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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
NAS TERRAS DE TAQUARA-PÓCA: CULTURA CAIPIRA NA
OBRA DE FRANCISCO MARINS
CRISTINA DALLANORA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre junto ao programa de Pós-
Graduação em História da Universidade
Federal de Santa Catarina, sob a orientação do
Prof.º Dr.º João Klug.
FLORIANÓPOLIS
2010
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2
Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da
Universidade Federal de Santa Catarina
D144n Dallanora, Cristina
Nas terras de Taquara-Póca [dissertação] : cultura
caipira na obra de Francisco Marins / Cristina Dallanora ;
orientador, João Klug. - Florianópolis, SC 2010.
117 p.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa
Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas.
Programa de Pós-Graduação em História.
Inclui referências
1. Marins, Francisco, 1922. 2. História. 3. Caipiras.
4. Literatura. 5. Vida rural. I. Klug, João. II.
Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-
Graduação em História. III. Título.
CDU 93/99
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AGRADECIMENTOS
Durante meu (longo) mestrado muitas foram as contribuições e
convivências que permitiram a efetivação da pesquisa e escrita desta
dissertação.
Devo muito ao meu orientador, João Klug, pela confiança e
incentivo que me fez acreditar e ter mais certezas das incertezas
inerentes à pesquisa e ao trabalho acadêmico. Como também a
possibilidade da realização de estágio de docência, oportunidade que me
permitiu amadurecer como professora.
Aos meus professores, que no primeiro ano do mestrado me
colocaram diante de leituras e discussões que contribuíram para esta
dissertação. E também aos colegas do LABIMHA, pelo
companheirismo.
A Eliane Debus e ao Jó Klanivcz, pelas sugestões e críticas
realizadas no exame de qualificação.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino
Superior (CAPES), pela concessão da bolsa que me permitiu cursar o
segundo ano do mestrado de maneira mais plena.
Ao escritor Francisco Marins, pela atenção e colaboração no
processo de pesquisa em seu arquivo. Assim como a conversa informal
que, depois de gravada e transcrita, tornou-se uma importante fonte de
pesquisa. Também agradeço a sua esposa, Dona Elvira, por ter-me
recebido com especial atenção e carisma. A Andréia, secretária do
escritor, por intermediar a pesquisa no arquivo e os contatos via e-mail.
Apesar de o processo da escrita parecer um trabalho solitário,
muitos foram os amigos que fizeram parte do meu cotidiano (real e/ou
virtual) e deram o fundamental apoio emocional nos maus e bons
momentos. Agradeço a Domitila Costa Cayres, Vinícius Possebon
Anaissi, Weslei de Paula, Rafael Dias, Guilherme Mondardo, Jaime
Silva. Especialmente a Greyce Kely Piovesan, cujo convívio diário me
fez criar um ritmo mais consistente de estudo. E a Laura Castegnaro,
com quem dividi morada nos últimos tempos antes do término do texto,
por me incentivar nos momentos difíceis e por me encorajar sempre a
dar um ponto final.
Aos meus pais, Ivo e Vera, pelo apoio e amor incondicional e
por acreditarem na carreira que escolhi. À minha irmã, Adriana, por
estar sempre presente apesar da distância. Ao meu cunhado e amigo,
Fernando, por me fazer perceber que certos instrumentos de trabalho são
essenciais e que não devemos protelar a sua aquisição.
6
7
... a exaltação que acompanha certas leituras
tem uma influência propícia sobre o trabalho
pessoal, cita-se mais de um escritor que amava
ler uma bela página antes de se pôr a trabalhar.
Marcel Proust. Sobre a leitura.
A vida no campo e da cidade é móvel e presente:
move-se ao longo do tempo, através da história
de uma família e um povo; move-se em
sentimentos e idéias, através de uma rede de
relacionamentos e decisões.
Raymond Williams. O campo e
a cidade: na história e na literatura.
8
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO__________________________________________15
CAPÍTULO 1
DE PRATÂNIA Ê TERRA PRA BROTAR CAIPIRA____25
CAPITULO 2
MANIFESTAÇÕES DA CULTURA CAIPIRA EM FRANCISCO
MARINS________________________________________________48
2.1 “Quem conta um conto aumenta um...”: contos da juventude_50
2.1.1 Ritinha: o primeiro conto, do primeiro encanto e um primeiro
desencanto______________________________________________ 58
2.1.2 Mulita: entre guascadas e safanões________________________61
2.1.3 Antes tarde... do que nunca _____________________________62
2.2 Taquara que estoura, pól, pól: Taquara-Póca____________ 67
CAPÍTULO 3
CONSIDERAÇÕES ACERCA DAS APROXIMAÇÕES E
DISTANCIAMENTOS ENTRE MONTEIRO LOBATO E
FRANCISCO MARINS_____________________________________
3.1 Monteiro Lobato e Francisco Marins: aproximações e
distanciamentos__________________________________________76
3.1.2 Sobre a trajetória intelectual e literária de Lobato e Marins____79
3.2 A construção do Jeca Tatu”: dissecação, a talhos fundos, do
pobre parasita da terra___________________________________82
CAPÍTULO 4
A RECONSTRUÇÃO DO “JECA” E UM SENTIDO PARA A
EDUCAÇÃO____________________________________________90
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS____________________________ 103
6 FONTES_____________________________________________ 111
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS_____________________112
10
11
RESUMO
Francisco Marins é autor de vários livros, cuja temática principal é o
campo e o cotidiano da pequena propriedade rural, destinados a
crianças, jovens e adultos. Ficou conhecido principalmente por suas
histórias infantis ambientadas no sítio Taquara-Póca. O objetivo desta
dissertação consistiu em analisar como o mundo rural e o caipira são
abordados na sua literatura. Através da análise dos contos Ritinha,
Mulita e Antes tarde... do que nunca e do livro Nas terras do Rei Café,
publicados entre os anos 1938 e 1945, procurou-se destacar as
manifestações da cultura caipira e como as histórias das personagens são
marcadas pela ruralidade. Assim como o diálogo da sua literatura com
os projetos maiores que intelectuais propuseram para o campo e que
circularam no âmbito do Estado e da elite nacional no período do Estado
Novo do Governo de Getúlio Vargas.
Palavras-chave: Francisco Marins; mundo rural; Estado Novo;
caipira; história; literatura.
12
13
ABSTRACT
Francisco Marins is the author of several books. His main theme is the
rural world and the daily life on small rural properties. He is most
famous for his children's stories set in a place called Taquara-Poca. The
objective of this dissertation was to examine how the rural world and
“caipira” are seen in his literature, through analysis of the stories
Ritinha, Mulita and Antes tarde... do que nunca and of the book Nas
terras do Rei do Café, published between the years 1938 and 1945. The
focus was on the rural culture manifestations and how the stories of the
characters are marked by this rural culture. The relation of his literature
with larger projects of other intellectuals have proposed to the country
and circulated within the state and national elite during the New State
Government of Getúlio Vargas was also focused.
Keywords: Francisco Marins; rural worlds; Estado Novo; caipira,
history, literature.
14
15
INTRODUÇÃO
uma figura de linguagem na Língua Portuguesa, chamada
metonímia, que justifica o emprego de um termo por outro e à qual se
recorre quando semelhança ou possibilidade de associação entre os
termos. Isso explica, por exemplo, substituir uma idéia por outra mais
familiar, usar a parte no lugar do todo, a obra no lugar do autor como
também o uso de estereótipos. No processo de representação de
linguagem que produz efeito sobre as expressões, um deles é a perda do
referencial, prevalecendo um traço significativo da expressão que passa
a significar toda a expressão.
“Jeca Tatu”, possivelmente, é o maior exemplo na literatura
brasileira considerando o efeito produzido. Nesse sentido, para muitos
brasileiros, o “Jeca” não é mais uma personagem do seu criador, mas
sim o próprio indivíduo sobre o qual foi inspirado e caricaturado: o
caipira. E isso resulta de um processo de produção de significação
sobre o mundo rural, num amplo sentido, que se fez presente não apenas
na literatura, mas em diversos discursos, em vários momentos da
história do Brasil, sob diferentes perspectivas.
O termo caipira é usado cotidianamente para fazer referência ao
homem simples e rústico do campo. No entanto, nos estudos que se
dedicam especificamente às comunidades tradicionais o termo implica
uma categoria de análise mais complexa, exprimindo um modo de ser e
não uma designação racial ou étnica.
A intenção inicial desta pesquisa foi estudar as manifestações da
cultura caipira na literatura do escritor Francisco Marins e procurar
entender de que forma ela se inseriu (e dialogou) no contexto mais
amplo dos projetos para o mundo rural que circularam no âmbito do
Estado e da elite nacional durante o governo de Getúlio Vargas.
1
A
amplitude do tema exigiu concentração em determinado período, o que
nos levou a delimitar os textos a serem analisados como também os
debates e as propostas que permeavam as discussões a respeito do
campo e do seu homem.
O principal objetivo desta dissertação consistiu em analisar a
abordagem das concepções referentes ao mundo rural e ao caipira
presente nos primeiros contos publicados nos anos 1938 e 1939 e o seu
primeiro livro infantil intitulado Nas Terras do Rei Café, que iniciou a
1
Por elite nacional entendemos, de um lado, os ruralistas e, de outro, intelectuais preocupados
em desenvolver estratégias para desenvolvimento do campo, principalmente no âmbito da
educação.
16
série Taquara-Póca no ano de 1945. Como também o diálogo da sua
literatura com os projetos maiores que intelectuais propuseram para o
campo e que circularam no âmbito do Estado e da elite nacional no
período do Estado Novo de Getúlio Vargas.
A despeito das diferentes apropriações feitas do homem do
campo e do mundo rural, concentramo-nos no período do Estado Novo,
cuja apropriação se deu de forma positiva, relacionando-o à
nacionalidade, portanto, como um elemento de brasilidade.
O interesse em estudar a literatura de Marins surgiu durante a
minha graduação e consistiu em meu trabalho de conclusão de curso.
Autor de vários livros cuja temática principal é o campo e o cotidiano da
pequena propriedade rural, a sua produção literária destinou-se a
crianças, jovens e adultos. Na monografia, utilizamos os livros cujo
público alvo são as crianças, em particular, as quatro histórias que
formaram a série infantil Taquara-Póca: Nas Terras do Rei Café (1945),
Segredos de Taquara-Póca (1947), O Coleira-Preta (1949) e
Gafanhotos em Taquara-Póca (1950).
2
O objetivo do trabalho foi
identificar a relação da série com o mundo rural que ela representava e
certa noção da ruralidade presente nas histórias de Marins. Concluída a
monografia, para além do universo rural idealizado e romantizado com o
qual nos deparamos, outras questões foram suscitadas, o que nos
incentivou a dar mais um passo na pesquisa.
Durante o mestrado, ao cursar a disciplina Migrações,
Construções Sócio-Culturais e Meio Ambiente, elaborei um artigo no
qual contrapus a abordagem do mundo rural e do caipira presente na
literatura de Marins à do Jeca Tatu, presente na literatura de Monteiro
Lobato. Mas além de eu contrapor imagens que se fizeram presentes em
períodos e em gêneros diferentes, percebi que havia semelhanças e
diferenças que precisaria desenvolver pontualmente. Sabendo das
diferentes possibilidades temáticas que poderiam ser desenvolvidas a
partir da abordagem encontrada nos dois escritores e do senso comum
de que a localização fora do espaço urbano sempre foi prática comum na
literatura infantil, passamos a considerar que a abordagem do espaço
rural implicava algo mais que um mero cumprimento de uma tradição
literária.
3
2
DALLANORA, Cristina. Taquara-Póca. O Brasil rural de Francisco Marins. 2006. 63f.
Monografia (Graduação em História) - Centro de Filosofia e Cncias Humanas, Universidade
Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2006.
3
Observação recorrente em estudos de literatura infanto-juvenil, como, por exemplo, em
LAJOLO, M. P.; ZILBERMAN, R.. Literatura Infantil Brasileira. História e Histórias. São
Paulo: Ática: 1984, p. 61.
17
Na produção infantil de Marins, como também nos contos
selecionados, em nenhum momento a sua abordagem do mundo rural
esteve dissociada do trabalho agrícola, dos afazeres inerentes à
sobrevivência no campo, em especial, das pequenas propriedades
agrícolas. Aspecto que o pode ser considerado válido para a literatura
de Monteiro Lobato, na qual o trabalho agrícola foi apresentado sempre
envolto por uma outra alternativa mais promissora.
Apesar de uma diferença temporal no que diz respeito à
construção do Jeca propriamente dita entre Monteiro Lobato e
Francisco Marins, os dois escritores escreveram no período que
coincidiu com Estado Novo (1937-1945). Momento que se caracterizou
pela ausência de prerrogativas democráticas e pela implantação de um
modelo de modernização conservadora. E, principalmente, pela
instalação de um governo que deu atenção especial à utilização de
recursos de propaganda e de divulgação ideológicas, em busca de
consenso e de legitimidade.
4
O período do Estado Novo também teve como principal
característica do implemento de políticas voltadas para a
industrialização. Sobre este aspecto, uma idéia recorrente na
historiografia que se baseia no fato de que com o processo de
desenvolvimento industrial o campo e o homem rústico teriam sido
deixados de lado. Essa abordagem também se fez presente em pesquisas
sobre obras de literatos que concentraram suas histórias no espaço rural.
Ao analisar a literatura infantil brasileira produzida nos anos
1930 e 1940, incluindo a do escritor Francisco Marins, Marisa Lajolo e
Regina Zilberman afirmaram que:
Na época em que o Brasil dispara na direção de um projeto
industrial de grande envergadura, a fim de garantir a
continuidade no processo de modernização com o qual
tinham se comprometido os republicanos, a literatura infantil
advoga uma causa de outra índole. Voltando a localizar parte
considerável dos heróis das histórias em sítios e fazendas,
torna-se porta-voz de uma política econômica que considera
a agricultura a viga mestra de sustentação financeira do país,
e o homem do campo, seu principal agente.
5
4
GOMES, A. M. C.. O redescobrimento do Brasil. In OLIVEIRA, L. L.; GOMES, A. M. C.;
VELLOSO, M. P.. Estado novo: ideologia e poder. Zahar Editores, Rio de Janeiro: 1982, p.
109.
5
LAJOLO, M. P., ZILBERMAN, R.. Op. cit., p. 96.
18
A afirmação da apologia do rural em contraposição ao projeto
brasileiro em curso no período, do desenvolvimento industrial ecoa essa
idéia recorrente na historiografia sobre o período Vargas, do abandono
do campo. A análise do historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva
sobre governo Vargas e a questão agrária, apresentou-nos um
contraponto.
Segundo Silva, os anos de 1930 consolidaram parte substancial
do imaginário que até hoje povoa a mente dos brasileiros sobre o seu
passado rural e sobre a vida no campo.
6
Ainda de acordo com Silva,
num contexto em que o uso de imagens positivadas do homem do
campo e de seu trabalho tornou-se estratégia do governo para incorporar
o mundo rural à política nacional, outros “produtores de imagens”
alinharam-se ao Estado como fontes de pensar e expressar-se sobre o
mundo rural. Partindo dessa hipótese, pensamos ser possível estudar as
manifestações da cultura caipira, e o sentido da “ruralidade”, através da
literatura de Marins no campo que se estende em direção à “cultura”.
Datadas historicamente, as obras literárias carregam indícios de
historicidade e exigem do historiador algo a mais que o conhecimento
do contexto histórico da sua elaboração. Como também algo a mais que
a descrição do seu conteúdo. As fontes literárias carregam em si além da
voz do narrador, vozes em interlocução.
7
Nos últimos anos, os textos
literários passaram a ser vistos pelos historiadores como materiais
propícios a múltiplas leituras, especialmente por sua riqueza de
significados para o entendimento do universo cultural, dos valores
sociais e das experiências subjetivas de homens e mulheres no tempo.
8
A História Cultural, portanto, tem se voltado para uma
interpretação que considera as fontes literárias capazes de nos dizer algo
sobre o período em que foram produzidas. Não apenas textos escritos,
mas também as representações que a sociedade faz de si mesma,
captadas através das mais diversas linguagens ilustrações, imagens,
arquitetura, registros sonoros, enfim, tudo o que possa ser identificado
como um produto da sociedade que o fabricou, ganhou estatuto de
6
SILVA, F. C. T.. Vargas e a questão agrária: a construção do fordismo possível. In: Diálogos:
Revista do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá, Maringá, v. 2, nº 2,
p. 113-128, 1998, p. 123. Outro ensaio de Silva também sugere essa hipótese é possível
verificar em SILVA, F. C. T. Conflito e conservadorismo numa sociedade agrária. In:
SANTOS, R. N.; CARVALHO, L. F.; SILVA, L. C. T. (Org.). Mundo Rural e Política: ensaios
disciplinares. Rio de Janeiro: Campus, 1998, p. 3-19.
7
BAKHTIN, Mikhail. Questões da literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Ed.
UNESP/HUCITEC, 1998.
8
FERREIRA. A C.. A fonte fecunda. In O historiador e suas fontes. PINSKY, Carla
Bassanezi; LUCA, T. R.. (Org.). São Paulo: Contexto, 2009.
19
documento.
9
Por isso, na música, na pintura, na literatura e em outras formas
de arte, acreditamos ser possível analisar a concepção a respeito do
mundo rural e do caipira. Nesse sentido, partimos da hipótese de que
pela perspectiva do mundo rural presente nas narrativas de Francisco
Marins é possível visualizar certo diálogo com o debate mais amplo
acerca do mundo rural e do homem do campo entre os anos de 1938 e
1945.
Vale abrir um parêntese e frisar que não queremos afirmar que
existe uma única arte que se expressa indiferentemente em qualquer
uma dessas linguagens. Mas na origem de toda vocação artística,
uma certa escolha indiferenciada que as circunstâncias, a educação e o
contato, só mais tarde irão particularizar. E não há dúvida que as artes de
uma mesma época se influenciam mutuamente e são condicionadas
pelos mesmos fatores sociais.
10
No decorrer da pesquisa, Francisco Marins recebeu-me
gentilmente em sua residência em Botucatu (SP) e ao longo dos dias 15,
16 e 17 de março de 2008, tive a oportunidade de entrevistá-lo como
também de consultar seu arquivo pessoal. Marins organizou ao longo de
sua vida, um arquivo e uma biblioteca pessoal cujos documentos
estavam dispersos até meados de 2007, quando resolveu reunir o
material no Tempo e Memória. Arquivo e Biblioteca Francisco
Marins.
11
A pesquisa no seu arquivo colocou-nos diante de inúmeras
possibilidades de pesquisa. A partir de 2007, recém edificado,
encontramos o arquivo organizado em estantes, cujo material apresenta-
se identificado por pastas e assuntos.
A primeira questão que a pesquisa no arquivo suscitou foi como
trabalhar a partir dos fragmentos que compõem um arquivo pessoal.
Segundo a pesquisadora Luciana Quillet Heymann, a pluralidade do
material deve ser submetida a um padrão de descrição. Pois é a
descrição do pesquisador que se transforma em veículo que acesso à
memória documental do titular. Mas viabilizar o fornecimento de
9
PENTEADO, A. E. A.. Literatura infantil, História e Educação: um estudo da obra
Cazuza, de Viriato Correa. Campinas, 2001. 219 f.. Dissertação (Mestrado em Educação)
Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2001, p. 13.
10
SARTRE, Jean-Paul. O que é a Literatura? ed. Trad. Carlos Felipe Moisés. Editora
Ática: São Paulo: 2004, p. 9-10.
11
O arquivo está localizado na residência do escritor, no Condomínio Vale do Sol, em
Botucatu, no Estado de São Paulo. Ainda está em processo de organização pelo pprio titular,
mas permanece aberto para possíveis pesquisas.
20
informações não significa conformar-se em abarcá-la na sua
totalidade.
12
É preciso selecionar o que são fragmentos de memória para
o que é, ou será, história.
13
O material organizado em pastas segue a denominação dos
locais onde Marins trabalhou e atuou, como por exemplo, “Câmara
Brasileira do Livro 1”; “Câmara Brasileira do Livro 2”; “Academia
Paulista de Letras (APL), entre outras pastas referentes aos seus locais
de trabalho e atuação. Mas estas não foram as que nos chamaram mais
atenção. Heymann advertiu que a existência de um senso comum
histórico, que torna obrigatório o destaque de temas de relevância
consensual, não deve impedir que uma série de outros documentos ou
temas, de caráter mais “corriqueiro” e conteúdo “menor”, seja
submetida aos mesmos padrões de descrição dos primeiros.
14
De um lado, a quantidade de documentos arquivados nestas
pastas, principalmente nas intituladas “Câmara Brasileira do Livro 1 e
2” refletem a atuação de Marins dentro das políticas de publicação do
livro, como a sua importância no campo da valorização do livro. De
outro lado, a observação de Heymann fez-nos refletir também sobre os
cartões, cartas ou felicitações, que são tipos de documentos encontrados
quase exclusivamente nesse tipo de arquivo.
A importância desse tipo de documentação se na medida em
que nos possibilitou traçar as redes de relações pessoais do titular,
dando-nos chaves para compreender aspectos fundamentais do
funcionamento de sua vida intelectual, política e literária. Apesar de
neste estudo não priorizarmos esta documentação, implicitamente elas
foram importantes para dedução dos seus interesses no campo literário
ao longo dos anos, sobretudo no que concerne à Filologia no Brasil.
15
O arquivo pessoal, portanto, expressa a “vontade de guardar
individual” do titular, uma forma de “guardar para se guardar do
12
HEYMANN, L. Q. Indivíduo, memória e resíduo histórico: uma reflexão sobre arquivos
pessoais e o caso Filinto Müller. In: Estudos históricos. Indivíduo, biografia e história. Rio de
Janeiro, vol. 10, n° 19, 1997, p. 50-51.
13
A autora está se referindo especificamente ao trabalho arquivístico ou ao trabalho do
documentarista, mas também é uma questão que se estende aos demais pesquisadores.
14
HEYMANN, L. Q.. Op. cit., p. 59.
15
O que verificamos em algumas correspondências trocadas, por exemplo, entre o escritor e o
filólogo Antonio Houaiss, a respeito das palavras proparoxítonas do nosso vocabulário.
Segundo Marins, a falta do acento nestas palavras, como previa o último Acordo Ortográfico
(iniciado em 1990), implicaria dificuldade de tradução dos seus livros para outros idiomas,
principalmente em se tratando dos vocábulos caipiras que carregam um forte laço com o
português arcaico. E, encontrando dificuldade nas traduções, estaria aí um caminho para o
desaparecimento de uma forma de linguagem.
21
esquecimento”. E visto deste prisma, o arquivo disponibiliza pistas dos
interesses, participações, rotinas e contatos do titular.
Após a pesquisa no arquivo, procuramos dar atenção para as
pastas de naturezas diversas e não apenas as relacionadas ao “trabalho
oficial” do escritor. A pasta Francisco Marins Entrevistas” contém
entrevistas concedidas pelo escritor e revisadas, supondo que certamente
voltaram-lhe uma cópia para a sua revisão e autorização.
A pasta “Correspondência Avulsa - leitores mirins” é composta
por correspondências de leitores mirins e foi significativa e tentadora a
leitura delas. Mesmo que não as tenhamos utilizado para esta pesquisa,
mas por sugerir a forma como os professores (em sua maior parte de São
Paulo) utilizavam e ainda utilizam as histórias do escritor nas aulas de
português, geografia e história, num exemplo da presença concreta da
manifestação da leitura.
Em uma das pastas, sem nome, estavam os artigos e contos
manuscritos, entre os quais, alguns que o escritor reuniu e republicou em
2001 no livro O curandeiro dos olhos em Gaze e outros contos. São
artigos e contos escritos entre 1930 e 1940 voltados para a história, para
a formação do “povo brasileiro” e para o registro dos costumes e
crenças do “caipira” ou do sertanejo. Foi a partir desta pasta que
escolhemos os três contos que são analisados no segundo capítulo desta
dissertação.
Após a realização da pesquisa no arquivo e conversas com o
escritor, o encantamento inicial teve de ser acompanhado por certa
cautela. Os arquivos privados pessoais definem-se, principalmente, pelo
fato de todos os documentos do acervo possuir como marca identitária
uma relação direta com o nome próprio do titular do arquivo. A pesquisa
no arquivo sugeriu-nos que sua construção ancorou-se a partir de
acontecimentos que balizaram a trajetória do escritor. Num arquivo
pessoal, é o nome do titular que cria a identidade fundamental do acervo
constituído. E é a partir dele que se organiza a série de documentos
acumulados.
O risco que corremos ao pesquisar em arquivos privados é o de
se acreditar que eles traduzem uma visão mais verdadeira do indivíduo
na medida em que foi organizado pelo próprio titular. Cria-se a falsa
noção que identifica os conjuntos documentais de origem pessoal a uma
manifestação concreta e objetiva da memória individual de seus
titulares.
A reflexão do sociólogo Pierre Bourdieu, em relação às
histórias de vida, tornou-se pertinente para pensarmos uma determinada
“ilusão biográfica” gerada pelos arquivos pessoais. Para além da crítica
22
em relação à naturalização do sentido de continuidade da trajetória
pessoal conferido às histórias de vida, Bourdieu alertou que o indivíduo,
ao contar sua vida ou expor suas memórias, atuaria como ideólogo de
sua própria história. Uma vez que seleciona certos acontecimentos
significativos em função de uma intenção global e estabelece entre eles
conexões adequadas a dar-lhes coerência. Trata-se, portanto, de um
esforço de representação, ou melhor, de produção de si mesmo.
16
Nesse sentido, levou-se em consideração que os indivíduos não
põem suas vidas “em conserva” de qualquer maneira. Phillippe Artières
observou que eles fazem antes um acordo com a realidade, manipulam a
sua existência, omitem, rasuram, riscam, sublinham e dão destaques a
certas passagens.
17
Arquivar a própria vida, portanto, é “se pôr no
espelho, é contrapor à imagem social a imagem íntima de si próprio, e
por isso o arquivamento do eu pode ser considerado uma prática de
construção de si e de resistência”.
18
Segundo a abordagem de Artières o
arquivo também poderia se tornar objeto de investigação. Apesar de o
arquivo de Marins sugerir uma dimensão autobiográfica, não nos
detivemos na análise de sua construção. Fez-se uso do material
pesquisado, procurando nos preservar da ingenuidade frente a esses
tipos de arquivo e das entrevistas, que ao longo da pesquisa, colocaram
lado a lado fonte oral e fontes escritas.
A partir das observações de Bourdieu e Artières, no primeiro
capítulo desta dissertação pretendeu-se apresentar o escritor Francisco
Marins na forma de um breve esboço biográfico. Buscou-se incorporar
outras reflexões fundamentais quando se remete à história de um
indivíduo e que encontramos também em Giovanni Lévi e Sirrineli.
Não se pretendeu trazer aspectos da sua vida pessoal para explicar a sua
obra ou vice-versa. Mas sim buscar um equilíbrio entre a trajetória
pessoal e o que constituiu o seu entorno, associado à sua trajetória social
e intelectual onde se pode visualizar elementos que vieram agregar para
a compreensão da sua concepção sobre o caipira e o mundo rural.
No segundo capítulo focou-se na análise das manifestações da
cultura caipira nos três primeiros contos escrito por Marins e intitulados
Ritinha, Mulita e Antes tarde... do que nunca. Também dedicou-se parte
da análise à influência da obra O Dialecto caipira do escritor Amadeu
Amaral. Por suas histórias estarem impregnadas de termos e expressões
16
BOURDIEU, P.. A ilusão biográfica. In: AMADO, J.; FERREIRA, M.M. Usos e abusos da
história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas Editora, 1996, p. 183.
17
ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. In Estudos Históricos. Arquivos Pessoais, Rio de
Janeiro, vol. 10, n° 21, 1998, p. 11.
18
ARTIÈRES, P.. Op. cit., p. 11.
23
do dialeto caipira, entende-se que Marins foi um intermediário desse
vocabulário não vernacular. O que se converteu em um indício de que a
sua literatura tem um lugar tanto na construção como na preservação do
dialeto caipira.
Em seguida analisou-se o livro Nas Terras do Rei Café, que, por
se tratar de outro gênero, tratamos em subitem. No que se refere às
manifestações da cultura caipira, destacamos primeiramente a oralidade
na literatura infantil. Mesmo dedicada ao público infantil, o escritor
manteve o vocabulário caipira e uma linguagem sociológica na
caracterização do trabalho do campo. Contrário às deturpações, Marins
esforçou-se para fixar a oralidade do linguajar caipira numa transcrição,
conforme suas palavras, “o mais fiel possível” ao com a finalidade de
preservar o dialeto. Como prova desse esforço, Marins foi chamado a
sinalizar dezenas de palavras caipiras presentes em suas histórias, as
quais, depois de algumas correções, estão presentes no Dicionário
Houaiss.
19
A série Taquara-Póca, que tem em Nas Terras do Rei Café a
sua primeira história, possui inúmeras semelhanças com as histórias do
sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato. Mas o início da
publicação dos dois autores foi marcado por uma forte diferença no diz
respeito às suas abordagens em relação ao homem do campo.
No terceiro capítulo analisaram-se as semelhanças e diferenças
em relação à concepção do mundo rural e do caipira presente nos
escritos dos dois literatos. Também tratou-se em subitem das
aproximações das suas trajetórias tanto intelectual como também
literária.
Tanto Lobato como Marins cursaram a mesma faculdade de
Direito em São Paulo e fizeram parte da sua Academia de Letras.
Escreveram para as mesmas revistas, investiram em diversos gêneros
literários e foram Best sellers. Por algum motivo referente à
universalidade de uma obra, apenas Marins está entre os nomes da
coleção Delphin, restrita aos chamados clássicos de literatura para
jovens de todo o mundo, e que também tem um verbete especial na
Oxford Children‟s Literature.
No quarto e último capítulo, focou-se no diálogo da sua
literatura com os projetos maiores que intelectuais propuseram para o
19
Por solicitação de Antonio Houaiss, Marins sinalizou algumas palavras que estão em seus
textos para fazerem parte do Dicionário Houaiss. Tivemos acesso a esta informação na pasta de
correspondências. Em entrevista publicada ao final do livro O Curandeiro dos olhos em gaze e
outros recontos, Marins também mencionou este trabalho. Ver MARINS, Francisco. O
curandeiro dos olhos em gaze e outros recontos. 2ª ed. São Paulo: Escrituras Editora, 2003.
24
campo e que circularam no âmbito do Estado e da elite nacional no
período do Governo de Getúlio Vargas. Pretendeu-se também apontar
para a ruralidade expressa em suas histórias cujo objetivo foi mostrar
que a concepção do mundo rural e do caipira em Marins atuou e atua
como uma forma de se encontrar o próprio Brasil.
Nas considerações finais, remeteu-se às considerações feitas ao
longo desta dissertação. Procurou-se chamar atenção para o modo como
os primeiros contos foram narrados, utilizando a linguagem caipira com
o intuito de preservá-la. Assim como o caráter didático e pedagógico do
livro infantil se relacionou a uma visão do mundo rural e do caipira que
o escritor tentou preservar.
25
CAPÍTULO 1
DE PRATÂNIA Ê TERRA PRA BROTAR CAIPIRA
20
Com efeito, todos sabemos que a literatura, como
fenômeno de civilização, depende para se constituir e
caracterizar, do entrelaçamento de vários fatores
sociais. Mas, daí a determinar se eles interferem
diretamente nas características essenciais de
determinada obra, vai um abismo nem sempre
transposto com felicidade.
Antonio Candido
Traçar o perfil de Francisco Marins implicou, no decorrer desta
pesquisa, um trabalho delicado. Primeiro, porque ao entrevistá-lo e
ouvir um pouco das suas experiências de vida, o escritor, assim como
seus textos, tornou-se fonte de pesquisa. Neste caso, tanto a literatura
como os depoimentos do escritor, deixaram de ser apenas instrumentos
de pesquisa passando a configurar também o nosso objeto. Segundo,
porque não se está imune ao conforto de uma “tradição biográfica
estabelecida” que concebe as experiências de um indivíduo ou uma
história de vida como sendo seu relato ordenado em um único sentido e
direção. Esta é uma questão crucial que se coloca ao historiador quando
pretende narrar parte de uma trajetória de vida.
Desde os anos 1980 intensificaram-se as discussões, sobretudo
na sociologia, que colocam em dúvida a coerência das histórias contadas
que dão sentido às trajetórias de vida. Tais discussões chegaram a um
extremo em que céticos e niilistas defendiam o “nonsense” de vida na
sociedade moderna, descartando qualquer coerência na trajetória de vida
dos indivíduos.
21
Passou-se a considerar um individualismo no qual as
estruturas e as instituições (como Estado, classe, entre outras) em nada
influiriam na história dos indivíduos.
22
Nesta perspectiva, negava-se
20
Inspirado no subtítulo “De Botucatu ê terra pra brotar caipira sô” retirado de
NEPOMUCENO, Rosa. Música Caipira. Da Roça ao Rodeio. São Paulo, Editora 34, p. 145.
Neste livro, Rosa Nepomuceno dedicou um capítulo aos músicos saídos “das bandas de
Botucatu para tentar a vida na grande São Paulo”, região da qual também saiu Marins.
21
Sobre essa tendência na sociologia nos anos 1980, ver PASSERON, J. O raciocínio
sociológico: o espaço não popperiano do raciocínio natural. Tradução de Beatriz Sidou.
Petrópolis: Vozes, 1995.
22
BOURDIEU, P.. Op. cit., p. 183.
26
qualquer significado ou sentido à vida de um indivíduo em qualquer
momento da sua história.
O sociólogo Pierre Bourdieu, no artigo “A ilusão biográfica”,
sugeriu um outro caminho para compreendermos as mediações e a teia
de relações em que os indivíduos se envolvem. Bourdieu fez objeção à
história de vida enquanto um conjunto de acontecimentos de uma
existência individual concebida como uma história e o relato dessa
história.
23
Este seria o senso comum no qual a vida é descrita como uma
história e o relato dessa história. Um relato biográfico, nesse sentido,
não se resume num conjunto de acontecimentos em torno de uma
existência individual, num caminho unidirecional com começo, meio e
fim.
Este tipo de abordagem tem consequências quando tomamos
como fonte determinada obra literária que é escrita por um autor, na
medida em que se aceita/compactua com a filosofia da história no
sentido de sucessão de acontecimentos históricos (Geschichte) implícita
numa filosofia da história no sentido do relato histórico (Historie).
24
E
ainda, (e talvez o mais incômodo para os historiadores) aponta para uma
forma de escrita em que nada diferenciaria o trabalho do historiador e do
romancista.
Bourdieu sugeriu ainda que prestemos atenção na construção do
espaço em que a trajetória de um indivíduo se passa, para, a partir daí,
tentarmos reconstruir a sua rede de relações sociais. Dessa forma,
conforme o autor torna-se possível avaliar a superfície social onde o
sujeito se encontra e que acabam influenciando as suas relações
objetivas. O autor propõe ainda o uso do conceito de habitus, que se
define por uma identidade que se constrói e está situada historicamente e
que permite a existência do indivíduo e sua ação em diferentes campos.
23
Ibidem, p. 183.
24
Idem, op. cit., p. 184. Bourdieu menciona rapidamente, neste artigo, duas concepções de
história que o autor Jörn Rüssen tratou detalhadamente em sua obra “Razão Histórica”.
Segundo Rüsen, um estereótipo muito comum entre os historiadores “que entendem seu
trabalho tão naturalmente racional que consideram a pergunta da teoria da história sobre a
legitimidade dessa auto-satisfação como completamente irracional”. Para Rüsen, em português,
a palavra “história” é empregada “sem adjetivos que a identifiquem melhor, tanto no sentido da
„história em geral‟ ou seja, sem a pretensão e o controle científicos quanto no sentido da
„história científica‟ [ou acadêmica]”. Geschichtswissenschaft é a expressão alemã que designa
história-ciência, enquanto Geschichte é utilizada no sentido de história em geral. Nesse sentido,
a primeira expressão refere-se a uma apreensão mais complexa das ações humanas, em outras
palavras, observadas no seu tempo e espaço específico. Ver RÜSEN, Jörn. Razão Histórica.
Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Trad. Estevão de Rezende Martins.
Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001, p. 14.
27
25
Considerando estas observações, este capítulo não se dedica a
escrever a história de vida de Francisco Marins. Porém, na medida em
que buscamos uma compreensão da abordagem das concepções a
respeito do mundo rural presente em sua literatura, tomar conhecimento
sobre os lugares da sua vivência, dos sujeitos com quem dividiu
experiências é também narrar sobre parte da sua trajetória de vida. Para
isso, fazemos uso das entrevistas realizadas com o escritor nos dias 15,
16 e 17 de março de 2008, em sua residência na cidade de Botucatu, no
Estado de São Paulo.
26
Trazer para a pesquisa a fonte oral tornou-se igualmente
importante como as outras fontes impressas. Os testemunhos, que
transmitem pontos de vistas individuais, podem apresentar perspectivas
que às vezes estão ausentes em outras práticas históricas, como a
subjetividade, as emoções ou o cotidiano.
27
Portanto, diante das fontes
orais o historiador deve considerar questões que nem sempre estão
presentes em outros estudos que fazem uso dessas fontes. Se
considerarmos as especificidades do tratamento com as fontes orais, a
história oral torna-se mais um instrumento de pesquisa que possibilita
esclarecer a partir das trajetórias individuais questões mais amplas que
muitas vezes não tem como ser entendidas ou elucidadas de outra forma.
Interrogar uma fonte literária exige questionar o contexto da sua
produção, o que está escrito e também o que não está, ou seja, os
possíveis silêncios. Nesse sentido, o testemunho do escritor tornou-se
importante na medida em que trouxe informações que não estão
explícitos na sua literatura. Mas estamos cientes de que o
entrelaçamento de vários fatores sociais e se eles interferem diretamente
nas características essenciais da sua obra, conforme observou Antônio
Candido, vai um abismo nem sempre transposto com felicidade.
28
A
única certeza é que no decorrer da pesquisa, as entrevistas com
Francisco Marins possibilitaram uma apreensão mais profunda do
sentido de sua obra.
As informações sobre a vida e a obra de Marins aparecem em
25
BOURDIEU, P.. Op. cit., p. 186. O conceito de habitus tem uma longa trajetória nas
Ciências Humanas, mas o utilizamos aqui na acepção de Bourdieu, em que as noções de
habitus e campo estão associadas.
26
As entrevistas gravadas ao longo de três dias foram transcritas e está disponível no arquivo
do escritor, localizado em sua residência em Botucatu/SP.
27
Sobre as especificidades do tratamento com as fontes orais, ver AMADO, J.; FERREIRA,
M.M.. Op. cit., principalmente a Introdução.
28
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. ed.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1980, p. 12.
28
várias entrevistas publicadas em jornais como também em outras
publicações e estudos. Juntamente com as entrevistas, fizemos uso de
três estudos direcionados especificamente para a vida e obra de Marins e
dos discursos proferidos pelo escritor como acadêmico da Academia
Paulista de Letras (APL).
No livro organizado por Lúcia Pimentel Góes, Sonho, Terra,
Homem. Estudo da Obra do escritor Francisco Marins, a literatura de
Marins foi estudada nas suas múltiplas direções com intuito de
historicizar as formas ficcionais de que se vale. O livro compreendeu
objetivos diversos, entre eles, atender ao ensino da literatura no ensino
fundamental e no ensino médio, estendendo-se aos estudiosos das áreas
de Literatura Infantil, Juvenil e cursos afins. O livro abarcou o conjunto
da obra, analisando os livros infantis, juvenis, os romances e um breve
estudo acerca do livro de recontos. No prefácio, Benjamin Abdala Júnior
ressaltou na obra de Marins “uma historicidade no corpo-a-corpo com a
terra”, na qual os gestos humanos “ganham sua universalidade concreta
e muitas laçadas de solidariedade comunitária”.
29
Valores estes que não
se reduziriam a constituir simples mercadoria de consumo, dentro do
que Theodor Adorno definiu como “indústria cultural”.
Outra contribuição ao estudo da literatura de Marins é a tese de
doutorado da pesquisadora Claudete Cameschi de Sousa, desenvolvida
na área da Educação. Souza buscou compreender o projeto literário do
escritor enquanto representação de “certa realidade brasileira” e da
produção desse gênero infanto-juvenil entre as décadas de 1940 e
1960.
30
Seus objetivos estavam respaldados pela tentativa de contribuir
para a compreensão da história, teoria e crítica da literatura infanto-
juvenil brasileira, analisando a configuração textual dos livros da série
“Taquara-Póca” (reunida num único volume em 1963) e o “Sótão da
Múmia” (1998). Souza também pretendeu recuperar e reunir a maior
parte da bibliografia de e sobre Francisco Marins e sua obra, a fim de
subsidiar pesquisas correlatas, como no caso desta dissertação.
Também dedicada especificamente para a literatura de Marins, é
a dissertação de mestrado em Letras, da pesquisadora Franceli
Aparecida da Silva Mello. Em sua pesquisa, a autora apontou para uma
lacuna que se acentua no que se refere aos estudos sobre autores, cuja
produção se localiza entre a morte de Monteiro Lobato (1948) e o surto
29
ADORNO, Theodor W. Textos escolhidos. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 1999, p.
5-12.
30
SOUZA, C. C.. A literatura infantil e juvenil de Francisco Marins: uma representação de
certa realidade brasileira. 2002. 369 f.. Tese (Doutorado em Educação) Faculdade de
Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2002, p. 38.
29
criador e editorialmente bem sucedido entre os anos 1970 e 1980.
31
Para
“auxiliar o preenchimento dessa lacuna”, Mello focou a obra de Marins
que, por sua extensa produção e permanência no mercado, apontou-o
como um dos escritores mais representativos do período.
Outros estudos das áreas da Educação, Letras e Literatura
também dedicaram parte de suas análises à literatura de Marins.
32
No
entanto, não temos nenhum trabalho da área de História que privilegie
uma perspectiva histórica da sua literatura, embora os fatores históricos
presentes em seus livros tenham sido abordados, de forma a marcar a
relação entre a ficção e a realidade ou a verossimilhança.
Esta relação é uma das preocupações que o estudo da literatura
no interior de uma pesquisa de história possui e nas últimas décadas
vem sendo tratada de forma peculiar por historiadores que pesquisam
fonte literária. Os historiadores Sidnei Chalhoub e Leonardo Pereira
questionaram como se pensar a literatura e a ficção, enquanto evidência
histórica, “já que a própria noção de ficção pressupõe a negação da idéia
de „evidência objetivamente determinada”.
33
A questão central, observaram os autores, não é o caráter
ficcional ou não de determinado testemunho histórico, mas a
necessidade de destrinchar a especificidade de cada testemunho.
Portanto, uma análise que parte da perspectiva histórica implica tentar
“descobrir e detalhar com igual afinco tanto as condições de produção
de uma página em livro de atas, ou de um depoimento em processo
criminal, quanto as de um conto, crônica ou outra peça literária.”
34
O
mesmo interrogatório, sugeriram os autores, cabe para as intenções do
sujeito, “sobre como este representa para si mesmo a relação entre
aquilo que diz e o real, cabe desvendar aquilo que o sujeito testemunha
sem ter a intenção de fazê-lo”, buscando uma lógica do texto que não se
encerra apenas na discussão entre a ficção e a realidade.
Em 1948, Sartre advertia que “todo escritor possui uma
31
MELLO, F. A. S.. Estudo das tendências da obra infantil de Francisco Marins.
Campinas, 1987. 174 f.. Dissertação (Mestrado em Letras) - Instituto de Estudos da
Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 1987, p. 11.
32
Entre eles incluem-se: LAJOLO, M. P.. Um Brasil para crianças. Para conhecer a literatura
Infantil Brasileira: história, autores e textos. São Paulo: Global, 1988, pp. 122-132;
CARVALHO, B. V.. A literatura infantil: visão histórica e crítica. ed. São Paulo: Global,
1985; LAJOLO, M. P.;, ZILBERMAN, R.. Literatura Infantil Brasileira História e
Histórias. São Paulo: Ática; 1984; COELHO, N. N.. Dicionário crítico da literatura infantil
e juvenil brasileira, (1882/1982). São Paulo: Edições Quiron, 1983; SALEM, N.. Historia da
literatura infantil. 2ª ed., São Paulo: Mestre Jou, 1970.
33
CHALHOUB, S.; PEREIRA, L. A. M.. A história contada: capítulos de história social da
literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 8.
34
Ibidem p. 8.
30
espécie de liberdade condicionada de criação, uma vez que os seus
temas, motivos, valores, normas ou revoltas o fornecidos ou sugeridos
pela sua sociedade e seu tempo e é destes que eles falam”.
35
Estas
considerações a respeito da relação entre história e literatura são
pertinentes quando tratamos da trajetória de Marins. Não nos propomos
a apresentar todos os dados possíveis que se possam relacionar a
trajetória do escritor, tarefa já desempenhada pelas pesquisas que o
elegeram como objeto de estudo. No entanto, as entrevistas realizadas
com o escritor trouxeram para esta pesquisa o elemento “vivido” e
possibilitando uma aproximação das recordações de infância, que tanto
influenciaram a sua literatura. Limitamo-nos aqui na tentativa de fazer
um breve esboço biográfico.
Francisco Marins vive atualmente em Botucatu, cidade
conhecida pelo slogan da “cidade dos bons ares”, por fazer referência ao
termo Ybytu Katu, que em tupi significa “bons ares”. Após ter passado
anos em São Paulo, onde fez sua formação acadêmica e desempenhou
diversas atividades ligadas à esfera cultural, hoje, aos 87 anos Marins
vive na região onde passou os primeiros anos da sua vida e da sua
formação escolar.
Marins nasceu na Vila da Prata, em 23 de novembro de 1922, na
época, distrito de Botucatu, antiga “boca do sertão” do Vale
Paranapanema e atual Pratânia. Filho e neto de pequenos agricultores,
viveu até os 12 anos nesta Vila, local onde frequentou os primeiros anos
do antigo ensino primário na escola rural chamada Escola Mista “D.
Sophia Padovan”.
36
Segundo Marins, para que pudesse continuar os
estudos, seu pai decidiu mudar-se para Botucatu, cidade onde Marins
concluiu o Primário e o Ginásio, no “Instituto de Educação Cardoso de
Almeida” (IECA), na época também chamado de Escola Normal.
37
Sobre a ocasião da sua saída de Pratânia, Marins recordou que
seu pai pensava o seguinte: “– esse menino aqui pode dar alguma coisa
na vida. E eu, que sou um caipira, não sei nada, ele, pelo menos...
35
SARTRE, Jean-Paul. Situations II. ed. Paris, Gallimard, 1948, apud SEVCENKO,
Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2ª
ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 29.
36
A denominação “escola mista” começou a aparecer no Brasil a partir de 1910, acompanhada
da idéia de um país rural em que a educação do homem do campo vinculava-se à sua fixação a
terra. Sobre o assunto ver SOUZA, C. M.. Discursos intolerantes: o lugar da política na
educação rural e a representação do camponês analfabeto. Disponível em
<www.historica.arquivodoestado.sp.gov.br>. Acessado em: 03/06/2009.
37
Sobre as escolas normais, ver DEMARTINI, Z. B. F.. Relatos orais sobre a infância e o
processo de alfabetização. In: FARIA, A. L. G..; MELLO, S. A.. (Org.). Linguagens infantis.
Outras formas de leitura. Campinas, SP: Autores Associados, 2005.
31
Vamos ver se meu filho faz alguma coisa da vida”.
38
Parece ter sido a
preocupação em dar continuidade aos estudos do filho que levou
Joaquim Marins Peixoto a deixar a Vila e mudar para Botucatu.
Conforme relatou Marins, seu pai
(...) tinha casa lá, tinha um sitinho, animais, tinha tudo em
Pratânia. Ele praticamente largou tudo e veio morar em
Botucatu. (...) Alugou uma casa aqui, na rua principal.
Deixou tudo lá pra eu estudar. Aqui, eu comecei o quarto ano
do Primário. Eu fui com um chapeuzinho de palha na
primeira lição, no primeiro dia de aula. Vestido mesmo de
caipira. Nós éramos caipiras.
39
O seu depoimento aponta para dois aspectos. Em primeiro
lugar, a recordação da fala do seu pai exposta por Marins, sugeriu-nos a
incorporação de uma idéia negativa a respeito da própria identidade, de
se viver num lugar onde se fazia nada da vida. O que não pode ser
levado ao pé da letra, uma vez que o ir para a cidade fazer alguma coisa
da vida é apostar num futuro que o sítio, onde a família vivia, não
contemplava, a começar pela educação. E ainda, remeteu a um discurso
que associava a cidade ao progresso e o campo ao atraso e ignorância.
Em segundo lugar, ao falar do seu primeiro dia de aula, Marins anunciou
e afirmou a identidade caipira que seu pai apontava negativamente.
Através da lembrança de Marins do que seu pai dizia, pode-se
apontar de maneira mais ampla para a incorporação de um discurso pelo
próprio homem rústico que associava uma idéia negativa à própria
identidade.
Para o crítico literário Raymond Williams, essas associações
são carregadas de representações e valores que implicam categorias de
análise cujos significados variaram ao longo do tempo. Segundo
Williams, “campo” e “cidade” são expressões cujos fortes significados
têm suas raízes no imaginário social do Ocidente, em que
O campo passou a ser associado a uma forma natural de vida
de paz, inocência e virtudes simples. À cidade associou-se
38
MARINS, Francisco. Entrevista com o escritor Francisco Marins. Local: Botucatu, São
Paulo. 3 cassete Nipponic (60 min.) ,15/mar/2008. Entrevista concedida a Cristina Dallanora,
p. 17.
39
Ibidem, p. 17. Marins também fez referência à geada que teria acabado com a pequena
plantação de café da propriedade da família. Mas o atribuiu a sua saída a este problema.
Talvez este relato expresse uma interpretação a posteriori em que o próprio escritor dá sentido
a sua trajetória de vida.
32
a idéia de centro de realizações de saber, comunicações,
luz. Também constelaram-se poderosas associações
negativas: a cidade como lugar de barulho, mundanidade e
ambição; o campo como lugar de atraso, ignorância e
limitação.
40
Essa observação resume as diferentes associações presentes no
depoimento de Marins. A decisão do pai de deixar o sítio para viver na
cidade e proporcionar estudo ao filho estava envolta por um sentido
completamente contrário ao que Marins atribuiu à mesma situação e à
identidade caipira, quando recordou dos tempos de infância. As
lembranças de infância têm para esta análise uma importância
permanente. Após um pouco de reflexão, elas remetem à estabilidade
das pequenas propriedades e às virtudes do homem do campo sendo que
seus significados são diferentes em épocas diferentes, colocando em
questão valores diversos.
Vale abrir um parêntese no que se refere ao termo caipira,
considerando que para esta pesquisa o termo não é simplesmente um
adjetivo, mas implica uma categoria de análise.
O termo caipira é genericamente utilizado para fazer referência
ao homem simples e rústico do campo. Mas nas Ciências Humanas,
principalmente nos estudos voltados para as comunidades tradicionais,
em especial os realizados pelas Ciências Sociais a partir dos anos 1940,
o termo adquiriu um significado mais específico exprimindo um modo
de vida. A pesquisa realizada por Antonio Candido na Fazenda Rio
Bonito/SP e que deu origem a obra “Os Parceiros do Rio Bonito”, é uma
das referências mais citadas nas pesquisas que tratam das comunidades
tradicionais caipiras e bairros rurais.
41
Ao longo do livro, Antônio Cândido apresenta algumas
definições das expressões comumente utilizadas nos estudos que se
referem ao universo rural brasileiro e à cultura rústica. O termo “rural”,
conforme o autor, exprime, sobretudo, localização. Já o homem que vive
no campo, é adjetivado pelo termo “rústico”, que pretende exprimir um
40
WILLIAMS, Raymond. A cidade e o campo: na história e na literatura. [Trad. de Paulo
Henrique Brito]. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 11.
41
Apesar das críticas que o acusaram de ter feito uma abordagem simplista do funcionalismo
de Malinowski, foi a pesquisa de Antonio Candido que inspirou e influenciou os estudos
subseqüentes sobre a sociabilidade dos grupos caipiras no Brasil. O próprio autor anunciou a
certa altura do prefácio em que trata das influências de intelectuais no seu estudo e cita, entre
elas, a contribuição da abordagem "lúcida, embora simplificadora" do funcionalismo de
Malinowski, para "estudar sociologicamente a alimentação humana" dentro do que o autor
definiu como cultura rústica e/ou cultura caipira.
33
tipo social e cultural, indicando o que é, no Brasil, o universo das
culturas tradicionais deste homem do campo. A expressão “caipira”,
Cândido a define como sendo “desde sempre um modo de ser, um tipo
de vida, nunca racial”.
Apesar de muitos estudos atribuírem ao caipira um sujeito
tipicamente paulista, Candido deixou bem claro que o termo tem a
“desvantagem de restringir-se quase apenas, pelo uso invertebrado, à
área de influência histórica paulista.”
42
Na acepção do autor, o caipira,
enquanto um modo de ser, poderia ser encontrado em todo o Brasil e em
todas as etnias, podendo ser um “caipira-branco”, um “caipira-caboclo”,
um “caipira-preto”, um caipira mulato”, designações criadas por
Cornélio Pires.
43
Porém, assemelhando-se sempre pelo modo como se
a interação entre o mundo físico e a cultura humana, que se
expressam, por exemplo, nas práticas festivas, na literatura oral, nos
processos agrícolas ou na organização da família.
Essa interação entre meio natural e cultura humana que Antonio
Candido observou ao longo de 10 anos numa região muito próxima a
que Francisco Marins nasceu, marcaram as primeiras experiências
infantis do escritor. Para esta pesquisa, estas experiências se tornaram
uma das chaves que nos permitiu uma apreensão mais profunda da sua
literatura.
Ao longo da entrevista, o escritor recordou muitas vezes dos
tempos de infância. O trecho seguinte resume um pouco esse período ao
descrever um pouco da paisagem da terra natal:
Até os 12 anos eu vivi sempre no interior, na terra, em
contato com a natureza. Mexia com bichos, com cavalos,
com bois, com fazenda, com café, com sítio, com gente, com
histórias. O meu pai, que também era um caboclo, me
contava histórias. Então aí há um bando de coisas que entram
no folclore e nas lendas brasileiras. Um menino que viveu
isso aí. (grifo meu)
44
Esse contato com a terra, com a natureza, a lida com os animais,
com as plantas e as histórias que ouvia seu pai contar e que se localizam
na infância do escritor, certamente nortearam as concepções do escritor
42
CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a
transformação dos seus meios de vida. 10 ª ed. São Paulo: Duas cidades; Editora 34, 2001, p.
28. Ver também MOTTA, Márcia. Dicionário da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005, p. 70-72.
43
Ibidem, p. 28.
44
MARINS, Francisco. Entrevista com o escritor Francisco Marins. Op. cit., p. 2.
34
sobre parte desse mundo rural. Pode-se argumentar de modo
convincente que as lembranças de infância têm uma importância
permanente na sua produção literária. Mas, o que parece ser somente
recordações ou um recuo nostálgico em direção ao passado, revela-se,
após um pouco de reflexão, um movimento mais complicado.
Ao falar em terceira pessoa sobre si mesmo, supondo alguém
que se olha de fora, Marins também deu a entender que a sua memória
tem uma história que entram num campo mais amplo da cultura
brasileira, do folclore e das lendas, gêneros típicos da linguagem oral
que são transmitidas de geração em geração. Essa percepção que
permanece nos dias de hoje quando Marins recorda dos tempos de
infância, reforça a idéia de que a memória também tem uma história,
como sugeriu Henry Rousso no artigo “A memória não é mais a
mesma”. Numa perspectiva histórica, a memória não deve ser tomada
apenas no seu sentido básico, como a presença do passado. Segundo
Rousso,
A memória, para prolongar essa definição lapidar, é uma
reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma
representação seletiva do passado, um passado que nunca é
aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido
num contexto familiar, social, nacional.
45
É o que Maurice Halbwachs definiu como “memória coletiva”,
na qual seu atributo mais imediato “é garantir a continuidade do tempo e
permitir resistir à alteridade, ao tempo que muda, às rupturas que são o
destino da vida humana”, constituindo-se em elemento essencial da
“identidade, da percepção de si e dos outros”.
46
No depoimento de Marins foi possível perceber uma percepção
do escritor sobre si mesmo como também um esforço de articular a sua
memória com a história, com aquilo que foi exterior à sua vivência
individual. É dessa forma que o escritor vai atribuindo um sentido à sua
trajetória de vida. Segundo Marins, a condição de ser caipira não o
impediu de se destacar nos estudos da Escola Normal de Botucatu,
embora tenha recordado de certo preconceito no seu primeiro dia de
aula.
Eu me lembro bem... ele (o professor) me recebeu assim. No
45
ROUSSO, Henry. A memória não é mais a que era. In AMADO, J.; FERREIRA, M. M.. Op.
cit., p. 94.
46
Ibidem, p. 94-95.
35
começo, eu subi as escadas ali da Escola Normal, do IECA.
Eu subi as escadas e chegando lá em cima, ele olhou pra mim
e falou:
Primeira coisa, você tem que abolir esse chapeuzinho.
Me lembro bem dessa frase. Ele disse „abolir‟, e eu pensei,o
que será abolir?‟ Você tem que abolir esse chapeuzinho.
(risos)
Passado algum tempo do início das aulas, Marins recordou que
surpreendeu o professor ao apresentar a lição de casa contendo o maior
número de substantivos pedido por ele. Mais de mil substantivos
escritos num caderno. Seu pai guardava alguns livros de agricultura em
casa e num “achado fantástico”, o escritor lembrou ter encontrado um
livro somente sobre plantas no qual constavam muitos substantivos entre
nomes de frutas, hortaliças, flores, frutas, verduras e outros. O bom
desempenho no trabalho de casa garantiu-lhe uma posição muito melhor
na sala de aula e o levou a sentar na primeira fileira, próximo a
Raimundinho, na época, filho de um importante professor da cidade.
Destacar-se perante os colegas parece ter significado também mostrar do
que era capaz o menino do “chapeuzinho de palha”.
Na mesma escola, Marins conheceu Hernani Donato, amigo que
se tornaria um parceiro de longa jornada. Desde os tempos de infância
no IECA até se tornarem imortais na Academia Paulista de Letras
(APL), onde atualmente ainda se encontram para cumprir as “honras da
casa”. Donato também é autor de livros infantis e parece ter sido na
mesma época em que os dois escritores anunciaram o seu gosto pela
leitura e pela escrita.
Na época do IECA, Marins e Donato fundaram juntos um jornal
de circulação local chamado O Estudante.
47
Também escreveram uma
novela de aventuras chamada O Tesouro, publicada em capítulos no
Suplemento O guri dos Diários Associados de São Paulo.
48
Foi durante
a aula de gramática, relatou Donato na ocasião de um dos discursos
proferidos nas reuniões semanais da APL, que
47
Hernani Donato é autor de livros infantis, contos, romances e de história. Freqüentou, em
São Paulo, a Escola de Sociologia e Política e um curso de Dramaturgia. Entre suas obras,
destacam-se Chão Bruto, adaptado duas vezes para o cinema brasileiro; Babel, premiada pela
Academia Brasileira de Letras e Achegas para a História de Botucatu. É membro da APL
desde 1972 e foi por duas vezes presidente do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.
48
Criado por Assis Chateaubriand, os Diários Associados formaram a maior cadeia de
imprensa do Brasil, reunindo diversos jornais, emissoras de rádio, estações de televisão e
revistas. Entre elas, a TV Tupi e a revista O Cruzeiro.
36
o rapazinho, embarcado na fantasia dos doze anos, navegava
pelo Mar das Antilhas. Descrevia, com rugidos de ventos,
rilombos de canhões e urros de maruja, o combate de um
galeão pejado de ouro e de mulheres bonitas contra um
brigue pirata estimulado pela sede de ouro e de belas
mulheres. Nada de próclise, de ênclise, de mesóclises. (...)
49
O episódio terminaria com barcos retalhados, homens feridos e
mortos, mulheres em pânico, mas “Francisco Marins que desse tratos à
bola para consertar os navios, cuidar dos homens e acalmar as
passageiras. Pois o capítulo da novela, a dois autores, deveria ser
publicado em jornal de São Paulo poucos dias mais tarde”.
50
Esta novela rendeu a Marins seu primeiro prêmio literário, pela
revista O Malho, do Rio de Janeiro, em 1937, quando tinha 14 anos. Era
o concurso de O conto da semana, destinado a adultos. A novela foi
ilustrada por Oswaldo Storni que, anos depois, passaria a ilustrar todos
os livros infantis e juvenis do escritor.
51
Vale lembrar que O Malho foi
umas das primeiras revistas humorística do Brasil. Criada em 1902, por
Crispim do Amaral, a publicação imprimiu seus esforços em satirizar
acontecimentos políticos e contou com a colaboração de diversos
caricaturistas. A revista continuou circulando durante o Estado Novo,
período em que era mantida por uma sociedade anônima, até 1952.
52
Após a proeza de figurar em uma revista importante da época,
quando era ainda muito jovem, Marins continuou escrevendo
reportagens e uma série de artigos e contos sertanejos que foram
publicados no jornal Folha de Botucatu, imprensa de circulação local.
Escreveu para este jornal seguidamente entre os anos 1938 e 1944.
53
Finalizado o ginasial no IECA, Marins mudou-se para São
Paulo e começou a se preparar para exame que o classificou para cursar
a Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Embalado pelo
entusiasmo das atividades literárias do IECA, continuou escrevendo,
mas nos anos 1940 passou a publicar em revistas literárias e jornais de
49
DONATO, Hernani. Discursos de Hernani Donato e Francisco Marins. In: Separata da
Revista da Academia Paulista de Letras, n° 80, ano XXIX, São Paulo, 1972, p. 5.
50
Ibidem, p. 5.
51
ES, Lúcia Pimentel, op. cit., p. 221.
52
Sobre o papel da imprensa ilustrada no final do século XIX e primeira metade do XX, ver
FERNADES, E. B. B.. Imagens de índios em O MALHO: a imprensa como mediadora de
representações. In Anais do XXIV Simpósio Nacional de História, São Leopoldo RS, 2007.
Ver também GONÇALO, Junior. A guerra dos Gibis: a formação de mercado editorial
brasileiro e a censura aos quadrinhos, 1933-1964. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
53
Os três primeiros contos serão analisados no Capítulo III e foram republicados em 2003 no
livro O curandeiro dos olhos em gaze e outros recontos, como sendo “os da juventude”.
37
renome nacional, entre elas O Malho (RJ), mencionado anteriormente;
Dom Casmurro (RJ); Universal (RJ); O Cruzeiro (SP); Ilustração
Brasileira (RJ); Planalto (RJ); e nos jornais Folha da Manhã (SP) e
Diários Associados (SP).
54
Entrementes, em 1942, Marins ingressou no Curso de Direito
pretendido. O exame para entrar na Faculdade exigia a aprovação prévia
nas provas das cadeiras obrigatórias de Latim, Língua Portuguesa,
Filosofia, Sociologia, entre outras disciplinas. Segundo lembrança do
escritor, a cadeira de Literatura reprovava o maior número de
concorrentes. Nesse período, Marins contou ter sido meio “rato de
biblioteca”, local onde passava a maior parte do seu tempo, lendo e
estudando. Entre os escritores que mais gostava de ler e admirava,
Marins citou León Tolstói, Flaubert, Mark Twain, Balzac, Conan Doyle,
entre outros. Mas em especial, as leituras de “Crime e Castigo” de
Fiódor Dostoiévski e “A velhice do padre eterno” do poeta português
Guerra Junqueiro, vieram a seu favor na prova de literatura e lhe
renderam aprovação com distinção.
O êxito alcançado no exame somado à procura de alunos por
quem os preparassem para as provas de Literatura, para ingressar na
Faculdade no ano seguinte, encorajaram Marins a abrir um cursinho. A
idéia do cursinho preparatório para os exames do pré-jurídico para o
ingresso na Faculdade surgiu também em decorrência da necessidade de
obter alguma fonte de renda.
55
Localizado na Rua São Bento, número
68, o cursinho Humânitas contou com a contribuição de alguns colegas
da Faculdade. Marins não citou muitos nomes na entrevista, mas um
deles era Marotta Rangel, responsável pela cadeira de Latim, que anos
mais tarde foi Diretor da Faculdade de Direito da USP. Marins lecionou
a cadeira de Literatura, chegando a ter 80 alunos, o que considerou ter
54
Dom Casmurro foi uma revista literária semanal que circulou entre os anos de 1938 e 1944.
Foi considerada uma importante publicação do gênero no Brasil em virtude dos 50.000
exemplares que chegou a atingir semanalmente. Entre seus colaboradores estavam Oswald de
Andrade, Cecília Meireles, Jorge Amado e Graciliano Ramos. O Cruzeiro foi a principal
revista ilustrada brasileira do século XX. Começou a ser publicada em 10 de novembro de
1928 pelos Diários Associados de Chateaubriand. Já, a revista Ilustração foi uma publicação
mensal editada pelo O Malho, que no período do Estado Novo atuou no anonimato. A Revista
Planalto tinha repercussão em toda a América e durante os anos 1941-42 foi dirigida por
Orígenes Lessa. Especificamente sobre a repercussão desta revista ver GUEDES, Sandra.
Orígenes Lessa e a Propaganda Brasileira. 2007. Dissertação (Mestrado em Comunicação
Social) - Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, Universidade Metodista de São
Paulo. São Bernardo do Campo, 2007.
55
MARINS, Francisco. Entrevista com o escritor Francisco Marins. Op. cit., p. 21. Para
ingressar na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, era preciso antes passar na seleção
do Pré-juríco. O cursinho aberto por Marins era preparatório para o ingresso no Pré-jurídico.
38
sido bastante para a época. A empreitada de abrir o cursinho, frisou com
certo sorriso, triplicou sua renda: “se normalmente a minha receita era
de 300 reais por mês, eu já tinha mil (...) eu já estava bem feito.
56
Nesse mesmo período, Marins envolveu-se nas atividades da
Academia de Letras da Faculdade e dirigiu a Revista Arcádia, que havia
cessado publicação.
57
Havia um grupo na Academia que escrevia para
jornais e revistas ao qual Marins juntou-se. Publicou 8 números da
Arcádia, enquanto Genésio Pereira Filho era o presidente da Academia.
Com as novas eleições, Marins foi eleito e permaneceu por dois anos
como presidente, contando com a participação de Lygia Fagundes
Telles, Aloysio Ferraz Pereira, entre outros acadêmicos que também
eram da Faculdade e seus colegas.
58
A participação de Marins na Academia como também os seus
artigos publicados na Arcádia, trouxe alguns aspectos sobre o que
norteou a sua vida literária. Reduto de registros literários, notas e
comentários de vários acadêmicos que estavam se consagrando como
importantes escritores, a Revista tinha entre seus colaboradores Miguel
Reale, Francisco de Almeida Prado e Cecília Meireles.
Sobre o papel das revistas e jornais das duas primeiras
Faculdades de Direito do Brasil, Lilia Moricz Schwartz observou que
nelas registravam-se debates importantes que nem sempre se davam em
sala de aula. Locais próprios para a legitimação e publicidade de novos
grupos intelectuais, as revistas cumpriam nestes centros também um
papel destacado. É nesse sentido que tendo em mente a complexidade da
produção intelectual da Faculdade de Direito fazemos um breve uso da
Arcádia.
59
Os assuntos eram variados, mas eram registros literários, não
sendo comuns artigos cujas discussões estivessem voltadas
especificamente para a área do Direito. Voltados para o problema da
identidade nacional, dos costumes e da cultura brasileira, os textos de
56
MARINS, Francisco. Entrevista com o escritor Francisco Marins. Op. cit., p. 21.
57
E também conheceu Elvira Bandeira de Melo, que viria a ser sua futura esposa, em 1947,
completando 62 anos de casado no ano de 2009.
58
MARINS, Francisco. Entrevista com o escritor Francisco Marins. Op. cit, p. 8.
59
SCHWARTZ, L. K. M.. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no
Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, p. 142-143. A autora refere-se aos
primórdios das Faculdades, momento em que se procurava responder à necessidade de
confrontar quadros autônomos de atuação e de criar uma intelligentsia local apta a enfrentar os
problemas específicos da nação recém independente. Mas os esforços de se “provar „para fora
e para dentro‟ que o Brasil imperial era de fato independente e a criação „não apenas novas leis,
mas também uma nova consciência‟”, estenderam-se a outros períodos, como do Estado Novo,
embora com questões peculiares, ao qual Marins fazia parte.
39
Marins que pudemos consultar nesta revista voltavam-se, sobretudo,
para a discussão da identidade e do sertanismo brasileiro.
60
Em 1944, por iniciativa de um estudante do curso, foi realizado
um “amplo inquérito entre os mais representativos elementos da
inteligência estudantina, acerca dos problemas de maior atualidade e
relevo”.
61
Publicado inicialmente no jornal Folha da Noite, os
resultados deste inquérito foram reunidos na Revista Arcádia sob o
título de “Depoimento da atual geração acadêmica”.
62
O inquérito
respondido pela “geração” acadêmica indagava sobre “as suas mais
íntimas convicções, de seus mais profundos pensamentos. Sobre o que?
Sobre tudo, de uma maneira geral: a vida, os homens, o mundo, a
arte...”. E tornar-se-ia um “documento de interesse histórico, em que as
gerações futuras possam conhecer qual o modo pelo qual os moços deste
período agitado, de verdadeira transição, encaram a verdadeira paisagem
da vida”.
63
Responderam ao inquérito os acadêmicos: Lygia Fagundes,
Genésio Pereira Filho, Aloysio Ferraz Pereira, Esther de Figueiredo
Ferraz, Manuel Cebrian Ferrer, Adail Pereira Ribeiro, Rubens Teixeira
Scavone, Francisco Marins, Fernando Melo Bueno e João Nery
Guimarães. Esse tipo de inquérito era considerado uma importante
forma de expressão pelo meio acadêmico.
64
Essa geração acadêmica”
na qual Marins esteve incluído fazia das manifestações literárias
atividade essencial de suas vidas e desse modo pode contribuir para o
entendimento dessa esfera em que o escritor esteve envolvido.
O depoimento de Marins acerca deste inquérito mostrou-nos
que o escritor enxergava no conhecimento da cultura brasileira a chave
60
A Revista Arcádia está arquivada na biblioteca da Faculdade de Direito de São Paulo e
pesquisamos alguns números, que estão discriminados nas fontes desta dissertação.
61
CUNHA, Roberto Salles. Depoimento da atual geração acadêmica. Depoimento do escritor
Francisco Marins. In Arcádia. Revista da Academia de Letras da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo. Genésio Pereira Filho (diretor-responsável). Ano IX, outubro de
1944, 23, p. 5. Os depoimentos recebem o título do depoente e logo abaixo é apresentado
um breve currículo do acadêmico.
62
Criada por Olival Costa e Pedro Cunha, a Folha da Noite foi um diário vespertino, que atraiu
leitores das classes médias urbanas da cidade de São Paulo e que circulou entre os anos 1921 a
1959. A Folha da manhã foi criada em 1925 e após 24 anos, foi criada a Folha da Tarde. Em
1960, os três títulos se fundiram e formaram a Folha de São Paulo.
63
CUNHA, Roberto Salles. Op. cit., p. 6.
64
A campanha em prol da criação da USP, por exemplo, ganhou força a partir de 1926, através
de um inquérito organizado por Fernando de Azevedo, e promovido pelo jornal O Estado de S.
Paulo. A unificação ocorreu em 1934 e agregou os cursos então existentes, entre eles, a
Faculdade de Direito, oficializada por D. Pedro I em 1827. A observação aparece em
BARROS, L. A.. A toponímia oficial de espontânea na cidade universitária campos Butantã
da USP. Revista USP, São Paulo, n.56, p. 164-171, dez/fev 2002/2003, p. 165.
40
para abrir as portas para uma nova cultura moderna e consoante com a
realidade do momento histórico que se vivenciava. Para Marins “o
Brasil precisava antes ser conhecido por nós mesmos”. Para isso,
considerava necessário o aumento de edições de escritores brasileiros,
sobretudo, de “obras do espírito”, aquelas que difundissem a “expressão
da vida brasileira, dos nossos costumes, das nossas tendências”.
65
Neste depoimento percebemos a preocupação do escritor com a
pouca difusão de obras “do espírito”, que expressassem os costumes
brasileiros e, assim, pudessem expurgar a “escola do porque-ufanismo
do meu país”, que, na época, a seu ver, causava “um grande mal a várias
gerações. Melhor seria que desde os verdes anos nos mostrassem a
realidade e o quanto precisávamos fazer ao tempo de nos terem
embevecido em poesia”.
66
E citou como exemplo as reduzidas “edições
dos escritores brasileiros e o analfabetismo avassalador”.
67
A
consequência destes problemas aos quais não se importavam os
seguidores da escola do “porque me ufano do meu país”, refletia na
pouca difusão das “obras do espírito” que priorizavam o que pertencia à
“expressão da vida brasileira”. Para Marins,
Faltavam-nos os livros que cheirassem à terra, que vivessem
o drama real do homem, interpretando o seu sentir, os seus
sonhos, as misérias, a língua, revelando os complexos
problemas de uma raça em formação ao contacto de
impressionantes elementos os mais desencontrados, a luta
contra a natureza avassaladora, da qual ele sái titã vencedor
como nos “Sertões” ou um esmagado como no Canaan.
68
Esta preocupação de não se ufanar, mas trazer à tona os
problemas da vida brasileira refletiu na literatura de Marins como
também na produção de outros escritores da sua geração.
A despeito das controvérsias e dificuldades que o emprego da
categoria “geração” implica, Sirinelli sugeriu que ela pode ser entendida
como “uma peça essencial da „engrenagem do tempo‟”, desde em que
65
CUNHA, Roberto Salles. Op. cit., p. 57-60.
66
A crítica de Marins a esta “escola”, foi uma referência à obra do político e literato Afonso
Celso de Assis Figueiredo Junior (1860-1938), intitulada O porque me ufano de meu país,
publicada em 1908. Sobre este aspecto ver CARVALHO, J. M.. O motivo edênico no
imaginário social brasileiro. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 13, n.
38, out. 1998. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
69091998000300004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 30/11/2009.
67
CUNHA, Roberto Salles. Op. cit., p. 58.
68
Ibidem, 59. Cabe frisar que Os sertões, de Euclides da Cunha, exerceu profunda influência
sobre os romances de Marins que começaram a ser publicados a partir da década de 1960.
41
levados em conta “os setores estudados e os períodos abordados”.
69
O
ano do inquérito, 1944, estava muito próximo da renúncia de Getúlio
Vargas e os anseios e descontentamentos desses acadêmicos remetem,
mesmo que indiretamente, à situação política em que o país se
encontrava.
70
Esse tipo de experiências que eram compartilhadas e o
reconhecimento mútuo que apareciam na forma do tratamento, como na
apresentação dos depoentes antes das respostas ao inquérito “o
escritor, revelando-se um estudioso, redator, conquistando seu lugar nas
letras” , começavam a denotar a importância de cada um, formando
uma esfera intelectual que encaravam a literatura como uma missão.
Vale expor a opinião que Marins registrou sobre a sua repugnância e
“horror a renunciar certos princípios para escalar posições”, o que
sugere uma visão contrária aos intelectuais que trabalhavam a serviço do
Estado.
Nesse mesmo período, Marins estava escrevendo algumas
notas sobre as publicações da Companhia Melhoramentos de São Paulo
e que circulavam na imprensa paulista. Em decorrência dessas notas,
Marins foi chamado para trabalhar como Assistente de Divulgação na
editora. Convite aceito sem hesitação, Marins passou a ler e resenhar
textos para divulgação das obras que iriam à venda. Segundo Marins, ele
viu na Melhoramentos uma oportunidade muito melhor para o seu
futuro que dar aula no cursinho e ao mesmo tempo uma garantia
financeira. Decidido a começar o trabalho, levou um breve susto, nesse
período, que coincidia com o final da Guerra. Seu nome estava na
“lista de chamada, para formar aquela turma do Brasil que ia ser
chamada”. Marins chegou a ir até Botucatu, despedir-se dos pais, mas
“por sorte, depois de uns dois meses a Guerra acabou e eu me safei
dessa”.
71
Passado o susto, Marins encerrou o cursinho Humânitas e foi
69
SIRINELLI, Jean-François. A geração. In Usos e abusos da História oral. Op. cit., p. 137.
70
No breve currículo exposto antes do depoimento, consta: “Na política acadêmica, Marins
ocupava a o cargo de diretor do tradicional P. A. Conservador”. Em 1943, surgiu a Frente de
Resistência, através da incorporação ao GRAP (Grupo Radical de Ação Popular) de alunos da
Faculdade de Direito. Em 1945, no final da ditadura, alguns migraram para a UDN e outros,
entre eles Antônio Candido, e Paulo Emílio, fundaram a União Democrática Socialista (UDS),
que iria aderir à esquerda Democrática, fundada no Rio de Janeiro, que se aliou nas eleições à
UDN, contra Getúlio e à candidatura de Dutra. Associação Brasileira de Escritores, 1942.
ABDE, também envolvida na luta contra o Estado Novo. Marins vivenciou este período, mas
não conseguimos nos aproximar da suas convicções políticas em relação aos partidos ou ao
governo. Ver JACKSON, L. C.. A tradição esquecida: Os Parceiros do Rio Bonito e a
sociologia de Antônio Candido. Belo Horizonte: Ed. UFMG; São Paulo: FAPESP, 2002, p. 79-
80.
71
MARINS, Francisco. Entrevista com o escritor Francisco Marins. Op. cit., p. 7.
42
trabalhar na Editora.
No período em que Marins iniciou seu trabalho na Editora, o
cargo de editor chefe da Melhoramentos estava sob comando de
Lourenço Filho, e que viria influenciar o pensamento e também a sua
produção literária. Não se tratava de qualquer chefe, mas sim do
educador brasileiro conhecido, sobretudo, por sua atuação no
movimento da Escola Nova.
Manoel Bergström Lourenço Filho (1897-1970) teve ampla
atuação no campo da educação, desde a educação pré-primária e
alfabetização infantil até na formação de professores para o ensino
técnico rural (profissionalizante). Exerceu cargos na administração
pública federal como diretor de gabinete de Francisco Campos (1931)
e como diretor geral do Departamento Nacional de Educação (nomeado
por Gustavo Capanema, em 1937). Em paralelo aos cargos políticos, foi
professor e estudioso de assuntos didático-pedagógicos. Os vínculos da
sua formação profissional com sua produção e atuação no campo da
educação conferem a Lourenço Filho o perfil de intelectual educador.
72
Preocupado com a escola em seu contexto social, a idéia
principal do educador baseou-se no fato de que para que houvesse
mudança na sociedade era preciso que houvesse também mudança no
ambiente escolar. Caberia à literatura, por meio do livro didático,
exercer o papel fundamental. Por este motivo, Lourenço Filho é
considerado um dos principais responsáveis pelo movimento da “Escola
Nova” que propunha a transformação dos conceitos básicos
educacionais e a reestruturação moral e social da sociedade com vistas à
democratização do acesso à escola. O foco do movimento, portanto,
estava voltado para a reordenação da sociedade, através do ajustamento
dos indivíduos à nova realidade, às necessidades do mercado de trabalho
e aos novos padrões socioculturais.
Incorporando várias vertentes do pensamento político e
filosófico, o movimento considerou a infância como momento inicial
desse processo de transformação do indivíduo em sociedade.
73
Na
concepção de Lourenço Filho, a literatura infantil e juvenil, para além
do seu sentido informativo ou puramente educacional (como a literatura
didática), teria também um fim prático e, nesse sentido, poderia
72
Lourenço Filho também criou e dirigiu o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (1938),
no qual, pela primeira vez no País, cursos de especialidades da educação passaram a ser dados
em nível superior.
73
Sobre o movimento escolanovista ver NAGLE, J.. Educação e sociedade na Primeira
República. São Paulo: EDUSP, 1974; CAMBI, F.. Historia da pedagogia. São Paulo: Ed.
UNESP, 1999.
43
contribuir no processo de formação do “espírito infantil”.
74
Segundo Francisco Marins, as discussões e comentários que
Lourenço Filho fazia a respeito da literatura infantil, motivaram-no a
inscrever seu primeiro texto para crianças, sem que o editor soubesse.
Foi assim que Nas terras do Rei Café foi parar na mesa de avaliação do
educador, que alegava a falta de textos que “exaltassem o nacionalismo
e as belezas de nossas terras”. Um primeiro texto, sem origem, nem
autoria registradas por Marins. Desconhecendo a origem e autoria do
texto, Lourenço Filho aprovou e elogiou o “projeto de livro” que foi
publicado em outubro do ano seguinte. No discurso de recepção da
posse de Marins na Academia Paulista de Letras, Lourenço Filho
mencionou que o seu parecer na época, sem saber a autoria, foi: Livro
de um verdadeiro escritor: Dêsse escritor ainda havemos de ouvir falar
muito”.
75
Nas terras do Rei Café, publicado pela primeira vez em 1945,
foi reeditado três vezes nos anos subsequentes. A primeira edição
comercial foi de 6.000 exemplares, à qual se seguiu, seis meses após o
lançamento, uma 2ª de 10.000, e no ano seguinte, outra edição de
10.000.
76
Em decorrência do êxito alcançado nas vendas, Marins foi
incentivado a escrever outros livros. O escritor resolveu então
transportar as personagens da sua primeira história para um segundo
livro, “Os Segredos de Taquara-Póca”. O trio das que formava as
personagens principais das suas histórias tinha vivido muitas aventuras,
o que o escritor considerou ser possível ter sequência nas mesmas
“terras”.
Incentivador da literatura de Marins, gestor de políticas de
reforma escolar e profissional engajado no movimento da “Escola
Nova”, foi como editor da Melhoramentos que Lourenço Filho pode
concretizar as estratégias de intervenção cultural através do livro
inscrevendo-as no seu Programa de reforma da sociedade pela reforma
da escola.
77
Desse modo, presumimos que a atuação de Lourenço Filho
74
LOURENÇO FILHO, Manuel Bergström. A Pedagogia de Rui Barbosa. Ruy Lourenço
Filho (Org.). 4ª ed. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, p. 30.
Disponível em:
<http://www.inep.gov.br/download/cibec/2001/colecao_lourenco_filho/a_pedagogia_v2.pdf>,
Acesso em 15/07/08. Ver também LOURENÇO FILHO, Manuel Bergström. Introdução ao
estudo da escola nova: base, sistemas e diretrizes da pedagogia contemporânea. 13ª ed. São
Paulo: Melhoramentos, 1978.
75
DALLANORA, Cristina. Op. cit., p. 26-27.
76
SOUZA, C. C.. Op. cit., p. 78.
77
A frase “Programa de reforma da sociedade pela reforma da escola” foi o lema do
Movimento da Escola Nova.
44
na editora estava diretamente ligada ao seu projeto maior como
escolanovista.
O incentivo à publicação do primeiro livro de Marins somado
ao histórico de publicações nesta editora permite-nos inferir que, assim
como Lourenço Filho colocou em prática suas estratégias de intervenção
cultural através do livro, Marins reivindicou posteriormente este projeto
pedagógico para sua obra. Havia um elemento pedagógico na qual a
literatura, sobretudo para o público infanto-juvenil seria co-responsável
de um projeto para o país.
Cabe ressaltar que todos os livros de Marins foram publicados
pela Melhoramentos, antes de irem para outras editoras, como a Ática,
Escritoras, etc. E os que se destinaram ao público infantil, antes de
serem publicados, passaram antes pela revisão e avaliação do
educador.
78
Em relação à editora Melhoramentos, Lourence Hallewell
afirmou que a viga mestra da sua atividade editorial baseava-se nos
livros de literatura infanto-juvenil e nos livros didáticos que, em 1967,
uma relação de livros para crianças utilizada pela Biblioteca Pública de
São Paulo deu o primeiro lugar à esta editora. Sobre a relação da Editora
com Lourenço Filho, Hallewell observou que:
o nome de Manuel Bergström Lourenço Filho está associado
aos primeiros tempos da atividade editorial da empresa, cujas
atividades a partir de 1922 como diretor do ensino no Ceará, e
a resultante Introdução ao estudo da escola nova, inspiraram
toda uma geração de reformadores educacionais em todo o
Brasil. A Melhoramentos manteve-o por muitos anos como
consultor editorial. A partir de 1926, ele fazia
sistematicamente a revisão de todos os livros infantis da
casa...
79
A concepção acerca do mundo rural que se formou nos
primeiros anos da sua carreira literária e foi levada adiante, com as
publicações seguintes, estava vinculada ao seu projeto literário em que a
literatura é entendida não apenas como arte, mas também como objeto
formador de que o escritor se valeu para atingir tanto o público a que se
destina o livro, - as crianças, como ao tipo de mercado privilegiado de
circulação de livros nos anos 1940, - a escola. E dentro desta concepção
78
Todos os livros de Marins foram publicados pela Melhoramentos, antes de irem para outras
editoras, como a Ática, Escrituras, entre outras. Ver CARVALHO, F. A.. Op. cit., p. 83.
79
HALLEWELL, Lourence. O livro no Brasil (sua história). São Paulo: EDUSP, 1985, p.
258-259.
45
de literatura como objeto formador, o escritor fez veicular a sua
concepção acerca do mundo rural e do caipira.
Para a historiadora Zilda Iokoi devemos considerar em conjunto
a criação cultural, os autores, o público,
para que se possam perceber as assimetrias entre eles, e se
delas decorrem simetrias no processo de constituição de
idéias, gosto, crítica, e novas criações decorrentes dos
debates promovidos por um conjunto de situações em que a
criação possa ser uma referência de auto-reconhecimento ou
mesmo de superação de dilemas sociais.
80
Nesses anos da década de 1940, a atmosfera de discussões sobre
educação certamente influenciou quem dava os primeiros passos na
literatura e ao mesmo tempo era interessante e às vezes necessário,
conforme o depoimento de Marins, “seguir os mestres do tempo”.
81
Francisco Marins foi Assistente de Divulgação na Editora até
novembro de 1945. Um ano depois, formou-se em Direito, mas resistiu
ao exercício da advocacia. Balançado entre voltar à Botucatu, para
exercer a profissão como queriam seus familiares ou permanecer em
São Paulo trabalhando na Melhoramentos, o escritor decidiu
permanecer. Após esse período, Marins tornou-se o responsável pelo
Departamento Editorial. Em 1959, assumiu as presidências da Câmara
Brasileira do Livro e da Comissão Estadual de Literatura. Em 1960
passou a responder pelo cargo de Editor chefe da Melhoramentos, no
qual permaneceu até o ano de 1978.
82
Nesse meio tempo, foi eleito para
ocupar a cadeira número 33 da Academia Paulista de Letras em
substituição a Altino Arantes (1965) e continuou assumindo cargos de
presidência e diretoria de instituições ligadas à política do livro,
editoração, de direitos autorais, entre outras.
No exercício de Editor, Marins foi responsável pela publicação
de diversas obras, entre elas o Novo Dicionário Brasileiro da Língua
Portuguesa; Memória Histórica Brasileira, Ficção Nacional, Clássicos
Imortais. No campo da literatura infanto-juvenil, as principais foram as
coleções Verdes Anos, Obras Célebres, e Colorama esta última, uma
80
IOKOI, Z. M.G... Jeca Tatu contraposto aos Parceiros do Rio Bonito: diálogos entre Lobato e
Cândido. In PESAVENTO, S. J.. (Org.). Leituras Cruzadas: diálogos da história com a
Literatura. Porto Alegre: ed. Universidade/UFRGS, 2000, p. 256.
81
MARINS, Francisco. Entrevista com o escritor Francisco Marins. Op. cit., p. 1.
82
Vale frisar que Marins foi editor em tempos de ditadura militar. Um aspecto da sua trajetória
que certamente renderia outra dissertação, mas que no momento deixamos apenas em nota de
rodapé.
46
série de obras coloridas da Itália (10 volumes) em que a participação
brasileira foi apenas do texto.
Entre os anos de 1950 a 1980, participou de diversos
congressos, encontros, feiras e seminários. Entre eles, o Congresso
Ibero-Americano de Literatura Infantil (Buenos Aires/Argentina), com a
palestra intitulada Literatura Infantil na formação do hábito de ler,
publicada na revista alemã Zeitschrift für Kulturaustausch, em virtude
da Feira de Frankfurt (1977), da qual o escritor participou como chefe
da Delegação de Escritores Brasileiros.
O envolvimento de Marins nas atividades da Editora e os seus
esforços em direção à publicação de obras literárias refletem certo
afastamento das relações e convívio do círculo de intelectuais
acadêmicos da Academia da Faculdade de Direito. A sua dedicação em
direção ao público infanto-juvenil no início da sua vida literária,
também foi outra constatação no decorrer da pesquisa, principalmente
pelos depoimentos anteriores de Marins sobre a sua preocupação em ser
lido e o alcance dos seus livros nas escolas que aparecem no final de
algum de seus livros.
Nestes últimos anos, Marins tem se dedicado ao “Clubinho
Taquara-Póca, que dentro do sítio, é destinado a atender o público em
idade escolar e apoiar atividades extra-escolares. Também tem
trabalhado na revisão dos seus romances para deixar o que considera a
versão definitiva. Em entrevista concedida, ao ser indagado sobre se um
dia iria deixar suas memórias, Marins respondeu:
Memórias? Como obra planejada, não tenho planos de
escrevê-las. Em verdade, na fieira dos livros publicados o
diabo da auto-biografia sempre se mete, mesmo que
disfarçada com outros nomes. Que é o romance senão a
fiação das experiências vividas, pelo autor ou pelos amigos
mais próximos? Mesmo quando se busca apoio na história,
esta ressurge através das figuras vivas, que no fundo vibram
pela experiência, sentimentos, e reações do próprio autor.
Essa não é uma forma de ele se retratar?
83
Ademais da cronologia presente nesse esboço biográfico,
pretendeu-se apresentar alguns lugares pelos quais o escritor circulou,
trocou experiências e criou vínculos. Ângela de Castro Gomes observou
83
MARINS, Francisco. Concursos literários são fábricas de mediocridade. Hora e vez dos
escritores. A Gazeta, de São Paulo em 09/04/1973.
47
que o convívio entre intelectuais é fundamental para o desenvolvimento
de suas idéias e criações. O circuito de sociabilidade que os intelectuais
se inserem os coloca no mundo cultural permitindo a eles interpretar o
mundo político e social de seu tempo. Desta forma
não é tanto a condição de intelectual que desencadeia uma
estratégia de sociabilidade e, sim, ao contrário, a participação
numa rede de contatos é que demarca a específica inserção de
um intelectual no mundo cultural. Intelectuais são, portanto,
homens cuja produção é sempre influenciada pela
participação em associações, mais ou menos formais, e em
uma série de outros grupos, que se salientam por práticas
culturais de oralidade e ou escrita.
84
Os anos de Academia de Direito, o contato e convívio com o
educador Lourenço Filho e mais tarde, a Academia Paulista de Letras
foram ambientes cujas discussões estavam direcionadas para os
problemas pelos quais o país passava como também a ação dos “homens
de letras”. Essa esfera pública intelectual também tem sua história. Entre
estes problemas aos quais Marins insistiu se debruçar e trazer para a sua
literatura, eram as transformações pela qual o campo estava passando. É
o que tratamos no segundo capítulo, focalizando as manifestações da
cultura caipira nos contos e no livro Nas Terras do Rei Café.
84
GOMES, A. M. C.. Em família: a correspondência entre Oliveira Lima e Gilberto Freyre. In:
GOMES, A. M. C. (Org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p. 51.
48
CAPÍTULO 2
MANIFESTAÇÕES DA CULTURA CAIPIRA EM
FRANCISCO MARINS
Este capítulo trata das manifestações da cultura caipira em três
contos de Francisco Marins e no livro Nas terras do Rei Café em que
teve a primeira aparição no cenário literário infantil o sítio Taquara-
Póca.
Ritinha, Mulita e Antes tarde... do que nunca, foram os três
primeiros contos escritos por Marins e publicados na imprensa local de
Botucatu entre os anos de 1938 e 1939. Nos três contos estavam
esboçados alguns episódios, personagens e temas que o autor recuperou
posteriormente tanto na produção infanto-juvenil, na década de 1940,
como também nos seus romances, publicados a partir dos anos 1960. Os
livros que compõem a série Taquara-Póca são: Nas terras do Rei Café
(1945), Os Segredos de Taquara-Póca (1947), O Coleira Preta (1948) e
Gafanhotos em Taquara-Póca (1949). Para esta dissertação priorizamos
os contos e o primeiro livro da série pela proximidade temporal.
85
Por cultura caipira entendemos um conjunto de manifestações
referentes ao modo de vida do caipira que Antônio Candido caracterizou
segundo alguns critérios: isolamento, posse de terra, trabalho doméstico,
auxílio vicinal, disponibilidade de terra e margem de lazer. Estas
características, conforme Candido, são acompanhados pelas “mesmas
práticas festivas, a mesma literatura oral, a mesma organização da
família, os mesmos processos agrícolas, o mesmo equipamento
material.”
86
Os aspectos elencados por Candido estariam presentes por
toda parte do Brasil, tratando-se, portanto, da cultura caipira e não se
restringindo apenas ao aspecto geográfico.
Nos escritos de Marins, os enredos das histórias estão
impregnados de problemas que fazem referência a estes aspectos gerais
da cultura caipira.
87
Eles se expressam tanto na linguagem culta como
85
Os romances compõem um quadrilogia na qual as personagens deslocam-se de uma história
para outra. São eles: Clao na Serra (1963), Grotão do Café Amarelo (1964), ...E a Porteira
Bateu (1968) e Atalhos sem fim (1986). Acreditamos que a análise das manifestações da cultura
caipira em seus romances implicaria mais fôlego, portanto, uma outra pesquisa.
86
CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. Op. cit., p. 108.
87
Considerando as diversas acepções que o termo cultura” carrega e passando pela noção da
cultura como algo dinâmico, a definição de Antonio Candido possui um aspecto mais estático.
Para esta pesquisa, a caracterização feita por Candido foi a que mais auxiliou na análise do
mundo rural nos contos e literatura infantil de Marins. Principalmente porque a região estudada
49
na linguagem do homem rústico, principalmente através dos “causos”,
que estão relacionados a literatura oral. Por esta razão tratamos neste
capítulo das manifestações da cultura caipira. Antes de entrarmos
propriamente na análise dos contos e do livro infantil, apresentamos
uma breve discussão em torno da presença do “regionalismo” na
literatura brasileira. Em seguida, apontamos para a influência de O
dialecto caipira, do escritor Amadeu Amaral utilizada por Francisco
Marins.
Em seu discurso proferido na ocasião da sua posse na Academia
Paulista de Letras, Marins afirmou que Amadeu quis “enfeixar as
manifestações populares sob a forma do linguajar comum, de
quadrinhas, anedotário, causos, contos e lendas”
88
, num esforço
pioneiro em um momento em que muitos escritores com olhos culturais
graduados na Europa e na tradição greco-latina, “olharam com descaso
para as nossas autênticas fontes de inspiração literária”. Esta foi a
contribuição de Amaral, ao ver de Francisco Marins, que influenciou
muitos escritores, - inclusive ele,
a voltarem suas vistas pra mais perto e tentar ver o que hoje,
numa interpretação pessoal, nós poderíamos assim indicar:
O terreninho da cozinha, cercado de guarantãs; o corgo
rasinho ponteado de pinguelas escorrendo pro tanque de
guarus; pilão, monjolo, canjica, farinha de milho beijus,
mingau de milho-verde, cambuquira, pamonha, curau; para a
peneira de café „dependurada na cintura da mulher‟, e
descobrir:
a beleza morena das roceirinhas faceiras os amores
esquivos dos carreadores, nos arrasta-pés repicados de viola
e chorados de sanfona Santo Antônio São João São
Pedro; reza com pipoca e quentão, mastro de pau-de-sebo;
negro velho cachimbando; parelha de isqueiro, facão na
cintura, espingarda pica-pau, vara de pesca... saúva
cortadeira!
a contemplar os barrancos desbeiçados das boçorocas, a
biquinha, as coivaras, as tigüeras, o chão gordo das meias-
laranjas, rechãs e grotões;
vendola da estrada pro mata-bicho, sal e querosene; o
por Candido nos anos 1940 (sobretudo Botucatu e Bofete) era a mesma que influenciou a
literatura de Marins. O que não significa afirmar que as mudanças nos processos agrícolas e o
modo de vida caipira não viessem a modificar também o comportamento desse caipira segundo
estas características.
88
MARINS, Francisco. Discurso de posse de Francisco Marins. (25 de março de 1966), In:
Revista da Academia Paulista de Letras, ano XXV, vol. 71, São Paulo: 1968, p.133.
50
curandeiro das mezinhas infalíveis e das benzeduras, a cruz
da estrada enlaçada de festões de são joão;
por que não descobrir a doce poesia da „casa pequenina com
um coqueiro ao lado‟, perdida nas campanhas de macega e
barba-de-bode, ponteadas pelo barbatimão, cheirosas a
araçás e guabirobas, floridas das jalapas, acordadas de
quando em vez pelo vôo repentino das perdizes e codornas e
pela fala das seriemas pernudas?
E não sentir a poesia do ranchinho à beira do chão, todo feito
de buraco „onde a luz faz clarão‟, o romantismo das varandas
e caramanchões dos velhos sobrados e casa solarengas, de
pilão, pedindo à sobremesa: doce de cidra, abóbora, batata-
doce; criança de olho arregalado ouvindo causos do saci, do
lobisomem, assombração e mula-sem-cabeça...
Tudo isso vida, alma e coração do povo numa palavra,
poranduba capaz de fazer vibrar e enternecer os
sentimentos dos nossos escritores, sob pena de sintonizarem
com a índole de sua gente.
89
2.1 “Quem conta um conto aumenta um...”: os contos da
juventude
Externo minha opinião sobre seus contos: admiráveis,
bem escritos e especialmente por seus deliciosos
dialetismos e regionalismos. Não hesito... publique-
os o quanto antes.
Antonio Houaiss
Conforme opinião de Houaiss, sim, os contos de Marins estão
repletos de “dialetismos e regionalismos”.
90
nestes primeiros contos,
que foram republicados no livro Curandeiro dos olhos em Gaze e outros
recontos, em 2001, aparecem muitas expressões dialetais. Mas Marins
não resolveu simplesmente republicá-los, submeteu antes à leitura de
89
Ibidem, p 133. Na monografia, apenas mencionamos a influência de Amadeu Amaral na
literatura de Marins. Para esta pesquisa, procuramos aprofundar alguns aspectos, tendo em
vista a possibilidade de consulta ao livro de Amaral, no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB)
da USP. Neste excerto proferido por Marins, quase todas as expressões que dizem respeito a
espécies de pássaros, árvores e comidas e podem ser encontrados no Dialecto caipira.
90
MARINS, Francisco. O curandeiro dos olhos em gaze e outros recontos. Op. cit., p, 188.
51
criteriosos especialistas e estudiosos da Língua Portuguesa e renomados
representantes da Literatura Brasileira, como o próprio Houaiss,
Leonardo Arroyo, Jorge Amado, Massaud Moisés, Wilson Martins,
Peregrino Junior, entre outros.
Os três contos escolhidos para análise apresentam expressões do
dialeto caipira, comuns ao cotidiano rural e a um modo de vida, dentro
do que chamamos de ruralidade, que se define por uma condição de
pertencimento a esse universo.
Vale frisar que esses contos são da década de 1930, quando
outros escritores, em épocas anteriores, recorriam a uma narrativa de
recuperação e registro dos costumes e da linguagem caipira. A
historiografia da literatura se encarregou de analisar as peculiaridades
das formas de se expressar o local.
A preocupação em expressar a realidade local, com os costumes
e a natureza na Literatura Brasileira remonta ao Arcaísmo. A
historiografia da literatura nos mostra as várias apropriações e
finalidades com que essa preocupação se fez presente na literatura como
também em sociedade.
91
Mas foi com o regionalismo que se iniciaram
os esforços de diferenciação entre a literatura portuguesa e a literatura
brasileira. O regionalismo foi a manifestação por excelência na literatura
do “pesquisar” ou do “descobrir” o país. Acreditava na necessidade
crescente de realismo e verossimilhança, dentro do seu projeto
nacionalista de traçar a diferenciação da nossa literatura da portuguesa.
Foi o chamado regionalismo dos românticos, que se caracterizou,
principalmente, pelas narrativas afastadas da capital imperial, que se
passavam em lugares menos influenciados pela cultura européia. Alguns
de seus principais representantes foram José de Alencar, Bernardo
Guimarães e Franklin Távora.
Candido assinalou a diferenciação entre o regionalismo
romântico, da que veio mais tarde a ser designada por “literatura
sertaneja” (ou regionalismo pós-romântico) de Afonso Arinos, Simões
Lopes Neto, Valdomiro Silveira, Coelho Neto, Monteiro Lobato, entre
outros. Segundo o autor, as duas vertentes apresentaram um
desenvolvimento bastante diverso pelo espírito e consequências.
92
Os
escritores da chamada literatura sertaneja, em sua maioria, afirmou o
autor, foram responsáveis pela criação de um “sentimento subalterno e
91
Considerando a literatura como Instituição, conforme Candido defendeu em sua obra
Formação da Literatura Brasileira, que entende a literatura como atividade regular da
sociedade e não apenas como manifestação de sentimento.
92
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos, 1750-
1880. 10ª ed. rev. pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006, p. 528.
52
fácil de condescendência em relação ao próprio país”. Isso porque o
homem do campo foi visto de um ângulo “pitoresco, sentimental e
jocoso”, numa espécie de vitimização do sujeito a ser estudado. D
Candido ter afirmado que
Os românticos, Bernardo, Alencar, Taunay, Távora
tomaram a região como quadro natural e social em que se
passavam atos e sentimentos sobre os quais se incidia a
atenção ficcionista. [...] Já, o regionalismo pós-romântico dos
citados escritores tende a anular o aspecto humano, em
benefício de um pitoresco que se estende também à fala e ao
gesto, tratando o homem como peça da paisagem,
envolvendo ambos no mesmo tom de exotismo. É uma
verdadeira alienação do homem dentro da literatura, uma
reificação da sua substância espiritual, até pô-la no mesmo pé
que as árvores e os cavalos, para deleite estético do homem
da cidade. Não é à toa que a „literatura sertaneja‟ (bem
versada apesar de tudo por aqueles mestres), deu lugar à pior
subliteratura de que há notícia em nossa história, invadindo a
sensibilidade do leitor mediano como praga nefasta, hoje
revigorada pelo rádio.
93
Em sua tese de doutorado intitulada “Paixão de raiz: Valdomiro
Silveira e o regionalismo”, Carmem Lydia de Souza Dias observou que
apesar destes escritores terem sido responsabilizados por uma “visão
introdutora de deformações de concepção, tanto de natureza social como
estética”, Candido não deixou de reconhecer neles a habilidade no
manejo da matéria regional, dedicando a alguns, estudos especiais,
como no caso de Simões Lopes Neto.
94
Embora a literatura sertaneja tenha sido apontada por cair num
olhar condescendente e estigmatizador sobre o homem do campo, bem
ou mal ela se pronunciou num momento em que o país buscava fixar
raízes da sua literatura, da sua identidade e da sua autenticidade. E que
por terem se voltado à realidade local, podem ser tomados como ponto
de partida para iniciativas posteriores, como a de Guimarães Rosa, por
exemplo.
Mário de Andrade, embora vendo na literatura voltada para a
região, “uma ilusão perigosa”, limitadora por ser programada,
93
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. Op. cit., p. 528.
94
DIAS, C. L. S.. Paixão de raiz: Valdomiro Silveira e o regionalismo. 1980. 310 f.. Tese
(Doutorado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, 1980, p. 29.
53
confessou-se “perplexo ante a ajuda que o regionalismo vinha
oferecendo ao movimento modernista, no sentido de proporcionar a
caracterização nacional.
95
Temos o recurso “regional” também como
expressão do próprio nacionalismo e, portanto, capaz de escapar dos
limites geográficos, elevando o regional ao sentido de nacional.
Amadeu Amaral, autor d‟O dialeto caipira, publicado em 1920
pela Casa Editora “O livro”, esteve entre estes escritores-pesquisadores
preocupados em registrar os costumes que naquela época acreditava
estarem sendo perdidos diante ao processo de modernização. Nas
palavras de Amaral:
Ao tempo em que o célebre falar paulista reinava sem
contraste sensível, o caipirismo não existia apenas na
linguagem, mas em todas as manifestações da nossa vida
provinciana. Os genuínos caipiras, os roceiros ignorantes e
atrasados, começavam também a ser postos de banda, a ser
atirados à margem da vida coletiva, a ter uma interferência
cada vez menor nos costumes e na organização da nova
ordem de coisas.
Hoje, ele se acha acantoado em pequenas localidades que não
acompanharam de perto o movimento geral do progresso e
subsiste, fora daí, na boca de pessoas idosas, indevidamente
influenciadas pela antiga educação.
96
Na introdução do livro, é possível verificar que a concepção de
Amadeu Amaral sobre o caipira teve como referência “o momento geral
do progresso” caracterizando os “genuínos caipiras” como sendo
“ignorantes e atrasados”. Amaral tomou como padrão de comparação
termos alheios ao próprio modo de vida caipira, e não como, a partir dos
anos 1940, propuseram fazer os estudos das comunidades tradicionais e
que têm n‟Os Parceiros dos Rio Bonito a principal referência.
Ao longo a obra, repetidas vezes Amaral referiu-se aos caipiras
de maneira a criar “um sentimento fácil de condescendência”, conforme
considerou Antonio Candido. O excerto abaixo é ilustrativo nesse
sentido:
O caipira genuíno vive hoje, com pouca diferença, como
95
DIAS, C. L. S.. Paixão de raiz. Op. cit., p. 15.
96
AMARAL, Amadeu. O dialecto caipira. São Paulo: Casa Editora “O Livro”, 1920, p. 12. A
livro foi digitalizado por mim e encontra-se disponível para consulta no Instituto de Estudos
Brasileiros IEB, na Universidade de São Paulo USP.
54
vivia duzentos anos, com os mesmos hábitos, os mesmos
costumes, o mesmo fundo de idéias. Daí o conservar
teimosamente tantos arcaísmos e também tantos termos
especiais que, vivos embora no português europeu, são ás
vezes completamente desconhecidos, aqui, da gente da
cidade, (...). Daí, também, o não precisar tanto de termos
novos, que, pela maior parte, ou designam coisas a que vive
alheio, ou idéias abstratas que não atinge.
97
Apesar de ter apresentando uma concepção negativa a respeito
do caipira, o principal objetivo de Amaral foi outro: analisar e registrar o
vocabulário caipira. O despretensioso trabalho, de que pediu “excusa
aos competentes” consistiu, em suas palavras, “caracterizar esse dialecto
„caipira‟, ou, se acham melhor, êsse aspecto da dialectação portuguesa
em S. Paulo”, que a sua época considerava “quasi virgem de vistas de
conjunto, sob critérios objetivos”.
98
Segundo Amaral:
Fala-se muito em „dialecto brasileiro‟, expressão
consagrada até por autores notáveis de além-mar; entretanto
até hoje não se sabe ao certo e que consiste semelhante
dialectação, cuja existência é por assim dizer evidente, mas
cujos caracteres ainda não foram discriminados. Nem se
poderão discriminar enquanto não se fizerem estudos sérios,
positivos, minuciosos, limitados a determinadas regiões.
O falar do Norte do país não é o mesmo que o do Centro ao o
do Sul. O de S. Paulo não é igual ao de Minas. No próprio
interior dêste Estado se podem distinguir sem grande esforço
zonas de diferente matiz dialectal o Litoral, o chamado
“Norte”, o Sul, a parte com o Triângulo Mineiro.
Seria de se desejar que muitos observadores imparciais,
pacientes e metódicos se dedicassem a recolher elementos em
cada uma dessas regiões, limitando-se estrictamente ao
terreno conhecido e banindo por completo tudo o que fosse
hipotético, incerto, não verificado pessoalmente. Teríamos
assim um grande número de pequenas contribuições,
restrictas em volume e em pretensão, mas que na sua
simplicidade modesta, escorrerita e séria prestariam muito
maior serviço do que certos trabalhos mais ou menos vastos,
que de quando em quando se nos deparam, repositórios
incongruentes de factos recolhidos a todo preço e de
97
AMARAL, Amadeu. O dialecto caipira. Op. cit., p. 41-42.
98
Ibidem, p. 14.
55
generalizações e filiações quasi sempre apressadas.
99
Fosse realizado o trabalho, Amaral pensava ser possível um
exame comparativo das várias modalidades locais e regionais e da
discriminação dos fenômenos comuns a todas as regiões do país e dos
“privativos de uma ou de outra fracção territorial”. Daí se saberia quais
os caracteres gerais do “dialecto brasileiro, ou dos dialectos brasileiros,
dos subdialectos, o grau de vitalidade, as ramificações e o domínio
geográfico de cada um”.
100
E aos que se “dignassem” a auxiliar “de acôrdo com as ideias
que ficam esboçadas, no aumento e aperfeiçoamento desta modesta
tentativa”, recomendou Amaral:
a) não recolher termos e locuções apenas referidos por
ôutrem, mas os que forem pessoalmente apanhados em
uso, na boca de indivíduos desprevenidos;
b) indicar, sempre que fôr possível, se se trata de dicção
pouco usada ou freqüente, e se geralmente empregada ou
apenas corrente em determinado grupo social;
c) grafá-la sempre tal qual fôr ouvida. Por exemplo: se
ouvirem pronunciar capuêra, escrever capuêra e não
capoeira. Isso é essencial, e há muitíssimas colecções de
vocábulos que, por não terem obedecido a este preceito,
quase nenhum serviço prestam aos estudiosos, não passando,
ou passando pouco de meras curiosidades;
d) se houver diferentes modos de pronunciar o mesmo
vocábulo, reproduzi-los todos com a mesma fidelidade;
c) sempre que possa dar-se interpretação à grafia
adoptada, explicar cumpridamente os pontos duvidosos;
d) ter especial cuidado em anotar os sons peculiares à
fonética regional (como o som de r em arara ou o som de g
em gente); declarar como devem ser pronunciadas tais letras,
no caso de que o devam ser sempre da mesma maneira, e
adoptar um sinal para distinguir uma pronúncia de outra, no
caso de haver mais de uma (por exemplo, um ponto em cima
do g quando sôa aproximadamente dg, para o diferençar do
que sôa à moda culta; uma risca sôbre o c, para significar que
é explosivo, como em chave (tchave), etc.
101
Consideradas as especificidades, Amaral tratou em capítulos os
99
Idem, p. 15.
100
AMARAL, Amadeu. Op. cit., p. 15.
101
Ibidem, p. 15/16.
56
cuidados que deveriam ser tomados no registro do fonema, (sobretudo
atentando para a prosódia caipira), da lexicologia, da morfologia e da
sintaxe. Por último, e o que ocupou o maior número de páginas, seguiu-
se o registro das palavras do dialeto caipira, organizado pela primeira
vez através de vocabulário.
Para Amaral o vocabulário do dialeto caipira era bastante
“restricto de acordo com a simplicidade de vida e de espírito, e portanto
com as exíguas necessidades de expressão dos que os falam.”
102
Entretanto, afirmou que os elementos do português arcaico do qual o
dialeto estava impregnado, constituiria “um dos mais curiosos estudos a
que se pode prestar a nossa linguagem rústica, e não por interesse
puramente lingüístico, senão também pelo clarão que lançaria sobre
questões atinentes à formação do espírito do nosso povo”.
103
E advertiu
que “sobre a importância lingüística não é necessário insistir, pois ela,
por assim dizer, se impõe por definição”, citando como exemplo, o
estudo da evolução da língua, para a leitura de documentos vernáculos
dos séculos XV e XVI, nos quais as formas vernaculares envelhecidas,
bem vivas no falar caipira, poderiam iluminar.
Foi deste prisma que Amadeu Amaral procurou registrar a
linguagem caipira, propondo fazer do modo mais fidedigno possível e
sem deturpações. E neste aspecto, Amaral possui uma singularidade em
relação aos demais sertanistas que procuraram incorporar as variedades
do português falado ou da forma oral para no texto literário. Valdomiro
Silveira, por exemplo, transcreveu a linguagem caipira dentro de uma
fórmula própria que inclui a fidelidade, mas também a
flexibilidade/liberdade na manipulação do material lingüístico”. O
escritor foi portador de um estilo particular de reelaboração, observou
Dias, na qual expôs “como raridade ou extravagância o material de suas
pesquisas”.
104
Ao contrário, Amadeu Amaral, procurou mostrar os desvios
fonéticos, morfológicos, sintáticos e vocabulares do caipira em relação
aos padrões cultos, embora esclarecendo que muitos fatos do dialeto,
foram observados entre os paulistas cultos do interior.
Apesar das peculiaridades do tratamento dado por Amadeu
102
AMARAL, Amadeu. Op. cit, p. 31.
103
Ibidem, p. 31-32. E apresenta as características gerais da formação do vocabulário: “a) de
elementos oriundos do português usado pelo primitivo colonizador, muitos dos quais se
arcaizaram na língua culta; b) de termos provenientes das línguas indígenas; c) de vocabulários
importados de outras línguas, por via indirecta; d) de vocábulos formados no próprio seio do
dialecto”.
104
Idem, p, 212.
57
Amaral em seu estudo d‟O dialecto caipira, o escritor tamm dialogou
com escritores anteriores e procurou aprimorar o uso da linguagem,
estabelecendo alguns critérios, que mencionamos anteriormente. Pode-
se dizer que foi uma tentativa de tornar legítima a entrada do dialeto
caipira na literatura brasileira, tendo em vista um processo maior de
conhecimento e interpretação da realidade nacional. E que foi publicada
num momento em que muitos escritores buscavam uma forma de
expressão contrária à visão que se propagava na produção cultural dos
anos 1890-1920, com uma característica linguagem “bacharelesca e
artificial”.
105
Um exemplo dessa tentativa foram os contos sertanejos.
Em artigo publicado em 1939, Francisco Marins observou “não
ser pequeno o número de escritores que se dedicam ao conto regional”.
O gênero que agrada, acreditava o escritor, “tem pela frente uma
natureza como palco de todas as cenas (...), os vilarejos solitários,
sumidos nas paragens mais longínquas, como herva rasteira no
capoeirão, sempre oferecem fontes inesgotáveis de inspiração sadias!”.
Mas que poucos escritores nele conseguiam se firmar, como por
exemplo, Djalma Grohmann, que Marins considerou um “contista
imaginoso” e lamentou o seu não reconhecimento.
106
Aos 15 anos, Francisco Marins já estava precavido de certa
ingenuidade. Deixando para trás as novelas do início do ginasial, por se
tratar talvez “dumsses pecados da adolescência
107
, - embora tenham
saído em publicação do Diário de São Paulo, pôs-se a escrever seus
contos.
Narrativas simples, que seguem uma ordem cronológica e
reservam um espaço à imaginação e fantasia. Assim como nos
apresentam os contos de Marins, permitimo-nos ser diretos e objetivos
na sua descrição.
Para a análise dos seus primeiros contos, priorizamos dois
principais aspectos para facilitar a exposição: a perspectiva do mundo
rural e a linguagem caipira. A orientação geral que permanece nos
contos está recoberta pela temática mais ampla da ruralidade, que
Ricardo Abramovay apontou, num amplo sentido, como um modo de
vida em que se valorizam as relações com a natureza e entre as pessoas,
105
CARVALHO, F. P.. A natureza na literatura brasileira: regionalismo pré-modernista. São
Paulo: Hucitec: Terceira Margem, 2005, p. 15.
106
MESSEJANA, Francisco. [Francisco Marins]. Djalma Grohmann. Um contista imaginoso.
Jornal Letras Botucatuense, Botucatu, 06/01/1939, Ano IV, nº 556.
107
CUNHA, Roberto Salles. Op. cit.. Esta observação aparece entre aspas na apresentação do
escritor, escrita pelo acadêmico de Direito, Roberto Sales Cunha, antes do depoimento de
Marins. O que sugere que tenha sido dita pelo próprio Marins.
58
fortalecendo assim os valores humanos.
108
2.1.1 Ritinha: o primeiro conto, do primeiro encanto e um
primeiro desencanto
109
Ritinha foi publicado originalmente na coluna Contos
Sertanejos do jornal Folha de Botucatu, em 1938; republicado na revista
O Malho (RJ) em novembro de 1939 e reeditado no livro O curandeiro
dos olhos e gaze e outros recontos, em 2001. Tivemos acesso à primeira
versão publicada na Folha de Botucatu, mas como foram poucas a
modificações feitas por Marins, optamos por trabalhar com a versão
definitiva publicada em livro.
110
A porteira bateu, o Nero latiu e prima Rita enfim havia chegado.
Geninho fazia o que podia para chamar a atenção da prima
... estilingava passarinhos, com pontaria certa, pescava
lambaris no córrego e lhe contava proezas a maior parte
mentiras. Ficava longo tempo a mirá-la, embevecido, mas
sem dar demonstrações. Achava-a linda, olhos pretos, rosto
rechonchudo com as sardas, os cabelos compridos e lisos.
Saímos juntos, pelos campos várias vezes, a catar gabirobas,
e aquele cheiro de fruta silvestre parecia grudar nela.
111
O “cheiro de fruta silvestre”, que parecia “grudar” em Ritinha,
denota um tom poético no qual se destaca um dos elementos básicos do
tratamento ficcional: a transferência para as personagens da capacidade
de ver e sentir.
112
Foram dias especiais os que se seguiram ao lado da
Prima Rita, até ser chamado pelo seu pai, que “ensaiava uma conversa
séria”:
108
Definição que norteou a pesquisa de ABRAMOVAY, R.. O futuro das regiões rurais. Porto
Alegre: Ed UFRGS, 2003.
109
Segundo Marins, Ritinha não é um tipo de conto “de acordo com as características
maupassaniana, mas se aproxima da „Antologia‟ de Almiro Rolmes Barbosa, que na época
fazia escola: „de começo causador, de impacto e de fim inesperado‟”. Ver GÓES, Lucia
Pimentel. Op. cit., p. 198.
110
Conforme também a vontade de Marins. Afinal, não faria sentido o trabalho de reedição das
obras pelo escritor se não as lêssemos na versão que o autor considera definitiva. Sabemos que
as intenções do escritor na década de 1940 não eram as mesmas de quando as alterações foram
feitas. Mas as mudanças neste conto foram pontuais, os aspectos que priorizamos estudar nesta
dissertação permaneceram ao longo das reedições.
111
MARINS, Francisco. O curandeiro dos olhos em gaze e outros recontos. ed. São
Paulo: Escrituras Editora, 2003, p. 164.
112
CANDIDO, Antonio. A Educação pela noite. ed. revista pelo autor. Ouro sobre Azul:
Rio de Janeiro, 2006, p. 74.
59
- Vovai para a cidade, tem que estudar. O que aprendeu
aqui com o Guimarães não vale para nada.
- Mamãe diz que vou ser doutor!
- Para mim o título não tem importância! Pode ser guarda
livros, professor, dentista...
Aquelas palavras, entretanto, colocavam-me à frente de uma
nova realidade.
113
Apesar de ser narrado em pessoa, o tempo verbal do passado
imperfeito a sensação de um narrador que se do lado de fora e de
longe. É neste conto que, pela primeira vez, aparecem as preocupações:
1º) do sair do campo para estudar e; 2º) uma nova realidade a ser
enfrentada.
Depois da decisão do pai de mandar o menino estudar na
cidade, Geninho ficou muitos anos sem ver Prima Rita, seu primeiro
amor. Assustado com a decisão do pai desiludiu-se com a prima por ela
não achar a idéia do afastamento entre os dois e, pelo contrário, dar
razão ao Tio que dizia que “uma pessoa estudada valia mais”.
Desiludido, restava a Geninho apenas esperar mudar para a cidade.
Enfim o dia chegou, depois de penosa espera, pois ia pela primeira vez
afastar-me da casa paterna e sentia, desde logo a tristeza de deixar o
mundo em que me criara”.
114
Passados seis anos após ter ido à cidade continuar os estudos,
Geninho retornou à fazenda que tinha sido criado. “Encilhei um cavalo
baio, escancarei a cancela da mangueira e saí para o piquete, onde a
vegetação tosada refletia o pastoreio intensivo e a pobreza das terras”.
115
Ao passar em frente a uma casinha baixa, “de barro pisado e num
terreninho bem tratado”, avistou uma moça magra, mal vestida, que
demonstrou o reconhecer. Ao se dar conta de que era a Prima Rita,
exclamou alto seu nome. Envergonhada, Prima Rita respondeu ao
cumprimento, levando as mãos à altura da boca, num gesto de
admiração, mas nem sequer chamou-o para entrar. Naquele momento,
Geninho sentiu profunda tristeza por não reconhecer naquele “rosto
sofrido e queimado de sol” aquele seu primeiro amor dos “risonhos doze
anos”.
A descrição do “rosto sofrido e queimado de sol” exprime sinais
113
MARINS, Francisco. O curandeiro dos olhos em gaze e outros recontos. Op. cit., p. 165.
114
Ibidem, p. 166
115
“Escancarar a cancela” significa abrir a porteira; “piquete” é um pasto pequeno e fechado,
onde se conservam por pouco tempo animais em serviço.
60
de uma vida difícil e sofrida para aquele amor de infância que
permaneceu no campo. A tristeza de Geninho aumentava ainda mais por
saber que seu pai teria de deixar a propriedade agrícola, por motivos não
muito bem explicados. Mas sabia que seu pai, “homem ligado
visceralmente ao trabalho rural”, sofreria muito com aquele
afastamento.
Sob este aspecto, o homem não estaria ligado simplesmente a
qualquer mundo, mas ligado “visceralmente ao trabalho rural”,
indicando toda uma estrutura que envolve a vida no campo. O que
parece apontar para a vida do pequeno sitiante e uma auto-suficiência
deficitária que o expulsa para algum lugar que nunca vai ser seu mundo.
Após sacrifícios de suas economias, seu pai permaneceria em
sua terra, afinal, “reencontrara seu mundo”, e acreditava Geninho, poder
“ser de novo” também o seu. Esse mundo, que mais tarde, nos
romances de Francisco Marins, é chamado de “sertão”, indica ser mais
profundo, mais além, talvez esteja mais dentro de cada um, do que na
geografia do mundo”, conforme observação de Ricardo Ribeiro para a
obra de Guimarães Rosa.
116
Mas de Ritinha, sobraram apenas lembranças,
A menina que me virara a cabeça em criança... Meu primeiro
amor...
Ouvia, nas grotas, o pipilar da passarada, no alvorecer do dia.
Longe mugiu um boi. Uma araponga soltou um estalido
metálico no fundo do pasto. Um chanchã cortou o espaço...
O conto termina com um tom melancólico e com o mesmo
linguajar caipira do início. Expressões como “estilingar” passarinhos,
“catar” gabirobas, escancarar a “cancela”, sair para o “piquete”, ouvir
nas “grotas” o “pipilar” da passarada, a “araponga” com seu estalido
metálico e um “chanchã” a cortar o espaço vão configurando a narrativa
que Antonio Houaiss observou serem deliciosos dialetismos e
regionalismos”. E que estão presentes no vocabulário d‟O dialeto
caipira de Amadeu Amaral.
Mas o conto também encontra em seu fim um possível
recomeço e uma esperança, - a de retornar ao mundo que correspondia a
uma maneira de viver. Estes aspectos também podem ser verificados no
116
RIBEIRO, R. F.. A Natureza de Rosa. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL GUIMARÃES
ROSA, 2000, Veredas de Rosa. Anais do Seminário internacional Guimarães Rosa. Belo
Horizonte: PUCMinas, 1998. p. 599-604, p. 601.
61
próximo conto.
2.1.2 Mulita, entre guascadas e safanões
Mulita era um menino de pele escura e face ressequida que fora
criado numa “fazendola”, e que certo dia resolveu fugir por não gostar
da lida da lavoura. O que ele queria era “andar a cavalo, correr
caminhos, ir atrás das boiadas que via passar todo dia pelos campos”.
Certo dia aproximou-se de um galpão onde estavam reunidos alguns
peões que trabalhavam na fazenda de Vicente. Passou a conviver com
peões e a fazer aquilo que gostava a lida com o gado.
Quando faziam a travessia do gado no caminho descampado, o
“negrinho” seguia à frente do gado no passo tardo do cavalo, segurando
uma “guampa enorme e bem polida o berrante”.
117
Passado algum
tempo, os peões suspeitaram que Mulita tivesse pegado uma espora da
“pousada do Chico Trançador”. Levava “guascadas e safanões” todos os
dias. Certo dia, Vicente, o dono da fazenda, avistou Mulita na disparada
com seu cavalo. Seguiu-o e, alcançando-o, ergueu a vergasta e bateu no
menino. O cavalo, desembestado, cuspiu-o do arreio. Com a guasca
fustigou-o no chão, tomou o potro de Mulita e “deu-lhe um relho”. Ao
voltar para a casa, sua mulher perguntou se Mulita havia voltado.
Percebendo algo de errado, Vicente deu-se conta que Mulita havia saído
às pressas com o cavalo para buscar remédios para salvar seu filho.
Publicado primeiramente na coluna Pitangas e Gabirobas do
jornal Folha de Botucatu, o início do conto marca a diferença entre uma
“fazendola” e a “fazenda” de Vicente, onde trabalhavam peões. Embora
derivem da mesma palavra, denotam dois tipos de propriedades muito
diferentes. Na fazendola, que significa uma pequena fazenda, Mulita
tinha que lidar com a lavoura e que de certa forma faz referência ao tipo
de propriedade “relativamente estável”, mantidas pelo “caipira
proprietário ou posseiro”.
118
Já, na fazenda de Vicente, trabalhavam vários peões que saiam
pelo “caminho descampado” a levar o gado. Alí, Mulita podia ficar, pois
a lida com o gado e a manutenção dos utensílios inerentes ao trato com
o gado, exigia gente para o trabalho, que certamente era servil.
Conforme observou Candido,
117
“Negrinho” é a expressão utilizada pelo narrador e, às vezes, aparece no discurso direto na
fala dos próprios peões da fazenda.
118
CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. Op. cit., p. 108/109.
62
Ressalvados os latifúndios, movidos por trabalho servil,
espalhou-se pelo território habitado por São Paulo o tipo já
referido, do caipira proprietário ou posseiro, relativamente
estável. Eram, na absoluta maioria, desprovidos de recursos
econômicos, valendo-se para os trabalhos agrícolas, da
própria família e do auxílio vicinal.
119
Mulita também ressoa um tipo de preconceito que esteve muito
presente nas propriedades rurais após nos anos 1920. Com a crise da
economia agro-exportadora, do regime oligárquico e a vinda de
imigrantes para trabalhar nas lavouras, os ex-escravos e seus
descendentes foram foco de preconceito étnico, ou “racial” para a época,
e também social.
120
Neste conto também observamos inúmeras expressões que
fazem referência à lida tropeira, tais como caminho descampado, que
significa um terreno extenso, sem árvores e não habitado. Guampa, um
chifre que quando bem polido transforma-se no berrante, instrumento
para chamar o gado. Pousada, a paragem para descanso dos tropeiros;
arreio que faz referência às peças para se montar um cavalo. Relho, um
tipo de açoite de várias cordas ou um chicote de couro formado por
guascas, tiras de couro cru. E safanões que significa empurrão.
2.1.3 Antes tarde... do que nunca
O cronista que narra os acontecimentos, sem
distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em
conta a verdade de que nada do que um dia
aconteceu pode ser considerado perdido para a
história.
Walter Benjamin. Obras escolhidas.
Um misto de conto com crônica, Antes tarde... do que nunca
narra a história das dificuldades por quais passava Rio Turvo, antiga e
próspera propriedade produtora de café. Publicado primeiramente na
119
CANDIDO, Antonio. Os Parceiros do Rio Bonito. Op. cit., p. 108/109.
120
Sobre o assunto ver: FRANCO, M. S. C.. Homens Livres na Ordem Escravocrata. São
Paulo, Institutos de Estudos Brasileiros da USP, 1969.
63
“Revista Universal” (RJ) em setembro de 1939, este é o terceiro conto
dos tempos “de juventude” que Marins considerou digno de
republicação n‟O Curandeiro dos olhos em gaze.
121
Prestes a ser hipotecada, Rio Turvo tinha ainda que se proteger
contra as geadas. Não sobreviveria a outra igual a que aconteceu em
1918, que arrasou a maior parte dos cafezais de São Paulo. A
produtividade após uma forte geada cai bruscamente considerando que
as árvores demoram algum tempo para se recuperar.
122
Mas naquele ano, o cafezal, plantado na encosta sobreviveu
àquela geada. O mesmo não aconteceu com as propriedades vizinhas,
que tiveram o cafezal completamente queimado pelo frio. Em tempos de
escassez o café voltava a valorizar e, então, Rio Turvo ia conseguindo se
manter.
Neste conto, a crise do café transforma-se na motivação
principal da narrativa. Não apenas da narrativa, mas da história da
Fazenda do Turvo, que estava entre os grandes latifúndios da região de
Botucatu, em São Paulo.
“Antes tarde... do que nunca” deixou alguns suspenses. No
conto, o dono da propriedade, João Luciano, passou a noite em claro
para ver se a geada iria mesmo cair. Ao amanhecer, a mata ao redor da
propriedade apareceu em chamas, obrigando os moradores a fazerem
aceiro para conter o fogo, impedindo-o assim de atingir o cafezal.
Teria João Luciano colocado fogo no mato para espantar a
geada e assim proteger o ca? Se considerarmos possível tal hipótese,
essa atitude pode ser pensada dentro dessa ruralidade em que os
indivíduos precisam tomar decisões sem ter necessariamente um
conhecimento científico de como agir em meio a esse tipo de situação.
Esse modo de resolver problemas no campo aponta para a reflexão de
como eram adquiridos os conhecimentos aplicados na vida rural.
Segundo a observação de Mary Del Priore e Renato Venâncio,
um traço que realça o vinculo entre o fim da escravidão e as tentativas
de modernização de nossa agricultura ou seja, de difusão de novos
padrões culturais e educacionais diz respeito ao surgimento de
periódicos especializados ou semi-especializados.
123
121
Localizamos inúmeros artigos e contos inéditos no arquivo pessoal do escritor. Mas
considerando que estes contos republicados foram pouco explorados, decidimos nos ater a eles.
122
Sobre a crise do café e o colapso do seu preço, ver FRITSCH, Winston. 1922: a crise
econômica. In Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vo1.6, nº 11, 1993, p.3-8.
123
DEL PRIORE, M.; VENÂNCIO, R.. O nascimento do ensino agrícola. In Uma história da
vida rural no Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, p. 184. Estes periódicos poderiam ser os
almanaques rurais, suplementos de jornais ou manuais agrícolas. Sobre o assunto ver também:
64
Como numa melodia que não termina por um acorde perfeito,
“Antes tarde... do que nunca” parece terminar propositalmente como
que “por uma nota em suspenso que se prolonga na imaginação,
exprimindo toda a melancolia de um futuro imediato sobre o qual os
homens não têm poder.”
124
Estes primeiros contos publicados na imprensa de circulação
local de Botucatu e nas revistas de projeção nacional como O Malho e
Universal, foram os primeiros passos daqueles que, ao ver de Marins,
“dão os moços do interior picados pelo coró da literatura: escritos em
jornais provincianos, contos na seção cultural da rádio local, ensaios
tímidos, ou então, os de maior vôo, nos suplementos e revistas de maior
projeção, das Capitais, sempre tabus para a timidez dos interioranos.”
125
Em entrevista publicada no posfácio d‟O curandeiro dos olhos
em gaze, onde foram republicados estes contos, Marins respondeu sobre
as “chaves” inspiradoras e motivadoras das histórias. Em relação a
“Mulita”, o escritor escreveu que o conto “lembra uma faceta da vida
dos boiadeiros e dos tropeiros, meus antepassados do lado paterno”.
Sobre “Antes tarde... do que nunca”, o escritor quis abordar
o drama da geada, fenômeno que tantos desastres têm
causado à cafeicultura e que ressurge, também no romance ...
E a porteira bateu. Foi uma verdadeira tragédia para muitos
fazendeiros, e relembra-me a triste cena que um dia eu
mesmo vivi, como pequeno plantador de café, ao presenciar
toda a plantação de café da Fazenda Bocaiúva inteiramente
queimada pelo frio em uma única noite.
126
Possivelmente Marins é um desses escritores cuja imaginação
nasceu da autobiografia. Os contos confundem-se com experiências
vividas e ouvidas no decorrer da sua infância, acrescidos de leituras,
imaginação e criação individual, conforme expusemos no primeiro
capítulo. O desastre sofrido pela Fazenda Rio Turvo ressurge no
romance da década de 1960, intitulado “... E a Porteira Bateu”, assim
PARK, M. B.. Histórias e leituras de Almanaques no Brasil. São Paulo: Mercado das Letras,
1999. Ver também PARK, M. B.. Leituras de almanaques: O Cordãozinho e o Jeca.
Disponível em: <http://www.unicamp.br/iel/memoria/projetos/ensaios/ensaio22.html>. Acesso
em: 10/09/2009.
124
JAN, Isabelle. Essai sur la Littérature Enfantine. ed. Paris: Les Editions Ouvrières,
1969, p. 50 apud. GÓES, Lúcia Pimentel. Op. cit., p. 129.
125
MARINS, Francisco. Concursos literários são fábricas de mediocridade. A Gazeta. São
Paulo, 09/04/1973, Seção: Hora e vez dos escritores.
126
MARINS, Francisco. O curandeiro dos olhos em gaze e outros recontos. Op. cit., p. 175.
65
como os mesmos temas vão configurar a produção infanto-juvenil nos
anos de 1940.
De certa forma os contos anunciavam as características
principais que acompanhariam a literatura de Marins, imprimindo uma
ruralidade típica das pequenas propriedades, valorizando a linguagem
caipira de modo a tentar fazê-la “sair da oralidade e forçar-lhes a entrada
na corrente da língua escrita”.
127
Verificamos que a linguagem não
vernacular é apreendida na norma culta da língua com a fixação do
português arcaico e não na forma verbal, com as possíveis variantes de
pronúncia. De forma a contemplar as recomendações de Amadeu
Amaral, tratadas no início deste capítulo. Em discurso proferido na APL,
em 1972, Marins afirmou que
As tentativas de reprodução da fala roceira, na área
lingüística paulista, feitas por Valdomiro Silveira, a partir do
conto “Rabicho”, publicado em 1891, considerado marco
pioneiro do nosso regionalismo, e os causos de Cornélio
Pires, poderiam ser dados como expressões intermediárias,
para a integração da fala caipira na corrente da língua. As
formas populares deturpadas, mas de tanto colorido, e as
regências solecistas representam estágios primários que
buscam alternar-se a formas definidas, à alforria, integrando-
se, quando dicionarizadas, ao caudal lingüístico, tal como o
indivíduo provindo do interior se eleva, pela instrução,
adquirindo modos de falar correto.
128
Apesar de Marins considerar o esforço de Valdomiro Silveira
como “estágio primário” dos estudos da linguagem caipira, o escritor o
considera, ao lado de Afonso Arinos, um grande representante do
regionalismo brasileiro. Em seu artigo O sertanismo Brasileiro, Marins
observou que:
O regionalismo, no seu sentido largo, que é o de trazer o
homem da roça para a grande literatura e de estudá-lo, não
como um tema de exotismo, em chalaças exploradoras de
seus defeitos e ridículos, nem também, como a criatura
digna de lástima, mas como sêr humano que vive, ama e
sofre e sonha e luta como qualquer outro, fazendo-lhe a
pintura fiel dos costumes, sondando-lhes os anseios, os
defeitos, registrando-lhe a linguagem barbara, os ímpetos
127
MARINS, Francisco. O curandeiro dos olhos em gazee outros recontos. Op. cit., p. 174.
128
MARINS, Francisco. Discursos de Hernâni Donato e Francisco Marins. Op. cit., p. 39-40.
66
amorosos, a concepção de honra, as tiradas de valentia,
fotografando-o enfim, em sua vida rústica, foi êsse o
trabalho, de paciência e de verdade, de Valdomiro Silveira e
Afonso Arinos.
129
Mas também apontou a literatura sertaneja destes primeiros
representantes, como uma fase de experiência onde “os excessos são
evidentes, a documentação sufoca, por vezes, pelo acúmulo de
detalhes”.
130
Apesar de Marins ter considerado enormes os defeitos da
literatura sertaneja que buscava se firmar reconheceu o seu cunho de
verdade na interpretação dos conflitos seculares do homem com a
terra.
131
Estas observações do escritor em relação à literatura sertaneja
são posteriores à publicação desses seus primeiros contos, mas
anteriores à escrita do seu livro infantil. Ao refletir sobre a produção de
outros representantes da literatura que se voltava ao homem da terra,
Marins também criava estratégias para o gênero infantil.
Nas histórias infanto-juvenis, as expressões do dialeto,
geralmente, são acompanhadas pelo recurso da metalinguagem, recurso
da língua portuguesa, que descreve em outras palavras o que foi escrito
anteriormente. Durante a entrevista, Marins exemplificou:
Nos meus livros está cheio disso. Eu emprego alguma
palavra. Por exemplo: “os meninos passaram pelo corgo em
cima de uma pinguela. Então, são duas palavras
complicadas se você não sabe o que é corgo ou pinguela. Mas
na frase seguinte eu já coloco assim: “A aguinha do rio estava
fresquinha, límpida e eles até viram por cima do pau que eles
transpuseram a sombra deles na água”. Pronto, está a
metalinguagem.
132
De certa forma, este recurso caracteriza a preocupação que o
escritor teve em possibilitar o entendimento aos leitores não
familiarizados com esse tipo de vocabulário, facilitando a leitura. E
talvez, uma atitude que fez da sua literatura um meio de levar adiante
esse universo rural e não um fim que se esgotou na própria
129
MARINS, Francisco. O sertanismo Brasileiro. II) O Conto. In Arcádia. Publicação da
Academia de Letras da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Ano IX, outubro
de 1944, nº 23, p 47.
130
Ibidem, p. 59.
131
Idem, p. 60.
132
MARINS, Francisco. Entrevista com Francisco Marins. Op. cit., p. 12.
67
representação.
Acompanhado pelo surto editorialmente bem sucedido dos anos
de 1940, foi na literatura infanto-juvenil que Marins teve projeção
dentro da literatura brasileira, sobretudo, com a publicação de Nas
terras do Rei Café, publicado em 1945.
2.2 Taquara que estoura... pól, pól: Taquara-Póca
Mitos, fábulas, lendas-teogônias, aventuras, poesia,
teatro, festas populares, jogos, representações
várias ocupam no passado o lugar reservado hoje
ao livro infantil. Quase se lamenta menos a criança
de outrora, sem leituras especializadas, que a de
hoje, sem os contadores de histórias e espetáculo de
então.
Cecília Meirelles
Taquara-Póca é uma gramínea, um tipo de um bambu, contou-
me o escritor na entrevista:
Ela, quando cresce, tem vários pesinhos em baixo, e nas
festas juninas, no mês de junho, eram usadas nas fogueiras.
Colocadas no fogo, nas brasas, as taquaras estouram. “Tol,
tol... Póca é a justamente o que o estouro, taquara que
estoura, taquara-póca. Eu introduzi isto nos livros.
133
Conforme Cecília Meirelles, representações várias que
veiculavam através da figura do contador, reservam-se hoje ao livro
infantil.
134
A respeito dos primórdios da literatura infantil, Penteado
argumentou como a arte de narrar histórias, que é uma forma quase
artesanal de comunicação, perdeu-se num passado remoto. Para a
autora, a literatura infantil “talvez seja o gênero que mais se aproxime
destas narrativas orais”, principalmente por manifestar “aquela
„autoridade‟ do contador que efetivamente possui a experiência
133
MARINS, Francisco. Entrevista com o escritor Francisco Marins. Op. cit., p. 8.
134
MEIRELES, Cecília. Problemas da literatura Infantil. São Paulo: Summus Ed. 2ª ed.,
1979, p. 46.
68
comunicável”.
135
Por isso, a literatura infantil pode ser considerada o
gênero através do qual se manteve acesa essa tradição milenar de se
contar histórias e pela qual se perpetuaram os mitos, as lendas,
aventuras, entre outras representações presentes nos livros infantis.
Nas terras do Rei Café foi o primeiro livro infanto-juvenil
escrito por Marins e publicado no ano de 1945. É uma destas histórias
de aventuras, às quais se referiu Penteado, vivenciadas por três meninos
em pleno cenário da natureza e que consagrou Marins como sendo “o
escritor do café e das crianças”.
136
O livro é seguido de outras três
histórias ambientadas no mesmo sítio e que formaram uma série
Taquara-Póca.
Nas Terras do Rei Café recebeu considerável atenção por
parte dos estudos de literatura infanto-juvenil brasileira. Lajolo e
Zilberman, Lúcia Pimentel Góes, Nely Novaes Coelho entre outras
análises da Literatura Infantil, apontaram alguns aspectos em comuns:
“a proposta do escritor em passar informações sobre a vida rural, o
trabalho do campo, os valores ideológicos da época”,
137
ou uma
determinada noção de ruralidade.
138
A citação abaixo ilustra estes aspectos apontados pelas
pesquisadoras, quando o narrador refere-se ao sítio Taquara-Póca:
foi uma fazenda com muitos alqueires de terras, com
matas, campo para o gado e lavouras. Depois, com o passar
dos tempos, sofreu bastante e ficou bem pequena. Hoje é um
sítio apenas, mas dá muito bem para a família do Vovô
trabalhar e tirar o seu sustento.
139
Verifica-se a mudança de um enfoque sincrônico para outro
diacrônico, ou seja, de uma descrição da vida presente para um resgate
histórico da gênese desse presente. Esse recurso que também foi uma
preocupação é contínuo no decorrer da série e responde ao próprio
caráter pedagógico e didático da literatura de Marins. Mas a principal
preocupação do narrador foi apontar para a dificuldade vivida pelas
fazendas para se manter e a fragmentação das propriedades para pagar
as dívidas. Essa foi a principal motivação do livro, mostrar como é a
135
PENTEADO, A. E. A.. Op. cit., p. 21.
136
Frase utilizada frequentemente em reportagens de jornais ou revistas que se referem ao
escritor e sua obra.
137
GÓES, Lúcia Pimentel. Op. cit., p. 35.
138
Trata-se da minha monografia: DALLANORA, Cristina. Op. cit., p. 30-43.
139
MARINS, Francisco. Nas terras do Rei Café. Op. cit., p. 9.
69
vida no campo e as dificuldades do seu o dia a dia, como o narrador
apresenta no início:
Os trabalhos da lavoura são interessantes. O Brasil é um país
agrícola. Todos deveriam saber das dificuldades e das lutas
na terra. Dela é que saem quase todas as coisas de que nós,
na cidade precisamos para viver: os alimentos, os materiais
para nossas roupas e para as nossas casas...
140
Adiante, outra passagem reforça a intenção do livro de levar as
crianças a conhecerem a vida no campo, com a utilização do recurso
didático-pedagógico para esclarecer algum aspecto da vida presente:
Anos atrás a fazenda do vovô começou a ter dificuldades. O
preço do café produzido quase não cobria os gastos. Então
seu avô precisou de dinheiro para pagar os homens que
trabalhavam no cafezal e para outras despesas. Assim, teve
de vender alguns trechos de fazenda.
[...]
Os anos foram passando e as vendas das colheitas do café,
sempre com preço baixo, não davam para pagar as despesas
do sítio, que eram sempre grandes. Além disso, no ano
passado, a geada prejudicou grande parte do cafezal. A geada
é um terrível inimigo do fazendeiro. Assim, continuou o Sr.
Pacheco, o Vovô precisou fazer um empréstimo para
continuar a cultivar as terras. Não conseguiu o dinheiro
necessário. Todos os fazendeiros da região também estavam
mal de finanças.
141
O ímpeto de passar informações sobre a vida rural e o trabalho
do campo explicita o caráter didático com a referência à crise do café.
Mas a forma como são narradas essas informações indicam ir mais além
ao apontar para as alterações da estrutura do mundo rural que vai sendo
descaracterizado face à modernização. O carro de bois é exemplar, nesse
sentido:
Na esquina estava um carro de bois, veículo que Dudu
conhecia somente por um desenho de seu livro escolar. E
lembrava-se de que o professor explicara: o carro de bois
tinha muita importância na vida do país, pois ajudara no
140
MARINS, Francisco. Nas terras do Rei Café, p. 9.
141
Ibidem, p. 34-35.
70
transporte dos produtos da terra. E acrescentara: “O Brasil
devia erguer muitas estátuas a esse veículo da roça!
142
Num esforço de salvaguardar a ruralidade, deveria se “erguer
muitas estátuas a esse veículo da roça”. O mesmo se com os
equipamentos utilizados no sítio:
- Vejam ali, as velhas moendas do engenho, que eram
movidas por roda d‟água e moíam cana, tirando-lhe o caldo.
Mais adiante ficavam as gamelas, as bicas, os tachos...
Fabricavam muito açucara por aqui?
- Pouco, era mais para o gasto da fazenda e para os sitiantes
da vizinhança.
143
A narrativa também está repleta de explicações de
conhecimento popular e geralmente aparecem nas falas do caboclo
Chico Tibúrcio e do preto velho nhô Lixandre. Em relação à
personagem de nLixandre, assim como no conto “Mulita”, parece ter
sido integrada à história para abordar a questão do preconceito contra os
ex-escravos. O “preto velho” teria tido a sorte que os amigos não
tiveram, de encontrar uma propriedade onde era bem tratado e nunca
pensara em fugir. Mas sofria com a perda dos amigos que tiveram que
fugir, devido à violência contra eles praticada por um coronel de
latifúndio, conforme a fala da personagem:
Além de os pretos trabalharem o dia todo em troca da
comida, por qualquer falta eram castigados.
Judiação!
Na Fazenda Estrela, do pai de Pedro, os pretos foram
muito castigados. Vários dos meus irmãos de cor, não
suportaram os sofrimentos e viraram canhamboras, isto é,
fugitivos. Mas os sinhôs mandavam atrás deles o capitão do
mato.
A personagem de nhô Lixandre transforma-se na figura de
alguém dotado de grande conhecimento, que não foi adquirido na
escola. Como no caso da explicação de como se orientar no sítio.
Basta vocês examinarem o ninho do joão-de-barro.
142
Idem, p. 11.
143
Idem, p. 21
71
O que tem o passarinho com isso?
Tem muita coisa, pois ele faz a sua porta de casa voltada
para o norte.
Ora, por que isso?
Para evitar os ventos frios, que aqui no sítio sopram do sul.
Nunca pensei nisso.
Uma pessoa perdida na floresta pode orientar-se pelos
formigueiros, pelos ninhos e até pela casca das árvores...
144
Esse tipo de conhecimento que sem o apoio da escrita é
transmitido de geração em geração faz referência a literatura oral, que
Candido observou como sendo uma das características da cultura
caipira. As expressões “nhá”, “nhô” (diminutivo de sinhô, sinhá)
também configuram um traço da sociabilidade do homem do campo
dentro dessa cultura. Ao contrário da forma como se dirigem ao
visitante, que aparece na forma de “Senhor”, “Senhora” ou “Dona”:
O garoto resolveu então perguntar-lhe alguma coisa:
Papai, porque o tio Juca não mora na cidade como nós?
O Sr. Pacheco olhou para o filho e ficou alguns instantes em
silêncio. Depois sorriu, como a se desculpar do longo silêncio
em que estava, e respondeu:
Porque para ele não existe coisa melhor no mundo do que o
sítio do seu avô.
145
Em se tratando de alguém da cidade, o narrador usou “Sr”, que
indica um misto de cordialidade e lisonja, indicando o respeito e ao
mesmo tempo um sentimento de inferioridade. Aqui podemos inferir
que o caipira sente-se inferiorizado face a quem vive na cidade, pois
acredita que o citadino seja mais instruído e civilizado do que ele.
Novamente este aspecto aponta para um discurso sobre o campo em que
o seu homem tinha interiorizado a idéia de que ele era ignorante se
comparado ao sujeito da cidade.
146
Na passagem em que Dudu, o
menino da cidade, estava ansioso por conhecer o primo Tico:
Dudu estava ansioso para fazer perguntas ao primo:
144
MARINS, Francisco. Nas terras do Rei Café. Op. cit., p. 80.
145
MARISN, Francisco. Nas terras do Rei Café. Op. cit., p. 4.
146
Aspecto que apontamos no capítulo I, ao mencionarmos a fala do pai de Francisco Marins,
que achava necessário que o filho estudasse para não continuar como aqueles que permanecem
no campo.
72
Por que o Tico-tico não veio?
Ficou com vergonha, disse que você ia caçoar dele...
Caçoar por que?
Ele é... é muito „caipira‟. Mas você vai ver que
companheirão.
[...]
Dudu, que nunca vira um homem da roça falar, achava
engraçado o seu modo de pronunciar as palavras e, também,
a sua fala descansada.
147
O narrador se responsabiliza em explicar o jeito de se falar na
roça, apontando inclusive para a prosódia caipira, ou seja, som das falas.
Segundo Walter Benjamin, a figura do narrador tem em sua essência
uma dimensão utilitária que pode “consistir seja num ensinamento
moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma
de vida de qualquer maneira o narrador é um homem que sabe dar
conselhos”.
148
Nesse sentido, o narrador se aproximaria dos mestres e
dos sábios, uma vez que, como eles, possui um vasto repertório de
experiências, ao qual recorre oportunamente enquanto vai fiando suas
narrativas mesmo que estas experiências sejam apropriações de
experiências alheias.
149
Ou mesmo que sirvam de conselhos para a
posteridade, como no momento da história e que o Rei Café explica
sobre a superioridade do café em relação a cachaça da cana:
Modéstia à parte... o Café substitui com vantagem, o terrível
inimigo, „Pinga-Pura‟. Além disse combate a Senhora Fadiga.
Em nossa companhia o homem sente mais disposição para o
trabalho e até mais alegria. E não somos orgulhosos, pois
entramos com a mesma alegria na casa do rico e na do pobre,
do trabalhador, do comerciante, do estudante, da criança, do
velho... todos nos querem muito bem. Acho mesmo que
muitos não passariam facilmente sem nossa companhia.
150
Mas o hábito de narrar, segundo Benjamim, foi se perdendo até
encontrar seu esfacelamento em virtude de uma perda de referências
coletivas, interrompendo a transmissão da sabedoria. As experiências
147
MARISN, Francisco. Nas terras do Rei Café. Op. cit, p. 10.
148
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. Obras escolhidas, 1. [Trad. Sérgio Paulo Rouanet], 7ª ed. São Paulo: Brasiliense,
1994, p. 200.
149
PENTEADO, A. E. A.. Op. cit., p. 18.
150
MARINS, Francisco. Nas terras do Rei Café. Op. cit., p. 63.
73
transmitidas através da arte de narrar deixaram de ser comunicáveis,
intercambiáveis, tornando-se cada vez mais individuais e, portanto,
intransferíveis. Esse gradual “silenciar dos narradores” se por uma
confluência de fatores trazidos pela modernidade que provocaram
drásticas mudanças culturais.
Como numa tentativa de resgatar essa forma de contar histórias,
ao qual se referiu Benjamim, Marins criou o mito da flor roxa do
samambaial:
Todo mundo sabe que, no samambaial, nasce uma flor
roxa, muito bonita, toda sexta-feira à meia-noite. É difícil
pegar essa flor, mas quem conseguir fica livre de picada de
cobra para o resto da vida. Onça não chega mais perto.
Outros dizem que essa flor faz o homem virar valentão e até
pode brigar à vontade, pois está livre de chumbo e de faca.
Muita gente aqui na roça anda à procura dessa flor.
151
E se foram os meninos a procura da flor roxa do samambaial, em
plena noite escura, com a esperança de salvar o sítio da situação em que
se encontrava.
A flor roxa do samambaial foi uma metáfora utilizada por
Marins, numa espécie de ensinamento moral onde todos tem dentro de si
uma flor roxa, que substitui a presença da esperança. A flor, que
Lourenço Filho observou evocar os paramentos roxos das igrejas na
semana santa,
é tão difícil de ser apanhada, como, na legenda de outros
povos, o Pássaro Azul ou a Maripôsa Amarela... A lição que
de tal lenda decorre é que o bem e a beleza estão juntos, que
o conteúdo e a forma, quando equilibrados e harmônicos,
estão dotados de poder mágico, coisa que os poetas, as
crianças e aquelas boas almas simples chegam a perceber...
152
Ao analisar os contos da juventude, destacamos que o interesse
de trazer as manifestações caipiras para dentro da literatura, não foi
inédito nos escritos de Marins, mas foi antes preocupação de outros
escritores e estudiosos do tema. Em se tratando de outro gênero e da
década seguinte, há de se considerar algumas peculiaridades.
151
Ibidem, p. 23.
152
LOURENÇO FILHO, Manoel Bergströn. Recepção do acadêmico Francisco Marins. In
Revista da Academia Paulista de Letras, 1966, op cit., p. 26.
74
Em primeiro lugar, Nas terras do Rei Café não traz exatamente
uma renovação da temática rural nas histórias infanto-juvenis. Ao
contrário, remonta ao universo rural idealizado presente na literatura
infantil de Thales de Andrade, precursor do gênero e da temática rural
para a infância no Brasil. E ao mesmo tempo, distante da perspectiva de
Monteiro Lobato (embora temporalmente mais próximo), cujas
preocupações foram do seu presente para o futuro. Em Marins, a
temática também fazia referência aos problemas atuais pelos quais as
pequenas propriedades estavam passando. Mas a abordagem histórica e
a recuperação de certos valores aproxima-o mais dos primórdios da
literatura infantil no Brasil. Em segundo lugar, a publicação do livro na
década de 1940 coincidiu com a expansão do mercado do livro e um
surto editorialmente bem sucedido inédito no país até então.
153
Marins foi considerado o escritor que mais vendeu livros
infantis depois de Monteiro Lobato. E parece ter sido o criador da
literatura do “Jeca”, o responsável pelo início da sua carreira literária.
Em entrevista concedida ao Jornal Folha da Manhã, em 1956, o texto de
Raimundo Menezes afirmou que “a literatura do Jeca, aquela
dissecação, a talhos fundos, do „pobre parasita da terra‟”, foi em parte
responsável pelo desejo de, um dia, “retraçar a vida sertaneja e outros
aspectos, que não aqueles que fazem do pobre homem opilado e
esquecido uma ruína humana digna de comiseração”. Ao se referir ao
início da sua produção literária, Marins fez a ponte entre o lugar em que
passou a infância um típico sítio paulista de caipiras e terras pobres,
com casa de tabua, sem forro e sem vizinhos” e apontou para o seu
futuro: “um vilarejo típico sertanejo, que daqui a cem anos será talvez
tão pequeno como já foi há cinquenta anos atrás e ainda hoje é”.
Está o começo. Primeiro achei que devia mostrar em
artiguetes, que foram publicados no antigo suplemento
infantil do “Diário de São Paulo”, as belezas da roça, em
contraposição às críticas que eu via escritas, „ridicularizando‟
o interior. Mais tarde, contando de viva voz aos meus
companheiros da cidade as aventuras do menino roceiro, e
notando o interesse que elas despertavam resolvi pôr em
letra de forma as proezas do meu bando de traquina; daí
nasceram os livros infantis da série Taquara-Póca que são,
assim, uma espécie de recordação daqueles dias de calças
153
CAMPOS, A. L.V.. A república do picapau amarelo: uma leitura de Monteiro Lobato.
São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 119.
75
curtas e pés no chão.
154
Ao mesmo tempo que as fontes indicam ter sido a concepção
deturpada criada por Monteiro Lobato a respeito do caipira, “Nas terras
do Rei Café” e os livros que completaram a série Taquara-Póca,
apresentam inúmeras aproximações com o Sítio do Picapau Amarelo, de
Monteiro Lobato. O capítulo seguinte trata destas aproximações e
distanciamentos que conseguimos estabelecer entre os dos dois
escritores.
154
MENESES, Raimundo de. Francisco Marins começou a escrever a fim de mostrar as
belezas da roça. Como vivem e trabalham nossos escritores. Jornal Folha da Manhã, São
Paulo (capital). 10/jun/1956.
76
CAPÍTULO 3
CONSIDERAÇÕES ACERCA DAS APROXIMAÇÕES E
DISTANCIAMENTOS ENTRE MONTEIRO LOBATO
FRANCISCO MARINS
3.1 Monteiro Lobato e Francisco Marins: aproximações e
distanciamentos
Ao ler as histórias de Taquara-Póca não como não perceber
semelhanças com a literatura infantil de Monteiro Lobato. Assim como
as histórias de Lobato desenrolaram-se no sítio do Picapau Amarelo a
partir de 1921, com a publicação de A menina do Narizinho Arrebitado,
Marins narrou outras aventuras no sítio Taquara-Póca, a partir de 1945.
155
Lobato e Marins são estudados dentro de dois períodos distintos
da literatura Infantil e Juvenil Brasileira. Lobato pertence ao Primeiro
Período da Literatura Infantil (1920-1945), considerado didático
moralista e, Marins, ao Segundo Período (1945-1960), na linha do
Realismo documental. Embora os dois escritores não pertençam ao
mesmo período convencionado pelos estudos literários, a obra dos dois
escritores é apontada como didática e pedagógica, com vínculos com a
escola. Mas não de caráter moralista, ponto de quebra marcado por
Lobato com seus antecessores.
156
A semelhança maior entre Lobato e Marins na produção
destinada ao público infantil, é que ambos elegeram um sítio como lugar
e espaço ideal. O sítio, iniciado por Thales de Andrade (1918), conforme
afirmou Góes, “continuou sendo o espaço preferido, vinculado às
relações familiares, que amalgamavam o elenco de personagens,
servindo à temática comum na Literatura Infantil e Juvenil Brasileira.”
157
Mas para além do cenário escolhido para suas histórias infantis,
há semelhanças também na escolha das personagens principais. Em
155
A primeira narrativa em que aparece o sítio do Picapau Amarelo, A menina do Narizinho
Arrebitado, foi publicada em fragmentos na Revista do Brasil em 1920 e em livro em 1921.
Nela, estava presente a Dona Benta e sua neta Lúcia. A partir daí todas as narrativas foram
desenvolvidas neste espaço.
156
Classificação presente em COELHO, N. N.. A Literatura Infantil. ed. rev., ao Paulo:
Quiron, 1987.
157
GÓES, Lúcia Pimentel. Sonho, terra, homem: estudo da obra do escritor Francisco
Marins. São Paulo: Clíper Editora, 2004, p. 20.
77
Lobato, temos Pedrinho, Narizinho, Emília, Dona Benta, Tia Anastácia,
o caboclo Pirambóia, Visconde de Sabugosa, Rabicó e o Saci. Em
Marins, Dudu, Tiãozinho, Tico-tico, Vovô, Tio Juca, Sr. Pacheco (pai de
Dudu), o caboclo Tibúrcio, Nhá Candoca, Burrinho Maracujá e o
Curupira.
Tanto no Sítio do Picapau Amarelo como, posteriormente, em
Taquara-Póca uma criança que vem da cidade e vivencia
experiências desconhecidas para alguém acostumado com a vida
citadina. São os casos de Pedrinho e Dudu. Os dois sítios abrigam
personagens do folclore brasileiro, principalmente o Saci Pererê,
Curupira e o Anhangá.
Sobre a utilização do mito na literatura, o pesquisador Cláudio
Henrique Salles Andrade observou que entre as inúmeras variantes
existentes no repertório da tradição, o mito é um discurso que se
apresenta como uma resposta a uma interrogação humana sobre o
universo. Perplexo diante de certos fenômenos, “o homem interroga o
universo e recebe deste uma resposta, e esta lhe aparece como uma
resposta dada pelo próprio universo e não como um produto da razão
humana”.
158
Desse modo, continua o autor:
O homem, ao aderir e integrar-se ao esquema de relações
projetado pelo mito, o que faz é celebrar um pacto com as
forças elementares e assim obter um ganho relativo de poder
ao assumir um lugar previsto para ele num determinado
esquema cosmológico.
159
(grifo meu)
Em Lobato, o saci foi escolhido para resgatar a mitologia do
folclore brasileiro, transformado em livro, em 1921, ganhou destaque
frente às outras figuras lendárias que figuraram em sua literatura. O mito
do Curupira (ou Caipora, como também é conhecido) foi escolhido por
Marins por estar associado a ele a idéia de proteção dos animais e das
plantas. Menino disforme, mas cheio de bondade e com um grande
poder sobre a natureza. O Curupira tornou-se um intermediário entre os
humanos e a natureza, portador da mensagem de que a natureza pode ser
compreendida e dominada desde que ela seja ouvida. Dotado de
bondade, o Curupira só manifesta o seu lado mau quando a natureza, da
qual ele é protetor, é ameaçada.
Resgatado do folclorista Couto de Magalhães, por não se fazer
158
ANDRADE, C. H. S.. Leitura sociológica de um discurso camponês em chave literária.
Revista USP, São Paulo, nº 56, dez/fev 2002-2003, p. 106-124, p. 115.
159
Ibidem, p. 116.
78
mais presente na literatura, Marins resolveu reavivar o mito como que
numa resposta aos infortúnios vivenciados pelo sítio. O Curupira foi
uma asserção do escritor no sentido apaziguador dos infortúnios por
quais passava Taquara-Póca.
Nos dois sítios, fantasia e realidade entrelaçam-se nas possíveis
soluções para os problemas que vão surgindo. A primeira semelhança
sugere que para que a vida no sítio seja entendida, é preciso explicar, o
que justifica a presença de alguém de fora daquela realidade. É preciso
ter para quem explicar. A segunda semelhança também diz respeito às
personagens do folclore brasileiro, o que remete a uma forma de
manifestação oral da literatura infantil.
160
E quanto a fantasia e realidade
se entrelaçarem na solução dos problemas, “as crianças se divertem
muito mais com os animais que falam e agem como os homens que com
os textos mais ricos de idéias.”
161
Campos observou que o sítio de Lobato “é um lugar onde as
coisas acontecem; tem um sentido geral de um espaço de
experimentação, de soluções para problemas, de tomadas de decisões, e
também de magia e utopia”.
162
A vila do Tucano, onde está localizado o
sítio do Picapau Amarelo é a metáfora utilizada por Lobato e que
serviria de exemplo para o país. Com o aumento do número de
habitantes, o sítio precisaria se modernizar e partir para atividades que
trouxessem benefício ao povo da roça. O petróleo seria a principal
alternativa para se chegar aos benefícios.
Segundo Campos, a partir da experiência dos anos passados nos
Estados Unidos (Nova Iorque), Lobato “produziu um discurso
acentuadamente industrialista onde as riquezas naturais, o trabalho
eficiente e disciplinado, a siderurgia, o petróleo, o transporte e a criação
de um mercado interno”, constituíram os “elementos norteadores de um
projeto de progresso”.
163
Essa idéia está presente especificamente na
personagem do caboclo Chico Pirambóia, do livro O poço de Visconde
(1937). Neste livro, Pirambóia foi descrito como um “caboclo opilado”,
paupérrimo, que depois da descoberta do petróleo se emprega numa
companhia petrolífera e, com um bom salário, conseguiu melhorar de
vida, transformando-se num possível empreendedor, pensando em fazer
uma sociedade para abrir o seu próprio poço.
164
A partir daí, pode-se
inferir que temos em Lobato um discurso industrialista.
160
GÓES, Lúcia Pimentel. Op. cit, Introdução à Literatura Infantil e Juvenil. Op. cit., 162.
161
BENJAMIN, Walter. Op. cit., p. 238.
162
CAMPOS, A. L. V.. Op. cit., p. 125.
163
Ibidem, p. 90.
164
LOBATO, Monteiro. O Poço do Visconde. 21ª ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1993.
79
Em Marins, existe uma grande propriedade ao lado de Taquara-
Póca que aparece em constante ameaça pelo grande fazendeiro
Pedro. Para salvar o sítio das mãos do poderoso fazendeiro, as crianças
vivem aventuras em busca de alternativas para assegurar o futuro de
Taquara-Póca. A narrativa demonstra que, ao mesmo tempo em que o
Brasil é apresentado como um país “essencialmente agrícola” fazia-se
também necessário aderir a novas iniciativas que permitissem a
sobrevivência da pequena propriedade. Marins permaneceu focado na
sobrevivência da pequena propriedade e seu acesso à modernização.
Uma vez devidamente modernizado, o campo poderia continuar sendo a
alavanca para o país. Portanto, Marins está mais próximo de um
discurso ruralista.
A observação de Campos para o sítio do Picapau Amarelo
também é válida para Taquara-Póca. Em ambos os sítios, são testadas
experiências para o seu desenvolvimento. Porém, em Lobato, o sítio
permanece um local ideal, uma “Passárgada”, ao passo que em Marins,
transparece a decadência da vida rural e seus sinais de agonia.
Remeter a tais semelhanças importa a esta pesquisa porque a
maior parte dos estudos voltados para a literatura infantil e juvenil no
Brasil focalizou a obra daquele que foi o pioneiro da literatura infantil
no Brasil Monteiro Lobato. Aliás, Mello chamou a atenção para a
lacuna no que se refere aos estudos sobre literatos, cuja produção se
localiza entre a morte de Lobato (1948) e o surto criador e
editorialmente bem sucedida dos anos 1980/1990.
165
Nesse espaço de
tempo, foi, portanto, pouco analisada a obra de Francisco Marins.
Para além das semelhanças no que diz respeito à produção
literária, também foi possível sinalizar semelhanças ao longo da
trajetória intelectual dos dois escritores.
3.1.2 Sobre a trajetória intelectual e literária de Lobato e Marins
A trajetória intelectual e literária dos dois escritores também
apresenta algumas semelhanças. Ambos cursaram a mesma Faculdade
de Direito em São Paulo e fizeram parte da sua Academia de Letras.
Escreveram para as mesmas revistas, tais como Ilustração, O Malho,
Arcádia, entre outras.
Tanto Lobato como Marins investiram em diversos neros e
foram Best sellers. Também contrapunham-se à linguagem
“bacharelesca e artificial” que marcou a produção cultural do final do
165
MELLO, F. A.S.. Op. cit., p. 11.
80
século XIX e início do século XX. Lobato sugeriu tirar das aspas dos
neologismos, surgidos em função de novos imigrantes no país, para que
as palavras “vestissem o figurino desta cidade” em seu livro Emília no
país da gramática. Para Marins, o português arcaico, ou o dialeto
caipira, deveria ser respeitado e registrado para permanecer vivo e
enquanto um ponto positivo na nossa tradição cultural, sem deturpações,
como fizeram alguns escritores da literatura sertaneja.
Ambos denunciaram a história oficial: Lobato a denunciou
como sendo fruto de “relatórios tendenciosos”, cujo único objetivo era
“a apologia do vitorioso” e à literatura caberia “deixar registrado para a
posteridade, o sentimento, as emoções, a versão dos perdedores,
daqueles que não podem deixar relatórios escritos”.
166
Em artigo
publicado em 1938, Marins externou sua opinião de que seria mais
válido estudar através de “romances históricos que por meio “dos
compêndios cacetes dos historiadores oficiais”.
167
Porém, o reconhecimento alcançado pelos dois escritores no
início de suas carreiras teve suas diferenças. Lobato ganhou visibilidade
no meio intelectual pelos primeiros artigos que publicara em notas de
suplementos de jornais. O principal artigo responsável pela sua aparição
no cenário literário foi Velha Praga (1914). A denúncia de Lobato teria
ganhado crédito através do discurso pronunciado por Rui Barbosa, em
1919, no Teatro Lírico de Rio de Janeiro. Campos citou o discurso em
que o jurista mencionou Lobato como “um admirável escritor paulista”
e confirmou as suas críticas a respeito daquele “tipo de uma raça” que
entre as “formadoras da nossa nacionalidade, se perpetua a vegetar de
cócoras, incapaz de evolução e impenetrável ao progresso”.
168
Na ocasião do discurso, Rui Barbosa usou a figura do Jeca
como exemplo da questão social e racial no Brasil. No caso de Lobato,
de acordo com o artigo da pesquisadora Rose Pacheco, “os caipiras
eram barrigudos e preguiçosos por motivos de doenças. Seres que
tinham suas entranhas corroídas por um parasito adquirido por falta de
higiene e saneamento básico”.
169
Já, Marins ganhou visibilidade e reconhecimento a partir de
166
CAMPOS, A. L. V.. Op. cit., p. 59. Ver também PASSIANI, E.. Na trilha do Jeca:
Monteiro Lobato e a formação do campo literário no Brasil. Bauru, SP: EDUSC, 2003, p. 33.
167
MESSEJANA, Francisco. [Francisco Marins]. Paulo Setúbal. O romancista e o Poeta.
Jornal Folha de Botucatu, 24/02/1939. Consultamos o artigo original datilografado, que foi
enviado ao jornal.
168
CAMPOS, A. L. V.. Op. cit., p. 17.
169
PACHECO, R. E. P. N.. Jeca tatu: A medicina de Monteiro Lobato, p. 2. Disponíel em:
<http://www.projetoradix.com.br/arq_artigo/VI_07.pdf>. Acesso em: 27/02/2010.
81
suas histórias infantis que foram publicadas pelas Edições
Melhoramentos, inicialmente com Nas terras do Rei Café (1945). A
publicação foi incentivada pelo educador e escolanovisma, Lourenço
Filho, por se tratar de um livro cuja temática foi considerada por ele
pertinente ao momento pelo qual o país passava. A aproximação com o
escolanovismo e seus mentores também pode ser apontada em Lobato.
Assim como Marins teve uma estreita relação com Lourenço Filho,
Lobato, amigo de Fernando de Azevedo, conheceu Anísio Teixeira.
170
Lobato e Marins tiveram uma conduta literária eminentemente
pedagógica, didática e engajada. Tão engajada que em nenhum
momento suas histórias, notas, artigos, contos e outras manifestações
literárias, perderam de vista os problemas que o país enfrentava no
momento em que escreviam. Ambos acreditavam no papel que literatura
poderia desempenhar no sentido formador e construtivo na infância e,
portanto, na construção da cidadania.
Lobato desempenhou uma função crucial na construção da
literatura infantil brasileira. Foi fomentador da produção, difusão e
circulação do livro. Conforme observou a pesquisadora Eliane Santana
Dias Debus, exerceu também um papel fundamental na formação de um
público leitor que referendasse o estatuto desse novo gênero que se
anunciava.
171
Marins também exerceu um papel fundamental nesse sentido
tanto no exercício de editor, como também através das presidências da
Câmara Brasileira do livro e das inúmeras visitas que fazia às
bibliotecas e escolas para os bate-papos com seus leitores. Uma forma
de aproximação com o leitor iniciada por Lobato.
O paralelo da trajetória dos dois autores sugeriu que ambos
continham o objetivo político bem claro de contribuir para a formação
de cidadãos, despertando nas crianças a curiosidade intelectual e atitude
crítica.
Lobato foi apontado como um símbolo da resistência liberal-
democrática ao Estado Novo (1937-1945). Sofreu a repressão da
ditadura e teve seus livros queimados em pátios de colégios católicos
170
Sobre a relação de Lobato com os escolanovistas, ver: NUNES, Clarice. Anísio Teixeira: a
poesia da ação. In: Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, nº 16,
Jan/Fev/Mar/Abr/2001, p. 5-18. Disponível em:
<http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE16/RBDE16_03_CLARICE_NUNES.pdf>.
Acesso em: 27/02/2010.
171
DEBUS, E. S. D.. Monteiro Lobato e o leitor, esse conhecido. Itajaí/Florianópolis: Editora
Univali e Editora UFSC, 2004, p. 17.
82
durante o Estado Novo.
172
Seus livros foram recolhidos das bibliotecas
públicas e escolas católicas. No caso de Marins, as publicações
seguiram normalmente no decorrer das duas ditaduras (a do Estado
Novo e a de 1964, momento em que publicava seus romances). Casos
não muito comuns, em que escritores conseguem manter a publicação
das suas atividades literárias.
O início das publicações dos dois autores, mesmo que em
gêneros diferentes, foi marcado por uma notável diferença de visão em
relação ao mundo rural e ao homem do campo. As primeiras publicações
em forma de livro foram de literatura infantil. Lobato dedicou-se à
literatura infantil quando havia se tornado conhecido por seus artigos
de jornais e, conseqüentemente pelas idéias polêmicas de “Jeca Tatu”.
Urupês foi o primeiro livro de Lobato que deu visibilidade às
suas idéias e à obra que se seguiu. Pelo fato deste ser o livro mais
mencionado nas pesquisas que relacionam a versão de Lobato ao
homem do campo, optamos por fazer um contraponto entre a visão do
caipira entre os dois escritores. A partir desse contraponto apresentamos
no próximo item, a construção e reconstrução do “Jeca Tatu” na
literatura em dois momentos da história brasileira.
3.2 A construção do Jeca Tatu: dissecação, a talhos
fundos, do pobre parasita da terra”
Em 1914, o jornal O Estado de São Paulo publicou, na seção
“Queixas e reclamações”, o artigo Velha Praga. Originalmente escrito
em forma de carta, Velha Praga, mais tarde, juntamente com o artigo
Urupês formaram a obra polêmica denominada sob o título de Urupês.
173
A personagem central era Jeca Tatu, um caipira que vivia na
maior pobreza numa palhoça de madeira com uma mulher magra, filhos
pálidos e doentes. Nos primeiros escritos de Lobato, Jeca Tatu surgiu
como um representante da população rural nacional, ignorante, pobre e,
principalmente, doente. A partir dessa publicação, Lobato deu início às
172
Os livros ainda foram perseguidos mesmo com o fim do Estado Novo, nos anos 50 com a
publicação do livro de Padre Sales Brasil, intitulado A Literatura Infantil de Monteiro Lobato
ou Comunismo para crianças”. Publicado em 1956, acusou Lobato de negar a hierarquia social,
negar a indissolubilidade do casamento. Ver CAMPOS, A. L. V.. Op. cit., p. 124.
173
As idéias mestras desses dois trabalhos já estavam delineadas pelo menos desde 1912. Sobre
o início da formação das idéias principais em Lobato, ver LUCA, T. R.. Monteiro Lobato:
estratégias de poder e auto-apresentação n'A barca de Gleyre. In GOMES, A. M. C. (org.).
Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 141.
83
suas críticas e denúncias sobre as práticas agrícolas desses “tipos de
agricultores”, iniciando o caipira na sua má fama nacional, como jamais
alguém havia o feito antes. Considerando o caipira um ser parasitário,
Lobato descreveu que o caipira estava para o solo brasileiro assim como
o Argas o estava aos galinheiros ou o Sarcoptes mutans‟ à perna das
aves domésticas.
174
[...]Nasce por mãos de uma negra parteira, senhora de rezas
mágicas de macumba. Cresce. […] Constrói lá uma choça de
palha igualzinha à paterna, produz uns piolhinhos muito
iguais ao que ele foi. […]
175
A descrição desse sujeito que vivia a maior parte do tempo de
cócoras e sem disposição para o trabalho, “pitando enormes cigarrões de
palha, sem ânimo de fazer coisa nenhuma” veio ao encontro de todo um
conjunto de representações que fazia parte de um imaginário elitista
formulado em épocas anteriores. Segundo Sônia Regina Mendonça
Uma vez que a Abolição abriria caminho para configurar-se
um mercado de trabalho produzindo homens juridicamente
livres e teoricamente dotados de mobilidade o fundamento
das representações acerca do atraso da agricultura deslocou-
se [...] para o trabalhador do campo, corroborando a
segmentação natureza X homem como fundamento de um
projeto que visava atuar sobre este último, para adequá-lo às
infinitas possibilidades daquela.
176
A consideração da autora torna a figura de Jeca Tatu exemplar
na medida em que o caipira é entendido racialmente como um ser
intrinsecamente incapaz e sem razão de ser. rgio Lamarão observou
que a visão de Lobato a respeito do trabalhador rural foi fortemente
condicionada pela imagem racista da população brasileira, comum a
uma elite intelectual, da qual ele fez parte, formada no início do século
XX. Baseada no binômio civilização-progresso preocupava-se em
174
LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Editora Globo, 2007, p. 160. Sarcoptes mutans”
é um tipo ácaro responsável pela sarna sarcóptica que atinge, principalmente, as aves.
175
Monteiro Lobato 1950a: 366. Carta de 20 de outubro de 1914, apud, LAMARÃO, Sérgio.
“Os Estados Unidos de Monteiro Lobato e as respostas ao „atraso‟ brasileiro”. In Lusotopie,
2002/1, p. 55, disponível em <http://lusotopie.sciencespobordeaux.fr/lamarao.pdf>, consultado
em 09/08/2009.
176
MENDONÇA, Sônia R. de. O ruralismo Brasileiro (1888-1931). São Paulo: HUCITEC,
1997, p. 162.
84
construir uma nação moderna, livre dos traços "caipiras" predominantes
no interior, mas também presentes na cidade.
177
Segundo o historiador Klanovcz, Lobato também teria
compartilhado da noção de “parasitismo” de Manoel Bonfim, na qual “o
atraso da nação se devia aos parasitas caboclos, aos lavradores
ignorantes, pobres, infelizes e, principalmente, doentes”.
178
Acerca da
questão sobre a noção de “parasitismo” de Manoel Bonfim, a
pesquisadora Beatriz Anselmo Olinto, afirmou que Bonfim ganhou
destaque a partir de 1905 com a publicação de America Latina: males de
origens (o parasitismo social e evolução). E este livro construiu uma
visão original sobre a origem dos problemas dos países “neo-ibéricos”
como o Brasil e seus vizinhos.
179
Escrito em Paris, em 1903, Bonfim
buscou criticar a visão negativa sobre a América Latina com a qual se
deparou no continente europeu. Seu livro, segundo a Olinto, foi uma
resposta às teorias raciológicas que condenavam a América Latina ao
“atraso” e “degenerescência” pela mistura de “raças”.
Ao contrário das visões vigentes no período, Bonfim não
diagnosticava os males da América Latina nas raças. O mal era o
parasitismo no sentido da exploração feita pelas metrópoles coloniais,
elites locais e potências imperialistas, sobre as classes trabalhadoras,
tomando para si as riquezas que essas últimas produziam, agindo como
parasitas do trabalho alheio.
180
Em sua tese de doutorado, Kátia
Baggio observou que
Bomfim considerava que a condenação da América Latina
pelos europeus era fruto da ignorância e do interesse em
explorar as riquezas do subcontinente. Este juízo
condenatório tinha conseqüência perversa: assimilação, pelos
próprios latino-americanos, desta visão negativista e a
apropriação de concepções inaplicáveis à nossa história.
181
177
LAMARÃO, op. cit., p. 55.
178
KLANOVICZ, . O Brasil no mundo rural doente: a construção do agricultor na literatura
em dois momentos da história brasileira (1914 e 1970) In Luso-Brasilian Review, vol. 44,
n°1, p. 45-59. Visconsin, 2007, p. 46.
179
OLINTO, B. A.. Através do Brasil: identidades e teoria da história (1910). In Analecta,
Guarapuava, v. 7, Jul/Dez., 2006, p. 77-89, p. 78. Disponível em:
<http://www.unicentro.br/editora/revistas/analecta/v7n2>. Acesso em 28/02/2010.
180
Ibidem, p 79.
181
BAGGIO, K. G. A Outra América: a América Latina na visão dos intelectuais brasileiros
das primeiras décadas republicanas. 1998. 224f.. Tese (Doutorado em História) Centro de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 1998, p. 102-103,
apud. OLINTO, B. A.. Op. cit., p. 79.
85
Mas, se havia uma imagem do homem do campo comum a
uma elite intelectual do início do século XX influenciada pelo
pensamento europeu, ela foi reelaborada e ancorada também nas idéias
de civilização-progresso por Monteiro Lobato.
O artigo Por onde anda o Jeca, publicado no dossiê Brasil
Rural da Revista da USP vem ao encontro justamente da formação do
Jeca, auxiliando-nos na compreensão desse processo de construção.
Segundo Pereira e Queiroz, Jeca Tatu teria sido gestado nas zonas
sertanejas do Vale do Paranapanema.
182
Os autores chamam a atenção
para o povoamento do Vale do Paraíba e o estilo de vida que havia,
uma vez que foi a partir desse ambiente que o “Jeca teria tomado
forma. Na passagem do século XIX para o século XX, famílias com
escravos e ex-escravos agregados migraram para as fronteiras de São
João da Boa Vista (SP) e Caldas (MG) para o chamado “sertão”, sem se
preocupar com os limites. Esses grupos familiares criaram um tipo de
economia de subsistência e fechada em seus precários limites. Este
cenário, rotulado como sertão, em que se movimentavam esses sujeitos
sociais, na passagem do XIX para o XX, recebeu novos atores: os
fazendeiros modernos, cafeicultores senhoriais em busca de terras férteis
e descansadas para o plantio do café.
183
O Visconde de Tremembé, avô de Lobato, esteve entre estes
senhores. Após sua morte, em 1911, Lobato herdou as terras da fazenda
Buquira e tornou-se fazendeiro. Portanto, Lobato escreveu Velha Praga
nos tempos em que tomou as “rédeas” da fazenda herdada do avô. O
intuito de inseri-las no circuito moderno de produção e administração da
agricultura, somado ao seu estreito contato com os caboclos/caipiras que
trabalhavam em suas terras levou-o afiar as palavras em Velha Praga. E
é no ambiente da fazenda Buquira que Lobato registrou observações que
foram reunidos em Urupês, obra que podemos denominar de marco
inicial da polêmica e contraditória produção do escritor a respeito dos
“tipos humanos” que lá trabalhavam ou “faziam de conta”.
No entanto, reduzir o Jeca Tatu a um mero desabafo do
fazendeiro insatisfeito com o mau encaminhamento de seus negócios,
conforme Leite é com certeza um engano. O Jeca muito
possivelmente registra o pensamento de um setor considerável da
oligarquia paulista no início do século, com ele ressoando „toda a
182
PEREIRA, J. B. B., QUEIROZ, R. S. Por onde anda o Jeca? In Revista USP, São Paulo, n º
64, dez/fev 2004-2005, p. 10-11.
183
Abordagem encontrada em MARTINS, José de Souza. O sujeito oculto: ordem e
transgressão na reforma agrária. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003, especialmente o sub-
capítulo intitulado “A vivência da reforma e a gestação do sujeito” do primeiro capítulo.
86
insatisfação dos velhos fazendeiros paulistas que, artífices da República,
consideravam-se lesados pela política em vigor‟, assim como expressa
uma atitude típica do evolucionismo, aqui sob a ótica pessimista, ao
atribuir às classes mais pobres onde se localizavam os mestiços as
deficiências do Brasil.
184
Originários deste cenário, Lobato tirou os
ingredientes com os quais construiu o Jeca-Tatu.
Certamente a construção do Jeca vai além de concluir que a
experiência de Lobato na fazenda Buquira tenha determinado a
personagem. Por outro lado, se o escritor não tivesse passado por tal
experiência, seus escritos sobre o petróleo e o progresso do Brasil
poderiam ter sido escritos antes. Mas não vamos nos debater na
verdadeira causa, é importante reconhecer que a perspectiva da criação
do Jeca implica outros fatores que não somente sua experiência de
vida.
Mas é possível indicar ser esse período, pouco mais de cem
anos atrás, um dos momentos históricos de produção e reprodução social
do Jeca ou da imagem do caipira.
Ao analisar a idéia de nação e de sertanidade na obra de
Euclides da Cunha, Berthold Zilly argumentou que os letrados
brasileiros do século XIX se viram diante de importante missão
histórica: a de ajudar a construir uma nação civilizada.
185
Considerando
que o Brasil, mesmo após a Independência, ainda não pudesse ser
entendido como uma unidade nacional a fim de formar uma nação,
competia aos letrados darem a sua contribuição nesse processo de
formação do Brasil. Essa investida, Zilly caracterizou através de três
objetivos: construir em solo brasileiro a nação, a civilização e o Estado.
186
Estes três aspectos estariam interligados na medida em que para
que a Independência do Brasil estivesse garantida frente a outras nações
era preciso lançar-se à civilização, tecnologia, ciência e administração
modernas, conforme o exemplo da maior parte dos países europeus.
Nessa missão civilizatória fazia-se necessário integrar o país ao
capitalismo. A despeito de toda discussão que o termo “civilização”
184
LEITE, S. H. T. A.. Chapéus de palha, panamás, plumas, cartolas. A caricatura na
literatura paulista (1900-1920). São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1996, p. 77.
185
ZILLY, Berthold. “Nação e Sertanidade: Formação étnica e civilizatória do Brasil, segundo
Euclides da Cunha”, In Zwischen Literatur und Philosophie, suche nach dem
Menschlichen. Berlin: Wissenschaftlicher Verlag, 2000, p. 305.
186
Zilly observou que, diferentemente do que ocorreu na maior parte de outros países europeus,
onde a nação precedeu o Estado, no Brasil o Estado criou-se antes da nação, em 1822, ao passo
que o processo de formação da nação até hoje não se concluiu.
87
implica, levaremos em consideração sua antiga dimensão ética política,
significando, conforme Zilly
O polimento dos costumes, disciplinamento dos instintos,
domação da rudeza e violência no trato entre as pessoas,
melhoramento da civilidade e da urbanidade, um uso da
palavra que não se pode dissociar da idéia dos valores
universais e do progresso humanitário.
187
Essa dimensão da civilização certamente norteou o
entendimento e as interpretações sobre o homem do campo por parte das
elites agrárias que se auto-apresentavam em oposição ao brasileiro pobre
e rural. Portanto, confirma a hipótese se que a descrição do Jeca
presente nos primeiros escritos de Monteiro Lobato foi ao encontro de
um conjunto de representações que fazia parte de um imaginário elitista
do início do século XX.
A valorização do trabalho durante no início do Governo Vargas
fortaleceu ainda mais o lado frágil e pouco saudável da personagem que
passou a ser utilizada pela mídia, como também em propagandas de
remédios, sobretudo no almanaque farmacêutico Biotônico Fontoura.
Em Histórias e leituras de Almanaques no Brasil, Margareth
Brandini Park procurou estabelecer a mudança de estatuto dos
almanaques populares de farmácia e de seus leitores, recolocando-os
enquanto leituras e leitores, no universo social das práticas de leitura.
Segundo a pesquisadora, a tarefa dos almanaques farmacêuticos era da
educação sanitária e moral do maior número de pessoas.
188
No contexto
do Estado moderno, eles exerceram o papel de portadores de um projeto
de reforma e de civilização identificado ao destino da nação ou da
“raça”. O que justifica a infinidade de normas de conduta e conselhos
que atravessaram diversos almanaques em diferentes épocas.
O almanaque Biotônico Fontoura traduziu esse objetivo com o
folclórico “Jeca Tatuzinho”, ilustrado por Monteiro Lobato. Circulando
entre almanaque, folhetos e livros para crianças, “Jeca Tatuzinho”
encarnava o necessário progresso que faria do caboclo miserável e
degenerado um cidadão são, instruído e útil.
189
O elixir da educação
187
ZILLY, Berthold. Op. cit., p. 306.
188
PARK, M. B.. Histórias e leituras de Almanaques no Brasil. São Paulo: Mercado das
Letras, 1999, p. 108. Ver também PARK, M. B.. Leituras de almanaques: O Cordãozinho e o
Jeca. Disponível em: <http://www.unicamp.br/iel/memoria/projetos/ensaios/ensaio22.html>.
Acesso em: 25/06/2009.
189
Através de propagandas envolvendo bom desempenho escolar, boa vontade, somado aos
9,5% de álcool, plantas aromáticas, Ferro e Fósforo, a autora relata que o primeiro almanaque
88
aparecia também no elixir Biotônico, indicado para consumo na idade
escolar, associado às substancias que impediam o desgaste físico e
mental. Era distribuído nas escolas, junto com o Almanaque permitindo
a Lobato capturar e produzir um público infantil via escola, onde ocorria
não a distribuição do almanaque como também de exemplares dos
seus livros infantis.
Ainda, segundo Park, o jornal O Estado de São Paulo, que
inaugurou a veiculação da personagem de Jeca Tatu, defendia o que
considerava o motor do desenvolvimento para o Brasil, a união da
indústria, da agricultura e do comércio que possibilitariam o progresso
social e econômico, partindo da educação.
190
Em 1918, Lobato publicou Urupês caracterizando o caipira
como um ser indolente e uma raça incapaz de evolução. Em meados do
mesmo ano publicou Jeca Tatu: a ressurreição, onde, curado do
“amarelão”, Jeca pôs-se a trabalhar com tal afinco que se tornou um
próspero fazendeiro.
191
No final deste mesmo foi publicado Problema
vital, outra obra de Lobato que resultou de uma coletânea de artigos
publicados também no O Estado de São Paulo. Publicada pela
Sociedade Eugênica de São Paulo e pela Liga Pró-Saneamento do
Brasil, a obra estava centrada na temática da higiene e saneamento. Para
Lobato, o combate às doenças garantiria a constituição de uma nação
moderna e civilizada. Essa obra, juntamente com Jeca Tatuzinho (1920),
o garoto propaganda do Biotônico Fontoura que circulou nos
Almanaques, traduziu o objetivo de Lobato e consolidou sua revisão
sobre homem o campo, repensando assim a concepção racista que
norteou a concepção do Jeca entre os anos de 1914 e 1918. O Jeca
seria assim em decorrência da doença e da alimentação e não em
decorrência da mestiçagem.
Em Problema vital, a ênfase caiu sobre a questão do trabalho,
ou melhor, na “necessidade de se modernizar as relações de trabalho no
país, através da melhoria das condições de vida da população rural,
do Biotônico surgiu em 1920. Entre 1930 e 1970 foram publicados uma média de três milhões
de exemplares por tiragem. Os discursos medicalizantes, raciais e educativos interpenetram-se
na tessitura dos escritos, como era comum a outros almanaques.
190
PARK, M. B.. Histórias e leituras de Almanaques no Brasil. Op. cit., p. 113.
191
Essa nova perspectiva sobre a qual Lobato escreveu sobre o caipira estava ligada ao fato do
escritor ter aderido ao movimento sanitarista de Oswaldo Cruz. Esta história também foi
adaptada para o Almanaque Biotônico Fontoura. Importante ressaltar que estamos nos
referindo ao Monteiro Lobato dos anos 1914, período em que foi publicado em seu artigo
Velha Praga. Ao longo de sua vida intelectual Lobato repensou e reescreveu suas idéias e
posições em relação ao caipira/caboclo como também sobre outros tantos temas que o escritor
se dedicou a escrever.
89
paralelamente à introdução de métodos disciplinares nitidamente
tayloristas”.
192
De acordo com o sociólogo Aluizio Alves Filho, no
decorrer das décadas de 1910 a 1940, Lobato submeteu o Jeca a três
metamorfoses.
Na primeira, Jeca se encontra doente e desassistido pelo
Estado. Na segunda transformação sofrida pelo personagem,
Jeca consiste em uma representação do Brasil agrário e
rural, subdesenvolvido, em total descompasso com a tessitura
urbano-industrial que tipificava os países que comandavam o
cenário político e econômico internacional. Por fim, em sua
última metamorfose, o Jeca é convertido em Brasil,
arquétipo literário do trabalhador explorado e de um país
submetido à espoliação internacional.
193
Estes valores que remetem ao progresso social e econômico,
exaltados na década de 1920 ressurgiram no nacional-
desenvolvimentismo da década de 40, com o governo de Getúlio Vargas.
Nesse mesmo período o “mundo rural”, tradicionalmente
apontado como entrave ao desenvolvimento brasileiro, ressurgiu na
literatura, na mídia e em outras formas de expressão artística, conforme
apontaram Pereira e Queiroz, como vanguarda das iniciativas
econômicas.
194
A partir dessa constatação, no IV e último capítulo focamos na
análise do diálogo entre a literatura de Marins com os projetos maiores
para o campo que circularam no âmbito do Estado e da elite nacional
entre os anos 1938 e 1945.
192
CAMPOS, A. L. V.. Op. cit., p. 83.
193
ALVES FILHO, Aluizio. As Metamorfoses do Jeca Tatu. Rio de Janeiro: Ed. INVERTA ,
2003. 150 p; apud SILVA, Roberto Bitencourt da. O “Jeca Tatu” de Monteiro Lobato:
Identidade do Brasileiro e Visão do Brasil. In: 19&20 - Revista eletrônica de DezenoveVinte,
v. II, 2, Abr/2007. Disponível em: <www.dezenovevinte.net/resenhas/jecatatu_rb.htm>.
Acesso em: 27/10/2010.
194
PEREIRA. J. B. B., QUEIROZ, R. S.. Op. cit., p. 8.
90
CAPÍTULO 4
A RECONSTRUÇÃO DO “JECA” E UM SENTIDO PARA
A EDUCAÇÃO
A positivação do campo e do homem rústico marcou fortemente
a maneira de Francisco Marins se referir ao universo rural brasileiro. E
não parece ter ocorrido de maneira gratuita na sua literatura, mas sim
estar relacionada ao ponto de inflexão que essa positivação do homem
do campo sofreu nos anos 1930. Momento em que se abandonou o
projeto de “vocação agrícola” do Brasil para gradativamente postular
um projeto de industrialização nacional.
Neste capítulo focamos no diálogo da sua literatura com os
projetos maiores que intelectuais propuseram para o campo e que
circularam no âmbito do Estado e da elite nacional no período do
Governo de Getúlio Vargas.
Tanto os contos Ritinha, Mulita e ... Antes tarde do que nunca,
como Nas terras do Rei Café foram publicados e difundidos no período
compreendido entre 1938 e 1945 em que teve desenvolvimento o Estado
Novo de Getúlio Vargas. Os contos foram publicados na imprensa local
de Botucatu, mas Nas terras do Rei Café figurou entre os livros infantis
mais vendidos no país em 1945.
Ao analisar a situação do mercado do livro no Brasil entre os
anos 1938 e 1943, Sérgio Miceli apresentou um quadro contendo a
produção das seis maiores editoras segundo o gênero literário. Em se
tratando dos livros infantis, a Editora Melhoramentos respondia por
38% da produção, número quatro vezes maior que a Editora Globo, que
aparece em segundo lugar na produção do gênero.
195
As primeiras edições de Nas terras do Rei Café, num período de
dois anos e meio, tiveram 26.000 exemplares publicados e vendidos.
Marins é considerado um dos escritores mais representativo do período
pela sua produção e venda, como também pela sua permanência no
mercado na área de literatura infantil.
196
Conforme mencionamos na introdução desta dissertação, a
localização no espaço rural foi prática comum do gênero infantil no
período. E a maior parte das análises sobre obras de literatos que
concentram suas histórias no espaço rural que tivemos contato no
decorrer da pesquisa, sugeriu a afirmação da apologia do rural em
195
MICELI, Sergio. Intelectuais à Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 153.
196
MELLO, F. A. S.. Op. cit., p. 11.
91
contraposição ao projeto brasileiro em curso no período, do
desenvolvimento industrial.
Segundo esta abordagem, a literatura, que elegeu o campo como
o espaço da narrativa, estava preocupada em garantir a visibilidade de
um mundo rural que estaria perdendo lugar em meio a discussões de
modernização, advogando uma “causa de outra índole”, contrária ao
movimento rumo à industrialização do país.
Os anos de 1930 é um dos períodos históricos mais visitados
pela história contemporânea, especialmente pela História Cultural.
Nestes anos, entre muitos aspectos, a historiografia apontou-o como um
momento decisivo da afirmação do modo de produção capitalista. No
caso do Brasil, rcia Motta e Sônia Mendonça destacaram que a forte
presença do Estado impulsionou a industrialização, como precondição
da mudança do padrão de acumulação capitalista no país, mediante a
instalação, com investimentos públicos, de indústrias de bens de capital
e bens de produção.
197
Mas o campo, segundo as autoras, não foi deixado de lado, mas
sim contemplado com “alguns ensaios de políticas voltadas para a
educação agrícola, conquanto ainda não de forma sistemática, destinada
ao que alguns autores denominaram de „incorporação simbólica‟ do
trabalhador do campo”.
198
O que indica que o campo também foi uma
preocupação de intelectuais aliados ou não ao Governo Vargas que
pensaram estratégias e projetos para a incorporação do campo e do
homem rústico no projeto maior de desenvolvimento do país.
A afirmação do “abandono do campo” em contraposição ao
projeto brasileiro em curso no período, do desenvolvimento industrial é
uma idéia recorrente na historiografia sobre o período do Governo
Vargas. Mas a análise de Francisco Carlos Teixeira da Silva sobre o
Governo Vargas e a questão agrária, apresentou-nos um contraponto.
Segundo este autor, os anos 1930 consolidaram parte substancial do
imaginário que até hoje povoa a mente dos brasileiros sobre o seu
passado rural e sobre a vida no campo. Silva afirmou que eles foram
incorporados pelas colônias nacionais, como ideal da pequena
propriedade como solução para o papel da agricultura no processo de
industrialização.
199
Esta estratégia política visava combater o
197
MOTTA, Márcia, MENDONÇA, Sônia R.. Modernização da agricultura. In MOTTA,
Márcia (Org.). Dicionário da Terra. Op. Cit., p. 307.
198
Ibidem, p. 307.
199
Isto se evidencia no caso da experiência rio-grandense de colonização. Para Silva, o modelo
gaúcho, que em decreto estabelecia áreas reunidas em pequenos lotes, mobilizou o imaginário
popular, envolvido por eficientes campanhas de propagandas. SILVA, F. C. T.. Op. cit., p. 118.
92
predomínio da política agro-exportadora e monocultora em benefício da
interiorização do desenvolvimento, dentro da campanha que o governo
denominou “Marcha para o Oeste”.
Para este “reajustamento” criaram-se controles administrativos
que atuaram por meio de intervenção estatal. Um deles foi o incentivo à
produção que se chocou com o ordenamento fundiário desigual e
concentrador. Através das estratégias propostas no decorrer governo
Vargas, Silva considerou ser possível buscar uma prova para a tentativa
de articulação de seus objetivos, incluindo a política agrária
desenvolvida entre os anos de 1930 e 1945.
Situa-se aqui uma importante discussão sobre a inclusão ou não
do homem do campo nos projetos maiores para o campo no governo de
Getúlio Vargas. Para o autor, a opção lógica era a construção de uma
ampla base urbana e fabril e, a partir das cidades, conquistar o campo.
200
E, pode-se inferir, conquista que não poderia prescindir dos
componentes culturais, incluindo o debate em torno da educação.
Em sua reflexão sobre a ação pedagógica dos intelectuais no
período de democratização, no final da década de 1940, Ângela de
Castro Gomes considerou que a valorização do trabalho era promovida
pelo Estado brasileiro desde a década de 1930, especialmente, entre
1937-1945. A educação voltada para formação do trabalhador foi
indispensável na associação das idéias políticas entre trabalho/riqueza e
trabalho/cidadania.
201
O modelo educacional, portanto, estava em estreita relação com
o modelo da fábrica, o que indica também uma estreita relação entre os
educadores profissionais e a consolidação da lógica burguesa de
organização e desenvolvimento da sociedade. Forjava-se assim a
elaboração positiva do trabalhador nacional.
Neste contexto, o uso de imagens positivadas do homem do
campo e de seu trabalho também surgiu como forma de incorporá-los à
política nacional. Silva afirmou que
o papel do campo no projeto maior de modernização
varguista seria plenamente atendido; não seria possível
garantir a modernidade industrial sem respostas efetivas ao
campo. Porém, a capacidade de incorporá-lo, nos mesmos
moldes que a cidade era ainda, restrita, levando o Estado a
optar, num primeiro momento, por uma incorporação e não
200
SILVA, F. C. T.. Op. cit., p. 116.
201
GOMES, A. M. C.. História e Historiadores: a política cultural do Estado Novo. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 1996.
93
pelo abandono imaginária do trabalhador rural.(grifo
meu)
202
O campo e o homem rústico foram tomados, assim, como
objetos naturais do projeto de governo e, ao contrário do que se afirmou
comumente, não estavam ausentes das preocupações do Estado nos anos
1930 e 1940. O campo deixou de ser tratado como uma atividade
natural, aquela que remetia a um país “essencialmente agrícola”,
passando a ter uma função no programa de desenvolvimento nacional.
Com isso o campo e seu homem passaram a ser vistos e tratados como
um problema, uma questão que também tinha o seu lugar e deveria ser
atendida para que houvesse o desenvolvimento pleno do país. E como
fazer com que o campo colaborasse neste processo de desenvolvimento
nacional?
A resposta básica do Estado foi a intervenção estatal, que
ocorreu no setor industrial, na legislação trabalhista e também na
imprensa. Neste caso, em que levantamos a hipótese do diálogo da
literatura de Marins com os projetos maiores que intelectuais
propuseram para o campo, focamos no Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP).
Criado em 1939, o Departamento DIP foi incumbido de difundir
amplamente a imagem do novo regime (1937-45), através da promoção
da figura de Vargas, das ações promovidas pelo Estado e da produção e
divulgação das notícias oficiais. Dividido em cinco seções (propaganda,
radiodifusão, cinema e teatro, turismo e imprensa), a centralidade da
seção de imprensa tornava-a a principal produtora dos discursos que
deveriam ser transmitidos aos demais meios de comunicação.
203
Um exemplo foi a revista Cultura Política. Publicada
regularmente no período de março de 1941 a fevereiro de 1945, esta
revista foi uma das mais importantes publicações oficiais do Estado
202
SILVA, op. cit., p. 116.
203
Sobre o papel da radiodifusão e da imprensa escrita, ver TOTA, Antônio Pedro. Locomotiva
no ar: Rádio e Modernidade em São Paulo 1924-1934. São Paulo, Secretaria do Estado de
Cultura/PW, 1990; SAROLDI, L. C.; MOREIRA, S. V.. (Org.). Rádio Nacional: o Brasil em
sintonia. Rio de Janeiro: Funarte, 1984; MURCE, R.. Bastidores do rádio. Rio de Janeiro:
Imago, 1976; GOMES, A. M. C.. História e Historiadores. Op. cit., especialmente o capítulo
“O Estado Novo e a recuperação do passado brasileiro” em que a autora faz uma análise das
publicações da revista Cultura política; OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Estado Novo: ideologia e
poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982; FIGUEIREDO, Marcus. 1968. Cultura Política: revista
teórica do Estado Novo. In: Revista Dados, Rio de Janeiro, Iuperj, 4; CAPELATO, M. H.
R.. Multidões em cena: propaganda política no varguismo e no peronismo. Campinas: Papirus,
1998, p. 48.
94
Novo.
204
A historiadora Mônica Pimenta Velloso observou que
O mundo das letras - personificada em Machado - passa a
representar a parte falsa do Brasil. [...] A valorização do
mundo rural é concomitante à desqualificação do universo
urbano. Nesse contexto de valores, escolher a cidade como
temática significa dar as costas ao „Brasil real‟. Como a
maioria dos escritores cariocas, Machado se inclui entre os
autores que optam pelos temas urbanos, tomando como
cenário a rua do Ouvidor, os salões aristocráticos de
Botafogo ou os subúrbios humildes. A revista Cultura
Política, não desprezando o mérito de tais escritores, lamenta
que negligenciem a „nobreza de suas raízes rurais‟.
205
(grifo
meu)
A Revista Cultura Política exprimiu o pensamento do regime e
divulgou o projeto político-ideológico do Estado Novo. Escreveram
nesta revista especialistas e intelectuais que, em sua maioria,
correspondiam às coordenadas do discurso que foram dadas por aqueles
que se vincularam diretamente à elaboração de projetos do Estado Novo
em nível teórico e institucional.
Em relação às questões agrícolas, a revista realçava a obra da
União no sentido de forçar um abandono da monocultura e de se
revolucionarem os métodos de cultivo da terra. Descrevia-se, por
exemplo, a mobilização dos técnicos, que deveriam ensinar os homens
do campo.
206
Mas estas estratégias, em sua maioria, basearam-se nos padrões
de produção e de vida urbano-industriais marcando ainda mais as
diferenças entre o campo e a cidade. O próprio educador Lourenço
Filho, que foi fundamental para a visibilidade da literatura infantil de
Marins e que atuou na formação de professores para o ensino técnico
rural, enxergava a necessidade de um ensino profissionalizante, que
fomentasse a produtividade no campo.
O objetivo principal do que se chamou “ruralismo pedagógico”,
consistiu em valorizar o homem do campo, educá-lo e fixá-lo à terra em
que vivia. Adaptá-lo, portanto, ao seu meio.
207
204
A Cultura Política era de caráter mensal, mas passou a trimestral nos últimos três
exemplares, em 1945.
205
VELLOSO, M. P.. A literatura como espelho da nação. In: Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, vol. 1, n° 2, 1988, p. 244.
206
GOULART, Silvana. Op. cit., p, 117.
207
PRADO, A. A. Intelectuais e educação no Estado Novo (1937-1945): o debate sobre a
95
O “ruralismo pedagógico” é apontado como uma tendência de
pensamento articulada por alguns intelectuais que formularam idéias
que já vinham sendo discutidas desde a década de 1920 e que consistiam
na defesa de uma escola adaptada e sempre referida aos interesses e
necessidades hegemônicas no setor rural. Esse pensamento privilegiou o
papel da escola na construção de um “homem novo”, adaptado à nova
realidade brasileira e de uma relação “homem rural/escola”
pretensamente nova.
208
Na concepção de Lourenço Filho, o problema da educação rural
era de natureza complexa e não poderia residir no apenas no anseio de
fixação do homem do campo ao seu meio. Sugeriu que para que
houvesse “boa solução”:
o problema deveria exigir medidas de muito maior
envergadura: reforma do regime agrário; desenvolvimento
não dos serviços de fomento da produção agrícola como
de distribuição de crédito e defesa da produção; melhoria das
vias de comunicação e serviços de assistência; serviços de
educação de adolescentes e adultos analfabetos; “missões
rurais” com o emprego de processos técnicos modernos de
difusão, como os do cinema; e, enfim, melhoria das
instalações escolares, construção de casas de residência para
os professores, organização regional de sua formação, com
atenção às necessidades gerais de vida em cada ambiente.
209
Ensinar às crianças, “rudimentares técnicas agrícolas e de
defesa da saúde”, não era o suficiente. Para Lourenço Filho, a educação
rural deveria ser posta em prática imbuída de um sentido mais amplo, de
estruturação social e “de alevantamento do nível cultural, moral e
formação do professor primário rural. In: Revista Teias (Rio de Janeiro) v. 01, 2000, p. 9.
PRADO, A. A . Ruralismo Pedagógico no Brasil do Estado Novo (1937-1945). In Revista
Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, 1995, n º 4, p. 5-27.
208
Ibidem, p. 9.
209
LOURENÇO FILHO, Manoel Bergström. A formação de professores: da Escola Normal à
Escola de Educação. Organização: Ruy Lourenço Filho. Brasília: Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais, 2001, pp. 84-87. Também disponível no site
<http://www.publicacoes.inep.gov.br/arquivos/colecao_lourencofilho4_213.pdf>, consultado
em 04/11/2009. Sobre o a atuação de Lourenço Filho no ensino técnico rural ver também
SOUZA, C. M. “Discursos Intolerantes: Educação Rural e a Representação do Camponês
Analfabeto”. In Histórica. Revista Eletrônica do Arquivo do Estado. Imprensa Oficial: Ed.03,
julho de 2005. Disponível em
<http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao03/materia02/rural.pd
f>. Acesso em: 04/11/2009.
96
cívico”.
210
As idéias apresentadas por Lourenço Filho foram amplamente
debatidas nos trabalhos de duas conferências: na I Conferência Nacional
de Educação, reunida pelo Ministério da Educação, no Rio de Janeiro,
em 1941, e no VIII Congresso Brasileiro de Educação, realizado em
Goiânia (1942), por iniciativa da Associação Brasileira de Educação.
Ao analisar o VIII Congresso de Educação, ocorrido no ano de
1942, a pesquisadora Aldonia Antunes Prado observou que o seu
principal objetivo foi “examinar os problemas da educação primária
fundamental da população brasileira, principalmente os relacionados
com as zonas rurais e sugerir, quanto aos mesmos, diretrizes e
soluções”.
211
A Comissão Executiva do Congresso foi constituída de 28
membros, entre os quais estavam Artur Torres Filho e Lourenço Filho. O
primeiro, filho de Alberto Torres, é considerado o principal articulador
ideológico da noção de que o Brasil seria uma nação de vocação
eminentemente agrária.
212
O congresso contou ainda com uma
Comissão de Honra, composta pelo presidente da República e pelos
ministros de Estado; a Comissão Patrocinadora Nacional, composta por
figuras eminentes das diversas unidades da Federação, como
interventores, reitores de universidades e dirigentes de institutos e
departamentos da burocracia estatal, ligados ou não à educação, além de
personalidades com visibilidade nacional, como Cândido Rondon,
Fernando de Azevedo, Lafaiete Cortes, Sud Mennucci, Frota Pessoa,
Odilon Braga, Branca Fialho, entre outros.
213
Prado destacou que a propaganda do congresso foi feita de
maneira maciça pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, pelo
Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos e pelo Departamento de
Imprensa e Propaganda, em todo Brasil.
O ensino rural foi discutido em pleno desenvolvimento da
campanha “Marcha para Oeste” e criou uma oportunidade privilegiada
para a reunião de intelectuais ligados ao governo, com diferentes níveis
de responsabilidade e de compromisso oficial, bem como de
210
PRADO, A. A.. Op. cit., p. 88-89.
211
Ibidem, p. 7.
212
Sobre a atuação de Alberto Torres ver PRADO, A. A . Ruralismo Pedagógico no Brasil do
Estado Novo (1937-1945). In Revista Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v.
1995, n. 4, p. 5-27.
213
Ibidem, p. 7.
97
professores, técnicos em educação, entre outros.
214
O “ruralismo pedagógico” se fez presente no universo de
representações e preocupações dos dirigentes políticos e dos intelectuais
como produto ideológico de grupos interessados na questão rural,
entrelaçada que estava aos campos da política demográfica, da
segurança nacional e da colonização interna. Nessa arena de discussões,
a educação assumiu um caráter estratégico.
215
A análise de Prado acerca do deste Congresso de Educação
sugeriu-nos que os debates educacionais do início dos anos 1940, o tema
da valorização do homem rural exemplifica as idéias sobre as quais o
“ruralismo pedagógico” construiu sua ideologia, envolvendo educação,
intelectuais e política do Estado.
Por meio da escola, seria também necessário reforçar a
valoração negativa de situações e características da vida rural brasileira,
que remete à rusticidade implícita no modo de vida do homem do
campo. O paradigma da nova escola rural incluía “o exorcismo da antiga
escola e de um passado que se considerava extinto com a inauguração
do Estado Novo”.
216
Era preciso manter o trabalhador no campo e
socializá-lo de acordo com o pensamento político hegemônico.
Nacionalizá-lo, portanto, por meio da educação, que constituiu um
elemento estratégico privilegiado.
Em conferência pronunciada em 1957, Antonio Candido
argumentou que a educação vinha enfrentando as desarmonias da
sociedade moderna, entre elas, frisou a dicotomia campo/cidade, “como
universos sociais e culturais diferentes, gerando dois tipos contraditórios
de existência e repercutindo na esfera educacional”.
217
Partindo do
214
PRADO, A. A. Op. cit., p. 1. “Marcha para o oeste” foi um programa, lançado por Getúlio
Vargas em 1/5/1941, preocupado em empreender uma política de interiorização, de conquista e
colonização das regiões interioranas do Brasil. Seu objetivo declarado foi ocupar espaços
políticos e econômicos, buscando suprimir terras desocupadas, levando as fronteiras
econômicas até as fronteiras políticas. Na definição de Vanderlei Ribeiro, o Estado buscou
expandir a colonização na área através de algumas ações como também fazer levantamentos
para a construção de estradas e a expansão da agricultura. Na prática, o programa teve poucos
resultados, mas o imaginário da Marcha ficaria imerso na cultura política brasileira. Portanto,
muito mais do que um programa de ação governamental, a marcha foi um discurso, uma idéia
que mobilizou por décadas tanto o imaginário popular, quanto a visão idílica de muitos líderes
políticos. A marcha, afirmou o autor, foi mais um discurso ideológico usado normalmente para
atrair a simpatia popular para os governantes, sob o slogan de “Rumo a Oeste”. Ver: MOTTA,
Márcia. Dicionário da Terra. Op. cit., p. 288-289.
215
PRADO, A. A.. Op. cit., p. 8.
216
Ibidem, p. 9.
217
CANDIDO, Antonio. As diferenças entre campo e cidade e seu significado para a educação.
In Pesquisa e Planejamento, ano I, 1, São Paulo, junho de 1957, p. 55. A Conferência foi
promovida pelo Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo.
98
pressuposto de que a divisão do trabalho conduz à divisão entre campo e
cidade, Candido afirmou que estes dois tipos de existência implicariam
dois tipos diferentes de participação na vida cultural, conforme os
grupos fossem mais ou menos capazes de multiplicar e satisfazer
necessidades.
Portanto, são dois modos diferentes de vida e em essência,
contraditórios no modo de participação na vida social e cultural, fazendo
com que o progresso técnico e intelectual se distribuísse de maneira
irregular e desequilibrada nos dois setores.
218
E que, dessa forma, nos
momentos de urbanização intensa, acentuam a diferença entre a vida no
campo e a das cidades, dando lugar a manifestações ideológicas que
exprimem os ajustamentos e desajustamentos em relação a uma e a
outra.
Na medida em que a incorporação do homem rural à esfera
cultural e social da civilização urbana implica,
necessariamente, em países sub-desenvolvidos, como o
nosso, modificações profundas na estrutura social e
econômica, vemos surgirem ideologias em defesa destas, sob
os mais vários aspectos e intuitos, inclusive os mais honestos
do ponto de vista formal e psicológico.
219
Candido referiu-se a certos aspectos dos movimentos ruralistas
e do ruralismo pedagógico, que seriam manifestações daqueles “mitos
da idade do ouro”, tão ocorrentes nos períodos de urbanização intensa.
Neste caso, o ruralismo diz respeito tanto a uma política agrária quanto a
uma contrapartida ideológica, fomentada e reproduzida por meio da
montagem de um sistema de ensino agrícola, considerada capaz de atuar
sobre o campo e o seu homem, transformando suas maneiras de pensar e
agir.
220
No Brasil, segundo o autor, houve um enorme saudosismo,
“consistente na afirmação de que o campo é o ambiente ideal para a
formação dos homens saudáveis e retos, dos grupos harmoniosos,
incontaminados pelo artificialismo das cidades”.
221
O campo seria uma
espécie de reserva de homens com que poderia contar a nacionalidade,
devendo fazer tudo para dar aos seus moradores um tipo de assistência
218
CANDIDO, Antonio, As diferenças entre campo e cidade e seu significado para a educação.
Op. cit., p. 58.
219
Ibidem, p. 62-63.
220
MENDONÇA, Sônia R.. O ruralismo brasileiro. Op. cit., 10.
221
CANDIDO, Antonio. As diferenças entre campo e cidade e seu significado para a educação.
Op. cit., p. 63.
99
que os fizesse indiferentes aos atrativos da cidade. Por isso, o papel da
educação seria fundamental, especialmente o ensino técnico rural.
Segundo a observação do autor,
Daí se ter cogitado e mesmo parcialmente executado um
programa de formação específica do professor rural, como
categoria estanque, vinculado ao meio rural e funcionando no
sentido de melhorar o ajustamento dos trabalhadores rurais.
Sob este aspecto, o ruralismo pode ser tipo de justificação
ideológica que, em vez de conduzir o educador para a plena
consciência da contradição campo-cidade e a disposição de
superá-la intensificando a urbanização (no sentido amplo,
não no de migração rural), contribui para mantê-la,
estabelecendo uma espécie de estabilização do estado de
privação em que se encontra o homem rural frente aos
benefícios da civilização urbana. A diferença é vista como
desarmonia pelo avesso, isto é, no sentido de que o homem
da cidade é privado dos benefícios trazidos pela vida no
campo; e o reconhecimento da desarmonia, em vez de
conduzir à sua análise como contradição, leva apenas ao
desejo de fixar uma dicotomia, reputada natural.
222
Possivelmente esse tipo de ensino no campo voltado para o
campo, cujo principal objetivo foi a fixação do homem rústico em seu
meio, contribuiu para fixar ou talvez aumentar as diferenças entre o
mundo rural e urbano no país. E com isso comprometer um modo de
vida e as manifestações da cultura caipira que Francisco Marins elegeu
como tema no decorrer da sua carreira literária.
A importância atribuída à educação rural nos anos 1930 e 1940,
estudada por Prado e observada por Candido, levou-nos a enxergar uma
afluência no debate sobre a formação do professor rural decorrente de
uma consciência preocupada com o papel da escola e da escolarização
no Brasil naquele período. E ainda, coerente com as políticas mais
amplas de construção de um capitalismo moderno no país e de criação
de um consenso em torno das práticas políticas do Estado Novo. A
“realidade” do homem do campo foi pautada na necessidade de ele ser
um trabalhador cordato e disciplinado, desejoso de produzir mais e
melhor e sobretudo infenso à fantasia urbana.
223
Apesar de Marins ter sido influenciado por Lourenço Filho, pois
222
CANDIDO, Antonio. As diferenças entre campo e cidade e seu significado para a educação.
Op. cit., p. 63.
223
PRADO, A. A.. Op. cit., p. 13.
100
na época acreditava ser necessário seguir “os mestres do seu tempo”,
observamos que Marins orientou sua literatura no sentido inverso. Ao
contrário do que pregaram os representantes do ruralismo pedagógico,
no intento de atribuir um significado da educação para o campo, a
literatura de Marins é portadora de um significado do campo para a
educação na qual se fez presente a ressignificação do Jeca.
A obra de Marins pode não estar diretamente relacionada aos
projetos maiores para o mundo rural. Mas foi publicada e difundida num
período em que intelectuais aliados ou não ao poder pensaram
estratégias e projetos para a incorporação do campo e do seu homem no
projeto maior de desenvolvimento. Dialogou, portanto, com visões de
intelectuais e letrados, de uma elite dirigente do país num momento em
que a questão atraso/progresso orientou as discussões a respeito da
identidade nacional entre outras.
A articulação dos valores do homem do campo com vistas para
a educação configurou a sua abordagem sobre o mundo rural. Se
aproximando do saudosismo observado por Candido, que via no campo
“o ambiente ideal para a formação dos homens saudáveis e retos, dos
grupos harmoniosos, incontaminados pelo artificialismo das cidades”.
224
Tanto nos contos como em “Nas terras do Rei Café”
observamos também uma contradição proposital. Ao mesmo tempo em
que o Brasil é apresentado como um país “essencialmente agrícola”,
imediatamente são anunciados os problemas por quais passavam as
propriedades. A ruralidade impregnada nas histórias de Marins está
relacionada ao universo das pequenas propriedades rurais, sobretudo,
àquelas que experimentaram momentos de crise da produção.
A descrição do espaço rural e da vida cotidiana do homem do
campo não consiste apenas em promover o espaço rural, mas foi
também uma crítica do escritor à ausência de políticas agrícolas efetivas
ao longo do governo de Getúlio Vargas. Fosse Rio Turvo ou a
“fazendola” da qual fugiu Mulita, fosse Pratânia, onde permaneceu a
Prima Rita ou o sítio Taquara-Póca, os problemas e desafios que as
pequenas propriedades teriam que dar conta configuraram o rural e a
ruralidade da literatura de Marins.
A adesão ao sistema capitalista moderno de produção foi
defendida por Marins e aparece em frase como o “Brasil precisa se
modernizar”. Mas a valorização dos elementos arcaicos, tais como
224
CANDIDO, Antonio. As diferenças entre campo e cidade e seu significado para a educação.
Op. cit., p. 63.
101
combater a broca com outro inseto para salvar o café, ao invés do uso
dos famosos pacotes NPK, indica a preservação de uma cultura da terra
típica das pequenas propriedades rurais da qual o caipira é portador ou
“guardião das tradições”.
A ruralidade presente na concepção do mundo rural e do caipira
nas primeiras histórias de Marins atuou e atua como uma forma de
apresentar o próprio Brasil no seu aspecto rural. A vida do caipira
marcada pela rusticidade e os comportamentos estimulados e descritos
nas suas histórias seriam uma forma de atingir essa preservação via
canal da educação.
Segundo José de Souza Martins, continuamos a pensar o
homem do campo e o da cidade como fazendo parte de duas populações
distintas ou divididas por um intransponível abismo.
225
O autor
questionou a concepção corrente da suposta ignorância das nossas
populações do campo ou originárias dele. Em conseqüência disto, a
idéia de educação rural e o caráter e a concepção corretiva da educação
rural e de outras modalidades de intervenção rural. Para o autor, a
ignorância das populações do campo o é por uma perspectiva
reducionista e pobre, “nossa sociedade, de fato, muito declarou uma
guerra contra a cultura das populações do campo a pretexto de educá-las
e libertá-las da ignorância e de trazê-las à força para a civilização
urbano-industrial”.
226
E ainda:
Se nos dias atuais é difícil, ou quase impossível, encontrar o
caipira real, ele sobrevive, contudo, e bem forte, no
imaginário nacional, popular ou não, urbano ou rural. Tal
sobrevivência se dá via mecanismo em que se misturam o
ridículo e o idealizado, compondo o perfil de um caipira
caricatural.
227
Esse imaginário foi, e continua sendo, alimentado de diversas
formas se perpetuando ao longo dos tempos e dos espaços. Idealizado
como um elemento “autêntico”, depositário das tradições genuinamente
brasileiras, o caipira acabou encontrando, a despeito de seus traços
rústicos, um lugar na galeria dos mbolos nacionais. Em que a literatura
de Marins também fez parte da sua construção.
A preservação nacional em Marins está ligada à preservação da
225
MARTINS, José de Souza. Cultura e educação na roça, encontros e desencontros. In:
Revista USP, nº 64, dez/fev 2004-2005, p. 30.
226
Ibidem, p. 30.
227
PEREIRA, J. B. B., QUEIROZ, R. S.. Op. cit., p. 12.
102
cultura caipira, do meio-ambiente e da história. É isto que suas histórias
sugerem. Preservar é impedir que a influência da vida citadina destrua o
folclore brasileiro; é proteger a fauna e flora, com a ajuda do Curupira; é
relembrar a história do país e não permitir que este modo de vida seja
esquecido. Além disso, preservar o Brasil rural significava ainda impedir
que transformações ocasionassem o desaparecimento de uma
determinada visão de Brasil.
103
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na introdução desta dissertação remetemos à personagem de
Jeca Tatu, criada por Monteiro Lobato, em 1914, como a responsável
pela perda do referencial do próprio indivíduo sobre o qual foi inspirada
e caricaturada: o caipira.
A literatura do Jeca foi, em grande parte, responsável por um
dia Marins querer retraçar a vida sertaneja em outro sentido,
ressignificando o mundo rural e o homem do campo, estigmatizado
como atrasado e ignorante.
Marins começou com os contos. O primeiro deles, Ritinha, foi
premiado pela revista O Malho do Rio de Janeiro (1938). Entusiasmado,
o escritor passou a escrever outros contos e publicar na imprensa de
Botucatu. Em seguida escreveu Mulita e Antes tarde... do que nunca.
Mas foi em 1945, com seu primeiro livro infantil, Nas terras do Rei
Café, que Marins ganhou visibilidade no campo literário. Indicado como
“excelente recurso para o aperfeiçoamento da linguagem”, pela
Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, o livro foi inserido no
mercado do livro didático, promissor nos anos 1940. E foi,
principalmente, através dele que veiculou a concepção de Marins acerca
do mundo rural e do caipira.
Para a análise da abordagem da concepção do mundo rural e do
caipira ao longo das primeiras produções literárias de Marins e do seu
diálogo com os projetos maiores que intelectuais propuseram para o
campo no período do Estado Novo de Getúlio Vargas, dividimos a
dissertação em quatro capítulos.
Através da trajetória de Marins, que tentamos apresentar num
esboço biográfico, identificamos aspectos que nortearam a sua
ressignificação acerca do universo rural. A entrevista realizada com o
escritor sugeriu-nos que seu pai havia incorporado um discurso em
negativo sobre a própria identidade caipira. Verificou-se que Marins
reivindicou posteriormente essa identidade caipira em um sentido
positivo e foi a partir dela que orientou a sua concepção sobre o campo e
o seu homem. No depoimento de Marins foi possível perceber uma
percepção do escritor sobre si mesmo como também um esforço de
articular a sua memória com a história, com aquilo que foi exterior à sua
vivência individual.
Nos primeiros anos da Faculdade de Direito, e da Academia de
Letras, Marins respondeu a um inquérito organizado pelos acadêmicos
da Faculdade criticando a escola do Porque me ufano do meu país, obra
de Afonso Celso. Para o escritor, esse tipo de literatura pretensa em
104
engrandecer a nação, escondia os problemas reais pelos quais o país
passava. Esta preocupação de não se ufanar, mas de trazer à tona os
problemas da vida brasileira era também, para Marins, uma
responsabilidade dos homens de letras.
No ambiente da Editora Melhoramentos Marins conheceu
Lourenço Filho, editor chefe no período, que fazia a revisão de todos os
livros infantis antes de serem publicados. Marins inscreveu Nas terras
do Rei Café, seu primeiro livro destinado às crianças e também a
primeira história que trouxe o sítio Taquara-Póca para a Literatura
Infantil Brasileira. O incentivo à publicação do seu primeiro livro
somado ao histórico de publicações nesta editora permitiu-nos inferir
que, assim como Lourenço Filho colocou em prática suas estratégias de
intervenção cultural através do livro, Marins reivindicou posteriormente
este projeto pedagógico para sua obra. A concepção acerca do mundo
rural que se formou nos primeiros anos da sua carreira literária e foi
levada adiante, com as publicações seguintes, estava vinculada ao
projeto literário em que a literatura não era apenas arte, mas serviria de
objeto formador de que o escritor se valeu para atingir tanto o público a
que se destina o livro, como ao tipo de mercado.
Tanto no ambiente das academias de letras como no da
Melhoramentos, locais de sociabilidade de intelectuais, Marins teve
reconhecimento como um “homem de letras”, o que contribuiu para o
reconhecimento da sua literatura também. Em 1960, Marins assumiu o
cargo de Editor chefe da Melhoramentos, no qual permaneceu até o ano
de 1978. Em paralelo ao cargo de editor, desenvolveu inúmeras
atividades ligadas à política, ao comércio, à divulgação e à editoração do
livro, como também aos direitos autorais, entre outras. Mas as
experiências de infância e o ambiente da terra natal, Pratânia, relatados
em depoimento, permitiu-nos a aproximação do “vivido”, que, em parte,
informaram a sua literatura.
No segundo capítulo focou-se nas manifestações da cultura
caipira. Ritinha, Mulita e Antes tarde... do que nunca, foram os três
primeiros contos escritos por Marins nos quais estavam esboçados
alguns episódios, personagens e temas que o autor recuperou
posteriormente tanto na produção infanto-juvenil, na década de 1940,
como também nos seus romances, publicados a partir dos anos 1960.
Nos três contos identificou-se entremeado na norma culta da língua, o
dialeto caipira. Como também o uso da terminologia própria da lida
rural e da caracterização dos animais e das plantas. Mas o uso do dialeto
está respaldado no estudo de Amadeu Amaral, seguindo alguns padrões
de fixação da linguagem caipira que tem o seu correspondente no
105
português arcaico e não em qualquer variação do uso.
A descrição das personagens ao longo dos contos demonstra os
sinais da vida difícil e sofrida daquele tempo. O homem que vive no
campo não aparece ligado simplesmente a qualquer mundo. Mas ligado
“visceralmente ao trabalho rural”, indicando toda uma estrutura na qual
a vida do pequeno sitiante e a auto-suficiência deficitária o expulsa (ou
pode expulsá-lo a qualquer momento) para algum lugar que nunca vai
ser seu mundo.
A maneira como Marins abordou nos seus contos as atividades
ligadas às pequenas propriedades rurais, o medo de perder as terras, os
males causados pelas geadas, a colheita do café, entre outros aspectos,
vão configurando a sua concepção referente ao mundo rural e ao caipira.
Sem dúvida, esta concepção que se faz veicular pela literatura, está
marcada pela rusticidade e pelos “valores da terra” do qual o caipira é
portador e, possivelmente, guardião.
Em Nas terras do Rei Café, observamos uma linguagem mais
enfática em relação à valorização dos instrumentos rudimentares
utilizados na roça, dos dias cheios de tarefas e desafios, em relação aos
animais, às plantas e aos seus inimigos. Os seres humanos e os seres
inanimados interagem num mesmo plano.
Percebeu-se também que Marins conciliou o que era
divertimento com o que era trabalho, apontando para duas formas de
atividades que não estavam separadas, remetendo às duas características
apontadas por Candido a respeito das manifestações da cultura caipira: o
lazer e o trabalho indissociados, o que constituiu uma das principais
causas da estigmatização do caipira.
Por Taquara-Póca apresentar inúmeras semelhanças com o
Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, no terceiro capítulo
traçou-se um paralelo entre os dois sítios e em seguida entre a trajetória
intelectual dos dois escritores.
De maneira muito próxima ao sítio do Picapau Amarelo, criado
em 1921, Marins narrou outras aventuras no sítio Taquara-Póca, a partir
de 1945. A vila do Tucano, onde está localizado o sítio do Picapau
Amarelo, foi a metáfora utilizada por Lobato e que serviria de exemplo
para o país. O Petróleo seria a principal alternativa para se chegar aos
benefícios. Lobato produziu um discurso acentuadamente industrialista
onde as riquezas naturais, o trabalho, o petróleo, o transporte e a criação
de um mercado interno, constituíram os elementos norteadores de um
projeto de progresso. Ao contrário, Marins permaneceu focado na
sobrevivência da pequena propriedade e do seu acesso à modernização,
apontando para um discurso ruralista e ao mesmo tempo, para
106
valorização dos elementos arcaicos da cultura caipira. Em ambos os
sítios, foram testadas experiências para o seu desenvolvimento. Porém,
em Lobato o sítio permaneceu um local ideal, - uma “Passárgada”, ao
passo que em Marins, transpareceu a decadência da vida rural e seus
sinais de agonia.
A trajetória intelectual e literária dos dois escritores também
apresentam algumas semelhanças. Lobato ganhou visibilidade no meio
intelectual pelos primeiros artigos que publicou em notas de
suplementos de jornais, especialmente pelo artigo Velha Praga. Marins
teve reconhecimento a partir de suas histórias infantis que foram
publicadas pelas Edições Melhoramentos, inicialmente com Nas terras
do Rei Café (1945).
Lobato e Marins tiveram uma conduta literária eminentemente
pedagógica, didática e engajada. Ambos acreditaram no papel que
literatura poderia desempenhar no sentido formador e construtivo na
infância e, portanto, na construção da cidadania. O paralelo da trajetória
dos dois autores demonstrou que ambos continham o objetivo político
bem claro de contribuir para a formação de cidadãos, o anseio de
despertar nas crianças a curiosidade intelectual e atitude crítica.
No entanto, o início da publicação dos dois escritores foi
marcado por uma grande diferença de concepção a respeito do mundo
rural e do caipira. Por isso, tratamos também em subitem, da construção
Jeca na literatura de Lobato, que a literatura de Marins, em parte,
foi iniciada como uma resposta à concepção de Lobato. Observamos que
a construção do Jeca, em 1914, remete ao pensamento de um setor
considerável da oligarquia paulista no início do século, insatisfeita com
a política em vigor. Assim, como expressa uma atitude típica do
evolucionismo, sob a ótica pessimista, ao atribuir às classes mais pobres,
entre elas as comunidades caipiras ou os mestiços, às deficiências do
Brasil.
Mas Lobato justificou a situação do Jeca em decorrência da
higiene e saneamento, o que consolidou a sua revisão do homem o
campo, repensando assim a concepção racista que norteou a concepção
do Jeca, em 1914 até o início de 1918. A ênfase passou para a questão
do trabalho, ou melhor, para a “necessidade de se modernizar as relações
de trabalho no país, através da melhoria das condições de vida da
população rural, paralelamente à introdução de métodos disciplinares
nitidamente tayloristas”.
228
Estes valores que remetem ao progresso social e econômico,
228
CAMPOS, A. L. V.. Op. cit., p. 83.
107
exaltados na década de 1920 ressurgiram no nacional-
desenvolvimentismo nos anos 1940. E o “mundo rural”,
tradicionalmente apontado como entrave ao desenvolvimento brasileiro,
ressurgiu na literatura, na mídia e em outras formas de expressão
artística como vanguarda das iniciativas econômicas.
A partir dessa constatação, o IV e último capítulo focamos no
diálogo da literatura de Marins com os projetos maiores que intelectuais
propuseram para o campo e que circularam no âmbito do Estado e da
elite nacional no período do Governo de Getúlio Vargas.
A obra de Marins pode não estar diretamente relacionada aos
projetos maiores para o mundo rural. Mas foi publicada e difundida num
período em que intelectuais aliados ou não ao poder pensaram
estratégias e projetos para a incorporação do campo e do seu homem no
projeto maior de desenvolvimento do país. Dialogou, portanto, com
visões de intelectuais e letrados, de uma elite dirigente do país num
momento em que a questão atraso/progresso orientou as discussões a
respeito da identidade nacional entre outras.
A articulação dos valores em positivo do homem do campo com
vistas para a educação configurou a sua abordagem sobre o mundo rural.
Se aproximando do saudosismo observado por Candido, que via no
campo “o ambiente ideal para a formação dos homens saudáveis e retos,
dos grupos harmoniosos, incontaminados pelo artificialismo das
cidades”.
229
A descrição do espaço rural e da vida cotidiana do homem do
campo não consistiu apenas em promover o espaço rural, mas foi
também uma crítica do escritor à ausência de políticas agrícolas efetivas
ao longo do governo de Getúlio Vargas. Fosse Rio Turvo ou a
“fazendola” da qual fugiu Mulita, fosse Pratânia, onde permaneceu a
Prima Rita ou o sítio Taquara-Póca, os problemas e desafios que as
pequenas propriedades teriam que dar conta configuraram o rural e a
ruralidade da literatura de Marins.
A abordagem da concepção do mundo rural e do caipira
presente nas primeiras histórias de Francisco Marins atuou e atua como
uma forma de apresentar o próprio Brasil no seu aspecto rural. A vida do
caipira marcada pela rusticidade e os comportamentos estimulados e
descritos nas suas histórias que configuram a ruralidade da sua literatura
seriam uma forma de atingir essa preservação via canal da educação.
Atualmente, aos 87 anos, Francisco Marins trabalha na revisão
229
CANDIDO, Antonio. As diferenças entre campo e cidade e seu significado para a educação.
Op. cit., p. 63.
108
do seu último livro da quadrilogia dos romances chamado Sereno da
madrugada. Cabe destacar a permanência da sua obra no mercado que
pode ser verificada, por exemplo, pelo número de edições do livro Nas
terras do Rei Café, que alcançou a 34ª edição em 2006. O crítico
literário Leonardo Arroyo afirmou que sua obra alcançou harmonia e
homogeneidade,
uma realização plena capaz de distingui-lo perfeitamente dos
demais escritores brasileiros para a infância e juventude.
escritores brasileiros com obra maior. Dispenso-me de citar
nomes, mas esses mesmos escritores ressentem-se da
desigualdade de sua criação, inclusive do ponto de vista dos
processos uilizados nessa mesma realização (prosa, poesia,
quadrinhos) o que estaria revelando ânsia de projeção que
prejudica a própria obra. Marins realizou-se na constância da
prosa ou do processo. Ao contrário, há autores de poucos
livros, ou de um só, que surpreendem o estudioso pela
interrupção do talento do criador.
230
Os livros destinados à infância e juventude também
surpreendem por terem sido traduzidos para mais de quinze idiomas.
Em entrevista concedida à Revista Panorama em abril de 2007, Marins
respondeu a respeito do espaço da literatura infanto-juvenil brasileira em
outros países, como também da sua literatura e das traduções. Segundo o
escritor, primeiro seus livros foram traduzidos para o inglês e espanhol e
destes idiomas, foram traduzidos para outros quinze. Alguns, “de
maneira inexplicável”, avaliou Marins, foram traduzidos para o
africânder, para o checo e para o húngaro.
231
Marins atribuiu um motivo
a estas traduções, “o interesse de editores e leitores além fronteiras pelos
costumes, culturas e lendas do folclore diversificadas presentes em
nosso país”.
232
A repercussão internacional levou o escritor a figurar na
Delphin, coleção européia de clássicos da literatura mundial para a
juventude. Por sua produção recebeu também diversos prêmios e
distinções literárias, entre eles, o Prêmio Carlos Laet (1954) da
Academia Brasileira de Letras, Prêmio Fábio Prado, da União
Brasileira de Escritores (1957), Prêmio “Município da Prefeitura do
230
ARROYO, L.. Harmonia e homogeneidade. In Literatura Infantil e Juvenil Brasileira.
São Paulo: Melhoramentos, 1968.
231
Africânder é uma das línguas oficiais da África do Sul.
232
Entrevista concedida à Revista Panorama em abril de 2007, consultada no arquivo pessoal
do escritor. Não encontramos maiores referências a respeito desta revista.
109
Município de São Paulo” (1962), Prêmio “Literatura Infantil” do Pen
Club de São Paulo, Prêmio “Lourenço Filho” (1986), Prêmio Calipso
(1987), e o Prêmio Jabuti (1963).
Possivelmente a longevidade e as traduções de sua obra foram
alguns dos motivos que o levaram à indicação de representante
brasileiro ao Prêmio “Hans Christian Andersen” e ao Prêmio Nobel de
Literatura pela Academia Paulista de Letras e outras entidades
acadêmicas do país. Apesar de ter sido indicado ao prêmio Nobel, como
representante brasileiro, havendo possibilidades futuras com o qual o
escritor não conta, a literatura de Marins tem uma importância além do
mundo das letras, como na preservação da cultura caipira e da filologia
no Brasil.
110
111
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