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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUEOLOGIA
LOUÇA BRANCA PARA A PAULICÉIA:
LOUÇA BRANCA PARA A PAULICÉIA:LOUÇA BRANCA PARA A PAULICÉIA:
LOUÇA BRANCA PARA A PAULICÉIA:
ARQUEOLOGIA HISTÓRICA DA FÁBRICA DE LOUÇAS SANTA CATHARINA
ARQUEOLOGIA HISTÓRICA DA FÁBRICA DE LOUÇAS SANTA CATHARINA ARQUEOLOGIA HISTÓRICA DA FÁBRICA DE LOUÇAS SANTA CATHARINA
ARQUEOLOGIA HISTÓRICA DA FÁBRICA DE LOUÇAS SANTA CATHARINA
/ IRFM
/ IRFM / IRFM
/ IRFM
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O PAULO E A PRODUÇÃO DA FAIANÇA FINA NACIONAL
O PAULO E A PRODUÇÃO DA FAIANÇA FINA NACIONAL O PAULO E A PRODUÇÃO DA FAIANÇA FINA NACIONAL
O PAULO E A PRODUÇÃO DA FAIANÇA FINA NACIONAL
(1913
(1913 (1913
(1913
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1937)
1937)1937)
1937)
LOUÇA BRANCA PARA A PAULICÉIA:
LOUÇA BRANCA PARA A PAULICÉIA:LOUÇA BRANCA PARA A PAULICÉIA:
LOUÇA BRANCA PARA A PAULICÉIA:
ARQUEOLOGIA HISTÓRICA DA FÁBRICA DE LOUÇAS SANTA CATHARINA
ARQUEOLOGIA HISTÓRICA DA FÁBRICA DE LOUÇAS SANTA CATHARINA ARQUEOLOGIA HISTÓRICA DA FÁBRICA DE LOUÇAS SANTA CATHARINA
ARQUEOLOGIA HISTÓRICA DA FÁBRICA DE LOUÇAS SANTA CATHARINA
/ IRFM
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O PAULO E A PRODUÇÃO DA FAIANÇA FINA NACIONAL
O PAULO E A PRODUÇÃO DA FAIANÇA FINA NACIONAL O PAULO E A PRODUÇÃO DA FAIANÇA FINA NACIONAL
O PAULO E A PRODUÇÃO DA FAIANÇA FINA NACIONAL
(1913
(1913 (1913
(1913
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1937)
1937)1937)
1937)
Rafael de Abreu e Souza
Orientadora: Profª. Drª. Margarida Davina Andreatta
Linha de Pesquisa: Artefatos e cultura material: significados e potencialidades
São Paulo
2010
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUEOLOGIA
LOUÇA BRANCA PARA A PAULICÉIA:
ARQUEOLOGIA HISTÓRICA DA FÁBRICA DE LOUÇAS SANTA
CATHARINA / IRFM - SÃO PAULO E A PRODUÇÃO DA FAIANÇA
FINA NACIONAL (1913 - 1937)
Rafael de Abreu e Souza
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Arqueologia do Museu de
Arqueologia e Etnologia da Universidade de São
Paulo, para obtenção do título de Mestre em
Arqueologia.
Orientador: Prof. Dra. Margarida Davina Andreatta
Linha de Pesquisa: Artefatos e cultura material: significados e potencialidades
São Paulo
2010
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RESUMO
SOUZA, R. A. Louça branca para a Paulicéia: Arqueologia Histórica da Fábrica de
Louças Santa Catharina / IRFM - São Paulo e a produção da faiança fina nacional
(1913 - 1937). 2010. Dissertação (mestrado) Museu de Arqueologia e Etnologia,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010
O ano era 1912, e um imigrante italiano e um grupo de irmãos provindos da
aristocracia fazendeira encontraram-se nos escritórios sobre o famoso Café Guarany, no
pulsante coração comercial da cidade, o Triângulo, para combinarem os trâmites à fundação
da primeira fábrica de louças em faiança fina do país, em moldes industriais, produção em
série e larga escala, no, então, rural bairro da Lapa. Assim teve início a história da Fábrica de
Louças Santa Catharina, posteriormente Indústrias Reunidas Fábricas Matarazzo (IRFM)
São Paulo, que abarrotou a cidade de São Paulo com toneladas de louças brancas ou
decoradas feitas em seus inúmeros fornos. Fundada no fulcro dos projetos de modernização
para a Paulicéia o desvairada, fábrica e louças dialogaram com as conjunturas das quais
eram agência e estrutura. Formas e motivos espalharam-se pelos diversos consumidores da
cidade, desbancando, muitas vezes, o monopólio da louça branca estrangeira, da qual se
diferenciou produzindo-se segundo lógicas e tecnologias locais.
Esta pesquisa baseia-se na análise do tio arqueológico Petybon, no bairro da Lapa,
cidade de São Paulo, região da Água Branca/Vila Romana, escavado no ano de 2003, que
revelou ter sido o local de uma antiga fábrica de louças em faiança fina, inaugurada em 1913,
fundada meio à maciça imigração italiana e o financiamento das indústrias pelo capital do
café. Funcionou a1937, pertencente aos Matarazzo que a adquiriram em 1927. O local
tem extrema relevância não apenas no contexto da Arqueologia Urbana no Brasil, como
também enquanto exemplar dos primórdios da industrialização do país e da história da
produção da louça nacional, parcamente tratada pela literatura, pouco valorizada e
identificada, apesar de sua freqüência nos sítios arqueológicos do século XX.
PALAVRAS-CHAVE: Faiança fina; Louça Brasileira; Fábrica de Louças Santa Catharina;
Matarazzo; Arqueologia Histórica; São Paulo República
ABSTRACT
SOUZA, R. A. Industrial pottery for São Paulo city: Historical Archeology of the Santa
Catharina Pottery Factory / IRFM - São Paulo and the production of the national
refined earthenware (1913 - 1937). 2010. Dissertação (mestrado) – Museu de Arqueologia e
Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010
The year was 1912, and an Italian immigrant and a group of brothers, drawn from an
Aristocratic family farmer, met at an office above the famous Guarany Coffee House, in the
beating heart of the city, the Triangle, to establish a fellowship and combine the procedures to
the foundation of the first refined earthenware factory in the country, based on an industrial
manufacturing, by a mass and large scale production, at the rural district of Lapa. That was
the beginning of the history of Santa Catharina Pottery Factory, later Matarazzo United
Manufacturing - São Paulo, who crammed São Paulo city with tons of white or decorated
pottery, made in its many kilns. Forged at the center of modernizations project for the city,
the pottery and factory dialogue with the contexts whose were agency and structure. Forms
and motifs spread out by various consumers, beating, often, the foreign pearlware and
whiteware monopoly, from whom it was distinguished by organizing itself according with its
own logic and technology development.
This research is based on the analysis of Petybon archaeological site, in the
neighborhood of Lapa, São Paulo, at the region known as Água Branca / Vila Romana,
excavated in 2003, which appeared to have been the site of one of the firsts refined
earthenware factories, opened at 1913, founded through the massive Italian immigration and
the financing of industries by coffee profits. Worked until 1937, then belonging to the
Matarazzo Family, who acquired it in 1927. The site is extremely important not only in the
context of Brazilian Urban Archeology, but also as an example of the early industrialization
in Brazil and the history of national pottery industry, barely treated by literature, almost
unknown and unappreciated, despite its frequency at Brazilian archaeological site from the
20
th
century.
KEY-WORDS: Refined Earthenware; Brazilian Industrial Pottery; Santa Catharina Factory;
Matarazzo Familiy; Historical Archaeology; Republican São Paulo
RESUMEN
SOUZA, R. A. Loza blanca para la ciudad de São Paulo: Arqueología Histórica de la
Fábrica de Lozas Santa Catharina / IRFM - São Paulo y la producción de loza fina
nacional (1913 - 1937). 2010. Dissertação (mestrado) Museu de Arqueologia e Etnologia,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010
Era el año 1912, y un inmigrante italiano y un grupo de hermanos, provenidos de una
família aristocrática de hacienderos, se reunieron en una oficina sobre el famoso Café
Guarany, en el corazón de la ciudad, el Triángulo, a arreglar los procedimientos para la
fundación de la primera fábrica de loza fina del país, con produduccíon industrial en gran
escala, ubicada en el districto rural de Lapa. Así comenzó la história de la Fábrica de Lozas
Santa Catharina, despúes Industrias Manufactureras Matarazzo - São Paulo, que abarrotaron
la ciudad de São Paulo, con toneladas de loza blanca o decorada, hecha en sus variados
hornos. Fundada medio a los proyectos de modernización para la ciudad, brica y cerámica
se relacionan con los contextos de los cuales fueron agencia y estructura. Formas y motivos
diferentes distribuidos para los consumidores de la ciudad, superaron, a menudo, el
monopólio de la loza blanca extranjera, de la cual distienguese por su propia lógica y
desarrollo tecnológico.
Esta investigación se basea en el análisis del yacimiento Petybon, en el barrio de
Lapa, São Paulo, la región de Água Blanca / Vila Romana, excavado en 2003, que hubiera
sido el sítio de una antígua fábrica de loza, inaugurada en 1913, fundada junto a la masiva
inmigración italiana y la financiación de las industrias nacionales con el capital del café.
Estuvo abierta hasta 1937, ya pertenecente a la família Matarazzo, que la adquirieron en
1927. El sítio es importante no sólo en el contexto de la Arqueología Urbana en Brasil, sino
también como un ejemplo de la temprana industrialización del país y de la história de
producción de la loza industrial nacional, mal tratada por la literatura, poco valorada y
reconocida, a pesar de su frecuencia en los yacimientos del siglo XX.
PALAVRAS-CHAVE: Loza fína; Loza industrial brasileña; Fábrica de Loza Santa
Catharina; Matarazzo; Arqueología Historíca; São Paulo República
RESUMÉE
SOUZA, R. A. Faïence pour la ville de São Paulo: Archeólogie Historique de la Fabrique
de Cerámique Santa Catarina / IRFM – São Paulo et la production de la faïence
nationale (1913 - 1937). 2010. Dissertação (mestrado) Museu de Arqueologia e Etnologia,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
L’année était 1912, un immigrant italien et une groupe de frères provenants de
l’aristocratie fermière se rencontrent aux bureaux situés sur le fameux Café Guarany, dans le
pulsant cœur commercial de la ville, le Triangle, afin de se mettre en accord sur les
procédures de fodation de la première fabrique de vaisselles en faïence fine du pays, à utiliser
les procédés industriels, production en série et à large échelle, à se situer dans le quartier de
Lapa, qui à cette époque-était un quartier rural. Ainsi a buté l’histoire de la Fabrique de
Vaisselle Santa Catarina qui, à une date postérieure, fera partie des Industries Reunis
Fabriques Matarazzo (IRFM) São Paulo, qui a comblé la ville de São Paulo de vaiselles
blanches ou décorées faites par leurs nombreux fours. Crée dans un contexte des projets de
modernisation pour la ville de São Paulo, fabrique et céramique ont établi un dialogue avec
les conjonctures desquelles elles étaient à la fois agentes et structures. Formes et motifs se
sont eparpillés par les différents consommateurs de la ville, au point me de, bien des fois,
remplacer le monopole de la vaisselle blanche étrangère dont elle s’était différenciée en se
faisant produire à partir de logiques et de technologies locales.
Cette recherche est basée sur l’analyse du site archéologique Petybon, localisé dans le
quartier de Lapa, à la ville de São Paulo, dans la région Água Branca/Vila Romana, qui a é
fouillé en 2003 et identifiée comme lieu d’une ancienne fabrique de faïence. Fabrique
inaugurée en 1913, fondée au milieu d’une immigration italienne massive et aussi du
financement des industries par le capital provenant du café. Cette fabrique a été en
fonctionnement jusqu’en 1937, à ce moment-là appartenant déjà aux Matarazzo qui l’avaient
acquis en 1927. Lieu d’extrême importance non seulement dans le cadre de l’Archeólogie
Urbaine au Brésil, mais aussi comme un exemple primordial du processus d’industrialisation
du pays et de l’histoire de la production de la vaisselle nationale – sujet très peu traité, tandis
que la faïence, elle-même peu valorisé, soit souvent présente dans les sites archeólogiques du
XXème siècle.
Mots-Clés: Faïence; Vaisselle Brésilienne; Fabrique de Cerámique Santa Catarina;
Matarazzo; Archéologie Historique; São Paulo Republique
SUMÁRIO
Apresentação (ou por uma Arqueologia Urbana Antrópica)
1
1. Programa de Prospecções e Resgate Arqueológico do sítio Petybon
escavando uma unidade fabril e um aterro de cerâmica na cidade
17
1.1.
Programa de prospecções e resgate do sítio arqueológico Petybon 17
1.2.
Fábia, Aurélia, Coriolano e Catão na Vila Romana: evolução urbana e
ocupação
25
1.3.
Um aterro de louças na cidade 41
2. Atributos, categorias de análise e artefatos do sítio Petybon
61
3. Produção: particularidades e especificidades na esfera produtiva
122
3.1.
Processo produtivo na Fábrica de Louças Santa Catharina / IRFM São
Paulo: tecnologias nacionais e estrangeiras particularizando a louça em
faiança fina nacional
122
3.1.1. A cadeia operatória de produção das louças do sítio
arqueológico Petybon
127
3.1.2.
Na longa duração da mercantilização e da industrialização: a
Fábrica Santa Catharina / IRFM São Paulo e a instalação das
fábricas de faiança fina em São Paulo
146
3.1.3.
Louceiros Paulistas: trabalhadores e proprietários da Fábrica de
Louças Santa Catharina / IRFM – São Paulo
169
3.2.
Por uma louça asséptica: vidrados, gretamento e discursos higienistas 190
3.3.
Defeitos de produção e o significado dos defeitos: desafios produtivos e
o consumo das louças “tipo popular”
207
3.4.
Escritos na Argila: Arqueologia, Epigrafia e as inscrições do sítio
Petybon ou por uma Arqueologia Industrial da produção, do
trabalhador e do tempo
221
3.5.
Na mão do oleiro: as impressões digitais nas louças brancas da cadeia 248
produtiva do sítio Petybon
4. Consumos específicos em conjunturas particulares
271
4.1.
Tigelas da tradição: formas e volumes das louças brasileiras 290
4.1.1.
O ritual do cafezinho: bito de sociabilidade com xícaras e
tigelas
309
4.2.
Margaridas e “espigas de Trigo” nos motivos, técnicas e padrões
decorativos das louças em faiança fina da Fábrica Santa Catharina /
IRFM – São Paulo
321
4.3.
As louças na publicidade dos periódicos O Estado de São Paulo e O
Correio Paulistano
347
4.4.
Louça e goiabada: como as louças (des)aparecem nos inventários da
Grande São Paulo da primeira metade do século XX
391
5. Considerações finais a um novo paradigma de modernidade para a cidade de
São Paulo: episteme da louça branca brasileira
412
6. Referências bibliográficas
439
Anexo 1
: Análise físico-química de pastas e vidrados do sítio Petybon 474
Anexo 2: Catálogo de louças do sítio Petybon (CD-ROM)
1
APRESENTAÇÃO
(OU POR UMA ARQUEOLOGIA URBANA ANTRÓPICA)
... raramente a louça é atirada de grandes alturas; é uma
das mais raras ações humanas. Precisa haver ao mesmo
tempo uma casa muito alta e uma mulher tão impulsiva e
violenta que atire o seu jarro ou pote pela janela sem
pensar em quem passa em baixo. Louça quebrada era
fácil de encontrar, mas quebrada em algum prosaico
acidente doméstico, sem intenção ou finalidade...
(Virginia Woolf, Objetos Sólidos)
Já não coleciono selos.
Agora coleciono cacos de louça
quebrada há muito tempo.
Cacos novos não servem
Brancos também não.
Têm de ser coloridos e vetustos
desenterrados - faço questão - da horta
Guardo uma fortuna em rosinhas estilhaçadas
restos de flores não conhecidas.
(Coleção de cacos, Carlos Drummond de Andrade)
Pina-Cabral percebeu, em suas pesquisas, que havia algo na cerâmica popular
portuguesa que ninguém percebera antes e que não constava em registros escritos nem em
qualquer outra fonte: refere-se à vasta tradição local da indústria cerâmica de artefatos em
forma de falo, em Portugal (1993: 105). O antropólogo notou que muitos dos aspectos da
cultura popular portuguesa não eram vistos pelos olhos dos pesquisadores e que este tipo de
cerâmica foi ignorada, mesmo existindo muito tempo. São os olhos dos cientistas que
vêem apenas aquilo que querem ver, nos mostrava os Annales desde o final dos anos
1920 (BURKE 1986). Para a arqueologia, Gallay (2002: 6) afirmou que “só vemos aquilo
para o qual nos preparamos para ver”. Se não estamos, portanto, preparados para a louça
brasileira, não a vemos. Fica a dúvida se a faiança fina nacional realmente não estava no
sítio ou não foi diagnosticada por não estarmos preparados. Esta deficiência na
identificação dos materiais no registro arqueológico (MEJÍA & THERRIEN 2001/2002:
201) gerou a necessidade da produção de arqueografias.
Os questionamentos de Pina-Cabral nortearam algumas das questões da presente
pesquisa em torno da louça em faiança fina, mais barata, mais popular, de fabricação
brasileira, que está nos sítios arqueológicos, mas que é pouco estudada e pouco valorizada.
2
Parece haver, na verdade, uma ausência de pesquisas sobre o tema, não apenas no âmbito
brasileiro, mas no que concerne a America Latina em geral. Tenho a impressão, às vezes,
de que uma supervalorização da louça inglesa em detrimento das cerâmicas locais nas
abordagens da Arqueologia Histórica e que não se percebe que, se esta visão é pautada nas
idéias provindas das obras de Gilberto Freyre, elas também são devedoras da “relação de
amor”, como chamou a atenção Pallares-Burke (1997), de Freyre com a Inglaterra. Há que
se ter em mente que objetos e sujeitos históricos emergem de construções discursivas
(RAGO 2004). Por isso este trabalho é uma proposta de mudança de escalas de observação,
a fim de sugerir mudanças em interpretações (SASSAMAN 2005: 335).
Para Therrien, Jaramillo Pacheco e Salamanca (2003: 157), as noções derivadas de
ideologias modernas, na America Latina, fizeram ver processos de “inovação” acima da
“tradição”, de modo que “inovar” foi encarado como a introdução de práticas européias,
assimiladas como dominação e, conseqüentemente, imposição, sem que se questionasse
muito os sentidos da cultura material em cenários de comunicação intercultural. Até o
momento, por exemplo, existem apenas dois estudos arqueológicos, em todo o continente,
sobre fábricas de louça branca, sendo um deles na Colômbia, de autoria da própria Monika
Therrien, e um no Paraná, o mestrado de Martha Morales sobre a Fábrica Colombo.
No universo das cerâmicas de produção brasileira, ou de produção local, o que é,
afinal, essa louça branca? O que é este artefato tão cotidiano, relativamente comum, que faz
parte de nosso dia a dia e ao qual não prestamos muita atenção? Nem mesmo percebemos
que, ao estabelecer uma relação de catacrese, em língua latina, com a cerâmica, estamos
aproximando nosso corpo do corpo cerâmico, tal como fazem muitos povos estudados em
sua alteridade em relação a nós, “sociedade ocidental”. Para Orser, a análise destes artefatos
“banais” propiciaria nossa entrada em um mundo fluido de significados, desafiaria
interpretações mais simplificadas (2005: 67). Mullins, estudando a presença dos bibelôs em
sítios arqueológicos estadunidenses, por exemplo, acabou mostrando que nem todo artefato
tido como mais “fino” (como as louças) é um mero índice da posição social de seu
proprietário (ORSER 2005: 66-67). A louça brasileira, banal e corriqueira nos sítios
arqueológicos, sob outro prisma, pode mudar a interpretação sobre o contexto do sítio, sua
cronologia e os hábitos e características daqueles que as utilizaram. Exemplo disso é a
própria porcelana brasileira, muitas vezes descrita como um objeto não identificado, ou a
3
faiança fina nacional que, apesar de difícil identificação, é freqüentemente tomada como
estrangeira.
Tendo em mente esta ausência de pesquisas sobre o tema, comecei a desenvolver
uma pesquisa, ainda na graduação, na Universidade Estadual de Campinas, pautada no sítio
arqueológico Petybon, no bairro da Lapa, em São Paulo, com a finalidade de entender
melhor um material tão pouco estudado e muito negligenciado nas pesquisas arqueológicas,
a louça brasileira, tendo em vista dúvidas e questionamentos de maior âmbito que foram
germinando durante os primeiros anos de minha formação em História, semeados pela
influência das abordagens da teoria pós-colonial e da arqueologia cubana. Notei também
que abordar os primórdios da história da louça branca no Brasil submergir-me-ia aos
aspectos de popularização e barateamento deste produto, que passou a ser utilizado por
camadas médias e pobres da cidade que antes o compravam, ou não consumiam tanto,
louça em faiança fina. Abordar arqueologicamente “aspectos da cultura que não são
escritos, os objetos, as coisas, o mundo material usado e transformado pelos homens”
(FUNARI 1992: 7), no âmbito do Brasil e da América Latina, a partir do sítio Petybon, e
com determinados olhares e abordagens pós-colonialistas, permitiu ir além de uma
documentação escrita emanante (do suposto) “centro” (CORZO 2005: 48). Uma vez que “a
descrição e a interpretação de vestígios materiais em Arqueologia Histórica são
absolutamente impregnados por discursos de identidades derivados das fontes escritas”
(JONES 2005: 30), tentei enveredar pela crítica a esta relação no que diz respeito ao que é
descrito como “modernopelas fontes e o que se encontra na época da modernidade da
cidade, assim como realizar questionamentos às categorias derivadas de documentos
escritos como “classe” ou “aburguesamento” – como disse Stuart Hall, “os interesses
materiais por si não tem necessariamente uma filiação a classes” (BHABHA 2007: 56).
Este trabalho pretende enveredar pelos meandros das tentativas contradiscursivas (SAID
2003: 97) através da interpretação e análise da louça em faiança fina nacional.
que toda ação humana deixa alguma marca ou está associada à utilização de
algum tipo de instrumento que permanece no solo sob a forma deregistro material”
(DEMARTINI & BRAGA 2005), todo ser humano pode ser, teoricamente, estudado pela
Arqueologia. Como nos mostrou Jean-Pierre Warnier, “desde o nosso nascimento até a
morte, e mesmo além, nós não escapamos da cultura material, nem mesmo por um breve
4
momento. Nas sociedades industriais, sua impregnação vai além das medidas e contrasta
com a indigência dos instrumentos de que dispomos para analisá-la” (2003: 6). Isso
também não quer dizer que os objetos sejam reflexos passivos da sociedade, mas, sim,
mediadores e direcionadores de atividades humanas e relações sociais (FUNARI 2001: 33).
Lembro que uma abordagem mais pós-processualista neste ponto não significa a
adoção de uma bandeira pós-processualista nessa pesquisa. Assumir veementemente uma
corrente teórica, quiçá, por vezes, limite a capacidade de interpretação que outras
ferramentas teóricas poderiam fornecer. Seria como colocar óculos que nos fizessem ver
apenas aquilo que o grau-teórico possibilita. Pelo contrário. Acredito que as correntes
teóricas têm muito a acrescentar numa pesquisa, de um modo ou de outro (HODDER 1999:
17), uma vez que o conhecimento arqueológico é subjetivo e não possibilitaria
generalizações universais ou verdades absolutas (REIS 2003: 71). Entretanto, adotei, sim,
um pano de fundo, e um modo de ver o mundo, que é bastante devedor de um corpo teórico
específico, destarte suas mais variadas linhas, conhecido como pós-colonialismo, seja
aquele dos primeiros teóricos como Ranajit Guha, Partha Chaterjee, seja dos estudos
desenvolvidos posteriormente por Said, Bhabha, Hall, Chakrabarty e outros.
Na América Latina, a abordagem pós-colonial é utilizada na História e na
Sociologia, aproximando-se de trabalhos como os de Monjolo e Canclini, mas pouco pela
Arqueologia (FERREIRA 2007). Algo que renderia frutos no intuito de descolonizar os
imaginários produzidos sobre o Brasil, intervindo no interior de um sistema de
representações (SAID 2007), ou, ao menos, corroboraria um papel mais político da
arqueologia em trabalhar as identidades nacionais do ponto de vista da crítica à paradigmas
como “centro - periferia” ou noções de “cópia”. Algumas destas leituras caracterizam-se,
para Lúcio Meneses, como interpretação difusionistas, pautadas em “variações miméticas
das estruturas sociais, culturais e políticas ditadas pela Europa” (FERREIRA 2007: 7) que
desconsideraram contextos de apropriação e representação historicamente situados. Uma
vez que a louça em faiança fina nacional não é cópia, ressalto sempre sua originalidade,
mas, lembro aqui, que atento à ingenuidade de uma criação a partir do nada (SCHWARZ
2005), que este artefato é devedor de um ato de repetição e de uma diferença que o
define, por isso não idêntica a louça inglesa (BHABHA 2007:157).
Implicações desta alçada foram questionadas uma vez pela Arqueologia Social
5
Latino Americana e também com este intuito tentei, na medida do possível, prestigiar os
arqueólogos latino-americanos, lendo os trabalhos que encontrei, destarte a sabida
dificuldade no acesso, em geral porque se está conformando no país, de algum modo,
leituras específicas das cosmologias do capitalismo que aqui se criaram e desenvolveram,
lembrando Sahlins (2004), e interpretações das expressões locais da cultura material que
pouco tem a ver com o que ocorreu em contextos cuja conjuntura foi bastante diversa,
como a estadounidense. Logo, debati com as constantes problemáticas sobre as proposições
em torno de status socioeconômico e cronologias das louças pautadas em pressupostos
estrangeiros, questionando o alcance de elementos indicadores de cronologia e status em
um contexto tão diverso e complexo como uma cidade (THERRIEN, JAMARILLO
PACHECO & SALAMANCA 2003: 162).
Esta dissertação sintetiza quase seis anos de pesquisas e reflexões em torno do sítio
arqueológico Petybon, no interior da zona metropolitana de São Paulo. Quem passa pelo
lugar atualmente não imagina que sob um condomínio de alto padrão estão os
remanescentes da primeira fábrica de louça em faiança fina do país, em moldes industriais,
e que sob a quadra de tênis estão centenas de milhares de fragmentos e peças inteiras de
cerâmica branca das primeiras décadas do século XX. Aliás, este é, também, um trabalho
sobre o século XX, um século que é tão pouco analisado quanto ignorado pela Arqueologia
Histórica, em geral. Parece haver um acordo silencioso entre o que é etnoarqueológico e o
que é objeto da Arqueologia Histórica de modo tão pouco claro que acabou eliminando as
reflexões e a cultura material (de maneira, inclusive, literal) do breve culo, lembrando
Eric Hobsbawm (2008).
Quanto à narrativa impingida e à organização da dissertação, alguns pontos devem,
ainda, ser esclarecidos. O primeiro deles, e logo possíveis leitores perceberão, é que tentei
eliminar as marcas de impessoalidade picas do discurso academicista e não me utilizei da
suposta objetividade atingida em prol de uma aparente “esquizofrenia” do sujeito
acadêmico, impessoal e teoricamente intangível; é a crítica de Foucault (2007: 26) em prol
do autor como “princípio de argumento do discurso”. Para além de pressupor, sobre o
discurso acadêmico, um embate entre o doxológico e o epistêmico (FUNARI 1992), pautei-
me nas abordagens que sugerem ser possível a construção do conhecimento “por meio de
todos os instrumentos da linguagem humana, de maneira que um trabalho de pesquisa pode
6
oferecer a oportunidade de exercitar a individualidade criadora e de fazer algo que satisfaça
aos anseios do estudioso, ao invés de realizar um trabalho que segue, inflexivelmente, as
regras de procedimento impostas como padrão, inserindo-se em uma formação discursiva e
apropriando-se de um discurso que não condiz com os atuais almejos, porque todos fazem
assim, exige-se assim” (CORREA 2004). Lembrando as imprescindíveis discussões de
Hayden White (1991) sobre a narrativa na História e na Literatura, optei por escrever a
dissertação em primeira pessoa.
Carl Axel Moberg, um dos expoentes da arqueologia sueca, afirmou, nos anos 1960,
que “a Arqueologia não é apenas uma disciplina técnica, instrumento de... Não é uma
‘ciência da pá’ e, nela, os instrumentos contam menos do que o cérebro, como nas outras
ciências. Não é também uma ‘procura de objetos’. O arqueólogo não anda à procura de
‘antiguidades’, mas de conhecimentos (....) Não procura também definições de uma
qualquer cultura material, porque a noção de cultura é propriamente falando imaterial.
Na verdade, as questões pelas quais o arqueólogo procura resposta concernem exatamente o
imaterial” (MOBERG 1986: 60). O interesse maior nesta pesquisa não são os objetos em si,
mas o que eles podem dizer das pessoas e da sociedade que os usaram e produziram, afinal.
Dessa forma, discorri sobre a produção da louça em faiança fina no Brasil (seu processo de
fabricação em grande escala, em moldes industriais, pela primeira vez), particularmente em
São Paulo, seguido de sua conseqüente popularização, adentrando as discussões das
demandas pelo produto e de alguns de seus possíveis consumidores, também os
componentes dos grupos pobres e médios da cidade no início do século XX.
O discurso de uma São Paulo, do início do século, que se apresenta como moderna,
urbanizada, europeizada, elitista, deixou de fora muitos de seus principais componentes e
inclusive elaborou políticas que visavam apagar o que era considerado não-moderno, ou
seja, aquilo que parecia ligado a hábitos coloniais, rurais, etc. A partir disso propus uma
abordagem mais crítica quanto a algumas teses em voga na Arqueologia Histórica e na
História como a da “ideologia dominante”, que grupos mais pobres também possuíam
aspectos culturais próprios, não sendo/querendo ser “cópia” de uma elite ou “desvio” de um
modelo original que pressupõe uma visão rígida de cultura. Aspectos que estão no cerne de
questões como as práticas da ação, e não apenas da re-ação, como podem ser vistos nos
trabalhos de Chalhoub (2006: 99) sobre as “classes perigosas” no Rio de Janeiro
7
oitocentista.
Enquanto trabalho de Arqueologia Urbana, não posso deixar de explicitar algumas
das razões que me fizeram enveredar pela história da cidade de São Paulo, através da louça
em faiança fina, e que resultaram na produção do Capítulo I, que apresenta aspectos do
trabalho de campo, da evolução urbana da área da Fabrica Santa Catharina através do uso
de cartas e plantas, e da estratigrafia do sítio Petybon, focando sua mais definidora
característica: o fato de ser composto por (ou ser) um grande aterro de louças. Para além de
uma resposta adaptativa, para Zarankin (1994: 33) o uso urbano é também uma utilização
particular do solo e do espaço em seu contexto específico.
Estendi-me um pouco mais neste capítulo, apesar de não realizar grandes incursões
teóricas sobre a Arqueologia Urbana, porque nos últimos anos o Brasil assistiu a um
retorno do arqueólogo à cidade, também no âmbito acadêmico, mas especialmente no
âmbito da Arqueologia Preventiva. Isto levantou novas questões em torno do próprio fazer
da ciência arqueológica que são importantes ressaltar.
A região da grande São Paulo é formada por 39 cidades, em intenso processo de
conurbação, referente ao efeito da extensão da capital paulista, formando com seus
municípios vizinhos uma mancha urbana contínua. Com 19.616.060 habitantes,
é o maior
centro urbano do Brasil e da América do Sul, e a sexta maior área urbana do mundo,
ocupando 7.944 km², com área urbanizada de 2139 km², o que corresponde a menos de um
milésimo da superfície brasileira e pouco mais de 3% do território paulista.
Uma consulta aos 269 relatórios
1
disponíveis na 9ª Regional do IPHAN – São Paulo
(até abril de 2009), concernentes a variados projetos, dentre prospecções arqueológicas e
vistorias, diagnósticos, peritagens e outras ações não-interventivas levados a cabo na região
da grande São Paulo, mostrou o maciço predomínio deste último tipo (70%) em
comparação a atividades interventivas (30%). O levantamento mostrou também que, desde
o início da arqueologia na região metropolitana, nos anos 1970, 35 profissionais exerceram
suas atividades
2
, distribuídos entre 78 instituições e empresas, além de 17 profissionais que
atuaram de modo autônomo.
1
Os dados que compõe essa rápida avaliação são resultado da leitura dos relatórios e projetos de arqueologia
depositados na 9ª Regional do IPHAN - São Paulo, no âmbito da parceria efetivada pelo termo de cooperação
entre a empresa Zanettini Arqueologia e o IPHAN.
2
Não foram contabilizadas equipes e sim coordenadores de projetos.
8
O que chamou atenção, pressupondo algumas abordagens no âmbito da Arqueologia
Urbana, foi o grande predomínio de vistorias, sem intervenções em sub-superfície, que
resultaram em finalizações de projetos, ou seja, após vistorias não interventivas, o subsolo
da cidade foi descartado como ente possuidor de potencial arqueológico, pautando-se em
justificativas como a de que não foram encontradas as “feições originais do terreno”,
“meias encostas” ou outras marcas na paisagem típicas de levantamentos para sítios pré-
coloniais ou indígenas. Isto torna aparente o enorme descompasso entre os projetos de
arqueologia desenvolvidos na região metropolitana de São Paulo (referindo-se,
especialmente, aos trabalhos em Arqueologia Preventiva), e as discussões teóricas e
práticas (se é que são separáveis) da Arqueologia Urbana e Histórica.
Desde os anos 1980, a cidade passou a ser tratada como um grande locus
arqueológico, na qual é, ela mesma, um sítio arqueológico, devendo ser realizada uma
arqueologia da, para e na cidade (SALWEN 1978; STASKI 1999). O que está se
realizando, porém, em grande parte da região metropolitana de São Paulo, e talvez em
muitos outros centros urbanos, é meramente uma arqueologia na cidade, também sem
maiores preocupações em torno da grande expressão arqueológica que é, afinal, a cidade,
ou seus edifícios, na busca assídua por vestígios móveis tais quais seriam encontrados em
sítios cerâmicos, por exemplo. O fato de a cidade ter escolhido e selecionado áreas do
compartimento do planalto onde foi implantada, orientando seu desenvolvimento
(AB’SÁBER 2007: 25), já é, em si, um aspecto arqueológico (aliás, sabidamente conhecido
como “padrão de assentamento” a partir de uma visão regional de um conjunto de sítios
[ARAÚJO 2001: 97]). Como chamou a atenção Zanettini (2004: 152), “o arqueólogo
urbano não tem necessariamente que restringir suas análises aos locais que escava”.
A Arqueologia Urbana surge como campo que não se desenvolve unicamente em
ações diretas sondagens e escavações do solo mas, também, através do estudo
sistemático de todo tipo de evidência material do passado, de acordo com uma metodologia
científica específica segundo a qual também os edifícios e espaços construídos são
analisados nos seus restos materiais (ZANETTINI 2004: 152). Se a arqueologia trata de
ações humanas, expressões materiais de culturas, antropizações de meios e criação e
modificação de paisagens, porque, como nota-se através da consulta aos projetos de
arqueologia realizados na região metropolitana, estes trazem, em sua grande maioria, no
9
âmbito de recomendações ou considerações finais, frases como “potencial arqueológico
nulo” ou “sem interesse arqueológico”, colocando, num mesmo patamar camadas de
formação estritamente geológicas, não antrópicas, e a estratigrafia complexa dos meios
urbanos?
Os 269 projetos de arqueologia desenvolvidos na região metropolitana de São Paulo
estão distribuídos no tempo segundo o gráfico a seguir. A concentração de projetos no final
dos anos 1970 e começo dos anos 1980 é resultado do hercúleo trabalho da Profª. Drª.
Margarida Davina Andreatta (1986), envolvendo o cadastramento e a pesquisa
arqueológica das chamadas “casas bandeiristas” (ZANETTINI 2005). Após uma temporada
de estudos na Europa, na França, vinculada à Sorbonne e ao Musée de l’Homme, sob os
auspícios de Leroi-Gourhan, e depois com os sítios paleo-cristãos em Portugal, a Profª. Drª.
Margarida retornou ao Brasil dando início a toda uma vertente francesa de escavações de
sítios históricos na cidade. Nota-se, também, segundo o gráfico, dois booms de pesquisas,
um em torno de 2003 e outro em 2008, coincidentes com a efetivação da Portaria 230 em
2002, e com a normativa que tornou obrigatória a realização de pesquisas arqueológicas em
determinado perímetro urbano do centro da cidade de São Paulo.
0
10
20
30
40
50
60
70
1979
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
Para a cidade de São Paulo, com um total de 117 projetos, percebe-se a mesma
distribuição, com o aumento significante das pesquisas arqueológicas apenas no culo
XXI.
10
0
5
10
15
20
25
30
35
1979
1980
1981
1982
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1990
1991
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1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
Por município da região administrativa, nota-se, a partir do gráfico abaixo, o
predomínio dos projetos de arqueologia preventiva nas cidades de São Paulo, seguida
modestamente por Mogi das Cruzes, Santo André, São Bernardo e Mauá.
0
20
40
60
80
100
120
140
Arujá
Barueri
Biritiba
-
Mirim
Caieiras
Cajamar
Carapicuíba
Cotia
Diadema
Embú
Embu-Guaçu
Ferraz de Vasconcelos
Francisco Morato
Franco da Rocha
Guararema
Guarulhos
Itapecerica da Serra
Itapevi
Itaquaquecetuba
Jandira
Juquitiba
Mairiporã
Mauá
Mogi das Cruzes
Osasco
Pirapora do Bom Jesus
Poá
Ribeirão Pires
Rio Grande da Serra
Salesópolis
Santa Isabel
Santo André
São Bernardo
São Caetano
São Loureo da Serra
São Paulo
Suzano
Taboão
Vargem Grande Paulista
Projetos de Arqueologia protocolados no IPHAN por município da região administrativa de
São Paulo
Os projetos levados a cabo até abril de 2009 resultaram no cadastramento de 94
sítios para a região metropolitana, o que significa uma média aproximada de 2,4 sítios por
cidade. Estes poucos sítios arqueológicos, distribuem-se, na região, da seguinte maneira:
11
0
5
10
15
20
25
30
35
40
45
50
Aru
Barueri
Biritiba-Mirim
Caieiras
Cajamar
Carapicba
Cotia
Diadema
Embú
Embu-Guaçu
Ferraz de Vasconcelos
Francisco Morato
Franco da Rocha
Guararema
Guarulhos
Itapecerica da Serra
Itapevi
Itaquaquecetuba
Jandira
Juquitiba
Mairiporã
Mauá
Mogi das Cruzes
Osasco
Pirapora do Bom Jesus
P
Ribeirão Pires
Rio Grande da Serra
Salesópolis
Santa Isabel
Santo André
São Bernardo
São Caetano
São Loureo da Serra
São Paulo
Suzano
Taboão
Vargem Grande Paulista
Sítios arqueológicos cadastrados por município da região administrativa de São Paulo
Clara correspondência, portanto, entre a existência de sítios arqueológicos e os
municípios onde houve mais projetos de arqueologia, como em Mogi das Cruzes e São
Paulo. No entanto, o que se pode perceber, pela análise dos relatórios, é que a relação entre
projetos que nada encontram e aqueles que localizaram sítios ou algo de “interesse
arqueológico” é muitíssimo baixa, resultando na média aproximada de 0,26 sítios por
projeto na região metropolitana e 0,4 sítios por projeto na cidade de São Paulo. O gráfico
abaixo mostra a proporção entre os projetos que resultaram no cadastramento de sítios
arqueológicos e os que apresentaram, como parecer, “potencial arqueológico nulo” ou
“ausência de interesse arqueológico”.
12
0
20
40
60
80
100
120
140
160
180
Aru
Barueri
Biritiba
-
Mirim
Caieiras
Cajamar
Carapicuíba
Cotia
Diadema
Em
Embu-Guaçu
Ferraz de Vasconcelos
Francisco Morato
Franco da Rocha
Guararema
Guarulhos
Itapecerica da Serra
Itapevi
Itaquaquecetuba
Jandira
Juquitiba
Mairiporã
Ma
Mogi das Cruzes
Osasco
Pirapora do Bom Jesus
Poá
Ribeirão Pires
Rio Grande da Serra
Salesópolis
Santa Isabel
Santo And
São Bernardo
São Caetano
São Loureo da Serra
São Paulo
Suzano
Taboão
Vargem Grande Paulista
Relação entre total de projetos realizados e projetos que resultaram no cadastramento de
sítios arqueogicos por município da região administrativa de São Paulo
Projetos de arqueologia Projetos de arqueologia que resultaram no cadastramento de sítios arqueológicos
Aqueles projetos que localizaram as chamadas “ocorrências arqueológicas” ou
vestígios que, teoricamente, teriam interesse arqueológico, não foram incluídos como
projetos que resultaram no achado de sítios arqueológicos, apesar de alguns vestígios
localizados serem bastante relevantes, nem por isso gerando aprofundamentos das
pesquisas ou programas de prospecção. Alguns relatórios ainda trazem informações sobre
as sucessivas e, por vezes, enormes, camadas de aterros na cidade de São Paulo, reflexo da
evolução urbana, dos diálogos com a paisagem e da relação homem-natureza, uma vez que
aterros são artefatos produzidos pelo homem, portanto relacionados a culturas e visões de
mundo. Mas a regra geral é desconsiderá-los do ponto de vista da relevância arqueológica.
Como é possível que alguma área da cidade não possua “relevância” arqueológica?
Foi possível inferir, igualmente, pelos cadastramentos, que a grande maioria dos
sítios na região metropolitana são históricos não obstante a ínfima produção acadêmica
sobre eles (JULIANI 1996; ZANETTINI 2005; VILAR 2007; CARVALHO 1999). A
mesma relação percentual se mantém para a cidade de São Paulo:
13
Em linhas gerais, finalmente, o que pode ser notado através da consulta aos projetos
de arqueologia presentes no IPHAN-SP é um grande descompasso entre um discurso, que é
descrito nos próprios projetos, com definições sobre Arqueologia Histórica e Arqueologia
Urbana, acompanhado da justificativa destes projetos e da relevância da arqueologia na
cidade, com os resultados das pesquisas ressaltando o potencial arqueológico nulo do meio
urbano, ignorando sua complexa estratigrafia, assim como suas edificações e outras
modificações urbanas na paisagem, ou mesmo liberando áreas que, teórica e aparentemente,
não teriam potencial arqueológico em sub-superfície, sem se quer realizarem intervenções e
sondagens. “Se o sítio arqueológico, no caso da arqueologia urbana, é a cidade inteira, cada
compartimento desse sítio – rua, quadra, edifício, várzea, fábrica – será um contexto
arqueológico, ou seja, cada ente da cidade será um fragmento do tio arqueológico, o que
equipara em termos de relevância os fragmentos enterrados – objetos de atuação por
excelência da arqueologia e as informações fornecidas pela paisagem, pela bibliografia e
pela iconografia” (BAVA DE CAMARGO 2009).
Se a cidade é o “sítio”, não pode haver intervenções dentro deste “sítio” que não
resultem em indícios arqueológicos; não faz sentido negar um caráter arqueológico na/da
cidade afirmando-se que ela é antrópica... Termos como “antropizados” ou “antrópicos”
não poderiam ser usadas para justificar a ausência de artefatos arqueológicos, uma vez que
sua utilização gera uma incongruência conceitual, que “antrópico” e “arqueológico” não
são opostos ou mutuamente excludentes, se a Arqueologia se define, precisamente, como o
estudo do antrópico (do grego άνθρωπος, anthropos, homem) daí a indignação de
arqueólogos quando existe um senso comum que os associa aos dinossauros. Se é possível
86%
10%
4%
Categorização dos sítios arqueológicos da região
administrativa de São Paulo
Históricos Ceramistas Caçador-Coletor
82%
8%
10%
Categorias dos sítios arqueogicos da cidade de São
Paulo
Históricos Ceramistas Caçador-Coletor
14
que o subsolo da cidade não seja, intrinsecamente, arqueológico em sua essência, também
não se poderia desconsiderar a possibilidade de localizar sítios como o Petybon (São
Paulo), Instituto Bom Pastor (São Paulo), Linhão (São Bernardo), Chácara Cayres (São
Bernardo), Fundação (São Caetano), Morumbi (São Paulo), Casa do Itaim (São Paulo) e
muitos outros.
Com isto não digo que aterros devem ser cadastrados como sítios arqueológicos,
mas que deve ser efetuada uma leitura arqueológica do meio urbano e que monitoramentos
de gasodutos no meio de avenidas podem gerar conhecimento arqueológico sobre a
evolução urbana da cidade. Falta, para Bava de Camargo (ZANETTINI ARQUEOLOGIA
2009), nestas abordagens, pensar o processo de urbanização paulistana através da
arqueologia, efetuando uma arqueologia para a cidade de São Paulo. Pensando esta
Arqueologia Urbana, sistematizei algumas idéias na dissertação, sempre pautando-me nas
perguntas feitas para e pelo sítio arqueológico, distribuídas ao longo dos capítulos 2, 3 e 4.
O capítulo 2 teve como objetivo apresentar as análises e os artefatos do sítio
Petybon. Como o sítio é uma unidade fabril de cerâmica branca, alguns dos objetos e
alguns dos atributos que elenquei são desconhecidos. Por isso, na medida do possível,
procurei explicar as categorias e o que são, para que servem e o que significam, em especial
em relação àqueles artefatos que compõem o “mobiliário do forno” utilizado para a
fabricação das faianças finas em uma cadeia produtiva de caráter taylorista.
A partir de algumas problemáticas levantadas pela análise da cultura material,
organizei a dissertação agrupando as questões concernentes a um “fora da Fábrica” e um
“dentro da Fábrica”, isto é, em aspectos da produção e aspectos do consumo passíveis de
serem pensados pela interpretação do material arqueológico. Com isto não quero dizer que
produção e consumo sejam, de modo algum, esferas separadas; as utilizei para fins
didáticos. Cada universo foi dividido em sub-capítulos, com temáticas específicas, mas que
se coadunam. Optei por realizar os sub-capítulos na forma de ensaios, bebendo um pouco
da ânsia de flexibilidade e novas possibilidades interpretativas que o gênero do “ensaio”
ganhou com Burckhardt (1991: 19).
O capítulo 3 refere-se a questões pensadas no “lado de dentro da Fábrica”, na esfera
da produção, com a história de seu desenvolvimento, seus funcionários, sua cadeia
operatória, os defeitos gerados durante este processo, e seus consumos, a relação das louças
15
com as teses higienistas na cidade, a presença das impressões digitais, o diálogo com a
presença do trabalhador na produção e a análise dos artefatos com inscrição a lápis que
foram localizados durante as escavações.
o capítulo 4 aponta questões da esfera do consumo e do consumidor das louças
em faiança finas nacionais, com reflexões sobre formas e volumes, técnicas e motivos
decorativos, além de uma imersão no universo das louças nas publicidades de periódicos e
nos inventários da grande São Paulo durante os anos 1910 e 1930.
Por fim, as considerações finais estão no capítulo 5, no qual procurei mostrar como
algumas idéias e projetos de modernidade para São Paulo determinaram aspectos de leituras
da cidade que influenciaram até mesmo as categorias de análise que elenquei para as
louças, pautando-me nas críticas que a teoria pós-colonial faz de certas abordagens. Assim,
aponto também à carga ideológica e política que marca a Arqueologia, e que levou à
construções de noções de “cópia” ou de “sala de espera da modernidade” por toda a
América Latina, tentando, talvez, aproximar-me, um pouco, daquilo que Gramsci (2000)
uma vez propôs como “intelectual orgânico” ou Said como “intelectual secular” ou
“exilado”. Este não é um capítulo sobre teoria arqueológica, pois busquei por toda a
dissertação não apartar a teoria da cultura material, da materialidade de seus fundamentos
(CONSENS 2004: 143).
É claro que nada do que foi dito acima seria possível sem a escavação do sítio
Petybon no ano de 2003 e o esforço do arqueólogo Paulo Zanettini e equipe, composta, à
época, por Camila Moraes Azevedo Vichiers, Ana Cristina Jutgla, Daniella Magri Amaral,
João Henrique Rosa, Leandro Domingues Duran, Luiz Fernando Erig Lima, Paulo José de
Lima, Gabriela Farias, Leandro Key Higuchi Yanaze, (através do trabalho de contrato
efetuado pela Zanettini Arqueologia), não apenas para escavar, como também para
“convencer”. Da mesma maneira, sem a presença do Departamento de Patrimônio Histórico
(DPH) nem mesmo uma vistoria teria sido feita no local.
No âmbito acadêmico, não teria sido possível pensar o Petybon sem o apoio da
Profª. Drª. Margarida Andreatta e sem o auxílio financeiro prestado pelo CNPq através de
uma bolsa de mestrado. Ao início, no entanto, desta pesquisa no âmbito da universidade,
devo agradecer ao Prof. Dr. Pedro Paulo Funari, pela longa orientação durante toda a
graduação. Ao Museu de Arqueologia e Etnologia da USP pelo suporte dos laboratórios e
16
pela salvaguarda de parte da coleção gerada pelo sítio Petybon, um “elefante branco” que
poucas instituições quiseram como acervo.
Muitas foram as pessoas que auxiliaram, de algum modo, nesta pesquisa. Agradeço,
primeiramente, aos trabalhadores da Fabrica de Porcelana Monte Sião, sem os quais, e sem
a qual, não teria compreendido nem um décimo do processo produtivo e do cotidiano fabril
da Fábrica Santa Catharina e IRFM São Paulo. À Renata Xavier Amaral, Jaqueline
Lourenço, Fábio Carvalho, Flávia Azevedo, Lettícia Leite, Sérgio Francisco, Grasiela
Toledo, Silvana Zuse, Louise Alfonso, Márcia Lika Hattori, Camila Moraes Vichiers,
Michelle Tizuka, à Prof. Dr. Fabíola Silva pelas sugestões durante o exame de qualificação,
Flávia Godoy, Simone Domingos, à Prof. Dr. Lourdes Domingues, Luana Antonetto,
Juliana Luz, Roberta Calábria Albertim, à equipe do setor de arqueologia da 9ª Sub-
regional do IPHAN em São Paulo, sem a qual não haveria acesso à coleção IPHAN, ao
Prof. Dr. Luiz Cláudio Symanski e ao Prof. Dr. Paulo Zanettini. Ao Prof. Dr. Carlos
Appoloni e a Prof. Gelvam Hartmann. Por fim, a D. Eduardo Fagundes, descendente da
família Fagundes, os primeiros proprietários da Fábrica, e a Sra. Ignez Cavalheiro,
moradora que conviveu com a Fábrica, pelas conversas que me auxiliaram, em muito, a
conhecer o mundo dos produtores, por um lado, e dos consumidores, por outro. A meus
pais, Ângela e Elias, por todo o suporte à dissertação, e a Carol e Natália.
17
CAPÍTULO 1
PROGRAMA DE PROSPECÇÕES E RESGATE ARQUEOLÓGICO DO SÍTIO
PETYBON – ESCAVANDO UMA UNIDADE FABRIL E UM ATERRO DE
CERÂMICA NA CIDADE
Landfills are important to archaeologist because we learn
about past societies by excavating buried discards (...)
landfills are, as archaeologists who excavate older dumps
must suspect, millions of small lenses from millions of diverse
deposition episodes (…) Landfills digs have recorded
traditional types of archaeological data on changing life
ways… (RATHJE, HUGHES, WILSON, TANI, ARHCER,
HUNT & JONES 1992: 444)
As cidades trazem em si camadas superpostas de resíduos
materiais (...) Poucas vezes mantidos em sua integridade,
sobrevivem na forma de fragmentos, resíduos de outros
tempos, suportes materiais da memória, marcas do passado
inscritas no presente. (BRESCIANI 1999: 11)
SUB-CAPÍTULO 1.1
PROGRAMA DE PROSPECÇÕES E RESGATE DO SÍTIO ARQUEOLÓGICO
PETYBON
No ano de 2003, uma vistoria de técnicos do DPH/PMSP a um terreno na Vila
Romana, bairro da Lapa, zona metropolitana da cidade de São Paulo, localizou fragmentos de
louças que, segundo relatos dos moradores, estariam associados a uma antiga fábrica
existente no local. Um documento foi gerado (“Potencial arqueológico da Fábrica de Louças
Santa Catharina. Documentação do sítio Petybon”) pela arqueóloga Lúcia de Jesus Cardoso
Oliveira Juliani dando parecer favorável à presença de vestígios móveis (louças), com
integridade entre 25-75%, levando ao cadastramento do local como sítio arqueológico.
Passou a ser conhecido no CNSA/IPHAN como sítio Petybon, denominação que remete à
última fase de atividades desempenhada na unidade fabril outrora existente (Fábrica de
Biscoitos Petybon). O documento previa a necessidade de se promover prospecções
arqueológicas no terreno, anteriormente à implantação de um empreendimento imobiliário no
local, o condomínio Paradiso Vila Romana.
18
À época, a avaliação deu-se a partir da análise de áreas adjacentes ao terreno que seria
submetido a um programa de prospecções
3
, assim como através de inferências tomadas dos
registros textuais e iconogficos identificados pelo DPH/PMSP. Nesta vistoria não foram
efetuadas intervenções arqueológicas propriamente ditas, no subsolo da propriedade, e a
qualificação de seu potencial exigiu, desta maneira, a conformação de um programa de
prospecções com abordagem abrangente e sistemática, no sentido de avaliar as proposições
do DPH e, em caso positivo, contextualizar e exumar os vestígios remanescentes.
Foi assim que, em agosto do mesmo ano, a empresa Zanettini Arqueologia foi
contratada para dar início a um programa de prospecções e resgate no sítio Petybon, sob
autorização federal de pesquisa IPHAN/MinC Portaria 151 de de Agosto de 2003, em
terreno então pertencente à Companhia Mofarrej de Empreendimentos, contando com
aproximadamente 13,5 mil m², sob coordenação do arqueólogo Paulo Eduardo Zanettini. O
terreno atualmente localiza-se entre as ruas Fábia, Coriolano e Aurélia, na Vila Romana,
bairro da Lapa (coordenada UTM 23 K 0326574 / 7397261). A área incide sobre parcela de
terreno originalmente pertencente ao complexo industrial de Louças Santa Catharina, a qual
sofreu paulatinas transformações em seu layout, de modo a atender a novas finalidades (no
caso, a produção de gêneros alimentícios), até sua completa desativação no final dos anos
1980.
As atividades do programa arqueológico sistematizaram fontes textuais, cartográficas,
iconográficas e testemunhos orais que permitiram estabelecer o processo ocupacional e as
transformações vivenciadas pela área desde a implantação da fábrica de louças em 1913.
Foram organizadas em duas fases: uma primeira, que abarcou prospecções geofísicas não
invasivas com a utilização do Radar de Penetração no Solo (GPR), levada a cabo em julho de
2003, e uma segunda, que concerniu nas escavações arqueológicas propriamente ditas,
envolvendo intervenções em sub-superfície, realizadas em agosto do mesmo ano.
As prospecções com o GPR abrangeram 36% do terreno submetido a estudos, ou seja,
3.500 m²; para a área definida como de maior potencial arqueológico, foi utilizada uma
antena de 100 Mhz, de maior penetração, totalizando 1.842 m² de recobertura. A efetuação de
prospecções geofísicas através do GPR propiciou a definição de áreas dotadas de maior
potencial arqueológico para posteriores escavações; por outro lado, o Radar auxiliou a equipe
3
Na época, o terreno submetido aos estudos possuía aproximadamente 13,5 mil m², enquanto a área da antiga
Fábrica que ali existia ocupava terreno com cerca de 36 mil m². O restante do terreno original, hoje, é cortado
por duas ruas e possui algumas casas. Por isso se as pessoas cavarem seus quintais irão encontrar, sem sombra
de dúvida, muitas louças.
19
de arqueologia na tomada de decisões dos locais que não deveriam, de modo algum, ser
submetidos à perfurações, e dos que se caracterizaram como zonas intensivamente
perturbadas, reduzindo-se custos e danos desnecessários a equipamentos públicos ainda em
uso, como redes de água e esgoto (ZANETTINI ARQUEOLOGIA 2003).
20
De posse de alguns dados históricos, da análise cartográfica, e do estudo geofísico,
passou-se à etapa de escavação. Foram abertas, manualmente ou com auxílio de maquinário,
um total de 39 unidades de escavação (denominação dada a todas as intervenções sub-
21
superfície, independente de seus formatos e tamanhos), que variaram de sondagens métricas
(1 x 1 m) a escavações controladas de 4 a 30 m² (ZANETTINI ARQUEOLOGIA 2003).
As primeiras intervenções objetivaram a qualificação dos estratos arqueológicos e a
seleção de áreas dotadas de vestígios a serem submetidas a escavações de detalhe, gerando
um primeiro zoneamento do sítio Petybon. Deste modo, três grandes zonas de interesse e
potencial (especialmente para vestígios móveis) foram definidas, a saber:
1) Zona de baixo potencial arqueológico
2) Zona de médio potencial arqueológico
3) Zona de alto potencial arqueológico
A Zona de baixo potencial arqueológico (UE 5 a 28) foi aquela voltada para as ruas
Aurélia, Coriolano e Fábia, a leste do terreno, conformando um pequeno plaelevado, cuja
cota, na época, era levemente inferior ao nível da rua Coriolano. Segundo as plantas
históricas, esta era a área ocupada pelas edificações que compunham a Fábrica Santa
Catharina e mais tarde a Petybon, às quais sofreram diversas reformas e demolições ao longo
dos anos. Por isso, a área apresentou baixa densidade de artefatos, com predominância de
elementos estruturais como vigas, baldrames, seções de canaletas, tubulações de água e
caixas de concreto.
A Zona de médio potencial arqueológico (UE 1, 2, 30 e 31), na porção oeste do
terreno era, segundo a cartografia, parcialmente ocupada por edificações, servindo também de
pátio aberto para carga e descarga, descarte de material, etc., o que acarretou seqüencias bem
delineadas de camadas de aterramento aplicadas para proporcionar a elevação da cota original
e a impermeabilização do local, uma vez que por ali passava um córrego que cortava a
propriedade. Esta drenagem foi canalizada anteriormente à década de 1930 (ZANETTINI
ARQUEOLOGIA 2003), e a galeria dela originada estava alinhada com os atuais traçados
das ruas Marco Aurélio e Cipião segundo análise obtida pelo GPR, todas as tubulações
antigas de águas pluviais do complexo corriam para esta galeria.
Nesta zona, foram abertas grandes unidades de escavação lineares, com orientação
Norte/Sul, com objetivo de fornecer uma visão mais ampla do comportamento estratigráfico
do terreno e das sucessivas intervenções promovidas desde o início do século XX até os anos
1980. As escavações mostraram que a Fábrica Santa Catharina conduzia suas águas por meio
de canaletas de tijolos em forma de arco, rumo à drenagem, tendo sido ampliada e
remodelada com alvenaria de concreto pela fábrica de biscoitos. Boa parte das escavações
22
desta zona atingiu rapidamente o nível freático, situado à 0,70 m de profundidade,
acarretando interrupção das intervenções (especialmente pela qualidade da água aflorante,
contaminada em virtude de um rompimento de ramal de esgoto) (ZANETTINI
ARQUEOLOGIA 2003). Tais aspectos (a presença do córrego e do lenço freático bastante
superficial) caracterizaram o terreno como um ambiente relativamente úmido, submetido a
constantes enchentes, e encharcamentos, o que nos leva a entender, por vezes, a presença dos
aterros e do uso da cerâmica como elemento drenante. Voltarei a isto mais a seguir.
Por fim, o que foi delimitado como Zona de alto potencial arqueológico (UE 3, 4,
32) estava circunscrito a uma pequena porção a oeste da propriedade, e parece ter sofrido
menos interferências em relação às demais zonas, apresentando depósitos de material
cerâmico lacrado, bem como alguns vestígios de edificações remanescentes da fase inicial de
ocupação do terreno. Apesar disso, não faltam intervenções posteriores como passagens de
tubulações, fossas, etc. Também se observou a presença de camadas de aterro, compostas, no
entanto, por terra argilosa escura, rica em cinzas e carvões, associadas a louças e azulejos,
indicando uma provável proximidade a um dos fornos outrora existentes (ZANETTINI
ARQUEOLOGIA 2003). Abaixo desta camada foi localizada uma canaleta construída com
tijolos e argamassa de barro que se prestou, no passado, ao lançamento de fluídos ricos em
pigmentos (ZANETTINI ARQUEOLOGIA 2003). As escavações na área também foram
efetuadas com cautela, uma vez que o subsolo apresentava-se contaminado graças ao
rompimento de uma tubulação clandestina de esgoto, o que ocorreu antes do início dos
programas arqueológicos. É preciso ressaltar que as camadas de aterro desta zona
apresentaram artefatos associados ao processo de produção da fábrica de louças (caixas
refratárias, cones pirométricos, mobiliários do forno).
23
(ZANETTINI ARQUEOLOGIA 2003)
Planta da escavação
24
Abaixo, a planta da escavação sobreposta à aerofotogrametria tirada em 1958, quando
a Fábrica produzia biscoitos (alimentos). Percebe-se que a zona de baixo potencial
arqueológico está relacionada à área dos galpões (daí também a localização de muitos
alicerces) e a zona de alto potencial arqueológico a região com menos construções (UEs 1, 2,
3, 4, 29, 30, 31, 32). A quantidade de bolsões e aterros com louças aumenta quando nos
dirigimos ao quintal da fábrica. Posso apenas imaginar a quantidade, portanto, de louças que
está sob o piso das casas na quadra entre as ruas Coriolano, Fábia e Catão, a oeste.
25
SUB-CAPÍTULO 1.2
FÁBIA, AURÉLIA, CORIOLANO E CATÃO NA VILA ROMANA: EVOLUÇÃO
URBANA E OCUPAÇÃO
Enquanto trabalho de Arqueologia Urbana, é metodologicamente importante
explicitar alguns aspectos da evolução e da ocupação do terreno destinado, inicialmente, à
implantação da Fábrica Santa Catharina, em 1913, delimitada pelas ruas Coriolano, Fábia,
Aurélia e Catão, na Vila Romana, bairro da Lapa, relevante à compreensão da formação e da
história do registro arqueológico. A documentação utilizada, basicamente, pautou-se nas
plantas do local, além de alguns documentos oficiais e relatos orais.
As origens da ocupação colonial na Lapa tiveram início nos anos de 1560, quando os
jesuítas receberam uma sesmaria próxima ao rio Pinheiros (então chamado Emboaçava ou
Boaçava, do tupi lugar por onde passa”). Ao final do século XVI, a localidade vivia em
função do caminho para Santana do Parnaíba, através de sua variante que seguia para Jundiaí
e Campinas, bastante usada por grupos tropeiros (SANTOS 1980: 31). Esta ocupação esparsa
teria continuado até meados do século XVIII quando os jesuítas estabeleceram uma colônia
conhecida como “fazendinha da Lapa”, em homenagem a Nossa Senhora do Santuário da
Lapa de Lisboa, abandonando o local em 1743 destarte a permanência do nome. Em 1765,
a paragem do Emboaçava contava com cinco casas com 13 homens e 18 mulheres
(SEGATTO 1988: 9); novo arrolamento realizado em 1800, pela autoridade eclesiástica da
Sé, já apontava para um total de 221 habitantes: 127 mulheres e 94 homens, sendo destes 115
escravos (SANTOS 1980: 32). Do início do século XIX até 1867, foi rota de tropeiros e
viajantes que se dirigiam a Itu e ao sertão ou do sertão ao litoral, utilizando-se da ponte do
Coronel Anastácio. Este apoio à circulação extra-regional deu-se pela existência, segundo
Saint-Hilaire e D’Alicourt, de um pouso de tropas para Ramos (2001: 59), o mesmo estaria
hoje localizado às margens da estrada de Jundiaí e próximo ao córrego onde está o Shopping
Bourbon e a Praça Marrey Júnior. A partir de meados do século XIX, vê-se a proliferação de
olarias e agricultores em pequenos grupos de trabalhadores, especialmente na área hoje
conhecida como Lapa de Baixo, já com a presença de alguns imigrantes.
Em 1867, é inaugurada a estação da Companhia Inglesa; tanto a Lapa quanto a Água
Branca constituíam-se, à época, por olarias e sítios (SANTOS 1980: 45). Antes da
incorporação do bairro ao que efetivamente se compreendia como núcleo urbano da cidade de
26
São Paulo, em meados de 1880, a localidade fornecia produtos primordiais à cidade, via sítios
e chácaras, compondo o que ficou conhecido como “cinturão caipira”. O bairro da Água
Branca foi ligado a Lapa apenas em novembro de 1925, quando a prefeitura recebeu do Dr.
Paulo de Souza Queirós as áreas livres entre as ruas Guaicurús, Coriolano, Clélia e Faustolo
(SANTOS 1980: 66).
Em 1888 foi iniciado o loteamento da Vila Romana, a primeira iniciativa de ocupação
sistemática urbana na Lapa (ZANETTINI ARQUEOLOGIA 2003). O loteamento seguiu um
traçado hipodâmico com nomenclaturas de clara inspiração clássica (greco-romana), tão
popular nesta virada de século. Em 1891, foi feito o loteamento do Grão Burgo da Lapa, hoje
Lapa de Baixo; é nesse período também que ocorreram as instalações das primeiras indústrias
e o estabelecimento, em 1899, da estação da São Paulo Railway, que transformou o local em
pólo de atração de mão-de-obra, especialmente operária. Quanto ao transporte urbano, os
bondes haviam chegado em 1903, enquanto, além da São Paulo Railway, o bairro contou
com a Companhia Sorocabana em 1958, e os primeiros ônibus em 1924 (SEGATTO 1988:
59).
Os loteamentos que deram origem a estes bairros foram, de todo modo, intencionais.
Desde a crise da abolição e o advento da República, tornara-se prática corrente dos donos de
terrenos e chácaras na área urbana lotearem, arruarem ou venderem, para esse fim, suas
propriedades (SEVCENKO 1992). Assim foram se adensando bairros já existentes, se
formando outros novos e aparecendo núcleos coloniais mais distantes. Pelas várzeas,
acompanhando as linhas de trens, se instalavam as indústrias e se formavam os bairros
operários (Brás, Pari, Mooca, Ipiranga, Bom Retiro, Barra Funda, Água Branca). Ressalta-se
o papel da Light, instalando as paradas finais de suas linhas em pontos extremos pouco
povoados, como a Lapa, Santana, Penha, Pinheiros, gerando “fluxos irradiados de valorização
imobiliária que, seguindo as direções das linhas, suscitavam a criação de loteamentos em
áreas remotas” (SEVCENKO 1992: 123).
É necessário lembrar o estabelecimento não-aleatório de indústrias e bricas em São
Paulo, as quais parecem ter seguido um eixo que compreendia os baixos terraços dos rios
Tietê e Tamanduateí, junto às linhas férreas Santos-Jundiaí e Sorocabana (RAMOS 2001:
38). Isto, não apenas pela ferrovia ser o principal meio de transporte da época, mas também
pelo fato de que cortavam terrenos planos, amplos, baratos e, teoricamente, impróprios a
função residencial. É preciso igualmente ressaltar que a presença das fábricas o extinguiu,
de repente, as antigas chácaras, que por cerca de 40 anos co-existiram com as indústrias,
27
desaparecendo apenas a partir dos 1930 (RAMOS 2001: 65). Talvez seja por isto que, para o
período de estudo deste mestrado, 1913 a 1937, a Lapa fosse um bairro considerado zona
rural pela administração municipal, alçando o título de zona suburbana somente nos anos
1940.
Dentre algumas das indústrias que se estabeleceram na Lapa, somadas às antigas
olarias, pode-se citar a Vidraria Santa Maria, em 1896, as Oficinas da São Paulo Railway, em
1900, a Fábrica de Tecidos e Bordados Lapa, em 1913, a própria Fábrica de Louças Santa
Catharina, em 1913, a Fundição Progresso, em 1916, a Fiat Lux e a Companhia
Melhoramentos, em 1919, etc. Muitas das fábricas pertenciam aos Matarazzo. Na região da
Água Branca, as IRFM iniciaram o enorme complexo industrial que deu origem ao Parque da
Água Branca, que, nos anos 1950, tornou-se o maior complexo industrial da América Latina
4
(RAMOS 2001: 79). Isto acelerou o crescimento do bairro e fez com que sua população que,
em 1920, era de 22 mil habitantes, passasse, em 1950, para 90 mil (SEGATTO 1988: 59).
Somente a partir dos anos 1970 e ao longo da década de 1980 é que houve uma
drástica mudança nas feições da Lapa, acarretada pelo início da saída das indústrias para o
interior de São Paulo, seguida da derrubada dos galpões, antes ocupados pelas fábricas e suas
substituições por edifícios residenciais. Os empreendedores perceberam que a região possuía
boa infra-estrutura, centro comercial movimentado, boa rede de transportes, além de saída
para as rodovias Anhangüera e Bandeirantes (GARBIN 2003).
Portanto, o delineamento da quadra que corresponde ao sítio Petybon, assim como da
quadra que corresponde à antiga Fábrica Santa Catharina, delimitada pelas ruas Aurélia,
Coriolano, Fábia e Catão, deu-se neste contexto de loteamento da Vila Romana. No entanto,
alguns aspectos de sua formação devem ainda ser esclarecidos. Atualmente, o que se percebe
é a existência de três quadras conformadas uma pelas ruas Catão, Coriolano, Fábia e Antonio
Califari, outra pelas ruas Henrique Elkis, Aurélia, Coriolano e Fábia (sítio Petybon), e uma
menor formada pelas ruas Antônio Califari, Henrique Elkis, Coriolano e Fábia; no entanto,
estas três quadras formavam, aparentemente, uma única quadra quando do início do
loteamento, totalmente ocupada pela Fábrica Santa Catharina e depois pela Petybon, que a
rua Antônio Califari e a Henrique Elkis não existiam. Ao menos enquanto ruas. As plantas
antigas da cidade de São Paulo, nas quais consta o bairro, mostram uma continuação, que
corta a quadra sentido Norte/Sul, entre as ruas Cipião e Marco Aurélio, como se ambas
4
Infelizmente, o complexo industrial Matarazzo, do começo do século XX, na Água Branca, foi praticamente
destruído, “com o aval da Secretaria de Cultura e Estado, que o considerou apenas como uma listagem de
edifícios e de eventuais equipamentos que eles pudessem abrigar” (MENESES 1988: 69).
28
fossem uma só. Apesar disso, plantas contemporâneas, por vezes, não dividem a quadra em
dois, e mostram a presença da Fábrica em apreço ocupando toda a quadra (daí ser paradoxal a
existência de uma rua que cortasse o complexo ao meio).
Uma das possibilidades pensadas para o fato é a de que existiria uma passagem pelo
terreno, que nunca foi rua, mas que acabou ficando marcada na paisagem e por isso foi
desenhada em muitas plantas por o ser oficial, por vezes não constava. Esta passagem,
aparente continuação da rua Cipião para dentro da quadra, sobrepõe-se ao traçado do antigo
córrego que cortava a quadra longitudinalmente. A canalização do mesmo foi anterior aos
anos 1930 e as pesquisas arqueológicas localizaram sua galeria alinhada às ruas Cipião e
Marco Aurélio. Segundo um antigo morador do bairro, o Senhor Antonio Felippe
5
, residente
desde 1937, sobre a passagem que se tornou mais tarde a rua Antônio Califari, diz o seguinte:
... Aqui não existia... foi fechado aqui. Isso aqui não era um loteamento, eram terras
devolutas, não tinha dono. O Ranzini ficou com tudo isso aqui. A Matarazzo comprou toda
essa área do Ranzini. Na divisa entre a Matarazzo e a parte que foi dada como herança para
sua filha, um pequeno rio que fica justamente na ligação das ruas Marco Aurélio e
Cipião; você pode ver nas plantas dele, ele não diz que isso aqui é dele. O Mofarrej é que
pôs. Eles fecharam isso aqui porque o pessoal atravessava pelo meio da fábrica e, por
conveniências, eles fecharam. Aí foi crescendo... (ZANETTINI ARQUEOLOGIA 2003).
Quando da análise das plantas da Vila Romana, percebi uma dinâmica interessante no
que concerne à representação do traçado desses arruamentos. Chamo, deste modo, atenção
para as diferentes configurações da quadra (ou quadras) na qual estava contida a Fábrica
Santa Catharina e que contém o sítio Petybon. Percebi a co-existência de 3 configurações
distintas de apresentação da área, cujos layouts são:
5
O Senhor Antonio Felippe, nasceu em 1925, e aos 12 anos foi morar na Lapa, na rua Lituânia, próximo as ruas
Tito, Coriolano, Fábia, Aurélia e Catão, com seu pai, o italiano Nicola Felippe, vindos do município de o
Manoel, estado de São Paulo. Seu irmão mais novo trabalhou na Fábrica.
Configuração 1
Quando a quadra é apresentada inteira, com formato retangular,
delimitada pelas ruas Aurélia e Catão (latitudinalmente) e Coriolano
e Fábia (longitudinalmente), com seus aproximados 36 mil m².
Coriolano
Fábia
Catão
Aurélia
29
que se levar em consideração toda a intencionalidade destas plantas enquanto
discursos de poder e que retenções e controle de informações sobre um espaço físico muitas
vezes anteciparam a posse desse espaço (PASSOS 2009: 19); as configurações percebidas
aqui têm relação com a parcialidade dos mapas que poderiam estar utilizando “artifícios
cartográficos” a serviço de algum indivíduo ou grupo (PASSOS 2009: 19).
A seguir, apresento as plantas analisadas (recortadas e acompanhadas por um zoom).
Observo que entre as quadras da Vila Romana, o córrego do Mandy se faz sempre presente, a
apenas uma ou duas quadras da Fábrica Santa Catharina, mas não nenhuma representação
do córrego que se sobrepõe ao traçado atual das ruas Cipião e Marco Aurélio.
1 - Planta Geral da Cidade de São Paulo – 1905 (PASSOS & EMIDIO 2009: 48-49)
Configuração 2
Quando a quadra é apresentada dividida em duas, com formatos
quadrangular, com uma extensão da rua Cipião (ou Marco Aurélio)
cortando o terreno em sentido norte-sul. Assim, formaram-se as
quadras delimitadas pelas ruas Catão, pela continuação da Cipião
(latitudinalmente), Coriolano e Fábia (longitudinalmente), e pelas
ruas continuação da rua Cipião, Aurélia (latitudinalmente),
Coriolano e Fábia (longitudinalmente). A quadra da direita é quase
a quadra que, em 2003, configurou o sítio Petybon.
Aurélia
Catão
Fábia
Coriolano
Cipião
Configuração 3
Quando é apresentada uma quadra quadrangular delimitada pelas
ruas Aurélia, Fábia, Coriolano e pela extensão da rua Cipião, e uma
quadra retangular, que não apresenta conexão entre as ruas Catão e
Fábia, formada pelas ruas Coriolano, Catão, pela extensão da rua
Cipião, e pela rua que ora aparece designada como Tito ora
Cincinato. A quadra da direita é quase a quadra que, em 2003,
configurou o sítio Petybon.
Aurélia
Coriolano
Fábia
Catão
Cipião
Cincinato/Tito
30
3 - Planta da cidade de São Paulo – 1913 (PASSOS & EMIDIO 2009: 60-61)
4 - Planta geral da cidade de São Paulo – 1914 (PASSOS & EMIDIO 2009: 74-75)
2 - Locação de Linhas Aéreas - sem data (PASSOS & EMIDIO 2009: 62). Provavelmente feito em torno de 1911
31
6 - Planta da cidade de São Paulo – 1916 (PASSOS & EMIDIO 2009: 77-78)
7 - Planta geral da cidade de São Paulo 1916 (Secretaria de Estado, de Economia e Planejamento, Instituto
Geográfico e Cartográfico – ICG. Acervo – Tombo: 1153)
5 - Planta geral da cidade de São Paulo - Comissão Geographica e Geologica - 1914 (Reconstituição da
Memória Estatística da Grande São Paulo, 1983)
32
8 - Planta da cidade de São Paulo para indicador prático – 1922 (PASSOS & EMIDIO 2009: 82-83)
9 - Planta da cidade de São Paulo mostrando todos os arrabaldes e terrenos arruados 1924 (PASSOS &
EMIDIO 2009: 84-85)
10 - Map of the city of São Paulo showing public utilities operated by subsidiary companies 1924 (PASSOS &
EMIDIO 2009: 122-123)
33
13 - Projeto preliminar para iluminação pública da cidade de São Paulo – 1926 (PASSOS & EMIDIO 2009: 102-103)
11 - São Paulo tramways: Origins of Traffic – 1925 (PASSOS & EMIDIO 2009: 90-91)
12 - Planta da cidade de São Paulo e municípios circunvizinhos – 1926 (PASSOS & EMIDIO 2009: 97)
34
Com base nas plantas de 1905 e 1913 (plantas 1 a 3), nota-se a existência de uma
possível construção no terreno, com fachada voltada para a rua Coriolano, anterior à
ocupação da Fábrica Santa Catharina, mostrando que a área não era de todo inabitada (sede
de uma chácara?). A quadra ainda não está completamente formada, faltando a continuação
das ruas Aurélia, Catão e Fábia. A planta de 1914 (planta 4) marca com um ícone a presença,
na quadra, da Fábrica de Louças Santa Catharina. Nela percebe-se os projetos de continuação
das ruas Coriolano e Fábia em direção ao córrego do Mandy. A planta de 1916 (planta 6)
representa as edificações que compunham a Fábrica, com fachadas voltadas para as ruas
Coriolano, Fábia, Aurélia e a continuação da rua Cipião.
Apenas a partir da década de 1940, as plantas não mostram mais a quadra dividida por
uma continuação da rua Cipião, nem o não prolongamento da rua Fábia até a rua Catão. Fixa-
se, portanto, a configuração da quadra delimitada pelas ruas Catão, Aurélia, Fábia e
Coriolano dentro da qual havia se estabelecido a Fábrica Santa Catharina. Deste modo, as
plantas de número 1, 2, 3, 10, 12, 14, 15, 17, 18 e 19 apresentam a quadra de 36 mil
adquirida para a implantação da Fábrica (configuração 1); as plantas 8, 9, 11 e 13 a
configuração 2; e as plantas 4, 5, 6, 7 e 16 a configuração de número 3. Portanto, a
concomitância das três configurações.
14 - Estudo de um plano de avenidas para a cidade de São Paulo – 1930 (PASSOS & EMIDIO 2009: 138-139)
35
15 - Mapa Topográfico do Município de São Paulo 1934. Levantamento do SARA BRASIL (ZANETTINI
ARQUEOLOGIA 2003)
16 - Distribuição das instituições de assistência filantrópica na cidade de S. Paulo 1935 (Revista do Arquivo
Municipal, ano III, v. XXX)
36
17 - Planta da cidade de São Paulo e municípios circunvizinhos - 1943 (Secretaria de Estado, de Economia e
Planejamento, Instituto Geográfico e Cartográfico – ICG. Acervo – Tombo: 1153)
18
-
São Paulo: projeção hiperboloid com rêde kilométrica
-
1951
(
PASSOS & EMIDIO 2009: 154
-
155
)
19 - São Paulo: projeção hiperboloid com rêde kilométrica - 1952 (Secretaria de Estado, de Economia e
Planejamento, Instituto Geográfico e Cartográfico – ICG. Acervo – Tombo: 1152)
37
O levantamento do SARA BRASIL de 1934 mostra nitidamente a quadra inteira,
retangular, que conteve a Fábrica Santa Catharina, em seus anos finais, onde se pode ver a
área dos galpões, voltada para a rua Aurélia, e as edificações com telhados (num total de 4
edificações telhadas, mais duas pequeninas construções), mais para oeste do terreno, onde
haveria uma área livre.
Em 1963, o terreno é oficialmente dividido com a criação de duas passagens
particulares que, mais tarde, chamar-se-iam rua Antônio Califari e rua Henrique Elkis; como
comentei, a rua Antônio Califari talvez tenha sido efetuada sobreposta ao traçado de uma
passagem já existente no local, como ficou claro observando-se as plantas anteriores, que
marcam a presença de uma continuação da rua Cipião em direção a rua Marco Aurélio. A
planta feita pela Emplasa em 1981 ainda apresenta as ruas como PSP-UM (futura Antônio
Califari) e PSP-DOIS (futura Henrique Elkis). É possível, portanto, que estes locais de
travessia da quadra, utilizados pela população local, existissem já desde o loteamento da Vila
Romana, seguindo o leito do pequeno córrego, sendo fechados ou abertos de acordo com as
etapas de ocupação da quadra. Por isso, talvez, as plantas antigas ora o marquem, ora não,
dando a idéia de uma rua que ligava a Cipião à Marco Aurélio.
A partir dos anos 1960 as plantas mostrarão uma nova configuração do terreno e da
quadra que conformava a Santa Catharina, a saber, um layout no qual constam 3 pequenas
quadras, resultado da criação das duas ruas no sentido Norte/Sul, que passaram a conectar as
paralelas Fábia e Coriolano. Deste modo, criou-se uma nova quadra que abarcou área
pertencente a galpões, fornos e quintais, paulatinamente demolidos para dar lugar a
habitações. Em época mais recente, a Petybon reocupou parte da área, sendo erguidas
algumas edificações, como escritórios e almoxarifados.
Configuração 4
Quando a quadra foi divida a partir dos anos 1960 em 3
quadras, com a criação de duas novas ruas (Antônio Califari
e Henrique Elkis).
Coriolano
Fábia
Aurélia
Catão
Antônio Califari
Henrique Elkis
38
Todas estas configurações dialogam com o papel da quadra em relação a sua
ocupação e a ocupação da Vila Romana e da Lapa. Em um primeiro momento, o terreno fora
ocupado pela Fábrica de Louças Santa Catharina, fundada em 1913, tornando-se parte das
Indústrias Reunidas Fábricas Matarazzo, quando de sua efetiva compra em 1927, até 1937.
Neste ínterim, sofreu diversas reformas e ampliações; entre 1932 e 1939, por exemplo, os
Matarazzo apresentaram à Prefeitura Municipal, 15 pedidos de autorização de obras em sua
fábrica na Lapa, com destaque para a construção de um edifício para depósito, galpões,
edifício para manipulação do caulim, instalações para um novo forno de aquecimento a
quartzo e novas portarias (ZANETTINI ARQUEOLOGIA 2003).
Ao mesmo tempo em que buscou adaptar fisicamente a estrutura de produção da
fábrica aos seus objetivos, o grupo Matarazzo também procurou regularizar a propriedade.
Como, originalmente, o terreno era cortado pelo leito do rio que acompanhava o traçado da
rua Cipião e, depois, num determinado momento, foi canalizado e coberto, foi necessário
incorporar à área da Fábrica suas margens, então propriedade da Prefeitura (fato ocorrido
provavelmente na fase sob ocupação da Santa Catharina, conforme dados arqueológicos).
Em setembro de 1933, através de escritura pública, é feita uma permuta onde as IRFM
transmitem à Prefeitura “uma área de terreno situada à rua Fábia, esquina com Catão”, parte
posterior do terreno da Fábrica, em troca do terreno que fazia parte da rua Cipião.
20 - Levantamento EMPLASA - 1981 (FFLCH/USP)
39
Com a morte do Conde Matarazzo, em 1937, e a aquisição de jazidas de caulim no
ABC, as IRFM encerram as atividades na Fábrica da Vila Romana e passam a produzir
louças em São Caetano, na Fábrica de Louças Cláudia. Em 1937, as Indústrias Matarazzo,
ainda no processo de desdobramento e diversificação das atividades, criam a empresa
Indústrias Alimentícias Petybon Ltda., para produzir massas e biscoitos.
No início dos anos 60, o Grupo Matarazzo, resolvendo um problema de herança
familiar, vendeu, em 1963, parte do lote originalmente ocupado pela Fábrica Santa Catarina.
Foram abertas as duas passagens particulares, atuais ruas Henrique Elkis e Antônio Calafiori,
e a face voltada para a rua Catão foi loteada e vendida. Outra porção do terreno, voltada para
a rua Fábia, provavelmente vendida na mesma época, foi ocupada por uma malharia.
As Indústrias Matarazzo não dispunham, nos anos 1970, do mesmo vigor dos anos
anteriores, especialmente da fase de expansão do começo do século XX. A morte de
Francisco Matarazzo Jr., em 1977, veio a agravar a crise vivida pelo grupo industrial; sua
filha e sucessora no controle das empresas não conseguiu impedir o desmoronamento do
império e, no início dos anos 1980, foi solicitada a concordata. Atualmente, a única unidade
fabril em operação do grupo produz os sabonetes Francis, em Santa Rosa do Viterbo, Estado
de São Paulo. Ainda em 1977, no processo de adequação do grupo à crise interna, as IRFM
hipotecaram o terreno e o prédio industrial da Fábrica de Biscoitos Petybon, localizado na rua
Coriolano, para o Lloyds Bank International Limited. Em 1979, a Matarazzo se associou a
uma empresa americana fabricante de chocolates e massas – a Hershey – para fabricar
massas, biscoitos, margarinas e achocolatado líquido (ZANETTINI ARQUEOLOGIA 2003).
Em 13 de janeiro de 1983, a Matarazzo solicitou o cancelamento da hipoteca do
imóvel junto ao Loyds Bank e, na mesma data, o vendeu para a Companhia Mofarrej de
Empreendimentos. A Petybon, associada à Hershey, permaneceu produzindo sua linha de
alimentos na fábrica quando, em dezembro de 1986, o grupo Matarazzo vendeu a empresa
para o grupo Bunge, de origem holandesa e sucessores do Moinho Santista. A Petybon
Indústrias Alimentícias S/A passou, então, a denominar-se Petybon S/A e manteve a linha de
produção de biscoitos na fábrica da Lapa. Em janeiro de 1987, a Petybon assinou um contrato
de locação por quatro anos com a proprietária do imóvel, a Companhia Mofarrej.
Em junho de 1988, a Petybon associou-se à Mapa S/A (Mapiant, indústria italiana de
massas) e formou a Petymapa, com uma participação de 65% por parte da Petybon. Em
março de 1990, a Companhia Mofarrej renovou a locação do imóvel da fábrica para a
Petybon por mais 36 meses. Em julho do mesmo ano, a Petybon criou, com a BSN francesa,
40
uma joint-venture que resultou na General Biscuits of Brazil GBBr. A produção conjunta
na fábrica da Lapa (Petybon/BSN) foi iniciada em 1991. Em 1992, a Companhia Mofarrej
assinou um novo contrato de locação do imóvel com a GBBr por 24 meses (ZANETTINI
ARQUEOLOGIA 2003).
Ocupando um imóvel alugado e utilizando equipamentos ultrapassados, a GBBr pôs à
venda, em 1993, sua fábrica de biscoitos. A unidade, mas não a marca, foi adquirida pelo
grupo Parmalat. A Yolat Indústria e Comércio de Laticínio Ltda. (grupo Parmalat) sucedeu a
GBBr na qualidade de locatária do imóvel. A Parmalat deixou de produzir nas instalações em
2000, mas só em abril de 2002 foi cancelada a locação à pedido da Companhia Mofarrej de
Empreendimentos. Em novembro do mesmo ano a Mofarrej demoliu os edifícios da unidade
industrial desativada (ZANETTINI ARQUEOLOGIA 2003).
Em 19 de maio de 2003, a Companhia Mofarrej registrou, no 10º Cartório de Registro
de Imóveis de São Paulo, a incorporação imobiliária denominada “Condomínio Paradiso Vila
Romana” à rua Fábia 800, composta de três edifícios de 29 pavimentos, com subsolo e
andar térreo comuns aos três.
41
SUB-CAPÍTULO 1.3
UM ATERRO DE LOUÇAS NA CIDADE
É sabida a complexidade da formação dos solos em perímetro urbano; quando nos
referimos a estratigrafias de sítios arqueológicos urbanos, esta complexidade aumenta tendo
em vista as rápidas ações a que o registro arqueológico na cidade está sujeito, ações
eminentemente de caráter antrópico. O dinamismo das áreas urbanas gera uma “estratigrafia
arqueológica extremamente complexa” (JULIANI, 1994-5: 366). Andrea Carandini
sabiamente chamou os sítios arqueológicos urbanos de “ilhas estratigráficas humanas num
mar de estratos naturais” (CARANDINI 1991: 38); a sobreposição de camadas arqueológicas
artificiais é uma característica de qualquer meio urbano e constitui a essência da Arqueologia
Urbana (ZANETTINI ARQUEOLOGIA 2005: 34). Esta constante possibilidade de que um
estrato se transforme em outro é parte da historicidade do nosso subsolo (CARANDINI 1991:
38), transformando o meio em paisagem, onde se manifesta a dialética entre ações humanas e
os atos da natureza. Práticas são mantidas ou modificadas, decisões são tomadas e idéias
ganham forma: “a landsape retains the physical evidence of these mental activities”
(CRUMLEY 1994a apud BALÉE & ERICKSON 2006: 2). O uso de aterros é um exemplo
disso. A estratigrafia dos sítios históricos urbanos, geralmente reocupados sucessivamente, é
marcada pela presença dos aterros.
Devido sua localização, no interior da urbs, pelo menos até a década de 1970, a
Arqueologia não se interessava por sítios urbanos por considerá-los “destruídos” ou sem
potencial arqueológico”. Para Salwen (1978: 458), informações de vários períodos do
passado humano existem nestes lugares que, até alguns anos atrás, a maioria dos
pesquisadores considerava destruída tais quais rodovias, terrenos com construções, áreas
aradas, etc. (CALDARELLI 2003). “Todo sítio deve ser considerado como portador de
informação até que se prove o contrário” (ARAÚJO 2001/2002: 10).
Deste modo, alguns estudiosos começaram a descobrir, como Staski (1999), que os
assentamentos urbanos geralmente apresentam boa preservação do registro arqueológico
(JULIANI 1994-5: 370). A Arqueologia Urbana passou a trabalhar com a hipótese de que a
pavimentação e a chegada do asfalto podem ter protegido alguns sítios e que distúrbios
podem apenas ter ocorrido na fina camada superficial, escondendo importantes sítios
arqueológicos e deixando muitas de suas características (SALWEN 1978: 454). De duas uma:
42
ou a era industrial complicou demais a estratigrafia ou a simplificou ao extremo
(CARANDINI 1991: 42).
Com a evolução urbana e o crescimento das ocupações, é indubitável a presença de
objetos em sub-superfície e, quando nos referimos às cidades, especialmente materiais
cerâmicos construtivos resultantes das diversas demolições e construções. Segundo Schiffer,
a cidade é o locus onde quase nenhum elemento é descartado em seu lugar de uso, fazendo
com que, conseqüentemente, quase todo contexto arqueológico material seja um refugo
secundário (SCHIFFER 1972). Como pontuou Stanley South (1994: 79), não se deve escavar
um sítio apenas para revelar a arquitetura, os estratos arqueológicos e os artefatos, mas
igualmente para entender os amplos processos revelados e a relação entre eles.
Não foi diferente com o sítio Petybon. As escavações revelaram uma estratigrafia
bastante complexa, com inúmeras camadas que se sobrepõem e se superpõem, indicando as
diversas fases de ocupação do terreno, com impactos sobre o sítio arqueológico. Encaro, aqui,
todo o registro arqueológico como um fenômeno contemporâneo constituído de vestígios
materiais que foram formados, transformados e depositados a partir de diferentes fatores
naturais e culturais, chamados de processos de formação” (SILVA 2000: 179). Meu objetivo
neste item, dessa maneira, é realizar algumas incursões em torno da formação do registro
arqueológico do sítio Petybon, com foco nos processos culturais de formação, discorrendo
sobre a natureza da estratigrafia do sítio assim como das estratégias implementadas pelos
ocupantes do terreno para conformá-lo segundo diferentes funções, visões de mundo e
imprevisíveis motivações (CARANDINI 1991: 42).
Antes de tudo, é necessário apresentar os resultados obtidos pelas intervenções
arqueológicas, com base na divisão do terreno em zonas de potencial arqueológico. Para
apresentar os perfis das unidades de escavação do sítio, utilizei a metodologia da matriz
Harris (1975; 1979), pois achei que apresentá-los através dos fluxogramas proporcionaria
uma visão mais clara dos estratos e da estratigrafia, diferente de fotos ou desenhos dos perfis,
porque, neste caso, como muitas camadas, o perfil acaba tornando-se um caleidoscópio de
cores e texturas.
Na zona de baixo potencial, na porção mais a leste do terreno, a densidade de artefatos
móveis mostrou-se baixa, inversamente proporcional a presença de elementos estruturais
como remanescentes de baldrames (construídos com tijolos e argamassa de cimento ou
concreto armado), presença de canaletas, tubulações de água (algumas em PVC) e caixas de
concreto abertas pela Petybon para estoque de matéria-prima (banha, farinha, etc.). O que se
43
observou na estratigrafia desta zona foi a presença de sucessivas camadas de obras para
implantação dos edifícios, que resultou na presença de restos dos embasamentos das
construções com suas redes de tubulação associadas às atividades no interior dos prédios.
Uma vez que esta foi a zona, no terreno, de primeira implantação de edificações,
especialmente galpões, não espera-se que abaixo disso haja a presença de vestígios móveis,
louças, que a Fábrica ainda não produzia ou descartava seus produtos concomitante ou
anteriormente a presença dos prédios.
No que concerne à zona de dio potencial arqueológico, mais a oeste do terreno, a
estratigrafia caracterizou-se por seqüências bem delineadas de camadas de aterramento,
aplicadas para proporcionar a elevação da cota original e o
distanciamento/impermeabilização do local, outrora cortado por uma drenagem natural, com
objetivo de incorporá-la ao complexo, dando-lhe funcionalidade. Como disse, a drenagem foi
canalizada e transformada em galeria subterrânea, alinhada a rua Cipião e Marco Aurélio,
para onde afluem as tubulações de águas pluviais do terreno. Percebeu-se também, que
mediante a retificação e o aterramento, o local foi parcialmente ocupado por edificações,
servindo de pátio aberto para carga, descarga e descarte de material. Daí a presença de níveis
com material arqueológico móvel, louças, abaixo dos vestígios de estruturas construtivas,
como baldrames, pois a produção já existia, e descartou o material em terreno posteriormente
ocupado pelas edificações (de acordo com as expansões da Fábrica). Os níveis mais
superficiais dos perfis estratigráficos eram camadas de piso de concreto, ou entulhos
resultantes de demolição, daí a necessidade de emprego da retro-escavadeira para abertura
das unidades.
Nesta zona, boa parte das unidades de escavação atingiu o nível freático (numa média
de 70 cm de profundidade). Foram diagnosticados dois níveis distintos de deposição de
descarte de refugo cerâmico. Um mais profundo, apresentando continuidade no sentido
Leste/Oeste, conformando uma camada contínua e espessa de fragmentos bastante diminutos.
Nesta camada, predomina a louça de segunda queima (vidrada), empregada como elemento
drenante.
nas camadas mais superficiais, em alguns casos situadas imediatamente abaixo de
piso de tijolos (intercalado por camadas mais recentes de concreto e cimento), observou-se a
existência de estruturas diferenciais de refugo, pontuais, derivadas da dejeção e
empilhamento do material descartado para o eventual preenchimento de valas, buracos e
44
correção de depressões anterior à pavimentação da área, originalmente utilizada para
lançamento de refugo, galpões de lenha, etc.
Na porção mais próxima da Rua Coriolano, conta-se com uma estrutura alteada,
destinada a refeitório da Fábrica da Petybon. A unidade de escavação 2 incidiu sobre a base
da edificação suprimida, que se deu mediante a indicação da análise geofísica, cujos dados
apresentaram extrema dificuldade de leitura e interpretação. Sinais atenuados apontavam para
a possível existência, no local, de um grande bolsão rico em artefatos. No interior da unidade
foram evidenciados, ainda, trechos de piso cerâmico remanescente e evidências associadas
que indicavam a presença de instalações sanitárias. Após a retirada do piso mais recente,
alguns trechos apresentaram a mesma performance, com a presença da camada contínua
composta por refugo cerâmico moído.
1. Aterro: sedimento arenoso,
pulverulento, com inclusões de brita
2. Aterro: sedimento areno-argiloso,
compactado, cor avermelhada
3. Fiada de tijolos maciços
4. Aterro: sedimento areno-argiloso,
compactado, cor avermelhada
5. Aterro: sedimento areno-argiloso,
compactado, cor avermelhada, com
inclusões de pequenos seixos e
fragmentos de carvão
6. Aterro: sedimento areno-argiloso,
compactado, cor avermelhada
7. Piche e presença de fragmentos de
manilha de grès
8. Sedimento areno-argiloso,
compactado, cor marromSolo
arenoso marrom escuro
Unidade de Escavação 10
Perfil N
1
2
3
4
5
6
7
8
1
2
3
4
5
Unidade de Escavação
6
Perfil N
1. Aterro: sedimento arenoso,
pulverulento, com inclusões de brita
2. Aterro: sedimento areno-argiloso,
compactado, cor avermelhada
3. Construção de tijolos maciços
4. Aterro: sedimento areno-argiloso,
compactado, cor marrom claro, com
inclusões de entulho construtivo
(telhas, tijolos, manilhas)
5. Aterro: sedimento areno-argiloso,
compactado, cor avermelhada
45
Unidade de Escavação
23
Perfil L
1. Aterro: sedimento areno-argiloso,
compactado, cor avermelhada
2. Piso de concreto
3. Aterro: entulho construtivo (cimento, tijolo e
pedras)
4. Fundação de tijolos maciços
5. Fundação de tijolos maciços
6. Aterro: sedimento areno-argiloso,
compactado, cor marro claro
7. Caulim
8. Sedimento marrom escuro com inclusão de
fragmentos de carvão
9. Sedimento areno-argiloso, compactado, cor
marrom escuro
10. Nível do lençol freático
Unidade de Escavação
24
Perfil L
1
2
3
4
7
8
5 6
9
10
1
2
3
4 5
6
7
8
9
1. Aterro: sedimento areno-argiloso, compactado,
cor avermelhada
2. Aterro: entulho de material construtivo (cimento,
tijolos e fragmentos de rochas)
3. Piso de concreto
4. Aterro: sedimento areno-argiloso, compactado,
cor marrom claro, com entulho construtivo (telhas,
tijolos, manilhas e pedras) e fragmentos de louça
5. Construção de tijolos maciços
6. Aterro: sedimento areno-argiloso, cor marrom
escuro com entulho construtivo (telhas, tijolos,
manilhas) e louças
7. Construção de tijolos correspondente a um duto
de água (construída com tijolos com a marca da
Fábrica de Louças Santa Catharina [estrela de
seis pontas com FLSC])
8. Sedimento areno-argiloso, compactado, cor
avermelhada, arqueologicamente estéril
9. Nível do lençol freático
46
Por fim, na zona de alto potencial arqueológico, no extremo oeste da propriedade, a
camada de aterramento difere da seqüência observada nas demais unidades de escavação,
sendo composta por um pacote espesso de terra argilosa escura, rica em cinzas e carvões,
associadas a cacos de louça e azulejos, indicando a provável proximidade de um dos fornos
outrora existentes. Abaixo dessa camada, contou-se com evidências de estruturas de tijolos,
dentre elas uma canaleta construída com tijolos e argamassa de barro que se prestou, no
passado, ao lançamento e escoamento de fluídos, ricos em pigmentos, sendo efetuada a
coleta, no interior da mesma, de material para análises laboratoriais. Na intersecção das
unidades de escavação 29 e 32 (que define a transição da zona de média densidade para a de
alta densidade de material), foi identificado um bolsão de refugo de louça bastante
preservado.
Ocorre que com a venda de parte da propriedade e a alteração do layout da Fábrica, o
local destinado aos galpões de argila e fornos maiores foi sendo paulatinamente demolido
para dar lugar a habitações, sendo abertas duas pequenas vielas. Numa fase mais recente, a
área da Petybon foi reocupada, sendo erguidas edificações mais delgadas, destinadas a
escritórios e almoxarifado. Na fase final de ocupação, essa zona contou com edificações
menores, destinadas a escritórios comerciais, departamento de pessoal e outras funções
Unidade de Escavação
25
Perfil L
1. Piso de concreto
2. Aterro: entulho construtivo (cimento, tijolos)
3. Concreto
4. Aterro: sedimento areno-argiloso, compactado, cor
marrom clara com inclusão de entulhos construtivos
(telhas, manilhas)
5. Aterro: sedimento areno-argiloso, compactado, cor
marrom clara com grande concentração de restos
de formas refratárias
6. Aterro: sedimento areno-argiloso, compactado, cor
marrom clara com inclusão de entulhos construtivos
(telhas, manilhas)
7. Piso de tijolos
8. Parede de tijolos
9. Aterro de terra vermelha
10. Aterro: sedimento de cor avermelha misturado a
sedimento marrom escuro terra preta, com inclusão
de fragmentos de telha, silte branco e cinza,
arenosa, com manchas de solo laterítico amarelo e
concreto
11. Nível do lençol freático
1
2
3
64
5
7
9
8
10
11
47
administrativas, conforme atestam os indícios em superfície e nos muros confrontantes
(marcas de estruturas de tijolos, pisos do tipo zetaflex, caixas plásticas de passagem de
energia, datáveis, portanto, dos anos 1960/1980). Além da louça em profusão, as camadas de
entulho cerâmico apresentam peças relacionadas ao cotidiano de produção ou ao chamado
mobiliário de forno (caixas refratárias, caulim, suportes, etc.). Em alguns pontos, o material
de refugo atuou como contra piso para a aplicação de concreto, apresentando fragmentos
agregados ao mesmo.
O último nivelamento ocorrido nesse pátio, em parte descoberto, deriva
provavelmente da transição da modalidade industrial de cerâmica à unidade de produção de
gêneros alimentícios, processo que se desenrolou a partir dos anos 1940, sob os desígnios
das IRFM (Petybon). Em uma fase anterior, foi aplicado um piso em tijolos.
1
2
3
4
5
6
7
8
Unidade de Escavação
3
Perfil L
1. Piso de azulejo
2. Concreto
3. Aterro: sedimento areno-argiloso,
compactado, cor marrom clara
com inclusão de entulhos
construtivos (telhas, manilhas)
4. Aterro: sedimento areno-argiloso,
compactado, cor avermelhada
5. Aterro: sedimento areno-argiloso,
compactado, cor marrom-escura
6. Aterro: sedimento areno-argiloso,
compactado, cor marrom com
restos de fragmentos de tijolos
maciços
7. Aterro: sedimento areno-argiloso,
cor acinzentado com manchas
marrons
8. Fundação de tijolos maciços
1
2
3
5 4
7
6
8
Unidade de Escavação
4
Perfil L
1. Aterro: entulho de material
construtivo (cimento e tijolos)
2. Aterro: sedimento areno-argiloso,
compactado, cor marrom escuro
3. Aterro: sedimento areno-argiloso,
cor acinzentado com inclusão de
entulho construtivo (telhas, tijolos,
manilhas)
4. Aterro: sedimento areno-argiloso,
cor acinzentado com inclusão de
entulho construtivo (telhas, tijolos,
manilhas)
5. Bolsão de argila
6. Bolsão de louças bem preservadas
misturado com sedimento marrom
escurlo, argila cinza e restos de
formas refratárias
7. Aterro: sedimento areno-argiloso,
compactado, cor marrom escuro
8. Rampa de tijolos maciços
48
Posto isto, gostaria de chamar atenção para um aspecto da composição dos estratos
dos sítios históricos, e do sítio Petybon em particular, bastante recorrentes como se pode
perceber pela descrição dos perfis acima, sobre o que poucos se debruçaram: aterros. A
interpretação de aterros, em Arqueologia Histórica, é importante porque numerosos sítios
arqueológicos aparecem no interior de cidades (ORSER 1992: 87). Ressalto-os não apenas
porque a estratigrafia dos tios históricos é composta por aterros sucessivos, mas também
Unidade de Escavação
29
Perfil L
1. Aterro: sedimento areno-argiloso, compactado, cor avermelhada
2. Piso de concreto
3. Aterro: sedimento areno-argiloso, compactado, cor avermelhada
4. Aterro: sedimento areno-argiloso, compactado, cor marrom escura
5. Aterro: entulho construtivo (cimentos e tijolos maciços)
6. Aterro: entulho construtivo (cimentos e tijolos maciços)
7. Embasamento de tijolos maciços
8. Piso de concreto
9. Embasamento de tijolos maciços
10. Aterro: sedimento areno-argiloso, compactado, cor marrom escura
11. Aterro: sedimento areno-argiloso, compactado, cor avermelhada
12. Aterro: sedimento areno-argiloso, cor amarelada com inclusões de
fragmentos de louças moídas
13. Aterro: sedimento areno-argiloso, compactado, cor marrom escura
14. Aterro: sedimento areno-argiloso, compactado, cor marrom escura
com inclusões de fragmentos de louças e formas refratárias
15. Aterro: sedimento areno-argiloso, compactado, cor marrom escura
16. Aterro: sedimento areno-argiloso, compactado, cor avermelhada
17. Aterro: sedimento areno-argiloso, compactado, cor avermelhada
18. Aterro: sedimento areno-argiloso, compactado, cor marrom escura
com manchas de sedimento marrom
19. Aterro: sedimento areno-argiloso, cor marrom escurso com inclusões
de grandes fragmentos de quartzo e louça moída
20. Aterro: sedimento areno-argiloso, compactado, cor marrom
21. Embasamento de tijolos maciços
22. Aterro: sedimento areno-argiloso, cor azincentada com manchas de
sedimento amarelado
23. Aterro: sedimento areno-argiloso, compactado, cor marrom escura
24. Aterro: sedimento areno-argiloso, cor marrom escura com inclusão de
fragmentos de louça moída
25. Caulim
26. Aterro: sedimento areno-argiloso, cor marrom clara, com inclusão de
fragmentos de louça
27. Aterro: sedimento areno-argiloso, compactado, com avermelhada
28. Bolsão de louças bem preservado (louças encaixadas, no biscoito)
29. Embasamento de tijolos maciços
30.
Nível do lençol freático
1
2
3
4
5
29
8
22
23
24
7
25
26
27
28
10
11
12
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17
6
9
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15
16
18
19
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30
49
porque o sítio Petybon é, antes de tudo, um grande aterro. Para Villagrán (2008: 20)
“artefatos e sedimentos estruturam conjuntamente os depósitos arqueológicos e não podem
ser considerados separadamente no estudo dos processos de formação”. Assim, antes de
analisar as cerâmicas que compõe este aterro, é preciso mostrar o aterro em si, o aterro
enquanto um artefato tendo em vista a realização de uma leitura arqueológica para os estudos
destes restos humanos que nunca se encaixam confortavelmente nas definições tradicionais
de “sítio” (ASHMORE & KNAPP 1999: 2). No clássico dos anos 1960 da arqueologia
estadunidense In small things forgotten, Deetz (1996: 22) propõe que uma das maiores
diferenças entre os tios históricos e pré-históricos concernia na maneira na qual grandes
quantidades de aterro (“a mixture of soil and refuse”) foram deslocados durante o período
histórico. Para os EUA, a tendência cresceu a partir do século XVII, como pode perceber
pelos projetos de aterramentos, construídos de refugos, para servirem de bases a edificações,
deslocados de outros lugares.
Para Deetz (1996: 22), uma vez que estes depósitos contêm invariavelmente artefatos,
eles podem ser extremamente enganosos, dado que o não reconhecimento de que o material é
parte de um aterro levaria o pesquisador a incorrer em inferências errôneas sobre o sítio.
Acredito, também, que considerar o material de aterro “fora de contexto” é tão sem sentido
como analisá-lo como in situ “original”. Primeiramente porque o material dos aterros está
num novo contexto (SCHIFFER 1972; 1976), depois porque pressupor que existe algum
material que se encontra em seu local de descarte “original”, sem sofrer qualquer efeito de
processos pós-deposicionais, tanto culturais como naturais, é cair no que Araújo (1995: 4)
chamou de “noção errônea e (perigosamente) implícita de que o material arqueológico
encontrado em uma escavação se mostra espacialmente disposto da mesma maneira em que
foi deixado pela comunidade humana que o utilizou”.
Segundo Oliveira (2005: 151), as intervenções arqueológicas “têm focado seus
objetivos em recolher vestígios móveis, como: louças, cerâmicas, vidros, metais, restos de
alimentação, etc. Geralmente isto ocorre em detrimento de análises estratigráficas que levem
em conta a transformação do terreno e estruturas relacionadas à rede de infra-estrutura da
cidade”. Visto a estratigrafia ser também um documento e não um mero arquivo no qual se
inserem os artefatos (LUCENA 1992: 87), sigo a proposta de James Deetz quando diz: “Fill
is an artifact itself, and intelligent study of it can be most instructive. This is particularly true
in excavation carried out in high-density urban areas where the same soil may have been
removed, shifted, and redeposited many times” (DEETZ 1996: 23). Para Harris (1979: 41), a
50
unidade de estratificação é um artefato e como artefato deve ser tratado como um todo, com
porções de materiais relativamente homogêneas e indivisíveis (CARANDINI 1991: 72). É a
relação da parte com o todo. As faianças finas só têm sentido como parte de um todo
(SOUTH 1979: 214), que é o aterro. Juntas, desempenham esta função, enquanto “material
construtivo” e o enquanto serviço de mesa”: o solo, o sedimento, dentro da qual
escavamos é, ele próprio, um artefato, com muitas informações a revelar (SCHIFFER 1983:
690).
Se o aterro é artefato, representando a história de vida do sítio, deve ser pensado
também em termos de sua rápida formação, massiva e singular mais do que gradual ou por
meio de uma série lenta de eventos cumulativos. Para os aterros do Petybon, o tempo da
cidade, rápido, cosmopolita, imperou na formação dos estratos (MROZOWSKI, ZIESING &
BEAUDRY 1996: 28), mais do que num aterro formado pelo descarte fortuito de lixo à beira
de um rio durante algum tempo e muito mais se levarmos em conta estratos geológicos.
Aderir a estes pressupostos, em um estudo de Arqueologia Urbana, acarreta reconhecer que
a) se o aterro é um artefato, o que é este artefato, como é produzido, quais as possibilidades
de sua produção, como dialoga com a formação do registro arqueológico, ou melhor, registro
arqueossedimentar (VILLAGRÁN 2008: 21); e b) se o artefato arqueológico é um ente ativo
dos aspectos culturais de uma sociedade (SCHIFFER 1983: 676), além do funcional, há então
aspectos simbólicos nos usos e na produção dos aterros?
Deste modo, análises de aterros de sítios arqueológicos são fundamentais para o
entendimento da dinâmica das transformações do espaço urbano e da formação da paisagem
urbana atual, além da óbvia importância de seu papel junto à compreensão da existência e
conservação dos vestígios arqueológicos (OLIVEIRA 2005: 152). Charles Orser define os
aterros como camadas de terraplenagem, compostos por depósitos de areia, pedra, cascalho e
artefatos que o, intencionalmente, usados em alguns projetos de construção (ORSER 1992:
86). Os aterros são evidências da ação do ser humano no ambiente. Apesar de apresentar
grande complexidade e dificuldade de exame, procurar identificar a origem dos sedimentos,
porquê, por quem, como e quando foi feito, auxilia na compreensão do espaço e apresenta
elementos que influenciam na avaliação do potencial arqueológico da rego” (OLIVEIRA
2005: 152). Daí que para além de uma unidade estratigráfica, o aterro deve ser entendido
como “unidade de ação”, para que se torne inteligível (CARANDINI 1991: 134); a
estratificação como, portanto, uma seqüência de ações e atividades humanas e naturais
acumuladas (CARANDINI 1991: 15).
51
Segundo o Houaiss (2001: 333), a palavra portuguesa aterro é citada pela primeira
vez em 1831, designando “ato ou efeito de aterrar... um lugar que se elevou ou nivelou com
terra ou entulho; aterrado... obra que consiste na deposição de terra ou de material granuloso
solto sobre um terreno natural, para formar um chão ou base firme, nivelado ou alteado;
aterramento... entulho com que se enche um fosso ou depressão de terreno, ou com que se
nivela ou eleva um local”. aterrar, além do significado (do século XV) de encher ou
cobrir com terra”, tem a significação antiga (do século XIII) de derrubar”, depois, “meter
medo, assustar”, ou, ainda, “atirar por terra”. Etimologicamente, o objeto, aterro, e a ação,
aterrar, guardam dois sentidos: o de uma modificação antrópica sobre uma paisagem ou
ambiente natural, criando camadas de terra e artefatos, e o de derrubar, verbo transitivo:
quem derruba, derruba algo com algum intuito.
As escavações do sítio Petybon, e o estudo de suas unidades estratigráficas
possibilitaram diagnosticar a existência de quatro tipos de aterro (com algumas variantes), os
quais classificaria do seguinte modo:
Tipo de
aterro
Descrição Variantes
1
Quando o aterro forma
-
se ao longo de um
intervalo de tempo devido ao descarte
gradual de lixo num determinado local
2 Quando se aterra com sedimento deslocado Sem a presença de vestígios móveis como
cerâmicas, vidros, etc. Ou seja, presença
de sedimento.
Com a presença de vestígios móveis trazidos
junto do sedimento (ou seja, pegou-se terra de
uma lixeira, um local de descarte ou um aterro
já conformado).
Com a presença de artefatos presentes no aterro
,
descartados no momento do aterramento.
3
Quando o sedimento é do próprio terreno
que contém o aterro, mas que por causa de
obras ou outra ação foi remexido e então
reposto no local como aterro (quando, por
exemplo, ocorre terraplenagem).
Sem a presença de vestígios móveis como
cerâmicas, vidros, etc. Ou seja, presença
de sedimento.
Com a presen
ça de artefatos presentes no aterro,
descartados no momento do aterramento.
4
Quando o aterro é formado apenas por
artefatos depositados no solo.
Com a presença de artefatos descartados
durante o processo de aterramento
Com a presença apenas dos artefa
tos
depositados para o aterro, sem materiais
teoricamente que não teriam a ver com o
material do aterro (ou seja, sem a presença de
artefatos descartados no momento do
aterramento).
52
No caso do sítio, predomínio dos tipos 1, 3 e 4. Isto é: para a construção das
edificações, foi necessário o nivelamento do terreno com a formação de um aterro com
sedimento vermelho, areno-argiloso, substrato para os embasamentos das construções. Para
os estudos dos solos urbanos antropogênicos, o aterro de tipo 1 se encaixaria no que é
descrito como man-influenced soil (LEHMANN & STAHR 2007: 249). Não preciso lembrar
que áreas inclinadas tendem a ser alteradas, mais propícias a presença de aterros ou
escavações, por vezes combinados, para a eliminação das diferenças do terreno (OLIVEIRA
2005: 163), e que aterros são, por definição, compactados (RATHJE 1991: 122).
Mas os aterros do Petybon tiveram também outras funcionalidades: altear o terreno e
diminuir a umidade do mesmo (tendo em vista sua localização ainda nos terraços fluviais do
rio Tietê e a superficialidade do lençol freático, além da presença de dois córregos um
dentro do terreno, outro a apenas uma quadra – caracterizando o solo como quase encharcado
e propício a enchentes) e agir como um dos planos das estratégias de descarte dos resíduos
gerados pela produção de louça. É claro que algumas das características do terreno têm a ver
com a escolha do local para a instalação da Fábrica. Ferrovias e indústrias ocuparam as zonas
de transição entre planícies aluviais e colinas suaves, áreas baixas e mal drenadas, o que
mostra, segundo Ab’Sáber (2007: 103), que “a grande maioria dos bairros industriais e
operários justapõe-se aos terraços e planícies aluviais do Tiee alguns de seus afluentes”.
Além de conformarem terrenos mais baratos, justamente pelas enchentes, e próximos à
ferrovias, a proximidade de alguns cursos d’água foi igualmente imprescindível para este
contexto, uma vez que “a água é um recurso fundamental na fabricação de cerâmica utilizada
na homogeneização da massa, na limpeza da indústria e higiene dos ceramistas” (SOUZA
2003: 39). Por isso, também, a existência de um poço no terreno, descoberto durante as
escavações.
Aqui, darei foco aos aterros dos tipos 3 e 4 (na UE 29 correspondem às camadas 26 e
28 da matriz Harris, por exemplo) por neles estarem contidas as louças da Fábrica Santa
Catharina. Segundo Lehmann e Stahr (2007: 249), poderiam ser classificados como man-
made soils (“artefacts comprise artefacts solely or mainly from anthropogenic material”). O
estudo dos solos urbanos tem muito a ver com os resíduos materiais produzidos pela indústria
que ali se encontrava antes (BRIDGES 1991: 28). No entanto, é importante ressaltar que um
aterro que não contém material arqueológico nem por isso deve ser descartado, dado ser, ele
mesmo, o material arqueológico, que modificou ou criou aquela paisagem.
53
Deve-se saber, igualmente, a data do aterro e não a data de formação do sedimento ou
dos objetos nele contido. Assim, por exemplo, os aterros do Petybon podem ser posteriores a
1937, apesar de algumas louças serem de 1913; observei aterros cuja formação era de
1970, mas cujos artefatos que dele faziam parte eram do século XVIII. O pressuposto básico
aqui é que o aterro é sempre cronologicamente posterior aos artefatos que o compõem (tendo
em vista a vida do artefato até seu descarte) (HARRIS 1979a: 111). Com esta dinâmica de
formação, no entanto, é possível que artefatos mais recentes estejam em veis mais
profundos do que artefatos mais antigos. Datar os objetos não é datar a camada.
Como ressaltei, no sítio Petybon os aterros com louças em faiança fina são
basicamente dos tipos 3 e 4. O interessante são as intenções envolvidas na formação destes
dois tipos de aterro, que acabaram influenciando em minha análise cerâmica, uma vez que
destas diferentes camadas resultaram louças fragmentadas ou louças inteiras, as primeiras em
sua maioria finalizadas, com vidrado, e as segundas, no biscoito. Este comportamento foi
observado nas zonas de médio e alto potencial arqueológico, que, devo lembrar, sobrepõem-
se, nas plantas da Fábrica, a parte do terreno sem edificação, ou seja, ao quintal, área
tradicional de descarte de resíduos em fábricas de produção cerâmica.
O nível mais profundo (tipo 3), sentido Leste-Oeste, foi conformado por uma camada
contínua e espessa de fragmentos bastante diminutos, decorados e vidrados; já nas camadas
mais superficiais (tipo 4), em alguns casos situadas imediatamente abaixo de vestígios de
pisos, observou-se a existência de estruturas diferenciais de refugo, pontuais, derivadas da
dejeção e empilhamento do material descartado para o eventual preenchimento de valas,
buracos e correção de depressões anteriores à pavimentação. Nesta última camada, as louças
encontravam-se inteiras e, literalmente, encaixadas e empilhadas. Traço algumas
possibilidades para os processos de formação cultural destes registros.
Quanto às camadas mais profundas, onde se encontram louças finalizadas,
fragmentadas, acredito que estas são as louças que estavam em superfície quando do
funcionamento da Fábrica, resultantes dos resíduos gerados pela produção. Em geral, sítios
em superfície, sujeitos a pisoteio e outras ões, geram artefatos de tamanho diminuto, sem
muitos remontes. É sabido que quintais de fábricas cerâmicas são zonas clássicas de descarte
dos produtos não vendidos, com defeito, quebrados durante a produção, etc. Quando da
expansão da própria Fábrica, assim como quando da construção da nova unidade fabril da
Petybon, o próprio solo da época foi utilizado para as obras e para o aterro, e nele constavam
os diminutos fragmentos de louça que, pelo menos por 24 anos, ficaram expostos no quintal –
54
sofrendo os efeitos dos processos de formação no tamanho dos artefatos (SCHIFFER 1983:
679). Constituíam, portanto, refugos secundários (SCHIFFER 1976), uma vez que após a
fabricação, eram imediatamente descartados por não estarem aptos para a venda por alguma
razão.
Quanto à camada de aterro de louças mais superficial, foram utilizadas louças inteiras,
por vezes ainda encaixadas. O que aconteceu foi o uso de louças armazenadas dentro da
Fábrica, estancadas no meio do processo produtivo (ou seja, por vezes, ainda no biscoito).
Não foram, portanto, descartadas, e após um período de armazenagem (storage) (SCHIFFER
& SKIBO 1997: 38), foram utilizadas como material de aterro, onde se pode perceber a
intenção de depositá-las no solo. Os encaixes, principalmente de malgas e pratos, empilhados
nos setores de armazenamento, foram conservados como tal no aterro. Podemos, num
primeiro momento, dizer que eram parte do refugo de fato (facto refuse) resultante de um
abandono (abandonment) (o fechamento da Fábrica em 1937), dentro das possibilidades dos
S-A processes estipulados por Schiffer (1976: 30). Contudo, como estas louças não sofreram
uma ação de descarte propriamente dito, mas foram depositadas no solo, poder-se-ia dizer
que estão dentro do que Schiffer e Skibo (1997: 39) chamaram de disposal, ou deliberate
burial, para Renfrew e Bahn (2001: 47).
Mas para os itens depositados encaixados, acho que é ainda mais enriquecedor utilizar
o que Binford (1978: 346) denominou positioning items (placed), uma vez que, além de
estarem depositados com certo cuidado, houve um motivo assumido por trás da deposição
dos artefatos no solo, antecipando um uso futuro: as louças como aterro, a alta densidade de
materiais neste aterro e o encaixe das louças umas às outras, que, além do mais, acarretava o
preenchimento das áreas internas dos recipientes que, como são vazadas, poderiam causar
futuros acomodamentos da camada usual quando se constrói aterros deste tipo, que se
soque a terra, ou que seja prensada, para que não existam áreas vazias que possam causar um
acomodamento do sedimento ou da camada acarretando problemas estruturais caso acima
dele tenha sido erguida uma edificação. Daí também a preferência, muitas vezes, de objetos
fragmentados [cacos] ao invés de inteiros).
Todos estes refugos, enfim, tornaram-se parte de aterros, no processo conhecido como
uso secundário (secondary use, dentro daquilo definido como S-S process), uma vez que estes
artefatos foram, sem modificações, utilizados para uma nova função, o de material
“construtivo” para aterramentos. O uso de cerâmica para aterros é bastante comum, não
apenas porque ela ocupa um volume, físico, junto ao sedimento, deixando a camada de aterro
55
mais espessa e compacta, mas também porque enquanto material poroso absorve umidade,
agindo como elemento drenante, o que, no caso do terreno do sítio Petybon, tornava-se
bastante relevante, especialmente no que diz respeito ao uso dos biscoitos da faiança fina.
Além disso, estes usos são parte de estratégias para se livrar de uma enorme quantidade de
lixo de uma produção cerâmica, ao que, uma das várias saídas que a Fábrica delineou, foi seu
enterramento por aterramento (com eles e acima deles).
A criação de aterros com o material cerâmico pode ser visto, portanto, como uma
estratégia de descarte de lixo, que, neste começo de século XX, é um ponto bastante discutido
pela cidade que se urbaniza e se higieniza, com a expansão dos serviços de saneamento. Este
assunto desdobra-se em três pontos: o das alternativas aos resíduos de produção cerâmica e
seus impactos ambientais, o da história do lixo na cidade de São Paulo e os planos para lidar
com ele, dentro da implantação das teses higienistas, e da relação que se desenvolveu, ao
longo dos últimos séculos, entre lixo e aterro (com a criação, por exemplo, dos aterros
sanitários).
O município de Parelhas, a 247 km de Natal, no Rio Grande do Norte, tem na
produção de telhas sua principal atividade econômica, sendo conhecido como “a capital da
telha do Seridó”, onde existem cerca de 30 empresas ceramistas, que geram renda para mais
de 1200 famílias através de empregos diretos. Todavia, uma realidade se faz patente: a
atividade ceramista é uma das maiores responsáveis pelo processo de desertificação do
Seridó. A Cerâmica Tavares, no povoado Joazeiro, por exemplo, inaugurada em 1975, produz
800 mil peças por mês, com 60 mil telhas por fornada, através da queima em fornos caeiras
(abertos) utilizando a madeira da caatinga. Nesta produção, havia 10% de perda e 15% das
telhas eram de qualidade. Atualmente, adotaram-se novos fornos, os ditos fornos abóbadas
e garrafões (fechados) com a utilização, enquanto lenha, de de madeira, casca de côco,
restos de serraria, etc., fazendo com que a perda por fornada caísse para apenas 3%. Essa
mudança teve em vista os impactos causados pela produção cerâmica, o desmatamento da
caatinga, a elevada produção de gás carbônico pela queima e os problemas acarretados com
os resíduos gerados pela produção: se 10% das telhas da fornada eram descartadas, então, por
fornada, 6 mil telhas não estavam aptas à venda. Quanto refugo e lixo não seriam gerados em
um ano!?
Em Ituiutaba, Minas Gerais, um estudo sobre avaliação de resíduos cerâmicos
também da fabricação de telhas mostrou que a produção cerâmica na cidade gerava 407
toneladas de cacos por mês. Estes cacos são resultantes de quebras na produção, geradas por
56
telhas inteiras que não apresentaram, pós-queima, características exigidas para
comercialização, ou gerados por quebras das telhas devido à movimentação a que são
submetidas no universo fabril (DIAS 2004: 37). Avaliando o uso de agregados reciclados de
telhas de cerâmica vermelha em camadas de pavimentos de baixo volume de tráfego,
percebeu-se que, para a produção de outro município mineiro próximo, Monte Carmelo, onde
as fábricas de telha geram 1,9 kg/hab.dia, seria possível executar 10,8 km de camada base de
pavimento por ano, ou 32 km ao se misturar 40% de solo (DIAS 2004).
Por fim, a Porcelana Monte Sião, também em Minas, com um forno em
funcionamento, produz, por fornada, 35 mil peças. Destas, aproximadamente 10% saem sem
possibilidades de comercialização, ou seja, 3.500 peças. Se a Porcelana realiza duas queimas
por mês, então são 7 mil peças não vendidas, que se tornarão refugo e resíduo industrial. Em
um ano, assim, são 84 mil peças descartadas!
Utilizei estes exemplos para mostrar, primeiramente, que apesar do sítio Petybon
parecer um enorme sítio, em quantidade de peças, ao ser comparado com sítios históricos de
unidades domésticas, ao que estamos acostumados, o nos chocaria se fosse comparado a
sítios de produção, como olarias e bricas (pouquíssimo escavados). Em comparação a
lixeira de uma casa, é claro, o sítio Petybon é gigantesco, mas comparado com a quantidade
de refugo gerado por uma fábrica de cerâmica, o completamente plausíveis as dimensões
do sítio: está de acordo com uma unidade de produção. Posso apenas imaginar a quantidade
de louça descartada pela Fábrica Santa Catharina em 24 anos de produção, sendo que a
iniciou com 8 fornos e na época dos Matarazzo chegou a ter 17. Se utilizarmos a mesma
projeção de dados da Porcelana Monte Sião, tendo em vista 13 anos (1913 a 1926) com a
presença de 8 fornos, e 10 anos, com 17 fornos (1927 a 1937, época da IRFM), pressupondo
duas fornadas por mês, por forno, sendo 10% da fornada descartada, então poder-se-ia dizer
que durante todo o período de existência da Fábrica, ela teria gerado cerca de 23.016.000 de
peças descartadas!!
A pergunta que fica é: para onde foi todo esse lixo? A questão dos resíduos cerâmicos
hoje em dia é bastante discutida. Como reduzir os impactos ambientais gerados por estas
fábricas? Existem vários exemplos, ao longo da história, de estratégias de reaproveitamento
de cacos cerâmicos, seja através de usos secundários ou reciclagens. Os impactos da cerâmica
em paisagem podem ser vistos, por exemplo, no Monte Testaccio, na Itália, uma pequena
montanha artificial, com 50m de altura, formada, ao longo de três séculos, pelo descarte, no
local, de ânforas romanas (MARTÍNEZ, RODRÍGUEZ & ALMEIDA 1989). Muitas vezes,
57
cerâmicas foram reutilizadas como elementos construtivos (SULLIVAN 1989), a citar, por
exemplo, os vários cacos presentes em paredes de taipa, preenchendo cabodás, etc. As
fábricas de louça do município de Pedreira, no estado de São Paulo, desde 1914, data inicial
da instalação da produção na cidade, enfrentam o problema do reaproveitamento dos resíduos
industriais, os cacos, resíduos sólidos o biodegradáveis, e da ausência de locais adequados
de descarte, resultando no acúmulo de cacos em locais impróprios e na construção de aterros
ilegais (SOUZA 2003). South (1979: 222) lembra do caso de uma olaria de stoneware em
Yorktown, Virgínia, EUA, onde uma rua próxima foi toda pavimentada com restos da
produção cerâmica.
Por isso acredito que a Fábrica Santa Catharina, posterior IRFM - São Paulo,
desenvolveu estratégias para lidar com estes resíduos e refugos industriais, dentre os quais
ressalto o uso das louças como tempero para tijolos e caixas refratárias (reciclagem) e a
construção, com as louças, de um aterro (uso secundário). O aterro, portanto, também como
uma solução. Não duvido, igualmente, que a Vila Romana seja, literalmente, um bairro
sobre louças”, que a Fábrica deve ter descartado seus cacos e refugos em outros terrenos
próximos (até hoje muitas fábricas cerâmicas têm local de deposição clandestina de cacos,
geralmente em regiões mais periféricas [DIAS 2004: 39]), utilizando-os para aterrar o
córrego que cortava seu terreno – o próprio córrego do Mandy deve ter sido um local
constante de descarte e quem sabe até mesmo as margens e o interior do rio Tietê (o
complexo de fábricas de louça em Pedreira, por muitas décadas jogou os resíduos da indústria
cerâmica no rio Jaguari, contribuindo para seu assoreamento e entupimento dos locais de
escoamento das águas fluviais, favorecendo muitas enchentes no município [SOUZA 2003]).
O uso das louças como aterro dialoga também com a história do lixo e do saneamento
na cidade de São Paulo, uma vez que ainda não existia um sistema de coleta e que estamos no
auge das ideologias da higiene, da presença de micróbios e miasmas e de suas relações com o
lixo. Foi no século XIX, com o crescimento das preocupações endêmicas, que o lixo passou a
ser encarado como perigo à ordem pública e à saúde, sendo dado início a um debate mais
amplo sobre saneamento na cidade (MIZIARA 2008: 4-5). Em 1893 foi protocolado o
primeiro contrato com uma empresa particular, a Mirtil Deutsch e Fernando Dreyfus, de
serviços de coleta domiciliar e varrição, lavagem de ruas, limpeza de bueiros e bocas de lobo,
incineração de lixo e limpeza de mercados. Em 1894 é criado o primeiro Código Sanitário do
Estado, com mais de 500 artigos sobre procedimentos de higiene e saúde pública,
regulamentando espaço público e privado, em ruas, praças, habitações, fábricas e oficinas.
58
Segundo Miziara, o código criou uma geografia do lixo na cidade, afastando dos centros
urbanos tudo que pudesse “depor contra os preceitos de civilidade e, conseqüentemente, de
higiene” (2008: 7).
Constituíram-se espaços específicos para os restos. Longe dos centros urbanos, a
Fábrica na Lapa tinha amplos espaços para jogar suas louças descartadas. É claro que o local
mais fácil e viável, sem custos de transporte, era seu próprio quintal (que é o aterro do sítio
Petybon). Além disso, seguindo as novas concepções de higiene, esconder o lixo enterrando-
o, evitava a proliferação dos micróbios e agentes causadores de doenças. Os aterros como
locais de descarte do lixo urbano só tenderam a crescer ao longo do século XX, com a
criação, a partir dos anos 1950, dos aterros sanitários. Depois da II Guerra, aterros se tornam
o modo mais popular de dispor os restos, mas poucos se dedicaram a pensar sobre eles, seus
impactos sociais em longo termo e suas conseqüências ambientais (RATHJE, HUGHES,
WILSON, TANI, ARHCER, HUNT & JONES 1992: 444). Qual o impacto do lixo em nossas
vidas e no mundo material em torno de nós? (SHANKS, PLATT & RATHJE 2004: 71).
Este lixo dialoga, por sua vez, com os planos de urbanização e expansão da cidade.
Com a instalação mais maciça de indústrias numa região, a produção de resíduos industriais
começa a crescer em quantidade e a mudar em conteúdo, enquanto as atividades industriais
crescem em importância (BRIDGES 1991: 28). Esta nova ocupação da cidade, com o
estabelecimento de fábricas e indústrias, se relaciona à paisagem existente à época de sua
instalação. Estamos na São Paulo que se urbaniza abrindo novas ruas e grandes avenidas e
construindo novos edifícios, com grande predomínio da arquitetura de fábrica. Os anos 1920
marcaram o início da verticalização da ocupação da colina central; as igrejas, que durante
séculos foram os marcos na paisagem, desapareceriam perante os arranha-céus (JARDIM,
MUSA & MENDES 2003: 22). Em razão dos projetos urbanos nas áreas centrais, as
autoridades não faziam segredo da sua intenção de desapropriar e excluir destas áreas os
núcleos de população, em especial aqueles em estado de miséria (SEVCENKO 1992: 140).
Tudo isso se deu em detrimento de paisagens anteriores, modificadas pela ocupação e pelo
crescente campo da construção civil. Este diálogo entre o que havia de ocupação anterior na
paisagem, com o que será nela implementado, entre o antigo e o novo, o arcaico e o moderno,
está no cerne das questões sobre a modernidade que se tenta implantar na cidade de São
Paulo neste começo de culo. Proliferam-se as obras, as construções, os aterros e as
derrubadas.
59
É por isso que aqui retomo a etimologia das palavras aterro” e “aterrar”. O que
estava acontecendo em São Paulo não era apenas o nivelamento de terrenos ou o
preenchimento de desníveis com terra e refugos materiais (uma característica mais funcional
do aterro), mas a construção de novas feições da cidade, derrubando e aterrando sobre aquilo
que era antigo. Os planos de urbanização mostram bem um desejo de apagar uma São Paulo
com feições ainda coloniais, para o soerguimento de uma São Paulo cosmopolita, a
metrópole, e para isso não apenas os hábitos considerados tradicionais estavam sendo
combatidos, como também as representações materiais destas tradições. Por isso acho que o
aterro teve um papel simbólico: o de sepultar o que veio antes. A idéia é que num perfil
estratigráfico, o aumento da profundidade seria inversamente proporcional a cronologia dos
eventos de formação (HARRIS 1975: 113), apesar disso nem sempre ser verdadeiro
(ARAÚJO 1995). Percebe-se, nas matrizes de Harris, a presença de embasamentos de tijolos
maciços abaixo de aterros de louça, acima dos quais novas fiadas são encontradas.
Enquanto construção de uma paisagem, o aterro como manipulação do meio seria um
elo entre diferentes ocupações e, também, “uma forma de uma dada população humana
interagir com os produtores de ocupações humanas anteriores sofrer influências destas,
intervir em seus vestígios, tecer considerações sobre elas” (HORTA 2004: 56). A expressão
do que é considerado moderno teria, no aterro, literalmente, sua linha divisória, pois o que
está abaixo da terra é o antigo, o tradicional, o colonial, o que se quer fazer sumir. Derrubar
não basta, que se aterrar: o uso prático dos significantes “aterro” e “aterrar”. A Santa
Catharina aterrou o terreno que comprou, desnivelado e, como se nas plantas históricas, já
ocupado por uma pequena edificação, que deve ter sido derrubada; a Fábrica Petybon,
reformando a Santa Catharina, usou suas louças para aterrar não apenas o terreno, como
algumas antigas construções, derrubadas. A Mofarrej, por sua vez, derrubou todo o
complexo, terraplenou e criou nova camada de aterro. Esta última, apagando as antigas
feições do bairro operário e fabril, com o erguimento de um condomínio residencial.
Mas o aterro também tem outra dimensão de sua expressão simbólica, dentro da
dinâmica da relação homem-natureza. Se nesse início de século, da belle époque, é a
metrópole moderna que se quer firmar, ela se faz em detrimento da natureza, com marcas
cada vez mais apagadas na cidade. A cidade, assim, aparece como um conjunto intensamente
inter-relacionado de ações humanas que exclui, ou tenta excluir, fundamentalmente o
predomínio da natureza dentro de seus limites. As estruturas construídas pelo homem –
fossos, terraplenagens, muros estabelecem “conjuntos estratigráficos completamente
60
artificiais” (CARANDINI 1991: 40) que agem, muitas vezes, contra as ações da natureza:
enchentes, chuvas, etc. Os aterros localizados às margens do Tamanduateí são exemplos do
processo (DOCUMENTO ARQUEOLOGIA E ANTROPOLOGIA 2007). Não é este o caso
do aterro do Petybon, uma manipulação do meio e da paisagem (a criação de uma paisagem)?
A aplicação dos aterros, no caso do sítio Petybon, é um exemplo da adaptação do
meio a um sistema sociocultural e político ou às necessidades e desejos humanos pelos
seres humanos que com ele coexistiram (BALÉE & ERICKSON 2006: 4), assim como uma
adaptação dos seres humanos a este meio. Todas estas intervenções percebidas no sítio sobre
as feições naturais do terreno estão associadas às percepções dessas feições e à atribuição de
significados culturais (HORTA 2004: 15). É o que a Ecologia Histórica vem chamando de
“dinâmica recíproca entre sociedade e meio ambiente” (BALÉE & ERICKSON 2006: 9). A
construção da paisagem atual da Vila Romana, mais especificamente quando penso na
formação do sítio Petybon, com seus aterros para a construção de uma Fábrica, são produtos
da ação humana, e da intencionalidade humana (mais que o resultado de alguma força
evolutiva).
61
CAPÍTULO 2
ATRIBUTOS, CATEGORIAS DE ANÁLISE E ARTEFATOS DO SÍTIO PETYBON
No presente capítulo apresentarei uma explicação dos atributos considerados durante a
análise das faianças finas do sítio Petybon, junto dos gráficos correspondentes ao acervo
analisado. A necessidade desta explanação está no fato de que muitos dos atributos por mim
elencados não são usualmente utilizados para a faiança fina, seja porque lido com uma
unidade de produção e não com um refugo de unidade doméstica, onde as louças já estariam
finalizadas para o consumo, seja porque o objetivo que permeia todo o trabalho é o de
mostrar a originalidade da louça em faiança fina nacional, buscando atributos que a
diferenciem, e facilitem seu reconhecimento, em relação à louça em faiança fina estrangeira.
Como não estou partindo dos pressupostos de noções de “cópia”, analisei as características
das louças do sítio Petybon de modo que as afastassem das louças forâneas, apesar de saber
existir semelhanças. Além disto, com o objetivo de realizar análises tecnológicas, estipulei
uma ampla gama de atributos relacionados às diferentes etapas da cadeia operatória, etapas
estas formadas por um gestual que, justamente, diferenciará estas louças, mesmo que, às
vezes, muitas destas etapas não tenham apelo no produto final. Logo, as louças foram
analisadas segundo seus atributos tecno-morfológicos e decorativos (parte da peça, etapa do
processo de produção, tratamentos de superfície, processo de esmaltação, defeitos de
produção, marcas, técnicas decorativas e padrões decorativos); foram igualmente analisadas
as chamadas cerâmicas de olaria ou mobiliários de forno.
Importante ressaltar que, apesar da presença de outros materiais como porcelanas e
vidros, foquei-me nas faianças finas e seu processo de fabricação, que compõem quase
100% do material resgatado no sítio Petybon.
62
Instituí, para a análise, um recorte, tornando a amostragem a alternativa mais viável,
tendo em vista as restrições de tempo (ARAÚJO 2001: 100) e a relação entre novas
informações qualitativas e quantitativas. Foram analisadas as 29.740 peças resgatadas do
sítio, com ficha de análise mais geral, com menos atributos, identificando morfologias,
atributos decorativos, matérias-primas e etapas da cadeia operatória (biscoitos/vidrados). Por
outro lado, foi, deste total, analisado de modo pormenorizado uma amostra de 1818 peças
que compõem as coleções MAE, IPHAN e NAUBC, nas quais analisei aspectos como
tratamentos de superfície, esmaltes, gretamentos, defeitos, decorações, digitais, etc.
Importante ressaltar que na amostra estão todas as peças decoradas provenientes do sítio.
1. Faianças Finas
Chamo o material estudado aqui de “louça” e de “faiança fina” por serem termos
consagrados, ao menos em Arqueologia Brasileira, o que não faz, de modo algum, a faiança
fina ser menos “cerâmica”. “Louça” não passa de uma designação genérica para “todo
produto manufaturado de cerâmica, composto de substâncias minerais sujeitas a uma ou
mais queimas” (PILEGGI 1958: 194-195). Em análises de materiais de sítios históricos, a
separação entre peças de “cerâmica” e peças em “faiança fina” é meramente didática e
reflete a falta de uma terminologia mais específica, que a faiança fina é, afinal, uma
cerâmica; serve, então, apenas para diferenciar as peças feitas de modo menos
industrializado com coloração mais avermelha e mais grosseiras (burdas em espanhol ou
coarse em inglês) daquelas de pasta muito branca com granulometria fina e vidrado (fina em
espanhol ou refined em inglês). Adoto a classificação de Zanettini (1986: 122), segundo o
qual “os produtos em faiança fina apresentam pasta dura e opaca branca, infusível ao fogo
de porcelana (...). Sua pasta é produto de vários ingredientes, conforme a fábrica que os
aplica; é compacta e de forma geral esbranquiçada dispensando o engobo”. Esta pasta,
necessariamente, deve ter mais de 30% de caulim, para que não ocorram formulações
excessivamente fundentes, e menos de 70%, para não permitir a formulação de massas
refratárias (SILVA, SOUZA, SILVA & HOTZA 2009: 28). Invenção inglesa do século
XVIII, “representa o esforço dos oleiros ingleses na busca de novos processos para substituir
a faiança clássica e alcançar a porcelana no Ocidente” (BRANCANTE 1981: 129). Para
63
Pileggi (1958: 195), a faiança fina é uma categoria intermediária entre a faiança e a
porcelana, descoberta durante a manipulação do grès (BRANCANTE 1981: 129).
o obstante, existem outras nomenclaturas para a faiança fina que são, em verdade,
variedades pontuais da fabricação da pasta básica de argila, caulim, feldspato e quartzo. Pó-
de-pedra, por exemplo, é uma nomenclatura bastante utilizada entre os ceramistas. O
Sindicato da Indústria da Cerâmica de Louça de de Pedra, da Porcelana e da Louça de
Barro no Estado de São Paulo, por exemplo, adotou o nome seguindo a justificativa de que
deveria haver um termo patenteado brasileiro para uma pasta fabricada em outros países.
O governo brasileiro exigiu patente para sua fabricação, na qual era preciso constar uma
denominação específica ao novo material empregado (PILEGGI 1958: 195). A origem do
termo estaria no aspecto da pasta, resultante da moagem do feldspato e do quartzo a não
muito fino, no qual as partículas a que ficam reduzidos, visíveis e desiguais em tamanho,
dariam a impressão de um “pó de pedra” (ZANETTINI 1986: 123).
O mesmo ocorre com o termo granito”. Para Brancante, a louça granito se diferencia
da pó-de-pedra por ter uma pasta mais fundente, mais resistente e com menos capacidade de
absorção, ou seja, menor permeabilidade, aproximando-se, por isso, da porcelana
(BRANCANTE 1981: 513). Existiria também uma diferenciação segundo a temperatura de
cocção, apesar de uma semelhança na composição da massa e no processo de fabricação,
dado que a louça pó-de-pedra seria cozida a 1150ºC, mais porosas e com estrutura mais
granulosa, e a granito entre 1250º e 1300º, menos absorventes e, aparentemente, menos
granulosa (MEMORIAL DO SINDILOUÇA: 4). Para Miller (1991) uma das designações de
ironstone seria granito, ou seja, poderíamos relacionar a “louça granito”, com base no autor,
à porcelana brasileira. Segundo o Almanak Laemmerte de 1928, a Fábrica de Louças Santa
Catharina (Fagundes, Ranzini & Cia.) produzia “louça de granito” (1928: 291). Devido a
esta falta de clareza e a falta de dados empíricos e fotográficos mostrando a diferença
“estética” entre a granito e a pó-de-pedra, prefiro adotar o genérico “faiança fina”.
É interessante, ainda, situar a faiança fina dentro do mundo dos produtos cerâmicos.
Deve-se lembrar que faiança fina e faiança são artefatos diferenciados, do ponto de vista
arqueológico. A faiança fina não é uma subcategoria da faiança, destarte a semelhança no
nome. O termo tem relação com a língua portuguesa e, portanto, também é bastante devedor
da maneira como nós encaramos o mundo cerâmico. Brancante (1981: 129) não inclui a
faiança fina na categoria da faiança, segundo ele, “porque sua designação é imprópria e não
corresponde ao conceito da faiança verdadeira”.
64
Em algumas classificações americanas, o correspondente à faiança fina seria refined
earthenwares. Existiria um grupo, assim, de cerâmicas ditas earthenwares, dividido em
refined earthenwares e coarses earthenwares (ROBERTS 2005): no primeiro estariam o
grès, a porcelana e a nossa faiança fina, enquanto que no segundo estariam a cerâmica
vidrada e a faiança ibérica. Neste esquema, a faiança fina está muito mais próxima da
porcelana do que da faiança. Arqueologicamente, não existiria uma “faiança willow”, como
vi em alguns trabalhos, porque este é um padrão decorativo que aparece somente em
faiança finas. Na classificação citada, após a diferenciação entre refined e coarse, as faianças
finas são analisadas segundo vidrados (cream, pearl ou white) ou segundo padrões e
técnicas decorativas.
Existe ainda uma classificação inglesa baseada na permeabilidade das pastas,
dividindo-as em impermeáveis/não porosas, nas quais se encontram a porcelana, bone-china,
louças vitrificadas e grès, e os permeáveis/porosos, onde estão a terracota, a mayólica, a
faiança, a faiança fina, a louça refratária e as chamadas louças de barro (PILEGGI 1958:
109). Enfim, dependendo do atributo da peça a ser ressaltado (um “atributo guia”, por assim
dizer), haverá variações na classificação, e artefatos, às vezes, tidos como distantes podem
ser aproximados. Problema semelhante ocorre nas classificações de grés e porcelana, onde
ora o grés é um tipo de porcelana ora vice-versa, e ainda conta-se com termos como grès
porcelanato”, pastas como da louça sanitária e porcelana elétrica.
A) Classe
Com fins de facilitar a análise, a primeira triagem das louças do sítio Petybon foi
feita com base nas partes das peças passíveis de reconhecimento, isto é, criaram-se divisões
relacionadas à identificação da parte da peça que forma o vasilhame, presente no registro,
estipulando, a partir disso, categorias funcionais e tipos. Deste modo, foram criados três
universos, caracterizados a seguir:
Universo 1: compreende 13.418 fragmentos, sendo composto por peças
fragmentadas que não possibilitaram o reconhecimento das características
morfológicas ou funcionais das mesmas. Essas peças foram classificadas na ficha
com os seguintes códigos:
1. Fragmento de parede
65
2. Fragmento de borda
3. Fragmento de base
4. Alça
Em alguns sítios arqueológicos, especialmente aqueles com faianças finas muito
fragmentadas, tento utilizar a categoria “ombro”, ou seja, a parte angulosa entre a aba e o
frete de pratos, pires, travessas, etc. O reconhecimento desta parte da peça possibilita a
identificação de recipientes abertos planos, tal qual a classificação americana flatware. Deste
modo, é possível saber, ao menos, se um determinado refugo continha mais recipientes
fundos, côncavos, (hollowware) ou abertos, possibilitando inferências sobre práticas de
consumo, etc. No entanto, quando o material do sítio Petybon começou a ser analisado, esta
categoria, na época, não foi elencada, continuei com a mesma linha de atributos a fim de que
pudesse unir todas as planilhas de análise e criar gráficos e tabelas com as mesmas variáveis.
Universo 2: Este universo apresentou 8.781 peças. Compõe-se por peças nas
quais não foi possível o reconhecimento de características morfológicas específicas,
assim como suas exatas dimensões, a fim de sua classificação por tipo dentro da
categoria funcional. Apesar disto, as características identificáveis permitem uma
classificação quanto a sua funcionalidade, dentro dos universos de decoração,
higiene pessoal e alimentação, sendo classificada segundo os códigos:
1. Malga / Tigela
2. Xícara
3. Caneca
4. Copo
5. Prato
6. Pires
7. Travessa
8. Terrina
9. Saladeira
10. Manteigueira
11. Tigela bojuda
12. Jarro
13. Bico de Bule
14. Tampa
15. Vaso para planta
(cachepô)
16. Jarra
17. Vaso
18. Saboneteira
19. Penico
20. Azulejo
21. Apoiadores
22. Chuveirinho
66
Não diferenciei as xícaras entre “xícaras de ce “xícaras de café” e preferi usar termos
mais genéricos como xícaras” ou malgas/tigelas”, porque estas terminologias, mais
específicas, tendem a induzir função particular à forma sem que se tenham claras indicações de
que este foi seu uso pretendido ou real (RICE 1987: 211). Isto se agrava no contexto com o
qual estou lidando, de um universo produtivo onde, teoricamente, as louças nem mesmo foram
consumidas.
Preferi utilizar a terminologia “malga” por estar consagrada na Arqueologia Histórica
brasileira. No entanto, tenho claro que este é um termo pouquíssimo utilizado no Brasil do
século XX, aparecendo em poucas referências históricas e de quase nula compreensão oral. Por
isso, acrescentei ao mesmo o termo “tigela” que, apesar de bastante genérico, é como muitas
das pessoas que entrevistei designaram a forma conhecida como malga. Tendo em vista que a
maior quantidade de peças do sítio Petybon são malgas/tigelas, será importante aprofundar um
pouco mais nesta terminologia e na designação desta forma, algo que retornarei com maior
afinco adiante na dissertação.
Como mostra o gráfico abaixo, há um claro predomínio das malgas/tigelas, seguidos das
xícaras, pratos, pires e canecas na coleção analisada.
0 500 1000 1500 2000 2500 3000 3500
Malgas
Xícaras
Pratos
Tampas
Pires
Penicos
Saladeiras
Canecas
Travessas
Terrinas
Vaso para Plantas
Tijelas
Manteigueiras
Jarros
Saboneteiras
Copo
Bico de Bule
Jarra para Flores
Chuveirinho
Totais por categoria funcional
Universo 3: Composto por 3.866 peças, se caracteriza pelo universo onde as peças estão
quase, ou totalmente, completas, possibilitando não apenas sua identificação do ponto de vista
morfológico, como também estipular tipos, caracterizados por variações no volume e nas
dimensões. Com base nestas peças, foram organizadas as 22 categorias funcionais sicas que
67
comportam 104 tipos de variantes, sendo os mesmo apresentados nos quadros a seguir. Junto às
medidas das dimensões dos tipos, vão os cálculos de volumes das peças. Os cálculos do volume
dos vasilhames, indicando as variantes do tamanho de uma mesma forma (como as
malgas/tigelas), mostram a importância da reconstituição volumétrica para o estabelecimento
de classes funcionais (SINOPOLI 1992), que pressuponho que artefatos de diferentes
tamanhos e capacidades volumétricas provavelmente eram destinados a diferentes usos
(GOMES 2005: 174). Formas e funções diferenciadas seriam frutos de costumes, culturas,
hábitos e identidades associadas à resolução de problemas do dia-a-dia (SCHIFFER & SKIBO
1997: 45).
1. Malga/Tigela
Tipo
Base (cm)
Boca
(cm)
Altura
(cm)
Volume (m
l)
1 3,0 6,0 4,0 50
2
3,5
7,0
4,5
75
3 4,0 8,0 5,5 125
4 4,5 8,5 6,0 175
5 5,0 9,0 6,5 200
6 5,5 10,5 6,5 275
7
6,5
11,5
8,0
400
8 7,0-7,5 13,0 8,5 550
9
8,0
-
8,5
14,0
9,5
625
10 9,0 16,0 10,0 1000
11 11,0 19,0-20,0 12,0 2000
12 12,0 22,0 13,0 2800
13 12,5 24,0 13,5 3250
14
12
-
-
2. Xícara
Tipo Base (cm) Boca (cm) Altura (cm) Volume (ml)
1 2,5-3,0 4,5-5,0 4,0-4,5 60
2
3,0
4,5
-
5,0
4,5
-
5,0
50
3 3,0-3,5 5,5 5,0 75
4
3,0
-
3,5
5,5
5,5
85
5 3,5 6,5-7,0 6,5 150
6 5,0 8,0 5,5-6,0 150
7 4,5-5,0 7,5-8,0 5,0 200
8 5,0 8,0 5,5 175
9
4,5
8,0
7,0
175
3. Caneca
Tipo Base (cm) Boca (cm) Altura (cm) Volume
1 6,0-6,5 6,0-6,5 7,0-7,5 125
2
7,0
-
7,5
7,0
-
7,5
8,5
-
9,0
225
3 8,0 8,0 9,5 300
68
4 5,5-6 5,5-6 7 198
5 6,5-7 7 8-8,5 327
6
5,2
5,2
9,5
202
4. Copo
Tipo Base
(cm)
Boca
(cm)
Altur
a (cm)
Volu
me
1 6,5 7,5 9,5 275
5. Prato
Tipo Descrição Diâmetro da Aba (cm) Altura (cm)
1 Raso sem decoração 21 2,7
2 Fundo sem decoração 22 4,3
3 Raso Trigal 22 2,7
4
Fundo Trigal
21
3,8
5 Raso com borda ondulada 20 2,7
6 Raso decorado 23 2,7
7 Raso sem decoração 22 2,7
8 Fundo sem decoração 20 3,4
9 Fundo sem decoração 22 3,7
10 Raso sem decoração 24 2,7
11
Raso decorado
22
1,9
12 Raso decorado 20 1,9
13 Fundo decorado 20 3,1
14 Prato de sobremesa 18 1,7
15 Prato decorado 20 -
16 Prato de sobremesa sem decoração
16 -
17 Prato de sobremesa decorado 16 1,4
6. Pires
Tipo Descrição Diâmetro da aba (cm) Altura (cm)
1
- 10,5 1,5
2
- 14,0 2,0
3
- 12 2,3
4
-
15,5
2,7
5
Com lábio ondulado 10 1,65
7. Travessa
Tipo Forma Altura (cm)
1
Oval 3,5
8. Terrina
Tipo Descrição Forma Base (cm) Boca (cm) Altura (cm) Volume
1 Trigal Oval 12,0 x 18,0 17,5 x 25,0 9,0
69
2 - Oval 11,0 x 16,5 - - -
3 - Oval 15,5 x 21,5 - - -
4
Sem decoração
Oval
-
-
-
-
9. Saladeira
Tipo Descrição Forma Base (cm) Boca (cm) Altura (cm)
1 Trigal Oval 28,0 x 18,5 37,5 x 28,5 7,5
2 Sem decoração Oval - - -
3 Sem decoração Oval - - -
10. Manteigueira
Tipo Forma Base (cm) Diâmetro da
aba (cm)
Diâmetro da
boca (cm)
Altura (cm)
1 Circular 5,5 12,5 7,5 4,0
2 Circular 9,0 - 7,5 3,5
11. Tigela bojuda
Tipo
Forma
Base
(cm)
1 Circular 10,0
12. Jarro
Tipo Descrição Base (cm) Boca (cm)
1
-
8,0
-
2 Sem decoração - 8,0
13. Bico de bule
14. Tampa
Tipo Descrição Forma Diâmetro do
encaixe (cm)
Diâmetro
Total (cm)
Altura
(cm)
1 Tampa de açucareiro Circular 7,5 8,5 2,0
2 Tampa de açucareiro Circular 6,0 7,5 3,0
3 - Oval 7,3 x 12,5 9,8 x 15,5 2,0
4
Tampa de Terrina Trigal
Oval
-
-
-
5 Tampa de Terrina Oval 12,0 x 18,5 15,0 x 22,0 2,5
6 Tampa de Terrina com
encaixe para colher
Oval 18,0
(Largura)
21,0
(Largura)
3,5
7
-
Circular
17,0
20,0
1,5
8 - Quadrada - - -
9 - Circular 5,6 6,7 3,5
15. Vaso para planta (cachepô)
Forma Base (cm) Boca (cm) Altura (cm)
70
Circular 10,0 14,0 4,0
16. Jarra
17. Vaso
Tipo Base (cm) Boca (cm) Altura (cm)
1 13,0 18,0 18,5
2 - - -
18. Saboneteira
Tipo Descrição Forma Base (cm) Boca (cm) Altura
(cm)
Diâmetro do
encaixe (cm)
Altura
(cm)
1
Corpo
Tampa
Oval
Oval
5,0 (Largura) 8,0 (Largura) 4,0 6,5 (Largura)
2,0
2 Trigal Oval 5,0
(Largura)
-
19. Penico
Tipo Base (cm) Boca (cm) Altura (cm) Volume (ml)
1 12,0 20,0 12,5 2000
2 13,0 22,0 14,0 3000
20. Azulejos
Tipo Largura (cm) Comprimento (cm) Descrição
1
14,4
14,4
-
2 7,4 14,6 -
3
-
15,1
-
4 - - Superfície em relevo na
frente e ranhuras no verso
5 - - Com ranhuras no verso
6 Convexas (para rodapés)
7 Côncavos (para quinas)
21. Apoiadores
1 Trempes
2
Prisma triangular
3 Cravilhos
4
Com canaleta
22. Chuveirinho
Base (cm)
9,0
71
O gráfico abaixo mostra a quantidade de tipos por categoria funcional. uma maior
recorrência dos recipientes de menor volume, especialmente nas categorias funcionais 1, 2 e 3,
o que pode ser resultado da maior freqüência na produção de recipientes menores que, em
geral, são produzidos mais rapidamente e em maior quantidade (cabem muito mais malgas
pequenas nos fornos), e consumidos com maior freqüência (um recipiente por indivíduo).
0,00
5,00
10,00
15,00
20,00
25,00
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14
Percentual de tipos da categoria funcional 1 no Universo 3
0,00
10,00
20,00
30,00
40,00
50,00
60,00
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
Percentual de tipos da categoria funcional 2 no Universo 3
0,00
5,00
10,00
15,00
20,00
25,00
30,00
35,00
1 2 3 4 5 6
Percentual de tipos da categoria funcional 3 no Universo 3
0,00
5,00
10,00
15,00
20,00
25,00
30,00
35,00
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17
Percentual de tipos da categoria funcional 5 no Universo 3
0,00
5,00
10,00
15,00
20,00
25,00
30,00
35,00
40,00
45,00
1 2 3 4 5 6
Percentual de tipos da categoria funcional 6 no Universo 3
0,00
5,00
10,00
15,00
20,00
25,00
30,00
35,00
40,00
45,00
1 2 3
Percentual de tipos da categoria funcional 7 no Universo 3
0,00
5,00
10,00
15,00
20,00
25,00
30,00
1 2 3 4 5
Percentual de tipos da categoria funcional 9 no Universo 3
0,00
5,00
10,00
15,00
20,00
25,00
30,00
35,00
1 2 3
Percentual de tipos da categoria funcional 10 no Universo 3
0
10
20
30
40
50
60
1 2
Percentual de tipos da categoria funcional 12 no Universo 3
0,00
2,00
4,00
6,00
8,00
10,00
12,00
14,00
16,00
18,00
1 2 3 4 5 6 7 8 9
Percentual de tipos da categoria funcional 14 no Universo 3
72
0
10
20
30
40
50
60
1 2
Percentual de tipos da categoria funcional 17 no Universo 3
0
10
20
30
40
50
60
1 2
Percentual de tipos da categoria funcional 18 no Universo 3
0
10
20
30
40
50
60
70
1 2
Percentual de tipos da categoria funcional 19 no Universo 3
0,00
5,00
10,00
15,00
20,00
25,00
30,00
35,00
40,00
45,00
1 2 3 4 5 6 7
Percentual de tipos da categoria funcional 20 no Universo 3
ALGUMAS FORMAS DO SÍTIO PETYBON
Tigelas
Canecas
Xícaras
Xícara
Xícara
Terrina
Saladeira
Tampa de terrina
Travessa
Vaso
Base de terrina
Penico
Prato raso
Pires (IRFM)
Pires
Manteigueira Tampa de açucareiro
Saboneteira
Tampas
Prato raso
Azulejo
Azulejo para quinas
Azulejo para rodapé
73
74
B) Decoração
O sítio Petybon contém um total de 1050 peças decoradas, tendo sido todas elas
analisadas, que as peças com decoração do sítio concentram-se majoritariamente nas
coleções MAE e IPHAN. Considerei como “decoração” aquilo caracterizado como a aplicação
de pigmentos que geram efeito cromático ou o que marca relevos na peça, apesar de
acromáticos; neste intuito, reconheço que o “branco” também pode ser pensado como padrão e
efeito decorativo, assim como uma superfície biscoitada. As peças decoradas representam
apenas 4% do total do acervo gerado pelas escavações; deste total, 91% o peças com
decoração em superfície modificada e 9% em superfície não modificada ou moldada. As
decorações foram analisadas segundo os seguintes critérios: tipo do aspecto final da superfície
do recipiente resultante do processo decorativo, técnica de produção da decoração, padrão,
motivo e tema.
Como “tipo do aspecto final da superfície do recipiente resultante do processo
decorativo” entendo aquilo que se classifica, para as faianças finas, como superfícies
modificadas ou não modificadas (TOCCHETTO et alli 2001). As decorações em superfície não
modificada foram subdivididas em decorações baixo-esmalte e sobre-esmalte, isto é, aquelas
aplicadas sobre o vidrado (como a decalcomania) e aquelas aplicadas sob o vidrado, variações
que implicam mudanças na cadeia e no custo dos fatores de produção.
Como técnica de produção de uma decoração, entendo “o conjunto de regras, invenções,
operações e habilidades” (VARGAS 1994: 15) que convergem para a criação de uma
determinada decoração ou um padrão decorativo, quando há uma repetição do motivo em
diferentes peças (ARAÚJO & CARVALHO 1993: 82). Foram identificadas, na amostra
analisada, as seguintes técnicas decorativas:
- Pintado à mão livre: “aplicação da decoração de forma manual” (TOCCHETTO et
alli 2001: 25), em geral com pincéis, nas quais é possível observar as marcas das cerdas e os
acúmulos de tinta no contorno da pintura resultante da pressão entre o instrumento da ação e a
superfície do suporte.
- Carimbado: aplicação de decoração pintada com auxílio de um carimbo
(TOCCHETTO et alli 2001: 27). Em geral, por causa do instrumento (carimbo), a decoração é
mais estandardizada devido à facilidade de reproduzir motivos de forma quase “idêntica”
75
(menos quando o carimbo é uma esponja, como o cut-sponge), além de rapidamente. Na
decoração carimbada, existe acúmulo de tinta tanto nas bordas do desenho, devido à pressão
entre carimbo e suporte, como mais ao meio do mesmo, devido à força do vácuo entre o
carimbo e o suporte quando o instrumento é afastado da superfície.
- Transfer-Printing: a impressão por transferência, ou transfer-printing, é um tipo de
decoração impressa criada na Inglaterra em meados do século XVIII, desde cedo utilizada na
faiança fina, que concomitante à sua invenção (BRANCANTE 1981). No âmbito de seu
surgimento, e até o desenvolvimento de outras técnicas ao longo do século XIX, o transfer
possibilitou a criação de complexas decorações, rapidamente aplicadas às peças, certa
estandardização, constituição de jogos e redução dos custos finais (SOUSA 1998: 169;
TOCCHETTO et alli 2001). O processo consistia na gravação de um desenho em placas de
cobre ou chapa de o, impresso em um pedaço de filme ou papel seda, então aplicado ao
biscoito. O desenho configurava um baixo relevo no metal, preenchido com tinta – quanto mais
funda a incisão na placa ou quanto mais tinta, mas escuro o desenho em sua performance final
(SAMFORD 1997: 3). Uma esponja, flanela ou instrumento semelhante era utilizado para
remoção do papel, deixando no suporte a imagem colorida. Entre a queima, a aplicação da
decoração e a queima do vidrado havia, em algumas fábricas, outra queima para fixação da
decoração no biscoito e para queimar o óleo que era, em geral, misturado à tinta, para
endurecê-la sobre a argila, a fim de que não houvesse risco de escorrer quando mergulhada no
vidrado (DUKE 1995: 963; PYE 2007). A gama de cores dos transfers, em geral
monocromáticos, era limitada devido às possibilidades de muitas mudarem ou desaparecerem
completamente quando sujeitas à temperaturas muito altas, como às da queima do vidrado
(DUKE 1995: 963) (além de uma preferência, a utilização do azul cobalto deveu-se a suas
características em manter a cor e não desaparecer durante a queima [PYE 2007]). Com o
tempo, foram simplificando-se algumas etapas, como a da construção das placas ou a
transferência do desenho para o papel de seda (TOCCHETTO et alli 2001: 30).
- Esponjado: É aceite geral que o que traduzimos como “esponjado”, do inglês
spongeware (ou spongework), é uma metamorfose da decoração conhecida pela técnica do
spatterware, desenvolvida como resultado de uma necessidade em acelerar o processo de
decoração, que competiu com técnicas como o cut-sponge ou decorações aplicadas com
escovas ou pedaços de pano (McCONNELL 1990: 11). Uma observação deve ser feita quanto
76
ao contexto brasileiro: o de que “esponjado” é técnica, mas também cria um padrão decorativo
homônimo; no entanto, seu homônimo não é o único padrão decorativo criado pela técnica
padrões e motivos diferentes podem ser criados por uma mesma técnica. Cito, novamente, o
exemplo da Porcelana Monte Sião, que fabrica dois tipos de “esponjado” (termo êmico)
referentes às técnicas de aplicação dos pigmentos e tintas com uma esponja. Os dois padrões
produzidos pela Porcelana podem ser observados abaixo.
- Decalcomania: conhecida em alguns contextos como decal e como um tipo de
“decoração impressa”, resulta da aplicação, sobre um suporte, de motivos impressos em uma
película ou papel adesivos (SOUSA 1998:197), mono e policromados. Diferente do transfer-
printing, com a qual é, às vezes, confundida, a decalcomania é majoritariamente utilizada em
decorações sobre-esmalte, implicando, na faiança fina, em três queimas, sendo a última em
forno contínuo à aproximadamente 600ºC, e apresenta um leve relevo ou aspereza. A
decalcomania é produzida impressa em uma emulsão especial de papéis revestidos com
película plástica. Quando pronto para usar, o plástico, no qual a decoração está aderida, é
retirado e aplicado ao suporte (como um adesivo) (DUKE 1995: 953). Durante a queima, a
decalcomania funde-se ao vidrado e o excesso de cola ao redor da decoração desaparece. A
técnica ficou muito popular no final do século XIX, quando foi criada, mas no Brasil, a relação
é indiretamente proporcional à faiança fina, isto é, quando a recorrência da técnica aumenta, as
fábricas de faiança fina estão em decréscimo, ou seja, no período pós II Guerra. Daí a parceria
bem sucedida da porcelana brasileira com a decalcomania, comum mesmo nos dias atuais.
- Estêncil: o estêncil é uma técnica que consiste na aplicação de um molde vazado (ou
máscara) sobre a superfície do suporte, sobre o qual são aplicadas tintas, em geral através de
pincéis, carretilhas ou sprays. As áreas vazadas, do molde, são, na realidade, contornos de
motivos decorativos que, após aplicação dos pigmentos, ficam marcados no suporte. A técnica
permite decorações mono e policromadas e uma estandardização da produção uma vez que
77
reproduz motivos e padrões de modo “idêntico”, de maneira rápida, sem que haja necessidade
de grande domínio da técnica, como ocorre nas pinturas à mão livre.
- Moldado: as decorações moldadas o aquelas que caracterizam peças em superfície
modificada. A decoração está intrinsecamente relacionada à forma da louça, uma vez que ela já
está presente, em negativo, nos moldes de gesso que conformam a peça. Assim, quando a
barbotina é derramada, no processo de colagem, no interior dos moldes, a massa em suspensão
deposita-se nas paredes do molde e preenche os negativos, criando decorações em relevo. O
inverso é feito quando da fabricação dos baixos relevos. Apesar de acromáticas, nas louças
brasileiras existe associação entre decorações em relevo e cromáticas, com pigmentos coloridos
(que caracterizam superfícies não modificadas).
- Transfer-printing associado à pintura à mão livre: associação das duas técnicas.
- Transfer-printing associado à carimbo: associação das duas técnicas.
0,00
10,00
20,00
30,00
40,00
50,00
60,00
70,00
80,00
90,00
Porcentagem de tipos de cnicas de aplicação das decorações
No que concerne aos padrões decorativos e motivos identificados, tem-se o seguinte:
Em superfícies não-modificadas (cromáticas)
78
Florais
Guirlandas
Laçaria
Esponjado
Faixas e frisos
Arabescos
Rendas
Pontos
Couraça
Antropomorfos
Ovas
Geométricos (quadrados e círculos)
Willow
- Florais: os florais são motivos representativos de elementos da flora como frutos, folhas,
galhos, gavinhas, sementes, flores, pétalas, raízes, etc. A designação é bastante genérica e em
geral se refere àquelas decorações pintadas à mão livre; no entanto, existem motivos florais
aplicados em diferentes técnicas, como o transfer, carimbadas, etc. Por isso é difícil a
separação, uma vez que não conseguimos identificar cada tipo de flor. No acervo do sítio
Petybon, a maior parte das peças com decoração floral foi pintadas à mão livre e classificadas
segundo algumas variantes, ou seja, variações decorativas numa mesma cnica
(TOCCHETTO et alli 2001: 25). Abaixo, listo os tipos de floral, incluindo alguns com
diferentes técnicas de aplicação.
Margaridas
Florais com gavinhas
Cristas
Floral sobre fundo pintado
Fitomorfos com pontos
Flor do maracujá
Fitomorfo
Floral com laçaria
Tulipa
79
Flores em guirlanda
Floral com contorno e dupla esmaltação
"Mocha"
Floral: transfer-printing com pintura à mão livre
Floral com pontos
Fitomorfos e frutas
Flor "coroinha"
Fitomorfos com geométricos
Ramos
Mandala
Frutas
Flores sobre esmalte
Floral e friso
Fitomorfo em transfer-printing
Fitomorfo com frio dourado
Rosa
Orquídea
Flor de cerejeira
Lótus
- Guirlandas: este padrão decorativo caracteriza-se pela presença da representação do
ornamento, em geral circular ou em semicírculo, feito de flores, folhas e/ou ramagens
entrelaçadas. A guirlanda apareceu apenas em transfer-printing.
- Laçaria: decorações compostas por laços.
- Esponjado: padrão decorativo, aplicado pela cnica do esponjado, consistindo em molhar a
esponja na tinta e bater a mesma, levemente, sobre a superfície do suporte, originando um
efeito de sombreamento e textura, no que concerne uma sensação visual. Presente apenas em
malgas.
80
- Faixas e frisos: padrão decorativo caracterizado pela presença de faixas, frisos, e faixas e
frisos, com variantes na organização destes elementos, mono e policromados. Presente em
pratos e malgas.
- Arabescos: elaboradas decorações em formas geométricas, com curvas, que se assemelham a
plantas; aplicado apenas através de pintura à mão livre. Presente apenas em malgas.
- Rendas: padrão em transfer-printing representando linhas cruzadas, formando losangos,
dando aparência de um tecido rendado. Presente apenas em malgas.
- Pontos: pontos, ou dots, é um padrão aplicado à mão livre, policrômico. Presente apenas em
malgas.
- Couraça: decoração em transfer cujos pequenos detalhes, repetitivos, dão a aparência de uma
couraça de armadura. Presente apenas em pratos.
- Antropomorfos: padrões decorativos que contém elementos antropomorfos. São de dois
tipos: um em transfer, no qual o busto, de perfil, de uma representação feminina greco-
romana, e um associando transfer a carimbado, com a presença de um camafeu no qual um
busto feminino (ao que chamei “camafeu com rendas”). Presente apenas em malgas.
- Ovas: elemento presente em transfer-printing, encontrado também em algumas louças
estrangeiras, caracteriza-se pela presença de ovas”, formas alongadas, como uma prancha de
surf, repetidamente dispostos adjacentes por toda a aba. Presente apenas em pratos.
- Geométricos: decorações caracterizadas pela presença de quadrados e círculos.
-Willow: o já bastante conhecido e extensamente pesquisado Willow Pattern.
81
0,00
10,00
20,00
30,00
40,00
50,00
60,00
70,00
80,00
90,00
Decorações em superfície não modificada
Em superfícies modificadas (acromáticas)
Trigal
Retângulo com arestas arredondadas
Lírio
Linha em meia lua (moldado, na caldeira)
Borda ondulada
Concha
Não Identificados
0,00
20,00
40,00
60,00
80,00
100,00
Trigal Retângulo
com arestas
arredondadas
Lírio Linha em
meia lua
(moldado na
caldeira)
Borda
ondulada
Concha Não
Identificados
Percentual de decorações moldadas (em superfície modificada)
82
No que diz respeito às terminologias “motivo” e “tema”, utilizo a distinção de Erwin
Panofsky (1991). O “motivo” se refere às formas puras representativas de objetos naturais
como animais, plantas ou um artefato qualquer. O “tema” seria a composição feita com os
motivos, somados a assuntos e conceitos, conformando um significado (PANOFSKY 1991).
Assim, um tema constituir-se-ia na “proposição de que se vai tratar num discurso” ou no
“domínio de assuntos preferencialmente tratados numa obra” (HOUAISS 2001). A decoração
como um discurso, ou a louça como uma obra, apresenta proposições ou assuntos que abordam,
como mostrarei mais à frente nesta dissertação, o tema do bucólico.
Louças teste
A coleção do sítio Petybon contém muitos exemplares do que denominei “louças testes”,
louças pintadas, cujas pinturas o são decorações ou não possuem um fim decorativo quando
de sua produção. Refiro-me, deste modo, àquelas louças que são parte do cotidiano fabril e nos
remetem a presença de redes de ensino-aprendizagem neste ambiente considerado opressor.
Apesar de não poder afirmar pela análise gestual, acredito que estas louças também se refiram
à enorme presença de crianças no universo produtivo. Como louças testes” também
classifiquei aqueles recipientes que foram utilizados, por exemplo, para limpar pincéis, tirando
o excesso de tinta ou testando os pigmentos; ao fazer isso, o decorador ou decoradora
desenhava formas neste suporte. Destaco, igualmente, a presença de louças no biscoito com
marcas a lápis na forma de contornos e desenhos (trato com maior a finco destes aspectos no
capítulo sobre as inscrições). São predominantemente artefatos no biscoito, os quais, na
amostra analisada, representam 27 peças.
ALGUMAS DECORAÇÕES DO SÍTIO PETYBON
Floral com arabescos
Flor do Maracujá
Arabescos
Floral em guirlanda com crista
Esponjado
Esponjado
Floral em transfer-
printing com
pintura à mão
Couraça
Frutas (decalcomania)
Geométricos Camafeu com rendas
Tulipas
Antropomorfo Floral
Crista
“Mocha”
Geométricos fractalizados
em estêncil
Mandala
Faixa e friso
Floral
Margarida
Floral
Willow
Floral (estêncil)
Margarida Floral
Floral com laçaria
Margarida
Margarida
Floral em guirlanda
com pontos
Faixa e friso
Lótus
Rosa Fitomorfo com pontos
Cerejeira
Tulipa
Guirlanda
Pontos
Rendas
Fitomorfo com frutos
Floral
Fitomorfo com gavinha
FloralFitomorfo com galhos e contorno
83
LOUÇAS TESTE
2
3
4
1. Fragmentos de prato com decoração
trigal no biscoito
2. Fragmento de pires no biscoito
3. Fundo de recipiente aberto, no biscoito,
cortado, com traços de lápis
4. Fragmento de pires no biscoito
5. Fundo de prato no biscoito
6. Ombro de prato no biscoito
7. Borda de prato com decoração trigal
8. Fragmento de biscoito com raços de
lápis
9. Xícara no biscoito
10. Fragmento de caneca, vidrada, com
vestígios de pigmento na caldeira
1
5
6
7
8
9
10
84
85
C) Espessura
De acordo com alguns princípios de análise de categorias cerâmicas, a medição da
espessura é bastante corrente. A espessura de uma peça cerâmica vai variar de acordo com seu
tamanho e também com seu uso pretendido. Diferente de peças torneadas ou acordeladas, onde
a espessura da parede é também estrutural para a sustentação da forma, com o processo de
louças por colagem, as paredes dos moldes agem como suportes para as paredes das louças, as
quais podem, assim, ter sua espessura adelgaçada. No entanto, o é o simples fazer louças
de pouca espessura e nem é um caminho “natural” da demanda da louça o consumo por peças
de espessura delgada, como mostrarei a seguir.
Sabe-se que espessuras finas conduzem o calor com maior facilidade (se as louças têm
função de serviço, esta é uma característica pouco desejada assim a importância de alças) e
aumentam as probabilidades de quebra da peça por choques mecânicos (RICE 1987: 227).
Paredes grossas, por outro lado, acarretam maior resistibilidade ao choque térmico e ao stress
mecânico resultado de manuseio (SILVA 2000: 93). Nas louças do sítio Petybon, e acredito
que nas louças brasileiras em geral, a espessura faz parte da cadeia operatória que caracteriza
essa louça. Estou considerando, portanto, a espessura como um atributo e, consequentemente,
como um traço cultural da produção desta louça, incorporado aos artefatos durante o curso de
sua produção (“a process that involves a series of technical decisions that are ‘embedded in and
conditioned by social relations and cultural practice’” [DIETLER & HERBICH apud DAVID
& KRAMER 2001: 140]).
Manipulando as louças em faiança fina nacional e as louças em faiança fina estrangeira,
algo no toque das peças me fez perceber algumas diferenças, difíceis, então, de serem
verbalizadas. No entanto, a medição das espessuras apontou algumas saídas. No que concerne a
faianças finas feitas por colagem, a espessura está diretamente relacionada ao tempo que a
barbotina fica dentro do molde de gesso. Este tempo interfere no sistema produtivo e no
produto final, pois ele é diretamente proporcional a formação da camada por deposição da
pasta em suspensão na barbotina. Com a colagem, a massa líquida (barbotina), derramada
dentro de um molde de gesso, tem seus componentes, em suspensão, aos poucos, depositados
nas paredes do mesmo. Quanto mais tempo a barbotina permanecer no interior do molde, maior
deposição, maior a camada, mais grossa a espessura da peça. Em Fábricas como a Santa
Catharina, e hoje a Porcelana Monte Sião, um operário faz a colagem, enchendo um mero x
de moldes numa bancada. Ao término do enchimento do último molde da bancada, deve
86
estar em tempo de se virar o primeiro: “quanto ao produto final, a diferença de tempo
determinará a diferença de espessura” (AUN 2000: 180).
Deste modo, a espessura é quase que totalmente controlada pelo operário, pela
velocidade dos gestos do trabalhador. Enquanto primeira fábrica de louça branca do Estado, e a
primeira do país em moldes industriais, a Santa Catharina não possuía uma mão de obra
nacional especializada no fabrico de louças brancas. Assim, manipular e fabricar as chamadas
“casca de ovo”, ou louças com espessuras finas, era difícil e implicava em muitas perdas ao
longo do processo produtivo. Requer-se certa experiência oleira específica para tirar as peças
do molde sem amassá-las
6
. Por isso, optando por uma espessura mais grossa, diminui-se as
probabilidades de rachar ou amassar a louça ainda crua, pré-biscoito. Se a louça for muito fina,
ainda pode haver deformações durante a queima, e se for muito grossa pode haver
comprometimento de encaixes e sobreposições, além de uma maior absorção de vidrado
aplicado por banho ou imersão (AUN 2000: 181). Uma fábrica, e isso quer dizer também seus
trabalhadores, deve estar ciente das características físico-químicas de sua barbotina para que a
peça fique no molde tempo “suficiente” para formação da camada e para que se desprenda por
si só. Se a peça for retirada antes do tempo, ela pode deformar, porém a demora em sua
retirada implicaria em rachaduras dentro do molde por encolhimento da peça (ROSSI 2007).
Se a espessura mais grossa foi adotada como procedimento mais funcional da produção
de louças brancas no Brasil, com o tempo esta passou a ser quase que uma característica
intrínseca dessas louças nacionais e tenho a impressão de que elas só engrossaram com o tempo
(veja-se, por exemplo, a espessura de alguns pratos de porcelana brasileira!). É assim que se
faz a louça em faiança fina, sem maiores questionamentos – estratégia tecnológica que resultou
em uma escolha específica. Pressuponho, portanto, que “em todas as etapas envolvidas no
processo de produção, circulação, utilização e descarte dos artefatos, ou em todas as atividades
que compõem um sistema tecnológico, o sujeito que dele participa se depara com uma série de
opções possíveis de serem empregadas, dentre as quais ele deve escolher sem que esteja
necessariamente sujeito à regra básica da maximização da energia” (BUENO 2005: 21). Assim,
algumas espessuras características de louças em faiança fina européias são, com menor
6
Quando conversei com o Senhor Carlos Alberto Daldosso, um dos filhos de Antônio Daldosso (“Seu Toninho”),
sócio da Porcelana Monte Sião, sobre o assunto, segundo ele a espessura é uma opção da fábrica e tem a ver com
o grau de especialização dos trabalhadores. Quanto menor a espessura, maior as probabilidades de quebra ao
retirar as peças dos moldes. Os chineses, por exemplo, tinham técnicas milenares e especializadas para tal, coisa
que o Brasil não tinha. A mesma coisa tem a ver com a granulometria das pastas que no Brasil é maior. O
processo é o mesmo da porcelana, mas ao mesmo tempo é um pouco mais “rudimentar”, que não é porcelana
fina. Grãos maiores na pasta acarretam uma maior espessura das formas (Entrevista realizada em 13 de Outubro
de 2006. O senhor Carlos trabalhou por 24 anos na fábrica, começando aos 12 anos).
87
freqüência, encontradas nas louças brasileiras (como, por exemplo, espessuras entre 1 e 2 mm),
sem mencionar algumas louças orientais em porcelana.
Com fins comparativos, utilizo dados de outros sítios arqueológicos com presença de
louças em faiança fina, a saber sítio Fonte do Campo (NASCIMENTO 2009; ZANETTINI
ARQUEOLOGIA 2008), Cananéia 3 (BAVA DE CAMARGO 2009), Saco da Armação
(GUIMARÃES 2008), Fazenda Brejão (ZANETTINI ARQUEOLOGIA 2004). Quanto à
cronologia, o sítio Cananéia 3 pertence ao final do século XVIII e começos do XIX, os sítios
Fonte do Campo do século XIX, mas contêm louças do século XX, Saco da Armação, da
segunda metade do século XIX, mas igualmente com presença de louças brasileiras, e o sítio
Fazenda Brejão, da primeira metade do século XX. O que percebi foi uma sutil, mas presente,
variação entre as espessuras em direção às louças do século XX. Se no sítio Cananéia 3 as
espessuras se concentraram entre 2 e 3 mm, na Fonte do Campo a maioria está entre 3 e 4 mm,
assim como no Saco da Armação. Nos sítio fazenda Brejão e no Petybon as espessuras
concentram-se acima de 3,5, talvez entre 3 e 5 mm. É preciso lembrar que o único sítio com
total ausência de louças brasileiras é o Cananéia 3.
88
Os sítios com escopo temporal mais recuado, Cananéia 3 e Fonte do Campo, possuem
louças com as menores espessuras, diferente do que acontece com a Fazenda Brejão e sítios
que contém material do século XX, como a própria Fonte do Campo. Apesar disso, um olhar
sincrônico aponta na direção de uma certa homogeneidade na produção da faiança fina no
mundo, na qual fica marcada que este tipo de cerâmica está preso a um máximo (6mm) e a um
mínimo (1mm) no que concerne à espessura de suas paredes.
D) Etapas do processo produtivo
89
Enquanto universo produtivo, o sítio Petybon contém diversos artefatos em diferentes
etapas do processo de produção, assim como artefatos associados a esta produção. Através
deles pode-se reconstituir a cadeia operatória da produção de faiança fina na antiga Fábrica de
Louças Santa Catharina e muitos dos gestos que deixam marcas específicas nas superfícies
destas louças. Portanto, as peças foram analisadas seguindo sua localização em cinco etapas da
cadeia: biscoito, biscoito com decoração, biscoito com vidrado cru, biscoito com vidrado cru e
decoração, e vidradas.
Lembro que a faiança fina sofre duas queimas (e às vezes uma terceira dependendo da
decoração, se esta for sobre o vidrado). Depois da primeira queima, o resultado é o biscoito,
uma louça porosa sobre a qual seaplicada a decoração e depois o vidrado, para, então, ir ao
forno pela segunda vez (ZANETTINI 1986; PILEGGI, 1958, BRANCANTE 1993). O biscoito
é a peça mais “recuada” na linha da cadeia de produção que sobreviveu no sítio arqueológico,
visto antes dele existir apenas a peça crua, queimada após uma seção de acabamentos e
tratamentos de superfície.
Os biscoitos com decoração o os biscoitos nos quais foram aplicadas as decorações
pintadas, mas ainda não vidradas. Biscoitos com vidrado cru são as peças nas quais o biscoito
está coberto com vidrado não fundido, reconhecível por uma camada pulverulenta rosada que
cobre a peça. Biscoitos com vidrados crus e decoração são as peças nas quais a decoração foi
aplicada sobre os biscoitos que foram, então, vidrados, mas não sofreram, ainda, a segunda
queima. Peças vidradas são as peças teoricamente finalizadas, que já sofreram a segunda
queima. O sítio Petybon contém 93% das peças no biscoito e apenas 7% vidradas, que foram
analisadas segundo as etapas elencadas anteriormente e que podem ser vistas no gráfico abaixo:
90
E) Tratamentos de superfície
Como tratamento de superfície nas louças em faiança fina entendo os atributos
relacionados às técnicas de acabamento da superfície das peças, observáveis tanto na superfície
externa como na interna (MORAES 2007). Foram observados dois tipos de tratamento:
acabamentos e aplicação de vidrados. Não quero dizer que os vidrados nas faianças finas não
sejam também aspectos da decoração e tenham um apelo estético, além de funcional, mas, por
razões didáticas, os analisei, primeiramente, como um tipo de tratamento dado às superfícies
destas cerâmicas. Quanto ao que chamei acabamentos, foi possível observá-los nas peças
nos biscoitos.
Acabamentos
Para as louças, entendo como acabamento o que pude observar, hoje, nas fábricas de
porcelana brasileira no “Setor de Acabamento” (e por isso utilizo o termo), que antecede a
queima do biscoito. Para a cerâmica, são elencados diversos tipos de acabamento levados à
cabo após a confecção do recipiente, com a argila ainda úmida, que servem-se de variados
instrumentos, tais como seixos rolados, sabugos de milho, taquaras e mesmo as mãos
(MORAES 2007). Para as faianças finas estudas aqui, uma vez retiradas dos moldes, são
acumuladas para secagem ao ar livre, onde pode ocorrer acúmulo de poeiras, além de pequenos
fragmentos de massa ou do gesso do molde que podem ter se aderido á superfície das peças.
Para eliminar estes vestígios, são aplicados aos biscoitos alguns tratamentos. No sítio Petybon,
pude perceber dois tipos de acabamento: o primeiro deixa marcas semelhantes a um pano ou
esponja e está presente no interior de recipientes côncavos e no exterior e interior de formas
abertas; já o segundo, deixa linhas incisas na parte externa das peças côncavas, podendo
caracterizar-se por linhas paralelas ou em espiral. As peças côncavas possuem também marcas
em espiral na parte externa do fundo indicando que, ao sofrerem os tratamentos de superfície
apontados anteriormente, estavam sobre um suporte giratório, como um torno. Todos estes
acabamentos de superfície, ao final, podem ser encarados como uma espécie de alisamento, um
“processo de nivelação da superfície do vasilhame” (CHMYZ 1976: 121).
O acabamento com a esponja era realizado em toda a superfície interna do vasilhame,
horizontalmente. O acabamento com os instrumentos que deixam as marcas circulares ou
espiraladas ocupa toda a superfície externa dos vasilhames nos quais eram feitos, sendo que a
91
distância entre as linhas diminui ao aproximar-se da base. possibilidades, igualmente, deste
tratamento de superfície ter sido feito em pratos e outras formas abertas, deixando marcas que
foram apagadas pelo posterior uso da esponja.
Nesta cadeia de produção, parece não haver muita preocupação com as marcas deixadas
pelos acabamentos, uma vez que, mesmo depois da queima do vidrado é possível observar, em
algumas peças, essas marcas, traço bastante comum em produções em série, onde, em geral, há
mais preocupação com a quantidade produzida e menos com a qualidade da produção.
Vidrados / Esmaltes
Dentre os atributos analisados em faianças finas, o chamado “esmalte” tem suma
importância, no que concerne a identificações cronológicas e de proveniência (KINGERY &
VANDIVER 1986: 261). Os vidrados ou esmaltes constituem um tipo de tratamento de
superfície de peças cerâmicas, assim como engobos, bruniduras e alisamentos. Primeiramente,
Linhas incisas concêntricas na base
Marcas por pressão formando
círculos concêntricos
Linhas incisas em espiral
Esponja ou pano interno
92
quero esclarecer que estou me valendo do termo vidrado” por uma opção didática, sabendo
que esmalte e vidrado tem o mesmo significado, apesar de “esmalte” ser uma nomenclatura
bastante consagrada na Arqueologia Brasileira e em meios ceramistas e antiquários (o próprio
Ranzini em seus cadernos de nota utiliza o termo “verniz”; o termo “frita” é em geral usado por
ceramistas e em menor freqüência a bibliografia traz “glazura”). Não obstante, tecnicamente,
algumas áreas como a Engenharia de Produção diferenciam vidrado de esmalte. Segundo
Chaves (1997: 22), vidrados são coberturas vítreas aplicadas sobre superfícies cerâmicas
porosas, de modo a dar-lhes acabamento e impermeabilizá-las”, enquanto que “esmaltes são
coberturas vítreas aplicadas sobre superfícies metálicas (...) O esmalte protege a superfície
metálica da oxidação e o metal dá resistência mecânica (exceto ao impacto) ao conjunto”.
Para Cristiane Aun (2000: 110), os vidrados “são finas misturas de silicatos, geralmente
homogêneas, aplicados sobre a superfície de peças cerâmicas na forma de uma suspensão
aquosa, e que, após a queima em alta temperatura, têm seus componentes fundidos, formando
uma camada vítrea delgada”. Para Norton “o vidrado é uma fina capa de vidro, ou de vidro de
cristais, cozida sobre a superfície da cerâmica em estado cru ou em estado de biscoito”. Para
Terezita Férnandez (1997), “o vidrado não é mais que aquele composto que apresenta uma
superfície vitrificada depois da queima. Sua principal característica é a de impermeabilizar a
peça além de ser muito resistente e servir de proteção”. Da coleção, 2.646 peças estão vidradas
e o gráfico abaixo mostra a quantidade de peças vidradas e no biscoito por categoria funcional
(somando universos 2 e 3) na amostra das coleções MAE, IPHAN e NAUBC.
A descoberta da faiança fina inovou o processo de produção das louças em relação à
antiga faiança, pois a decoração passou a ser aplicada diretamente sobre a pasta branca, o
biscoito, que ganha, por cima, um vidrado, em geral transparente. Vidros, vidrados e esmaltes
93
podem ter sua cor ou transparência alteradas mediante a adição criteriosa de pigmentos ou
opacificantes (CHAVES 1997: 22), daí a classificação, de língua inglesa, que se utilizou e
criou, para as faianças finas e as tênues colorações dos vidrados transparentes, os termos
creamware (adição de óxido de chumbo), pearlware (adição de óxido de cobalto) e whiteware
(redução de óxido de cobalto). No entanto, não estou utilizando esta classificação aqui, ou
melhor, para efeito de comparação, estou utilizando esta classificação para demonstrar como às
vezes é falha.
Deste modo, segundo a classificação geralmente utilizada, teríamos para as louças do
Petybon, na amostra das coleções IPHAN, MAE e NAUBC, a seguinte relação: 603 peças
pearlware, 13 creamware e 23 whiteware, portanto, um claro predomínio do vidrado
“perolado”. Através da análise química ficou provado, no entanto, que todos estes vidrados, no
sítio Petybon, são compostos, majoritariamente, por chumbo, sem adição de cobalto, sendo,
portanto, o mesmo vidrado.
O pearlware é definido, na literatura, como com adição de óxido de cobalto, que o faria
ser azul. Ele, no entanto, é um vidrado que tem uma produção certa, assim como uma
cronologia determinada. Se fosse utilizar o termo aqui, ele seria falho porque indicaria que
nem todo pearlware remete-nos ao século XIX. Contudo, algumas amostras do sítio Petybon,
caracterizadas como pearlware, creamware e whiteware, foram analisadas físico-
quimicamente, e se constatou que os vidrados apresentaram altíssima taxa de chumbo
7
.
Portanto, apesar da coloração azulada, o vidrado tem apenas chumbo, não cobalto. Mais a
frente, retornarei a esta questão explicando mais detalhadamente a problemática desta
classificação e porque não a adotei, e ainda a critico.
Em segundo lugar, quero esclarecer porque a faiança fina não é uma cerâmica vitrificada,
da qual faz parte, por exemplo, o grès, e, sim, uma cerâmica vidrada. A faiança fina é um tipo
de cerâmica vidrada por receber em sua superfície um vidrado. As cerâmicas vitrificadas não
recebem uma camada de vidrado, pois devido às características da argila e ao processo de
cocção a altas temperaturas, é a superfície da própria cerâmica que vitrifica. Vitrificação é o
processo no qual vidro é formado no corpo das cerâmicas, quando minerais silicatos e óxidos
são aquecidos o suficiente para que se fundam, formando um líquido viscoso (RYE 1981: 108).
Nas cerâmicas vidradas o que vitrifica é o vidrado e não a superfície do biscoito.
7
Foram analisados pelo Laboratório de Física Nuclear da UEL (Universidade Estadual de Londrina), no Paraná,
pelo Prof. Dr. Carlos Appoloni.
94
F) Processo de Esmaltação
Os processos de esmaltação caracterizam-se não apenas pelo modo de aplicação dos
vidrados às superfícies das louças, mas igualmente pelas etapas realizadas entre esta aplicação
e a segunda queima. Ou seja, dependendo da fábrica, por exemplo, uma esponja é passada na
base das peças, após a aplicação do vidrado por imersão, para a formação de um aro no biscoito
que não aderirá à superfície da caixa refratária, dentro das quais as louças são queimadas; na
Fábrica, percebi que um processo diferenciado ocorreu: a utilização de mobiliários do forno,
como apoiadores e trempes, implicando na não obrigatoriedade do aro no biscoito, que as
peças não tocam diretamente as superfícies refratárias e o vidrado não fundiria com estas
durante a segunda queima.
Na Fábrica Santa Catharina, o vidrado parece ter sido aplicado por imersão, ou seja,
mergulhando as peças num tanque com o vidrado em suspensão aquosa. Não é à toa ser
conhecido também como “frita”; para fabricá-lo seus componentes o “fritos” formando uma
massa, como um vidro líquido, que é, então, transformada em folhas transparentes, frias e
endurecidas. Estas folhas são, então, moídas e o que, em geral, se vende às fábricas é este .
Dissolvido em solução aquosa, é então aplicado aos biscoitos.
No sítio Petybon, portanto, foram estipulados dois tipos de processos de esmaltação:
com biscoito aparente na base e sem o biscoito aparente na base, sendo que este último foi
diagnosticado em 285 peças do total de peças vidradas da amostra da coleção IPHAN, MAE e
NAUBC, no Universo 3. Abaixo, segue exemplo dos dois processos com material proveniente
de outros sítios arqueológicos.
Sítio Baixio dos Lopes (PE)
prato com marca Baker & Cia,
ENGLAND (ZANETTINI
ARQUEOLOGIA 2008)
Sítio Petybon – fragmento de malga
Sítio Fazenda Brejão fragmento de
malga com marca CPF (Cerâmica
Porto Ferreira) (ZANETTINI
ARQUEOLOGIA 2004)
95
G) Defeitos
Enquanto um universo produtivo, o sítio Petybon apresenta, além das peças em diferentes
etapas do processo de produção, peças que possivelmente foram descartadas devido à
problemas ocorridos durante sua fabricação, os defeitos resta, saber, se os defeitos por mim
diagnosticados foram, realmente, causas de descarte. Dentre os defeitos que podem ocorrer no
vidrado e na própria superfície cerâmica, foram diagnosticados na coleção os seguintes
problemas:
1) Bolhas
2) Partículas inorgânicas que caíram sobre o vidrado durante a queima ou
após a esmaltação (fragmentos de fôrma, massa, quartzo ou outras sujeiras) e que se
fundem à superfície
3) Defeitos na decoração
4) Partículas inorgânicas que estão sob o esmalte ou sob a superfície do
biscoito, que caíram na peça antes da esmaltação.
5) Espirro ou mancha de tinta
6) Muito esmalte acumulou deixando manchas azuladas
7) Amassados ou deformados
8) Rachaduras
9) Vidrado perdeu o lustre e se tornou um pouco rugoso devido à
volatilização da superfície do mesmo
10) Vidrado descolou
11) Início de vitrificação na superfície do biscoito deixando o mesmo com
cor “mate”, como o grès.
12) Fusão de duas ou mais peças durante a queima do biscoito ou a queima
do vidrado
13) Espessura muito grossa (tempo demasiado da barbotina no molde de
gesso)
14) Marcas de dedo sobre o vidrado
15) Marca da Fábrica carimbada na parte interna da peça
96
O gráfico abaixo mostra os tipos de defeito por quantidade na amostra da coleção
analisada. Fica clara a predominância dos defeitos 2, 1, 3 e 7 defeitos que ocorrem mais
freqüentemente em etapas de queima.
Amassados e deformidades corresponderam a 61 artefatos do total de peças com defeito
analisadas na amostra, 9% do total. Podem ser causados tanto pela manipulação da louça crua,
saída do molde, como por problemas devido às altas temperaturas ou alteração do ponto de
fusão, já dentro do forno. Por isso, uma espessura mais grossa diminuiria estas probabilidades.
Um dos defeitos mais freqüentes verificados nas louças são as bolhas no vidrado, como
se o mesmo tivesse “fritado”. As bolhas no vidrado podem ocorrer por diversos fatores durante
a produção, mas causas comuns são: deixar as louças menos tempo do que o previsto no forno
durante a segunda queima, deixar que fragmentos de lenha queimada se misturem a atmosfera
do forno alterando o ponto de fusão dos vidrados e, finalmente, a presença de oxigênio na
atmosfera do forno. Às vezes, juntamente com as bolhas, pode-se perceber um tipo de
enrugamento do vidrado na superfície da peça, em geral provocado tanto pela aplicação de
vidrado em excesso como por oscilações da temperatura de queima no forno (FERNANDÉZ
1997). Correspondem a 14% do total de peças com defeito na coleção analisada.
Um total de 5% corresponde, na coleção, às peças, no biscoito ou vidrado, fundidas umas
às outras, defeito ocorrido por algum problema entre os separadores e apoiadores, que resultou
na união das peças durante a queima, “grudando-as”. Esta porcentagem corresponde a um total
de 35 peças, mas devo lembrar que quatro artefatos com este tipo de defeito são compostos por
2 malgas, 8 pratos, 18 pratos e 1 travessa, e 3 pires, respectivamente, todos fundidos uns aos
outros.
Algumas peças apresentaram um amarronzado na superfície do biscoito, algumas vezes
brilhoso, que correspondem a 1% do total, 8 peças. É de se pressupor que foram biscoitos que
97
sofreram queima a uma temperatura alta demais, que levou ao início de uma vitrificação, tal
como acontece com o grès.
Algumas louças continham fragmentos de massa, forma ou partículas inorgânicas sob o
vidrado, resultado de limpezas pouco eficientes das peças cruas pré-esmaltação, e sobre o
vidrado. Na área onde as trempes tocam as bases das peças podem ser averiguados fragmentos,
por vezes grandes, de pedaços de trempe e acumulo de vidrado. Estes defeitos, juntos,
correspondem a 41%.
Alguns defeitos apareceram apenas em 1 ou 2 peças, tal qual o caso de um
descolamento do vidrado da superfície do biscoito, da presença de digitais sobre o vidrado,
espessura muito grossa para um fundo de prato (com 9,7 mm) e um prato ou pires cuja marca
está na parte interna da peça (no frete).
H) Gretamento
Ao analisar os atributos ligados ao processo de esmaltação, indubitavelmente fui levado
ao diagnóstico de uma categoria extremamente relacionada às faianças finas, aos vidrados e aos
defeitos, à qual chamo “gretamento”. Este atributo é, geralmente, utilizado nas explicações a
cerca do reconhecimento das faianças finas nos sítios arqueológicos, diferenciando-as das
porcelanas, onde nunca ocorre, e ao qual se costuma denominar “craquelado”. Adoto o termo
“gretamento”, vindo da Engenharia de Materiais, para que o haja confusão com uma
decoração específica para louças chamada “craquelado” ou “craquelé” (craquelure em inglês).
Enquanto decoração é proposital, uma ação consciente por parte do oleiro que escolheu e que
quis aquele efeito decorativo, caracterizado por “rachaduras” na superfície da peça. Existe,
atualmente, até mesmo um tipo de “verniz craquelador”, que produzirá, propositalmente,
vidrado com trincas, sendo que as trincas podem, depois, ser coloridas. O aspecto é desejado
para dar um ar mais “antigo” às peças, sendo pouco usado em recipientes destinados a
alimentação (quando ocorre, pode haver uma nova esmaltação sobre o vidrado craquelado).
Nas Artes Plásticas, o craquelé é também um padrão de finas rachaduras que se formam em
pinturas antigas, sendo às vezes usado para detectar obras falsificadas.
Em uma das cadernetas de Romeo Ranzini, sob salvaguarda atualmente do Museu
Paulista, referente a seus trabalhos na brica que abriu em Osasco nos anos 1940, ele mesmo
escreve no dia 24 de Janeiro de 1945:
98
Craquelé
A massa granito J.RI queimada primeiro no forno de
verniz, depois, com verniz comum, a 1ª antiga e no mesmo forno de
verniz, torna-se um lindo e esplendido “craquelé”
Na Arqueologia, quando nos referimos ao “craquelado” nas faianças finas, estamos nos
referindo ao gretamento, efeito causado por tensão vidrado-cerâmica, pela abertura do forno
com louças ainda quentes (KINGERY & VANDIVER 1986: 267) e pela expansão por umidade
da pasta, podendo ocorrer durante o uso ou após o descarte da peça, sendo, portanto uma ação
inconsciente eo proposital dos usuários. Ninguém escolhe que a louça seja gretada, uma vez
que isto não apenas relaciona-se a questões de higiene e limpeza, quando resíduos acumulam
entre as gretas, mas é visto mesmo como defeito dos produtos cerâmicos e é, inclusive,
bastante combatida.
Pressupostos os termos, define-se gretamento do vidrado como “um defeito que ocorre
em peças cerâmicas vidradas, que se apresenta como um sistema de trincas no vidrado. Este
defeito é oriundo de tensões de tração no vidrado, que à medida que aumentam provocam
sistemas de trincas cada vez mais finos. O gretamento pode se manifestar de diferentes formas.
A maioria das vezes chega até a superfície em forma de pequenas fissuras ..., outras vezes, as
fissuras permanecem ocultas dentro da interface suporte-esmalte sem chegar à superfície
(MENESES, CAMPOS, NEVES & FERREIRA 2006: 2).
O gretamento pode ser subdividido em gretamento imediato e retardado: o primeiro
surge quando “o vidrado a temperatura ambiente é tracionado pelo suporte a ponto de ocorrer o
aparecimento de trincas, sendo observado logo após a saída do forno ou pouco tempo depois”;
o segundo “ocorre quando da deformação sofrida pelo biscoito devido à umidade adsorvida”
(MENESES, CAMPOS, NEVES & FERREIRA 2006: 2). Portanto, o que vemos nas faianças
finas de unidades domésticas é, provavelmente, o gretamento retardado causado pela expansão
por umidade (EPU) - em inglês moisture expansion (ME). EPU é o “termo técnico utilizado
para designar a expansão sofrida por materiais cerâmicos quando em contato com a água na
forma líquida ou de vapor. Essa expansão geralmente ocorre lentamente e é relativamente
pequena. Mesmo assim pode levar ao gretamento de peças esmaltadas e ao comprometimento
estrutural dos corpos cerâmicos (MENESES, CAMPOS, NEVES & FERREIRA 2006: 1).
Desta maneira, quando contato entre a pasta, o biscoito, das louças, e o ambiente
(como quando o processo de esmaltação deixa um aro em vidrado na base ou na boca das
99
peças), a mesma absorve umidade que causa alteração na dimensão do corpo cerâmico, que se
expande. Esta absorção tem a ver com a porosidade do corpo cerâmico e, no caso, sabe-se que
os biscoitos das faianças finas são bastante porosos “a capacidade de absorção de água de
uma peça cerâmica fornece um indicativo da porosidade aberta do produto, ou seja, o volume
total de poros comunicados com o exterior e susceptíveis de serem preenchidos com um fluido
à pressão atmosférica” (MENESES, CAMPOS, NEVES & FERREIRA 2006: 11). Uma vez
que o coeficiente de expansão do vidrado é inferior ao da cerâmica, mais plástica, o vidrado
racha, criando trincas ou fissuras no mesmo. A alta taxa de chumbo dos vidrados plúmbeos
origem a valores menores de expansão e de coeficientes de contração durante o resfriamento
(KINGERY &VANDIVER 1986: 267), menos propensos a apresentar fissuras do que vidrados
mais alcalinos.
A análise da presença ou ausência do gretamento nas peças do sítio Petybon
possibilitou perceber uma correlação entre o fato do vidrado cobrir toda a superfície da peça
em faianças finas e nestas peças não haver fissuras no vidrado o contrário também sendo
averiguado. Peças rachadas, com biscoito aparente, estavam gretadas. Em 627 das peças
vidradas da amostra composta pelas coleções IPHAN, MAE e NAUBC o gretamento estava
ausente.
I) Marcas
As marcas, ou selos, são os símbolos existentes, sempre no fundo das peças, que
designam o fabricante, não necessariamente presentes em todas os vasilhames. Segundo
Exemplo de gretamento nos
esmaltes de fragmentos de louças
do sítio Petybon. No caso, como
não foram consumidas, as trincas
no vidrado estão amarronzadas pela
penetração de terra.
100
Ramsey, nem todas as louças fabricadas por uma fábrica ganham marcas (RAMSEY apud
WORTHY 1982: 342). E isto pode ocorrer por diversos motivos: a o necessidade de marcar
as peças, o desejo de grandes lojas, como Mappin, de possuírem louças com um selo próprio,
etc.
A coleção analisada apresentou 21 tipos de marcas, sendo incluídas nestas tipologias o
apenas seus formatos e designs, como também as variantes de cor. As marcas na tabela abaixo
não estão em nenhuma ordem cronológica, seus números apenas indicam a ordem na qual
foram sendo diagnosticadas durante a análise.
Tipo Descrição Técnica Cor Marcas
1 Estrela de oito pontas que
circunscreve FLSC
Carimbada Preta
2
Triângulo isósceles qu
e circunscreve
F. S. C., envolto em Patente
6912 – São Paulo
Carimba em baixo
relevo
-
3 Triângulo isósceles que circunscreve
F. S. C., envolto em Patente
6912São Paulo
Carimbada Preta
4
Triângulo isósceles que circunscreve
F. S. C., envolto em Patente
6912São Paulo
Carimbada
Verde
5
Triângulo isósceles que circunscreve
F. S. C., envolto em Patente
6912São Paulo
Carimbada
Azul
6
Círculo com
FR & C
circundado por
círculo escrito FÁBRICA S.
CATHARINA S. PAULO.
Abaixo um pedestal retangular
perpendicular ao círculo
Carimbada
Verde
101
7
Círculo com
FR & C
circundado por
círculo escrito FÁBRICA S.
CATHARINA S. PAULO.
Abaixo um pedestal retangular
perpendicular ao círculo dentro do
qual está escrito PATENTE - 6912
Carimbada
Laranja
8 Círculo com
FR & C
, circundado por
círculo com FÁBRICA S.
CATHARINA S. PAULO.
Abaixo um pedestal em “v” no qual
está escrito PATENTE - 6912
Carimbada Azul
9
Círculo com imagem de industriais,
encimado por IRFM com lados de
folhas de louro. Abaixo, S. Paulo
Carimbada
Verde
10 Escudo com
IRFM
, acima uma
coroa de conde, e louros ao redor.
Abaixo, S. Paulo
Carimbada Verde
11
Triângulo isósceles com
F.S.C.
,
abaixo São Paulo
Carimbada
Preta
12 Círculo com
FR & C
, circundado por
círculo com FÁBRICA S.
CATHARINA S. PAULO, com
inscrição abaixo * DECORAÇÃO *
Carimbada Azul
13
Círculo com FR & C, circundado por
círculo com FÁBRICA S.
CATHARINA S. PAULO, com
inscrição abaixo * DECORAÇÃO
*
Carimbada
Preta
14 Triângulo isósceles que circunscreve
F. C. S., envolta PATENTE
6912SÃO PAULO
Carimbada Azul
102
15
Dois círculos concêntricos, dentro do
menor FR & C, ao redor FÁBRICA
S. CATHARINA
Carimbado
Verde
16
Losango eqüilátero que contém a
inscrição F (...) C. (...) PAT.
Carimbada
Verde
17 Círculo com
FR & C
circundado por
círculo escrito FÁBRICA S.
CATHARINA S. PAULO.
Abaixo um pedestal retangular
perpendicular ao círculo, que contém
PATENTE - 6912
Carimbada Preta
18 Círculo com
FR & C
, circundado por
círculo com FÁBRICA S.
CATHARINA S. PAULO.
Abaixo um pedestal em “v” no qual
está escrito PATENTE - 6912
Carimbada Verde
19 Círculo com
FR & C
, circundado por
círculo com FÁBRICA S.
CATHARINA S. PAULO.
Abaixo um pedestal em “v” no qual
está escrito PATENTE - 6912
Carimbada Preta
20
Círculo com
FR & C
, circundado por
círculo com FÁBRICA S.
CATHARINA S. PAULO, com
inscrição abaixo * DECORAÇÃO *
Carimbada
Verde
21
Dois círculos concêntricos, dentro do
menor FR & C, ao redor FÁBRICA
S. CATHARINA
Carimba
da
Preta
A época da Santa Catharina possui a maior parte das variantes de marcas, ficando a época
dos Matarazzo apenas com duas variantes, isto porque se sabe que as IRFM possuíam uma
marca única para seus produtos, a marca 9, que aparece em indústrias químicas, cerâmicas e de
103
alimentos, conectando todos os produtos dos quais eram donos. Apesar disso, a complexidade
dos elementos é maior nas marcas da IRFM (louros, brasão, coroa, bricas) do que na época
da Santa Catharina, cujas marcas, muito mais simples, em geral configuram-se por formas
geométricas (círculos, triângulos, losangos, retângulos e um octógono regular representado por
uma estrela de oito pontas). Ressalva seja feita também à marca 14 que aparece em azul,
trazendo a inscrição F. C. S. (ao invés do correto F. S. C.), que pode ter sido um engano na
fabricação do carimbo, gerando um defeito visto apenas após a segunda queima. As marcas que
contêm a inscrição FR & C se referem à sociedade Fagundes, Ranzini e Cia.
A marca 10 é um brasão com a coroa do conde, representando o Conde Matarazzo. As
coroas são um dos mais antigos símbolos de soberania e nobreza e a IRFM as uniu aos
simbólicos louro e brasão na configuração de marcas que demonstravam a força e o poder do
grupo; mas, diferente de uma “nobreza” consuetudinária ou hereditária, os Matarazzo
justamente colocavam o desenho de suas fábricas justamente para indicar essa nova forma de
aquisição de poder, a econômica (via indústria). A coroa representada na marca 10 é a coroa do
conde utilizada apenas pelas realezas da Rússia, Brasil, Portugal, Alemanha, França e Espanha,
representada com nove pérolas (a coroa de conde, enquanto objeto tridimensional, possui 16
pérolas, vendo-se apenas 9 na sua representação frontal em duas dimensões).
O total do sítio Petybon possui apenas 10% de louças com marca. Na amostra analisada
das coleções IPHAN, MAE e NAUBC, 511 peças contêm marcas, com predominância das
marcas tipo 3, 5 e 11 (todas da época da Santa Catharina e todos em forma triangular).
Procurei também perceber se havia alguma especialização das marcas por categoria
funcional. O que ocorreu foi que algumas marcas são específicas de determinadas formas: a
categoria funcional 1 e 2, as malgas/tigelas e as xícaras, têm predomínio das marcas 3 e 11, que
não aparecem mais em nenhuma outra categoria, com exceção das canecas (categoria funcional
3), nas quais as marcas predominantes são 3 e 4. Para os recipientes abertos, os pratos têm
104
predomínio das marcas 2 e 17 e os pires, 2 e 10, marcas que, praticamente ou completamente,
estão ausentes das categorias funcionais 1, 2 e 3. Nas demais categorias, as únicas marcas
presentes são a 4 e a 11. Como as marcas 3, 4 e 5 são iguais em design mas diferentes em cor,
acredito haver uma separação também por coloração entre marcas e formas: preta para malgas,
azul para xícaras, azul e verde para canecas, e em baixo relevo para os pratos e pires.
Abaixo, seguem os desenhos básicos das marcas, às quais tentei pressupor uma ordem
cronológica de acordo com a complexificação de seus elementos, assim como pela mudança
dos proprietários. O intervalo de produção que as marcas definem já é bastante restrito, 1913-
1937, sendo que tudo referente à Santa Catharina vai apenas do período de 1913 a 1926 e as
duas últimas marcas do período de 1927 a 1937. Assim, acredito que a primeira e a segunda
marca são mais antigas; as triangulares e a losangular fazem parte de um segundo momento; as
próximas cinco marcas de um terceiro momento, que é sucedido então pelas marcas dos
105
Matarazzo. Isso o implica numa impossível coexistência entre as marcas da época da Santa
Catharina
Os decalques que fiz das marcas baseiam-se no que se podia ver nos artefatos
arqueológicos. Algumas, por exemplo, como a marca em losango, estão borradas e preferi não
inferir qual era a inscrição que continha. A segunda marca, depois da estrela de oito pontas, não
foi encontrada no sítio, mas a adicionei porque faz parte das marcas da Fábrica e pode ser
encontrada em sítios arqueológicos (como o foi, em unidades domésticas [BORNAL &
QUEIRÓS 2006]). Essa marca contém, além da estrela da Santa Catharina, dois leões, que
podem indicar uma inspiração em marcas européias. Pode ser encontrada tanto em carimbo
pintado como em baixo relevo (CARVALHO 2008):
106
2. Mobiliário do Forno ou Cerâmica de Olaria
Mobiliário do forno ou “cerâmica de olaria” (BUGALHÃO, SOUZA & GOMES 2004),
em inglês kiln furniture, são artefatos produzidos para organizar as peças a serem queimadas,
facilitar a queima e resolver problemas internos ao forno. Ao que parece, todas as produções
cerâmicas com fornos fechados possuem algum tipo de mobiliário. É interessante também
perceber que parece existir uma certa tradição quanto à forma dos mesmos, um equilíbrio entre
forma e função que resultou em designs e performances destes artefatos que foram, quase que
de modo inquestionável, adotados por inúmeras olarias e fábricas ao longo de muito tempo.
No sítio Petybon, o mobiliário do forno é composto por cones pirométricos, apoiadores,
cravilhos, trempes, caixas refratárias e os moldes de gesso utilizados na colagem.
A) Cones Pirométricos
Cones pirométricos o os dispositivos utilizados para calibrar o calor durante a queima
de materiais cerâmicos. Os cones, usados, freqüentemente, em jogos de três, são posicionados
nos fornos junto das cerâmicas a serem queimadas e fornecem uma indicação visual de quando
os objetos alcançaram um estado de maturidade x, uma combinação de tempo e temperatura.
Assim, os cones pirométricos dão um equivalente da temperatura, mas não são mecanismos de
medição simples. O cone pirométrico é descrito por Dodd e Murfin (1994) como “a pyramid
with a triangular base and of a defined shape and size; the "cone" is shaped from a carefully
proportioned and uniformly mixed batch of ceramic materials so that when it is heated under
stated conditions, it will bend due to softening, the tip of the cone becoming level with the base
of a definitive temperature”. As séries mais conhecidas são os Cones Seger (Alemanha), Cones
Orton (EUA) e os Cones Staffordshire (Reino Unido) (CANOTILHO 2003: 49).
Em 1782, Josiah Wedgwood criou cones pirométricos com maior escala de temperaturas
e maior exatidão. O design moderno do cone pirométrico, no entanto, foi desenvolvido pelo
técnico em cerâmica, o alemão Hermann Seger, e utilizado pela primeira vez para controlar a
queima de porcelanas na Königliche Porzellanmanufaktur, na Berlim de 1886. Os cones eram,
usualmente, feitos de material cerâmico e em forma de pirâmide triangular alongada, medindo
aproximadamente 7 cm de altura. Seu funcionamento ocorria da seguinte forma: depois de se
optar pela temperatura que se pretendia atingir, escolhia-se o cone correspondente a essa
temperatura (cones vendidos comercialmente têm uma numeração a que corresponde uma
107
temperatura de fusão). Eram postos, então, perto de uma abertura de observação do forno.
Quando o forno atingia uma temperatura, prefixada, o cone inclinava-se completamente
tocando, com a ponta, a prateleira em que estava localizado. O cone deve ser colocado em uma
determinada posição que permita ser observado pelo ceramista através de um visor, que
normalmente situa-se na porta do forno (CANOTILHO 2003: 49). No sítio Petybon, os cones
não possuíam nenhuma numeração indicando um possível código para temperatura. Também
não foi possível saber se os cones eram fabricados no estrangeiro ou na própria fábrica.
É interessante lembrar que desde a antiguidade, até o aparecimento da eletricidade e do
forno elétrico, a medição da temperatura não se baseava numa medição precisa, fruto de
qualquer equipamento. A temperatura era medida através da recolha de amostras ou pela cor
interior do forno. Esta operação era e é executada nas últimas fases da cozedura, permitindo
uma análise visual e baseada sempre na grande experiência do enfornador. Este processo
empírico era, geralmente, complementado com a observação direta da cor interior do forno
(assim é o processo na Porcelana Monte Sião atualmente). Somente no final do século XIX,
portanto, com fornos mais comerciais, é que os cones pirométricos se tornaram, sem dúvida, o
método mais popular para determinar a temperatura no interior de um forno que não tem
qualquer tipo de sistema de controle (como algum termostato).
A coleção analisada é composta por 123 cones pirométricos, mas apenas um cone com
marcas de utilização [figura 3 abaixo]), a maior parte deles anexado a uma base de argila
refratária. Somente mais tarde seriam inventados os cones com base para seu auto-suporte
(self-suporting cones), sem a necessidade de fixá-los sobre uma base de argila, eliminando
alguns possíveis erros decorrentes de sua montagem e posicionamento mal feitos.
Cones Pirométricos
(CANOTILHO 2003: 49)
108
B) Trempes
A definição de “trempe” é bastante ampla. De “trempes” também eram as estruturas com
três pedras que apoiavam panelas ou tachos para cozinhar, as estruturas metálicas sobre as
quais colocamos hoje nossas panelas nos fogões, e não necessariamente têm sempre uma
estrutura tri-partida. Segundo o Houaiss (2001) o termo surgiu por volta do século XIV para
designar o aro de ferro com três pés usado para apoiar panelas sobre o fogo, sinônimo, às
vezes, de tripé. Portanto, destarte sua mesma função, poderia estar se referindo tanto a
materiais em pedra, como em ferro ou cerâmica.
José de Alencar em Til, romance de 1872, narrando os arredores de Santa Bárbara, no
estado de São Paulo, referindo-se a um casebre e depois a uma venda de beira de estrada,
escreve:
[...] fervia a panela posta em uma trempe de pedra no meio do chão. (ALENCAR 1965: 110)
- Nhanica![...] Coa um bocado de café! Ergueu-se então a rapariga [...] tirou da trempe a
panela de feijão para deitar o boião d'água; e arranjando o saco [...] correu a buscar água
[...] (ALENCAR 1965: 112)
E referindo-se à casa de um plantador de cacau nos arredores de Óbidos, no Pará, o
viajante Henry Walter Bates, em meados do século XIX, testemunha o uso de uma trempe de
barro:
Os utensílios domésticos - jarros de barro, quartinhas e caçarolas - estavam no chão, em uma
3
1 – Cone pirométrico
2 – Cones pirométricos apoiados sobre base de cerâmica refratária, ainda não utilizado.
3 – Cone pirométrico apoiado sobre base de cerâmica refratária depois de utilizado.
2
1
109
extremidade, perto do fogo de lenha, com um bule de café fervendo em trempe de barro.
(BATES 1944: 296)
Nos Inventários e Testamentos arrolados para São Paulo, do século XVII, constam
“trempe de ferro” (Inventário de Izabel Mendes, 1633) e “3 trempes de ferro" (Inventário de
Maria Tenória, 1620). Nos Autos da Inconfidência Mineira, do final do culo XVIII, muitos
dos testamentos contêm, dentre os bens arrolados, “trempe de ferro de 3 fogos” (Inventário de
Cônego Luís Vieira da Silva, 1789-1791), “trempe grande de ferro com três pés" (Inventário de
José Ayres Gomes, 1791).
No entanto, para a indústria cerâmica a trempe tem um significado mais preciso, não
obstante sua função de apoiador ser basicamente a mesma. Assim, as trempes, ou “pés de
galinha”, são peças em faiança fina com forma estrelada, com 3 pontas, que serviam como
suporte dos recipientes côncavos, como xícaras, malgas e canecas. “A trempe era um objecto
estrelar de três braços e terminal dobrado em unha, feito à forma. As trempes serviam,
conforme os seus tamanhos, para a base das peças vidradas a enfornar” (FERNANDES 1993:
100). Deste modo, são usadas para impedir que a superfície vidrada de objetos cerâmicos entre
em contato com a superfície das caixas refratárias ou com o interior do forno durante a queima.
Portanto, o uso das trempes não é necessário quando a parte inferior da peça não é vidrada.
Deixam na base dos vasilhames três pequenas marcas onde o vidrado aderia,
ligeiramente, aos três únicos pontos do apoiador que tocavam a peça. Segundo Bockol (1995:
47), as trempes eram fabricadas para serem utilizadas com o terminal dobrado em unha voltado
para a base da peça; eles permitiam que as peças fossem empilhadas, de modo que somente
ficassem três pequenos pontos no vidrado na base. Além disso, a utilização da trempe
possibilitava a não retirada do vidrado da base ou da borda da peça, não deixando qualquer
possibilidade para o biscoito aparente, diminuindo as possibilidades de gretamento.
110
As escavações realizadas na fábrica de louças de Coalport, levadas a cabo por Barker e
Horton, entre 1991 e 1995, localizaram as mesmas formas de apoiadores, tanto as trempes (silts
ou spurs), quanto os apoiadores de corpo prismático triangular (saggar pins), ambos feitos em
faiança fina creamware (BARKER & HORTON 1999). As escavações no Mandarim Chinês,
região da baixa Lisboa, entre 1991 e 1996, identificou um conjunto de fornos de produção
cerâmica referentes a uma olaria de cerâmica vidrada e não vidrada, de cronologia islâmica
(final do século X-século XII), que gerou uma coleção na qual a maior parte dos artefatos são
“cerâmicas de olaria”, ou seja, trempes e o que foi chamado “barras” (BUGALHÃO, SOUSA
& GOMES 2004). A coleção contida no IPHAN-RS referente aos trabalhos de escavação em
locais de Missões Jesuíticas contém um fragmento de trempe pertencente ao sítio São Lourenço
Mártir, no município de São Luiz Gonzaga/RS, local de antiga missão fundada em 1690 pelo
Padre Bernardo de la Vega, com população proveniente da redução Argentina de Santa Maria
(ZANETTINI ARQUEOLOGIA 2008). No Convento de São Miguel das Gaeiras, freguesia do
Concelho de Óbidos, em Portugal, a presença franciscana legou também trempes associadas a
trabalhos na olaria, concomitante a localização de antigo forno para cerâmica vidrada durante
as intervenções para restauração do convento na década de 1990.
A recorrência destas formas, em outras fábricas e contextos produtivos oleiros, parece
apontar para uma bem sucedida relação entre forma e função na tecnologia destes artefatos. Ao
que parece, uma vez descobertos, foram utilizados por contextos variados, dentro do repertório
de produção cerâmica, sempre com pequenas nuances em suas morfologias.
O sítio Petybon possui 1266 separadores, dentre trempes, cravilhos, etc. Na amostra
composta pelas coleções IPHAN, MAE e NAUBC foram localizadas 19 trempes, a maior parte
delas sem vidrado, em tamanhos variados. A presença do vidrado em algumas das trempes
pode ser explicada, talvez, pela natural volatilização do mesmo durante a queima.
Trempe encontrada no
Convento de o Miguel das
Gaeiras, freguesia do Concelho
de Óbidos, Portugal, séculos
XVII-XVIII
Trempes da olaria islâmica
do Mandarim Chinês, Lisboa,
Portugal, séculos X-XII.
Fragmento de trempe
do sítio arqueológico
São Lourenço Mártir,
RS, século XVII-XVIII
111
A imagem abaixo é desenho esquemático que mostra a utilização de trempes e
apoiadores durante a queima de louças em faiança fina. A primeira apresenta o desenho de um
forno elétrico para cerâmica, utilizado para louças, com seu mobiliário: além de cones
pirométricos e alguns moldes de gesso, vê-se a presença dos apoiadores e separadores, com
forma semelhante aqueles encontrados no sítio Petybon.
Trempes que compõe a coleção de artefatos do sítio
Petybon: à esquerda, fragmentos de trempes vidradas; a
cima, trempes sem vidrado.
Mobiliário do forno segundo GWILYM (1973: 63). Vemos o uso de trempes e
apoiadores na forma de barras prismáticas. No canto a esquerda, cones
pirométricos.
112
C) Cravilhos
Cravilho, cravilha ou cavilha, são os artefatos com corpo em forma de prisma retangular
com uma fileira de “dentes” para apoio de abas, ligados à fabricação de pratos e outros
recipientes abertos como travessas. Acredito que o uso era semelhante ao da peça do desenho
esquemático apresentado por Bockol (1995), a seguir, que chama de thimble. Segundo
Fernandes (1993: 100), o cravilho é uma barra prismática feita com uma seringa rudimentar,
causador de muitos pratos apresentarem defeitos na parte externa das abas. Brancante (1981:
704) registra ainda o termo no feminino “cravilha”, “peça refratária que serve para separar as
peças no forno”.
A amostra analisada pormenorizadamente do sítio Petybon contém 18 separadores neste
formato. Com os cravilhos, as bordas de cada lado do recipiente apoiado entre os dentes eram
voltadas para cima para que o separador tocasse somente a parte externa da aba do prato,
permitindo que a borda do recipiente ficasse vidrada, suprimindo, igualmente, a necessidade de
retirar parte do vidrado da base da peça – já que não eram queimados apoiando-se pela base.
113
D) Apoiador com canaleta
É uma peça única com formato retangular, com a presença de uma canaleta em “v” que
corta a peça longitudinalmente. Pode-se pressupor que servia também como apoiador devido
sua semelhança aos demais apoiadores, mas não há como afirmar com certeza.
E) Apoiadores em prisma triangular
Chamo de prisma triangular os apoiadores em forma de prisma, no qual as diretrizes são
triangulares compostas por 2 triângulos e 3 retângulos. Alguns destes apresentaram, em uma de
suas arestas, diminutas marcas côncavas com maior quantidade de vidrado que podem remeter
Exemplo do uso dos
apoiadores com forma
de prisma triangular
(pin) e de outros
separadores com função
semelhante aos
cravilhos (thimbles).
Adaptado de BOCKOL
1995.
114
ao ponto de apoio dos lábios dos pratos durante a queima. O uso deveria ser semelhante ao da
peça do desenho esquemático apresentado por Bockol (1995), acima, ao qual chama “pin”.
Muito provavelmente estes separadores estavam ligados à fabricação de pratos e outros
recipientes abertos como travessas, como pode-se perceber na figura acima. A função pode ser
semelhante àquela dos artefatos que Bugalhão, Sousa e Gomes (2004) chamaram “barra” para
o mobiliário do forno localizado nas escavações da olaria no Mandarim Chinês em Lisboa.
Desta tipologia de separadores, a amostra da coleção analisada contém 15 peças.
F) Placas e caixas refratárias
Do total de peças resgatadas do sítio Petybon, 382 peças, inteiras e fragmentadas,
conhecidas como caixas refratárias”. Análise pormenorizada foi efetuada em 16 delas,
presentes na coleção IPHAN, MAE e NAUBC. Caixas refratárias são recipientes feitos, em
geral, no torno, de espessura e granulometria grossas, cuja pasta é, basicamente, composta por
chamote, ou seja, um subproduto proveniente de materiais cerâmicos, enquanto rejeito da
produção. A fabricação das caixas refratárias é um importante processo suplementar à
manufatura de louças, que todos os artefatos no biscoito ou com vidrado são protegidos por
elas (STRATTON 1932: 667). São destinadas a acondicionar as louças durante as queimas,
fazendo com que a queima seja mais eficiente, ao mesmo tempo em que protege as cerâmicas
em seu interior das chamas diretas e das cinzas no forno (BOCKOL 1995: 47; PILEGGI 1958:
187; KINGERY & VANDIVER 1986: 265; STRATTON 1932: 667). Dependendo, como
mostrei, do tipo de cerâmica e do processo de esmaltação, as peças em seu interior são
arrumadas de determinadas formas com ou sem o uso de cerâmicas de olaria. As caixas do sito
Ao lado apoiadores na forma
de prismas triangulares.
Abaixo, grupo de apoiadores
unidos por alguma alteração
ou problema durante a
queima.
115
Petybon foram analisadas segundo a pasta, o anti-plástico, as dimensões (altura, diâmetro da
boca, diâmetro da base e espessura) e o tratamento de superfície. Aqui, apresentaram como
anti-plásticos fragmentos de quartzo bastante grandes, cacos de caixas refratárias, biscoitos e
louças moídas.
As caixas são todas feitas de argila refratária. Materiais de argila refratária são aqueles
destinados a funções nas quais tem de resistir a longos períodos de aquecimentos ou choques
térmicos bruscos (AUN 2000: 69). A pasta, bastante porosa e com grandes poros, serve para
uma xima resistência aos choques térmicos (RYE 1981: 27); a presença da grande
quantidade de anti-plástico mineral de grandes proporções, como quartzo, auxilia na condução
de calor, já que os minerais são melhores condutores térmicos (MACHADO 2005/2006: 98). O
uso do caco moído funciona também como anti-plástico, que tem a facilidade de estar
disponível a qualquer momento num universo de produção oleira, eliminando a necessidade de
transporte, além de estar queimado, tornando-se mais estáveis durante as queimas (RYE
1981: 33). Sabe-se, no entanto, que quanto menor os anti-plásticos, maior a resistência aos
choques térmicos, inverso do que ocorre na coleção do Petybon, onde está claro que a pasta
não passou por um processo tão apurado de moagem nas marombas. Esta menor resistência aos
impactos das caixas pode estar associado a pequena preocupação em manter a vida útil desse
vasilhame (MACHADO 2005/2006: 100), pois as caixas são refeitas com relativa facilidade.
Se as caixas sofrem danos que podem ser reparados, são restauradas com roletes; se não,
tornam-se chamote ou são definitivamente descartadas.
Suas superfícies contêm, por vezes, algum tratamento de superfície, como a aplicação de
caulim líquido através de um pano, esponja ou brocha, que deixa marcas na parte interna de
algumas caixas (presente em 6 peças). O vidrado na parte externa das bases e em algumas
paredes, em suas faces internas, é resultante da precipitação do mesmo durante a queima
(presente em 7 peças). Algumas caixas ainda contêm, na parte interna do fundo, fragmentos de
quartzo fundidos à superfície refratária (portanto, queimados juntos da caixa ainda crua) que
talvez estejam associados a alguma técnica com objetivo de impedir que as peças corressem
dentro da caixa, tocando umas nas outras, sem que o trabalhador percebesse, fundindo-se
durante a queima e sendo, por conseguinte, descartadas ou seja, para evitar uma perda na
produção (presentes em 6 peças).
Além das caixas, a coleção contém placas refratárias. Placas são artefatos feitos do
mesmo material das caixas, argila refratária, que iam ao forno geralmente como tampas.
Durante a queima, às caixas se sobrepõem, a base da superior servindo como tampa” da que
116
está embaixo; mas a última caixa da pilha, vai com uma tampa em cima, para vedá-la: a placa.
No sítio Petybon as placas tem formato retangular e são representadas por apenas 2 fragmentos.
No caso das caixas, na coleção analisada são representadas por um total de 16 fragmentos
e peças inteiras, que se diferenciam entre 4 tipos: elípticas (9 peças), circulares (1 peça),
quadradas (3 peças) e não identificados (3). As peças elípticas são as maiores, geralmente
destinadas a peças côncavas (com diâmetro interno de até 31,5 cm), com altura variando entre
17 e 20 cm (6 peças). As peças elípticas com altura entre 9 e 10 cm (3 peças), e as formas
circulares e quadradas, são mais baixas em altura, e, provavelmente, estavam destinadas a
conter recipientes planos, como pratos. Quanto à espessura, todas as caixas mantém certa
média, sendo as bases mais grossas (variando entre 1,74 cm e 3,23 cm) do que as paredes
(variando entre 1,38 cm e 2,87 cm)
Abaixo, imagens das pastas das caixas refratárias e, a seguir, das caixas inteiras.
Quartzo
Biscoito
Quartzo
Chamote
Biscoito
Biscoito
Biscoito
Quartzo
Chamote
117
Caixas refratárias quadradas
Caixas refratárias elípticas de baixa altura
Caixas refratárias elípticas
Placas
Quartzo
Fragmentos de quartzo
Caixa Refratária com fragmentos de quartzo na parte interna da base e quartzo como anti-plástico
118
G) Roletes
Roletes são utilizados, em geral, para a manufatura de cerâmicas com técnica roletada ou
acordelada, na qual são sobrepostos. O uso de roletes tem ampla difusão no mundo e chega a
ser considerado o método clássico de produção cerâmica (MACHADO 2005/2006: 100). O
sítio Petybon contém vários destes roletes, feitos da mesma pasta que as caixas refratárias, ou
seja, argila refratária com chamote. Assim como elas, caracterizam-se por uma pasta de
granulometria grossa com anti-plástico de cacos moídos, tanto de caixas refratárias como de
louças vidradas ou no biscoito, associados à anti-plástico mineral, igualmente de grandes
proporções.
Notei que existem dois tipos de roletes: um primeiro, de corpo cilíndrico, e um
segundo, que possui uma forma cilíndrica, mas que foi achatado (24 peças). Associando dados
etnográficos com a presença de roletes ainda fixados às bases e bordas de 4 das caixas
refratárias do sítio Petybon, percebi que o segundo tipo de rolete servia para vedar o vão que
ficava entre as caixas quando eram empilhadas dentro do forno para queima das louças e
biscoitos. Quanto ao primeiro tipo, igualmente através de dados etnográficos e análise do
material arqueológico, pude notar que eram roletes com função de concerto, ou seja, quando
um fragmento de caixa quebrava, gerando um buraco” em sua parede, ao invés de ser
automaticamente descartada, ela era restaurada com uma parede de roletes superpostos,
prolongando, assim, a vida desse vasilhame.
Imagem da pasta de um rolete Fragmento de louça em
faiança fina com vidrado
119
Roletes de concerto do tio
Petybon
Roletes utilizados para concertar as formas refratárias na Porcelana
Monte Sião, atualmente. Percebem-se também os roletes postos entre as
formas. A fotografia foi tirada no interior do forno antes da queima.
Caixas refratárias com roletes ainda grudados na superfície, tanto na boca quanto na base
Roletes
Rolete
120
H) Moldes de Gesso
registros da utilização de moldes de gesso para a fabricação de cerâmicas por
colagem desde o século XV (NORTON 1975: 110). A presença destes vestígios no registro
arqueológico infere o uso do processo de colagem no qual a barbotina é vertida para o interior
do molde, que absorve a água e contém a pasta que se deposita nas paredes do mesmo,
configurando a forma do vasilhame. Para que a louça seja oca, quando se atinge a espessura
desejada, o excesso de barbotina é despejado do molde. O uso dos moldes permite a
reprodução de detalhes finos, além de ser estável química e fisicamente, com capacidade de
absorção variável, com custos moderados. O processo de colagem com os moldes utiliza-se da
pressão hidrostática e da relação da porcentagem de água na pasta líquida (a barbotina).
Os moldes nas indústrias de louça são preparados por uma mistura de gesso e água, cuja
relação denomina-se “consistência” e é dada pela expressão C = massa H
2
O / massa gesso .
100 (AUN 2000). Quanto maior for à consistência, maior será a porosidade e a absorção de
água, e menor a resistência mecânica da peça de gesso. É provável que os moldes encontrados
no sítio Petybon sejam resultados de descartes dos mesmos, porque depois de um período de
uso e reuso, podem perder alguns detalhes da forma desejada devido aos desgastes ocorridos
durante o processo (AUN 2000: 178).
A parte em negativo dos moldes é sempre maior do que a peça produzida, pois quanto
mais o molde absorve umidade, maior retração ocorre na peça, até que ela descole das paredes
do molde e seja retirada do mesmo. Além disso, os negativos nos moldes de prato e nas bases
nos moldes de malgas são mais curvos do que o vasilhame que deles resulta, pois perda de
umidade durante a queima, causando uma retração que faz com que essa curvatura das bases se
torne planas. Se o molde for plano, esse movimento durante a queima pode causar
rachaduras.
No tio Petybon, foram encontrados 411 moldes de gesso, sendo que 40 foram
analisados com maior afinco para a amostra tendo em vista a parte que compõem (se tampa, se
corpo), as dimensões, a louça que será produzida a partir dele e a cor. Assim, dos 40 moldes de
gesso, 30 são de cor brancos e 10 rosados. Devido ao grau de degradação do gesso, posso
afirmar com certeza que 7 moldes são para malga, 3 para xícaras, 1 para caneca, 6 para prato
ou pires e 1 para alça.
121
Moldes para malgas com a peça correspondente
Molde para caneca Molde para malga com tampa
Molde para pires
Moldes para malgas Molde para prato
Tampas para moldes
122
CAPÍTULO 3
PRODUÇÃO: PARTICULARIDADES E ESPECIFICIDADES NA ESFERA
PRODUTIVA
SUB-CAPÍTULO 3.1
PROCESSO PRODUTIVO NA FÁBRICA DE LOUÇAS SANTA CATHARINA / IRFM
– SÃO PAULO: TECNOLOGIAS NACIONAIS E ESTRANGEIRAS
PARTICULARIZANDO A LOUÇA EM FAIANÇA FINA NACIONAL
Pretendo discorrer aqui sobre o processo produtivo das louças em faiança fina na Fábrica
de Louças Santa Catharina, cujas etapas foram reconstituídas a partir dos vestígios
arqueológicos encontrados no sítio Petybon, vestígios estes que indicam a seqüência operatória
que caracteriza e particulariza esta faiança fina nacional. A cadeia operatória levados à cabo
durante a produção, resultam em uma “estética” final do objeto, que o originaliza e que
colabora com sua identificação e reconhecimento, por vezes difícil, nos sítios arqueológicos
históricos no Brasil. Se as louças brasileiras parecem semelhantes às estrangeiras, pretendo,
justamente, buscar a diferença nestas semelhanças (SAHLINS 2003: 187). Para isto, será
necessário, também, dissertar sobre a conjuntura de instalação da Fábrica nos anos 1910 e sua
composição do corpo de trabalhadores e diretores, que resultou na somatória de conhecimentos
diversos. Separei, portanto, este capítulo em três partes que correspondem ao que Gallay (2002:
61) chamou elementos intrínsecos e extrínsecos dos artefatos arqueológicos, isto é, as
propriedades tecno-morfológicas ligadas à cadeia operatória e os atributos ligados ao contexto
no qual esta cadeia está inserida, por quem é “feita” e com quem dialoga.
Para isto, encaro a fabricação de louças como uma produção, uma poética (DE
CERTEAU 2007: 39), durante a qual são produzidos significados que, por sua vez, produzem
louças. A produção não seria apenas um “processo natural-pragmático de satisfação de
necessidades” (SAHLINS 2003: 166); pois durante ela, “os homens produzem objetos para
sujeitos sociais específicos, no processo de reprodução de sujeitos por objetos sociais
(SAHLINS 2003: 168). Produzir, portanto, é mais do que uma prática lógica de eficiência
material, é uma “intenção cultural” (SAHLINS 2003: 169). E é como intenção cultural, e,
123
portanto, enquanto sistema simbólico, que encaro o sistema de produção capitalista no qual es
inserida a cadeia operatória das louças em faianças finas estudadas aqui.
A adoção de uma modalidade capitalista de produção, de cunho taylorista, pressupõe que
esta modalidade, como tantas outras, gera-se no fulcro do universo cultural dentro da relação
retroalimentada entre os meios materiais da organização cultural e a organização dos meios
materiais (SAHLINS 2003: 206). que as forças materiais do capitalismo se instauram sob a
égide da cultura, a produção das louças em faiança fina não é marcada por uma suposta
intangibilidade capitalista, mas faz parte de um todo cultural (que o é necessariamente um
todo homogêneo). Estas características fazem com que a cadeia operatória seja singular,
durante a qual os gestos efetuados em sua seqüência geram atributos que são somados à peça e
que, apesar de estarem além de seu apelo visual, caracterizam, intrinsecamente, estas louças
nacionais, refletindo os sistemas simbólicos na qual foram produzidas.
Não existe produção sem um instrumento de produção, mesmo que este instrumento seja
a própria mão, chamou atenção Marx em Para a Crítica da Economia Política do Capital
(1996: 27). Se este instrumento é o próprio corpo ou uma extensão deste corpo, ele, então, está
culturalmente configurado através dos gestos que compõe a produção de um objeto,
caracterizando culturalmente o mesmo. Por isso os atributos que analisei nas louças do sítio
Petybon m sempre uma razão de ser, que não inexoralvemente determinista-funcional.
Mesmo em condições materiais bastante semelhantes, ordens e finalidades culturais podem ser
muito diferentes, sem falar nas opções de estratégias de produção que podem ser concebidas a
partir da diversidade de técnicas existentes, negando ou seguindo o exemplo de sociedades
vizinhas (SAHLINS 2003: 168). Estas técnicas e tecnologias, enquanto escolhas culturais,
resultaram de “uma complexa teia de associações entre o mundo material, o social e o universo
simbólico dos diferentes grupos humanos” (SILVA 2002: 126). Assim é o estudo dos sistemas
tecnológicos, como o que pretendo apresentar aqui, da cadeia operatória da Fábrica de Louças
Santa Catharina, entendido como meio de expressão cultural. Uma vez que uma fábrica de
louças inglesa e uma brica de louças brasileira não são iguais, em seus mais variados
aspectos, os produtos resultantes destes dois universos de produção o diferentes. Para
Lemonnier (1993: 14), o que diferencia processos de produção são os modos como as pessoas
concebem os objetos, assim como identificam vários elementos a serem feitos e montados, bem
como a própria seqüência de montagem.
Por fim, é preciso lembrar que o ato de produção é também um ato de consumo em todos
os seus momentos (MARX 1996: 31) assim como é verdadeiro seu inverso (DE CERTEAU
124
2007). A produção tem sentido no consumo, esfera a qual ainda voltarei. Design,
manufatura, distribuição e uso são todas atividades que envolvem traços culturais e
organizações sociais (KINGERY 1993: 227), permeadas por escolhas e sistemas tecnológicos
(LEMONNIER 1993: 2).
No que concerne à historiografia e bibliografia sobre arqueologia em fábricas de louças,
os exemplos são poucos. Geralmente, mais exemplos, em Arqueologia Histórica, de
pesquisas em unidades domésticas ou em universos onde a louça é “consumo”, do que em
unidades produtivas. Isto porque, claro, uma única unidade produtiva abastece milhares de
unidades domésticas, caso contrário haveria um desequilíbrio na balança da demanda. No
entanto, é característico dos sistemas capitalistas produzirem mais do que consomem, numa
reprodução ampliada que mantém viva a dinâmica do capital (GRUPPI 1980: 23), traço deste
modo de produção que pode lançar luz sobre de onde vieram tantas louças que viraram aterro
compondo um sítio arqueológico.
No entanto, a Arqueologia Histórica ligada ao estudo de bricas vem sofrendo
acréscimos com os últimos anos. Adoto a abordagens, neste campo, provenientes dos trabalhos
de Paul Schakel com o complexo fabril do século XIX, a Harpers Ferry, e suas percepções
críticas em relação aos temas da disciplinarização e da modernidade (1993; 1996). Baseando-
me em Schakel, afirmo que o incremento na capacidade de produção com a criação da Fábrica
Santa Catharina em São Paulo é resultado tanto de um crescimento na capacidade de produzir
estes itens pelos oleiros e proprietários, como indica uma mudança no universo do
comportamento de consumo (LUCAS & SCHAKEL 1994: 29). Com esta nova maneira de
produzir, surgem novas estratégias de produção, compostas por uma organização,
comercialização e opções tecnológicas que os produtores selecionam e que integram o
andamento desta produção (GIBB, BERNSTEIN, CASSEDY 1990: 18), estratégias com as
quais, como se verá adiante, os trabalhadores dialogam com suas diversas táticas (DE
CERTEAU 2007).
Vale ressaltar, ainda, os poucos estudos arqueológicos em fábricas de louça branca, mas
cujas reflexões e achados puderam dar alguns nortes em relação às possibilidades
interpretativas do sítio Petybon. O que os arqueólogos que estudam fábricas de louça pensaram
sobre elas? Nos anos 1920, Aubrey Toppin (1922) levou a cabo escavações na Bow China
Factory, em Essex, Inglaterra, com o intuito de encontrar a exata localização da Fábrica (que se
deu, primeiramente, segundo relatos da descoberta de fragmentos ainda no século XIX) e
diagnosticar as decorações produzidas. Toppin encontrou uma enorme quantidade de biscoitos,
125
que caracterizaram a maior parte da coleção, assim como moldes para produção de peças com
decoração em relevo, formas refratárias, kiln furniture, e até mesmo inscrições numéricas (em
tinta azul). Entre os anos 1950 e 1970, foi escavada a Longton Hall Manufactory, uma brica
de porcelanas inglesas do século XVIII, cujas análises giraram em torno da investigação da
cadeia produtiva e da análise química dos fragmentos para percepções sobre mudanças de
composição durante a existência da Fábrica. Haggarty e McIntyre (1996), no final dos anos
1980, escavaram a Newbegging Pottery, em Musselburgh, Escócia, uma fábrica do século XIX,
que encerrou suas atividades nos anos 1920; os arqueólogos procuraram estudar a relação entre
os padrões decorativos e os diferentes proprietários da fábrica, além de descrever os artefatos
encontrados, tais quais os biscoitos, muitos deles decorados, biscuit e o kiln furniture, além de
apresentarem os resquícios de construções e embasamentos dos antigos fornos. Barker e Horton
(1999) escavaram, no começo dos anos 1990, a Coalport Chinaworks Factory, na Inglaterra, e
os estudos focaram nas análises geoquímicas e reflexões sobre as mudanças em tecnologias e
pastas na produção, mas também mostrar formas, decorações e o mobiliário do forno, tão difícil
de ser compreendido, como separadores, formas, etc.
No final dos anos 1990, Barker e Cole (1998) publicam os resultados de escavações
arqueológicas em Digging For Early Porcelain, cujo objetivo foi trabalhar em seis fábricas de
porcelana (William Littler Pottery em Longton Hall, William Littler Pottery em West Pans, The
Limehouse Factory, uma produção em Newcastle-under-Lyme, Worcester Factory e a China
Factory em Shaw’s Brow, Liverpool), com produções iniciadas no século XVIII, chamando
atenção para as primeiras tentativas de produção desta louça na Inglaterra, como a produção
lidou com diversos problemas (como o controle da queima), a relação entre diferentes fábricas
que compartilharam proprietários e funcionários, e como elas investiram em inovação e no
desenvolvimento de novas tecnologias. no culo XXI, a Brownlow Hill Factory, em
Liverpool, que iniciou sua produção no século XVIII, foi escavada com intuito não apenas de
possibilitar a identificação de artefatos arqueológicos caracterizados, em geral, nos sítios de
unidades domésticas como “sem proveniência”, como também analisar as condições da
produção reconstruindo a atmosfera dos fornos, calculando gastos e produções anuais,
acessando as mudanças tecnológicas e as confrontando com informações históricas sobre as
manufaturas de porcelanas, indicando mudanças, no tempo, na composição das pastas e
vidrados, avaliando as possíveis fontes de matéria-prima e as possibilidades de relações e trocas
de conhecimento tecnológico entre produtores contemporâneos (OWEN & HILLS 2003).
126
Na América Latina, conta-se com a magnífica referência das pesquisas de Monika
Therrien (MEJÌA & THERRIEN, 2001/2002; THERRIEN, JAMARILLO PACHECO &
SALAMANCA 2003; THERRIEN 2002; THERRIEN 2004; THERRIEN 2007) sobre a
Fábrica de Loza Bogotana, na Colômbia, nas quais a autora procurou tecer reflexões em torno
da produção, circulação e consumo da louça industrial nacional, enquanto cerâmica de
fabricação local pouco abordada pela literatura, imergindo a Fábrica em um contexto histórico
de projetos de modernização para a Bogotá do século XIX, cujos intuitos giravam em torno de
promover mudanças na ordem socioeconômica e alterar tradições vistas como arraigadas ao
antigo regime colonial. Therrien propõe, ainda, uma arqueografia da louça nacional, para
diferenciá-las de suas comparsas estrangeiras. As abordagens e os estudos da arqueóloga
marcaram de forma definitiva a pesquisa e as reflexões em torno da Fábrica Santa Catharina e
das louças nacionais em faiança fina.
No Brasil, apenas uma pesquisadora enveredou pelo difícil caminho da arqueologia das
fábricas de louça branca nacional, desenvolvendo igualmente uma pesquisa de mestrado na
UFPR. As pesquisas de Martha Morales (2008a; 200b), através de uma abordagem que versa
sobre a Arqueologia e a História, tratam da primeira fábrica de faianças finas do país, a Fábrica
de Louças Colombo, no Paraná, a partir da qual tece reflexões sobre as louças produzidas e as
diferentes etapas da Fábrica, pautando-se nas mudanças o apenas de proprietários como da
composição do corpo de trabalhadores, tendo como pano de fundo questões relacionadas às
teorias de formação de identidades culturais.
A seguir, constam os sub-capítulos cujas temáticas versa sobre o universo da produção.
São reflexões a respeito da cadeia operatória e dos agentes envolvidos, de temáticas pontuais
como visões em torno dos defeitos e sua relação com as possibilidades de consumo e a
presença de marcas digitais e artefatos com inscrições em uma fábrica de louça, permitindo um
diálogo com o cotidiano e a presença dos trabalhadores no opressor sistema fabril.
127
3.1.1 – A cadeia operatória de produção das louças do sítio arqueológico Petybon
... Eis o rumor dos quebradores, dos moinhos, que
pulverisam o branco calcareo, dezenas de cylindros preparam o
caolim, numerosos e enormes agitadores preparam a primeira
massa que, atravez de outras machinas torna-se subtil, extende-
se, adquire elasticidade e resistência para em seguida ser
adaptada á modellagem. Para esta operação servem centenas de
turbinas horizontaes, sobre as quaes a massa guiada pela mão
experta do operário, toma a fórma definitiva que se lhe quer dar
e transforma-se em prato, tigella, etc... (PICCAROLO &
LINOCCHI 1918: 148-149)
Quando Mauss investigou “as maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade,
de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo” (MAUSS 1974: 401), mostrou que
nossos gestos são culturais e históricos, caracterizando identidades e diferenciando culturas
enquanto idiossincrasias sociais (MAUSS 1974: 404). Estes gestos e ações, culturalmente
caracterizados, compõem um conjunto de técnicas que seguem, por vezes, lógicas o-
tecnológicas (VAN DER LEEUW 1993: 17), às quais Leroi-Gourhan chamou “cadeia
operatória” ou chaîne opératoire, isto é, quando técnicas escolhidas são aplicadas à matérias-
primas em seqüências e combinações lógicas de gestos (VIANA 2003: 187; DAVID &
KRAMER 2001: 140), que transformam esses materiais brutos em produtos manufaturados
(VAN DER LEEUW 1993: 240). Os gestos, as atitudes e as maneiras de se comportar no
domínio do banal e do cotidiano “constituem os elementos de ligação ao grupo social de
origem, dos quais o indivíduo nunca se consegue libertar por completo mesmo quando
transplantado para uma outra classe ou etnia” (LEROI-GOURHAN 1983: 27). Veremos que a
cadeia operatória que caracteriza as louças do sítio Petybon são uma somatória de
conhecimentos de inúmeros indivíduos, por vezes, de origens diferentes, que compuseram um
todo coerente que particulariza essa louça brasileira.
Esta longa gestualização do corpo através de um aparato tecnológico, a fim de produzir
um artefato, caracteriza este artefato em sua performance final, mas não só. O uso específico
para o qual um vasilhame é destinado implica em escolhas tecnológicas que resultam numa
determinada forma, que corresponde às necessidades de sua performance (SILVA 2000: 183)
por exemplo, a opção por não deixar o biscoito aparente na base dos recipientes e as tentativas
de burlar o gretamento. Pressuponho aqui, que toda a cadeia de produção particulariza o objeto,
isto é, o “fazer” no qual se somam sistemas simbólicos arraigados aos gestos que fabricam este
mesmo artefato, caracterizando-o. Este “fazer” configura o equilíbrio dinâmico entre o oleiro e
seu material (VAN DER LEEUW 1993: 243). Assim, etapas da produção, que não
128
necessariamente terão impacto visual no produto final, são importantes para caracterizarem um
artefato produzido por um determinado universo cultural. Estas etapas que o “aparecem” no
produto final, apesar de relacionados aos processos envolvidos em sua produção, têm a ver, às
vezes, com o fato de que “em cada seqüência, os gestos associados a ela deixam marcas
impressas, no entanto, geralmente, os gestos associados à seqüência seguinte normalmente
apagam as marcas deixadas pelos gestos anteriores” (VIANA 2003: 187) – é o caso dos
acabamentos de superfície e sua relação com as impressões digitais, assim como a relação entre
as marcas deixadas pelo uso de ferramentas cortantes no acabamento e o uso de esponjas ou,
ainda, a relação destas marcas com a esmaltação que as preenche e “camufla”, como será visto
neste trabalho.
É assim que vejo essa louça brasileira: apesar de características visíveis que a diferenciam
das demais louças estrangeiras e que resguardam sua originalidade, existem etapas do processo
de produção não-visíveis e que constituem sua seqüência operatória. As especificidades estão
ao longo de toda a cadeia e há maneiras diferentes de realizar todas as etapas, por mais que elas
tenham o mesmo fim” (BUENO 2005: 34); estas maneiras diferentes envolvem escolhas
tecnológicas articuladas dentro de um universo de possibilidades culturalmente constituído. Por
isso, a tecnologia da produção da cerâmica branca deve ser entendida como “um sistema de
representação social no qual estão inseridos, além de artefatos, conhecimentos/habilidades
específicas, relações sociais de trabalho, redes de ensino aprendizagem e, enfim, uma visão de
mundo específica” (BUENO 2005: 25). Mesmo num ambiente de manufatura fabril e produção
em série, a técnica é encarada como um fenômeno social, muito mais cultural que adaptativo
(VAN DER LEEUW 1993: 239).
Na cadeia operatória da louça em faiança fina nacional atributos são incorporados no
decurso da produção, processo que envolve uma série de decisões técnicas que estão imersas e
condicionadas por relações sociais e práticas culturais (DAVID & KRAMER 2001: 140).
Todos estes atributos que caracterizam essa cerâmica são resultantes de escolhas tecnológicas
possíveis, disponibilizadas pelo ambiente, pela própria tradição cultural ou contatos externos
(LEMONNIER 1993: 6). Defendendo a originalidade desta louça brasileira e os traços que a
diferenciam das louças inglesas, por exemplo, não penso que suas tecnologias de produção
surgiram a partir do nada. O empréstimo de técnicas locais ou estrangeiras, de oleiros
brasileiros, italianos ou ingleses, e a decisão por adotar procedimentos tecnológicos existentes
em outras cadeias de produção é, em si, uma inovação, porque prevê que a técnica emprestada
ache seu lugar na nova cadeia, fazendo com que um novo traço tecnológico tenha que se
129
encaixar fisicamente em práticas existentes (LEMONNIER 1993: 13). Este novo gesto,
artefato ou sequência operatória deve ser entendido como a potencial means of actions on the
material world” (LEMONNIER 1993: 14).
A produção de louças em faiança fina no Brasil, enquanto fato inédito poderia ser
encarada como uma invenção técnica em relação às cadeia operatórias das louças de barro
produzidas aqui implicando numa quebra de rotina. Contudo, e que uma invenção é sempre
baseada numa reorganização de elementos presentes na cultura material local, emprestar é
adaptar algo a um corpo pré-existente (LEMONNIER 1993: 21). Fica difícil, e talvez seja
desnecessário, ou mesmo impossível, saber o que é nacional e o que é estrangeiro na cadeia de
produção dessa louça nacional. Estudar a produção desta louça, suas escolhas tecnológicas e
suas características, visíveis ou não no produto final, é fazer uma crítica às abordagens que
buscam o “nacional por subtração” (SCHWARZ 2005), ou seja, a busca que caracterizou
épocas como o modernismo, por exemplo, na qual acreditava-se ser possível “limpar” a cultura
de elementos considerados forâneos para chegar a seu corpo “original” elucidante do caso,
são os roletes em argila refratária. Empréstimos sempre existem, uma vez que as culturas não
são isoladas no mundo, mas isso não implica em meras “cópias aculturadas”. Assumo que
estudar o sistema tecnológico da produção de louças em faiança fina em uma fábrica brasileira,
permite diferenciá-las das estrangeiras, porque imerso em culturas diferenciadas, permitindo
compreender sua cadeia operatória e as dimensões sociais e simbólicas que configuram esse
sistema tecnológico como meio de expressão cultural (SILVA 2002: 132). Daí mais um
argumento que corrobora a impossibilidade da louça brasileira ser uma “cópia” ou uma “cópia
mal feita” (SCHWARZ 2005).
Ao longo da apresentação da cadeia operatória das louças, pensada a partir dos vestígios
do sítio arqueológico Petybon, perceber-se-á a produção de algumas “respostas” tecnológicas a
problemas da produção, ao que Akrich e Latour chamaram translation. Essas “respostas”
relacionam-se a lógicas o-tecnológicas que perpassam as escolhas tecnológicas das cadeias
operatórias, bastante plurais e complexas (LEMONNIER 1993: 17). Fatores econômicos,
étnicos e políticos m peso importante na adoção ou rejeição de um traço tecnológico, e as
respostas aos problemas surgidos durante a produção dialogam diretamente com eles
(LEMONNIER 1993: 18). Na cadeia do sítio Petybon, o taylorismo, como característico de
uma produção capitalista standard, com uma lógica específica de tempo e produção, além de
uma relação particular com os trabalhadores, tem bastante a ver com a configuração da
sequência operatória levada a cabo para a produção das louças brancas. Muitos dos elementos
130
introduzidos na cadeia por ideologias cientificistas do trabalho, por vezes, são invisíveis no
vasilhame final, mas têm um papel decisivo no status do oleiro, do consumidor e do produto em
si.
A cadeia operatória das louças em faiança fina da Fábrica Santa Catharina, como
qualquer outra cadeia, relaciona-se às conjunturas sociais, políticas e econômicas na qual está
inserida e a partir da qual foi pensada, sendo possível, a partir de sua investigação, identificar e
compreender as dimensões políticas da organização da produção e das relações sociais no
interior da Fábrica (RIBEIRO 2006). A cadeia e os operários que dela participaram são
perpassados por todos de racionalização e cientificidade do trabalho, como o taylorismo.
Diferentemente de cadeias operatórias onde o oleiro ou oleira retém o conhecimento de todo o
processo e/ou onde produz a cerâmica que consome, no taylorismo, a ideologia capitalista de
consumo e produção caracteriza um universo onde o trabalhador não mais domina todo o
processo de produção, mas apenas alguns gestos dentro da cadeia, fabricando um artefato para
um mercado consumidor que não é estritamente ele próprio que pode mesmo nunca consumir
um objeto que produziu. Ao que, Marx chamou alienação do trabalhador.
Além disso, o sistema taylorista na Fábrica configurou uma produção que conjugou mão-
de-obra intensiva com artefatos mecânicos simples. Esta cadeia de produção de louças visava,
portanto, obter a maior quantidade possível através de uma rigorosa coordenação dos operários
em termos de tempo e sincronização das tarefas (RIBEIRO 2006). Conseguinte, essa
organização científica do trabalho objetivava facilitar a utilização de uma mão-de-obra sem
experiência de trabalho industrial, garantindo uma elevada produtividade, exatamente como
parece ter sido o caso da Santa Catharina, onde a maior parte dos operários deveria ter pouca
experiência com um universo fabril, assim como com a produção de louça branca, destarte a
experiência de alguns com produção de cerâmica vermelha.
Na cadeia operatória de tipo taylorista, a divisão operativa do trabalho faz com que cada
operário execute, idealmente, apenas uma única tarefa, “se possível abreviada a um gesto
simples” (RIBEIRO 2006), uma cadeia operatória que sujeita os operários a ritmos de trabalho
muito intensos, marcados por gestos simples repetidos quase aa exaustão (RIBEIRO 2006:
10) ao que Leroi-Gourhan (1983: 52) chamou “taylorização dos gestos” e Michel Foucault
(2007: 107) de “enquadramento dos gestos”. Além disso, esta cadeia, de cunho fabril, faz com
que várias “mãos” produzam um mesmo artefato, ou seja, gestos individuais de diferentes
indivíduos compõem a seqüência operatória de uma mesma xícara. Desse modo, cada corpo faz
um gesto segundo sua própria historia de vida e visão de mundo, compartilhados ou não em um
131
universo cultural, que “marca” a louça de diferentes maneiras. No entanto, para a conformação
de uma cadeia em veis industriais, como a seqüência operatória no taylorismo, é necessário
que, não obstante os micro-estilos de exteriorizar um gesto, busque-se características comuns e
minimamente semelhantes dos passos que compõem essa cadeia, para que consiga-se traçar um
todo coerente de produção, onde a particularidade de cada gesto é ilimitada dentro dos limites
de uma visão de mundo, cultura ou comportamento, que é a cadeia operatória ou seja,
apresentando os passos de um todo coordenado (VAN DER LEEUW 1993: 258). A
padronização dos gestos implicados no processo de produção da louça em faiança fina na
Fábrica de Louças Santa Catharina, gerou uma padronização na forma final dos artefatos
(BUENO 2005-2006: 42), caracterizando uma produção industrial em larga escala.
É a partir destas reflexões que a “formação das cadeias operatórias levanta, nas suas
diferentes etapas, o problema das relações entre o indivíduo e a sociedade” (LEROI-
GOURHAN 1983: 25); o diálogo entre os gestos individuais dos trabalhadores oleiros e um
background coletivo conformando a cadeia operatória taylorista. Uma dialética entre as
diferentes “cabeças” que pensam e materializam a cadeia, os proprietários e os operários.
Ressalva seja feita ao fato de que apesar da existência de fontes escritas e etnográficas
que auxiliem na descrição da cadeia operatória da produção de louças em faiança fina, tentarei
reconstituir a cadeia baseando-me mais nos vestígios materiais encontrados no sítio Petybon,
restringindo-me aos limites interpretativos do registro arqueológico. Por isso, etapas geralmente
atestadas nos estudos da cadeia operatória, tanto cerâmica quanto lítica, como as coletas de
matéria prima não serão abordadas, pela própria limitação do registro. Além da
complexificação do acesso às fontes de matéria-prima num ambiente fabril, por diversas
estratégias de aquisição, compra e venda, a existência de meios de transporte e táticas de
consumo faz com que estas possam vir até mesmo de fontes trans-oceânicas. É necessário
lembrar, também, que enquanto cadeia taylorista, a coleta de matéria-prima pode nem mesmo
ter relação com oleiros.
Neste item, enfim, me aterei ao processo que leva à fabricação das formas, apesar de
estar atento ao aspecto rizomático das cadeias operatórias (tanto no que concerne a seu caráter
de entrelaçamento com outras cadeias, como caracterizando-as segundo a acepção deleuziana
de “rizoma temporal”): as cadeias, portanto, se juntam num todo complexo de cadeias
operatórias infinitas, imbricamento que tende a uma coerência estrutural (SILVA 2002: 123).
Assim, não dissertarei, com maior profundidade, a cerca da cadeia operatória que caracteriza as
decorações. Mesmo porque, tentarei ater-me ao que Van der Leeuw (1993: 250) chamou de
132
elementos invariáveis da sequência operatória básica da fabricação da louça. Como veremos, a
decoração é móvel na cadeia operatória, podendo ser aplicada em diversos pontos da produção
(LEMONNIER 1993: 258).
O quadro e o fluxograma que vêm a seguir são: no quadro, procurei organizar as
diferentes etapas de produção com base no material arqueológico, pondo a descrição dos
vestígios que me levaram a conclusão da existência da etapa produtiva; em vermelho, seguem
as partes que são variáveis e que não são imprescindíveis para a formação da sequência
operatória básica de construção da peça. O fluxograma mostra, igualmente, a cadeia operatória:
em azul e verde estão as etapas da sequência básica de produção, e em vermelho, os elementos
variáveis. Os polígonos azuis são compostos pelos dados baseados nos registros arqueológicos
e os verdes são baseados em registros escritos e fotográficos que descrevem ou apontam etapas
que não podem ser inferidas a partir do sítio arqueológico.
133
CO
LAGEM
ACABEME
NTO DE
SUPERFÍCIE
ARRANJO NAS
CAIXAS REFRATÁRIAS
QUEI
MA DO
BISCOITO
ESMALT
AÇÃO
ARRANJO
NAS CAIXAS
REFRATÁRIAS
COM MOBILIÁRIO
QUEIM
A DO
ESMALTE
Mol
des de gesso
em
diferentes
tamanhos
DECORAÇÕES
MOLDADAS
Peças com decorações moldadas
no biscoito sugerem que os
moldes de gesso as continham
em baixo relevo, por isso no
processo de colagem as peças
seria geradas já decoradas
As
superfícies das peças
nos biscoitos
possuem marcas de
acabamento por
instrumentos
cortantes (que
deixam incisões) ou
panos/esponjas
MARCAS EM
BAIXO RELEVO
Aplicação das marcas da
fábrica através de
carimbos em baixo relevo
Existência de caixas
refratárias e fragmentos das
mesmas que aderiram à
superfície de algumas peças
Inúmer
os biscoitos
DECORAÇÕES
PINTADAS
Peças no biscoito pintadas
com diferentes motivos, os
quais podem ser vistos
também nas peças
finalizadas.
Peças
decoradas ou não
sobre as quais se
pode, claramente,
perceber o vidrado
cru, ainda não
queimado,
pulverulento.
Existência de
inúmeras caixas
refratárias e dos vários
apoiadores. A utilização
das trempes pode ser
percebida não apenas a
partir de sua presença,
mas pelas 3 marcas que
deixa na base das peças.
Peças
finalizadas,
vidradas,
decoradas ou
não
DECALCOMAN
IAS E DECORAÇÕES
SOBRE ESMALTE
Algumas peças têm
decorações sobre-esmalte,
pintadas e/ou decalques
QUEIMAS
POSTERIORES PARA
FIXAÇÃO DA
DECORAÇÃO
Nova queima para fixação
das decorações pintadas
sobre esmalte e em
decalcomania
MARCAS
PINTADAS
Aplicação das marcas por
carimbos
134
Elementos da seqüência básica de produção não inferidos a partir do registro arqueológico
Elementos da sequência básica de produção inferidos a partir do registro arqueológico
Elementos variáveis da sequência de produção inferidos a partir do registro arqueológico
ETAPAS DA CADEIA OPERATÓRIA DA PRODUÇÃO DE LOUÇAS DE MESA EM FAIANÇA FINA DA FÁBRICA DE LOUÇA SANTA CATHARINA / IRFM –
SÃO PAULO
135
Deste modo, temos o seguinte:
As matérias primas em fábricas de cerâmica como esta são, em geral, compradas de
terceiros, a proximidade das fontes em relação à brica favorecendo seu barateamento. Na
Fábrica Santa Catharina, a cadeia operatória se inicia no preparo da pasta e não na coleta de
matérias-primas, que não está mais sob responsabilidade da produção. Após a aquisição e
armazenamento das matérias-primas na Fábrica, as mesmas são postas em quantidade
determinada no tamborão (um enorme moedor e triturador giratório em forma de barril).
Somam-se a argila, o caulim, o quartzo e o feldspato, a serem moídos e misturados. Este é
diluído em água formando uma massa aquosa que é dividida em máquinas de prensa para
secagem e conformação da pasta em forma de discos, para armazenagem. Para utilização, estes
discos são novamente imersos e misturados à água, formando a barbotina. A barbotina é então
vertida, através de baldes, ou algum outro recipiente côncavo, nos moldes de gesso, postos
enfileirados em bancadas de madeira, um processo de conformação chamado colagem (slip
casting). Os moldes contêm as formas das futuras louças em negativo. Neste ponto, também é
realizada a decoração dita “superfície modificada” ou moldada, pois são nos moldes, em baixo
relevo, que estão as decorações como os trigais. Este tipo de decoração diminui as etapas da
cadeia operatória barateando o custo da produção, que a construção da forma e a decoração
constituem uma única etapa.
“No processo de colagem com drenagem, o molde de gesso absorve parte da água da
barbotina, formando uma camada de massa rígida, espessa o suficiente para agüentar o próprio
peso, e então o excesso de barbotina é despejado. É importante controlar-se a densidade da
barbotina, assim como também o tempo de formação da camada, pois ele vai inferir no sistema
produtivo e no produto final. Nas indústrias não automatizadas, onde o operário faz a colagem,
deve ser conhecido o tempo de formação de camada para calcular o número de moldes de uma
bancada. Ao término do enchimento do último molde da bancada, já deve estar em tempo de se
virar o primeiro” (AUN 2000: 180). Motta, Tanno e Cabral Júnior (1993: 158) descrevem a
colagem como um “processo cerâmico que se baseia na retirada lenta de água de uma
suspensão densa (ou barbotina) com a conseqüente formação de uma parede, ou torta no
contato com a superfície filtrante, isto é, vertendo-se a barbotina num molde de gesso, o molde
absorve a água da barbotina por capilaridade, enquanto as partículas sólidas vão-se
acomodando contra a superfície do molde. A peça assim formada apresenta uma
configuração externa que reproduz a forma interna do molde”.
A porosidade dos moldes de gesso absorve a água da barbotina e a pasta em suspensão
se acumula nas paredes do mesmo. Quando a espessura, controlada por um tempo x da
136
barbotina nos moldes, alcançou o tamanho desejado, o trabalhador então retira dos moldes o
excesso de barbotina, vertendo-o. Por mais algum tempo, a pasta crua, ainda mole, fica no
molde para que este absorva ainda mais água, e a forma ganhe uma dureza minimamente
manipulável. Com a absorção da água, uma retração da forma que diminui em tamanho
descolando-se das paredes do molde.
Após a retirada das formas do molde, os vasilhames, já em seu formato final, são
acumulados em estantes de madeira para secagem natural. Segundo fontes escritas, na Fábrica,
a sala de seccação” tinha um “systema engenhosissimo de aberturas” onde era mantida em
“incessante ventilação” (PICCAROLO & LINOCCHI 1918: 148). A etapa da secagem natural
é imprescindível para diminuição da umidade da peça, reduzindo, conseqüentemente, o tempo
de duração da queima.
Portanto, diferente da produção em torno, acordelado ou outra técnica, a topologia
(topology) (LEMONNIER 1993: 257) do artefato não era comum a todos os oleiros, quando
exteriorizam um design que têm em mente, mesmo de maneira inconsciente, como ocorreria
com oleiros em outros universos; no presente processo, a forma é dada pelo molde, ela é
quase fixa (para ser standard). Na verdade, a topologia das louças, na Fábrica, está restrita a um
número pequeno de trabalhadores oleiros, que materializam uma certa forma segundo a
ideologia dos proprietários e gerentes da fábrica, que pensam as formas a serem produzidas, e
segundo suas próprias maneiras de materializar esta mesma forma, de acordo com muitos de
seus próprios pressupostos e escolhas tecnológicas. Este operário específico, dentre poucos na
Fábrica, conhece toda a produção de uma cerâmica em torno, que são eles quem fazem as
chamadas matrizes, isto é, as formas originais, os modelos, a partir das quais serão feitos os
moldes de gesso. As matrizes são peças torneadas, compactas, a partir das quais são feitos os
moldes de gesso, que são, assim, negativos das formas. Confirma a tese marxista da perda do
conhecimento do total do processo produtivo pela maioria dos trabalhadores, assim como a
compartimentação deste mesmo saber em uma cadeia de cunho taylorista. Mesmo que aqueles
poucos oleiros fabricassem cerâmicas torneadas, elas não são os objetos vendidos para
consumo pela Fábrica; desse modo, os mesmos não dominam todo o processo de fabricação da
louça por colagem porque participam apenas de uma parte do todo, a fabricação dos modelos
torneados (que, são, per se, uma cadeia operatória). Por isso mesmo, o processo onde o oleiro
poderá mais se expressar é o da decoração manual.
Após o que, são os vasilhames, já em sua forma final, transportados para a seção de
acabamentos, onde “as irregularidades, tanto da superfície quanto da própria forma, podem ser
corrigidas” (MACHADO 2005/2006: 104). Antes disso, os recipientes que terão alças vão para
137
um setor de adição das alças, anexadas ao corpo do vasilhame também ainda cruas. O
acabamento, nesta etapa, tem por objetivo eliminar as imperfeições da peça: ocasionalmente,
algum pedaço de gesso aderiu à superfície, poeira acumulou nas peças ou pedaços de argila.
Apenas aqui são utilizados acessórios que não se relacionam necessariamente ao núcleo do
processo de manufatura da materialização das formas (VAN DER LEEUW 1993: 261). A
utilização de acessórios como os instrumentos e ferramentas usadas nesta etapa da cadeia
operatória da produção das louças constitui o que Van der Leeuw chamou executive functions,
aspectos da tradição da produção abertas a modificação ou substituição, que, em geral, estão
relacionadas a escolhas conscientes.
Enquanto colagem, com a utilização dos moldes de gesso, um dos aspectos da produção
que é possível inferir pela própria existência dos moldes, que não marcas
necessariamente nas peças, é a existência das “costuras”, isto é, rebarbas acarretadas pela
penetração da barbotina nos vãos entre as peças que compõem o molde (tampas com corpo ou
duas partes do corpo de um molde). Estas costuras são “cortadas”, provavelmente, com o uso
de ferramentas como estiletes ou objetos cortantes de metal.
Além disso, as louças no biscoito apresentam dois tipos de marca, inferindo dois modos
de realizar os acabamentos de superfície: a primeira são marcas, possivelmente, de esponjas
passadas no interior das peças côncavas (canecas, malgas, xícaras, penicos) e no interior e
exterior das peças planas (pratos, travessas, pires). No exterior das peças côncavas duas são as
marcas: incisões e relevos. As incisões são de dois tipos: formando uma espiral ao redor da
peça e na base das mesmas, onde a distância entre as linhas é muito mais próxima, ou incisões
formando circunferências eqüidistantes ao redor da peça. Quanto ao que chamo de marcas em
relevo, são marcas resultante de uma pressão sobre a peça formando faixas que circundam de
modo homogêneo sua superfície, estreitando-se em direção à base. Com exceção das marcas de
esponja, com função de alisamento, limpeza e de suavizar as leves arestas criadas pelo corte da
costura, as demais marcas são resultado de instrumentos de raspagem, ou seja, causam maior
intervenção sobre a superfície das peças ainda cruas. O formato espiralado, principalmente na
parte externa da base, sugere a utilização de uma mesa giratória, um torno, sobre os quais as
peças eram postas. Assim, a mão do oleiro e a ferramenta ficavam quase imóveis, enquanto que
o que girava era o vasilhame. Após o acabamento, as peças eram transportadas para a seção dos
fornos, onde eram organizadas dentro das caixas refratárias. As caixas refratárias o, então,
empilhadas dentro do forno para a chamada queima do biscoito, que ocorre a uma temperatura
entre 1200-1300ºC (PILEGGI 1958: 180).
138
Segue, então, um período de resfriamento dos fornos, à lenha, que não podem ser abertos
logo após a queima, por acarretar perigo, não só aos trabalhadores, como a toda a fornada.
Depois de abertos, as caixas refratárias são retiradas e as peças no biscoito armazenadas. Daqui
podem seguir três caminhos: ir direto à são de esmaltação, ir para a seção de pintura ou para
a seção de marcas. Seguindo diretamente à seção de esmaltação, a peça originará uma louça
branca ou com decoração em relevo, ou, ainda, pode ganhar uma decoração em decalcomania.
Se for para a seção de decoração primeiro, não conterá marca, e seuma peça com decoração
pintada. Se for primeiro para a seção de marcas, poderá ser uma peça branca ou com decoração
em relevo, com marca carimbada, ou uma peça pintada que será depois carimbada. Acredito
que o carimbo da marca sempre seja aplicado primeiro, no caso de uma peça pintada, para que
a manipulação da peça a ser carimbada não borre a decoração já aplicada no biscoito.
Depois de decorados, ou não, os biscoitos vão à seção de esmaltação ou vidragem. O
sítio Petybon contém inúmeras peças no biscoito com decoração pintada, sem decoração ou
com decoração moldada, sobre as quais o vidrado cru, ou seja, o vidrado aplicado enquanto
suspensão aquosa, por imersão, nas peças no biscoito. Os biscoitos, porosos, absorvem a água,
seguido de gradual evaporação, ficando sobre a superfície do vasilhame uma cobertura rosada
pulverulenta, o vidrado não queimado.
Após estas etapas, as peças vão novamente esperar em estantes de madeiras o momento
da queima. Ocorre, então, algo bastante semelhante a primeira queima: as peças são
transportadas para a área do forno, organizadas dentro das formas refratárias, que são
empilhadas para encher o forno e começar a queima. A diferença aqui está no uso do mobiliário
do forno, ou seja, as peças são apoiadas e separadas dentro das caixas refratárias sobre trempes
e apoiadores, que impedem que o vidrado funda-se com a superfície refratária ou uma peça
139
com a outra. A queima do vidrado é realizada em atmosfera redutora, em temperatura mais
baixa, de no máximo 1150ºC (PILEGGI 1958: 180).
É importante ressaltar que tanto a queima no biscoito como a queima do vidrado
envolvem cadeias ligadas à produção, e manutenção para uso mais prolongado, das fôrmas
refratárias. Primeiramente, para a queima, as formas são empilhadas no forno. Devido sua
irregularidade, o empilhamento não acarreta uma total vedação do interior da caixa pela base da
caixa acima. Por isso, a Fábrica produzia roletes de argila refratária que eram postos crus entre
a boca de uma forma e a base da superior, para vedar o interior das mesmas, onde estavam as
louças. No entanto, com uso contínuo e manipulação, as formas podem quebrar, quebras não
tão significativas a ponto de impossibilitarem sua reutilização (o que, se ocorrer, faz com que
as formas sigam para a maromba, que produz o chamote que é misturado à nova argila
refratária para fabricação de novas formas). Assim, quando partes das formas quebram e caem,
os oleiros constroem uma nova parede com roletes superpostos e unidos, sem grande
preocupação de acabamento ou união dos mesmos. Por isso, muitas das caixas podem possuir
duas técnicas no mesmo corpo: o torneado, técnica de manufatura básica das formas, e o
roletado, através do que chamei de “roletes para concerto”.
Após a segunda queima, a queima do vidrado, segue um período de espera para que as
louças esfriem, quando o forno é, então, aberto e esvaziado. As peças estão prontas para venda,
sendo, talvez, armazenadas em caixotes de madeira, dentro dos quais os pratos são usualmente
empilhados e as malgas são ou postas umas sobre as outras ou postas uma dentro das outras em
graus de volume crescente. A partir daí, os caminhos do mundo do consumo e da aquisição de
objetos são inúmeros. Caso ocorra decoração sobre esmalte ou decalcomania na superfície
vidrada, aplicar-se-á um decalque, o qual será, novamente, queimado, em geral em forno
contínuo, com temperatura ainda mais baixa que nas outras queimas (aproximadamente 600ºC,
podendo chegar até 850ºC em alguns casos).
Observação seja feita quanto ao uso da decalcomania nas faianças finas, onde fica claro
uma cnica resultante de uma escolha e não de uma necessidade (KINGERY 1993: 224). A
inovação que a faiança fina trouxe foi a de justamente poder ser decorada diretamente no
biscoito, na superfície cerâmica, implicando uma única aplicação de vidrado, diferenciando-a
da faiança portuguesa, cujos processos de queima e esmaltação em maior número encareciam a
produção. O uso da decalcomania, talvez, tenha uma lógica funcional pensada a partir da
conjuntura da cadeia de produção, mas do ponto de vista tecnológico ela parece resultar de
escolhas mesmo aparentemente paradoxais, pois se havia possibilidade de decoração sob-
esmalte, com 2 queimas e 1 esmaltação, a decalcomania acarretava 3 queimas (biscoito
140
vidrado fixação do decalque) encarecendo a peça se o houvesse um reflexo no
barateamento da mão de obra, pouco especializada; a aplicação do decalque é um processo
muito mais rápido, que é apenas a colocação de um “adesivo”, do que o de pintura a mão
livre, produzindo-se mais peças por dia. Além disso, a utilização do decalque pode estar ligada
às opções do mercado por decorações com características mais “industriais”, haja visto o
contexto da cidade de São Paulo nesse começo de século XX. A decalcomania e outras
decorações sobre esmalte são um exemplo claro de escolha tecnológica associada mais a
valores simbólicos (LEMONNIER 1993: 3) ou dimensões não-materiais da produção (VAN
DER LEEUW 1993: 244) do que a alguma necessidade adaptativa.
Apesar de tratar dos significados dos defeitos de produção e seus posteriores
aproveitamentos a posteriori, gostaria de dizer que o sítio Petybon contém muitos produtos da
cadeia operatória que podem ter sido encarados como defeitos ou desvios. Estas variantes na
cadeia parecem resultar “de procedimentos diferentes respondendo a acidentes, imprevistos e às
marcas estilísticas individuais ou mesmo imposições comerciais” (VIANA 2003: 187) não
sendo incorporados, aqui, os dois últimos casos. A maior parte dos defeitos, como pode ser
visto no fluxograma a seguir, é gerado na etapa da queima do vidrado. Antes do biscoito, os
defeitos surgidos podem ser solucionados ou no acabamento de superfície, quando é possível
fazê-lo, ou fazendo com que a peça retorne ao princípio da cadeia e seja, novamente, misturada
a pasta. Após a queima no biscoito, entretanto, fica difícil reaproveitar o refugo gerado na
cadeia e dar um “fim” aos descartes da produção; por exemplo, misturá-los novamente à pasta
das louças alteraria a plasticidade das mesmas, podendo acarretar ainda mais defeitos durante
as queimas. No entanto, a Fábrica tentou responder a estes problemas da produção criando
algumas soluções que, apesar de não definitivas e de não darem fim a todo o refugo gerado,
criaram algumas formas de aproveitamento, mesmo que não conscientemente com esta
finalidade, reciclando e re-utilizando as louças. Alguns destes defeitos têm características,
como veremos mais à frente, que ainda possibilitariam sua venda e consumo, mas como uma
categoria de louça mais barata.
Como apontarei em capítulos seguintes, a Fábrica criou diversos mecanismos a fim de
reaproveitar ou descartar as louças que o seriam mais vendidas: lançar à rua para que a
população a utilizasse (seja como louças inteiras, sejam os fragmentos para aterrar buracos no
barro das ruas ou para realizar brincadeiras), usar os fragmentos no biscoito e as louças como
anti-plástico de caixas refratárias e tijolos, e, ainda, usar os biscoitos como suportes para a
escrita. O fluxograma seguinte demonstra que os defeitos gerados ao longo da cadeia operatória
não significavam o descarte final dos artefatos nos quais estavam contidos, mas, por vezes, a
141
entrada dos mesmos em novos contextos e novas cadeias operatórias. Destaquei em vermelho
os caminhos que se podem inferir através dos registros materiais.
Um último ponto apontado aqui é o referente ao transporte das peças, durante a
produção, para os diferentes setores da fábrica. Diferentemente das cerâmicas roletadas ou das
torneadas, onde a maior parte da construção da peça ocorre num mesmo local, a produção das
louças na Fábrica acarretava seu transporte para diferentes lugares, onde diferentes indivíduos
continuariam o processo da mesma peça, uma das características de uma cadeia de cunho
taylorista. Este transporte era feito através de tábuas de madeira, como pude inferir a partir de
fotografias da Fábrica e de dados etnográficos. Estas tábuas teriam a função, primeiramente, de
transporte de uma quantidade maior de louças do que se fossem utilizadas apenas as mãos, uma
vez que as peças o enfileiradas sobre as tábuas. Além disso, quanto menos manuseio, menos
possibilidades de gerar perdas na produção, como defeitos resultantes de choques mecânicos
durante a manipulação, marcas de dedos, etc. As mesmas tábuas que realizam o transporte são
as tábuas nas quais as louças são armazenadas durante a secagem natural, no intervalo entre a
queima do biscoito e a esmaltação e entre a esmaltação e a queima do vidrado. Estas tábuas
compõem as estantes de armazenamento. Assim, diminui-se ainda mais o contato físico entre o
trabalhador e a cerâmica. As estantes são, na verdade, grandes esqueletos nos quais são
apoiadas as tábuas com as peças em cima.
Por fim, após os fluxogramas, segue a reprodução de um texto contido no catálogo da
Exposição Universal de 1918, documento que indica características da produção, assim como
aponta os discursos pelos quais a elite industrial paulista forjou as imagens das fábricas em seus
projetos de modernidade para o país e para a cidade, tema que retomarei ao longo da
dissertação. Optei pela reprodução do texto na íntegra por ser um documento de extrema
relevância para a Fábrica.
142
POSSIBILIDADES DE GERAÇÃO DE DEFEITOS AO LONGO DA CADEIA OPERATÓRIA DAS LOUÇAS
DE MESA DA FÁBRICA DE LOUÇAS SANTA CATHARINA / IRFM – SÃO PAULO
Aplicação do
carimbo “borrou”
o baixo relevo
Alças amassadas no
momento de sua
aplicação na peça,
ambas ainda “cruas”
1.
A retirada da peça no molde
pode acarretar amassados e
deformidades devido
a
pressão manual
2.
Se a barbotina ficar muito
tempo no molde, as peças
serão espessas demais
Aplicação do
carimbo “borrou”
a marca
Borr
ado do pincel
e
espirros de tinta
acidentais
1.
Peças fundiram
uma nas outras
2. Peças iniciaram
vitrificação
1.
Fusão entre as
peças e o
mobiliário
2. Fusão entre duas
peças vidradas
3. Bolhas
4. Acúmulo de
vidrado
5. Vidrado rugoso
6. Deformação
Fragmentos da
pasta na superfície
do biscoito
Aplicação do
vidrado líquido fez a
pintura escorrer
Marcas
pintadas
Marcas em
baixo relevo
Adição das
alças
Decorações
pintadas
Preparação
da barbotina
Colagem
Acabamento
de superfície
Queima do
biscoito
Esmaltação
Arranjo nas caixas
refratárias com
utilização de
mobiliário
Arranjo nas
caixas refratárias
Queima do
vidrado
Preparação
da pasta
2
1
1
1
2
1
1
1
2
3
143
Preparação
da b
arbotina
Colagem
Acabamento
de superfície
Queima do
biscoito
Esmaltação
Arranjo nas caixas
refratárias com
utilização de
mobiliário
Arranjo nas
caixas refratárias
Queima do
vidrado
Preparação
da pasta
Biscoitos como suportes de escrita
Biscoitos como anti-plástico de tijolos e caixas refratárias
Biscoitos como material construtivo para aterro
Biscoitos lançados na rua para uso da população
Louças como anti-plástico em caixas refratárias e roletes de argila
refratária
Louças como material construtivo para aterro
Lançadas na rua para uso da população
Moldes de gesso lançados à rua para uso da população
Moldes usados como material construtivo para aterro
Caixas refratárias moídas e utilizadas na nova pasta para
produção de novas caixas refratárias
Caixas refratárias como material construtivo para aterro
Caixas refratárias moídas e utilizadas na nova pasta para
produção de novas caixas refratárias
Caixas refratárias como material construtivo para aterro
Qualquer problema ocorrido na produção dos
vasilhames até a queima do biscoito, pode ser
solucionado fazendo com que a peça, que ainda é a
pasta crua, retorne ao início do processo para fazer
novamente parte da pasta
MOMENTOS DE DESCARTE DE ALGUMAS PEÇAS POR DEFEITO AO LONGO DA CADEIA
OPERATÓRIA E SUAS RESPECTIVAS POSSIBILIDADES DE REUTILIZAÇÃO NA FÁBRICA DE LOUÇA
SANTA CATHARINA / IRFM – SÃO PAULO
Tijolo com marca FR & Cia.
Rolete
144
Fábrica Santa Catharina Fagundes, Ranzini & C.
ia
Rua Amelia Água Branca
Este estabelecimento que é hoje, sem duvida, o maior e o mais importante deste gênero
em toda a America do Sul, foi criado pela energia indomavel e pela esclarecida intuição de
Romeu Ranzini um moço italiano que deve tudo o qeu é a si mesmo, aos seus estudos de
campo da chimica industrial, ao seu trabalho disciplinado e incançavel – juntos á um
vigoroso espírito de iniciativa e á inquebrantável no sucesso dos Srs. Fagundes que não
duvidaram em dispensar o seu valido apoio á empreza que em cauda das difficuldades
techincas apresentadas no inicio afigurava-se como acompanhada por obstaculos
insuperaveis.
Penetrando nas vastíssimas construções que constituem o conjuncto da Fabrica Santa
Catharina, sente-se a impressa do esforço grandioso, do gosto continuo de energia que foi e
é ainda preciso para dotar São Paulo de um estabelecimento deste gênero.
Naquella colmeia em que se desenvolve quotidianamente a actividade de 800 operarios
a impressão da força do trabalho vence o espírito. Eis o rumor dos quebradores, dos
moinhos, que pulverisam o branco calcareo, dezenas de cylindros preparam o caolim,
numerosos e enormes agitadores preparam a primeira massa que, atravez de outras
machinas torna-se subtil, extende-se, adquire elasticidade e resistência para em seguida ser
adaptada á modellagem. Para esta operação servem centenas de turbinas horizontaes, sobre
as quaies a massa guiada pela mão experta do operário, toma a fórma definitiva que se lhe
quer dar e transforma-se em prato, tigella, etc., que passam em seguida na grande sala de
seccação onde por meio de um systema engenhosissimo de aberturas é mantida uma
incessante ventilação.
Depois de conseguido determinado grau de seccação estes productos são introduzidos
nas grandes fornalhas das quaes damos aqui a photographia.
Depois de um período de tempo mais ou menos cumprido nestes fornos, que por si
são sufficientes para dar uma idéia da importância do estabelecimento, pois cada um pode
conter de 150 á 200 mil peças de louças, os productores passam á operação da esmaltação e
envernização para serem em seguida submettidos a nova cozedura, a definitiva, depois de
que passam nos armazéns para serem enviados a todas as praças do Brasil e também a
alguns mercados do extrangeiro.
145
Digno especialmente de lembrança é o facto que todos os trabalhos de modellagem são
executados n mesmo estabelecimento, numa secção especial onde artistas modeladores
estudam e cada dia cream novos modellos.
Salas especiaes são destinadas às decorações dos productos finos, como vasos,
estatuas, taboleiros, castiçaes, e cada dia o incançavel Sr. Ranzini estuda vernizes novos,
effeitos decorativos que nada têm a invejar aos productos congêneres de que até hoje o
Brasil foi tributário á velha Europa.
Digno de nota a este respeito é o facto que a secção artistica do estabelecimento vae de
dia em dia tomando vulto no movimento de conjuncto, pelo bom gosto dos seus proprietarios
que não procuram o lucro, mas que este sabem conciliar com um gosto artístico
indiscutível, para egualar os productos de grande valor provenientes das mais acreditadas
fabricas europeas.
Inutil accrescentar que também as industrias accessorias, como a producção de
materiaes refractarios, a confecção das mercadorias acham o seu logar no estabelecimento,
o que representa na verdade um digno coroamento dos esforços empregados no trabalho
pelos Srs. Fagundes e Ranzini, que são a evidente demonstração de quanto passam o
trabalho e a iniciativa nesta terra feliz (PICCAROLO & FINOCCHI 1918: 147-149).
146
3.1.2. Na longa duração da mercantilização e da industrialização: a Fábrica Santa
Catharina / IRFM – São Paulo e a instalação das fábricas de faiança fina em São Paulo
... A nossa indústria já alçou vôo seguro buscando seguir a
rota dos nossos predecessores de além mar.
(Presidente do Sindilouça Francisco Sales Vicente de
Azevedo, em Memorial de 20/03/1948)
A história da industrialização no Brasil, e na cidade de São Paulo especificamente, é
contemplada por uma vasta bibliografia. É debate constante o período do início da
industrialização no país, alguns pesquisadores apontando para o final do século XIX, outros
para as décadas de 1920, 1930 ou, até mesmo, 1950. Segundo Luz, por exemplo, a década de
70 do século XIX marcaria o início da história da industrialização no país, que,
anteriormente, configurava-se por pequenas bricas que tentavam participar das vantagens
sócio-econômicas que o avanço tecnológico proporcionava ao Ocidente (LUZ 1974: 28).
Em geral, a visão que perpassa estes estudos parece ser a formada pelas grandes
sínteses de Caio Prado, Celso Furtado, Boris Fausto, Gilberto Freyre e Fernando Novais os
quais, a partir da década de 1930, pensando o sistema colonial brasileiro, elaboraram a idéia
do sistema exportador de plantation, do grande latifúndio, voltado para o mercado externo,
sendo a produção interna brasileira quase nula, já que a função da colônia seria a de consumir
apenas os produtos importados da metrópole (NOVAIS 1986; PRADO 1953). Deste modo,
após um período de improdutividade, o Brasil, a partir de fins do XIX, teve um boom
industrial que marcou uma ruptura e significou uma transformação total na sociedade, visão
clássica na qual a economia de subsistência e o mercado inteiro seriam meros apêndices do
sistema colonial.
É apenas a partir do final da cada de 1970 e 1980, o obstante expoentes anteriores
como Amaral Lapa, que uma revisão destas idéias é levada à cabo com maior afinco,
acarretando o surgimento de trabalhos como os do grupo de História Agrária da UFF. Maria
Linhares (1996), por exemplo, estudando a agricultura no país, procurou demonstrar que a
visão plantacionista na historiografia brasileira é uma marca persistente e deveras
conservadora que implica numa defasagem na relação que se percebe entre a importância da
pequena lavoura e o papel da agricultura de subsistência na Colônia. Começou-se, deste
modo, a serem sistematizados estudos sobre a agricultura de alimentos, a pecuária e o
comércio de abastecimento.
147
Para Linhares, a pequena lavoura e a agricultura tiveram importante papel em torno da
questão da ocupação da terra e na organização de trabalhos sob a forma familiar,
responsáveis em produzir excedentes e atender, progressivamente, às necessidades dos
núcleos urbanos em expansão e das frotas que se dirigiam ao sul e à África (LINHARES
1996: 137). Para a autora, equivoca-se quem pensa que o Brasil viveu de açúcar e nada mais
que açúcar e, após o século XIX até 1930, de café e café. A mandioca, por exemplo, era a
segunda (depois do cultivo da cana) dentre as dez maiores culturas brasileiras, segundo
estatísticas do século XIX; mandioca e cana persistiram por séculos em sua parceria histórica,
levantando, inclusive, questionamentos sobre o peso da participação indígena no meio
mameluco (LINHARES 1996: 138). Além disso, a associação entre produção de alimentos e
pecuária, durante o Brasil Colônia, foi responsável por uma enorme movimentação de renda,
impulsionando a economia do país; coisa que a teoria da plantation, exportadora de grande
propriedade, acabou camuflando.
Comento sobre estas novas interpretações em relação às dinâmicas econômicas no
Brasil Colônia, porque elas estão diretamente relacionadas às abordagens em torno dos
argumentos de “pobreza”, “isolamento” e “auto-suficiência” que foram forjados sobre São
Paulo. Estes argumentos tentaram delimitar uma modernidade e um período de progresso
opostos a uma São Paulo colonial estática, com base nas visões clássicas do Brasil colônia e
do sistema colonial, o que acarretou uma periodização da história da cidade “que enxerga
uma fase de decadência, pobreza e isolamento no período que vai do século XVIII até o
advento das estradas de ferro, da plantação intensiva do café e dos movimentos imigratórios
mássicos, subsidiados pelo Estado” (MOURA 2005: 15). Deste modo, com base na tese do
isolamento paulista no período colonial, em relação aos “centros dinâmicos” no Nordeste ou
em Minas, foi forjada a imagem da pujança paulista no século XX, que ora era vista como a
“locomotiva da nação” (LOVE 1984), ora “explorando a não inserção da região paulista nos
mecanismos exploratórios do Antigo Sistema colonial”, apontando-se “para o dinamismo
paulista na fase pós-independência com o café e a posterior industrialização” (BLAJ 2000:
242).
A crítica a esta postura e às abordagens de uma paulicéia moderna surgida com o final
do XIX e começo do XX, sob o prisma braudeliano da longa durão, mostram que a
fundação da Fábrica de Louças Santa Catharina, em São Paulo, e de outras fábricas, na
realidade, fazem parte de um longo caminho de mercantilização da metrópole (BLAJ 2001),
associada a seu caráter movediço (MOURA 2005), ao qual, com o tempo, vieram se somar,
148
aos modos de produção presentes na cidade, o sistema de fábrica e as indústrias. Por isso, não
me posiciono favoravelmente a idéia de um boom industrial, mas sim de que as indústrias e
fábricas são parte de um processo mais longo que inseriu a cidade na esfera capitalista da
mercantilização a partir do século XVIII.
Os trabalhos de Ilana Blaj foram marco nas interpretações sobre a mercantilização do
Brasil, e de São Paulo, no período colonial, mostrando que uma análise mais pormenorizada
do processo no país desmente a aparente “pasmaria” da economia colonial e de inícios do
Império. “Estudos mais recentes sobre a vila de São Paulo no período colonial têm destacado
seu grau de mercantilização crescente e a formação de uma sociedade rigidamente
hierarquizada” (BLAJ 1998), e, nesta linha, Blaj mostra que a partir, pelo menos, do século
XVIII, assiste-se a sedimentação de uma elite paulistana que concentra em suas mãos terras,
escravos, gado, produção agrícola e comércio, “e que, através das relações patrimonialistas
no âmbito da Coroa Portuguesa, consolida-se progressivamente no poder” (BLAJ 1998).
As inúmeras queixas registradas na documentação escrita sobre São Paulo colonial
referentes, por exemplo, à falta de víveres produzidos na região, que são, usualmente,
encaradas como indícios da pobreza de São Paulo seriam, segundo a autora, indicativos de
toda uma produção local e regional e de todo um movimento mercantil que se orientou,
gradativamente, a uma lógica de mercado, fato acelerado pela articulação entre a cidade e as
áreas mineradoras, que ampliaram as possibilidades de comércio, especialmente a partir da
terceira década do século XVIII (BLAJ 1998). A dinamização da economia paulistana seria
parte do contínuo processo de mercantilização de São Paulo, que, no período, passa a manter
um grande comércio de exportações e importações através do porto de Santos, abastecendo
não apenas áreas interioranas e bairros rurais, como também Minas Gerais, Cuiabá e Goiás, e
fornecendo gêneros às capitanias da Bahia e do Rio, fazendo com que, nas palavras de Blaj, a
antiga vila de Piratininga se tornasse “um importante pólo comercial, estendendo, cada vez
mais, as redes de sua teia mercantil” (BLAJ 1998).
A Arqueologia também corrobora estas novas abordagens, notadamente em suas
pesquisas sobre universos produtores de cerâmica da cidade e seus arredores. Zanettini, por
exemplo, mostra como não houve uma ruptura tão grande, como nos fez crer a historiografia,
entre um mundo pré-industrial e um pós. É claro que as indústrias trouxeram transformações,
não há como negar, mas São Paulo não acordou de um longo sonho de abandono econômico.
Pelo contrário, por toda a região, a movimentação de mercadoria gerava lucros e rendas e
inseria a cidade num esquema maior de mercantilização da economia do país em sua relação
149
ao restante do mundo. A produção de cerâmica local/regional sugere uma indústria local que
atendia a demanda de uma população crescente e cada vez mais necessitada destes produtos
(ZANETTINI 2005).
Semelhante idéia foi apresentada por Morales para a Jundiaí do século XVIII. Segundo
o mesmo, durante este período, com o crescimento da demanda dos aglomerados urbanos,
criou-se a necessidade de abastecimento das vilas e cidades, e um dos produtos de grande
produção local era a cerâmica. É possível que durante o século XVIII, a cerâmica encontrada
nas áreas do entorno de São Paulo possuísse duas micro-divisões, a produzida nos
aldeamento e a confeccionada em propriedades rurais (MORALES 2001: 181). Coexistiriam,
assim, produções cerâmicas voltadas para a venda e para consumo próprio; isto teria
perdurado pelo menos a o século XIX, quando uma população indígena e mestiça
intensificou a produção cerâmica para uma demanda, por produtos mais baratos, por parte da
população com menor poder aquisitivo (MORALES 2001: 180).
Com o século XIX, foram se reunindo, em São Paulo, as condições necessárias ao
desenvolvimento do setor comercial e de indústrias destinadas a substituir a importação de
bens de consumo pela produção nacional (ÉRNICA 2004: 168). Além do mercado de
capitais, trabalho e circulação de moeda na economia, desenvolveu-se o setor de infra-
estrutura (malha ferroviária e usinas de energia elétrica), e a concentração demográfica, na
capital e no interior, gerou demanda por bens de consumo semiduráveis e por alimentos. Com
isto, a produção cerâmica e as olarias foram trazidas para dentro das fábricas e sua estrutura
começou a ganhar moldes mais capitalistas. Segundo Érnica (2004: 169-170), no estado de
São Paulo, as indústrias foram criadas primeiro no interior e depois se concentraram na
capital, fazendo com que a cidade, na década de 1910, fosse o maior pólo industrial
brasileiro, responsável por mais da metade da produção nacional. No entanto, caminhos
inversos fizeram as fábricas de louças brancas no estado: capital rumo ao interior (PEREIRA
2007).
Com a Iª Guerra Mundial, as fábricas brasileiras passaram a exportar alimentos e
tecidos para os países em conflito, e o governo deu início a uma política de substituição das
importações, favorecendo os manufaturados nacionais. Por isso, entre 1914 e 1920, surgiram
cerca de seis mil novas fábricas no estado, trazendo consigo novos elementos do cenário
político, como as organizações operárias e as tensões das greves (MARANHÃO 1994: 63).
A implantação da indústria de cerâmica branca, no Brasil, apresenta-se dentro desta
conjuntura, associada ao que se poderia chamar de uma gradativa adoção dos meios de
150
produção capitalistas à produção cerâmica. A origem da cerâmica como atividade industrial,
em São Paulo, se deu a partir do final do XIX e início do século XX, relacionada, portanto, à
expansão do mercado interno, aumento da imigração e urbanização e expansão da economia
cafeeira (BELLINGIERI 2003: 5). o se deve esquecer, contudo, que uma produção
cerâmica com fins comerciais já existia e vinha se fortalecendo na cidade, para abastecer um
mercado local ou regional, desde a Colônia e por todo o Império (BELLINGIERI 2004;
ZANETTINI 2005).
Foi a rápida proliferação de olarias que representou o marco inicial da indústria
cerâmica e de sua associação ao sistema fabril, em São Paulo; olarias já se faziam presentes
quase em todas as cidades e núcleos urbanos do estado, desde antes das últimas décadas do
século XIX (ZANETTINI & MORAES 2005). O número de olarias no estado está ligado não
apenas ao aumento da população, urbanização e mercado interno, criando grande demanda
por produtos cerâmicos, mas também à disponibilidade da matéria-prima básica, a argila
(BELLINGIERI 2003: 7). Na capital, as cerâmicas estavam quase todas localizadas ao longo
da várzea do rio Tietê, nos bairros da Água Branca e Barra Funda.
No começo do século, toda uma legislação em torno do ofício de oleiro começa a ser
delineada, indicando um reconhecimento da profissão, que culminará, como veremos adiante,
com a greve de 1917 e a fundação da Liga dos Ceramistas. Em 1907, por exemplo, o cargo
criado pela municipalidade de “fiscal de riostinha a incumbência de impedir a extração de
‘barro para cerâmica nas várzeas do Bom Retiro, Catumbi, na parte edificada do bairro do
Peri e nos lugares onde essa extração for permitida, quando não haja licença prévia ou
quando as escavações possam prejudicar a saúde publica’; designar onde cada oleiro ou
proprietário de olaria poderá extrair barro e garantir que fizessem isso sem o ‘esburacamento’
da várzea” (JORGE 2006: 36-37). O impacto das valas de extração de argila ao longo do leito
do Pinheiros e do Tietê levou, inclusive, à proibição da instalação de olarias próximas ao
perímetro urbano em 1913 (JORGE 2006: 119) fato que pode ter influenciado na escolha
do local de implantação da Santa Catharina. Era grande o número de olarias na cidade e
muitas das fábricas de louça branca foram instaladas em locais próximos de antigas olarias de
cerâmica. A própria Fábrica Santa Catharina estava muito próxima da Cerâmica Paulista,
instalada na Água Branca, em 1893, pelo imigrante português Joaquim Ferreira, que
fabricava cerâmica torneada (BELLINGIERI 2005). Para uma visão mais detalhada da
evolução dos estabelecimentos cerâmicos em São Paulo, nos séculos XIX e começo do XX,
conferir Bellingieri (2003, 2004, 2005).
151
Com o crescimento das fábricas no período XIX-XX, e suas construções em alvenaria,
com tijolos aparentes, houve forte impulso por novas olarias. Nas várzeas, inúmeras olarias
encontravam o barro utilizado na fabricação das telhas, tijolos e manilhas que abasteciam os
infindáveis canteiros de obras paulistanos” (JORGE 2006: 57). Este novo impulso, somado à
tradição de olarias presentes na cidade de São Paulo, desde muito tempo, produziu uma mão-
de-obra que manipulava com intimidade a argila e a produção cerâmica, que pode, e foi,
aproveitada pelas fábricas de louças posteriores, através da contratação desses brasileiros para
trabalhar com a faiança fina, somados aos estrangeiros.
A própria região da Água Branca, no bairro da Lapa, onde estava instalada a Fábrica,
no final do século XIX era um bairro tido como oleiro, com várias olarias e locais de extração
de argila. Inúmeras olarias de tijolos existiam no local como a de Felisberto Migliani (1887),
a de Griselho Ginondo (1885), de Maralino Gerard (1885), Manoel José Ferraz (1885),
Pensimini Paulo (1885) e Zoelli Zunga (1885) (MAESIMA 1997). A planta geral da cidade
de São Paulo de 1914, produzida pela Comissão Geographica e Geológica, onde encontram-
se marcadas as fábricas do período, informa que existiam 10 fábricas de louça de barro e 3 de
cerâmica, sendo que na Água Branca estão marcadas 4 fábricas na categoria cerâmica,
ladrilhos, cal, cimentos ou outros materiais de construção e 2 fábricas na de vidros, louças de
barro ou ferro esmaltado, além de uma fábrica na categoria azeite, óleo, cera, resinas ou
vernizes. A Fábrica Santa Catharina, marcada como brica de cerâmica, aparece na esquina
da rua Fábia com Aurélia.
A Água Branca também se configurou, até meados do século XX, como local de caça
de pequenos animais em seus restos de matas (JORGE 2006: 100). Fora caminho dos
tropeiros no século XVIII, e entra no século XX como um bairro urbano da cidade de São
Paulo, onde a São Paulo Railway chegou em 1899. Com a transferência da São Paulo
Railway da Luz para a Lapa, em 1898, o bairro teve sua paisagem urbana e vida modificada,
caracterizando-se como pólo de atração de mão-de-obra (SEGATTO 1988: 27). A partir do
final do século XIX, se instalaram ali a Vidraria Santa Marina (1896), a Fábrica de Tecidos e
Bordados Lapa (1913), a Santa Catharina, a Fiat Lux (1919) e etc. A localização da primeira
fábrica de louças da cidade neste bairro, especificamente, me fez pensar que seu mercado
consumidor era não apenas o do próprio centro urbano, mas também o resto do estado e do
país, que a Lapa era porta de entrada obrigatória para quem vinha do Oeste, de Jundiaí e
Campinas (MENDES 1958: 352).
152
Quanto à produção de louça em faiança fina no Brasil, em geral, as indústrias de louça
branca começaram a surgir um pouco mais tarde, no século XX, fruto de uma sociedade
cuja demanda cresceu por estes produtos, que tiveram sua produção impulsionada,
principalmente, no contexto da I Guerra, com a drástica redução das importações e o
incentivo à produção nacional. Falo, porém, da cerâmica como uma atividade do setor fabril,
o que corresponde, também, as primeiras produções de louça branca em moldes industriais.
Entretanto, se tentou fazer louça no Brasil, a exemplo da muito comentada tentativa de
João Manso Pereira que procurou produzir porcelana, no século XVIII (BRANCANTE
1981). Brancante aponta, igualmente, para o século XIX, em Minas Gerais, a tentativa da
Cerâmica Nacional, em Caetés, fundada, em 1893, com o objetivo de “produzir artigos finos
visando a porcelana” (BRANCANTE 1975: 64). Para o período de 1903-1921, o autor fez
um levantamento documental que apontou para um possível “fabrico de peças utilitárias em
porcelana em Caeté, de forma industrial” (BRANCANTE 1975: 64).
Ainda anterior a Santa Catharina houve, a Fábrica de Louças Colombo, fundada no
Paraná, em 1902 (fundada no final do século XIX, mas que começou a produzir cerâmica
branca a partir de 1902). A Fábrica também teve fases (1902-1909 e 1921-1926), que
variaram de acordo com seus proprietários – italianos e alemães – e contou com a presença de
técnicos trazidos da Europa e de “gente da terra” (CARNEIRO, s/d: 13; MORALES 2008).
Possuía 3 fornos, 1 para cozimento e 2 para queima do vidrado, alcançando uma temperatura
de 1200ºC. O interessante desta fábrica é que ela es inserida, muito fortemente, na
conjuntura do fim da abolição, e as técnicas de coerção dos trabalhadores e operários são bem
interessantes, pois, diferentemente, das estratégias de racionalização do trabalho como o
taylorismo e o fordismo, bastante presentes na Santa Catharina –, a Colombo contratava até
feitores em um regime de trabalho com claras alusões ao sistema escravista.
A Santa Catharina, no entanto, foi a primeira brica a produzir louças em grandes
quantidades, industrialmente, a saturar o mercado com milhares de produtos em série. A
fábrica produziu, em faiança fina, vasos, pratos, tigelas (malgas), canecas, xícaras, pires e
louça sanitária. Segundo Bellingieri (2004: 29), a partir de meados da década de 1920, a
empresa passou a produzir também velas filtrantes, a base de caulim, destinadas, por
exemplo, ao Instituto Butantã, para filtros especiais para a fabricação de soros antiofídicos. A
Carta Patente (Coleção Ranzini, Museu Paulista) de 28 de Fevereiro de 1912 mostra que a
Fábrica inaugurou um novo processo, no Brasil, com uma nova pasta e com novas
tecnologias para produzir artefatos em louça branca:
153
... para provar que se acha em uso effectivo nesta Republica a invenção de um novo processo
de fabricação de louça branca fina, esmaltada e decorada, ladrilhos e artigos semelhantes.
A Fábrica de Louças Santa Catharina foi, posteriormente, comprada pelas Indústrias
Reunidas Fábricas Matarazzo (IRFM), tendo funcionado entre 1913 e 1937. A compra pela
IRFM marca o início de uma nova fase na Fábrica, que por isso pode ter sua cronologia
dividida em dois períodos: 1913-1926 e 1927-1937. A Fábrica Santa Catharina foi
originalmente fundada por 5 sócios, quatro deles da família Fagundes (dentre os quais o
majoritário era Euclydes Fagundes), e Romeo Ranzini. A Fábrica, fundada na Lapa, entre as
ruas Coriolano, Fábia e Aurélia, ganhou este nome, segundo Miriam Ranzini (nora de Romeo
Ranzini), devido à estátua de uma Santa, Santa Catarina, que veio com a família Ranzini da
Itália para o Brasil. Santa Catarina é hoje uma das padroeiras da Europa, além de padroeira da
Itália junto a São Francisco de Assis; a santa refere-se à Catarina de Siena, a 24ª filha de um
tintureiro, nascida em Siena, na Itália, que fez parte da Ordem de São Domingos desde os 15
anos e participou do Grande Cisma do Ocidente no século XIV. Foi canonizada pelo papa Pio
II, no século XV, declarada segunda padroeira de Roma no século XIX, por Pio IX, e tornou-
se padroeira da Itália, em 1939, por Pio XII.
A partir da década de 1920, a Fábrica entrou em algum tipo de crise devido às taxas
alfandegárias, à Revolução de 1924 e ao custo da energia elétrica, o que a teria levado, após
um período de hipoteca, a ser comprada pela IRFM (PEREIRA 2002: 31). A partir da compra
oficial, efetuada em 1927, a Fábrica passou a ser conhecida como Fábrica de Louças da Água
Branca. Conta-se, neste processo, também com a morte de Euclydes Fagundes, justamente
em 1926, o que colaborou para a venda da Fábrica, uma vez que, como principal
administrador e sócio majoritário, passou as ações à sua esposa, Adélia, que o quis
continuar com o negócio. O significado da presença dos Matarazzo na Fábrica, antes da
compra oficial da mesma, ainda é bastante obscura. É possível que a IRFM fosse responsável
pela distribuição das louças da Santa Catharina a estabelecimentos comerciais, ou que eles
mesmos as comercializassem e cobrassem pelo transporte e armazenamento.
Abro um parêntese aqui para ressaltar que apesar do nome, o existe uma marca de
louça, um selo, “Fábrica de Louças da Água Branca” (pelo menos até hoje não se tem notícia
disso); era um nome “fantasia” do local, pois todas as louças referentes a essa fábrica são
marcadas com IRFM São Paulo”. O mesmo parece ter ocorrido com a Fábrica de Louças
Cláudia, em São Caetano, que, adquirida pelos Matarazzo em 1935 (VICHNEWSKI 2004),
154
vem selada como “IRFM – São Caetano”. A planta abaixo, de uma fachada da fábrica, mostra
o nome “ficção” pelo qual a Fábrica ficou conhecida pós-1927:
(Acervo do Arquivo Geral/ DPH/SMC/PMSP)
Em 1922, ano da Semana da Arte Moderna, da crise do café, da alta na inflação e de um
abalo sísmico (AMERICANO 1962: 207), a Fábrica levou seus produtos à Exposição
Internacional do Rio de Janeiro, na qual ganhou o grande prêmio. Segundo o depoimento de
Miriam Ranzini, o período áureo da Santa Catharina foi o de 1918-1926, apesar da crise
acarretada pelas taxas alfandegárias e o aumento da energia elétrica assim como outros
ramos industriais em São Paulo, a Fábrica utilizou energia a vapor para as máquinas,
adotando, em data ainda imprecisa, posteriormente, energia elétrica para iluminação dos
galpões ou mesmo como força motriz (PEREIRA 2007: 60). Neste mesmo período, também
sofreu impacto da Revolução de 1924, que acabou afetando a produção (ZANETTINI
ARQUEOLOGIA, 2003), já que a Fábrica teve suas atividades paralisadas:
Em 1924, a chamada Revolução do Isidoro (...) A Indústria ficou paralisada. Em
alguns bairros, como a Mooca, o Belenzinho, os danos foram de grande monta. A fábrica
Santa Catharina não sofreu graves danos, teve apenas suas atividades paralisadas...
(VICENTE DE AZEVEDO apud PEREIRA 2007: 60).
155
Em 1924, São Paulo sofreu ocupação dos militares entre 5 e 28 de julho quando as
forças rebeldes tomaram de assalto o quartel da força pública, e várias pessoas não
conseguiram chegar ao trabalho devido ao arame farpado espalhado pelas ruas (BORGES &
COHEN, 2004: 297). A tomada imediata das estações de trem e das entradas e saídas da
cidade, provavelmente, dificultaram a ida dos trabalhadores e o escoamento da produção; a
população, num dado momento, acabou saqueando a cidade e o governo, então, bombardeou
São Paulo (BORGES & COHEN, 2004: 300-302).
A partir da década de 1920, a Fábrica parece ter entrado em crise devido aos problemas
apontados acima (taxas alfandegárias, a revolução de 1924 e o custo da energia elétrica), o
que teria colaborado à compra pela IRFM (PEREIRA, 2002: 31), quando a Fábrica passou a
ser conhecida como Fábrica de Louças da Água Branca. Com certeza as Indústrias Reunidas
a estavam pressionando, já que n’O Estado de São Paulo de 01 de Julho de 1922, foi
publicado o anúncio, não muito amigável, que segue abaixo:
Fig. 6
Em 1918, os Matarazzo já aparecem como agentes da Fábrica. Um organograma,
montado, em 1925, com as empresas relacionadas à IRFM, mostra o complexo de fábricas
das quais eram donos na época, na Água Branca, onde sua relação com a Fábrica Santa
Catharina aparece como a de “agentes” (COUTO 2004), ou seja, a IRFM vendia os produtos
da fábrica retendo para si a diferença entre o preço por que comprava e o preço da venda, isto
é, eram uma espécie de intermediário em negociações mercantis (HOUAISS 2001). Isto
configura o movimento clássico de alguns industriais paulistanos de monopolização,
especialmente em relação aos bens de consumo pessoal (DE DECCA 2004: 128), gerando
revolta dos operários e consumidores médios urbanos. Vilas operárias dos Matarazzo
156
continham lojas que vendiam apenas seus produtos, assim como alguns salários eram pagos,
em parte, com produtos de suas fábricas. O jornal operário, O Combate, de 14/03/1929, sob a
voz do “revolucionário” Cabanas, traz:
Matarazzo, Gamba, Crespi, toda essa quadrilha que possui o monopólio e o “trust”
dos gêneros alimentícios e de primeira necessidades, dos tecidos e das bebidas nacionais e
até estrangeiros, estão fazendo do Brasil o que bem entendem e com uma petulância
irritante, auxilidados pelos respectivos consulados e embaixadas... (DE DECCA 2004: 131)
157
(COUTO 2004)
Após passar ao controle oficial dos Matarazzo, no final da década de 1920, a IRFM
inicia uma série de obras na Fábrica e começa a diversificar sua produção (louça sanitária e
azulejos). No ano de 1937, a produção de louças da IRFM (já focada mais em azulejos e
louças sanitárias) cessa e dá lugar a Fábrica de Biscoitos Petybon, que funciona no local até a
década de 1980. Aparentemente, para dar lugar a esta nova unidade fabril, montanhas de
158
louças estocadas ou jogadas nos fundos da fábrica foram utilizadas para a construção de um
aterro, o sítio Petybon.
A Fábrica, inicialmente, ocupava um terreno de 36 mil , com área construída de 15
mil m². Apesar disso, o Registro de Imóveis da Capital, de 1931, registra que a Fábrica
possuía 26.755 e de área coberta 19.266 m²; isto porque sofreu inúmeras reformas ao
longo de sua existência. Segundo Pereira (2007), as obras de ampliação se tornaram
essenciais ao funcionamento da Santa Catarina, tendo, no início dos anos 1920, a mesma
sofrido reformas para ampliar sua capacidade produtiva através de mais e maiores depósitos
de matéria-prima, novos fornos e mesmo para verticalização:
E por isso mesmo estão se realizando importantes obras para a construção de naus as
seguintes dependências: Um edifício de dois andares (...) Um outro salão de grandes
dimensões será construído especialmente destinado ao encaixotamento de louça... (apud
PEREIRA 2007)
na fase Matarazzo, as “remodelações concentram-se em pontos afastados das
edificações mais antigas (...) as plantas localizadas revelam a expansão do conjunto fabril em
direção aos fundos do terreno” (PEREIRA 2007: 61). O projeto da construção original da
Fábrica foi trazido por Ranzini da Alemanha, feito por August Reissmann, sendo, depois,
ampliado de acordo com o desenvolvimento da mesma, com obra iniciada em 1912. Segundo
Ranzini, a Fábrica era composta por um
Terreno com 36.000 m², com frente para a Rua Aurélia e limitada pela Rua Coriolano,
Rua Fábia e nos fundos pela Rua Catão, na Vila Romana, no Bairro da Lapa. A construção
dos primeiros pavilhões, iniciada em 1912, foi concluída nos fins desse ano. O projeto foi
fornecido pela firma August Reissmann, fabricante do maquinário que Ranzini adquiriu por
ocasião da viagem à Itália.
Abaixo, duas fotografias de visões gerais e externas da Fábrica e uma fotogrametria
aérea. A primeira publicada no catálogo da Exposição Universal de 1918 (não
necessariamente sendo de 1918) (PICCAROLO E LINOCCHI 1918) e a segunda, sem data,
em documento produzido pela própria empresa (PEREIRA 2007: 65). Percebe-se o destaque,
159
em ambas as fotos, que se quis dar a imponência da Fábrica meio a um ambiente natural”,
quase que selvagem, praticamente sem vizinhos:
Segue, igualmente, planta baixa da Fábrica dos anos 1930, disponível no acervo do
DPH, além de dois desenhos de fachadas ainda visíveis quando da época do resgate, as quais
correspondem a edificações internas ao terreno, não voltadas para a rua. A planta baixa, se
comparada a aerofotogrametria que apresentei no Capítulo 1, permite perceber que o número
de galpões aumentou consideravelmente entre os anos 1930 e 1950 e que o “Forno”
sobrepõem-se ao que é uma chaminé na foto aérea. Também indica que a área de maior
potencial arqueológico, o vazio entre a rua Coriolano, Fábia e o “Forno”, não possuía
construções.
(PICCAROLO & LINOCCHI 1918)
(PEREIRA 2007)
160
Internamente, a Fábrica possuía 4 fornos de 4 m de diâmetro para a queima do vidrado,
e 2 fornos de 6 m de diâmetro e 4 fornos de 8 m de diâmetro para a queima do biscoito, num
total de 10 fornos quando do começo da produção. As chaminés dos fornos chegavam a 55
metros de altura (PEREIRA 2007: 59). Ao longo da época dos Matarazzo, a quantidade de
(ZANETTINI ARQUEOLOGIA 2003)
(ZANETTINI ARQUEOLOGIA 2003)
(ZANETTINI ARQUEOLOGIA 2003)
161
fornos oscilou entre 12 e 17 (PEREIRA 2007: 62)
8
. Segundo Ranzini, os fornos funcionavam
com carvão Cardiff, de chama longa, importado do País de Gales
9
, mas nada leva a crer que
não se utilizasse lenha, mesmo porque, como se percebe na primeira foto abaixo, esta ficava
estocada também ao redor dos fornos, algo que se percebe em bricas de louça
contemporâneas, como a Porcelana Monte Sião. Muitas das máquinas utilizadas eram alemãs,
mas demais máquinas obtidas para ampliação da fábrica eram nacionais.
As escavações no local mostraram também a existência de sistemas de canaletas para
escoamento de água e/ou limpeza, que algumas delas, por exemplo, ainda apresentavam
vestígios de pigmentos e pedaços de argila. Foi localizado também um poço, mostrando que a
Fábrica aproveitou a condição do terreno e a superficialidade do lençol freático para utilizar
água, condição sine qua non para o funcionamento de qualquer fábrica de cerâmica ou olaria.
Possuía um alto grau de especialização de seus setores, com uma tecnologia que
dialogava com processos mais artesanais, tradicionais, de produção cerâmica, e aspectos mais
automatizados, configurando a cadeia operatória de produção desta louça brasileira. As
fotografias e informações documentais esclarecem diversos aspectos em torno do ambiente
de produção da fábrica. Na primeira fotografia abaixo se pode, inclusive, perceber a presença
de um pequeno jumento que, sobre um trilho, puxava um vagão de transporte, pelo menos ao
redor dos fornos (Figuras 2, 5 e 6 PICCAROLO & LINOCCHI 1918; Figuras 3, 4 e 7
PEREIRA 2007; Figuras 1 e 8 CAPRI, 1922).
8
A outra fábrica de louça dos Matarazzo, a Louças Cláudia, IRFM – São Caetano, possuiu apenas 4 ou 5 fornos.
9
Em 1913, ano da inauguração da Santa Catarina, Cardiff produziu 11 milhões de toneladas de carvão, ano do
apogeu da produção antes de sua crise nos anos 1930.
1
2
162
Na seção de queima, a lenha e as caixas refratárias ficavam armazenadas ao redor dos
fornos (fig. 1). Próximo a seção de pratos, ficava a área de modelos e modelistas de gesso,
responsáveis pela fabricação dos primeiros modelos a serem reproduzidos e a criação dos
moldes de gesso a partir dos mesmos (PEREIRA 2007: 59). Os setores de fusão de vidrado,
depósito e prensa de massa (fig. 3 e 5) ficavam mais distantes. Além da seção de decoração e
secagem (na verdade, esta ficava espalhada ao longo da fábrica, pelas prateleiras. Figs 7 e 8),
existia também uma seção de refratários. Além disto, contava-se com
5
6
7
8
7
8
3
4
163
... grandes oficinas de carpintaria e caixotaria, serrarias com magníficas máquinas de
cortas e rachar a lenha que alimenta os fornos; espaçosos armazéns onde se faz a
embalagem e a exposição de mercadorias; bem montada oficina mecânica, onde se tem
fabricado todas as peças das várias máquinas do estabelecimento; vastos depósitos,
escritório, gabinete químico, etc. (FABRICA SANTA CATHARINA apud PEREIRA 2007:
59).
Quanto às matérias primas para a produção das louças, e sua localização, parece que
todas estavam razoavelmente próximas, já dentro da área da grande São Paulo, próximas a
estações de trem e ao longo de alguns rios, o que permitia o transporte fluvial através de
barcaças. O uso de produtos nacionais configuraria igualmente essa louça nacional, com
características nacionais desde a pasta, desde a matéria-prima. Este é um ponto bem
interessante a ser pensando a posteriori, pois não apenas a decoração e as formas podem ter
características de uma louça nacional, como também a própria pasta, que a proveniência
deste material é, em geral, local.
Segundo o Presidente do Sindilouça, em 1948, Francisco Salles de Azevedo, mais que
na Inglaterra, nossas louças tinham processos de fabricação pautados na indústria italiana,
com máquinas de origem inglesa ou alemã. Em seus primórdios, a indústria nacional de louça
branca importou argila da Holanda, mas logo foram descobertos depósitos em jazidas de
caulim em São Caetano e em Santo Amaro, tal qual o fez a indústria de louças da Itália que,
em seu começo, comprava argila plástica da Inglaterra e caulim da Alemanha, mas que nem
por isso deixou de criar uma indústria próspera (Memorial do Sindilouça, s/d: 3). A
descoberta de feldspato em Perus, na forma de pegmatito, assegurou o destino da indústria;
para o presidente, a cidade de São Paulo era um local ideal para a instalação de fábricas de
louça branca, pois, num raio de 25 km em qualquer direção, seria possível obter os quatro
elementos imprescindíveis a sua produção: argila, caulim, feldspato e quartzo.
Segundo Ranzini, na Fábrica, “as matérias primas eram todas nacionais”: o caulim
(“argilas que queimam branco” [BELLINGIERI 2005: 6]) vinha de Santo Amaro e da região
de Itapecerica, a argila igualmente de Santo Amaro, mas também de São Caetano, Pinheiros e
Taipas, e o feldspato de Perus, além de Alto da Serra.
Da época dos Matarazzo, sabe-se pouco sobre as fontes de matéria-prima. No entanto,
para 1935, já no período final da Fábrica, começaram a se aprofundar na indústria extrativa,
comprando, na periferia de São Paulo, jazidas de caulim que podem ter sido antes
164
utilizadas, mas cujos proprietários não eram os próprios Matarazzo. Assim, a IRFM
controlava reservas de argila em Sacomã, Guarulhos, Cangaíba, Ermelino Matarazzo e Mauá
(COUTO 2004). A lenha, combustível industrial importante na época, saía das matas que a
empresa possuía em Paranapiacaba, Mauá, Perus, Guarulhos e Ermelino Matarazzo. o
quartzo, vinha de uma jazida própria em Mogi das Cruzes (COUTO 2004: 326).
Em São Bernardo do Campo é ainda possível encontrar um dos locais de extração de
argila e caulim, à Avenida Galvão Bueno, para as Louças Cláudia, IRFM - São Caetano, em
jazida sobre o “rio do Pato”, utilizada até o final dos anos 1960, pertencentes à família
Venturini, de imigrantes italianos (ZANETTINI ARQUEOLOGIA 2003). O processo era
feito à mão e “nas costas”, abrindo a jazida com enxadão, com quatro irmãos trabalhadores,
um carrinho de mão e um pequeno caminhão, que transportava o caulim à brica dos
Matarazzo, em sacos de 50 kg, retirados por uma empilhadeira ou na mão. O abastecimento,
assim como a lavagem da argila, era diário.
165
Localização das possíveis fontes de matérias-primas para a Fábrica Santa Catharina / IRFM – São Paulo e a Fábrica de
Louças Cláudia / IRFM – São Caetano na Grande São Paulo (Fontes: Questionário de Romeo Ranzini Coleção Museu
Paulista; Diário de Romeo Ranzini Coleção Museu Paulista; COUTO 2004)
166
Enquanto um modelo a partir do qual poderiam se desenvolver outras experiências de
produção, a Fábrica Santa Catharina desbravou o ramo de louças em faiança fina nacional e,
com ela, a valorização atribuída à “produção local de artigos em louça branca e o
reconhecimento do ramo como um importante estágio no desenvolvimento da indústria
cerâmica nacional” (PEREIRA 2007: 121). Segundo o Memorial disponível no Sindicato da
Indústria da Cerâmica, da Louça pó de Pedra, da Porcelana e da Louça de Barro no Estado de
São Paulo (o SINDILOUÇA), datado de 20/03/1948, o presidente Francisco Salles Vicente
de Azevedo faz uma retrospectiva histórica da implantação das fábricas de louça no país.
Para ele, os ingleses dominaram o mercado de louças no Brasil até 1913, quando é fundada a
primeira brica de louças de São Paulo que, seguido de um recrudescimento da produção
internacional com a Guerra, expande o mercado de louças brasileiras que, inclusive, teriam
sido exportadas para Inglaterra para suprir deficiências. Após a Santa Catharina, seguiu-se
um pico de fabricas de louças em faiança fina, o qual se manteve até meados dos anos 1950,
quando outros produtos passaram a concorrer com as mesmas, primeiramente a porcelana
brasileira (uma espécie de “ironstone” nacional), depois os artigos em vidro e finalmente o
plástico, cujos valores de mercado e o custo de produção eram menores, preços mais baixos e
aspectos de durabilidade, limpabilidade e acessibilidade mais altos.
Abaixo, segue tabela com as datas de existência das fábricas, correspondente às datas
de produção dos artigos fabricados por elas. O pico de número de fábricas produtoras de
faiança fina corresponde, assim, ao período do final dos anos 1920 a meados dos anos 1950,
quando há uma queda brusca no número de fábricas. Apesar da existência de outras na capital
e arredores, como a Porcelana São Paulo, a Porcelana Mauá, Porcelana Teixeira e a Pozzani,
contabilizei apenas as fábricas que, com certeza, produziram louças em faianças finas, que
as demais produziram mais, ou somente, porcelana brasileira. Contabilizei também uma
fábrica fora do estado, no Paraná, por ter sido esta a pioneira na produção deste tipo de pasta.
Fábricas 1900
1910
1920 1930 1940 1950 1960 1970 1980
1990
Fábrica de Louças Colombo (PR)
Fábrica de Louças Santa Catharina - IRFM - São Paulo
Fábrica de Louças Santo Eugênio (S. J. dos Campos)
Fábrica Grande
Fábrica de Louças Paulista
Indústria de Louças Zappi S/A
Companhia Paulista de Louça Ceramus
Fábrica de Louças Romeo Ranzini - Lapa
167
Cerâmica Porto Ferreira Ltda.
Fábrica de Louças Adelinas – Barros Loureiro
Fábrica de Louças Cláudia - IRFM - São Caetano
Fábrica de Louças Romeo Ranzini – Osasco
Fábrica ItaBrasil – São Caetano
Fábrica Nadir Figueiredo
-
Pedreira
0
2
4
6
8
10
12
14
Fábricas de faiança fina entre as décadas de 1910 e 1990
A Fábrica Santa Catharina, em 1918, produzia, aproximadamente, 8 milhões de peças
por ano (ZANETTINI ARQUEOLOGIA 2003), num total de 666.667 peças por s; na
época com seus oito fornos, produziria 83.334 peças por mês em cada forno. Dados do
Congresso Legislativo (1923) mostram que a produção de louças no Estado de São Paulo
passou de 443.798 kg em 1921 para 1.063.616 kg em 1922, um crescimento, portanto, de
58,27% para um total de sete fábricas. No ano de 1935-1936, quem se destaca é a Louças
Cláudia / IRFM - São Caetano, uma das maiores fábricas da época junto da Ceramus (Fábrica
de Louças Ceramus, no Belenzinho), que, somadas, produziam 350 mil peças por mês. Um
cálculo de projeção hipotética (ignorando quantidade de fornos, funcionários, greves, etc.)
indicaria que as oito fábricas nos anos 1930 fabricariam 1.400.000 peças por mês, um total de
16.800.000 peças no ano.
168
A queda na produção das faianças finas é concomitante à entrada de novos produtos no
mercado, como as porcelanas brasileiras, os vidros e, pós-II Guerra, os plásticos, materiais
cujos custos de produção eram mais baixos com peças fabricadas em maior quantidade e em
menor tempo. A variedade das matérias primas dos objetos cotidianos no culo XX fez
Virgínia Wolf se perguntar como poderiam, por exemplo, existir objetos tão contrastantes,
como o vidro, “mudo e contemplativo”, e a louça, “vívida e alerta”, “num mesmo mundo, e
ainda mais em cima de uma mesma estreita prateleira” (WOOLF 1992). A pergunta ficou
sem resposta, para a autora.
Esta falta de respostas de Virgínia Woolf dá-se, justamente, porque a autora não reduz a
produção e o consumo destes artefatos, e suas diferentes matérias-primas, a uma escala
eminentemente economicista. As pesquisas de Tom Fischer sobre o que chama de o mais
característico material do consumo de massa desde a II Guerra Mundial, o plástico, vêm
mostrando o significado simbólico de seu consumo, que vai muito além de seu preço,
passando por questões de tato, olfato, autenticidade e outros significados simbólicos
(FISCHER 2006). O interessante nos objetos de plástico está também no fato de que formas
artefatuais já conhecidas foram mantidas, destarte uma mudança na matéria-prima, que
passou a ser um polímero sintético. Atualmente, inclusive, assiste-se a um movimento de
aproximação estética de pratos e outros serviços de mesa fabricados em plástico que lembram
a louça branca.
169
3.1.3. Louceiros Paulistas: trabalhadores e proprietários da Fábrica de Louças Santa
Catharina / IRFM – São Paulo
Naquella colméia em que se desenvolve
quotidianamente a actividade de 800 operarios a impressão
da força de trabalho vence o espírito... (PICCAROLO &
FENOCCHI 1918)
O que faz da louça nacional uma louça diferenciada, afinal? Aspectos da demanda de
consumo são, claro, intrínsecos, assim como o são os da produção. Proprietários e
trabalhadores pensam e fabricam essa louça com “cara” brasileira. Quem eram, portanto, as
pessoas que compunham o corpo de trabalhadores da Santa Catharina / IRFM? Quem eram os
donos e os técnicos que organizavam a produção? Quem eram os operários que
materializavam esta produção?
A maior parte das indústrias de louça branca do estado de São Paulo foi fundada por
imigrantes, em sua maioria, portugueses e italianos ou seus descendentes, os quais
deveriam conhecer algumas técnicas de produção de seus respectivos países (BELLINGIERI
2003: 8). Além disso, temos que atentar para o fato de que a mão de obra empregada era
também de trabalhadores estrangeiros especializados em fábricas de louça, mas não só. Não
podemos nos esquecer dos trabalhadores brasileiros que também compunham grande parte do
operariado nacional, camuflado pelas estatísticas e pela historiografia, que ainda associa
operário paulista a italiano (BATALHA 2000; NEGRO & GOMES 2006).
Segundo Weinstein (2000: 47), apesar dos avanços concretos na área de formação
profissional, a maior parte dos trabalhadores qualificados e artesãos de São Paulo, nas
primeiras décadas do século XX, aprendia seu ofício de maneira tradicional. Muitos oleiros,
que trabalhavam na cidade, foram contratados pelas indústrias cerâmicas para exercerem
seus ofícios agora em moldes industriais. Por isso, a presença de brasileiros junto de
estrangeiros na Fábrica acabou configurando e materializando uma louça que podemos
chamar e caracterizar como uma louça nacional”, com formas, pastas e decorações próprias
que a diferenciam das estrangeiras. Além disto, segundo a documentação escrita, pode-se
supor que a própria produção de cerâmica branca no Brasil tenha, diretamente, mais
influência italiana, alemã ou americana, do que inglesa.
Como é sabido, a Fábrica de Louças Santa Catharina / IRFM São Paulo teve dois
períodos: o primeiro entre 1913 e 1926, caracterizado por uma produção ainda em moldes
mais artesanais, que vai de sua fundação por Romeo Ranzini e os 5 sócios da família
170
Fagundes (Euclydes de Almada Fagundes, Juarez de Almada Fagundes, Adalberto de
Almada Fagundes, Waldomiro de Almada Fagundes e Teodomiro de Mendonça Uchôa) até a
morte do sócio majoritário, Euclydes. Já a segunda fase, entre 1927 e 1937, caracteriza-se por
métodos de produção mais standardizados, produzindo, aos poucos, cada vez mais materiais
construtivos (como azulejos), com a fábrica passando a ser propriedade da IRFM. Neste meio
tempo, entre, aproximadamente, 1918 e 1930, existiu um período de intersecção na qual os
Matarazzo começaram a, de algum modo, se infiltrar na fábrica, prolongando, após da
compra oficial, a permanência de Ranzini na produção por mais alguns anos após a venda,
obrigando-o a ensinar, aos novos técnicos, os “segredos” das louças Santa Catharina.
A família Fagundes confirma a tese clássica de Warren Dean (1971) e a perspectiva
particular da industrialização brasileira apontada por De Decca (1988), de que parte do
capital que impulsionou a instalação de indústrias partiu da agricultura, com especial
destaque aos lucros advindos do café. Os Fagundes eram uma família da aristocrata brasileira
que, no culo XIX, esteve vinculada às grandes fazendas cafeeiras. A família possuía
grandes propriedades no Vale do Paraíba Paulista e Fluminense (Resende, Barra Mansa, São
José dos Campos, Lorena, São José do Barreiro, Areias, Campos dos Goytacazes) e no sul de
Minas. Com a decadência do café no Vale do Paraíba, foram buscar novas fazendas no Oeste
Paulista, na região de Cravinhos, Pereira Barreto, Marília, Garça, etc. Algumas cidades, como
Brodowski, surgiram a partir de uma doação de terra da família Fagundes. Historicamente
ligados ao Partido Liberal, e, no final do século XIX, ao Partido Republicano Paulista, os
Fagundes eram potentes economicamente e muito bem calçados na política brasileira, desde o
Império. A Santa Catharina parece ter marcado a entrada dos Fagundes no ramo industrial,
somando-se aos negócios de créditos da lavoura, bancos e ao universo das estradas de ferro.
Assim, a família sempre esteve ligada a um espírito empreendedor e industrial e a um ideal
de progresso e modernidade que se tornou popular entre uma parte da elite paulista do final
do século XIX e começos do XX. O pai de 4 dos 5 sócios fundadores da Santa Catharina,
Domiciano, por exemplo, optou por enviar todos os filhos para estudarem nos EUA, ao invés
da convencional formação européia, onde os estudos prezavam a racionalidade, a
competência e a eficiência
10
.
10
Este trinômio passou a predominar nas obras públicas da cidade de São Paulo com a administração de
Sebastião José Pereira, com a reorganização da Diretoria de Obras Públicas e com a nomeação do engenheiro
Elias Fausto Pacheco Jordão (1875 a 1878) como seu diretor, o primeiro paulista a se formar e doutorar pela
Universidade de Cornell (VILAR 2007: 43).
171
Para fundação da sociedade que deu origem a Fábrica, Ranzini juntou-se a Euclydes,
Adalberto, Juarez, Waldomiro e Teodomiro de Mendonça Uchôa, da Família Fagundes.
Euclydes, Adalberto, Juarez e Waldomiro eram irmãos (apesar da dúvida quanto à
participação deste último na sociedade) e Teodomiro era tio dos mesmos, irmão do sogro de
Euclydes. Euclydes de Almada Fagundes e seus irmãos eram filhos de Domiciano César de
Melo Fagundes e Francisca Ferreira de Andrade e Almada. Pelo lado da esposa de Euclydes,
Adélia de Souza Queiroz de Tamandaré Uchôa Fagundes, a família Fagundes liga-se aos
Souza Queiróz, família influente da aristocrata brasileira bastante presente na política
imperial e republicana.
A filha do Senador Souza Queiroz, Carolina de Souza Queiroz, casou-se com Manuel
Baptista da Cruz Tamandaré, deputado e advogado, cujas filhas foram Adélia e Georgina.
Enquanto Georgina casou-se com um pintor e foi para a França, Adélia casou-se com o
Senador Ignácio de Mendonça Uchôa, acionista da Cia Araraquarense de Estradas de Ferro,
com passagens pelo negócio de fabricas de móveis e envolvido com a vinda dos primeiros
imigrantes japoneses ao Brasil, além de ser sobrinho-neto de João Lins Vieira Cansação de
Sinimbú, o barão e visconde de Sinimbú, político liberal com intensa vida política no Brasil
Império. O casal Adélia e Ignácio teve duas filhas, Adalgiza Uchôa, que se casou com Luis
de Santos Dumont, irmão de Santos Dumont, e Adélia (conhecida por Adelita ou Adelinha)
que, por sua vez, casou-se com Euclydes, sócio majoritário da Santa Catharina. O bisavô de
Adélia, o Senador Sousa Queiróz, deve-se lembrar, era filho do Brigadeiro Luis Antônio, que
se casou com uma das filhas do Senador Vergueiro, ligando assim os Fagundes a um dos
pioneiros das políticas de imigração no Brasil Império.
Quanto aos sócios que compuseram a sociedade que fundou a Santa Catharina,
Euclydes Fagundes (1880-1926) estudou, em São Paulo, no Mackenzie College e se formou
em Engenharia Agronômica pela Universidade de Cornell, entre 1901 e 1904, em Nova York,
nos EUA. Quando com os pais, residia num casarão à Rua Conselheiro Nébias, 71, mas
após seu casamento com Adélia (1886-1951), mudou-se para a Chácara Tamandaré. Faleceu
aos 46 anos, no Rio de Janeiro, vitimado por uma doença nos rins.
Adalberto Fagundes também estudou na Universidade de Cornell, concluindo seu
doutoramento em medicina veterinária em 1906. O interessante sobre Adalberto é que foi um
dos pioneiros do cinema no Brasil, fundando um estúdio, no bairro da Lapa, chamado Visual
Filmes, que realizou apenas um filme, escrito e financiado pelo próprio Adalberto, em 1928,
chamado Quando elas querem, um média-metragem estrelado por zar Iolanda Fronzi.
172
Quando no Brasil, Adalberto estudou no Ginásio Nogueira da Gamma, em Jacareí, entrando
para a Universidade de Cornell em 1903. Segundo documentação da própria Universidade,
foi publicado em 1951, na American-Brazilian Association, uma nota informando que
Adalberto e seu irmão Euclydes levaram algumas amostras de espécies nativas da fauna e da
flora brasileira para a Universidade, corroborando um espírito cientificista.
Já Juarez era pintor, participante do Salão Paulista de Belas Artes, em 1934, do
qual também participaram Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Alfredo Volpi e outros. nos
anos 1940, juntamente a três outros participantes, funda a Associação Paulista de Belas Artes.
É possível pensar, com sua formação, que Juarez tenha sido a ponte entre o universo das artes
e as técnicas, motivos e temas decorativos das louças da Santa Catharina, realizando, talvez, o
diálogo entre o mundo da pintura e das artes, que estava em voga na São Paulo do começo do
século XX, e a decoração cerâmica.
Waldomiro Fagundes (1882-1929), em torno do qual ainda há dúvidas sobre sua
participação na sociedade, também se formou em Engenharia Agronômica, em 1906, pela
Universidade de Cornell; em São Paulo, igualmente, estudou no Mackenzie College.
Waldomiro casou-se com uma Paes de Barros. Quanto a Teodomiro de Mendonça Uchôa,
irmão do sogro de Euclydes, existem poucas informações, mas sabe-se que também era
engenheiro e que faleceu no Rio de Janeiro. Sua filha, Maria José Uchôa Alves de Lima, foi
uma das primeiras mulheres a ser piloto de avião no país.
Os Ranzini chegaram ao Brasil, em 1888, como trabalhadores da construção civil,
experiência que deve ter valido na hora da construção da Fábrica (já que o nome do pai de
Ranzini aparece em algumas plantas de reforma [PEREIRA 2007]). Ranzini tinha, na
ocasião, quatro anos (BELLINGIERI 2004: 28). Filho de Xisto Ranzini e Eugenia Pigagli
Ranzini, Romeo Ranzini nasceu em São Benedetto Pó, em Mantova, Itália, dia 19 de julho de
1884. Em 1909, Ranzini começou a ter interesses pela cerâmica e pela fabricação de louças
em geral, sem nenhum mestre prévio (Questionário preenchido por Romeu Ranzini. Coleção
Ranzini Museu Paulista; PEREIRA, 2002: 15). Apesar de dizer que “não tive mestres foi
por minha iniciativa própria”, sabe-se que seu pai, Xisto Ranzini, esteva envolvido no
universo da cerâmica, que seu nome consta como tesoureiro na Acta de Installação do
Syndicato Patronal de Ceramica de Louças de Pó de Pedra do Estado de São Paulo,
documento de setembro de 1934. O Almanak Laemmert de 1913 também traz referência a
outros Ranzini, desta vez na Lista de Industriais, habitantes, negociantes e profissionais
principais: Felisberto Ranzini, professor do Liceu de Artes e Ofícios, na Avenida Tiradentes,
173
e Herminio Ranzini, com escritório comercial e de representações na Rua 11 de Agosto
(ALMANAK LAEMMERT 1913, 69º ano, 3º v: 4667).
O negócio para a abertura da Fábrica Santa Catharina foi fechado no famoso Café
Guarani (SCHMIDT 2003: 158), localizado à rua XV de Novembro, defronte a antiga
travessa do Comércio, onde Ranzini conhecera os Fagundes em seu escritório de construção
civil (duas salas sobre o café Guarani), sendo fundada, assim, a FAGUNDES RANZINI &
CIA com capital inicial de 300 contos de réis:
Conheci os FAGUNDES no meu escritório de construções civis, eu tendo duas salas
sobre o café Guarani, na Rua 15 de Novembro onde eles o freqüentavam...
Foi ai que formei a firma FAGUNDES RANZINI & CIA., o capital inicial de 300
contos de reis (Questionário preenchido por Romeu Ranzini. Coleção Ranzini Museu
Paulista)
... constituiram com o capital de trezentos contos de réis, (Rs. 300:000$000)
integralmente realizado, uma sociedade commercial e industrial em commandita,
denominada “Santa Catharina”, com sua séde nesta Capital e sob firma Fagundes, Ranzini
& Companhia... (Tabelião – alteração do contrato social, p. 2. Coleção Ranzini Museu
Paulista)
Ranzini fora um químico aplicado que, por toda vida, tentou desenvolver não apenas
novas fórmulas de pastas para as louças, como também novos pigmentos e cores de vernizes,
Romeo Ranzini (ZANETTINI
ARQUEOLOGIA 2003)
Euclydes Fagundes (Acervo pessoal
de D. Eduardo Fagundes)
174
como pode ser notado em seus diários disponíveis no Museu Paulista referentes às bricas
onde trabalhou após sua saída da IRFM – São Paulo. Alguns exemplos são dados a seguir:
Formou-se no curso de Química e no de Mineralogia do professor Frederico Borda. É
interessante perceber, através da coleção de seus documentos, que, pelo menos para o início
de sua produção no Brasil, Ranzini buscou aprender técnicas e analisar os produtos de
fábricas na França (Manufacture D’Emaux e Couleurs Céramiques), na Alemanha
(Keramische Abteilung em 1913), em Buenos Aires e na Inglaterra (English China Clays,
Rosa Roxo vinho
Stagno jialoguin [sic] 500 K’l
Marmore 150
Quarzo 200
(?) – fluor 100
Borescen 20
Bichomato 15
Alluminio Sulfato 50
Misturar e lavar e calcinar na mesma forma dos rosas
na moagem misturar 10 K de (?) com 10 K de verniz
de retorno
cor vinho bellissima
NR 10 – Verde Amazona forte
Oxido de chromo Ranzini 25,000
Verniz commum Boracica
de retorno (?) 25,000
este tornar a moer e a
cor bellissima verde forte
16/1/37
Massa pª louça com mais feldspato tambor 5
Quartzo 1400
no tambor
Felspato 500
Argila Azul 500
Cobalto 1.800
Argila branca M
[sic]
1170
Kaolin
na gerandola
14/1/937
regendo dia da minha entrada fiz a Massa
comum vaselhame
feito 5 tamborões
Quartzo
1,400
no
tambor
Felspato 500
Kaolin lavad 500
Cobalto 1,800 gr
Argila 1 azul e branco misto
Bruto total 1,670 na
geramdola
Lavad kaolim 2,850
175
Lovering, Pochin Ltd Minas de Kaolin representante na América Central e Sul-América da
Wiggins Teape & Alex Pirie (Export) Ltd), nos EUA e, especialmente, na Itália. No entanto,
buscou também apoio no próprio Brasil (Escola Polytechnica do Rio de Janeiro em 1926,
Marmoraria Tavolaro, na Consolação em São Paulo).
Em geral é creditado a Ranzini, mesmo que, talvez, sem capital e sem know-how, a
idéia de fabricar louças brancas em faiança fina, sob financiamento dos Fagundes. No
entanto, não podemos nos esquecer que a temporada dos irmãos Fagundes nos EUA pode
também ter acarretado um contato com a produção de louças americanas, que floresceu
bastante no século XIX, associada a alguns métodos de racionalização do trabalho como o
taylorismo. Uma nova fase da fábrica se inicia, no entanto, quando, em 1926, o sócio
majoritário, Euclydes, falece e sua esposa, Adélia, torna-se sócia majoritária. Bastante
abalada com a morte do marido (diz-se que por um ano ficou em choque), não quis tocar a
fábrica e a fecha, aceitando, em 1927, a proposta de compra dos Matarazzo, que já sondavam
o terreno algum tempo. Pode ser esta também a explicação para a ambigüidade das datas
do início da fase Matarazzo, dado que entre 1926 e 1927 a Fábrica ficou fechada. Pode
indicar, também, que Euclydes estivesse bastante presente na Fábrica como administrador do
negócio, tanto que quando morreu, a mesma fechou, não tendo sido assumida a direção por
nenhum dos outros sócios, e nem por Ranzini.
A venda da Fábrica não surtiu efeito na Família Fagundes, pelo menos do ponto de
vista econômico, pois continuaram aristocratas bastante abastados no estado de São Paulo,
tendo sido a Fábrica apenas um de seus inúmeros negócios. Diferente, provavelmente, foi
para Ranzini, que se opôs venda, sem sucesso. Além disso, parece que a Fábrica devia,
anteriormente, algum montante aos Matarazzo, que podem tê-la usado como pretexto para
quitação de dívidas e juros. Diz-se, inclusive, que a Fábrica foi mal vendida e os Matarazzo a
adquiriram por um preço módico, devido ao estado em que ficou Adélia depois da morte de
Euclydes. No entanto, o nível de qualidade e a produção da Fábrica sob nova direção, que
agora os proprietários eram as Indústrias Reunidas Fábricas Matarazzo, deveria ser mantida.
Para tal, Romeo Ranzini foi obrigado a assinar um contrato, no dia 5 de Março de 1932, com
o novo técnico responsável pela produção e as IRFM (Coleção Ranzini Museu Paulista).
Nele, fica claro que Ranzini deve passar todo seu conhecimento ao novo engenheiro da
fábrica de louças; imagino que isto deve ter sido um grande golpe em Ranzini que, como
todo cientista que ficou anos pesquisando e testando, dar, quase obrigado, todo conhecimento
acumulado não deve ter sido nada fácil. Anos depois, Romeo Ranzini ainda foi convidado a
176
retornar à coordenação das atividades produtivas da fábrica, função que exerceria até a
montagem de sua segunda fábrica, a Fábrica de Louças Romeo Ranzini, o que, por sua vez,
pode explicar a proximidade, ou mesmo a continuidade, entre alguns padrões decorativos dos
diferentes períodos e das diferentes fábricas (PEREIRA 2002: 31-32).
O objetivo do contrato foi claro: “instruir o Eng° Pari de Marchezi sobre a fabricação
de Louça”. Ranzini estava, então, obrigado a: a) fornecer ao diretor técnico, engenheiro Pari
de Marchezi, fórmulas de massa e esmalte (“verniz de louça, indicação minuciosa”); b)
instruir sobre o funcionamento das máquinas e c) ministrar sobre métodos, técnicas, etc.
Ranzini deveria cumprir tudo até o dia 10 de março do mesmo ano (ou seja, em cinco dias!) e
ficava obrigado a estar presente quando Marchezi começasse seus experimentos. Apesar de
desligado do serviço, o documento o obrigou a permanecer 3 horas na fábrica, todo dia, a
31 de Março, à disposição do engenheiro, recebendo no fim do mês 300 contos de réis. Mas
caso os experimentos não tivessem acabado até o dia 31, Ranzini continuaria pelo tempo
necessário, recebendo para cada quinzena excedente 1 conto e 500 mil réis e, ao final de tudo,
mais 20 contos. E se o engenheiro Marchezi desse um parecer no qual constasse que a louça
obtida não era igual a da finada Fábrica Santa Catharina, Romeo Ranzini ficaria livre para
provar a improcedência da acusação através de novas experiências.
A preocupação da IRFM com as técnicas de fabricação da Fábrica que adquiriu, mostra
que: a) realmente, poucas pessoas no Brasil dominavam essa técnica de produção de louça
em faiança fina e b) a qualidade das louças nacionais deveria ser encarada como
razoavelmente boa, dado as IRFM exigirem que assim continuasse, visto o engenheiro ter de
dar, como comentei, parecer sobre a semelhança das novas louças com as louças da brica
anterior; é possível que, se a qualidade caísse, ou mesmo a aparência das peças mudasse
muito, cairiam as vendas e, por conseguinte, o lucro dos Matarazzo.
A família Matarazzo é, preciso ressaltar, considerada, junto a outras famílias, como os
Jafet, componentes do mito do imigrante que “dá certo”, e industriais que, por assim dizer,
conduziram a proliferação das indústrias na cidade de São Paulo, na primeira década do
século XX. Francisco Matarazzo nascera em Castelabate, sul da Itália, em 1854. Filho de uma
família abastada, chega a São Paulo em 1881, trabalhando com o comércio de banha em
Sorocaba (BERTONHA 2000: 16). Em 1900, abre o famoso Moinho Matarazzo com
financiamento do British Bank of South America, o primeiro grande empreendimento do que
viria a ser o “império industrial Matarazzo” (RIBEIRO 1989: 9). Em 1911, Matarazzo
constitui a sociedade anônima IRFM (VICHNEWSKI, 2004; DEAN, 1971), isto é Indústrias
177
Reunidas Fábricas Matarazzo, por vezes Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo, que, na
década de 1930, era “o principal grupo de industrial do país, com dezenas de milhares de
operários e ramificações por todo o território nacional (ainda que a maioria de suas atividades
se concentrasse em São Paulo)” (BERTONHA, 2000: 16). O movimento operário tentou
inúmeras vezes organizar boicotes aos produtos Matarazzo, sem grande sucesso, pois era
difícil substituir os gêneros de primeira necessidade fabricados por eles (RIBEIRO 1989: 9).
Com a entrada dos Matarazzo na Fábrica, o sistema fabril de cunho cientificista acirra-
se cada vez mais e a hierarquização do modelo taylorista acentua-se. Apesar de seguirem a
regra das condutas coercitivas dos industriais paulistas da República, os Matarazzo
acrescentaram uma dose de paternalismo em relação aos trabalhadores (MOREIRA 1988:
30). Agora, mais do que nunca, os administradores estão afastados, fisicamente, da brica,
do contato regular com a produção, delegando ao gerente o poder. Submetido a este, estão os
chefes da produção (Romeo Ranzini na época da Santa Catharina), o chefe dos operários
(José Zappi na época da Santa Catharina), e em último lugar, os trabalhadores. Investindo na
indústria da cerâmica e da louça com a compra da Santa Catharina, os Matarazzo, inserem-se
num negócio que vão monopolizar por algum tempo, o da louça branca. Em documento
redigido pelo Oficial de Registro de Imóveis da Capital, Sérgio Jacobino, registra-se a
venda:
...pela transcrição 3336, feita em data de 11 de agosto de 1931, INDUSTRIAS
REUNIDAS FRANCISCO MATARAZZO, adquiriu à título de doação em pagamento da
Fábrica de Louça Santa Catharina, nos termos da escritura..., pelo preço de Rs
2.233:059$400,..., à rua Aurélia n 46, correspondendo o respectivo terreno todo murado...
E os operários? Textos, por exemplo, como aquele, posto anteriormente, publicado no
catálogo da Exposição Universal de 1918, nada falam dos operários a não ser como força
motriz passiva e reprodutora de idéias sempre pensadas pelos patrões. Com exceção de
Ranzini, que gerenciava e conhecia a produção, estando presente fisicamente durante o
processo, poucas informações estão disponíveis, pelo menos do ponto de vista dos
documentos em papel, sobre os operários da fábrica. Sabemos que, em sua fase inicial,
Ranzini mandou trazer, também da Itália, um corpo de técnicos em decoração, com função de
especializar os trabalhadores brasileiros ou aqueles que não conheciam a técnica de produção
da faiança fina. Segundo o memorial do Sindicato da Louça, muitos dos operários italianos
178
que vieram trabalhar nas bricas de louça no Brasil eram precedentes da região milaneza.
Em 1912, Ranzini foi à Itália para contratar o pessoal e, por indicação de seu primo, o
deputado Enrico Dugoni, da mara dos Deputados da Itália, chegou às fábricas oleiras de
Laveno, encontrando aí operários mais especializados.
A cidade de Laveno-Mombello, localizada na região da Lombardia, no norte da Itália,
ficou conhecida como “país da cerâmica” a partir de 1856, quando passou a fazer desta uma
atividade industrial; após um rápido crescimento até 1875, houve uma fusão de fábricas que
adotaram o nome de SCI (Società Ceramica Italiana), em 1883, mantido até 1956, quando
houve uma nova fusão com a fábrica Richard-Ginori. O período de ouro das fábricas de
Laveno esteve entre 1935 e 1960, chegando a possuir 4500 trabalhadores na produção. As
cerâmicas da região seguiam decorações com padrões românticos, ricos em cores e nuances,
inspirados no Art Nouveau italiano, conhecido como Stile Liberty ou Stile Floreale
11
.
De Florença, na região da Toscana, vieram o mestre pintor Giovanni Miniati e o chefe
dos operários Giuseppe Zappi (ou José Zappi), este da cidade de Ímola, na Bolonha, norte da
Itália. Em 1918 (PEREIRA 2002) ou 1921 (PILEGGI 1958), Zappi saiu da Fábrica Santa
Catharina, fundando sua própria fábrica, a Indústria de Louças Zappi S/A, na Vila Prudente,
que dura até 1957, e cuja marca fazia um trocadilho com o nome do proprietário: uma carta
do naipe de paus, do baralho, alusão à carta mais valiosa do jogo de truco, o zap (PEREIRA
2002: 55). É, inclusive, deles, as assinaturas que, juntas à de Ranzini, ou seja, do sócio-
fundador, do técnico e do decorador, respectivamente, constam no que Pileggi (1958: 145)
chamou de “a primeira peça de louça de de pedra industrializada produzida no Brasil”
peça comemorativa da inauguração da Fábrica. Outros italianos ceramistas também vieram
através da Santa Catharina, como José Pedotti, Francisco Spertini, Pascoal Rimazza, José
Rossetti, Guido Monteggia, Luiz Binoto, Julio Gradana, Fioravanti De Ambrosi, Luiz e
Angelo Torrignelli. Segundo Ranzini, apesar de ceramistas, muitos destes trabalhadores
estrangeiros se especializaram no Brasil, contratados pelo prazo de 3 anos, com um ordenado
que variava entre 300 e 350 mil réis por mês.
11
Disponível em www.prolocolavenomombello.com, Museo Internazionale Design Ceramico Civica Raccolta
di Terraglia, Laveno Mombello, Itália. Acessado em 16/06/2006
179
(Louça com inscrição: Lembrança da esperiencia de Louça Agua Branca 14/11/1913 R Ranzini G
Zappi G Miniati[PILEGGI 1958])
A contratação de italianos e de operários de demais nacionalidades não implicava na
qualificação dos mesmos para a produção de louça e numa baixa qualificação dos brasileiros,
pois, e o próprio Ranzini diz isto, muitos dos trabalhadores foram profissionalizados na
própria fábrica, porque desconheciam as técnicas de produção de faianças finas: “A formação
do pessoal era feita aqui mesmo com facilidade e a produção era (sic), toda a serie
domestica” (Coleção Ranzini, Museu Paulista).
Quanto ao número de funcionários que compunham a Fábrica, em sua primeira fase,
dispomos de pouca documentação. No catálogo da Exposição de 1918, organizado por
Antônio Piccarolo e Lino Finocchi, conta-se que a Santa Catharina, a época, possuía cerca de
800 funcionários. Em documento produzido pela própria Fábrica, consta além da quantidade
de trabalhadores, dados sobre suas procedências, a exemplo da existência de operários de
outras nacionalidades que não somente a italiana, como os japoneses:
... Trabalham atualmente na Fábrica cerca de 1.000 operários de várias
nacionalidades, inclusive japoneses, havendo entre eles muitas mulheres e crianças. Esse
número de operários será elevado ao dobro... (apud PEREIRA 2007: 57).
Comumente não citados em abordagens clássicas sobre a composição da classe
operária em São Paulo, a Fábrica Santa Catharina também empregou trabalhadores negros e
mulatos, como se percebe nos fragmentos de fotos a seguir. Segundo Santos (1998: 15),
180
“raramente é mencionada a presença dos não imigrantes nesse processo, especialmente os da
parcela pobre da população – os chamados negros, índios, mestiços, pretos, pardos, caboclos,
caipiras, mulatos, nativos, brasileiros, os da terra”. Tal qual Santos, percebi que umas das
poucas maneiras de mostrar que no mundo operário de São Paulo, e na Fábrica, “nem tudo
era italiano” foi através das fotografias e das figuras que quase “sem querer” foram captadas,
discretamente, por alguma lente. Ao contrário do que tradicionalmente se pensava, a
participação de afro-brasileiros entre os trabalhadores e operários paulistas foi bastante
significativa e as experiências fabris dos ex-escravos vem ganhando visibilidade (NEGRO &
GOMES 2006: 228). Andrews (1991: 107) confirma a participação dos mesmos no início do
movimento operário paulista e até em contextos de liderança. Em 1920, por exemplo, os
trabalhadores brasileiros conseguiram uma relativa paridade numérica com os imigrantes no
emprego industrial, maior área da economia urbana (ANDREWS 1991: 112). As décadas de
1920 e 1930 marcaram, justamente, a entrada de negros, mulatos, morenos, caipiras e
mamelucos no corpo do proletariado industrial.
A perspectiva que as elites possuíam sobre os negros, ex-escravos, mamelucos,
caipiras, etc., faz-se presente quando se olha o pós-abolição e o universo trabalhista e
operário dos séculos XIX e XX. A substituição do escravo pelo imigrante envolve a opinião
dos fazendeiros, marcada por um estereótipo que combinava racismo científico e ideologia da
vadiagem, na qual os trabalhadores brasileiros eram “vagabundos” e não “gostavam” de
trabalhar, contrapostos aos imigrantes, cuja imagem caricata era a do trabalhador, branco e
viril (BATALHA 2000: 7). Somado a isto, a fuga dos libertos das fazendas, e sua recusa em
continuar a viver nas antigas condições, não deixou outra escolha aos fazendeiros,
especialmente os paulistas, senão recorrer aos imigrantes (ANDREWS 1991: 101). Estes não
estavam sujeitos ao racismo científico (já que eram brancos diferente do que sofreram
grupos orientais como os japoneses e chineses [COSTA 1977]), nem à ideologia da
vadiagem, pois, como afirmou Andrews, “os fazendeiros não tinham experiência bastante
com os imigrantes para compor fortes impressões” (1991: 96-97).
O que estes fazendeiros não sabiam era que, trazendo os europeus para São Paulo, iriam
formar um movimento de trabalhadores que, a partir de 1910, lançou um grande desafio à
ordem estabelecida (ANDREWS 1991: 102). No campo, fugas de colonos e revoltas eram
constantes; nas cidades, os imigrantes formaram o grosso da classe operária, fundando
sindicatos e promovendo greves em lutas por melhores condições de trabalho.
181
A participação de brasileiros no corpo de funcionários da Santa Catharina e IRFM
São Paulo parece certa. A contratação de antigos oleiros da região, mesmo que não
especializados na produção de faiança fina, é uma hipótese bastante lógica. O Senhor Miguel
Dell’Erba, um antigo morador do bairro da Lapa, onde estava instalada a Fábrica, no começo
do século XX, em entrevista ao projeto de Reconstituição da Memória Estatística da
Grande São Paulo relata que “A primitiva população era quase toda constituída por oleiros,
devido à quantidade de barro especial que havia nas margens do Rio Tietê, que circunda o
bairro. Este também é o motivo porque algumas fábricas de cerâmica aqui se instalaram”
(1983: 73).
para a época dos Matarazzo, existem mais informações do ponto de vista
quantitativo do operariado, que, por sinal, oscilou bastante, como se no quadro a seguir
(adaptado de PEREIRA 2002: 62). A queda brusca no número de operários e a retração das
atividades, no começo dos anos 1930, deve estar associada à crise do café e a quebra da bolsa
de Nova York, que afetaram bastante o parque industrial brasileiro. O salto no número de
operários, de 1080, em 1933, para 1464, em 1935, seguido de gastos de energia e de força
motriz, corresponde aos primeiros anos de funcionamento da nova fábrica dos Matarazzo em
São Caetano, as Louças Cláudia (PEREIRA 2007: 62). Para comparação, aos mesmos anos
adicionei dados sobre o número de operários de algumas outras bricas contemporâneas à
IRFM – São Paulo:
Fotografia tirada na área dos
fornos (CAPRI 1922)
Fotografia tirada na área de produção e
secagem ao ar livre (CAPRI 1922)
182
Ano
Número de operários
IRFM –
São Paulo
Indústria
de Louças
Zappi
Fábrica de
Louças
Paulista
1928
661
18
-
1930
248
13
42
1931
446 14 42
1932
802 15 65
1933
1080 32 71
1935
1464 46 91
1936
901
45
85
É evidente, também, o enorme montante de crianças e mulheres que compunham o
corpo de trabalhadores. A greve de 1917, por exemplo, chegou a criar um “Comitê popular de
agitação contra a exploração de menores operários para tentar evitar os maus tratos sofridos
por mestres e contramestres nas fábricas (RIBEIRO 1989: 13). À época da Santa Catharina, a
idade mínima para admissão de crianças em fábrica oscilou entre 10 e 12 anos (RIBEIRO
1989: 15). Em 1920, no município de São Paulo, segundo dados do censo populacional, as
mulheres representavam 29% do total de trabalhadores empregados em todos os ramos da
indústria (BATALHA 2000: 10), grande parte delas nas indústrias têxteis.
As tradicionais fotografias de saída de fábrica, do começo do século XX, e de seus
operários posando meio ao processo produtivo, demonstram bem o que estou dizendo. Neste
contexto, é importante ressaltar, a fotografia nas indústrias preferia captar o maquinário,
símbolo de modernização e desenvolvimento, em vez do operário, que somente aparecia
retratado ao lado do equipamento (CARVALHO 2008: 150). A relação das crianças com o
ambiente fabril associa-se a suposta facilidade em doutrinas operários jovens, futuros
operários adultos, neles incutindo os planos de controle social das “classes perigosas”.
Também seria mais fácil “taylorizar” o gestual desde a infância do que com a contratação de
adultos. Não foi sem interesse que Francisco Matarazzo investiu na fabricação de máquinas
pequenas adaptadas às crianças (RAGO 1997: 145). Na lógica do sistema de fábrica é
“imprescindível que todos os indivíduos adquiram, desde cedo, ‘hábitos de trabalho’”
(MICELI 1996: 61) e a integração dos menores ao processo produtivo visaria a garantia do
futuro como decorrência do aprendizado do ofício e a garantia da permanência, por gerações,
do sistema de fábrica (MICELI 1996: 62).
A isto talvez se relacionem os artefatos classificados como “louças teste”, uma vez que
indicam também o aprendizado de decorações e o uso dos pincéis. O que, contrariamente a
183
afirmação acima, também indicava certa liberdade dentro da fábrica, uma agencia operária,
no sentido de utilizar tradicionais formas de ensino e aprendizado de ofícios, migrados das
manufaturas mais artesanais para o universo industrial.
Quanto à presença feminina, por exemplo, as pesquisas com os funcionários da Fábrica
de Louças Santo Eugênio, em São José dos Campos, mostraram que as mulheres
concentravam-se no setor de pintura, atividade pré-estabelecida como “feminina”, mas com o
tempo sua presença foi aumentando, em especial após os anos 1960 com as lutas de
emancipação feminina (ANJOS, MACIEL, ARAÚJO 2007). Os estudos de Buckley (1985;
1989) apontam também a presença das mulheres nos setores de decoração, pautando em
divisões sexuais do trabalho nas indústrias de louça inglesa. Por outro lado, na Porcelana
Monte Sião, atualmente, as mulheres estão concentradas no setor de acabamento e uma
mulher é responsável pelos carimbos das marcas; no setor de pintura, há homens. Abaixo,
algumas fotografias da primeira fase da Fábrica, onde se destacam mulheres e crianças.
Saída da Fábrica Santa Catharina, 1922 (Arquivo Edgard Leuenroth/UNICAMP)
184
Fábrica Santa Catharina (CAPRI 1922)
Fábrica Santa Catharina (CAPRI 1922)
185
O conturbado período de 1917 a 1919 parece também ter atingido a Fábrica. Segundo
Boris Fausto, a greve de julho de 1917, em São Paulo, abriria uma conjuntura histórica cujos
limites se estenderiam, cronologicamente, a 1920, se definindo, antes de tudo, pela
emergência de um movimento social de base operária nos centros urbanos (FAUSTO 1986:
158). O ano de 1919 e o início de 1920 delimitariam o momento mais alto da conjuntura,
coincidindo com o final da Guerra e a expansão da campanha anti-capitalista na Europa.
São Paulo apareceria como o centro das mobilizações, com 64 greves na capital e 14 no
interior, em 1919, envolvendo mais de 45000 trabalhadores (FAUSTO 1986: 161).
Ainda conforme o autor, a Santa Catharina teria tido duas greves (segundo a imprensa):
parou, no dia 10 de Fevereiro de 1919, contra a redução salarial, e, depois, no dia 20 de
Agosto, requisitando cumprimento de acordo, reconhecimento sindical e posicionando-se
contra o caixa beneficente; na primeira, 800 funcionários pararam, e, na segunda, 1000
(FAUSTO 1986: 254). Fausto aponta ainda para uma Fábrica de Louça não identificada que
entrou em greve dia 05 de Setembro protestando contra os maus tratos às crianças.
A Fábrica Santa Catharina teve papel primordial no reconhecimento do trabalhador
ceramista enquanto operário fabril e na organização da classe”, pois, enquanto primeira
grande fábrica que envolvia uma profissão ainda pouco reconhecida (afinal, não se produzia
louça branca no país), foi a partir dela que os operários começaram a se unir em associações
de auxílio mútuo e ligas operárias, expressando, com isso, seu descontentamento com o
sistema fabril. Nesta cadeia operatória de cunho taylorista, as escolhas técnicas tinham uma
dimensão social na qual “técnicas e tecnologias são a forma material do processo de trabalho
através da qual as forças produtivas e as relações de produção se exprimem” (RIBEIRO
2006: 12), ambas causando enorme impacto na organização do trabalho, indissoluvelmente,
associadas às lutas sociais e as relações de força que opõem os trabalhadores ao capital e aos
conflitos que ocorrem nos espaços de produção daí a relação entre a cadeia operatória, os
sistemas tecnológicos, as greves dos trabalhadores e outros mecanismos de resistência e ação.
É interessante pensar que é com a prática oleira a níveis industriais que um
reconhecimento da profissão, da definição de um indivíduo pela sua profissão (oleiro,
ceramista, louceiro) e da definição de uma classe trabalhadora. Já em 1907, por exemplo, a
greve no dia do trabalho, organizada pela FOSP, estendeu-se às categorias de oleiros e
“fabricantes de tubos de barro”, em prol das 8 horas de trabalho, sem vitórias (MAGNANI
1982: 138), portanto um indicador da formação, talvez, de uma consciência de classe e de
uma das primeiras greves, e organização, de trabalhadores oleiros. Estas resistências ao modo
186
de produção capitalista, de cunho cientificista, são, afinal, tomadas de consciência do que é
essa produção capitalista, do que é o ciclo produtivo e de qual é a função do operário no
centro da produção, tomada de consciência que, para Gramsci, faz com que o operário
compreenda sua função política e histórica que vai além do seu estado de assalariado
(GRUPPI 1980: 52), formando a consciência de classe profissional.
Somente com a adoção dos modos de produção capitalistas, ao longo do século XIX e,
em especial, no começo do século XX, o produzir cerâmica” passou a definir um indivíduo
enquanto profissão. O fato é que, agora, cada um não mais produzia sua própria cerâmica,
mas poucos produziam para um grande mercado que demanda por elas, dando valor
mercadológico à cerâmica e à louça. Do mesmo modo, muitos consomem objetos que não
mais m capacidade de produzir. É neste ponto que fazer cerâmica passa a definir um grupo
de pessoas que exerce uma atividade específica para nutrir um mercado consumidor. Com
isso, e remunerando esta força de trabalho e esta especialização (RICE 1988: 47), definiu-se
uma categoria profissional e organizou-se uma classe trabalhadora, na medida, também, em
que os próprios profissionais se reconheceram como ceramistas ou louceiros. Para Rice
(1988: 47-48), a presença de produtos, aparentemente, resultantes de uma produção em massa
fabricando objetos “idênticos” (como no Petybon), é um forte indicador de especialização de
trabalhadores na tarefa de olaria, que significa o reconhecimento de um nome nativo para a
especialidade (oleiro, ceramista, louceiro) e a reclamação por um tratamento especial, como
pagamento em dinheiro ou trocas pelo objeto manufaturado. No caso de uma fábrica, isto é
bastante evidente na formação dos valores das mercadorias, assim como na adoção de nomes
que designam esta nova categoria profissional.
Durante a greve geral de 1917, a irradiação do movimento operário se deu a partir de
Ligas, Uniões e Sindicatos, acelerando a formação de organizações com base nas categorias
profissionais de tecelão, sapateiro, ceramista, padeiro, etc. O bairro da Lapa, com uma
população majoritariamente operária (e ceramista), esteve bastante envolvido no andamento
da greve. O jornal operário A Plebe, de 09/06/1917, noticiou que, na noite seguinte, na Lapa,
haveria uma reunião na qual “espera-se que ela seja muito concorrida, pois numeroso é o
operariado naquele recanto industrial da cidade”, contando com a presença de figuras como
Edgar Leuenroth (A Plebe, Julho/1917). No dia 30/06/1917, A Plebe convoca a comissão da
Liga da Lapa e da Água Branca para instalar sua sede para agremiar trabalhadores; no dia
28/06, o mesmo jornal noticia que “os sapateiros, pedreiros, trabalhadores em fábricas de
louça, pintores, etc., tentam organizar-se fortemente”. No dia 25/08/1917, A Plebe publica
187
sob o título de “O operariado está em atividade” a multiplicação dos núcleos de propaganda e
luta, sendo que nos subúrbios vemos, já formada, a chamada “Liga dos Ceramistas (Seção da
Fábrica Santa Catarina) Água Branca (KHOURY 1981: 173). No mesmo dia, publica a
seguinte nota:
LIGA DOS CERAMISTAS (SEÇÃO DA FÁBRICA SANTA CATHARINA)
Reunido um número avultado de associados os operários da fábrica de
louças Santa Catarina, de Água Branca, agremiados na Liga daquele arrabalde,
resolveram organizar a Liga dos Ceramistas da qual constituíram a respectiva
seção.
Os trabalhadores das demais fábricas de cerâmica formarão cada qual a
sua seção.
Ligas como esta, ao lado das sociedades mutualistas, surgiram nas últimas décadas do
século XIX e começos do XX, autodenominadas “ligas de resistência”, contendo, em geral,
“maior grau de oposição ao patronato e ao Estado, apesar de muitas delas ainda realizarem
atividades de caráter assistencialista e mutualista” (FELDMANN 2004: 19). As Ligas
atuariam tanto como associações de moradores de bairro, lutando contra preços de aluguel e
melhores condições de higiene nos bairros proletários, como no campo sindical,
reivindicando salários maiores e menores jornadas de trabalho (FELDMANN 2004: 28).
Apesar da organização de uma liga, um sindicato para os trabalhadores de louça branca
seria fundado anos depois, em 1934, em São Paulo, que, até esta data, poucos eram os
sindicatos que aceitavam o estabelecimento da estrutura sindical coorporativa getulista (a
1934, São Paulo contava apenas com 43 sindicatos) (FELDMANN 2004: 38).
Se a Liga dos Ceramistas estava muito mais relacionada aos almejos e necessidades dos
operários, o sindicato estaria muito mais preocupado com o lado dos produtores, industriais e
proprietários de fábricas de louça e cerâmica. Fundado como Syndicato Patronal de Cerâmica
de Louças de de Pedra do Estado de São Paulo, mais tarde tornando-se o Sindicato da
Indústria da Cerâmica da Louça de Pó de Pedra, da Porcelana e da Louça de Barro do Estado
de São Paulo (hoje conhecido como SINDILOUÇA), o sindicato foi reconhecido pelo
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio em abril de 1947 mostrando como foi tarde o
reconhecimento da profissão e da categoria. Segundo a ata de instalação, teve sede à rua
Herval, 44, fundado no dia 10 de Setembro de 1934, reunindo os industriais de cerâmica e
188
louça pó de pedra, com o objetivo de “amparar e defender os interesses geraes da industria de
Ceramica de Louça de de Pedra e representar industria perante os p poderes públicos
federaes, estaduaes e municipaes” (Acta de Installação do Syndicato patronal de Ceramica de
Louças de Pós de Pedra do Estado de São Paulo, s/d: fl. 6).
Teve como tesoureiro o senhor Ido Xisto Ranzini e, no conselho fiscal, Mario Zappi e
Olavo Queirós Guimarães. Da inauguração participaram também, Giuseppe Pedotti (pela
Manetti Pedotti & Cia Ltda), José Zappi, Mário Zappi (da Fábrica de Azulejos e Apparelhos
Sanitários), Manuel Ildefonso Archer de Castilhos (pela Cerâmica Jundiahyense), Francisco
Salles Vicente Azevedo, quem presidiu os trabalhos da inauguração, pela Cia Paulista de
Louça Ceramus), e ninguém mais que Romeo Ranzini (já pela Fábrica de Louças Romeo
Ranzini). Ao documento datilografado foram acrescentados, à mão, também o nome da
Barros Loureiro Louças Adelinas e da Cerâmica Industrial de Osasco. Interessante é a
ausência de qualquer referência aos Matarazzo.
Segundo outro documento, de inauguração de uma nova sede do sindicato, sem data,
mas que se refere à situação da indústria entre 1935 e 1936, este teria posto fim à “luta surda
e implacável” e a guerra dos preços que enfraquecia a indústria e aviltava o mercado, situação
agravada nos últimos anos com a entrada da porcelana do Japão (que esmagava, em preço, a
nacional). Impedindo a “concorrência ruinosa”, o Sindicato, através de um grande esforço,
conseguiu impedir a importação de louças, da Inglaterra, Polônia, Techo-Eslováquia, etc.,
preservando a indústria da louça e porcelana da “concorrência nefasta” que acabaria com
nossos recursos escassos e “pobre economia” (fl. 3).
Um último ponto a ser dito sobre as pessoas envolvidas no ramo da produção de louça e
cerâmica, era que seu trânsito entre-fábricas era grande. Isto fez com que a Santa Catharina se
caracterizasse como uma enorme árvore cujos frutos germinaram, ao longo da primeira
metade do século XX, em São Paulo, disseminando estabelecimentos industriais congêneres
em outros bairros da capital e outros municípios (PEREIRA 2007: 63). Ao mesmo tempo, a
Santa Catharina também é fruto de outras fábricas e cerâmicas, pois muitos de seus
funcionários vieram delas, e assim sucessivamente. Para Pereira (2007: 63), a Fábrica tornou-
se, deste modo, a “principal referência técnica e também arquitetônica para os
empreendimentos futuros na área”. Por exemplo, o próprio Romeo Ranzini fundou, anos
mais tarde, na Lapa, a Fábrica de Louças Romeo Ranzini, e, nos anos 1940, uma Fábrica de
Louças em Osasco. José Zappi, trazido da Itália, fundou anos mais tarde a Indústria de
Louças Zappi S/A, na Vila Prudente, em 1918, unindo-se em sociedade, nos anos 1940, a
189
Aristides Pileggi. Os mesmos Matarazzo que compram a Fábrica em 1927, mandam vir da
Itália um técnico para resolver alguns problemas da produção de louças da Fábrica Grande,
em São Bernardo, cujo dono, Vicente Contente, era seu patrício (PEREIRA 2007: 67). Não
podemos esquecer que a IRFM, em 1935, inaugurou a Fábrica de Louças Cláudia / IRFM
São Caetano. Os técnicos contratados por Ranzini, vindos do núcleo oleiro de Laveno-
Mombello, Rogério Manetti, Giuseppe Pedotti e Luigi Torrighelli, levaram sua experiência
na Societá Ceramica Italiana para a montagem de uma nova indústria, quando do término
dos compromissos assumidos com a Santa Catharina, em 1916, fundando, por volta de 1918,
a firma Manetti, Pedotti & Cia., que deu origem a Fábrica de Louças Paulista, em Mauá. O
filho de José Zappi, Mário, foi técnico da Fábrica de Louças Adelinas, em São Caetano.
Em outras fábricas, sabe-se que José das Neves, sob cujo comando hoje es a
Porcelana Teixeira, desenvolveu habilidades de pintor-decorador na Fábrica Vista Alegre, em
Portugal. Eugênio Bonadio, um dos fundadores da Fábrica de Louça Santo Eugênio, em São
José dos Campos, foi ex-funcionário de uma fábrica de louças em Jundiaí. Bonadio e sua
esposa, mestra em decoração, tiveram influência também sobre a Fábrica Ceramus e a
Porcelana Mauá. Antônio Daldosso, um dos sócios fundadores da Porcelana Monte Sião,
ganhou conhecimento na produção de louças das fábricas de Pedreira.
Todos esses operários em trânsito geraram saberes itinerantes (PEREIRA 2007) e a
acumulação de experiência em diferentes contextos produtivos acarretou um repertório
comum de tecnologias adotadas na produção, assim como a inspirações de formas e
decorações das louças em faiança fina. As fábricas de louça no estado teriam, assim, traços
semelhantes por “terem sido fundadas e orientadas nos primeiros anos de existência por
técnicos e operários ... que sorveram os seus conhecimentos na mesma fonte” (MEMORIAL
DO SINDILOUÇA), daí semelhanças nos processos de preparação de massas, vidrados,
formas, decorações, etc. Estes, saberes, com a Santa Catharina, ganharam, sem dúvida, novas
proporções e são eles que, em parte, configuram a cadeia operatória do sítio Petybon.
190
SUB-CAPÍTULO 3.2
POR UMA LOUÇA ASSÉPTICA: VIDRADOS, GRETAMENTOS E
DISCURSOS HIGIENISTAS
... Um dia, uma terrível epidemia começou a grassar
pelo Triângulo: a epidemia do branco. Ripolin”,
“Chi-Namel”, todas as espécies de esmalte branco
o medonho micróbio! – entram a produzir as suas
pavorosas devastações. Tudo se esmaltava...
(Guilherme de Almeida, Diário Nacional,
21/07/1927)
A literatura de língua inglesa, usualmente, analisa as louças em faiança fina
pelos atributos estéticos do vidrado, isto é, por suas características na performance final
do objeto. Deste modo, sob inspiração êmica e ética, estipulou-se uma classificação
segundo atributos que envolvem sua coloração e seus componentes químicos, que
resultou na determinação de três tipos básicos de faianças finas, e três tipos básicos de
vidrados diferentes, conhecidas como creamware, pearlware e whiteware, o obstante
suas definições pouco claras. A análise dos vidrados do sítio Petybon possibilitou não
apenas o questionamento desta classificação no que concerne a identificação de louças
em faiança fina nos sítios históricos brasileiros, em especial quanto às atribuições
cronológicas e de procedência do material, como também a identificação dos métodos
de aplicação do vidrado (esmaltação) e de uma característica sua, intrinsecamente
relacionada tanto ao processo de esmaltação como aos aspectos físico-químicos deste
vidrado, característica esta que estou chamando aqui de gretamento.
Criado por Josiah Wedgwood, o creamware foi muito popular até a entrada do
pearlware no começo do XIX (por volta da década de 1810 o creamware havia
praticamente desaparecido do mercado [TOCCHETTO et al., 2001: 23]; não quer dizer
que tenha sido extirpado, mas apenas tornado-se menos recorrente, não obstante sua
produção a os dias atuais [STELLE 2001]), foi produzido por fábricas européias,
caracterizando-se pelo óxido de chumbo em sua fórmula, em substituição ao sal
marinho que caracterizava o vidrado das faianças, o que acarretava um tom amarelado,
especialmente visível em ângulos e outros relevos na superfície da louça que
propiciassem acúmulo do vidrado quido. Noel Hüme (1978: 124-158) sugeriu que a
produção do creamware ocorreu entre o período dos anos 1760 e 1820. Sua invenção,
191
para Miller (1989: 2), marcou a conquista inglesa do mercado dos aparelhos de mesa
por todo o mundo.
O pearlware, chamado no Brasil do século XIX de perolado” (SYMANSKI
1998), é resultado da busca por uma faiança fina mais clara e branca, com produção
iniciada por volta de 1779, creditada igualmente a Josiah Wedgwood (sob o termo
pearl white”). Este vidrado, que é predominante no século XIX, representa uma série
de mudanças tecnológicas que ocorreram na indústria inglesa no começo deste século e
que continuaram ao longo do tempo. A impossibilidade de clarear ainda mais a pasta
(que vai depender da cor da matéria-prima) resultou num esforço para clarear o vidrado,
que teve adicionado à sua fórmula óxido de cobalto. O acúmulo de maiores
porcentagens deste vidrado em partes angulosas resultaria, após a queima, numa
coloração azulada que variará em tonalidade em relação à porcentagem de cobalto no
vidrado. Em geral, tem-se que quanto mais claro o azulado, mas para o final do século
XIX é a peça (SUSSMAN 1977: 105-106).
A tendência a embranquecer e clarear a louça em faiança fina, diminuindo este
azulado, gerou o que a Arqueologia chamou whiteware, caracterizada por vidrado
transparente, resultando numa louça extremamente branca. Sem uma data exata de
introdução (MILLER 1991: 2), o whiteware pode ter surgido por volta dos anos 1810,
aumentando gradativamente para o final do século XIX, mantendo sua popularidade a
os dias de hoje devido seu baixo custo (TOCCHETTO et al. 2001: 24). Seu
barateamento, portanto, se deu em parte pela diminuição na quantidade cobalto da
composição do vidrado, tipologia que suplantou o pearlware, no mercado
estadounidense, entre 1815 e 1830 (STELLE 2001).
Importante ressaltar que o termo whiteware é puramente ético, uma vez que as
fábricas continuaram, na Inglaterra, a se referir às louças como pearlware, mesmo que
não houvesse mais a tonalidade azulada. Além disso, não como saber se a definição
arqueológica do pearlware é a mesma utilizada pelos mercadores e oleiros do século
XIX na Inglaterra. A existência do que chamamos whiteware também não implica,
portanto, num fim absoluto do pearlware ou mesmo do que se entendia como
pearlware. Miller (1989), em artigo já consagrado, critica a visão dos arqueólogos de
um pearlware estático, que funcionaria bem para o século XVIII, mas não para o século
XIX – e, acrescento aqui, para o XX uma vez que o perolado continuou a se
desenvolver e mudar.
192
A identificação destes tipos de vidrados relaciona-se diretamente aos processos de
esmaltação que analisei no sítio Petybon, ou seja, às técnicas de aplicação do vidrado
aos suportes. Elenquei este atributo porque um dos todos para identificação destas
tipologias de faianças finas, através de fragmentos, é a percepção das tonalidades e
nuances de cores que se formam, com maior clareza, em geral, onde ocorre acúmulo do
vidrado líquido na peça (BOCKOL 1995: 35). Geralmente, nas fábricas, os vidrados das
faianças finas encontram-se na forma líquida, dissolvidos em água, dentro de tanques,
para o processo de esmaltação, podendo ser aplicados às peças cerâmicas por aerografia,
banho (vertido-derramamento), pincel ou imersão (FÉRNANDEZ 1997; BÜCHLER
2004: 191), sendo esta última a técnica identificada nos fragmentos analisados no sítio
Petybon. Para Fernandez (1997) a imersão e o banho seriam os métodos mais fáceis
para aplicação do vidrado nas peças cerâmicas, principalmente em produções seriadas.
A imersão do biscoito da faiança fina dentro dos tanques acumula maiores quantidades
de vidrado nas partes angulosas das formas, como os pedestais das bases, os encontros
entre asas e paredes, as partes mais profundas de decorações em relevo e, por vezes,
áreas que escorrem próximas as bordas. Com a queima, a coloração do vidrado,
derivada de um de seus componentes (chumbo, cobalto, etc.), acentuar-se-ia.
Assim, fragmentos de faiança fina creamware teriam uma coloração mais
“creme”, amarelada ou esverdeada devido às características do óxido de chumbo (lead),
enquanto os perolados terão coloração azulada devido ao óxido de cobalto (cobalt). Para
os whitewares, as mesmas áreas com coloração acentuada nos outros dois vidrados
seriam transparentes, isto é, sem nenhuma cor. No entanto, e o próprio Miller afirma
isto (MILLER 1989: 2), devido à falta de análise química dos componentes do vidrado e
ao fato de sua identificação ser quase que totalmente baseada na percepção do olho
humano, muitas vezes a fronteira entre pearlwares muito claros e whitewares é bastante
ambígua: “The question of how much blueing the glaze has to have before it is
pearlware ... hinge on personal opinions” (MILLER 1989: 2).
Além disso, muitos fragmentos que não relacionados a partes como bases, bordas
e alças, nas quais essas tipologias de vidrado podem ser diagnosticadas mais facilmente,
são de difícil identificação. Os discretos atributos que podem ser macroscopicamente
identificados em pequenos fragmentos de louça, freqüentemente, são pouco claros
(STELLE 2001). Muitas vezes, fragmentos são classificados como whiteware porque
são brancos, mas isso não os exime de pertencerem a louças pearlware, cuja
193
identificação somente seria possível se possuíssemos, por exemplo, locais de acúmulo
como bases, gerando uma análise errônea que alteraria os dados, pois induziríamos, pela
falta de atributos, um fragmento a ser whiteware. Na análise de uma coleção, poder-se-
ia, desta maneira, dizer que a maioria dos fragmentos são de whiteware, quando na
verdade não é possível identificá-los. Um exemplo mais do que claro da ambivalência
na identificação da faiança fina está nas peças com decoração Borrão Azul (Flow Blue),
uma vez que o azul da tinta que se espalha sob o vidrado impede a identificação das
sutis tonalidades azuladas ou transparentes das áreas de acúmulo. Muitas vezes, nas
análises do sítio Petybon, utilizei a categoria “Não Identificado” para tentar não cair na
armadilha, especialmente ao lidar com paredes simples. O fato de um fragmento não ser
claramente um pearlware, não o coloca na categoria whiteware e sim em “não
identificado”.
Exemplo de a
cúmu
lo
do esmalte em bases de
malgas do sítio
Petybon, adquirindo a
coloração azulada que
configura o pearlware
ou perolado.
194
As idéias que apresentei até aqui são, se não totalmente pautadas, bastante
devedoras das classificações das louças em faiança fina teorizadas por uma bibliografia
americana e inglesa. No entanto, a análise das louças do sítio Petybon pôs por terra
algumas destas classificações, especialmente no que concerne a informações em torno
de cronologias e procedências a partir dos fragmentos de sítios arqueológicos. Se
aceitasse a separação entre pearlware, creamware e whiteware, a maioria das peças
analisadas seria classificada como o perolado. Louças brasileiras em faiança fina com
vidrados do tipo perolados, do século XX, mostrariam, primeiramente, que abordagens
forâneas não podem ser simplesmente replicadas às louças brasileiras sem
questionamento, bem como não deveriam ser simplesmente aplicadas aos tios
arqueológicos históricos do período do século XIX e XX no Brasil.
O pearlware tem uma definição, apesar de tudo, mais ou menos clara: composto
por óxido de cobalto produzido pelo século XIX inglês. Um pearlware brasileiro
arrastaria a cronologia para o século XX, sem entrar aqui nas problemáticas sobre status
e formas de consumo. No entanto, algumas amostras foram analisadas pelo Laboratório
de Física Nuclear da UEL, no Paraná, sob coordenação do Prof. Dr. Carlos Appoloni, e
o resultado foi que todos os vidrados, destarte suas variações de cor, são o mesmo
vidrado: composto por chumbo, majoritariamente. Isto quer dizer que mesmo com o
azulado nos locais de acúmulo, os vidrados das louças estudadas aqui o tem nenhum
cobalto. Esse, portanto, é um outro vidrado e sua identificação mostra que não se pode
classificar de pearlware todos os vidrados apenas porque são azulados nos locais de
acúmulo, que chumbo também pode apresentar tais características. O que se esquece,
por fim, é que tanto creamware quanto o pearlware eram compostos por chumbo, que é
o elemento que compõe o vidrado. Cobalto e materiais como cobre ou estanho são
elementos colorificantes, portanto é equivocado dizer que o pearlware (enquanto
esmalte específico de uma produção inglesa de uma época) é um vidrado de cobalto,
quando na realidade é um vidrado de chumbo, com cobalto.
Um sítio arqueológico hipotético que é constituído apenas por material móvel,
com louças em faiança fina não decoradas (ou mesmo com decorações como trigais e
willows), não pode ser tributado imediatamente ao século XIX e nem suas louças
podem ser classificadas como inglesas. A partir de que atributos isto foi feito? Se o
Brasil produziu em grandes quantidades louças em faiança fina que se assemelhan
esteticamente ao perolado, o garantia de que as louças deste sítio hipotético sejam
195
necessariamente inglesas ou do século XIX. Além disso, esta existência de louças
brasileiras meio às estrangeiras transporta a cronologia da ocupação para datas mais
recentes, o que não ocorrerá se a louça brasileira não for identificada. Sem essa
identificação, não apenas a cronologia será recuada em muito no tempo, como também
estarão comprometidas todas as interpretações que giram em torno das discussões sobre
o status socioeconômico dos consumidores daqueles produtos, uma vez que a faiança
fina brasileira era um produto mais barato que ganhou os mercados, desbancando a
louça estrangeira, no começo do século passado.
Além destas características de coloração e composição dos vidrados, estudo destes
se relaciona ao, comentado, processo de esmaltação. A aplicação do vidrado por
imersão conforma uma cadeia operatória composta por uma série de gestos. Quando o
biscoito é mergulhado no tanque, toda sua superfície recebe o vidrado (com exceção da
parte onde os dedos do operário tocam a peça), para então ir ao forno dentro de uma
caixa ou fôrma refratária. Se o vidrado na superfície da louça no biscoito estiver em
contato com a superfície da fôrma durante a queima, o mesmo irá aderir à base refratária
e a peça será perdida, pois estará, ao fim da fornada, “grudada”. Para que isso não
ocorresse, foi necessário que a indústria da faiança fina desenvolvesse uma série de
estratagemas, como a invenção de peças de apoio às louças (em inglês kiln furniture,
literalmente “mobiliário do forno”, também chamadas de “cerâmica de olaria”) e a
inclusão de novos gestos e técnicas adicionados ao final da seqüência operatória do
processo de esmaltação.
Durante a análise dos artefatos do sítio Petybon, percebi que as louças não
apresentavam uma característica presente em louças de outros sítios arqueológicos, em
especial aqueles do século XIX: a base das faianças finas não possuía uma
circunferência, no pedestal da base, sem vidrado, com o biscoito aparente. Transformei
esta percepção no atributo analítico que denominei “Processo de Esmaltação”. As
faianças finas depois de imergidas no vidrado líquido podem ter sua base (ou outra
superfície de apoio) limpa com um utensílio como esponja ou um pano, que cria uma
circunferência sem vidrado, com o biscoito aparente. Esta circunferência é importante
para impedir que a louça vidrada grude na fôrma refratária durante a segunda queima.
As fábricas atuais de porcelana brasileira utilizam este método; no entanto, com
exceção de algumas que ainda o fazem de maneira artesanal, grandes produtores como
Schimdt, Oxford e Pozzani utilizam maquinário: “uma pequena máquina com uma cinta
196
umedecida em espuma ou borracha, que se move ao redor dos rolos. A peça passa por
cima e a base é limpa rapidamente” (FERNANDEZ 1997). A diferença é que a forma da
circunferência destas louças é bastante simétrica, diferente das feitas à mão, como na
Porcelana Monte Sião. Isto implica num possível atributo para determinar cronologias,
uma vez que a introdução das quinas no processo de esmaltação é marcada por uma
data específica (acredito que em torno dos anos 1970, ou no máximo depois da II
Guerra), que auxiliará no terminus post quem da ocupação de um sítio arqueológico. No
entanto, a grande maioria das louças da Fábrica Santa Catharina / IRFM São Paulo
não apresentava esta característica. Toda a superfície das peças está coberta com o
vidrado. Como ocorria, então, o processo de esmaltação? Por que mudar o processo?
Evitando o gretamento
Para mim ficou claro que uma das razões, se não a principal, está nas tentativas de
evitar o gretamento do vidrado. O termo gretamento vem da Engenharia de Materiais
para designar as conseqüências ocorridas em peças vidradas devido à expansão por
umidade (EPU), termo técnico que designa “a expansão sofrida por materiais cerâmicos
quando em contato com a água na forma quida ou de vapor” (MENEZES, CAMPOS,
NEVES & FERREIRA 2006: 1). O resultado são as rachaduras e trincas no vidrado
que, muitas vezes, podem acumular resíduos orgânicos
12
no caso do recipiente estar
sendo utilizado para alimentação, o que pode levar ao descarte do mesmo
13
(já que o
espaço aberto entre as gretas acumula resíduos e se torna escuro, dando uma aparência
de sujo”). No caso das louças, o gretamento ocorrerá somente quando o biscoito de
uma peça vidrada, a faiança fina na primeira queima, porosa, estiver aparente, isto é, em
contato com o ambiente. Somente assim, a pasta, composta basicamente por argila e
caulim, característicos por sua alta plasticidade, absorverá umidade e expandirá. O
vidrado tem um coeficiente de expansão muito menor do que o da argila, sendo
12
O acúmulo destes resíduos, no entanto, abre para a Arqueologia as possibilidades de análise de
vestígios de alimentação nas louças, aspecto pouco explorado devido a própria característica da louça
como não-porosa depois de esmaltada. Neale (2000: 58) sugere que muitas das marcas encontradas entre
o esmalte e a pasta, ou entre as gretas, podem ser restos de gordura que escorreram para baixo do esmalte.
Uma análise mais pormenorizada destas marcas de uso seria imprescindível.
13
Deste modo é possível pensar nas razões dos descartes de peças encontradas em contextos domésticos.
Se a esmaltação da louça em faiança fina foi reconhecida como a esmaltação que não deixa o biscoito
aparente, ou a peça foi descartada porque lascou em algum ponto e a umidade levou ao gretamento,
deixando as rachaduras escuras (sujas?) podendo-se relacionar isto a utilização de peças danificadas,
mas nem por isso repostas ou o gretamento é pós-deposicional, no caso da peça estar, no contexto
arqueológico, fragmentada, não sendo, portanto, o gretamento a causa do descarte.
197
semelhante a um vidro, e por não suportar a expansão do corpo cerâmico, ínfima, diga-
se de passagem, racha.
Conseqüentemente, a louça que não possuir o biscoito aparente em sua base,
resultado de mudanças em certos aspectos do processo de esmaltação, não gretará (pelo
menos não por EPU), tendo menores possibilidades de ser descartada. No entanto, sabe-
se que outras cnicas foram desenvolvidas para evitar este problema, e minimizar a
EPU nos produtos finais, e a Fábrica Santa Catharina / IRFM – São Paulo tomou
medidas a fim de tornar menor a acessibilidade de água ao interior da microestrutura do
material, para reduzir a EPU de seus corpos cerâmicos (MENESES, CAMPOS, NEVES
& FERREIRA 2006: 13). Aparentemente, a Fábrica tentou resolver o problema
produzindo todo um aparato de apoio das louças, para o interior as formas refratarias,
durante a segunda queima: o “mobiliário do forno” ou cerâmica de olaria”. São
apoiadores, separadores e trempes, fabricados todos em faiança fina.
A utilização das trempes, por exemplo, possibilitava a não retirada do vidrado na
base ou na borda de peças côncavas (holloware), o que não deixa qualquer possibilidade
para o biscoito estar aparente, diminuindo as possibilidades de gretamento. Diferente,
por exemplo, do processo hoje realizado pela Porcelana Monte Sião, que utiliza
pequenos discos, da mesma pasta de suas louças, não vidrados, como apoiadores para as
tigelas nas fôrmas para ir ao forno. Nesse processo, as tigelas têm retirado o vidrado da
borda e da base (apesar de o haver gretamento, porque a pasta é de porcelana
brasileira). A retirada de vidrado na borda não é, em geral, muito bem vista por
ceramistas, que a cerâmica ficará exposta, diretamente, a absorção de resíduos de
alimentos, especialmente líquidos. Por isso, segundo Bockol (1995), configurariam
louças de menor qualidade.
Além das mudanças nos processos de esmaltação para impedir o gretamento,
talvez também tenham existido, na Fábrica Santa Catharina, tentativas de impedir a
EPU por meio de mudanças na composição da pasta da faiança fina. Alguns aditivos,
como carbonatos de cálcio e magnésio, em certas quantidades no corpo cerâmico,
possibilitam uma redução na EPU. Pesquisadores observaram, igualmente, que a adição
de calcita (15%) à massa praticamente eliminou o fenômeno, todavia sua utilização em
elevados teores (20 e 25%) conduziu a um aumento, provavelmente devido à presença
de CaO livre que, ao reagir com a água, se hidratou e expandiu (MENEZES, CAMPOS,
NEVES & FERREIRA 2006: 6).
198
Não por coincidência, a caderneta de anotações pertencentes a Romeo Ranzini, na
qual anotava dados sobre a produção de louças e novas fórmulas de pastas, dentre as
quais muitas tentativas de inovação das composições (o acervo do Museu Paulista),
mostra que o próprio Ranzini adicionava calcita às pastas. Apesar da caderneta
corresponder à época da nova fábrica de louças que abriu em Osasco, nos anos 1940,
acredito que este conhecimento foi utilizado também para a Santa Catharina / IRFM
São Paulo, pois mesmo alguns fragmentos de louças, com o biscoito aparente nas
quebras, por alguma razão não estão gretados, e isto pode ter ocorrido por alguma
mudança na composição das pastas. Em uma das páginas da caderneta vemos a seguinte
anotação para uma massa ou pasta:
caolim lavado calci = 200 fr
“ “ cm 500 fr
“ “ branco f. 300
Felspatto ortage 1400
Chromate Porcellana 250
Quarzo 700
argila marrõ 9.50
a preta 350
calcita 50
Em outro caderno de notas, iniciado em 1939, pertencente também ao acervo do
Museu Paulista, Ranzini descreve sua tentativa de acertar a porcentagem exata de
calcita na massa da louça. Sabe-se que a calcita causa uma diminuição, como apontei
anteriormente, na EPU e, conseqüentemente, no gretamento, a posteriori. No trecho,
pode-se perceber que Ranzini escreveu “Marca C”, talvez designando alguma marcação
na própria louça que propiciaria sua identificação pós-queima. Lê-se, portanto, o
seguinte:
Massa Louça c/ calcita
Fiz uma experiencia em 26/08/46 Marca - C em 4 kl. de
barro (massa humida da amassadeira) 200 gr. de calcita, o que
corresp. mais ou menos a 5%
Resultado: muito boa dura com um ótimo granito não
entorta mesmo sendo dura não “pega” o verniz (?)
199
Agora vou repetir, mas apenas com 2% de calcita em 5
quilos massa quase secca
A relação vidrado-gretamento foi percebida, desta maneira, através da própria
análise do material arqueológico, e suscitou questionamentos no que concerne à
mudanças no padrão de esmaltação quando comparados à esmaltação “tradicional”, se é
que se pode assim chamar, das louças de outros sítios arqueológicos, em especial
aqueles do século XIX ou da virada para o XX.
Um contexto de higienista
Estas mudanças, junto à utilização de mobiliários dos fornos, evitando a EPU e o
gretamento do vidrado, no entanto, parecem ligadas a um contexto mais amplo: o da
higiene. O fenômeno da EPU, em produtos argilosos, foi, inicialmente, discutido na
literatura cerâmica por volta de 1926, apesar de referências sobre o fenômeno em tijolos
existirem para 1907 (MENEZES et. al.: 3). Foi apenas em 1928 que H. G. Schurecht
concluiu que as razões do gretamento deviam-se à expansão do corpo cerâmico e não a
alguma falha por fadiga do próprio vidrado. Segundo Menezes et al. (2006: 3), entre
1926 e 1952, um total de 37 artigos abordando a EPU de corpos cerâmicos foi
publicado, especialmente, voltados ao gretamento do vidrado de louças e revestimentos.
Portanto, uma crescente preocupação com o gretamento em louças começou a se
consolidar no começo do século XX, problemática que deve ter se conformado no
século XIX, se não antes, com a popularização da faiança fina. Acredito, no entanto,
que foi no final do século XIX que o problema realmente começou a afetar a produção,
uma vez que consumidores e produtores estavam relacionando-o à novas concepções de
higiene e de custo de produtos. Sem o gretamento, o produto dura mais e não aparenta
“sujeira”, segundo as novas concepções emergentes do termo.
Afinal de contas, um dos efeitos do vidrado nas superfícies cerâmicas é,
justamente, o fato de facilitar a limpeza de resíduos que poderiam aderir às paredes, se
se utilizasse a louça apenas no biscoito, a massa porosa. A função dos vidrados é a de
formar uma superfície dura, impermeável, insolúvel após a queima, facilitando a
remoção de sujeiras e elevando a resistência mecânica e química do artefato
(BÜCHLER 2004: 111). Diminuindo sua permeabilidade, o vidrado, e outros
tratamentos em superfícies cerâmicas como a brunidura, aumenta a densidade da peça e
200
age como barreiras contra penetrações (RICE 1987: 231). Para Rice (1987: 232), o
vidrado é o exemplo mais extremo de tentativa de impermeabilização cerâmica,
impedindo a penetração de resíduos alimentícios e tornando a limpeza mais fácil.
Com o crescimento de novos comportamentos de higiene, como a prática de lavar
os utensílios domésticos com água, primeiro em chafarizes e rios e depois com água
encanada e corrente, criou-se uma demanda para a qual a louça branca em faiança fina
pareceu perfeita. Com a difusão dos preceitos de higienização e a importância da saúde
da família, conferiu-se aos sinais de limpeza da casa uma importância antes inexistente
(CARVALHO 2008: 191), alterando as formas de manutenção e limpeza de louças e
panelas. Além do mais, sua superfície branca possibilitava ver sujeiras” que antes
passariam despercebidas na escura superfície das cerâmicas comuns. Por isso, a
importância da função do vidrado enquanto vetor de limpabilidade
14
neste novo
ambiente de preocupações com a assepsia. É preciso lembrar, portanto, que a mudança
no processo de esmaltação verificada nas louças da Fábrica Santa Catharina / IRFM
São Paulo, as preocupações com o gretamento no campo científico e os discursos
higienistas que se alastraram pela cidade eram concomitantes e retro-alimentavam-se.
A partir do final do século XIX, vê-se a emergência de inúmeros discursos e
práticas higienistas que propunham diagnósticos, profilaxias e tratamentos para doenças
que abundavam nos centros urbanos do Sudeste, sob a luz de inúmeras turbulências
políticas, ondas imigratórias e os efeitos da crise do café (BENCHIMOL 2003: 250).
Ressalta-se, por exemplo, a explosão da Revolta da Vacina em 1904, após a declaração
do combate obrigatório a varíola na cidade do Rio de Janeiro, com vacinação e
revacinação contra a doença por todo o território brasileiro, e os métodos de persuasão
“militares” utilizados por Oswaldo Cruz e outros higienistas; lembremos, também, da
epidemia de febre espanhola que assolou São Paulo em 1918 (BERTUCCI-MARTINS
2003).
Enquanto ideologia, o higienismo conformou-se por “um conjunto de princípios
que, estando destinados a conduzir o país ao ‘verdadeiro’, à ‘civilização’, implicam a
despolitização da realidade histórica, a legitimação apriorística das decisões quanto às
14
Utilizo o termo “limpabilidade” com bases nos estudos sobre revestimentos cerâmicos levados a cabo
por Timellini e Carani (1997: 17), segundo os quais a limpabilidade é “a facilidade e eficácia com que a
sujeira, as manchas ou outros materiais que entram em contato com a superfície do solo ou parede possam
ser eliminadas, e desta forma restaurar a superfície até que fiquem com as características funcionais e
estéticas que possuíam antes de serem sujadas, que não pode ser considerada como uma propriedade
‘intrínseca’ dos revestimentos cerâmicos, mas necessita ser medida e caracterizada”.
201
políticas públicas a serem aplicadas no meio urbano” (CHALHOUB 2006: 35). Os
higienistas teriam sido, segundo Benchimol (2003), os primeiros a articularem um
discurso sobre as condições de vida nos centros urbanos, propondo intervenções mais
ou menos drásticas para restaurar o equilíbrio desse “organismo” urbano. As ruas e os
espaços públicos, por exemplo, foram focos acirrados do combate à sujeira, já que no ar
“solto” os miasmas corriam livremente.
A ideologia higienista concatenou-se com medidas segregadoras em prol do
saneamento e de um embelezamento das cidades, promovendo inúmeras reformas
urbanas que envolveram a construção de largas avenidas, supressão de vegetações, o
aterramento de terrenos alagadiços e a drenagem de pântanos, vistos como focos e
disseminadores dos tão temidos miasmas, os gases pestilentos. A explosão de epidemias
como as de febre espanhola e varíola corroboraram as teses dos médicos da higiene
pública de que as causas dessas doenças estavam na “predisposição orgânica” dos
indivíduos a elas ou no próprio meio ambiente (BENCHIMOL 2003: 238).
Nesta conjuntura, novas concepções sobre o que era considerado “sujeira” e focos
de proliferação de doenças foram sendo forjadas. Esta medicina social interveio,
diretamente, nos espaços públicos e nos comportamentos e costumes da população,
criando normas e desvios no que era considerado higiênico e bom para o progresso da
cidade e de seus moradores. Para Denise Sant’Anna (2007: 127), o “primeiro aspecto da
realidade paulistana no que se refere às sensibilidades diante da sujeira, ..., define-se por
noções historicamente produzidas sobre o perigo oferecido por tudo o que era
considerado focos de miasmas”. O tempo do laboratório e dos seres invisíveis, como
colocou Maria de Almeida (2003: 47), tornou possível que focos de doenças estivessem
em qualquer lugar, mesmo nos menores artefatos cotidianos, como as louças. A
utilização de vidrados e esmaltes e a diminuição do uso de peças não esmaltadas
corresponderam ao interesse das políticas higienistas no que concernia mudar bitos
considerados “nocivos” dentro de ambientes domésticos particulares, aos quais muitas
vezes não tinham acesso.
Para São Paulo, a chegada das louças com vidrado acarretou, provavelmente,
mudanças em muitos hábitos e costumes. Estudando as louças dos séculos XVIII e XIX
nos sítios do Solar da Marquesa, Beco do Pinto e da Casa Nº 1, Marcos Carvalho (2003:
85) diagnosticou um declínio do uso das cerâmicas no decorrer do século XIX,
concomitante ao aumento do consumo das louças, declínio das faianças e o seu
202
direcionamento para os espaços da cozinha. A dispersão dos discursos higienistas
parece ter aumentado a demanda por cerâmicas vidradas, louças em faiança fina e
mesmo pelo ágate (ferro esmaltado), associando muitas vezes as idéias de impurezas à
um receio de falta de civilização (SANT’ANNA 2007: 227). Deste modo, muitos
objetos foram acusados de acumular os seres invisíveis transmissores de doenças,
especialmente materiais mais porosos e sujeitos à umidade, tais como a madeira, o barro
e a cerâmica não vidrada. A louça, nas primeiras décadas do século XX, fez parte, em
São Paulo, do aparato de “ícones de assepsia” (CARVALHO 2008: 288) que passou a
estar presente nos discursos sobre a busca de desinfecção dos ambientes.
Para uma população que ainda utilizava muito a cerâmica, e que começou a
consumir louça branca com o barateamento que a produção nacional trouxe ao produto,
a mudança da cerâmica simples para a louça impactou os modos usuais de limpar e
cuidar destes objetos, uma vez que esmaltes e vidrados facilitavam em muito a limpeza
da superfície dos recipientes. É este o período no qual começam a predominar, nas casas
paulistanas, objetos com superfícies laváveis, numa tentativa de implantar o modelo
ideal do consultório médico, esterilizados e asséptico, às casas e espaços cotidianos
como os bares (CARVALHO 2008: 259).
Assim, o próprio design da louça em faiança fina, sua superfície e sua cor,
encaixavam-se perfeitamente nas novas necessidades que cresciam meio aos novos
comportamentos de higiene da população. A idéia, por exemplo, de clareza, alvura e
brancura que a louça branca passava estava de acordo com as preocupações em torno do
crescimento dos focos de miasmas e dos recentemente descobertos micróbios, os seres
invisíveis que se proliferavam junto às matérias orgânicas. As trincas nos vidrados das
faianças finas seriam uma ótima localização para estes seres pestilentos e a cor branca
das louças o faria mais do que ressaltar as gretas escurecidas. Segundo Vânia
Carvalho, cada vez mais se consolidava na São Paulo do fim do século XIX e começos
do XX a idéia européia do branco como índice de limpeza: “o branco é a limpeza que se
vê” (CARVALHO 2008: 286).
Neste contexto de advento da microbiologia (SANT’ANNA 2007: 193), da
bacteriologia (ALMEIDA 2003: 43) e da identificação dos agentes etiológicos das
doenças infecciosas, cada vez mais se passou a acreditar que o perigo estava
literalmente em toda a parte e foram desenvolvidos vários métodos de imunização e de
combate aos vetores e seus reservatórios naturais (DE LUCA 199: 204). Logo, é
203
possível que as trincas sujas dos vidrados das louças estivessem no rol de reservatório
natural de vetores de doenças, demandando-se também, e cada vez mais, por objetos
com superfícies esmaltadas e vidradas (que, de preferência, não gretassem). Muitos
médicos higienistas brasileiros, como o doutor Bráulio Gomes, da Comissão de Higiene
de São Paulo, no começo da década de 1890, insistiam na utilização da louça, por ser
fácil de limpar, para a fabricação das bacias das latrinas, e não mais do cobre ou da
madeira (SANT’ANNA 2007: 192-193). A necessidade de superfícies esmaltadas
espraiava-se para além das cerâmicas. No início do século XX, recomendava-se que o
“quarto higiênico” das casas das elites paulistanas, segundo os manuais de civilidade,
fossem mobiliados com cama, divã, cadeira, mesa de cabeceira e toucador os quais
“deviam ser pintados com esmalte, preferencialmente em branco azulado ou rosa”
(CARVALHO 2008: 160), adaptando, assim, os preceitos higienistas aos bitos
considerados “elegantes”.
O poeta e jornalista Guilherme de Almeida, sob o codinome Urbano,
testemunhou este processo de forma cômica. Durante os anos de 1926 e 1927 (anos em
que os Matarazzo assumiram a Fábrica), Guilherme de Almeida foi contratado para
redigir a seção de queixas e reclamações do jornal Diário Nacional. Na terça-feira dia
21 de Julho de 1927, o jornalista escreveu, em sua crônica, um “flagrante realista”,
como chamou Frederico Barros, sobre a quase paranóia em torno do esmalte e do
branco, e da assepsia que traziam aos materiais, contra micróbios e seres transmissores
de doenças infecto-contagiosas:
... Um dia, uma terrível epidemia começou a grassar pelo Triângulo: a epidemia do
branco. “Ripolin”
15
, “Chi-Namel”
16
, todas as espécies de esmalte branco o medonho
micróbio! entraram a produzir as suas pavorosas devastações. Tudo se esmaltava.
Uma das principais vítimas lembro-me muito bem foi o café muito corrido da rua
15 de Novembro: esmaltaram-se as paredes, as mesas, o teto, os lustres, as xícaras, as
caras dos garçons; até mesmo o mostrador, os porteiros de um pobre relógio de
madeira, que, sobre a porta de entrada, marcava ali a boa vidinha dos seus súditos.
Este relógio, indignado, revoltado contra o ludíbrio, parou.
15
Refere-se à empresa portuguesa de tintas Ripolin, fundada em 1888 em Lisboa, existente até os dias de
hoje, especializada em esmaltes, tintas e vernizes.
16
Um tipo de verniz para madeira fabricado pela Ohio Varnish Co., nos EUA.
204
De repente, os donos de cafés começaram a reparar no erro doloroso em que
haviam caído; pintando tudo de um branco alegre, a assistência, por causa do
contraste, começou a ficar cada vez mais escura e mais triste. E, tomada de um ódio
alucinado contra a própria cor, fugiu, apavorada, daqueles ambientes hospitalares...
(ALMEIDA 2004: 14-15).
Deste modo, não apenas a louça em faiança fina nacional, justo na época de
popularização e barateamaneto desta pasta no Brasil, concatenou-se à nova conjuntura
higienista e a produção de materiais assépticos, através de discursos que penetravam por
todas as camadas da população. Como a própria história da louça em faiança fina no
Brasil, mostra, o começo do século XX marca uma necessidade cada vez maior por
produtos com cor branca. É importante ressaltar que este branqueamento, não apenas do
vidrado, mas da pasta em si, e a diminuição do espaço ocupado pela decoração no corpo
das louças, cresceu em direção ao mesmo período do final do século XIX para o início
do século XX. Para Miller, não razões muito claras para o gradual
embranquecimento do azulado dos vidrados nas faianças finas, e os oleiros não parecem
ter feito nenhuma distinção entre o whiteware e o pearlware (MILLER 1989: 17). No
entanto, ao menos para o Brasil, percebe-se que o embranquecimento da louça ligou-se
não apenas às tentativas de clarear o vidrado e a pasta, mas também de “limpar” o
campo visual do consumidor, diminuindo o tamanho das decorações e o espaço que
ocupava nas peças. Para Tânia de Andrade Lima (1995: 166-167), a segunda metade do
século XIX marca uma preferência por serviços de mesa brancos, com decorações com
discretos relevos ou filetes, faixas e frisos nas bordas – algo bastante presente nas louças
do sítio Petybon e muito comum nos dias de hoje, especialmente nas louças de
restaurantes. É o que Gosden (2005: 207) chamou de link entre propriedades sensoriais
da cerâmica, em particular a cor, e outros elementos do contexto e da paisagem.
O clareamento da louça, deste modo, acompanhou os movimentos higienistas
que se instalaram por São Paulo com o final do século XIX e início do XX, numa
“epidemia”, como chamou Guilherme de Almeida, que associava branco, claro, limpo e
asséptico. Nesta conjuntura, novas definições do que seria “sujeira” foram se formando,
assim como do que se entendia como “limpo”, suas relações com os objetos de uso
cotidiano e como estes foram englobados no escopo de objetos que poderiam ser foco
de novas ondas epidêmicas. Se as trincas nos vidrados das faianças portuguesas ou das
205
faianças finas importadas do começo do século XIX não eram problemas em relação a
proliferação de micróbios causadores de doenças, mesmo porque eles nem mesmo
tinham sido descobertos (ou inventados), no final do século XIX e XX, o gretamento da
faiança fina pode ter sido visto como um problemático foco de proliferação de bactérias
transmissoras. A louça em faiança fina nacional, que dava seus primeiros passos
industriais na época, forjou-se meio a estas necessidades.
A ideologia higienista vista como discurso normativo e projeto de modernidade,
de uma parte da elite, muitas vezes ligadas aos setores industriais, dos quais faziam
parte os Fagundes e os Matarazzo, tentou, assim, modificar antigos hábitos que
considerava “incivilizados” e coloniais, buscando transformar alguns dos costumes da
maior parte da população da cidade de São Paulo, na tentativa de um fadado progresso.
Isto é claro também nos episódios que envolviam tabernas e bares, para a onde a louça
também corria. Retomo mais uma vez ao texto de Guilherme de Almeida para apontá-lo
como documento que evidenciou a intervenção das políticas de higiene dentro de um
bar, na 15 de Novembro. Segundo Sant’Anna, a partir da década de 1850, a imprensa
relatou inúmeros casos de elogios a cafés, restaurantes e confeitarias que seguiam
determinados padrões de higiene, como lavar o chão e os objetos com sabão e água. Em
lado oposto, havia o ataque às tabernas e bares que, durante as primeiras décadas do
século XX, passaram a ser considerados “botequins pestilentos, tascas, espeluncas,
locais sujos e da pouca vergonha, propícios ao vício e à degeneração” (SANT’ANNA
2007: 134). Pode-se apenas imaginar o que passou a significar, nestes ambientes, beber
em xícaras e malgas cujas trincas estavam pretas e bem escurecidas.
Utilizando estes métodos disciplinares, os discursos higienistas adentraram
também as cozinhas, que sofreram mudanças impulsionadas pelos novos conceitos de
saúde, através das tentativas de introjeção (claro, com ações e reações infinitas) de
conceitos de ordenação e limpeza ressignificados da idéia de fábrica e das formas de
racionalização do trabalho. Segundo Carvalho (2008: 250), para desinfecção do
ambiente, a abordagem higienista atingiu todos os cômodos da casa e a cozinha, para se
“modernizar”, deveria incorporar as descobertas científicas da medicina. Assim,
proliferam as tentativas de azulejar e ladrilhar, na cor branca, as cozinhas da casa
“moderna”, utilizar mais panelas de ferro, esmaltadas ou de vidro, o que constata mais
uma vez a necessidade por objetos com superfície lavável e asséptica para além da
superfície das louças brancas. Este é o momento, também, de entrada mais maciça desta
206
louça branca na cozinha, com, por exemplo, na forma de recipientes para servir, como
terrinas e sopeiras, que faziam o diálogo entre o alimento da panela, seu caminho à
mesa e o consumo do que estava em seu interior pelos que se alimentavam.
Para nia De Luca (1999: 206), a Higiene” adentrou o cotidiano dos
indivíduos, com “ares de cientificidade, inspecionando, vigiando e controlando através
de normas, cuidados e recomendações”, cotidiano este que era composto igualmente
pelas práticas de alimentação e pelo suporte dos alimentos, as louças e as cerâmicas.
Compartilhando parte desta ideologia higienista, os proprietários de diversas fábricas de
São Paulo, compondo seus projetos de modernidade para a cidade, incentivaram a
produção de produtos mais assépticos. A popularização das faianças finas nacionais e,
mais tarde, das porcelanas brasileiras encontraram aí espaço propício, atendendo à
demanda por objetos assépticos e limpáveis. Por que não dizer que os planos de incutir
o uso das louças na população da cidade, impedindo as trincas em suas superfícies
através de novos métodos de produção, e de difundir o uso de objetos vidrados e
esmaltados, barateando seus preços através da produção nacional, compunha um
planejamento maior de combate a focos de proliferação de micróbios e bactérias, do
qual faziam parte as cerâmicas simples?
Utilizando um processo de esmaltação que envolvia o uso de apoiadores,
cravilhos e trempes, a Fábrica Santa Catharina / IRFM São Paulo tentou impedir o
gretamento dos vidrados das faianças finas através de uma esmaltação e uma queima
que não implicassem na criação de áreas de biscoito aparente. Sem biscoito aparente, a
louça não absorvia umidade e a pasta não expandia, rachando o vidrado. Deste modo, a
Fábrica parece ter atendido uma demanda, corrente na época, por louças mais duráveis e
por superfícies vidradas, laváveis e muito mais assépticas, na conjuntura higienista que
se introduzia com força nos costumes da população da cidade de São Paulo.
207
SUB-CAPÍTULO 3.3
DEFEITOS DE PRODUÇÃO E OS SIGNIFICADOS DOS DEFEITOS:
DESAFIOS PRODUTIVOS E O CONSUMO DAS LOUÇAS “TIPO POPULAR”
... por que louça sem defeito não existe.
(Documento relativo à inauguração da nova sede do
Sindicato da Indústria Cerâmica da Louça Pó de Pedra, da
Porcelana e da Louça de Barro no Estado de São Paulo,
1935-1936)
... tudo que é separável é discernível e tudo o que é
discernível é diferente.
(HUME apud DELEUZE, 2001: 95)
Cada coisa útil,..., deve ser considerada de um
ponto de vista duplo, conforme a quantidade e a
qualidade. Cada uma dessas coisas é um todo de muitas
propriedades e pode ser útil, por isso, em diversos
aspectos. Descobrir esses diversos aspectos e, daí, as
múltiplas formas de uso das coisas, é um ato histórico...
(MARX 2006: 14)
Os tapetes persas, consumidos milênios pelo Ocidente, sempre despertaram
fascínio e as histórias em torno dos mesmos, sua relação com a moda e o meio social, o
amor pelo Oriente e a importância da ostentação (CARVALHO 2008: 277), logo os
transformaram em artigos caros de consumo, associando raridade, antiguidade, valor
artístico e valor monetário. Para Spooner (2008: 247), os tapetes “representam a sínteses
do interesse ocidental pelas coisas estrangeiras em especial as coisas estrangeiras
utilitárias”. O que se sabe sobre estes tapetes, no entanto, é que todos eles contêm
defeitos. O interessante está no fato de que pequenos defeitos, imperceptíveis muitas
vezes para olhares leigos, passaram a ser valorizados pelos compradores. Isto porque
como os tapetes quase não os possuíam, ou, se possuíam eram irrelevantes, a partir de
certo momento passaram a ser significado não apenas da comprovação de sua
fabricação artesanal, o valorizada, como também de sua unicidade e autenticidade
(SPOONER 2008: 249). Muitos compradores recomendam que se busquem defeitos nos
tapetes para averiguação de que são produtos 100% artesanais. Alguns destes pequenos
defeitos, por particularizarem a peça, acabaram sendo aspectos de procura por parte dos
consumidores dos tapetes, valorizando a peça e aumentando seu valor de venda.
É claro que esta mudança na demanda e nas necessidades de consumo alterou
aspectos da produção. Uma vez que os artesãos perceberam que um tapete com um
208
pequeno defeito, que o particularizava, era vendido a um valor maior do que o “sem
defeito”, teve início a produção de “erros deliberados” ou propositais. A explicação
destes erros tem um cunho também metafísico: uma vez que ninguém faz nada perfeito,
a não ser Alá, toda obra humana será imperfeita, ou terá defeitos. A ausência de
defeitos, se fosse possível, portanto, seria um desrespeito a Alá, sua presença sendo,
assim algo natural. No entanto, se o defeito for muito visível, desvalorizará o tapete.
Dentre os defeitos mais comumente encontrados estão a assimetria dos desenhos, a
assimetria no tamanho e o efeito resultante da utilização de diferentes cores, nas s o
que se esperaria de qualquer trabalho feito à mão.
Estes aspectos das relações de produção e consumo da tapeçaria persa chamam
atenção para alguns aspectos do que usualmente denominados defeitos”. O que são? É
possível percebê-los nas louças? O que é considerado defeito variaria de fábrica para
fábrica e de consumidor para consumidor? Apesar de uma produção cerâmica poder
apresentar os mesmos “feitos” ou “efeitos” que podem ser vistos na própria louça, como
marcas de produção ou reações sico-químicas devido a alguma alteração neste
processo, estes feitos” para serem considerados “defeitos” variam segundo os olhares
de quem os classifica e conceitua.
Entendo “defeito” aqui mais como “imperfeição” do que como “falta” ou
“deformidade”, seus outros sinônimos (CUNHA 1989: 243), mais relacionado ao fato
de que algo o saiu segundo um ideal, o “perfeito”. Ser imperfeito, na produção, é ser
diferente deste ideal estipulado pelo controle de qualidade, dialogando com a demanda
de consumo. Para estipular o defeito é necessário discernir o diferente: separar o
discernível e discernir o diferente, o princípio da diferença para Deleuze (2001: 95).
Este discernimento é subjetivo uma vez que depende de quem olha (dentro de regimes
de verdade), de quem cria e estipula o que será considerado diferença e defeito na
produção de louças.
Para Hegel (2001), o certo se caracteriza por uma universalidade interna ou
relativa que é meramente baseada no capricho de uma vontade particular. A oposição de
um certo abstrato a esta vontade particular determinaria o que a fábrica, o controle de
qualidade e os trabalhadores chamam “defeito”. A manifestação deste defeito nas peças
é possível na dialética com este certo/perfeito abstrato e a partir do momento em que
é traçado “o limite que definirá a diferença em relação a todas as diferenças, a fronteira
externa do anormal (FOUCAULT 2007: 153). Afinal, não se tem uma definição do que
209
é uma “louça sem defeito”, ou uma “louça certa” ou “perfeita”, como se tem para uma
louça defeituosa ou imperfeita (errada?). Ao final, esta louça certa ideal é definida pela
ausência do considerado errado: neste caso é mais fácil definir o objeto por aquilo que
ele não é (GOMES 2004: 6). Quanto menos defeitos, mais “certa”, numa relação
infinita, indiretamente proporcional para a louça.
O objetivo da identificação do defeito é, assim, torná-lo regra, torná-lo normativo,
por uma série de sanções. No caso da produção cerâmica alguns desvios, que só existem
a partir do momento que a produção, o controle de qualidade, estipulou um corpus do
que seria o “certo”, tornam-se defeitos. Por isso algumas características não nascem
“defeitos”, o defeito não é intrínseco aos objetos: só existe louça com defeito a partir do
momento em que se constrói uma louça ideal (perfeita, que não existe no mundo
empírico) e através desta comparação cria-se o defeito. O defeito é o desvio, o que está
inadequado à regra (FOUCAULT 2007: 149), de modo que se causado pelo trabalhador,
indica também uma falha nos mecanismos disciplinadores da fábrica. E ainda assim, o
defeito tem significado mutante porque esta normatividade varia de acordo com o
universo de produção na qual está inserida, contrastando com a aparente objetividade do
controle de qualidade que é estipulado por produção. Nem sempre respingos de tinta são
considerados defeitos. É por isso que a identificação do defeito, no controle de
qualidade da fábrica pode ganhar o status de habitus, dado ser uma síntese que põe o
passado como regra do porvir (DELEUZE 2001: 105), uma vez que o reconhecimento
de um novo aspecto na produção cerâmica, que será tido como defeito, pode ser
identificado a partir de um reconhecimento anterior do mesmo, conhecimento este que
será lançado sobre os olhares dos oleiros, posteriormente, e quiçá distribuído ao restante
dos responsáveis pelo controle de qualidade.
Por outro lado, a identificação de defeitos faz parte, na cadeia taylorista e no
sistema de fábrica, de uma “anatomia política do detalhe” (FOUCAULT 2007: 120), a
“disciplina do minúsculo” (FOUCAULT 2007: 120) através da qual práticas de controle
social se estabelecem em relação ao trabalhador, que o defeito pode estar associado
ao erro na produção. Assim, pautando-me em Michel Foucault, vejo esta relação, para a
Fábrica, como um paradoxo em relação ao que é a própria Fábrica, pois “à medida que
se concentram as força de produção, o importante é tirar delas o máximo de vantagens e
neutralizar seus inconvenientes” (FOUCAULT 2007: 122). Se o corpo o está
210
disciplinado, o gesto é ineficiente. O defeito, portanto, como uma inconveniência da
produção e do almejo a qualidade.
Quando se refere a um “produto de qualidade”, o controle de qualidade entende-o
como um produto cumpridor de suas funções da forma desejada (GOMES 2004: 6).
Teóricos da qualidade como Joseph Juran definiram qualidade “em termos da
adequação de um produto à sua utilização pretendida” (GOMES 2004: 6) e a partir daí
compreende-se melhor a classificação de produtos cerâmicos segundo graus de
qualidade, de acordo com a definição de qualidade estipulada por quem produziu (que
não está isenta de influências do consumo). Juran, nos anos 1950, definiu um modelo
para os custos de qualidade dos universos produtivos delineando os principais pontos
das “falhas internas” e das “falhas externas” de uma produção, com destaque para as
problemáticas envolvendo defeitos: como “falhas internas” apontou os custos da
produção defeituosa antes de chegar aos clientes, o desperdício – o trabalho e os
materiais empregados na produção de produtos com defeitos e a reciclagem o que
fazer aos produtos com defeito –, preocupações relevantes para melhorias de qualidade,
para o que estratégias preventivas e inspeções constantes seriam imprescindíveis
(GOMES 2004: 10). Um produto de qualidade, portanto, não corresponderia a esta
“louça ideal” da produção, inexistente no mundo empírico, mas, sim, à louça com a
menor quantidade possível de defeitos, real; o que o controle de qualidade procura é
sempre atingir este produto abstrato ideal e perfeito, criando estratégias para tal, como
as apontadas por Juran, que o aproximem nesta busca infinita pelo ideal. A qualidade
variando tanto quanto o defeito no que concerne a sua identificação e definição,
cambiante segundo olhares diversos.
Por isso afirmo que a identificação de um defeito pode ser encarada como um
hábito que se vai arraigando no olhar dos trabalhadores que selecionam os produtos no
controle de qualidade, ao longo da experiência destes mesmos trabalhadores neste setor,
“treinando” seus olhares (ou incutindo a disciplina...), até que o hábito de identificar
estes efeitos-defeitos o evoque necessariamente mais qualquer lembrança ou que não
haja mais nenhuma lembrança particular a ser evocada (DELEUZE 2001: 106), e o
movimento de separar as peças segundo as normas do controle de qualidade seja quase
que “robótico”. No decorrer da produção, a identificação nessas mudanças na forma
ideal do produto, nestes micro-estilos o desejados, a identificação dos defeitos
propaga-se por relações de aprendizado, interações e inovações (DIETLER &
211
HERBICH 1989: 160). Seja por influência de inovação pessoal, isto é, um trabalhador
ou uma pessoa do controle de qualidade tachando um efeito ou aspecto da louça como
defeito, ou por emulação entre o próprio corpo de trabalhadores (de olhares)
responsáveis pela seleção e identificação do que serão produtos defeituosos (DIETLER
& HERBICH 1989: 161), a trajetória das peças com defeito e a concepção das mesmas
estará atrelada às diversas dinâmicas e ao diálogo entre agência e estrutura dentro do
universo produtivo fabril. Por depender destas interpretações e por variar segundo
olhares individuais e coletivos, entendo o defeito, deste modo, como um signo segundo
a acepção saussuriana, um significante cujo significado varia no tempo e no espaço.
O documento relativo à inauguração da nova sede do Sindicato da Indústria
Cerâmica da Louça de Pedra, da Porcelana e da Louça de Barro no Estado de São
Paulo, dos anos 1930, afirma categoricamente que “louça sem defeito não existe”.
Apresenta-nos uma classificação baseada na qualidade e uma preocupação em
determinar o que era entendido como louça classe, louça classe e classe. Ou
seja, louças prontas para consumo, “perfeitas”, louças com algum defeito, mas ainda
aptas ao consumo, e louças inaptas ao consumo
17
. O documento, na verdade, propõe a
supressão destas denominações que deveriam ser unificadas segundo deliberação do
Convênio da Louça, evento que reuniu, às vésperas da II Guerra Mundial, todos os
fabricantes de louça, sem exceção, com objetivo de otimizar a produção, proteger os
fabricantes nacionais e cessar algumas reclamações de comerciantes. Estabeleceu-se,
assim, que os produtores de louças classificariam seus produtos em duas categorias
chamadas: T.U., Tipo Único, que englobaria as antigas louças de classe e de “2ª
escolha com pequenos defeitos”, e T.P., Tipo Popular, abarcando as antigas louças
classe e classe boa”. Esta também é uma estratégia da produção, criando mais
categorias para a comercialização de louças que seriam descartadas, com a antiga
classe. Da mesma forma, unindo sobre uma única nomenclatura e classes “com
pequenos defeitos”, a produção aumenta o preço de antigas peças mais baratas e diminui
o rígido controle de qualidade que as discernia.
Mas, se toda louça tem defeito, o que seriam as louças 1 ª classe? São aquelas nas
quais possíveis defeitos estão acima do que o controle de qualidade estipulou como 2ª
classe ou descarte (louças classe, que segundo o documento do sindicato, não
17
Segundo Norton (1975: 318), no final de toda produção de louça peças de três qualidades diferentes
e se se decidisse vender as louças “sem” defeito, o controle de qualidade seria muitíssimo estrito e
me pergunto se isto seria viável economicamente.
212
existem, pois são totalmente inaptas ao consumo, pelo menos para o uso segundo se
pensou estes artefatos: são rachaduras, quebras, grandes amassados, furos, etc.). A
sensação de imprecisão na afirmação que fiz anteriormente relaciona-se a subjetividade
e a arbitrariedade destas classificações (como toda e qualquer classificação). Assim, o
que é considerado defeito variará segundo o controle de qualidade da fábrica,
determinado por um olhar específico, passando ainda pelo crivo de um segundo olhar, o
dos trabalhadores que foram “ensinados” a reconhecer estes defeitos – o poder da norma
como princípio de coerção no ensino, como chamou a atenção Foucault (2007: 153). A
linha que separa e classe variará provavelmente de produção para produção. Se
todo e qualquer defeito fosse considerado, toda produção seria descartada, algo que não
existe.
A relação entre T.U e T.P tem reflexo, lógico, no valor de uso. Na esfera
produtiva, produzir ou não louças com defeito custa o mesmo; as variantes do valor de
uso ocorrem apenas na esfera do uso e do consumo. O que a venda de louças com
defeitos faz é inverso à constituição do valor de uma mercadoria segundo termos
marxianos (MARX 2006). Partindo de um valor x para uma louça em faiança fina,
valor de uso e de troca, soma do trabalho na produção e da demanda de consumo,
prevendo ainda a mais valia e o lucro, destarte suas funções como objetos “semióforos”
(MENESES 1980: 11), os defeitos vão depreciar a mercadoria, em termos muito mais
qualitativos que quantitativos. Diferente do exemplo dos tapetes onde os “defeitos” são
vistos como características que somam valor, nas louças aqui estudadas (e em geral), os
defeitos reduzem o valor de forma inversamente proporcional: quanto mais defeitos
menor valor de uso, até chegar ao ponto da perda total deste valor, resultando num
descarte
18
(saída de um contexto sistêmico para o arqueológico ou a entrada em um
novo contexto [SCHIFFER 1972]), pois a mercadoria, em primeira instância, não pode
atingir nenhum dos requisitos de suas intenções pretendidas de uso. Parte-se, portanto,
de um valor x das faianças finas do qual são tiradas parcelas de valor depreciadamente.
É uma forma da produção conseguir um mínimo de lucro em torno de peças que de
outra maneira seriam descartadas
19
.
Uma vez que as louças T.P. seriam “inferiores” segundo o controle de qualidade
da fábrica, seu valor decresceria, ficando mais baratas. A partir deste ponto forma-se o
18
Lembro que o esvaziamento do valor de uso de um objeto não significa que ele o tenha mais valor
(MENESES 1980: 12).
19
O mesmo princípio é utilizado em muitas feiras no Brasil que, ao final do dia, vendem a “chepa”.
213
preço de mercado destes produtos através dos processos dinâmicos, temporalmente
orientados, do metabolismo do capital (PRADO 2007: 760). Basta termos em mente que
o valor de mercado, para a formação do preço de mercado, não pode ser explicado
somente pelas tecnologias de produção da mercadoria, vindo a ser “uma propriedade
emergente das interações sociais estruturadas que constituem o próprio sistema
econômico como um todo” (PRADO 2007: 756), e que além do preço de produção,
enquanto expressão do valor do trabalho, para constituição de um preço de mercado é
necessário consideramos toda a gama de fatores micro e macroeconômicos das várias
interações entre demanda e oferta. São estas características que vão determinar o preço
final da faiança fina com defeito; no entanto, sabemos que não obstante seu preço de
produção ser o mesmo, não demanda por defeitos”, mas compra destes produtos
pelos consumidores que ao terem conhecimento de louças barateadas, pela existência de
pequenos defeitos que não impedem seu uso, estipulam os valores máximos dos preços
que desejam pagar por estas louças – dialogando com o preço mínimo que os produtores
desejam receber por elas e que será quase sempre, se não sempre, mais baixos que
suas correspondentes sem defeito.
Enfim, são, deste modo, consumidas. Destarte esta variabilidade nas concepções
de defeito na produção, nem por isto os consumidores conseguiriam percebê-los, já que
muitas vezes alguns destes defeitos nem mesmo m expressividade visual na
performance final dos objetos
20
. Por isso o Convênio da Louça criou a categoria T.P.,
“louça tipo popular”, certamente porque seria vendida a preços módicos para camadas
da população que não as elites e a classe média (o que não impede seu consumo por tais
grupos). Assim, a louça de um mesmo fabricante, com as mesmas decorações, mesmos
selos, etc., poderia ser encontrada tanto no refugo de um operário quanto num sobrado
da elite, que seriam louças de uso cotidiano. O desafio es em identificar estes
defeitos ou tentar inferir quando a louça foi vendida mais barata, ou de segunda mão.
Ao menos levantar esta possibilidade, já é estar ciente deste imbróglio arqueológico.
20
Na Fábrica de Porcelana Monte Sião existe o que os trabalhadores chamam de “louça choca”, uma
louça esteticamente idêntica a qualquer outra, mas cuja sonoridade é mais “seca”, e não tanto tilintada ou
metálica (mais próximo a da porcelana), deixando as peças com menos resistência a choques mecânicos.
O reconhecimento deste defeito, que leva as louças a serem vendidas a preços bem menores na bancada
de louças com defeito, que existe na loja da fábrica, é puramente baseado na audição, para quem conhece
o efeito e está acostumado ao som que este tipo de louça faz (batendo nela com a unha dos dedos das
mãos, como num “peteleco”). O sentido da visão não é utilizado para o reconhecimento no controle de
qualidade. Que consumidor diferenciaria, então, estes produtos?
214
Além disto, se o documento relata que os comerciantes estavam reclamando dos
termos adotados deveria ser porque a não unificação das terminologias prejudicava os
preços não apenas entre fábrica e comerciante, mas entre comerciante e consumidor,
pois o comerciante não saberia se a louça de determinada fábrica era “tipo popular” ou
“tipo único” pela avaliação do produtor, podendo ter perda no lucro ao comprar louça
popular como 1ª classe ou mesmo vender louça 1ª classe como tipo popular. Era
importante, neste ponto, para o desenrolar das relações de valor estabelecidas pelo
capitalismo nas operações de trocas comerciais, que as terminologias fossem unificadas.
O Estado de São Paulo, de 01 de Dezembro de 1915, publicou uma Tabela de
cobrança do ‘Imposto de Commercio’ de accordo com o Art. 40 da presente lei”, na
qual se pode constatar, além classificação das louças em e 2ª classe, o preço reduzido
do imposto sobre as do segundo tipo (em quase 50%). Como pode ser visto, São Paulo
da época possuía casas de comércio de louças de classe, evidenciando que existiam
casas de louças que as comercializavam, teoricamente, muito mais baratas (sendo que
poderiam ser da mesma fábrica e mesmo fabricante que as louças 1ª classe).
Estas complexas dinâmicas de mercado foram muitas vezes ignoradas nas
interpretações em torno das louças brancas de sítios arqueológicos. Maior parcimônia
deve ser dada as abordagens que giram em torno do estudo do status sócio-econômico
215
ainda pensado em torno das faianças finas de sítios históricos. Primeiramente, o cuidado
com interpretações migradas e aplicadas dos EUA e Inglaterra para o Brasil, como as
tabelas de preço e os picos de consumo estipulados por Miller (1989, 1991). Para
Beaudry, Cook e Mrozowiski (1991: 152), pesquisas que m por fim a utilização da
escala econômica de Miller “residem fora do domínio de uma verdadeira investigação
antropológica e de fato reduzem a Arqueologia Histórica à mais seca e impessoal sorte
de história econômica”. Não se pode anular a conjuntura histórica do país, claramente
diversa daquela de seus companheiros anglo-saxônicos; picos de consumo não
equivalem sempre a picos de produção e tabelas de preço não são as mesmas em todo o
mundo, já que a demanda é parte estrutural das relações sociais específicas, e, portanto,
culturais, de cada sociedade.
Além disto, o caminho do objeto e suas táticas de aquisição pelos consumidores
são muito mais complexas. Como saber como foram adquiridas as louças de um
sobrado na capital paulista? Eram louças de linha, usadas, ou de classe, eram
contrabandeadas (MACHADO 2005), roubadas? Existe a possibilidade de, todos os
transfer-printings de um sítio arqueológico, por exemplo, terem sido comprados como
louça T.P., e importadas como, já que são freqüentes os problemas de finalização do
encontro das transferências especialmente nas abas de recipientes abertos, como pratos,
pires e travessas
21
. Se estas louças forem utilizadas num jantar, provavelmente tudo isso
seria imperceptível, e o status do uso do transfer perduraria sem estabelecer,
necessariamente, correspondência direta entre altos valores e status sócio-econômico de
seus usuários.
Isto leva a crer, igualmente, que nada impede que no refugo de uma casa operária,
exista a mesma louça de um sobrado de um barão, que o que mudou foram as formas
de aquisição do artefato e seus usos, e não necessariamente o artefato em si. Faz cair por
terra, a associação louça e status sócio-econômico, ainda mais para a realidade dos sítios
arqueológicos do estado de São Paulo onde muitas vezes o material arqueológico está
dissociado de qualquer estrutura construtiva, revolvido meio a um canavial.
21
Segundo Bockol (1995: 47), a técnica e padrão decorativo conhecido no Brasil como Borrão Azul
(Flow Blue) nasceu da necessidade de camuflar o problema da finalização dos transfer-printings e outros
problemas seus na pintura. Com a superfície borrada, não é possível perceber o antigo defeito. Isto fez
com que ao invés de uma depreciação do valor de uso do produto, ao desenvolver esta técnica, seu valor
aumentasse. Por outro lado, para Pye (2007) o Borrão surgiu como defeito devido a propriedade do azul
cobalto de borrar naturalmente no forno, levando a decoração a escorrer, mas este “defeito” foi
incorporado como técnica decorativa e ao invés de ser visto como desvio de norma de qualidade foi
transformado em padrão (em efeito”), pois percebeu-se que se poderia induzir o azul cobalto a escorrer,
e assim foi comercializado.
216
Assim, ao pensar os consumidores da produção de louças da Fábrica Santa
Catharina / IRFM – São Paulo não me restrinjo a classes segundo uma definição
econômica, que variadas são as formas de aquisição desta louça (SCHIFFER 1972).
Alguns dos defeitos diagnosticados na análise geraram louças que seriam, sim,
consumidas, as mesmas louças encontradas em casas mais abastadas, que as compraram
“sem defeito” (ou não...). Nada impede o consumo de uma louça com uma bolha no
esmalte. Por isso questiono nossas análises em torno do status socioeconômico através
das louças em faiança fina. A existência da categoria classe, e ainda mais da louça
“tipo popular” segundo documentação contemporânea, é mais do que evidência do
consumo de louças mais baratas e com defeitos.
O consumo do “tipo popular” como entendido no documento, da louça classe,
tem bastante a ver com a reutilização de artefatos que, segundo Schiffer, seria comum a
todas as sociedades, causada pelos mais diversos fatores, com destaque para o menor
custo da reutilização em relação ao custo de aquisição ou produção de um novo artefato
(SYMANSKI & OSÓRIO 1996). No caso da venda de louças de segunda mão, por
exemplo, poder-se-ia pensar nos processos de ciclagem ou circulação lateral destas
peças, que levariam a uma pequena mudança de usuário e/ou de unidade social, o
artefato mantendo sua forma e função originais (SCHIFFER 1972: 159; SILVA 2000:
201). o consumo das louças com defeito mais “aparente” (lembrando que, quiçá,
invisíveis aos olhos do consumidor), como as de classe ou T.P., não se encaixa,
porém, na descrição do que Schiffer chamou de processos de conservação ou
manutenção, quando uma reforma do artefato, que continuará exercendo a mesma
função (MORAES 2005). No caso destas louças, os processos culturais de reutilização
dos artefatos caracterizam-se pelo uso e consumo de artefatos produzidos, não
intencionalmente, com defeitos aparentes (e conscientemente percebidos pela
produção), sem a modificação de sua forma ou a reparação do defeito (diferentes,
portanto, dos processos de conservação e manutenção).
Portanto, muitos dos atributos que analisei como “defeitos” nas faianças finas do
sítio Petybon, têm probabilidades de aparecerem em louças em esferas de consumo.
Gretamento, bolhas, amassados, espirros ou manchas de tinta, pequenos fragmentos de
massa sob ou sobre o esmalte são defeitos freqüentes na produção de louça branca. Isto
nos leva a outro ponto deste texto: é óbvio a existência de faianças finas com defeitos
porque, segundo os produtores, “louças sem defeitos não existem”. A análise do sítio
217
Petybon, dessa maneira, possibilitou a compreensão dos desafios que se colocam a um
processo produtivo de faianças finas e conseqüentemente a uma compreensão mais
íntima deste processo.
Manter a temperatura do forno sua manutenção (produzindo tijolos), impedir que
as louças cozinhem demais, ou de menos, o cuidado na manipulação, as fôrmas, tudo
isto exigia da fábrica a formação de profissionais aptos ao serviço, a fim de diminuir ao
máximo as perdas e os custos da produção. O uso de cones pirométricos, por exemplo,
denota a preocupação em equilibrar a temperatura do forno e controlar a queima,
evitando a perda de toda uma fornada. As estratégias produtivas desenvolvidas pela
fábrica visavam, assim, produzir faianças finas ideais sem defeito”, mesmo que isso
fosse impossível. Por isso, as estratégias, e os desafios, estavam no produzir uma louça
o mais próximo possível da “ideal”, com menos defeitos quanto possível.
Atualmente, a Porcelana Monte Sião, com apenas um forno em funcionamento,
pode gerar até 10% da fornada com louças com defeitos. Uma fornada contém em
média 35 mil peças, e o forno é posto em ação, em geral, uma vez por mês (tempo que
engloba a produção de peças cruas para serem queimadas, juntamente com as 48h de
queima e as outras 48h de resfriamento para poder ser aberto e então totalmente
esvaziado)
22
. Se projetarmos os mesmos dados para a Fábrica Santa Catharina,
teríamos, por mês, um total de 28 mil peças com defeitos para descarte e um total, ao
fim dos 24 anos de seu funcionamento, 8.064.000 peças com defeitos. É claro que esta é
apenas uma estimativa, mas nos uma pequena idéia do montante de louças
descartadas por uma brica. A quantidade de louças com defeito pode ser pequena em
relação ao total de louças aptas para a venda, mas é exorbitante se pensamos no
tamanho do refugo e no tamanho do sítio arqueológico que ele formaria.
Durante a produção de faiança fina, todo defeito diagnosticado nas peças entre sua
retirada do molde de gesso e antes da primeira queima, do biscoito, nunca serão
encontradas num sítio arqueológico. No sítio Petybon o vestígios desta etapa da
produção, uma vez que tudo que é feito antes da queima do biscoito é passível de ser
reaproveitado, moído, e misturado novamente à pasta. Somente em uma fábrica em
funcionamento, como a Porcelana Monte Sião, é possível perceber este processo. Em
geral, as louças em “estado de couro”, saídas dos moldes, podem sofrer impactos
mecânicos durante sua manipulação, gerando amassados, rachaduras e quebras. São
22
Entrevista a Almir Ricardo Virgílio, auxiliar de administração da Porcelana Monte Sião, na qual
trabalha a 24 anos, realizada em Maio de 2008.
218
então, devolvidas à pasta. Na Porcelana Monte Sião, mesmo as peças cruas já decoradas
voltam à massa.
Tudo que gera defeito pós-queima do biscoito é quase impossível de ser
reaproveitado. Isto porque misturar o biscoito à própria pasta da faiança fina pode
alterar o ponto de fusão das peças, gerando mais defeitos. Uma das saídas, quando estes
defeitos não são muito aparentes, é a continuidade do processo e a venda de louças mais
baratas, como apontamos acima. Estamos falando de defeitos como pequenas bolhas
na superfície das peças, fragmentos de massa crua sobre o esmalte, rachaduras bastante
discretas na parte externa, leves amassados e manchas de tinta. Isto é, defeitos que o
impedem a performance final do artefato no que concerne a atingir seu objetivo
pretendido funcional: conter os alimentos. Bolhas, problemas no campo decorativo,
deformidades leves e pequenos fragmentos de massa nas bases o impediriam o
consumo, pois o impossibilitariam o uso. Não estes produtos poderiam ser
vendidos, compondo as louças classe ou “tipo popular”, como se sabe que a própria
Fábrica Santa Catharina lançava fora de seus muros, na rua, uma parte das louças
produzidas que por alguma razão seriam descartadas de qualquer maneira (quantidade
de louças classe em excesso ou louças muito defeituosas, impossíveis de
reaproveitamento somadas as dificuldade da coleta de lixo e de se “livrar” dele nesta
época na cidade).
Segundo Dona Ignêz Cavalheiro, nascida na Lapa em 1917, moradora do bairro
por 76 anos, a Santa Catharina /IRFM São Paulo jogava louças na rua na certeza de
que a população dali pegaria os cacos e as peças inteiras ainda utilizáveis – seja também
para jogar amarelinha seja para tampar os enormes sulcos que as rodas das carroças
deixava na rua de barro. Não é à toa que Dona Ignêz identificou as louças no biscoito
como “louça bruta” e “louça dos pobres”
23
. Isto porque as louças no biscoito
descartadas eram também consumidas, “coletadas” sem custo, pela população local
(quem liga para vidrado?
24
). Segundo ela, o biscoito também era comprado para
consumo e alguns operários obtinham da Fábrica louças “em conta”, ou seja, mais
baratas, e acabavam revendendo-as: “eu lembro que tem gente que comprava como pra
ele, mas ele vendia”. Deste modo, a louça acabava sendo associada a “fulano” que
revendeu ao invés de à Fábrica em si (“fulano vendeu 2 vezes”, “comprei de fulano”).
Obtendo louças mais baratas que aquelas vendidas nas lojas, os operários não apenas
23
Entrevista a Dona Ignêz Cavalheiro em 2006.
24
O biscoito, uma superfície biscoitada, também pode ser uma decoração em si.
219
tinham as mesmas louças que casas mais abastadas, para consumo diário, como também
poderiam revender as mesmas com preços diferenciados daqueles das lojas, obtendo
renda extra.
O consumo dos biscoitos aponta para direção oposta daquela seguida pelo
discurso higienista e sua síndrome de esmaltes e vidrados. Parece, realmente, que o
discurso higienista sobre os objetos de uso cotidiano para consumo de alimentos e
higiene pessoal enquanto ideologia surgida no seio das elites, transformou-se em
estratégia disciplinadora que deveria ser incutida no comportamento de vários
consumidores, através da fabricação de louças brancas nacionais vidradas. Forma de
controle social no âmbito de um projeto de modernidade. No entanto, ainda sim uma
parte da população continuou consumindo, como sempre, cerâmicas porosas sem
esmalte, como os biscoitos (além de panelas de barros e outros recipientes como talhas e
moringas), daí, talvez, a necessidade de maiores esforços por parte dos médicos da
saúde pública em mudar hábitos e louças. Se objetos esmaltados ainda não eram
unânimes, seriam em mais duas ou três décadas dominantes absolutos em quase todas as
camadas da população concomitante ao aumento do uso do vidro e, futuramente, do
plástico, higienicamente corretos. A “louça dos pobres” mostra que o esmalte acabou
sendo um atributo muito mais, nesta conjuntura, simbólico do que propriamente
funcional, já que atendia às demandas dos novos comportamentos higiênicos. Apesar de
poroso, o biscoito da faiança fina pode conter líquidos e alimentos sólidos sem maiores
problemas ou com tantos “problemas” quanto a cerâmica comum.
Visões mais deterministas e funcionalistas, por exemplo, o se encaixam em
contextos assim, que as louças no biscoito assim como as defeituosas foram
consumidas por camadas da população que criaram outros mecanismos para burlar o
isolamento econômico e a restrição de acesso a alguns bens materiais criado pelo
capitalismo que se consolidava. Enquanto categoria cerâmica, o biscoito da faiança fina,
apesar de representar apenas uma etapa do processo de produção da louça afinal de
contas, em última instância, a Fábrica produzia louças em faiança fina, e não biscoitos,
– poderia ser também um produto a ser vendido por si só, hipoteticamente, tendo
atributos que o habilitariam para o consumo, como qualquer outra cerâmica simples.
Lembro do que Kathleen Deagan classificou como bizcocho, na coleção gerada
pelos trabalhos em Saint Augustine, um tipo de cerâmica presente em muitos lugares da
região do Caribe, produzido tanto na Espanha como na América Central Hispânica. O
220
bizcocho caracteriza-se por uma pasta fina, de coloração creme ou branco fosco, com
superfície alisada, sem qualquer vidrado. Pode aparecer como o biscoito de uma
majólica (ou seja, a majólica antes da aplicação do vidrado e da segunda queima), no
entanto seu tratamento de superfície e a dureza da pasta superior a da majólica sugere
sua fabricação mesmo como biscoito. Apesar de ter sido produzido e usado na Espanha
até o século XIX, sua ocorrência na região do circum-caribe se restringe ao século XVI
(DEAGAN 2002: 43). Muitos dos exemplares pertencentes ao Gabinete de Arqueologia
da Oficina Del Historiador em Havana, Cuba, por exemplo, o recipientes para
líquidos, em sua maior parte botijas, questionando igualmente a não utilidade de
recipientes no biscoito para líquidos.
Seja, portanto, como “louça tipo popular”, “louça tipo único” ou louça dos
pobres” o fato é que os milhares de mecanismos de consumo e as várias estratégias
produtivas estabeleceram relações dialogais entre si que resultaram num movimento
tentacular da louça em faiança fina brasileira pelas diversas camadas da população e
espaços da cidade de São Paulo. Reduzir a análise da louça branca a uma classificação
de preços é talhar estes processos complexos da vida dos objetos e de suas relações com
o ser humano, como os que procurei aqui apresentar.
221
SUB-CAPÍTULO 3.4
ESCRITOS NA ARGILA: ARQUEOLOGIA, EPIGRAFIA E AS INSCRIÇÕES
DO SÍTIO PETYBON – OU POR UMA ARQUEOLOGIA INDUSTRIAL DA
PRODUÇÃO, DO TRABALHADOR E DO TEMPO
Não seriam as várias filosofias do tempo tentativas de juntar
os cacos do tempo? (Peter Pál Pelbart, A Vertigem por um
fio)
I fear that in historical archaeology we have so emphasized
artefacts and things that we have forgotten how to
understand that it is their context and meaning that is just as
significant as the matrix of the things themselves (Mark
Leone, Archaeology and democracy, 2007)
Quando pela primeira vez vi os pedacinhos de louça com inscrições numéricas
(e algumas palavras) do sítio arqueológico Petybon, uma antiga brica de louças dos
começos do século XX, na cidade de São Paulo, não dei a devida atenção, partindo para
a análise e reflexão da cerâmica branca. Apesar disto, busquei um aparato bibliográfico
que disponibilizasse um arcabouço teórico e prático para uma primeira reflexão e sobre
o que afinal seriam esses números: controle da produção apenas? Assim, ferramentas
que não são usadas pela Arqueologia Histórica brasileira, como a Epigrafia, e leituras de
pesquisas envolvendo reflexões sobre o capitalismo chamaram atenção para o contexto
no qual esses escritos foram encontrados: uma fábrica, no início do século XX. O que
não era uma fábrica nesse período!
As problemáticas em torno disto possuem uma vasta bibliografia na Arqueologia
e na História, e a partir daí comecei a consolidar algumas idéias em torno destes
vestígios materiais. Não é objetivo aqui fechar qualquer discussão sobre o tema, seja
sobre a fábrica (as novas ideologias e métodos de produção elaborados no início do
século passado e a questão da produção, da sociedade de disciplina e dos trabalhadores),
seja sobre os métodos de análise em Epigrafia e Arqueologia Histórica.
Dentre o enorme montante de materiais resgatados do sítio Petybon, encontram-
se os pequenos fragmentos de louça com inscrições. São 08 os fragmentos com
inscrições numéricas, provenientes em sua maior parte das unidades de escavação
localizadas nos fundos do terreno da fábrica, local provável do quintal onde geralmente
nas fábricas de cerâmica branca são descartados os refugos da produção, local também
mais próximo aos fornos (ZANETTINI ARQUEOLOGIA 2003). Com certeza existiam
222
muito mais em outras áreas do sítio e, apesar de poucos em quantidade, são uma
evidência interessante que permite algumas reflexões em torno do funcionamento da
fábrica e, conseguinte, sobre alguns aspectos ligados a cidade de São Paulo, aos
trabalhadores e à industrialização.
Por fim, o título deste sub-capítulo teve inspiração na antiga obra do pesquisador
Edward Chiera (1885-1933) que, em 1938, em suas reflexões sobre a Babilônia e a
enorme biblioteca encontrada com milhares de “livros” escritos em tabuinhas de argila,
teve publicado um livro com o sugestivo nome They wrote on clay. Embora
pertencentes a um contexto completamente diferente do anterior, porque não pensar que
os trabalhadores da fábrica de louça paulista “had written on clay” também?
Epigrafia e Arqueologia Histórica Brasileira
A origem da ciência chamada de Epigrafia está ligada a um contexto específico
bem diferente do nosso, apesar das evidentes ligações entre a Arqueologia e a
Lingüística (FUNARI 1999). A partir do século XIX, com pesquisas arqueológicas em
número cada vez maior nas áreas de “origens da civilização”, a fim de forjar e reforçar o
cânone ocidental (BERNAL 1988), foram descobertas inúmeras inscrições em argila,
madeira ou rocha. A partir dos trabalhos de Theodore Mommsen as inscrições
constituíram-se na “primeira categoria substancial de fontes arqueológicas que passaram
a determinar e influenciar, de maneira decisiva, a escrita da História, ainda no século
XIX” (FUNARI 2005: 89). Apesar disso, sempre houve um privilégio das rochas e
“pedras” como suporte nos estudos (FRANCISCO 2007: 50). Somente em meados do
século XX a noção do que era Epigrafia passou a se ampliar para outras épocas e
lugares, haja visto, por exemplo, a chamada epigrafia cristã ou ainda, na América
Latina, os estudos de epigrafia maia (BRICKER 1995).
Quanto ao público e às audiências das inscrições, o tema é bastante debatido.
Mann (1985) e MacMullen (1982), apesar de discordarem quanto à questão da
existência de um “hábito epigráfico”, concordam quanto ao fato de que “inscriptions do
not give us information about the total population of an area. They merely tell us
something about the people in that area who used... inscriptions” (MANN 1985: 233). A
questão da audiência é importante, uma vez que existem inscrições que não são
destinadas ao espaço público, tais quais as louças escritas do Petybon.
223
No Brasil podemos dizer com segurança que não estudos de Epigrafia em
Arqueologia Brasileira, devido mesmo às características da cultura material do país que
descende de um outro processo histórico. Contudo, uma abordagem epigráfica poderia
(e foi em alguns casos) ser dada a alguns materiais que contêm inscrições, como tijolos
com símbolos (PAIVA 1996) ou marcas de fabricantes (MAESIMA 1997), túmulos
(LIMA 1999) e até canhões (BAVA DE CAMARGO 2003).
É Francisco (2007: 52) quem melhor sintetiza os pressupostos da análise
epigráfica enumerando: 1) Conteúdo (o que foi escrito, a mensagem e os atores
envolvidos), 2) Contexto Histórico (o ambiente no qual foi produzida, difundia e
recepcionada) e 3) Materialidade (estilo de letra, técnica de produção, características do
suporte e contexto arqueológico). Assim, ao analisarmos as inscrições temos de ter em
mente:
- Texto: o que está escrito e como / com o que foi escrito
- Suporte: onde está escrito e por que
a) Análise das inscrições
A maioria do que está escrito nas peças que dispomos o numerais. Os
numerais estão todos escritos em caracteres arábicos, cardinais. As poucas palavras
escritas, (c)ha, cafe e pires, estão em letra cursiva, minúscula, do alfabeto latino e
nenhuma das palavras que hoje recebem acento (chá e café) possuem acentuação. É
interessante perceber que estas palavras poderiam ser perfeitamente compreendidas sem
os acentos; aliás, não outro modo, por exemplo, de ler a palavra chá que não sendo
oxítona. Para um leitor do português, o emissor se fez compreender.
Em linhas gerais, temos nas inscrições cálculos, constatações de quantidades e
constatações de quantidades acompanhadas de palavras (provavelmente designando o
que estava sendo contado). As inscrições são as que seguem abaixo:
1 2 3
224
4 5 6
7
8
O estudo das letras (se capitais ou cursivas) e a composição de traços são pontos
importantes na análise epigráfica. A letra de mão ou cursiva, por exemplo, possui
características morfológicas que a distingue das capitais, pois “possui uma flexibilidade
e uma estética particularmente maleáveis” (FUNARI 1996: 32), o que fica latente nas
poucas palavras escritas aqui. também uma regra geral que aponta para a relação
diretamente proporcional entre a forma da letra e o número de traços (FUNARI &
CARRERAS 1998: 19). A análise do tipo de letra poderia, teoricamente, nos informar
quantas foram as pessoas que escreveram e se havia mais de uma pessoa que o fazia.
Isto teria uma relação direta com a especialidade do trabalhador e com a difusão da
escrita e da alfabetização dentre os operários da sociedade paulista da época. A
quantidade de tipos de número segue na tabela abaixo.
Números
Inteiros Fragmentados
Zero (0)
Um (1)
Dois (2)
Três (3)
225
Quatro (4)
Cinco (5)
Seis (6)
Sete (7)
Oito (8)
Nove (9)
Não
Identificados
Neste trabalho, preferi o ligar traços diferentes a pessoas diferentes. Pude
perceber, com a análise, que em diversas inscrições números iguais o escritos de
diferentes formas. Primeiro, apesar de serem um mesmo material, os biscoitos têm
pequenas diferenças, pequenos riscos, “micro-imperfeições” que podem alterar a letra
de alguém. Uma mesma pessoa pode estar escrevendo em um biscoito com mais sulcos
(que fazem parte do próprio processo de formação e tratamento de superfície da peça
crua) que alterarão o traçado, ou com menos sulcos, permitindo um traçado mais
contínuo. Além disso, o tamanho do suporte, do biscoito, em relação à base de apoio (a
mão?) também pode influenciar no tipo de traçado e de letra.
Segundo, concordo com o pressuposto de Saussure segundo o qual “o valor das
letras é puramente negativo e diferencial; assim, uma mesma pessoa pode escrever o t
com as maiores variantes (...) A única coisa essencial é que esse sinal não se confunda
com o de l, o de d, etc.” (MARTINS 1996: 53). No final, a forma pouco importaria, pois
não alteraria a informação que se quer passar.
Qual a ferramenta/instrumento da escrita? O artefato chamado lápis aparece
como o mais provável instrumento, que o material das inscrições é o grafite. Outro
ponto que parece indicar para o lápis é o fato de que as palavras em letras cursivas
226
geralmente são escritas com instrumentos que permitem uma continuidade do traço,
fazendo com que as letras se entrelacem de forma sutil (FUNARI, 1996: 32).
(c)ha cafe pires
Entendo aqui o pis como um instrumento para escrever, desenhar ou riscar,
que consiste em, ou contém, um estilete de grafita, próprio para marcar superfícies
(HOUAISS 2001: 1723). Pelo menos para o Brasil, sabe-se que as primeiras fábricas de
papel iniciam sua produção entre 1925 e 1930. É apenas com o final do século XIX e
início do XX que a demanda pelo lápis vai começar a crescer, uma vez que se prolifera
um mercado consumidor requisitando esses tipos de materiais. Portanto, pelo menos até
a década de 1920, os lápis existentes no Brasil vinham do estrangeiro.
o grafite é o material que compõe os traçados de letras e números. O grafite
na verdade é o fino bastão que serve pra escrever, existente dentro do lápis ou em
separado, composto de grafita, uma variedade alotrópica do carbono natural ou
sintético, usada industrialmente para fins variados (HOUAISS 2001: 1473).
Ressalta-se que o lápis e o grafite não são instrumentos exclusivos da escrita. Na
Fábrica, percebe-se, pela cultura material, que o lápis possuía vários usos, como
desenhar, por exemplo. Alguns vestígios mostram que o lápis ou o instrumento
correspondente com grafite se fazia presente também na etapa da decoração (ou nos
ensaios decorativos) uma vez que poderia ser usado como contorno do desenho que
seria posteriormente pintado, como pode ser visto no prato fundo com decoração trigal e
laçaria, no biscoito, abaixo.
Detalhe do fragmento onde a
pintura não seguiu a linha traçada
previamente.
Vestígios de linha de grafite (ou
lápis), desenhada antes da pintura,
contornando a mesma.
227
b) Análise dos suportes
Algo que ainda é pouco trabalhado nos estudos de Epigrafia é a relação entre a
inscrição e o suporte, questão “sub-explorada” com privilégio do conteúdo e da
materialidade das inscrições (FRANCISO, 2007: 50). Como se escreve e o resultado
final da escrita (enquanto imagem) vai depender da posição, tamanho e características
da superfície do suporte. Suportes e inscrições (ou grafismos) devem ser estudados
como um só ente. A escolha do suporte, portanto, não é neutra. É importante refletirmos
tanto sobre o porque de um suporte não ter sido usado, como sobre o porque de um
outro ter sido, além de reflexões sobre os estilos e os modos de fazer.
Pensar em suportes é pensar também no fator tempo, que a inscrição terá a
mesma durabilidade de seu suporte. O fato de serem feitas em suportes rochosos,
cerâmicos ou metálicos passa, então, a caracterizar as inscrições como algo feito para
durar: os suportes dão materialidade às inscrições, que atravessarão o tempo. Elas são,
assim, investidas do tempo geológico de seus suportes, sob o efeito, é claro, das
variações climáticas e ambientais. As inscrições passam a ser suportes físicos e suportes
semânticos abarcando duas dimensões da imagem, uma no tempo social e uma no
tempo mineral (VIALOU 2000: 382).
Investidas de tempo, passam também a ser caracterizadas por sua imobilidade
(no caso de suportes fixos) ou mobilidade. As características de imobilidade/mobilidade
e visibilidade das representações gráficas como as inscrições passam a qualificá-las
como simbólicas, testemunhos de escolhas correspondentes às atividades individuais
e/ou coletivas culturalmente determinadas (VIALOU 2000). As expressões gráficas de
qualquer povo não são apenas condicionadas, mas motivadas por um universo
simbólico, cultural. O repertório cultural, na medida em que motiva, “fornece os
elementos de linguagem assim como os meios para a expressão, sejam musicais,
gráficos, fonéticos, corporais, etc.” (HORTA 2004: 45).
No caso estudado aqui, todos os suportes são os chamados biscoitos, ou louças
no biscoito. O biscoito é o produto resultante da primeira queima da faiança fina. Após
o processo de colagem ou torno, e uma primeira secagem à temperatura ambiente, o
produto, já com sua forma final, está pronto para ir para a primeira queima, a queima do
biscoito. Após isto, o biscoito é a superfície que será decorada, esmaltada e depois
seguirá para uma segunda queima (PILEGGI 1958).
228
Como comentei anteriormente, a escolha do suporte não é algo neutro. Na
verdade, a própria noção de “escolha” implica parcialidade (se é que a noção de
imparcialidade é válida em algum sentido). Escolhas são “efetuadas dentro de um
universo de possibilidades culturalmente constituído” (BUENO, 2005: 23) e o objetivo
aqui seria também refletir sobre a arbitrariedade das escolhas tecnológicas. Por que,
justamente, as inscrições foram feitas no biscoito?
Uma primeira razão a ser apontada é a das próprias características físicas do
biscoito. Além de constituir-se literalmente como uma “tela branca” onde a cor do
grafite do pis ressaltará muito mais do que, por exemplo, na cor amarronzada de uma
fôrma refratária, é impossível escrever sobre uma louça esmaltada. Escrever numa louça
pré-biscoito, ou seja, na massa crua, é possível, porém como a massa ainda é muito
macia, maior probabilidade de quebra durante o ato do trabalhador. Escrever sobre
essa massa crua é acabar fazendo incisões pouco duráveis com o lápis, devido à dureza
deste ser maior que a do suporte.
Eliminado o que havia de disponível de refugo da produção para ser utilizado
como suporte para as inscrições, poderíamos nos perguntar no por que da não utilização
de outros suportes externos à fábrica, como o papel. Ora, o papel ainda era caro para ser
utilizado assim em grandes quantidades, quanto mais num ambiente propício a muita
“sujeira” e umidade. As primeiras fábricas de papel do estado de São Paulo surgem
apenas no final do século XIX, quando em 1889 a Papel de Salto se torna pioneira na
fabricação de produto no país (ANDRADE & ZEQUINI, 1999: 12). Mesmo com as
fábricas nacionais, o mercado ainda dependia das importações. O papel com certeza
seria reservado aos documentos oficiais e burocráticos de controle da produção onde, ao
final do processo, provavelmente a informação das inscrições seria posta (ANDRADE
& ZEQUINI, 1999: 14). Os biscoitos funcionariam, assim, como “rascunhos”.
A quantidade de refugo da fábrica era enorme. Não apenas formado por
biscoitos, mas também por objetos com defeito. Temos que ter em vista que a massa
crua poderia ser moída e reaproveitada para compor novamente a massa cerâmica,
enquanto que tudo o que é gerado após a queima no biscoito não pode ser reaproveitado
no contexto da produção de novas louças (reutilizar, por exemplo, louças esmaltadas na
massa de novos produtos pode gerar mais defeitos). Um material disponível em
abundância e de fácil acesso, sem um fim claro de reutilização, constituindo o refugo da
produção, e sem uma ordem clara da fábrica sobre não utiliza-los, foi assim escolhido
para conter as inscrições.
229
Como disse, o biscoito possui características que irão alterar o design final das
letras e números escritos sobre ele. O fato de ser uma superfície porosa,
microscopicamente irregular, influencia no modo de escrever. Aparentemente, existem
alguns biscoitos com linhas incisas” (resultado do tratamento de superfície). Um
exemplo segue abaixo. Percebe-se como o número 5 (cinco) tem seus traços
interrompidos pelas linhas “incisas” da superfície do suporte (irregularidades que
teoricamente desaparecerão quando da esmaltação).
A relação entre a aspereza do biscoito como suporte pode também ter influído na
espessura do traçado e portando na relação entre a ferramenta e o suporte, o lápis e o
biscoito. Escrever sobre uma superfície mais áspera leva a um maior consumo de
grafite, pois o suporte retira muito mais grafite do lápis do que se um traço feito num
papel, por exemplo, e menos grafite do que um traçado sobre uma lixa. Vemos abaixo,
como a irregularidade do traço é diretamente proporcional à maior aspereza da
superfície do suporte.
Assim, linhas mais grossas correspondem a um maior consumo de grafite. Além
disso, a relação de que quanto menos se aponta, quanto menos se reaviva a ponta,
mais grosso o traçado fica e mais grafite é consumida; numa superfície como esta, no
entanto, uma ponta mais fina tem maior risco de se quebrar, devido as relações de força
Lápis sobre suporte
de papel sobre
superfície plana
Lápis sobre a louça
no biscoito
Lápis sobre lixa
Traçado do pis interrompido pelas
irregularidades da superfície do
suporte
230
(a força total é dada pela soma vetorial da normal com a força de atrito, o que para o
biscoito deve ser maior que ao papel) entre o suporte e a ponta, que dependerão das
características físicas destes e do ângulo do grafite em relação ao mesmo suporte, tendo
em vista o lápis como uma extensão da mão (PETROSKI 1996: 44). Antes da década de
1930, as pontas costumavam quebrar muito mais devido às características do design do
produto, até então com uma falha, que fazia com que, freqüentemente, a liga entre a
madeira e o grafite se rompesse e os lascasse (PETROSKI 1996: 51).
Quanto menos se aponta, mais grosso o traço, mas talvez maior a durabilidade
do lápis, já que apontá-lo com maior freqüência colabora ainda mais para acelerar o fim
de sua vida útil. A conclusão a que nos leva estas variantes é a de que o pis teria uma
vida útil muito menor do que seu correspondente sobre suporte de papel, o que, por
conseqüência, levaria a um maior consumo de lápis e a um maior gasto da fábrica
comprando-os. Se as primeiras fábricas de lápis em São Paulo iniciaram seus trabalhos
somente pela década de 1920, como comentamos anteriormente, quando se encontraram
as primeiras fontes de grafite, sendo, portanto, um produto importado, e assim mais
caro, podemos apenas imaginar se a administração da fábrica tomou alguma providência
contra isto, ou se o gasto era ínfimo no orçamento final.
Um último ponto a ser pensado aqui corresponde, novamente, à escolha. As
superfícies sobre as quais estão as inscrições são planas, na medida do possível. Isto nos
leva a crer que os trabalhadores não pegavam o primeiro fragmento de biscoito que
vissem, mas buscavam fragmentos mais ou menos planos. Como afirmou Funari (1990:
237), a forma das letras e traços depende muito de uma estrutura tecnológica específica:
a superfície disponível à escrita. Logo, este suporte tem, claro, uma forma física que vai
influenciar no design final da inscrição.
Esta nova forma que a louça adquiriu (de prato para fragmento), impõe algumas
limitações espaciais à escrita. Uma delas é, caindo um pouco na obviedade, a de que não
é possível ultrapassar os limites físicos do suporte e escrever “no ar” ou fora dele. Isto é
importante na medida que nos faz pensar sobre a necessidade de uma adaptação da
escrita à forma do suporte. Como os fragmentos são pequenos, o tamanho das inscrições
vai variar de acordo com a quantidade de informações que se quer escrever,
influenciando no tamanho das letras e traços (não levando em conta, aqui, possíveis
sobreposições). Portanto, o espaço onde a escrita deve ser colocada pode originar um
novo estilo de escrita (“estilo epigráfico”?) que pode ser mais conciso e sucinto se o
espaço for restrito (CORASSIN 1998/1999: 208).
231
A inscrição número 3, por exemplo, apresenta algo como uma lista de números
aparentemente aleatórios, que poderia estar ligada a números (códigos) que designam
formas (por exemplo, 3 = xícara), prática usual em fábricas de louça. Não podemos
afirmar com certeza que o número 3 da inscrição corresponde a alguma característica
das louças, porém o sítio Petybon possui peças com um número em baixo relevo no
frete (que se repetem em peças iguais).
As limitações do suporte, no entanto, ainda poderiam ser “dribladas”. No caso
dos suportes móveis horizontais, como é o caso do biscoito, a questão da orientação e da
percepção visual do espaço gráfico torna-se relevante (OTTE 1999: 240). Como um
suporte sem orientação natural, quer dizer, não sendo fixo, pode ser girado 360º, sem
cima ou baixo. Algumas vezes, vemos que o trabalhador que escreveu riscou linhas de
orientação para o texto, como na inscrição abaixo, número 6. Além destas estratégias de
orientação, a compreensão da escrita ocidental, no nosso caso, latina, colabora para a
percepção da orientação que a inscrição ao suporte: de cima para baixo, da esquerda
para a direita.
Linhas de orientação
Acidente ou erro
Números 7 e 3 em baixo
relevo (indicando o modelo e,
talvez, o tamanho) em base
de prato fundo.
232
Re-utilizações dos materiais em faiança fina: biscoitos para escrever
Se respondessemos a pergunta posta por Michael Stanislawski na década de
1960, “what good is a broken pot?” (1969), poderíamos dizer, evidentemente, e dentre
os milhares de usos, para a escrita. A questão das reutilizações dos objetos cotidianos é
um ponto com vasta bibliografia na Arqueologia. A abordagem ficou clássica com os
estudos de Michael Schiffer (1972; SCHIFFER & SKIBO 1997: 38), levantando
hipóteses sobre as possíveis funções e reutilizações dos objetos por grupos sociais
economicamente desfavorecidos (SYMANSKI & OSÓRIO 1996: 43), mas podemos
citar também os estudos de Alan Sullivan III (1989), que chamou atenção para
cerâmicas utilizadas para servir de material construtivo em arquiteturas diversas.
Como afirmou Rice, “as vasilhas possuem múltiplos usos durante sua vida útil,
de modo que o contexto arqueológico é meramente seu lugar final, mais do que um
indicador acurado de como foi sua vida útil” (RICE apud GOMES 2003: 220). A
imensa variabilidade no design dos artefatos está ligada a tentativa das pessoas de
resolverem também problemas do dia a dia (SCHIFFER & SKIBO 1997: 45), e o uso
dos biscoitos pode ser pensado igualmente segundo esta perspectiva. Necessitou-se de
um suporte para escrever algo, calcular, contar, etc., para resolver alguns dos problemas
que surgiram no cotidiano.
No campo da Arqueologia Histórica são menos os estudos, mas os que existem
são focados especialmente nas reutilizações de vasilhames cerâmicos (LISTER &
LISTER 1981) e, a maioria, nos vidros (BUSCH 1987). No Brasil a bibliografia é quase
inexistente. Podemos citar os trabalhos de Symanski e Ozório (1996), para as faianças
finas e Lima chamando atenção para os vidros (2002, p. 284), além de alguns artigos e
referências isoladas sobre a reutilização de faianças em Salvador (ETCHEVARNE
2003), reutilização de vasilhames de plástico e vidro adaptados às técnicas de pescaria
na região de Sauípe (Bahia) (SOUZA, no prelo), a reciclagem dos projéteis atirados a
uma fortificação em Pernambuco (ALBUQUERQUE & LUCENA 1988), o lascamento
de fragmentos de vidro na guarda espanhola de São Martinho, no Rio Grande do Sul
(MACEDO 1997) e telhas com betume utilizadas como “canos” nos sistemas de
abastecimento de água na São Paulo do século XIX (VILAR 2003).
No que se refere à fiança fina, pouco existe, mas a bibliografia americana
contém diversos exemplos sobre ciclagens laterais (a exemplo das faianças finas nas
233
plantations americanas [SYMANSKI 2009]) e alguns sobre análises das marcas de uso
(GRIFFITHS 1978) e análise de resíduos orgânicos (NEALE 2000).
O sítio Petybon é um local riquíssimo para análises deste tipo. A própria questão
da formação do registro nos leva a um processo de reutilização deste material para
outros fins, uma vez que as louças de mesa ligadas a consumo de alimento e outras
funções, entraram para a esfera construtiva ao comporem a camada de aterro utilizada
para a construção de uma nova unidade fabril. Louças com furos na lateral e na base
foram registradas no sítio, sugerindo sua reutilização como vasos para flores ou algo
parecido, a exemplo de uma pequena malga no biscoito, cuja base, de 3 cm de diâmetro
apresenta um furo (algo presente igualmente no Solar Lopo Gonçalves, em Porto Alegre
[SYMANSKI & OSÓRIO 1996]). Apesar de relevante, nosso interesse aqui é chamar a
atenção à reutilização das louças como suporte para inscrições.
No presente estudo, claramente, as reutilizações da louça como suporte para
inscrições se enquadram como um uso secundário do artefato, que após a quebra, os
fragmentos foram reutilizados como tal. No processo de reutilização para uma nova
modalidade de uso, não houve modificações deliberadas ou exageradas das
características formais originais (SILVA 2000). Essa reutilização, no entanto, parece
não ter sido aleatória, uma vez que fica claro, como comentei, a utilização de
fragmentos mais planos para conter as inscrições. Dentro de um pensamento contextual,
mais sistêmico, poderíamos dizer que houve um ciclo de manufatura (fez-se o biscoito),
descarte (quebra), recuperação do objeto descartado (uso secundário), novo uso com
entrada no universo da escrita e comunicação e, por fim, novo descarte (o objeto, por
assim dizer, deixou o contexto sistêmico do qual fazia parte, relacionado a um sistema
cultural, passando a fazer parte de um novo contexto, o arqueológico, sendo, então,
objeto de investigação do arqueólogo) (SYMANSKI & OSÓRIO 1996: 28).
Temos, portanto, os fragmentos de louças no biscoito re-apropriados e re-
significados como portadores de uma nova função, a de suporte a informações escritas.
Mas é interessante pensar também no fato de que este re-uso não se deu após o artefato
ter cumprido sua função primária, para a qual teriam sido originalmente produzido”
(SILVA 2000: 201) como geralmente ocorre. Os biscoitos usados como tal indicam um
processo produtivo que não foi finalizado, a louça propriamente dita ainda não existia;
como unidade fabril, esse material ainda o foi consumido, não saiu da unidade de
produção para a doméstica.
234
Assim, a função presumida do artefato não chegou a se concretizar. A não ser
que mudemos o foco e pensemos que (afora a possibilidade, um pouco remota na
realidade, da fábrica estar produzindo biscoitos cerâmicos com a finalidade de
permanecerem como biscoitos) a função primária do biscoito foi realizada no contexto
produtivo, função esta que seria esperar pela próxima etapa da cadeia. Logo, a produção
é a função primária da fábrica, que foi atingida, e não o consumo. Uma vez atingida
essa função primária, podemos dizer que os biscoitos a cumpriram, sendo agora alvo de
um uso secundário, de uma reutilização, pois foram danificados ou perderam a
capacidade (fragmentos quebrados) de cumprir satisfatoriamente a função para a qual
foram originalmente destinados (SILVA, 2000) (isto é, continuar o processo de
produção para chegarem à louça).
É sabido que nem todos os artefatos seguem um modelo linear (procura,
preparação, consumo, descarte), freqüentemente sendo reutilizados (SCHIFFER 1972:
158). Os processos de reutilização enumerados acima estão intrinsecamente ligado aos
processos de formação do registro arqueológico. As inscrições nos biscoitos são com
certeza refugos secundários, isto é, refugos dos quais o lugar final de descarte não é o
mesmo do lugar de uso (SCHIFFER, 1972: 161) os biscoitos escritos foram coletados
de um primeiro descarte. Os objetos da fábrica de louça, em sua maior parte, ainda nem
mesmo foram utilizados se pensarmos de um ponto de vista do consumo, mas sua
utilização, como dissemos, como aterro ou como suporte para inscrição já nos atesta um
refugo secundário. Na verdade, os vestígios das cidades seriam quase que
exclusivamente refugos secundários, que, como disse Schiffer (1972: 162), muitas
etapas de armazenamento e transporte intervêm entre o local de produção e o descarte
final. Isto fica claro dentro de uma unidade fabril com seus inúmeros armazéns e sua
localização espacial próximo a linha férrea para transporte até os possíveis mercados.
A questão da reutilização dos artefatos e dos fragmentos cerâmicos mostra que
deve-se tomar cuidado com visões etnocêntricas sobre o significados dos potes
quebrados”. A noção de objetos quebrados, dos descartes e dos refugos varia no tempo e
no espaço, e deve-se atentar para a questão do uso secundário dos objetos, para que não
associemos nossa visão de descarte (lixo) com a de outras épocas e lugares
(STANISLAWSKI, 1968: 16; SULLIVAN III, 1989: 101). Quebras e defeitos não
significam o fim da vida útil do artefato.
235
Produção e controle numa unidade fabril: o Taylorismo e o Tempo
O contexto no qual foram encontradas as inscrições não pode de modo algum ser
esquecido: o sítio Petybon é parte do que foi uma antiga fábrica de louças, uma unidade
fabril implantada na Lapa nas primeiras décadas do século XX. O que chamou atenção e
talvez tenha impulsionado um maior interesse pelas inscrições do sítio, foi a leitura do
trabalho de Daniel Barber e George Hamell sobre uma fábrica de cerâmica vermelha
(redware) no oeste de Nova York, EUA, onde, durante os trabalhos de campo, foram
encontrados peças do processo produtivo, muitas das quais parecidas com aquelas do
sítio Petybon. O sítio que é parte da Fábrica Alvin Wilcox, que funcionou no local
durante a segunda metade do século XIX, também apresentou artefatos com cálculos
numéricos que foram associadas pelos arqueólogos a testes de temperatura nos fornos
(BARBER & HAMELL 1971: 36). Mas não maiores informações sobre as
inscrições. A similaridade dos achados me fez refletir sobre sua ligação com contextos
fabris tão espacialmente longínquos, mas que deveriam ter semelhanças quanto ao
processo produtivo, o qual levou alguém a escrever cálculos num fragmento o
esmaltado da própria cerâmica produzida pela Fábrica.
Logo, pensar nas inscrições que temos é pensar no porque de estarem ali: quem
contaria num contexto fabril? Contar o que? Para que? Para quem? Calcular e contar o
que se produz durante o processo de produção é também pensar no quanto: Quanto será
produzido? Por quem será produzido? Para que? O ato de contar algo numa produção
significa, obviamente, que esta produção está sendo contada e que, por conseguinte,
estará relacionada a um tempo, o tempo de produção dos objetos a serem contados. Que
tempo é este? Quem estipula o tempo? Que concepção de tempo está regendo a
produção e o trabalhador? E, por fim, se pensarmos as inscrições nos biscoitos como
“cacos de tempo”, como disse Peter Pélbart (2000: 186), que tempo é este contido num
fragmento?
Como as inscrições estão claramente ligadas ao processo produtivo da Fábrica,
fica patente o fato de pensar sobre como se organizava este mesmo processo. O sistema
de fábrica (que, lembremos, transcende o capitalismo), teve clara intenção de “organizar
e disciplinar o trabalho através de uma sujeição completa da figura do trabalhador” (DE
DECCA 1982: 10). Para a brica da sociedade disciplinar (FOUCAULT 2007;
DELLEUZE 1992) como a que está se conformado na São Paulo desta época (RAGO
1997), o taylorismo como uma nova forma de organização do trabalho auxilia pensar
236
sobre estes vestígios arqueológicos e sobre a concepção de tempo que parece instalar-se
dentro do universo fabril. Não estou, com isto, dizendo que as inscrições nos biscoitos
são materializações de uma ideologia, mas, sim, que o sistema fabril pode gerar
vestígios materiais específicos integrantes das relações diversas entre as novas formas
de organização do trabalho e o trabalhador.
O taylorismo, assim como o fordismo e outras formas de racionalização da
indústria, caracterizaram-se por métodos que possibilitariam uma maior produtividade
do trabalho, economizando tempo, suprimindo gestos e comportamentos supérfluos no
interior do processo produtivo (RAGO & MOREIRA 1984: 10; CORIAT 1994).
Objetivando a aplicação dos métodos científicos na produção, levando a uma máxima
eficácia, melhor rendimento, máxima produtividade e pouca perda de tempo, o
taylorismo não apenas concretizou a noção de “tempo útil”, mas também pôs nas mãos
da figura do gerente o controle do conhecimento da cadeia operatória (LAZAGNA
2002: xxiii). Na Fábrica aqui estudada, isto fica muito claro ao vermos que Romeo
Ranzini, técnico em química, passou a deter todo o conhecimento da cadeia, escrevendo
seus conhecimentos científicos em cadernetas (Coleção Ranzini, Museu Paulista), a
ponto dos Matarazzo assinarem com ele o contrato no qual estava obrigado a “instruir o
Engº Paride Marchezi sobre Fabricação de Louça” passando todo o conhecimento da
produção aos novos donos.
A padronização das formas de produzir é, assim, acompanhada de uma avaliação
da produtividade, avaliação esta materializada no cronômetro (RAGO & MOREIRA
1984: 24). Não foi à toa que Coriat chamou seu livro sobre o Taylorismo, de 1979, de El
taller y el cronômetro. Cada movimento teria um tempo ideal de duração; a técnica da
produção passa a ser uma técnica social de dominação, marcada pela expropriação do
saber (DE DECCA 1982: 36). Se antes, ceramistas e oleiros conheciam todo o processo
de manufatura, na Fábrica passam cada vez mais a ter menos controle sobre isto.
Controle do conhecimento que fica a cargo, geralmente, da figura do gerente (RAGO &
MOREIRA 1984: 14), que junto da empresa passa a desenvolver toda uma estratégia
para que o processo tecnológico não fugisse de seu controle (DE DECCA, 1982: 36).
Com isto, o tempo é uma categoria importante dentro da ótica taylorista-fordista
de organização da produção. Compreendê-la é entender algumas características das
fábricas que se estabeleceram na cidade de São Paulo do período. Para tal, devemos
partir do pressuposto de que a categoria tempo é uma construção social e cultural
(PAIXÃO 2005: 66). Segundo Pélbart (2000: 183), por exemplo, o tempo o existe,
237
“isto é, não existe o tempo enquanto tal, ou uma essência do tempo, e sim operadores de
tempo, idéia do tempo, forma do tempo”.
Quando o sonho “burguês” de apropriar-se do tempo começou a se concretizar, a
vida cotidiana passou a ser cada vez mais governada por sistemas cronológicos
abstratos, passando a imperar o tempo linear e irreversível, mais tarde ligado à
acumulação de bens e a industrialização (RODRIGUES 2002): o tempo da fábrica. Essa
nova noção de tempo, por diversos mecanismos, acabou quase que, visceralmente, se
enraizando nos objetos e no próprio corpo humano (RODRIGUES 2002: 30), se
materializando através da disseminação de novas disciplinas e vigilâncias, que
passaram a dispor operários e equipamentos em uma ordenação estrita, designando um
lugar e um tempo pra cada homem e para cada máquina” (RODRIGUES 2002: 31).
Com o taylorismo, uma parte das elites ligadas ao empresariado e ao patronato
passou a tentar reestruturar antigos hábitos dos trabalhadores ligados ao período no qual
ainda eram donos dos meios e do conhecimento de toda a cadeia operatória da produção
e, portanto, do tempo da produção (PAIXÃO 2005: 70). Mas quando o tempo passou a
pertencer à fábrica, que controlava, agora, os meios de produção (ao que Marx chamou
de alienação dos meios de produção do trabalhador), tornou-se um produto comprado e
pertencente não mais ao trabalhador, mas ao patrão. Enquanto propriedade que gerava
lucro, o tempo não poderia mais ser desperdiçado”. Os patrões criam estratégias de
controle e disciplina nas fábricas a fim de prevenir descuidos, saques e sabotagens,
exigir padrões de qualidade e controle da produção, vigiar com minúcia e cuidar do
tempo dos trabalhadores, “verdadeira matéria-prima do sistema capitalista e a condição
primeira do lucro” (RODRIGUES 2002: 32), para atingir a meta de máxima produção e
máximo lucro. O tempo passa a ter valor mercadológico.
Contar o tempo passou a ser primordial no interior do sistema fabril. E não
parece ter sido diferente com o setor cerâmico. Apontados estes pressupostos, espero ter
aberto uma janela para a compreensão da existência das inscrições e do tipo de inscrição
(basicamente contas) no sítio Petybon. Era imprescindível que se contasse a produção
para o controle (quanto) do que estava sendo produzido. As metas de produção
(diárias?) que os trabalhadores deveriam atingir no interior da Fábrica, estariam
diretamente ligadas à contagem da quantidade produzida, que deveria ser máxima
dentro dos padrões estabelecidos pelo controle de qualidade. Assim, os cálculos dos
biscoitos apontam para um ambiente no qual o trabalhador tinha de produzir quantidade
x em y tempo, sem desperdiça-lo. Segundo Paixão (2005: 85), é em unidades de tempo a
238
única forma encontrada de “medir” o trabalho. Contar e regularizar o tempo através dos
cálculos nos biscoitos está relacionado diretamente a medir o trabalho através do tempo
gasto para executá-lo, expressando o trabalho operário executado através do tempo e da
quantidade produzida e configurando um grande passo na questão da economia de
tempo proposta pelo taylorismo-fordismo (PAIXÃO 2005: 83).
Além disso, contar significava controlar a produção e controlar possíveis desvios
(de produtos e de comportamento) dos próprios trabalhadores. Impor a contagem pode
estar também relacionado a estratégias de controle da gerência e a desconfiança sobre os
operários. Por fim, se conta para maximizar a produção, organizando-a por metas a
serem atingidas. Fazer cálculos e constatar quantidades começa a ser visto como
estratégias imputadas pela gerência da Fábrica aos trabalhadores que não mais
controlavam as etapas do processo produtivo (a cadeia operatória ficou reduzida quase
que a gestos únicos (CORIAT 1994: 36) que antes compunham a cadeia, mas que,
agora, estavam sob a responsabilidade de um trabalhador específico, que os repetia sem
muito significado) e nem o tempo dessa produção, que passa a ser ditado pela fábrica.
Táticas de controle sobre o trabalhador e sobre o tempo.
As inscrições numéricas dos biscoitos passam a ser quase que artefatos para se
pensar como concepções de tempo podem ser percebidas em vestígios materiais
também. Os símbolos numéricos são “meios de orientação no seio do fluxo incessante
do devir” e caracterizam a construção particular da categoria “tempo” (PAIXÃO 2005:
67). Símbolos essencialmente numéricos, como os que temos aqui, atestam meios de
orientação em uma linearidade e regularidade que compõem a concepção de tempo
dentro da brica de louças. O sistema de fábrica é o momento onde se inaugura um
tempo definido como de trabalho, que apresenta uma regularidade marcante (PAIXÃO
2005: 73).
No que se refere a estas práticas em sistemas fabris ceramistas, pode-se citar as
famosas fábricas que Josiah Wedgwood, na segunda metade do XVIII, estabeleceu na
Inglaterra, implantando um sistema de disciplina, com vários testemunhos dos operários
sobre a cobrança do tempo no trabalho (THOMPSON 1998: 275, 283); segundo o
próprio Wedgwood, a fábrica se materializava como uma nova organização do trabalho,
sem a necessidade de qualquer profunda transformação nos aparatos tecnológicos ou
seja, um espaço mais para o controle do que para a inovação tecnológica (DE DECCA
1982: 26). Outro exemplo, é o da Cerâmica São Caetano, em São Caetano, São Paulo,
pertencente a Roberto Simonsen. Entusiasta deste tipo de organização, Simonsen tentou
239
aplicá-lo a sua brica de cerâmica vermelha, o que, contudo, não deu certo. Segundo
Weinstein (2000: 32) a Cerâmica São Caetano tornou-se uma “verdadeira enciclopédia
de tudo o que os defensores da racionalização seja taylorista, fordista ou mais
genericamente na linha da ‘administração científica’ condenavam”. Houve enorme
prejuízo entre 1923 e 1926 apesar dos investimentos consideráveis para melhorar a
capacidade da produção (WEINSTEIN 2000: 31).
Gostaria de fazer, ainda, um pequeno adendo e tecer um curto comentário sobre
pensar estes vestígios, que são as inscrições nos biscoitos, com um olhar ético do tempo.
A Arqueologia Histórica ainda trabalha muito com a concepção de tempo linear, que é
imprescindível quando se pensa, por exemplo, na concepção que a brica de louças
poderia possuir do tempo e dos modos de produção, mas que talvez talhe um pouco a
dimensão de estudo de um artefato. Com o tempo linear talvez encaremos os artefatos
como a ponta final de uma linha infinita (por mais paradoxal que isso seja), o progresso
(segundo uma concepção mais iluminista), de processos que vieram do passado e se
projetam no futuro.
No entanto, aplicar aqui a idéia de rizoma temporal torna a perspectiva bem
interessante, ao encarar os objetos como pontos de encontros de uma teia multitemporal
que sincroniza vários tempos de diversas direções (PÉLBART 2000: 186). Pode-se
pensar, para as inscrições nos biscoitos, o mesmo que Deleuze fez para os carros (já que
ambos são artefatos ao final): “um agregado de soluções científicas e técnicas de épocas
diferentes e que pode ser historicamente datado” (RAGO 2003: 30), desde a invenção
do lápis no século XIV, à faiança fina e a sua queima no biscoito com Josiah
Wedgwood no século XVIII até as técnicas de retiradas de caulins de fontes brasileiras
no século XX para preparação das pastas. Seria importante, portanto, “reativar a carga
do passado que está presente no presente” (CASTEL apud RAGO 2003: 31), uma vez
que todo registro arqueológico é um fenômeno contemporâneo (SILVA 2000: 179).
Pensar apenas o tempo da arqueologia como o tempo da longa duração,
especificamente para o presente caso, faz com que o indivíduo enquanto objeto de
investigação, não exista (OOSTERBEEK 1999: 5). Olhar para a longa duração é um dos
pontos positivos na Arqueologia, mas não se deve esquecer que cada um dos artefatos
foi produzido por um ser humano, e olhar para este indivíduo, somando-o ao todo, é
igualmente importante; ou seja, considerar o desvio, a evolução, a revolução e a
mutação como características interconectadas (OOSTERBEEK 1999: 5-6). Para
Oosterbeek, devemos lembrar que a arqueologia não nega o movimento, o devir, a
240
mudança, mas se concentra também no objeto, no momento. “O espaço arqueológico é
um instante de tempo” (OOSTERBEEK 1999: 6)
A Alfabetização, os Números e o Trabalhador: a cultura material da escrita
Escrever é um ato culturalmente significativo, com um valor afetivo e de poder
sobre o mundo (FUNARI & CARRERAS 1998: 76). Olhar para as inscrições nos
biscoitos e sua recorrência, me fez pensar na importância do domínio da escrita no que
se refere ao funcionamento de atividades sociais e econômicas (FUNARI 1995: 341).
Assim, a Epigrafia chamou minha atenção para sua relação com a alfabetização,
enquanto que o trabalho no Petybon e a análise de sua cultura material e contexto
chamaram atenção para o diálogo entre a alfabetização, o trabalhador e a conjuntura
fabril.
Faz-se necessário pensar, todavia, sobre qual a função da escrita na Fábrica, nos
biscoitos. Sabe-se que saber se comunicar pela escrita é uma coisa, fazê-lo, é outra
(MacMULLEN 1982: 232). Durante a história, muitas pessoas nunca tiveram a idéia de
escrever sobre suportes duráveis, mas eram letradas. No entanto, pessoas que podiam
escrever, às vezes, o fizeram, com motivos mais ou menos claros (MacMULLEN 1982:
233). No contexto da produção, que a escrita possivelmente estava relacionada à
quantificação de materiais produzidos e ao controle da produção e do tempo.
Evidentemente, essas inscrições tinham como leitores pessoas da área de
produção. Como textos, as inscrições possuem um autor e um leitor, apesar de parecer
que o emissor, que produz a mensagem, e o receptor ou destinatário (ALARCÃO 1995:
21), que a recebe, eram a mesma pessoa: o produtor do enunciado o próprio
trabalhador.
Contudo, isto o implica no fato de que outras pessoas não leriam ou
entenderiam o que estaria inscrito se vissem os fragmentos. O fato de que as inscrições
estão sobre um suporte móvel pressupõe um grande alcance, talvez “observadas por
‘fruidores’ completamente alheios à sua significação original” (FRANCISCO 2007: 47),
haja visto que os trabalhadores da posterior Fábrica Petybon (1937- década de 1980)
podem ter encontrado os fragmentos, assim como os arqueólogos hoje.
A questão da alfabetização dos operários no período possui uma farta
bibliografia, a qual parece apontar para uma taxa bem alta de analfabetismo, apesar de
opiniões divergentes, como a de Eva Blay (1985), para quem o fato de existirem tantos
241
jornais operários implica numa taxa de alfabetização maior do que se pressupunha. A
questão da escolaridade também é um assunto em voga no período, com diversas
propostas de ensino e a criação, já na Era Vargas, de escolas profissionalizantes e cursos
técnicos. As idéias advindas da chamada Escola Nova, com inspiração americana
forjada no contexto da industrialização e do fordismo no final da década de 1920, estão
chegando a São Paulo, com vieses que tinham como pano de fundo pensar formas de
cimentar normas e controle sociais (“façamos a revolução antes que o povo a faça”).
Sem dúvida, cada uma das inscrições foi feita por um indivíduo. É ele quem
escreve, seleciona o fragmento a ser usado, como será usado e o porquê do uso. E não
escreve palavras em sua maior parte, mas números. E mais que números, fórmulas.
Além do que parece ser constatações de quantidade (segundo o que, a operação
matemática foi efetuada “de cabeça”), existem o que chamamos de cálculos ou contas,
fórmulas matemáticas de soma. Nessa operação, a inversão da ordem dos caracteres que
equivalem aos numerais é importante, uma vez que 15 o é o mesmo que 51 e daí a
relevância da orientação do campo visual que propicia a leitura correta” das inscrições
(FRANCISCO, 2007). Segundo Umberto Eco, a fórmula está inscrita na Matemática,
Física e Química que se constituem como “linguagens formalizadas” ou “linguagens
artificiais” (ECO apud FRANCISCO, 2007: 39). Um cálculo proveniente de uma
fórmula pode ser descrito como “partes autônomas, independentes, que se inter-
relacionam, e produzem algo diferente (x y = z, x + y.z = w, etc.), mesmo que a
natureza quantitativa seja equivalente” (FRANCISCO, 2007: 39).
Todos os cálculos nas inscrições encontradas são operações de soma. Este fato
pode estar ligado às operações que são realizadas numa produção de louça em moldes
industriais, uma vez que o objetivo desta produção seria mais produtos, o aumento e a
quantificação de uma produção em larga escala, e não menos.
É interessante perceber também que nenhuma das inscrições contém o clássico
sinal de + (mais) nos cálculos, e suponho que não necessidade disso que quem
escreveu pressupunha que sua operação era uma soma. Também inexiste o sinal de =
(igual a), substituído pelo travessão ( ––––– ). O que se percebe é uma outra
organização do cálculo que não aquele na horizontal (x + y = z), mas na vertical, fato
que pressupõe outra organização visual e talvez a necessidade de fragmentos de biscoito
que possuam mais espaço para um uso orientado verticalmente do que horizontalmente.
Isso fica claro em algumas das inscrições nas quais a leitura do cálculo, de cima para
242
baixo e da esquerda para a direita, segue o maior comprimento do fragmento (inscrições
2, 5 e 8).
A inscrição 8, por exemplo, é clara no que concerne a relação entre a escrita do
cálculo, a orientação da leitura e o comprimento máximo do fragmento, como pode-se
perceber abaixo. Como um fragmento de azulejo no biscoito, possui como máximo
comprimento horizontal 3,7 cm e vertical 7 cm (apesar de parte do fragmento estar
aparentemente quebrado pós-inscrição). Esta é uma hipótese que levanto, mas não
necessidade de sempre o plano vertical ser maior e, sim, o fato de que o plano vertical
necessita ser suficientemente grande para que caiba uma operação de soma organizada
verticalmente.
Segundo Kant, o número pressupõe o tempo e o espaço e têm um papel essencial
em nossa conceptualização de mundo, indo muito além de objetos que representam um
número; as propriedades do número são independentes do tempo, portanto determinadas
intencionalmente (JØRGENSEN 2006: 39). Isto é importante se pensarmos que o
155
125
280
(ilegível)
70
70
––––––
140
4
940
31
971
Inscrição 2 Inscrição 5 Inscrição 8
7 cm
3,7 cm
243
numeral arábico utilizado aqui transpassa o alfabeto correspondente usado nas palavras
(o latino) e a língua (o português). Logo, pessoas que falam línguas diferentes
representam os lculos matemáticos da mesma maneira. Por isso, a questão do leitor
destas inscrições se amplia, uma vez que não haveria necessidade de todos os operários
da fábrica serem falantes de português, que compreenderiam, se alfabetizados, os
cálculos.
Observação também seja feita às poucas palavras escritas nos biscoitos (chá,
pires e café) uma vez que não são apenas objetos que estão sendo contados, e
produzidos, mas indicam como a produção se referia a seus produtos (termos êmicos) e
implica em uma alfabetização de quem escreveu (lembremos, em letra cursiva). O mito
do operário europeu, italiano, homem, é também questionado pela Arqueologia, uma
vez que é preciso pensar em quem teria escrito nos biscoitos palavras em português.
Isso pressupõe a existência de brasileiros, ou pelo menos, de falantes de português no
contexto fabril.
Por fim, estes artefatos, de um modo ou de outro, nos remetem a um contexto de
escrita, ou ao que poderíamos chamar de Arqueologia da Educação (ZARANKIN
2002). O lápis como instrumento da escrita, que está implícito como ferramenta da ação
nas peças estudadas, se relaciona, se pensarmos diacronicamente, a tantos outros
artefatos ligados ao universo da alfabetização ou da comunicação por mbolos gráficos
nos períodos históricos. Não apenas lápis podem ser encontrados em sítios, como penas,
bastões de grafite, etc (SCHÁVELZON 1999). Pelo menos para São Paulo, fica muito
evidente a presença de tinteiros, seja de grès ou vidro, geralmente em poucas
quantidades, mas recorrentes em vários sítios.
O fato das inscrições nos biscoitos estarem ligadas a trabalhadores operários
fabris levanta ainda a questão da crítica ao monolitismo que identifica a produção
escrita a uma classe (elite) e das coisas materiais a outras (“classes baixas”).
Compartilho assim das afirmações de Francisco segundo o qual “além desses
paralelismos o se sustentarem absolutamente, a análise ampla, levando em conta uma
experiência escrita e material, para além das questões de produção e do universo
cognitivo de um grupo materializados nas suas respectivas produções, possibilita uma
visão dinâmica dessas estruturas, no seio de qualquer sociedade; assim, mesmo um
grupo que não esteja envolvido diretamente na produção escrita envolve-se
profundamente, em vários casos com esta produção” (2007: 58).
244
Fábrica, capitalismo e o agir e reagir em Arqueologia Histórica
Quando me refiro a métodos de controle social dos trabalhadores dentro da
Fábrica não quero dizer que estou tentando realizar uma arqueologia onde o capitalismo
é o sujeito principal e submete a tudo e todos (como parte dos pressupostos das teorias
sobre ideologias dominantes). As perspectivas segundo as quais a “civilização
capitalista” exportada pelos Europeus reduziu todas as relações sociais, em qualquer
lugar do mundo, a relações econômicas vêm sofrendo variadas críticas (FUNARI,
JONES & HALL 1999).
Priorizar o capitalismo como foco de estudo, sua emergência, expansão e
eventual dominação como um processo inevitável passa longe do poder da consciência e
das diversas formas de ação e re-ação dos grupos humanos. Focar a Arqueologia
Histórica apenas no surgimento e expansão do capitalismo é deixar de lado aspectos
políticos e culturais que antecedem e acompanham tal processo e que localizam e
particularizam suas formas de expressão (THERRIEN, 2006). Testemunho disto são as
arqueologias ligadas a grupos como as colônias anarquistas e comunidades “utópicas”
(TARLOW, 2002).
Abordagens provindas da teoria marxista da ideologia dominante possuem
muitas críticas a nível historiográfico (BATALHA, SILVA & FORTES, 2004), pois
pressuporiam que o capitalismo é inexorável, sempre controlando e disciplinarizando,
subestimando noções de ação, resistência e heterogeneidade (FUNARI, JONES &
HALL 1999: 7). Segundo esta abordagem, haveria uma ideologia dominante que
permearia todos os setores da sociedade fazendo com que as camadas mais “baixas”
quisessem sempre parecer com as “altas”.
Acredito, sim, que o sistema fabril capitalista desenvolveu formas de controle do
trabalhador, mas a estas micropolíticas e micropoderes (FOUCAULT 1993) se opõem
micro-resistências (DE CERTEAU 1994), e é um equívoco o abrir espaço para as
resistências culturais, que podem ser muitas vezes percebidas na cultura material.
Apesar deste sub-capítulo não ter dado maior ênfase na questão da resistência, concordo
com suas relações com a cultura (SAID & BARSAMIAN 2006), e para a presente
abordagem é interessante pensar arqueologicamente sobre os mecanismos de controle e
ideologias relacionadas ao capitalismo, e nas expressões materiais de discursos
políticos, normas sociais e cultura (LEONE & LITLLE 1993: 176), tal como presente
nos trabalhos de Mark Leone (1971, 1993, 1995, 1998, 2007).
245
Por isso seria importante, no contexto com o qual trabalho, buscar a presença
também do trabalhador da fábrica, presença que fica marcada em muitos artefatos e não
apenas nas inscrições. Freqüentemente, esses operários fazem pequenas aparições nos
registros materiais, seja através da marca dos dedos e digitais, como veremos a seguir,
(ROCKWELL 1970; BARBER & HAMELL 1971), seja por meio de desenhos a lápis
ou brincadeiras em meio ao opressor cotidiano fabril. Uma inscrição do sítio que não
incluí aqui, pois somente ela daria um estudo aprofundado único, mas que merece ser
citada, é a contida no prato no biscoito com os dizeres “o caipira é Raphael”.
Estes artefatos permitem não apenas pensar o indivíduo, como relacionar estas
marcas com o todo que os cerca. Deste modo, a História pode colaborar para o
entendimento das resistências que envolvem sindicatos, clubes operários e associações
de auxílio mútuo, nascentes nesse início de século, mas a Arqueologia colabora para a
compreensão de muitas das ações e re-ações não fora, porém dentro do universo fabril,
no cotidiano da produção, e como isto pode ser percebido materialmente. Poucos são os
estudos, nas humanidades, de lazer, ão e resistências dentro do cotidiano fabril
(DARNTON 1999). Temos acesso, somando as duas ciências, no que é, afinal, a
Arqueologia Histórica, a como os trabalhadores da Fábrica Santa Catharina
expressavam seu descontentamento com o sistema fabril, seja através da formação da
Liga dos Ceramistas na greve de 1917 (KHOURY 1981: 173), seja através de pequenos
atos cotidianos como brincadeiras que os permitiam burlar o sistema de controle
panóptico e os sistemas de domínio do tempo, do lucro, nas fábricas no começo do
século XX.
Partindo deste foco, por que não deixar por um instante a Arqueologia do
Capitalismo e nos voltarmos para uma Arqueologia do Trabalhador ou do Trabalho
(CASTILLO 2002), que dialoga com o capitalismo, mas não é exclusiva deste? As
Marcas de dedos de uma mão que
marcou o caulim ainda mole
Inscrição “o caipira é Raphael”, em malga no biscoito
246
colocações do arqueólogo português Jorge de Alarcão são explanatórias a este respeito,
quando afirma que “os objectos são úteis, servem para alguma coisa e, portanto,
indicam a presença de alguém que se serve deles e anunciam o acto de que eles são
instrumentos” (ALARCÃO 1995: 27). Quem está por trás, ou caminha junto, dos
“restos físicos” dos processos de trabalho que não o trabalhador, que é marcado e marca
este mesmo processo? As pesquisas de Monika Therrien sobre uma fábrica de louça
branca na Colômbia do século XIX também rumam para esta mesma abordagem, uma
vez que a arqueóloga está interessada não apenas na louça que será consumida e
produzida pela fábrica, mas nas relações que se estabelecem dentro da mesma e no
papel da fábrica num plano maior de modernidade nacional e introdução de uma nova
ordem (MEJÍA & THERRIEN 2001/2002: 202).
Neste sub-capítulo, tentei mostrar algumas das reflexões possíveis em torno da
cultura material de um sítio arqueológico que foi uma vez uma Fábrica de Louças em
faiança fina na cidade de São Paulo, na primeira metade do século XX. Estou, portanto,
partindo de artefatos produzidos no interior de um sistema de produção fabril
capitalista. Procurei mostrar como alguns artefatos dialogam com as práticas de controle
desenvolvidas no seio do sistema fabril e se relacionam com os modos de produção e as
tecnologias, por assim dizer, capitalistas.
Por fim, o que busquei neste trabalho esdentro das discussões sobre pensar a
relação entre a estrutura e o que a Arqueologia americana chama de “agency”
(WIESSNER 2002: 234) para o exame da cultura material dos sítios históricos. Isto fica
ainda mais interessante quando pensamos nos mecanismos de controle social surgidos
no seio do capitalismo e em como isto se relaciona aos indivíduos e ao poder da cultura.
O que procurei fazer aqui foi tentar reconstituir algumas das típicas práticas de controle
de uma sociedade capitalista, mas privilegiando a experiência ou a prática cotidiana da
vida dos trabalhadores (CHALHOUB 2001: 51), enfim, as intrincadas relações entre
desvio e norma (HODDER,1994) em uma arqueologia de grupos “marginais”.
Os biscoitos com inscrições numéricas dialogam com a nova disciplina fabril
implantada no Brasil, que se relaciona com uma nova atenção ao tempo e à
sincronização do trabalho. As mudanças nas técnicas de manufatura, louça em moldes
industriais em relação, talvez, às antigas produções oleiras da região de São Paulo,
exigiram “maior sincronização de trabalho e maior exatidão nas rotinas de trabalho do
tempo” e estou preocupado, como Thompson, também “com a percepção do tempo em
seu condicionamento tecnológico e com a medição do tempo como meio de exploração
247
da mão-de-obra” (THOMPSON 1998: 289). Contar no biscoito parece estar relacionado
a este universo fabril e capitalista, que procura disciplinar e controlar o trabalhador
(biscoitos com números), frente a suas ações e eternos escapes e resistências às
normatizações (“o caipira é Raphael”), que se instalava na São Paulo do período.
248
SUB-CAPÍTULO 3.5
NA MÃO DO OLEIRO: AS IMPRESSÕES DIGITAIS NAS LOUÇAS BRANCAS
DA CADEIA PRODUTIVA DO SÍTIO PETYBON
Desci à casa do oleiro, e eis que ele estava entregue à sua
obra sobre as rodas. (Jeremias 18: 3)
Como o vaso que o oleiro fazia de barro se lhe estragou na
mão, tornou a fazer dele outro vaso, segundo bem lhe pareceu.
(Jeremias 18: 4)
(...) eis que, como o barro na mão do oleiro, assim sois vós na
minha mão ...(Jeremias 18: 6)
... no human being is exactly the same as any other human
being, Nature does not duplicate... (DALRYMPLE &
MACKILLICAN 2000: 854)
Com os novos todos e técnicas adotados pela Arqueologia durante o final do
século XX, assim como com sua crescente proximidade com as ciências forenses, teve
início o estudo de um antigo tipo de vestígio presente na cultura material: as impressões
digitais ou papilares. O que a presença de digitais em um artefato poderia nos contar?
Cito aqui a passagem na qual Walter Benjamin (2000: 40), discorrendo sobre a
narrativa, compara a primeira ao barro nas mãos do oleiro, na qual a narrativa seria uma
das formas mais antigas de comunicação em certo sentido, uma forma artesanal de
comunicação (FRAGOSO & OLIVEIRA 2006: 2).
Para Benjamin “a narrativa não visa,..., a comunicar o puro em-si do acontecido,
mas o incorpora na vida do relator, para proporciona-lo, como experiência, aos que
escutam. Assim, no narrado fica a marca do narrador, como a impressão da mão do
oleiro sobre o pote de argila” (2000: 40). Em outras palavras, pela narrativa se conhece
o narrador porque este vai buscar, no âmago do seu ser, toda a inscrição das imagens,
emoções e percepções (FRAGOSO & OLIVEIRA 2006: 2). Por analogia, considero que
as mãos do oleiro impingem certa narrativa à cerâmica ao deixar nela suas marcas,
inteligíveis segundo determinados olhares e abordagens de análise arqueológica.
Especialmente presente em objetos de barro, mas também em vestígios
relacionados à arte rupestre, o estudo das impressões digitais abriu novos campos de
discussão para a Arqueologia. Segundo Bursey (2006: 121), o estudo das digitais está
no cerne das problemáticas entre o que a antropologia americana chamou de agency e
seu diálogo com as estruturas; a norma e o indivíduo das abordagens pós-processuais
presentes nas discussões hodderianas. Mesmo em contextos arqueológicos com alto
249
grau de estandardização, é possível a percepção das ações individuais (ARNOLD 2001).
Impressões digitais podem ser inseridas em estudos mais amplos em torno dos gestos
(enquanto expressões culturalmente determinadas e determinantes), no contexto das
cadeias operatórias, uma das melhores fontes para o estudo de agências e estruturas
(JOYCE & LOPIPARO 2005: 369). Para a Arqueologia a utilização das ferramentas
datiloscópicas, papiloscópicas ou dermatoglíficas, como se queira dizer, ainda é escasso.
No entanto, o estudo das impressões digitais em cerâmicas continua sendo pequeno. A
partir da esparsa bibliografia consultada foi possível perceber que as interpretações das
digitais em peças arqueológicas giram em torno de três temas: a) distribuição, produção
e consumo, b) identificação de divisões sociais do trabalho e c) técnicas produtivas,
gestos e cadeias operatórias. Alguns exemplos são dados a seguir.
Para a Arqueologia Histórica, na década de 1970, Jim Rockwell (1972) levantou
a hipótese, ao escavar uma antiga olaria, de que as digitais presentes em cerâmicas no
universo da produção, se encontradas em universos domésticos, independentes da
distância, trariam conclusões sobre centros produtores e procedências de determinadas
cerâmicas, uma vez que as digitais o únicas de cada indivíduo. Assim, a digital do
trabalhador x que trabalha numa certa olaria seria quase como o selo desta mesma
olaria, indicando que a cerâmica y foi produzida pelo trabalhador x, e, portanto, na
olaria z. Como é usualmente dito no universo forense, as impressões digitais ainda são o
traço mais importante deixado durante uma ação que, por sua particularidade, põe um
individuo na cena do “crime” (KRAMBLE & BRENNAN 2000: 862).
Outra possibilidade foi apontada por Kamp et alli (1999), demonstrando, através
da combinação de métodos quantitativos e qualitativos, sobre como refletir em torno da
presença de crianças no registro arqueológico. Mostraram, assim, que os Sinagua,
descendentes dos Pueblo no norte do Arizona, EUA, estruturaram o processo de
aprendizagem usando atividades de brincadeiras e produção de brinquedos para
familiarizar as crianças com as propriedades da argila e de manufatura da cerâmica. Por
conseguinte, isto teria possibilitado um começo precoce no processo de aprendizagem,
entre 2 e 5 anos, facilitando a incorporação das crianças ao sistema econômico como
competentes artesãos desde a mais tenra idade (KAMP 2001: 14). Muitas cerâmicas
ditas “malfeitas” (sloppily-made) estavam relacionadas à presença de digitais infantis,
indicando vestígios de processos de aprendizagens; a maior porcentagem das cerâmicas,
por exemplo, apresentava digitais adultas enquanto que as figuras animais tinham
majoritariamente digitais infantis (KAMP et alli 1999: 314). Desta maneira, impressões
250
digitais no campo da arqueologia comporiam ferramentas importantes para discorrer
sobre grupos pouco tratados, ou pouco observáveis, com presença aparentemente
intangível, no registro arqueológico, como as crianças (KAMP 2001: 2).
Por fim, Webb e Frankel (1999) mostraram que as digitais presentes no interior
das bases lisas das cerâmicas da Idade do Bronze encontradas em Chipre foram
resultado do processo de fabricação modelada de discos lisos ou convexos, em
separado, que eram então unidos ao corpo da peça, por baixo, conformando a base e o
fundo. Aqui as digitais esclareceram aspectos das técnicas de fabricação que
compunham a cadeia operatória das cerâmicas.
Não é o intuito, também, nesta dissertação realizar uma discussão sobre as
teorias da agência, mas deve-se lembrar que a questão possui variadas abordagens.
Quero, no entanto, mostrar que vestígios da prática cotidiana da fabricação das louças
são patentes através das impressões digitais marcadas nas mesmas, e que dialogam com
a presença dos trabalhadores na produção, presença esta em geral “apagada” pela
análise do universo produtivo a partir de uma escala macro, com viés econômico e de
reflexão sobre a superestrutura capitalista. Com isto, abre-se perspectiva de reflexão da
agência operária na estrutura fabril por meio dos artefatos ativos nesse espaço. Através
da práxis cotidiana produtora de vestígios arqueológicos a agência pode ser abordada
sempre dialogando com a estrutura fabril concatenada por produtores, proprietários e
pelo sistema produtivo que regia a Fábrica de Louças Santa Catharina/IRFM São
Paulo.
Lembro, igualmente, que a louça está sendo produzida em uma indústria onde
perduram estruturas hierárquicas e relações de poder, o que, acredito, não anula a
existência de agências, intenções, resistências ou mesmo tradições co-existindo no
interior das mesmas (SILLIMAN 2005: 63). Quero dizer que a agência, na fábrica de
louças, pode ser pensada para além das expressões dos padrões decorativos (mais
especificamente os artesanais), mas também com relação às inscrições, pedaços de
argilas amassadas por mãos, espessuras das peças (uma vez que a espessura depende do
tempo que o operário deixa a barbotina dentro do molde de gesso), impressões digitais
presentes nos artefatos do sítio e etc. Se a agência concerne que a ações humanas que
deixam efeito no mundo, então o registro arqueológico pode ser interpretado como um
produto da agência (HEGMON & KULOW 2005: 313).
Estudando os Enga, grupo de caçadores-coletores de Papua-Nova Guiné, Polly
Wiessner (2002: 235), por exemplo, destaca a relação entre agency e estrutura e a tensão
251
constante e retro-alimentada que existe entre estas duas categorias. Segundo a autora,
toda sociedade teria indivíduos com ambições pessoais (agency), seja por prestígio ou
riqueza, provendo motor para mudanças. Para Dobres (apud BURSEY 2006: 120), em
termos simples, ‘agency’ or ‘practice’ theory could be characterized as an attempt to
put people as imperfect individuals back into the focus of archaeological investigation”.
Segundo Ahearn (2001: 112), as concepções de agência têm muito a ver com a
compreensão de causalidade, ações e intenções, e da pessoa como indivíduo (claro, com
as devidas ressalvas no que concerne a “ocidentalidade” do termo). Para a mesma,
“agency refers to socioculturally mediated capacity to act” (AHEARN 2001: 112),
cambiante no tempo e no espaço.
Segundo Bursey (2006: 121), sempre existiu na literatura arqueológica alguma
preocupação com o indivíduo, em abordagens que vêem em vestígios como as digitais
possíveis reflexões sobre as pessoas e seus remanescentes do passado. Apesar destas
perspectivas, nos anos 1960 a Nova Arqueologia traçou outros paradigmas ao buscar
leis universais de comportamento humano e o trabalho com as digitais retornou apenas
com as reações ao processualismo e, mais tarde, sob o escopo das influências da teoria
da agência e da prática vindas das ciências sociais.
Verificar a simples presença das digitais num sítio arqueológico como o
Petybon, a saber, um universo produtivo, traz algumas pontuações que merecem ser
citadas. Importante lembrar que a Fábrica de Louça está inserida na conjuntura da
primeira metade do século XX, quando, no Brasil, o sistema de fábrica cada vez mais se
consolida, especialmente para a cidade de São Paulo, com clara intenção de “organizar e
disciplinar o trabalho através de uma sujeição completa da figura do trabalhador” (DE
DECCA 1982: 10). Para a fábrica da sociedade disciplinar (FOUCAULT 2007;
DELEUZE 1992) como a que está se conformado na São Paulo desta época (RAGO
1997), o taylorismo e outras formas de organização do trabalho caracterizaram uma
produção standard onde, teoricamente, uma expressão individual no produto fabricado
não teria vez, somado ao fato da perda do controle do processo produtivo como um todo
por parte do trabalhador. Claro que sempre existirá alguma marca individual desse
trabalhador mesmo que a produção seja totalmente automatizada, pelo simples fato dele
“estar lá”: o objeto produzido como um produto fruto de relações de produção e forças
252
produtivas, na concepção marxiana
25
. Para Miceli (1996: 170), a ausência de qualquer
contato “manual” nas fábricas, do trabalhador com o objeto produzido, é um exemplo
claro da mais absoluta alienação no processo de trabalho.
Com a crescente automação e uso de maquinário com o século XX e XXI, é
possível que a presença de impressões digitais funcione também como elemento
datador, uma vez que a partir de um determinado momento as louças e outras cerâmicas
deixarão de possuí-las, que não haverá mais a presença das mãos do oleiro, pelo
menos não em contato direto com argila. A etnografia traz exemplos interessantes.
Fábricas de porcelana brasileira como Schmidt, Oxford e Real são quase que totalmente
automatizadas, desde o processo de colagem ou moldagem até a esmaltação e a queima.
Diferente delas é a Porcelana Monte Sião, cujo processo artesanal das etapas da cadeia
permite a presença de digitais, dado que tudo ainda depende das mãos do trabalhador na
transformação da matéria-prima em artefato. Assim, as fábricas mais automatizadas
teriam menos presença de digitais do que as mais artesanais, as quais hoje estão em
menor número e em vias de desaparecimento. Claro que, para a averiguação de digitais
em qualquer louça, o ideal seria que estas estivessem ainda nos biscoitos. A verificação
de digitais (se finalizadas, no esmalte ou sob-esmalte) em alguma peça recente com
produção automatizada denotaria uma mudança na produção ou alguma “anomalia” na
cadeia produtiva vigente.
Na indústria, o taylorismo, assim como o fordismo e outras formas de
racionalização da produção, caracterizaram-se por métodos que possibilitariam uma
maior produtividade do trabalho, economizando tempo, suprimindo gestos e
comportamentos supérfluos no interior do processo produtivo (RAGO & MOREIRA,
1984: 10; CORIAT 1994). Cada movimento teria um tempo ideal de duração; a técnica
da produção passaria a ser uma técnica social de dominação, marcada pela expropriação
do saber (DE DECCA 1982: 36).
Se antes, ceramistas e oleiros conheciam todo o processo de manufatura, na
fábrica passam cada vez mais a ter menos controle sobre isto. Pensando nesta
setorização ou compartimentação do modo de produzir e, especificamente, na existência
de diferentes operários para diferentes etapas do processo, é de se supor que as digitais
nas louças do Petybon se refiram provavelmente, e somente, aos trabalhadores dos
25
Em outra abordagem, Dalrymple e MacKillican citam a existência de cerâmicas antigas finalizadas com
uma assinatura do oleiro produtor, a qual era justamente uma impressão digital (DARLYMPLE &
MACKILLICAN 2000: 855).
253
setores de colagem, limpeza, concerto de irregularidades e preparação da peça para ir ao
forno – isto é, todos aqueles envolvidos nos processos pré-queima do biscoito. Há
possibilidade de digitais marcadas no esmalte durante o processo de esmaltação e
arrumação das louças na forma refratária para a segunda queima; todavia, estas seriam
digitais que apareceriam em menor número, com maior dificuldade de visualização e
localização na peça.
Enquanto uma unidade de produção em moldes industriais não podemos
esquecer que a Fábrica Santa Catharina/IRFM São Paulo foi constituída por
trabalhadores no interior de uma fábrica, “agentes ativos de constituição e mudança da
sociedade” e não “meras marionetes cujo comportamento é controlado por norma
socioculturais” (DAVID & KRAMER 2002: 47). Escavar uma unidade produtiva é,
claro, pensar nas normas que estruturam essa unidade, mas é também pensar nas
pessoas que compuseram a mesma (os “obreiros da História” de Lucien Febvre).
Evidência de sua presença e ligadas, muitas vezes, às intenções do trabalhador durante o
processo de fabricação da louça branca em faiança fina, as impressões digitais abrem
diálogos referentes a pensar a unidade produtiva em termos mais complexos no que
concerne à produção de um artefato, e a partir daí, sim, seguir além, para reflexões em
torno das esferas ontológicas da demanda e do consumo.
Para a análise das digitais, pautei-me nos pressupostos encontrados em
Bombonati (1992), Chemello (2006), Layton (2007), Kehdy (1964).
Análise das impressões digitais: gestos manuais na produção fabril
No presente caso, todas as impressões digitais foram deixadas em superfície
plástica moldável, a saber, a pasta cerâmica da faiança fina ainda crua. Sabe-se que,
arqueologicamente, as impressões tendem a ser parciais e a porção do dedo ou palma
representado não é suficiente para uma identificação (KAMP et alli, 1999, p. 310),
como pudemos perceber também com as análises das louças. Impressões digitais como
as que dispomos aqui, em argila, moldadas, são na verdade negativos, isto é, os vales
intercalados no dedo correspondem à parte em relevo na argila. Por isso na coleta de
impressões, as linhas pretas e as linhas brancas que as compõe são respectivamente a
reprodução das cristas papilares do suporte e a reprodução dos sulcos interpapilares no
mesmo (SILVA s/d). Assim como Kamp et alli, identifiquei que no registro
arqueológico as impressões não ocorrem inteiras e parece que certos dedos e partes das
254
digitais são preferencialmente representadas (segundo os autores, parece que a ponta
dos dedos e os 3 primeiros dedos ocorrem com maior freqüência [KAMP et alli 1999:
311]).
Segundo Rockwell, a presença de digitais em cerâmicas está diretamente ligada
às questões de organização do modo de produção; cerâmicas de mesa e utilitárias,
produzidas em larga escala e em grande velocidade, recebem menor atenção e tem
menor qualidade; a presença de marcas como as digitais passaria a ser, neste universo
standard, mais freqüentes (1970: 80). Talvez por isso haja um balanceamento desta
possibilidade de aparecimento de muitos “dedos” nos biscoitos das louças com os
tratamentos de superfície desenvolvidos pela Santa Catharina/IRFM – São Paulo.
É claro que nosso estudo possui muitas limitações. Não será possível identificar
idade (apesar de sabermos da existência de inúmeras crianças na fábrica), sexo, etnia,
etc. Mesmo porque, como anteriormente comentado, as impressões localizadas parecem
ser de ponta de dedos. Isto talvez estivesse ligado ao fato de que os trabalhadores
tinham uma preocupação em não marcar a massa crua, e não amassa-la, o que ocorria
caso apertassem com a mão inteira. O estudo, deste modo, forneceu dados interessantes
sobre os gestos da cadeia operatória, quer dizer, que gestos prováveis os operários
faziam ao manipular as louças cruas. Estes gestos parecem ter variado de acordo com o
tamanho e forma das louças.
Tais gestos fazem parte da narrativa impingida pelo oleiro ao artefato ao deixar
no mesmo marcas feitas durante a produção da louça; entendo esta “narrativa” da
produção da cerâmica, presente nos atributos e marcas do artefato, como os gestos da
seqüência gestual definida por Lemmonier (1992). Assim, apesar de diversas cerâmicas
possuírem, no mundo, marcas de digitais, os movimentos do corpo, gestos e cadeia
operatória que resultaram na performance final do objeto com suas impressões digitais
são únicas daquele ambiente fabril e daquelas pessoas que estavam fabricando a peça
(que resulta nessa louça brasileira original como é, afinal). O que é reforçado pela
unicidade de cada impressão digital e de cada indivíduo seu possuidor, por conseguinte.
As impressões digitais analisadas apontam para uma padronização nos
movimentos que compunham o processo de produção (ou a cadeia operatória) levado à
cabo pelos trabalhadores, que o posicionamentos das mesmas nas peças é bastante
regular: parede externa em xícaras e malgas menores, interna e externa em malgas
maiores e canecas, aba interna e externa em pratos e lábios de alguns pires. Suponho
que a padronização nos gestos está ligado a standardização da produção e ao sistema
255
disciplinar fabril de “domesticação dos corpos dóceis”, segundo a acepção foucaultiana
(FOUCAULT 2007) no interior da Fábrica ao que Leroi-Gourhan chamou
“taylorização dos gestos” (1983: 52). Como isto, no entanto, dialoga com o que estou
chamando agência, não-coerção e/ou não-normatização, do operário?
Inúmeros são os mecanismos, mesmo que inconscientes, de expressões
individual destes oleiros meio ao cotidiano fabril. Primeiramente, cada indivíduo tem
sua própria digital, que não se repete nunca. Segundo, apesar de que em termos gerais
nos referimos a uma produção standard, cada peça é única, feita por diferentes
trabalhadores, e por mais semelhantes, nunca exatamente iguais (sejam pela presença de
marcas, dedos, estrias, etc.) e em posições pontuais específicas diversas na própria peça.
Terceiro, mesmo que as peças fossem feitas pelo mesmo trabalhador, elas o seriam
“idênticas”, por mais semelhantes, porque, e aqui parto do pressuposto de que algo na
história é irrepetível, pois feitas em momentos diferentes. Uma vez que o homem não é
máquina, gestos e movimentos repetitivos, acredito, em escala industrial são
semelhantes, mas não exatamente iguais.
Do total de peças submetido a esta análise, compostas pela amostra nas coleções
IPHAN, MAE e NAUBC, 763 apresentaram digitais, a grande maioria sendo louças no
biscoito.
Quantidades de peças com ausência ou presença de impressões digitais
112
763
Ausência
Presença
256
Percebi, igualmente, que a maioria das digitais está na parte externa dos
artefatos, majoritariamente nas paredes. Xícaras e malgas dos menores volumes
praticamente não apresentaram digitais internas, presentes apenas em formas maiores.
Pratos e recipientes abertos como travessas apresentaram digitais na parte externa da
aba. A hipótese que se coloca é que, recipientes pequenos, devido seu tamanho, eram
segurados ou com ao totalmente ao redor da parede externa ou fazendo “pinça” com
os dedos, enquanto que os maiores, devido ao tamanho e peso, e cuidado para não
cair/quebrar/amassar, eram segurados com dedos na parte externa e na parte interna da
peça, a mão também em “pinça”.
Entendo como “movimento de pinça o aquele de oposição do polegar aos
demais dedos, necessariamente durante um ato funcional
26
(salvo casos especiais),
realizada com a porção distal do polegar e dos demais dedos (RESEGUE, WECHSLER
& HARADA 2003). Segundo a terminologia presente em NAGEM et all. (2007), os
trabalhadores da fábrica devem ter utilizado, para manipular as louças cruas, os
movimentos de pinça superior ou polpa-a-polpa
27
e polpa tri-digital (semelhante ao que
Kamp et all. encontraram entre os Sinagua, referindo-se a pegadas de ponta dos dedos
ou três dedos).
“A capacidade manual desenvolve-se, gradativamente, através dos sistemas
sensório-motores até atingir a acuidade necessária para que aquele ser específico se
adapte. Esta adaptação pode variar e ser modificada cultural e individualmente. Um
bebê adquire a precisão da pinça superior (polpa-a-polpa) até cerca de 12 meses de
idade” (MEYERHOF 1994); no entanto, se a profissão de alguém não exigir a utilização
desta, a pessoa poderá perder a capacidade de realizar este movimento de pinça, a
exemplo de um lavrador que ara a sua terra utilizando movimentos globais. Se
necessário, poderá, contudo, readquiri-lo através de auto-treinamento (MEYERHOF
1994). Esta adaptação cultural do movimento pode, claro, ter ocorrido também no
âmbito da fábrica de louças exigindo que as crianças e outros que nela trabalhavam
fossem capazes de realizar movimentos delicados de manipulação das peças cruas.
26
Segundo Resegue, Wechsler e Harada (2003), o movimento de pinça, imprescindível ao ser humano na
manipulação de objetos e ferramentas, surge entre o nono e décimo mês de vida do bebê.
27
A partir dos 9 meses de idade surge o movimento em preensão de pinça superior, quando a
individualidade da pinça vai adquirindo mais precisão; a criança, no início do segundo ano de vida, forma
a pinça no ar e os 3 últimos dedos ficam dispostos como degraus de uma escada ascendente desde o dedo
médio até o dedo mínimo, com extensão das primeiras falanges e semiflexão das outras. Esta extensão
permite dar uma grande precisão à delicada flexão do indicador (MEYERHOF 1994).
257
Freqncia de impressões digitais por formas
16%
54%
12%
7%
4%
2%
1%1%
2% 1%
Malga
Xícara
Caneca
Prato
Pires
Travessa
Saladeira
Mantegueira
Tampa
Penico
Porcentagem de marcas digitais por recipiente
54%
27%
12%
2%
4% 1%
Uma
Duas
Três
Quatro
Cinco
Oito
A existência das digitais nas louças aponta para a imprescindibilidade das mãos
ao trabalho oleiro, mesmo numa fábrica de produção de louças. Daí a importância das
mãos como o instrumento da força de trabalho “comprada”, pelo capital, do trabalhador
durante esse começo de século XX. Qualquer acidente de trabalho com as mãos do
oleiro poderia impossibilitá-lo de exercer sua função na fábrica, acarretando perda do
emprego e inaptabilidade ao ofício para o qual estava até então, apto. Como afirmou
Godoy et al. (2004), a mão humana é um órgão complexo com diversas finalidades:
como órgão preênsil é capaz tanto de imprimir força, como segurar e manipular objetos
delicados; como órgão tátil relaciona o organismo com o meio ambiente. Por sua
extrema mobilidade e também devido à grande sensibilidade dos tecidos que a envolve,
a mão humana destina-se principalmente a preensão e ao tato. Para Leroi-Gourhan
(1983: 40), “a mão nua revela-se apta para executar acções limitadas em força ou em
velocidade, mas infinitamente diversificadas”. Somado aos movimentos da mão, os
desenhos digitais, segundo uma abordagem anatômica funcional, tem design propício à
258
agarrar e segurar objetos, comum à todos os primatas (DALRYMPLE 2000: 870). “Há
quem diga que se os pés foram feitos para a locomoção, as mãos foram feitas para a
sobrevivência” (MOREIRA apud GODOY et alli 2004).
259
Movimento de pinça superior
Movimento de pinça tri
-
digital
Reconstituição dos possíveis gestos efetuados na manipulação das louças durante sua
produção com base nos vestígios das impressões digitais na coleção
Movimento de pinça tri-digital Movimento de pinça superior
260
Ademais, verifica-se a quantidade de “fragmentos papilares” por peça analisada
na amostra. Por “fragmentos papilares” entendo marcas de dedos que se apresentam nas
superfícies das louças de forma não contínua. Percebe-se que a maior parte das peças
contém apenas 1 marca, muito provavelmente remetendo ao cuidado no manipular e ao
tratamento de superfície interno. As peças com 5 fragmentos podem se referir a mão
inteiras (com 5 dedos); igualmente a peça que apresentou 8 pode indicar alguém que a
tenha manipulado pegando com a mão inteira, em movimento de pinça envolvendo
todos os dedos da mão, que a peça é uma pequena xícara. A porcentagem segue no
gráfico abaixo.
Deve-se lembrar, no entanto, que o processo de produção ora marcava as
digitais, ora as apagava. Kamp (2001: 434) ressalta que a preservação de impressões
digitais em cerâmicas varia bastante de acordo com os tratamentos que a cerâmica
ganha ao longo de sua produção e recipientes que sofrem brunidura, alisamentos ou
tiveram melhores acabamentos têm menos possibilidade de apresentarem traços de
digitais.
A parte interna das peças, especialmente dos recipientes côncavos (hollowware)
não apresenta quase nenhuma digital por terem sido submetidos a um tratamento de
superfície específico. No interior das mesmas era passado um pano ou esponja quando
da peça ainda crua para eliminar irregularidades na argila ou poeira que pode ter se
Porcentagem de impressões digitais por posição na peça
74%
17%
9%
Externa Interna Interna e Externa
261
depositado quando a peça esperava para ir ao forno, durante a secagem natural. Este
tratamento deixou estrias e marcas visíveis, que apagaram, conseqüentemente, as
digitais. Devo ressaltar, entretanto, que nos biscoitos das peças de design côncavo
um outro tratamento de superfície externo, que marca linhas mais ou menos
eqüidistantes entre si, em espirar nas peças menores, paralelas nos recipientes côncavos
maiores. Contudo, esse tratamento (uma ferramenta? Uma mesa giratória com cerdas
verticais para limpeza e regularização da superfície?) é provavelmente posterior ao
interno, pois as impressões digitais estão sobre ele.
Paradoxalmente, apesar de quase ausentes, as maiores digitais em tamanho estão
nas paredes internas, enquanto a maioria das digitais localizadas na parte externa é de
pequenas partes dos dedos, geralmente pontas. Isto leva a crer que existia uma
preocupação do oleiro quando da fabricação da peça, para que esta não ficasse marcada,
e o cuidado na manipulação das mesmas. Por outro lado, a cobrança do controle de
qualidade da Fábrica que implicaria num, por assim dizer, “cuidado obrigatório” na
cadeia de produção das louças. Além do mais, segundo dados contemporâneos, sabe-se
que as olarias pagavam por produção, por quantidade de peça fabricada (e ainda pagam,
a exemplo da própria Porcelana Monte Sião) e danificar peças com os dedos não era
exatamente o que os oleiros queriam. Estes aspectos da produção revelam as dinâmicas
que se estabelecem dentro do sistema fabril entre a estrutura que organiza a indústria e a
agência dos trabalhadores que produzem o artefato.
Para os recipientes de design plano (flatwares) aparecem digitais nas abas e
paredes externas e, algo que não aparece nos recipientes de design côncavo, no lábio das
bordas. Assim, alguns pires apresentam digitais nos lábios, justamente onde também
podem ser encontradas marcas de amassado, ou seja, um dedo as amassou quando ainda
cruas. Deve-se ressaltar que essas peças apresentam tratamento de superfície
esponjado, tanto interna como externamente, o que pode ter colaborado para o
apagamento da maioria das impressões.
Posto isto, ainda persiste uma dúvida quanto à própria existência das digitais nas
peças. Por que, afinal, elas estão presentes nestas peças no biscoito? Acredito poder
tomar dois vieses: o primeiro, refere-se ao fato de que a maior parte das digitais seria,
sim, camuflada pela esmaltação; já o segundo, enviesa para pensarmos que o que
compõe o sítio Petybon são louças que não passaram no controle de qualidade e por isso
foram estocadas, ou descartadas, contendo um defeito, a digital moldada. É difícil, no
entanto, afirmar resolutamente qualquer um dos dois vieses, apesar da primeira hipótese
262
parecer mais provável como evitar totalmente que o dedo do artesão marque a argila
num ambiente de produção ainda de transição do artesanal para o autômato?
Outro ponto interessante que pode ser verificado é que muitas digitais estão
sobre pequenos fragmentos de massa crua, grudados nas paredes das peças. É provável
que fossem pequenos pedaços de massa mole grudadas nas mãos dos oleiros e que no
momento da manipulação das peças, aderiram à superfície destas. Um vestígio que
poderia existir em uma produção de louça ainda não totalmente automatizada, onde as
mãos desse trabalhador desempenham papel fundamental.
Não é à toa que a maioria das digitais encontradas está em peças no biscoito. A
esmaltação geralmente as camuflaria, pois o vidrado preencheria as irregularidades da
superfície, como disse. Todavia, isto nem sempre ocorreu. Na porção da coleção
submetida a este tipo de análise, 3 peças apresentaram digitais visíveis sob o esmalte.
É importante ressaltar que durante a fabricação das louças só existem três
momentos com possibilidade de marcar uma digital moldada na argila. Segundo
observei na Fábrica de Porcelana Monte Sião, em Minas Gerais, possibilidade de
marcas quando: a) da retirada da louça crua do molde de gesso, b) quando dos últimos
tratamentos de superfície para eliminar irregularidades e impurezas da superfície da
peça para então ser esmaltada e depois queimada, c) da esmaltação por imersão da
louça. Após a queima, fica impossível moldar uma digital na peça. Como a Santa
Catharina era fábrica de faiança fina, com duas queimas, uma possibilidade de marcar
digitais, no esmalte cru, só poderia ocorrer após a segunda queima, a do biscoito,
quando então a peça era esmaltada por imersão, diferente da Porcelana Monte Sião onde
a massa crua, seca ao “ar livre”, é esmaltada, sendo queimada apenas uma vez.
Na Porcelana, a observação etnográfica permitiu verificar que para esmaltar, sem
tocar a ponta dos dedos na cerâmica coberta com esmalte líquido, são usadas duas
varetas de madeira para recipientes com alça, uma dentro da peça e outra perpassando a
alça, que segura a mesma quando é imersa. para recipientes sem alça, a esmaltação é
feita segurando a peça na o, com a mão em pinça, com um dedo no lábio e outro na
base (partes onde se retirado o esmalte com uma esponja para a queima). Para o
transporte das peças entre um setor e outro do processo produtivo, as louças são postas
sobre tábuas de madeira, alinhadas, e então o operário responsável carrega a tábua, em
geral, sobre um dos ombros. Todo cuidado para menos pessoas tocarem as peças, o que
levou ao desenvolvimento destas táticas. O mesmo pode ser verificado no detalhe de
uma fotografia tirada no interior da fábrica Santa Catharina nos anos 1920: percebe-se a
263
existência de tábuas de madeira, abaixo das estantes de secagem natural das peças, e sob
balcões nas quais se as louças cruas enfileiradas, com a base encostando a madeira.
Era sob estas tábuas que o transporte das louças era feito pelo interior da fábrica,
provavelmente nas etapas de manipulação das mesmas realizadas entre a retirada do
molde, a esmaltação, a secagem natural até o posicionamento das louças nas caixas
refratárias, quando deixam a tábua para serem queimadas.
Esta preocupação com as marcas foi crescendo, a meu ver, ao longo dos séculos
XIX e XX e vai se somar à automação e a “nulidade” de marcas como impressões
digitais dos trabalhadores na fabricação de um artefato por uma máquina. Ou seja, a
agência alterando a estrutura. Conforme Ahearn (2001: 110), atualmente muitos
pesquisadores têm começado a investigar como as práticas podem tanto reproduzir
como transformar as estruturas que as modelam.
Detalhe da foto de 1922 do interior da Fábrica Santa Catharina (CAPRI 1922): percebe-se a
presença das louças cruas sob tábuas de madeira através das quais as louças eram transportadas
pelo interior da produção com o mínimo toque possível entre mãos humanas e superfície da
cerâmica.
264
A seguir selecionei alguns exemplos para ilustrar as impressões digitais
presentes nas superfícies dos biscoitos ou outros suportes. Percebe-se que as digitais
estão presentes também em pedaços amassados de caulim, que mostraram que, apesar
da predominância de movimentos em pinça, existem também movimentos no quais a
palma da mão toca a peça (impressões palmares). A parcialidade das impressões digitais
que se caracterizam por fragmentos bastante diminutos, indicando uma preocupação
com o não tocar e marcar as peças e com as etapas de acabamento de superfície que
apagavam, boa parte das digitais, ao menos quando nos referimos às paredes internas
das louças.
Devido sua parcialidade, poucas são reconhecíveis segundo o sistema de
Vucetich, mas reconhecem-se, por vezes, digitais em arco ou presilha interna ou
externa. Com um exame mais acurado poder-se-ia entrar mais a fundo na
individualidade de cada operário, formando conjunto de “numero mínimo de oleiros”,
graus de parentescos, marcas de acidentes de trabalho e mesmo doenças.
Alessandro Fulan Luiz, no processo de esmaltação da
Porcelana Monte Sião, na qual trabalha 11 anos: 1)
Esmaltando canecas com o auxílio de varetas, 2)
Esmaltando as tigelas com as mãos, os dedos no lábio e
na base (onde, no caso, o esmalte será retirado com
auxílio de uma esponja deixando o biscoito aparente), e
3) transporte das louças cruas esmaltadas em tábua de
madeira, evitando novo contato com os dedos.
1
2
3
265
Presilha Externa
Arco
Digitais na parede interna das peças
Digitais reconhecíveis na parede interna das peças
266
267
268
Palma
269
Com os apontamentos feitos, espero ter demonstrado que é possível iniciar uma
discussão justamente sobre a práxis, a prática, de trabalhar a argila para fabricar uma
louça dentro de um sistema de produção standard fabril. As impressões digitais
levantaram questionamentos em torno de diversos aspectos do mundo do trabalho no
interior da Fábrica Santa Catharina/IRFM – São Paulo, relacionados a abordagens
Palma
270
arqueológicas de cadeias operatórias de produção de artefatos e gestos feitos pelos
operários para fabricação destes mesmos materiais com finalidade de consumo de
mercado e não consumo auto-subsistente. Enfim, acredito que as impressões digitais
presentes em tantas cerâmicas podem suscitar questionamentos mais gerais e que estão
intrínsecos às discussões arqueológicas que põem, pelo menos desde a década de 1960,
em voga a relação entre indivíduo e norma na análise e interpretação da cultura material
encontrada em inúmeros sítios arqueológicos.
Neste sub-capítulo, procurei dialogar com uma esfera mais específica, as
digitais, e uma esfera mais global (HODDER 1994: 201), isto é, como a partir das
digitais na cerâmica do sítio analisado podemos discorrer sobre aspectos da cadeia
operatória e dos processos de fabricação que dialogam com a estrutura fabril na qual
está ambientada. Para isto, tomei como ponto de partida alguns pressupostos da teoria
da prática como a relação entre agência e estrutura.
No que concerne ao universo das fábricas, dialogando especificamente com as
fábricas de cerâmica e louça branca, é interessante perceber como uma tradição oleira
local / regional acabou transformando o sistema de fábrica a ser implantado para
produção standard destas cerâmicas, uma vez que mesmo com as estratégias e
mecanismos de produção que teoricamente não permitiriam uma expressão individual,
os oleiros resistiram a essa estrutura e mesmo a modificaram, expressando nas
decorações e nas digitais resultantes destes gestos da seqüência operatória, sua
individualidade, ou melhor, sua agencia, contornando de alguma forma os mecanismos
da disciplina e a domesticação dos corpos dóceis (FOUCAULT 2007). O artesanal
somou-se a prática de fábrica e indústria pensada na Europa e trazida para São Paulo,
modificando, em última instância, a performance final da louça branca. Questiono até
que ponto a perda do conhecimento da cadeia produtiva, pelo trabalhador, pela teoria
marxista, pode ser aplicada ao processo de produção de cerâmica no Brasil. Os gestos
feitos nesta produção, de caráter particular, que somou oleiros locais e suas tradições, a
novos modos de produção cerâmica em moldes industriais, a louça brasileira em faiança
fina.
271
CAPÍTULO 4
CONSUMOS ESPECÍFICOS EM CONJUNTURAS PARTICULARES
... No “invisível cotidiano”, sob o sistema silencioso e repetitivo
das tarefas cotidianas feitas como que por hábito, o espírito alheio,
numa série de operações executadas maquinalmente cujo
encadeamento segue um esboço tradicional dissimulado sob a
máscara da evidência primeira, empilha-se de fato numa montagem
sutil de gestos, de ritos e de códigos, de ritmos e de opções, de
hábitos herdados e de costumes repetidos... (GIARD 2007: 234)
Pretendo, neste capítulo, apresentar algumas questões, suscitadas durante a análise do
material cerâmico do sítio Petybon, que têm relação com a esfera do consumo e com os
possíveis consumidores das louças produzidas pela Fábrica Santa Catharina. Será necessário,
portanto, apresentar o que estou entendendo como consumo, enquanto categoria ontológica,
parte inerente de um todo (produção-demanda-consumo), relação constante entre um discurso
normativo pautado nas estratégias dos produtores e ações e reações a este discurso pautadas
nas táticas dos consumidores (partindo das inferências sobre táticas e estratégias
certeaunianas). Quero apontar, igualmente, que a louça brasileira está sendo feita não a
partir de uma produção nacional (específica em termos tecnológicos), mas para um mercado
local, cujas demandas e aspectos culturais dos modos de consumir dialogam com o que está
sendo produzido pela Fábrica Santa Catharina. São consumos específicos em conjunturas
particulares. Daí, formas e decorações que caracterizam esta louça em faiança fina,
diferenciando-a de uma concorrente forânea.
Abordarei, de modo sucinto, alguns pressupostos em torno da louça branca, tentando
esclarecer o porquê de aplicá-los à minha interpretação ou o porquê de não fazê-lo. São
questões em torno do consumo das faianças finas, dos chamados “comportamentos
normativos” e das louças como marcadores de status sócio-econômico e cronológico,
partindo dos questionamentos de Monika Therrien (2004) para as cerâmicas históricas.
Elenquei tais temas por terem sido os que, tão logo, não se ajustaram às faianças finas
brasileiras, uma vez que são faianças finas do século XX (não do XIX), brasileiras (não
européias), num contexto de popularização das mesmas (não mais reclusas ao consumo de
uma elite, se é que um dia o foram), utilizadas por diversos grupos de variados contextos
culturais em uma cidade como São Paulo (mameluca, imigrante, colonial, cosmopolita, tudo
somado, tudo ressignificado...).
272
É importante ressaltar, primeiramente, que lido com um contexto capitalista industrial,
fabril, no qual se produz para um mercado; não se produz para si mesmo, não se é o
consumidor da própria produção (o que não anula o fato de que um operário pode ter
consumido o produto que, em parte, foi feito por ele na fábrica). Deste modo, para as louças,
questões de individualidade e identidades serão muito mais fortes nas esferas do consumo,
com preferências por formas e decorações, do que na produção (como é o caso das
interpretações em torno de sítios cerâmicos indígenas), aceitando a relação entre o consumo
como um estilo de vida, a construção de uma visão de mundo, e as estratégias de consumo,
no âmbito de identidades (FRIEDMAN 1994: 9). O que mudou é que, pela produção,
perpassam agora algumas relações do capital, dando formato a uma sociedade dita capitalista,
industrial, de consumo: a mudança na relação de aproximação entre produto e produtor
“resulta do fato de que à razão da sobrevivência se antepôs como obstáculo à razão técnica”
(MICELI 1996: 182). É preciso ter em mente, as especificidades deste capitalismo,
ressintetizado, ressignificado segundo aspectos regionais e locais (SAHLINS 2004; BAVA
DE CAMARGO 2009). Para as escalas de análise em Arqueologia Histórica, para além
daquela com maior grau de generalização que se orienta à discussão dos processos a partir de
perspectivas globais, entendo não apenas o consumo, como a produção da louça branca no
Brasil como uma rica porta para tentar entender as particularidades geradas a partir das
respostas e reestruturações locais em distintos pontos de impacto deste sistema capitalista
(ZARANKIN & SENATORE 1999: 172; ZARANKIN & SANATORE 2005).
Para Michael Johnson não deveríamos estar interessados em procurar desvalorizar a
importância de se olhar para um sistema global do mundo capitalista, ou negar que um
fenômeno como esse é uma parte integral do estudo das origens históricas da modernidade
(1999b). Entretanto, deveríamos nos atentar também à parte mais fascinante e desafiadora da
Arqueologia Histórica: suas particularidades, “a series of concerns that lead us away from
world systems and categories and towards a sense of power of material culture in different
local contexts” (JOHNSON 1999b: 35). Segundo ele, é muito tentador ver o capitalismo, ou
as práticas características do capitalismo, chegando à costa da América como um pacote
fechado (1999a: 223), mas sabemos que o que quer que seja que tenha aqui chegado, se
reestruturou, ressignificou, re-adaptou a novos contextos, novos personagens, novos
ambientes. Para Purser, o capitalismo pode até ter sido um processo global, mas agiu em
pequenas escalas e como resultado variou diferentemente em escalas relativamente pequenas
273
de espaço e tempo (PURSER 1999: 117). Segundo o mesmo “the quality of material culture
thus produced is equally variable and complex, and needs to be seen as such. It was a
material culture that was inherently ambivalent and ambiguous open to strategic manipulation
on many levels, and not always used in the manner suggested by the ‘package label’
(PURSER 1999: 117).
Posto isto, quero dizer, assim, de modo mais geral, que nunca pressuponho um
modelo original ou uma determinada maneira de ser e ver o mundo que tenha sido
integralmente adquirida ou reproduzida. A louça, portanto, navega neste universo onde
diversas pessoas, dos mais variados locais, a utilizaram e deram a ela significados plurais. A
comunidade também forma o contexto onde circulam as coisas, e neste trabalho tento pensar
a Fábrica de Louça e as faianças finas pautando-me na dialógica entre community e
commodity, observando relações de poder que operam em escala local, conectadas ao um
nível global (CARROLL 1999: 133).
Outra problemática, no entanto, se evidenciava desde o começo desta pesquisa de
mestrado: se as louças não foram efetivamente consumidas, entendendo, num primeiro
momento, que a efetivação do consumo é atingida quando o uso pretendido é alcançado, ou
seja, usar as louças para alimentação ou os penicos para higiene pessoal, se o foram
vendidas e não saíram do universo produtivo, a Fábrica, é, portanto, possível pensar em
consumo e consumidor a partir do material arqueológico do sítio Petybon? Ou deter-me-ia
apenas na esfera produtiva?
É claro que esta abordagem é possível, uma vez que a Fábrica Santa Catharina não
surgiu sem propósitos e está inserida numa lógica de mercado, na qual existem demandas de
mercados consumidores e que, apesar dos discursos higienistas e normativos das elites
estarem presentes nas formas, decorações e demais aspectos das faianças finas produzidas,
existe o peso, grande, do que os consumidores comprariam ou demandariam para consumir. É
simplesmente impossível pensar produção sem consumo e demanda; afinal, como afirmou
Lívia Barbosa (2008: 15), como a industrialização poderia ter ocorrido em bases capitalistas
sem a existência prévia de uma demanda adequada para a produção? Para quem esses
industriais iriam vender? Existe, portanto, um aspecto básico no funcionamento da demanda,
o de que ela pode tanto regular como desviar a amplitude do feedback à produção; se não
demanda para determinado objeto, não vantagem em produzi-lo, e, logo, a demanda passa
274
a agir como um mecanismo de ão contrária que impediria o desenvolvimento da produção
(ARNOLD 1985: 127).
Atualmente, muitas das abordagens da História e da Antropologia do consumo
definem conceitos como “produzir” e “consumir” de modo mais amplo, uma vez que ao
produzir, por exemplo, os trabalhadores da Fábrica Santa Catharina também estariam, de
certa forma, consumindo a louça por eles produzida, assim como ao consumir, os
consumidores também estariam produzindo significados, gestos, comportamentos,
identidades, sentidos, e novos artefatos com os reusos. No âmbito das sociedades
contemporâneas, consumir pode ser entendido no sentido de uma experiência, processo social
que se refere “à múltiplas formas de provisão de bens e serviços e a diferentes formas de
acesso a esses mesmos bens e serviços; um mecanismo social percebido pelas ciências sociais
como produtor de sentido e identidades, independente da aquisição de um bem; estratégia
utilizada no cotidiano pelos mais diferentes grupos sociais para definir diversas situações em
termos de direitos, estilo de vida e identidades” (BARBOSA 2006: 26). O consumo deve ser
visto, enfim, como um ato cultural, “central no processo de reprodução social de qualquer
sociedade (...) As atividades mais triviais e cotidianas como comer, beber e se vestir, entre
outras, reproduzem e estabelecem mediações entre estruturas de significados e fluxo da vida
social através dos quais identidades, relações e instituições sociais são formadas, mantidas e
mudadas ao longo do tempo” (BARBOSA 2008: 13).
Por isso, esta pesquisa pautou-se em certas ressalvas e no galgar de algumas
dificuldades, uma fez que pensar o consumo a partir de um centro produtor (o sítio Petybon e
a Fábrica Santa Catharina) não é o mesmo que pensá-lo a partir do refugo de uma unidade
doméstica, onde se situa a maior parte das abordagens em Arqueologia Histórica e em torno
do que es a maior parte da bibliografia. A especificidade de minha abordagem está,
precisamente, no fato de que penso o consumo a partir da produção, e como demandas e
hábitos de consumo se manifestam na esfera produtiva e nos produtos fabricados pela Fábrica
Santa Catharina. Uma das dimensões do conhecimento da produção, e que para a Fábrica não
foi diferente, é justamente um conhecimento do mercado, do público consumidor, do destino
da mercadoria (APPADURAI 2008: 62). Vejo, deste modo, a Fábrica quase como um elo, um
canal entre consumidores e produtores, na relação dialogal estabelecida pelo que Appadurai
(2008: 62) chamou “pontes mercantis que atravessam grandes abismos de conhecimento
entre produtores e consumidores” o que “caracteriza a movimentação de grande parte de
275
mercadorias por toda a história, até o presente”. É a Fábrica, de certa forma, sintetizando as
estratégias dos produtores e as demandas dos consumidores e criando respostas para isto. As
tigelas, por exemplo, formas tradicionais com nova matéria-prima, novo apelo visual, cujo
design possibilita múltiplos usos.
Segundo o próprio Marx (2000: 31) “o consumo é também imediatamente produção,
do mesmo modo que na natureza o consumo dos elementos e das substâncias químicas é
produção da planta”. Sem produção não consumo, mas sem consumo tampouco
produção; na abordagem marxiana (2000: 32), o consumo produz de uma dupla maneira a
produção, primeiro porque o produto não se torna produto efetivo senão no consumo e
porque o consumo cria necessidade de uma nova produção, movendo-a internamente e
criando seu impulso. Deste modo, apresento uma das justificativas para o estabelecimento de
uma fábrica de louça branca na cidade: existe uma demanda, existe uma produção, existe um
consumo.
Para De Certeau (2005: 54), produção e consumo ligam-se através de uma economia
pautada na replicação de bens possuídos em bens a perder, pois, para o autor, consumir é
também anular, e a essa divisão entre gastar e guardar correspondem opções culturais e
políticas. Consumo denota destruição e uso de artefatos, através de sua destruição física
(comer comida, queimar petróleo) ou exploração de um bem ou serviço (ir a um dentista)
(SCARLETT 2002: 129). O consumo, deste modo, pode ser qualificado como outro tipo de
produção (que não a racionalizada, expansionista, centralizada), astuciosa, dispersa,
insinuando-se “ubiquamente, silenciosa, quase invisível, que não se faz notar com produtos
próprios, mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica
dominante” (DE CERTEAU 2007: 39). Se os produtores implicavam às louças produzidas
pela Fábrica um uso pretendido (intended function), o que acredito que faziam, pautados
numa conjuntura específica, quais os usos reais (actually used) das louças? (SKIBO 1992:
35-37). Se não posso inferir com certeza como foram usadas, como foram consumidas, tenho
sempre em mente a multifuncionalidade dos artefatos (SYMANSKI 1996: 70; GOMES
2005), que o uso pretendido não é sempre igual ao uso real (SKIBO 1992: 38) e que, por isto,
uma abordagem ancorada na normatividade de comportamentos pautados na relação fixa
entre forma e função do objeto é problemática.
Segundo esta perspectiva, operações que caracterizam o consumo na rede de uma
economia e reconhece nestas, práticas de apropriação dos indicadores da criatividade que
276
pulula justamente onde desaparece o poder de se dar uma linguagem própria” (DE
CERTEAU 2007: 44). Estas operações são margens de manobra permitidas aos usuários
pelas conjunturas nas quais exercem suas artes de fazer na invenção do cotidiano. Segundo
De Certeau, as manobras pautam-se nas táticas de consumo, as armas dos consumidores e dos
“dominados”, “engenhosidades do fraco para tirar partido do forte”, que desembocam em
uma “politização das práticas cotidianas” (2007: 45), e as estratégias, usadas pelos produtores
e pelos dominantes, “cálculo de forças que se torna possível a partir do momento em que um
sujeito de querer e poder é isolável de um ‘ambiente’” (2007: 46). As táticas são
desviacionistas o obedecem à lei do lugar, utilizando, manipulando ou alterando, enquanto
as estratégias são capazes de produzir, mapear e impor. É no cotidiano que as inventividades
próprias fazem-se presentes na ação, onde são criadas maneiras de utilizar sistemas impostos,
constituindo resistências à leis históricas de um estado de fato e suas legitimações dogmáticas
(2007: 79). Na ordem das zonas do poder, das indústrias, é sempre possível uma prática
desviacionista.
Por isso, é para mim difícil pensar em padrões normativos de consumo e do
consumidor ou que as louças da Fábrica estavam sendo usadas segundo os planos das elites e
dos industriais que pensaram sua instalação e um uso pretendido para as cerâmicas.
Aproximo-me mais às abordagens como as de Chartier (1991: 175) que retorna “a uma
filosofia do sujeito que recusa a força das determinações coletivas e dos condicionamentos
sociais”, postulando-se contra as determinações imediatas das estruturas às capacidades
inventivas dos agentes e contra a submissão mecânica das estratégias da prática à regra
(CHARTIER 1991: 176). Se o consumo é uma “arte de utilizar”, caracterizada por seu
“esfarelamento em conformidade com as ocasiões, suas ‘piratarias’, sua clandestinidade, seu
murmúrio incansável, em sua uma quase invisibilidade”, como pontua De Certeau (2007), e
este “utilizar” pauta-se em referências culturais, identiárias, etc., como trabalhar com regras e
normas no consumo? É claro que existe, sim, um discurso normativo sobre o ato de consumir
e usar. É claro que as elites tinham um plano quando pensaram na instalação da fábrica de
louças em São Paulo, mas também não se pode esquecer das diversas significações e usos que
o consumidor dará para aquelas louças no dia-a-dia.
No decorrer dos últimos anos, passou a se conformar, assim, certa insatisfação, por
parte de diversos pesquisadores, para com os modelos normativos de cultura, cujos
pressupostos de homogeneidade social não parecem encontrar respaldo nem nos estudos da
277
cultura material, nem na teoria social contemporânea (FUNARI 2005: 6). O capitalismo, por
exemplo, segundo Funari, não conseguiria uniformizar a cultura material e as mentes;
conceitos normativos e homogeneizadores como “globalização” e “europeização” vêm sendo
postos à prova, tendo em vista que “a diversidade social não se conforma a seus ditames”
(FUNARI 2005: 6 ). Desta forma, pressupor que tudo se “aburguesa” (seja o que este
termo generalizante queira determinar) é, para mim, pressupor uma espécie de aculturação ou
de simples re-ação em direção à aquisição de um comportamento normativo. “Burguês”,
quando se pensa nas maneiras de utilizar a louça branca, funciona como uma enorme
“guarda-chuva” embaixo do qual são postos diversos comportamentos e diversas expressões
culturais, ou ainda, um conceito a partir do qual se homogeneíza uma série de manifestações
que, sem um poder de existência ou atendo-se pouco a seus “regimes de verdade”, rumam
para um algo a se alcançar, quase um “destino manifesto”, um fim, de uma linha de progresso
iluminista, chamado “burguês”. Para Robert Darton, a expressão tendenciosa “burguês” é
“ofensiva, irritante, inexata e inevitável” (1986: 144-145).
Segundo Monks (1999: 209), qual a significação e o alcance, em temos sociais e
econômicos, da relação entre quantidade de tigelas e quantidade de xícaras e sua conexão a
um comportamento “burguês”? Chá era freqüentemente consumido em tigelas ao invés de
xícaras, o que acarreta, portanto, uma limitação local e temporal na aplicabilidade deste
approach. Encontrar um conjunto de xícaras num refugo é indicador de aburguesamento dos
usuários através de um padrão de comportamento, que seria contrário a um refugo cheio de
tigelas? É possível saber se se consumia c, caou chocolate? A relação forma-função não
pode ser pautada na relação de arbitrariedade do signo saussureano; atribuir à peças de louça
uma única função é restringente demais, apesar de poder ser utilizado em alguns contextos
(MACHADO 2004: 28). Isto se assemelha ao que Robert Dunnell chamou “atualismo
substantivo”, “que parte do princípio que existe uma imutabilidade na relação
forma/comportamento/função” (ARAÚJO 1999: 38), Para Machado (2004: 215), às vezes, à
louça é denotada uma importância pouco pragmática e, conforme o cotidiano diário, como é o
caso do significado ritualístico do chimarrão no Rio Grande do Sul, alguns comportamentos
simplesmente não são aplicáveis.
Muitos destes padrões são pensando a partir do chamado efeito trickle-down, ou seja,
a abordagem que pressupõe a existência de grupos de referência que poderiam servir de
inspiração para os segmentos na base da pirâmide social e a disseminação do seu gosto de
278
cima para baixo (BARBOSA 2008: 21), dos grupos mais “baixos”, na pirâmide para os mais
“altos”. A Antropologia do Consumo, a História Cultural, a História Social do Trabalho e as
teorias pós-colonialistas vêm criticando em muito esta perspectiva, que parte de um
pressuposto que ignora culturas e identidades dos diferentes grupos de uma sociedade,
inferindo que todos desejariam copiar algo visto como “melhor” ou que se quer atingir: o
Brasil quer ser Europa, a elite paulistana quer ser francesa ou inglesa, e os grupos mais
subalternos querem ser elite. Um reducionismo que limita o poder de ação e reação e o papel
das culturas. Pautar interpretações apenas em noções de “re-ação” ou de “desvio” em relação
à um particular comportamento, um modelo, seja ele de modernidade, seja de um ritual, ou
hábito “burguês”, ou “como se fazia na Europa”, é partir de um modelo rígido de cultura,
capaz de prever a existência de um suposto comportamento ‘médio’ ou ‘normal’”
(CHALHOUB 2005: 86). Uma abordagem como essa, no meu caso, acaba encarando a
demanda de consumo como sempre se originando de elites abastadas, pessoas que,
tipicamente, tiveram acesso a maioria dos bens disponíveis numa sociedade. Apenas a partir
da década de 1990, arqueólogos passaram a reconhecer que, por exemplo, grupos operários
possuíam um papel ativo em suas próprias escolhas de consumo, assim como em seu peso no
incremento da demanda por alguns bens (CARROL 2002: 127).
O consumo é um processo ativo em que todas as categorias sociais são continuamente
redefinidas, tendo em vista que o indivíduo usa o consumo para dizer alguma coisa sobre si
mesmo, sua família, sua localidade, seja na cidade ou no campo (DOUGLAS &
ISHERWOOD 2004: 116). Para Douglas e Isherwood (2004: 108), a função essencial do
consumo é sua capacidade de dar sentido, um meio o-verbal para a faculdade humana de
criar”. Enquanto processo ativo ele é também processo ritual, cuja função primária é dar
sentido ao fluxo incompleto dos acontecimentos (DOUGLAS & ISHERWOOD 2004: 112),
fazendo com que o consumidor construa um universo inteligível com os bens que escolhe.
O estudo destas escolhas de consumo em Arqueologia Histórica fornece um pano de
fundo sobre a formação dos processos de decisão e as motivações por trás do consumidor.
Em geral, o arqueólogo que usa a abordagem das escolhas de consumo argumenta que
relações sociais e econômicas podem ser avaliadas com base na escolha que as pessoas
fizeram ao adquirir a cultura material (utilizando a casa como locus primordial de análise)
(CARROL 2002: 126), que caracteriza o comportamento de consumo. Esta linha de
pensamento é freqüentemente utilizada em trabalhos mais processuais que m como meta
279
averiguar a forma como determinadas variáveis sócio-culturais (no caso a variabilidade do
status sócio-econômico) são manifestadas no registro arqueológico (SYMANSKI 1998: 21).
O problema nesta abordagem está na ênfase nas questões de riqueza e status, focando
principalmente em indexes particulares de artefatos mais caros (CARROL 202: 128),
enveredando algumas vezes por uma abordagem do consumo como reflexo, a cultura material
refletindo a identidade e o background cultural do consumidor (SCARLETT 2002: 129).
Para Scarlett (2002: 129), enxergar o consumo deste modo “reduces human to the
status of ants or robots simply programmed through enculturation to act in certain ways (...)
minimizes the significance of material culture as a symbolic area of human expression”.
Assim, com os anos 1990, permeada pelas leituras da nova Antropologia do Consumo, a
arqueologia passou a perceber o consumo como um ato expressivo, no qual os consumidores
escolhem da cultura material enquanto constroem suas identidades, a níveis conscientes e
inconscientes; assim como De Certeau (2007), passou-se a perceber o consumidor como um
participante ativo, negociando sua identidade em contextos de poder, etnicidade, classe,
gênero ou nacionalidade (SCARLETT 2002: 131).
Estas escolhas, que variam no tempo (e no espaço), têm na louça branca um grande
fornecedor de dados para situar as pessoas num intervalo temporal. A louça, como ponto de
partida para uma primeira delimitação temporal de uma ocupação, é um material interessante.
“Por serem produtos padronizados, que apresentam períodos de produção específicos, as
louças são, em geral, utilizadas como indicadores cronológicos do espaço de tempo da
ocupação de um sítio” (SYMANSKI 1996: 61). Para os princípios do terminus post quem, é
plausível sua utilização, tornando-se uma ferramenta bastante útil, se não totalmente
necessária, para datações relativas. No entanto, para o princípio do terminus ante quem, fica
difícil saber quando determinado material deixou de ser utilizado, quando entrou para o
contexto arqueológico, sabendo das dinâmicas que envolvem as mercadorias desde sua
produção até o consumo e o descarte final. Como afirmou Deetz (1977: 16-17), o terminus
ante quem deve utilizado parcimoniosamente, uma vez que o número de fatores a considerar
para a ausência de um determinado tipo de artefato num sítio é grande. Araújo e Carvalho
(1993), analisando as louças do sítio Florêncio de Abreu, em São Paulo, aplicaram os
princípios e a fórmula South e, mediante uma grande discrepância nos resultados, sugeriram
que as louças foram quebradas e descartadas pelos menos quatro décadas após sua fabricação.
280
Por outro viés, é importante, quando trabalharmos com louça branca, quando de seu
uso cronológico, que se ressalte se se usa um intervalo de produção ou de consumo, que
muitas vezes não são concomitantes. Picos ou intervalos de produção e picos de consumo
devem ser melhor pensados antes de sua aplicação direta às interpretações do registro
arqueológico. Apesar das inúmeras pesquisas, para Samford (1997: 25) ainda há que se
abordar melhor as questões em torno das variações na relação entre datas de produção e
períodos de utilização dos elementos cerâmicos. Majewski e O’Brien ressaltam que alguns
tipos podem ter maior popularidade no início de sua produção seguindo um longo período de
declínio; Miller (1989) apresentou o caso da produção de shell edged que cessou de ser
produzida quando estava em seu pico de consumo.
Por exemplo. O padrão trigal foi bastante consumido no Brasil do século XIX, tanto
que a preferência por esta decoração adentrou o século XX e continuou a ser produzido pelas
fábricas brasileiras. Se uma determinada fábrica na Inglaterra produziu o trigal desde 1850 e
encerrou sua produção, hipoteticamente, em 1900, ano em que, do total das peças decoradas
produzidas, apenas 0,5 % da produção era de trigais, pode ocorrer que 1900 tenha sido o pico
de consumo no Brasil e que todos os 0,5 % da produção viessem para cá – mas, que o pico de
consumo, por exemplo, nos EUA, tenha sido em 1860. Portanto, o pico de consumo não
concatena com o pico de produção da fábrica. Pode ser, ainda, que se vendam levas de
objetos não mais produzidos por uma fábrica; assim, o consumo será posterior ao intervalo de
produção de determinado artefato. Utilizar os intervalos disponíveis de produção das fábricas
para a Inglaterra (e se for uma faiança fina holandesa, portuguesa, francesa? Porque
importamos muitos produtos da Inglaterra, todas as faianças finas serão sempre inglesas, na
ausência de marcas de fabricante?) ainda é uma ferramenta útil, mas a parcimônia deve ser
maior, até, pelo menos, dispormos de um quadro, ainda que geral, para os períodos de
consumo de determinados padrões na América Latina.
Quanto às louças brasileiras, e quanto ao consumo que se refere ao século XX em
geral, é bastante complicado utilizar as faianças finas como reflexo ou indicador de um status
sócio econômico. Como afirmou Symanski (1998: 219), “por vezes a alta condição
econômica dos ocupantes de uma unidade doméstica não estará necessariamente expressa no
registro arqueológico”. Se a louça de diferenciação social foi aquela da cristaleira, mais cara,
somente utilizada em cerimônias e encontros, e, portanto, com menor freqüência de uso e
com menor freqüência no registro, é possível que as louças cotidianas não sejam aquelas a
281
marcarem diferenças sócioeconômicas (ou mesmo identitárias). Escalas de preço, como a de
Miller (1989, 1991), bastante usada na arqueologia histórica brasileira, são problemáticas
(LITTLE 1996) pelo simples fato de que Miller montou um índice para o mercado americano
do século XIX, com pouquíssimo a ver com os mercados consumidores que se formam no
Brasil nos séculos XIX e XX. Picos de consumo e oscilações de preço e valor nunca serão os
mesmos. Assim, uma louça barata nos EUA pode ser cara no Brasil porque outros fatores
entram na formação do preço, como as taxas alfandegárias e importadoras. Além disso, o
index faz uma relação quase direta entre riqueza e bens, não levando em conta fatores como
disponibilidade, backgrounds culturais, étnico, identitários, grupos sociais, ciclo de
funcionamento da unidade doméstica, a composição da casa, a função do lugar e os efeitos do
tempo (MONKS 1999: 206), assim como gosto, demanda e outras variantes. As necessidades
do consumidor não só influiriam no preço, como também nas mudanças tecnológicas na
própria produção (SCHIFFER 1993: 98). Se o consumo é uma forma de ação simbólica, e os
bens de consumo não são meros pacotes de “utilidade neutra”, os objetos tornam-se mais ou
menos desejáveis em virtude do papel que exercem em um sistema simbólico (GELL 2008:
143). Esta oscilação no desejo por um determinado objeto imbrica a demanda aos processos
de valor e formação de preço.
Para a Teoria de Preços, no âmbito da microeconomia, a demanda, ou procura, é “a
quantidade de determinado bem ou serviço que os consumidores desejam adquirir, num dado
período. Assim, a demanda é um desejo” (VASCONCELLOS 2002: 49). A notória percepção
da pouca objetividade do conceito de “desejo” fez com que a demanda fosse vista muitas
vezes como algo misterioso e por isso difícil de determinar. No entanto, adoto a visão de
Baudrillard (1981) e Appadurai (2008) para os quais a demanda deve ser vista, assim como o
consumo, como um aspecto geral da política econômica das sociedades: “a demanda surge
como função de uma série de práticas e classificações sociais, em vez de uma misteriosa
revelação das necessidades humanas, de uma reação mecânica à manipulação social..., ou de
uma redução de um desejo universal e voraz por qualquer coisa que, por acaso, esteja
disponível” (APPADURAI 2008: 46). Segundo esta Escola, a demanda ainda oculta dois
tipos diferentes de relação entre consumo e produção: a) de ser determinada por forças sociais
e econômicas e b) de que pode manipular estas forças econômicas e sociais (APPADURAI
2008: 48-49).
282
Pensar a demanda deste ponto de vista cria um escopo teórico para refletir sobre o
papel da Fábrica no diálogo entre consumidores e produtores. Do mesmo modo que a Fábrica
é pensada a partir de uma elite industrial paulistana, com claro viés “europeizante”, da
criação da cidade salubre” (CARVALHO 1999), pautada em certos projetos de
modernidade, com objetivos de reforma nos hábitos e costumes, na destruição do tradicional,
do colonial, dentro do que as louças fazem parte de uma reestruturação dos costumes, ela
produz para um público com manifestações culturais específicas, com um aparato gestual e
modos de usar particulares, o qual consume determinadas formas, tem preferências e gostos
pautados em especificidades étnicas, identitárias e classistas. Assim, produzindo objetos
pensados segundo os planos dos produtores, a Fábrica Santa Catharina produziu formas que
serão ressignificadas pelos consumidores; soma-se a isto formas que são ditadas pelos
consumidores que estão habituados a consumi-las e que não consumirão outras. É a demanda
influindo nas características da produção; é o consumo particularizando a demanda; é a
produção influenciando nas práticas de consumo.
Por isso, ao longo desta dissertação, encaro a demanda como aexpressão econômica
da lógica política do consumo” (APPADURAI 2008: 48). São vários os exemplos da
demanda de consumo modificando a produção (MILLER 1984), e, para mim, o exemplo mais
claro deste aspecto está na produção das tigelas. À demanda associa-se o que Appadurai
(2008: 42) chamou de “estratégias de desvios de mercadorias para fora de suas rotas
específicas”, como sinal de criatividade ou crise, e ao que De Certeau (2007) chamou “táticas
de consumo”. O que pretendo mostrar é que apesar de uma produção com objetivos mais ou
menos claros, pressupondo a Fábrica como lócus de produção de mercadorias dominada por
prescrições de fabricação culturalmente padronizadas (APPADURAI 2008: 61), dentro de
estratégias de usos das louças nos planos de modernidade para São Paulo, no cotidiano, as
louças seriam re-inventadas, usadas, reusadas desviadas, construídas, ressignificadas,
segundo traços culturais e pautadas por habitus (BOURDIEU 2007) que estão longe de
padrões de comportamentos normativos, ou estratégias dos dominantes, que se querem impor.
Interessa-me, no uso de objetos estrangeiros (como o design de uma xícara) não
apenas sua adoção, mas a maneira pela qual foram “culturalmente redefinidos e colocados em
uso” (KOPYTOFF 208: 92) e a relação dialogal que perpassa sua estada como objetos cujo
design encontra correspondentes na tradição local (como as tigelas). A isso se somam as
teorias de valor relacionadas a um artefato, e a relação entre estes valores e suas relações,
283
conseqüentemente, com preços. Valores de troca, de uso, valores simbólicos... se, como disse
Baudrillard, o homem não fica à vontade num meio que seja exclusivamente funcional, se o
seu contexto for composto por objetos apenas utilitários (MENESES 1981: 11), como
relacionar, por exemplo, preços, valores e o caráter semióforo dos objetos?
Além disto, parte-se muitas vezes do pressuposto de que o preço é reflexo do custo de
produção. Assim, louças mais caras são fruto de decorações mais caras: um azul borrão (flow
blue) é mais caro que uma louça sem decoração. A questão está no fato de que a formação de
preço é um processo muitíssimo mais complexo, dinâmico e temporalmente orientado
(PRADO 2007: 759), ao qual se somam outros valores, como o de troca, de uso, o simbólico,
etc. Do mesmo modo, a formação de um preço vai além dos processos impessoais de oferta e
procura (APPADURAI 2008: 34). Uma espécie de poder é atribuído às mercadorias depois
que são produzidas, por meio de um processo autônomo cognitivo e cultural de
singularização (KOPYTOFF 2008: 113), que dialogam com os “valores” e, conseguinte, com
os preços. Para a escola econômica que percebe o mercado como processo, os preços devem
ser considerados como ocorrências instantâneas de funcionamentos de equilibração
permanentemente desequilibrados” (PRADO 2007: 766).
Se um produtor possui o monopólio de seu produto, partindo do pro mínimo (que é
o custo da produção, uma vez que é preciso contar o lucro), ele mesmo pode determinar o
preço, assim como a quantidade produzida, numa relação crescente de preço até que se
estabilize. onde concorrência, os preços tendem a oscilar bastante, sendo que o mesmo
produto pode ser vendido por diferentes preços, que alcançam diferentes grupos sociais. Ao
mesmo tempo, se formação de um oligopólio ocorre a formação artificial do preço, que
não é o preço de mercado.
A ata de instalação da nova sede do sindicato dos fabricantes de Louça Branca, por
exemplo, narrando a situação dos produtores nos anos de 1935 e 1936, afirma que, às
vésperas da II Guerra Mundial (pode-se imaginar que esteja se referindo a uma conjuntura
entre o final dos anos 1920 ou começo dos anos 1930), as Fábricas de Louça Branca do
estado de São Paulo reuniram-se no que foi chamado de “Convênio da Louça”, cuja direção
ficou a cargo do Dr. Amarante, a qual obrigava todos os fabricantes a enviar ao escritório
pedidos para registro, passando a estar sujeitos a controle de preços e autorizações para as
respectivas execuções das fabricações. O Convênio promoveu uma unificação nas
denominações e uma estandardização das dimensões dos produtos de louça branca, assim
284
como montou uma tabela de preços, sob justificativa que seria uma medida vantajosa para os
produtores, impedindo a “concorrência ruinosa”. A tabela traz a seguinte relação percentual:
Louça branca = preços básicos
Louça decorada baixo-esmalte = preços 20% mais elevados
Louça decorada sobre-esmalte = preços 50 % ou mais acima da louça branca
Louça decorada com ouro = elevada 100%, no mínimo, os valores em relação à
louça branca
Desse modo, os produtores criaram uma espécie de “sindicato” (destarte o sindicato
originado em 1934), que poderia ser caracterizado como um oligopólio (formado por um
mercado com poucos produtores e muitos compradores, sem concorrência perfeita, ou seja,
sem preços manipulados) em função do número e do tamanho dos participantes
(normalmente os pequenos produtores são absorvidos [comprados] pelos maiores para que
haja poucos membros, movimento que caracteriza ações como a dos Matarazzo). Os “pedidos
de registro” indicam uma filiação compulsória, dando a entender que quem não estivesse
dentro iria sofrer as conseqüências. Controlando os preços e exigindo autorização para as
respectivas execuções, o Convênio controlava a produção de cada membro. Assim, não
haveria produção em grande escala, a demanda continuaria alta, o que justificaria os preços
elevados e não ocorreria saturação do mercado. Do mesmo modo, unificando as
denominações e padronizando as dimensões dos produtos, criam-se alguns modelos,
reduzindo a oferta diversificada, mantendo baixa a concorrência.
Enfim, criando uma tabela de preços, sob justificativa que seria uma medida
“vantajosa para os produtores”, impedindo a “concorrência ruinosa", com base em produtos
com dimensões e formatos padronizados, reduzir-se-iam os custos de produção. Um exemplo
mais que clássico desta manobra de padronização da linha de produção é o da brica da
Ford, nos EUA, produzindo um único modelo de carro e na mesma cor preta, o modelo T,
também conhecido como Ford Bigode, entre 1908 e 1927 – o exemplo clássico do monopólio
total: a única fábrica de carro do mundo, que produzia um único carro, numa única cor. A
Ford barateou a produção, aplicando a linha de montagem, que resultou num aumento de
escala, e, conseqüentemente, de produção e reduziu o preço, padronizando o produto. Sendo
únicos (único produto, única fábrica, único modelo, única cor), a Fábrica da Ford poderia
escolher o preço, e elevá-lo progressivamente aonde o poder aquisitivo dos consumidores,
285
ou as estratégias de compra, alcançassem. Deixando, por fim, o preço bastante longe dos
custos de produção (VASCONCELLOS 2002).
É claro que quanto mais e maiores forem os fatores de produção, mais caro será o
preço mínimo do produto. No entanto, não há como ignorar a demanda, o gosto e as
preferências de consumo. O valor de mercado não pode ser explicado apenas pelas
tecnologias de produção da mercadoria, mas vem a ser uma propriedade emergente das
interações sociais estruturadas que constituem o próprio sistema econômico como um todo”
(PRADO 2007: 756). Se uma louça é lançada no mercado e tem uma enorme demanda, o
produtor pode subir o preço, mesmo que o custo da produção continue o mesmo; essa mesma
louça pode tender a baratear depois deste fogo de palha” inicial, com queda no preço, que
não significa uma queda nos custos da produção. Dado o comportamento da demanda, o
aumento ou a diminuição da produção faz o preço de mercado cair ou subir (PRADO 2007:
757).
Deste modo, se o conde Matarazzo comprou, em seu palacete na Avenida Paulista,
uma louça brasileira cara em 1925, por exemplo, a mesma pode estar bastante barata em
1929, a ponto de ser comprada por um dos operários de uma de suas fábricas. Quando,
enquanto arqueólogos, formos examinar o refugo gerado pelas duas unidades domésticas,
encontraremos duas louças iguais, cada uma em seu contexto. Apenas com nossos intervalos
de períodos de produção dessa louça, não saberemos quando cada um dos consumidores
comprou a louça e se aquele artefato específico para o qual estamos olhando foi comprado
mais caro ou mais barato. E mesmo se dispuséssemos de tabelas de preço, como saber se os
Matarazzo não adquiriram as louças do dia-a-dia, em 1929, bem baratas?
Fora os fatores de formação de preço, não se pode pressupor que os objetos são
sempre adquiridos por compra e venda, pelo menos para um contexto de começos do século
XX, reconhecendo, assim, que a mercadoria é somente uma fase na vida de algumas coisas
(APPADURAI 2008: 32). Para Barbosa (2006: 25-26), o uso legal de uma mercadoria não
implica sua aquisição; pode-se usar uma coisa sem comprá-la. Segundo Machado (2004:
192), deve-se considerar que o custo dos artefatos relaciona-se ao momento histórico e
geográfico no qual foram adquiridos, que as condições de acesso ao mercado envolvem a
forma como estes produtos chegaram às mãos dos consumidores. Assim, não se trata mais de
“quem compra o que”, mas “quem obtém o que, em que condições de acesso e que uso faz
das coisas assim adquiridas”. Para Wurst e McGuire (1999: 196), a problemática não seria
286
mais o que as pessoas compram, mas “the social relations that enable and constrain what they
buy”. Existem, igualmente, inúmeras outras formas de obtenção de artefatos. Schiffer e Skibo
(1972, 1976, 1983), vêm mostrando como muitos processos de reuso são bastante freqüentes,
como a reciclagem, a ciclagem lateral, o uso secundário, conservação e manutenção, etc.,
fazem parte da vida de muitos objetos.
As vias ilícitas de comércio, como o contrabando, o roubo, heranças, presentes, as
distâncias entre compradores e centros comerciais, caminhos, vendas, meios de transporte
“constituem todo um contexto que deve ser considerado quando avaliamos o impacto e a
forma como estes objetos chegam à mesa dos habitantes de uma determinada região”
(MACHADO 2004: 192). Além disto, em um contexto como o do Brasil, de São Paulo, na
qual existe a formação de um capitalismo com aspectos locais, na qual se ressalta a
sobrevivência de muitos traços pré-capitalistas, as formas de aquisição de artefatos são
grandes. Muitos dos trabalhadores da Fábrica Santa Catharina vendiam a mesma produção a
preços mais baixos, pelo desconto que ganhavam enquanto funcionários; a compra de louças
com defeito (que acarreta louças T.U. e T.P.), um grande aspecto das produções cerâmicas,
influencia em muito no preço e nas formas de aquisição. Como, então, saber que aquele
refugo analisado não sofreu influência de todos esses fatores?
Outro ponto que é suscitado pela interpretação das faianças finas do sítio Petybon é
que, se muitas pessoas consomem a mesma louça, ela, por si só, pára de ser um indicador de
riqueza. A posse de um objeto pára de determinar as diferenças de classe e de consumo de
classe, que deveriam ser pensados a partir do que De Certeau (2007) chamou “maneiras de
empregar”; são os modos de usar e a significação destes usos que indicariam identidades, por
exemplo. Para Bourdieu (2007: 13), “os grupos de status se definem menos por um ter do que
por um ser, irredutível a seu ter, menos pela posse pura e simples de bens do que por uma
certa maneira de usar estes bens, pois a busca da distinção pode introduzir uma forma
inimitável de raridade, a raridade da arte de bem consumir capaz de tornar para bem de
comum o mais trivial”. Um homem rico não é um homem pobre com mais dinheiro: o
consumo de cada reflete os valores, atitudes e estilos de vida dos grupos aos quais pertencem
(HENRY 1996: 238).
Com isto não pretendo dizer que não seja possível para a Arqueologia trabalhar com o
conceito de classe social, mas que devemos ter maior parcimônia em associar a análise da
cultura material de uma unidade doméstica a uma classe. Primeiramente porque se utiliza um
287
conceito vindo da História e da Sociologia, bastante complexo, importando-o, sem
preocupações maiores, para a Arqueologia (MONKS 1999: 204). A definição do conceito de
“classe” nestas ciências é devedora de suas perspectivas próprias assim como de suas fontes
documentais próprias, que não são as arqueológicas e nem analisadas da maneira
arqueológica. Pauto-me na perspectiva de Chartier (1991: 177) para dizer que ao analisarmos
“classe” em Arqueologia estamos partindo de uma divisão social prévia como se esta
qualificasse os motivos, os objetos e as práticas, dos desvios culturais e sua distribuição e
usos numa dada sociedade. Desta maneira “as clivagens culturais não estão forçosamente
organizadas segundo uma grade única do recorte social, que supostamente comandaria tanto a
presença desigual dos objetos como as diferenças nas condutas” (CHARTIER 1991: 180).
Segundo, porque é preciso pensar esta categoria para a realidade brasileira (já que
Marx a pensou para a alemã). Os estudos sobre isso, especialmente historiográficos e
sociológicos o infinitos, mas quero chamar atenção para o fato de que não foi à toa que
Sérgio Buarque (2001) pensou o “homem cordial”, no ímpeto de configurar um processo de
formação local da nossa sociedade. Como pensar o mundo do trabalho, e sua relação com a
cultura material, por exemplo, quando os trabalhadores no Brasil formaram-se, muitas vezes,
em sociedades o-“burguesas” (CHAKRABARTY 2000: 4), nas quais outras formas de
sociabilização e relações interpessoais deram-se não necessariamente pautadas em
economicismos ou da expressão de riqueza enquanto cultura material (MILLER 2007: 37).
Se, como pontuou Bourdieu (1984), os bens agiam como um meio primário pelos quais eram
expressadas distinções de classe, como isto era feito e de que classe estamos falando, nos
contextos nacionais. Num país como o nosso, com um número enorme de estratégias de reuso
e reciclagens, o consumo pode até mesmo ser visto, como propôs Daniel Miller (2007: 47),
como forma de negação da produção capitalista. Se o conceito de classe, e status, é histórico
e cultural, variando com panos de fundo de particularidades locais (BAVIN 1989: 17), se é
falho de algum modo, busquemos alternativas como os espaços sociais de Bourdieu (2008:
19). Qual capital econômico, cultural e político dos usuários dos refugos que encontramos
pela cidade de São Paulo?
Para Thompson (2004: 9), por exemplo, o que define a classe é o fazer-se, que é
resultado de um processo ativo, “que se deve tanto à ação humana como aos
acondicionamentos”. No caso da classe operária, portanto, ela esteve sempre presente ao seu
próprio fazer-se. Por classe, o autor entende “um fenômeno histórico, que unifica uma série
288
de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados tanto na matéria-prima da
experiência como na consciência” (THOMPSON 2004: 9). A classe acontece quando alguns
homens, como resultado de experiências comuns, sentem e articulam a identidade de seus
interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem dos seus (THOMPSON
2004: 10). Para defini-la, portanto, foi preciso que se analisasse uma série de experiências e
acontecimentos ao longo de um determinado tempo, com variantes ou não, num certo lugar,
para que esse montante de dados pudesse por a disposição aspectos que permitissem a
construção do conceito de classe. O problema é que em Arqueologia partimos muitas vezes
do pressuposto da classe, tomando emprestado o termo de outras ciências sociais. Será
possível pensar, portanto, classe em arqueologia? Que montante de dados que possuímos para
determinar padrões de consumo de classe ou cultura material de classe? Thompson analisou
uma vasta documentação, de 1790 a 1830 para mostrar a tomada de consciência e assim, sim,
poder falar da formação de uma cultura da classe operária. É uma pergunta para a qual não
tenho resposta, e estou longe de ter, mas que acho importante ter em mente.
Além disto, se a classe operária é definida pelo seu “auto-fazer-se”, diferenciando-se
de outros grupos, como isto se relaciona a conceitos como “emulação”, “aburguesamento” ou
“europeização”. Aburguesamento”, em especial, seria um processo diametralmente oposto
aquele da classe, uma vez que existe uma procura de diferenciação não das elites em
relação aos operários, mas também dos operários, em sua tomada de consciência, em relação
aos grupos das elites. Raymond Williams sugeriu que, para a vida inglesa pós-Revolução
Industrial, um de seus principais elementos é a coexistência de idéias alternativas sobre a
natureza das relações sociais. Deste modo, para Thompson (2002: 316), às idéias da classe
média sobre individualismo contrastam com as idéias de coletivismo, e os bitos,
instituições e pensamentos que vêm dela, que caracterizariam uma “cultura da classe
operária” ou pelo menos um “consumo operário” como chamou Moreira (1988). Por isso,
pensar na adoção de padrões burgueses de comportamento para um contexto operário é
paradoxal ao próprio fulcro ideológico que caracteriza a formação da classe operária.
Igualmente, para nossa realidade, não fica clara a relação entre “inspiração num
comportamento europeu” e os milhões de imigrantes que são europeus, e seus descendentes.
Para o Brasil, pelo menos, não há sítios arqueológicos históricos suficientemente
estudados para que possamos chamar determinado padrão de comportamento de classe
burguesa ou de classe operária, pautados em bibliografias, de língua inglesa, sobre a relação
289
entre status sócio econômico e cultural material ou ignorando as diversas formas de aquisição
dos artefatos. Classe e status não são sinônimo (WURST 1999: 7). O estudo de um caso
particular a partir de uma abordagem estrutural, permitiria captar traços transitórios e
transculturais, para citar um grande expoente da antropologia cubana, Fernando Ortiz, que
aparecem com poucas variações em todos os grupos com posições equivalentes (BOURDIEU
2007: 9) e a partir daí poderíamos falar em cultura de classe; mas não possuímos estudos
pontuais sistemáticos, de caso, nos outros grupos com posições equivalentes, pelo menos no
âmbito arqueológico, para que uma abordagem estrutural dê frutos.
Mesmo porque, como comentei, por fim, muitas vezes a louça cotidiana será a mesma
numa casa operária e numa sede de fazenda (altera-se, talvez, as proporções entre formas, ou
decorações... ou talvez não), que é a louça com mais freqüência de uso e com maior
possibilidade de quebra e, portanto, de descarte para formar o registro arqueológico. A louça
que poderia ser um ícone de diferenciação social é aquela pouco usada, aquela da cristaleira,
utilizada em ocasiões especiais, que pela baixa freqüência de uso, quase nunca aparece no
registro arqueológico. Assim, a mesma louça pode aparecer em dois contextos sócio-
econômicos distintos. E mais, com os processos de flutuação de preço, a mesma louça que era
cara há cinco anos, hoje tornou-se bastante barata (pense-se em produtos atuais como o DVD,
por exemplo) e ao escavarmos diferenciados refugos domésticos, da fazenda e da casa
operária, dificilmente teremos acesso a quando foi comprada a louça para que possamos
inferior se foi adquirida por menor ou maior valor, já que, ao menos para a louça, focamo-nos
em períodos de produção específicos. É com este embasamento teórico-metodológico que
pretendo investigar algumas das questões aqui levantadas, por meio de uma reflexão sobre
formas e decorações do sítio Petybon e sobre a presença (ou ausência) das louças em
inventários e em propagandas da primeira metade do século XX.
290
SUB-CAPÍTULO 4.1
TIGELAS DA TRADIÇÃO: FORMAS E VOLUMES DAS LOUÇAS BRASILEIRAS
A mamãe levantava cedinho, acendia o fogão a lenha, depois vinha
acordar a gente: “vamos meus filhos, vamos tomar café!” (...) Ela
servia tigelas grandes, punha o pão, jogava o leite e o café e fazia
uma papinha (Senhor Ariosto, nascido na Avenida Paulista em
1900 em entrevista a Ecléa Bosi, Memória e Sociedade:
Lembrança de Velhos)
... Também eu tenho saudade do meu sertão, mas que poderia eu
fazer se vivesse? Estava em plena natureza, nos campos gordos,
vendo o gado e vendo as culturas, trabalhando como um campônio.
esta hora, junto do alpendre da casa, o cavalo de sela,
escarvando a terra e eu, com uma malga de café no bucho, o
rebenque enfiado no punho, pronto para partir a galope, pelos
campos (Coelho Neto, A Conquista, 1899 )
Este sub-capítulo tem como objetivo realizar algumas reflexões em torno das formas
das louças encontradas no sítio Petybon, produzidas pela Fábrica Santa Catharina e IRFM
São Paulo entre 1913 e 1937, com foco nas relações entre três formas específicas, tigelas,
pratos e xícaras, a fim de definir, ou inferir, alguns “padrões de conteúdo” (MAJEWSKI &
O’BRIEN 1987: 174; SYMANSKI 2008: 76). Procurarei mostrar que sua produção e
consumo estão associados ao papel da Fábrica como mediadora entre os discursos e planos
das elites para São Paulo e as práticas e ticas dos consumidores na cidade. Na relação entre
estas diferentes formas, e suas variantes volumétricas, estão arraigados discursos de poder e
identidade, concepções de temporalidades de projetos de modernidades elitistas e ações e
resistências pautadas em práticas e tradições. Pressupondo o consumo como uma forma de
construção de identidades fluidas, plurais, a manipulação das louças nacionais em faiança
fina, em São Paulo, estabeleceu toda uma política (politiké) e uma economia (oikonomía)
entre, e dentre, os variados grupos sociais a partir da cultura material.
Abordar apenas estas três formas tigela, prato e xícara é um recorte arbitrário,
que o sítio apresentou muitas outras formas as quais não serão englobadas neste sub-capítulo.
Entretanto, é importante ressaltar que, apesar da grande quantidade, a variedade de formas
encontradas neste contexto produtivo que é o sítio Petybon, é quase aquela mesma
encontrada, em menor proporção, em unidades domésticas. Isto porque existe, ao menos para
a louça, uma relação de maior rigidez das formas existentes e produzidas ao longo de diversas
fábricas ao redor do mundo (se compararmos com a variabilidade da cerâmica de produção
local / regional ou, mais recentemente, do plástico). Produzida num local específico, é claro,
291
a louça alcança distâncias geográficas muito maiores do que a cerâmica de produção local, e,
sendo um produto exportado ou importado dentro do âmbito do capitalismo, está no cerne das
questões entre o global e o regional em Arqueologia Histórica. Tigela, bowl e tijela, ao redor,
pelo menos, do mundo ocidental, indicam formas semelhantes, destarte variações no design, e
enormes possibilidades práticas de uso.
A produção de louça gira em torno da fabricação de formas, com shapes e designs,
relativamente tradicionais ou conhecidos; em geral, para as faianças finas, apesar da gama
de produtos, pouca variação formal. Se pensarmos numa escarradeira, por exemplo, forma
não produzida pela FSC e IRFM, ela simplesmente deixou de ser usada, não existe uma
forma diferenciada para a mesma função, pelo menos não no âmbito dos usos pretendidos
pensados pela produção. O mesmo pode ser dito das leiteiras, totalmente ausentes no registro
arqueológico do sítio Petybon; tal ausência talvez tenha sido acarretada por razões
semelhantes às elites urbanas cariocas, do século XIX, onde Lima (1997: 112) percebeu que
as leiteiras “aparecem em números muito baixos, o que sugere que a mistura de leite ou
creme à infusão [de chá] não era muito apreciada, sendo adotadas por poucos”. Daniela
Büchler (2004: ix) notou que a indústria brasileira de louças de mesa sempre investiu pouco
na diferenciação formal das peças, resultando numa variedade pequena de desenho de
produto. No campo que a teoria do design chama ligações formais, ou seja, modelo, shapes e
decorações, uma grande variabilidade de expressões decorativas nas louças fabricadas por
localidade, conjugada a uma grande semelhança formal, cujas particularidades estarão na
freqüência e na popularidade do consumo de cada forma específica.
que se levar em conta que, para uma indústria de louças, mudanças no design de
um produto são, de longe, o mais caro processo a se alterar numa cadeia e os fabricantes do
setor, em geral, tendem a exaurir as inovações em outros campos, como o decorativo, antes
de enveredar por este caminho. Tardiamente, a indústria brasileira investiu em design de
produto; a indústria, especialmente pós-anos 1970 (já em período tardio para as fábricas de
faiança fina), percebeu que “produtos, muito parecidos com os seus, podem ser produzidos
por outros, a menor custo, em outras partes do mundo. Diferenciar-se através do design
fornece uma alternativa preferível e uma que pode agregar valor aos produtos” (BÜCHLER
2004: 10).
No âmbito da sociedade disciplinar como a que se estabeleceu na São Paulo do
período, a louça branca competiu, muitas vezes, com a cerâmica quanto à funcionalidade, em
especial em recipientes para servir ou consumir. Mas apesar da cerâmica de produção local /
292
regional estar em processo de mercantilização e fabricação para um mercado consumidor,
sua produção continuou sendo menos standard que a da louça. Assim, a louça permitiu, com
a continuidade da produção (por colagem) e consumo das formas, associadas a características
que apontei em outro capítulo como a assepsia, produtos muito mais industrializados, mais
semelhantes entre si, mais estandardizados, normatizados. O Convênio da Louça é fruto deste
movimento, gerando um documento que tentou promover a unificação das denominações
para a estandardização das dimensões. A fixidez de uma forma, no campo discursivo e
ideológico, limitaria práticas que o aquelas pensadas pelos produtores: o uso pretendido
seria o uso real no contexto de projetos de modernidade disciplinadores como os que estamos
apontando para São Paulo. A política de controle, de mudanças de hábitos e de
disciplinarização da população, de uma “eugenia pública” (CISCATI 2001: 49), espalhava-
se, desta maneira, para todas as esferas do cotidiano, seja no trabalho, onde os trabalhadores
teriam contato com a rigidez das formas, seja no cotidiano doméstico, no qual teriam de
consumir estas formas. O documento traz a seguinte relação:
FORMAS INFORMAÇÕES SOBRE DIMENSÕES
Pratos
22 ½ cm de diâmetro (9 polegadas pratos
ingleses)
Tigelas
Escala fixada 4 com 25 cm diâmetro até
nº 18 com 6 cm diâmetro
Travessas
15 cm até 40 cm
Se fixar é tornar imutável a dimensão das formas de louça, estatuí-las como regra e norma, é
interessante pensar como pode ser paradoxal a existência de tigelas num mundo onde também
se fabricam pratos. Se os mesmos têm apenas uma dimensão estipulada, as tigelas têm, pelo
menos, 18 diferentes. Dentro da própria lógica prescritiva da produção de cunho taylorista da
Fábrica Santa Catharina, foi possível, portanto, burlar a normativa para alcançar diferentes
consumidores (não apenas quanto às formas, como às decorações). Isto fez com que, apesar
de pensada sobre bases prescritivas no que concerne ao discurso que organiza a produção, a
Fábrica, elo entre consumo e produção, tenha se tornado um ente performativo, assimilando-
se a algumas circunstâncias e interagindo com os sistemas simbólicos dos grupos sociais da
sociedade na qual estava inserida (SHALINS 1990).
293
Com base nestas informações, o gráfico abaixo mostra que a projeção dos diâmetros
de boca das tigelas, segundo a tabela do documento acima e com base nas formas encontradas
no sítio Petybon, são bastante parecidas, quase com a mesma inclinação.
0
5
10
15
20
25
30
Diâmetro de boca (cm)
Projeção do diâmetro de boca (cm) das Tigelas
Diâmetros de boca
(cm) das tigelas
segundo tabela do
documento do
"Convênio da Loa"
Diâmetros de boca
(cm) das tigelas
encontradas no sítio
Petybon
Por outro lado, enquanto os pratos do sítio Petybon variam entre 20 e 24 cm, o
documento os estipula com 22 ½ cm de diâmetro (aliás, quase exatamente a média dos
valores), isto é, uma oscilação sutil se comparados às tigelas.
A constância na forma das louças também tem a ver, como apontei em capítulo
anterior, com a teia de relações que se criou com o estabelecimento da FSC em São Paulo e a
proveniência de técnicos e operários de um mesmo centro produtor, do aprendizado em iguais
fábricas. A distribuição deste conhecimento, através da migração destes trabalhadores para
outras fábricas de louça, também colaborou para a manutenção das formas produzidas,
somadas às demandas e consumos estabelecidos, com pequenas variações em design e
estilos dos produtos. A FSC como um microcosmo, segundo a concepção bourdieana de
teoria da ação, refractaria e dispersaria, como num prisma (BOURDIEU 2008: 61), estes
conhecimentos de produção acumulados.
Como pode ser visto no capítulo de análise de dados do tio Petybon, as tigelas
ocupam 62% do total das peças passíveis de reconhecimento da forma, seguida das xícaras
(21%) e dos pratos (7%); as tigelas, sendo, sem dúvida, a forma predominante encontrada no
sítio. Demais formas, em geral aquelas para servir como travessas, saladeiras e peças maiores
tem expressão mínima no acervo do sítio Petybon, reflexo da relação entre formas para servir
294
e formas para consumo individual, na qual, em geral, as primeiras são menos freqüentes que
as segundas no registro arqueológico (LIMA 1997). No entanto, aqui existe uma variante
bastante importante: o volume. Para as tigelas, a capacidade volumétrica configurou 14 tipos
desta forma, dentre os quais as capacidades volumétricas dos tipos 9 a 13 configurariam
recipientes cujo tamanho já denotaria funções de serviço ou consumo coletivo. Esta é uma
característica especial da tigela, não ocorrendo em xícaras, por exemplo, que mantém sua
funcionalidade para consumo individual. No gráfico abaixo, as colunas cinza correspondem a
formas de tigelas possivelmente destinadas e utilizadas para consumo coletivo ou para atos de
servir à mesa e as pretas, individual.
0,00
5,00
10,00
15,00
20,00
25,00
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14
Percentual de tipos de tigela
A forma conhecida como “tigela” ou malga”, cujo design é o da semi-esfera, ou
calota, tem uma longa história de consumo, uma tradição de produção e demanda, arraigada à
própria história da formação da cidade de São Paulo. Segundo Büchler (2004: 44), a tigela,
materialização da mão que contém, retém, é concebida para ser confortável, aninhando-se
quando empunhada”. A malga é a expressão “perfeita” do formato básico mais satisfatório
para os artigos de louça, o globo, estruturalmente a forma mais forte que uma peça oca de
argila pode assumir, na qual as linhas de tensão estão o mais próximo de um estado de
equilíbrio (BÜCHLER 2004: 145).
Segundo Symanski (1998: 207), a tigela era comumente utilizada para o consumo de
ensopados e alimentos pastosos, como cremes, geralmente sem o auxílio de talheres, como os
pratos, sendo o alimento servido diretamente nelas. Câmara Cascudo associa o uso das tigelas
e malgas ao gesto, colonial, de sorver as sopas e caldos, enchidas mergulhadas numa terrina
ou panela ou através de colheres ou conchas: “pegava-se a malga e era só emborcar na boca,
aos sorvos sonoros de proclamado sabor” (1968: 318).
295
No que concerne à xícara, a forma manteve-se constante ao longo de muitos séculos,
apesar de pequenas variedades no tamanho, ora próximo da tigela ora da caneca. Esta
“bipolaridade formal”, explicada ora pela constância ora pela variedade, seria resultado do
diálogo com preferências de consumo, produção e demandas em diferentes épocas
(BUCHLER 2004: 30). A proximidade da xícara em relação a algumas das variantes
volumétricas da tigela engloba as duas em universos semelhantes em termos de
funcionalidade, uso e práticas de consumo. Se formas diferentes podem atingir propósitos
semelhantes, um mesmo propósito, ou função, pode ser dado por diferentes formas
(SHEPARD 1985: 224).
O que as diferencia talvez sejam as maneiras de usar, as razões e os significados do
consumo, e todo o aparato gestual da prática de utilização destas formas, associadas, ao
menos para São Paulo, à modernidade, com a xícara, e à tradição, com a tigela, ao menos no
que concerne aos planos e projetos de modernidade para a cidade. A presença da alça na
xícara, assim como asas e cabos em outros recipientes, colaboram para um isolamento entre
corpo humano e objeto, além de acarretar menos derramamentos dos alimentos neles
contidos. Isolar o corpo, a mão, do objeto é isolá-lo do alimento, e a forma específica da
xícara atinge o objetivo com maior eficácia que a tigela. Com isso, quero dizer que a forma
da tigela exerce também um efeito nas pessoas através de sua agência, seu poder social e sua
eficácia (GOSDEN 2005: 194). A forma específica canalizaria algumas ações humanas;
talvez por isso São Paulo quisesse banir a forma, pois só assim extirparia o hábito colonial de
sorver. Impossibilitados de mudar a agencia do objeto, preferiu-se uma campanha contra ele.
Não estou, de modo algum, sugerindo que o uso da tigela fosse um ou fosse normativo;
quero, mais do que sublinhar para quê foram feitos os objetos, ressaltar “what they can be
made to became” (GOSDEN 2005: 208).
Num período de discursos de hábitos pautados em teses higienistas, a xícara
dialogaria perfeitamente com os projetos de modernidade e revisão de comportamentos em
São Paulo. Talvez aí esteja também o paradoxo das xícaras fabricadas por colagem em molde
único, no interior das quais fica a depressão, na parede, no ponto de encontro da alça com a
parte oca, de difícil limpeza (de menor custo, são tidas como produtos de qualidade inferior).
Em geral, as alças, compactas, produzidas por prensagem, prensagem isostática ou colagem
sólida (como as do Petybon), ainda úmidas, são grudadas no corpo do objeto com a mesma
barbotina (AUN 2000: 86).
296
A coerência formal (AUN 2000: 92) das tigelas, com a variabilidade da capacidade
volumétrica dos tipos muito mais ampla do que os de tipos de xícaras, pontua uma forma cujo
design possibilita usos diversos, tendo em vista o pressuposto de Schiffer e Skibo (1972) de
que diferenças no volume estão associadas a diversificação de bitos, e, portanto, de
comportamentos. As tigelas, com seus 13 tipos com volumes calculáveis, sobrepõem-se às
possibilidades de usos das xícaras, como se pode perceber no gráfico abaixo. Isto é
interessante por possibilitar afirmarmos que, para a Fábrica, a produção das xícaras inseria-se
nos discursos da elite, e dos proprietários, para incutir mudanças, nos hábitos da população,
tidos como mais “europeus” ou modernos”, que a xícara não implicaria num
comportamento de consumo, como teoricamente normatizaria um gestual na maneira de
consumir líquidos, além de ser uma forma que, em si, possui menos volubilidade no que
concerne a possíveis funções, fora daquelas pensadas pelos produtores (seus usos
pretendidos), com sua constância e pouca amplitude na capacidade volumétrica de seus tipos,
corroborando as políticas disciplinares que se tentavam impor sobre a população da cidade de
São Paulo. Diferença, clara, em relação às tigelas, com ampla variação no volume, mostrando
que a Fábrica percebeu que a mudança nos hábitos o poderia ser efetuada de modo brusco,
que o consumo de tigelas ainda era bastante alto, para gerar esta demanda e esta produção,
e, sendo ente de uma esfera capitalista, a FSC precisou pensar em seus lucros e na venda de
seus produtos. Isto acarretava fabricar tigelas para uma população que, tradicionalmente, as
consumia, e alinhavar-se a demandas já consolidadas. Daí a co-existência destas duas formas,
dividindo funções, no século XX. Pode-se dizer o mesmo das canecas; todavia, apesar da
capacidade volumétrica relativamente constante, as canecas são formas novas que estão
sendo produzidas em larga escala pela Fábrica e para a cidade, configurando mais uma
possibilidade de ação dentro da tentativa de controle do cotidiano dos indivíduos da cidade.
Percebe-se, também, pelo gráfico que, se as caras e canecas mantêm-se na linha do
consumo individual, a tigela ultrapassa este limite; apesar disso existe uma relação
inversamente proporcional entre volume e quantidade de tipos para esta forma, pois mantém-
se a nima variabilidade dos tipos quanto maior a capacidade volumétrica. São as formas
para servir ou para consumo coletivo em menor quantidade do que aquelas para consumo
individual, relação semelhante àquelas que aparecem no registro arqueológico de unidades
domésticas.
297
0
500
1000
1500
2000
2500
3000
3500
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13
Capacidade volumétrica em ml
Tipos
Amplitude das capacidades volumétricas
Tigelas/Malgas
Xícaras
Canecas
A produção das tigelas pela Fábrica indica, portanto, uma demanda crescente pela
forma, mas não . No que concerne a introdução da tigela em louça branca, em faiança fina
particularmente, ainda no século XIX, e depois no século XX com a continuidade da
produção brasileira, acredito ter ocorrido um processo de stimulus difusion (LEVI-STRAUSS
2008: 16), segundo Levi-Strauss e Kroeber, no qual um costume importado funciona como
um catalisador, mesmo num contexto de absoluto desconhecimento do mesmo, provocando
com sua presença o surgimento de um uso semelhante potencialmente presente, tendo em
vista seu papel em satisfazer uma exigência estética e exprimir uma disposição afetiva
pressuposta (LEVI-STRAUSS 2008: 17). Ocorre então, com a importação das tigelas no
século XIX e XX e o início e fundamentação da produção brasileira no século XX, o que Ana
Cristina Sousa (1998) chamou “adequação de comportamentos” no sentido de incorporação
associada à possibilidades de releituras de códigos e comportamentos, tendo na cultura
material o elemento mediador”.
Mesmo o uso de tigelas importadas deve ter sido incorporado como parte do
existente uso das formas, relacionando-se as suas correspondentes regionais de preparo e
consumo de alimentos, talvez causando o mesmo efeito sensorial e emocional (GOSDEN
2005: 208) que as tigelas cerâmicas produzidas em São Paulo. É importante ressaltar que
muitos objetos de procedência estrangeira, não são assim considerados ou encarados pelas
pessoas; a batata não é européia, era e é importada, e ainda sim, é inglesa, como o chá.
Mesmo as tigelas inglesas podem ter sido consideradas itens locais de consumo (GOSDEN
2005: 209) ao invés de forâneos, dada a receptividade e popularidade da forma. Diferente das
298
xícaras, cujo design, pouco conhecido, quiçá, de imediato, não tenha acarretado este
processo, que fez com que fossem mais ressaltadas nas fontes escritas por viajantes, do que as
tigelas. Ponto de vista similar é pontuado por Miller em relação a Coca Cola em Trinidad
(2002). Como sugere Sérgio Buarque, muitas vezes é o novo hábito ou as novas aquisições
que se modificam até o ponto de se integrarem na estrutura tradicional (HOLANDA 1994:
55).
Deste modo, a entrada das malgas em louça branca relaciona-se estritamente ao uso de
tigelas em cerâmica, na cidade, séculos, demanda que, apesar de ter sofrido certa
diminuição a partir do final do século XIX (CARVALHO 1999; SYMANSKI 1998) ou
completa desaparição como em alguns contextos no início do século XX (COSTA 2003),
como mostram alguns trabalhos, cresceu nas primeiras décadas do século XX, talvez devido
às mudanças nos padrões de consumo acarretados pela leva imigrante e pela abolição.
Quando a Fábrica produziu as malgas, fora para uma demanda crescente pelo produto, para
consumidores que não necessariamente compartilhavam um mesmo background e certamente
usadas em contextos não pensados pela produção. Isto, portanto, só foi possível porque
existia uma demanda pela forma e pelas possibilidades dadas pela própria forma, cujo design
permitia milhares de usos diferenciados, fazendo com que a mesma circulasse entre os
universos da alimentação, da higiene pessoal e da decoração, característica acentuada pelas
variantes volumétricas encontradas.
A produção e o consumo da malga no período estudado indicam a permanência de
práticas associadas a uma forma tão tradicional (como concebe o termo, para as cerâmicas
históricas, Monika Therrien, 2004) como a tigela. Seu consumo e a demanda por ele
dialogam com a grande maioria da população da cidade de São Paulo, composta de
background bastante rural: ouso dizer que, num movimento de ruralização da cidade, com a
migração maciça de populações do campo, imigrantes, camponeses, mamelucos, ex-escravos
e seus descendentes, o consumo da tigela ganhou outras proporções no período. Nas
primeiras décadas do século XX, acontece significativo êxodo rural em função da
constituição das indústrias, momento em que milhares de imigrantes se envolvem com o
ambiente urbano trazendo novos hábitos e adquirindo outros (FRANCISCO 2004: 40). Esta
formação leva ao estabelecimento do que Martins (2004: 137) chamou “paladar multiétnico”,
quando práticas alimentares novas se estabeleceram, criando novas necessidades por velhas
formas, como a cuia/tigela/malga. Florestan Fernandes (1961: 26) chamava atenção para a
origem rural de grande parte da população urbana em São Paulo, mostrando que a cidade e o
299
“estilo de vida urbano” na realidade, disponibilizavam condições favoráveis à adaptação a um
universo social estranho, permitindo a “sobrevivência” de elementos de cultura tradicionais,
cuja inegável importância adaptativa dava estabilidade emocional e moral à personalidade
deste novo morador da urbs.
Mas podemos ir além. Somados ao dinamismo imanente na tradição (THERRIEN,
JAMARILLO PACHECO & SALAMANCA 2003: 141), os bitos de consumo das tigelas
tanto no campo como na cidade, reacenderam ou engrossaram a prática na urbs criando um
novo corpo coerente de costumes que passou a influenciar, em suas várias relações de poder,
o cotidiano da cidade. Se para alguns essa tradição criou sensações de continuidade provendo
melhor estabelecimento na (nova) vida na metrópole, para outros possibilitou, de forma mais
explícita, que ações assegurassem identidades individuais e reproduzissem uma ordem social
e uma diferenciação social(THERRIEN, JARAMILLO PACHECO & SALAMANCA 2003:
141, 156). A produção de tigelas pela Fábrica e seu consumo pela população local permitiu a
“renovação de tradições antigas, reforçando e construindo novos laços de solidariedade e
ajuda mútua”, possibilitando, por exemplo, aos populares, “sobreviver à ânsia demolidora – e
acumuladora de capital – da grande burguesia comercial” (CHALHOUB 2006: 148).
Novas formas de morar e viver não eliminaram, de modo algum, as marcas tidas
como rurais ou semi-rurais paulistanas, apesar desta rica diversidade cultural não estar no
centro das representações hegemônicas sobre a cidade, nas quais prevaleceu o desejo de
moldar a vida paulistana segundo um modelo do que se supunha ser uma vida européia
(ÉRNICA 2004: 180). Na verdade, estas novas formas de viver eram justamente somatórias e
rearranjos de hábitos e práticas pré-existentes e a presença das malgas indica, talvez, um
componente rural identificável na cultura material (CHEEK & FRIEDLANDER 1990: 55).
As tigelas, neste contexto, construíram a ponte entre “as medidas normativas, centralizadoras
do Estado e as iniciativas espontâneas, improvisadas e imprevisíveis das camadas populares”
(PINTO 1999: 889). Elas estão no cerne da relação entre os projetos de modernização
desenhados pelas elites urbanas a partir das últimas décadas do século XIX (as reformas
urbanísticas, as teorias higienistas, os discursos médico-psiquiatricos e jurídicos) com
objetivos de impor uma nova ordem social, e a pluralidade das respostas que os diversos
grupos sociais articulavam na tentativa de resistir a essas imposições (CUNHA et alli 2001:
10).
Se, por um lado, havia pressão para disciplinar, normatizar, e discursos que tentavam
imputar nos moradores da cidade outros bitos, através da fabricação da louça branca como
300
um ícone de modernidade, por outro, lembro a frase de Said quando diz que “as pessoas não
desistem se são expulsas. Elas na verdade agüentam firme, até com mais resolução e
obstinação” (SAID & BARSAMIAN 2006: 22). Quão efetivos foram os projetos de
modernidade ou a modernidade como projeto? Se, por um lado, fabricar louças brancas ao
invés de cerâmicas pode ser interpretado como parte destes discursos normativos, por outro, a
fabricação de formas conhecidas como as tigelas indica a existência de antigos e presentes
hábitos. Pode-se considerar ainda que, se, como pontua Symanski (1998), as malgas tenderam
a cair em taxa de consumo para o final do século XIX, as políticas das elites urbanas no
âmbito de uma modernidade à européia podem ter despertado um senso identitário novo,
como aquele proposto por Hannah Arendt (1989), no qual as tigelas foram símbolo de
resistência. A Fábrica, apesar de estruturada segundo os discursos modernizadores dos
primeiros, seguiu a tendência crescente da demanda por estas formas, causando um novo pico
de consumo e produção de tigelas no século XX. É o arsenal da resistência cultural, a cultura
como uma forma de memória contra a aniquilação (SAID & BARSAMIAN 2006: 158).
Os projetos de modernidade da República, com uma política disciplinar que
acompanhou a urbanização (WISSENBACH 2004: 18), previam pressões drásticas a
elementos culturais que perpetuavam o “estado de ignorância e incultura, herdados do
passado e da mestiçagem do povo brasileiro” (WISSENBACH 2004: 18), num combate ao
que era considerado colonial, tradicional, ultrapassado, baseado em uma visão estereotipada
de hábitos europeus associados à modernidade. Projetos de modernidade como aqueles nos
quais se inseriam autores como Alcântara Machado, mostram a resistência, posta ao
moderno, da persistência de costumes arcaicos meio a cidade que se moderniza, gerando o
que Maria Inêz Machado Pinto chamou “modernidade de fachada” na qual, destarte o
discurso de alguns, as transformações objetivadas por grupos de elite não se estabeleceram ou
não foram meramente interiorizadas, mantendo uma dicotomia arcaico-moderno (PINTO
1999: 886). Os padrões considerados “civilizados” de comportamento e convívio social,
progressivamente adotados no universo da elite cafeicultora e industrial emergentes, foram
exportados para toda a cidade gerando estes conflitos, tensões e resistências (RAGO 2004:
389). Segundo Rago (2004: 389), “embora a cidade tenha se formado a partir do encontro de
várias nacionalidades entre os milhares de imigrantes europeus, migrantes rurais que aqui
aportaram, negros ex-escravos e livres que aqui viviam, as elites dominantes procuraram
impor autoritariamente seu novo modo de vida, percebido como moderno, tentando eliminar
301
as diferenças culturais existentes, erradicar hábitos populares vistos como atrasados ou
perigosos”.
No entanto, se a produção de tigelas era uma verdade, já efetivamente produzidas pela
Fábrica, acredito que, se num primeiro momento isto chocava-se ao planos modernizadores
das elites paulistanas, pelo menos até os anos 1920, uma nova política estabeleceu-se: a de,
realmente, de incentivar sua produção dentro de um plano que se utilizou das concepções de
“tempo colonial”, gerado no âmago dos processos de colonialismo e modernização, para
objetivar o conceito de tradição e enraizar traços culturais num passado distante e num lugar
remoto (WILK 1994: 102). Como os objetos têm papel ativo na construção de
temporalidades, as tigelas passaram a ser manejadas com o intuito de criar polaridades que
conformaram parte de um discurso de poder pautado em noções de tempo, corroborando no
plano ideológico, assim, que o hábito de usar tigelas, tradicional, antigo, justificava a ação
“colonial”, trazendo progresso (WILK 1994: 98-102). Sendo assim, após o fim da era
Ranzini-Fagundes na Fábrica, a IRFM, liderada pelos Matarazzo, achou inadmissível, dentro
de suas perspectivas, a continuidade da produção de tigelas que aos poucos, somadas às
mudanças em práticas de consumo provavelmente a partir de 1922, foram sendo acumuladas
nos armazéns por não ter, ou para não ter, mais saída no mercado. Deste modo, as elites
também se apropriaram do discurso de um hábito de usar tigelas, da grande parte da
população paulistana, especialmente aquela fora dos círculos elitistas, para sustentar um
discurso de dominação alocrônico (SYMANSKI 2008).
Esta relação de tempo ainda é sustentada pelos motivos e padrões decorativos das
louças produzidas pela Fábrica, uma vez que nas tigelas presença maciça de padrões
florais, mais artesanais, associados ao campo, pintados à mão livre, enquanto que em formas
como os pratos a decoração é moldada, standard e industrializada, fruto de um “progresso” e
suposta modernização em técnicas de fabricação de louça branca. Falta ressalvar, no entanto,
que este é um discurso da elite e que pode nem mesmo ter sido sentido, diretamente, por
aqueles que consumiam as tigelas, cujos backgrounds e visões de mundo eram totalmente
alheios aos signos, códigos e sistemas de referências da cultura do consumo do capitalismo
industrial e financeiro (SYMANSKI 2008) e por ter acontecido, muitas vezes, que esse
discurso simplesmente, e para usar uma expressão bem brasileira, “tenha dado com os burros
n’água”.
Ao mesmo tempo em que dialoga com as xícaras, as tigelas competem também com
os pratos e com outras formas, como as terrinas, as jarras, as sopeiras e outras com maior
302
capacidade volumétrica e com papel de serviço ou consumo coletivo. Neste sentido, ao
mesmo tempo em que a FSC produz formas que apontavam para uma complexificação da
refeição, associada à variabilidade formal, produziu tigelas, que possibilitavam competição
com qualquer outra das formas, fazendo com que um aparelho inteiro de jantar pudesse ser
composto apenas por elas. A grande variedade de formas e tamanhos de louça produzida pela
Fábrica refletiu e foi reflexo, assim, uma nova etiqueta que se pretendia estabelecer, e uma
segmentação crescente da mesa que servia tanto como um campo de treinamento para a nova
ordem do capitalismo industrial como reforço e reafirmação do mesmo (LUCAS &
SCHAKEL 1994: 29).
A variabilidade dos tipos e formas de cerâmicas fabricadas apontariam para um
crescimento na preocupação da especialização funcional dos serviços de mesa, segmentando
e compartimentalizando práticas, e reforçando um comportamento estandardizado e rígido
(LUCAS & SCHAKEL 1994: 33). A introdução, e produção, destas formas (pratos,
saladeiras, sopeiras, xícaras, etc.), destes objetos, na sociedade disciplinar teria como objetivo
ordenar comportamentos em mentes vistas como “desordeiras”; como mostra Mark Leone, as
técnicas, ou disciplinas, associadas a estes objetos definiam um “comportamento normal”
como o resultado da internalização da disciplina, aprendida pelo uso da cultura material
pautada na rotina (LEONE 1995: 260). A persistência de formas associadas a consumos
tradicionais, como as tigelas, artefato que em maior abundância foi produzido pela Fábrica,
com tal amplitude de volumes e, conseqüentemente, possibilidades de uso, poderia ser vista,
portanto, como uma persistência, uma resistência e um hábito já bastante arraigado, bastante
tradicional.
Se as novas formas produzidas pela Fábrica, desconhecidas de grande parte dos
consumidores da cidade, fazia parte de planos de adequação de comportamentos, então se
pode pensar em tigelas como formas tradicionais que resistiam, ou reagiam, às novas
políticas normativas da sociedade disciplinar. Vejo, aqui, a cidade como palco de luta onde as
elites e seus “projetos disciplinadores” tentaram criar mecanismos de controle não apenas
sobre o espaço urbano, mas sobre as pessoas que nele viviam (CUNHA et al. 2001: 32).
Primeiramente, é a Fábrica percebendo que produzir formas pelas quais não demanda é
uma contradição da qual o próprio capital não daria conta; além disso, são consumidores
reagindo, pela demanda, às tentativas de normatização de comportamentos através da cultura
material produzida pela Fábrica, que se inseria em projetos de modernidade de uma parte das
303
elites dominantes. Quando a Coca mudou sua embalagem, o consumo nos EUA caiu tanto,
perdendo para a Pepsi, que a empresa voltou atrás (MILLER 2002).
A disponibilidade de abastecimento de bens é importante para criar novas práticas no
cotidiano, mas também é necessário para criar uma demanda por estes bens; como apontou
Schakel (1996: 123), abastecimento não cria demanda, mas, sim, uma nova ideologia em
relação ao consumo e uma compartimentalização do cotidiano para que se estabeleça uma
mudança nas práticas do consumidor. Despejando no mercado milhares de louças com novas
formas, acompanhadas das velhas formas ainda utilizadas, a Fábrica arquitetava os planos de
mudança de práticas tidas como menos “civilizadas” ou “modernas”, resguardando suas
características enquanto centro produtor que visa um lucro que é pautado, todavia, nas
necessidades e nas demandas pré-existentes dos consumidores da cidade.
Do mesmo modo, quando a literatura, sejam de historiadores ou antropólogos, mostra
que estes projetos de modernidade previam mudanças nos hábitos e nos comportamentos,
eles não necessariamente mostram como estas mudanças e estas práticas dialogam com a
cultura material, e que cultura material seria esta. A retenção de artefatos fora de “moda” e a
continuidade do uso de antigas tradições culturais podem ser vistos como uma norma cultural
standard encontrada entre aqueles que não aceitaram, ou o aceitariam, as novas normas
modernas que se queriam impor (SCHAKEL 1996: 138). Assim, ao mesmo tempo em que as
tigelas podem ser vistas como a persistência de hábitos coloniais ou mais rurais na cidade
cosmopolita, elas também poderiam ser vistas como fazendo parte destes próprios bitos
cosmopolitas e modernos, ao invés de serem consideradas “intrusivas” ou “anacrônicas”.
Somente analisando e escavando mais contextos deste tipo estaremos aptos a descrever a
cultura material destes hábitos que se estabelecem no começo do século XX. Dados
arqueológicos podem ajudar a revelar os índices de aceitação de novos bens de consumo e
novas idéias (SCHAKEL 1996: 133).
Há que se pautar, ainda, que se os discursos sobre estes novos hábitos e os estímulos a
mudanças nas práticas de consumo planejavam uma disciplinarização dos comportamentos, é
preciso saber se ocorreu, realmente, uma mudança nestas práticas ou se existiram
resistências, persistências, etc. A relação entre os pratos e as malgas é interessante neste
sentido. Para a teoria do design industrial, “é provável que o prato especialmente aquele
com borda chata característico da civilização moderna tenha tido sua origem em culturas
que comem sobre mesas, pois é preciso mantê-lo estável e firme durante o uso” (BÜCHLER
2004: 43). Todos os pratos do sítio Petybon, a exceção dos pratos de sobremesa (e dos pires),
304
contém aba, visto que se adaptariam melhor “aos nossos costumes alimentares, devido aos
instrumentos de que dispomos para comer, os talheres. A aba sustenta os talheres, mantendo-
os posicionados, impedindo que deslizem para o centro do prato, ‘sujando’ com a comida o
cabo que seguramos” (AUN 2000: 77).
Os 17 tipos de prato produzidos pela FSC, com tamanhos variados, indicam uma
popularidade da forma e crescimento da segmentação dos serviços à mesa; os pratos
implicam em consumo individual, de um prato por pessoa, indicando uma etiqueta que
reforça a segmentação (SCHAKEL 1993: 5; SCHAKEL 1993: 130). Segundo Schakel, no
século XIX, no processo de ritualização das refeições, o prato passa a ser um veículo, na
classe média americana, para apresentar as refeições, tornando-se símbolo físico manipulado
como parte de um ritual (SCHAKEL 1996: 174). Para o autor, os pratos eram vistos como
itens disciplinares e, no contexto de Cheasepeake, artefatos que refletiam mudanças sociais
entre os grupos mais ricos e um modo das elites de se diferenciarem daqueles e de outros
grupos em períodos de instabilidade social (SCHAKEL 1993: 85). No caso da elite carioca
no século XIX, o jantar passou a ser considerado um importante dever social, regido
ritualisticamente por regras quase imperceptíveis (LIMA 1995: 138). Para Huddleston e
Poplin (2003: 2), os pratos seriam reflexo de novos conceitos de individualismo e privacidade
no cotidiano, mas pensar nas apropriações e usos dos pratos, por exemplo, por famílias
operárias de São Paulo, nas quais o conceito de individualismo estava quase que fundido ao
conceito de coletivo, de comunidade, mostraria a relação que se desenrolou neste contexto
específico entre um habitus e a cultura material. Com o século XX, excetuando as horas da
“cachaça social no botequim da vizinhança”, o jantar e o convidar os amigos para jantar
popularizou-se como forma de cumprir os deveres cotidianos de solidariedade (CHALHOUB
2006: 229), também como tática de sobrevivência dos grupos populares.
Os pratos, portanto, e teoricamente, indicariam um comportamento: o do uso da mesa
para as refeições, assim como do uso dos talheres. Na França, a disseminação dos pratos
rasos deu-se apenas no século XIX, assim como o uso dos talheres, vistos como sinal de
civilidade (LIMA 1995) ou parte de um processo civilizador (ELIAS 1994). No entanto,
sabe-se que os talheres eram algo caro, pouco populares no Brasil (como o ainda hoje em
algumas regiões do país). Logo, o podemos pressupor a relação direta talheres pratos.
Análises de marcas de uso vêm de encontro a estas problemáticas; Griffith (1998)
demonstrou como muitas das marcas que se imaginava serem de garfos seriam colheres,
rompendo, portanto, com normas que implicariam apenas no uso de garfos para refeições
305
sólidas. Há que se ter em vista, assim, a diferença entre os discursos e as práticas, o êmico e o
ético nos modos de utilização da louça: as invenções e re-invenções dos agentes sociais no
cotidiano a partir dos habitus enquanto princípios geradores de práticas distintas e distintivas,
como pontuou Bourdieu (2008: 22).
Koguruma (1999: 83) apontou, por exemplo, a existência de inúmeros ritmos sociais
sobrepostos a experiências de um cosmopolitismo conflituosos na metrópole, e que é
necessário perceber as especificidades retóricas dos discursos de modernidade da cidade entre
o final do século XIX e o começo do XX. Para o autor, subjaziam sob a aparência de
“aburguesamento” da urbe paulistana, ritmos marcados por outras clivagens e outros fluxos
que a documentação oficial abafa. Quando usamos conceitos como “europeização” temos que
ter em mente que, pautada nos discursos de cronistas e memorialistas, isto não eliminou
certos aspectos na cidade que existiam desde o período escravocrata (KOGURUMA 1999:
87). As boiadas continuam passando, assim como os leiteiros em domicílio, ainda nos anos
1950, como mostra a fotografia abaixo:
A existência de práticas “ruralizadas” e urbanas” coexistia na urbe paulistana
(KOGURUMA 1999: 91), conformando experiências vividas por todos os habitantes da
cidade, com maior pertencimento nos setores menos favorecidos, mas não só. Estou falando
das criações de animais nos palacetes da Avenida Paulista, por exemplo, porcos e galinhas
que deixavam vislumbrar um ambiente que, por vezes, sedento por mascarar o que
considerava “colonial”, montava discursos que o tinham fundamentação no mundo
Leiteiro à domicílio nos ano 1950 (GAMA 1998: 85)
306
empírico. Se havia um investimento em xícaras para aqueles momentos cerimoniais públicos,
a casa de elite poderia, no dia a dia, ainda estar sorvendo caldos em tigelas, utilizados os
pratos com a mesma freqüência que estas. O triunfo de uma aparência para a cidade, forjada
muitas vezes pelo comércio e pela propaganda (PINTO 1999: 66) faz, por vezes, com que se
esqueça da relação entre o que é dito e o que é feito (o exemplo mais clássico em arqueologia
histórica que mostra esta intrínseca relação são as pesquisas do Garbage Project de William
Ratje).
A fotografia abaixo, capa do livro Os Italianos, de Fábio Bertonha (2005), que aborda
a história da imigração italiana, ilustra bem, para além das “margens de manobra”, o papel do
habitus como senso prático articulado entre os agentes, os “sujeitos”, e as estruturas
cognitivas duradouras e esquemas de ação (BOURDIEU 2008: 42): caminhos alternativos de
ação (SAID 2005: 35), idéias e valores articulados numa histórica acumulada (SAID 2005:
45). Não apenas come-se em pé, mas se segura um prato com uma mão e com a outra se pega
o alimento não existe mesa ou talher, um uso que, com certeza, não foi, de forma alguma,
aquele pretendido. Não deixo de pensar em que marcas de uso seriam encontradas neste
prato; se não encontrarmos nenhuma, assumiremos que ele imediatamente não foi usado?
307
Para Norber Elias (1994: 133), as problemáticas em torno do uso do garfo vão para
muito além da explicação “racional” de que comer com a própria mão, ou tirar do próprio
prato o alimento com a mão, é anti-higiênico; segundo o autor, estudando nossos sentimentos
em relação ao ritual do garfo, este tipo de talher nada mais seria que “a corporificação de um
padrão específico de emoções e um nível específico de nojo” (ELIAS 1994: 133). Para a São
Paulo da época, comer com os dedos, ainda que praticado pela maior parte da população,
deveria “chocar” alguns, devido a uma rie de tabus que se foram criando, por uma pequena
parte das elites, institucionalizando o desagrado a partir de um dado ritual e normatizando
formas de conduta. Associado a formas tradicionais de comer, o hábito foi, e é, cada vez
mais, considerado “bizarro”, apesar do paradoxo de ainda comermos bolos e pizzas com as
mãos...
A fotografia abaixo, de Vicenzo Pastore, o fotógrafo dos “tipos humanos” da cidade
(REZENDE 2002: 3), mostra um vendedor de galinhas, na rua 25 de março (ainda
considerada o mercado caipira”), durante os anos 1920, comendo numa malga, com forma
muitíssimo semelhante a produzida pela Santa Catharina. Nota-se que ele segura algum
pedaço de alimento mais sólido. Inclusive, a maneira com que pega a tigela é semelhante
aquela existente na produção e na esmaltação, que deixaria digitais nos lábios e base.
Vendedor de galinhas no mercado da rua 25 de Março
(Vicenzo Pastore / Acervo
Instituto Moreira Salles)
Tigelas do tio Petybon.
Nota-se a semelhança
formal, em especial nos
detalhes do pedestal na base,
com a forma da foto ao lado.
308
Por fim, a imagem abaixo mostra, nos anos 1910, nos arredores do centro da cidade, a
ainda São Paulo rural com um almoço no campo. O ritual caracterizava-se pelas pessoas
dispostas em círculo, agachadas, segurando os pratos com a mão, distante da moderna
etiqueta” ou dos usos pretendidos que se pensava para os pratos. A fotografia, no entanto,
mostra mais. Ela mostra como o repouso, enquanto arma contra o cansaço, no período de
parada do trabalho, tem dimensões psicológicas, biológicas e sociológicas como afirma
Bastide (1983: 88). que as técnicas de repouso o são “naturais”, mas adquiridas desde a
infância, agachar para almoçar ou para repousar indica que comer sentado foi uma imposição
do abandono de uma posição “natural” na criança, por exemplo. Mauss chega a distinguir a
humanidade entre os sentados (em assentos) e os agachados (BASTIDE 1983: 100). Se comer
em pé ou comer agachado estava sendo visto, em São Paulo, como uma prática a ser
combatida, eminentemente rural ou não “civilizada”, é porque uma prática cultural passou a
ser imposta inclusive sobre a fisiologia de certos grupos sociais da cidade, coagindo-os,
através de todo um aparato disciplinar, a aceitar uma determinada visão de mundo de um
grupo específico (o discurso modernizador das elites paulistanas), indo fundo numa
biopolítica de “domesticação dos corpos”, como disse Foucault (1984).
(Reconstituição da Memória Estatística de São Paulo, v. II)
309
4.1.1 - O ritual do cafezinho: hábito de sociabilidade com xícaras e tigelas
Chá! Que asneira! Chá é água morna!
(Aluísio de Azevedo, O Cortiço, 1891)
Afinal... Para quê as xícaras e as tigelas? Que uso elas ganhariam? O que seria nelas
colocado? Há grandes probabilidades, para a República Velha, quando pensamos nele: o café.
O consumo do café como bebida, e o hábito de tomá-lo nas e entre as refeições, está
associado, fulcralmente, à expansão ultramarina européia, uma vez que a prática data do
século XV islâmico. O café se propagou do Oriente ao Ocidente prestando-se às demandas
mercantilistas do capitalismo e acompanhando revoluções científicas e financeiras que
presidiram a sociedade moderna, figurando como um de seus motores (MARTINS 2008: 10).
Diferente do chá, resultante do fascínio pelo extremo Oriente, o café é fruto do mundo árabe.
O hábito de tomar café como bebida prazerosa, e o nascimento do ritual, em caráter
doméstico ou coletivo, deslanchou a partir de 1450 (MARTINS 2008: 21). Coube, no
entanto, à Turquia o pioneirismo do “hábito do café” como bebida popularizada e ritual de
sociabilidade (MARTINS 2008: 21-22). O modelo da primeira cafeteria do mundo, a Kiva
Ham em Constantinopla, espalhar-se-ia como ponto de encontro e lugar de convívio social,
atestando a ampla difusão da bebida e sua função celebrativa advinda de seu teor estimulante.
De bebida a lugar, a propagação dos Cafés carregava, em si, o caráter “agregador, estimulante
à troca de idéias”, liberador da “comunicação entre os homens, que passaram a consumi-lo
em lugares públicos” (MARTINS 2008: 28).
Detalhe da
imagem acima:
prato branco no
chão
Detalhe da imagem acima: pratos brancos, um com,
aparentemente, um talher dentro
310
A Inglaterra foi o primeiro lugar a cultivar os cafés públicos, ainda no século XVI; no
entanto, no século XVIII, o chá tornara-se forte concorrente, um poderoso instrumento de
sociabilidade no país. Avançando mais e mais como demanda do mercado interno inglês, o
equipamento que envolvia o consumo do chá foi se especializando na Inglaterra, com a
substituição das malgas “por xícaras com asas e seus indissociados pires..., em decorrências
das tigelinhas serem consideradas extremamente desconfortáveis” (LIMA 1997: 97).
Diferente do que ocorreu no Brasil, lá, a partir de 1820, as xícaras com alças substituíram de
vez as pequenas malgas que, segundo Lima (1997: 99), deixaram de ser fabricadas, para
consumo europeu, em meados do século. Junto do chá foi introduzido, na Inglaterra, todo o
equipamento utilizado na China para seu consumo (LIMA 1997: 95). Entretanto, devido à
existência de outras bebidas quentes, como o próprio café, e o chocolate, vindo das Américas,
o equipamento de chá chinês, em princípio os bules, as tigelas e as xícaras, se adaptou bem
também ao consumo destas últimas, passando a compartilhar, com elas, as mesmas funções.
Tem-se o crescimento das demandas por faianças finas e porcelanas, à medida que se
expandia o consumo destas bebidas quentes, concomitantes ao florescimento das fábricas de
cerâmica branca em toda a Europa durante o século XVIII.
A parafernália que deu suporte ao hábito de tomar café, e ao ritual do cafezinho,
composta pelas mesmas formas que as para o c quiçá, em tempos remotos, havendo
especialidade em termos de tamanho (o que teria originado os obsoletos termos “xícara de
chá” e “xícara de café”) –, teve maior expressividade no Brasil do que, por exemplo, nos
locais onde teria primeiramente se estabelecido, como na Europa. Isto mostra que nem
sempre a intensidade de um fenômeno é maior em sua área nuclear, tendo visto que o Brasil
tornou-se, posteriormente, um dos maiores consumidores, e produtores, de cado mundo.
Hoje, no planeta, é a bebida mais consumida depois da água, com 400 bilhões de
“xícaras”/ano (BASTOS 2009: 24). Foram proliferando novas volumetrias de xícaras e de
tigelas, como aquelas do Petybon, e o consumo e uso de práticas relacionadas às louças e às
bebidas quentes fez crescer a demanda por cerâmica branca, acarretando na abertura de
tantas outras fábricas de faiança fina na cidade, neste período, que fabricavam outras tantas
formas semelhantes.
O acervo do sítio Petybon mostra, por exemplo, a entrada maciça das canecas na
aparelhagem, representadas por seis variantes volumétricas. Data dos tempos da belle époque,
portanto, o nascimento do costume, hoje bastante consolidado, de tomar café, e outros
estimulantes, também em canecas. Este é um exemplo de que a complexificação de rituais
311
nem sempre está associada à maior variabilidade de formas específicas, mas pode estar
associada à maior variabilidade de tipos de formas e de volumes, permitindo maior gama de
ações que o consumidor pode efetuar dentro de um ritual. É preciso estar atento a isto no
registro arqueológico também das unidades domésticas, do contrário, cair-se-á numa
simplificação da análise estética e formal do material arqueológico, e da cultura material dos
usuários de determinada ocupação, inferindo que uma menor variabilidade de formas
“simplificou” o ritual.
O material do sítio Petybon traz, ainda, outra relação percentual no que concerne a
estas formas, uma vez que as tigelas são a maioria, seguidas das xícaras, enquanto os pires
têm uma expressão bastante módica no registro arqueológico (aproximadamente apenas 2%
do total do acervo), sugerindo que não haveria uma relação rígida entre a presença de xícaras
e o uso dos pires. Mesmo porque, e até hoje, os pires vão perdendo importância, sendo
aquelas formas que ficam guardadas nos armários, pouco freqüentes em alguns registros
arqueológicos do século XX devido a pouca freqüência de uso, diferente das xícaras. Lima
(1997: 111) classifica os pires também como formas para sorver, assim como malgas e
xícaras. Sua ausência parece indicar, portanto, a pouca expressividade do bito de usá-los
com esta função nesta primeira metade do século XX paulistano.
Com o crescimento das culturas de chá nas colônias britânicas, o século XIX teria
assistido, na Inglaterra, um declínio das casas de café (coffe houses) substituídas pelas casas
de chá (tea gardens) (LIMA 1997: 95). Os britânicos consumiam 700g de chá per capita em
1840 e 2,6kg nos anos 1890. “Enquanto os britânicos abandonavam as poucas xícaras de café
que bebiam, para encher seus bules com chá da Índia e do Ceilão (Sri Lanka), os americanos
e alemães importavam caem quantidades cada vez espetaculares, notadamente da América
Latina” (HOBSBAWM 2007: 97). Isto não significa o fim da relação dos ingleses com o
café, uma fez que cada vez mais, no Brasil, estreitou-se a relação entre a Inglaterra, os
banqueiros ingleses, a escravidão, as ferrovias e a cafeicultura; mas coube, desta vez, à
França eternizar o modelo com os cafés parisienses que chegaram à casa dos milhares
(MARTINS 2008: 33). Esse crescimento na demanda européia fez com que o plantio de café
fosse desenvolvido em colônias na África, chegando ao Novo Mundo, ainda no século XVIII,
no Suriname, Cuba, Santo Domingo, Porto Rico e Guiana (MORELI 2000). Com o culo
XX e a invenção da cafeteira, o café passou a estar cada vez mais ligado ao mundo da fábrica,
do trabalho, da racionalização do tempo; é o mínimo tempo de repor as forças no mundo
capitalista que se estabelece tanto nos centros urbanos como no campo. José de Alencar
312
(1998: 172), no romance Lucíola, referindo-se a uma moça pobre, dizia que “Já não dormia;
sustentava-me com uma xícara de café”.
O café entra no Brasil ainda no começo do século XVIII através da introdução das
primeiras sementes no Pará, mas no final do século XIX, era pouco popularizado e pouco
comercializado, sendo o hábito de bebê-lo tido como sofisticado, oferecido como droga
exótica e de luxo para mesas elegantes (MARTINS 2008: 44). Mas não é preciso dizer que
com o século XIX o café, bem adaptado ao clima do país, começou a ser plantado em
extensas lavouras, especialmente no Rio de Janeiro, pautado num crescente mercado
consumidor americano e europeu pelo produto. Associado à mão de obra-escravista e aos
grandes latifúndios, o café foi centro de um capítulo da história do país bastante importante e
conhecido, com inúmeros estudos, sem necessidade de nos aprofundarmos aqui. Em São
Paulo, o café entrou timidamente nas práticas de cultivo em meados do século XIX, mas a
intensificação do plantio deu-se apenas após a abertura dos portos e o fim do bloqueio
continental. No final do século XIX, o Brasil já era conhecido como a “República do Café”.
Segundo Martins (2008), nas crônicas sobre São Paulo colonial, o café era ainda
referenciado apenas como plantio e não como bebida; com o final do século XIX, o hábito de
tomar café começou a popularizar-se, seja o café acompanhado de pinhão ou milho verde
como narram viajantes, seja a partir dos quiosques e quitandeiras nas ruas (MARTINS 2008:
181). no século XX, o café, nos Cafés, fazia parte da “média com o quente” cujo
equipamento compunha-se simplesmente de uma xícara, para o café, e um prato de louça,
para o pão (MARTINS 2008: 183). A combinação rendeu o poema Trem de Ferro, de
Manuel Bandeira, de 1936, que chama atenção para o hábito, mas também, pautado na
sonoridade, para o ritmo e a velocidade, do trem e do trabalho, que se firmavam na cidade, ao
que estava associado o café e o ato de consumi-lo. Reproduzo um trecho:
Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virgem Maria que foi isto maquinista?
Agora sim
Café com pão
313
Agora sim
Café com pão
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
Ao que parece, no começo do século XIX, quando a bebida ainda não se tornara
hábito, porque o grão era caro, com produção restritiva, a elite rural, e a elite urbana que se
formava, utilizou-se do ritual do café, com algumas normas estipuladas em manuais de
civilidade, para o estabelecimento de uma etiqueta social fundamentada em códigos
diferenciadores em termos de status social e hierarquia, uma vez que, a população, em geral,
ainda dava preferência ao chá, bem mais barato, importado diretamente da Ásia ou produzido
nas terras da antiga fazenda de Arouche Toledo Rondon, atualmente onde se localiza o
Viaduto do Chá (MARTINS 2008: 181). Segundo Cascudo (1968), o café passou a ser
consumido depois das refeições, acompanhado de tortas e bolos. Para Sevcenko (1992: 83),
nos anos 1920 a infusão estimulante mais tradicional ainda era o chá, muito associado “ao
desjejum e ao relaxamento pós-atividade, segundo cerimônias morosas, típicas de um mundo
pré-industrial e de menos densidade urbana”. Já o café desde cedo foi associado ao ritmo do
trabalho, à vida moderna e à cidade e, para o autor, a associação da São Paulo com o café
alcançou amplitude simbólica poderosa. Das últimas décadas do século XIX até os anos
1920, o Estado de São Paulo controlava quase 70% de todo o mercado mundial do grão; e o
café tornava-se cada vez mais a bebida republicana por excelência (SEVCENKO 2000: 56).
O hábito de tomar café conheceu novo impulso quando o ritmo ditado pela produção das
fábricas, pelo horário do trem, pela racionalização do tempo, passou a estruturar a sociedade,
com função, e sensação, de repor as energias (MARTINS 2008: 33). O final do século XIX e,
em especial, o século XX assistiu a associação do café com um imaginário alimentado em
314
torno do moderno: o cinematógrafo, os teatros, a eletricidade, os bondes, o telefone e o
automóvel (DOIN, NETO, PAZIANI & PACANO 2007: 94), opondo o “tomar café”, fruto
do progresso, da modernidade, da nova metrópole que se estabelecia e de sua pujança
material, ao “tomar chá”, cada vez mais considerado “colonial” e “tradicional” de forma a ser
“ultrapassado” pelos novos tempos. Rudyard Kipling (2006: 86) não deixou de perceber a
associação do ato de beber café, de aceitar o café como sinal de sociabilização na residência
de outrem e da velocidade do ritual, na São Paulo de 1927, quando anota que “não se podia
obter muita informação durante uma visita por uma xícara de café”.
O café, no entanto, não parece ter feito distinção entre os diferentes grupos sociais da
cidade. Joaquim Floriano de Godoy, senador do Império, em 1875, ressaltou “o café no uso
doméstico da classe menos abastada e até da proletária; hoje se pode considerar este gênero
como artigo de alimentação necessário para os habitantes de ambos os hemisférios”
(MARTINS 2008: 79). O suíço Tschudi (1953: 47), em viagem ao Brasil entre 1857 e 1866,
dizia que "o consumo do café dentro do próprio país é considerável, pois todo o mundo
saboreia várias vezes por dia essa bebida nacional, seja rico ou pobre, moço ou velho, patrão
ou empregado”. Por fim, Koseritz (1972: 25), em passeio pela Baía de Guanabara, no Rio de
Janeiro, em 1883, registra em seu relato de viagem que “antes de entrar na barca, a audaciosa
tentativa de tomar café no botequim do trapiche, o que conseguimos mais ou menos, apesar
de que o produto era horrível, para uma região onde de mesmo os pobres bebem excelente
café”.
Para Sevcenko, a industrialização na Europa e nos EUA, e a revolução científico-
tecnológica ocorrida nos anos 1870, transformaram o mercado de produtos primários,
gerando uma demanda crescente por estimulantes de origem tropical, indispensáveis à
adaptação das populações urbanas aos novos ritmos mecanizados. Eis como um produto
obscuro, de escasso reconhecimento e pouco consumido como o café, de repente se tornou
gênero indispensável às condições da vida moderna” (SEVCENKO 2000: 77). Não foi sem
razão que Joseph Love fez a associação da cidade com a bebida em A Locomotiva. Ocorreram
mudanças nas práticas alimentares afetadas pelas transformações econômicas e populacionais
geradas pela cafeicultura e a mais óbvia delas foi a substituição da bebida cotidiana,
“iniciava-se o reinado do café nas xícaras, copos, canecas e cuia dos paulistas” (MARTINS
2004: 133). Na São Paulo que se configurou como a construção avessa aos velhos cenários e
aos velhos costumes do Brasil oitocentista e rural (PINTO 1999: 62), o combate e a ênfase no
consumo, e nas práticas arraigadas a eles, do ca em detrimento do chá teve reflexo nas
315
formas produzidas pelas fábricas de louça em todo país. No entanto, a substituição do chá
pelo café no Brasil não chegou propriamente a ser uma disputa, visto ter ganhado o café uma
amplitude que o chá nunca alcançou, criando um mercado consumidor e práticas de consumo
inimagináveis para uma bebida exótica pouco conhecida até o século XIX. No entanto,
algumas tensões foram, sim, geradas.
Quando João do Rio narra o episódio abaixo:
- Vamos tomar café?
- Oh! Filho, não é civilizado! Vamos antes ao chá! (1911: 84)
referencia-se a um episódio bastante paradigmático, segundo O’Donnell (2009): a rejeição do
café e a sugestão pelo chá, no período no qual o café era o baluarte da economia nacional,
“nos remete a uma tentativa de substituição mecânica de uma tradição nativa pela outra alheia
ao sistema simbólico nacional, mas em sintonia com a cartilha de civilidade (...) O brasileiro,
acostumado à informalidade do café, defrontava-se com a pompa das louças e biscoitos finos
que, ..., impunham a criação de um novo espaço social” (O’DONNELL 2009). No século
XX, os Cafés da Paulicéia tornaram-se os espaços de sociabilidade por excelência, a exemplo
do Café Guarany, ponto de encontro da intelectualidade paulistana, de distribuição de
periódicos (MARTINS 2008: 182-183), e mesmo de fechamento de negócios, pois foi nele,
devo lembrar, que o contrato entre os Ranzini e os Fagundes foi fechado para inauguração da
Fábrica de Louças Santa Catharina em 1913.
Tensões, igualmente, surgiram entre o café e a cachaça, uma vez que o café era
encarado como a bebida da sobriedade, que desperta para o trabalho, para o estado de vigília
e vence o sono, em contrapartida às bebidas alcoólicas como a aguardente e a própria cachaça
(CAMARGO 2009: 6). As transformações e guinadas de velocidade do século XIX, pediam
drogas potentes e baratas: se por um lado, a maximização do efeito, a aceleração, o
arrebatamento e o preço baixíssimo da cachaça criaram novas qualidades de embriaguez, por
outro, o café criou novas formas de sobriedade (CAMARGO 2009: 7). Daisy Camargo
mostra, assim, como na cidade de São Paulo foram configurando-se os lugares de
“sociabilidade sóbria”, os Cafés, e os de “sociabilidade efusiva”, as Tabernas, seguidas das
tentativas variadas de combates a estes estabelecimentos pelo poder público, vistos como
locais de “diversões perniciosas” (CISCATI 2001: 52). Consolidava-se cada vez mais a
imagem do paulistano ao café e ambos ao trabalho, como uma característica inata que se
opunha ao malandro carioca, por exemplo (CISCATI 2001: 81).
316
Atento ao papel da gastronomia como universo de conflitos, tensões, disputas, não foi
sem intenção que Michel Onfray, no final do século XIX, descrevendo a cozinha, a associou
a presença do que chama “líquidos de guerra”, a cozinha dos deuses, considerando o chá
como a bebida da imortalidade, o café como a bebida sublime e o chocolate como a bebida do
guerreiro. Se o chá era de origem budista e o café de origem muçulmana, o chocolate seria
o emblema de uma civilização pagã, Maia e Asteca, então considerada uma bebida de
guerreiro, tomada por aqueles que iriam aos combates. Para Onfray, se o chá e o café
exacerbavam as capacidades espirituais e cerebrais, o chocolate avivava o erotismo, por isso
muitas vezes alvo de críticas, especialmente por parte da Igreja (SANTOS 2009).
Câmara Cascudo, por outro lado, afirma que, apesar de sinônimos funcionais em
termos de pretextos para recebimento social, no Brasil, o cnão chegou ao uso popular, e
quem tomava chá era porque estava doente, “bebida de gente ilustre” (CASCUDO 1968:
342). O café, o chá e o chocolate eram recomendados, no Brasil colônia, para o combate à
doenças venéreas, e o café, sem açúcar, era dado aos escravos como fortificante (LEAL 2005:
45). Em Atrás da Catedral de Ruão, conto de Mário de Andrade (1993: 50) a personagem
Alba “vivia resfriada na exigência das blusas brancas. Chegava afrosa, nariz vermelho,
pingando. Lúcia lhe propunha logo um chá, mas com bastante rum ‘pour avoir des rêves’”.
No período do século XX abordado por este estudo, a primeira metade, sem dúvida
era o café a bebida de bares, a bebida consumida em casa, em tigelas, xícaras e até pires.
Conformava-se como a bebida nacional, por excelência, no âmbito da construção das
identidades no Brasil República. A presença do café no cotidiano brasileiro só se tornou mais
intensa com o decorrer do século XX, a ponto de, a partir da segunda metade, mesmo o copo
de vidro ter entrado como parte da cultura material e dos equipamentos utilizados para o
consumo do café, coisa que foi praticamente nula na primeira metade do século. A caneca de
louça também adquiriu significado, e sua associação à bebida é tamanha que nos últimos anos
do século XX fortaleceram-se termos como “caneca de café”. A utilização da caneca nos
rituais e práticas de beber café mostra, na verdade, quase que uma fusão de formas, que,
pautada num movimento que culminou nos anos 1990 com as estratégias das fábricas de
louças brasileiras para não sucumbir à (nova) concorrência chinesa, a caneca e a xícara se
confundem. Existe um limite tênue que atualmente foi rompido entre estas duas formas e que
acarretou na criação de formas cujos designs têm um pouco das duas.
“Tomar um cafezinho” tornou-se frase corriqueira e sinônimo de uma ritualística de
sociabilidade que indica um bom anfitrião, no Brasil (FONSECA, TSAI, ISHIHARA &
317
HONNA 2005: 24). Para além do consumo do produto em si, o ritual do cafezinho visa
“estabelecer um contato social ou mesmo fazer uma pausa nos afazeres domésticos,
profissionais ou pessoais” (FONSECA, TSAI, ISHIHARA & HONNA 2005: 25). Cada vez
mais o hábito de tomar café foi arraigando-se aos costumes nacionais, em geral tomado após
as refeições. Debret (1940: 138), na primeira metade do século XIX, registra que “Quanto ao
jantar em si, ..., para um homem abastado [...] Os vinhos de Madeira e do Porto são servidos
em cálices [...] além disso um enorme copo, que os criados m o cuidado de manter sempre
cheio de água pura e fresca, serve a todos os convivas para beberem à vontade. A refeição
termina com o café”.
Os manuais de civilidade, veículos de poder e urbanidade, divulgados no universo das
elites, desde o século XIX, trazem preocupações com os modos da beberagem do café. O
manual de José Inácio Roquete chama atenção para o ato de beber o café depois do jantar e a
realização da cerimônia para seu consumo: “... voltam para a sala do mesmo modo que
vieram, onde já es pronto o café e os licores; porque somente se toma café à mesa nos
jantares sem cerimônia (ROQUETE & SCHWARCZ 1997: 232). Critica também o hábito,
deveras popular, de beber o ca fervendo, no pires, e ir bebericando aos poucos; o café
deveria ser bebido “pela chávena, e ninguém o deita no pires” (ROQUETE & SCHWARCZ
1997: 193).
Na literatura, inúmeros são os exemplos da presença do café, em variados contextos,
tomado em variados recipientes. Concordo com Monks (1999) quando diz que a relação entre
xícaras e tigelas, no registro arqueológico, não pode ser arbitrária e intrinsecamente associada
a um comportamento mais ou menos “burguês”, uma vez que chá, café e chocolate, os
alimentos pretextos para recebimento social, como fala Cascudo (1968: 342), seriam
consumidos tanto numa como noutra forma. Na cuia, o café, com rapadura, entrava na
alimentação escrava como estimulante para o trabalho, substituído pela cachaça em dias frios
(MARTINS 2008: 114).
Júlio Ribeiro, por exemplo, em A Carne, romance de 1888, ao mesmo tempo em que
mostra a multifuncionalidade da xícara, mostra que o café estava sendo bebido em uma tigela
nos trechos: “Barbosa mandou vir um caldo de frango, suculento, grosso, fê-la tomar uma
xícara dele” e Comeu ela ou bebeu alguma coisa? Ela almoçou, de fazer duas horas.
Não bebeu nada? Bebeu café, uma meia tigela”. Em Desmundo, de Ana Miranda,
publicado nos anos 1990, retratando o universo feminino na colonização brasileira do século
XVIII, vemos a malga associada ao leite no trecho deixar malga de leite à janela para os
318
mortos”. No conto de Coelho Neto e Olavo Bilac, O Tesouro, nos Contos Pátrios, “a preta
saía com uma grande malga para ordenhar as vacas”.
N’A cidade e as Serras, de Eça de Queiros, de 1901, “a malga de barro, atestada de
azeitonas pretas, contentaria Diógenes” (2008: 155) e “Ele enrolava numa mortalha tabaco
picado, tabaco grosso, guardado numa malga vidrada” (2008: 55). N’A Relíquia, de 1887,
“ao lado erguia-se uma tenda, com um tapete na relva coberto de uvas e de malgas de leite”,
“bebendo numa malga de ferro, que um negro ia enchendo com o odre suspenso aos
ombros”; e em O Primo Basílio, de 1878, “Sorri com os seus dentes amarelados. O caldo que
Joana deitava na malga branca com um vapor cheiroso, cheio de hortaliça dava-lhe uma
alegria gulosa”; em seu conto, No Moinho, de 1880, “havia sobre as cômodas alguma garrafa
de botica, alguma malga com papas de linhaça”. Atesta-se, na obra do escritor português,
primeiramente a popularidade do termo, pouco usado no Brasil, em especial no século XX, e
a associação da palavra com a forma, e não necessariamente com a matéria prima que a
compunha, uma vez que temos malgas de barro, de cerâmica vidrada, de ferro e branca de
louça, usadas para as mais diferenciadas atividades.
Em O Ladrão, conto de Mário de Andrade publicado nos anos 1940, lê-se o seguinte:
“Na porta da casa, a italiana triunfante distribuía o café. Um momento hesitou, olhando o
guarda do outro lado da rua. Mas nisto fagulhou uma risadinha em todos no grupo, decerto
alguma piada sem vergonha, o! Não dava o café ao guarda. Pensou na última xícara,
atravessou teatralmente a rua olhando o guarda, ele ainda imaginou que a xícara era para
ele...” ([1947] 1993: 37).
Em A conquista, de Coelho Neto (1899) “Também eu tenho saudade do meu sertão,
mas que poderia eu fazer se vivesse? Estava em plena natureza, nos campos gordos, vendo
o gado e vendo as culturas, trabalhando como um campônio. esta hora, junto do alpendre
da casa, o cavalo de sela, escarvando a terra e eu, com uma malga de café no bucho, o
rebenque enfiado no punho, pronto para partir a galope, pelos campos.
N’O Missionário, de Inglês de Souza, 1891, lê-se “Pensei que era o café de João
Pinheiro! Exclamou quando a mulata apareceu à porta da sala, trazendo na mão uma grande
xícara de louça azul, que saía um fumo tênue e um odor forte a café quente”. Também se
“engolir, a ferver, uma tigela de chá de folhas de cafeeiro adoçado com rapadura”. Em O
Cortiço, de Aluísio de Azevedo, 1891, “Só com o cheiro! Reforçou a mulata, apresentando o
café ao doente. Beba, ande! (...) Piedade chegou-se então para o cavouqueiro, que tinha
sobre as pernas o cobertor oferecido pela Rita, e, ajudando-o a levar a tigela à boca”.
319
Exemplos de como a xícara estava associada também ao café e a tigela também ao chá,
durante o final do século XIX e ao longo do século XX, como propõe Monks (1999).
Nas propagandas, elaboradas na maior parte das vezes sobre discursos elitistas
pautados na construção e na divulgação dos hábitos considerados modernos, pode-se perceber
a associação da xícara aos novos comportamentos, da xícara ao moderno, o moderno, sendo,
em muitos casos, o consumo do café. As publicidades abaixo mostram o apenas xícaras,
tradicionalmente classificadas como “xícaras de chá”, contendo café, mas também produtos
com novos designs, especialmente relacionados à alça. O contraste entre o quido negro e a
peça branca também é ressaltado no detalhe da pequena inclinação no ângulo do observador
que consegue, vendo a cara inteira, vislumbrar o conteúdo da mesma, sempre bastante
escuro. O recurso gráfico das linhas onduladas partindo perpendicularmente da boca do
recipiente, lembra que a bebida é quente, e o desenho das xícaras, em geral, de perfil,
ressaltando o contorno da alça, mostra que a forma estava perfeitamente associada, em
termos de design e shape, ao consumo da bebida.
Café Paraventi, O Estado de São Paulo,
12/11/1933
Café Paraventi, O Estado de São
Paulo, 16/12/1937
320
As transformações pelas quais passou o café e o hábito de tomá-lo, até os dias de hoje,
estão também representadas no papel da cultura material na aparelhagem que o acompanha e
nos vestígios de louças que localizamos nos sítios arqueológicos. Se, hoje, são as pequenas
xícaras de porcelana brasileira, os copos americanos, as canecas e os grandes copos
descartáveis de poliestireno, o aparato que acompanha o café, o processo continua a mudar, a
se complexificar, dialogando com as conjunturas pelas quais perpassa, sem, no entanto,
deixar de ser configurado pelas velhas maneiras, pautadas em toda a carga da tradição que
temos em beber um cafezinho, configuradas durante o Brasil República, para isto sendo
fundamental a produção brasileira de faianças finas. A Fábrica Santa Catharina nasce no
período de transformação do café, para usar a expressão de Giuliana Bastos (2009: 24), de
tira-gosto nômade em commodity. Nada como louças nacionais para uma bebida nacional.
Café Metrópole, O Estado de São
Paulo, 07/11/1935
Na reportagem “O que a sciencia diz dos novos ‘records’ das
cousas mais extravagantes e caprichosas”, mulher, em Nova
York, bebe 27 xícaras de café em pouco tempo e não passa
mal, O Correio Paulistano, 07/10/1928
321
SUB-CAPÍTULO 4.2
MARGARIDAS E “ESPIGAS DE TRIGO” NOS MOTIVOS, TÉCNICAS E
PADRÕES DECORATIVOS DAS LOUÇAS EM FAIANÇA FINA DA FÁBRICA
SANTA CATHARINA / IRFM – SÃO PAULO
A cor expressa algo em si, simplesmente porque existe, e
deve-se aproveitar isso porque o que é belo é também
verdadeiro (Van Gogh)
Como afirmei no capítulo de análise das louças do sítio Petybon, fabricadas pela
Santa Catharina e IRFM – São Paulo, tentei escapar, o máximo possível, das classificações de
língua inglesa em torno de padrões decorativos para faianças finas. Isto porque adoto o
axioma sico, e por vezes demasiado óbvio, de que as louças brasileiras não são inglesas.
Não compartilharam do contexto de produção europeu e da conjuntura em que surgiram,
sendo fruto de outros aspectos de um decorrer histórico ou, segundo um paradigma
deleuziano, de um rizoma temporal. Utilizar nomenclaturas inglesas não é anacrônico,
como desrespeita diferenças espaciais, locais, levando a uma generalização classificatória que
camufla qualquer diversidade ou expressão. Com isto não quero dizer que não houve trocas
entre a produção brasileira e a louça forânea, mesmo porque todo o imaginário e a visão que
se tinha das louças, assim como a criação de um mercado consumidor e uma demanda, ao
menos para São Paulo, foi também devedor das toneladas de louças exportadas para o Brasil.
Minha intenção é mostrar que esta louça brasileira é um artefato original, que dialoga com a
sociedade e as culturas dentre as quais circula, da que é produto e fabricante. Assim, somam-
se técnicas e motivos produzindo padrões decorativos específicos, que, destarte algumas
semelhanças com as louças estrangeiras encontradas em sítios históricos no país, resguardam
diferenças cuja tessitura dialoga com gestos, imaginários e representações figurativas,
advindo dos pintores contratados pela Fábrica, do pensamento dos produtores e das escolhas
do que seria decorado na louça, e de oscilações e dinâmicas da demanda e dos consumidores.
Pressuponho que as mudanças ocorridas no estilo de uma louça devem ser entendidas “como
mudanças nos significados sociais desses objetos e nos contextos nos quais eles foram
produzidos e/ou utilizados” (LIMA 1997: 94).
Deste modo, neste capítulo, gostaria de focar em como a decoração pode ser usada,
em termos de cores, estilos e conteúdo das figurações representadas, como um indicador da
procedência das louças, a fim de diferenciá-las das louças que não são brasileiras, em sítios
arqueológicos, por exemplo, da virada do século XIX para o XX, ou do século XX. Motivos,
322
designs, cores e técnicas decorativas também são importantes indicadores cronológicos
(SAMFORD 1997:7). A partir disto, entrarei no universo das técnicas decorativas, da
caracterização dos padrões identificados e como estes dialogam com uma conjuntura mais
ampla relacionada ao universo das artes plásticas e a uma sociedade multi e inter cultural
neste começo de século. Para isto, não trabalharei com especificidades de gestos
individualizando as pessoas (micro-estilos) que estavam decorando e pintando as louças, por
mais que isto seja possível. Como minha idéia é mostrar as características que conformam
estas louças em faiança fina e como isto é reconhecido como nacional, tentarei demonstrar,
numa somatória de elementos gestuais, técnicos, temáticos, etc., o que configura este material
em termos de estilo (DIETLER & HERBICH 1989) ou, resguardando as devidas proporções,
como propõe Wiessner (1983: 57), em termos de um estilo emblêmico. O estilo como o
resultado das alternativas tecnológicas e das escolhas feitas durante operações de
performance em todas as fases da cadeia produtiva (DIETLER & HERBICH 1989: 159). Nas
louças do sítio Petybon é possível perceber uma maneira de fazer estas cerâmicas, devedoras
de sua existência em um determinado tempo e lugar (SACKETT 1977). Aqui, todavia, darei
foco às escolhas no campo decorativo, às performances visuais, segundo percepções
intrínsecas e extrínsecas a seu fazer (CAPELATO 2005: 253; GALLAY 1986).
Como indiquei anteriormente nesta dissertação, para tal, pautei-me na análise das
louças em faiança fina decoradas do sítio Petybon representadas por 1050 peças.
Concomitante a isto, darei exemplos, talvez mais paradigmáticos, de louças brasileiras com
que tive contato, produzidas posteriormente por fábricas paulistas.
As decorações nas louças do sítio Petybon são compostas, majoritariamente, por
superfícies não modificadas (91% do total de peças decoradas), enquanto apenas 9% são
moldadas ou em superfície modificada. Quanto às primeiras, existe um predomínio de
decorações aplicadas por pintura à mão livre, seguidas de transfer-printings, esponjados e
estênceis; apenas um fragmento foi decorado com decalcomania.
Pensando uma planilha de análise, com atributos para técnicas decorativas, em louças
de um sítio arqueológico do século XX, a montaria, como fiz, escolhendo como principais
(e certamente prováveis) técnicas de decoração a pintura à mão livre, o transfer-printing, a
decalcomania e o estêncil (podem existir outras, claro, quantitativamente menos freqüentes,
como as carimbadas). Enquanto as duas primeiras técnicas vão sendo cada vez menos
utilizadas ao longo do século XX, a decalcomania e o estêncil vão ganhando terreno, até este
último ser também abandonado, quando a decalcomania passa a prevalecer, quase absoluta.
323
No entanto, como a decalcomania domina as técnicas decorativas pós-II Guerra, ela é
concomitante ao crescimento das porcelanas brasileiras/ironstone nacional, sendo, por isso,
muito mais freqüente, em sítios do século XX, nas louças brasileiras com este tipo de pasta
(do que em faiança fina). Isto é parte de um movimento mais amplo no mundo das cerâmicas
brancas que assiste a um crescimento na freqüência de decorações sobre-esmalte no fim do
século XIX e ao longo do século XX, técnicas raramente encontradas em contextos do século
XIX (SAMFORD 1997: 2). Daí o sítio Petybon apenas conter um fragmento de
decalcomania. Por outro lado, o estêncil é bastante característico das produções nacionais,
onde se pode notar claramente a carretilha ou a marca do pincel (ou spray, em menor
freqüência) resultante da aplicação deste molde vazado. Fábricas como a Barros Loureiro
utilizaram-se desta técnica largamente. Acredito que ela está associada, na Santa Catharina,
ao período pós-1918, quando a aproximação dos Matarazzo fez com que técnicas mais
estandardizadas fossem usadas na produção.
Existe, logo, um descompasso, ou uma não continuidade, entre as técnicas decorativas
das faianças finas do sítio Petybon e o que se encontra nas louças estrangeiras nos sítios
históricos do século XIX. Para Lima (1995: 166), a segunda metade do século XIX viu uma
saturação do mercado de faianças finas com decorações em transfer que determinou um
declínio em sua produção, surgindo, em seu lugar, a preferência pelos serviços brancos ou
com discretos relevos ou filetes nas bordas. É claro que existe um grande montante de louças
totalmente brancas fabricadas pela Santa Catharina que indica, quiçá, uma continuidade, e
expraiada popularidade, em termos de gosto, do branco; no entanto, nota-se o predomínio de
decorações cuja distribuição na peça ocupa quase 50% da superfície do suporte, se não mais,
nada discretas. Os florais à mão e os esponjados que dão às peças um colorido bastante
acentuado, marcado por contrastes entre cores primárias e secundárias, entre roxo e verde,
marrom e azul, amarelo e verde, verde e rosa –, são técnicas, não obstante sua alta freqüência
nessas louças brasileiras, muito comuns nas louças importadas, que decaíram ao longo do
século XIX, dando lugar a técnicas mais standard. Do mesmo modo, poucas são as peças
monocromáticas nas faianças finas nacionais, como os transfers azuis ou os borrões
(totalmente ausentes até onde sei), bastantes presentes nas louças forâneas.
Na coleção do sítio Petybon, a predominância é clara quanto à técnica da pintura à
mão livre, representando quase 84% das louças decoradas, dentre as quais destaco o uso do
324
pincel para a produção de florais e faixas e frisos
28
. Na coleção, portanto, há um predomínio
de técnicas ainda artesanais, apesar de inseridas num ambiente taylorista, o que soa paradoxal
a um olhar impressionista, mas que caracteriza muitas das fábricas do período que, na
realidade, foram formadas pelo “encarceramento” de ofícios artesanais pré-existentes, num
ambiente, arquitetônico, fabril. Os florais representam 83% do total de peças decoradas em
superfície não modificada, enquanto as faixas e frisos compõem apenas 7%.
O padrão que chamei “floral”, na realidade, é representado por uma série de variações
de motivos, associados à flora: folhas, frutas, flores, galhos, ramos, gavinhas, etc. Para Sousa
(1998: 184), a maior parte da literatura sobre louças considerou os florais de forma
inadequada, já que o termo engloba uma ampla gama de variedades de decorações que
acontecem dependendo de como, tecnicamente, os motivos são aplicados e dispostos. Mesmo
porque, “floral” também pode ser um tema, que englobaria diferentes técnicas. Essas
variações devem ser ressaltadas porque correspondem a escolhas, portanto culturais e,
portanto, indicadoras de locais e contextos, sócio-culturais-econômicos-políticos-ideológicos,
de produção. Algumas das variantes diagnosticadas no sítio Petybon ganharam nomes
próprios por serem, a meu ver, representações de plantas reconhecíveis: “rosa”, “flor de
maracujá”, “margarida”, “tulipa”, “orquídea”, “flor de cerejeira”, “lótus”.
Para esta classificação, comparei as imagens das decorações a flores do mundo
empírico e somei elementos. A flor do maracujá”, por exemplo, é aquela representação de
um floral com gavinhas, folhas trilobadas, etc., que caracterizam a flor de um maracujá; as
“margaridas” são, na verdade, representações figurativas que se assemelham àquelas flores da
família das asteraceae, também denominadas como compositae ou compostas, bem
conhecidas por seus mais populares representantes ornamentais, as margaridas (crisântemos,
dálias, gérberas, girassóis) (RAPINI 2009).
O gráfico abaixo demonstra as variações dos motivos florais. Nas barras, o branco
indica aquelas produzidas à mão livre, os pretos por transfer, verdes por estêncil e o
vermelho por decalcomania.
28
Faixas e frisos dependem muito do uso do torno. A louça é posta sobre a mesa giratória e enquanto o pincel
permanece parado, a louça gira 360º, até que a linha feita pelo pincel encontre seu ponto inicial. É preciso, no
entanto, firmeza no gesto, o que implica certa experiência, uma vez que se a mão se mover, o encontro entre o
fim e o início da linha não acontecerá traço que, se continuado, formará uma espiral –, o que pode ser
considerado defeito por algumas fábricas.
325
Esta relação entre os florais, a botânica, e o universo cerâmico data de muito tempo.
Nelson (1980: 109) mostrou que algumas louças inglesas para o mercado estadunidense
continham motivos florais que, no século XVIII, faziam parte de um vocabulário comum a
muitos pintores, mas que apenas a partir do final do século, a popularidade dos livros de
botânica encorajou adaptações de ilustrações. Woolliscroft (2002) estudou a relação entre o
mundo da botânica e as influências nas ilustrações das faianças finas produzidas pelas
fábricas de Josiah Spode (mais tarde, a Copeland). Na Inglaterra, as novas descobertas e
desenvolvimentos no mundo botânico foram concomitantes ao crescimento das famosas
fábricas de Staffordshire e muitos dos industriais ceramistas tinham como hobbies as artes, a
geologia e a botânica (WOOLLISCROFT 2002: 185). O autor procura mostrar, assim, como
a profusão de florais nas louças Spode está relacionada ao Curtis’s Botanical Magazine, um
livro de botânica do século XIX pertencente hoje à biblioteca do Museu Spode e que teve
muitos dos desenhos de sua flora transferidos para a superfície das louças, especialmente por
pinturas à mão e por transfer-printings.
0,00
10,00
20,00
30,00
40,00
50,00
60,00
70,00
Variantes do padrão "Floral"
326
Do mesmo modo como foram representadas flores nativas britânicas nas louças Spode
(WOLLISCROFT 2002: 197), a Santa Catharina também representou flores nativas
brasileiras – vide, por exemplo, as “flores do maracujá”, planta natural do Brasil e espontânea
em zonas tropicais e subtropicais da América, onde existem mais de 70 espécies do gênero, e
as “margaridas” que, apesar de existirem em outros países, têm um apelo nacional bastante
forte (penso, talvez, na maneira que aprendemos a representar uma flor na infância). A
América Tropical possui mais de 30% dos gêneros de Asteraceae do mundo (RAPINI 2009:
195). A presença, no entanto, de operários de múltiplas nacionalidades, somada,
provavelmente, a aprovação, ou sugestão, dos proprietários, pode ter acarretado a presença de
motivos mais orientalizados como a “flor de cerejeira” e o “lótus”. Seria possível associar a
representação de uma vegetação nativa e a utilização e mistura das cores como enfatizadores
ou enaltecedores de uma “tropicalidade brasileira”, como historiadores da arte fazem para as
artes do modernismo (CONTIER, NISHITANI & DIAS 2005: 8)?
A espessura movediça da tinta, a intensidade das cores notados em diversos florais da
coleção sugeriria, conforme a expressão de Rodrigo Naves (2001: 135), “uma natureza
pujante, que transborda, se exterioriza”. Para o autor, esta é uma das características de uma
arte brasileira; seria esta uma característica da louça brasileira? Acredito que mais pesquisas,
em torno da análise de louças em faiança finas brasileiras ainda precisem ser realizadas.
Ressalto que o início do século XX assistiu a um ufanismo pautado nos discursos para a
construção da identidade nacional brasileira não como um resultado dos regimes políticos,
mas como frutos das condições naturais da terra, onde a natureza prodigiosa e abençoada
garantiria um futuro promissor para além e independentemente dos regimes políticos”
(OLIVEIRA 1997: 187). A partir de então a natureza brasileira começou a ganhar aspectos
identitários na construção de uma brasilidade, especialmente com o modernismo.
Diferente, entretanto, das louças inglesas, as decorações das louças brasileiras
estudadas apontam para uma não necessidade de se pintar o empírico ou ser fidedigno a uma
imagem do mundo empírico como parece ocorrer com a produção da Spode, que existe
uma relação mais abstrata entre o que está sendo representado, que não existiria nesse mundo
real, e seu imediato reconhecimento como uma forma que existe e é passível de associação
com algo que se conhece devido a um esquema iconográfico comum.
As variantes defloral” nas louças analisadas são representações de flores que faziam
parte de um imaginário coletivo, ou seja, uma série de signos e modelos como
representações, construções coletivas pelas quais os grupos humanos organizam suas
327
identidades e dão sentido para o mundo em que vivem (CHARTIER 1991). Estes florais
faziam, assim, parte de um campo de representações manifestado através de imagens ou
discursos que pretendiam dar sentido a uma realidade (LE GOFF 1985). Além disso, muitos
são representações de flores tipicamente nacionais, como a “flor do maracujá”. Logo, não
apenas o que é representado não tem a ver com o que se encontra nas louças estrangeiras,
como a forma de representação é diferente.
Nas louças do sítio Petybon, quanto às flores e folhas nas “flores de maracujá” e
“margaridas”, por exemplo, percebem-se as espessas pinceladas, carregadas de tinta, de
grande cromatismo, de um pintor que, ao exercer seu ofício, não teve preocupação com as
reconhecíveis marcas das cerdas do pincel; do mesmo modo, as formas de pétalas e folhas
são muito diferentes daquilo classificado como “peasant syle”, “sheet floral” ou “sprig style”,
ou outros florais de procedência européia, uma vez que a terminação dos filamentos é sempre
arredondada, diferente da faiança fina inglesa nas quais o floral tem, em geral, terminações
em ponta ou afiladas. Outra característica que parece não acontecer nas louças inglesas é a
sobreposição das pinceladas e, por conseguinte, dos elementos que compõem a decoração:
pétalas e flores, muitas vezes, sobrepõem-se.
Louças estrangeiras em faiança fina: decorações com terminações afiladas
Tigela. Sítio Lobos, Jeceaba, MG
(ZANETTINI ARQUEOLOGIA
2009)
Tigela (adaptado de TOCCHETO
ET AL 2001)
Pires com técnica do borrão. Sítio Casa do
Itaim, São Paulo, SP (ZANETTINI
ARQUEOLOGIA 2009)
Tigela (adaptado de TOCCHETO
ET AL 2001)
Tigela (adaptado de BORNAL
2008)
Bacia (adaptado de
TOCCHETO ET
AL 2001)
Tigela (adaptado de BORNAL
2008)
328
Tigela com floral pintado à mão livre, inglês (1830-
1840). St Augustin, Florida. (FLMNH 2009)
Tigela com floral pintado à mão livre, padrão
“margarida”, sítio Petybon.
Nota
-
se a diferença em relação
à
finalização de pétalas e
folhas
: afilados na louça inglesa, arredondados na
brasileira.
Louças do sítio Petybon: decorações com filamentos arredondados
Sobreposição
329
Por outro lado, existe, especialmente no que concerne aos florais com laçaria, flores
em guirlanda, fitomorfos e fitomorfos com pontos, além das guirlandas propriamente ditas,
dos geométricos, e de alguns transfers como o padrões “couraça”, um esquema iconográfico,
uma forma de distribuição dos elementos que compõem a decoração, em guirlanda. Entendo
“esquema iconográfico” como um aspecto relativo à técnica, à ordenação de elementos
formais (BRUNEAU 1986), a forma como a decoração é disposta sobre o plano decorativo.
Existe uma preferência em organizar flores, fitomorfos, pontos, e outros elementos, de forma
que seguem um design de linha com sucessivas meias-luas, com aspecto que remete a um
entrelaçamento, delineando um cordão ornamental de flores, folhagens, ramagens, etc. ou
seja, uma guirlanda –, disposição que indica ritmos baseados na curva, aspecto comum nesse
começo de século, muito usado no Art Nouveau, por exemplo (ARGAN 2004: 199). Este
esquema iconográfico tende a seguir o lábio das peças, mais freqüente em peças com design
côncavo (na literatura inglesa, as hollowware), como tigelas e xícaras.
Levado, de modo mais amplo, à existência de aspectos comuns estruturantes de
pensamento, este esquema iconográfico pode até mesmo ser transportado para as decorações
plásticas, moldadas, como no “Trigal”, onde existe uma modelagem da caldeira, em forma de
“ostra” ou o que em inglês denominar-se-ia scalloped, também em guirlanda.
330
Prato raso com decoração “Trigal”
Tigela com decoração em transfer-
printing e pintura à mão livre.
Tigela com dec
oração em pintura à
mão livre
.
Prato raso
com decoração
em
transfer
-
printing
Xícara com decoração em pintura à
mão livre
.
Prato com decoração em estêncil
Tigela com decoração em transfer-
printing
Esquema iconográfico em guirlanda
331
No mais, as decorações tendem a ser bastante simples, deixando, portanto, a maior
parte da peça como branco. Do mesmo modo, quase inexistem peças cuja decoração esteja na
parte da peça que conteria o alimento; xícaras, tigelas e canecas sempre têm decoração
externa, enquanto que pratos, travessas, saladeiras, apesar de possuírem decoração interna, a
mesma quase nunca é pintada, e quando há o uso de pigmentos, estes são frisos ou faixas que
seguem a aba e o lábio. A limpeza do campo decorativo no que concerne às partes que
conterão alimentos dialoga muito com as teses higienistas e os controles de qualidade da
toxicidade das tintas, uma vez que ingeri-las poderia causar danos à saúde. Assim, a
decoração vai, aos poucos, saindo da caldeira (haja visto, por exemplo, a mudança no plano
decorativo de faianças, associadas ao Brasil colônia, em relação a faianças finas estrangeiras,
do Império e início da República, e destas com as fianças finas brasileiras, do século XX,
numa relação na qual a freqüência de decorações internas, na caldeira ou nas áreas de contato
com os alimentos, tende a cair).
No que concerne às cores, as louças analisadas são, majoritariamente, policromadas
pouquíssimos são os exemplares, na amostra, monocromáticos. No Petybon, a monocromia
representa apenas 5,15% do total de decorações cromáticas. Isto leva a um silogismo a partir
do qual podemos considerar a policromia uma característica estética identitária para esta
louça brasileira. Atualmente, por exemplo, o slogan da Fábrica de Porcelana Monte Sião
chama atenção para a monocromia de sua decoração por ser a única a produzir louça azul e
branca no país. Nenhuma outra fábrica de louça, hoje, chama atenção para sua policromia, ou
qualquer harmonia de cor, já intrínseca ao fazer e decorar as peças. Isso não acontecia com as
fábricas inglesas, por exemplo, mas acredito que o predomínio da monocromia em azul e
branco era também intrínseco a suas produções.
A cor das decorações é, portanto, algo bastante característico das louças da FSC,
sendo sempre bastante “vivas”, muito coloridas, com tonalidades bastante acentuadas,
especialmente pelo contraste entre as cromias utilizadas, e aquareladas. Para os florais à mão
livre, mas não para outros padrões como as cristas, a decoração assemelha-se ao efeito de
uma pintura em aquarela, na qual é até possível ver o biscoito e as marcas do acabamento do
biscoito através da tinta. Uma análise qualitativa dos elementos formais dos florais mostra o
pouco uso de linhas, a cor e a transparência, as pinceladas livres, a admissão de sobreposições
e a predominância do uso da tinta (cor) sobre a o uso do pincel (traço), características de uma
poética da aquarela (BONNEMASOU 1995: 33). Limpidez, transparência, suavidade e cores
luminosas, como nota-se nas faianças finas do tio Petybon, são aspectos de decoraçóes cuja
332
técnica é a da aquarela (BONNEMASOU 1995: 40). Acredito que este uso das cores na
decoração das louças fez parte de um movimento mais amplo que resultou no
aprofundamento das pesquisas da cor como linguagem autônoma, desde o início do século
XX, quando se abriu caminho para a abstração pictórica, sentida nos mais diferentes ramos
das artes industriais, como as artes aplicadas e decorativas (PEDROSA 2004: 91).
Segundo Luciano Guimarães (2004), não obstante o dinamismo das culturas nas
variabilidades temporais em relação à cor, o espaço geográfico tem clara influência nestas
percepções. No Brasil, por exemplo, estaríamos muito mais aptos a perceber nuances de
passagem entre o vermelho e o amarelo, por termos um repertório mais rico dessas cores, do
que alguém da região londrina. Nestes locais, há uma cultura muito mais rica em tons neutros
que lhes permitem mais facilmente encontrar e decodificar nuances de azul a violeta
(GUIMARÃES 2004: 100). Isto não implica num determinismo biológico ou traço genético,
mas indica um repertório que cada sociedade pode adquirir e como isto interfere na
codificação de determinada linguagem. Assim como grupos esquimós têm centenas de
designações para tons de branco, nós em português possuímos muitas gradações de verde
(claro, escuro, bandeira, petróleo, esmeralda, prússia, musgo, garrafa, piscina, limão, abacate)
não traduzíveis para o inglês (GUIMARÃES 2000: 100). Flores vermelhas e amarelas, e de
cores quentes, contrastantes, são típicas do continente Americano por serem as flores
polinizadas por beija-flores, pássaro típico da América (RAVEN, EVERT, EICHHORN
2001: 517): o quanto esta paisagem teria influenciado um imaginário em relação às flores e às
cores? É patente o colorido das louças da Fabrica Santa Catharina em relação às louças
inglesas, em questões de tonalidades e na baixa freqüência de tons neutros, o que pode estar
associado às concepções de cor que foram delimitadas pela experiência e prática de cada
cultura e apropriações de paisagens. Tenho como parâmetro o caráter da linguagem como
propiciadora de substitutos da experiência, como propôs Benveniste (1991: 65). Os diários de
Romeu Ranzini, no Museu Paulista, indicam dezenas de cores diferentes usadas nas
decorações e como prepará-las: “rosa claro quente”, “rosa forte”, “rosa brasileiro forte”, “rosa
violetta forte”, “marão cor talpa”, “marão vermelho”, “marão escuro”, “preto bellissimo”,
“verde azuladinho francez”, “verde amazona forte”, “verde amarelo escuro”, etc.
No início do século XX, as vanguardas européias começaram a liberar a cor de sua
relação com os objetos representados. Por exemplo, uma flor pode ter a forma de uma
margarida, mas pode ser azul. Passa a ser uma flor que o existe no universo empírico,
apesar de ser facilmente reconhecida como “margarida”, devido a seu esquema iconográfico
333
e sua lógica gráfica (“o tipo de figura e sua aproximação a outras produções da mesma
época” [FRANCISCO 2007: 16-17]). Existe, assim, toda uma organização seqüencial dos
caracteres gráficos dispostos de tal forma que comunicam algo; a forma intimamente ligada
ao conteúdo, portanto (FRANCISCO 2007: 79). Mas, como apontou Francisco (2007: 80),
uma análise gráfica pode mostrar que existe um descompasso entre estas dimensões, uma vez
que a continuidade de um conteúdo pode correr através de formas estéticas diferentes (e vice-
versa). Por isso as diferenças de representações de flores nas louças estrangeiras e nas
brasileiras, ainda reconhecidas como “flores”. Se o conteúdo é o floral, sua representação tem
variadas formas. É um distanciamento daquilo que Baudelaire (2004: 122) chamou de ilusão
do artista positivista que quer “representar as coisas tais como elas são, ou melhor, seriam”
isto é, uma “racionalização ‘naturalista’ das representações visuais” (FRANCISCO 2007:
80). Nas louças da coleção analisada, a intensidade da cor é concomitante à simplificação do
desenho, exigências estéticas talvez comuns a consumidores, produtores e decoradores,
bastante típicas deste começo de século XX (LICHTENSTEIN 2004: 132).
Nos florais à mão livre do Petybon existe, ainda, um modo específico de arranjar os
diversos elementos de que o pintor dispõe para compor a decoração, ou seja, existe uma
harmonia de conjunto (MATISSE 2004: 134) que caracteriza as composições do padrão
decorativo: é claro o destaque da flor, em si, perante os demais elementos como folhas e
gavinhas. Quando existem associações, como nos fitomorfos com pontos, são os pontos que
parecem estar, hierarquicamente, acima dos fitomorfos. Se os pontos são botões, frutos ou
meramente pontos, estão em um mesmo patamar, na composição das decorações sem flores,
que as pétalas das margaridas” ou das flores do maracujá”. O desenho das flores tem uma
força de expressão que vivifica as coisas que o cercam, como afirmou Matisse (2004: 134),
mas que põe em segundo plano as folhas, gavinhas e os pontos quando acompanhados dos
florais ou das laçarias. Diferente parece ocorrer nas louças forâneas dos sítios históricos nas
quais, apesar da presença de flores, a composição é mais igualitária, em termos de hierarquia
dos elementos na cena.
Por outro lado, a flor em si, especialmente nas “margaridas”, flores de maracujá”,
mas não só, contém bastante da própria característica da anatomia vegetal das flores nas quais
são inspiradas, uma vez que, em especial as “margaridas”, apresentam clara actinomorfia. Os
pintores aproveitaram a natural simetria radial da flor do mundo empírico para compor a
representação dos florais nas louças analisadas aqui. O design simétrico das flores dialoga
com a impossibilidade de uma maior estandardização das técnicas pintadas à mão em relação
334
à uniformidade acarretada por transfers, estênceis e decalcomanias, indicando uma
preocupação com a assimetria das decorações.
Nas decorações da Fábrica Santa Catharina, diferente do que parecia ocorrer com as
louças européias do século XIX, o desenho perde o compromisso com a verossimilhança
acadêmica clássica, através da “estilização acentuada de formas, linhas, contornos e cores
bem definidos e altamente contrastantes, além da forte definição entre tons”, e “ganham
sentido mais interpretativo, por vezes levemente abstrato, por conta também de sua
composição e enquadramento fora dos padrões acadêmicos” (CONTIER, NISHITANI &
DIAS 2005: 7). A este aspecto dos florais das louças analisadas aqui denomino dificuldade
da forma”, como a concebe Rodrigo Naves (2001), que, de fato, perpassa boa parte das
representações pintadas nas louças da Fábrica. É o que o autor chamou de “forma difícil”,
típica de uma arte brasileira, ou seja, não uma relutância formal, mas uma “resistência de
entregar as formas a seus próprios limites” (2001: 25), efeito causado, igualmente, pela
presença das espessas pinceladas e ao aspecto de aquarela nas “margaridas”, por exemplo.
Por outro lado, existem as decorações moldadas ou em superfície modificada, com
predominância do “Trigal”, mas com outras variantes como lírios (presente em penicos) e
formas geométricas, como retângulos de arestas arredondadas (em tampas). Na análise,
denominei “Trigal” aquelas decorações com motivos trigais, compostas por, pelo menos,
duas variantes: uma representando o trigo propriamente dito, predominante em pratos,
travessas e saladeiras, e outra que associa o trigo ao lúpulo (Humulus lupulus L.), por vezes
com alças que imitam galhos, predominante em terrinas (tanto na tampa quanto na terrina). A
maior parte dos trigais segue sentido horário, apesar de algumas travessas terem apresentado
Fragmento de tigela com padrão
“margarida”. Sítio Petybon
Fragmento de tigela com decoração
floral. Sítio Petybon
335
sentido da decoração anti-horário. Lembro que quando da criação do Ceres Shape, em 1859,
havia pelo menos 14 diferentes padrões que usavam motivos trigais (SUSSMAN 1985: 7).
Apenas as representações das folhas nos trigais apresentam nervuras (alongadas)
nestas decorações moldadas. No entanto, ressalto que este é um detalhe que os calques talvez
tenham dado a idéia de serem bastante claros, mas o são. Como comentei, as decorações
moldadas da Santa Catharina são bastante suaves, com relevo pouco espesso, situação
piorada quando da aplicação do vidrado, que preenche muito dos detalhes, diminuindo a
nitidez do desenho.
Trigal em prato fundo
Trigal em travessa
Trigal e lúpulo em tampa de terrina
Trigal em saladeira
Lírio, presente exclusivamente em penicos
Trigal em fragmentos de jarra
336
Estas decorações acromáticas compõem a produção de peças brancas na coleção do
sítio Petybon. Existe, sim, claro, também uma preferência pelo branco, com superfície
modificada ou não. É importante diferenciar o fato de que nas louças em faiança fina não há o
acréscimo de pigmento branco, pelo menos não enquanto pigmento como o das tintas usadas
para a decoração pintada, os estênceis, os transfer e esponjados. O fundo branco das louças
brancas é a própria pasta, resultado de elementos específicos em queima controlada e
Lúpulo em corpo de terrina
Prato raso com decoração Trigal
Trigal e lúpulo em corpo de terrina
337
oxidante, daí um vidrado transparente. Apesar de uma estética ou uma perfomance visual
bastante semelhante à faiança, a decoração da faiança tem fundo com pigmento branco
(espécie de engobo), aspecto inválido para a faiança fina que não é pintada de branco.
Enquanto na faiança deveríamos falar em pigmento branco, um pigmento acromático (como
o cinza e o preto), na faiança fina deveríamos usar cor branca, que, enquanto luz, contém
todas as cores (HALLAWEL 2007: 197).
Esta preferência pelas louças brancas, ao longo do século XX, foi bastante alimentada,
como indiquei em outro capítulo, pela popularidade das teses higienistas. Este, me parece,
é também um movimento mais amplo dentro do qual, nas louças, a decoração sai da caldeira
das peças, onde o alimento estaria. O branco, não apenas como ausência de decoração, mas
como um padrão decorativo per si, evidencia que informações cromáticas são linguagem
(GUIMARÃES 2004: 61). Tânia Lima (1997), por exemplo, mostrou como a relação entre
louças pretas e brancas, representadas pelo black basalt, por um lado, e porcelanas e faianças
finas, por outro, pode estar associada a relações de gênero no universo doméstico das elites
cariocas no século XIX, no âmbito do movimento de sua domesticidade.
Importante ressaltar que as decorações moldadas permitem uma margem ínfima de
manobra do pintor ou decorador, em termos identitários e/ou gestuais, que se expresse na
performance visual da decoração, comparada àquelas aplicadas à o livre. Apesar de
decorações plásticas, as peças que chamo “moldadas” têm seu relevo conformado de uma
vez, com a argila ainda mole, no molde de gesso, não possibilitando exatamente uma escolha
dos operários envolvidos sobre como será esta decoração. Este aspecto, na realidade, acaba
indo na contramão do que parece ocorrer com a “louça de barro” paulista estudada por
Zanettini (2005) na qual vão permanecendo os motivos plásticos em detrimento dos pintados,
estes possibilitando toda uma gama de expressões identitárias e socioculturais.
Não acredito, no entanto, que as fábricas brasileiras estivessem simplesmente
“copiando” padrões das louças estrangeiras; deve-se encarar estes trigais mais em termos de
uma continuidade do consumo de padrões produzidos no século XIX e como uma estratégia
de conquista do mercado, que, muito provavelmente, consumia o trigal, uma decoração que já
fazia parte do mundo das louças brancas. Mas existem, sim, diferenciações entre um trigal de
produção estrangeira e aqueles brasileiros do sítio Petybon. Um primeiro aspecto concerne à
altura do relevo, nas louças brasileiras sendo menores e, por isso, menos claros quanto às
linhas que delineiam e formam trigos e folhas. Isto seria um aspecto que facilitaria as
datações de ocupação, já que, conforme Sussman (1985: 10), como a decoração trigal está,
338
em geral, nas abas, enquanto as marcas de fabricantes, no frete, quando quebra, é difícil
datar o material e relacionar a decoração ao fabricante; nuances no formato, espessura do
relevo e execução da decoração podem auxiliar nas cronologias do que a autora chamou
“seemingly homogeneous ware” (1985: 10).
Um segundo aspecto está no fato de que “trigal” é uma nomenclatura brasileira para o
padrão decorativo Ceres Shape” ou “Wheat Pattern”, portanto é resultante da leitura
arqueológica (ético) e dos produtores de língua inglesa (êmico) sobre a decoração. No
Petybon, diferente das louças pintadas, as louças em relevo da FSC estão representando
plantas que nunca foram cultivadas no Brasil, como o lúpulo, uma liana européia da família
das Cannabaceae, utilizada para fabricação de cerveja, semelhante ao padrão importado,
produzido a partir dos anos 1860, cuja associação com o triga é conhecida como “Wheat and
Hops” (SUSSMAN 1985: 41) – quem decodificaria este signo? Atualmente, o lúpulo é
produzido, em São Paulo, apenas em Barra do Turvo, Hortolândia e Santa Branca (CATI
2009). O Brasil Império recebeu exemplares de lúpulo nas trocas de sementes do Ministério
de Negócios Exteriores pautado no discurso de integrar o país ao mundo de “nações
civilizadas” importando tecnologia e espécies que fossem úteis ao desenvolvimento da
agricultura nacional (SANT’ANNA & BOSISIO 2008: 6). Trigais e lúpulos dariam um ar de
modernidade e “civilização” às louças brasileiras, segundo um projeto de modernidade dos
Fagundes, Ranzini e Matarazzo?
Como os trigais são imagem “móveis” que figuram sobre um suporte igualmente
móvel, as cerâmicas, puderam “alcançar distâncias muito grandes, e ser observadas por
‘fruidores’ completamente alheios à sua significação original” (FRANCISCO 2007: 47).
Como as pessoas entenderiam esta decoração? Como ela foi traduzida para uma realidade
local? De certo, o trigo não tem a mesma carga política, social e simbólica que teve nos EUA
ou Europa onde, aliás, o padrão trigal é pouquíssimo conhecido, caracterizando uma
produção voltada para a exportação a consumidores na América (SUSSMAN 1985: 7)
29
. O
lúpulo nem existia no continente. Durante o século XIX, os maiores consumidores de louças
decoradas com motivos associados à colheita e ao campo eram a América do Norte, e a
produção em Staffordshire estava de olho nesta demanda, que relacionava a crescente
29
Cerâmicas inglesas produzidas para o mercado norte-americano diferiam quanto ao principal tema abordado
pelas decorações, entre 1790 e 1825, em relação às louças produzidas para consumo local na Inglaterra, as saber
motivos e cenas que giravam em torno do nacionalismo americano, imagens populares no país e mesmo
sentimentos anti-britânicos, apesar de uma semelhança nas formas e nos motivos florais e pastorais (NELSON
1980: 93).
339
popularidade dos trigais ao afluxo de agricultores para o oeste do continente (SOUSA 1998:
179). Quando os EUA estavam voltados para a produção de cereais, nos anos 1860, os
motivos trigais cresceram em popularidade (WHETERBEE 1985: 76) e os oleiros passaram a
estabelecer uma identidade com o produto, tornando-se consumidores em potencial (SOUSA
1998: 179). Seria possível falar de uma relação entre os motivos decorativos da FSC e o
background rural da maior parte dos trabalhadores?
A ata de inauguração da nova sede do Sindilouça, de meados dos anos 1930, ao
descrever a concorrência da produção brasileira com a louça do Japão e a louça inglesa,
chama atenção para uma decoração específica, segundo o documento, bastante comum no
Rio de Janeiro, chamada “espiga de trigo”, ou seja, o arqueológico “Trigal”. “Espiga de
trigo” é uma clara “adaptação da compreensão das imagens a um conjunto de referências
locais” (FRANCISCO 2007: 47) e indica que esquemas classificatórios êmicos e éticos não
expressam necessariamente a mesma coisa (WÜST 1999: 315). “Ceres” conota realidades
clássicas greco-romanas cujas imagens têm muito mais a ver com um século XVIII europeu
do que com uma realidade brasileira do século XX; a espiga, enquanto representação de um
alimento, num país eminentemente agrícola como o Brasil, tem relação muito mais intrínseca
com o padrão do que a deusa romana da colheita. Além disso, enquanto em português a
referência é a da espiga de trigo, não há um correspondente, no universo cerâmico, em inglês,
a wheatear, um fruto, portanto, da relação entre oralidade e figuração.
Segundo Braudel, junto do milho e do arroz, o trigo foi uma das plantas que organizou
“a vida material e por vezes psíquica dos homens muito em profundidade, a ponto de se
tornarem estruturas mais ou menos irreversíveis”. No Brasil, o trigo, triticum aestivum,
enfrentou culturais rivais como o milho e a mandioca e se implantou somente com a
valorização da alimentação e dos hábitos dos imigrantes que aqui chegavam (SANTOS 1995:
137). A partir de meados do século XIX houve uma campanha em defesa do trigo, em
detrimento do milho, encarado, por vezes, como um subcereal”, seguido do incentivo do
governo a atividades industriais, no âmbito desta produção, com a imposição do
estabelecimento de moinhos. O trigo, desde então, esteve no meio dos conflitos em torno das
carestias de alimento e do o. Quando as fábricas brasileiras iniciam a produção de
decorações com motivos trigais é o momento em que a produção de trigo passa a ser
efetivamente incrementada no país (pós-I Guerra Mundial), com restrição às importações
(SILVA 1992: 30).
340
Os motivos das louças encontradas no sítio Petybon, portanto, dialogam com uma
conjuntura, nas artes e na sociedade, de mudanças em relação ao campo, pressupondo sempre
que todo o estilo tem um referente social e histórico (WIESSNER 1991). Fica claro, na soma
de motivos e padrões decorativos, associados às técnicas de aplicação, bastante artesanais,
que a temática adotada pela brica é a do bucólico e do campestre. Frutos, flores, ramos,
gavinhas, guirlandas, lírios, pontos, faixas e frisos, o todas decorações bastante singelas e
simples, que caracterizam motivos variados que, agregados, caracterizam um tema: o
bucólico ou daquilo que se entende por bucólico”, como se perguntou Raymond Williams
(1989: 26).
Esta primeira metade de século XX é um momento de intenso êxodo rural e de
migração de camponeses para a cidade. Passa a existir, assim, uma nova relação com o
campo, uma vez que o campo vai à cidade. Pergunto-me se não procede o pensamento
inverso de que houve uma ruralização da cidade e não, necessariamente, uma urbanização do
campo ou uma urbanização dos hábitos daqueles camponeses que migraram para a urbs. Num
país ainda eminentemente rural, como o Brasil, da primeira metade do século XX, qual o
papel de todas essas pessoas campesinas na determinação de demandas e produções? Temas
associados ao bucólico estariam relacionados a um background cultural rural?
Decorar o bucólico nas louças em faiança fina chega a ser paradoxal num mundo onde
o conceito de modernidade engendra diversos discursos e pauta variados projetos para a
cidade de São Paulo. No mundo das fábricas e da industrialização, qual o espaço para o
bucólico? Talvez faça sentido pensar naquilo que De Decca (1999: 308) chamou de
“modernização conservadora” na qual, apesar de novas matérias primas, velhas formas e
decorações mais tradicionais perduraram. Pode-se pensar também que a decoração das louças
soa como uma resistência ao mundo moderno de um cosmopolitismo industrializado, ao
emparedamento sufocante da cidade. Ou ainda que o tema do bucólico dialoga com a nova
relação da cidade com a natureza neste começo de século XX, utilizada em diversos discursos
identitários (ainda mais se considerarmos o uso de plantas nativas nas representações). Talvez
os florais das louças não sejam necessariamente paradoxais se pensarmos que a São Paulo da
época era esse campo-cidade ou um rururbano-urbano na qual os elementos da vida rural
ainda estavam presentes e constituíam e faziam sentido dentro da modernidade que se
conformava. Campo e cidade são uma questão de perspectiva (WILLIAMS 1989: 21).
O bucólico nas louças da Santa Catharina eclode juntamente com as novas relações
com o campo que, se por um lado é combatido por alguns projetos de modernidade que
341
procurar extirpar o arcaico e o tradicional ligado ao campestre, por outro lado ressalta no
campo e na natureza bucólica uma identidade nacional. Este é o momento de conformação do
Jeca Tatu, por exemplo, mas também da conformação do Departamento de Cultura de São
Paulo, quando Braudel, Lévi-Strauss e Mário de Andrade saem pelo interior do Estado na
busca do nacional (RAFFAINI 1991).
É redundante, no momento, voltar à idéia de que as louças da Fábrica Santa Catharina
possuem uma especificidade. Todo meu discurso está sendo pautado na idéia de mostrar e
ressaltas as diferenças e particularidades destas louças em relação às louças estrangeiras que
abundam nos sítios arqueológicos históricos. Quando Francisco Salles Vicente de Azevedo,
presidente do SINDILOUÇA, em 1947, afirma haver traços semelhantes entre todos os
estabelecimentos fabris no estado de São Paulo, ele quer dizer que foram fundados e
orientados, desde seus primeiros anos de existência, por muitos técnicos e operários,
procedentes da região milanesa e que sorveram seus conhecimentos numa mesma fonte; isto
permitiria uma generalização no sentido sítio Petybon/ Fábrica Santa Catharina louças
brasileiras em faiança fina. Se necessário fosse apontar alguma fonte de inspiração,
consciente, para a indústria de cerâmica brasileira, neste começo de culo, eu diria que a
Itália e a indústria italiana, muito mais que a Inglaterra, esteve bastante presente. Com isto
não ignoro o peso das loas inglesas na formação de um imaginário, como comentei, em
torno do que se entendia como louça branca. Mas a louça brasileira é mais: é uma soma de
conjunturas brasileiras, de lapeanos antigos, de imigrantes dos mais diversos locais, de donos,
proprietários e consumidores com gostos diversos que, no final, acabaram colaborando para a
conformação de aspectos a partir dos quais foi possível determinar: isto é louça nacional.
Afinal, decorar, etimologicamente, implica em gravar, de alguma forma, uma informação
adquirida.
Por isso, dizer que um floral brasileiro “imita” um peasant style é limitar
demasiadamente o olhar sobre estes artefatos e toda a dinâmica que possibilitou sua
existência e o início de sua produção em São Paulo. Como disse Quatremère de Quincy
(2004: 93), em 1823, todo tipo de imitação produz semelhanças, mas “se toda imitação
produz semelhança, nem toda semelhança é necessariamente um produto da imitação”. Se os
florais se assemelham, não quer dizer que foi uma tentativa de cópia ou imitação (ou mesmo
emulação). É interessante ressaltar que tudo que aponta para uma imitação da louça brasileira
em relação à inglesa é pautado na decoração, muito mais do que no objeto, na forma, em si.
Por que produzir louça branca, tigelas, terrinas, xícaras, penicos, também o seria
342
“imitação”? Para Quincy (2004: 94), repetições orgânicas ou mecânicas não despertam em
nós a idéia de semelhança ou imitação, justamente porque lhes falta o que constitui a
condição primeira da imitação: a imagem. Mas, se pergunta Quincy, a idéia de semelhança
implica não haver diferenças? Não, porque se esta fosse a definição de semelhança, se
conseguiria com isso provar que não existe. A semelhança opera sua confusão na desatenção;
vistas mais de perto ou examinadas com cuidado, todas as coisas o apresentar variedades
muito grandes nem as folhas, de uma mesma árvore, seriam inteiramente semelhantes.
Assim, a idéia de uma semelhança total e absoluta passa a ser uma abstração ou uma
“quimera da realidade” (QUINCY 2004: 98). Com este pressupostos, analisei as decorações
do sítio Petybon e montei uma planilha de análise com atributos que apontassem para este
fim.
Tanto é original que a louça brasileira conforma-se em consonância com uma
conjuntura nacional específica, especialmente no campo das artes. Refiro-me às expressões
Art Nouveau no país e a arte moderna do final do século XIX e principalmente das primeiras
décadas do século XX. Por isso, junto dos motivos florais, do tema bucólico e da associação
com o campo e o rural, deste diálogo com os projetos de modernidade pensados para a
cidade, é relevante abrir um parêntese para discorrer rapidamente sobre a técnica do estêncil,
que nos ajuda a pensar a relação entre o estilo que caracteriza a FSC e um referencial social e
histórico no qual se insere.
O uso do estêncil vai muito de encontro à sensação de fractais formas geométricas
de dimensão fracionária bastante usados pelo Art Nouveau. É interessante pensar que o
momento de associação entre o estêncil e expressão visual fractal é justamente o momento de
constituição da teoria da geometria de fractais, no final do século XIX e início do século XX,
apesar do termo ter sido cunhado apenas nos anos 1970. O estêncil e uma nova linguagem
geométrica que lembra certa fractalidade são, justamente, frutos de novas relações entre
estética e técnica, entre imaginação artística, invenção científica e experimentação
tecnológica. No estêncil fractalizado, os fragmentos o ordem a um caos de formas
geometrizadas; a fractalidade repousa justamente num princípio de interação com a repetição
de um mesmo motivo em escalas espaciais diferentes (LINS 1999: 266). Claro que o uso de
estêncil o implica, necessariamente, a formação de imagens fractalizadas. O estêncil
possibilita a aplicação de padrões, de espaços seqüenciais, caracterizando-se como um craft
básico utilizado por qualquer um, mesmo sem saber desenhar ou pintar. A aplicação da
técnica também é bastante rápida, sedutora a uma cadeia produtiva fabril. Esta técnica,
343
portanto, implicaria no uso de trabalhadores, na Santa Catharina, muito menos qualificados,
em termos de pintura, do que aqueles necessários às decorações florais ou pintadas à mão
livre.
É interessante perceber também que ao mesmo tempo em que as fábricas brasileiras
estão utilizando o estêncil em suas decorações, o movimento de arte abstrata do
Construtivismo, após a década de 1910, começa a se utilizar de propriedades abstratas de
superfícies pictóricas, da construção, da linha e da cor, relacionando arte e produção fabril e
industrial, tirando proveito de meios técnicos de reprodução como o estêncil, em tipografias
com cores uniformes e formatos simples (MARTÍNEZ 2005: 4). No século XX é criada a
serigrafia, tipo de gravura a cores baseadas no princípio do estêncil e que permite a
reprodutibilidade de uma mesma imagem-matriz (FREITAS 2005: 95) e depois o muito
popular silkscreen. O movimento conhecido como Stencil Art destaca-se, nos anos 1930,
dentre correntes modernistas da École de Paris (SPINELLI 2001). O estêncil também está
associado a um mundo urbano e à cidade, ao cosmopolitismo e suas tensões sociais,
expressas na arte através dos grafitti, por exemplo.
Sítio Peybon Sítio Peybon Sítio Peybon
Sítio Peybon
Sítio Peybon Sítio Peybon
Sítio Peybon Sítio Peybon Sítio Peybon
344
Proponho, assim, que exista uma correspondência estética entre as decorações das
louças analisadas e a expressão típica do espírito modernista denominado Art Nouveau.
Acredito haver, portanto, dinâmicas entre as artes decorativas e o mundo artístico, e seus
movimentos e escolas, assim como seus contextos históricos de inserção. Watney (1972)
traçou a relação entre os temas e motivos de gravuras produzidas pelas artes no século XVIII
e a origem de alguns designs das louças inglesas. O momento de emergência de motivos
chineses e do Chinoiserie, na louça branca, por exemplo, é também, o momento no qual o
interesse pela China começa a crescer, por volta de 1750 – até ser condenada pelo iluminismo
europeu nos anos de 1840 (BERNAL 1994: 240) e da conformação, nas artes, do termo
“chinoiserie”, a interpretação européia de temas chineses (SAMFORD 1997: 7).
Independente das variações de tempo e espaço, o Art Nouveau tem certas
características constantes como a temática naturalista (florais e animais), a morfologia de
arabescos lineares e cromáticos, a cor e a preferência pelos ritmos baseados na curva e suas
variantes (volutas, espirais) (ARGAN 2004: 199). Ritmo este composto pela própria fluidez
associada a decorações aquareladas, como comentei anteriormente. Existe, assim, um
Xícara em faiança fina de produção
nacional: decoração fractalizada.
Escavações na Quadra 090, bairro
da Luz, São Paulo (ZANETTINI
ARQUEOLOGIA 2009).
Pratos de sobremesa em faiança
fina de produção nacional:
decoração fractalizada. Sítio
Instituto Bom Pastor (ZANETTINI
ARQUEOLOGIA 2004).
Tigela em faiança fina de
produção nacional: decoração
fractalizada. Sítio Instituto Bom
Pastor (ZANETTINI
ARQUEOLOGIA 2004).
Prato em faiança fina de produção
nacional representando frutas. Sítio
Instituto Bom Pastor (ZANETTINI
ARQUEOLOGIA 2004).
345
repertório de temas e motivos no começo do século XX que, de modo mais geral, pode ser
comparado tanto na arquitetura, como na pintura, e mesmo nas pinturas das louças, que eram
comuns às mais variadas pessoas que compartilhavam a dinâmica do cotidiano na cidade. São
circulações de idéias e imagens de outros espaços reelaboradas de formas particulares,
adaptadas segundo idiossincrasias (CAPELATO 2005: 252). Por isso semelhança quando
olhamos para alguns aspectos da arquitetura eclética e a decoração das loas, por exemplo.
As imagens abaixo mostram a semelhança entre as louças que denominei de “arabescos”, um
balaústre de escada típico do Art Nouveau, em Bruxelas, e os detalhes de uma das escadarias
da Estação da Luz, construída no início do século XX, em São Paulo.
Seria interessante pensar, igualmente, que as decorações das louças estariam de
acordo com uma ideologia modernista que se opõe “à tétrica desolação das cidades
deturpadas pela nascente industrialização” (ARGAN 2004: 189). Segundo Argan (2004:
202), o uso de temas como os da primavera e da floração explicar-se-ia pela rápida ascensão
da tecnologia industrial, que dialogam com o que o moderno prezava por liberdade
expressiva, da criatividade, da poesia e da juventude. Muitos dos arquitetos modernistas, por
exemplo, consideravam a cidade o local da vida, e à arte caberia torná-la agradável, moderna,
alegre. O estilo floreal, do Art Nouveau, objetivava revestir a cidade “com sua ornamentação
alastrante como uma trepadeira, convertê-la numa segunda natureza” (ARGAN 2004: 189).
Muitos dos técnicos decoradores italianos da Fábrica, por exemplo, vieram de Laveno-
Mombello onde o Stile Floreale ficou bastante conhecido. As comunicações e novas
Victor Horta,
Balaústre da escada
da Casa Solvay (1894-9) em
Bruxelas (ARGAN 2004: 201)
Fragmento de tigela com
decoração em arabescos,
sítio Petybon (Coleção
IPHAN)
Detalhe de voluta da Estação da Luz,
São Paulo (Foto: Ana Laura Azevedo)
346
tecnologias trouxeram à tona, a partir do final do século XIX, a vida natural de todo o mundo,
de modo nunca antes possível (GREENHALGH 2000: 55) e a natureza, aqui lida a partir do
bucólico, passou a ser tema de inspiração.
Tudo isto parece ter criando uma demanda pela temática ou por uma estética do
bucólico e do campo na performance visual das cerâmicas da FSC. Como lembra Alarcão
(1995), a decoração, como forma de linguagem, signo transmissor de mensagens,
polissêmico, é suscetível de modulação ou de modular uma reação, não necessariamente
intencionais. Estas decorações remetiam a qualquer coisa que não são, também enquanto
signo ou sinal (ALARCÃO 1995): não eram flores empíricas mas remetiam a, remetiam ao
campo e ao rural. A partir de um corpus de conhecimento relativo à tecnologia de produção
de artefatos cerâmicos, oleiros e oleiras criaram decorações adequadas às novas demandas
(ZANETTINI 2005: 318) da sociedade industrial urbana paulistana.
Toda a variabilidade decorativa da coleção associa-se a necessidades de favorecer
uma melhor performance visual destes artefatos, quando consumidores geraram demandas
por vasilhames que tivessem aspectos agradáveis aos padrões da sociedade regional
(ZANETTINI 2005: 337). Por outro lado, fabricantes planejaram, a partir das louças, com
base em suas visões de modernidade, mudanças na sociedade pautando-se na produção de
decorações que dialogavam com gostos e aspectos da estética das artes plásticas e da
arquitetura moderna, em contraposição ao que se considerava colonial e que se deveria
extirpar. Segundo provável determinação de técnicos e proprietários da Fábrica, decoraram as
louças com temas e motivos associados ao campo, aos florais, ao bucólico, ao primaveril, etc.
Dentro destes limites, existiu uma gama ilimitada de representação de flores e outros
elementos, especialmente no que concerne às decorações em superfícies não-modificadas,
variantes de acordo com padrões mentais estabelecidos criados por efeitos visuais resultantes
dos modos como ações foram exercidas sobre instrumentos que alteraram a superfície dos
objetos cerâmicos (SCATAMACCHIA 2005: 9).
347
SUB-CAPÍTULO 4.3
AS LOUÇAS NA PUBLICIDADE DOS PERIÓDICOS O ESTADO DE SÃO PAULO E
O CORREIO PAULISTANO
Despedindo-se, o velho Albernaz corria aos armazéns, às
lojas de louça, comprava mais pratos, mais compoteiras, um
centro de mesa, porque a festa devia ser imponente e ter um
ar de abundância e riqueza que traduzisse o seu grande
contentamento (Lima Barreto O Triste Fim de Policarpo
Quaresma, 1915)
Ao estudar a cultura material no que concerne às louças brancas, não deixei de
submergir nas demais fontes que giram em torno deste tipo de material, que o estudo da
cultura material não é apenas a análise das fontes materiais, mas igualmente de “todas
aquelas que possibilitem a compreensão de universos materiais” (BARBUY 2006: 24).
Recorri às publicidades de periódicos que circularam na cidade de São Paulo durante o
período de funcionamento da Fábrica Santa Catharina, quando as novas mídias e veículos de
comunicação em massa se fizeram cada vez mais presentes: cartazes, revistas ilustradas,
periódicos, etc. Foi possível realizar, assim, alguns apontamentos em torno de como a louça
foi representada pela publicidade, assim como onde estava sendo comercializada e a que
valores. Com isto, a publicidade me transportou para outro contexto geográfico: saindo dos
subúrbios e da zona rural e periurbana do bairro da Lapa, fui levado ao centro velho da
cidade, ao comércio pulsante que se estabelecida na região outrora conhecida como
Triângulo. São justamente as lojas estabelecidas na área do Triângulo que passam a investir
na publicidade, que vai ganhando novas formas através de um grande número de anúncios em
jornais, gradativamente mais ilustrados, reflexo do sistema capitalista de
produção/propaganda/consumo que se fez sentir na cidade por volta dos anos 1850
(BARBUY 2006: 77). É na virada do século XIX para o XX que as transformações
expressivas no campo econômico em São Paulo foram marcadas pela diversidade de
investimentos, ampliação do mecado consumidor e pela popularização do uso de produtos
industrializados, pricipalmente de utilidades domésticas (PETRATTI-TEIXEIRA 2004: 307).
Por trás das publicidades analisadas, não se pode esquecer da presença de ideologias e
posturas da imprensa. Para Maria Helena Capelato, a imprensa paulista externava com
desagrado a consciência do atraso material do nosso país não poupando comparações com as
sociedades tidas como mais desenvolvidas, “esforçando-se para compreender a situação do
Brasil e sugerir medidas que eliminassem os entraves ao progresso. Porque o progresso
material foi sempre interpretado como condições primeiras para superar-se o atraso e elevar o
348
país a grande potência mundial” (CAPELATO 1989: 29). Aliando-se a um projeto de
modernidade, a publicidade, como discurso pretensamente homogeizador, entrava em
confronto com diversidade das práticas cotidianas (PADILHA 2001: 22). Tal qual o cinema e
a fotografia, junto das quais teve expansão simultânea, a publicidade surgia como uma forma
de comunicação própria das cidades modernas, relacionada à metropolização que
transformou significativamente a vida na cidade, ao rápido crescimento populacional, novas
relações de trabalho e reordenações de espaços (PADILHA 2001: 66).
Para Padilha, a publicidade surgia como “experiência forjada”, eficiente diante dos
aspectos inusitados do contexto urbano; tornava-se o veículo de uma infinidade de
informações que, circulando no espaço público “faziam parte daquilo que consubstanciava a
subjetividade do homem urbano, moldada mesmo no afrontamento ininterrupto entre
idealizações e a concretude do dia-a-dia que se destrinçava, finalmente, nos arranjos da vida
cotidiana” (PADILHA 2001: 25). No contexto de mudanças em padrões de vida, como foi o
começo do século, a publicidade, para a autora, desempenhou papel importante na
consolidação de status e valores de referência ao divulgar e consolidar comportamentos e
certa domesticação de gostos e costumes (PADILHA 2001: 26), desempenhando papel que ia
de encontro às ganas de legitimação do projeto civilizador das elites paulistanas. Não
obstante um discurso homogeneizador, a publicidade teve relevância na urbanização de São
Paulo não por uma atuação normativa esmagadora, mas por estabelecer com o publico
relações circulares, de influência mútua e troca de informações entre a produção e o consumo
nos anúncios. “O caráter normativo ou ideológico das representações criadas na publicidade é
sempre filtrado pelo uso que delas fazem os consumidores” (PADILHA 2001: 28).
Com estes pressupostos, construí um corpus de publicidades nas quais referências às
louças acontecessem, tentando formular questionamentos sobre como esse produto aparece e
é tratado em alguns periódicos do começo do século XX. Ressalto que, para a análise das
imagens de louças, utilizo o conceito de representação de Roger Chartier (1991), assim como
o pressuposto de Starobinski, segundo o qual, no que concerne a imagens, pinturas e a arte,
por longo tempo ainda usam-se “formas herdadas no momento mesmo em que se deseja
proclamar a decadência do mundo antigo” (1989: 17-18). É lógico, portanto, que uma
imagem será resultado de pensamentos anteriores a ela, uma confluência de símbolos e
pensamentos estabelecidos anteriormente (STAROBINSKI 1989). Ela, no entanto, nunca
deve ser lida mimeticamente como a aparência de uma realidade (BHABA 2007: 85); por
349
isso, as imagens de louças são o que Bhaba chama representações fendidas”, que tornam
presente algo ausente – não são as louças, mas são representações das mesmas.
Por outro lado, esclareço que mesmo que haja um discurso de “caça” ao colonial, à
tradição, não quer dizer que isto ocorresse no mundo empírico e acho que muito dessas
representações de louças nas publicidades são devedoras de um imaginário coletivo sobre a
louça branca, que ainda circulava, e que tinha muito a ver em como esta foi sendo construída
e interpretada, pelo menos durante os últimos anos do século XIX.
Inspiro-me igualmente nas sugestões de abordagens relacionadas a iconografias de
Helena Barbuy (2006: 26), para a qual esta pode ser usada como “veículo de representações
sociais”. Por isso, pressuponho que as publicidades aqui apresentadas possuem um discurso,
por vezes bastante claro, por vezes paradoxal ou truncado, pautado em diversos projetos de
modernidade pensados pela elite paulistana e no diálogo com o mundo do consumo e da
produção.
Para tal, elenquei dois jornais, com publicação ininterrupta entre 1913 e 1937: O
Estado de São Paulo e O Correio Paulistano. Quando dei início a leitura dos documentos,
meu objetivo era encontrar publicidades de louças brasileiras em jornais, assim como tem-se
para louças estrangeiras no século XIX e XX. O resultado foi oposto. Não propagandas de
louças brasileiras (ou pelo menos que denotem ou indiquem uma nacionalidade da produção)
nos periódicos em questão, o que me fez ampliar o olhar e tentar pensar no porque deste
vazio e como as louças, seriam encaradas por veículos de comunicação sabidamente elitistas,
durante o período de funcionamento da Fábrica Santa Catharina.
É comum um clichê de anúncio ser veiculado durante meses, às vezes anos, somente
para estar presente na mídia ou fazer média com o proprietário do jornal, não raro um
conterrâneo político (CADENA 2001: 37). Como uma das características das publicidades
em periódicos, nessa época, era, justamente, esta perenidade e pouca variabilidade, elenquei
alguns anos sobre os quais me debrucei para a investigação. Assim, para O Estado de São
Paulo, levantei 88 publicidades, lendo os jornais dos anos 1913, 1915, 1918, 1922, 1926,
1933, 1935 e 1937; para O Correio Paulistano, levantei 69 publicidades, lendo os anos
1913, 1915, 1918, 1922, 1925, 1928, 1930, 1934 e 1937.
Importante ressaltar que é no final do século XIX que se aprimoram os veículos de
comunicação, com a técnica da fotogravura, o boom das revistas ilustradas e o processo de
cromotipia (CADENA 2001: 12). Somente no final dos anos 1920 a imagem ganha
relevância, ao mesmo tempo em que tem início o fim dos anúncios a traço. O período entre os
350
anos 1920 e 1930 é marcado pela afinidade entre anúncios, propagandas e os ventos
reformistas” da Semana de Arte Moderna de 1922, quando o consumidor é estimulado a
adquirir produtos importados para seu conforto e decoração do lar (CADENA 2001: 36).
Além disso, se desde 1850 a grande maioria dos anúncios provinha da Indústria
Farmacêutica, a partir do começo do século XX os alimentos e as bebidas foram ganhando
espaço como grandes novidades, e muito da publicidade em torno da louça insere-se nessa
dinâmica. Para a nova estética cosmopolita” que se introduzia na cidade, a publicidade
comercial era um exemplo que se expandia, acompanhado os projetos urbanísticos, a
arquitetura dos edifícios, o surgimento e organização das vitrines e as exposições especiais
dentro das lojas (BARBUY 2006: 24).
No Brasil, a imprensa conquista as ruas no início do século XX a partir da venda
avulsa, que, no século XIX, sua venda estava veiculada a postos fixos em livrarias ou nas
próprias redações (JANOVITCH 2003: 216). Do mesmo modo, no século XIX poucos eram
os assinantes de periódicos fora do centro urbano, aspecto que muda a partir do século
seguinte. Soma-se a ampliação do público leitor ou do público atingido pela divulgação de
notícias e publicidades pela mídia impressa, a chegada do trem, dos bondes, as melhorias no
correio e a venda dos jornais pelas ruas da cidade.
Por fim, no que concerne a um aspecto metodológico, dois pontos devem ser
esclarecidos. O primeiro é que classifiquei a publicidade organizando-a segundo três grandes
grupos: 1º) onde existe referência escrita a louças (ou palavras que denotem louças), 2º)
quando imagem de produto de louça e esta é o foco do anúncio, ) quando uma
imagem de louça, mas ela não é o foco do anúncio. Analisei, igualmente, formas e padrões
decorativos nas imagens, assim como terminologias e nomes que os objetos em louça branca
ganhavam na publicidade. Outro ponto importante é que enquanto representações das louças,
as imagens muitas vezes não são de todo claras. No entanto, após a consulta a diversos
jornais, percebi que existe um partido para a representação dos recipientes feitos em cerâmica
branca e, em geral, coletei as imagens e anúncios com figuração do que seriam louças por
pressupostos negativos, ou seja, daquilo que a louça não era: a) diferente das representações
de objetos de vidro, nunca são transparentes; b) diferente dos metais, nunca são cinza ou com
reflexo.
351
O Estado de São Paulo
O Estado de São Paulo é um periódico, que existe hoje, fundado sob os ideais dos
grupos republicanos em janeiro de 1875, quando ainda chamava-se A Província de São
Paulo, nome que conservou adezembro de 1889. Quando o então redator-chefe, Francisco
Rangel Pestana, se afastou para trabalhar no projeto da Constituição, em Petrópolis, Julio
Mesquita assumiu efetivamente a direção do Estado e deu início a uma rie de inovações.
Ao final do século XIX, o Estado era o maior jornal de São Paulo, superando O Correio
Paulistano. Propriedade exclusiva da família Mesquita a partir de 1902, o Estado apoiou a
causa aliada na Primeira Guerra Mundial, sofrendo represália da comunidade alemã na
cidade, que retirou todos os anúncios do jornal – daí os anúncios da Casa Allemã aparecerem,
em minha amostra, somente a partir de 1926. Mesmo assim, Mesquita manteve a posição de
seu diário. Em 1930, O Estado, ligado ao Partido Democrático, apoiou a candidatura de
Getúlio Vargas pela Aliança Liberal. Vargas foi derrotado nas eleições, mas assumiu o poder
com a Revolução de 30, saudada pelo jornal como um marco do fim de um sistema
oligárquico. O chamado Grupo do Estado assumiu em 1932 a liderança da revolução
constitucionalista e, com sua derrota, boa parte da diretoria foi enviada ao exílio.
A ligação de Júlio de Mesquita com os EUA corresponde à proximidade, cada vez
maior, do Brasil com o mundo anglo-americano, impulsionado por um domínio economico
capitalista, pela circulação de mercadorias e de imagens publicitárias (BARBUY 2006: 24).
Julio de Mesquita Filho foi um grande admirador do país, sugerindo identidades de
comportamento entre paulistas e saxões norte-americanos, mostrando-se favorável à imitação
Representação de um serviço de
“louça fina”. Anúncio dos
produtos da Joalheria Worms. O
Correio Paulistano, 21/12/1937.
Representação de um copo de
vidro (nota-se a transparência).
Anúncio do creme dental Royal
Briar. O Correio Paulistano,
19/02/1937
Representação de produtos de
metal. Anúncio dos metais Gloria
da Casa Bento Loeb. O Estado de
São Paulo, 08/10/1910
352
do modelo norte-americano em varios aspectos (CAPELATO 1989). Muito da publicidade
d’O Estado de São Paulo é devedora desta postura. A forma de explicitar preços e as
abordagens nas publicidades aproximam-se mais da publicidade americana do que da
gaulesa. O modelo americano de um apelo à vida moderna pautada no consumo é percebido
na maior parte das posturas das publicidades analisadas nesta dissertação.
A leitura dos periódicos permitiu sanar algumas lacunas: quem estava ofertando
produtos de louça em São Paulo entre os anos de 1910 e 1937? Para a cidade, segundo
Carvalho (1999: 96), a primeira referência a uma loja de louça recua a 1822, num armazém
em frente a rua do Colégio, na qual vendiam-se pratos e tigelas de pó-de-pedra. São vários os
almanaques em que consta a venda, em armazéns, de louças e molhados, nos quais vendiam-
se também talheres, brinquedos, objetos de cozinha. Em 1886, por exemplo, o Grande
Empório da Luz comercializava máquinas de costura, serviços de metal, arados para lavoura,
bules, açucareiros, pratos, sopeiras, xícaras, etc. (CARVALHO 1999: 97). Para o autor, até
meados do século XIX, os anúncio de louça não faziam nenhuma distinção sobre tipos de
louça, citando apenas a venda das peças. Mas com as últimas décadas do século, aparecem as
primeiras lojas de “louças finas”, referindo-se, provavelmente, a faianças finas e porcelanas,
termo que se contraporia às faianças portuguesas, com menor destreza no acabamento
(CARVALHO 1999: 99). Desde finais do século XVIII, as lojas de louça passaram a instalar-
se na rua do Comércio, e com a expansão comercial, as ruas do Triângulo passaram a ser
ocupadas.
Na cidade de São Paulo, do começo do século XX variados eram os lugares onde a
louça era comercializada: joalherias, armazéns, lojas de roupa ou nas chamadas “casas de
louça”, com uma abordagem comercial mais especializada. Em Os Condenados, por
exemplo, romance de Oswald de Andrade, de 1922, a personagem Alma, no bordel, relembra
os tempos anteriores a Mauro: “Os poucos que a haviam conhecido nos bons tempos, quando
o avô Lucas, depois de fechar a sua casa de louças, fora cinco anos gerente de uma grande
firma, na Ladeira João Alfredo” (1970: 54).
Neste período de século XX, as lojas que comercializavam louças, cujas informações
estão nas publicidades do Estado, eram:
353
Anunciante Logradouro
Casa Alemã
Rua Direita, 16-20
Casa Francesa L. Grumbach Ltda
Rua São Bento, 69; Rua Libero Badaró, 5
Casa Michel
Rua 15 de Novembro, 25-27
Casa Hasson
Rua Direita, 39A
Almeida Silva & Cia
Rua General Carneiro, 13-15
O Japão em São Paulo - Fujisaki & Comp.
Rua São Bento, 68A
Casa Carvalho Filho
Rua Direita, 31; Rua São Bento, 23
Casa Edison
Rua 15 de Novembro, 55
Mappin & Webb
Rua 15 de Novembro, 28
Casa Lebre
Rua Direita, 6; Avenida São João, 185
K.ITO Importador de Louças
Rua Brigadeiro Tobias, 17A
Casa Brasil
Rua Sebastião Pereira, 36-38
Hachiya, Irmãos & Cia
Rua Brigadeiro Tobias, 684-688
Mappin Stores
Casa Porcelana
Avenida São João, 304
Casa São João
Rua Líbero Badaró, 370
São lojas que se concentram na região do Trângulo, o coração comercial da cidade,
delimitado pelas ruas 15 de Novembro, Direita e São Bento. Para Barbuy (2006), o Triângulo
paulistano representou o comércio como uma atividade propulsora e dinamizadora dos modos
de urbanização levados a cabo na e pela cidade. Até o começo do século XX o comércio
paulistano, especialmente o de bens industrializados, concentrou-se no Triângulo, diferente
do comércio de víveres e das atividades fabris, empurrados para as áreas mais periféricas. A
expansão da área comercial se deu com a expansão do Triângulo e com as reformas urbanas
que resultaram, por exemplo, na demolição de quarteirões inteiros na ou no alargamento
da rua Libero Badaró (BARBUY 2006: 29).
Para a autora, em São Paulo,o comércio nao constituiu um sistema para circulação e
consumo apenas de produtos locais, fossem artesanais ou industriais, mas também ... de
produtos estrangeiros” (BARBUY 2006: 28); deste modo, o raciocínio segundo o qual a
indústria antecede e impulsiona a expansão do comércio parece não se aplicar em torno de
alguns produtos, no caso paulistano, uma vez que seria a presença de variados artigos
354
forâneos oferecidos pelo comércio um dos impulsos ao desenvolvimento de indústrias locais
(BARBUY 2006: 28), criando uma demanda, por exemplo, para louças brancas,
conhecidas por um grande mercado consumidor e já com um público bastante grande no final
do século XIX.
As publicidades aqui estudadas referem-se às casas comerciais cuja própria
materialidade implicava nas noções de circulação e consumo de mercadorias, idéias, valores e
padrões a serem apreendidos pela perspectiva da cultura material (BARBUY 2006: 25). Este
comércio dialogava com o que Barbuy chamou de cidade-exposição”, no que as
preocupações urbanísticas e arquitetônicas, a exibição e a estética festiva, eram parte
intrínseca do urbanismo moderno. As ruas do Triângulo, por sua vez, eram “galerias de
exposição” com suas vitrines e cartazes. O comércio passou a ser organizado com fim de
estimular a apreciação visual e exibir a quantidade e variedade de coisas; o consumo seria
apenas um dos efeitos desencadeados, junto da qual a absorção de uma nova perspectiva de
mundo (“modernidade”) passava pelo exercício da observação visual dos objetos (BARBUY
2006: 78-79). As imagens de louças na publicidade, para mim, inserem-se neste contexto e
neste discurso. Basta saber como elas serão apropriadas na prática.
Mil novecentos e quatorze, ano seguinte ao início das publicidades aqui selecionadas,
delimita o ano de uma nova configuração do Triângulo, que sofreu reformas urbanas
resultantes, e resultados, de indícios de verticalização, novos planos arquitetônicos e reformas
de fachadas segundo normas que visavam aproximar o centro paulistano de alguns
parâmetros europeus, pautados, igualmente, nas teses higienistas de amplitude e circulação, e
no combate ao colonial, a taipa e aos resquícios materiais vistos como mais tradicionais. O
objetivo seria, através de novas edificações, projetar um modelo de modernidade pautado na
imponência de signos que representavam “novos tempos” da cidade, cosmopolita, suprimindo
as características provincianas e os vestígios do passado (BARBUY 2006: 101).
Assim, as casas comerciais que comercializavam louças brancas, cujos nomes obtive
através da publicidade, localizavam-se nesta região da cidade em edifícios com novos
formatos que não aqueles que muitas das casas possuíam na virada do século XIX para o XX.
Se, como mostrou Carvalho, poucas eram as lojas especializadas em louças no século XIX,
no século seguinte, surgiram comércios especializados em louças, como o “K.ITO
importador de louças” ou a “Casa Porcelana”. Cabe ainda tecer comentários sobre algumas
das lojas encontradas.
355
A Casa Lebre, por exemplo, foi instalada primeiramente, em 1858, num velho sobrado
pertencente ao Barão de Tietê (João Manoel da Silva), com a firma Lebre, Irmão e Cia, como
uma loja de ferragens. A rua XV de Novembro chamava-se, então, rua da Imperatriz. À
frente da firma estavam os irmãos João Lopes Lebre e Joaquim Lopes Lebre, o futuro conde
de São Joaquim e posterior fundador e primeiro presidente da Sociedade de Beneficência
Portuguesa. A pequena loja de ferragens transformou-se num estabelecimento comercial, a
Casa Lebre, que logo ganhou fama na cidade. Com a entrada de um novo sócio, Feliciano
Cerveira de Melo, o nome da firma proprietária da loja passou a ser Lebre, Irmão e Cia,
depois Lebre, Filho e Cia. Posteriormente o conde de São Joaquim afastou-se da sociedade,
deixando o lugar para o seu filho, Joaquim Lebre Filho. A razão social mudou para Lebre
Filho S.A, e depois, Mello, Sobrinho e Cia. A Casa Lebre oferecia uma gama enorme de
produtos como perfumes finos, brinquedos, artigos domésticos, louças, cristais, ferro
esmaltado, etc. Em 1906 o sobrado do barão de Tietê foi demolido para dar lugar a um
moderno prédio construído pelo engenheiro Eduardo Gonçalves inaugurado, como sede da
Casa Lebre, no ano seguinte.
Em fevereiro de 1915, com a retirada do sócio Augusto Cerveira de Mello, a firma
responsável pela Casa Lebre passou a chamar Mello, Filho e Sobrinho. Eram seus sócios
Feliciano Cerveira de Mello, Antonio Cerveira de Mello e Feliciano Lebre. A Casa Lebre
dispunha também de um refinado setor de lanches. Ali, o jornalista João Quadros Jr., no
começo dos anos 20, convenceu a um dos novos diretores da loja, Feliciano Lebre Mello, a
investir no ramo da exibição cinematográfica. Foi criada a firma Empresa Paulista de
Diversões que construiu o luxuoso Cine República, inaugurado em 1921. O novo negócio,
porém, não se mostrou rentável como se esperava e comentava-se que as vultosas quantias
investidas no cinema acabaram afetando as finanças da Casa Lebre até levá-la ao fechamento.
Entretanto, com a sua saída da sociedade da Casa Lebre, Joaquim Lopes Lebre Filho
continuou com a firma Lebre Filho & Cia, que também usava o nome de Casa Lebre. Esta
segunda Casa Lebre funcionou quase na frente da primeira, à rua XV de Novembro, esquina
com rua Anchieta, dedicada à fabricação e importação de ferragens e artigos de arame.
356
A Casa Francesa L. Grumach, aberta por Lazare Grumbach, correspondia a uma
forma corrente para denominar, na França, grandes armazens (depósitos), onde se estocavam
e comercializavam porcelanas e cristais em quantidade (BARBUY 2006: 150). Segundo
Barbuy (2006: 151), o produto mais prestigioso da Casa Franceza eram as porcelanas de
Limoges, e após período de prosperidade tornou-se “representante das pratas Christofle e dos
cristais Baccarat na cidade, além dos bronzes vidros, louças banais, filtros para água,
utensilios domésticos e artigos de fantasia em geral”.
A loja conhecida como “O Japão em São Paulo”, razão social Casa Fujisaki, foi
inaugurada em 1906, na rua São Bento, nº 58, comercializando produtos de fabricação
japonesa como lenços de seda, estampas para bordado, tecidos, chás, cerâmicas, peças em
bambu, leques, etc. Nos anos seguintes, abriu filiais em Salvador, Recife, Rio de Janeiro e
Buenos Aires. Nos primeiros anos da imigração japonesa no Brasil, as atividades das Casas
Fujisaki o se restringiam ao âmbito comercial, estendendo-se a servir, nos mais variados
aspectos, aos primeiros imigrantes, tanto que a casa passou a atuar como “consulado informal
do Japão” no Brasil. A Casa Fujisaki associa-se a todo um movimento indicativo do
estabelecimento das modas orientais na cidade (BARBUY 2006: 172).
É também esta a conjuntura do estabelecimento das lojas de departamentos em São
Paulo, que modificaram consideravelmente o cenário urbano, como, por exemplo, a Casa
Alemã, a Mappin & Webb e a Mappin Stores. A Casa Alemã, inaugurada em 1883, por
Daniel Hegdenreich, imigrante alemão que tornou-se empregado da loja de ferragens de João
Fischbacher na rua da Imperatriz. Relativamente uma casa comercial simples, no período, a
Casa Alemã abriu uma filial em Campinas em 1887, depois em Santos (1890), Ribeirão Preto
e Jaú (1912) e no Rio de Janeiro (1919). Apenas em 1893 a Casa Alemã mudou-se da Ladeira
Municipal para a rua Direita, 10-B, após incêncio, e em 1904 para a rua Direita, 16-18, “onde
fez edificar um prédio em moldes cosmopolitas, com enormes janelas de vidro cobrindo toda
a frente” (BARBUY 2006: 211). Depois de um novo incêncio em 1909, a Casa Ale
mudou-se novamente, desta vez para a rua XV de Novembro, 40 e, em seguida, para a rua
O Estado de São Paulo, 05/01/1918
357
Direita, 31, 33 e 37 (BARBUY 2006: 214). Inaugurou um novo edifício em dezembro de
1910, ainda maior que os anteriores, firmando-se como uma loja de departamentos segundo o
modelo europeu e americano.
Em 1912, a Mappin & Webb, da Inglaterra, chega a São Paulo, e no ano seguinte, em
novembro de 1913, ano de fundação da Santa Catharina, os irmãos ingleses Walter e Hebert
Mappin fundam a Mappin Stores, à rua XV de Novembro. Em 1919, a loja se mudou para a
praça do Patriarca e, em 1939, foi para a praça Ramos de Azevedo. Para Cadena (2001: 39), a
Mappin Stores, inovando em seu leiaute, no conceito de loja de departamento e, sobretudo, na
comunicação, atingiu seu público alvo, a elite paulistana, através de uma estratégia de mídia
sem precedentes. N’O Estado de São Paulo, por exemplo, o Mappin determinou uma posição
fixa no jornal, sempre o canto direito da sétima página, destacando-se como o único
estabelecimento de varejo a anunciar todos os dias. A partir de 1924, o Mappin diversificou-
se na mídia, buscando novos targets e, aos poucos, tornando-se popular, o que efetivamente
ocorre após os reflexos da crise de 1929 (CADENA 2001: 40).
No Estado, localizei um total de 88 anúncios, entre os anos de 1910 e 1937, que,
segundo as referências e representações de produtos de louça, distribuem-se segundo os
percentuais abaixo:
64%
24%
12%
Percentuais da presença de imagens ou informações
sobre louças nas publicidades d'O Estado de São Paulo
Quando há referências
escritas sobre produtos de
louça
Quando a imagem do
produto de louça e a louça
é o foco do anúncio
Quando imagem de
produto de louça, mas a
louça o é o foco do
anúncio
Existe, portanto, um claro predomínio de publicidade não figurativa, especificamente
oferecendo louças; por outro lado, algumas poucas propagandas contém louças como parte de
cenas representando um outro produto, quando a louça não é o foco do anúncio, mas está
358
representada; o que é bastante interessante uma vez que são representações que estão no
imaginário. Abaixo, exemplifico com as publicidades os três grupos dentro dos quais
organizei os dados:
,
Exemplo de publicidade na qual imagens de
louças representadas, mas o foco da mesma o os
discos vendidos na Casa Edison, e não as louças. O
Estado de São Paulo, 22/12/1913
Exemplo de publicidade na qual não imagens de
louças representadas, apesar de que o foco o as
próprias. O Estado de São Paulo, 09/11/1915
359
Quanto aos anúncios que não contém figuras, foi possível elencar diversos nomes
pelos quais a louça branca está sendo chamada no começo do século XX, relevantes se
formos pensar universos êmicos de classificações:
51%
2%
35%
10%
1%
1%
Quanto às denominações
porcellana / porcelana
meia-porcellana
louça
faiança
finas de de pedra
louças grosseiras
Exemplo de publicidade na qual imagens de
louças representadas e que elas são o foco (ou
um dos focos) da publicidade. O Estado de
São Paulo, 16/10/1928
360
Quanto às denominações, os termos muitas vezes parecem ser ambíguos. Existe um
claro predomínio da nomenclatura “porcellana”, que, acredito, não es se referindo
necessariamente a produtos de porcelana, como o entendemos na classificação arqueológica.
Até os dias de hoje, muitas pessoas chamam as louças brancas de porcelanas, independentes
de serem faianças finas ou porcelanatos, ironstones, etc. Talvez pelo status que isso dava,
talvez pelo fato de que faiança fina ou louça de pedra eram designação mais conhecidas
por fabricantes ou comerciantes do que por consumidores. Por isso pode-se concluir,
igualmente, que para o consumidor pouco importa a qualidade ou as características da pasta
cerâmica e sim seu apelo visual. Exemplo disso está no próprio nome de algumas bricas
brasileiras de louça branca, como a Porcelana Oxford, que produziu pratos em faiança fina.
Aparece algumas vezes o termo “meia-porcellana” ou 1/2 porcellana” que, segundo
Brancante (1981: 196), é uma designação “errônea” utilizada, a guisa de publicidades, em
geral pelo comércio, para designar a faiança fina (assim como o termo semi-porcelana”
ou”louça porcelanizada”).
Muito freqüentes também são os termos “faiança” e “faience” que acredito não
estarem designando faianças ibéricas, mas faianças finas, que mesmo atualmente vários
ceramistas chamam as faianças finas de faianças, inexistindo a separação que fazemos em
Arqueologia Histórica. O termo “finas de de pedra” aparece apenas uma vez num anúncio
de venda do “Manual do Fabricante de Louças” e é por estar incutido no universo ceramista,
um público consumidor especializado, que é utilizado.
Bellingieri (2004) chamou atenção para o fato de que somente a partir do final do
século XIX e no decorrer do século XX é que existe uma gradativa diferenciação entre os
O Estado de São Paulo
, 03/11/1926
361
termo “cerâmica”, “louça” e porcelana”. Foi possível notar, dentro do corpus de
publicidades investigado, que é apenas no final dos anos 1920 que as publicidades passam do
genérico “louça” para falar em “porcelanas” e “faianças”,
O termo “louça” (digo, louça dentro do universo cerâmico, porque eram também
chamadas louças as peças de metal esmaltado ou ágate, por exemplo), com base nas
publicidades, é um enorme guarda-chuva sob o qual estariam diversos tipos de pastas. No
entanto, tenho a impressão de que designava muito mais as faianças finas do que as
porcelanas, uma vez que existem diversos anúncios cujo enunciado é “Louças e Porcelanas”,
claramente não sendo, portanto, as mesmas coisas. Se a faiança fina poderia ser vendida
como porcelana, a porcelana e os porcelanatos não passavam como “louça”, ou seja, como
faiança fina.
O Estado de São Paulo, 01/04/1922
O Estado de São Paulo, 19/12/1933
O Estado de São Paulo, 15/11/1935
O termo louça, sabido bastante
genérico, designava, na mesma época, os
produtos de metal esmaltado ou ágate.
No caso, a referência é dos produtos de
uma fábrica nacional, a Fábrica Silex. O
Estado de São Paulo
,
09/10/1910
362
Dentro deste universo terminológico, são freqüentes às referências a “apparelhos de
chá”, “apparelhos de café”, “apparelhos de jantar”, serviços para c e café”. Quanto a
“serviço” é um termo, menos usado atualmente, cujo sinônimo é “conjunto de louças”. O
termo “aparelho” realmente aponta para a visão do conjunto de louças como uma máquina,
um conjunto de órgãos com total e intrínseca coerência interna, cada qual com seu papel para
que o todo não fosse prejudicado; como se as louças, unidas em conjunto, criassem uma
agência cujo papel seria “executar um trabalho ou prestar um serviço”. Segundo Büchler
(2004: 7), o aparelho é uma família formal, “composta por rios elementos, todos exibindo
traço físico que os une”. Quando se vende um aparelho, no entanto, o preço parece ser algo
bastante alto, num primeiro momento, mas isto ocorre porque o aparelho é um conjunto de
louças, com inúmeras peças. Se o conjunto parece caro, cada peça individualmente passa a
ser mais baratas do que aquelas no varejo, pelo menos nas publicidades que consultei.
Deste modo, a venda de apparelhos inglezes” pelo Mappin & Webb era um meio de
adquirir uma quantidade de louças bastante grande, que, apesar do alto valor para o conjunto,
diminuiria os gastos futuros com a compra de peças avulsas; mesmo que se comprassem
peças avulsas, seriam poucas, apenas para repor as do aparelho que quebraram (em
funcionalidade e não necessariamente em decoração), saindo, ainda assim, o aparelho, no
final, um bem mais barato. A aquisição de louças brancas pela forma de aparelhos é mais
uma estratégia, não de venda, obviamente, mas de compra, alterando os preços pagos e o
poder aquisitivo do comprador. Do mesmo modo, nos leva a pensar no que a arqueologia
chama de “formação de conjuntos decorativos” ou “preocupações com harmonia estética”,
uma vez que a preferência por jogos de louça azul borrão pode não só ser uma preferência de
consumo ou uma “preocupação” com a combinação, como também uma tática de aquisição
de mercadorias a preços mais módicos.
O termo parece bastante comum: José de Alencar, em Sonhos D’ouro, de 1871,
retratando a casa de um sítio modesto no Rio de Janeiro diz:
O almoço era frugal como de costume. Café com leite muito bem feito, três pães, um para
cada pessoa, e excelentes bananas-maçãs. Todos os domingos punha-se invariavelmente no
meio da mesa uma grande mantegueira de louça azul, como era o resto do aparelho [...].
Posta no meio da mesa ela não era mais do que um símbolo ou um emblema; atestava a
decência do almoço, pois na opinião da dona da casa não havia mesa capaz sem manteiga
[...]. D.Joaquina fez uma surpresa a seus hóspedes. Havia quatro ovos quentes.
363
Em O tronco do Ipê, Alencar, narrando uma casa grande de fazenda, diz: Eram trastes,
camas, berços, guarda-roupas, lavatórios, poltronas, aparelhos de louça, talheres...” (1953:
115-116). Aluízio de Azevedo, em Casa de Pensão, referindo-se, em 1884, a uma pensão de
melhor categoria dizia que se “aparecia um novo aparelho de porcelana à mesa do almoço
ou do jantar" e Vinham depois a grande sala de jantar, forrada de papel alegre; nas paredes
distanciavam-se pequenos cromos amarelos, representando marujos de chapéu de palha,
tomando genebra, e assuntos de convento - frades muito rédios e vermelhos refestelados à
mesa ou a brincarem com mulheres suspeitas. Um guarda-louça expunha, por detrás das
vidraças os aparelhos de porcelana e os cristais; defronte - um aparador cheio de garrafas,
ao lado de outro em que estavam os moringues” (p. 78).
Em Machado de Assis, no romance Esaú e Jacó, o autor, referindo-se a casa de um
capitalista diz: “A casa dele era um palacete, os móveis feitos na Europa, estilo Império,
aparelhos de Sèvres e de prata, tapetes de Esmirna, e uma vasta câmara com dois leitos, um
de solteiro, outro de casados” (p. 237).
Tânia Lima (1997) mostra que a partir do século XVIII, os equipamentos
teoricamente destinados ao consumo de chá foram cada vez mais complexificando-se através
da implantação, no conjunto, de peças com funções mais ou menos específicas, variantes em
torno de um equipamento básico comum. Desta maneira, cada peça do aparelho ou
equipamento teria uma funcionalidade associada, igualmente, a sua freqüência dentro da
relação entre as peças: as leiteiras vinham em menor quantidade que as xícaras e malgas uma
vez que estes últimos prestavam-se ao consumo individual enquanto a leiteira ao servir
coletivo. Estas práticas dialogam, diretamente, com a formação dos registros arqueológicos
uma vez que leiteiras seriam menos freqüentes que malgas justamente por serem menos
manipuladas, com menores possibilidades de quebra e descarte.
Na investigação das publicidades com imagens, fica evidente a representação, no
universo alimentar, de xícaras (de diversos tamanhos, bojudas ou com paredes mais planas),
bules, pires, leiteiras, travessas, pratos fundos, pratos rasos, pratos de sobremesa, cafeteiras,
bombonieres, jarras, açucareiros, terrinas e tigelas; no universo decorativo, vasos, bibelôs,
cinzeiros, canecas comemorativas e pratos de parede. Existe certa diversidade de formas, mas
fica clara sua pouca variabilidade com maior predomínio de xícaras, tigelas, pratos e terrinas
(uma forma bastante interessante, novidade que, por exemplo, chamou atenção de alguns
consumidores que viviam próximo a Fábrica Santa Catharina e que nunca haviam visto este
364
produto. A inovação parecia estar em algo que servisse à mesa sem queimar a mão, porque
tinha alças, mas não era uma panela de barro ou metal
30
).
Mas se existe um discurso modernizador por traz das publicidades, no qual deve-se
extirpar o tradicional e o colonial, fica patente o paradoxo quando confrontamos esta visão de
mundo a algumas cenas com presença de louças, a exemplo da representação de algumas
tigelas. Associadas a pires ou não, as tigelas ainda parecem fazer parte, se o do cotidiano
concreto, de uma representação coletiva associada as louças. Ainda sim, as tigelas são menos
representadas na publicidade, em comparação as caras. A imagem que se quer passar de
uma modernidade não teria espaço para as tigelas? Quem estava consumindo, afinal, as
milhares de tigelas produzidas pela Santa Catharina? Se a linguagem simbólica da
publicidade de louças não designa algo, como evoca e tece epifanias, e se a representação
de louça como objeto simbólico apenas tem eficácia como símbolo de outra coisa,
“associando o real a uma realidade ausente” (LIRIS 1989: 191), creio que nestas
publicidades, as louças estariam dialogando também com um discurso de modernidade de
elites controladoras dos meios de comunicação, como os periódicos, através dos quais se
queria divulgar a imagem do moderno, do cosmopolita, de uma nova cidade oposta aos
valores coloniais e tradicionais. Nisto, a louça poderia, sim, evocar um comportamento
específico associado a um discurso particular.
Algumas publicidades trazem a indicação de que estão ofertando louças decoradas.
Lê-se, por exemplo, na publicidade da Casa Franceza L. Grumbach, de 09/12/1926,
“porcellana finíssima furta cores” (que deve estar se referindo a algum tipo de vidrado), e na
de 11/09/1928 da mesma loja, “1/2 Porcelana decoração ultramoderna com flores azues de
estilo colonial”, “1/2 Porcellana lindamente decorado com barra verde e delicadas florzinhas
30
Entrevista à Dona Ignez Cavalheiro, 2006.
Detalhe das xícaras e tigelas do armário de cozinha
representado pela publicidade das Cozinhas Patente, O
Estado de São Paulo de 01/07/1922.
365
muito mimosas” e ainda “Meia Porcellana decorado com filete azul muito distincto”. Assim,
são destacados florais e faixas e frisos, em um estilo colonial que entendo como relacionado a
temas do campo, ao bucólico, etc., com decorações discretas diferentes daquelas
industrializadas como o transfer que cobria boa parte da superfície da peça.
Do mesmo modo foi possível perceber alguns padrões e motivos decorativos das
representações de louças em publicidades que trazem imagens.
0,00
10,00
20,00
30,00
40,00
50,00
60,00
Porcentagem
Decorações
Decorações identificadas nas representações de louças
Terrinas
decoradas
para aparelhos de jantar d
ecorados da Casa Fra
n
ceza L.
Grumbach, com florais e frisos, O Estado de São Paulo, 11/09/1928
366
Ainda existe uma maior freqüência de cenas orientais ou de inspiração oriental
(chinoiseries), seguido de louças brancas, de padrões de frisos em ondas e dos florais. Dois
pontos mostram-se relevantes: o primeiro é que ainda uma aura oriental na louça, o azul e
branco da China, apesar de sua fabricação nacional ou européia ser mais freqüente; por outro
lado, cenas orientais eram padrões que podiam ainda estar em voga e que faziam parte do
imaginário sobre as louças, visto através destes desenhos. Lembro que nenhuma fábrica
brasileira fabricou muitas louças com motivos orientais (a exceção dos Willows).
Em segundo lugar, apesar da maior parte das representações serem de motivos
orientais, as demais decorações são todas muito simples, ressaltando mais a superfície branca,
coberta apenas por frisos, faixas, frisos em onda, guirlandas, florais, bordas onduladas e
outros, decorações típicas da Santa Catharina e de outras fábricas brasileiras fundadas a
posteriori, o que, aponta para uma crescente popularidade destes padrões, acompanhada de
uma nova concepção do campo decorativo da louça, onde a decoração sai das áreas onde
comida (a caldeira). Estas publicidades apontam para uma maior popularização do branco,
das louças sem decoração ou justamente com decorações que pouco ocupavam o campo
decorativo da peça, associadas a um tema do bucólico, do campo, temática que a Fábrica
Santa Catharina adotou para sua produção. Pelo menos tendo em vista as faianças finas do
século XIX, as imagens na publicidade indicam um caminho inverso àquele que vinha sendo
feito pela louça: o de conter decorações mais estandardizadas. Os padrões aqui indicam
fabricações ainda manuais, como a mão livre com pincéis, para florais e frisos, ou com
instrumental bastante simples (como os moldes para os estêncil). Apesar de fazerem parte de
um discurso de um projeto de modernidade elitista, trazendo os novos produtos, como a
louça, que deveriam ser consumidos, é possível perceber a mesma ambiguidade ou a mesma
característica que percebi na FSC: os florais à mão, artesanais, ao lado de decorações bastante
industriais e em série.
Não apenas para a Santa Catharina, mas para outras fábricas de São Paulo, como a
Barros Loureiro, muitas de suas faianças finas eram decoradas com formas geométricas ou
geometrizadas, como triângulos, setas, pontos e etc., através da técnica do estêncil. O estêncil
torna-se muito popular nesta primeira metade de século XX, decaindo à medida que as
decalcomanias vão crescendo. Talvez os motivos geométricos e traços verticais representados
nas louças nas publicidades sejam um indicador disto.
Todos estes elementos e padrões decorativos, no entanto, convergem para uma volta
às temáticas do campo e do bucólico sobre o que estão pautadas, como apontei em capítulos
367
anteriores, os temas da Santa Catharina. Este bucólico e campesino, na verdade, dialoga com
o Art Nouveau, muito em voga no começo de século XX, presente nas louças do sítio
Petybon e em demais esferas decorativas dos mais variados objetos. O uso do estêncil, por
exemplo, está bastante associado às formas geométricas que dão idéia de fractais, efeitos
bastante típicos do Art Nouveau.
Faixas e frisos nas decorações das louças no armário
de cozinha. O Estado de São Paulo, 01/07/1922
Cenas orientais nas decorações das louças da loja de departamentos O Japão em São Paulo. O Estado de São
Paulo, 30/12/1913
Frisos nas xícaras da publicidade do Leite
Ideal. O Estado de São Paulo, 18/12/1937
368
Motivos geométricos na xícara da publicidade do
Café Bhering. O Estado de São Paulo,
27/08/1933
Xícara branca, sem decoração, na publicidade do
Café Bhering. O Estado de São Paulo, 30/07/1933
Xícara com decoração com cenas
chinesas (provável transfer-printing), na
publicidade de importador de louças. O
Estado de São Paulo, 1926
369
Na leitura dos periódicos, percebi que a maioria das representações de louças com
decorações florais estavam associadas a publicidades que envolviam o consumo no universo
doméstico, da casa, do privado, ao mesmo tempo no qual as faixas e frisos estavam presentes,
em sua maioria, nas publicidades que giravam em torno de cafés, com a implicação de bares,
ou outros produtos que não fazem parte, ou não induzem a pensar sobre, o universo
doméstico. Seria plausível dizer que este pode ser um indicador do que hoje vemos em
restaurantes e bares, por exemplo, nos quais é maciça a presença de faixas e frisos? Estariam
os florais mais associados à casa e a esfera privada e os frisos à esfera pública? Ficam estes
questionamentos sobre os quais ainda seriam necessários anos de pesquisa.
Um último ponto a ser tocado quantos às publicidades e anúncios nos quais é possível
perseguir a louça” na cidade de São Paulo es dentro das publicidades de leilões n’O
Estado de São Paulo. Do ponto de vista jurídico, o leilão caracteriza-se pela venda pública de
objetos a quem oferece maior lanço, efetuada sob pregão de leiloeiro matriculado. As
publicidades de leilões do periódico em apresso podem também estar relacionadas aquilo que
se realiza quando vencido o penhor, não tendo sido o mesmo resgatado ou prorrogado de
acordo com os respectivos prazos constantes da cautela emitida para o devido fim; neste
leilão, o objeto penhorado é vendido para pagamento da dívida do mutuário ao
estabelecimento, nela se computando os juros até o dia do leilão.
Porcelanas Limoges, Rosenthal e Bohemia com decorações em florais e frisos, na
publicidade da Casa Michel, O Estado de São Paulo, 27/10/1928
370
Para Appadurai (2008: 29), existe um contexto mercantil que se refere à variedade de
arenas sociais que ajuda a estabelecer o vínculo entre a candidatura de uma coisa ao estado de
mercadoria e a fase mercantil de sua carreira. Deste modo, os leilões acentuariam essa
dimensão mercantil dos objetos, podendo ser definido dentro do que o autor chamou
“torneios de valor”, “complexos eventos periódicos que, de alguma forma culturalmente bem
definida, se afastam das rotinas da vida econômica” (APPADURAI 2008: 36). Os
participantes destes eventos não são, necessariamente, os mesmo leitores e consumidores das
louças das demais publicidades do jornal, uma vez que os leilões são eventos que tendem a
ser um privilégio daqueles que estão no poder, ao mesmo tempo em que agem como uma
disputa de status entre eles (APPADURAI 2008).
Lê-se “... serviços de chá, bibelots finos,
porcellanas Rosenthal, Limoges, Saxe,
Sèvres, Serragamines, Royal Doulton, etc.
etc ....”. O Estado de São Paulo,
21/12/1937
371
É nos anúncios de leilões, e apenas neles, que se chama atenção para o fabricante ou
para o país de produção das louças, a exceção da porcelana de Nishiki oferecida pela O Japão
em São Paulo e a termos como “apparelhos inglezes” oferecidos pelo Mappin & Webb,
designação bastante genérica que pode se referir tanto a procedência como a uma tipologia.
Sobre a porcelana Nishiki, oferecida pelo O Japão em São Paulo, conhecida no mundo
ceramista como nishiki-de ou nishiki-e, um tipo de cerâmica japonesa, em porcelana, com
elaborada decoração que pode conjugar um azul cobalto baixo-esmalte com desenhos
coloridos sobre esmalte (NAGATAKE 2003: 72). As louças Nishiki são igualmente
denominadas brocade style ou brocade pattern, assim como polycrome enameled porcelain
pela literatura de língua inglesa.
Os leilões apontam para louças como Sèvres, Sarreguemines e Rosenthal. Mesmo
sendo produtos usados, os anúncios tendem a manter a pompa” do nome destas faianças
finas francesas e alemãs. Isto porque nestes torneios de valor que são os leilões, o que está em
pauta não é apenas o status, a posição ou a fama e reputação dos atores envolvidos, mas “a
disposição de emblemas de valor da sociedade em questão” (APPADURAI 2008: 36) e para
estes grupos de elite, eram estas louças, mais francesas e alemãs, e não tanto inglesas ou
brasileiras, que carregariam um valor maior.
Para Baudrillard (apud APPADURAI 2008), o ethos do leilão vai muito além da troca
econômica convencional, dizendo respeito a todos os processos de transmutação de valores;
para ele, a função essencial do leilão é “a instituição de uma comunidade de privilegiados que
se autodefinem como tais por meio da especulação agonística sobre um restrito corpus de
signo”. Assim, para além do valor, em termos de preço, estas louças de leilões, Sèvres,
Lê-se “... porcelanas de diversas
procedências”. O Estado de São Paulo,
02/12/1937
372
Rosenthal e Sarreguemines, agiam como signos compartilhados por um grupo da elite
paulistana e que ao mesmo tempo em que nada significava para inúmeros leitores e
consumidores, mostra que os mesmo não compartilhavam deste universo semântico. Mesmo
porque, o que caracteriza o leilão é realmente a arrematação de bens a quem oferecer o
melhor preço; deste modo, o valor de venda que o participante do leilão dá, pode variar entre
muito aquém do que o preço original pago pelo comprador ou muito além; pode significar
também a estipulação de um preço que nunca existiu na verdade, cujo dono nunca teve
acesso –, pois o produto foi adquirido por ganho ou herança (bens bastante comuns em
leilões).
É interessante ressaltar também que a referência a “louça inglesa”, de produção
inglesa”, da Inglaterra, ou qualquer nome de fabricante relacionado a isto, nas publicidades,
perde, em número, para referências a louças do Japão e da França. Pouco se do destaque
da procedência de um artefato quando de sua produção inglesa. Proponho que no final do
século XIX a louça de produção inglesa era tão popular e já fazia parte do cotidiano de
tantas pessoas, dos mais variados segmentos sociais, que, assim como a brasileira, talvez não
fosse relevante, ou fosse redundante, chamar atenção para a procedência dos artefatos.
Brancante (1953: 200) nos lembra que a louça inglesa, caracterizada por uma menor
qualidade e um menor senso artístico, com motivos que agradavam ao público e métodos de
decoração em série, era a louça do meio mercantil, disseminada na população, sendo seu
contraponto a louça francesa, circulante no meio cultural social e a preferida das elites. Outro
problema é que o termo “louça inglesa”, às vezes, age como um indicador de pasta, a faiança
fina, e não de procedência. Nas Memórias Economicas da academica real das sciencias de
Lisboa, de 1789, já percebe-se a ambiguidade na nomenclatura de louças em língua
portuguesa; indicando a localização de novas jazidas de argila, com possibilidades de
“fabricar a louça de Inglaterra, chamada vulgarmente de de pedra, da qual eu mandei
fazer algumas amostras, misturando a esta pederneira huma porçaõ de argilla” (1789: 179).
Assim, é plausível que exista uma louça inglesa” inglesa, uma “louça inglesa” francesa e
uma “louça inglesa” brasileira.
As tabelas abaixo elencam os países e as nacionalidades das louças referenciadas nas
publicidades e anúncios, e as referências a marcas e fabricantes Muitos deles correspondem,
realmente, a marcas de fabricantes encontradas em vários sítios arqueológico históricos,
especialmente aqueles da virada do século XIX para o século XX ou das primeiras décadas
373
do último. A procedência das louças tem muito a ver, também, com a aproximação do Brasil
com alguns países; ressalto a forte imigração alemã e japonesa no período.
Países
Japão
França
Inglaterra
Tcheco-eslováquia
Holanda
Alemanha
China
Marcas/Fabricante
Limoges
Sèvres
Rosenthal
Bohemia
Sakzuma Murano
Saxe
Bavaria
Royal Doulton
Sarreguemines
25%
3%
29%
18%
3%
11%
7%
4%
Países e nacionalidades das louças nas publicidades
d'O Estado de São Paulo
Jao
China
França
Inglaterra
Holanda
Alemanha
Tcheco-eslováquia
Diversas procedências
Importadores de louça japonesa, O Estado de São
Paulo
, 03/11/1937
Aparelhos ingleses, importador Amleida Silva ¢
Cia,
O Estado de S
ão
Paulo
,
18
/1
2
/1937
“Artigo alemão”, oferecido pela Casa Allemã, O
Estado de São Paulo
,
19
/1
2
/1937
374
Quanto aos produtores, os anúncios de leilões destacam ora o nome do fabricante, ora
a procedência ou cidade famosa por sua produção de louças. Para a França, por exemplo, o
século XVIII foi “o século da cerâmica francesa” com o boom de sua manufatura (PILEGGI
1958: 46). Segundo Brancante (1981: 570), devido a excelência do caulim de Saint-Yrieix, no
Limousin, estabeleceram-se neste departamento francês e na cidade de Limoges a maioria das
fábricas francesas que exportaram porcelana para o Brasil, especialmente a partir da segunda
metade do século XIX. Seriam, grosso modo, três os centros exportadores de porcelanas que
abasteceram o Brasil neste contexto de virada de culo: Sèvres, Paris e Limoges. Segundo a
consulta a publicidade, as três marcas de louças francesas oferecidas o Limoges, Sèvres e
Sarreguemines.
Limoges, por exemplo, muito conhecida no século XIX, resultou da localização de
fontes de caulim na comunidade francesa de Saint-Yrieix-la-Perche, próximo a Limoges, nos
anos 1770. Até então, a porcelana francesa era fabricada em menor escala e com maior
fragilidade. Com a descoberta das fontes de caulim, a porcelana francesa tornou-se mais alva,
com grande brancura, mas mais resistente, translúcida e mais leve, características que
colabroaram para sua popularidade. Assim, Limoge não se refere a uma única fábrica, mas a
um complexo oleiro de indústrias cerâmicas de porcelana na cidade. No entanto, atualmente,
“Porcelana Limoges” é uma denominação reservada para porcelana fabricada em Haute-
Vienne. Qualquer porcelana feita nesta região é marcada por um tampão verde cromo do
termo “Limoges França” ou outras siglas ou símbolos que podem, então, identificar os
fabricantes.
No mesmo século XVIII, no afã francês de produzir porcelanas, outro estilo e vertente
de produtores foi formado em Sèvres, sob os incentivos do rei Luis XV. A Manufatura
Nacional de Sèvres, localizada nas proximidades de Paris, produziu artigos de alto padrão
técnico, bastante conhecidas por sua produção de “biscuit” (PILEGGI 1958: 104). Segundo
Pileggi (1958: 46), quando em 1860 se define em Sèvre “um tipo de arte cerâmica de grande
beleza, estilo e bom gosto, adquirem os artigos ali fabricados tal prestígio que se tornariam
perene na história da cerâmica”. Sèvre ficaria conhecida por seus serviços, tanto para jantar
como para “dejeuner” (chá e café) (BRANCANTE 1981: 570).
Enquanto Sèvre e Limoges produziam porcelanas (soft-past porcelain),
Sarreguemines, em Lorraine, era um centro produtor de faianças finas, freqüentemente
encontradas em sítio arqueológicos históricos em São Paulo, em geral representadas pela
375
marca do escudo com a inscrição “Opaque de Sarreguemines”. No século XIX, produziu
faianças finas e porcelanas, e em meados do século era a maior manufatura cerâmica da
França, com vários transfer-printings, cream-colored, black basalts, agate, marble e mochas
(BAGDADE, BAGDADE & BAGDADE 1998: 214). A produção cerâmica em
Sarreguemines teve início em 1790 com Nicolas-Henri Jacobi e outros dois sócios, mas sua
grande expansão teve início em 1800, quando o bavário Paul Utzschneider assumiu o
controle da fábrica, introduzindo novas cnicas decorativas. Em 1836, Utzschneider
entregou a gestão da fábrica a seu genro, Alexandre de Geiger, que, em 1838, estabeleceu
aliança com a alemã Villeroy & Boch (cujas faianças finas são encontradas em sítios
históricos brasileiros) em um acordo que contribuiu para o crescimento da produção. Em
1870, a parte de Lorraine onde estava Sarreguemines passou para domínio alemão e o filho
de Alexander, Paul de Geiger, construiu duas novas fábricas na França, em Digoin e Vitry-le-
François. Paul de Geiger morreu em 1913, o ano em que a Utzschneider & Cie foi dividida
em duas empresas, uma responsável por Sarreguemines e outra pelas fábricas francesas. Em
1919, após a Primeira Guerra Mundial, foram unidas sob o nome de Sarreguemines - Digoin -
Vitry-le-François e gerido pela família Cazal. Durante a II Guerra, a fábrica esteve sob
domínio da Villeroy & Boch, e somente após a devolução de Sarreguemines à França, passou
a ser uma companhia francesa independente (CAMPBELL 2006: 315).
No que tange à Holanda, sem dúvida estamos nos referindo a Société Céramique
Maastricht, uma marca típica de ocupações da virada do século XIX para o XX, e que
exportou para o Brasil toneladas de faianças finas durante todo o XIX até o início do século
XX, provavelmente via porto de Antuérpia (LIMA et alli 1989: 216). Apesar de muito
freqüentes em branco, produziu variações de decorações em faixas e frisos bastante coloridas,
intercalando rosas e verdes, faixas amarelas e roxas. Os empresários Winand Nicolaas
Clermont e Charles Chainaye, em 1851, fundaram uma olaria no bairro Wijck Maastricht,
empresa adquirida em 1859 pelo engenheiro belga Guillaume Lambert e transformada em
uma sociedade em comandita. Quatro anos mais tarde tornou-se uma sociedade anônima
conhecida como Société ramique”. No século XX, a Socié Céramique começou a se
focar mais e mais na produção de sanitários. Em 1958, para a surpresa de muitos, a empresa
se fundiu com sua concorrente em Maastricht, a Sphinx.
A Alemanha também ficou bastante conhecida por suas louças, uma vez que foi um
dos primeiros centros produtores de porcelana na Europa, justamente pela descoberta de
algumas jazidas de caulim de boa qualidade. Foi a pioneira da indústria de porcelanas duras,
376
mas o boom das fábricas ocorreu com a instalação de porcelanas utilitárias e decorativas de
alta qualidade durante os séculos XIX e XX, especialmente no centro e leste do país, como o
norte da Bavária, Thuringa, Saxônia e Silezia (BAGDADE, BAGDADE & BAGDADE
1998: 110). As publicidades d’O Estado de São Paulo chamaram atenção para as seguintes
marcas de louças alemãs: Rosenthal, Bavária e Saxe.
Sua marca de porcelana mais famosa, a Rosenthal, foi fundada em 1879 por Philipp
Rosenthal, em Selb, na Bavária, que abriu em um castelo (de Erkersreuth) uma oficina de
pintura de porcelana. Porém, apenas a partir de 1891, a Rosenthal começou a manufaturar sua
própria porcelana (CAMPBELL 2006: 291). Em 1887, a Rosenthal Porzellan Manufactur
tornou-se uma sociedade anônima e assumiu seu presente nome, Rosenthal Porzellan AG. A
Fábrica encerrou suas atividades apenas em 1998, vendida ao grupo britânico Waterford-
Wedgwood, que ao falir, arrastou consigo a marca alemã. A primeira década do século XX
viu uma predominância de motivos Art Nouveau, enquanto nos anos 1920 e 1930 a fábrica
produziu figuras decoradas e moldadas segundo um estilo Art Deco (BAGDADE,
BAGDADE & BAGDADE 1998: 196).
As porcelanas da Bavária são igualmente conhecidas na Alemanha e no mundo, não
tanto por suas decorações, mas por estarem entre as mais caras, tendo início no século XVIII,
a citar a Bauscher At Weiden, J. N. Muller, Schuman, Thomas, J. G. Knoller e Zeh, Scherzer
& Company (BAGDADE, BAGDADE & BAGDADE 1998: 26). Na verdade, como
Rosenthal fica na Bavária, o termo “Bavária” pode se referir a mesma. quando os
periódicos referem-se à Saxe, acredito estarem remetendo a Meissen, na Saxônia que, para
Pileggi (1958: 37), foi o centro vital, dinâmico e propulsor da cerâmica na Alemanha.
Segundo Brancante (1981: 573), a maior concorrente de Sèvre no continente europeu seria a
fábrica de Meissen ou “de Saxe”, “que integrava de regra o branco na decoração – concebia a
pasta como um fundo de palco sobre o qual os personagens e outros motivos coloridos iriam
ganhar realce e destaque formando silhueta sobre o fundo claro ou ainda concebia a pasta
como uma toalha branca onde ganhavam realce os objetos nela pousados”. A fama da
porcelana de Meissen é lendária. A manufatura foi fundada em 1710, e, em meados do
século XVIII, seus produtos podiam ser encontrados em palácios reais e casas aristocráticas
em todo o continente. Meissen manteve a liderança mesmo depois que foram fundadas, ainda
no mesmo século, sete outras fábricas de porcelana em terras germânicas.
Quanto à porcelana Tcheca, ou porcelanas da Boêmia, estabalece-se mais tardiamente
que as anteriores, nos últimos anos do século XVIII, em 1794, na região de Karlovy Vary,
377
mas outra área que congregou produtores foi Trnovany. A região metropolitana da Boêmia
tornou-se, no século XIX, o carro chefe da produção cerâmica no Império Austro-Húngaro
(BAGDADE, BAGDADE & BAGDADE 1998: 69). A porcelana da Boêmia feita antes de
1918, em geral, era marcada com o país de origem, a Áustria, que a maior parte das
fábricas foi fundada quando a região ainda estava sobre domínio austro-húngaro. O mesmo
ocorre para o período pós-1938, quando o agora país independente torna-se parte da
Alemanha, após a invasão nazista. Em 1918, várias fábricas uniram-se em uma associação
denominada OEPIAG (Österreichische Porzellan Industrie AG) que em 1920 alterou o nome
para EPIAG (Erste Böhmische Porzellan Industrie AG) (HENDERSON 1999).
Por fim, a publicidade dos leilões ainda remete a uma famosa marca inglesa, a Royal
Doulton & Co., e a cerâmica japonesa Sakzuma murano. A porcelana Royal Doulton ganhou
o nome de John Doulton, que, em 1815, a inaugurou junto de Martha Jones (cujo falecido
marido tinha fundado a olaria Lambeth) e do contramestre John Watts. John Doulton
aprendeu os negócios na Fulham Manufacturing Co., manufatura conhecida como uma das
primeiros produtoras de grés inglês. Embora as operações tivessem começado com Jones,
Watts e Doulton, a empresa logo assumiu o nome de Doulton, fabricando uma grande
variedade de objetos decorativos. Em breve, a empresa expandiu muito através de aquisições,
como, em 1882, a da Pinder, Bourne & Co. em Burslem, Inglaterra, uma pequena fábrica na
região de Staffordshire que era conhecida pela qualidade de sua porcelana (bone china)
(BAGDADE, BAGDADE & BAGDADE 1998: 79). No Brasil, em São Paulo, encontra-se
manilhas de grès, usadas pela Repartição de Águas e Esgotos, desta marca.
No final do século XIX, Doulton ganhou menção honrosa em grandes exposições
internacionais. Doulton havia, então, conseguido concepção estética e qualidade suficientes
para atender as necessidades da família real inglesa e o rei Edward VII cedeu, em 1901, a
honra de a fábrica passar a usar “Royal” em seu nome. A produção da Royal Doulton foi
interrompida durante as duas Guerras Mundiais, após o que passou a fabricar peças mais
simples, em massa, a preços reduzidos (BAGDADE, BAGDADE & BAGDADE 1998: 79).
Diferente do que se esperaria, a louça oriental o está representada nos leilões das
publicidades pesquisadas apenas pela porcelana milenar. A chamada cerâmica Satsuma (ou
Sakzuma) é um tipo de grès japonês, bastante popular a partir dos anos 1870, produzido para
o Ocidente. Teve origem no final do século XVI, durante o período Azuchi-Momoyama, e
ainda é produzida atualmente. O termo, na verdade, engloba todas as cerâmicas produzidas
no domínio de Satsuma, na ilha de Kyushu (POLLARD 2003: 28). Embora o termo possa ser
378
usado para descrever uma grande variedade de tipos de cerâmica, o mais conhecido tipo de
cerâmica Satsuma, a nishikide ou brocade pattern Satsuma (justamente a mesma oferecida
pelo O Japão em São Paulo) tem cor de marfim, vidrado craquelado, pinturas policrômicas
sobre esmalte e elementos em ouro acompanhados de flores, ssaros e cenas campesinas
(POLLARD 2003: 28). A cerâmica Satsuma surgiu quando um príncipe Shimazu, do domínio
Satsuma, ao sul da ilha de Kyushu, seqüestrou qualificados ceramistas coreanos, após a
invasão do país pelo Japão, para o estabelecimento de uma indústria cerâmica local, ainda no
século XVI. Mas foi somente após a exibição na Exposição Internacional de Paris, em 1867,
que a Satsuma tornou-se popular e passou a ser exportada para o mundo.
A Satusma nishikide era o tipo mais procurado pelos colecionadores do Ocidente, mas
é importante salientar que ela é apenas um dos tipos de cerâmica Satusma, e um tipo
relativamente tardio. Como a cerâmica Satsuma foi um dos primeiros tipos cerâmicos
japoneses a atrair a atenção do Ocidente, logo surgiram “imitações” ou “influências” por todo
o Japão, quando as olarias, devido sua popularidade, passaram a produzir suas próprias
versões das decorações policrômicas sobre esmalte, senão em grés, em porcelana
(POLLARD 2003: 30). Toda esta demanda causou um crescimento das fábricas japonesas do
período. Apesar de, em geral, este tipo cerâmico girar em torno de vasos ornamentais,
aparentemente, para o Brasil, também vieram aparelhos de chá e café de “porcelana Nishiki”,
segundo a publicidade d’O Japão em São Paulo. Podem, entretanto, não ser a cerâmica
produzida em Kyushu, de grés, mas as porcelanas, com mesmas técnicas e temáticas, vindas
de outras partes do país.
Vaso Satsuma, Museu Nacional de
Tóquio (POLLARD 2003: 28).
379
O Correio Paulistano
O Correio Paulistano foi um periódico diário publicado no estado de São Paulo,
fundado pelo empresário paulista Joaquim Roberto de Azevedo Marques, circulante entre
1854 e 1963, com sede no centro da cidade, à rua Líbero Badaró, tendo sido, por muitos anos,
o órgão oficial do Partido Republicano Paulista.
Localizei, entre 1913 e 1937, 69 propagandas analisadas segundo metodologia
explicitada anteriormente. Deste modo, tem-se o seguinte:
38%
9%
53%
Percentuais da presença de imagens ou informões sobre louças
nas publicidades do Correio Paulistano
Quando há referências
escritas sobre produtos
de loa
Quando a imagem do
produto de loa e a
louça é o foco do anúncio
Quando há imagem de
produto de loa, mas a
louça o é o foco do
anúncio
Diferente d’O Estado de São Paulo, as publicidades do Correio Paulistano m um
predomínio de imagens de louça nas quais o foco não é a própria louça, um predomínio,
portanto, de publicidades figurativas. Aquelas que ofertam louças divulgam poucas imagens
vinculadas às mesmas. Exemplifico os três tipos:
Exemplo de publicidade na qual não imagens de
louças representadas, apesar de que o foco são as
próprias. O Correio Paulistano, 09/03/1915
380
Quais comerciantes estavam comercializando produtos de louça branca na São Paulo
entre os anos de 1913 e 1937, segundo a publicidade do Correio Paulistano? As lojas que
vendiam louças, cujas informações estão nas publicidades do periódico, eram:
Exemplo de publicidade na qual imagens de louças
representadas, mas o foco da mesma é o seguro de vida
ofertado pela Sul America. O Correio Paulistano,
17/09/1930
Exemplo de publicidade na qual imagens de
louças representadas e que elas são o foco (ou
um dos focos) da publicidade. O Correio
Paulistano, 21/12/1934
381
Anunciante Logradouro
Bandeirante
Rua São João, 304
Casa Alemã
Rua Direita, 16-18
Casa Francesa L. Grumbach Ltda
Rua São Bento, 33; Rua Libero Badaró, 34
Casa Michel
Rua 15 de Novembro, 26
Mappin Stores
Joalheria Worms
Rua Direita, 8
Frederico Witte
Rua do Seminário, 81
Casa Porcelana
Avenida São João, 304
Casa São João
Rua Líbero Badaró, 370
Novamente, as lojas que comercializam louças estão localizadas no centro da cidade,
com especial foco no Triângulo. No entanto, algumas lojas fogem a este circuito, como as na
Av. São João e na Rua do Seminário. Algumas lojas estão ausentes das publicidades d’O
Estado de São Paulo, como, por exemplo, a da Joalheria Worms, que associa-se aos
comerciantes de jóias, ourivesaria e relojoaria que vinham em circulação pela cidade e depois
acabaram assentando-se e abrindo lojas, tal o caso dos irmãos Worms, ligados também a Casa
Michel (BARBUY 2006: 131).
No que concerne às denominações usadas para se referirem aos produtos de louça, os
termos contêm a mesma ambigüidade dos destacados n’O Estado de São Paulo, apesar da
maior variedade. Não há, no entanto, nenhuma publicidade que oponha os termos louça e
porcelana; assim, fica difícil saber exatamente ao que se refere a denominação “porcellana”.
Por outro lado, acredito que louça ingleza”, “louça fina” e “louça” se refiram, muito
provavelmente, às faianças finas. Apesar de “fayence” e “faiança” serem os termos
utilizados, arqueologicamente, para o que se entende, eticamente, como uma faiança, o termo
é ambíguo, pois, atualmente, como indiquei, muitos produtores, ceramistas e colecionadores
chamam a faiança fina apenas de faiança. Granito Branco pode se referir aquilo que Miller
(1991: 10) denomina white granit, um tipo de ironstone. No entanto, em Arqueologia, o
ironstone se aproxima muito da porcelana. Para Pileggi (1958), por exemplo, a louça granito
é um tipo de faiança fina, diferente em sua temperatura de queima. Para outros, granito e
de pedra são a mesma coisa; para Brancante (1981), a Fábrica Colombo, a primeira fábrica de
louça do Brasil, no Paraná, produzia um “ironstone brasileiro”.
382
No tocante a formas, as imagens das publicidades d’O Correio Paulistano mostram
um claro predomínio de louças brancas, com poucas variantes de outras decorações, diferente
daquelas representadas nas imagens de louça d’O Estado de São Paulo. Mas aqui
predominam as decorações mais simples, que não ocupam todo o campo decorativo da peça.
Novamente, acredito que estas decorações dialoguem com o Art Nouveau pela presença de
motivos geométricas que envolvem pontos, triângulos, etc. formando fractais. Do mesmo
modo, faixas, friso e fitomorfos remetem à temática bucólica e campesina.
87%
4%
3%
3%
3%
Decorações identificadas nas representões de louças
Brancas
Friso
Fitomorfo
Frisos em onda
Geométrico
32%
20%
16%
8%
16%
4%
4%
Quanto às denominações
Porcellana
Loa Ingleza
Fayence
Granito Branco
Loa
Faiança
Loa fina
383
A representação de uma refeição só com louças brancas
no anúncio Gulodice Feliz, Correio Paulistano,
10/11/1934
Representação de pires e
xícaras brancos da Frederico
Witte, Correio Paulistano,
09/12/1937
Representação de pires e
xícaras brancos no Café da
Metrópole, Correio
Paulistano, 09/11/1937
384
Apesar da predominância de formas brancas nas representações de louças, o que se vê
escrito chama atenção, paradoxalmente, para o colorido. Assim, alguns anúncios ressaltam a
presença de decoração: lê-se, na publicidade da Joalheria Worms, de 21/12/1937, “Bandeijas,
louça fina, decorada, estrangeiras”; o Bandeirante, na sessão Pequenos Anúncios, publica:
“Apparelhos para jantar, 74 peças, com ouro, desenhos bellíssimos” (06/12/1913),
“Apparelhos para chá e café de cores sortidas” (25/10/1913), “Pratos de granito branco ...
idem de cores” (10/03/1915).
Quanto às designações de formas, aos termos êmicos nas publicidades, têm-se apenas
as denominações “chícaras”, bandeijas”, “travessa”, “pratos” e “para sobremesa”. Todavia,
assim como as publicidades n’O Estado de São Paulo, as louças são oferecidas em conjuntos
sob a designação de aparelhos e serviços: “apparelhos para c e café”, apparelhos para
jantar”, “serviços para ‘sandwichs’” e, ainda, “louças para mesa”.
Por fim, poucas são as referências à fabricantes ou procedência das louças nas
publicidades do Correio Paulistano. São citadas apenas Limoges, e artigos de porcelana
alemã. algumas referências, igualmente, a louças inglesas, mas, como mencionamos,
fica a dúvida se é um tipo de pasta ou país de origem dos produtos.
Preços: os valores das louças obtidos nos periódicos
A leitura das publicidades dos periódicos possibilitou, ainda, averiguar alguns dos
preços das louças anunciadas. A maior parte delas, no entanto, é apresentada por conjuntos:
por exemplo, um aparelho de jantar de 60 peças de “louça ingleza” custa 140$000. Para
refletir um pouco sobre preços e custos de venda, no comércio, das louças brancas do período
estudado, calculei um preço hipotético por peça unitária, dividindo o valor total de um
aparelho ou serviço dados pela publicidade, pelo número de peças oferecidas; claro que isto
uma margem de erro, uma vez que há diferentes tipos de peças com diferentes preços num
mesmo aparelho. Entretanto, esse cálculo fornece uma média aproximada do preço da peça.
As publicidades abaixo mostram como as louças são oferecidas nos periódicos.
O Estado de São Paulo, 16/12/1937
O Correio Paulistano, 29/10/1913
385
A tabela abaixo sintetiza os dados obtidos pelo exame das publicidades. Mostra o ano
no qual foi observado o preço, a quantidade de peças ofertadas, sua função, a designação do
tipo de louça, o fabricante ou procedência, quando existe, o preço e o que chamei de “valor
hipotético por unidade” do conjunto de louças.
O Estado de São Paulo
Ano Quantidade Função Designação
Fabricante
ou
procedência
Preço
Valor
hipotético por
unidade
1913
8
Porcellana
Nishiki
9$500
1$188
1913
9
Porcellana
Nishiki
13$500
1$500
1926
1 Bomboneira Porcellana fina 42$000 42$000
1926
8 Porcellana finissima
furta-cores
80$000 10$000
1928
48 Porcellana 185$000 3$854
1928
60
Jantar
1/2 Porcellana com
flores azuis estilo
colonial
250$000
4$167
1928
60 1/2 Porcellana barra
verde e delicadas
florzinhas
270$000 4$500
1928
60 Meia Porcellana com
filete azul
198$000 3$300
1928
1 vaso Porcellana fina 8$500 8$500
1928
1 vaso Porcellana fina 14$000 14$000
1928
60
1/2 Porcellana ingleza
389$565
4$638
1928
24
chá e café
Porcellana
Limoges
1928
60 mesa Porcellana Limoges 520$000 8$667
1928
60 Porcellana Rosenthal 450$000 7$500
1928
60
Porcellana
Bohemia
400$000
6$667
1928
13
serviço para
sobremesa
Limoges e Rosenthal
Limoges e
Rosenthal
75$000
5$770
1928
34
chá e café
Rosenthal
Rosenthal
195$000
5$736
1928
34 chá e café Limoges Limoges 280$000 8$236
1933
29 chá e café Inglezes 100$000 3$449
1933
60
Jantar
180$000
3$000
1937
30
Jantar
Inglezes
140$000
4$667
1937
60 Jantar Inglezes 300$000 5$000
1937
42 chá e café Inglezes 140$000 3$334
1937
15
ca
120$000
8$000
O Estado de São Paulo, 05/11/1933
386
1937
75
Jantar e café
De Louça
5$000
$66
1937
75 Jantar e café De Louça 11$000 $146
1937
75 Jantar e café De Louça 14$000 $186
1937
75
Jantar e café
De Louça
18$000
$240
1937
75
Jantar e café
De Louça
30$000
$400
1937
75 Jantar e café De Louça 36$000 $480
1937
75 Jantar e café De Louça 40$000 $533
1937
75
Jantar e café
De Louça
46$000
$613
1937
75
Jantar e café
De Louça
50$000
$666
1937
75 Jantar e café De Louça 55$000 $733
1937
75 Jantar e café De Louça 60$000 $800
1937
75
Jantar e café
De Louça
65$000
$866
1937
75
Jantar e café
De Louça
70$000
$933
1937
75 Jantar e café De Louça 85$000 1$133
1937
75 Jantar e café De Louça 90$000 1$200
1937
75
Jantar e café
De Louça
100$000
1$333
1937
75
Jantar e café
De L
ouça
110$000
1$466
1937
75 Jantar e café De Louça 150$000 2$000
1937
75 Jantar e café De Louça 250$000 3$333
* Preços em réis
Correio Paulistano
Ano Quantidade Função Designação
Fabricante
ou
procedência
Preço
Valor
hipotético
por unidade
1913
74
Apparelhos para jantar
com ouro, desenhos
belissimos
62$000
$838
1913
6 Apparelhos para
lavatório, decorados
Louça ingleza 13$000 2$167
1913
34 Apparelhos para chá e
café
18$000 $530
1913
34 Apparelhos para café 9$000 $265
1913
34
Apparelhos pa
ra café e
chá, de cores sortidas
20$000
$588
1913
15
Apparelhos para café,
cores variadas
9$000
$600
1915
32
Apparelhos para cae
chá decorados
Louça ingleza
28$000
$875
1915
72
Apparelhos para jantar
Louça ingleza
70$000
$972
1915
12
Chícaras
de porcelana
decoradas para c
Porcellana
12$000
1$000
1915
12
Idem (xícaras) para
café, decoradas
Porcellana
6$000
$500
1915
12
Pratos
Porcellana
Limoges
12$000
1$000
1915
1 Bandeija Fayence 10$000 10$000
1915
1 Bandeija Fayence 12$000 12$000
1915
1
Bandeija
Fayence
15$000
15$000
1915
12
pratos
Granito
branco
4$000
$333
1915
12
pratos "de côres"
Granito
branco
6$000
$500
1915
12
pratos de sobremesa de
cores
Granito
branco
4$500
$375
387
1934
7
6 pratos e 1 travessa,
de fina louça decorada
Lou
ça
28$000
4$000
1937
60
Apparelhos para jantar
Artigo
Allemão,
finíssimo
Alemanha
700$000
11$667
1937
60
Apparelhos para jantar
Artigo
Allemão,
finíssimo
Alemanha
800$000
13$333
1937
60 Apparelhos para jantar Artigo
Allemão,
finíssimo
Alemanha 1:050$000 17$500
1937
- Apparelhos para chá 95$000 -
1937
- Apparelhos para chá 125$000 -
1937
-
Apparelhos para chá
168$000
-
1937
-
Apparelhos para chá
175$000
-
1937
- Apparelhos para chá 195$000 -
1937
15 Apparelhos para café 120$000 8$000
* Preços em réis
Em termos percentuais, pode-se perceber, pela tabela, acima que as louças em
porcelana são, em geral, mais caras que os demais tipos de louça, assim como as louças
decoradas são mais caras que as sem decoração. Existe, ainda, uma relação com a
procedência, que acarreta que uma porcelana, por exemplo, branca, alemã, seja mais cara,
que uma decorada de Limoges. De todos os valores das publicidades, as louças em “granito
branco” são muito mais baratas que todas as outras, seguidas das faianças finas (louças
inglesas). Se o “granito branco” realmente correpondesse ao ironstone ou ao que hoje se
denomina “porcelana brasileira” seria plausível a diferença no preço, uma vez que a
fabricação desta louça requer apenas uma queima; a peça é decorada ainda crua e a queima
do biscoito, da decoração e do vidrado são uma só, diferente da fianaça fina, com duas
queimas. A queima, como se sabe, é o processo que mais encarece a louça. Quanto mais
queimas, mas alto o custo dos fatores de produção.
A partir destas informações, montei um gráfico de variações de preço, por ano, entre
1913 e 1937, a partir do valor dado pela publicidade e do cálculo do preço hipotético de uma
peça, pautados nos índices de inflação obtidos através da tabela de inflação anual para o
Brasil durante o período entre guerras estabelecida por Earp (1996: 11). Os dados do gráfico
são resultado de uma projeção hipotética, a partir da qual podemos ter uma idéia do valor das
louças, especialmente no que concerne a relação percentual de valor entre elas. que se ter
em mente que, apesar do gráfico dar uma idéia dos valores, o considerei (mesmo porque é
difícil comensurar em termos de valor), por exemplo, as influências da demanda, dos custos
de produção e a relação disto com o ganho das pessoas.
388
0,00
1000,00
2000,00
3000,00
4000,00
5000,00
6000,00
7000,00
8000,00
9000,00
10000,00
1
9
1
3
1
9
1
4
1
9
1
5
1
9
1
6
1
9
1
7
1
9
1
8
1
9
1
9
1
9
2
0
1
9
2
1
1
9
2
2
1
9
2
3
1
9
2
4
1
9
2
5
1
9
2
6
1
9
2
7
1
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9
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1
9
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1
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3
2
1
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3
3
1
9
3
4
1
9
3
5
1
9
3
6
1
9
3
7
Valores de produtos de louça branca entre 1913-1937
Unidade da peça de "Apparelho para chá e café decorado. Louça Ingleza"
Unidade da peça de "Apparelho para chá e café"da Porcelana Limoges
Unidade da peça de "Apparelho para chá e café"da Porcelana Rosenthal
Prato de Granito branco
Prato de granito branco decorado
Apparelho para jantar de Louça Inglesa
Apparelhos de jantar e café
A queda nos preços a partir do final dos anos 1920 é resultado da grande depressão de 1930.
Segundo o gráfico, em 1913, por exemplo, época da inauguração da Santa Catharina,
os pratos em “granito branco” decorados chegariam a ser 150% mais caros que os pratos em
“granito branco” sem decoração; uma unidade de um aparelho de jantar de “louça inglesa”
chegaria a ser, no mesmo ano, 290% mais caro que os pratos de “granito branco”. O valor
mais baixo obtido corresponde, no gráfico, a linha dos “Apparelhos de jantar e café” cujo
preço da unidade sairia 66 réis, em 1937; para atingir o preço da unidade do “Apparelho para
jantar de Louça ingleza”, no mesmo ano, teria que ser 4748% mais caro!! Seria esta uma
389
louça brasileira? No tocante as porcelanas, a porcelana francesa seria mais cara que a
porcelana alemã, ambas mais caras que todas as outras louças representadas.
As relações percentuais que poderiam ser feitas são infinitas. Mas quero ressaltar que
devido à oscilação dos valores, causados pela inflação, por exemplo, nos anos 1920, o preço
de um aparelho para jantar de louça inglesa alcançou o preço da porcelana Rosenthal na
década de 1910. Assim, como relacionar isto ao poder aquisitivo dos consumidores, uma vez
que num intervalo de menos de 10 anos uma pessoa que não poderia comprar louças alemãs
passa a poder fazê-lo? Em 1928, um prato de “granito branco” custava o mesmo que uma
peça de “louça ingleza” em 1919. Ao datarmos uma ocupação pelas louças, a partir de
períodos de produção, como afirmar algo sobre a posição e o poder econômico desses
ocupantes se um comerciante pode comprar, nove anos depois, uma louça que, nove anos
antes, apenas um morador, por exemplo, de um palacete em Higienópolis poderia?
Em termos comparativos com outros produtos, a louça oscila bastante entre o que
seria considerado relativamente caro e relativamente barato no período. Peguemos o ano de
1925 como exemplo. Para este ano, um produto como o café, em uma saca de 60 kg, custava
aproximadamente 2$900 (BAER 1985: 539-542). Para o mesmo ano, um prato de granito
branco custaria 5787 vezes a menos que a saca, enquanto que uma porcelana Rosenhtal, de
um aparelho de chá ou café, custaria 111% a mais que uma saca de café de 60 kg... Isto nos
mostra a enorme oscilação dos preços das louças, acessíveis, pela compra direta, a quase
todas as camadas da população, se não a todas, neste século XX.
O salário de um operário ceramista, numa fábrica de Cerâmica, no interior de São
Paulo, em 1923, segundo o Boletim do Departamento Estadual do Trabalho (1923: 76),
variava, por dia, entre 8$ a 10$ (mil réis). Se trabalhar vinte dias úteis, seu salário será de
160$000 a 200$000. No mesmo ano, uma peça do “aparelho de jantar e café” custaria,
aproximadamente, $37, que corresponderia a 0,023% do salário do operário, algo, portanto,
passível de compra... Com este mesmo salário, seria possível ao operário ceramista comprar
muito outros aparelhos de louça, inclusive fazendo conjuntos. Mesmo com base nos menores
salários do mundo operário, como os da indústria têxtil, a louça seria muito barata. O salário
de um operário homem na indústria têxtil, um dos mais baixos salários do operariado no
começo do século XX, giraria em torno de 5$449 por dia (BESSE 1999: 166); contando vinte
dias úteis, ter-se-ia 108$980. Deste valor, uma unidade da mesma louça, para o mesmo
período, equivaleria a 0,034% do salário mensal.
390
É claro que com isto não estou dizendo que a condição dos trabalhadores operários era
ótima, que havia demais gastos que reduziam, em muito, os salários, mesmo porque estes
exemplos caem num reducionismo econômico que ignora preferências e escolhas pautadas
em identidades, culturas, etc. Como mostra De Decca (1987: 26-27), os salários operários, de
modo geral, entre 1927-1934, tinham baixo poder de compra, mesmo para cobrir
necessidades básicas como habitação, alimentação e vestuário. Com isto estou dizendo que
para estes orçamentos, a louça não deveria ser um gasto exorbitante, nem para os operários
nem para os industriais, nem mesmo, talvez, com os descontos que sofriam. A alimentação
levava 50% ou mais do ganho mensal, enquanto o vestuário de 15 a 16% (DE DECCA 1987:
33-36). Quanto era o gasto com a cerâmica, que, além de representar, percentualmente, muito
menos do total do ganho mensal, tinha maior durabilidade (pode-se comprar um prato e anos
depois ele se quebra) do que alimentação e vestuário? Se, como acredito, os jornais
publicavam a publicidade de lojas e comerciantes que vendiam as louças, talvez, mais caras
disponíveis, fico pensando no preço das louças brancas em armarinhos de secos e molhados
ou em outras lojas menores, ou ainda, qual o preço de louças em feiras ou compradas em
vendedores de rua, como mostra Carvalho (1999)?
Fazendo apenas um exercício à guisa de exemplo, no ano de 2009, uma loja no Largo
da Batata, o centro comercial do bairro de Pinheiros, em São Paulo, oferecia pratos rasos de
louça branca (em ironstone ou porcelana de baixíssima qualidade) a 1 real a peça. Um salário
mínimo atualmente no estado de São Paulo é de R$505,00. Este prato de louça representaria
0,2% do salário!
Com estes questionamentos em mente, busquei outras fontes que me fornecessem
mais dados sobre o assunto, e nesta imersão me deparei com os inventários.
391
SUB-CAPÍTULO 4.4
LOUÇA E GOIABADA: COMO AS LOUÇAS (DES)APARECEM NOS
INVENTÁRIOS DA GRANDE SÃO PAULO DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO
XX
3 dúzias de pratos finos da Índia, de diversas cores. 7 charões de
louça de Lisboa, ou pratos compridos entre pequenos e grandes. 4
pratos de estanho, grandes. (Inventário de Rev. Vigário Carlos
Correia de Toledo e Mello, 1789, Autos da Devassa da
Inconfidência Mineira)
A fim de relacionar as questões de análise das louças do sítio Petybon à outras esferas
do consumo, este sub-capítulo visa realizar alguns apontamentos sobre como estão
referenciadas as louças em inventários post-mortem pertencentes a moradores da cidade de
São Paulo e arredores, entre os anos de 1913 e 1937. Tentarei explicitar como as louças
aparecem nestes inventários e se aparecem, que, diferente do século XIX, no século XX,
mais pessoas menos abastadas inventariam seus bens. Acredito, como mostrarei, que a louça,
tornando-se bastante popular, deixou de ser um bem de consumo caro, a se inventariar,
categoria substituída, por exemplo, por imóveis e créditos bancários.
É sabido o potencial da análise de testamentos e inventários em Arqueologia
Histórica, apesar de sua pouca freqüência de utilização em conjugação com os dados
arqueológicos, em pesquisas (SYMANSKI 1998: 24). Talvez um dos mais conhecidos usos,
para o Brasil, esteja nos trabalhos de Symanski (1997; 1998) sobre o solar Lopo Gonçalves,
através dos quais o autor pode perceber as relações do que estava sendo inventariado com o
que se via no registro arqueológico, assim como intervalos cronológicas e aspectos sócio-
econômicos. O autor buscou, com base nos inventários post-mortem, esboçar um quadro dos
ideais de consumo do segmento social do qual os moradores do solar faziam parte
(SYMANSKI 1997), assim como levantou informações sobre o custo relativo das louças
recuperadas no contexto arqueológico, que permitiram distinguir quais atributos desses
artefatos mais fortemente representavam o status sócio-econômico dos ocupantes do Solar
Lopo Gonçalves (SYMANSKI 1998: 28).
Para São Paulo, as pesquisas de Carvalho (1999) sobre o Beco do Pinto, o Solar da
Marquesa de Santos e a Casa 1, se utilizaram igualmente de inventários e testamentos a
fim de resgatar a cultura material destes universos, através de suas fontes escritas,
comparando-as com o registro arqueológico, em termos de valor, disponibilidade,
392
variabilidade, etc. Para um contexto histórico anterior, Zanettini (2005) utilizou os
inventários e os testamentos não apenas para o aprofundamento da história de cada sítio
arqueológico, no caso, a dinâmica das casas bandeiristas, mas também à relação entre os
acervos exumados e a cultura material no que concerne aos universos domésticos, ao
mobiliário, às cerâmicas e louças, à mudança dos significados sobre a indumentária, etc.
Meu olhar sobre os inventários pautou-se na abordagem denominada “arqueologia
documental”, por Beaudry, Cook e Mrozowski (1996), a partir da qual se buscou informações
relacionadas à cultura material que se estuda, sem desconsiderar, claro, que o documento é
pautado num discurso e como todo discurso está permeado por regimes de verdades,
percepções e visões de mundo. A sistematização de inventários, para a Arqueologia
Histórica, possibilita a contraposição do refugo (registro arqueológico) ao valorizado,
“transmitido de geração para geração (as coisas herdadas), evidenciando aspectos tanto de
caráter eminentemente econômico (valores comparativos, preços de produtos) como
percepções da sociedade em relação aos mesmos, visto que a grande maioria dos objetos não
está presente ou aparecem de forma sutil no contexto arqueológico” (ZANETTINI &
MORAES 2005). Por isso mesmo, a leitura de inventários em Arqueologia não pode ter a ver
com o contar algo que os documentos não contam”, mas, sim, com construir uma
arqueologia dos documentos (JOHNSON 1999: 31). nos anos 1970, Shrire afirmava que o
sucesso para o estudo da Arqueologia Histórica está em nossa habilidade “to dig as deeply
into the archives as into the sands of and abandoned settlement by analyzin words and
artefacts” (BEAUDRY, COOK, MROZOWSKI 1996: 284).
Segundo Abrahão (2008), o caráter massivo dos inventários dá, também, base para
incursões de análises históricas sobre o cotidiano de famílias. As informações sobre os bens
móveis e imóveis contidas nessa fonte documental nos indicam os níveis de riqueza, os
padrões de consumo das populações, apontam as atividades desenvolvidas pelos indivíduos e
possibilitam capturar as diferenças sociais no seio da sociedade estudada” (ABRAHÃO 2008:
26). que se lembrar, no entanto, que os inventários, não obstante este potencial,
descrevem a parte da população que possuía bens a repartir.
Com estes pressupostos, elenquei alguns exemplos de inventários a serem
apresentados aqui. São inventários referentes à cidade de São Paulo e regiões adjacentes entre
os anos de 1913 e 1937, disponíveis no Arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo
(ATJSP). Se num primeiro momento, meu objetivo era, seguindo o exemplo de outros
trabalhos que investigaram a cultura material nos inventários, localizar referências aos
393
objetos utilizados no dia-a-dia das pessoas, num segundo momento quis entender, justamente,
porque a cultura material móvel parou de aparecer nos inventários do século XX, que,
desde minhas primeiras leituras, logo percebi que o encontraria algo como “12 pratos de
louça branca do reino” como se lê no inventário de Baltazar Lopes Fragoso, de 1635,
morador da então vila de Piratininga (1920: 145). Assim como Symanski (1998), iniciei a
leitura dos inventários também no intuito de encontrar designações êmicas das louças, como
“pombinhos” ou “beira azul”, ou “espiga” (como apontei em capítulo anterior), ou, ainda,
preços e outras variantes de valor. Nada.
Foi então que percebi a necessidade de calibrar meu olhar para um contexto
específico, o do século XX. Diferente do século XIX, no século XX existe uma crescente
valorização de bens de raiz, como os imóveis e créditos bancários, em detrimento daqueles
objetos móveis como cadeiras e louças, exemplo, para Oliveira (2005: 81), de grande
mudança na composição da riqueza da época, movimento ocorrido pelo menos desde o final
do século XIX. Esta dinâmica refere-se, também, a uma conjuntura maior de mudança no
sistema capitalista, com a conformação do que ficou conhecido como “capitalismo
financeiro”, caracterizado pelo crescimento da importância dos bancos e das transações
financeiras, acompanhados de investimentos em bens de raiz (imóveis), em comparação aos
bens móveis ou de consumo.
Como será possível notar, os inventários que consultei sempre apresentam cartas de
crédito, dívidas, empréstimos, contas em banco, pequenas empresas e sociedades, com quase
total ausência de bens móveis, semi-duráveis ou duráveis. São, majoritariamente,
inventariados, portanto, os chamados bens de liquidez imediata, como ações, contas em
banco, casas, que passaram a ser mais relevantes nos inventários do que louças, cadeiras,
armários, etc., os quais, ao que parece, perderam importância no que era listado. Os bens de
maior liquidez passaram a ter maior relevância no patrimônio de uma pessoa, em comparação
aos bens móveis que, apesar de terem algum valor, eram mais difíceis de serem
comercializados. A partir do momento em que alguns bens móveis passaram a ser mais
corriqueiros, portanto, (como as louças resultantes do movimento de popularização da faiança
fina), deixaram de ser inventariados, dando lugar aos imóveis e aos bens de mais alta liquidez
(como contas em banco, quase que “dinheiro” propriamente dito).
Como demonstrou Maria Luiza Oliveira, para os inventários da cidade de São Paulo
na segunda metade do século XIX, os bens de raiz representavam para o período entre 1874-
1882, 43% da riqueza inventariada, aumentando para 59,5% do total de bens do inventário
394
para o período entre 1894-1901 (OLIVEIRA 2008: 95). Neste momento, portanto, imóveis e
créditos são muito mais acumuladores, e talvez indicadores, de riqueza do que bens móveis,
como louças. Nos inventários lidos no ATJSP, existe uma freqüência muitíssimo maior de
imóveis, terrenos, casas, hipotecas, dívidas e dinheiros em banco do que de louças e outros
artefatos que passaram, em geral, a serem tão mais baratos, com valor tão baixo, que não
valia a pena serem inventariados.
É o que se pode afirmar, por exemplo, do inventário do Dr. Miguel de Godoy Moreira
e Costa, de 31/01/1920, morador da cidade de São Paulo, falecido em outubro de 1915. O Dr.
Miguel deixou a sua esposa, D. Maria Bella Marcondes de Godoy, um pecúlio de
23:220$000, além de um prédio na Av. Água Branca, 47, um terreno na mesma avenida e um
terreno sem número, todos na Freguesia de São Geraldo das Perdizes. Ou, por exemplo, no
inventário de Maria da Penha Azevedo, de 11/03/1913, que deixou para sua filha “um
sobrado a Avenida Rangel Pestana numero cincoenta e quatro, quatro casas na mesma
Avenida de numeros cincoenta e seis, cincoeta e oito, sessenta e quatro; dês casas na
Freguesia do Braz (...), duas casas na rua Carneiro Leão (...), uma casa na rua (sic), uma casa
a rua do Gasometro (...), uma casa na rua dos Imigrantes (...), cinco casas na rua Glycerio...”
no arrolamento dos bens de D. Elysabeth Dyer or Weston, inglesa falecida em
1936, foram apontados uma letra da Câmara Municipal de 1909, nove debêntures da Cia.
Campineira de Tracção Luz e Força, 486$800 em conta corrente no Banco Commercial do
Estado de São Paulo e 4:763$000 em conta a prazo fixo no mesmo banco com vencimento
em 21/04. Em adendo ao arrolamento, um documento da justiça determinava a anulação das
taxas que seriam cobradas sobre a herança uma vez que, depois do desconto, esta quase
desapareceria.
Na verdade, em muitos dos inventários lidos existem dívidas a serem pagas e poucos
são os bens a inventariar. Do mesmo modo, as inúmeras taxas e impostos a serem pagos pela
família do inventariado eram tão altos que chegavam a reduzir ou consumir toda uma
herança, como no caso de D. Elysabeth. No inventário de Orestes Belpiede, de 30/08/1926,
consta apenas: não deixando bens a não ser a quota social na firma Casarine & Belpiede, da
qual era sócio...”; no arrolamento dos bens de Accacio Pereira de Andrade, de 06/02/1919,
consta: “não havendo bens a inventariar, pois o mesmo só possuía a quantia de Rs 1:650$000,
deposito na Caixa Economica Federal”. No caso de D. Maria de Santi, italiana, falecida em
30/01/1924, o processo e as despesas com justiça, funeral e inventários eram tão caros, que os
bens a inventarias mal cobriam estes gastos, como foi o caso de. Lê-se “o acervo hereditário,
395
em vista de poucos immoveis de que é constituído, segundo consta dos autos, e
conseguintemente de insignificante valôr, não comporta as despezas conseqüentes de um
processo regular”!
Apesar deste desaparecimento dos bens móveis, foi possível inferir dados
interessantes em tipos específicos de inventários. Diferente das publicidades dos periódicos,
as quais chamam atenção para o comércio do centro da cidade, de cunho um pouco mais
elitista, com diálogo bastante acirrado com projetos de modernidade para a urbs, etc., os
inventários chamam atenção para outras instâncias do comércio, tão freqüentes, ou mais, que
as lojas do Triângulo: os armazéns de secos e molhados. Entre 1920 e 1921, por exemplo, a
cidade de São Paulo contava com 292 casas comerciais de artigos de importação, mas 2617
armazéns de secos e molhados (MEMÓRIA URBANA 2001: 86). Deste modo, os li com o
propósito de obter algumas informações sobre as louças, tal qual Symanski (1998), mas
diferente deste, não busquei uma pessoa em particular e sim tentei refletir sobre como as
louças estavam também sendo comercializadas no período. Assim como o autor, encontrei
informações “mais detalhadas” (entenda-se, encontrei alguma informação) sobre as louças
em inventários de proprietários de lojas, armarinhos e armazéns.
Segundo Oliveira (2008: 32), os armazéns, “no contexto de urbanização repentina e
do enorme aumento da população, foram um espaço que se transformou em ponto estratégico
de referência e apoio na construção do cotidiano”. São vistos pela autora como lugares de
sociabilidade do bairro, com “função social de integração múltipla”, além de exercerem
importante função no cotidiano das famílias de médias posses (através de créditos e
empréstimos) e por ser o tipo de negócio mais acessível aos com poucos meios (OLIVEIRA
2008: 271). Os armazéns marcavam a paisagem paulistana nos mais diversos endereços, mas,
diferente das casas comerciais mais conhecidas, concentradas no Triângulo, os armazéns de
secos e molhados existiam o apenas no centro, mas nas beiras de caminhos e em bairros
mais distantes.
Outro aspecto importante a ressaltar quanto aos armazéns é seu papel como
comercializadores de produtos “da terra” ou neros nacionais. As análises de Oliveira
(2008) mostraram que, nos levantamentos do final do século XIX, os almanaques da
província de São Paulo marcavam presença esmagadora da categoria “Armazéns de
molhados e gêneros do País” (2008: 277). No inventário de Dona Leontina Pereira de
Moraes, de 19/02/1918, constam as mercadorias inventariadas de uma “casa de negocio de
secos e molhados, com uma pequena fabrica de macarrão” na Barra Funda. Nele pode-se
396
notar a presença de centenas de produtos alimentícios nacionais, o assucar carioca”, “o
feijão molatinho”, “vellas Paulistas”, “tijolos de arear nacionaes”, “fardos de papel Cayeiras”,
os variados tipos de macarrão de produção própria do casal Leontina e José da Ressurreição
de Moraes e o olio Sol Levante”, produto das Fábricas de Refinaria de Óleo Sol Levante,
dos Matarazzo (CARONE 2001: 166). Eram neles que se encontravam as diversas categorias
de louças ou cerâmicas da terra, aquelas de produção local/regional, torneadas ou não, assim
como as cerâmicas vidradas, panelas, louças esmaltadas e as louças brancas, de produção
brasileira.
Gostaria, para finalizar, de focar em dois inventários em particular. No inventário de
Antônio M. do Amaral, de 20/03/1924, dentre os bens do espólio que recebeu a esposa, Elisa
Conceição do Amaral, e seus três filhos, havia um armazém, localizado em Itaquera. Na
“importância das mercadorias existentes na casa commercial, sita em Itaquera” constam:
MERCADORIAS EXISTENTES NA CASA
COMMERCIAL DO FINADO
18
saccos de farinha trigo 486 000
1
sacco de feijão 63 000
1
sacco de fubá
12 600
2
saccos de assucar redondo 108 000
2
saccos de assucar de primeira 126 000
4
saccos de arroz 117 000
7
saccos de milho branco 75 000
18
saccos de faselhos
64 800
5
caixas de sabão pequenos 42 000
1
caixa de sabão grandes 27 000
1
arroba de Café
28 000
36
garrafas de agua de Caxambú 23 000
21
garrafas ansiete 23 000
12
garrafas vilho typo Porto 43 200
12
garrafas vinho do Porto 43 200
25
Latas de Goiabada
33 700
25
Latas de marmelada 22 500
25
Latas de leite 23 400
24
Latas de biscoutos Maria
39 280
12
Latas de coco 9 000
10
Potes de barro ordenario 18 000
Louça de barro 36 000
Ferragens 31 500
Total 1:496 500
Neste pequeno armazém de secos e molhados, havia predomínio de bebidas e gêneros
alimentícios, mas ressalto a presença das “louças de barro”, de produção nacional, às quais,
397
infelizmente, não foram computadas as quantidades para saber ao que equivalia o valor
referido. A “louça de barro”, produzida em São Paulo, conhecida arqueologicamente como
cerâmica de produção local/regional, um mix de “eventual manutenção de tecnologia
indígena voltada à produção de artefatos”, fabricada segundo demandas por vasilhas com
determinados aspectos visuais agradáveis aos padrões dos consumidores paulistas
(ZANETTINI & MORAES 2005), é aquela que mais se encontra nos sítio históricos de São
Paulo, declinando em quantidade, no refugo, à medida que nos aproximamos do século XX.
a partir do início do século XIX, a louça de barro torna-se mais rara, concomitante a
transformação que a sociedade paulistana sofreu com a abertura dos portos e a facilidade da
importação de produtos forâneos (ZANETTINI 2005: 339).
A documentação dos portos é bastante indicativa do processo. José Antônio Vieira de
Carvalho, dono de um bergantim, no início do século XIX, negociava com quase todos os
portos da costa brasileira; em viagem de ida para o Rio de Janeiro, voltou para Santos com
“20 gigos de louça” (PUTSCHART 1998: 24). O gigo é uma antiga medida portuguesa
equivalente a, aproximadamente, um alqueire; como o alqueire era uma medida de capacidade
utilizada para secos e líquidos, cuja capacidade varia de região para região, oscilando entre 13 e
22 litros, tem-se que as louças vieram transportadas em alguma espécie de baú com capacidade
para 260 a 440 litros de louças... Manoel de Alvarenga Braga, dono de uma lancha que
circulava principalmente no eixo Santos-Rio e Santos-Iguape, Ubatuba e Bertioga, em 1820,
trouxe do Rio de Janeiro, dentre outras coisas, 13.855 dúzias de louça inglesa sortida”
(PUTSCHART 1998: 34), ou seja, 166.260 peças em louça derramadas no porto. Imaginam-
se quantos milhares de toneladas de louça branca não foram desembarcadas nos portos e
redistribuídas para todo o país. De qualquer forma, dialogando com a louça branca em termos
de perfomance visual, decorações e funções (presumidas e reais), a louça de barro não
desapareceu totalmente, como vemos no inventário, mas passou a atuar mais nos universos de
abastecimento, armazenamento (BELLINGIERI 2004) e cocção. Lembro que esta “louça de
barro” foi amplamente estudada por Zanettini (2005), em tese de doutoramento.
o inventário de Dona Soledade Ruiz Poli traz dados mais interessantes. Falecida a
03/02/1920, deixou ao marido, o italiano Nello Poli, e aos filhos, um armazém de seccos e
molhados, na Avenida Guarulhos, nº 8, na Villa do mesmo nome”, sob firma Moreira,
Rodrigues & Poli. O armazém de Guarulhos caracterizava-se como “commercio de seccos e
molhados por atacado e avarejo”, cujo inventário resultou na seguinte listagem (que
reproduzo na íntegra):
398
INVENTARIO de MERCADORIAS EXISTENTES NO
ESTABELECIMENTO DOS SNRS. MOREIRA RODRIGUES & POLI em 31
de DEZEMBRO 1920
6
Quartolas vasias 6$000
36$000
600
Garrafas vasias $200
120$000
46
Ditas idem idem de 1/2 litro
$100
4$600
1
Garrafão vasio 1$400
1$400
12
Duzias de garrafas p/ cerveja
6$500
79$200
7
C/ c/ garrafas p/ soda 9$000
63$000
6
Garrafas communs $200
1$200
1
Rolo de arame farpado 27$000
27$000
5
C/ p/ garrafas 3$000
15$000
1
Quinto vasio 4$000
4$000
3
Garrafões c/ vinho
5$900
17$700
1
C/ vasia p/ garrafas 3$000
3$000
1
C/ de cerveja c/ 1/2 garrafas
19$000
19$000
1
" " " " " 9$000
9$000
9
Syphões $400
3$600
23
Duzias de soda 3$000
69$000
12
C/ c/ garrafas vasias 3$000
36$000
1
" " " " 3$000
3$000
48
Duzias de cerveja
10$000
480$000
8
Garrafões vasios 1$400
11$200
20
Saccos de sal
grosso
7$700
154$000
9
" " " moido 7$700
69$300
150
Kilos " " fino $100
15$000
56
" de toucinho 1$300
72$800
6
Barricas de vinho de fructas 31$600
189$600
1
" de vinagre 15$000
15$000
9
Saccos de assu
car
28$000
252$000
750
Litros de aguardente 4$053
304$000
88
Saccos vasios, grandes
$900
79$200
15
" " pequenos $400
6$000
2:159$800
10
Saccos diversos $500
5$000
15
C/ vasias $800
12$000
5
Sac. Batatas nasc/ p/ planta 10$000
50$000
4
" vasios
$900
3$600
24
Garrafões vasios 1$400
33$600
121
Alqueires batata 6$000
726$000
14
Saccos vasios
$900
12$600
10
" sal grosso 7$700
77$000
3
Pas quadradas 5$000
15$000
4
" bico c/ cabo 5$500
22$000
7
" " sem cabo 4$500
31$500
530
Gram/ de estanho
1$022
14$310
65
kilos de toucinho c/ carne 1$300
84$500
9
Novellos de barbante 4$500
40$500
65
Kilos de cebola
$400
26$000
20
" " corda 1$400
28$000
4
" " " fina 5$200
20$800
1
" " bon-bons 13$000
13$000
399
20
" " barbantes 5$100
102$000
1
Duzias de peneiras de taquara 9$000
9$000
7
Vassouras 1$077
7$540
4
" p/ lavar
$825
3$300
52
C/ sabão grandes 7$000
364$000
74
" " pequenos 3$500
259$000
3
" c/ ortelã pimenta 12$000
36$000
2
" " ferroquina nacional 15$000
30$000
1
" de pregos 18x27 120$000
120$000
1
Tina de bacalhau 65$000
65$000
3
C/ vellas de sebo 20$000
60$000
14
Kilos oleo de linhaça
2
$700
37$8000
1
Lata " " " 45$900
45$9000
2
Saccos de sal moido 7$700
15$400
4:530$150
6
C/ de banha 100$000
600$000
2
" " kerozene 32$000
64$000
80
Kilos corrente p/ carroças 38$000
304$000
1
C/ polvora em latas
50$000
50$
000
3
S/ assucar mascavo 28$000
844000
1
C/ sabão marca "Bom" 22$000
22$000
1
" " " "Vendedor"
32$000
32$000
1
" " " "Perola" 26$000
26$000
71
" " " "Cintra" 6$000
426$000
4
" " " "Manteiga" 96$000
384$000
120
" " " "Perola" 60$000
720$000
2
" de rosquinhas
10$000
20$000
10
" de "Visuvio" 14$000
140$000
5
Latas de banha de 20 ks 32$000
160$000
1
C/ de sabão Visuvio
14$000
14$000
1
Lata mel de abelha 30$000
30$000
9
C/ sabão "Perola" 6$000
54$000
2
C/ " "Luziada" 54$000
108$000
100
Kilos de alvaiade 1$400
140$000
10
" " barbante
5$100
51$000
510
Litros aguardente $400
204$000
1
Lata de bolacha 10$000
10$000
3
S/
milho
13$300
39$900
1
Garrafão vasio 1$400
1$400
6
S/ feijão 13$000
78$000
24
Rol. Arame farpado 21$000
504$000
40
Kilos mate $950
38$000
16
Bacias diversas
5$210
83$374
17
Kilos salame 1$300
22$100
50
" " Rio Grande 3$400
170$000
8
S/ de lingüiça
1$700
13$600
9:123$524
19
Queijos 1$900
36$100
30
Fouces 6$000
180$000
4
Enxadas "Bugre" 4$500
18$000
14
Kilos queijo curado 3$400
47$600
5
Enxadas "Jacaré"
5$900
29$800
400
10
Kilos terra queimada $600
6$000
12
Pas "Vangas" 35$500
42$000
20
Kilos de occa? $300
6$000
4
Enxadas m/ "Mão", 21/2"
7$000
28$000
11
" " " 2" 6$500
71$500
8
Forcados 3$200
25$600
5
C/ bacalhau 114$600
573$300
6
Brs. Cimento "G" 44$000
264$000
2 1/2
" " "P" 25$000
62$500
6
Fardos papel 40$000
240$000
3
" " Cayeiras 50$000
1250$000
16 1/2
S/ Farinha mandioca
12$800
211$200
5
S/ feijão riscado 17$500
87$5000
4
Esteiras de tabúa $800
3$200
80
Maços de phosp.- $600
48$000
1
C/ vellas Paulista 38$500
38$5000
22
" sabão m/ "Bom" 12$909
284$000
1 1/2
Lata oleo de peixe 28$000
42$000
1
Lata Kereozene 16$000
16$000
1
C/ banha de 2 ks
117$000
117$000
14
Pacotes assucar amarellinho 5$750
80$500
38
Latas bolacha 10$000
380$000
2
Dz. soda c/ garrafas 4$500
9$000
2 1/2
Arrobas de ca 21$000
52$500
5
S/ vasios $900
4$500
26
Pacotes assucar branco 7$500
195$000
12:472$824
8
S/ vasios $700
5$600
100
Litros milho $160
16$000
100
" feijão $130
13$000
1
S/ arroz 38$000
38$000
100
Litros batatas
$090
9$000
30
Kilos fumo 3$700
111$000
1/2
S/ feijão novo 8$000
8$000
16
Kilos fumo Araçá
3$000
48$000
1
S/ quirera 14$000
14$000
40
Kilos café em grão 1$100
44$000
2
C/ p/ farrafas 3$000
6$000
1/2
S/ feijão vaqueiro 3$000
3$000
1/2
S/ farinha "Sol"
24$598
24$598
12
C/ vinho do Porto 36$000
432$000
1
S/ feijão 13$000
13$000
41
kilos salamargo
$800
32$000
1
Arroba café União 24$000
24$000
11
C/ macarrão 11$3000
124$300
1 1/2
Tamancos p/ homens 18$000
27$000
1
C/ macarrão 10$8000
13$8000
1/2
Dz. tamancos P/ creanças
5$000
5$000
1
" " " senhoras 13$000
13$000
1
C/ palitos 80$000
80$000
16 1/2
S/ farinha "Sol"
4$9000
808$500
1/2
S/ feijão mulatinho 6$5000
6$000
14
" farinha "Santista" 45$085
631$200
401
26
" vasios $900
23$400
6
" Arroz especial 223$998
224$000
1
Arroba e 3/4 de café 26$300
26$300
-
Saccos de papel
-
80$000
81
" de feijão 13$000
1:053$000
16:427$822
7
Saccos de arroz agulha 33$500
234$500
16
" " " 31$000
496$000
54
" feijão vaqueiro
6$000
324$000
1
" quirera 14$000
14$000
1/2
" feijão vaqueiro 3$000
3$000
10
" milho
15$000
150
$000
20
" kilos corda 1$500
30$000
8
Saccos milho 13$300
106$400
12
" fubá 12$583
151$000
11
" café 66$00
726$000
102
" farello
6$565
669$630
700
cabeças d'alho $030
21$000
5
Ballas de papel 6$440
32$200
33
Pacotes de assucar "Victoria"
7$125
235$125
29
Bars. bacalhau 65$000
1:885$500
13
S/ de assucar 28$420
369$460
2
Engradados de farinha de milho 16$000
32$000
24, 1/2
Kilos de fumo 3$000
73$500
2
C/ oleo "Bretoli"
22$000
450$000
28
" " Camelia 7$000
196$000
50
Latas bolacha 10$000
500$000
17
" oleo Bertoli
5$194
88$400
4
C/ " Camelia 7$000
28$000
1
" " Quinado 54$000
54$000
5
C/ sabão Perola 6$000
30$000
17
" macarão n° 2 10$800
183$600
4
"
" " 1
11$300
45$200
14
Enxadões 7$000
98$000
6
Podões 1$800
10$800
5
Cavadeiras
2$000
10$000
1
Podão 2$500
2$500
23:677$137
36
Enxada m/ Mão 2" 6$500
234$000
2
" " " 2 1/2 7$000
14$000
40
Ki
l
o
s
grampos
1$3
00
52$000
51
Garrafas d'espirito 30° $843
43$000
7
Peneiras de arame 2$876
20$132
13
" " " fino 2$914
37$890
5
Latas confeito 10$000
50$000
9 1/2
Garrfs. soda 1$800
17$100
13
Baldes zinco 3$500
45$500
9 1/2
Grfs. cerveja pretinha $063
6$000
2
Capoteiras
$670
1$340
1
Dz. garfs. vasias $200
2$400
2
Garrafões vasios 1$400
2$800
45
Grfs. d'espirito $866
39$000
402
1
Dz. garfs. vasias $200
2$400
27
Caldeirões de folha 1$665
44$980
4
Grarrafões vasios 1$400
5$600
12
Chocolateiras
$666
8$000
3
Grf s. vinho Virgem $950
2$850
1
Barril vsio 8$000
8$000
1/2
" vinho de fuctas 6$000
8$000
3
Frigideiras n° 20 2$500
7$500
1/2
Arroba sassucar redondo 5$725
5$725
1/2
" " braco 7$500
7$500
1
C/ sabão Perola 6$000
6$000
1
Lata de confeitos
5$000
5$000
3
Frigideiras n° 28 4$500
13$500
1
" " 22 3$500
3$500
1
C/ de sardinhas 75$000
75$000
1
Dz. de marmita de folha 11$000
11$000
1
Enxadas m/ "Mão" 6$500
6$500
24:448$059
1
Enxada "Jacaré" 5$800
5$800
1
" "Bugre" 4$500
4$500
30
Caldeirões 1$166
35$000
3
kilos de cebola $340
1$020
1/2
Arroba de café
10$500
10$500
16
Libras de chocolate 1$000
16$000
1 1/2
Dz torneiras 8$000
12$000
2
Kilo
s de ballas
2$500
5$000
100
" sulphato de soda $600
60$000
3
Facas charqueadeiras 5$000
15$000
1
Garf. de caninha $600
$600
3
kilos de manteiga 4$000
12$000
8
Latas de azeitonas
2$000
16$000
124
" de marmellada $975
120$900
46
kilos de goiabada 2$100
96$600
2
Latas de doces em caldas
$800
1$600
5
kilos de extr. de tomate 3$000
15$000
15
Latas de fermento inglez $900
13$500
5
" chá Lipton 2$000
10$000
14
" leite condensado 1$187
16$618
26
" biscouto
s Duchen
1$950
50$700
17
kilos de manteiga 1/2 kilos 4$000
68$000
5
Vidros de magnesia $500
2$500
48
garrafas de tamarindo
1$133
54$400
14
cassarolas esmaltadas 4$250
59$500
-
Diversas garrafas c/ bebidas diver. -
20$000
-
" copos p/ chops. -
5$000
23
Caldeirões esmaltadas 7$613
175$100
7
Gz. de linha em carriteis
36$828
275$810
2
Chaleiras 8$640
17$280
1
Dz. Linha nº 10
8$500
8$500
25:634$487
150
Cadernos escolares $080
12$000
10
Bules esmaltados
5$556
55$560
403
32
Pacotes de maisena $450
14$400
18
c/ anil 2$300
41$400
1
Dz. Facas p/ cozinha 12$000
12$000
4
" pomadas p/ calçados
1$000
4$000
12
Maços phosph. m/ Olho $600
7$200
3
canivetes 1$500
4$500
1
c/ pimenta 3$000
3$000
1
Maço de vellas 3$250
3$250
3
Emplastos porosos $800
2$400
2000
Espoletas $002
9$000
1
Dz, cachimbo 4$500
4$500
3
Latas de aliche
3$533
9$600
32
kilos de canella em rama 3$200
102$400
50
sapolios $160
8$000
21
c/ palitos $270
5$670
1
Pacote c/ vella de sebo 2$500
2$500
6 1/2
kilos caçarola de ferro $320
20$800
11
maços de phosp. Pinheiro $658
7$238
2
Dz. Pomada p/ calçado 1$000
2$000
1
Milheiro de cigarros
$019
19$600
100
Charutos $035
3$500
6
c/ papel "Economia" 6$000
36$000
500
Cigarros Herculanos $008
4$000
1500
" Victoriosos $008
12$000
500
" Yolanda $012
6$300
500
" Olga $015
7$700
1000
" Nina Pancha $012
12$000
2000
" Tenis
$010
20$000
5000
" Famosos $006
6$000
26:093$005
500
Cigarros Sudan
$012
6$300
500
" " extra $014
7$300
15
kilos de banha 1$600
24$000
3
vidros p/ doces 2$000
6$000
20
Dz. pacotes de taxas 2$200
44$000
2
" carriteis de linha 3$000
6$000
1000
Espoletas $005
5$000
1/2
kilo nosmoscada 13$500
13$500
2
Latas de manã
13$000
26$000
3
canivetes 1$500
4$500
390
Garfs. de licôres diversos 1$083
422$000
2000
Espoletas $005
10$000
1
Dz. de Bromil 11$000
11$000
1
kilo de, sine 6$000
6$000
45
Garfs. de capilé tamarindo 1$088
49$000
400
Grams. de camphora $050
20$000
1000
Espoletas
$005
5$800
50
Balas nº 380 $100
5$000
5
Dz. garfs. oleo de ricino 1$600
5$000
100
cadernetas $120
8$000
1
c/ pimenta do reino 3$000
12$000
1
Dz. Pomadas p/ calçado 1$000
3$000
404
26
Litros de phernet 2$084
1$000
10
Grfs. de espirito $850
54$200
5 1/2
Pacotes de anil 1$300
8$500
20
Garfs. de licôres
1$100
7$150
1
c/ balas nº 320 2$500
22$000
1
Dz. Creolina "Pearson" - vidros 4$900
4$900
200
Cartuchos de polvora $220
44$000
65
Garfs. de caninha do Ó $761
49$500
3
Dz. de cachimbos 4$500
13$00
29:995$155
1
Dz. caximbos 10$000
10$000
16
Garfs. vinho Tosto 1$600
25$600
11
Litros de fernet Antartica 3$500
38$500
3
Frascos Ferro-quina 6$916
20$750
2 1/
2
Grozas de lapis
11$000
27$500
2
c/ pimenta 3$000
6$000
11
Garfs. Congnac 6$204
68$750
1
" Chambertin 4$500
4$500
10
" Vinho do Porto 3$000
30$000
7
Novellos barbante 1$500
10$500
2
Dz. c/ c/ lamparinas 2$800
5$600
10
Garfs. de Marsalla 5$300
53$000
1
Litro de Vermouth
4$000
4$000
5
" " Cinzano 4$500
20$500
2
Dz. de sabonetes 3$600
7$200
25
Livretes de papel farman $112
2$800
3
Dz. de canetas $500
1$500
2
" " colheres 3$000
6$000
1
kilo de pedra hume 2$500
2$500
9
Litros de sambuca 2$300
20$700
5
" " genebra
2$300
11$500
-
Cigarros e charutos 15$000
15$000
5
Garfs, de cognac 2$000
10$000
3
Frascos de Bitter 2$000
6$000
3
Litros de genebra 2$300
6$900
900
Rolhas $010
9$000
100
Kilos de gram. $250
25$000
11
Litros de Vermouth Antartica 2$331
25$650
3
" " Quinado
3$000
9$000
57
" " aguardente 1$252
71$400
10
Garafs. orte 1$300
13$000
27:565$505
1
Dz. de escovas 18$000
18$000
10
Litros de cog
nac Antartica
3$833
38$333
880
Grammas de barbante $051
4$080
18
Maços de pregos 17 x 21 3$570
64$260
36
Pratos inglezes 1$200
43$500
216
Tijellas pequenas $183
39$600
20
Latas de banha
3$822
79$440
67
kilos de ervadoce $242
16$250
23
Panellas de ferro 100 kls. 6$304
145$000
16
Maços de pregos 21 x 42
3$132
50$112
405
58
" " " 3$150
182$700
27
" " " 3$624
97$860
24
Pás quadradas 3$666
88$000
24
" vanga
3$500
84$000
20
Panellas de ferro 54 ks 1$600
32$000
10
Machados collins 7$500
75$000
1
c/ pregos 16 x 18 109$200
109$200
26
Fouces 2$500
65$000
132
kilos for. de ferro 2$800
369$600
23
c/ de graxa $900
20$700
41
Lampiões Brindelas 1$000
41$000
10
Chaminés p/ lampião
$500
5$000
200
Torcidas $100
20$000
10
Maços de isca $100
1$000
33
Canecas esmaltadas 1$610
53$152
13
copos p/ chops $207
2$700
21
Chaminés Tulipa phantasia $500
12$000
6
Ferros de engommar 5$000
30$000
1 1/2
Kilo de cravo $280
4$200
1700
Gram/ tinta verde
$035
5$950
13
Saccos de chumbo 15$000
195$000
29:555$142
5
fechaduras 2$166
10$830
3
Fouces $500
1$500
13
Folhas de lixa $100
1$300
4 1/2
Litros de goma $800
3$600
3
Maços de pregos 12 x 12 4$200
12$600
5
Latas de formecida 3$500
17$500
2
" " " 4 litros 9$500
19$000
5 1/2
Dz. de colheres
3$000
16$500
5
c/ de lamparinas $300
1$500
1
Dz. de fechaduras 2$166
26$000
8
c/ de parafusos 1$300
10$400
14
Dz. dobradiças 7$500
105$500
11
" " polidas 9$500
104$500
15
kilos de cera 2$500
37$500
57
" arame liso 2$000
114$000
132
Pratos nacionaes
$625
82$500
21
" " esmaltados 1$123
23$600
3
esmaltadas Tijellas 2$000
6$000
12
Formões 4$133
49$600
10
c/ de caneçça 3$000
30$000
40
Tijellas nº 8 $450
18$000
65
" " 13 $270
17$550
9
c/ de canellas 3$000
27$000
1
" " anil
9$000
9$000
13
Latas de magnesia 1$500
19$500
2
Tijellas 1$500
3$000
7
Latas de creolina 1$100
7$700
1
Prato travessa 2$160
2$160
2
Bacias 1$900
3$800
2
" 4$400
8$880
406
21
Maços de pregos 20 x 30 3$150
66$150
30:411$312
1
Forno de ferro 39$000
39$000
4
kilos de pregos sortidos 2$500
10$000
300
Pedras de tirar fogo $019
5$7000
30
Dz. de licôres 10$000
300$000
2
Quartolas de aguardnete 100$000
200$000
4
Quintos " " 50$000
200$000
1/fev
c/ de pisselle
80$000
80$000
2 1/2
" " latas de manteiga 100$000
250$000
5
c/ sardinhas 35$000
175$000
5
Latas de cogumelos 10$000
50$000
1/fev
c/ de palitos 35$000
35$000
1
" " magnesia 40$000
40$000
3
" " goma 58$333
175$000
2
Latas de fumo 23$750
47$000
5
c/ de anil
9$000
54$000
45
kilos de manteiga 4$444
200$000
13
c/ de caninha 9$038
117$5000
5
" " sapolio 10$000
50$000
5
Latas de collorau 9$000
45$000
1
Quinto de aguardente 50$000
50$000
80
Letras $055
4$400
50
Notas de consignação $050
2$500
3/abr
Resma de papel pautado
10$500
10$500
5
c/ de pennas 3$000
15$00
8
Limas $687
5$500
100
c/ de sabão Perola 5$500
550$000
500
s/ de carvão vegetal 3$700
1:850$000
17
c/ p/ garrafas 7$941
135$000
-
Diversas caixas e garrafas 106$200
106$200
8
porcos na cevada 16$875
135$100
40
s/ de assucar 27$500
1:100$000
36:440$112
1
c/ de Fernet
114$000
114$0
00
1
Dz. de carreteis de verdegaia $423
5$088
Importancia das mercadorias existentes na Casa
filial nesta data 5:545$149
Importancia da lista dos pequenos devedores... 5:716$500
47:820$849
Como era de se esperar, o Armazém comercializava, majoritariamente, gêneros alimentícios,
associados a outras mercadorias. Destaco a grande quantidade de bebidas, além de alguns
itens básicos como vassouras, sabão, carvão, sardinhas, escovas, papel, pregos, etc. A
aguardente e o vinho predominavam na casa, fossem importados, nacionais, em garrafas ou
garrafões: “Garrafões c/ vinho”, “Barricas de vinho de fructas”, “Grfs. vinho Virgem”,
407
“Garfs. Congnac”, “Chambertin”, Vinho do Porto”, “Garfs. de Marsalla”, “Litro de
Vermouth”, Cinzano, “Vermouth Antartica”, “Litros de aguardente”, “Quinado”, etc.
Eram também comercializadas na casa as “Pedras de tirar fogo”, inventariadas em
quantidade de 300 unidades, a $019 (preço bastante baixo), que deve estar se referindo às
pederneiras ou binguelas. As pederneiras eram sílex lascados com objetivo de produzir faísca,
muito usadas em armas, mas também para produzir fogo para cigarrilhas e fogões.
Analisando inventários do século XVII, Zanettini ressaltou a presença de algumas armas com
pederneiras referenciadas em expressões como “espingarda de fecho de pederneira” (2005:
202). Em geral, no entanto, a bibliografia arqueológica ressalta a presença das pederneiras
durante o período colonial e imperial, mas sabe-se que foram usadas ao século XX, quiçá
mais como isqueiro do que como parte de armamento. Referindo-se a uma caçada, em 1850,
em Carapanatuba, Amazonas, o naturalista Henry Bates narra que "[...] depois de jantar [...] e
fumar nossos cigarros (pois nhamos sempre conosco fumo, palha, isqueiro e pederneira),
tomamos outra direção da mata, em busca de melhor ponto." Em O Vaqueano, de 1872,
Apolinário Porto-Alegre, narra uma cena de fumo com uso das “pedras de tirar fogo” quando
diz: “O argumento calou no ânimo do vaqueano, que sobresteve pensativo, tirou uma palha
do bolso, cortou-a, picou um pedaço da torcida de fumo, fez o cigarro, feriu a pederneira
sobre a isca de pita, e fumou; e durante que passeava, soltando imensas baforadas...”. Assim,
as pederneiras, pedras de fogo” ou “pedras de tirar fogo”, eram vendidas o
necessariamente para as armas de fogo (destarte a presença no armazém de pólvora e outros
objetos associados ao uso bélico), mas também para o fumo (inclusive, o armazém
comercializava vários cachimbos).
Gostaria de ressaltar, por fim, com base na listagem do armazém de secos e molhados
de D. Soledade, o que se tem, para a época, de louças e cerâmicas e com quem elas estão
competindo, em termos de funcionalidade. Neste inventário, a designação “de barro” não
existe, o que me levou a crer que os recipientes designados no inventário se referissem a
louças brancas (não por eliminação, mas justamente pelo fato de que era consagrado o
nome louça de barro” quando se referia a cerâmicas mais grosseiras, que não a louça). É
possível perceber alguns dos materiais com quem estavam concorrendo na época. Um tipo de
material, em especial, disputava mercado, competindo ora com cerâmicas ora com as louças:
o metal. Em muitos contextos, a adoção de produtos industrializados, sobretudo aqueles de
maior durabilidade e utilizados até a sua exaustão (devido ao seu valor como produto
adquirido), no âmbito das atividades domésticas de produção e consumo de alimentos
408
(panelas e chaleiras de ferro, bacias de ágate, flandres, canecas de alumínio), provocaram um
colapso no consumo de bens de produção local e regional.
Segundo o inventário, tem-se, por um lado, o ferro, representado pela “caçarola de
ferro”, “Panellas de ferro 100 kls.” e Panellas de ferro 54 ks” que concorreriam, em termos
de forma, com as panelas cerâmicas, coexistindo com as mesmas, no entanto, durante
décadas artefatos que, por sua natureza, não aparecem ou tem baixa freqüência no registro
arqueológico.
Por outro lado, a presença do ágate, representado pelas “cassarolas esmaltadas”,
Caldeirões esmaltadas”, “Bules esmaltados”, “Canecas esmaltadas”, pratos nacionais
esmaltados e tigelas esmaltadas. Ainda inexistem pesquisas sobre artefatos em ágate no
Brasil. Sabe-se que são recipientes de metal, em ferro, esmaltados. Os esmaltes geralmente
são grossos em espessura, comparados à porcelana e à faiança fina, e coloridos, mais
comumente variando entre as cores branca, vermelha, verde e azul. Formas bastante comuns
em ágate são as do universo sanitário e de higiene pessoal, como penicos e bacias, além das
canecas, bules, pratos e algumas panelas, dentro do universo da alimentação. O ágate tem alto
poder de conservação do calor, mantendo os alimentos quentes por mais tempo e o ferro,
quando esmaltado, assume a qualidade do vidro tornando-se mais resistente à corrosão e
imune ao odor (CERSA 2004; SOUZA no prelo).
Para a literatura americana, há a terminologia agate ware, que ora se refere à cerâmica
com decoração semelhante a ágata (mineral) como um dos tipos das marble ware, ora aos
recipientes de ferro esmaltado (enameled iron). registro de seu uso, pelo menos, desde o
começo do século XIX (1819), quando Saint-Hilaire (1975: 75), referindo-se à uma casa de
fazenda de criação de um capitão-mor, nos arredores de Formiga, em Minas Gerais, diz: "Da
varanda, bastante ampla [...] passava-se para uma grande peça coberta de telha-vã e de
paredes sem caiação, cuja única mobília consistia em alguns bancos de madeira, tamboretes
forrados de couro e uma enorme talha com um caneco de ferro esmaltado para retirar a
água". Há também confirmação de sua produção nacional e popularização no início do século
XX (podendo, claro, talvez ter havido produção nacional nos séculos anteriores), a exemplo
da Fábrica de Ferro Esmaltado Sílex, da Sociedade Anônima Comércio e Indústria “Souza
Noschese”, fundada na década de 1920 (MARSON & BELANGA 2006), e da Cerâmica
Paulista de Louça Esmaltada, todas em São Paulo. Por ser um metal, com maior durabilidade,
o ágate é um material de baixa recorrência no registro arqueológico, com probabilidade de ser
409
mais antigo do que o restante dos artefatos presentes num mesmo conjunto (SOUZA no
prelo).
O ágate passa a concorrer, em termos de função, com os materiais em louça, por ser
fabricado também na forma canecas, pratos, penicos, etc. Em Um Fazendeiro Paulista no
Século XIX, Carlota Pereira de Queiroz autobiografa o tenente-coronel Manuel Elpídio
Pereira de Queiroz que, no inventário, de 1899, da fazenda que possuía nos arredores de
Jundiaí, constam "6 xícaras de ágata 43 caras de louça" e "26 pires de louça 5 pares de
ágata” (1965: 200), o que sugere uma equivalência, quanto à forma (e função) dos recipientes
em ágate e em faiança fina, apesar desta última ser mais freqüente dentre os bens do coronel.
Existe ainda uma menção ao flandres, como em “caldeirões de folha”. A folha-de-
flandres é um material laminado composto por aço de baixo teor de carbono revestido com
estanho, com alta resistência à corrosão. Existe referência a uma fábrica próxima a Fábrica
Santa Catharina, na Lapa, de materiais de “folha”
30
. Referindo-se a mascates que atendiam
aos moradores de um cortiço, no Rio de Janeiro, em 1890, Aluísio de Azevedo em O Cortiço
(1974: 46) narra: "Vieram os ruidosos mascates com as suas latas de quinquilharia, com as
suas caixas de candeeiros e objetos de vidro e com o seu fornecimento de caçarolas e
chocolateiras de folhas-de-flandres”. Artefatos em “folha-de-flandres” ou simplesmente
“flandres” ou “folha” aparecem em variados inventários desde o século XVI (BRUNO 2009).
Apenas a partir da segunda metade do século XX, com o avanço dos plásticos, a folha de
flandres passou a ser substituída em muito produtos, em especial devido ao custo mais baixo
e a algumas características na performance final dos objetos (como o peso).
Acredito serem louças o que está representado, no inventário, pelos nomes “Pratos
inglezes”, Pratos nacionaes”, “Prato travessa”, “Tijellas pequenas”, “Tijella 8” e 13”.
O que chama atenção, primeiramente, é a ausência de referências a caras (diferentemente
do que ocorre na publicidade, portanto); os recipientes em louça comercializados eram
apenas tigelas e pratos. Isto apontaria para hábitos culturais e de consumo dos habitantes que
compravam? A xícara, a meu ver, fazia parte, e percebe-se isto mais claramente pelas
publicidades, de um discurso maior de modernização, pensada por parte das elites, dentro do
que, se a tigela passou a estar associada ao sorver dos caldos” colonial, a xícara talvez
estivesse associada, nesta visão, a um comportamento supostamente mais “europeu” ou, pelo
menos, encarado como mais “moderno” e não tradicional. A presença das tigelas no armazém
30
Entrevista a Dona Ignez.
410
de D. Soledade, no entanto, indica que, destarte discursos como estes, a realidade da prática
era bem diversa. As tigelas persistiriram pelo século XX, corroborando a alta freqüência
desta forma no sítio Petybon. Os diferentes números de tigela indicam, assim como na
Fábrica Santa Catharina, as variantes volumétrica de uma forma cujo design possibilita
milhares de usos.
A riqueza de informações deste inventário vai além. Como existem outros produtos na
listagem, é possível estabelecer relações de valor entre eles. Deste modo, conceitos como
“caro” ou barato” deixam de ser meras abstrações, como em geral ocorre, em frases como
“louça mais cara”. “Caro” e barato” denotam relações de valor quando existem
comparações: mais caro, ou barato, em relação a o quê? que se pressupor que o preço de
um bem é uma expressão do valor de troca desse bem e tem sentido na dinâmica de troca,
que, envolve, no mínimo, duas coisas “se uma maçã vale $ 500,00 e uma banana $ 50,00,
uma maçã pode ser trocada por 10 bananas” (VASCONCELLOS 2002: 293). Igualmente, de
nada adianta, por exemplo, dizer que uma louça custa x réis, porque não existem, hoje,
parâmetros de custos em réis. A moeda serve para comparar e agregar valor de mercadorias
diferentes (VASCONCELLOS 2002: 293), daí que, dizer que uma faiança fina com n
características custa tantos réis é quase o mesmo que não dizer nada, uma vez que isto deve
ser comparado, para fazer algum sentido, a outros produtos e, quando for possível, a algum
salário ou poder aquisitivo (o que, mesmo assim, não impede o consumo de um bem). Por
isso, a comparação das louças com demais gêneros inventariados é bastante promissora.
Realizar este exercício, por exemplo, mostrou que estas, na década de 1920, eram
muito baratas: um prato inglês custava quase duas vezes mais que um prato nacional e quase
o mesmo que um prato nacional esmaltado (ágate). Quanto às tigelas, a mais barata delas, de
$183, custava 2,46 vezes menos que a “Tijella 8”, 8,2 vezes menos que a “Tijella” e 10,93
vezes menos que a tigela esmaltada. Um copo de chopp, de vidro, custava $207, isto é, 1,13
vezes mais que a tigela mais barata, por sua vez ainda mais barata que 1 kg de erva doce;
mesmo o prato inglês, era quase o preço de um quilo de toucinho e o equivalente,
aproximadamente, a 3 kg de cebola. Um quilo de goiabada equivalia a dois pratos ingleses e
quatro pratos nacionais! Sabendo que a goiabada nunca foi algo caro, fora do poder aquisitivo
da maioria das pessoas, fica mais fácil compreender porque as louças não eram algo
absurdamente custoso, muito pelo contrário.
Com base nestes dados, acredito que preço (custo) de uma louça não se refira, somada
a outras justificativas que apresentei em capítulos anteriores, necessariamente a uma posição
411
sócio-econômica de seu usuário. Estes diferenciais “econômicos” estariam muito mais
relacionados a formas de uso e práticas do que ao preço em si; diferenças entre grupos com
diversos poderes aquisitivos estariam muito mais relacionadas às preferências e escolhas de
consumo, a identidades e manifestações culturais, do que meramente a um valor monetário
ou ao dinheiro gasto na aquisição de um objeto.
412
CAPÍTULO 5
CONSIDERAÇÕES FINAIS A UM NOVO PARADIGMA DE MODERNIDADE
PARA SÃO PAULO: EPISTEME DAS LOUÇAS BRANCAS BRASILEIRAS
...simplesmente esquecemos que noções como
modernidade, iluminismo e democracia não são, de modo
algum, conceitos simples e consensuais que se encontram ou
não, como ovos de Páscoa, na sala de casa...
(Edward Said, Orientalismo, 2007: 15).
... o que de mais característico da modernidade
latinoamericana e caribenha. Uma modernidade entre
barroca e gica, indoamericana e afroamericana, ibérica e
ocidental, original e esquizofrênica.
(Otávio Ianni, Enigmas do pensamento latinamericano,
2005: 7)
Quando Lévi-Strauss escreve suas memórias, em Saudades de São Paulo, em
1935, define a cidade como um emaranhado de temporalidades diversas, como se
houvessem duas: a Chicago do hemisfério sul (LÉVI-STRAUSS 1996: 23), a Paulicéia
moderna com seus automóveis, prédios, periódicos, cafés, teatros, etc., e aquela mais
tradicional, formada pelos caipiras e italianos do Brás, pelas lavadeiras da várzea do
Carmo, pela clássica fotografia dos bondes ao lado de uma boiada em pleno centro.
Segundo o antropólogo:
413
O encanto da cidade, o interesse que ela suscita vinham primeiro de sua diversidade.
Ruas provincianas onde sucediam sem transição às ricas residências, perspectivas
imprevistas sobre vastas paisagens urbanas: o relevo acidentado da cidade e as
defasagens no tempo, que tornavam perceptíveis os estilos arquitetônicos, cumulavam
seus efeitos para criar dia após dia espetáculos novos (LÉVI-STRAUSS 1996: 69).
De uma forma ou de outra, esta concepção de modernidade na cidade de São
Paulo, seja em memorialistas e jornalistas da época, seja em historiadores, antropólogos
e arqueólogos até os dias atuais, perdurou com muita força: a de que a modernidade
paulistana é uma modernidade defasada, incipiente, assincrônica e alocrônica, algo que
se quis adaptar aos “trópicos”, um discurso que deixa escapar um quê de difusionismo
(FERREIRA 2007) ao pressupor a expansão de um modelo (modernidade) a partir de
um centro (Europa), que, destarte tentativas, não saiu como o original, constituindo uma
“cópia mal feita”, para usar a expressão de Roberto Schwarz. Segundo Schwarz (1989),
a experiência do caráter postiço, inautêntico, imitado, atemporal ou de múltiplas
temporalidades, na vida cultural que se leva na América Latina, e no Brasil, é
constantemente relembrado, ressaltado e tido como verdade pelos veículos de
comunicação, e acaba sendo vivido. Berman, para São Petersburgo, por exemplo,
caracterizou a modernidade russa como bizarra, desequilibrada (2007: 333).
Desde o século XIX até os anos 1960, a intelectualidade, pautada em noções de
cópia, buscou diagnosticar no Brasil a existência de culturas alienadas, importadas de
países “centrais” (ORTIZ 2006: 7). Um exercício de bricolagem torna-se, segundo estes
discursos, uma cópia, tendo em vista o conceito ingênuo de “cópia fiel” (GUINZBURG
2001: 102). Diversos exemplos são dados pelas fontes escritas dos supostos
“paradoxos” da modernidade paulistana, como o da boiada e do bonde. Muitos destes
exemplos, para Schwarz, são “desencontrados, muito diferentes no calibre, pressupondo
modos de ver incompatíveis uns com os outros, mas escolhidos com propósito de
indicar a generalidade social de uma certa experiência. Todos comportam o sentimento
da contradição entre a realidade nacional e o prestígio ideológico dos países que nos
servem de modelo” (SCHWARZ 1989: 30).
Parto do pressuposto de que existe, portanto, um discurso pautado em alguns
ideais de modernidade, que não não condizem com o que se encontra num sítio
arqueológico, mas que procuram opor sempre uma suposta “essência da modernidade” à
um “tradicional” ou ao que não se configura como “moderno”, dentro de um corpus de
414
comportamentos e bitos pré-determinados. Excluindo o tradicional, exclui pessoas,
porém não deixa claro o que, materialmente, seriam artefatos modernos”,
estigmatizando os ingredientes negativos tanto da tradição como do comportamento que
se queria tradicional (PALACIOS 1999: 76). É claro que, gerado no âmago de uma
parte das elites paulistanas, esse discurso é controlado e selecionado de forma que
conjura poderes e domina acontecimentos aleatórios (FOUCAULT 2007: 9). Uma vez
que estes discursos de modernidade compartilham vontades de verdade”, dispõem de
um poder de coerção sobre os demais discursos criando sistemas de exclusão
(FOUCAULT 2007: 21).
Busquei perceber nesta dissertação, através de uma reflexão sobre os “limites
epistemológicos de idéias etnocêntricas”, o que Homi Bhabha chamou de “fronteiras
enunciativas de uma gama de outras vozes e histórias dissonantes, até dissidentes
(BHABHA 2007: 24), onde, por exemplo, o uso de louças em formas tidas como
tradicionais, como as tigelas, ou seus modos de usar, variados, na prática, apontam
justamente para características normativas do discurso da modernidade na Paulicéia.
Mergulhar neste universo é perceber como a dominação cultural tem operado (SAID
2007: 60) e que existe uma “massa de formação discursiva” (SAID 2007) que age de
determinada maneira, segundo concepções específicas de modernidade e aspectos a ela
relacionados, que corroboram a idéia de discurso também como representação, cuja
efetividade política está no fato de manter sempre a América Latina num tempo
anacrônico (o tempo colonial) ou num lugar distante (“a sala de espera”), pautado na
noção linear de progresso iluminista, em relação a uma Europa que ganha status de
modelo. É possível, portanto, a construção de discursos alternativos pautados na análise
da cultura material, num ambiente capitalista não inexorável, com reflexões sobre a
faiança fina nacional. Minhas primeiras indagações ao sítio Petybon e depois às
problemáticas surgidas durante a análise da louça brasileira fizeram perceber que a
partir delas, e com elas, poderia tentar produzir uma história multivocal ou uma nova
narrativa na tentativa de superar aquilo que Gnecco (2009: 16) chamou de “violência
epistêmica” que caracterizou a modernidade, dialógica ao discurso arqueológico
latinoamericano. Se, como pontuou Orser (1996: 87), uma arqueologia do mundo
moderno é aquela que estuda os efeitos do colonialismo, eurocentrismo, capitalismo e
modernidade, juntos, no mundo, é preciso, portanto, entender a historicidade de cada
um destes termos.
415
Apesar de uma abordagem crítica, sabendo que modernidade e colonialismo co-
produziram-se (GNECCO 2009), ainda sim utilizei, durante o trabalho, o termo
“modernidade”, no intuito de explorar as capacidades e limitações de categoriais sociais
e políticas européias em contextos não-europeus (SAID 2004), sem banir esta que é uma
categoria das ciências sociais hoje (CHAKRABARTY 2000: 20), ainda cerne de muitas
discussões e debates sobre “teorias da modernização” no chamado “3º mundo” (WILK
1994: 98).
Os projetos e discursos de modernidade que conjunturaram interpretações sobre
a cultura material de sítios históricos, colaboraram para que um conjunto de idéias
ganhasse o status de “verdade natural” (SAID 2007: 433) e que se criasse um regime de
verdade como aquele baseado num suposto “centro-periferia”. Características de um
arcabouço freqüentemente adotado de forma acrítica pela intelligentsia latino-americana
e que, pautado numa supervalorização do estrangeiro, dirimem o nacional, aspecto que
afeta o a interpretação da cultura material, mas os próprios atributos de análise
elencados para o trabalho arqueológico. Esta dissertação procurou mostrar, pautando-se
nestas críticas, o que particularizaria a louça em faiança fina brasileira, justamente para
não cair em noções simplistas como a de que ela, ou quem pensou sua produção, ou
demandou por estes produtos, “copiou” a louça inglesa ou européia.
Zarankin (1995: 40) lembra que nas análises arqueológicas a escolha de
categoria para efetuar classificações é funcional em relação a um problema particular, e
que sua escolha depende dos fatores que se consideram relevantes em uma investigação
em função de seus objetivos. Toda classificação é arbitrária e a discriminação dos
atributos (morfológicos e decorativos) (DUNNELL 2007) que utilizei para analisar as
louças foi condicionada pelas problemáticas da pesquisa. Percebendo que o discurso de
superioridade ocidental pressuporia uma diferença colonial (MIGNOLO 2007), notei
que a “arma” em prol de outras interpretações da louça branca seria a própria ficha de
análise do material arqueológico que refletiria as abordagens que quis focar,
questionando o processo de transformação das diferenças em valores (MIGNOLO 2007:
43), presentes não apenas na relação louça brasileira - louça inglesa, mas também na
relação Brasil - Europa.
Reconhecer que imbricada nas redes da análise da cultura material estão
retóricas e representações que auxiliam um processo histórico de dominação, é
reconhecer que a Arqueologia e a cultura material têm papel ativo na construção de
identidades culturais e no desafiar de percepções colonizadas de identidade (FUNARI
416
2008: 184). Assim, mudar os atributos de análise das louças era também identificar
fatores subjetivos que faziam variar as interpretações dos registros arqueológicos
(TRIGGER 1992: 16), mostrando que condições sociais cambiantes modificam não
apenas as perguntas que o arqueólogo formula como também as respostas que está
disposto a considerar aceitáveis (TRIGGER 1992: 23). Esta dissertação procurou,
assim, apontar que política e Arqueologia são fenômenos inter-relacionados e que se a
Arqueologia foi potencialmente perigosa na política européia (com o nacionalismo), na
América Latina a política pode ser questionada pela Arqueologia, em especial quando
pensamos contextos recentes como o desta pesquisa (KOHL 1998: 242). Concepções de
modernidade influenciaram na leitura e interpretação das louças brancas.
Pauto-me nos trabalhos de Said para o qual textos, sejam de um acadêmico ou
um viajante, podem criar não conhecimento, mas também a própria realidade que
parecem descrever” (SAID 2007: 142), agerarem uma tradição ou discurso que, para
São Paulo, remeteria não à imagem que se formou da cidade pobre, abandonada e
isolada no planalto durante a Colônia, ou ao mito da ideologia bandeirante, mas também
aquela modernidade à européia que se quis para a cidade. São “demandas de poder
inerentes aos discursos que suportam práticas sociais” (DE DECCA 2004: 40).
É importante ressaltar que, para Raymond Williams (2007: 282), a maioria dos
sentidos da palavra “moderno”, anteriores ao século XIX, era desfavorável quando num
contexto comparativo; apenas ao longo do XIX, e principalmente no século XX,
“moderno” fez um movimento na direção contrária, tornando-se quase equivalente a
“melhorado” ou “satisfatório”, implicando alguma alteração no que seria um sistema ou
instituição antiga.
Para Habermas, o conceito de modernização “refere-se a um conjunto de
processos cumulativos e de reforço mútuo: à formação de capital e mobilização de
recursos; ao desenvolvimento das forças de trabalho e ao aumento da produtividade do
trabalho; ao estabelecimento do poder político centralizado e à formação de identidades
nacionais; à expansão dos direitos de participação política, das formas urbanas de vida e
da formação escolar formal; à secularização de valores e normas(HABERMAS 2000:
5). A teoria da modernização, no entanto, teria acarretado uma abstração plena,
tornando a modernidade um padrão atemporal e a-espacial e um estado final a se atingir,
criando-se um conceito acabado, um pacote a ser replicado. Habermas chama ainda
atenção para o sentido cronológico que o termo obtém com Hegel, no qual modernidade
ganha o sentido de uma época nova e sua necessidade de auto-afirmação impinge que
417
não tome modelos de outras épocas, mas “extraia de si mesmo sua normatividade”
(HABERMAS 2000: 12) em prol de uma desvalorização do passado.
Em São Paulo, o discurso de modernidade esteve, além disso, associado à idéia
de destruição; Benjamin (2000: 20) nos lembra que as grandes cidades cresceram com
os meios que as puderam destruir. O começo do século XX assistiu a intensas obras
estéticas e sanitaristas, no centro paulistano, levadas a cabo por Antonio da Silva Prado
(KAHTOUNI 2004: 76). As políticas de urbanização, da abertura das grandes avenidas,
destruíram bairros inteiros, mesmo em períodos mais recentes como os anos 1950,
quando as favelas que ocupavam a área reservada ao parque do Ibirapuera foram
banidas (KAHTOUNI 2004: 140). A “demolição permanente” seria uma das
características definidoras da modernidade (BERMAN 2007: 338). Os processos de
aterramento, re-aterramento, preenchimento das crateras de retiradas de argila das
várzeas do Tietê com lixo urbano e a urbanização de bairros e várzeas, proliferaram os
aterros na cidade, contexto do qual o sítio Petybon é também fruto. Derrubando e
aterrando, a cidade se renova, tendo em vista uma paisagem urbana indesejável segundo
esta ou aquela ideologia. Abundavam os aterros de terra ocre” pela urbe paulistana
como percebeu Lévi-Strauss nos anos 1930 (1996: 94). Como construções culturais,
procurei propor no Capítulo 1, que os lugares nunca são neutros, e através de mudanças
constantes na materialidade (ZARANKIN 2002: 35) das paisagens urbanas da cidade de
São Paulo, as elites e seus projetos de modernidade, como os planos de urbanização,
criaram mecanismos e tecnologias (como os aterros) que engendraram discursos de
poder que viam nos aterros uma camada divisória entre o passado, sepultado, e o
presente.
Para Le Goff (2003: 173), o par antigo/moderno sempre esteve associado à
história do Ocidente e teve sua oposicionalidade acentuada com o aparecimento do
conceito de modernidade. Este jogo dialético foi gerado a partir do momento em que a
consciência da modernidade nasceu do sentido de ruptura com o passado; mais do que
uma ruptura, a modernidade como “novo” passou a promover um esquecimento ou uma
ausência de passado (LE GOFF 2003: 179). Quando este discurso entrou em contato
com locais como a América Latina, gerou associações entre modernidade e
ocidentalização, paralelamente ao problema da identidade nacional. Daí as constantes
associações entre São Paulo e Chicago, Liverpool, Milão ou Manchester (MOTA 2003:
241).
418
Marshall Berman ressalta que endêmico à modernidade, é o movimento de criar
ambientes homogêneos, desaparecendo com as marcas e a aparência de um velho
mundo sem deixar vestígios (BERMAN 2007: 86). Aterrar ou derrubar a antiga fábrica
de louças para a construção de uma fábrica de biscoitos, ou tentar impor novos hábitos
pela produção de faianças finas no país, para Berman (2007: 95), seriam sinais de atos
de destruição destinada a não gerar uma utilidade material, “mas assinalar o significado
simbólico de que a nova sociedade deve destruir todas as pontes, a fim de que não haja
mais volta atrás”. Nesse sentido Levi-Strauss (1996: 91), em Tristes Trópicos, diz que
as cidades do Novo Mundo, seja Nova York, Chicago ou São Paulo, “são construídas
para se renovarem com a mesma rapidez com que foram erguidas”.
Na América Latina, a associação da modernidade com uma “ocidentalidade” ou
“europeização” criou comparações com um suposto “modelo original”, constante em
muitos projetos de modernidade em São Paulo e na literatura sobre a história da cidade.
Na Arqueologia, por exemplo, fica evidente a afirmação de que alguns hábitos culturais
são cópias, especialmente, de “padrões europeus burgueses” de comportamento. É
preciso, no entanto, ter cuidado não apenas com termos generalizantes e pouco claros
como “burguês”, mas igualmente com a noção de “cópia”, que pressupõe um modelo
original perfeito e uma cópia, que nunca é o original e, portanto, mal feita. A “cópia é
secundária em relação ao original, depende dele, vale menos etc. Esta perspectiva
coloca um sinal de menos diante do conjunto dos esforços culturais do continente”
(SCHWARZ 1989: 35). “Burguês” como um fim a se alcançar, e aburguesamento”
como processo, denota a pouca clareza de uma terminologia que se generalizou “na
ótica dos agentes políticos de inúmeros processos históricos” (DE DECCA 2004: 51) e
que hoje demonstra falências em suas interpretações, como mostrou Edgar De Decca
para o termo revolução”. “Aburguesar”, deste modo, aproxima-se de “aculturar” e
implica em idéias de perda de cultura ou assimilação, pressupondo a existência de
fronteiras culturais nítidas ao invés de um continuum cultural (BURKE 2009: 2), como
se a fórmula A + B = A fosse válida em algum sentido prático (DE CERTEAU 1982;
HARTOG 1999). Burguesia”, na Europa (um continente) e no Brasil (um país), tem
implicações e significados diversos, dada sua historicidade, que podem ser percebidas
mesmo em trabalhos mais clássicos como os de Florestan Fernandes (1975). A
Arqueologia Histórica brasileira talvez tenha que se afastar um pouco de um crivo mais
marxista e do uso de terminologias de classe muito abstratas aplicadas
419
indiscriminadamente a contextos diversos (HEINZ 2006: 8). O que, afinal, seria uma
cultura material “burguesa”?
Em sua crítica a estas noções, Schwarz aproxima-se das teorias pós-coloniais e
se pergunta por que no Brasil existe uma primazia do “anterior” sobre o “posterior”, do
“modelo” sobre a “imitação” e do “central” sobre o “periférico”, propondo, desta forma,
mudanças de paradigma. Desde o século XIX, existiria entre as pessoas educadas
enquanto categoria social – um sentimento de viverem entre instituições e idéias que são
copiadas do estrangeiro e o refletem a realidade local (SCHWARZ 1989). O
problema foi que a Arqueologia incorporou esta idéia sem uma crítica maior, sem
perceber que isto é uma ilusão, um imaginário criado num determinado espaço-tempo e,
portanto, um “regime de verdade” segundo a concepção foucaultiana. A noção de
“cópia” enquanto uma verdade não existiria porque é impossível que se “copie” alguma
coisa exatamente como ela é, já que existem variantes não apenas no conceito de
verdade desta mesma coisa, mas também na conjuntura cultural do indivíduo que
“copia” a questão teórica ficou clara a partir do O 18 de Brumário de Luis Bonaparte.
Sempre existe uma ressignificação, re-estruturação, re-leitura e invenções do cotidiano
(DE CERTEAU 2007).
Deste modo, desde o século XIX, “privados de seu contexto oitocentista europeu
e acoplados ao mundo da sociabilidade colonial, os melhoramentos da civilização que
importávamos passavam a operar segundo outra regra, diversa da consagrada nos países
hegemônicos” (SCHWARZ 1989: 44). É o que muitos dos estudos sobre a
materialização das forças capitalistas segundo esquemas culturais locais vêm mostrando
(SAHLINS 2004: 448; ZARANKIN & SANATORE 199, 2005, 2007). A questão da
“cópia”, no entanto, não é falsa, desde que tratada pragmaticamente, de um ponto
estético e político, e liberta da mitológica existência da criação “a partir do nada”, já que
a vida cultural tem dinamismos próprios do qual são elementos uma eventual
originalidade (SCHWARZ 1989: 48). Falar em modernidade “copiada”, por fim, acaba
opondo nacional a estrangeiro, como se fossem facilmente dicotomizados, assim como
parece pressupor que os indivíduos não têm uma cultura própria particular e identitária,
sendo sempre, portanto, cópia ou emulação.
É claro que, como comentei em outros capítulos, a faiança fina brasileira sofreu
influências da produção forânea, mas procurei mostrar, pautando-me em Argan (2005:
21), que uma relação de dependência, se existiu, não foi sempre negativa, dado não
resultar em nulidade ou perda de valor e que um processo visto como cópia, seja da
420
fabricação de um trigal, seja de um comportamento ou hábito, deve, ao contrário, ser
encarado como um processo de aprofundamento ou de desenvolvimento da experiência.
Além disso, pedestalizar a louça inglesa ou a modernidade européia como modelos, é
enxergá-las sob o crivo do mito de origem, como se fosse possível descobrir, abaixo
deles, “um estágio pré-cultural de uma peculiaridade original” (ARGAN 2005: 22).
Busquei, deste modo, na interpretação das faianças finas desmistificar esses
imaginários tão marcados por idéias colonialistas. Como mostra Chakrabarty (2000), o
ex-mundo colonial deve criar novos paradigmas epistemológicos e categorias de análise
que não sejam totalmente tributárias do imaginário europeu, ou seja, nos entendermos
com nossos próprios olhos. Segundo o mesmo, é necessário repensar conceitos não
adequados a nossa realidade social, tal como o de modernidade. A maioria dos projetos
de modernidade, e suas interpretações no Brasil e em São Paulo, separa aspectos
arcaicos e tradicionais de aspectos ditos modernos, como totalmente opostos, mas para
Chakrabarty (2000) o tradicional, isto é, aquilo que existia antes das colonizações, se
alia às práticas da modernidade, sem que isto signifique um atraso ou arcaísmo. Por que
ser moderno precisa ser viver de paradoxo e contradição (BERMAN 2007: 21)?
Na presente pesquisa tentei, assim, encarar a modernidade em São Paulo através
de um novo paradigma, o seu próprio, algo característico seu, não como se constituído
de diferentes temporalidades ou como uma cópia malfeita. O bonde e a boiada são a
modernidade paulistana, é isto que ela é, sem compará-la a algum suposto modelo
original a ser seguido. Se existem traços que um discurso classifica como tradicional ou
que devem ser costumes combatidos pela modernidade, na produção da Fábrica Santa
Catharina, é porque mesmo com o fim de uma tradição, por exemplo a de produzir para
si mesmo cerâmicas como cuias ou utilizar os pratos, tigelas e xícaras de um certo
modo, não implica que conceitos tradicionais tenham perdido seu poder sobre a mente
dos homens” como disse Hannah Arendt (1954: 53). Além disso, o processo torna-se
mais complexo ao pressupormos que na dinâmica da tradição, as pessoas estão
invertendo-a em seus próprios quadros de referência (ARENDT 1954: 68), junto
daquilo que vem “de fora”, ou inventando-as segundo interesses específicos
(HOBSBAWM & RANGER 2002). Isto ressalta o dinamismo inerente à tradição
(THERRIEN 2004) e a crítica que vem sendo feita pela Arqueologia colombiana ao
trinômio “inovação”, “práticas européias” e “dominação” (THERRIEN, JARARILLO
PACHECO & SALAMANCA 2003: 157).
421
Maria Paes de Barros, em 1905, chamou atenção para uma São Paulo que ia
“perdendo sua aparência de pequena cidade para assumir ares de grande capital” (1998:
136), mas num contraste que ressaltava o paradoxo, segundo ela, entre o lavrador e o
“nosso caipira”, por um lado, sem “a menor noção de higiene” (1998: 93) e o
alargamento de ruas e calçadas, a indústria, etc., por outro. A modernidade paulistana,
neste sentido, era vista como o resultado do esforço e dedicação de todos os setores
sociais e as elites ainda conservavam um certo compromisso para com o conjunto da
sociedade” (DE DECCA 1999: 303-304). Daí a utilização das louças brancas, no lugar
de formas antes fabricadas em cerâmica torneada ou acordelada, e a fundação da fábrica
também como parte de um plano de modernização.
Tecendo este pano de fundo para a pesquisa, tentei trabalhar não apenas com as
louças do sítio Petybon, como com a Fábrica, enquanto artefato (PFAFFENBERGER
2002) ou super-artefato, cujo sítio é parte. Lembro que o autor de Mogli, o menino lobo,
Rudyard Kipling, quando em visita ao Brasil em 1927, descreve São Paulo como “uma
cidadezinha a trezentos quilômetros da costa, com novecentas mil pessoas” (2006: 41),
ressaltando como símbolos da modernidade a energia elétrica e sua rápida adoção,
“como muitas cidades inglesas, pularam direto do óleo e das velas para a eletricidade”, e
uma fábrica, uma fábrica poderosa e eficiente relatada como ‘vale muito a pena ver’”.
Se a fábrica, ou o que Miceli (1996) chamou de “sistema de fábrica”, era traço de uma
modernidade, cosmopolita, além de um sustentáculo do sistema capitalista (THIESEN
2005: 16) que se estabelecia na cidade, a Fábrica Santa Catharina pode realmente ser
vista como um posto avançado de um projeto de modernidade que intencionava
introduzir uma nova ordem e mudar tradições herdeiras do antigo regime colonial do
país, símbolo de nova era do progresso e bem estar social (THIESEN 2005: 16).
Aproximo-me do que Therrien e Mejía (2001/2002: 202) notaram para a Fábrica
de Loza Bogotana, e estendo isto para a Santa Catharina, onde sua instalação, segundo
os projetos elitistas, pretendeu inserir a população local nos adventos da modernidade e
sustentar a economia de um estado em formação baseada na produção e na circulação de
mercadorias. Para Monika Therrien (2004: 110), “la fundación de una fábrica de loza se
considera como un vehículo de transformación de una buena parte de la sociedade,
representada ésta como carente de virtudes morales y sujeto potencial de ser controlado
y regulado”. Fábrica e louça faziam parte, na Paulicéia das elites, dos “ingredientes da
modernização”, lembrando a expressão de Warren Dean (1996: 282). Antoine Renard
faz questão de ressaltar que, na Europa, São Paulo era reconhecido como o maior
422
centro industrial da América do Sul e que suas indústrias “alcançaram um assignalado
desenvolvimento, em qualidade, com os similares estrangeiros” (1933: 56) e “já os
fabrica em grande quantidade e enorme perfeão. A mesma cousa se tem verificado
também quanto aos productos de louça, de cerâmica, de vidro” (1933: 57)
A Fábrica, nos limiares da fronteira entre o rural e o urbano, do ponto de vista de
sua localização geográfica, dialoga com a urbs moderna dentro de uma paisagem
industrial. Assim como a fábrica bogotana, a Santa Catharina criou uma barreira e
demarcou uma fronteira domesticada, em um entorno caracterizado como, se não
“criminal e selvagem”, como sua comparsa colombiana (THERRIEN 2004: 115), ao
menos rural, tradicional, atrasado, arcaico... Deste modo, a fundação de uma fábrica de
louças neste momento da cidade, com resquícios vistos como coloniais, no bairro da
Lapa, um bairro-entroncamento entre o interior e a capital, entre a zona rural e a mancha
urbana em expansão, serviria não apenas como disciplinadora dos operários que nela
trabalhavam, mas como produtora de um artefato, a louça branca, até então importado,
que supriria as demandas da capital e do interior através da teia ferroviária que se ia
implantando. Avessa aos velhos hábitos, a São Paulo moderna recusava símbolos o-
modernos, e neste diálogo louça e cerâmica fizeram parte de um cosmopolitismo
conflituoso (KOGURUMA 1999: 83). A modernidade estaria sendo bloqueada por
certos comportamentos do homem brasileiro (BOSI 2008: 368) e a louça foi encarada,
neste projeto de modernidade, como vetor de comportamento segundo uma ideologia
que controlasse o espontâneo (LEONE 1984: 34), na prática da ação.
Como afirmou Thiesen (2005), existe uma forte relação entre a construção do
espaço e o estabelecimento de uma unidade fabril, entre concepções de modernidade e
construções de identidades A Fábrica Santa Catharina localizava-se exatamente no
ponto que funcionava como “porta do sertão”, entre a cidade, a “cultura urbana”, e a
“cultural rural”, tradicional, folclórica, de um campo ora visto como estático e atrasado
ora visto como estático, mas detentor da “verdadeira” identidade nacional não
contaminada por movimentos migratórios excessivos (RAFFAINI 1991: 87).
A instalação da Fábrica num bairro considerado rural, no caminho da histórica
estrada para Jundiaí, e depois para o sertão e o interior bravio, não civilizado e
“caipira”, parece ir além dos aspectos de barateamento dos terrenos de várzea com a
especulação imobiliária e o loteamento das chácaras circundantes à cidade. A Fábrica
aqui, como ícone ou ingrediente de uma modernidade que se queria para São Paulo, foi
considerada veículo de transformação de uma boa parte da sociedade representada como
423
carente de virtudes morais, intervindo nas práticas cotidianas de setores da população, a
fim de submetê-los a um novo regime político e social (THERRIEN 2004: 111).
O intuito, portanto, seria o de não apenas disciplinar os operários e incutir-lhes
novos hábitos ao conviverem com a louça branca, mas também produzir este produto
para um mercado consumidor que deveria consumi-lo segundo os usos pensados para
ele, inserindo na população brasileira uma modernidade e uma nova ordem que não
aquela dos costumes arraigados no antigo sistema colonial (MEJÌA & THERRIEN,
2001/2002: 199). A própria Fábrica Santa Catharina aparece na fotografia da Exposição
Universal de 1918 (no capítulo 1), sediada no Palácio das Indústrias, como um gigante
da modernidade dominando a selva. No mapa abaixo, a estrela branca representa a
Fábrica, no limiar entre a zona considerada urbana e o mundo rural.
Por outro lado, é nas formas e nas decorações que vemos a agência da Fábrica na
contramão de seu papel como “sustentáculo do capitalismo”, uma vez que produziu
formas variadas, com inúmeras capacidades volumétricas, algumas já de forte aceitação,
424
amplamente consumidas, cuja tradição de consumo dialogava com bitos tidos, por
discursos de modernidade, como rurais. A agência da Fábrica, nesse sentido, atendendo
a uma resposta da demanda, negociando com consumidores e produtores, caracteriza o
sistema de fábrica não apenas como “camaleão”, como o chamou Paulo Miceli, no
sentido de que adquiriu diversas roupagens em diferentes cenários mantendo-se
“monoliticamente em todas as latitudes” (1996: 63). Para além dos cromatóforos, o
sistema de fábrica, ao menos o da Santa Catharina, possuiu uma essência mais
plasmática, transmórfica, no sentido de se adaptar ou se modelar segundo um meio, sem
deixar de ser fábrica. Devido a este movimento, chamei, na dissertação, a Fábrica
também de performativa, um modelo de produção simbólica que criou relações a partir
da prática (SAHLINS 2003: 47).
Apesar dos mecanismos do poder disciplinar no cotidiano dos operários da
Fábrica, formas de ação e resistência cultural burlavam o sistema. Se o sistema de
fábrica prega um discurso hierarquizante e normativo, se alienava o trabalhador, a
realidade da prática era bem diferente. Se considerarmos a modernidade como
inexorável, uma espécie de promotora de “aculturação”, condensando e não dando
espaço ao tradicional ou a hábitos culturais locais pré-existentes a ela, perderemos
importantes detalhes do dia a dia operário que permite perceber um cotidiano re-
inventado. É o exemplo das digitais que marcam a presença humana numa cadeia, como
a taylorista, que pretende apagar o trabalhador, reduzindo seus gestos e impingindo um
ritmo maquinal, ou as inscrições a lápis como lazer no cotidiano fabril. A cultura
material do sítio Petybon possibilitou antever alguns traços do que seria o mundo do
trabalho na concepção do próprio trabalhador, como fez Randall McGuire (1999) para
os mineiros do Colorado, a partir do estudo das particularidades da vida cotidiana na
fábrica (MARTINS 1994: 2).
Contratando oleiros lapeanos e operários imigrantes, muitas vezes ex-
camponeses, à Fábrica foram vinculadas também técnicas tradicionais de produção e a
presença de um tradicionalismo personalista de mestres e ceramistas à racionalidade
impessoal ecnica dos engenheiros (MARTINS 1994: 13). É provável que tenha
ocorrido na Santa Catharina e IRFM o mesmo que mostrou para a Cerâmica São
Caetano, dos anos 1950, José de Souza Martins (1994), apontando a ocorrência de
fenômenos e aspectos tidos como tradicionais e campesinos num ambiente fora do
mundo tradicional e rural, que é a Fábrica. Quando um demônio apareceu, até os
defeitos foram explicados por sua presença.
425
Como comentei, os projetos de modernidade vigentes no período das primeiras
décadas do século XX na cidade, em geral, tiveram um caráter europeizante,
disciplinador e normativo, com poucas vozes dissonantes (como Sylvio Floreal e
Guilherme de Almeida). Assim, ora seguem a vertente que sugere que a modernidade e
a emulação europeizante em São Paulo foram totalmente “completas”, abarcando todos
os aspectos da vida, ignorando qualquer existência de outros modos de vida e
manifestações culturais, ora ressaltando a existência da modernidade na cidade, e sua
necessidade, reconhecendo traços tradicionais, coloniais e arcaicos que devem ser
extirpados, destacando sempre este paradoxo.
A maior parte dos chamados memorialistas, por exemplo, tem um discurso
muito pautado na idéia de progresso linear, ressaltando São Paulo como o grande ícone
da nação (“a locomotiva” da nação), especialmente em seus aspectos “modernos”.
Segundo Brefe (1996), é por meio da delimitação dos contornos da cidade que o
memorialista compõe o cenário urbano das memórias e – como resultado – constrói sua
identidade. A cidade de São Paulo aparece nas memórias transfigurando-se em ritmo
febril, de modo que suas características seculares e traços comuns desaparecem.
Antoine Renard visitando a cidade na década de 1920 relata:
Quando, em 1926, chegamos, pela primeira vez, a São Paulo, vindos da França, nosso
paiz natal, maravilhamo-nos deante da magestade e do tamanho da sua capital.
Realmente, esta cidade, marulhente de vida e semeada de arranha-céos; verdadeiro
escrínio de bellezas architectonicas e esculpturaes, encanta e deslumbra, pelo seu
conjuncto artistico e sumptuoso, a todos que a contemplam (RENARD 1933: 14).
Já o francês, Paul Walle, em 1910, escreve:
São Paulo étant le siège du Governement et lê centre de la vie intellectualle, sociale et
commerciale de l’État, on y trouve tous s éstablissements dignes d’une cite avancée
dont la culture ne reste pás en arrière du développement matériel (WALLE 1912: 11).
Nestas memórias fica evidente a imagem do novo sobrepondo-se ao velho. São
discursos que inventaram uma cidade de São Paulo (BREFE 1993), gerados com base
em relações desiguais de opressão e segundo um olhar estrangeiro do tipo que o
mundo ocidental efetuou sobre espaços coloniais, estando na origem das mais
426
tendenciosas e reducionistas leituras da história (HERING 2004: 8) –, ao mostrarem a
modernidade paulistana sempre em déficit, o que serviu de justificativa ao domínio
sobre as nações mais pobres na ordem econômica nascida do liberalismo e do progresso
tecnológico (CARVALHO 1994: 15).
Outros exemplos são vários, a citar os memorialistas e viajantes como Nuto
Sant’Anna, Oakenful, Jorge Americano e Jacob Penteado. Nestes dois últimos, no
entanto, encontra-se também um “outra” São Paulo, a São Paulo “profunda”, se
quisermos adotar o termo cunhado por Bonfil Batalla (1987). Fazem diversos
apontamentos sobre o cotidiano operário, sobre as fábricas, sobre as lavadeiras da
Várzea do Carmo, etc., não obstante sempre com a perspectiva de progresso linear e do
tom pejorativo destas presenças quase que “estranhas” à grande metrópole:
O que predominou para a moradia da gente pobre foi sempre, em São Paulo, o cortiço
(...) Ou então, os porões habitados (...) homens, carroceiros e operários, e um ou outro
vagabundo ou mendigo, cuja renda dava bem para pagar o aluguel... (AMERICANO
1962: 27).
Viajantes e memorialistas liam a cidade à luz de um discurso de modernidade e
marcaram impressões positivas em relação a um cosmopolitismo semelhante ao das
grandes cidades européias, mas também negativas em relação a todo o resto, que,
usualmente, nem mesmo é referenciado: os bairros mais pobres, operários, a população
média, etc. Os discursos destes autores é, em geral, de caráter normativo, tentado ligar
São Paulo a uma cultura homogênea, supostamente européia e burguesa, com hábitos
“finos” e disciplinados, apagando qualquer outra manifestação cultural ou indivíduos
que não se colocassem dentro deste quadro, isto é, a maior parte da população (se não
todos!).
Para Maria Inês Pinto (2002), os projetos modernizadores na cidade espraiaram-
se para campos além do literário, e a autora investiga como estes discursos estiveram
presentes nos meios de comunicação em massa ligados às novas tecnologias de
comunicação social como a publicidade, o cinema e as novas linguagens visuais e
jornalísticas. Essas novas linguagens teriam re-inventado uma ideologia cosmopolita
através da propagação de imagens apologéticas da metrópole e influenciado na
formação de novas formas de convívio social e urbano via disseminação de ícones de
modernidade, através da literatura modernista, imprensa ilustrada, cinematógrafos e
427
cartazes publicitários (PINTO 2002: 297). As publicidades de louças analisadas nesta
dissertação mostraram, também desta maneira, que se divulgava modelos de
comportamentos, enfatizando a xícara como este vetor, mas ainda com a presença das
tigelas, presença esta que encontra respaldo nos registros arqueológicos do período.
Conforme Pinto, os projetos de modernidade intrínsecos ao começo do século
XX estavam muito pautados nas novas tecnologias de comunicação, em um momento
de transformações de padrões de comportamento, com papel importante na afirmação e
definição de status e valores de referência ao divulgar e consolidar novos
comportamentos e hábitos de consumo. Entretanto, tais hábitos de consumo só tiveram
essa função porque correspondiam “ao mesmo tempo, às necessidades do discurso de
legitimação do projeto civilizador das elites paulistanas e às necessidades da população,
ou seja, todos aqueles ‘personagens desse mundo em ebulição careciam, com urgência,
de um eixo de solidez que lhes desse base, energias e um repertório capaz de impor
sentidos a um meio intoleravelmente inconsciente” (PINTO 2002: 298).
Por fim, para Pinto, o projeto modernizante contido em linguagens como a
cinematográficas apresentava visões otimistas e apologéticas de uma cidade totalmente
moderna e sem contradições; por outro lado, a autora procurou também descobrir,
através dos silêncios e aspectos contingenciais destas linguagens, os conflitos, o lado
excludente e inacabado dessa modernidade, o choque entre o ritmo dos maquinismos e o
ritmo do ser humano, suas permanências, rupturas e readaptações, um mundo que
procura acabar com antigas tradições ao mesmo tempo em que produz novas mitologias,
“fabricando um imaginário da modernidade, ligado ao esforço de traduzir vivências
tecnológicas novas em linguagens que favoreciam o diálogo e as tensões da
intelligentsia modernista paulista com a gestão cultural” (PINTO 2002: 299).
Caminho semelhante é traçado por Nicolau Sevcenko (1992: 18) que, ao
investigar as concepções de modernidade contidas na literatura e nas obras de arte, afere
que os projetos modernizadores contidos nos discursos fizeram com que o
cosmopolitismo da população assinalasse um nítido recorte de discriminação social,
como um estigma a mais a se acrescentar ao da população negra e mestiças, reforçando
a disposição de estranhamento intrínseca ao processo de metropolização. A cidade se
tornaria um “enigma para seus próprios habitantes” devido à diversidade cultural, e
muitos projetos modernizadores pautaram-se em transformar a cidade diversa em um
todo homogêneo, normatizando hábitos. A louça, através da propaganda e de sua
produção, foi também encarada como vetor de comportamento, ignorando o papel da
428
prática neste esquema. A imprensa repercutia, a todo o tempo, a imagem de uma São
Paulo exemplo de grande metrópole do mundo, com um ritmo prodigioso de
crescimento e potencialidades incalculáveis de progressão futura (SEVCENKO 1992:
36).
Tal qual Maria Inês, para Sevcenko, este é o período de tomada de consciência
para a construção de um sentido de identidade e de uma preocupação com o destino da
cidade: “cortada do passado pelo seu modo de desenvolvimento abrupto, São Paulo, tal
como figurada pelos seus cronistas, aparecia insistentemente refletida num improvável
espelho do futuro” (SEVCENKO 1992: 37). Finalmente, para Sevcenko, por trás dos
discursos que louvavam a modernidade paulistana, a cidade “se compôs de um modo
inverossímil, a partir da soma de circunstâncias imponderáveis que foram confluindo
numa seqüência contínua de impossibilidades” (SEVCENKO 1992: 106), onde o
panorama era muito mais composto por problemas que se multiplicavam
descontroladamente do que por soluções originais (SEVCENKO 1992: 127). O autor
aponta como os jornais e os cronistas, e outras linguagens contidas em fontes
documentais, apresentavam os paroxismos de São Paulo, cidade da Avenida Paulista e
do Brás, das doenças, dos cortiços, do cinema e das revoluções. Aproximam-se,
portanto, dos discursos de modernidade que ressaltam a incongruência da cidade,
comparando-a com um modelo original europeu, tornando-se, mais uma vez, a “cópia
mal feita”. Pressupõem os desdobramentos da modernidade (DOMINGUES 1999: 89),
ao invés de autêntico, como desvios.
A idéia de um modelo reverbera, deste modo, nas interpretações que giram em
torno das manufaturas e das produções nacionais, como a da louça em faiança fina.
Tendo como modelo a faiança fina européia, a louça brasileira passa a ser vista como
uma cópia, também de hábitos, mas mal feita porque o alcança a original, e os
atributos de análise ressaltados a partir desta visão de mundo serão aqueles que mostram
esta des-semelhança, este querer e nunca ser. Isto é incorporar na Arqueologia aquilo
que para a belle époque, Oliveira chamou de “vício da imitação” de parte da elite
brasileira, que se via sob um signo de exílio, que “gostaria de ser européia, mas a
infelicidade do destino a fez nascer nos trópicos” (OLIVEIRA 1997: 189), e o discurso,
êmico, de parte das elites paulistanas que bolaram com esta pauta seus projetos de
modernidade. A continuidade de comparação do Brasil com Europa, uma Europa
teórica (CHAKABARTY 2000: 29), e dos artefatos históricos somente em termos de
nacional e estrangeiro torna, novamente, e ainda, a origem como uma única fonte de
429
identificação (HALL 2003: 26) que, ao invés de ressaltar a dialógica da alteridade das
experiências diaspóricas culturais, segundo a experiência de Stuart Hall (2003),
expressas e expressadas pelos artefatos históricos, como a louça brasileira, congela os
dinamismos que a circundam e a compõem, em relações maniqueístas. Schávelzon
(2005: 204), por exemplo, mostrou que as louças importadas ganharam outro
significado no contexto do movimento de Independência da Argentina, e frente à
invasão britânica no começo do século XIX, descartadas num gesto de desprezo. Buscar
sempre por categorias de classificação como “nativo” ou “estrangeiro”, como rótulos
pré-definidos, admite uma irreconciliabilidade nas práticas materiais de expressões
culturais diversas (SILLIMAN 2005: 68), como acredito ter sido o caso da busca pela
origem da antiga cerâmica neobrasileira, a cerâmica de produção local/regional
(ZANETTINI 2005). Afinal, mesmo a louça estrangeira tornou-se local quando
apropriada pela cultura do lugar, aproximando-se, talvez, daquilo que Sérgio Miceli
(2003) cunhou como “nacional estrangeiro”.
Margareth Rago, investigando os relatos de viajantes e memorialistas,
periódicos, e documentos associados ao mundo operário e aos discursos higienistas,
afirma que a modernidade que se construiu em São Paulo foi uma “modernidade
conservadora”, que, desde então, “impôs progressivamente a homogeneização de um
modo de viver em nome do progresso, da técnica e da razão” (RAGO 2004: 381-388).
Para a autora, o projeto modernizante das elites pautava-se na exportação, para toda a
cidade, dos padrões considerados civilizados de comportamento e de convívio social,
progressivamente adotados no universo patriarcal da elite cafeicultora e dos industriais,
produzindo tensões, conflitos, tumultos e resistências (RAGO 2004: 389). O processo
de urbanização e modernização pautado na racionalidade burguesa” acabou por
marginalizar e violentamente excluir vários grupos sociais, e as elites dominantes,
procurando impor autoritariamente seu novo modo de vida, percebido como “moderno”,
tentaram eliminar diferenças culturais e erradicar hábitos populares, vistos como
atrasados ou perigosos, “seja expulsando os negros e outros ‘indesejáveis’, seja
protegendo seus bairros com muralhas invisíveis” (RAGO 2004: 389). Ironicamente, ou
não, era em bairros operários que se fabricavam os tais ícones materiais de
modernidade, como as loas brancas.
Poderia continuar e discorrer longamente sobre os discursos e projetos de
modernidade existentes na cidade de São Paulo com razoável bibliografia sobre o
assunto. Mas quero chamar atenção para o fato de que a maior parte deles possui em
430
comum estarem pautados numa noção de modernidade “deslocada” que tenta ser, mas
não é o modelo original europeu, reincidindo na noção de cópia aqui vista criticamente,
que ignora particularidades locais ao montar paradigmas comparativos. Esses discursos
são muito pautados na idéia de normatividade, higienização e disciplinarização, numa
época, realmente, em que a sociedade da disciplina começa a penetrar por várias áreas
da vida cotidiana das pessoas. No entanto, a esses micro-poderes se opõem micro-
resistências, que permitem inúmeros diálogos entre a norma de comportamento imposta
pelas elites através de seus discursos e projetos modernizantes e o restante da população
e, porque não, a ela mesma.
Poucas vozes dissonantes podem ser ouvidas no mar de projetos de modernidade
do começo do século XX. Sylvio Floreal, codinome do jornalista Domingos Alexandre,
retrata e voz aos habitantes da noite paulista, as prostitutas, os boêmios e
freqüentadores de cabas, assim como criminosos e outros personagens, que ousaram
transgredir as regras da utópica cidade disciplinar, como disse Rago (1997). Como em
geral a modernidade tem sido apresentada em seus aspectos positivos, com o
crescimento urbano e econômico, as inovações tecnológicas e o transporte, novas
normas de lazer e sociabilidade com a modernização de costumes (RAGO 2003: 3),
Ronda da meia-noite inova ao trazer à tona não apenas os excluídos por sua pobreza,
mas também por se situarem do outro lado do mundo do trabalho e da razão, vivendo às
margens dos benefícios trazidos pelo progresso e pela modernização.
Para Rago (2003: 5), “Floreal desmistifica a visão edulcorada da cidade,
construída pelos memorialistas interessados em produzir um discurso laudatório da
modernidade paulistana”. Em definição sobre o Brás, que poderia ser generalizada para
toda a cidade, Sylvio Floreal escreve:
... é um verdadeiro tabuleiro de xadrez, de raças e povos, os mais estranhos pelos
sentimentos e os mais diferentes pelas procedências, onde todos, imersos em relativa
harmonia, de maravilhosos apetites, jogam e disputam entre si, agressivos e astutos,
maneirosos e calculistas, a partida fatal para vencer o rei dinheiro e a torre milhões...
(FLOREAL 2003: 20) (...) O Brás... é uma pincelada berrante de zarcão, onde as
trompas insolentes das chaminés das suas fábricas expelem, numa ejaculação insistente
para o alto, mascarando de negro a fisionomia do céu, atropelados rolos de fumaça!
Tem o aspecto de um anfiteatro em combustão, fervilhando, gerando em seu seio um
monstro apocalíptico! (FLOREAL 2003: 23)
431
Em sua crítica ao processo de modernização e “civilização” da cidade, aponta:
... Os vícios crescem e avolumam-se; dilatam o seu império, na razão direta da
civilização.
E São Paulo, tripudiando sobre o cadáver da barbaria não querendo dar uma
rata vergonhosa, pois que virão -la sempre turistas ultrarefinados trabalha e sua
no firme propósito de civilizar-se de afogadilho, aniquilando e soterrando todos os
rançosos costumes jecatatuescos, para fazer a sua figurinha e não passar nenhum
vexame... (FLOREAL 2003: 29)
Guilherme de Almeida se refere aos discursos sobre a cidade que procura sempre
apagar costumes que não aqueles escolhidos pelas elites para compor o corpo da
modernidade. Apesar de também encarar a modernidade paulistana como algo “mal
encaixado”, sempre ressaltando o choque de costumes quase antagônicos presentes na
mesma e como esta quer ser, mas não é, o poeta, através de sua coluna de queixas e
reclamações no Diário Nacional, publica crônicas sobre a cidade explicitando suas
críticas ao processo de modernidade que se estabelece, associado a um exagero e uma
quase paranóia das elites quanto a apagar o tido como tradicional e popular, e às
exageradas práticas ligadas a ideologia higienista, da qual a louça foi alvo.
... A cousa complicadíssima que é uma grande cidade moderna! (...) uma cidade é uma
perfeita máquina com engrenagens, êmbolos, pistões, paralelogramos de Watt, apitos e
tudo. Por isso, com a maior facilidade se desconcerta, deixando a gente
envergonhadíssima, a procurar uma caixa de socorro, um telefone serviçal, um botão
de alarme. (14/07/1927. ALMEIDA 2004: 5).
Sim senhores! Como S. Paulo está adiantado. Até parece Europa....
Parece. Parece, porque não é. E não é, porque esse mesmo paulista, ingênuo e viajado,
não tem a noção requintada de conforto. Ele é o pobre homem que, no automóvel
aberto, no seu living-room gelado, no seu club glacial, nos seus teatros frigidíssimos, é
obrigado a se conservar embrulhado nas suas chaviotes, no seu cache-col, nos seus
guantes, nas suas polainas, engolindo aspirinas perigosas ou Cognacs suspeitos...
(15/07/1927. ALMEIDA 2004: 7)
432
Não obstante estas visões, a maior parte dos projetos modernizantes ou
concepções de modernidade vigentes na cidade provieram de uma elite que ou se
enxergava enquanto moderna Europa nos trópicos, ignorando qualquer outra
manifestação cultural que não a sua, ou ressaltando o fato de serem essa Europa, mas
conviverem com os atrasos de uma cultura tradicional que fazia com que a cidade fosse
uma cópia mal feita do original europeu, tal o caso do boi e dos bondes. Ambas as
visões têm em comum, todavia, o fato de procurarem eliminar, ou pelo menos não
fazerem aparecer nos meios de comunicação, o caldo cultural que era a cidade de São
Paulo, com suas várias práticas, construindo uma cultura urbana moderna devedora de
um projeto de modernidade homogeneizante e disciplinador. Esta concepção foi
repetida e incorporada por diversas ciências sociais que de forma acrítica realizaram
interpretações sobre a cultura material.
A questão, portanto, é pensar se existe uma modernidade paulistana, brasileira,
sul-americana ou latino-americana, e, se existe, caracterizá-la como tal; por que, ao
lermos em Levi-Strauss que,
Pastos de vacas estendem-se ao de imóveis em concreto, um bairro surge como uma
miragem, avenidas ladeadas de luxuosas residências são interrompidas de um lado e
outro por ribanceiras; ali, uma torrente barrenta circula entre as bananeiras, servindo
ao mesmo tempo de nascente e esgoto para casebres de taipa sobre estrutura de bambu,
onde se encontra a mesma população negra que, no Rio, se instala no alto dos morros.
As cabras correm pelas encostas (1996: 95)
não encaramos estas informações como discursos, pautadas numa visão também
eurocêntrica de modernidade, que ao ressaltar certos aspectos como contrastantes,
pressupõe um modelo que, ao ser comparado, transplantado, fica defasado? Em São
Paulo, a modernidade deveria, assim, ser caracterizada pelas diversidades de
experiência (MILLER 1994: 68), e procuro propor que seja vista a partir de um foco
local, onde “uma massa de elementos compostos antigos e o antigos convergiu
para uma construção nova”, como disse Guinzburg (2006: 107).
Se, como propõe Daniel Miller (1994: 72), deve-se pressupor a modernidade
como experiência, então se deve olhar para a arqueologia da modernidade, ou do mundo
moderno, em São Paulo, sobre o ponto de vista das práticas; afinal, como se pergunta o
autor (MILLER 1994: 75), como decidir quando um traço, aspecto, objeto, é
433
modernidade se o termo é fruto de um discurso criado por nós mesmos? Pressupondo
um modelo original de modernidade, parte-se do axioma de que uma modernidade é
mais autêntica do que a outra, sem muitos atributos consistentes para a afirmativa
(MILLER 1994: 76). Parto, assim, da idéia de que a modernidade é heterogênea no
mundo e que as condições de modernidade o variadas segundo os contextos locais,
por isso sendo autêntica em cada contexto, mas nem por isto pressupondo uma
homogeneidade de expressões no âmbito regional. Não mais uma “modernidade
periférica” (SARLO 1988), que não existe um centro que emana a modernidade em
ondas concêntricas das quais teríamos recebido apenas marolas.
Criticando concepções monolíticas de discursos arqueológicos como o da
modernidade (SMITH & WOBST 2005: 11) é possível formular narrativas alternativas
(KOJAN & ANGELO 2005) para a história da cidade de São Paulo e para a América
Latina, tirando da “sala de espera da modernidade” (CHAKRABARTY 2000: 8) não só
a cidade, como a louça brasileira, mestiça, cópia, inautêntica enquanto expressão
cultural. A teoria da “sala de espera” implica na crítica às diversas categorias temporais
criadas pelos discursos de modernidade e, como propõe Chaterjee (2004: 74), as ditas
“defasagens” ou “desvios” da modernidade no mundo colonial deveriam, ao invés de
olhadas apenas como a sobrevivência de um passado pré-moderno, encaradas também
como novos produtos do encontro com a própria modernidade. Por isso propus a
abordagem levi-straussiana de stimulus difusion ao relacionar o encontro entre os
hábitos de utilizar tigelas e a fabricação de tigelas pela Fábrica Santa Catharina.
Gilberto Freyre, Raimundo Faoro, Sérgio Buarque e Roberto da Matta, super-
enfatizando a presença luso-ibérica no Brasil, criaram as idéias de peculiaridade
brasileira sobre a qual a sombra da inautenticidade se projeta sempre em débito com a
cultura e padrão europeus de sociabilidade, não sendo plena e autenticamente modernos
(TAVOLARO 2005: 6). Estaríamos assim num limbo semimoderno” (TAVOLARO
2005: 10), numa modernidade de periferia que caracterizaria um desvio em relação às
sociedades tidas como “centrais” da modernidade. O “first in Europe, then elsewhere”
da crítica de Chakrabarty (2000: 7).
Tomando como referência o “centro”, a Europa ou a louça inglesa, confirma-se a
“margem”, o Brasil ou a faiança fina brasileira, como um desvio do primeiro
(TAVOLARO 2005: 13). Já que, para o escopo desta dissertação, a Europa não é
sempre propagadora e a América Latina sempre receptora, a louça não é fluida de
significados apenas num contexto de implantação e desvio de padrões “europeizantes”
434
(como se ser moderno” fosse “ser europeu” [CHAKRABARTY 2000: 33]) ou num
devir que nunca se realiza (IANNI 2005: 9). Neste âmbito, europeizar” ganha o status
de “mimese colonial defeituosa” (BHABHA 2007: 132). Se a proliferação de fábricas
de louça na Inglaterra marcou a “expressão pioneira e prematura da produção e
consumo em massa” (LIMA 2002: 122), o foi apenas porque a Inglaterra, então
herdeira da tocha da civilização (BERNAL 1993: 6), estabelecia sua dominação no
mundo por meio de uma ideologia dominante, mas porque a América, ativa no processo
de consumo, demandou por determinados produtos que a Europa teve que produzir. Na
louça, um exemplo bastante claro é o consumo do trigal, mais na América Latina do que
na Inglaterra, influência do mercado na produção (MILLER 1984: 2). Inúmeros são os
exemplos de como a América manipulou e modelou a Europa. São os estudos históricos
de circularidade cultural que lembro aqui (GUINZBURG 2006: 19). As pesquisas de
Sahlins (2004: 65) apontam para os processos de “indigenização da modernidade” e
Alfredo Bosi (2008: 49) para as possibilidades de “acaipirar” a mesma.
Deste modo, ao invés de pensar a modernidade pautando-a em adoção de
modelos imaginários europeus e norteamericanos (IANNI 2005: 13), que geram a idéia
de anomalias, pensemos em como a América Latina, existindo por si mesma, tem uma
modernidade que lhe é própria, na qual tem papel ativo, e que expressa originalidade,
autenticidade e particularidade (CHATERJEE 2004: 51) nos “modos de ser, sentir, agir,
compreender, explicar” (IANNI 2005: 50). Proponho, pautando em Partha Chaterjee,
uma leitura da faiança fina brasileira tendo em vista uma narrativa alternativa da
modernidade latino-americana que, ao invés de ser aquela adaptação imperfeita do
original, não terminada, distorcida e mesmo falsificada, nestas formas supostamente
distorcidas, possibilidades inteiramente novas de organização, nunca imaginadas pelas
velhas formas da modernidade ocidental (CHATERJEE 2004: 42).
Esta dissertação afirma o lugar da faiança fina brasileira como ferramenta para
uma linha alternativa de estudos da cidade de São Paulo e das concepções de
modernidade, fazendo perceber o peso da subjetividade do autor ou a partir de onde
estamos construindo e interpretando nossa sociedade moderna (SENATORE &
ZARANKIN 2002: 10). Quis mostrar, também, que é possível ultrapassar a dicotomia
do modelo centro-periferia, muito utilizado na Arqueologia Histórica, ao considerar as
expressões culturais locais analisando a cultura material como um dos aspectos
particulares de uma cultura, para além de reproduzir sobre os objetos os discursos
pautados nas leituras de viajantes e memorialistas. O modelo do centro difusor e das
435
periferias receptoras, gerado no fulcro da relação metrópole-colônia, colonizador-
colonizado, é ainda mais questionável no caso brasileiro, no âmbito das relações e
heranças coloniais que aqui se formaram, e das quais somos hoje devedores, uma vez
que o Brasil foi o único país da América Latina que, durante o século XIX, passou de
colônia à metrópole, com a vinda da família real (SLEMIAN & PIMENTA 2008).
Como exatamente pensar projetos de modernidade ou uma suposta recepção de ondas
concêntricas de um centro, sendo que a sede do Império era a/na colônia? Este processo
gerou configurações, práticas e hábitos que com certeza particularizaram as próprias
concepções de modernidade e da vida na modernidade nos séculos XIX e XX no país,
permitindo a congruência entre o boi e o bonde. Um caráter sui generis de nossa
formação que busquei considerar ao pensar uma epistemologia da louça branca e sua
relação com ideologias e práticas na São Paulo do século XX.
Percebi, lidando com o sítio Petybon e com suas faianças finas, que se este se
enquadra nos estudos de arqueologia do mundo moderno (ORSER 1999), é preciso
perceber o quanto os projetos de modernidade modelaram as concepções do que é o
moderno como um modelo normativo e homogeneizante que às vezes é transplantado
para a cultura material (FUNARI 2002: 109). Produzir tigelas/malgas numa fábrica,
tendo em vista as implicações destes artefatos, como chamei atenção na dissertação, em
especial no capítulo 4, podem parecer decisões contraditórias, mas que não se anulam
(GRUZINKI 2001: 27), e que existe um significado numa aparente incoerência. A louça
brasileira não é uma “amálgama de aparência desconcertante” (GRUZINSKI 28) se
deixarmos de pressupor um modelo original de louça.
A análise do material arqueológico do sítio Petybon girou, deste modo, em torno
destas questões de produção, demanda e consumo, já que o sítio é uma fábrica. Por isso
difere dos demais sítios arqueológicos que são, em geral, unidades domésticas ou
refugos a elas associados, cujas interpretações estão mais pautados no consumo. No
Petybon, o pensamento partiu da produção (daí o capítulo 3 antes do 4), já que as louças
não foram propriamente consumidas. No entanto, isto não quer dizer queo foi
possível pensar alguns pontos da esfera do consumo a partir da produção. Consumo,
demanda e produção são categorias intrinsecamente ligadas e não podem, e nem devem,
ser pensadas separadamente. A produção está conectada a demanda, que, por sua vez, é
gerada por um mercado consumidor, ao mesmo tempo em que o consumo é possível
quando há uma produção.
436
Posto isto, é preciso lembrar que a Fábrica aqui estudada foi a primeira a
produzir a louça branca em faiança fina por moldes industriais e em larga escala.
Guardou características bastante artesanais em seu processo, as quais foram dando
lugar, gradativamente, a técnicas mais estandardizadas a partir do controle dos
Matarazzo. Com a produção nacional, a louça, mais barata, passou a ser consumida por
novas parcelas da população que antes não tinham acesso a ela, como os grupos médios
e baixos da cidade. Além disso, a entrada da louça branca dialoga diretamente com a
presença da cerâmica mais “grosseira”, aos poucos substituída.
A análise da louça da Fábrica indicou uma enorme quantidade de malgas, ou
seja, tigelas, objetos cujo design acomodaria diferentes demandas de uso (RICE 1987:
209). Mais ainda porque dentre as tigelas foram encontrados 13 tipos variando em
volume. Estas variações no tamanho de um mesmo tipo de artefato estão relacionadas a
diferentes usos e particularidades de comportamentos que fugiriam da “norma”.
Segundo Worthy (1982: 338), a distinção entre os diferentes tamanhos e formatos de
malgas e pratos poderia ser um apontador de comportamentos específicos que passariam
despercebidos se apenas formas gerais fossem consideradas. Formas e funções
diferenciadas são frutos de costumes, culturas, bitos e identidades associadas à
resolução de problemas do dia-a-dia (SCHIFFER & SKIBO 1997: 45).
Logo entendi que, apesar de existir um discurso normativo em torno da
modernidade, tentando impor e apagar hábitos que não aqueles ditos “padrões burgueses
de comportamento”, o que se encontra são pessoas re-inventando estas normas,
resistindo ou recriando segundo seu próprio repertório cultural. As tigelas têm muito a
ver com identidades culturais de diversos grupos que eram parte da cidade, como
mamelucos, caboclos, ex-escravos, caipiras, assim como dos novos migrantes, vindos,
em sua maioria, de zonas rurais. Nas primeiras décadas do século XX, um significativo
êxodo rural é iniciado em função da constituição das indústrias, além da chegada de
milhares de imigrantes, que se envolveram no ambiente urbano, trazendo novos hábitos
e adquirindo outros (FRANCISO 2004: 40).
Será possível, tendo em vista estas evidências, pensar apenas num processo de
urbanização do campo ou também no campo influenciando os hábitos da cidade, que
é o campo que entra no urbano, e não o inverso? Será que é a cidade quem sempre
“dita” os costumes? Segundo Francisco (2004: 43), São Paulo constituiu-se enquanto
uma metrópole caipira”, pois mantém, até a atualidade, hábitos tradicionais. O período
de estudo desta dissertação seria, segundo o autor, o período da gênese da negação dos
437
hábitos caipiras, com a construção de um discurso de ser moderno pautado na edificação
de casas suntuosas e assobradadas, dentro das quais, todavia, não se modificaram tanto
os bitos (FRANCISCO 2004: 39). Lessa (2003: 90) ressalta um processo de
ruralização da população brasileira no começo do século XX, quando a população rural
que em 1900 era 64% do total, passou para 70% em 1920.
Apesar do discurso dominante sobre uma grande parcela da população, esta
mesma parece ter, claro, mantido seus costumes. E mesmo que a elite industrial, que
pensava a produção das louças pautadas em formas e tamanhos determinados o que
se pode perceber não apenas pela padronização das louças brancas do sítio Petybon, mas
também do documento redigido, com o aval de Roberto Simonsen, entre 1935-1936,
que determina qual o tamanho e forma exata de cada peça de louça a ser fabricada),
tenha tentado impor “padrões de comportamentos” e acabar com outros, os
consumidores sempre conseguiram manter suas identidades. Sempre haverá o filtro do
lado dos consumidores, mesmo com malgas em louças com formas fixas. Tentei chamar
atenção para estes dinamismos discorrendo sucintamente sobre o hábito de tomar café.
Se existia um ritual do chá ou do café na Europa, é preciso ter em mente, como disse
Marshall Sahlins (2004: 13), que duas performances rituais jamais poderiam ser a
mesma, resguardando similaridades e diferenças na construção das identidades, mas
nem por isso “menores”. Quando o McDonald chegou à China, nem por isso os chineses
tornaram-se menos chineses ou americanizaram-se (SAHLINS 2004).
Este diálogo entre produtores, a elite industrial, e consumidores, a população de
diversos grupos sociais de São Paulo, só foi possível porque a Fábrica agiu como
elemento mediador. Como representante dos produtores e proprietários, teve que se
ajustar à ideologias e mecanismos de disciplinarização contidos em suas concepções de
modernidade, que objetivavam homogeneizar os costumes de acordo com um padrão
imaginado mais “europeu” e “burguês” de comportamento. Por outro lado, regulada
pela demanda, que vinha da população consumidora, não poderia deixar de produzir
formas de louças que possuíam um enorme mercado (WILK 2001: 108). Deste modo,
produziu tigelas dos mais variados tamanhos que atenderiam demandas de usos e
demandas do pensamento das elites dominantes.
Existe, deste modo, uma grande diferença entre os “usos pretendidos” dos
objetos e os “usos reais”, ou seja, entre aquilo para o qual se pensou aquele objeto, pela
parte das elites o fato de modernizar os costumes através da louça branca fina e o
que aconteceu quando estes mesmos objetos começaram a fazer parte da dinâmica
438
cotidiana de cada um, pressupondo a existência do habitus (BOURDIEU 2008) e das
práticas na ação (BOURDIEU 1994). Os usos das louças produzidas pela Fábrica o
variar da interpretação e do conhecimento prévio fornecido pela prática, pela
familiaridade com os costumes, hábitos e tradições de determinada cultura ou grupo
social: intenções de produção e condições de consumo são fundamentais, segundo Pinto
(2002: 12), para as construções de sentidos.
Foi desta maneira que a presente pesquisa teve como objetivo mostrar como a
louça encontrada no sítio arqueológico Petybon dialoga com as concepções de
modernidade vigentes na cidade de São Paulo no início do século XX. A fábrica de
louça era intermediária entre a intenção de produção das elites, os usos pretendidos dos
objetos, e as condições de consumo, os usos reais dos mesmos. A permanência das
tigelas durante o período parece apontar para a manutenção de identidades culturais de
uma população com costumes campesinos na cidade, apontando para a fragilidade da
dicotomia campo-cidade. Além disto, procurei mostrar como os discursos normativos e
disciplinares de modernidade dialogam com o que a arqueologia está encontrando na
cultura material. Busquei, por fim, apontar para a necessidade de se compreender a
modernidade na cidade de São Paulo não em comparação a outros contextos históricos,
mas a partir dela mesma, entendendo suas complexidades e originalidade para a
construção de um novo paradigma para a compreensão da modernidade na América
Latina. Atento a isto, escolhi os atributos para a análise das faianças finas brasileiras. E
atentos a estas práticas discursivas e relações de poder temos, enquanto arqueólogos,
que pensar nossas fichas e planilhas de análise cerâmica.
439
CAPÍTULO 6
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474
ANEXO 1
ARQUEOMETRIA NAS LOUÇAS EM FAIANÇA FINA DO SÍTIO PETYBON
Durante as análises do material resgatado no sítio arqueológico Petybon, algumas de
suas peças foram submetidas a análises arqueométricas, a saber: primeiramente, à cargo do
doutorando Prof. Ms. Gelvam Hartmann, do Departamento de Geofísica do Instituto de
Astronomia e Geofísica (IAG) da Universidade de São Paulo (USP), que vêm conduzindo
estudo devotado ao refinamento de datações por meio do arqueomagnetismo, tendo em vista
sua aplicação na arqueologia brasileira; e, depois, pelo Prof. Dr. Carlos Appoloni e pelo Bel.
Wislley Dueli da Silva, aluno de Iniciação Científica do 4º ano do Bacharelado em Física, do
Grupo de Física Nuclear Aplicada (GFNA) do Departamento de Física do Centro de Ciências
Exatas da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Quanto ao primeiro caso, foram analisadas duas amostras (uma xícara, tipo 1,
universo 3, no biscoito e uma xícara, tipo 1, vidrada, universo 3, com marca tipo 2) dentro do
escopo do arqueomagnetismo. Uma das vantagens desse todo é a possibilidade de
utilização de materiais recorrentes em sítios arqueológicos históricos, tais como telhas, lajotas
e tijolos, além da possibilidade de datação de materiais recentes (ainda bastante problemática,
especialmente por nos pautarmos em datações relativas. Outras datações existentes, como o
Carbono 14 não englobam datas tão próximas ou mesmo a TL que, apesar de em muitos
contextos ser útil, sua margem de erro é muito grande quando pensamos no período histórico,
pois + 70 pode fazer com que o sítio recue para datas impossíveis ou mesmo para o
futuro!). A idéia era, que o sítio Petybon possui uma data pautada em documentos escritos,
perceber se através do arqueomagnetismo era possível chegar a uma data semelhante e se era
possível utilizar a cerâmica branca para tal.
Foi realizada uma curva termomagnética, uma medida de suscetibilidade
magnética em função da temperatura, a qual indica se o material analisado contém algum
conteúdo de minerais ferromagnéticos, são responsáveis por adquirir a magnetização. As
curvas termomagnéticas foram realizadas em ar com o suscetômetro Kappabridge KLY-4S
acoplado ao módulo de aquecimento CS-3 (Agico Inc.). Cada amostra de foi submetida a
curvas de aquecimento e resfriamento em altas temperaturas (de 40ºC a 700ºC). As curvas de
aquecimento e resfriamento foram realizadas em ar (ao invés de usar com atmosfera de
argônio) porque em cerâmicas o aquecimento em ar indica o real comportamento dos
minerais magnéticos em relação ao aquecimento original do material cerâmico. O processo
475
de aquecimento e resfriamento em ar pode revelar características sobre as temperaturas de
queima à qual a argila do fragmento foi submetida no momento de sua produção, sobre
reutilizações do material em várias queimas (como panelas) ou sobre possibilidades de que o
material tenha sofrido outras queimas (como incêndios).
Entretanto, a curva termomagnética indicou que praticamente não material
magnético nas louças (tendo em vista o uso do caulim, argila branca), impossibilitando o uso
da cerâmica branca para o arqueomagnetismo. No gráfico abaixo, a curva em vermelho
indica o aquecimento do material e a curva em azul indica o resfriamento do material. O sinal
medido está no nível de ruído do equipamento (um sinal muito baixo) indicando que este
material não é adequado para as medidas de paleointensidade devido ao baixo conteúdo
magnético.
Quanto à segunda análise arqueométrica, a idéia era averiguar a composição de
vidrados e pastas, que uma análise puramente estética classificaria as louças da Fábrica
Santa Catharina como pearlware, como me referi no sub-capítulo 2.2.3, devido ao azulado do
vidrado. Selecionei para tal, louças vidradas, com marca ou não, cujas colorações eram
visualmente diferentes, com tons amarelados, ou com ou sem o azulado nas áreas de acúmulo
de vidrado. As amostras constituíram-se das peças SP-3075, SP-3467, SP-2774 e SP-2697.
As peças foram analisadas apenas com o software de aquisição de dados (PMCA), e
os resultaram foram mais que interessantes, uma vez que contradisseram toda análise baseada
476
na estética do vidrado, ao menos para estas louças brasileiras, uma vez que o azulado nos
locais de acúmulo nada tinha de Cobalto (Co), que teoricamente caracterizaria um pearlware.
Ficaram claros os picos de Chumbo (Pb). Um dos espectros foi propositalmente medido sobre
a região da marca da Fábrica, tipo 1 (o triângulo azul), mas mesmo assim o resultado foi
semelhante aos outros. Os gráficos abaixo contêm os resultados:
SP2774E1 – Medida da amostra SP2774 na parte esmaltada ponto número 1
Pb
Pb
Pb
Comparação dos três espectros da amostra SP2697, lado convexo esmaltado
Pb
Pb
Pb
477
A análise dos vidrados, de uma maneira ou outra, acabou não corroborando a
bibliografia e a classificação das faianças finas utilizadas no Brasil, vindas dos EUA e
Inglaterra, que se esteticamente os vidrados destas louças se assemelham ao pearlware, na
análise da composição se assemelham ao creamware. Se não corroborou estas classificações,
ainda apontou para o fato de que, se já são duvidosas para a análise de faianças finas
estrangeiras, para as brasileiras são quase inaplicáveis e devem ser vistas com parcimônia.
Vai de encontro também a idéia de que, longe de serem “cópias mal feitas”, as louças
brasileiras possuem originalidade local que vai muito além do simples uso de matérias-primas
nacionais.
Quanto à análise das pastas, a idéia era perceber se houve ou não alguma mudança na
composição das faianças finas da época da Santa Catharina (1913-1926) para a IRFM (1927-
1937); por isso, as amostras compuseram-se de exemplares com marcas, cuja identificação
temporal seria mais fácil. Na análise qualitativa dos espectros pelo software PMCA da
Amptek, as louças apresentam os elementos esperados para um artefato cerâmico.
Comparação entre as três medidas realizadas no lado convexo esmaltado – SP 3167E3
478
O biscoito apresenta os elementos esperados para uma pasta cerâmica. A linha de Pb
ainda precisa ser verificada. O Ni é do sistema de detecção, não é da amostra. O Ar (argônio)
é do ar. Como o anodo do tubo de raios-X e o filtro são de Ag, estas linhas também podem
aparecer.
Uma análise mais refinada das pastas foi realizada com o software AXIL, da IAEA.
As cerâmicas pertencentes a primeira fase da fábrica contêm muito óxido de Fe, mas também
um pouco de Ca, Ti e Zr. As amostras que eram biscoitos apresentaram uma pequena
contaminação de Pb, talvez resíduo de vidrado de outras peças. para as louças da fase dos
Matarazzo, a pasta das cerâmicas parece estar caracterizada pela presença Ca, Ti, Mn, Fe e
Zr. Existe, portanto, uma diferença identificada pela presença de Manganês.
Como os óxidos de Fe (além de Si, que não foi medido) são os compostos
majoritários da argila, poder-se-ia comparar estas razões das pastas cerâmicas das amostras
analisadas com razões para solos ou para argilas comuns e verificar se a quantidade relativa
de Ca e de Ti é muito maior (ou não), o que possibilitaria concluir com alguma segurança se
foi adicionado algum opacificante à base destes elementos na pasta cerâmica. A tabela abaixo
apresenta a comparação entre as amostras.
Medida da amostra SP3075 - sobreposição para comparação dos três espectros da amostra SP3075
479
RAZÃO
entre contagens
AMOSTRA
SP3075
Biscoito
SP3167P
SP2697P
SP2774P
K/Fe
0
0
0,13
0
Ca/Fe
0,015
0,089
0,086
0,13
Ti/Fe
0,016
0,078
0,062
0,078
Zr/Fe 0,040 0,32 0 0
Mn/Fe 0 0,18 0 0
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