da realidade histórica na qual foi produzida. Seria cair na “falácia do texto
absoluto” na linguagem deste teórico (1973, p. 43) pensar a obra como uma entidade sem
mundo e sem autor.
Na linha dessa reflexão, ao discutir a questão acerca da criação do texto literário e da
sua correlação com a realidade vivida, Leyla Perrone-Moisés (1990) sugere que o ponto de
partida da arte e da literatura é uma espécie de angústia frente ao mundo e um desejo de
transformá-lo. E isso vai de encontro a limites: os da realidade e, dentro dela, os da mesma
incapacidade de mudar o mundo através da linguagem. Nas palavras da autora:
A literatura parte de um real que pretende dizer, falha sempre ao dizê-lo, mas
ao falhar diz outra coisa, desvenda um mundo mais real do que aquele que pretendia
dizer.
75
Cf., dentre outras abordagens do assunto, o sétimo estudo de A metáfora viva (2000), em que o autor,
utilizando a categoria de “referência desdobrada’, de Jakobson, elabora sua “teoria da referência metafórica”.
131
A literatura nasce de uma dupla falta: uma falta sentida no mundo, que se
pretende suprir pela linguagem, ela própria sentida em seguida como falta.
(PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 102-103).
Se os liames entre texto ficcional e mundo se podem afirmar em relação a qualquer
literatura, quanto mais quando essa dialoga com contextos histórico-societários específicos.
De fato, lida sob foco vinculante, a obra de Mia Couto permite tipificar certo imaginário de
setores críticos da sociedade moçambicana, que expressa a consciência de conflitos entre a
situação de deriva da África pós-colonial e o arraigamento de tradições ancestrais. O passado
colonial, a independência, os anos de guerra civil pós 75, o racismo, as tradições ancestrais, os
hibridismos culturais oriundos da abertura do elemento moçambicano às múltiplas influências
estrangeiras, notadamente a portuguesa, todos esses dados, inegavelmente históricos, marcam
de modo característico os contos e romances do escritor moçambicano ainda que
apareçam como traços constituintes de espaços ficcionais.
Na relação que estabelece com o mundo moçambicano, o texto literário de Couto
desvela, em segundo lugar, o que chamamos de uma atitude de fé perante o mundo. Não
falamos aqui de enquanto situação existencial, em relação à qual pudéssemos entender o
escritor moçambicano como intérprete de uma tradição religiosa em particular e analisar seus
textos como o testemunho literário dessa situação existencial. Referimo-nos ao que Clodovis
Boff e outros teólogos cunharam com a expressão “fé antropológica”, isto é, uma “atitude
humana geral face à realidade e ao seu sentido”. (BOFF, 1998, p. 35). Na mesma passagem,
diz ainda o teólogo: “A ‘fé antropológica’ é um crédito de confiança que se às coisas que
se quer conhecer. É uma abertura e predisposição positiva do espírito frente ao mistério do
mundo. É uma forma de amor.” (BOFF, 1998, p. 35).
Ora, sendo a fé, por um lado, a condição de possibilidade de toda teologia e, por outro,
considerando, com o teólogo Paul Tillich,
76
que ninguém pode dizer de si mesmo que está na
situação de fé, como dizer que a obra literária de Mia Couto, enquanto expressão de abertura
ao mistério do mundo, não colocaria aquele autor no círculo do teológico?
Não se trata de buscar, no obra do moçambicano, o discurso religioso sistemático da
racionalidade da teologia, mas a razão intuitiva que se abre, percebe, contempla, acolhe,
apreende o mundo na sua condição de mistério. Pode-se afirmar, do escritor, que o discurso
teológico que se pode ler em sua obra reveste-se da linguagem que toma a forma da
inteligência da o intellectus fidei de Agostinho. Conforme Boff (1998, p. 64), esse noûs
76
Paul Tillich sugere que nem mesmo o teólogo escapa da condição de estar ao mesmo tempo dentro e fora do
círculo teológico. Dentro, por ter tomado uma decisão existencial que o coloca na situação de fé. Fora, porque
ninguém pode dizer de si mesmo que está na situação de fé. (Cf. TILLICH, 2005, p. 27 ss.).
132
na linguagem dos gregos “refere-se, de maneira particularizada, à ‘experiência do ser’, à
‘sensibilidade religiosoa’, à ‘consciência ética’, ao ‘sentimento do belo’, ao ‘sentido do amor’,
ao ‘senso do humor’, enfim, às ‘razões do coração’”.
Em que pesem os traços de promessa de beleza e harmonia que atravessam a
linguagem do intellectus fidei, este expressa também uma consciência crítica e lúcida dos
problemas, podendo manifestar-se, como nos profetas bíblicos, de forma dura e aguda. Em
Mia Couto, o diálogo com as tradições e a escuta do povo em sua experiência cotidiana, ao
mesmo tempo que trazem à fala vozes marginais e recalcadas do conjunto social, não o fazem
sem uma boa dose de tensionamento e rasura das mesmas tradições ancestrais e dos espaços
culturais marginais que essas vozes representam. Assim, por exemplo, ao encenar no espaço
ficcional o cotidiano das comunidades tradicionais, valorizando-as, Couto não deixa de
apontar o lugar secundário que a mulher ocupa nessas sociedades. Referindo-se à viuvez e à
exclusão da escrava indiana Dia Kumari do convívio familiar, comenta o narrador: “A
exclusão conduziu-a, depois, à escravatura. [Dia Kumari] nem notou demasiada diferença. No
mundo a que pertencia, ser esposa é um outro modo de ser escrava. As viúvas apenas
acrescentam solidão à servidão.” (OPS, 2006, p. 108). Na voz de Constança, ouvimos
também: “Esse é o destino da mulher pobre: ser a última a deitar-se e não dormir com medo
de não ser a primeira a despertar.” (OPS, 2006, p. 171). Falando dela como de uma mulher
que pensava, diz o narrador: “Nesses escassos momentos, Constança era mulher sem ter que
pedir licença, existindo sem ter que pedir perdão.” (OPS, 2006, p. 79).
Referindo-se ao assunto, Fonseca et Cury afirmam que, ao reinventar, literariamente,
as contradições expressas pelas vozes recalcadas, Mia Couto torna-se um
ser de fronteira enquanto escritor que assumidamente fala a partir da margem. Ele
assim o faz, literal e metaforicamente, ao trazer para seus romances os conflitos do
espaço africano, criando personagens também eles “de fronteira”, numa enunciação
[...] que rompe com o pensamento central, propondo “outras lógicas”. (FONSECA et
CURY, 2008, p. 106).
Ao construir, da margem, uma enunciação crítica e lúcida dos problemas sociais, o
escritor assume, com sua obra, um papel político perante a sociedade. Essa tarefa política se
constituirá em sua “preocupação última”, isto é, aquilo que, de certa forma e em grande
medida, determina sua existência, seu modo de ser no mundo.
Paul Tillich, numa perspectiva teológica desmesuradamente aberta, identifica a
“preocupação última” com o dado fundamental e primeiro do âmbito das sacralidades e dos
discursos religiosos. Para ele, “o sagrado é a qualidade daquilo que preocupa o ser humano de
133
forma última. Só aquilo que é sagrado pode dar ao ser humano uma preocupação última, e
aquilo que confere ao ser humano uma preocupação última possui a qualidade de santidade”.
(TILLICH, 2005, p. 223). Tillich afirma, na mesma linha de reflexão, que Deus é “o nome
para aquilo que preocupa o ser humano de forma última”. (TILLICH, 2005, p. 219). A partir
desse fundamento, estabelece o primeiro critério formal da teologia: “O objeto da teologia é
aquilo que nos preocupa de forma última. Só são teológicas aquelas proposições que tratam de
seu objeto na medida em que ele pode se tornar questão de preocupação última para nós.”
(TILLICH, 2005, p. 30).
Aceitos tais pressupostos, podemos inferir que o fazer literário de Mia Couto,
enquanto tarefa política que assume as vozes dos marginalizados – ainda que de forma
ficcional –, concretiza-se como expressão de perante o mundo, como “preocupação última”
de um intelectual profundamente envolvido com a história recente de seu país. A obra,
claramente crítica e inquietante, que nasce dessa postura, certamente pode ser acolhida como
objeto de uma leitura teológica.
“Não coisa sobre a qual não se possa fazer teologia” afirma Boff (1998, p. 46).
Contudo, a razão do interesse em ler Mia Couto por um viés teológico não advém apenas da
ilimitude do campo do teologizável. Trata-se, ao fim e ao cabo, de uma escolha de leitor, que
busca apontar, na obra literária do autor moçambicano, constructos discursivos que se
identificam com as mais autênticas e oportunas vozes proféticas que se encontram na
fundação de diversos movimentos e tradições religiosas. Bastaria lembrar os profetas bíblicos,
incluindo Jesus de Nazaré.
Nas décadas de 70 e 80 do século XX, na América Latina, desenvolveu-se um modo
de fazer teologia que tomava como referência fundante do discurso teológico a situação dos
marginalizados. É a chamada “teologia da libertação”, ainda hoje praticada por muitos
teólogos. Trata-se de uma reflexão crítica sobre a práxis histórica, onde o protesto e a luta
contra a espoliação de grande parcela dos seres humanos, assim como o esforço por construir
uma sociedade justa e fraterna, são compreendidos sob o prisma de abertura ao Mistério
divino.
77
Referindo-se aos fundamentos bíblicos e cristãos e à atualidade dessa prática
teológica, Clodovis Boff afirma: “Se o pobre não constitui e nem pode constituir o objeto
primeiro da teologia, está, contudo entre os primeiros ‘objetos secundos’, se assim se pode
dizer.” (BOFF, 1998, p. 47). Plagiando a assertiva do teólogo, afirmamos: se a obra de Mia
77
Sobre os pressupostos e o modo de fazer teologia da chamada Teologia da Libertação, cf. Gutierrez (1975).
Sobre o diálogo da Teologia da Libertação com a literatura, cf. Magalhães (2000, p. 119-125).
134
Couto não pode ser compreendida como teologia, porque não encontramos nela um discurso
sistemático sobre Deus, ela, no mínimo, interessará à teologia porque assume a voz e o olhar
dos marginalizados. Não se trata de compreender que tudo o que assume os marginalizados
torna-se, sem mais, teológico. Tampouco está em jogo perguntar sobre possíveis opções
religiosas do escritor no sentido de entender seus textos como um discurso da fé. O que se
quer como leitor de Mia Couto é demonstrar a relevância de suas construções literárias
para a consideração crítica das vivências religiosas e dos mesmos discursos da fé.
Em vista de validar nossas afirmações sobre o viés teológico com que a obra de Mia
Couto se nos oferece, passamos à leitura de alguns textos do autor e à consideração/discussão
de três aspectos particulares alusivos àquela faceta: a invenção de nomes-personagens como
expressão de uma visão de mundo que assume o sagrado como matéria literária; os discursos
e configurações sobre Deus e os deuses, como traços de um fazer literário marcadamente
crítico e politizado; as metáforas e outros recursos literários que relacionam os processos da
escrita e da leitura ao território do sagrado.
5.1 Antroponímia em Mia Couto
Nomear as coisas, as pessoas, as experiências, os eventos talvez seja uma das
marcas mais fundamentais do humano. Constitui certamente um atributo próprio e exclusivo
do ser humano, único possuidor de linguagem. Pela linguagem, como ser de linguagem, o
homem está dotado do poder de construir memórias e projetos que dão significação às suas
experiências de vida. Na base desse poder humano de significar sua própria existência no
mundo – inventar passados e futuros – está a palavra.
Em seus estudos sobre as religiões da África negra, referindo-se ao lugar eminente da
palavra, Thomas et Luneau afirmam: “A palavra ritmada não somente está na origem do
mundo, mas constitui o tecido ontológico de que está feito o universo. [...] Em certo sentido,
palavra e universo se identificam...” (THOMAS; LUNEAU, 1969, p. 18).
78
Na mesma linha,
ao destacar o valor da palavra na cultura banto, Ruiz de Asúa diz: “O banto é oral, o que fala.
Falando realiza-se e realiza.” (ASÚA, 1985, p. 85). Tais concepções sobre a palavra,
afirmadas em relação a culturas tradicionais africanas, certamente podem ser estendidas a
78
Tradução nossa de “Non seulement la parole rythmée est à l’origine du monde, mais encore elle constitue le
tissu ontologique dont est fait l’univers. [...] Le verbe et l’univers s’identifient dans um certain sens...”
135
qualquer cultura. Descontado o enorme valor que se deu à escrita, na cultura ocidental, pode-
se ainda assim afirmar plagiando aqueles teóricos: o ser humano é oral, é o que fala, a
palavra é a sua plena manifestação. Não por acaso, mitos cosmogônicos de diferentes culturas
associam a fundação do mundo ao poder mágico, conjuratório e criador da palavra.
Uma forma certamente curiosa de uso da palavra e da força que ela exprime diz
respeito ao universal costume de inventar nomes para designar, identificar e chamar as
pessoas. Os antropônimos, em sua inumerável variedade, podem estar relacionados a lugares
geográficos, origem familiar, profissões, missão, crenças, devoções, modismos. Nas culturas
ocidentais modernas, em geral, a atribuição do nome não obedece a critérios de individuação
que busquem estabelecer correlações íntimas entre o significado do nome e a pessoa que o vai
portar. Um nome, sacado aleatoriamente de uma lista encontrada nas bancas de jornais,
copiado de algum artista de sucesso ou simplesmente inventado por caprichos dos pais,
marcará jurídica e socialmente a existência de uma pessoa pela vida afora.
Nas culturas tradicionais, ainda que a escolha do nome obedeça também a variada
gama de motivações incluindo processos aleatórios, como sorteio e experimentação –, o
nome é compreendido como algo que revela os qualificativos mais íntimos e profundos do
ser. Não revela. A palavra que nomeia a pessoa, mais que mera denominação, é a própria
pessoa com sua identidade e atributos próprios.
Esse modo de compreender o nomear, característico de culturas orais, encontra-se
amplamente utilizado por Mia Couto na construção de suas personagens. No conto O nome
gordo de Isidorangela, da coletânea O fio das missangas (2003a, p. 49-53), no título, se
expressa a correlação entre o “tamanho vasto e demorado” da moça e o de seu respectivo
nome. Diz o conto expressamente: “Isidorangela era o nome da obesa moça. Nome gordo, ao
travar da pena. Na rua, na escola, ela era motivo de riso. E havia razão para chacotear: a
miúda sobrava de si mesma, pernas rasas arrastando-se em passitos redondos e estofados.” (p.
49). O estranho antropônimo recebe especial relevo ao se fazer acompanhar por adjetivos e
verbos que sugerem peso, dificuldade, excesso: nome gordo, moça obesa, pernas rasas,
passitos redondos e estofados, travar, sobrar, arrastar. Ao excesso configurado no nome se lhe
acrescentará, de sobejo, um outro nome que também sugere o grandioso: o apelido de “o
Monumento”.
Em expressivo contraste com o sobejo sugerido no nome da gorda Isidorangela, o
conto A saia almarrotada, da mesma coletânea (FM, 2003a, p. 24-27), apresenta como
protagonista-narradora uma miúda a quem lhe falta tudo, inclusive o nome. “Nasci para
cozinha, pano e pranto. Ensinaram-me tanta vergonha em sentir prazer, que acabei sentindo
136
prazer em ter vergonha.” (p. 24). Em sua auto-apresentação, revela a única razão de seu
drama: a falta de um nome. Diz a protagonista: “Minha mãe nunca soletrou meu nome. Ela se
calou no meu primeiro choro, tragada pelo silêncio.” (p. 24). No extremo da falta, “desalojada
das vontades”, fazendo-se a última na disputa pelas migalhas da comida, a voz (do pai?) lhe
socorria:
“Deixem um pouco para a miúda.” (p. 25) Comenta então a moça: “Afinal, sempre
eu tinha um socorro. Um pouco para a miúda: assim, sem necessidade de nome. Que
o meu nome tinha tombado nesse poço escuro em que minha mãe se afundara. E os
olhos da família, numerosos e suspensos, a contemplarem a minha mão,
atravessando vagarosamente a fome. Não tendo nome, faltava não ter corpo.”
(FM, 2003a, p. 25).
Na fantasia de ser surpreendida por um homem que a amasse em plena tristeza, sonha: “Esse
homem me daria, por fim, um nome.” (p. 26). Acossada pelas tantas (des)ordens que
impedem o seu “apetite de nascer”, que se lhe impõem pela falta de um nome, finalmente
lança fogo sobre si mesma. Não possuir um nome equivale, assim, a o existir plenamente.
Ou a ter uma existência destituída de pertencimento e significação.
Possuir um nome corresponde, em contrapartida, a ter uma identidade, a ser
reconhecido na sua individualidade. Conforme Tempels, na cultura tradicional banto, o
primeiro critério de individualização da pessoa é o nome. O nome “exprime a natureza
individual do ser, [...] é a realidade mesma do indivíduo.” (1949, p. 72-73). A essa realidade
individual, os banto chamam-na muntu. Para estabelecer a diferença de acepção entre o
ocidental e o banto, acerca do nome, o autor conta uma experiência vivida por ele:
Batizei um bebê negro e, ao registrar o ato, perguntei aos pais: Seu nome é Ngoi?
Responderam: É ele. E seu nome cristão é Joseph? Responderam: Sim, ele se chama
Joseph. O nome indígena designa com efeito quem é a criança, enquanto que o nome
cristão é qualquer coisa de adventício, de estrangeiro, de europeu.
79
Na esteira das pesquisas de Tempels e de outros teóricos, acerca do nome na cultura
banto, o missionário Ruiz de Asúa explica que
o recém nascido chega a ser um muntu unicamente quando o pai ou o adivinho lhe
dá o nome o ou pronuncia. Até esse momento o corpinho é um kintu, uma coisa. [...]
O ser que se diferencia do animal e que tem um lugar na sociedade dos homens não
se engendra pelo acto do nascimento, mas pela palavra-semen, quando se lhe põe um
nome. (ASÚA, 1985, p. 268-269).
79
Tradução livre de: J’avais baptisé un bébé noir et portant l’acte au registre, j’interrogeai les parentes: “son nom
indigène est donc bien Ngoi?”; réponse “c’est lui”; et son nom chrétien est donc bien Joseph?”, réponse: “Oui”.
Le nom indigène designe en effet qui est l’enfant, tandis que le nom chrétien est quelque chose d’adventice,
d’étranger, d’européen. (TEMPELS, 1949, p. 73). (Tradução nossa. O negrito é do autor).
137
Na cultura tradicional, o nome não apenas identifica a pessoa que o porta, senão
outorga-lhe uma lugar na comunidade. A palavra que nomeia o muntu é sempre ativa e realiza
o dinamismo vital do qual participa toda a comunidade. O nome de uma pessoa, em sua
individualidade, pertence de certa forma também à comunidade. Por isso, “a imposição de um
nome obedece a motivações que afetam vitalmente tanto a pessoa como a comunidade”.
(ASÚA, 1985, p. 268).
Considerando que a comunidade, no arco da participação vital, encontra-se ligada aos
deuses e antepassados, o nome do indivíduo porta, finalmente, o destino traçado por eles.
Neste sentido, podemos entender as palavras da narradora da Lenda de Namarói. Acamada,
ao falar de si ao repórter que busca uma história, começa com o solene intróito: “Por minha
boca falam, no calor da febre, os que nos fazem existir e nos dão e retiram nossos nomes.”
(EstAben, 1996, p. 99).
Estudando a presença de tais concepções no Moçambique atual, a antropóloga Brigitte
Bagnol analisa o caso de uma criança irrequieta, chorona, cuja aflição os pais temiam estar
relacionada a um nome não aceito pelos antepassados. Segundo a explicação do pai, era
necessário “experimentar nomes diferentes. Pode ser aceite pelos antepassados e pode não ser.
[...] Dar um nome é mostrar respeito e veneração. [Para os antepassados, o nome] é uma
forma de ser reencarnado e lembrado com o antepassado.” (BAGNOL, 2008, p. 259).
Comenta a pesquisadora: “A atribuição de um nome a uma criança é um momento de tensão e
questionamento para a família. Dando um nome a uma criança, os pais e os familiares
procuram interpretar os desejos dos antepassados.” (BAGNOL, 2008, p. 259).
No diálogo entre Marianinho e seu tio Abstinêncio personagens de Um rio
chamado tempo, uma casa chamada terra (2003) –, se expressa a estreita correlação entre a
vida dos vivos, a vida da comunidade e o nome dos antepassados. Com a mão sobre o peito
do rapaz, num gesto solene de investidura e de exigência de fidelidade, o tio mais velho
Abstinêncio diz: “– Não esqueça: você recebeu o nome do velho Mariano. Não esqueça.” (p.
22). Ao que Marianinho [o narrador] comenta, em expressa referência à voz da tradição: “O
Tio minguou no esclarecimento. Já não era ele que falava. Uma voz infinita se esfumava em
meus ouvidos: não apenas eu continuava a vida do falecido. Eu era a vida dele.” (RCT,
2003b, p. 22). A estreita correlação entre a vida do avô e a do neto se antecipa na escolha
do nome. “Desde que nascera o Avô Mariano me havia escolhido para sua preferência.
Herdara seu nome.” (RCT, 2003b, p. 45).
138
Juntamente com o nome, como que por um poder mágico e conjuratório do ato de
nomear, o indivíduo recebe e carrega o conjunto de saberes, normas e crenças que formam o
imaginário que se lhe antecede na cultura, como herança familiar e comunitária. Neste
sentido, ganha pertinência a ideia de que não se escolhe o nome para o indivíduo e sim o
indivíduo para o nome. Na auto-apresentação de seu nome, cujo significado imbrica-se na
história de seu pai, a personagem Kindzu de Terra sonâmbula (2007) assim fala: “Sou
chamado de Kindzu. É o nome que se às palmeiras mindinhas, essas que se curvam junto
às praias. [...] Meu pai me escolheu para esse nome, homenagem à sua única preferência:
beber sura, o vinho das palmeiras.” (TS, 2007, p. 15). Nosso grifo aponta a curiosa inversão
que, de alguma forma, faz o nome apropriar-se do indivíduo.
Se o fato de receber o nome constitui o pertencimento à comunidade, o ato de nomear
se compreende dotado de uma virtude mágica capaz de submeter o nomeado. Na cultura
tradicional, dar nome a uma coisa ou pessoa equivale a conhecer sua natureza e poder exercer
alguma forma de domínio e posse sobre ela. Por essa razão conforme nos informa Asúa
(1985, p. 269) –, os banto podem ter vários nomes, ocultando-se entretanto aquele nome que
nomeia verdadeiramente o indivíduo. Esse “nome interior” – na expressão de Tempels (1949,
p. 73) ninguém o conhece, senão alguns parentes, os companheiros de iniciação ou de
sociedades secretas. Ocasionalmente, nessas culturas, batizam ou rebatizam as crianças com
nomes feios e estranhos, para que a doença e a morte não sejam atraídas pelos miúdos. As
palavras que uma pessoa profere e, mais particularmente, seu próprio nome podem tornar-se
uma via pela qual alguém, um estranho, um chicuembo, esse espírito maléfico, pode invadir e
dominar sua existência.
A dimensão íntima e secreta do nome pode ser ilustrada pela cena de O último vôo do
flamingo (2005), em que o velho Sulplício nega-se a falar diante de um europeu. Massimo
Risi, um italiano que acompanhava a delegação de eminentes autoridades, nacionais e
internacionais, vindas a Tizangara para investigar o sumiço de soldados da ONU, chama
Sulplício pelo nome. Este reage: “– Não diga o meu nome! Nunca mais!” Comenta o narrador
filho de Sulplício: “Eu conhecia seu princípio: o nome da pessoa é íntimo, como se fosse
um ser dentro do ser. Devia haver uma autorização para alguém pronunciar o nome de um
outro. O que o italiano fazia, em seu entender, era já uma invasão.” (UVF, 2005, p. 134).
O segredo do nome interior e verdadeiro pode ser ocultado pela pluralidade de nomes.
Mas essa não é a única razão pela qual o homem da cultura tradicional muda de nome. Ao
longo de sua vida, a pessoa pode revelar seu muntu, sua identidade individual, sob nomes
diversos. A identidade individual manifesta-se no nome, mas este não pode fixá-la de forma
139
cristalizada. Assim, além do “nome interior” o primeiro, no sentido de fundante que
jamais se perde, a pessoa pode receber outros nomes capazes de expressar o dinamismo de
sua existência, marcada por variada gama de eventos significativos. A iniciação, a
circuncisão, a possessão pelos espíritos, a entrada em sociedades secretas, o novo emprego, o
serviço militar podem provocar a adoção de um novo nome. (Cf. TEMPELS, 1949, p. 73 e
ASÚA, 1985, p. 270). Além do nome que se recebe ou se adota por ocasião de um
acontecimento significativo, a pessoa pode escolher também algum nome adventício, sem
relação profunda com sua pessoa, podendo ainda abandoná-lo conforme sua vontade.
Ao entrelaçar o texto literário com informações etnográficas, nossa pretensão se abre
em direção a apontar a criação literária de Mia Couto em seu modo atento de olhar as
tradições da cultura de seu país, os lugares, as vozes e os nomes do povo. Entretanto,
conforme salientamos no capítulo anterior, o mister do escritor não se confunde com a
tarefa de documentar ou ilustrar a tradição. Na retomada que Couto faz da tradição,
encontramos, isto sim, os constantes hibridismos, desconstruções e deslocamentos que
caracterizam sua obra.
Voltemos à gorda Isidorangela. Em conformidade com a compreensão tradicional
acerca do nome, o atributo mais característico da personagem seu vasto tamanho se
concretiza também no seu nome. Até esse ponto, demonstra-se a criatividade do escritor em
inventar o “nome adequado” para caracterizar sua personagem. Convocado pelo narrador, o
leitor embarca no clima do risível, proporcionado pela descrição da patética figura: gorda,
monumental, com seu inseparável algodão doce. Entretanto, sem demora, ocorre o
deslizamento: o foco narrativo se desloca do excesso de tamanho da moça para o excesso de
descaso com que é tratada, pelo fato de ser gorda. E, na encenação das relações entre as
personagens, levanta ainda a pergunta sobre o diferente: a gorda não será minha irmã?
Semelhante deslizamento de sentido podemos encontrar também no nome de
Mariavilhosa, de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2003). Seu nome
sugere beleza e encantamento.
80
Tendo chegado a Luar-do-Chão disfarçada de marinheiro,
atraiu a atenção de Fulano Malta, que lhe descobrirá o segredo e se tornará depois seu marido.
“Fulano se encontrara com esse marinheiro de água doce e o seu coração detectou, para além
do disfarce, a mulher da sua vida.” (p. 104). Mariavilhosa receberá de Fulano amor e
cuidados. Entretanto, seu nome contrasta com sua história de sofrimento, perdas, cicatrizes e
80
Sobre a construção e caracterização de algumas personagens da obra de Mia Couto, seus nomes e sua relação
com os elementos água, terra e outros da cultura moçambicana, cf. Fonseca et Cury (2008, p. 105-119). Sobre o
nome de Mariavilhosa, cf., da obra citada, a p. 110.
140
interditos de toda espécie. Revela-nos o narrador que Mariavilhosa fora violada e engravidara.
Abortara e seu ventre adoecera para sempre, não podendo mais gerar filhos. Marianinho [o
narrador] não é seu filho, como se vem a saber ao final do romance. Contrariando seu nome,
Mariavilhosa torna-se uma mulher infeliz, melancólica, amarga. Escolhe viver/morrer nas
águas, uma vez que já carrega as águas, o mar, em seu próprio nome.
O já citado Abstinêncio, de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra
(2003), é outra personagem cujo nome, em relação ao uso que Couto faz da tradição, revela ao
mesmo tempo consonâncias, contrastes e deslizamentos. no primeiro capítulo do romance,
coerentemente com seu nome, Abstinêncio é “magro e engomado, ocupado a trançar
lembranças.” (p. 17). Magro, de pouco falar, “um exilado em sua própria casa”, “só e único”,
“Abstinêncio Mariano despendera a vida inteira na sombra da repartição. A penumbra
adentrou-se nele como um bolor e acabou ficando saudoso de um tempo nunca havido, viúvo
mesmo sem ter nunca casado.” (RCT, 2003b, p. 17).
Na metade do romance, a personagem de Abstinêncio volta outra vez ao centro da
narrativa. Repete-se aí a íntima conexão entre a personagem e seu nome: “Aos poucos o nosso
tio mais velho foi emagrecendo, parecendo querer insubstanciar-se. Ao princípio, o médico
suspeitara haver doença por detrás de tanta magreza. Examinara o seu estado. Mas não havia
enfermidade. Abstinêncio era magro por timidez: para ser menos visto.” (RCT, 2003b, p.
119). No auge do esconder-se de si mesmo, Abstinêncio abstém-se também do seu próprio
nome. “Ele passou a mudar de nome. Como se o que trazia, por herança, de baptismo, não
servisse. Meu tio assumia os nomes de todos os que faleciam. Morria José e ele se nomeava
José. Falecia Raimundo e ele passava a ser Raimundo.” (RCT, 2003b, p. 119). Se, na
tradição, a pluralidade de nomes pode expressar o dinamismo da existência, em Abstinêncio,
por contraste, seus muitos nomes expressam solidão, melancólico recolhimento, falta, cujo
sintoma se revela, como excesso, na emoção buscada na bebida e nas meninas.
Outra personagem, cuja pluralidade de nomes revela bem mais a falta, é Jesustino da
Anunciação Rodrigues, o alfaiate goês de O outro da sereia (2006). Encontrando-se com
a enteada Mwadia, que voltava à casa paterna, pergunta com excitação:
Sabe como me chamo nestes ultimamentes? [...]
Jesustino ! Agora, chamo-me Jesustino.
No ano passado, ele tinha sido Ildefonso. fora Agnelo, Ambrósio,
Epifânio, Cesaltino, Ascolino, Salvador. E muitos, muitos outros. Desde que casara,
mudava de nome em cada aniversário. O argumento era que, assim, em trânsito
nominal, acabaria vivendo mais tempo.
Ter um nome só: é isso que apressa a morte. [...] (OPS, 2006, p. 71).
141
A pluralidade de nomes, todavia, não significa para ele a abundância e a vitalidade da
experiência humana, sintomas de morte adiada. Como Surendra Valá, de Terra Sonâmbula
(2007), Jesustino é indiano. “Somos de igual raça, Kindzu: somos índicos!” – afirmava
Surendra ao seu amigo, em adoração do mar, como se ali estivessem seus “comuns
antepassados, flutuando sem fronteiras”. (TS, 2007, p. 25). Embora sendo também ele um
“índico”, tendo várias pátrias, concretizando-se como “mistura de português, africano e
asiático” (OPS, 2006, p. 176), Jesustino não pertence a nenhum lugar. Adota sucessivos
nomes portugueses, mas o português não é a sua ngua. Maneja o português “como quem
costura trapos” (OPS, 2006, p. 130), comenta o narrador referindo-se à profissão e à fala
estropiada do goês.
A propósito dessa falta de memória, que os múltiplos nomes não são capazes de
preencher, o narrador revela que Jesustino contrai, menos por esquecimento e mais por
estratégia para esquecer, o nome que já usara anteriormente. Reincidia agora no mesmo nome,
“esquecido do seu passado”. (OPS, 2006, p. 71). Ora, a falta de memória atinge não apenas os
“traduzidos” de uma cultura a outra – conforme expressão cunhada por Bhaba –, mas também
os que são deserdados em sua própria terra. Devia mudar de nome, minha filha, esse seu
nome é tão antigodiz Jesustino a Mwadia. Frente ao conselho do padrasto, o narrador,
postando-se no lugar da moça, comenta:
O sorriso dela era triste. O que ela queria, na verdade, era nunca ter recebido nome.
A casa tem nome? E que nome tem a pedra? Admitia, contrafeita, que o padrasto
tinha a sua razão: deram-nos nome como um modo de nos dizerem que não temos
eternidade. E sentiu saudade do seu oculto lugar, além do rio. Ao menos lá, em
Antigamente, ela se esquecia de ter nome, ter rosto, ter idade. (OPS, 2006, p. 71).
Diversas outras personagens da obra de Mia Couto, pela indicação do nome, podem
ser lidas como seres da falta, da ausência, da nulidade. A abertura do conto Meia culpa, meia
própria culpa (FM, 2003a, p. 33-36) expressa de modo pleno essa característica. “Nunca
quis. Nem muito, nem parte. Nunca fui eu, nem dona, nem senhora. Sempre fiquei entre o
meio e a metade. Nunca passei de meios caminhos, meios desejos, meia saudade. Daí o meu
nome: Maria Metade.” (FM, 2003a, p. 33). Ao apresentar seu marido, no jogo irônico que
indica um valor quantitativo para no entanto expressar a falta, Maria se torna plenamente
Metade.
A meu esposo chamavam Seis. Desde nascença ele nunca ascendera a uma pessoa.
Em vez de nome lhe puseram um número. O algarismo dizia toda a sua vida:
despegava às seis, retornava às seis. Seis irmãos, todos falecidos. Seis empregos,
142
todos perdidos. E acrescento um segredo: seis amantes, todas actuais. (FM, 2003a,
p.33).
Essa condição marginal marca, a partir do nome, o lugar de inúmeras outras
personagens: Nãozinha, Miserinha, Zero Madzero e outras. Sua condição de ser de “fronteira”
conforme expressão reiteradamente usada por Fonseca et Cury (2008, v.g. p. 105) para
caracterizar os espaços ficcionais de Mia Couto os coloca, ao mesmo tempo, no lugar da
negação e da afirmação, da ausência e da presença, da loucura e da lucidez, do esquecimento
e da memória.
Nãozinha,
81
personagem de A varanda do frangipani (2007), carrega
metonimicamente, na negação e no diminutivo expressos no nome, a condição de exílio e
esquecimento de todos os velhos do asilo. Ainda que seu nome signifique pequenez e
anulação, frente à gica e à falta de memória do inspetor do asilo, ela é a feiticeira, a que
conhece os segredos das plantas, o que lhe facultará a ligação com os espíritos e antepassados,
vitalizando a tradição representada pelos velhos.
Miserinha,
82
personagem de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra
(2003), apesar de gorda também ela marcada pelo diminutivo do nome, tem seu lugar junto
aos pedintes e miseráveis. Sua condição miserável se explica: “Quando o marido dela morreu,
vieram familiares que Miserinha nunca tinha visto. Levaram-lhe tudo, os bens, as terras. Até a
casa. Ela então ressuscitou esse nome que lhe tinham dado na adolescência: Miserinha.
(RCT, 2003b, p. 131). Tantas perdas poderiam ser lidas como metonímia das perdas da
nação? Embora tendo perdido parcialmente a visão, Miserinha é capaz de ver sombras e ouvir
vozes; sabe ler os caminhos e os passos dos homens. (Cf. p. 20). Seu viver, de linhas
confusas e emaranhadas como as do lençol que costura (cf. p. 244), é feito de contradições e
de desenredos. Entretanto, possui um poder que ultrapassa e destoa com o nome. É profetisa e
feiticeira, mantenedora dos segredos da tradição. Ao costurar suas memórias, recompõe as
temporalidades.
Zero Madzero, de O outro da sereia (2006), carrega no nome conforme aponta
Fonseca et Cury (2008, p. 114) a “duplicação do número indicativo de total ausência de
quantidade”. Embalado no silêncio, “à procura das palavras”, “atingido por uma estranha
cegueira” que o tornava “invisual para palavras”, Zero se aproximava do próprio nome: ele
se anulava, em ocaso de si mesmo.” (OPS, 2006, passim p. 14). Embora morador do isolado
sítio de Antigamente, criador de burros e cabritos e marido de Mwadia, Zero ocupa, no
81
Sobre a personagem Nãozinha, cf. Fonseca et Cury (2008, p.78 e 109).
82
Sobre Miserinha, cf. Fonseca et Cury (2008, p. 109).
143
entanto, o ubíquo lugar da vida e da morte. Estrategicamente, do começo ao fim, o romance
deixa em aberto a dúvida a respeito de ele estar morto ou vivo.
Conforme reitera Fonseca et Cury (2008, p. 105), Mia Couto “(...) se apresenta como
um ser de fronteira: entre culturas, entre tradições, entre línguas, entre costumes.” O material
literário de sua escrita, a partir da extensa lista dos nomes-personagens por ele inventados,
não permite esgotar a reflexão sobre essas fronteiras, com sua diversidade e com suas
contradições, rupturas e deslizamentos. Considerando, pois, a riqueza do material literário e o
caráter necessariamente inconcluso da reflexão sobre tamanha diversidade, importa por fim, à
guisa de fechamento, apontar a enorme dose de criatividade de Couto na invenção dos nomes
com que batiza suas personagens.
Num texto em que tece curiosas perguntas à língua portuguesa
83
, Mia Couto afirma:
“A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o gosto
da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o vôo. Meu desejo é desalinhar a linguagem,
colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a vida tem é idimensões.” E
pergunta, entre inúmeras outras brincriações com a língua: “Em águas doces, alguém se pode
salpicar?” “Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?”
Na esteira das inventivas perguntas de Couto, nessa “soma de colorações”, “adição de
músicas e enfeites”, superstições e danças, com que o escritor reinventa a língua e,
particularmente, tece seus nomes-personagens, também perguntamos: Sexta-feira, dia útil da
semana, não seria um ótimo nome para um desses inúteis mendigos que “todas sextas-feiras
invadem a cidade à cata de esmola dos muçulmanos”?
84
(FM, 2003a, p. 67). Edmundo
Esplendor Marcial Capitani, de O outro da sereia (2006), certamente é um nome
adequado (e irônico) para um capitão que se engalana de glórias dos tempos coloniais.
Considerando a derrota dos exércitos coloniais frente às tropas revolucionárias, não caberia
bem ao general português o nome de Kaúlza de Arriaga? (Cf. OPS, 2006, p. 97-98). Uma
criança que tivesse nascido no dia da independência, 25 de junho, não poderia chamar-se
justamente Vinticinco de Junho? E, caso o nome fosse demasiado, não lhe iria bem o
diminutivo Junhito? (Cf. TS, 2007, p. 16). A um homem comum, qualquer, insignificante,
que tivesse ajudado a concretizar a independência e que, no entanto, se encontra frustrado
com os rumos do país, não lhe cai bem o nome de Fulano Malta? (Cf. RCT, 2003b, p. 16; 72-
73). Como se chamará a mulher atraente, “mulherosa”, que desoculta aos olhares dos homens
83
COUTO, Mia. Perguntas à língua portuguesa. Guia Brasil, Lisboa, 1995. Apud ANGIUS;ANGIUS, 1998, p.
62-63.
84
Cf. o conto O mendigo Sexta-feira jogando no mundial. In: O fio das missangas (2003a, p. 67-69).
144
os seios volumosos, os ombros, as coxas? Admirança. (Cf. RCT, 2003b, p. 57-58). A quem
pertencerá o nome Temporina? A uma mulher que carrega a estranha condição de ser ao
mesmo tempo velha e moça, de ter um rosto encarquilhado e um corpo polpudo e convidativo.
(Cf. UVF, 2005, p. 39). Como será a personagem de João Loucomotiva? A de um antigo
guarda-freio dos comboios ferroviários, descarrilado de suas faculdades mentais. (Cf. RCT,
2003b, p. 97-98). Como se deverá nomear um aprendiz de alfaiate? Na encenação dos espaços
coloniais britânicos ou portugueses, onde se podia encontrar em cada residência colonial a
máquina de costura inglesa da marca Singer,
85
o aprendiz será Singério. (Cf. OPS, 2006, p.
119). Como será uma personagem de nome Siqueleto? Um aldeão idoso, abandonado,
esquelético, desdentado, que tem por animal doméstico uma hiena. (Cf. TS, 2007, p. 65-68).
Que nome dar a um funcionário de baixo escalão, subserviente, que não tem outro projeto
senão mamar nas tetas do poder público? Chupanga. (Cf. UVF, 2005, p. 16). Quem será Ana
Deusqueira? Uma personagem cujo nome demarca a dupla condição de marginalizada, que
vive ao Deus dará, e ao mesmo tempo querida por Deus; ninguém senão uma prostituta.
86
(Cf.
UVF, 2005, p. 29). Como se chamará um casuísta espertalhão, aproveitador de oportunidades,
que pensa com números e raciocina com palavras? Casuarino. (Cf. OPS, 2006, p. 129-130). E
que nome se daa um feiticeiro, representante das tradições, ligado por profissão ao mundo
dos mortos, mas ao mesmo tempo adepto das modernidades eletrônicas e em busca de
autopromoção? Lázaro Vivo. (Cf. OPS, 2006, p. 24; 270-271). A lista continua: Sulplício,
Andorinho, Euzinha, Bartolomeu Sozinho, Dulcineusa, Arcanjo Mistura, Matambira, Ultímio;
cada um com boas razões para ter o nome que tem.
Ao inventar, a partir da margem, seus nomes-personagens, Mia Couto explicita um
projeto literário marcado pelo compromisso político, de par com o esforço maior da
construção identitária da nação moçambicana. A partir da leitura das personagens do escritor,
Fonseca et Cury comentam seu projeto:
Pela boca dessas personagens de fronteira, tresloucadas, deslocadas se afirma
com maior radicalidade o projeto literário do escritor que, na invenção de estórias,
percebe sua identidade e a de seu povo e a construção de uma possibilidade de
futuro. Não se trata, contudo, de supor uma superação dos conflitos característicos
do pós-independência, mas de acreditar na força de recuperação da terra, do homem.
(FONSECA et CURY, 2008, p. 119).
85
René Depestre, poeta haitiano, escreveu, na década de 50, um poema no qual a máquina Singer metaforiza as
ambiguidades da máquina colonial e suas práticas. Refere-se à presença de “uma máquina Singer num lar negro,
árabe, indiano, malasiano, chinês, anamita.” (Tradução de M. Nazareth Fonseca). Sobre o poema de Depestre, cf.
o capítulo Revoluções encenadas pela literatura, em Fonseca, 2008, p. 197-206.
86
Sobre a personagem Ana Deusqueira, cf. Fonseca et Cury, 2008, p. 113-114.
145
Ao reger, em tom de esperança, as desarmonias e descompassos de tantas vozes
desafinadas, Mia Couto se posta no “lugar divino” da criação, participando, pelo fazer
literário, da luta em busca da paz. Ainda que dessacralizando as tradições e outros espaços das
sacralidades, ao dar nome e voz aos da margem, o texto de Mia Couto, em consonância com
as considerações expressas no início deste capítulo, se oferece como oportuno constructo
teologizável.
5.2 Discursos e figurações literárias sobre Deus e os deuses
Em suas reflexões sobre o sagrado, Rudolf Otto apontou o caráter indizível do
“totalmente outro”, o divino, objeto da experiência religiosa. Ainda que tenha cunhado a
categoria “o numinoso” para designar o elemento fundante e constitutivo de toda experiência
religiosa, Otto insistiu no entanto neste aspecto: não como referir a alteridade do divino
senão por frágeis analogias.
87
Interessa-nos agora outra questão. Em Otto, a impossibilidade de a linguagem abarcar
o numinoso se explicaria pela total alteridade do mundo divino. Corresponderia, segundo os
conceitos teóricos da teologia, a uma espécie de agnosticismo. Ora, essa condição limitada de
a linguagem dizer a realidade não se mostra apenas em relação ao numinoso. E isso não se
por razões de ordem teológica.
Existe uma inadequação insuperável entre a realidade do mundo, tal qual o homem tão
diversamente a pensa, e a linguagem, enquanto mediação do pensamento humano sobre o
mundo. A linguagem mesmo a linguagem mais sistematicamente elaborada das teorias
científicas não se mostra capaz de açambarcar de modo pleno a dinâmica do pensamento
humano acerca da realidade. Essa inadequação fundamental da linguagem em relação ao
pensamento reproduz, enquanto mediação, a inadequação entre pensamento e realidade. Tal
limite da linguagem, porém, não deve ser pensado como um “defeito”. Trata-se da marca
fundamental de toda linguagem, enquanto possibilidade humana de dizer sua experiência no
mundo.
Não existe um mundo humano pré-linguístico. O mundo do homem se estrutura como
linguagem. A linguagem não possui uma origem, como se fosse um evento particular da
87
Disso falamos mais detalhadamente alhures, quando tratamos do “maravilhoso” na obra de Mia Couto. Cf.
capítulo Deus e os deuses, seção 3.2.
146
história humana. Desde sempre, constitui o humano. Segundo Hans-Georg Gadamer, o
homem nasce numa linguagem e, nela, o mundo se apresenta e se revela. “A existência do
mundo, diz Gadamer (1997, p. 643), está constituída linguisticamente.” A linguagem se
compreende, assim, em primeiro lugar, como a própria experiência humana de
“mundaneidade”. O humano é a sua própria linguisticidade. “Ser, que pode ser compreendido,
é linguagem.” (GADAMER, 1997, p. 687).
Na relação com o mundo, o homem diferentemente dos animais, para os quais o
mundo é apenas meio ambiente eleva-se ao mundo. Como alteridade autônoma, o homem
atribui nomes às coisas, muda-lhes os nomes, inventa signos, diferencia-se em línguas e
culturas. O alçar-se acima do mundo, contudo, não possibilita ao homem objetivar ou isolar
plenamente qualquer evento ou o conteúdo de qualquer enunciado. Afirma Gadamer: “A
relação fundamental de linguagem e mundo não significa [...] que o mundo se torne objeto da
linguagem. [...] A linguisticidade da experiência humana do mundo como tal não inclui a
objetivação do mundo.” (GADAMER, 1997, p. 653).
Ainda segundo Gadamer, enquanto experiência do mundo, enquanto meio da
experiência de ler/pensar/interpretar o mundo e enquanto experiência fundamental de
conversação, a linguagem se faz absoluta. Sua universalidade, contudo, não se manifesta na
capacidade potencial de dizer tudo, mas exatamente no fato de tal capacidade ser potencial.
Em sua condição fundamentalmente referencial, a linguagem poderia dizer tudo, mas não diz
tudo. A linguagem se apresenta habitada por uma “linguagem interior” que não lhe permite
esgotar o enunciável. Daí, toda leitura de mundo e toda conversação se mostram diversas,
dinâmicas, abertas, inesgotáveis.
Entretanto, o “enigma da linguagem interior”, condição da incomunicabilidade plena
do homem, abre as portas dialeticamente para o “enigma da comunicação”, da capacidade de
ultrapassar a solidão fundamental de cada ser humano, transferindo ao outro a significação de
sua experiência. (Cf. RICOEUR, 1978). No jogo dinâmico e aparentemente paradoxal de a
linguagem humana poder e não poder abarcar o mundo, colocam-se também os diferentes
discursos sobre Deus e os deuses.
Atribui-se a Agostinho de Hipona (cf. A cidade de Deus, VIII, 1) o ter cunhado o
termo “teologia” para referir o discurso sobre Deus. Naquele momento (inícios do século V),
a teologia não tinha ainda assumido a forma de “teologia científica”, o que vai ocorrer
somente a partir do final do período escolástico (aí pelo século XIII, particularmente com
Tomás de Aquino). Hoje, ainda que se afirme a diversidade das linguagens teológicas,
147
falando-se até de uma teologia popular, o termo teologia se associa em geral ao trabalho
sistemático, de elaboração teórica, realizado pelo teólogo profissional.
88
Na esteira do uso de um conceito mais largo de “teologia”, designamos, aqui, por
“discursos sobre Deus” quaisquer construções discursivas que têm, por objeto de referência,
Deus, os deuses, os antepassados, ou quaisquer outras entidades do mundo espiritual, celeste
ou invisível. Para definir o significado de “deus” matéria-prima central de qualquer forma
de teologia – adotamos a descrição fenomenológica, muito ampla, proposta por Tillich:
“deuses são seres que transcendem, em poder e significado, o domínio da experiência comum
e com os quais os seres humanos mantêm relações que ultrapassam, em intensidade e alcance,
as relações comuns.” (TILLICH, 2005, p. 220).
Se Deus ou os deuses constituem o assunto primeiro da teologia, esses seres não estão,
entretanto, ao nosso dispor, como material que se possa dissecar. De todo modo, qualquer que
seja a tradição religiosa em foco, tudo o que ela poderia dispor a respeito de Deus/dos deuses
são discursos. Por mais profunda que se pudesse julgar sua experiência religiosa, esta
poderia ser comunicada como discurso. Enquanto construções discursivas, tais falas poderão
se caracterizar por maior ou menor grau de sistematização teológica. Terão maior ou menor
poder de convocação ao agir segundo as normas comunitárias vigentes ou para sua superação.
Poderão ter marcas poéticas mais ou menos aparentes. Enquanto experiência humana de
linguisticidade, quaisquer discursos sobre Deus carregarão, por fim, a ambiguidade própria da
linguagem, seus limites e possibilidades, sua faculdade de, a um tempo, dizer, não dizer
tudo e, quiçá, dizer mais que o enunciado.
Somente sob a condição do falar/não falar, própria da linguagem, os deuses podem ser
ditos. O teólogo Clodovis Boff (cf. 1998, p. 298) refere-se a uma “inadequação insanável”
entre a realidade do Mistério e o pensamento, e entre este e a linguagem religiosa. Na mesma
linha de raciocínio, mas utilizando-se de outro gênero discursivo, em epígrafe atribuída a um
inventado Avô Celestino, afirma Mia Couto: “Deus é assunto delicado de pensar, faz conta
um ovo: se apertarmos com força parte-se, se não seguramos bem cai.” (Marmequer, 2000,
p.7). A propósito, nesse jogo semântico do velar/desvelar reside o sentido da palavra mistério
cujo sentido etimológico, do verbo grego myeo, relaciona-se à ideia de segredar ou dar a
iniciação nos mistérios. (Cf. BOFF, 1998, p. 298).
88
O teólogo Clodovis Boff, em sua tese doutoral (Teologia e prática: teologia do político e suas mediações.
3.ed. Petrópolis: Vozes, 1993) reservava o termo “teologia” ao discurso científico da fé. No prefácio
autocrítico”, escrito à terceira edição (p. VIII-IX), propõe o alargamento do conceito, incluindo nele qualquer
espécie de discurso religioso. A observação é do próprio autor. (Cf. BOFF, 1998, p. 599).
148
Na perspectiva de algumas tradições religiosas, Deus é compreendido no espaço do
inominável. Não pode ser “possuído” por um nome. É a perspectiva, por exemplo, da tradição
judaica e, até certo ponto, do cristianismo. Entre os judeus, desde os tempos blicos, ainda
que se possa representar o nome de Deus pelo tetragrama sagrado, este jamais é pronunciado.
Referem-se à divindade com o genérico Adonai (Senhor) ou simplesmente com hashem, isto
é, o nome. Não podendo dar um nome a Deus, chamam-lhe O Nome.
89
A linguagem religiosa, em sua condição fundamental de falar/não falar a
realidade misteriosa de Deus/dos deuses, recorre com freqüência a antropomorfismos e
superlativismos de toda espécie. Deus/deuses/antepassados são, em primeiro lugar e de modo
especial, os interlocutores do homem. O Ser supremo e criador, ainda que pensado como um
Deus otiosus
90
em algumas culturas, é aquele de quem provém a palavra, condição que
permite ao homem nomear o mundo que o rodeia. Na falta de um nome adequado para
nomear Deus, alguns povos tradicionais referem-se à divindade através de nomes que indicam
seus atributos superlativos: terrível, poderoso, onisciente. Outras vezes, associam-lhe
características do mundo animal ou da natureza: a ferocidade do leão, a mansidão do cordeiro,
a força do touro, a acuidade de visão da águia, o troar das tempestades ou das cachoeiras.
Outras vezes ainda, Deus/os deuses são pensados à nossa imagem e semelhança, com todas as
nossas virtudes, paixões e taras.
Sem discutir no âmbito conceitual da teologia o caráter perfectível dessa
linguagem, ou os possíveis equívocos a que ela poderia conduzir, observa-se, de qualquer
modo, que a linguagem religiosa em geral é marcadamente metafórica. Qualquer nome ou
atributo que venhamos a inventar para dizer Deus/os deuses será, ao fim e ao cabo, uma
metáfora. Sendo a metáfora um elemento constitutivo básico do discurso poético, conclui-se
que as linguagens das construções literárias se mostram particularmente adequadas às
articulações do discurso teológico.
89
A propósito do nome de Deus entre os judeus, uma curiosidade: no hebraico, os números podem ser
representados pelas letras do alfabeto. Na gica utilizada, o número quinze deveria ser formado pela
justaposição das letras iod (que vale 10) e he (de valor 5). Entretanto, essa combinação daria nas duas primeiras
letras do tetragrama sagrado. No extremo do respeito para com o nome de Deus, o número quinze se formará,
fugindo à lógica, pela combinação de tet + vav (9+6).
90
A ideia de um Deus otiosus apóia-se nas pesquisas de A. Lang (1844-1912), discípulo de Tylor, segundo as
quais, em muitas populações ágrafas existe a crença num ser supremo, criador e transcendente, o qual, ainda que
inativo, funcionava como referencial ético para a comunidade. Sobre tais concepções, a escola histórico-cultural
de Viena, de Wilhelm Schmidt (1862-1954), defenderá a tese difusionista do Urmonotheismus – um monoteísmo
ético primordial, fruto de um pensamento gico e racional, capaz de perceber a ordem do cosmos, e que
expressa, no âmbito religioso, a crença em uma causa primeira, criadora e onipotente; o politeísmo
corresponderia a uma involução progressiva desse estágio inicial da humanidade. Sobre a escola histórico-
cultural de Viena, cf. Filoramo et Prandi, 1999, p. 62-65.
149
Usamos aqui o termo metáfora no sentido proposto por Paul Ricoeur, na obra A
metáfora viva (2000). Para além da forma da metáfora, como “figura do discurso focalizado
sobre a palavra”, ou do seu sentido, como “instauração de uma nova pertinência semântica”,
Ricoeur propõe uma compreensão de metáfora no vel mais amplo do discurso (narrativo,
poético), quando a referência do enunciado metafórico torna-se capaz de “redescrever” ou
“redescobrir” a realidade. “A metáfora apresenta-se, então, como uma estratégia de discurso
que, ao preservar e desenvolver a potência criadora da linguagem, preserva e desenvolve o
poder heurístico desdobrado pela ficcção.” (RICOEUR, 2000, passim p. 13. Os itálicos são do
autor)
91
Sob esses pressupostos, seria ilusório pretender reconduzir os “fatos” da linguagem
religiosa construída pelo texto literário ao domínio das crenças e vivências religiosas
cotidianas ao qual eles supostamente pertenceriam, em vista de informar sobre fatos sociais e
históricos ligados ao âmbito religioso. Interessa-nos a linguagem metafórica sobre Deus e o
sagrado enquanto estratégia de discurso com “poder de decifração” e de redescrição do
mundo.
Em Mia Couto, inúmeras referências a Deus aparecem na forma de ditos, provérbios e
frases feitas. Sendo Deus, os deuses, os antepassados, os espíritos um tema de primeira
grandeza na tradição oral, reconhece-se o quanto se mostra feliz e apropriada a escolha do
escritor em abordar o tema com os modos característicos de expressão da oralidade. Também
aqui, como no uso manifesto de outros temas e formas de expressão da cultura tradicional,
Couto não apenas recolhe a cita os saberes da tradição ancestral, mas desconstrói, tensiona e
transforma esses saberes. O atravessamento da voz do narrador e das personagens pela voz
reinventada da tradição oral, para além de reconhecer e afirmar o valor da sabedoria
tradicional, mostra-se marca inconfundível da estratégia ficcional do escritor moçambicano,
alicerçada no pressuposto do dinamismo da tradição.
92
Algumas expressas afirmações acerca de Deus, construídas nos moldes de ditos e
provérbios, aparecem, aqui e ali, mescladas às falas de personagens. Outras vezes, abrem
capítulos dos romances, à guisa de epígrafes, muitas vezes atribuídas a personagens das
mesmas estórias narradas. Em O outro da sereia (2006, p. 296), à pergunta da brasileira
Rosie, se existia mesmo um deus que mora no rio, o pugilista Matambira responde: “Deus
mora nos lábios de quem reza.” No conto Os anjos embriagados (Cron, 1991, p. 158),
91
Cf. o desenvolvimento da questão na seção Por um conceito de “verdade metafórica”. (RICOEUR, 2000, p.
376-389).
92
Sobre este assunto, cf. Fonseca et Cury (2008, p. 63-82) e também o capítulo A força persuasiva dos
provérbios, em Moreira, 2005, p. 113-121.
150
afirma-se que “Deus é lento em enviar resposta.” Em Um rio chamado tempo, uma casa
chamada terra (2003b, p. 150), em uma das cartas ao neto, o avô Mariano diz: “O silêncio é
a língua de Deus.” No mesmo romance, o capítulo 6, intitulado “Deus e os deuses”, abre-se
com a epígrafe atribuída à personagem Fulano Malta: Assim esteve Deus para mim:
primeiro, ausente; depois, desaparecido.” (RCT, 2003b, p. 83).
A sabedoria adquirida da experiência prática e da observação cotidiana da vida,
expressa na forma concisa das falas proverbiais, sempre presentes nos diálogos e na voz dos
narradores, bem como o caráter de exemplaridade de que tais falas se revestem, são
desconstruídos pelas rasuras críticas com que Mia Couto as reinventa. De Deus, se esperaria
abrigo e proteção. Nas vozes de Couto, porém, ele se faz lento, silencioso, ausente por vezes.
Em passagem de O outro pé da sereia (2006), no sugestivo diálogo encenado por
Mwadia ainda menina e sua mãe Constança, um variado leque de traços semânticos se faz
presente na construção das afirmações sobre Deus. Leiamos integralmente o diálogo.
Veja, mãezita, escrevi esta cartinha para Deus.
Não se escreve para Deus, minha filha.
E porque?
O pobre Deus, explicava Dona Constança, sofria de vista cansada, exaurido
pelos peditórios infinitos.
A mãe pode ler?
Não quero.
Posso ler em voz alta?
Também não. Os pedidos verbais, fora da oficial oração, não têm validade
legal. Ela que rezasse, como mandavam as escrituras.
E tudo se repetia, sempre igual, até que, certa vez, Constança puxou a menina
pelos braços, convidando-a com gentileza a sentar-se no chão. Partiu um galho de
arbusto e solicitou, apontando a areia:
Escreva aí!
Escrever o que?
Qualquer coisa, um nome, o seu, o meu, qualquer.
A moça hesitou. Escrever no chão? A mãe, por fim, se explanou:
É que eu só sei ler na areia.
Tinha sido ali, no pátio da velha casa, que ela havia recebido lições do abecê.
A terra tinha sido o seu quadro-negro, o quintal tinha sido a sua escola. Mwadia
sorriu, fingindo acreditar. A mãe insistiu:
Escreva na terra, filha. A terra é a gina onde Deus lê. (OPS, 2006, p.
174-175).
No antropomorfismo de um Deus “pobre”, “de vista cansada”, “exaurido”, e na
afirmação de que “não têm validade legal” as orações não oficiais, mostra-se outra vez o Deus
silente e incapaz. A esse Deus contraditório, cuja impotência em atender aos pedidos se
explicaria justamente pelo infinito das demandas, contrapõe-se o Deus que a terra, a página
oficial da tradição na qual se inscreve a vida. As transformações, rupturas e recomposições do
151
mundo das tradições orais, causadas pela nova ordem trazida pela escrita, constituem assunto
recorrente no autor moçambicano.
93
Aqui, o assunto retorna para falar de Deus.
Nos contos e romances de Couto, em geral é o mundo da oralidade que se rompe pela
novidade da escrita. Vale lembrar o finalzinho da cena de Terra sonâmbula (2007, p. 69), em
que a personagem Siqueleto morre/fecunda-se de si na escrita do seu nome. No diálogo entre
Mwadia e sua mãe, ao contrário, a carta, as lições do abecê, o quadro-negro é que capitulam
ante o chão, a areia, a terra, “a página onde Deus lê”.
Em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2003), na última carta de
Dito Mariano, que fecha o romance, o “nossoDeus ausente o Deus otiosus
94
de algumas
tradições africanas se contrapõe a um vigilante Deus cristão. Diz o avô:
[...] Dormir é um rio, um rio feito de curva e remanso. Deus está na margem,
vigiando de sua janela. E invejando o irmos, infinitos, vidas afora. Vem daí o
cansaço de Deus. Esse Deus do Padre Nunes se consome na desconfiança. Há
séculos que Ele deve controlar a sua obra, com seu regimento de anjos. O nosso
Deus não necessita de presença. Se ausentou quando fez a sua obra, seguro de sua
perfeição. (RCT, 2003b, p. 259).
Poder-se-ia dizer, no extremo, que a referência a um Deus ausente, justamente porque
evoca o Mistério em sua transcendência e indisponibilidade, se mostra adequada para falar do
Divino. Entretanto, em Mia Couto a questão é outra. Mais que de um Deus altíssimo e
distante, seus constructos discursivos acerca de Deus querem falar do homem abandonado,
daquele cuja existência se constrói de pura falta. Assim, se, de um lado, “Deus mora nos
lábios de quem reza” (OPS, 2006, p. 296), de outro, “rezamos tanto mas os dias são mais que
o pão.” (VF, 2007, p. 127). À afirmação da lentidão de Deus em enviar resposta (no dito
citado acima, de Os anjos embriagados), Couto desloca o assunto para o âmbito da política
acrescentando a irônica pergunta: “Será problema de Deus ou dos seus quadros médios?
(Cron., 1991, p. 158).
A politização dos discursos sobre Deus volta com recorrência nãona forma de falas
proverbiais, mas também na tessitura de diversos diálogos e na voz reflexiva dos narradores.
No romance O outro da sereia (2006, p. 147), referindo-se ao fim de mundo em que se
encontra Vila Longe e à sua ignorância acerca da organização a que pertencem os recém-
chegados americanos, Matambira diz: “... por causa dessas montanhas aqui nem a voz de
Deus nos chega.” No mesmo romance, no tenso diálogo entre o padre Manuel Antunes e o
escravo Nimi Nsundi, este afirma que “Deus não desce em baixo [...], onde dormimos nós,
93
Falamos disso no capítulo Deus e os deuses, na seção que tratou da recriação literária das tradições orais.
94
Cf. nota 90 acima, à p. 148.
152
os escravos.” (p. 56). Mais adiante, no longo entrevero com seu superior Gonçalo da Silveira,
padre Antunes afirma: “Rezar [pelos escravos que tinham morrido de fome, envenenados]
não basta.” (p. 162). Observa-se que há uma diferença de sentido entre a primeira citação e as
duas seguintes. Na primeira, a ideia de um Deus distante se descreve na linguagem do senso
comum e chega a ter um tom brincalhão. Nas seguintes, cujo sentido é certamente muito mais
importante no conjunto do romance, afirma-se com agudeza não tanto o Deus ausente, mas o
nosso distanciamento de Deus.
Ainda no mesmo romance, no diálogo em que os moradores de Vila Longe são
interrogados sobre sua própria história, o narrador comenta: “Agora, perante a pergunta [quem
são vocês?] de Benjamin Southman, poderiam responder que eles, os de Vila Longe, também
eram americanos. Quem não o é, neste mundo em que os céus se encheram de antenas e se
vazaram de deuses?” (OPS, 2006, p. 295). Na pergunta final, retórica, que serve de
explicação para a ideia de que também os de Vila Longe “eram americanos”, encontramos de
novo, marcada pelo tom politizado, a afirmação da ausência de Deus. O texto contrapõe
expressamente o u cheio de antenas, em obediência aos ditames das novas divindades da
economia global, encabeçada pelos norte-americanos, ao céu esvaziado de deuses, das nações
pobres e periféricas.
A ausência dos deuses tradicionais, ou sua substituição por novos deuses,
metaforicamente representada pelas antenas, traduz uma prática de incorporação cultural que
pauperiza ainda mais, desde seus elementos identitários básicos, as empobrecidas nações
periféricas do mundo. Em que pese a eficácia de tal processo, paira entretanto sobre as nações
pobres a suspeita de que o sejam sequer capazes de lidar com as importadas novidades
tecnológicas. A cena da aterrissagem do avião, na chegada a Moçambique dos afro-
americanos (OPS, 2006, p. 137-138), expressa a suspeita. À pergunta de Rosie, se o piloto era
moçambicano, comenta o narrador: “Os solavancos do avião na velha pista de aterragem
fizeram emergir, também nele [Benjamin Southman], a inconfessável pergunta: de que raça
seria o piloto? Seria negro aquele que conduzia o seu destino? Sem dar conta, Benjamin fez o
sinal-de-cruz.” A dúvida dos americanos, culminando com o gesto cristão, inverte com humor
crítico as perspectivas culturais, fazendo o poder do gesto mágico se sobrepor às
possibilidades da tecnologia.
Em inúmeras passagens da obra de Mia Couto, os discursos sobre Deus em clave
política se encaminham na direção de discutir o processo colonial. Este traço se pode medir
com sobejo no romance O outro da sereia (2006), particularmente nos capítulos
dedicados à viagem do missionário Gonçalo da Silveira, assassinado no Monomotapa.
153
Ao final do romance, na encenação da busca pelos assassinos do jesuíta, comenta o
narrador: “As principais suspeitas recaíam, enfim, sobre o poderio mouro, adversário e
concorrente dos portugueses no domínio das rotas de ouro e escravos. O [rio] Zambese era
uma estrada por onde circulavam lustrosas riquezas. Deus chegava depois dos barcos.” (OPS,
2006, p. 308). O instigante comentário do narrador obriga a desviar a atenção do assassinato
do padre para o crime maior perpetrado pela colonização de África. Na assertiva final, de
extrema concisão, pode-se resumir o projeto da cristandade colonial: ratificar com a cruz o
que ao poder capitalista nascente cabia realizar pela força da espada e da pólvora.
No romance, a afirmação “Deus chegava depois dos barcos”, com seu tom crítico e
politizado, como que encerra a extensa série de referências a Deus entretecidas com o tema da
colonização. Destacam-se, na série, os sugestivos embates entre as personagens de Antunes e
Silveira acerca das “razões de Deus” e das “razões de Portugal” (OPS, 2006, p. 308) em
relação à presença portuguesa no Monomotapa e, mais particularmente, ao sentido de sua
evangelização.
95
Em que pese, no romance em foco, a abundância de passagens em que figuram os
contrastes entre a religião do colonizador português e a do nativo africano, os respectivos
imaginários sobre Deus e os deuses nem sempre aparecem de forma expressa. O capítulo 12,
A dança do peixe-voador (OPS, 2006, p. 195-209), central no romance, ilustra a observação.
Referimo-nos à centralidade deste capítulo no sentido de que se desenrolam as ações que
funcionam como um divisor de águas no romance: a amputação de um dos pés da imagem de
Nossa Senhora, a condenação do escravo Nsundi, autor do sacrilégio, a negação e posterior
autorização para que se realizassem os rituais “pagãos”, a carta de Nimi à escrava indiana
onde se desvela o sentido do título do romance –, os conflitos de consciência e a dança de
padre Antunes ao ritmo dos tambores africanos.
Não encontramos aí, propriamente, expressas assertivas sobre Deus ou sobre os
deuses, a partir das quais pudéssemos imaginá-los ou descrever-lhes os atributos. Entretanto,
o texto de Couto refere-se, sugestivamente, a uma linguagem de Deus que, tomada como eixo
semântico, permite alocar em polos opostos os dois universos religiosos em conflito. Ao polo
do imaginário religioso português, representado pela voz autorizada do missionário Gonçalo
da Silveira, poderíamos chamá-lo de a “língua de Cristo” (p. 201) ou o “único modo que Deus
poderia entender”. (p. 205). Dessa linguagem fazem parte o silêncio, a moderação, as preces
de joelhos, a devoção, as fórmulas oracionais, a confissão dos pecados. A “língua de Cristo”
95
Já nos referimos a esses conflitos, no primeiro capítulo da tese, na seção 2.1, dedicada à trajetória do padre
Manuel Antunes.
154
abarca o projeto missionário de “humanizar os escravos” (p. 201), torná-los de alma branca.
Uma das epígrafes, atribuída ao jesuíta, reza: “Ó cafres, de pretos que sois, quão brancas
espero em Deus serão vossas almas.” (p. 196). Em certo ponto do capítulo, o narrador,
referindo-se a Silveira, reitera o projeto missionário: “Em Goa [Silveira] nunca fizera amizade
com um africano. A pele escura não ajudava a ver neles uma alma. E no entanto, era essa
mesma alma opaca que era o destino da sua viagem. A brancura daqueles espíritos, mais do
que o Monomotapa, esse era o propósito daquela travessia.” (OPS, 2006, p. 201).
A “língua de Cristo”, na forma icônica de cruz refulgente, sustenta ademais a
autoridade do capitão do navio, ainda que este seja “um branco mal trajado, de pele mais
tisnada que um mouro, de modos mais grosseiros que um cafre, e de linguarejar mais tosco
que Nsundi”. (OPS, 2006, p. 199) Observe-se que os traços que descrevem a rudeza do
comandante, segundo o olhar de Silveira, são buscados quase todos no elemento não-
português. A língua de Cristo”, por fim, sendo a língua da autoridade constituída, tem o
poder de interditar, escravizar, torturar e enforcar quem quer que se interponha a seus
projetos. A propósito, outra epígrafe que abre o capítulo é um trecho da carta, de 1452, do
papa Nicolau V ao rei de Portugal:
[...] nós lhe outorgamos pelos presentes documentos, com a nossa autoridade
apostólica, pela livre permissão de invadir, capturar e subjugar os sarracenos e
pagãos e qualquer outro incrédulo ou inimigo de Cristo, onde quer que seja, como
também reduzir essas pessoas à escravidão perpétua. (Apud OPS, 2006, p. 196).
No polo oposto, o da linguagem religiosa africana, outras vozes, capazes de “chamar
os bons espíritos” (p. 201), insistem teimosamente em ser ouvidas. Essa “língua que não
entendemos”, de “palavras soltas”, de sonhos generosos, é a língua da doce melodia da mbira,
da nudez sedutora, do “cantar, dançar, tocar” (p. 202), do transe (p. 203), dos batuques que
fazem crepitar os corpos como fogueiras. Essa é a língua dos escravizados, a linguagem que
lhes sustento para suportar a escravidão. Ou para suicidar-se, quando a escravidão,
insuportável, já é morte anunciada.
Desde a perspectiva de Silveira, representante da “língua de Cristo”, os cultos
africanos não passavam de “algazarra de selvagens”. A esse respeito expressa o narrador:
“Era algo que, desde sempre, alvoroçara Gonçalo da Silveira: o modo como os negros
gargalhavam, a facilidade da felicidade, a disponibilidade para a lascívia. Faltava aos
selvagens não apenas um credo. Faltava-lhes moderação na alegria, tento no riso, parcimónia
na paixão.” (OPS, 2006, p. 201).
155
Assim, de forma não manifesta, indiretamente, cada uma dessas linguagens remete a
diferentes imagens do Mistério: do Deus católico e dos deuses africanos. Entre um polo e
outro, tensionando ainda mais o encontro/desencontro das culturas, movimentam-se sem lugar
fixo algumas personagens. Padre Manuel Antunes, em seu trânsito ao mundo africano,
balança entre o dançar ao batuque dos tambores e o confessar os pecados. Apresenta-se como
a única exceção, dentre os brancos da nau, a “conviver com uma ruidosa cerimônia pagã”.
(Cf. p. 205).
Não é Antunes, porém, a única exceção. A dama portuguesa Dona Filipa, de cuja
fragilidade nada se esperaria, intervém com vigor para salvar sua escrava indiana e demover a
interdição de Silveira. Da pálida e doente fidalga vem a insistência, junto à autoridade
religiosa do missionário, para que o batuque seja autorizado. “– Eu mesma muito que
escuto batuques dos cafres diz a senhora. São ritmos tão belos, que Deus vai gostar de os
escutar.” (OPS, 2006, p. 206). Observa-se, por aí, que não um único olhar português sobre
o mundo religioso africano.
Nimi Nsundi, em atitudes que a razão do missionário Silveira não é capaz de abarcar,
transita entre a imagem de madeira da Virgem portuguesa e Kianda, a divindade das águas,
prisioneira na estátua. A aparente devoção do escravo à imagem dos portugueses tinha
ensejado séria discussão entre ele e a escrava indiana. No longo diálogo entre os dois que
estrutura o capítulo 6 do romance (OPS, 2006, p. 105-116), – se expressa o confronto entre os
distintos imaginários religiosos. Na carta de Nimi Nsundi a Dia Kumari, que retoma as falas
entre os dois escravos, o olhar africano interpreta a religião portuguesa. Dentre as muitas
afirmações sobre o tema, encontramos:
Condena-me por me ter convertido aos deuses dos brancos? Saiba, porém,
que nós, os cafres, nunca nos convertemos. Uns dizem que nos dividimos entre
religiões. Não nos dividimos: repartimo-nos. [...]
Não, minha amiga Dia, eu não traí as minhas crenças. Nem, como você diz,
virei costas à minha religião. A verdade é esta: os meus deuses não me pedem
nenhuma religião. Pedem que eu esteja com eles. E depois de morrer que seja um
deles. [...]
Critica-me porque aceitei lavar-me dos meus pecados. Os portugueses
chamam isso de baptismo. Eu chamo de outra maneira. Eu digo que estou entrando
em casa de Kianda. A sereia, deusa das águas. É essa deusa que me escuta quando
me ajoelho perante o altar da Virgem. [...] (OPS, 2006, p. 113).
Também no confronto entre Arcanjo Mistura e Benjamin Southman, em torno do
controvertido tema da afirmação dos negros embate que ocupa boa parte do capítulo 11
(OPS, 2006, p. 181-194) pode-se ler aquela polarização no sugestivo jogo semântico que
opõe o “sair de África” ao “entrar na igreja”. Benjamin, enquanto historiador, sustentava a
156
tese de que “tinham sido as igrejas que haviam preservado muito da africanidade dos
descendentes de escravos”. (p. 188). No bojo da conversa, para falar de seu apoio à luta
nacionalista em África, o americano exibe ao barbeiro uma foto em que ele, Benjamin, e
Rosie estavam à entrada de uma igreja. Ao que o barbeiro invectiva: “– Vocês não saíram de
África quando vos levaram nos barcos como escravos. Vocês saíram quando entraram na
igreja e se ajoelharam perante Jesus.” (OPS, 2006, p. 188).
Entretanto, em que pese o legítimo comentário de Mistura, também ele é um “saído”
de África, um traduzido – na linguagem de Bhabha. Em outra cena, referindo-se ao magoneko
cerimônia pela qual o americano seria rebatizado com um nome africano Arcanjo Mistura
diz “com desdém”: “Para sermos africanos o temos que passar por isto.” (OPS, 2006, p.
277). Sua racionalidade será “castigada” pelos espíritos. Tendo-se recusado a participar da
reunião em casa do adivinho, ficou para trás sozinho. Perturbou-se. Pensou escutar rugidos e
rastolhar de folhagens. Quase gritou. No comentário do narrador, revelam-se traços da
concepção africana sobre os deuses:
Arcanjo Mistura repensou na vida, nas crenças que o sustentavam. Ele fora longe de
mais na adopção dos chamados conceitos científicos. Estava agora a ser punido pelo
desrespeito. A floresta vingava-se do seu cepticismo, os espíritos o cercavam, os
ngozi preparavam-se para o assaltar. A cabeça do barbeiro era um caldeirão de
zumbidos quando os seus companheiros o reencontraram a caminho de Vila Longe.
(OPS, 2006, p. 277).
Nas figurações literárias sobre Deus expressas pelas falas e atitudes do padre Antunes,
do escravo Nsundi, do afro-americano Benjamin e do barbeiro Arcanjo encenam-se, a um
tempo, a busca por demarcar um lugar religioso identitário e a sua rasura e transposição. Tais
movimentos, em sua oscilação, convergem em direção a um hibridismo religioso que se
apresenta, via de regra, tenso. Entretanto, com o nyanga Lázaro Vivo, a tensão cede lugar à
busca esperta do lucro. Como “empresário” do âmbito religioso, consegue associar na mesma
negociata, os divergentes discursos sobre Deus. Comenta, com boa dose de humor, o
narrador:
[Para Lázaro Vivo,] era indiferente que o baptismo [do americano] tivesse ocorrido
no outro lado do planeta. E pouca diferença fazia que ele tivesse cumprido os rituais
católicos. Jesus Cristo, afinal, não era mais que um espírito das águas. Por isso, o
filho de Deus caminhou sobre os mares. Por essa razão, ele transformou a água em
vinho. E ainda por causa dessa condição, os apóstolos eram pescadores. (OPS, 2006,
p. 275).
Os tensos conflitos entre a “língua de Cristo” e a “língua de África”, figurados na obra
de Mia Couto, não excluem, todavia, que os diferentes discursos sobre Deus convirjam, por
157
vezes, em direção a uma linguagem comum. Nesse movimento, a tensão, comumente presente
nos processos de hibridismo, ainda que não desapareça totalmente, cede espaço a um diálogo
inter-religioso que se concretiza como abertura ao outro, assunção do seu olhar e partilha de
anseios comuns. As falas sobre Deus, nascidas desse encontro, superam as diferenças de
crenças e dogmas particulares para afirmar, em comum, o Deus que detesta as injustiças, o
Deus da vida.
A personagem de padre Nunes, de Um rio chamado tempo, uma casa chamada
terra (2003), expressa bem os traços de um homem “para além da família, da raça e da
crença.” (RCT, 2003b, p. 87). Seu “modo fraterno” e suas falas mansas”, sem dúvida, o
tornam admirável. “Não posso imaginar Luar-do-Chão sem a sua serena presença, como se
ele fosse essência do nosso lugar”, diz o narrador. (RCT, 2003b, p. 87). Contudo, é na
inveja que nutre por Fulano Malta, o amigo guerrilheiro, no cansaço perante as injustiças e na
crítica que faz à sua própria instituição que Nunes se torna mais admirável. Nesse contexto,
sua fala sobre Deus ganha um alcance para além de toda crença. Ouçamos, sobre isso, o
narrador:
[Padre Nunes e Fulano Malta] tinham tido sérias desavenças. No entanto,
ninguém para ele [Nunes] merecia maior respeito em toda a Ilha. Na altura em que
meu pai decidiu juntar-se à guerrilha, o Padre Nunes foi chamado pela família a
pedido de Dulcineusa. O português pediu a meu pai que reconsiderasse. Mas fazia-o
a contragosto. É isso que agora me confessa: na altura, lhe apeteceu estar no lugar de
Fulano Malta. Uma secreta inveja o roia por dentro. Queria ser ele a partir, a romper
com tudo, em trânsito para outro ser. Não era que concordasse com os ideais de
Fulano. Estava era cansado. A injustiça não podia ser mando divino. E a sua
instituição se acomodara tanto, que parecia ajoelhar-se mais perante os poderosos
que perante Deus. (RCT, 2003b, p. 88).
No capítulo de abertura de O outro da sereia (2006), Zero Madzero é apresentado
como alguém a quem “na igreja lhe ensinaram que Deus é se é único, mais que único. Ele
que apagasse a multidão de deuses familiares, essas divindades africanas que teimavam em
lhe povoar a cabeça.” (p. 16). Entretanto, ao ser surpreendido pelo fogo ruidoso que rasgou
os céus, implorou: “– Me salve, Deus! E acrescentou, em célere sussurro: E me acudam os
meus deuses, também...” (p. 17). Pode-se inferir, daí, que, também naquelas situações em que
as necessidades e premências são maiores que os dogmas, Deus e os deuses tendem a
caminhar em direção ao entendimento.
Os conflitos provenientes das diferenças são superados também quando, apesar das
divergências, os contendores se irmanam no suportar as mesmas dores e injustiças. Vemos
isso na relação entre Nhonhoso e Domingos Mourão, personagens de A varanda do
158
frangipani (2007). Nhonhoso é africano; Domingos Mourão ou Xidimingo, português. Entre
socos, impropérios e ironias desferidos mutuamente, reconstroem metonimicamente a
memória do tempo colonial. Entretanto, partilham a comum experiência de velhos, arrancados
de seu mundo, abandonados num asilo, à espera da morte. Daí nasce uma fala sobre Deus que,
se diz pouco de seus atributos, diz tudo da extremada amizade e do afeto entre dois homens,
diferentes na cultura, irmanados no abandono. Assumindo a voz do africano, diz o narrador:
Voltei atrás e me sentei ao lado do português. Senti, naquele instante, tanta
pena dele. O homenzito iria morrer aqui, longe dos antepassados. Seria enterrado em
terra alheia. Ele, sim, estava condenado à mais terrível das solidões: ficar longe dos
seus mortos sem que, deste lado da vida, houvesse familiar que lhe deitasse
cuidados. Nossos deuses estão aqui perto. O Deus dele está longe, para além das
vistas e das visitas. (VF, 2007, p. 66).
Em Mia Couto, os conflitos gerados pelo processo colonial não escondem, de qualquer
forma, o olhar carinhoso para os portugueses que fizeram de África sua terra. “O seu amor,
como o dos outros, está povoado de Áfricas.” (Cron. 1991, p. 162). Sob esse olhar, ganha
sentido a explicação tica para a colonização, que se pode ler no diálogo entre Nhonhoso e
Xidimingo. Diz o velho português: “Nós brancos, sempre ganhámos. Durante quinhentos anos
vencemos sempre. Nos é que tínhamos as armas.” (VF, 2007, p. 65). Comenta o narrador, no
relato de Nhonhoso:
O português, coitado, mantinha aquela ilusão. Ele não entendia o passado.
Não foram armas que nos derrotaram. O que aconteceu é que nós, moçambicanos,
acreditámos que os espíritos dos que chegavam eram mais antigos que os nossos.
Acreditámos que os feitiços dos portugueses eram mais poderosos. Por isso os
deixamos governar. Quem sabe suas histórias eram mais de encantar? (VF, 2007, p.
65).
As diferenças religiosas, os conflitos, a ironia e a crítica à religião dos colonizadores, a
rasura das mesmas tradições africanas, os hibridismos e deslocamentos identitários de toda
espécie, ora tensos, ora irônicos, ora harmoniosos, configuram o imaginário e os discursos
sobre Deus e os deuses. Nesse imaginário e nessas falas sobre o divino, abundam as
analogias metafóricas, a linguagem simbólica que atribui a Deus e aos deuses traços da
experiência humana.
Fala-se de um Deus ausente, de um Deus de vistas cansadas, de um Deus que inveja o
ir e vir dos homens. Fala-se até de um “Deus preguiçoso”, que não trabalha e “só faz
milagres.” (VF, 2007, p. 66). Ora, o discurso metafórico sobre Deus, em que pesem os riscos
de fetichização e de antropomorfização, é o discurso possível sobre Deus. Justamente porque
o Mistério está acima de todo discurso, ele provoca a abundância das falas.
159
Existirão modos mais adequados que outros para falar de Deus? Talvez. Entretanto,
certos antropomorfismos, se não servem para discutir a natureza de Deus, pelo menos evocam
o que é Deus para nós. Movem à e provocam ao agir. Referindo-se à maneira de rezar da
personagem Zero Madzero, diz o narrador: “Os outros rezavam a Deus. Ele rezava com Deus.
Os outros rogavam ao Criador. Madzero conversava com Ele, fazendo dele as Suas palavras.”
(OPS, 2006, p. 19).
Também padre Muhando sobre quem falamos no capítulo Deus e os deuses –,
personagem de O último vôo do flamingo (2005), estabelece com Deus uma relação marcada
pela mais pura intimidade. Comenta, a respeito, o narrador:
O padre era uma criatura digna de descrédito. [O italiano Massimo Risi]
confirmava o que tinha ouvido dizer: o religioso enlouquecera, esquecendo suas
devotas obrigações. Várias vezes se ouvira o sacerdote insultando Deus pelas ruas
públicas. Morria uma criança, indefesa contra o sofrimento, e Muhando saía da
igreja e desafiava o Criador, ofendendo-o em frente de todos. Chamava-lhe os piores
nomes, desafiava-o a pente grosseiro.
– É verdade que ofende Deus?
– Qual Deus?
– Bom... Deus.
– Ah, esse. É verdade, sim. Eu insulto-O quando Ele se descomporta.
Tinha razões para essa intimidade ele e Deus eram colegas, sabedores de
segredos mútuos. Quando ele bebia, Ele bebia também. Por isso ele não rezava a
Deus. Antes, rezava com Deus. (UVF, 2005, p. 123-124).
Se, ao fim e ao cabo, é impossível à teologia (sistemática) saber o que é Deus, não se
constituirá melhor teologia aquela que se reveste da linguagem da oração, do oráculo, da
intercessão, da homologia, da doxologia, das formas poéticas? Não sendo propriamente um
tratado da em Deus, “a teologia é o discurso de Deus sobre o ser humano e não o discurso
do ser humano sobre Deus.” (BOFF, 1998, p. 46). Este é o sentido do fazer teológico da
personagem de Zero Madzero e do padre Muhando: a intimidade que permite saber os
segredos de Deus e apropriar-se de suas falas.
Na belíssima cena das três mulheres em redor do almofariz (OPS, 2006, p. 173), em
que, entre risos, como num jogo de infância, buscam acertar o compasso e a alternância das
batidas, o narrador de Couto resume o sentido de toda práxis teológica: A vida é assim: ora
Deus, ora o Homem.” Em vista das construções poéticas que se mostram capazes de dizer, de
um modo a um tempo tão simples e com tão grande profundidade, o Mistério de Deus e da
existência humana, perguntamos: Qual teologia profissional não invejará a fala poética sobre
Deus? Qual teologia não almejará ser teopoesia?
160
5.3 O território sagrado da poesia
No poema intitulado Arte Poética, o escritor chileno Vicente Huidobro compara o
fazer poético ao poder divino da criação. Diz, nos últimos versos: “Por que cantais a rosa, ó
Poetas? / Fazei-a florescer no poema. / Somente para nós / Vivem todas as coisas debaixo do
Sol. / O Poeta é um pequeno Deus.”
96
Conceber a criação literária no uso do termo “criação” como algo próprio do
âmbito do divino e o artista como um agraciado pelos deuses com o “dom” da arte identifica
não uma posição teórica acerca do que é literatura, encontrada no período do romantismo,
como, muito particularmente, a compreensão que daí se cristalizou como senso comum sobre
a arte em geral.
Não encontramos, em nossa leitura de Mia Couto, qualquer passagem que acentuasse
esse caráter divino e gratuito da arte, no sentido de que alguns eleitos sejam marcados pela
“bênção” da poesia. Encontramos, sim, um trabalho de linguagem acerca das sacralidades, no
qual as construções metafóricas e outros recursos literários – destacados ao longo deste
trabalho permitem pensar a escrita e a leitura como rito que se aproxima do sagrado.
Entretanto, trata-se não da compreensão da arte como dom divino. O foco é outro: o texto de
Couto sugere que o mister artístico e o seu produto, a obra, se embebem e participam do
sagrado. Para além das expressas referências ao sagrado na construção de sua obra literária,
para além do compromisso do escritor em encenar na ficção as vozes marginais de sua
sociedade, nossa leitura pretende, por fim, apontar mais uma faceta do teológico que atravessa
a obra de Mia Couto: o seu caráter poético.
Discutindo a respeito do “conteúdo” da teologia, Paul Tillich exemplos de
“preocupações preliminares” que podem se tornar em objeto possível da teologia. Diz o
teólogo: “Quadros, poemas e música podem se tornar objetos da teologia, não sob o ponto de
vista de sua forma estética, mas de seu poder de expressar, em e através de sua forma estética,
alguns aspectos daquilo que nos preocupa de forma última.” (TILLICH, 2005, p. 31).
Também Boff afirma que a teologia passa por mediações como a poesia e o canto. Diz
expressamente: “A fala da fé, se não é apofântica’ (declarativa, judicial), será sempre uma
fala semântica, ou seja, sensata, significativa.” (BOFF, 1998, p. 69. Cf. também p. 599).
96
Tradução de: “Por qué cantais la rosa, !oh Poetas! / Hacedla florecer en el poema; / Sólo para nosotros / Viven
todas las cosas bajo el Sol. / El poeta es un pequeño Dios.” Arte Poética, de El espejo de Água (1916).
Disponível em: www.vicentehuidobro.uchile.cl. Acesso em: 18/11/2009.
161
Em ambos os teólogos citados, observa-se que estabelecem uma nítida distinção entre
conteúdo (teológico) e forma (poética). Em Tillich, a “forma estética” é meio “em e através”
do qual nossa preocupação última poderá se expressar. “O sagrado necessita ser expresso e só
pode ser expresso através do secular” diz Tillich. (2005, p. 226). Clodovis Boff fala de
poesia como “mediação” teológica. Entretanto, em outra passagem da obra citada, este
teólogo afirma que “o noûs é o foco vivo de toda criatividade humana: estética, filosófica,
religiosa e científica. É a fonte misteriosa das idéias novas.” (BOFF, 1998, p. 64). Ora, é nesse
espaço mais amplo da inteligência da que se pode compreender o fazer poético, não apenas
enquanto mediação do discurso teológico, mas, ele mesmo, teologia.
Diversas passagens de Couto expressam, sob um foco mais geral, uma concepção de
religiosidade na qual o cotidiano da vida e as vivências religiosas se abarcam mutuamente e se
confundem. Não poderia ser diferente. Assim se apresentam, afinal, em suas raízes, as
religiões tradicionais africanas, nas quais os deuses e os antepassados fazem parte da família e
participam de seu cotidiano, onde o tempo presente e o tempo da ancestralidade se mesclam.
Essa concepção está bem representada, por exemplo, na epígrafe que abre o capítulo Um
burro enigmático, do romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. (2003b,
p. 93). Diz a epígrafe, atribuída à personagem padre Nunes: “Quando a terra se converte num
altar, a vida se transforma numa reza.”
Muito a propósito, no capítulo, riquíssimo de detalhes, se entrelaçam diversas
histórias: o naufrágio do barco no rio Madzimi, a presença do burro na igreja, padre Nunes
que, desamparado pela incerteza, busca a fala dos búzios do feiticeiro, o apalermado João
Loucomotiva, os cuidados da avó Dulcineusa para com o jumento, único sobrevivente do
naufrágio, o encontro e o amor entre Fulano Malta e Mariavilhosa. Tudo se amalgama com
aspectos do sagrado, desde a reza da avó enquanto prepara a comida, até a crítica aos
proprietários do barco, cuja ambição explicava o excesso de carga e o naufrágio. Assim, por
exemplo, no desvelar das causas do naufrágio, a narrativa de Couto assume a linguagem
religiosa dos apocalipses:
Agora se entendia a súbita alteração dos elementos, nas primeiras horas da
manhã. Quando o barco foi engolido pelas águas, o céu da Ilha se transtornou. Um
golpe roubou a luz e as nuvens se adensaram. Um vento súbito se levantou e rondou
pelo casario. Na torre da igreja o sino começou a soar sem que ninguém lhe tivesse
tocado. As árvores todas se agitaram e, de repente, num movimento, seus troncos
rodaram e se viraram para o poente. Os deuses estavam rabiscando mágoas no fundo
azul dos céus. Os habitantes se apercebiam que o que se passava não era apenas um
acidente fluvial. Era muito mais que isso. (RCT, 2003b, p. 99-100).
162
Na mesma linha dessa amálgama entre o cotidiano e o sagrado, no mesmo romance,
numa das cartas do avô Mariano ao neto, encontramos a sugestiva afirmação do silêncio como
oração. Referindo-se ao tempo e à escuta que o médico Mascarenha lhe dedicara e colocando-
se em polo oposto ao de sua mulher, beata, diz o avô:
[...] É isso que, em minha vida, me tem escasseado: me oferecerem escuta, orelhas
postas em minhas confissões. Veja a minha mulher, passa a vida falando com Deus.
E eu vou ficando calado. Mesmo aos domingos de manhã: fico calado. Assim,
silencioso, vou rezando. Que a gente reza melhor é quando nem sabemos que
estamos a rezar. O silêncio, doutor. O silêncio é a língua de Deus. (RCT, 2003, p.
149-150).
Tal perspectiva, em que o sagrado e o secular se fundem, adquire particular interesse –
para a leitura que estamos propondo da obra de Mia Couto quando as ões de escrever, ler
e contar histórias são metaforizadas pela linguagem das sacralidades. Passemos à leitura de
algumas cenas.
A narradora da Lenda de Namarói (EstAben, 1996, p. 99), acamada, ao contar “a
versão do mundo, razão de brotarmos homens e mulheres”, começa sua narração com o
solene intróito: “Aproveitei a doença para receber esta sabedoria: o que vou contar me foi
passado em sonho pelos antepassados. [...] Por minha boca falam, no calor da febre, os que
nos fazem existir e nos dão e retiram nossos nomes.” Na moldura que introduz o contar da
lenda, configura-se um dos mais típicos traços da religião tradicional: a palavra oral,
autorizada e revelada pelos antepassados. Narrar equivale, nesse contexto, a comunicar as
crenças – processo fundamental comum a todas as tradições religiosas.
Também em O último vôo do flamingo (2005), a lenda que nome ao romance,
contada por uma mãe, inicia solenemente com o verbo rezar:
Rezava: havia um lugar onde o tempo não tinha inventado a noite. Era
sempre dia. Até que, certa vez, o flamingo disse:
Hoje farei meu último vôo.
[...] E o pássaro ia desfolhando, asa em asa, as transparentes páginas do céu.
Mais um bater de plumas e, de repente, a todos pareceu que o horizonte se
vermelhara. Transitava de azul para tons escuros, roxos e liliáceos. Tudo se
passando como se um incêndio. Nascia, assim, o primeiro poente. Quando o
flamingo se extinguiu, a noite se estreou naquela terra. (UVF, 2005, passim p. 113-
115).
Capítulos antes, em sua auto-apresentação, o narrador se adiantara em afirmar a
sacralidade do momento do vôo dos flamingos: “Em fins de tarde, os flamingos cruzavam o
céu. Minha mãe ficava calada, contemplando o vôo. Enquanto não se extinguissem os longos
pássaros ela não pronunciava palavra. Nem eu me podia mexer. Tudo, nesse momento, era
163
sagrado.” (UVF, 2005, p. 47). Além dos traços míticos que buscam explicar a origem do
primeiro poente e da primeira noite, a narrativa se entrelaça com outros traços do sagrado. O
desejo do flamingo de “passar essa fronteira” (p. 113) dos céus, de realizar “essa viagem o
sem regresso” (p. 114), traduz a idéia de uma atitude religiosa fundamental, de abertura ao
novo, ao mistério. Numa busca semelhante à do flamingo, e na escuta da voz de sua mãe
falecida metáfora da tradição ancestral que protege e orienta o rapaz como que termina
uma viagem iniciática: “Aquela era minha última noite desse retiro nos matos. Manhã
seguinte eu já entrava na vila, como quem regressa a seu próprio corpo depois do sono.”
(UVF, 2005, p. 115). O sentido religioso que perpassa a narrativa, particularmente na relação
que se estabelece entre a voz da mãe e a escuta do filho – ou seja, no próprio ato de narrar – se
evidencia pelo expresso uso do verbo rezar. Também aqui, como na Lenda de Namarói,
contar estórias é rezar.
Em O outro da sereia (2006), encontramos inúmeras passagens que referem o
lugar de sacralidade constituído pelo livro e pelos atos de ler e escrever. Nas cenas citadas
alhures – em que Mwadia encena o transe aos americanos, assim como naquelas em que ela e
sua mãe Constança se escondem para ler, abundam as marcas textuais que referem o aspecto
ritualístico e religioso do livro e da leitura.
97
Relembramos, sem maiores comentários: “Um
livro é uma canoa. [...] Tivesse livros e ela [Mwadia] faria a travessia para o outro lado do
mundo, para o outro lado de si mesma.” (OPS, 2006, p. 238). “O interesse de Constança
[pelos escritos] cresceu a tal ponto que começou a aprontar-se de propósito para a ocasião.
Benzia-se à entrada das sessões de leitura. E, de cada vez, escolhia um novo e cerimonioso
vestido [...].” (p. 239). Por fim, o sagrado abraça expressamente o ato da leitura: “Quem
passasse ao largo [do cemitério], escutava trechos de prosa, por vezes poemas rimados, lidos
na voz pausada de uma jovem mulher. E acreditaria que as duas mulheres estivessem rezando.
E, no fundo, não estaria longe da verdade.” (OPS, 2006, p. 243).
Também na cena em que o escravo Xilundo devolve ao padre Antunes o diário de
bordo, salvo do fogo, encontramos a expressa referência ao caráter sagrado da escrita e do
livro.
“Num lento ritual, [Antunes] muniu-se da pena, embebeu-a no tinteiro e
começou a escrever. [...]
Xilundo ia falando enquanto espreitava o padre Antunes escrevendo. Era a
primeira vez que ele assistia ao acto da escrita. Seguia maravilhado o movimento da
mão como se lhe estivesse sendo revelado um mistério divino.”
97
Citamos e comentamos as cenas no capítulo Deus e os deuses (seção 3.1.2), a propósito da reatualização da
tradição oral pelo rito da escrita e da leitura. Aludimos a essas passagens também no capítulo Travessias (seção
4.3), ao falar da personagem Mwadia em seu trânsito de identidade.
164
Quando Antunes escreve na folha o nome do escravo, este reage:
“– Eu não quero...Tire-me, por favor, tire-me desse papel.
– E porquê?
– Nos livros só cabem os santos e os deuses.
O único livro de que Xilundo ouvira falar era a Bíblia. Os comuns mortais,
pequenos e transitórios como ele, ficavam à porta desse território sagrado.” (OPS,
2006, p. 257).
Finalmente, no início do conto A velha engolida pela pedra (EstAben, 1996, p. 103),
encontramos a mais estreita interligação entre religião e poesia: “...tenho em mim a
religiosidade exigível a qualquer crente. Sou religioso sem religião. Sofro, afinal, a doença da
poesia: sonho lugares em que nunca estive, acredito no que não se pode provar.” A partir
das expressas interligações entre o sagrado e o poético construídas pelo texto de Couto,
julgamos poder reafirmar o mister poético, ele mesmo, como expressão da inteligência da fé.
De onde vem a força da criação poética? De onde vem essa maneira de pensar o
mundo, capaz de transformar miséria em beleza? Respondemos: do próprio homem, do poeta,
que recebeu de Maa Ngala, o criador, a fala, para que fosse seu interlocutor. Ao final de um
belíssimo texto
98
dedicado ao fotógrafo moçambicano Ricardo Rangel, Mia Couto elogia: “O
talento não chega para explicar esta sensibilidade pronta, esta ternura preparada como um
gatilho para disparar. Uma vida inteira dedicada à fotografia ajuda a entender mas não basta.”
Faz então a pergunta: “De onde vem este dom de nos surpreender no mais fundo de nós, de
nos fazer revisitar um mundo que ilusoriamente nos parecia familiar? qualquer coisa de
mágico, um feitiço, uma bênção dos espíritos.” Por nossa conta, estendemos literalmente ao
próprio Mia Couto a resposta-elogio que, ao final, ele dedica ao fotógrafo Rangel: “Este
homem engoliu a terra com seu olhar. Ele ganhou intimidade com o sagrado, com o cleo
que cada homem esconde. E isso só se tornou possível porque os deuses espreitaram por seus
olhos.” E nós acrescentamos para Couto: Os deuses escreveram por suas mãos.
Sem negar o caráter de mediação de qualquer forma de linguagem, pretendemos, por
fim, reiterar que a teologicidade das formas poéticas não se limita ao poder de expressar os
conteúdos de nossa preocupação última. Sob o foco de uma concepção religiosa da existência,
que compreende todos os seres e experiências participando do âmbito do sagrado como se
pode ver nas religiões africanas tradicionais –, as formas poéticas serão, elas mesmas,
enquanto poesia, expressões do sagrado. Serão teológicas não porque falam expressamente de
Deus, dos deuses ou de alguma “preocupação última”. Serão teológicas falarão de Deus
porque são poesia. Teopoesia.
98
COUTO, Mia. Os deuses espreitaram por seus olhos. In: Angius; Angius, 1998, p. 116-117.
165
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os deuses, afinal, dispensam as explicadas palavras.
(Narrador do conto O bebedor do tempo, de Mia Couto)
No percurso da pesquisa que se concretizou na escrita desta tese, despendeu-se tempo
considerável na leitura da obra de Mia Couto. A tentação inicial – ainda na fase de elaboração
do projeto de tese de trabalhar com o conjunto de sua obra literária em prosa foi, pouco a
pouco, cedendo lugar a uma proposta mais factível. Mapeou-se grande parte da obra do
escritor moçambicano, buscando marcas textuais que se referissem às sacralidades ou que,
de alguma forma, permitissem construir diálogos entre o texto literário e o campo religioso
em geral. Recorrer ao expediente de trabalhar apenas com as publicações mais recentes do
escritor, ou pelo menos com uma quantidade menor de romances e contos, não diminuiu de
modo considerável a busca de índices textuais sobre o sagrado. Encerrada a tarefa, a razão do
grande volume de trabalho por ela demandado parece óbvia e constitui a primeira evidência
largamente comprovada ao longo da pesquisa sobre a obra de Mia Couto: não se lêem duas
páginas do escritor sem se encontrar aí menção, por menor que seja, ao campo da religião e do
sagrado. Hierofanias de toda espécie deuses e anjos, espíritos e antepassados, feiticeiros e
padres, mitos e lendas, para ilustrar a afirmação apenas com traços mais evidentes do sagrado
– abundam em todos os seus romances e na maior parte de seus contos.
Além de ensejar a oportunidade de ler com atenção boa parte dos contos e romances
do escritor, a pesquisa possibilitou também a construção de um quadro teórico de particular
interesse para a interpretação do texto literário em suas correlações com o âmbito do sagrado
e da religião. Em vista de responder ao objetivo geral da pesquisa, tratava-se de, como passo
inicial, proceder a um mapeamento das sacralidades nos textos de Mia Couto para, em
seguida, refletir sobre os modos como essas hierofanias “visitavam” seu texto literário.
ns primeiras anotações de leitura dos textos de Couto, sob o interesse de mapear as
hierofanias, observou-se a presença marcante de traços característicos das religiões
tradicionais: seres fabulosos e lendários, mitos de origem, espíritos e antepassados viventes no
mundo invisível, comunicação entre o mundo visível e o mundo invisível, feiticeiros, ritos de
166
passagem. A frequência dessas marcas deu ensejo a que o referido quadro teórico, que visava
construir um panorama sobre a questão do sagrado, tivesse em conta algumas das primeiras
reflexões sobre o que se considerou então como formas “elementares” de religião. A escolha
dos nomes de Edward Tylor e James George Frazer, para representar essas primeiras
abordagens sistemáticas sobre as religiões “arcaicas”, pretendeu apontar a estreita correlação
entre as concepções naturistas e evolucionistas de religião, propostas por esses teóricos, e os
processos de expansão colonialista de que foi vítima o continente africano a partir da segunda
metade do século XIX. Em outros termos: as balizas teóricas usadas por esses estudiosos para
explicar o “atraso” das sociedades não-europeias acabaram também por servir de justificativa
para as práticas imperialistas, enaltecidas ideologicamente como “dever civilizatório” da
Europa para com os povos ditos “primitivos”.
Na busca de um referencial teórico mais crítico e mais ampliado para a compreensão
do sagrado em vista da leitura dos textos de Mia Couto –, esbarrou-se no enorme volume de
teorias sobre as origens da religião, produzidas por diversas escolas européias, sustentadas em
diferentes pressupostos teóricos e metodológicos. Frente ao expressivo volume de debates
sobre o assunto, optou-se por destacar não uma escola ou uma teoria em particular, mas
alguns aspectos que poderiam ser postos em diálogo com os textos literários. Assim,
escolheu-se de Émile Durkheim sua distinção conceitual, amplamente aceita, acerca das
categorias de sagrado e profano. De Rudolf Otto, destacou-se sua concepção de experiência
do numinoso que, em alguns aspectos, se aproxima do imaginário tradicional africano sobre o
sagrado. De Mircea Eliade, além de sua leitura “histórica” das sacralidades, acolheu-se sua
compreensão de mito como “história verdadeira”.
Entrementes, ao quadro teórico que aos poucos se delineava, faltavam acrescentar
outras visões do sagrado: aquelas oriundas do mundo africano. Desde a fase do projeto, a
pesquisa colocou-se esta questão: um proprium africanum relativamente ao sagrado? A
pergunta, que norteou a escrita do capítulo teórico inicial, ensejou a descoberta de novas
percepções sobre a religião de grupos humanos de organização social relativamente mais
simples, mais exatamente sobre o mundo tradicional africano e suas religiões. Tais percepções
fizeram-se muito significativas na leitura dos textos de Mia Couto.
Assim, ao quadro teórico em construção, acrescentaram-se, primeiro, algumas
concepções africanistas do sagrado, representando os primeiros passos em direção a uma
melhor compreensão dos povos africanos e de sua cultura. Esses passos foram dados por
antropólogos e missionários que estabeleceram longa convivência com o ambiente tradicional
africano. A pesquisa destacou o nome do antropólogo francês Marcel Griaule, do missionário
167
franciscano belga Placide Tempels e do missionário basco Raul de Asúa Altuna, que
trabalharam respectivamente no Mali, no Congo e em Angola. Em vista de a cultura europeia
ainda ter-se colocado, para esses africanistas, como referência fundamental para a
interpretação da religião tradicional africana, buscou-se, por fim, como elemento
indispensável ao panorama que se visava delinear, as genuínas vozes de África sobre o
sagrado. Essas vozes foram representadas por alguns nomes de estudiosos provenientes do
mundo tradicional africano: o historiador Joseph Ki-Zerbo, de Burkina-Faso, o pesquisador e
poeta Amadou Hampaté Bâ, do Mali, e o sociólogo Honorat Aguessy, do Benin. Tendo sido
formados em escolas europeias, esses intelectuais lograram no entanto romper com os
pressupostos e os métodos dominantes nas ciências sociais, marcados pela herança colonial, e
construir outro discurso sobre África. Seus nomes associam-se à luta pela autonomia dos
povos africanos e à valorização de sua cultura.
Na leitura da obra de Mia Couto, ficou evidente a importância de se delinear tal
quadro teórico. Todavia, é pertinente considerar que sua construção não se fez sem
dificuldades várias. Impôs-se, previamente, a escolha de alguns autores e o abandono de
outros, dentre uma lista relativamente grande de teóricos dos quais se tinha um conhecimento
pouco significativo. Por que Émile Durkheim e não Max Weber? Por que Rudolf Otto e não
Gerardus van der Leeuw? Por que Placide Tempels e não Alexis Kagamé? O processo dessas
escolhas despendeu muitas leituras e volteios pelas áreas da antropologia, da história e das
ciências das religiões.
Feitas certas escolhas algumas vezes com o expresso aval de comentadores desses
teóricos clássicos” ou simplesmente pela observação da expressiva presença do nome de
alguns deles em suas referências bibliográficas –, a dificuldade que se interpôs a seguir foi a
de acesso às obras que se supunham as mais representativas deste ou daquele teórico. Houve
casos em que a “caça a ausentes” títulos Dieu d’Eau de Griaule, La philosophie bantoue
de Tempels, por exemplo demorou nada menos que alguns meses. Outras vezes, a pesquisa
teve que se contentar com o mínimo disponível. De qualquer modo, ao fim e ao cabo, tudo
isso redundou na descoberta de nomes até então por nós desconhecidos. Em que pese o sabor
de ignorância que subjaz à confissão, antes desta tese nada ou quase nada sabíamos acerca de
Marcel Griaule, Alexis Kagamé, Henri-Alexander Junod, Placide Tempels, Raul Ruiz de
Asúa Altuna, Joseph Ki-Zerbo, Amadou Hampaté Bâ, Honorat Aguessy, Kwane Anthony
Appiah, Felizardo Cipire e outros sintoma de nosso generalizado desconhecimento
acadêmico do mundo africano.
168
Para além da constatação desses ganhos e limites, a construção do quadro teórico
apontou caminhos para situar num cenário histórico mais amplo algumas das primeiras
abordagens acadêmicas sobre as religiões “elementares”, assim como o posterior debate
epistemológico sobre o assunto. Ofereceu também visões e percepções do mundo tradicional
africano incomparavelmente mais consistentes que aquelas do senso comum, que, na linha
hegeliana, imaginam a África negra destituída de história e de cultura. Ademais, o referencial
teórico destacado pela pesquisa demonstrou, no conjunto, a possibilidade de uma leitura do
mundo africano e de suas religiões considerando os diferentes olhares, de europeus e
africanos. Nessa linha, mostrou-se inadequada a costumeira polarização Europa versus África,
até porque não se pode propriamente falar de uma África homogênea e única, ainda que se
encontrem traços comuns no ambiente tradicional ou naqueles marcados por sua influência.
Ao buscar as visões e percepções do mundo africano, a partir de autores que vinham
“de dentro” dos espaços tradicionais, a pesquisa enumerou alguns pontos que podem ser
considerados de grande relevância para a compreensão da cultura negro-africana,
particularmente em relação aos aspectos religiosos.
Um dos traços mais característicos da cultura tradicional africana diz respeito a seu
caráter predominantemente oral. As tradições orais que não devem ser confundidas com a
mera ausência da escrita constituem um corpus de valores, crenças, regras de
comportamento, conhecimentos técnicos e saberes, socializados de geração em geração,
através de ritos e processos pedagógicos próprios. Contrariamente ao senso comum, que
compreende a “tradição” como um conjunto estático de saberes, essa se caracteriza por grande
dinamismo, pelo refazer-se continuamente.
A reinvenção das tradições orais no contexto de novas situações políticas e sociais,
particularmente aquelas engendradas no processo de descolonização de África, constitui um
novo corpus de constructos culturais particularmente envolvidos com as questões políticas.
Este é outro traço comum, que marca a cultura tradicional na sua relação com as conjunturas
sob as quais se organizam hoje os povos africanos.
Outro traço preponderante do proprium cultural africano, apontado pela pesquisa,
concretiza-se na variedade de práticas e crenças que conformam o domínio religioso,
destacando-se os processos de iniciação, os mitos fundacionais, a concepção da origem divina
da palavra. Em contraposição às concepções europeias, que estabelecem a distinção
conceitual entre sagrado e profano, a visão religiosa africana, em linhas gerais, compreende
que tudo participa do sagrado ou estabelece com ele relação.
169
Os três aspectos apontados as tradições orais e seu dinamismo, a relação entre as
questões culturais e a política, o lugar preponderante ocupado pela religião –, de grande
interesse para uma compreensão mais adequada do mundo africano, ofereceram preciosos
nortes e subsídios para a leitura dos textos de Mia Couto em seu envolvimento com a
linguagem do sagrado. Assim, destacou-se o aproveitamento que o escritor faz das tradições
orais, particularmente quando as retoma nos moldes “performáticos” de narrativa mítica.
Apontou-se também a tônica politizada que marca suas obras.
Nas sucessivas leituras dos textos de Mia Couto, a pesquisa defrontou-se com a
constante “tentação” de tratar as referências ao sagrado, presentes no texto literário, como
“documentos” religiosos. O risco se explica, em grande parte, pela nossa formação acadêmica
voltada às ciências da religião e à teologia. A dificuldade em elaborar um quadro teórico que
ajudasse a compreender o mundo tradicional africano, especialmente no domínio religioso,
realimentou não apenas os interesses inerentes à nossa formação profissional, como também o
mesmo risco de perder de vista o literário. Juntou-se a isso outro fator: o discurso literário de
Mia Couto é marcado pela referência à colonização, às guerras ligadas ao processo de
independência, à relação entre os valores ancestrais e as modernidades oferecidas pela
economia global, à deriva da nação. Ora, se essas marcas textuais, fortemente politizadas,
remetem à história e à realidade de Moçambique, as referências ao sagrado não
configurariam, também elas, crenças e práticas religiosas historicamente situadas? A
percepção de que as “sacralidades” presentes no texto literário são configurações de espaços,
em movimentos narrativos, em encenações do sagrado, e não propriamente “documentos”
religiosos singulares o se alcançou sem redobrada atenção e esforço. As reflexões
elaboradas foram construídas sempre com o cuidado de não permitir que as visões das
ciências da religião encobrissem as estratégias de construção do texto literário.
Ao investigar as marcas do sagrado na obra de Mia Couto, deparou-se não apenas com
incontáveis referências às sacralidades, mas com o movimento do sagrado, em seus
deslocamentos, transgressões e hibridismos. As crenças, os ritos, os lugares sagrados, as
personagens caracterizadas por algum tipo de identidade ou consagração religiosa forneceram,
no processo da pesquisa, um espectro amplo o bastante para a construção de um quadro
classificatório e descritivo das sacralidades de razoável complexidade. Entretanto, observou-
se que no espaço das encenações narrativas e consideradas na dinâmica da construção
diegética, as hierofanias revelavam-se em notável movimento, marcado por deslocamentos,
hibridismos e tensões. Nesse movimento, as tradições eram a um tempo valorizadas e
170
transgredidas, as crenças e os ritos eram retomados e mesclados, as identidades religiosas
transitavam por fronteiras teimosamente indefinidas.
Em correlação com esses constantes deslocamentos identitários que marcam o
movimento do sagrado, nos textos de Mia Couto, a pesquisa buscou apontar as marcas
políticas da enunciação construída pelo escritor, na medida em que sua obra assume, ainda
que ficcionalmente, as vozes marginalizadas e recalcadas da sociedade moçambicana.
Considerando, a partir dessas marcas, a possibilidade de se pensar a tarefa literária de Mia
Couto como uma “preocupação última” fundamento primeiro da religiosidade, entendida
como abertura ao sagrado, ao mistério da existência –, a pesquisa pretendeu demonstrar, por
esse caminho, o interesse de se ler seus escritos pelo viés teológico.
Ancorada nesses pressupostos e sustentando-se ainda na perspectiva cultural africana,
segundo a qual tudo participa do sagrado, a tese buscou explicitar, finalmente, a compreensão
de que os mesmos constructos literários se oferecerão à leitura teológica não porque falem
expressamente de Deus, mas porque se elaboram no domínio da poiesis, no campo da poesia.
A afirmação de que o literário participa do sagrado ao termo “teopoesia”, que encerra o
último capítulo, uma significação abrangente e aberta.
Em resumo, pode-se afirmar que o trabalho de pesquisa que se concretizou na tese
girou em torno de dois eixos fundamentais: a busca de um aparato teórico que ajudasse a
compreender o sagrado expresso no texto literário de Couto busca que se concretizou no
quadro teórico ao qual nos referimos anteriormente e cuja relevância para a leitura dos textos
do escritor foi apontada; e o destaque de alguns assuntos relativos ao campo do sagrado e dos
modos como eles dialogam com o texto literário. Os materiais (referências bibliográficas e
outras) que serviram de base para movimentar cada um dos eixos configuram dois tipos de
textos: literários, representados por romances e contos do escritor, e teóricos, abrangendo
vertentes de interesse que vão da teologia e das ciências da religião à crítica literária. Em
relação a esses materiais, observa-se que a leitura dos textos de Mia Couto, ainda que feita
com o objetivo geral de uma crítica literária, configurou não apenas a confrontação do
pesquisador e do texto como aconteceu em relação aos textos teóricos –, mas um tipo de
fruição em que o leitor fez-se caminheiro na estrada tecida pela ficção. Essa experiência
estética de envolvimento com o texto, longe de colocar vendas ao olhar crítico, aguçou a
percepção de traços que constroem a narrativa. Obviamente, não se esperou o mesmo tipo de
fruição, da leitura dos textos teóricos. Reconhece-se, todavia, que estes ofereceram
importantes sinalizações para um trânsito mais fluente pelos textos de Mia Couto. De
qualquer forma, o trabalho com cada um desses eixos significou, ainda que com sabores
171
diferenciados, uma exercitação acadêmica de grande importância para nosso aprendizado de
pesquisa.
Ao finalizar este trabalho, pretende-se destacar algumas questões que, embora
perpassem nossa pesquisa, continuam a instigar reflexões que podem ampliar as percepções
das sacralidades encenadas em textos literários. Uma primeira questão, mais geral e recorrente
na pesquisa, relacionou-se às dificuldades em demarcar o instrumental teórico para a
interpretação dos “fatos” sagrados encenados no texto literário. Que as mesmas sacralidades
pudessem ser estudadas pela teologia, por diferentes vertentes teóricas das ciências das
religiões, ou por qualquer outra ciência social, sob seus próprios focos e métodos, disso tinha-
se bastante clareza. A dificuldade, em todos os casos, residia no fato de não se estar lidando
com as sacralidades, em sua singularidade histórica, mas com suas encenações no espaço
ficcional. Contornamos a dificuldade, ao longo da pesquisa, procurando não tomar o texto
literário de Mia Couto como mero documento comprobatório de afirmações sobre o mundo
religioso africano e insistindo em afirmar seu caráter de construção ficcional.
Uma questão mais específica, relacionada à anterior, apresentou-se ao se procurar uma
fundamentação teórica para a reflexão que pretendia afirmar a “sacralidade” do texto poético.
Pensou-se na possibilidade de tratar o assunto pelo viés da filosofia da religião. Contudo, o
objeto da questão – a relação entre o sagrado e o literário, enfatizando-se o caráter hierofânico
do literário não se mostrava abstrato o suficiente para encaminhar uma abordagem por esse
caminho. De fato, os discursos e configurações sobre Deus e os deuses, presentes em Mia
Couto, apontam para tradições religiosas específicas, em geral cristãs ou africanas
tradicionais. Ora, cabe à teologia (a uma determinada teologia) dedicar-se a explicitar o
discurso de uma tradição religiosa. Assim, menos pelas dificuldades entrevistas naquele foco
e mais pelo leque aberto das reflexões anunciadas pelo olhar teológico, optou-se por
fundamentar a afirmação do texto literário como hierofania pelo viés teológico. Obviamente,
a base teórica para tal compreensão do mister literário teve de ser a de uma concepção
teológica aberta ao extremo.
Sob o enfoque que se arraigou ao longo dos culos, no Ocidente, compreendeu-se a
teologia como reflexão sistemática a partir de um depósito estável de uma revelação divina
acabada, de tradições normativas imutáveis, que impõem aos crentes uma compreensão única
e definitiva de sua própria existência. Para essa compreensão de teologia, o texto literário
servirá de não mais que linguagem de empréstimo para ilustrar o discurso teológico. A tese
evitou essa perspectiva, até porque, também aqui, se interpunha a questão mais ampla do
discurso religioso como “encenação literária”.
172
Adotou-se outro foco. Enquanto discursos que se encontram nas fronteiras dos
saberes” conforme expressão de Magalhães (2000, p. 123) teologia e literatura transitam
entre a liberdade do imaginário e as instituições religiosas e sociais sob as quais elas se fazem.
Sob esse pressuposto, a interlocução entre o discurso teológico (particularmente em suas
expressões apofáticas, mais livres que as formas sistemáticas) e o discurso literário apresenta-
se, como se procurou demonstrar na tese, como fértil canteiro de reflexões. A teologia, como
qualquer outro discurso, é também ela representação, configuração, construção humana,
passível de se auto-compreender em relação à realidade história e às experiências em que se
gestou. Sob o foco de um conceito mais dinâmico de teologia, o leitor-teólogo está à procura
de formular sua experiência religiosa a partir da realidade histórica em que está inserido e dos
anseios e desafios que o conhecimento dessa realidade lhe impõe. Para ele, então, a literatura
– qualquer literatura – poderá oferecer-se como interlocutora na busca.
Considera-se, finalmente, uma última questão, acerca da relação entre os saberes
acadêmicos da área das Letras e aqueles do campo religioso. Ainda que buscando o diálogo
com as ciências da religião e com a teologia, desde o início deste trabalho preocupou-se em
não perder de vista a dimensão literária, ficcional, construída pelos contos e romances do
escritor moçambicano o afirmamos acima. Retoma-se a questão para destacar a
complexidade dessa relação, complexidade que certamente ocorre também nas interlocuções
do campo literário com qualquer outra área de conhecimento. A propósito, as viagens, as
pontes e as travessias são recorrentes no âmbito da literatura, no nível das teorizações.
Frente ao cabedal teórico utilizado na construção desta tese (que transita pela antropologia,
pela história, pela teologia), reafirma-se particularmente o papel da literatura e da crítica
literária na configuração de um discurso que interessa não apenas ao campo dos estudos
literários, mas às ciências da religião e à teologia. Trata-se de um diálogo relativamente novo,
em aberto, uma ponte ainda em construção, longe de ter seus acabamentos aprazados.
Na travessia dessas fronteiras, entreveem-se riscos. Um dos maiores talvez seja o do
reducionismo que lê a obra literária – que se constitui, certamente, numa totalidade irredutível
a frases ou aspectos, pela capacidade de abrir-se em múltiplos significados –, apenas em
alguns de seus aspectos. De qualquer forma, sem enfrentar esses perigos, não seria possível
afirmar o papel possível da literatura e da crítica literária de propiciar, em diálogo com outros
conhecimentos oferecidos pela teologia, pelas ciências da religião ou por outras ciências, uma
interpretação do sagrado – e ao mesmo tempo do texto literário.
Com o intuito de encerrar este trabalho sob a batuta do literário, apelamos ao curioso
conto de Mia Couto, O bebedor do tempo (Est.Aben., 1996, p. 107-111), no qual a
173
personagem Xidakwa, “bêbado de carreira, criatura de basto e molhado currículo”, profeta de
irrealizáveis vaticínios, ainda assim recebe do povo os mais benevolentes juízos. Diz o
narrador: “Seu vaticínio não era senão a vertigem de um silêncio. O povo, mesmo assim, lhe
cobria de fé. O que faltava em suas palavras a boa gente preenchia com sabedorias imputadas.
Os deuses, afinal, dispensam as explicadas palavras.” (Est.Aben., 1996, p. 110) Se os deuses
dispensam as explicadas palavras, a academia não o faz nem o deve fazer. Como ao bêbado
do conto, certamente faltas e lacunas nas palavras desta tese. Entretanto, espera-se não a
benevolência de seus bons leitores, mas a crítica que nos permitirá novas e mais seguras
travessias.
174
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO (354-430, Santo, Bispo de Hipona). A cidade de Deus: contra os pagãos.
(Livros I a X). Trad. de Oscar Paes Leme. 2.ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Federação
Agostiniana Brasileira, 1990.
AGUESSY, Honorat. Documento conceptual sobre el tema: “Cultura, religiones y
biodiversidad”. In: Workshop internacional sobre o manejo local da agrobiodiversidade. Rio
Branco (Acre), 9 a 19 de maio de 2002. Disponível em: http://amazonlink.org. Acesso em
22/11/2008.
AGUESSY, Honorat et alii. Introdução à cultura africana. Trad. de Emanuel L. Godinho;
Geminiano Cascais Franco; Ana Mafalda Leite. Lisboa: Edições 70, s.d. [© Unesco, 1977].
AGUESSY, Honorat. Visões e percepções tradicionais. In: AGUESSY, Honorat et alii.
Introdução à cultura africana. Lisboa: Edições 70, 1977, p. 95-135.
AMADO, Leopoldo. Morreu Joseph Ki-Zerbo (1922-2006). In: Lamparam III (Guiné-
Bissau), dez. 2006. Disponível em: http://www.guinela.blogs.sapo.pt. Acesso em 15/12/2008.
ANGIUS, Fernanda; ANGIUS, Matteo. Mia Couto, o desanoitecer da palavra: estudo,
seleção de textos inéditos e bibliografia anotada de um autor moçambicano. Praia-Mindelo:
Embaixada de Portugal; Centro Cultural Português, 1998.
APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Trad. de
Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
ARENDT, Hannah. O imperialismo. In: ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo.
Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 145-336.
ASÚA ALTUNA, Raul Ruiz de. Cultura banto e cristianismo. Luanda: Âncora, 1974.
ASÚA ALTUNA, Raul Ruiz de. Cultura tradicional banto. Luanda: Secretariado
Arquidiocesano de Pastoral, 1985.
AZZI, Riolando. A cristandade colonial: um projeto autoritário. São Paulo: Paulinas, 1987.
BÂ, Amadou Hampaté. Ankoullel, o menino fula. Trad. de Xina Smith de Vasconcelos. São
Paulo: Pallas Athena; Casa das Áfricas, 2003.
BÂ, Amadou Hampaté. A tradição viva. In: História Geral da África. Vol. I (coordenado
por Joseph KI-ZERBO): Metodologia e pré-história da África. Trad. de Beatriz Turquetti et
alii. São Paulo: Ática; [Paris]: Unesco, 1982, p. 181-218.
175
BAGNOL, Brigitte. Lovolo e espíritos no Sul de Moçambique. Análise Social, Lisboa, v. 43,
n. 187, p. 251-272, jun. 2008.
BELLO, Angela Ales. Culturas e religiões: uma leitura fenomenológica. Tradução de
Antonio Angonese. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 1998.
BERGER, Peter Ludwig. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da
religião. Tradução de José Carlos Barcellos. São Paulo: Paulus, 1985.
BERGER, Peter Ludwig. Rumor de anjos: a sociedade moderna e a redescoberta do
sobrenatural. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1997.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte. Editora da Universidade Federal de
Minas Gerais, 1998.
BHABHA, Homi K. A questão do “outro”: diferença, discriminação e o discurso do
colonialismo. In: Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1992, p.177-203.
BIRCK, Bruno Odélio. O sagrado em Rudolf Otto. Porto Alegre: Editora da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1993.
BOFF, Clodovis. Teologia e prática: teologia do político e suas mediações. 3.ed. Petrópolis:
Vozes, 1993.
BOFF, Clodovis. Teoria do método teológico. Petrópolis: Vozes, 1998.
BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil,
BURKERT, Walter. A criação do sagrado: vestígios biológicos nas antigas religiões.
Tradução de Vitor Silva. Lisboa: Edições 70, 2001.
CABAÇO, José Luís. Políticas de identidade no Moçambique colonial. In: MAGGIE,
Yvonne; REZENDE, Claudia Barcellos (org.). Raça como retórica: a construção da
diferença. Rio de Janeiro: Civlização Brasileira, 2002.
CAILLOIS, Roger. O homem e o sagrado. Trad. de Geminiano Cascais Franco. Lisboa:
Edições 70, 1988.
CARDOSO, José Boaventura. Deus e deuses em O mundo se despedaça, de Chinua Achebe.
In: When things came together: studies on Chinua Achebe. Lisboa: Universidade de Lisboa;
Mercado de Letras Editores, 2009, p. 99-106.
CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso: forma e ideologia no romance hispano-
americano. São Paulo: Perspectiva, 1980.
CIPIRE, Felizardo. A educação tradicional em Moçambique. Maputo: Emedil, 1992.
COETZEE, J. M. O romance na África. In: COETZEE, J. M.. Elizabeth Costello: oito
palestras. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 42-66.
176
COPANS, Jean. Da etnologia à antropologia. In: COPANS, J. et alii. Antropologia: ciência
das sociedades primitivas? Tradução de J. Pinto de Andrade. Lisboa: Edições 70, 1988, p.
11-41.
COPANS, Jean. Para uma história e uma sociologia dos estudos africanos. In: COPANS, J.
Críticas e políticas da antropologia. Tradução de Manuela Torres. Lisboa: Edições 70,
1981, p. 81-110.
COUTO, Mia. Cada homem é uma raça: estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
COUTO, Mia. Contos do nascer da terra. Lisboa: Caminho, 1997.
COUTO, Mia. Cronicando. Lisboa: Caminho, 1991.
COUTO, Mia . Estórias abensonhadas: contos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
COUTO, Mia. O fio das missangas: contos. Maputo: Ndjira, 2003a.
COUTO, Mia. Mar me quer. Ilustrações de João Nasi Pereira. Maputo: Ndjira, 2000.
COUTO, Mia. Na berma de nenhuma estrada: e outros contos. Maputo: Ndjira, 2001.
COUTO, Mia. O outro pé da sereia. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
COUTO, Mia. Terra sonâmbula. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
COUTO, Mia. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Companhia
das Letras, 2003b.
COUTO, Mia. O último voo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
COUTO, Mia. A varanda do frangipani. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
COUTO, Mia. Venenos de Deus, remédios do Diabo: as incuráveis vidas de Vila Cacimba.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
COUTO, Mia. Vinte e Zinco: romance. Maputo: Ndjira, 1999.
COUTO, Mia. Vozes anoitecidas: contos. 3.ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1995.
DAVIDSON, Basil. Os africanos: uma introdução à sua história cultural. Tradução de
Fernando M.T. da Silva. Lisboa: Edições 70, 1981.
DERRIDA, J. et VATTIMO, Gianni (organizadores). A religião: o seminário de Capri.
Tradução de Marcelo Rondinelli e Tadeu Mazzola Verza .São Paulo: Estação Liberdade,
2000.
177
DELGADO, Ignacio et alii (org.). Vozes (além) da África: Tópicos sobre identidade negra,
literatura e história africanas. Juiz de Fora: Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora,
2006.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares de vida religiosa. 2.ed. Tradução de Joaquim
Pereira Neto. São Paulo: Paulus, 1989.
ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Lisboa: Edições 70, 2000.
ELIADE, Mircea . Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. Trad.
Sônia Cristina Tamer. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
ELIADE, Mircea . Mito e realidade. Trad. de Pola Civelli. 4.ed. São Paulo: Perspectiva,
1994. [Trata-se da mesma obra supracitada Aspectos do mito].
ELIADE, Mircea. Origens: história e sentido na religião. Tradução de Teresa Louro Perez.
Lisboa: Edições 70, 1989.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Tradução de Rogério
Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. Tradução de Fernando Tomaz e Natália
Nunes. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
EVANS-PRITCHARD, E. E. Antropologia social da religião. Tradução de Jorge
Wanderley. Rio de Janeiro: Campus, 1978.
EVANS-PRITCHARD, E. E. História do pensamento antropológico. Tradução de Teresa
Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, 1989.
FERREIRA, Manuel. Literaturas africanas de expressão portuguesa. S. Paulo: Ática,
1987.
FILORAMO, Giovanni; PRANDI, Carlo. As ciências das religiões. Trad. de José Maria de
Almeida. São Paulo: Paulus, 1999.
FONSECA, Maria Nazareth Soares. Literaturas africanas de língua portuguesa: percursos
da memória e outros trânsitos. Belo Horizonte|: Veredas & Cenários, 2008.
FONSECA, Maria Nazareth Soares; CURY, Maria Zilda Ferreira. Mia Couto: espaços
ficcionais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
FRAZER, James George. O ramo de ouro. (The illustrated golden bough. Resumo e
ilustração dos 13 volumes de The golden bough por Sabine Mac Cormack. Edição do texto e
comentários por Mary Douglas). Prefácio de Darcy Ribeiro. Tradução de Waltensir Dutra.
São Paulo: Círculo do livro, 1982 [© 1978].
FRENTE DE LIBERTAÇÃO DE MOÇAMBIQUE (FRELIMO). História de Moçambique.
Porto: Afrontamento, 1971.
178
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. Trad. de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e
Científicos Editora, 1989.
GEFFRÉ, C. Como fazer teologia hoje: hermenêutica teológica. São Paulo: Paulinas, 1989.
GIOBELLINA BRUMANA, Fernando. Soñando com los Dogon: em los orígenes de la
etnografia francesa. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2005. Resenha
de: BARROS, Denise Dias. Revista de Antropologia. São Paulo: USP, v. 48, n.2, jul./dec.
2005. Disponível em: http://www.scielo.br. Acesso em: 16/04/2008.
GIORDANI, Mário Curtis. História da África: anterior aos descobrimentos. 5.ed. Petrópolis:
Vozes, 2007.
GRANJO, Paulo. Dragões, régulos e fábricas: espíritos e racionalidade tecnológica na
indústria moçambicana. Análise Social. Lisboa, v. 43, n. 187, p. 223-249, jun. 2008.
GRIAULE, Marcel. Dieu d’Eau: entretiens avec Ogotemmêli. Paris: Librairie Arthème
Fayard, 1966.
GROMIKO, A. et alii. As religiões da África: tradicionais e sincréticas. Trad. de G.
Mélnikov. Moscovo: Edições Progresso, 1987.
GUTIERREZ, Gustavo. Teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 1975.
HAMILTON, Russel G. Literatura africana, literatura necessária. (2 volumes). Lisboa:
Edições 70, 1980.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A razão na história: introdução à filosofia da história
universal. Tradução de Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 1995.
HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA: I. Metodologia e pré-história da África. Coordenador do
volume: Joseph Ki-Zerbo. Trad. de Beatriz Turquetti et al. São Paulo: Ática; [Paris]: Unesco,
1982.
HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios: 1875-1914. 2.ed. Tradução de Sieni Maria
Campos e Yolanda Steidel de Toledo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
HONWANA, Alcinda Manuel. Espíritos vivos, tradições modernas: possessão de espíritos
e reintegração social pós-guerra no sul de Moçambique. [Moçambique]: Promédia, 2002.
HUIDOBRO, Vicente. Arte poética. In: El espejo de Água (1916). Disponível em:
http://www.vicentehuidobro.uchile.cl. Acesso em: 18/11/2009.
ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária.
Tradução de Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: Editora da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro, 1996.
179
ISER, Wolfgang. A interação do texto com o leitor. In: JAUSS, H.R. et alii. A literatura e o
leitor: textos de estética da recepção. (Seleção, coord. e trad. de Luiz Costa Lima). São Paulo:
Paz e Terra, 1979, p. 83-132.
JUNOD, Henri-Alexander. Usos e costumes dos bantos. Lourenço Marques: Imprensa
Nacional de Moçambique, 1974. Tomos I e II.
KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra. Lisboa: Publicações Europa-América, s.d.
[1978].
KI-ZERBO, Joseph (coordenador). História Geral da África. Vol. I: Metodologia e pré-
história da África. Tradução de Beatriz Turquetti et alii. São Paulo: Ática; [Paris]: Unesco,
1982.
KI-ZERBO, Joseph. Introdução geral. In: História Geral da África. Vol. I: Metodologia e
pré-história da África. Trad. de Beatriz Turquetti et al. São Paulo: Ática; [Paris]: Unesco,
1982, p. 21-42.
KI-ZERBO, Joseph. Para quando a África? Entrevista com René Holestein. Trad. De
Carlos Aboim de Brito. Rio de Janeiro: Pallas, 2006.
LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. 19.reimpr. Trad. de Marie-Agnès
Chauvel. São Paulo: Brasiliense, 2006 [1988].
LARANJEIRA, Pires. De letra em riste: identidade, autonomia e outras questões nas
literaturas de Angola, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Porto:
Afrontamento, 1997.
LEIRIS, Michel. A África fantasma. Trad. de André Pinto Pacheco. São Paulo: Cosac Naify,
2007.
LEITE, Ana Mafalda. Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. Maputo:
Imprensa Universitária da Universidade Eduardo Mondlane, 2003.
LEITE, Ana Mafalda. Oralidades & Escritas nas literaturas africanas. Lisboa: Colibri,
1998.
LEITE, Fábio. Valores civilizatórios em sociedades negro-africanas. África: Revista do
Centro de Estudos Africanos. São Paulo: USP, n. 18-19 (1), p. 103-118, 1995/1996.
LIBÂNIO, João Batista; MURAD, Afonso. Introdução à teologia: perfil, enfoques, tarefas.
São Paulo: Loyola, 1996.
LOPES, Júlio Mendes. Joseph Ki-Zerbo: o desaparecimento de um “baouba” da enciclopéia
africana. In: Cezame n. 2, fev. 2007. Disponível em http://www.proffint.com. Acesso em
23/12/2008.
MADURO, Otto. Religião e luta de classes: quadro teórico para a análise de suas inter-
relações na América Latina. 2.ed. Tradução de Clarêncio Neotti e Ephraim Ferreira Alves.
Petrópolis: Vozes, 1983.
180
MAGALHÃES, Antonio Carlos de Melo. Deus no espelho das palavras: teologia e
literatura em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000.
MANZATTO, Antonio. Teologia e literatura: reflexão teológica a partir da antropologia
contida nos romances de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1994.
MARGARIDO, Alfredo. Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua
portuguesa. Lisboa: A regra do jogo, 1980.
MATUSSE, Gilberto. A construção da imagem de moçambicanidade em José
Craveirinha, Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa,
1993.
MBITI, J. S. Oltre la magia: religioni e culture nel mondo africano. Torino: SEI, 1992.
M’BOKOLO, Elikia. África negra: história e civilizações. Tomo I (até o século XVIII).
Trad. de Alfredo Margarido. Salvador: Ed. da Universidade Federal da Bahia; São Paulo:
Casa das Áfricas, 2009.
MEDEIROS, Carlos L. A história entre um povo herero do sudoeste de Angola. In:
Literaturas africanas de língua portuguesa: compilação das comunicações apresentadas no
Colóquio sobre Literaturas dos Países Africanos de Língua Portuguesa em Julho de 1985.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, p. 159-169.
MEDEIROS, Eduardo. Os senhores da floresta: ritos de iniciação dos rapazes macuas e
lómuès. Porto: Campo das Letras, 2007.
MERCIER, Paul. História da antropologia. Lisboa: Teorema, 1986.
MONTERO, Paula. O problema das diferenças em um mundo global. In: MOREIRA,
Alberto da Silva (org.). Sociedade global: cultura e religião. Petrópolis: Vozes; São Paulo:
Universidade de São Francisco, 1998, p.113-133.
MOREIRA, Terezinha Taborda. O vão da voz: a metamorfose do narrador na ficção
moçambicana. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas; Edições Horta Grande, 2005.
MURANGA, Kabengele. Construção da identidade negra no contexto da globalização. In:
DELGADO, Ignacio et alii (org.). Vozes (além) da África: Tópicos sobre identidade negra,
literatura e história africanas. Juiz de Fora: Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora,
2006, p. 19-41.
NDAW, A. Pensiero africano: ricerche sui fondamenti del pensiero negro-africano. Prontera:
Lecce, 1993.
NGOENHA, Severino. Das independências às liberdades. Maputo: Paulistas, 1992.
O’DEA, Thomas. Sociologia da religião. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo: Livraria
Pioneira Editora, 1969.
181
OTTO, Rudolf. O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o
racional. Trad. de Walter O. Schlupp. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 2007.
PADEN, William E. Interpretando o sagrado: modos de conceber a religião. Trad. Ricardo
Gouveia. São Paulo: Paulinas, 2001.
PADIAL, Diane de O. Colóquio História e historiadores da África: uma homenagem a Joseph
Ki-Zerbo (15 a 17/10/2007). (Apresentação do). In: Boletim Famaliá, São Paulo, 11/10/2007.
Disponível em: http://www.overmundo.com.br. Acesso em: 15/12/2008.
PÉLISSIER, René. História de Moçambique: formação e oposição (1854-1918). (2 vol.).
Lisboa: Editorial Estampa, 1994.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. A criação do texto literário. In: Flores da escrivaninha:
ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 102-110.
RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Trad. de M.F.
Correia. Rio de Janeiro: Imago, 1978.
RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Trad. de Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 2000.
RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Trad. de
Artur Mourão. Lisboa: Ed. 70, 1973.
REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. 7.ed. Coimbra:
Almedina, 2002.
ROCHA, Enilce Albergaria. A narrativa ficcional e a identidade cultural: a guerra pós-
independência em Moçambique na escrita de Mia Couto. In: DELGADO, Ignacio et alii
(org.). Vozes (além) da África: Tópicos sobre identidade negra, literatura e história africanas.
Juiz de Fora: Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2006, p. 41-72.
ROSÁRIO, Lourenço. A oralidade através da escrita na voz africana. In: Literaturas
africanas de língua portuguesa: compilação das comunicações apresentadas no Colóquio
sobre Literaturas dos Países Africanos de Língua Portuguesa em Julho de 1985. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, p. 181-189.
ROSÁRIO, Lourenço. Singularidades: estudos africanos. Lisboa: Edições Universitárias
Lusófanas, 1996.
SANTILLI, Maria Aparecida. Africanidade. São Paulo: Ática, 1985.
SECCO, Carmen Lucia Tindó Ribeiro. A magia das letras africanas: ensaios escolhidos
sobre as literaturas de Angola e Moçambique e alguns outros diálogos. Rio de Janeiro: ABE
Graph Editora; Barroso Produções Editoriais, 2003.
SERRA, Carlos. Notas para a origem da antropologia. Maputo (Moçambique). 01/05/2006.
Disponível em: http://oficinadesociologia.blogspot.com
. Acesso em 12/12/2008.
182
SILVA, Rosania P. Mecanismos de subversão na literatura moçambicana: Vozes
Anoitecidas de Mia Couto. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
1994 (Dissertação de mestrado).
SOW, Alpha I. Prolegómeno. In: AGUESSY, Honorat et alii. Introducción a la cultura
africana: aspectos generales. Barcelona: Serbal, 1982, p. 9-31.
TEMPELS, Placide. La philosophie bantoue. Trad. du néerlandais par A. Rubbens. Paris:
Presence Africaine, 1949.
TEMPELS, Placide. Notre rencontre. Léopoldville [Kinshasa]: Centre d’Etudes Pastorales,
1962.
TERRIN, Aldo Natale. Antropologia e horizontes do sagrado: culturas e religiões. Trad. de
Euclides Luiz Calloni. São Paulo: Paulus, 2004.
THOMAS, L. V.; LUNEAU, R. Les religions d’Afrique Noire: textes et traditions
sacrés. Paris: Fayard/Denoël, 1969.
THOMAS, L. V.; LUNEAU, R. La terre africane et ses religions: traditions et changement.
Paris: Librairie Larousse, 1975.
TILLICH, Paul. Teologia sistemática: três volumes em um. Trad. de Getúlio Bertelli e
Geraldo Korndörfer. 5.ed. São Leopoldo: Sinodal, 2005.
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Trad. de Leyla Perrone-Moises. São Paulo:
Perspectiva, 1979.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. de Maria Clara Correa
Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975.
TRIGO, Salvato. Literatura colonial, literaturas africanas. In: Literaturas africanas de
língua portuguesa: compilação das comunicações apresentadas no Colóquio sobre
Literaturas dos Países Africanos de Língua Portuguesa em Julho de 1985. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1987, p.139-157.
UNIVERSIDADE DE COIMBRA. Instituto de Antropologia. Moçambique: cultura e
história de um país (Actas da V Semana de Cultura Africana 17 a 22/11/1986).
Coimbra: Universidade de Coimbra, 1988.
VANSINA, J. A tradição oral e sua metodologia. In: História Geral da África. Vol. I
(coordenado por Joseph KI-ZERBO): Metodologia e pré-história da África. Trad. de Beatriz
Turquetti et alii. São Paulo: Ática; [Paris]: Unesco, 1982.
VASCONCELOS, Sergio Sezino Douets. A importância de Placide Tempels para os estudos
das religiões afro-brasileiras. Revista de teologia e ciências da religião da UNICAP.
Recife, v. 3, n. 3, p. 328-339, dez. 2004. Disponível em: http://biblioteca.recesu.com.br.
Acesso em: 12/12/2008.
183
VERÇOSA, Élcio de Gusmão; MASCELLANI, Maria Nilde. Multiculturalismo e prática
docente: as lições da etnologia simbólico-humanista. Revista do Centro de Educação da
Universidade Federal de Alagoas. Maceió: n. 10, ago. 1995. Disponível em:
http://www.cedu.ufal.br. Acesso em: 16/04/2008.
ZAMPARONI, Valdemir. A política do assimilacionismo em Moçambique, c. 1890-1930. In:
DELGADO, Ignacio et alii (org.). Vozes (além) da África: Tópicos sobre identidade negra,
literatura e história africanas. Juiz de Fora: Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora,
2006, p. 145-175.
184
ÍNDICE DE CITAÇÕES DE MIA COUTO
As páginas listadas abaixo indicam onde se encontram na tese citações textuais ou
indiretas de romances e contos de Mia Couto. A sequência com que são aqui ordenados
obedece ao critério do maior ao menor volume de citações.
O outro pé da sereia (2006)
Páginas 22; 23; 24; 25; 26; 39; 40; 68; 69; 75; 76; 77; 78; 84; 85; 86; 89; 90; 91; 92; 100;
105; 106; 116; 119; 120; 121; 122; 123; 124; 125; 126; 127; 132; 140; 141; 142; 143; 144;
149; 150; 151; 152; 153; 154; 155; 156; 157; 159; 163; 164.
Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2003)
Páginas 63; 68; 69; 76; 77; 78; 82; 83; 105; 106; 107; 108; 109; 110; 111; 112; 113; 114; 115;
116; 117; 118; 119; 120; 122; 128; 137; 139; 140; 142; 143; 144; 150; 151; 157; 161; 162.
Terra sonâmbula (1995)
Páginas 64; 70; 75; 78; 79; 80; 81; 82; 84; 85; 86; 87; 88; 101; 102; 103; 138; 141; 143; 151.
O último voo do flamingo (2005)
Páginas 68; 73; 74; 82; 102; 138; 144; 159; 162; 163.
A varanda do frangipani (2007)
Páginas 63; 70; 73; 82; 103; 142; 151; 157; 158.
Estórias abensonhadas (1996)
Lenda de Namarói – páginas 74; 137; 162; 163.
Nas águas do tempo – páginas 103; 104; 105.
O bebedor do tempo – páginas 165; 172; 173.
A velha engolida pela pedra – páginas 5; 164
185
O fio das missangas (2003)
O caçador de ausências – página 20.
Meia culpa, meia propria culpa – páginas 141; 142.
O nome gordo de Isidorangela – páginas 135; 139.
A saia almarrotada – páginas 135; 136.
O mendigo Sexta-feira jogando no mundial – página 143
Vozes anoitecidas (1995)
O dia em que explodiu Mabata-bata – páginas 73; 97; 98.
Cada homem é uma raça (1998)
O embondeiro que sonhava pássaros – páginas 94; 95; 96.
Cronicando (1991)
Os anjos embriagados – páginas 149; 151.
Mar me quer (2000)
Página 147.
Venenos de Deus, remédios do Diabo (2008)
Página 75.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo