
A FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL
31
O mapa é o instrumento ideal para definir, delimitar e demarcar
a fronteira. A passagem de uma etapa à outra se traduz por um
acréscimo de informação, mas também por um custo de energia. No
fundo, trata-se da passagem de uma representação “vaga” para uma
representação “clara”, inscrita no território. A linha fronteiriça só é de
fato estabelecida quando a demarcação se processa. “De fato
estabelecida” significa não estar mais sujeita à contestação por parte
de um dos Estados que tivesse essa fronteira em comum. Pela
demarcação, elimina-se não um conflito geral, mas um conflito do qual
a fronteira pudesse ser o pretexto. [RAFFESTIN, C. Por uma geografia
do poder. São Paulo: Ática, 1993, p. 167.]
A demarcação da fronteira sobre o terreno, etapa final do processo, confere
uma materialidade sensível à linha divisória. Esta tarefa, que continuou a demandar
o trabalho de comissões de demarcadores brasileiros por nove décadas depois do
estabelecimento do último importante tratado de limites, já não concerne à origem
das fronteiras. No outro extremo, a mera definição abstrata de um traçado – como no
caso de Tordesilhas, ou em grande parte das decisões do Tratado de Madri de 1750
– não gera uma fronteira, pois freqüentemente opera pela intuição, na ignorância da
localização verdadeira dos acidentes geográficos mencionados
2
. A linha de fronteira
nasce na etapa intermediária, a da delimitação, que consiste num ato de apreensão
intelectual do espaço geográfico em questão, possibilitado pelo acúmulo de um vasto
conjunto de informações e refletido nos documentos cartográficos sobre os quais é
traçada a linha divisória. Se é verdade, como quer Raffestin, que apenas a colocação
de marcos sobre o terreno suprime a possibilidade de conflitos que tomam o traçado
divisório como pretexto, o verdadeiro debate entre os Estados relativo às fronteiras
se processa na etapa anterior, quando são elaborados os tratados de limites
3
.
2
o Meridiano de Tordesilhas não foi delimitado. e nem poderia ser, nos termos vagos do tratado e na
base dos conhecimentos da época. Tentativas de delimitação foram feitas pelos mapas do catalão Jaime
Ferrer (1495), de Cantino (1502), de Enciso (1518), dos peritos de Badajós (1524), de Diogo Ribeiro
(1529) e de Oviedo (1545), com traçados bastante distantes entre si. Apenas muito mais tarde, no
século XVIII, através dos padres Diogo Soares e Domingos Capassi, a arte cartográfica conseguiria fixar
com razoável precisão as longitudes e determinar o traçado aproximado da linha divisória.
3
Há um problema suplementar na formulação de Raffestin. Ao insistir exclusivamente na temática da
quantidade de informação presente em cada etapa. acaba sendo obscurecida a diferença de qualidade
entre elas (a menos que, num jogo de palavras pretensamente profundo, se invoque a transubstanciação
da quantidade em qualidade...). Historicamente, a demarcação de fronteiras pertence. como regra, ao
domínio dos séculos XIX e XX, e reflete um grau de controle sobre o espaço de que só dispõem os
Estados contemporâneos. A delimitação, como vimos, constitui processo característico de uma fase
anterior, de transição, quando se forjam os Estados nacionais.