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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura
KLEBER ELIANDRO DA SILVA
Mazzaropi, um caipira-cangaceiro:
encontro de culturas no cinema brasileiro
Orientador: Prof. Dr. Martin Cezar Feijó
São Paulo
2007
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KLEBER ELIANDRO DA SILVA
Mazzaropi, um caipira-cangaceiro:
encontro de culturas no cinema brasileiro
Dissertação apresentada à Uni-
versidade Presbiteriana Mackenzie,
como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em
Educação, Arte e História da
Cultura sob a orientação do Prof.
Dr. Martin Cezar Feijó.
São Paulo
2007
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KLEBER ELIANDRO DA SILVA
Mazzaropi, um caipira-cangaceiro:
encontro de culturas no cinema brasileiro
Dissertação apresentada à Uni-
versidade Presbiteriana Mackenzie,
como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em
Educação, Arte e História da
Cultura sob a orientação do Prof.
Dr. Martin Cezar Feijó.
Aprovado em ____ de ________________ de ______
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
S586m Silva, Kleber Eliandro da.
Mazzaropi, um caipira cangaceiro: encontro
de culturas no cinema brasileiro. / Kleber Eliandro
da Silva. -- São Paulo, 2007.
133 p.; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e
História da Cultura) – Universidade Presbiteriana
Mackenzie, 2007.
Orientação: Prof. Dr. Martin Cezar Feijó.
Bibliografia: pp. 104-112
1. Mazzaropi. 2. Caipira. 3. Cangaceiro.
4. Cinema e Paródia. I. Título.
CDD – 791.43
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Martin Cezar Feijó, por me
mostrar os caminhos da academia.
Ao Prof. André Piero Gatti e Profa. Marisa Philbert
Lajolo, pela sugestão na qualificação.
Aos professores do Mackenzie por compartilhar seus
conhecimentos.
À minha mãe Cecília e meu pai Benedito, por
incentivar a busca do conhecimento através dos
estudos.
Ao Governo do Estado de São Paulo, pela bolsa de
estudo através do Programa Bolsa Mestrado.
Este trabalho foi financiado em parte pelo Instituto
Presbiteriano Mackenzie, através do Fundo
Mackenzie de Pesquisa.
O aumento da sabedoria pode ser medido
com exatidão pela diminuição do mau humor”
Friedrich Wilhelm Nietzsche
Resumo
Esperando contribuir para ampliar as discussões sobre a questão da
intertextualidade cultural, o objetivo da presente dissertação é refletir
sobre o conceito de paródia no filme O Lamparina (1964), de Amácio
Mazzaropi dedicado à representação no universo social e cultural do
caipira com a satirização dos filmes de cangaço e sobre a figura histórica
do mais famoso cangaceiro Lampião.
Apresentaremos as influências que transpassaram o caminho do
comediante Mazzaropi, buscando formadores da personagem caipira em
sua história vivida desde o circo-teatro até a dimensão como diretor, ator,
produtor e escritor de seus próprios filmes.
Discutiremos também algumas razões da indiferença de críticos, que se
uniram no movimento chamado Cinema Novo.
Baseando-se nesses estudos, esta pesquisa transita de forma
interdisciplinar pelas linguagens – História da Cultura e Cinematográfica,
apresentando o encontro entre cultura; caipira e cangaceiro, do modo que
são expressas na condição de ficção no filme O Lamparina e nas
referências históricas.
Palavras-chave: Mazzaropi , caipira, cangaceiro, cinema e paródia.
Abstract
Hoping to contribute to enlarge the discussions about the subject of the
cultural intertextualidade, the objective of the present dissertation is to
contemplate on the parody concept in the film O Lamparina (1964) of
Amácio Mazzaropi dedicated to the representation in the social and
cultural universe of the “caipira” with the satire of the “cangaço” films and
about the historical illustration of the most famous “cangaceiro” Lampião.
We will present the influences that passed over comedian Mazzaropi’s
road, searching to identify to personage “caipira” in its history lived from
the circus-theater to the dimension as director, actor, producer and writer
of their own films.
We will discuss also some reasons of the critics' indifference, that they
joined in the movement called New Movies.
Basing on those studies this research moves in an interdisciplinary way
through the languages – History of the Culture and Cinematographic,
presenting the encounter among culture; “caipira” and “cangaceiro”, in the
way that they are expressed in the fiction condition in the film O Lamparina
and in the historical references.
Key-words: Mazzaropi, “caipira”, “cangaceiro", movies and parody.
Lista de Ilustrações
O artista Mazzaropi ...................................................................................... 15
Bibi Ferreira e Mazzaropi na TV Excelsior (1962) ....................................... 21
Quadrinho
Mazzarapi em Hollywood” ........................................................ 24
Mazzaropi no Teatro Colombo em 1945 ..................................................... 30
Anúncio em jornal da reabertura do Omniographo (1896) .......................... 42
Foto do Caipira Génesio Arruda em Acabaram-se os otários (1929) .......... 44
Cena do bando de Capitão Galdino posando para foto .............................. 76
Cena que representa Benjamim Abrahão tirando foto
do grupo de cangaceiros ........................................................................ 76
Foto de Lampião e seu bando tirada por Benjamim Abrahão ..................... 76
Teodoro morto junto a um córrego no sertão O Cangaceiro (1953) ......... 79
A família caipira de Bernardino Jabá ........................................................... 82
A família caipira e cangaceira ...................................................................... 83
O Lamparina ................................................................................................ 86
Sumário
INTRODUÇÃO ............................................................................................. 12
Capítulo 1
Mazzaropi: Vida e Obras de um comediante do povo ....................... 16
1.1. A expressão do Caipira no Cinema de Mazzaropi ........................... 30
Capítulo 2
Panorama do Cinema Brasileiro: de Mazzaropi ao Cinema Novo .... 41
2.1. Origem histórica da personagem caipira no cinema brasileiro ........ 41
2.2. Mazzaropi: A Chanchada Paulista ................................................... 44
2.3. A Chanchada da Atlântida: origens e influências
no cinema nacional .......................................................................... 47
2.4. Vera Cruz: a indústria do cinema brasileiro ..................................... 50
2.5. Cinema Novo como expressão do nacional-popular ....................... 51
Capítulo 3
Revisão Crítica e Histórica: trajetória da representação
do Sertão no Cinema Brasileiro ........................................................... 57
3.1. O Sertão vai virar mar e o Mar vai virar sertão:
o Cinema Novo de Glauber Rocha .................................................. 59
3.2. Mazzaropi em contexto social com o Cinema Novo ........................ 61
3.3. Lamparina, caipira-cangaceiro: símbolo de um Brasil
rural presente no cinema de Mazzaropi ........................................... 64
3.4. O Cangaceiro, de Lima Barreto: primeiro grande
sucesso do Cangaço ........................................................................ 67
Capítulo 4
A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa
no Cinema Brasileiro ............................................................................. 71
4.1. O Cangaceiro (1953) ....................................................................... 73
4.2. O Lamparina (1964) ......................................................................... 79
4.3. A Paródia no Cinema Brasileiro ....................................................... 90
4.4. Lamparina versus Lampião: uma paródia do mito “Rei do Sertão” . 92
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................... 101
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................... 104
ANEXO ...................................................................................................... 113
APÊNDICE ................................................................................................ 130
Introdução 12
Introdução
principal finalidade desta pesquisa é apresentar a rela-
ção intertextual sertaneja: caipira-cangaceiro na obra
do ator diretor e produtor cinematográfico brasileiro
Amácio Mazzaropi (1927–1981) e situar seu trabalho no cinema brasileiro.
Mazzaropi produziu 32 filmes, dos quais 21 foram escritos por
ele, isso mostra seu considerável conhecimento sobre os problemas e an-
siedades que os brasileiros enfrentavam diante do advento de uma agres-
siva cultura capitalista. É evidente a todos os que assistiram a algum
filme de Mazzaropi, seu interesse particular por algum grupo social, ou
seja, os caipiras. Seu personagem mais bem-sucedido, Jeca, pode ser
visto como uma forma de representação de caipiras, bem como referência
sobre cultura popular, como ele próprio afirma:
O que eu entendo por cultura popular? As raízes do povo
brasileiro. Assim, negar o caipira brasileiro é negar a pró-
pria raiz. Acho que cultura é justamente não esquecer o
passado, não esquecer nossas tradições. O meu público es-
tá comigo há 40 anos e não me larga. Quer dizer que ele
me entende
1
.
Ao considerar as imagens como registros da cultura popular, pro-
cura-se neste trabalho, compreender o tipo de realidade retratada no fil-
me ‘
O Lamparina’
(1964).
1
Mazzaropi, entrevista dada ao
Folhetim da Folha de São Paulo
, 02/07/78.
Introdução 13
Privilegiando a dimensão do imaginário popular, essa película
constitui uma experiência importante no campo da ‘transposição’ da
imagem do caipira e do cangaceiro.
Com base na tese de doutorado da pesquisadora Eva Paulino
Bueno,
O Artista do Povo: Mazzaropi e Jeca Tatu no cinema do Brasil
, eu
observarei como a representação do caipira se constitui como uma leitura
específica feita por Mazzaropi ao ser bem-sucedido junto à população da
periferia das grandes cidades composta por migrantes rurais.
Na obra de Célia Tolentino encontramos no rural uma forma de
representação fílmica em que se observa a vida sertaneja como elemento
de análise em relação ao caipira e cangaceiro:
Ao decretar o fim do caipira (no sentido de Antonio Candi-
do) na vida rural brasileira, Mazzaropi construía, malgrado
a posição política lastimável, um prognóstico mais plausí-
vel e menos romântico que o nosso cinema politizado de
60. E acabava demonstrando, no fim das contas, que o
caipirismo, no sentido em que seu filme se faz paradigmá-
tico, sobrevivia e constituía marca indelével na moderniza-
ção e cultura brasileiras, ambas impregnadas de elementos
arcaicos, mas atribuindo o arcaísmo ao outro. (Tolentino,
2001, pp. 130-131)
A representação do cangaço no cinema, discutida na obra “
Can-
gaço: O Nordestern no Cinema Brasileiro”,
de
Maria Rosário Caetano
–,
reflete-se no tratamento da temática, observando o cangaceiro e suas
próprias tradições que passam, contudo, por um processo de transfor-
mação, visando a sua adaptação à narrativa.
O início desta pesquisa levou-me a investigar a formação da cul-
tura caipira e cangaceiro, símbolos representantes do imaginário popular
do sertão
2
brasileiro.
2
Generalizou-se o conceito de sertão para vasta área do interior brasileiro que expressa plurali-
dade geográfica, social, econômica, cultural, equiparando-se à idéia de “região”, exposta como
Introdução 14
Este encontro de culturas: caipira e cangaceiro será apresentada
na forma de ficção no cinema de Mazzaropi, que, através de seus filmes,
reproduz um período histórico
entre as décadas de 1950 e 1960, no qual
o Brasil rural começava a dar lugar ao Brasil urbano. Neste mesmo pe-
ríodo representa uma fase de migração do nordestino para o Sudeste
que, com o intuito de se livrar das secas freqüentes e de frágeis condições
de sobrevivência, dirigiam-se aos grandes centros
urbanos e periferias,
principalmente em São Paulo, por isso podemos também analisar um
encontro de públicos tanto de nordestinos como caipiras paulistas.
O presente estudo ainda nos traz um rápido panorama sobre a
representação da imagem do caipira e cangaceiro em produções cinema-
tográficas.
Nesse caminho, faz-se necessário entender como foi tratado o
elemento caipira-cangaceiro no cinema, suas aproximações da realidade,
bem como apresentados de formas ficcionais.
Partindo do pressuposto de que, nos filmes de Mazzaropi, a per-
sonagem caipira funciona como elemento unificador que expressa, de
certo modo, a visão de mundo do público sertanejo a quem originalmente
se dirige, surgem algumas indagações: Qual seria o sentido de sua
“apropriação” por uma manifestação artística dirigida a um público
rural-urbano? Como a figura de caipira-cangaceiro é “traduzida” para as
imagens cinematográficas? Como o sertão aparece nessas imagens?
Para refletir sobre essas questões, realizar-se-á uma análise da
relação intertextual entre o caipira-cangaceiro a qual é apresentada atra-
espacialização destacada num continente, país ou subunidade setorial de poder, caracterizada
pelas relações sociais e de trabalho, condições materiais, recursos ambientais, natureza do que
produz, espécies de bens comercializados, formação étnica, manifestações culturais. Como cate-
goria analítica da divisão espacial, “sertão” exprime condição de território interior de uma região
ou unidade administrativa interna – Sertão Nordestino, Sertão da Bahia – ou de zoneamento des-
sas espacializações – Alto Sertão da Bahia, Sertão de Canudos, Sertão do São Francisco, Sertão
do Araripe – ou ainda o sertão do bandeirante que inclui o interior de outras unidades da federa-
ção, fora do “polígono das secas”. Na concepção da dualidade geográfica, tem-se o sertão nas
perspectivas espacial e social; pela ótica cultural, vê-se também o sertão por diferentes manifesta-
ções, destacando-se as expressões musicais sertanejas do Centro-Sul e a nordestina, traduzindo
diferentes viveres do interior do país (Neves, 2003, pp. 153-162).
Introdução 15
vés do conceito de paródia, tendo como pressupostos teóricos formulados
por Linda Hutcheon, em
Uma teoria da paródia
e, mais especificamente,
por Bakhtin, em
A cultura popular na Idade Média e no Renascimento
,
sobre a carnavalização, o grotesco e a paródia que estão inseridos num
universo que, para esta pesquisa, funciona como o elemento estrutura-
dor da narrativa fílmica.
O artista Mazzaropi
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 16
CAPÍTULO
1
Mazzaropi: Vida e Obras de um comediante do povo
Quando eu comecei minha vida artística, muito pouca gente
que vai ler esta história existia. Nasci em 1912, e na época em
que comecei tinha uns quinze anos. Naquele tempo, o gênero
de peças que fazia sucesso no teatro era caipira. E, como todo
mundo, eu gostava de assisti-las. Dois atores, em particular,
me fascinavam. Genésio e Sebastião de Arruda. Sebastião
mais que Genésio, que era um pouco caricato demais para meu
gosto. Nem sei bem por que, de repente, lá tava eu trabalhando
no teatro. Mas não como ator – eu pintava cenários. Aliás, eu
amava a pintura, sempre amei a pintura. Pois bem, um belo
dia “perdi” o pincel e resolvi seguir a carreira de ator. No come-
ço procurei copiar a naturalidade do Sebastião, depois fui para
o interior criar meu próprio tipo: caboclão bastante natural (na
roupa, no andar, na fala). Um simples caboclo entre os milhões
que vivem no interior brasileiro.
(Salem, 1970)
os artistas brasileiros de destaque que vieram do circo,
do teatro e da rádio, Amácio Mazzaropi ocupa uma
posição privilegiada. Além de passar por estes cami-
nhos artísticos, engajou no cinema e produziu uma filmografia vasta e
interessante, notável não só como expressão da cultura popular, mas
também como filmografia em si. A produção artística de Mazzaropi desta-
ca-se como contribuição especial para o cinema de grandes bilheterias e
audiência, e pode ser chave fecunda para o estudo sobre a cultura popu-
lar. Sua obra dialoga com a história artística, cultural, social, política e
econômica do nosso país, desde a era Vargas até o momento da abertura
política dos anos 80.
Nascido a 9 de abril de 1912, na casa n. 5, da Rua Vitório Carmi-
lo, em São Paulo e batizado na Igreja de Santa Cecília. Filho do italiano
Bernardo Mazzaropi e de Clara Ferreira Mazzaropi, filha de portugueses.
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 17
Ambos eram comerciantes bem-sucedidos, do tradicional bairro Barra
Funda, da capital paulista.
Para Mazzaropi, no circo, o mais importante foi a experiência de
entender e ser entendido pelo público. Foi nessa convivência com gente
humilde que adquiriu condições de entender o povo e projetar-se na per-
sonagem que o consagrou.
Mazzaropi desde criança queria ser artista de circo, e desinteres-
sado pelos estudos vivia freqüentemente em circos que se instalavam nas
proximidades de sua casa, mas, incompreendido pela família, foi condu-
zido para Curitiba, em companhia de seu tio Domingos Mazzaropi, com o
objetivo de distanciá-lo do circo. Aos 14 anos, retornou para São Paulo e
continuou a tentativa de ingressar na vida circense. Conheceu o famoso
faquir Ferry, de um circo popular e começou acompanhá-lo nos
espetáculos ambulantes.
Com o sucesso, resolveu criar a sua própria companhia, viajando
com um barracão desmontável – o que chamava de Teatro de Emergência
Pavilhão Mazzaropi
3
estreou em Jundiaí em 1940. Mazzaropi centrali-
zou sua atividade do teatro popular em São Paulo, mantendo quatro
pavilhões, circulando pelos bairros com um repertório ítalo-paulista,
do qual o Grão-Mogol era a comédia do irmão de Abílio Pereira de Almei-
da, João Pereira de Almeida, com a peça
Filho de sapateiro, sapateiro
deve ser
4
.
3
Os Pavilhões, estruturas móveis de zinco, eram armados de cidade em cidade, conforme a toa-
da das apresentações. No terreno alugado pela companhia, durante algumas semanas ou meses,
erguia-se a estrutura de zinco, dentro da qual eram encenadas peças ou apresentações musicais.
Terminando o contrato de aluguel, a companhia partia para outro lugar, onde repetia a mesma
coisa. Às vezes chegava a ficar por mais de um ano em uma única cidade. A diferença entre Pavi-
lhões e o Circos-teatro era somente o material que cobria os espetáculos: um era zinco e o outro,
de lona (Barsalini, 2002, p. 28).
4
Glauco Barsalini, em sua obra
Mazzaropi o Jeca do Brasil,
cita que esta peça conta uma histó-
ria de um sapateiro que conseguiu custear os estudos do filho para que ele se tornasse médico. O
rapaz se apaixonou por uma moça da alta sociedade, na casa de quem ocorre o baile de formatu-
ra, de que o sapateiro faz questão de participar, constrangendo a todos, principalmente ao filho,
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 18
Em 18 de setembro, foi inaugurada a primeira emissora de televi-
são brasileira, a TV Difusora de São Paulo, canal 3. Convidado para o
show de estréia, Mazzaropi tornou-se o primeiro humorista da TV. Ini-
cialmente, à semelhança da rádio, apresentava-se sozinho, mas, em pou-
cos dias, a direção decidiu lançar o programa
Rancho Alegre,
com Amácio
e a atriz Geny Prado que posteriormente o acompanharia nos filmes, re-
presentando o papel de esposa. Segundo a atriz, em depoimento para o
documentário “A Herança do Jeca” (CDPH – UNITAU), a primeira fórmula
empregada no programa era uma cópia do programa de rádio, mas ficou
sem graça porque Mazza aparecia sozinho com o sanfoneiro, dizia umas
piadas e depois cantava. Isso em televisão não funcionava.
O novo programa foi lançado às quartas-feiras, às 21h, sob a di-
reção de Cassiano Gabus Mendes, com o patrocínio da Philco, o primeiro
patrocinador da TV brasileira. Este novo programa teve uma nova roupa-
gem que provocou elogios pela crítica. O jornal impresso
Diário da Noite
apresentou uma crítica interessante por referir-se à valorização de uma
linguagem de caipiras nos programas elaboradas por Mazzaropi:
Girando o dial
– Rancho Alegre é a primeira produção de
televisão que aborda a vida e a linguagem dos caipiras. E
diga-se, logo de entrada, que aqui temos um verdadeiro
material para a televisão, assim como os americanos
encontram encanto nas suas histórias de
“Farwest”,
“cow-boys”,
seresteiros românticos e
Hopalong Cassidy
.
Não temos no Brasil uma tradição caipira nas artes e nos
espetáculos. Todos os nossos caipiras encontram, de ime-
diato, um auditório mais instruído que os repele e que não
se conforma em lhe prestar trinta minutos consecutivos de
atenção. Mas o mesmo público, uma vez diante da tela de
uma televisão, descobrirá que há motivos de interesse e
versão, ainda que não seja por causa do curioso, do “tipo”
por seus modos grosseiros e simplórios. Na ocasião desse encontro a disparidade sociocultural
está na vergonha do filho em reconhecer a simplicidade do pai na condição de um simples sapa-
teiro (Barsalini, 2002, p. 36). Nesta história podemos fazer um paralelo com o primeiro filme
Cho-
fer de Praça
(1958), produzido por Mazzaropi através de sua companhia – PAM, em que no lugar
de um simples sapateiro é interpretado por um motorista de táxi que vive semelhanças com a
peça teatral.
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 19
das personagens apresentadas. Eis porque Mazzaropi de-
monstra grande habilidade ao trazer para a câmara o des-
leixo, a fala macia e errada, as pequenas espertezas do
caipira brasileiro. Sua última audição foi um agradável espe-
táculo de espontaneidade e naturalidade. Apesar da fraque-
za da história, e de alguns erros que poderiam ser evitados
(como aquele grupo de rapazes vestidos à moda da cidade, e o
compadre que chega em mangas de camisa e o cabelo alisado
a gomalina), foi divertido acompanhar os movimentos e as fa-
las de Mazzaropi. Mas também é justo que se destaque a fi-
gura de Geny Prado, não tanto uma comediante, mas boa
atriz, que se impõe ao espectador. Ela diz o seu diálogo com
grande naturalidade e, mesmo colocado em segundo plano,
jamais se esquece de que há uma câmera pronta para pegá-la
a qualquer momento. Ela jamais se distrai e nunca se esque-
ce de fazer um movimento, um gesto, um olhar que corres-
ponda à situação focalizada. Com estes dois elementos –
Mazzaropi e Geny Prado – o Rancho alegre é um programa
que usa com inteligência os recursos modernos da televisão.
5
Com o sucesso que fazia na rádio, gozado pelos críticos por causa
de sua magreza, ele foi capa da Revista
Êxito
e bem avaliado com uma
crítica positiva feita por Jean Coquelin. Passou a ser chamado de “Ber-
nard Shaw do Tucurivi”. Sua blague
“Arranhei”
o qual tornou-se muito
popular de uso corrente. Virou mania no público, pois assim era anun-
ciado nas chamadas de intervalo da rádio:
Arranhei! Mazzaropi – É, indiscutivelmente, um humorista
fino (...) cada entrada sua é arranhada! No Sumaré, ao mi-
crofone da Tupy, ele vive entupigaitado ansioso por um
pouquinho mais de carne para seu belo físico (...) que físi-
co! Mazzaropi, o criador de piadas “
Mazzaropianas
” tem
medo, (veneno? Nada disso...) que alguém ainda faça dos
seus ossos marinha. Mas, o magríssimo humorista da G-2
que, de fato, não tem orgulho, continua firme, “segurando
a marimba”, sorrindo e dizendo: arranhei!
6
5
E. B. Diário da Noite, SP, set-1950. Arquivo do Museu Mazzaropi, Hotel Fazenda Mazzaropi
(AMM) – Hemeroteca.
6
O Governador, s/d, 24/10/1946. Arquivo do Museu Mazzaropi, Hotel Fazenda Mazzaropi
(AMM) – Hemeroteca.
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 20
Mazzaropi foi levado para o cinema através de Abílio Pereira de
Almeida e Tom Payne que estavam sentados no balcão do Nick Bar, to-
mando um aperitivo e assistindo a um programa de televisão no qual o
comediante teve papel de destaque como caipira. Naquele momento, após
um diálogo, decidiram convidar o comediante para trabalhar na Compa-
nhia Cinematográfica Vera Cruz
7
.
Na Vera Cruz, participou de
Sai da Frente
8
(1951),
Nadando em
dinheiro
(1952) e
Candinho
(1953). Ele encontrou no cinema a maneira
mais apropriada de somar suas experiências do rádio com teatro para
seus talentos. Mazzaropi possuía os mais autos salários pagos pela com-
panhia, a empresa falia, mas os filmes daquele que se apresentava com
aquele jeito caipira rendia uma boa bilheteria.
Mazzaropi caracterizou-se por
Jeca Tatu
(1959), uma adaptação
de Jeca Tatuzinho, de Monteiro Lobato. Conforme o pesquisador Nuno
Cesar Abreu, este personagem no cinema veio a corresponder como ico-
nografia de almanaques:
Este personagem era uma espécie de caipira pedagógico
utilizado para a veiculação de produtos de um laboratório
farmacêutico, que procurava passar, entre outras, noções
de higiene pessoal e rudimentos de práticas agrícolas. As-
sentava-se clichês sobre o homem do campo do sudeste e
mais propriamente do interior paulista: indolente, simples
e conformado. Mas também astucioso, manhoso e valente
quando necessário. Honesto, sempre. Sendo síntese audio-
visual de todas as formas de representação do caipira,
encontram correspondência em Mazzaropi desde a icono-
grafia de almanaques de farmácia à tradição teatral e cir-
7
A Companhia Cinematográfica Vera Cruz nasceu em São Bernardo do Campo – São Paulo, em
4 de novembro de 1949, a 500 metros do Km18 da Via Anchieta. A iniciativa foi do industrial e
engenheiro Franco Zampari que, liderando um grupo de industriais paulistas, deu início no local
à implantação de um parque cinematográfico nos moldes dos europeus e americanos.
8
Filme que lançou a personagem Mazzaropi, dando continuidade ao objetivo iniciado com
Tico
Tico no Fubá
, de produção de fitas que atingissem um público maior e mais popular. O filme lan-
çou também o treinado cão Duque, contratado pela companhia com salário maior que de muitos
atores secundários.
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 21
cense. Ele materializou um estereótipo que veio ocupar um
espaço carente no cinema brasileiro e no inconsciente po-
pular.
9
A seguir realizou dois filmes para Brasil Filmes:
O Gato da ma-
dame
(1954) e
A carrocinha
(1955), dirigida por Agostinho Martins Perei-
ra. No Rio, a convite de Osvaldo Massaini, produziu
O fuzileiro do amor
(1955),
O noivo da girafa
(1956) e
Chico fumaça
(1956), dirigido por Vitor
Lima.
Um total de oito filmes, antes de decidir, ou melhor, ter condições
de montar sua própria produtora em Taubaté, a PAM Filmes – Produções
Amácio Mazzaropi. Assim, ele se consagrou não apenas como ator e co-
mediante, que já era reconhecido, mas também como produtor, diretor,
distribuidor e até fiscalizador de seus próprios filmes.
9
ABREU, NUNO César.
Anotações sobre Mazzaropi – O Jeca que não era tatu
. Filme Cultura.
N. 40, ano XV, ago-out 1982.
1962 –
A
o completar 50 anos de idade Mazzaropi é homenageado n
o
p
rograma BRASIL 62, de Bibi Ferreira, na TV Excelsior, de São P
a
ulo.
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 22
A “PAM Filmes”, situada primeiramente na Fazenda da Santa e
posteriormente na Fazenda-Estúdio, fez de Taubaté e de todo o Vale do
Paraíba, palco de uma série de vinte e quatro filmes que Mazzaropi rodou
por esta região, entre os anos de 1958 e 1981. Em Taubaté, em seus
áureos tempos, foi levado às telas de cinema de todo o Brasil.
Mazzaropi sentia-se comprometido com o seu público, e a sua
produção cinematográfica mantinha, à risca, o seu objetivo de divertir os
simples:
Minha responsabilidade é com esse público, essa gente
simples que só vai ao cinema uma vez por ano, quando eu
lanço os meus filmes. Procuro dar a eles o melhor. Por isso,
tenho muito cuidado na produção. Eu podia gastar muito
menos, que esse público iria me ver do mesmo jeito, mas
eu prefiro que eles vejam uma coisa bem feita.
10
Uma outra fórmula de sucesso utilizada por Mazzaropi nas filma-
gens era o improviso no cinema, estabelecendo, de certa forma, uma si-
nergia com seu público, e, com uma certa dose de cuidado, ele dava “o
tempo da risada”. Sobre a obra
Mazzaropi – O Jeca do Brasil,
de Glauco
Barsalini, Norival Gonçalves de Moura comenta a respeito do riso e o im-
proviso nas filmagens:
Caretas, esse negócio, o pessoal já entendia. Ele se preocu-
pava muito com o que o público estava (...) Ele estava fil-
mando, mas ele já estava vendo a reação do público no
cinema. Tanto que tomava muito cuidado com piada, pode
ver nos filmes dele, ele fazia a piada e dava um tempo para
o pessoal rir, para entrar com outra em cima ou continuar
o diálogo. Nunca encavalava piada para não atrapalhar o
andamento do filme (...). (Barsalini, 2002, p. 60)
Mazzaropi, preocupado em valorizar e divulgar nossa cultura por
meio de outro meio de comunicação, lançou suas aventuras em quadri-
10
Jornal
Última Hora
. Entrevista a Osvaldo Mendes, junho de 1981.
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 23
nhos em uma fase de massificação do quadrinho norte-americano no
país. Alguns editores brasileiros buscavam a valorização através de nossa
literatura e personagens do rádio, TV e cinema nos quadrinhos, como
comenta Bruno Fernandes Alves, em seu artigo
A identidade nacional na
pós-modernidade: o caso dos quadrinhos brasileiros
:
Ainda nessa fase temos a adaptação de clássicos da litera-
tura brasileira para os quadrinhos que são importantes
dentro de um contexto político de valorização da cultura e
do artista brasileiro, embora as mesmas não tivessem a di-
nâmica de uma história em quadrinhos. Provavelmente foi
o enorme respeito às obras literárias que resultou num re-
ceio de ousar na adaptação, principalmente para uma lin-
guagem que ainda lutava para ser reconhecida como arte.
Outra vertente que surgiu nos anos 50 foi a transposição
de personagens do rádio, da televisão e do cinema para os
quadrinhos, como Mazzaropi, Grande Otelo e Oscarito, entre
outros. (Alves, 2002, pp. 4-5)
Conforme o Quadrinho a seguir publicado em 1966, intitulado
Mazzaropi em Hollywood
11
,
muito nos chamou a atenção o diálogo entre
as personagens, por apresentar críticas a tevê como forte concorrência
para o cinema, e também a busca de uma personagem com um tipo “di-
ferente” para o cinema de Hollywood. Neste quadrinho (veja-o completo
no Anexo I), Mazzaropi expôs o cinema norte-americano com a falta de
autenticidade das produções ao utilizar dublagens e dublês, notável foi a
crítica dada ao identificar a transfiguração de nosso caipira por um tipo
“Daniel Boon” do cinema americano. Podemos considerar tal crítica como
tentativa de colonização cultural através de Hollywood, conformes seus
parâmetros de imagem. João Luis Vieira comenta em seu artigo esta do-
minação de cinema:
11
História escrita por Alberto Maduar para revista
Seleção Juvenis
(Edição Especial Mazzaropi –
Ano XVI – número 516 – Fevereiro de 1966) Jayme Cortez, ilustrador e responsável pela elabora-
ção dos cartazes de alguns filmes de Mazzaropi, influenciou uma geração de ilustradores brasilei-
ros. Na mesma época em que circulavam os quadrinhos de Mazzaropi existiam revistas com
outros personagens como Grande Otelo, Oscarito e outros.
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 24
Numa atitude que reflete total colonização, sugere-se que a
perfeição e o bom acabamento técnico são incompatíveis
com o cinema brasileiro, o qual, por sua vez, evoluiu ba-
seado apenas no deboche e na ironia carnavalesca. Após
anos e anos de dominação do cinema estrangeiro no Brasil,
o grande legado desse processo de colonização cultural foi
que ambos, público e crítica, desenvolveram a mesma ati-
tude em relação ao que deveria ser considerado como “ver-
dadeiro” cinema, consenso este que sempre confundiu o
veículo com uma determinada forma de trabalhá-lo, neste
caso, o da continuidade ensinada pelo cinema clássico-
narrativo americano. Para público e crítica, fazer cinema sig-
nificava, e significa ainda em muitos casos, proceder dentro
dos parâmetros estabelecidos e impostos por Hollywood.
12
Quadrinho “Mazzarapi em Hollywod”.
12
Embrafilme, Filme e Cultura.
Este é meu, é seu, é nosso: Introdução à paródia no Cinema Brasi-
leiro. A
no XVI, maio, 1983 no. 41/42. artigo publicado pelo professor de comunicação João Luiz
Vieira, p. 27.
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 25
O trabalho de Mazzaropi pode nos representar uma certa resis-
tência à invasão cultural, pois basta conferir seu sucesso de bilheteria no
cinema brasileiro. Mas Mazzaropi também encontrou rejeição e critica
não favoráveis ao seu cinema, em 1965, no jornal
Última Hora
, Ignácio de
Loyola, em artigo intitulado
A contribuição de Mazzaropi para o retroces-
so
, faz a seguinte crítica sobre Mazzaropi e a seus filmes:
Não contávamos, todavia, com a inexistência, em Mazzaro-
pi, do fator evolução, natural no artista (caberia aqui uma
discussão estéril, a fim de saber se Mazza é artista ou não.
Deixemos pra lá!). Bitolado, fora de época, ausente de tudo
que se passa ao seu redor, a Mazzaropi interessa apenas
explorar e fomentar o gosto equívoco, não possuindo o ci-
nema, para ele, qualquer implicação cultural.
Infelizmente, Mazza está certo dentro do seu raciocínio que
não é longo,
ao contrário. Primarismo ainda faz dinheiro. E
é incompreensível que homens de talento (?) defendam e
estimulem este tipo de atitude. Julgando-se gênio incom-
preendido, Mazza escreve, dirige, produz, canta e procura
cercar-se sempre de gente com nível mais baixo que o dele
na realização de suas películas. (Loyola, 1965)
O próprio cineasta, incomodado com o teor das críticas em rela-
ção aos seus filmes e à sua própria vida, defendia-se vigorosamente,
afirmando que seus filmes tinham por objetivo divertir o povo brasileiro e
que ele, cineasta, não poderia ser responsabilizado pela didática ou ser
escola para ensinar:
Mas mesmo que eu tivesse todo o capital para comprar tu-
do que é necessário, ainda seria preciso mudar a mentali-
dade dos intelectuais do Brasil. É preciso acabar com esse
negócio que cinema tem que transmitir mensagem, tem
que educar o povo. Nós não somos escola. (...) eu tenho é
que fazer rir. Eu não tenho nada com esse problema de
mensagem pra cá mensagem pra lá. Educar o povo é proble-
ma do Ministério da Educação, não é comigo.
13
13
Mazzaropi,
Jornal Agora
, 27 de fevereiro de 1971.
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 26
Dentre os intelectuais e críticos, apenas Paulo Emílio Sales Go-
mes, ao analisar as obras de Mazzaropi, distanciava-se de uma crítica
pejorativa:
Sabemos que o lugar-comum é sempre verdadeiro e um fi-
lósofo francês já explicou que o único problema é aprofun-
dá-lo. Mazzaropi não aprofunda propriamente nada, mas
os lugares comuns se acumulam tanto que o terreno acaba
cedendo e como as minas descobertas ao acaso de desbar-
rancamentos, de repente desponta dessas fitas uma ines-
perada poesia. Isso em geral sucede quando ele não está
fazendo nada de especial, apenas olhando, andando ou
pondo fumo no pito. O melhor de seus filmes é simples-
mente ele próprio. (Calil e Machado, 1986, pp. 275-276)
No intelectualismo reinante no período surgiu esta afirmação de
Paulo Emílio, revelando uma incomum percepção cultural – entre o seu
pensamento e o da crítica – sobre as produções de Mazzaropi. Para tanto,
o crítico e intelectual de cinema publicou um artigo em que confessou
não ter verificado adequadamente a carreira de Mazzaropi, e lamentou
não tê-lo encontrado pessoalmente, após ter assistido pela primeira vez o
filme
Um Caipira em Bariloche,
na sala popular de cinema no largo Pais-
sandu. Gomes percebeu que o público que estava na sala e prestigiava o
filme eram simples operários, balconistas e pequenos funcionários que
despertavam seus interesses atenciosamente e apenas o silêncio era
interrompido pelo riso. Em sua análise sobre o filme e Mazzaropi,
comentou:
Alguns profissionais que o cercam são competentes e asse-
guram uma boa fotografia e um som razoável. Seria bom
que ficassem nisso e que de resto se preocupassem apenas
em nos fazer ver e ouvir Mazzaropi, de maneira motódica,
sem pressa, dava tempo para que tudo ficasse bem claro.
Que fizessem em suma um cinema bem primitivo que teria
de moderno apenas a qualidade da imagem e do som. Pen-
so que isso poderia ser um grande acontecimento artístico.
Mas não. Influenciado por seu cineasta, Mazzaropi os deixa
fazer o temível cinema no qual temos o baile de carnaval ou
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 27
a luta generalizada de
Um Caipira em Bariloche
: o erotismo
e a ação. São os mementos em que os espectadores acom-
panhados aproveitam para conversar e os que, como eu,
estão sós, começam a criticar.
14
Em entrevista para o jornal
Folha de São Paulo,
o jornalista José
Wolf perguntou a Mazzaropi sobre sua caracterização e a criação
de seu
personagem caipira:
Não precisa ir muito longe, é só ir pro lado de Socorro,
Santo Amaro, que já se encontra esse tipo que faço. Você
viaja pelo interior e vê gente desse tipo. Aliás, havia críticos
no início que diziam que eu fazia um caipira estilizado. Não
é estilizado não. Eles que não têm conhecimento da reali-
dade brasileira. Lêem livros de Monteiro Lobato e de outros
escritores, mas interpretam da maneira deles. Como não
convivem com o caipira, com o pessoal da roça, acham que
não é daquele jeito. Acham que caipira tem que ser como o
da festa de São João, em baile de Santo Antônio. Isto sim
que é estilização.
15
Com este tipo Jeca, Mazzaropi lançava um filme por ano, sempre
em 25 de janeiro, aniversário de São Paulo, no cine Art-Palácio, que ele
adotava para lançamento das películas, pois o dono do cinema foi o que
mais lhe apoiara no início da carreira de produtor.
O cinema produzido por Mazzaropi serviu de referência para ou-
tros artistas, como o cartonista Mauricio de Souza que declarou em uma
entrevista ao site
ANIMATOONS
a importância que Mazzaropi teve para o
cinema nacional:
Abri os olhos para o cinema brasileiro com as chanchadas
da Atlântida. Com seus bons momentos de música e comé-
dia. Depois, senti o peso das boas produções no “Canga-
14
Publicado no
Jornal da Tarde
, São Paulo, 19 abril de 1973, sob o título “
O segredo de um ho-
mem que a crítica nunca elogiou: Mazzaropi
”.
15
O jornalista José Wolf entrevistou Mazzaropi, publicou uma matéria intitulada a “
Vida de um
Ítalo-caipira
” para o jornal
Folha de S. Paulo
. Matéria de capa do Folhetim de 2 de julho de 1978.
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 28
ceiro”, “O Pagador de Promessas”, “Rio 40 graus” e “Cidade
de Deus” de então. Mas inesquecíveis e ainda não supera-
dos, estão na minha lembrança e na história do cinema
brasileiro os filmes do Mazzaropi.
Enquanto meu pai me levava para as produções ameri-
canas, minha avó me levava para ver Mazzaropi. E eu ado-
rava.
16
A simplicidade que Mazzaropi apresentava em seu cinema “caipi-
ra” também existia no seu dia-a-dia, ele gostava de ir a quase todos os
espetáculos teatrais em cartaz na cidade. Alguns, ele chegava a ver mais
de uma vez. Elis Regina, que ele considerava a maior cantora do Brasil,
tinha sempre Mazzaropi na sua platéia – “Falso Brilhante” ele assistiu no
mínimo três vezes. Mas não era de marcar presença em camarins. Che-
gava ao teatro, comprava seu ingresso, assistia ao espetáculo e ia embora
como uma pessoa qualquer.
Mazzaropi morreu em 13 de junho de 1981, aos 69 anos, vítima
de câncer na medula, logo após iniciar sua 33ª produção,
Jeca e a Maria
tromba homem.
Foi enterrado ao lado de seu pai na cidade de Pindamo-
nhangaba, próxima de Taubaté – SP.
Logo após sua morte, a
Folha de S. Paulo
, publica um artigo inti-
tulado
O cinema perde seu Jeca
, o jornalista Oswaldo Mendes descreveu
o momento em que Mazzaropi tornou-se seu amigo e relatou como o pú-
blico do artista o acompanhava nas estréias de seus filmes.
Foi numa reunião do antigo Instituto Nacional de Cinema
que eu o conheci. A sede do INC aqui em São Paulo era
num prédio da 24 de Maio, próximo ao Teatro Municipal.
Havia uma solenidade de entrega de prêmios aos que mais
haviam faturado com seus filmes. Mazzaropi era o primei-
ro. Começamos a conversar ali mesmo no INC. Ele arredio
diante das perguntas do repórter. Eu insistindo. Descemos
16
Entrevista concedida por Mauricio de Souza para o Jornalista Antoniolli, do site ANIMATOONS,
em 30/07/2004. http://www.animatoons.com.br/turma-da-monica-aventura-no-tempo/ entre-
vista-com-mauricio-de-sousa/.
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 29
para a rua. A conversa continuou no cafezinho de bar. Daí
nos despedimos. Fui para a redação e entreguei a matéria.
Dias depois, a entrevista já publicada, Mazzaropi liga para
o jornal à minha procura.
“Você foi decente comigo. Não me esculhambou como cos-
tumam fazer. Aquilo nem foi uma entrevista. A gente ape-
nas conversou sobre vários assuntos e eu nem me abri
muito de medo do que sairia publicado depois. Eu não gos-
to de dar entrevista, mas quando você quiser é só me pro-
curar.”
Foi assim que Mazzaropi ficou sendo meu amigo. Quando
lançou seu filme seguinte, telefonou. “Não estou querendo
reportagem não. Quero que você esteja hoje na sessão das
dez no Cine Art Palácio. Não precisa nem ver o filme, se
não quiser. Quero só que você veja como é o meu público,
como eles me recebem.” De fato, havia um toque mais cai-
pira, mais tupiniquim que roliudiano nas estréias de Maz-
zaropi no Cine Art Palácio. A periferia inteira vinha para o
Largo do Paissandu. Os que não entravam, ficavam na por-
ta esperando a chegada de Mazzaropi. Depois, antes do
filme ser exibido, ele subia ao pequeno palco do Art Palá-
cio, apresentava o elenco e técnicos que trabalharam no
filme e dava um pequeno show, contando velhas piadas,
cantando velhas canções.
Mazzaropi com seu personagem Jeca, que tanto encantou o pú-
blico brasileiro, soube, como nenhum outro artista de cinema, representar o
resgate das tradições populares brasileiras por meio das imagens referentes
a valores fundamentais dos modos de vida de brasileiros e sua problema-
tização por meio de exposição de conflitos migratórios, bem como de soli-
dariedade, simplicidade, liberdade e justiça.
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 30
Mazzaropi no Teatro Colombo em 1945.
1.1. A expressão do Caipira no
Cinema de Mazzaropi
O Zé Povinho sabe bem o que quer, e o reflexo disso são os
recordes de bilheteria de meus filmes, que são chamados de
fitinhas e não vão a festivais. A crítica, no começo, me arra-
sava, agora silencia. Alguns críticos nem mencionam meus
filmes nas indicações, como se não existisse. Mas há uma
coisa que ninguém pode negar: pouca gente contribuiu tanto
para o cinema brasileiro quanto eu e o meu Jeca
.
17
17
Depoimento de Mazzaropi. A publicação foi feita logo após sua morte para o jornal
Folha de
S. Paulo
, domingo, 14 de junho de 1981.
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 31
O cinema de Mazzaropi, de linha cômica como apontam quase to-
dos ensaístas, foi objeto de um reduzido número de estudos. Os autores
detectam o pouco interesse pelas películas brasileiras que constantemen-
te alcançaram um bom número de espectadores e cópias comercializa-
das. Eva Paulino Bueno é quem vai chamar atenção, no segmento de
estudo sobre a cultura popular brasileira através de Mazzaropi.
A história apresentada nos filmes de Mazzaropi não é tam-
bém uma tentativa sistemática de proporcionar uma relei-
tura de figuras-chave brasileira. Já que Mazzaropi atua
como personagem principal, e por causa do tipo físico e do
caráter de Jeca a ele associados, seu protagonista não per-
sonifica da figura heróica tradicional. (...) De fato, embora a
finalidade seja provocar o riso no público, seus filmes tra-
tam de problemas básicos da história brasileira, ou seja, a
existência da escravidão, o conflito entre as culturas urba-
na e rural, as profundas diferenças regionais no Brasil, a
luta para manter o Brasil livre de influências culturais
norte-americanas e as ligações sentimentais com Portugal,
entre outros. (Bueno, 1999, p. 107)
A personagem de Mazzaropi repercutia o próprio desenvolvimento
da civilização brasileira, sem, contudo, deixar escapar os elementos cul-
turais que compunham a sua essência, ou, seja, com o passar do tempo
não perdia a memória do que efetivamente é: a síntese das origens do
povo que tratava.
O crítico Jean-Claude Bernardet descreveu que o cinema de
Mazzaropi era reacionário e conservador, baseando seus filmes em pro-
blemas reais vividos pelo público, segundo ele:
[...] as importantes discussões que se desenvolvem atual-
mente sobre o que seja cinema popular, não podem ignorar
os filmes de Mazza. Não porque sejam produtos comerciais
de grande audiência, nem porque, pensaria em imitar a
linguagem desses filmes e enxertar nela mensagens não
conservadoras, o que seria uma tolice. Mas, porque esses
filmes só tem um efeito alienante, à medida que se comu-
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 32
nicam com o público, a partir de seus problemas, canali-
zando sua tensão, dentro de uma sociedade de classe.
(Bernardet, 1978, p. 11)
Ao questionamento dos críticos quanto ao comportamento de
conservadorismo dos seus filmes, Mazzaropi respondia:
Eu apenas mostro o problema, mas à minha maneira. Os
inteligentes devem aproveitar, transformar e dar a solução.
Se são inteligentes, podem dar a solução. A mim, cabe a-
penas apresentar o problema, não sou eu que vou dar a so-
lução. Não sou político, não tenho nada que solucionar
problemas.
18
Diferenciando do estilo vanguardista do
Cinema Novo
com o obje-
tivo de provocar a reflexão sobre a realidade brasileira, cuja elaboração se
funda numa leitura do Brasil e do seu povo, destinada às camadas mé-
dias urbanas e intelectualizadas. Mazzaropi, ao se referir à crítica de in-
telectuais, comenta sobre o assunto para a Revista
Veja
:
É fácil um fulano sentar numa máquina e escrever: “Hoje
estréia mais um filme de Mazzaropi. Não precisam ir ver, é
mais uma bela porcaria”. Mas não explicam por quê. Talvez
com raiva pelo fato de eu ganhar dinheiro, talvez por acre-
ditarem que faço as fitas só para ganhar dinheiro. Mas não
é verdade, porque o maior de todos os juízes fugiria dos ci-
nemas se isso fosse verdade – o público. (Salem, 1970)
Quanto ao
Cinema Novo,
Mazzaropi, ao ser questionado se tem
algo contra, ele tem a seguinte opinião:
Não, eu não tenho nada contra ele. Só acho que a gente
tem que se decidir: ou faz fita para agradar os intelectuais
(uma minoria que não lota uma fileira de poltronas de ci-
nema) ou faz para o público que vai ao cinema em busca
de emoções diferentes. O público é simples, ele quer rir,
chorar, viver minutos de suspense. Não adianta tentar dar
a ele um punhado de absurdos: no lugar da boca, põe o
18
Folha de São Paulo
. Matéria de capa do caderno “Folhetim”, 02 de julho de 1978.
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 33
olho, no lugar do olho, põe a boca. Isso é para agradar
intelectual.
19
Eva Paulino, ao analisar como a história e as interpretações fo-
ram incorporadas nos filmes de Mazzaropi, nota que o cineasta não produ-
ziu documentários sobre o Brasil; mas seus filmes expressavam uma
maneira de ver e explicar o país, seu povo e sua história. Em suas palavras:
Os filmes não são, portanto, exercícios de conservadoris-
mo. Pelo Contrário, cada filme funciona como um estudo
de como o Brasil tradicional e rural encontra-se com o Bra-
sil moderno e urbano e sobre implicações desse encontro
na vida cultural, lingüística, política e emocional não ape-
nas dos migrantes recém-chegados, mas também daqueles
que já habitavam o espaço urbano. Em cada filme há os
mesmos problemas comuns: perda de terra, perigo de per-
der os membros da família no novo e predominante ambi-
ente cultural e tentativas para se prevenir dessas cala-
midades. Todavia, cada filme apresenta os problemas de
forma diferente. As soluções dos conflitos específicos são
tão variadas quanto os filmes
. (Bueno, 1999, p. 106)
A jornalista Maria da Glória Lopes publicou no jornal
O Estado de
S. Paulo, 24/02/1988,
a opinião dada pelo escritor Inácio Araújo sobre o
sucesso que Mazzaropi faz diante dos conflitos do público rural-urbano:
A crítica nunca esteve com ele porque Jeca representa o
Brasil subdesenvolvido, analfabeto, que ela não quer ver.
Para o público, ele representa a vingança dessa massa de
migrantes que vem do campo e se defronta com os códigos
da cidade grande. É a malícia do campo contra a malícia
da cidade.
20
O professor e pesquisador Nuno Cesar de Abreu observa que o
público de Mazzaropi era formado sobretudo pelo contingente que migrou
19
SALEM, Armando. “A Mágoa de Mazzaropi: uma crítica que só pensa em dinheiro”. Entrevista
Mazzaropi, Revista
Veja
, 28 de janeiro de 1970.
20
O Estado de S. Paulo
.
Sai da frente que lá vem o Jeca Tatu
: capa Caderno 2, 24 de fevereiro de
1988.
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 34
do campo para as cidades nas décadas de 1950 e 1960, período que
coincide com o processo de desenvolvimento e modernização da cidade e
com a industrialização e o crescimento econômico. Nesse contexto de
negação do atraso
, em que o rural surge como imagem do atrasado, a
personagem de Mazzaropi vem representar para as novas massas urba-
nas o conservadorismo do campo.
Eva Bueno, ao estudar o universo dos primeiros filmes de Mazza-
ropi, nos quais ele trabalha como autor, com direção e produção de di-
versas pessoas, salienta que os temas tratados nesse período dizem
respeito às exigências burocráticas para ser reconhecido como cidadão; à
brasilidade
versus
estrangeiro; à lei como fator de dominação etc.
Os primeiros filmes de Mazzaropi contam a história difícil e
complexa do homem comum que tenta enfrentar as mu-
danças que não sabe, os desejos que não compreende, as
diferenças que não pode penetrar. Contudo, os filmes insis-
tem que ele pode sair vitorioso. (Bueno, 1999, p. 78)
O crítico de cinema Jairo Ferreira
21
comenta a importância que
Mazzaropi representou na busca da identidade caipira no cinema, mas
seu reconhecimento foi ignorado:
Não será exagero, em revista, dizer que Mazzaropi é a es-
sência da alma cabocla de um cinema em busca de sua
identidade. Esse Jeca é um dos três melhores personagens
de toda a trajetória de “nosso” cinema, ao lado de Zé do
Caixão, criado por José Mojica Marins em 1964, e de Antô-
nio das Mortes (Deus e o Diabo na Terra do Sol) de Glauber
Rocha. São três gêneros aparentemente diferentes: “coun-
try (Jeca no interior de São Paulo, mas por extensão apli-
cável a outras regiões do País), “
nordestern
” e “horror”.
21
Nascido em 1945, Jairo Ferreira começou a se infiltrar no meio cinematográfico por volta de
1964, quando coordenou por mais de dois anos o Cine Clube Dom Vital (SP). Foi também crítico
de cinema da
Folha de São Paulo
, do
Estado de São Paulo
e do
Jornal da Tarde
, além de colaborar
em várias revistas e editar a
Metacinema
. Em 1986, lançou o livro
Cinema de Invenção
, que inclui
matérias sobre 23 cineastas do período, como Ozualdo Candeias, Rogério Sganzerla, Carlos Rei-
chenbach, Glauber Rocha, Ivan Cardoso e Júlio Bressane. Antes de sua morte, quando pulou do
10º andar do seu apartamento, escrevia para a revista virtual
Contracampo
(Marina, 2003).
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 35
Mojica foi visto por Glauber como “o único gênio do cinema
brasileiro”. Mazzaropi foi totalmente ignorado por Glauber
Rocha e por quase toda a crítica dita “especializada”. O que
não passou de ignorância, pretensamente elitista. (Ferreira,
1991)
Uma figura literária de imensa ingenuidade representou o Brasil
caipira, do interior, do sertão, do homem do campo: Jeca Tatu
22
, perso-
nagem fruto da imaginação do escritor José Bento Monteiro Lobato, foi
imortalizado nos filmes pelo ator Amácio Mazzaropi.
Em 1914, Monteiro Lobato, fazendeiro de Taubaté, no interior de
São Paulo, escrevera dois artigos para o jornal “
O Estado de São Paulo
”,
nos quais se queixara sobre os caboclos do interior, inadaptáveis à civili-
zação. O artigo com maior repercussão foi justamente o que tratava sobre
Jeca Tatu, figura criada por Lobato, que descrevia o caboclo que vegetava
de cócoras, piolho-da-terra, capiau sem vocação para nada, a não ser
para a preguiça, incapaz de viver junto à civilização e adaptar-se aos no-
vos tempos que chegavam com a mão-de-obra estrangeira italiana e a
japonesa, enfim ele definia o caipira como algo improdutivo e em desar-
monia com a natureza, o qual pode ser comparado através da própria
casa que habitava.
22
Monteiro Lobato, ao ser interrogado sobre a origem e o batismo do nome Jeca Tatu, respondeu:
“Na fazenda do Paraíso, um dia, conheci nhá Gertrude Reboque, uma velhinha que morava num
rancho à beira da estrada. Pois a nhá Gertrude vivia falando num neto que significava para ela o
maior homem do mundo. Votava-lhe admiração incondicional. O Jeca – assim se chamava o me-
nino portento – era um colosso aos seus olhos de avó. E de tanto falar no Jeca nós quisemos
conhecê-lo. Devia ser alguma coisa de extraordinário (...). E pedimos-lhe que aparecesse com o
Jeca na fazenda. Um dia o Jeca apareceu. Que decepção! Um bichinho feio, magruço, barrigudo,
arisco, desconfiado, sem jeito de gente. Algo horrível. Por isso mesmo o seu nome ficou na minha
cabeça. Anos mais tarde, precisando dar nome a um personagem caboclo, logo me veio à tona a
figura desajeitada do Jeca – o mais jeca de todos os jecas que tenho visto. Quanto ao sobrenome,
o Tatu, me ocorreu mais tarde. A princípio chamei-lhe Jeca Peroba. Não soou bem. Mas lembrei-
me de que poucos minutos antes um capataz da Fazenda – o Chico – me falara nuns tatus que
andavam estragando uma roça de milho. Adotei o Tatu. Curioso: o Jeca, eu o conhecera de vinte
anos; dos tatus só meia hora antes o capataz me havia falado. Dessa mistura, através dos anos,
foi o que surgiu o Jeca Tatu” (Leders, 1988, pp. 45-46, apud Edgard Cavalheiro, Monteiro Lobato:
Vida e Obra Vol. I., pp. 182-183).
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 36
(...) uma choça que por eufemismo chamam casa, brota da
terra como um urupê. Tiram tudo do lugar, os esteios, os
caibros, as ripas, os barrotes, o cipó que os liga, o barro
das paredes e a palha do teto. Tão íntima é a comunhão
dessas palhoças com a terra local, que dariam idéia de coi-
sa nascida do chão por obra espontânea da natureza – se a
natureza fosse capaz de criar coisas tão feias. (Lobato,
2004, p. 162)
A imagem do Jeca e do caipira no cinema só seria aceitável logo
após o país tornar-se referência do moderno urbano-industrial. O olhar
da elite consumidora dos modernos valores importados se preocupava
em não apresentarmos ao mundo uma imagem de índios, negros, caipi-
ras e cangaceiros, sendo como indigno de ocupar espaço em nossa cine-
matografia que preconizava um fundamento de preconceito de classe
social ao mostrar o país real, pois se tornara uma ameaça à nossa ima-
gem diante do estrangeiro. Assim somente a partir dos anos 50 nosso
cinema ganhou um caráter mais nacional, como afirma a pesquisadora
Célia Tolentino.
Contudo, vale lembrar que se nos finais dos anos 50 o Jeca
era reclamado como sinônimo de brasilidade e nacional, é
porque alguma coisa mudara substancialmente: o caipira
já podia constituir-se em ficção. A industrialização brasileira
já se mostrava como idéia dominante e como fato, assim
como a urbanização galopante das cidades, e o Jeca não
mais deporia contra a imagem do país, como décadas an-
tes, quando fora rejeitado veemente. Em 1931 o país agrá-
rio queria ver-se diferente nas telas, tal como fazia o nosso
modelo, o cinema americano. (Tolentino, 2001, p. 22)
O caipira fílmico de Mazzaropi pode ser visto como uma represen-
tação caricatural do caipira paulista
23
, ele é indolente, simples e confor-
23
Para comentar sobre o caipira paulista-rural, Antonio Candido, em
Os Parceiros do Rio Bonito,
investiga o modo de vida de um agrupamento caipira, buscando compreendê-los a partir de sua
cultura tradicional, ou seja, costumes caipiras que permaneceram inalterados mesmo após a
chegada dos colonos estrangeiros no final do século XIX. Ele, ao pesquisar o homem pobre rural
que vive com o mínimo indispensável que pode tirar da natureza, encontra o caipira. Mas como
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 37
mado, porém astuto, manhoso e valente quando necessário, além de pos-
suir valores de honestidade. Este caipira vive entre o mundo conservador
rural com suas regras sociais claramente estabelecidas e o mundo mo-
derno urbano, com seus novos processos de produção, circulação e con-
sumo de bens criado pela moderna indústria nacional. Assim, Mazzaropi
como ator tirou proveito da fama do Jeca, de Lobato, para ganhar dinhei-
ro no início de carreira, mas abandonou a idéia desse caipira franzino e
aproximou-se mais do
Zé Brasil
, outro personagem de Lobato, que, como
grande pesquisador que era, não demorou a reconhecer o caipira com
outro olhar. Em outra fase da vida mais madura, compreendeu que as
dificuldades vividas pelos lavradores brasileiros não existiam por opção,
mas por imposição de um sistema econômico de exclusão social e pela
ausência de investimentos do Estado nesses trabalhadores que tinham
como opção apenas sobreviver da subsistência do campo.
Podemos relacionar esta conclusão de Monteiro Lobato com o que
nos apresenta Antônio Cândido, em sua obra
Parceiros do Rio Bonito
, ao
estabelecer o processo de mudança na ordem econômica do país:
Um grupo que se sentia equilibrado e provido do necessá-
rio à vida, quando se equiparava aos demais grupos do
mesmo teor, sente-se bruscamente desajustado, mal aqui-
nhoado, quando se equipara ao morador das cidades, cujos
bens de consumo e equipamento material penetram hoje
no recesso da sua vida, pela facilidade das comunicações, a
multiplicidade dos contactos, a penetração dos novos estilos
de viver. Em conseqüência muda, para o estudioso, o pro-
blema dos seus níveis de vida, que passam por nosso dias
por uma crise aguda, já referida, em que a ampliação das
necessidades não é compensada pelo aumento do poder
aquisitivo. Colocando em face desta situação, o caipira rea-
ge de duas maneiras principais; rejeita em bloco as suas
condições e emigra, proletarizando-se; ou procura perma-
observa o autor, já na década de 1950, a cultura do
parceiro caipira
está em fase de transforma-
ção com a pressão exercida pela modernização que cada vez mais a pressiona com o ritmo avas-
salador e destruidor da urbanização e modernidade
.
Assim o autor vê que determinados
elementos da cultura caipira foram se ajustando a uma nova conjuntura econômica, a uma nova
sociedade e a urbanização crescente.
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 38
necer na lavoura, ajustando-se como possível (Candido,
1998, p. 217)
É por meio deste caipira que a construção cinematográfica dos
filmes de Mazzaropi apresentou um país moderno, mas com condição de
país rural e atrasado.
Mazzarapi, ao fazer sucesso com a personagem caipira, tornou-se
um tipo de “
star-system
”, atingindo o auge com seu Jeca que nos apre-
sentava outras culturas ou situações com suas características físicas e
culturais. Aumont explica sobre a referência de
star-system
:
Se o autor se revela particularmente eficaz em determinado
tipo de papel ou de personagem, tende-se a repetir a ope-
ração nos filmes seguintes para garantir a receita. Daí o
aspecto mitológico: forja-se para o ator uma imagem de
marca, erigindo-o como estrela. Essa imagem é alimentada,
ao mesmo tempo, pelos traços físicos do ator, por seus de-
sempenhos fílmicos anteriores ou potenciais, e por sua vi-
da “real” ou supostamente real. Portanto, o
star-system
tende a já fazer do ator um personagem, mesmo fora de
qualquer realização fílmica: o personagem de filme só vem
a existir através desse outro personagem que é o astro.
(Aumont, 1995, p. 133)
Foi com o filme
Candinho
(1953), que Mazzaropi personificava os
traços marcantes da figura caipira, como também a sua projeção para
urbanidade, como assim define o próprio Mazzaropi:
(...) Candinho, com roteiro e direção de Abílio Pereira de
Almeida. Esse filme me marcou muito, por motivos pés-
soais e artísticos. O roteiro era excelente. Abílio faz uma
relação intertextual com “Candido” de Voltaire. Isso ele me
disse, pois não conheço Voltaire e nem Candido, mas foi
nesse filme que eu pude dar início a elaboração do meu
personagem. O filme tem dois tempos: um se passa numa
fazenda, e é nesse ambiente que o meu personagem come-
ça a se mostrar. Os traços caipiras despontam com mais
força: o segundo tempo se passa em São Paulo, aí o caipira
se urbaniza. (Rodrigues, 1984, p. 23)
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 39
A modernidade apresentada nos filmes de Mazzarapi pode ser re-
conhecida nas primeiras filmografias antes de 1959 (com exceção de
Candinho –
1953 – que constituiu um paralelo com
Jeca Tatu
– 1959),
uma vez que não traziam “caipiras” no sentido estrito de rural, mas um
tipo de migrante recém-chegado do campo para a cidade, sem muita ha-
bilidade com os modos de vida e cultura urbana.
Os tipos de códigos modernos foram apresentados na fase dos
filmes:
Sai da frente
(1951),
Nadando em dinheiro
(1952),
Noivo da girafa
(1956),
O gato da madame
(1956),
Chico fumaça
(1957) e
Chofer de praça
(1958) os quais foram representados por objetos mecânicos que sinaliza-
vam a preocupação com a chegada vagarosa da tecnologia no país.
Podemos notar também que nesta mesma fase existia a presença
de animais que apareciam no meio urbano e convívio humano como se-
res complementares na dramatização de sua influência sobre a vida dos
personagens. Eva Paulino explica que a relação entre animal e máquina é
mostrada em grande parte dos filmes de Mazzaropi:
Os animais, como galinhas, cães, burros e vacas represen-
tam um lado complementar da psique humana. À seme-
lhança dos donos, esses animais são domesticados:
deixaram a vida selvagem e não socializada de outrora e
atualmente “fazem parte da família”. Isso quer dizer que as
fronteiras entre o humano e o animal são extremamente
tênues. Por sua vez, a função dos objetos mecânicos esta-
beleceria a divisão entre o humano e o não-humano como
se percebe na discussão sobre os filmes, porém essas fron-
teiras homem-máquina são discutidas em termos iguais
àqueles usados para discutir os constructos sociais que di-
ferenciam os homens dos animais. (Bueno, 1999, p. 35)
O artigo
Jeca-Mazzaropi, uma síntese de culturas
, de Miroel
Silveira, remete-nos à genialidade de Mazzaropi que conseguiu através
de sua simplicidade, “falando a língua do povo”, desde o início de sua
carreira no teatro, circo até a consagração no cinema, transmitir ao
Capítulo 1 – Mazzaropi: vida e obras de um comediante do povo 40
seu público a essência dos conflitos sociais e ser um artista capaz de
criar efeitos cômicos a sua personagem caipira
:
Embora nascido no teatro e no circo, o Jeca-Mazzaropi não
se construiu mais com os exageros de Genésio Arruda
quando se transpôs para o cinema. Este veículo, onde o
“close” desfavorece o imaginário quando o argumento se
volta claramente para o realismo, exige maior contenção in-
terpretativa e visual, à qual Mazzaropi soube atender com
habilidade. Havia no ator uma preocupação inteligente de
preservar a empatia com o público, de defender a situação
humana sem perder o resultado cômico. É nessa postura
simples e simpática que ele vai permanecer na memória de
nossa gente. Como alguém que deu a volta por cima de
nossas infelizes estruturas sociais utilizando a arma pacífi-
ca de sua divertida matreirice.
24
O Jeca-Mazzaropi viveu um momento histórico do Brasil.
Adaptando-se a cada década, ele buscou representar as transforma-
ções sociais produzidas e impostas pelo sistema socioeconômico, oca-
sionadas pela desigual distribuição de renda no país.
24
Folha de São Paulo
, “Jeca-Mazzaropi, uma síntese de culturas”. Ilustrada, p. 30, 19 de junho
de 1981.
Capítulo 2 – Panorama do cinema brasileiro: de Mazzaropi ao cinema novo 41
CAPÍTULO
2
Panorama do Cinema Brasileiro: de Mazzaropi ao Cinema Novo
2.1. Origem histórica da personagem caipira
no cinema brasileiro
história do cinema brasileiro teve início no dia 19 de
junho de 1896 quando, a bordo do navio francês
‘Brésil’, Afonso Segreto filmou, com um aparelho
Lumière, a Baía de Guanabara. De lá até a década de 1950, o cinema
brasileiro passou por várias etapas e fases, desde o seu começo quando
era o preferido do público nacional, aos ciclos regionais, ao aparecimento
de importantes cineastas como Humberto Mauro, Mário Peixoto e outros,
ao cinema sonoro, à Cinédia de Adhemar Gonzaga, aos filmes sobre
carnaval, à incorporação de cantores e cantoras, à chanchada carioca e
paulista.
Quando o cinema chegou ao Brasil, os primeiros aparatos cine-
matográficos que aqui aportaram permitiram a primeira exibição de ci-
nema no país, em 8 de julho de 1896, na rua do Ouvidor, número 57, no
Rio de Janeiro. Cenas simples (chegada de um trem, banda de música
militar, o mar, um acrobata...) tornaram-se espetáculo ao serem apresen-
tadas como projeções em movimento.
Capítulo 2 – Panorama do cinema brasileiro: de Mazzaropi ao cinema novo 42
Anúncio em jornal da reabertura do Omniographo (1896).
(Gonzaga, 1966, p. 18)
A primeira ficção cinematográfica da qual se teve notícia foi a co-
média de enredo caipira “
Nhô Anastácio chegou de viagem
(1908)”, con-
tando as trapalhadas de um caipira no Rio de Janeiro, no início do
século XX, filmada por Júlio Ferrez e interpretada por José Gonçalves
Leonardo. Tal comédia relatava as peripécias de um caipira matuto que
desembarcou na Central e, depois de andar pelas ruas e avenidas e ad-
mirar a Caixa de Convenção, o Palácio Monroe e o Passeio público, em-
blemas da então capital fluminense, apaixonou-se por uma cantora, mas
tudo se complicou com a chegada súbita de sua esposa. Depois de uma
série de perseguições cômicas terminou com uma reconciliação, um típi-
co final feliz (Gonzaga e Gomes, 1966, p. 16).
Capítulo 2 – Panorama do cinema brasileiro: de Mazzaropi ao cinema novo 43
Na fase seguinte encontramos autores que se classificaram como um
marco inicial para o cinema nacional sonoro com uma referência popular:
Tudo indica que Jean-Claude Bernardet não se engana ao
afirmar que as origens da chanchada estão na base do ci-
nema brasileiro, e aí, em alguns filmes cômicos. O ano de
1929 (quando é realizado
Acabaram-se os Otários
, direção
de Luiz de Barros) define uma segunda fase, com as se-
guintes características: experimenta-se o filme sonoro de
ficção; utiliza-se um cômico popular, o caipira Genésio Ar-
ruda; as músicas ficam a cargo de Paraguaçu, e o filme faz
enorme sucesso, permanecendo 76 dias em exibição nos
cinemas da capital carioca. (Catani, 1983, p. 9)
Para se ter uma idéia do sucesso alcançada por este gênero tipo
“caipira”, essencialmente popular, podemos utilizar os dados de bilhete-
ria que foram uma referência do marco inicial apontado por Catani, no
filme
Acabaram-se os otários
:
Até 9/9/1929, 35.000 pessoas já viram o filme no Santa
Helena (anúncio da fita em
O Estado de S. Paulo
), momento
em que a película estava apenas em sua primeira semana
de exibição naquele cinema. A projeção do filme continuou
por outros 17 cinemas da cidade, alguns bisando a apre-
sentação, numa permanência que somou 76 dias. (Idem,
ibidem, p. 28)
Na cinematografia brasileira, Mazzaropi apresentou três fases dis-
tintas em seu trabalho: a primeira de 1951 a 1956 – engloba o período do
cinema paulista em que participou de filmes em três companhias: a Vera
Cruz, a Brasil Filmes (uma extensão da Vera Cruz) e a Fama Filmes; a
segunda, muito breve, que vai de 1956 a 1958, compreende os filmes
realizados no Rio de Janeiro, por produtores independentes do cinema
carioca em parceria com a distribuidora paulista Cinedistri; e a terceira,
que se estende de 1958 a 1980, a mais longa de todas, aquela em que
produziu autonomamente, pois era dono da produtora de seus filmes, a
PAM – Produções Amacio Mazzaropi – Filmes (Barsalini, 2002, p. 47).
Capítulo 2 – Panorama do cinema brasileiro: de Mazzaropi ao cinema novo 44
Cena do filme Acabaram-se os otários (1929).
À esquerda Genésio Arruda um dos Caipiras
inspiradores para Mazzaropi
2.2. Mazzaropi: A Chanchada Paulista
Pensava-se chanchada. Certo, a chanchada era o que mais
odioso se pudesse imaginar em matéria de baixa exploração
do público; tinha, porém, público, e continua tendo. Oscarito,
Grande Otelo e Cia. faziam nos cinemas, e agora na TV, as
delícias de um grande público classe média. Mazzaropi tem
uma visão que o público paulista vai assistir. E propunha-se
Mazzaropi como tema de meditação àqueles que queriam
comunicar-se com o publico.
(Bernardet, 1967, p. 134)
É uma constante nas publicações a respeito da Vera Cruz estabe-
lecer-se um paralelo com a chanchada da Atlântida, pois ambas busca-
vam uma produção sistemática de filmes, apesar de suas posturas terem
sido bem diferentes e da Vera Cruz tê-la desconsiderado como proposta
cinematográfica para o Brasil. Conforme Paulo Emílio, “os paulistas rejei-
taram qualquer paralelo entre o que pretendiam fazer e aquilo que se fa-
zia no Rio: renegando a chanchada, ambicionaram realizar filmes de
classe e em muito maior número” (Gomes, 1980, p. 66).
Capítulo 2 – Panorama do cinema brasileiro: de Mazzaropi ao cinema novo 45
A chanchada carioca, com poucas variações, produziu heróis que
materializavam o “malandro” – tipo que possuía características de mo-
dernidade e ligado, por condição, à vida urbana. Segundo Nuno César
Abreu, em seu artigo
Anotações sobre Mazzaropi: O Jeca que não era
Tatu,
Mazzaropi pode ser considerado como um dos poucos, senão o úni-
co, produto da chanchada paulista que trazia traços opostos como atri-
butos da vida rural e conservadora.
Para Célia Tolentino, Mazzaropi diferenciava-se na chanchada por
tratar de temas sérios não se apegando a condições técnicas para deboche na
produção em relação à Hollywood, como faziam as produções cariocas:
Se o gênero do filme musical fora grande sucesso de Holly-
wood e a imitação emplacara na chanchada, Mazzaropi
rendia graças a ele. Só que ao contrário da produção cario-
ca, que assumia e debochava da sua própria precariedade,
esses números musicais se pretendem a sério. Ao final
consumido canhestramente os signos que supõe distingui-
lo como moderno e urbano em oposição ao atraso rural, o
filme acaba se convertendo no protótipo do caipira que de-
sejava representar. Em versão matuta isso seria traduzido
pela expressão: “é roto falando do esfarrapado”. (Tolentino,
2001, p. 97)
Convencionou-se chamar de chanchada, o gênero fílmico que se
revelaria autenticamente brasileiro e que dominaria o mercado de filmes
nacionais por anos, apesar da ferrenha crítica a este gênero destinada.
Quanto às suas características básicas, podemos salientar o forte apelo
ao popular, à comicidade, à paródia e também à onipresença musical;
sobretudo de ritmos ligados ao carnaval.
A maioria das primeiras produções das quais Mazzaropi partici-
pou, as realizadas na década de 1950, enquadram-se perfeitamente no
que se entende por chanchada. Tratava-se dos filmes:
Sai da frente
(1951), realizado pela Cia. Cinematográfica Vera Cruz,
O gato de madame
(1954), realizado pela Cia. Cinematográfica Brasil Filmes,
A carrocinha
Capítulo 2 – Panorama do cinema brasileiro: de Mazzaropi ao cinema novo 46
(1955), feito pela Cia. Fama Filmes, e
O fuzileiro do amor
(1955),
O noivo
da girafa
(1956), e
Chico fumaça
(1956), produzidos pela Cinedistri.
Tendo em vista o diálogo com o público de classe popular, Mazza-
ropi, vindo de uma tradição da chanchada, reproduziu as regras concei-
tuais e estilísticas que propunham o desenvolvimento da indústria
cinematográfica brasileira nos moldes da norte-americana, estabelecendo
de certa forma o estilo fundado pela Escola da Narrativa Clássica
25
, e,
naturalmente, dos produtores brasileiros que o antecederam e de quem
herdou grande parte dos elementos utilizados para produzir seus filmes.
Nasce então um estilo muito brasileiro de se fazer cinema clássico
que assinala a fase de ouro da comédia nacional.
Durante a década de 1950, o aumento da produção de chancha-
da foi constante, chegando a se estabilizar em torno de mais de trinta
filmes anuais no fim do período. A criatividade em desenvolver fitas mu-
sicais e comédia popularesca fez com que houvesse certa diversificação
na chanchada.
Conforme Paulo Emílio, Amacio Mazzaropi trouxe de volta a figu-
ra do caipira representado por Genésio Arruda e, durante dez anos, foi a
principal contribuição paulista à chanchada brasileira, embora não ti-
vesse aquela crueza burlesca do seu antecessor a qual influenciara na
carreira artística ao compor um Jeca diferenciado de um sentimentalis-
mo que Genésio Arruda evitava. No mesmo período, delineou-se no Rio a
silhueta muito mais atual de Zé Trindade, personagem bizarra e rica de
cafajeste maduro e sem o menor encanto, mas cuja confiança em si pró-
prio fascinava principalmente as mulheres (Gomes, 1980, p. 73).
25
O Classicismo Narrativo, como o próprio nome sugere, tem por base a narração ficcional. Im-
prescinde, para isso, da existência de personagens e de uma história que as envolva. Através da
construção de um espaço e um tempo coerentes com a seqüência narrativa, o cinema clássico
tem por objetivo gerar a emoção no espectador, de modo que o mesmo “cole no texto” ou, em ou-
tras palavras, “entre no filme”, passe a viver o filme como se estivesse dentro da história. Assim,
se o filme é de terror, o espectador deve sentir medo; se de suspense, apreensão; se cômico, o
espectador deve rir, e assim por diante (Barsalini, 2000, p. 54).
Capítulo 2 – Panorama do cinema brasileiro: de Mazzaropi ao cinema novo 47
2.3. A Chanchada da Atlântida: origens e influências
no cinema nacional
A designação de Chanchada, segundo Sergio Augusto, em sua
obra
Este mundo é um pandeiro,
a palavra teria origem etimológica no
italiano
cianciata
, que significa discurso sem sentido, arremedo vulgar de
oratória, argumento falso. Encontra equivalência também na Argentina
que significou “porcaria, depois peça teatral sem valor destinadas apenas
a produzir gargalhadas numa variação portuguesa do termo, em que
“chanchada” refere-se a uma espécie de fala “caricata feita para recriar o
espírito e exercitar a criatividade”.
No cinema brasileiro, a chanchada está intimamente ligada ao ci-
nema sonoro. Sua principal característica é a música, principalmente a
carnavalesca. Tida como um gênero menor da produção cinematográfica
brasileira, a chanchada sempre driblou o desprezo da crítica e atraiu
multidões às salas de cinema nos anos 30, 40 e, especialmente, 50.
João Luiz Vieira classifica a chanchada no universo maior do
carnaval, o que permite encontrar traços da dinâmica de inversões pró-
prias do carnaval que indicam também a existência de aspectos críticos
do funcionamento da estrutura social. Apesar de as produções serem
feitas a partir da caricatura e trejeitos norte-americanos, eram adiciona-
dos temas do cotidiano nacional, como as anedotas tipicamente cariocas
e o jeito malandro de falar e se comportar do brasileiro.
Paulo Emílio Gomes analisa a contribuição das chanchadas para
o cinema:
O fenômeno cinematográfico que se desenvolveu no Rio de
Janeiro a partir dos anos 40 é um marco. A produção inin-
terrupta durante cerca de vinte anos de filmes musicais e
de chanchadas, ou a combinação de ambos, se processou
desvinculada do gosto do ocupante e contrária ao interesse
estrangeiro. (Gomes, 1980, p. 95)
Capítulo 2 – Panorama do cinema brasileiro: de Mazzaropi ao cinema novo 48
O cinema comercial brasileiro conseguiu grande êxito durante os
anos da chanchada, estúdios começaram a surgir para produzir filmes
populares. Dois grandes nomes se destacam: A companhia Atlântida e
Vera Cruz.
A Atlântida foi uma das mais bem-sucedidas iniciativas de se
criar um estúdio cinematográfico que garantisse a continuidade da pro-
dução. Mas os planos de mudar o cinema nacional acabaram não se con-
cretizando com as produções do estúdio carioca. Durante 10 anos,
poucos foram os filmes que fugiram dos temas e características musicais
das chanchadas. A grande diferença trazida pela Atlântida era que os
cineastas começaram a ter uma preocupação maior com os roteiros e
com as temáticas. Estereótipos começaram a surgir e os personagens
ganharam contornos e personalidades mais definidos. Diversos atores do
Teatro de Revista, principalmente comediantes, passaram a ser associa-
dos a seus papéis do cinema. Além disso, a paródia, uma das principais
características das chanchadas, começava a nascer.
No documentário
90 anos de cinema – A chanchada faz escola
(1987),
foram
apresentados
vários produtores que decidiram fazer chan-
chadas, pois eram rentáveis economicamente, um desses produtores ci-
tados foi Herbert Richers, que produziu 26 chanchadas. A primeira
produção de Richard foi
Sai de Baixo
e era voltada para público infantil e
o filme lançava o palhaço Carequinha e tratava-se de uma produção rá-
pida e barata sem os cuidados técnicos da Atlântida, revelando persona-
lidades como Fred e Carequinha, Costinha, Anilza Leoni, Adalgisa
Colombo, Adelaide Chiozzo, Ivan Curi, Norma Blum e, posteriormente,
Ronald Golias e Renata Fronzi. Merecendo destaque, o filme
Metido a ba-
cana,
que bateu recordes de bilheteria com o ator Ankito vivendo um du-
plo papel, numa espécie de o príncipe e o mendigo à brasileira. Provaram
que, já naquele tempo, cinema era a maior diversão.
O resultado obtido foi produções genuinamente brasileiras capa-
zes de lotar as salas de cinema por um longo período. Entretanto, a
Capítulo 2 – Panorama do cinema brasileiro: de Mazzaropi ao cinema novo 49
Atlântida sofreu uma grande reviravolta quando surgiu em São Paulo os
estúdios da Vera Cruz.
Após o esgotamento dos temas carnavalescos, a Atlântida passou
a adotar argumentos, enredos e situações mais complexas e heterogê-
neas. Foi neste período, entre as décadas de 1950 e 1960, que os filmes
ganhavam maior empatia com o público e a Atlântida viveu seu auge
diante das disputas das produções entre Rio e São Paulo com os atores
consagrados pelo público como Oscarito e Grande Otelo. Todas as novas
produções começaram a girar em torno de personagens carismáticos,
encarnados por atores populares que surgiram no meio teatral ou mesmo
cinematográfico. O Brasil deste período tinha laços de dependência com a
cultura norte-americana, o que gerava atitudes colonizadas dos produto-
res, do público e da crítica. Desta forma, as chanchadas passaram a ba-
sear-se na paródia do cinema dos Estados Unidos para atrair o público.
A produção da Atlântida foi um grande sucesso que desencadeou
uma série de outros filmes já montados sobre a fórmula da nova fase da
chanchada. Recursos técnicos elaborados, personagens com característi-
cas bem definidas, o aproveitamento de atores em alta cotação entre o
público, e, principalmente, a sátira, como elemento condutor da trama.
Surgiram então obras-primas do cinema brasileiro,
Nem Sansão nem
Dalila
(1954) e
Matar ou correr
(1954), obras que apresentavam uma vi-
são política muito sofisticada, satirizando o governo getulista, ao mesmo
tempo que parodiavam as superproduções americanas.
A televisão tornou-se muito mais popular no fim dos anos 50.
Com o cinema apresentando telas de contexto social e político nunca
antes vistas, todo o esquema de produção sobre o qual se sustentava a
Atlântida começou a ruir e os artistas cômicos, diretores e equipe técnica
não tiveram outra saída senão assumir cargos nas empresas emissoras
de televisão, no início a rede Tupi. A televisão consagrou muitos astros
cômicos que ainda hoje se destacam, entre eles Jô Soares, Costinha e
Capítulo 2 – Panorama do cinema brasileiro: de Mazzaropi ao cinema novo 50
Chico Anysio. Chico Anísio, por exemplo, tinha escrito 18 roteiros de
chanchada, juntou-se a Carlos Manga e criou um programa de TV:
Chico
Anísio Show
, que durou por duas décadas.
2.4. Vera Cruz: a indústria do cinema brasileiro
A Companhia Cinematográfica Vera Cruz tomou a iniciativa de
instalar no Brasil uma produção industrial de cinema, os fundadores fo-
ram os empresários paulistanos Franco Zampari e Francisco Matarazzo
Sobrinho. Eles também fundaram o TBC – Teatro Brasileiro de Comédia –
e queriam que a Vera Cruz fosse o maior estúdio produtor de filmes no
país, suas propostas eram estabelecer uma nova linguagem cinematográ-
fica, negando a chanchada e buscando o inovador. Tentaram, sem suces-
so, transformar o gosto do público, impor um cinema feito para
intelectuais e por intelectuais.
A Vera Cruz procurava consolidar-se na liderança de produção de
filmes, para isso contratou técnicos estrangeiros, comprou equipamentos
caros e investiu muito nas produções. Seu estúdio foi responsável pela
produção de um dos maiores sucessos do cinema nacional:
O Cangaceiro
(1953), de Lima Barreto (veremos mais detalhes sobre esta produção nos
capítulos seguintes).
O grande problema e principal causa da falência da Vera Cruz foi
a falta de controle administrativo, que impediu, mais uma vez, que o so-
nho de se instalar um cinema industrial no país se realizasse. Os res-
ponsáveis pela produtora imaginaram que a perfeição técnica tiraria o
cinema nacional da marginalidade em que sempre viveu, ampliando suas
esferas de influência e seu respeito.
Os investimentos nos filmes da Vera Cruz eram superiores em
relação a outras produções do Rio de Janeiro, por isso teve de baixar o
Capítulo 2 – Panorama do cinema brasileiro: de Mazzaropi ao cinema novo 51
preço do ingresso, provocando uma prática inviável no balanço das
produções:
Não se conhecia a estrutura do mercado. Foi uma aventura
mesmo. Tanto que o Fernando de Barros – segundo produ-
tor-geral da empresa – dizia que, se o Franco Zampari pe-
gasse um lápis e um papel. Ele nunca teria montado a
Vera Cruz. No Rio se faziam filmes com 800 mil, 1 milhão
de cruzeiros. Inclusive na época em que a Atlântida come-
çou a caprichar investindo mais – em Carnaval de Fogo por
exemplo – na Vera Cruz, já partimos do triplo – mais de
três milhões e meio, quatro milhões, cinco milhões.
Tinha até bastante público, mas aí entrava a questão do
preço do ingresso, os interesses americanos, e isso derru-
bou a Vera Cruz, como derrubou a Maristela, e outras pro-
dutoras. Por mais público que a gente tivesse – 200 metros
de fila, às vezes a dar volta no quarteirão – com o ingresso
tabelado num preço baixíssimo, o dinheiro não era suficiente
para pagar os custos da produção. (Salem, 1988, p. 74)
Com a comercialização dos filmes através de distribuidoras es-
trangeiras – Universal e Columbia – houve um certo desnorteamento de
rumo, estilo, falta de planejamento e peso excessivo dado à qualidade
técnica que certamente contribuíram para a decadência dos filmes pro-
duzidos pela Vera Cruz naquela época.
Mas tornou-se imprescindível registrar as contribuições significa-
tivas por ela trazidas: o desenvolvimento técnico, o filme de cangaço, o
cômico Mazzaropi, a preocupação com alguns temas brasileiros.
2.5.
Cinema Novo
como expressão do nacional-popular
O pioneiro entre os diretores brasileiros na transição do cinema
mudo para o cinema falado foi Humberto Mauro
26
. Inspirador de vários
26
Nascido em Volta Grande, Minas Gerais, aos 13 anos, foi para Cataguases, onde, como autodi-
data, fez experiências com filmes de 9,5mm estreando com
Valadião, o Cratera
(1926), logo após,
Capítulo 2 – Panorama do cinema brasileiro: de Mazzaropi ao cinema novo 52
diretores contemporâneos, é considerado pai do
Cinema Novo
por Glau-
ber Rocha e o mais brasileiro dos cineastas. Motivos não faltam para que
Humberto Mauro figure entre os diretores mais importantes da história
do cinema nacional. Glauber em depoimento expressa como o início do
cinema cultural proveria referências para gerações futuras:
Mauro é o fundador do estilo cinematográfico brasileiro, é o
grande percussor do
Cinema Novo
e tem uma importância
cultural a altura de um Villa Lobos, Guimarães Rosa e Por-
tinari. Não podemos desconhecer Mauro, nem hoje e nem
no futuro. Porque se as novas gerações muito aprenderam,
seu estilo de enquadrar e no seu clima poético com toda
sua observação com fundo social e humano, e as gerações
futuras também podem aprender muito mais ainda, pois a
obra do Mauro o tempo fica mais clássica, fica mais pro-
funda, fica mais resistente
27
.
O cineasta Alex Viany, em seu artigo
O Velho e o Novo
, descreveu
o surgimento do
Cinema Novo
durante a década de 1950, principalmente
de 1955 em diante. Segundo Viany, um movimento de renovação do ci-
nema nacional tomou corpo em relação à crítica e clubes de cinema, pro-
vocando o surgimento de um cinema agressivo, inquieto, mais
preocupado com os problemas do povo brasileiro do que com quaisquer
questões formais ou técnicas. Assim foi definido o
Cinema Novo
: cinema
barato, cinema sem estúdios, cinema social, cinema de autor, cinema de
câmera na mão.
Viany ainda citou Orlando Sena em seu artigo o qual acrescentou
que o
Cinema Novo
não se prendia a raízes estrangeiras, pois sua propos-
ali mesmo rodou
Tesouro Perdido
(1928),
Brasa Dormida
(1929),
Sangue Mineiro
(1930), que o
levariam para o Rio de Janeiro a partir de 1930. De 1936 em diante a convite de Roquete Pinto,
vai trabalhar para o INCE, no qual realizou mais de 300 documentários. Fez ainda
Lábios sem
Beijos
(1930) na Cinédia,
Ganga Bruta
(1933),
Voz do Carnaval
(1933),
Favela dos Meus Amores
(1935),
Cidade Mulher
(1936),
O Descobrimento do Brasil
(1937),
Argila
(1940) e o
Canto da Sau-
dade
(1952) (Filho, p. 106).
27
Depoimento de Glauber Rocha apresentado no documentário
90 anos de cinema: uma aventura
brasileira (1987)
. Metavídeo, Rio de Janeiro, direção ESCOREL, Eduardo e FEITH, Roberto.
Capítulo 2 – Panorama do cinema brasileiro: de Mazzaropi ao cinema novo 53
ta não era alienante, pois partia da realidade decorrente da representa-
ção da verdade brasileira.
Não é um cinema bonito ou divertido. Não é espetáculo. Pe-
lo contrário: queremos fazer um cinema feio, um cinema
que não aliene o homem através da esperança; então não
haverá esperança, nem a passividade da espera inerte, mas
a revolta, o isto-tem-de-mudar, a participação absoluta. O
cinema Novo quer ser um cinema de comunicação, nunca
de expressão ou sugestão. (Viany, 1979, p. 67)
Como projeto de
Cinema Novo
, Nelson Pereira dos Santos relatou
que, diante das crises das empresas cinematográficas, por buscas de
mercado lucrativo que fugia dos temas genuinamente brasileiros, ele quis
mostrar que, através do neo-realismo, sem maquiagem da verdade e sem
imitação do americano, poderíamos fazer um cinema de personalidade
nacional:
Nosso projeto de cinema nasceu em virtude da crise de
empresas privadas com porte industrial – A Vera Cruz, Ma-
ristela, Multifilmes. Minha posição era mais sobre a ques-
tão cultural: eu colocava como proposta para o cinema
brasileiro a busca de temas brasileiros, de uma visão ou
um olhar brasileiro dentro do cinema (...). A lição do neo-
realismo foi uma lição de produção, não uma lição de esté-
tica. O neo-realismo influenciou não apenas o cinema bra-
sileiro, mas o indiano, grego, e outros, num momento dos
anos 50 que começou a surgir um cinema com personali-
dade nacional, não mais imitação do americano. O neo-
realismo nos ensinou a fazer cinema com uma câmera e
pouca gente, sem precisar de atores importantes, de estú-
dios, saindo às ruas. (Salem, 1988, p. 87)
A partir do depoimento de Glauber Rocha em 1973, descrito na
obra
O Mito da Civilização Atlântica,
de Raquel Gerber, o
Cinema Novo
nasceu ligado ao processo de desenvolvimento industrial no Brasil, num
momento de aceleração do desenvolvimento econômico.
Capítulo 2 – Panorama do cinema brasileiro: de Mazzaropi ao cinema novo 54
Mas o filme
Rio 40 graus
(1955), de Nélson Pereira dos Santos, foi
na obra inspiradora do
Cinema Novo
, visto como uma negação desse de-
senvolvimentismo apresentado pelo governo. Este filme foi censurado,
segundo os militares, porque era um grande equívoco apresentar a idéia
de que a média da temperatura do Rio nunca passou dos 40º C.
O filme não era uma mentira, a idéia era apresentar a realidade
brasileira no cinema. Segundo o documentário
90 anos de cinema: uma
aventura brasileira
(1987), este foi o princípio do
Cinema Novo
que pre-
tendia, como movimento estético, cultural e influenciado pelo neo-
realismo italiano, adotar a temática nacional com inspiração popular e de
proximidade com a vida cotidiana.
Rio 40 Graus
não fugiu disso. Mostrou
a vida de cinco meninos vendedores de amendoim no Rio de Janeiro,
num domingo tipicamente carioca, com sol escaldante. Nelson Pereira se
preocupou em mostrar a favela, onde eles viviam e a contradição com a
burguesia.
Na filmografia brasileira da década de 1960 verificava-se a pre-
sença de questões relativas à contribuição dos filmes para o processo de
formação da identidade nacional brasileira e análises da produção socio-
cultural a partir de seus vínculos metonímicos com a nação. Mobilizados
por um ideal de esquerda, os
cinemanovistas
buscavam constantemente
a representação do popular ao mesmo tempo em que criticavam a cultura
popular por seu caráter alienador
28
. Neste contexto de época, os movi-
mentos de esquerda enquadravam idéias nacional-desenvolvimentistas, o
cinema ganhava das elites culturais uma crescente politizada atenção,
por meio de projetos desenvolvidos pela Vera Cruz.
Conforme Lunardelli, esta polêmica resultou do embate diante da
ocupação dos mercados e do imaginário popular pelo cinema estrangeiro,
28
Para Teixeira Coelho, alienação está na base do totalitarismo moderno, que é entendida como
um processo no qual o indivíduo é levado a não meditar sobre si próprio e sobre a totalidade do
meio social circundante, transformando-se com isso em mero joguete e, afinal, em simples produ-
to alimentador do sistema que o envolve (Coelho, 2003, p. 28).
Capítulo 2 – Panorama do cinema brasileiro: de Mazzaropi ao cinema novo 55
especialmente o norte-americano, que estava ligada à construção de uma
identidade do cinema brasileiro (1996, p. 71).
Segundo Raquel Gerber (1991), o
Cinema Novo
foi também fruto
do desenvolvimento da ideologia nacionalista no Brasil e do surgimento
dos primeiros conceitos de subdesenvolvimento do ponto de vista de uma
análise econômica do país. O nacionalismo na década de 1950 não era
uma realidade estrutural porque não correspondia à realidade econômi-
ca, pois o mercado brasileiro já se encontrava aberto ao capital estrangei-
ro, ele teve a característica de estar voltado para o futuro, com idéias
reformistas ou revolucionárias.
Nesse universo de legitimação, o
Cinema Novo
engajou em oposi-
ção ao cinema comercial e industrial, refletindo imagens de um Brasil
integrado por sertão, favelas, subúrbios, vilarejos do interior ou da praia,
gafieira, estádio de futebol. Esse universo tendia a se expandir, a se
complementar, a se organizar em modelo para realidade, mas o processo
foi interrompido em 1964 (Gomes, 2001, p. 103).
Após o golpe de Estado que depôs João Goulart, Glauber Rocha,
Alex Viany e Nelson Pereira reuniram-se para discutir os novos rumos do
Cinema Novo
, bem como o que tinha alcançado até então – uma produ-
ção cinematográfica que teve a missão de ser uma expressão da cultura
brasileira e não uma simples imitação de um produto industrial importa-
do. Pela primeira vez, houve, no cinema brasileiro, uma relação entre
uma posição crítico-teórica e a realização cinematográfica.
O regionalismo foi a marca de fábrica do
Cinema Novo
, em sua
projeção nos anos 60, quando as câmeras invadiram o sertão e elegeram
como ícones os sertanejos. E dentre eles especialmente o cangaceiro,
simbolizando o oprimido que lutava contra seus grilhões (Caetano, 2005,
p. 75).
Capítulo 2 – Panorama do cinema brasileiro: de Mazzaropi ao cinema novo 56
Para o cineasta Joaquim Pedro de Andrade, o
Cinema Novo
era
um instrumento de transformação que apresentaria o Brasil sem disfarce
para os problemas dos brasileiros:
Cinema era vida em movimento, mas era sobretudo um
instrumento para todos nós de modificação do mundo so-
bretudo do Brasil. Nós acreditávamos muito no cinema
como um instrumento político de transformação (...) então
as coisas principais era filmar o Brasil e os problemas dos
brasileiros sem nenhum retoque, sem nenhum disfarce,
desprezar a estética pela estética, procurar uma estética
mais da eficácia política do que outra coisa
29
.
29
Depoimento de Joaquim Pedro de Andrade apresentado no documentário
90 anos de cinema:
uma aventura brasileira (1987)
. Metavídeo, Rio de Janeiro, direção ESCOREL, Eduardo e FEITH,
Roberto.
Capítulo 3 – Revisão crítica e histórica: trajetória da representação do sertão no cinema brasileiro 57
CAPÍTULO
3
Revisão Crítica e Histórica: trajetória da representação
do Sertão no Cinema Brasileiro
o se observar o cinema brasileiro nas décadas de 1950
e 1960, notam-se dois momentos: até o final da década
de 1950, produziu-se uma estrutura de cinema indus-
trial e a partir da década de 1960 encontramos uma linguagem cinema-
tográfica voltada para denúncia explícita da desigualdade socioeconômica
do povo brasileiro. Célia Tolentino comenta a respeito desse momento no
campo cinematográfico brasileiro:
Lembremos que nessas duas décadas, em particular na de
1960, a sociedade brasileira vive rearranjos fundamentais
de ordem econômica e social: o pacto conservador entre as
elites seria questionado pela entrada em cena de atores até
então excluídos do quadro político, os trabalhadores rurais
e seus mediadores, colocando em questão a intocabilidade
da propriedade rural. Num quadro mais amplo de mudanças
sociais, ao lado dos movimentos urbanos, esse rural insur-
gente é repensado pelos demais setores da sociedade. Uns
querem apreendê-lo para controlá-lo; outros, para trans-
formá-lo em parte fundamental de uma aliança revolucio-
nária; outros, para assisti-lo; e alguns, para revê-lo no seio
do debate cultural, em que sempre fora reivindicado para
legitimar os mais diversos papéis naquilo que chamam de
construção de uma identidade nacional. (Tolentino, 2001,
p. 14)
Ao contrário dos latifundiários, os trabalhadores das fazendas
continuariam a vidinha provinciana, modorrenta, singela, sem grandes
Capítulo 3 – Revisão crítica e histórica: trajetória da representação do sertão no cinema brasileiro 58
dramas. Neste sentido, os homens pobres rurais no cinema dos anos 50
são sempre indivíduos com questões muito diferentes das que encontra-
mos com os homens urbanos.
Um cinema politizado voltava-se para rural, particularmente o
nordeste, com propósitos muito distintos. Preocupado com a necessidade
de encontrar a cultura genuína brasileira, imaculada de imperialismos
culturais, o nosso cineasta com vocação revolucionária procurava justa-
mente no sertão nordestino a nossa reserva de purismo e rebeldia.
Conforme a professora Maria Isaura Queiroz, o cangaço adquiriu
forma de brasilidade ao tomar como “guardião” os valores nacionais con-
tra a “invasão” do estrangeiro:
A mitificação do cangaço não pode ser compreendida fora
do contexto brasileiro, por um lado e do contexto do Sul do
país por outro – do Sul do país que recebeu levas e levas de
imigrantes estrangeiros até os anos 30 e que, em seguida,
passou a atrair migrações nordestinas cada vez mais in-
tensas. Os problemas do Sul, porém, não podem ser des-
vinculados do país, como um todo. Assim os problemas
que concorrem para a mitificação do cangaço não são
regionais, são nacionais. (Queiroz, 1986, p. 67)
Sob esta perspectiva, a compreensão do rural brasileiro saía da
posição de o romântico da nacionalidade e passava a representar o lugar
do camponês, aliado “natural” do proletariado. Em oposição a ele, estava
o rural latifundiário, atrasado e aliado do imperialismo. O proprietário
deixava de ser visto como o homem em crise com o tempo para ser subs-
tituído por uma figura caricata como representante de todos os males
que afetavam o nosso desenvolvimento.
Essa linha divisória entre o rural camponês e o latifundiário esta-
va nas câmeras dos cineastas e os conflitos sociais no campo pareciam
oferecer ao cinema o que ele precisava: o povo brasileiro em luta.
Capítulo 3 – Revisão crítica e histórica: trajetória da representação do sertão no cinema brasileiro 59
Mazzaropi sob esta ótica conduziu seus filmes a um plano direto
e indireto a uma denúncia das condições expostas ao homem do campo
como apresentado na personagem caipira-cangaceiro, de o
Lamparina
.
3.1. O Sertão vai virar mar e o Mar vai virar sertão:
o
Cinema Novo
de Glauber Rocha
“Vou contar uma estória
Na verdade e imaginação
Abra bem seus olhos
Pra escutar com atenção
É coisa de Deus e Diabo
Lá nos confins do sertão”
Glauber Rocha
Glauber Pedro de Andrade Rocha nasceu em Vitória da Conquis-
ta, Bahia, em 14 de março de 1939, numa família presbiteriana de classe
média. Herdou do pai o conhecimento do sertão, pois o acompanhava
desde menino nas viagens a trabalho pelo interior da Bahia, pôde assistir
de perto a miséria e a violência sertanejas, as lutas pela posse de terra e
também ouviu histórias sobre jagunços e cangaceiros, temas que o in-
fluenciaria nos temas de seus filmes.
Embora tenha vivido apenas 42 anos, realizou 15 filmes, oito
longas e sete curtas. Escreveu dois livros de ensaios;
Revisão Crítica do
Cinema Brasileiro
(1963),
Revolução do Cinema Novo
(1981) e um roman-
ce,
Riversão Sussurrana
(1978).
Um dos criadores do
Cinema Novo
, Glauber, com apenas três de
seus filmes, aclamou entre os maiores cineastas contemporâneo do Bra-
sil e do Mundo:
Deus e o Diabo na Terra do Sol
(1964) conquistou os se-
guintes prêmios – I Festival Internacional de Cinema Livre, Porreta, Itália,
e Prêmio da crítica mexicana no Festival Internacional de Acapulco.
Capítulo 3 – Revisão crítica e histórica: trajetória da representação do sertão no cinema brasileiro 60
Glauber defendia a utilização dos meios de produção artística a
serviço da transformação social. Depois de dirigir o longa-metragem
Bar-
ravento
(1961), que já abordava o misticismo e o engajamento político,
realizou sua obra-prima,
Deus e o Diabo na Terra do Sol
(1964). Tendo
como ambientação o árido sertão nordestino, o filme acompanhou a tra-
jetória do vaqueiro Manuel e sua mulher Rosa. Manuel se revoltou contra
a exploração do coronel Morais e matou-o durante uma briga. Fugiu com
a esposa, da perseguição dos jagunços e acabou se integrando aos segui-
dores do beato Sebastião, em busca da salvação divina, no lugar sagrado
de Monte Santo, que prometia a prosperidade e o fim dos sofrimentos
através do retorno a um catolicismo místico e ritual. Ao presenciar o sa-
crifício de uma criança, Rosa matou o beato. Ao mesmo tempo, o mata-
dor de aluguel Antônio das Mortes, a serviço dos coronéis latifundiários,
exterminou os seguidores do beato. Em nova fuga, Manoel e Rosa junta-
ram-se ao bando do cangaceiro Corisco – o “Diabo Loiro”. Como Antônio
das Mortes
30
perseguia de forma implacável, acabou matando e degolan-
do Corisco, em nova fuga, Manoel e Rosa foram em direção ao mar, en-
quanto a música, cantada por Sérgio Ricardo, expressava a posse da
terra pertencente ao Homem:
O sertão vai virar mar e o mar virar sertão!
Tá contada minha estória, verdade e imaginação.
Espero que o sinhô tenha tirado uma lição:
que assim mal dividido esse mundo anda errado,
que a terra é do Homem,
não é de Deus nem do Diabo.
30
Antonio das Mortes foi inspirado no major José Rufino (volante que perseguia os cangaceiros),
tal como conhecemos no documentário
Memória do Cangaço
, de Paulo Gil Soares. São dele as
palavras que, depois, no filme, reapareceram na música de Sergio Ricardo. O major já havia atin-
gido o cangaceiro e ordenou que ele (Corisco) se entregasse. Corisco respondeu:
Eu não me entre-
go para morrer preso
. Na música: “
Se entrega, Corisco. Eu não me entrego não. Eu não sou
passarinho pra viver na prisão”
Quando o Corisco verdadeiro caiu, soltou um grito:
Mais fortes
são os poderes de Deus
. O Corisco do filme alterou a fala:
Mais fortes são os poderes do povo
.
Encontrava-se aí uma pequena e enorme mudança de uma palavra: de Deus para o povo (Caeta-
no, 2005, p. 53).
Capítulo 3 – Revisão crítica e histórica: trajetória da representação do sertão no cinema brasileiro 61
A música prenunciava a transformação que um dia aconteceria
na vida do povo excluído, pois até 1964 ainda era predominante a crença
na possibilidade de se mudar o país, ou melhor, de se mudar o mundo.
Deus e o diabo
, como basicamente toda a arte política então produzida,
inscreveu-se nesse contexto ideológico cuja referência era a arte como
agente da revolução. Na época da realização do filme os principais proje-
tos culturais desenvolviam-se nos meios rurais e tinham como meta a
conscientização do camponês, tendo em vista a Reforma Agrária.
3.2. Mazzaropi em contexto social com o
Cinema Novo
Mazzaropi, apesar de ser constantemente esnobado pela crítica
nacional e nunca ter sido mostrado fora do país, sendo que, através de
seus 32 filmes, conquistou amplamente o auditório nacional. Ele próprio
se orgulhava de nunca ter tido necessidade de verbas oficiais para a rea-
lização de seus trabalhos.
Todos os seus filmes foram de grandes sucessos de bilheteria.
Eva Bueno, em seu artigo
As aventuras de Jeca Tatu: classe, cultura e
nação nos filmes de Mazzaropi,
menciona que a carreira desse comedian-
te foi paralela ao surto do internacionalmente famoso
Cinema Novo
. Em-
bora tanto o
Cinema Novo
como os filmes de Mazzaropi se preocupavam
em mostrar as transformações pelas quais o Brasil passava, a tônica de
Mazzaropi era mostrar as peripécias de um habitante caipira do interior
no meio urbano. Ele sempre procurava acentuar os aspectos cômicos e
assim caracterizava o real, ao contrário de diretores premiados como
Glauber Rocha que primavam pela apresentação de um Brasil problemá-
tico com conotações políticas de tendência esquerda, ao gosto das elites
universitárias.
Capítulo 3 – Revisão crítica e histórica: trajetória da representação do sertão no cinema brasileiro 62
O crítico de cinema Jean-Claude Bernardet identificou no cinema
de Mazzaropi uma oportunidade para as massas poderem discutir pro-
blemas reais do país em meio a situação de problemas vividos por brasi-
leiros oprimidos que são representados pelo descaso de autoridades e o
sucesso de Mazzaropi de uma certa forma estava em apresentar tais si-
tuações para seu público:
Não é à toa que Mazzaropi tem sucesso. Mazzaropi só tem
sucesso porque seus filmes abordam problemas concretos,
reais, que são vividos pelo imenso público que acorre a
seus filmes. Não é só porque é carreteiro e tem um andar
desengonçado. É porque põe na tela vivências e dificulda-
des de seus espectadores, e se assim não fosse, não teria o
sucesso que tem. A temática de “Mazza” são problemas da
terra, do camponês oprimido pelo latifundiário, dos inter-
mediários entre o pequeno produtor agrícola e o mercado,
das relações entre marido e mulher, pais e filhos, das reli-
giões populares, etc. Há momentos claros e contundentes
nos seus filmes. “Mazza” enfrenta delegados de polícia e fa-
zendeiros. (Bernardet, 1978, p. 11)
Para o sociólogo Glauco Barsalini, ao analisar os trabalhos de
Mazzaropi, é possível perceber que ele era também um grande crítico so-
cial, refletindo o que estava acontecendo no país, tratando inclusive de
temas polêmicos e que, por vezes, eram tabus para a sociedade da época.
No filme
O Jeca e seu filho preto
, por exemplo, o assunto tratado era o
preconceito e, em
Jeca contra o capeta,
a discussão foi a respeito do di-
vórcio. Também era comum encontrar nestas produções a representação
do inglês como o malvado da história, o que demonstra mais uma crítica
de Mazzaropi, desta vez contra a língua inglesa que no século XIX impu-
nha sua força imperialista ao Brasil.
Eva Paulino complementa, ao apresentar a figura do caipira como
elemento cinematográfico a ser expresso como “voz” da população rural
brasileira:
Capítulo 3 – Revisão crítica e histórica: trajetória da representação do sertão no cinema brasileiro 63
Pode se dizer que a polaridade entre os diretores do
Cinema
Novo
e Mazzaropi é compreendida pela luta, própria de ca-
da um, para arrebatar o silêncio da população rural e
transformá-lo em voz no interior da nação brasileira. Evi-
dentemente, esse processo jamais poderia ser apolítico: ca-
da um queria assegurar o peso ideológico que tal acréscimo
à nação brasileira podia significar. Os intelectuais do
Ci-
nema Novo
, contudo, evocaram o trabalhador rural a partir
da posição hegemônica dos intelectuais metropolitanos.
Após sua exposição à cultura cinematográfica européia, tal
evocação partiu da posição renovada e autorizada para eles
falarem em nome do país diante do mundo estrangeiro.
Embora trabalhasse a partir da cidade, Mazzaropi não par-
ticipava do grupo de diretores reconhecidos como intelec-
tuais e sérios. Além disso, seus trabalhos representavam
um Brasil rural não muito em voga no
Cinema Novo
. Em
outras palavras, o “caipira” ou não é suficientemente exóti-
co ou não suficientemente étnico ou não suficientemente
trágico para merecer a atenção do
Cinema Novo
. (Bueno,
1999, p. 13)
Nos anos 60, o cinema de Mazzaropi era visto pela crítica como a
indústria, a reprodutibilidade, o gênero que nunca muda, a simples repe-
tição. O
Cinema Novo
, por outro lado, segundo críticos, incorporava a
arte, a iluminação das consciências, para além da indústria cultural e do
lucro de bilheterias.
Para muitos críticos, Mazzaropi não se conscientizava, porém o
detalhe é que ele dialoga com seu público por meio de situações proble-
máticas de ordem política, econômica e social.
Capítulo 3 – Revisão crítica e histórica: trajetória da representação do sertão no cinema brasileiro 64
3.3.
Lamparina,
caipira-cangaceiro: símbolo de um Brasil
rural presente no cinema de Mazzaropi
No ciclo do Regionalismo do cinema nativo, as câmeras adentra-
ram no sertão e elegeram como ícones os sertanejos
31
e, dentre eles, os
cangaceiros foram simbolizados como fontes de inspiração para diretores
e cineastas na criação de enredos e personagens. Quanto à imagem do
caipira, a pesquisadora Walnice Nogueira Galvão comenta sobre a repre-
sentação deste:
Assistimos no momento a uma possível ressurreição da
tendência, embora com contornos diversos. Entre uma fase
e outra, além das adaptações de romances regionalistas,
surgiu pelo menos um filme com relevância, A
Marvarda
Carne
, fazendo não do sertão, mas do universo caipira o
foco das atenções, com boas leituras de Antonio Candido,
Monteiro Lobato, Valdomiro Silveira e Cornélio Pires. E
Nelson Pereira dos Santos não desdenhou de exercer seus
talentos no mesmo filão, focalizando a dupla de músicos
Milionário e Zé Rico no longa
Estrada Vida
. Tudo isso, sem
esquecer que o jeca de Mazzaropi dominou por longo tempo
as telas, embora em outra craveira, mais popularesca. No
entanto, o caipira jamais se transformaria em ícone, nem
originaria um complexo simbólico de vulto equivalente ao
do sertanejo.
O cinema tinha uma importância de representar o social através
de seu personagem na articulação do processo histórico. Conforme co-
menta Jacques Aumont:
A representação social – Trata-se aqui de um objetivo de
dimensão quase antropológica, em que o cinema é conce-
bido como o veículo das representações que uma sociedade
dá de si mesma. De fato, é na medida em que o cinema tem
capacidade para reproduzir sistemas de representação ou
31
Regina Abreu, em sua obra
O Enigma dos Sertões,
procurou mostrar como “escritores sertane-
jos” utilizaram o tema “Sertão” com suas derivações – o sertanejo, o
matuto
, o
caipira
, o
tabaréu
e
o
jagunço
, em oposição a tipos urbanos como o malandro, o burguês, o espertalhão e o capitalista
(Abreu, 1998, pp. 166-172). Neste capítulo procurarei observar as variantes dos sertanejos: caipi-
ra diante do cangaceiro no campo da ficção em que se passa a história no filme de
O Lamparina
.
Capítulo 3 – Revisão crítica e histórica: trajetória da representação do sertão no cinema brasileiro 65
articulação sociais que foi possível dizer que ele substituía
as grandes narrativas míticas. A tipologia de um persona-
gem ou de uma série de personagens pode ser considerada
representativa não apenas de um período do cinema como
também de um período da sociedade. Assim, a comédia
musical americana dos anos 30 não deixa de ter relação
com a crise econômica: através de suas intrigas amorosas,
situadas em meio abastados, apresenta alusões muito cla-
ras à depressão e aos problemas sociais dela decorrentes.
(Aumont, 1995, p. 98)
A versão sobre o gênero cangaço, realizada por Mazzaropi, foi di-
ferente de todas as outras e se caracterizou, por subverter a idéia da pu-
reza regional. Em
O Lamparina
, o cangaceiro tradicional do Nordeste
encontrava-se tão imerso em tão diferentes registros regionais brasileiros.
Em termos de Brasil, na época da estréia do filme, é interessante
observar que o Sul-Sudeste, especialmente a cidade de São Paulo, torna-
ra-se o pólo de atração de migrantes originários do Nordeste. Após a
construção de Brasília, em 1960, o fluxo migratório não parou e a metró-
pole de São Paulo recebeu a presença de milhares de nordestinos em
suas construções. Suas ruas estavam cheias de nordestinos em suas
construções nas quais se ouviam as aventuras de Lampião.
Quando se pensa o quanto os filmes de cangaceiros se espelhou
no faroeste, ou
western
, é que se constata como este também teve sua
ascensão e declínio. Seu protagonista, o
cawbói
, na história dos Estados
Unidos, teve duração rápida, não mais do que três ou quatro décadas
após 1850, quando a condução de boiadas para alimentar as frentes pio-
neiras empurraram a fronteira oeste da ocupação até o Pacífico. Na ver-
dade, tratava-se da conquista de um território disputado com os
indígenas. O término da construção das principais ferrovias, como a
Western Pacific
, encerraria o ciclo, tornando obsoleto o
cawbói
. O que não
impediu que um comparsa humilde como ele se transformasse em herói
protagonista do Mito da Fronteira, que se confunde com a própria histó-
ria do país.
Capítulo 3 – Revisão crítica e histórica: trajetória da representação do sertão no cinema brasileiro 66
O migrante nordestino em São Paulo trouxe consigo a presença
folclórica do mito herói Lampião. As telas do cinema funcionavam como
um reconhecimento do seu valor, de sua posição no panteão de persona-
gens históricos nacionais, no entanto, diz-se que o nordestino é o vaquei-
ro brasileiro e, por causa da grande quantidade de filmes sobre o cangaço
produzidos na época, muita criatividade e imaginação foram investidas
nessas aventuras no cinema.
Com o intuito de verificar algumas críticas publicadas em jornais
e revistas, aparece uma crítica mais remota de Jean-Claude Bernardet ao
cinema de Mazzaropi e ao filme
Lamparina,
publicado no Jornal
Última
Hora
, em 22 de janeiro 1964. O crítico retoma a idéia de que a trajetória
do personagem camponês nos filmes é sempre a mesma – de simples cai-
pira passa a ser herói, onde ressalta o conformismo do personagem:
Nada mais estranho ao camponês que a luta ou a organi-
zação. Ele vence, e vence sozinho, obedecendo a todos os
imperativos do conformismo. A Fazenda é um lugar onde o
camponês se sente bem, onde o trabalho é alegre. Mazza-
ropi defende, em todos os seus filmes, a unidade da família
e a autoridade paternal. (...) E
O Lamparina
, Mazzaropi vai
mais longe ainda no conformismo. Contrariamente ao que
anuncia a publicidade, o Lamparina não é um bandido; é
um camponês, disfarçado de cangaceiro, que está ao lado
das autoridades. (Bernardet, 1964)
Quanto ao questionamento dos críticos em relação ao seu com-
portamento de conservadorismo nos seus filmes, Mazzaropi responde:
Eu apenas mostro o problema, mas à minha maneira. Os
inteligentes devem aproveitar, transformar e dar a solução.
Se são inteligentes, podem dar a solução. A mim, cabe a-
penas apresentar o problema, não sou eu que vou dar a so-
lução. Não sou político, não tenho nada que solucionar
problemas.
32
32
Folha de São Paulo
. Matéria de capa do caderno “Folhetim”, 02 de julho de 1978.
Capítulo 3 – Revisão crítica e histórica: trajetória da representação do sertão no cinema brasileiro 67
3.3.
O Cangaceiro,
de Lima Barreto:
primeiro grande sucesso do Cangaço
E, enquanto não descobrirmos para expressá-los, os nossos
temas, dentro do próprio nosso, do conceito estético-fílmico-
cinematográfico eminentemente matuto-caipira-caboclo-
campeiro-sertanejo, como queria Mario de Andrade e querem
os raros homens de cultura do Brasil, não encontraremos a
forma audiovisual de generalizar, de disseminar a nossa
cultura – incipiente, sim, mas autêntica a nossa cultura, irre-
torquível.
(Lima Barreto, 1954 apud Viany, 1959, p. 147)
Lima Barreto nascido em Casa Branca, interior de São Paulo, foi
considerado de personalidade difícil e controvertida, atuou como diretor
de praticamente um filme. Escritor, radialista, professor de cinema em
Campinas, realizou 30 documentários nos anos 40:
Na piscina, fazenda
velha
(1944),
O quartzo, O cofre, Seu bilhete, Caçador de bromélias
(1946),
A carta
(1946). Trabalhou na Companhia Vera Cruz como ator em:
Terra
é sempre terra
(1950), de Tom Payne e
Tico-Tico no fubá
(1951), de Adolfo
Celi (Filho, 2001, p. 28).
A principal obra como diretor em um longa-metragem foi no filme
O Cangaceiro
(1953), conquistando prêmios importantes no Festival de
Cannes como o melhor filme de aventura e menção especial para música
“Mulé Rendera”. O personagem do cangaceiro saía do nosso nordeste e
conquistava o mundo. O personagem popular e o cangaço ganhariam
impulso.
Como Jean-Claude Bernardet afirma,
O Cangaceiro
foi é o filme
que inaugurou o ciclo e delineou os principais traços que caracterizarão o
cangaceiro no cinema comercial. Para tanto, a história era apresentada
de forma romantizada, pois o cangaceiro era em geral filho de camponês,
que, para vingar uma ofensa praticada por um proprietário de terra ou
pela polícia, tornou-se bandido; passou a viver da violência; agregando-se
Capítulo 3 – Revisão crítica e histórica: trajetória da representação do sertão no cinema brasileiro 68
a ele, outros que, por motivos similares, não podiam continuar aceitando
as condições de vida do camponês nordestino.
Bernardet ainda conceitua a vida dos cangaceiros, bem como o
fanatismo empregado nos seus modos de vida, transformando-se num
material rico em histórias para se contar no cinema, a fim de representar
o marginalismo:
O cangaceiro é um revoltado contra a organização social da
região em que vive; à margem da sociedade, passa a atacá-
la. Mas sua revolta é anárquica: ela visa destruir, eventu-
almente proteger os camponeses desamparados, mas nada
propõe. O fanatismo, que congrega muito mais gente que o
cangacerismo, tem a mesma origem: camponeses insatis-
feitos seguem o beato cujas profecias anunciam um mundo
de fartura e justiça, mediante o sofrimento terrestre. Trata-
se também de uma revolta desorganizada: não se tem
consciência de que há uma revolta contra um determinado
estado de coisas e também não se propõe mudar coisa al-
guma. A solução encontrada para essa revolta inconsciente
é a alienação na violência ou no misticismo histético, que
sempre representam uma alternativa para a vida de cam-
ponês semi-escravo. (Bernardet, 1967, p. 40)
Apesar de uma importância sem precedentes até aquele momento
na história do nosso cinema, muitas das críticas consideram
O Canga-
ceiro
um filme superficial no seu conteúdo, conforme o depoimento de
Glauber Rocha:
Lima Barreto criou um drama de aventuras convencional e
psicologicamente primário, ilustrado pelas místicas figuras
de chapéus de couro, estrelas de prata e crueldades cômi-
cas. O cangaço como fenômeno de rebeldia místico-
anárquica surgido do sistema latifundiário nordestino,
agravado pelas secas, não era situado. Uma estória do
tempo que havia cangaceiros, uma fábula romântica de
exaltação à terra (...) A cena final, quando Teodoro (Alberto
Ruschel) morria beijando e comendo a terra do sertão (uma
terra seca, estéril, propriedade de cruéis senhores feudais)
e recitando umas palavras ridículas que a ficha técnica in-
Capítulo 3 – Revisão crítica e histórica: trajetória da representação do sertão no cinema brasileiro 69
dica como “diálogos de Raquel de Queiroz”, é, na
mise-en-
scène
, a revelação moral de Lima Barreto. (Rocha, 1963, p. 69)
Apesar das críticas, o filme foi sucesso internacional e pagou dí-
vidas da Companhia Vera Cruz, a qual foi produtora da película, mas tal
sacrifício custou caro ao entregá-lo para a distribuidora Columbia Pictu-
res. Em lamento por esta situação Galileu Garcia – assistente de direção,
disse:
Quando a gente terminou O Cangaceiro, em 52, e a primei-
ra cópia ficou pronta, a Vera Cruz estava completamente
endividada. Ela devia muito dinheiro a vários órgãos do go-
verno, ao Banco do Estado de São Paulo, e à Columbia Pic-
tures também, que tinha dado um adiantamento sobre a
distribuição. Evidentemente, eles viram que um filme mui-
to bom estava sendo feito, e nada melhor que começar a
adiantar dinheiro, e fizeram isso. Mas chegou um momento
em que eles tinham de receber esse dinheiro e, pior todas
as fontes haviam secado para a Vera Cruz. Realmente, o
fim da estrada. Então, ela entregou o filme mais ou menos
pelo dobro do custo da produção. O custo foi de 9 milhões,
A Vera Cruz entregou por 18 milhões de cruzeiros, mas o
filme depois fez mais de 1 bilhão. Exibindo em Paris, ficou
seis meses no mesmo cinema, com filas diárias. Aquele su-
cesso extraordinário. Determinou moda de roupa, de músi-
ca. Também em Tóquio, no Japão, foi o maior sucesso.
Inclusive, o filme virou um carro-chefe, cabeça de lote da
Columbia, aquele filme que a distribuidora oferece, mas
quem compra tem de levar mais uns 10, 15 outros. Foi pe-
na o que aconteceu. O Cangaceiro teria sido a salvação da
Vera Cruz. (Salem, 1988, p. 78)
Depois de
O Cangaceiro
, Lima Barreto tentou fazer outro épico,
O
Sertanejo
sobre o Antonio Conselheiro. Em depoimento para o documen-
tário
90 anos de cinema: uma aventura brasileira,
o diretor Galileu Garcia
fala sobre este filme:
Lima Barreto tinha no fundo muito medo, ele era medroso.
Ele mesmo dizia que tinha medo de enfrentar certas situa-
ções (...) o filme que devia ser feito após o cangaceiro seria
Capítulo 3 – Revisão crítica e histórica: trajetória da representação do sertão no cinema brasileiro 70
O Sertanejo
, estava com o roteiro pronto. Nós tínhamos
tudo pronto, tínhamos locações na Bahia, levantamos ma-
quetes, os cenários das casas. Compramos todas as armas,
uniformes, roupas, tudo (...) e tínhamos um elenco todo
formado.
33
Lima Barreto só voltou a filmar em 1960, numa produção inde-
pendente chamada a
Primeira Missa
sobre um menino que desde cedo
desejava ser padre e o filme teve uma atmosfera acadêmica e não fez su-
cesso, foi seu último trabalho. Ele deixou vários roteiros como
Quele do
Pajeú
que seria realizado mais tarde por outros cineastas, sem trabalhar
ficou enlouquecido. De sua obra completa sobre o solitário cangaceiro
que inaugurou um gênero e criou um mito, um triunfo de linha monta-
gem da indústria cinematográfica.
33
ESCOREL, Eduardo e FEITH, Roberto – direção.
90 anos de cinema: uma aventura brasileira
.
O Cangaceiro.
Metavídeo, Rio de Janeiro, 1987 VHS 66 min.
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 71
CAPÍTULO
4
A Paródia no contexto histórico do cangaço
como narrativa no Cinema Brasileiro
objetivo da análise desta pesquisa é investigar de que
forma duas obras cinematográficas produzidas em
diferentes momentos históricos compõem a represen-
tação do cangaceiro e do caipira. O primeiro momento a ser abordado
refere-se ao início da década de 1950, e, o segundo, à década de 1960.
Para o entendimento deste período cinematográfico, analisaremos
o filme
O Cangaceiro
(1953), de Lima Barreto, o qual a personagem can-
gaceiro Capitão Galdino Ferreira faz alusão a Virgulino Ferreira Silva –
Lampião e o segundo momento configura-se em paródia na imagem fol-
clórica de Lampião, representada aqui por Mazzaropi, em o
Lamparina,
o
qual consegue passar uma imagem diversa deste mesmo sujeito na con-
dição de caipira-cangaceiro. Por meio dessas duas obras e de suas per-
sonagens, debateremos estes dois tempos distintos da cultura nacional
popular.
Assim, para estes filmes de ficção, as narrativas mencionam uma
época histórica do ciclo do cangaço brasileiro que podem ser referidas
por intermédio de citações, alusões ou paródias. Sobre tais referências
históricas na cinematografia, Jacque Aumont comenta:
Para tornar seu trabalho e sua função naturais, o filme de
ficção tende, com freqüência, a escolher como tema as épo-
cas históricas e os pontos de atualidade a respeito dos
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 72
quais já existe um “discurso comum”. Assim finge subme-
ter-se à realidade, enquanto só tende a tornar sua ficção
verossímil. (Aumont, 1995, p. 106)
Como obra de ficção, o gênero
Western,
de origem norte-
americana, apresenta
fatores históricos ligados a um esquema narrativo
simples, inseridos numa paisagem física e humana peculiar de vilões e
heróis, assim explica Ismail Xavier:
De um lado, as forças da permanência; do outro, as forças
do progresso, responsáveis pela estabilização e pela impo-
sição de uma ordem social que se respeita. Vitoriosas essas
últimas, o imaginário do
western
promove, a
posteriori
, um
reviver do mundo arcaico, do qual estamos separados,
mundo que encarnou a idade heróica de preparação de um
presente que é o lugar da justiça, estabilidade e bem-estar
social, em suma, da civilização. Superposta a essa molda-
gem do tempo, prevalece, no gênero, a imposição dos con-
flitos como um duelo renovado entre vilões e heróis, onde,
de um lado, tudo é mau e gera desordem, a injustiça, e, de
outro, tudo é bom e serve à ordem, à convivência pacífica
de cidadãos amparados numa ordem jurídica inconteste.
(Xavier, 2007, p. 148)
O tema de aventura sobre cangaço produzido por Lima Barreto
ganhou um neologismo de
Nordestern
, que serviu de inspiração para ge-
rações de cineastas fascinados pelo duelo entre cangaceiros e polícia.
Para a jornalista Maria do Rosário Caetano, esta definição foi desenvolvi-
da pelo potiguar-carioca, Salvyano Cavalcanti de Paiva, que criou o ter-
mo. Seria nosso
“western”
. Os filmes de Glauber Rocha, apesar de tratar
do tema do cangaço, não são considerados como gênero
nordestern
. (Cae-
tano, 2005, p. 11)
Há uma diferença essencial que encontramos entre
Westerns
norte-americano e os
Nordesterns
do cinema brasileiro. No primeiro, o
“mocinho” quase sempre arrisca a vida para impor a lei e assegura a
tranqüilidade dos pioneiros. Nos segundos, acontece precisamente o con-
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 73
trário. Os nossos heróis são os que estão no lado oposto ao da lei. E
quando não acabam fuzilados pelas volantes, é porque morrem nas mãos
de seus próprios companheiros. Como veremos a seguir na obra de Lima
Barreto,
O
Cangaceiro
.
4.1.
O CANGACEIRO
(1953)
Argumento, roteiro e direção de Lima Barreto, polêmica produção
que inaugurou a temática do cangaço no cinema, abrindo caminho para
interpretações posteriores de outros cineastas. Sua história, apesar de
sugerir a figura de Lampião através da semelhança ao lado do nome de
Virgulino Ferreira, não se tratava da vida de Lampião, mas do Capitão
Galdino Ferreira, vivido por Milton Ribeiro, em que o sobrenome era uma
pista para identificação, sendo portanto simplesmente ficcional.
Críticos e pesquisadores criticaram o caráter “não realista” do
filme, principalmente por sua afinidade com o
western
americano e que
deu origem ao nosso
Nordestern
, como já vimos. Um ponto polêmico foi a
utilização de imponentes cavalos pelos cangaceiros do filme em pleno
sertão nordestino, o que não faz jus à história, pois os mesmos andavam
a pé pela caatinga.
Célia Tolentino também aponta alguns erros sociológicos de natu-
reza aos aspectos da vida cotidiana dos cangaceiros, a qual o filme mos-
tra a forma de brasileirismo artificial:
Um outro aspecto do filme muito comentado pela crítica diz
respeito aos erros sociológicos que saltam aos olhos nesse
trabalho de Lima Barreto, revelando que também o trata-
mento do tema guardou distância da matéria real. Por
exemplo, nessa fita todos os cangaceiros se deslocam a ca-
valo, como caubóis da cinematografia americana, quando a
história mostra que os bandos raramente o possuíam e
atravessavam vastas regiões a pé. Outros exemplos, ainda,
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 74
dessa inadequação são o aparecimento de um índio Caraí-
ba em pleno cenário sertanejo e a presença de mata densa
e rios caudalosos enquanto o discurso verbal dos persona-
gens refere-se ao sertão árido. (Tolentino, 2001, p. 68)
A artificialidade apontada pela crítica, tanto nessa, quanto em
outras produções da Vera Cruz devia-se a um fato recorrente nas produ-
ções da companhia, que era a preocupação com uma temática nacional
em contraposição à linguagem universal. No entanto, para a Vera Cruz,
não se tratava de reproduzir fielmente suas ambientações temáticas, o
importante era a pesquisa e o documentário das nossas raízes culturais,
o que aconteceu especialmente em
O Cangaceiro
, que exigiu de Lima Bar-
reto uma pesquisa exaustiva sobre a realidade de nosso sertão.
Entretanto em relação ao sertão, Alex Viany apontou uma paisa-
gem diversa ao tema escolhido, pois tomou como pano de fundo a natu-
reza paulista, longe do cenário por onde viveriam os cangaceiros:
Os erros mais flagrantes de
O Cangaceiro
são: a tentativa
infeliz de fazer a paisagem altiplana paulista – de relevo e
vegetação completamente diversos – pela paisagem do ser-
tão nordestino; e, numa obra que mesmo sem intenções
sociológicas, pelo tema escolhido, inevitavelmente é tomada
como elemento de documentação verística (ou no mínimo,
interpretação verística de uma realidade), a hibridização
dos tipos e dos costumes, apresentando um cangaceiro que
toma atitudes de vaqueiro do Texas, atirando de metralha-
dora no serrote, entretanto a cavalo na casa alheira...
usando fuzil à maneira dos soldados em manobras (...).
(Viany, 1959, pp. 141-142)
O filme inicia com o seguinte letreiro
:
“Época imprecisa: quando ainda havia cangaceiros”.
Este início sugere a intenção de Lima Barreto de se situar mais
no nível do verossímil e não na veracidade histórica, pois, conforme Xá-
vier (2007), o cangaceiro é definido como personagem arcaico e a estória
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 75
é anunciada como algo muito distante do qual estamos separados por
um longo tempo, por não indicar uma data mais precisa.
O filme apresenta uma trilha sonora com a música-tema “Mulé
Rendeira”, a qual nos remete a uma certa fidelidade à cultura nordestina
pelo uso da canção no ciclo do cangaço.
O momento de violência apresentado no filme é quando o bando
domina o vilarejo, atacando, roubando e zombando dos moradores,
enquanto a música acompanha a cena com tom descontraído.
Durante a cena de roubos e mortes, ocorre algo inesperado ao
surgir uma mulher aos prantos por causa de sua cabra, único sustento
da família que foi morta pelo bando. Galdino mostra-se cordial e gentil ao
notar a situação daquela mulher e obriga um dos seus cangaceiros a lhe
dar dinheiro para a compra de uma nova cabra.
Mas a trama central do filme gira em torno do seqüestro da pro-
fessora Olívia (Marisa Prado). Capitão Galdino pede um resgate, deixando
por escrito na lousa da escola onde a professora foi seqüestrada. Pode-
mos notar logo após esta cena que o cangaceiro Teodoro, braço direito do
Capitão Galdino, interessa-se por Olívia, provocando ciúme em Maria
Clódia (Vanja Orico) uma mulher do cangaço que não era correspondida
por Teodoro.
Interessante observar que após o saque na vila é introduzida a
cena na qual o bando se agrupa para posar para uma foto, demonstran-
do que Lima Barreto tinha conhecimento da vida de Lampião e de seus
cangaceiros.
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 76
Cena do bando de Capitão Galdino posando para foto.
Cena que representa Benjamim Abrahão
tirando foto do grupo de cangaceiros.
Foto de Lampião e seu bando tirada por Benjamim Abrahão.
Fonte: http://virtualbooks.terra.com.br/cultura/foto05.htm
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 77
É importante lembrar que, nos registros fotográficos e filmagens
existentes sobre Lampião e seu bando no sertão nordestino entre 1935 e
1936, as fotos foram tiradas pelo mascate libanês Benjamim Abrahão
34
:
Lampião em 1936, aceitou ser fotografado e principalmente
ser filmado por Benjamim Abrahão. Sempre desconfiado
dos jornais que publicavam artigos sobre ele, cujo conteú-
do não podia controlar, certamente compreendeu que as
fotografias e o filme de Benjamim Abrahão permitiram im-
por uma imagem que ele dominava completamente. En-
quanto numerosos autores e jornalistas se divertiam em
lembrar a linguagem canhestra que traía a origem campo-
nesa, sua representação fotográfica e cinematográfica, mu-
da e incontestável, permitia mostrar e impor o seu sucesso
social e o de seu grupo. (Grunspan-Jasmin, 2006, p. 147)
Ainda nesta seqüência, Galdino liberta um pássaro da gaiola, si-
nalizando a face humanitária e o desejo de liberdade da personagem.
O ponto central do filme acontece quando Teodoro foge com a
professora, traindo a confiança de Galdino, o qual inicia uma perseguição
implacável.
Na cena final, Teodoro (Alberto Ruschel) morre por salvar a pro-
fessora do seqüestro ao lhe conceder a liberdade. Teodoro antes de mor-
rer, devido aos tiros recebidos por seus companheiros rasteja até a beira
de um córrego e segurando a terra com a mão levantada em direção ao
céu, começa um diálogo com Deus, recitando as seguintes palavras:
“Não, não vou. Não posso ir. Nasci aqui. Vou morrer aqui. Olha, olha a ter-
ra do meu sertão”.
35
34
Benjamin Abrahão conheceu Lampião no Ceará e tornou se seu amigo. Abrahão imaginou
transformar essa amizade em negócio com o material coletado. Propôs-se a fazer um filme sobre o
cangaço, para a produtora Abafilm, com o objetivo de divulgar mundialmente as imagens. Fez
filme e fotos, mas o preço foi alto, Abrahão foi assassinado dois anos após o fim do cangaço, e seu
filme, confiscado pela política, não foi exigido comercialmente antes de integrar “Baile Perfuma-
do”. Eram imagens que incomodavam o Estado Novo de Getúlio Vargas.
35
Transcrito a partir da fala da personagem Teodoro apresentado no filme.
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 78
Estas últimas palavras recitadas pela personagem Teodoro reme-
tem-nos à condição dos cangaceiros sobre as questões da terra. Confor-
me Rui Facó, as tentativas de explicar os fatores que levaram a formação
do cangaço estão ligadas ao monopólio da terra por latifundiários:
O despotismo dos potentados rurais havia, durante sécu-
los, relegado os pobres do campo à condição de objetos. A
classe agrária dominante via no trabalhador da terra o es-
cravo, que o era de fato e juridicamente. Mesmo com a abo-
lição, uma vez que não se processaram mudanças
fundamentais no campo e o latifúndio foi mantido com to-
das as suas prerrogativas e privilégios, o trabalhador rural
continuava a ser considerado um semi-escravo. O conceito
de ser humano em relação a ele não era válido para o
grande proprietário. A classe dos pobres do campo se a-
chava à margem da sociedade constituída. Não tinha terra,
nem outros bens, não tinha direitos. Não tinha sequer de-
veres, além daqueles de servir o senhor. Proliferando em
meio à miséria, seu número crescendo, o latifúndio estag-
nado não podia integrá-los totalmente em sua economia
limitada. Temendo-os. Dispersa-os. É a sua grande arma.
A própria existência do latifúndio, açambarcando terras,
expulsa-os de suas vizinhanças... (Facó, 1963, p. 36)
O cangaceiro utilizava como recurso a violência em que estava
enraizada na tradição do sertão, impregnando o universo dessa região:
Galdino era cangaceiro porque era criminoso perseguido pela justiça por
praticar roubos e assassinatos; Teodoro era cangaceiro porque participa-
va do grupo. Quando criança, Teodoro foi levado pelos padres para ser
educado na cidade, mas ele voltou para o sertão porque amava a terra e
queria morrer naquele lugar.
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 79
Teodoro morto junto a um córrego no sertão – O Cangaceiro (1953).
4.2.
O LAMPARINA
(1964)
Argumento de Carlos Garcia, direção de
Glauco Miklo Laurelli e
produção de Amacio Mazzaropi.
O Lamparina,
como a maioria dos filmes
de Mazzaropi, é representado por um caipira que procura terra para se
fixar, vagando com sua família por locais desconhecidos, sempre sendo
enganado. O enredo do filme gira em torno de Bernardino Jabá (Mazza-
ropi), sua família e um amigo espanhol que o acompanha à procura de
alguma colocação de trabalho numa fazenda qualquer, mas que acaba
sendo confundido com cangaceiros devido às roupas que trajavam. Neste
aspecto o filme tratou de forma ficcional, pois não há registros de encon-
tro histórico em que originalmente caipiras do Sul do Brasil encontras-
sem cangaceiros nordestinos. Sobre a representação do filme de ficção,
Jacques Aumont apresenta-nos certas características:
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 80
O característico do filme de ficção é representar algo de
imaginário, uma história. Se decompusermos o processo,
percebemos que o filme de ficção consiste em uma dupla
representação: o cenário e os atores representam uma si-
tuação, que é a ficção, a história contada, e o próprio filme
representa, na forma de imagens justapostas, essa primei-
ra representação. O filme de ficção é, portanto, duas vezes
irreal: irreal pelo que representa (ficção) e pelo modo como
representa (imagens de objetos ou de atores). (Aumont,
1995, p. 100)
O filme inicia-se a partir dos créditos da equipe; uma imagem de
um trempe
36
com um caldeirão no fogo, uma espingarda no chão, e um
chapéu de cangaceiro.
Em seguida aparece o letreiro sobreposto a essa imagem:
“A valiosa colaboração da Força Pública do Estado de São Paulo,
dos Estudantes e das Autoridades Civis e Militares de Taubaté
”.
Percebe-se que, nesta apresentação, a realidade é relacionada aos
elementos regionais do cangaço pertencente principalmente à região nor-
destina, entretanto, como a realização da história acontece no sudeste,
podemos notar os agradecimentos feitos ao Estado de São Paulo, bem
como aos estudantes da cidade paulista de Taubaté.
O filme inicia seu enredo com um grupo de cangaceiros reunidos
no alto de uma serra valeparaibana paulista onde fazem o reconhecimen-
to da área para atacar algum vilarejo. Não encontrando um local possível,
decidem avançar mais para o Sul. Nota-se que se trata de cangaceiros
devido ao seu visual que se tornou um ícone na imagem popular:
36
Trempe é o nome que se dá ao fogão de tropeiro, constituído de três varas de ferro ou de galho
verde, firmada em triângulo. Distantes na base e unidas no alto por uma Correa, da qual pende
uma corrente de uns 25 centímetros, tendo na ponta dum gancho, às vezes duplo, no qual se
pendura a vasilha. Sob a trempe acendem-se gravetos e improvisa-se o fogão no qual o tropeiro
faz o seu café e prepara a comida. Algumas tropas preparam a trempe (ou trempa) fincando no
chão dois galhos em forquilha, e preso a estes um galho transversal, na parte de cima, onde se
pendurava o caldeirão. (Cascudo, 2001, p. 695). A trempe aparece como uma referência mais
caipira/bandeirante, enquanto que os outros elementos que compõe a cena são ícones do cangaço.
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 81
O cangaceiro adequava-se especialmente a um veículo vi-
sual graças à parafernália. Viria assim a constituir um íco-
ne, deflagrado pela instantaneidade da percepção, no
impacto escorado pelo olho, de uma panóplia de signos: o
encourado com seu chapéu cravejado de metais e testeira
ornada de moedas, cartucheiras atravessadas no peito,
anéis cobrindo os dedos, garrucha e punhal longo de san-
grar à cinta, facão de abrir caminho, embornais ou capan-
gas bordadas dispostas sob o braço, e o indispensável apito.
(Caetano, 2005, pp. 85-86)
Percebe-se também neste início que não se trata de uma pai-
sagem típica do sertão nordestino de cactos e plantas rasteiras, onde
viveram os verdadeiros cangaceiros. Logo em seguida aparece uma cena
de uma aldeia sendo atacada por cangaceiros, iniciando-se um diálogo
entre cangaceiros e o líder do bando – Capitão
37
Zé Candeeiro (Emiliano
Queiroz).
Na primeira cena em que aparecem os caipiras: Bernardino
Jabá
38
(Mazzaropi) e sua esposa Marcolina Jabá (Geny Prado), dois filhos,
uma filha e um amigo espanhol. Todos estão dormindo em frente a uma
casa na beira da estrada. Bernardino é acordado por sua esposa para
procurar emprego numa fazenda. A narrativa não apresenta a origem da
37
Como no filme
O Cangaceiro
também aparece a patente de “Capitão”, para o líder dos cangacei-
ros. Na história de Lampião foi registrado como promessa quando de sua entrada triunfal em
Juazeiro, em março de 1926. Foi nessa oportunidade que ocorreu o encontro decisivo de Lampião
com o padre Cícero. Em 1926, o estado do Ceará conheceu um clima de violência e agitação polí-
tica causado pela presença da Coluna Prestes nas proximidades de Juazeiro. Para lutar contra os
rebeldes, o governo brasileiro estabeleceu que cada Estado federado ameaçado pelas incursões da
Coluna Prestes fizesse a defesa da região mediante a nomeação de um chefe político local. No
Ceará, o deputado Floro Bartolomeu foi encarregado pelas autoridades governamentais de recha-
çar as incursões da Coluna Prestes. Floro Bartolomeu teve a idéia de utilizar Lampião e seus
cangaceiros e incorporá-los a um batalhão patriótico. Quando Lampião entrou em Juazeiro, padre
Cícero viu se numa situação bastante embaraçosa: Floro Bartolomeu, que sugerira recorrer a ele,
acabava de morrer e a Coluna Prestes afastara-se da cidade. Lampião chegava tarde demais e sua
presença era perturbadora que podia comprometer a paz, então, para Padre Cícero, o único meio
eficaz pareceu ser a outorga de o título de Capitão a Lampião, o que significava que uma promes-
sa fora cumprida e que o pacto fora completamente concluído (Grunspan-Jasmin, 2006, pp. 95-
102).
38
O sobrenome de Bernardino Jabá remete-nos à referência do significado em tupi
yabá
, o termo
significa fugir, esconder-se. É também o nome que se dá à carne-seca e, é o principal alimento do
seringueiro nordestino. Cascudo (2001).
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 82
família e nem o motivo desse deslocamento. Podemos comparar esta si-
tuação como uma aventura de origem bandeirante, na qual o sociólogo
Antonio Cândido, assim descreve:
A sociedade que se formou do século XVI ao XVIII na área
paulista de expansão só pode ser compreendida à luz de
reflexões como estas, que são a chave das acomodações
sucessivas por que aqui passou o colonizador, nas vicissi-
tudes da sua intensa mobilidade. A vida social do caipira
assimilou e conservou os elementos condicionados pelas
suas origens nômades. A combinação de traços culturais
indígenas e portugueses obedeceu ao ritmo nômade do
bandeirante e do povoador, conservando as características
de uma economia largamente permeada pelas práticas de
presa e coleta, cuja estrutura instável dependia da mobili-
dade dos indivíduos e dos grupos. Por isso, na habitação,
na dieta, co caráter do caipira, gravou-se para sempre o
provisório da aventura. (Candido, 1998, p. 37)
A família caipira de Bernardino Jabá.
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 83
Depois de serem enganados por um estranho que promete em-
pregá-los numa fazenda, a família de Bernardino segue seu rumo e, ao
encontrar um riacho, a esposa e filha decidem se banhar, enquanto os
demais tentam pescar algo do outro lado do rio. Elas são atacadas por
cangaceiros e pedem socorro. Dois de seus filhos vão até o local e travam
uma luta contra os cangaceiros. Bernardino encontra as armas que os
cangaceiros deixaram na margem do rio, e enfrenta-os dando tiros para
todos os lados, assim expulsando os cangaceiros do local. Ao retirar-se
da margem do rio, Bernardino e sua família encontram as roupas dos
cangaceiros e as vestem.
A família caipira...
...a família cangaceira
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 84
O uso das vestimentas apresenta uma metamorfose pela troca de
roupas e que dentro do sistema representado pelas imagens da festa
popular, podemos considerar como na carnavalização mencionada por
Bakhtin em que o bufão veste as roupas do rei destituído do poder, o
qual torna-se objeto de escárnio pelo povo:
Nesse sistema, o rei é bufão, escolhido pelo conjunto do
povo, e escarnecido por esse mesmo povo, injuriado, es-
pancado, quando termina o seu reinado, da mesma forma
que ainda se escarnece, bate, despedaça, queima ou afoga
o boneco carnavalesco que encarna o inverno desaparecido
ou o não velho (“os alegres espantalhos”).
Começara-se por dar ao bufão as roupagens do rei, mas
agora que seu Reno terminou, disfarçam-no, mascaram-
no, fazendo-o vestir a roupa do bufão. Os golpes e injúrias
são o equivalente perfeito desse disfarce, dessa troca de
roupas, dessa metamorfose. As injúrias põem a nu a outra
face do injuriado, sua verdadeira face; elas despojam-no
das suas vestimentas e da sua máscara: as injúrias e os
golpes destronam o soberano. (Bakhtin, 1987, p. 172)
Uniformizados com o símbolo do poder da “região” e caminhando
à procura de uma fazenda, encontram com um viajante, que se assusta
em ver toda aquela família trajando as vestimentas de cangaceiros e pede
pelo amor de Deus para não matá-lo e então o viajante entrega o burro,
fuzil e o pouco dinheiro. Bernardino indaga que não quer nada, apenas
uma informação de sua localização e, sem entender, o viajante foge sem
olhar para trás deixando todos seus pertences.
Depois de muito tempo caminhando chegam, por acaso, no
acampamento dos verdadeiros cangaceiros. Diante dessa situação per-
turbadora, Bernardino Jabá impõe-se destemido com bravura e sotaque
nordestino perante o bando, para que não desconfiassem que na verdade
era uma simples família caipira.
Percebendo que havia uma festa antes de sua chegada, Bernardi-
no conduz o bando a continuar dançando, e obriga todos expressarem
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 85
em seus rostos um sorriso, assim seu domínio sobre a ameaça de ser
reconhecido como não-cangaceiro se afasta diante desta condição.
Minois explica como a dança e o riso afastam influências perni-
ciosas:
A dança também pode contribuir para afastar a ameaça:
“A dança e o riso têm a virtude do exorcismo. A dança mui-
tas vezes nasceu de passos para esmagar e enterrar in-
fluências perniciosas, e o riso tem o poder de dissipar os
temores da noite”. (Minois, 2003, p. 166)
Bernardino, ao perceber a presença do líder daquele bando – Zé
Candeeiro
39
–, apresenta-se com o apelido Lamparina, por fazer alusão ao
nome de seu rival. Podemos também perceber como na história de Lam-
pião e dos cangaceiros, que ao entrar para o cangaço, o seguidor recebe
um apelido:
A atribuição de um apelido inscreve-se numa antiga tradi-
ção. A entrada para o cangaço poderia ser semelhante a
uma segunda vida: sob o comando de Lampião, os novos
recrutas perdiam seu nome de família, eram substituídos a
uma espécie de rito iniciático que herdavam de seu chefe
um apelido. Usavam armas emprestadas antes de comprá-
las por conta própria e depois recebiam um lenço vermelho
como prova de que pertenciam ao bando. Em seguida seu
chefe encarregava-se de lhe fazer confeccionar um unifor-
me a fim de que pudessem ser identificados pelos demais
membros do grupo. O apelido, da mesma forma que o uni-
forme de cangaceiro, selava um pacto de aliança. Para mui-
tos cangaceiros, o apelido tinha relação seja com um
momento de sua vida ou a do grupo, seja com qualidades
ou particularidades físicas, morais ou guerreiras. (Grunspan-
Jasmin, 2006, p. 90)
Para impor sua autoridade e superioridade, Lamparina logo após
sua apresentação, cospe nos anéis de seus dedos (estes pertencentes a
39
Candeeiro ou lampião também são conhecidos como um utensílio destinado a produzir luz,
queimando óleo ou gás inflamável.
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 86
sua esposa) e os fricciona na camisa. Esta mesma cena também é apre-
sentada no filme
O Cangaceiro
, isto ocorre quando Capitão Galdino en-
contra-se numa emboscada e mata seu perseguidor, líder da volante.
40
A cena mais interessante do filme acontece quando a personagem
Lamparina apresenta sua família e o espanhol para Candeeiro. Lampa-
rina, para impressionar a todos, insiste em dizer que sua mulher matou
“15 homens com um só tiro” e que sua família e o amigo eram verdadei-
ros cangaceiros. Candeeiro estranha ao perceber o aspecto físico e cultu-
ral de “cangaceiro” em relação ao Espanhol, o qual indaga:
Candeeiro: Esse é cangaceiro também?
Espanhol: “
Si señor, soy cangacero. Yo no tengo miedo de nada
”.
Evidentemente, Candeeiro percebe que o homem fala outro idio-
ma, e lhe pergunta de onde veio.
Espanhol:
“Yo soy de Madrid”
.
40
Penso que esta imagem do “cuspir nos anéis e friccioná-los” remetem-nos às seguintes ques-
tões: a de não dar importância sobre a presença do outro que se torna insignificante e o maior
valor que se encontra ali são os anéis nos dedos e também no gatilho de uma arma vale mais que
uma vida.
O Lamparina.
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 87
Candeeiro: “
Oxente! E tem Madri no Norte?
Espanhol: “
É claro que tem! Parece que no conece o Nordeste de
Brasil!”
Candeeiro fica confuso, e Lamparina aproveita a oportunidade
para arrematar a conversa:
Lamparina: “
Você não vê? Precisa viajar mais ao Norte
.
Você não
conhece o Brasil. Eu ainda não compreendo porque está pertubando tanto
o Espanhol
”.
Nesse momento Candeeiro confronta-se com sua própria ignorân-
cia e não é capaz de perguntar mais nada aos recém-chegados.
41
Logo Candeeiro faz uma proposta de juntar os bandos para unir
forças para atacar vilas. Alguns dias depois, Bernardino, sua família e o
espanhol traem Candeeiro e o entregam às mãos da polícia. O que de-
termina a traição é, em primeiro lugar, a confusão de sotaques de Ber-
nardino, bem como a confusão causada pelo “brasileiro” de Madri.
Finalmente esta situação coloca Candeeiro em grande desvantagem,
quando ele confessa não conhecer a cidade de Madri, sua ignorância o
impede de dominar a situação.
O objetivo de Bernardino é deter os bandidos e, para tal, vai à ci-
dade e combina com os policiais como prender os verdadeiros cangacei-
ros. No dia combinado com os policiais, o heroísmo de Bernardino foi
desarmar o grupo de cangaceiros enquanto dormiam e ajudar a prender
o bando e o líder Zé Candeeiro que tanto aterroriza a vila.
41
Penso que a discussão entre o Lamparina e Zé Candeeiro, sobre geografia brasileira, provocam
reflexões ou tentativas de se mostrar que os brasileiros desconhecem seu país, e que há possibili-
dades de perder para estrangeiros, pois até mesmo o registro de duas diferentes línguas: portu-
guês-Portugal e espanhol, além dos sotaques regionais, caipira e cangaceiro não são reconhecidos
pelos personagens dentro da fronteira nacional, e que também não existe o conhecimento especí-
fico de cada cultura interna.
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 88
Na confusão de uma luta renhida, Candeeiro consegue fugir, e
Bernardino sai em perseguição e acaba sendo confundido com um ver-
dadeiro cangaceiro por causa dos trajes, é detido pela volante de uma
outra região e passa um ano na prisão
42
.
No entanto, a vida continua para sua mulher, os filhos, a filha e o
amigo espanhol. Eles vão morar na aldeia com todos os privilégios de
herdeiros de um grande homem que livrou o lugar do flagelo do cangaço.
Após sair da prisão, Bernardino tenta retomar a família, mas eles acredi-
tam que se trata de um fantasma, devido ao seu desaparecimento por
longo tempo, todos acreditavam que ele estava morto.
Bernardino agora não é mais reconhecido devido a sua presença
física, mas por seus feitos. Desolado, abandona a vila e pelo caminho
percebe que está sendo seguido por um menino, que se tornou órfão
devido aos ataques na vila por Zé Candeeiro. O menino é adotado por
Bernardino e estes vão morar numa fazenda aos arredores da vila de
Sororoca.
Um certo dia este mesmo menino sai à procura de um riacho pa-
ra pescar e encontra por acaso o esconderijo de Zé Candeeiro. Ao avisar o
delegado, este envia uma volante para capturar o cangaceiro foragido.
Neste mesmo momento Bernardino Jabá vai para a vila fazer
compras para a fazenda onde trabalhava. Ao passar em frente a igreja
Bernardino percebe que estava havendo um casamento, decide entrar e,
para sua surpresa, sua esposa estava se casando com o português, dono
do armazém na vila. Diante de sua presença, todos começaram a se
esconder por acharem que era seu espírito. Então o padre da igreja, ao
42
A luta de Bernardino, após sua saída da prisão, pode ser vista como uma tentativa de afirmar
sua identidade por conta do código vestuário que promoveu sua prisão. Esta mesma luta é trava-
da em vários filmes de Mazzaropi, semelhante àquela travada por outros tantos brasileiros deslo-
cados até considerarem o novo lugar como seu lar.
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 89
perceber a confusão, conversa com Bernardino e esclarece para a popu-
lação que tudo foi um mal-entendido.
Logo em seguida o menino assiste, ao pé da cruz da igreja, a vo-
lante passar por ele a cavalo com Zé Candeeiro algemado em direção à
prisão. A expressão facial do menino é de que a justiça tinha sido cum-
prida. Sendo assim, ele caminha em direção à igreja para juntar-se a
todos, soam se os sinos e finaliza-se o filme.
O final deste filme sugere um paralelo entre o sentimento de vin-
gança do menino órfão e a história de Lampião, o menino órfão procurou
as autoridades para fazer justiça, enquanto Lampião, ao ter seu pai
assassinado por um vizinho durante uma disputa de terra, teve como
opção matar.
Segundo Grunspin-Jasmin, esta percepção de vingança de Lam-
pião seria entrar para o cangaço para fazer justiça com as próprias mãos:
A opção de vida de Virgulino e de seus irmãos, portanto,
obedeceu à necessidade de vingar a morte do pai, isto é, de
lavar o sangue com o sangue, de fazer justiça pelas pró-
prias mãos, uma vez que a justiça pública não o faz, de
defender mente a honra, mas também de seus ancestrais.
Entrar para o cangaço, nesse sentido, seria submeter-se a
certa concepção de heroísmo, a uma obrigação moral, mas
também ao método de se fazer respeitar. (Grunspan-
Jasmin, 2006, p. 79)
No filme
O Lamparina,
Mazzaropi
soube sintonizar a sua persona-
gem historicamente a uma estrutura social rural que precisava ser co-
mentada ainda no país. Lampião como a personagem Zé Candeeiro
fizeram da vingança um álibi, da reparação das ofensas pelas armas,
uma justificativa do horror e do medo que impôs, o que nos demonstra
que utilizaram para seus próprios fins e instrumentalizaram algo que
tinha um sentido na cultura do Nordeste, que o cangaceiro era um ho-
mem que lutava contra a propriedade. Ao passo que no filme a persona-
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 90
gem caipira Bernardino e sua família, mesmo sem a terra para morar,
criaram seu próprio jeito de sobreviver no contexto socioeconômico que
os cercava, resistindo fortemente à corrupção de valores tradicionais,
como a honestidade e a solidariedade.
4.3. A Paródia no Cinema Brasileiro
O termo paródia tornou-se institucionalizado a partir do século
XVII. Conforme o professor Affonso Romano de Sant’Anna, em Aristóteles
aparece um comentário a respeito desta palavra. Em sua
Poética
atribui
a origem da paródia, como arte, a Hegemon de Tharso (século V a. C.),
porque ele usou o estilo épico para representar os homens não como su-
periores ao que são na vida diária, mas como inferiores. Teria ocorrido,
então, uma inversão. A epopéia, gênero que na Antiguidade servia para
apresentar os heróis nacionais no mesmo nível dos deuses, sofria agora
uma degradação. (Sant’Anna, 1998, p. 11)
Segundo o dicionário de literatura brasileira paródia significa:
Imitação sátira ou humorista de uma pessoa, palavras, es-
tilo, atitudes, idéias ou acontecimento, visando a ridicula-
rizar ou criticar, mediante exageração dos traços originais.
É semelhante à caricatura ou ao burlesco e é um ramo da
sátira, e tem freqüentemente intuito de correção. As maio-
res paródias da literatura moderna são o
Dom Quixote
, de
Cervantes, o
Gargantua
e
Pantagruel
, de Rebelais. Há inú-
meras paródias em escritores modernos sob a forma de “a
maneira de”. No Brasil, a paródia de intenção burlesca
apareceu em Artur Azevedo com as peças
A filha de Maria
Ang
u (1876) e
A Casadinha
de fresco (1876). (Coutinho e
Souza, 2001, p. 1.219)
A paródia no cinema brasileiro surgiu como uma forte indicação
da relação de poder existente na luta pelo mercado cinematográfico,
apontando diretamente para a força dominante neste mercado que era a
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 91
do filme estrangeiro, notadamente de procedência a norte-americana. O
simples fato de que a paródia, no cinema brasileiro, é dirigida basica-
mente para o filme americano já era um dado revelador de sua penetra-
ção em nossa cultura cinematográfica. Esta influência apareceu, em nível
econômico, através do domínio do mercado cinematográfico e refletiu na
produção cultural pelo maior ou menor grau de colonização do público
que produzia e que consumia cinema entre nós (Vieira, 1983, p. 22).
Entretanto, o fato de a paródia geralmente significar a situação de
dominação econômica e cultural não quer dizer que ela explicite uma crí-
tica consciente, tampouco a denúncia de sua dependência. Paulo Emilio
Salles Gomes observou que se critica o próprio cinema brasileiro através
de suas origens:
Não somos europeus nem americanos do norte, mas desti-
tuídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tu-
do o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve
na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro. O fenô-
meno cinematográfico no Brasil testemunha e delineia
muita a vicissitude nacional. (Gomes, 1980, p. 90)
João Luiz Vieira comenta as paródias produzidas no Brasil dirigi-
das a cultura brasileira:
Apesar de a maioria das paródias se voltar para o filme es-
trangeiro, há também os casos de paródias dirigidas ao ci-
nema e a cultura brasileira, como, por exemplo, a imitação
que Colé fez de Rodolfo de (Obrigado doutor), no filme de
Moacyr Fenelon,
Estou ai?
(1949).
Em è a maior
(1958), So-
nia Mamede e Nadia Maria parodiavam duas das maiores
estrelas da Rádio Nacional da época, Marlene e Emilinha
Borba. E dois dos gêneros mais populares do cinema brasi-
leiro, o filme de cangaceiro e a própria chanchada foram
também parodiados em filmes como
O primo do cangaceiro
(1955) e
Os três cangaceiros
(1961) enquanto que Cacá
Diegues evoca em Quando o carnaval chegar (1972) o clima
das comédias musicais da Atlântida. Rogério Sganzerla
também não deixa de lado a chanchada na mistura de gê-
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 92
neros proposta por seu filme
O bandido da luz vermelha
(1968) onde a própria chanchada explica a mistura que há
no filme entre policial,
western, science-fiction
, etc. O mes-
mo acontece com alguns filmes de Julio Bressame, nota-
damente
O rei do baralho
(1973) onde, além da presença de
Grande Otelo, há uma série de situações típicas da chan-
chada. Em tais filmes, a chanchada, além do seu potencial
próprio como catalisadora da paródia, entra nesses filmes
como um dado cultual tipicamente brasileira e que havia
sido radicalmente rejeitado pelo
Cinema Novo
. (Vieira,
1983, p. 25)
4.4. Lamparina
versus
Lampião:
uma paródia do mito “Rei do Sertão”
O filme
O Lamparina
(1964) talvez tenha sido o melhor exemplo
de dupla paródia criada por Mazzaropi, pois faz as ações de uma perso-
nalidade histórica, Virgulino Ferreira da Silva – “O Lampião”, um canga-
ceiro real que vagava pelo interior do Nordeste brasileiro no início do
século XX, é o gênero sobre cangaço, versão do gênero brasileiro
Nordes-
tern
43
.
No filme, podemos encontrar o que talvez seja a melhor metáfora
da paródia no cinema brasileiro, por tratar-se de situações de mistura de
heróis que há entre cinema e fatos do cangaço.
A questão do herói tratado no filme
O Lamparina
é um tipo de he-
rói com excesso de caráter, aqui representado por Mazzaropi. Contudo é
43
Sessenta filmes brasileiros tiveram o cangaço como tema principal, secundário ou citação.
Cangaceiros, com seus vistosos adereços e indumentárias, aparecem em documentários (como
Memória do cangaço
,
A musa do cangaço
,
A mulher no cangaço
), em filmes de aventura (os
nordes-
tern
que têm
O cangaceiro
de Lima Barreto, como paradigma), em épicos ou alegóricos (
Deus e o
diabo na terra do sol
,
O dragão da maldade contra o Santo Guerreiro
,
Porta de fogo
) e, também, em
paródias/sátiras/comédias (
Os três cangaceiros
,
Pedro Bó, o caçador de cangaceiros
,
Deu a louca
no cangaço
,
O lamparina
,
Kung Fu contra as bonecas
) e até pornochanchadas (
Cangaceiras eróti-
cas
,
A ilha das cangaceiras virgens
). Para uma lista completa dos filmes sobre o cangaço, veja
(Caetano, 2005, pp. 114-116).
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 93
um caráter caipira, desajeitado e sempre aparece do mesmo jeito e ja-
mais abandona seu jeito de ser como homem simples e rural. Diferente-
mente daquela que aparece em nossa literatura tratada por Mario de
Andrade
44
, em
Macunaíma
45
que não tem tribo específica à qual possa
atribuir sua origem. Sua existência, de fato, confunde a idéia de origens
que fala de um Brasil cósmico.
Quanto à figura histórica de Lampião, podemos atribuir-lhe ca-
racterísticas de um símbolo de mito popular que, no entanto, algumas
vezes também é amaldiçoado pela forma que é apresentado através da
literatura de cordel, de romances, da televisão e pelo cinema.
A conceituação de formação do mito do cangaço e de Lampião é
tomada como ponto de partida para a compreensão da historiadora
Maria Isaura Pereira Queiroz, que diz:
A compreensão do cangaço se alargava para além dos limi-
tes de sua existência efetiva, invadindo as paragens do
imaginário e se enriquecendo com significados múltiplos,
que não pertenciam nem à sua origem, nem à sua vigência
real. Toda esta afabulação em torno do cangaço fora norte-
ada. Principalmente, por dois parâmetros: a oposição de
certos intelectuais contra as camadas dominantes e sua
representação, o governo; um sentimento nacionalista ge-
neralizado, que as condições econômicas reforçavam.
Mesmo Lampião, que na literatura de cordel era sempre
encarado como bandido, cuja ação era norteada pelo seu
próprio interesse, ambicioso e truculento, adquiriu os
lineamentos do herói social justiceiro, de um Robin Hood.
(Queiroz, 1986, p. 67)
44
Foi a Semana de 22, com seus desdobramentos que projetou Mário de Andrade como figura-
chave do movimento modernista. Com determinação própria dos líderes que visavam implantar
uma nova consciência, ele multiplicou-se em músico, pesquisador de etnografia e folclore, poeta,
contista, romancista, crítico de todas as artes, correspondente cultural, além de ter ocupado car-
gos na burocracia estatal, ligados ao desenvolvimento da cultura em geral (Andrade, 2001,
p. 166).
45
A obra Macunaíma, de Mario de Andrade foi publicada em 1928. Foi transformada em filme
por Joaquim Pedro de Andrade em 1969. Acredito que a recuperação de uma obra modernista no
final da década de 60 traduz dois contextos históricos: a preocupação com o caráter nacional com
a definição do que é brasileiro, em contraposição ao produto estrangeiro, na forma de descoloni-
zar a produção cultural no país, tal como são tentativas do modernismo e do
Cinema Novo
.
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 94
Conforme Feijó, a popularidade de Lampião como herói popular
ou “bandido herói” possui significados ainda de origens medievais, ad-
vindos pelo período de transição para o capitalismo em que os feudos
com excedente populacional desalojavam da terra uma grande parcela da
população. Sem lugar para se fixar, formavam grupos de beatos, fanáti-
cos ou simplesmente viviam de esmolas. Enquanto outros inconformados
com a situação formavam bandos armados para saquear e assaltar cara-
vanas, castelos e aldeias.
Atribuído a esta origem de “banditismo social” , formava-se este
tipo de herói que se vingava da condição em que eram tratados pela clas-
se dominante. Pode-se classificar Lampião como herói diante das histó-
rias do mais famoso bandido medieval, o inglês Robin Hood e do
mexicano Pancho Villa. Feijó apresenta esta condição social também co-
mo uma revolução social:
O aspecto mais interessante é que a fama dos bandidos
tem sempre um caráter social: isto é, não são apenas he-
róis corajosos e guerreiros, mas representam sempre uma
sede de justiça coletiva. Na Inglaterra do século XIII, na
Espanha do século XVIII ou no México do século XX, esse
tipo de manifestação (de o
banditismo social” e o vulto que
adquirem heróis populares através de baladas, poesias e
lendas) apareceu sempre que um sistema agrário entrou
em crise sem que houvesse uma economia urbano-
industrial que absorvesse esse contingente de população
marginalizada ou uma possibilidade histórica da revolução
social. (Feijó, 1984, p. 31)
O fim do ciclo do cangaço foi marcado na história do Brasil com a
morte do sucessor de Lampião, o cangaceiro Corisco. Ele foi morto em 5
de maio de 1940. Entretanto as lembranças populares continuavam
vivas, em literatura de cordel, livros e documentários. Muitas destas
obras atribuem glamour e misticismo a Lampião como herói-bandido.
Sobre a função da paródia exercida no cinema, Fiker faz a seguintes con-
siderações:
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 95
A construção explicativa do mundo operada pelo mito, his-
toricamente arcaica, ao ser deslocada por novos sistemas
epistemológicos, sobrevive ao seu momento como força
conservadora e, erigida essencialmente sobre elementos
ideológicos, passa a constituir-se em postura não mais de
explicação dos processos reais, mas de mistificação deste.
A função da paródia neste segundo momento é intrinseca-
mente desmistificadora, consistindo sobretudo na exacer-
bação crítica dos aspectos da estrutura arcaica do mito em
contraste com o contexto específico onde ele ocorre à ma-
neira de um corpo estranho. Ou no deslocamento para fora
de seu contexto adicional, espécie de carapaça camuflado-
ra, trazendo à luz seu verdadeiro contorno. Aqui a paródia
opera como um anti-corpo no sentido de rejeitar o corpo
estranho do interior do organismo. (Fiker, 2000, pp. 9-10)
No filme
O Lamparina,
o tema caipira
versus
cangaceiros, o hero-
ísmo de Bernardino Jabá ao se passar por
Lamparina
ganhou aspecto de
epopéia moral, em que o bem era representado pelo caipira simples e ho-
nesto e o mal era representado pelo cangaceiro. A natureza de
western
e
cômico não se esquivava de mostrar uma certa brutalidade do regime do
cangaço, pois cangaceiros atacavam vilarejos e deixaram um menino
órfão, por sua vez
Lamparina
jamais matou alguém, ele apenas fingia ter
matado muitas pessoas só para impor respeito diante do grupo de can-
gaceiros: suas histórias eram de coragem e ousadia, contudo eram
mentiras
46
.
O Lamparina
, portanto, pode ser visto de duas maneiras: como
tentativa de compreender a dinâmica de formação de mitos gerados pelo
cangaço como resultados da própria história. E também como maneira
de justificar o domínio econômico do nordeste pelos estados do Sul-
sudeste.
Eva Paulino ressalta nos filmes de Mazzaropi que:
46
Na façanha de livrar a vila dos ataques de cangaceiros, Lamparina dialoga com mentiras, em
que talvez outros relados reais de aventuras dos cangaceiros sejam mentiras também, inventadas
para assustar os inimigos dos nordestinos. Nesse caso, seus inimigos são aqueles que chegam à
região para dominá-la e transformá-la.
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 96
Mazzaropi insistentemente explora em seus filmes o cho-
que do reconhecimento e a sensação de estranhamento, ele-
mentos simultâneos que tais brasileiros deslocados
percebem quando se confrontam com “outros brasileiros”
semelhantes e diferentes ao mesmo tempo. (Bueno, 1999,
p. 16)
Mazzaropi usava a paródia em
O Lamparina
, na forma de inter-
textualidade entre a personagem Lamparina e a figura histórica de Lam-
pião, podemos citar Linda Hutcheon sobre a necessidade de reafirmar a
paródia como uma fonte de estudo e análise:
A paródia é, pois, na sua irônica transcontextualização e
inversão, repetição com diferença. Está implícita uma dis-
tanciação crítica entre o texto em fundo a ser parodiado e a
nova obra que incorpora, distância geralmente assinalada
pela ironia. Mas esta ironia tanto pode ser apenas bem
humorada, como pode ser depreciativa; tanto pode ser cri-
ticamente construtiva, como pode ser destrutiva. O prazer
da ironia da paródia não provém do humor em particular,
mas do grau de empenhamento do leitor no
<<
vai e vem
>>
intertextual
(bouncing)
para utilizar o famoso termo de E.
M. Forster, entre cumplicidade e distanciação. (Hutcheon,
1985, p. 48)
O filme
O Lamparina
foi analisado com base nos pressupostos
teóricos de Bakhtin, em
A cultura popular na idade média e no renasci-
mento
:
o contexto de François Rebelais,
diante
das imagens do realismo
grotesco (isto é, no sistema de imagens da cultura cômica popular) atra-
vés do princípio material e corporal sob a forma universal:
No realismo grotesco, o elemento material e corporal é um
princípio profundamente
positivo
, que nem aparece sob
uma forma egoísta, nem separado dos demais aspectos da
vida. O princípio material e corporal é percebido como uni-
versal e popular, e como tal opõe-se a toda separação das
raízes materiais e corporais do mundo, a todo isolamento e
confinamento em si mesmo, a todo caráter ideal abstrato, a
toda pretensão de significação destacada e independente
da terra e do corpo. (Bakhtin, 1987, p. 17)
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 97
Podemos contrastar a concepção grotesca do corpo no filme
quando a família caipira de Bernardino Jabá foi travestida pelo código de
vestimenta dos cangaceiros nordestinos (chapéu de couro cheio de estre-
las, cartucheiras enfeitadas de bordados e recheadas de balas), ou seja,
qualquer pessoa trajada de cangaceiro tornava-se cangaceiro.
Considerando que a vestimenta servia de máscara para a família
caipira que se disfarçava de cangaceiros no filme, Bakhtin comenta o uso
da máscara no sentido da cultura popular:
A máscara traduz a alegria das alternâncias e das reencar-
nações, a alegre relatividade, a alegre negação da identida-
de e do sentido único, a negação da coincidência estúpida
consigo mesmo; a máscara é a expressão das trans-
ferências, das metamorfoses, das violações das fronteiras
naturais, da ridicularização, dos apelidos; a máscara en-
carna o princípio de jogo da vida, está baseada numa pecu-
liar inter-relação da realidade e da imagem, características
das formas mais antigas dos ritos e espetáculos. O comple-
xo simbolismo das máscaras é inesgotável. Basta lembrar
que manifestações como paródia, a caricatura, a careta, as
contorções e as “macaquices” são derivadas da máscara. É
na máscara que se revela com clareza a essência profunda
do grotesco. (Bakhtin, 1987, p. 35)
Por meio da máscara a personagem Bernardino Jabá construiu
um novo rosto, uma outra personagem – o Lamparina – que pela inversão
de valores culturais provocou o riso por fantasiar a imagem caricaturada
de Lampião. Além disso, foi através da apresentação do apelido da persona-
gem Lamparina, que podemos refletir sobre as origens do humor despertado
como costume camponês que ganhou sentido cômico. Segundo Minois:
A língua latina permite também compreender o caráter
mordaz do humor latino. Com suas formas elípticas, ele se
presta maravilhosamente ao sarcasmo, à tirada, ao jogo de
palavras conciso e picante, característico da
dicacitas
, ou
causticidade. O costume camponês de cobrir as pessoas de
impropérios está na origem de muitos sobrenomes latinos,
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 98
estigmatizando defeitos físicos, intelectuais e morais, tais como
Scaurus
, o manco, Galba, o barrigudo,
Sêneca
, o velhote,
Lur-
co
, glutão,
Brutus
, o grosseiro, ou
Bibulus
, o beberrão. To-
mando-se por base esses sobrenomes, o simples deslo-
camento de uma letra permite uma mudança de sentido
cômico: M. Fulvius Nobilior, o notável, torna-se, para Ca-
tão, Mobilior, o instável. Essa prática, que para nós revela-
se de baixo nível, é comum mesmo nos exercícios oratórios
de alto nível, tais como as prédicas de Cícero. Este não he-
sita em recomendar o procedimento, assim como os dimi-
nutivos: seu adversário, Clodius Pulcher (o belo), torna-se
Pulchellus
(o belo garoto ). Ele próprio, Cícero (o grão-de-
bico), não escapa às brincadeiras, que aceita de bom grado.
Aos amigos que lhe aconselham mudar de nome, ele res-
ponde que tornará esse grão-de-bico tão célebre quanto
Catão
(o prudente),
Catullus
(o pequeno travesso) ou
Sacaurus
(o manco). (Minois, 2003, p. 85)
Virgulino Ferreira da Silva e Bernardino Jabá não escaparam
dessa origem camponesa latina em seus apelidos. O primeiro recebeu o
apelido ao entrar para o cangaço de Lampião
47
, pois teria uma relação
com a luz que emanava de sua arma quando ele atirava, o segundo apre-
senta-se como Lamparina por confrontar com a ignorância do Capitão Zé
Candeeiro, pois surgiu esta idéia de apelido diante da situação de que
algo precisava ser “clareado” para impor uma farsa de dominação. Ambos
na concepção de Bakhtin passavam a receber o que o autor denomina de
nome-alcunha:
Se um nome tem um valor etimológico determinado e cons-
ciente o qual, ainda por cima, caracteriza a personagem
que o traz, já não é mais um nome, mas uma alcunha. Es-
se nome-alcunha não é jamais neutro, pois o seu sentido
inclui sempre uma idéia de apreciação (positiva ou negati-
va), é na realidade um brasão. Todos os verdadeiros apeli-
47
Conforme Grunspan-Jamin (2006, p. 92), a atribuição do apelido “Lampião”, qualquer que seja
a sua origem, sela uma espécie de aliança definitiva com o cangaço. Doravante há um “antes” e
um “depois” desse pacto. Virgulino adota uma nova identidade. Ele torna-se Lampião e assume
toda dimensão simbólica de seu apelido. Enquanto alguns cangaceiros recebiam apelidos ao seu
meio ambiente natural, nomes de árvores ou de animais, o que demonstrava um laço muito forte
com o sertão, alusão ao clarão que saía de sua arma ligava Lampião a um universo guerreiro, e
quando ele se fizesse chefe de grupo seus atos seriam condizentes com seu apelido.
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 99
dos são ambivalentes, isto é, têm uma matiz
elogioso-
injurioso
. (Bakhtin, 1987, p. 405)
Para as construções da personagem Lamparina, utilizou-se de
um processo paródico que rompia com a estrutura mítica. Esse processo
tinha como característica o humor, o riso e a ironia, elementos que des-
construíram a imagem de poder do mito cangaceiro; como então é ridicu-
larizado através da representação do bufão na visão carnavalesca:
Essa visão carnavalesca oposta a toda idéia de acabamento
e perfeição, a toda pretensão de imutabilidade e eternida-
de, necessitava manifestar-se através de formas de expres-
são dinâmicas e mutáveis (protética), fluantes e ativas. Por
isso todas as formas símbolos da linguagem carnavalesca
estão impregnados no lirismo da alternância e da renova-
ção, da consciência da alegre relatividade das verdades e
autoridades no poder. Ela caracteriza-se, principalmente,
pela lógica original das coisas “ao avesso”, “ao contrário”,
das permutações constantes do alto e do baixo (“a roda”),
da face e do traseiro, e pelas diversas formas de paródias
travestis, degradações, profanações, coroamentos e destro-
namentos bufões. A segunda vida, o segundo mundo da
cultura popular constrói-se de certa forma como paródia
da vida ordinária, como um ‘mundo ao revés”. (Bakhtin,
1987, pp. 9-10)
O medo do regime do cangaço foi vencido através do riso, e o
Lamparina exprimia através de seu disfarce que se tornou hilário por ser
um simples caipira que conseguiu “enganar” cangaceiros. Sobre o riso,
Minois comenta sua função de exorcizar o medo:
Simultaneamente, o riso carnavalesco está lá para dar se-
gurança, para vencer o medo. É por isso que vêem nos cor-
tejos, figuras exóticas, monstruosas, falsamente assusta-
doras que ameaçam atacar: provocar medo sabendo que é
para “rir” é um meio de exorcizar o medo. Vêem-se homens
e mulheres selvagens, com sua clava, mouros, mais tarde
indianos, dragões, tal como o famoso monstro (tarasca) de
Tarascon, e gigantes, engraçados e inofensivos, cuja ma-
landragem provoca hilaridade, como Rouen, em 1485:
Capítulo 4 – A paródia no contexto histórico do cangaço como narrativa no cinema brasileiro 100
“Para rir, vinham saciar-se na mencionada fonte outros
personagens, entre eles uma mais alta e maior que um gi-
gante, que mal podia abaixar-se para beber na referida fon-
te”. Dominar essas criaturas, demonstrar sua impotência
tranqüiliza. (Minois, 2003, p. 166)
O aspecto cômico de Mazzaropi pode ser visto por conduzir a ridi-
cularização sobre as aparências da realidade e produzir um interesse
maior pelas ações contraditórias nos temas tratados.
Rittner define o cômico como:
Há muitas contradições entre filósofos sobre a natureza do
cômico, o que nos exige uma síntese pessoal. Ao afastar a
aparente seriedade do mundo, o humor elimina a razão,
rompendo as relações triviais e conhecidas entre objetos e
entre as pessoas (...) a eternidade da categoria cômica se
explica não só por serem nela ridicularizadas as conven-
ções sociais, mas principalmente porque ela representa um
retorno à nossa espontaneidade vital. Através de seus ele-
mentos integrantes (o imprevisto, a surpresa, a ironia, o
sarcasmo e a sátira) o cômico nos emancipa das normas de
conduta da sociedade organizada, propondo a anarquia. A
rigor, o cômico implica um desinteresse pelas aparências
da realidade e um interesse por sua essência contraditória.
Não se confunde o cômico com o risível, pois este é apenas
um dos aspectos daquele. Em todo caso, o riso provém de
uma frustração da atitude expectante do observador: espe-
ra-se uma coisa, acontece outra. Portanto, uma condição
necessária, mas não suficiente para a existência do cômico
é que entre causa e efeito haja um rompimento, uma de-
sarmonia, uma falta de correspondência lógica. Enfim, o
cômico não é apenas uma sátira corrosiva ao mundo real,
mas constitui todo um universo de sensações e emoções
novas, porque espontâneas. (Rittner, 1965, p. 49)
As considerações aqui apresentadas sobre paródia são importan-
tes pelo fato de a cinematografia de Mazzaropi, em
O Lamparina,
caracte-
rizar-se não apenas pela representação da cultura popular, mas também
por utilizar o cômico e a paródia como expressão de diálogo entre duas
culturas no Brasil.
Considerações finais 101
Considerações Finais
cinema brasileiro quase sempre enfocou o ru-
ral/sertão, desde o surgimento dos primeiros projeto-
res e a chanchada que traziam musicais caipiras, o
que possibilitou a produção qualificada, técnica e artística da Vera Cruz
que personificou a favor da indústria cultural e do estilo cinema
holly-
woodiano
.
O
Cinema Novo
redescobriu o Brasil e o sertão como uma fonte
muito rica de narrativas e temas que, através do gênio cineasta Glauber
Rocha, foram transpostos para o cinema, havendo o embate entre cultu-
ra popular e ideologia dominante.
A partir da década de 1950, surgiu no cinema brasileiro o ator e
diretor Amacio Mazzaropi com seu jeito personificado de Jeca, ocupando
as telas com sucesso de bilheteira e público no Brasil, podendo ser teori-
zada como contestação da indústria hegemônica que desde seu nasci-
mento foi assediada por companhias multinacionais.
De todos os elos que uniam o cinema brasileiro ao seu público, o
de identificação mais imediata e forte foi o humor: o ingênuo nas chan-
chadas, o irônico no
cinema novo
e o humor típico brasileiro.
O humor característico de Mazzaropi, que não encontramos em
outras cinematografias, foi o responsável pela maioria de nossos suces-
sos populares. Esse humor, a crítica, o contexto histórico parecem ser a
característica facilmente identificável através do nosso caipira.
Considerações finais 102
Tal importância de Mazzaropi deve-se ao fato de ele fazer cinema
com elementos da nossa própria cultura, mostrando considerável conhe-
cimento dos temas, problemas e ansiedades dos brasileiros, expressos de
forma criativa em paródias e chanchadas.
O Caipira-cangaceiro de
O Lamparina
(1964) pode ser considera-
do uma exposição sobre fenômenos da cultura popular em que o come-
diante retomou tradições da cultura brasileira: a personagem caipira
funciona como elemento unificador que analisa e comenta outros ele-
mentos que ocorrem no espaço nacional, como a figura do cangaceiro,
que ainda se tratava de um fato nacional a ser discutido e comentado em
nosso país.
O cangaceiro representava o homem do sertão brasileiro e este ti-
po de filme ganhou um nome próprio de gênero
northwerns.
Além de seu
alcance simbólico de contestação e rebeldia, no que diz respeito ao signi-
ficado, razão pela qual foi recuperado à época do cangaço. A figura de
Lampião viria, assim, a constituir um ícone na construção de sua perso-
nagem para interpretações:
Relatar a vida dessa personagem é, portanto, antes de tu-
do, observar como se constrói uma história individual na
qual o real, o simbólico e o imaginário se mesclam, em que
o próprio Lampião torna-se cúmplice da construção de sua
personagem e da sua lenda, com a fragilidade do testemu-
nho oferecendo perspectivas de interpretação de uma ri-
queza infinita. (Grunspan-Jasmin, 2006, p. 35)
A paródia serviu como um meio de entrar em acordo com os tex-
tos do passado em suas formas históricas, conforme Linda Hutcheon:
Os artistas modernos parecem ter reconhecido que a mu-
dança implica continuidade e oferecerem-nos um modelo
para o processo de transferência e reorganização
desse
passado
. As suas formas paródicas, cheias de duplicida-
des, jogam com as tensões criadas pela consciência históri-
ca. (1985, p. 15)
Considerações finais 103
Isto quer dizer que Mazzaropi como parodista, em suas obras,
remetem-nos a um passado, valorizando-o, ao invés de somente criticá-lo
como fundamentos de compreensão do mundo.
Em seus filmes, o universo de contradições que consomem a so-
ciedade entre a pobreza e a riqueza é apresentado através de dicotomia
entre sentimentos de amor e ódio, as faces humanas de bondade
versus
maldade, humildade
versus
arrogância, solidariedade
versus
egoísmo, a
igualdade
versus
a desigualdade. A condição humana do caipira Mazza-
ropi tinha como referência colocar em discussão situações sobre a justiça
social em seu contexto cultural.
É nesse sentido que proponho nesse trabalho uma visão desse
encontro de culturas no meio cinematográfico representado por Mazzaro-
pi, não de forma estática, pois é uma alternativa de fornecer uma leitura
sobre memória, história e cultura.
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19.
O corintiano
(1967). Taubaté: Pam Filmes. Direção: Milton Amaral.
20.
O Jeca e a freira
(1968). Taubaté: Pam Filmes. Direção: Amácio Mazzaropi.
21.
No paraíso das solteironas
(1969). Taubaté: Pam Filmes. Direção: Pio Zamuner.
22.
Uma pistola para Djeca
(1969). Taubaté: Pam Filmes. Direção: Fernandes
Ary.
23.
Betão ronca ferro
(1970). Taubaté. Direção: Geraldo Miranda.
24.
O grande xerife
(1972). Taubaté: Pam Filmes. Direção: Pio Zamuner.
25.
Um caipira em Bariloche
(1973). Taubaté: Pam Filmes. Direção: Pio Zamuner
e Amácio Mazzaropi.
26.
Portugal... minha saudade
(1974). Taubaté: Pam Filmes. Direção: Pio Zamuner
e Amácio Mazzaropi.
27.
O Jeca macumbeiro
(1975). Taubaté: Pam Filmes. Direção: Pio Zamuner e
Amácio Mazzaropi.
28.
O Jeca contra o capeta
(1976). Taubaté: Pam Filmes. Direção: Pio Zamuner e
Berilo Faccio.
29.
Jecão... Um fofoqueiro no céu
(1977). Taubaté: Pam Filmes. Direção: Pio
Zamuner e Amácio Mazzaropi.
30.
O Jeca e seu filho preto
(1978). Taubaté: Pam Filmes. Direção: Pio Zamuner
e Berilo Faccio.
31.
A banda das velhas virgens
(1979). Taubaté: Pam Filmes. Direção: Pio
Zamuner e Amácio Mazzaropi.
32.
Jeca e a égua milagrosa
(1980). Taubaté: Pam Filmes. Direção: Carlos
Garcia.
Referências bibliográficas 112
FILMOGRAFIA COMPLEMENTAR
1.
90 anos de cinema: uma aventura brasileira
(1987). Rio de Janeiro: Meta-
vídeo. Direção: Eduardo Escorel e Roberto Feith. (Coletânia VHS).
2.
Deus e o diabo na terra do sol
(1964). Direção: Glauber Rocha. (DVD 125
minutos).
3.
Rastejador
(1970).
Brasil. Direção: Sérgio Muniz. (VHS 35 minutos).
4.
Mazzaropi: o cineasta das platéias
(2002). Instituto Mazzaropi, Taubaté SP,
2002. Direção: Luis Otávio Santi. (DVD 52 minutos).
5.
Memória do cangaço: Lampião e Maria Bonita filmados por Benjamin Abraão e
os cangaceiros do Nordeste entre 1935 e 1939.
(1965). Funarte, Rio de
Janeiro. Direção: Paulo Gil Soares. (VHS 30 minutos).
6.
O cangaceiro
(1953). Vera Cruz, São Paulo. Direção: Lima Barreto. (VHS 105
minutos).
Anexo 113
Anexo 114
ANEXO I
Anexo 115
Anexo 116
Anexo 117
Anexo 118
Anexo 119
Anexo 120
Anexo 121
Anexo 122
Anexo 123
Anexo 124
Anexo 125
Anexo 126
Anexo 127
Anexo 128
Anexo 129
Apêndice 130
Apêndice 131
TRILHA SONORA DO FILME: O LAMPARINA
Lamparina do Nordeste
e
Alma Solitária
: Trilhas sonoras
do caipira-cangaceiro
A trilha sonora de
O Lamparina
é composta pelas músicas:
Lam-
parina do Nordeste
e
Alma Solitária
de Elpídio dos Santos
25
.
No filme, a trilha é acrescida em dois momentos: primeiramente
na apresentação de Bernardino Jabá como cangaceiro
O Lamparina,
e
depois apresenta um caipira solitário que perde sua família por não mais
ser reconhecido como membro físico, apenas como uma alma.
Nos termos da tradição popular sertaneja, a cantoria
26
trata-se de
um verso rimado por meio do qual a personagem entra na história,
falando sobre sua origem e o motivo de sua aparição, assim inicia-se a
aventura de Bernardino Jabá como a personagem
O Lamparina
:
25
Elpídio dos Santos nasceu em São Luiz do Paraitinga, em 14 de janeiro de 1909. Suas compo-
sições eram executadas pelo coro da Igreja Matriz, nas escolas em que também foi professor,
pelas bandas, nos teatros e nas reuniões sociais. Então conheceu Mazzaropi, um desconhecido
que viera se apresentar em um circo na cidade. Depois do primeiro espetáculo, Elpídio tocou
violão a noite toda e, a partir dali, ficaram amigos. Quando Mazzaropi começou a produzir seus
filmes, chamou Elpídio para encarregar-se das trilhas sonoras. Além de Mazzaropi, parte de sua
obra foi gravada por mais de 50 cantores consagrados, como Cascatinha e Inhana, Titulares do
Ritmo, Elza Laranjeira, Irmãs Galvão, Dircinha Costa, Tonico e Tinoco, Nonô e Naná, Duo Brasil
Moreno. Mas recentemente gravaram músicas suas Fafá de Belém, Sérgio Reis, Almir Sater, Pena
Branca e Xavantinho, Vanusa, Dercio Marques, Mato Grosso e Matias, entre outros. Elpídio fale-
ceu em 3 de setembro de 1970, deixando mais de mil composições. (Museu Mazzaropi).
26
Para o folclorista Câmara Cascudo, em sua obra
Vaqueiros e Cantadores,
a cantoria é o con-
junto de regras, de estilos e de tradições que regem a profissão de cantador, este vive de feira em
feira, cantado os romances amorosos ou as aventuras de Antonio Silvino e Virgulino Lampião
(Cascudo, pp. 126-127).
Apêndice 132
Não sei com quem tô falando
se tem alguma oração
diga seu nome cantando e não trema não
só que é preciso saber
já matei dez capataz
botei mais dez pra correr
sem olhar pra trás
só diz cuidado a valentia termina
porque pra mim não há homem
como o Lamparina
um pouco ali diante da banda do Botocó
matei uns trinta volante com dez tiro só
na mão esquerda direta um peixeira e noutra um ‘fuzir’
muié bonita e faceira
tenho mais de ‘mir’ ...
27
.
Essa fala antecede o desafio com Zé Candeeiro que serve para in-
troduzir o tema e nesta interação existente entre o filme e música é que
desperta a atenção para os acontecimentos com a intenção de criar uma
nova imagem para recontextualizar a proposta da narrativa – a de um
cangaceiro.
Outro momento em que aparece uma canção é quando Bernardi-
no é desprezado por todos por o acharem ser um fantasma.
Bernardino, ao isolar-se numa fazenda devido à exclusão de seus
familiares, admite que o sentimento de saudade provocada pela solidão
açoita sua alma. Ele expressa sua dor através da canção
“Alma Solitária
”:
Vento quando açoita a bananeira
Ela geme ela chora de dor
Porque vive abandonada coitada
Sem carinho e sem amor
27
Elpídio dos Santos era o compositor preferido de Mazzaropi, sempre convidado para criar as
músicas específicas de cada filme e que seriam cantadas pelo próprio Mazzaropi. Estas músicas
eram criadas para ressaltar, por vezes, uma cena importante do filme e, em outras, tinham a
árdua incumbência de retratar o próprio âmago da história.
Apêndice 133
Eu sou igualzinho a ela
Também vivo sozinho a meditar
Numa triste sexta feira, minha linda companheira
Sem querer me fez chorar
E ao sentir também o vento
Na distância eu juro que pensei
Vivo agora solitário carregando o meu calvário
Até quando eu não sei
28
.
28
Alma Solitária. Elpídio dos Santos. Editora e Imp. Mus. Fermata do Brasil Ltda.
Livros Grátis
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