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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM LETRAS
MARIA AMÉLIA DALVI
O AMOR NATURAL E O PROJETO POÉTICO-PENSANTE
DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
VITÓRIA
2008
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2
MARIA AMÉLIA DALVI
O AMOR NATURAL E O PROJETO POÉTICO-PENSANTE
DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Dissertação apresentada ao Mestrado
em Letras do Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade
Federal do Espírito Santo como parte
dos requisitos para obtenção do grau
de mestre.
Orientador: prof. Dr. Raimundo Nonato
Barbosa de Carvalho.
VITÓRIA
2008
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3
O AMOR NATURAL E O PROJETO POÉTICO-PENSANTE DE
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
de
MARIA AMÉLIA DALVI
Dissertação apresentada ao Mestrado em Letras do Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo como requisito parcial para
a obtenção do grau de mestre.
Vitória, _____ de _______________ de 2008.
Banca examinadora:
_________________________________ _______
Prof. Dr. Raimundo Nonato Barbosa de Car valho
Orientador Ufes
________________________________________
Prof.ª Dr Letícia Malard
Membro da banca UFMG
________________________________________
Prof. Dr. Lino Machado
Membro da banca Ufes
________________________________________
Prof. Dr. Luís Eustáquio Soares
Membro da banca Ufes
4
AGRADECIMENTOS
Por tudo o que fizeram e m feito por mim e em favor deste trabalho, agradeço
imensamente a:
Wilberth;
Raimundo;
os membros da banca de seleção e da banca examinadora;
os professores da graduação e do mestrado;
Ana, Bruno e Rutiléia;
Sara;
Pedro;
os meus amigos e a Joana, especialmente;
Ana Maria e Gustavo;
meus (ex-) alunos;
minha família;
os (ex-) companheiros de trabalho, professores e funcionários das escolas por
onde andei, que se tornaram meus amigos;
as escolas por que passei nos últimos tempos: Núcleo de Educação Orientada,
Escola São Camilo de Lellis; Centro Educacional Primeiro Mundo; e Centro
Educacional Charles Darwin;
as instituições pelas quais ando circulando nos últimos anos: Sociedade Cultural
Monteiro Lobato Cems (nas pessoas de Ana Rita, Chamoun, Dante, Gustavo,
Márcia, Patrizia e toda a equipe de Português Cristina especialmente, in
memorian); e Faculdade Saberes (nas pessoas de Alacir, Flávio e toda a equipe
do curso de Letras).
os companheiros de graduação e mestrado;
Capes.
5
Para Raimundo, pela confiança, generosidade e paciência.
Para Wilberth, por tudo o que não tem nome.
6
Drummond é o cara.
ARMANDO FREITAS FILHO
7
RESUMO
Leitura de O amor natural (1992) livro póstumo de poemas eróticos como
coroação do projeto poético-pensante de Carlos Drummond de Andrade. Na
construção da argumentação teórica, agenciam-se estudos críticos e
historiográficos importantes no cenário brasileiro a respeito do poeta mineiro e
recorre-se, ainda, ao pensamento de Martin Heidegger no ensaio A origem da
obra de arte. No primeiro capítulo, é feita uma revisão da fortuna crítica que a
poética drummondiana engendrou; no segundo capítulo, lê-se o todo desta
produção como um projeto; no terceiro, descreve-se e analisa-se O amor natural.
Palavras-chave: O amor natural. Carlos Drummond de Andrade. A origem da obra
de arte. Martin Heidegger.
8
ABSTRACT
The reading of O amor natural (1992) (Natural Love) posthumous book of erotic
poems as the apogee of Carlos Drummond de Andrades poético-pensante
(thinking-poetic) project. In the construction of the theoretical argumentation,
important critical and historical studies about the poet from Minas Gerais are
gathered, along with Martin Heideggers philosophy in A origem da obra de arte
(The Origin of the Work of Art). In the first chapter, the critical fortune on
Drummonds poetics is reviewed; in the second, the whole of this production is
read as a project; in the third, O amor natural (Natural Love) is described and
analyzed.
Key-words: O amor natural. Carlos Drummond de Andrade. A origem da obra de
arte. Martin Heidegger.
9
SUMÁRIO
Notas de esclarecimento 10
Abertura 18
E a cada instante se criam novas categorias do eterno brevíssimo panorama
da produção poética drummondiana 27
Cintilação da ordem no desencontro a poesia de Carlos Drummond de
Andrade: um projeto poético-pensante? 73
Isto nos deste, verso a verso, e depois o soubemos claramente por uma
análise de O amor natural 103
Palavras finais 176
Referências bibliográficas 183
Anexo 195
10
NOTAS DE ESCLARECIMENTO
Antes de qualquer coisa, preciso dizer que concordo com Armando Freitas Filho:
Drummond é o cara. Sei dos riscos que se corre ao expor tão enfaticamente
uma opinião, um gosto, mas é honesto dizer que não há, para mim, quem lhe faça
frente em poesia no Brasil. Passa a ser necessária esta advertência para que o
leitor não se assuste com ser este trabalho um trabalho a favor, e que se sabe e
quer a favor.
Mais que o gosto pessoal, tomo como fiel o que Ivete Lara Camargos Walty e
Maria Zilda Ferreira Cury apontaram no prefácio a Drummond: poesia e
experiência:
Falar de Drummond é uma tarefa complexa (...). Tal complexidade se
deve não apenas à extensão de sua produção ininterrupta durante sete
décadas, mas também à abrangência do seu universo temático, bem
como à riqueza e à variedade dos seus mecanismos de composição
poética.
Por isso mesmo, a poesia drummondiana concretiza a natureza
enciclopédica da literatura, para a qual Barthes chama a atenção: (...) a
literatura faz girar os saberes, o fixa, não fetichiza nenhum deles; ela
lhes um lugar indireto, e esse indireto é precioso. (...) a literatura não
diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor:
que ela sabe algo das coisas que sabe muito sobre os homens
1
.
2
Estou consciente dos senões que se poderiam opor à opinião de que Drummond
é o maior poeta público do Brasil, da irregularidade de sua produção, e sou
consciente, claro, de que o projeto mitificante de erigir um altar e nele fazer
figurar, isolado e inatingível, o poeta Drummond, transformando-o em poeta
nacional (...) não passa de uma leitura ideológica interessada
3
, mas tudo se dilui
a cada vez que me deparo com, por exemplo, A máquina do mundo. Quem fez
coisa como aquela pode errar quantas vezes quiser. talvez se comece a turvar
minha capacidade de discernimento: nem acho que haja erro em Drummond;
prefiro pensar em seus piores poemas como exercícios lúdicos (e lúcidos) de
aprendizado. Mas estas Notas de esclarecimento não servirão apenas para dar
mostras conspícuas de mi nha admiração por Carlos Drummond de Andrade.
1
BARTHES apud WALTY; CURY, 2002, p. 7.
2
WALTY; CURY, 2002, p. 7.
3
CARVALHO, 2002, p. 352.
11
No artigo O centenário Drummond, Raimundo Carvalho assinala os perigos
desta sabujice de que dei provas logo acima. De acordo com o crítico,
Incensada e vuduzada, a poesia de Drummond perde a força. Pois, uma
obra extensa como a dele, a adesão do leitor, apesar de amorosa, deve
ser sempre crítica e seletiva, valorizando o que realmente conta e
minimizando o episódico, aquilo que, com o tempo, perdeu a
consistência, pois nem tudo o que escreveu Drummond é bom.
4
Todavia, este trabalho, na esteira do que, se verá mais à frente, pensa Letícia
Malard, enxerga inclusive o episódico e, assim, também o assumidamente
pornográfico ou erótico de que se traveste O amor natural como parte do que
tenho chamado, com Affonso Ro mano de SantAnna, de projeto poético-pensante.
O fato é que, porém, não se pode discordar de que
(...) essa idéia triunfante de Poeta Maior não corresponde às intenções
do poeta, nem ao efeito buscado por sua poesia e cria um clima
francamente antidrummondiano que inviabiliza a sua correta avaliação.
(...) O Drummonzinho para consumo das massas, autor de uma poesia
pão-de-queijo, palatável e inofensiva, é uma piada, que a leitura rigorosa
de sua obra não corrobora.
5
O principal motivo de esta visão de sua obra como poesia pão-de-queijo não ser
corroborável é, advertiu Costa Lima, o fato de esta mesma poesia implicar
sempre uma crítica aos poderes constituídos e às idéias fixas, no que o
maranhense enxerga a idéia da corrosão que desgasta seres e coisas. Assim é
que se pode afirmar que, consoante ao diagnóstico dos padres jesuítas à época
de sua expulsão do internato católico, ainda na adolescência, o signo a ser retido
da trajetória poético-existencial de Carlos Drummond de Andrade é o da
insubordinação mental.
Ou, nas palavras de Carvalho, se a poesia de Drummond deu certo demais, é
porque fizemos ouvidos moucos à sutil ironia do poeta, ironia esta que consiste,
pois, em partilhar com o leitor uma visão realista do mundo e dos
acontecimentos, mas que, no entanto, não autoriza uma apropriação acrítica da
4
CARVALHO, 2002, p. 351.
5
CARVALHO, 2002, p. 352.
12
mensagem poética, como se ela fosse extensão do nosso ego e pa ssasse a servir
como território de acomodação i ndulgente
6
.
Mas, deixada para outra hora a polêmica, na verdade, o primeiro esclarecimento a
que me obrigo nestas Notas é quanto ao modo que escolhi para introduzir as
notas bibliográficas: para manter o texto mais limpo, elas vêm no rodapé. Não
bastasse esta pequena subversão à norma mais ortodoxa, decidi que não viriam
no rodapé as referências completas (que, na minha opinião, sujam o rodapé,
embaralhando o que é nota bibliográfica com o que é nota explicativa), mas
apenas o último sobrenome do autor, o ano da publicação referida e, quando é o
caso, a página em que se encontra a citação extraída. Peço desculpas desde
pelo desrespeito à convenção: decidi pelo que me pareceu esteticamente mais
aprazível.
O segundo e último esclarecimento, este mais previsível, é a respeito das
mudanças de rumo que o anteprojeto com que fui aprovada na seleção para o
mestrado sofreu. Eu me sentiria uma enganadora se não deixasse o meu alerta
sobre isso, principalmente porque recebi durante dois anos uma bolsa que
financiou este estudo. Prometi uma coisa, e fiz outra. Esta mudança de rumo se
efetuou a partir das sugestões e ponderações da banca de seleção. Agradeço
especialmente aos professores Marcelo Paiva de Souza e Paulo Roberto Sodré
por me abrirem os olhos para a inexeqüibilidade do que então pretendia.
Parte daquele texto virá reproduzida ou adaptada a seguir, pois penso ser justo
que se saiba em que medida me desviei da rota anteriormente traçada. O que fiz,
o leitor saberá ao fim da leitura desta dissertação. O que prometera fazer, o leitor
poderá saber a partir do que apresento agora, nesta seção de Notas de
esclarecimento. Enfim: no resumo do anteprojeto que submeti àquela banca, se
lia o seguinte:
Expõe-se uma perspectiva comparatista de estudo da produção
drummondiana em poesia: e o que se quer? Ver, em que medida, O
amor natural pode figurar como coroação de um possível projeto
poético-pensante. Para tanto, faz-se necessário rastrear, identificar,
6
CARVALHO, 2002, p. 352.
13
mapear e situar as múltiplas referências que no livro póstumo em
questão às obras do mesmo autor, desde Alguma poesia, e, ainda, às
obras alheias, passando, necessariamente, pela confraria formada por
Platão, Ovídio, Estienne, du Bellay, Ronsard, Camões, Whitman,
Eugênio de Castro, Apollinaire, Salinas, Orff, citados explicitamente o
que, parece, delineia uma linhagem; daí o inescapável exercício
comparativo. Pretende-se, destarte, propor uma leitura que não reduza o
conjunto de poemas a hinos libertinos e já não seria pouco e nem
deixe de ver, lá, os fios que amarram poeta e poemas à história literária
do Ocidente.
Na ocasião, esclareci que aquele anteprojeto era, de algum modo, uma ampliação
sob novos parâmetros do subprojeto de pesquisa desenvolvido durante meu
curso de graduação em Letras, com orientação do prof. Dr. Raimundo Nonato
Barbosa de Carvalho, através do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
Científica 2004/2005 (Ufes/PRPPG), intitulado Poesia e prazer: Drummond sob
a pele a peleja das palavras. Na vigência do Programa, o objetivo principal foi
estudar a produção poética de Carlos Drummond de Andrade, na perspectiva
teórica do erótico, tomando como ponto de partida o livro O amor natural,
investigando os vínculos entre Corpo e História, Sexualidade e Ideologia, Amor e
Poder, para que se pensassem as relações acerca do trinômio poesia-erotismo-
história.
Propus, a partir disto, uma mudança de enfoque na nova etapa, a pós-graduação:
permaneceriam Drummond e O amor natural, realinhar-se-iam os objetivos. Não
se quis mais ter como norte o estudo sob a per spectiva do erótico; antes, o estudo
da produção poética drummondiana e O amor natural como uma espécie de
coroação deste conjunto a partir do pressuposto de que, se, como Ítalo
Moriconi afirma em Como e por que ler a poesia brasileira do século XX, a obra
de Drummond é central na história da poesia brasileira, é nela mesma que se hão
de encontrar relações intertextuais e extratextuais capazes de explicar como e por
que a poesia drummondiana é clássica e reitera-se constantemente, num
movimento incessante de dobre da obra sobre si.
Argumentei, então, recordando Italo Calvino em Por que ler os clássicos: um
clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. O
amor natural não somente se enquadra perfeitamente na definição, como também
retoma inúmeros outros autores e obras que merecem o mesmo epíteto, criando
14
uma rede de referências incessante, em absoluta consonância com aquilo que
Vítor Manuel de Aguiar e Silva afirma em Teoria da Literatura: Todo texto literário
se situa, de modo mais ou menos visível, num espaço intertextual
7
.
Em nome da clareza, eu disse, à época, que o conjunto dos 40 poemas eróticos
que compõem O amor natural situado no espaço intertextual de que fala Aguiar
e Silva aparece epigrafado por poemas ou fragmentos de Ronsard (1524-1585),
Camões (1524-1580), Whitman (1819-1892), Apollinaire (1880-1918) e Salinas
(1892-1951); que os poemas A moça mostrava a coxa e Adeus, camisa de
Xanto vêm epigrafados, respectivamente, por trecho do libreto musicado por Carl
Orff (1895-1982), Carmina Burana, e por fragmento de A Camisa de Xanto, de
Eugênio de Castro (1869-1944); que o poema A língua francesa traz, logo
abaixo do título, a seguinte observação: À margem de La Défense et Illustration
de la Langue Française, de Joachim du Bellay, e De la Préexcellence du Langage
Française, de Henri Estienne; que vários poemas, inclusive o de abertura e o de
encerramento do livro, fazem menção a Ovídio e a Platão; etc. etc. etc.: e o que
se avultava como perspectiva de estudo, para mim, era a representatividade de
todas estas referências para além da óbvia vastidão cultural-literária de
Drummond.
Felizmente, se, por um lado, me vi impelida a abandonar o projeto de rastrear
este imenso conjunto de referências (que, como era de se supor, faria
engordar à medida que o estudo avançasse) e de pensá-lo à luz do suposto
projeto drummondiano, por outro, descobri que minha hipótese de trabalho (ou
seja, as tais referências, evidentes ou não, do poeta a si mesmo e a outros poetas
em O amor natural não são gratuitas e querem dizer muito a respeito da meta-
reflexividade da obra em questão) não era absurda. Digo isto porque tomar
ciência da existência do livro Influências e impasses: Drummond e alguns
contemporâneos, de John Gledson, veio amainar, ao menos parcialmente, o
sentimento de chateação diante da vacância crítica que eu supunha. Além de
Influências e impasses, ainda outras importantes publicações tentam dar conta de
uma aproximação comparativa entre Drummond e certo cânone literário, como é o
7
AGUIAR E SILVA, 1979, p. 34.
15
caso de Drummond, leitor de Dante, de Eduardo DallAlba; de Pedro Nava leitor
de Drummond, de Raquel Guimarães; de Duas artes: Carlos Drummond de
Andrade e Elizabeth Bishop, de Maria Lúcia Milléo Martins; e de As flores do mal
nos jardins de Itabira: Baudelaire e Drummond, de Gilda Salem Szklo embora
os livros de DallAlba, Gledson, Guimarães, Martins e Szklo não tratem do
assunto especificamente (e nem mesmo lateralmente) em relação a O amor
natural.
Ainda devo dizer que, ao menos dois anos depois, continua a me parecer que
absoluta consciência do poeta quando escolhe as referências que faz à própria
obra antecedente, e a um ou a outro confrade. O livro todo está literalmente
costurado: as referências, as explícitas e as não, ligam-se umas às outras e o
projeto a que me lançaria seria tentar rastrear tais referências e ligações, visando
a uma leitura de O amor natural para bem além de um livro tão-somente libertino;
antes, quereria lê-lo como uma obra que arremata um projeto poético-pensante,
inserindo-se numa tradição e, ao mesmo tempo, estendendo-a.
Sorte é que um livro do quilate do eleito permite muitas entradas. Parcialmente, a
hipótese de leitura rascunhada no anteprojeto ainda vive no trabalho que se tem
em mãos. Como se há de ver na abertura, mas principalmente no terceiro
capítulo deste texto, ainda defendo O amor natural como muito mais que um livro
licencioso de um dos nossos maiores expoentes literários. Quero defender a tese
de que embora fosse já suficientemente bom que se tratasse de um livro
licencioso de um dos nossos maiores expoentes literários O amor natural se
insere em um projeto poético que é, também, extrapolando os limites que eu
mesma me impus nesta dissertação, uma revisão da trajetória artística de um
sujeito que muito bem se sabe inserido na história da poesia ocidental do século
XX. Mas isto fica para outra hora (em nome da curiosidade, alguma coisa a
respeito virá esboçada já no fim deste trabalho).
Se absoluta pertinência nas referências que Drummond faz, em todo o livro, a
um ou a outro poeta, a uma ou a outra obra, há, acredito, também, pertinência
quando se refere a si mesmo, o que viria a caracterizar parcialmente a natureza
do projeto poético-pensante de que falam, explicitamente, SantAnna e,
16
implicitamente, Arrigucci Jr. (traços de coerência profunda vão apontando mes mo
nos poemas breves, de corte humorístico, no início
8
), por exemplo. Somente a
título de ilustração dessas auto-referências existem muitíssimos outros casos ,
vejamos:
a) Para o sexo a expirar, em O amor natural, aproxima os campos
semânticos do amor e do fogo, em um contexto de separação ou
despedida: Amor, amor, amor o braseiro radiante / que me dá, pelo
orgasmo, a explicação do mundo, tal como Cantiga de viúvo, em Alguma
poesia: Me abraçou com tanto amor / me apertou com tanto fogo / me
beijou, me consolou.;
b) Era bom alisar seu traseiro marmóreo, também em O amor natural, e
Edifício Esplendor, em José, m bastante em comum: Era bom alisar
seu traseiro marmóreo / e nele soletrar meu destino completo: / paixão,
volúpia, dor, vida e morte beijando-se / em alvos esponsais numa curva
infinita. // Era amargo sentir em seu frio traseiro / a cor de outro final, a
esférica renúncia / a toda aspiração de amá-la de outra forma. / Só a bunda
existia, o resto era miragem. e Era bom amar, desamar, / morder, uivar,
desesperar, / era bom mentir e sofrer. / (...) Os móveis riam, vinha a noite, /
o mundo murchava e brotava / a cada espiral de abraço.;
c) o mesmo acontece entre Amor pois que é palavra essencial, em O amor
natural, e Uma hora e mais outra, em A rosa do povo: Um corpo noutro
corpo entrelaçado, / fundido, dissolvido, volta à origem (...) // (...) Então a
paz se instaura. A paz dos deuses, / estendidos na cama, qual estátuas e
(...) nem essa hora flácida / após o desgaste / do corpo entrançado / em
outro, tristeza;
d) os poemas A moça mostrava a coxa, em O amor natural, e América, em
A rosa do povo, possuem em comum a postura questionadora do eu lírico
e o uso de um vocábulo bastante esdrúxulo e, quiçá, metalingüístico, que é
naveta: Por que viria ofertar-me / quando a noite vai fria, / sua nívea
rosa preta / nunca por mim visitada, / inacessível naveta? e Nunca se
sabe, as cidades crescem, / mergulham no campo, tornam a aparecer. / O
ouro as forma e dissolve; restam navetas de ouro.
8
ARRIGUCCI Jr., 2002, p. 15.
17
Como se verá, o desenvolvido aqui, se carrega o inconveniente de diferir bastante
do original, parcialmente apresentado acima, também guarda com ele traços de
grande afinidade. Um ganho que me parece significativo foi o primeiro capítulo,
totalmente imprevisível à época da seleção. Gostei de haver escavado a recepção
crítica que Drummond angariou ao longo dos anos, porque ela consolidou uma
imagem do poeta e de sua obra e talvez tenha sido responsável por moldar os
rumos que a poética drummondiana tomou. Uma perda, se é que foi mesmo, foi
não ter tido o prazer de ler, para além de de-Drummond e sobre-Drummond,
outros poetas eleitos pelo itabirano.
Não posso dizer que não houve saldo. Houve, sim. Embora hoje, talvez, eu
desejasse começar tudo de novo, e de outra forma, penso que algo de
significativo aqui se fez, em amor à literatura e eu tenho lá as minhas dúvidas se
esta senhora não pode mesmo, como vaticinou Carlos Drummond de Andrade,
domar a onça escura.
18
ABERTURA
Não há literatura
que dome a onça escur a.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
I
Quando Mikhail Bakhtin conclui seu ensaio acerca dos problemas da poética de
Dostoiévski assinala que a originalidade do romancista russo como artista está
em ter contribuído com novas formas de visão estética. Em razão de outros traços
temáticos e estilísticos mas de natureza comum , penso que se pode dizer o
mesmo da produção poética drummondiana. Na verdade, penso que se pode
dizer o mesmo de toda a produção literária drummondiana, e não apenas a
poética. Mas minha idéia não é original
9
.
Antonio Candido, no artigo Drummond prosador, identificou um único
Drummond disseminado pela poesia, pela crônica e pela ficção; a distinção entre
os gêneros, na opinião do crítico, -se, principalmente, pela diferenciação de
intensidade com que o autor penetrou nos meandros da humana contingência
10
.
Também Davi Arrigucci Jr., em Coração partido uma análise da poesia reflexiva
de Drummond
11
, defende que a complexidade da produção drummondiana reside
no modo inédito como se articularam, ali, as contradições de toda ordem e a
diversidade estilística. Porém, se é possível dizer que o todo da produção literária
drummondiana contribuiu a seu modo com novas formas de visão estética, falta
ainda quem lhe debulhe, em definitivo, a prosa e não serei eu a correr o risco.
Portanto, restrinjo-me a dizer seja lá o que for a partir tão-somente da poesia de
Drummond. Este é meu primeiro recorte.
A tese bakhtiniana é de que as formas de visão estética engendradas a partir da
criação do romance polifônico por Fiódor Dostoiévski permitem ver e descobrir
novas facetas do homem e de sua vida
12
. Também a produção poética de
9
Desenvolvo este raciocínio com um pouco mais de acuidade em DALVI, 2007, p. 144 a 167.
10
CANDIDO, 1993, p. 18 e 19.
11
ARRIGUCCI Jr., 2002.
12
BAKHTIN, 2002, p. 273.
19
Drummond trouxe à luz facetas nossas, de nossas vidas, insuspeitadas. E penso
assim não apenas porque sua trajetória literária e intelectual, fundada na
travessia de tempos e espaços, na migração da periferia para o centro, da
tradição para o moderno, apresenta um complexo roteiro de lugares por onde se
insinuam as práticas discursivas da modernidade cultural no Brasil
13
. Ou porque,
de acordo com Merquior
14
, a démarche drummondiana teria coincidido,
oportunamente, com o movimento (político, social, ideológico) de passagem do
cenário rural e oligárquico para o urbano e industrial. mais desdobramentos
que os previsíveis frente a este intrincado jogo.
Tomemos um exemplo do que digo. Ítalo Moriconi, em Como e por que ler a
poesia brasileira do século XX, lista 14 livros de poesia que considera os mais
importantes do século passado. Dentre os 14, quatro são de Drummond: A rosa
do povo (1945), Claro enigma (1951), Fazendeiro do ar (1954) e Lição de coisas
(1962). Explica que o objetivo da lista é apontar para um apogeu: um apogeu
coletivo. Um apogeu que ficou marcado no tempo. O apogeu da geração
modernista. O coroamento, o ponto de chegada da evolução iniciada em 22. Um
grupo de obras excepcionais que se consolidaram como parâmetro inescapável
de toda a poesia futura
15
.
Discordemos ou não do elenco arregimentado por Moriconi (tanto em Como e por
que ler a poesia brasileira do século XX, quanto na antologia Os cem melhores
poemas brasileiros do século
16
, onde figuram, dentre 100 poemas, nove de
Drummond), se os poemas de Drummond feitos um parâmetro inescapável de
toda a poesia futura permitem ver e descobrir novas facetas do homem e de
sua vida, caracterizando o que Bakhtin chamou de evolução do pensamento
artístico da humanidade, é porque nenhum outro poeta brasileiro se lançou tanto
fora das páginas
17
. Lançar-se fora das páginas pode traduzir-se, mas apenas em
primeira instância, talvez, por haver testemunhado a Semana de Arte Moderna, a
ascensão e o ocaso da era getulista, as duas grandes guerras, a Poesia
13
SAID, 2005, p. 13 e 14.
14
Cf. MERQUIOR, 1976.
15
MORICONI, 2002, p. 68.
16
Cf. MORICONI (Org.), 2001.
17
SALGUEIRO, 2005, p. 1.
20
Concreta, a ditadura militar, a tecnologia irrefreável, os novos inocentes do
Leblon
18
; e, sabemos, não apenas testemunhado, mas vivido e estetizado
cada tempo presente ao sabor das vicissitudes que lhe são próprias. (Só para
reforçar, com outra dicção, recordemos que, em 1987, ano de sua morte, Carlos
Drummond de Andrade viu-se homenageado pela escola de samba Estação
Primeira de Mangueira, com o samba-enredo No reino das palavras por sinal,
campeã do carnaval carioca daquele ano; em 1989, vimos, por decisão da Casa
da Moeda, retrato, versos e autocaricatura estampados nas cédulas de 50
cruzados novos).
Acerca da forma de pensamento a que o teórico russo quis denominar artístico
polifônico, pode-se sistematizar o seguinte: ultrapassa os limites de gênero;
atinge as muitas facetas do homem (e, assim, atinge a consciência pensante do
homem, o campo dialógico do ser). Mesmo se nos apegarmos apenas a alguns
dos clichês que se propagam no entorno da produção de Carlos Drummond de
Andrade, veremos muito em comum a se dizer da obra de ambos, o romancista
russo e o poeta brasileiro considerando que exerceram o dito pensamento
artístico polifônico.
Mas todo este texto passa longe de Bakhtin, e muito mais longe ainda de uma
possível aproximação entre Drummond e Dostoiévski. A idéia aqui é analisar o
livro O amor natural à luz de um suposto projeto drummondiano (a que, com
Affonso Romano de SantAnna, resolvi chamar projeto poético-pensante). Para
isso, recorro principalmente a certa seleção da crítica e da ensaística nacionais; e,
lateralmente, ao pensamento de Martin Heidegger em A origem da obra de arte.
Entretanto, como me parece que a poética de Carlos Drummond de Andrade
contribuiu, na literatura brasileira, com novas formas de visão estética e, assim,
com a visão e o descobrimento de novas facetas do homem e de sua vida, a partir
de um pensamento artístico polifônico e multifacetado, não quis deixar de pôr,
lado a lado, na qualidade de inauguradores de um legado que não pode ser
ignorado, Dostoiévski e Drummond. Tornaremos aqui.
18
SALGUEIRO, 2005, p. 1.
21
II
E por que o legado de Drummond não pode ser ignorado? Ninguém nega, que se
saiba, a multiplicidade de temas, recursos, pontos de vista, estilos ou estratégias
presentes na produção drummondiana, menos ainda sua importância fulcral em
nossa substanciosa história literária. Testemunho indelével disto é o número
quase incontável de resenhas, ensaios, artigos, dissertações, teses e livros a que
se tem dado à luz desde que foi publicado o celebérrimo No meio do caminho
dois anos mais tarde, em 1930, incluído no livro de estréia, Alguma poesia.
Pudera: são, ao menos, 21 livros de poemas e 18 livros de prosa, entre contos,
crônicas e ensaios, além de 9 traduções, que vão de Mauriac a Molière
19
.
De uma Babel de resenhas, ensaios, artigos, dissertações, teses e livros sobre a
poesia de Drummond, vi-me obrigada a selecionar alguns textos específicos, e a
organizar sua leitura e, mais, sua participação neste meu trabalho. Assim surgiu o
primeiro capítulo, “‘E a cada instante se criam novas categorias do eterno
brevíssimo panorama da produção poética drummondiana. Nele, resenho textos
panorâmicos acerca da produção poética do itabirano, cotejando-os entre si, para
extrair disto a matéria do capítulo seguinte, Cintilação da ordem no desencontro
a poesia de Carlos Drummond de Andrade: um projeto poético-pensante?. É
que exponho a possi bilidade de se ler a produção poética de Drummond como um
projeto. Assinalando uma coerência interna, que se constrói na multifacetação,
convoco argumentos que façam desse conjunto um todo, planejado em sua
desordem. Por fim, entendendo a produção poética drummondiana como um
projeto poético-pensante, vejo a dobradinha O amor natural e Farewell como
sua coroação por isso, vou procurar no primeiro as razões de minha suspeita,
deixando o segundo, por ora, em suspenso. Digo isto porque o terceiro e último
capítulo, Isto nos deste, verso a verso, e depois o soubemos claramente
por uma análise de O amor natural, talvez frente aos anteriores o mais original
por isso, o mais suspeito , tentará apresentar a um virtual leitor incauto aspectos
de O amor natural que, em uma primeira leitura, mereçam destaque. Penso
agora, por exemplo, no título, nas ilustrações de Milton Dacosta; na recepção que
o livro teve (já antes e, claro, depois de sua publicação); nas epígrafes escolhidas
19
Ver a listagem das obras de Carlos Drummond de Andrade em Anexo.
22
por Drummond; e, evidentemente, nos 40 poemas, eles mesmos um belo
problema.
III
Relendo o prefácio de Affonso Romano de SantAnna à primeira edição de O
amor natural, intitulado O erotismo nos deixa gauche?, deparei-me com o
incentivo de que precisava para justificar o desabuso da dissertação que aqui se
afigura (e digo desabuso porque pode parecer desmedido de minha parte querer
remexer o baú de um poeta ao que parece virado ao avesso como nenhum outro
no Brasil pela fina flor de nossa crítica e ensaística). Diz SantAnna:
Este [O amor natural] é um livro que perturbará alguns, decepcionará
outros e em outros mais reafirmará a admiração por Drummond. (...)
Para os cultores de Drummond, no entanto, O amor natural será a
oportunidade para prolongar análises feitas em sua vasta bibliografia e
adicionar novas leituras interpretativas num jogo de espelhos onde à
fantasia do texto se somam as alucinações (objetivas?) dos críticos.
20
É assim, então, que me ponho: disposta a prolongar, ludicamente, as
alucinações (objetivas?) dos críticos, a partir da fantasia que emergir destes
poemas; o que quer dizer que me disponho a prolongar, se for possível, as
análises já dadas da bibliografia poética drummondiana, adicionando a elas a
minha leitura interpretativa de O amor natural à luz do conjunto que vai de Alguma
poesia a Farewell. Dito isto, confesso não saber como alojar este trabalho frente à
questão suscitada por John Gledson: [há uma tendência cada vez mais freqüente
de se] desistir da interpretação global da poesia [de Drummond], já tentada
principalmente por SantAnna e Merquior, e [de se voltar] (...) ao estudo
parcial’”
21
. Não sei se me solidarizei, aqui, mais com o desejo impossível
evidenciado nos muitas vezes mal falados projetos de SantAnna e Merquior
(digo, projetos de se empreender uma leitura global da poesia drummondiana); ou
se optei por correr o risco de ser malfadada em uma leitura tanto menos
ambiciosa quanto mais segura, porque restrita a um corpus sumário. Temerosa,
penso que a indecisão me pôs desde o início numa corda bamba estendida entre
as duas pontas do abi smo.
20
SANTANNA, 1993, p. 7.
21
GLEDSON, 1981, p. 16.
23
Por um lado, a intenção primeira (e suficientemente trabalhosa) sempre foi ler O
amor natural; por outro, pareceu muito nítida a intuição de que é impossível ler o
livro em pauta como sem intenção de menosprezo apenas mais um dos
muitos livros de poemas de Drummond, suficiente em si mesmo. O amor natural
é, sem sombra de dúvida, um livro, na falta de palavra melhor, especial: haja vista
ter o poeta procedido ao longo de décadas sua feitura e, propositadamente, o
destinado à publicação póstuma, embora rigorosamente organizada em vida.
E, dentre os mil delírios críticos possíveis já vaticinados, o primeiro é tentar
escapar de uma questão a que insistentemente os analistas e leitores do
Drummond de O amor natural têm, ingenuamente, parece-me, se submetido (e
incluo o próprio Affonso Romano de SantAnna, pouco perspicaz quando sob o
calor da primeira edição do livro):
Este [O amor natural] é um livro inquietante. Inquietante porque nos faz
pensar os limites (quais?) entre a pornografia e o erotismo. Neste
sentido, esses poemas remetem para fora da obra de Drummond e
colocam em questão não apenas o poeta, mas o leitor, seus conceitos e
preconceitos.
22
Pouco importa, penso, o que de erótico ou de pornográfico em O amor natural.
Corrigindo-me: não é que pouco importa, é que não importa mais que todas as
outras coisas que estão, no livro. A temática do amor, do corpo, do gozo, do
prazer está difusa, profusa, óbvia em toda a produção poética drummondiana e
é isso o que (mais) importa. Se não se pode pôr em segundo plano o erótico ou o
pornográfico em O amor natural é porque não se pode -los em segundo plano
em qualquer dos outros livros de poemas do autor. Nesse sentido, o
evidenciamento da temática erótica ou pornográfica bem como o
evidenciamento da temática da morte em Farewell vem tão-somente coroar o
desenrolar de uma história que começa muito antes; vem jogar, quem sabe, a
última cartada de Eros contra Tânatos, reatando (as) duas pontas da vida.
Sob este prisma, O amor natural não tem nada novo: não é nenhuma exceção do
ponto de vista temático (ao menos do ponto de vista temático mais evidente); daí
que analisar o livro exclusiva ou principalmente a partir da armadilha do erótico ou
22
SANTANNA, 1993, p. 8.
24
do pornográfico ou mesmo a partir da armadilha do novo é uma ingenuidade
e, acho, um crime de lesa-livro
23
.
Explico. Comentando Claro enigma, Vagner Camilo, em Drummond: da rosa do
povo à rosa das trevas, sustenta a tese de que
(...) diante de uma conjuntura histórica marcada pela frustração da utopia
revolucionária e de todo empenho participante, o sujeito lírico [de Claro
enigma], que, segundo alguns intérpretes, acabaria por abandonar a
praça de convites
24
para supostamente recolher-se ao isolamento de
sua torre-de-marfim, estaria, na verdade, operando uma retirada
estratégica (...).
A atitude [de abandonar a praça de convites], portanto, nada tem de
meramente demissionária. É, antes, produto de uma percepção mais
ampla e distanciada da História, que abarca além do estreito rio
presente. (...) A essa conversão da História em Natureza associam-se
outros aspectos decisivos para a devida compreensão do livro de 51
[Claro enigma]. São eles a concepção de tempo cíclico, a retomada do
mito e o senso de fatalidade ou destino (...). Acrescente-se a essa
herança (...) o sentimento de culpa.
25
Embarcando no mesmo bonde, devo dizer que O amor natural também me soa
uma retirada estratégica, entretanto decorrente de outros motivos (aos quais
seria mais justo nomear como motivos complementares, ao invés de
intrinsecamente divergentes), diferentes dos apontados por Camilo para justificar
sua tese em relação ao livro de 51. Não se trata (mais) de um sujeito lírico que
opta por recolher-se ao isolamento na torre de marfim tendo em vista a conjuntura
histórica desfavorável, ou o trágico reconhecimento da História como regida por
atos recorrentes em uma cega destinação na feliz expressão de Luiz Costa
Lima. Trata-se, antes, do sujeito lírico que sabe ser necessária uma retirada
estratégica, uma vez que se avizinha o fim, a morte e com eles o abandono
forçado de qualquer praça de convites.
23
A este respeito, pense-se, por exemplo, que já no terceiro poema de Alguma poesia lemos:
embaixo / suspiram bocas machucadas. / Suspiram rezas? Suspiram manso, / de amor. /// E os
corpos enrolados / ficam mais enrolados ainda / e a carne penetra na carne., em ANDRADE,
1992, p. 6.
24
A expressão praça de convites foi inicialmente empregada por Drummond na Antologia poética
de 1962, para definir seus poemas de cunho mais abertamente social. Aqui, todavia, a expressão
é usada às vezes metonimicamente, para referir-se a tudo o que na poesia drummondiana
extrapola o estritamente ensimesmado.
25
CAMILO, 2001, p. 19, grifo do autor.
25
A fim de reforçar esta hipótese, tomemos como certo por enquanto que a
concepção de tempo cíclico, a retomada do mito e o senso de fatalidade ou
destino reaparecem em O amor natural, tanto quanto apareceram, antes, em
Claro enigma. Se este é o livro que marca o grande salto poético drummondiano,
aquele talvez seja, realmente, seu ápice. E mais uma razão para sustentar
como não totalmente disparatada a idéia: o salto poético drummondiano de Claro
enigma para O amor natural fez-se na evidente superação do sentimento de
culpa
26
, presente antes daí o livro póstumo poder gozar livremente a concepção
de tempo cíclico, a retomada do mito e o senso de fatalidade (livre, assim, não do
trágico em si: digo, da consciência da morte como a maior de nossas tragédias;
ao contrário. Livre, antes, de seu peso.).
Todavia, constatar a superação do sentimento de culpa em O amor natural não
permite, por si só, prever uma trajetória de aperfeiçoamento, uma trajetória
ascensional que vá dos primeiros rumo aos últimos livros. Mesmo que fosse
indiscutível a superação do sentimento de culpa em O amor natural, a
constatação disto não sustentaria a tese de uma trajetória contínua e não
permitiria, ainda, sustentar a imagem de uma maturão paulatina e ininterrupta
do escritor e de seu ofício. Constatar esta superação não tem aqui o propósito
ingênuo de dar a O amor natural um status ao qual não faça jus. Se o livro
póstumo aponta para um apogeu, é exatamente porque se deslocou e se
descolou na e/ou da noção tradicional de tempo. Sua temporalidade é formada
por vários passados e por vários presentes justapostos e entrecruzados. E quem
dá a munição é o próprio poeta: (...) meus livros são coleções de trabalhos
esparsos, que foram se acumulando com o tempo e depois tomaram essa forma,
após a seleção de textos
27
. Que dizer de um livro que foi decantado ao longo de
mais de 30 anos?
Em outras palavras, o que faz da obra póstuma uma preciosidade é, como eu
gostaria de fazer suspeitar, não sua camada mais superficial, evidente a
tematização do erótico, do pornográfico , mas o fato de trazer inscrita em si a
26
Caso interesse um aprofundamento no tema, o sentimento de culpa como traço da poética
drummondiana foi extensamente estudado em Inquietudes na poesia de Drummond, de Antonio
Candido, em CANDIDO, 1995.
27
ANDRADE, 1980 (em entrevista a Cremilda Medina, para O Estado de São Paulo).
26
história descontínua de uma poética, de um pensamento artístico polifônico, ou
seja, um pensamento enfeixado nos muitos desdobramentos estéticos que um
poeta como Carlos Drummond de Andrade é capaz.
27
CAPÍTULO 01
E A CADA INSTANTE SE CRIAM NOVAS CATEGORIAS DO ETERNO
BREVÍSSIMO PANORAMA DA PRODUÇÃO POÉTICA DRUMMONDIANA
Tudo é possível, só eu impossível.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
I
Não se pode dizer que seja uma tarefa ingrata, mas panoramizar a obra de Carlos
Drummond de Andrade e a sua recepção crítica pode tornar-se, se quisermos, um
sisifismo. Daí que a opção pelo gesto panorâmico é também a opção por um
glissando. E um glissando, como se sabe, tem sempre um quê de brincadeira. Na
música, é o efeito de passar os dedos rapidamente por teclas ou cordas de
instrumentos; no jazz, especificamente, é a ágil passagem pelas notas da escala
nos instrumentos de sopro. Etimologicamente remete a escorregar, resvalar,
deslizar que é a idéia aqui. Escorregaremos pela produção poética
drummondiana e por sua recepção crítica visando a pinçar traços destacados,
que à frente permitam o desenvolvimento da idéia de que a produção poética
drummondiana constitui-se no que se tem chamado projeto poético-pensante.
Embora corrente, é insuficientemente clara a noção do que seja fazer um
panorama de qualquer coisa; não critérios a priori. No entanto, são úteis, por
exemplo, as antologias, que podem ser consideradas uma dentre outras muitas
espécies possíveis de panoramas. Lembremos que Drummond, ao completar 60
anos, em 1962, lançou sua Antologia poética, na qual distribuiu os poemas em
nove seções, designadas segundo o ponto de partida ou a matéria de poesia
predominante em cada uma delas
28
. Temos assim uma chave: segundo o pr óprio
poeta, os nove núcleos temáticos de sua poesia são: 1. o indivíduo: um eu todo
retorcido; 2. a terra natal: uma província: esta; 3. a família: a família que me dei;
4. amigos: cantar de amigos; 5. o choque social: na praça de convites; 6. o
conhecimento amoroso: amar-amaro; 7. a própria poesia: poesia contemplada;
28
ACHCAR, 2000, p. 13 e 14.
28
8. exercícios lúdicos: uma, duas argolinhas; 9. uma visão, ou tentativa de, da
existência: tentativa de exploração e de interpretação do estar-no-mundo’”
29
.
No entanto, desde Platão e contrariando o código civil que nos faz a todos
inocentes, a princípio o poeta, mesmo morto, é sempre o maior suspeito. Por
isso, para o panorama que se quer delinear a seguir, foram selecionados artigos,
ensaios ou resenhas textos, portanto, relativamente curtos que tematizam,
cada um à sua maneira, a produção poética drummondiana panoramicamente. A
exceção é o texto de Mário de Andrade, que se debruça também sobre a poesia
de Manuel Bandeira (em Libertinagem), Augusto Frederico Schmidt (em Pássaro
cego) e Murilo Mendes (em Poemas). Não resolvi trabalhar com livros,
especificamente, porque permitem maior prolixidade, e a minha idéia era extrair
os traços que, em poucas páginas, se pode apontar a respeito da poesia de
Drummond. Todavia, ora e outra recorrerei a livros autorais que se dedicam
especificamente à poética de Carlos Drummond de Andrade; a exceção, de se
ver, é Lira & antilira: Mário, Drummond, Cabral, de Luiz Costa Lima, porque,
embora sejam ali abordadas também as poéticas de Mário de Andrade e de João
Cabral de Melo Neto, Lira & antilira é peça fundamental da bibliografia acerca do
itabirano.
Na seleção dos textos ficou estabelecido um critério duvidoso: considerar apenas
textos publicados, deixando de fora, perigosamente, dissertações e teses que
não tenham se tornado livro. E, embora o critério seja duvidoso, não é de todo
desarrazoado: esse limite foi estabelecido dada a dificuldade de acesso a muitos
desses trabalhos país afora, em virtude de sua imensa quantidade e,
lamentavelmente, em virtude do sistema precário de organização e de
disponibilização de material em muitas bibliotecas universitárias brasileiras.
A resenha e os comentários que se fazem de cada um dos textos compõem uma
pretensa revisão de fortuna crítica. Embora existam mil outros trabalhos que
deveriam constar aqui, por sua importância capital, não puderam ser deixados de
lado devido à sua qualidade e/ou à sua representatividade em nossa tradição
29
ACHCAR, 2000, p. 13 e 14.
29
crítica e ensaística os enumerados abaixo (até porque, independentemente do
grau de qualidade ou argúcia que apresentam, tais textos estabeleceram as
diretrizes críticas e analíticas do que, a posteriori, se disse sobre a poesia de
Drummond):
1. A poesia de 1930, de Mário de Andrade [em Aspectos da literatura
brasileira] 1930;
2. Sobre uma fase de Carlos Drummond de Andrade, de Antônio Houaiss
[em Seis poetas e um pr oblema] 1947;
3. Rebelião e convenção I e Rebelião e convenção II, de Sérgio Buarque
de Holanda [em O espírito e a letra II] 1951;
4. Drummond, mestre de coisas, de Haroldo de Campos [em
Metalinguagem & outr as metas] 1962;
5. Inquietudes na poesia de Drummond, de Antonio Candido [em Vários
escritos] 1965;
6. Tentativa de comentário para alguns temas de Carlos Drummond de
Andrade, de Paulo Rónai [em Pois é] 1969;
7. Silêncio e palavra em Carlos Drummond de Andrade, de João Alexandre
Barbosa [em A metáfora crítica] 1971;
8. Drummond e o mundo, de José Miguel Wisnik [em Poetas que pensaram
o mundo, organizado por Adauto Novaes] 2005.
Um dos critérios adotados na seleção dos textos acima foi que fizessem parte de
livros autorais. Não sei bem por quê. outros textos dos mesmos autores que
não entraram na seleção. Também não sei por quê. Fixei-me neste critério os
livros autorais e achei que seria importante respei-lo. No entanto, há, mais
uma vez, como é previsível, uma exceção à regra: Drummond e o mundo, de
José Miguel Wisnik. O motivo, eu sei explicar. O texto de Wisnik, recentíssimo,
me impressionou deveras, ao iniciar este estudo, e achei por bem incluí-lo na
seleção. Um segundo critério utilizado na seleção, menos arbitrário, foi
acompanhar ao longo das décadas as transformações na recepção crítica da
poesia de Carlos Drummond de Andrade. Por isso foram incluídos textos
produzidos na década de 30, nas décadas seguintes, até chegar aos 2000. Há,
contudo, como se deve notar, uma lacuna entre os anos 80 e a atualidade (justa
30
exceção ao texto de Wisnik), que será parcialmente suprimida no segundo e no
terceiro capítulos deste trabalho, bem como nas sugestões bibliográficas das
notas de rodapé.
Penso que foi importante, embora limitador, estabelecer um mero restrito de
analistas a compor o grupo dos textos a serem resenhados detidamente. O
número é aleatório. Não há nenhuma pretensão de esgotamento. O caso é que se
eu não tivesse me submetido a essa restrição, certamente a revisão bibliográfica
ficaria mais ampla e talvez menos injusta, mais sairia do rumo que lhe foi traçado.
Além disso, em momento nenhum este trabalho promete debruçar-se amplamente
sobre a recepção da poesia drummondiana não é este seu mote. Quer apenas
e tão-somente dar uma idéia de como se construiu a imagem do Drummond
poeta que temos hoje, situar antes o próprio analista que o possível leitor, a fim de
pavimentar o caminho que de conduzir à sistematização do dito projeto
poético-pensante.
Além dos textos elencados, ainda nove outros trabalhos os
mencionados livros autorais que se dedicam especificamente à poética de Carlos
Drummond de Andrade capitais para a formatação da pesquisa a que me
propus:
9. Drummond: a estilística da repetição, de Gilberto Mendonça Teles;
10. Drummond o gauche no tempo, de Affonso Romano de SantAnna;
11. Verso universo em Drummond, de José Guilherme Merquior;
12. Carlos Drummond de Andrade , de Silviano Santiago;
13. Lira & antilira: Mário, Drummond, Cabral, de Luiz Costa Lima;
14. Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade, de John Gledson;
15. Drummond: da rosa do povo à rosa das trevas, de Vagner Camilo;
16. Coração partido uma análise da poesia reflexiva de Drummond, de Davi
Arrigucci Jr.;
17. Passos de Drummond, de Alcides Villaça.
Muitas das idéias neles contidas foram incorporadas às minhas idéias, é claro.
Quando achei necessário citar ou parafrasear algum trecho vem explícita esta
31
indicação. Todavia, em alguns momentos, um alguém familiarizado com a
bibliografia sobre Drummond irá perceber um canto paralelo, neste meu texto, dos
textos acima arrolados por isso o destaque que aqui recebem.
Em relação a este segundo grupo de trabalhos posso dizer quase as mesmas
coisas que disse em relação ao primeiro: que selecionei apenas livros autorais;
que houve uma tentativa de acompanhar ao longo dos anos as transformações na
recepção crítica da poesia de Carlos Drummond de Andrade; e que houve, ainda,
o propósito de tão-somente dar uma idéia do que se tem dito sobre a poesia de
Drummond, situando, mais uma vez, antes o próprio analista que o possível leitor.
Devo, no entanto, fazer agora um esclarecimento: os autores dos quais selecionei
textos para integrar o grupo dos textos curtos não constam no grupo dos livros
autorais e vice-versa; preferi privilegiar a pluralidade de pontos de vista.
Uma última coisa que penso que deveria dizer sobre o assunto: este trabalho tem
como ponto de partida um livro de um autor canônico seja lá o que for que se
entenda por cânone. Assim, mantendo uma coerência meio mal explicada,
procurei selecionar tanto para o primeiro grupo quanto para o segundo grupo
nomes e trabalhos canônicos, para o bem ou para o mal, de nossa crítica, de
nossa historiografia e de nossa ensaística.
E como definir o que é ou não canônico em nossa crítica, nossa historiografia ou
nossa ensaística? Mais que me guiar pela intuição e pela evidência, recorri ao
texto de Heitor Ferraz Mello, Biblioteca drummondiana, incluído no dossiê da
Revista Cult, de outubro de 2002 (edição comemorativa dos 100 anos de
nascimento de Carlos Drummond de Andrade). O propósito do texto de Mello foi
elencar uma bibliografia essencial para os que quiserem compreender melhor a
obra de Drummond
30
. Dentre os principais livros, ensaios ou artigos citados por
ele, o ensaio “‘A máquina do mundo entre o símbolo e a alegoria, de Alfredo
Bosi, e a fotobiografia organizada por Salvador Monteiro e Leonel Kaz,
Drummond frente e verso, embora imprescindíveis, não foram incluídos na
seleção que fiz. A razão é simples: o ensaio de Bosi é específico sobre um poema
30
MELLO, 2002, p. 58.
32
e a idéia foi selecionar textos mais panorâmicos; a fotobiografia exigiria um
tratamento visual do qual este trabalho se exime
31
.
Também Letícia Malard em No vasto mundo de Drummond, publicação de 2005
de cunho didático-pedagógico que visa à divulgação da obra do mineiro, elenca
alguns dos principais trabalhos a respeito da poética drummondiana. A autora não
distingue trabalhos autorais de trabalhos coletivos, por isso estão juntos logo
abaixo. São eles, afora os já explicitamente citados acima:
18. Carlos Drummond de Andrade , de Assis Brasil;
19. A dramaticidade na poesia de CDA, de Donaldo Schüler ;
20. Drummond rima Itabira mundo, de Emanuel de Moraes;
21. El erotismo em la poesía de Carlos Drummond de Andrade, de Emanuel
Graña Echeverría;
22. Leituras de Drummond, organizado por Flávio Loureiro Chaves;
23. A rima na poesia de Carlos Drummond de Andr ade, de Hélcio Martins;
24. Drummond, uma poética do risco, de Iumna Maria Simon;
25. Drummond: poesia e experiência, organizado por Ivete Lara Camargos
Walty e Maria Zilda Ferreira Cury;
26. Terra e família na poesia de Carlos Drummond de Andrade, de Joaquim
Francisco Coêlho;
27. O telurismo na literatura brasileira e na obra de Carlos Drummond de
Andrade, de José Eduardo da Fonseca;
28. Drummond: um olhar amor oso, de Luzia de Maria;
29. Horizontes modernistas: o jovem Drummond e seu grupo em papel jornal,
de Maria Zilda Ferreira Cury;
30. O cinéfilo anarquista: Carlos Drummond de Andrade e o cinema, de Márcio
da Rocha Galdino;
31. O (de) Itabira poema, de Marcus Acciolly;
32. Esfinge clara, de Othon Moacyr Garcia;
33. A rosa do povo e Claro eni gma, de Francisco Achcar;
31
Se houver interesse por uma análise de imagens constantes da fotobiografia organizada por
Salvador Monteiro e Leonel Kaz, recomendo a consulta a A angústia da ação: poesia e política em
Drummond, de Roberto Said, em SAID, 2005.
33
34. Poemas eróticos de Carlos Drummond de Andrade, de Rita de Cássia
Barbosa.
Dentre os títulos arregimentados acima, não tomei contato algum com os de Assis
Brasil, Donaldo Schüler, Emanuel Graña Echeverría, José Eduardo da Fonseca,
Márcio da Rocha Galdino e Marcus Acciolly. Do grupo dos intocados, lamento não
haver encontrado para aquisição ou empréstimo os três primeiros, especialmente
o de Echeverría, ex-genro de Drummond, que interessaria diretamente à
confecção do terceiro capítulo; quanto aos demais, penso que abordam assuntos
muito específicos e, embora tivesse sido interessante conhecê-los, são
dispensáveis ao que aqui se fez. Em relação aos outros trabalhos elencados por
Malard, foram integralmente ou parcialmente lidos e, mesmo que em notas de
rodapé, dão as caras ao longo deste trabalho.
Dadas tantas explicações, mais uma, apenas para reforço: há, claro, outros
artigos, ensaios, resenhas e livros indispensáveis. No mar de referências
possíveis, fica registrada a minha dívida (e minha dúvida) com pelo menos
algumas dezenas de medianos e bons e ótimos e excelentes textos que não
foram incluídos na seleção da fortuna crítica aqui apresentada, a cujas idéias,
hora e outra, recorrerei no desenvolvimento deste trabalho.
Ainda na mesma clave, devo dizer de meu débito com duas obras polêmicas: O
dossiê Drummond, de Geneton Moraes Neto e Os sapatos de Orfeu, de José
Maria Cançado. Mencionarei ambas explícita ou implicitamente, sempre que
inferências biográficas se fizerem necessárias. Isso porque, embora discordando
em parte de Letícia Malard, não se pode desconsiderar o que ela afirma que
não faz solo sobre o assunto na crítica brasileira:
[A poética de Carlos Drummond de Andrade] é marcadamente
autobiográfica, memorialística, constituindo-se quase uma grande
narrativa em verso de experiências pessoais, experiências essas que
percorrem o longo caminho de 85 anos bem vividos. Apesar de ser hoje
ponto pacífico nos estudos literários que Memória, História e Ficção não
se confundem, antes se completam, a dicção poética dessas
experiências é uma transparência do mundo interior do poeta,
retroprojetando na tela fatos de sua história individual.
32
32
MALARD, 2005, p. 11.
34
Por isso justifico, sem grandes novidades e provisoriamente, o meu método de
revisão crítica cronológico, ligeiro, panorâmico e, em certos momentos,
biografesco e, mais, a leitura de O amor natural sob a sombra, ou a luz, da
produção poética precedente e da respectiva recepção crítica (na qual está
inscrita a história da literatura brasileira e em especial a do século XX): tudo em
Drummond parece querer construir uma grande narrativa, cujo personagem
principal seria, salvo juízo mais sensato, o tempo, a passagem a fricção, a
fixação, a ficção, a fetichização do tempo. Não me engano: o método, seu
exercício e as conclusões que permite são também datados.
II
Ler hoje, cerca de quinze anos depois de sua primeira publicação, o todo dos 40
poemas enfeixados em O amor natural exige que não sejamos ingênuos o
suficiente para não perceber que
A História não concebe séries isoladas: uma série, enquanto tal, é
estática, a alternância dos elementos nela pode ser somente uma
articulação sistemática ou simplesmente uma disposição mecânica das
séries, mas de modo algum um processo histórico; a determinação de
uma interação e de um mútuo condicionamento de dada série [O amor
natural, por exemplo] com outras [os demais livros e as séries outras
com que interagem] cria a abordagem histórica. É preciso deixar de ser
apenas si próprio para entrar na História.
33
e que
(...) a tradição da arte pressupõe uma relação dialógica do presente com
o passado, relação esta em decorrência da qual a obra do passado
somente nos pode responder e dizer alguma coisa se aquele que hoje
a contempla houver colocado a pergunta que a traz de volta de seu
isolamento.
34
Assim, tendo em mente os alertas dados por Bakhtin e por Jauss, parece
impossível pensar o livro póstumo ele-mesmo. E a pergunta que, suspeito, irá
trazer a produção poética drummondiana de seu suposto isolamento no passado
é: como os poemas de O amor natural articulam-se à produção drummondiana
precedente? O que dizem quando pensados interativamente e sob o mútuo
33
BAKHTIN, 1988, p. 26 e 27.
34
JAUSS, 1994, p. 40.
35
condicionamento dos poemas que os antecedem e os sucedem? De outro modo:
como pensar a publicação de tais poemas diante do legado literário, crítico,
historiográfico engendrado a partir da produção de e sobre Carlos Drummond de
Andrade?
As perguntas são pertinentes. A mim, pelo menos, não soa suficientemente
satisfatória a rotulação de Carlos Drummond de Andrade como um poeta-gauche;
e nem, conseqüentemente, a l eitura que se faz de sua obr a à luz da gaucherie, do
gauchisme. Muito ao contrário. O gauche seria uma parcela tão diminuta quanto
outras, dentre as muitas de que se forma o conjunto da produção em pauta.
Embora indo na contracorrente da crítica mais propalada, me parece que se
alguém que exorcizou o gauche de/em seu trabalho literário para ficar apenas
na obra e desconsiderar o sujeito-homem este alguém é Drummond.
Considerando gauche, do francês, esquerdo; desajeitado; constrangido;
malfeito; gaucherie, falta de jeito, inabilidade; e gauchisme, esquerdismo, -
se logo impossível sustentar a tese de que a produção poética drummondiana
está inapelavelmente atrelada a uma noção que aparece de modo, e acolá,
bastante localizado. Apesar de ter consciência da significação específica que o
adjetivo gauche ganhou quando em referência a Carlos Drummond de Andrade,
tendo a crer que, na falta de definição apropriada, ou de exercício crítico mais
aprofundado, a expressão passou a ser usada sem critério ou com pouco cuidado
a fim de encobrir uma lacuna analítica. Esta indelicadeza me preocupa, e assusta.
Comentando o Poema da purificação, último de Alguma poesia, e, a partir dele,
a (im)propriedade da rotulação gauche, Malard afirma que
(...) o anjo bom mata o anjo mau depois de muitos combates, e um outro
anjo aparece para cuidar dos ferimentos do primeiro, precedido de uma
luz que veio para iluminar a terra. A dualidade bem versus mal se
desfaz com a vitória do bem. O mensageiro das sombras é substituído
pelo mensageiro da luz. Essa idéia voltará no poema que fecha o livro
Boitempo & A falta que ama, onde os anjos da claridade e os da
escuridão se confraternizam ecumenicamente. Manifestam o desejo do
poeta de superar suas contradições, talvez de apagar a inscrição gauche
de seu corpo, exterminando-se o mensageiro responsável por ela.
36
Entendo ser essa a tônica do fazer poético drummondiano: a tentativa de
desconstruir o gauchismo, sua superação, sua sublimação.
35
Talvez, a pluralidade semântica da adjetivação gauche deva remeter,
iconicamente, ao polimorfismo das manifestões estéticas do sentimento de
culpa que, já dissemos, parece superado em O amor natural e mesmo antes.
Não é justo, porém, que o sentido original da palavra francesa a tal ponto seja
distendido, sob risco de esgarçamento.
Mas vamos por partes. O Drummond-sênior, como gosto de pensar a produção
pós-Lição de coisas, vencera a maior parte do caminho rumo à solução do
conflito entre o eu e o mundo, que em O amor natural e em Farewell supomos
então resolvido. Recuando no tempo somos obrigados a perceber que cada
grande fase poética de Carlos Drummond de Andrade foi anunciada por um livro
ou um grupo de poemas que deu a ver o desejo de superação, de solução do
suposto embate de forças entre o eu e o mundo; as artimanhas utilizadas para
reconhecer, para diagnosticar e para lidar com o conflito foram muitas, daí a
multifacetação, mas em todas elas a evidência de que alimentar, maximizar o
conflito nunca foi a trajetória pretendida. Não sempre, como muita gente
supõe, e nem em todas as fases ou faces falta de jeito, constrangimento,
esquerdismo, incompetência, inabilidade. Ao contrário. Se , é em resposta à
demanda de um momento lírico (que, entre outras coisas, quer dizer também um
momento histórico). E, mesmo nos poemas em que este gauchisme-resposta se
faz pleno, o que é um sujeito que se mostra angustiado, inseguro, pois, tendo
por projeto dialogar com a tradição lírica ocidental (vejam-se, a respeito, as
inúmeras relações intertextuais que os poemas drummondianos estabelecem com
o nosso cânone literário, lato sensu)
36
, constrói uma trajetória de superação de si
mesmo, de inserção no mundo estético e, assim, político um sujeito, portanto,
social, sociável, suscetível às agruras da criação de si mesmo (enquanto sujeito
lírico), e o um sujeito apartado, amaldiçoado, condenado, sem outra opção
que não seja ser gauche na vida.
35
MALARD, 2005, p. 31 e 32.
36
A fim de ampliar este aspecto, recomendo a leitura integral de Influências e impasses:
Drummond e alguns contemporâneos, de John Gledson, em GLEDSON, 2003.
37
Como se verá à frente, na busca por superar a si mesmo (incluídas as próprias
habilidades, limitações e potencialidades intelectuais e artísticas) e por inserir-se
no mundo estético e político, Drummond caminhou rumo a uma espécie de
ascensão, em que o objetivo não foi meramente o domínio ou o cultivo de
formas poéticas mais elaboradas. A suposta ascensão estaria em criar e manter
uma ampla possibilidade de escolhas, a partir de um leque de estilos e dicções
exaustivamente experimentados; pensando assim, a dita ascensão não tem que
ver com caminhar em direção a um maior formalismo. Tem que ver com tornar
possível a si justapor e entrecruzar passados e presentes, tem que ver com
engendrar conexões e multiplicidades, sem submeter-se a relações diretas de
causalidade. Não nos espantamos, sob a assinatura de Drummond, com um
galhofeiro poema-piada, nem com um despretensioso poema de ocasião, nem
ainda com o mais duro soneto em decassílabos heróicos. Para sermos sinceros,
não nos espantamos sob a assinatura de Drummond com um poema sublime,
genial, da potência de A máquina do mundo, por exemplo, ou com um poema
ruinzinho de doer. Nem com alguma coisa que não seja nada disso e que seja
isso tudo ao mesmo tempo. A exposição mais madura deste virtuosismo
multiforme se deu, e espero mostrar isto com este trabalho, em O amor natural. E
reitero: esta vontade de manter abertas as portas do diálogo e da interação o
poderia provir de um sujeito lírico cujo projeto fosse ser gauche na vida
mesmo que este sujeito viesse pensando, ao longo de anos, uma retirada
estratégica.
Pensemos de outro modo, agora. Em alguma medida, em algum momento, todos
somos gauches na vida. Por isso é sintomático que a expressão utilizada para
definir o nosso senso de inadequação às demandas do mundo seja, para nós,
uma expressão estrangeira ela também gauche , mas que tenha uso, na
língua original, bastante largo, suficiente ao menos para abarcar as nossas
diferentes formas de inconveniência, impropriedade, incompatibilidade. E
possivelmente está uma explicação para o grande sucesso que a primeira estrofe
do primeiro poema do primeiro livro de Drummond fez donde a vocação do
itabirano para maior poeta público brasileiro, no dizer de Otto Maria Carpeaux.
Na primeira tentativa, Drummond conseguiu condensar o sentimento, a certeza
para a qual até então faltava nome; e deu-lhe, também, um nome gauche,
38
ampliando as esferas de identificação, reconhecimento: a maior evidência de que
uma sensibilidade que capta de modo tão preciso o sentimento, a certeza coletiva
não é uma sensibilidade desarticulada do mundo tangível, não é uma
sensibilidade desabonada, banida. O avesso do avesso, o golpe de mestre, a
grande ironia: ao reconhecer-se e nomear-se gauche, o poeta identifica-se (e faz
a palavra estranha a nosso vocabulário identificar-se) a partir de uma interação
como o mundo, com a coletividade e torna viável a identificação de si mesmo (e
da palavra) com o outro, também gauche (o que, por conseguinte, lhe redimiria de
fazer da gaucherie, do gauchisme uma bandeira). Talvez, num primeiro momento
ser gauche na vida fosse outra coisa, mas o escritor, felizmente, nunca sabe o
que terminou num livro e por isso recomeça-lo-á ou destrui-lo-á num outro
37
.
Quantos modos de ser gauche para que nos encontrássemos, participássemos
da coletividade, sentíssemos e pensássemos o mundo nos deu Drummond?
Armando Freitas Filho, também ele poeta da melhor estirpe, ensaia uma resposta,
em Releitura:
Quem relê Drummond é sempre um outro.
Mesmos olhos que ganham, a cada vez
lentes melhores, ou é o olhar que vê por novo ângulo.
Poesia de tantos anos, não se dissipa muda de posição
alcança inesperado matiz na ponta do verso livre:
drummondicionário em perpétua elaboração, se reescreve
até quando de cor ecoa, livro aberto
que inaugura, iluminando de forma diferente
o sentido da página da vida em trânsito
os verbetes que vão da manhã porosa à noite emparedada.
Drummond difere, desfere, divaga, diverso
linha a linha, movendo seu traçado, de acordo
com a transformação que se imprime em nós, impressentida.
38
Mas não precisaríamos ter ido tão longe. O poema Explicação que, na opinião
de Mário de Andrade, deveria ter sido o poema de abertura de Alguma poesia,
uma vez que condensaria, melhor que Poema de sete faces, os traços principais
da poética drummondiana
39
supera uma noção acachapante de poeta-
gauche:
Meu verso é minha consolação.
37
BLANCHOT, 1997, p. 11.
38
FREITAS FILHO, 2006, p. 30.
39
Ver, a respeito, as cartas de Mário de Andrade destinadas a Carlos Drummond de Andrade,
antecedentes à publicação de Alguma poesia em ANDRADE, 2002.
39
Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.
Para beber, copo de cristal, canequinha de folha-de-flandres,
folha de taioba, pouco importa: tudo serve.
Para louvar a Deus como para aliviar o peito,
queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalhos
é que faço meu verso. E meu verso me agrada.
Meu verso me agrada sempre...
Ele às vezes tem o ar sem-vergonha de quem vai dar uma cambalhota,
mas não é para o público, é para mim mesmo esta cambalhota.
Eu bem me entendo.
Não sou alegre, sou até muito triste.
A culpa é da sombra das bananeiras de meu país, esta sombra mole,
preguiçosa.
Há dias em que ando na rua de olhos baixos
para que ninguém desconfie, ninguém perceba
que passei a noite inteira chorando.
Estou no cinema vendo fita de Hoot Gibson,
de repente ouço a voz de uma viola...
saio desanimado.
Ah, ser filho de fazendeiro!
À beira do São Francisco, do Paraíba ou de qualquer córrego
vagabundo,
é sempre a mesma sen-si-bi-li-da-de.
E a gente viajando na pátria sente saudades da pátria.
Aquela casa de nove andares comerciais
é muito interessante.
A casa colonial da fazenda também era...
No elevador penso na roça,
na roça penso no elevador.
Quem me fez assim foi minha gente e minha terra
e eu gosto bem de ter nascido com essa tara.
Para mim, de todas as burrices a maior é suspirar pela Europa.
A Europa é uma cidade muito velha onde só fazem caso de dinheiro
e tem umas atrizes de pernas adjetivas que passam a perna na gente.
O francês, o italiano, o judeu falam uma língua de farrapos.
Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só,
o seu jornal, mete a língua no governo,
queixa-se da vida (a vida está tão cara)
e no fimcerto.
Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.
Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?
40
A princípio, chama atenção o título: Explicação. O substantivo de que se faz não
se repete em nenhuma das estrofes a compor o poema; basta que apareça uma
única vez, para que se entenda de uma vez por todas o assunto a ser tratado. É
como se o título-substantivo resumisse, antecipadamente, o que viria a seguir. A
explicação se dá, na primeira estrofe, como uma tentativa de resposta à
40
ANDRADE, 2002, p. 36 e 37 (em Alguma poesia).
40
pergunta intimidatória feita ao sujeito lírico (parece que pelo senhor
possivelmente, o leitor a quem se dirige, diretamente, a voz que fala, no último
verso): O que é seu verso, e para que serve?.
de saída, na resposta, uma definição: Meu verso é minha consolação. / Meu
verso é minha cachaça.; a seguir, uma justificativa: Todo mundo tem sua
cachaça.; depois, a dica de como se pode beber da tal cachaça: Para
beber, copo de cristal, canequinha de folha-de-flandres, / folha de taioba, pouco
importa: tudo serve.. Está evidente, assim que a explicação tem por
finalidade definir, justificar e socializar a poesia que se oferta , a vontade de
identificação, de participação, de integração, de coletividade, e mesmo de
simpatia (tudo serve): traços anti-gauche, por excelência. E, deste modo, das
entranhas do que poderia figurar na primeira estrofe como um elemento gauche
(pois bêbados estão no grupo dos malditos nas sociedades racionalizadas), vem,
mais uma vez (como comentei acerca da própria palavra gauche em Poema
de sete faces), a possibilidade de mútuo reconhecimento, de solidarização: Meu
verso é minha cachaça [cachaça = maldição]. / [Mas] Todo mundo tem sua
cachaça..
Se for para ficar apenas na primeira estrofe pois talvez se possa tomá-la como
paradigmática em relação a todo o poema , é obrigatório atentar, ainda, para
dois dos sentidos de consolação, ambos relacionados à ludologia: prêmio que o
parceiro de cartas tem de pagar quando pede para jogar e perde; e prêmio dado
ao jogador que mais se aproximou do vencedor, para compensar a frustração
pelo resultado do jogo
41
. Considerando o primeiro sentido de consolação (para
a sentença Meu verso é minha consolação), podemos criar duas hipóteses: o
poeta paga aos par ceiros de carta (aos outros homens) com versos (Meu verso é
minha consolação = é o que pago), pois pediu para jogar, fez-se homem público,
ciente das caduquices do mundo, e perdeu a partida; ou, noutra leitura, o poeta
recebe dos parceiros matéria para os versos que redige (Meu verso é minha
consolação = é o que recebo) como prêmio ou recompensa (Meu verso me
agrada sempre) por ter permitido aos outros homens que jogassem e estes
41
HOUAISS, 2002.
41
haverem perdido a partida. Considerando o segundo sentido de consolação,
pelo menos outra hipótese de leitura: o verso é a consolação pela derrota, é
um paliativo para a dor ou a frustração, do mesmo modo que muitas vezes
funciona a cachaça (Meu verso é minha consolação. / Meu verso é minha
cachaça., consolação = cachaça): o verso (tal como a consolação, tal como a
cachaça) funcionaria enquanto possibilidade de esquecer, de fugir da dor e da
frustração, de escapar, de evadir-se, de multiplicar identidades. Esta última
possibilidade parece ser a que mais se aproxima da interpretação comum dada à
expressão gauche, quando em referência à obra de Drummond.
Encarando Explicação como representativo da vertente metalingüística, é
forçoso reconhecer que, ao lado de Poema de sete faces, deu o tom do livro de
1930, e que adubou a recepção crítica que tiveram os primeiros livros de
Drummond. Todos os traços apontados (e maximizados) pela crítica fundadora
especialmente a de Mário de Andrade, que serviu, como veremos, de norte para
as leituras seguintes estão em consonância maior com Explicação que com
Poema de sete faces, embora a maioria dos textos revele que esta opção não é
consciente.
consenso em dizer que a vertente metalingüística é constituinte da poética
drummondiana. Poemas que tematizassem o fazer poético abundaram, desde
Alguma poesia a começar pelo arquifamoso Poema de sete faces, de onde se
retirou, a princípio, a noção de gauche visando a estendê-la a outros poemas,
outros livros. E um avultamento tão evidente do uso da linguagem poética para
descrever ou problematizar a própria linguagem poética (embora sob a acusação
de Faustino e de alguns outros de que Drummond seria um poeta menor por não
ser, também, um poeta-crítico) sinaliza uma preocupação ególatra, sim, mas
também e talvez principalmente uma preocupação com o papel social que, na
condição de antena da raça, o poeta deveria exercer.
Este suposto confronto, diagnosticado em 1930 por Mário de Andrade, é que seria
a grande força, a mola-propulsora da poesia de Carlos Drummond de Andrade. A
tal ponto a crítica levou a sério esta tese que quando Dr ummond deu mostras de
haver superado as dicotomias mais evidentes de sua poética viveu uma espécie
42
de inferno astral crítico que coincidiu com a consolidação da poesia concr eta.
Disse-se que já havia vivido seu apogeu como poeta, que já não era mais o
mesmo; claro que não era. Parece-me que o Drummond da fusão [ou
convivência] de contrários, o Drummond à Mário de Andrade (e seu projeto de
reinvenção do Brasil à Macunaíma) é apenas, e tão-somente, um Drummond
nem o primeiro, nem o último.
E, por falar em Mário de Andrade, é com ele que começamos nosso tour pela
fortuna crítica da poesia drummondiana
42
.
III
Em A poesia de 1930, Mário afirmou, de largada, categórico:
O ano de 1930 fica certamente assinalado na poesia brasileira pelo
aparecimento de quatro livros: Alguma poesia, de Carlos Drummond de
Andrade; Libertinagem, de Manuel Bandeira; Pássaro cego, de Augusto
Frederico Schmidt e Poemas, de Murilo Mendes. Todos são poetas
feitos, e embora dois deles só apareçam agora com seus primeiros
volumes, desde muito que podiam ser poetas de livro. Mas quiseram
escapar dos desastres quase sempre fatais da juventude. Se fizeram e
fazem versos não é mais porque sejam moços, mas porque o
poetas.
43
É esse o vaticínio que Mário fez para o amigo Carlos: poeta. E ser poeta, para
Mário, era resistir à varredura do tempo. Por isso, antevendo que, fosse qual
fosse o vendaval, a poesia de Drummond permaneceria
44
, Mário o contrapõe aos
outros três dois deles poetas então já conhecidos para dizer, através de
exemplos, que era o mais rico em ritmo destes quatro.
No entanto, para nós aqui, mais que ressaltar as sutilezas intuitivas e analíticas
de Mário de Andrade, interessa sistematizar os traços que arregimentou para
42
Recomendo a remissão ao texto Fortuna e infortúnio crítico, de Vagner Camilo, em CAMILO,
2001, sobre a recepção crítica a Claro enigma, pelo muito que pode acrescentar à brevíssima
seleção de informações e reflexões aqui delineada.
43
ANDRADE, 1974, p. 27.
44
Embora o próprio Drummond duvidasse, modesto e matreiro, já velho e mais que consagrado,
de sua permanência post mortem: Eu serei esquecido quinze dias depois da minha morte.
Ninguém vai se lembrar de mim, não. O Rio é uma cidade cruel, uma cidade de badalação. Morto
não badala, não entrevista, não canta, não dança na televisão, não diz palavrão. Um sujeito
morto não interessa. Quinze dias depois de eu estar morto, ninguém se lembrará de mim,
segundo Otto Lara Resende, em MORAES NETO, 1994, p. 63.
43
delinear um perfil do livro de estréia de Carlos Drummond de Andrade, no qual,
uns tantos crêem, está anunciado desde o Poema de sete faces o projeto
poético drummondiano
45
.
São, segundo Mário, traços do primeiro livro de poemas de Drummond: um
individualismo exacerbado; um indivíduo [eu lírico, dir-se-ia?] excessivamente
tímido; uma rítmica inaferrável, disfarçadora; uma riqueza de ritmos muito
grande, mas, psicologicamente, quase desnorteante; um compromisso claro
entre o verso livre e a metrificação. E o crítico-amigo vai além, lendo os traços
formais que detecta tendo em mente o sujeito-poeta com quem compartilhara
certa vivência e com quem trocara tantas correspondências: o emprego da
metrificação provém, nele, de uma vontade íntima de se aniquilar, de se
esconder, de reagir por meio de movimentos ostensivamente cancioneiros e
aparentemente alegres e cômicos (...) contra a sua inenarrável incapacidade de
viver; e conclui, com o mesmo misto de gentileza elogiosa e puxão-de-orelha
dissimulado com que recheou a maior parte de suas lições de amigo destinadas,
em carta, ao jovem poeta mineiro:
Para ele se acomodar, carecia que não tivesse nem a sensibilidade nem
a inteligência que possui. (...) Mas Carlos Drummond de Andrade,
timissimo, é, ao mesmo tempo, inteligentíssimo e sensibilíssimo.
Coisas que se contrariam com ferocidade. E desse combate toda a
poesia dele é feita. (...) Poesia feita de explosões sucessivas. (...) A
sensibilidade, o golpe de inteligência, as quedas de timidez se
interseccionam aos pinchos.
De Mário de Andrade, leitor de Drummond na década de 30, nos fica, então: a
poesia drummondiana se faz de explosões sucessivas, pois aspectos fortes se
contrariam com ferocidade. Noutras palavras, sua poesia fomenta-se a partir de
dicotomias (não necessariamente estéticas); distingue-se da de outros
contemporâneos pela riqueza rítmica, pela preocupação formal, que serve não
apenas à arte, mas, antes, à sua inenarrável incapacidade de viver.
IV
45
Ver, a este respeito, por exemplo, A herança modernista nas mãos do primeiro Drummond, de
Iná Camargo Costa, em COSTA, 1995, p. 307 a 318; e Metamorfoses de um sujeito o Farewell
drummondiano, de Alfredo Carvalho Sampaio, em SAMPAIO, 2002, p. 14 a 30 e 59 a 63.
44
Todavia não é apenas o amigo Mário quem aponta na poética do amigo Carlos o
evidente entrelaçamento do estilo ao sujeito ou vice-versa. Diz também Antônio
Houaiss: No poeta (...), o indivíduo, por instantes, opõe-se à sociedade
consciente ou inconscientemente e, com os mesmos processos da língua social
também consciente ou inconscientemente cria os seus valores individuais, sua
língua-indivíduo: estilo
46
. Assim, evidencia-se uma quase unanimidade entre as
abordagens críticas até pelo menos a década de 60: a necessidade de ler a
poesia de Carlos Drummond de Andrade à luz de sua pessoa, de sua função
social [e, portanto, de sua figura pública] de poeta
47
. E digo mais: a
necessidade de comentar a poesia drummondiana sempre generosamente, como
se um ponto de vista com maior acirramento crítico pudesse ofender ao sujeito
gentil a quem todos ou quase temiam magoar
48
.
Embora o próprio poeta tivesse consciência da irregularidade do valor estético de
sua poesia, a crítica sempre ou quase lhe foi generosa, pelo menos até à
década de 60, quando o novo paradigma instaurado pela poesia concreta e por
seus poetas-teóricos exigiu uma drástica reformulação dos critérios de análise e
julgamento
49
. Exemplo disso, digo, da generosidade da crítica, é o texto Sobre
uma fase de Carlos Drummond de Andrade. Nele, Antônio Houaiss afirma:
(...) o poeta Carlos Drummond de Andrade se coloca na posição mental
generalizada a partir dos simbolistas: a proscrição, não apenas como
deliberação, mas como necessidade axiológica, dos clichês, do
vocabulário convencionalmente próprio. Mas, além dessa atitude,
nele aquela outra, que principia com os modernistas, generalizadamente:
46
HOUAISS, 1960, p. 49.
47
Silviano Santiago, por exemplo, assinala que Drummond quis dizer ali [em sua última
entrevista, a Geneton Moraes Neto, poucos dias antes de morrer] que duas coisas: uma é o
poeta como produtor de poesia (...). [Outra,] uma espécie de poeta com uma função social dentro
da sociedade sobretudo uma sociedade de espetáculo como a nossa, apud MORAES NETO,
1994, p. 132 e 133. Antes dele, Otto Maria Carpeaux dissera que Carlos Drummond de Andrade
era o primeiro grande poeta público do Brasil, apud HOLANDA, 1996, p. 501.
48
É óbvio que muitos textos críticos que atacam a poesia drummondiana um prato cheio
para a crítica do contra foi o celebérrimo No meio do caminho. Entretanto as críticas a favor
são muito mais numerosas, têm mais peso no meio intelectual, são mais conhecidas, o que causa
esta impressão de quase unanimidade.
49
Haroldo de Campos, por exemplo, comentando Lição de coisas (1962) elogiosamente, vê como
imperativa, todavia, uma ressalva: Não que em Lição de coisas tudo conte. Várias coisas o
contam e podem ser descartadas: certa poesia comemorativa e/ou memorial (inclusive uma
esporádica recaída no soneto); certos poemas padrescos que se salvam pelo fio fino do humor;
alguma insistência no discurso maior. Mas o que conta, além de numeroso, é, principalmente,
fundamental., CAMPOS, 1992, p. 55.
45
a inclusão de um vocabulário universal e personalíssimo, sem limitações
musicais, rítmicas, conceptuais, sociais, eufêmicas...
50
Como se vê, nos anos 40, era motivo de comemoração e mesmo louvor para a
intelligentsia da época que o poeta rompesse com os dogmas poéticos vigentes
pré-abalo modernista (e mesmo pós...), e que o fizesse de modo radical
51
. Na
seqüência, consciencioso, Houaiss destaca que a teoria da palavra do poeta
principia em forma negativa, demolidora, [já] no Alguma poesia
52
e que é essa
atitude demolidora que o leva às afirmações combativas [de humor e ironia,
negativismo às avessas] (...) de quem aceita a derrota no social, pois lhe
interessa a vitória no individual
53
. (Mais uma vez, note-se, emerge a necessidade
da muleta-crítica que é ler Drummond a partir de sua persona pública:
individualista, recatado, solitário, tímido, embora vez e outra irônico, galhofeiro,
cáustico.)
À frente, o crítico mais técnico, mas talvez por isso menos preciso assinala a
gestação de um novo poeta a partir de Sentimento do mundo (1940), poeta este
dado à luz em José
54
(1942): poeta da incomunicabilidade da poesia, do
hermetismo que a crítica tenta devassar, da renovação eterna da palavra. E,
para Houaiss, a possível teorização de Drummond acerca de sua poesia naquele
momento estaria dada em O lutador, tal como, em fase anterior, estivera dada
em Poema de sete faces.
Talvez, sem nenhum charme estético, esta possível teorização pudesse ser assim
condensada:
(...) a palavra cria o pensamento. Nesse ato difuso e impenetrado de
mentar atividade psíquica de todo instante , está o primeiro esforço de
gestação poética; não tem forma, que adquire com as palavras que lhe
50
HOUAISS, 1960, p. 50.
51
Sérgio Buarque de Holanda diz, em aparente louvação, que nos antípodas desse ideal [do
poético como sinônimo de bonito, de linguagem e temática estereotipadas tal como defenderam
Domingos Carvalho da Silva e amigos, mesmo pós-abalo modernista] é que vamos encontrar a
poesia do sr. Carlos Drummond de Andrade, HOLANDA, 1996, p. 505.
52
HOUAISS, 1960, p. 51.
53
HOUAISS, 1960, p. 52.
54
Também pensa assim José Guilherme Merquior que, em Verso universo em Drummond, divide
a lírica de Drummond em quatro fases distintas, inaugurando-se a segunda fase, na opinião do
crítico, com José; a terceira, com Claro enigma; a quarta, com Lição de coisas. Conferir
MERQUIOR, 1976.
46
dão conteúdo; mas na sua virgindade original não as aceita, porque não
se verifica justaposição; o poeta menta fidedigna, autêntica,
individualmente; mas existe, socialmente, a relação de justaposição
nunca de todo coincidente entre significado e significante lógico,
afetivo, prático; assim, o poeta tem os significantes potenciais no
vocabulário, no dicionário; a relação de significação potencial na ngua;
com isso, enche, preenche sua língua individual (...). Essa face neutra,
erma de melodia e de conceito, é, entretanto, uma abstração
55
.
Por fim, encerrando o artigo escrito ainda em 1947, Antônio Houaiss enfatiza a
existência de três traços distintivos da poética de Carlos Drummond de Andrade
que à frente seriam assinalados também por outros críticos, entre eles Emanuel
de Moraes, em Drummond rima Itabira mundo
56
: o trabalho inusitado, criativo,
com o vocabulário da língua, jogando com o eruditismo e com o coloquialismo; a
repetição de finalidade expressiva; as associações lúdicas humoradas e/ou
irônicas, muitas vezes deslocadas, antitéticas.
De Antônio Houaiss, leitor de Drummond na década de 40, nos fica: o poeta
mineiro, coerentemente com seu tempo, proscreve clichês e vocabulário
convencionalmente próprios à poesia, para prescrever, em seu lugar, um
vocabulário universal e personalíssimo; esta inovação passaria pelo trabalho
inusitado com o léxico, pelas repetições expressivas esteticamente (acentuando o
caráter dramático de muitos de seus poemas) e pelas associações e
aproximações inesperadas. O crítico duas fases: uma anterior e outra
posterior a José (1942), fazendo a cama para a leitura dialética de Sérgio
Buarque de Holanda e posteriores.
V
Se ambos, Mário de Andrade e Antônio Houaiss, destacam na obra do amigo
Carlos a inovação no plano formal (compromisso com a metrificação e o verso
livre; ritmo inovador; estilo pessoal construído a partir de uma relação lúdica com
as tensões entre o vocabulário e as temáticas; etc.) inovação mesmo em
relação aos modernistas seus contemporâneos ambos, da mesma forma, são
unânimes em detectar, no primeiro Drummond, um abismo aparentemente
intransponível entre o poeta de dicção pública e o sujeito tímido, mordaz. Todavia
55
HOUAISS, 1960, p. 60 e 61.
56
Cf. MORAES, 1972.
47
Houaiss já pressentia, parece, que o investimento na resolução deste conflito
renderia ao poeta sua fase ou face mais incensada pela crítica de A rosa do
povo (1945) a Claro enigma (1951).
O desejo, no Drummond maduro, de superação dos contrários apontados pela
crítica precedente vai valer elogios rasgados de Sérgio Buarque de Holanda:
(...) como quer que seja, o falsete lírico (...) requer do autor uma atitude e
uma visão bastante prevenidas em face das coisas, das criaturas, de si
mesmo. É, em suma, um processo que serve para dar freio às
expansões muito íntimas e vivazes, e que, em momentos agudos, chega
a converter o puro lirismo em seu antípoda, o humorismo puro.
Contudo, uma sábia dosagem que permita equilibrarem esses termos
antagônicos nunca é mortal para a poesia verdadeira, tanto é certo que
esta costuma definhar na pureza e na soidade, e que, por outro lado,
pode ganhar em altitude quando na vizinhança de seus inimigos mais
íntimos. A boa poesia o se mantém por longo tempo em estado
simples. E, entre nós, o mestre consumado na arte de misturar os
contrários é um poeta: Carlos Drummond de Andrade
57
.
E seja lá o que for poesia verdadeira, pureza e soidade e quejandos, vale,
porém, notar a insistência: Drummond, mais uma vez, é apontado como mestre
consumado na arte de misturar os contrários. E se quer esclarecer o porquê, em
Rebelião e convenção I, texto de 1952, imediatamente após o terremoto
provocado por Claro enigma:
(...) [Otto Maria Carpeaux disse certa vez que Carlos Drummond de
Andrade] era o primeiro grande poeta público do Brasil, o único
comparável à moderníssima corrente da poesia inglesa.
(...) No entanto, quando a moderníssima corrente a que aludiu o crítico
não nos parece sequer moderna, quando aqueles mesmos, que o
admiravelmente a representaram, não respondem mais aos apelos do
fato exterior (...), o menos que delas se poderá dizer é que são de uma
flagrante inatualidade. Vista da distância em que nos achamos, aquela
poesia pública parece nascida de uma compulsão momentânea e
efêmera. (...)
Tanto isto é exato que o poeta entre nós do sentimento do mundo,
nosso maior poeta público, tendo sofrido a mesma compulsão ou
participado do mesmo equívoco, acabou seguindo por conta própria (...)
uma trajetória em tudo semelhante à deles. (...)
de iludir-se, porém, quem veja nesse aparente desapego ao
acontecimento o reverso necessário de alguma noção transcendental
57
HOLANDA, 1996, p. 465.
48
da poesia: poesia entendida como essência inefável, contraposta ao
mundo das coisas fugazes e finitas. (...)
O exercício ocasional de um tipo de poesia militante e contenciosa terá
servido para purificar ainda mais uma expressão que alcançara
singular limpidez. Mas o impulso que o levaria a superar essa poesia
militante não chegaria nele a abolir a preocupação constante do mundo
finito e das coisas do tempo
58
.
Embora bastante longa a citação, fez-se necessária. Parece-me quase impossível
digerir plenamente o que se quis dizer com o exercício ocasional de um tipo de
poesia militante e contenciosa terá servido para purificar ainda mais uma
expressão que já alcançara singular limpidez; transparece, no contexto, todavia,
que seu autor, para livrar a cara de nosso grande poeta público, quase que
pede desculpas pela nova face drummondiana, visivelmente muito mais formal,
na qual se divisa um apuro estético ainda superior à produção precedente. Para
tanto, insiste além do necessário na tese de que mesmo em Claro enigma
apesar de uma voz estética que se quis dar a ver canônica, clássica a
fusão de contrários, e contrários gritantes tais como a noção transcendental de
poesia e a noção de poesia militante e contenciosa.
Afirmar Sérgio Buarque de Holanda que o exercício da poesia militante e
contenciosa teria servido à purificação da expressão poética é dar, por vias tortas,
respaldo à leitura do todo da produção poética drummondiana como um projeto.
O exercício da poesia militante e contenciosa teria funcionado, subentende-se,
como uma etapa, um degrau necessário para o acesso à poesia de maior
limpidez e mesmo esta, se límpida, antitética, pois poesia de preocupação
retórica, (todavia) mais rica em substância emotiva. Partindo-se de um
raciocínio suspeito, pode-se quase depreender do texto de Holanda uma vontade
de enxergar Claro enigma não como uma ruptura, mas como uma passagem de
nível.
Esta possível tese a da não-ruptura, antes da continuidade de algum modo
teria o mérito de haver prenunciado com espantosa antecedência o trabalho de
Vagner Camilo, de quase meio século depois. Em Drummond: da rosa do povo à
rosa das trevas, Camilo afirma que a dita guinada classicizante de Claro enigma
58
HOLANDA, 1996, p. 501 e 502.
49
estava prenunciada pela magra antologia de 1948, intitulada Novos poemas
59
,
pois defende que o livro de 48 parece querer encenar o movimento de passagem
entre uma poética e outra, bem como as razões que a motivaram
60
.
Facilmente defensável hoje ainda a maior parte da argumentação de Holanda, e
perdoável o traço hipermetrope que carrega, somos forçados a considerar,
todavia, que o exercício da poesia engajada não foi apenas chave de acesso
(tanto é que, mais à frente, ainda no mesmo texto, o próprio Holanda reconheceu
que, em Drummond, o prosaico não é negação, é antes condição de poético’”
61
),
assim como o exercício da poesia não-engajada nunca foi mero exercício
narcíseo.
Pode-se, então, sugerir que um dos últimos bastiões Sérgio Buarque de
Holanda da chamada crítica impressionista se ressente do golpe
drummondiano: quando todos (a começar, como vimos, por Mário de Andrade e
Antônio Houaiss) se comprazem tranqüilos, seguros, na rebelião modernista
contra as formas engessadas da poesia mais tradicional herdeira do sistema
beletrista, Drummond passa a perna na crítica, e instaura um novo legado. E
enquanto este novo legado não fosse suficientemente digerido convinha que os
mais lúcidos amainassem, amortecessem o choque, e repetissem à sua maneira
o diagnóstico de Manuel Bandeira, em Apresentação da poesia brasileira: é esse
feliz enlace de tendênci as à primeira vista contrastantes como um jogo automático
de alavancas de estabilização
62
.
Talvez, no afã de se criarem rotas para a nova poesia drummondiana então
nascente, se traçaram mapas bem úteis, contudo em escala imperfeita. Oscila-se
entre dizer que a) Drummond conjuga habilmente contrários; e b) que, ao mesmo
tempo, abandona, conscientemente, o humanismo (excessivo?) das primeiras
obras, diluído parece que com lucros estéticos numa ingaia ciência de
madureza
63
. Dito de outro jeito: ora se afirma que Drummond em sua fase social
59
CAMILO, 2001, p. 17.
60
CAMILO, 2001, p. 20.
61
HOLANDA, 1996, p. 502.
62
BANDEIRA, 1958, p. 1110.
63
HOLANDA, 1996, p. 507.
50
lapidou os dotes de poeta para a fase seguinte, mais formal, seguindo uma
espécie de projeto de ascensão nunca claramente explicitado , delineado a
partir das demandas do tempo; ora se afirma que a essência da poesia
drummondiana enraíza-se em um estranho travo ancestral, vindo do fundo dos
séculos (...), revogando ou sublimando a atração constante das coisas do
tempo
64
.
De Sérgio Buarque de Holanda, leitor de Drummond na década de 50, nos fica:
se, na poesia de Drummond, a fase dita social lapidou dotes estéticos para a fase
dita absenteísta, a superação da poesia militante não aboliu, contudo, a
preocupação com as coisas do mundo finito e do tempo presente donde se
extrai uma dificuldade da crítica em organizar a produção do poeta sob um
único rótulo ou mesmo sob rótulos dicotômicos, antitéticos.
VI
Consoante ao diagnóstico de Antonio Candido, em Inquietudes na poesia de
Drummond, texto pouco mais tardio, é o de Haroldo de Campos. Também ele
em Lição de coisas um reencontro do poeta com as matrizes de sua poesia,
ainda coladas a 22
65
. Porém, esta retomada, para o crítico, não seria casual e
nem, tampouco, catapultada por acontecimentos de ordem meramente pessoal,
individual ou subjetiva, como talvez esteja implícito no texto de Antonio Candido.
Esta retomada, antes de qual quer coisa, seria ponto-chave em um projeto estético
drummondiano (aí sim, dentre outras coisas, um projeto entrelaçado à história
particular e a noção de projeto, aqui, tomada, com Haroldo de Campos, de
empréstimo a Décio Pignatari): reencontrar as matrizes de sua poesia visando a
retraçar retomando-o o percurso de sua obra-em-progresso, apenas
interrompido pela estação neoclassi cizante de Claro enigma (1951)
66
.
Agora é que posso cavar mais funda uma diferença: se Haroldo de Campos viu
em Claro enigma uma interrupção do projeto drummondiano, Antonio Candido viu,
antes, ali, uma etapa formativa tão importante quanto outras. E, neste item, me
64
HOLANDA, 1996, p. 509.
65
CAMPOS, 1992, p. 51.
66
CAMPOS, 1992, p. 51.
51
pondo na linha de frente com Candido, devo arriscar dizer que não teríamos tido
Lição de coisas sem a guinada de Claro enigma, em contraponto à de A rosa do
povo (e não teríamos tido Boitempo, sem Lição de coisas, provavelmente, e nem
Corpo, sem Boitempo). A munição vem do próprio Haroldo de Campos:
Drummond é antes de mais nada um maker, um inventor (nele tudo é palavra,
observou Décio Pignatari), e, por isso mesmo, nele essa capacidade rara de
transferir mesmo as efemérides mais íntimas para o horizonte do fazer, de
celebrá-las (...) em criação (...), que deve ser, aliás, em poetas como ele, o
secreto exercício para a perene juventude do espírito
67
.
Na condição em que se pôs de maker, de inventor e, mais, de poeta de perene
juventude de espírito , o poeta não quis, nunca, fazer de sua obra-em-progresso
um conjunto previsível, menos ainda linear, homogêneo. Para um inventor
profissional (no desejo de fazer ecoar Ana Cristina Cesar, aqui) não há, não
pode haver, invenções mais ou menos nobres. Todas são, devem ser, tratadas
profissionalmente, e não com o amadorismo de quem quer tão-só projetar-se,
reproduzir-se em forma de obra: que se estar preparado para o maior número
possível de possibilidades, e mesmo de impossibilidades.
No momento, as ressalvas a Drummond, mestre de coisas, ficam suspensas. O
texto é suficientemente lúcido, e é dos primeiros a enxergar na multifacetação
drummondiana uma coerência não-ingênua, não simplesmente antitética. A
lucidez a que me refiro se mostra, por exemplo, quando o poeta-crítico reconhece
em Drummond a valentia que faltou a muitos comparsas: [em Lição de coisas]
CDA atira mais uma vez para diante o marco limiário de sua poesia e, com ele, o
da poesia brasileira
68
; e quando diz que:
(...) neste livro dos sessenta anos [Lição de coisas], o poeta reassume
sua constante dialética, mais autêntica (o seu Projeto como formulou
Décio Pignatari), fazendo, concomitantemente, poesia de reflexão crítica
e poesia de participação, ou, como nos agradaria dizer, poesia-poesia e
poesia-para. Os acontecimentos voltaram a ofendê-lo o que se lê na
introdução do livro) e, sob o impacto deles, dissolveu-se feito uma bruma
o ennui absenteísta de Claro enigma. A reabertura à matéria do
presente, aos novos conteúdos do presente problemático e
contundente, significou mais uma vez, neste poeta paradigmal, a
67
CAMPOS, 1992, p. 49 e 50.
68
CAMPOS, 1992, p. 52.
52
insatisfação com o repertório formal fixado pela tradição e, pois, uma
reabertura recíproca às novas formas provocadas por esse presente.
Nisto sua poesia é isomórfica ao seu sentimento do mundo.
69
Se se pode fazer uma ressalva, agora, ao texto de Haroldo de Campos, é o fato
de, tendo compreendido a importância da etapa formativa de Claro enigma
(esta pausa não fosse Drummond quem é revelou-se, porém, não como uma
demissão das conquistas anteriores, mas como uma tomada de impulso
premeditada ou não, pouco importa para um novo arranque qualitativo
70
), não
havê-la também identificado em certa poesia comemorativa e/ou memorial (...);
certos poemas padrescos que se salvam pelo fio fino do humor; alguma
insistência no discurso maior’”
71
.
De Haroldo de Campos, leitor de Drummond na década de 60, nos fica, então: a
lucidez de haver estendido as primeiras notas de Sérgio Buarque de Holanda
aliciando para Drummond, explicitamente, o rótulo de dialético, em vez do de
antitético e a impressionante precisão de haver captado o todo da produção
poética drummondiana, até então, como uma obra-em-progresso.
VII
Destoando um pouco de Mário de Andrade e Antônio Houaiss, e tingindo com
cores mais vivas o que Sérgio Buarque de Holanda apenas esboçara, para de si
mesmo duvidar, Antonio Candido se vê, em 1965, diante da possibilidade de
contrapor abertamente ao menos duas posturas do sujeito lírico drummondiano
das quais nenhuma se acomete contra uma época esvaziada de conteúdo,
como afirmaria Paulo Rónai, à frente.
Delineando a que seria a primeira postura, Candido diz, pensando nos dois
primeiros livros de Carlos Drummond de Andrade: que é construída em torno de
um certo reconhecimento do fato de que o espetáculo material e espiritual do
mundo são tratados [naqueles dois livros] como se o poeta se limitasse a registrá-
los, embora da maneira anticonvencional preconizada pelo Modernismo
72
(ou
69
CAMPOS, 1992, p. 53 e 54.
70
CAMPOS, 1992, p. 52.
71
CAMPOS, 1992, p. 55.
72
CANDIDO, 1995, p. 111, grifos do autor.
53
seja, o tratamento anticonvencional, mesmo quando insólito frente à estética
coeva, viria garantir a validade do fato como objeto poético bastante em si
mesmo, nivelando, assim, o Eu e o mundo como assuntos próprios à poesia).
Quanto à segunda postura, Candido afirma, pensando no então recém-lançado
Lição de coisas: que trinta anos depois [do lançamento de Alguma poesia] (...)
volta o mesmo jogo com o assunto [encontrado no livro de 1930] , mas agora
misturado a um jogo de maior requinte com a palavra
73
.
Hábil, reconhece, todavia, em ambas as posturas (uma, anticonvencional; outra,
de maior requinte com a palavra), que o poeta parece relativamente sereno do
ponto de vista estético em face da sua matéria [necessariamente o Eu, o mundo],
na medida em que não põe em dúvida (...) a integridade do seu ser, a sua ligação
com o mundo, a legitimidade da sua criação. Para Candido, então, se
inquietação há, não é em face da matéria a ser tratada, mas em face da
legitimidade da opção fei ta pelo sujeito lírico para tratar com essa matéria: permitir
à poesia desfazer-se como registro para tornar-se um processo
74
(recordemos
aqui que a designação obra em progresso em referência à poética
drummondiana aparece em Haroldo de Campos) e eu acrescentaria: para
tornar-se projeto.
Todavia é necessário, daqui em diante, um pé atrás com as análises de Candido,
pois vêm repetir um consenso crítico, não de todo pacificado. Por exemplo,
quando se afirma que Sentimento do mundo e José indicam a polarização da obra
madura de Drummond, entre a preocupação com os problemas sociais e a
preocupação com os problemas individuais, corre-se um risco. Não
indicadores precisos que permitam auferir para que lado pende a balança num e
noutro momento poético, e uma leitura que tendesse à dicotomia soaria como
ingenuidade grave (lembremo-nos de que Sérgio Buarque de Holanda, embora
não de tudo seguro, já na década de 50, mostras de desconfiar desta
polarização). Por isso, mais vale dizer, com o mesmo Candido, que ambos os
problemas têm sua gênese no problema decisivo da expressão, ou da forma
poética, que efetuaria, ela sim, uma inescapávelntese.
73
CANDIDO, 1995, p. 111.
74
CANDIDO, 1995, p. 112.
54
Este problema decisivo da expressão é, na opinião do crítico, a força poética de
Drummond, pois ele é quem manteria a falta de naturalidade que distinguiria
esta produção da de outros modernistas. E cumpre ressaltar que é este problema,
o da expressão (ou seja, da multiplicação de opções esteticamente expressivas e
expressivas esteticamente), que me fez tender a encarar o todo da produção
poética drummondiana como um projeto cujo cerne seria, justamente, a
ampliação de (todas as) possibilidades. Se couber um aparte, Candido considera
que a falta de naturalidade na poesia de Drummond provém do fato de que o eu
é uma espécie de pecado poético inevitável, em que [o poeta] precisa incorrer
para criar, mas que o horroriza à medida que o atrai
75
e, assim, mais uma vez o
conflito, o embate de forças antagônicas, é apontado como inerente à poética
drummondiana; contudo, esta postura recorrente não soa precisa (dentre outras
coisas, porque Drummond não foi o primeiro e nem o único a privilegiar
confrontos de forças antagônicas).
E não soa precisa porque, em primeiro lugar, o próprio Candido adverte que o
bloco central da obra de Drummond é, pois, regido por inquietudes poéticas que
provêm umas das outras, cruzam-se e, parecendo derivar de um egotismo
profundo, têm como conseqüência uma espécie de exposição mitológica da
personalidade
76
. Se a exposição da personalidade poética é mitológica, é,
assumidamente, irreal, fictícia, inatacável, inventada, fantástica nunca
naturalizada: portanto, não ingênua, não impositiva da forma como seria uma
maldição (tal qual, por exemplo, ser gauche na vida). Mais: se as inquietudes
poéticas provêm umas das outras, não estabelecem meramente uma relação de
causa-e-efeito, porém condicionam-se mutuamente, em interdependência. Daí
que a simples oscilação entre uma postura mais engajada socialmente e uma
mais ególatra não condizem com a realidade da produção drummondiana. Não se
tratou, nunca, de assumir ora uma postura, ora outra, mas de e aqui repito o
que já disse antes permitir-se uma incessante reinvenção de si mesmo:
inquietude não frente à indecisão entre perspectivas sociais e perspectivas
pessoais, analisadas sob a ótica de um eu todo retorcido; antes, inquietude que
75
CANDIDO, 1995, p. 113.
76
CANDIDO, 1995, p. 112.
55
visou a manter aberto o maior número possível de portas, de possibilidades
estéticas e subjetivas, que visou a exercitar a inteligência diante do sem-fim de
coisas que poderiam ter sido e não foram e que podem ser e não são.
E, em segundo lugar, não soa preciso identificar a inquietude da poesia de
Drummond com a simples oscilação entre uma postura mais ególatra e outra mais
sociológica porque, em Drummond, a obra de arte se apresenta, quase sempre,
como uma unidade alcançada a partir da variedade, como uma unidade que
justifica a vida insatisfatória [porque sempre incompleta], o sofrimento, a
decepção e [mesmo] a morte que se aproxima
77
:
Que confusão de coisas ao crepúsculo!
Que riqueza! sem préstimo, é verdade.
Bom seria captá-las e compô-las
num todo sábio, posto que senvel:
uma ordem, uma luz, uma alegria
baixando sobre o peito despojado.
E já não era o furor dos vinte anos
nem a renúncia às coisas que elegeu,
mas a penetração do lenho dócil,
um mergulho em piscina, sem esforço,
um achado sem dor, uma fusão,
tal uma inteligência do universo
comprada em sal, em rugas e cabelo
78
.
No entanto, a concepção da obra de arte como uma unidade apaziguadora,
tendo em vista um passado ambíguo (que é ao mesmo tempo vida que se
consumou, impedindo outras maneiras de existir; e conhecimento da vida,
permitindo pensar outras formas de existência), faz ecoar a concepção de lírica
hegeliana, bastante insuficiente para abarcar as multiplicidades de uma poética
que, para além de seu polimorfismo ou alotropismo constitutivo, atravessa
todos os grandes ciclos estéticos e históricos do século XX, no Brasil e no mundo.
Aqui talvez, tornando ao propósito primeiro, seja permitida uma súmula do que até
agora, vimos, se disse, com nuances de tonalidade, sobre a poesia de Carlos
Drummond de Andrade. Candido aponta, para além da oscilação entre o social e
77
CANDIDO, 1995, p. 116.
78
ANDRADE apud CANDIDO, 1995, p. 116 e 117.
56
o individual, outros pares indicados pela crítica precedente: do humor à
autonegação pelo sentimento de culpa; dos motivos de morte aos de criação
(como negação e afirmação); da inumação em vida à exumação do passado; do
emparedamento e da automutilação à militância através da poesia; do desejo de
transformar o mundo ao desejo de encontrar uma desculpa para si mesmo; da
injeção de fantasia nas coisas banais à busca do passado mítico através da
família e da paisagem natural
79
; do niilismo à violência. Sob esse ponto de vi sta, o
que o crítico faz é, com a argúcia e o didatismo que lhe são peculiares, organizar
e aprofundar o que até então se dissera, a começar por Mário de Andrade, a
respeito do conjunto iniciado com Alguma poesia: calca-se na convivência tensa
ou pacificada de contrários.
Mas não nos pode escapar que havia uma luz no fim do túnel, afinal, em 1965:
já era identificável que, a partir de Claro enigma, os aspectos opositivos em
Drummond sofriam progressiva inflexão, culminando, em Lição de coisas, na
recuperação do humor inicial e na renovação do interesse pela anedota e pelo
fato corrente. Por isso Candido afirma que, progressivamente, de Claro enigma
em diante, as inquietudes na poesia de Drummond dão lugar a certa serenidade
(serenidade que se manifesta, por exemplo, dentre outras coisas, na
regularidade crescente da forma, a que o poeta parece tender como fator de
equilíbrio na visão de mundo); e diz ainda que a dita serenidade seria fruto de
uma aceitação do nada, da morte, da dissolução do objeto no ato poético e,
assim, esta regularidade e esta primeira aceitação tranqüila confirmariam o traço
mais fundo deste período: o niilismo; irônico, como é de se esperar.
De Antonio Candido, leitor de Drummond na década de 60, nos fica: a postura
audaciosa de organizar os chamados par es dicotômicos na poesia drummondiana
lado a lado, sem distinguir entre aqueles que apontam para uma oposição radical
e aqueles que não, que sinalizam apenas diferença, não oposição mesmo que
esta organização culmine por abalar as bases de sua tese, de que as inquietudes
na poesia de Drummond nascem de uma oscilação entre uma postura mais
79
Consultar, a respeito deste tema, em especial a respeito da melancolia ligada à mineiridade, o
ensaio Minas melancólica: poesia, nação, modernidade, de Reinaldo Marques, em MARQUES,
2002, p. 13 a 25.
57
narcísea e outra mais coletivista. Além disso, Candido detém o mér ito de perceber
que os aspectos opositivos sofriam, a partir de Claro enigma, de uma progressiva
inflexão, culminando em Lição de coisas, numa retomada do tom
despreocupado do livro de estréia.
Todavia, aqui, de caber um breve senão. A tese de Candido de que a
substituição progressiva da inquietude pela serenidade a partir de Claro enigma
seria conseqüência de uma aceitação do nada, da morte, da dissolução do objeto
no ato poético deixa entrever um exercício de valor arriscado; noutras palavras,
parece que a propositada recuperação do humor inicial e a renovação do
interesse pela anedota e pelo fato corrente, traços colados ao projeto modernista
brasileiro, em Drummond, seriam atestado de evolução estética, o que, por si,
revela uma opção subjetiva valorativa do crítico.
VIII
Paulo Rónai, em Tentativa de comentário para alguns temas de C. D. A., com a
galhofa particular de um sincero admirador diz:
(...) quem não terá notado quantos versos desse Drummond que surgiu
como quebrador de tabus e destruidor de clichês se estão transformando
em frase feita? Emprego a expressão em sentido valorativo, não
pejorativo: no de fórmula lapidar em que a sensibilidade coletiva
reconhece com espanto a expressão que lhe faltava para se definir. (...)
Carlos Drummond de Andrade outra coisa não faz ao cristalizar em
clichês lacônicos as nossas ansiedades. (...) Não vejo outra homenagem
mais expressiva do que esta, nem prova mais evidente da onipresença
de Drummond
80
.
E este é apenas o primeiro dos, pelo menos, seis traços que Rónai pinça no
conjunto da produção poética drummondiana. Além deste traço
81
a capacidade
de cristalizar em clichês lacônicos a nossa ansiedade , haveria, em segundo
lugar, a produção de versos destinados primeiramente à leitura individual e
silenciosa em vez de à oralidade, já que sua beleza não proviria de valores
retóricos e musicais, como poderia ser exigível em poemas que apelassem ao
tom declamatório, mas da combinação original de simples vocábulos
80
RÓNAI, 1990, p. 61 e 62.
81
Ver a respeito desta característica da poesia de Drummond Drummond em três tempos, de
Wilberth Salgueiro, em SALGUEIRO, 2005.
58
convencionais, revestidos de singular força evocadora
82
exceção seriam alguns
dos chamados poemas dramáticos (pense-se, por exemplo, em A morte do
leiteiro
83
, Caso do vestido
84
, Morte no avião
85
e Desaparecimento de Luísa
Porto
86
). Nota-se aqui a primeira diferença em relação à crítica precedente: se,
antes, se disse que a repetição com função expressiva era um traço da poesia
drummondiana, agora se lhe aponta uma suposta despreocupação frente à
retórica, em especial quanto ao desejo de convencimento, e à musicalidade.
Um outro traço, este mais consoante ao dito, seria a opção por um
despojamento que viria disfarçar toda sofisticação: temática, formal, intertextual,
etc. Exemplo evidente disto, no dizer de Paulo Rónai, é o poema Carta
87
, de
Lição de coisas. Diz ele, com ingenuidade, suponho, cal culada:
Se existe poema transparente é o soneto Carta, (...) no total
despojamento de seus quatorze versos. Quem o conhece por tê-lo
ouvido, pode nem ter percebido que se trata de soneto: o empenho do
poeta em apagar as rimas por meio de enjambements, a naturalidade
absoluta das frases, a discrição das palavras retiram toda ênfase a essa
composição a ponto de, apesar da perfeição métrica dos versos,
comunicar-lhe a displicência sem pose de uma conversa familiar. O
conteúdo é cristalino: o crescente sentimento de solidão da velhice e a
nostalgia da infância perdida fundem-se na saudade da mãe para
sempre ausente
88
.
A fusão entre despojamento premeditado e sofisticação identificada neste soneto
por Paulo Rónai coaduna-se a outros traços apontados na lírica de Carlos
Drummond de Andrade, todos (apenas) aparentemente conflitantes entre si: o
individualismo exacerbado em um sujeito lírico excessivamente mido; o
compromisso com o verso livre e, ao mesmo tempo, com a metrificação; a reação
por meio de movimentos ostensivamente cancioneiros e aparentemente alegres e
cômicos contra a incapacidade de viver; a oposição do indivíduo à sociedade e a
utilização, por este, dos processos da língua social visando à criação de valores
individuais; a adesão a uma causa pública a demolição da tradição parnasiana
e a indiferença diante da derrota no social; a convivência do lirismo puro e do
82
RÓNAI, 1990, p. 64.
83
ANDRADE, 2002, p. 168 a 170 (em A rosa do povo).
84
ANDRADE, 2002, p. 160 a 165 (em A rosa do povo).
85
ANDRADE, 2002, p. 176 a 179 (em A rosa do povo).
86
ANDRADE, 2002, p. 231 a 235 (em Novos poemas).
87
ANDRADE, 2002, p. 490 (em Lição de coisas).
88
RÓNAI, 1990, p. 67.
59
humorismo puro; a aproximação do lirismo e o recuo; a conjugação da postura
hierática à demótica; etc.
Já o mote mãe para sempre ausente, destacado pelo crítico húngaro em Carta,
antecipa o quarto traço característico da poética do itabirano, de acordo com
Tentativa de comentário para alguns temas de C. D. A.: a constância da nota
familiar
89
. Este aspecto foi desenvolvido por vários estudiosos da poesia de
Drummond, dentre eles o próprio Rónai, principalmente a partir de um livro (ou
seriam três livros?) marcadamente memorialístico: Boitempo
90
. Todavia, ainda
sob o impacto da recente publicação de Lição de coisas, seis anos antes de
Boitempo, já se antecipara, dizendo:
Essa nota [a familiar], tão freqüente nos poetas intimistas e
penumbristas, espécie de lugar-comum da poesia menor, assume na
obra de Drummond significado de excepcional gravidade. É através da
vivência-família que o poeta atinge os mistérios da sobrevivência e da
imortalidade, tendo ele próprio fechado os outros caminhos que levam a
eles. Propositadamente alheio à inquietação religiosa, já declarou em
alto e bom som em Os últimos dias não esperar outra luz além da que
nos envolveu dia após dia, mas nesse pouco que fica de tudo registra
a herança imponderável transmitida pelos pais aos filhos (...).
São numerosas em sua obra as conversas imaginárias com o pai morto
(...). As conversas com a mãe ausente e as cartas que lhe são dirigidas
são de outra natureza (...). Sonda constantemente a presença ou a
ausência da mãe dentro de si mesmo e mede por ela a intensidade da
própria vida.
Desconfiado por natureza, o poeta, bem mineiramente, fica com um
atrás em face desse sentimento instintivo e irracional: mas nem por isso
consegue arrancar-se a essa comunidade (...). Em suma a existência
profunda do poeta, a que se revela na sua obra, caracteriza-se pela
presença constante dos mortos queridos
91
.
89
Ver, a esse respeito, ao menos, os artigos Drummond: infância e literatura, de Antonio Carlos
Secchin, em CHAVES (Org.), 2002, p. 35 a 44; Coisas fora do tempo: a poética do resíduo, de
Jerônimo Teixeira, em DAMAZIO (Org.), 2002, p. 91 a 106; Espaço e memória em Boitempo, de
Chantal Castelli, em DAMAZIO (Org.), 2002, p. 123 a 150; Menino entre mangueiras, de Mirella
Vieira Lima, em LIMA, 1995, p. 163 a 168; Uma rua começa em Itabira que vai dar no meu
coração, de Luzia de Maria, em MARIA, 2002, p. 71 a 80; Memória: a reconstrução poética do
ser além do tempo, de Affonso Romano de SantAnna, em SANTANNA, 1992, p. 190 a 230;
Fugias do escorpião e Nas tábuas da lei mineira de família, de Silviano Santiago, em
SANTIAGO, 1976, p. 47 a 114; A queda da casa dos Andrade, de Jerônimo Teixeira, em
TEIXEIRA, 2005, p. 111 a 178; Poética da memória, de Alcides Vilaça, em VILAÇA, 2006, p. 107
a 124; e os livros Terra e família na poesia de Carlos Drummond de Andrade, de Joaquim-
Francisco Coêlho, em COÊLHO, 1973; e No meio do caminho tinha Itabira: a presença de Itabira
na obra de Carlos Drummond de Andrade, de Domingo Gonzalez Cruz, em CRUZ, 1980.
90
Ver, sobre Boitempo, Boitempo, de Paulo Rónai, em RÓNAI, 1990, p. 75 a 77.
91
RÓNAI, 1990, p. 67 a 69.
60
Como se deduz, a constância da nota familiar, na poesia de Drummond, longe de
simplesmente evocar de forma transparente o passado, ou de maximizar uma
ingênua reminiscência, constrói uma idéia de família embora (e porque) singular
universalizada. Quase todos poderíamos gozar a sensação de nos
encontrarmos nos versos de Como um presente
92
, ou de No país dos
Andrades
93
. E é de tamanha importância a nota familiar, intrinsecamente
relacionada ao tema da infância na produção poética drummondiana, que Antonio
Carlos Secchin, em Drummond: infância e literatura, adverte:
(...) talvez nem todos saibam que o segundo poema do primeiro livro de
Drummond é Infância
94
. Para um bom poeta não é casual a inserção de
um texto numa determinada seqüência dentro da obra. O que isso
revela? O Poema de sete faces
95
, em seus versos Mundo, mundo,
vasto mundo, / mais vasto é meu coração, denunciaria em Drummond
uma das tensões da sua poesia, que é o ímpeto para o mundo, o ímpeto
do cosmo, uma força centrífuga. E logo a seguir, no segundo poema,
ele se recolhe para Itabira do Mato Dentro, para o texto de Infância,
efetuando portanto um movimento centrípeto.
Assim, as oscilações entre a atração do mundo grande e o
ensimesmamento da província estão de alguma forma prenunciadas
pela própria seqüência dos poemas no livro de estréia
96
.
Tematizar a infância (o passado, portanto) como um tempo mítico, ao qual se
retorna ad infinitum, e o espaço quase sempre indigesto da Casa Grande, em que
cada um ocupa funções protocolares, é um modo de se dizer das maiores
tensões da cultura brasileira.
E, talvez, uma outra forma de manifestação da nota familiar universalizada e
universalizada porque trata da experiência brasileira presente na poesia de
Drummond seja a alusão constante às cidades de Itabira e do Rio de Janeiro. Do
mesmo modo que temos todos a ilusão de que é da nossa experiência em família
de que se fala em Convívio
97
, por exemplo, poderíamos ter a ilusão de que
somos/fomos todos um pouco habitantes de uma Itabira mítica que nos dói,
incessantemente, pendurada na parede , desalojados nas ruas de um Rio de
92
ANDRADE, 2002, p. 186 a 188 (em A rosa do povo).
93
ANDRADE, 2002, p. 194 (em A rosa do povo).
94
ANDRADE, 2002, p. 6 (em Alguma poesia).
95
ANDRADE, 2002, p. 5 (em Alguma poesia).
96
SECCHIN, 2002, p. 36.
97
ANDRADE, 2002, p. 287 (em Claro enigma).
61
Janeiro mítico, ele também, que insiste em agir como um verdadeiro antídoto ao
[nosso] desgosto de vi ver e à [nossa] vontade de mor rer
98
.
À invenção da infância, do passado e da memória e, principalmente, à invenção
de duas cidades concretas distantes, pero no mucho, da também mítica, porém
indevassável Pasárgada, de Bandeira; da Sevilha, de Cabral; da São Paulo, de
Mário; etc. , vem unir-se o quinto traço apontado por Paulo Rónai como
característico da poesia drummondiana: criações vocabulares (ou neologismos,
stricto sensu) são menos freqüentes que aproximações fono-morfo-semânticas
insólitas; significativamente, as (parcas) criações vocabulares são toleradas
(quase) apenas para falar do Rio amalucado, que emerge dos muitos poemas
fortemente afetivos que Drummond devotou à cidade.
Este aspecto na poesia de Drummond, o da criação vocabular, já fartamente
analisado por Nice Seródio Garcia
99
, merece uma rápida nota biográfica, que lhe
explique. Embora avesso ao neologismo, contudo, na vida íntima, privada, é
sabido que o poeta criou uma língua particular para comunicar-se com a filha,
Maria Julieta. E que criava nomes estapafúrdios para objetos e rotinas da
atividade doméstica. O dado pontual ajuda a entender que a criação vocabular,
fruto de aproximações insólitas, em Drummond, tem um papel fortemente afetivo,
mas não só: do mesmo modo que o Rio de Janeiro, e Maria Julieta, lhe serviram,
em vida, como antídoto ao desgosto de viver e à vontade de morrer e como
fascinação voluptuosa que lhe fez bater o coração com mais força
100
, serviram,
também, à criação, à produção, à vida; serviram ao desejo de explicar o que não
encontra na linguagem corrente significante perfeito e ao desejo de criar
intimidade, achego, para fugir do rótulo de forasteiro, ou de inacessível.
Letícia Malard também chama a atenção para o tópico criações vocabulares x
aproximações fono-morfo-semânticas insólitas:
98
RÓNAI, 1990, p. 72.
99
Ver A criação lexical em Carlos Drummond de Andrade, de Nice Seródio Garcia, em GARCIA,
1977.
100
RÓNAI, 1990, p. 72.
62
Um expediente caro a Drummond visando a provocar hilaridade é
construir todo o poema com enumerações de coisas estranhas,
situações esdrúxulas, vocábulos esquisitos ou spares entre si. A
criação de neologismos ou formações estapafúrdias de palavras é outro
expediente para fazer-se engraçado. A técnica do non sense aparente
leva o leitor ao riso pelas combinações possíveis de idéias que o poeta
coloca à sua disposição. Isso porque, segundo Deleuze, o não-senso é
simultaneamente o que não tem sentido e o que se opõe à ausência de
sentido, operando a doação de sentido. Na maioria dos casos o poeta se
transforma numa obra aberta, isto é, o leitor pode usufruí-lo através do
direcionamento da leitura que lhe aprouver, no espaço da folha
impressa. O estatuto permutacional dos versos e a identidade sintática
que guardam entre si criam expectativas de novas associações, não
somente de idéias, mas também sonoras, rítmicas e rememorativas.
101
Outra possibilidade de leitura, para além do desejo de explicar, ou de criar
intimidade, achego: a criação vocabular ou mesmo as aproximações fono-morfo-
semânticas insólitas serviriam ao propósito de manter afastado o não-iniciado;
porque, sempre se soube, é necessári o deter o código para adentrar ao sentido. E
desta constatação nasceria o último traço da poética drummondiana, segundo a
sistematização um tanto quanto subjetiva que tenho feito do artigo de Paulo
Rónai: o poeta, persona pública ou persona lírica, tanto mais se encobria quanto
mais se revelava
102
, e isto porque a ironia [presença segura nos poemas de
Drummond] (...) da História, do Tempo, (...) depositando suas camadas de pó
sobre os seres e as coisas, sabe desvalorizá-los e desvirtuá-los
103
.
Mais uma vez se retoma a constatação da confluência de contrastes em
Drummond: a explicação serve à obnubilação; a invenção serve à seletividade; a
história e o tempo servem não à memória, mas à desvalorização e à desvirtuação.
E, estendendo a análise da hipótese de que, em Drummond, a ironia serve à
desvalorização e à desvirtuação do tempo, e pensando a respeito da memória do
passado em Boitempo (1968) e em A falta que ama (1968), Rónai afirma:
Nessa prestação de contas à Eternidade não há saldo, mas tampouco
reclamações ou queixumes. Ela se resume num desligamento gradual da
vida e num reatamento consciente com os mortos, atitudes desmentidas
de tempos em tempos por uma convulsiva sede de amor, que abole os
limites entre ser e não-ser. Momentos de autoflagelação sucedem a
instantes de êxtase; a revolta, embora resignada ao próprio insucesso,
acomete, às vezes, através de jogos de malabarismo verbal, contra uma
101
MALARD, 2005, p. 134.
102
RÓNAI, 1990, p. 75.
103
RÓNAI, 1990, p. 75.
63
época esvaziada de conteúdo que degradou a palavra e entronizou a
burocracia do absurdo
104
.
A diferença é que Rónai desencontrando-se da leitura que fazem Mário de
Andrade, Antônio Houaiss, Sérgio Buarque de Holanda e João Alexandre Barbosa
na confluência de contrastes da poesia de Drummond um desejo moralizante ou
pedagógico de que, parece, sua poesia não se revestiu (ao menos não o tempo
todo).
De Paulo Rónai, leitor de Drummond na década de 60, nos fica: o poeta parece
assumir uma postura nem antitética, nem simplesmente dialética: antes, uma
postura pouco afeita a rótulos, que prenuncia traços que identificaremos, à frente,
todavia mais bem resolvidos, em O amor natural a saber, um progressivo
desligamento da vida (e, assim, um reatamento com os mortos), concomitante a
atitudes derivadas do desejo de amar-e-ser-amado, para além das bordas
instituídas pelo tempo. Sintomaticamente, diante deste diagnóstico, o crítico não
aceita pôr em primeiro plano um traço até então quase unanimemente evocado
por seus predecessores em relação à poesia de Drummond: o sentimento de
inadequação ou mesmo de culpa, o senti mento gauche, por excelência.
IX
A distorção nas escalas dos mapas traçados quando da audaciosa criação de
rotas para a então nova poesia drummondiana parece ter afetado também em
certa medida Silêncio & palavra em Carlos Drummond de Andrade, de João
Alexandre Barbosa. O artigo detém o mérito, todavia, de apresentar, à surdina, a
poética drummondiana em consonância com o pensamento de Martin Heidegger,
em A origem da obra de arte, antes ainda da tese de Affonso Romano de
SantAnna (donde, primeiro, colhi a expressão projeto poético-pensante, sem
acolher, todavia, a maior parte dos argumentos).
O crítico abre o texto com a seguinte consideração: usando da linguagem que diz
o mundo, o poeta diz o seu modo de relacionar-se com ele e, assim, o poema
104
RÓNAI, 1990, p. 76 e 77.
64
realiza-se como possibilidade de instauração do que ficou por dizer
105
. Segundo
o crítico, o poema moderno e poema moderno talvez valha como epíteto para
quase qualquer poema drummondiano encontra seu alimento no
prolongamento daquilo que restou para além da comunicação
106
; e isto que
restou para além da comunicação teria limites dados pela própria comunicação e
pelo silêncio. Frente a esta constatação, de tal modo impositiva, competiria ao
poeta escolher entre poesia hierática e a demótica, didaticamente
apresentadas por Holanda cerca de uma década antes.
Tendo em mente estas considerações, o ensaio crítico lê o poema Nudez,
incluído em A vida passada a limpo (livro híbrido publicado originalmente em
1959, no qual se viam supostamente concretizadas algumas das principais
linhas de força da poesia drummondiana madura). E se o lê é para apontar nele
uma espécie de simbiose entre o dizer acerca do silêncio e o comunicar uma
experiência que jamais foi, é, será aquela existente antes de sua realização
verbal. Nudez acentuaria um dos traços essenciais da poética de Carlos
Drummond de Andrade, no dizer de João Alexandre Barbosa: o de desconfiança
ante o lirismo herdado e, por ele mesmo, está claro, praticado
107
.
Embora elaborada tendo como ponto de partida um poema em particular
(Nudez), integrante de um livro particularíssimo (A vida passada a limpo), a tese
de que a poética drummondiana exerce e desconfia de um lirismo do qual se viu
herdeira e propulsora valeria, pelo menos, para a produção que vai de Alguma
poesia, de 1930, a Lição de coisas, de 1962. Isto porque este intervalo
compreenderia um período de mais de trinta anos de aproximações e recuos ao
lirismo: seja o de participação que está em A rosa do povo, de 1945, seja o de
inserção nas fontes originárias do ser, como em Brejo das almas, de 1934, seja o
de procura e desilusão que está em Claro enigma, de 1951
108
.
A oscilação entre optar ora pelo achego ao lirismo, ora pelo distanciamento,
caracterizaria o que Antonio Candido chama de as inquietudes na poesia de
105
BARBOSA, 1974, p. 108.
106
BARBOSA, 1974, p. 108.
107
BARBOSA, 1974, p. 110.
108
BARBOSA, 1974, p. 110.
65
Drummond. E estas inquietudes (só) adquirem validade objetiva pelo fato de se
vincularem a uma outra: a meditação constante e por vezes não menos
angustiada sobre a poesia
109
. Pensando assim, como Antonio Candido, talvez
seja mais tranqüilo entender em que medida Lição de coisas poderia figurar como
o ponto final de uma luta angustiada entre a morte e a ressurreição/reinvenção do
lirismo tradicional: o livro de 62, pós-João Cabral e pós-Concretismo,
materializaria, na clave dada, a lição de se meditar constantemente e
honestamente sobre a (própria) poesia.
Prosseguindo na análise de Nudez, cujo passo a passo não convém detalhar
aqui, João Alexandre Barbosa retorna a um terreno pisado, como vimos, por
Mário de Andrade e Antônio Houaiss (que vêem na poesia de Drummond
contrários que se contrapõem ferozmente) e por Sérgio Buarque de Holanda (que
na poesia de Drummond contrários que se conjugam). Ou dito de outra forma:
por se fazer assim dissolvente do lirismo, atingindo-o pela negação de seus
valores, Carlos Drummond de Andrade destila o seu modo de relacionar-se com o
mundo: a negação dos dados herdados não significa [porém] a destruição final da
estrutura poética
110
.
De João Alexandre Barbosa, leitor de Drummond no início da década de 70, nos
fica: o poeta, mais maduro, não se vê mais constrangido entre apenas duas
alternativas: contrapor posturas inconciliáveis; conjugar, dialeticamente, posturas
antitéticas. O poeta sabe que negar valores herdados não corresponde
necessariamente a inovar repetidamente, inovar pelo hábito de inovar ou, de outro
modo, pelo hábito de romper tradições estéticas formais e ideológicas
irrefletidamente.
X
Não se trata, evidentemente, de conceder ao poeta o perdão de que não precisa.
Mas, para aproveitar o diagnóstico de José Miguel Wisnik, talvez nenhum poeta,
no Brasil ou no mundo, diga tanto a palavra mundo, em seus poemas, como
109
CANDIDO, 1995, p. 113.
110
BARBOSA, 1974, p. 115.
66
Carlos Drummond de Andrade
111
. E essa variedade de mundos abarca, tem que
abarcar, desde poemas-poemas, até poemas comemorativos, memoriais,
padrescos, grandiloqüentes, etc. Isso porque a poesia de Drummond é
atravessada por feixes de mundos, inumeráveis, que causam a alternância, tão
reconhecível nele, entre a insistência implacável da totalidade, que parece
interpelar o sujeito a cada passo, e a dol orosa irrelevância de que se reveste essa
mesma busca, reduzida espasmodicamente a um cálculo ínfimo, uma pedra
inexpelível
112
.
E, dada a importância da palavra mundo na obra de Drummond, é justamente
na variedade de mundos (sinalizados pela palavra, nos diferentes contextos em
que aparece) e na insistência de sua(s) permanência(s) que se funda, para
Wisnik, o projeto drummondiano. Dito de outro modo, no projeto poético de Carlos
Drummond de Andrade, é possível, para o crítico, identificar uma unidade a
permear a diferença: a insistência no vocábulo mundo e a opção, consciente,
por tudo o que o gesto implica.
Os exemplos do atravessamento da poesia drummondiana por feixes de mundos
inumeráveis compõem entre si uma espécie de litania latente, desencantada,
convulsiva e insistente, mesmo que nada monotemática, que nos poemas do
autor o mundo é uma entidade que baixa nas mais diversas e desniveladas
situações
113
ao contrário, por exemplo, do que ocorre na produção de João
Cabral de Melo Neto. Esse ponto de vista de Wisnik vem muito a propósito
resgatar a dessimetria entre a efetiva produção/postura de Carlos Drummond de
Andrade e o decalque que lhe impingiram de poeta-gauche. Se a redução
fenomenológica operada pela poesia cabralina, com sua potência própria, visa,
entre outras coisas, a não se deixar emaranhar no emaranhado (do mundo), na
poesia de Drummond, ao contrário, a atenção do sujeito é continuamente
interpelada por aquilo que lhe escapa, que lhe extrapola os limites, que empenha
111
WISNIK, 2005, p. 21.
112
WISNIK, 2005, p. 21.
113
WISNIK, 2005, p. 22.
67
o todo e põe o sujeito em causa. Por isso mesmo, desenvolve-se nela uma
consciência aguda e reflexiva do limite, inseparável do seu empuxe totalizador
114
.
Retoma-se, assim, noutras tintas, a tese de Candido quanto às inquietudes na
poesia de Drummond que, por sua vez, fazem remessa à crítica fundadora de
Mário de Andrade, que via, em Alguma poesia, a convivência de pólos
antitéticos:
A apreensão da totalidade do mundo e seu limite se negam e se exigem.
(...) Os objetos em Drummond [em oposição ao que ocorre em João
Cabral] são como pontos negros que remetem continuamente a algo que
escapa e desliza, movidos pelo compromisso inarredável da totalidade
que acusa continuamente a sua própria impossibilidade de cumprir-se,
fortalecendo-se, no entanto, disso mesmo.
115
O mérito do crítico está em alargar os diagnósticos precedentes (para além de
Mário e Candido, ouça-se ecoar Merquior). O lugar da poesia drummondiana (em
um primeiro momento, a poesia que vai do livro de 1930 ao de 1962) marca-se
não apenas pela confluência ou convivência de contrastes, mas e o
diferencial importante do texto de Wisnik por seu isomorfismo ou
correspondência em relação ao mundo:
A poesia de Drummond inaugura, no Brasil, uma reflexão sobre o (não)
lugar do indivíduo solitário na massa urbana, que se identifica com ela e
dela se desidentifica, que pertence compulsoriamente ao conjunto do
qual se exclui, pois insiste em pertencer à multidão como seu índice
reflexivo além de se saber pertencente a ela como seu reflexo. Em
segundo lugar, é uma poesia que se desenvolve no arco da montante e
da precipitação da Segunda Guerra Mundial (...). E, ainda mais, a poesia
de Drummond é a poesia de um tempo em que pensar o mundo é
pensar expressamente, e cada vez mais, o (não) lugar da poesia no
mundo: o mundo exclui a poesia, e a poesia insiste ainda em incluir o
mundo.
116
Em um segundo momento, pós-golpe de 64, o lugar da poesia drummondiana
marca-se ainda pela confluência ou convivência de contrastes e pelo isomorfismo
ou correspondência em relação ao mundo, mas, sendo coerente com seu tempo
presente, alia a estes traços uma espécie de dialética desconstrucionista
desconfiada com perdão para as impropriedades conceituais. Neste momento
114
WISNIK, 2005, p. 23.
115
WISNIK, 2005, p. 23.
116
WISNIK, 2005, p. 24.
68
de coisificação, ou reificação coletiva, sintomaticamente, o poeta, alerta-nos o
crítico, extrai matéria para seus versos de colagens exaustivas de fragmentos de
jornais e de informações de agências de notícias, como se a transcrição caótica e
pseudodessubjetivada de fragmentos concretos do mundo pudesse preencher
a vacância de referências e interpelações diretas ao mundo. Nas palavras de
José Miguel Wisnik,
(...) [o] debate interno à obra, muitas vezes espasmódico, adquiriu novos
contornos no seguimento do pós-guerra, quando a onipresença universal
da mercadoria, da publicidade e da comunicação de massas (...) se
reflete num retiro estratégico para a memória e num esgarçamento da
invocação poética ao mundo (...). Acusando em parte o golpe do seu
isolamento crescente, o lugar da linguagem da poesia no mundo
contemporâneo (...) rumina ainda assim a sua matéria nos livros finais de
Drummond, desiguais e menos definidos que os livros marcantes do
período em que nomearam a crista e o arco da história (1930-1962), mas
contendo poemas e problemas que os estudos críticos parecem ter
abordado pouco [tais como a transição estética, e, por conseguinte,
ideológica, para o pós-utópico].
O de inclusões e exclusões cruzadas envolve, recapitulando, o
sentimento de potência impotente do indivíduo na metrópole, a urgência
da luta antifascista (e o surdo contracanto dogmático do comunismo),
entranhados nas exigências de um lirismo que vive o sentimento do
tempo, mas repelindo energicamente, desde dentro, o apelo panfletário.
Esse implica uma posição crítica que tira sua força exatamente de
estar e não estar na multidão, de se engajar sem se encaixar na
militância, e de fazer uma poesia participante e paradoxalmente
autônoma, sem que isso signifique indefinição ao contrário, é isso que
lhe uma definição particular e dificílima.
Várias dimensões de mundos impõem-se aí, desde logo. A primeira é a
metrópole, isto é, a cidade-mundo moderna (...). A segunda é a Guerra
Mundial que faz da cidade-mundo o teatro abalado pelo espectro
totalitário (...). A terceira ou quarta dimensão dos mundos é a própria
poesia moderna (a herdeira deslocada da Máquina do Mundo que se lê
em Camões e na cosmologia simbólica de Dante) (...).
O que importa para a poesia é que essas dimensões não estão
separadas e que são inseparáveis, nela, da sua dimensão de linguagem.
Drummond deu um novo peso problemático aos temas modernistas da
metrópole (...) e imprimiu um sentimento do mundo ostensivamente
mais fundo e abrangente à questão urbano-industrial. (...) O embate que
se trava na poesia de Drummond, seu pensamento da história, não
segue o esquema simples e convencional de forças opostas e inimigas
que se disputam em lados contrários de um mesmo terreno. (...) O
embate que ela desnuda revela-se e revira pela borda: (...) Não um
lado contra o outro e confronto horizontal dentro do mesmo grande
conjunto do mundo, mas o embate vertical, e de certo modo especular,
daquelas forças que estão ao mesmo tempo dentro e fora dos conjuntos
do mundo.
117
117
WISNIK, 2005, p. 24 a 27, grifos do autor.
69
A citação é longa, porque a questão pede estofo. Dada sua atualidade, é
complicado, de dentro, rebatê-la em qualquer dos pontos que discute; há, todavia,
ao menos uma questão que mereceria um desenvolvimento maior, mas de que,
previsivelmente, me abstenho. Falo da identificação da metrópole, da cidade-
mundo moderna com um teatro (ou palco). Esta identificação remonta a alguns
textos teóricos fundadores e seus herdeiros mais diretos que pensam a
questão da cidade na era pós-utópica, também chamada pós-modernidade.
Porém, talvez a cidade-mundo que permeia a poética drummondiana (mesmo
pós-64) ainda não seja a cidade pós-moderna. Parece-me que Drummond antevê
o processo de transição, a desidentificação que começa, mesmo no Brasil, a
abalar estruturas decantadas e a exigir outras respostas ainda não devidamente
fermentadas, mas não se pôde inserir ainda, totalmente, nessa cidade-palco ou
cidade-teatro, onde o sujeito é, tão-somente, uma marionete, um fantoche, ou um
espectador desprivilegiado. A cidade ainda é, em Drummond, parede em que se
pendura a imagem de Itabira, indócil, para perpetuá-la dolorida. Em plena
derrocada de mitos, a cidade permanece como a arquetípica rival da mítica
Itabira; Greta Garbo ainda vence os que dela quiseram fazer uma ninfa
obediente, / autômato de impulsos programados
118
, como no poema de Farewell
e os exemplos, aqui, são metáforas para todas as outras permanências.
Todavia, a atmosfera, de Lição de coisas em diante, é já, sim, pós-moderna. Isso
porque, nas duas últimas décadas de vida, o poeta buscou o ponto misterioso e
aparentemente inacessível, espécie de Pandora machadiana, ou de aleph
borgesiano, que desse conta da diversidade rebelde da vida ao nascedouro
dela
119
. E que o mundo de agora é/era, inexoravelmente, fluido, e que quanto
mais o homem se distancia desse ponto [que se busca, nos últimos livros de
Drummond], mais se aproxima dele
120
, um poema como A ilusão do migrante
pode dar o tom de sua época, para um sujeito tecido em bilros modernistas, mas
desfiado em mãos pós-modernas:
Quando vim da minha terra,
se é que vim da minha terra
(não estou morto por lá?),
a correnteza do rio
118
ANDRADE, 1996, p. 82 a 86.
119
SANTIAGO, 1996, p. 117.
120
SANTIAGO, 1996, p. 117.
70
me sussurrou vagamente
que eu havia de quedar
donde me despedia.
Os morros, empalidecidos
no entrecerrar-se da tarde,
pareciam me dizer
que não se pode voltar
porque tudo é conseqüência
de um certo nascer ali.
Quando vim, se é que vim
de algum para outro lugar,
o mundo girava, alheio
à minha baça pessoa,
e no seu giro entrevi
que não se vai nem se volta
de sítio algum a nenhum.
Que carregamos as coisas,
moldura da nossa vida,
rígida cerca de arame,
na mais anônima célula,
e um chão, um riso, uma voz
ressoam incessantemente
em nossas fundas paredes.
Novas coisas, sucedendo-se,
iludem a nossa fome
de primitivo alimento.
As descobertas são máscaras
do mais obscuro real,
essa ferida alastrada
na pele de nossas almas.
Quando vim da minha terra,
não vim, perdi-me no espaço,
na ilusão de ter saído.
Ai de mim, nunca saí.
Lá estou eu, enterrado
por baixo de falas mansas,
por baixo de negras sombras,
por baixo de lavras de ouro,
por baixo de gerações,
por baixo, eu sei, de mim mesmo,
este vivente enganado, enganoso.
121
De Wisnik, leitor de Drummond nos anos 2000, nos fica: a possibilidade de ler a
obra tardia do poeta não com olhos modernos, apenas, mas também com outros
olhos, mesmo que o rótulo quaisquer que sejam os nomes que possamos lhe
dar não seja preciso. Mais importante ainda, todavia, foi o crítico haver
percebido que, nas duas últimas décadas de vida, o poeta buscou o ponto
misterioso e aparentemente inacessível, espécie de Pandora machadiana, ou de
121
ANDRADE, 1996, p. 20 e 21.
71
aleph borgesiano, que desse conta da diversidade rebelde da vida ao nascedouro
dela ou seja, buscou uma relação i somórfica entre sua obra e o mundo.
XI
Na toada do poema, partindo deste sítio imaterial o quase fim de um capítulo
rumo a destino algum, antes de me aventurar pela próxima paragem, acho que
caberia agora uma digressão despretensiosa, e mesmo inconveniente. Ela não é
importante, mas é.
Explico: para aproveitar o gancho que Candido me dá, não posso deixar de dizer
de uma inquietação que me assalta todas as vezes em que penso nos textos de
Mário de Andrade, Antônio Houaiss, Sérgio Buarque de Holanda, Haroldo de
Campos, Antonio Candido, Paulo Rónai, João Alexandre Barbosa, José Miguel
Wisnik etc. Lidos os textos críticos selecionados, e considerados, estes,
representativos do que se produziu a respeito da poesia de Drummond desde o
lançamento de Alguma poesia à atualidade, soa bastante evidente mas até
agora não devidamente considerado que uma consonância surpreendente
entre as vozes críticas.
Credito tal consonância ao fato de que, descontadas algumas vaidades, Carlos
Drummond de Andrade, como poeta público, foi criado por Mário de Andrade,
ainda em 1930. Não que tenha permanecido preso a isto, ao contrário. A crítica,
salvo honradas exceções, é que se engessou como se da década de 60 para cá
Drummond não devesse ser reinventado ainda dezenas de vezes.
Se, à maneira de Merquior, podemos enxergar em Drummond ao menos 4 fases
poéticas (de Alguma poesia a Sentimento do mundo; de José a Novos poemas;
de Claro enigma a A vida passada a limpo; de Lição de coisas em diante), penso
que podemos enxergar ao menos 3 fases da crítica, que nem sempre
acompanharam as transformações estéticas gestadas pelo poeta: uma fase
antitética, que nos pares de oposição conflitos (fase que inicia com Mário e
afeta inclusive Candido); uma fase dialética, que nos pares de oposição
sínteses (fase que inicia com Holanda e alcança, por exemplo, Haroldo); uma fase
que não pensa em antíteses ou sínteses, mas em analogia ou mesmo
72
isomorfismo entre a criação poética e o mundo (penso, por exemplo, no texto de
Wisnik e em trabalhos como os de Gledson e Camilo).
Em minha defesa, posso dizer que espero desenvolver este raciocínio
arriscado mais à frente, em limites que excedem este trabalho. Por ora, me dou
por satisfeita a respeito, se puder continuar nutrindo (estas) pulgas atrás das
orelhas.
73
CAPÍTULO 02
CINTILAÇÃO DA ORDEM NO DESENCONTRO A POESIA DE CARLOS
DRUMMOND DE ANDRADE: UM PROJETO POÉTICO-PENSANTE?
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
I
Minha paio por O amor natural começou, como outras, às cegas. Eu não sabia
nada a respeito do livro quando o tive pela primeira vez nas mãos. Para ler o que
se avultava para mim, então, pela primeira vez, como objeto de estudo, resolvi ler
todo o Drummond poeta, ininterruptamente. Não pude ignorar, no decurso da
experiência, o quanto de O amor natural encontrei nos poemas de outros livros,
de Alguma poesia a Farewell ou vice-versa. Foi esta impossibilidade que me
obrigou a ler o livro póstumo à luz da obra precedente, e mais: foi esta
impossibilidade que me obrigou a pensar o conjunto da obra poética
drummondiana como um todo organizado em sua desordem. Fiquei feliz quando
descobri que não estava sozinha, embora a companhia não fosse sempre
confortável.
Affonso Romano de SantAnna afirma que Drummond vem de uma geração que,
como geração, tinha um projeto cultural. Para ele, toda a safra modernista
brasileira fazia parte da chamada modernidade (que é essa coisa que começa
em torno de 1860 e vem até metade do culo XX), dentro da qual se operava a
idéia de projeto, um projeto cultural, um projeto existencial e um projeto de país,
e contrapõe: totalmente ao contrário daquilo que se chama de pós-modernidade
e contemporaneidade, que trabalha com o fragmento, trabalha com a alienação,
trabalha com o niilismo, com o narcisismo desorientado, e que tem horror à idéia
de utopia, e despreza a idéia de projeto, porque não tem nenhuma prospecção
histórica no tempo e no espaço
122
.
122
SANTANNA, 2004, p. 13.
74
Embora tendenciosa a leitura da dita pós-modernidade efetuada pelo crítico, nos
interessa a afirmação de que Drummond vem de uma geração que, como
geração, tinha um projeto cultural. Talvez, a favor deste ponto de vista, se possa
pensar, no caso específico de Drummond, em sua participação no chamado
grupo mineiro, em sua presença nas fileiras comunistas, em seu engajamento
ativo na Associação Brasileira de Escritores, em sua fidelidade ao grupo do
sabadoyle, etc. Tudo isso denuncia, parece, uma vontade de grupo e de projeto
embora sua (má?) fama de individualista deponha contra.
Todavia não é apenas por este prisma que SantAnna enxerga a questão do
projeto em Drummond. Prossegue sinalizando que muitos estudantes iniciantes e
mesmo muitos críticos vêem na poesia do mineiro uma espécie de bazar ou
supermercado, onde se entra e retira da prateleira um tema; todavia, para ele,
esse tipo de obra exige um outro tipo de leitura, porque não sendo um
amontoado de temas, não tendo organização aleatória, sendo uma obra em
projectum, realiza aquilo que Heidegger dizia: (...) o ser humano deve desenvol ver
um projeto poético pensante através da existência
123
.
Esta idéia de projeto é, contudo, problemática, na medida em que pode conduzi r a
uma leitura ou estruturalesca ou psicologizante. Entretanto, os riscos não devem
paralisar uma ação que pode se mostrar interessante inclusive porque a idéia
de pensar a obra drummondiana enquanto projeto não é nova, não é original: é
uma idéia desgastada, meio batida, pelo menos até a década de 70. O que se
mostra com ares de novidade é pensar, pós-anos 70, a continuidade ou não deste
projeto (talvez, antes, pensar a pertinência ou não da noção de projeto para ler o
todo da produção poética drummondiana) e assim a inserção ou não dos últimos
livros (no caso especial desta dissertação, do penúltimo livro, O amor natural)
nele.
Em Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade, de 1981, John Gledson
nos chama a atenção para a necessidade de entender, na medida do possível, a
poesia de Drummond nos seus próprios termos. Afirma que é uma tarefa
123
SANTANNA, 2004, p. 14.
75
necessária talvez sobretudo porque Drummond é nosso contemporâneo,
empenhado no projeto de entender um mundo que é também nosso. Entender o
que o poeta diz, sem categori-lo a priori como amostra de uma espécie ou
prova de uma teoria filosófica ou literária, é, para o crítico, uma reação às
deficiências da crítica já publicada
124
.
Tais deficiências seriam: a periodização convencional da poesia de Drummond
em três etapas (a irônica, a social e a metafísica); e a dicotomização da
abordagem crítica em estilística ou ideológica. (Escaparia desta dicotomia
empobrecedora Verso universo em Drummond, de José Guilherme Merquior,
porque a noção de Stilmischung, agenciada pelo crítico, leva a considerações
tanto culturais e históricas como estilísticas).
No pacote da crítica estilística estariam, por exemplo, os livros de Othon Moacyr
Garcia (Esfinge clara), Hélcio Martins (A rima na poesia de Carlos Drummond de
Andrade) e Gilberto Mendonça Teles (Drummond: a estilística da repetição);
poderíamos incluir ainda outros menores, como os de Dilman Augusto Motta (A
metalinguagem na poesia de Carlos Drummond de Andrade) e Nice Seródio
Garcia (A criação lexical em Carlos Drummond de Andrade). No da crítica
ideológica, o ensaio O princípio-corrosão na poesia de Carlos Drummond, de
Luiz Costa Lima, e o livro Drummond o gauche no tempo, de Affonso Romano
de SantAnna, seriam, de longe, os melhores representantes.
Comparando os textos de SantAnna e Costa Lima aos demais, Gledson
reconhece naqueles superioridade sobre estes. Contudo, sinaliza que o erro dos
dois está em crer que a poesia esta poesia está sujeita a um processo exterior
a ela, e que o crítico entende, mas não o poeta
125
.
Trocando o lado do disco, Sebastião Uchoa Leite, em Drummond:
musamatéria/musa aérea, para além do projeto coletivo (o modernista) em que o
poeta inserir-se-ia, enxergou, antes do crítico inglês, também um projeto
individual: Carlos Drummond de Andrade é o mais escavador dos poetas
124
GLEDSON, 1981, p. 11 e 12, grifo meu.
125
GLEDSON, 1981, p. 14.
76
modernistas, cuja poesia reflete a pesquisa mais consciente, senão a mais eficaz,
dos novos códigos da linguagem
126
. Atribui esta qualidade à auto-exigência,
implacável, a consciência crítica do poeta não é autocomplacente, e mesmo à
intolerância à autopiedade: A auto-análise substitui assim a self pity, fator de
diluição da crítica. A consciência do poeta é verminosa
127
. Assim, diante da
constatação da constante auto-superação, diante da constatação da vontade de
manter aberto o maior número possível de portas estéticas, em 1966, Uchoa Leite
encerra seu texto com um quase-aforismo que nos interessa agora resgatar: O
resto [o que viria depois de Lição de coisas], a imprevisibilidade dos seus novos
produtos poéticos, ou a sua alta previsibilidade, corre por conta das futuras
contradições do poeta como manipulador de códigos
128
.
Na leitura contemporânea de Vagner Camilo para Claro enigma ficam
evidenciados dois traços do poeta naquela obra: o classicismo e a cosmovisão.
Estes dois traços intrinsecamente articulados às contradições do poeta como
manipulador de códigos, no dizer de Uchoa Leite poderiam ser erigidos à
condição de duas categorias mais gerais, com as quais os analistas, embora com
todos os dedos, sempre têm que lidar: forma e conteúdo (uma tal escolha
simplifica rasteiramente o binômio apontado pelo crítico paulista, mas é
necessária). O grande lance da poesia drummondiana é a constante medi tação-e-
tomada-de-posição a respeito da decisão (não-antitética) de optar por qual
forma para qual conteúdo e vice-versa e não apenas em Claro enigma. (Não
deixemos de lado, todavia, que, quer sob a rubrica de classicismo, quer sob a de
cosmovisão, forma e conteúdo são esteticamente indissociáveis um
classicismo não se faz de formas, como uma cosmovisão não se faz de
conteúdo).
Noutro contexto, também João Alexandre Barbosa, em Drummond e a poesia
como conhecimento, chamou atenção para isto:
Na verdade, a pergunta essencial que se possa fazer a qualquer poema,
isto é, que tipo de conhecimento por ele transita e se constitui em
126
LEITE, 1978, p. 273.
127
LEITE, 1978, p. 274.
128
LEITE, 1978, p. 282.
77
matéria a ser incorporada pelo leitor, jamais se institui sem a sua
contraparte fundamental, isto é, o modo pelo qual foi possível, para o
poeta, instaurar uma certa organização de linguagem capaz de permitir o
próprio trânsito.
Desse modo, a comunicação poética, traduzindo uma maneira de
conhecer aspectos da realidade, envolve sempre os mecanismos de sua
configuração, ou construção, sem o que não se teria a nomeação
poética, quer dizer, aquela que possibilita, e mesmo exige, a renovação
construtiva dos indicadores semânticos.
Sendo assim, quando Drummond fala no modo de organização de sua
antologia [de 1962] como maneira de possibilitar ao leitor o encontro de
pontos de partida ou matéria de poesia, ao mesmo tempo em que está
indicando a abrangência de sua poesia, indo desde o indivíduo até às
meditações sobre a existência, afirmando, portanto, o valor de
conhecimento de sua obra, a própria frase, ao concretizar a equivalência
entre os dois termos, sugere as nove seções de sua divisão da obra
apenas como estímulos para a realização poética e para a sua
conseqüente leitura
129
.
E, ao contrário do que poderia parecer, a constante meditação a respeito de
forma e conteúdo não vem retirar do mundo a poesia drummondiana, vem, ao
contrário, fundar consigo e em si um mundo próprio, em que forma e conteúdo
não são noções díspares (daí a impertinência de uma abordagem estilística ou
ideológica). Em momento algum classicismo e cosmovisão quiseram fazer
oposição a liberdade formal e egotismo ou a experimentalismo e mundanidade.
Nas palavras de Bento Prado Jr., a dimensão metafísica que essa poesia atinge
não suprime nem o humor, nem a ironia que sempre animaram e que impregnam
toda a obra [de Drummond] de realismo e humanidade
130
.
Porém, se a previsibilidade ou imprevisibilidade da trajetória ou do projeto
desenhados pelo poeta correu por conta de suas contradições enquanto
manipulador de códigos, temos que pensar o que vem a ser um poeta e, mais,
que códigos manipula e, ainda, para que, com que finalidade manipula, ou: o que,
como e para que o poeta produz? Noutras palavras: se a poesia atinge uma
dimensão metafísica, como pode impregnar-se de realismo e humanidade?
Parece adequada, aqui, uma digressão.
II
129
BARBOSA, 2002, p. 47 e 48.
130
PRADO Jr., 2001.
78
A formatação que este trabalho propõe exige uma passagem, embora
despretensiosa, pelo complexo ensaio A origem da obra de arte, de Martin
Heidegger. Noutro contexto, esta passagem seria desnecessária, mas, aqui,
tenho ao menos doi s motivos que a expliquem. O primeiro é que pincei de Affonso
Romano de SantAnna a expressão projeto poético-pensante, que por sua vez a
havia colhido ao filósofo, no referido ensaio. Se fui feliz em encontrar uma
expressão que me parece ainda agora bastante ajustada com que nomear o todo
da produção de Carlos Drummond de Andrade, fui infeliz em ter que me atracar
com um tipo de escrita e de abordagem ao qual estou pouco familiarizada. Penso,
contudo que vale a pena o dar a cara a tapa. John Gledson concordaria comigo.
Diz ele que se o livro de SantAnna revela mais [que o de Costa Lima] (...) é
justamente porque a versão da experiência escolhida (basicamente, a de
Heidegger) corresponde a certas preocupações do poeta, que com efeito acha
que o tempo é um mistério inigualável’”
131
.
O segundo motivo que justifica a presença de Heidegger aqui é que, sem A
origem da obra de arte ou coisa que o valha , esta dissertação me pareceria
mancar. Explico: num trabalho desta natureza, penso que se devem articular três
dimensões básicas: a crítica literária, a teoria e os próprios textos literários. Nesse
sentido, o texto filosófico está para preencher uma lacuna, para dar suporte ao
que aventaremos a respeito do todo da produção poética drummondiana e da
crítica que lhe coube. Heidegger, ele mesmo, pouco ilumina, a meus olhos,
Drummond. Mas a expressão por ele cunhada (ou melhor, a ele atribuída, em
tradução para o português) me é cara.
III
A tradutora para o português de A origem da obra de arte, Maria da Conceição
Costa, em advertência de abertura à edição que usamos, ressalta que o ensaio
por ela vertido do alemão (que, na referida edição, coincide em ser o próprio livro)
é fruto de três conferências realizadas por Martin Heidegger em 1936, publicadas
em 1950 como abertura a Holzwege. Trata-se, portanto, de obra da fase final do
131
GLEDSON, 1981, p. 14.
79
filósofo
132
. Não se desalinha, porém, de suas preocupações básicas: o ser e a
verdade. Ao contrário, a meditação a respeito da natureza da obra de arte é ainda
um modo de indagar acerca delas, visto que a experiência profunda da obra de
arte revela e esconde a verdade daquilo que é, de tal modo que a podemos ver .
Se, em consonância com o que afirma a tradutora, a verdade é artística e a arte
poética, na sua essência, fundadora, então, somos levados a concordar que
através da obra [de arte], abre-se um mundo que indicia, que desprende o olhar
cativo para o outro lado das coisas. Em sua estruturação, o ensaio apresenta
uma espécie de introdução; na seqüência os itens A coisa e a obra, A obra e a
verdade, A verdade e a arte; e, por fim, o Posfácio e é neste posfácio (do
qual reproduzi uma seleção das principais partes no primeiro longo trecho de
citação, abaixo) que, parece-me, está a articulação mais interessante que
podemos fazer entre o pensamento de Heidegger e o de Drummond, este último
manifestado, parcialmente, em uma frase lapidar de entrevista concedida ao
jornal Estado de Minas (reproduzida na segunda citação abai xo):
O modo como a arte é vivenciada pelo homem é que deve fornecer a
chave sobre a essência da arte. Vivência é a fonte determinante, não
apenas para o apreciar da arte, mas também para a sua criação. Tudo é
vivência. Todavia, talvez a vivência constitua antes o elemento em que a
arte morre. (...).
É certo que se fala das obras imortais de arte e da arte como um valor
para a eternidade. Fala-se assim naquela linguagem que, a respeito de
tudo quanto é essencial, não leva as coisas a rigor, porque receia que
levá-las a rigor signifique, no final de contas: pensar. (...)
(...) Todavia, [embora já historicamente datadas as meditações de Hegel
em Lições sobre Estética] a pergunta permanece: é a arte ainda uma
forma essencial e necessária em que acontece a verdade decisiva para
o nosso ser-aí histórico, ou deixou a arte de ser tal? (...)
Tais perguntas, que nos ocupam de modo ora incisivo e direto, ora vago,
podem fazer-se quando previamente meditamos a essência da
própria arte. Ensaiamos alguns passos, ao fazer a pergunta pela origem
da obra de arte. Trata-se de trazer à luz o caráter-de-obra da obra de
arte. O que a palavra origem aqui significa é pensado a partir da
essência da verdade.
A verdade de que aqui se fala não coincide com o que se designa
comumente por este nome e que se atribui como uma qualidade ao
conhecimento e à ciência, por forma a dela distinguir o Belo e o Bom,
132
Não se acata ou refuta, aqui, a proposta de Gianni Vattimo de enxergar três momentos da
filosofia de Heidegger. Opta-se, somente, por um critério cronológico. Para maiores
esclarecimentos, consultar VATTIMO, 1996.
80
que valem como designações para os valores do comportamento não
teórico.
A verdade é a desocultação do ente como ente. A verdade é a verdade
do Ser. A beleza não ocorre ao lado desta verdade. Se a verdade se e
em obra na obra, aparece. É este parecer, enquanto ser da verdade na
obra, que constitui a beleza. O belo pertence assim ao auto-
conhecimento da verdade. O belo não é somente relativo ao agrado e
apenas como o seu respectivo objeto. Todavia, o belo reside na forma,
mas apenas porque outrora a forma clareou a partir do ser, enquanto a
entidade do ente. (...) A realidade converte-se em objetividade, e a
objetividade torna-se vivência.
No modo como, para o mundo determinado à maneira ocidental, o ente
manifesta o seu ser enquanto real, esconde-se uma particular junção da
beleza à verdade. À transformação da essência da verdade corresponde
a história da essência da arte ocidental. Esta última é tão pouco
compreensível a partir da beleza tomada por si, como a partir da
vivência, na suposição de que o conceito metafísico de arte possa
alguma vez alcançar a essência da arte.
133
e
(...) a Literatura é benéfica não só do ponto de vista político e social, mas
também porque, dela, as pessoas assimilam vivência e emoção.
134
Como veremos à frente, considerado o ensaio de Heidegger, antes de mais nada,
um convite que vem chamar-nos à difícil arte de olhar, para além do que se vê, aí
onde algo de invisível se guarda
135
, fica nítido que o problema fundamental
abordado no ensaio não é, exatamente, o problema da origem da obra de arte,
mas o da própria natureza desta, e de seu papel na desocultação ou instauração
ou instituição ou fundação da verdade. A discussão a respeito da questão da
verdade não apenas tangencia, converge, toca, fricciona a questão central da
produção poética de Carlos Drummond de Andrade o mundo, a mundanidade ,
mas atinge seu cerne, revelando, assim, a isonomia entre ambas (rejeitando, uma
e outra, de largada, as posturas antípodas, mas análogas, de agarrar-se, quer ao
Belo, quer ao gauche, como medida de todas as coisas ou como ponto de partida
válido à leitura do mundo da/na/pela arte tema sobre o qual expus algo,
mesmo que fragmentariamente, no primeiro capítulo) .
IV
133
HEIDEGGER, 2005, p. 65.
134
ANDRADE, 1985, p. 1.
135
COSTA, 2005, p. 9.
81
Em A origem da obra de arte, Martin Heidegger segue um percurso que principia
por definir o que venha a ser origem: a origem de algo é a proveniência da sua
essência. Sob a capa de enigma, podemos ousar dizer que para ele a pergunta
pela origem da obra de arte precisa indagar a proveniência essencial dessa
mesma obra
136
.
No senso comum, pensamos que a proveniência, a gênese da obra é a atividade
do artista. Porém, se o artista é artista através da obra e a obra é obra pela
atividade do artista, nenhum é sem o outro. E, todavia, nenhum dos dois se
sustenta isoladamente. Sustenta a ambos a arte, pois artista e obra são, em si
mesmos, e na sua relação recíproca, (...) graças àquilo a que o artista e a obra de
arte vão buscar o seu nome, graças à arte
137
. Deste modo, a arte palavra a que
nada de real, material, concreto, visível corresponde seria ao mesmo tempo a
origem do artista e a origem da obra.
Onde encontraríamos, então, seguramente a arte, que não corresponde a nada
de tangível? Encontraríamos a arte na obra de arte, e o que quer que queiramos
saber a respeito da arte o podemos aprender a partir da obra de arte.
Parecemos andar em círculo: e o que é mesmo obra de arte? A obra de arte está
presente no mundo de modo tão natural quanto as outras coisas. Aliás, todas as
obras têm esse caráter de coisa. Mesmo a experiência estética não pode
contornar o caráter coisal da obra de arte. Todavia, se a obra de arte é, com
efeito, uma coisa, uma coisa fabricada, ela diz ainda algo de diferente do que a
simples coisa é. A obra publicamente a conhecer algo outro, que não
simplesmente seu caráter coisal, ela é alegoria, a obra é símbolo
138
.
Então, podemos dizer que, mesmo sendo alegoria, sendo símbolo, a obra de arte
permanece como coisa? Para responder à pergunta, é preciso que saibamos
de um modo suficientemente claro o que é uma coisa. então se pode dizer se
136
Apenas para ceder ao apelo da curiosidade, também o primeiro poema do primeiro livro de
ANDRADE principia por definir a origem daquele que se apresenta, se dá a público.
137
HEIDEGGER, 2005, p. 11.
138
HEIDEGGER, 2005, p. 13.
82
a obra de arte é uma coisa à qual adere ainda algo de outro, então é possível
decidir se a obra é, no fundo, algo de outro e nunca uma coisa
139
.
Enfim, tendo considerado a natureza das coisas e das obras de arte (elas
também, quem sabe, uma espécie particular de coisas), páginas adiante,
Heidegger nos conduz às seguintes conclusões: a obra de arte é uma coisa
na medida em que é em geral algo que é, tal como se com a coisa (que é algo
que é e não o que não é). Ou, de outro modo, uma coisa é aquilo em torno do que
estão reunidas propriedades; é o que é perceptível aos sentidos e à sensibilidade;
é a conjugação de matéria e forma; assim, se a obra de arte dispõe de uma
materialidade, ela é também uma coisa. Nas palavras do filósofo:
O que dá às coisas a sua consistência e a sua nuclearidade e que
origina simultaneamente o tipo do seu afluxo sensível, o colorido, o
sonoro, a dureza, o maciço é a materialidade. Nesta determinação da
coisa como matéria está já implicada a forma. A firmeza de uma coisa, a
consistência reside no fato de uma matéria se conjugar a uma forma. A
coisa é uma matéria enformada. Esta interpretação da coisa reclama-se
da perspectiva imediata, com a qual uma coisa nos interpela através de
seu aspecto. Com a síntese de matéria e forma, está finalmente
encontrado o conceito de coisa, que se aplica igualmente bem às coisas
da Natureza e às coisas do uso.
140
A partir da citação acima, daríamos por definido o conceito de coisa. Todavia,
ainda restaria a questão Qual é (se é que é) o caráter coisal da obra de arte?.
Considerando a síntese de matéria e forma como o conceito de coisa,
responderíamos a questão dizendo que o caráter coisal na obra é
manifestamente a matéria de que consta. A matéria é o suporte e o campo para a
enformação artística.
141
Porém, Heidegger questiona, ainda:
(...) Desconfiamos deste conceito de coisa que representa a coisa como
matéria enformada.
Mas não é precisamente este par conceptual matéria-forma que é usado
no âmbito em que nos movemos? Certamente. A distinção entre matéria
e forma, e decerto nas mais diferentes variedades, é o esquema
conceptual por excelência para toda a estética e teoria da arte. Este fato
139
HEIDEGGER, 2005, p. 14.
140
HEIDEGGER, 2005, p. 19.
141
HEIDEGGER, 2005, p. 19.
83
inegável não prova, todavia, nem que a distinção matéria e forma esteja
suficientemente fundada, nem que pertença originalmente ao âmbito da
arte.
(...) A remissão para o vasto uso deste complexo conceptual na estética
poderia antes levar-nos a pensar que matéria e forma são determinações
natas da essência da obra de arte, e que a partir daí foram
transpostas para a coisa. Onde é que, então, o complexo matéria-forma
tem sua origem, no caráter coisal da coisa ou no caráter de obra da obra
de arte?
142
Refletindo sobre a distinção matéria e forma, e, ainda, evidenciando o quanto
era gasta na primeira metade do século XX, sinaliza que a forma determina a
ordenação da matéria e prescreve a qualidade e a escolha da matéria. Assim, a
imbricação entre forma e matéria é regulada pela serventia dos objetos, das
coisas. Um machado, por exemplo, além de possuir inelutavelmente a forma de
um machado, exige a suficiente dureza necessária a um machado o que
determina a matéria de que há de ser feito.
Se a imbricação entre forma e matéria é regulada pela serventia dos objetos, isso
não nos permite, porém, concluir que toda coisa por se fazer, também, da
conjugação entre forma e matéria tem serventia. coisas inúteis. Desta feita,
o que distingue uma coisa de um apetrecho (um objeto utilitário) é que no primeiro
a serventia é facultativa, no segundo é essencial. Matéria e forma, assim, não
constituem determinações originais da coisidade da mera coisa. E é a partir de
disso que podemos começar a avançar na resposta sobre a origem da obra de
arte: forma e matéria são traços inerentes quer ao apetrecho, quer à coisa, quer à
obra, todavia o apetrecho possui necessariamente serventia, ao passo que a
coisa e a obra de arte, não: este termo [apetrecho] designa o que é fabricado
expressamente para ser utilizado e usado. (...) A obra de arte, pela sua presença
auto-suficiente, assemelha-se antes à mera coisa, dando-se em si própria e a
nada forçada
143
.
O ser-apetrecho do apetrecho repousaria, então, em sua serventia (e não na
imbricação entre forma e matéria). Para conseguirmos apreender o caráter
instrumental do apetrecho teríamos que procurá-lo em seu serviço, no exercício
142
HEIDEGGER, 2005, p. 19 e 20 (grifos do autor).
143
HEIDEGGER, 2005, p. 21.
84
de sua serventia. A partir desta assertiva, Heidegger nos conduz pela mão, no
longo e poético trecho a seguir, que entrecortamos com alguns comentários
pontuais:
Mas que caminho conduz ao caráter instrumental no apetrecho? Como é
que devemos experienciar que é que o apetrecho na verdade é? O
procedimento agora necessário deve obviamente manter-se afastado
daquelas tentações que imediatamente trazem consigo os atropelos das
interpretações correntes. Estamos mais seguramente ao abrigo disso se
pura e simplesmente, sem qualquer teoria filosófica, fizermos a descrição
de um apetrecho.
Escolhemos como exemplo um apetrecho conhecido: um par de sapatos
de camponês. Para a sua descrição, não é preciso ter à frente autênticas
peças deste tipo de apetrechos de uso. Toda a gente os conhece. Mas
como se trata de uma descrição direta, talvez seja bom facilitar a
presentificação intuitiva. Para fornecer esta ajuda, basta uma
representação pictórica. Para tanto escolhemos uma conhecida pintura
de Van Gogh, que pintou várias vezes calçados deste gênero.
144
Alguns dos exemplos evocados por Martin Heidegger são os reproduzidos a
seguir:
144
HEIDEGGER, 2005, p. 24.
85
(Apenas para não perder o gosto pelo suplementar, cumpre lembrar que no
conjunto de poemas de Carlos Drummond de Andrade intitulado Arte em
exposição, incluído posteriormente em Farewell, Van Gogh é o artista mais
constante concorre com 4 obras. , inclusive, um poema ecfrástico para uma
das telas de sapatos de camponê s:
Cansaram de caminhar
ou o caminho se cansou?
145
A tela em questão é a terceira das quatro reproduzidas acima.)
Depois da presentificação intuitiva sugerida, que tentamos reproduzir acima,
Heidegger prossegue:
(...) Mas o que é que de especial para ver [nas telas de sapatos de
camponês pintadas por Van Gogh]? Toda a gente sabe o que faz parte
de um sapato. Se não são socos ou chanatos, uma sola de couro e o
cabedal que cobre, ajustados um ao outro por costuras e pregos. Um
apetrecho deste tipo serve para calçar os pés. Consoante a serventia, se
145
ANDRADE, 1990, p. 57.
86
para o trabalho no campo, ou para dançar, assim diferem matéria e
forma.
Estas indicações adequadas apenas explicam o que sabemos. O ser-
apetrecho do apetrecho repousa na sua serventia. Mas o que se passa
com esta? Apreendemos já porventura o caráter instrumental do
apetrecho? Para o conseguirmos, não temos de procurar o apetrecho
que tem serventia no seu serviço? A camponesa no campo traz os
sapatos. Só aqui eles são o que são. E tanto mais autenticamente o são,
quanto a camponesa durante a lida pensa neles, ou olha para eles ou
até mesmo os sente. Ela está de pé e anda com eles. Eis como os
sapatos servem realmente. Neste processo de uso do apetrecho, o
caráter instrumental de apetrecho deve realmente vir ao nosso encontro.
Enquanto, pelo contrário, tivermos presente um par de sapatos apenas
em geral, ou olharmos no quadro sapatos vazios e não usados que estão
meramente aí, jamais apreenderemos o que é, na verdade, o caráter
instrumental do apetrecho. A partir da pintura de Van Gogh não podemos
sequer estabelecer onde se encontram estes sapatos. Em torno deste
par de sapatos de camponês não nada em que se integrem, a que
possam pertencer, um espaço indefinido. Nem sequer a eles estão
presos torrões de terra, ou do caminho do campo, algo que pudesse
denunciar a sua utilização. Um par de sapatos de camponês e nada
mais. E todavia...
Na escura abertura do interior gasto dos sapatos, fita-nos a dificuldade e
o cansaço dos passos do trabalhador. Na gravidade rude e sólida dos
sapatos está retida a tenacidade do lento caminhar pelos sulcos que se
estendem até longe, sempre iguais, pelo campo, sobre o qual sopra um
vento agreste. No couro, está a umidade e a fertilidade do solo. Sob as
solas, insinua-se a solidão do caminho do campo, pela noite que cai. No
apetrecho para calçar impera o apelo calado da terra, a sua muda oferta
do trigo que amadurece e a sua inexplicável recusa na desolada
improdutividade do campo no Inverno. Por este apetrecho passa o
calado temor pela segurança do pão, a silenciosa alegria de vencer uma
vez mais a miséria, a angústia do nascimento iminente e o tremor ante a
ameaça de morte. Este apetrecho pertence à terra e está abrigado no
mundo da camponesa. É a partir desta abrigada pertença que o próprio
produto surge para o seu repousar-em-si-mesmo.
Mas tudo isto o vemos possivelmente no apetrecho para calçar que está
no quadro. Pelo contrário, a camponesa traz pura e simplesmente os
sapatos. (...)
(...) Descobrimos o ser-apetrecho do apetrecho (...) apenas graças ao
fato de nos pormos perante o quadro de Van Gogh. Foi este que falou.
(...)
A obra de arte fez saber o que o apetrecho de calçado na verdade é. (...)
A obra não serviu em absoluto, como à primeira vista poderia parecer,
para uma melhor presentificação intuitiva daquilo que é um apetrecho.
Antes sucede que através da obra, e nela, o ser-apetrecho do
apetrecho vem expressamente à luz.
146
E o que tem a produção poética drummondiana a ver com isso tudo? Em primeiro
lugar, precisamos resgatar algumas das falas da Abertura deste trabalho. Eu
146
HEIDEGGER, 2005, p. 25 a 27.
87
disse então que, quando Mikhail Bakhtin conclui seu ensaio acerca dos problemas
da poética de Dostoiévski, assinala que a originalidade do romancista russo como
artista está em ter contribuído com novas formas de visão estética. Em razão de
outros traços temáticos e estilísticos mas de natureza comum , afirmei pensar
que se pode dizer o mesmo da produção poética drummondiana.
Disse ainda que as formas de visão estética engendradas a partir da criação do
romance polifônico por Fiódor Dostoiévski permitem ver e descobrir novas
facetas do homem e de sua vida e que também a produção poética de
Drummond trouxe à luz facetas nossas, de nossas vidas, insuspeitadas.
Expliquei que penso assim não apenas porque a trajetória literária e intelectual de
Drummond, fundada na travessia de tempos e espaços, na migração da periferia
para o centro, da tradição para o moderno, apresenta um complexo roteiro de
lugares por onde se insinuam as práticas discursivas da modernidade cultural no
Brasil. Ou porque, de acordo com Merquior, a démarche drummondiana teria
coincidido, oportunamente, com o movimento (político, social, ideológico) de
passagem do cenário rural e oligárquico para o urbano e industrial. Noutras
palavras, expliquei que, se os poemas de Drummond nas palavras de Ítalo
Moriconi, feitos um parâmetro inescapável de toda a poesia futura permitem
ver e descobrir novas facetas do homem e de sua vida, caracterizando o que
Bakhtin chamou de evolução do pensamento artístico da humanidade, é porque
nenhum outro poeta brasileiro se lançou tanto fora das páginas. Lançar-se fora
das páginas pode traduzir-se, mas apenas em primeira instância, talvez, por
haver testemunhado a Semana de Arte Moderna, a ascensão e o ocaso da era
getulista, as duas grandes guerras, a Poesia Concreta, a ditadura militar, a
tecnologia irrefreável, os novos inocentes do Leblon; e, sabemos, não apenas
testemunhado, mas vivido e estetizado cada tempo presente ao sabor das
vicissitudes que lhe são próprias.
E eu disse ainda que, como me parece que a poética de Carlos Drummond de
Andrade contribuiu, na literatura brasileira, com novas formas de visão estética e,
assim, com a visão e o descobrimento de novas facetas do homem e de sua vida,
a partir de um pensamento artístico polifônico e multifacetado, não quis deixar de
88
pôr, lado a lado, na qualidade de inauguradores de um legado que não pode ser
ignorado, Dostoiévski e Drummond.
Em segundo lugar, depois de recordarmos o que eu disse na abertura deste
trabalho, retomando A origem da obra de arte, precisamos concluir: do mesmo
jeito que, para Heidegger, só enxergamos os cansaços, as dificuldades e as
incertezas do trabalhador, bem como a generosidade e a inconstância da
natureza contemplando a escura abertura do interior gasto dos sapatos pintados
por Van Gogh ( que a camponesa traz pura e simplesmente os sapatos),
podemos dizer que só enxergamos novas e insuspeitadas facetas de nossas
vidas graças ao trabalho poético de Carlos Drummond de Andrade
(parafraseando o que Bakhtin afirmara, quase um século antes, a respeito de
Fiódor Dostoiévski e seu romance polifônico).
É a estetização de cada tempo presente que funda mundos anteriormente
inexistentes. Talvez, nas palavras do filósofo, aquilo a que temos chamado sem
preocupação terminológica de o fundar de mundos anteriormente inexistentes
seja a desocultação do ente como ente (a verdade) pondo-se em obra na obra. As
possibilidades que o texto de Heidegger nos traz não se esgotam por aqui,
contudo. Precisamos prosseguir, a fim de discernirmos o que vem a ser aquilo a
que tenho denominado, com SantAnna, o projeto poético-pensante de Carlos
Drummond de Andrade.
V
No sub-item A verdade e a arte, de A origem da obra de arte, Heidegger
chama a atenção para o fato de que o caráter-de-obra da obra consiste no seu
ser-criada; ser criada é o mesmo que ser produzida, ser fabricada. Assim, tanto a
obra, quanto o apetrecho, por exemplo, são criados, são produtos de manufatura.
A pergunta passaria a ser, então, em que se distingue o produzir enquanto
criação do produzir enquanto modo de fabricação. Para começar a responder à
questão, o filósofo nos recorda que é freqüentemente resgatada a convergência
lingüística, no grego, entre manufatura e arte (τέκνη), e entre artesão e artista
(τεκνίτηζ), mas esclarece que a referência à palavra grega que denomina obra de
89
manufatura e obra de arte para determinar a essência da criação a partir de seu
lado de manufatura é errada e superficial, pois τέκνη quer dizer muito mais um
modo de saber, um modo de apreender o presente enquanto tal. Noutras
palavras, τέκνη é um produzir do ente, na medida em que traz o presente como
tal, da ocultação para a desocultação do seu aspecto, e nunca significa a
atividade de um fazer
147
. E o artista é um artesão não na medida em que seu
ofício é a manufatura, mas na medida em que também faz o ente ascender à sua
presença
148
. Desta feita, o que determinaria o ser-criado da obra e o criar seria o
ser-obra (e não a atividade manual do τεκνίτηζ).
Na seqüência, Heidegger propõe que a partir da consideração da delimitação da
essência da obra que foi alcançada, segundo a qual na obra está em obra o
acontecer da verdade, podemos caracterizar a criação como o deixar-emergir
num produto. Assim, o tornar-se obra da obra é um modo do passar-a-ser e de
acontecer da verdade. Tomando estas afirmações como ponto de partida,
chegamos à compreensão de que um modo essencial como a verdade se institui
no ente que ela mesma abriu
149
é o pôr-em-obra-da-verdade
150
.
Aqui, antes de ir adiante, é necessário regressar ao sub-item A obra e a
verdade, deixado para trás umas páginas, para que a coisa não comece a
ficar por demais turvada.
VI
Em A obra e a verdade, de largada, é feito um apanhado das conclusões a que
se chegara no sub-item anterior, A coisa e a obra: a) a origem da obra de arte é
a arte; b) a arte é real na obra de arte; c) as obras de arte mostram sempre, das
mais diferentes maneiras, sua coisalidade; e d) a coisalidade da obra nunca
poderá ser encontrada enquanto o puro estar-em-si-mesma da obra não se tiver
147
HEIDEGGER, 2005, p. 47, grifos do autor.
148
HEIDEGGER, 2005, p. 48.
149
O aberto no contexto é aquilo no qual tudo assoma e a partir do qual se retrai tudo o que se
mostra e se erige como ente, em HEIDEGGER, 2005, p. 49.
150
HEIDEGGER, 2005, p. 48 e 49.
90
claramente manifestado. E se inicia uma inquirição: Mas é a obra alguma vez
acessível em si?
151
.
Afirma Heidegger que para a obra repousar em seu ser-obra, em si mesma,
deveria ser retirada de todas as relações com aquilo que não é ela. E, embora
seja este o autêntico intento dos grandes artistas libertar a obra para o puro
estar-em-si-mesma , as obras encontram-se e estão penduradas nas coleções
e exposições, tornam-se acessíveis ao gozo artístico público e privado
152
,
passando a ocupar autoridades oficiais, críticos e conhecedores de arte e mesmo
comerciantes.
Assim, a partir de quando se dá a irreversível transferência da obra de seu mundo
original (pela subtração e ruína deste) para um mundo outro (por exemplo, uma
galeria, uma exposição, etc.), o primigênio estar-em-si da obra esvaece. Porém,
todo o funcionamento das coisas no mundo da arte atinge somente o ser-objeto
das obras, e não seu ser-obra porque o ser-obra da obra advém da abertura
criada por ela mesma (obra).
A subtração e a ruína do mundo o espaço essencial da obra não são
movimentos reversíveis. Uma vez levadas a cabo, impedem que as obras sejam
ainda aquilo que antes foram. Obviamente, sua existência objetal permanece; seu
estar-em-si doravante é um desdobramento ou conseqüência do primeiro estar-
em-si, mas já não é o mesmo (o que, todavia, não invalida ou atinge o ser-obra da
obra, apenas desvirtua o seu ser-objeto).
E por que podemos dizer que a obra permanece ainda obra, se, agora, estará
para além de seu primitivo ser-objeto? Basicamente, de acordo com Heidegger,
porque
(...) quando uma obra se acomoda numa coleção ao se colocar numa
exposição, diz-se também que se instala. (...) Semelhante instalação
significa: o erigir, no sentido de consagrar e glorificar. Instalar não quer
dizer aqui o mero colocar. Consagrar quer dizer sagrar no sentido de
que, no erigir pela obra, o sagrado é aberto como sagrado (...). No
151
HEIDEGGER, 2005, p. 31.
152
HEIDEGGER, 2005, p. 31.
91
reflexo deste esplendor reluz, isto é, brilha o que chamamos mundo.
Erigir quer dizer: abrir o justo, no sentido da medida que acompanha,
orientando, medida que o próprio essencial é, fornecendo, enquanto tal,
as orientações. Mas por que é que a exposição da obra é um erigir que
consagra e glorifica? Porque a obra no seu ser-obra o requer. Como é
que da obra resulta a exigência de uma tal instalação? Porque ela
própria, no seu ser obra, é instaladora.
153
ou, ainda de acordo com Heidegger, porque A obra pertence enquanto obra ao
campo que é aberto por ela própria. Porque o ser-obra da obra advém, e
advém, em tal abertura
154
.
Se é na obra que o acontecimento da verdade está em obra, que a obra abre
um mundo e mantém-no numa permanência que domina
155
, ser obra quer dizer:
instalar um mundo
156
. E aqui cabe um pequeno ritornelo que nos traga de volta o
texto de José Miguel Wisnik, apresentado nas últimas páginas do primeiro
capítulo. Resumi aquele texto dizendo que, de Wisnik, leitor de Drummond nos
anos 2000, nos fica a possibilidade de ler a obra tardia do poeta não com olhos
modernos, apenas, mas também com outros olhos, mesmo que o rótulo
quaisquer que sejam os nomes que possamos lhe dar não seja preciso.
Destaquei porém que, mais importante ainda (que apontar traços pós-modernos
na produção de um dos maiores ícones de nosso modernismo), foi o crítico haver
percebido que nas duas últimas décadas de vida o poeta buscou o ponto
misterioso e aparentemente inacessível, espécie de Pandora machadiana, ou de
aleph borgesiano, que desse conta da diversidade rebelde da vida ao nascedouro
dela ou seja, o poeta buscou deixar bastante nítido em seus últimos trabalhos o
eriçamento de uma relação isomórfica entre sua obra e o mundo.
Talvez a minha síntese para o artigo de Wisnik, então, deva agora ser
redimensionada, para que apareça, mais marcantemente, o diagnóstico de José
Miguel Wisnik de que lancei mão no início de minha tentativa de resenha: talvez
nenhum poeta, no Brasil ou no mundo, diga tanto a palavra mundo, em seus
poemas, como Carlos Drummond de Andrade. E, como eu destaquei, essa
variedade de mundos abarca, tem que abarcar, desde poemas-poemas (para
153
HEIDEGGER, 2005, p. 34.
154
HEIDEGGER, 2005, p. 32.
155
HEIDEGGER, 2005, p. 34, grifo do autor.
156
HEIDEGGER, 2005, p. 35, grifos meus.
92
aproveitar o rótulo dado por Haroldo de Campos), até poemas comemorativos,
memoriais, padrescos, grandiloqüentes, etc. Isso porque a poesia de Drummond
é atravessada por feixes de mundos, inumeráveis, que causam a alternância,
tão reconhecível nele, entre a insistência implacável da totalidade, que parece
interpelar o sujeito a cada passo, e a dol orosa irrelevância de que se reveste essa
mesma busca, reduzida espasmodicamente a um cálculo ínfimo, uma pedra
inexpelível.
E o que viria a ser mundo? Porque essa variedade de mundos abarca, tem que
abarcar poemas-poemas, até poemas comemorativos, memoriais, padrescos,
grandiloqüentes, etc.? Letícia Malard uma resposta com a qual pactuo, à
segunda questão:
Muitos dos críticos e analistas de Drummond costumam separar os
textos de poesia propriamente dita de textos da chamada poesia
circunstancial crônicas versificadas com base em fatos do cotidiano,
composições dedicadas a amigos em ocasiões especiais ou poemas de
celebração. O próprio poeta também fez a separação. (...) [Nesta
separação] jaz sub-repticiamente um juízo de valor (...). O nível de
qualidade da maioria absoluta dos poemas drummondianos, sua
diversidade temático-formal e seu trabalho com a linguagem são, no
global, tão elevados que não me parecem justificar esta separação.
157
da leitura de Martin Heidegger poderíamos exigir uma outra espécie de
resposta, dirigida, agora, à primeira das questões formuladas:
Mundo não é a simples reunião das coisas existentes, contáveis ou
incontáveis, conhecidas ou desconhecidas. Mas mundo também não é
uma moldura meramente imaginada, representada em acréscimo à soma
das coisas existentes. O mundo mundifica e é algo mais do que o
palpável e apreenvel, em que nos julgamos em casa. Mundo nunca é
um objeto, que está ante nós e que pode ser intuído. O mundo é o
sempre inobjetual a que estamos submetidos enquanto os caminhos do
nascimento e da morte, da bênção e da maldição nos mantiverem
lançados no Ser. Onde se jogam as decisões essenciais da nossa
história, por nós são tomadas e deixadas, onde não são reconhecidas e
onde de novo são interrogadas, o mundo mundifica. (...) Ao abrir-se
um mundo, todas as coisas adquirem a sua demora e pressa, a sua
distância e proximidade, a sua amplidão e estreiteza. No mundificar, é
oferecida ou recusada a amplidão a partir da qual está congregada a
benevolência dos deuses, que nos guarda. Também esta fatalidade da
ausência do deus constitui um modo como o mundo mundifica.
Na medida em que uma obra é obra, abre o espaço para aquela
amplidão. Abrir espaço quer dizer aqui ao mesmo tempo: libertar o livre
157
MALARD, 2005, p. 16 e 17.
93
do aberto e instituir este livre no seu conjunto de traços. Este in-stituir
manifesta-se a partir do erigir. A obra enquanto obra instala o mundo. A
obra mantém aberto o aberto do mundo. Mas a instalação de um mundo
é apenas um dos dois traços essenciais a referir-se do ser-obra. (...)
(...) Do mesmo modo que a obra exige a sua instalação no sentido do
erigir consagrante e glorificante, porque o ser-obra da obra reside numa
instalação de mundo, também a produção é necessária, porque o próprio
ser-obra da obra tem o caráter da produção [a partir desta ou daquela
matéria; nas palavras do próprio Heidegger: pedra, madeira, bronze,
cor, linguagem, som].
158
Todavia, em relação a Drummond, a palavra mundo, na visão da crítica, ganha
uma conotação aparentemente mais restrita. Se, partindo da afirmativa de Wisnik
reproduzida mais acima, passarmos a definir mundo tendo como régua o causar
a alternância entre a insistência implacável da totalidade, que parece interpelar o
sujeito a cada passo, e a dolorosa irrelevância de que se reveste essa mesma
busca, reduzida espasmodicamente a um lculo ínfimo, uma pedra inexpelível,
soaria menos abrangente que o mundo é o sempre inobjetual a que estamos
submetidos enquanto os caminhos do nascimento e da morte, da bênção e da
maldição nos mantiverem lançados no Ser. Mas a inequivalência entre uma e
outra conotação é apenas, como j á dissemos, aparente.
Caberia retomar a alfinetada de Affonso Romano de SantAnna, bastante anterior
ao texto de Wisnik, em muitos estudantes iniciantes e críticos, por enxergarem na
poesia do mineiro uma espécie de bazar ou supermercado, onde se entra e retira
da prateleira um tema, pois, para ele, esse tipo de obra exige um outro tipo de
leitura, porque não sendo um amontoado de temas, não tendo organização
aleatória, sendo uma obra em projectum, realiza aquilo que Heidegger dizia: (...)
o ser humano deve desenvolver um projeto poético pensante através da
existência.
A retomada do texto de SantAnna vem iluminar o de Wisnik na medida em que
nos permite ver que a dita alternância entre a insistência implacável da totalidade
e a dolorosa irrelevância de que se reveste essa mesma busca não é apenas
isomórfica ou correspondente ou especular em relação ao conflito básico da
existência, mas é a própria existência. E por que se poderia afirmar isso?
158
HEIDEGGER, 2005, p. 35 e 36.
94
Basicamente porque, se o ser humano deve desenvolver um projeto poético
pensante através da existência, isso quer dizer que o ser humano deve
desenvolver um projeto artístico através da existência (e não na existência ou
para a existência), ou, noutras palavras, o ser humano deve viver belamente
(como veremos adiante em um texto platônico, caro ao Drummond de O amor
natural) não no sentido tradicional do belo, mas no de que é o aparecer,
enquanto ser da verdade na obra e como obra, que const itui a beleza
159
.
Porém, a conclusão do parágrafo acima refuta a possibilidade de definir mundo
tendo como régua o causar a alternância entre a insistência implacável da
totalidade, que parece interpelar o sujeito a cada passo, e a dolorosa irrelevância
de que se reveste essa mesma busca, reduzida espasmodicamente a um cálculo
ínfimo, uma pedra inexpelível. Talvez o mais apropriado fosse pensar mundo
não como a alternância entre x e y, mas como a convergência (ou, veremos,
como a recíproca pertença) entre a insistência implacável da totalidade e a
dolorosa irrelevância de que se reveste uma tal busca.
A este respeito, eu gostaria de deixar virem à tona algumas palavras do último
capítulo de O dossiê Drummond, de Geneton Moraes Neto:
Pouquíssimos criadores terão conseguido, em qualquer época,
transformar em palavras de beleza tão intensa o sentimento de
permanente inadaptação ao mundo, o espanto diante do absurdo da
vida, a frustração cívica, a certeza de que tudo é um sistema de erros,
um vácuo atormentado, um teatro de injustiças e ferocidades. Desse
sentimento, desse espanto, dessa frustração, dessa certeza, Drummond
extraiu uma poesia paradoxalmente solidária, perplexa, esperançosa.
160
Parece que, pensando assim, passa a ser mais fácil entender aqui, no âmbito
deste trabalho, a confluência de termos tão díspares, como arte, mundo,
verdade, projeto. Retomemos a definição heideggeriana de mundo:
Mundo não é a simples reunião das coisas existentes, contáveis ou
incontáveis, conhecidas ou desconhecidas. Mas mundo também não é
uma moldura meramente imaginada, representada em acréscimo à soma
das coisas existentes. O mundo mundifica e é algo mais do que o
palpável e apreenvel, em que nos julgamos em casa. Mundo nunca é
159
HEIDEGGER, 2005, p. 67.
160
MORAES NETO, 1994, p. 279.
95
um objeto, que está ante nós e que pode ser intuído. O mundo é o
sempre inobjetual a que estamos submetidos enquanto os caminhos do
nascimento e da morte, da bênção e da maldição nos mantiverem
lançados no Ser. Onde se jogam as decisões essenciais da nossa
história, por nós são tomadas e deixadas, onde não são reconhecidas e
onde de novo são interrogadas, o mundo mundifica.
Se o mundo mundifica onde se jogam as decisões essenciais da nossa história,
(...) onde não são reconhecidas e onde de novo são interrogadas, e se é o
aparecer, enquanto ser da verdade na obra e como obra, que constitui a beleza,
a idéia da expressão projeto poético-pensante é a de que a existência (e
pouco importa se da pessoa física ou lírica, se da pessoa ou persona) deve ser
vivida (na indecidibilidade entre ser gozada e ser planejada) como um projeto
poético (no sentido de artístico) que, por ser artístico, é um projeto pensante, e
vice-versa, já que o ser é interpelação ao homem e não é sem este.
Trata-se, em poucas palavras, de um enfraquecimento ou esfacelamento da
distinção entre, por um lado, fazer arte ou criar arte ou mesmo saber qual é a
origem ou a natureza da obra de arte e, por outro, existir, visto que não seriam
coisas opostas ou mesmo antitéticas, que na arte se cria a abertura (ou
clareira, nas palavras de Heidegger) do ser, mas que, ao mesmo tempo, a arte
não pode prescindir de seu caráter coisal, objetal, obral.
Uma tal leitura é de pôr em os cabelos dos heideggerianos ortodoxos, porém
me sinto confortável em apresentá-la como proposta, pois o objetivo
suficientemente claro deste texto jamais foi iluminar o pensamento do alemão,
mas instaurar categorias que permitissem pensar o brasileiro. Se, distorcendo,
talvez, e acolá o ensaio filosófico, eu houver conseguido propor algo que nos
ajude a problematizar a poesia de Drummond, a recorrência às categorias
pensadas por Heidegger terá sido boa mesmo que se venha a dizer que
Heidegger, ali (daqui?), passou longe.
VII
No Suplemento incluído em A origem da obra de arte, chama-se atenção para a
ambigüidade essencial que em se determinar a arte como o pôr-em-obra-da-
verdade. Esta ambigüidade seria diretamente decorrente do entendimento de
96
que a verdade é, por um lado, sujeito e, por outro lado, objeto. Se
entendêssemos a verdade como sujeito, a expressão heideggeriana passaria
obrigatoriamente à reflexividade, e seria, então, o pôr-se-em-obra-da-verdade.
Se entendêssemos a verdade como objeto, a arte estaria reduzida à condição
de trabalho humano de criação e de salvaguarda
161
. Todavia, tanto uma, quanto
outra caracterização são inadequadas, por desconsiderarem que obra de arte e
artista repousam em conjunto no essenciante da arte
162
.
A mais genuína ambigüidade contida em r-em-obra-da-verdade seria relativa
ao fato de que, na expressão, é por um lado evidenciada e por outro lado
dissimulada a problemática central do ensaio de Heidegger. A problemática é
evidenciada quando nos apercebemos de que em pôr(-se)-em-obra-da-verdade
permanece indeterminado, mas determinável, quem ou o que de que modo se
põe. E é dissimulada quando o problema formal-semântico camufla que,
inerente a si, a questão do ser, da essência do homem, e, assim, da verdade,
e, assim, da arte: a que se responde propondo a pertença recíproca do ser e da
palavra.
Neste ponto é que preciso cavar mais funda a minha diferença com SantAnna.
Em Por que a peripécia do poeta gauche nos comove, o crítico defende que a
idéia de Logos como reunião e a idéia de projectum seriam as duas idéias
sicas para o estudo e o entendimento da obra poética de Carlos Drummond de
Andrade. Diz ele:
(...) Heidegger dizia: que o homem, a mulher, o ser humano deve
desenvolver um projeto poético pensante através da existência.
Por isso Heidegger dizia que indagar quem é o homem, que é o ser
humano é algo essencial, e o poeta e o filósofo mais que ninguém têm o
direito de fazê-lo. Drummond tem um poema que se chama
Especulações em torno da palavra homem. Essa especulação,
lembrando ainda o filósofo alemão e os gregos que sustentam seu
pensamento, pode ser realizada fundando-se poeticamente, mediante
a fundação poética do ser, que se através da palavra, através do
Logos, do discurso.
Curiosamente essa idéia de Logos, que é ventilada e estudada através
de outras áreas do pensamento, no caso específico da filosofia e no
161
HEIDEGGER, 2005, p. 72.
162
HEIDEGGER, 2005, p. 72.
97
caso de Drummond, tem um valor muito claro. Logos é entendido como
reunião, a capacidade de articular, de produzir o sentido. E outra vez
aí, Drummond, como todos os modernos, está produzindo o sentido que
é o avesso do que se faz na contemporaneidade, que é a produção do
não-sentido (...).
163
A primeira diferença é: não estou bem certa de que a) o poeta e o filósofo tenham
mais que ninguém o direito de indagar quem é o homem; e nem de que b)
qualquer especulação em torno da palavra homem possa ser realizada
fundando-se poeticamente, mediante a fundação poética do ser, que se
através da palavra, através do Logos, do discurso.
Parece-me que pôr poetas e filósofos em uma condição privilegiada, da qual,
todavia, não se discutiram as premissas, é um erro (e o texto de SantAnna não
sinaliza, sequer, tais premissas) embora eu deva reconhecer que esta é uma
discussão caduca; e é um erro porque indagar quem é o homem é o destino
fatal de todo e qualquer ser humano, sendo, assim, direito de todo e qualquer ser
humano. Pôr poetas e filósofos em uma condição supostamente privilegiada em
relação a isso seria, antes de mais nada, lidar de modo ingênuo com as questões
amplamente discutidas ao longo de séculos e, para sermos mais restritos, com as
questões amplamente discutidas em A origem da obra de arte. Noutras
palavras, se a arte é o pôr-em-obra-da-verdade (ou seja, se a arte não prescinde
de sua materialidade, não prescindindo, assim, quer da condição de inutensílio,
quer da condição de aquilo que é porque se instala instalando um mundo) e
se, seguramente, como afirma Heidegger no início de seu ensaio, podemos
encontrar a arte nas obras de arte, o pôr-em-obra-da-verdade é,
necessariamente, um congraçamento mútuo, uma recíproca pertença do ser e da
palavra.
Parece-me também que não é de todo arrazoado afirmar que qualquer
especulação em torno da palavra homem só possa ser realizada fundando-se
poeticamente, mediante a fundação poética do ser, que se através da palavra,
através do Logos, do discurso’”, basicamente, por dois motivos. O primeiro é que
há especulações de diversas naturezas em torno da palavra homem e não é
prerrogativa de todas elas que possam ser realizadas mediante a fundação
163
SANTANNA, 2004, p. 14 e 15.
98
poética do ser tanto é que Heidegger distingue entre a linguagem rigorosa (dos
que optam por desenvolver um projeto poético pensante através da existência) e
a linguagem característica daqueles que não levam as coisas a rigor porque têm
receio de que isso signifique pensar. O segundo motivo é que não me soa
tranqüila a equivalência entre através da palavra, através do Logos e através
do discurso, pois tais termos, em si só, requereriam uma tese que se propusesse
apenas a defini-los e compará-los.
Este questionamento a r espeito da equivalência (obviamente, não semântica, mas
hierárquica mesmo) entre palavra, Logos e discurso é diretamente decorrente da
afirmativa do crítico de que, no caso de Drummond, Logos venha a ser entendido
como reunião, a capacidade de articular, de produzir o sentido e de que,
Drummond, como todos os modernos, está produzindo o sentido que é o avesso
do que se faz na contemporaneidade, que é a produção do não-sentido. Não
estou bem certa, também, de que se possa pôr de um lado Drummond e de outro
o que se faz na contemporaneidade, nem de que a noção de projeto em
Drummond equivalha de modo tão direto a uma leitura tão rasteira do que teria
sido/seja o suposto projeto de todos os modernos.
Marcar uma tal diferença é essencial porque não quero que o uso que aqui faço
da expressão projeto poético-pensante seja irremediavelmente contaminado
pelas justificativas de SantAnna para o uso da mesma expressão em relação à
obra de Drummond. A principal oposição entre uma e outra maneira de lançar
mão da fórmula heideggeriana decorre da incongruência entre a maneira como o
crítico enxerga a idéia de projeto (uma ordenação linear, cujo ponto alto seria a
capacidade de articular, de produzir o sentido, em oposição ao que
supostamente se faz na contemporaneidade) e como eu a enxergo (a vontade de
manter aberto o maior número possível de portas estéticas, o que quer dizer: o
que há, noves fora, é um sujeito que se mostra angustiado, inseguro, pois, tendo
por projeto dialogar com a tradição ocidental, constrói uma trajetória de superação
de si mesmo, de inserção no mundo estético e, assim, político um sujeito,
portanto, social, sociável, suscetível às agruras da criação de si mesmo, enquanto
sujeito lírico).
99
A oposição secundária entre uma e outra maneira de lançar mão da fórmula
heideggeriana decorre da incongruência entre a forma como o crítico enxerga
poético-pensante e a como eu enxergo. Para ele, a poesia de Drummond tem
uma estrutura determinada, e essa estrutura se montaria, de uma maneira
explícita, equivalentemente a uma peça de teatro dividida em três atos: Eu maior
que o mundo, Eu menor que o mundo e Eu igual ao mundo. Nas suas
palavras,
(...) Esse personagem que se articula nesses três atos que eu nomeava
de Eu maior, Eu menor, Eu, igual ao mundo é tão rico que se utiliza
de uma série de recursos que são máscaras, confirmando os atributos
dramáticos dessa poesia rica.
E que máscaras são essas?
São inúmeras. Fernando Py (...) localizou mais de setenta
pseudônimos em Drummond. (...)
164
A construção de máscaras ou de inúmeros pseudônimos (como se uma e outra
coisa fossem equivalentes ou mesmo comparáveis/compatíveis) é que
caracterizaria a organização estrutural do projeto drummondiano como poético e
pensante. Na tentativa de, a cada momento, dar conta de pôr em versos a
apreensão poética do estar-no-mundo, o eu lírico drummondiano ter-se-ia posto
em posição ora superior, ora igual, ora inferior ao mundo. Mediante o exposto, fica
bastante evidente que, embora o crítico use a expressão poético-pensante com
hífen, de modo a marcar a indecidibilidade ou continuidade ou não-dissociação
entre uma e outra noção (poético/pensante), ele faz divergir uma coisa e outra,
como se a noção de poético fosse uma e a de pensante fosse outra. Noutras
palavras, é como se em função de uma determinada constatação racional
(filosófica, existencial: pensante), a poesia de Drummond tomasse formalmente
outro rumo, criando, assim, uma nova máscara ou novos pseudônimos poéticos.
Todavia, me parece que poético-pensante, resgatando o que apresentei acima a
respeito do pensamento de Heidegger sobre a obra de arte, deva ser entendido
de outra maneira. Primeiramente, não se deveria identificar no todo da produção
poética drummondiana uma seqüência cronologicamente organizada de
164
SANTANNA, 2004, p. 15.
100
transformação estilística ou estética, porque, como se disse, sua temporalidade
é formada por vários passados e por vários presentes justapostos e
entrecruzados. Em segundo lugar, não se pode dizer que em função de uma
tomada de posição qualquer é que se uma dada transformação estilística ou
formal. Parece-me uma questão insolúvel, tal qual saber quem viria primeiro, se o
ovo, se a galinha. Do mesmo modo como não haveria ovo, se não houvesse a
galinha, e vice-versa, e como um existe para o outro, no outro e em função do
outro, assim seria impossível determinar a anterioridade da decisão racional (e/ou
filosófica e/ou existencial) sobre a estética (e/ou estilística e/ou formal).
VIII
A impropriedade para a qual chamei a atenção mais acima de pensar poético-
pensante como poético e pensante está evidenciada, noutras tintas, no texto
Quase tudo que é sólido desmancha em Drummond, de Sérgio Schaefer.
Segundo ele,
A revolucionaridade (...) na obra desse poeta tem a ver, de um modo
particular, com uma prática poética essencialmente preocupada em
destruir a solidez de algumas pedras que se colocam em seu caminho.
Investir contra a solidez de alguns aspectos da realidade, eis o traço que
caracteriza a trajetória principal desse poeta. Ao fazer isso, ele se afunda
na turbulenta correnteza da contingência e em tudo o que acompanha
esta a imperfeição, a mutabilidade, a geração-e-corrupção, a
sublunaridade, o ilimite, a efemeridade (...).
(...) O poeta investe contra a solidez daquilo que o cerca e o abafa, que o
deixa sem ar e sem esperanças.
165
E esta investida contra a solidez de alguns aspectos da realidade se dá, inclusive,
no modo como o poeta procurou, sempre, marcar que poesia não é filosofia
pelo menos, a sua, não. Ainda nas palavras de Schaefer, seria despropositada a
iniciativa de querer descobrir na obra drummondiana a presença de alguma
estrutura teórica do tipo daquelas comumente encontradiças nos sistemas
filosóficos, pois a realidade contingente e suas imperfeições se manifestam
diferentemente [de como se manifestam na Filosofia] na discursividade
poética
166
.
165
SCHAEFER, 2007, p. 10.
166
SCHAEFER, 2007, p. 24.
101
Daí, talvez, a possibilidade de ler um poeta vasto como Drummond sob os
holofotes de vários sistemas filosóficos, de várias teorias todas elas, porém,
insuficientes. Portanto, não é tranqüilo identificar cada dita fase poética a uma dita
leitura ou percepção do mundo ou postura diante da realidade (como o fizeram,
por exemplo, SantAnna e muitos outros), mesmo em se pensando em obras
ideologicamente marcadas, como A rosa do povo ou Claro enigma. Entender a
obra drummondiana desta maneira, talvez nos conduza ao pensamento de
Gustavo Bernardo Krause em O poeta cético.
Em seu texto, Krause identifica, a partir das famosas orelhas que Drummond
escreveu para os próprios livros, a pedido de seus editores, aquilo a que
denomina como o pensamento cético do poeta. Se em O avesso das coisas
Drummond afirma que, ao escrever, não pense que vai arrombar as portas do
mistério do mundo. Não arrombará nada. Os melhores escritores conseguem
apenas reforçá-lo, e não exija de si tamanha proeza
167
, o crítico pode afirmar que
A proteção do mistério passa pela epoché. A chave do procedimento
cético, a epoché, pode ser mais bem explicada se a vemos como
suspensão do juízo e do assentimento. O cético, se não pára de duvidar,
não pára de pensar. (...)
O que ele vê é o Enigma, porque ele é o Enigma.
Superficial e teoricamente, compreendemos que todas as coisas, e s
mesmos dentro das coisas, mudamos sem parar. No entanto, reagimos
com surpresa ou irritação quanto algumas dessas coisas não continuam
as mesmas, ou quando nos vemos envelhecer. Parece que a felicidade
para s depende de que isto e aquilo continuem iguais, o que garante
uma só coisa permanente: a infelicidade. Esta infelicidade, para ser
suportável, precisa ser projetada nas coisas, por exemplo nas pedras do
caminho. Com isso, multiplicamos desculpas, mas deixamos de entender
o movimento, isto é, deixamos de compreender o que poderia ser
compreendido.
A esfinge enganou Édipo, que supôs haver resolvido a charada sem
atentar na charada da sua identidade. O enigma não se referia à espécie
humana, mas sim àquele homem e seus impasses muito particulares. O
homem é a própria Coisa interceptante de Drummond, congelando as
pedras do caminho e tentando congelar stop! os pássaros, os
insetos, o ar. Barra o caminho de tudo e todos e medita sobre a
obscuridade, sem atinar para o seu caráter obscuro, para a sua condição
sombria e de sombra.
Esse é o verdadeiro enigma.
168
167
ANDRADE, 1987, p. 109.
168
KRAUSE, 2007, p. 69, 83 e 84.
102
Todavia, mais uma vez aqui, parece acertado o diagnóstico de Gledson de que o
grande equívoco crítico é pensar que a poesia esta poesia está sujeita a um
processo exterior a ela, e que o crítico entende, mas não o poeta. Nesse sentido,
identificar o todo da produção drummondiana a um projeto poético-pensante
talvez venha chamar a atenção para o fato de que, embora pareça que o homem
medita sobre a obscuridade, sem atinar para o seu caráter obscuro, para a sua
condição sombria e de sombra, esta opção pode ser, em sua turbidez,
consciente.
103
CAPÍTULO 03
ISTO NOS DESTE, VERSO A VERSO, E SÓ DEPOIS O SOUBE MOS
CLARAMENTE POR UMA ANÁLISE DE O AMOR NATURAL
Sou eu, o poeta precário
que fez de Fulana um mito,
nutrindo-me de Petrarca,
Ronsard, Camões, Capim.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
I
Como assinalamos anteriormente, a tese de Bakhtin de que as novas formas
de visão estética criadas por Dostoiévski permitem ver e descobrir novas facetas
do homem e de sua vida
169
basear-se-ia no entendimento de que a nascente
variedade de gênero do romance seria uma forma de evolução não apenas da
prosa ficcional européia, mas, principalmente, uma forma de evolução do
pensamento artístico da humanidade. O mesmo se daria com a poesia de
Drummond. Não há como negar sua importância para nossa história literária,
enquanto artista, enquanto pensador.
O próprio poeta tem consciência da multiplicidade de sua obra. Isso fica
evidenciado quando a organiza antologicamente, pois atribui títulos específicos a
cada uma das seções temáticas de sua produção. Também a crítica literária é
consciente do lugar de Drummond. E neste capítulo espero evidenciar que, tanto
quanto em 1962, quando organizou sua antologia poética em 9 seções, nos
últimos anos de sua vida (e, assim, de sua produção), o poeta mantinha lucidez a
respeito de seu papel e daquilo que havia empreendido em termos estéticos e
históricos.
Caracterizado o conjunto da obra poética de Carlos Drummond de Andrade como
súmula de um pensamento artístico polifônico que se manifestou também na
prosa, na tradução, etc., mas do que nos esquivamos agora é possível
compreender em que medida o objeto estético que se queira em pauta se presta
169
BAKHTIN, 2002, p. 273.
104
ao diálogo com a Filosofia; e Filosofia, aqui, entendida como lhe pensam Deleuze
e Guattari: a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos
170
.
A poesia de Carlos Drummond de Andrade, como também a definição que
Deleuze e Guattari nos dão de Filosofia, é absolutamente sedutora. É impossível
não entender a pergunta que Wilberth Salgueiro elabora: como não nos
reconhecermos personagens de versos tão aparentemente simples que
circulam e se rejuvenescem nos mais distintos círculos socioculturais: E agora,
José?; O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a
vida presente.; Mundo mundo vasto mundo, / mais vasto é meu coração; Por
isso sou triste, orgulhoso: de ferro; Trouxeste a chave??
171
. Todos estes versos,
e ainda outros, como sabemos, remetem a conceitos, remetem a condensações
geniais que a arte poética drummondiana conseguiu para questões nossas,
humanas, exercendo o papel que os pensadores franceses atribuem aos filósofos
dissolvendo, deste modo, as fronteiras pouco rígidas entre a Literatura e a
Filosofia.
A viabilidade de trânsito entre a arte de Drummond e a arte a que se dedica a
Filosofia é evidenciada mais uma vez se nos lembrarmos de que, levando em
conta a tripartição de Ezra Pound para a poesia em fanopaica, melopaica e
logopaica , se assegura o predomínio da função logopaica para a poesia
drummondiana. E, porque a arte drummondiana é pensante, projetada, filosófica,
logopaica, para além da forma, pode dar-se à liberdade, ao luxo mesmo, de
inventar, fabricar, revolucionar não apenas conceitos, mas também, e quem sabe
principalmente, perceptos (que não mais são percepções, são independentes do
estado daqueles que os experimentam) e afectos (que não são mais
sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados
por eles)
172
.
Por que a arte drummondiana pode não apenas formar, inventar, fabricar
conceitos, mas também perceptos e afectos, forjando, assim, um projeto
170
DELEUZE E GUATTARI, 1992, p. 10
171
SALGUEIRO, 2005, p. 1.
172
DELEUZE E GUATTARI, 1992, p. 213.
105
simultaneamente poético (o que quer dizer artístico) e pensante (de igual modo,
filosófico)? Basicamente: porque é arte, e, portanto, não pode restringir-se apenas
a conceitos
173
; porque, ao ler Drummond, nos reconhecemos personagens, para
muito além dos homens que somos
174
; porque a arte de Drummond, como toda
grande arte, conjuga disparidades
175
; porque Drummond extrapola a memória, e,
nisso, sustém de sua arte, para além de uma capa de reminiscência da
infância e do passado
176
.
Drummond em O amor natural se volta, sim, para a memória de suas obras
precedentes e de seus confrades poéticos, mas para excedê-las e excedê-los,
porque se, conforme Raymond Williams, houve [no século XX] uma grande
pressão para que se l ançasse mão de um conjunto de obras do passado, usando -
o então como uma maneira de rejeitar o presente
177
, tal rejeição serviu não para
alienar, antes para obrigar a criação de um método que viabilizasse superar a
memória, mesmo que a memória a ser superada seja mais que a memória de si
mesmo, da (própria) história, do ser cânone.
Assim, a consciência criadora e criativa que fertiliza a unidade embora a
saibamos uma unidade polifônica da produção poética drummondiana atesta: a
multiplicidade de referências literárias e filosóficas, a auto-referencialidade
estilística e a opção pela coesão temática fazem de O amor natural um livro
singular. Mais do que nunca e não à toa o livro é póstumo -se encarnada a
produção drummondiana enquanto forma de revolução (e por isso, quem sabe, de
evolução) do pensamento artístico, que revolução é, também, dentre outras
possibilidades, o movimento de uma curva fechada, para o retorno periódico de
um corpo astral a um ponto da própria órbita
178
.
II
Como quem se intromete na intimidade alheia, Humberto Werneck nos descreve
o ambiente e o modo como foram encontrados os originais de Poesia errante, O
173
Cf. DELEUZE E GUATTARI, 1992, p. 253 a 255.
174
Cf. DELEUZE E GUATTARI, 1992, p. 222 a 224.
175
Cf. DELEUZE E GUATTARI, 1992, p. 230, 236 e 240.
176
Cf. DELEUZE E GUATTARI, 1992, p. 217 e 218.
177
WILLIAMS, 2002, p. 69.
178
HOUAISS, 2002.
106
amor natural e Farewell os três livros póstumos de poemas de Carlos
Drummond de Andrade, não entregues ainda em vida por ele aos editores:
Nem grande nem pequeno um escritório como qualquer outro, igual a
tantos que se vêem nos apartamentos de classe média no Brasil. Mais
triste do que muitos, até, com sua janela abrindo para o feio paredão do
prédio ao lado. Mesa e cadeira, cadeira de balanço, máquina de
escrever, quadros nas paredes, estantes cheias de livros. Nada de muito
especial a não ser o fato de que este era o escritório de Carlos
Drummond de Andrade, o que vale dizer: foi ali, durante 25 anos, que se
escreveu boa parte da melhor poesia brasileira deste século.
(...) E o que não faltava ali eram papéis, exemplarmente organizados em
pastas de cartolina. (...) Era também nessas pastas ordinárias, em tons
claros de azul ou verde, que Carlos Drummond de Andrade organizava
seus originais e os entregava à editora. Na capa, com caneta, escrevia o
tulo do livro, nisso pondo às vezes amostras de seu humor e de sua
aptidão para o desenho. No caso de O amor natural, por exemplo, ao
escrever o título na capa o poeta fez com que o artigo O, colocado em
cima do primeiro A, sugerisse uma auréola de santo. Tinha grande gosto
nessas travessuras gráficas (...).
Os originais de Poesia errante (1988) e O amor natural (1992), além de
Farewell, foram encontrados no escritório do poeta. O primeiro não
estava inteiramente concluído e a forma final foi estabelecida por Pedro
Augusto Graña Drummond e pela amiga Lygia Fernandes. Quanto a O
amor natural, é um livro que Drummond preferiu não ver publicado em
vida bem-humorado, dizia haver perdido o bonde da pornografia,
mesmo sabendo que o erotismo de seus versos passava muito ao largo
de qualquer vulgaridade.
Farewell, a que veio incorporar-se o poema Arte em exposição,
inicialmente destinado a constituir livro autônomo, chegou a ser
finalizado pelo autor, que acondicionou, numa pasta azul-claro, as folhas
soltas dos originais, datilografadas por ele e por Lygia Fernandes. Como
no caso de O amor natural, mas não pela mesma razão, optou por adiar
o lançamento para depois de sua morte. O título não deixa dúvida de que
quis fazer dessa coletânea o fecho de sua produção poética.
179
Estas informações são relevantes. Saber que tanto O amor natural quanto
Farewell foram livros deixados prontos, ordenados, intitulados, enfim,
organizados, pelo poeta, e, claro, propositadamente destinados à publicação
póstuma, tem que mudar os olhos com os quais os lemos. Principalmente se
soubermos que, inclusive, o editor Daniel Pereira, responsável na Editora José
Olympio durante muitos anos pela publicação das obras do poeta, teve acesso
irrestrito na década de 60 aos originais de vários dos poemas eróticos que
vieram a compor, a posteriori, o livro que veio a ser publicado, de fato, em
179
WERNECK, 2006.
107
1992, pela Record sendo opção de Drummond que o livro não saísse à
época
180
.
Obviamente, Carlos Drummond de Andrade planejou que fosse o perfume destes
últimos livros que permanecesse entre nós, depois de sua morte. Esta hipótese
fica especialmente interessante se atentarmos ao fato de que o poeta sempre
esteve muito preocupado em construir uma figura pública e uma personalidade
artística afeita a suas próprias opções e convicções. Depõem a favor disto os
seguintes trechos das declarações de Pereira para O dossiê Drummond:
Drummond tinha uma grande queda para publicitário. Onde quer que se
metesse, daria certo. De vez em quando, eu tinha dificuldades em
arranjar um orelhista que escrevesse um texto ao gosto de Drummond.
Então, eu pedia ao próprio Drummond que escrevesse a orelha. E ele
acabava fazendo. (...) Drummond aproveitava para fazer observações de
natureza crítica nos textos que apareciam nas orelhas dos livros. Isso
era publicado sem assinatura. O leitor, então, não iria saber jamais que o
próprio Carlos é que tinha feito.
ou
Drummond lia até a última prova dos livros. Uma vez, mandei para ele as
provas de Versiprosa. Quando me devolveu, ele disse que tinha
encontrado um erro. Num dos versos, tinha saído Mamões, com letra
maiúscula, no lugar de Camões. O revisor que tinha visto o material
antes era um colosso. Ficou tão triste com a descoberta do erro que
disse: Vou mudar de profissão (...). De qualquer maneira, a primeira
exigência do revisor é ter olho clínico. Drummond tinha.
181
Além dos comentários a respeito do Drummond crítico de si mesmo e do
Drummond revisor, o ex-editor ainda tece outros, a respeito do cuidado (e da
intuição mercadológica) de Drummond com os títulos e (pasme!) com a cor das
capas das edições de seus livros. Assim, se a tal ponto a consciência do poeta é
verminosa, a opção por que fosse, como eu disse, o perfume de O amor natural
e Farewell a permanecer entre nós, depois de sua morte, não pode ser pensada a
troco de gratuidade.
180
Cf. MORAES NETO, 1994, p. 104 a 107.
181
PEREIRA apud MORAES NETO, 1994, p. 104 a 106, grifos meus.
108
Porém, o próprio poeta quer nos fazer descrer de seu intento o que por si
mereceria um capítulo analítico. Na última longa entrevista que concedeu,
dezessete dias antes de sua morte, revelou:
Não lamento, na minha carreira intelectual, nada que tenha deixado de
fazer. Não fiz muita coisa. Não fiz nada organizado. Não tive um projeto
de vida literária. As coisas foram acontecendo ao sabor da inspiração e
do acaso. Não houve nenhuma programação. Não tendo tido nenhuma
ambição literária, fui mais poeta pelo desejo e pela necessidade de
exprimir sensações e emoções que me perturbavam o espírito e me
causavam angústia. Fiz da minha poesia um sofá de analista. É esta a
minha definição do meu fazer poético. Não tive a pretensão de ganhar
prêmios ou de brilhar pela poesia ou de me comparar com meus colegas
poetas. Pelo contrário. Sempre admirei muito os poetas que se afinavam
comigo. Mas jamais tive a tentação de me incluir entre eles como um dos
tais famosos. Não tive nada a me lamentar. Também não tenho nada do
que me gabar. De maneira nenhuma. Minha poesia é cheia de
imperfeições. Se eu fosse crítico, apontaria muitos defeitos. Não vou
apontar. Deixo para os outros. Minha obra é pública. Mas eu acho que
chega. Não quero inundar o mundo com minha poesia. Seria uma
pretensão exagerada
182
.
Todavia, ao contrário do que pode parecer, Drummond escolheu, e muito bem, o
momento acertado para a publicação de O amor natural dando mostras da
altíssima consciência de que se falou. Rita de Cássia Barbosa em Poemas
eróticos de Carlos Drummond de Andrade assinala que a leitura de A paixão
medida (1980), Corpo (1984), Amar se aprende amando (1985) e Amor, sinal
estranho (1985), bem como a insistência do autor em suas últimas entrevistas na
opinião de que o erotismo é uma condição essencial à natureza humana, teve o
propósito de aguçar a curiosidade do público em relação a suas composições
eróticas, de cuja existência, então, se tinha notícia na forma de um livro ainda
inédito.
Embora Barbosa e outros tenham atribuído aos escrúpulos drummondianos
quanto à possível repercussão desses poemas as reticências relativas à
publicação integral de O amor natural (e eu, inclusive, tenha aventado a hipótese,
em um artigo precedente, de que talvez o poeta não quisesse sua poesia
confundida com o desbunde típico da poesia dos 70), hoje isso não me parece
acertado. O poeta alimentou esta leitura ao dizer que se recusava a publicar tais
poemas para não se ver confundido com um velho bandalho. Mas, se assim
182
ANDRADE, 1987.
109
fosse, nem em círculos restritos, sob a recomendação de que se evitassem
olhares indiscretos, um e outro poema teria circulado como de fato circulou.
Dando um poema ou outro do livro a público, Drummond criou e alimentou, no
grande público e no público especializado, em torno de O amor natural uma
expectativa: por exemplo, o poema A castidade com que abria as coxas, antes
de ser publicado em Amor, amores e em O amor natural, foi publicado na revista
Homem, da editora Abril, em 75; O que se passa na cama foi publicado também
em 75 no Livro de cabeceira do homem, da editora Civilização Brasileira, em
Amor, sinal estranho e, finalmente, em O amor natural; O chão é cama foi
publicado primeiramente na revista norte-americana Fórum Literário, em 76, e
compõe hoje O amor natural; Esta faca, Tenho saudades de uma dama e Sob
o chuveiro amar, além de em O amor natural, aparecem em 76 na revista José:
literatura crítica e arte e, ainda, em Amor, sinal estranho; Amor pois que é
palavra essencial apareceu, em 82, na revista Ele e Ela, da editora Bloch, e
também em Amor, sinal estranho, sendo hoje o poema de abertura de O amor
natural; Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas foi publicado com outro
título, em 83, em O cometa itabirano e depois exclusivamente em O amor natural;
por fim, A moça mostrava a coxa, além de ter saído, em 83, na revista Status,
saiu em Amor, sinal estranho e compõe atualmente O amor natural
183
.
Outra leitura que hoje me parece inadequada da recusa drummondiana é aquela,
bastante recorrente, que associa a feitura de O amor natural à figura de Lygia
Fernandes, amante do poeta ao longo de mais de 36 anos. Muitos vêem nos
poemas eróticos homenagens não de todo veladas do poeta à amada e, por
isso, interpretam sua não-publicação como uma maneira de evitar conflitos com
ou desconfortos a sua esposa, Dolores de Moraes. Todavia, um dado biográfico
citado em Os sapatos de Orfeu ajuda a desmontar a hipótese: como d. Dolores
soubesse da sólida relação de Drummond com Lygia Fernandes (a mais longa e
mais intensa, dentre inúmeras outras aventuras amorosas e sexuais do poeta),
propôs, a certa altura, o divórcio o que Drummond recusou temerariamente,
tendo, inclusive, num golpe baixo e descabido, ameaçado suicídio caso sua
esposa levasse adiante o assunto.
183
Devo este levantamento ao já citado livro de Rita de Cássia Barbosa e a pesquisas na Internet.
110
Uma lembrança que talvez venha a jogar por terra a idéia de que Drummond
tenha escrito O amor natural apenas como uma homenagem derradeira a Lygia
é a de que, já em Claro enigma, na seção intitulada justamente Notícias
amorosas, aparecem os seguintes versos (que os mais íntimos e mesmo os
nem tanto já sabiam, então, dedicados ao novo amor):
Deus me deu um amor no tempo da madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus ou foi talvez o Diabo deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.
Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.
184
E, complementarmente a esta primeira lembrança, nos interessa a de que, dali
em diante, não escasseou a confecção e a divulgação de inúmeros outros
poemas devotados à figura de Lygia, dos mais contidos aos mais devassos; daí
que atribuir à timidez ou à vontade de manter sua devoção erótica à amante como
um segredo, a ser revelado apenas post-mortem, não parece arrazoado (mesmo
porque, em seu leito de morte, com toda a família ciente da história entre o
poeta e a bibliotecária, d. Lygia e d. Dolores revezavam os turnos no hospital,
levadas e trazidas uma e outra pelo neto desta, para acompanhar Drummond em
seus últimos momentos).
Tornando ao assunto de três parágrafos atrás, mesmo que, em suas entrevistas,
Drummond tivesse por objetivo desmentir a altíssima consciência que sempre
teve de todos os mecanismos envolvidos na produção, recepção e circulação do
literário, mais que ninguém, o poeta era, sabidamente, mestre em criar e
alimentar expectativas, para tanto, dissolvendo, muitas vezes, as fronteiras entre
verdade e ficção e instaurando jogos especulares ainda muito pouco e rasamente
estudados pela crítica. Basta que nos lembremos, por exemplo, da crônica, em
tudo plausível, a respeito da suposta passagem anôni ma de Greta Garbo por Belo
Horizonte, incluída em Fala, amendoeira (1957), da qual Drummond e alguns
184
ANDRADE, 2006, p. 268 e 269.
111
amigos próximos teriam sido co-participantes. A história, originalmente publicada
em jornal, muitíssimo bem contada e cheia de pontuais referências factuais,
transmitiu a seus leitores coetâneos tal razoabilidade que chegou a criar
problemas para os supostos envolvidos no caso fato que obrigou Carlos
Drummond de Andrade a desmentir, a seu modo malandro, noutra crônica, a
história.
Pensando ainda a altíssima consciência que Drummond vida afora exerceu de
todos os mecanismos envolvidos na produção, recepção e circulação do literário,
como dissemos, é imperioso não deixar que passem em branco suas análises
críticas a respeito da própria poesia, sintetizadas, como vimos, nas orelhas que
produziu para alguns de seus livros
185
. Embora o poeta seja alvo de críticas por
haver promovido alguns dos piores escritores principalmente escritoras que
este país teve, nas palavras de, por exemplo, Paulo Francis, ou seja alvo de
críticas por ser um documento humano apologético do Homem’”, nas palavras
de Mário Faustino, sua autocrítica era sabidamente implacável (tanto quanto,
talvez, o era a sedução do auto-elogio...), bem como sua compreensão a respeito
da ilusão da vaidade literária; e prova disso é um trecho, da autoria do próprio
Drummond, na orelha de Passeios na Ilha:
Em Apontamentos literários e nos conselhos do Homem
experimentado, deixa manifestar-se o conhecimento irônico do país das
letras, onde a fatuidade, a justa ambição de renome e o jogo de
interesses se entrecruzam numa espécie de comédia melancólica. Sua
ironia [a do próprio Drummond!], porém, nunca é destruidora e reflete
antes a serenidade de quem, por muito ter visto e ouvido, não cultiva
ilusões, mas compreende-as no próximo.
Assim, ninguém melhor que ele para analisar os principais traços de sua carreira
de escritor. Noutra de suas orelhas, depois de arrolar os temas dos poemas de
Esquecer para lembrar / Boitempo 3 a guerra russo-japonesa repercutindo em
Itabira, as peculiaridades do regime de internato religioso, a introdução do gado
zebu nas fazendas mineiras etc. , nosso ghost-writer indaga, parodiando algum
remanescente do convencionalismo literário que admitia temas nobres’”: Mas
é possível fazer poesia com essas coisas?. E responde: Não é possível, mas
185
Recomendo, a respeito das orelhas de Drummond e do que revelam de uma suposta postura
cética do poeta, o já citado texto de Gustavo Bernardo Krause em KRAUSE, 2007, p. 65 a 85.
112
Drummond [ele mesmo!] comprova: nada é alheio à poesia quando ela, mediante
recursos artísticos, vai ao fundo das coisas e dele extrai substância humana.
Na mesma clave crítica, apenas a título de curiosidade, agora na orelha de
Discurso de primavera e algumas sombras, o autor leitor de si mesmo afirma:
Parece antipoético por excelência um tema como a poluição, mas
Drummond [ele!...] aplica seus recursos de lirismo para enfrentá-lo,
extraindo das sombras de hoje uma advertência tanto aos descuidados e
indiferentes como aos responsáveis pelo equilíbrio social. O verso
adquire, assim, a utilidade imediata que tem um sinal de alarme ou um
grito de SOS varando a noite.
Mas o que ninguém pode dizer, porém, polêmicas e orelhas à parte, é que a
perscrutação do corpo, do amor, do erótico fossem novidades, à altura da década
de 80, na poética do itabirano. Ainda em 1962, o poeta estabeleceu como uma
das seções de sua poesia Amar-amaro. Em seu livro de 1972, Emanuel de
Moraes dedica um capítulo à análise da temática amorosa em Drummond. Mais
recentemente, em 1995, Mirella Vieira Lima dedicou um livro inteiro ao mesmo
assunto: Confidência mineira: o amor na poesia de Carlos Drummond de
Andrade, procurando acompanhar a caminhada do amante gauche em direção à
plenitude no amor e o movimento do poeta até uma expressão mais puramente
lírica
186
(o livro de Vieira Lima, percorrendo toda a trajetória poética de
Drummond, de Alguma poesia a O amor natural, enxerga aí, em diferença ao
caminho que tenho palmilhado, a trajetória de um eu como um deslocamento
vertical, como se, progressivamente, das primeiras rumo às últimas obras,
houvesse se construído uma busca por alcançar o céu, imagem de perfeição e
satisfação completa
187
). Também Luzia de Maria, em Drummond: um olhar
amoroso, de 2002, pensa que ler Drummond pode ser um modo de capacitar o
olhar para enxergar o outro, afinar a sensibilidade para predispor-se ao convívio
e que, a partir de Amar se aprende amando, é como se o eu lírico [dos poemas
de Drummond] olhasse o mundo com um olhar amoroso e descobrisse a justa
medida de cada coisa
188
. José Carlos Barcellos, em artigo de 2004, intitulado
186
LIMA, 1995, p. 13.
187
LIMA, 1995, p. 13.
188
MARIA, 2002, p. 15 e 69.
113
Homoerotismo, alteridade e transcendência em Drummond, começa a destoar,
afirmando que
Tanto em sua obra quanto em sua persona pública, Carlos Drummond
de Andrade foi um poeta acentuadamente heterossexual. Cantor de
mulheres e do corpo das mulheres, Drummond trabalha sempre de
maneira muito explícita e inequívoca a natureza do erotismo que anima
boa parte de sua poesia. Por isso mesmo, pode surpreender a
constatação de que, num poema de Claro enigma (1951), o poeta volte a
sua atenção para o homoerotismo, lançando sobre este um olhar a um
tempo perplexo e respeitoso.
Trata-se do poema Rapto, inserto na II Seção do livro, aquela que tem
por tulo Notícias amorosas e que começa com o célebre Amar (...).
Rapto (...) é um poema quase desconhecido dos leitores e aficionados
do grande poeta mineiro. Talvez contribua para isso o caráter bastante
hermético que o texto parece ter à primeira vista, caráter reforçado ainda
mais pela sintaxe difícil.
189
Poderíamos enumerar vários outros artigos ou livros, mas os citados foram
suficientes para dar mostras de que falar do corpo, do amor, do erótico em
Drummond não é novidade.
Segundo Rita de Cássia Barbosa, em 1987, das 39 composições que o poeta
então havia prometido para O amor natural, nove (o que corresponde a cerca de
¼), como vimos, haviam sido dadas a público, tendo uma sido inserida em
Amor, amores (antologia de 1975), seis em Amor, sinal estranho e duas
exclusivamente em periódicos. Assim, ao criar e alimentar em torno de O amor
natural uma expectativa, mais uma vez se manifesta, penso, a esperteza do
matreiro mineiro, ciente de estar à bica da morte: ao chamar a atenção para a
questão do erótico, desvia o foco da questão central presente em O amor natural
a saber, o fato de o livro, decantado ao l ongo de décadas, tr azer inscrita em si a
história descontínua de uma poética, de um pensamento artístico polifônico, ou
seja, um pensamento enfeixado nos muitos desdobramentos de que um poeta
maior é capaz.
III
Já além do modo como o livro foi encontrado e do modo como o poeta se
preocupou em divul-lo e encobri-lo, convém nos voltarmos, agora, para a
189
BARCELLOS, 2004, p. 33 e 34.
114
eleição de Milton Dacosta como seu ilustrador. O gesto, por certo, não é gratuito.
Não consegui, todavia, encontrar informações precisas de que Dacosta tenha si do
previamente designado (ou mesmo cogitado) por Drummond como ilustrador do
livro, embora seja certa a admiração que o poeta nutria pelo trabalho do artista
plástico. Mas vamos aqui por outro caminho.
É essencial que nos lembremos de que O amor natural, o conjunto de poemas
que hoje conhecemos sob este título, foi dado a público indissociável do
trabalho de Dacosta. Poemas e ilustrações se fundem na composição do objeto
sobre o qual este trabalho se debruça. Tanto é que as edições mais recentes têm
mantido os desenhos do artista como parte do livro o que vem provar que sua
presença não se limita a um capricho ou a um requinte editorial, mas se impõe
como fundamental. Analisar, portanto, O amor natural requer, necessariamente,
ao menos uma passagem rápida pela questão da escolha do ilustrador e da
adequação ou não de seu trabalho à proposta (estética, sobretudo) da obra com a
qual se integra.
Na realidade, se o objetivo desta parte do texto fosse um estudo mais acurado a
respeito de Milton Dacosta e de seu trabalho, o ideal seria que se resenhassem
algumas das obras e alguns dos textos capitais para o entendimento de sua
trajetória artística, dentre os quais constam dissertações, obras integrais a
respeito de Dacosta, resenhas e críticas em jornais, revistas e periódicos
especializados, e catálogos de exposição. As fontes levantadas vêm na
bibliografia. O objetivo, ao enumerá-las, é fornecer uma pista para quem se
dispuser a iniciar uma pesquisa maior a respeito (e, também, não desperdiçar a
pesquisa que empreendi a respeito do assunto). Todavia, o objetivo por ora não é
este. A natureza escolar ou enciclopédica dos próximos parágrafos visa a delinear
um panorama a respeito do artista que permita entender de que maneira a
aproximação entre a estética de O amor natural e a da série Vênus e os
Pássaros enriquece a leitura dos poemas eróticos de Drummond.
A anunciada natureza enciclopédica do texto que segue talvez assuste não
por seu baixo teor reflexivo, mas também por seu descritivismo (e, claro, pela
abundância de citações e paráfrases no desenrolar do fio). Devo assumir, então,
115
de antemão, minha absoluta ignorância no território das artes plásticas e, mais
ainda, da arte brasileira contemporânea o que parcialmente justifica as mal-
traçadas linhas com as quais os olhos do leitor de se deparar. Todavia,
pesando os prós e os senões de elidir esta parte do trabalho, entendi que seria
melhor mantê-la: e minha conclusão atende a dois propósitos. O primeiro, como
eu disse, é chamar a atenção para a indissociabilidade entre os poemas de O
amor natural e as ilustrações a eles referentes e, ainda, para o fato de que a
parceria entre Drummond e Dacosta não se instaura apenas nas obras da fase
final de um e outro (já em 1957, Dacosta ilustrou a capa de Fala, amendoeira e,
dez anos depois, apresentou uma série de gravuras coloridas em metal, sob o
tema Vênus, em álbum editado por Júlio Pacello, com o poema Corporal, de
Carlos Drummond de Andrade). O segundo é chamar a atenção para diante da
sabida exigüidade da fortuna crítica a respeito do livro o fato de nenhum dos
artigos aos quais tive acesso a respeito dos poemas em pauta sequer mencionar
a importância do trabalho de Dacosta na formatação que hoje o livro tem (e isso
fica parcialmente mais grave se nos lembrarmos não do amplo conhecimento
de Drummond do reino das artes visuais do que Arte em exposição é
testemunho indelével mas, ainda, do imenso valor que sempre atribuiu à
atividade dos ilustradores, escolhidos a dedo, com os quais estabeleceu parceria).
Enfim. Embora as inferências biográficas não interessem diretamente, é
importante para a compreensão da trajetória artística de Milton Dacosta saber que
participou, no início de sua carreira como artista plástico, do chamado Núcleo
Bernardelli, que se reunia, nos anos 30, regularmente em um sobrado na rua São
José, no Rio de Janeiro, e cujo propósito principal era contestar o ensino
tradicional de arte especialmente o da Escola Nacional de Belas Artes a
enfocar, ainda, à época, de modo privilegiado, a pintura romântica e neoclássica,
minando as iniciativas pela modernização da arte. Entre os experimentadores da
arte livre, apelidados pelo artista plástico Manuel Santiago (1897-1987) de
barbouilleurs (lambuzões), estavam José Pancetti (1902-1958), Ado Malagoli
(1906-1994), Milton Dacosta (1915-1988) e o fundador do núcleo, Edson Mota
(1910-1981). A principal marca deste período na trajetória de Dacosta é a
liberação / libertação dos cânones acadêmicos e a consolidação do gosto pela
pesquisa e pela experimentação.
116
De acordo com Paulo Victorino, as principais atividades do artista subseqüentes à
sua desvinculação do Núcleo foram, em 1936, a realização de uma exposição
individual, que alcançou relativo sucesso, e a preparação para, mais uma vez,
tentar inscrever-se no Salão Nacional de Belas Artes. Este passo era
importantíssimo para Dacosta porque, na tentativa anterior, o artista saíra-se
frustrado, uma vez que seus quadros não foram recusados pelo Salão, foram
também ridicularizados pela crítica especializada. Na nova tentativa empreendida,
todavia, incentivada pela boa recepção da individual mencionada, Dacosta não
expôs, como recebeu menção honrosa, uma indicação de que os acadêmicos
refratários a mudanças começavam a fazer concessões aos novos pintores. E
isso se tornou mais patente nas exposições seguintes, quando ganhou medalha
de bronze, de prata e, em 1944, o prêmio de viagem ao exterior. Foi assim que na
década de 40 viajou para os Estados Unidos, em companhia da pintora Djanira
(com quem manteve ao longo de anos um ateliê comum) e de lá seguiu para a
Europa, ficando em Paris, aperfeiçoando sua técnica e seu aporte teórico por dois
anos.
Quanto ao aspecto propriamente estético, inicialmente, após romper com o
Núcleo Bernardelli, o pintor, desenhista, gravador e ilustrador brasileiro pintou
composições figurativas e paisagens. Antonio Bento, crítico de arte que conviveu
com o artista neste início de trajetória, afirma que então
(...) alguns de seus quadros caracterizavam-se pelas pequenas
pinceladas de toques rápidos, na base de efeitos luminosos. Isto
acontecia nos trabalhos mais antigos [da fase Bernardelli].
Representavam ruas, praças e cenas de cafés. (...) Campofiorito referiu-
se à espontaneidade de suas pinceladas, nessa fase de sua pintura.
Alguns de seus quadros, sobretudo os ambientes de bares e cafés,
lembraram a esse crítico e pintor o cromatismo saboroso das telas de
Manet, cuja posição vanguardista serviu de inspiração para os seus
amigos impressionistas.
Mas existiam igualmente, nessa amostragem inicial, em diversos
trabalhos, preocupações formais de outra natureza (...) Dacosta tinha-se
inclinado pouco antes para uma espécie de construtivismo cezanniano, a
fim de tornar mais sólidas as suas formas. Pelo que igualmente me
lembro da exposição e das conversas iniciais mantidas com o pintor, sua
arte procurava um caminho pessoal. O fato é que ele se debatia entre
tendências diversas.
117
Mas ficou-me (...) a impressão de estar diante de um artista moço e
inquieto, que procurava encontrar, entre tateios, acertos e desacertos
(...), os meios de expressão mais apropriados à realização de seus
futuros trabalhos. Guardo ainda (...) a lembrança de um pintor que,
embora jovem, levava muito a sério o seu ofício.
190
Como amostras deste período, escolhi as seguintes imagens:
em 1941, Milton Dacosta começou a fazer figuras humanas geometrizadas,
que se tornarão a sua grande marca. A respeito deste período, o também pintor
Jacob Klintowitz ressalta que
A década de 40 é decisiva para o pintor Milton Dacosta. (...) Ele usa
como elementos de pintura manequins e objetos, garrafas e figuras
geométricas, numa clara referência ao movimento metafísico europeu.
Milton Dacosta tenta descobrir o seu destino de pintor e a sua proposta
humana, e este caminho de auto-reconhecimento e experimentação
passa pelas figuras de De Chirico e pela atmosfera de Morandi. Dacosta
descobre-se um cultor da sutileza, um amigo do símbolo, um amante das
mensagens delicadas e intuídas. Em outro contexto, com outras figuras,
estas serão características que ele nunca abandonará (da mesma
maneira, a sua clara opção por uma imagética de caráter universal, onde
os valores culturais serão aqueles capazes de sensibilizar
universalmente o ser humano). (...).
[Neste caminho] O artista procurará [também] o movimento, a linha
sensual, o cromatismo elaborado, o jogo de claro-escuro (...). Milton
Dacosta abandona a sua meditação transcendental e mergulha no
contingente, no cotidiano, na figura humana, no lúdico. São cenas e
formas de estar, meninas coloridas, movimento esvoaçante, idéia de
mutação, mudança, alegria e vida (...). Depois, o passageiro, o
movimento em torno e ao redor da vida. Tempo e Transcendência para
Espaço e Contingência. Mas são exatamente estas duas fases que
ocorrem nesta década de 40 e que penetram pelos anos 50 que
determinam o posterior trabalho e a reconhecida qualidade de
Dacosta.
191
190
BENTO, 2008.
191
KLINTOWITZ, 2008.
118
Como amostras deste período, escolhi as seguintes imagens:
(Aqui talvez eu não possa me furtar de puxar o freio de mão e estabelecer uma
comparação entre a trajetória de Drummond e a de Dacosta embora a simples
reflexão a partir do contexto histórico seja muito mais esclarecedora a este
respeito que qualquer tentativa de comentário. Um e outro iniciaram oficialmente
seus trabalhos sob o manto do impacto causado pelas inovações vanguardeiras e
modernistas; e um e outro têm na década de 40 u m marco, digamos, humanista,
que consolida, decisivamente, a imagem blica de artista que construirão nas
décadas seguintes. outros pontos de aproximação apontáveis na trajetória do
poeta e do artista plástico. Luiz Antonio Seráphico de Assis Carvalho, em texto
produzido para o Museu Virtual de Arte Brasileira, aponta para a inalienável
consciência deste último de que, como advertiu Walter Benjamin, Não um
único documento de cultura que não seja, também, um documento de barbárie. E
a mesma barbárie que o afeta, também, afeta o processo de sua transmissão de
mão em mão. Poderíamos estender este apontamento a Drummond. Ambos
souberam, assim, que a experiência no convívio da cultura exige ao menos um
testemunho e que o verdadeiro artista traduz consciente ou inconscientemente
uma cosmovisão
192
.)
192
CARVALHO, 2008.
119
na década de 50, Milton Dacosta aderiu ao Abstracionismo Geométrico, e, de
lá para cá, pelo menos até a nova fase iniciada em 1963, sua pintura foi marcada
por influências concretas e neo-concretas. Todavia, não são as anotações
cronológicas que mais de perto nos interessam, mas a análise de que, quatro
anos após a viuvez (depois de um casamento de 37 anos com a também pintora
Maria Leontina), Milton Dacosta morreu, em 1988, quando vivia a fase mais
importante de sua arte, numa série que ele denominou como Vênus e os
Pássaros que veio a ser, justamente, a série cujos esboços ilustram O amor
natural.
A respeito desta fase do artista, Olney Krüse propõe uma leitura ousada: a de que
o século 21 (assim mesmo com algarismos arábicos) reconhecerá, em Milton, o
introdutor das formas arquitetônicas de Brasília na pintura brasileira dos nossos
dias
193
. Afirma ele, ainda, que esta seria a fase romântica e amável do artista e
relembra o contexto histórico, marcado por fatos recentes, da época (movimento
hippie, Beatles, LSD e, claro, Rauschenberg e a polêmica que criou em torno de
si, em 64, na Bienal de Veneza, ao propor um novo tipo de pintura, a partir da
colagem de cenas dramáticas dos nossos tempos), afirmando que, a despeito do
impacto dos acontecimentos de então para o mundo das artes, Milton Dacosta
não coloca seus olhos e seus pincéis nessa revolução. Sua obra evolui
naturalmente e são outras as suas influências
194
.
Depois da forte presença dos concretos na década anterior, o artista teria
encontrado nos conceitos da minimal art a subversão de que precisava para
insuflar novo fôlego a suas produções, subvertendo a fase geométrica precedente
pela incorporação de elementos outros: uma mistura muito pessoal do Cubismo,
de Picasso, de Brancusi, de Brasília, do Barroco e, sobretudo, do próprio Milton,
que inventa um repertório absolutamente pessoal, do qual podemos não gostar ou
discordar, mas jamais ignorar
195
.
193
KRÜSE, 2008.
194
KRÜSE, 2008.
195
KRÜSE, 2008.
120
São amostras da arte de Dacosta neste período as seguintes reproduções:
Nas duas telas de 1963, Carrossel e Menina, podemos perceber uma transição
para a série de pinturas de figuras femininas com pássaros, que nos anos 70 e 80
ocupará quase a integridade da produção do artista:
Afirma o crítico e professor de arte Paulo Victorino que nesta série, Vênus e os
Pássaros, a ingenuidade dos traços e do colorido deu lugar à maturidade do
artista, onde a forma se sobrepõe à cor, onde o apuro de estilo, com sobriedade e
121
elegância, domina o quadro em sua totalidade
196
o que talvez também se
possa afirmar, com as devidas adaptações, em relação a parte do Drummond de
O amor natural.
Todavia, não estão a ilustrar O amor natural reproduções das telas de Dacosta,
mas desenhos ou esboços que vieram a dar origem a tais telas. São ao todo
18 ilustrações, entre mulheres ou pedaços de corpos de mulheres com pássaros,
e pássaros. As mulheres que estariam ali esboçadas seriam atualizações da
imagem de Vênus, deusa do amor, da sedução e da beleza no panteão romano,
esposa de Vulcano (deus romano do fogo, famoso por sua feiúra e por ser coxo,
tendo sido inclusive rejeitado pela própria mãe e largamente traído por sua
esposa) e amante de Marte (deus romano da guerra, assim como Vulcano, filho
de Juno e Júpiter).
Mas por que não apenas Vênus, mas Vênus e pássaros? É possível aventar
várias hipóteses. Uma delas, necessariamente, deveria passar pela lembrança de
que um dos filhos de Vênus com Marte é justamente Cupido (Amor), deus alado,
que encarna o amor e a paixão em todas as suas manifestações. Outra delas,
pela lembrança de que Vênus possuía, de acordo com a Mitologia, um carro
puxado por cisnes pássaros tradicionalmente associados à androginia, ao
sagrado, à pureza; à masculinidade fecundadora, ao desejo sexual; e, ainda, à
elegância, à nobreza e à coragem
197
.
outros aspectos a serem pensados: um deles é o fato de Vênus, entre os
antigos, ser representada tradicionalmente com um olhar vago e estrábico
também as Vênus de Dacosta têm no olhar uma marca: elas nos olham de
soslaio, se é que dirigem o olhar a um componente exterior a si mesmas. Outro, o
fato de possuir muitas formas de representação artística dentre as quais as
representações renascentistas, que buscaram resgatar a clássica, permanecem
mais vivas em nosso imaginário (formas voluptuosas, abdômen protuberante,
nádegas acentuadas, seios pequenos, cabeça despr oporcional à prodigalidade do
restante do corpo). E, por fim, o fato de Vênus ser a principal protetora dos heróis
196
VICTORINO, 2008.
197
CHEVALIER e GHEERBRANT, 2006, p. 257 a 259.
122
lusitanos cantados por Luís de Camões na mais famosa epopéia em língua
portuguesa, de onde Drummond extraiu um verso que epigrafa O amor natural: O
que deu para dar-se a natureza (do nono canto da terceira parte de Os lusíadas,
justamente no episódio em que se narra a súplica de Leonardo e a rendição da
Ninfa Efire
198
).
A primeira das Vênus de Dacosta aparece na folha de rosto do livro. Trata-se
de uma figura de contornos bastante leves, limpos, nítidos (o que não é uma
característica unânime das imagens do livro), mas quase enigmática, pondo
aquele que a contempla diante da dúvida se a Vênus ali representada está num
momento de descanso ou de gozo, e se há ou não com ela, a desfrutar do
momento, um pássaro (que, na hipótese de ali estando, tocaria com seu bico o
espaço entre os seios da mulher ali representada) ou mesmo um outro corpo
humano. A escolha de tal figura incita-nos a pensar que ela ali está para, quase
como um oráculo, nos lembrar de que subjacente à aparência formalmente
limpa se insinua algo de enigmático.
A segunda fica entre os poemas Era manhã de setembro e O que se passa na
cama, e seu traçado é bastante diferente do da primeira figura. Trata-se de um
desenho mais sujo, ou de contornos menos nítidos; contudo, como
representação, é bastante mais explícito. Se no primeiro a figura feminina ali
representada parece ignorar a presença de um observador, esta a ele,
aparentemente, dirigir-se-ia. Comparando uma e outra figuras, notaremos um
aparente paradoxo: enquanto a primeira tem contornos mais precisos, sendo,
todavia, aparentemente mais indecifrável, a segunda apresenta contornos menos
precisos, sendo, porém, mais evidentes a erotização ali encenada e o convite à
198
Ver no anexo o trecho aqui referido.
123
contemplão (talvez nos despertando, na insinuação de seus traços vagos, para
o que de voyeurismo em ler o poema seguinte, que se inicia com uma
advertência entre parênteses: (O que se passa na cama / é segredo de quem
ama.)
199
).
A terceira figura, que anuncia o poema A moça mostrava a coxa é quase
isomórfica ao conteúdo do poema (A moça mostrava a coxa / a moça mostrava a
nádega, / não me mostrava aquilo / concha, berilo, esmeralda / que se
entreabre, quatrifólio, / e encerra o gozo mais lauto (...)):
A moça que mostrava a coxa é reificada, congelada no ato mesmo de recusar-se
a mostrar concha, berilo, esmeralda, revelando, contudo, coxas e nádegas
nada mais sabemos a seu respeito. A ilustração de Dacosta, por sua vez, também
199
ANDRADE, 2005, p. 25.
124
despersonaliza a dita moça, condensando sua personalidade na imagem de suas
formas roliças: pernas, abdômen e nádegas.
Logo abaixo do poema Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas aparece a
quarta figura, que me parece compor com a sexta, a décima primeira, a décima
segunda, a décima terceira e a décima oitava uma série de variações em torno do
ícone pássaro (série em que talvez também a décima quinta ilustração estivesse
incluída, mas que prefiro formatar assim, a fim de que esta décima quinta
ilustração, por algumas peculiaridades, seja comentada em separado).
Nesta quarta figura, chama a atenção o contorno de uma mão em que quase
pousa, desproporcional, um pássaro. Outra leitura da imagem é a de que, ao
invés de um pássaro, a mão quase tocasse uma flor ou folha (uma anêmona,
talvez). Todavia, em virtude de a série chamar-se Vênus e os Pássaros essa
segunda leitura ficaria quase que descartada a princípio. Mas apenas a princípio.
Os versos do poema dão o chão: Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas /
detêm a mão ansiosa: Devagar. / Cada pétala ou sépala seja lentamente /
acariciada, céu; e a vista pouse, / beijo abstrato, antes do beijo ritual, / na flora
pubescente, amor; e tudo é sagrado. e a ocorrência de vocábulos como
anêmonas, pétala, sépala e flora mantém a ambigüidade original do desenho de
Dacosta.
a sexta, a décima primeira, a décima segunda, a décima terceira e a décima
oitava ilustrações são variações, de traçado bastante semelhante, em torno do
que seria o contorno de um pássaro em vôo:
125
A única dentre as cinco ilustrações acima em que aparece um outro elemento que
não o próprio pássaro é a décima primeira, pela presença da circunferência que
remete, aparentemente, à imagem do Sol ou da Lua. Mas, além de remeter ao Sol
ou à Lua, a circunferência ali certamente nos incita o pensamento, tendo em vista
o conteúdo dos versos de Eu sofria quando ela me dizia: Eu sofria quando ela
126
me dizia: Que tem a ver com as calças, meu querido? / Vitória, Imperatriz,
reinava sobre os costumes do mundo anestesiado e havia palavras impublicáveis.
/ As cópulas se desenrolavam baixinho no escuro da mata do quarto fechado.
/ A mulher era muda no orgasmo. Que tem a ver... Como podem lábios donzelos
/ mover-se, desdenhosos, para emitir com tamanha naturalidade / o asqueroso
monossílabo? a tal ponto / que, abrindo-se, pareciam tomar a forma arredondada
de um ânus
200
pois parece remeter, também, à palavra cu, que paira por todo
o poema.
O que os poemas a que as figuras acima estão relacionadas têm em comum
entre si no que, todavia, não necessariamente destoam de alguns dos demais
poemas do livro é o fato de serem altamente metalingüísticos. E, embora não
seja evidente, me soa bastante bem ajustada a escolha de cada uma das
ilustrações para os poemas com os quais se relacionam diretamente. Explico.
Considerando que, convencionalmente, tomamos como sentido de avanço ou
progresso o ir da esquerda à direita, três dos cinco pássaros representados acima
voam em sentido oposto ao que seria esperado: o que se associa ao poema A
língua francesa, o que se associa a Ó tu, sublime puta encanecida e o que se
associa ao último poema do livro, Para o sexo a expirar e tais poemas voltam-
se justamente para o passado, revisionistas de algo que ficou para trás. Em A
língua francesa, isso fica evidente pela observação posta à direita, logo abaixo
do título: À margem de La Défense et / Illustration de la Langue / Française, de
Joachim du Bellay, / e De la Préexcellence du / Langage Française, de Henri
Estienne e pela advertência da última estrofe: Mas sem esquecer, / num lance
caprídeo, / de ler e tresler / a arte de Ovídio.
201
; em Ó tu, sublime puta
encanecida, o retorno ao passado se evidencia na primeira estrofe, quando o
eu lírico principia por confrontar a situação favoravelmente erótica passada com
os desertos da virtude carcomida atual: Ó tu, sublime puta encanecida, / que
me negas favores dispensados / em rubros tempos, quando nossa vida / eram
vagina e falus entrançados,
202
; e, por fim, em Para o sexo a expirar, o eu lírico,
200
ANDRADE, 2005, p. 73.
201
ANDRADE, 2005, p. 47.
202
ANDRADE, 2005, p. 77.
127
embora analise a situação presente, o faz a partir de um retorno: Para o sexo a
expirar, eu me volto, expirante.
Quanto à décima quinta ilustração, optei por excl-la da série de figuras acima
por algumas particularidades. Coaduna-se ao poema De arredio motel em colcha
de damasco, e tem, tanto quanto este, conteúdo fortíssimo em sua
fragmentação. Cada parte do desenho, em sua indefinição, parece compor parte
de uma cena que, cont udo, não se fecha, não se conclui.
Parece que da mesma forma como termina a experiência estetizada no poema
O brinco era violento, misto de gozo e asco, / e nunca mais, depois, nos fitamos
no rosto.
203
, ou seja, mal resolvida, também o signo visual não se resolve, não
é resolvível, exceto se, sob a atuação de uma mente estruturada, se atribui a ele
uma leitura que não lhe é inerente (isso porque, com perdão das imprecisões
terminológicas, a imagem me lembra as figuras estilizadas características da
herança legada pela teoria da gestalt). Não nos é permitida a certeza de que as
partes a compor o todo da imagem sejam pássaros, ou perfis humanos (e a
junção de tantos fragmentos quer de rostos humanos, quer de pássaros para
formar uma unidade, bem como a presença da palavra colcha, mesmo que
involuntariamente, ativam a idéia de colcha de retalhos), talvez porque a única
parte da imagem que parece mais definida é o contorno de uma mão, no limite
inferior. Penso que este dado a indecidibilidade entre perfil humano e pássaro; e
a possibilidade de leitura de pássaro como signo fálico a representar, talvez, o pai
que paira sob a cena que o poema ambienta é altamente significativo, tendo em
vista o conteúdo dos cinco versos: o relato de uma aventura sexual com ares
incestuosos: De arredio motel em colcha de damasco / viste em mim teu pai
morto, e brincamos de incesto. / A morte, entre nós dois, tinha parte no coito. / O
203
ANDRADE, 2005, p. 87.
128
brinco era violento, misto de gozo e asco, / e nunca mais, depois, nos fitamos no
rosto.
204
.
Deixando de parte os pássaros e tornando às Vênus, poderíamos dividi-las em
dois grupos: as que aparecem com e as que aparecem sem pássaros. No grupo
das que aparecem com pássaros, estão: a primeira figura, a da página de rosto
do livro (em sua comentada ambigüidade); a sétima, a que antecede o poema
Mimosa boca errante; a décima, que antecede o poema Sugar e ser sugado
pelo amor; e a décima sétima, que antecede o poema As mulheres gulosas. No
das que aparecem sem, estão as demais: a quinta, que antecede A bunda, que
engraçada; a oitava, que antecede Mulher andando nua pela casa; a nona, que
segue o poema No mármore de tua bunda; a décima quarta, que antecede No
pequeno museu sentimental; e a décima sexta, que antecede A castidade com
que abria as coxas.
Com relação à quinta, há uma particularidade: é a única das Vênus que está
desenhada de costas, todas as demais estão de frente, de lado, ou de perfil. E
nela o que mais chama a atenção, como é previsível, dado o conteúdo do poema
que anuncia, é a expressiva bunda, cujas dimensões ocupam mais de um terço
da imagem.
Esta também é uma dentre as três Vênus que aparecem com uma ao menos
insinuada moldura, o que reforça, talvez, o fato de que as formas ali são
destinadas à contemplação, à observação. Também o poema A bunda, que
engraçada fala de bundas genéricas, de todas as bundas, sem parecer que
204
ANDRADE, 2005, p. 87.
129
retrata uma cena isolada, ou que estetiza um fato passado possível (não
necessariamente real, obviamente).
A sétima figura, com a cabeça (e o olhar, talvez) voltada ao espectador, insinua
um beijo no pássaro que mantém nas mãos e o poema que lhe segue tematiza,
justamente, o sexo oral: Boca mimosa e sábia, / impaciente de sugar e clausurar
/ inteiro, em ti, o talo rígido / mas varado de gozo ao confinar-se / no limitado
espaço que ofereces / a seu volume e jato apaixonados, / como podes tornar-te,
assim aberta, / recurso céu infindo e sepultura?
205
.
A oitava figura é a segunda que compõe o grupo de três que trazem uma moldura
ao menos insinuada. Também o poema a que se refere, Mulher andando nua
pela casa, é altamente descritivo, e delineia, assim como A bunda, que
engraçada, uma cena genérica, sem conotações líricas ou subjetivas; parece
querer, muito mais, instaurar uma espécie de consenso entre a voz lírica e aquele
a quem se dirige, o leitor-espectador: Mulher andando nua pela casa / envolve a
gente de tamanha paz.
206
. Por isso, a expressão da Vênus ali retratada é a de
quem se expõe à contemplação pública daí, talvez, a pertinência da presumível
moldura (e do jarro a compor cenário, insinuando, agora, a casa que serve de
palco à mulher que anda nua pela casa):
205
ANDRADE, 2005, p. 53.
206
ANDRADE, 2005, p. 55.
130
a nona figura, embora não tenha moldura, põe-se como uma escultura,
aparentemente, dada a base rústica de que emerge (possivelmente, pontas de
uma pedra mármore bruta, a partir da qual foi composta ou desentranhada) :
Outro aspecto que merece atenção é a presença de pelo menos dois duplos: a
face simétrica dividida ao meio, e as pernas (acompanhadas, cada uma, por uma
das bandas da bunda), que parecem pertencer a corpos distintos, dado o ângulo
em que se põem. Esta observação reforça o poema: No mármore de tua bunda
gravei o meu epitáfio. / Agora que nos separamos, minha morte já não me
pertence. / Tu a levaste contigo.
207
, pois consona com a presença de signos ou
sintagmas que poderiam remeter à morte e à arte, indistintamente (como o
mármore, por exemplo, material nobre utilizado na confecção de, por um lado,
jazigos e de, por outro, esculturas; ou epitáfio, que pode ser enaltecimento,
elogio breve a um morto ou tipo de poesia, nem sempre de inscrição lapidar, que
encerra um lamento pela morte de outrem, ou com notada intenção satírica, que
trata de um vivo como se estivesse morto
208
) e à divisão de elementos em
paridade (como bunda: duas bandas; nos separamos: eu e você; etc.).
207
ANDRADE, 2005, p. 61.
208
HOUAISS, 2002.
131
Quanto à décima figura, pode-se dizer que mantém o tipo de traçado das
imediatamente anteriores.
Trata-se igualmente de uma Vênus, que se expõe ao público de ponta-cabeça, no
ato mesmo de sugar e ser sugada pelo amor, talvez aludido pela figura do
pássaro que se põe entre suas pernas, na altura de seu púbis, como anuncia o
poema a que antecede, um dos primeiros a recorrer a recursos visuais (antes
dele, na seqüência do livro, também o fazem Bundamel, bundalis, bundacor,
bundamor e Coxas bundas coxas):
209
Um jogo interessante se estabelece entre o conteúdo dos versos e a imagem,
uma vez que o poema refere-se à posição sexual conhecida famosamente como
sessenta-e-nove (prática, simultânea e recíproca, do coito bucal entre um
casal
210
) e a imagem da Vênus está ali de ponta-cabeça, pois é como se aquele
que contempla a imagem, o leitor-espectador, se visse exatamente na posição
predita.
209
ANDRADE, 2005, p. 67.
210
HOUAISS, 2002.
132
Quando chegamos à déci ma quarta figura de todas, a que possui os traços mais
convulsos e os contornos menos nítidos, ladeada pela décima sexta mais uma
vez poderíamos identificar certo isomorfismo entre a imagem e o conteúdo
poemático:
Da mesma maneira como o desenho é pouco límpido, também o eu lírico diz que
Os movimentos vivos no pretérito / enroscam-se nos fios que me falam, para
concluir: Vou beijando a memória desses beijos; ou, de outro modo, tanto
quanto as reminiscências se esgarçam, também os limites do desenho se dil uem.
A décima sexta figura possui duas características marcantes: por um lado, é,
como eu disse, das que possui os traços mais convulsos e os contornos menos
nítidos e, por outro, é uma das três que traz em si mesma uma espécie de
moldura. Contudo, uma diferença entre a pretensa moldura das outras duas
Vênus e a desta: enquanto nas outras notamos alguns traços a sugerir aquilo a
que temos chamado de moldura, nesta quatro traços nítidos a delimitar sua
extensão e enquadr amento o que se justifica, talvez, por apresentar-se o poema
a que se associa, A castidade com que abria as coxas, na roupagem de uma
das mais tradicionais formas fixas, o soneto italiano de versos decassílabos; e,
ainda, por este mesmo poema associar, em aparente paradoxo, o abrir as coxas
(lido aqui como o ofertar-se ao gozo, ao prazer, ao sexo) à castidade (abstinência
completa dos prazeres do amor; abstenção de prazeres carnais e de tudo que a
eles se refere
211
).
211
HOUAISS, 2002.
133
Última das Vênus, a décima sétima figura é a que mais me intriga, pela aparente
desarticulação entre o poema que sucede, Você meu mundo meu relógio de não
marcar horas, e o que antecede, As mulheres gulosas. Tem em comum com a
Vênus que se segue ao poema No mármore de tua bunda o fato de aludir,
aparentemente, a uma escultura em pedra, e o de trazer as feições da face
divididas em duas metades simétricas. Porém, tem como traços a individuali-la
o fato de que as pernas não estão totalmente desenhadas, terminam como cotos;
o de que o pássaro e a mulher parecem trocar olhares entre si (ao menos, aquilo
que podemos presumir a partir do desenho de suas cabeças parece indicar que
seus olhares estão apontados na mesma direção); e o de que esta Vênus parece
ser a de expressões mais ingênuas ou pueris, frente às demais (o que pode ser
relacionado à atitude daquelas, descrita no poema, que, carentes, chupam
picolé / (...) qual se vara chupassem):
Diante de tudo o que foi exposto e de outras observações que preferi não
desenvolver nos limites deste trabalho, percebo em ambos os conjuntos o de
ilustrações e o de poemas alguns traços a serem comentados por quem detiver
maior conhecimento a respeito do assunto. Dentre esses traços, penso ser
relevante destacar (por darem testemunho da adequação das ilustrações de
Dacosta aos poemas de Drummond):
134
a) em primeiro lugar, tanto as Vênus de Dacosta quanto os corpos descritos
por Drummond são impessoais, não têm marcas subjetivas, são quase
figuras genéricas, são corpos despidos de preconceitos ou propósitos
outros que não a contemplação estética: nem os poemas nem as figuras
querem seduzir ou chocar são o que são, gozam o estar em si mesmas;
b) em segundo lugar, em consonância ao que foi dito no item anterior, as
Vênus de Dacosta e as figuras femininas descritas pelos poemas não se
ocupam em seguir um estereótipo ou enquadramento físico; são, isso sim,
corpos que destoam dos padrões estéticos vigentes. Se Dacosta elege
musas roliças, Drummond ocupa-se, freqüentemente, da decrepitude
física;
c) por fim, tanto quanto a marcação de primeira pessoa se dilui, nos poemas,
pela identificação que fazemos entre as situações descritas ou as cenas
narradas e episódios comuns à experiência da vida adulta, as Vênus e
mesmo os pássaros das ilustrações têm suas expressões físicas,
normalmente decifráveis na expressividade do olhar e do sorriso,
pasteurizadas, e mesmo minimizadas.
IV
Ao adentrar, a partir daqui, à etapa de descrição dos textos que compõem o livro
resgatarei trechos de um ensaio que escrevi durante as atividades de Iniciação
Científica, aprovado para publicação, mas ainda inédito, pelo que pode
contribuir à elucidação do objeto em pauta. O motivo deste resgate é justamente
deixar marcado que a trajetória de estudo que constrpara O amor natural é
metamórfica, e vem sendo continuamente atualizada como ficou evidente,
penso, nas Notas de esclarecimento e na Apresentação deste trabalho.
Não posso me furtar de dizer, assim, que uma frase de Valéry me vem à mente,
quando penso nos poemas de Drummond: O mais profundo é a pele e nem,
ainda, que esta mesma frase desencadeia a lembrança de um verso
drummondiano arquifamoso: Sob a pele das palavras cifras e códigos. O
título O amor natural, bem como as 5 epígrafes, feito pele, parecem ocultar-
revelar uma miríade de leituras (para si mesmo / mesmas, para o que está por
vir).
135
Na evolução dos sentidos, rezam os biólogos que o tato foi o primeiro a surgir. Ao
que conste, é o primeiro sistema sensorial a tornar-se funcional em todas as
espécies estudadas até o momento. Daí a opção pela metáfora da pele: título e
epígrafes podem ser tomados, na condição de textos já, como a pele de que o
livro se reveste ou como o primeiro sistema sensorial a tornar-se funcional na
obra. É através deles, título e epígrafes, que o livro se anuncia e se resguarda. A
pele do livro é o contato, a fronteira, o com-tato; protege, mas expõe, revela,
denuncia. Num exagero, quer tomemos o tulo, quer as epígrafes, falamos da
indumentária do ser-livro, daquilo que o livro escolheu (ou foi escolhido para ele)
como o cartão de visitas, como o visível mais óbvio de si mesmo que, por
demais evidente, acaba por imiscuir-se numa insignificância que não lhe é
própria.
Os 40 poemas eróticos reunidos em O amor natural desobnubilam muitas faces
do autor. Parece-me que pensá-los formalmente, sobretudo desentranhados da
pecha de poemas obscenos ou eróticos pura e simplesmente que lhes foi
imputada, é o primeiro passo inclusive porque a aproximação entre as palavras
amor e natural exige, imediatamente, uma revaloração tanto de uma, quanto
de outra.
Como relembra Lucas Oda em artigo intitulado Vaginas entrelinhas, Antônio
Houaiss, em 47 a partir da leitura de Em face dos últimos acontecimentos à
luz do conjunto Alguma Poesia, Brejo das Almas, Sentimento do Mundo, José e A
Rosa do Povo , nota que Drummond vai começar [nos livros subseqüentes a
Alguma poesia] a desenvolver, mesmo teoricamente, uma nova poética que vai se
transformando, assim como vão se transformando as relações sociais/sexuais
212
.
O amor natural, como ponto final desta trajetória, não pode, portanto, não ser
pensado como parte de uma tarefa filosófica, estética, existencial que o poeta
quebrador de tabus, destruidor de clichês e, simultaneamente, especialista em
cristalizar nossas ansiedades, nas palavras de Rónai se impôs.
212
ODA, 2008, p. 1.
136
De acordo com o próprio Houaiss,
Em face dos últimos acontecimentos é, porém, peça importante não
apenas do premonitório: em face dos últimos acontecimentos, a
pornografia, a escatologia, a fescenínia e atitudes afins e conexas se
fazem necessárias ou inevitáveis: Carlos Drummond de Andrade (...)
fazendo-o apenas teoricamente fazia muito, pois ferira demais o
ambiente da inércia para permitir-se o passo público além, da prática
pornográfica concreta, verbalizada.
213
Descontada a vontade do crítico de proteger o amigo, se considerada a
atualidade da advertência acima, mesmo 60 anos depois, de saída, somos
obrigados a reconhecer que os 40 poemas em questão filiam-se a uma longa,
porém, dada sua importância temática e vivencial, exígua tradição de livros cujo
tema central é justamente amor, prazer, corpo e sexo. É o caso, por exemplo, de
O banquete, de Platão, e de Arte de amar, de Ovídio que aparecerão como
referências óbvias em alguns dos poemas. Mas não se atêm a ela.
No citado artigo intitulado O erotismo nos deixa gauche?, Affonso Romano de
SantAnna relembra que embora estejam evidenciados ou privilegiados em O
amor natural, ou antes, desnudados tematicamente, o amor e o erótico por
entranhados à vida, à linguagem, à língua perpassam toda a obra
drummondiana, a partir de diferentes perspectivas, assumindo papéis variados:
O tema do amor e do erotismo, evidentemente, não é exclusividade de O
amor natural. Ele está presente em todos os seus livros. O que ocorre é
um desnudamento temático. Pode-se dizer, por exemplo, que nos
primeiros livros o amor aparece tratado ironicamente (...), não existe uma
visão inteiriça do corpo amado. Isto contudo vai se modificando. A partir
do meio da obra, o corpo do poeta e da amada vão ganhando mais
consistência na medida em que o poeta gauche entra em contato com os
grandes conflitos sociais (...). Ao mesmo tempo em que a questão
amorosa começa a ser tratada de maneira menos episódica e irônica,
começa também a ganhar uma densidade metasica (...).
Sintomaticamente, a temática amorosa torna-se mais presente nos
últimos livros do poeta. (...) Os poemas ganham uma eroticidade maior,
como se o poeta estivesse se desinibindo, ou como se Eros estivesse
jogando sua última cartada contra Tanatos.
214
Os olhos com os quais leremos O amor natural são índices, assim, de nossos
conceitos e preconceitos, de nosso modo embora particular, cultural de lidar
213
HOUAISS, 1976, p. 69.
214
SANTANNA, 1993, p. 82 e 83.
137
com as questões da por nografia e do erotismo e, por extensão, do amor, do corpo
e, numa dimensão lata, do ser. Todavia, o livro e os poemas de que se compõe
não podem ser reduzidos ou circunscritos a esta roda. Não se trata, como nos
adverte Emanuel Echeverría, de “‘decidir ler os poemas como eróticos ou
pornográficos, antes, de apagar os limites entre o obsceno e o erótico
215
. A
impropriedade de se tentar classificar os poemas sob um ou outro rótulo está
evidenciada na fusão entre signos e no tratamento privilegiado do código; o
prazer vem (principalmente) do tratamento lingüístico dado ao(s) tema(s) e não
das cenas, episódios ou corpos descritos e/ou narrados. Parafraseando e
estendendo Echeverría, não se trata nem mesmo de apagar os limites entre o
obsceno e o erótico, mas de apagar ou rarefazer a necessidade de pensar os
poemas em pauta a partir da dicotomia entre serem ou não obscenos / eróticos.
Ainda de acordo com Lucas Oda, apesar de alguns senões devidamente
expostos neste trabalho (como a noção de poeta gauche e quejandos de que o
crítico se serve),
O fato que torna esse livro polêmico não são apenas suas poesias
obscenas ou eróticas podemos encontrá-las em qualquer um de seus
livros, desde Alguma Poesia até Farewell mas o próprio tema do livro
que é apresentado despido de pudores poéticos e se inscreve dentro de
uma tradição filosófica e poética do erotismo e da obscenidade. É o
poeta gauche que vai nos apresentar novamente o nosso mundo com
suas mudanças, transformações.
Drummond é, sobretudo, um poeta de seu tempo que, guiado por seu
anjo torto, vai poder cantar os homens, as coisas, o mundo em suas
constantes revoluções. O poeta viu passar diante de seus olhos uma
revolução sexual nos anos 70; livros de Bataille e Rougemont; disparates
da poesia marginal, e assim pode desmascarar seus recalques e
verbalizar o que seus olhos não perguntavam em uma de suas primeiras
faces.
O prazer é o texto (e tomamos como texto a integralidade de elementos que se
materializam como o objeto livro), como rede, trama, invólucro, membrana a
permitir trocas entre o ser e o mundo. Relembremos que em O amor natural
aparecem abundantemente neologismos (coisa rara em Drummond, já comentada
no primeiro capítulo), formados, majoritariamente, por justaposição e aglutinação,
tais como, por exemplo, lambilonga, lambilenta, licorina, lenta-lambente-
215
ECHEVERRÍA apud SANTANNA, p. 78 e 79.
138
lambilusamente, bundamel, bundacor, bundamor, boquilíngua, clitórida. Os
processos de renovação vocabular escolhidos ativariam, de acordo com a
tradição dos estudos morfológicos, o potencial inventivo e auto-renovador de uma
dada língua, na medida em que partem de radicais pré-existentes para formar ou
forjar vocábulos até então inéditos o que evidenciaria a natureza criadora e
criativa dos textos drummondianos, mesmo considerando que tomam como ponto
de partida do já-dado.
A peleja com as palavras, no livro, é suscitada a partir do contato com o corpo,
com a pele do ser desejado (todos os neologismos identificados remetem a partes
do corpo ou a modos destas de se comportarem ou agirem, personificadas): mas
o ser desejado, diferentemente do que faria supor uma leitura mais apressada, é
indistintamente ou indissociavelmente o ser outro e o ser poema. Disto o ser
apaixonado, ou enamorado (tanto faz se autor ou leitor, se especializado ou não),
nas palavras de Barthes, cria sentido, sempre, em toda parte, de coisa alguma, e
é o sentido que o faz ficar arrepiado: ele está no braseiro do sentido. Todo
contato, para o enamorado, coloca a questão da resposta: pede-se à pele que
responda
216
. Daí porque é pertinente perguntar ao título e às epígrafes e ao que
mais nos aparecer pela frente o que é que podem nos r esponder.
E o sintagma nominal o amor natural é, parece-me, isso: o amor, definido
(atentemos ao artigo que o antecede) e adjetivado (e ao adjetivo que o segue)
pois que é palavra essencial, já anuncia o primeiro poema da série , começa,
termina, circunscreve, feito pele, todos os poemas, todas as epígrafes e, claro, o
título, ele mesmo. É sob esta rubrica, o amor natural, que se abrigam as 5
epígrafes, os 40 poemas, as 18 ilustrações. Não se trata de qualquer amor, ou do
primeiro tipo de amor que nos viria à mente; aquele que toma a palavra amor
quer deixá-la bastante bem delimitada, ao menos o suficiente para que não se
confunda com o que não interessa: uma leitura moralizante (que veja nos poemas
uma trajetória ascensional) ou biografesca (que veja nos poemas um mero
tributo às amantes reais do poeta) da obra em questão.
216
BARTHES, 1994, p. 56.
139
Dos 40 poemas, 17 trazem no corpo do texto a palavra amor, seus cognatos ou
neologismos que a contenham, e 23 não. Todavia, não é possível estabelecer
uma dicotomia entre os poemas que m em seu bojo a palavra amor e os que
não têm, pois amor, no livro, não é tomado exclusivamente com a conotação
que nossa educação cristã tradicionalmente lhe atribui (o que, contudo, não a
invalida ou bane), mas na pluralidade que o dicionário mesmo se esforça por
manter.
Caso a caso, a cada ocorrência da palavra amor ou de seus cognatos, temos
que buscar o sentido mais adequado, dentre os previstos e mesmo dentre os
imprevistos. Mas, em relação ao título, especificamente, amor é restringido pelo
adjetivo natural, que, dentre outras acepções possíveis, traz como as mais
evidentes que se refere ou pertence à natureza, ou produzido pela natureza ou
de acordo com suas leis e ainda espontâneo, simples, desafetado
217
.
Língua e epiderme se aproximam: são redes a estabelecer ou a viabilizar trocas.
São também as camadas mais externas de algo mais profundo: linguagem e pele.
Se em uma é a capacidade simbólica que embasa o existir, noutra é a derme e
com ela todo o corpo que nutre, para manter. Assim, se o amor é palavra
essencial, é porque, sendo palavra, não pode ser excluído, esquecido é natural
que tome parte em nossa existência. Louvá-lo é cantar à língua: amor é palavra,
envolve a canção (poema), guia o verso. Essa perspectiva metalingüística revela-
se no amor às palavras, à palavra amor, ao amor feito poema, linguagem e meta:
Amor pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.
218
ou
para travar comigo a luta extrema
que fizesse de toda a nossa vida
um chamejante, universal poema.
219
217
WORKPEDIA, 2008.
218
ANDRADE, 1993, p. 5, grifo meu.
219
ANDRADE, 1993, p. 55. grifo meu.
140
ou
Era bom alisar seu traseiro marmóreo
e nele soletrar meu destino completo.
220
O trabalho cuidadoso de construir referências múltiplas ao corpo, ao amor e à
língua evidencia-se, dentre outras coisas, nos jogos de esconde-e-mostra
eróticos, sem dúvida (por exemplo, quando o poeta, manipulando o código,
constrói ambigüidades, metáforas pouco decifráveis etc.) e na manutenção de
campos semânticos comuns para vários poemas de O amor natural. Tudo
converge à tentativa de compreender, identificar, enfim, ser capaz de transformar
em linguagem, de certo modo para fixar
221
, o outro. O apaixonado, com Barthes,
pode dizer: às vezes uma idéia toma conta de mim: começo a escrutar
longamente o corpo amado (...): vasculho o corpo do outro, como se quisesse ver
o que tem dentro
222
. Para a penetração no ser (inerte) do outro ou para a
eternização (fetiche?) do ser desejado, a riqueza de palavras, expressões e
imagens utilizadas para nomear, sejam os órgãos genitais masculino e feminino
(membro longo, haste, suçuarana, fera, membro, cobra desperta, falus, deus; e
vagina, vulva, gruta rósea, concha, berilo, esmeralda, nívea rosa preta,
inacessível naveta, flor, pulcra rosa preta, tríplice chave de urna, gruta cabeluda,
gelatinoso jazigo), a relação sexual e/ou coito anal (despetalam-se as pétalas do
ânus, a outra porta do prazer, a via estreita), ou, ainda, o orgasmo (eletricidade do
minuto, gozo, fusão di fusa transfusão, espasmo, céu, convulsão, gosma, nirvana).
Há, também, inúmeras outras referências a elementos (objetos, paisagens,
ações) naturais e/ou cotidianos que, no contexto, adquirem, além da significação
usual, conotações eróticas, de modo a pluralizar, mas sempre eternizando, na
tentativa de descrever, a fascinação, pelo distanciamento
223
: manhã, nuvens,
passarinho cantava, árvore, dentro da terra, morte e primavera em rama, água
220
ANDRADE, 1993, p. 58, grifo meu.
221
Como diz BARTHES: Se o corpo que escruto sai da sua inércia, se ele começa a fazer
qualquer coisa, meu desejo muda (1994, p. 62).
222
BARTHES, 1994, p. 62 e 63.
223
A fascinação não é outra coisa senão a extremidade do distanciamento por essa espécie de
figurinha colorida, esmaltada, vitrificada onde eu podia ler, sem nada entender, a causa do meu
desejo. Em BARTHES, 1994, p. 62 e 63.
141
clara, rosa crispada, talo ardente, êxtase na grama, praia deserta, ondas caladas,
brisa, desfolhava, fumaça do universo (em Era manhã de setembro
224
); gozo
que seja profundo / elaborado na terra, encontrando o corpo / e por ele
navegando / atinge a paz de um horto, dorme a onça suçuarana, / dorme a
cândida vagina, (em O que se passa na cama
225
); não me mostrava aquilo /
concha, berilo, esmeralda, misto de mel e de asfalto, Como a carne lhe sabia /
a campo frio, orvalhado, / onde uma cobra desperta (em A moça mostrava a
coxa
226
); praia de gozo e de espanto (em Adeus, camisa de Xanto
227
); Em teu
crespo jardim, anêmonas castanhas, Cada pétala ou sépala seja lentamente /
acariciada, céu, flora pubescente (em Em teu crespo jardim, anêmonas
castanhas
228
); luas gêmeas, montanhas, ondas batendo, praia infinita, Esferas
harmoniosas sobre o caos (em A bunda, que engraçada
229
); sabão e beijos,
de água vestidos, navegação, mergulho, chuva, fonte (em Sob o chuveiro
amar
230
); etc.
Essas redes de referências, o tratamento lúdico do código (como é o caso, por
exemplo, dos poemas Coxas bundas coxas e Bundamel bundalis bundacor
bundamor), os jogos sintáticos, tudo aponta para um privilégio do contato entre
linguagem e corpo, palavra e pele. Os poemas são, pois, a região paradisíaca
dos signos sutis e clandestinos: como uma festa, não dos sentidos, mas do
sentido
231
. Assim é que se pode afirmar que, nos poemas, se cruzam desejo e
linguagem: o imaginário do poeta se alimenta de cenas que, verossímeis na vida
real, ganham guarida no verso, rasurando causa (vida) e efeito (poema),
rasurando, também, veremos, o contorno que limitaria onde estariam as
referências extratextuais aos livros da exígua tradição das obras eróticas /
pornográficas e, ainda, aos livros que, embora não de todo identificados como
pertencentes a tal classificação, a ela se irmanam dentre eles, vários do próprio
Drummond (como o altissimamente ousado, sob um tal ponto de vista, Brejo das
almas).
224
ANDRADE, 1993, p. 8 a 11.
225
ANDRADE, 1993, p. 12 e 13.
226
ANDRADE, 1993, p. 15 a 18.
227
ANDRADE, 1993, p. 19 e 20.
228
ANDRADE, 1993, p. 21.
229
ANDRADE, 1993, p. 25 e 26.
230
ANDRADE, 1993, p. 28.
231
BARTHES, 1994, p. 56.
142
É talvez no entendimento de que em O amor natural se supera a festa dos
sentidos com a proposição da festa do sentido que se possa retomar a
aventada possibilidade de pensar que a concepção de tempo cíclico, a retomada
do mito e o senso de fatalidade ou destino reaparecem como, no dizer de
Prado Jr., apareceram antes em Claro enigma, enquanto iluminação nova que
não denegava nem desmentia a poesia anterior, a revelar a continuidade da
trajetória poética construída por Drummond.
Que tem a ver uma coisa com outra? Podemos dizer que a concepção de tempo
cíclico, a retomada do mito e o senso de fatalidade ou dest ino (re)aparecem em O
amor natural concordando com Maria Lúcia Pazo Ferreira, que afirmava em
1985, em sua tese de doutorado, que o erotismo em Drummond tem um fundo
místico e se afasta, portanto, da pornografia. Todavia, as análises de Ferreira são
suspeitas, pois o próprio Drummond encarregou-se de circunscrever e conduzir o
universo de análise da pesquisadora àquilo que lhe aprouvesse.
Contudo, o poeta não era nenhum ingênuo, nenhum desantenado em relação à
produção teórica e/ou estética de seu tempo, e não cometeria a falta de astúcia
de opor misticismo e pornografia, pois as tradições religiosas ou místicas todas, a
começar pela cristã, têm sua mitologia fortemente contaminada ou enraizada nas
questões do sexo, do gozo, do prazer e mesmo da reprodução. A bibliografia
mesma que ele indicou a Ferreira dá mostras disso: de um lado, Georges Bataille,
Gaitan Duran, Denis de Rougemont; de outro, poemas de John Donne e livros de
ilustrações como Les Masques dEros e Erotique du Japon
232
.
Talvez o fundo místico, desentranhado de qualquer ranço religioso, deva ser
pensado nos parâmetros apresentados por João Alexandre Barbosa em 74:
não grande poeta moderno onde não se possa apontar momentos essenciais
em que a construção do poema se realiza por entre os restos de uma procura
233
.
Essa procura pode ser que passe pelo redimensionamento dos valores herdados
da tradição. Por isso mesmo, têm que ser reavaliadas criticamente duas das
232
Consultar, a respeito, SANTANNA, 1993, p. 10 e 11.
233
BARBOSA, 1974, p. 108.
143
observações mais constantes dos leitores de O amor natural: a de que trazem
uma rejeição à pornografia e uma visão machista do amor.
A primeira observação, de que os poemas de O amor natural rejeitam a
pornografia, normalmente é formulada a partir da idéia de que o poeta guarneceu
seus textos com uma série de epígrafes, tanto na entrada do livro quanto no seu
interior, como a abonar-se nos clássicos de qualquer pecha de vulgaridade e a
procurar neles uma tradição
234
. Parece-me que mais do que abonar-se ou
mesmo desculpar-se o poeta quer nos fazer ver as questões ali tratadas como
naturais, como referentes ou pertencentes à natureza, ou produzidas pela
natureza, de acordo com suas leis e, ainda, como espontâneas, simples,
desafetadas. Epígrafes e citações não funcionariam como um escudo, mas como
um espelho: o modo de ler tais referências como naturais ou, noutra
perspectiva, como anteparos a proteger o poeta da acusação que lhe caberia
revelar-se-ia a nós mesmos evidência do que somos. que foram extraídas de
clássicos (nas acepções mais diversas), nunca terminarão de dizer o que têm
para dizer, podem ser relidas ad infinitum.
A primeira dentre as epígrafes do livro, Vivre sans volupté cest vivre sous la
terre, retirada de Sonnets pour Hélène, traz à tona, imediatamente, a profecia
ameaçadora, topos contíguo ao carpe diem e ao convite amoroso, de tradição
greco-latina, pois Ronsard em sua obra busca convencer a amada a viver o
momento presente, assustando-a como fará, no século XVIII, nosso Dirceu com
sua bela Marília com a previsão da velhice solitária (uma tal escolha, por parte
de Drummond, revela-se altamente significativa se pensarmos que o livro foi
finalizado por um poeta já idoso).
A segunda dentre as epígrafes, O que deu para dar-se a natureza, retirada de
Os Lusíadas, remete ao episódio em que se narra a súplica de Leonardo e a
rendição da Ninfa Efire talvez em diálogo direto com a citação precedente. Mais
uma vez, a visão que prevalece é, assim como em Sonnets, a visão masculina,
pois Leonardo representa não apenas uma figura histórica ou heróica, mas um
234
SANTANNA, 1993, p. 11.
144
ideal de homem, de masculinidade e de gênero (no mesmo canto nono, de onde o
verso que epigrafa O amor natural foi colhido, o marinheiro é descrito de férreo
cano erguido e, ainda, como soldado bem disposto, / Manhoso, cavaleiro e
enamorado).
Já a terceira dentre as epígrafes, ao suprimir os versos iniciais do poema de
Whitman, parece expor o leitor a uma provocação: A woman waits for me inicia-
se, na realidade, com a seguinte afirmativa: A woman waits for me she contains
all, nothing is lacking, / Yet all were lacking, if sex were lacking, or if the moisture
of the right man were lacking.
235
.
A quarta epígrafe, de Apollinaire, Faire danser non sens sur les débris du
monde, pode ser apontada como consoante à repetição de temas e ao fato de
que os compromissos estéticos, culturais e ideológicos do artista mantiveram-se
voltados, ao longo de toda a sua produção, para a escrita de uma poesia que
considerava eterna (o que talvez nos obrigue a pensar na própria trajetória de
Drummond). De acordo com Michel Décaudin,
Em uma época na qual a poesia é (era) freqüentemente prisioneira dos
sistemas e das teorias, Apollinaire soube simplesmente ser poeta.
Simplesmente, mas totalmente: sem recusar nada do que o mundo lhe
oferece, unindo em um mesmo abraço o espetáculo da vida, a
experiência pessoal e a cultura, acolhendo todas as formas da
expressão poética, sensível a todos os apelos estéticos de seu tempo,
salvaguardando, com um sotaque inimitável, a pureza de sua inspiração
no âmago das múltiplas solicitações.
236
É notável ainda que o conjunto de poemas em questão, de onde se extraiu o
verso Faire danser nos sens sur les débris du monde, apareça sob a forma
epistolar, recorrendo a estratégias como os acrósticos. Seu tom é lírico e seu
tema é o bem-amar. Mais notável ainda é a analogia possível entre sua estrutura
e a de O amor natural, pois ambas as obras poderiam ser sintetizadas em três
partes: na primeira, ocorreria a celebração do amor; na segunda, o pedido de
235
Tradução de Rodrigo Garcia Lopes: Uma mulher espera por mim, ela tudo contém, nada falta,
/ No entanto, tudo ficou faltando se o sexo faltou, ou se o orvalho do varão certo estivesse
faltando. Disponível em http://quixotandolivros.blogspot.com/2008/01/uma-mulher-espera-por-
mim-woman-waits.html, acessado em 22/02/2008.
236
DÉCAUDIN apud AMORIM, 2003, p. 50.
145
cartas-respostas (ou de recíproca afetiva); na terceira, a análise da noite (talvez
como metáfora do envelhecimento).
Por fim, a quinta epígrafe do livro, de Pedro Salinas, parece fechar o ciclo
inaugurado pelas advertências de Ronsard a sua musa Hélène:
Largos goces iniciados
Caricias no terminadas,
Como si aun non se supiera
En qué lugar de los cuerpos
El acariciar se acaba,
Y anduviéramos buscándolo
En lento encanto, sin ansia.
237
A vida continua a ter como seu traço mais evidente a fugacidade e a finitude. Isso
é especialmente significativo em se tratando de um poeta que morreu jovem,
escolhido para epigrafar um livro que se encerra com um soneto do quilate de
Para o sexo a expirar:
Para o sexo a expirar, eu me volto, expirante.
Raiz de minha vida, em ti me enredo e afundo.
Amor, amor, amor o braseiro radiante
que me dá, pelo orgasmo, a explicação do mundo.
Pobre carne senil, vibrando insatisfeita,
a minha se rebela ante a morte anunciada.
Quero sempre invadir essa vereda estreita
onde o gozo maior me propicia a amada.
Amanhã nunca mais. Hoje mesmo, quem sabe?
enregela-se o nervo, esvai-se-me o prazer
antes que, deliciosa, a exploração acabe.
Pois que o espasmo coroe o instante do meu termo,
e assim possa eu partir, em plenitude o ser,
de sêmen aljofrando o irreparável ermo.
238
Tão significativo quanto o conteúdo apresentado pelas epígrafes e o contexto de
onde foram extraídas, talvez seja a questão de sua autoria. Ronsard e Apollinaire,
na França, Camões, em Portugal, Whitman, nos Estados Unidos, e Salinas, na
Espanha, cada um a seu tempo e seu modo, instituíram marcas fortes na história
da poesia de seus países, transcendendo, inclusive em vida, as fronteiras
nacionais. O mesmo se deu com Drummond, também ele um poeta engajado na
237
SALINAS apud ANDRADE, 1993, p. 17.
238
ANDRADE, 1993, p. 103.
146
construção de uma poesia do tempo presente, sujeita à experimentação estética
em diálogo profícuo com a tradição que lhe antecede e que por ele transpassa,
dedicando-se, assim, à construção de um novo legado estético, contudo, não
submetido aos ditames das modas literárias geracionais. Além dos traços comuns
entre Drummond e os poetas mencionados acima, penso que a escolha de cada
um deles revela uma espécie de leitura do brasileiro a respeito de sua própria
trajetória
239
.
Mais além da pertinência de autores e obras escolhidos para figurar nas
epígrafes, suspeito que as referências intertextuais internas no livro também
forneçam indícios deveras interessantes da altíssima consciência de Drummond
de sua situação de poeta na história de nossa literatura. Somente a título de
ilustração, porque talvez o leitor seja curioso como eu sou, o poema A língua
francesa (A língua francesa / desvenda o que resta / (a fina agudeza) / da noite
em floresta. // Mas sem esquecer, / num lance caprídeo, / de ler e tresler / a arte
de Ovídio.) se põe, como quis Drummond, à margem de La Défense et
Illustration de la Langue Française, de Joachim du Bellay, e De la Préexcellence
du Langage Française, de Henri Estienne. Vejamos: a) du Bellay, poeta francês
membro do grupo Plêiade, ativo à época do Renascimento europeu do século
XVI, é autor de uma espécie de manifesto (La Défense et Illustration de la Langue
Française) cujos objetivos fundamentais eram os seguintes: ruptura com formas
medievais, imitação dos antigos e reforma estrófica. Drummond tem como
características fundamentais de sua obra, seriedade e humor, que se confundem
com sobriedade, cautela, possibilidade de aproximação investigativa e
serenidade, diante da vida e do fazer poético; correlação entre diversos aspectos,
formais e temáticos, que se arranjam, num autor com rara vocação clássica,
como um projeto poético-pensante caracterizado pelo emprego de elementos do
uso comum e de técnicas de composição que consistem na perturbação das
formas líricas tradicionais, o que esbarra, muitas vezes, na metalinguagem, na
ambigüidade e na auto-referencialidade; organização rítmica a partir da repetição,
sem preferência por elemento sintático ou categoria gramatical, e da repetição
enumerativa; direção para o formalismo: coisa que, livro a livro, e sem grandes
239
Cf. a respeito o desenvolvimento que faço no anteprojeto, de 2005, intitulado Um biscoito fino:
O amor natural em estudo Drummond libertino? (inédito).
147
sobressaltos, vai se encorpando, vai abrindo espaço; poesia como superação da
tricotomia presente-passado-futuro
240
; e b) Estienne, helenista francês como du
Bellay, Ronsard e Apollinaire, já referidos anteriormente , traduziu do grego os
Diálogos de Platão, aos quais Drummond faz explícitas referências ao longo de
todo O amor natural e, mais especificamente, em Amor pois que é palavra
essencial; vejam-se, por exemplo, os seguintes versos: O corpo noutro corpo
entrelaçado, / fundido, dissolvido, volta à origem / dos seres, que Platão viu
contemplados: / é um, perfeito em dois; são dois em um.
241
. O fragmento,
claramente, menciona a fala de Aristófanes, em O banquete, quando comenta o
mito de que, no início de todas as coisas, os seres eram duplos, esféricos e
poderosos. Tendo estes ousado desafiar Zeus, ele os cortou em dois para
enfraquecê-los, donde surge o amor recíproco, que se origina da tentativa de
restauração da uni dade primitiva; c) Ovídio, poeta latino que viveu entre 43 a. C. e
17 d. C., é citado na conclusão de A língua francesa, em referência explícita a
Ars amatoria (Arte de amar): ler e tresler / a arte de Ovídio.. Joachim du Bellay
foi um estudioso da poesia da antiguidade greco-latina da qual Ovídio faz parte
, que o Renasci mento do século XVI retomou. O poeta latino vem citado também
em outros poemas, além de A língua francesa, como é o caso de Quando
desejos outros é que falam: Quando desejos outros é que falam / e o rigor do
apetite mais se aguça, / despetalam-se as pétalas do ânus / à lenta introdução do
membro longo. / Ele avança, recua, e a vi a estreita / vai transformando em dúlcida
paragem. // Mulher, dupla mulher, no teu âmago / ocultas melodias
ovidianas.
242
, além de vários poemas possuírem temáticas semelhantes àquelas
encontradas nos livros I, II e III de Arte de amar.
Além das conexões já estabelecidas, outras
243
: por exemplo, os tão citados
Estienne e du Bellay são contemporâneos de Camões, cujo verso O que deu
240
Ver, a esse respeito, SANTANNA, Affonso Romano de. Carlos Drummond de Andrade: análise
da obra. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980; e DALVI, Maria Amélia. Drummond,
entregue e dissoluto: entre o ritmo e o físico, a expirar-se, por uma forma, um revérbero corpóreo
que amor é palavra essencial, dizem. Texto apresentado no VIII Erel, ocorrido de 23 a
27/03/2005, na Ufes.
241
ANDRADE, 1993, p. 5.
242
ANDRADE, 1993, p. 42.
243
Desde outras obras precedentes já é prática que Drummond refira-se a outros poetas e pense
sobre suas produções tal como se vê, também, em Ovídio (2001, p. 98) , traçando paralelos
entre si mesmo e estes. Veja-se, a respeito, a título de amostragem, o estudo comparatista de
Ester Abreu Vieira de Oliveira (OLIVEIRA, 2004, p. 127 a 132) entre Drummond e García Lorca.
148
para dar-se a natureza aparece epigrafando O amor natural, logo abaixo do
verso Vivre sans volupté cest vivre sous la terre, de Ronsard, que pertence,
tanto quanto du Bellay, ao grupo Plêiade.
Quanto à segunda observação recorrentemente feita pelos leitores de O amor
natural, de que os poemas apresentam uma visão machista do amor, talvez, mais
uma vez, é nos olhos do leitor que se deva buscar uma explicação. Poucos dentre
os poemas evidenciam inapelavelmente que o par do eu lírico nas cenas descritas
seja do sexo feminino e mesmo que o eu lírico seja masculino. Embora se
argumente que faltou a voz feminina, cada artista é livre para chutar ou não o
balde do politicamente correto. Numa sociedade falocêntrica como a nossa, em
que mesmo os homens requerem uma espécie de autorização para seus
discursos de cunho erótico, seria hipocrisia do macho não reconhecer que
embora o que se passa na cama seja segredo de quem ama, nunca houve
segredo mais repartido que esse em todos os tempos e culturas e que o bom
poeta é aquele que ao revelar o seu segredo descobre que ele pertence a
todos
244
. Esperar que o poeta desse à fêmea carta branca para manifestar sua
voz é que revela um modo este, sim machista de lidar com as questões
abordadas no livro e mesmo com aquelas que extrapolam seu âmbito.
V
Caso os limites deste trabalho permitissem, eu desejaria realizar 6 análises, 5
delas de poemas e uma del as de um grupo de poemas. Explicito a razão para que
fique mais bem explicado o motivo de eu entender O amor natural enquanto
coroação de um projeto poético (pensante).
Parece-me que mais relevante que a questão temática, como tenho dito, é a
questão formal, ou mais especificamente, o evidenciamento de um virtuosismo
formal latente, que se transmuta, contudo, em simplicidade (ou naturalidade), ao
resgatar formas (ou fórmulas) poéticas tradicionais ou populares. Este
evidenciamento se construiria, ainda, no que optei por designar como
polimorfismo-revisionista, que se a ver nos textos de O amor natural um
244
SANTANNA, 1993, p. 14.
149
diálogo bastante explícito com a trajetória precedente. Deixemos em suspenso o
assunto por ora.
Para além do aspecto formal, apenas a título de curiosidade, fiz um breve
levantamento nos dois primeiros livros do poeta (Alguma poesia e Brejo das
almas) de alguns dos poemas e fragmentos que poderiam ser utilizados em um
estudo comparativo entre o Drummond de O amor natural vs. o Drummond
precedente, na tentativa de encontrar, no próprio poeta muito mais que nas
referências que faz a outros autores e a outras épocas , as filiações ou tradições
que lhe permitem chegar às visões do amor, do corpo, da vida em suma, do
eterno e do etéreo que encontramos no livro em análise.
1. Em Alguma poesia (1930):
a) Casamento do céu e do inferno: visar-se-ia a analisar as referências que
o poeta faz às questões religiosas e ideológicas, embasadas por aquilo que
a Igreja prega e impõe, e a visão de Diabo e de diabólico que a
engendra (Os corpos enrolados / ficam mais enrolados ainda). Cite-se,
em específico, a terceira estrofe do poema que, fugindo, aparentemente, à
temática do céu e do inferno, faz uma referência às escadas em espiral,
elemento típico das ilustrações relativas a épocas medievais, como se
num comentário à tela Filósofo meditando (1633), de Rembrandt: o
ambiente criado é comum na Idade Média, uma grande abóbada e uma
escada em caracol
245
; a quarta, a quinta, a sexta e a sétima estrofes
fazem referências explícitas às figuras do Diabo e de São Pedro (Por uma
frincha / o diabo espreita com o olho torto. (...) / São Pedro dorme / e o
relógio do céu ronca mecânico). Além disso, querer-se-ia pensar pelo
menos duas referências literárias explícitas da máxima importância: o título
do poema, que é também a tradução do título de uma obra de William
Blake (1793) e a última estrofe, que alude às figuras de Laura (Petrarca) e
Beatriz (Dante). O interesse, talvez, em estudar tais referências poderia
ampliar-se, visto que Blake, no período em que viveu exclusivamente de
seus talentos como ilustrador (1783-1803), chegou a produzir cem
245
PINACOTECA CARAS, [s. d.], p. 120.
150
aquarelas para A Divina Comédia de Dante. Possivelmente, se poderia
buscar uma perspectiva comparativa entre este poema, Casamento do
céu e do inferno, e Romaria, do mesmo livro, em especial duas de suas
estrofes: a terceira (No alto do morro chega a procissão. / Um leproso de
opa empunha o estandarte. / As coxas das romeiras brincam no vento. / Os
homens cantam, cantam sem parar.) e a sexta (Meu Bom Jesus que tudo
podeis, / humildemente te peço uma graça. / Sarai-me, Senhor, e não
desta lepra, / do amor que eu tenho e que ninguém tem.).
b) Cantiga de viúvo: pode ser interessante traçar um paralelo entre este
poema e Para o sexo a expirar, que fecha O amor natural. Há, inclusive,
elementos de campos semânticos comuns, como disse adeus, consolou
(Cantiga) e partir, instante do meu termo (Para o sexo); me apertou
com tanto fogo (Cantiga) e Amor, amor, amor o braseiro radiante
(Para o sexo), etc. Um outro viés possível de abordagem talvez seja o
amor, fogo, como consolo da vida que se finda como é o caso de Para o
sexo a expirar; ou que se findou como é o caso de Cantiga de viúvo.
c) Iniciação amorosa, Balada do amor através das idades, Cabaré
mineiro e Quero me casar, que, nesta ordem, se sucedem: os poemas
assim, em cadeia, parecem querer dar conta de alguns dos vários ângulos
possíveis através do quais o amor pode ser analisado. Iniciação trata do
amor adolescente, repleto de culpa; Balada faz uma leitura irônica do
amor através dos tempos, ou das i dades. Passeia pelos campos de batalha
de Grécia e Tróia, pela Roma perseguidora de cristãos e admiradora dos
duelos entre homens e leões, pelos mares de piratas mouros, pela
expansão do cristianismo em plena Idade Média, pelas cortes de Versailles
e pela modernidade que emana dos filmes da Paramount; Cabaré traz
diversos aspectos, mas, entre eles, a relativização do belo, do desejável e
a insinuação de uma vivência meramente erótica do outro, despida do
amor ágape; e, por fim, Quero me casar, rompendo com certa linhagem
criada pelos poemas anteriores, denota uma visão, se não irônica, ao
menos bem-humorada do casamento e, por que não?, do amor.
2. Em Brejo das almas (1934):
a) Registro civil: interessaria estudá-lo, principalmente, pelas referências
literárias e extraliterárias explícitas: Dulce, Rosa, Leonora, Cármen,
151
Beatriz, ostras, margaridas, anjo, Sodoma e Ostende, além da possível
correspondência entre registro civil, enquanto burocratização, e
casamento. Outro poema que deve merecer um estudo pormenorizado,
também por suas referências literárias, é Desdobramento de Adalgisa,
que encerra Brejo das almas.
b) Boca: este poema, de uma maneira bastante peculiar, parece, põe lado a
lado um humor que, lato sensu, tende a sarcasmo e uma seriedade que
tende a sadismo. Daí sua importância capital na obra drummondiana desta
primeira época; pensá-lo deste modo confirma o que disse Affonso
Romano de SantAnna: O tema do amor e do erotismo, evidentemente,
não é exclusividade de O amor natural. (...) Pode-se dizer, por exemplo,
que nos primeiros livros o amor aparece tratado ironicamente (...), não
existe uma visão inteiriça do corpo amado. Isto contudo vai se
modificando.
246
.
c) O amor bate na aorta: transparece um amor e um modo de pensá-lo
que é irreverente, bem-humorado.
d) O passarinho dela: permite um contraponto interessante com A moça
mostrava a coxa, de O amor natural. Em ambos os poemas, pela recusa
da mulher desejada, o poeta -se frustrado. Há, nos dois, um jogo
feminino de esconde-e-mostra, de excitamento e de recusa, que pode
aproximar a mulher e a moça de um e de outro poemas, ainda, às
mulheres que Ovídio (séc. I a.C.), em Arte de amar, descreve: Muitas
vezes ao -las (tantas são!) / a abundância retarda a nossa escolha. /
Porque se vêm gozar o espetáculo / também gozam o espetáculo que
o.
247
.
e) O vôo sobre as igrejas: interessaria, especialmente, pela referência a
Antônio Francisco Lisboa e à perfeição das formas dos corpos que
esculpiu, criando nexo entre a volúpia daqueles corpos e sua
contemplação, coisa que, se permite a evidência dos desejos carnais mais
secretos e condenáveis pela Igreja, para quem o escultor trabalhou,
permite certa liberação via arte para a visão de nossas luxúrias todas,
nessa nossa ânsia humana de ir para o céu / e de pecar mais na terra.
246
SANTANNA, 1993, p. 82 e 83.
247
OVÍDIO, 1992, p. 27.
152
f) Em face dos últimos acontecimentos e Não se mate: a análise dos
poemas seria essencial, sobretudo, porque talvez marca um tempo de
transição entre o tratamento irônico e compartimentado do amor e a
abertura rumo a uma aceitação da natureza humana, erótica, por vezes
irrefletida, e mesmo pornográfica, do amor e dos corpos desejados; tal
transição viria, também, sob a forma de convite: Oh! sejamos
pornográficos / (docemente pornográficos). A morte cede espaço ao
humor, o desnudamento do corpo perpetua a vida e lhe razão:
Pensavam que o suicídio / fosse a última resolução. / Não compreendem,
coitados, / que o melhor é ser pornográfico.
g) O procurador do amor, Convite triste, Canção para ninar mulher,
Segredo, Necrológio dos desiludidos do amor: merecem destaque pelas
visões singulares do amor e cercanias.
h) Sombra das moças em flor e Oceania: estes poemas antecipam de
algum modo certa atração do poeta, presente em O amor natural, pelos
corpos jovens em oposição aos maduros ou envelhecidos. No entanto, a
diferença de concepção entre um poema e outro se dá, especialmente
porque, no primeiro, as moças, genericamente porque são moças
chamam a atenção e impõem certo constrangimento: As moças vão casar
e não é com você. / Elas casam mesmo, inútil protestar.; no segundo, o
objeto de amor ou de desejo é particularizado: Amo burra, burramente /
certa menina enfezada (...) / Ora, eu amo essa menina / que vem dentr o de
um romance, / áspera, nítida, úmida, / brincar no meu pensamento, /
espantar esse mosqui to / que pousou no meu papel.
Devido à extensão que este texto toma e ao tempo exíguo para sua
conclusão, ative-me embora a contragosto a apenas duas análises (uma de
Amor pois que é palavra essencial e outra de À meia-noite, pelo telefone),
que vêm no próximo item. Penso, porém, ser justo explicar que outras quatro,
além das efetuadas, interessariam a este trabalho e por quê (que eu mencionei
no início desta seção do capítulo o desejo de realizá-las). São elas: a) uma de
Coxas bundas coxas, A bunda, que engraçada, Bundamel bundalis bundacor
bundamor, No mármore de tua bunda e Era bom alisar seu traseiro marmóreo;
153
b) uma de A língua francesa; c) uma de Você meu relógio de não marcar
horas; e d) por fim, uma de Para o sexo a expirar.
O primeiro poema do livro Amor pois que é palavra essencial me parece
paradigmático da intenção drummondiana de dialogar com a tradição, na medida
em que se serve de versos decassílabos e de quadras; todavia, o quê moderno
adviria de um esquema mico irregular, que se constrói, também, na alternância
de rimas toantes (outro / sono) e consoantes (grito / infinito), e de internas (toda /
envolva) e finais (entrelaçados / completados).
Além disso, uma análise deste poema se imporia devido ao fato de haver sido
eleito como poema de abertura, o que talvez tenha sido feito com o intuito de
estabelecer o tom do que se orquestra dali em diante. Outro ponto importante,
ainda, é que este poema é um dos poucos em que se fala do amor enquanto
transcendência, numa perspectiva que busca conjugar a questão erótica ou
corporal propriamente dita à questão ascensional ou transcendente que se
coaduna ao amor quando pensado à Platão (filósofo explicitamente referido no
texto).
A análise conjunta de Coxas bundas coxas, A bunda, que engraçada,
Bundamel bundalis bundacor bundamor, No mármore de tua bunda e Era bom
alisar seu traseiro marmóreo seria imperativa tendo em vista aquilo para o que
Mário de Andrade chamara a atenção em 1930: a constante presença de partes
do corpo (bundas e pernas estas últimas especificamente) nos poemas de
Drummond atua de modo fetichesco e indiciário, ao pôr em cena a diversidade de
situações em que aparecem, todas elas, contudo, fortemente relacionadas ao
estar-no-mundo e à frustração erótica (quer decorrente da timidez registrada por
Mário, quer de valores e eventos morais punitivos ou coercivos). Além disso é
neste grupo de poemas que o experimentalismo bem-humorado de Drummond se
dá a ver de modo mais nítido, aspecto formal que se diferencia dos outros para os
quais chamamos a atenção nos demai s 5 poemas comentados neste item.
O poema À língua francesa tem uma importância capital no corpo de livro por
ser aquele que mais facilmente se revela metalingüístico e mesmo intertextual.
154
Como já foi fartamente comentado, me esquivo aqui de alongar as notas a seu
respeito.
Em À meia-noite, pelo telefone é forçoso reconhecer que, a despeito da
aparência de atemporalidade de que os poemas em O amor natural se revestem,
a datação histórica se revela, se estivermos dispostos a enxer-la nas cores em
que se mostra. Este aspecto é importante porque seria estranho justificar O amor
natural como ponto final de uma trajetória construída de modo bastante articulado
às suscetibilidades e agruras de cada tempo se, nesta obra, esta marcação
histórica não estivesse também presente. Outro aspecto importante é o fato de o
poema se diferenciar, quanto ao aspecto formal, dos anteriormente comentados e
dos outros dois que vêm nos próximos parágrafos. Os seis objetos possíveis de
análise foram escolhidos por cada um deles revelar uma face estética própria; a
de À meia-noite, pelo telefone é a face dos versos brancos e livres e da
estrofação não submetida a nenhum esquema pr évio.
Você meu relógio de não marcar horas é um dos quatro poemas em prosa do
livro e aquele que reproduz a partir de um emprego livre e lúdico dos sinais de
pontuação de modo mais indubitável a récita referente a uma mimetização de
certa declaração verbal de amor que culminaria no que o poeta decide chamar de
suicídio gozoso glorioso.
quanto à justificativa para a pertinência de se analisar Para o sexo a expirar
seria suficiente lembrar que se trata do último poema do livro, aquele que encerra
o conjunto de O amor natural. Todavia, além deste fato, é importante lembrar que
se trata de um soneto à italiana, sendo, porém, o único construído com versos
alexandrinos.
Contudo, como eu disse, ative-me a apenas duas análises, que vêm em
seguida.
VI
Antes que se pretenda qualquer leitura mais minuciosa de Amor pois que é
palavra essencial, primeiro poema de O amor natural, convém pensar as razões
155
ou motivos que justificam conceber os textos eróticos em questão como
representativos das vertentes filosófica, metalingüística e clássica (em sentido
lato) da produção drummondiana.
Vejamos: o poeta debruça -se, tanto em O amor natural quanto em Farewell, sobre
um tema: no livro em questão, o tema é o erótico. Investiga-o multiplamente,
explora várias possibilidades de sentido para o corpo, para o amor, para o sexo
e mais: explora várias possibilidades formais, parte de diferentes pontos de vista.
Explorar formas para sondar um conceito é, sem dúvida, um trabalho de
metalinguagem; mais à frente, discutiremos a construção do poema Amor pois
que é palavra essencial à luz de sua analogia com a vida. Além disso, inserir-se
propositadamente e pertinentemente numa tradição canônica, quer da
Literatura, quer da Filosofia, é querer-se clássico, é dar mostras de consciência
poética / existencial
248
.
O que a análise do poema que abre O amor natural quer mostrar é: a tentativa de
dissolução das categorias temporais no poeta libertino faz-se superação da idéia
de conquista do tempo como inseparável da sensação de perda; inscrever o
corpo esteticamente, liricamente, para o póstumo é compreender que vida e
morte estão ferrenhamente entrelaçadas, sim, porque fazem parte do mesmo
projeto: existir, corpo ou corpus.
Talvez, mais que o risco de se expor, poeta consagrado, à leitura que a
divulgação dos poemas eróticos poderia suscitar se verdadeiras as hipóteses
comentadas de Rita de Cássia Barbosa , as reticências de Drummond quanto à
publicação de O amor natural se deviam, quem sabe, ao entendimento do poeta
de que o amor braseiro radiante / que (me) dá, pelo orgasmo, a explicação do
mundo
249
é como o limite para o qual tendem as nossas incessantes e sempre
insuficientes aproximações; parece sempre transcender nossas múltiplas
artimanhas de linguagem, nossos esforços para dizê-lo em si mesmo,
248
Cf. SOARES, 2002.
249
ANDRADE, 1993, p. 72.
156
direta e exaustivamente, permanecendo apenas refletido nas
imprescindíveis e precárias tentativas desse dizer.
250
Na mesma esteira ou história dos poemas de Drummond, estão, dissemos, por
exemplo, O banquete, de Platão, e Arte de amar, de Ovídio. O amor, em
Drummond, tal e qual em Ovídio ou em Platão, é tratado como arte. Necessário
pensá-lo: o amor, construção. Ambos os livros, O amor natural e Arte de amar, e
ainda os diálogos de O banquete, dão mostras da invenção de uma arte sutil,
feita de nuances e de uma incontestável disponibilidade
251
, desprovida da noção
de pecado. O prazer, a partir dos poemas, porque estético e é possível a
aproximação estética via corpo, dada a necessidade dos sentidos para que dela
se usufrua , libera o corpo do sexo, para, com Platão, conduzi-lo a uma fruição
outra, superior: uma fruição dos sentidos textuais e não mais unicamente ou,
quem sabe, não mais necessariamente os corporais. Ou, citando José
Américo Motta Pessanha e estendendo-o de Platão a Drummond e Ovídio:
em Platão, amor e fala, amor e discurso, amor e palavra estão intrínseca
e definitivamente interligados. Há, para Platão, cumplicidade entre Logos
e Eros. Para sermos mais corretos: existe estreita vinculação entre as
diversas formas de amor múltiplas figurações de Eros e as
respectivas linguagens que falam do amor e com que o amor se fala. Os
discursos amorosos retratam as várias faces de Eros.
252
O amor natural é isso: amor, definido e adjetivado, como desejo de que se a
passagem do amor ao corpo (Erótica), ao amor à verdade (Filosofia) o que não
exclui a reunião dos membros, a comunhão dos corpos. Quando, nO banquete,
se fala sobre o amor, palavra essencial, esse falar tem como objeto o amor e
também o ato mesmo de falar, ou antes, de construir discursos, que o perfeito
amante (erótikos) é o verdadeiro filósofo
253
. E se a estilização do
comportamento sexual, a estetização do desejo, manifesta-se também na escolha
do seu objeto este deve ser o mais belo e o mais nobre
254
; e, ainda, se Logos e
Eros são inseparáveis e se em todos os seus tipos e níveis o amor é falante,
discursante porque há, sempre, uma ligação subterrânea entre amor e fala
255
,
250
PESSANHA, 1987, p. 82 a 83.
251
OVÍDIO, 2001, p. 8.
252
PESSANHA, 1987, p. 77.
253
ROBIN apud PESSANHA, 1987, p. 86.
254
PESSANHA, 1987, p. 84.
255
PESSANHA, 1987, p. 86.
157
podemos concluir que nada há de ser mais belo e nobre e, portanto, mais
próximo ao amor que o privilégio da linguagem, que a língua feita palco para si
mesma, como se na poesia. E é assim que se afigura o amor como luta que
não é vã: amor mais que palavra, então; amor-vida, feito poema universal:
Não quero ser o último a comer-te.
Se em tempo não ousei, agora é tarde.
Nem sopra a flama antiga nem beber-te
aplacaria sede que não arde
em minha boca seca de querer-te,
de desejar-te tanto e sem alarde,
fome que não sofria padecer-te
assim pasto de tantos, e eu covarde
a esperar que limpasses toda a gala
que por teu corpo e alma ainda resvala,
e chegasses, intata, renascida,
para travar comigo a luta extrema
que fizesse de toda a nossa vida
um chamejante, universal poema.
256
Ecoam aqui, na última estrofe, os versos de O lutador (Lutar com palavras / é a
luta mais (...), publicado em José, de 1942, cinqüenta anos antes de Não
quero ser o último a comer-te). Ambos os poemas seguem, embora distantes
temporalmente, o mesmo percurso ou projeto: as palavras, erotizadas, precisam
ser conquistadas; não são dóceis, e, como amantes, travam lutas, corporais ou
não; o fim e a vida, das palavras e dos amantes, é a poesia. A relação amante /
amado passa a se sustentar na relação mais forte, de cada um, com a verdade
(...). Essa passagem exige a mudança dos temas e das conversações sobre o
amor, e convida para a luta extrema:
A troca de perguntas a respeito do amor passando do plano das
relações afetivas entre pessoas para o plano da relação afetivo-
intelectual entre sujeitos e verdade revela a troca do eixo da
causalidade horizontal pelo da causalidade vertical: a conversão
platônica [e, parece, drummondiana] rumo ao alto, ao mundo das idéias
[ou, se queremos, ao chamejante, universal poema].
257
Assim, seja em Drummond ou em Ovídio, o amor, arte, objeto de reflexão e de
dobra sobre si mesmo, é um grande deus
258
: entorpece (sendo paixão, tesão) e
256
ANDRADE, 1993, p. 55.
257
PESSANHA, 1987, p. 85.
258
PLATÃO, 1995, p. 153.
158
ilumina. E é em honra a este grande deus, um tanto quanto ambíguo justamente
porque seu fim último é a multiplicação ou exploração dos sentidos, corporais e
textuais , que tanto um quanto outro poeta resolvem cantar, reparando aquilo
que, nos diálogos dO banquete, diagnostica-se: nenhum homem até o dia de
hoje teve a coragem de celebrá-lo [o Amor] condignamente, a tal ponto é
negligenciado um tão grande deus!
259
. Pensar e louvar o amor, deus, arte, é
reconhecer sua importância, sua força contra o feio e o mau mesmo que ele, o
amor, não seja em si mesmo belo ou bom: O amar e o Amor não é todo ele belo
e digno de ser louvado, mas apenas o que leva a amar belamente
260
. Podemos
perceber, nas imagens do texto poético, que, para o eu lírico, na morte, ou antes,
no fim, é o amor, levando-nos a amar, belamente, quem de dar a explicação
do mundo e é por isso que se de cantá-lo, e por quase nada mais.
Diferentemente de uma concepção, grosso modo, romântica, aqui, em O amor
natural, o amor é a razão para o pensamento, é o meio e o fim de toda explicação
do mundo, e é ele quem de, na efemeridade do orgasmo, na maximização dos
sentidos, proporcionar a reunião do ser com o eterno:
Para o sexo a expirar, eu me volto, expirante.
Raiz de minha vida, em ti me enredo e afundo.
Amor, amor, amor o braseiro radiante
que me dá, pelo orgasmo, a explicação do mundo.
(...)
Pois que o espasmo coroe o instante do meu termo,
e assim possa eu partir, em plenitude o ser,
do sêmen aljofrando o irreparável ermo.
261
É deste modo que
o amor platônico [e tamm drummondiano] é, com efeito, o amor
mitológico, mas filosoficamente revisto e corrigido. (...) Ele é menos o
que voa do que o que faz voar. Falante e alante, o amor é impulso
ascensional, do sentimento e da fala. Conduz do condicionado ao
condicionante, do corpóreo ao incorpóreo. Tende ao absoluto:
(re)conduz a alma do contingente e do efêmero ao essencial e ao
eterno.
262
259
PLATÃO, 1995, p. 100.
260
PLATÃO, 1995, p. 110.
261
ANDRADE, 1993, p. 72.
262
PESSANHA, 1987, p. 86.
159
A aproximação entre pensar e amar é evidenciada, ainda, na sexta estrofe de
Amor pois que é palavra essencial: varado de luz, o coito segue. Se luz ou
ilustração é sinônimo, muitas vezes, desde o século XVIII, de razão ou de
atividade intelectual, no poema, Drummond evoca, em aparente paradoxo, o
coito e a luz, em interdependência. O pensar é erotizado: a luz é potente, pode
varar, penetrar o coito, o sexo, os corpos razão e erotismo não se opõem e,
não sendo de espécie diversa, geram poemas; sua cópula não é estéril. A luz, tal
como o amor, se por um lado faz ver, por outro, cega. Parece, então, que
somente nesta ambigüidade, razão e paixão, é possível a permanência do amor.
Amar belamente é perceber, no amor, seus múltiplos caprichos e detalhes, suas
muitas faces, é perceber, ainda, o quanto de natural nele, por estar em toda
parte, começo e fim de todo verso, de toda vida, sendo aquilo que pôde ser
resgatado de uma longa cadeia de memórias e esquecimentos, no meio de uma
série de discursos heterogêneos, provenientes de várias épocas e entremeado de
lacunas
263
. O tema do amor, sabemos, existe na intermediação dos discursos,
no campo plural da fala, da interlocução sustentada pela memória, mas marcada
inevitavelmente pela incerteza e pelas omissões do esquecimento
264
; e essa
incerteza leva ao ensimesmamento: pelo menos, de Sócrates atestado pelo
atrasar-se no caminho quando iam rumo à casa de Agatão, para o famosO
banquete e de Drummond atestado pela decisão de permitir a publicação de
seus poemas eróticos apenas postumamente. As incertezas e as omissões
obnubilam qualquer categoria do amor. Se, com efeito, um fosse o Amor,
muito bem estaria; na realidade, porém, não é ele um
265
. Mesmo o amor na
sua modalidade heterossexual, de Arte de amar e de O amor natural, tratado
como arte, pede o desdobramento do código, dos signos, da linguagem, para
poder ser dito, para poder criar sentido nisso que, absurdamente, não pode ser
bom em si mesmo, sendo, porém, como vimos, força contra o feio, o mau e a
morte; talvez, também por isso, a linguagem, ou antes, o texto, falando sempre e
de todas as formas do amor e do corpo, precise ser multiplicado, erotizado
como objeto de fetiche, de obsessão. Essa obsessão ou fetichização pelo texto e
263
PESSANHA, 1987, p. 89.
264
PESSANHA, 1987, p. 90.
265
PLATÃO, 1995, p. 107.
160
do texto, seus sentidos, suas formas, é porque vemo-lo, texto, como
materialização da ativa abstração que se faz carne, eternizando o ser, ou
jogando sua última cartada contra Tanatos.
Se a preocupação do poeta com a linguagem e, portanto, com a multiplicação
dos sentidos é, desde sempre, inadiável e constante, na velhice, a preocupação
com o corpo e seus sentidos reverbera no texto, pondo em pauta o amor,
corporal, como palavra essencial, eterna e etérea. É o amor, materializado,
corporificado na palavra escrita, no texto, quem deve guiar o verso, reunindo
alma e desejo, membro e vulva, naquilo que, letra dura, faz-se perene:
Amor pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.
Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?
O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.
Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?
Ao delicioso toque do clitóris,
tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.
Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.
E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a idéia de gozar está gozando.
E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o clímax:
é quando o amor morre de amor, divino.
Quantas vezes morremos um no outro,
161
no úmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.
Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.
266
Como se vê, em todo o texto (e, pode-se acrescentar, em todo o livro) abundam
pares de palavras ou expressões tangentes entre si, que, tocando-se, a partir de
aproximações sonoras, sintáticas ou semânticas, fazem-se complementares; ou,
se preferimos, são palavras que estabelecem trocas a partir de sentidos, como
corpos de amantes, para construir outros sentidos, ainda, e, quiçá, sempre. É o
caso de: a) palavra e essência (v. 1); b) começar e envolver (v. 2); c) guiar e
reunir (v. 3 e 4); d) alma e desejo (v. 4), alma e corpo (v. 5 e 6); e) membro
[masculino] e vulva [feminino] (v. 4); f) expandir-se e desabrochar; (v. 6 e 7); g)
grito de orgasmo e instante de infinito (v. 7 e 8); h) entrelaçado (ou fundido,
dissolvido) e completado (v. 9, 10 e 11); i) um e dois (v. 12); j) cama e cosmo (v.
13); k) quarto e astro (v. 14); l) etérea e eterna (v. 16); m) rompendo nuvens e
devassando sóis (v. 21 e 22); n) prossegue e se espraia (v. 25); o) além de nós e
além da própria vida (v. 26); p) a idéia de gozar está gozando (v. 28) e o amor
morre de amor (v. 32); q) o úmido subterrâneo da vagina (v. 34) e a pausa dos
sentidos (v. 36); r) deuses e estátuas (v. 37 e 38).
Especialmente a, d, e, i, j, k, l e r nos lembram Platão e algumas bem gastas
dicotomias: multiplicidade e mutabilidade x unidade e permanência; testemunho
dos sentidos x conhecimento intelectual do mundo; aparência x essência etc. No
entanto, Drummond relativiza a aparente oposição destes pares, quando os põe
lado a lado a outros tantos pares, agora próximos semanticamente: b, c, f etc.
Se, por um lado, o objetivo platônico era, grosso modo, o conhecimento das
verdades essenciais que determinam a realidade como uma ciência do
universal e do necessário para poder estabelecer certos princípios éticos que
deveriam, supõe-se, nortear a realidade social em busca da concórdia numa
sociedade em crise, o fato de Drummond jogar, explicitamente (Platão viu
266
ANDRADE, 1993, p. 5 a 7.
162
completados, v. 11), com os famosos e, talvez por isso mesmo, vítimas da
clicheria pares platônicos ao lidar com uma temática um tanto quanto polêmica
ou controversa, queira insinuar uma necessidade de pensar que as questões do
corpo, do erotismo e, por extensão, do amor, mesmo o heterossexual e
monogâmico, não são assim tão pacíficas e estão presentes o tempo todo.
Na construção do poema de abertura do livro, podemos seguir um percurso que
se assemelha, parece, ao longo das dez estrofes, ao ciclo vital: primeira estrofe: o
poeta expressa um desejo, numa analogia à expectativa gerada pela gravidez,
pelo nascimento, pelos primeiros meses e anos de vida; segunda estrofe: o amor,
corporificado, cultivado, agiganta-se e desabrocha, leva ao desenvolvimento, ao
contato mais íntimo com o prazer, o orgasmo, o infinito, ou seja, com a busca do
ser, da identidade, tal e qual ocorre na adolescência, com a maturação dos
corpos; terceira e quarta estrofes: contato com um amor idealizado, que não
conhece barreiras (cama / cosmo; quarto / astros), que entorpece um amor que
não é mais o das primeiras descobertas mas é, antes, o do contato profundo com
o ser de um outro, não mais voltado à compreensão das questões individuais
alma / corpo, expandir / desabrochar, mas das questões de convívio, de troca, de
comunhão. É um amor que desabrochou e pôde ser quase transcendente,
caminhando, todavia, para a perscrutação do corpo e não mais, exclusivamente,
do ser eu ou do ser outro; quinta e sexta estrofes: exploração quase investigativa
do corpo do outro (no caso, tratando-se de um amor heterossexual e sendo o eu-
lírico masculino, do corpo feminino), como o sugerem as imagens: delicioso
toque do clitóris, Em pequenino ponto desse corpo / a fonte, o fogo, o mel se
concentram, Vai a penetração rompendo nuvens e o coito segue; certa
maturidade ou prática corporal consolidada. O processo é ir, cada vez mais fundo,
distante de si mesmo para encontrar o outro, pensando-o; sétima estrofe: agora,
não é mais o contato dos corpos o que produz sentido, o que leva a pensar. É,
parece, a prática reflexiva, em si mesma, o prazer maior; é a idéia de gozar, a
idéia do corpo-outro, como uma abstração, aquilo que leva ao gozo, que leva ao
prazer; oitava e nona estrofes: a idéia, de antes, da sétima estrofe, vai, pouco a
pouco, entre o sofrer e o gozar, atingir seu clímax e aí, é impossível não invocar
a proximidade de Eros e linguagem; é no gozo entre palavras que se pode
morrer um no outro, em morte mais suave do que o sono; décima estrofe:
163
orgasmo e morte aproximam-se, e, então, o que era a pausa dos sentidos
transmuta-se em a paz dos deuses. Mais uma vez, Eros é o intermediário entre
o eterno e o etéreo, entre o prazer e a fruição.
O mero de estrofes dedicadas a cada uma das fases da vida (infância,
adolescência, juventude, maturidade, senilidade) encontra alguma
correspondência na duração, medida em anos, dos ciclos vitais humanos. A
infância é breve e parece sempre veloz: uma estrofe assim como a
adolescência. Para a juventude, é necessário um pouco mais de tempo ou,
ousadia nossa, uma estrofe a mais. A maturidade, análoga à juventude, se mais
extensa que a infância e a adolescência, é, também, embora pouco menos que
elas, ágil. E a senilidade, mais extensa, mais pausada, precisa de mais estrofes:
quatro, que, se falam de prazer, de gozo e, talvez por isso, de palavras , falam
também de morte, subterrâneo, suavidade, sono, pausa dos sentidos, paz,
deuses, estátuas, gratidão: tudo para fixar, perpetuar, no texto, linguagem, o
amor, vida.
A senilidade ou a vetustez, para Drummond e para Sócrates, parece, não se
confunde apenas com o ensimesmamento do ser mas principalmente com a
sublimação da potência sexual, corpórea, em potência criativa palavras,
discursos. Se o amor, erótico, vai galgando, no tempo, modos de eternizar-se,
filosófico, é porque, sábio, reconhece-se, no desejo de fixação, impulso à
linguagem, à materialização, no texto, de si: ativa abstração. A senilidade se
confunde, ou pode se confundir , sim, com serenidade.
E, encerrando, Eros, o grande deus sem genitores, está na geração de todos os
seres por isso, pode, quem sabe, de algum modo perpetuá-los. Essa fixação
temporal perdida do deus do amor, no caos dos discursos, assemelha-se àquilo
que sabemos sobre a linguagem: perpassa tudo, para antes e adiante da vida e,
ainda, da morte. Um deus [Eros] com um homem não se mistura, mas é através
desse ser que se faz todo o convívio e diálogo dos deuses com os ho mens.
267
. E,
267
Sócrates: 202e-203a, apud PESSANHA, 1987, p. 96 e 97.
164
assim, Eros e linguagem aproximam-se: têm a função de interpretar, de
transmitir
268
:
O Amor vai conduzindo à incorporeidade do belo em si, à idéia, forma ou
essência de Beleza. Essa ascese erótica do sensível ao intelivel é
análoga à realizada pelo método dos geômetras: Eros tem função
semelhante à das matemáticas. E é uma ascese gradativa: do amor aos
belos corpos passa-se ao amor a realidades menos corpóreas os
ofícios para chegar à inteligibilidade das ciências. Até que, em
ascensão universalizante e integrativa, atinge-se o cume: a
contemplação do Absoluto enquanto Beleza. O amante de persistente
amor, amor filosófico, defronta-se afinal com o Amado Perfeito, o Amado
Ideal. (...) Sobre essa Beleza, fonte de todas as belezas que atraem
todos os desejos, Diotima / Sócrates / Platão pouco falam. É que ali
cessam as tramas da linguagem, ali é quase Silêncio.
269
E, então, é que a paz se instaura. A paz dos deuses, / estendidos na cama,
qual estátuas / vestidas de suor, agradecendo / o que a um deus acrescenta o
amor terrestre. Reunião, da cama ao cosmo, do quarto aos astros, entre o amor
terrestre e a paz dos deuses morte e silêncio: no orgasmo, a explicação do
mundo.
VII
Em seu magistral ensaio intitulado Etimologia como forma de pensamento, Ernst
Robert Curtius sugere um painel antológico de textos literários e filosóficos
canônicos que estabelecem uma relação lúdica com as questões etimológicas.
Dentre os autores citados figuram nada menos que Homero, Platão, Aristóteles,
Cícero, Quintiliano, Virgílio, Ovídio, Jerônimo, Agostinho, Dante etc. No entanto, o
grande destaque é dado a Isidoro de Sevilha, porque em sua compilação de todo
o saber humano [na Idade Média], [Isidoro de Sevilha] escolheu o caminho da
designação para a essência, dos verba para as res e, conseqüentemente,
denominou sua obra Etymologiarum libri
270
.
Não pára por o romanista: esclarece que a obra Etymologiarum libri deve ser
considerada como o livro fundamental de toda a Idade Média, porque não
fixou a massa dos conhecimentos por oito séculos como também cunhou as
268
PESSANHA, 1987, p. 96 e 97.
269
PESSANHA: 1987, p. 97 e 98.
270
CURTIUS, 1996, p. 607.
165
respectivas formas de pensar. Levou os leitores à origem (origo) e à força (vis)
das coisas
271
.
E o que poderia ser entendido como a origem e a força das coisas, senão a
palavra, ou, mais precisamente, a etimologia (e, assim, as camadas de
significado) de toda e qualquer palavra? De acordo com Curtius, em seu célebre
livro Isidoro ressalta que a força da palavra ou do nome é deduzida pela
interpretação e que, portanto, se nós virmos de onde vem o nome (ou seja, se
pesquisarmos seu étimo) compreender-lhe-emos a força mais depressa.
Distendendo-se, o sábio medieval assegura repetindo, talvez, idéias esboçadas
no Crátilo, de Platão que nem todos os nomes foram dados pelos antigos
conforme a Natureza e que, portanto, alguns foram dados de maneira arbitrária.
Assim, não se poderia dar a etimologia de todas as palavras coisa que, todavia,
não desmereceu e não desmerece em nada os estudos etimológicos.
De que pode servir a compilação de exemplos extraída do texto de Curtius à
leitura do poema de Carlos Drummond de Andrade?
Deixemos, por ora, o famoso hábito de Carlos Drummond de Andrade passar
horas e horas ao telefone de lado. Deixemos de lado a fama de mido; a de
galanteador inveterado; e ainda outras, menos nobres. Deixemos de lado
também, temporariamente, o ensaio de Curtius, Etimologia como forma de
pensamento. Fica-nos o poema em questão: À meia-noite, pelo telefone, que
integra o livro póstumo de poemas er óticos, dado à luz em 1992, O amor natural.
Como quem vasculha vestígios insondáveis pela via da extensão oculta na
ligação alheia, leiamos:
À meia-noite, pelo telefone,
conta-me que é fulva a mata do seu púbis.
Outras notícias
do corpo não quer dar, nem de seus gostos.
Fecha-se em copas:
Se você não vem depressa até aqui
271
CURTIUS, 1996, p. 607.
166
nem eu posso correr à sua casa,
que seria de mim até o amanhecer?
Concordo, calo-me.
272
Trata-se de um poema com nove versos, divididos em duas estrofes: uma com
oito versos, a outra com apenas um. Poema algum pode ser pensado
desentranhado de sua forma, menos ainda este. Mas, antes de qualquer tentativa
de dissecação lingüística, histórica ou estética, deixemos evidente um fato
estrutural: é emblemático que o corte no poema, ou seja, o espaço entre a
primeira e a segunda estrofes, sirva justamente para isolar um verso tão
significativo: Concordo, calo-me. em suma, um verso de aparente rendição
(que, sintomaticamente, não se sabe se é dirigido ao interlocutor de nosso sujeito
lírico ou se é dirigido a nós, leitores).
Se, de fato, a encenada rendição ocorre, poderemos dizer que o poema mimetiza
formalmente o conteúdo expressivo das palavras do sujeito lírico. Do mesmo
modo que o eu do poema é encur ralado pela questão inquisitória apresentada nos
versos 5, 6 e 7 por seu interlocutor (Se você não vem depr essa até aqui / nem eu
posso correr à sua casa, / que seria de mim até o amanhecer?), o nono verso
também é encurralado pelo restante do poema, restando incomunicável, como
sintoma evidente da frustração (erótica) relatada.
Mas, mesmo em seu isolamento, o último verso do poema quer dar pano para
manga. Concordo, calo-me, se não me engano, forma um período composto por
duas orações coordenadas assindéticas. Cabe a nós, leitores, escolher a
conjunção que melhor servir aos nossos propósitos. Tanto podemos ler que o
sujeito lírico concorda, embora forçosamente, com a questão suscitada
anteriormente e por isso se cala (ou seja, não mais o que ser dito diante das
evidências expostas); quanto podemos ler que o sujeito lírico se cala (ou seja, não
quer ou não pode responder ao questionamento retórico proposto) e então
permite que se entenda que concorda com o anteriormente expresso (ecoando,
assim, o famoso e perverso ditado: Quem cala, consente.). Dito de outra forma:
272
ANDRADE, 1993, p. 71.
167
tanto podemos ler que o sujeito lírico concorda e por isso se cala, quanto
podemos ler que o sujeito concorda porque se cala.
Há ainda outras leituras possíveis para o verso em questão:
Concordo, 1) o verbo concordar pode significar pôr de acordo ou em
harmonia; conciliar, congraçar, o que condiz com a persona lírica delineada no
poema: um sujeito incitado, excitado sexualmente, mas rechaçado, não pode
tentar outra via que não a da harmonização, a da conciliação, a do
congraçamento, se visar, está claro, ao dano menor; 2) o mesmo verbo pode
ainda significar mostrar coisas iguais ou equivalentes; combinar, corresponder, o
que permitiria ler o verso Concordo, calo-me. como uma assunção da
equivalência de situações entre sujeito lírico e interlocutor: nem um pode correr
em direção a outro, nem outro pode ir depressa em direção a um; 3) por fim,
concordar pode ser resolver por acordo; concertar, ajustar, pactuar, o que a
ver o pacto entre as partes: se você se fecha em copas, eu, conseqüentemente,
me calo. Mas ainda outra leitura se impõe: a etimológica.
A etimologia de concordar é latina: concórdo, as, ávi, átum, áre estar de
acordo, dar-se bem com, viver em boa harmonia, concordar; ver cor(d)-; f.hist.
sXIV concordar, sXIV cordar, sXV comcordar. Disto emerge uma outra
possibilidade de leitura: se o sujeito lírico concorda, é porque vive em harmonia
ou quer viver em harmonia: concordar é a via da pacificação. se concorda
porque se quer manter a paz instaurada, embora possa haver uma outra opinião,
uma outra forma de encarar a questão. Concordar é um modo de anuir, permitir,
conceder pensando tendenciosamente, é um modo de ser também hipócrita
(pois concordar deriva, como se viu, do mesmo radical cor / cordis, que evoluiu
para coração em português: concordar deveria ser sinônimo de decisão
proveniente da parte mais íntima de um ser; mas, no caso, não é).
Por que eu disse que, no poema, concordar é um modo de ser hipócrita
também? A acepção dicionarizada de hipócrita é que ou aquele que demonstr a
uma coisa, quando sente ou pensa outra, que dissimula sua verdadeira
personalidade e afeta, quase sempre por motivos interesseiros ou por medo de
168
assumir sua verdadeira natureza, qualidades ou sentimentos que não possui;
fingido, falso, simulado. Temos embutido que a condição hipócrita emerge de
um descompasso propositalmente produzido entre o real ou factual e o aparente,
visando a um proveito de qualquer ordem. Se o sujeito lírico é hipócrita por
dissimular a própria opinião em favor da manutenção da paz instaurada, seu
interlocutor-amante não o é menos.
Resgatemos o significado de hipócrita: que ou aquele que demonstra uma coisa,
quando sente ou pensa outra. Não é exatamente o que faz o interlocutor de
nosso sujeito lírico? (conta-me que é fulva a mata do seu púbis. / Outras notícias
/ do corpo não quer dar, nem de seus gostos.). Primeiro, para, depois, negar;
incita, para em seguida fugir da raia: diz que é fulva a mata do púbis, desbastando
limites, e, inesperadamente, sonega outras informações de equivalente teor.
Provoca, desencadeia ou atiça o desejo do sujeito lírico, afirmando que os pêlos
pubianos são de cor castanho-avermelhado ou são louros (provendo, assim,
matéria à imaginação), para logo após assumir uma outra postura, radicalmente
oposta.
O que nos faz pensar que o descompasso entre ambas as atitudes (desvelar e
velar) tem natureza hipócrita? Não se trata, está claro, de um julgamento moral
(ao menos, não intencionalmente): o fato de que o interlocutor do sujeito lírico
goza com o sofrimento imposto a seu par. A negativa em prosseguir dando
notícias relativas ao corpo e aos gostos é uma espécie de castigo imposto ao
amante: se eu não posso gozar porque você não vem depressa até aqui / nem
eu posso correr à sua casa, você também tem que ter seu prazer interrompido
e, assim, e assim, eu gozo, com o seu sofrimento, com a concordância (ou
seja, com a equivalência) entre as nossas situações. Noutras palavras: o parceiro
de nosso sujeito lírico demonstra uma coisa, quando sente ou pensa outra, por
motivos interesseiros ou por medo de assumir a verdadeira natureza.
E aqui cabe mais uma digressão, relativa à hipocrisia diagnosticável nas atitudes
daquele a quem tenho identificado como o interlocutor de nosso sujeito lírico:
primeiro, Fecha-se em copas, ou seja, torna-se silencioso, calado, aborrecido,
zangado, para em seguida, surpreendentemente, manifestar o raciocínio pérfido
169
com que nos deparamos (Se você não vem depressa até aqui / nem eu posso
correr à sua casa, / que seria de mim até o amanhecer?) e que de permiti-lo
gozar a vingança arquitetada.
Um sinal de pontuação deixa claro que a estratégia é percebida pelo sujeito lírico:
os dois-pontos que separam Fecha-se em copas do golpe que vem em seguida
revelam que o gozo premeditado foi antecedido pela encenação de um
sofrimento, um aborrecimento
273
. E aqui é possível notar a vontade de projetar a
responsabilidade pelo gozo advindo do que chamei vingança no sujeito lírico:
estou fazendo isso porque você me deixou zangado a despeito de não ser
atribuída, nem ao sujeito lírico e nem a seu interlocutor, no virtual diálogo a que
temos acesso, a culpa pela impossibilidade de encontro entre os amantes,
àquela hora.
Outras leituras possíveis para o verso em questão emergem:
calo-me 1) calar pode ser, numa primeira acepção, não falar; manter-se em
silêncio, que parece ser o significado mais vulgarmente atribuído ao verbo em
questão. O sentido de manter-se em silêncio interessa ao poema, pois, diante da
fala de seu interlocutor, o sujeito lírico não tem o que dizer: nada mais pode ou
deve ser dito. No entanto, calar, aí, deve chamar a nossa atenção por ser um ato
de vontade, uma escol ha. Neste sentido, o uso do verbo calar complementa o uso
do verbo concordar visando à pacificação: calar, além de significar não falar;
manter-se em silêncio, significa ainda: deixar de pronunciar(-se), de comunicar(-
se), de expressar(-se); tornar(-se) extinto; acabar(-se), findar(-se); não divulgar,
não transmitir ou não revelar informações, conhecimentos etc.; impedir a
manifestação de ou não manifestar(-se); não deixar ter ou não ter voz ativa,
influência, preponderância; conter(-se), reprimir(-se); impedir (alguém) de
reclamar, de manifestar insatisfação, de reivindicar; oprimir, coagir.
2) Todavia, cabe um aparte: calar pode ser também atingir ou alcançar o
âmago, a essência de (algo) ou o íntimo de (alguém), produzindo impressão forte,
profunda. Calar seria, então, não um gesto de submissão, antes um golpe de
273
Uma das funções geralmente atribuídas aos dois-pontos é introduzir uma explicação ou um
esclarecimento. Cf. NEVES, 2003, p. 269.
170
mestre. Se optarmos por esta acepção para a palavra calar, somos forçados a
reconhecer que ela contradiz a leitura de concordo como uma atitude hipócrita, e
reforça o étimo de concordo: cordis, coração. Explico melhor: concordar e calar
partem do coração [con+cord-] (do âmago, da essência, do íntimo) em direção ao
coração (ao âmago, à essênci a, ao íntimo).
3) Numa segunda acepção, calar é o mesmo que mover para baixo, descer;
baixar ou deixar baixar. Embora se trate de um arcaísmo, é, para o poema, uma
acepção importante. Calar, então, passaria a ser o mesmo que se pôr em
posição subalterna, permitir-se ser humilhado. Sob outro viés, este significado de
calar lembra um dos significados do verbo brochar (que, noutros contextos,
pertence ao terreno sexual): perder o entusiasmo, o interesse; desanimar.
4) Numa terceira acepção, o verbo calar pode ser lido metalingüisticamente.
Significa, por exemplo, abrir cala, entalhe em (fruta, queijo etc.) para verificar sua
qualidade; colocar (o leme) em seu lugar de funcionamento; atingir (certa
profundidade), ao flutuar (a embarcação); indicar (determinada medida de)
calado; flutuar ou navegar livremente, ou encontrar (a embarcação) profundidade
de água suficiente para fazê-lo. Se nos lembrarmos que O amor natural foi um
livro decantado ao longo de décadas e, mais, um livro produzido por um poeta
velho, maduro, a leitura metalingüística ganha ainda mais força: cala é uma
pessoa astuciosa, velhaca calo-me deixa de ser a forma reflexiva do
presente do indicativo do verbo calar e passa a ser sinônimo de eu vou me
calando = me tornando uma pessoa cala = astucioso, velhaco. E aqui, cabe
recorrer à etimologia de cala: segundo o dicionário, trata-se de etimologia
obscena (o que se coaduna bem à proliferação de sentidos que o poema
permite).
5) Numa quarta acepção, o verbo calar está inserido em um contexto militar.
Pode significar tirar (peças de artilharia) dos reparos ou preparar (a baioneta)
para a luta, encaixando(-a) na boca da arma. Aqui é que ocorre uma reviravolta
na leitura do poema. A imprevisibilidade desta acepção do verbo calar na
construção da leitura do poema (que não tem desprezado nenhuma acepção que
171
o dicionário apresenta para nenhuma das palavras postas em suspeição) nos
obriga a um recuo estratégico.
Se calar é tirar peças de artilharia dos reparos ou preparar a baioneta (arma
branca) para a luta, o modo reflexivo, calo-me, deveria ser indício forte o
suficiente para justificar o abandono desta acepção em favor de outras mais
plausíveis. Todavia, não se trata de descobrir as intenções que conduziram a
feitura do poema, mas de ventilar leituras possíveis. E, por isso, prossigo.
Pesquisando o que vem a ser uma baioneta, descobri que se trata de arma
branca pontuda que se adapta ao extremo do cano de fuzil ou espingarda, usada
por soldados de infantaria em combates corpo a corpo. Ora: os interlocutores no
poema em questão não estão travando entre si um combate? Pontuda, fuzil ou
espingarda, corpo a corpo, tudo não remete ao campo do erótico, no qual,
parece, à primeira vista, o poema se insere? Preparar a baioneta para a luta ou
calar-se não poderia, por exemplo, ser lido como um eufemismo de masturbar-
se?
Agora, vamos reler o poema.
À meia-noite, pelo telefone,
conta-me que é fulva a mata do seu púbis.
Outras notícias
do corpo não quer dar, nem de seus gostos.
Fecha-se em copas:
Se você não vem depressa até aqui
nem eu posso correr à sua casa,
que seria de mim até o amanhecer?
Concordo, calo-me.
274
Esquecendo que estes nove versos se encontram em um livro de poemas
designados como eróticos, o mais forte indício que temos para uma leitura do
poema como um poema de fato erótico é, parece-me, o segundo verso: conta-me
que é fulva a mata do seu púbis. Desconsideremos as muitas acepções
possíveis para o verbo contar; por enquanto não nos interessam diretamente.
Tomemos o verbo contar no sentido de afirmar, dizer, narrar ou mesmo lembrar. A
274
ANDRADE, 1993, p. 71.
172
oração subordinada, a seguir, apresenta-se em ordem inversa: ao invés de a
mata do seu púbis é fulva (sujeito + verbo de ligação + predicativo do sujeito),
temos o predicativo do sujeito deslocado para o primeiro plano: a informação mais
importante passa a ser a de que é fulva (de cor amarelada, alaranjada ou
amarelo-ouro; castanho-avermelhado, louro, ocre), e não de outra cor qualquer, a
mata do púbis.
Mas fulvo, também, pode ser de expressão ameaçadora, violenta (donde o
vulgarismo fulo). E o que é fulvo? Fulva é a mata. E o que é mata?
Geralmente, mata é sinônimo de floresta, ou, quando muito, de quantidade de
coisas que se assemelham ou que são da me sma espécie; montão, floresta, mar.
Mas mata pode ser ainda forma abreviada vulgar de matadura, ou seja, ferida,
mazela; defeito moral, fato censurável ou criminoso.
Começam a surgir algumas possíveis conexões: 1) a ferida (= matadura física ou
moral) é fulva: é amarelada ou alaranjada; é ameaçadora, violenta. A ferida
causada pela impossibilidade de concretização do desejo erótico havido? uma
ferida física (pereba, machucado, etc.) não parece hipótese razoável. Mas, afinal,
de que ferida se fala?
Resgatemos a informação de que alguns dos poemas constantes em O amor
natural começaram a ser escritos a partir da década de 50 e de que os demais
foram, em sua maior parte, finalizados entre os fins dos anos 60 e o início dos 70
coincidentemente, os anos de chumbo da Ditadura Militar no Brasil. Assim, a
seqüência À meia-noite, pelo telefone, / conta-me que é fulva a mata poderia
adquirir, com boa-vontade, uma conotação política. Basta que nos lembremos de
que o localizador temporal à meia-noite não é gratuito, de que o telefone foi
criado para as situações emergenciais (e difundido, majoritariamente, a partir da
Segunda Guerra Mundial), de que fulva e mata têm sentidos amplos (e
também, é claro, de que Carlos Drummond de Andrade é o autor participante de
A rosa do povo e, também, o autor exigente e quase obscuro de Claro enigma).
Visando a maior clareza, vamos por partes: no dicionário, meia-noite indica o
meio da noite, a hora do meio da noite, a décima segunda hora depois do meio-
173
dia, ou a vigésima quarta hora do dia; simbolicamente, meia-noite é o horário em
que o lobisomem sai à caça, a Cinderela volta a ser Gata Borralheira, etc.: é o
horário do medo, do mal, do perigo, do susto. É quando tudo pode acontecer, é
quando os fantasmas de nossa imaginação, nossos traumas ancestrais libertam-
se das cadeias do racional, do real, do transparente, do visível para vir à tona. É
quando emerge a porção assustadora da noite, com suas maldições é quando
todos os gatos, sejam de que cores forem, passam a ser pardos. Meia-noite
também é o horário dos congressos furtivos, proibidos; é o palco para os sonhos,
os delírios românticos.
Desta feita, À meia-noite, pelo telefone, pode ser lido sob a aura de
nebulosidade, de mistério ou mesmo de dualidade (o que talvez acentue sua
natureza erótica para fazer ecoar Roland Barthes): não dá para ser ao vivo, tem
que ser pelo telefone (em tempos livres da paranóia das escutas desautorizadas);
não para ser às claras, tem que ser à meia-noite: o horário em que a verdade
se revela (o lobisomem assume sua forma; a Cinderela volta a ser Gata
Borralheira) e que, paradoxalmente, mais oportunidades se oferecem à
obnubilação da verdade, da realidade (todos os gatos são pardos) .
E por que contar que é fulva a mata do púbis tem que ser à meia-noite e,
ainda, pelo telefone? Certamente, porque esta informação não é isenta: trata-se
de um conteúdo explosivo ou chocante ou ameaçador ou suspeito ou secreto.
Que motivos, então, fariam deste dado, caso factual, um dado a ser transmitido
furtivamente? Talvez, o fato de o eu lírico e seu interlocutor não serem livres,
solteiros, desimpedidos, não poderem gozar sua relação erótica ou amorosa
abertamente. Outra possibilidade: o fato de o eu lírico e seu interlocutor viverem
uma paixão, por exemplo, homoerótica. Uma última possibilidade: ser fulva a
mata do púbis talvez fosse uma codificação ambígua, dissimulada de um
conteúdo perigoso um conteúdo político ou crítico, por exemplo, em um
contexto que não favoreça a circulação deste tipo de mensagem, como é o
contexto da Ditadura Militar no Brasil, durante os anos 60 e 70 (e, agora sim: em
tempos em que não se pode estar livre da paranóia das escutas desautorizadas,
não é seguro falar abertamente a respeito de um conteúdo proibido).
174
Mas há, dentre muitos, ao menos um senão: como explicar, no verso, a presença
da palavra púbis? Ser fulva a mata pode-se ler como é ameaçadora ou
assustadora a chaga, o machucado (chaga = situação política, social em que
estamos metidos); mas por que é fulva a mata do seu púbis? Dentre outras
acepções, púbis é parte mais anterior do osso ilíaco; parte triangular, no baixo
abdome, que nos adul tos é recoberta por pêlos; designação dos pêlos da genitália
externa. Até nenhuma novidade; porém, se tentarmos uma visada etimológica,
a situação se reverte: púbis origina-se, de acordo com o dicionário, do latim
tardio púbis, is (no latim clássico, púbes, is) puberdade, penugem, buço, pêlo;
ver pub(i/o). Como assim, a situação se reverte? É que consultado pub(i/o),
conforme sugerido, encontramos que é um elemento de composição morfológica
antepositivo que significa pêlo que caracteriza a puberdade; parte do corpo
coberta por esse pêlo, púbis, e que significa, também, a população adulta
masculina, com idade de usar armas e de tomar parte nas deliberações da
assembléia.
Que mais é uma ditadura como o foi a Ditadura Militar no Brasil, contexto
provável de produção do poema e m pauta que não o privar a população de usar
as armas de que dispõe (evoquemos, sentimentalmente, o poema de Leminski:
en la lucha de clases / todas las armas son buenas / piedras / noches / poemas)
em favor da defesa de seus ideais e o privar a população de tomar parte nas
deliberações das assembléias democráticas?
Resgatando o fato de em u ma de suas acepções o verbo calar estar inserido em
um contexto militar, diante de todos os sofismas (tramóias? truísmos?) que
constrpara ler os oito primeiros versos do poema de Drummond, não é de tudo
descabida uma interpretação política do nono verso: Concordo, calo-me.. O fato
é que não importa se houve, ou não, por parte do poeta o desejo de permitir
tantas leituras, especulações, delírios. Talvez o mais interessante seja pensar
que, de um modo ou de outro, a interdição do desejo (de gozo, de liberdade)
pairava socialmente no contexto de produção do poema. E se, sempre, todo e
qualquer poema é testemunho ou testemunha de seu tempo, mesmo que sub-
repticiamente, a vontade de fazer com que concordar e calar não sejam verbos
175
unívocos reverbera nos versos drummondianos e, já nos advertiu Curtius, nosso
poeta não está sozinho.
176
PALAVRAS FINAIS
Relendo o todo de O amor natural e o projeto poético-pensante de Carlos
Drummond de Andrade sou obrigada a fazer algumas considerações. Algumas
delas são observações críticas a respeito do trabalho aqui formatado. As demais,
comentários de outra ordem.
Com relação ao que chamei de Notas de esclarecimento, tenho a impressão de
haver dado esclarecimentos excessivos, que chegam a transmitir ao leitor a
impressão de estar embarcado em um carro que se move com o freio de mão
puxado. Além disso, a despeito de minha não consciência à época de sua
redação, hoje a leitura desta parte do trabalho me soa como uma reparação à
mágoa de não ter conseguido desenvolver o projeto inicialmente idealizado.
Confesso que o rumo que esta dissertação tomou me escapa em alguns pontos,
na verdade em muitos pontos, do controle. Partes ou tópicos a respeito dos quais
eu tinha a mais absoluta certeza de serem indispensáveis não foram
desenvolvidos (pelo menos, não aqui) e muitos deles nem sequer foram citados,
para que sua ausência fosse marcada. Porém, ainda assim, as Notas me soam
excessivas, embora seu tom final seja celebratório. Por que não revi-las então?
Basicamente por dois motivos.
O primeiro motivo é que este trabalho é uma verdadeira obra-em-progresso, no
sentido mais rasteiro que a expressão adquire. Por obra-em-progresso tomo a
noção de obra que não se expõe em versão definitiva e que não foi produzida por
um pensamento linear e uniforme. A formatação final deste texto se fez no ato
mesmo de o texto se fazer e isso gera ou evidencia alguns problemas, mas
também um lucro que me parece importante. Um dos principais problemas é que,
à medida que a pesquisa avançava, e, assim, se fazia a maturação paulatina de
minha leitura da produção drummondiana, novas idéias e hipóteses se gestavam
e outras tantas eram abandonadas o que por vezes faz com que algumas par tes
deste trabalho pareçam discutir (ou mesmo gritar, em desacordo) umas com as
outras. Outros problemas há, mas penso que são menos graves. O lucro que eu
sinalizei é que, diferentemente do que muitas vezes ocorre, a ação de escavar
177
informações e correlacioná-las me obrigou a uma leitura bastante diferente da
inicial, o que penso ser positivo, que o mais das vezes o que se é que a
produção crítica toma a obra eleita apenas como ilustração ou exemplificação de
uma teoria pré-concebida ou mesmo consolidada a priori. Não me parece ser o
caso aqui apesar dos senões que exporei mais adiante.
A segunda razão de por que não revisar as Notas é que de modo bastante
pessoal vejo em cada parágrafo deste trabalho marcada uma etapa de minha
formação, não apenas acadêmica ou intelectual, mas de minha formação como
ser humano. Desfazer qualquer destas partes, uma vez já dadas como prontas (e
para que chegassem a este ponto, um tanto de decantação foi previamente
exigido), me pareceu uma espécie de traição àquilo que fui e fiz do que, não
tendo orgulho, contudo, não posso me envergonhar. Se eu quiser dissolver algum
equívoco ou imprecisão de que posso ser acusada, penso ser mais honesto
redigir um texto revisionista. Daí porque mantive as ditas Notas tal como estão.
Pelos dois motivos expostos ser este trabalho uma obra-em-progresso e ser
este trabalho um registro material daquilo que fui e fiz até então é que não me
senti confortável para reformular drasticamente as Notas de esclarecimento.
Agora, com relação à Abertura, penso ser necessário fazer outras ponderações.
Relê-la me faz perceber que talvez, ao invés do caminho pelo qual optei, haver
destrinchado a noção de um projeto artístico polifônico, à luz de Bakhtin, nesta
etapa de minha formação, tivesse sido mais produtivo ou, melhor dizendo,
prudente. Daí, quem sabe, o porquê de, embora inconscientemente, eu ter
retomado ao longo da dissertação tantas vezes as palavras do pensador russo
em relação a Dostoiévski reconheço que a insistência soa cansativa, em alguns
momentos. Parece-me agora que a idéia de pensar O amor natural à luz daquilo a
que venho insistindo em chamar de projeto poético-pensante foi um passo muito
grande para as minhas perninhas, e que, portanto, este propósito não está
satisfatoriamente cumprido, ao menos não como eu imaginara. Fosse começar de
novo, faria de outro jeito.
178
Fosse fazer de outro jeito, mesmo que não o fizesse a partir de Bakhtin, não o
faria a partir da teoria do erotismo ou da história do erotismo. Quando esbocei
esta possibilidade à época da Iniciação Científica tudo me pareceu impreciso e
insatisfatório, daí porque nenhuma bibliografia utilizada então foi aqui resgatada.
Retomando o fato de que pensar O amor natural à luz daquilo a que venho
insistindo em chamar de projeto poético-pensante foi um passo muito grande
para as minhas perninhas, gosto de pensar que, suscetível aos erros e fraquezas
que ora se me revelam crassos, a ousadia de resgatar um crítico agora eclipsado
por parte da confraria crítica que mais recentemente se reúne em torno da obra
de Drummond é um ganho especialmente pensando que, a despeito das críticas
cabíveis ao(s) trabalho(s) de Affonso Romano de SantAnna a respeito do poeta
mineiro, este impôs um marco limiário para o que se fez adiante.
Outro ponto que me soa positivo para a escolha da noção de projeto poético-
pensante visando a uma leitura de Drummond é o fato de se ofertar ao menos
uma possibilidade de fugir à mesmice. Lendo um sem-fim de textos que me
chegaram às mãos a respeito de Drummond nos últimos 5 ou 6 anos desde que
ele se tornou meu objeto de pesquisa, ainda na graduação , cheguei à conclusão
de que a maioria dos estudiosos repete os mesmo chavões acerca de sua poesia,
pois é muito mais seguro parafrasear ad infinitum o indiscutível que tentar
construir uma hipótese que se arrisca linha a linha ao desmoronamento. Mas, na
realidade, mesmo aos trabalhos mais óbvios devo o aprendizado do que eu não
queria fazer: me pôr mui confortavelmente sob a proteção do consenso
generalizado. Muita gente muito competente fez isso, com brilhantismo. Meu
esforço teria sido inútil e não acrescentaria nada à imensa fortuna crítica sobre
Drummond.
Embora o tom do parágrafo anterior seja incisivo ou aparentemente rude, o que
desejo não é expor o que se produziu antes deste trabalho como apenas mais do
mesmo seria ingenuidade das mais graves ou burrice. Muito pelo contrário,
quero antes tributar a fragilidade de algumas (ou muitas) das linhas aqui
apresentadas à minha teimosia em sujeitar-me ao arbítrio da sorte, ao invés de
agarrar-me ao que de preciso, rigoroso, exato e categórico já se fez. A culpa é
179
toda minha, mas, ainda assim, as melhores idéias que apresento não são
originais e é motivo de muito orgulho para mim dizer que não são. Lendo, o que
mais me ocorreu foi, como o Borges ficcionista advertiu, descobrir que eu
havia me metido nesta história porque ainda não conhecia tudo o que se disse a
respeito de Drummond.
Um último aspecto positivo da escolha da noção projeto poético-pensante foi
que o segundo capítulo, com todos os defeitos que apresenta, tem, devidamente
adaptado, existência autônoma neste trabalho, podendo servir de resenha na
verdade, para sermos exatos, de fichamento comentado a quem necessitar
tomar contatos iniciais com A origem da obra de arte. Embora outros tenham
prestado com muito mais propriedade este serviço, o segundo capítulo, bambo
como é, tem o discutível mérito de registrar a leitura efetuada por um alguém leigo
do texto heideggeriano.
Por fim, a Abertura, embora tenha um perfil explicativo ou introdutório em
relação ao que se segue, veladamente busca transmutar-se vez e outra em um
texto também informativo, ao espargir informações que serão desenvolvidas ou
retomadas adiante, e comentários que ficarão soltos no ar, à cata de quem lhes
quiser dar alguma importância. Essa característica faz com que a Abertura
ganhe ares de prolegômenos desnecessários, mas, considerando a possibilidade
de elidi-la, juntamente com as Notas e com o Capítulo 2, considerei que,
apesar dos pesares, se trataria de uma perda. Na pior das hipóteses, essas três
partes da dissertação, das quais menos gosto incluída, ainda, a parte do
terceiro capítulo em que me atrevo a comentar a trajetória de Milton Dacosta ,
funcionam como um exercício de paciência útil ao leitor.
A respeito do Capítulo 1 tenho cinco comentários a fazer. O primeiro deles é
consoante ao excesso de justificativas quanto às escolhas bibliográficas e
metodológicas. Hoje vejo que se trata de nada mais ou nada menos que
insegurança, já que este capítul o, embora seja um dos que agora me parece mais
redondo, era imprevisível no início da trajetória. Redigi-lo me parecia, então,
tatear no escuro. Mas, a respeito deste excesso de justificativas, devo fazer um
comentário abonador: tanto quanto em Abertura, sob a capa de explicação se
180
imiscui um tanto de informação. Assim, o que poderia figurar como um mal talvez
possa ser encarado como um ganho. Pode ser que, não fosse o desmedido zelo
em antecipar-me às investidas críticas do meu leitor virtual, eu não tivesse
arregimentado informações que podem ser úteis a um leitor pouco familiarizado
com a fortuna crítica sobre Drummond.
Um ponto de que gosto no pr imeiro capítulo é a revaloração que faço da noção de
gauche. Mesmo que esta revaloração seja evidente em vários trabalhos críticos
desde a década de 60, ai nda hoje a alcunha mais largamente utilizada em relação
a Carlos Drummond de Andrade é poeta-gauche. Se não tenho o mérito da
originalidade, penso que tenho o de haver dito abertamente o quanto me
incomoda isso que chamei de imprecisão crítica. Mesmo os melhores trabalhos
que desconstroem essa noção o fazem co m dedos.
O terceiro comentário a respeito do Capítulo 1 a que me obrigo é relativo à
importância que o poema Explicação ganha para a leitura integral da produção
poética drummondiana e nisto se aproxima do comentário que seria seguinte, a
respeito do imprescindível papel que exerce, ainda muitas vezes na surdina, a
crítica fundadora de Mário de Andrade. Embora eu não tenha conseguido
desenvolver nos limites do dito capítulo com a devida acuidade tanto uma questão
quanto outra, penso que foi importante e útil sinalizá-las para que, talvez, alguém
de maior fôlego se digne a revolvê-las.
O quinto e último comentário acerca do primeiro capítulo é relativo à resenha que
fiz a respeito do texto de Wisnik. Ela não me soa justa, pois deixa de fora muitos
aspectos fulcrais para os quais o crítico lança luz. Porém, penso que destacar o
texto de Wisnik como marco de uma nova abordagem crítica, que revalora o papel
da poesia drummondiana em nossa história literária, não é pouca coisa,
principalmente se se considerar os riscos que envolvem uma tal petulância. A
despeito de algumas diferenças em relação à argumentação construída pelo
autor, o texto detém muitos méritos e a minha resenha talvez não conta de
transmitir ao leitor a devida importância que o ensaio deveria receber.
181
Com relação ao Capítulo 2, expus o que penso e sinto. Apenas para não ser
omissa, devo dizer que sinto nele falta de comentadores que ajudassem a
elucidar passagens mais difíceis. Esta ausência, contudo, pode ser explicada.
Como eu disse no bojo mesmo daquele capítulo, o objetivo não era e nem nunca
foi clarificar Heidegger, mas pensar Drummond. Se eu houvesse despendido
tempo construindo um texto correto e devidamente paramentado a respeito do
ensaio do filósofo alemão, eu teria, quem sabe, me perdido no emaranhado de
seus conceitos e fugido ao objetivo único que era entender o que em A origem da
obra de arte se pensa a respeito de arte, ou mais especificamente, de projeto
poético-pensante.
Para finalizar, devo agora assumir que o Capítulo 3 fugiu completamente ao
meu controle e tornou-se autônomo, levando-me por onde quis. Reconheço nele
uma vontade de ir além, de ser refeito, repensado, reestruturado vontade esta
que deve ficar para depois, para outra hora. Mas gosto dele. Embora a fortuna
crítica a respeito de O amor natural progressivamente se encorpando (sei
disso por buscas na Plataforma Lattes, já que ainda falta uma publicação de
fôlego a respeito do livro), acho que muito de original neste último capítulo da
dissertação. Penso especialmente nos comentários embora genéricos,
inaugurais, até onde sei a respeito das ilustrações de Dacosta e das epígrafes
eleitas por Drummond. Do ponto de vista da organização estrutural ou mesmo da
eloqüência é o capítulo mais caótico, pois conjuga percepções oriundas de
períodos de tempo muito díspares. As duas análises de poema são criticáveis em
muitos aspectos, mas vou dei xar a outro o papel de acusador.
Por fim, estas Palavras finais, agora relidas, traduzem um tanto do sentimento
que me invade: de frustração pelo tanto que poderia ter sido feito e não foi, ou
que poderia ter sido mais bem acabado e permaneceu bruto e mal polido; e de,
por que não confessar?, orgulho pelo que, a despeito de toda a fragilidade e
imprecisão, se conseguiu arquitetar. Talvez, e talvez, estas Palavras finais
sejam apenas uma tentativa de alongar aquilo de que me custa exigir um ponto
final e seu prolongamento seja muito mais masturbatório que qualquer outra
coisa. Assim, metáfora do que eu disse nas linhas precedentes, fica entre nós a
certeza de que A carne é triste depois da felação:
182
A carne é triste depois da felação.
Depois do sessenta-e-nove a carne é triste.
É areia, o prazer? Não há mais nada
após esse tremor? Só esperar
outra convulsão, outro prazer
tão fundo na aparência mas tão raso
na eletricidade do minuto?
se dilui o orgasmo na lembrança
e gosma
escorre lentamente de tua vida.
275
275
ANDRADE, 1993, p. 65.
183
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195
ANEXO
LISTAGEM DAS OBRAS DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
PUBLICADAS NO BRASIL
LIVROS DE POESIA
·
1930 - Alguma poesia
·
1934 - Brejo das almas
·
1940 - Sentimento do mundo
·
1942 - Jo
·
1945 - A rosa do povo
·
1948 - Novos poemas
·
1951 - A mesa (incluído em Claro enigma)
·
1951 - Claro enigma
·
1952 - Viola de bolso
·
1954 - Fazendeiro do ar
·
1955 - Soneto da buquinagem (incluído em Viola de bolso novamente
encordoada, reedição de Viola de bolso publicada em 1955)
·
1957 - Ciclo (incluído em A vida passada a limpo)
·
1959 - A vida passada a limpo
·
1962 - Lição de coisas
·
1964 - Viola de bolso II
·
1967 - Versiprosa
276
·
1967 - José & outros (contendo Jo, Novos poemas, Fazendeiro do ar,
A vida passada a limpo, 4 poemas, Viola de bolso II)
·
1968 - Boitempo & A falta que ama
·
1968 - Nudez
·
1973 - As impurezas do branco
·
1973 - Menino antigo (Boitempo II)
·
1977 - A visita (incluído em A paixão medida)
·
1977 - Discurso de primavera e algumas sombras
·
1978 - O marginal Clorindo Gato (incluído em A paixão medida)
276
Livro de crônicas em verso.
196
·
1979 - Esquecer para lembrar (Boitempo III)
·
1980 - A paixão medida
·
1984 - Corpo
·
1985 - Amar se aprende amando
·
1986 - Tempo vida poesia
·
1988 - Poesia errante
·
1992 - O amor natural
·
1996 - Farewell
ANTOLOGIAS POÉTICAS
·
1956 - 50 poemas escolhidos pelo autor
·
1962 - Antologia poética
·
1971 - Seleta em prosa e verso
·
1975 - Amor, amores
·
1982 - Carmina drummondiana
·
1987 - Boitempo I e Boitempo II
INFANTIS
·
1983 - O elefante
·
1985 - História de dois amores
EDIÇÕES DE POESIA REUNIDA
·
1942 - Poesias
·
1948 - Poesia até agora
·
1954 - Fazendeiro do ar & Poesia até agora
·
1959 - Poemas
·
1969 - Reunião
·
1983 - Nova reunião
·
2002 - Poesia completa
PROSA
·
1944 - Confissões de Minas
·
1945 - O gerente
·
1951 - Contos de aprendiz
197
·
1952 - Passeios na ilha
·
1957 - Fala, amendoeira
·
1962 - A bolsa & a vida
·
1966 - Cadeira de balanço
·
1970 - Caminhos de João Brandão
·
1972 - O poder ultrajovem e mais 79 textos em prosa e verso
·
1974 - De notícias & não-notícias faz-se a crônica
·
1977 - Os dias lindos
·
1978 - 70 historinhas
·
1981 - Contos plausíveis
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1984 - Boca de luar
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1985 - O observador no escritório
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1987 - Moça deitada na grama
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1988 - O avesso das coisas
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1989 - Auto-retrato e outras crônicas
ANTOLOGIAS DIVERSAS
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1965 - Rio de Janeiro em prosa & verso (em colaboração com Manuel
Bandeira)
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1966 - Andorinha, andorinha (seleção e coordenação de textos de
Manuel Bandeira por Carlos Drummond de Andrade)
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1967 - Uma pedra no meio do caminho (Biografia de um poema. Com
estudo de Arnaldo Saraiva)
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1967 - Minas Gerais
OBRAS EM COLABORÃO
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1962 - Quadrante (crônicas, com Cecília Meireles, Dinah Silveira de
Queiroz, Fernando Sabino, Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos e
Rubem Braga)
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1963 - Quadrante II (crônicas, com Cecília Meireles, Dinah Silveira de
Queiroz, Fernando Sabino, Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos e
Rubem Braga)
198
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1965 - Vozes da cidade (crônicas, com Cecília Meireles, Genolino Amado,
Henrique Pongetti, Maluh de Ouro Preto, Manuel Bandeira e Rachel de
Queiroz)
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1971 - Elenco de cronistas modernos (crônicas, com Clarice Lispector,
Fernando Sabino, Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos, Rachel de
Queiroz e Rubem Braga)
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1972 - Don Quixote (poemas-glosas a 21 desenhos de Cândi do Portinari)
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1977 - Para gostar de ler (com Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos
e Rubem Braga)
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1979 - O melhor da poesia brasileira I (com João Cabral de Melo Neto,
Manuel Bandeira e Vinícius de Moraes)
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1981 - O pipoqueiro da esquina (texto de Carlos Drummond de Andrade,
com ilustrações de Ziraldo)
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1982 - A lição do amigo (cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond
de Andrade, anotadas pelo destinatário)
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1984 - Quatro vozes (com Rachel de Queiroz, Cecília Meireles e Manuel
Bandeira)
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1984 - Mata Atlântica (poesia de Carlos Drummond de Andrade, com fotos
de Luis Claudio Marigo)
TRADUÇÕES
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1943 - Uma gota de veneno, de François Mauriac
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1947 - As ligações perigosas, de Choderlos de Laclos
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1954 - Os camponeses, de Honoré de Balzac
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1956 - A fugitiva, de Marcel Proust
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1959 - Dona Rosita, a solteira, de Federico García Lorca
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1960 - Beija-flores do Brasil, de Th. Descourtilz
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1962 - O pássaro azul, de Maurice Maeterlinck
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1962 - Artimanhas de Scapino, de Molière
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1963 - Fome, de Knut
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