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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
LUCILEA CHAGAS DA SILVA
NO SILÊNCIO, A INTANGIBILIDADE DE DOIS MUNDOS QUE SE ATRAEM
(Sobre O Silêncio de Teolinda Gersão)
Rio de Janeiro
2008
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NO SILÊNCIO, A INTANGIBILIDADE DE DOIS MUNDOS QUE
SE ATRAEM
(Sobre O Silêncio de Teolinda Gersão)
Lucilea Chagas da Silva
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção
do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas
Portuguesa e Africanas).
Orientadora: Profª Doutora Ângela Beatriz de Carvalho
Faria.
Rio de Janeiro
Novembro de 2008
3
Para
Deus, digno de honra e glória;
Meu pai, Olympio Chagas de Jesus, meu grande amigo que partiu
deixando saudades;
Minha mãe, Ismênia de Oliveira, exemplo de força e coragem;
Meu esposo, Robson Cavalcante da Silva, meu amor e cúmplice n
as
minhas decisões;
Ângela Beatriz de Carvalho Faria, que honra seu ofício com amor
dedicação, capacidade e excelência – grande exemplo a ser seguido;
Nadiá Paulo Ferreira, exemplo de competência e uma pessoa especial;
Izabela Leal, amiga que sempre me incentivou na vida acadêmica;
Silvia Rodrigues Vieira, amiga e modelo de determinação e coragem.
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A Deus, que me cingiu de força e aperfeiçoou o meu caminho.
À professora Ângela Beatriz de Carvalho Faria, por sua orientação, dedicação e por ter fincado “placas” no
caminho que conduz ao amadurecimento, e, pelo constante estímulo em todas as fases da realização desse
trabalho.
Ao professor José Clécio Basílio Quesado, pela atenção dedicada a mim.
À professora Nadiá Paulo Ferreira, por sua co-orientação e atenção dedicada a mim.
Aos professores do Mestrado, que tanto contribuíram para o meu crescimento intelectual e pessoal.
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RESUMO
SILVA, Lucilea Chagas da. No silêncio, a intangibilidade de dois mundos que se atraem
(sobre O Silêncio de Teolinda Gersão). Dissertação de Mestrado em Letras Vernáculas -
Literaturas Portuguesa e Africanas. Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, 2008. 73 p.
A presente Dissertação de Mestrado vincula-se à linha de pesquisa "Estudos de narrativa
portuguesa e africanas: relações entre memória, história e literatura" e ao projeto "A mise en
scène do "eu" feminino no tempo das solidariedades ameaçadas", da autoria de Ângela
Beatriz de Carvalho Faria. Ao analisar o romance português contemporâneo, O Silêncio, de
Teolinda Gersão (1981, 1a. ed.), ressalta a construção identitária da personagem;
a imaginação e o sonho como forças transformadoras do real e emancipadoras da mulher; a
problematização das relações interpessoais, assinaladas pelo silêncio e pelos processos
coercitivo e libertador; a auto-reflexividade em torno da criação artística e os fundamentos
linguísticos da subjetividade. A impossibilidade de comunicação amorosa plena entre as
personagens masculinas e femininas, em conseqüência da separação de suas consciências e de
um tempo opressor, propicia a consonância de interpretações literária e psicanalítica -
fundamentadas através de ensaios críticos selecionados, da autoria de Eduardo Prado Coelho,
Isabel Allegro de Magalhães, Ângela Beatriz de Carvalho Faria e Nadiá Paulo Ferreira, entre
outros.
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ABSTRACT
SILVA, Lucilea Chagas da. No silêncio, a intangibilidade de dois mundos que se atraem
(sobre O Silêncio de Teolinda Gersão). Dissertação de Mestrado em Letras Vernáculas -
Literaturas Portuguesa e Africanas. Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, 2008. 73 p.
The present Dissertation of Master's degree is linked to the line of inquiry " Studies of
Portuguese narrative and Africans: relations between memory, history and literature " and to
the project " The mise en scène of feminine "me" in the time of the threatened solidarity",
from the authorship of Ângela Beatriz de Carvalho Faria. While analysing the Portuguese
contemporary novel, The Silence, of Teolinda Gersão (1981, 1st. ed.), it emphasizes the
construction of the identity of the character; the imagination and the dream as strength
transformation of the reality and emancipation of the woman; the problems of the
interpersonal relations, marked by the silence and by the processes coercive and liberator; the
self thinks around the artistic creation and the linguistic bases of the subjectivity. The
impossibility of loving full communication between the masculine and feminine characters, as
a consequence of the separation of his consciences and of a time oppressor, favors the literary
and psychoanalytic harmony of interpretations - substantiated through critical selected essays,
of the authorship of Eduardo Prado Coelho, Isabel Allegro de Magalhães, Ângela Beatriz de
Carvalho Faria and Nadiá Paulo Ferreira, between others.
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O círculo é a forma eleita.
É ovo, é zero.
É ciclo, é ciência.
Nele se inclui todo o mistério
E toda sapiência.
É o que está feito,
Perfeito e determinado,
É o que principia
No que está acabado.
A viagem que o meu ser empreende
Começa em mim,
E fora de mim,
Ainda a mim se prende.
A senda mais perigosa.
Em nós se consumando,
Passando a existência
Mil círculos concêntricos
Desenhando.
Ana Hatherly
8
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 09
2. TEOLINDA GERSÃO, UMA VOZ SOBRE O “SILÊNCIO” ................................... 26
3. A IMAGINAÇÃO, O SONHO E O CORPO DA ESCRITA – FORÇAS
TRANSFORMADORAS DO REAL E EMANCIPADORAS DA MULHER ...........35
4. NO ÂMBITO DAS ATRAÇÕES ....................................................................................43
4.1. A PROCURA DO “EU” NO “OUTRO” ................................................................... 43
4.2. OUTROS PARES: SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS ......................................... 48
5. DA TENTATIVA DE DIÁLOGO AO SILÊNCIO: DOIS MUNDOS QUE NÃO SE
TOCAM............................................................................................................................ 56
6. CONCLUSÃO ................................................................................................................. 67
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 72
9
1 INTRODUÇÃO
O primeiro romance de Teolinda Gersão, O Silêncio, apresenta, em princípio, no cerne
de sua temática, o silêncio como elemento principal da imbricada relação interpessoal,
sobretudo, no tocante aos universos masculino e feminino. No entanto, torna-se capaz de
revelar o contexto político-social, que se caracteriza pela supressão da voz contestadora em
busca de afirmação de sua própria identidade. No mundo atual, ainda os que se vêem
privados do direito à fala e ao livre exercício do imaginário.
Romance publicado em 1981 (primeira edição), O Silêncio, Prêmio de Ficção do Pen
Club, foi recebido pela crítica como um livro-data na ficção portuguesa pós-25 de Abril. Sua
autora, Teolinda Gersão, nasceu e cresceu sob o sistema dominante e repressor da ditadura
fascista, que deixou marcas de sofrimento no indivíduo através das estruturas autocráticas,
não só político-sociais, mas também culturais e mentais.
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A temática do silêncio tem sido alvo de abordagens múltiplas e inesgotáveis no
universo literário, referenciando, particularmente, algumas situações: a privação do falar
diante das imposições de um sistema político dominador e repressivo; o estado de quem se
cala diante da impossibilidade de diálogo entre duas pessoas pertencentes a mundos
diferentes; o excesso de multiplicação das palavras que termina por instaurar o vazio da
comunicação ou a escamotear os verdadeiros sentimentos dos sujeitos ou, ainda, sons capazes
de anular a comunicabilidade, estabelecendo o “ruído” ou a distorção da mensagem original.
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Considerado pela crítica um livro-data na ficção portuguesa pós 25 de Abril, pode-se afirmar que O
Silêncio reverencia, segundo Ângela Beatriz de Carvalho Faria, em "A Revolução de Abril: a invenção da
liberdade", "a transição do país escuro para o país luminoso, da ditadura para a democracia", uma vez que "luz e
sombra" , "euforia e disforia tornam-se inseparáveis das vozes de Abril, silenciadas e marginalizadas durante a
grande noite portuguesa que durou 48 anos soturnos e inamovíveis". Pode-se supor, portanto, que a atitude da
personagem Lídia configura uma expressão de denúncia contra o obscurantismo salazarista que fez mais vítimas
do que se pode imaginar. Esse inimigo declarado da liberdade de expressão realizou "limpezas" sucessivas
(demissões de professores e controle na admissão dos quadros docentes das Universidades, interrogatórios de
pesquisadores pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado, partidas para o exílio, vistorias e apreensões de
livros nas editoras). A repressão, inerente à ditadura salazarista, censurou notícias de jornais e revistas, obras
literárias e críticas. Todas as manifestações culturais terminaram por acatar ou driblar as decisões do sistema
vigente: diretores de jornal, patrocinadores de conferências, organizadores de exposições, proprietários de
cinemas de arte ou galerias e escritores viram-se forçados a usar subterfúgios para defender seus interesses.
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O silêncio é o tema que, de um modo geral, se inscreve de forma contumaz ao longo
da obra de Teolinda Gersão. Tema e título do romance escolhido para análise e alvo de várias
interpretações, O Silêncio concentra, em sua essência, entre outras abordagens, o surgimento
do silêncio que desponta através da via da impossibilidade do amor entre o homem e a
mulher, distanciados por suas consciências.
O silêncio, no imaginário ficcional de Teolinda Gersão, segundo Helder Godinho, em
“Teolinda Gersão O silêncio de Deus”, ensaio publicado no Jornal de Letras de Lisboa
(2007), reflete o mal-estar de desengano, solidão e ausência de futuro, o cotidiano sem afetos,
o que aponta para a impossibilidade de construção plena da própria identidade. Segundo o
ensaísta citado, esse mal-estar da modernidade pode ser exemplificado pelo silêncio que se
funda em torno das personagens e de determinadas situações, como por exemplo, o silêncio
de Deus, temática do conto Se por acaso ouvires essa mensagem, em que se busca interpelar
Deus ou a entidade abstrata a quem se dirige, indefinida, em princípio, no corpo textual e em
que se constata que Deus não pensa em nós”, em meio à barbárie do mundo contemporâneo
(Histórias de ver e andar, 2005).
Antes de registrar mais uma hipótese de reflexão crítica sobre o romance português
contemporâneo selecionado, convém considerar alguns ensaios e artigos, que formam a
fortuna crítica sobre O Silêncio e fundamentam essa Dissertação.
Eduardo Prado Coelho, em A seda do lenço (1984), ao analisar o romance de Teolinda
Gersão, faz menção à voz da protagonista Joana de Perto do Coração Selvagem, de Clarice
Lispector: “Resvalo de uma verdade a outra, sempre esquecida da primeira, sempre
insatisfeita. Sua vida era formada de pequenas vidas completas, de círculos inteiros, fechados
que se isolavam uns dos outros. (...) Continuo sempre me inaugurando, abrindo e fechando
círculos de vida, jogando-os de lado, murchos, cheios de passado. Porque tão independentes,
porque não se fundem num bloco, servindo-me de lastro?Ao reproduzir esse fragmento
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textual, o crítico tece uma analogia com a personagem Lídia de O Silêncio e com a própria
construção textual do romance, constituído por três blocos que remetem a um círculo de vida
ou à multiplicação de círculos concêntricos ao se lançar uma pedra na água, como será
explicitado logo adiante.
Sua crítica inaugural recupera o famoso aforismo lacaniano para definir a relação
existente entre as personagens, marcada por dois mundos que se cruzam e não se tocam: “il
n’y a pas de rapport sexuel”. Focaliza, assim, a tensão existente entre esses mundos
inconciliáveis e aponta dois campos distintos, nos quais se sobressaem as situações de perigo
e resistência, agressão e invasão, medo ou tréguas, uma vez que caberá a um dos personagens
impor “limites tácitos a todas as palavras” (S, p.11-12).
Eduardo Prado Coelho pontua a forma pela qual Lídia imagina: “- as imagens
multiplicam-se, proliferam os círculos do imaginário” e sugere uma fórmula: “o amor é o
círculo imaginário da relação prevalecendo sobre a não-relação, o precário triunfo do círculo
sobre a reta, a (in)decidida linha que hesita e se encurva”(p. 94). Nesse sentido, Lídia imagina
e Afonso retifica, reconduzindo-a à reta. O autor do ensaio identifica, na construção do
discurso, a inclinação pela forma circular de representação: a intenção de contar os sonhos ou
os fatos acontecidos em círculos, modificáveis, capazes de refletir “uma escrita sobre as
águas, movimento de água” (S, p.76); a forma como Lídia, a personagem, forja uma
armadilha para atrair Afonso: “e descrevendo em volta dele um círculo estreito, cada vez mais
estreito, chegaria ao ponto em que ele não se defenderia mais” (S, p.38); a forma de Lídia
existir, “incompleta e em movimento, círculo aberto”; os argumentos incompatíveis e
imutáveis, inseridos em círculos concêntricos, em que as hierarquias são estabelecidas:
enquanto Afonso, por exemplo, cem peixes num cardume, porque presume o número
razoável para o possível, Lídia imagina: “eram mil peixes, disse. Contei-os um por um e eram
mil” (S., p. 48); os círculos imaginários que se multiplicam: as formas circulares de que se
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reveste a personagem ou a casa: “redonda e luminosa, um corpo” (S, p. 45), a casa “era uma
espécie de grande girassol voltando a cabeça” (S, p. 15); os objetos circundantes: “ela abria
um guarda-sol na varanda e sonhava debaixo do guarda-sol, ou abria um guarda-chuva na rua,
e sonhava debaixo do guarda-chuva, onde ele não pudesse ver a sua cabeça e os sonhos que
corriam dentro dela” (S, p. 57); “um conjunto de pequenos jardins girando no espaço, uma
espécie de sistema solar” (S, p. 13).
Enquanto para Lídia, o amor seria o encontro dos dois numa entrega mútua, encontro
harmonioso das duas consciências e a realização pessoal, ao encontrar alguém que
completasse o que lhe faltava; para Afonso, o amor consistiria na garantia de preservação de
sua identidade unificada e estável.
2
O espaço de Lídia é infinito, no entanto, ela encontra em Afonso o seu limite. Afonso
recusa toda a desordem e quer chegar ao desejo sem aceitar a castração
3
.
Toda a exatidão e segurança que Afonso tem como garantia o torna frágil, pois não
suportaria qualquer falha:
Levantou-se, depois, procurou um disco na estante, retirou-o da capa de papel
brilhante e do invólucro transparente de plástico, colocou-o no prato do gira-discos,
encontrou sem olhar, apenas estendendo ligeiramente uma das mãos até a parte
inferior da estante, um pedaço de camurça fina (o instinto da ordem, a segurança de
cada coisa, sempre facilmente manejável, no lugar certo), pôs o disco a girar e limpou-
o ao de leve, imobilizando sobre ele a mão que segurava a camurça, finalmente fez
descer a agulha, com um mínimo de pressão, até um ponto aparentemente invisível na
primeira estria negra e circular, que era contudo o ponto exato da primeira nota de
2
Lídia abre o espaço feminino do desejo. No homem predomina a função fálica – porque o falo é nele a garantia
do um onde o sujeito se não perde ao comprometer-se na relação erótica. Por isso Afonso soma, isto é,
estabelece igualdades, afirma a supremacia do um: <a força dele sobre ela era assim uma força de identificação
que a levava a perder os seus próprios contornos, somando-a, apenas, à vida que era dele>. Em Lídia, não, todo
amor é derrame do Um no Outro queda interminável pelo sangue obscuro. <O seu desejo, que encontra na
relação sexual um cume de prazer e um máximo de fruição, é, na realidade, um desejo sem objeto, um desejo do
desejo, mesmo se um elemento que o desencadeia. E, por isso, por definição, não cessa. É aqui que se
melhor o fracasso do objecto (a) na mulher. Ela oscila entre o retraimento total da libido (o não-investimento),
por um lado, e um investimento total, por outro lado, mas de que? De nada.> (Eugénie Lemoine-Luccioni,
revê du cosmonaute, Seuil, p. 60). Como se no livro de Teolinda Gersão: <O absurdo de tudo isso, disse
Afonso, a paixão da paixão, a procura da procura, o desejo em último caso sem objecto, porque o seu objecto é o
desejo e nada do que você conta, ou diz, ou sonha, existe, o medo do amor, disse ela, o medo que você tem de ir
até o limite de si próprio, de destruir tudo o que fica para trás e criar em seu lugar outra coisa> (S, p. 97). (p. 97-
98).
3
Emprega-se o termo “castração” no sentido psicanalítico que deve ser entendido como a inserção do real como
representante do impossível na estrutura psíquica, que é formada pelo simbólico (universo da palavra e da lei),
pelo imaginário (campo do sentido e da imagem corporal) e pelo real (registro do impossível). (FERREIRA,
2004. p. 9).
13
música. Sentiu que ele teria sofrido se, por um desvio imperceptível dos dedos, a
agulha tivesse resvalado e fizesse ouvir um som diferente. Até esse ponto ele era
frágil. (S, p. 37-38).
O relato dos eventos incide sobre a própria escrita: insistente, mutável, móvel, nómada
e infindável
4
(em consonância com a velocidade da imaginação e do sonho).
Quanto à composição do tempo, o não-tempo do inconsciente aponta para a
eternidade, a repetição intemporalizante das cenas constituem uma consistência fantasmática e
as “formas verbais semi-finitas” tornam as informações rarefeitas
5
.
Três verbos são as bases do dispositivo fantasmático de Lídia: correr (saltar), cair e
partir. Correr como um animal para romper com a domesticação imposta: “não se deixar
domesticar nunca, gato que arma lentamente o salto e se transforma em lince, sobe as escadas
e atravessa a casa em todos os sentidos, entre jarras de cristal que se estilhaçam” (S, p. 61-62),
o “que era ainda o ritmo veloz do crescimento” (S., p. 32) ou, ainda, “vestir-se depressa e sair
correndo, para ir caminhar por entre as árvores” (S., p. 61); cair dentro de si mesma: “ela
descia sempre, dentro de si própria, cada vez mais fundo” (S, p. 87) e partir partindo-se na
mulher imaginada que, supostamente, refletia a própria imagem de Lídia quando se distancia
de si numa auto-análise: e “agora a imagem estava partida” (S, p.20) ou “e então ela partia,
dentro de si mesma, numa direção alta e aguda” (S, p. 52).
4
Teolinda Gersão escreve O Silêncio usando a justaposição de blocos frásicos que nunca perfazem uma soma,
que nunca atingem uma saturação. São movimentos de captura que se definem pela insistência. E daí a
construção em <e... e...>. Um exemplo, entre muitos: <e inventarão o espaço e a luz e o céu e o mar e o amor e o
corpo, porque uma força interior amadurece lentamente e de súbito irrompe e é uma força de mudança> (S., p.
109). Escrita sem essências, sem polarizações estáveis, itinerante, móvel, nómada, infindável como a areia, onde
o <e> dá lugar à força deslumbrante da enumeração, à energia do <e> - escrita rente ao corpo da terra, moldada à
flutuação do real, <movimento na água>, alegria terrena, empirismo eufórico. E ainda escrita que traz consigo a
sintaxe elementar da infância, a música gramatical do circo, o anel aberto das palavras-cerejas: <os amantes
repetiam talvez a eternidade e a infância> (S, p. 31).
5
Porque também de eternidade se trata pelo modo como o não-tempo do inconsciente atrai para o seu campo as
formas do tempo: este livro usa, não apenas a repetição intemporalizante das cenas, de modo a adquirirem uma
consistência fantasmática, como ainda aquilo a que Harald Weinrich chama <as formas verbais semi-finitas> -
isto é, por exemplo, o gerúndio ou o infinito colocados em primeiro plano de tal modo que a informação se torna
rarefeita (<desprovidas de informação sintática que possa ancorá-las na situação de locução, estas formas nada
têm de comum com os tempos> dirá Weinrich, Le Temps, Seuil, p. 284).
Assim se ergue a dimensão de investimento fantasmático como se pode confirmar pela força do infinito: <Um
bagageiro leva-lhe agora a mala, sobe no elevador a seu lado, caminham ao longo do corredor, param diante da
porta, ela despede-o rapidamente com uma moeda que tirou da carteira, bate na porta logo aberta, Herberto
abraça-a, beija-a longamente na boca, despe-a devagar. Deitar-se contra o seu corpo.> (S, p. 75) - (p. 98-99).
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O romance O Silêncio dispõe de uma velocidade demandada pela força do pensamento
e da imaginação que se configura na própria forma da escrita e em sua relação com o tempo.
Isabel Allegro de Magalhães, em O tempo de O Silêncio (1987), ao abordar a questão
temporal, no romance em referência, observa que a conjugação do passado, do presente e do
futuro se interpenetra e se confunde e, ainda se refere às três partes em que o romance está
dividido como sendo três tempos na vida de Lídia. “A primeira, contendo o desejo de diálogo
com Afonso que se inicia através do casal imaginado, no qual Lídia procura um encontro com
ela mesma e com o outro: “Ela procurava uma forma de encontro, através das palavras, um
encontro que era, antes de mais, consigo própria, e depois com o homem que a escutava”
(S, p. 11). Trata-se da fase, em que, Afonso parece ser indispensável à vida de Lídia, mas ele-
outro, ele transformado, renunciando a tudo o que pertencia ao mundo estático que era o seu:
“chegaria a um ponto que ele não se defenderia mais e deixaria para trás o seu mundo como
um invólucro abandonado”. (S, p. 38). A segunda apresenta a articulação de Lídia para tentar
convencer Afonso a mudar sua maneira de vida e para fazê-lo abandonar suas falsas
seguranças e certezas: “tecendo redes de palavras em que o iria prendendo, e quando ele
chegasse muito perto não poderia mais recuar” (S, p. 62) e “cairia num caos genesíaco, único
espaço verdadeiramente criador” (p. 390): “e então ele cairia para dentro e começaria a descer
pelas escadas dos seus olhos até um espaço de caos anterior a tudo, porque é nesse espaço de
caos que começa verdadeiramente uma casa” (S, p. 62). E a terceira culmina com a decisão de
Lídia por deixar Afonso e partir para construir um futuro-outro, como ela tanto almejava: “e
eu sairei a porta e descerei à rua e não voltarei nunca mais, terei todos os caminhos do mundo
para andar e irei procurar noutro lugar, [...], meu filho, e se o amor não existir eu o inventarei
com meu corpo, e se a vida não existir eu a criarei com as minhas mãos (S, p.123).
Quanto à categorização do narrador ou narradora (como prefere Isabel Allegro de
Magalhães), trata-se de uma terceira pessoa, exterior à história e onisciente, que narra grande
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parte do texto e, numa posição de neutralidade, descreve e narra situações, atitudes e
sentimentos:
Lídia imaginou um corpo deitado numa praia [...] Ela procurava uma forma de
encontro, através das palavras, um encontro que era, antes de mais, consigo própria [..]
(S, p. 11); Encosta-se um pouco para trás do sofá verde, empurra as chávenas de café
para o canto da mesa, acende um cigarro na vela agora quase gasta, (S, p. 23).
Lê-se, entretanto, alguns fragmentos textuais intercalados em discurso direto, nos
quais “as falas das personagens são transmitidas ao vivo” (p. 390):
Entretanto a casa é pequena, baixa, com dois pisos, e tem duas janelas iguais uma de
cada lado da porta.
Ao lado há um tufo de glicínias, disse o homem.
Não, não, disse a mulher. As glicínias ficam do outro lado. (S, p. 13)
Observando-se, no entanto, que essas falas são “sempre enquadradas pela narradora,
cuja preocupação é, sobretudo, revelar a vida de Lídia e o que ela pensa, sente, sonha ou faz”
(p. 390). Em outros momentos, Lídia interfere como narradora (hipodiegética) dentro da
história, conversando com alguém que não está presente, “dirigindo-se a um <tu> que ora é
Afonso ora outra personagem” (p. 391):
Levantas-te, depois de muito tempo, e entras na varanda envidraçada – [..] e de
repente sei que não irás nunca (S, p. 81). – a Lavínia –
Abro a porta e invado o teu espaço. Palavras , memória, um corpo, um outro espaço
que irrompe, da cidade da rua, do passado [..]. (S, p. 77) – a Afonso –
Há momentos em que ela, em primeira pessoa ou não, reflete e se interroga:
Vestir-se sem pressa, percorrer a casa silenciosa. Afonso saiu cedo, a casa está solta,
livre é portanto a sua presença que a pára, a imobiliza no seu lugar habitual? E
quando ele está longe eu recupero o meu próprio tempo, em que nada ficou nunca
estabelecido e é sempre possível organizar de outra forma? (S, p. 75)
porque eu era vaga e difusa e sem fronteiras, igual a tudo e a nada [..], procurei-te,
talvez, por medo ao infinito, mas agora não quero mais ficar aqui, [...]
quebro outra vez esta forma provisória e parto à procura de outra (S, p. 35).
Tempo de vitória, pois, a certeza provisória de que estava triunfando? Triunfando
sobre a vida, o tempo, sobre Afonso, Alcina sobre si mesma? Oh, era tudo difícil e
não era possível ver claro (S, p. 23).
O processo de reflexão realizado por Lídia torna-se uma constante no romance: “uma
permanente introspecção problematizante assim como um partir da realidade para o seu
questionamento” (p. 391), o que se desdobra em hesitação para afirmar categoricamente a
16
identidade da narradora.
6
Outra observação importante, nesse contexto de reflexão efetuada
por Lídia: trata-se do “distanciamento analítico de si mesma, (no qual) cria por momentos na
imaginação uma imagem de mulher em quem projeta sonhos e comportamentos (S, p. 11-12)
e mais adiante na narrativa, quando essa imagem se quebra” (p. 392), imediatamente, Lídia
entra no lugar da imagem dando continuidade a ela e substituindo-a perfeitamente: “Agora a
imagem está partida, pensou fazendo a areia correr por entre os dedos, e não havia outra coisa
a fazer com ela senão deixá-la resvalar para o nada” (S, p. 20). Isabel Allegro de Magalhães
sugere, então, que o distanciamento entre Lídia e a narradora seja somente “retórico, e se dê o
mesmo tipo de coincidência” (p. 392) com Lídia e a mulher imaginada.
A autora do ensaio supõe que, em alguns momentos, só aparentemente a narradora seja
heterodiegética (externa e onisciente), e confunda-se com a autora textual, no entanto, afirma
que a narradora é autodiegética, pois Lídia é protagonista e narradora, falando na primeira,
segunda e terceira pessoas do discurso, apesar de em muitos momentos esta terceira pessoa
parecer estar dividida em duas: a narradora e a protagonista:
e, um mundo que se quebra quando eu falo, então ele esbofeteou-a porque não
podia suportar que ela falasse (S, p. 123).
Ela estava de repente fora do seu alcance, caminhando, abrindo passagem com o
corpo uma pequena figura entre outras, que do alto de quinze andares, os seus olhos
não conseguiam seguir mais.
Voltou para dentro e fechou a janela.
Havia dentro dele um ódio leve, que se estendia a todas as coisas do mundo. (S, p .
124)
“O presente é neste romance o tempo de todas as personagens, tempo que para umas é
de descontentamento e para outras de <adaptação> ao real sem perguntas” (p. 393): como, por
exemplo, a insatisfação de Afonso que abandona a vida com a esposa: “Alcina sentada à beira
do sofá, estéril e tranqüila, quase invisível, a tal ponto fazia parte da casa, a solicitude de
Alcina” (S, p. 32) para se aventurar a uma experiência com Lídia: “Uma mulher muito jovem,
6
Estaremos perante uma narradora heterodiegética como diagnosticamos de início e cuja presença tão
dificilmente se delimita no texto? Ou antes se trata da própria Lídia, protagonista da <estória> e sob cujo ponto
de vista a história se constrói, como sendo efetivamente a sua única narradora? É que a voz de Lídia parece em
nada diferenciar-se da primeira narradora, e por isso poderemos interrogar-nos sobre se a narradora que fala de
Lídia e que com ela em muitos momentos se confunde não será ela a própria Lídia. (p. 392)
17
insegura, quase ignorante de si mesma, entrando de repente em sua vida com o seu ritmo
tumultuoso e incerto” (S, p. 32); ou a de Lavínia (mãe de Lídia) que deixa Alfredo e parte ao
encontro de Herberto, na esperança de encontrar a felicidade: “então Lavínia parte, ao
encontro de Herberto. [...] Alegra-se com o movimento, a decisão tomada, a coragem de
arrumar a sua vida” (S, p. 72-73), ou ainda a Lídia, “uma mulher muito jovem, insegura,
quase ignorante de si mesma” (S, p. 32), à procura de si mesma, “uma mulher acordando
diferente, olhando no espelho a sua imagem, uma mulher água, vento, folha, que não sabia da
sua própria forma e a procurava através do homem” (S, p. 49) . A tensão entre um homem e
uma mulher, vivenciada num diálogo entre “dois mundos sem pontos de contacto”, também
instaura-se no presente (S, p.34):
- recusar tudo e começar de outra forma,
- mas não há outra forma possível
- corpos que brevemente se estendem e de novo partem, soltos, separados,
- porque você recusa o real, você recusa,
- porque sempre sonhei viver de outro modo,
- mas só existe o real e é preciso resignar-se,
- mas quem vai definir o que é real,
- o real é o contrário do sonho,
- e se for o sonho que é real,
- está de novo mentindo,
- a vida não se repete apenas, é possível uma súbita alteração qualitativa,
- a vida é uma coisa sem brecha, não há nunca rotura nem milagre
- não sonhamos talvez o suficiente,
- é preciso parar de imaginar. (S, p. 36-37)
Quanto aos que se ajustaram ao real sem questionamentos, Ana, criada de Alcina, tem
com o tempo presente e a vida doméstica uma relação de acomodação quase perfeita, se não
fosse por um pequeno detalhe, ainda que inconsciente: o de não aprender nunca.
sorrindo de súbito, com um sorriso todo aberto e confiante, que não coadunava com o
rigor da farda. Não aprendem nunca o seu papel, pensara, são treinadas durante
decênios, mas de repente sorriem com intimidade e deixam entrar qualquer
desconhecido que diz morar no prédio ao lado. E alegrara-se por ver que não aprender
nunca era uma forma de resistência inconsciente ao mundo dos aventais plissados; (S,
p. 24-26).
Ana, só no passado, vivera um tempo de esperança e expectativa,
O tempo inquieto em que ficava em casa aos domingos, bordando o enxoval, sem dar
conta de que nenhum homem entraria a procurá-la no pequeno mundo de objectos que
a cercava [...] tempo em que pensara em ir embora, voltar para a terra, dar forma de
algum modo, à sua vida. (S, p. 25-26)
18
Após vinte anos de serviços prestados, com dedicação e fidelidade, a inevitável
adaptação a transformara e “acabara por oscilar menos entre partir e ficar, fora oscilando cada
vez menos até se imobilizar entre os objectos, e o fim da possibilidade de escolher acabara por
adormecer a angústia, e agora ela quase se orgulhava como se tivesse escolhido” (S, p. 26).
Alcina e Alfredo estão situados em condições bastante semelhantes, para eles “tudo
parece normal e certo” (p. 395). Alcina é “aquela mulher silenciosa, concentrando numa casa
seu tempo vazio, movendo lentamente entre as coisas o seu corpo maduro e resignado”, (S, p.
27) e Alfredo é aquele homem que, na repetição freqüente dos atos, tem tudo pronto e o seu
presente consiste em repetir o passado: “Rosa, rosae, pensa Alfredo, que é professor de
português, mas no início de cada curso ensina sempre um pouco de latim” (S, p. 19).
uma sinalização, também, da coexistência de situações semelhantes que remetem a
um paralelismo entre as duas personagens, Lavínia e Lídia, a começar pelos nomes, como
veremos, em tempo oportuno. Ambas procedem a uma ruptura com o quotidiano mortal
para Lavínia e transformadora para Lídia; as duas esperavam do amor uma ponte para outra
coisa; o texto apresenta, inclusive, a analogia felina às duas mulheres. A mulher do sonho
(Lídia) descreve um gato sobre o muro: “Por vezes o gato salta sobre o portão, de um lado até
ao outro do muro, salta sobre os canteiros de fúcsias, ou salta do jardim até ao peitoril das
janelas baixas” (S, p. 12) e Lavínia, de forma similar, descreve um gato no muro: “Então o
gato está no jardim, sobre o muro, pensa Lavínia sentada à mesa, distraindo-se de repente
diante das fileiras de copos e talheres brilhantes. Está parado em cima do muro, olhando para
o outro lado” (S, p.18). Semelhantemente, tanto Lavínia, quanto Lídia procuram as palavras
certas para o entendimento através do diálogo: Lavínia: “oh, essa sua comovente procura das
palavras certas” (S, p. 68) (observação feita por Alfredo); Lídia, através da mulher imaginada
(ela mesma = a outra): “a tentativa de diálogo fundo [...]. Ela procurava uma forma de
encontro, através das palavras” (S, p. 11).
19
Conseqüentemente, ambas têm seus esforços por inúteis diante do descaso
demonstrado pelos respectivos homens: Alfredo declara que “nenhum de nós pensa nas
palavras, imagine o esforço se cada um tivesse de inventar ou procurar sempre de novo todas
as palavras” (S, p. 68), e, Afonso considera toda e qualquer espécie de conversa impossível:
“odiou-se por ter cedido a tentar transpor sentimentos em palavras, porque tudo era sempre
tão errado, uma vez dito” (S, p. 47).
A ensaísta citada aponta, ainda, a diferença entre o discurso masculino e o feminino: o
da mulher, inexato, transbordante de imaginação e de sonho, em que predominam palavras
livres; a conversa do homem, utilitária e egoísta, assinalada por palavras exatas. Dá-se, então,
nesse contexto, a constatação de “que eles eram um homem e uma mulher que não se
amavam, porque não conseguiam falar nunca” (S, p.111).
A insatisfação com o tempo presente leva Lídia a voltar constantemente ao passado e,
através dessas reminiscências, a engendrar espelhamentos
7
nos quais deduz que, se Afonso
não mudar de vida, cairá nos mesmos enganos e frustrações experimentados anteriormente:
“se não te deres conta e não lutares depressa, esta casa será, de repente, a outra, de onde
procuraste, através de mim, uma saída, porque há um perigo de morte que se corre quando
alguém se senta numa cadeira Luís XV e tem todos os botões de punho no lugar” (S, p. 84).
Lídia, desse modo, lutava para evitar um futuro fadado ao fracasso.
O tempo, para Lavínia, tornou-se vazio e sem sentido: “acordar, dormir, uma hora
indiferenciada, nem dia nem noite por detrás das janelas baças” (S, p. 63), porque, para Lídia,
Lavínia não teve forças para lutar e fora vencida, e “quase” assimilada. Lavínia e Alcina
representam tempos passados que Lídia visita no presente: Alcina, incrustada na realidade da
casa invadida por ela e Lavínia, já morta, mas reatualizada através da memória.
7
Esse assunto será abordado mais adiante.
20
O tempo presente corre veloz e sem medida em direção a um futuro e torna-se a força
dinamizadora da narrativa.
São pinçados alguns exemplos de tempos verbais empregados no romance a fim de
pontuar os mais significativos: o do pretérito é apresentado, ora no Imperfeito do Indicativo,
ora no Perfeito, ora no Mais-que-Perfeito. O tempo verbal do Presente aparece raramente.
A ausência de verbo em muitas frases marca a falta de ação e de movimento na realidade
estática. O presente narrativo é, então, contado em tempos verbais do passado ou em frases
substantivas para mostrar que o presente, ao ser uma reprodução do passado, torna-se
pretérito. O emprego do tempo verbal no infinitivo, não raro, neutro e impessoal, é utilizado
por Lídia para analisar situações diversas, tendo em vista o caráter de objetivação da realidade
e o distanciamento que essa forma oferece. Os questionamentos de Lídia perante ela mesma e
perante a vida, por serem uma constante na narrativa, são representados pelo Condicional,
pelo Imperfeito ou pelo Presente do Indicativo. As interrogações atravessam, de tal forma, os
tempos e espaços, a ponto de aparecer o ponto de interrogação até mesmo em frases
aparentemente afirmativas. O Gerúndio apresenta o caráter durativo em situações que
requerem um prolongamento para serem desfrutadas por mais tempo no presente. Para tentar
evitar que a fatalidade de um ato, conhecido do passado, se repita no futuro, é utilizado o
Condicional. O Futuro é descrito no Presente do Indicativo, como antecipação do que Lídia
quer evitar e também referencia um outro futuro desejado, um porvir em que ela acredita,
anseia e se propõe construir e, nesse caso, observa-se a coexistência dos tempos verbais
Presente e Futuro do Indicativo. Nos momentos em que Lídia cogita uma outra possibilidade
para uma situação, como poderia ser, o Condicional é utilizado como plano de mudança.
O emprego dos tempos verbais parece corresponder ao tempo do romance, na medida
em que um corrobora para a construção do outro. Mesmo que o tempo no romance tenha a
21
ação erosiva, tem-se a esperança, o sonho do futuro, a promessa de uma plenitude que vale a
pena procurar.
Paula Mourão, em O brando mover d’ O Silêncio (1993), ressalta os movimentos
inerentes ao romance, estando a estrutura dos capítulos em três partes relacionada a três
movimentos e dimensões diferentes. Ela aponta, como um dos principais movimentos da
narrativa, a oscilação do ponto de vista de um narrador onisciente que, em dado momento,
toma a palavra em terceira pessoa e, em outro, concede- a às personagens.
A personagem Lídia vagueia, deambula, caminha, entra, abre, desorganiza, atravessa
lugares, procura-se, enfim, o constante movimento a define. Nesse movimento, é possível que
tudo se centralize em Lídia e tudo parta dela. Dessa forma, Lídia visita o passado, onde se
encontram “Lavínia, Alfredo e Jorge, apenas entrevisto; é assim, também, que de Lídia
sabemos um presente a relação com Afonso, que ela contrasta permanentemente com um
passado (o de Alcina e Ana)” (p. 109). A visão pessimista do presente é fruto da obsessão
pelo passado traumatizante e, diante da insatisfação com o presente e com o passado, Lídia
não alternativa diferente, senão mudar a vida: “só quando se compreende que a alternativa
é mudar a vida ou saltar da janela se adquire a exacta perspectiva das coisas” (S, p. 101) a
invenção da esperança, sem descartar a possibilidade do desastre.
A tensão
8
crescente entre as personagens conduz ao silêncio: “dois mundos sem ponto
de contato” (S, p.34), levando cada um a mergulhar no interior angustiado de si mesmo.
Lavínia põe fim a tudo através da morte, Alfredo e Alcina fecham-se na casa, Lídia desiste
(de Afonso) e parte para sua <louca> solidão; Afonso, supõe Paula Mourão, ser a personagem
mais forte: diferentemente de Lídia e seu mundo pueril, ele se mantém em seu mundo
profissional, exato, sem sonhos e, por isso, “Lídia lhe confere a função de retificar”.
8
A abertura que caracteriza dia, e com ela a narrativa, é, pois, aparente; os tempos verbais (com predomínio
do imperfeito e do infinitivo) ou as estruturas frásicas (com destaque para os <ou> e os <e>) que muitas vezes
terminam em branco, acentuam que a abertura é sobretudo suspensão, ou melhor, usando palavras do texto,
<tensão>. E pela tensão, entre Lavínia e Alfredo, entre Lavínia e Herberto, entre Lídia e Lavínia e Lavínia-
Alfredo, e, no presente, entre Lídia e Afonso, somos conduzidos à incomunicabilidade, ao silêncio (p. 110).
23
24
erótica”, conforme se pode verificar no romance referido: “Deitar-se contra o seu corpo” (S,
p.75). Há, para Lavínia, a possibilidade de mais de um destino refutado ou criado pelas
demais personagens: a) ao ingerir um líquido que a queima por dentro, “encosta a cabeça na
noite” e “procura na morte uma saída”; b) é encontrada morta, junto à janela do comboio, com
“um ramo de violetas na mão”, “seus olhos de vidro
25
prêmio do Pen Club Português, no gênero de ficção, expressou o triunfo da autora sobre as
regras impostas. A publicação do romance e sua repercussão comprovam o valor das palavras
e testificam que as dificuldades do caminho não foram capazes de calar uma voz sobre o
silêncio.
26
2 TEOLINDA GERSÃO, UMA VOZ SOBRE O
“SILÊNCIO”
Como se pode ler em O Silêncio, verifica-se a expressão da indignação da voz textual,
em conseqüência de situações, inerentes ao mal-estar da sociedade, a ponto de desejar-se dar
forma, ou seja, materializar o silêncio avassalador, que cresce denso e pesado, até confinar,
alegoricamente, as pessoas em “caixas de vidro”:
É um mundo que começou a enlouquecer, disse de repente, sem preparação. Um
mundo eficiente de silêncio total, em que ninguém mais fala com ninguém. As
pessoas estão sentadas, ombro contra ombro, à espera, mas o objetivo da espera é
sempre falso, o autocarro o comboio, o avião, porque todos os lugares são iguais e
nada é diferente em parte alguma. E enquanto se espera o silêncio cresce, vai ficando
sempre mais denso e mais pesado, e algumas pessoas começam a ficar inquietas, por
que de repente percebem que estão bloqueadas, dentro de caixas de vidro, o universo é
um conjunto gigantesco de sucessivas caixas de vidro. (S, p. 39)
A consciência social da personagem Lídia denuncia a atmosfera de tensão, a existência
de “pessoas-campos-magnéticos, zonas de tensão, que se chocavam com outras, eram
interrompidas por outras, lutavam com outras, originando novos campos de tensão” (S, p. 52).
Essas causas e efeitos fazem com que o silêncio cresça, gerando mais desconforto social e as
pessoas, ao procurarem alívio para essa aflição, encontram no distanciamento a saída e
terminam por ter suas necessidades atendidas por serviços de atendimento à distância,
resultando, dessa forma, uma sociedade de pessoas cada vez mais individualistas. O espaço
das revoluções políticas e utópicas é, cada vez mais, ocupado pelas revoluções técnicas e
mentais:
Entretanto vai crescendo o silêncio e a sua ordem perfeita, nada mais é directo, não
mais contacto, é tudo regulado por impecáveis serviços que dão solução a todos os
problemas, assim, por exemplo, serviços telefônicos de S.O.S., quem for suicidar-
se, ou estiver só, ou não souber o que fazer consigo, pode discar um número e ouvir
uma voz trazendo para cada caso a resposta adequada, computadores marcam
encontros entre desconhecidos e a felicidade é garantida desde que preencham
correctamente os formulários ou equacionem com rigor a situação em três linhas de
jornal quero uma mulher um homem que use meias pretas, saia de pregas, calça
de linho... (S, p. 40-41)
27
A procura e oferta pelo bem-estar e prazer não param por aí, mudando
comportamentos e chegando a atingir as mais diversificadas áreas da vida humana (sexo e
saúde) e até mesmo surgem paliativos para amenizar as carências do presente e as incertezas
quanto ao futuro:
em todos os quiosques se vendem livros ensinando a fazer amor com todas as técnicas
possíveis, nunca as pessoas foram tão felizes e tão livres e nunca como agora levaram
para a sepultura um tão magnífico saldo de orgasmos, [...] também todos os outros
apoios para atravessar os dias, os tranqüilizantes, os excitantes, os haxixes, as liambas,
as maconhas, as ervas todas, e também, é claro, os venenos mais fortes, que libertam
mais depressa e mais fundo, [...]
sem esquecer que para as horas de incerteza é ainda possível o recurso aos videntes, às
bruxas, aos astrólogos, aos horóscopos, porque as bolas de vidro e as cartas de Tarot
resolvem, bem entendido, muita coisa (S, p. 41).
A preocupação com a degenerescência física e com a situação de frustração pela
palavra não dita estará repercutida nos contos da autora, segundo entrevistas concedidas por
ela e vem a ser
28
personagem e à sua casa: “aquela mulher silenciosa, concentrando numa casa o seu tempo
vazio, movendo lentamente entre as coisas o seu corpo maduro e resignado. [...] a saleta
dourada, as jarras de cristal, a casa imóvel forrada de penumbra e silenciosa” (S, p. 27-28).
Um silêncio constante que Lídia esforçava-se por quebrar ainda que fosse com uma palavra:
“É, disse ela, porque para onde quer que ele recuasse, ela não lhe deixaria nenhum espaço de
fuga, é tudo sempre outra vez aproveitado em favor do silêncio vigente” (S, p.40). Silêncio
encontrado na lacuna que nos relacionamentos humanos, na perda de vínculos, nos laços
desatados
11
:
pessoas-notas-de-música que se podiam combinar com outras, um múltiplos acordes
(acordos), e todavia estavam sós, vibrando num silêncio expectante, que jamais coisa
alguma preenchia. Deixando entre si pequenos espaços de silêncio, comendo nas
mesas, dormindo nas camas, nas casas separadas por paredes, que eram como
pequenas caixas sobrepostas. Procurando-se, porque nenhuma se bastava a si própria.
(Mas nunca ninguém, nem nenhuma coisa, bastaria.) (S, p. 51-52).
Silêncio, também, na tensão angustiante entre Lavínia e Alfredo, provocada pela
ameaça (para ela) de ter sua identidade apagada pela opressão de Alfredo, representando a
dificuldade de Lavínia em se adaptar ao mundo estrangeiro, provavelmente como resistência
para manter a própria identidade:
Eu própria não sei mover-me neste mundo estrangeiro de que sempre ignorei a língua,
um código que me falta, uma forma de comunicar, nunca soube exprimir-me e fui
sempre arrastada, apenas arrastada, pelas palavras dos outros,
Uma palavra escrita num quadro preto, numa sala de aula, estou sentada defronte e
não a compreendo, e aos poucos vai crescendo a angústia e o silêncio ameaçador dos
mestres, Alfredo está entre eles, interrogando, e na atmosfera opressiva um
consenso geral de que não poderei de forma alguma ignorar, suspeito que a palavra
talvez seja o meu próprio nome, mas de repente esqueci-o, perdi-o da memória,
Alfredo apaga finalmente a palavra com a esponja e eu inclino a cabeça diante do
quadro liso e negro, onde se escreve apenas o silêncio. (S, p. 67)
Lídia reflete a respeito do convívio com o concentrado, metódico e silencioso Afonso
e seus interesses imediatos e práticos. Variados são os pensamentos que povoam a mente de
Lídia que medita como sendo múltipla, aberta, inacabada, e em movimento, enfrentaria o
11
Desligados, precisam conectar-se... Nenhuma das conexões que venham a preencher a lacuna deixada pelos
vínculos ausentes ou obsoletos tem, contudo, a garantia da permanência. De qualquer modo, eles só precisam ser
frouxamente atados, para que possam ser outra vez desfeitos, sem grande delongas, quando os cenários mudarem
– o que, na modernidade líquida, decerto ocorrerá repetidas vezes. A misteriosa fragilidade dos laços humanos, o
sentimento de insegurança que a ela inspira e os desejos conflitantes (estimulados por tal sentimento) de apertar
os laços e ao mesmo tempo mantê-los frouxos (BAUMAN, 2004, p. 07-08).
29
mundo estático dele, mundo de tradições que ainda preserva cadeiras Luís XV símbolo de
uma burguesia sólida e estratificada:
Abro a porta e invado o teu espaço. Palavras, memória, um corpo, um outro espaço
que irrompe, da cidade, da rua, do passado, de múltiplas constelações de outras vidas,
sou todas essas coisas, aberta, inacabada, em movimento. Ele fala sem se voltar, ainda
dentro da concentração e do silêncio. uma surpresa na sala, diz. Um sofá
estampado e duas cadeiras Luís XV. [...]
Um pequeno universo funcionando, confortável ordenado, onde se podia viver e
trabalhar sem nada por em causa, apenas isso, portanto, cumprir com rigor o pequeno
ritual do dia-a-dia, aceitar as regras tácitas do bem conviver, uma espécie de gentileza
aprendida que mascara a agressividade latente, não se atropelar por exemplo ao passar
as portas, cuidar dos objectos da casa, por detrás dos quais eles iriam desaparecendo
pouco e pouco. Não interromper, circular sem perturbar, não quebrar nunca o silêncio,
...(S, p. 77-78).
Há, no romance, uma alusão ao silêncio nos anos que se passaram após o retorno de
Lavínia para Alfredo, acontecimento demasiadamente complexo para uma criança. Um
quadro confuso, e, talvez seja simbólico que Lavínia tivesse nas mãos, ao descer do comboio,
um ramo de violetas e cabelos caindo sobre o rosto inclinado
12
:
Lavínia desce, segurando uma leve mala branca, beija-me trêmula, magra, as faces
frias, um ramo de violetas nas mãos enluvadas –, então Alfredo está de repente junto
de nós, abraça Lavínia e chora, é um homem baixo e gordo e desesperado, e o que
depois disso é uma lembrança informe, obscuros anos passando em silêncio como um
dia, cortinados corridos, confusas sombras, os cabelos caindo sobre o rosto inclinado
de Lavínia (S, p. 79).
Lídia agora reage na tentativa de quebrar o silêncio crescente no convívio com
Afonso, porque nesse momento ela prevê o risco de cair na mesma rotina da vida que Afonso
levava com Alcina (mulher de Afonso):
Agora parou de procurar, entra na cozinha e diz uma frase qualquer, uma frase que
não quebra o silêncio, este silêncio que cresce, enche de súbito a casa, invade as
coisas, rapidamente ele começa a dizer mais frases, na importa quais, desde que nos
distraiam do essencial, mas o que quer que digas eu acabarei sempre por quebrar o
silêncio, porque jamais aceitares a tua regra do jogo, e a primeira palavra verdadeira
ele ficará inquieto e sorrirá e tentará dizer outra coisa, mas o silêncio estará quebrado
e eu poderei dizer algo que nos deixe finalmente um defronte do outro, verdadeiros e
desamparados, dir-te-ei por exemplo que, se não te deres conta e não lutares depressa,
esta casa será, de repente, a outra, de onde procuraste, através de mim, uma saída,
porque há um perigo de morte que se corre quando alguém se senta numa cadeira Luís
XV e tem todos os botões de punho no lugar, (S, p. 83-84).
12
Mais adiante, faremos uma alusão à mulher “tapada”, a que “se esconde de si mesma” e instaura o “mistério”.
30
Silêncio opressivo resultante da lembrança da morte da mãe, da incerteza de como
tudo acontecera e da inquietação permanente seguida do desejo de partir, previsto na
infância, seguindo o modelo de sua mãe, como uma obstinação:
Mas ela podia ser feliz, você era uma criança encantadora e Alfredo era rico e
amava-a tanto, Jorge contou-me que ninguém acreditou em suicídio, porque então ela
teria tomado uma dose realmente excessiva de calmante, mas ela apenas exagerou um
pouco, porquê suicídio se ela tinha tudo, sim, claro, havia aquele alheamento dela, um
pouco excêntrico, ela não tomava muita atenção, só podia ter sido um acidente, [...]
Porque secretamente ele sabe que um dia abrirei todas as janelas e todas as portas,
atravessarei o jardim e me irei embora, e é com esse momento que eu sonho quando
fico acordada no escuro e escuto a noite, o silêncio opressivo, o restolhar do vento, o
bater de uma janela fechada, o balançar de um ramo contra os vidros,
mas não vê que a experiência individual e isolada de uma mãe, que por acaso foi a
sua, não tem qualquer significado exemplar, moral ou social, (S, p. 106-107).
Silêncio advindo das “cidades de medo e agressão e silêncio” leva Lídia a cogitar a
possibilidade de se crer num futuro proveniente de duas vozes consonantes e unidas em um
propósito comum que visa à construção de outras cidades (um mundo diferente daquele,
“rasgado” pela força da mudança). A transformação humana e social que poderá criar uma
sociedade mais justa e menos desigual caberá, portanto, às crianças futuras:
Mas as crianças nascem de duas vozes que se encontram, e não de dois corpos,
Afonso, as crianças futuras que serão os arquitetos de outras cidades e inventarão o
espaço e a luz e o céu e o mar e o amor e o corpo, porque uma força interior
amadurece lentamente e de súbito irrompe e é uma força de mudança, então no tecido
social abrem-se buracos demasiado numerosos, as casas desmoronam-se, as cidades
de medo e agressão e silêncio começam a rasgar-se, e por todos os rasgões vai
entrando o sol e cabeças de crianças assomam, (S, p. 109-110)
Silêncio imposto pelo homem, através da censura à contestação, em meio a situações
políticas de opressão e de desigualdade social. No entanto, aqui, um choro silencioso e
gritos de revolta, capazes de agregar a comunidade e, ao mesmo tempo, desagregar a ordem
social:
Saiu à porta, andou ao acaso no corredor. A mulher estava enrodilhada a um canto da
parede, com pessoas em volta, falando todas as mesmo tempo, uma delas gritava, mas
não era a mulher, que chorava em silêncio, quieta, de certo modo indiferente ao que se
passava, era uma outra de preto, que gritava, levantando os braços, enquanto, pelo tom
de voz e pelos gestos, lhe argumentavam certamente algo em contrário. Um menino
com quatro horas de morto, disse a enfermeira, e, sem dar conta, ela própria começara
a gritar, sabem que vai morrer e não vem, aparecem depois, com eles mortos, para
levar a certidão de óbito. O grupo das mulheres gritava agora com mais força, algumas
mais se juntaram, vindas de todos os lados do corredor – o bairro da lata, a madrugada
31
fria, a caminhada a pé, duas horas de autocarro, meia hora perdendo-se nos corredores
e nas escadas, à procura da sala certa, duas horas de espera em outro corredor, numa
fileira de gente que vai crescendo sempre, atrás de uma porta fechada, quatro horas de
morto (S, p. 93-94).
Silêncio apresentado na criação dos filhos, crianças condicionadas como se faz com
animais e enclausuradas em seus ambientes particulares e separadas do convívio social e da
possibilidade de comunicação com outras pessoas, silenciadas pela maneira opressora de
serem educadas:
Finalmente dez de cem crianças se sentam e constroem na manhã clara um bolo de
areia, para logo serem levadas para casa pelas mães, entre os gritos das crianças
vencidas, porque já a manhã acabou, e agora é a altura de ficarem quietas nas casas, e
como sempre se recusam a estar quietas dão-lhes suaves tranqüilizantes dentro de
copos às cores e com açúcar, e então elas ficam a tarde inteira sentadas nos sofás de
veludo, de cabeça limpa e bem penteada, a roda da saia ligeiramente aberta em volta
do corpo e uma almofada por detrás, e quando acaba o torpor e de novo se levantam e
não é mais possível mantê-las quietas pulverizam-se os objetos proibidos com um
líquido incolor que produz, ao contacto, uma leve descarga elétrica, e depois de pouco
tempo as crianças aprendem a distinguir o que é permitido tocar e o que não é e
podem mover-se, livres e protegidas, pelas casas, pelo mundo, crianças silenciosas
que não aprendem a falar nunca, porque ninguém fala com elas, e por isso não
perturbam o silêncio. (S, p. 112-113)
Silêncio profundo, imperceptível a muitos, encoberto por todos os ruídos possíveis,
representando um cotidiano que se desgasta em si mesmo e anula a possibilidade efetiva de
comunicação:
E o silêncio cresce fundo e é total, de tal modo que poucos notam que é apenas
silêncio, porque sempre ruídos sobrepostos preenchendo-o, música de fundo,
speakers, relatos, informações, publicidade, avisos, profusões e linguagens
balbuciadas, com uma extensão talvez máxima, mas com uma comunicação sempre
mínima, as pessoas circulam, eficientes, em circuitos cada vez mais fechados,
interiorizam a tal ponto o universo de não-palavras que as circunda que acabaram por
emudecer por completo, (S, p. 113).
A narradora ironiza prevendo, para o futuro, uma guerra silenciosa e estetizada, capaz
de destruir os seres humanos sem deixar qualquer vestígio quanto aos prejuízos visíveis:
Também a próxima guerra será silenciosa, esteticamente organizada, não haverá
necessidade do ruído desagradável das bombas e da visão traumática e em último caso
perfeitamente dispensável das cidades arrasadas, porque as cidades ficarão intactas, só
as pessoas e os seres vivos morrerão, mas em silêncio, sem estertores nem gritos, nem
nada de excessivo ou patético, tudo será eficiente, limpo, límpido, (S, p. 113).
32
Lídia sonha e o silêncio está, de repente, na estação parada, o que simboliza a
impossibilidade de ir e vir, uma vez que todos os passageiros estão mortos, inclusive o
maquinista:
mas o comboio não parte e toda a estação está de repente em silêncio, e ela atravessa
as carruagens e por todo o lado os passageiros sentados, de sobretudos vestidos,
segurando cigarros, a cabeça encostada aos bancos, por detrás de jornais abertos, mas
todos eles estão mortos, e no fim de todas as carruagens, quando ela chega perto,
também o maquinista esmorto, sentado no seu lugar com a mão direita pousada na
alavanca, e ao longo da gare os relógios redondos, pendurados sobre as linhas, não
têm ponteiros nos grandes mostradores iluminados (S, p. 117).
Silêncio produzido pelo mal-estar na cultura, denunciando a falta de comunicação
interativa da palavra escrita, significante esvaziado de significado, capaz de distanciar ainda
mais as pessoas umas das outras, o que impossibilita a aproximação e um contato mais
“caloroso” e solidário:
Grandes cartazes anunciam um congresso, em todos eles está o nome de Afonso,
repara caminhando ao longo do corredor enfeitado com plantas verdes, mas a
literatura também se converteu em silêncio, tornou-se apenas imanente, as palavras
ficam cercadas, bloqueadas, e encontra-se sempre um meio de demonstrar às pessoas
que elas significam tudo, e que, portanto, não significam nada, a palavra escrita é uma
palavra morta e por isso eu quero a palavra dita, rente ao corpo, inseparada do corpo,
língua, boca, braço, mão, gesto, movimento do eu e do outro, do eu para os outros e de
novo destes para mim, a palavra que está no princípio do eu e do mundo e da vida e
que é talvez, o amor, (S, p. 118).
“Silêncio da sala”, da casa, “do mundo”, passível de anular, de forma coercitiva, a
palavra escrita na parede e o quadro pintado, resultantes de transgressões e de manifestações
críticas:
A palavra na parede, a única palavra escrita ainda viva, ainda próxima da mão que a
escreveu, ainda grito, aviso, ameaça, pintar é escrever nas paredes, ou eu acreditava
que era, mas também o quadro é finalmente integrado no silêncio da sala, do mundo, e
por isso eu duvido tantas vezes e não tenho coragem de continuar (S, p. 119).
Silêncio que não pode ser interrompido pelo diálogo, pela compreensão mútua, pelo
partilhar dos pensamentos, ideais, sentimentos, uma vez que, para Afonso, o sentido de
conversa (palavra significativamente repetida) é equivocado e denota apenas egoísmo e
preocupação com as necessidades imediatas do dia-a-dia e sem importância:
Não interromper, circular sem perturbar, não quebrar nunca o silêncio, [...]
conversemos Lídia, tenho tanto a dizer-lhe, você mistura as cores como se daí
dependesse o futuro do universo, e entretanto não telefonou como lhe pedi às cinco e
33
dez, onde está aquele cinto de lagarto, aquela pequena pasta transparente, aquela
tesoura de metal dourado, aquele botão de punho que perdi outro dia, aquela agenda
anotada que ficou na gaveta mais pequena ou talvez no porta-luvas, é claro que não
direi nada, não é uma censura, converso apenas, mas porque é que as coisas não estão
nunca prontas e em ordem, a maioria das pessoas não conversa nunca, o que cria
divisões cada vez mais fundas entre elas, é por isso que é importante conversar,
conversemos, pois, onde é que pode estar o meu botão de punho, se não está,
aparentemente, em nenhum lugar? (S, p. 78)
Silêncio no mergulhar de Lídia no doloroso mundo do inconsciente, em que a
constante imagem de sua mãe a acompanha fantasmaticamente
13
:
Caminha pela neve, ao acaso, o silêncio, as altas árvores verde-escuras, o grande
espaço abrindo-se, tropeça num corpo caído de bruços, um casaco de pele escura,
manchado de branco, os cabelos desfeitos, uma pequena mala entreaberta ao lado de
onde caíram objectos soltos, meio soterrados, um sapato, um farrapo de renda, folhas
de um livro, um pedaço de uma saia com flores, volta-lhe o rosto para a luz e -o
perder a nitidez e a forma, porque a neve se fundiu e é água verde, onde o corpo se
afunda, os cabelos misturados com ramos e lodo, Lavínia, diz, debruçando-se mais,
mas quando lhe toca com as mãos o rosto dilui-se e é já só água, e então ela levanta-se
e começa a caminhar, com esforço, em direcção ao momento em que irá despertar de
novo, em redor um deserto branco onde, se quisesse, poderia desaparecer sem
deixar rasto, porque a neve continua a cair e apaga todas as pegadas, bastará ceder um
pouco ao cansaço e parar para desaparecer no silêncio e no branco, mas ela recusa
parar, caminha para a frente, lutando, apesar do cansaço, e a neve é outra vez um rio,
um mar de lodo, compacto, onde ela se move, se arrasta, devagar, lutando, Lídia,
dizem, e quando a levantam um pouco na almofada uma dor mais funda que a
desperta e todo seu corpo está vivo (S, p. 120-121).
Finalmente, o silêncio instaurado pela decisão de Lídia em deixar Afonso, capaz de
apagar a sombra e a revolta:
deixei tudo no lugar e vou-me embora, tudo liso e intacto, tu intacto e o teu mundo
intacto, ou talvez neste momento, agora, eu toque em ti e no teu mundo, mas apenas
ao de leve, tão de leve que não ficará marca nenhuma, virá de novo o silêncio, o sol, a
luz deserta e lisa apagando a sombra, negando a sombra, não existe a revolta, dirás, e
continuarás a escrever na folha de papel, e eu sairei a porta e descerei à rua e não
voltarei nunca mais, terei todos os caminhos do mundo para andar e irei procurar
noutro lugar, noutra casa, meu filho, e se o amor não existir eu o inventarei com o meu
corpo, e se a vida não existir eu a criarei com as minhas mãos, (S, p. 122-123).
também, na obra de Teolinda Gersão, como vimos, o mal-estar do silêncio de
Deus, referido no conto Se por acaso ouvires esta mensagem, em que aponta a indefinição do
13
De onde provém o tremendo impacto dessa cena fantasmática? Em outras palavras (e mais precisas), por que o
sujeito substitui sua falta-a-ser (seu “querer ser”) por essa mirada impossível? A chave deste enigma deve
buscar-se na assimetria entre sincronia e diacronia: a emergência mesma de uma ordem simbólico-sincrônica
implica uma brecha, uma descontinuidade na cadeia causal diacrônica que leva a ele um “elo perdido” nessa
cadeia. O fantasma é uma prova a contrário de que o estatuto do sujeito é o de elo perdido”, um vazio que,
dentro do conjunto sincrônico, ocupa o lugar de sua gênese diacrônica foracluída. Em conseqüência, o
inacabamento da cadeia causal e linear é uma condição positiva para que possa se produzir o “efeito sujeito”: se
pudéssemos explicar sem resto e emergência do sujeito a partir da positividade de algum processo natural (ou
espiritual), se pudéssemos reconstruir a cadeia causal completa que leva a sua emergência, o sujeito mesmo
ficaria cancelado. Segundo Jacques Lacan (apud MILÁN-RAMOS, J. Guillermo. 2007. p. 143).
34
Outro que não ouve. Em A Árvore das Palavras (1997), nota-se a incomunicabilidade
decorrente dos desacertos de afetos e das divergências na escolha de um modelo de vida a ser
seguido; em outro conto, WWW, o silêncio comparece no muito falar, “nas discussões
intermináveis que escondem o não-dito da opressão”.
14
Para Helder Godinho, o silêncio na
obra da escritora apresenta-se como um ponto negativo na incomunicabilidade e solidão e,
como um ponto positivo, no espaço para exercer a identidade e a procura de si. Ele ainda
comenta, nesse sentido, sobre a falta de silêncio para o exercício da identidade, no conto
Conversa, em que o quotidiano se desgasta em banalidades, por ser construído num discurso
vão de personagens sem perspectiva para o futuro. Quanto ao silêncio, resultante da ausência
de domínio de um código lingüístico comum, cita ainda o conto Cavalos noturnos: “E agora
que língua falas, penso, em que língua deverei falar contigo para que me ouças, para que me
respondas.”
15
Num contexto de dificuldades e imposições, Teolinda Gersão encontra inspiração e
vigor para ultrapassar os limites e vencer as barreiras do silêncio. A autora voz às suas
personagens, de maneira a expressar a força transformadora do real e emancipadora da
mulher, através do sonho, da imaginação e da escrita.
14
GODINHO, Helder. Teolinda Gersão - O Silêncio de Deus. (JL, 23/10/2007, p. 24).
15
Idem.
35
3 A IMAGINAÇÃO, O SONHO E O CORPO DA
ESCRITA – FORÇAS TRANSFORMADORAS DO
REAL E EMANCIPADORAS DA MULHER
Em O Silêncio predomina claramente o tema essencial do universo ficcional da autora,
assinalado por Isabel Pires de Lima: “a imaginação e o sonho como força transformadora do
real (forma de romper o silêncio) e emancipadora da mulher”. Marcado por momentos de
vivência interior das personagens, é caracterizado por reminiscências de cenas da infância e
adolescência e por estados da alma:
Fecham-se de repente as barracas de doce, as caixas de gelados e os quiosques de
maçãs escarlates, cobertas de açúcar, os vultos dos pequenos patinadores deslizam
ainda uma vez pela pista e desaparecem na sombra, um palhaço pintado assoma e
foge, por detrás de uma cortina (S, p. 71).
Nesse sentido, cabe aqui outro exemplo, o do imaginário infantil, capaz de estabelecer
uma analogia da mãe com a bruxa ou feiticeira e seu poder mágico e transfigurador:
Quando chega ao quarto de Herberto passa através da porta sem abrir. Herberto beija-
a apressadamente na boca e fogem os dois pela janela aberta, montados em vassouras.
Algum tempo depois Lavínia regressa de comboio, Alfredo vai esperá-la à estação. É
então que ele é o tal homenzinho gordo que chorava. (S,19-20)
E ainda, “a problematização das relações interpessoais, em particular homem-
mulher”,
16
capaz de questionar a conflitante convivência pessoal quanto à necessidade de se
estar envolvido num relacionamento e, concomitantemente, de se manter um possível teor de
individualidade. Ambas as personagens são vítimas uma da outra, porque ela (Lídia) tenta
atraí-lo para o seu mundo, incompatível com o dele (Afonso), e busca a tensão secreta do
diálogo:
Mas a pouco e pouco, insidiosamente, fora se aproximando de um espaço limitado,
concentrando em torno dela mesma, e era que o diálogo começava a adquirir a
tensão que ela secretamente procurava (S, p. 12).
Ou era um triunfo sobre Afonso o que procurava, conhecer o seu mundo para melhor
o poder afastar dele e arrastá-lo para outro, que era o dela? (S, p. 29)
16
LIMA, Isabel Pires. Ainda contos de fadas? O caso de os anjos de Teolinda Gersão. Semear, 7. Rio de
Janeiro: Ed. PUC-Rio. 2002. p. 10.
36
Ao passo que ele (Afonso), todo o tempo, numa insistente “guerra”, travada ao nível
do discurso, tentava deslocá-la do mundo sensível e circular, no qual ela se encontrava, para
circunscrevê-la em seu mundo inteligível e retilíneo: “– recusar tudo e começar de outra
forma, mas não outra forma possível, porque você recusa o real, você recusa, porque
sempre sonhei viver de outro modo” (S, p. 36-37) e “porque tu não estarás aqui para dizer que
minto, e nada do que eu disser poderás rectificar colocar em linha reta agora as coisas
podem girar livremente em círculo, em espiral” (S, p. 76)
Há, no entanto, na ficção contemporânea de Teolinda Gersão, duas linhas
fundamentais que estarão marcadas por uma autonomia na criação literária e irão nortear o
romance selecionado para análise:
1- uma forte tendência para universos auto-referenciais ou narcísicos, remissivos de
modo especular para ambientes sociais e urbanos contemporâneos e familiares da
autora: artistas, professores, médicos, personagens femininas inquietas que se
autoquestionam e questionam o processo de criação artística;
2- uma clara propensão experimentalista, que subordina a linearidade de narrativa a
diversos processos de decomposição, a movimentos de descontinuidade, a rupturas
súbitas e a um procedimento simultâneo de autodescrição reflexiva.
17
É relevante destacar os aspectos particulares através dos quais se distingue o
posicionamento e procedimentos da narradora-autora e a criação de personagens femininas,
não com a intenção de revelar as diferenças entre a escrita masculina e a feminina, mas com o
interesse despretensioso de assinalá-los na obra da escritora, confirmando, assim, sua
marcante contribuição para a Literatura Portuguesa Contemporânea. Isabel Allegro de
Magalhães observa que nos “textos uma corporização da idéia de uma escrita feita com o
próprio corpo”,
18
um olhar projetado a um ou vários pontos do exterior do corpo, passível de
descrever objetos e paisagens como partes desse mesmo corpo humano: “o jardim variava,
vestia-se de azul e de encarnado, de verde, castanho e preto, vestia-se de verão e de inverno,
17
LIMA, Isabel Pires. Ainda contos de fadas? O caso de os anjos de Teolinda Gersão. Semear, 7. Rio de
Janeiro: Ed. PUC-Rio. 2002. p. 09.
18
MAGALHÃES, Isabel Alegro de. O sexo dos textos e outras leituras. Lisboa: Editorial Caminho, 1995.
(Estudos de Literatura Portuguesa). p. 31.
37
de noite e de dia, de sol e de chuva e de outras coisas mais” ou “a casa girava, era uma espécie
de grande girassol voltando a cabeça para o sol ou para a chuva”(S, p. 15). E, nesse caso,
acrescentaríamos que o limite entre o animado e o inanimado dilui-se ou desaparece, no
espaço imaginário da personagem. Na percepção da realidade, pode-se encontrar uma
captação redonda, identificada por Eduardo Prado Coelho como uma “forma circular”:
19
blocos que se justapõem, formando círculos de vida. Karl Jaspers fala do caráter redondo de
cada existência e que possui duas características: fechada em si mesma e, simultaneamente,
aberta, uma vez que existe na relação com o que lhe é exterior. No relacionamento com o
próprio mundo, verifica-se a dimensão telúrica, uma especial ligação do corpo com a terra, a
natureza e seus ritmos: “As tardes em que ela vagueava ao longo do rio, solta, dispersa,
confundida com as coisas, as árvores, o rio, os barcos, os movimentos da água, o ondular do
vento” (S, p. 34) ou “uma mulher água, vento, folha, que não sabia a sua própria forma e a
procura” (S, p. 48). Outra faceta fundamental na obra da autora, além do tempo ficcional
redimensionado, é a remissão ao tempo histórico e a forma pela qual este se processa, como
no caso de Paisagem com Mulher e Mar ao Fundo (1982), que assinala o período da ditadura
salazarista e sua possível queda; em O Cavalo de Sol (1989), a década de 20; em A Casa da
Cabeça de Cavalo (1995), o século XIX; em A Árvore das Palavras (1997), os anos de 50 em
Moçambique (colônia portuguesa). A dimensão temporal comparece, primordialmente, na
própria maneira de processar o tempo das personagens e os fatos vividos por elas
(experiências psicológicas ou cósmicas), como por exemplo, em Os Teclados (1997), A
Árvore das Palavras (1997) e Os Anjos (2000).
20
Em O Silêncio, a configuração do tempo se
faz de forma que a conjugação do passado, presente e futuro se interpenetre e se confunda nos
diversos momentos do romance. Na construção da temporalidade das personagens femininas,
19
COELHO, Eduardo Prado. A seda do lenço (Sobre O Silêncio de Teolinda Gersão). In: A mecânica dos
fluidos: literatura, cinema, teoria. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984. p. 92.
20
LIMA, Isabel Pires. Ainda contos de fadas? O caso de os anjos de Teolinda Gersão. Semear, 7. Rio de
Janeiro: Ed. PUC-Rio. 2002. p. 10.
38
na ficção contemporânea, pode estar inserida uma multiplicidade de formas de “estar-no-
mundo no feminino”,
21
revelando, assim, o caráter de um conhecimento adquirido “por
dentro”.
22
É que essas mulheres são apresentadas como sonhadoras, divagando em freqüente
“flash-back”; personagens insatisfeitas por estarem dentro de uma vida sem acontecimentos
ou realizações significativas no tempo presente, sempre à procura de uma outra coisa em
outro lugar, partindo, assim, para imaginações de um porvir utópico. A consciência de uma ou
mais dessas personagens pode se achar em qualquer outro lugar e em tempo outro qualquer:
Mas ela queria a vivência, a qualquer preço, procurava uma visão desmedida das
coisas, e por isso sofria, porque toda consciência era dolorosa. Ir sempre mais além,
como um animal caminhando obstinadamente pela areia, um pequeno animal cego
avançando, recusando cada ponto de chegada par nunca parar de caminhar, era isso,
Lídia, ele sabia, a ansiedade que a levava a recusar a sua vida, a vida possível, na
pressa de procurar outra, mais alta mas inexistente, Lídia, ele sabia – a sua inteligência
aguda atravessando a casa, o seu corpo afiado, magro, embatendo nas pessoas e nas
coisas, magoando quem lhe tocava, incomodando com a sua temperatura demasiado
alta, uma nota estridente, uma voz solta, que sempre de novo nega o seu contexto, era
preciso pegar-lhe pelos ombros e prendê-la no real, ou ela acabaria por perder-se em
confusos caminhos, dentro de si mesma (S, p. 84-85).
Há, então, uma mudança no tratamento com a experiência linear, enquanto sucessão
de “agoras”.
23
O fluir temporal, que segundo os padrões preestabelecidos deveria ser linear, é
substituído “por uma circularidade ou por um contínuo ziguezague entre diferentes
momentos: passados, presentes e futuros”.
24
Nessa relação com o que foi, o que é e o que
poderá vir a ser, as diversas idas e voltas ao interior instauram uma liberdade de
deslocamentos no tempo que a “tradição feminina”
25
denomina como o tempo que se desenha
circularmente ou em espiral. A vivência do tempo por dentro (na consciência) da personagem,
a intratemporalidade, estabelece a possibilidade de um rompimento com o tempo cronológico:
Concentre-se um pouco, pediu o homem (imaginado por Lídia), com um interesse que
era talvez apenas simulado. Se você fechar os olhos o que vê?
Bom disse a mulher (imaginada por Lídia) fechando os olhos, vejo Herberto sentado,
sozinho com Alfredo (reminiscência). Lavínia não está, não chegou ainda. Talvez
tenha ido comprar flores. Lavínia ia sempre comprar flores, das que não havia no
21
MAGALHÃES, Isabel Allegro de. O sexo dos textos e outras leituras. Lisboa: Editorial Caminho, 1995.
(Estudos de Literatura Portuguesa). p. 38.
22
Idem.
23
Ibidem, p. 39.
24
Ibidem, p. 39-40.
25
Ibidem, p. 39.
39
jardim. O que era de certo modo inútil, porque Herberto trazia sempre rosas, um
imenso ramo de rosas, sobre um papel de prata. [...] (S., p. 17)
Agora a imagem estava partida, pensou fazendo a areia correr por entre os dedos, e
não havia outra coisa a fazer com ela senão deixá-la resvalar para o nada. (momento
em que a mulher imaginada é substituída – retoricamente – por Lídia)
Caminhou à beira-mar, contente de sentir no corpo a brisa húmida e fresca. (presente)
(S, p. 20)
Para Isabel Allegro de Magalhães, o presente, no romance referido, é o tempo de
todas as personagens. Para Afonso que, cansado da vida rotineira com a mulher Alcina, vai ao
encontro de uma nova experiência com Lídia, torna-se fundador de uma nova proposta
existencial:
Os dias breves, pensou Afonso atracando o barco, a rápida juventude, ácida e clara.
Lídia caminhando à sua frente, como agora, vestindo apenas uma blusa transparente
sobre o biquini branco, ele podia ver quase todo o seu corpo queimado pelo sol, o seu
corpo elástico, denso, ligeiramente inclinado para a frente ao subir a duna, o cesto de
vime balançando numa das mãos, as longas pernas rápidas desaparecendo até aos
joelhos entre as ervas altas. Uma mulher muito jovem, insegura, quase ignorante de si
mesma, entrando de repente em sua vida com o seu ritmo tumultuoso e incerto, que
era ainda o ritmo veloz do crescimento. A vivência alterada do tempo, para ele
próprio: de súbito, nem tudo ser remediável. A corrida absurda que fora a sua vida,
com tantos sinais externos de triunfo, e terminado afinal sem ruído, resignadamente,
numa casa cheia de coisas mortas, Alcina sentada na beira do sofá, estéril e tranqüila,
quase invisível, a tal ponto fazia parte da casa, a solicitude de Alcina, que Ana apenas
continuava, nada falando nunca em seu redor, mas ele próprio, mas ele próprio
finalmente desaparecendo, numa voa de penumbra e de cansaço. Faltando de
repente, ele próprio, em sua vida. (S, p. 32-33)
Lavínia, mãe de Lídia, procura, em seu tempo presente, uma chance de ultrapassar a
insatisfação de viver com Alfredo e parte ao encontro de Herberto:
Então Lavínia parte, ao encontro de Herberto. Um dia ela parte, de comboio, com uma
pequena mala branca que um homem desconhecido lhe ajudou a pôr na rede e leva
pendurado o endereço de um hotel num pequeno rectângulo de couro.
O comboio avança depressa e ela recosta-se melhor no estofo da cadeira, reclina a
cabeça para trás, o casaco bem dobrado, acomodado no espaço livre que ficava
ainda na rede, ao lado da mala, e tudo isso a impressiona agradavelmente, a existência
de um lugar para cada coisa, o conforto da cadeira forrada de veludo, a carruagem
nítida, de formas geométricas, a eficiência das máquinas que a impelem para a frente.
Alegra-se com o movimento, a decisão tomada, a coragem de arrumar a vida (S, p. 72-
73).
Lídia, à procura de um encontro consigo mesma, através do diálogo com Afonso (que
tem seu início no imaginário), insatisfeita com o presente, visita Alcina, situada no “real” e
Lavínia, através da memória (e fixada, de forma obsediante, em seu imaginário):
Era a tentativa de um diálogo fundo, mais fundo do que o diálogo de amor que se
trava, ao nível do corpo, entra uma mulher e um homem.Ela procurava uma forma de
encontro, através das palavras, um encontro que era, antes de mais, consigo própria, e
só depois com o homem que escutava. (S, p. 11)
40
A casa de Alcina: silenciosa, abafada, com movimentos mal audíveis sobre carpetes
demasiado espessas, as persianas meio corridas para não deixar o sol crestar os
cortinados de shantung, a criada antiga abrindo a porta, de vestido preto e avental
branco de organdi plissado, fazendo-a entrar para uma saleta douradaa senhora vem
já (S, p. 24).
Lavínia está neste momento no quarto de Alfredo, desmanchando o cabelo diante do
espelho. Veste uma camisa de noite até aos pés e um robe todo branco aberto à frente
(S, p. 19).
Ana, a criada de Alcina, resignada aos 20 anos de rotina, após abandonar os sonhos e
expectativas do passado, cristaliza-se no presente e sublima a sua insatisfação:
O tempo em que pensara em ir embora, voltar para a terra, dar forma, de algum modo,
à sua vida, depois de perdida ou nunca encontrada a oportunidade de casar [...]
depois passara mais tempo e acabara por oscilar menos entre partir e ficar, fora
oscilando cada vez menos até se imobilizar entre os objectos, e o fim da possibilidade
de escolher acabara por adormecer a angústia, e agora ela quase se orgulhava como se
tivesse escolhido, somava tempo como se fosse uma vitória e perdia-se de tal modo de
si mesma que quase se sentia livre, andando pela casa entre os objectos que eram, de
repente, quase amados (S, p. 26).
Para Alfredo, um homem que não apresenta qualquer alteração ou novidade, o
presente significa a repetição das ações da vida cotidiana (repetição do passado):
Rosa, rosae, pensa Alfredo, que é professor de português, mas no início de cada curso
ensina sempre um pouco de latim. (S, p. 19)
Percebe-se um tempo impregnado de mesmice, em que a rotina de tarefas repetidas
não preenche as horas vazias: “um tempo silencioso que o relógio não marcava, mas ia
fugindo pela janela” (S, p. 23) e um tempo veloz, que corre e não pára: “o relógio não pára,
(S, p. 19) E depois o tempo continua a correr.” (S, p. 20)
Outro aspecto, presente na escrita feminina, é o da auto-referencialidade ou auto-
reflexão processo de “reflexão íntima, que muitas vezes se mistura com a análise dos
processos da escrita e sua gênese”.
26
Nesse caso, a relação entre escritora e escrita é tão
profunda, assim como “entre a escrita e a vida, numa distância estética anulada entre si e a
escrita, na medida em que a própria vida é transfigurada pelo poder poético da palavra”.
27
A
vivência com a escrita pode ser para a narradora uma forma pessoal de expressão, um registro
confessional, assim, a liberdade na escrita pode ser a liberdade para a vida. As relações
26
MAGALHÃES, Isabel Alegro de. O sexo dos textos e outras leituras. Lisboa: Editorial Caminho, 1995.
(Estudos de Literatura Portuguesa). p. 40.
27
Idem, p. 39.
41
intersubjetivas são de especial importância, destacando-se as relações homem/mulher, que em
O Silêncio aparecem “problematizadas e refletidas, com silêncios ou ensaiando pontes de
diálogo”:
28
A tensão entre ambos, desde o início. Porque eles eram dois mundos sem pontos de
contacto. A consciência disso, desde o primeiro instante. [...]
Entrar na casa e tomar a forma da casa, reunir na bruma os pedaços do seu corpo e ser
breve e mortal entre dois braços, partir correndo, subir até ao último andar, abrir a
porta e entrar de repente em sua vida, levando atrás de si o rio, a noite, o vento, a
água, a bruma, o obscuro milagre que no universo dele não existia mas Afonso não
punha nunca o seu próprio universo em causa, e não viria nunca ao seu encontro. Ele
não aceitava risco algum. Porque então o absurdo impulso de atravessar a ponte
quando na haveria talvez nunca uma ponte possível (S, p. 34).
Nesse sentido, a existência de uma escrita feminina, com suas peculiaridades, fica
patente através de sua narrativa e estrutura: sintaxe, semântica ou ritmo. Essa escrita apresenta
elementos que conferem uma especificidade na linguagem e na construção do discurso e que,
conseqüentemente, imprime, o modo feminino
29
:
E agora eu contarei de novo e se quiser mudarei tudo e mentirei se quiser, porque tu
não estarás aqui para dizer que minto, e nada do que eu disser poderás rectificar
colocar em linha recta – agora as coisas podem girar livremente em círculo, em
espiral, em leque, desprendem-se das mãos e transformam-se e ninguém irá prendê-las
nunca, estou sentada no chão e vou traçando em verde-escuro uma figura que é apenas
e sempre provisória, e devagar irei pensando as coisas que o mais leve movimento
modifica, uma escrita sobre a água, movimentos da água, molhos os dedos na
superfície do aquário e deixo dissolver na água minúsculos grãos cor de areia, um
pequeno peixe fusiforme, negro, de cauda em leque, nada entre ramos estreitos, entre
duas pedras brancas no fundo (S, p. 76)
Se o homem se posicionava como sujeito do pensamento, a mulher era, então, apenas
o objeto do discurso, assim, a idéia ocidental de única subjetividade lugar a “duas
subjetividades: a masculina e a feminina”.
30
Verificam-se, então, planos discursivos que
inserem características próximas da fala, como: “o inacabado da frase, o uso de elipses, de
formas interrogativas, de orações substantivas, de uma sintaxe fluida, com frases
28
MAGALHÃES, Isabel Alegro de. O sexo dos textos e outras leituras. Lisboa: Editorial Caminho, 1995.
(Estudos de Literatura Portuguesa). p. 41.
29
COELHO, Eduardo Prado. A seda do lenço (Sobre O Silêncio de Teolinda Gersão). In: A mecânica dos
fluidos: literatura, cinema, teoria. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984. p. 91-92.
30
MAGALHÃES, Isabel Allegro de. (Im)possibilidades de leitura: a diferença sexual na criação literária.
Capelas Imperfeitas. Lisboa: Ed. Horizonte, 2002. p. 293.
42
interrompidas ou diálogos suspensos por pausas, reticências, espaços em branco”.
31
Nesse
contexto, a peculiar estratégia discursiva utilizada em O Silêncio revela os vários fundamentos
lingüísticos da subjetividade e coloca em questão a subjetividade unificada, através de:
alternâncias dos pronomes “eu”, ele”, no espaço textual; a superposição do
passado e do presente; situações discursivas concretas sem marcadores
convencionais, como travessões ou aspas, apenas separadas por vírgulas; a presença
de falas ou textos paralelos; a configuração de narrativas baseadas na “insensatez” e
nas rupturas textuais, na multiplicidade e na simultaneidade, por meio da sintaxe e
de inúmeros reflexos intertextuais; a ausência aparente de coerência; o dirigir-se a
um suposto outro que não se pronuncia; os espaços vazios e silenciosos ou as
lacunas textuais; a impossibilidade de se narrar a experiência, a partir do
questionamento dos modos de representação da realidade.
32
Teolinda Gersão, em entrevista concedida ao Jornal de Letras
33
, em 1982, afirma não
gostar dessa conversa de “escrita de mulheres”, apesar de reconhecer na mesma matéria que
uma mulher tem certamente escrita feminina, como o homem tem uma escrita masculina e
acrescenta que essa questão lhe é indiferente. Ao que parece a escritora não problematiza a
questão do gênero e da autoria, mas, no entanto, a sua criação literária revela a distinção
considerável à de autoria masculina. Assim, é importante observar a questão de na escrita
feminina figurar “indicadores de uma outra sensibilidade, de uma outra percepção do real, de
uma outra lógica, expressos literariamente nos textos e afins à experiência das mulheres: à sua
experiência corporal, interior, social, cultural”.
34
Julgamos, no entanto, que o principal em O Silêncio é a questão das condições e
exigências inerentes às relações do “eucom o “outro”. O campo de atração e as relações
intersubjetivas permitem inúmeras reflexões.
31
MAGALHÃES, Isabel Alegro de. O sexo dos textos e outras leituras. Lisboa: Editorial Caminho, 1995.
(Estudos de Literatura Portuguesa). p. 42.
32
FARIA, Ângela Beatriz de Carvalho. um mundo que se quebra quando eu falo. V Seminário de Literaturas
de Língua Portuguesa: Portugal e África. Representações Contemporâneas da Subjetividade, UFF, 2006. CD-
ROM.
33
ALVES, Clara Ferreira.Teolinda Gersão: Não gosto dessa conversa de escrita de mulheres..., Jornal de
Letras, ano II, s. 1, nº 34, 1982. p. 8-9.
34
MAGALHÃES, Isabel Alegro de. O sexo dos textos e outras leituras. Lisboa: Editorial Caminho, 1995.
(Estudos de Literatura Portuguesa). p. 23.
43
4 NO ÂMBITO DAS ATRAÇÕES
4.1 A PROCURA DO “EU” NO ”OUTRO”: UM PAR EM BUSCA
DA “FALTA”
O Silêncio marca, entre outras instâncias de abordagem, a problematização das
relações interpessoais e tem como ponto fulcral a experiência de uma tentativa de convívio
entre Lídia e Afonso. Essa relação homem-mulher, subjugada pela separação entre duas
distintas formas de estar, pensar e de organizar o mundo, se desenvolve de maneira
conflituosa no campo da atração amorosa.
O romance está divido em três blocos que constituem as fases, pode-se dizer, de um
aprendizado na vida da protagonista Lídia: a primeira parte engendra a fase de idealização,
por parte de Lídia, do perfeito convívio a dois, no qual ela espera, através do diálogo,
encontrar em Afonso alguém que atenda às suas expectativas e também busca respostas para
sua própria identidade. A tentativa de um suposto diálogo dá-se inicialmente através do
distanciamento analítico, articulado por Lídia, ao projetar os próprios sentimentos ou anseios
na mulher imaginada por ela e ao converter Afonso em o homem imaginado:
Lídia imaginou um corpo deitado numa praia, ao lado de outro corpo. Eram um
homem e uma mulher e falavam. E o que diziam, ou o que a mulher dizia, era a
tentativa de um diálogo fundo, mais fundo do que o diálogo de amor que se trava, ao
nível do corpo, entre uma mulher e um homem. Ela procurava uma forma de encontro
que era antes de mais, consigo própria, e só depois com o homem que a escutava (S, p.
11).
Ainda na primeira parte do romance, Lídia procura no homem a própria forma, no
entanto hesita em se deixar moldar:
- as suas mãos mudando um rosto, uma mulher deitada, debaixo da luz forte das
lâmpadas, um novo rosto surgindo, moldado, esculpido com a ponta do bisturi sobre a
carne de argila, uma mulher acordando diferente, olhando no espelho a sua imagem,
uma mulher água, vento, folha, que não sabia da sua própria forma e a procurava
através do homem não quero entrar no teu mundo nem mudar o meu rosto, quero
ficar como saí agora, os meus cabelos verdes, os meus olhos conchas, o meu corpo
alga, as minha mãos gaivotas, e se não me amares assim vai-te embora e deixa-me
ficar, absurda e doida e contente de mim, deitada na rocha (S, p. 48-49).
44
No entanto, a procura por uma identidade equilibrada a leva a uma certa dependência
do homem. Ela (Lídia) parece encontrar, ou, pelo menos, busca nele (Afonso) a solução para
a oscilação de sua personalidade:
Fora um tempo febril e oscilante, e também breve, contou mais tarde a si própria, um
tempo fechada que procurava ainda o seu próprio equilíbrio.
Penetrava na casa, no calor da casa, na atmosfera familiar que se espalhava, como um
segredo mal guardado, apenas abria a porta, um cheiro de maçã velha, a tinta, a
madeira seca, um cheiro indefinível e antigo que a envolvia como um líquido em que
ela flutuava, de repente abandonada e sem peso. Um homem solitário, diante da
janela, inclinando sobre as folhas de papel, um halo de luz avançando até a metade da
sala, o rosto sereno que se volta para a porta, por onde ela acaba de entrar. Ele não
precisava talvez dela, penso, mas ela só junto dele encontrava paz. (S, p. 50-51).
Apesar de se poder observar o esforço por parte de Lídia em se enquadrar na vida
familiar e se poder perceber também a importância que ela dirige à questão da vida a dois, em
comum, é possível notar, mesmo nesse primeiro momento do romance, a inquietação, o
movimento das ações rumo a um futuro e a busca de uma dimensão que ofereça um novo
significado para a sua vida. Por isso, a personagem feminina caracteriza-se pela errância e
deambulação constantes e assemelha-se a um “gato arisco e solto” que sempre regressa a
casa:
As noites inquietas, sem sono, esperando, na sua própria casa, pela madrugada que
não vinha. Sair, de madrugada, caminhar depressa até ao rio, atravessar a ponte, saltar
do elevador, abrir a porta, encostar-se à parede e sentir a tensão baixar, o coração bater
menos depressa. Ou sair de manhã em passos leves, percorrer o mundo, perder-se nos
muitos atalhos do vento, atravessar corredores e alamedas, escadas escuras e brancas
ruas ao sol, desaparecer entre as pessoas e recuperar-se à noite, reintegrada no calor da
casa, no difuso calor que a incluía, e era doce e conivente quase audível,
Como um gato arisco e solto que regressa sem ruído com as suas patas leves, e tem
uma relação profunda e livre com a casa (S, p. 51).
O desejo de recriar dimensões onde fosse possível alcançar o sentido pretendido e o
desejo de emancipação e renovação conduzem Lídia a uma viagem para dentro de si mesma,
buscando construir uma identidade própria, coesa e coerente, marcada pelo improviso, pela
experimentação e pela liberdade. assim, ela detinha o poder sobre o mundo, o tempo e a
própria harmonia da forma:
45
E então ela partia, dentro de si mesma, numa direção alta e aguda, que de repente se
desdobrava numa escala inteira. Como alguém sentado ao piano subitamente descobre
as suas mãos sobre o teclado, e as mãos partem, soltas, pelos sons, experimentando
todos, combinando-os de cada vez num improviso diferente, enquanto a alegria sobe,
funda, e não se sabe se vem da liberdade de correr ou da possibilidade de combinar os
intervalos sempre de uma maneira nova. Pequenos espaços em branco, de uma tecla
para a outra, hesitando um momento, de pura expectativa.
Agora ela tinha uma forma e um lugar, dentro do tempo. Jamais atravessaria como
antes as ruas, sem nenhuma direção de norte ou sul. Jamais tornaria a passar
indiferente, pelas casas, sem relação com nenhuma. Agora o mundo estava ao alcance
da mão, e era-lhe possível determinar a sua forma, pelo puro poder do seu desejo. (S,
p. 52)
Em princípio, o que parece é que Lídia demonstra querer enquadrar-se no mundo de
Afonso, entretanto, já nessa primeira fase de sua vida, há indícios de que ela procura conhecê-
lo melhor para atraí-lo para seu mundo e moldá-lo, segundo o seu próprio desejo. A narradora
ou a própria personagem, em sua função homodiegética, deixa isso em suspenso ou faz uma
suposição, construindo o período narrativo com uma interrogação: “Ou era um triunfo sobre
Afonso o que procurava, conhecer o seu mundo para melhor o poder afastar dele e arrastá-lo
para outro, que era o dela?” (S, p. 29)
A segunda parte configura a tentativa, também de Lídia, de atrair Afonso,
convencendo-o a deixar suas certezas e seguranças, para ingressar no mundo criativo, lúdico e
imaginário a ser ainda organizado. Para isso, ela premedita, trama estrategicamente um jogo
no qual pretende prender Afonso, através das palavras, para seduzi-lo a deixar seu mundo
exato para ingressar na aventura de recriar outro mundo:
- porque não havia só a força dele sobre ela, havia também a sua força sobre ele, e ela
deveria usá-la com astúcia, devagar, sorriu, devagar, para não assustá-lo, ficaria
quieta, de olhos parados, falando, tecendo redes de palavras em que o iria prendendo,
e quando ele chegasse muito perto não poderia mais recuar porque os seus olhos frios,
verdes, o arrastavam, a lua balançando, dentro deles, como uma foice rápida, e então
ele cairia para dentro e começaria a descer pelas escadas dos seus olhos até um espaço
de caos anterior a tudo, porque é nesse espaço de caos que começa verdadeiramente
uma casa, crescendo de corpos, cabeças, palavras, uma casa viva, um animal novo (S,
p. 62).
Ela o incita argumentando sobre as possíveis vantagens que nos sonhos, tenta
seduzi-lo, aguçando-lhe a curiosidade: “porque se tu soubesses a força que nos sonhos, de
noite levantar-me-ias as pálpebras para ver o que estou sonhando e controlar o sonho” (S, p.
46
62). Então, a tensão cresce, porque ele responde de imediato deixando claro que para ele a
realidade existe:
É que ela esperava que o amor fosse uma ponte para outra coisa, disse Afonso, outra
coisa que não existia, não existiria nunca, ela forçava obscuramente um caminho
através do amor, através dele, uma saída, uma porta, uma passagem, como se o
universo fosse de repente abrir-se, alargar-se em direções diversas mas não havia no
universo dimensões sonhadas, existia apenas o quotidiano, exato e transparente (S, p.
62).
Lídia insiste em mostrar para ele o perigo do mundo de aparências, mundo em que ele
sempre viveu, e por isso, estava insatisfeito e procurava nela outra oportunidade, outra
possibilidade de encontrar a felicidade. Então, ela o adverte sobre o risco de cair no mesmo
erro, o de repetir com ela a vida que levava com Alcina:
e eu poderei dizer algo que nos deixe finalmente um defronte do outro, verdadeiros e
desamparados, dir-te-ei por exemplo que, se não te deres conta e não lutares depressa,
esta casa será, de repente, a outra, de onde procuraste, através de mim, uma saída,
porque algum perigo de morte que se corre quando alguém se senta numa cadeira
Luís XV e tem todos os botões de punho no lugar, (S, p. 84).
Afonso permanece firme em sua postura e percebe que a presença de Lídia o
incomoda e perturba: “– agora ela saíra e a casa estava arrumada, serena, em equilíbrio é a
sua presença, então, que perturba a profunda estabilidade das coisas, e quando ela estava
longe ele reencontrava a segurança antiga, a tranqüila repetição das coisas conhecidas” (S, p.
86). A tensão entre eles crescia e ambos eram vítimas da divergência que lhes impuseram suas
diferentes consciências: “– a tensão entre eles era assim entre as coisas imóveis e as coisas
movediças, entre a ordem e uma desordem contra a qual, obscuramente, ele se defendia?” (S,
p. 86). Lídia, entretanto, não se dobrava e insistia em concretizar seu plano; Afonso, por sua
vez, ficava irredutível. Lídia tinha medo da própria vulnerabilidade, o que a faria “perder as
coordenadas”. Era um exercendo violência contra o outro e privilegiando as suas
individualidades:
O tempo à beira mar, o curto verão, o amor breve, e desde o início uma tensão
crescente, porque também ela exercia violência contra ele, estava de repente tão perto
que ele caía no seu campo magnético, na sua zona de tensão, e se ela desse mais um
47
passo, um único, ele ficaria subitamente vulnerável e não saberia mais onde apoiar os
pé em terra firme. Porque então tudo teria de ser posto em causa – e como ter coragem
de recusar os álibis, de caminhar sem apoio, num mundo que perdera as coordenadas
(S, p. 86-87).
É também, nessa segunda fase, que Lídia mergulha mais fundo interiormente: “Ela
descia sempre, dentro de si própria, cada vez mais fundo” (S, p. 87). Ela insiste,
obstinadamente, em seu próprio processo de conhecimento e espelhamento constante,
confrontando-se, persistentemente, com a figura da mãe. Para isso, faz “regressões” ao
passado, através dos espaços mnemônico e onírico. Como resultado dessas “viagens”, traz
consigo o modelo de vida de sua mãe, ao qual se encontra inconscientemente ligada, de modo
tão rigoroso que não consegue desvencilhar-se do condicionamento que a leva a repetir parte
da trajetória da mãe, ao abandonar a casa e a romper com uma situação insustentável. Assim,
Lídia prossegue, “experimentando a vida” (S, p. 119) e fazendo reavaliações.
Inevitavelmente, repete alguns atos vivenciados por sua mãe (Lavínia) e consegue evitar
outros, como, por exemplo, a alienação e o desejo de morte:
Lembro-me dos teus entorpecentes, o sol era um deles os teus longos banhos de sol
no terraço, de onde te levantavas cambaleando, com olhos cegos, clarões com
manchas pretas diante das pupilas, ficavas deitada no terraço como se não fosses
levantar-te nunca mais, eras uma mulher deitada, de olhos fechados, o que era uma
forma de fugir de tudo o que não agüentavas olhar (S., p. 64). – Lavínia.
Caminhou à beira-mar, contente de sentir no corpo a brisa húmida e fresca. Estivera
tempo de mais deitada ao sol, verificou: via diante dos olhos pequenos clarões com
manchas pretas e ao voltar a cabeça sentia vertigens ligeiras (S, p. 20) – Lídia.
A terceira parte perfaz a decisão de Lídia, ao desistir de Afonso e da vida em comum
com ele para prosseguir sozinha, uma vez convencida de que não conseguiria modificá-lo e a
seu pragmatismo. O diálogo em “tensão” assim o aponta: “o medo que você tem de ir até ao
limite de si próprio, de destruir tudo o que fica para trás e criar em seu lugar outra coisa” (S,
p. 99).
Lídia, diferente de Lavínia, não opta pela morte, e triunfa sobre o determinismo,
amparada pela força da liberdade tenazmente perseguida:
48
Estou livre e solta [...]
Deixei tudo no lugar e vou-me embora, tudo liso e intacto, tu intacto e o teu mundo
intacto [...]
E eu sairei a porta e descerei à rua e não voltarei nunca mais, terei todos os caminhos
do mundo para andar e irei procurar noutro lugar, noutra casa, meu filho, e se o amor
não existir eu o inventarei com o meu corpo, e se a vida não existir eu a criarei com as
minhas mãos (S, p. 123).
4.2 OUTROS PARES: SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS
Outras personagens perpassam o mundo de sonhos, imaginação e reminiscências em
que Lídia está mergulhada. E, sobretudo, a caracterização de todas elas, de alguma forma,
passa pela apreciação minuciosa da protagonista e, percebe-se, nesse sentido, que todo esse
processo de pendor descritivo está sujeito ao olhar da narradora que perscruta e tangencia com
sua consciência as personagens, uma por uma, com o objetivo de atribuir características
distintivas a cada uma delas; como, por exemplo, quando se refere à mulher de Afonso em
dado momento: “astúcia mansa de Alcina, que, temendo perder a empregada antiga, lhe
incutia medo de enfrentar o mundo exterior à sua casa, sem dar conta de que [...] era também
a imagem do seu próprio medo” (S, p. 27). O olhar de Lídia transmite a inquietação de um
espírito, que se move como um “gato (que) salta sobre o portão, de um lado até ao outro do
muro, salta sobre os canteiros de fúcsias, ou salta do jardim até ao peitoril das janelas baixas”
(S, p. 12) e que, num primeiro instante, somente vislumbra a possibilidade de saltar de um
lado para o outro e ainda (no primeiro bloco do romance) não ousa pular de dentro para fora
do muro. É com essa inquietude ou desassossego, que Lídia e atrai as outras personagens
(pela via da memória, da imaginação e do sonho) ao campo de tensão, que se constitui
paralelamente à procura incessante por outra coisa, porque ela não cessa de buscar o que lhe
falta: “pessoas-campos-magnéticos, zonas de tensão, que se chocavam com outras, eram
interrompidas por outras, lutavam com outras, originando novos campos de tensão” (S, p. 52).
Não se contendo aos impulsos de ir sempre além, a narradora (protagonista?) constrói cenas
carregadas de informações referentes às personagens, estabelecendo uma correlação analítica
49
para que posteriormente lhe seja profícuo na construção da própria identidade. No caso de
Antoninha, por exemplo, a lembrança de um passado bem distante, que estava quase todo
perdido no esquecimento (“mesmo depois de ter esquecido tudo o resto” (S, p. 14)), trazia-lhe
a imagem de uma mulher feliz: “Antoninha era feliz. Essa foi a certeza que ficou” (S, p. 14),
assinalando, assim, o desejo de alcançar a felicidade, já imprimido, desde a infância, e
oriundo de um olhar insipiente de criança. A primeira imagem de homem que a protagonista
tem é a de Herberto, lembrança difusa que, nem sequer, resgata com precisão a sua aparência:
“Não consigo ver a cara dele (a não ser pelo detalhe de ter) no bolso um pacote de doces e
quando me pega no colo para beijar-me tem um perfume discreto de tabaco de cachimbo” (S,
p. 16). O que seria de pouca importância, aparentemente, pode ser de grande valor para
identificar as dificuldades em sua relação com Afonso. É possível que o pouco conhecimento
a respeito do homem seja o motivo pelo qual ela cria uma expectativa acima do real,
idealizando, assim, uma relação perfeita que tem, como resultado, as sucessivas frustrações.
Herberto “era um homem grande, magro, vestido de escuro, com um alfinete de gravata.
Falava com grandes gestos das mãos, mas ao mesmo tempo de uma exuberância severa” (S, p.
17) À medida que a mulher imaginada conta, as lembranças parecem aflorar paulatinamente e,
na visão dela, Alfredo era um homenzinho gordo que chorava, enquanto Herberto era frio,
deixava um pequeno espaço em branco entre as palavras e tinha dentes grandes que causavam
medo. um episódio em que Herberto está na casa de Alfredo e Lavínia e todos conversam
normalmente, até que Alfredo insiste para que Herberto fique e durma “no quarto maior, ao
fundo do corredor, que para o jardim e tem debaixo da janela um canteiro de
malmequeres” (S, p.19), e, nesse momento, Lavínia pensa: um gato “está parado em cima do
muro, olhando para o outro lado” e, “seus olhos são frios, com uma pequena pupila escura,
que diminui ou cresce com a luz. Os olhos de um gato. Dentro deles a lua balança como uma
50
pequena foice” (S, p. 18-19). O olhar para outro lado e também a frieza dele, possivelmente,
já prenunciavam a fria decisão de Lavínia de ir ao encontro de Herberto:
Lavínia está nesse momento no quarto de Alfredo, desmanchando o cabelo diante do
espelho. Veste uma camisa de noite até aos pés e um robe todo branco aberto à frente.
Em cima da cômoda o relógio não pára, em breve Alfredo terá adormecido, e é então
que tudo acontece. Acontece o quê? Pergunta o homem. Então ela tem os cabelos
desmanchados e caminha pé ante pé no corredor. Quando chega ao quarto de Herberto
passa através da porta sem abrir. Herberto beija-a apressadamente na boca e fogem os
dois pela janela aberta, montados em vassouras. Algum tempo depois Lavínia regressa
de comboio, Alfredo vai esperá-la à estação. É então que ele é o tal homenzinho gordo
que chorava. (S, p.19-20)
Pode-se também identificar, no desejo reprimido de Lavínia, a agressão contra o
mundo que a oprimia, traduzindo, supostamente, uma espécie de recalque
35
, uma vez que “o
recalcado sempre retorna disfarçado”:
36
As serpentes deslizam, por detrás de paredes de vidro, arrastam na areia o seu corpo
escuro e sinuoso, os velhos dromedários entram um após outro na pequena casa sem
porta e dormem de pé, no espaço exíguo onde mal cabem, e não se sabe o que sonham
os pingüins, nem as mil posições em que se enrolam as serpentes, nem o que vêem os
olhos altos da girafa, ainda abertos entre um muro e outro muro.
[...]
Os ursos polares caminham devagar, os grandes ursos brancos, Lavínia fuma, diante
das grades, segura na mão a longa boquilha preta a neve, penso, a enorme extensão
da neve, o céu pálido, o grande espaço, as árvores, as florestas brancas –, os ursos
caminham entre as pedras, vagarosos, estiveram todo o dia deitados ao sol, ursos
polares num país do sul, e também os outros, os pingüins, as renas, os animais do
norte debaixo deste grande sol, um dia eles saem do Jardim e descem à cidade, diz
Lavínia, sobem as escadas e entram nas casas, os pequenos ursos abraçam as crianças
que dormem nas camas, abraçam-nas como animais de brinquedo, as girafas
imobilizam os pescoços longos, farejam as crianças, olham inquietas pelo quarto e
partem a correr [...]
[...], os ursos demoram-se ainda um momento entre as pedras, brincando, e então o
tiro parte, certeiro, à hora em que as sombras caem e não está mais ninguém no
Jardim, mãos enluvadas, segurando facas, mergulham no lago e rasgam a pele das
pequenas focas, misturam com areia os olhos das serpentes, arrancam as penas dos
flamingos, uma a uma, longas penas cor-de-rosa que vão enchendo completamente o
lago escuro, envolto em névoa. (S, p. 71-72)
35
Os sonhos são a via régia para o inconsciente, pois representam a realização de um desejo recalcado. Já vimos
que não há recalque sem retorno do recalcado. Então, se um desejo foi expulso da consciência, mesmo no sonho
ele pode reaparecer sob a forma de disfarce, o que faz com que o sujeito não reconheça o que não quer saber.
É nesse sentido que, para a psicanálise, todo sonho se apresenta como um enigma. O sonho, uma linguagem
cifrada que exige decifração e não visa comunicar nada a ninguém, é composto por imagens com valor de
palavra, que se associam como um verdadeiro rébus (enigma composto de imagens) para tecer uma mensagem.
um trabalho a ser feito pelos mecanismos do sonho, que são os mesmos que regem o funcionamento do
inconsciente: a condensação e o deslocamento. A função desses mecanismos é de distorcer o desejo recalcado,
burlando, dessa forma, a censura. Portanto, quanto mais rigorosa for essa censura, maior e mais engenhoso será o
disfarce. (Freud, criador da psicanálise, 2002. p. 23-24).
36
JORGE, Marco Antonio Coutinho; FERREIRA, Nadiá Paulo. Freud criador da psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2002. p. 21.
51
Parece-nos que outro exemplo de “deslocamento” psíquico consiste no desejo de Lídia
de espetar as agulhas “ternamente” nos olhos da mãe, castigando-a pela ausência e
alheamento, mesmo depois de morta (S, p. 65).
Em suma, todos os sonhos simbólicos ou alegóricos de Lídia contêm subentendidos,
através das imagens ou da linguagem utilizada para contá-los e referenciam “disfarces” do
inconsciente.
Ao rememorar a casa, visitada furtivamente, a personagem Lídia observa que o espaço
habitado é uma extensão do próprio sujeito: “A casa de Alcina, lembrou-se. A casa de Alcina:
silenciosa, abafada, com movimentos mal audíveis sobre carpetes demasiado espessas, as
persianas meio corridas para não deixar o sol crestar os cortinados de shantung” (S, p.24).
Lídia “lê” a mobília e capta a personalidade de Ana e de Alcina e, através dos costumes da
criada, ela traduz o modus vivendi de Alcina. Ana, “a criada antiga” de Alcina, “de vestido
preto e avental branco de organdi plissado” e “sorrindo de súbito, com um sorriso todo aberto
e confiante” (S, p. 24-25), foi o espelho quase perfeito, para que Lídia passasse a conhecer
Alcina: “Porque Alcina não poderia ser muito diferente, para poder viver na mesma casa e ser,
até certo ponto, responsável por Ana” (S, p.27). Em virtude das deduções tiradas do encontro
com Ana, Lídia desenha, em seu imaginário, a subjetividade de Alcina.
Os desejos irrealizados de Ana passaram para um plano distante e o desejo de voltar
para sua terra foi diminuindo e Ana, subserviente, anos após anos, termina por se deixar
enquadrar, “até se imobilizar entre os objectos, e o fim da possibilidade de escolher acabara
por adormecer a angústia, [...] se orgulhava como se tivesse escolhido, somava tempo como se
fosse uma vitória e perdia-se de tal modo de si mesma que quase se sentia livre” (S, p.26). No
entanto, Lídia consegue ver um resquício de resistência, em Ana, ainda que inconsciente,
apesar do seu processo de sublimação: “E alegrara-se por ver que não aprender nunca era uma
forma de resistência inconsciente ao mundo dos aventais plissados” (S, p. 25). Alcina, por sua
52
vez, era “aquela mulher silenciosa, concentrando numa casa o seu tempo vazio, movendo
lentamente entre as coisas o seu corpo maduro e resignado” e Lídia “calculou com rigor a
tensão entre as duas, anos atrás, quando Ana pensara em se ir embora”(S, p. 27). Lídia,
portanto, Alcina através de Ana, atribuindo-lhe medos, inseguranças e até mesmo uma
cumplicidade entre as duas: “lhe incutia medo de enfrentar o mundo exterior à sua casa, sem
dar conta de que o medo que lhe incutia era também a imagem do seu próprio medo, de que a
segurança que teimava oferecer-lhe traía a vontade de segurança dela própria” (S, p.27). A
narradora transfere atributos, como imagens que refletem reciprocamente, de uma
personagem para a outra: “Houvera assim para além da animosidade e da tensão latente, uma
espécie de cumplicidade tácita que as levara a procurar apoio uma na outra, refugiando-se na
casa contra o mundo que começa para além da porta” (S, p. 27). O processo pelo qual a
narradora engendra os espelhamentos parece o resultado da tensão e do confronto entre as
personagens, o desencadeamento de uma clivagem que se concatena de acordo com as
semelhanças e diferenças entre elas. A forma como a narradora se apropria da caracterização
de uma personagem para analisar outra é uma constante no romance, como por exemplo, para
focalizar o mundo estático e morto de Afonso, destituído de qualquer desejo de inovação, olha
para Alcina: “Alcina sentada na beira do sofá, estéril e tranqüila, quase invisível, a tal ponto
fazia parte da casa, a solicitude de Alcina”. Os espelhos não param de refletir os fragmentos
de uma personalidade na outra, dando, assim, uma aparência infindável ao processo analítico
que se supõe teve início e fim na busca pelo conhecimento de Lídia, em si mesma.
Concernente à atração de Lídia pela mãe (Lavínia), pode-se identificar uma obstinação
que conduz as duas a uma experiência paralela, a começar pelo nome: Lavínia e “Lídia, íris,
ígnia, um nome(s) esdrúxulo(s) que sobe até um ponto fino e alto e se parte de repente” (S,
p.48). O ponto de atração, entre vários aspectos, que movimenta Lavínia e Lídia na relação
mãe e filha, é o fato de ambas serem mulheres que não haveriam de se submeter aos
53
“modelos”.
37
Conforme assinala Lídia, Lavínia: “fingia aceitar, mas na verdade não aceitara
nunca [...] durante anos ela imitou os gestos aprendidos, as palavras aprendidas, fingiu que
falava a mesma língua” (S, p. 70). Lavínia reconhece que está sendo conduzida pelas palavras
dos outros e não se sente pertencente ao mundo, a cujos modelos ela confessa não conseguir
integrar-se: “eu própria não sei mover-me neste mundo estrangeiro de que sempre ignorei a
língua, um código que me falta, [...], nunca soube exprimir-me e fui sempre arrastada,
apenas arrastada pelas palavras dos outros” (S, p.67). Tanto quanto Lavínia, Lídia acredita no
amor como a saída para uma outra coisa. Lavínia deixa Alfredo e parte ao encontro de
Herberto, numa tentativa de encontrar a felicidade: “Então Lavínia parte, ao encontro de
Herberto. [...] Alegra-se com o movimento, a decisão tomada, a coragem de arrumar a sua
vida” (S, p. 72-73); Lídia busca um encontro com ela mesma, através de Afonso, homem com
o qual tenta identificar-se. O encontro erótico com o outro é vivenciado por mãe e filha de
forma paralela, a ponto de aparecer “na mesma página da narrativa, em parágrafos
contíguos”:
38
Herberto abraça-a, beija-a longamente na boca, despe-a devagar. Deitar-se
contra seu corpo”; “Ele (Afonso) beija-a longamente na boca, despe-a devagar. Deitar-se
contra seu corpo” (S, p. 75). Outro fato vivenciado por ambas e de extrema semelhança é a
imposição, por parte de Alfredo, das normas de uma sociedade estática sobre Lavínia: “entrar
na norma, seguir a norma, depois tudo é cil, pode mesmo deixar-se de pensar, tudo surgirá
como uma segunda natureza, automático, imediato, como uma resposta preparada para um
estímulo conhecido” (S, p. 67-68). Afonso também pretende impor a Lídia seu mundo
metódico e retilíneo, conforme ela mesma, numa atitude defensiva denuncia: “e nada do que
eu disser poderás rectificar colocar em linha reta” (S, p.75). É também paralela a temática
da viagem: Lavínia, no sonho de Lídia, chega morta dentro da carruagem (S, p. 102-103) e “o
37
MAGALHÃES, Isabel Allegro de. O tempo de O Silêncio. In: O tempo das mulheres. A dimensão temporal na
escrita feminina contemporânea. Ficção Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional. Casa da Moeda, 1987. p. 395.
38
Idem, p. 397.
54
comboio surge como sugestão de escape da realidade presente”.
39
Lídia, em sonho, repete a
viagem de sua mãe: “mas o comboio não parte e toda a estação está de repente em silêncio,
[...] e no fim de todas as carruagens, quando ela chega perto, também o maquinista está
morto” (S, p. 117). A estação para ambas prediz uma paralisação, os relógios sem ponteiros, o
maquinista morto, o que sugere a impossibilidade de partida. Tanto Lavínia quanto Lídia são
comparadas a um gato. Lídia, através da mulher imaginada descreve um gato: “Por vezes o
gato salta sobre o portão, de um lado até o outro do muro, salta sobre os canteiros de fúcsias,
ou salta do jardim até ao peitoril das janelas baixas” (S, p.12), refletindo, possivelmente, um
desejo ainda de ficar dentro dos limites da vida no lar, apesar de já vislumbrar outra vida além
do muro. Lavínia pensa em um gato: “Então o gato está no jardim, sobre o muro, [...]. Está
parado em cima do muro, olhando para o outro lado” (S, p. 18).
Ambas procuram um entendimento através das palavras. Lídia, através da mulher
imaginada: “Ela procurava uma forma de encontro, através das palavras” (S, p.11) e Lavínia:
“oh, essa comovente procura das palavras certas” (S, p. 68). Ambas fracassam em suas
tentativas de encontrar realização através do homem: Lavínia, ao constatar que sua decisão
não fora suficiente para produzir a “solução para a sua vida oprimida e vazia”,
40
põe termo à
própria vida e Lídia, não conseguindo mover Afonso de suas seguranças e certezas, desiste
dele, no entanto, não desiste da vida e parte na esperança de construir uma vida-outra.
O romance O Silêncio, de Teolinda Gersão, constrói-se através de espelhamentos
temáticos e de signos transitivos (há palavras, objetos e posturas que transitam de uma
personagem à outra) e caberá ao leitor estabelecer correlações de sentido, preencher os vazios
textuais e afirmar a sua própria imaginação criativa. A condição irrevogável e dialógica de
39
MAGALHÃES, Isabel Allegro de. O tempo de O Silêncio in O tempo das mulheres. A dimensão temporal na
escrita feminina contemporânea. Ficção Portuguesa. Imprensa Nacional. Casa da Moeda – Lisboa. 1987. p. 398.
40
Idem, p. 394.
55
todo ato de linguagem instaura-se, uma vez que o sujeito que fala/escreve solicita
necessariamente uma instância receptora capaz de abolir pontos de indeterminação”
41
A busca de um complemento para a própria construção da identidade é uma constante
presente na história da personagem principal, Lídia, entretanto, no campo de atração formado
por essa busca, uma reação identificada pela impossibilidade, que resulta numa repulsão,
determinando, assim, a intangibilidade dos dois mundos, como pode ser constatado pelo viés
psicanalítico.
41
REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Narratologia. Coimbra: Almedina, 1987. p. 210.
56
5 DA TENTATIVA DE DIÁLOGO AO SILÊNCIO,
DOIS MUNDOS QUE NÃO SE TOCAM
O Silêncio desvela a impossibilidade de realização do Um caracterizado na relação do
casal Lídia e Afonso, ponto fulcral da narrativa, e no qual, daqui por diante será focada a
atenção (o fato é que as outras personagens giram em torno do casal, e, para que esta
afirmação seja mais exata, em torno de Lídia). A declaração “Ela procurava uma forma de
encontro, através das palavras, um encontro que era, antes de mais, consigo própria, e
depois com o homem que a escutava” (S, p. 11), revela o desejo de Lídia, através da mulher
imaginada, de encontrar a resposta para a possível indagação que a perturba: “o que me falta
saber para ser uma mulher, para ser amada e desejada como as mulheres?”
42
Partindo do pressuposto de que Lídia teve uma infância conturbada, uma vez que o
romance não faz sequer menção ao nome de seu pai, com qual imagem masculina a
personagem irá identificar-se? Herberto, a quem ela, de início, não faz questão sequer de
lembrar do rosto, ou, Alfredo, homem que demonstrava fragilidade diante de certas
circunstâncias constrangedoras e a quem ela (Lídia) define como “um homenzinho gordo, que
estava uma vez numa gare, esperando um comboio e chorava” (S, p. 17)? Alfredo havia sido
abandonado por Lavínia, mãe de Lídia, que partiu ao encontro de Herberto e encarrega a
“filha” de buscar a mãe na estação. Lavínia retorna ao estágio anterior à decisão de exercer o
seu livre arbítrio, desiste da vida e procura, supostamente, uma saída através da morte. Diante
das circunstâncias, às quais foi exposta, não seria de se estranhar que Lídia crescesse sufocada
por indagações e fosse impulsionada a buscar respostas. Ela procura solução, então, dentro de
si mesma e no outro: “ela descia sempre, dentro de si própria, cada vez mais fundo, e exigia
dele um esforço igual” (S, p. 87).
42
FERREIRA, Nadiá Paulo. Amor, ódio e ignorância: literatura e psicanálise. A estrutura da histérica: O
mestre, de Ana Hatherly. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos Livraria e Editora Ltda. Corpo Freudiano. 2005.
p.121.
57
A personagem buscava reconstruir sua vida e esperava que o homem (Afonso), por
inteiro, a acompanhasse, após a “viagem” ao interior de si próprio, que o levaria a um total
despojamento:
devagar ia-o empurrando para um espaço cada vez mais exíguo, aque finalmente
não haveria mais lugar onde refugiar-se, e então ela arrastá-lo-ia consigo para uma
solidão cuja profundidade ele apenas suspeitava e perante a qual, no último instante,
recuava sempre? O último degrau, descer interiormente o último degrau, despojar-se
de tudo e também de si mesmo, deixar todas as coisas para trás e não ter mais nada
para levar consigo era esse, então, o ponto de rotura para onde ela o arrastava, a
prova de fogo depois da qual, depois da qual, seria possível recomeçar de outro
modo? (S, p. 87)
Sem um porto seguro em que pudesse se ancorar, Lídia não apresenta muitas certezas:
“porque eu era vaga e difusa e sem fronteiras, igual a tudo e a nada” (S, p. 35) e prossegue
instintivamente a obstinada busca, “como um enorme animal inquieto saltando para dentro e
para fora dos sonhos” (S, p. 46). A identidade da personagem estava perdida no labirinto (a
propósito, representado, de forma brilhante, metaficcionalmente, na estrutura do romance) de
sua consciência e inconsciência, porque quase tudo o que ela já havia vivenciado em seu
passado na infância, encontrava-se, de certa forma, em algum lugar que precisava ser
resgatado
43
. Passado que Lídia visita constantemente, de forma analítica, numa tentativa de
recuperar algo que lhe escapou ao domínio de sua existência, o qual importa saber para a
reconstrução da própria identidade, porque ela era: “palavras, memória, um corpo, um outro
43
O inconsciente é pois o lugar de um saber. Um saber que designa o conjunto das determinações que regem a
vida de um sujeito – um saber porém que escapa ao sujeito.
Aproveitamos a ambigüidade semântica do último verbo para melhor delimitar esse lugar e então dissecar essas
relações com o sujeito.
É um saber que escapa ao sujeito no sentido de que ele o ignora. É evidente que uma ignorância ambígua, pois
incide sobre tudo o que constitui o tecido, o próprio ser do sujeito: o que ele esqueceu de sua história, dos
acontecimentos por ele vividos, dos pensamentos e dos sentimentos que o constituíram e que ainda o constituem.
É uma ignorância ativa, uma rejeição: o que ele prefere não saber. uma escolha no recalcamento uma
escolha precisamente discutida pela análise, e remanejada pela transferência. Desde jogo se pode pressentir que
essa última caso o sujeito dela pretenda o alívio de seus sofrimentos implica igualmente um saber que não
vem sem desprazer. Ninguém melhor que o analista a não ser o analisando sabe que a verdade pode não ser
fácil de suportar.
Mas não é só pela transferência que o saber do inconsciente pode se manifestar. Há na vida quotidiana formações
do inconsciente: lapsos, atos falhos, sonhos e também sintomas. Essas formações são significantes, pois não são
feitas diretamente de linguagem. Elas dizem alguma coisa. Admitem uma significação na qual o sujeito hesita
em se reconhecer.
Por esses sonhos, essas palavras, esses atos, esses comportamentos, o inconsciente se faz recordar à boa
lembrança do sujeito, a quem escapa o pretendido domínio sobre sua própria existência. Com isso pode se
produzir um sofrimento, mas também uma curiosidade, um questionamento: que saber é esse, que me escapa e
que, entretanto, me determina? (MILLER, Gerard. Lacan. 1989. p. 95).
58
espaço que irrompe, da cidade, da rua, do passado, de minúsculas constelações de outras
vidas, sou todas estas coisas, aberta, inacabada” (S, p. 77).
O questionamento e o sofrimento que afligem a personagem Lídia é a demanda a
procura por ajuda, por alívio. É importante lembrar que a demanda é, sobretudo, uma
pergunta dirigida ao outro, em função desse saber suposto ao inconsciente.
As interrogações não podem ser lançadas ao vazio, supõe-se que alguém responda às
perguntas. Quando os sábios questionavam os astros é porque criam que seus movimentos
eram regidos por leis que continham um saber organizado. Os sonhos e as lembranças de
Lídia constituem um enigma, o que ela tem de vivência passada, e por isso, insiste que Afonso
entre com ela no mundo subjetivo para tentar decifrar a incógnita e, assim, poder se
reconstruir. É um pedido de socorro que Afonso não consegue responder, em decorrência
disso, não atende à necessidade dela. É essa a queixa de Lídia no relacionamento com o
outro...
O problema está em que Lídia transfere para o amor essa capacidade de compreensão
e ajuda mútua resultante da junção de dois seres em um, e, tem como resultado queixas que se
desembocam em decepções que não se esgotam: “não há nada no amor, não há talvez o amor,
há o desejo
44
e a satisfação do desejo” (S, p. 60). Nesse sentido, o amor coloca em evidência o
desejo concernente à falta e não ao sexo. Amor e desejo sexual são diferentes, mas não
excludentes, e isso significa que se pode amar e desejar sexualmente.
A primeira fase da estratégia está no fato de Lídia entrar na relação, como foi
observado, predisposta ao convívio, demonstrando a intenção de querer se enquadrar no
mundo de Afonso. Entretanto, uma advertência e a narradora declara: ou era apenas um
jogo de palavras? Hesitou de repente, sem ver claro. Em algum lugar, é verdade, a falsidade
começava” (S, p. 11). O que margem para se pensar que o diálogo e a aparente procura
44
Diante dos enigmas da existência no mundo – porque se ergue um muro intransponível chamado real –, o amor
se articula com o desejo. Desejar implica, num primeiro momento, o reconhecimento do desejo e, num segundo
momento, o relançamento do que não se realizou em novas aspirações. (FERREIRA, 2004, P. 10).
59
somente faziam parte de um plano bem arquitetado para atrair o homem para sua armadilha,
porque ela supõe estar no homem a resposta para o que faltava. Lídia
45
tece a sua sedução
através de grandes palavras abertas, como céu, mar, ponte, barco, estrada, rio [...]. Mas a
pouco e pouco, insidiosamente, fora-se aproximando de um espaço limitado, concentrando em
torno dela mesma” (S, p. 12) e prossegue na urdidura para prender Afonso: “Ou era um
triunfo sobre Afonso o que procurava, conhecer o seu mundo para melhor o poder afastar dele
e arrastá-lo para outro, que era o dela?” (S, p. 29).
Lídia coloca sua posição, na relação com o outro, ao afirmar: “era a tentativa de um
diálogo fundo, mais fundo do que o diálogo de amor que se trava ao nível do corpo”, dessa
forma, ela deixa patente que não admite ser mais uma na vida de Afonso e quer confirmar a
“marca de sua singularidade, ou seja, de querer saber o que é preciso para que ela se
transforme em uma verdadeira mulher”.
46
Ela não admite ser a continuação da vida que
Afonso teve com Alcina: “se não te deres conta e não lutares depressa, esta casa será, de
repente, a outra, de onde procuraste, através de mim, uma saída” (S, p. 84). Lídia ocupa a
posição de sujeito (amante), “aquele sobre o qual se abate a experiência de que alguma coisa
falta, ainda que não saiba o que é”,
47
e o outro, Afonso, ocupa a posição de objeto (amado),
que sabe que tem algo de especial, mesmo não sabendo o que tem e que na verdade não tem:
“o objeto do desejo. (Porque) se ele existisse, aqueles que tivessem a sorte de achá-lo teriam
encontrado o verdadeiro amor. Se fosse assim, Aristófanes, em O Banquete de Platão, teria
decifrado o enigma da verdade do amor”.
48
45
Acredita-se ser Lídia a narradora, a protagonista e a mulher imaginada.
46
FERREIRA, Nadiá Paulo. Amor, ódio e ignorância: literatura e psicanálise. A estrutura da histérica: O
mestre, de Ana Hatherly. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos Livraria e Editora Ltda. Corpo Freudiano. 2005.
p.126.
47
FERREIRA, Nadiá Paulo. A teoria do amor na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p.10.
48
Idem
60
Lídia acredita que o amor, centrado no Uno
49
, pode ser a saída para suas inquietações e
angústias que são, também, inerentes à existência humana, entretanto a psicanálise vai ensinar
que o amor não tem poder para excluir nem a falta, porque esta faz parte do aparelho psíquico
(subjetividade), nem o mal-estar do homem no mundo.
Retomando o que foi dito acima, Afonso não atende às expectativas de Lídia e ela,
por outro lado, não aceita a negação por parte dele. Nesse sentido, “a castração do outro é
denegada para que se perpetue a esperança de um encontro harmonioso entre homem e
mulher”.
50
pontuada por Eduardo Prado Coelho, essa questão desdobra-se e permite a seguinte
afirmação: “o silêncio esem que neste amor se cruzam dois mundos que se não tocam. Se
quiserem, todo o livro de Teolinda Gersão modula o aforismo lacaniano: <il n’y a pas de
rapport sexuel>”.
51
Atraídos pelo desejo de partilharem a vida a dois, as personagens encontram as
dificuldades e as impossibilidades inerentes à “guerra” de dois mundos que se repelem,
decorrente das divergências das subjetividades, o que se manifesta através do diálogo inicial:
- recusar tudo e começar de outra forma,
- mas não há outra forma possível,
- corpos que brevemente se entendem e de novo partem, soltos, separados,
- porque você recusa o real, você recusa,
- porque sempre sonhei viver de outro modo,
- mas só existe o real e é preciso resignar-se,
- mas quem vai definir o que é real,
- o real é o contrário do sonho
- e se for o sonho que é real,
- está de novo mentindo,
49
Sem vida, essa versão era influenciar diretamente os mitos do amor que giram em torno do um: o amor é a
procura do todo e amar é sinônimo de se unir e de se confundir com o amado. Essa esperança atravessou
milênios e permanece, até hoje, na idealização do objeto de amor como alma gêmea. Dizer que não há objeto do
desejo não significa que não haja uma infinidade de objetos que causam desejo. Mas nenhum desses objetos é
Aquele, que se existisse ah! se ele existisse... conduziria à felicidade. Então nada, absolutamente nada
faltaria. Mas como esse objeto não há, o desejo não pode ser realizado. Assim o destino do homem é ser
desejante e amar na lógica do não-todo. (FERREIRA, 2004, p. 10-11)
50
FERREIRA, Nadiá Paulo. Amor, ódio e ignorância: literatura e psicanálise. A estrutura da histérica: O
mestre, de Ana Hatherly. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos Livraria e Editora Ltda. Corpo Freudiano. 2005. p.
122.
51
COELHO, Eduardo Prado. A seda do lenço (sobre o Silêncio de Teolinda Gersão) In: A mecânica dos fluídos
(Literatura, cinema, teoria). Imprensa Nacional, Casa da Moeda, Pacifique. 1967. p. 91-100. (Temas
portugueses).
61
- a vida não se repete apenas, é possível uma súbita alteração qualitativa,
- a vida é uma coisa sem brecha, não há nunca rotura nem milagre,
- não sonhamos talvez o suficiente,
- é preciso parar de imaginar. (S, p. 36-37)
O aforismo lacaniano, “não relação sexual”, sintetiza a obra de Freud e tem caráter
incisivo. Isso não significa que as pessoas não realizem os atos sexuais, mas, sim, que a
relação deve ser entendida no sentido de harmonia e complementaridade entre os sexos. O que
Lacan resume em sua fórmula é a separação estrutural entre homem e mulher, colocada em
evidência pela sexualidade.
A histérica tem dificuldade para viver. Mais especificamente, não saber “gozar”. Ela o
manifesta, de variadas formas, ao acusar o outro (talvez, o marido) de ser incapaz de
compreender aquilo que ela sofre ou de equiparar-se ao que ela demanda.
Lídia procura no outro (Afonso) um saber impossível, em jogo na sexualidade, e
aquilo a que se pode recorrer, para defini-la, possivelmente, como histérica
52
, é o fato de que
ela não se conta dessa impossibilidade e remete ao homem toda a incapacidade possível
para continuar crendo e buscando seu alvo. Logo no início do romance, a personagem
feminina, “histérica”, lança a primeira acusação:
Talvez porque a mulher imaginada pressentia que o homem estava parcialmente fora
do diálogo e lhe resistia, como se ele representasse, de certo modo, um perigo, e se
pudesse finalmente converter numa agressão contra ele próprio. Talvez por medo, sim
(pensou), o homem recusasse finalmente participar e levar a sério o que a mulher
contava, aceitava-o apenas como um passatempo, compreensível numa praia em que
todas as horas eram iguais e vazias. Ele estabelecera, portanto, limites tácitos a todas
52
A histérica, sabe-se, é por definição difícil de suportar. Histéricas as feiticeiras que durante séculos foram
condenadas à fogueira, histéricas as possessas acossadas, como em Loudun, histéricas as doentes que o século
XIX findante medicava de maneira extremada... Mas de que depende esse insuportável?
A histérica não sabe viver. Mais exatamente, não sabe “gozar”. Ela o proclama, das mais diversas formas, ao
acusar o outro o marido, padre, médico, juiz de ser um incapaz. Incapaz de compreender aquilo de que ela
sofre, de equiparar-se ao que ela reclama: um homem que seja mesmo homem.
A solicitação da histérica não tem graça. O pior é que é verdadeira. No que diz a histérica saber guardado.
“Saber”, termo ao qual Lacan destaque e que está sempre presente no discurso dos que sofrem. O espantoso
da histeria é que esse saber incide sobre o impossível em jogo na sexualidade.
O que diz a histérica, o que ela berra, sintomas com sentido oculto, não cessamos de nos confrontarmos com
isso: é o fato maciço de que aquilo não combina entre homens e mulheres, que nunca combinou no passado de
que outra coisa se fala, desde a aurora dos tempos, em todas as literaturas? e não razão alguma para supor
que no futuro isso combine melhor. (MILLER, 1989. p. 58-59)
62
as palavras, verificou, e, se a mulher que falava tentasse ultrapassá-los, ele obrigá-la-ia
a retroceder e a alegar que estava mentindo. (S, p. 12)
Insistir no impossível é um álibi para o se curvar ao que verdadeiramente o há.
Lídia prossegue sua trajetória à procura do que falta, buscando eternizar seu desejo como
desejo insatisfeito, porque enquanto durar a aposta na procura do saber, que ela acredita estar
no outro, continuará girando em círculos e correndo atrás do outro, jogo no qual ela é perita:
agora as coisas podem girar livremente em círculo, em espiral, em leque, desprendem-
se das mãos e transformam-se e ninguém irá prendê-las nunca, estou sentada no chão e
vou traçando em verde-escuro uma figura que é apenas e sempre provisória, e devagar
irei pensando coisas que o mais leve movimento modifica, uma escrita sobre a água,
movimentos da água, molho os dedos na superfície do aquário e deixo dissolver na
água minúsculos grãos cor de areia, um pequeno peixe fusiforme, negro, de cauda em
leque, nada entre ramos estreitos, entre duas pedras brancas (S, p. 76).
Lídia vai tão longe com a insistência em eternizar sua busca que, ao ser censurada por
Afonso, ela se coloca na posição de se esconder. Essa é a maneira inconsciente de Lídia
esconder-se de si mesma, porque ser tapada é um estado próprio de uma feminilidade voltada
para si mesma, não para o outro e, com isso, ela deixa entrever seu mistério. Há, portanto,
uma forma tipicamente feminina de velar-se. Nesse sentido, a mulher, quando se esconde,
quer na verdade oferecer “mistério e dá margem à surpresa”:
53
Você sonha de mais, e, à força de querer outras coisas que não há, vai negando as
coisas que existem, o que é uma forma de alienação pura e simples. Porque o que
havia entre ambos, separando-os, eram as falsas dimensões sonhadas, disse Afonso, e
por isso ele proibia-a de sonhar. Mas ela abria um guarda-sol na varanda e sonhava
debaixo do guarda-sol, ou abria um guarda-chuva na rua, e sonhava debaixo do
guarda-chuva, onde ele não pudesse ver a sua cabeça e os sonhos que corriam dentro
dela. (S, p. 57)
O amor de transferência está ligado exatamente à esperança de se encontrar um outro
“que tenha o saber sobre si mesmo, para que o sujeito permaneça desconhecendo seu próprio
sintoma, cuja causa es no real, e, por ter sido recalcado (recalque originário) pelo
significante, retorna pela via do significante como impossível”.
54
53
NASIO, Juan-Davi. Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1993. p. 90-91.
54
FERREIRA, Nadiá Paulo. Amor, ódio e ignorância: literatura e psicanálise. A estrutura da histérica: O
mestre, de Ana Hatherly. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos Livraria e Editora Ltda. Corpo Freudiano. 2005. p.
130.
63
A personagem quer, por meio do olhar do outro, a confirmação da imagem que faz de
si mesma. Conseguindo alcançar esse objetivo, amante e amado não teriam o que desejar, pois
um seria o complemento do outro e o próprio Afonso a adverte a respeito da impossibilidade
que recai sobre o que ela tanto busca: “o absurdo de tudo isso, disse Afonso, a paixão da
paixão, a procura da procura, o desejo em último caso sem objecto, porque o seu objecto é o
desejo e nada do que você conta, ou diz, ou sonha, existe” (S, p. 99).
Mas ela insiste no que não há e continua transferindo para ele a culpa e o acusa de não
ser capaz de fazer o que ela deseja: “o medo do amor, disse ela, o medo que você tem de ir até
ao limite de si próprio, de destruir tudo o que fica para trás e criar em seu lugar outra coisa”
(S, p. 99).
A estrutura da narrativa, como vimos, anteriormente, é representativa: as reincidências
de ações através dos tempos verbais, com predomínio do imperfeito e do infinitivo; a
(in)definição proposital entre narradora e protagonista (em alguns momentos, por exemplo,
Lídia reflete analiticamente sobre si mesma e o distanciamento faz-se necessário); a
suspensão de tempos e espaços; as estruturas frásicas (com destaque para os <ou> e os <e>)
que, muitas vezes, terminam em branco. O processo estrutural no romance caracteriza Lídia e
sua abertura, representando, sobretudo, suspensão, isto é, tensão. “A tensão entre ambos,
desde o início. Porque eles eram dois mundos sem ponto de contacto” (S, p 34). Dessa forma,
o silêncio é, ao mesmo tempo, a causa e a saída para a tensão entre as personagens.
Mundos diferentes ou mundos opostos traduzem a separação de duas vidas e de suas
consciências. Afonso é médico, e, como esse atributo é digno de elucubrações, faz-se
pertinente uma alusão nesse sentido: o médico é aquele profissional que pode restabelecer a
saúde, aquele que tem uma relação estritamente íntima com a vida. Nesse sentido, supõe-se
que ele compreenda a vida e seus mistérios mais do que as outras pessoas. A escolha de Lídia
por se relacionar com um médico (porque o parceiro com o qual se busca uma relação de
64
convívio é resultado de uma escolha e não de um acaso) parece encerrar muito mais intenções
do que se possa esperar. Lacan faz referência a uma situação, que ele chama de historinha,
que pode se identificar com essa postura de Lídia:
a de uma periquita que estava enamorada de Picasso. Como é que se via isso? Pela
maneira como ela mordiscava o colarinho da sua camisa e as abas de seu paletó. Essa
periquita estava de fato enamorada do que é essencial para o homem, isto é, sua
maneira bizarra de se vestir. Essa periquita era como Descartes, para quem os homens
eram hábitos em ... pró-movimento, de passeio. Os hábitos, eles promovem aquele
movimento – quando se os tira. Mas é apenas mito, um mito que vem convergir com a
cama de pouco. Gozar de um corpo, quando ele está sem as roupas, deixa intacta a
questão do que faz o Um, quer dizer, a da identificação. A periquita se identificava
com Picasso vestido.
O mesmo acontece com tudo que diz respeito ao amor. O hábito ama o monge, porque
é por isso que eles são apenas um. Dito de outro modo, o que sob o hábito, e que
chamamos de corpo, talvez seja apenas esse resto que chamo de objeto a.
O que faz agüentar-se a imagem é um resto. A análise demonstra que o amor, em sua
essência é narcísico, e denuncia que a substância do pretenso objetal – papo furado – é
de fato o que, no desejo, é resto, isto é, sua causa, e esteio de sua insatisfação, se não
de sua impossibilidade.
55
Lídia elege alguém que ela acredita que tenha um saber que ela não tem, e que, por
sinal, não quer ter. Isso parece ser muito difícil de ser compreendido, mas a caracterização da
personagem Lídia não é muito menos complexa do que andar pela via da psicanálise. Lídia se
inquieta não só com o passado, perdido no inconsciente, mas também com o presente, no qual
ela testemunha um mundo de opressões e de desigualdades sociais. O suposto amor narcísico
de Lídia conduz a um outro amor que é o de transferência. Afonso recusa-se a ser amado por
um saber que ele não tem e por um ser que ele não é: “é que ela esperava que o amor fosse
uma ponte para outra coisa, disse Afonso, outra coisa que não existia, não existiria nunca, ela
forçava obscuramente um caminho através do amor, através dele, uma saída” (S, p. 62). Como
amor e ódio, do ponto de vista da transferência, são equivalentes, são “paixões fundamentais
do ser”,
56
Lídia entende a recusa de Afonso como um engano e o considera um impostor que
merece ser desmascarado. Nesse contexto, começam as investidas por parte de Lídia para
55
LACAN, Jacques. O seminário Mais ainda. Trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar editores S.A., 1982.
p. 14.
56
JORGE, Marco Antonio Coutinho. FERREIRA, Nadiá Paulo. Freud, criador da psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2002, p. 34.
65
desnudar Afonso e o mundo ao qual ele pertence, assim, ela entra furtivamente na casa de
Alcina e constata, através de Alcina, da sua criada e da mobília da casa que:
Assim fora, assim era, portanto. Rodou sobre si própria, no meio da sala, varada de
evidência. Hesitara tanto antes de bater e entrar, e agora, de súbito, podia ir-se embora,
sem mesmo chegar a ver Alcina: sabia de repente o que quisera saber, como era, de
perto, aquela mulher silenciosa, concentrando numa casa o seu tempo vazio, movendo
lentamente entre as coisas o seu corpo maduro e resignado. Sabia o que quisera saber,
a forma dos dias em redor de Afonso, a saleta dourada, as jarras de cristal, a casa
imóvel forrada de penumbra e silêncio; tudo se lhe revelava, bruscamente, de uma
forma vertiginosa e excessiva, com uma violência que, de algum modo, ela não
conseguia enfrentar (S, p. 28).
Lídia percebe que na personalidade (termo que chama a atenção para seu significado,
persona, máscara com o sentido de disfarce) de Afonso e seu perfeccionismo havia
fragilidades, que estão assinaladas em:
Levantou-se, depois, procurou um disco na estante, retirou-o da capa de papel
brilhante e do invólucro transparente de plástico, colocou-o no prato do gira-discos,
encontrou sem olhar, apenas estendendo ligeiramente uma das mãos até a parte
inferior da estante, um pedaço de camurça fina (o instinto da ordem, a segurança de
cada coisa, sempre facilmente manejável, no lugar certo), pôs o disco a girar e limpou-
o ao de leve, imobilizando sobre ele a mão que segurava a camurça, finalmente fez
descer a agulha, com um mínimo de pressão, até um ponto aparentemente invisível na
primeira estria negra e circular, que era contudo o ponto exacto da primeira nota.
Sentiu que ele teria sofrido se, por um desvio imperceptível dos dedos, a agulha
tivesse resvalado e fizesse ouvir um som diferente. Até esse ponto ele era fgil,
verificou, com um sorriso invisível, e o impulso que vinha do mais fundo dela era
talvez talvez piedade? Porque ela era tão forte que agüentaria qualquer nota errada
ou falsa, tão forte que agüentaria repensar o mundo, sem medo de se enganar entre
certo, errado e falso? (S, p. 37-38)
Lídia faz exatamente o que premedita fazer, ao declarar simbolicamente sua estratégia:
“descrevendo em volta dele um círculo estreito, cada vez mais estreito, chegaria a um ponto
em que ele não se defenderia mais e deixaria para trás o seu mundo como um invólucro
abandonado” (S, p. 38). Ela irá rodear o mundo de Afonso (enquanto indivíduo e suas
características, sua vida familiar e todo seu modus vivendi, sua vida profissional), procurando
nele ocasião para julgá-lo e condená-lo culpado, quem sabe, por todas as injustiças sociais,
também, inclusive aquela que fazia parte do mundo profissional de Afonso:
Saiu à porta, andou ao acaso no corredor. A mulher estava enrodilhada a um canto da
parede, com pessoas em volta, falando todas ao mesmo tempo, uma delas gritava, mas
não era a mulher, que chorava em silêncio, quieta, de certo modo indiferente ao que se
passava, era uma outra, de preto, que gritava, levantando os braços, enquanto, pelo
tom de voz e pelos gestos, lhe argumentavam certamente algo em contrário. Um
menino com quatro horas de morto, disse a enfermeira, e, sem dar conta, ela própria
66
começara a gritar, sabem que vai morrer e não vêm, aparecem depois, com eles
mortos, para levar a certidão de óbito (S, p. 93-94).
Ela o acusava de fazer parte de uma sociedade opressora que impedia as pessoas de
sonhar e de viver suas paixões:
A ausência de sonho como alicerce de uma sociedade inteira, disse ela, uma sociedade
sem desejos, sem paixão, e por isso ordenada, programada, bem adaptada ao seu
próprio trilho, é preciso esmagar o desejo como forma de rotura, porque se de repente
todos começassem a desejar, a imaginar, o mundo conhecido cairia por terra e entrar-
se-ia noutro, diferente, e é essa possibilidade aterradora que é preciso esmagar a todo
custo, eu bem sei que seria perigoso, porque se de rente alguém dissesse: quem odiar a
sua vida ao meio-dia abra a janela e salte, toda a gente saltaria ao bater do meio-dia e a
rua ficaria de repente cheia de pessoas inadvertidamente mortas, mas por outro lado só
quando se compreende que a alternativa é mudar a vida ou saltar da janela se adquire a
exata perspectiva das coisas (S., p. 101).
Dessa forma, a imagem que Lídia tinha de Afonso e que não passava da “imagem
fabricada, sob a forma de ideal do eu, para servir de alimento a seu eu ideal”,
57
vai sendo
destruída à medida que a máscara vai sendo arrancada por Lídia. O amor que Lídia sentia por
Afonso será transformado em ódio.
Lídia coloca-se na condição de amante para receber o amor de Afonso. Depois da
constatação frustrante de que Afonso não a quer como amada, porque descobre que não
amor, somente desejo, ela reage e o amor é transformado em ódio. A decepção leva Lídia a
destruir a imagem de Afonso, imagem que fora, anteriormente, construída por ela e sua
esperança em encontrar alguém que lhe oferecesse o saber que ela precisava. O romance
apresenta, gradativamente, uma virada. O amadurecimento da personagem se de forma
regular e constante durante a narrativa e a decisão de deixar Afonso acontece no final,
momento no qual se confundem clímax e desfecho.
Finalmente, Lídia anuncia sua partida e colhe o ódio no mesmo momento, lança-se a
uma nova busca, mata Afonso, simbolicamente, e não reconhece, assim, a impossibilidade do
amor como resposta para a vida a dois.
57
FERREIRA, Nadiá Paulo. Amor, ódio e ignorância: literatura e psicanálise. A estrutura da histérica: O
mestre, de Ana Hatherly. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos Livraria e Editora Ltda. Corpo Freudiano. 2005. p.
144.
67
6 CONCLUSÃO
A personagem protagonista, Lídia, de O Silêncio; de Teolinda Gersão, procura através
do “outro”, de forma especular, olhar para si mesma e, dessa forma, vasculhar no possível
intercâmbio com a outra personagem (Afonso) a (re)construção do próprio “eu”. Para isso,
ela, momentaneamente [porque logo a imagem irá se quebrar “agora a imagem estava partida”
(S, p. 20) e será substituída pela própria Lídia], num afastamento de si mesma, imagina uma
mulher deitada numa praia, a dialogar com um homem. Essa figura de mulher imaginada será,
para Lídia, o reflexo do profundo olhar analítico que a personagem faz de si mesma e a
representação de seus próprios anseios, sonhos e comportamentos. A intenção de busca por
um conhecimento maior do próprio “eu” evidencia e demonstra a condição de a identidade
estar dinamicamente em processo de construção (ou reconstrução), mediado pelo processo
comunicativo.
Como resposta a essa situação, apresenta-se um movimento entre o real e o imaginário
que transfere para a subjetividade uma possível forma de não silenciar, porque, “encontrar-se
existindo no mundo em permanente diálogo consigo mesmo e com os outros é um dos temas
recorrentes na ficção portuguesa contemporânea de autoria feminina que assinala a construção
da subjetividade”.
58
Nesse sentido, enveredar-se pela imaginação passa a ser a possibilidade de tentar
compreender e expressar o grande descontentamento vivido pela protagonista feminina, que
requesta no outro, através da “tentativa de um diálogo fundo, mais fundo do que o diálogo de
amor que se trava, ao nível do corpo, entre uma mulher e um homem” (S, p.11), uma
experiência que se elevasse além daquela realidade vazia. Encontram-se, aí, instalados: o
58
FARIA, Ângela Beatriz de Carvalho. um mundo que se quebra quando eu falo. V Seminário de Literaturas
de Língua Portuguesa: Portugal e África. Representações Contemporâneas da Subjetividade, UFF, 2006. CD-
ROM.
68
desejo de partilhar uma vida em comum conforme os preceitos e padrões sociais, a
necessidade humana de não estar e o despontar da insatisfação que suscita o desejo de
outra coisa, de algo além. Percebe-se, nesse sentido, que o real torna-se insuficiente, ineficaz,
ainda que abarcasse o mundo, seria limitado demais para atender as necessidades estruturadas
e caracterizadas por forte impregnação emocional e que determinam as atitudes de um
indivíduo, seu comportamento, seus sonhos, ideais e anseios. “Um constante sentido de
permanecer num limiar, na sensação de nunca chegar onde se quer, de nunca atingir o que se
deseja”
59
e a sensação de estar incompleta marcam, como vimos, a protagonista feminina e
refletem uma das temáticas comuns à Literatura portuguesa contemporânea de autoria
feminina.
“Quem pergunta pela sua identidade questiona as referências hegemônicas, mas ao
fazê-lo, coloca-se na posição de outro e, simultaneamente, numa situação de carência e por
isso de subordinação”.
60
E Lídia, ao ter consciência disso, ultrapassa essa primeira fase e
assume a sua individualidade ex-cêntrica e independente. Não se permite ser aprisionada pelo
“espelho real do outro”.
Conforme assinala Eugène Enriquez:
A imagem especular é, portanto, a imagem do semelhante, mas ela nos adverte da
presença de um outro “si mesmo” no espelho e de um outro real que nos fala, nos
designa e nos atribui qualidades e defeitos. Assim se o outro nos constitui em nossas
unidades, também nos constitui em nossa divisão. Pois ele nos lembra que, se pode
ajudar a nos construir, pode também nos rejeitar ou provocar nossa ruptura.
61
Se implicações no dinâmico processo de (re)construção da identidade, através do
semelhante, torna-se ainda mais complexa a situação quando se trata de requerer uma
59
FARIA, Ângela Beatriz de Carvalho. um mundo que se quebra quando eu falo. V Seminário de Literaturas
de Língua Portuguesa: Portugal e África. Representações Contemporâneas da Subjetividade, UFF, 2006. CD-
ROM.
60
SANTOS, Boaventura de Souza. Modernidade, Identidade e a Cultura de Fronteira. Revista Crítica de
Ciências Sociais, nº 38, dezembro de 1993. Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Centro de
Estudos Sociais. p. 11-12.
61
ENRIQUEZ, Eugène. O outro, semelhante ou inimigo? In: Civilização e Barbárie. NOVAES, Adauto (org.).
São Paulo: Companhia das letras, 2004. p. 45-58.
69
mudança nesse outro escolhido para espelho, porque ela queria “ele-outro”, ou seja, ele
transformado. Lídia cogitava a possibilidade de ele (Afonso) deixar “para trás o universo
ordenado e estático que era o seu, para se aventurar num outro onde nada era certo, onde a
dúvida era constante”.
62
Dessa forma, a personagem feminina busca suprir a necessidade de
compreender e expressar a construção do próprio “eu”. O devir do próprio “eu” depende do
“outro” e a personagem Lídia, para tentar concretizar sua investida, procura em Afonso o
caminho para a auto-afirmação, depois da interrogativa a si mesma: “Porque ela era tão forte
que agüentaria qualquer nota errada ou falsa, tão forte que agüentaria repensar o mundo, sem
medo de se enganar entre certo, errado e falso? (S, p.38) Ela percebe, inclusive, que até a
fragilidade dele se transfiguraria em força para ela: Sentiu que ele teria sofrido se, por um
desvio imperceptível dos dedos, a agulha tivesse resvalado e fizesse ouvir um som diferente”
(S. p.38). Ela não tinha medo de enfrentar os erros, os enganos, as fraquezas, era forte o
suficiente, mas, “até esse ponto ele era frágil, verificou, com um sorriso invisível, e o impulso
que vinha do mais fundo dela mesma era talvez – talvez piedade?” (S, p. 38)
Ao acompanharmos a tensão existente entre Lídia e Afonso, chegamos à conclusão de
que a divergência entre as subjetividades instaura o silêncio vigente, a lacuna nos
relacionamentos humanos, a perda de vínculos e os nós desatados. O amor de transferência e
o recalque impedem a construção da identidade plena do sujeito, somente possível através de
um processo de auto-conhecimento, fundado no mergulho da própria interioridade e no
respeito às diferenças individuais.
Em O Silêncio, essa temática é evidenciada através dos pares que se formam já
fadados ao fracasso Lídia e Afonso, Lavínia e Alfredo formas retilíneas e circulares de
viver, incompatíveis. Os poderes de coerção e de libertação, inerentes às personagens,
indiciam a desagregação ou dissolução dos afetos desejados. O domínio da repetição do lugar-
62
MAGALHÃES, Isabel Allegro de. O tempo de O Silêncio in O tempo das mulheres. A dimensão temporal na
escrita feminina contemporânea. Ficção Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional. Casa da Moeda, 1987. p. 389.
70
comum e do vazio de significações desestabiliza a vivência cotidiana e leva à busca de ruptura
e ao encontro de um novo projeto existencial.
Teolinda Gersão, ao optar por uma estrutura romanesca, assinalada pela fragmentação
de espaços e tempos diferenciados, insere-se na contemporaneidade. Sua escrita labiríntica
privilegia a atuação do leitor, decifrador dos subentendidos do texto e permite uma análise de
viés psicanalítico, o que nos levou a ampliar o embasamento teórico de apoio inicial e a
solicitar a co-orientação de outra especialista que pudesse conviver com o viés literário,
ampliando-o. Por isso, são citados conceitos tais como: “gozo”, “castração”, “inconsciente”,
“condensação e deslocamento”, “histeria” e “recalque”, entre outros.
No decorrer da Dissertação, algumas repetições mostraram-se necessárias para que
determinadas idéias pudessem ser desdobradas e refletiram posturas obsedantes das
personagens, inseridas em um contexto histórico-cultural específico.
Pensamos que uma das intencionalidades da autora Teolinda Gersão consiste na
denúncia à sociedade contemporânea, capaz de segregar as pessoas em “caixas de vidro”
incomunicáveis entre si e de impedir que o lado criativo prevaleça. A contestação, o livre-
arbítrio, o exercício da liberdade e da palavra, necessários ao funcionamento de uma
sociedade democrática são cerceados por algumas personagens, o que revela a própria
inserção da escritora no período ditatorial e salazarista. Por isso, o romance, ao ser publicado,
surgiu como uma referência ao pós 25 de Abril e ao processo libertário. Afinal de contas,
Lídia, a protagonista, ao romper a relação com Afonso, descobre que “todas as casas que ela
habitara se desmoronavam para trás” (S, p. 124) e que “a voz” dele, repressora, “não podia
mais atingi-la” (S, p. 124).
Assim, “caminha” e “abre passagem com o corpo” (S, p. 124) indo “em busca do que
não existia, não existiria nunca” (S, p. 124) – a sua completude existencial e o utópico
contexto histórico.
71
Assim, Teolinda Gersão “desenha”, em O Silêncio, “mil círculos concêntricos”
presentes no poema de Ana Hatherly, selecionado como epígrafe.
72
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