presente na narração da personagem que não é agente, mas vítima da brutalidade.
Este realismo feroz se faz necessário para que o testemunho de uma personagem,
possa ganhar veracidade, como no conto “Vanicléia”:
“U-hum. Agora ter que agüentar esse bebo belzebu. O que é que ele me
dá? Bolacha na desmancha. Porrada na canela. Eu era mais feliz antes.
Quando o avião estrangeiro chegava e a gente rodava no aeroporto. Na
boca quente da praia. Pelo menos, um príncipe me encantava. Naquele
feitiço de sonho. De ir conhecer outro lugar, se encher de ouro. Comprar
aliança. U-hum.
Casar tinha futuro. Mesmo sabendo de umas que quebravam a cara. O
gringo era covarde, levava para ser escrava. Mas valia. Menos pior que
essa vida de bosta arrependida. De coisa criada. Qual é a minha
esperança com esse marido barrigudo, eu grávida? Que leite ele vai
construir?
Se for menina, vou ensinar assim: no porto, no Carnaval. No calçadão de
Boa Viagem. Com cuidado para a polícia não ver a sacanagem. E querer
participar. Um dia, eu tive que foder com a tropa inteira da delegacia.
Mexeram comigo até o dia amanhecer. E ainda ficaram tirando onda:
que eu devia respeitar o homem brasileiro. Rarará. Mataram a Vanicléia,
lembra, não lembra? De tanto que afolozaram ela.
Homem? U-hum. Não vale um tostão pelas bandas daqui. Os caras pelo
menos tinham educação, outra finura: levavam a gente para restaurante,
deitavam a gente em cama d‟água. Sabonete de colônia. A gente era
respeitada. Precisava ver como o garçom e o pivete e o gerente e o
taxista da frente e o povo todo nos tratava. O que cada um ganhava de
gorjeta não era brincadeira. Acabava saindo rendendo pra todo mundo.
Uma beleza!
Agora que valor me dá esse belzebu? Quanto vale ele ali, na praça?
Pergunta, pergunta. A vida dele é me chamar de piranha e de
vagabunda. E tirar sangue de mim. Cadê meus dentes? Nem vê que eu
tô esperando uma criança. Agora, disso ninguém tem ciência. Ninguém
dá um fim.
Mulher como eu ser tratada assim.”
(FREIRE, 2005, p. 41-42)
No relato da personagem-narradora, temos a representação do
testemunho de violência física e simbólica sofrida por diferentes vítimas femininas da
sociedade: a mulher, a mãe, a criança, a prostituta. Estas formas de violência
sempre estiveram presentes na sociedade e não podemos deixar de reconhecê-las
como formas pelas quais as relações são estabelecidas, mesmo que de maneira
indesejável.