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dez, onde está aquele cinto de lagarto, aquela pequena pasta transparente, aquela
tesoura de metal dourado, aquele botão de punho que perdi outro dia, aquela agenda
anotada que ficou na gaveta mais pequena ou talvez no porta-luvas, é claro que não
direi nada, não é uma censura, converso apenas, mas porque é que as coisas não estão
nunca prontas e em ordem, a maioria das pessoas não conversa nunca, o que cria
divisões cada vez mais fundas entre elas, é por isso que é importante conversar,
conversemos, pois, onde é que pode estar o meu botão de punho, se não está,
aparentemente, em nenhum lugar? (S, p. 78)
Silêncio no mergulhar de Lídia no doloroso mundo do inconsciente, em que a
constante imagem de sua mãe a acompanha fantasmaticamente
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:
Caminha pela neve, ao acaso, o silêncio, as altas árvores verde-escuras, o grande
espaço abrindo-se, tropeça num corpo caído de bruços, um casaco de pele escura,
manchado de branco, os cabelos desfeitos, uma pequena mala entreaberta ao lado de
onde caíram objectos soltos, meio soterrados, um sapato, um farrapo de renda, folhas
de um livro, um pedaço de uma saia com flores, volta-lhe o rosto para a luz e vê-o
perder a nitidez e a forma, porque a neve se fundiu e é água verde, onde o corpo se
afunda, os cabelos misturados com ramos e lodo, Lavínia, diz, debruçando-se mais,
mas quando lhe toca com as mãos o rosto dilui-se e é já só água, e então ela levanta-se
e começa a caminhar, com esforço, em direcção ao momento em que irá despertar de
novo, em redor há um deserto branco onde, se quisesse, poderia desaparecer sem
deixar rasto, porque a neve continua a cair e apaga todas as pegadas, bastará ceder um
pouco ao cansaço e parar para desaparecer no silêncio e no branco, mas ela recusa
parar, caminha para a frente, lutando, apesar do cansaço, e a neve é outra vez um rio,
um mar de lodo, compacto, onde ela se move, se arrasta, devagar, lutando, Lídia,
dizem, e quando a levantam um pouco na almofada há uma dor mais funda que a
desperta e todo seu corpo está vivo (S, p. 120-121).
Finalmente, o silêncio instaurado pela decisão de Lídia em deixar Afonso, capaz de
apagar a sombra e a revolta:
deixei tudo no lugar e vou-me embora, tudo liso e intacto, tu intacto e o teu mundo
intacto, ou talvez neste momento, agora, eu toque em ti e no teu mundo, mas apenas
ao de leve, tão de leve que não ficará marca nenhuma, virá de novo o silêncio, o sol, a
luz deserta e lisa apagando a sombra, negando a sombra, não existe a revolta, dirás, e
continuarás a escrever na folha de papel, e eu sairei a porta e descerei à rua e não
voltarei nunca mais, terei todos os caminhos do mundo para andar e irei procurar
noutro lugar, noutra casa, meu filho, e se o amor não existir eu o inventarei com o meu
corpo, e se a vida não existir eu a criarei com as minhas mãos, (S, p. 122-123).
Há também, na obra de Teolinda Gersão, como já vimos, o mal-estar do silêncio de
Deus, referido no conto Se por acaso ouvires esta mensagem, em que aponta a indefinição do
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De onde provém o tremendo impacto dessa cena fantasmática? Em outras palavras (e mais precisas), por que o
sujeito substitui sua falta-a-ser (seu “querer ser”) por essa mirada impossível? A chave deste enigma deve
buscar-se na assimetria entre sincronia e diacronia: a emergência mesma de uma ordem simbólico-sincrônica
implica uma brecha, uma descontinuidade na cadeia causal diacrônica que leva a ele um “elo perdido” nessa
cadeia. O fantasma é uma prova a contrário de que o estatuto do sujeito é o de “elo perdido”, um vazio que,
dentro do conjunto sincrônico, ocupa o lugar de sua gênese diacrônica foracluída. Em conseqüência, o
inacabamento da cadeia causal e linear é uma condição positiva para que possa se produzir o “efeito sujeito”: se
pudéssemos explicar sem resto e emergência do sujeito a partir da positividade de algum processo natural (ou
espiritual), se pudéssemos reconstruir a cadeia causal completa que leva a sua emergência, o sujeito mesmo
ficaria cancelado. Segundo Jacques Lacan (apud MILÁN-RAMOS, J. Guillermo. 2007. p. 143).