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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA
JANE DE JESUS SOARES
MULHERES CHEFES DE FAMÍLIA
FAMÍLIA, MATERNIDADE E COR NA BAHIA DO SÉCULO XIX
FEIRA DE SANTANA
2009
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JANE DE JESUS SOARES
MULHERES CHEFES DE FAMÍLIA
FAMÍLIA, MATERNIDADE E COR NA BAHIA DO SÉCULO XIX
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História/Mestrado da Universidade Estadual
Feira de Santana, como requisito parcial para obtenção do
grau de Mestre em História.
Orientadora: Profa. Dra. Lucilene Reginaldo
FEIRA DE SANTANA
2009
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Ficha Catalográfica Biblioteca Central Julieta Carteado
Soares, Jane de Jesus
S654m Mulheres chefes de família: família, maternidade e cor na Bahia do
século XIX / Jane de Jesus Soares. Feira de Santana, 2009.
118 f. : il.
Orientadora: Lucilene Reginaldo
Dissertação (Mestrado em História) Programa de Pós-Graduação em
História, Universidade Estadual de Feira de Santana, 2009.
1. História. 2. Mulheres Chefes da família Salvador - Bahia. 3. Famí-
lia Salvador História. 4. Mulheres Maternidade. 5. Mulheres negras
Chefes da família. I. Reginaldo, Lucilene. II. Universidade Estadual de Feira
de Santana. III. Título.
CDU: 981:392.3(814.21)
3
JANE DE JESUS SOARES
Mulheres chefes de família: família, maternidade e cor na Bahia do século XIX.
Dissertação aprovada pela Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação em Histó-
ria/Mestrado da UEFS, como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em História.
Feira de Santana, 18/06/2009
_________________________________________________________
Profa. Dra. Lucilene Reginaldo UEFS (Orientadora)
_________________________________________________________
Profa. Dra. Ione Celeste de Sousa UEFS (Examinadora)
_________________________________________________________
Profa. Dra. Wlamyra Ribeiro de Albuquerque UFBA (Examinadora)
4
À minha mãe e à minha filha.
5
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer a três pessoas em especial a eles, o meu eterno obrigada:
Márcia Barreiros, pelo insistente incentivo para que eu tentasse o mestrado, sem o qual, ali-
ás, não estaria aqui escrevendo esses agradecimentos e também pelos empréstimos;
Lucilene Reginaldo, minha orientadora, primeiro pela generosidade de ter aceitado a orien-
tação, mesmo sem ser o meu tema objeto de seus estudos, pelos empréstimos de livros e
documentos e, mais que tudo, pela paciência, que me acalmou em muitos momentos de de-
sespero e desânimo, às vezes sem saber, nesse “curto” período de pesquisa;
Alberto Heráclito, meu eterno professor, por ter me recebido em sua casa diversas vezes
para aulas de teoria e metodologia de História.
À professora Cecília Soares e Ione Souza pelas importantes críticas e sugestões feitas na qua-
lificação. E a professora Ione pela cessão de documentos.
A Sandra Freitas e Maria Ferraz, pela ajuda na pesquisa sem elas não seria possível pesqui-
sar tantos documentos, estudar e escrever ao mesmo tempo.
A Conça, por acreditar que era possível desde o início, quando decidi participar da seleção e
também pela assistência de pesquisa.
A Ivandro, pelo auxílio na utilização do computador e por acreditar em mim.
Ao meu primo Ivanildo, pelas correções e à minha colega de trabalho Liliane, pelo incentivo e
empréstimos.
Aos amigos do Rio Clícea, que também desempenhou o papel de assistente de pesquisa e
pelas discussões teóricas que mantivemos pelo MSN; e Alain Kalil, pela constante cobrança
pelo mestrado.
Às minhas colegas de curso, Cristiane e Sidnara, pelo incentivo e pela solidariedade nas divi-
sões dos problemas. A Sidnara, ainda, pelas demoradas ligações para tirar dúvidas, para com-
partilhar as aflições das perguntas não respondidas e documentos não encontrados.
Às meninas, Jane e Célia, da pensão Aconchego, em Feira de Santana, pela maneira aconche-
gante com que sempre me recebiam.
À dona Marina, funcionária da biblioteca do Mestrado da UFBA, pela boa vontade com que
sempre me recebeu e procurou os documentos, assim como pela orientação correta dos locais
em que eu poderia encontrar material de pesquisa não disponível naquele acervo.
À minha filha, por estar me ensinando a ser paciente.
A Luiz, pelo incentivo nos momentos de desânimo.
À minha mãe, por ter sido a minha primeira fonte de pesquisa.
A Antonia Cazumbá, por ter entendido o meu momento e cedido mais um tempo para termi-
nar a escrita da dissertação;
Aos meus alunos que, devido às manobras incompreensíveis da SEC, estão sem aula de Histó-
ria desde o início do ano letivo.
À Coordenação do Mestrado em História da UEFS.
6
O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha),
nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente.
Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a
dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga,
com este desejo. O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do
interior. É uma história a meio caminho de nós mesmos, quase em retirada, às
vezes velada. Não se deve esquecer este “mundo memória”, segundo a expres-
são De Péguy. É um mundo que amamos profundamente, memória olfativa,
memória dos lugares da infância, memória do corpo, dos gestos da infância,
dos prazeres. Talvez não seja inútil sublinhar a importância do domínio desta
história “irracional”, ou desta “não história”, como o diz ainda A. Dupront. O
que interessa ao historiador do cotidiano é o invisível.
Michel de Certeau, Luce Giard e Pierre Mayoul
A invenção do cotidiano, 1996.
7
RESUMO
Estudo sobre a família, a partir do enfoque nos arranjos familiares chefiados por mulheres,
tendo como recorte espaço-temporal a cidade de Salvador do século XIX (1850-1888). A pes-
quisa procurou perceber a condição social, as estratégias e os ofícios desenvolvidos no cotidi-
ano, no sentido de dar visibilidade a essas autoras sociais anônimas. Para tanto, buscou-se
reconstituir a geografia social da cidade de Salvador, em especial da Freguesia da Sé, contabi-
lizando os dados referentes a essa freguesia, em particular os que diziam respeito às famílias e
às mulheres negras chefes de família. Procurou-se, ainda, desvendar o cotidiano das mulheres
na Sé, a maternidade, os conflitos e as dificuldades enfrentadas na tarefa de chefiar a família.
PALAVRAS-CHAVE: Mulher; Chefe de Família; Maternidade, Cor de Pele, Cotidiano.
8
RÉSUMÉ
Étude sur la famille, de l'accent mis sur les arrangements familiaux dirigés par des femmes
dans la ville de Salvador au XIXe siècle (1850-1888). La recherche visait à comprendre la
condition sociale, les stratégies et les fonctions développés dans le quotidien, à donner de la
visibilité à ces auteurs sociaux anonymes. L'étude visait à la reconstruction de la géographie
sociale de la ville de Salvador, en particulier de la Freguesia da Sé, considérant les
informations relatives à cette paroisse, celles relatives aux familles et surtout aux femmes
noires chefs de famille. L'étude a cherché à découvrir la vie des femmes dans la Sé, la
maternité, les conflits et les difficultés dans la tâche de diriger la famille.
MOTS-CLES: Femme; Chef de Famille; La Maternité; La Couleur de La Peau; Le Quotidien.
9
LISTAS DE MAPAS
Planta da cidade de São Salvador ...........................
41
10
LISTAS DE TABELAS
TABELA 1: Principais fases da economia baiana ..............................
26
TABELA 2: População por habitação ................................................
65
TABELA 3: População por sexo e condição jurídica/1855 ................
66
TABELA 4: População por cor e sexo ...............................................
67
TABELA 5: População por cor, sexo e faixa etária ...........................
71
TABELA 6: Chefes de família ...........................................................
74
TABELA 7: Total de chefes de família com filhos ............................
75
TABELA 8: Total de chefes de família por cor dos pais ...................
76
TABELA 9: Idade dos chefes de família ............................................
78
TABELA 10: Naturalidade das mulheres chefes de família ..............
78
TABELA 11: Profissão feminina .......................................................
79
TABELA 12: Viúvas por cor e quantidade de filhos .........................
81
TABELA13: Total de mulheres chefes de família .............................
88
TABELA 14: População das freguesias no censo de 1855/condição
jurídica e sexo .....................................................................................
ANEXOS
TABELA 15: População das freguesias - feminina por cor ...............
ANEXOS
TABELA 16: População das freguesias - masculina por cor .............
ANEXOS
TABELA 17 População das freguesias no censo de 1872 por cor e
sexo .....................................................................................................
ANEXOS
11
LISTA DE ABREVIATURAS
Arquivo Público da Bahia
Arquivo da Santa Casa de Misericórdia
da Bahia
Laboratório de conservação e restauro
Reitor Eugênio Veiga
12
LISTA DE FIGURAS*
FIGURA 1: Negra Venderora .............................................................
50
FIGURA 2: Uma Criada .....................................................................
80
FIGURA 3: Lavadeira ........................................................................
103
FIGURA 4: Ama de Leite ...................................................................
103
* Todas as figuras estão disponíveis em: Schuma SCHUMAHER; Érico Vital BRAZIL. Mulheres negras do
Brasil. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2007. ISBN 978-85-7458225-2.
13
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................
14
1 OLHAR PELA CIDADE DE SALVADOR DO SÉCULO XIX ...
24
1.1 A CIDADE DE SALVADOR .......................................................
24
1.2 VISÃO PANORÂMICA DA CIDADE DO SALVADOR ...........
27
1.3 SÉ: DE PRIMEIRA DAMA A CONCUBINA ...............................
42
2 MULHERES CHEFES DE FAMÍLIA NO CENSO DE 1855 .......
56
2.1 BREVE HISTÓRICO DOS CENSOS .............................................
56
2.2 DEMOGRAFIA DA FREGUESIA DA SÉ .....................................
64
2.3 DEMOGRAFIA FAMILIAR: MULHERES CHEFES DE
FAMÍLIA ...............................................................................................
73
3 MULHERES: CHEFIA DE FAMÍLIA, MATERNIDADE,
AFETIVIDADES ..................................................................................
84
3.1 MULHER E CHEFIA DE FAMÍLIA ..............................................
84
3.2 A MATERNIDADE DA MULHER NEGRA .................................
90
CONCLUSÃO .......................................................................................
106
FONTES E REFERÊNCIAS ...............................................................
109
ANEXOS ...............................................................................................
116
14
INTRODUÇÃO
Este trabalho teve como pretensão fazer um estudo sobre a família, tendo como foco
os arranjos familiares chefiados por mulheres de cor e de todas as condições jurídicas (escra-
va, liberta e livre). A pesquisa concentrou-se na cidade de Salvador, na segunda metade do
século XIX (1850-1888), objetivando perceber a condição social, as estratégias e os ofícios
desenvolvidos por essas mulheres, no sentido de dar visibilidade a essas autoras sociais anô-
nimas. Para tanto, busquei fazer uma sócio-etnografia da Freguesia da Sé, tomando como fon-
tes o censo de 1855, livro de entrada de enjeitados da Santa Casa de Misericórdia, os registros
de batismos , processos crimes, testamentos e a documentação dos juízes de órfãos. A partir
desses documentos, busquei reconstituir etnografia social da cidade de Salvador, em especial
da Freguesia da Sé, contabilizando os dados referentes a essa freguesia, sobretudo os que di-
ziam respeito às famílias e às mulheres chefes de família. Por último, tentei desvendar um
pouco do cotidiano das mulheres na Sé, a maternidade, os ofícios, os conflitos e as dificulda-
des enfrentadas pela condição de ser chefe de família.
A escolha da Freguesia da deu-se por duas razões em especial: disponibilidade de
fontes e bibliografia; e a importância dessa freguesia para a cidade do Salvador. Essa fregue-
sia era emblemática, pois, além de ser a primeira da cidade, sede do poder político e eclesiás-
tico, se constituía numa importante área de trocas sociais gestadas no bojo da sociedade se-
nhorial-escravista oitocentista. Juntamente com as freguesias do Pilar e Conceição da Praia,
constituiu o complexo administrativo-comercial da cidade.
Em meados do século XIX, especificamente no período de 1850-1888, o local foi
palco de importantes acontecimentos que culminaram com mudanças na estrutura do sistema
vigente no Brasil escravista. Desde 1830, um cenário internacional pressionava o Brasil para
por fim ao tráfico de negros da África. Após intensos debates, em 1850, finalmente foi assi-
nado o documento que pôs fim ao tráfico fato que desencadeou profundas mudanças na es-
trutura da escravidão e na vida dos escravos.
Em 1871, outro prenúncio ao fim da escravidão se deu com a assinatura da Lei do
Ventre Livre. Essa representou a intervenção do Estado nas relações entre senhores e escra-
vos, como também o reconhecimento legal de alguns direitos costumeiros dos cativos. A Lei
do Ventre Livre foi o resultado das pressões sociais dos abolicionistas, assim como dos cati-
vos que forjaram estratégias de sobrevivência, resistência individual e coletiva no cotidiano da
escravidão. A referida lei, além de dar liberdade aos filhos da escrava, criou uma série de apa-
15
ratos judiciais em favor dos escravos, como a legitimação do pecúlio para compra de alforria,
acesso à justiça, quando se sentissem prejudicados pelo senhor, proibição de separação de
famílias, entre outros. O regime escravagista seria extinto gradualmente, como pretendiam
alguns abolicionistas conservadores, mas, antecipando os acontecimentos, em 1888 foi anun-
ciado o fim da escravidão no Brasil
1
.
Para Mattoso
2
além dos acontecimentos relacionados à crise do sistema escravista,
alguns aspectos da modernização na infraestrutura urbana das cidades repercutiram na dinâ-
mica social da escravidão, mas especificamente no mundo do trabalho, a exemplo das mudan-
ças nos meios de transporte, que deixaram muitos ganhadores sem ocupação, em especial os
carregadores. De modo semelhante, a substituição da iluminação pública de óleo de baleia
para gás encanado por tubos, em 1864, deixou alguns trabalhadores desempregados, que
não havia necessidade de tantos trabalhadores para a execução dessa nova função. A limpeza
pública também passou por mudanças com a contratação de empresas para limpar as sarjetas,
vales e riachos das freguesias da cidade, com a conseqüente diminuição dos trabalhadores na
execução desse serviço. Por certo, as mudanças dos novos tempos também causaram prejuízo
às negras ganhadeiras que tinham como fregueses os trabalhadores de rua
3
.
Um das especificidades dessas mudanças em Salvador foi a transferência da elite das
freguesias centrais e a permanência da população de poder aquisitivo médio e pobre nestes
locais. Salvador diferiu de outras cidades brasileiras nas quais a população pobre foi expulsa
do centro, na tentativa de apagar as marcas da escravidão nos centros urbanos e com a intro-
dução de novos modelos urbanísticos, conectados com novos padrões de civilização e interes-
se das elites locais. Na Bahia, esse processo ocorreu de outra forma. Exemplo mais acabado é
a Freguesia da Sé, que deixou de ser o espaço elitista de outrora e, na segunda metade o sécu-
lo XIX, com a mudança da elite para Freguesia da Vitória, passou a ser habitada por negros
escravos, livres e libertos, funcionários públicos e pequenos comerciantes, viúvas com escra-
varia para todo serviço, etc.
Para este trabalho, um dos aspectos mais importantes da Lei do Ventre Livre foi a
proibição da separação da família escrava. Até chegar à forma final, a Lei Rio Branco provo-
cou intenso debate que parece ter colocado, pela primeira vez, a família dos cativos no centro
das discussões sobre a escravidão. O incentivo à maternidade, que até aquele momento pare-
1
Sidney CHALOUB. Visões da liberdade: histórias das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo:
Companhia das letras, 1990, p.27; Walter FRAGA FILHO. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e
libertos na Bahia (1870-1910). Campinas, SP: Ed. UNICAMP, 2006, p.48-49.
2
Wilson Roberto de MATTOS. Negros contra a ordem: astúcias, resistências e liberdade possíveis - Salvador
1850-1888. Salvador: EDUNEB, 2008, p.54-60.
3
Cecília C. Moreira SOARES. Mulher negra na Bahia no século XIX. Salvador: EDUNEB, 2007. p.72.
16
cia não ser do interesse dos senhores, aparece em projetos de lei, com a premiação com alfor-
rias para escravas que tivessem cinco ou mais filhos vivos, assim como preleções e incentivos
aos cuidados com a gravidez e amamentação
4
. Esses artigos da lei não passaram pelo crivo do
parlamento, e a discussão parece ter ficado esquecida, embora tenha colocado em xeque as
péssimas condições a que eram submetidas as escravas grávidas e lactantes.
Durante muito tempo, os estudos sobre a família negligenciaram a família negra. Ca-
sa Grande e Senzala de Gilberto Freyre
5
, primeiro estudo sobre a formação da família brasi-
leira, discorreu sobre a família patriarcal e extensa, na grande lavoura de Pernambuco. Duran-
te muito tempo esse modelo foi propagado como hegemônico para todo o Brasil. Antonio
Candido ampliou a discussão da família patriarcal, feita por Freyre, sob o regime de economia
escravista do século XVI para o século XIX. Para o autor, com o advento da industrialização e
a ruína das grandes propriedades, a família passou a ser conjugal, constituída de pai, mãe e
filhos.
Freyre e Candido levaram em consideração apenas a minoria branca da sociedade es-
cravista, como se derivasse daí toda a formação social do País, excluindo de suas análises a
maioria da população constituída de negros, índios e mestiços, cujos padrões familiares du-
rante muito tempo foram encarados como promíscuos e instáveis
6
.
A análise de Freyre foi, por muito tempo, referência para os antropólogos e cientistas
sociais, ponto de partida de novas análises para criticá-la ou ampliar a discussão
7
. A retomada
dos estudos sobre família ocorreu na década de 1970. A maior parte dos estudos foi realizada
por demógrafos historiadores
8
interessados nas estruturas demográficas e nas famílias, no
intuito de rever questões antes colocadas, em busca de novas perspectivas de entendimento do
passado da sociedade brasileira.
No tocante à família negra, as questões postas pela nova historiografia da escravidão,
especialmente a partir dos anos de 1980, trouxeram à tona a família escrava, negligenciada
pelos estudos até então. No âmbito do debate sobre resistência ou acomodação, a família es-
4
Eduardo Spiller PENA. Pajens da casa imperial, jurisconsultos, escravidão e a lei de 1871. Campinas/SP:
Editora da Unicamp/CPHS, 2001. p.165. Sobre as condições das mulheres grávidas na sociedade escravista, ver
também Sonia Maria GIACOMINI. Mulher e escrava: uma introdução histórica ao estudo da mulher negra no
Brasil. Petrópolis: Vozes, 1988, cap. 1.
5
Gilberto FREYRE. Casa grande e senzala: formação da família sob regime da economia patriarcal. 49. ed.
rev. São Paulo: Global, 2004. Nesse livro, Gilberto Freyre discorre sobre a família patriarcal, sendo a família
escrava uma extensão da casa grande, havendo também uma relação harmoniosa, entre negros e senhores.
6
Florestan FERNADES. A integração do negro na sociedade de classe. Vol.2. São Paulo: Dominus/EDUSP,
1965. p.34-37; 71-102.
7
Mariza CORREA. Repensando a família patriarcal brasileira. In: Antonio Augusto ARANTES (Org). Colcha
de retalhos: estudos sobre a família no Brasil: Campinas, SP: Ed. UNICAMP, 1982. p.15-42. p.16.
8
Ver Maria Luiza MARCÍLIO (Org). A demografia histórica - orientações e técnicas metodológicas. São Pau-
lo: Editora Livraria Pioneira, 1977.
17
crava destaca-se como um dos temas de grande relevância na historiografia da escravidão
9
“apontando para as diferenças estruturais que estas relações apresentam de acordo com o con-
texto, mais circunscrito ou mais amplo, em que essas famílias são localizadas”
10
.
No sudeste brasileiro, os estudos sobre família estão consolidados algumas déca-
das
11
. Naquela região a história social tem marcado estes estudos, a ampliação e releitura
(leituras nas entrelinhas) das fontes documentais clássicas, a exemplo dos viajantes, e o em-
prego da demografia histórica. No tocante à família escrava, estes trabalhos, de certa forma,
promoveram o resgate do papel do pai perante seus filhos, “jogaram por terra” o argumento
da instabilidade e promiscuidade das relações negras e têm chamado a atenção sobre a impor-
tância da cultura no enfrentamento e subversão das condições do cativeiro. Essas investiga-
ções são importantes por derrubarem alguns mitos relacionados à organização familiar, prin-
cipalmente dos escravos, pois até então primava o argumento de que os escravos não forma-
vam famílias
12
.
No cenário nacional, os estudos sobre a família escrava estão centrados, em sua mai-
oria, na zona rural, pela suposição de que seria mais viável a organização de núcleos fami-
liares devido à proximidade nas relações entre escravos, menor mobilidade e redução das res-
ponsabilidades do senhor com a permissão de roças para ajudar na subsistência dos escra-
vos
13
. Mesmo assim, para Schwartz, havia discordâncias entre os senhores, com relação ao
casamento dos cativos. Nos engenhos administrados pelos beneditinos o Engenho Santa-
na
14
, por exemplo, ocorria o incentivo ao casamento e a reprodução
15
. A resistência dos se-
9
Eni de Mesquita SAMARA. As mulheres, o poder e a família - São Paulo, século XIX. São Paulo: Marco
Zero; Secretaria da Cultura de SP; Manolo FLORENTINO; JoRoberto GÓES. A paz das senzalas: famílias
escravas e tráfico atlântico - RJ 1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997; Isabel Cristina Ferreira
dos REIS. História da vida familiar e afetiva de escravos na Bahia do século XIX. Dissertação de Mestrado.
UFBA, 1998; Robert SLENES. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava-
Brasil - sudeste, século XIX. 4.ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1999.
10
Mariza CORREA. Op. Cit., p.11.
11
O avanço dos estudos no Sudeste do Brasil deve-se, em parte, às fontes, pois se encontram em maior quan-
tidade e qualidade. Para conhecer a bibliografia ver: Maria Luiza MARCÍLIO (Org). Op. Cit; Iraci DEL NERO.
Vila Rica: população (1719-1826). São Paulo: IPE/USP, 1979; Eni de Mesquita SAMARA. Op. Cit.; Luciano
FIGUEREDO. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII. Rio de
Janeiro: José Olimpio; Brasília, DF: EdUnB, 1993; Fernando TORRES-LONDOÑO. A outra família: concubi-
nato, igreja e escândalo na colônia. São Paulo. Ed. Loyola, 1999; Manolo FLORENTINO; José Roberto GÓES.
Op. Cit. Robert SLENES. Op. Cit.
12
Robert SLENES. Op. Cit., p.27-53.
13
Isabel Cristina Ferreira dos REIS. Op. Cit., Cap 1; Walter FRAGA FILHO. Op. Cit., Cap 1.
14
O engenho Santana estava localizado em Ilhéus e pertencia aos Jesuítas. Nele foi possível fazer estudos sobre
as estruturas residenciais dos cativos de 1731 a 1752. Diferentemente dos senhores laicos, os jesuítas incentiva-
ram os casamentos legais, a família chefiada por mulheres eram incomuns nesse engenho. Cf. Stuart B.
SCHWARTZ. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1988. p.323; Jude Bert BARICKMAN. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e
escravidão no Recôncavo, 1780-1860. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003.
15
Stuart B. SCHWARTZ. Op. Cit., p. 316.
18
nhores em relação ao casamento escravo explica-se, em parte, porque os senhores viam os
cativos como propriedade. Enquanto os escravos não recebessem o sacramento do casamento,
não haveria restrições da lei canônica que os protegessem, principalmente no caso de venda
16
.
Para a zona urbana, o estudo realizado por Kátia Mattoso sobre família e sociedade
na Bahia do século XIX demonstra ter havido um predomínio de uniões naturais em detrimen-
to da legítima. Isso ocorreu devido à permissividade em relação a essas uniões. Além disso,
havia as condições financeiras que dificultavam os casamentos religiosos, que a cerimônia
custava caro para os negros livres e libertos. No caso dos escravos urbanos, Mattoso não en-
controu documentos que demonstrassem ter havido uniões legitimas entre eles
17
. Isabel dos
Reis, entretanto, encontrou casamento entre escravos. A autora também coloca em xeque a
instabilidade das relações familiares dos negros e argumenta que esta era muito mais uma
imposição do sistema escravista que separava as famílias do que um querer dos negros
18
. A
autora é, sem dúvida, pioneira nos estudos sobre a família negra na Bahia; ela aponta para
novas possibilidades de leitura das fontes, assim como, mais recentemente, desloca seu foco
de investigação de Salvador e Recôncavo para o sul da Província da Bahia
19
.
Para Samara, além da existência real da família natural, nas camadas mais pobres da
população, não havia problemas para as mulheres com filhos ilegítimos contraírem matrimô-
nio fato que não encontrou reflexo na aristocracia paulista, e creio que também na baiana
Para Freyre, o “preconceito de cor sobrepujava a ilegitimidade”
20
.
Em 1847, Salvador contava com número maior de mulheres na população alforriada.
A Bahia ainda não era um pólo exportador de escravos, mas já havia um déficit de homens
21
.
As alforrias de mulheres ocorriam em maior quantidade e numa faixa de idade em que, muitas
vezes, não era possível o casamento
22
. No século XIX, o número de homens libertos era a
16
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia proibiam a separação entre famílias, mas a permitia
em ocasiões de extrema necessidade para o senhor. Cf. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahi-
a/feitas e ordenadas pelo ilustríssimo e reverendíssimo D. Sebastião Monteiro da Vide [1707]. Brasília: Senado
Federal, Conselho Editorial, 2007, p.125.
17
Kátia MATTOSO. Família e sociedade na Bahia do século XIX: São Paulo: Corrupio, 1988. p.183.
18
Isabel Cristina Ferreira dos REIS. Op. Cit., p.23-31; Inês Cortês de OLIVEIRA. Viver e morrer entre os seus -
nações e comunidades africanas na Bahia africanas na Bahia. Revista USP. Coordenada de Comunicação Social
USP, n.1, São Paulo: mar/mai, 1989. Nesse artigo, Oliveira fez um levantamento do número de casamentos entre
libertos e escravos, no Mapa dos africanos da Freguesia da Penha (1775) e uma série de testamentos de livres
(1790-1890), p.184.
19
Isabel Ferreira dos REIS. Op. Cit., 1998; e, da mesma autora, A família negra no tempo da escravidão,
1850-1888. Tese de Doutorado. Campinas/SP: UNICAMP, 2007.
20
Gilberto FREYRE. Op. Cit., p.625.
21
Anna Amélia Vieira NASCIMENTO. Dez freguesias da cidade do Salvador: aspectos social e urbano do
século XIX. FCEBa/EGBa, 1986. p.99; Kátia MATTOS. Op. Cit., p.104.
22
Inês Cortês de OLIVEIRA. Op. Cit., p.182. Por vezes essas mulheres conseguiam alforrias em idade avançada
e já possuíam filhos. Segundo Oliveira, o casamento era mais fácil para as mulheres quando conseguiam alforria
19
metade do das mulheres forras em idade de contrair matrimônio isso parece ter dificultado,
para as mulheres, o encontro de um parceiro para o casamento.
Era ainda fato comum, entre as libertas, mulheres com idade elevada, mas com me-
lhores condições financeiras que a dos homens e, às vezes, filhos de relação anterior. Essa
situação é encontrada em todo o Brasil. Samara encontrou situação similar em Minas Gerais e
em São Paulo
23
.
Mulheres chefes de família constituíram uma realidade na sociedade baiana, princi-
palmente as mães solteiras que, segundo Nascimento, alcançaram, em Salvador, um índice de
11,07%
24
. No entanto, a autora reconhece não ser esse número real, pois, em seu estudo, fo-
ram computadas apenas as mulheres que se responsabilizavam pela manutenção do lar, dei-
xando de fora aquelas que viviam em concubinato e eram apresentadas como agregadas, ou
sem nenhuma especificação, além também de não levar em consideração as mulheres escra-
vas.
A proposta desta pesquisa é, de certa forma, incrementar o carente debate sobre a
história da família na Bahia e, através dos aportes teóricos e metodológicos da história social
e da demografia histórica, estudar o arranjo familiar que tem como chefe de família as mulhe-
res negras e mestiças. Esta abordagem pretende assim contribuir para a historiografia das fa-
mílias das classes populares, notadamente negras, no caso baiano.
No primeiro capítulo desta dissertação, fiz uma sócio-etnografia da Freguesia da Sé.
Para tanto, utilizarei a metodologia sugerida por Michel de Certeau
25
, que propõe interpretar o
ordinário através do que ele chamará de sócio-etnografia. Tal método leva em consideração os
comportamentos, gestos, falas e sentimentos dos usuários do bairro, com o intuito de compre-
ender as práticas culturais dos seres humanos inerentes ao território.
O cotidiano é o palco das práticas ordinárias é e através dele que podemos traduzir o
dia-a-dia de um lugar. Para Michel de Certeau, essa dimensão da vida pode ser compreendida
como “[...] aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior”
26
. Sendo assim, na obser-
vação do cotidiano, é possível perceber as relações de poder e de dominação, a afetividade, os
comportamentos, as tensões e conflitos, ou seja, as práticas culturais inerentes a cada experi-
ência humana territorialmente delimitada. A prática é decisiva para a construção das identida-
mais jovens, por conta própria ou do companheiro. Era comum o companheiro comprar a alforria da mulher,
que não queria ter filho escravo. Para as mulheres mais velhas era difícil estabelecer uniões estáveis.
23
Eni de Mesquita SAMARA. Op. Cit., p.36-37.
24
Anna Amélia Vieira NASCIMENTO. Op. Cit., p.130.
25
Michel de CERTEAU; Luce GIARD e Pierre MATOULP. A invenção do cotidiano II: Morar, cozinhar.
Petrópolis: Vozes, 1996.
26
Id. Ibid., p.31.
20
des dos usuários ou de um grupo, e isso lhe permitirá assumir seu lugar nas relações sociais
pertinentes ao ambiente.
Com este estudo foi possível perceber as relações de dominação e poder, as relações
afetivo-sexuais entre homens e mulheres, e os arranjos de vida e familiares que se delineiam
no interior do território e do cotidiano. A escolha da Freguesia da Sé pautou-se ainda no reco-
nhecimento de sua posição emblemática na formação na cidade de Salvador, que nela esta-
vam constituídos todos os poderes da província na época; e também no fato de haver, naquela
freguesia, um número significativo de mulheres na condição de chefes de família. A Freguesia
da Sé
27
foi a primeira freguesia da cidade, se constituiu numa importante área de trocas soci-
ais gestadas pela sociedade senhorial-escravista oitocentista de Salvador. Além de ser um lo-
cal de moradia, era também o centro religioso e administrativo da cidade. A freguesia estava
estritamente associada à tradição colonial, haja vista que ali se dava o gerenciamento das tro-
cas comerciais e o maior efetivo de tais práticas.
Na tentativa de alcançar os objetivos deste capítulo, utilizei os mapas da cidade, li-
vros dos expostos e de batismo, diários de viajantes, livros de memorialistas, jornais e o apor-
te de estudiosos como Kátia Mattoso, Ana Amélia Nascimento, João José Reis, Johildo A-
thayde, Maria José Andrade, Stuart Schwartz, Reis, Soares, Ferreira Filho, entre outros
28
.
No segundo capítulo, utilizei como recurso metodológico a demografia histórica para
a análise das listas nominativas do censo de 1855. No Brasil, Maria Luiza Marcílio, através da
demografia-histórica, redefiniu a clássica família incluindo os pais e mães solteiros; à noção
de família ela acrescentou a de domicílio
29
e também retomou a noção de fogos dos antigos
censos. Para Marcílio, três tipos de domicílio: com um chefe de família; com vários chefes
de família; e aqueles sem chefe de família
30
.
A demografia histórica teve como berço a França, a partir do intento de cientistas da-
quele país, que procuraram conhecer e calcular as tendências da fertilidade humana, preocu-
pados, na verdade, com a baixa fertilidade. Com a adaptação de outros métodos, chegou-se
27
Luís dos Santos VILHENA. A Bahia do século XVIII. Vol I. Salvador: Ed. Itapuã, 1969. p.46-47; Anna
Amélia Vieira NASCIMENTO. Op. Cit., p.98-99.
28
MATTOSO. Op. Cit.; Johildo ATHAYDE. Filhos ilegítimos e crianças expostas - notas para o estudo da
família baiana no século XIX. Salvador: RALB, 1980. p.9-25; SCHWARTZ, Op. Cit.; REIS. Op. Cit.;
NASCIMENTO. Op. Cit.; Maria José ANDRADE. A mão de obra escrava em Salvador 1811-1860. São Pau-
lo: Corrupio; Brasília-DF: CNPq, 1988; Alberto Heráclito FERREIRA FILHO. Quem pariu e bateu que balance!
Mundos femininos, maternidade e pobreza Salvador, 1890-1940. Afro-Ásia, n.21, 1998-99; João José REIS. A
morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras,
1991; Cecília Moreira SOARES. Op. Cit.
29
Nessa ela acrescenta todos os membros que vivem dentro do mesmo teto com ou sem chefe (p.64).
30
Maria Luiza MARCÍLIO. A cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750-1850. São Paulo: Pioneira,
1974.
21
aos resultados demográficos desejados, através da observação de documentos em série. Louis
Henry deixou a lição de reconstituições familiares na França. Para isso, Henry contou com
ajuda de Michel Fleury, historiador e arquivista que lhe mostrou as várias e ricas informações
que poderiam ser obtidas com os registros paroquiais. O método foi testado em famílias com
genealogias reconstituídas e bem estabelecidas. Além da precisão, o método permite fazer
comparações em séculos iguais ou diferentes, em estruturas sociais variadas e civilizações em
estágios diversos. A escola de Cambridge adaptou e enriqueceu o método, de forma que sim-
plificou a tarefa de coleta de dados, ampliou o raio de estudos e reuniu várias paróquias, am-
pliando a região estudada
31
.
O método inicialmente foi aplicado em pesquisas na zona rural da Europa moderna,
dos séculos XVI a XVIII. Na zona urbana, os estudos são mais recentes e se depararam com
alguns problemas relacionados à falta de estabilidade populacional e quantidade de documen-
tos a manejar. As discussões e trocas de experiências têm sido importantes para a adaptação
da metodologia de grande massa documental; o uso da amostragem tem sido uma saída e o
computador é um grande aliado na armazenagem e análise das informações.
O caráter multidisciplinar da demografia histórica tem dado bons frutos e promovido
projetos de centros e grupos de estudos em diversos países, inclusive aqui no Brasil
32
. Para
Marcílio, os estudos de demografia podem embasar qualquer análise social, econômica e cul-
tural. Nesse sentido, as mudanças na população não podem ser analisadas isoladas de outros
fatos da história, pois compõem um todo orgânico
33
.
No Brasil, Luis Lisanti foi o percussor da demografia histórica, analisando listas no-
minativas da colônia. Mas foi Marcílio
34
quem, de modo pioneiro, utilizou na análise demo-
gráfica o método Henry-Fleury, o qual passou a servir de modelo para outros trabalhos
35
. Para
analisar o censo de 1855, da Freguesia da Sé, utilizarei as lições do método Henry-Fleury,
com as inferências de Marcílio ao analisar a sociedade brasileira.
Empreguei o método na análise do censo de 1855, sendo este o que permite fazer
31
Id. Ibid., p. 8. Método agregativo foi a adaptação feita na escola de Cambridge por Laslett, Wrigley, Eversley,
Glass, Schofield e Amstrong aos documentos anglicanos, enriquecendo-os. Visa simplificar as tarefas de coleta
de dados, ampliar a raio de estudos, reunindo várias paróquias e ampliar o estudo de uma região.
32
Aqui no Brasil encontramos os trabalhos pioneiros de Maria Luiza Marcílio. A cidade de São Paulo. Povoa-
mento e população, 1750-1850. São Paulo: Pioneira, 1997; Robert ROBERT. The demografy and economics of
Brazilian Slavery: 1850-1888. Tese de doutorado em História, Stanford University, 1976; Eni de Mesquita
SAMARA. As mulheres, o poder e a família. Op. Cit., Iraci DEL NERO. Op. Cit., e coube a Marcílio a criação
do CEDHAL-USP (Centro de demografia da América Latina na Universidade de São Paulo).
33
Maria Luiza MARCÍLIO (Org). A demografia histórica, Op. Cit., p.9.
34
Id. A cidade de São Paulo. Op. Cit.
35
Aqui na Bahia, o método foi utilizado por Kátia MATTOSO. Família e sociedade na Bahia do século XIX.
Op. Cit., e Johildo ATHAYDE. Op. Cit., p. 9-25, 1980.
22
maiores incursões, devido à quantidade e qualidade das listas preenchidas pelos recenseadores
encontradas no Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB). O recenseamento de 1855 foi
realizado no governo de João Maurício Wanderley, mas seu resultado foi contestado pelo
próprio governador, que acreditava ter a cidade mais habitantes do que foi computado pelo
censo
36
.
Apesar dessas dúvidas e restrições, o censo permitiu contabilizar parte da população
da Freguesia da Sé, a totalização da população, o número de casas e fogos, a faixa etária dos
residentes, o número de famílias e quantidade de filhos, a relação das profissões, a condição
jurídica e o estado civil dos moradores. Informações pontuais, tais como profissão, renda e
relações de parentesco também serão, quando possível, analisadas e cruzadas com os dados
gerais. Utilizei como referência os trabalhos de Mattoso e Nascimento, na Bahia, como tam-
bém autores que discutem outras regiões, no intuito de aprofundar a análise sobre o tema ex-
posto
37
.
No terceiro capítulo, tentei acompanhar, através de “tristes” episódios que geraram
processos crimes ou ofícios aos juízes de órfãos, informações que permitissem perceber um
pouco da vida mulheres pobres, negras e mestiças, as dificuldades de ser provedora e mãe, a
afetividade, os conflitos. Trabalhei também com testamentos, na tentativa de acrescentar ele-
mentos para essa análise. Na mesma perspectiva, busquei ainda interpretar a maternidade a
luz da Lei do Ventre Livre. O objetivo do capítulo foi perceber o que a maternidade represen-
tava para aquelas mulheres, assim como para as autoridades. Busquei aprofundar a relação de
afeto entre mães e filhos; quais as tensões e conflitos gerados pela chefia de família e também
a relação com os homens (pais ou outros). Pretendi, com isso, dar visibilidade ao cotidiano
dessas mulheres “de carne e osso” da Freguesia da Sé, em meados do século XIX.
Na conclusão, procurei fazer um balanço do material encontrado sobre a mulher che-
fe de família, o cotidiano da e as muitas relações estabelecidas entre todos os envolvidos
nesse arranjo familiar, bem como suas estratégias de sobrevivência. Vale ressaltar que, em
parte, essa tipologia familiar é fruto das imposições da sociedade escravista que, por vezes,
não permitia a formação de famílias nucleares negras embora estas não tenham deixado de
36
Para aprofundar as discussões sobre a contestação dos dados censitários, ver MATTOSO. Op. Cit. cap. 2; João
José REIS. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revoltas popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2001, cap. 1; A rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês em 1835. Ed. rev. e
ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Thales de AZEVEDO. Povoamento da cidade do Salvador. 3.
ed. Salvador: Itapuã, 1969.
37
Robert SLENES. Op. Cit.; Eni de M. SAMARA. Op. Cit.; Maria Odila DIAS. Quotidiano e poder em São
Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984. Luciano FIGUEIREDO. Op. Cit.; Sonia Maria
GIACOMINI. Op. Cit.; Iraci DEL NERO. Op. Cit., 1979; Maria Luiza MARCÍLIO. Op. Cit.; Fernando
TORRES-LONDOÑO. Op. Cit.
23
existir, como legítimas, naturais ou parciais. O certo é que famílias se formaram e separaram,
filhos nasceram, cresceram, morreram, foram abandonados; as afetividades, conflitos, acertos
e desacertos ocorreram como em qualquer outra família, quer sejam de brancos, africanos,
pretos, crioulos, pardos ou cabras.
Conforme tem sido usual, todas as grafias dos documentos antigos foram moderniza-
das.
24
1 OLHAR PELA CIDADE DO SALVADOR DO SÉCULO XIX
A proposta deste capítulo é fazer uma sócio-etnografia da Freguesia da Sé, em mea-
dos do século XIX. O método consiste em localizar geográfica e socialmente o território, no
contexto da cidade. Para Certeau, Giard e Mayoul, o bairro (freguesia) é a terra eleita da en-
cenação cotidiana”
38
, aquilo que comumente chamamos de territórios. Para proceder a tal mé-
todo, farei uma incursão em aspectos como o povoamento da cidade, a criação da província da
Bahia, a economia e suas freguesias, até adentrar a Freguesia da Sé, com as mulheres venden-
do, se divertindo, desobedecendo e, acima de tudo, se responsabilizando pelas suas crias.
1.1 A CIDADE DO SALVADOR
A decisão de povoar o Brasil de modo sistemático e regular foi tomada no ano de
1532, após Martin Afonso informar o regente português dos riscos que os franceses ofereciam
à colônia. Sendo assim, o rei permitiu a ampliação da migração e enviou armadas para a me-
lhor fiscalização do litoral. Sem recursos e funcionários suficientes para administrar a colônia,
o rei optou por doar terras a nobres portugueses, no sistema de capitanias
39
, para povoar e
prover as suas terras no continente americano.
Com a falência das capitanias exceção apenas para Pernambuco
40
, e as invasões
francesas, o rei D. João decidiu criar no Brasil o governo geral, para o que reverteu as terras
doadas aos donatários com o gradual pagamento das indenizações aos herdeiros. Devido às
notícias sobre a qualidade das terras baianas, dos bons ares e das águas, o rei resolveu implan-
tar tal modelo na Bahia, a fim de “edificar nela uma cidade donde se pudessem ajudar e socor-
rer todas as mais capitanias e povoações dela”
41
. Em 7 de janeiro de 1549, nomeou Tomé de
Souza “fidalgo da casa real, para governador geral do Brasil, com a incumbência de construir
38
Michel de CERTEAU, Luce GIARD, Pierre MAYOUL. A invenção do cotidiano II: Morar, cozinhar. Trad.
Ephraim F.Alves, Lúcia Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 1996, p.38.
39
Thales de AZEVEDO. Povoamento da cidade do Salvador. 3. ed. Salvador: Itapuã, 1969, p.119. O sistema
de capitanias hereditárias, conhecido pelo Rei de Portugal, foi utilizado sem sucesso na metrópole brasileira, mas
prosperou nas colônias portuguesas em África.
40
Id., p.126. A capitania de Pernambuco foi a que mais prosperou e somente ela ficou provisoriamente fora da
alçada da nova administração.
41
Gabriel de Souza SOARES. Notícias do Brasil. Vol. 1. São Paulo: Ed. Livro Martins, p.245 apud Thales de
Azevedo. Op. Cit., p.126.
25
uma fortaleza e povoação grande e forte”
42
neste momento, a Bahia tornava-se a primeira
capital do novo Estado brasileiro. O “sítio escolhido, a meia légua do ponto de desembarque,
era uma colina debruçada a pique sobre o mar, onde havia bom porto, e varadouro às naus,
bons ares e abundância de águas e defesas naturais do lado da terra”
43
. Parece ter sido essa
área a melhor encontrada por Tomé de Souza para o que se pretendia que fosse a cidade forta-
leza. Em agosto daquele mesmo ano, se encontravam cerca de cem casas, uma população
de mil pessoas, e uma completa organização, judiciária, fazendária, administrativa e militar.
Durante o século XVII, a cidade de Salvador ganhou mais importância em decorrên-
cia do crescimento da economia açucareira, tornando-se núcleo de intermediação comercial;
mas, foi no século XVIII que a cidade da Bahia transformou-se em uma cidade majestosa e
cheia de brilho. Nas duas primeiras décadas do século XIX, a cidade começava a industriali-
zar-se, o comércio era rico e a população mais ativa do que a do Rio de Janeiro. A base dessa
economia era o escravo. A segunda metade do século XIX foi marcada por um período de
“marasmo da economia açucareira”; “este marasmo contribuiu para o empobrecimento geral
da população”
44
, em um período de muitos conflitos.
Segundo Schwartz, ainda “no século XVI o açúcar tornou-se o principal produto de
exportação brasileiro e não perdeu essa posição predominante até meados do século XIX”
45
.
Mesmo durante a corrida do ouro, no século XVIII, o valor do açúcar sempre excedeu o de
qualquer outro produto. É certo que o açúcar viveu momentos de apogeu e crise em razão da
concorrência internacional, mas a indústria açucareira e os senhores de engenho “permanece-
ram dominantes em regiões como Bahia e Pernambuco”
46
.
O quadro abaixo foi construído levando em consideração as informações de Sch-
wartz
47
e Mattoso, com relação à economia baiana do século XVI ao XIX. Schwartz conside-
rou apenas o açúcar como produto comercial; Mattoso contabilizou para seu estudo os preços
de produtos alimentícios, como carne de boi e farinha mandioca, produtos da base alimentícia
de todas as categorias sociais de Salvador nesse período.
42
Id., Ibid.
43
Ibid., p.136.
44
Id., p.240.
45
Stuart SCHWARTZ. Op. Cit., p.144.
46
Ibid.
47
Ibid., p.144 a 147
26
TABELA 1
PRINCIPAIS FASES DA ECONOMIA BAIANA
PERÍODO
FASES
1570-1620
EXPANSÃO
1620-1652
DEPRESSÃO
1650-1680
RECUPERAÇÃO
1680
CRISE
1689-1713
RECUPERAÇÃO
1720-1730
ESTAGNAÇÃO
1750-1770
DEPRESSÃO
1776-1822
PROSPERIDADE
1822-1845
DEPRESSÃO
1845-1860
RECUPERAÇÃO
1860-1887
DEPRESSÃO
1887-1897
RECUPERAÇÃO
Fonte: Stuart SCHWARTZ. Op. Cit., p.144-147; Kátia MATTOSO.
Op. Cit., p.81-103 e 135-159.
Segundo Mattoso, a economia baiana, nos anos de 1822/1842 a 1845, passou por um
longo período depressão, devido ao deslocamento da mão-de-obra para a lavoura de café no
sul do Brasil, dificuldade de crédito e conjuntura internacional desfavorável. Houve uma fase
de recuperação de 1845 a 1860, reanimada pela comercialização de novos produtos, como
diamante, algodão e café. De 1860-1887, o declínio foi motivado por fatores como a Guerra
do Paraguai, praga na cana-de-açúcar, Abolição da Escravatura, dificuldade de crédito, secas
e, a partir de 1873, a depressão na economia européia. Entre 1887-1897 houve uma recupera-
ção ligada à melhoria dos preços dos produtos agrícolas no mercado internacional, exportação
do cacau e borracha
48
.
No século XIX, “Salvador era uma cidade rica, mas de uma riqueza concentrada nas
os de poucos, dentre estes, muitos estrangeiros. Uma cidade cujo povo era pobre, em grande
parte, escravizado, mas um povo inquieto e frequentemente rebelde”
49
. Essa populão pobre
era constituída em 2/3, aproximadamente, de negros e mestiços livres e escravizados. O espírito
nacionalista, estimulado pela Guerra de Independência, o clima anti-lusitano e as tenes gera-
das pela escravidão entre os livres e escravos também compunha o cenário baiano da época.
48
Kátia M. Queirós MATTOSO. Op. Cit., p.140.
49
João José REIS. Op. Cit. p.29.
27
O abandono do plantio da mandioca, base alimentar da sociedade baiana, e o cresci-
mento populacional, além da circulação de moedas falsas após a Guerra de Independência,
ocasionaram a deterioração nas condições materiais dos trabalhadores, provocando uma rie
de tensões e conflitos, entre eles o anti-lusitanismo e a fuga dos comerciantes portugueses: o
levante em Cachoeira, em 1832; a Revolta dos Malês, em 1835; a Cemiterada, em 1836; a
Sabinada, em 1837; a primeira greve negra, em 1857; além de outros conflitos que indicavam,
já na primeira metade do século, uma forte resistência à escravidão
50
. Na próxima seção, darei
uma visão geral da cidade de Salvador, à época, dando ênfase às tensões ocasionadas pelo
desgaste do sistema escravista e à crise econômica pela qual passava a cidade no final desse
período.
1.2 VISÃO PANORÂMICA DA CIDADE DE SALVADOR
A cidade de Salvador, conforme mencionado, foi fundada como uma cidade fortale-
za, devido à topografia íngreme a cidade se divide em duas partes, uma alta e outra baixa.
Por se localizar no alto da montanha de onde se podia ver a chegada das embarcações no
cais do porto, a tempo de defender a cidade, em caso de invasões , a parte alta foi escolhida
pelo governador, Thomé de Sousa, para sediar a capital. A parte baixa era predominante-
mente comercial, com algumas residências.
A entrada da cidade era de uma beleza estonteante a vista da Baía de Todos os
Santos era “das mais belas que se pode imaginar”
51
. Do mar, a vista da cidade é um colírio
para os olhos, de uma beleza que pasmava os viajantes. A vegetação tropical irrompia por
entre “fileiras de casa ofuscantemente alvas”, “todas caiadas contra o fundo azul claro do céu
do horizonte, mais parece[ndo] sombras de construções reais”
52
. Do mar o visitante tinha uma
visão panorâmica de Salvador, visão tão bela que “poucos espetáculos haverá no mundo tão
belos e tão grandiosos como chegar à cidade da Bahia”
53
. Entretanto, quando chegava em
terra firme, o viajante por vezes se via “miseravelmente se desapontado”, pois, ao aportar no
50
João José REIS. Nas malhas do poder escravista: a invasão do candomblé do Accü. In: João JoREIS; Edu-
ardo SILVA. Negociação e conflitos: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras,
1989, p.32-61.
51
Louis-François de TOLLENARE. Notas dominicais, tomadas durante uma viagem em Portugal e no Bra-
sil em 1816, 1817 e 1818. Salvador: Livraria Progresso, 1956 apud Moema Parente AUGEL. Visitantes estran-
geiros da Bahia oitocentista. São Paulo: Cultrix; Brasília: INL, 1980, p.141.
52
Id., Ibid.
53
Ibid.
28
cais, encontrava uma cidade suja, barulhenta e fedorenta: “a cidade baixa não oferece atrati-
vos para o estrangeiro”, a sarjeta ficava mesmo no meio, de maneira que a rua se tornava as-
querosamente imunda” e, além de tudo, “abarrotadas de negros”
54
.
Pela característica geográfica, Salvador tinha uma vocação marítima. As mercadorias
(escravos, algodão, fumo, cachaça, vinho, bacalhau, tecidos, jóias, utensílios domésticos)
chegavam e saíam do cais do Comércio, vindas tanto do estrangeiro quanto do interior da
província, em grandes e pequenas embarcações. Estavam instalados nessa parte os principais
prédios comerciais da capital, como a alfândega, os trapiches e a bolsa de valores. Como local
de chegada e saída de mercadorias para a cidade, era grande a aglomeração de negros ganha-
dores nos Cantos
55
e negras mercantes que vendiam toda sorte de alimentos. A cidade baixa
possuía uma única rua paralela ao mar, onde se amontoavam as mercadorias que saíam e che-
gavam à cidade de navios, saveiros e barcos a vapor. Essa região se ligava à parte alta por
meio de ladeiras íngremes.
As mercadorias eram levadas à cidade alta pelos negros ganhadores as mercadorias
menores, na cabeça ou em cestos e em grupos de 4 a 30 homens para transportar as mais pe-
sadas através de varas e cordas. Esses homens o apenas carregavam mercadorias, mas tam-
bém pessoas nas famosas cadeiras de arruar pelas ruas da cidade
56
. Os ganhadores trabalha-
vam com pouca roupa, tradicionalmente vestidos com uma calça de algodão grosseiro e nada
além desta reduzida vestimenta, que, num primeiro momento, causava grande estranheza aos
recém-chegados à cidade
57
. O mesmo estranhamento era provocado pelas músicas entoadas,
“compondo uma espécie de marcha que acompanha[va] o compasso dos carregadores”
58
. Os
ganhadores foram alvo de forte controle do governo; segundo Sousa, esse era um cumprimen-
to às ordenações do reino, a fim de controlar a vida pública da colônia
59
. Entretanto, esse con-
54
Daniel P. KIDDER. Reminiscências de viagens e permanências no Brasil. Rio de Janeiro e província de São
Paulo, compreendendo notícias históricas e geográficas do império e diversas províncias. São Paulo: Livraria
Martins, 1940, p.7 apud Moema Parente AUGEL. Op. Cit., p.143.
55
Até início da segunda metade do século XIX, os cantos eram predominantemente africanos; no entanto, na
década de oitenta, Reis encontrou Cantos que contavam com gente de toda a província baiana. Para maiores
informações sobre o assunto, ver João José REIS. De olho no Canto: trabalho de rua da Bahia na véspera da
abolição. Revista Afro-Ásia, n.24, Salvador, EDUFBa, 1999; e A Greve negra de 1857 na Bahia. Revista da
USP, n.18, jun. jul. ago/93. p.7-29.
56
Para Reis, outra forma possível de transporte de mercadoria pesada era através de carroças de duas rodas pu-
xadas por jumento ou burros, ou um tipo de carro de quatro rodas pequenas que os ganhadores puxavam. As
cadeiras de arruar, em 1880, estavam em processo acelerado de extinção. João José REIS. De olho no Canto. Op.
Cit., p.210.
57
James WETHERELL. Brasil: apontamentos sobre a Bahia [1842-1857]. Trad. Miguel P. do Rio-Branco. Sal-
vador: Banco da Bahia S.A., 1972. p.61.
58
Id. Ibid., p.62.
59
Avanete Pereira SOUSA. Poder local e cotidiano: a câmara de Salvador no século XVIII. Dissertação de
Mestrado. Salvador: UFBA, 1996. p.109.
29
trole foi intensificado após o levante dos Malês, devido ao medo de nova insurreição, e pro-
vocou, em 1857, a primeira greve dos ganhadores
60
.
Salvador foi dividida em espaços delimitados, com base na divisão administrativa e-
clesiástica. No século XVIII, a cidade contava com dez freguesias
61
, divididas entre a cidade
baixa e a alta. A décima primeira freguesia, a dos Mares, foi a última a ser criada, em 1871. A
cidade baixa, conforme já mencionado, era predominantemente comercial. Nela estavam loca-
lizadas as freguesias da Conceição da Praia e Pilar, as dos Mares e Penha, utilizadas como
moradia principalmente de veraneio. Abaixo, vamos fazer uma viagem a Salvador do culo
XIX, com suas ruas e becos “abarrotados” de negros e mestiços por todos os cantos.
As freguesias da Conceição, do Pilar e da eram as mais importantes da cidade,
pois eram nelas que se concentravam as demandas econômicas, políticas e religiosas da cida-
de. A Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Praia foi criada em 1623, por Dom Mar-
cos Teixeira. Era sede do grosso comércio da cidade e uma das freguesias mais movimentadas
durante o dia; nela habitavam os comerciantes portugueses, que moravam na parte de cima do
seu próprio estabelecimento comercial, às vezes com negras e mestiças, com quem manti-
nham relação de concubinato, como demonstra história da costureira parda que vivia com o
português Alexandre José de Oliveira
62
. Além do grosso comércio, nessa freguesia havia ca-
sas de todo tipo de comércio moda, loja de sombrinhas, livros, drogas importadas, jóias,
entre outras. também se localizavam os mais altos edifícios da cidade
63
. A Freguesia da
Conceição se limitava com quatro freguesias, sendo com São Pedro pela ladeira da Preguiça,
com a pela ladeira da Misericórdia, com a Vitória nas Pedreiras, e Pilar na Praça do co-
mércio. A igreja de Nossa Senhora da Conceição, localizada nessa freguesia, causava espanto
nos visitantes por ter sido toda pré-construída em Portugal, com pedras da vizinhança de Lis-
boa e decorada em motivos religiosos e pagãos”
64
.
60
João José REIS. A Greve negra de 1857 na Bahia. Op. Cit., p.7-29. A fiscalização aumentou após o levante
dos Malês, em 1835, mas, antes desse período, a administração pública vinha tentando implementar normas de
controle, promovendo uma verdadeira cassada, principalmente aos africanos. Para Reis, “o preconceito contra o
africano, e não com o escravo, era generalizado. “Não era repulsa de cor, nem de classe, mas étnica”. Essa
greve ocorreu em 1857 entre os ganhadores de Salvador, devido à Lei n. 14, que tinha o objetivo de regulamen-
tar e disciplinar o mercado de trabalho africano em Salvador, e acabou após uma semana de paralisação, com a
concessão de alguns direitos, pelo presidente da província, como o fim do pagamento da taxa, mas a manutenção
da chapa e dos fiadores para os libertos.
61
Freguesia, no sentido lato, significa conjunto de paroquianos, ou seja, povoação sobre o ponto de vista eclesi-
ástico. No entanto, para este trabalho, tomei de empréstimo o conceito de Nascimento: “espaço delimitado, divi-
são administrativa e religiosa da cidade”; nela estão localizadas pessoas ligadas a uma igreja matriz. Ana Amélia
NASCIMENTO. Op. Cit., 1986, p.29.
62
Id. Ibid., p.75. O nome da mulher não foi mencionado no documento.
63
Ibid., p.33.
64
AUGEL, p.163.
30
Ao chegar à cidade, era esse o primeiro local em que o visitante colocava os pés e,
como já salientado, a primeira impressão não era das melhores. Na Freguesia da Conceição da
Praia, os negros ganhadores estavam por todos os lugares, organizados em Cantos, em busca
de um novo serviço, desembarcando, embarcando e transportando mercadorias destinadas à
cidade alta.
A Freguesia do Santíssimo Sacramento do Pilar, que ficava ao lado da Conceição da
Praia, foi criada por Dom Sebastião Monteiro Vide, no século XVIII (1720) e limitava-se com
a Conceição da Praia no Sodré e Praça do Comércio, com o Passo na ladeira do Taboão, com
Carmo na ladeira da Água Brusca e Soledade e com a Penha por trás do barracão da estrada
de Ferro. Nessa freguesia, a população residente mais próxima à freguesia da Conceição era
de segmentos inferiores, como remadores de saveiro, artesãos, costureiras e rendeiras, que
ocupavam sobrados de vários andares, habitando uma família por andar; à medida que se afas-
tavam da Conceição, os habitantes são identificados com as camadas mais elitistas da Fregue-
sia do Pilar portugueses, comerciantes em grosso e traficantes de escravos.
No Pilar estabeleceram-se curtumes, um dos produtos de exportação da Província da
Bahia, e moradias de profissionais que trabalhavam com o couro. O quarteirão vinte do Pilar
apresentou, no censo de 1855, uma característica peculiar, pois era habitado essencialmente
por brancos, em sua maioria de estrangeiros. À medida que o comércio avançava para essa
freguesia, os habitantes ilustres foram transferindo residência para a Penha, predominando
naquela os moradores menos abastados. Apresentava o segundo maior percentual de pretos
entre as freguesias, possivelmente escravos africanos trabalhadores dos curtumes e trapiches.
A primeira freguesia em número de pretos era a da Conceição
65
(Ver tabela 16).
A Penha estava circunscrita no perímetro urbano da cidade, mas era uma freguesia
distante do centro. Foi elevada à categoria de freguesia em 1760, por José Botelho de Matos.
Essa freguesia fora desmembrada do Pilar na Roda da Fortuna, seguindo por terra até a Igreja
dos Mares. A Igreja do Bonfim ficava nos limites dessa freguesia, e já no século XIX, impres-
sionava os visitantes a sala dos ex-votos, “pelo prodigioso número de moldes de cera repre-
sentando todos os membros de corpo humano e pelos quadros de pinturas extravagantes”,
para o olhar europeu, exemplo do “estado de superstição em que se acha[va] a imensa maioria
65
Ver NASCIMENTO, Op. Cit., p.95 e 96, e Ana de Lourdes Ribeiro da COSTA. Ekabó! Trabalho escravo,
condições de moradia, e reordenamento urbano em Salvador no século XIX”. Dissertação de Mestrado. Salva-
dor: UFBA, 1989.p.164. Essa maioria da população preta se mantém no censo de 1872.
31
da população”
66
. Chamava igualmente atenção a beleza do templo no alto da colina, com uma
vista privilegiada de boa parte da Baía.
Tinha por características ser local de repouso para os doentes e de veraneio para a
elite. O perfil de seus moradores foi mudando ao longo da segunda metade do século XIX,
com a chegada de residentes mais abastados. Na Penha ser branco não era sinônimo de rique-
za. Nascimento encontrou no censo de 1855 uma mulher branca, viúva de 72 anos, ganhadei-
ra
67
, indicando que talvez fosse esse local refúgio dos brancos pobres da cidade. Por ser uma
freguesia pouco urbanizada, suas atividades econômicas estavam ligadas ao extrativismo
(pesca) e à criação de gado; os homens eram pescadores inclusive os escravos alfaiates,
carpinteiros e negociantes, e a mulheres eram costureiras, ganhadeiras, lavadeiras e vendedo-
ras de mingau. 23% das mulheres nessa freguesia declararam ocupação; possivelmente devido
ao baixo nível econômico da população, as mulheres necessitavam trabalhar.
Em 1871, foi criada a Freguesia dos Mares, a décima primeira, através do desmem-
bramento das freguesias de N. Senhora da Penha, do Pilar e Santo Antonio. Segundo Mattoso,
tratava-se de uma freguesia que concentrava população humilde e abrigava um quartel de ca-
valaria. Pelo censo de 1872, era a que abrigava menor percentual de escravos de toda a cidade
(1,2%). No censo de 1872, a população total da freguesia era de 3.578 habitantes, dos quais
1.750 mulheres e 1.828 homens. O total da população branca era de 1.295 (34,8%) e a de cor,
2.427 (65,2%) pessoas
68
.
Ao chegar à parte alta da cidade, o visitante sentia-se recompensado pela decepção
com a cidade baixa. Novamente se deslumbrava com a visão que teve da embarcação, saltan-
do aos seus olhos a vista da Baía de Todos os Santos, com suas ilhas, principalmente a de
Itaparica à frente, a Barra à esquerda e o mar de Itapagipe e a colina do Bonfim à direita. Al-
guns, mesmo encantados com a beleza da cidade, estranhavam “a irregularidade do traçado
das ruas”, “estreitas e curvas”, e com a arquitetura das casas “pouco bonitas”
69
. É claro que,
ao observamos as anotações dos viajantes, não podemos nos esquecer que eram europeus, e,
por pertencerem a uma cultura diferente, suas falas estão carregadas de outras referências que,
66
Francisco MICHELENA Y ROJAS. Exploración oficial por La primera vez dese El norte de La America Del
sur siempre por rios...Viaje a Rio de Janeiro desde Belen em El Graa Para por El Atlântico, tocando em las capi-
tales de las principales apud Moema Parente AUGEL. Op. Cit., p.164.
67
NASCIMENTO. Op. Cit., p.93; Provincias de império em los años de 1855 hasta 1859... Publicado bajo los
auspicios de gobierno de los Estados Unidos de Venezuela, Bruscelas, A.Lacroix, Verboeckhoven y C., 1867,
p.658.
68
Recenseamento de 1872 - Documentos raros. A Província da Bahia. Exposição de Philadelphia, 1878. Biblio-
teca Nacional, p.31-32.
69
Thomas LINDLEY. Narrativa de uma viagem ao Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969,
p.163 apud Moema Parente AUGEL. Op. Cit., p.150.
32
por vezes, ecoam seus preconceitos em relação ao diferente; entretanto, se as utilizamos com
atenção, nos permitem perceber um pouco da cidade naquele período.
Ao chegar ao alto da colina, o estrangeiro se deparava com a Freguesia da Sé. Lá en-
contrava a sede do governo da cidade que, conforme descrição de Lindley, era um “edifício
velho e insignificante”
70
, “dignificado com o nome de palácio”, segundo Keith, em 1805
71
.
Além da administração da cidade, estavam nessa freguesia as sedes dos poderes judiciário,
legislativo e religioso sobre a Freguesia da falarei mais detidamente na próxima seção
desse capítulo. Havia na parte alta mais seis freguesias: Vitória; Santo Antônio; São Pedro;
Santana; Passo; e Brotas.
A freguesia de Nossa Senhora da Vitória foi a segunda a ser criada, em 1561, por Dom
Pero Sardinha. Nesse local surgiu o primeiro núcleo de moradores da cidade, os primeiros po-
voadores no período das capitanias hereditárias, como Pereira Coutinho, e, antes, Caramuru e
sua família. A freguesia limitava-se com Brotas no Rio Vermelho, com o Pedro nas Mercês,
no convento das Ursulinas e, indo até as Pedreiras, onde se dividia com a Freguesia da Concei-
ção da Praia. Apesar de não ser considerada uma freguesia rural, possuía muitas roças e casas
com extensos jardins (vivendas de campo). Era uma freguesia predominantemente de morada
da elite, principalmente de comerciantes estrangeiros e expressivos elementos da elite nacional.
Ao longo do século XIX, recebeu os ricos moradores da Sé. Na Vitória, foi encontrada uma
elevada porcentagem de escravos, certamente em função da característica de seus habitantes
72
.
Do outro lado da cidade estava a Freguesia de Santo Antonio Além do Carmo, criada
por D. Pedro da Silva Sampaio, em 1646. A freguesia se estendia até os limites da Freguesia
suburbana de São Bartolomeu de Pirajá em Itapagipe, alcançava a Freguesia de Brotas em
Prambée, onde também se limitava com Itapuã; com o Passo se encontrava nos Guindastes
dos Padres e na Vala, com o Pilar nas ladeiras de Água Brusca e Água de Meninos, com San-
tana nas hortas dos religiosos do Carmo. Santo Antonio era a freguesia com menor percentual
de brancos sendo esse número menor até em relação aos pardos e um alto percentual de
escravos de ganho, fundamentais para o sustento da família do senhor. Para Nascimento, esse
70
Id, Ibid
71
George M. KEITH. A Voyage to south America and the cape of good hope, in his majesty´s brig Protec-
tor. London: Printed for the Author, 1819, p.26 apud AUGEL. Op. Cit., p.150.
72
Os dados referentes a essa freguesia foram contabilizado por Nascimento através de uma lista de escravos
africanos e nacionais residentes na Vitória; no período contavam-se 1.116 escravos de 265 proprietários. No
quarteirão quatorze foi encontrada a maior quantidade de escravos este correspondia à ladeira da Barra, morada
de importantes figuras da elite da cidade, como o cônsul de Bremem, João Henrique Lambeth, com seis escra-
vos, e o negociante Querino Antonio que possuía 34 escravos para cuidar de sua casa e da roça. Cf. Ana Amélia
NASCIMENTO, Op. Cit., p.73.
33
caso não era indicador da riqueza das famílias, pois esses faziam pequenos serviços, como a
venda de doces, confeites, pastéis preparados em casa ou frutas tiradas do fundo do quintal
73
.
O oficio de costureira predominava entre as ocupações de mulheres, e havia uma in-
clinação para a lavoura, principalmente entre os libertos e escravos, além de negócios. Era
uma freguesia predominantemente residencial, habitada por população de cor, de categoria
social mediana e um alto percentual de mulheres chefes de família que declararam profissão
a costura, para a maioria. Elas podiam ser donas de pequenas confecções que empregavam
outras mulheres, ou donas de pequenos negócios quitandas e vendas , como também ga-
nhadeiras, lavadeiras, engomadeiras e amas de leite. As costureiras do Santo Antonio coloca-
vam os filhos na escola e as filhas faziam o serviço doméstico e/ou aprendiam a profissão da
mãe; era comum repetirem o exemplo da mãe, em relação à tipologia familiar
74
.
A Freguesia de São Pedro foi criada pelo arcebispo Dom Gaspar Barata Mendonça,
no ano 1679. Seus limites se estendiam até as portas de São Bento, onde a freguesia se encon-
trava com a ; encontrava-se ainda com a Vitória nas Mercês e nas Pedreiras, com Santana
nas ladeiras das Hortas e no quartel da Polícia, e com a Conceição nas ladeiras da Preguiça.
São Pedro Velho era uma freguesia ainda elitista, mas em mudança seus sobrados ainda não
se encontravam tão subdivididos como na Sé, nem seus moradores eram ricos comerciantes
como da Vitória; o comércio se estendia pela freguesia e já não era apenas moradia. Moravam
em São Pedro categorias sociais das mais diversas, reunindo-se ali maior número de profis-
sionais liberais (médicos e advogados), empregados públicos, desembargadores e senhores de
engenho em estadia pela cidade.
A Freguesia Santana do Sacramento era conhecida como Do Desterro, por causa da
igreja e do convento que levavam esse nome, tendo abrigado a Igreja de Santana até o século
XVIII. Foi criada em 1679, também pelo arcebispo Dom Gaspar Barata de Mendonça. Limi-
tava-se com a pela Rua da Vala, com Santo Antônio pela ladeira do Gravatá, com São Pe-
dro pelos limites citados, com o Passo na ladeira do Alvo e com Brotas no Dique do Toro-
ró. Nos séculos XVII e XVIII, era habitada por uma população de mediana categoria, com-
posta por pequenos comerciantes, oficiais mecânicos, pedreiros, carpinteiros, escultores e
artistas. No século XIX houve diversificação da população de Santana residiam artistas,
artífices, negociantes, militares, assim como dois ex-presidentes da província da Bahia, o Vis-
73
Ibid., p.79.
74
Ibid., p.131. Para Nascimento, o emprego dos escravos para esses serviços, como a declaração de profissões
pelas mulheres, era um indicativo de categorias sociais menos abastada nessa freguesia, pois as mulheres de elite
apareciam no censo com „sua mulher‟, „proprietária‟ „vive de seus bens‟.
34
conde do Rio Vermelho e Manuel Inácio da Cunha e Meneses
75
. Era a freguesia cujos habi-
tantes mais se inclinaram às artes.
O largo de São Miguel, pertencente a essa freguesia, era local de vários batuques,
que amedrontavam as autoridades locais: “[...] é necessário todo o cuidado e principalmente
hoje com a idéia que corre de liberdade”
76
. No mesmo largo, e também no Guadalupe, foram
encontrados Cantos de negras ganhadeiras esta pesquisa procurou seguir tal pista, mas infe-
lizmente não obtive sucesso, pois eles parecem ter existido de fato, mas não legalmente,
que as posturas regulamentavam Cantos masculinos, inclusive com menção à vestimenta que
deveria ser usada Os trabalhadores são obrigados a usar camisa de mangas curtas”, con-
forme as normas de 1880 (grifos meus)
77
.
A Freguesia do Santíssimo Sacramento da Rua do Passo era a menor das congêneres.
Foi criada em 1718, pelo arcebispo Dom Sebastião da Vide, e estendia seus domínios à Fre-
guesia de Santana, do Pilar, de Santo Antonio, e da Conceição pelos limites mencionados
acima, e da pelo Beco do Ferrão. Sua extensão foi aumentada em 1882, mas, apesar do
tamanho, possuía numerosa população. foram encontradas grandes famílias patriarcais,
com os chefes exercendo profissões liberais, ou negócios, pessoas de cor, donas de casa, pa-
dres, estudantes e pessoas de profissões inferiores. Nessa freguesia residiam muitos médicos
com poucas posses, com um ou nenhum escravo; os médicos, apesar de conceituados e respei-
tados, não provinham de famílias ricas, e a profissão não dava fortuna em bens materiais
78
.
75
Os dados relacionados a essa freguesia foram coletados por Reis no registro de escravo de 1849, dessa fregue-
sia; por Nascimento na lista de qualificação eleitoral de 1847/8; e por Costa numa lista nominativa do censo de
1855, correspondente ao terceiro quarteirão. Na lista de escravos foram registrados 925 escravos, dos quais 60%
eram de origem africana; dos 475 que especificaram sua origem, 78% era nagô. Foram encontrados também 87
libertos de origem nagô. Apesar da proibição, muitos escravos tinham ofício eram sapateiros, alfaiates, pedrei-
ros, calafates, barbeiros, carpinteiros. Dos 87 libertos, nenhum era doméstico. 65% se ocupavam de transporte e
os demais negociavam e trabalhavam como artesãos. O quarteirão era bastante populoso, com 250 habitantes,
dos quais 161 livres e 89 escravos, sendo 26,8% brancos, 26,8% pretos, 18,5% pardos, 0,7% cabra e 27,5% cri-
oulos. Como na lista de 1849, 88,2% dos homens e 30% das mulheres declararam ter um ofício. Da população
restante, 50% das mulheres e 11,8% dos homens viviam do ganho, e 20% de mulheres no serviço doméstico.
Também não apareceu nenhum homem no serviço doméstico. Cf. REIS. A Greve negra de 1857 na Bahia. Op.
Cit., p.9; Carlos OTT. Formação e evolução étnica da cidade do Salvador. Salvador: Prefeitura Municipal de
Salvador, 1957, p.23 apud Ana Amélia NASCIMENTO. As dez freguesias, Op. Cit., p.84; Ana de Lourdes Ri-
beiro da COSTA. Ekabó!Op.Cit., p.138.
76
Cf. Ó óculo mágico. Salvador, 11/10/1866 apud Ana de Lourdes R. da COSTA. Op. Cit., p.134.
77
REIS. De olho no Canto... Op. Cit., p.241. Para a matrícula de mulheres em cantos, ver Wilson Roberto de
MATTOS. Negros contra a ordem: astúcias resistências e liberdades possíveis - Salvador 1850-1888. Salvador:
EDUFBA, 2008, p. 94. Em seu trabalho, Mattos diz não ter encontrado mulheres matriculadas, mas os cantos de
mulheres existiram. O autor cita Nina Rodrigues, que informa “que as mulheres são encontradas na Rua da Vala,
Canto de São Miguel, na Rua do Guadalupe, na Rua do Cabeça e Largo Dois de Julho, no cais de desembarque,
na Ladeira do Boqueirão em Santo Antonio. Diz ainda que elas, em geral, não se separaram tanto, como os ho-
mens, segundo a suas nacionalidades.
78
NASCIMENTO, Op. Cit., p.86.
35
No Passo, as mulheres também declararam profissão, sendo a maioria costureira e quitandeira,
mas poucas mulheres chefe de família foram encontradas.
Distante do Passo estava a Freguesia de Nossa Senhora de Brotas, criada pelo arce-
bispo Dom Sebastião Monteiro Vide, em 1718. Fazia limite com Santo Antonio pela estrada
Nova, de Barros Reis até o Dique, onde também encontrava com as Freguesias de Santana e
São Pedro, com a Vitória na Mariquita, Rio Vermelho, em Rio das Pedras e no engenho da
Bolandeira dividia-se com a Freguesia suburbana de Itapuã, e também com Santo Antonio.
A freguesia de Brotas era das mais despovoadas, sendo local de moradia de lavrado-
res pobres e de cor, concentração de roças, fazendas e Candomblés. Por ser uma freguesia
urbana com característica rural, era fácil para a organização dos Candomblés e de difícil aces-
so para os policias. Na segunda metade do século XIX foi palco de infrações envolvendo o
povo dos terreiros, como o ocorrido nas Quintas das Beatas, com o preto Joaquim, sacerdote
de um dos terreiros do local, acusado de corromper a vida de moças crédulas
79
; ou ainda a
batida para a prisão de dois pretos que publicamente adoravam seus deuses no Acupe
foram encontrados objetos do “culto ancestral dos escravos, disposto sobre uma mesa, todos
guarnecidos de fitas e búzios, uma caixa grande da „Costa‟”
80
.
Pela relação de africanos libertos residentes na Freguesia de Brotas, elaborada pela
subdelegacia de Nossa Senhora de Brotas em 13 de janeiro de 1849, foi listado um total de
232 libertos, dos quais 101 homens e 131 mulheres, com idade a partir de 22 anos. A lavoura
era a atividade exercida por 90% dos homens e 54,2% das mulheres; os demais homens eram
alfaiates, negociantes, ganhadores, pedreiros, sapateiros, marchantes e caixeiros; e as mulhe-
res exerciam o trabalho de ganho e negócio
81
. No censo de 1872, Brotas contava com 594
escravos, o que correspondia a 11,6% da população. A freguesia continuava pouco habitada,
com apenas 4,7% da população da cidade
82
.
A cidade de Salvador, na segunda metade do culo XIX, passou por diversas mu-
danças, inclusive no perfil de sua população. No intervalo entre 1850 e 1888 houve a proibi-
ção do tráfico de escravos em 1850, a Lei do Ventre Livre, na década de 70, e o fim da escra-
vidão em 1888. Esses fatos abalaram a estrutura escravista da cidade, que sua economia
dependia desse tipo de modo de produção, e provocaram profundas transformações na estrutu-
ra social do Brasil, em especial da Bahia.
79
O Alabama, 24 de dezembro de 1870 apud Ligia Conceição SANTANA. Itinerários negros, negros itine-
rantes: trabalho, lazer e sociabilidade em Salvador, 1870-1887. Dissertação de Mestrado. Salvador: UFBA,
2008, p.58.
80
NASCIMENTO, p.89.
81
COSTA, Op. Cit, p.151
82
Recenseamento de 1872, p.31-32.
36
Em1850, após pressão inglesa e intenso debate, foi decretado o fim do tráfico negreiro
no Brasil. Para os escravos brasileiros isso nem sempre significou mudanças em sua condição
de vida em certo sentido, significou uma piora, pois intensificou o tráfico interprovincial e, em
algumas situações, levou à separação de falias, assim como ao aumento do trabalho
83
.
O debate em torno dos prejuízos do fim do tráfico deu lugar a propostas sobre possí-
veis saídas que levassem ao fim da escravidão. Uma das possibilidades em debate foi o pro-
cesso gradual de passagem para uma sociedade sem escravos, com a libertação dos filhos re-
cém-nascidos das escravas, concretizada com a Lei do Ventre Livre de 1871
84
. Para Fraga
Filho, essa foi a lei que causou maior impacto nas relações escravistas brasileiras, pois além
de libertar as crianças, instituiu o fundo de pensão, loterias e multas para quem desrespeitasse
a lei, dotações do orçamento público para as alforrias e a obrigatoriedade da matrícula. Os
escravos que não fossem matriculados poderiam ser considerados livres pela autoridade sem o
desembolso de qualquer quantia. O pecúlio, o direito a alforria por indenização de preço, e o
ventre livre representaram o reconhecimento de direitos legais que os escravos haviam adqui-
rido pelo costume. A inovação da lei foi o direito de o cativo acionar a justiça, caso o senhor
se recusasse a conceder a alforria
85
.
Essa lei não foi bem recebida pela camada senhorial, que “acusou o governo imperial
de pretender violar o direito de propriedade, devassar a vida íntima das famílias, estabelecen-
do delação entre os cativos, e desorganizar o trabalho”, que, para eles, o fim do sistema
deveria ocorrer pela concessão de alforria
86
. O certo é que a lei abriu as portas da legalidade
para os cativos que, atentos aos seus direitos, acionaram a justiça, ocasionando também a re-
ceptividade de algumas autoridades judiciais e advogados abolicionistas nos episódios de bri-
ga e busca de refugio. As incertezas causadas pela lei, a difusão das idéias abolicionistas e a
rebeldia dos escravos fizeram com que leis, decretos e regulamentos fossem criados no senti-
do de controlar a população de cor.
O jornal O Alabama de 25 de abril de 1878 denuncia ao Barão Homem de Mello a
inércia das autoridades no cumprimento das leis.
83
Sobre tráfico interno de escravos, ver Sidney CHALOUB. Op. Cit., (Cap. 1). E sobre a separação de famílias
escrava, ver Isabel Cristina Ferreira dos REIS. Histórias da vida familiar e afetiva de escravos na Bahia do sécu-
lo XIX. Op. Cit., (Cap. 2); Robert SLENES. Op. Cit. (Cap. 2); e sobre as discussões acerca do fim da escravidão,
ver Eduardo Spiller PENA. Op. Cit., (Cap. 1 e2).
84
Eduardo Spiller PENA. Op. Cit., (Cap.2)
85
Walter FRAGA FILHO. Op. Cit., p.48-49; Sidney CHALOUB. Op. Cit., p.27.
86
FRAGA FILHO, Op. Cit., p.49.
37
A Pedido
Coisa da Bahia!
Ao EXM. Sn. Barão Homem de Mello
Quando em todos os lugares, ainda os mais longínquos da província, já se concluiu
o processo da emancipação dos escravos, aqui parece um negócio interminável!
No entanto, de semelhante demora, por demais prejudicial e danosa aos interesses
dos senhores e dos escravos, resulta o retardamento da nova classificação, que tem
de beneficiar a outros cativos.
É para censurar-se acremente que, aqueles à que a lei encarregou de valer por um
negócio de tanta importância, pois diz ele respeito ao mais sagrado dos direitos
humanos, se tenham descuidado tanto!
Não censuramos a ninguém em particular, e nem tão pouco nos importa saber
d‟onde parte o mal, se foi da junta classificadora, ou se do juiz de órfão: o caso é
que ele está continuando a existir, e sem que haja pressa em se lhe aplicar um re-
médio salutar!
Providências, Sr. Barão Homem de Mello, em nome da infeliz escravidão, esta
desditosa porção da humanidade!
A liberdade indignada
87
.
Nos anos anteriores ao fim da escravidão, a população cativa do Brasil diminuiu, em
especial a da Bahia e em Salvador, devido à decadência da economia açucareira, mortalidade,
tráfico interno, alforrias e o efeito da Lei do Ventre Livre. Em 1872 a população escrava de
Salvador era algo em torno de 12.500, 11,6% da população da cidade, que era de 108.138
habitantes
88
. Reis acredita que esse número diminuiu de 165.403 para 76.838 entre 1874 e
1887, em toda província, sendo o número de cativos algo entre 3 e 4 mil em 1887, numa cida-
de com cerca de 140.000 habitantes, ou seja, a população escrava diminuiu de 12% para mais
ou menos 2,5%
89
.
No entanto, se a população cativa declinou, o mesmo não aconteceu com o controle
do Estado sobre ela nas ruas da cidade, seja em relação ao trabalho ou à diversão. Com rela-
ção ao trabalho, o governo continuou investindo esforços para controlar os trabalhadores de
ganho. Em 1887, após várias investidas
90
, publicou o “regulamento policial para o serviço dos
trabalhadores do bairro comercial”, retirando dos senhores o controle sobre os ganhadores e
passando para a polícia a responsabilidade de fiscalizar esse trabalho, característico de Salva-
dor na maior parte dos oitocentos. A mudança no perfil populacional também provocou mu-
87
O Alabama, 25 de abril de 1878, APB.
88
Recenseamento de 1872.
89
REIS. De olho no canto: Op. Cit., p.201.
90
A respeito do controle sobre os ganhadores, Ver REIS. A greve negra de 1857. Op. Cit.; e sobre a matrícula,
ver Wilson Roberto de MATTOS. Op. Cit., (Cap. 1).
38
danças no perfil dos ganhadores, grupo que passou a ser formado por homens livre e libertos
de toda cor, inclusive brancos
91
.
Essas infrações também recaíam sobre os locais de venda, pois muitos eram proibi-
dos para o trabalho de ganho, principalmente no que se refere aos locais de venda de alimen-
tos. A postura de 1830 tenta disciplinar a venda de gêneros no mercado público; assim como
o peixe, o fato de gado deveria ser vendido próximo aos currais na Praça de Guadalupe, Praça
de São Bento, e em frente aos açougues. Estabelecia também a remoção de quitandas e a lim-
peza de algumas praças, largos, cais e ruas para o livre trânsito e serviço público
92
. A retirada
dos trabalhadores das ruas com a construção dos mercados públicos fez parte do processo de
urbanização da cidade, na segunda metade do século XIX, e tinha como objetivo a ordenação
das feiras e melhor controle dos vendedores e das vendas, tirando-os das ruas. No entanto
prejudicava o trabalho das ganhadeiras, que continuavam vendendo seus alimentos nos locais
proibidos e eram autuadas, como aconteceu com a crioula Cecília, em março de 1880, que
respondeu pela acusação de ocupar o trânsito com gamelas
93
.
Em março de 1887, o controle também atingiu os trabalhadores domésticos, pois es-
ses foram chamados a comparecer à secretaria da polícia para fazer seu registro ocupacional,
no qual constariam nome, filiação, naturalidade, idade, estado, profissão e nacionalidade. Ha-
via restrições para esse registro: o trabalhador deveria estar vacinado, não deveria ter doença
contagiosa e não estar respondendo a processo criminal. Impedidos estavam de fazer o regis-
tro os menores sem autorização dos pais, e mulheres casadas sem autorização dos maridos;
quanto às solteiras, não foi dito se poderiam ou não fazer o registro
94
.
Quanto ao divertimento nas ruas, o controle não era menos rigoroso. A postura mu-
nicipal de 1672 puniu com multa de seis mil réis quem usasse atabaque na cidade. Cem anos
depois, nova postura declararia ser proibido o uso de atabaques e marimbas dentro dos muros
e praias da cidade, regulamentando em seis mil réis a multa por essa infração. Outra referên-
cia ocorreu na postura 65 de 1831
95
, que estabeleceu multa e prisão de quatro dias aos do-
91
Uma das exigências do novo regulamento era o registro dos trabalhadores do Canto junto à polícia. Nele cons-
tavam, entre outras informações, as características físicas dos ganhadores. A partir dessa descrição, foi possível
analisar o perfil dos ganhadores naquele período. Reis encontrou inclusive trabalhadores brancos entre os regis-
tros dos trabalhadores do ganho. REIS, De olho no canto, Op. Cit., p.206-07 e 238-39; Wilson Roberto de
MATTOS. Op. Cit. (Cap. 1).
92
Wilson Roberto de MATTOS, Op. Cit., p.86. A postura de 1831 regulamentava os locais públicos onde pode-
ria haver vendas em tabuleiros. Cf. Cecília C. Moreira SOARES. Op. Cit., p.64.
93
SANTANA, Op. Cit., p.91.
94
Ibid., p.97-98.
95
Fundação Gregório de Matos. Livro de postura, 1831.
39
nos de tendas, botequins, tavernas e casas de mercado público que consentissem algazarras,
jogos e demora de escravos em seu estabelecimento.
O interessante nessas últimas posturas são os registros dos locais proibidos para o di-
vertimento, sendo poucos os espaços liberados esse parecia ser possível apenas dentro de
casa, mas a reclusão doméstica não evitada problemas, a exemplo de Cyriaco, um festeiro
que, em reunião de amigos em casa na Rua do Pau Miúdo, na Freguesia de Santo Antonio,
teve sua casa invadida pelo subdelegado da freguesia que resolveu “proibir o tão cito diver-
timento no recinto de uma casa
96
”.
Ferreira Filho assinala que a cidade do Salvador foi construída em bases patriarcais,
assentada na família, sendo os espos públicos de sociabilidade negligenciados, já que as elites
se divertiam nos espaços privados
97
. Por isso a rua se transformou no espaço dos excluídos da
sociedade, que por ironia eram a maioria da população da cidade, os negros e mestiços. E a in-
terveão do governo nesses espos era feita apenas para tentar controlar atras da punição.
Para Certeau, na rua dá-se a relação com o espaço das trocas mais inclusivas, onde
iremos nos reconhecer individual e singularmente. Há, portanto, entre o bairro e o usuário,
uma relação de pertencimento, de apropriação, de reconhecimento. É a conveniência que dita
o seu comportamento no bairro. O bairro, como um microcosmo social, é um universo que
não suporta muito a transgressão
98
; certamente por isso havia tantas queixas nos jornais e tan-
tas punições pelos atos vistos pela elite e materializados nas posturas como incivilizados. Mas
a população de cor, frequentadora dos espaços públicos, parecia não se intimidar com as pos-
turas e as transgrediam. No mês de junho de 1887, Santana encontrou, no mapa de prisões da
cidade, 331 ocorrências feitas durante o dia e à noite. A incidência de infrações foi maior no
período noturno 210 ocorrências e 121 durante o dia.
99
As infrações cometidas eram típicas de quem está se divertindo num ambiente rega-
do a bebedeiras e muito samba: desordens, dormir no estaleiro da Preguiça, embriaguez, in-
sulto à ordem pública, estar sambando. A existência das posturas não impediu o divertimento
e os espaços eram recriados a cada nova proibição, pois o importante era manter-se dono de
si, do espaço e do seu tempo.
As infrações eram também cometidas pelos donos dos bares, tavernas e hotéis da ci-
dade. Era comum permanecerem abertos após hora e dia permitidos pelas autoridades, como o
96
Gazeta da Bahia, 25 de janeiro de 1979 apud Lígia Conceição SANTANA. Op. Cit., p.19.
97
Alberto Heráclito FERREIRA FILHO. Desafricanizar as ruas: elites letradas, mulheres pobres e cultura popu-
lar em Salvador (1890-1937). Revista Afro-Ásia, n.21 (1998-99), p.239-240.
98
CERTEAU, GIARD, MAYOULP, Op. Cit., p.48.
99
SANTANA. Op. Cit., p 52.
40
ocorrido com a Pastelaria Aprazível, na Rua do Curato da Sé, que foi autuada no dia 15 de
abril de 1878 por estar aberta após o horário determinado e, novamente, quatro dias depois, no
dia 19 de abril de 1878. Além das autoridades, os jornais eram ferrenhos denunciadores das
desordens causadas pelos “perigosos” “provocadores da desordem” ou “amigos da anti-
ordem”
100
. Esses eram os termos utilizados pelos tablóides da época para designar os infrato-
res. A tentativa de controle do Estado, em parte, ocorria devido ao desconhecimento do que
acontecia nesses encontros, pois neles poderiam se tramar fugas ou revoltas, como ocorreu
com os Malês
101
. Os negros na rua representavam um perigo iminente!
As tavernas
102
, botequins, pastelarias, hotéis, ou quaisquer dos nomes dados a esses
locais de encontros, para este trabalho, são entendidos como locais onde os laços de solidarie-
dade e afetividades se fazem e desfazem a cada novo encontro nas ruas, seja a trabalho ou
para divertimento. Em muitas dessas alianças, surgiram relacionamentos amorosos, filhos
nasceram e por vezes os laços afetivos entre os homens e mulheres se desfizeram, culminando
com mais uma mulher responsável por prover o fruto desse encontro; às vezes, foi mais uma
tentativa frustrada de um relacionamento duradouro, e o nascimento de mais um ser a peram-
bular pelas ruas da cidade, criando e recriando novas relações.
No próximo tópico abordarei o universo da Freguesia da Sé, com mulheres e filhos
mercadejando, brigando, provocando desordens, se divertindo pelas ruas dessa freguesia da
cidade, e também sendo expostos.
100
Ibid., p.46.
101
Sobre esse assunto, ver João José REIS. A rebelião escrava no Brasil. A história negra no Brasil escravista
(1835). São Paulo, Brasiliense, 1986.
102
Sobre o espaço das tavernas como local onde havia práticas de costumes de danças, canções, relatos das novi-
dades e troca de ideológicas, ver José Carlos BARREIRO. E. P. Thompson e a historiografia brasileira: revi-
sões críticas e projeções. Projeto História, 12 (1995), p.67-76.
41
Mapa 1: Planta da cidade de São Salvador.
Fonte: APB Arquivo Público da Bahia
42
1.3 SÉ: DE PRIMEIRA DAMA A CONCUBINA
A foi criada em 1552, por D. Pero Fernandes Sardinha e seus limites começavam
na porta de São Bento, estendendo-se ao Beco do Ferrão, onde se delimitava com a Freguesia
do Passo, se dividia com a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição pela ladeira da Miseri-
córdia; na parte baixa, limitava-se com a Freguesia de Santana pela Rua da Vala, ladeira do
gravatá, no fim da Rua São Miguel, com São Pedro delimitava-se na ladeira da Horta e nas
portas de São Bento.
Localizavam-se na importantes monumentos religiosos, como a Catedral, a Santa
Casa de Misericórdia, o Convento de São Francisco, a Ordem Terceira de São Francisco e
Santa Isabel, a Capela de São Miguel, a Igreja de Nossa Senhora da Ajuda e a Igreja dos anti-
gos padres da Companhia de Jesus.
Era também o centro administrativo da cidade, onde estavam o judiciário e o legisla-
tivo. Os edifícios da administração pública faziam parte da paisagem da freguesia, pois ali
estavam situados o Palácio dos Governadores, a Casa da Moeda, a Casa da Relação, a Casa de
Câmara e Cadeia. A Casa de Relação deu lugar ao símbolo do moderno meio de transporte
que ligava as cidades alta e baixa em segundos, o Elevador Lacerda. Na Praça Municipal,
estavam centrados todos esses monumentos era um local de grande importância à época,
pois, além de ser sede da administração, era usado pela população para festejos e manifesta-
ções, como a da Cemiterada
103
.
Tomando como referência a Praça Municipal, andando para o norte, encontramos a
Praça do Terreiro de Jesus, com importantes monumentos religiosos, como a Igreja e o Con-
vento de São Francisco, a Igreja e Colégio dos Jesuítas, a Ordem Terceira de São Domingos e
a Igreja de São Pedro dos Clérigos. No centro da praça havia um chafariz que concentrava
negros e negras aguadeiros, os quais, segundo o jornal O Alabama, faziam muita arruaças e
proferiam “toda casta de obscenidades”
104
. Era local de passagem para quem desejava ir para
as Freguesias de Santo Antonio, de Santana e do Passo.
Seguindo para sul, chegamos à ladeira de São Bento, local de encontro com a Fre-
guesia de São Pedro, mas antes disso passamos pelo largo do Teatro, onde se pode contemplar
uma linda vista da cidade baixa e Baía de Todos os Santos, com todos os seus encantos e de-
sencantos. O Teatro São João que ali se encontrava foi alvo de muitos relatos de viajantes, uns
103
Cf. João José REIS. A morte é uma festa. Op. Cit., p.13-14.
104
O Alabama, 20 de março de 1866. Salvador, Microfilmagem/APEB.
43
de elogios “nobres edifícios que fariam honra a umas das nossas cidades de segunda ordem
em França”
105
e outros que faziam menção à população que ia ao teatro “de senhoras e cava-
lheiros, luxuosamente vestidos e a platéia com variada multidão de homens de todas as cores
e classes”
106
.
Nesse ponto, a Freguesia da Sé cruzava-se com a Conceição pela ladeira da Monta-
nha; descendo a Barroquinha, chegamos a Santana, trecho em que havia um chafariz, um Can-
to e um batuque que deu origem ao candomblé da Barroquinha
107
. Descendo um pouco mais,
chegava-se à Baixa dos Sapateiros, que dava acesso à Ladeira do Taboão, a qual se comuni-
cava com a cidade baixa, e com a Ladeira do Carmo, que levava às Freguesias de Santo Anto-
nio e Passo.
Além do citado acima, os terreiros de candomblé foram comuns à realidade da Sé.
, no ano de 1866 foram encontrados treze, os quais eram congregações domésticas sem o
espaço da roça. Eles estavam situados na Rua das Laranjeiras, e do Maciel de cima. O da Rua
das Laranjeiras era comandado por Júlia, africana
108
. Não por acaso, essas ruas figuravam
como locais de badernas e desordens no noticiário da cidade; era ponto de circulação para
quem ia para o Largo de São Miguel e Terreiro de Jesus, além também de ser local de muitos
Cantos.
Na Rua das portas do Carmo, Ladeira de São Francisco, Rua das Laranjeiras, Rua do
Maciel de baixo e de cima, Cruzeiro de São Francisco e Rua da Ordem Terceira, era comum a
presença de prostitutas, motivo de queixas nos jornais, que pediam providências das autorida-
des, em “apoio à moralidade pública torpemente vilipendiada”. Entretanto, os mesmos jornais
publicavam anúncios para encontros “amorosos”. Na Tribuna de 2 de janeiro de 1877, havia o
seguinte anúncio:
Aos ensaiadores de bailes pastoris avisa-se que uma (ilegível) residente à rua
do colégio em um curral é uma excelente Pastora da força.
Quem quiser aproveitar seus serviços, procure-a ali, a qualquer hora, ou a
seu azeleiro, que os encontrarão dispostos especialmente quando tiverem as
cabeças aquecidas de álcool.
105
TOLLENARE apud AUGEL. Op. Cit., p.152.
106
Johan B. SPIX, Karl. F. MARTIUS. Viagem ao Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa nacional, 2 vols., 1938,
p.79 apud AUGEL. Ibid.
107
De um núcleo de mulheres nagô-Iorubá da nação Ketu formou-se a confraria de Nossa Senhora da Boa Mor-
te, e desse ajuntamento surgiu um dos primeiros candomblés da cidade, em 1830. Renato da SILVEIRA. O can-
domblé da Barroquinha: processo de constituição do primeiro terreiro baiano Keto. Salvador: Edições Maianga,
2007; Ana de Lourdes Ribeiro da COSTA. Op. Cit., p.116.
108
SANTANA. Op. Cit., p.63.
44
É mais agradável uma visita àquele alcouce de depravação, para conhecer
melhor a posição da casa conte cinco vezes dois e mais três
109
.
A dinâmica social da era intensa pela concentração de importantes prédios da ad-
ministração pública e também pelo trânsito de pessoas que passavam por essa freguesia. Eram
comerciantes que se dirigiam à Freguesia da Conceição da Praia, negociantes de escravos que
iam registrar escrituras de compra e venda de escravos
110
, pequenos negociantes, uma varie-
dade de vendedores ambulantes e ganhadores, homens e mulheres livres, libertos e escravos
que ofereciam seu serviço, assim como moleques de recados, compradores de tempero e tam-
bém vadios. Nesse movimento de pessoas, ao mesmo tempo em que trabalhavam paravam
para pequenas conversas, falavam da saudade da terra natal (africanos), marcavam encontros
para noite nas tavernas infratoras, jogavam, ou mesmo falavam mal e conspiravam contra o
governo
111
.
Certamente devido ao trânsito de pessoas, eram frequentes as denúncias de badernas,
desordens, furtos e roubos, devido às rias casas de jogos e tavernas ali existentes, assim
como por pessoas que desafiavam a ordem pública, cometendo as mais diversas desordens
como a
crioula que mora no sobrado nº23, à rua do colégio, que, quando comer sua cana,
não atirar os bagaços em quem passa, assim como que seja mais moralizada, coi-
bindo-se de proferir palavras obscenas quando estiver na janela, do contrario irá
parar com os ossos na estação central
112
.
Ou os “larápios” que andavam a solta na Sé. A Gazeta da Tarde alerta o transeunte que tiver
que passar pela Rua da Montanha ou Ladeira do Pau da Bandeira, que
traga logo o seu revólver engatilhado, porque na noite de domingo foi ali atacado
um estrangeiro por dois crioulos que o espancaram e roubaram até o revólver que a
vítima trazia n‟algibeira... anteontem fato igual se reproduziu no mesmo lugar com
outra pessoa...
113
109
Tribuna: periódico popular, 2 de Janeiro de 1877. APEB.
110
Maria Cristina Luz PINHEIRO. O trabalho de crianças escravas na cidade de Salvador. Revista Afro-Ásia
25/2005. p.159-183. Segundo a autora, a Sé foi a segunda maior freguesia em venda, permuta, doação ou hipote-
ca de crianças escravas, p.171.
111
SOARES, p.64. Segundo Soares, em 1835, no Levante dos Malês, as ganhadeiras foram acusadas de fornecer
comida aos rebeldes e participar da conspiração.
112
O Alabama, 24 de novembro de 1876. APEB/setor de microfilmagem.
113
Gazeta da Tarde, quinta-feira, 25 de março de 1882/APEB.
45
A foi campeã em prisões no mês de junho de 1887. Das 331 ocorrências, 114 fo-
ram registradas lá. Dessas, 62 foram cometidas por mulheres
114
, sendo 39 referentes a desor-
dem, 4 a embriaguez e desordem, 1 a insulto à força pública, 5 por estar sambando e 5 por
vagar sem destino. No dia 23 de junho, a doméstica Maria da Conceição foi presa com o sapa-
teiro Izidoro Manuel por estarem sambando na Rua do Paço
115
.
Inicialmente, habitavam a os ricos senhores de engenhos que mantinham casa no
centro urbano. No século XIX, a era “freguesia em desintegração social”. A população,
originalmente de elite transferiu-se para o corredor da Vitória, Ladeira da Barra e Penha, de-
vido ao aumento populacional e o medo das epidemias. E, paulatinamente, foi sendo substitu-
ída pelos segmentos médios e pobres, existindo nesse período muitas viúvas que viviam de
“seus bens”, com escravaria para “todo serviço”, e funcionários públicos, escravos e libertos
que moravam de aluguel nas lojas e sótãos
116
.
Era uma freguesia fortemente miscigenada. Havia na Sé, segundo censo de 1855
117
,
uma população de 34,37% de brancos, 42,19% de pardos, crioulos e cabras, e 23,44% de pretos.
Dessa população, 78,87% eram livres, 2,29% libertos e 18,84 % escravos, em maioria mulheres
(11,03%). 86,97% da população eram solteiros, 8,35% casados e 4,68% viúvos
118
. Os fogos
apresentavam um número expressivo de agregados, com características peculiares tinham
emprego, filhos e até escravos. O comércio, que até então era comum na Freguesia da Concei-
ção da Praia, adentrou a principalmente no quarteio que corresponde hoje à Rua Chile.
Como vimos acima, houve na uma concentração de solteiros, dentre os quais mu-
lheres solteiras com filhos e que chefiavam a família. Por vezes, elas não conseguiam manter
os filhos sob seus cuidados e se viam obrigadas a abandoná-los na roda dos expostos, na San-
ta Casa de Misericórdia. As mulheres, objeto deste estudo, principalmente, aquelas que, devi-
do às adversidades da vida as viagens do homem para outras localidades em busca de traba-
lho, ou por venda viam-se sozinhas e, por vezes, tinham que abandonar as crias, na tentativa
de mantê-las vivas. Prefiro não considerá-las como vítimas, mas como mulheres pertencentes
a camadas populares com uma cultura que, muitas vezes, vai de encontro às normas e aos
valores da sociedade dominante
119
. Tendo como paradigma o modelo cristão de Maria, a mãe-
mulher perfeita que nunca abandonou o filho, ou padrões contemporâneos, poder-se-ia julgá-
114
SANTANA. Op. Cit., p.48 e 67.
115
Ibid., p.52.
116
COSTA.Op.Cit.,p.115
117
Recenseamento de 1855. Freguesia da Sé (quarteirões, 20, 21, 22, 23), maço/1602 - APB.
118
NASCIMENTO. Op. Cit., p.71.
119
Claudia FONSECA. Ser mulher, mãe e pobre. In: Mary Del PRIORE. História da criança no Brasil. São
Paulo: Contexto, 1999. p.521.
46
las como “desnaturadas”, por abrirem mão dos próprios filhos. Os fatos, no entanto, nos le-
vam a ter outra visão dessa realidade.
A roda dos expostos, dispositivo herdado de Portugal, foi criada no século XVII, sob
responsabilidade da Santa Casa de Misericórdia, e adotada em algumas cidades do Brasil (Re-
cife, Rio de Janeiro e Salvador) para evitar a morte dos menores, sem o sacramento do batis-
mo (o que causava grande incômodo à Igreja). Crianças abandonadas podiam ficar sujeitas à
chuva e a animais que, às vezes, as destroçavam nas ruas, provocando um desagradável espe-
táculo para a população. Para evitar a exposição de quem trazia a criança, ela era colocada no
cilindro sem que a pessoa se identificasse, e a Santa Casa recolhia, cuidava, dava a criar e/ou
mandava para Casa de Educação. Algumas pessoas “criadeiras” pegavam crianças para cuidar
e por isso recebiam quantia em dinheiro; quando a criança completava sete anos, a ajuda pú-
blica terminava e a família mantinha a criança ou devolvia à Santa Casa
120
.
Encontrei na Santa Casa da Misericórdia de Salvador 862 crianças expostas entre
1851 e 1862, dentre as quais analisei 679 casos, uma vez que os outros 183 registros foram
apenas contabilizados por se referirem a crianças brancas. Dentre os anos analisados, o de
1855 teve o maior número de expostos: 111 exposições. Observando os documentos de entra-
da, essa quantidade de crianças devia certamente estar relacionada ao surto de cólera, “epide-
mia reinante” na cidade
121
.
Ao analisar os documentos, busquei perceber porque essas mães “desnaturadas” ex-
punham seus filhos. Em 1934, a Santa Casa criou um escritório de admissão no qual os pais
informavam as causas do abandono, bem como nome e registro das crianças. Para os provedo-
res, um dos grandes motivos para esse abandono era a falta de sentimento das mães
122
. A refe-
rência é a mulher-mãe; os homens pouco aparecem. Em apenas seis casos eles foram à Santa
Casa resgatar os filhos. Tenho, aqui, a clareza de que esta análise foi de um período posterior
ao estudado neste trabalho, mas acredito que a mentalidade desse período não mudou tanto,
em tão pouco tempo. Ferreira Filho relata que um dos grandes problemas enfrentado por J. J.
Seabra (1912-1916), na tentativa de modernizar a cidade, era a persistência do passado, ou
como disse o governador Seabra, as “Chagas do passado colonial”
123
.
120
Alberto Heráclito FERREIRA FILHO. Quem pariu e bateu, que balance! Op. Cit., 2003, p.160-178; Renato
Pinto VENÂNCIO. Maternidade negada. In Mary Del PRIORE. Op. Cit., p.189-191.
121
Para saber mais sobre essa epidemia na cidade ver: DAVID, Onildo Reis. O inimigo invisível: a epidemia do
cólera na Bahia em 1855-56. Dissertação de mestrado, Salvador: UFBa, 1994
122
Andréia da Rocha RODRIGUES. A infância esquecida: Salvador 1900-1940. Salvador: UFBA, 1998, p.60.
Os outros problemas apontados foram falta de recursos e a prática de infanticídio, que era crime.
123
Alberto Heráclito FERREIRA FILHO. Quem pariu e bateu, que balance! Op. Cit., p.26.
47
As mulheres “sem coração”, imbuídas dos sentimentos da maternidade, às vezes dei-
xavam bilhetes dizendo que em breve voltariam para buscar sua crias, como o ocorrido com o
menor Manuel Paulino Pereira, pardo, batizado com um ano de idade, foi deixado na roda no
dia 8 de setembro de 1857 com um bilhete que, além de trazer as informações acima, dizia que
em breve o filho seria procurado o que veio a acontecer em 17 de novembro do mesmo ano
124
.
No entanto, nem sempre isso era posvel, pois antes do retorno da mãe o filho poderia falecer,
como o ocorrido com a recém-nascida Maria do Rosário, entregue à roda em 8 de outubro de
1859, com um bilhete em que a mãe afirmava “que estas letras todo o tempo a menina será pro-
curada”
125
. As mães, às vezes, pareciam sentir-se tão culpadas em “abandonar” as crias que no
outro dia voltavam para buscá-las. A cabra Ignês foi deixada pela mãe, Maria das Neves, em 9
de fevereiro de 1852. No dia seguinte, a mãe, não suportando o remorso e a falta da filha, apre-
sentou-se na Casa e levou a filha de volta
126
. O retorno para buscar a criança parece ter sido
desejado por 70% das mães que “enjeitavam” os filhos, pois deixavam bilhetes identificando-
os, dizendo nome e se eram batizados. A mãe de Fermino, de 20 dias, julgando serem poucas
essas informações, identificou a criança com um anel na o direita
127
.
A roda, às vezes, parecia uma tábua de salvação, sendo a última possibilidade de
manter os filhos alimentados e cuidados, num período de grande dificuldade para a economia
baiana, que estava se recuperando de uma crise econômica e entrando em outra
128
. Muitas
crianças doentes, e até agonizantes, foram deixadas na roda, como foi o caso de Manoel, re-
cém-nascido deixado na roda em 11 de abril de 1861. Com estado de saúde delicado, não con-
seguiu sobreviver, falecendo no dia 14 do mesmo mês
129
. Mães doentes buscavam a roda para
deixar os filhos, pois não tinham com quem deixá-los e, certamente, tinham a esperança de se
curar para, um dia, poderem buscá-los. Maria Arristida de Sousa foi deixada na Santa Casa
em 31 de maio de 1861 com um bilhete informando que a mãe estava muito doente, mas que
todo tempo poderia ser procurada
130
.
As relações de solidariedade estabelecidas através do compadrio e da amizade foram
evidenciadas na Roda dos Expostos. No entanto, por vezes, esses laços eram quebrados como
124
Livro de Entrada dos expostos 1098, matrícula 1040, data 10/09/1857. ASCMB.
125
Ibid., matrícula 1189, data 16/10/1859.
126
Ibid., matricula 504, data 9/02/1852.
127
Ibid., matrícula 1256, data 23/12/1860.
128
VENÂNCIO. Op. Cit., p.200. Venâncio relativiza essa informação, pois, segundo ele, no RJ e SSA a compa-
ração entre a curva de preços dos alimentos e a do número de enjeitados nem sempre apresentou correspondên-
cia.
129
Livro 1098, matrícula1278, data 16/04/1861- ASCMB.
130
Ibid., data 31 /05/1831. As crianças recebidas pela ASCMB provinham da roda, dos hospitais, assim como de
pais ou parentes que não tinham condição ou interesse em criá-los.
48
ficou evidenciado nas duas histórias abaixo. Gracinda Vitória da Purificação foi exposta aos
seis anos pela madrinha, que justificava o abandono com a morte dos pais da exposta, não
tendo ela, a madrinha, condições de criar a criança
131
. Talvez a madrinha dessa história fosse
mais uma chefe de família com filhos, e mais uma boca para comer aumentaria ainda mais as
dificuldades da família, como também poderia não querer assumir essa responsabilidade.
A crioula Francisca Maria do Sacramento Ferroa adentrou a Santa Casa no dia 7 de
outubro, puxando pelo braço Maria Ângela, de um ano e oito meses. A mãe, Maria Alexan-
drina, uma parda solteira, em estado de “miseração” deu à luz a menina na casa da crioula,
falecendo logo depois, em julho do corrente ano. Por amizade a Maria Alexandrina, Francisca
esteve com a menina por quase dois anos, mas por não ter meios para “tratar de sua criação e
educação” procurou a Santa Casa para que o provedor suprisse do necessário, e assim ela
manteria a menina em seu poder. No entanto, o provedor decidiu por recolher a menina que
foi dada a criar à D. Doria Roza da Silva, até completar 4 anos, sendo novamente recolhida e
passando à Casa de Educação. Neste caso, além do laço de amizade e solidariedade, parecia
haver interesse no recebimento do pagamento dado às criadeiras.
É possível que a crioula Francisca, que alegou ter criado a pequena Maria Ângela até
aquele momento, estivesse realmente passando por dificuldades. No entanto, o certo é que o
provedor não acreditou, que não aceitou a proposta de Francisca. Provavelmente estava
acostumado às mentiras contadas por outras pessoas interessadas no recebimento desse pro-
vento. Venâncio relata que o recebimento do dinheiro, muitas vezes, colocava a vida das cri-
anças em risco às vezes mal alimentadas (alimentação artificial) e maltratadas, elas chega-
vam a morrer
132
. Um recém-nascido pardo, por exemplo, foi dado a criar à Senhorinha Maria
dos Santos, parda, em de janeiro de 1854
133
; sobreviveu pouco tempo sob os cuidados da
pretensa “cuidadora” e faleceu em 16 de abril do mesmo ano. Havia também a venda das cri-
anças como escravas, pelas criadeiras
134
.
A taxa de mortalidade na Santa Casa era muito alta. Dos 418 expostos com idade de-
clarada, 322 tinham menos de um ano, 67 entre 2 e 5 anos e 29 de 6 a 12 anos. Os recém-
131
Ibid., matrícula 899, data 12/03/1856.
132
VENÂNCIO. Op. Cit., p.194-198. Para esse período, o alto índice de mortos justifica-se pela epidemia de
cólera que ocorreu na cidade em 1855. No entanto, para o período anterior (1805-1854), Johildo L. Athayde
encontrou uma média de 65,7% de mortalidade dos expostos. Cf. Johildo L. ATHAYDE. Filhos ilegítimos e
crianças expostas. Salvador: Revista da Academia de Letras da Bahia, n.27. set/1979, p.9-25. Para período
posterior Alberto Heráclito Ferreira Filho encontrou 78,91% de morte das crianças expostas, sendo 58,1% nos
primeiros seis meses de vida. Cf. Alberto Heráclito FERREIRA FILHO. Quem pariu e bateu, que balance!
Op. Cit., p.165.
133
Livro 1098, matrícula, 607, data 28/11/1853 - ASCMB.
134
VENÂNCIO. Op. Cit., p.213.
49
nascidos eram os mais expostos e também os que mais morriam; contabilizaram-se 169 mor-
tos na roda. O índice de mortalidade chegou inclusive a 80% essa foi uma realidade na Casa
não só para os recém-nascidos, mas para todos. Venâncio comparou o percentual de mortes na
Santa Casa e dos escravos, em Salvador. Enquanto a mortalidade dos expostos oscilava entre
600 e 700 por mil entre 1781 e 1790, a dos escravos, no mesmo período, era de 500 por mil e
a dos livres de 350 por mil considerando meninos e meninas na faixa de zero a 7 anos. Com-
parando o índice de mortalidade entre os negros e brancos, de 1758 a 1762, os negros eram
mais resistentes e, no tocante ao sexo, as meninas mais resistentes que os meninos, entre
1781-1790: “ as meninas, diferentemente da crença arraigada da inferioridade do sexo femini-
no, eram mais resistentes às provações do abandono”
135
.
A alta mortalidade infantil nas Santas Casas estava relacionada às condições das a-
comodações mal ventiladas, mal iluminadas, úmidas, pouco confortáveis e às condições
de higiene, assim como o recurso às amas de leite, que será mais tarde um ponto a ser atacado
pelos médicos higienistas, preocupados com a morte das crianças. Mesmo após a criação do
anexo para abrigar os enjeitados e a mudança do prédio para a Freguesia de Santana, a morta-
lidade manteve-se alta
136
.
A afetividade parece ter sido um fator de impedimento à exposição. Parecia ser mais
“fácil” expor uma criança que ainda não tivesse estabelecido fortes laços afetivos. A necessi-
dade de atenção permanente aos recém-nascidos e bebês também é um fator que podia levar a
mãe impedida de executar tarefas necessárias a sua sobrevivência e, muitas vezes, de sua
prole, fora do ambiente doméstico a abandonar seus filhos pequenos. Acredito que a possi-
bilidade de as crianças mais velhas poderem ajudar as mães nas ruas, no ambiente doméstico
ou na lavoura pode ter sido o fator que realmente concorreu para o baixo percentual de aban-
dono entre as crianças acima de 5 anos.
Para Mattoso, “nas camadas baixas da população a participação de crianças na vida
ativa talvez tenha sido tão importante quanto as crianças escravas”. Ter filho também podia
significar ter alguém para ajudar na lida diária, como também garantia de um futuro melhor
amparado. Viana, na tentativa de rememorar cenas da sua mocidade, descreve os compradores
profissionais de tempero meninos e velhos dedicados exclusivamente ao mister, com hora
135
Ibid., p. 212-214. A mortalidade masculina era de 623 em mil enquanto que das meninas eram 547 em
mil.p.214.
136
Luiz dos Santos VILHENA. Op. Cit., p.12; Kátia de Queirós MATTOSO. Op. Cit., p.94; Sonia Maria
GIACOMINI. A conversão da mulher em mãe: uma leitura do “a mai de familia”. In: Revista Brasileira de
Estudos de População, v.2, jul/dez 1985, p.88.
50
certa de passar pelas casas para saber se queriam alguma coisa da rua”
137
. Acredito ter sido
essa uma realidade no século XIX, para os meninos e meninas trabalhadores.
No recenseamento de 1855
138
, na Rua das Vassouras, residência da costureira Felis-
mina dos Santos Ramos, 5 crianças são declaradas como profissionais da costura. Não foi
possível saber qual a relação dessa senhora com as crianças, uma vez que isso não foi decla-
rado no censo, mas o fato é que elas eram reconhecidas como trabalhadoras especializadas.
No quarteirão vinte, da mesma freguesia, semelhante situação aconteceu com um pardo de 5
anos declarado como alfaiate.
Desde muito cedo, segundo relatos de viajantes, as crianças se encontravam na rua
junto com as es. Drugivel, em 1843, se impressionou com “as negras quase nuas deitadas
no chão, ocupadas em amamentar seus filhos”
139
. Soares nos relata que era comum as vende-
doras ambulantes levarem os filhos (as) junto consigo
140
, apropriando-se do espaço público de
forma privada (Fig. 1). Ao mesmo tempo, elas trabalhavam e criavam seus filhos(as). Ali eles
viviam as suas primeiras experiências de sociabilidade, nas brincadeiras e nos cuidados de
outras “mães”. A rua, não raro, lhes servia também de casa
141
. Quando mais velhas, as crian-
ças continuavam nas ruas, agora ajudando as mães e/ou fazendo molecagens e peraltices pró-
prias da idade.
137
Hildegardes VIANNA. A Bahia foi assim. Salvador, 1973.p.47 apud Lígia Conceição SANTANA. Op. Cit.,
p.84. (Grifo meu).
138
Recenseamento de 1855. Freguesia da Sé (quarteirões, 20, 21, 22, 23), maço, 1602 - APB.
139
A. DRUGIVEL. Des bords de La Saóne à La baie de San Salvador,ou promenade sentimentale em
France at au Brésil. Paris, 1843, p.342 apud Moema Parente AUGEL, Op. Cit., p.205.
140
SOARES. Op. Cit., p.71.
141
CERTEAU, Op. Cit., p.45. Para o autor, isso era a privatização do espaço público.
51
Figura 1: Negra Vendedora. Aquarela de Carlos Julião.
RJ. c. 1776.Acervo Biblioteca Josè e Guita Mindin.
O Alabama de 1860 pede providências à autoridade local quanto a um grupo de cri-
anças que permanecia nas ruas:
Ao Ilmo Sr. subdelegado de S. Pedro, reclamando contra o inqualificável
procedimento de uma frota de moleques que se reúne todas as noites e aos
domingos de dia, no Sodré, atirando pedras, perseguindo aos velhos e men-
digos, proferindo palavras torpes e obscenas.
52
S.S., a quem está confiada a policia dessa freguesia, de certo não se esquiva-
rá de tomar em consideração a presente reclamação em bem da moralidade
pública
142
.
Fraga nos conta que, para fazer rebeldias, os meninos se juntavam em bandos com-
postos por livres, libertos e escravos e cometiam infrações que por vezes eram repreendidas
pela polícia. A vadiagem era, por vezes, motivo de pedidos, por parte dos pais, para que os
filhos fossem recrutados para o serviço militar. O Sr. José Carlos Ferreira escreveu ao juiz de
órfãos pedindo que o menino José, filho da crioula Guirimiana fosse admitido na companhia
de aprendizes imperiais da marinha, pois era “este menor de tanta propensão a vícios maus” e
na marinha ele teria o “conveniente destino”
143
.
Numa sociedade em que a educação era alavanca para ascensão social, poucas eram
as crianças que frequentavam a escola apesar de não haver proibição legal à população livre
de cor em freqüentá-la, e isto cabia também para as meninas dessa classe. Nascimento argu-
menta, com relação às meninas, que poucas chegavam a frequentar a escola, pois as mães
preferiam privilegiar a escolarização dos filhos homens, enquanto as meninas ficavam em
casa fazendo os serviços domésticos ou aprendendo o ofício da mãe, certamente ajudá-la dire-
ta ou indiretamente na manutenção da família situação muito frequente na Freguesia de San-
to Antonio Além do Carmo
144
. A prioridade das mães para a educação dos filhos pode ser
vista como uma estratégia, que na cidade era comum os filhos saírem de casa mais tarde e,
quando necessário, contribuírem para as despesas da família; assim como era comum, na so-
ciedade da época, a ascensão social ser basicamente masculina.
Encontrei na Sé
145
apenas três famílias de cor com filhos na escola. Uma delas foi a
família de Lucina Maria do Amor Divino, crioula, mãe de três filhos. O rapaz Marcolino An-
tonio do Bomfim, pardo, 19 anos, frequentava a escola, o que não ocorria com suas duas ir-
mãs, uma de 18 anos outra de 11. Na família do pardo escrevente Epifânio, das seis crianças
três meninos e três meninas , apenas os meninos frequentavam escola. Também na família
do morador do 23º quarteirão, José Gabriel da Costa, pedestre, solteiro, e Cyrilla Theodora
Ferrão, costureira crioula, Ladislão Joaquim de Santa‟Anna, de 8 anos, filho do casal, estuda-
va em escola. Na Freguesia da Sé não identifiquei nenhuma menina declarada como estudante
142
O Alabama, 26 de Janeiro de 1860 - seção de microfilmagem APB.
143
Juiz de órfãos, maço nº 2675. Bahia, 30 de outubro de 1869 - APB.
144
Anna Amélia Vieira NASCIMENTO. Op. Cit., p. 132. Sobre as possibilidades dadas pela educação a popula-
ção de cor, ver Keila GRINGBERG. O fiador dos brasileiros. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2002.
p.70-71.
145
Recenseamento de 1855. Freguesia da (quarteirões 20, 21, 22, 23), maço 1602 - APB. No recenseamento
de 1872, 36,7% da população da em e escrevem e apenas 6,48% freqüentam a escola, no entanto, os dados
do recenseamento não nos permitiram saber a cor e o sexo dessa população.
53
ou matriculada em escola de ensino formal. Mas, na Freguesia da Conceição da Praia, encon-
trei meninas de cor que frequentavam a escola primária. Trata-se de Lusia D‟Oliveira Castro,
de 12 anos, filha de Pedro D‟Oliveira Castro; e Firmina Maria de Santa Rita, de 11 anos, de
pais incógnitos
146
. Isso demonstra que, mesmo com todo preconceito que havia na época,
permitir às meninas participar da vida escolar era algo importante, início de mudanças na
mentalidade dessa sociedade.
Os meninos, quando completavam quinze anos, iam aprender um ofício com algum
mestre, entravam para o liceu de artes e ofícios, ou, quando podiam, continuavam estudando
para cursar faculdade. Mesmo sendo, libertos, ou livres a maioria dos meninos tinha poucas
possibilidades de ascensão social, pois, na maioria das vezes, eles faziam os mesmos serviços
efetuados pelos escravos ou estavam “nas tendas dos mestres aprendendo ofícios, sendo sub-
metidos a rigorosa disciplina e até mesmo a castigos corporais e tarefas estafantes”
147
. Assim,
a vadiagem e as molequeiras podiam ser “forma[s] de rebelar-se contra imposições do mundo
adulto”
148
.
Busquei fazer algumas análises, como a exposta acima para a família escrava; no en-
tanto, como registrado, essa é uma tarefa árdua, devido à invisibilidade da maternidade es-
crava nas fontes, a qual, durante muito tempo “se supôs praticamente inexistente ou tão de-
formada pela escravidão que teria sido a principal causa de males sociais posteriores”
149
. Ape-
sar de este trabalho se referir às mulheres chefes de família, para tal análise pesquisei no ar-
quivo da Cúria em busca dos registros de batismo, pois somente assim foi possível encontrar
alguns detalhes sobre as mães escravas.
Reis
150
analisou 3.139 casamentos entre os anos de 1801 e 1888, sendo 884 envol-
vendo africanos e mestiços esses dados serão discutidos no próximo capítulo, dado que o
principal interesse agora é saber quantas escravas apareceram na pia batismal como mães.
Como pontuei acima, a maioria dos livros de batismo encontrados na Cúria encontrava-se
interditada. Consegui acesso para os anos entre 1852 a 1861. Nesse período foram batizadas
2.280 pessoas com idade de 5 dias a 17 anos, dentre os quais, 1.133 meninos e 1.147 meninas.
A maioria dos batizados era composta de escravos, apenas 6 livres e 60 libertos
151
. Entre os
146
Mapa escolar. Profa. Gondra. Secção colônia e império - APB (agradeço a Ione Celeste de Sousa por esta
referência).
147
Walter FRAGA FILHO. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo: Hucitec; Salva-
dor: EDUFBa, 1996, p.112.
148
Id., Ibid.
149
SCHWARTZ. Op. Cit., p.311. Sobre família escrava, ver Capítulo 14.
150
Isabel Cristina dos REIS. Op. Cit., p.31.
151
Livro de batismo 182B/ 302/1852 a 182B/464/1861-LEV.
54
libertos, uma menina foi declarada forra “condicionalmente” pelo tenente coronel Antonio
José Carneiro; as livres eram crianças expostas na Santa Casa de Misericórdia
152
.
As mães escravas foram maioria (849); 35 livres referiam-se às internadas ou funcio-
nárias da Santa Casa e 188 eram libertas. Em 1855, uma livre emancipada, Umbelina, africa-
na, batizou suas filhas crioulas gêmeas de 5 meses, Maria Rita e Rita Maria; o padrinho das
crianças foi o Dr. João Antonio Azevedo Chaves
153
. Não foi registrado se as crianças eram
livres, mas razões para se supor que sim, pois na legislação da época, „a condição da cria
seguia o ventre. Registros em que o pai e e apareceram foram minoria apenas 285 casos.
Em três casos apareceu apenas o pai e em 1.912 apenas a mãe
154
.
O compradio criava laços de solidariedade e de parentesco espiritual entre os envol-
vidos. Poucos foram os registros que davam a condição jurídica dos padrinhos e madrinhas:
apenas 825. Desses, 190 eram livres, 371 libertos e 264 escravos. Acredito que, fora os livres
e libertos, que certamente faziam questão de registrar sua condição para se afastarem do pas-
sado escravo, os demais eram escravos. Foram registrados 2.247 padrinhos. Schwartz relata
que os padrinhos eram, quase invariavelmente, da mesma condição social do afilhado, ou seja,
escravos dificilmente apadrinhavam crianças livres
155
, as pessoas livres que apadrinhavam
escravos variavam segundo condição, ocupação e cor. Em 123 casos, os padrinhos eram dou-
tores, militares e padres. As madrinhas apareceram pouco nos registros: apenas 676 registros,
sendo 47 referentes a senhoras da sociedade ou seja, foram registrados como Dona. Batiza-
dos com padrinho e madrinha juntos foram apenas 671
156
.
Nos registros de batismo, mães escravas e suas crias apareceram sendo batizadas; em
alguns casos, os senhores as alforriavam na pia batismal, mas tratava-se da alforria condicio-
nal, ou seja, deveria permanecer como cativas por tempo determinado pelo senhor, como ser-
vi-lo até o dia derradeiro, ou a um de seus parentes até mesmo após a morte do senhor. Foi
comum mãe e filho serem separados na divisão de bens, doação e venda. Maria, de cinco me-
ses, era escrava de José Manoel do Amorim, enquanto sua mãe, a parda Luisa, era escrava de
D. Jesuína Angélica do Amorim. Pinheiro encontrou 576 crianças comercializadas na Fregue-
152
Livro de batismo 182B 302/19/03/1853-LEV. Sobre batismo dos enjeitados da Santa Casa, ver Johildo Lopes
ATHAYDE. Op. Cit., p.9-25, set/1979.
153
Livro de batismo182B/ 345/24/04/1855-LEV.
154
Livro de batismo182B/ 302/1852 a 182B/464/1861-LEV.
155
SCHWARTZ. Op. Cit., p.332.
156
Livro de batismo LEV.
55
sia da entre 1850-1888: “a criança escrava não era carga inútil para os senhores e que po-
dia começar a trabalhar muito cedo”
157
.
Com essa análise, no entanto, pouco foi possível saber sobre a afetividade e a luta
das mulheres para manter e educar os filhos, com todas as adversidades inerentes à escravi-
dão, mas sustento a hipótese de que ela existiu, mesmo que alguns dissessem o contrário. Po-
demos percebê-la na tentativa das mães em manter os destinos de sua prole sob seu controle,
apesar de, no desespero, cometerem atos extremos, como o abandono ou o infanticídio (abor-
darei esse assunto no Capítulo 3).
Com relação à formação educacional das crianças, essa também não era fácil, mesmo
com uma legislação que não impedia aos livres e libertos de irem à escola, essas crianças, na
maioria dos casos, ajudavam as mães no trabalho; além disso, havia o preconceito que, muito
possivelmente, sofriam na escola. No caso das meninas, a segregação começava em casa,
que eram preteridas em relação aos meninos, que iam para a escola, enquanto elas permaneci-
am em casa fazendo os serviços domésticos e aprendendo um “ofício feminino”, como era
comum na sociedade patriarcal na qual estavam inseridas.
No próximo capítulo, analisarei o censo de 1855, na tentativa de perceber as mulhe-
res chefes de família e seus filhos na da segunda metade do século, uma freguesia em de-
sintegração social, conforme assinalamos, numa cidade que passava por diversas mudanças
estruturais para enfrentar o “fantasma da abolição” que rondava o Brasil, perturbando o sono
dos senhores escravistas.
157
PINHEIRO. Op. Cit., p.172. A idade com que as crianças começavam a trabalhar variava. Encontrei, no cen-
so, crianças de 3 e 4 anos exercendo alguma atividade. No entanto, a Constituição Primeira do Arcebispado
instituiu a idade de 7 anos como da razão. Mattoso e Pinheiro classificaram como criança os escravos de até doze
anos. Para aprofundar a discussão, ver Kátia de Queirós MATTOSO. O filho da escrava. In: Mary Del PRIORE
(Org.). Op. Cit., p.77-97; Constituição Primeira do Arcebispado da Bahia / feitas e ordenadas pelo ilustríssi-
mo e reverendíssimo D. Sebastião Monteiro da Vide. Brasília: Senado Federal, conselho editorial, 2007, livro 1,
titulo 2, Vol.79, p.3; digo Filipino ou Ordenações e leis de Portugal - recopilados por mandado Del Rey D.
Philippe I. Livro quinto. Edição fac-similar da 14ª edição de 1870, com introdução e comentários de Cândido
Mendes de Almeida, 4º Tomo. Edições do Senado Federal, vol. 38-d, p.147-149.
56
2 MULHERES CHEFES DE FAMÍLIA NO CENSO DE 1855
A preocupação com a mensuração populacional estava presente na Europa desde o
século XVI
158
. Na América portuguesa, as primeiras estimativas populacionais datam de fins
do século XVII; entretanto, não passavam de estatísticas vagas e imprecisas. Apenas no sécu-
lo XVIII há notícias da realização de censos demográficos no Brasil. O Objetivo deste capítu-
lo é fazer um balanço dos recenseamentos populacionais na Bahia, dando especial atenção ao
censo realizado em 1855 na cidade do Salvador e, neste, às mulheres de cor provedoras da
família.
2.1 BREVE HISTÓRICO DOS CENSOS
A Santa Casa de Misericórdia da Bahia registrou, em 1703, os enterramentos que fo-
ram realizados na cidade. Esses registros eram realizados de forma sistemática, uma vez que a
irmandade era responsável pelo controle filantrópico de hospitais, recolhimentos e enterra-
mento de defuntos. “Os serviços fúnebres encontravam-se entre os mais importantes que as
Misericórdias prestavam, muito embora nem todos os acompanhamentos de defuntos fossem
feitos por caridade”
159
. Embora os irmãos das Misericórdias fossem pessoas abastadas, um
dos objetivos fundamentais da entidade era fazer caridade aos pobres e carentes da sociedade,
por isso muitos enterros de escravos eram realizados pelas Santas Casas
160
. Os livros de se-
pultamentos de escravos têm sido tomados pelos historiadores como fontes para o estudo de
grupos étnicos africanos. Apesar da imprecisão dos dados, muitas vezes esses livros se apre-
158
Thales AZEVEDO. Povoamento da cidade do Salvador. Op. Cit., p.181.
159
Isabel dos Guimarães SÁ. As Misericórdias Portuguesas de D. Manuel a Pombal. Lisboa: Livros Horizon-
te, 2001, p. 116.
160
As irmandades eram associações religiosas e leigas de ajuda mútua e se formavam a partir de afinidades
corporativas e/ou devocionais. Os critérios de pertencimentos eram geralmente fundados nas hierarquias sociais,
cor e etnia. No caso das irmandades das Santas Casas de Misericórdia, que eram irmandades poderosas, essa
solidariedade era exercida através da caridade para os de fora, uma vez que seus membros eram obrigatoriamente
os privilegiados socialmente. João José REIS. A morte é uma festa Op. Cit., p.35-37 e 51-58; Lucilene
REGINALDO. Os rosários dos angolas: irmandades negras, experiências escravas e identidades africanas na
Bahia setecentistas. Tese de doutorado. Campinas: UNICAMP, 2005.
57
sentam como fundamentais, pois estão dentre os poucos que dispomos no estudo da popula-
ção escrava
161
.
Na Bahia, assim como em toda a América Portuguesa, os primeiros recenseamentos
foram feitos pela Igreja, utilizando os dados anotados nos “róis de desobriga”, nos quais se
anotava a quantidade de fiéis que comungavam e confessavam durante a Quaresma. Em 1702,
o arcebispo D. Sebastião Monteiro da Vide “fazia uma avaliação da população de sua diocese
e quatro anos depois havia, em livros da Mitra, um registro dos fogos e pessoas em idade de
confissão”
162
.
Em 1707, o sínodo arquidiocesano, em cumprimento à legislação canônica vigente
em Portugal, obrigou os párocos a fazer anualmente,
por si e não por outrem, entre a dominga da septuagésima e a quinquagésima,
rol pelas ruas e casas e fazendas de seu fregueses, anotando os seus nomes,
sobrenomes, local de residência e indicando separadamente cada pessoa
[...]
163
.
Um ano depois, o então governador Luiz César de Menezes pediu aos vigários os
nomes de pais de famílias com filhos que houvesse em suas freguesias e também o número de
fogos ou lares. Para Azevedo, fazer o censo não era coisa fácil, pois os pais de família, receo-
sos de que seus filhos fossem chamados para o serviço militar, ocultavam seus nomes, e os
senhores faziam o mesmo com seus escravos, temendo o pagamento de impostos. Além disso,
não eram incluídas nesse censo as pessoas que não tivessem atingido a idade de confissão, os
“inocentes, párvulos e pagãos”
164
.
Os dados eclesiásticos computaram, para o ano de 1706, 4.296 fogos com 21.601 al-
mas de confissão
165
. Para Afonso Ruy, em 1718 o número de habitantes na zona urbana era de
39.209 e 6.617 fogos, enquanto na zona suburbana havia 2.676 habitantes
166
.
161
Carlos OTT. Formação e evolução étnica da cidade do Salvador. Salvador: Prefeitura Municipal de Salva-
dor, 1957; Mary KARASCH. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.
162
Id. Ibid., p.182.
163
Thales de AZEVEDO, Op. Cit., p.182.
164
Id. Ibid. Por párvulos entendem-se as crianças pequeninas, sem idade para confissão.
165
Ibid., p. 185. Nesse período, as Minas atraíam um grande contingente populacional, inclusive de pessoas que
chegavam de Portugal sem documentos de identificação.
166
Ibid., p. 187. A capitania da Bahia passava por grave crise, pois a exportação caíra, devido ao déficit na pro-
dução gerado pela saída dos escravos para as Minas, a concorrência do açúcar de outras nações e a dificuldade
de adquirir escravos com a presença holandesa na costa da Mina. Para aprofundar a discussão sobre a presença
holandesa na Costa da Mina, ver Maria Inês Cortes de OLIVEIRA. Quem são os negros da Guiné? A origem dos
africanos na Bahia. Revista Afro-Ásia, 19/20, 1997, p.37-73; para a discussão sobre a economia baiana, ver
Stuart SCHWARTZ. Op. Cit., p.144-177.
58
Em 1755 havia em Salvador 6.719 fogos e 37.543 almas de confissão. Nota-se que,
se comparados com os dados contabilizados de 1718, evidencia-se um pequeno aumento no
número de fogos, mas com uma diminuição da população. Buscando explicar essas disparida-
des, Azevedo sugere que isso pode ter ocorrido em razão de os vigários descumprirem a re-
comendação da legislação canônica, qual seja, a de fazerem pessoalmente a contagem, ou
ainda que os dados de 1718 incluíssem os párvulos e impúberes, o que para o autor era pouco
provável
167
.
Para o ano de 1757, há duas estatísticas que incluíram as nove freguesias da cida-
de
168
. A primeira contagem é eclesiástica, em que se contabilizaram 34.170 almas; a segunda,
feita pelo medidor de obras Manoel de Oliveira Mendes, contou 6.821 fogos e 37.323 pesso-
as
169
.
O Conde dos Arcos mandou fazer novo censo em 1759, no qual foram contabilizados
6.782 fogos com 40.263 habitantes na cidade, e 8.315 fogos e 62.833 habitantes no Recônca-
vo. Para toda a capitania, havia 28.612 fogos e 250.142 habitantes esse censo não incluiu os
menores de sete anos, os índios das aldeias administradas por religiosos, as ordens religiosas
de ambos os sexos e as pessoas ocupadas nessas ordens.
O primeiro censo classificando a população por sexo, idade, estado civil, incluindo
os falecimentos e nascimentos, data de 1775. No entanto, é em 1776 que o ministro da mari-
nha e o secretário de Estado organizam instruções de como deveria ser computada a popula-
ção nas ilhas e capitanias do Brasil, conforme sua classe
170
. No ano de 1775, o governador
Manuel da Cunha Meneses remeteu para Lisboa a demografia de todas as freguesias perten-
centes à Bahia e seus habitantes, com a distinção das comarcas e vilas, com número de fogos
e almas. Segundo esse censo, havia na cidade 7.080 fogos com 40.922 almas; as freguesias do
subúrbio contabilizavam 2.091 fogos e 16.093 almas; no total das 4 comarcas, 12 vilas e 87
freguesias havia 221.756 almas
171
. Tal estimativa foi feita a pedido do Reino, pois havia a
167
AZEVEDO. Op. Cit., p.188.
168
A Freguesia da Penha não estava relacionada, foi criada em 1760.
169
Relação topográfica da cidade de Salvador da Bahia de Todos os Santos e seus termos. Medidor de obras
Manoel de Oliveira Mendes, f ls, 106-113. APB sessão colonial e provincial, registros de correspondência expe-
dida para o rei -132 (1725-1761).
170
De acordo com esta instrução, a população deveria ser organizada em 10 classes: classe, todos do sexo
masculino até 7 anos; 2ª classe, todos os rapazes de 7 a 15 anos; classe, todos os homens de 15 a 60 anos; 4ª,
classe todos os velhos de 60 anos para cima, com especificação dos que passaram dos 90 anos; 5ª classe, todas as
crianças do sexo feminino até 7 anos; 6ª classe, todas as raparigas de 7 a 14 anos; 7ª classe, todas as mulheres de
14 a 40 anos; 8ª classe, todos as adultos e velhas de 40 anos para cima com especificação das que passaram de 90
anos; classe, todos os nascimentos no ano do recenseamento; 10ª classe , todas as mortes ocorridas no ano do
recenseamento. Mas, segundo Thales de AZEVEDO, o censo de 1775 apesar de ainda não contar com estas
instruções foi mais minucioso (p. 183-184).
171
Ibid., p.191.
59
necessidade, no Rio de Janeiro, de gente para o serviço das naus e fragatas de guerra, por isso
foram incluídas as freguesias marítimas da capitania
172
.
O censo de 1780 atribuiu à cidade 39.209 almas distribuídas em 6.617 fogos e, ao
subúrbio, 26.076 almas em 3.689 fogos. Nesse censo encontra-se o total de nascimentos e
óbitos daquele ano, sendo 602 para o primeiro caso e 366 para o segundo, no tocante à cidade,
e 543 e 447, respectivamente, para o subúrbio. Comparando os períodos de 1759 e 1780, hou-
ve uma involução da população da cidade e do número de fogos, sendo que em 1775 houve
um ligeiro aumento. Esses fatos podem ser explicados pela mudança da capital para o Rio de
Janeiro, em 1763, que ocasionou, entre outros fatores, a redução de habitantes do sexo mascu-
lino em razão do deslocamento deste grupo para o sertão, fugindo do recrutamento militar e
dos recrutados para o Rio de Janeiro, para serviço nas embarcações ou nos Regimentos. A
falta de rapazes certamente provocou a diminuição dos relacionamentos naturais e legais com
consequente baixa na taxa de natalidade
173
.
A preocupação em fazer um censo populacional da província estava presente desde o
início do século XIX. Estudos fazem referências a um ocorrido em 1808, no qual o total da
população da Bahia foi de 336.072, sendo 51.112 habitantes nas 10 freguesias da cidade de
Salvador. Alguns indícios apontam para o interesse governamental em controlar informações
sobre os números populacionais. Em 1840, uma lei decretada pelo governador determinou o
recenseamento da província a cada 10 anos; no entanto, não registros de que isso tenha
acontecido. Temos apenas indícios de que, ainda que esporadicamente, contagens populacio-
nais foram realizadas: para 1835 foi encontrada uma lista nominativa da Freguesia de São
Pedro; uma referência a um recenseamento realizado em 1842 na Freguesia de Santana, num
resultado total de 1848
174
; e o censo de 1855, que se encontra no APEB
175
. Finalmente, em
1872, foi realizado o primeiro recenseamento oficial da população brasileira
176
. Temos notícia
de que os dados regionais se encontram nos arquivos do IBGE, no Rio de Janeiro, mas, infe-
lizmente, pouca esperança resta sobre a existência das listas nominativas
177
. Neste a popula-
172
Ver Ana Amélia NASCIMENTO. Op. Cit., p.63.
173
AZEVEDO, p. 196. Maiores informações sobre população do final do século XVII ver Luis dos Santos
VILHENA. Op. Cit.; Anna Amélia Vieira NASCIMENTO. Op. Cit.,.
174
Anna Amélia Vieira NASCIMENTO, p. 63; Kátia de Queirós MATTOSO (Op. Cit.,) também analisa o censo
de 1808 e 1855.
175
Os mapas do recenseamento realizado no ano de 1855 encontram-se no APB, na sessão colonial e provincial
no maço 1602. Nesse ainda é possível fazer interpretações através das listas nominativas incompletas, que se
encontram, não somente da Sé como também do Carmo, Penha, Pilar, São Pedro, Conceição da Praia.
176
Recenseamento de 1872 - Documentos raros. A Província da Bahia. Exposição de Philadelphia,1878. p31-39 -
Biblioteca nacional.
177
A lista nominativa é muito importante para quem trabalha com fontes seriais, pois permite quantificar as vari-
áveis; no caso do censo de 1855, podemos, de posse da lista, observar o número de casas, fogos, as ruas, nomes,
60
ção da Bahia é contabilizada em 1.379.616 habitantes, dos quais 108.138 nas 11 freguesias da
cidade capital. Mas esse censo não permite fazer uma análise por faixa etária
178
nem apresenta
as variáveis que interessam para esta pesquisa.
Dos censos do século XIX, o que permite fazer maiores análises é o de 1855, pois
deste ainda há listas que foram preenchidas pelos recenseadores, com informações sobre as 11
freguesias. Entretanto, há listas em péssimo estado e algumas que já foram retiradas do manu-
seio público. Esse censo foi realizado no governo de João Maurício Wanderley, no mês de
janeiro de 1855, antes da epidemia de cólera na cidade. O resultado de tal pesquisa não foi
bem aceito pelo governador, que chegou a afirmar que “os dados eram inteiramente falsos”
179
,
pois segundo eles a população da cidade contava 56.000 habitantes e, para o governador, a
estimativa deveria ficar em torno de 124 a 125 mil habitantes
180
.
Para o viajante Wetherell, “a gente parece ter uma profunda aversão a "ser contada”
e o exemplo é dado pelos senhores de engenho e donos de escravos, que faziam tudo para não
serem fiscalizados”
181
. Isso ocorria porque os senhores sabiam que em seguida ao censo viria
a cobrança de impostos; por isso “declaravam sistematicamente um número de pretos inferior
aos que possuíam realmente”
182
. No entanto, mesmo não considerando a total veracidade das
estimativas feitas ao longo desse século e do passado, o número pensado pelo governador soa
exagerado. Acompanhando as estimativas anteriores, os números do censo de 1855 parecem
aceitáveis, mas, analisando os números de 1872, percebemos que o governador não estava
totalmente equivocado.
As informações encontradas nas listas nominativas do censo de 1855 são uniformes.
Nelas encontramos dados a respeito de ruas, casas, fogos, nomes, sexo, idade, estado civil,
qualidade (cor), naturalidade, condição jurídica, profissão e observação (espaço no qual os
inspetores colocavam a renda, o grau de parentesco ou relação com o chefe de família). Ape-
condição jurídica, qualidade (cor), profissão, idade, filiação e, em alguns casos, dependendo do recenseador, a
renda. Para aprofundamento do debate, ver Robert SLENES. O que Rui Barbosa não queimou: novas fontes para
o estudo da escravidão no século XIX. In: Estudos Econômicos, n.13, 1983, p.117-149; Kátia de Queirós
MATTOSO. Da revolução dos Alfaiates à riqueza dos baianos no século XIX. Itinerário de uma historiadora.
São Paulo: Corrupio, 2004, p.135-159 e 225-260.
178
Kátia de Queirós MATTOSO. Família e sociedade na Bahia do século XIX. Op. Cit., p.22.
179
Cf. NASCIMENTO. Dez freguesias da cidade do Salvador. Op. Cit., p. 62.
180
Id. Ibid., Para o então presidente da província João Maurício Wanderley de Pinho, os dados eram falsos. En-
tretanto, Nascimento tomou por base os censos anteriores ao de 1855 e fez um gráfico da população de Salvador
desde 1706. Segundo a autora, a população de 56.000 pessoas condizente com os dados anteriores e com o perí-
odo de evolução populacional, sendo 7 e não 15 a média de habitantes por casa (p. 64-67). No entanto, analisan-
do os resultados de 1872, percebemos que o governador tinha razão em não confiar nos dados do censo de 1855,
pois não parece ser possível que a população de Salvador tenha dobrado em 17 anos, ainda mais depois da gran-
de epidemia de cólera.
181
Cf. James WETERELL. Op. Cit., p. 99.
182
Id. Ibid., p.99.
61
sar de haver uniformidade nas informações, cada inspetor preenchia a lista da forma que me-
lhor lhe conviesse; alguns omitiam informações, como grau de parentesco e profissão, e pou-
cos mencionavam a renda. Além de tudo, a grafia dos inspetores por vezes era incompreensí-
vel, denotando o baixo grau de instrução de alguns, o que não é novidade para uma época de
elevado número de analfabetos
183
. Apesar desses percalços e restrições, esse censo me permi-
tirá fazer a demografia de parte da Freguesia da Sé, na qual darei atenção particular às mulhe-
res chefes de família de cor.
Da Freguesia da Sé, onde concentro meu trabalho, encontrei no APB a listas de qua-
tro quarteirões, a saber, 20, 21, 22, 23
184
, um a menos do que Nascimento, que trabalhou com
o quarteirão de número 8, e dois a mais que Mattoso, que trabalhou com os de número 21 e
22. Neles pude perceber que os dois inspetores, o Sr.Lauriano Antonio da Mota e Ernesto
Ermelino Ribeiro, que a propósito eram moradores dos mesmos quarteirões por eles recensea-
dos, preencheram as fichas de forma descompromissadas ou confiaram na memória certa-
mente por conhecerem os vizinhos. Não registraram de forma geral as informações sobre a
profissão e a renda das mulheres.
Essas listas oferecem dados valiosos, mas também sugerem algumas provocações
quanto a sua confiabilidade. A definição da qualidade ou cor é assunto, no mínimo, instigante,
uma vez que não é possível saber quem atribuía a qualificação o inspetor ou o recenseado.
Reis sugere que havia um preconceito mesmo entre brancos; os portugueses e outros europeus
viam os brancos da terra como raça inferior
185
. Desde o movimento dos alfaiates, no final do
século XVIII, sabe-se que, na Bahia, os mestiços tinham dificuldade em ascender nas forças
armadas e em cargos públicos. Por isso, era comum no registro de batismo, e em outros do-
cumentos, as famílias camuflarem a cor dos seus filhos; ao fazerem isso, as famílias estavam
escondendo a origem africana e escrava dos seus
186
. Dentre esses documentos podemos inclu-
ir o recenseamento sendo assim, esses dados não são de todo confiáveis. O estado civil é
183
Cf. referências sobre analfabetismo em: Sandra L. GRAHAM. Caetana diz não. Histórias de mulheres da
sociedade escravista brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, 9.23-114; Sidnei CHALOUB. A enxada
e o guarda-chuva: a luta pela libertação dos escravos e a formação da classe trabalhadora no Brasil. Texto apre-
sentado no XXI Simpósio Nacional de História, Niterói. Jul/ 2001; Ione Celeste de SOUSA. Escola ao povo:
experiência de escolarização de pobres na Bahia oitocentista 1870-1890. Tese de doutorado em História Social.
PUC/SP, 2006, p.140.
184
Os quarteirões da analisados serão os 20, 21, 22 e 23. O quarteirão 20 correspondia a toda a rua direita do
Palácio até o Teatro; o 21, à rua Nossa Senhora da Ajuda, Ladeira do Aljube até sair atrás da Sé; o 22, Rua do
Pão de Ló até a do Ximenes; 23, Ladeira do Galvão, Vassouras, Tira Chapéu, Valongo, Escadinha do Vidal, resto
da ladeira detrás do Palácio até o Pau da Bandeira. Recenseamento de 1855-maço: 1602-APB.
185
João José REIS. A morte é uma festa. Op. Cit., p 39.
186
Para a discussão sobre o preconceito vivido pelos brancos da terra, africanos, negros brasileiros e os mestiços,
ver REIS. Ibid., p 39; Junia FURTADO. Chica da Silva e o contratador de diamantes. O outro lado do mito.
São Paulo: Companhia das letras, 2003, p.103-156.
62
outro dado que nos permite desconfianças, pois, em alguns registros, a mulher que aparece na
observação como agregada mais parece ser a esposa, fato esse encoberto, certamente, devido
às leis canônicas, à condição de ilegalidade das relações naturais no Brasil da época, e ao es-
cândalo que tais situações provocavam
187
. Por último, devemos destacar que este censo não
permite verificar a relação da maternidade escrava, pois as crianças cativas não são registra-
das junto ao nome da mãe ou com qualquer referência a esta, mesmo que fosse a escrava da
casa. No entanto, apesar das limitações, a análise conjunta dos dados do censo e da bibliogra-
fia existente hoje permitiu fazer diversas interpretações. Abaixo, especificarei as limitações
que foram impostas por quarteirão para a análise do recenseamento de 1855.
O quarteirão 20 foi o mais bem detalhado pelo inspetor Antonio Cardoso que, além
das informações da lista, acrescentou na observação a renda dos moradores, a quem pertencia
o comércio, a quantidade de fogos por casa, o nome das ruas e as relações de parentesco. No
quarteirão 21 não foi informada a renda dos chefes de família, nem especificados os fogos;
em compensação, a grafia do inspetor Eduardo Firmino da Silva não permitiu dúvidas e, além
disso, a condição de conservação desta lista é excepcionalmente boa
188
.
Os inspetores do quarteirão 22 e 23 eram moradores do local um funcionário públi-
co e o outro pintor. No quarteirão 22 morava o inspetor Lauriano Antonio da Mota, 42 anos,
pardo, casado com D. Urçulina Maria da Conceição, com quem teve uma filha de 15 anos,
Dandara Maria do Espírito Santo. Além da mulher e da filha, residiam com ele duas senhoras,
uma de 74 anos, de nome D. Januária Maria da Conceição, com um filho de 25, calafate, e D.
Anna Maria da Conceição, de 32 anos, com 4 filhos entre 3 e 15 anos de idade, o mais velho
de profissão alfaiate. Observando os sobrenomes, parece que essas senhoras são mãe e irmã,
respectivamente, de D.Urçulina. Como não temos o registro do grau de parentesco entre os
agregados, ficamos apenas na especulação. O inspetor Lauriano também não registrou os no-
mes das ruas, os andares respectivos aos fogos (quando se referia a sobrados) e a renda, além
de ter trocado algumas informações, como no caso de Josefilha, cuja idade registrada é 80
anos enquanto sua mãe aparece com 40. O recenseador Lauriano também esteve pouco atento
à profissão dos moradores, tanto homens quanto mulheres
189
.
o recenseador Ernesto Ermelino Ribeiro, do quarteirão 23, tinha 27 anos, era casa-
do com D. Rosa Brito Ribeiro e trabalhava como empregado público. Tinha três filhos dois
meninos de 7 e 6 anos, que estudavam, e uma menina de 1 ano. Também morava com ele uma
187
Cf. Fernando TORRES-LONDOÑO. Op. Cit., p.23.
188
Recenseamento de 1855, maço: 1602, Freguesia da Sé.
189
Ibid.
63
senhora branca de 48 anos, D. Maria Gertrudes Brito Varella que, pelo sobrenome, parece ser
a mãe de sua esposa. Como foi comum a esse inspetor não estabelecer relação de parentesco
e/ou agregamento entre os moradores, cabe-nos, apenas especular. Esse inspetor se preocupou
com a profissão, mas, por vezes, parece ter confundido termos, pois colocou homens como
costureiros e mulheres como alfaiates, por exemplo. Também em suas anotações o inspetor
relacionava as mulheres do fogo sem distinguir se era esposa, filha, agregada; a única condi-
ção pontuada foi a de escravo
190
.
Tal ausência de identificação deixa imprecisa a análise, pois, no Brasil, as mulheres
casadas, por vezes, “continuam a usar o seu nome de solteira”
191
, assim como era comum dar
aos filhos nomes e sobrenomes de santos e invocações divinas. Vejamos o exemplo do crioulo
João Ferreira do Nascimento, de 44 anos, casado com Maria Joanna Romana, de 35 anos,
também crioula. A filha do casal, de 5 anos, foi batizada com o nome de Florsinha Fellipa de
Santiago
192
. Esta é uma história de família crioula, mas casos parecidos entre pardos e
brancos; nestes casos, se o inspetor não discrimina o grau de parentesco.
Diante do exposto, para uma análise mais geral referente aos números populacionais,
sexo, condição jurídica e estado civil, tomarei os dados de todos os quarteirões. O quarteirão
20 será usado como referência pela riqueza de detalhes que este oferece, com relação à profis-
são, aos andares das casas, aos fogos e ao grau de parentesco entre os moradores. Para a tota-
lização dos fogos, seguirei a ordem exposta nesse quarteirão cada novo domícilio é encabe-
çado pelo chefe, seja este homem ou mulher, mesmo que por vezes exista dentro da mesma
residência mais de um chefe de família coabitando.
O quarteirão 23 permitirá uma análise mais profícua em relação à profissão dos mo-
radores, pois este foi onde melhor se relatou o ofício dos residentes. Este parece ser o quartei-
rão em que há uma maior quantidade de população pobre e de cor, além de pessoas que vivem
juntas, mas sem ter um aparente grau de parentesco, apenas dividindo o mesmo espaço.
Foi possível, no entanto, fazer uma análise conjunta de todos os dados dos quartei-
rões, com exceção para a renda e número de fogos, que foram detalhados apenas no quarteirão
20, e do grau de parentesco, que não foi identificado no quarteirão 23.
Nas próximas páginas, seguirei analisando o censo como um todo, ou seja, farei a to-
talização da população, o número de casas e fogos, a faixa etária dos residentes, o número de
famílias e quantidade de filhos. Da mesma forma, discutirei as profissões relacionadas e a
190
Ibid.
191
James WETERELL. Op. Cit., Brasil, p.96.
192
Recenseamento de 1855, maço 1602. Freguesia da Sé.
64
condição jurídica dos moradores, sempre que possível cruzando os dados com os de Mattoso
e Nascimento, como também com a bibliografia que versa sobre o mesmo assunto. E, num
segundo momento, concentrarei meus esforços numa análise pormenorizada que me permita
conhecer melhor o perfil das mulheres chefes de família da Sé desse período.
2.2 DEMOGRAFIA DA FREGUESIA DA SÉ
A demografia histórica é fruto de um bem sucedido casamento entre a demografia e a
história. Essa parceria era bastante conhecida desde a década de 1950, mas foi apenas nos
anos 70 “que os demográfo-historiadores souberam imprimir um cunho científico original aos
estudos das populações retrospectivas, dando nascimento então à nova disciplina”
193
. Inspirei-
me nesse método para analisar o recenseamento de 1855.
Em 1851, a Freguesia da Sé tinha 26 quarteirões, que começavam nas portas de São
Bento até o Beco do Ferrão, limite da Freguesia do Passo. No entanto, neste trabalho serão
analisados apenas os quatro quarteirões, já citados, encontrados no APEB.
A do século XIX já não era uma freguesia de elite. As famílias ricas tinham
começado se transferir para as freguesias mais afastadas, como Vitória e Penha, onde constru-
íram casas amplas com jardins e quintais. Os grandes sobrados, então pertencentes aos ricos,
foram, em sua maioria, alugados a famílias medianas e pobres e a estabelecimentos comerci-
as. Segundo Oliveira, nos sobrados o pavimento considerado nobre era reservado para os se-
nhores, e, para os escravos, os compartimentos situados no fundo do andar térreo
194
. No caso
do aluguel, essa gica também era seguida, ou seja, os andares de baixo eram alugados aos
mais pobres e, na parte de cima, ficavam os donos ou outra família com mais posses, em ob-
servância à demonstração da estratificação social que ocorria entre os pavimentos.
No quarteirão 20, algumas viúvas viviam de “seus bens” e no quarteirão 23 havia
muitas pessoas, aparentemente sem relação de parentesco, que dividiam o mesmo espaço,
principalmente escravos de “todo serviço”. Apesar da decadência, a velha abrigava mem-
bros da elite econômica e política. O exemplo mais ilustre é o do presidente da província, Jo-
ão Maurício Wanderley, morador do quarteirão 20.
193
Maria Luiza MARCÍLIO (Org). A demografia histórica-orientações e técnicas metodológicas. São Paulo Edi-
tora livraria Pioneira, 1977, p. 2.
194
Inês Cortês de OLIVEIRA. Op. Cit., p.190; Ana de Lourdes Ribeiro da COSTA. Op. Cit.
65
Busquei fazer um perfil dos tipos de moradias da Sé. No quarteirão 20, na casa três,
morava o italiano Salvatore Centaloni, um homem branco, casado, de 38 anos e de profissão
sapateiro. Tinha dois filhos, uma menina de 15 anos e um menino de 14 e uma agregada cha-
mada Anna Emília de Almeida Albuquerque. A residência de Centaloni ficava no 1
o
andar; o
sobrado possuía mais quatro andares: no 3AB (térreo) estava a loja de sapatos, os e an-
dares estavam vazios e no andar morava Mequelina Juliana, uma mulher branca, solteira,
que vivia sozinha. No entanto, inspetor Antonio Cardoso, seguindo a mesma listagem, é bem
mais genérico quanto à situação dos moradores da casa 7. Na casa sob este número residia D.
Carolina Silva, viúva, branca, mãe de 5 filhos, com dois agregados pretos, Thereza e Bazilo.
O número 7A estava vazio e no 7C funcionava uma tenda sem nenhuma menção ao tipo de
comércio. Suponho que este imóvel tinha pelo menos um andar: no primeiro residia D. Caro-
lina, e na parte térrea funcionava a loja 7A e 7C talvez até tivesse mais uma loja, a 7B, que
não foi especificada, mas seguindo o raciocínio do inspetor foi possível inferir que havia mais
uma loja na 7B
195
.
Já no quarteirão 23, na casa de número 6 morava Isabel e José, escravo de “todo servi-
ço”; na 6A Faustina Conceicam [sic], uma preta, costureira com mais dois rapazes, Norberto da
Silva Ferreira e um outro que era de Sergipe não havia nenhuma menção ao seu nome. As
informações não me permitiram saber se a casa era de andar ou se havia quartos alugados no
mesmo andar. Por vezes, esse mesmo recenseador, ao considerar uma casa com vários domicí-
lios, identificava a todos como lojas
196
. A casa de número 3 era residência de D. Luisa Monteiro
Caminhoá, uma viúva que vivia de “seus bens”, com 4 filhos acredito que eram seus filhos
pelo sobrenomes, todos iguais, mas, como já foi dito acima, o inspetor não especificava o grau
de parentesco e dois escravos para “todo serviço”. Nesse mesmo endereço havia mais 5 fo-
gos, todos especificados como loja; eram habitados por gente sem aparente relação de parentes-
co, livres, libertos e escravos que exerciam as mais variadas profissões, como costureira, alfaia-
te, lavadeira e ganhador. Possivelmente era uma casa de pelos menos um andar, e D. Luisa resi-
dia na parte superior
197
.
Nascimento encontrou, para 1855, 967 casas e 8.316 habitantes, sendo a Sé a segunda
freguesia em número de habitantes, perdendo apenas para a Freguesia de São Pedro, com 8.337.
195
Recenseamento de 1855, maço 1602, Freguesia da Sé.
196
COSTA, p.56-57. Segundo a autora, as lojas eram habitadas por escravos, pois casa térrea ou de chão batido
caracterizava a pobreza, que moravam sozinhos ou dividiam o espaço com outros escravos esses espaços tinham
normalmente pouca ventilação, nenhuma separação nem tampouco privacidade. A era a freguesia que apre-
sentava maior concentração de escravos morando em Lojas. Essas moradias constituíam-se em espaços insalu-
bres; essas condições contribuíram para o aparecimento e proliferação de doenças, dentre elas a cólera, em 1855.
197
Recenseamento de 1855, maço 1602, Freguesia da Sé.
66
Havia uma média de 8,6 habitante/casa
198
. Para a Sé, o Censo de 1872 contabilizou um total de
2.112 casas habitadas e 15.111 habitantes numa média de 7,4 habitante/casa, como está de-
monstrado na Tabela 2, que especifica também a quantidade para o ano de 1775
199
.
TABELA 2
POPULAÇÃO POR HABITAÇÃO
1775
1855
1872
Casa habit. M.
Casa habit. M
Casa habit. M
1.040 8.946 8,6
967 8.316 8.59
2.112 15.111 7.4
Fontes: Anna Amélia Vieira NASCIMENTO. Dez freguesias da cidade do Salvador. Op. Cit., p.69.
Kátia MATTOSO. Família e sociedade na Bahia do século XIX. Op. Cit., p.25-28.
Nos quarteirões analisados, encontrei uma população de 898 habitantes, sendo 522
mulheres e 376 homens, ou seja, uma média de 1,4 mulher para cada homem. As mulheres
são maioria em todas as condições jurídicas, como está exposto na Tabela 2, perfazendo um
total de 58,12% da população desses quarteirões, enquanto os homens eram apenas
41,87%
200
. Esses dados condizem com o encontrado por Nascimento em 5 quarteirões: um
total de 40,81% de homens e 59,19% de mulheres. A população estava dividida em 114 casas
e 244 fogos. Das 114 casas, uma estava em obras, uma fechada, 11 vazias e 25 eram locadas a
estabelecimentos comerciais
201
.
O censo de 1872 indica um ligeiro aumento da população masculina de Salvador,
que contabilizava 56.604 (52,82%) homens e 51.534 (47,17%) mulheres entre as pessoas li-
vres; na população escrava a mulher predominava 6.416 (51,32%) contra 6.085 (48,67%)
homens. Para Mattoso, isso ocorria por ser a mulher escrava preferida na cidade, pois “ela
pode passar do serviço doméstico ao trabalho de ganho sem qualquer problema”, enquanto os
homens não demonstravam a mesma flexibilidade
202
.
Para a Sé, o censo de 1872 contabilizou um total de 5.874 homens e 7.139 mulheres
livres, diferindo do resultado geral e, em consonância com os resultados dos censos anterio-
res. Para a população escrava, havia também uma dissonância com o resultado geral, que era
de 1.105 (7,31%) homens e 993 (6,57 %) mulheres. Esse resultado difere do que encontrei,
mesmo que analisados apenas 4 quarteirões (ver Tabela 3), e também de Nascimento, que
198
NASCIMENTO. Op. Cit., p.67.
199
MATTOSO. Família e sociedade na Bahia do século XIX. Op. Cit., p.22.
200
Recenseamento de 1855, maço 1602, Freguesia da Sé.
201
Id.Ibid.
202
MATTOSO. Op. Cit., p 25-26.
67
contabilizou, em 5 quarteirões, 7,81% homens contra 11,03% mulheres escravas. Com rela-
ção à população geral, a manteve o perfil feminino, mas houve modificação com relação
às escravas.
TABELA 3
POPULAÇÃO POR SEXO E CONDIÇÃO JURÍDICA
FEMININO MASCULINO
%
%
LIVRE 406 45,21
LIVRE 289 32,18
ESCRAVA 92 10,24
ESCRAVO 75 8,35
LIBERTOS 18 2,0
LIBERTOS 9 1,00
S/E 6 0,66
S/E 3 0,33
TOTAL 522 58,12
376 41,87
Fonte: Recenseamento de 1855. Freguesia da Sé (quarteirões 20, 21, 22, 23), maço 1602 - APB.
A modificação das características populacionais da cidade, como demonstrado no
censo de 1872, com o aumento dos homens na população livre e diminuição das mulheres
cativas, no interregno entre os censos, pode ser fruto da fragilidade dos recenseamentos, fato
alardeado por muitos, desde as primeiras contabilizações, inclusive pelo presidente da provín-
cia, no censo de 1855, José Maurício Wanderley.
A Sé era a freguesia com menor índice de libertos (2,29%) e Santo Antonio Além do
Carmo com maior (7,19%)
203
; a média geral de libertos girava em torno de 3,62%. O maior
número de alforrias era concedido às mulheres; no total geral de 1855, Nascimento encontrou
1,1% de homens libertos e 2,43% de mulheres
204
.
Com relação à qualidade (cor), o censo de 1855 dividiu a população em branca, par-
da, crioula, preta, cabocla e africana
205
(Tabela 4). Por caboclo, entendo o fruto da união de
branco com índio é interessante notar, aliás, que o termo índio não aparece. Segundo Matto-
so, a categoria índio apareceu até o censo de 1808 e, para a autora, não se sabe ao certo o que
os recenseadores querem dizer por caboclo, ou seja, se a referência é a “índio puro ou mesti-
203
NASCIMENTO. Op. Cit., p.71- 95. COSTA.Op.Cit.Cap 3, item 3.2.
204
Id. Ibid. Mattoso também encontrou maior número de alforria feminina, dentre as alforrias concedidas entre
1869 e 1870, 640 forneceram informações sobre idade e sexo, dessas 61,9% eram de mulheres.
MATTOSO,.Op.Cit,p.102.
205
Jocélio Teles dos SANTOS. De pardos disfarçados a brancos poucos claros: classificações raciais no Brasil
dos séculos XVIII-XIX. Revista Afro-Ásia, n.32, 2005, p.115-137. Nesse trabalho, Santos, através de análise
dos livros dos expostos da Santa Casa de Misericórdia, procura mostrar que o sistema de classificação que no
Brasil se apresentava era multipolares e que houve a construção de um sistema local de classificações em conso-
nância ou dissonância com a metrópole; o sistema lingüístico escravocrata permitia rearranjos conceituais e
indicava uma flexibilidade do uso de categoriais no Brasil Colônia. O autor argumenta que o uso de categoriais
aponta para o exercício de práticas sociais relativas a uma classificação racial no período de 1763-1871; as per-
cepções de cor traduziam tanto as hierarquias sociais como revelavam ambiguidades no modo como os indiví-
duos eram classificados, ou seja, a indicação de cor remetia a um lugar socialmente pré-estabelecido, mas passí-
vel, quem sabe, de transformações.
68
ço”
206
. Os africanos apareceram discriminados como Nagôs, Auças, Geges, Angolas, Minas,
Mendobi, Congo, Costa D´África ou genericamente como africanos; e o pretos foram qualifi-
cados alguns como da Bahia e outros como pretos naturais de localidades da África
207
. Por
isso, a título de interpretação, como pretos denominarei apenas os nascidos na Bahia e africa-
nos os que foram acima especificados.
TABELA 4
POPULAÇÃO POR COR E SEXO
FEMININA
MASCULINA
TOTAL
BRANCO
170
155
325
PARDO
148
97
245
CRIOULO
65
25
90
CABRA
31
15
46
PRETO
32
23
55
AFRICANO
69
58
127
CABOCLO
1
1
2
S/E
5
3
8
TOTAL
522
376
898
Fonte: Recenseamento de 1855. Freguesia da Sé (quarteirões, 20, 21, 22, 23), maço 1602 - APB.
Os brancos eram 36,19% da população da Sé; já negros e mestiços perfazem um total
de 63,81% dessa população, sendo este contingente de 77.39% livres, 18.95 % escravos e
apenas 3,0% libertos. Dentre todos os quarteirões, o 23º é o que concentra a maior parte da
população negra. Neste, 72,39% dos moradores são negros e mestiços e apenas 27,61% são
brancos, sendo também maior a concentração de escravos (21,4%) e libertos (9,8%) e a menor
de livres (69,32%).
O sexo e a condição jurídica eram duas formas de preconceito existentes no Brasil
desde a sua origem. Para Nascimento, mesmo sem direitos legais e costumeiros, na Bahia, a
mulher conseguiu, em alguns momentos, impor sua vontade sobre o marido e, em algumas
situações, até interferir nos rumos de suas vidas. Nesse período também aparecia no Brasil
uma mudança de hábitos relacionada à condição das mulheres da elite, como a permissão para
aparecer em público, em festas e saraus. Além disso, algumas dessas mulheres conseguiram
divórcio
208
, mesmo que através do prestígio da família
209
. Essa superação de limites não era
206
MATTOSO. Op. Cit., p.23.
207
Segundo Mattos, durante todo o período colonial e até o século XIX, os termos “negro” e “preto” foram usa-
dos exclusivamente para designar escravos e forros, mas em algumas locais e períodos “preto” foi utilizado para
foi sinônimo de africano e os índios escravizados eram chamados de negros da terra. No entanto os recenseado-
res de 1855 utilizaram o termo preto tanto para africanos como baianos. Hebe Maria MATTOS. Escravidão e
cidadania no Brasil monárquico. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p.17.
208
SAMARA, Op. Cit., p.118. Segundo a autora, para o período de 1890-1899, de 123 processos de divórcio, 24
foram pedidos pelos homens e 57 pelas esposas; os demais foram por mútuo consentimento. Para a autora, essas
69
restrita à elite. Encontramos casos exemplares também entre as escravas. Rita era uma ex-
escrava protegida de sua antiga dona, que a casou com um pardo. No entanto, Rita apaixonou-
se por um português e, juntos, assassinaram o marido. Rita e o português se casaram, e ela
passou a ser intermediária do segundo marido nos negócio, superando assim a marca de sub-
missão que marcava socialmente seu sexo e sua raça
210
.
No entanto, com relação à condição jurídica, apesar de situações serem burladas, o
passado escravo era levado com o indivíduo para o túmulo. Para Oliveira, “tornar-se liberto
não era a mesma coisa que tornar-se livre”, e essa herança ia além dos aspectos jurídicos. Ao
liberto eram limitados os direitos políticos, as dignidades eclesiásticas, o acesso ao poder ju-
diciário, ao porte de armas e até mesmo o direito de locomoção. Essa situação era agravada
quando o liberto era um africano seus direito eram ainda mais limitados
211
.
A escravidão no Brasil produziu uma sociedade desigual entre as camadas sociais e
as etnias. Essa situação era sentida pelo liberto brasileiro e, principalmente pelo africano que,
mesmo liberto, continuava estrangeiro, em especial no que diz respeito à profissão. O africano
liberto tinha poucas oportunidades de trabalho e, na maioria das vezes, exercia a mesma fun-
ção do período de cativeiro concorrendo com os escravos nos ofícios de carregador; ganhador;
estivador. Segundo Oliveira, aos que foram dadas chances de profissionalização
212
, no perío-
do da escravidão, havia maiores oportunidades, como: músico; feitor; tanoeiro; barbeiro
213
.
Mas se isso não aconteceu, tinham que se virar como podiam. Além disso, a alforria, ainda
que onerosa, podia implicar em obrigações para com o senhor ou senhora por longa data.
Encontrei no censo de 1855 uma situação que pareceu ilustrar tais atos de reconhe-
cimentos e/ou condicionantes da liberdade. Encontra-se, com frequência nos testamentos, a
cessão de alforrias condicionadas à obrigação de cuidar de um parente ou do senhor enquanto
vida tivessem
214
. Maria Joaquina dos Rios, crioula, 36 anos, liberta, moradora do quarteirão
22, residia com uma senhora branca, D. Senhorinha M. de Cerqueira e seus dois filhos, um de
evidências contrariam, em muitos aspectos, o estereótipo da mulher submissa, revelando a existência de aspira-
ções femininas face ao casamento.
209
Nascimento. Op. Cit., p. 26 e 113.
210
NASCIMENTO. Op. Cit., p.60.
211
OLIVEIRA. O liberto o seu mundo e os outros. Op. Cit., p. 11; Sobre os limites dos direitos dos libertos, ver
MATTOS. Op. Cit., p.14-35; Keila GRINGBERG. Fiador dos brasileiros. Cidadania, escravidão e direito civil
no tempo de Antonio Pereira Rebouças. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p.69-124. Ao liberto, era
vetado pela constituição de 1824, votar e também fazer parte das milícias nacionais.
212
Até 1851 aos escravos não era permitido exercer profissões especializadas, somente em 1851 a lei provincial
passa a taxar em 10$000rs todo africano que exercesse ofício mecânico. LEGISLAÇÃO da Província da Ba-
hia sobre o negro: 1835-1888. Fundação Cultural do Estado da Bahia/Diretoria de bibliotecas públicas, 1966,
p.42.
213
Ibid., p 32-33.
214
Ibid., p. 24-25. Isabel Cristina Ferreira dos REIS. História da vida familiar e afetiva de escravos na Bahia do
século XIX. Op. Cit., p.92-94.
70
1 ano e outro de 3 meses. O interessante é que a senhora branca é declarada como sendo agre-
gada de Maria Joaquina. Aventamos a hipótese de que talvez os pais, ou mesmo a própria D.
Senhorinha tivesse concedido a alforria à crioula Maria, mediante a condição desta continuar
cuidando de D. Senhorinha e de seus filhos. Notamos ainda que o auxílio de Maria crioula era
mesmo fundamental, pois sua provável ex-senhora, ademais, era mãe solteira
215
.
Como foi dito acima, os libertos frequentemente desempenhavam as mesmas funções
dos escravos. Dentre as profissões, a de ganhador era mais comum entre escravos e libertos.
Dentre os 18 ganhadores encontrados em 1855, apenas quatro eram livres. Essa atividade
permitia uma mobilidade muito grande, principalmente ao africano, e, em razão disso, foi
motivo de várias incursões de controle por parte do governo. Em 1857 houve uma greve dos
trabalhadores de ganho, que paralisou a cidade durante uma semana. A capacidade de mobili-
zação e resistência deste movimento confirmou a suspeita das autoridades sobre a periculosi-
dade dos africanos
216
.
No censo de 1855, poucas são as profissões especificadas, especialmente as que se
referem à mulher. Das 522 mulheres contadas, apenas 89 tem seu ofício descrito, sendo 41 na
população livre. Entre os homens, num total de 205, 161 são livres e o restante é dividido en-
tre liberto e escravo. As profissões de maior evidência na população branca são os negócios e
os serviços públicos. Na população de cor livre, encontramos um grande contingente de alfai-
ates e costureiras. Entre os libertos, homens e mulheres, muitos se dedicavam ao ganho. E,
finalmente, na população escrava, homens e mulheres se dedicavam ao serviço de casa
217
.
Os estrangeiros dominavam o comércio da nesse período; eram eles que, segundo
dados do recenseador do quarteirão 20, possuíam as maiores rendas. O citado italiano Sal-
vatore Centaloni, de profissão sapateiro, era detentor da maior renda dentre os que viviam do
comércio: 1000$000. Outro estrangeiro, detentor de razoável renda, foi o senhor Le Roy,
francês, ourives, 51 anos, solteiro e morador da rua direita do palácio, com renda de 600$00.
O negociante português Estevão Brochado era o mais jovem. Com 36 anos e igualmente sol-
215
Recenseamento de 1855, maço 1602-APB.
216
Para compreender melhor esse fato, ler João José REIS. A Greve negra de 1857 na Bahia. Op. Cit. A fiscali-
zação aumentou após a levante dos Malês em 1835, mas, antes desse período, a administração pública vinha
tentando implementar normas de controle, promovendo uma verdadeira cassada, principalmente aos africanos.
Para Reis “o preconceito contra o africano, e não com o escravo, era generalizado. “Não era repulsa de cor,
nem de classe, mas étnica”. Essa greve ocorreu em 1857 entre os ganhadores de Salvador, devido à lei n. 14, que
tinha o objetivo de regulamentar e disciplinar o mercado de trabalho africano em Salvador. A greve e acabou
após uma semana de paralisação. Houve a concessão de alguns direitos pelo presidente da província (a exemplo
do fim do pagamento da taxa). Conservaram-se a chapa e os fiadores para os libertos.
217
Recenseamento de 1855, maço 1602-APB.
71
teiro, possuía renda igual à de Le Roy. Brochado morava com 6 pretos, 4 escravos nagôs de
serviço de casa e 2 livres declarados como agregados
218
.
A maior renda declarada na Freguesia foi, entretanto, a de um funcionário público, o
desembargador mineiro, de 58 anos, Francisco Paulo M. de Barros, casado a mulher não
aparece recenseada declarante de 3000$000. Vale notar que a renda do desembargador era
maior do que a de José Maurício Wanderley, então presidente da província, declarante de
2400$000
219
.
Muitos moradores da freguesia eram empregados públicos. Os que ocupavam cargos
nas repartições públicas e militares, em sua maioria, eram brancos como João Pinto da Silva,
40 anos, branco, escrivão, que residia no quarteirão 22 com o filho Salustiano P. da Silva,
branco, 17 anos. Ou ainda como o militar, o 1º. Tenente da marinha, Manoel Ernesto França,
branco de 27 anos, casado com D. Luiza França, de 21, que possuíam uma escrava de serviço
de casa e uma agregada parda de 12 anos de prenome Juliana. Os mestiços, entretanto, não
estavam completamente excluídos do serviço público como demonstra a posição do pardo
escrevente Epifânio Francisco Ramos, 35 anos que parecia ser arrimo de família, morando
com a mãe, D. Maria Luiza, e mais seis irmãos, três meninos e três meninas
220
.
Encontramos com freqüência, nesse censo, pessoas sem profissão declarada com es-
cravos em casa, inclusive entre a população de cor, ou seja, ter escravo não era privilégio ape-
nas dos brancos. Verícima Maria de São José, crioula, solteira, costureira, com quatro escra-
vos em casa sem especificação de profissão; Joaquina Maria dos Prazeres, parda, solteira com
um filho de 4 anos e três escravos, dois pretos nagô e um preto da Bahia, com especificação
de serviços de casa. Salvador Gervásio de Almeida, barbeiro, preto nagô solteiro, com dois
escravos também pretos nagô e um da Bahia, que ele declarou ser de serviço de casa. Parece-
me que, no caso das pessoas sem profissão, seus escravos se constituíam na verdade em fonte
de renda. Certamente eram alugados ou faziam serviço na rua para seu dono. Em numerosos
casos, a posse ou uso de escravos é o único meio com que os livres e libertos contavam para a
sua subsistência; adquiriam escravos, “e mand[ava]-os trabalhar em diferentes afazeres”
221
.
A idade dos moradores da variava de um mês a noventa anos, sendo as mulheres
maioria na faixa etária dos 16 aos 70 anos (39,82%). Havia, na faixa etária de 40 a 55 anos
218
Ibid.
219
Para exemplificar o que significava esse salário, fiz uma analogia ao valor do bem mais importante da socieda-
de da época, o escravo. em 1856, um homem com ofício e sem doença valia a quantia de 800$000
219
, ou seja, com
o salário mensal do presidente, era possível comprar três escravos a cada mês. Maria José ANDRADE. Op. Cit.,
p.213.
220
Recenseamento de 1855, mo 1602-APB.
221
James WETERELL. Op. Cit., p. 29.
72
(11,8%), um expressivo número de pessoas (Tabela 5), o que é surpreendente para esse perío-
do, devido, às mortes pelas más condições de higiene, endemias, epidemias, trabalhos pesados
e estafantes, escassez de alimentação e revoltas
222
.
Em 1855 a grande epidemia de cólera. Para Reis, fora as pessoas que morreram da e-
pidemia de cólera em 1855, o normal era morrer de endemias que, na maioria das vezes, não
eram diagnosticadas e eram especificadas nos documentos como ataque do peito, de repente,
moléstia interna, febre maligna e tísica do peito. Essas doenças matavam os jovens e princi-
palmente as crianças. Em 1836, mais de 32% dos que faleciam não completavam os onze anos
de idade; poucos morriam velhos, apenas 17% atingiam os sessenta anos, menos da metade
alcançava os 31 anos, e 65% morriam antes de completar os 41 anos
223
.
TABELA 5
POPULAÇÃO POR SEXO E FAIXA ETÁRIA
IDADE MASCULINO % FEMININO % TOTAL
0 a 7 anos 59 6,5 78 8,6 137
8 a 15 anos 79 8,7 70 7,7 149
16 a 25 anos 61 6,7 101 11,2 162
26 a 40 anos 98 10,9 168 18,7 266
41 a 70 anos 67 7,4 89 9,9 156
71 a 90 anos 5 0,5 7 0,7 12
ileg. 2 0,2 2 0,2 4
S/E 5 0,5 7 0,7 12
TOTAL 376 41,87% 522 58,13% 898
Fonte: Recenseamento de 1855. Freguesia da Sé (quarteirões, 20, 21, 22, 23), maço 1602 - APB.
O tipo de agregão estabelecido neste censo é um ponto interessante que gostaria de tra-
tar. A coabitação de famílias é um dado que surge com muitos exemplos. Um deles é o de Ger-
mano Barreto, 65 anos, casado, branco, escrivão com dois filhos (um de 23 anos, caixeiro e outro
de 18 anos, estudante), em cuja casa também morava Antonio Mattos José de Sousa, casado, 51
anos, guarda de alfândega. Antonio possuía uma família maior que a de Germano, com mulher, 5
filhos com idade entre um mês e 11 anos idade, e, além dele, moravam mais duas agregadas par-
das, livres, Rita Maria de Santa Anna e Vivência Ferreira de Jesus, ambas sem profissão especifi-
cada
224
. O curioso da situação é que a agregação pressupõe situação de ajuda. No caso exposto,
assim como em outros encontrados, isso parece não ocorrer, já que os dois senhores parecem ter a
222
Recenseamento de 1855, maço 1602.
223
Id. Ibid.
224
Recenseamento de 1855, maço 1602.
73
mesma situação financeira. Sendo assim cabe a pergunta: Que tipo de agregão foi esse? Infe-
lizmente não há subsídios para responder, ficando, portanto, a indagação.
Encontramos também casas habitadas por escravos, provavelmente de ganho, que ti-
nham permissão para morar fora da residência dos senhores. A divisão da moradia tinha como
objetivo a economia, mas, também é provável, interesses étnicos e profissionais e até políti-
cos. Para Reis “muitos escravos faziam da casa uma frente de batalha cotidiana, uma resistên-
cia alternativa ou complementar à revolta aberta”
225
. No quarteirão 23, na loja da casa 3, vivi-
am 5 pretos, 3 libertos, um canteiro, dois ganhadores e 2 crianças livres. Na mesma casa, em
outra loja, moravam 2 libertos, um marceneiro e outro ganhador, 3 escravos de ganho e 5 cri-
anças livres, todos pretos, alguns africanos e outros baianos. O próximo ponto a ser tratado se
refere às famílias.
2.3 DEMOGRAFIA FAMILIAR DA SÉ MULHERES CHEFE DE FAMÍLIA
A família legítima foi encontrada entre os segmentos livres da população recenseada,
principalmente entre os brancos, sendo a família natural mais comum. A solteirice predomi-
nou na Bahia, e as mulheres chefes
226
de família foi uma realidade na sociedade baiana, prin-
cipalmente as mães solteiras. A partir de agora, farei uma análise da família no censo de 1855,
levando em consideração a família ilegítima ou natural, mas dando especial atenção àquelas
que tinham como chefe de domicílio a mulher africana, crioula e parda, ou seja, negras e mes-
tiças viúvas ou solteiras.
Marcílio redefiniu o estudo da clássica família, incluindo os pais e mães solteiros e
acrescentando a noção de família a de domicílio
227
, além de retomar a denominação de fogos
dos antigos censos. Para Marcílio, três tipos de domicílio: com um chefe de família; com
vários chefes de família; e aqueles sem chefe de família. Tomarei a classificação de Marcílio,
225
Na documentação do levante dos Malês percebe-se que a revolta foi arquitetada nas reuniões realizadas nas
residências dos africanos. REIS. A rebelião escrava no Brasil: Op. Cit., p.383-385; e
Inês Cortês de OLIVEIRA.
Op. Cit., p. 189-191.
226
Este termo foi utilizado por MARCÍLIO. A cidade de São Paulo. Op. Cit.; MATTOSO. Família e sociedade
na Bahia do século XIX. Op. Cit.. O chefe de família é o homem ou a mulher, casado ou solteiro, responsável
pela manutenção do domicílio. Neste caso específico, este termo está sendo utilizado para as mulheres responsá-
veis por prover o lar. Marcílio, para analisar as listas nominativas, estendeu o termo para chefe de domicílio,
com o intuito de contemplar os domicílios com mais uma família. DEL NERO. Op. Cit., seguindo o mesmo
raciocínio, usou o termo chefe da casa.
227
Nessa ela acrescenta todos os membros que vivem dentro do mesmo teto com ou sem chefe. Kátia de Queirós
MATTOSO. Família e sociedade. Op. Cit., p. 64.
74
menos como modelo e mais como referência às diversas possibilidades de arranjos familiares,
acreditando que referenciais mais elásticos permitiram melhor visibilidade da família de cor
na Bahia do século XIX
228
.
Na Freguesia da Sé, encontrei agrupamentos familiares que podem ser classificados
como: família legítima; família ilegítima; além de núcleos formados por viúvos(as) sós com
escravos e/ou agregados; viúvos(as) com filhos, com escravos e/ou agregados; mãe e pai sol-
teiro com escravos ou agregados; remanescente de famílias; pessoas unidas pela profissão
pela etnia e/ou condição jurídica, vivendo juntas em casas alugadas.
A família legítima é aquela cujo núcleo familiar é composto por um homem e uma
mulher que receberam da igreja a bênção pela união, e possuem todos os direitos e deveres
estabelecidos pela legislação. Já a família ilegítima ou natural supõe-se ser formada pelo con-
sentimento mútuo dos parceiros sem os ritos sagrados da igreja ou validade jurídica. Encon-
trar essa família no censo não é tarefa fácil, pois os casais geralmente não declaram publica-
mente a união. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia condenam este tipo
de relação, tornando-a pecaminosa e escandalosa
229
. Apesar de ser uma prática rotineira e
tolerada pela sociedade inclusive com a legislação permitindo o reconhecimento dos filhos
naturais pelos pais, com direitos e deveres iguais aos dos filhos legítimos e legitimados , a
condenação moral do concubinato sugeria sua ocultação
230.
A análise relacionada à família natural foi feita levando em consideração moradias
habitadas por um casal adulto, ainda que não houvesse qualquer declaração de parceria, além
da menção a filhos reconhecidos, por qualquer uma das partes. É comum a ocorrência de mu-
lheres na condição de agregada em moradias onde parece coabitar uma família nuclear. Ve-
jamos o exemplo do morador do quarteirão 22, José Alberto, escrivão, 40 anos, branco. Se-
gundo o censo, na residência do escrivão também morava sua agregada, D. Leopoldina dos
Santos, mulher parda, mãe de quatro filhos, especificados como dela
231
. Quem seria o pai dos
filhos? Encontrei mais 20 situações como essa.
Com relação aos agrupamentos familiares encontrados no censo de 1855, localizei 38
228
Marcílio, ao fazer essa classificação, não inclui os escravos, por isso utilizarei também como referência Iraci
Del Nero, que os incluiu em sua análise. REIS. Op. Cit., cap. 1, se apropriou do termo família negra, por nessa
se incluírem tantos os parentes consanguíneos e os adquiridos pelos laços de solidariedade e religião.
229
Para aprofundamento deste assunto, ver: Constituições primeira do Arcebispado da Bahia/ feitas e ordena-
das pelo ilustríssimo e reverendíssimo D. Sebastião Monteiro da Vide. Op. Cit.; e Fernando TORRES-
LONDOÑO. Op. Cit., p. 23.
230
Para aprofundar a discussão sobre a legislação brasileira de família, ver Kátia de Queirós MATTOSO. Famí-
lia e sociedade na Bahia do século XIX. Op. Cit., Cap. 2, p.37- 61; Código Filipino ou Ordenações e Leis de
Portugal - recopilados por mandado Del Rey D.Philippe I. Livro quinto. Op. Cit.
231
Recenseamento de 1855, maço 1602.
75
famílias legítimas, 21 famílias naturais, 33 mulheres solteiras com filhos, 16 homens solteiros
com filhos, 6 remanentes de família, além de 15 pessoas morando juntas, sem qualquer men-
ção ou indicação de laços de parentesco. Os solteiros sem filhos contabilizaram 85, num total
de 134 solteiros chefes de família
232
. Parece que uma característica da sociedade soteropolita-
na era a solteirice.
Os remanentes de família são aqueles que não possuem um núcleo familiar com-
pleto, mas continuam unidos pelos laços de parentesco entre os que restam, como no caso de
irmãs ou irmãos que vivem juntos, etc.
233
.
TABELA 6
CHEFES DE FAMÍLIA
CASADO
VIÚVO
SOLTEIRO
Total
%
MULHERES
-
38
73
111
50,2
HOMENS
38
11
61
110
49,8
Total
38
49
134
221
100,0
Fonte: Recenseamento de 1855. Freguesia da Sé (quarteirões, 20, 21, 22, 23), maço 1602 - APB.
Do total de 221 famílias, havia 38 homens casados, sendo que, de quatro deles, as es-
posas não aparecem na lista assim denominadas. Salvatore Centaloni mora com dois filhos e
uma agregada branca de 25 anos, por suposição, mãe das crianças, conforme assinalado anteri-
ormente; o desembargador Francisco Paulo M. de Barros mora sozinho; o pardo José Joaquim
Mendonça se diz casado, mora com Rita de Jesus, branca, livre, declara ter três filhos, todos da
sua cor; e o último, Manoel Cardoso, crioulo livre, mora com Rita Maria da Conceição, liberta.
Ele declara ter dois filhos, um pardo e outro crioulo
234
. Os dois últimos casos parecem indicar a
existência de famílias naturais, ou ainda o casamento desses homens com outras mulheres, sen-
do a atual parceira concubina. A ocultação do concubinato é, entretanto, evidenciada na decla-
ração do homem como casado e da mulher como solteira, em razão do já exposto acima.
Há, ainda, entre os 38 homens casados, dois que não são chefes de domicílio, um que
reside com do pai, o desembargador José Emigdio dos Santos Tourinho, e outro, supostamen-
te agregado de Germano Barreto, sem especificação de parentesco
235
. Eles constituem uma
família secundária dentro da família principal; seguindo a classificação de Marcílio, seriam
chefes de família, mas não de domicílio.
232
Ibid.
233
Ver DEL NERO. Op. Cit. Nesse trabalho, o autor classifica a família em independentes (família do chefe da
casa, família dos filhos do chefe da casa, e família de parentes do chefe da casa); dependentes (agregados); de
escravos ;ce pseudo família (viúvos(as) solitárias, viúvos(as) morando com filhos que formaram família, e
viúvos(as) dependentes, ou escravos que não constituem uma família).
234
Recenseamento 1855, maço: 1602.
235
Ibid.
76
Entre as mulheres, havia situação semelhante, pois quatro mulheres declararam serem
casadas, mas não aparecem os nomes dos maridos; dois casos são de mulheres que moram juntas.
D. Romana do Coração de Jesus, 40 anos, aparece como chefe de família, branca, livre; Carolina
Maria Monteiro, 21 anos, branca; D. Anna Francisca de Jesus, de 35 anos e de cor branca também
é citada como chefe de família, morando com um escravo e duas agregadas brancas, uma de 34 e
outra de 11 anos; e a quarta é Inocência do Amor Divino, cabra de 21 anos, livre, mora com uma
crioula de 53 anos, livre, e mais quatro pessoas, todas de cor e livres
236
.
O total de homens viúvos o 11, sendo 9 chefes de falia e 2 agregados. Das 38 mu-
lheres viúvas, 23 assumiam a chefia da casa, sete residem com pessoas sem especificar parentes-
co; quatro viúvas moravam com os filhos, duas moravam com os pais, uma residia com a mãe,
que tamm é vva, e outra com a ir. Dentre elas, uma aparece com filho e 9 sem filhos
237
.
Havia entre os recenseados uma família com um filho legitimado. O pai, Antonio Ro-
drigo de Carvalho Sequeira, era advogado, branco de 42 anos, casado com Joana Fábia Navarro
de Sequeira, de 28 anos. Com Antonio Sequeira, ela teve três filhos legítimos, de 4, 3 e 1 ano,
declarando ainda um filho legitimado, o estudante Rodrigo Navarro de Sequeira de 21 anos
238
.
Levando em consideração as famílias legítimas e ilegítimas, as brancas em geral pro-
criaram mais. Isso certamente em função das condições econômicas e sociais mais propícias
que as das pessoas de cor.
Depois dos brancos, os pardos tiveram mais filhos inclusive encontrei uma família
parda com 7 filhos. Famílias tão numerosas era ocorrência rara; o censo revela apenas três
famílias com sete filhos, sendo as outras duas brancas. Em média, a população desse censo
tinha 1.33 filhos por família, incluindo os domicílios com mais uma de família, um índice de
reprodução baixo, mas condizente com trabalhos recentes sobre família
239
. A média de fecun-
didade das mulheres chefes de família foi mais baixa, de 1,24%, enquanto a dos homens era
de 0,7%
240
(Tabela 7).
TABELA 7
TOTAL DE CHEFE DE FAMÍLIA COM FILHO
FEMININO MASCULINO
CASADO VIÚVO SOLTEIRO CASADO VIÚVO SOLTEIRO
- 15 33 30 6 16
Fonte: Recenseamento de 1855. Freguesia da Sé (quarteirões, 20, 21, 22, 23), maço 1602 - APB.
236
Ibid.
237
Ibid.
238
Ibid.
239
Para aprofundar, ver Kátia de Queirós MATTOSO. Família e sociedade na Bahia do século XIX. Op. Cit.;
Stuart SCHWARTZ. Op. Cit.; Eni de Mesquita SAMARA. Op. Cit.; Robert SLENES. Op. Cit..
240
Recenseamento de 1855, maço 1602.
77
O percentual de fecundidade por cor do chefe de família, incluindo solteiros viúvos e
casados era: brancos 1,97%; pardos 1,77%; crioula 1,9%; cabra 2,2%, pretos 0,0 % e africa-
nos 0,1%. Os libertos chefes de família foram apenas 8, sendo 7 africanos e 1 crioulo. Esses
números podem expressar dificuldade de encontrar uma companheira na mesma condição ou
preconceitos no relacionamento amoroso
241
. Identifiquei apenas três famílias naturais, chefia-
das por homem branco e mulher parda e outra com homem português e mulher crioula com
concubina negra ou mestiça. A indicação de uma família legítima chefiada por um pardo ca-
sado com mulher branca também foi singular. Da mesma forma, os casamentos entre pardos e
negros aparecem como raros. No tocante aos casamentos entre pessoas de cor, encontrei ape-
nas um homem pardo coabitando com uma crioula, um outro pardo com uma preta crioula
ou africana e um crioulo com mulher angolana
242
.
TABELA 8
TOTAL DE FILHO POR COR DOS PAIS
FILHOS BRANCO CRIOULO PARDO PRETO CABRA ÁFRICA
0 44 7 29 5 6 8
1 15 3 12 - 2 1
2 13 2 10 - 3 -
3 7 4 4 - 1 -
4 7 - 5 - - -
5 3 - 1 - - -
6 4 1 1 - 1 -
7 2 - 1 - - -
Total 95 17 63 5 13 9
Fonte: Recenseamento de 1855. Freguesia da Sé (quarteirões, 20, 21, 22, 23), maço 1602 - APB.
Mattoso nos conta que o branqueamento dos baianos era feito pelas mulheres, pois o
negro lembrava a escravidão
243
. As uniões livres reúnem preferencialmente parceiros da
mesma cor. Às mulheres repugnam homens de cor mais escura que a sua; elas desejam filhos
de cor a mais clara possível, com a intenção de que estes ascendam socialmente
244
.Mattoso,
trabalhando com inventário no período de 1851-1860, identificou 1.759 escravos inventaria-
241
MATTOSO. Família e sociedade na Bahia do século XIX. Op. Cit., p.104; OLIVEIRA. Op. Cit.
242
Recenseamento de 1855, maço 1602.
243
MATTOSO. Família e sociedade. Op. Cit., p.98.
244
MATTOSO. Op. Cit., p.98; SCHWARTZ. Op. Cit., Cap.14.
78
dos, entre as 776 mulheres, encontrou 109 (14%) mães solteiras com filhos, em sua maioria,
da mesma cor da mãe, apenas 30% das crioulas teve filhos de cor mais clara que a mãe
245
.
Para Castro, a utilização do termo pardo não era apenas uma referência à cor da pele
mais clara, mas uma diferenciação social na condição do não-branco. Significava a possibili-
dade de inserção social, pois se encontrava no meio-termo entre branco e negro, por isso “to-
do escravo descendente de homem livre (branco) tornava-se pardo”. “A cor da pele tendia a
ser por si um primeiro signo de status e condição social”
246
. Segundo oliveira “para além
da questão cultural operava também o elemento cor”
247
. A indicação da cor remetia a lugar
socialmente preestabelecido na sociedade brasileira.
No censo, encontrei situação que bem ilustra essa preferência. No quarteirão 20 ha-
via uma mulher parda e um homem branco sem filhos; no mesmo quarteirão, encontrei mais
dois casais de pardos, com filhos da mesma cor dos pais; no quarteirão 22, Rita Isidéria Costa
Lima, crioula, vivia com o português Plácido Costa, e com ele tinha três filhos pardos. Na
população de cor, normalmente os filhos ou tinham a cor da mãe ou eram qualificados como
mais claros, como no caso de Lucina Maria do Amor Divino, crioula com três filhos pardos
de 19, 18 e 11 anos
248
.
Do total das mães solteiras com filhos, havia 13 mulheres brancas, 13 pardas, 4 cri-
oulas, 3 cabras e apenas uma africana. Existiam ainda 40 mulheres chefes de família sem fi-
lho, 12 brancas, 13 pardas, 5 crioulas, 2 cabra, 4 pretas e 3 africanas. Com relação à condição
jurídica, três eram libertas, sendo duas africanas uma especificada como da Costa D‟África
e a outra sem especificação de local de origem uma crioula baiana e as outras 70 livres
249
.
O impressionante dessa situação é a quantidade de mulheres brancas com filho e sem posses.
A legislação era muda com relação a essas mulheres; não impediam o casamento.
Segundo Samara, eram “bem aceitas para o matrimônio as mulheres com filhos ilegítimos ou
indivíduos de origem obscura”. Tal fato, entretanto, ocorria com maior freqüência entre as
camadas mais pobres da população
250
.
As mulheres assumiam a responsabilidade familiar mais cedo que os homens, nor-
malmente entre os 19 e 40 anos; os homens casavam mais velhos, entre 23 e 50 anos. As duas
mulheres brancas casadas, com idade entre os 31 e 40 anos, não tiveram filhos, talvez porque
245
MATTOSO. Op. Cit., p.112.
246
Hebe Maria Mattos de CASTRO. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista -
Brasil séc. XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. p. 34-35; Jocélio T. dos SANTOS. Op. Cit., p.115-137.
247
OLIVEIRA. Op. Cit., p.69.
248
Recenseamento1855,maço 1602.
249
Recenseamento de 1855, maço 1602.
250
SAMARA. As mulheres, o poder e a família. Op. Cit., p. 66 e 132.
79
casaram em idade avançada, o que não lhes permitiu procriar. Isso também pode ser meia
verdade, pois encontrei uma mulher parda, solteira de 70 anos, com 7 filhos de 50 a 5 anos de
idade, uma situação no mínimo estranha para o período, que o último filho nasceu quando
ela tinha 65 anos de idade
251
.
TABELA 9
IDADE DOS CHEFES DE FAMÍLIA
IDADE FEMININO MASCULINO
C S V C S V
19 A 22 ANOS - 6 - - - -
23 A 30 ANOS - 24 1 5 14 1
31 A 40 ANOS 2 30 7 7 19 5
41 A 50 ANOS - 5 7 12 14 1
51 A 60 ANOS - 7 7 7 7 1
61 A 80 ANOS - 2 1 5 4 1.
TOTAL 2 73 23 38 60 9
ILEG 1
Fonte: Recenseamento de 1855. Freguesia da Sé (quarteirões, 20, 21, 22, 23), maço 1602 - APB.
As mulheres chefes de família, em sua maioria, eram da Bahia 88,7%, possivelmente
de Salvador. 5,10 % vieram de Itaparica, Nazareth e Cachoeira; 4,08% da África e 2,04% da
Itália e França (Tabela 10). As da Bahia eram certamente pessoas que nasceram e cresceram
pelas ruas da cidade, fazendo parte de uma segunda ou terceira geração da família e, prova-
velmente, seguindo os mesmos passos da mãe, como era comum no período, as filhas de mu-
lheres que chefiavam família também serem chefes, principalmente no caso das mães solteiras
“ser mãe solteira era, um exemplo a ser repetido pela filha”
252
.
TABELA 10
NATURALIDADE DAS MULHERES CHEFE DE FAMÍLIA
LOCAL QUANT. LOCAL QUANT.
BAHIA 87 NAZARETH 1
CACHOEIRA 1 FRANÇA 1
ITAPARICA 1 ITÁLIA 1
STO. AMARO 1 ÁFRICA 4
Fonte: Recenseamento de 1855. Freguesia da Sé (quarteirões, 20, 21, 22, 23), maço 1602 - APB.
251
Recenseamento de 1855, maço 1602.
252
NASCIMENTO. Op. Cit., p 131; SAMARA. Op. Cit., Parte I.
80
Como foi dito, no computo geral poucas mulheres apareceram com profissão. Co-
mo demonstra a Tabela 11, abaixo, houve predominância do serviço doméstico. As criadas
eram todas livres, e as especificadas como de todo serviço e serviço de casa, escravas brasilei-
ras e africanas
253
por vezes também faziam serviço de ganho para seus senhores(as), como
também eram alugadas. As atividades domésticas representavam 59,5% das ocupações decla-
radas
254
. Para as empregadas nos serviços domésticos, transformarem-se em ganhadeiras ou
vendedeiras significava elevação do status social
255
.
Com as mulheres chefes de família não foi diferente. Apenas 7 profissões aparece-
ram no censo: costureira, engomadeira, ganho, negócio, quitandeira. Esse assunto será apro-
fundado no próximo capítulo
256
. Foram especificadas também 4 viúvas brancas que viviam de
“seus bens”. Certamente as outras 75 mulheres tinham algum tipo de ocupação, mas, infeliz-
mente para nossa análise, não ficou qualquer registro.
TABELA 11
PROFISSÕES FEMININAS
Branca Parda Preta Crioula Cabra África Total
Costura 2 7 2 2 - - 13
Ama de leite 1 1
Criada 3 3
Engomadeira - 2 2
Ganho 8 8
Lavadeira 1 1 2
Negócio 1 1 2
Serv. De casa 10 11 21
Todo serviço 10 7 17
Total 69
Fonte: Recenseamento de 1855. Freguesia da Sé (quarteirões, 20, 21, 22, 23), maço 1602 - APB.
253
Recenseamento 1855, maço1602.
254
Esse dado está em consonância com as informações ANDRADE. Op. Cit., p.132. Neste as atividades dos-
ticas representaram 585 dos casos estudados.
255
Hildegardes VIANNA. Op. Cit., p.149 apud Alberto Heráclito Ferreira Filho. Quem pariu e bateu, que balan-
ce! Op. Cit., p.50.
256
Recenseamento de 1855, maço 1602. As quitandeiras aqui especificadas pareciam ter comércio fixo, não
eram ambulantes. Isso também segundo Pantoja era uma tradição em Luanda. As quitandeiras além de frutas,
verduras, farinha, feijão, peixe e carne vendiam os produtos da terra. Desde o século XVII as fontes fazem refe-
rência a quitandeiras como parte do cenário das ruas de centros urbanos, como Rio de Janeiro, Salvador e São
Paulo. Selma PANTOJA. Quitandas e quitandeiras: histórias e deslocamento na lógica do espaço em Luanda. A
África e a instalação do sistema colonial, 1885-1930, p.178-181.
81
Dentre as solteiras, havia 16 mulheres com agregados e 13 com escravos; destas, cin-
co eram mulheres de cor. Na casa 25 do quarteirão 20 morava uma mulher parda, Joaquina
Maria dos Prazeres, com um filho e três escravas de 20, 4 e 3 anos, todas de serviço de casa.
Também no quarteirão 23 morava uma cabra livre, Eugenia Maria, vivendo de costura, com
duas crianças libertas de 6 e 3 anos, pardas, e uma escrava preta para “todo serviço”; certa-
mente a escrava ajudava no serviço de costura como também poderia vender na rua
257
. Fiquei
instigada para saber quem seria a mãe das crianças a mulher livre ou da escrava como são
libertas, acredito que os filhos eram da escrava.
Figura 2: Uma criada. Cartão postal. Fotografia
de Rodolpho Lindemann, Bahia,c.1890.
Coleção particular de monsenhor Jamil Nassif Abib.
Para Nascimento, ainda estaria por ser feito um estudo que incluísse, entre as mães,
solteiras com filho e as escravas
258
; no entanto isso não é fácil, pois os filhos da escrava não
pertenciam à mãe e sim ao seu dono, podendo ser o pai e libertá-lo em testamento ou na pia
batismal. Em nenhum fogo encontrei escravas com filho declarado. Na tentativa de encontrá-
los no censo, fiz a seguinte conjetura: nos fogos com escravas e crianças libertas ou escrava
menor, imaginei que pudessem ser filhos da cativa. Sendo assim, encontrei 20 escravas com
filhos, 11 com 1 filho, 4 com 2 filhos, 3 com 4 filhos e 1 uma com 4 filhos
259
.
257
Recenseamento de 1855, maço: 1602.
258
NASCIMENTO. Op. Cit., p. 57.
259
Recenseamento 1855, maço 1602.
82
A outra categoria de chefe de família é formada por viúvas entendidas como rema-
nescentes da família legítima. Essas viúvas frequentemente não contraíam novo casamento
devido às legislação de 1769 do Rei D. João, que estabeleceu que o sobrevivente que quisesse
contrair novas núpcias deveria fazer o inventário para que assim os herdeiros não fossem pre-
judicados, com a dilapidação ou usurpação dos bens pelo segundo esposo. No censo, não i-
dentifiquei nenhuma mulher e apenas um homem em segundas núpcias. No caso da viúva, ela
ainda deveria nomear um administrador honesto e que fosse proibido a tutoria. A viuvez foi
significativa no censo de 1855; isso nos faz concluir que havia um número expressivo de fa-
mílias legítimas em Salvador, pois somando os casados e viúvos existiam 87 famílias legais e
134 solteiros que chefiavam família.
As viúvas eram 38 no total, sendo 23 chefes com filho (Tabela 12), todas livres. Des-
sas, em apenas 1 apareceu a profissão de proprietária, 5 declararam viver de “seus bens”, uma
aparecera com neto, além do filho, 11 apareceram com agregadas. Doze eram proprietárias de
escravos; dentre as de cor apenas uma cabra e uma crioula. A cabra Joana Marques de Lemos
55 anos, além de uma escrava da Costa d‟África, residia com um agregado branco de 25 anos
sem profissão. As outras 15 viviam em agregação, uma da irmã, quatro de filhas, uma da mãe,
duas dos pais e as outra sem nenhum parentesco
260
.
TABELA 12
VIÚVAS POR COR E QUANTIDADE DE FILHOS
FILHOS BRANCA CABRA CRIOULA PARDA TOTAL
0 6 1 - 1 8
1 4 - - 1 5
2 2 - - - 2
3 1 - 1 - 2
4 2 - - - 2
5 1 - - - 1
6 1 - 1 - 2
7 1 - - - 1
TOTAL 18 1 2 2 23
Fonte: Recenseamento de 1855. Freguesia da Sé (quarteirões, 20, 21, 22, 23), maço 1602 - APB.
Com base nesse censo, foi possível saber um pouco do perfil das mulheres chefes de
família em Salvador, como idade, quantidade de filhos, algumas profissões, naturalidade,
condição jurídica. Mas muitas perguntas ficaram por responder, pois infelizmente uma análise
quantitativa não nos permitiu muitas respostas por exemplo, as profissões apareceram em
apenas 23 casos, cabendo questionar: as outras viviam de quê? Como era o cotidiano delas? E
os filhos, o que representavam para elas numa sociedade que tanto evocava a maternidade?
260
Id. Ibid.
83
Talvez até a sua função seja exatamente deixar indagações que provocarão ainda mais o faro
investigativo dos historiadores, curiosos profissionais” da vida alheia. Tentarei responder
algumas dessas perguntas no próximo capítulo por meio de outras fontes.
84
3 MULHERES: CHEFIA DE FAMÍLIA, MATERNIDADE, AFETIVIDADES
Este capítulo tem como objetivo levantar algumas questões relacionadas às mulheres
escravas, libertas e livres, bem como o papel desempenhado por elas na chefia da falia,
maternidade, afetividades e conflitos na Freguesia da Sé.
3.1 MULHER E CHEFIA DE FAMÍLIA
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia nasceram da necessidade de
adequação das leis de Portugal à diversidade do Brasil, assim como para coibir abusos come-
tidos na colônia. Foram organizadas em cinco livros que regiam as práticas religiosas e até
questões internas da jurisprudência eclesiástica
261
.
Para essa legislação, o casamento era “o último sacramento dos sete instituídos por
Cristo nosso senhor. E sendo em princípio um contrato com vínculo perpétuo e indissolúvel,
pelo homem e a mulher”. Para Londoño, o casamento se generalizou e até tornou-se comum
com o crescimento da colonização e a formação de famílias de proprietários de terra e índios.
Ele foi incentivado pelos primeiros governadores gerais, que reclamavam a vinda de órfãs e
portuguesas honradas para a colônia, a fim de que pudessem constituir famílias. Em termos
econômicos, o casamento significava a constituição de um patrimônio, assim como a preser-
vação e transmissão desse por meio da sucessão legitima
262
.
Entretanto, o matrimônio parece não ter satisfeito plenamente os desejos pessoais de
homens e mulheres; isso, se levarmos em conta o grande número de solteiros, característica da
sociedade baiana em particular. Em 1855, esse número chegava à média de 80% da popula-
ção
263
; no entanto a solteirice pode ser vista como uma máscara de dissimulação das relações
ilegítimas. Para as mulheres, a insatisfação deveria ser ainda maior, devido à rigidez da legis-
lação com relação às adúlteras regra que não era aplicada da mesma forma para os homens,
favorecidos pelo direito civil e pela Igreja, que consagravam a autoridade do marido sobre a
261
Fernando Torres-LONDOÑO. Op. Cit., p.117-130.
262
Ibid,. p.46-49.
263
Ana Amélia NASCIMENTO. As dez freguesias da cidade do Salvador. Op. Cit., p.118.
85
mulher
264
. As relações de concubinato, também uma característica da sociedade brasileira
desde a colônia, pode ser expressiva do desejo de outras formas de união. Além da desigual-
dade numérica entre homens e mulheres, a burocracia
265
e o alto custo do casamento parecem
ter desestimulado a prática, principalmente nas camadas mais pobres da população. A solteiri-
ce pode ser vista como a não divulgação das relações ilegítimas.
Com relação à população cativa, não havia nenhum empecilho legal para que não
contraísse matrimônio, mas essa situação parece não ter sido comum. Havia um hiato entre a
lei e a prática do casamento escravo, pois o fantasma da separação das famílias rondava a todo
tempo as relações afetivas dos cativos, mesmo a igreja dizendo não poder haver, no ato da
venda, separação dos cativos casados. No entanto, a família escrava existiu e ela nem sempre
parece ter ocorrido nos moldes da família legítima; se estendia a redes de parentesco simbóli-
co, tal como o compadrio: “o negro utilizou-se dessas relações, que poderíamos denominar de
grupos de parentesco extensos (simbólicos ou rituais), a fim de articular uma rede de solidari-
edade que lhe proporcionasse maior amparo”
266
.
Reis
267
analisou 3.139 casamentos entre os anos de 1801 e 1888, sendo 884 (26,98%)
envolvendo africanos e mestiços; desses, 18 envolviam escravos, 8 homens escravos e mulhe-
res libertas, 10 homens escravos e mulheres livres, 4 mulheres escravas e homens livres e,
para os 2 restantes, não constava o estatuto jurídico das mulheres, sendo os homens escravos.
No censo de 1855, dentre as 38 famílias legítimas, 27 eram brancas, 3 crioulas e 8 pardas ,
sendo todos livres. A percepção do casamento era diferente, segundo as categorias sociais,
sendo a família legal mais comum entre os livres, brancos. Para a população de cor, casar le-
galmente significava uma espécie de ascensão social, ou talvez, ainda, uma assimilação dos
valores da cultura branca.
O casamento também pressupunha algumas obrigações, como criar os filhos e prover
sua educação, essas obrigações parecia constranger uma população em maioria muito pobre,
264
Eni de Mesquita SAMARA. As mulheres, o poder e a família. Op. Cit., p.120. Para Samara, apesar do adul-
tério ser condenado pela igreja, não eram aplicadas igualmente as mesmas sanções para homens e mulheres,
pois, para as mulheres, bastava um desvio e, para o marido, era necessário a coabitação ou a relação duradoura
para caracterizar o concubinato uma infração.
265
Cf. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Op. Cit., Títulos 62 a74; Robert SLENES. Op. Cit.,
p.95 e Stuart SCHWARTZ. Op. Cit., p.315. As limitações impostas pela igreja para se contrair o divórcio era
outro fator que levou a não-propagação do divórcio entre os africanos, pois esse tinha uma melhor aceitação em
África.
266
Sobre esse assunto, ver Kátia de Queirós MATTOSO. Família e sociedade na Bahia do século XIX. Op. Cit.,
Stuart SCHWARTZ. Op. Cit. Cap.14; Isabel Cristina Ferreira dos REIS. Histórias da vida familiar e afetiva de
escravos na Bahia do século XIX. Op. Cit.; João José REIS. A morte é uma festa Op. Cit.; Maria José
ANDRADE. Op. Cit.; Maria Inês Côrtes OLIVEIRA. Op. Cit.
267
Para Isabel Cristina Ferreira dos Reis, parece que havia também entre as escravas uma preferência pelas rela-
ções endogâmica. Cf. Op. Cit., p.3. Ver também Kátia de Queirós MATTOSO, Op. Cit., p.116.
86
além também da sujeição da mulher ao homem. O Casamento legal não correspondia à reali-
dade da população de cor em Salvador; por isso as mulheres-mães sozinhas, para criar os fi-
lhos, sem parentes consangüíneos, tiveram que criar e recriar estratégias de sobrevivência na
sociedade baiana da época
268
.
Segundo Mattoso, muitos casamentos de africanas alforriadas ocorriam numa idade
avançada, pois antes tinham que conquistar a alforria
269
, sendo o casamento uma forma de não
ficar sozinha no fim da vida, um amparo recíproco “onde cada um olha pelo outro”
270
. Na
maioria das vezes, os africanos casavam com pessoas da mesma etnia (nações). Para Oliveira
isso era uma forma de proteção, pois havia a organização em grupo; era também uma forma
de manutenção dos costumes, principalmente após o fim do tráfico, quando a Bahia não era
mais alimentada por escravos africanos e a renovação e manutenção destes costumes, se daria
apenas entre os que aqui se encontravam
271
.
Outro fato a se levar em consideração foi a mudança do olhar dos africanos com re-
lação ao casamento no período de desintegração do sistema escravista. Dos 131 testamentos
analisados por Oliveira, entre 1851-1858, e dos 71 entre 1878-1885, houve ligeira vantagem
no número dos solteiros. Para a autora, isso pode significar que a legalização do casamento
fazia parte da cultura branca, sendo dispensável para os africanos libertos, que, 33 solteiros
declararam possuir companheiras e relações duradouras
272
, sem a necessidade de legalização.
Entre os livres, Oliveira diz não ter havido uma modificação tão significativa em comparação
com os libertos.
As mulheres forras, por vezes, adquiriam bens que compartilhavam com o esposo, e
talvez por isso elas não se submetessem a eles, como deveria acontecer no casamento. A situ-
ação de Ana Maria da Silva Rosa, africana da Guiné, ilustra bem uma relação de não-sujeição
268
MATTOSOS. Op.cit.,p105.Para a autora para viver segundo os padrões impostos na sociedade baiana as
africanas exercitou solidariedades nas estruturas da família dos libertos.
269
MATTOSO. Op. Cit., p. 71.
270
OLIVEIRA. Op. Cit., p.60. Sobre esse assunto, Robert Slenes diz que os africanos trazidos para o Brasil luta-
vam para organizar suas vidas de acordo com a gramática da família-linhagem.Cf. Op. Cit., p.147.
271
Ibid., p.68.
272
Na série de 1851-1858 dos 60 testadores, 22 eram solteiros, 25 casados, 11viúvos, e 1 não declarou estado
civil. Da série de 1878-1885, dos 71 testadores, 32 eram solteiros, 26 casados, 8 viúvos, 1 era desquitado, 4 não
declararam o estado civil. Maria Inês CORTÊS. Op. Cit., p.66. Além também dos africanos não terem o senti-
mento de pertencimento aos costumes dos brancos baianos, o casamento gerava desconfortos, pois para casar
era necessário o batismo na religião católica e isso significava deixar de lado as crenças trazidas da sua terra
natal. e A indissolubilidade do casamento cristão também pode ter sido fator de rechaço pois, em algumas socie-
dades africanas, o divórcio era permitido em caso de esterilidade, feitiçaria e outros e na brasileira ficavam
infensos às limitações da indissolubilidade do matrimônio católica”. Logo casar não era algo que despertasse nos
africanos grande euforia. E, para além disso, muitos africanos conheciam formas diferentes de relações familia-
res como a poliginia, a matrilinearidade e a patrilinearidade. (Stuart SCHWARTZ. Segredos internos: engenhos
e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras,1988,p.317.
87
feminina, até porque o poder econômico não era masculino. Ana Maria casou-se com Matias
de Souza quando já tinha certa idade e, alguns anos depois, pediu o divórcio alegando que seu
esposo nada teria trazido para o casamento e gastara seus bens com uma concubina
273
.
O contrário ocorreu com Maria Julia da Motta, casada com José Faustino da Motta,
africano liberto, durante dez anos. Acusada pelo marido de desonrada e traidora, segundo vi-
zinhos do casal, tinha uma vida exemplar, sendo honrada e dedicada à família. Certo dia,
Faustino entrou em casa com uma alavanca e desfechou golpes na mulher, matando-a. Mais
uma vez, segundo os vizinhos José Faustino era doido, sequela das pancadas na cabeça desfe-
ridas pelo seu antigo senhor. O certo é que ele vinha agredindo a mulher e, talvez, por ela
não possuir a mesma situação de Ana Maria, suportou os desvarios do esposo até o dia em
que foi assassinada
274
. Em razão das relações de solidariedade estabelecidas entre o casal de
trágico fim e a madrinha de uma das crianças, a crioula Conceição, pediu para ficar com as
três filhas de Ana Maria e Faustino, que o pai havia sido internado como louco no asilo
João de Deus
275
.
Apesar da condenação da Igreja Católica, as relações ilegítimas fizeram parte do co-
tidiano da cidade do Salvador, desde a época do povoamento, quando os portugueses para
aqui vieram
276
. Esta foi uma realidade que assombrou os padres Jesuítas que vieram para a
cidade, inclusive porque tiveram notícias de sacerdotes católicos que infringiam a norma, a-
lém também dos casados que aqui viviam demonstrando não ser a falta de mulheres brancas o
real motivo de tais atitudes. Apesar de condenado pela igreja, este era um costume tolerado
pelos portugueses, pois as mancebias ou concubinatos não eram mencionados no direito ou
legislação portuguesa, sendo um pecado tolerável
277
.
Segundo as Constituições Primeiras do arcebispado da Bahia “concubinato ou
amancebamento consiste em uma ilícita conversação do homem com mulher continuada por
tempo considerável”
278
. A transgressão parecia não ocorrer caso a mulher fosse escrava, “po-
rém se a mulher emprenhasse na mesma casa, não sendo (grifo meu) escrava do dono dela, se
depois deste...? será havido concubinato for provado, serão admoestados com rigor, e conde-
nados na pena pecuniária dita”
279
. Ou seja, a legislação eclesiástica não via o concubinato
273
Inês Cortês de Oliveira. Viver e morrer entre os seus. Op. Cit., p.182.
274
Seção judiciária / autos crimes. Estante: 10 caixa: 339 doc:10.Réu: José Faustino da Motta-APB.
275
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, livro I, título LXII permitiam o divórcio em duas
situações: adultério e tratar mal ao outro que vivendo junto corra perigo de vida pode se separar.
276
Thales de AZEVEDO. Povoamento da cidade do Salvador. Op. Cit.,p.137.
277
Ibid., p.139; Johildo Lopes de ATHAYDE. Op. Cit., p. 10.
278
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Livro 5 , título XXII.
279
Ibid.
88
com a escrava como transgressão. A cativa pertencia ao senhor, assim ele poderia dispor dela
como bem entendesse.
No período colonial, o concubinato era visto como uma relação de pecado e crime,
no intuito de moralizar a prática ilícita que fora interiorizada pelas diversas camadas da po-
pulação brasileira a Igreja Católica fez emergir uma outra forma de perceber e sentir o con-
cubinato como um pecado sem perdão; introduzira a noção de escândalo “que separava as
pessoas produzindo a exclusão dos pecadores públicos, representava, como em outros mo-
mentos da história do cristianismo, um instrumento para atuar na consciência das pessoas”
280
,
fazendo a distinção entre os bons comportamentos e os maus. Certamente por isso, a popula-
ção recenseada em 1855 não assumira as relações ilegítimas, mesmo quando os indícios de-
monstravam havê-las, escondia-se assim numa curiosa relação de agregação ou declaravam-se
solteiros
281
.
Londoño, a partir da leitura de visitas eclesiásticas em Minas Gerais, no século
XVIII, decifrou três significados da palavra concubinato. Viver em concubinato ou estar a-
mancebado podia se referir aos tratos físicos entre homem e mulher sem estar casados, sendo
os encontros casuais ou permanentes; os vínculos que constituíam adultério ou prostituição; e
o terceiro se referia a situação em quer, na verdade, era constituída a família natural, ou seja, o
casal coabitava a mesma casa vivia “portas adentro”
282
.
Compreender os diferentes significados e práticas de concubinato é de suma impor-
tância por ser através dessa relação ilegítima que muitos filhos nasciam e, na maioria das ve-
zes, ficavam sobre a responsabilidade da mãe, sem aparente relação com o pai, que, a do-
cumentação estudada não permitiu percebê-lo. Alguns testamentos demonstravam a preocu-
pação desses pais “ausentes” em proteger os ilegítimos após sua morte, principalmante quan-
do bastardos
283
.
Apesar da condenação como uma relação pecaminosa e escandalosa, o concubinato
era uma prática rotineira e tolerada pela sociedade, inclusive a legislação permitia o reconhe-
cimento dos filhos naturais pelos pais, com direitos e deveres iguais aos dos filhos legítimos e
legitimados, ainda que a condenação moral do concubinato sugerisse uma ocultação
284
.
Em meados do século XIX, a situação pouco mudou, pois havia muitos casos de fi-
lhos ilegítimos, certamente fruto de relações de concubinato. Assim, no censo de 1855, pou-
280
TORRES-LONDOÑO. Op. Cit., p.17.
281
NASCIMENTO. Op. Cit., p115; Ana de Lourdes Ribeiro da COSTA. Op. Cit., p.131.
282
TORRES-LONDOÑO. Op. Cit., p.29.
283
ATHAYDE. Op. Cit., p.10. Para bastardia ver: MATTOSO.Op.Cit., cap1.
284
MATTOSO. Op. Cit., p.37-61.
89
cas foram as famílias legitimas na Freguesia da Sé, sendo 8,35% de casados e 4,68% de viú-
vos. Desse total, apenas 2,83% eram constituídos de famílias de cor, apesar dessa parte da
população ser maioria nesta freguesia
285
.
TABELA13
TOTAL DE MULHERES CHEFES DE FAMÍLIA
BRANCO CABRA CRIOULO PARDO PRETO ÀFRICA
C S V C S V C S V C S V C S V C S V
2 24 18 - 5 1 - 9 3 - 26 2 - 4 - - 5 -
Fonte: Recenseamento de 1855. Freguesia da Sé (quarteirões, 20, 21, 22, 23), maço 1602 - APB.
Pelo quadro acima, podemos perceber que a mulher chefe de família foi uma realida-
de na sociedade baiana, principalmente as mães solteiras que, segundo Nascimento, alcança-
ram em Salvador um índice de 11,07%. Desse total 29,3% eram brancas, 34,3% pardas,
15,0% crioulas, 6,4% cabras, 12,9% pretas e, 2,1% sem indicação de cor. Mas, para a autora,
esse número não corresponde à realidade, pois a pesquisa feita contabilizou apenas os dados
do censo no qual foram destacadas apenas as mulheres livres na condição de chefes de famí-
lia, ou seja, que viviam em suas próprias casas e declararam profissão e filhos legítimos ou
ilegítimos. Não foram consideradas as mães escravas que constituíam, segundo Nascimento,
uma situação real e comum
286
. Também não foram contabilizadas as agregadas que trocavam
seu serviço pelo sustento de seus filhos e pelo abrigo que lhes ofereciam as casas modestas.
Para Dias, mulheres solteiras chefes de família representaram uma realidade no Brasil desde a
colônia: “parece fenômeno peculiar à urbanização”
287
. Na época da independência, em o
Paulo, 40% dos moradores da cidade eram mulheres sós, solteiras.
Para Nascimento, havia na sociedade uma assimilação das mães solteiras à medida
que tivessem um comportamento de respeito em relação aos outros usuários do bairro, o que
Certeau nomeia como “conveniência”, e também não parece ter havido uma ocultação da ma-
ternidade pelas mulheres, à exceção das filhas da elite, em respeito aos padrões mais condi-
zentes com a moral do período. “Ser mãe solteira não constituía uma situação de imoralidade,
mas decorrente de costumes da época, da atitude patriarcal do homem, de sua situação de au-
285
NASCIMENTO. Op. Cit., p.72.
286
Ibid., p.13; Mattoso contabilizou para o mesmo período 29,96% de mulheres chefes de família. Cf. Op. Cit.,
p.99.
287
Maria Odila Leite DIAS. Op. Cit., p.20; Eni de Mesquita SAMARA. Mulheres chefes de domicílio Op. Cit.,
p.49-61. Nesse artigo, a autora análise a chefia feminina em 5 diferentes cidades em São Paulo, Minas Gerais,
Goiás, Céara e Bahia. Para São Paulo, a autora encontrou 44,3% de famílias.
90
sência no respeito que devia às suas esposas”
288
, pois ao homem era até motivo de orgulho
assumir o filho ilegítimo. A única instituição que as ignoravam era a igreja, até que se arre-
pendessem e convertessem, podendo algum dia integrar-se nos serviços religiosos e transfor-
marem-se em beatas.
Essas mulheres eram responsáveis pelo provento dos filhos. Esse fato parece ter sido
comum na Bahia, segundo Azevedo: “ficou na gente de cor brasileira o costume das criaas
órfãs de pai continuarem aos cuidados da mãe”, como também um “forte controle das mulhe-
res sobre vida familiar, característica típica das culturas africanas”, segundo o autor
289
. Para
esse autor, no Brasil colônia, por ter outras características, esta situação criou um desajuste
nas crianças. Talvez Azevedo tenha razão, mas o certo é que numa sociedade em que a ilegi-
timidade era comum, e até certo ponto normal, o modelo de família nuclear e patriarcal não
foi hegemônico, principalmente, entre as camadas populares.
A população parece ter construído diferentes formas de relacionamento conforme a
cor. Como visto acima, os africanos preferiam relacionamentos endogâmicos, essa realida-
de também foi comum entre os crioulos brasileiros de primeira geração.
No próximo tópico irei discutir a maternidade da mulher de cor.
3.2 A MATERNIDADE DA MULHER NEGRA
Foi comum no século XIX escravos de ganho habitarem fora das casas dos senhores.
Dividiam lojas com outros escravos ou moravam sozinhos. Com base na documentação traba-
lhada, foi difícil perceber a maternidade dessas mulheres, pois o fruto seguia o ventre. Nos
casos encontrados no censo de 1855, nas moradias de escravos onde havia crianças não foi
especificado qual o grau de parentesco com a cativa-mãe biológica ou será que o senhor não
permitia que o filho fosse morar fora com a mãe?
Quando ia embora, encontrei uma mulher com o filho amarrado às costas. O
pequerrucho repousava dentro dum xale enrolado, com as extremidades a-
marradas no peito da mãe. Enquanto andei, atrás dele, fixou-me, sem sinais
de medo, sabendo que o amor que o sustinha, o protegia.A mãe ainda jovem
288
Ibid., p.132-133. Para Nascimento, ser mãe solteira era considerado normal com relação às escravas, “cujas
faltas desse tipo consideravam normais, em vista da ignorância e falta de firmeza na formação moral das servas,
que acreditavam ter sido a origem desse pecado”.
289
AZEVEDO.Op.Cit.,P.205
91
andava com um passo elástico e demonstrava alegria no rosto anima-
do.Como este grupo contrastava com o da carruagem! A pompa estava lá,
mas o coração ficava aqui. Entre a homenagem mercenária dos soldados e
um amor de mãe, quem hesitaria?
290
São raros os relatos em que podemos encontrar expostas, nas cenas do cotidiano, a
maternidade e afetividade negras; mais raro ainda é a sensibilidade do viajante em pintar com
tanta clareza esse quadro. Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado um dos objeti-
vos do casamento era a procriação
291
, no entanto essa parece ter sido negada à mulher de cor e
principalmente a escrava.
Mattoso afirma nunca ter encontrado, em nenhum documento escrito, algo dito pelas
escravas sobre a maternidade: “se ela se alegrava ou entristecia de ser ou vir a ser mãe”
292
.
Acrescento também que nada encontrei sobre a afetividade da mulher escrava a não ser o que
não foi dito, mas que podemos perceber na leitura e releitura dos documentos, como bem dis-
se Oliveira sobre a falta de pistas deixadas pelos africanos libertos é “o maior vestígio era o
silêncio”
293
.
Sendo a afetividade algo subjetivo e, portanto, de difícil percepção, no caso da famí-
lia negra era ainda mais difícil percebê-la, pois os vestígios deixados são percebidos com a
leitura, nas entrelinhas, de documentos como testamentos, inventários, nos bilhetes dos expos-
tos, jornais e arquivos policiais, a maioria escritos sobre e não de próprio punho ou como ex-
pressão de seus desejos. Reis tentou reconstruir essa história, e através da sua pesquisa perce-
bemos que as mães lutavam incessantemente pela liberdade dos filhos e, em momentos de
desespero, davam cabo da vida dos rebentos, e da sua própria, para não ter que vê-los no cati-
veiro. Um caso que bem ilustra essa situação aconteceu em Santo Amaro, uma mãe fugitiva
vivia como forra em um engenho com cinco filhos quando seu verdadeiro dono a descobriu.
Para não retornar para vida de cativa, nem sujeitar suas crias a essa condição, já que eles havi-
am nascido depois da fuga da mãe, ela “manietara os filhos e os lançara a afogar no tanque e
depois se atirara também”
294
. Reis relata que eram comuns a fuga de mães com filhos, na ten-
tativa de tirá-los do cativeiro como o ocorrido com a escrava Eudoxia, africana nagô que “de-
sapareceu da casa do Padre José Dias, com suas três filhas, Margarida de 7 anos, Omissias de
4 anos e Joana de 2”. É possível que nem mesmo o padre tenha sido um senhor complacente.
290
Walter COLTON. Op. Cit., 1845, p. 74-5 apud Miriam Moreira LEITE (Org). A condição feminina no Rio
de Janeiro século XIX. Coleção de estudos históricos São Paulo/Hucitec.Ed USP/INC/FNPM, 1984, p.50.
291
Constituição Primeira do Arcebispado da Bahia, livro I, titulo LXII.
292
MATTOSO. O filho da escrava. Revista Brasileira de História. V. 8, n.16, 1988, p.81-2.
293
OLIVEIRA. Op. Cit., p.70-1.
294
Isabel Ferreira dos REIS. Op. Cit., p.77.
92
Era comum a mãe buscar diferentes formas para conseguir alforriar os filhos, através
de acordos envolvendo dinheiro, animais, ou mesmo na troca por outra escrava como o ocor-
rido com “a mãe de Maria que, em troca da sua liberdade deu uma „moleca‟ de nação na
chamada Constança”. Também lançava-se mão de empréstimos tomados com seus senhores,
como foi o caso de Joaquina da Silva, que alforriou sua filha Joanna Anastácia fazendo uso
deste mecanismo. Outro interessante episódio aconteceu com uma escrava de Anna Joaquina
dos Santos. Quando essa ainda encontrava-se grávida, pagou a quantia de cinquenta mil réis
pela liberdade de sua cria. Muito comum também era contar com a solidariedade de compa-
dres e amigos na compra de alforrias
295
.
A escravidão negou às escravas a maternidade, que o fruto do seu ventre pertencia
ao seu senhor. Essas crianças, às vezes, eram criadas e amamentadas pelas mães, mas, no
momento adequado ao senhor, poderiam ser vendidas para longe. Como também, por vezes,
os próprios senhores impediam as escravas de amamentar seus filhos, na certa para gozar de
seu aluguel como ama de leite ou, na pior das hipóteses, por mero sadismo. Num exemplar de
1888 do Asteróide apareceu a notícia de um senhor que espancou violentamente sua escrava
por estar amamentando seu filho. Parece incrível tamanha crueldade, contra uma infeliz es-
cravizada punida pelo louvável ato de amamentar sua filhinha. Além de proibir a amamenta-
ção, indícios apontam para um comportamento sádico do casal de proprietários. Na mesma
notícia diz-se que a criança, menor de oito meses, havia sido queimada pela mulher do propri-
etário da mãe “em um dos lados interior das nádegas”!
296
.
A maternidade negra negligenciada pelos senhores, e pela historiografia até pouco
tempo, suscitou debates durante as discussões do projeto da Lei do Ventre Livre. O discurso
de José Bonifácio na Assembléia Constituinte de 1848 deixou evidente a necessidade de regu-
lamentar a maternidade da escrava; a preocupação com o estado da grávida e a forma como
deveria ser tratada demonstra ter havido descaso dos senhores com o ventre de suas cativas,
como também a preocupação com a reprodução do sistema escravista que agora seria tarefa
das mulheres. “A escrava durante a prenhez, e passado o terceiro mês, não será obrigada a
serviços violentos, e aturados; no oitavo mês será ocupada em casa, depois do parto terá
um mês de convalescença; e passado este, durante um ano não trabalhará longe da cria”
297
.
295
Ibid., p.90-1.
296
Ibid., p.98.
297
Sonia Maria GIACOMINI. Op. Cit., p.33.
93
No Instituto de Advogados do Brasil (IAB)
298
, antes da promulgação da Lei do Ven-
tre Livre, no ano de 1845, Caetano Soares fez discurso em meio as discussões sobre a Lei
Aberdeen acerca do “melhoramento da sorte dos escravos”, propondo a gradual abolição da
escravidão, pois essa deveria ocorrer sem distúrbios nem prejuízo para os senhores, em nome
do interesse público e do bem-estar da nação, sendo os escravos preparados para a liberdade”.
Nesse discurso, a mulher escrava também apareceu. Para o jurisconsulto, a lei deveria ofere-
cer a liberdade às mães que conseguissem manter vivos cinco filhos ou mais até sete anos. O
interessante da proposta é que se coloca em xeque, mais uma vez, o zelo dessas mulheres pe-
los filhos; “a lei teria missão de incutir nas escravas as virtudes da maternidade, as virtudes da
mãe carinhosa, ativando o cuidado e desvelo materno na criação dos filhos”. Na sequência, o
autor reconhece o papel negativo da escravidão sobre a maternidade escrava, justificando “o
desleixo de muitas (escravas) ocasionado pela escravidão, que fazia morrer nelas a esperança
e os sentimentos naturais”
299
. No final da fala, entretanto, coloca novamente nos ombros da
cativa a culpa pelo alto índice de mortalidade infantil, pois seu sentimento de mãe inexistia
devido à escravidão que matou a esperança das cativas. A fala do jurisconsulto é interessante
por expor a preocupação com a reposição dos escravos, com o fim da escravidão e também
por incentivar a reprodução da cativa como forma de alimentar o sistema num período em que
a fecundidade negra era baixa
300
, sendo a preocupação, até bem pouco tempo, apenas com a
produção.
Outro ponto tratado por Caetano Soares, diz respeito aos filhos que tinham como pai
os senhores. Numa tentativa de moralizar essa situação, que parece ter sido corriqueira na
escravidão, o senhor e pai podia propor a liberdade imediata para mãe e filho, ou como parece
ter sido mais frequente, alforria condicional apenas para a criança. Fruto da racionalidade es-
cravista ou do sadismo, houve casos em que o senhor deixava a mãe como bem para o fi-
lho
301
. Essas discussões se arrastaram por muitos anos no IAB. Em 1863, Perdigão Malheiros,
298
O Instituto da Ordem dos advogados do Brasil foi criado em 1843, alguns de seus sócios eram importantes
advogados que ocupavam cargos no governo; talvez por isso o Instituto teve um papel significativo na elabora-
ção da ideologia jurídica do estado imperial.As discussões propostas pelos jurisconsultos em sua maioria partiam
de ações que estavam em discussão no judiciário do País sobre os conflitos entre a escravidão e a liberdade.
Eduardo Spiller PENA. Op. Cit., p.32-70.
299
Ibid., p.165.
300
MATTOSO. O filho da escrava. Op. Cit., p.82.
301
Eduardo Spiller PENA. Op. Cit., Cap. 2. subtítulo 2.5. Nesse ponto, o autor traz algumas histórias de mães
que foram deixadas como herança para os filhos que tiveram com o senhor, como o denunciado pelo Jornal A
Província de São Paulo, de 16 de janeiro de 1875, sobre uma ação de apelação impetrada pela escrava Luisa que
foi deixada de herança para seu filho. Para Salvador, ver Kátia de Queirós Mattoso. O filho da escrava. Op. Cit.,
p.88. Nesse trabalho, a autora narra a história de Diogo Correia da Rocha que teve uma filha, Inês, com a
liberta nagô Joaquina Diogo; ele reconhece, em testamento, Inês como sua herdeira legítima e deixa dois meios
94
na comemoração dos vinte anos da instituição, retomou as falas de Caetano Soares sobre o
assunto. As discussões normalmente surgiam de casos reais; no entanto, mesmo com a influ-
ência do IAB nos órgãos do governo, o direito à maternidade/filiação não foi incorporado à
Lei do Ventre Livre. Mas muitos advogados e rábulas defenderam causas dessa natureza. Luiz
Gama foi um árduo defensor da legitimidade no recebimento de heranças por parte das mães
escravas e filhos de senhores, provavelmente numa rememoração ao passado, ele mesmo filho
de escrava com o senhor, vendido ainda criança pelo pai
302
.
A Lei do Ventre Livre, de 1871, legalizou direitos costumeiros, impetrados nas lutas
das mães pela liberdade dos filhos. No entanto, com relação à maternidade escrava, a lei trou-
xe poucos avanços, permanecendo a liberdade das crias escravas dependente da vontade do
senhor, que, ao nascer, o filho ficava junto à mãe e aos oito anos o senhor decidiria se que-
ria ficar com a criança e utilizar o trabalho do menor, até 21 anos, ou receber valor indenizató-
rio do governo pelos gastos ao longo dos oito anos e entregá-lo ao Estado. A lei antecipa o
trabalho assalariado quando propõe que, caso haja interesse na antecipação da liberdade do
menor, deveria haver pagamento de pecúlio, avaliado tendo em vista os serviços que seriam
prestados no tempo restante para completar a idade de emancipação, ou seja, a força de traba-
lho que o senhor perderia pela antecipação. O que antes era camuflado com porte atlético,
dentes fortes, docilidade, agora é avaliado, pelo tempo e valor da força de trabalho.
Conrad diz que em 1885 “existiam quatrocentos mil ou mais ingênuos matriculados,
dos quais apenas cento e dezoito (0,1%) haviam sido confiados ao governo”
303
. Para os senho-
res era mais interessante conservar a mão-de-obra excedente, que, indiretamente, era sua
propriedade, e acredito que as mães preferiam ficar próximas do filho, mesmo porque o filho
livre poderia significar a possibilidade de um futuro melhor para os membros da família. A-
lém do que, o governo não tinha condições de arcar com os custos de tantas crianças, devido a
crise que assolava o país, como também parecia não ter interesse em recebê-las, que prefe-
riam que ao chegar ao oito anos as crianças permanecessem com os senhores de sua e
304
.
irmãos de Inês como seus escravos, que deveriam trabalhar para ela, pagando 320 réis por dia até que completas-
se 15anos.
302
Ver PENA. Op. Cit., Cap 2; e sobre Luiz Gama ver Elciene AZEVEDO. Orfeu da carapinha: a trajetória de
Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. Campinas: Editora Unicamp, Cecult, 1999.
303
Robert CONRAD. Os últimos anos da escravatura no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1978, p.142-4 apud García Alaniz. Ingênuos e libertos:estratégias de sobrevivência familiar épocas de transi-
ção.1871-1895. Campinas: Área de publicações CMU/UNICAMP, 1997, p.41.
304
Ione, Celeste SOUZA. Op.Cit., p.96. Segundo a autora, o governo era transparente nas suas idéias com rela-
ção aos ingênuos; esses deveriam ficar em posse dos senhores das suas mães por mais 13 anos, até alcançarem a
idade de 21 anos, como dizia a lei 2040. Isso pouparia despesas ao governo. A autora encontrou apenas três
casos em que as crianças conseguiram burlar a autoridade dos senhores e fugir para se alistar na escola de apren-
95
Essa situação preocupou o jornal O Abolicionista logo após a promulgação da lei, em julho
de 1871: “Os estabelecimentos públicos existentes estão cheios, e, quando não o estives-
sem, apenas teriam espaços para uma fração mínima de tão avultada cifra. Será, portanto, in-
dispensável, e o governo reconhece-o, criar estabelecimentos especiais”
305
.
Talvez para as mães escravas, os ganhos da lei tenham sido a proibição da venda do
filho separado da mãe, como também a associação da liberdade do filho à da mãe, além da
legalização do pecúlio para compra da alforria. Mas, muito ficou em aberto, deixando os se-
nhores à vontade para usar e abusar do trabalho compulsório dos menores, como também de
maltratá-los. Reis relata que o fazendeiro José de Oliveira Borges foi acusado de maltratar
seus escravos, além de não lhes oferecer alimentos o suficiente e dar-lhes apenas um dia para
trabalhar em suas roças. Entre seus dozes escravos estava a cativa Antonia, mãe de 12 ingê-
nuos
306
. Como em apenas um dia? Seria possível?
O treze de maio chegou 17 anos após a promulgação da Lei do Ventre Livre e foi
muito festejado desde o dia anterior, quando os jornais anunciaram a apresentação do projeto
de abolição no parlamento nacional: “na noite do dia anterior, as ruas de Salvador encheram-
se de pessoas; muitas afluíram para a frente das redações dos jornais, „no intuito de manifesta-
rem regozijo de que estavam possuídos‟ ”
307
. O fim da escravidão chegou e os nascidos após a
Lei do Ventre Livre não haviam completado 21 anos. O 14 de maio foi um dia de angústia
para muitas mães que entregaram a tutela dos filhos aos seus senhores. Esse vínculo não foi
revogado com lei de 13 de maio; os dias que se sucederam foram de lutas legais e ilegais para
recuperar seus filhos; mais uma vez a relação mãe-filho foi negligenciada e a maternidade
adiada
308
.
Ao longo do século XIX, médicos travaram longas discussões a respeito da saúde da
população. Novas idéias e práticas médicas chegaram ao Brasil, através das escolas de medi-
cina. A Faculdade de Medicina da Bahia foi criada em 1832, no mesmo local que vinha fun-
cionando o Colégio Médico Cirúrgico, no Terreiro de Jesus. Os médicos estavam preocupa-
dos com os enterros nas igrejas como poluidores do ambiente e causadores de doenças: “os
dizes da marinha e uma senhora que enviou carta ao juiz de órfãos querendo entregar o filho da sua escrava, mas
teve seu pedido negado.
305
Setor de microfilmagem, jornais. O Abolicionista, Bahia 31 de julho de 1871-APB.
306
Isabel Ferreira dos REIS, Op. Cit., p.100. O artigo 29 da Lei do Ventre Livre dizia que “cessa a prestação dos
serviços das escravas antes do prazo marcado no artigo 10, se, por sentença o juiz criminal, reconhecesse que os
senhores das mães os maltratam, infligindo-lhes castigos excessivos.
307
Walter FRAGA FILHO. Op. Cit., p.123-4.
308
ALANIZ. Op. Cit., p.42; para Bahia, ver Ione Celeste de SOUSA. Escola ao povo: experiência de escolariza-
ção de pobres na Bahia oitocentista. Tese de doutorado em História Social, PUC/SP, 2006.
96
mortos representavam um sério problema de saúde pública”
309
. E também com a reordenação
do espaço urbano, esgotamento sanitário e outras medidas de higienização.
Além da preocupação com a morte, esses médicos preocupavam-se também com os
vivos. As condições alimentar e higiênica das crianças foram motivo de preocupação, princi-
palmente relacionadas à amamentação. Preconceitos contra as negras as amas de leite eram
expressos sem receio.
Em nosso país, onde para tudo somos fáceis... entregam-se com toda a liber-
dade a criança às amas, negras africanas, estúpidas, cheias de vícios, sem ca-
rinhos, etc., o que faz com que as crianças facilmente adquiram esses vícios,
tornam-se impertinentes, etc., etc.
310
.
No projeto higienista dos médicos, a família tinha um papel fundamental “nas suas
formas de inter-relação doméstica”
311
. Devido aos graus de inter-relacionamento entre mãe e
filho, a mulher seria responsável pela produção de cidadãos saudáveis. A mulher reclusa, pas-
siva e ignorante daria lugar a uma mulher participativa atuante.
Quanto às mulheres de cor, escravas, libertas ou livres, essas não poderiam desempe-
nhar os novos papéis exigidos. A escrava ama de leite, por não amamentar seus filhos e sim os
da senhora, como se fosse uma escolha; e as livres e libertas pobres por o poderem exercer
completamente seu papel de mãe, por trabalharem na rua deixando os filhos aos cuidados de
outra pessoa ou mesmo sozinhos. Nesse projeto, para ser mãe de família eram necessárias a
dedicação total, a amamentação, a saúde e responsabilidade com a formação dos filhos. Rea-
lidade bem distante da maioria das mulheres de cor
312
.
Deixemos a mulher no lar doméstico, de que ela é a rainha e o encanto mais pode-
roso, que crie seus filhos, os eduque na religião e na honra e de noite, quando o
marido volta fatigado do trabalho do dia, que ela enxugue seu rosto banhado de su-
or e o console com seu sorriso
313
.
Diante de tais fatos, como se construiu a maternidade das mulheres de cor em Salva-
dor? Para o período estudado, o padrão de fecundidade escrava é baixo. Segundo Mattoso, nos
309
José João REIS. A morte é uma festa. Op. Cit., p.247.
310
Sonia Maria GIACOMINI. Op. Cit., p.88.
311
Alberto Heráclito FERREIRA FILHO. Quem pariu, bateu que balance! Op. Cit., p.64.
312
Sonia Maria GIACOMINI. Op. Cit. Sobre o projeto higienista que propunha um novo modelo para as moças
e senhoras nessa sociedade vindoura, ver, Alberto Heráclito FERREIRA FILHO. Desafricanizar as ruas: elites
letradas, mulheres pobres e cultura popular em Salvador (1890-1937). RevistaAfro-Ásia, no.21 (1998-99),
p.242-243.
313
GIACOMINI. Op. Cit., p.94.
97
anos de 1860-1889, em pesquisa realizada em testamentos e inventários, de 214 escravas em
idade de procriar, apenas 59 (27,6%) tiveram filhos, ao estender para as mulheres de outras
faixas etárias o número cai para 19,7%. No entanto, esse percentual cresce no período anterior
à abolição da escravidão, isso pode ter ocorrido devido à crise do sistema escravista e à possi-
bilidade de ter filhos livres
314
. Essa realidade pertence tanto à escrava africana como à crioula.
Para Schwartz, a fecundidade escrava foi baixa durante todo o período colonial. Para
o autor, uma interessante explicação seria o prolongamento da lactação. Estudos modernos
sobre os iorubás observaram um padrão de abstinência sexual pós-parto em média de um ano;
“a razão desse tabu é uma crença arraigada de que a saúde da criança seria ameaçada por uma
nova gravidez”
315
. Isso foi observado entre os nagôs, jejes e minas. Esse dado, associado à
alta taxa de mortalidade infantil e ao aborto talvez responda(m) as questões relacionadas a
presença de poucas crianças na vida das mulheres de cor.
Reis informa que a prática do aborto foi muito frequente entre as escravas, que desis-
tiam de colocar novos escravos no mundo para viver todas as agruras do cativeiro. Essa práti-
ca também foi utilizada pelas mulheres livres e libertas, depois de “um mau passo”, como
ocorreu com a parda Luiza de 15 anos, que se deixou seduzir pelas promessas de casamento
de Joaquim Magalhães, branco, caixeiro viajante. Joaquim enviou para Luiza dois frascos
com remédio para resolver o problema. No bilhete enviado juntamente com o remédio, ele
explica como tomar e relata até alguns sintomas que poderiam se manifestar após ingerir a
droga.
Docinho você deve tomar este remédio que aí vai, é apara você botar três co-
lheres de sopa dentro de um copo com água fria e faça isso três vezes por dia
antes do almoço, antes do jantar, e antes de deitar-se. Não precisa ter muito
resguardo, basta não comer coisas salgadas e carne de porco. Se não tiver fe-
bre pode tomar banhos frios, e pode banhar-se ao sol da manhã, e fazendo
assim posso prometer-lhe sua cura resolvendo o problema
316
.
O trecho acima demonstra haver muita preocupação de Joaquim em deixar Luiza es-
clarecida sobre os efeitos do remédio, talvez para que ela não se assustasse; deixa entrever
também que havia uma cumplicidade entre o casal. Joaquim parece bem inteirado quanto ao
modo de usar e os sintomas do remédio; possivelmente tinha vivenciado antes a mesma
314
MATTOSO. Filho da escrava. Op. Cit., p.83. Para o período de 1860-69, a média de filhos era de 2,8, para
1870-79, de 2 , de 1880-89 de 5,4. Quanto ao retraimento no período posterior à Lei do ventre Livre, a autora o
associa à ambiguidade da lei que alforriava os ingênuos na realidade 21 anos.
315
SCHWARTZ. Op. Cit., p.298-99. O autor compara os níveis de fecundidade escrava brasileira ao das Anti-
lhas do século XVIII e diz que lá havia a mesma situação.
316
Seção judiciária autos crimes, estante 10 caixa 342 doc 8. Réu Joaquim Magalhães- APB.
98
situação, pois, sendo caixeiro, talvez tenha conhecido muitas moças e outras promessas de-
vem ter sido feitas e talvez até outros filhos gerados e quem sabe abortados. O remédio, entre-
tanto, não teve o efeito previsto por ele. Joaquim prometeu fugir com Luiza, mas teria que
viajar e, enquanto isso, deixou-a na casa de amigas, que, segundo relatos, eram mulheres de-
sonestas e perdidas; o tio de Luiza a encontrou, e talvez por esta se sentir sozinha e ade-
samparada foi convencida a dar queixa. Joaquim foi preso e condenado e mais uma mãe sol-
teira entrou para as estatísticas da cidade. Não foi possível saber se Luiza continuou com Joa-
quim ou se realmente se separou, mas a indagação ficou, principalmente depois de um bilhete
tão carinhoso.
O paradigma de maternidade entre os livres e libertos de cor também segue um baixo
padrão de fecundidade. Os pardos, os que mais se aproximavam dos padrões de moral e con-
duta branca, foram, dentre os não-brancos, o grupo que mais procriou. Os estudos do recense-
amento de 1855 demonstraram apenas três famílias com sete filhos, duas brancas e uma par-
da; os africanos foram os que menos procriaram das oito mulheres chefes de família encon-
tradas, apenas uma possuía um filho. Oliveira, em estudo dos testamentos, encontrou entre as
africanas libertas poucos filhos. Do total de 147 testadoras de 1790-1850, 38,1% eram soltei-
ras, e de 95 entre 1851-1890, 48,4%. Dessas, no primeiro período, 16,3% tinham filhos e, no
segundo 14,7%, e nenhuma teve mais de cinco filhos
317
.
Para Oliveira, os filhos vivos representavam para os pais um apoio na velhice. Eles
iriam com seu trabalho auxiliar na manutenção dos pais e na formação de um pecúlio comum
para permitir uma vida melhor para todos
318
. O que parece ter sido semelhante para todos os
períodos do século é o alto índice de filhos sem a presença dos pais. No período de 1830-
1874, 99,5% dos escravos batizados na eram ilegítimos e 85,9% de livres. Athayde obser-
va que esse fato pode ser o reflexo da importância da mulher como a figura central na vida
dessas crianças, sendo o pai incapaz de prover e se responsabilizar social e economicamente
por elas
319
. O pai, em todas as condições civis, pouco apareceu nos registros, podendo ser um
escravo da fazenda ou algum liberto, como também o próprio senhor.
Oliveira relata que a educação das crianças africanas, no caso de uniões duradouras
dos pais era feita no círculo africano, mas em caso de nascerem cativas eram educadas como
crias, as pressões externas criavam identidades ambíguas, pois sofriam uma forte influência
317
OLIVEIRA. Op. Cit., p.64.
318
Ibid., 61.
319
ATHAYDE. Op. Cit., p.17.
99
dos costumes senhoriais. Isso é válido também para os crioulos
320
. Entretanto, quanto aos par-
dos o rompimento era mais brusco, pois, além do fator cultural, a cor mais clara era extrema-
mente importante numa sociedade em que “cor e posição social se confundiam”
321
..
Dentre as ocupações que apareceram no recenseamento de 1855 a costura foi a mais
freqüente das mulheres chefes de família. Essa profissão foi comum na Freguesia de Santo
Antonio; estabeleceram pequenas confecções artesanais, uma cuja dona da casa trabalhava
para o sustento de sua família, frequentemente acompanhada das filhas, e outras com mulhe-
res na condição de empregadas; nesses locais, o trabalho e a vida se misturavam
322
. Na Sé, no
quarteirão 23, na casa de Francisca de Salles, preta, solteira havia outra preta que também
exercia a profissão de costureira.
As duas ganhadeiras identificadas no censo eram africanas uma gege e outra nagô.
Segundo Reis, era tradição na África o pequeno comércio de rua desenvolvido por ganhadei-
ras, principalmente o de alimentos
323
. Em geral, elas levavam seus filhos para a rua “como na
África, atados às costas com “pano da Costa” ou soltos entre tabuleiros, em meio a frutas e
aves”
324
. Havia as ganhadeiras escravas que trabalhavam para o senhor em troca do exceden-
te do valor que era previamente estabelecido, algumas residiam com o senhor e outras não;
estas eram responsáveis pela sua moradia e alimentação. As ganhadeiras libertas eram donas
da mercadoria e desempenhavam a mesma função que as escravas pelas ruas de Salvador
325
.
Segundo Dias, as ganhadeiras, para sobreviver nas ruas, dependiam de laços de soli-
dariedade e de vizinhança que se improvisavam e modificavam continuamente
326
. O controle
exercido sobre elas era muito intenso, sobretudo devido à mobilidade permitida por esse tra-
balho, o que preocupava as autoridades locais, principalmente após 1835, quando ganhadeiras
foram acusadas de fornecer comidas aos rebeldes e também participar da conspiração
327
que nos locais de comércio observa-se a “sociabilidade dos usuários, o lugar onde se elaboram
320
OLIVEIRA. Op. Cit., p.64.
321
João Jose REIS. A morte é uma festa. Op. Cit., p.39.
322
E. P. Thompson. Costumes em comum - estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia
da Letras,1998, p.271. Esse trabalho era feito por encomenda das fábricas de tecidos. Essas encomendavam a
costureiras que trabalhavam na própria casa. Ver também DIAS. Op. Cit., p.14.
323
João José REIS. A rebelião escrava no Brasil Op. Cit., p. 353; Cecília Moreira SOARES. Op. Cit., p.49-69.
324
SOARES. Op. Cit., p.57.
325
Ibid. Para saber sobre a rentabilidade do trabalho do ganho, ver também Maria José ANDRADE. Op. Cit.,
p.132.
326
DIAS. Op. Cit., p.9.
327
SOARES. Op. Cit., Cap. 2. Esse controle era exercido através das matrículas, impostos e multas, como tam-
bém pela estipulação de locais para venda.
100
as hierarquias típicas da rua, onde se espanam os papéis sociais do bairro”
328
e eram os negros
e mestiços os fregueses das ganhadeiras.
As trabalhadoras de rua da cidade estavam expostas a todo tipo de dificuldades rela-
cionadas à atividade, às vezes situações inusitadas aconteciam. A crioula Maria da Purificação
deve ter tomado um susto ao chegar a sua venda, no dia 8 de julho de 1866. Seu comércio foi
roubado; levaram 50$00 além de uma porção de ovos. O pior é que a suspeita recaiu sobre os
guardas da praça, pois a barraca ficava defronte a eles, segundo o jornal, e era impossível que
eles não tivessem visto. Quanto esforço deve ter feito Maria para recuperar o dinheiro. Será
que passou por dificuldades para manter sua família devido ao roubo?
329
.
Algumas ganhadeiras conseguiram acumular dinheiro, como também comprar escra-
vos, como aconteceu com Rita Maria da Lapa, que possuía três escravos brasileiros pequenos
e duas adultas africanas a qual possivelmente era utilizada no ganho de rua ou alugada, e
que Rita deixou em testamento para sua única filha que “não tinha muito juízo, vive aleijada
em uma cama”. Em dinheiro possuía a quantia de oitocentos mil réis que estava emprestado,
mas que deveria ser cobrado e empregado no funeral da testadora. Rita, provavelmente preo-
cupada com a situação da filha, acumulou o suficiente para mantê-las em vida e depois de sua
morte. Inclusive deixou uma tutora que seria herdeira dos rendimentos provenientes dos seus
escravos e responsável por sua filha
330
.
Outras acumularam dinheiro através da exploração do trabalho das iguais, como foi
acusada a ganhadeira Flor. Em 2 de outubro de 1871, a parda Anna Joaquina de Santana de ida-
de avançada, moradora da Freguesia de Santana passou por maus bocados na mão da crioula
Florência, apelidada de Flor. Anna Joaquina alugava seus serviços de ganho para a dita “conhe-
cida por sua fama de não querer pagar e agredir a todas as outras que para ela trabalhava
331
.
A desavença teve início quando Anna foi cobrar-lhe pelo seu trabalho; após entregar
o último pagamento, Flor a ameaçou, dizendo que onde lhe encontrasse daria a devida respos-
ta pelas cobranças “que seria lhe quebrar a cara com os chinelos dos pés”. Estava Anna vindo
de mais um dia de trabalho para Flor quando foi surpreendida, na rua das Portas do Carmo,
pela própria Flor, enraivecida dizendo palavras obscenas: diga agora o que é que lhe devo
sua grandessíssima filha de uma puta” e logo em seguida avançou sobre o corpo de Anna Joa-
quina com unhas e dentes, esbofeteando-a pela rua. Ao prestar queixa, Anna Joaquina deixou
328
Michel de CERTEAU, Luce GIARD, Pierre MAYOUL. Op. Cit., p.52.
329
Setor de microfilmagem, jornais O Alabama, 13 de julho de 1866- APB.
330
Tribunal de relação, série testamento de Rita Maria da Lapa. Estante n.5, caixa n. 2105, documento n.51,
folha no.10.1853 - APB.
331
Seção judiciária /autos crimes: estante 7, caixa 248 doc 12, ré Florência - APB.
101
claro que “só trabalhava para alguém tão desavergonhada por precisar sustentar seu filho, e
que Flor se aproveitou da sua idade avançada para fazer-lhe todas essas agressões”; disse ain-
da que Flor, na verdade, era uma “aproveitadora” e “aceitava com preferência mulheres de
estado avançado pela sensibilidade própria do sexo e da idade”. Era uma chefe de família que
necessitava trabalhar para o sustento da casa.
No entanto, se podemos inferir que Flor fazia parte de uma rede de solidariedade femi-
nina, que dava prioridade às mulheres no trabalho de rua, exatamente por ser uma e saber das
dificuldades enfrentadas com relação a cor e sexo na sociedade da época, por outro lado é gri-
tante a denúncia de exploração. Nesse sentido o conflito entre Flor e Anna pode ter sido uma
situação pontual, pois não foram encontrados outros casos relacionados a Flor, como também
o foi mencionado no processo qualquer outro tipo de situação em que ela estivesse envolvida.
Outras situações de conflito aconteciam devido ao controle, às vezes, abusivos dos
fiscais, como o cometido contra a negra Sabina Maria da Conceição, que estava em dia com
sua obrigações tributárias e, em 1848, foi surpreendida com a apreensão de sua mercadoria
332
.
A africana liberta Joana da Conceição, de 60 anos
333
, por falta de condições para manter sua
venda, deixou de trabalhar por dois anos, sendo obrigada a pagar as taxas referentes a estes
dois anos sem atividade. Ilicitudes como essas ocorriam e geravam conflitos com o Estado,
cada vez mais imbuído de controlar os passos dos africanos e mestiços pela cidade. Possivel-
mente Joana deve ter voltado a executar tarefas domésticas para manter a família e poupar, até
que tivesse condições de voltar ao ganho.
Outros conflitos, também discutidos, foram em torno das transgressões das normas
de condutas sociais essas eram cometidas principalmente após o trabalho, nos momentos “de
folgar e brincar”. Possivelmente as mulheres, ao infringir os comportamentos socialmente acei-
veis, estavam protestando contra as regras de conduta dos brancos que não as representavam,
A crioula Maria dos Reis, moradora ao Tabuão, tornar-se por seu mau com-
portamento merecedora da recomendação à policia. Usando de uma lingua-
gem poluta e desenfreada, não há para ela respeito nem consideração a guar-
dar para com a moral e decoro das famílias.
A qualquer hora abre a boca e solta torrentes de torpezas e obscenidades com
um cinismo incrível.
Acoita-se em casa de uns marceneiros onde, sem o menor resguardo, pratica
cenas hediondas e imorais acompanhadas de frases desonestas e extravagan-
tes
334
.
332
SOARES. Op. Cit., p.66.
333
Ibid., p.67.
334
Setor de microfilmagem, jornais. O Alabama, 24 de novembro de 1876 - APB.
102
Conflitos trazidos de outras ocasiões, por vezes eram resolvidos no meio da rua,
Na praça do Palácio, em pleno dia, mimosearam-se a valer, duas mulheres,
valendo-se cada uma d‟elas de suas chinelas que calçavam, como armas de
defesa.
D‟esta luta que durou quase meia hora, saiu uma com a cabeça quebrada jor-
rando grande porção de sangue e esfarrapada.
Apesar do grande número de pessoas que presenciavam aquele espetáculo,
só uma marinheiro inglês, conseguiu pará-las.
Até de noite elas desafiavam-se na rua do Palácio, e o Sr. Machado que é o
subdelegado da Sé e mora um pouco distante, nem ao menos se fez represen-
tar por seu ordenança, como é de costume
335
.
O motivo de tamanho conflito não ficou claro, mas parece ter sido algo sério, pois e-
las se ocuparam dele todo o dia, perdendo, possivelmente, o dia de trabalho. Mas, talvez a
briga tenha sido exatamente por questões de trabalho. Quem sabe não seriam duas ganhadei-
ras brigando pela autonomia e controle de espaço na rua?
As outras atividades eram relacionadas ao serviço doméstico, tanto para as escravas
como as livres e libertas: engomadeira, lavadeira, amas, serviços que quando não executado
pela escrava da casa era alugado, exigido-se qualidades pessoais e profissionais como, condu-
ta e preferências de cor; as brasileiras eram preferidas para esses serviço
336
. Os serviços do-
mésticos pressupunham relações mais íntimas com os senhores e “por isso aproveitavam as
crias da casa para estes lugares, pelos laços de submissão e dependência formados com a
convivência desde a infância”
337
, às vezes os anos do serviço doméstico e o bom comporta-
mento podiam ser recompensados com a alforria quase sempre paga e condicional. Para exe-
cutar o serviço doméstico, não havia nenhuma especialização, além da prática, e uma mesma
pessoa podia executar várias tarefas (cozinheiras, arrumadeiras, lavadeiras) a depender da
vontade do senhor. No caso da cozinheira, havia especialistas que eram contratadas pelas ca-
madas mais abastadas.
Era comum em Salvador a lavagem de roupa ser feita no bairro dos Barris. Numa o-
casião destas, Wetherell observou a roupa batida com muita força e a utilização de fruta de
uma árvore, na falta de sabão
338
. As fontes eram locais de ajuntamento de negras e outros tra-
balhadores da cidade; eram vistas pelas autoridades como local de bagunça e confusão, por
isso havia a presença constante de policias para controle e repressão.
335
Setor de microfilmagem, jornais. O Alabama, 13 de novembro de 1881- APB.
336
SOARES. Op. Cit., p.38. Para a autora, esse era um aspecto que não se tratava de superioridade étnica, mas
pelo processo normal de socialização das nascidas no Brasil, que as treinou para melhor servir de perto os senho-
res.
337
Ibid., p.41.
338
James WETERELL. Op. Cit., p.89.
103
Figura 3: Lavadeira. Cartão Postal.
Fotografia de Rodolpho Lindemann. Bahia, c.1890.
Coleção particular de Monsenhor Jamil Nassif Abib
As escravas da casa, quando o parto coincidia com o da senhora, poderia tornar-se
ama. Amas também eram alugadas; para esse serviço, não eram todas aptas, pois havia alguns
requisitos como origem, cor, idade e estado de saúde. Para essa tarefa, também as brasileiras
eram preferidas às africanas
339
.
Figura 4: Ama de leite. Cartão postal.
Fotografia de Rodolpho Lindmann, Bahia, c.1885.
Acervo particular de Monsenhor Jamil Nassif Abib.
339
Ibid., p.42.
104
Outra possível estratégia das mulheres para prover sua família era a recurso ao traba-
lho de escravos, pois algumas eram proprietárias de cativos. Mattoso diz que 39% das mulhe-
res solteiras encontradas nos inventários de 1801-1888 possuíam escravos e viviam da sua
locação
340
. Encontrei no censo de 1855 uma crioula costureira com quatro escravos; e duas
pardas, uma com três escravos do serviço de casa, e a outra com um escravo também pardo.
Esses provavelmente eram utilizados como escravos de aluguel ou ganhadores pela suas do-
nas
341
. O aluguel de casas também foi outra forma de manutenção da família.
Figueiredo relata que “o traço mais pungente da presença da mulher na história do
Brasil talvez tenha sido a prostituição entre mulheres escravas e livres e pobres”
342
. Prova-
velmente essa situação tenha sido fruto da pobreza das populações femininas livres da cidade
ou também mais um tabu que deve ser quebrado com relação à condição feminina no Brasil.
De todo modo, o certo é que essa era uma atividade que também foi adotada pelas mulheres
para o sustento da família, como foi evidenciado nas atas dos juízes de órfãos.
A menina Ana Maria da Conceição parece ter passado por um sufoco por causa do
africano liberto Joaquim da Rocha. Ele queria tirar-lhe o único bem deixado por sua mãe. Em
8 de Abril de 1853, o juiz de órfãos Francisco Liberato de Mattos julgou improcedente o pe-
dido do dito africano para vender a casa que sua mãe havia lhe deixado em escritura. Apesar
de não ser o pai da menina, dizia viver em concubinato com sua mãe e ser o seu único ampa-
ro. Pretendia vender a casa para, junto com a menina Ana Maria, voltar para o sertão da Áfri-
ca, de onde não mais gostaria de sair. A pretensão foi frustrada pelo depoimento de Ana que
dizia conhecê-lo, mas não o reconhecia como companheiro da mãe. Joaquim era dos muitos
“amigos que frequentava sua casa, mas, nenhum era o seu pai”. Pelo que ficou evidenciado
pela menina, sua mãe era prostituta e se preocupou em deixar algum patrimônio para a filha:
uma casa escriturada, porém, talvez não tenha contado com a esperteza de um de seus “ami-
gos”
343
.
Dois fatos chamam a atenção neste episódio. Um é a esperteza de Joaquim ao argu-
mentar ao juiz que venderia a casa e iria para a África. Essa justificativa denota que ele sabia
do medo que causavam as autoridades e de como seria bom ter menos um africano para con-
trolarem; certamente ele contou com isso para ganhar a simpatia do juiz. O outro é relaciona-
do à mãe da menina. Numa época em que as relações de solidariedade eram cada vez mais
340
MATTOSO. Op. Cit., p.8.5
341
ANDRADE, p.132.
342
Luciano FIGUEIREDO. Op. Cit., p.75.
343
Seção colonial provincial. Juiz de órfãos. maço nº 2675-APB.
105
fortes, a mãe de Ana Maria parece não ter construído nenhum laço de amizade que possibili-
tasse à menina ter um novo lar, pois, segundo o africano, a menina não tinha ninguém que a
amparasse. Parece que Ana seria mais uma a pedir o amparo das ordens religiosas para finali-
zar sua criação, como o ocorrido à órfã de mãe Eufenia, de 14 anos, filha do pardo Antonio da
Palma que estava à procura de casa de caridade para deixá-la, uma vez que se achava em
situação difícil. Em outro oficio, a menina foi encaminhada à Santa Casa de Misericórdia
344
.
Como podemos ver, o pai realmente abriu mão da criação da filha, para livrála, quem sabe, de
um futuro menos honrado.
Na tentativa de levantar questões relacionadas à maternidade, chefia de família, afe-
tividades e conflitos das mulheres de cor na Freguesia da Sé, foi possível reconhecer os papéis
desempenhados pelas mulheres de cor, assim como os problemas enfrentados no seu cotidiano
para sobreviver, como também para manter a família num período de grandes transformações
no sistema escravista. Tais mudanças, se por um lado, beneficiariam a população de cor, em
muitos momentos geraram sérios transtornos para as mulheres-mães.
344
Seção colonial provincial. Juiz de órfãos. maço nº 2675-APB.
106
CONCLUSÃO
O objetivo principal deste estudo foi tentar desvendar as estratégias de sobrevivência,
a condição social, os ofícios, as afetividades e conflitos do arranjo familiar constituídos por
mulheres de cor como chefe, em Salvador no culo XIX (1850-1888) buscando dar visibili-
dade a essas atoras sociais anônimas.
Com a análise dos documentos quantitativos foi possível perceber algumas situações
comuns na sociedade baiana, umas das mais sintomáticas foram as relacionadas à condição
civil de solteirice da população baiana do período. As mulheres solteiras são em maior núme-
ro que os homens, dentre essas, as com filho. Chamou a atenção os números referentes às mu-
lheres brancas, pois representaram 30% do total das solteiras sem filhos e 38,2% com filho.
Essas pareciam ser pobres, dentre as encontradas apenas uma era proprietária de uma quitan-
da, as demais não especificaram profissão. Encontrei também uma mulher branca agregada
de uma mulher de cor. Essa fonte suscitou muitas questões algumas elucidadas com as fontes
qualitativas e outras não.
As dificuldades com as fontes qualitativas limitaram algumas interpretação, pois
poucos foram os registros que versam sobre a intimidade da população de cor; em parte, pela
sua condição social e pela dificuldade de acesso à alfabetização entre eles, como também pela
cultura da oralidade.
Devido a isso algumas questões surgiram e foram elucidadas, enquanto outras não. A
baixa natalidade africana e dos mestiços foi uma delas, apesar de algumas hipóteses levanta-
das de abstinência, abortos, algo ficou solto no ar. Concordo com Venâncio
345
que diz que as
práticas abortivas não eram para se fazer sempre; algumas eram invasivas e muito incômodas,
como as que introduziam sanguessugas na vulva, e preparados de excrementos. Acredito ha-
ver outros métodos que as fontes não revelaram, sobretudo no que toca às práticas de concep-
ção e contraceptivas africanas. Não era fácil, como vimos ao longo do trabalho, gerar filhos
escravos ou libertos numa sociedade desigual e preconceituosa como a baiana no período.
Talvez não ter filhos tenha significado umas das estratégias de enfrentamento da sociedade
escravista.
A grande incidência de mulheres chefes de família não se explica apenas pela des-
proporção entre os sexos na sociedade baiana, pois no censo de 1872 havia uma diferença de
345
Renato Pinto VENÂNCIO. Maternidade negada. In: Mary Del PRIORE. Op. Cit.,p.194-198; p. 205.
107
5.401 a mais de homens na população livre e 331 mulheres a mais na escrava, o que não pare-
ce justificar a falta de homens ou uma sociedade majoritariamente feminina. Talvez devamos
pensar na influência e recriação de valores estranhos à sociedade dominante entre as camadas
populares, como o ocorrido entre os africanos, com os relacionamentos endogâmicos, a rela-
ção de compadrio e uniões naturais, que poderiam possibilitar melhorias na qualidade de vida,
assim como a preservação de valores culturais africanos. A mulher africana na Bahia foi res-
ponsável pela manutenção e preservação da família, muitas vezes sem a presença do pai; en-
tretanto, foi possível prover e manter a família através da construção e manutenção de la-
ços de solidariedade.
Concordo com Ferreira Filho
346
que diz não ter havido um matriarcado cultural baia-
no, pois, apesar da sua presença em vários postos de trabalho, a mulher não criou novos mo-
delos de relacionamento, às vezes até foi vítima de uma sociedade que parecia separá-las entre
aquelas “para casar” e aquelas “para ter prazer”. O que parece ter ocorrido foi a criação de
estratégias de sobrevivência em meio a uma sociedade de valores brancos.
Apesar de ser maioria, e da responsabilidade pela manutenção afetiva e econômica
dos lares, a mulher foi, também, em alguns momentos, reprodutora da divisão por sexo na
sociedade, principalmente as brasileiras. Assim, reiteravam o patriarcalismo, como as costu-
reiras da Freguesia de Carmo, ao colocarem os filhos na escola e manterem as filhas em casa,
no serviço doméstico ou aprendendo e reproduzindo o ofício da mãe, mesmo que por vezes
essa possa ter sido utilizada como estratégia de sobrevivência, que, era comum os filhos
permanecerem na casa das mães, quando adultos e independentes. Também devamos pensar,
dentro dos limites desta sociedade, a possibilidade de ascensão através do trabalho, como o
ocorrido com mulheres forras que adquiriram condições, após a alforria, ou mesmo desde o
período da escravidão.
Difícil também foi perceber, as formas de relacionamento das mulheres chefes de
família. Sabemos que, para as africanas, o companheirismo e a melhoria da qualidade de vida
eram fatores decisivos na escolha do marido. para as mestiças, o parceiro ideal tinha que
ser da sua cor ou mais claros, para que o possível fruto do relacionamento tivesse possibilida-
de de ascensão naquela sociedade, como também garantia de uma velhice mais tranqüi-
la.Infelizmente, não pude ir além disso, pois não encontrei nenhuma referência que pudesse
me levar além, principalmente, no tocante à relacão afetiva dos pais com os filhos e as
mães,por exemplo.
346
Alberto Heráclito FERREIRA FILHO. Quem pariu e bateu, que balance! Op. Cit., p.130.
108
Estratégias foram criadas e recriadas no enfretamento da escravidão e da liberdade
para a formação e manutenção da família, algumas delas talvez herdadas da cultura africana.
Creio ser esse um ponto para futuras pesquisas. O importante, no entanto, foi perceber que as
famílias se formaram e nelas havia a preocupação com a manutenção dos valores morais, com
o futuro dos filhos e das mães, e com a importância da união familiar; elas não eram anômicas
ou patológicas, mas fruto de novas circunstâncias encontradas no Brasil.
109
FONTES E REFERÊNCIAS
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Juiz de órfãos - maço nº 2675/1855
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Testamento
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caixa 3713, maço: 1078,grupo: Directoria Geral de Instruçao Pública ( Freguesia de Santana).
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Livro de Postura 1831
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1098/ 1286/ 31/05/1851, 1098/504/9/02/1852,
1098/607/28/11/1853,1098/899/12/03/1856,1098/1040/10/09/1857,1098/1189/16/10/1859,10
98/1256/23/12/1860, 1098/ 1278/ 16/04/1861
110
LEV- Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador
Livro de Batismo,freguesia da Sé. 182B/ 302/1852 a 182B/464/1861
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116
ANEXOS
117
TABELA 14
POPULAÇÃO DAS FREGUESIAS NO CENSO DE 1855
CONDIÇÃO JURÍDICA E SEXO %
FRf FREGUESIAS FEMININO MASCULINO
Lv Lb Esc total Lv Lb Esc total
ConConceição da Praia 37,7 - 10,7 48,5 37,7 - 13,7 51,47
Pp Pilar 36,6 2,1 15,3 54,1 27,6 1,1 17,1 45,9
Pen Penha 47,7 3,2 5,1 56,0 40,2 0,27 3,49 43,96
Sto. Sto.Antonio 36,7 4,3 14,7 55,8 28,7 2,85 12,5 44,15
São São Pedro 40,5 3,0 15,5 59,0 26,9 0,98 13,0 40,97
Pas Passo 35,6 - 19,2 54,8 28,8 - 16,3 45,16
Fonte: Anna Amélia Vieira NASCIMENTO. Dez freguesias da cidade do Salvador: aspectos social e
urbano do século XIX, Salvador, FCEBa/EGBa,1986, p.74-93.
TABELA 15
POPULAÇÃO DAS FREGUESIAS NO CENSO DE 1855
COR e SEXO %
FRf FREGUESIAS FEMININA
Branca Parda Crioula Cabra Preta Total
ConConceição da Praia 19,12 10,29 - 1,47 17,65 48,5
Pp Pilar 15,33 16,37 6,82 2,59 12,99 54,1
Pen Penha 16,62 16,62 10,46 4,83 7,51 56,0
Sto. Sto.Antonio 12,34 18,15 9,78 2,72 12, 86 55,8
São São Pedro 21,71 11 01 10,76 1,47 14,07 59,0
Pas Passo 15,41 11,94 10,43 1,2 15 86 54,8
Fonte: Anna Amélia Vieira NASCIMENTO. Op. Cit., p.74-93.
118
TABELA 16
POPULAÇÃO DAS FREGUESIAS NO CENSO DE 1855
COR e SEXO %
FRf FREGUESIAS MASCULINO
Branca Parda Crioula Cabra Preta Total
ConConceição da Praia 27,94 6,86 - 0,98 15,69 51,47
Pp Pilar 15,28 9,06 5,23 2,04 14,29 45,9
Pen Penha 16,08 11,8 6,7 6,7 2,68 43,9
Sto. Sto.Antonio 10,29 13,81 7,71 2,28 10,06 44,1
São São Pedro 18,65 4,89 5,57 0,85 11,01 40,97
Pas Passo 15,25 8,91 7,55 2,42 11,03 45,1
Fonte: Anna Amélia Vieira Nascimento.. Op. Cit.,p..74-93.
TABELA 17
POPULAÇÃO DAS FREGUESIAS NO CENSO DE 1872
SEXO E CONDIÇÃO JURÍDICA
FREGUESIAS MASCULINO FEMININO TOTAL
LV ESC LV ESC
SÉ 5.874 1.105 7.139 993 15.111
SÃO PEDRO 5.989 1.121 6.408 1.225 14.745
SANTANA 9.447 296 8.047 164 17.954
CONC. DA PRAIA 3.330 415 1.010 735 5.490
VITÓRIA 5.493 989 3.935 1.249 11.666
PASSO 1.602 210 1.596 228 3.636
PILAR 3.868 490 3.569 419 8.346
Sto ANTONIO 7.257 515 8.246 595 16.613
BROTAS 3.490 317 1.006 277 5.090
MARES 1.828 84 1.750 60 3.722
PENHA 2.341 543 2.412 471 5.767
TOTAL 50.519 6.085 45.118 6.416 108.138
Fonte: Manoel Jesuíno FERREIRA. A província da Bahia. Exposição de Philadelphia. Rio de Janeiro: Ty-
pographia Nacional,1878.p.32-33.
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