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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
P
rograma de Pós-Graduação em Lingüística
Aplicada e Estudos da Linguagem - LAEL
SÔNIA CRISTINA PORTELA
A imagem discursiva do trabalho educacional
nos prescritos oficiais
MESTRADO EM LINGÜÍSTICA APLICADA
E ESTUDOS DA LINGUAGEM
PUC-SP
São Paulo
2006
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SÔNIA CRISTINA PORTELA
A imagem discursiva do trabalho do educacional
nos prescritos oficiais
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial
para a obtenção do título de
Mestre em Lingüística Aplicada e
Estudos da linguagem, sob a
orientação da Profª Drª Cecília
Pérez de Souza-e-Silva.
MESTRADO EM LINGÜÍSTICA APLICADA
E ESTUDOS DA LINGUAGEM
PUC-SP
São Paulo
2006
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____________________________________
____________________________________
____________________________________
Ao meu amado esposo, Manoel, companheiro de tantas horas. E aos nossos
filhos, Vitor e Gabriela... Minha família, minha razão de viver.
À memória de meu pai, Adalberto Portela.
Aos professores desse país que buscam a educação ideal e verdadeira.
AGRADECIMENTOS
A todos os colegas, amigos e familiares que de alguma forma contribuíram para a
realização deste trabalho.
à Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva, pelas competentes orientações e pela
capacidade de mostrar-me um outro modo de olhar o trabalho educacional.
à Ângela Brambilla C. Lessa e à Vera Lúcia De Albuquerque Sant’anna, que
participaram da banca de qualificação com inestimáveis orientações.
ao grupo Atelier, pelos momentos de discussão e críticas que contribuíram para o
crescimento de minha pesquisa.
aos colegas do Seminário de Orientação pelas trocas enriquecedoras e pelos
momentos de alegria que proporcionaram o meu crescimento como pessoa e
como pesquisadora.
à Secretaria Estadual de Educação do Estado de São Paulo, que me possibilitou
participar do Projeto Bolsa Mestrado.
à Dirigente Regional de Ensino de São José dos Campos Cleyde Pião Ferraz e
ao Supervisor de Ensino Altimar Costa da Silva que viabilizaram esta empreitada.
à Selma, do Setor de Finanças que, com paciência, orientou-me sobre os trâmites
legais para a aquisição da Bolsa Mestrado.
aos meus colegas professores que me trouxeram idéias inspiradoras e que me
acompanharam nesse processo, torcendo por mim.
à minha querida mãe, também professora, que sempre foi para mim exemplo de
vida e de trabalho.
A Liliane Macau, amiga de coração, que sempre me acalmou nas horas difíceis
com palavras de sabedoria e de fé.
RESUMO
A presente Dissertação de Mestrado em Lingüística Aplicada insere-se na
linha de pesquisa Linguagem e Trabalho e tem como objetivo identificar a
imagem discursiva do trabalho do educacional nos prescritos oficiais a fim de
compreendermos a sua complexidade. Para tanto, esta pesquisa se apoiará
nos fundamentos teóricos da Análise do Discurso de linha francesa
preconizada por Dominique Maingueneau (1997/2002) e nos estudos das
Ciências do Trabalho, mais especificamente da Ergonomia (René Amigues,
2002/2004) e da Ergologia (Yves Schwartz ,1998/2000). São analisados dois
prescritos oficiais, também chamados, nesta pesquisa, de documentos, os
quais foram selecionados por apresentarem referência direta ao trabalho do
professor e : (1) Política Educacional da Secretaria da Educação do Estado
de São Paulo e (2) Orientações para Elaboração do Planejamento nas
Escolas e nas Diretorias de Ensino, ambos do ano de 2004. Esses
documentos foram retirados do site htpp://cenp.edunet.sp.gov.br. A análise
discursiva pautou-se, primeiramente, nos estudos das relações
interdiscursivas que perpassam nesses prescritos, para, em seguida, utilizar-
se das categorias lingüísticas nas formas de heterogeneidade marcada e não
marcada com o objetivo de compreender o embricamento de discursos
presentes nesses documentos. Por fim, o estudo do deslizamento das
designações das esferas organizacionais e empresariais para o campo
educacional é realizado a fim de compreendermos a imagem discursiva que
se tem elaborada a partir da presença dessas designações. Essas análises
apontam para a formação de uma imagem discursiva do trabalho
educacional, a qual compõe o gênero profissional do professor, mas que não
leva em conta as dimensões reais de seu trabalho presentes em seu dia-a-
dia.
Palavras-chave: trabalho do professor, prescritos, análise do discurso.
ABSTRACT
This work in Applied Linguistics inserts in the research line Language and Work and has as
objective to identify the discourse image of the work of the professor in the official prescribed
ones in order to understand its complexity. For in such a way, this research will be supported
in the theoretical beddings of the Analysis of the discourse of French line praised by
Dominique Maingueneau (1997/2002) and in the studies of Sciences of the Work, more
specifically of the Ergonomics (René Amigues, 2002/2004) and of the Ergologia (Yves
Schwartz, 1998/2000). Official ones are analyzed two prescribed, also called, in this research,
of documents, which had been selected by presenting reference to the teacher´s work: (1)
Educational Politics of the Secretariat of the Education of the State of São Paulo and (2) Rules
for Elaboration of the Planning in the Schools and the Directions of Education, both of the
year of 2004. These documents had been removed of the site htpp://cenp.edunet.sp.gov.br.
The discourse analysis was made, first, in the studies of the interdiscourses relations for, after
that, using itself of the linguistic categories of the marked forms of “heterogeneidade” and,
finally, in the identification of the type of assignments the existence in documents. From the
analysis, the character could be evidenced fluid of the lapsings, therefore they present
themselves vacant however reveal “normatizadoras” in relation to teacher´s work. The
presence of the enterprise discourse also is found in the prescribed ones, what it demonstrates
the influence of this instance in the educational context. It could be perceived, also, that the
prescribed ones for the teacher are not obtaining to day-by-day breach the barrier of the reality
of its work in the e, consequently, perhaps, can there configure one of the possible causes for
its anguish in the work.
Keywords: work of the teacher; prescribed; analysis of the discourse.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 10
PARTE I - FUNDAMENTOS TEÓRICOS PARA A COMPREENSÃO DOS
DISCURSOS SOBRE O TRABALHO DO PROFESSOR
1 A ANÁLISE DO DISCURSO DE CUNHO ENUNCIATIVO-PRAGMÁTICO
1.1 As características do discurso ..............................................................................16
1.2 As relações interdiscursivas . .................................................................................17
1.3 A formação discursiva e campo discursivo ...........................................................20
2 A RELAÇÃO LINGUAGEM E TRABALHO
2.1 As áreas do conhecimento e as ciências do trabalho ..............................................23
2.2 Trabalho e linguagem ..............................................................................................28
3 O ENSINO COM ESTATUTO DE PROFISSÃO
3.1 Os níveis de prescrição para o professor .................................................................32
3.2 Gênero profissional e estilo profissional do professor ............................................41
3.3 O discurso empresarial na educação ........................................................................47
PARTE II- METODOLOGIA
1 DEFININDO UM CAMINHO METODOLÓGICO.................................................54
2 OS PRESCRITOS NA EDUCAÇÃO
2.1 O universo discursivo dos prescritos para a educação nacional...............................57
2.2 Os prescritos para a educação no Estado de São Paulo ............................................59
2.2.1 Primeiro Prescrito: Política Educacional da SEE do Estado de São Paulo.....62
2.2.2 Segundo Prescrito:Orientações para Elaboração do Planejamento nas Escolas
e nas Diretorias de Ensino .........................................................................64
PARTE III- ANÁLISE DISCURSIVA DOS PRESCRITOS
1 O PROCESSO INTERDISCURSIVO NOS PRESCRITOS EDUCACIONAIS
1.1 As relações interdiscursivas .......................................................................................66
1.2 Os coenunciadores.......................................................................................................74
2 O deslizamento das designações do discurso empresarial para o discurso educacional...78
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................85
REFERÊNCIAS.................................................................................................................88
ANEXO I: Política Educacional do Estado de São Paulo...................................................91
ANEXO II: Orientações para o Planejamento nas Escolas e nas Diretorias de Ensino......92
ANEXO III: Lista de bons comportamentos do funcionário...............................................93
10
INTRODUÇÃO
A pesquisa de mestrado que aqui apresentamos foi desenvolvida no
Programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem
(LAEL-PUC-SP) e insere-se na linha de pesquisa Linguagem e Trabalho. A fim de
contextualizar nossa linha de pesquisa dentro da Lingüística Aplicada, achamos
necessário, primeiramente, apresentar as especificidades entre essa área e a
Lingüística chamada “pura”, uma vez que ambas possuem características
diferentes, bem como funções distintas a serem desenvolvidas por seus
estudiosos. É assim que, de um lado, encontram-se os lingüistas aplicados que
estão “diretamente empenhados na solução de problemas humanos que derivam
dos vários usos da linguagem, (...) estão envolvidos em trabalho que tem uma
dimensão especialmente dinâmica” (Celani:1992:21). De outro, os lingüistas que
se firmam ”no empenho de resolver problemas lingüísticos, relacionados com
alguns dos subsistemas da linguagem, que podem ser tornados estáticos, podem
encontrar-se isolados das variáveis complexas que afetam o comportamento
humano” (ibidem).
Esses excertos apontam para o caráter dinâmico da Lingüística Aplicada
em relação ao caráter estático da Lingüística dita “pura”. Todavia, a Lingüística
Aplicada apresenta, dentro de seu campo de estudo, várias correntes. A mais
conhecida é aquela que se filia aos problemas e às preocupações com o ensino e
a aprendizagem de língua e à formação de professores, com o desenvolvimento
de currículos e programas lingüísticos. Uma outra contempla os estudos de vários
subcampos: lingüística de corpus, lingüística forense, estudos de tradução e
interpretação, bilingüismo (...).A terceira contempla a Lingüística como
conhecimento básico no trabalho dos lingüistas aplicados, mas busca outros
conhecimentos especializados de outras disciplinas, como a Ergonomia e a
Ergologia. (Souza-e-Silva, 2004).
Ainda conforme Souza-e-Silva, a Lingüística Aplicada, por seu caráter
interdisciplinar, constitui-se como “pilar dos estudos do grupo de pesquisa
11
Atelier/PUC-SP
1
, o qual envolve pesquisadores docentes e discentes de
instituições de pesquisa no Brasil e na França. Este grupo tem como premissa
pensar a linguagem na relação com o trabalho e apresenta as seguintes
especificidades: (a) o estudo das práticas de linguagem em situação de trabalho;
(b)o estudo dos discursos que remetem à atividade de linguagem em diferentes
contextos e, também, (c) o estudo dos discursos sobre o tema trabalho. Nossa
pesquisa, então, inclui-se na última vertente dos estudos do grupo, na qual
desenvolvemos uma análise discursiva de documentos que se referem ao trabalho
do professor. Nessa vertente, o analista do discurso tem a possibilidade de
desenvolver uma investigação peculiar, pois, ao contribuir com os estudos da
linguagem no entendimento dos discursos sobre o trabalho do professor, ele pode
participar na solução desses problemas humanos e na compreensão das questões
polêmicas de seu tempo.
Nosso objetivo principal de pesquisa é, pois, identificar a imagem discursiva
do trabalho educacional do professor nos prescritos oficiais do Estado de São
Paulo a fim de entendermos a complexidade desse trabalho e, mais
especificamente, refletir sobre as relações interdiscursivas que perpassam nesses
prescritos, as quais trazem características conceituais e linguageiras, não apenas
de instâncias educacionais, mas provenientes também das esferas político-
ideológicas e empresariais.
Como analistas do discurso, com o objetivo de compreender essas
questões discursivas que envolvem o trabalho do professor, escolhemos textos
escritos oriundos da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, os quais, a
nosso ver, apresentam certo distanciamento das condições reais de trabalho,
problema que nos motivou a realizar esta investigação.
1
Grupo coordenado pela Profª Drª Maria Cecília P. de Souza-e-Silva, certificado pelo CNPq e que trata das
questões voltadas para a relação Linguagem e trabalho, sendo formalizado, em 1997, por meio do acordo
Capes-Cofecub entre o grupo da PUC/SP, a PUC/RJ e e UFRJ, do lado brasileiro; e a Université de Rouen e a
Université de Provence, do lado francês.
12
Nesta pesquisa, esses escritos foram chamados de prescritos ou
documentos. Esses textos direcionam e norteiam o trabalho docente e dos
profissionais da educação, pois apresentam diretrizes e normas de ordem política,
organizacional e pedagógica que vão direcionar os “caminhos” das escolas
públicas paulistas, em uma das quais exerço o meu trabalho como professora.
E para compreendermos as relações interdiscursivas que atravessam
esses prescritos, optamos por lançar mão dos recursos lingüístico-enunciativos da
análise do discurso, em especial, a de linha francesa, desenvolvida por
Maingueneau.
Desse modo, algumas questões iniciais surgiram. Primeiramente, a questão
de se estudar textos prescritivos sobre o trabalho do professor. Qual a importância
desse procedimento para a compreensão de seu trabalho? Em segundo lugar, que
imagem do trabalho do professor os prescritos constróem? E, por fim, quais os
discursos que estão dialogando nesses prescritos sobre o trabalho educacional?
Essas perguntas que, de início, nortearam a pesquisa, foram encontrando
respostas no decorrer da investigação, mas elas não foram suficientes para
compormos a imagem do trabalho docente e suscitaram, posteriormente, outras
indagações referentes à noção de trabalho individualizado e trabalho coletivo e
mais: se as prescrições para o professor sempre existiram, por que razão, cada
vez mais, elas desencadeiam incômodos nesse profissional? Esses
questionamentos acrescentaram mais um viés a ser tomado na pesquisa, o qual
trouxe à tona a questão do trabalho do professor que, muitas vezes, é visto como
fragmentado e individualizado dentro da escola e tido como uma atividade voltada
unicamente para o alcance dos objetivos de sua disciplina administrada em sala.
Assim, o enfoque apresentado logo no início dessa dissertação procura
mostrar que um trabalho de pesquisa voltado para o ensino como trabalho
tomado no sentido da Ergonomia (Amigues, 2002) - é um conceito em construção
no cenário acadêmico e traz alguns desafios que precisam ser acolhidos por
13
outros pesquisadores, uma vez que poucas investigações sobre o tema nesse
sentido. Normalmente, os estudos sobre o professor abrangem questões voltadas
para a sua atuação didática em sala de aula ou, então, para as reflexões
pedagógicas que este precisa conhecer a fim de desenvolver corretamente o
conteúdo de sua disciplina e não se voltam para os textos prescritivos que incidem
direta e indiretamente na relação prescrição e trabalho.
Também Souza-e-Silva (2003) fala sobre o ensino como trabalho e ressalta
o papel das prescrições na organização do trabalho docente. Para a autora, “Tais
prescrições, às vezes muito coercitivas, outras extremamente vagas, por vezes
contraditórias, não podem ser ignoradas se se quer compreender o que é possível
fazer, o que é autorizado, tolerado ou proibido.” É importante, então, entender o
trabalho do professor também a partir dos mecanismos subjacentes que
influenciam a sua atividade, os quais precisam ser explicitados e explicados,
lacuna que uma análise ergonômica do trabalho pode preencher.
Para apresentarmos, então, esta pesquisa, organizamos os nossos estudos
em três momentos. No primeiro, apresentamos os fundamentos teóricos para a
compreensão dos discursos sobre o trabalho do professor, apresentando as bases
da análise do discurso de cunho enunciativo-pragmático, a relação linguagem e
trabalho e o ensino com estatuto de profissão. Nesse capítulo, a intenção maior é
contribuir para que os estudos da linguagem de base enunciativa-discursiva
participem do entendimento das questões contemporâneas referentes ao universo
dos estudos do trabalho – Ergonomia e Ergologia.
O segundo momento expõe o caminho metodológico que foi definido a fim
de se alcançar os objetivos propostos inicialmente, apresentando os prescritos e
as características discursivas de cada documento. Por se tratar de uma pesquisa
que se respalda em documentos escritos próprios de uma esfera educacional de
nível estadual, houve a necessidade de se delimitar um “campo” dentro dessa
“formação discursiva” mais ampla. Assim, buscando o entendimento do trabalho
docente a partir das prescrições que o influenciam, optamos pelos documentos
14
que apresentam as diretrizes políticas e ideológicas que vão direcionar a
educação no Estado de São Paulo. São eles: Política Educacional da SEE do
Estado de São Paulo e Orientações para Elaboração do Planejamento nas
Escolas e Diretorias de Ensino.
No caso desses documentos, justamente por se referirem a vários níveis de
organização educacional avaliação dos alunos, desenvolvimento de currículo,
inclusão escolar, melhoria das estruturas físicas da escola – ativemo-nos aos
discursos que se referem diretamente a questões pertinentes ao trabalho
educacional e, mais especificamente, do professor, procurando analisar a
influência do universo empresarial no educacional, uma vez que, nesses
documentos, encontram-se, agora, designações dessa esfera referentes ao
professor como, por exemplo gestor do processo de ensino aprendizagem.
Também optamos por apresentar, nesse segundo momento, os enunciados de
natureza político-ideológica e institucional por serem, de acordo com nosso
enfoque teórico da Análise do Discurso, condição primeira para a compreensão do
contexto sócio-histórico nos quais esses documentos foram produzidos.
O terceiro momento está dedicado à análise discursiva dos documentos, a
qual possibilita estabelecer relações interdiscursivas presentes nesse corpus por
meio dos fatores de heterogeneidade do discurso e das categorias de análise dos
estudos da linguagem que, em nosso caso, firmam-se nas marcas de enunciação:
enunciador e coenunciador - e no deslizamento das designações das instâncias
técnicas-organizacionais para a esfera educacional. Os resultados dessa análise
permitiram-nos compreender o caráter injuntivo de vários discursos presentes
nesse corpus, o que nos possibilita contribuir, como lingüistas aplicados, com as
outras áreas interessadas (Ergonomia e Ergologia).
E, por fim, as considerações finais que apontam para outras perspectivas
sobre o trabalho do professor. Incluem-se, aqui, a necessidade de se realizarem
pesquisas em situação de trabalho e pesquisas feitas a partir de textos que
15
prescrevem o trabalho docente, além de investigações que procurem a voz do
professor sobre o seu trabalho.
Ressaltamos que algumas considerações mais abrangentes sobre o
trabalho educacional apresentadas, nesta pesquisa, como a questão das
expectativas do professor em relação ao trabalho pedagógico e ao discurso do
“governo” sobre a educação, além de respaldarem-se em estudos e reflexões da
área de educação, também apóiam-se em nossa vivência como professora de
escola pública e em nosso convívio diário com os profissionais do ensino nas
escolas do nosso estado, condição que também nos motivou a estudar o papel
dos textos prescritivos dentro do universo educacional.
Passamos, então, à apresentação dos princípios teóricos da nossa
pesquisa. Explicitar a articulação da análise do discurso de base enunciativa-
pragmática com as ciências do trabalho, caracteriza-se como o primeiro momento
de nossa dissertação .
16
PARTE 1 – FUNDAMENTOS TEÓRICOS PARA A COMPREENSÃO DOS
DISCURSOS SOBRE O TRABALHO DO PROFESSOR
1. A ANÁLISE DO DISCURSO DE CUNHO ENUNCIATIVO-PRAGMÁTICO
1.1 As características do discurso
é de conhecimento consensual que o termo discurso assume diferentes
sentidos e revela posições epistemológicas distintas de acordo com as diversas
correntes da filosofia e das ciências da linguagem a que a expressão se
apresenta filiada. Todavia, para muitos, essa distinção não apresenta relevância
quando o termo é tomado em seu aspecto amplo. Em relação a essa acepção
mais ampla de discurso, Maingueneau (2002:51) diz que
No uso comum, chamamos de “discurso os enunciados solenes (‘o
presidente fez um discurso”), ou, pejorativamente, as falas inconseqüentes
(“tudo isso é um discurso”). O termo pode também designar qualquer
uso restrito da língua: “o discurso islâmico, o discurso político”, “o discurso
administrativo”, “o discurso polêmico”, “o discurso dos jovens” etc.
E, naturalmente, encontramos na esfera didática do ensino de língua a
conhecida acepção do discurso direto e indireto tão usualmente trabalhada nas
escolas pelos professores de português, caracterizando-se como uma prática
escolar condicionada a uma visão lingüística estrutural, em que se estudava a
frase
2
desvinculada de qualquer contexto.
Mas quando, a partir dos anos oitenta, com o desenvolvimento das
correntes pragmáticas e enunciativas, vão-se confirmando os pressupostos de que
2
Na perspectiva enunciativa, a frase não se veicula a um dado contexto particular, estando desarticulada da
qualquer situação de enunciação. (Maingueneau, 2002)
17
a linguagem não é transparente, tampouco direcionada e interpretada
uniformemente pelos seus coenunciadores, cada vez mais a noção de discurso
assume seu caráter pragmático e interativo oriundo das ciências da linguagem.
É assim que, nessa perspectiva, a designação discurso vai se constituindo
de determinadas posições que reforçarão os fundamentos de uma outra forma de
conceber a linguagem. Sob esse ponto de vista, a enunciação traz caráter de
“interatividade”
3
que é constitutivo da linguagem e mesmo que essa interatividade
não seja explícita entre o enunciador e o co-enunciador, a instância do outro
sempre estará presente nas formas de enunciação, pois o discurso é discurso
justamente por se remeter a um sujeito, a um EU, que está embricado em um
contexto no qual pessoa, tempo e espaço são constituintes da enunciação. Todos
esses fatores indicam a atitude
4
que o enunciador assume em relação àquilo que
diz e também em relação a quem diz (seu co-enunciador).
Tal posicionamento demonstra a relação de força em que se constitui o
discurso. Nele, muitos aspectos estão envolvidos e cooperam para que as
relações interdiscursivas assumam caráter organizacional que vai mais além dos
estudos tradicionais que se baseavam fortemente nos aspectos lingüísticos da
linguagem, para dar, também, importância, às instâncias sociais e políticas que
também são inerentes ao discurso.
1.2 As relações interdiscursivas
Hoje em dia, considerar, então, o discurso sob uma concepção teórica
estruturalista em que o mesmo é concebido como uma atividade primeira,
progenitora de idéias e textos e desvinculada de qualquer contexto, caracteriza-se
como uma postura tradicional que não dá conta das questões reais que vêem a
3
Aspas de D. Maingueneau (2002)
4
Destaque de D. Maingueneau (idem)
18
linguagem como dispositivo vivo das relações humanas em contextos concretos e
determinados.
A partir desta constatação, o analista do discurso de tradição francesa
concebe o discurso mediante alguns critérios, os quais têm como base, segundo
Maingueneau (idem), os textos produzidos:
- no quadro de instituições que restringem fortemente a enunciação;
- nos quais se cristalizam conflitos históricos, sociais, etc.;
- que delimitam um espaço próprio no interior de um interdiscurso limitado.
Logo, é dentro desse quadro que o discurso passa a ter sentido por ser
atravessado por outros discursos. Ainda nas palavras de Maingueneau, O
discurso adquire sentido no interior de um universo de outros discursos, lugar
no qual ele deve traçar seu caminho. Para interpretar qualquer enunciado, é
necessário relacioná-lo a muitos outros /.../
No caso desta pesquisa, o princípio do interdiscurso é imprescindível para
alicerçar a análise dos documentos da SEE no que diz respeito ao trabalho do
professor, pois a identificação e o entendimento do contexto sócio-político e
cultural no qual os discursos são produzidos, contribuem para a compreensão dos
sentidos aí produzidos. E, no bojo desse princípio amplo de interdiscursividade, as
noções de heterogeneidade constitutiva e heterogeneidade mostrada também se
fazem necessárias para entendermos as relações internas entre os discursos.
Como se sabe, essas expressões surgiram em 1982 com J. Authier
(Maingueneau, 1998), para designar o embricamento de um discurso externo em
um discurso interno, mostrando, dessa forma, o caráter subjetivo do enunciado e
do enunciador. Nessa perspectiva, o enunciador estaria, por meio de seu
enunciado, considerando o seu co-enunciador já na sua enunciação. Dessa forma,
a presença do “outro” constaria como aspecto inerente ao discurso, sendo uma
19
das condições que, ao lado do contexto social, político e econômico, iriam
determinar o sentido do enunciado em relação aos coenunciadores.
É dentro dessas referências que a heterogeneidade mostrada ou
representada se caracteriza pelas formas marcadas e não marcadas. Segundo
Maingueneau (op. cit.), a heterogeneidade do discurso não marcada se apresenta
mediante os índices textuais e os conhecimentos que os coenunciadores trazem
consigo, como o discurso indireto livre, as alusões, a ironia..., conhecimentos
esses oriundos da sua cultura e do contato com a escrita e a leitura.
Por sua vez, a heterogeneidade constitutiva, de modo diverso, não seria
reconhecida na materialidade da língua ou na abordagem lingüística pura, pois
o discurso é dominado pelo interdiscurso. Assim, é não apenas um espaço
onde vem se introduzir o discurso outro, ele é constituído através de um
debate com a alteridade, independente de toda marca visível de citação,
alusão etc. /.../ Daí decorre o caráter profundamente dialógico de todo
enunciado do discurso, a impossibilidade de dissociar a interação dos
discursos do funcionamento intradiscursivo. [ interdiscurso] (Maingueneau,
op.cit.)
Como se deduz do trecho apresentado acima, é certo que o interdiscurso
tem primazia sobre o discurso. Por conseguinte, uma análise adequada se realiza
no espaço de troca entre os vários discursos que estão presentes numa formação
discursiva e é na intersecção desses discursos que o princípio da
heterogeneidade se manifesta com força mais evidente e, ao mesmo tempo, mais
abstrata.
Portanto, nesta pesquisa, as categorias de análise lingüística baseadas nas
noções de heterogeneidade podem nos ajudar a responder algumas questões.
Assim, quais discursos podem ser apreendidos por meio do princípio da
heterogeneidade marcada? E quais discursos, nos prescritos, podem ser
20
explicitados de acordo com a categoria de análise da heterogeneidade
constitutiva?
Primeiramente, vamos nos deter nas formas marcadas de heterogeneidade,
as quais, apresentam-se mais claramente do ponto-de-vista lingüístico, mas nem
por essa razão, deixam de expressar a subjetividade da linguagem, pois, mesmo
sendo modalidades explícitas lingüisticamente, não deixam de constituírem-se
como fator assertivo de não transparência da enunciação visão tradicional na
qual a materialidade lingüística possibilitaria uma compreensão uniforme do
enunciado . É o caso dos discursos direto e indireto, das aspas e dos grupos
proposicionais (segundo fulano..., conforme fulano...., para fulano... Ainda
conforme Maingueneau, o uso desses grupos proposicionais estabelece uma
distinção entre as idéias do enunciador e as idéias daquele de quem ele recupera
o discurso. Esse princípio da alteridade, então, inscreve-se numa esfera discursiva
em que a questão do outro é relevante para as relações interdiscursivas.
1.3 A formação discursiva e o campo discursivo
Até este momento, temos admitido que a análise do discurso aqui
preconizada, apóia-se na análise do discurso da escola francesa, pois
acreditamos que a relação entre o ideológico e o lingüístico é necessária para uma
compreensão maior das relações discursivas que estão presentes nos discursos
de nosso cotidiano. Dentro dessa perspectiva de análise, a preferência pela
formação discursiva se impõe como característica relevante dessa escola que
preza o corpus escrito como objeto de estudo, pois, este, em função da história,
dos enquadres institucionais e dos discursos ideológicos apresentam em sua
organização discursiva objetos reais de estudo que podem ser analisados
pertinentemente de acordo com os conceitos e métodos da análise do discurso
francesa de base enunciativa-pragmática.
21
Dessa forma, é importante que o analista do discurso faça um levantamento
dos textos que circulam no universo discursivo
5
de seu campo de interesse,
analisando a intersecção dos rios textos ali presentes, já que o estudo dos
mesmos, desvinculado das esferas sociais, econômicas e políticas nas quais
estão inseridos e também deslocado de suas condições de produção enunciativas,
configurar-se-ia ineficaz para resolver os conflitos e lacunas dos e nos quais os
discursos são constituídos.
Portanto, para o analista do discurso, dimensionar o universo discursivo
para que ele não se perca diante de um corpus de análise abrangente é primordial
para um estudo que procura aproximar-se, conforme Pêcheux preconiza, dos
níveis opacos à ação estratégica de um sujeito. Por isso, é necessário que se
especifique uma outra dimensão dentro do universo discursivo – a formação
discursiva, designação que provém da obra A arqueologia do saber de J.
Althusser e redefinido por M. Foucault que procurou conciliar a idéia de teoria,
com a de ideologia e de ciência, que o conceitos tradicionais dos estudos
científicos. Entretanto, com Pêcheux, essa expressão tornou-se conceito
importante para a análise do discurso.
Para o autor
toda formação social, passível de se caracterizar por uma certa relação
entre classes sociais, implica a existência de posições políticas e
ideológicas, que não são o feito de indivíduos, mas que se organizam em
formações que mantêm entre si relações de antagonismo, de aliança ou de
dominação. ( Apud Maingueneau, 2000:68).
A definição de M. Pêcheux coloca-nos frente a uma situação de análise
que, no caso desta pesquisa, como foi explicitado anteriormente, configura-se
na análise de prescritos oriundos de um lugar institucional que é a SEE. Esse
5
Segundo D. Maingueneau (op.cit.) trata-se de uma extensão conceitual abrangente, que toma o conjunto de
formações discursivas de todos os tipos que interagem numa conjuntura dada
22
órgão é uma instituição do governo e, conseqüentemente, traz discursos que
estão em constante diálogo com as outras instâncias
6
que atuam nesse órgão
oficial de educação. Entretanto, ao termos a visão da formação discursiva na qual
está calcado o sistema de discursos de uma determinada conjuntura histórica, é
necessário que percorramos a história desses discursos, não apenas para
conhecê-los e interpretá-los, mas também para termos condições de fazer um
recorte a fim de delimitar o corpus a ser analisado. Daí a necessidade de se
vislumbrar o campo discursivo em que uma dimensão menor de uma formação
discursiva.
É importante não fazer dessas designações fatias isoladas de análise, o
que pode em um primeiro momento, mostrar-se como elemento facilitador para o
analista do discurso, mas perceber que as esferas discursivas estão
constantemente embricadas umas nas outras, confirmando a heterogeneidade do
discurso. Essa característica do interdiscurso impõe ao pesquisador uma reflexão
exaustiva, pois, conforme Maingueneau (2005), um campo discursivo dentro de
uma formação discursiva não garante que um discurso se constitua da mesma
forma com todos os discursos desse campo; e isso em razão de sua evidente
heterogeneidade: uma hierarquia instável opõe discursos dominantes e
dominados e eles não se situam todos necessariamente no mesmo plano.”
Para exemplificar a questão do campo discursivo dentro da formação
discursiva, tomemos como referência, o panorama educacional da Alemanha de
1920 a 1940, o qual trazia, conforme conhecemos dos estudos sobre aquele
momento histórico, a ideologia que ressaltava a educação moral e cívica e
privilegiava os valores nazifascistas de pátria, disciplina e corpos saudáveis para a
perpetuação da raça ariana (Chauí:395). Compreender esse panorama
educacional e cultural da Alemanha, sem levar em conta o contexto sócio-histórico
nem as condições econômicas e políticas do regime totalitário que repercutiam
não na Alemanha, mas também em todo o resto do mundo, contribuiria para
6
No capítulo Metodologia, apresentarei as instâncias sociais, políticas e econômicas que caracterizam o
interdiscurso dos prescritos para o professor.
23
realizarmos uma análise superficial e excessivamente fragmentada de uma
formação discursiva, pois, no caso desse exemplo sobre os discursos da
Alemanha de Hitler, a não referência ao discurso fascista de Benito Mussolini na
Itália, e ao discurso nazifascista da nacional- socialista alemã, que também
utilizava o discurso marxista contra o liberalismo, deixaria muito a desejar
enquanto análise discursiva de cunho enunciativo-pragmático.
Esses princípios expostos neste primeiro capítulo sobre as relações
interdiscursivas, a formação e o campo discursivos, juntamente com o as reflexões
sobre a heterogeneidade do discurso, são importantes para que possamos, agora,
articular a análise do discurso de cunho enunciativo-pragmático com as ciências
do trabalho, partindo, primeiramente, da relação linguagem e trabalho.
2. A RELAÇÃO LINGUAGEM E TRABALHO
2.1 As áreas do conhecimento e as ciências do trabalho
Os estudos voltados para as ciências do trabalho Ergonomia, Ergologia e
Clínica da Atividade aprofundaram-se na França a partir da década de oitenta
7
e, mais atualmente, no Brasil
8
. Aqui, o diálogo entre essas disciplinas com a
Lingüística Aplicada é atual e suscita estudos pertinentes para compor um outro
olhar sobre o mundo do trabalho. Daí a possibilidade de se buscar entender o
trabalho a partir de uma outra abordagem que propicie, através da materialidade
da linguagem, compreender o trabalho em si e o agir do trabalhador, não somente
pela análise de sua atividade, mas também por meio de uma análise lingüístico-
discursiva de que o lingüista aplicado pode lançar mão a fim de compreender e
7
O grupo APST ( Université de Provence- Aix-Marseille) iniciou-se em 1984 com uma proposta de análise
pluridisciplinar de situação de trabalho, cujo objetivo se pautava na confrontação de saberes teóricos
universitários com experiências concretas dos trabalhadores. Nesse grupo, estão engajados um lingüista, , um
sociólogo, Bernard Vouillon, e um filósofo, Yves Schwartz.
8
No Brasil, o grupo Atelier é formado por pesquisadores docentes e discentes dos programas de pós-
graduação em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem LAEL da PUC-SP e do programa de pós-
graduação em Letras (lingüística) da UERJ.
24
auxiliar os pesquisadores de outras áreas na solução dos problemas desse
complexo universo da atividade humana.
Assim, o trabalho como atividade humana organizada em função de um
produto advindo de uma técnica de produção é tema de estudo de vários campos
do saber e analisado de acordo com os conhecimentos epistemológicos de cada
prática científica. Numa breve apresentação das ciências humanas que têm por
objeto de estudo o trabalho, Souza-e-Silva (2002) diz que “o economista aborda o
trabalho como valor do produto; o sociólogo, segundo as relações que se
estabelecem entre os diferentes atores; o psicólogo volta-se para os componentes
físicos e mentais da atividade.” A partir desta retomada concisa das áreas de
conhecimento sobre o tema trabalho, podemos compreender que cada prática
científica procura analisar essa atividade a partir das perspectivas científicas
pertinentes a seu campo de estudo, o que justifica o fato de ser inconsistente a
análise que pretenda conceber em plenitude todas as formas de se entender o
trabalho.
Para esta pesquisa, seguimos, então, o enfoque das ciências do trabalho
primeiramente da Ergonomia e, em seguida, da Ergologia - adotando os preceitos
teóricos dessas disciplinas para a compreensão do trabalho. Em seus estudos
sobre o percurso histórico da disciplina ergonomia, Souza-e-Silva (2004),
apresenta um panorama que trata das características pertinentes à área a partir
das obras de Guérin et al (1991/2000), Noulin (1992), Montmoulin (1995),
Daniellou e Wisner (1996), ressaltando o surgimento desta disciplina na Grã-
Bretanha, em 1947, junto ao órgão da Defesa Nacional Britânico, a qual tinha
como objetivo pesquisar alternativas de bem-estar para os esforços humanos em
condições de estresse. Mais tarde, ainda na Grã-Bretanha, as pesquisas se
voltaram para os problemas de adaptação inadequada do homem à máquina, o
que demandava uma análise diferente daquela proposta inicialmente.
Enquanto isso, na França, a ergonomia adquiria uma outra perspectiva
quanto à relação homem-máquina e apresentava, também, o envolvimento de
25
alguns ergonomistas com o movimento operário. Esse rumo diferente daquele
iniciado no panorama britânico, desencadeou um estudo voltado mais para as
questões epistemológicas do trabalho, daí a designação ergonomia situada ou
ergonomia da atividade, condição em que as investigações sobre o trabalho
procuram soluções de adaptação deste ao ser humano. Assim, essa perspectiva
ergonômica francófona é que vai influenciar os primeiros estudos ergonômicos
aqui, no Brasil, referentes à relação linguagem e trabalho e, mais recentemente, à
área do ensino como trabalho.
Essa abordagem ressalta a relação entre o trabalho prescrito, frente ao
trabalho real e à atividade, pois as prescrições institucionais e normativas, quer
formais ou informais, é que regulam a atividade do trabalhador e do coletivo no
ambiente profissional. E é esse preceito da ergonomia que valoriza o escrito (no
papel ou na tela) por meio de memorandos, ordens de serviços, relatórios... e o
oral, que, mesmo tendo o caráter da oralidade, não deixa de apresentar
características normatizadoras também. A relação trabalho prescrito e trabalho
real caracteriza-se, portanto, como o pilar dos estudos ergonômicos, possibilitando
pensar o trabalho por meio de uma dimensão descendente das prescrições
(Amigues, 2002) , ou seja, refere-se às prescrições que vêm das instâncias
superiores para a realização da atividade.
Essa perspectiva das prescrições é diferente quando tomamos por base,
também, as prescrições ascendentes que influenciam o trabalho docente, ou seja,
aquelas prescrições próximas que apresentam caráter “informal”, mas não menos
importante - é o caso da cobrança dos alunos, pais, colegas. Dessa forma, ao
levar em conta a dimensão das prescrições como elemento constitutivo da
atividade humana, a Ergonomia se propõe a contribuir para melhorar as condições
do trabalhador no seu ambiente de trabalho.
É assim que, na vertente atual da relação Linguagem e Trabalho, o conceito
de prescrito é importante. Esta designação apresenta duas partes: pre aquilo
que vem antes e escrito registro sistemático, com sentido de obrigação, de
26
cumprimento. No caso de nossa pesquisa, estamos nos baseando nos estudos
de Amigues (2002) e Sousa–e–Silva (2004), os quais consideram como prescritos
os escritos que trazem a organização do trabalho, os organogramas das
instituições e a descrição oficial dos postos e das obrigações de serviço. Há,
também, os escritos funcionais, considerados úteis para efetuar o trabalho, como,
por exemplo, a ordem de serviço e os escritos não-funcionais, como o panfleto
sindical.
Apresentados os conceitos da Ergonomia da Atividade e a sua relação com
o nosso trabalho, expomos, agora, os estudos sobre a Ergologia, a qual é uma
disciplina que também se ocupa dos conceitos e considerações sobre o mundo do
trabalho. Para a Ergologia o trabalho é um campo complexo, difícil de ser definido.
Do ponto-de-vista ergológico, o trabalho nunca se reduz ao que dizem ao
trabalhador para fazer, há sempre diante de qualquer atividade a ser realizada por
ele, a renormalização dessa norma exterior em qualquer grau, sempre uma
modificação, uma vez que trabalhar de outro modo que aquele determinado já é
constitutivo ao trabalhar do trabalhador (Schwartz, 2000). Esse enfoque
diferenciado da Ergologia permite que se veja o trabalho por meio de uma
dimensão filosófica que perpassa pela condição de um “sujeito” que se manifesta
na atividade, pois esta é constitutivamente dinâmica e conta com normas
antecedentes na forma de regras/manuais falados ou objetivos anunciados em
grupo. As renormalizações dessas regras/normas representam a organização viva
do trabalho e firmam-se no debate entre as normas antecedentes e as suas
reformulações decorrentes de cada atividade, o que caracteriza o aspecto
dinâmico do trabalho.
Nesse sentido, a investigação, sob o enfoque ergológico, tem como
primazia a subjetividadedo, pois o trabalho é um lugar de debate, um espaço de
possíveis sempre a negociar onde não existe execução, mas uso, e o indivíduo no
seu todo é convocado na atividade.” (Schwartz, 2000). Trata-se de compreender o
uso de si, ou seja, a subjetividade do trabalhador na realização das atividades é
a condição do trabalhador de participar do processo de trabalho e responder a ele
27
conforme a sua história, os seus valores. Trata-se, também, de compreender o
uso de si a que o trabalhador recorre a fim de realizar as imposições do trabalho,
tendo por premissa as condições não perenes desse trabalho que o mobilizam e
vão se configurar conforme critérios complexos oriundos de mudanças técnicas-
organizacionais, sociais e econômicas que determinam as diretrizes do trabalho.
Para o autor, a forma dinheiro, lucro, o critério da rentabilidade financeira” são
inscrições importantes no funcionamento do trabalho. Dessa forma, o
embricamento das relações sociais e mercantis com a dimensão complexa
humana, que se caracteriza pela singularidade da história pessoal do homem e
seu destino singular (idem, 1997), constitui o panorama histórico da situação de
trabalho a que o indivíduo se vê convocado. O autor apresenta a seguinte reflexão
sobre o uso de si:
Também quando se diz que o trabalho é uso de si, isto quer dizer então que
ele é o lugar de um problema, de uma tensão problemática, de um espaço
de possíveis sempre a se negociar: não execução, mas uso, e isto
supõe um espectro contínuo de modalidades. É o indivíduo no seu ser que
é convocado; o, mesmo no inaparente, recursos e capacidades
infinitamente mais vastos que os que são explicitados, que a tarefa
cotidiana requer, mesmo que este apelo possa ser globalmente
esterelizantes em relação ás virtualidades individuais. (Schwartz, 2000:41)
No enfoque ergológico, que se considerar, também, o uso de si pelos
outros, que o trabalho é, em parte, heterodeterminado por meio de normas,
prescrições e valores constituídos historicamente. Mas quem é que faz o uso nos
atos do trabalho? Segundo Schwartz (2000), o uso que fazem do trabalhador e
o uso que cada um faz de si mesmo. Essas instâncias podem ser positivas
quando o trabalho traz benefícios aos homens e negativa quando a sua realização
resulta em situações desconfortáveis. No caso do professor, podemos pensar
sobre a confrontação do “bom” uso e do “mal uso que fazem dele em relação ao
seu trabalho, isto é, “bom” uso na convocação de suas atividades docentes que
desencadeiam bem estar a ele e “mal” uso no sentido das atividades solicitadas
28
que lhe trazem frustração por não serem alcançadas. Quanto ao uso que ele faz
de si mesmo, muitas vezes há, também, um descompasso, pois ele, como
trabalhador, sabe o que esperam dele e o que ele espera de si, objetivos
diferentes que nem sempre podem ser alcançados e que podem ocasionar, então,
desconforto em relação ao seu próprio trabalho e à sociedade.
Os estudos da Ergonomia e da Ergologia, ao trazerem a dimensão subjetiva
do trabalho, articulam-se com a linha atual de pesquisa Linguagem e Trabalho.
Qual a contribuição, então, do lingüista aplicado junto a essas áreas? É o que
procuramos apresentar no próximo momento desta pesquisa.
2.2 Trabalho e linguagem
Sendo a Lingüística Aplicada disciplina que incorpora dentro de seus
interesses de estudo bilingüismo, lingüística de corpus, estudos sobre línguas
em contato, valorização e evolução lingüística, tradução e interpretação, uso da
língua em contextos profissionais, lexicografia e elaboração de dicionários,
alfabetização, aquisição de primeira e segunda língua
9
-o estudo da linguagem
alicerçada no mundo real em que a língua exerce um papel básico, como ficaria,
então, a sua relação com o campo do trabalho? E, sendo o trabalho entendido
como fonte de estudo para as diversas disciplinas, como a sociologia, a economia,
a antropologia, como ficaria também essa relação com as ciências da linguagem?
Essas interrogações permeiam não só as reflexões dos lingüistas, mas
também fazem parte das abordagens dos pesquisadores de outras áreas. Na
abordagem ergológica a linguagem é entendida como
um recurso operacional da circulação temática em um espaço conceptual:
entre o trabalho, os valores e a vida, compondo um desenho construído a
9
Souza-e-Silva (2003) “Quais as contribuições da lingüística aplicada para a análise do trabalho: ?” In
ERGOLOGIA E ANÁLISE DO TRABALHO: EXERCÍCIOS PLURIDISCIPLINARES..
29
partir do movimento continuum descontinu da atividade. Pode ser vista,
ainda, como recurso de negociação entre valores, saberes e atividades
gerados pelas exigências epistemológicas e éticas, pelos aportes de
diferentes disciplinas (pólo dos conceitos) e pelos trabalhadores na
atividade (pólo das forças de “convocação” e “reconvocação”).
(Schwartz,1996)
10
A linguagem também é vista como dispositivo para se compreender as
relações humanas no trabalho na clínica da atividade (Clot, Faïta, Fernandes e
Scheller, 2001). Numa apresentação ampla desta abordagem clínica, a dinâmica
das ações do sujeito é objeto de análise, análise esta que procura levar em conta
o desenvolvimento do sujeito, do grupo e da situação de trabalho. Nessa
perspectiva, a análise do coletivo de trabalho é relevante para se compreender a
atividade realizada e não realizada, pois os coletivos profissionais caracterizam-se
por meio das modificações realizadas junto às normas iniciais que vão
desencadear essas atividades (Amigues, 2004). Em relação aos professores,
podemos considerar como coletivo de trabalho os professores de uma escola,
aqueles que ministram uma mesma disciplina , os que trabalham em uma mesma
série...
Na clínica da atividade, a linguagem é vista como co-construtora dos
sentidos dos objetos de trabalho “tanto quanto dos significados circulantes em
uma dupla via de sentido”, como possibilidade de “propor dispositivos de
confrontação dialógica para desenvolver a análise-intervenção em situação de
trabalho” (Vieira, 2002). Nesse sentido, os gestos, as palavras constituem-se
como recurso revelador da heterogeneidade de situações presentes na atividade,
o que auxilia o pesquisador a entender a história de um determinado meio de
trabalho.
10
Y. Schwartz (2002) In Vieira M.( 2002) “ A atividade, o discurso e a clínica: uma análise dialógica do
trabalho médico”
30
No artigo intitulado Quais as contribuições da lingüística aplicada para a
análise do trabalho, Souza-e-Silva (2003), depois de discorrer sobre a visão de
cada área acerca da linguagem, demonstra, por meio de um raciocínio claro e
sucinto, como esses os estudos da Ergologia, Ergonomia, Clínica da Atividade
vêem a linguagem
passa-se da delimitação do simbolismo linguageiro proposto por Schwartz;
da exígua produção de discursos sobre o trabalho, comparada a de outros
referentes sociais, postulada por Boutet; da revisão teórico-metodológica
(incorporação da noção de gênero e estilo profissional e do método da auto-
confrontação) convocados por Faïta e da complexa relação do locutor com
seu dizer, tal como expressa por França, para centrá-la mais diretamente
no pesquisador. (Souza-e-Silva, 2003:14)
Dentro desse quadro de análise referente às relações linguagem e trabalho,
a autora não invalida as duas primeiras hipóteses, como o faz França (2002), ao
contrariar a hipótese em relação à falta de discursos sobre o trabalho e à
dimensão simbólica que este assume nas relações humanas e mercantis. Sem
anular esses preceitos, Souza-e-Silva avança em suas reflexões quando diz “que
o pesquisador deve aceitar o “desconforto intelectual”
11
que “subjaz ao princípio
da interdiscursividade, pois o pesquisador pode entender o outro/trabalhador a
partir de seu lugar como pesquisador”. Essas considerações tornam-se evidentes
quando levamos em conta o fato de que se o pesquisador não conhece a fundo a
tarefa pesquisada, como poderá ele discorrer sobre ela?
Com as novas formas de organização do trabalho em que se reconhece,
então, a linguagem como dispositivo revelador das relações profissionais, um
consenso entre os lingüistas e os analistas das situações de trabalho sobre a
necessidade de se conceber a linguagem como atividade que constitui o próprio
trabalho. Nesta perspectiva linguageira, as prescrições para o trabalho continuam
sendo objeto de estudo e reflexões para uma compreensão maior do mundo do
11
A autora empresta a expressão de Schwartz,
31
trabalho, pois este está em constante evolução e solicita cada vez mais pesquisas
que busquem entender o papel dessas prescrições em seu universo.
A Lingüística Aplicada, então, enquanto campo das ciências da linguagem,
pode contribuir para o avanço dessas pesquisas que não tinham como foco as
prescrições descendentes no mundo de trabalho, pois, cada vez mais, as relações
de controle e coordenação nessa esfera caracterizam-se pela comunicação e pelo
diálogo entre as instâncias e é nessa situação de interação que os prescritos se
constituem como dispositivos de normatização e norteamento das atividades de
trabalho.
Como pesquisadores, ao procurarmos as questões iniciais sobre as
prescrições, voltamo-nos para a concepção taylorista sobre trabalho, segundo a
qual as prescrições para a realização das atividades de produção construíam
“uma imagem de neutralidade e de eficácia de acordo com a representação
burguesa da técnica como matéria que contém leis próprias, objetivas e
imparciais, às quais não se pode nem se deve opor resistência” (Moreira, Rago,
2003). Por conseguinte, recuperamos também a sua fragilidade teórica, pois hoje,
mais do que nunca, os estudos ergonômicos recentes de tradição francesa
(Amigues, 2002) mostram que necessidade de se relacionar as prescrições
com as condições para a sua realização, assim como entender as possibilidades
de interpretação e de redefinição que elas desencadeiam.
Se, de um lado, o mundo contemporâneo impõe padrões de trabalho
calcados na valorização do trabalho organizacional e na gestão das situações de
trabalho e, de outro, permanece com a necessidade de continuar com as tarefas
de execução para o desenvolvimento do processo produtivo, condição que
perpetua a competitividade entre as pessoas e que nem sempre se caracteriza
como uma condição positiva, nada mais urgente que se busque compreender
esse organismo vivo
12
que é o trabalho e que traz na sua constituição, justamente
12
Expressão metafórica que utilizo a fim de designar a complexidade da constante evolução do trabalho.
32
por ser vivo, a linguagem como cerne das relações humanas de troca, de
frustração e de crescimento do “trabalhador”.
No próximo segmento, daremos continuidade às reflexões sobre o papel
das prescrições para o trabalho educacional.
3 O ENSINO COM ESTATUTO DE PROFISSÃO
3.1 Os níveis de prescrição para o professor
O interesse pelo entendimento do trabalho do professor tem início na
França, apenas no final da década de 90. Conforme Amigues (2002), o paradigma
do “pensamento docente” (aspas do autor) ressalta principalmente o estudo das
práticas efetivas dos professores, ou seja, interação em sala de aula, concepções
pedagógicas, práticas didáticas, o enfocando as prescrições que direcionam o
seu trabalho.
Essa constatação é importante porque nos faz refletir acerca do trabalho do
professor que, normalmente, é analisado a partir dos resultados positivos ou
negativos de suas estratégias pedagógicas junto aos alunos ao que o autor
chama de estudo por baixo, não por serem estudos inferiores, mas, justamente
por enfocarem as atividades ligadas à sala de aula. Tal quadro contemporiza o
grande interesse em estudos que privilegiam as questões epistemológicas ligadas
aos conteúdos a serem transmitidos aos alunos. Normalmente, os objetos de
estudo nessas pesquisas são os saberes e as competências que se instauram na
relação ensino-aprendizagem, e não um enfoque em relação à atividade
docente no que diz respeito ao seu trabalho a partir dos prescritos provenientes
das instâncias superiores - abordagem descendente.
Dessa maneira, as pesquisas em educação, por exemplo, preocupam-se
com questões pertinentes de uma outra ordem de investigação, aprofundando-se
33
nos estudos de interação entre aluno e professor, na análise de procedimentos
para a escolha de conteúdos seriais para a classe, nas pesquisas sobre a forma
de conduzir as tarefas e as atividades em sala de aula e em outras importantes
esferas de atuação sobre as quais não nos sentimos confortáveis para discorrer
devido ao grande número de trabalhos existentes na área.
Tendo em vista que as prescrições determinam outra dimensão para a
análise do trabalho do professor, é importante considerarmos, então, a tensão que
elas desencadeiam nos docentes, pois as normas que ali estão presentes são
renormalizadas na vivência da atividade, renormalização que é efetuada pelo
próprio professor e não por terceiros. O seu trabalho, então, é analisado e
comentado por diversas instâncias pessoais e institucionais, e nem sempre por
seus pares. Segundo Amigues (2004:38):
...os valores desse trabalho não são atribuídos pelas próprias pessoas que
exercem o ofício, mas por pessoas que se acham fora dele; e geralmente
as ações dos professores são submetidas a críticas repetitivas; o que é feito
não corresponde ao que deveria ter sido feito, os professores utilizam meios
diferentes do que deveriam utilizar, etc. Em suma, trata-se de julgamentos
externos que incidem sobre a forma de fazer do professor, que não são
estudadas por si mesmas e que desenvolvem em situações reais, que
também não são objetos de uma situação particular.
13
Ao se negligenciar as dimensões da atividade do professor em situação
concreta de trabalho e ao não se considerar o papel que as prescrições exercem
em seu ofício, as pesquisas e análises sobre suas ações apresentam-se limitadas,
tanto nas esferas institucionais e governamentais, como nas sociais e
acadêmicas.
Na esfera institucional, porque não se leva em conta a voz do professor-
trabalhador na elaboração de escritos sobre o seu trabalho e sobre a sua
13
Amigues,R.(2004) Trabalho do Professor e Trabalho do Ensino. In Machado”O Ensino como Trabalho”
34
experiência profissional, o que propicia o surgimento de textos de motivação, que
não se articulam com as suas reais necessidades, e de documentos, que trazem
os protagonistas do agir educacional, como objetos inanimados, desvinculados de
sua reais condições de trabalho.
Na esfera social, encontra-se a visão do trabalho docente sob a
égide do sacerdócio, da doação de saberes por parte daquele que se propõe a
ensinar. Nesse cenário, são comuns citações do tipo - professor é aquele que
ensina”, “é aquele que doa o seu saber”, o professor é o segundo pai ou a
segunda mãe”. E, embora essas citações “sem autor”
14
sejam amplamente
conhecidas por todos, elas ainda se instauram dentro de uma perspectiva diluída
do que venha a ser o trabalho real do professor.
Por fim, no âmbito acadêmico, as pesquisas em Didática, Filosofia,
Sociologia... voltam-se, primeiramente, para uma visão behaviorista, na qual se
evidencia o papel da formação docente na obtenção de comportamentos
desejáveis dos professores. Também, numa outra perspectiva, são evidenciados
os aspectos cognitivistas, que associam o pensamento docente à sua atividade de
ensino e, em terceiro lugar, o professor é inscrito como sujeito singular que se
mobiliza de recursos na contextualização de sua prática-reflexiva, ou seja, o
professor repensa suas ações mediante às conjunturas e às condições de
realização de suas ações . (Saujat, 2004:11)
A abordagem da ergonomia da atividades contribui, então, para o estudo
das dimensões reais da atividade do professor, pois analisa o papel das
prescrições que normatizam o trabalho docente, bem como investiga os aspectos
formais e informais que regem o seu ofício no dia-a-dia.
Portanto, assim como em outras esferas profissionais, o trabalho do
professor consiste em utilizar as prescrições oriundas de terceiros para a
execução de sua tarefa. É o caso das normas de utilização da sala de aula,
14
Expressão aspeada e utilizada por D. Maingueneau para explicitar a noção de hiperenunciador.
35
horários a serem cumpridos, roteiros de planos de ensino, procedimentos para
com alunos indisciplinados,... Essas prescrições podem propiciar uma resposta
imediata no sentido da execução efetiva da ação, o que não significa que esta
venha a ser realizada como o previsto, pois sempre haverá distância entre o
prescrito e o realizado. Por exemplo: as salas de aulas, mesmo pré-determinadas,
podem estar indisponíveis; o conteúdo previsto pode não ser dado naquele dia,
mês ou ano; a ausência da direção escolar na aplicação de penalidades junto aos
alunos pode deixar as tarefas do dia tumultuadas... Em suma, aquilo que não é
realizado também se configura como trabalho. Daí as relações entre as condições
de trabalho reais e as condições idealizadas pelas prescrições interferirem
determinantemente na atividade e na saúde do profissional.
O que se constata, nesses casos, são prescrições caracteristicamente
vistas como intrínsecas ao trabalho imediato do professor, pois elas organizam a
instância das tarefas diárias e propiciam, por sua vez, uma outra instância que é
da realização da atividade a ser inventada por ele, que, diante de situações
imprevistas, o trabalhador lança mão dos recursos humanos, técnicos e
institucionais para resolver os problemas do trabalho, os quais nunca estão
integralmente presentes e identificáveis nas prescrições.
No que se refere a esta pesquisa, o documento A Organização da
Escola
15
, traz o quadro referente às características funcionais dos profissionais da
escola, inclusive a do professor. Esse documento da Secretaria Estadual de
Educação de São Paulo dirige-se aos profissionais da educação e tem a função
de orientar e oferecer um material de consulta aos profissionais que atuam nas
diretoria de ensino e nas escolas.
O quadro que apresentamos a seguir es presente no documento e
organiza-se em três segmentos: núcleo (designação dada ao coletivo de
profissionais); composição (designação dada ao profissional de cada setor do
coletivo) e função (designação referente às atribuições específicas do
15
A Organização do Ensino na Rede Estadual-Orientação para as escolas. São Paulo: SEE/SP 1998
36
profissional). Podemos entender que, dada à condição específica de produção
desse documento que objetiva orientar diretorias e escolas quanto à organização
da escola, a apresentação das funções dos profissionais em cada núcleo está
pertinente com os objetivos a que ele se propõe alcançar.
A descrição das funções é restrita no quadro, uma vez que, como dissemos
anteriormente, as condições de produção nas quais o documento está inserido,
assim desencadeiam a sua apresentação.Todavia, é do conhecimento comum que
37
o detalhamento das funções, normas, direitos e deveres que se caracterizam
como prescrições ora mais normatizadoras ora mais abrangentes, como é o caso
das prescrições apresentadas no quadro anterior, não deixam de provocar um
certo desconforto no profissional da educação, justamente, por apresentarem um
distanciamento entre o trabalho prescrito e o trabalho real, pois as prescrições têm
caráter frágil ao não darem conta das situações reais de trabalho.
Em relação à fragilidade das prescrições, Daniellou (2002:01) diz que existe
a questão do déficit desses escritos e cita o exemplo de um educador, a quem
confiam um adolescente, dizendo-lhe: “este jovem tem problemas com drogas, na
sua família o alcoolismo e o incesto, faça o melhor por ele.” Para o autor, é o
domínio da subprescrição, onde a invenção, tanto dos objetivos a atingir quanto
os meios para atingir esses objetivos, descansam sobre o trabalhador, sem que
este possa levar a efeito regras conhecidas, o que poderia desempenhar um papel
importante nos problemas de saúde daqueles trabalhadores que lidam com as
questõeseducacionais.
Partindo, então, do princípio de que as prescrições exercem influência no
trabalho do professor de maneira direta, quando determinam, por exemplo, o
prazo para entrega de notas, o cumprimento de horário das aulas, a execução do
Plano de Ensino... impondo caráter sistematizador de organização no cotidiano, e
de maneira indireta, quando provêm das instâncias oficiais mais distantes como
leis, decretos, podemos entender que essa desarticulação entre as prescrições se
reflete de maneira perturbadora no trabalho do professor, pois, se de um lado ele
pode ser punido por alguma irresponsabilidade profissional, fruto de uma
prescrição imediata, de outro, ele pode se ver à margem de uma prescrição mais
abrangente, mas que não deixa de, sobremaneira, influenciar o seu trabalho direta
ou indiretamente. Por exemplo: o professor pode ser punido por se recusar a ir a
um curso de capacitação, sem se dar conta de que essa prescrição faz parte de
uma prescrição maior que está registrada no documento que traz a política
educacional de seu estado. Os diferentes níveis de prescrição exercem, portanto,
influência no trabalho educacional.
38
Nesse ponto, caminhamos para a noção de ação e atividade referentes ao
trabalho do professor. São noções diferentes: “A ação e a atividade não estão
sujeitas às mesmas restrições espaciais e temporais”, pois a ação é repetida e se
remete a uma situação singular, “a condições de realização e a um objetivo bem
preciso”, a atividade deve combinar várias lógicas e várias temporalidades”
Amigues, 2004). Em suas reflexões, o autor, baseando-se em Noulin (1995), faz a
seguinte reflexão sobre a atividade:
A atividade pode ser considerada o relacionamento de diversos objetos que
leva o sujeito a fazer um acordo consigo mesmo: A atividade [é] o reflexo e
a construção de uma história: a de um sujeito ativo que arbitra entre o que
se exige dele e o que isso exige dele, a história de um sujeito dividido em
suas dimensões fisiológicas, psicológicas e sociais e que sempre deve
construir sua unicidade regulando a relação que o liga ao real e aos outros.
Essa dimensão teórica traz uma outra perspectiva para o trabalho do
professor, pois evidencia, particularmente, o debate de valores a que ele se
convocado a todo momento no que se refere à relação entre as prescrições e à
sua atividade de trabalho: o que vou fazer agora diante desse imprevisto? Quais
são as normas que devo seguir diante desse problema? Essas circunstâncias
ilustram o caráter “fraco” das prescrições para o professor quando este se à
frente de situações em que as prescrições, mesmo aquelas de cunho
regulamentar, passam pela dimensão humana, mas de uma maneira mais
presente, como é o caso, por exemplo, de se cumprir a norma regimentar junto ao
aluno que traz problemas de disciplina. Nesse exemplo, o professor pode seguir
as prescrições do regimento da escola, solicitando as aplicações disciplinares
junto ao aluno, como também ele pode agir de acordo com a seu relacionamento
pessoal com esse aluno, não o encaminhando para a direção da escola para a
aplicação das penalidades cabíveis. Enfim, diante das prescrições, ele se no
embate da atividade a se realizar conforme as prescrições ou conforme seus
valores.
39
Se, de um lado, o professor conta com prescrições mais “próximas” e,
portanto, mais normatizadoras, como é o caso do regimento escolar, horários de
aula a serem cumpridos, prazos para entrega de notas, orientações para
elaboração do plano de ensino; de outro, ele também se vê exposto a prescrições
que lhes são mais “distantes” ou apenas norteadoras. Na primeira acepção ,
chamamos de prescrições mais normatizadoras as que s implicam uma resposta
direta do professor junto a seu coletivo de trabalho, ou seja, ele precisa entregar
as notas , chegar ao local de trabalho no horário, não faltar excessivamente...
Na segunda acepção, as prescrições mais norteadoras configurar-se iam
como aquelas de ordem política e social, como é o caso dos documentos
provenientes das instâncias superiores dos órgãos oficiais da educação brasileira
que exercem influência sobre o trabalho, não só do professor, mas de todos
aqueles que estão envolvidos com o sistema educacional do país. São os
documentos provenientes dos ministérios de educação em nível federal, das
secretarias de educação em esferas estaduais, das coordenadorias de ensino em
níveis estaduais e municipais. Caracterizam-se como prescritos mais abrangentes,
uma vez que o professor-trabalhador pode executar as suas tarefas sem
necessariamente conhecê-los adequadamente para o desenvolvimento de seu
trabalho, como por exemplo, ele pode dar suas aulas sem necessariamente
conhecer todas as leis e decretos que regem a sua função como professor.
Boutet (1993, apud Sousa - e - Silva 2000) estabelece uma tripartição de
conceitos que oferece um avanço significativo para o entendimento dos níveis de
prescrições para o trabalho. Segundo a autora, no mundo atual, devido à evolução
natural do trabalho, as empresas e instituições são levadas a produzir escritos
para as atividades a serem realizadas. Apresentam-se, então, os escritos
democráticos, os escritos normativos e os escritos para trabalhar.
Os escritos “democráticos” são produzidos pelas empresas e instituições e
têm a função de informar, difundir idéias e conhecimentos. Por essa razão,
supõem-se democráticos”, uma vez que escrever e ler são atividades que
40
permitem ao assalariado compreender a instituição, sentirem-se parte dela,
exprimir suas idéias e dela participar.
Os escritos normativos permitem diretamente o cumprimento de uma tarefa.
São aqueles que trazem instruções para a utilização de máquinas e
equipamentos, e procedimentos a serem seguidos na execução de atividades,
como as das operadores de marketing, por exemplo. O conhecimento sobre esses
escritos não é novo, o que é novo é a importância que hoje se atribui a eles.
Os escritos para trabalhar, freqüentemente, são redigidos pela própria mão
do trabalhador: notas, frases curtas, lembretes contendo apenas palavras ou
números. Normalmente são produzidos para a própria pessoa ou para os colegas
imediatos, com características não oficiais, mas importantes para a execução do
trabalho sem incidentes constantes.
O que se depreende dessa tripartição sobre os escritos, a partir de Boutet,
é que os documentos mais abrangentes, como aqueles que trazem a política
educacional e as linhas norteadoras para as escolas, seriam considerados como
escritos democráticos, justamente por não imporem regras funcionais prazos,
normas - para os profissionais da educação. Todavia, esses ditos escritos
“democráticos” não deixam de impor uma imagem discursiva que procura causar o
efeito desejado pela instituição junto a seus profissionais.
Tendo feito essas reflexões sobre os níveis de prescrição para o professor,
passamos, agora, para o entendimento da noção de gênero profissional e estilo
profissional do professor, noções que são importantes para se reconhecer no
ensino o seu estatuto de profissão.
41
3.2 Gênero Profissional e Estilo Profissional do Professor
Pensar o trabalho na sua dimensão humana é recorrer à sua história ligada
ao campo social, em que se reconhece a questão da escravidão dos homens e do
constrangimento desencadeado por esse momento vivido por parte da sociedade
mundial, bem como evocar o seu lado capitalista, no qual o “saber-fazer”
apresenta uma dimensão significativa e menos individualizada, mas, ao mesmo
tempo, “coletiva” na sua configuração.
Assim, se de um lado, podemos observar a despersonalização do trabalho
escravo em um regime de servidão e de humilhação humana, de outro, podemos
constatar que o trabalho humano é influenciado pela história, pelas coerções
econômicas e pela tradição das profissões, momento em que as características
coletivas são mais evidentes em relação ao anterior. O enfoque sobre o trabalho
aqui apresentado mostra uma análise que se baseia, principalmente, nos
princípios sociológicos e históricos do trabalho e leva particularmente em conta as
mudanças de enfoque sofridas pelo trabalho humano no decorrer da história:
primeiramente, a visão do trabalho escravo despersonalizado e, por conseguinte,
a perspectiva do trabalho fruto de concepções capitalistas.
Se o enfoque dado por esses campos das ciências humanas – Sociologia e
História-, em linhas gerais, apresenta essas características, como, então, a
Ergonomia e a Ergologia, enquanto ciências que também estudam o trabalho,
abordariam esse tema do ponto-de-vista de suas especificidades individuais e
coletivas? Derivadas desse questionamento, outras indagações mais relativas a
esta pesquisa sobre o trabalho do professor também são pertinentes nesse
momento: a partir das noções de trabalho individualizado e trabalho coletivo, o que
vem a ser a noção de gênero profissional e estilo profissional em relação ao
trabalho e, mais precisamente, em relação ao trabalho do professor? E quais
influências essas noções exercem sobre o estudo do trabalho educacional?
42
Tendo sido colocadas essas questões, partimos, novamente, para o nosso
propósito delineado no início desta dissertação que é compreender a imagem
discursiva do trabalho do professor nos documentos oficiais, buscando investigar
de que forma essa imagem é construída, tendo por base as características
históricas e particulares dessa profissão.
que nossa tendência para se buscar a compreensão das características
de uma determinada profissão, passa pela urgência de se entender
discursivamente as histórias e particularidades da mesma, a questão das relações
coletivas é, então, um traço inaugural para que esse estudo seja efetivado.
Partindo dessa premissa, acreditamos que a dimensão coletiva arraigada das e
nas profissões configura a essência delas; trata-se de entender a dimensão
coletiva como o espectro profissional acima do trabalhador, impondo-lhe
comportamentos e metas de pensar, agir e produzir em seu ambiente de trabalho.
Os especialistas do trabalho, ergonomistas e ergologistas, inscrevem essa
atividade humana numa perspectiva histórico-cultural que visa manter juntamente
o caráter institucional e tradicional do trabalho ao lado das experiências subjetivas
na realização da ação do trabalhador. Esse enfoque, em relação ao trabalho do
professor, é desencadeador de discussões inovadoras, pois, o pesquisador, ao
adotá-lo, não se pauta em somente estudar a ação do docente em um
determinado momento ou estágio de atuação, mas procura ressaltar os atos
coletivos que são constitutivos de sua profissão, isto é, a dimensão histórica de
seu trabalho, as suas tradições, ou seja, todos os discursos passados e presentes
que compõem o espectro profissional docente e que o fazem interagir nas
situações reais de trabalho.
Visto desse modo, o trabalho traz uma memória impessoal e coletiva,
mobilizada pela ação. Segundo Clot et al. (2001:18), seria o nero social do
ofício ou gênero profissional
16
que trazem a memória impessoal, ou seja, as
16
Para esta pesquisa, adotamos a designação gênero profissional por entendermos que esta representa o
caráter amplo e, ao mesmo tempo peculiar, que as profissão apresentam.
43
obrigações que são inerentes da profissão. Segundo os autores, o gênero
profissional poderia ser identificado como
os antecedentes ou os pressupostos sociais da atividade em curso, uma
memória impessoal e coletiva que dimensão à atividade pessoal em
situação: maneiras de se portar, maneiras de comunicar-se, maneiras de
iniciar uma atividade,e de terminá-la, maneiras de conduzi-la com eficácia a
seu objeto. Estas maneiras de abordar coisas e pessoas num dado
ambiente de trabalho formam uma lista de atos previstos e redirecionados
que a história deste ambiente selecionou.
Entender o trabalho sob essas perspectivas, é procurar compreender a
dimensão impessoal que todas as profissões apresentam, isto é, todas têm
organizadas atribuições e obrigações que são pertinentes ao grupo de
trabalhadores pertencentes àquela profissão, as quais são conhecidas através da
tradição e da história compartilhadas pelo grupo e não provenientes das
necessidades subjetivas de cada indivíduo
17
. Assim, poderíamos recuperar a
idéia do espectro profissional que as profissões apresentam no sentido de que
essa designação “atrai” uma pré-definição das ações que os profissionais daquela
profissão devem ou não devem executar, configurando-se como uma espécie de
memória coletiva do grupo.
Ao apresentarem a questão do gênero da atividade por meio da bipartição
gênero social do ofício ou gênero profissional e estilo da ação, os autores
explicitam a questão da memória coletiva para o agir, de Berthoz (1997, apud Clot
et al., 2001:02)
é preciso falar de memória para o futuro, constituída de uma gama
sedimentada de técnicas intelectuais e corporais tecidas entre as palavras e
17
É provável que a profissão de professor seja uma das poucas sobre a qual se pode dizer que o gênero é de
domínio não só dos profissionais da classe, como também da sociedade, pois todos aqueles que passaram
pelos bancos escolares, vivenciaram o modo de agir dos professores, carregando, assim ,em sua memória, os
gestos dos mesmos.
44
os gestos do ofício, o todo constituído, para o profissional deste meio, um
esquema “pronto para a ão”, um meio econômico de se colocar no
mesmo diapasão da situação.
As formas de ão ou os gestos do ofício que, num primeiro momento
podem estar simplesmente inseridos no gênero da atividade, justamente por
apresentarem uma “memória impessoal e coletiva que dá sua característica à
atividade em questão: maneiras de lidar, de dirigir maneiras de começar e terminar
uma atividade...” compõem um conjunto de regras coercivas que “sufocam”, mas
que, ao mesmo tempo, servem de recurso ao trabalhador, e essa memória
impessoal e coletiva a que os autores se referem, caminha, a nosso ver, para uma
esfera maior, pois, os neros da atividade e constituídos o gênero social do
ofício ou gênero profissional, enquanto esquema “pronto para a ação”, configuram-
se dentro de um campo maior que se definiria como o gênero profissional,
segundo os autores, conforme já dito.
Portanto, para nós, quando tomamos emprestada a designação gênero
profissional, adotamos uma ampliação desse conceito no sentido de avançar a
noção de “memória impessoal do grupo” para as relações sociais, culturais,
políticas e econômicas que influenciam o trabalho do profissional. É uma posição
de não nos atermos somente à situação, à atividade, ao agir diante dos
imprevistos, mas também de recuperar todos os movimentos desse coletivo
profissional face à sociedade.
É dessa forma que, quando se pensa no trabalho do professor depreendido
das prescrições oficiais, recorremos à ampliação da noção de gênero profissional
na medida em que recuperamos não só os atos convencionados que a história de
um determinado meio preserva, mas também o contexto sócio-histórico e político
nos quais esses documentos estão inseridos.
Nessa perspectiva, encontramos, por sua vez, outra característica referente
ao trabalho do professor. Se, de um lado, nós temos prescrições que apontam
45
para uma visão de tradição histórica da profissão, de outro, encontramos normas
que nos conduzem diretamente à atividade dessa profissão. Assim, há prescrições
que trazem também uma outra esfera da atividade de trabalho: o estilo
profissional. O estilo profissional possibilita a cada trabalhador desenvolver-se,
ajustar-se e modificar a abrangência das suas ações pertinentes ao gênero
profissional. Clot et al. (2001:02) falam, então, sobre uma dupla emancipação:
emancipação em relação à memória impessoal e emancipação em relação à
memória pessoal. Na primeira acepção, o trabalhador se distancia das normas,
inaugurando uma outra forma do gênero, a qual será corroborada ou não pelo
coletivo de trabalho.
Sob esse ângulo, o sujeito se distancia da coerção, conservando o
benefício do recurso, e, em caso de necessidade, modificando a regra, o
gesto ou a palavra, inaugurando, assim, uma variante do gênero, cujo futuro
dependerá finalmente do coletivo. Acontecendo isso, é o desenvolvimento,
a vida mesma do gênero que é assegurada porque ele recebe novas
atribuições por meio da recriação pessoal , avaliada e depois
eventualmente validada pelo coletivo.(Clot et al. 2001:2)
Na segunda acepção, os autores propõem uma emancipação em relação à
história pessoal, a qual vai se caracterizar pelos “esquemas pessoais que,
mobilizados na ão, são ajustados sobre o duplo impulso do sentido da atividade
e da eficiência das operações.” Seria a emancipação do estilo profissional que
desencadearia o desenvolvimento e a eficácia do trabalho propriamente dito na
prática pessoal do trabalhador.
Se há, então, um consenso sobre a existência de um grande número de
trabalhos sobre o professor, desenvolvidos sob as rias dimensões (cognitivas,
didáticas, sociais, históricas, psicológicas...), podemos entender, também, que um
46
estudo que abrigue as reflexões sobre o ensino como trabalho, a partir dessas
concepções, traz contribuições ampliadas sobre o tema.
18
Diante desses aspectos relativos ao gênero da atividade e estilo
profissional, como poderíamos analisar os prescritos oficiais para os profissionais
da educação quando das suas características constitutivas a partir desses
conceitos? E mais: os prescritos oficiais desta pesquisa privilegiariam o gênero da
profissional ou o estilo profissional do professor?
Numa primeira tentativa para responder a essas questões, poderíamos
dizer que os prescritos oriundos de uma esfera institucional mais ampla, como é o
caso dos documentos desta pesquisa, apresentariam, com maior evidência,
características do gênero profissional do professor, justamente por configurarem
vários discursos em seu processo de enunciação, ou seja, o discurso histórico da
profissão, o discurso do governo, o discurso dos dirigentes do ensino, o discurso
do próprio coletivo dos professores, o discurso dos alunos, enfim o discurso da
sociedade como um todo. Todos esses discursos impõem uma carga de
responsabilidade muito grande para o professor que não nesses prescritos um
discurso que ao encontro de suas necessidades de trabalho. Talvez aqui esteja
uma das causas de sua angústia enquanto profissional.
Quanto ao estilo profissional, inicialmente, parece adequado dizer que, ao
se resvalar para uma vertente mais ampla da atividade docente - justamente
aquela que não retrata as dificuldades de seu dia-a-dia, as situações de ão em
que o professor é convocado a agir - os prescritos não privilegiariam essa
instância de seu trabalho, o que, a nosso ver, também contribuiria para uma não
identificação entre os coenunciadores.
Outro aspecto importante inserido na questão do gênero e do estilo
profissional do professor diz respeito à influência dos discursos empresariais que
18
Essa abordagem, que se inscreve na tradição ergonômica francesa, está ainda pouco desenvolvida, segundo,
Amigues (2004), mesmo na França, e não tem outro equivalente em outros países, com exceção de artigos em
livro de Souza-e-Silva & Faïta (2002) e teses, produzidos por nosso grupo ATELIER.
47
vão permear o campo da educação e provocar efeitos de uma outra ordem no
mundo do trabalho dos profissionais da educação e, mais precisamente, do
professor. Essa outra abordagem apresenta-se como tema do nosso próximo
momento da pesquisa.
3.3 O discurso empresarial na educação
É do nosso conhecimento que o sistema educacional dos países da
América Latina, e, no nosso caso, mais precisamente, o do Brasil, apresenta
grandes dificuldades que culminam com a crise atual da educação. Inúmeras
críticas são direcionadas a todos os envolvidos: governo, profissionais da
educação, pais, alunos... Segundo esses discursos, o sistema educacional passa
por uma crise de eficiência, pois não conseguiu distribuir adequadamente os
recursos financeiros oriundos dos órgãos internos e externos aos países latino-
americanos, a fim de que as suas instituições escolares se organizassem
positivamente nos respectivos cenários nacionais. Concomitantemente, uma
crise de eficácia, uma vez que esses sistemas educacionais cresceram
quantitativamente, mas sem garantir um crescimento qualitativo dos índices de
aprendizagem dos alunos. E, por fim, apresenta-se uma crise de produtividade,
visto que as escolas não contam com uma forma produtiva de gerenciamento de
seus problemas e atribuições. (Gentili, 2002)
Esses discursos procuram expressar a incapacidade estrutural das
instâncias governamentais no sentido de organizar e administrar as políticas
sociais do Estado. Dessa forma, trata-se de um discurso neoliberal que atribui ao
assistencialismo estatal a deficiência dos programas sociais e, principalmente,
educacionais, pois, segundo essa visão neoliberal, a crise por que passa a
educação é conseqüência do centralismo e da burocratização próprias de todo
Estado interventor.
48
Para esta pesquisa, o que chamamos de neoliberalismo trata-se de uma
teoria que, segundo Chauí (2003:401), caracteriza-se pelas propostas oriundas do
grupo Mont Saint Pélerin que, reunido na Suíça, formulou a teoria econômico-
política que se opunha ao Estado de Bem-Estar Social, as quais se definem por
a) um Estado forte que administre eficientemente o dinheiro público e
que corte os gastos com os encargos sociais e os investimentos
em economia;
b) um Estado que estabeleça a ordem monetária, diminua o
desemprego e o poder dos sindicatos, pois esses exigem o
aumento dos encargos sociais das empresas, o que causa a
inflação;
c) um Estado que não direcione a economia, mas que autonomia
a esse mercado, promovendo uma legislação que incentiva a
privatização.
Essas idéias influenciam a educação do Brasil no governo do presidente
Fernando Henrique Cardoso, no qual vão aparecer as primeiras propostas de
descentralização das secretarias educacionais com o objetivo de diminuir os
índices de exclusão e de marginalidade educacional provenientes da inaptidão do
Estado ao administrar o bem-estar da sociedade.
Outra característica dessa política neoliberal é a terceirização, isto é, o
aumento do setor de serviços na administração pública. Nesse contexto, a
transferência de responsabilidade pela educação da esfera política para a esfera
do mercado, transformando-a num bem de consumo que pode ser adquirido
conforme as possibilidades dos consumidores. Segundo Gentili ( 2002:19), nessa
visão neoliberal
49
A educação deve ser pensada como um bem submetido às regras
diferenciais de competição. Longe de ser um direito do qual gozam os
indivíduos, dada sua condição de cidadãos, deve ser transparentemente
estabelecida como uma oportunidade que se apresenta aos indivíduos
empreendedores, aos consumidores “responsáveis, na esfera de um
mercado flexível e dinâmico (o mercado escolar).
Que influências, então, essas idéias exercem no trabalho do professor?
Existe relação entre as prescrições e esses discursos? Primeiramente, podemos
entender que um outro discurso se materializa, discurso este que ressalta a
capacidade empreendedora que o profissional deve apresentar a fim de se “dar
bem” nesse novo cenário político-econômico. É fundamental que ele invista em
seu êxito pessoal, que ele seja responsável pelo seu sucesso ou seu fracasso
profissional, que ele saiba competir, pois só os melhores sobrevivem.
Em segundo lugar, dessa retórica neoliberal, também podemos depreender
o sentido de que do esforço individual dos cidadãos depende a melhora do seu
destino e da sociedade como um todo, e não das intervenções do Estado. Ainda
nas palavras de Gentili (2002:23)
Trata-se de um chamamento para que cada um “ocupe seu lugar e não
espere soluções milagrosas por parte daqueles âmbitos que criaram as
condições propícias para o desenvolvimento da crise. Em suma, a
mudança educacional depende, aparentemente, de que “cada um faça o
que tem que fazer” e reconheça a responsabilidade que teve com relação
à crise de qualidade da escola.
Disso resulta que a idéia de garantir as necessidades básicas da população
e aí, dentro dessa esfera - a educação - passa da ordem dos direitos sociais para
a ordem dos serviços privados regulados pelo mercado e, portanto, somente
aqueles que têm condição financeira e se prepararam para tal ascensão é que têm
direito de adquiri-la.
50
que a crise na educação tem, aparentemente, identificado o seu
“responsável”, que propostas neoliberalistas podem surgir para superar essa
crise? Uma saída coerente seria, então, desenvolver uma estrutura de
administração que privilegiasse os níveis macro e microinstitucionais da educação.
Segundo Gentili, estaria institucionalizado o princípio da competitividade que deve
regular o mercado educacional.
Esse panorama é favorável para a migração de expressões provenientes da
esfera empresarial para o campo educacional, pois os problemas de ordem
administrativa, econômica e técnica, que, até, então, não se colocavam como
fatores determinantes para o processo educacional, passam, agora a ter um papel
fundamental nas esferas educacionais. É assim que “modelos empresariais” vêm
para o campo educacional a fim de se imporem como projetos de execução em
que práticas novas são apresentadas através de dispositivos lógicos e eficientes.
Portanto, no mundo do trabalho, o profissional, mais do que ter qualificação para o
trabalho, ele precisa ter competência para gerir as situações de trabalho.
De acordo com Schwartz (1998:105), a competência abrange um campo
muito mais vasto que ultrapassa a lógica dos “postos de trabalho”
19
, pois, nessa
idéia, contaríamos com a imposição e a impessoalidade do cargo ou da tarefa,
sem nos adentrarmos na trajetória individual e social a que o indivíduo é
convocado a percorrer, lançando mão, então, de suas escolhas, modificações e
valores na sua atividade de trabalho. Todavia, pode-se dizer, também, que essa
designação faz parte do nosso vocabulário, porém esse deslizamento
semântico “qualificação/competência” traz outras questões importantes acerca do
mundo do trabalho. Segundo o autor, a questão das competências constitui um
problema atual e passa pela mesma ambigüidade que o conceito de trabalho
também apresenta, pois se o trabalho é “um lugar de debate, um espaço de
possíveis sempre a negociar onde não existe execução, mas uso e o indivíduo no
19
Aspas do autor.
51
seu todo é convocado na atividade.”, também a questão da competência levanta
certas reflexões:
A competência é uma realidade vaga que recebe um conteúdo em
tendência no campo das atividades sociais; sendo assim, buscar definir
“suas condições nos limitesequivaleria à busca absurda do que poderiam
ser as “competências necessárias para viver”. (Schwartz, 2000:107)
Sendo o trabalho o lugar de várias tensões acumuladas pelo ser humano
durante toda a sua história, um lugar cujas questões de ordem física, biológica e
psicológica se embrincam, que equivalência teriam, então, as competências, que
por si só, caracterizam-se como um exercício necessário para uma questão
insolúvel”, conforme Schwartz (2000) questiona em seu texto? O que podemos
constatar é que, se as competências trazem em sua configuração características
ambíguas quanto ao aspecto profissional do trabalhador, elas também se impõem
nas instituições organizacionais e técnicas atuais como o dispositivo primordial
para o ajuste das pessoas aos postos de trabalho, daí encontrarmos grades de
competências necessárias para determinados postos de trabalho
20
.
A análise e a avaliação das competências no trabalho constituem-se num
verdadeiro problema, segundo Schwartz (1998); e numa tentativa de decompor os
diversos “ingredientes” dessas competências para o mundo atual, o autor as
apresenta de acordo com o seu enfoque “ergológico”:
Ingrediente: saberes identificáveis e anteriormente armazenados é a
tentativa de antecipar ou anular os imprevistos no trabalho, valorizando o conceito
frente à execução.
2º Ingrediente: saberes que tendem a alimentar-se a partir do diálogo com o
meio particular de vida e de trabalho - é a competência prática, difícil de ser
verbalizada ou transmitida porque é adquirida a partir da experiência histórica e
21 Verificar Anexo 3.
52
não do enaltecimento do conhecimento teórico. É a capacidade de “desconfiar” e
prever acontecimentos nas situações de trabalho.
Ingrediente: estabelecimento de uma “dialética” ou “concordância” entre
os dois primeiros ingredientes. É a atualização das normas e procedimentos que
possibilita uma programação seqüencial de ações, estabelecendo uma relação
entre o método e a situação particular a ser considerada no trabalho.
Ingrediente: correlação dos valores que organizam o meio de trabalho e
o meio de trabalho que organiza os valores e a qualidade do uso de si. O quadro
relacional/interpessoal pode apagar ou, pelo contrário, fazer desabrochar
competências.
Ingrediente: qualidade sinérgica/competência coletiva noção de equipe
como entidade funcional necessária e valorizada nos organogramas, o que faz
emergir a idéia da eficiência como resultado de um produto coletivo.
Conceito, prática, método, valores, equipe: palavras-chaves para um estudo
sobre as “competências” que não se caracteriza como uma receita, mas que
procura construir uma reflexão útil para o mundo do trabalho e como Schwartz diz:
a partir dessa hipótese de decomposição um apelo à inventividade foi lançado”.
Assim, entendemos que esses estudos ergológicos nos auxiliam a embasar a
nossa investigação no sentido de depreender nos prescritos esses critérios ou
grades que determinam a competência do profissional da educação.
No contexto educacional, então, é comum circularem listas e grades que
objetivam apresentar as características padronizadas de um bom funcionário, as
quais solicitam “competências” necessárias para o trabalho. Essa listas
,normalmente, encontram-se fixadas em quadros de aviso ou são distribuídas aos
professores no ínício do ano letivo. De acordo com Boutet (1993, apud Souza-e-
Silva, 2000) são os chamados“escritos democráticos” mencionados anteriormente.
Normalmente, esses discursos trazem em seu texto o título Quem é o melhor
53
funcionário?” e, a seguir, enunciados, como “Não é o mais inteligente e brilhante, é
o mais comprometido.” É o que atende os pedidos imediatamente, tanto dos
chefes quanto dos alunos e colegas de trabalho.” É sempre pronto a colaborar
com seus colegas de trabalho mesmo quando a tarefa não é sua.” É o mais
polido, e educado, além de competente.”
21
Enunciados que ressaltam o trabalho
em equipe ou o trabalho coletivo passam a incorporar também esses prescritos.
O que podemos entender, então, é que os enunciadores desses discursos
consideram uma imagem prévia de seus coenunciadores, isto é - do Outro - no
caso, os professores e outros funcionários da escola. Ao apresentar uma pergunta
e, logo em seguida, as respostas o enunciador já se auto-caracteriza como a
instância maior do enunciado. Assim, são enunciados que trazem uma posição
interlocutiva detentora de efeitos discursivos que até alguns anos não eram
próprios do discurso da educação.
Dentro dessa perspectiva, para ser um bom professor, o profissional precisa
ser um bom gestor de seu trabalho, designação proveniente do setor empresarial
que trata da gestão de recursos humanos. Sendo esta designação pertinente,
inicialmente no discurso empresarial e, posteriormente, passando a ser, também,
encontrada no discurso educacional, o qual, em nome de uma eficiência efetiva,
requer do professor a “competência” de saber organizar e administrar seu trabalho
por meio de projetos e empreendimentos direcionados para objetivos concretos e
palpáveis. Desse modo, o professor que até então, não teve o seu trabalho
reconhecido por meio de critérios tão “definidos” no sentido do que é esperado
dele e do que ele tem que fazer, encontra-se diante de um grande problema para
o qual ele não se vê preparado.
Outra questão importante que podemos depreender desse embate
discursivo das designações qualificação e competência, trabalho e gestão dentro
das esferas de trabalho, calcam-se nas palavras de Schwartz (2000:105)
21
Verificar o anexo 3.
54
Os elementos que hoje podemos muito mais claramente identificar como
gestão de situação de trabalho e que motivam esse recurso ao conceito
mais vago de competência não nasceram do nada junto com as “novas
tecnologias”, “as novas formas de organização do trabalho, as novas
regras de avaliação dos agentes; existiam nas formas anteriores, com
dimensões e objetivos aparentemente mais modestos, com formas
implícitas dissimuladas pela evidência da gestualidade apreendida como
repetitiva.
Se, como afirma Schwartz, a questão - qualificação/competência, gestão de
situação de trabalho - já existia antes, só que de uma forma subjacente ao
trabalho, por que, então, haveria o trabalhador de se sentir pressionado pelo maior
número de atribuições que esperam dele? Essas idéias e indagações
apresentadas, aqui, levam-nos a refletir sobre o fato de que alguns deslizamentos
de designações do discurso empresarial para o educacional podem explicar o
desconforto que acomete o professor, pois as funções que ele outrora exercia
extra-oficialmente, como, por exemplo, participar da avaliação física dos prédios,
colaborar para o envolvimento de todos os membros da escola...passam, agora a
ser cobradas dele oficialmente por meio de prescrições formais que trazem
designações de uma outra instância para a sua esfera de trabalho gestão de
recursos físicos, gestão participativa - funções que, no passado, não se
materializavam lingüisticamente em normas a serem seguidas.
Na segunda parte desta pesquisa, organizamos a metodologia a partir de:
(a) apresentação do caminho escolhido para alcançarmos os objetivos da
investigação; (b) caracterização dos prescritos para a educação nos níveis
nacional e estadual ; (c) organograma das instâncias oficiais do ensino; (d)
apresentação do primeiro prescrito: Política Educacional da Secretaria da
Educação do Estado de São Paulo; (e) apresentação do segundo
prescrito:Orientações para a Elaboração do Planejamento de Ensino nas Escolas
e Diretorias de Ensino.
55
PARTE II – METODOLOGIA
1
DEFININDO UM CAMINHO METODOLÓGICO
Para alcançarmos o objetivo principal desta pesquisa que é identificar a
imagem discursiva do trabalho do professor nos prescritos oficiais, tivemos que
definir um caminho que nos conduzisse a esse propósito. Partindo, então, do
princípio de que o interdiscurso tem primazia sobre o discurso, procuramos
aqueles discursos que estabelecessem relações com o trabalho educacional, não
por meio da ótica educacional, mas, também, mediante outras perspectivas,
como as de cunho social, político e econômico.
Desse modo, tivemos a possibilidade de deparar-nos com vários
documentos - propostas pedagógicas das disciplinas, orientações para o conselho
de classe, orientações para planos de ensino... Mas esses documentos ainda não
se configuravam como um espaço de tensão em que o analista do discurso
pudesse atuar de maneira a ressaltar o intercâmbio entre os vários discursos.
Por conseguinte, chegamos, então, aos documentos das instâncias oficiais
LDB - Lei de Diretrizes e Bases para a Educação (Lei 9.394, de 20/12/96) e
os PCNs - Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) - que poderiam formar nosso
corpus de pesquisa no qual os aspectos heterogêneos do discurso, ao serem,
analisados, contribuiriam para o estudo da imagem do trabalho docente. Todavia,
dada à necessidade de se delimitar esse universo discursivo (Maingueneau,
2000), como professora da rede estadual e pesquisadora, buscamos aqueles
prescritos que delimitassem um campo de discursos constituído de
posicionamentos discursivos que mantivessem relações de aliança e de conflito e
que fossem particularmente portadores de posições enunciativas que nos
favorecessem identificar a imagem do trabalho do professor num espaço
discursivo mais delimitado.
56
Optamos, então, por ater-nos aos prescritos para a educação do estado
paulista e, por meio de “conversas” com diretores de três escolas estaduais - duas
de ensino médio e uma de ensino básico - obtivemos a informação de que as
atividades escolares eram norteadas por uma política maior do Estado, a qual
estava registrada em documentos. A partir dessas vozes, recorremos à Internet e
pesquisamos no site da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo
22
, os
quais foram escolhidos justamente por serem, conforme os diretores das escolas
disseram, “parâmetro para o posicionamento político-educacional das escolas”.
Para que a análise se efetivasse, optamos por caracterizar, primeiramente,
de maneira mais ampla, os prescritos referentes à educação nacional para, em
seguida, dedicarmo-nos à análise dos prescritos estaduais. Nesses últimos, o
“recorte” realizado pautou-se pelo critério de presença de discursos oriundos da
esfera educacional e não educacional, como o discurso neoliberal, o discurso
empresarial e o discurso da sociedade. E também pela presença de enunciados
referentes ao trabalho direto do professor, como sua integração com os alunos e
seu trabalho coletivo junto aos seus pares.
A abordagem hierárquica do trabalho defendida pela Ergonomia também é
apresentada na metodologia por meio do organograma dos órgãos oficiais que
compõem o quadro educacional de nível nacional e estadual.
Por fim, passamos à caracterização do nosso corpus de pesquisa que se
definiu na escolha dos seguintes documentos:
a) Política da Educação do Estado de São Paulo
b) Orientações para Elaboração do Planejamento nas Escolas e nas
Diretorias de Ensino.
.
Ainda na perspectiva de se aliar a análise do discurso às ciências do
trabalho, almejando uma concepção interdisciplinar entre essas áreas do
conhecimento, foi necessário trazer da Ergologia a dialética existente acerca da
22
www.educacaosp.gov.br
57
busca pelas competências no mundo do trabalho em que novas regras, novas leis
e novos contratos são parâmetros cada vez mais vagos para o profissional, mas,
ao mesmo tempo, decisivos para a tomada de decisões dos gestores do trabalho.
Enfim, esta investigação, ao utilizar o estudo da rede discursiva que envolve
os prescritos oficiais voltados para o trabalho do professor, procura entender esse
trabalho, baseando-se nas relações interdiscursivas, no papel dos
coenunciadores e nas designações lingüísticas que compõem esses discursos.
Nos próximos segmentos, traremos o universo discursivo dos prescritos
para a educação nacional e estadual com o objetivo de estabelecer as relações
interdiscursivas que esses documentos apresentam, bem como analisá-los a partir
de dispositivos enunciativos-pragmáticos da Análise do Discurso.
2 OS PRESCRITOS NA EDUCAÇÃO
2.1 O universo discursivo dos prescritos para a educação nacional
Nos últimos anos, o Ministério da Educação vem implantando uma política
educacional que se coloca como portadora de reflexões sobre a educação a partir
de uma análise prospectiva proveniente de órgãos internacionais
23
, os quais
ressaltam os aspectos da formação humana, social e política que, posteriormente,
também se refletirão nos prescritos que influenciarão as políticas educacionais e
as orientações para o planejamento nas escolas dos estados e municípios.
23
Declaração Mundial sobre a Educação para Todos (1990)- estabelece que toda criança, adolescente ou
adulto deve se beneficiar de uma formação concebida para poder responder às suas necessidades educativas
fundamentais .
Declaração de Nova Delhi – assinada pelos nove países de maior contingente populacional do mundo e que
reconhece a educação como instrumento proeminente da promoção de valores humanos universais, da
qualidade dos recursos humanos e do respeito pela diversidade cultural.
58
Em termos legais, a Lei de Diretrizes e Bases para a Educação (Lei
9.394, de 20/12/96) foi a principal referência oficial para a formulação de
mudanças propostas nos documentos relativos à educação nacional. E é na
representatividade dessa lei que os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998)
alicerçam a concepção educacional para o país, a qual, norteando-se pelo eixo
Educação e Cidadania, firmará, uma relação de unidade de sentido que
perpassará os demais prescritos para a educação de todo o país.
Conhecida como Lei Darcy Ribeiro, a Lei 9.394/96, estabelece que a
“educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e
nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento
do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho”.
É dessa forma que enunciados provenientes de documentos dos órgãos
internacionais e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (doravante LDB/96)
podem ser identificados nos Parâmetros Curriculares Nacionais
24
, um outro
documento que assume caráter de “escrito democrático”, de acordo com Boutet
(1993), embora vigore com poder prescritivo, uma vez que esses documentos
provêm de uma instância superior, no caso o ministério da Educação e Cultura
estabelecendo relações interdiscursivas. Assim, logo na introdução desse
documento, depreendem-se temas
25
que são pertinentes às preocupações
mundiais no que diz respeito às questões políticas e sociais já apresentadas na
LDB/96, como:
- Necessidade de se amenizar os níveis de desigualdade de
desenvolvimento nos diferentes países e dos “incluídos e excluídos” que neles
vivem e que convivem com o desencantamento e com a desesperança,
juntamente com a miséria e o desemprego;
24
Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília,1997.
25
Entendido na acepção de D. Maingueneau como unidade semântica de um texto.
59
- Busca por uma maior conscientização da utilização do meio ambiente e da
utilização dos recursos naturais, pois ainda não uma conduta eficaz por parte
da política social e educacional para solucionar esses problemas;
- Priorização de uma concepção de vida harmoniosa entre os povos, mas
que ainda não é ressaltada em nossos ambientes de convivência mais próxima:
região, estado, cidade, bairro.
A LDB/96 coloca-se, então, como o prescrito maior que rege a educação
do país e é, a partir dessa lei, que os dispositivos legais para a educação são
promulgados - pareceres, artigos, portarias, resoluções. Tal intersecção de textos
constitui uma rede discursiva na qual um discurso vai ter sentido dentro de
outro discurso.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais, por sua vez, constituem-se como o
prescrito que apresenta relevância no contexto educacional. E, ao estabelecerem
relações discursivas com a LDB/96, a qual, por sua vez, também estabelece
relação com o texto Declaração Mundial sobre a Educação para Todos (1990) e a
Declaração de Nova Dehli, colocam-se como elemento da rede discursiva que
compõe o campo discursivo da educação de nosso país.
2.2 Os prescritos para a educação no Estado de São Paulo
Partindo da idéia de que o conhecimento sobre as instâncias
organizacionais referentes ao trabalho são importantes para a sua compreensão,
no caso desta dissertação, reconhecemos como um dos passos iniciais rumo à
análise do trabalho docente, organizar a “cascata hierárquica dos prescritos”
26
, a
qual determina a estrutura educacional do sistema de ensino nacional. Também
26
Designação criada dentro do Grupo Atelier, a qual faz referência ao conceito de “abordagem
descendente”de R. Amigues.
60
Bronckart (apud Machado, 2004) ressalta a necessidade de se articular textos
analisados com outros textos que circulam no contexto de produção dos escritos.
As redes interdiscursivas do universo dos prescritos e o contexto de
produção dos mesmos se colocam como relações imprescindíveis para se traçar o
caminho das prescrições que regulamentam e norteiam o trabalho do professor,
pois, se, de um lado, deparamo-nos com discursos de diferentes naturezas
institucionais que o influenciar o trabalho docente, de outro, deparamo-nos com
o contexto em que eles são produzidos, fato que nos possibilita refletir sobre o
“sentido” dos discursos num dado momento.
A articulação das relações interdiscursivas com a Ergonomia que se propõe
estudar as relações das prescrições no trabalho e a hierarquia da qual elas são
constitutivas, colocou-nos a necessidade, como dito anteriormente, de identificar
as esferas organizacionais que influenciam o trabalho do professor. Para tanto,
descrevemos a hierarquia dos principais órgãos e instâncias que compõem o
cenário educacional e que aqui, tomamos pela designação formação discursiva,
no sentido amplo dado por Maingueneau (2000) conjunto de enunciados
mantidos por uma administração numa dada conjuntura histórica.
É assim que encontramos vários discursos que dialogam na esfera de
trabalho do professor: o discurso dos pais, dos alunos, da comunidade na qual a
escola está inserida, da mídia, do governo, das instituições oficiais e dos próprios
professores. Percebemos nesse intercâmbio, ora explícita ora implicitamente,
marcas lingüístico-discursivas de discursos de natureza ideológica e institucional;
no primeiro prescrito a presença do discurso ideológico é mais clara e, no
segundo, o discurso institucional é mais evidente.
A hierarquia dos órgãos educacionais da rede pública estadual que rege o
trabalho do professor constitui-se a partir das seguintes instituições: o MEC -
Ministério da Educação e Cultura - órgão de organização máxima das diretrizes
educacionais do país, determinando seus princípios e o funcionamento das outras
61
organizações a ele atreladas; a SEE Secretaria Estadual da Educação
instituição imediatamente ligada ao MEC e também com a finalidade de
determinar as diretrizes educacionais do estado com as determinações do MEC; à
SEE, subseqüentemente atrelada, está a Coordenadoria de Estudos e Normas
Pedagógicas CENP a qual tem papel determinante nas concepções e
determinações pedagógicas que regem a educação no estado; à CENP tem-se
interligada a CEI Coordenadoria de Estudos do Interior, instituição
governamental encarregada de organizar as várias diretorias das cidades do
interior do Estado de São Paulo.
As principais instâncias oficiais que compõem o cenário da educação
nacional e do Estado de São Paulo, especificamente, mencionadas acima, podem
ser organizadas no organograma seguinte:
MEC
SEE
CEI
CENP
DE
Escola
Direção
Professores
Alunos
62
As secretarias estaduais de educação vinculam-se ao MEC por meio do
CNE –Conselho Nacional de Educação o qual é uma instância oficial que tem
por função legislar e verificar os processos legais que as secretarias de todos os
estados organizam, como, por exemplo, direcionamento de verbas, planos de
organização do ensino e de gestão recursos humanos
27
.
Diretamente ligado à direção da escola, temos, também, o coordenador
pedagógico que articula as questões de ordem didática e pedagógica provenientes
da política educacional do governo estadual, numa esfera mais abrangente, com
as políticas de educação da escola, numa esfera mais circunscrita à realidade da
unidade escolar.
Os aspectos mencionados acima constituem uma dimensão enriquecedora
para a compreensão do trabalho educacional do professor, pois trazem à tona
instâncias que nem sempre são levadas em conta na investigação de sua
atividade.
Passemos, agora, para a caracterização dos dois prescritos oficiais que
norteiam a educação do Estado de São Paulo, os quais foram escolhidos segundo
critérios apresentados no início desse capítulo.
2.2.1 Primeiro Prescrito: Política Educacional da Secretaria de Estado
da Educação de São Paulo
Para compreendermos melhor as relações interdiscursivas que permeiam
esse documento oficial, faz-se necessário, primeiramente, vislumbrarmos em qual
contexto os mesmos foram produzidos e a qual natureza ideológica eles se filiam
a fim de refletirmos sobre o porquê de suas características discursivas. É assim
27
Dados retirados do site http://www.crmariocovas.sp.go.br/og.
63
que voltamos a Maingueneau (2002) para ressaltar a constituição do discurso
produzido no quadro das instituições que restrigem e definem a enunciação. Em
nosso caso, temos um discurso para a educação elaborado no governo de
Geraldo Alckmin, mas que também traz referências ao governo passado de Mário
Covas, governo este que foi o precursor das diretrizes políticas, sociais e
econômicas para o atual governo.
Ao lado do discurso de natureza ideológica, temos, também o discurso
vindo de um lugar institucional, que no caso desta pesquisa caracteriza-se como a
Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, portanto esse é um prescrito que
tem como fonte de seu enunciado uma instância governamental ampla o que, em
alguns momentos, pode causar um efeito de distanciamento entre enunciador e
co-enunciador, no caso desse último, o professor. Esse documento dialoga, então,
com outras esferas discursivas ao fazer referência à política da educação
nacional, ao modelo de gerenciamento das empresas, ao mundo do trabalho e ao
mundo da tecnologia.
Tal documento se constitui de quarenta e quatro páginas, as quais contêm
as diretrizes que o governo assume em relação à sua política e está direcionado a
todos os profissionais da educação – dirigentes de ensino, supervisores de ensino,
diretores de escola, coordenadores pedagógicos, assistentes cnicos
pedagógicos, professores – enfim, à sociedade como um todo.
Esse prescrito foi veiculado pela Internet
28
no início do ano de 2004 e é um
texto que está presente no site da Secretaria da Educação de o Paulo até os
dias atuais. Esse aspecto é interessante, pois o acesso ao documento, por meio
desse dispositivo comunicacional, ocorreu, pela primeira vez, com esse prescrito,
o que é um diferencial para as diretrizes educacionais do país no sentido de que,
no passado, os documentos circulavam em cópia impressa.
28
No endereço www.educacao.sp.gov.br
htpp://cenp.edunet.sp.gov.br
64
2.2.2 Segundo Prescrito: Orientações para Elaboração do
Planejamento nas Escolas e nas Diretorias de Ensino
Esse prescrito, por sua vez, também tem como enunciador a Secretaria
Estadual da Educação, todavia o seu co-enunciador tem na instância do professor
um destinatário especial e restrito, situação de enunciação que se caracteriza
como diferenciada da do primeiro prescrito, o qual contava com uma diversidade
de coenunciadores – dirigentes de ensino, diretores, coordenadores, professores...
E é a partir desse documento que cada escola vai elaborar o seu
planejamento nas primeiras semanas de aula. Portanto, trata-se de um documento
mais direcionador e com características mais institucionais que o primeiro, pois,
além de apresentar diretrizes sobre o acolhimento dos alunos pela escola e sobre
concepções de avaliação pedagógica, traz, também, por parte da SEE,
orientações específicas para o desenvolvimento dos conteúdo disciplinares a
serem dados nas escolas.
Trata-se de um documento, com trinta e cinco páginas, enviado pela CENP
para as diretorias de ensino no ano de 2004 o qual deve ser distribuído para as
escolas do Estado de São Paulo a fim de ser o direcionador das tomadas de
decisões e ações das escolas. Esse documento, primeiramente, chegou às
escolas por meio de papel impresso, posteriormente ele foi colocado à disposição
no site da CENP
29
para que todos os interessados tivessem acesso a ele.
Justamente por ser um prescrito mais direcionado ao trabalho educacional
e, principalmente, ao professor, a presença de enunciados focados no seu
trabalho dão a ele um caráter mais direcionador para a realização das atividades
docentes. Embora seja um documento norteador no sentido de organizar o
planejamento nas escolas, o que a priore demanda um caráter sistematizador
justamente por se tratar de Planejamento de Ensino nas instituições, o mesmo
29
No endereço;http://cenp.edunet.sp.gov.br
65
prescrito apresenta discursos de outro campo que não o das diretrizes
educacionais, como o literário, por exemplo. É dessa maneira que trechos de
autores consagrados como Cecília Meireles e João Guimarães Rosa são inseridos
nos enunciados, propiciando um efeito de sentido diferente daquele imposto por
meio de uma prescrição. Assim, na heterogeneidade dos discursos, o prescrito se
compõe a fim atingir o seu destinatário de uma forma não tão normatizadora como
assim o seria por meios de enunciados voltados somente para o campo das
normas e orientações educacionais.
Esse documento é antecedido por uma carta de apresentação da
Coordenadora da CENP - Sonia Maria Silva - caracterizando-se por um discurso
que está atrelado a outro. Nessa situação de enunciação, vamos perceber os
discursos que dialogam entre si, no caso, o discurso da Secretaria Estadual de
Educação com o discurso da Coordenadoria de Normas Pedagógicas. Mas,
embora esses discursos configurem subcampos da Secretaria de Educação do
Estado de São Paulo, eles estabelecem uma relação de aliança, pois ambos
“caminham” para uma mesma concepção ideológica, a qual é reconhecida pela
administração do governo estadual.
66
PARTE III – ANÁLISE DISCURSIVA DOS PRESCRITOS
1 O PROCESSO INTERDISCURSIVO NOS PRESCRITOS EDUCACIONAIS
1.1 As relações interdiscursivas
Para Maingueneau (2005), os diversos discursos não se constituem
independentemente uns dos outros para, em seguida, serem colocados em
relação, mas se configuram no interior do interdiscurso que estrutura a identidade
do discurso. Por isso, analisar o espaço de troca entre os vários discursos é mais
importante que a análise de um determinado discurso num dado momento.
Assim, analisemos os trechos oriundos do primeiro documento Política
Educacional da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo - nos quais
depreendemos um espaço de troca com os discursos de natureza político-
ideológica:
(a) Discursos de natureza governamental: concepções neoliberais
Esse primeiro fragmento do documento demonstra o caráter político-
ideológico do governo na medida em que procura impor uma imagem de
eficiência, característica da concepção neoliberal, junto a seus interlocutores. Ao
se referir a “essas ações” o enunciador recupera o discurso do governo de Mário
1- O governo Alckmin, um Governo Educador,
Solidário e Empreendedor,
pretende aperfeiçoar essas ões
e, com isso, melhorar
significativamente a qualidade dos serviços que presta à educação.
(pg.02)
67
Covas que deu início às mudanças na educação paulista e que, agora, são
aprimoradas no governo Alckmin.
Esse segundo fragmento foi escolhido por apresentar outra característica
de um governo neoliberal: a prestação de serviços de qualidade na esfera da
educação. Por meio dessa designação, que reflete o objetivo de um governo sério,
o enunciador atribui a si a competência de superar as crises na educação dos
governos passados.
O terceiro fragmento trata de uma questão relevante do discurso neoliberal:
o empreendedorismo. Percebemos que Secretaria Estadual de Educação, ao
utilizar essa designação, procura construir junto a seus co-enunciadores, a
imagem de que todos, inclusive seus educadores, podem ser indivíduos
empreendedores. Para que isso aconteça, o educador precisa usufruir dos
artefatos tecnológicos que o estado propicia.
3- O empreendedorismo
também deve estar presente na
intencionalidade educativa e no modo de ser
de agir dos educadores. A
SEE vem se equipando com os mais novos artefatos tecnológicos para
aprimorar a qualidade de suas ações, seja em sala de aula, na
administração escolar, na gestão educacional ou na educação
continuada de seus educadores. Tem desen
volvido e desenvolverá ainda
mais, sistemas de racionalização administrativa, pautados nos mais
modernos processos de gestão. (pg.06)
2- Pela sua relevância, esse propósito
se constitui em outra
c
aracterística que deve marcar a atual administração, ou seja, a de ser
um Governo Prestador de Serviços de Qualidade.(pg.03)
68
O quarto fragmento desse documento reforça a idéia neoliberal de que o
indivíduo, para ser competitivo num mundo globalizado, não pode ficar alheio às
mudanças, ele precisa ocupar o seu lugar, pois o Estado faz o papel dele com
“eficiência”, portanto, ele espera que o cidadão também se desenvolva
eficazmente.
Desse primeiro prescrito Política Educacional do Estado de São Paulo
retiramos, então, os fragmentos discursivos de natureza institucional que nele
aparecem:
(b) Discursos de natureza institucional: MEC, SEE, LDB
Nesse fragmento acima, o caráter interdiscursivo é relevante na media em
que temos no discurso da Secretaria da Educação uma interface com o discurso
da Constituição Brasileira que, aqui, é recuperado por meio da expressão tal
expectativa a qual retoma o papel da escola para o desenvolvimento dos valores
humanos. Temos, também, a relação interdiscursiva dos discursos da LDB com a
política estadual paulista, estabelecendo, então, uma aliança de proposições.
4-
A instabilidade produtiva decorrente dos avanços científicos e
tecnológicos e da globalização
econômica exige do jovem uma
atualização contínua. (pg.06)
1- Tal expectativa
está sinalizada na Constituição Brasileira e
explicitada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, ao
estabelecer que a educação será ministrada, oferecendo igualdade de
condições para ... (01)
69
Esse segundo fragmento permite uma reflexão interessante do ponto de
vista enunciativo, pois aqui a SEE assume a sua condição de enunciador formal
que concebe a convergência de discursos vários da ordem pedagógica, funcional
e administrativa, os quais representam os discursos institucionais .
c) Discursos das instâncias próximas: pais, alunos, escola,
comunidade
O fragmento acima configura uma situação real que circunda a escola e,
principalmente, o professor no seu dia-a-dia de trabalho, ou seja, as expectativas
existentes à sua volta. Essas influenciam o seu comportamento no trabalho e as
suas reflexões no sentido de que ele, enquanto profissional, considera-se
elemento essencial para a melhoria do ensino, mas , muitas vezes, devido à sua
condição real de trabalho, não consegue realizar o seu trabalho conforme as suas
expectativas, tampouco conforme as expectativas da sociedade.
2- A
SEE
está, portanto, buscando promover o diálogo educador entre
todos os seus atores, seja naquelas situações exp
lícitas de ensino e
aprendizagem com aluno, seja na educação continuada de seus quadros
ou em qualquer outra espécie de ação, incluindo as administrativas.
...(pg.03)
1- A expectativa da sociedade brasileira
, em relação ao papel da
escola, é a de que, ela
de fato, contribua para desenvolver os valores
essenciais ao convívio humano e, ao mesmo tempo, proporcione
oportunidades que permitam a inclusão ... (pg.01)
70
Nesse trecho do documento, as vozes mais próximas dos alunos,
familiares e outros integrantes da comunidade colaboram para estabelecer a
subjetividade das relações interdiscursivas, na medida em que também
configuram como uma intersecção de discursos que incidem sobre o papel da
escola e, conseqüentemente, sobre o trabalho do professor. Dessa forma, embora
não sejam considerados discursos de instâncias oficiais, eles exercem influência
nas funções educacionais do dia-a-dia, como é o caso do discurso dos alunos que
não se identificam coma escola, com as disciplinas, com os professores.
(c) Discursos de instâncias técnicas-organizacionais e econômicas:
empresas
Logo no início do documento – Política educacional da Secretaria de Estado
da Educação de São Paulo encontramos designações referentes ao universo
das instâncias técnicas-organizacionais. Esse fato comprova uma tendência de se
trazer do universo empresarial para o educacional situações de gerenciamento
que privilegiam estratégias de ação.
2-
Nessa perspectiva, a escola inclusiva é a que se mantém atenta às
necessidades de seus alunos e às
expectativas da comunidade em que
se insere. Ela se constrói a partir da permanente interação com os
educandos, seus familiares e outros integrantes
da comunidade.
(pg.05)
1- Visando a essa eficácia, a SEE ve
m aprimorando e ampliando o uso
de indicadores objetivos como forma de avaliar resultados e realimentar
suas estratégias de ação. (pg.04)
71
Nesse fragmento, encontramos novamente uma designação proveniente do
universo empresarial e que discursivamente reflete a postura técnica-
organizacional que a SEE vem procurando apresentar quando chama de rede a
complexidade de sua organização que se destaca por ser uma das maiores do
país em número de sub-coordenadorias e de funcionários.
Essas reflexões, como dito anteriormente, partem do princípio maior do
interdiscurso. Assim, é na convergência dos discursos da Secretaria da Educação
de São Paulo com outros discursos que percebemos uma formação discursiva que
estabelece posições políticas e ideológicas, as quais configuram entre si relação
de aliança, uma vez que percebemos a intenção do enunciador interligar os vários
discursos: o discurso das leis, o discurso das instituições, o discurso dos pais e
alunos.
Desse modo, a interdiscursividade, nesta pesquisa, parte da singularidade
da heterogeneidade no discurso: heterogeneidade mostrada e heterogeneidade
constitutiva - definição apresentada, primeiramente, por Authier-Revuz (1982,
apud Maingueneau, 2002). Assim sendo, na relação interdiscursiva constitutiva
desse prescrito, é importante, perceber o diálogo estabelecido, o qual pode ser
estudado por meio da heterogeneidade mostrada com formas marcadas e não
marcadas do ponto-de-vista lingüístico.
Apresentamos, a seguir, alguns de enunciados que trazem a perspectiva
da heterogeneidade mostrada de maneira marcada discurso direto ou indireto,
2- A Gestão de Operações (
dessa rede) é extremamente complexa e
tem exigido a conjugação de competências capazes de, a u
m tempo,
abranger os aspectos de infra-
estrutura tecnológica, informática,
comunicação, logística, engenharia e, especialmente, educação, ...
(pg.25)
72
aspas, itálico, glosas - com o objetivo de identificarmos o discurso outro nesses
enunciados:
Enunciado (A )
A presença de um discurso outro é detectável nesse enunciado, pois o
próprio documento sobre a política educacional da SEE faz referência a outro
documento de nível nacional, no caso, aos PCNs. A designação desse prescrito
vem impressa com uma tipografia diferente, acentuando a sua caracterização de
discurso outro associado ao da SEE.
Enunciado (B)
Nesse enunciado, a percepção da heterogeneidade mostrada do discurso
apresenta-se de maneira mostrada quando consideramos o índice textual “de fato”
(aspeado por nós) como portador de um sentido que demonstra a não
coincidência do discurso da SEE com o discurso de governos passados, pois o
discurso da instituição, agora, manifesta-se no sentido de que a escola “de fato”,
isto é, “realmente” precisa contribuir para o desenvolvimento de valores essenciais
ao convívio humano. Ao usar, então, o índice lexical “de fato”, o enunciador
Esses princípios (orientações para o currículo escolar) não perderam
atualidade, pois estão reafirmados e referendados na
s diretrizes curriculares
nacionais e nas orientações específicas para os professores os
Parâmetros
Curriculares Nacionais. (pg. 02)
A expectativa da sociedade brasileira, em relação ao papel da escola, é a de
que ela, de fato, contribua para desenvolver os valores essenciais ao convívio
humano... (pg. 01)
73
direciona a compreensão do co-enunciador no sentido de que o compromisso da
SEE em relação à escola é real.
A questão da heterogeneidade mostrada não marcada no discurso é
exemplificada, a seguir, a partir do enunciado também retirado do primeiro
documento, os qual, para ser compreendido pelo co-enunciador, solicita que este
lance mão de seu conhecimento de mundo e de sua cultura para compreendê-lo.
Enunciado (A)
Nesse fragmento de discurso, a incidência de manifestações lingüísticas
explícitas é diluída na superfície textual, pois o sentido aqui exposto em relação à
política do governo quanto ao jovem infrator, é construído a partir de alusões
referentes a outros governos e não por meio de índices lexicais evidentes.
Todavia, na enunciação, percebe-se que esse governo se propõe a reorientar o
jovem que não era orientado de maneira adequada no governo passado, e mais,
agora ele não vai puni-lo, como nos demais governos, mas valorizá-lo.
O levantamento realizado das marcas de heterogeneidade mostrada nos
enunciados anteriores possibilitaram-nos compreender, nesse corpus de pesquisa,
a relação constante de aliança no interior de uma formação discursiva. Dessa
forma, foi possível identificar as posições políticas da SEE que se caracterizam
por apresentar uma imagem de administração empreendedora, eficaz e atualizada
Tal co
ncepção é expressão de uma política pertinente de governo que reorienta
a maneira de perceber o jovem circunstancialmente envolvido com atos
infracionais para considerá-
lo um adolescente em desenvolvimento cujas
potencialidades devem ser reveladas, valoriz
adas e expandidas em um
ambiente de formação e convívio humano.
Por isso, quando a ênfase deixa de
ser a mera punição e contenção, a FEBEM transforma-
se em uma entidade de
caráter educativo norteada pelas diretrizes da Secretaria da educação. (pg. 10)
74
com os problemas educacionais de seu tempo e os discursos de outros campos
discursivos: o discurso dos órgãos oficiais MEC, CENP, CEI; o discurso das
organizações econômicas: empresas; o discurso da sociedade; o discurso dos
pais, alunos e comunidade; o discurso neoliberal.
Todavia, é importante lembrar que o estudo das marcas de
heterogeneidade no discurso somente tem valor significativo numa perspectiva
interdiscursiva, pois, do contrário, corremos o risco de ater-nos à análise
superficial de enunciados se ficarmos apenas no levantamento e classificação dos
mesmos. Portanto, quando analisamos a heterogeneidade dos discursos da SEE,
percebemos que neles uma convergência de discursos “outro” e, ao mesmo
tempo, uma intenção de construir uma identidade discursiva . É dentro desse
princípio dialógico do discurso que a heterogeneidade constitutiva se configura,
pois o discurso não é homogêneo, ele é dominado pelo interdiscurso.
No prescrito da SEE , o discurso é “atravessado” por vários outros, como
dito anteriormente, e é a na intersecção desse discursos que encontramos a
subjetividade característica da linguagem. Estudar esses espaços de troca
discursiva nos escritos sobre o trabalho educacional constitui-se como tarefa
importante para o entendimento dessa atividade humana.
A seguir, o estudo dos coenunciadores é apresentado a fim de
aprofundarmos a nossa reflexão e análise sobre as relações interdiscursivas que
compõem a imagem discursiva do trabalho do professor.
1.2 Os coenunciadores
A interatividade entre os parceiros do discurso é constitutiva da enunciação,
por isso a preferência pela nomeação coenunciadores é mais coerente com esse
princípio do que aquela apresentada pelas tipologias comunicacionais mais
tradicionais, como emissor-receptor ou destinatário. Por isso, adotamos
75
enunciador no lugar de emissor, e co-enunciador no lugar de receptor ou
destinatário.
Em nosso corpus de pesquisa a análise dos coenunciadores foi realizada a
partir da idéia de coenunciadores reais ou modelo (Maingueneau, 2002). Por
coenunciadores reais entendemos os de natureza empírica, isto é, aqueles
coenunciadores efetivos e por modelo aqueles que se constituem por uma
representatividade idealizada na enunciação. É assim que esta pesquisa evidencia
o papel dos coenunciadores no primeiro prescrito Política Educacional da
Secretaria de Educação do Estado de São Paulo os quais são identificados e
analisados de acordo com o conceito de coenunciadores reais e coenunciadores
modelo:
Enunciado 1 (pg.05)
Nesse fragmento, a SEE, como enunciador, apresenta um discurso voltado
diretamente para o professor - “identificar o aluno pelo nome, /.../apoiá-lo em suas
incertezas”. Mas é um discurso que pressupõe um co-enunciador modelo, ou
seja, um profissional que ela, como instituição, como capaz de ser afetuoso,
amigo e sensível em todos os momentos. Nesse caso, a instituição considera as
atitudes idealizadas que ele precisa apresentar junto ao aluno, e não considera as
incertezas e dificuldades que interferem, também, em seu trabalho. Assim, trata-se
de um enunciado estabelecido a partir de uma visão idealizada do professor e de
seu trabalho educacional.
/.../ A integração positiva entre professores e alunos vai se
estabelecendo a partir de atitudes de acolhimento como identificar
o
aluno pelo nome, dirigir-lhe a palavra com afeto, transmitir-
lhe
sentimento de amizade, apoiá-lo em suas incertezas, mostrando-
se
receptivo e sensível ao seu estado emocional.
76
Enunciado 2 (pg. 06)
O segundo fragmento explicita a perspectiva assumida do enunciador em
relação ao co-enunciador no sentido de que há uma expectativa de que este
apresente características empreendedoras para o seu trabalho. Voltando à
questão do conhecimento das dificuldades reais em relação ao trabalho do
professor, novamente depreendemos, no caso desse enunciado, um discurso não
configurado dentro da realidade das instituições escolares, pois o co-enunciador,
no caso, o professor, normalmente, não se como ator de um discurso que
pressupõe condições ideais de trabalho.
Enunciado 3 (pg. 06)
O fragmento anterior também coloca o professor como um co-enunciador
modelo à medida que o como uma entidade que “encarna” a idéia de
profissional modelo, o qual é compreensível e humano. Mas é do senso comum
que a interação entre professor e aluno, na maioria das vezes, apresenta-se
atribulada, chegando mesmo a interferir no processo pedagógico em si e na saúde
O desempenho, o sucesso e a ampliação do potencial dos aprendizes
dependem de nossa sensibilidade para vê-
los como seres humanos e
não apenas como números registrados nas listas de chamada. Por meio
dessa prática, poderemos ter a chance de ir além e de aprender com
nossos educandos. Educar é, sobretudo, nunca deixar de aprender e
acreditar. (G. Chalita, 2003)
O empreendedorismo também deve estar presente na intencionalidade
educativa e no modo de ser e de agir dos educadores.
77
do professor
30
. Muitos fatores influenciam essa situação: classes numerosas,
excesso de carga horária, escolas depredadas, alunos violentos. Dessa forma, na
maioria de suas situações em educação, estabelece-se uma distância entre o que
é prescrito e o que é real nas atividades do dia-a-dia.
Enunciado 4 (pg. 07)
Nesse fragmento, a SEE, como coenunciador “constrói” a imagem do
educador (co-enunciador) , como a daquele interlocutor que necessita de
explicações que direcionem o seu trabalho no sentido de determinar o que fazer,
como fazer e para que fazer. Não uma referência, por parte do coenunciador,
no sentido de considerar a história do professor como aquele que freqüentou um
curso de formação para aprender o ofício de ensinar e que conta com uma
experiência viva de trabalho.
Por conseguinte, podemos dizer que a visão da SEE em relação ao seu co-
enunciador, ou seja, o professor, apresenta-se de maneira desarticulada em
relação às condições reais de trabalho. Dessa forma, o professor, enquanto co-
enunciador, não se identifica com o discurso desse texto prescritivo, pois ele, na
constituição discursiva da enunciação, não é um co-enunciador modelo, mas uma
30
Posicionamento apresentado a partir do meu trabalho docente na rede estadual e na convivência com os
meus colegas professores.
As SEE também irá coordenar a produção e distribuição de materiais didáticos
e
de divulgação pedagógica que sejam fundamentais para o sucesso dos
processos de aprendizagem ou que contribuam para
explicitar aos
educadores aspectos que são vitais ao seu trabalho
, como é o caso, por
exemplo, de o que ensinar, para que ensinar, como ensinar e como avaliar.
78
instância real que traz uma história que não é considerada pelo enunciador, ou
seja, a SEE.
Com o objetivo de ressaltarmos as posições que ora são de aliança ora são
antagônicas nos prescritos, apresentamos, a seguir, as designações do discurso
empresarial das instâncias técnicas-organizacionais assumidas pelos discursos da
educação.
1.3 O deslizamento das designações do discurso empresarial para o
discurso educacional
a) Análise de expressões que enfatizam a idéia de Competência
Coletiva próprias do discurso empresarial e, agora, presentes no discurso
educacional:
A utilização dos conceitos sobre Competência Coletiva e expressões como
Trabalho em Equipe é relativamente nova, conforme Schwartz (1998), e tem sido
empregada pelos chefes de projetos e de empresas a partir dos últimos quinze
anos para se referir aos ajustes dos trabalhadores às tarefas e aos objetivos a
serem alcançados pelas empresas. Todavia, essas designações próprias do
discurso empresarial são encontradas também no campo discursivo educacional
dos países latino-americanos, fato que vem se consolidando nos discursos
políticos da SEE e são apresentados, a seguir, por meio de enunciados que
trazem essa inserção de designações do campo empresarial no campo
educacional, a fim de compreendermos as mudanças de conceito sobre o trabalho
educacional a partir das alterações lingüísticas e sócio-históricas. Esses
enunciados foram retirados do segundo documento – Elaboração do Planejamento
nas Escolas e nas Diretorias de Ensino:
79
As designações voltadas para o conceito de Trabalho Coletivo/Trabalho em
Equipe podem ser relacionadas com o conceito de Competência Coletiva no
sentido de que esta última apresenta a idéia de que a eficiência emerge como um
produto de trabalho coletivo.Todavia, essa perspectiva apresenta alguns
impasses, pois, o trabalho do professor é relativamente visto como individualizado.
Segundo Kleiman & Morais (1999), na maioria dos cursos para professores, o
enfoque dado à sua formação pedagógica pauta-se na fragmentação de
conteúdos específicos de cada disciplina cursada na graduação, o que contribui
para uma futura atuação fragmentada em relação ao trabalho coletivo da escola.
-
Lembrando a dupla função de todo o professor, como gestor do
processo de ensino e de aprendizagem, dentr
o da especificidade de sua área
ou disciplina, e como integrante da equipe escolar,
que compartilha da
construção coletiva de uma escola pública de qualidade,...(pg.01)
-
O momento ideal para a definição e revisão desses critérios é quando o
coletivo dos professores está reunido para o estabelecimento dos pon
tos
comuns que nortearão todo o processo de ensino e de aprendizagem ... (pg.11)
-
Estas são algumas questões com as quais nos deparamos e que
podem colaborar no planejamento do trabalho. Elas devem ser discutidas no
coletivo da escola. (pg.12)
80
Outro aspecto importante a ser analisado quanto às designações que se
referem à idéia de competência coletiva/trabalho em equipe nas escolas é o fato
de que o coletivo de trabalho dos profissionais da educação, em especial, o do
professor, sofre alterações em seu quadro, ano a ano, com a legislação referente
à remoção
31
. Assim, esse prescrito em forma de lei Concurso de Remoção -
contribui para alterar o princípio do trabalho em equipe proposto por outro
prescrito, também da SEE, que trata da organização planejamento nas instituições
educacionais, pois as escolas contam com um quadro diferente de professores a
cada ano. Dessa forma, o trabalho coletivo nas escolas sofre influências das
prescrições que não conseguem refletir as condições reais de trabalho, uma vez
que os coletivos de trabalho não são estáveis e circunscritos a um mesmo tempo
e a um mesmo lugar.
Diante desses fatos, percebemos que a esfera educacional é constituída de
uma dimensão estrutural diferente daquela empresarial. Se, nesta última,
percebemos, uma certa organização técnica valorizada por organogramas, metas
e métodos de trabalho, na segunda, o caráter “dinâmico” das prescrições oferece
a contínua formação de “coletivos” de trabalho, o que causa um embate entre
aquilo que é prescrito e aquilo que é real.
Em seguida, apresentamos as alterações lingüísticas, também provenientes
do campo organizacional-empresarial, dos termos trabalho e gestão, com o
objetivo de compreender o sentido que essas alterações assumem no campo
discursivo educacional.
b) Análise das alterações lingüísticas: os deslizamentos da
designação trabalho para o termo gestão :
31
Concurso promovido pela SEE com o objetivo de proporcionar alteração de local de trabalho dentro do
Estado de São Paulo.
81
O deslizamento semântico trabalho/gestão consta de enunciados referentes
às funções dos diretores e professores, bem como à estrutura organizacional que
avalia as dimensões da gestão de SEE.
- Com base na auto-
avaliação e em sua proposta pedagógica, a equipe
escolar
formulará um plano de melhoria em que serão redefinidas ações
voltadas para o aperfeiçoamento do trabalho dos gestores e docentes com
vistas a...
- Lembrando a dupla função de todo professor, como
gestor do processo
de ensino e de aprendizagem ...
- Gestão de recursos: a
valia os serviços prestados pela escola em
rel
ação ao atendimento blico, à manutenção do prédio, dos equipamentos,
bem como a utilização e aplicação de recursos financeiros.
- O instrumento de auto-avaliação utilizado pelo
Prêmio Nacional de
Referência em Gestão escolar
contém itens importantes para o desenho desse
mapa; percorre todos os momentos da gestão escolar, ...
- Gestão Participativa:
avalia o nível do envolvimento do conjunto da
escola na tomada de decisões, a real participação dos conselhos escolares, a
APM, grêmios estudantis, o grau de socialização das informações;
82
Os fragmentos anteriores nos remetem a um campo mais vasto do que
aquele circunscrito ao “posto de trabalho” de cada profissional ou às tarefas que
ele tem que realizar. O deslizamento trabalho/gestão implica um enfoque no qual
uma dilatação da idéia de “capacidades para”, pois, se antes elas se
apresentavam por meio de um roll de competências definidas e exeqüíveis para o
trabalho (Schwartz, 2000), agora, essas capacidades são apresentadas numa
dimensão mais vaga, o que pode instaurar desconforto no trabalhador. Assim,
percebemos outra forma de organização para o trabalho educacional, a qual
solicita outras expressões lingüísticas para registrar a sua atual conceitualização.
A designação gestão no lugar de trabalho ou função exprime claramente as
tendências atuais de se conceituar o trabalho como gestão de situação de trabalho
(Schwartz, 2000), visão esta em que se encontra uma nova forma de organização
do trabalho que prioriza não somente o trabalho realizado, mas também a
organização e a avaliação desse trabalho no sentido de se identificar os seus
problemas, registrá-los e propor soluções que solucionem suas faltas. Seria o que
o autor chama de dimensão histórica do trabalho ao se referir às influências
desta conjuntura sobre o modo de se pensar o trabalho. Enfim, podemos pensar
que essas questões sobre trabalho coletivo, e gestão educacional são legítimas
porque por detrás dela um jogo discursivo no qual os discursos se movem e
compõem a imagem do trabalho educacional do professor.
- Gestão de Pessoas:
avalia o compromisso dos gestores, professores e
funcionários com o projeto pedagógico e o desenvolvimento de equipes;
Lembrando a dupla função de todo professor, como
gestor do processo
de ensino e aprendizagem, ...
83
Essas circunstâncias que hoje envolvem o trabalho educacional, como a
questão do trabalho coletivo, trabalho de equipe, gestão de trabalho, sempre
existiram, isto é, cobrava-se essa postura do professor, mas de maneira vaga e
modesta. No caso do trabalho docente, solicitar algumas normas de conduta
profissional, como elaboração de planejamento de ensino, organização de
cronogramas para avaliação de aluno, confecção de estratégias de recuperação,
adequação e aplicação de instrumentos de avaliação de nível estadual para o
institucional como o do SARESP
32
constituíam parte de sua função. Todavia, o
que percebemos nessas prescrições mais ”democráticas” (Boutet,1993,apud
Souza-e-Silva, 2000), que vão solicitar um trabalho “dilatado“ do professor no
sentido de não executar, mas também de “gerir” o seu trabalho, é que estas
conferem a ele uma atuação que anteriormente ele já exercia de maneira informal,
mas que, agora, são “cobradas” dele oficialmente por meio de prescrições , as
quais trouxeram conceitos e designações das instâncias técnicas e
organizacionais para o seu campo de trabalho e também impuseram uma
dimensão de competências mais extensa para direcionar esse trabalho.
Por conseguinte, os discursos que convocam o professor a participar do
gerenciamento dos resultados educacionais, a colaborar na articulação da
participação de todos os membros da escola no processo educacional, a elaborar
a avaliação das condições físicas do ambiente de trabalho, instituem um ponto de
bifurcação, no qual, de um lado, o trabalho que o professor já realizava de
maneira não-oficial; de outro lado, o trabalho que, pelas prescrições atuais, ele
agora precisa realizar, mas para o qual ele não se vê realmente responsável.
Esta condição original de trabalho que se impõe aos professores, nos dias
de hoje, por meio dos textos que prescrevem o seu trabalho e solicitam
competências heterogêneas que se situam nos pólos da inteligência, da prática e
dos valores, colabora para o seu estresse, como temos observado em nosso
cotidiano de trabalho, pois se ele já entendia o seu trabalho dentro de uma
perspectiva que vai além daquela de ensinar (pai, mãe, psicólogo, assistente
social...); hoje ele se depara com discursos que confirmam essa dimensão maior
32
Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo.
84
de seu trabalho por meio de designações lingüísticas que, até então, não faziam
parte do campo discursivo da educação.
Então, na intersecção dos discursos que se configuram para compor a
imagem discursiva do trabalho educacional é que nos deparamos com dimensões
que podem ser evidenciadas a partir de uma análise discursiva que leve em conta
o contexto sócio-histórico no qual esses discursos são produzidos.
Dessa forma, a presença de discursos vários nos prescritos da SEE
possibilita a identificação de uma imagem que, num primeiro momento passa a
idéia de aliança no campo discursivo, como é o caso dos discursos que recuperam
enunciados de forma explícita por meio de índices lexicais (heterogeneidade
mostrada marcada ) presentes nos documentos da SEE e referentes aos PCNs e
ao diálogo com as outras esferas institucionais da educação – MEC,CENP, CEI - e
também, de maneira implícita (heterogeneidade mostrada não marcada), quando
o discurso da SEE faz alusão à política do atual governo que procura sincronizar o
discurso da sociedade à sua política educacional.
Mas, num segundo momento, esses discursos também estabelecem
posições antagônicas quando analisamos a relação enunciador e co-enunciador,
amparando-nos no contexto sócio-histórico em que essa relação se dá. Por isso, a
incidência do discurso empresarial, oriunda das posições econômicas atuais,
impõe um caráter de empreendedorismo e objetividade a ser passado pelo
enunciador, no caso a SEE. Mas a dimensão histórica do trabalho do professor
não traz em si esse aspecto característico do discurso empresarial, tampouco as
concepções neoliberais que reforçam a busca pela competitividade próprias de
todo “profissional bem sucedido” que precisa “gerir” de maneira eficaz o seu
trabalho. Pelo contrário, a história do professor é caracterizada por uma condição
de trabalho que não está em sintonia com a imagem que os documentos
apresentam, fato que podemos constatar no dia-a-dia em nosso ambiente de
trabalho.
85
Considerações Finais
Uma pesquisa voltada para os discursos que envolvem o trabalho
educacional pode trazer, num primeiro momento, a idéia de que muito foi dito
sobre o assunto. Todavia, é no caminhar das reflexões sobre esses discursos que
percebemos o quanto ainda temos que avançar nas investigações para
entendermos a complexidade desse universo.
Tal complexidade solicita do pesquisador um engajamento com os valores
educacionais e com as dimensões técnicas que envolvem essa esfera, assim,
entender o ensino como trabalho é resgatar, ou melhor, evidenciar as
características profissionais desse universo, valorizando o trabalho do profissional
nessa área, pois as características profissionais são muito evidentes em outras
profissões, mas não no ensino.
Dessa forma, ao utilizarmos algumas categorias da análise do discurso na
investigação do trabalho prescritivo educacional foi possível perceber, ao longo da
análise dos documentos, o caráter “fluído” que essas prescrições apresentam em
relação ao papel do professor, o que, ao nosso ver, pode causar um desconforto
maior do que o seu direcionamento incisivo para as suas atividades. Outro
aspecto a ser ressaltado, nesse momento, é o fato de os documentos se
constituírem como prescrição que estabelece o que precisa ser feito, mas não
como deve ser feito esse trabalho educacional. Essa dimensão enunciativa parece
pressupor, por parte do enunciador, um co-enunciador em concordância e
engajado com os seus princípios político-ideológicos, uma vez que as diretrizes
gerais foram postuladas e, agora, cabe a ele executá-las.
Nessas reflexões finais, também é pertinente voltarmos para a questão do
gênero profissional do professor no que diz respeito a sua presença nos
prescritos. Nesse sentido, as análises finais apontam para o predomínio dessa
86
instância em relação ao estilo profissional, pois o gênero profissional apresenta
uma “parte estável da profissão” o espectro profissional e o discurso nesses
documentos não se volta para questões do dia-a-dia dos profissionais da
educação, isto é, aos embates que ele trava para resolver seus problemas de
acordo com o seu estilo, mas foca-se na figura idealizada de um profissional
empreendedor que, para estar em concordância com os tempos atuais em que
novas posturas profissionais são exigidas, precisa demonstrar capacidade de gerir
seu trabalho em prol de seu aluno que, nesta perspectiva, não é aquele que
apenas quer aprender, mas também é visto como aquele cliente que precisa ser
atendido com eficiência.
Todavia, é na continuidade dos estudos sobre o trabalho educacional que
poderemos avançar sobre as reflexões acerca das dimensões discursivas que se
inter-relacionam nesse campo, considerando as concepções provenientes do
campo empresarial para o educacional e as possibilidades de um outro olhar que
esse fenômeno pode oferecer para a organização da escola. Essa perspectiva é
interessante porque as redes e parcerias que o mundo atual impõe a todos cobra
da sociedade e, conseqüentemente da escola, uma organização de trabalho
estratégica que não foi constitutiva de sua existência no passado.
Também é preciso ressaltar numa investigação sobre as prescrições do
trabalho a possibilidade de o profissional renormalizar (Shcwartz, 2000) essas
prescrições, isto é, de seguir em frente e adequar as normas às situações reais de
trabalho, as quais apresentam imprevistos a todo instante. Esse aspecto é
importante no estudo do trabalho educacional, pois nessa atividade - os gestos, os
pensamentos, as atitudes e os anseios - são direcionados, não para objetos ou
máquinas, mas para seres humanos em constante estado de evolução. Podemos
evidenciar, assim, um outro aspecto que contribui para a fragilidade das
prescrições no trabalho humano.
Como afirmado anteriormente, é necessário o desenvolvimento de
pesquisas que busquem outras interfaces do trabalho educacional, isto é, que
87
analisem os discursos sobre esse trabalho, os quais compõem movimentos que
enfatizam uma imagem a ser propagada , como também é importante destacar a
necessidade de estudos que busquem a voz do professor frente aos discursos
sobre o seu trabalho.
Assim, a análise discursiva dos prescritos referentes ao trabalho
educacional, na articulação da Lingüística Aplicada com as abordagens da
Ergonomia e da Ergologia, permite o embasamento em teorias que estudam o
trabalho humano, possibilitando a reflexão sobre a heterogeneidade das relações
sociais que permeiam esse complexo campo; e também afloram traços
característicos desse trabalho que precisam ser capturados pelo pesquisador e
socializados junto àqueles que buscam contribuir para o avanço das reflexões
sobre o ensino em nosso país.
88
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COLÓQUIO DA ASSOCIAÇÃO LATINOAMERICANA DE ESTUDOS DO
DISCURSO. Recife, Universidade Federal de Pernambuco.
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ensino como trabalho – uma abordagem discursiva. São Paulo: Fapesp.
Textos da Internet:
htpp://cenp.edunet.sp.gov.br
www.educacao.sp.gov.br
91
ANEXO 1
Política Educacional da SEE de São Paulo
92
ANEXO 2
Orientações para a Elaboração do Planejamento
93
ANEXO 3
Lista de bons comportamentos do funcionário
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
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