Download PDF
ads:
1
VERANILDES SILVA
LUCINDA NOGUEIRA PERSONA: IMAGINÁRIO POÉTICO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO – UFMT
INSTITUTO DE LINGUAGENS
CUIABÁ
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
VERANILDES SILVA
LUCINDA NOGUEIRA PERSONA: IMAGINÁRIO POÉTICO
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Estudos
de Linguagem, do Instituto de Linguagens da Universidade
Federal de Mato Grosso, como requisito parcial para obtenção
do título de Mestre em Estudos de Linguagem.
Área de concentração: Estudos Literários e Culturais.
Orientador: Prof. Dr. Mário Cézar Silva Leite.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO – UFMT
INSTITUTO DE LINGUAGENS
CUIABÁ
2009
ads:
3
4
5
DEDICATÓRIA
À minha mãe, Antonina Rodrigues da Silva, e ao meu pai, José Miro Silva,
por, primeiramente, possibilitar a minha existência,
por me educar,
me mostrar, pela religiosidade, a face divina do mundo,
por me presentearem com uma família numerosa, com muitos irmãos e irmãs,
que deram origem a novas famílias.
E, principalmente, por oferecerem situação favorável à descoberta do mundo
das palavras e imagens, nas diversas narrativas a que tive acesso, desde muito
cedo.
6
AGRADECIMENTOS
À Coordenação do Programa de Pós-graduação do Mestrado em Estudos de
Linguagem, em especial, à professora Doutora Cláudia Graziano Paes de
Barros, por permanecer acreditando.
Ao meu orientador, professor Doutor Mário Cézar Silva Leite, pela força da
presença, num tempo decisivo.
Às professoras Doutoras, Célia Maria Domingues da Rocha Reis e Josebel
Akel Fares, pelo empréstimo do tempo e pelas valiosas contribuições na pesquisa.
À professora Doutora Rosemary Affi Santos Costa, pela iluminação constante
dos meus caminhos, na ciência e na vida, e pela correção deste trabalho.
À equipe gestora da Escola Estadual Nagib Saad, em especial, à Diretora,
professora Ileusa Chagas Major, pelo incentivo e apoio.
Aos colegas de trabalho da Escola Estadual Nagib Saad, em especial, à
professora Rose Maruyama, pelo apoio constante, transformado em amizade.
À dona Ivone Alves de Paula, minha amiga, por ter me acolhido durante todo
o tempo que necessitei permanecer em Cuiabá para o término deste trabalho. Sua
casa, meu abrigo.
Aos amigos, antigos e recentes, mas, sobretudo amados que, cada qual à sua
maneira, em dado momento ofereceu colo, abraço, carinho, comida, conforto,
tempo, enfim, um pouquinho de si, para que eu pudesse me reorganizar, me refazer.
À minha família, que mesmo distante, orou por mim, em especial minha mãe
Antonina Rodrigues da Silva, de quem, orgulhosamente, sou continuidade.
7
Vazio
Na última hora da tarde
e nenhum sinal de vida ao redor
o homem disse baixinho:
me acho vazio, inteiramente vazio
era uma frase de bíblia
era uma frase de oração
era das ruas tal frase.
Como dissera aos seus botões
(aos botões indiferentes de uma indiferente camisa)
não teve resposta
e a palavra se perdeu
num turbilhão que nem existia.
Um maravilhoso silêncio flutuou
sobre seus erros mais perdoáveis
estava vazia a casa
vazio estava o bairro
talvez até a cidade
e assim permaneceu o homem
como se estivesse no fim de tudo.
Quando o distante sol se apagou de vez
e a sombra mais escura
tocou seu ombro
ele já pensava o seguinte:
deste vazio eu não morro.
Lucinda Nogueira Persona (Sopa Escaldante, p. 25)
8
RESUMO
SILVA, Veranildes. Lucinda Nogueira Persona: imaginário poético.
Este estudo presentifica pesquisa que demonstra linha de continuidade poética entre
a prosa e poesia da escritora Lucinda Persona; percorre um caminho que indica o
desdobramento dos temas em imagens recorrentes. Nesse sentido sobressaem as
imagens do espaço casa e suas continuidades como o bairro, e as ações que
acontecem no seu interior; da morte e do fazer poético, que intrinsecamente ligadas,
fazem parte da poética da escritora de modo contundente. E permitiu como
consequência de imeras buscas, encontrar um elemento de ligação para o grupo
de imagens uma estrutura que possibilita a congregação do conjunto. As
características e potencialidades simbológicas as colocam no Regime Noturno da
Imagem, este conjunto invoca as imagens do repouso, pois, a noite é o momento em
que os guerreiros recolhem as armas, se preparam para o descanso, baixam a
guarda, voltando para as esposas, traduzem a saudade com gestos suaves e
repetidos, e ganham forças para recomeçar. E quando se vai simbolicamente para o
local de repouso, antecipa-se o descanso final, a morte, eufemizando seus efeitos,
pois, na construção imagética, eterniza-se, sobremaneira, o tempo, pois a poética
em questão, de Lucinda Nogueira Persona, desvela imagens, mbolos, arquétipos,
mitos, estruturas de um “espaço fantástico”, realizado por meio de palavras-imagens.
Palavras-chave: Lucinda Persona, imagem, poética.
9
ABSTRACT
SILVA, Veranildes. Lucinda Nogueira Persona: poetic images.
ABSTRACT: This study presents research that shows a line of continuity poetic
between the prose and poetry of writer Lucinda Persona, travels a path that indicates
the unfolding of the recurrent themes in images. In that sense exceed images of the
home space and their continuities as the neighborhood, and the secrets that occur
inside them, the death and the making poetic that, intrinsically linked, make part of
the poetic of the writer so convincingly. And it, allowed us, as a result of many
searches, to find a element of connection with the group of images, a structure that
enables the whole congregation. The characteristics and potential symbols, put them
in the Scheme Nocturnal of the Image, this set relies on the images of resting,
because the night is the time where the warriors gather the weapons, get preparing
for resting, lower the guard, returning to wives, they reflect the nostalgia with soft and
repeated gestures and gain strength to start over. And when going symbolically to the
place of rest, they anticipate the final rest, death, reducing its effects, once, in
building imagery, perpetuates itself, particularly, time, because the poetry in question,
of Lucinda Persona, unveil images, symbols, archetypes, myths, structures of a
fantastic space, by means of word-pictures.
Keywords: Lucinda Persona, picture, poetry.
10
SUMÁRIO
Dedicatória...........................................................................................................03
Agradecimentos..................................................................................................04
Resumo................................................................................................................06
Abstract................................................................................................................07
Introdução............................................................................................................09
1. CAPÍTULO I: O PROCESSO DE SIMBOLIZAÇÃO DO HOMEM..................12
1.1 A Cultura........................................................................................................12
1.2 A morte e o texto cultural.............................................................................14
1.3 A linguagem...................................................................................................16
1.4 O encantamento e a palavra........................................................................17
1.5 Imagens..........................................................................................................22
1.6 A simbolização..............................................................................................27
2. CAPÍTULO II: O INVENTÁRIO POÉTICO DE LUCINDA PERSONA............33
2.1 Vida e imagens..............................................................................................33
2.2 Uma escritura feita de espaços...................................................................37
2.3 O poema Bairro.............................................................................................40
2.4 Imagens da casa...........................................................................................43
2.5 As tramas do espaço íntimo........................................................................48
2.6 A memória e um segredo que o espaço não revela...................................53
2.7 “O segredo” em outras perspectivas..........................................................61
Considerações Finais.........................................................................................64
Bibliografia..........................................................................................................66
Anexos.................................................................................................................68
Conto “Silêncio”.................................................................................................68
Conto “Tricô”......................................................................................................72
Conto “O Segredo”.............................................................................................73
11
INTRODUÇÃO
O objeto de estudo deste trabalho veio em continuidade de pesquisa, desde
os tempos do término da minha graduação em Letras, no ano de 2003. Naquela
época, desenvolvi como trabalho de conclusão de curso a monografia: A significação
dos espaços na poesia de Lucinda Nogueira Persona, sob a orientação do professor
Dr. Mário Cezar Silva Leite.
Na pesquisa, verifiquei como se configuravam as imagens do espaço na
produção poética da escritora, observando a partir do olhar do eu lírico, o espaço
externo a ele como as ruas, o bairro, a esquina, bem como as imagens da
intimidade, proporcionadas pelo conforto da casa.
Na especialização em Teorias e Práticas Semióticas, no ano de 2006,
produzi monografia com o título: Tríades in continuum que originou uma análise
semiótica dos contos: Silêncio”, O Segredo” e “Tricô”, - de Lucinda Persona - nos
quais foi observado, a partir da Teoria Geral dos Signos, ou Semiótica peirceana e
dos estudos de crítica literária, aspectos constitutivos da significação dos contos.
Entre esses aspectos, a ênfase ao entendimento do conto como um gênero
que estrutura-se numa prosa de extrema concisão, portanto, e de acordo com Mário
de Andrade (1993):
exige que, nele, o artista se retrate inteiro nos caracteres internos e
externos de sua personalidade. Este é o principal segredo do conto,
que determina que o artista não se complete na série de seus contos,
mas esteja completo em cada um deles. (
Andrade, 1993, p. 91-93)
Sob esta ótica, o gênero conto oferece pistas para se entender os signos que
se materializam nele, como partes de um todo, como um continuum de
possibilidades, em vários contos do mesmo autor.
Os signos materializados de modo recorrente foram: o tempo, o espaço e o
silêncio. E eles, como partes de um signo maior, apresentam-se com sentidos
diferenciados, nos três contos, mas, relacionando-se harmonicamente.
Neste trabalho, presentificou-se a necessidade de buscar uma linha que
pudesse demonstrar continuidade poética entre a prosa e poesia da escritora, em
estudo percorrer um caminho que indicasse o desdobramento dos temas em
imagens recorrentes.
Desse modo, surgiram as imagens do espaço e da morte e do fazer poético,
que intrinsecamente ligadas, fazem parte da poética de Persona de modo
12
contundente.
O processo de reagrupamento dessas imagens exigiu, então, uma postura de
pesquisa o que foi, inevitavelmente, o de alicerçar-se em aspectos teóricos; estes
iluminaram o movimento para a simbolização, primeiramente, na verificação de
como ele acontece no homem, depois, para a simbolização das imagens inseridas
no contexto específico da literatura produzida pela autora.
O primeiro capítulo desse trabalho enfatizou, então, o processo de
culturalização do homem e de como este caminha em direção ao símbolo. Isto
ocorre, primeiramente, via linguagem que em princípio corporal aciona e
direciona o homem a caminho das imagens, que de raízes icônicas migraram
diretamente de experiências com o real, são as imagens das cavernas.
Outro aspecto do processo de culturalização humana é a ritualização da
morte. Quando o homem percebe ser finito, surge a necessidade de superar, de
algum modo, sua efemeridade, brevidade. Nasce o texto cultural em suas distintas
manifestações.
A palavra presentifica a imagem, esta teve seus meandros conceituais
verificados pelos pensadores Gaston Bachelard, Borys Cyrulnik e Gilbert Durand,
teóricos que deram sustentação ao entendimento de imagem adotado para este
trabalho; da mesma vertente teórica, a Antropológica, ainda, nesse capítulo,
apontou-se o caminho para a simbolização.
No segundo capítulo, desenhou-se um percurso imagético em que se parte de
um tema recorrente, no conjunto da obra de Lucinda Nogueira Persona, o espaço.
As imagens do espaço apontaram outras que são identificadas em um texto poético
– Santa Rosa, agosto – e em três contos: Silêncio, Tricô e O Segredo.
O conto “Silêncio” apresentou as imagens de um personagem que se
presentifica no seu espaço íntimo, a casa, mesmo não possuindo corporeidade
física, ou seja, a simbiose com o lugar em que habita, torna possível retornos
cíclicos ao seu canto aconchegante.
No texto “Tricô”, materializaram-se diversos símbolos convergentes para a
imagem da mulher, aquela que, como nas mitologias clássicas, tece seu destino; a
que tem um perfil moderno, eficiente – mãe, esposa, amante e aquela que constrói
mundos imaginários, por meio da escrita.
O conto “O Segredo” demonstrou a reconstrução imagética, via memória, de
um tempo distante em que a filha, mesmo depois da morte da mãe, não consegue
13
libertar-se da dor de um não-dito, de uma recusa. O que acaba por instaurar-lhe uma
retomada cíclica e substancial em torno da figura materna.
As imagens que sobressaíram aos textos de Lucinda Nogueira Persona são
recortadas dos contos citados anteriormente, bem como dos quatro livros de poesia
escritos por ela: Por imenso Gosto, Ser cotidiano, Sopa Escaldante e Leito de
Acaso, atendendo a uma seleção imagética.
Deste modo, toda vez que as imagens recorriam em ambas as manifestações
textuais, prosa e poesia, foram colocadas em paralelo, por serem compreendidas
como complementares, em diálogos constantes.
Isso permitiu, como consequência de inúmeras buscas, encontrar um fio para
a construção da teia uma estrutura que possibilitou a congregação do conjunto
como afirma Durand (2002), as características e potencialidades simbológicas, as
insere no conjunto denominado por ele como Regime Noturno.
Este conjunto invocou as imagens do repouso, pois, a noite é o momento em
que os guerreiros recolhem as armas, preparam-se para o descanso, baixam a
guarda, voltam para as esposas, traduzem a saudade com gestos suaves e
repetidos, e ganham forças para recomeçar.
O lugar essencial para o descanso do guerreiro é a intimidade do abrigo, um
local em que se sinta protegido, recebido, abraçado, amado, onde possa tamm
alimentar o corpo com iguarias; espaço que pode ser o de sua casa, ou algo que
funcione como extensão desta, e que de fato leve o corpo para um descanso final.
E quando se vai simbolicamente para o local de repouso, antecipa-se o
descanso final, a morte, eufemizando seus efeitos; na construção imagética,
eterniza-se, sobremaneira, o tempo, e a poética em questão, de Lucinda Nogueira
Persona, eterniza imagens.
14
CAPÍTULO I – O PROCESSO DE SIMBOLIZAÇÃO NO HOMEM
1. 1 - A CULTURA
Quem pode livrar-me de repetir
que grande mesmo é o que parece
pequeno?[...]
O vasto manancial que vem do povo
E enche os vasos
também é dado de valor
um cúmulo de requinte ao contrário
que a poesia não recusa
(Lucinda Persona)
A palavra cultura agrega um mero grande de sentidos. Aprisioná-la a uma
definição linear é deixar de levar em conta a sua complexidade, enquanto
pensamento estruturante da história de todo conhecimento e saber organizados de
que se tem notícia.
De acordo com Raymond Willians (2007), o vocábulo Cultura descende
etimologicamente da expressão colere que tinha uma gama de significados:
habitar,cultivar, proteger, honrar com veneração. Alguns desses
significados finalmente se separaram nos substantivos derivados,
embora ainda haja superposições ocasionais. Dessa maneira,
“habitar” desenvolveu-se do latim colonus até chegar a colony
[colônia]. “Honrar com veneração” desenvolveu-se do latim cultus até
chegar a cult [culto]. Cultura assumiu o sentido principal de cultivo ou
cuidado... (
Willians, 2007, p.117)
Nesta linha evolutiva, no século XV, a palavra designava cuidado, cultivo, ou
seja, uma técnica diferenciada para a manutenção de algo, mais precisamente a
produção agrícola.
No século XVII o vocábulo coulter que descende do latim para o francês
como cultura, assume uma outra acepção, relhas de arado”, levando a palavra a
outro processo evolutivo, o de referir-se não mais a uma técnica, mas, num sentido
metaforizado, a processos.
Em diversos momentos do desenvolvimento, ocorreram duas
mudanças cruciais: em primeiro lugar, certo grau de adaptação à
metáfora, que tornou direto o sentido de cuidado humano; em
segundo lugar, uma extensão dos processos específicos ao processo
geral que a palavra poderia carregar de modo abstrato. (Willians,
2007, p.118)
15
O longo processo nesse caso, na língua inglesa de mudança de usos da
palavra dá conta de demonstrar a infinidade de acepções, que até os dias atuais,
remontam ao termo cultura. Nesse sentido, de acordo com Willians (2007), é
possível distinguir três categorias amplas:
(i)
substantivo independente e abstrato que descreve um
processo de desenvolvimento intelectual, espiritual e estético a partir
do culo XVIII; (ii) o substantivo independente, quer seja usado de
modo geral ou específico, indicando um modo particular de vida, quer
seja de um povo, de um período, um grupo ou da humanidade em
geral, desde Herder e Klemm; (iii) o substantivo independente e
abstrato que descreve as obras e as práticas da atividade intelectual
e, particularmente, artística
. (Willians, 2007, p.121)
As categorias inserem um outro aspecto a ser observado nos usos mais
recentes, em que critérios fundamentar-se para a definição não do termo, mas, do
resultado do processo cultural, ou seja, as manifestações culturais.
Nas três categorias acima descritas, parte-se da definição da cultura como
“substantivo abstrato” associado em duas das três definições, como “práticas
intelectuais”, o que a coloca num lugar de absoluta elitização em que se
desconsideram fatores externos ao homem inserido num contexto mais amplo.
Para Willians (2007), a cultura entendida desse modo tem como
consequência políticas culturais que desconsideram as manifestações populares,
bem como, mantém ordem social vigente, ou seja, não gera transformações e
mudanças, o que o condiz com a dinamicidade desses processos. Do ponto de
vista antropológico, assumido por ele, fica clara a concepção que tem da cultura
como a produção de valores e significados da sociedade como um todo.
Pensada nestes termos, rompe-se a barreira elitizante da cultura, ou seja, os
estudos relativos aos processos culturais têm como ênfase: (Willians, 2007) que
formações sociais e formas culturais são interconstitutivas, são expressões
diferentes da mesma maneira historicamente específica de fazer sentido da
experiência do vivido”.
Na afirmação de Lucinda Persona (2004), o vasto manancial que vem do
povo e enche os vasos também é dado de valor”, em conformidade com o
pensamento de Willians, a escritora valoriza detalhes da vida cotidiana para suas
composições poéticas por sabê-las fontes de elaborações com requintes suficientes
para registrar o vivido, com poesia.
16
Nestes lugares, tamm é possível perceber as diferentes elaborações
simbólicas presentes na mesma sociedade, ou grupo em questão, pois,
proporcionam uma apreensão, senão de um todo, ampliada, das relações sociais.
Entendida como concepção idealista que se restringe à manifestações
artísticas de determinados grupos ou materialista que, amplamente agrega um
número mas expressivo de manifestações a cultura diz respeito ao homem e seu
modo de ser- estar-permanecer no mundo.
1. 2 - A MORTE E O TEXTO CULTURAL
Nessa direção, o olhar se volta, não mais para um conceito, mas, para o
elemento central dos processos culturais, o Homem. É nele, por ele e para ele que
se entretece o texto cultural.
Nos estudos antropológicos do imaginário, a cultura é entendida como um
ciclo de retroalimentação, em que de um lado, estão as formulações imaginárias
coletivas, e de outro, estão as pulsões individuais, esses dois pólos funcionam de
modo que se completam, ou seja, necessitam um do outro para que se instituam os
processos culturais.
As transformações ocorridas ao longo da historia da humanidade, como as
ritualizações, permitiram ao homem ascender ao universo cultural, simbólico,
semantizado, sígnico, ou seja, ele passa, então, a ocupar um outro lugar, além do
seu corpo, possui, também, essência transcendental.
Outro importante marco, na consolidação simbólica do homem, enquanto
instância psíquica cultural, foi a percepção e posterior ritualização da morte.
Quando se deu conta de que era finito, foi levado a criar outros modos de
existir para além de um mundo biológico, das imagens, da palavra oralizada, aa
invenção da escrita, como saídas de superação da morte. De acordo com Denize
Dall’ Bello:
Ferramentas de pedra, imagens, palavras, fogo, escrita, foram
artifícios técnicos e simbólicos inventados pelos homens para
escapar da morte. Todos emanaram da fragilidade, da vulnerabilidade
dos homens arcaicos diante do novo mundo que se apresentava.
Graças a esses artifícios puderam ampliar as chances de
sobrevivência sem, contudo, deixar de experimentar a angústia e o
perecimento.
(Dall Bello, 2004, p. 13)
17
As mesmas angústias permeiam as imagens de Lucinda Persona (2001, p.16)
pois, segundo ela, não sei bem o que me faz sofrer. Talvez seja a vida, talvez seja
a morte o ponto comum entre as duas: este não saber quando uma acaba e a outra
começa. Tudo tão súbito”, em sua poética, tanto nos textos em prosa, quanto nos
versos, essas imagens são latentes.
As primeiras saídas para a superação da morte as imagens nas cavernas
colocam o homem num mundo simbolizado, significado, mas completamente
desconhecido, fascinante, hostil, em que o alimento físico não é mais suficiente, e
as necessidades vitais são condições para algo mais, a necessidade de se
reconstruir e se refazer, além do corpo, mas, principalmente nas relações com o
mundo e o seu semelhante.
A ritualização da morte, além de iniciar o homem na esfera simbólica,
apresenta-se no texto de Lucinda Persona, o que, de acordo com Durand, (2002, p.
237), pode ser definido como uma supervalorização que marca nitidamente a
vontade de ver na morte uma inversão do terror naturalmente experimentado e um
símbolo de repouso primordial”, ou seja, como um círculo que coloca morte e vida
na mesma esfera, onde se minimiza, ao menos simbolicamente, os efeitos dela.
Esse novo estado simlico permite formas mais complexas de se
atingir aos outros iguais. O contato comunicativo ganha contornos mais amplos, não
apenas e somente o corpo fala, mas, gestos repetitivos se transformam em rituais.
São tecidos que tramam uma rede que tem início, mas, que os fios se movem
continuamente, crescendo sempre.
Os fios que formam a rede vão, durante o caminho, atingindo pequenas
presas, que se ligam nelas, lançando também outros fios, que o os textos, ou os
modos de comunicação, unidade mínima para a grande rede de significados se
constituir: a rede, a cultura; os fios, os textos culturais.
O universo sígnico, semantizado, produz textos culturais de diferentes
dimensões e com materiais e suportes dos mais distintos possíveis, que são marcas,
signos, de quem os produziu. Apesar de, e, além disso, tendem a uma existência
própria, ou seja, os textos culturais tornam-se independentes dos seus produtores;
quando esse fator ocorre, o texto cultural passa a outra instância, a artística.
No conjunto de textos da escritora Lucinda Persona, analisados neste
trabalho, há um caminhar crescente em busca de continuidades entre prosa e verso.
18
Neles, é possível destacar como tendência primeira, as imagens da intimidade, que
serão descritas e agrupadas nesta pesquisa e que têm uma ligação intrínseca com a
questão da morte.
1.3 - A LINGUAGEM
O surgimento da linguagem oral é um dos marcos para a gênese dos
processos simbólicos e conseqüentemente culturais, que ambos fazem parte de
uma única instância, a sígnica ou semiótica. De acordo com Cyrulnik:
o aumento gradual do lóbulo pré-frontal e das suas conexões com o
cérebro da memória e das emoções prova que não
descontinuidade, não divisões entre homens e animais, mas que
a emergência da linguagem, ao criar um mundo de representações
verbais, provoca uma mutação dos mundos mentais
. (Cyrulnik,
1997, p. 77)
O Homem, impregnado de linguagem que sai de si para além do corpo, cria
um complexo universo mental que se organiza e se estrutura em torno de outros e
se modifica mutuamente.
Com o sinal, a evolução muda de natureza. Aquém do sinal, estamos
sujeitos ao conflito incessante da dupla pressão genética e
ecológica. Além do sinal, somos nós que nos subtemos às
representações que herdamos dos pais e do seu [nosso] grupo
social. (idem, p. 11)
Ao vivenciar um mundo mental, o homem inventa regras, padrões, generaliza
situações, fundamentalmente porque elas o necessárias para um funcionamento
eficaz do mundo racional. O que não quer dizer que os mesmos padrões criados não
sejam inevitavelmente recriados, revistos, revisados.
Essa é outra condição do universo de linguagem, continuidade e quebra.
Então, vive o Homem, por causa da linguagem, num mundo que ao mesmo tempo
em que o limita, o abandona ao infortúnio do dizer, pois, precisa fazê-lo para
pertencer, e ao mesmo tempo sem ter a certeza de que será minimamente
significado, compreendido, segundo Cyrulnik:(1997, p.13), Nunca vemos o mundo
dos outros, mas representamo-lo pelos sinais de suas palavras e dos seus gestos,
19
que nos enfeitiçam ainda mais.
A linguagem, em especial a falada, agrega uma pequena parte dos sentidos
pretendidos no emaranhado de sensações. Por meio dela a interação ganhou
contornos além dos táteis, a evolução da espécie humana caminhou para uma
simbolização além do corpo e fez com que uma emissão organizada de fonemas, ou
uma palavra, fosse capaz de atrair o olhar e os sentidos do outro.
1.4 - O ENCANTAMENTO E A PALAVRA
“Sem energia criadora
sinto que a palavra
foge ao meu controle
(e a vida está na palavra)”
(Lucinda Persona)
Para Boris Cyrulnik, a evolução é responsável pela capacidade de
encantamento que todas as espécies, no caso do Homem em estágio mais evoluído,
têm.
A evolução é um conceito que indica a transformação progressiva do
mundo físico-químico, vegetal e animal. Até o momento em que
escapando às leis da matéria, se cria o mundo do símbolo, que põe
ainda um pé na imagem e outro no objeto lá-colocado-para ser
percebido e representar o não-percebido. Muito antes da convenção
do sinal, muito antes da palavra, existe uma possibilidade de
evolução dos comportamentos transmitidos por aprendizagens pré-
verbais, através dos grupos e das gerações que não responde à
fenômenos biológicos
. (Cyrulnik, 1997, p. 07)
Cada qual será atraído por cores, odores, humores, posturas de acordo com
as necessidades vitais, de sobrevivência, preservação da vida mesmo, num
processo natural de conservação genética de seu grupo.
Uma perda fez do homem sedento de encantamento, quando, no nascimento,
trocou a segurança de um universo aquático para se lançar, sem asas, num mundo
aéreo. E a busca pela compensação gera a procura por um ponto, sempre adiante,
que o direciona de volta a um lugar de conforto, segurança, eis então o
encantamento, que é o que movimenta, direciona, a existência humana. De acordo
com o pesquisador.
O encantamento do mundo é um produto da evolução: os animais
20
são enfeitiçados quando percebem a sensorialidade de um outro [...]
E os homens, única espécie que possui seis sentidos, vivem num
duplo encantamento dos sentidos e do sentido que a historicidade
cria.
(Cyrulnik, 1997, p.07)
O Homem, impregnado com um sentido a mais, aquele que conta da
historicidade, vive num duplo encantamento: um biológico, natural, e o outro de
sentidos que criam outros, e outros sentidos, o cultural.
Nasce primeiramente no corpo a necessidade do outro. Os seres se
alimentam nos primeiros meses de vida dos nutrientes de outro ser humano, ou,
minimamente, sob os cuidados dele.
Quanto mais os corpos se separarem mais os comportamentos
preservarão o laço [parágrafo] O que significa que o vazio, a perda, o
atraso na satisfação e, de um modo mais geral, qualquer carência
são necessários à impulsão da vida psíquica. Tem que se sofrer uma
carência para estruturar o entredois e inventar os sinais que irão
manter o laço. A este nível de construção psíquica, o encantamento
não se passa mais no corpo, mas no sinal que preenche o
entredois.
(Cyrulnik, 1997, p.42)
Desse modo, a presença do congênere estruturará, tamm, a vida psíquica,
o mundo simbólico e imagético humano, e oferece suporte a outro lugar no mundo
ocupado por ambos, o cultural.
[...] viver no mundo do medo obriga a agir, ao passo que viver no
mundo da angústia obriga a compreender e a falar. [parágrafo] O
homem e o animal conhecem o medo que o levam ao acto. O
homem conhece a angústia que o obriga à cultura. (
Cyrulnik, 1997,
p. 42)
Como condição essencial para a sobrevivência humana, tanto biológica como
intelectualmente, o encantamento tem sua gênese no corpo quando, desde cedo, o
pequeno ser se sente enfeitiçado, atraído e, naturalmente, levado pelo cheiro da
mãe até o seio, onde se nutrirá de leite e aconchego.
Nesse contato físico/afetivo, desenvolve sua segurança, afeto e comunhão
com o adulto que o nutre. A maioria dos movimentos corporais do beé em busca
da mãe que lhe traz alimentos tanto nutricionais como afetivos e humanizadores.
Em se tratando de alimentos nutricionais, que começam no seio materno, vão
adquirindo um sentido mais amplo do que o mero ato biológico, pois, o momento da
21
amamentação é diferenciado, a ele são acrescidos valores de outra natureza, como
conversas, troca de olhares, contato mais próximo com a pele do bebê, carícias.
O modo como acontece desde cedo o alimentar-se proporciona outros
aspectos e torna-se, então, uma oferta de prazeres mistos, entre eles o gosto de
estar com, de compartilhar a presença de um semelhante. Criando, deste modo, um
alargamento de sensações que vão além do ato em si, tornando-se ritualizado,
simbólico, encantado, especial.
A boca, nesse sentido, exerce uma função especial, pois, faz o elo, trazendo
ao bebê, num simples movimento de sucção, seu alimento. É dela que vem o
primeiro sorriso, que gera o encantamento do lado inverso, o da mãe.
A boca também produz outras formas de trazer o congênere para si. Não
menos simples que um sorriso de bebê, ou o beijo carinhoso que provoca corpo e
alma, é a partir de um aparelho fonador, que nela se articula, que se engendram as
palavras que lançam o homem em uma outra espécie de encantamento.
A partir da imitação que os sinais corporais que a princípio movem o corpo
todo do bebê em direção à mãe, - o sendo substituídos, quando estes começam a
falar, esta modalidade de linguagem funciona, então, como veículo das emoções
corporais, signo delas, visto que as substituem, as sistematizam, organizam.
A motivação da fala, que se sustenta pelas palavras, não se perde, continua
sendo a busca pelo outro, pois, ela substitui uma parte das emoções do corpo, mas
leva, consigo qualidades essenciais desta. De acordo com Alfredo Bosi:
O fenômeno verbal é uma conquista na história dos modos de
franquear o intervalo que medeia entre corpo e objeto [parágrafo] Os
estudiosos da pré-história têm confirmado a intuição genial de São
Gregório de Nissa, que, no Tratado da criação do homem (379 d. C.),
associa o gesto à palavra: desenvolvendo as mãos e os instrumentos
que estendem o seu uso, os homens puderam exercer mais
eficazmente a sua ão sobre o mundo exterior. O resultado foi a
liberação dos órgãos da boca (outrora ocupados na preensão dos
alimentos) para o serviço da palavra. Em posição ereta e com a face
distanciada do solo, o homem pôde, mediante a voz, criar uma nova
função e codificar o ausente. (
Bosi
, 2000. p. 28)
As palavras lançam o homem em uma outra espécie de encantamento, que
tem como início também o corpo, mas, que se infiltra nos pensamentos e alma
humanos, pois elas (as palavras) o lançam no mundo das imagens, servindo de
mediadoras para a criação de um universo novo, sonhado, sentido, idealizado.
22
E como afirma Lucinda Persona (2001), a vida está na palavra porque é
desse modo que a imagem poética se presentifica e Bosi (2000, p.29) confirma a
ligação palavra-imagem: O que é uma imagem-no-poema? não é,
evidentemente, um ícone do objeto que se fixou na retina; nem um fantasma
produzido na hora do devaneio: é uma palavra articulada”
E de modo tão eficaz como os rituais de alimentação elas lançam linhas que
compõem uma espécie de teia de sentidos que prendem o outro, teias de
significados tão amplos que são capazes de abranger um grande número de
“presas” de uma só vez, como acontece nos relatos míticos ou nos textos literários.
Numa outra esfera, a simbólica, as palavras são capazes de formular um
outro componente do encantamento: o logro. De acordo com Cyrulnik: (Sem Data, p.
194) O logro parece ser um dos meios mais eficazes inventados pelo mundo vivo
para provocar relacionamentos ou proteger-se deles.”
Ele surge como resposta a um instinto de proteção, psíquico, no caso
humano, e de preservação, no caso de outras espécies, no sentido de amenizar,
tranqüilizar, suavizar a alteridade das pressões do ambiente.
É um dos artifícios lançados para a manutenção da rede protetora em torno
de si mesmo, ou seja, um recurso de proteção que ao mesmo tempo que serve de
escudo, possui uma forma que de tão especial e diferente, tamm, traz o olhar do
outro para uma observação mais atenta, próxima; assim, o logro, além de proteger,
também serve para atrair.
Na esfera humana, funcionam como logros, os sonhos, os devaneios poéticos
com o objetivo de seduzir, um jantar romântico no intuito de um encontro amoroso,
bem como as palavras de modo geral, quando organizadas em torno de um sentido
de proteção.
O logro funciona como um mbolo, uma organização pré-verbal, intencional,
para seduzir, atrair, acalmar, para Cyrulnik (Sem Data, p. 197), Graças aos logros, o
real, o imaginário e o simbólico misturam-se para funcionar juntos. Cria-se, assim,
um objecto real, carregado de valores imaginários e simbólicos”.
As palavras quando substituem as emoções corporais e incorporam novas,
carregam informações que as colocam como logros, porque carregam consigo
possibilidades de criar um universo imagético onde tudo é possível.
Elas o essencialmente veículos de encantamento por agregar, entre outros,
o sentido mágico da existência, quando o perpetua numa simples combinação
23
daquilo que se sonha, com o que se realiza por meio de uma escrita que prende,
agrega, responde a anseios, colocando em evidência sonhos, vontades, frustrações,
memórias.
A palavra surge da necessidade primeiramente corporal, depois cultural do
ser se vincular a outro, embora essa vinculação ocorra tamm via outras
linguagens corporais como os gestos, o olhar, a postura, e, do mesmo modo que
elas surgem no corpo. O que a diferencia das demais é a elaboração mais lógica,
embora, ela não dê conta de uma precisão absoluta.
A palavra leva consigo, estranhamente, muito mais da emoção de quem fala
do que os sentidos pretendidos por ela; desse modo, a articulação dela em
determinados contextos é que vai delinear um pouco mais sobre a intenção de quem
diz. De acordo com Cyrulnik:
Cada palavra veicula ao mesmo tempo uma emoção que nada tem a
ver com sua definição e que não depende senão do nosso gosto do
mundo, das emoções que atribuímos aos factos e aos
acontecimentos da nossa vida: o que constitui a conotação da
palavra. (
Cyrulnik
, Sem Data, p. 257)
Ela servi de ponte para uma vinculação de sentidos muito mais que os
percebidos. Vista desse modo, ela vincula por si enquanto realização percebida
literalmente, e, tamm, nos encantamentos de quem se faz entorno, num
prolongamento das vibrações corporais. Esse mesmo pesquisador afirma:
A linguagem das palavras permite-nos aceder à fase posterior da
superestrutura. Falar é transformar em informações técnicas uma
linguagem não-verbal, outrora emocional. A linguagem verbal realiza,
portanto, um tipo lógico mais elaborado do que esta linguagem do
corpo. (Sem Data, p. 257)
Apesar disso, ao dizer o mundo, ou seja, no ato de significar, a palavra
sugere, mas, necessita, sobretudo, delimitar, definir, enquadrar, generalizar, pois é
desse modo que alcançará uma parte significativa do sentido, o que lhe imprimirá
valor simbólico essencial.
Embora a palavra tenha um caráter eminentemente simbólico carrega em si,
uma plasticidade, no sentido de gerar sentidos diversos, em contextos distintos, ou
seja, nela uma aptidão para a mudança. Este aspecto faz dela elemento
24
primordial garantidor de encantamento e serve tão bem aos intuitos literários.
E, nesse caso, as imagens presentificadas por palavras são o lugar de
excelência em que os encantamentos se fazem; portanto, percorrer as várias formas
de pensar a imagem e a simbolização, faz-se necessário.
1.5 - IMAGENS
“Conforme o grau de organização das
palavras
é possível compreender a dádiva
Os dados comuns do mundo eu uso
e em outra coisa não tenho tanta paz.
(Lucinda Persona)
No princípio, (no tempo das cavernas) as imagens tiraram o homem da
escuridão sígnica, ou seja, elas serviram, antes de qualquer outra, como a primeira
representação dos eventos, seja de caça, de guerras, ou de outros. Denize Dall
Bello afirma:
Em outras palavras, com imagens, foi possível emanciparmo-nos do
pensamento concreto [...] Então, é muito importante salientar, uma
vez mais, que essas imagens são meios de vinculação desses
homens com o universo. (Dall Bello, 2004, p. 67-72)
A apresentação de tais eventos em forma de pintura, no interior das cavernas,
foi um passo evolutivo no sentido de se chegar à escrita, pois, quando a imagem
migrou do campo sonoro e do próprio corpo (a fala), para um outro suporte, a pedra,
nasceu outro modo de transmissão das imagens, mais complexo, porém, com uma
possibilidade de fixidez, não proporcionada pela fala.
Nasceu o primeiro registro da humanidade fora do próprio corpo, as
informações ganharam um outro fator: a temporalidade. A pesquisadora acrescenta
ainda:
Seja como for o fato é que elas [as imagens] materializam um
conceito de tempo que estava, lentamente, deixando de ser arrítmico
e anárquico. É, portanto, possível pensar nesses homens como os
primeiros domesticadores do tempo. Marcar com incisões significava
trabalhar diretamente sobre o tempo vivido. Eles estavam começando
a escrever o tempo. (Dall Bello, 2004, p. 82)
Os eventos poderiam ser revividos, recontados, nasceu tamm a memória.
Dall’ Belo
(2004, p. 80),
afirma que “como criações humanas são importantes porque
25
elas representam a primeira formulação de uma linguagem simbólica. Conforme foi
sugerido, elas serviram de inspiração para as formas precoces de escrita”.
A imagem foi o primeiro modo concreto externo de signo utilizado pelo
homem. Elas saíram de um universo palpável para habitar o mundo recriado,
inventado. Foram os primeiros passos humanos na direção da escrita. Desse modo:
Aos poucos, símbolos foram entrando no mundo pré-histórico. Viu-se
que, na forma de imagens, pularam do interior dos homens para as
paredes das cavernas. E de da escuridão para a superfície dos
bastões, dos utensílios e dos adornos em geral. Foi o tempo em que
o nosso corpo passou a habitar o chão. Os pés definitivamente se
engancharam a terra. E as mãos, livres, fabricaram coisas e
pensamentos. (Dall Bello, 2004, p. 89)
As imagens que transcenderam o mundo dos sonhos assumiram, então, a
condição de proteção não mais somente no mundo psíquico, já que elas tomaram
uma forma palpável no interior das cavernas. Elas continham em si a transgressão,
passagem de uma instância calcada no real para outra, desta vez, simbólica.
De acordo com Gaston Bachelard (1993), as imagens funcionam como um
lugar privilegiado nos processos de criação de um universo onírico, sagrado, ou
seja, elas são uma instância psíquica elaborada de acordo com experiências, que
são resgatadas com o suporte da memória, que segundo Bosi (2000):
A imagem final, a imagem produzida, que se tem do poema, a sua
forma formada, foi uma conquista do discurso sobre a sua
linearidade; essa imagem é figura, mas não partilha das qualidades
formais do ícone ou do simulacro: procede de operações mediadoras
e temporais. [parágrafo] Em outros termos: a frase parece resultar de
um processo antropológico novo de significação. […] Toca-se aqui
um ponto essencial: o da “imagem” frásica como um momento de
chegada do discurso poético. (
Bosi
, 2000. p. 37)
A palavra escrita, nascida de imagens, volta a elas como no fechamento de
um circulo de sentido para descrevê-la, nomeá-la, incitá-la; palavras e imagens, são,
então, faces complexas de um signo que, unido a outros e outros, perfazem o
caminho na busca de dizer algo que seja compreensível, inteligível, e segundo
Persona conforme o grau de organização das palavras é possível compreender a
dádiva”, então, é possível dizer o imaginário, conforme vontades poéticas.
No sentido visual, plástico representativo do universo humano, na luta pela
26
sobrevivência, ou nascida de outros tipos de sensações, tamm humanas, as
imagens povoam com complexidade a organização significativa do homem, na
leitura do espaço que o cerca, bem como daquele que não é possível alcançar com
a visão, mas, com a alma, onde mora o poético.
A constituição do percurso da imagem, enquanto símbolo delineador de uma
poética, faz-se a partir do entendimento de como ocorre esse caminho que, de
acordo com os estudos antropológicos de Gilbert Durand (2002), no que diz respeito
aos estudos sobre a imagem, a tradição ocidental parte, fundamentalmente, de duas
vertentes: a da psicanálise e a da semiologia.
Nestes termos, ou a imagem faz parte de um universo essencialmente
subjetivo, ou está epistemologicamente ligada ao signo. Deste modo, o papel da
imaginação, ou criação das imagens, esteve sempre relegada a segundo plano.
Na contramão desses estudos, ele afirma que é no processo de criação das
imagens que se faz possível estudar os “arquétipos fundamentais da imaginação
humana”. Nesse sentido, assume uma perspectiva simbogica, que não abandona,
nem a psicanálise, nem a semiologia, entretanto, se atém mais de perto, ao modo
como a imaginação, e consequentemente, a imagem, se organizam.
O inventário das imagens tem uma relação mais direta com as motivações
simbólicas, do que com deduções diretas e lógicas que normalmente se aplicam à
leitura delas. O símbolo, por não ter natureza linguística, desenvolve-se em mais de
uma dimensão, que não a mera gica direta e racional, por isso, entender imagens
como uma cadeia simlica, necessariamente exige mais do que a leitura dos
resultados delas, exige entender seu processo de formação.
Os estudiosos da motivação simlica partiram de vertentes como as grandes
epifanias cosmológicas em que se classificam os mbolos, de acordo com grupos
celestes e terrestres, ou, seja agrupando-os comumente nas polaridades bem e mal
e de modo simplificado, sem considerar aquele que imagina, ou seja, o sujeito.
Para Bachelard (Apud Durand, 2002), a assimilação subjetiva ganha
contornos fortemente significativos quando supõe que a sensibilidade serve de
mediadora entre o mundo dos objetos e dos sonhos, utilizando-se de uma física
qualitativa, que num primeiro momento, descreveria os quatro elementos da
natureza mas, ele percebe que essa classificação é extremamente racional e,
centra-se mais detidamente no elemento terrestre, afirmando a ambiguidade desse
elemento, por trazer em si contrastes entre a moleza, como no caso da areia, e a
27
dureza, como no caso da rocha.
Observados nesse aspecto da ambiguidade, percebe-se, tamm, que a
classificação de Bachelard traz, em si mesma, desdobramentos pertinentes à
percepção do sujeito, o que aponta outra questão, um alargamento de possibilidades
inerente à apreensão do mundo, impossibilitando a objetividade necessária para a
compreensão das motivações, além do sujeito.
De onde se parte para centrar-se não somente no sujeito imaginante, mas, no
processo imaginativo, que o pensador o faz mais detidamente com alguns símbolos
que serão retomados no decorrer desta pesquisa.
Outros pensadores atribuíram às formulações do imaginário à organização
social em castas, como é o caso de Dumézil e Piganiol (Apud Durand, 2002); ou em
torno das questões que gravitam acerca do culto ao feminino, como elemento
gerador da vida e das diversas simbologias referentes à ela, como afirmam Przyluski
e Bergson.
Essas formulações convergem para pontos calcados numa fixidez que acaba
por não dar conta de abranger, contemplar outros modos de organização simbólica,
senão àqueles aos quais se detiveram, ou seja, são demasiadamente limitados e
levam em conta muito mais o resultado, do que o processo em si.
Para a psicanálise, de modo bastante geral e simplificado, as motivações
simbólicas vão, desde o postulado de Freud, para quem o símbolo é motivado pelo
Lustprinzip, que tem seu início num eixo vertical descendente que começa no tubo
digestivo, depois se fixa no eixo urinário e, por fim, no genital até a afirmação de
Adler de que a simbolização se faz ancorada nos recalques ou traumas trazidos da
infância, que funcionariam como uma espécie de amenizador ou compensador do
sentimento de inferioridade infantil.
A postura assumida por Durand (2002), para empreender estudos sobre o
imaginário e a imagem, parte dos pressupostos da Antropologia, pois, de acordo
com ele:
Para estudar as motivações simbólicas e tentar dar uma classificação
estrutural dos símbolos, rejeitar simultaneamente o projeto caro aos
psicólogos fenomenologistas e os recalcamentos ou intimações
sociófugas caras aos sociólogos e aos psicanalistas. Gostaríamos,
sobretudo, de nos libertar definitivamente da querela que,
periodicamente põe uns contra os outros, culturalistas e psicólogos, e
tentar apaziguar, colocando-nos num ponto de vista antropológico
para o qual “nada de humano deve ser estranho” […] Para tal
precisamos nos colocar deliberadamente no que chamaremos o
trajeto antropológico, ou seja, a incessante troca que existe ao nível
28
do imaginário entre as pulsões subjetivas assimiladoras e as
intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social.
(Durand, 2002, p. 41)
Nesse sentido, fica evidenciado que o imaginário se no âmbito da
retroalimentação, ou seja, não como entendê-lo sem se levar em consideração
tanto as questões subjetivas inerentes ao ser humano, quanto às possíveis
motivações histórico sociais do contexto em que elas ocorrem.
Além disso é importante frisar que tanto pulsões intimamente subjetivas
constroem o imaginário, como o imaginário estrutura modos subjetivos de perceber
o mundo, pois, ainda segundo Durand o símbolo é sempre o produto dos
imperativos biopsíquicos pelas intimidações do meio. O produto dessa formulação é
o trajeto antropológico descrito por ele.
1.6 - A SIMBOLIZAÇÃO
“É impossível avaliar o impacto
das coisas pequenas
(e daquilo que faço comigo mesma)”
(Lucinda Persona)
A compreensão do trajeto do símbolo reside, para Bachelard, (Apud Durand,
2002), na assimilação do percurso do animal humano em direção ao seu meio
natural (espaço) e, principalmente, qual é a sua atitude diante da matéria que
compõe esse meio,como a fluidez, o calor, o frio.
Segundo ele, pode se afirmar que qualquer gesto reclama uma matéria. Uma
imagem vai sempre e necessariamente se presentificar assentada numa base
material e que esta é sempre vestígio de um gesto ocorrido no antes, no passado.
O fato de a imaginação do gesto exigir uma matéria leva à conclusão de que
ambos são criados mutuamente no ato imaginativo, instaurando uma ligação
essencial entre eles. Fica evidenciado, então, que tanto pulsões psicológicas, no
caso do gesto, quanto materiais criam-se conjuntamente como já fora afirmado antes
por Durand em conformidade com Bachelard.
Para fazer o percurso de como acontece essa simbolização, o estudioso
assumiu a postura fundada no método pragmático e relativista que culminará no
surgimento de vasta constelação de imagens isomórficas, pois, segundo Durand:
29
Veremos que os mbolos constelam porque o desenvolvidos de
um mesmo tema arquetipal, porque são variações sobre um
arquétipo […] Todavia, através dessa disparidade semiológica,
Bergson apercebia-se de que era necessário conservar um
isomorfismo semântico ao reconhecer que se fizesse de tal forma que
as imagens “exijam todas do nosso espírito, apesar das diferenças
de aspecto, a mesma espécie de atenção e, de algum modo, o
mesmo grau de tensão...” , definindo assim verdadeiros conjuntos
simbólicos
.
(Durand, 2002, p. 43)
O ponto de partida para o entendimento da simbolização, definido por
Durand, apesar do entrave do discurso e da complexidade, é o sujeito, pois, o
percurso partirá do psicológico em direção ao cultural; não que ele (o sujeito) esteja
num grau de relevância superior, de acordo com o estudioso é só questão de
método:
é portanto no domínio psicológico que senecessário descobrir os
grandes eixos de uma classificação satisfatória, quer dizer, capaz de
integrar todas as constelações que encontramos pelo caminho
(Durand , 2002, p. 46)
Ancorado nas proposições feitas por Bachelard reconsidera que os símbolos
não devem ser julgados do ponto de vista da forma, mas da sua força” , e as
imagens literárias são objetos privilegiados nesse sentido. É no domínio da
literatura, portanto psicogico porque subjetivo, que emanam as chamadas Imagens
Motrizes, ou metáforas de base de onde derivam “imagens menores”, e são
consideradas grandes “categorias vitais” da representação.
Para solucionar o princípio da classificação das Imagens Motrizes, busca o
princípio da Reflexologia Detchereviana, pois, como afirma:
É à reflexologia detchereviana que iremos buscar o princípio da
nossa classificação e a noção de “gestos dominantes”. a
reflexologia nos parece apresentar uma possibilidade de estudar
“esse sistema funcional” que é o sistema nervoso do recém nascido
e em particular o cérebro […]. A reflexologia do recém nascido
parece-nos evidenciar a trama metodológica sobre a qual a
experiência de vida, os traumatismos fisiológicos, a adaptação
positiva ou negativa ao meio virão inscrever os seus motivos e
especificar o “polimorfismo” tanto pulsional quanto social da infância.
(Durand, 2002, p. 47)
Os gestos dominantes dos quais fala o estudioso são definidos como
30
dominante de posição, dominante de nutrição e dominante sexual, estas irão
influenciar diretamente na formão dos grandes eixos simlicos.
De acordo com estudiosos da psicologia como Piaget e Betcherev a posição
vertical ou horizontal em que a criança, em tenra idade, é submetida coordenam ou
inibem os outros reflexos, ou seja, a troca de posição facilita ou dificulta atos como
alimentar-se, dormir, entre outros.
Essa movimentação é apreendida pela criança como um privilégio, pois,
percebe-se não estática, capaz de movimento em busca de compensação, no ato da
alimentação, e afetiva nas trocas como os iguais, nesse caso, capaz de criar
ligações afetivas que são, então, interiorizadas.
No ato de alimentar-se ou na dominante da nutrição é que acontecem os
primeiros movimentos de sucção e orientação espacial com a cabeça em direção ao
seio ou similar, que são provocados ou por estímulos externos ou pela fome, que
proporcionam, num segundo momento, o saciamento e o prazer.
Na terceira dominante a sexual a psicologia tradicionalmente costuma
imprimir força mais intensa, ou seja, costuma encará-la como a “toda poderosa”,
pois é nela que, mesmo que desencadeada por fatores hormonais ligadas ao cio, e
consequentemente à copulação reprodutiva, é mais perceptível as ritualizações e
simbolizações, pois, para Durand:
podemos dizer que admitimos as três dominantes reflexas, “malhas
intermediárias entre os reflexos simples e os reflexos associados”,
como matrizes sensório motoras nas quais as representações vão
naturalmente integrar-se, sobretudo se certos esquemas (schémas)
perceptivos vêm enquadrar-se e assimilar-se aos esquemas
(schémas) motores primitivos, se as dominantes posturais, de
engolimento ou rítmicas se encontram em concordância com os
dados de certas experiências perceptivas. É a este nível que os
grandes símbolos vão se formar, por uma dupla motivação que lhes
vai dar esse aspecto imperativo de sobredeterminação tão
característico.
(Durand, 2002, p. 51)
Alicerçados nos reflexos naturais humanos, como a postura, a alimentação e
a sexualidade, irão se formar os grandes esquemas perceptivos e, sobretudo,
simbólicos, mas , sem deixar de considerar que estes reflexos vão encontrar eco em
outro esquema, o cultural.
Para a classificação dos conjuntos imagéticos, em que se parte de um acordo
entre as funções reflexas do sujeito e o meio, o gesto imaginativo ocupa a primeira
posição, em detrimento de uma matéria, pois, essa é sempre maleável, flexível
31
enquanto o gesto, mesmo que ancorado materialmente é quem reclama a matéria
do objeto, ou seja, o gesto é anterior, precede e se mantém estável, constante.
Um gesto pode ser definido como tendências gerais significativas, ou redes
significativas que comportam amplamente materiais distintos, convergentes, um fio
condutor que comporta redes menores de sentidos.
As imagens simbólicas são convergentes tanto no aspecto interpretativo
quanto no fato de que geralmente não são fruto de uma única dominante reflexa,
vão se encontrar nela uma série de implicações que tornará necessária uma
observação mais atenta para se chegar às suas motivações. E tanto nas imagens
materiais quanto nas iminentemente simbólicas o que conduz o seu processo de
formação são “os grandes gestos reflexológicos”
No ato imaginativo, os gestos reclamam uma técnica e uma matéria, bem
como um instrumento para se presentificar enquanto imagem, ou enquanto grupo de
imagem, como explica Durand:
É assim que o primeiro gesto, a dominante postural exige as
matérias luminosas, visuais e técnicas de separação, de purificação,
de que as armas, as flechas, os gládios são símbolos frequentes. O
segundo gesto, ligado à descida digestiva, implica as matérias da
profundidade; a água ou a terra cavernosa suscita os utensílios
continentes, as taças e os cofres, e faz tender para os devaneios
técnicos da bebida ou do alimento. Enfim, os gestos rítmicos em que
a sexualidade é o modelo natural acabado, projetam-se no ritmos
sazonais e no seu cortejo astral, anexando todos os substitutos
técnicos do ciclo: a roda e a roda de fiar, a vasilha onde se bate a
manteiga e o isqueiro.
(Durand, 2002, p. 54)
Isto ser verificado, nesta pesquisa, no conjunto ou família de imagens que
constituem a poética da escritora Lucinda Nogueira Persona, pois sua criação parte
do pressuposto segundo ela mesma, de que é impossível avaliar o impacto das
coisas pequenas (e daquilo que faço comigo mesma)”.
Levando em consideração a tripartição reflexogica dominante postural, de
alimentação e de ritmo o conjunto de imagens pode ser subdivida, ainda em dois
grupos: o Regime Diurno da imagem em que se comporta a dominante postural; e o
Regime Noturno imagem, que é composto pelo conjunto de imagens conduzidas
pelas dominantes de nutrição e do ritmo (sexualidade).
O pesquisador assume que parte de uma concepção simbólica da
imaginação, portanto, não a considera como signo pleno, mas como traços materiais
32
que contém o seu sentido. E denomina de Esquemas a generalização afetiva das
imagens que faz a junção entre os gestos inconscientes da sensório motricidade,
entre as dominantes reflexas e as representações e afirma:
São estes esquemas que formam o esqueleto dinâmico, o esboço
funcional da imaginação. A diferença entre os gestos reflexológicos
que descrevemos e os esquemas é que estes últimos não são
apenas engramas teóricos mas trajetos encarnados em
representações concretas precisas. […] o esquema aparece como o
“presentificador” dos gestos e das pulsões inconscientes.
(Durand ,
2002, p. 60)
Os arquétipos são a parte racional, lógica e organicista da imagem, são os
conceitos gerais que agregam outros sentidos, mas de forma generalizada destituída
de ambivalência, o arquétipo, por sua universalidade abrange, contempla o símbolo,
ou seja, seu campo de significação por ser mais geral, vai além do mero traço
simbólico.
Na junção dinâmica do esquema, do arquétipo e do símbolo é que reside o
conceito de Mito que se presentifica nas narrativas. A organização dinâmica do mito
suscita a formação da constelação de imagens, ou grupo de imagens, semelhantes
ou não, onde se verifica relativamente o surgimento de regras e normas que são
chamadas de Estruturas. Nesse caso, a estrutura é entendida como um processo
não estático, dinâmico e transformador.
O modo de organização sistematizado por Durand, (2002) em que um
conjunto de imagens pode ser dividido em Regimes Diurnos e Regimes Noturnos, dá
conta de que é possível, num universo imagético literário, perceber o percurso
simbólico desse conjunto para conferir-lhe uma unidade que definirá a poética desse
autor, ou no mínimo, uma linha poética para os textos em questão.
As imagens do Regime Diurno estão diretamente ligadas a dominante
postural, ou seja, aos símbolos antitéticos ligados à luminosidade, ascensão, aos
mbolos dinâmicos, de força.
As imagens do Regime Noturno o invocadas pelas dominantes da
alimentação e do ritmo (sexualidade), voltam-se para o ambiente minucioso,
próximo, cotidiano, interno, fechado, no sentido de protegido. Retomam o estado de
repouso, contrário ao estado permanente de vigília trazida pelas imagens do Regime
Diurno.
A definição de dois conjuntos não se impõe como limite, mas como
33
possibilidade, já que elas, (imagens) como as estruturas defendidas por Durand, são
portadoras de dinamismo, ou seja, com as devidas ressalvas contextuais, que se
tratam de textos literários, as imagens ou grupo de imagens podem fazer parte ou
“migrar” de um Regime para o outro, sem “prejuízo” para o sentido ou o fio
discursivo. E de acordo com Maria Zaira Turchi:
Após traçar uma morfologia classificadora das estruturas, Durand
(1989, p. 27) tenta esboçar uma fisiologia da função da imaginação,
portanto, uma filosofia do imaginário. […] elabora uma “fantástica
transcendental”, baseada na existência de uma realidade idêntica e
universal do imaginário, que constitui o “espaço fantástico” autêntica
forma a priori de toda a intuição de imagens. A produção imaginária é
uma defesa contra o prospecto brutal da morte, em outras palavras, a
função do imaginário provém de uma relação do homem com sua
circunstância de ser mortal e o desejo de escapar a ela. Trata-se,
portanto, de uma eufemização frente ao rosto horrendo da morte, da
temporalidade, do destino.
(Turchi, 2003, p. 26)
A partir da filosofia do imaginário elaborada por Durand (2002), de onde
“fantástica transcendental” emana, é que se elabora este estudo dos textos de
Lucinda Nogueira Persona.
34
CAPÍTULO II - INVENTÁRIO POÉTICO DE LUCINDA PERSONA
“Sou alguém que quer aliviar
o peso de ver, o peso de ser
e depois desaparecer.”
(Lucinda Persona)
2.1 - VIDA E IMAGENS
Lucinda Nogueira Persona nasceu na cidade de Arapongas, interior do
estado do Paraná, onde desde muito cedo revelou a intuição para a observação das
“minúsculas vidas”
1
. Ela observava pequenos animais em torno da casa em que
vivia, numa localidade rural das redondezas da cidade.
Ainda criança transferiu-se com a família pai, mãe e seis irmãos para
Mato Grosso, Cuiabá, onde, nos anos 70, cursou História Natural na Universidade
Federal de Mato Grosso – UFMT.
Ao terminar o curso, atuou como docente na mesma instituição durante 25
anos, e, nesse período, escreveu trabalhos na sua área de pesquisa (Histologia),
dentre eles, a sua Dissertação de Mestrado.
Na década de noventa, mais precisamente em 1995, lançou o seu primeiro
livro de poesias, sob o título Por imenso gosto, pela Editora Massao Ono. Livro esse
que recebeu menção honrosa da União Brasileira dos Escritores, foi prefaciado por
Olga Savary, traz assuntos do cotidiano, um tratado sobre observações do espaço
externo e interno às habitações, sem deixar de mencionar as intimidades desta.
Seu próximo livro: Ser cotidiano, Editora Sete Letras, lançado três anos
depois, em 1998, numa linguagem mais vibrante, viva, sanguínea trata, além das
continuidades poéticas, dos efeitos do tempo, da vida, da morte, nos seres.
No ano de 2001, a escritora apresenta o livro Sopa escaldante, tamm pela
Sete Letras, em que se volta, com maior ênfase, para as minuciosidades e o fazer,
dentre eles o poético.
Com essa obra, a autora foi premiada pela União Brasileira dos Escritores
com o prêmio Jabuti, na Academia Brasileira de Letras, no ano seguinte, 2002.
no ano de 2004, ainda em parceria com a Editora Sete Letras, o livro Leito
de Acaso, o seu título mais recente, apresenta um olhar de perplexidade sobre a
1
Em entrevista ao Jornal do Conselho Regional de Biologia de MT, (CR-Bio) 2003.
35
vida e as coisas dela, intimidades, tempo, espaço, minúsculas vidas.
Além da produção de poesia, esta autora tem publicações em prosa; seus
contos e crônicas foram publicados nos jornais: Diário de Cuiabá, A Gazeta, bem
como nos periódicos, a Revista Vôte e RDM, e em duas coletâneas: Cada canto tem
um conto, Editora Sobreletras, 2004, Na margem esquerda do Rio: contos de fim de
século, Editora Via Lettera, 2002; e textos de Literatura Infanto-juvenil: Ele era de
outro mundo,Tempo Presente, 1997, e a Cidade sem sol, Editora Razão Cultural,
2000.
Os dados biográficos de Persona são, como afirma Maria Zaira Turchi (2003,
p. 108) sobre Gilberto Mendonça Teles: “como elementos que constroem uma
espécie de teia sobre a qual se fixa sua poesia”, pois, a afinidade com questões
relacionadas à vida, em suas acepções naturais que se traduz, em sua poética, nas
imagens dos pequenos animais, da vegetação, fenômenos naturais (chuva, vento,
queimadas), são, senão explicadas, confirmadas pela sua formação acadêmica.
A história da vida de um poeta não pode ser outra coisa senão a
história de sua poesia. A poesia é mais o que ainda não foi dito do
seu próprio passado; cada poema desfaz e refaz, por ele, a idéia que
se tinha da poesia e que vinha de outros poemas. A vida do poeta é
sua própria linguagem; cada poema, longo ou curto, é apenas um
percurso; por isso toda obra poética é inacabada, e escrever se
transforma numa eterna procura
: (Turchi, 2003, p. 109)
Essa busca conduz a uma linha poética que se enreda pelo conjunto de
textos analisados neste trabalho, em outro grupo de imagens, que ao voltar-se para
o espaço, casa, intimidades, fazem alusão à outra face da vida, a morte.
O conjunto de imagens enfatizadas, aqui, são formadoras daquilo que Durand
(2002, p. 62) entende por mito, pois, segundo ele: Entenderemos por mito um
sistema dinâmico de símbolos, arquétipos, e esquemas, sistema dinâmico que, sob
o impulso de um esquema, tende a compor-se em narrativa”.
Nesse caso, as imagens agrupadas compõem, então, uma sistematização
mítica, por isso foram capturadas tanto dos textos em prosa quanto em verso da
escritora, e, nos desdobramentos que apresentam uma gama de símbolos
convergentes.
A poética da escritora já foi alvo de estudos, sobretudo na poesia. A
pesquisadora, Marta Helena Cocco (2005) ordenou as imagens em que a poeta
36
versa sobre a culinária fazendo a seguinte afirmação: A poesia de Lucinda
Persona, […] revela uma aguda reflexão da existência humana a partir dos espaços
domésticos. Nesses espaços sobressaem miudezas como frutas, flores, legumes,
verduras, cereais, insetos, moluscos...”
Neste estudo Marta Cocco revela a “Culinária poética em Lucinda Persona”,
ou seja, seleciona as imagens: couve-flor, arroz, alface, tomate, cebola e ervilha e
parte delas para compor, de fato, uma aventura reflexiva [do ser poético] acerca da
sua existência”.
Nessa aventura bem sucedida, na poesia de Lucinda Persona, temas como a
perplexidade diante da vida, o fazer poético, a vida e a morte não escapam à
observação minuciosa do estudo, bem como a asserção de que a poética da
escritora tende para o universal, pois,Os poemas de Lucinda Persona tensionam os
limites entre o particular e o universal, Cocco, na conclusão do seu artigo.
Em outra análise, tamm da poesia, o artigo Uma poesia chamada
Persona, da professora Doutora Célia M.D. Reis, esta faz um estudo sobre os
procedimentos estéticos, temática e expressão, de sua obra” revelando, no seu fazer
poético, por meio da análise estilística, as imagens da casa que se subdividem em
amor e criação literária.
A análise levanta uma questão fundamental: a poética da escritora que, para
a pesquisadora, tem como ponto fundamental o espaço casa, de onde o eu poético
sempre parte. Em um dado momento, faz a seguinte afirmação: todos os itens
convergem para um só: saem de dentro da casa do eu lírico”.
Dentro desse espaço protegido, a poética se constitui em desdobramentos,
ou seja, tematiza-se tanto o amor, como a metalinguagem que é índice da
consciência poética da escritora ao revelar em seus escritos que a poesia é um dos
modos de permanência do ser, pois, para Reis, (2005, p. 32), na leitura das imagens
de Lucinda Persona fica claro que O ser vivente é perecível. O desenho, assim
como o poema - a arte, o eternos porque asseguram o salvamento do instante
(SE:43), espólio para as regiões abissais de um baú (SE:29)”.
Os dois trabalhos levantam relevantes aspectos da obra da poeta, mas, dois
deles tornam-se centrais na composição deste trabalho: a consciência poética e a
ênfase no tratamento do espaço, mais especificamente no espaço casa, pois, abre a
possibilidade de sintetização, ou, ao menos da busca de elementos que possam
ligar os dois conjuntos imagéticos, pois, sobre o ato criativo afirma: (Persona, 2005,
37
p.67) Sou alguém que quer aliviar o peso de ver, o peso de ser e depois
desaparecer.”
De acordo com Durand (2002), as imagens que fazem parte do Regime
Noturno, que é composto pelo conjunto de imagens conduzidas pelas dominantes de
nutrição e do ritmo (sexualidade), são eufemizadoras da morte e se voltam para o
ambiente minucioso, próximo, cotidiano, interno, fechado, no sentido de protegido.
A autora em questão, neste trabalho, privilegia exatamente esse conjunto
imagético. Em suas obras: Por Imenso Gosto (1995), Ser Cotidiano (1998) , Sopa
Escaldante (2001) e Leito de Acaso (2003), bem como nos contos: Silêncio, Tricô, e
O segredo, uma recorrência de imagens que partem de miudezas, das
observações minuciosas dos detalhes do comum cotidiano, do espaço externo, mas
complementar ao íntimo: o bairro, bem como o espaço casa.
No conjunto de imagens é possível destacar pequenos animais: formigas,
caracóis, lesmas; animais um pouco maiores: lagartos, aves; árvores frutíferas e não
frutíferas; ações cotidianas: acordar, levantar, caminhar, dormir, cozinhar; atos
contemplativos: do entardecer, do transcurso do dia, da vida, da morte, do tempo;
fenômenos climáticos: ventos, temporais, chuva, calor.
O fazer literário está intimamente ligado à construção de imagens o que, no
caso da poesia, tem uma relação muito mais aproximativa com a palavra em sua
constituição simbólica; o conjunto sintático é deveras relevante, mas, a carga
semântica recai, severamente sobre ela, pois de acordo com Alfredo Bosi: (2000, p.
46) A palavra criativa busca, de fato, alcançar o coração da figura no relâmpago do
instante. Mas, como só o faz mediante o trabalho sobre o fluxo da língua que é som-
pensamento, acaba superando as formas da matéria imaginada.
A palavra que por si mesma tem uma essência sintetizadora, recebe outras
incumbências além de nomear e indicar imagens (sígnicas), mas também de servir
de mote para ligações, em muitos casos nada convencionais e objetivas, com
imagens inseridas num contexto ampliado, alargado, que são os arquétipos, ou
grupo de imagens que se convergem para um ponto em comum.
As escolhas lexicais indicam, numa esfera que ultrapassa a organização
sintática das proposições, um campo de sentidos que as inserem num conjunto
maior, as imagens do Regime Noturno, que dizem respeito a ações cotidianas.
38
2.2 - UMA ESCRITURA FEITA DE ESPAÇOS
“Às vezes
em outros lugares
não sou a mesma […]
Outras vezes
são os lugares que não querem me perder”
(Lucinda Persona)
O conjunto de imagens trazida dos textos de Persona se desenham em
grandes conjuntos esquemáticos e serão agrupados no intuito de conferir- lhes
unicidade, não apenas temática, mas sobretudo, simlica guardando em si uma
potencialidade intrínseca que cumpre, como universalmente propõe a cultura, uma
superação constante, lúcida, estética no intuito de vencer o tempo e a morte.
A partir desse ponto do trabalho, serão evidenciados os grupos de imagens,
ou esquemas imagéticos que compõem um percurso demonstrativo do que fora
teoricamente assegurado anteriormente.
Primeiramente que o homem, dotado biologicamente da capacidade de
encantamento, necessária para estruturação do seu mundo mental o que garante,
posteriormente, a simbolização, ascende a um mundo cultural quando reconhece a
existência da morte, desprendendo-se dessa realidade biológica e instintiva.
O universo cultural, no qual é lançado, se apresenta semantizado, ritualizado,
mitificado, organizado em termos de que a sobrevivência do corpo físico já não é
mais suficiente, pois ele agora vive também num mundo de sonhos, além,
diferenciado.
Esse mundo am do natural, o cultural, oferece possibilidades dele se
reinventar, recriar mundos, viajar para o íntimo de suas verdades, vontades, anseios,
sonhos, e possibilita, tamm, num movimento incessante a superação de algo que
ele nunca conseguiu vencer no mundo físico e primeiro: a morte.
E a insígnia, a arma, o cetro para essa luta imaginária, simbólica, mas
sobretudo, compartilhada, mesmo que inconscientemente, é a Arte, a Grande Dama,
no caso específico desse trabalho: a Literatura num percurso da palavra para a
imagem.
O grupo de imagens evidenciado diz respeito ao espaço e tudo que lhe é
inerente porque nele, em sua configuração enquanto símbolo, é possível deter o
tempo, pois traz em si, a capacidade de cristalização das horas, adiando o inevitável,
a morte. Nesse sentido, afirma Durand (2002, p. 408), O espaço serve para isso
39
porque a função fantástica é isso mesmo, reserva infinita de eternidade contra o
tempo
A conformação fenomenológica Bachelard (1993) e literária de Michel de
Certeau (1996) dão conta de que não como ler, pensar e viver o espaço fora do
humano. Estes pensadores delineiam a questão de modo que, pensar um, implica o
outro.
Para Bachelard (1993), as imagens do espaço que são demonstradas nos
textos literários fazem parte de uma instância onírica, poética, mas que são
instigadas, por espaços reais, embora as imagens, sejam produto de criação, ou
seja, é uma criação, mas da condição humana de se refazer imageticamente, se
reconstruir, segundo ele:
um sentido em tomar a casa como instrumento de análise para a
alma humana. Auxiliados por esse “instrumento”, não
reencontraremos em nós mesmos, sonhando em nossa simples
casa, o reconforto da caverna? E a torre da nossa alma foi arrasada
para sempre? Somos nós por todo o sempre, segundo o hemistíquio
famoso, seres da “torre abolida”? Não somente nossas lembranças
como também nossos esquecimentos estão “alojados”. Nosso
inconsciente está “alojado”. Nossa alma é uma morada. E,
lembrando-nos das “casas”, dos “aposentos”, aprendemos a morar
em nós mesmos. podemos ver que as imagens da casa
caminham em dois sentidos: estão em nós tanto quanto estamos
nelas.
(Bachelard, 1993, p. 20)
Ludmila de Lima Brandão (2002),
entende espaço como construtor de
subjetividades, não de modo determinado ou determinista, mas como um
componente que age significativamente na maneira de ler, entender, perceber e
sentir, enfim, no modo de significar e até mesmo ressignificar ou modificar o entorno.
Nesse caso, o espaço torna-se um elemento de retroalimentação e mediação
sígnica, onde tanto constrói sentidos como é preenchido por eles. Eis sua afirmação
a respeito do espaço casa:
[...] somos também “produzidos” pelo espaço. Em especial, por esse
espaço mais próximo que chamamos de espaço-doméstico (todo
mundo, de alguma forma, chega a construir um). Se por um lado a
“casa” é resultado dessa combinação de elementos tão díspares
entre si, nos quais nós “seus produtores” estamos incluídos, por sua
vez (ou nossa), somos impensáveis sem as casas que nos
acolheram, nos co-produziram e seguem, a seu modo, engendrando-
nos. [...] Flagrar subjetividades sendo produzidas nesse
acontecimento doméstico específico. Flagra-se o que é como um
raio, visível num espaço-tempo mínimo, tal é sua velocidade.
40
(Brandão, 2002, p. 16-17)
Do ponto de vista do espaço como matéria, ou seja, físico Certeau, entre
outras definições, aponta que ele se assume como tal, quando vivido, usado,
sentido por aqueles que dele se apropriam. Segundo Pierre Mayol (1996) em uma
pesquisa coordenada por Michel de Certeau, em se tratando do espaço bairro: o
bairro é uma noção dinâmica, que necessita de uma progressiva aprendizagem, que
vai progredindo mediante a repetição do engajamento do corpo.
Desse modo, podemos falar em espaço quando esse tem um valor
essencialmente cultural, humanizado, vivenciado, historiado. Nesse sentido, os
espaços de que fala o pensador apontam para especificidades e podem ser
encontrados de duas formas: aqueles que são contados por alguém, ou seja,
espaços narrados, descritos; e aqueles que são construídos por palavras-imagens, o
espaço literário.
O postulado antropológico defendido por Durand (2002, p. 402)) conta, em
alguma medida, de sistematizar as idéias apontadas anteriormente, pois, corrobora
que é necessariamente a partir do espaço que se faz possível a criação das
imagens, pois, segundo ele intuição de imagens no seio do espaço, lugar da
nossa imaginação, nunca perdendo de vista que se trata aqui, do espaço construído
por palavras, no sentido literário.
Essencialmente iconográfico, vai além do espaço descrito topograficamente já
que é homogêneo, ilimitado, sem planos sucessivos, sem obedecer a regras e leis
(da Física, no caso), nele os objetos se deslocam livremente, sem alteridade de
matéria alguma.
E de acordo com Bachelard apud Durand (2002, p. 408) este espaço
construído por imagens tem o poder de parar o tempo. Quando se evidencia o
espaço numa descrição imagética cristalizam-se várias sucessões temporais, “O
espaço mantém o tempo comprimido, nessa imagem o tempo não se move, o
anda, fica “condensado”, aprisionado, elimina-se, nesse caso, a sua passagem.
Revelar a teia significativa de uma obra literária pode conduzir a infindos
caminhos, dentre eles, como as imagens recorrentes podem ser percebidas nesse
conjunto, com efeito de alteridade e completude.
Os textos contos, crônicas, poemas, romance que comem a obra da
escritora Lucinda Nogueira Persona desvelam os mais diversos espaços.
41
O movimento de significação realizado nas obras não somente demonstra o
espaço, ou o utiliza como pano de fundo para o desenvolvimento da ação das
personagens, mas, essencialmente o toma como integrante permanente dos
sentidos imbricados em cada texto.
A começar pelo espaço vivenciado por um eu poético fora do espaço íntimo,
ou seja, da sua morada, mas, revelador de sensações que fazem daquele lugar uma
continuidade especial de sensações interiores, pois de acordo com Durand (2002, p.
249) O espaço sagrado possui esse notável poder de ser multiplicado
indefinidamente . O poema se apresenta como um convite a este mundo
particularizado e complementar.
2.3 - O POEMA BAIRRO
O espaço vivenciado no poema Santa Rosa, agosto (Persona, 1998, p. 24) é
desenhado por meio de uma descrição minuciosa dos detalhes, o olhar do leitor é
direcionado pelo filtro das sensações que ele provoca no narrador e que,
consequentemente, convida para um universo intimista, subjetivo. Como pode ser
verificado no poema que se segue:
Santa Rosa, agosto.
O sol hoje se oculta sem nenhuma ênfase
Como um tomate sombrio
Inteiramente à disposição de quem olha.
O sol hoje se oculta sem pressa
E sem desejo de retorno.
Um excesso de sombreado engoliu seu brilho.
Nesse caso, é essencial que eu disponha
De um aparelho de ver um pouco mais.
O que posso esperar de tão enevoada paisagem?
Do desenho comum dos postes e telhados?
E esse meio-fio que só se dobra à ordem de uma esquina?
O meio fio, estrutura adequada às chuvas.
É nele que se quebra a minha sombra quando vou e
42
Venho.
Meus arredores me provocam. Defronte desse bairro
Agosto não derrama lágrima.
Um ônibus pachorrento sobe a rua passo a passo.
Tem ares de caracol de lata. Cheio de tédio e destinos.
E urra, parindo negra fumaça,
Como o futuro da poluição nascendo.
Meu bairro, largo campo de folhas arrastadas
Por um pouco de vento. Santa Rosa
Meu ambiente todo manchado de agosto.
Agosto interminável e nada prospectivo
Escolhe sempre o meu olhar
Molde que mal acomoda a luz de passagem.
Um poema é, fundamentalmente,
O uso indevido de uma tarde?
As imagens que revelam o poema-bairro de Lucinda Persona demonstram um
olhar particular que não se restringe ao espaço, mas, se apropria dele colocando em
evidência tamm sensações, características climáticas e o próprio fazer poético.
O bairro é constituído verticalmente de cima para baixo, o olhar da poeta
conduz primeiramente ao sol, que de fato não está presente, mas ao bairro um ar
morno e sombrio.
Na paisagem enevoada surgem os postes, os telhados das casas, a rua a
esquina, a aura que se instaura é melancólica, característica do mês de agosto na
região central do Brasil, onde está Cuiabá e o bairro Santa Rosa. É um período sem
chuvas e de muito calor, quando, normalmente ocorrem as queimadas.
Quando o olhar se volta para baixo é o momento de desenhar o meio-fio, sem
esquecer de particularizá-lo tomá-lo como seu: O meio fio, estrutura adequada às
chuvas. É nele que se quebra a minha sombra quando vou e venho.
O bairro que é nomeado e identificado, aspecto importante, porque
particulariza, pontua, não é qualquer bairro, como a poeta diz: meu bairro, Santa
Rosa, está impregnado de Agosto, quente com pouco vento e cinza, provoca o olhar
e convida à realização dele enquanto texto, enquanto imagem.
O convite feito pelo bairro é aceito pela poeta que o realiza num poema e o
43
dispõe de estrutura física, ruas, postes, casas, ônibus, luz, ar morno, num
movimento imagético/pictórico, pois, no caso desse poema, o visual se impõe,
tornando possível, não somente a leitura do bairro, mas traz ao corpo as sensações
que ele provoca.
O poema Santa Rosa, agosto, coloca um conjunto de imagens do espaço que
constitui fisicamente o bairro em favor de uma infinidade de sentidos que o mais
ligados à sensorialidade do que ao aspecto físico.
Não é a força que se impõe, nem a dureza característica da materialidade,
mas, a percepção, o olhar, atento e agudo que é evidenciado no poema.
O convite do bairro é, de acordo com Bachelard (1991, p. 18) a alteridade
essencial ao ato da criação, é necessária e vital para o autor, pois ele precisa ser
instigado, provocado à imaginação, pois, ela [a imaginação] precisa de um animismo
dialético, vivido ao encontrar no objeto resposta às violências intencionais, dando ao
trabalhador a iniciativa da provocação. E isso é claramente demonstrado no poema,
quando a poeta afirma que: Meus arredores me provocam, e tem como
consequência o uso indevido de uma tarde para nela fazer o poema.
As imagens do espaço, desveladas pelo poema, evidenciam que elas fazem
parte, do Regime Noturno, aquele do qual fazem parte a dominante reflexa de
postura, em que estão “as técnicas do recipiente e do habitat, os valores alimentícios
e digestivos e a sociologia matriarcal (Turchi, 2003, p. 27) que se voltam para a
descrição minuciosa do entorno, das questões cotidianas, íntimas; e a dominante
sexual que contém as técnicas do ciclo do calendário agrícola, os símbolos do
retorno, os mitos e os dramas astrobiológicos”.
2.4 - IMAGENS DA CASA
A casa é um local de abrigo, proteção e segurança, como afirma Bachelard
(1993, p. 24): a casa é o nosso canto do mundo. Ela é,como se diz amiúde, nosso
primeiro universo. Neste universo íntimo, os seres estão protegidos, sobretudo, do
olhar do outro.
Misturando-se aos espaços internos da casa, vivendo ou apenas estando
neles o ser se questiona, volta ao passado, confunde-se com seus objetos pessoais,
conta e reconta sua trajetória de ser e estar no mundo.
44
E a casa, de acordo com estudo feito pela professora Célia Domingues no
artigo intitulado “Uma poesia chamada Persona”, constitui um dos eixos centrais da
poética da escritora, segundo a pesquisadora:
A casa constitui então a coluna vertebral da escritura de Lucinda,
é o seu signo. Ganha o estatuto de “lugar”, numa acepção
otimizada, filosófica, metalingüística, mote para discussão
literária, tema, técnica e perspectiva. Lugar como atualmente o
entende a Geografia, como o “concreto de uma paisagem” ( a
paisagem pode ser parcialmente percebida por causa da
restrição do campo de visão do observador e compõe uma
unidade pela síntese da percepção e imaginação), um ponto, um
endereço, ressignificado...
(Reis, 2003, p. 07)
A formulação simbológica da casa revela que ela pertence ao conjunto de
imagens que dizem respeito ao arquétipo da segurança, tranquilidade, por isso, na
classificação geral de Durand (2002), faz parte do grupo do Regime Noturno que
invoca o repouso, ou seja, lugar privilegiado.
E congrega, de acordo com Chevalier (2006, p. 196) o centro do mundo, ela
é a imagem do universo […] é também um símbolo feminino , com o sentido de
refúgio, de mãe, de proteção, de seio maternal”, um arquétipo fundamental, no que
diz respeito ao distanciamento da morte, pois, ao contrário dela, a casa reverencia:
vida, proteção, como as mães.
O conto Silêncio” se desenvolve ao amanhecer, no quarto de um casal, onde
o narrador da trama descreve o silencioso movimento de despertar do marido, Hans.
Este toma todos os cuidados possíveis para não acordar a esposa Maria.
Devagarinho, os músculos ainda meio adormecidos, afastou a
coberta e sentou-se ao da cama. Não queria, de modo algum,
desfazer a ordem e o silêncio. Aliás, começava aí sua fervorosa
operação silêncio. Réplica de tantas outras. Ele sempre tivera esse
cuidado, evitar ruídos, evitar que Maria, sua mulher, acordasse tão
cedo. Principalmente num domingo.
(Persona, 2004, p. 68)
As ações se desenvolvem no quarto, a começar pelo levantar-se de Hans,
que empreende esforço sobre-humano para não fazer ruídos e realizar ações
45
costumeiras como: ir ao banheiro se barbear e, de frente ao espelho, refletir sobre
sua atual condição, para depois, bem devagarzinho, sair pela porta da sala e
caminhar rumo ao nada.
Alguns aspectos escapam à breve descrição das ações do conto, pois, devem
ser analisados mais detalhadamente, é o caso do tempo que funciona, nessa trama,
como um mediatizador para as ações do personagem Hans.
O tempo estava ali, na linguagem numérica, e resplandecia em verde
luz na quieta paisagem do quarto de casal. [...] Mais uma vez, sentiu-
se um tanto perdido no calendário, embora o calendário nada
significasse.
(Persona, 2004, p. 68)
O tempo contribuiu significativamente para a sua condição atual, “leve,
poroso”, pois, ele não tem mais matéria, está morto, portanto, a sua nova
realidade é resultado de uma ação temporal. O distanciamento do tempo de sua
morte é o que lhe permite presentificar-se em sua antiga casa. Essa afirmação pode
ser verificada, na seguinte passagem:
Hans observou-a longamente ali no leito. Tão dócil. A velhice
ofertada. O esboço do corpo sob a coberta, parecendo uma tépida
mochila de lembranças. Para ele, era imperioso velar essa mulher.
Articular-se em torno dela. Estender a mão suavemente e atravessar
o tempo para, afinal, não ter coragem de tocá-la.
(Persona, 2004,
p. 69)]
Quando Hans ignora o calendário e as horas, fica marcado textualmente que
o tempo é algo que o perpassa. E, no momento em que atravessa o tempo, para
fazer-se presente no quarto da esposa, fica demonstrado, também imageticamente,
que se integrou ao tempo do mesmo modo que o faz com o espaço casa.
A casa, mais precisamente o quarto do casal, é um espaço reconhecido pela
personagem como seu por excelência, pois, mesmo não tendo mais matéria ele se
reconhece nos hábitos, nas velhas maneiras de realizar tarefas cotidianas,
imprimindo, mesmo sob uma nova condição, a sua presença, seu modo de ser que
continuam fazendo parte daquela instância, daquele lugar.
Nessa imagem é a identificação subjetiva entre personagem e espaço,
construída num tempo anterior quem faz com que ele Hans se sinta
absolutamente integrado, pois como afirma Ludmila de Lima Brandão: somos
46
também “produzidos pelo espaço. Em especial, por esse espaço mais próximo que
chamamos de espaço-doméstico, ou seja, espaço e sujeito se recriam imagética e
simbólica, mutuamente. O que pode ser identificado neste trecho:
Com extrema lentidão, dirigiu-se ao banheiro. Caminhou pela
penumbra num curto trajeto sem obstáculos. Na verdade, ele seguia
uma velha trilha, impressa no piso. Uma trilha de muitas idas e
vindas. Sem acender jamais nenhuma lâmpada, habituara-se ao
escuro. [...] Por mais estranho que se sentisse, achou que recriava
um mundo todo seu. Escovou os dentes. Penteou-se. A realidade
parecia aceitá-lo plenamente.
(Persona, 2004, p. 68)
Aos poucos, o personagem vai se sentindo mais forte, mais integrado quando
a realidade o “aceita”, ou seja, quando consegue retomar, numa imagem que
constrói de si mesmo e da realidade da qual não mais faz parte, sua antiga casa e,
por meio de fragmentos reordenados de memória, sua vida, pois, para Durand
(2002, p. 407) O espaço torna-se a forma a priori do poder eufêmico do
pensamento, é o lugar das figurações, uma vez que é o símbolo operatório do
distanciamento dominado”.
A casa começou a mostrar consistência. Conseguiria fazer o que
sempre fizera? Acreditou que sim. Dono era de uma forte vontade.
Como num ritual interminável, viveria sua fantástica verdade,
recolheria os jornais, prepararia o café, regaria as plantas do jardim.
Bem mais tarde, quando Maria despertasse, tomariam café da manhã
ao som do próprio mutismo. E o domingo transcorreria. E viriam
outros domingos. Todos desertos. E ele, insistente, repetiria os
gestos pontuais as obrigações da casa, andando para todos os
lados, subindo e descendo, descendo e subindo. Sentiria menos
horror da exclusão.
(Persona, 2004, p. 70)
Hans consegue plasmar-se de novo e sempre em sua casa pela identificação
do espaço. Ela (a casa) se traduz num universo de coisas vividas, sentidas,
redesenhadas por meio de uma memória corporal, que ele traz de volta:
Por mais estranho que se sentisse, achou que recriava um mundo
todo seu. Escovou os dentes. Penteou-se. A realidade parecia aceitá-
lo plenamente.
A casa da personagem Hans o aceita, o recolhe, o recebe, como a simbologia
propõe, cumprindo a predisposição materna desta. E nela ele se reencontra”, sem
intenção nenhuma de modificar a ordem estabelecida, nem ao menos de se fazer
47
perceber pela sua esposa, Maria. Tanto que ele faz questão de realizar as
atividades silenciosamente.
À morte, nesse conto, não é impressa uma carga de negatividade, assim
como dela não decorre aspectos sombrios, ao contrário, ela assume condição de
fazer com que a personagem, possa permanecer, mesmo que seja de modo cíclico
no espaço a que ele pertence, pois, como afirma Persona (1998), na epígrafe deste
tópico: Às vezes, em outros lugares não sou a mesma […] Outras vezes são os
lugares que não querem me perder”.
O lugar para onde Hans volta a casa ou seja, volta à vida, apesar de não
ficar claro se ele tem ou não consciência de que está morto, permite que ele tenha
total domínio sobre sua nova condição, de modo clico, ele sempre retorna, pois
D
ono era de uma forte vontade, seu universo íntimo faz com que ele renasça a
cada volta para casa, espaço e homem integrados, complementares.
Como num ritual interminável, viveria sua fantástica verdade,[...] E
ele, insistente, repetiria os gestos pontuais, as obrigações da casa,
andando para todos os lados, subindo e descendo, descendo e
subindo. Sentiria menos horror da exclusão.
(Persona, 2004, p. 70)
Numa imagem recorrente, o poema Amanhece a casa” (Persona, 2001, p.
73), atribui à casa ações indicadoras da continuidade entre o espaço e o ser que
nele habita, pois quando ao despertar do eu poético quem acorda primeiro é a casa,
neste trecho:
De suas próprias partes
amanhece a casa
espelhos
frestas
umbrais
deixam-se atravessar
pelos claros sinais do alvorecer
desperto […]
a casa toda e o lugar comum me esperam...
As ações são atribuídas primeiro à casa, para somente depois, ser
mencionado o acordar” do eu poético, o que configura a preferência daquela
imagem em detrimento desta, porque esta se desenha com a força arquetipal e
48
simbológica na poética de Lucinda Nogueira Persona.
Reconhecendo a casa como a “coluna vertebral” da poética da escritora, a
movimentação que acontece no seu interior recebe, sobremaneira, um valor
simbólico que deve ser considerado, ou seja, o preparo da alimentação, a rotina
cotidiana que envolve ações práticas como o despertar para o dia e para o trabalho,
são recorrentes em seus textos.
Na prosa, preferencialmente em se tratando dos contos, esse movimento
também recebe uma formulação imagética reveladora dos mundos internos e
interiores, o que acontece dentro de casa e seus desdobramentos.
49
2.5 - AS TRAMAS DO ESPAÇO ÍNTIMO
O conto Tricô” descreve o ato de uma mulher tricotar uma blusa de lã para o
marido. Entre uma trama e outra, a personagem vai pontuando reflexões: a rotina
dividida entre cuidar dos afazeres da casa, dos filhos, do marido e o próprio trabalho,
nos desdobramentos da própria vida
A coisa menos estranha que uma mulher pode fazer é tricotar, é
postar-se num canto aconchegante e trançar os fios. É postar-se num
canto e abocanhar sonhos da mesma forma que as aranhas vão
apanhando as moscas. Enquanto tecia, ela pensava na vida. Vida
estável, agora, se é que uma vida pode ser tomada nesses termos.
Ela era uma mulher infinitamente versátil.
(Persona, 2004, p. 42)
A alusão à Aranha quando o narrador pontua: abocanhar sonhos da mesma
forma que as aranhas vão apanhando as moscas” revela um conjunto de imagens
que, fundadas nas inscrições mitológicas tradicionais, confirmam uma descendência
direta dos relatos míticos da mulher que elabora o seu destino.
Na simbologia, a aranha, entre outras definições, é encontrada como Tecelã
da realidade, ela é, portanto, senhora do destino, o que explica sua função
divinatória, tão amplamente atestada ao largo do mundo. Entre os Bamus dos
Camarões, por exemplo, a Aranha Mígala recebeu do céu o privilégio de decifrar o
futuro...” (Chevalier 2006, p. 70)
A tecelagem de tramas e destinos encontra formulação nas narrativas sobre
Penélope que, de acordo com Adélia Bezerra de Menezes (1995, p. 45), É tão
astuciosa quanto seu marido Ulisses, tecendo infindavelmente o manto com o qual
afastará os pretendentes à sua mão, enquanto espera a volta do seu homem”, ela
toma para si a direção de sua vida quando, destecendo durante a noite o manto
fúnebre que precisa dar por acabado, adia um possível casamento.
Nos domínios da noite tece provisoriamente seu destino. Assim como a
teia da aranha tem conotações de fragilidade, assim é a trama de Penélope, pois,
adia os casamentos, mas não pode fazê-los para sempre. Enquanto a personagem
do conto O tricô” tem pontos firmes e decididos, e sua ação revela muito mais do
que intenção de enredar, ludibriar, mas, um desejo de entrega, o que as liga é o fato
de assumirem, com as mãos, o direcionamento da própria vida.
Há, na atitude de tricotar uma blusa de lã, uma intenção, uma vontade:
50
presentear o marido. No gesto, uma carga simbólica em que se demonstra que
não é um simples ato mecânico, mas um movimento corporal direcionado para a
satisfação do ser amado, a construção de um momento de prazer, o ato da entrega.
Reside, tamm, no “tricotar”, o desejo de que o presente fique na mesma
medida do afeto que ela tem pelo marido. A malha vai tomando corpo à medida em
que ela vai elaborando o momento da entrega, prevê o local, a paisagem, numa
imagem preenchida por sensações e vontades:
Exatamente como as mulheres, também o destino elabora suas
malhas. Radiante, ela antecipava o momento que ofertaria aquele
presente. Sim, seria no final de semana, na casa de campo, entre
rajadas e aromas silvestres e o frio sublunar. Talvez dissesse a ele:
isto é teu, te amo. Talvez não dissesse nada.
(Persona, 2004, p.
42)
Ao suéter em fase de elaboração vão sendo acrescidos tramas, numa
comparação direta da mulher com o destino, que ambos têm poder e força
capazes de elaborações silenciosas, antecipadas e sutis.
Isso encontra ressonância, tamm, na narradora das Mil e uma noites
pois, Sherazade a astuciosa, é a mulher que tece narrativas intermináveis, e que
nesse fio prende o seu homem e vence o seu poder”, (Menezes,1995, p. 45)
narrando histórias durante a noite para o marido, realiza duas missões importantes,
salvar a própria vida e evitar que outras virgens sejam sumariamente sacrificadas,
por conta de uma “possível” traição que seria sofrida pelo sultão.
Um aspecto coloca a personagem do conto O tricôna mesma perspectiva
de Sherazade: a construção da trama. Elas articulam uma a história a outra, um
encontro romântico no final de semana, num ato de sedução. Tanto a narrativa de
Sherazade quanto a viagem da personagem de O tri são carregados de
vontades, desejos, a primeira instaura no outro o desejo de saber o fim da história, a
segunda parte do próprio desejo, de intimidade, descanso, tranquilidade: Sim, seria
no final de semana, na casa de campo,” para “tramar” o encontro “Afagou o
agasalho de do mesmo modo que afagaria o corpo que iria usá-lo. (Persona,
2004, p. 42).
As figuras simbólicas presentes no conto confirmam a descendência do texto
às questões relacionadas ao feminino como elemento ardiloso, sutil que congrega
para si a elaboração, não apenas do seu, mas do destino dos que estão à sua volta.
51
No entanto, há que se ressaltar que na poética de Lucinda Nogueira Persona,
a personagem feminina recebe tratamentos muito mais humanizadores do que
indicadores da condição de mulher, num contexto mais particularizado.
A mulher é, então, num sentido mais amplo, um ser que se relaciona com o
outro, com o espaço que a cerca, com o mundo em que vive, numa constante busca
da poesia que mora, também, fora dela, no real, no concreto, como é o caso da
personagem deO tricô”.
Ao mesmo tempo em que se deixa invadir pelas sensações que o entorno lhe
provoca, os sons que ouve, a brisa que sente, ou seja, seus sentidos, a remetem
para um universo plural, onde convivem as novas construções arquitetônicas e os
fungos, contraste que garante que ali residem diferentes formas de existir.
De um sétimo andar, via as pontas angulosas e apáticas dos outros
prédios. Aqueles gidos corpos independentes, consolidados no
espaço e no tempo. Uma alucinante disjunção de edifícios a perder
de vista. […] Gostava de contemplar a cidade escurecida por fungos,
de sentir-se absolutamente anônima e sugada na gigantesca
metrópole. Ali, vivia e trabalhava. Nos finais de semana, refugiava-se
num lugarejo do interior, na área das montanhas.
(Persona, 2004,
p. 42)
Enquanto tece o casaco, todas as tramas se convertem para um ponto em
comum: contrastes que se completam. Eles se manifestam literariamente na imagem
da mulher, que na sua constituição feminina congrega para si elementos de uma
mulher romântica que vive para o marido e os filhos bem como os de uma
pessoa versátil, dinâmica, que trabalha fora, é escritora. O narrador assim a define:
Ela era uma mulher decidida, organizada e resistente. Dava graças à
sua estrutura íntima: firme como os nós que agora entrelaçava, mas
também doce e sedosa, como a lã daquele novelo de cinzas.
(Persona, 2004, p. 42)
Nessa figura feminina, as características são complementares, o choque entre
verdades e modos de vida que se conflituariam não acontece, pois, durante toda a
narrativa fica evidenciado que esses valores fazem parte de um conjunto complexo
que constrói a mulher descrita.
Harmoniza-se, tamm, o espaço descrito no conto, este agrega aspectos
significativos, pois são diferentes: ela mora no sétimo andar de um prédio, em meio
52
a construções gigantescas, e vai, aos finais de semana, refugiar-se junto à natureza
em sua casa de campo.
Apesar desses espaços o serem descritos em detalhes, o que nesse caso
não se faz necessário, eles dão sustentação ao fio que norteia a harmonização de
elementos contrastantes que fazem parte de um todo significativo.
No caso do espaço interno, pois enquanto tece a mulher está dentro de casa,
bem como o seu íntimo, seus desejos, anseios, vontades, são evidenciados, o
movimento imagético vai do externo para o interno, desvelando intimidades,
subjetividades.
E o ato da entrega do presente é, também, mbolo da entrega de sua vida
ao homem amado, ou seja, mediador de uma verdade íntima na qual ela se revela
plena de satisfação por um pertencimento, por completude, quando afirma: Era tudo
o que precisava, reforça a idéia de que estar e pertencer àquele universo tão seu e
tão dividido como o outro, era suficiente.
Neste conto, as diferentes elaborações imagéticas que se referem à mulher
tecelã de destinos, mãe, dona de casa, esposa são incorporadas à outras que
são conferidos à figura feminina versátil, forte, decidida, firme, numa ampliação
substancial que apontam para um conjunto imagético da mulher em sua
complexidade, pois, essas diferentes características não se excluem, porque se
completam.
um ponto, na trama enredada por Persona nesse conto, que merece
destaque: a personagem é escritora, o que confere ao texto um tom metalinguístico,
no sentido de considerações acerca do fazer literário, uma tônica recorrente na sua
poética, permitindo, ainda, a contextualização das imagens trazidas dele no Regime
Noturno, esquematizado por Durand, (2002).
A palavra de acordo com (Menezes,1995, p. 45) tem um poder arcaico e
mágico […] O poeta, o mago e o psicanalista: aqueles que constroem coisas com a
palavra, que alteram a realidade, modificam a essência profunda do ser. As
narrativas têm, para a mesma pesquisadora, um poder de cura, pois elas ao
desvelar o universo, revelam um universo simbólico, pleno de possibilidades.
E o conto coloca a personagem em contato direto com universos distintos,
um palpável, em que está ela construindo algo que pode ser visto, tocado a blusa
de lã do marido – e que a leva a dois mergulhos: um para suas íntimas verdades – a
vontade do encontro, do sossego da tranquilidade, na casa de campo no final de
53
semana e outro, por analogia de ações, ao universo da escrita. E num microcosmo
a personagem recria seu universo íntimo, repleto de imagens diferentes, que não se
excluem.
Os movimentos de dobrar-se sobre si mesmo, duplicar-se, refletir-se,
encadear-se são próprios desse regime do imaginário [noturno] que
procura penetrar na intimidade quente do mundo, eufemizando os
contrastes. Assim, os gestos de atar, ligar, prender, aproximar,
constitutivo do regime noturno místico, dizem respeito à experiência
da multiplicidade de significados dos seres, entre os quais a analogia
pressente e explora semelhança de relações […] A estrutura
aglutinante conduz ao eufemismo, à inversão dos valores, fazendo o
negativo constituir-se em positivo.
(Turchi, 2003, p. 59)
Com movimentos simultâneos, mas que não se sobrepõem, a personagem
descreve o método de sua escrita, e revela de onde retira o material para suas
tessituras literárias:
Tecia e pensava. Na verdade, deveria estar revisando seu livro, um
novo romance que dera por acabado. Escrever era um de seus
modos de tirar partido das perplexidades. Estava tudo ali: paisagem,
tempo, vidas, desesperos, desejos, insônias, mortes, lágrimas,
silêncios, rupturas, sucessos, perdas, sombras, lugares, fantasmas,
paixões. Sua bagagem.
(Persona, 2004, p. 42)
E acrescenta, ainda, as motivações pessoais para a construção da escrita,
partindo do geral para o particular, enumerando os elementos constantes na sua
formulação textual. A enumeração termina na sua própria experiência, Sua
bagagem”, o que deixa claro, que por mais que as coisas estejam todas ali”, como
afirma, precisam ser vividas, tamm por quem delas se apropria.
54
2.6 - A MEMÓRIA E UM SEGREDO QUE O ESPAÇO NÃO REVELA
“Certas lembranças
são como substâncias cristalinas
posso dividi-las em planos paralelos
e ganhar forças na recristalização” (Lucinda Persona)
Nos desdobramentos da movimentação que acontece no interior do espaço
íntimo – da casa – outros movimentos acontecem, também, fora dele. Mesmo que as
imagens trazidas venham de um outro tempo a infância e que tenham origem
dentro de casa, muitas vezes, podem dar origem a outras, de lugares mais distantes,
mas, tamm revelador de verdades íntimas, tenazmente, guardadas, pois como
afirma Persona (…) Certas lembranças são como substâncias cristalinas posso
dividi-las em planos paralelos e ganhar forças na recristalização”.
As imagens trazidas do passado, principalmente da infância, são
eminentemente estéticas, ou seja, esse conjunto imagético é fruto de escolhas,
reordenação de tempo, espaço e contam com uma especifidade: são retomadas
com o auxílio da memória e, por conta disso, antes de prosseguir especificamente
para a verificação das imagens do próximo conto, vale explicitar melhor esse termo.
A memória tem por fundamento original o recorte, pois os fatos que dão
origem à memória atual são reordenados, e deles são extraídos detalhes, como se
faz na montagem de um mosaico, onde as peças são selecionadas para melhor
compor o desenho e, no caso da memória, a imagem que vai se constituir como
um todo a partir de um único dado.
A memória é poder de organização de um todo a partir de um
fragmento vivido, […] Esse poder reflexógeno seria o poder geral da
vida: a vida não é um devir cego, mas sim capacidade de reação, de
regresso. A organização que faz com que uma parte se torne
“dominante” em relação a um todo é bem a negação da capacidade
de equivalência irreversível que é o tempo.
(Durand, 2002, p. 403)
Sob esta ótica, a imagem memorialística tem a capacidade de minimizar os
efeitos, senão adulterar o tempo à medida em que escolhe, seleciona um instante
dado e este passa a fazer parte, como algo estático da imagem, ou seja, fica
submerso nela.
55
A memória como imagem é essa magia vicariante pela qual um
fragmento existencial pode resumir e simbolizar a totalidade de um
tempo reencontrado. E o reflexo, esboço bem humilde da memória
procede, através do que os psicanalistas chamariam de “lei do
deslocamento simples”, no qual é um estímulo secundário que
desencadeia a reintegração e, com isso, ocupa um lugar
preponderante no campo das motivações.
(Durand, 2002, p. 403)
É com o auxílio da memória que se constroem as imagens da infância que,
mesmo que tenha sido difícil, complicada, reveste-se de uma aura diferenciada,
eminentemente estética, por serem criadas sob uma intenção de reparação,
recuperação que pode ser de uma vontade, um instante, uma vida inteira que fora
modificada por um momento.
A nostalgia da experiência infantil é consubstancial à nostalgia do ser.
Embora a infância seja objetivamente anestética, dado que não tem
necessidade de recorrer à arte para se opor a um destino mortal de
que ela não tem consciência, qualquer recordação de infância,
graças ao duplo poder de prestígio da despreocupação primordial,
por um lado, e, por outro, da memória, é de imediato obra de arte.
(Durand, 2002, p. 402)
As imagens do tempo criança têm um gesto criador que nada tem a ver com a
rememoração pura, têm mais intimidade com reorganização, revisão, reestruturação,
portanto, e por isso, estéticas. Os fatos são ordenados novamente revestidos de
uma pulsão que ultrapassa o vivido e desembocam numa nova ordem: a do
desejado, do sentido, e do inusitado, pois para Durand (2002, p. 4002) Porque a
memória, permitindo voltar ao passado, autoriza em parte a reparação dos ultrajes
do tempo
Todos esses fatores contribuem para a constituição de outra imagem, não
menos importante, a do resultado que estas produziram naquele que a reconstrói, ou
seja, nesse caso, na personagem do conto “O segredo” que traz imagens
memorialísticas da personagem, cuja mãe em sua infância longínqua, não lhe
revelara algo.
O que o lhe fora revelado faz com que ela retome aquele momento
passado, ciclicamente, a cada ano. Neste conto, configura-se o resgate
memorialístico da infância e suas implicações. As ações acontecem durante a visita
que a personagem faz religiosamente, por ocasião das festas natalinas, até o
cemirio para depositar flores no túmulo da mãe.
56
É essa saudade enraizada no mais profundo e no mais longínquo do
nosso ser que motiva todas as nossas representações e aproveita
todas as rias da temporalidade para fazer crescer em nós, com a
ajuda das imagens das pequenas experiências mortas, a própria
figura da nossa esperança essencial.
(Durand, 2002, p. 403)
No texto, narrado em primeira pessoa, surge, logo no primeiro parágrafo, uma
atmosfera de tranqüilidade, lentidão, solidão. Enquanto se prepara para o encontro
com o mulo da mãe, numa linguagem direta e minuciosamente descritiva, sem
deixar de lado ponderações, a narradora evidencia o espaço, com períodos curtos,
de orações coordenadas, direcionando os olhos do leitor a planos imagéticos, numa
sucessão de proporções cinematográficas:
Vim de carro. O cemitério se deita no chão da colina. Há meses não
venho. Tudo parece calmo nesta tarde próxima do Natal, embora não
me acalme o perfil de pedra da cidade que vejo ao longe. Dos
túmulos, perdidos no chão, se avistam as pides de granito ou
mármore. Ou apenas de cimento. Fiscalizo justamente o retrato de
mamãe e uma certa vivacidade que parece brotar de seu semblante.
O semblante de quem sempre escondeu alguma coisa. isso. Ela
continua séria com sua blusa de bolinhas. E o cabelo não cresceu.
Ela continua guardiã e eterna advogada de sua própria experiência
de vida.
(Persona, 2003)
Nesse trecho, é possível perceber, tamm, um jogo de linguagem que
demonstra intercaladamente, uma fala sobre si mesma, outra sobre a composição
espacial que vai sendo desenhada pela narradora: (eu) Vim de carro. (espaço) o
cemitério se deita no chão da colina. E, assim, segue-se todo o parágrafo.
Na escolha dos lugares que mostra e o modo como os presentifica
textualmente, a narradora antecipa o que se seguirá, pois, ao espaço,
aparentemente estático e silencioso, atribui ações esclarecedoras: o cemitério se
deita, os túmulos estão perdidos, o retrato da mãe tem uma vivacidade.
E demonstra que aquele lugar, sacralizado, proporciona-lhe algo muito além
de uma simples visita, mas, reflexões e perplexidade diante da dor e do inevivel, a
finitude da matéria.
Do sol, quase posto resta uma luz estranha, flutuante, fremente. A
brisa flui com seus efeitos benéficos. Sobre o verde gramado, velhas
folhas se espalham. Dói um pouco fazer este inventário, explorar
57
essa paisagem reveladora da dinâmica do universo, dos laços entre
atmosfera e terra, das trocas entre os seres e o solo. Uma paisagem
reveladora da matéria. E da enorme distância entre o homem e o
céu.
(Persona . 2003)
Bem como o desenho da paisagem são reveladores da inquietação do não
saber decifrar os mistérios que envolvem a vida, nesse caso, de sua mãe: Sobre o
verde gramado, velhas folhas se espalham. Ou seja, velhos mistérios ainda pairam,
intocados, intactos.
Na junção da ação humana com o espaço, revela-se a busca que motiva a
religiosidade do gesto repetido todos os anos. Ela está à procura de respostas a
questionamentos gerados num tempo anterior, a infância. É como se o lugar lhe
oferecesse, senão respostas, ao menos uma possibilidade, renovada repetidamente,
de rever, reativar questionamentos.
Ela se perdida, intrigada por não ter descoberto um segredo que ouviu a
mãe sussurrar a uma amiga, num natal. Esse segredo continua vivo, contundente,
presente na vida adulta dela, daí o retrato da mãe ter uma vivacidade, a princípio,
inexplicável.
Tudo poderia ser pensado sem nenhuma inquietação, sem nenhum
movimento, mas a vida é justamente o contrário.
(Persona . 2003)
A próxima parte da narrativa revela outro aspecto importante a ser
considerado na trama significativa do conto. A lente por meio da qual os fatos veem
à tona, pois, o enredo é construído com o auxílio da memória, já que os
acontecimentos descritos no tempo presente estão num passado longínquo,
aconteceram na infância da personagem. E ela deixa claro que vai se transportar a
um outro tempo:
Assim, retiro os sentidos para um outro tempo, para uma outra
ordem natural de coisas. Lentamente, abro as portas do passado.
Tudo está longe, mas ainda consigo ver e sentir. Eu estava no fim da
infância. Uns dez anos de idade. Acentuada sensação de pânico.
Pânico por tudo, pânico por nada. E urgência de futuro.
(Persona ,
2003)
Nesse recorte temporal e apelo para a memória, conta como foi que numa
tarde de natal ouviu sua mãe dizer que tinha um segredo que levaria consigo para o
túmulo. E faz um percurso das inúmeras vezes, que na infância e no decorrer de
suas vidas, intentara descobrir-lhe o segredo, mesmo no leito de morte ainda fez
uma tentativa e não conseguiu saber nada.
58
Bem mais tarde, depois de muitos percalços, tanto na vida dela
quanto na minha, quando ela se encontrava num delicado estado de
nenhuma saúde, quando sua alma sufocava nos profundos silêncios
que antecedem um grande transe e quando tão pouca coisa eu sabia
dela, nesse instante, ainda fiz uma última tentativa, uma leve
tentativa movida por delicada oratória.
(Persona, 2003)
O recorte memorialístico, que proporciona à personagem construir imagens
da sua infância, oferece à trama um aspecto peculiar, pois, nesse tipo de
construção imagética, onde os fatos e, consequentemente, o tempo é reorganizado,
acontece uma pausa temporal, ou seja, elimina-se a sua passagem e, como
resultado dessa eliminação, não se leva em consideração o devir fatal.
O que é caracterizado pelas ações da personagem na idade adulta, pois, ela
continua a visitar o túmulo da mãe e, de certo modo, a questionar, indagar perante o
seu túmulo sobre coisas vividas na infância, pois, para ela, interna ou
subjetivamente, a morte da mãe não tem relevância.
Quando retoma o tempo, presente fala sobre como este não-saber a
angustiou, ainda, causa-lhe dores, mas, ao mesmo tempo, ensinou-lhe a ter uma
postura de respeito à austeridade da figura materna, configurando um estado de
impotência diante de determinados fatos, pois, mesmo respeitando a austeridade,
aquela ferida é reaberta a cada natal em que visita o túmulo da mãe.
Hoje, nesta tarde próxima do natal, acerto as lembranças com certa
ansiedade […] Penso nos segredos intocáveis, penso no mundo feito
de mulheres que economizam histórias, no mundo feito de mulheres
misteriosas que se vão para sempre com seus mistérios.
(Persona,
2003)
uma tentativa de acerto de contas” com o passado e com as próprias
lembranças, de modo cíclico, pois, as mesmas imagens que são construídas para
resgatar o momento levam a filha de volta a um não-saber, não conhecer e reativam,
no presente, o desconforto do desconhecimento, o vazio.
Extasiante, a brisa mantém orientação norte-sul campo afora. Já
depositei na sepultura de mamãe a braçada de gérberas. Olho o
vazio. Olho as nuvens agora douradas. Que segredo esperei em vão
e mamãe levou consigo? Que segredo foi esse que eu quis tanto
roubar de sua sagrada e tenaz vontade de guardá-lo? […] O que ela
59
nunca me disse, até hoje me persegue.
(Persona . 2003)
A impossibilidade de adentrar no mundo íntimo da mãe causa-lhe incômodo,
e gera uma aproximação entre aquilo que foi ocultado, e que está num passado
distante, e sua vida presente, pois, aquela imagem não decifrada, continua a
conduzi-la a uma busca vã, mas, necessária para que a figura materna continue,
assim como o segredo, intocável.
Uma borboleta pequena e alaranjada, minúsculos pontos negros nas
asas, gira frenética em torno de uma flor do gramado. Pára, torna a
girar, numa adoração necessária e substancial.
(Persona . 2003)
A metáfora, demonstrada neste trecho, sintetiza o movimento simbólico que
constituiu, ao longo dos anos, a construção imagética da mãe pela filha, ou seja, o
ato da borboleta - com minúsculos pontos negros, nas asas detalhe importante,
pois, o elas que proporcionam o voo girar freneticamente em torno da flor,
aponta para o mesmo percurso feito pela filha em torno da figura materna.
Em outro texto, dessa vez o poema Retrato (PERSONA. 2004, p. 18) o
movimento imagético semelhante se materializa no poema, transcrito abaixo:
Retrato
No retrato em sépia
o rosto sério
de minha mãe quando jovem.
No topo do penteado
(quase de gala)
o movimento helicoidal
de mechas castanhas.
criam-se caracóis na paciência dos cabelos
ou na história natural de uma orelha.
A testa
lisa como louça
retém
60
aquilo que vem da muita atenção
sobre o que lhe ocorre
diante do nariz.
um marco hipnótico do seu universo
naquela hora.
Nos olhos
nenhuma revelação
do lado de dentro
para o mundo de fora.
A boca
em mordaça desvanecida
suporta os dentes sem mover
a recôndita língua
meigo desespero
que ao rígido queixo se estende.
O fato de um rosto se dedicar ao tempo
Não impede que o tempo avance em erosões
sobre o vestido de estagnadas flores
e depois ultrapasse o decote, garganta
em progressiva abrangência
Como faz a sombra enquanto o sol se põe.
A atenção do eu poético centra-se numa fotografia, ou seja, numa imagem
estática, de um tempo anterior, pois, o rosto da mãe é apresentado como sendo de
minha mãe quando jovem, e o vocábulo sépia, reforça o envelhecimento da figura.
Em outro verso, ainda na primeira estrofe do poema, o complemento o rosto
sério adianta a confirmação de que se trata de alguém que reserva mistérios,
segredos.
A arrumação dos cabelos, o penteado, num movimento helicoidal, em forma
de caracol aponta, tamm, para a simbologia do íntimo, pois, de acordo com
Bachelard a figura da concha remete ao mesmo aconchego e proteção
proporcionados pela casa.
61
Na descrição detalhada do rosto da mãe, que se segue no poema, uma
ênfase na testa, pois ela revela um pouco da personalidade materna: atenta,
perspicaz, conhecedora e fiel guardiã de tudo que está ao seu redor.
E, nos olhos, a constatação de que essa mãe-mulher leva consigo segredos
que o são aparentes, ou transparentes, pois, neles nenhuma revelação/do lado de
dentro/para o lado de fora, imagem confirmada pelos versos seguintes do poema, na
descrição da boca: A boca/em mordaça desvanecida/suporta os dentes sem
mover/a recôndita língua.
A imagem construída, na última estrofe do poema, faz alusão ao tempo e sua
passagem, nos versos o fato de um rosto se dedicar ao tempo/não impede que o
tempo avance em erosões, diz respeito à certeza do eu poético de que não há nada
capaz de deter o tempo, e que ele o tempo traz, como consequência, numa
comparação metafórica, o devir fatal que atinge a todos, inclusive a mãe poética.
Há, então, nesse poema um “cacho de imagens”, todas ligadas à mãe, na
condição de ausente: fotografia, austeridade, silêncio, não-dito, segredo, que
dialogam diretamente com as imagens produzidas no conto “O segredo”, o que
reforça a idéia da elasticidade poética, pois, acontece em gêneros diferenciados.
62
2.7 - “O SEGREDO” EM OUTRAS PERSPECTIVAS
Esse conto proporciona, tamm, um verdadeiro passeio pelas diversas
vertentes evidenciadas até agora, pois, abriu possibilidades a olhares complexos.
Um segredo o revelado é simplesmente uma audácia, uma pedra, uma
força que se materializa na tentativa, não de descobrir o segredo inculcado nas
malhas do texto, mas, entender o motivo pelo qual um “não-dito” bate tão fortemente
nas nossas verdades, vontades, anseios.
Não era mais o segredo que vinha à tona como objeto de investigação, mas,
a recusa, o o-dizer, a não palavra se impondo, mostrando-se, crescendo como
imagem. E fez-se o objeto de pesquisa, desvelar, desvendar, reconstruir o percurso
de sentido, o texto seria dissecado, como numa operação anatômica, transformou-
se em corpo. O inventário das imagens verificáveis no intuito de perceber o não-
dizer, a recusa, fez-se urgente.
A primeira delas, a figura da morte, pois quando a narradora se coloca e
conseqüentemente o leitor dentro de um cemitério, a presença dela é imediatamente
invocada.
Ela, a morte, faz-se presente, mas, não possui um sentido de alteridade,
distanciamento, a imagem dela nada tem de sombrio, redutor ou algo que impede ou
impossibilita o acesso da filha à mãe, a ela o é dado esse tratamento, tanto que
todos os anos a filha retorna ao local, o cemitério, como que para retomar um
assunto inacabado. Como quem, de fato, não reconhece a morte, não a identifica
como tal.
A morte é reconhecida no âmbito antropológico como condição que levou o
homem, a partir do tempo em que a reconheceu e a identificou, como algo que põe
fim à existência do corpo físico, a buscar alternativas de superação da mesma,
inserindo-se assim, no universo da imagem e posteriormente do símbolo, segundo
Cyrulnik (1997, p. 101) viver no mundo do medo obriga a agir [...] o homem e o
animal conhecem o medo que leva ao acto. E o homem conhece a angústia que o
leva à cultura”.
A negação da morte instaura, então, uma impossibilidade de desprendimento
dos fatos ocorridos na infância, a mãe está presente, como é possível ver nessa
passagem: Fiscalizo justamente o retrato de mamãe e uma certa vivacidade que
parece brotar de seu semblante” (Persona, 2003) , a palavra-imagem, deixa clara
63
que a presença da mãe, invocada pela memória ainda a coloca no universo íntimo
da filha com uma força vital, pois, aquele tempo ficou cristalizado, via memória, mas,
remexer no desconhecido gera tristeza Persona (2004, p. 67)
De acordo com o que vem sendo desenvolvido nos pressupostos de Borys
Cyrulnik, uma perda, uma ausência fez do homem ávido, sedento, encantamento,
uma o-satisfação de vontade imediata instaurou na alma humana a necessidade
da busca por um ponto, sempre adiante, uma compensação, que um sentido,
além do biológico ao homem, um algo mais.
E, para esse mesmo pensador, a palavra tem o poder de dar ao homem um
duplo encantamento, como afirma nessa passagem:
O homem, devido à aptidão para a palavra, conhece a hipnose
duplamente. Uma primeira vez, graças às estruturas sensoriais
percebidas, tal como um recém-nascido perante à mãe ou um
homem em frente ao fogo; e uma segunda vez, pela função semiótica
das percepções.
(Cyrulnik, 1997, p. 100)
A seguinte passagem do conto reforça a afirmação do pensador:
Foi num dia de Natal, numa inesquecível tarde de Natal, depois do
almoço, que a frase de mamãe quase cochichada para alguém, caiu
nos meus atentos ouvidos: “Tenho um segredo que vou morrer com
ele”. Segredo? Foi um choque. Meu Deus, minha mãe tinha um
segredo. E a palavra ficou existindo soberana. Intolerável. Segredo?
Do resto, o mundo ficou vazio. O que seria? Com certeza algo muito
sério, tal o tom de sua voz denunciara. Ela parecia ferida de alguma
verdade. E feriu-me também. A partir daí, um desejo me movia.
Conhecer aquele segredo.
(Persona, 2003)
“E a palavra ficou existindo soberana” , a força com que a palavra se impôs
daquele instante em diante, motivou a filha das mais diversas maneiras, desde as
tentativas, todas mal-sucedidas de desvelar tal segredo, até a admissão e quase-
confissão de culpa diante da impossibilidade de se livrar da vontade de descobri-lo,
desvendá-lo: “O que ela nunca me disse, até hoje me persegue”. (Persona, 2003).
Fez-se, portanto, o encantamento, quando ouviu a palavra “segredo”, que não
tendo sido revelado, caracterizou-se como uma ausência, uma não-satisfação,
desencadeando, desse modo uma busca frenética, uma procura por resolver, por
desenrolar os fios da trama, e a palavra-imagem o foi preenchida, ficou vazia”,
incompleta, incerta. Gerando, no íntimo, outro sentido, o da busca, compensação.
64
O encantamento prende, envolve, enfeitiça, como enfatiza Cyrulnik: (1997, p.
102) O encantamento, característico do ser vivo, consiste em lançar um sortilégio,
instilar um filtro, enfeitiçar por um canto ou por um relato para se apoderar do mundo
mental do outro”. E é exatamente o que acontece, o encantamento conduz a vida da
criança – filha – até a idade adulta.
65
CONSIDERAÇÕES FINAIS
e assim é a vida
entre o céu e a terra”.
(Lucinda Persona)
A insistência em tomar a vida, como ponto de partida para estudar a poética
de Lucinda Nogueira Persona, revela o quanto essa questão é veemente nos seus
textos, o tema é fonte das mais diversas contemplações poéticas da escritora e, no
caso deste trabalho, centra-se na existência humana.
Os textos recortados para este estudo levantaram questões que conduziram
à busca do entendimento de como aconteceu a escalada do homem até a imagem,
e, principalmente, a de si mesmo, porque não é de outro modo que se insere no
mundo como o conhecemos hoje, o cultural.
Nesse percurso, verificou-se que o primeiro degrau para a escalada humana
acontece na sua estrutura física biológica, ou seja, o aumento gradual do cérebro
ofereceu condições para que ele pudesse emitir sons que, um pouco adiante,
tornaram-se linguagem falada.
A consciência da finitude, mesmo tendo clareza de que ela é consequência
natural do processo clico da vida, eleva o homem a um outro degrau, e nasce o
desejo incessante de aprisionar o tempo, para que a morte não ocorra. E a vontade
da imortalidade ultrapassa os limites do corpo quando o homem se retrata em
pinturas, recortes de sua existência, e acredita que essa imagem guarda um pouco
da sua essência.
Essa condição não foi alcançada de modo isolado, ao contrário, contou com
um alter, o outro como um elemento que existe além do homem causa fascínio,
encantamento, e foi fundamental na constituição de um mundo povoado de imagens,
pois o universo sígnico precisa primeiro congregar para, num segundo momento,
particularizar-se.
Nas interações acontecem acordos, dentre eles, o que tornou possível a
invenção da escrita, passo fundante de uma outra ordem aqui tomada sentido de
estruturação a organização das idéias a partir de um elemento fixo, compartilhado,
geral, a palavra.
A palavra, entre muitas outras vertentes, conduz à literatura que, por sua vez,
presentifica imagens que, ordenadas, revelam aspectos que dizem do caminhar do
homem no seu universo, agora simbolizado, mitificado, encantado. Na literatura há
66
uma transposição de suportes, e ela também guarda o desejo de continuidade,
presente no homem, desde as imagens nas cavernas,
Nos textos de Lucinda Nogueira Persona, que serviram de suporte para
essas discussões, as imagens fazem parte de um grupo esquemático que as levam
diretamente ao conjunto de imagens que tem por finalidade, primeira, estruturar uma
simbologia de eufemização da morte. A recorrência temática é, então, perseguida
pela autora de modo consciente e direcionado. E formulam um “espaço fantástico
i
”,
onde todos os elementos convergem para o mesmo ponto.
A simbologia da casa, nesse espaço fantástico é entendida como um retorno
à terra que agrega, imagem da mãe que concebe, oferece a vida, e a imagem do
sepulcro-berço (Durand, 2002, p. 237), e faz a inversão do medo da morte,
convertendo a terra em repouso final, primordial. Daí a insistência da autora em
localizar o eu poético e os seus personagens no espaço íntimo.
O recorte memorialístico oferece um outro ponto dentro desse espaço
fantástico, pois, a memória funciona, nesse esquema, como um amenizador da
transposição temporal, ou seja, ao retomar as emões vividas, num tempo anterior,
abre-se a possibilidade vivenciar outra vez e de modos diferentes, a dor sofrida. E,
ao menos por instantes, o ser retoma o curso de sua história.
A consciência do fazer poético em Lucinda Nogueira Persona fica marcada,
além das epígrafes relacionadas às discussões, em duas imagens evidenciadas nos
textos analisados, na personagem do conto Tricô”, que demonstra textualmente de
que elementos tira proveito para sua criação, das perplexidades; e na descrição feita
pelo personagem Hans do conto Silêncioquando afirma que criara uma realidade
fantástica.
Desse modo é a vida entre o u e a terra”, povoada de medos,
contemplações, superações. E o ser que nela transita encontra muitos lugares para
abrigar-se, sobretudo para a busca da poesia que em todas as pequenas coisas,
a poética de Lucinda Nogueira Persona, um desses espaços.
i
Termo utilizado por Durand (2002) para definir um grupo de símbolos que tem como objetivo eufemizar a
morte. p. 26 deste trabalho.
67
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1974.
__________________. O banquete: Mario de Andrade. São Paulo: Duas Cidades,
1989.
__________________. “A palavra em falso” In: Vida literária. p.90-91. São Paulo:
EDUSP/Hucitec, 1993.
__________________. Dona Flor”. In: Vida literária. p. São Paulo: EDUSP/Hucitec,
1993.
BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a
imaginação das forças. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
_____________________A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
BRANDÃO, Ludmila de Lima. A casa subjetiva: matérias, afectos e espaços
domésticos. São Paulo: Perspectiva. Cuiabá: Secretaria de Estado de Cultura de
Mato Grosso, 2002.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. o Paulo: Companhia das Letras, 2000.
___________. História Concisa da Literatura Brasileira.
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Cardoso. São Paulo:
Cia. das Letras, 1990.
CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano 2:
morar, cozinhar. Petrópolis: Perspectiva, 1996.
CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos,
formas, figuras, cores, números)
/
Jean Chevalier, Alain Gheerbrant, com a
colaboração de André Barbault... [et al.]; coordenação Carlos Sussekind; Tradução
Vera da Costa e Silva... [et al.] - 20 ed. - Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.
CYRULNIK, Boris. Do sexto sentido: o homem e o encantamento do mundo. Instituto
Piaget: Lisboa, 1997
________________ Memórias de macaco palavras de homem. Instituto Piaget:
Lisboa, S/data.
COCCO, Marta Helena. Culinária poética em Lucinda Persona: um banquete de
imagens. In LEITE, Mário Cezar Silva. (organizador). Mapas da Mina: estudos de
literatura em Mato Grosso. Cuiabá: Cathedral Publicações, 2005.
DALL BELLO, Denize. A pedra e a escrita: escavações na mídia secundária. Tese
68
de doutorado em Comunicação e Semiótica. Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo: São Paulo, 2004.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à
arquetipologia geral; Tradução: Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
GOLDSTAIN, Norma. Análise do poema. São Paulo: Ática, 2000.
LEITE, Mário Cezar Silva. (organizador). Mapas da Mina: estudos de literatura em
Mato Grosso. Cuiabá: Cathedral Publicações, 2005.
MENEZES, Adélia Bezerra de. Do poder da palavra: ensaios de literatura e
psicanálise. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
PERSONA, Lucinda Nogueira. Por imenso gosto. São Paulo: Massao Ono, 1995.
_________ Ser Cotidiano. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1998.
_________Sopa escaldante. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2001.
_________Leito de acaso. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2004.
_________“Silêncio” In: Cada canto tem um conto. Rio de Janeiro: Sobreletras
(org.), 2004.
_________“O segredo”. In: Revista RDM 111, ano VI, 17 de Julho, p. 42. Cuiabá,
2004.
REIS,Célia Maria Domingues da Rocha. Uma poesia chamada Persona. Revista Ecos
Volume II, p. 20-36.Cáceres, 2003.
SÜSSEKIND, Flora. Papéis Colados. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.
TURCHI, Maria Zaíra. Literatura e Antropologia do Imaginário. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2003.
WILLIANS, Raymond. Palavras chave: um vocabulário de cultura e sociedade.
Tradução Sandra Guardini Vasconcelos – São Paulo: Boitempo, 2007.
69
ANEXOS:
OS CONTOS
I. Silêncio – Lucinda Nogueira Persona, 2004.
Não se sente senão o que se passa dentro de casa
Fernando Pessoa
Inconformado com a nova realidade Hans acordou muito cedo. O painel do relógio
digital de cabeceira marcava exatamente quatro e meia. O tempo estava ali, na linguagem
numérica, e resplandecia em verde luz na quieta paisagem do quarto de casal. Os olhos de
Hans, viscosos, tentaram se acostumar às sendas da escuridão. Mais uma vez, sentiu-se
um tanto perdido no calendário, embora o calendário nada significasse.
Desinteressado da madrugada sem lua, reuniu forças para a jornada escolhida.
Nunca se ligara muito na rotina cósmica, nesse tipo de ressurreição da luz, a cada novo dia.
Assim, o passo seguinte, não sendo o mais difícil, foi examinar o que era visível. Convencer-
se de se reencontraria, de que poderia ir e vir a realizar seus desejos.
Devagarinho, os músculos ainda meio adormecidos, afastou a coberta e sentou-se
ao da cama. Não queria, de modo algum, desfazer a ordem e o silêncio. Aliás, começava
sua fervorosa operação silêncio. Réplica de tantas outras. Ele sempre tivera esse
cuidado, evitar ruídos, evitar que Maria, sua mulher, acordasse tão cedo. Principalmente
num domingo.
Hans observou-a longamente ali no leito. Tão dócil. A velhice ofertada. O esboço do
corpo sob a coberta, parecendo uma tépida mochila de lembranças. O travesseiro
esmagado por uma veemência desconhecida. Para ele, era imperioso velar essa mulher.
Articular-se em torno dela. Estender a mão, suavemente, e atravessar o tempo para, afinal,
não ter coragem de tocá-la. Ela dormia e ele, dentro de um ofício repetido, cuidava do
silêncio. Tomava as mais diversas precauções para ser leve, poroso, ou melhor, para não
ser corpo.
Tateando, satisfeito porque os movimentos não lhe estalavam as articulações, Hans
encontrou os chinelos. Ergueu-se imaginando que talvez fosse um ausente cuja
reestruturação se tornara possível. Em algum lugar, um cachorro latia. Mas era tão longe,
tão longe, que não se viu ameaçado em sua missão.
Com extrema lentidão, dirigiu-se ao banheiro. Caminhou pela penumbra num curto
trajeto sem obstáculos. Na verdade, ele seguia uma velha trilha, impressa no piso. Uma
trilha de muitas idas e vindas. Sem acender jamais nenhuma lâmpada. Habituara-se ao
escuro.
70
Quando chegou ao pequeno aposento de banho, mal enxergou sua sombra no
espelho. Quantas e quantas vezes vivera essa cena, a sensação de ser aprisionado, a
sensação de ser orgânico e inorgânico ao mesmo tempo. O espelho proporcionava-lhe
agora um retorno muito débil de velhos gestos mecânicos. Esfregou os olhos. Não queria
fazer interpretações mais precisas de sua figura. O clima estava ameno. Era maio. Abafou
uma tosse e voltou para o vaso sanitário branco, brilhando na escuridão. Aproximou-se,
urinou e suspirou num alívio sem limites. Demorou um pouco com seus órgãos pendentes
na mão em concha. Acariciou a diferente matéria. Sentiu-se uma espécie de desorientação.
Entendeu, nesse instante, o que tinha por fora e por dentro. Embora devesse, não acionou a
descarga. Era ruidosa demais. E ele estava a serviço do silêncio. Indeciso, soltou a água da
pia num finíssimo fio. Desconfiou da quietude da água. Será que sonhava? O sabonete,
verde e de alfazema, encheu-o de terno conforto. Se algum dia tivesse lido A montanha
mágica, saberia que um outro Hans, o Hans Castorp, em certa manhã, em outra
circunstância, usara um sabonete assim.
Através da pequena janela de vidro, pousou os olhos nas nuvens rosadas do leste.
Quase se deixou invadir pela harmonia do infinito. As folhas de um coqueiro estavam
imóveis. Sobre o conjunto urbano ao qual pertencia, o sol iria desferir os primeiros raios. Um
dia de grandes dimensões apontava. Um dia igual a muitos que se passaram e,
provavelmente, igual a outros que ainda viriam. Nesse momento, Hans cobriu de espuma o
pálido rosto. Demorou no afeto de espalhar. Depois enxaguou. Por mais estranho que se
sentisse, achou que recriava um mundo todo seu. Escovou os dentes. Penteou-se. A
realidade parecia aceitá-lo plenamente.
A casa começou a mostrar consistência. Conseguiria fazer o que sempre fizera?
Acreditou que sim. Dono era de uma forte vontade. Como num ritual interminável, viveria
sua fantástica verdade, recolheria os jornais, prepararia o café, regaria as plantas do jardim.
Bem mais tarde, quando Maria despertasse, tomariam café da manhã ao som do próprio
mutismo. E o domingo transcorreria. E viriam outros domingos. Todos desertos. E ele,
insistente, repetiria os gestos pontuais, as obrigações da casa, andando para todos os
lados, subindo e descendo, descendo e subindo. Sentiria menos horror da exclusão.
Hans suspirou. Nada se ouvia. Suas estratégias de manobras surtiam efeito. Mas
era hora de sair da sala. E foi lentamente, ante pé, que fez o caminho de volta. Passou
pela cama, onde a mulher dormia profundamente. Avançou até a porta que se comunicava
com uma sala que se comunicava com outras salas. Deu os dois giros costumeiros na
chave, abriu e voltou a fechar com extrema cautela.
Antes de sair para a extensão infinita da casa, antes de ser arrebatado pelo nada,
Hans havia cuidado amorosamente para que cansada e amada Maria, sua viúva, não
acordasse tão cedo.
71
II.
Tricô – Lucinda Nogueira Persona, 2004
Efetivamente, seus dedos movimentavam-se com tal rapidez que se podia
esperar um aumento substancial da trama. Numerosas mulheres, em certos momentos,
revertem às teias. Era o que acontecia com ela. A coisa menos estranha que uma mulher
pode fazer é tricotar, é postar-se num canto aconchegante e trançar os fios. É postar-se num
canto e abocanhar sonhos da mesma forma que as aranhas vão apanhando as moscas.
Enquanto tecia, ela pensava na vida. Vida estável, agora, se é que uma vida pode ser
tomada nesses termos. Ela era uma mulher infinitamente versátil. Em horas mais amenas
gostava daquela distração, principalmente quando chegava o inverno indócil. Naquele
momento, tricotava um suéter e loucas idéias. Sentia-se aguilhoada por uma felicidade
indefinível. Enquanto aguardava os filhos que estavam na escola, enquanto imaginava a
hora de lhes dar alimento, ela tricotava. Era sempre assim. verificara a correspondência,
providenciara pequenos detalhes e só iria para o consultório no expediente da tarde.
Com rápidos movimentos estereotipados, ela alargava a malha, desprendida de tudo
que tivesse peso. De pesado admitia apenas aquele céu preto na manhã de julho, um dia
transmutado a noite. Era de dia e era de noite. Parou por um momento no meio do trançado.
Queria olhar as sombras. Aquilo mexia com ela, para o bem. Deixara entreaberto o vidro da
janela e o vento gelado não encontrava resistência, expandindo-se na sala. Uma garoa
começou a cair. Ela vibrou num clima que a muitos soaria hostil. De um sétimo andar, via as
pontas angulosas e apáticas dos outros prédios. Aqueles rígidos corpos independentes,
consolidados no espaço e no tempo. Uma alucinante disjunção de edifícios a perder de
vista. Realidade estranha, porquanto não divisava outras vidas, nenhum perfil, no interior
daquelas caixas de cimento.
Olhou mais uma vez a rede de retângulos coroados pelas nuvens negras. Viu beleza
nas elaborações, na dura monotonia e nas paredes poluídas. Gostava de contemplar a
cidade escurecida por fungos, de sentir-se absolutamente anônima e sugada na gigantesca
metrópole. Ali, vivia e trabalhava. Nos finais de semana, refugiava-se num lugarejo do
interior, na área das montanhas.
Voltou ao tricô.
Por algum tempo, evoluiu rapidamente e chegou ao decote. Tecia e pensava. Na
verdade, deveria estar revisando seu livro, um novo romance que dera por acabado.
Escrever era um de seus modos de tirar partido das perplexidades. Estava tudo ali:
paisagem, tempo, vidas, desesperos, desejos, insônias, mortes, lágrimas, silêncios,
rupturas, sucessos, perdas, sombras, lugares, fantasmas, paixões. Sua bagagem.
Ela era uma mulher decidida, organizada e resistente. Dava graças à sua estrutura
íntima: firme como os nós que agora entrelaçava, mas também doce e sedosa, como a
72
naquele novelo de cinzas. Ela sorria levemente enquanto urdia o acabamento da gola,
pensando naquilo que o destino lhe reservara.
Exatamente como as mulheres, também o destino elabora suas malhas. Radiante,
ela antecipava o momento em que ofertaria aquele presente. Sim, seria no final de semana,
na casa de campo, entre rajadas de aromas silvestres e o frio sublunar. Talvez dissesse a
ele: isto é teu, te amo. Talvez não dissesse nada. Não por acaso, pareceu escutar o peculiar
sussurro de um filósofo que adorava: “que aterradora banalidade”. Era assim, com certas
pulsões contrárias, que o defensor dos desencantos a despertava. Mas não fez caso de
Cioran. Dedicou-se ao suéter. Estava quase pronto. Afagou o agasalho de do mesmo
modo que afagaria o corpo que iria usá-lo. Como fazem notoriamente as pessoas que
amam, ela se lançou numa voragem momentânea, ocupou mente e coração com o homem
de sua vida. Era tudo o que precisava.
III. O segredo - Lucinda Nogueira Persona,
Vim de carro. O cemitério se deita no chão da colina. Há meses não venho. Tudo
parece calmo nesta tarde próxima do Natal, embora não me acalme o perfil de pedra da
cidade que vejo ao longe. Dos túmulos, perdidos no chão, se avistam as lápides de
granito ou mármore. Ou apenas de cimento. Fiscalizo justamente o retrato de mamãe e uma
certa vivacidade que parece brotar de seu semblante. O semblante de quem sempre
escondeu alguma coisa. isso. Ela continua séria com sua blusa de bolinhas. E o cabelo
não cresceu. Ela continua guardiã e eterna advogada de sua própria experiência de vida.
Do sol, quase posto, resta uma luz estranha, flutuante, fremente. A brisa flui com
seus efeitos benéficos. Sobre o verde gramado, velhas folhas se espalham. Dói um pouco
fazer esse inventário, explorar essa paisagem reveladora da dinâmica do universo, dos
laços entre a atmosfera e terra, das trocas entre os seres e o solo. Uma paisagem
reveladora do destino da matéria. E da enorme distância entre o homem e o céu.
Tudo poderia ser pensado sem nenhuma inquietação, sem nenhum movimento,
sem nenhum movimento, mas a vida é justamente o contrário. Assim, retiro os sentidos para
um outro tempo, para uma outra ordem natural de coisas. Lentamente, abro as portas do
passado. Tudo está longe, mas ainda consigo ver e sentir. Eu estava no fim da infância. Uns
dez anos de idade. Acentuada sensação de pânico. Pânico por tudo, pânico por nada. E
urgência de futuro.
Foi num dia de Natal, numa inesquecível tarde de Natal, depois do almoço, que a
frase de mamãe quase cochichada para alguém, caiu nos meus atentos ouvidos: “Tenho um
segredo que vou morrer com ele”. Segredo? Foi um choque. Meu Deus, minha mãe tinha
um segredo. E a palavra ficou existindo soberana. Intolerável. Segredo? Do resto, o mundo
ficou vazio. O que seria? Com certeza algo muito sério, tal o tom de sua voz denunciara. Ela
73
parecia ferida de alguma verdade. E feriu-me também. A partir daí, só um desejo me movia.
Conhecer aquele segredo. A cada batida do meu coração excitado, a pergunta era a mesma.
Minha imaginação rodopiava pelas ruas, cidades e mundo inteiro, em busca de alguma
coisa surpreendente. Alguma coisa que pudesse merecer tanto sigilo. Usei os melhores
recursos para soltar a ngua de mamãe e fazê-la contar o que planejara guardar para
sempre. Seria segredo de amor, morte ou loucura?
De vez em quando, aproximava-me com minha bisbilhotice, conversas vagas,
indagações sinuosas. Instigações. Pedia-lhe histórias de seu tempo menina, de seu tempo
mocinha. Ela caía na trama. Confessou, certa vez, cheia de amarga doçura, que sua
irmãzinha morrera de fome. E tudo por orgulho do pai. Ele, numa fase difícil da vida,
recusara-se a pedir leite ao fazendeiro vizinho. A mãe, seca de leite, dava papa de trigo e
água ao bebê. O bebê se foi. Mas é triste, pensei, e tão forte, que perguntei à queima-roupa:
“Esse é o segredo que você ia levar ao túmulo”? Surpresa, ela respondeu: “Não, filha. Não é
esse, é um muito maior, muito maior”. Caí num abismo. Fiquei maluca de impaciência. Mas
deixei o tempo passar. Uma vez ou outra, uma artimanha para descobrir o que mamãe
considerava irrevelável. “Você casou esperando criança”? Sussurrei assustada certa vez.
“Deus me livre, menina”. “Você traiu papai”? “Credo! Filha. Nem pense uma coisa dessa”. E
assim prossegui no meu inquérito pueril, ano a ano, até me adaptar aos limites do respeito à
privacidade daquela mulher tão austera.
Bem mais tarde, depois de muitos percalços, tanto na vida dela, quanto na
minha, quando ela se encontrava num delicado estado de nenhuma saúde, quando sua
alma sufocava nos profundos silêncios que antecedem um grande transe e quando tão
pouca coisa eu sabia dela, nesse instante, ainda fiz uma última tentativa movida por
delicada oratória.
Hoje, nesta tarde próxima do Natal, acerto as lembranças com certa ansiedade.
Uma borboleta pequena e alaranjada, minúsculos pontos negros nas asas, gira frenética em
torno de uma flor do gramado. Pára, torna a girar numa adoração necessária e substancial.
Penso nos segredos intocáveis, penso no mundo feito de mulheres que economizam
histórias, no mundo feito de mulheres misteriosas que se vão para sempre com seus
mistérios.
Extasiante, a brisa mantém a orientação norte-sul campo afora. depositei na
sepultura a braçada de rberas. Olho o vazio. Olho as nuvens agora douradas. Que
segredo em vão esperei e mamãe levou consigo? Que segredo foi esse que eu quis tanto
roubar de sua sagrada e tenaz vontade de guardá-lo?
O que ela nunca me disse, até hoje me persegue.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo