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U
NIVERSIDADE DE
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ÃO
P
AULO
F
ACULDADE DE
F
ILOSOFIA
,
L
ETRAS E
C
IÊNCIAS
H
UMANAS
D
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L
ETRAS
C
LÁSSICAS E
V
ERNÁCULAS
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ROGRAMA DE
E
STUDOS
C
OMPARADOS DE
L
ITERATURAS DE
L
ÍNGUA
P
ORTUGUESA
Literatura infantil e cultura hipermidiática
relações sócio-históricas entre suportes textuais, leitura e literatura
José Augusto de A. Nascimento
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Estudos Comparados de Literaturas de ngua Portuguesa do
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientador: Prof. Dr. José Nicolau Gregorin Filho
São Paulo
2009
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Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Nascimento, José Augusto de A.
Literatura infantil e cultura hipermidiática: relações sócio-históricas entre suportes textuais,
leitura e literatura / José Augusto de A. Nascimento ; orientador José Nicolau Gregorin Filho. --
São Paulo, 2009
215 p.
Dissertação (Mestrado Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de
Literaturas de Língua Portuguesa Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas)
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
1. Literatura infanto-juvenil. 2. Hipermídia. 3. Práxis de leitura. I. Título. II. Gregorin Filho,
José Nicolau.
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FOLHA DE APROVAÇÃO
José Augusto de A. Nascimento
Literatura infantil e cultura hipermidiática
Relações sócio-históricas entre suportes textuais, leitura e literatura
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesas do
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Letras.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. ________________________________________________________
Instituição ____________________ Assinatura _________________________
Prof. Dr. ________________________________________________________
Instituição ____________________ Assinatura _________________________
Prof. Dr. ________________________________________________________
Instituição ____________________ Assinatura _________________________
R
ESUMO
:
Utilizando como quadro teórico-metodológico os
Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, a
presente pesquisa estuda a relação entre literatura e sociedade
no que concerne à influência das novas mídias (hipermídia) na
literatura infantil/juvenil no Brasil. A relação entre práticas
textuais, suportes para os textos e práticas de leitura é evidente
ao longo da história. Com o advento da computação e da
internet, surgem novos suportes com características que têm
modificado as práticas textuais e de leitura. Três traços definem
a linguagem hipermidiática contemporânea: diálogo
intercódigos, hipertextualidade e interatividade. O corpus
literário utilizado apresenta uma série de obras com
características dessa linguagem, em especial: A interminável
Chapeuzinho (Angela Lago), o ciberpoema “Chá” (Sérgio
Capparelli), Princesas esquecidas ou desconhecidas...
(Philippe Lechermeier) e Todos contra D@nte (Luís Dill).
P
ALAVRAS
-
CHAVE
: 1. Literatura infantil/juvenil 2. Hipermídia
— 3. Práxis de leitura.
T
ITLE
:
Children’s literature and hypermedia culture:
historical and sociological connections between text
supports, reading and literature.
A
BSTRACT
:
Based on the theoretic-methodological panel of the
Comparative Literature in Portuguese, this work studies the
relation between literature and society and how Brazilian
children’s literature has being influenced by new media
(hypermedia). The similarity between text support and practices
of reading and writing is very clear through History. The
computer and Internet are responsible for the emergence of
new book supports that changed the practice of reading and
writing. Nowadays hypermedia has three major characteristics:
dialogue between different codes, hypertextuality and
interactivity. The books used to confirm this work are: A
interminável Chapeuzinho (Angela Lago), the cyberpoem Chá
(Sérgio Capparelli), Princesas esquecidas ou desconhecidas...
(Philippe Lechermeier) and Todos contra D@nte (Luís Dill).
K
EYWORDS
: 1. Children’s literature — 2. Hypermedia — 3.
Praxis of reading.
Aos formadores de leitores.
Aos promotores da leitura.
Aos que acreditam na leitura como meio para
uma sociedade mais consciente e humana.
A
GRADEÇO
ao Professor Doutor José Nicolau Gregorin Filho,
pela confiança, pela amizade
e pela orientação paciente, respeitosa e dedicada;
à Professora Doutora Nelly Novaes Coelho
e ao Professor Doutor Mário César Lugarinho,
pelas valiosas contribuições no Exame de Qualificação;
à Professora Doutora Maria Zilda da Cunha,
pela atenção e pelo desprendimento
ao compartilhar sua pesquisa;
ao Professor Ivan Soida, pela consultoria
sobre a história da computação e da hipermídia.
A todos os familiares, amigos e colegas
meu sincero muito obrigado.
“Afinal, se com certeza ler não desempenha mais
os mesmos papéis que a tradição lhe reservou,
apesar dos avanços técnicos de toda espécie,
continua sendo chave para sonhos e segredos
que podem concernir a todos nós.”
Edmir Perrotti (1990)
S
UMÁRIO
1. Introdução 13
2. A literatura
infantil 24
2.1. Breve histórico da
literatura infantil 25
2.1.1. Relações entre
literatura oral e
literatura infantil 26
2.1.2. Os novos
conceitos sogre a
infância e o surgimento
do livro infantil 29
2.1.2.1. O surgimento
da literatura infantil no
Brasil 31
2.1.2.2. A obra
precursora de Monteiro
Lobato 35
2.2. A literatura
infantil/juvenil
contemporânea 39
2.2.1. O boom da
literatura infantil:
experimentalismo e
questionamento 40
2.2.2. O "objeto-novo":
práticas intertextuais e
diálogo verbal-visual
47
2.2.3. A literatura
hipermidiática para
crianças 49
3. Os suportes do
texto 52
3.1. A cultura oral não-
mediada 55
3.2. A cultura gráfico-
visual e a apropriação
do meio 57
3.2.1. O surgimento da
escrita 59
3.3. A cultura
manuscrita 62
3.3.1. Do papiro ao
papel 64
3.3.2. Do rolo ao códice
68
3.3.3. O manuscrito na
Idade Média 72
3.4. A cultura impressa
75
3.4.1. A invenção de
Gutenberg 75
3.4.2. Os periódicos e o
surgimento da imprensa
78
3.4.3. A
reprodutibilidade
técnica 82
3.5. A cultura
audiovisual 83
3.5.1. O audiosivual e a
leitura intercódigos 86
4. Texto, leitura e
literatura 93
4.1. A leitura 95
4.2. As práxis de leitura
98
4.2.1. Leitura
contemplativa,
meditativa 99
4.2.2. Leitura movente,
fragmentária 101
4.2.3. Leitura imersiva,
virtual 104
4.2.4. Leitura oral,
dialógica 106
4.3. Novos conceitos de
leitura e texto 108
4.4. O conceito de
literatura 112
5. A linguagem
hipermidiática e suas
marcas 117
5.1. Histórico da
hipermídia 120
5.1.1. Vannevar Bush:
teorias precursoras
121
5.1.2. Douglas
Engelbart: novas
tecnologias 126
5.1.3. Ted Nelson e o
desenvolvimento
conceitual da
hipermídia 129
5.1.4. A internet e a
WWW 133
5.2. A hipermídia hoje
136
5.2.1. Interfaces e
modelos do espaço
virtual 140
5.2.1.1. Bate-papos
140
5.2.1.2. Blogs 141
5.2.1.3. E-mail 143
5.2.1.4. Instant
messenger 143
5.2.1.5. Redes de
relacionamento 144
5.2.1.6. Conteúdos
colaborativos 145
5.2.1.7. Mecanismos
de busca 147
5.2.2. Traços
definidores da
hipermídia 148
5.2.2.1. Diálogo
intercódigos 149
5.2.2.2.
Hipertextualidade
156
5.2.2.3. Interatividade
161
6. Era uma vez... e
mais outra: leitura
de obras
hipermidiáticas 166
6.1. A interminável
Chapeuzinho 167
6.2. Ciber&Poemas 178
6.3. Princesas
esquecidas ou
desconhecidas... 185
6.4. Todos contra
D@nte 191
7. Considerações
finais 199
8. Bibliografia 207
13
1. Introdução
Direitos Imprescritíveis do Leitor
I - O direito de não ler.
II - O direito de pular páginas.
III - O direito de não terminar um livro.
IV - O direito de reler.
V - O direito de ler qualquer coisa.
VI - O direito ao bovarismo (doença textualmente transmissível).
VII - O direito de ler em qualquer lugar.
VIII - O direito de ler uma frase aqui outra ali.
IX - O direito de ler em voz alta.
X - O direito de calar
Daniel Pennac (1997)
O escritor francês Daniel Pennac, em seu Como um romance,
escreveu que o primeiro direito do leitor é o de “não ler”; direito cada vez mais
difícil de se exercer na sociedade contemporânea. O leitor de hoje o precisa
empreender muito esforço para alcançar o texto (objeto da leitura). Este se
encontra bem perto dele: na revista, no jornal, na televisão, na internet (e nos
próprios livros, cada vez mais difundidos e populares). Isso quando o texto não
lhe salta diante dos olhos, sem pedir permissão: como nos outdoors das ruas,
nos banners e pop-ups da internet, nas publicidades das revistas, do cinema,
da televisão, nos alto-falantes dos carros de som... e até nos anúncios que
cobrem as janelas dos ônibus e as paredes dos banheiros públicos. Aliás, é
raro, no dia-a-dia de uma cidade grande, passarmos uma ou duas horas sem
lermos um texto.
14
Nesse contexto, precisamos repensar o sentido que “ler”, “texto” e,
conseqüentemente, “literatura” assumem no momento atual; expressões com
significado bastante diferente daquele que vislumbrava Daniel Pennac nos
seus “direitos imprescritíveis do leitor”. Ali subjaz de certo modo a idéia do
“livro” como suporte privilegiado para veiculação de textos. Será que esse
modelo ainda nos serve? Olhemos à nossa volta... O que as pessoas estão
lendo? Livros sim, mas também revistas, jornais, páginas da web, legendas de
filmes, anúncios, bulas de remédio, letreiros, grafite nos muros, embalagens:
toda uma sorte de textos, com cores, tamanhos, formas, disposição,
movimento... que encantam, seduzem, divertem e conquistam os leitores.
São textos muitas vezes com sonoridade, visualidade e outras
características que, para além da escrita, não deveriam ser ignoradas durante
a leitura. Por que não lê-las? Por que não decodificá-las, interpretá-las,
reconceituá-las?
Desprezando-as perdemos a oportunidade de fruir melhor o texto, de
entendê-lo em sua plenitude e de ter uma postura mais consciente e crítica
diante do discurso ali transmitido. E, quando se trata da educação dos
pequenos, se trabalhamos com um conceito limitado (de “texto”, de “leitura” e
de “literatura”, corremos o risco de apresentar modelos limitantes, pouco
significativos para a criança, não atendendo suas necessidades e desejos,
desestimulando-a.
Esta dissertação estuda a relação entre literatura e sociedade no
que concerne à influência das novas mídias (hipermídia) na literatura
15
infantil/juvenil no Brasil. A relação entre práticas textuais, suportes para os
textos e práticas de leitura são evidentes ao longo da história. Com o advento
da computação e da internet surgem novos suportes com características que
têm modificado as práticas textuais e de leitura. Uma vez que estamos
preocupados com a formação dos leitores (e pelos motivos explicados mais
adiante), privilegiamos a literatura infantil como objeto de estudo.
Dentro da multiplicidade de textos a que temos acesso hoje,
recortamos nesta dissertação aqueles veiculados nas novas mídias (com
destaque para o computador e para a rede WWW), suportes digitais que vêm
transformando profundamente o modo com que nos comunicamos e mediamos
nossas relações. Os sinais dessas mudanças são bastante evidentes, como
podemos notar no trecho a seguir:
Estudantes carregam pendrive e laptop
Na mochila de Luiz Maurício Jardim Filho, 16,
espaço para pendrive, celular e laptop. Se não deu tempo de
terminar o trabalho, ele leva o arquivo para dar os últimos
retoques junto a colegas ou professores. Se precisa de um
livro, mas não o encontra na biblioteca, pesquisa o conteúdo na
internet.
“A gente acaba dependendo da tecnologia para
fazer tudo com mais agilidade”, diz o aluno do Colégio Pueri
Domus. “E, também, para ter mais fonte de pesquisa. Se for
depender da escola onde existem cinco computadores
por prédio a gente não sabe se vai ter alguém querendo
usar.”
Para Felipe Tricate, 14, aluno do Colégio Magno, o
destaque entre as inovações que chegam à sala de aula vai
para a lousa eletrônica, que permite a exibição de imagens do
computador e a escrita manual, além da gravação do conteúdo
16
em CD ou DVD. “O professor pode desenhar na página, fazer
esquemas. Acho positivo a escola usar a tecnologia, porque
isso desperta o interesse da gente para estudar mais”, diz
Tricate.
Camila Amâncio, 15, deixa o celular e o iPod
desligados enquanto está em aula, no Colégio Pio XII. Mas o
pendrive com trabalhos e fotos de visitas pedagógicas está
sempre com a estudante, que até faz algumas provas no
computador.
Em casa, Camila usa a internet para complementar
os estudos. É um meio mais interativo de aprender as coisas”,
diz.
E a facilidade de já encontrar tudo pronto na
internet? “Eu pesquiso, copio e colo o material, para leitura.
Mas é para ler, entender e, depois, escrever. É mais um
processo para organizar as idéias”, diz Camila.
Para Vitor Finotal, 16, que vai para o segundo ano
do Ensino Médio, também no Pio XII, “é difícil controlar a
vontade de copiar e colar. Mas você sempre tem que saber que
aquilo não é 100% confiável. Tem que pesquisar em livro
também.”
(Arrais, Daniela. Estudantes carregam pendrive e
laptop”. Em: Folha de S.Paulo, Informática, 30/1/2008)
Como aponta a reportagem, as mídias digitais têm participado cada
vez mais efetivamente do cotidiano das crianças. E não destas, mas de
grande parte da população.
É claro que a popularização da informática ainda está longe do ideal,
do seu potencial. Isso se deve em boa parte ao custo dos aparelhos
informatizados. Mesmo com preço cada vez menor, ainda é inviável à
população mais pobre. Além disso, muita gente ainda não sabe como interagir
com essa tecnologia, é o chamado analfabetismo digital.
17
Contudo, ainda assim, a computação e a internet têm mudado
significativamente o dia-a-dia de uma parcela cada vez mais expressiva da
população. Vinte anos atrás, internet, pendrives, I-Pods, lousa digital seriam
possíveis apenas em filmes de ficção científica. Hoje, não tais ferramentas
são viáveis, como são comuns em nossa sociedade. Trabalho, educação,
lazer, atividades domésticas... Profissionais que trabalham em casa, ou que
usam o computador como ferramenta essencial; educação à distância e
professores que usam as mídias digitais como instrumento didático; crianças
que brincam com games, na internet, que recorrem ao computador em
pesquisas e trabalhos escolares; chats, redes de relacionamento, TV digital;
sites de compra, bancos on-line, celulares que tiram fotos, tocam música,
organizam agenda e contatos... a digitalização tem entrado em todos os
ambientes e modificado as práticas sociais.
As artes, por sua vez, não ficam alheias a esse processo. Por todo
mundo existem experiências de arte digital, vide a mostra Emoção Art.ficial,
promovida anualmente pelo Instituto Itaú Cultural em São Paulo, que traz
trabalhos de apropriações estéticas da tecnologia de todo o mundo. Além
disso, o uso de ferramentas digitais para a elaboração de obras de artes
gráficas e audiovisuais como programas de mixagem de som, de animação,
de pintura e desenho no computador, de tratamento e fusão de imagem são
amplamente difundidas.
Seguindo esse raciocínio, parece natural que o fazer literário
acompanhe essas mudanças, e se posicione esteticamente diante delas. E é o
18
que vem acontecendo. E como se essa relação? Queremos demonstrar que
por um lado, as mídias digitais têm sido suporte para a literatura e têm
imprimido nela suas marcas: interatividade, hipertextualidade, diálogo
intercódigos... Por outro, as práticas hipermidiáticas também têm influenciado a
literatura “convencional”, em papel. Notamos que textos impressos têm
recorrido com freqüência a certos modelos e práticas textuais evidenciados
pelas mídias digitais (diálogo intergêneros, linguagem de e-mail, simulações de
blogs). Isso ocorre por vários motivos: por um hábito de leitura navegativa dos
autores; por uma apropriação estética dessas características hipermidiáticas; e
com o objetivo de alcançar um público-leitor acostumado à leitura navegativa e
atraído por tais modelos e práticas.
E essas mudanças nos suportes e nos textos têm levado também a
alterações nas práticas de leitura como um todo. Isso acontece porque, como
veremos, a hipermídia exige uma forma de leitura hipertextual, navegativa,
interativa, intercódigos de certo modo diferente daquela dos livros
tradicionais. Com isso, abre caminhos para que o leitor treine e aplique essas
habilidades.
Ao longo do nosso trabalho procuraremos verificar como se essa
relação hipermídia-literatura, e como ela tem influenciado as práticas textuais e
de leitura.
Dentro da grande área “literatura”, interessa-nos em especial a
literatura para crianças e adolescentes, pois estamos preocupados com a
formação dos novos leitores que, ao que tudo indica, precisarão cada vez mais
19
destas habilidades de leitura. Além disso, a literatura infantil/juvenil é um
gênero privilegiado para estudar o fenômeno, uma vez que:
a) por seu aspecto pedagógico, a literatura infantil deve
trazer (e em muitos casos tem trazido) em seu bojo os
conceitos e as práxis mais atuais de texto e leitura,
preparando as novas gerações para os desafios sociais
de leitura com que se confrontam no presente e se
confrontarão no futuro;
b) por gozar, em geral, de pouco prestígio junto ao público
adulto, e por possuir pouca atenção dos teóricos e da
crítica especializada, a literatura infantil é um gênero
menos monitorado, controlado, sobre o qual a tradição
pesa menos. Assim, trata-se de um tipo de texto que
tende a resistir menos a experimentações e às mudanças
sociais e culturais;
c) por o leitor infantil ter pouca habilidade com a escrita, os
textos voltados a esse público tendem a dar maior
atenção às linguagens visuais e sonoras de modo a
estabelecer uma comunicação mais fluente e efetiva com
a criança.
d) por ter nascido em meio à revolução digital, o público
infantil contemporâneo tem se mostrado mais habituado
às novas tecnologias e, conseqüentemente, em tese,
20
mais receptivo a textos produzidos segundo esses
moldes.
Ainda que tenhamos preferido a literatura infantil, a teorização deste
trabalho serve também aos interesses da literatura de forma geral, uma vez
que a tecnologia digital não influencia especificamente as crianças e os
adolescentes, mas, em maior ou menor grau, todas as parcelas da sociedade.
Além disso, pesquisas têm demonstrado que as especificidades da literatura
infantil, com relação à adulta, são bem menores do que se pode parecer.
Assim, nossa abordagem parte dos seguintes pressupostos (e
procura demonstrá-los):
a) A tecnologia da comunicação e, em particular, os
suportes, com suas características e potencialidades,
influenciam a produção textual;
b) Os textos, por sua vez, modificam (ao lado de outros
fatores sociais) historicamente a práxis e o conceito de
leitura;
c) Em contrapartida, essa nova práxis de leitura (ao lado de
outras práticas sociais) influencia a escrita (o fazer
textual) e o conceito de texto como um todo.
21
Uma vez verificados esses pressupostos, partiremos para os
objetivos principais deste trabalho, a saber:
a) detectar a influência da hipermídia na literatura para
crianças;
b) delinear os contornos e as potencialidades dessa
influência, tanto nos suportes virtuais (computador, rede
WWW), quanto nos suportes impressos;
c) analisar alguns textos contemporâneos que evidenciam
essa influência, demonstrando as possibilidades de leitura
que os textos hipermidiáticos propiciam;
d) ensaiar algumas formas de ler esses textos de forma mais
proficiente e plena.
A fim de alcançarmos nosso intento, seguiremos a seqüência
metodológica a seguir:
a) No próximo capítulo, traçaremos um percurso histórico da
literatura para crianças no Brasil e no mundo, apontando
algumas transformações, nos seus suportes e nos textos,
relacionadas ao desenvolvimento tecnológico. Também
delineamos as principais características da literatura para
22
crianças hoje, a fim de compreendermos o contexto em
que emerge a literatura infantil hipermidiática.
b) No terceiro capítulo faremos um caminho semelhante,
mas agora com relação aos suportes e a comunicação.
Dessa forma, procuramos demonstrar como a hegemonia
da cultura escrita é bem delimitada no tempo, e que
outras formas de mediação de cultura são possíveis e
eficientes na preservação e transmissão do
conhecimento. Também nesse capítulo procuramos
verificar como as características dos textos variam de
acordo com o suporte e com o desenvolvimento
tecnológico.
c) O quarto capítulo sintetiza as noções e idéias dos dois
anteriores: depois de demonstrar que os suportes variam
historicamente e que os textos (e a literatura infantil, de
forma específica) carregam marcas deles, propomos uma
reconceituação do que é “texto”, “leitura” e “literatura”, no
âmbito das práticas textuais contemporâneas. É dentro
desses novos conceitos que contemplamos as práticas
literárias hipermidiáticas para crianças.
d) No quinto capítulo, exploramos as características e
potencialidades da hipermídia, verificando os principais
modos com que ela vem influenciando o fazer textual
23
contemporâneo. Aqui, procuramos compreender de que
modo se a relação entre literatura infantil e hipermídia.
As classificações propostas nesse capítulo são
ferramentas para as análises do capítulo 6.
e) No último capítulo do desenvolvimento, analisamos
algumas obras em que as influências da hipermídia são
bastante evidentes. O objetivo aqui é confirmar e aplicar a
teorização e as classificações que realizamos ao longo de
nosso estudo, bem como ensaiar algumas formas de se
fazer uma leitura mais aprofundada desse tipo de texto.
Metodologicamente, optamos pelo comparativismo, pois, em nossa
pesquisa, confrontamos e relacionamos áreas do conhecimento aparentemente
distintas, a saber: Literatura, Comunicação e Tecnologia. Desse modo,
investigamos como a linguagem hipermidiática tem transformado estruturas
textuais tradicionais. Daí a relevância deste trabalho para os Estudos
Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, que ele revela o modo
com que as inovações tecnológicas podem levar a transformações profundas
nos suportes e na mediação da cultura.
24
2. A literatura infantil
Evidentemente, tudo é uma Literatura só. [...]
Costuma-se classificar como Literatura Infantil
o que para as crianças se escreve.
Seria mais acertado, talvez assim classificar
o que elas lêem com utilidade e prazer.
Cecília Meireles (1984)
A fim de delimitar e compreender o objeto sobre o qual nos
debruçamos e os conceitos com os quais trabalhamos, convém recuperar o
processo histórico pelo qual passou a literatura para crianças e adolescentes
no mundo e, especificamente, no Brasil, desde seu surgimento, ligado à
literatura oral (também conhecida como oratura), até sua atual configuração.
Nosso objetivo com esse percurso é mostrar que a literatura infantil é um
fenômeno mais ou menos recente (tanto quanto o conceito de infância assim o
é) e que, mesmo assim, sua forma, seus suportes e funções variaram ao longo
da história.
25
Em seguida, delinearemos as principais características da literatura
infantil hoje, mostrando assim o contexto em que emerge o objeto de nosso
estudo: a literatura infantil hipermidiática.
2.1. BREVE HISTÓRICO DA LITERATURA INFANTIL
Para se compreender o ponto de partida desse histórico é preciso
notar que é entre o final do século XVII e início do culo XVIII que surge
um conceito de infância. Até então, a criança não era levada em conta no
processo de socialização e no contexto humano. “Criança sempre existiu, mas
infância não”, afirma o professor Paulo Ghiraldelli Jr. (2006: 17). De fato, antes
do início da Modernidade (século XVII), a criança era tratada como um
“homúnculo” (um adulto em miniatura). Assim, exceto pela diferente estatura,
considerava-se que a criança não diferia em nada do adulto, sendo tratada da
mesma forma que este. Não havia uma educação diferenciada, espaços
específicos de convivência para as crianças, até suas vestes eram
semelhantes às dos adultos (F
IGURA
2.1).
Assim, não se pode falar de uma literatura feita para crianças antes
da Modernidade. Da mesma forma, não se pode falar em vestuário infantil,
educação infantil etc., já que, em tudo, eram tratadas como adultos.
26
Figura 2.1 No quadro As meninas (Las meninas, de Diego Velásquez), de 1656,
como em tantos outros, pode-se notar como historicamente as vestes das crianças e
dos adultos não se distinguiam.
2.1.1. Relações entre literatura oral e literatura infantil
As origens da literatura infantil/juvenil remontam à literatura popular
oral. Esses textos têm como características principais o uso de linguagem
verbal oral, a coloquialidade e o recurso à gestualidade e à expressão facial.
São transmitidas oralmente, recontadas de pessoa para pessoa, de geração
em geração. Pela ausência de registro, cada vez que a história é contada e
escutada se transforma, sendo, assim, sempre uma paráfrase.
Desse modo, a novelística popular, a partir da Idade Média, quer
pela simplicidade (de estrutura, linguagem e compreensão), quer pelo fundo
27
exemplar/moral, transformou-se no que chamamos hoje de literatura
infantil/juvenil clássica. Textos esses que foram mais tarde registrados por
escritores como Perrault, Grimm, Andersen, La Fontaine, mas que não
nasceram ligados à cultura escrita, mas sim à oratura.
Sobre o assunto, escreve Nelly Novaes Coelho (1991: 13):
[...] com relação à gênese da Literatura
Popular/Infantil ocidental, sabe-se que está naquelas
longínquas narrativas primordiais, cujas origens remontam a
fontes orientais bastante heterogêneas e cuja difusão, no
ocidente europeu se deu durante a Idade Média, através da
transmissão oral.
Dessas narrativas primordiais orientais nascem,
pois, as narrativas medievais arcaicas, que acabam se
popularizando [...] e se transformando em literatura folclórica
[...] ou em literatura infantil.
Há, inclusive, contos registrados por mais de um desses escritores,
com diferentes versões, como é o caso da Chapeuzinho Vermelho, que
aparece tanto em Perrault, quanto em Grimm. As diferenças entre as versões
são prova de que, pela contação oral, essas histórias foram se modificando,
incorporando marcas pessoais e indicando as transformações da sociedade.
De acordo com Ghiraldelli (2006: 17), com o início da Modernidade
(século XVII) aparece pela primeira vez o conceito de infância. Os pensadores
da época começam a difundir a idéia de que as crianças são seres
qualitativamente diferentes dos adultos, necessitando, pois, de cuidados e
ambientes especiais.
28
Assim, é nesse século que se esboça pela primeira vez no ocidente
certa intencionalidade de uma literatura para crianças e jovens. É o que
acontece, por exemplo, com parte da obra de Charles Perrault. Não que seja
uma literatura feita para crianças, pois, como dissemos anteriormente, Perrault
não é propriamente autor das histórias, mas as reuniu da literatura popular oral.
A novidade é a consciência de que tais obras serviam bem à diversão e à
formação moral das crianças.
Perrault escreve no prefácio da primeira edição de A pele de asno:
Houve pessoas que perceberam que essas
bagatelas não são simples bagatelas, mas que guardam uma
moral útil e que a narração que as conduz não foi escolhida
senão para fazer entrar (tal moral) de maneira mais agradável
no espírito, e de uma maneira que instrui e diverte ao mesmo
tempo. (Apud C
OELHO
, 1991: 88)
Outro indício da preocupação de Perrault com uma literatura para
crianças está na sua obra mais conhecida: Os contos da mãe gansa. A mãe
gansa é uma personagem do folclore francês, que conta histórias para seus
filhotes (na cultura brasileira, algo como o “preto velho” ou, nesse sentido, a
personagem Dona Benta de Monteiro Lobato). Está um forte indício da
suposição de um público infantil para essa obra, ou seja, seriam histórias para
os mais velhos contarem para os pequenos.
Além disso, alguns desses contos trazem normas de comportamento
diretamente para crianças. Um dos exemplos mais clássicos é a própria
Chapeuzinho Vermelho. A mãe de Chapeuzinho alerta a menina sobre os
29
perigos da estrada (que pode simbolizar a vida). Orienta-a a não falar com
estranhos e a não desviar do caminho (alusão às tentações). Mas a menina
não escuta os conselhos da mãe e sai do caminho, para colher frutos silvestres
para a avó (representando a ousadia própria da juventude). O lobo é a figura
do homem conquistador, viril, que, por meio do discurso, seduz Chapeuzinho.
Como conseqüência de sua imprudência, a menina e sua avó acabam
devoradas pelo lobo. Fica claro o ensinamento de precaver as meninas contra
os perigos da vida e, mais especificamente, contra a sedução amorosa.
Acontece que, ainda que no século XVII se esboçasse um conceito
de infância, ele era diferente do que o temos hoje. Partindo das idéias do
filósofo francês René Descartes (1596-1650), a infância era vista como uma
fase específica, mas negativa, inferior, que deveria passar o quanto antes.
Essa teoria é baseada no racionalismo iluminista, para o qual o lúdico, a
imaginação, os sonhos (próprios da criança) não devem ser valorizados. Ao
contrário, precisam, sim, ser substituídos, o mais rápido possível, por
intermédio do ensino, pela razão, pela lógica cartesiana, pela disciplina:
qualidades do homem adulto, civilizado.
2.1.2. Os novos conceitos sobre a infância e o surgimento do livro infantil
É na segunda metade do culo XVIII que outro filósofo francês,
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), revê as idéias de Descartes,
30
contrapondo-se a elas. Para Rousseau, a civilização perverte as qualidades
inerentes do ser humano. Trata-se do mito do “bom selvagem”, influenciado
pelo romantismo, segundo o qual o homem é bom por natureza, e é a
sociedade que o macula. Assim, a infância é estabelecida como o período mais
perfeito e puro do indivíduo, cujas características deveriam ser valorizadas e
preservadas, de modo a levá-las para a fase adulta: “O idealismo romântico [...]
criou o mito da infância (como a idade de ouro do ser humano) e o da
adolescência (como o da pureza e sensibilidade instintivas, que o mundo adulto
corromperia ou decepcionaria)” (C
OELHO
, 1991: 139).
É nessa época que começa a ser produzida uma literatura mais
propriamente infantil, que estimula e valoriza a criatividade, a imaginação, a
fantasia. São exemplos: a literatura aventuresca de William Defoe (1660-1731),
os contos fantástico-maravilhosos de Lewis Carroll (1832-1898) e a ficção
científica de Julio Verne (1828-1905).
É importante notar, quanto à forma, que essa literatura para
crianças, criada durante a Modernidade, sobrevaloriza a linguagem verbal
escrita em detrimento das demais. Isso é natural se levarmos em conta a
época, que tem seu auge com o Romantismo na literatura, em que a cultura
escrita (materializada pelo livro) é a principal forma de veicular cultura e
conhecimento. Além da linguagem verbal escrita, nesses textos algumas
ilustrações em que predominam as funções descritivas e narrativas (de acordo
com a classificação de Luis Camargo (1998)) (F
IGURA
2.2).
31
Figura 2.2 Ilustração da edição de 1867 de Cinco semanas em um balão, de Júlio
Verne (Cinq semaines en ballon: voyage de découvertes en Afrique, par trois anglais,
p. 98). Nela, predominam as funções descritivas (a savana africana, o elefante, o
balão) e narrativas (o elefante arrastando o balão, a personagem atirando no elefante).
Legendas (como a que aparece nessa página) são típicas nas ilustrações dos livros
infantis do período. Elas indicam o trecho específico da história que a imagem está
ilustrando (muitas vezes sendo reproduções ipsis litteris desse trecho) o que reforça a
subordinação da linguagem visual à linguagem verbal escrita nesses textos. (Fonte:
http://www.sil.si.edu/OnDisplay/JulesVerne100/Verne_ImagesSelected.cfm?book_id=S
IL28-092. Acesso em 19/6/2008.)
2.1.2.1.
O
SURGIMENTO DA LITERATURA INFANTIL NO
B
RASIL
As primeiras manifestações da literatura infantil/juvenil brasileira
surgem no fim no século XIX, em um período de grandes mudanças na política
e na economia do país. São marcos maiores desse momento, a Abolição da
Escravatura (1888) e a Proclamação da República (1889). Frente a isso, nasce
32
um apelo a novos valores, principalmente, de cunho nacionalista. No intuito de
adequar o ensino a esse novo ideário, uma importante reforma no sistema
escolar do país. Acompanhando-a, surge a necessidade de uma literatura
infantil/juvenil própria, que levante a bandeira nacional.
Conforme Nelly Novaes Coelho (1991: 207), as principais
características dessa literatura são: o nacionalismo, o intelectualismo
(valorização do estudo e da leitura), o tradicionalismo cultural (resgate das
grandes obras do passado, como modelos a serem seguidos), o moralismo e a
religiosidade (retidão de caráter, dentro dos preceitos cristãos).
Tais peculiaridades refletem valores consolidados ainda no período
romântico (séc. XIX), sendo alguns deles (adaptado de C
OELHO
, 2000: 19-22):
a) espírito individualista: tudo na sociedade tradicional parte
do individualismo. Na prática, o individualismo forte e
competitivo acabou por se transformar no poder absoluto
das minorias. Na literatura, essa valorização ideal do
indivíduo está patente nas características dos heróis ou
personagens românticos: todos, sem exceção, modelos
das qualidades e virtudes consagradas pela sociedade.
b) obediência absoluta à autoridade: para o pleno sucesso
do sistema haveria um caminho, a obediência absoluta
às autoridades detentoras do saber e do poder (Igreja,
governo, patrão, pai, esposo). Na literatura para crianças,
33
observa-se o domínio da exemplaridade; da rigidez de
limites entre certo e errado, entre bom e mau.
c) valorização do ter e parecer, acima do ser: valorização
das minorias privilegiadas pela fortuna; respeito ao saber
dos que ascenderam socialmente pelo estudo e incentivo
ao paternalismo (como compensação ao desequilíbrio
social). De um lado, o ideal democrata que valoriza o
trabalho como fenômeno de realização do indivíduo; de
outro, o ideal aristocrata que valoriza os privilegiados. A
autoridade suprema e decisória na família é exercida pelo
homem, enquanto é atribuída à mulher a responsabilidade
pelo comportamento dos filhos e pelo funcionamento da
família e do lar. Na literatura para crianças, todas essas
características aparecem de maneira evidente, reforçando
os limites entre o que é próprio de cada gênero.
d) moral dogmática: maniqueísmo de caráter religioso, o
prêmio à virtude ou o castigo ao vício seriam concedidos
no além-vida. Na literatura infantil, essa moral aparece na
rigidez de conduta, que se condensa na moral da história,
ou no prêmio ou castigo recebido pelas personagens.
e) sociedade sexófoba: é resultante dessa sociedade de
base religiosa que estigmatizou o sexo como pecado. A
34
interdição do sexo acabou se restringindo mais às
mulheres.
f) reverência pelo passado: o passado é um modelo a ser
seguido, cultuando-se os grandes mestres da literatura e
das artes em geral.
g) concepção de vida fundada no transcendentalismo: a vida
é vista como uma passagem por este “vale de lágrimas”.
Pelo culto das virtudes e das boas ações, os homens
podem ser dignos de entrar novamente no paraíso.
h) racionalismo: tudo deve ser explicado pela razão, apoiada
ora pela fé, ora pela ciência.
i) racismo: aparece como prolongamento da escravidão. Na
literatura infantil, a separação entre brancos e negros é
notória.
j) visão da criança como “adulto em miniatura”: o período de
imaturidade deve ser encurtado o máximo possível. Daí a
educação, rigidamente disciplinadora e punitiva, e a
literatura exemplar que procurava levar o pequeno leitor a
assumir, precocemente, atitudes consideradas “adultas”.
35
As características desse modelo tradicional de literatura são
encontradas até recentemente na maioria dos livros para crianças e
adolescentes (principalmente, até a década de 1980). Ainda hoje, persiste em
alguns meios essa concepção de educação e literatura infantil/juvenil exemplar,
paternalista e modelar.
2.1.2.2.
A
OBRA PRECURSORA DE
M
ONTEIRO
L
OBATO
Exceção, na primeira metade do século XX, a esse modelo de
literatura exemplar se faz à obra de Monteiro Lobato (1882-1948). Ela traz,
na década de 1930, várias características da literatura infantil/juvenil brasileira
contemporânea: uma literatura inventiva, que estimula a imaginação,
misturando o realismo, ao mágico e ao fantástico.
Lobato foi um homem controverso. Em muitas idéias preso ao seu
tempo, era, por exemplo, defensor do progresso aos moldes positivistas
(costumava dizer que o desenvolvimento brasileiro dependia de quatro
elementos básicos ferro, petróleo, trigo e livros). Além disso, alguns teóricos
vêem em sua obra certo preconceito contra os negros e contra a cultura
popular (vide, por exemplo, a figura de Tia Nastácia e do Jeca Tatu).
Por outro lado, teve algumas posturas muito à frente do ideário da
primeira metade do século XX. No campo editorial, por exemplo, foi proprietário
de algumas das maiores e mais importantes editoras do país. Nesse setor, deu
36
importantes contribuições, trazendo para o Brasil o sistema de vendas por
consignação (comercializava livros em mercados, quitandas, mercearias, o que
contribuiu muito para um acesso mais amplo ao livro no Brasil) e imprimindo
altas tiragens (mais de 20-30 mil exemplares, quantias grandes até mesmo
para os padrões atuais).
No campo literário, pode ser considerado precursor da nova
literatura infantil/juvenil brasileira. Suas personagens infantis (em especial a
boneca Emília), nas décadas de 1930 e 1940, apresentam muitas
características dessa nova literatura, que ganha espaço somente a partir da
década de 1980: questionamento da autoridade e da tradição, curiosidade,
inventividade, “olhar de descoberta” (G
ÓES
, 2003), com virtudes e defeitos.
Segundo o próprio Monteiro Lobato (1986: 28), por sua personagem Narizinho:
[Narizinho] Viu também que [Emília] era de gênio
teimoso e asneirenta por natureza, pensando a respeito de
tudo de um modo especial todo seu. Melhor que seja assim
filosofou Narizinho. As idéias da vovó e Tia Nastácia são
tão sabidas que a gente as adivinha antes que elas abram a
boca. As idéias de Emília hão de ser sempre novidades.
E, segundo Nelly Novaes Coelho (1991: 225): “Lobato encontrou o
caminho criador que a Literatura Infantil estava necessitando. Rompe, pela raiz,
com as convenções estereotipadas e abre as portas para as novas idéias e
formas que o nosso século exigia”.
37
Prenunciadas por Lobato, tais características só ganham força a
partir da década de 1970, no chamado “boom” da literatura infantil brasileira.
Quanto à forma, os textos de Lobato apresentam uma linguagem
mais coloquial, inclusive com o uso de gírias e neologismos, principalmente nas
personagens infantis (grifos nossos):
Emília empertigou-se toda e começou a dizer na
sua falinha fina de boneca de pano:
— Pois foi aquela diaba da Dona Carocha. A coroca
aparece na gruta de cascas... [...] Mas a coroca me unhou a
cara e me bateu com a casca na cabeça, com tanta força que
dormi. Só acordei quando o Doutor Cara de Coruja...
— Doutor Caramujo, Emília!
Doutor C
ARA DE
C
ORUJA
. acordei quando o
doutor C
ARA DE
C
ORUJÍSSIMA
me pregou um liscabão. (L
OBATO
,
1986: 28)
Em alguns trechos aparece inclusive alguma exploração da
visualidade do texto, como no excerto a seguir, em que a forma do texto tenta
se aproximar à de uma lápide (L
OBATO
, 1986: 38):
As formigas, muito contentes, continuaram o
serviço e levaram para o fundo da cova o cadáver da vespa.
Em seguida apareceu uma trazendo um letreiro assim, que
fincou num montinho de terra:
38
AQUI NESTE BURACO JAZ
UMA POBRE VESPA ASSASSINADA
NA FLOR DOS ANOS
PELA MENINA DO NARIZ ARREBITADO
.
ORAI POR ELA
!
Na maioria das edições dos livros infantis de Lobato há também
ilustrações (F
IGURA
2.3). Mesmo assim, sua obra mantém uma hegemonia da
linguagem verbal escrita sobre outras linguagens.
Figura 2.3 Como nas ilustrações dos livros de Julio Verne (F
IGURA
2.2), em
Monteiro Lobato, predominam as funções descritivas e narrativas das ilustrações. No
entanto, diferentemente daquelas, estas apresentam traço mais solto, menos realista,
o que confere à ilustração outras funções secundárias (expressivas, estéticas,
lúdicas). (Ilustração de Manuel Vitor Filho para edição de O Sitio do Picapau Amarelo,
década de 1970.)
39
2.2. A LITERATURA INFANTIL/JUVENIL CONTEMPORÂNEA
O conceito de infância, como o entendemos hoje, é o produto das
concepções de Descartes e de Rousseau (ver itens 2.1.1 e 2.1.2). A nossa
educação infantil e os livros produzidos para crianças enfatizam ora o
racionalismo e o moralismo dos adultos (cartesianianos), ora sobrepõem a isso
a ludicidade, a inventividade e a imaginação (rousseaunianas). Na literatura
infantil, são exemplos da sobrevalorização do primeiro, as histórias exemplares
da Condessa de Ségur (Sofia, a desastrada, As meninas exemplares) e de
Eleanor H. Poter (Pollyana). a obra infantil de Monteiro Lobato tende a
valorizar o lúdico e a imaginação, em detrimento do racionalismo e do
moralismo.
Nelly Novaes Coelho resume bem o processo que culminou na
nossa concepção de infância:
[...] como é natural em todo fenômeno de
transformação cultural, essa descoberta da infância não se fez
de chofre. A criança começa por ser encarada como um adulto
em miniatura, cujo período infantil deveria ser encurtado o mais
depressa possível para que ela pudesse superá-lo e alcançar o
estado adulto, ideal. A descoberta da qualidade específica do
ser criança ou do ser adolescente (como estados biológicos e
psicológicos valiosos, no desenvolvimento do ser) será feita em
nosso século XX. (C
OELHO
, 1991: 138)
Em meado da década de 1970, e com mais ênfase a partir da
década de 1980, as características que aparecem pela primeira vez nas obras
40
de Lobato são retomadas e ampliadas na literatura infantil. Marcada pelo
experimentalismo e pelo questionamento, essa concepção de literatura para
crianças se difunde, sendo evidente na maioria dos autores contemporâneos:
Tatiana Belinky, Eva Furnari, Leo Cunha, Ana Maria Machado, Angela Lago,
Sérgio Capparelli e muitos outros.
2.2.1. O boom da literatura infantil: experimentalismo e questionamento
Essa “descoberta da qualidade específica do ser criança” (C
OELHO
,
1991: 138) que ocorre durante o século XX, veio culminar no chamado boom
da literatura infantil. Conforme Nelly Novaes Coelho:
A explosão de criatividade que, na década anterior
[década de 1960, início da década de 1970], se na área da
Música Popular Brasileira [especialmente com o movimento
conhecido como “Tropicália”], em meados dos anos 70 vai-se
dar com a Literatura Infantil/Juvenil (e também com o Teatro
Infantil). (C
OELHO
, 1991: 259).
E conforme Lucia Pimentel Góes:
Não se admitia um leitor ativo, movido por seus
sentidos. Na literatura infantil e juvenil tradicional, ligada à
pedagogia, a criança é um receptor passivo. A história era vista
como um processo de transmissão de informações morais. A
concepção atual rompeu com essa ideologia (G
ÓES
, 2003:15).
41
Um novo momento da literatura infantil/juvenil no Brasil surgiu no
último quarto do século XX. Em oposição à literatura moralista e dogmática de
até então, aparece o experimentalismo e o questionamento de tudo que era
tido como verdade absoluta:
Surgiram dezenas de escritores e escritoras,
obedecendo a uma nova palavra de ordem: experimentalismo
com a linguagem, com a estruturação narrativa e com o
visualismo do texto; substituição da literatura confiante/segura
por uma literatura inquieta/questionadora, que põe em causa
as relações convencionais existentes entre a criança e o
mundo em que ela vive, questionando também os valores
sobre os quais nossa sociedade está assentada.
As novas forças estimulam os criadores a preparar
as novas gerações para a estruturação/construção de um novo
mundo; e não para a consolidação de um sistema
estruturado em suas bases (como aconteceu no século XIX, ao
difundir através da Literatura Infantil/Juvenil os valores do
Romantismo/Realismo).
[...]
Em diferentes estilos, formas ou linguagens (com a
presença cada vez mais ativa da ilustração), a invenção
literária atual oferece às crianças histórias atraentes, vivas e
bem-humoradas que buscam diverti-las e, ao mesmo tempo,
estimular-lhes a consciência crítica em relação aos valores
defasados do sistema vigente e aos novos valores a serem
eleitos. (C
OELHO
, 1991: 259, 263)
Essa nova literatura nasce ligada a uma mentalidade ainda em
gestação, cujas principais características, em contraposição à literatura
infantil/juvenil tradicional, são (adaptado de C
OELHO
, 2000: 24-27):
a) espírito solidário: o espírito solidário, socializante, é a
consciência de que o indivíduo é parte essencial do todo
42
pelo qual cada um é visceralmente responsável. Na
literatura infantil/juvenil, surge a tendência de se substituir
o herói pela turma (grupo), formada por meninos e
meninas normais; ou, então, por personagens
questionadoras das verdades que o mundo adulto lhes
quer impor.
b) questionamento da autoridade: repudia-se o autoritarismo.
Cria-se uma consciência da relatividade dos valores e
ideais criados pelos homens. A antiga uniformização de
idéias tende a ser substituída pela convivência dos
contrastes inevitáveis entre os seres, as coisas, os
fenômenos etc.
c) valorização do fazer como manifestação do ser: o ideal a
ser atingido é fazer desaparecer as injustiças e aviltantes
diferenças sociais que hoje se agudizam. O trabalho deve
ser concebido como meio de realização existencial.
uma tendência em substituir o núcleo familiar pelo casal
(no qual, os direitos e deveres do homem e da mulher
tendem a se igualar). Os efeitos dessa transformação
aparecem na literatura para crianças, ora por meio da
perspectiva dos filhos que perderam o “porto seguro”
representado pela mãe dona de casa; ora por meio da
igualdade entre meninos e meninas. ainda uma
43
literatura juvenil “engajada que se empenha em
denunciar a miséria social decorrente do caos presente.
d) moral da responsabilidade ética: valorização da
responsabilidade individual, que deve agir
conscientemente em face da relatividade dos valores
atuais e em relação ao direito do outro.
e) sociedade sexófila: o exagero do “interdito ao sexo”
tradicional passa para o exagero da liberação sexual total.
Urge que a força sexual seja redescoberta, para além do
natural e da moral, como um ato existencial.
f) redescoberta e reinvenção do passado: o passado é visto
como origem, como forma criadora. Dessa atitude surge,
na literatura, a intertextualidade, as paráfrases, as
apropriações e as paródias, bem como a redescoberta de
formas literárias do passado, recriadas pelo novo espírito
dos tempos.
g) concepção de vida fundada na visão cósmica, existencial,
mutante da condição humana: a vida é concebida como
mudança contínua. A tendência não é o ideal de
alcançar a realização completa e definitiva do ser, mas
participar da evolução contínua da vida. um ideal de
aperfeiçoamento interior profundo.
44
h) intuicionismo fenomenológico: renasce a fantasia, o
imaginário, a magia, o ocultismo... Na literatura, o mágico
e o absurdo fazem desaparecer os limites entre real e
imaginário.
i) anti-racismo: as diferentes culturas são valorizadas. Na
literatura infantil mesclam-se personagens das várias
raças, e também é abordado frontalmente o problema do
racismo.
j) a criança como ser-em-formação: o potencial da criança
deve-se desenvolver em liberdade, mas orientado no
sentido de alcançar total plenitude em sua realização.
Destacamos, entre as novidades da literatura infantil/juvenil
apresentadas pela professora Nelly Novaes Coelho, o experimentalismo com a
linguagem, com a estrutura e com o visualismo do texto, o questionamento da
autoridade e a redescoberta e a reinvenção do passado. Essas características
fazem da literatura infantil/juvenil contemporânea terreno propício e receptivo
às novidades e, no nosso caso específico, à influência das novas mídias. O
experimentalismo torna o texto infantil aberto às novas formas de contar
histórias. O questionamento da autoridade expõe a relatividade dos valores e
nos impõe perguntas com relação ao formato do livro, às formas de se contar
histórias, os gêneros literários... A redescoberta e a reinvenção do passado,
por fim, nos revela a oralidade dos contos tradicionais e as transformações
45
pelas quais o livro, a literatura e a comunicação passaram ao longo da história.
Em outras palavras, nos revela a diversidade de formas de se comunicar, de
contar histórias e de se manifestar artisticamente.
Assim, a literatura infantil a partir da década de 1970 ganhou
cores, novos suportes de impressão e formatos variados. Os livros, antes em
preto-e-branco e com raras ilustrações, tornaram-se coloridos, com ilustrações
de página inteira, nas quais muitas vezes o texto verbal é envolvido (F
IGURA
2.4). Os papéis utilizados se diversificaram, para além do tradicional offset
branco: papéis revestidos (como o couchê, que imprime imagens com mais
qualidade), em várias cores e texturas. Os livros ficaram maiores (mais espaço
para a exploração do código visual) e adquiriram formatos variados: quadrados,
compridos, altos, inclinados e, até, com formas ovais e arredondadas.
Figura 2.4 Nesta dupla de Ponto & Linha (B
EHRENDT
, 2004), ilustrado por Graça
Lima, nota-se que, do lado esquerdo, o ponto amarelo (imagem) interrompe a
narrativa, ou melhor está envolvido nela, é parte integrante dela. O mesmo acontece
no lado direito, onde a palavra “big-bang!”, aparece em cor vibrante, corpo grande e
envolvida por uma representação gráfica de explosão.
46
As razões para isso o por parte de ordem técnica, entre elas: o
desenvolvimento de máquinas capazes de imprimir em formatos e materiais
(tecido, plástico, metal) diferentes, a melhoria da qualidade de impressão, o
aparecimento de papéis diferentes no mercado. Mas, para além disso, os
novos formatos (maiores e diversificados), a impressão em cores e a utilização
de papéis revestidos nos livros infantis refletem uma transformação cultural, em
que o código visual deixa de se subordinar ao verbal nos textos para crianças.
Em outras palavras, durante o culo XX, se processa uma
transformação na concepção de texto e na práxis de leitura (ver capítulo 4), em
que múltiplos códigos (visuais, sonoros) ganham relevância no significado dos
textos. Ao longo desse período, as mídias impressas (o livro, o jornal e a
revista) passaram a dividir espaço, com a fotografia, com o rádio, com o
cinema, com a televisão (mídias baseadas nos códigos sonoros e visuais),
diversificando-se os meios de comunicação e as formas de se contar e ler
histórias (e, de forma ampla, de se mediar a comunicação). No rádio, os
códigos verbais orais, dividem espaço com os sonoros: os ruídos, as músicas,
as variações de entonação... são linguagens que, ao lado do verbal, colaboram
na construção dos discursos. No cinema, na televisão e nas histórias-em-
quadrinhos, as crianças passam a ler em códigos múltiplos: o verbal aparece
em diálogo com sons (onomatopéias) e imagens.
Essa transformação se reflete na literatura para crianças. O diálogo
entre linguagens, com ênfase no diálogo verbal-visual, torna-se fundamental na
literatura para jovens. Assim, diferentemente das ilustrações de antes (raras e
47
meros acessórios, com funções eminentemente descritiva e narrativa), nos
novos livros para crianças a ilustração assume papel central, cumprindo toda
uma variedade de funções: estética, simbólica, metalingüística, lúdica etc.
Como decorrência disso, não em raros casos, se o leitor se limitar ao verbal,
sem atentar para o visual, a leitura será gravemente prejudicada, como se
alguém assistisse a um filme, apenas o escutando, sem atentar para o que se
passa na tela.
2.2.2. O “objeto-novo”: práticas intertextuais e diálogo verbal-visual
O boom da literatura infantil, descrito pela professora Nelly Novaes
Coelho, é explorado, mais tarde, por outra teórica da literatura infantil no Brasil,
a profa. Lucia Pimentel Góes. Ela o denomina de “objeto-novo”: “objeto-novo é
a denominação por nós sugerida para os livros que apresentam uma
concentração de linguagens de natureza vária e variada. Para lê-lo em fruição
plena é preciso um olhar de descoberta” (G
ÓES
, 2003: 19).
A concentração de linguagens, própria do “objeto-novo”, produz uma
obra rica de sentidos. O “olhar de descoberta” torna possível a fruição plena
dessa obra.
O leitor da intertextualidade pode ad-mirar, pois tem
os sentidos despertos, memória avivada e acionada, vendo o
que existe, sem submeter-se às leituras-desvios, pois as
48
detecta. Conhece o texto como prática intertextual e
intersemiótica, reconhece a inter-relação e a dialética da
linguagem em movimentos circulares de renovação-revolução.
Leitura, espaço deflagrador de outras ações-revoluções.
Sinestesia da percepção, porque cruzamento de sensações.
(G
ÓES
, 2003: 24)
Algumas das características essenciais do “objeto-novo” seriam:
a) textos plenos de significados e intertextualidades. Para
uma leitura mais proveitosa dele é preciso um “olhar de
descoberta”, sem condicionamento e identificação prévia;
b) sua leitura se faz de forma lúdica e possibilita o
aprendizado que as situações do mundo real não
oferecem, antes bloqueiam, traumatizam ou subvertem;
c) seu processo de significação parte da relação leitor-texto,
a partir dos aspectos sensoriais, emocionais e racionais;
d) o leitor que assim lê pode desenvolver sua expressão
criadora ou sua capacidade de criar, inventar, relacionar,
comparar, escolher, optar, desenvolver.
Por ser intersemiótico e intertextual, o “objeto-novo” contém o
embrião do que denominamos literatura hipermidiática, tema de nosso estudo.
Como veremos, a literatura hipermidiática leva a intersemiose a um elevado
grau. Para além do diálogo ilustração-escrita típica do objeto-novo, essa
49
relação extrapola para outras linguagens, como as sonoras, além dos diálogos
intergêneros (carta, artigo, mapa etc.). A intertextualidade, por sua vez, se
conforma em parte como hipertextualidade: por meio dos links, as inter-
relações de obras se explicitam e se concretizam.
2.2.3. A literatura hipermidiática para crianças
Tanto Lúcia Pimentel Góes, com seu “objeto-novo”, quanto Nelly
Novaes Coelho, tratam, sob óticas diferentes, de um mesmo fenômeno: uma
nova forma de conceber a literatura infantil. Ela surge em meados da cada
de 1970 no Brasil e é hoje evidente.
É dentro desse modelo que reinventa o passado, que
experimenta com a estrutura e o visualismo do texto, que questiona a
autoridade, que é intertextual e intersemiótica, plena de significados que se
manifestam as relações entre hipermídia e literatura para crianças. A literatura
hipermidiática trata-se de um conjunto de obras que aparecem a partir do final
da cada de 1990, e mais claramente neste novo culo, e que são
influenciadas por uma nova forma de mediar a comunicação: a hipermídia.
Essa literatura, veiculada no suporte digital, ou mesmo no suporte impresso,
traz fortes marcas das características do suporte hipermidiático.
Para além do diálogo cada vez mais inextrincável entre ilustração e
escrita na literatura infantil, outras linguagens e gêneros têm se incorporado
50
aos textos literários: fotografias, sons, animações, mapas, notícias de jornal...
toda uma variedade de linguagens e gêneros que inter-relacionados colaboram
para a construção de significados.
Tal movimento deve-se em boa parte a influências da cultura
hipermidiática. Como veremos adiante, o código binário, sobre o qual se
estrutura a linguagem digital, permite reunir nele uma multiplicidade de
linguagens verbais, sonoras e visuais —, antes separadas em mídias
distintas: literatura, filmes, reportagens, artigos, cartas, fotos, animações... tudo
em um mesmo lugar e traduzido sob um mesmo código.
E mais, por meio dos links conexões entre um bloco de texto e
outro o leitor da hipermídia se torna navegador, podendo ir mais ou menos
livremente de um bloco ao outro e, em alguns casos, até gerando esses blocos.
Tal forma de leitura, interativa-navegativa, também influencia o fazer literário
para crianças, fazendo surgir obras em que o leitor opta por caminhos, interfere
no texto, transformando-se, assim, de alguma forma em co-autor da obra.
Desse modo, a literatura infantil — que surgiu oral, ligada aos contos
populares medievais durante a Modernidade, ganha os livros e torna-se
escrita. No século XX, processa-se uma nova transformação, e a visualidade
(imagens, cores, formatos) deixa de se subordinar ao verbal, de modo que a
leitura se pelo diálogo verbal-visual. E agora, na virada do século XXI, uma
nova tendência desponta nos livros para crianças, com o diálogo intercódigos
(verbal, visual, sonoro) e a explicitação/concretização da intertextualidade em
hipertextualidade. É a literatura hipermidiática.
51
Vale ressaltar que concebemos as transformações culturais como
aditivas, e não excludentes. Ou seja, não se substituem, mas sim se somam: a
literatura infantil, que nasce oral, continua hoje oral haja vista os inúmeros
contadores de história, e a valorização do ato de contar histórias para as
crianças — da mesma forma que segue escrita, visual-verbal e hipermidiática.
As especificidades da linguagem hipermidiática e a sua relação com
a literatura infantil serão ampliadas e aprofundadas no capítulo 5. A seguir
trataremos da evolução dos meios de comunicação até o surgimento das
mídias de digitais, a fim de verificar como historicamente se dão as relações
entre textos (literários ou não), leitura e seus suportes.
52
3. Os suportes do texto
As novas técnicas não apagam nem brutal nem totalmente os
antigos usos, e a era do texto eletrônico será ainda, e certamente
por muito tempo, uma era do manuscrito e do impresso.
Roger Chartier (2002)
Tendo traçado o percurso da literatura infantil do seu nascimento
aos dias de hoje, cabe agora estabelecer histórico semelhante do outro lado da
“moeda” do nosso estudo comparativo: a comunicação e seus suportes.
Todo texto é transmitido em um suporte: o ar, a luz, uma parede de
caverna, o couro de um animal, a folha de papel, o livro, a revista, o outdoor, a
tela da TV ou de um computador... Qualquer meio onde alguém (o autor,
enunciador) possa veicular um texto (enunciado) para outro alguém ou esse
mesmo alguém ler (o leitor, enunciatário). A partir da Renascença e em boa
parte da Modernidade, a folha de papel impressa (principalmente o livro, mas
também o jornal e a revista) foi considerada hegemônica nessa relação autor-
leitor, gerando uma vasta cultura escrita. Esse predomínio foi tão forte a ponto
de se criar a noção equivocada de que:
53
a) texto, escrita, literatura e suporte impresso seriam
indissociáveis;
b) os conceitos de texto, livro e escrita se confundiriam.
Assim, diz-se “li (ou escrevi) um livro”, quando se quer dizer “li (ou
escrevi) um texto”, ou ainda “Ana Maria Machado é autora de mais de cem
livros”, no sentido de “Ana Maria Machado é escritora (e não autora) de mais
de cem textos (ou história, e não livros)”. Usar “livro” (o suporte) em lugar de
“texto” (o enunciado) é supor que o suporte é invisível, ignorar sua
materialidade, características e limitações, como se livros e textos se
confundissem. Atualmente, diz-se até baixei
1
um livro no computador”, o
associados os conceitos “livro” e “texto” se encontram. Da mesma forma, dizer
que Ana Maria Machado é autora de livros (e não escritora de textos, ou
histórias) é negar, por exemplo, outros co-autores, como os ilustradores,
autores tão relevantes para a literatura infantil de hoje quanto os próprios
escritores. É negar também o processo editorial, que transforma textos
manuscritos em livros. Tal transferência não se de forma neutra: o texto
ganha paginação, índices, cabeçalhos, notas de rodapé, apresentação, um
aspecto gráfico, tipografias, capa, textos de orelha e de contracapa. Isso sem
1
“Baixar” aqui é usado no sentido de “fazer um download”, ou seja transferir dados que estão
na internet para o computador.
54
falar em possíveis intervenções propriamente no texto do escritor a fim de
torná-lo mais correto, claro, coerente e adequado ao seu público.
Com o advento das mídias audiovisuais e da hipermídia, a questão
se recoloca. Em oposição às previsões catastróficas de que a perda da
hegemonia da escrita como mediação de cultura representaria o fim do texto (e
conseqüentemente da cultura), torna-se cada vez mais claro que o texto
ultrapassa a cultura escrita e impressa e é transmitido e se preserva também
em outros suportes. Da mesma forma se redescobre a materialidade do livro,
que é explorada nas obras, e se reflete, por exemplo, em disposições não
tradicionais do texto na página, no uso de formatos e materiais não
convencionais, de tipografias diferentes... Enfim, de vários modos, texto e livro
se distinguem e se reconhecem, podendo assim dialogar entre si.
A seguir, veremos que a cultura impressa e escrita é bem localizada
no tempo e que, ao longo da história, as formas de mediação dos textos (e da
literatura) se modificaram e impuseram suas características às obras. Mais a
diante, no capítulo 4, voltaremos ao tema cruzando-o com o assunto do
capítulo 2, de modo a restabelecer os conceitos de texto, leitura e literatura, a
partir de suas principais variáveis históricas e de como esses conceitos se
revelam nos textos atuais. Então, no capítulo 5, procuraremos traçar o perfil
deste novo suporte, a hipermídia, suas principais características e
manifestações atuais, verificando como a hipermídia e suas características têm
influenciado o fazer literário para crianças.
55
Para além de uma mera história da comunicação e do livro,
interessa-nos, sobretudo, fazer uma retrospectiva dos meios que foram ao
longo da história (e são hoje) suportes dos textos e, mais especificamente, da
literatura.
3.1. A CULTURA ORAL NÃO-MEDIADA
Antes de se inventar qualquer meio de comunicação, as pessoas
se comunicavam. Por meio de gestos e sons (primeiro não-verbais e, depois,
verbais) um ser humano demonstra a outro emoções, sinaliza perigo, conta
histórias... se comunica. Tal situação é bem ilustrada pelo filme A guerra do
fogo (La guerre du feu, Canadá, França, EUA, 1981), de Jean-Jacques
Annaud. O filme mostra atos comunicativos não-verbais e não-mediados de
carinho, força, agressividade, amizade, perigo... por meio de gestual
(arremessar pedra, movimentar os braços, bater objetos), oralidade (risos,
gritos e outros sons), expressões faciais, olhares, toques etc.
Esses sinais e sons, originalmente espontâneos, pouco a pouco se
sistematizam de modo a serem compreendidos mais ou menos da mesma
maneira por toda a comunidade. Convertem-se, assim, em linguagem
2
.
2
As linguagens, nas suas diversas manifestações, podem ser quase todas divididas em três
grandes grupos: linguagens verbais, visuais e sonoras. Essas três classes podem também estar
unidas duas a duas (linguagens verbo-visuais, verbo-sonoras, visual-sonoras), bem como as três
juntas (linguagens verbo-visual-sonoras). Exemplos: a escrita (verbo-visual), a fala (verbo-
56
Essa comunicação, que prescinde de qualquer suporte, que não seja
o ar (que o aparelho fonador do emissor faz vibrar e chegar ao ouvido do
receptor) e a luz (que reflete o emissor e seus movimentos, alcançando a retina
do receptor-observador), é denominada “não-mediada”. Ar e luz, sons e sinais
que se perdem, registrados apenas na memória de seus receptores.
É a forma de comunicação mais antiga que existe. É quase tão
antiga quanto o homem e continua sendo amplamente utilizada (e é provável
que assim continue enquanto houver comunidades humanas): quando dois
amigos conversam, quando um pai conta algo para seu filho, quando duas
pessoas flertam num bar ou quando um político discursa para uma platéia.
É por meio dessa forma de comunicação que surgem as primeiras
histórias: contadas por um narrador a um ou alguns receptores, por meio de
gestos, sons e palavras. Estes receptores podem então se tornar narradores do
texto original para um novo blico, recontando essa história com suas
palavras e intervenções, tratando-se assim de uma paráfrase da história
original (ver mais em “Leitura oral, dialógica”, no item 4.2.4).
Assim surge a literatura oral (ou oratura). Muitos desses textos mais
antigos podem ter se perdido, mas outros conhecemos hoje por meio de
sonora), a pintura e o gestual (visual), a dança (visual-sonora), a música (sonora), o cinema
(verbo-visual-sonora) (adaptado de S
ANTAELLA
, 2001). Dizemos “quase todas” porque
consideramos aqui somente os apelos visuais e auditivos aos nossos sentidos. Assim,
desprezamos apelos táteis, gustativos e olfativos por dois motivos: (1) são pouco sistematizados
havendo dúvidas se constituem propriamente linguagem; (2) são raras vezes estimulados pelos
meios de comunicação contemporâneos, com poucas exceções como joysticks que vibram e
páginas impressas com cheiros e texturas.
57
registros escritos, como as histórias de As mil e uma noites, ou mesmo por
meio oral, como as lendas e as histórias populares. Como mostramos no
capítulo 2, os textos inaugurais da literatura infantil foram concebidos desse
modo: Calila e Dimna, os contos registrados por Grimm, Andersen, Perrault...
contados, recontados, parafraseados, reinventados pela memória e pela
criatividade de cada narrador, que divulgam tais histórias pelo mundo e através
do tempo. É também sob essa forma de comunicação que se baseiam algumas
artes, como o teatro, a dança e a música.
3.2. A CULTURA GRÁFICO-VISUAL E A APROPRIAÇÃO DO MEIO
Ainda que a comunicação oral, não-mediada, conta de muitas
funções sociais da comunicação, ainda na pré-história surgem os primeiros
registros gráficos, ligados a rituais religiosos, à magia e ao próprio desejo de
contar histórias e registrar feitos.
Com desenhos nas paredes das cavernas (pintura rupestre), grupos
nômades narravam suas caçadas. Arqueólogos divergem se haveria inclusive
um caráter ritual nessas pinturas: esses grupos acreditariam que, narrando
com desenhos a caçada e a morte do animal antes de sair para a empreitada,
garantiriam o seu sucesso. Antes de caçar de fato, caçariam simbolicamente o
animal (F
IGURA
3.1). É com base nesse tipo de registro, gráfico-visual, que
surgem as artes plásticas.
58
Figura 3.1 Pintura rupestre em caverna de Altamira (Espanha), com datação do
Paleolítico Superior (40 mil a 10 mil anos a.C.).
Outra manifestação de comunicação gráfico-visual são as pinturas
corporais usadas também desde a pré-história. Nesse caso, é o próprio corpo
que serve de suporte para comunicar o pertencimento a um grupo, beleza,
coragem etc. E, para além das paredes das cavernas e da arte corporal, as
construções e os instrumentos templos, túmulos, vasos, armas foram
sempre usados como suporte para textos, seja qual for a sociedade.
Como manifestação contemporânea de apropriação do meio para
suporte de textos, temos, por exemplo, desenhos e escritos em veículos,
objetos e embalagens. Esse tipo de suporte também é explorado na grafitagem
urbana. Tais formas de apropriação, como explica Chartier (2002: 80-81), não
são tão recentes quanto podem parecer:
entre os séculos XVI e XIX [...] escritos expostos (anúncios,
libelos, pasquins, grafites etc.) trazem um conteúdo subversivo:
difamam os indivíduos, ridicularizam os poderosos, denunciam
os poderes. Traduzem as aspirações de uma população semi
alfabetizada que disputa com os grandes e os poderosos seus
monopólios sobre a escrita visível.
3.2.1. O surgimento da escrita
A escrita surge por volta de 3200 a.C. A partir de processo
semelhant
e que levou as manifestações orais não
como “fala” (verbal), o que diferenciou a escrita (verbal) do desenho (não
verbal) foi fundamentalmente sua convencionalidade: na escrita, o registro
perde seu sentido pictórico (o desenho de
exemplo) e adquire novos sentidos (fonéticos, ideográficos). Nesse processo
os desenhos vão perdendo
pouco, não se identificarem mais com o conceito e as formas originais (
3.2).
Hieróglifo egípcio
Αα
Grego
Figura 3.2
Evolução da letra “A” do nosso alfabeto, a partir do hieróglifo
representado por uma cabeça de boi (Fonte: www.arch.mcgill.ca/prof/sijpkes/arch374/
winter2002/pssolange/ (acesso em 2/6/2008)).
difamam os indivíduos, ridicularizam os poderosos, denunciam
os poderes. Traduzem as aspirações de uma população semi
alfabetizada que disputa com os grandes e os poderosos seus
monopólios sobre a escrita visível.
3.2.1. O surgimento da escrita
A escrita surge por volta de 3200 a.C. A partir de processo
e que levou as manifestações orais não
-
verbais a organizarem
como “fala” (verbal), o que diferenciou a escrita (verbal) do desenho (não
verbal) foi fundamentalmente sua convencionalidade: na escrita, o registro
perde seu sentido pictórico (o desenho de
um boi, significando um boi, por
exemplo) e adquire novos sentidos (fonéticos, ideográficos). Nesse processo
os desenhos vão perdendo
o sentido pictórico original, de modo a, pouco a
pouco, não se identificarem mais com o conceito e as formas originais (
Hieróglifo egípcio
Proto-semítica Fenício
Αα
Grego
Etrusco Romano
Evolução da letra “A” do nosso alfabeto, a partir do hieróglifo
representado por uma cabeça de boi (Fonte: www.arch.mcgill.ca/prof/sijpkes/arch374/
winter2002/pssolange/ (acesso em 2/6/2008)).
59
difamam os indivíduos, ridicularizam os poderosos, denunciam
os poderes. Traduzem as aspirações de uma população semi
-
alfabetizada que disputa com os grandes e os poderosos seus
A escrita surge por volta de 3200 a.C. A partir de processo
verbais a organizarem
-se
como “fala” (verbal), o que diferenciou a escrita (verbal) do desenho (não
-
verbal) foi fundamentalmente sua convencionalidade: na escrita, o registro
um boi, significando um boi, por
exemplo) e adquire novos sentidos (fonéticos, ideográficos). Nesse processo
,
o sentido pictórico original, de modo a, pouco a
pouco, não se identificarem mais com o conceito e as formas originais (
F
IGURA
Evolução da letra “A” do nosso alfabeto, a partir do hieróglifo
representado por uma cabeça de boi (Fonte: www.arch.mcgill.ca/prof/sijpkes/arch374/
60
Acredita-se que as primeiras manifestações de escrita sejam a
cuneiforme mesopotâmica e a hieroglífica egípcia (F
IGURA
3.3).
Figura 3.3 Hieróglifos na entrada dos templos de Abu Simbel (século XIII a.C.). Os
textos são exaltações aos deuses egípcios, ao far Ramsés II, sob cujo reinado a
construção foi erguida, e à sua esposa Nefertari. Este é um exemplo de escrita
monumental, uma apropriação da arquitetura como suporte para textos.
Apesar de a escrita se distinguir das representações pictóricas, pela
sistematização e convencionalidade da primeira, ambas são registros gráficos.
Assim, por toda a história encontramos (com maior ou menor intensidade)
sempre as duas sobre os mesmos suportes, juntas nos mesmos textos (Figura
3.4).
61
Figura 3.4 Detalhe do interior do templo de Abu Simbel. Nota-se, ao lado da escrita
hieroglífica, uma representação pictórica do faraó Ramsés II rendendo um inimigo. A
principal função dessa representação é narrativa (mostrar a ação do faraó Ramsés
sobre seu inimigo), reforçando o que é contado por meio da escrita.
Apesar do surgimento da escrita, as principais formas de se contar
histórias continuaram sendo a não-mediada (oral-visual) e a gráfico-visual, com
desenhos e figuras, uma vez que as técnicas de escrita e de leitura do escrito
foram, por milênios, dominadas apenas por uma pequena elite. Na Idade
Média, por exemplo, os vitrais de igrejas góticas narravam, com seqüências de
imagens, as principais passagens bíblicas, a fim de que a maioria dos fiéis,
analfabeta, pudesse conhecer e recordar as histórias da tradição católica
(F
IGURA
3.5).
62
Figura 3.5 Detalhe de vitral da catedral de Chartres (França). Percebe-se nela a
narração de passagens bíblicas por meio de imagens. No caso, a representação do
Natal (nascimento de Jesus), em estilo bizantino, é lida da esquerda para a direita, de
baixo para cima. Quadro 1: o anjo Gabriel anuncia a Maria que ela está grávida.
Quadro 2: Maria recebe a visita de sua prima Isabel, que reconhece a gravidez.
Quadro 3: Maria dá à luz Jesus, em um estábulo (notam-se dois animais ao fundo), em
companhia de José, seu esposo, nisso aparece a “Estrela d’Oriente” (canto superior
direito. Quadro 4: os anjos anunciam o nascimento de Jesus a pastores (notam-se os
cajados e duas ovelhas, que os caracterizam). Quadro 5: Herodes direita) manda
matar todos os primogênitos com menos de 2 anos. Quadro 6: os três reis magos vêm
visitar Jesus na manjedoura.
3.3. A CULTURA MANUSCRITA
cerca de 5 mil anos, começam a surgir suportes específicos para
os textos, como placas de argila (F
IGURA
3.6), blocos de pedra, tábuas de
madeira... Eles serviriam para registros de informações contábeis de animais e
63
outros objetos, e também como selos administrativos (como um “carimbode
assinatura).
Figura 3.6 — Placas de argila com escrita cuneiforme mesopotâmica.
Com o tempo esses suportes adquirem também funções de registro
comercial, de leis, bem como de informações e conhecimentos médicos,
religiosos, militares etc. A maioria desses suportes tem em comum o formato
plano, que facilita a gravação e o armazenamento:
A questão da escrita é um dos aspectos mais
interessantes das atividades dos habitantes da Mesopotâmia. É
um dos povos que deixaram maior quantidade de documentos
escritos. A escrita desempenhou um papel importante na sua
vida cotidiana, porém, em razão da sua complexidade, a escrita
foi privilégio de poucas pessoas, da classe que tinha a
responsabilidade de guardar e transmitir o saber, a classe dos
escribas, que estava na realidade ligada à dos sacerdotes. Os
escribas pertenciam a todas as classes da sociedade, mas
filhos e parentes de governadores de cidades, ou príncipes,
foram escribas, o que prova a posição de destaque da
profissão. Havia os escribas dos templos, dos negócios, dos
exércitos, os escribas médicos e os escribas sacerdotes. [...]
64
Os tabletes eram achatados, mas de forma
lenticular. [...] Na época sargónida e neobabilônica, os
contratos são retangulares, mais largos que altos. As cartas de
correspondência, pelo contrário, são mais altas que largas, um
pouco arredondadas nos lados. Os tabletes dos templos eram
de um tamanho superior. (P
EREIRA
, 2001)
Os suportes para registros duráveis e para correspondência devem
ser resistentes e de fácil preparação, gravação, transporte e armazenagem. A
fim de atender condições como essas foram surgindo outros suportes: tecidos,
o papiro, o pergaminho... até o papel, que domina hoje a cultura impressa.
3.3.1. Do papiro ao papel
Com a invenção do papiro e do pergaminho, boa parte dos registros
textuais passou a ser manuscrita, gravada à tinta. Não precisar esculpir a pedra
e a madeira, nem aguardar a secagem da argila representa uma grande
economia de tempo e de esforço, o que ajudou os textos manuscritos a se
multiplicarem. Outras vantagens desses suportes são seu menor volume e
peso, bem como sua maleabilidade, que facilita o transporte e a armazenagem.
Quando tratamos de cultura manuscrita não podemos nos esquecer a presença
para, além do código verbal escrito, também os desenhos gravados sobre os
suportes gráficos (ver F
IGURAS
3.7 e 3.12).
65
Por volta de 2200 a.C., os egípcios inventaram o papiro: folhas finas
e maleáveis feitas a partir de uma planta de mesmo nome, cujo caule é cortado
em lâminas. Essas lâminas são umedecidas, sobrepostas de forma trançada e
prensadas até se transformarem em folhas. Acredita-se que o processo de
fabricação do papiro levava cerca de um mês.
Foi uma revolução no suporte da escrita do Mundo Antigo, de tal
forma que se tornou um dos principais produtos de exportação do Egito Antigo.
As vantagens do papiro sobre os outros suportes são muitas: leve, pouco
volumoso e maleável, seu transporte e armazenamento são simples. Além
disso, sua superfície pode ser gravada facilmente com tintas (F
IGURA
3.7).
Assim, o papiro foi amplamente utilizado na Europa, até a Idade Média.
Figura 3.7 Pergaminho egípcio. Percebe-se aqui, novamente, a escrita ao lado de
representações pictográficas.
66
Cerca de 1.500 anos depois, entre os séculos III a.C. e II a.C., é
inventado, na cidade grega de Pérgamo, um material parecido com o papiro,
mas de origem animal: o pergaminho. Sua invenção foi, provavelmente,
decorrente de uma rivalidade entre Alexandria e rgamo, ambas com
importantes bibliotecas na época. Alexandria, que detinha o conhecimento para
a fabricação do papiro, suspendeu a sua exportação para Pérgamo. Esta, por
sua vez, se viu obrigada a criar uma alternativa a esse suporte. Assim teria
surgido o pergaminho.
Trata-se de couro de animal (geralmente de cabra, carneiro, ovelha)
seco e preparado para a gravação. A principal vantagem do pergaminho com
relação ao papiro é sua resistência à umidade: o papiro apresenta boa
durabilidade no clima seco do deserto, mas em ambientes mais úmidos se
deteriora com facilidade. Por outro lado, por usar matéria-prima de origem
animal, mais escassa, a produção do pergaminho é mais cara que a do papiro.
Tanto o papiro quanto o pergaminho foram amplamente usados durante a
Antigüidade e o começo da Idade Média (F
IGURA
3.8). O pergaminho também
era usado como uma espécie de cobertura, para proteger folhas de papiro ou
de papel em seu interior, essa seria a origem da capa dos livros como a
conhecemos hoje, mais resistente que as folhas do interior, as protegendo.
Figura 3.8 — Acredita-
se que este pergaminho contenha registros do famoso filósofo e
matemático grego Euclides (século IV a.C.). É interessante notar que a folha contém
textos escritos tanto na vertical quanto na horizontal. Os na horizontal são atribuí
Euclides, os na vertical são bem mais recentes (século XII). Essa técnica, chamada
“palimpsesto”, era bastante comum, uma vez que a fabricação dos pergaminhos era
custosa: os pergaminhos antigos, que não serviam mais, eram lixados e
reaproveitados
para novos registros.
A substituição do papiro pelo pergaminho na Grécia, ao que tudo
indica, foi mais do que uma mera troca de material, e levou à alteração do
formato do suporte (de rolo para códice), como veremos no item 3.3.2
O papel surgi
só por volta do século V que chegou à Europa e no ano 1096 que a primeira
manufatura de papel foi construída nesse continente.
Ao contrário do papiro, que é feito a partir de tiras de caule, o pape
usa matéria-
prima vegetal triturada e cozida. Com fabricação mais barata que a
do papiro e do pergaminho, menos volumoso que esses e mais resistente que
se que este pergaminho contenha registros do famoso filósofo e
matemático grego Euclides (século IV a.C.). É interessante notar que a folha contém
textos escritos tanto na vertical quanto na horizontal. Os na horizontal são atribuí
Euclides, os na vertical são bem mais recentes (século XII). Essa técnica, chamada
“palimpsesto”, era bastante comum, uma vez que a fabricação dos pergaminhos era
custosa: os pergaminhos antigos, que não serviam mais, eram lixados e
para novos registros.
A substituição do papiro pelo pergaminho na Grécia, ao que tudo
indica, foi mais do que uma mera troca de material, e levou à alteração do
formato do suporte (de rolo para códice), como veremos no item 3.3.2
u no século II da nossa era, na China. No entanto, foi
só por volta do século V que chegou à Europa e no ano 1096 que a primeira
manufatura de papel foi construída nesse continente.
Ao contrário do papiro, que é feito a partir de tiras de caule, o pape
prima vegetal triturada e cozida. Com fabricação mais barata que a
do papiro e do pergaminho, menos volumoso que esses e mais resistente que
67
se que este pergaminho contenha registros do famoso filósofo e
matemático grego Euclides (século IV a.C.). É interessante notar que a folha contém
textos escritos tanto na vertical quanto na horizontal. Os na horizontal são atribuí
dos a
Euclides, os na vertical são bem mais recentes (século XII). Essa técnica, chamada
“palimpsesto”, era bastante comum, uma vez que a fabricação dos pergaminhos era
custosa: os pergaminhos antigos, que não serviam mais, eram lixados e
A substituição do papiro pelo pergaminho na Grécia, ao que tudo
indica, foi mais do que uma mera troca de material, e levou à alteração do
formato do suporte (de rolo para códice), como veremos no item 3.3.2
, a seguir.
u no século II da nossa era, na China. No entanto, foi
só por volta do século V que chegou à Europa e no ano 1096 que a primeira
Ao contrário do papiro, que é feito a partir de tiras de caule, o pape
l
prima vegetal triturada e cozida. Com fabricação mais barata que a
do papiro e do pergaminho, menos volumoso que esses e mais resistente que
68
o papiro, o papel aos poucos substituiu esses dois outros suportes, sendo, a
partir da Modernidade, hegemônico nos registros manuscritos e impressos.
3.3.2. Do rolo ao códice
Quanto ao modo em que os textos manuscritos se apresentam, dois
formatos se sobressaem. O primeiro deles, o rolo (volumen, ou volume), surgiu
cerca de 5 mil anos. Nesse formato, o texto se apresenta em uma única
folha enrolada de tecido, papiro, pergaminho ou papel. Para se ler nesse
formato é preciso usar as duas mãos, enrolando a folha de um lado e a
desenrolando do outro. Conforme Roger Chartier (1998), esse tipo de
manuseio favorece a leitura oral (em voz alta), mas é pouco cômodo à leitura
silenciosa, reflexiva, uma vez que para ler o volume é necessário usar as duas
mãos e constantemente enrolá-lo e desenrolá-lo para a leitura (F
IGURA
3.9).
Figura 3.9 — Gravura do rolo bíblico do Pentateuco (Fonte: The S.S. teacher's edition:
the holy bible. New York: Henry Frowde, Publisher to the University of Oxford, 1896).
69
A Biblioteca de Alexandria (século III a.C. a século V d.C.) é
considerada a maior biblioteca da Antigüidade. Acredita-se que seu interior
guardava de 500 mil a 1 milhão de rolos manuscritos. Desse modo, a cidade
tornou-se importante centro de saber, freqüentado por grandes pensadores da
época como Euclídes, Arquimedes e Ptolomeu. também se produziam e
comercializavam as folhas de papiro.
Recentemente, em 2002, foi inaugurada na mesma região a
Bibliotheca Alexandrina
, que abriga mais de 500 mil títulos em livro, além
de
obras raras, manuscritos, periódicos, arquivos de áudio e vídeos, acervo
digital, reprodução de obras de arte, mapas, teses e dissertações. O
contraste entre o acervo em papiro da antiga Biblioteca de Alexandria e o da
nova (em suportes variados) simboliza como os suportes de texto mudaram
e se diversificaram ao longo da história.
Atualmente, o formato rolo se preserva no “canudo” das cerimônias
de formatura e na Torá (livro sagrado dos judeus). Em ambos os casos, o uso
desse antigo modelo denota formalidade e reverência à tradição.
Se o rolo surge mais ou menos simultaneamente à criação do
papiro, o uso do pergaminho influencia no aparecimento de um novo formato: o
códice (códex, ou código). Originário da cidade grega de Pérgamo, no códice, o
texto não fica mais em uma única folha contínua e enrolada, mas sim em várias
folhas de mesmo tamanho, unidas em um dos lados (F
IGURA
3.10).
70
Figura 3.10 Bíblia inglesa no formato códice (século XII). Nela percebem-se as
folhas de papel unidas em um dos lados, como nos livros atuais. Outro fato
interessante é o uso de uma capa de couro animal (herança do uso do pergaminho
envolvendo as folhas do rolo, a fim de protegê-lo). Por fim, notam-se nesta página três
caligrafias diferentes. As duas caligrafias no fim da gina são anotações
(comentários) de leitores. Como, na Idade Média, o acesso aos livros e à leitura era
limitado aos cientistas e a parte do alto clero, os leitores comentavam trechos das
obras, com anotações pessoais (relacionando com outras obras, apontando
pensamentos). Assim, os novos leitores, além do texto original, podiam ler os
comentários de seus colegas. Esses apontamentos, chamados “notas marginais”, são,
de algum modo, antecessores das notas de rodapé, comuns nos livros atuais.
um motivo econômico para o surgimento do novo formato: como
o pergaminho era mais caro que o papiro, os gregos podem ter inventado o
códice a fim de usar os dois lados da folha, em vez de um só, como acontece
nos rolos. Seja como for, o fato é que essa inovação representa uma das
71
maiores revoluções da história dos suportes, maior até que a invenção da
prensa por Gutenberg (ver item 3.4.1), uma vez que altera fisicamente o
suporte do texto, interferindo na forma como os textos são lidos, no seu
manuseio, na relação do texto com seu leitor.
Para ler as obras sob esse formato não é mais necessário usar as
duas mãos, enrolando e desenrolando a única folha. Com uma mão só, viram-
se as páginas, e o suporte pode ficar repousado sobre uma mesa ou outro
anteparo enquanto se (conforme C
HARTIER
, 1998). Esse formato favorece a
leitura silenciosa, reflexiva, libera as mãos para anotações e possibilita o
acesso direto a uma parte específica do texto pelas páginas. É a partir da
paginação que se baseiam recursos como sumários, índices, referências
bibliográficas, entre outros. Por serem remissões explícitas/concretas entre
trechos de uma mesma obra (e também entre obras), tais recursos são uma
forma de estabelecer, no suporte gráfico material, relações hipertextuais
(relações estas que serão ampliadas e modificadas no suporte digital
hipermidiático; ver item 5.2.2.2).
O formato códice se mostrou tão adequado aos textos manuscritos
e, mais tarde, aos impressos, que há mais de 1.500 anos resiste hegemônico
na sua veiculação. É o formato predominante de livros, revistas e jornais.
72
3.3.3. O manuscrito na Idade Média
Com a chegada do papel na Europa e a difusão do códice, a cultura
manuscrita tem seu auge durante a Idade Média. Nesse período, a Igreja
Católica se declarou detentora e guardiã do conhecimento. Assim, conservou
dentro de seus muros imensas bibliotecas com inúmeros textos, principalmente
em grego e latim. Grande parte das obras da Antigüidade a que temos acesso
hoje foi preservada durante a Idade Média pela Igreja Católica.
Se, por um lado, a Igreja medieval controlou e limitou a veiculação e
o acesso aos textos manuscritos, por outro, dentro de seus muros os
conservou e reproduziu, possibilitando que esses textos chegassem à
Modernidade e pudessem então vir a público.
Uma das formas de a Igreja medieval preservar essas obras antigas
era por meio da reprodução: religiosos tinham a função específica de fazer
cópias à mão dessas obras, são os monges copistas (F
IGURA
3.11). Segundo o
historiador Pierre Riché (2006):
Jamais será excessivo insistir sobre o prodigioso
trabalho dos scriptoria carolíngios. Milhares de manuscritos
foram recopiados quase 8 mil foram conservados: as obras
dos fundadores da Igreja, de gramáticos, poetas, prosadores.
Graças aos copistas, uma grande parte da herança literária
latina foi salva e preservada. Cícero, Virgílio, Tácito e muitos
outros se tornaram conhecidos pelo trabalho dos
carolíngios.
Figura 3.11
Cena do filme
reproduz
o ambiente onde os monges copista
A reprodução dos livros pelos copistas não era idônea. A
manipulação dos escritos propriamente (supressão, acréscimo e alteração de
trechos) não era rara e, por v
desconhecia
o latim e no grego:
quase analfabetos, e recopiavam os textos de uma maneira automática, sem
compreender seu conteúdo” (
Encontram-
se também outras anotações nas obras copiadas:
ao traçar algumas letras do alfabeto nas margens, ou os
primeiros versos de um salmo. Pode
reflexões pessoais do tipo: “Como o pergaminho é felpudo”;
“Como está frio hoje”; “A lâmpada emite uma luz ruim”;
ainda, “Agora é a hora do almoço”. Como o silêncio devia
Cena do filme
O nome da rosa (
Der Name der Rose
o ambiente onde os monges copista
s trabalhariam.
A reprodução dos livros pelos copistas não era idônea. A
manipulação dos escritos propriamente (supressão, acréscimo e alteração de
trechos) não era rara e, por v
ezes, acidental, uma vez que
parte
o latim e no grego:
Muitos escribas eram inexperientes, alguns
quase analfabetos, e recopiavam os textos de uma maneira automática, sem
compreender seu conteúdo” (
R
ICHÉ
, 2006).
se também outras anotações nas obras copiadas:
Antes de começar, o
escriba experimentava a pena,
ao traçar algumas letras do alfabeto nas margens, ou os
primeiros versos de um salmo. Pode
-
se também encontrar
reflexões pessoais do tipo: “Como o pergaminho é felpudo”;
“Como está frio hoje”; “A lâmpada emite uma luz ruim”;
ainda, “Agora é a hora do almoço”. Como o silêncio devia
73
Der Name der Rose
, 1986) que
A reprodução dos livros pelos copistas não era idônea. A
manipulação dos escritos propriamente (supressão, acréscimo e alteração de
parte
dos copistas
Muitos escribas eram inexperientes, alguns
quase analfabetos, e recopiavam os textos de uma maneira automática, sem
se também outras anotações nas obras copiadas:
escriba experimentava a pena,
ao traçar algumas letras do alfabeto nas margens, ou os
se também encontrar
reflexões pessoais do tipo: “Como o pergaminho é felpudo”;
“Como está frio hoje”; “A lâmpada emite uma luz ruim”;
ou,
ainda, “Agora é a hora do almoço”. Como o silêncio devia
74
reinar no scriptorium, podem-se imaginar os escribas passando
essas reflexões, uns para os outros. (R
ICHÉ
, 2006)
Para além das intervenções nos escritos, desenvolveu-se
amplamente nos códices medievais uma arte gráfica, a iluminação. Em
especial nas edições luxuosas eram incluídos desenhos com função
eminentemente ornamental. São as iluminuras, as vinhetas e capitulares
iluminadas (F
IGURA
3.12). Havia profissionais especialistas nesse trabalho.
Figura 3.12 — Nesta página do Codex Voguë (c. 1300), encontramos as três principais
formas de arte encontradas nos manuscritos medievais: as iluminuras, desenhos, em
geral de cenas bíblicas ou eclesiásticas; as capitulares ilustradas, letras iniciais de um
capítulo, de uma página, ou de um parágrafo decoradas; e as vinhetas, desenhos em
forma de folhas e galhos de parreira que contornam os textos.
75
3.4. A CULTURA IMPRESSA
O surgimento da cultura impressa é um movimento eminentemente
de ampliação do alcance dos textos escritos. Assim, os exemplares assumem
formatos menores e em material mais barato. Geralmente impressos em uma
cor, com poucas imagens, utilizam as línguas nacionais, abandonando o
grego e o latim.
3.4.1. A invenção de Gutenberg
Por volta do século X, registram-se esforços para a produção de
impressos. Em 1041, na China, por exemplo, aparecem os tipos móveis em
argila. Além disso, desde a Antigüidade são comuns cilindros e planos com
alto-relevo que, uma vez entintados, serviam como selos entre as autoridades.
A técnica de impressão consistia na fabricação de uma matriz em
alto-relevo, com o texto invertido (imagens e escritos, como um carimbo), sobre
a qual é passada tinta. Esta matriz entintada é, então, pressionada sobre folhas
de papel (ou outro material absorvente, como tecido), de modo a possibilitar a
impressão de cópias semelhantes de um mesmo texto.
76
No final da Idade Média (século XV), o alemão Johannes Gutenberg
facilita a técnica de impressão, aperfeiçoando os tipos móveis e a prensa, de
modo a agilizar e baratear a produção de textos impressos.
Os tipos móveis são peças com letras, acentos, pontuação etc.
invertidos e em alto-relevo. Sua utilização viabiliza a produção desses
impressos, barateando-a, que, feitas as cópias de uma determinada página,
a matriz pode ser desmontada, e os tipos móveis, reaproveitados na montagem
de outras páginas. A contribuição de Gutenberg para os tipos móveis foi
fabricá-los em madeira e, mais tarde, em ferro fundido. Assim, os tipos de
Gutenberg se tornam mais resistentes, diminuindo seu desgaste, aumentando
a sua durabilidade e, conseqüentemente, reduzindo o custo dos impressos.
Gutenberg também aprimorou a prensa, a partir das máquinas
usadas para espremer uva em vinícolas. A prensa de Gutenberg consiste em
uma superfície plana sobre a qual o material a ser impresso (papel, em geral) é
preso. Sobre ela uma estrutura na qual a matriz de impressão é afixada,
estrutura esta com um sistema que permite que a matriz seja pressionada
sobre o papel e então suspensa (F
IGURA
3.13).
77
Figura 3.13 — Réplica de prensa de Gutenberg do The Museum of Printing (Texas).
O primeiro livro impresso na prensa de Gutenberg, em 1450, é
emblemático: a Bíblia. A invenção de Gutenberg se moldou perfeitamente ao
princípio da leitura da Bíblia pelos fiéis, apregoado pela Reforma Protestante,
em ebulição. Contrariando o privilégio da Igreja Católica na leitura e
interpretação da Bíblia, os protestantes defendem a livre leitura e interpretação
dos textos sagrados. Para isso, os textos bíblicos, antes apenas em latim
(idioma dominado quase que exclusivamente pelo alto clero), foram traduzidos
nas línguas vernáculas. A possibilidade de reproduzir esses textos, de forma
barata e rápida, por meio da prensa veio ao encontro desse movimento de
“popularização” da Bíblia.
Dizemos “popularização”, entre aspas, porque não se pode perder
de vista que, ainda que a utilização da língua vernácula nos textos aumentasse
78
o público leitor, este permanece restrito à elite intelectual, uma vez que a maior
parte da população artesãos, comerciantes, agricultores e boa parte da
nobreza continua analfabeta. Para esses, os textos continuam sendo
veiculados predominantemente de forma oral e visual.
O movimento de vernacularização e de difusão dos textos impressos
não se limitou aos escritos religiosos. Assim, não é por acaso que, a partir do
fim da Idade dia, tornam-se conhecidos grandes escritores de literatura em
língua nacional, como Cervantes (Espanha), Shakespeare (Inglaterra), Goethe
(Alemanha), Camões (Portugal), Dante Alighieri e Petrarca (Itália).
3.4.2. Os periódicos e o surgimento da imprensa
No século XV temos os primeiros relatos de folhetos com notícias
econômicas e comerciais. Contudo, é no início do século XVII que as notícias
começam a circular periodicamente (quinzenalmente, semanalmente e
diariamente) nas nascentes cidades alemãs, francesas, inglesas, suecas,
portuguesas... Assim, surge o formato jornal (do latim diurnalis, diário), que
muito se assemelha ao livro, sendo inclusive impresso em máquinas
semelhantes. Aliás, o nome “imprensa” deriva de “prensa”, a máquina
inventada por Gutenberg. As principais diferenças são: formato maior, papel
mais barato, folhas soltas (cadernos não-costurados) e ausência de capa.
79
Todas essas características reduzem o custo do jornal, adequando-o aos
textos que veiculam: de leitura rápida, com informação atualizada e perecível.
No Brasil, o início da imprensa ocorre com a vinda da família real,
em 1808. Assim, a Imprensa Régia começou a publicar o primeiro jornal
editado no Brasil, a Gazeta do Rio de Janeiro (F
IGURA
3.14).
Figura 3.14 Primeira edição da Gazeta do Rio de Janeiro (1808). É interessante
notar a diagramação do texto, em uma única coluna, e a ausência de imagens, como
em um livro impresso tradicional. Nota-se também o longo tempo que a informação
levava na época para percorrer o mundo: notícias de abril e junho são publicadas
apenas em setembro (3 a 5 meses depois). Um grande contraste com a comunicação
quase instantânea que as telecomunicações e a internet possibilitam hoje.
80
O jornal impresso é um suporte que nasce ligado à ascensão
econômica e política da burguesia e ao desenvolvimento urbano, trazendo
informações (sobre economia, política, cultura...) relacionadas ao dia-a-dia nas
cidades, ao comércio, aos negócios, e à crescente participação política da
burguesia (ver mais sobre esse tipo de leitura no item 4.2.2, “Leitura movente,
fragmentária”).
Durante o século XIX, grande parte da burguesia se alfabetiza.
Movimento que, na virada do século, começa a alcançar também as camadas
urbanas mais pobres. Como afirma Chartier (2002: 92-93):
os progressos da escolarização e da alfabetização tornam
então [no século XIX] amplamente possível a delegação da
escrita no interior do mesmo ambiente social. As narrativas de
vida popular (emanadas de artesãos, de operários, de
camponeses) põem, assim, freqüentemente em cena a escrita
delegada a uma pessoa próxima, ou seja, que uma criança
escreva por seus pais, ou que, no exército, um conscrito mais
bem alfabetizado redija a correspondência de seus colegas.
É nesse momento (entre o século XIX e a primeira metade do século
XX) que podemos dizer que se estabelece, de fato, uma ampla cultura escrita e
impressa. Essa cultura perdura e se fortalece até os dias de hoje. É claro que
com o advento da cultura das mídias audiovisuais e digitais a cultura escrita se
transformou, assumido hoje novas configurações e funções.
81
O aumento da população alfabetizada é uma das razões pelas quais
a imprensa entrou definitivamente no cotidiano das cidades. A tal ponto que, no
século XIX, surge um gênero literário próprio para esse suporte: o romance de
folhetim. Originário da França, é em folhetim que são publicadas pela primeira
vez muitas das obras de nossa literatura romântica e realista, sendo
empregado por autores como Machado de Assis, José de Alencar e Joaquim
Manuel de Macedo.
É importante notar que a literatura no folhetim extrapola o livro,
alcançando um suporte mais popular, mais adequado ao dia-a-dia urbano. E
sofre influências desse suporte, como a linguagem direta e os capítulos curtos,
comuns aos romances machadianos e adequados à leitura rápida e ao espaço
diminuto das unidades de texto do jornal. Do mesmo modo, a crônica é um
gênero literário (e também jornalístico) veiculado nos periódicos: em geral
também em linguagem direta e com pouca extensão. O pressuposto de que o
texto literário é dissociável do suporte livro e sofre influências do suporte em
que se encontra é fundamental para a nossa abordagem, uma vez que
tratamos de obras literárias também sobre o suporte digital.
Como o jornal impresso, a revista (do inglês review, “revisão”,
“recapitulação”) é bem adaptada e difundida no cenário urbano. Sendo também
um suporte impresso, de forma geral, sintetiza e revê criticamente as principais
notícias e informações do período que cobre (semana, quinzena, mês...).
82
3.4.3. A reprodutibilidade técnica
Com a entrada na Modernidade, no bojo das Revoluções Industriais,
começam a surgir formas “industriais” de comunicação, uma comunicação “em
série”. Os textos e as artes, antes “originais”, únicos como os manuscritos, a
pintura, o teatro, os concertos, a dança —, adquirem formas reprodutíveis:
primeiro com os impressos, depois com a fotografia, com a película
cinematográfica, com as fitas magnéticas de áudio e vídeo, com os LPs, CDs e
assim por diante.
Esse movimento marca uma nova era na comunicação, denominada
por Walter Benjamin (1994: 165-196) como “era da reprodutibilidade técnica”.
Ainda que seja uma mudança técnica, ela influenciou (e continua influenciando)
o fazer artístico e comunicativo, uma vez que torna a comunicação impressa e
as artes acessíveis a um maior número de leitores. É essa “popularização” que
permite surgir, por exemplo, o romance de folhetim, descrito anteriormente, a
pop art, o cinema e a própria imprensa.
Em outras palavras, com a reprodução, a comunicação e as artes
(entre elas, a literatura) passam a se voltar a um público maior, com outras
necessidades, desejos e gostos. Isso destitui as obras artísticas de sua “aura”
(quase religiosa, única, intocável), deixando de ser privilégio das elites e
entrando no cotidiano da população. Ou, nas palavras de Walter Benjamin:
83
A técnica da reprodução destaca do domínio
da tradição o objeto reproduzido.
[...]
O valor único da obra de arte “autêntica” tem
sempre um fundamento teológico, por mais remoto que seja:
ele pode ser reconhecido, como ritual secularizado, mesmo nas
formas mais profanas do culto do Belo [...]. Com a
reprodutibilidade técnica, a obra de arte se emancipa, pela
primeira vez na história, de sua existência parasitária,
destacando-se do ritual (B
ENJAMIN
, 1994: 168, 171).
Não é à toa, que a teoria e a crítica literária se fortalecem a partir do
período da Revolução Industrial, como uma tentativa de resistência dos antigos
modelos, e de manutenção da “aura” de literatura. O movimento de
popularização da literatura, com as mudanças de linguagem, temáticas etc.,
decorrentes desse processo, entra em choque com os interesses das elites,
que se esforçam em manter o privilégio sobre o conhecimento e sobre a leitura
dos textos.
3.5. A CULTURA AUDIOVISUAL
A prensa de Gutenberg, com tipos móveis é muito eficaz na
reprodução de escritos, contudo é limitada na impressão de imagens. Assim, a
forma mais usada para obter imagens, por esse método de impressão, é com
os chamados “clichês” e xilogravuras: matrizes em alto-relevo de metal fundido
ou de madeira esculpida. Estes são compostos junto com os tipos móveis nas
matrizes de impressão.
84
O aprimoramento técnico permitiu a reprodução não mais só do
código escrito e das limitadas ilustrações, mas de toda sorte de imagens
(paisagens, pessoas, construções, pinturas, esculturas etc.), com uma
fidelidade cada vez maior. É a fotografia.
A fotografia surge no limiar da cultura impressa e a audiovisual. Com
a exposição controlada de uma lâmina fotossensível à luz, se produz uma
matriz translúcida, com a qual se podem obter cópias e ampliações das
imagens registradas.
É a partir da técnica fotográfica que se desenvolve o cinema: pela
projeção de imagens sucessivas em um anteparo (a tela), obtidas a partir de
uma “tira” translúcida (a película) iluminada; essa tira por sua vez é uma cópia
de outra, original, obtida pela fotossensibilização, como na fotografia.
A fotografia também está no princípio de uma nova técnica de
impressão, que se difunde na década de 1950: a fotocomposição. Nela, as
matrizes de impressão são obtidas a partir da fotossensibilização. Grosso
modo a técnica consiste em gerar uma matriz de impressão a partir de uma
“fotografia” de um original, que pode ser, assim, escrito ou uma imagem. A
impressão de imagens por fotocomposição, por ser muito mais simples e
barata que a por clichês (além de permitir a reprodução de imagens com
qualidade muito maior), viabilizou a veiculação de imagens em jornais, livros,
revistas e outros suportes impressos.
Da mesma forma, primeiro o fonógrafo (1877), inventado por
Thomas Edison, e depois o gramofone (1887), de Emil Berliner, permitiram a
85
reprodução do digo sonoro. Com a invenção das fitas magnéticas (cassete),
nas primeiras décadas do culo XX, estas também passaram a ser usadas
para registro de áudio (e, mais tarde, de vídeo). E é dessa forma, magnética,
que o som é incorporado ao cinema, durante a década de 1920.
Todas essas formas de comunicação audiovisual seguem o princípio
da reprodutibilidade técnica para chegar ao público: fotografia, impressos,
cinema, disco de vinil, fitas cassete e, tempos depois, CDs e DVDs. É com a
invenção do rádio que um novo modo mediado de distribuir textos surge: a
difusão. Assim, quem quer que esteja sob a área de cobertura de determinada
transmissão, com um aparelho receptor (um rádio) pode receber informações
sonoras em casa. O mesmo acontece com a televisão, que além de som
transmite também imagens em movimento.
Esse tipo de recepção muda a relação do leitor com os meios de
comunicação, aproximando ainda mais a cultura audiovisual do público e
ampliando o número de espectadores. As imagens e os sons chegam agora
em casa, nas lojas, nos escritórios... onde quer que haja um aparelho de rádio
ou uma TV. Em contrapartida, o poder de escolha desses leitores de sons e
imagens é um tanto limitado nesses suportes. Eles podem optar entre alguns
canais que têm a sua disposição, e não mais que isso, tendo que seguir a
programação, nos horários e nas seqüências montadas pelos emissores. É a
comunicação de massa, que chega a um amplo público que, no entanto, não
pode optar pelo que vê. É um leitor que acompanha o texto, no ritmo idealizado
86
por um emissor, que em geral está distante dele (espacial e socialmente). Esse
tipo de difusão, massiva e massificante, recebe o nome inglês de broadcast.
No final do século XX, começa a surgir uma alternativa ao broadcast:
o multicast. Trata-se de uma forma de difusão em que os receptores escolhem
os canais que desejam receber, pagando por “pacotes” de canais, ou por
canais isolados. É esse o sistema de transmissão da TV paga no Brasil (a cabo
ou por satélite). É dentro desse movimento de aumentar o poder de escolha
por parte do receptor que surgem, a partir da década de 1960, aparelhos
domésticos que permitem gravar som e áudio em fitas magnéticas
(videocassetes e gravadores). Com eles, o espectador pode armazenar a
programação do rádio e da TV para assistir em outro momento e quantas
vezes quiser, pode também interromper a exibição e retomá-la mais tarde,
retrocedê-la, adiantá-la... Trata-se de uma tentativa de controlar a exibição, de
obter alguma autonomia e liberdade sobre o que se vai assistir. A tecnologia
digital, como veremos no capítulo 5, amplia essa autonomia, gerando outras
possibilidades de interação do leitor com o texto.
3.5.1. O audiovisual e a leitura intercódigos
As tecnologias audiovisuais passaram a trazer textos mediados
(sonoros e visuais) de todo o mundo, para um público que antes os recebia
por meio do código escrito. A leitura de textos em códigos múltiplos (feita pelo
87
diálogo verbal-visual-sonoro) é denominada “leitura intercódigos”. É claro que
de forma não-mediada (por oralidade/gestual, teatro, música, dança etc.) ou
por suportes não-reprodutíveis (manuscritos, pintura, escultura etc.), se lia
em múltiplos códigos. A mudança é que esses textos passam a chegar de
várias localidades, numa quantidade crescente, e acessíveis a um número
cada vez maior de pessoas, da mesma forma como aconteceu com os textos
escritos a partir do desenvolvimento da imprensa.
Assim que, no culo XX, conforma-se uma cultura audiovisual, que
alcança amplamente os vários grupos sociais. De tal modo que, na TV, suporte
audiovisual por excelência, o código verbal escrito é secundário. Limita-se a
marcas comerciais, nomes de programas, legendas de filmes etc. Isso
acontece porque o audiovisual se mostra mais apto à leitura movente, urbana.
Rádio e TV podem ser acompanhados enquanto os espectadores se ocupam
de outras funções, no trabalho ou em casa. Na TV, com os ouvidos, o
espectador segue a transmissão, enquanto os olhos alternam sua atenção
entre o que é exibido e outras tarefas. Assim acompanha-se a programação,
mesmo que debilmente, enquanto se realiza atividades diversas, ou outros
apelos da cidade nos chamam a atenção (ver “leitura movente”, item 4.2.2).
a linearidade dos textos escritos requer um leitor concentrado, com olhos e
mente atentos.
É claro que, para uma leitura plena dos textos intercódigos, que
surgem com a cultura audiovisual e se ampliam na cultura digital, não a
escrita, como também sons e imagens precisam ser lidos e cruzados com a
88
mesma atenção. Assim, podemos compreender e re-significar os textos que
nos são apresentados.
A título de exemplo, vamos observar como esse diálogo intercódigos
se em uma campanha (outdoor e anúncio de revista) da empresa de
cosméticos O Boticário (F
IGURA
3.15). Essa campanha recorre à estrutura, aos
personagens e a outros elementos dos contos de fadas. Pela apropriação
dessas histórias, mostra características, tanto no código verbal quanto no
visual, que ora se aproximam e ora contrariam o imaginário tradicional. É sobre
esse recurso (aproximação/distanciamento) que é construída a estratégia de
convencimento da publicidade.
O que mais nos interessa nessa retrospectiva sobre os meios
audiovisuais é entender os processos pelos quais as imagens e os sons se
tornaram tão importantes e tão marcantes na cultura do século XX. A tal ponto
que, mesmo os textos nos suportes impressos, como nos jornais, sofreram sua
influência. Alterações de diagramação, dimensão e disposição de textos,
formato, relação imagem-escrita etc. indicam inovações tecnológicas e
mudanças da relação texto-leitor, decorrentes em grande parte da cultura
audiovisual que se estabeleceu nesse século, como se pode notar na figura
3.16.
89
A
B
Figura 3.15 Anúncio para revista (A) e outdoor (B) da campanha publicitária “Você
pode ser o que quiser” da empresa de cosméticos O Boticário. Em ambas, como na
maioria dos anúncios publicitários atuais, percebe-se um predomínio do visual sobre o
verbal, reflexo claro da cultura audiovisual. Mesmo em veículos que nasceram ligados
ao verbal, como as revistas, o visual se destaca nas publicidades. No outdoor, o verbal
é muito mais restrito ainda, para poder ser lido de dentro de um carro em movimento.
Em ambos, verbal e visual se complementam, criando aproximações e
distanciamentos do imaginário sobre os contos de fadas, um reforçando o outro. Em A,
temos na maior parte do verbal uma aproximação com a descrição da Branca de Neve
(branca como a neve e que causava muita inveja), o distanciamento aparece na razão
da inveja (“não por ter conhecido sete anões, mas vários morenos de 1,80 m”),
conotando uma atualização da imagem feminina: bela e pura sim, mas também
esperta e sensual. No visual de A, o verbal é reforçado com referências ao imaginário
sobre a Branca de Neve (cores das vestes, pele clara como a neve, cabelos negros
como a noite, boca vermelha como sangue, e a maçã) e com distanciamentos a esse
imaginário (olhar sensual e ameaçador, cabelos desalinhados, decote do vestido),
contrastando com a ingenuidade da princesa original. Em B, as mesmas relações são
estabelecidas com os vários príncipes trazendo sapatinhos de cristal e a sensualidade
da “princesa” contemporânea (visual), e com a substituição da varinha mágica pela
maquiagem O Boticário (verbal).
1921
1964
Figura 3.16
Pela sucessão das primeiras páginas do jornal
surgiu como
Folha da Noite
o código verbal e o visual, uma preocupação crescente com a visualidade mesmo do
verbal e uma redução da
cores, qualidade de impressão e o centro da página. Os escritos diminuem em
quantidade e extensão. Na diagramação, os escritos ganham entrelinhas maiores,
ficando mais “arejados”. Fundos de cor, caixas
para as chamadas são outros elementos que demonstram uma preocupação cada vez
maior com a visualidade do texto. Tais características deixam patente o avanço da
cultura da imagem durante o século XX.
1939 1945
1992 2008
Pela sucessão das primeiras páginas do jornal
Folha de S.Paulo
Folha da Noite
, percebe-
se mudanças na proporção e no destaque entre
o código verbal e o visual, uma preocupação crescente com a visualidade mesmo do
verbal e uma redução da
extensão dos textos verbais. As imagens surgem, ganham
cores, qualidade de impressão e o centro da página. Os escritos diminuem em
quantidade e extensão. Na diagramação, os escritos ganham entrelinhas maiores,
ficando mais “arejados”. Fundos de cor, caixas
de texto, diferentes corpos (tamanhos)
para as chamadas são outros elementos que demonstram uma preocupação cada vez
maior com a visualidade do texto. Tais características deixam patente o avanço da
cultura da imagem durante o século XX.
90
Folha de S.Paulo
, que
se mudanças na proporção e no destaque entre
o código verbal e o visual, uma preocupação crescente com a visualidade mesmo do
extensão dos textos verbais. As imagens surgem, ganham
cores, qualidade de impressão e o centro da página. Os escritos diminuem em
quantidade e extensão. Na diagramação, os escritos ganham entrelinhas maiores,
de texto, diferentes corpos (tamanhos)
para as chamadas são outros elementos que demonstram uma preocupação cada vez
maior com a visualidade do texto. Tais características deixam patente o avanço da
91
Nota-se claramente, pela sucessão das primeiras páginas do jornal
Folha de S.Paulo, uma valorização do visual, que ganha espaço maior e cores.
Nota-se também uma preocupação com a visualidade do próprio verbal, com a
distribuição dos blocos de texto ao longo da página e a diferenciação de
tamanho (corpo) das letras, de acordo com a ênfase que se quer dar para uma
ou outra chamada. Por fim, nas últimas páginas notam-se blocos de textos
curtos, e um destaque para a referência à página em que o texto completo
sobre determinada chamada se encontra: essa diagramação lembra muito uma
página inicial de um portal de notícias, como se os blocos de texto fossem links
para o texto completo, favorecendo uma relação hipertextual de leitura
(navegativa ou imersiva; ver tipos e leitura no item 4.2).
Entender que as características do texto sobre um suporte se
transformam com o tempo — e refletem avanços tecnológicos, mudanças
sociais, alterações na relação texto-leitor etc. é fundamental para a
compreensão deste trabalho. Isso porque, de forma semelhante ao que ocorre
com os jornais (e com todos os outros processos comunicativos), os livros e a
literatura infantil se transformam devido, entre outras causas, a mudanças na
práxis de leitura.
Foi assim que, no limiar no século XXI, com a computação e a
internet surgem as mídias digitais, estabelecendo novas concepções de texto e
de autoria, novas formas de leitura, novos tipos de leitor... Denominamos esse
novo paradigma de cultura digital. No capítulo 5 discutiremos um pouco sobre a
92
história e as características dessa nova forma mediação, bem como a sua
influência sobre a literatura para crianças. Antes, no próximo capítulo,
procuraremos restabelecer os conceitos de texto, leitura e literatura, a partir do
que viemos demonstrando até o momento. Essas reconceituações nos
permitirão compreender com mais clareza por que as manifestações artísticas
navegativas e intercódigos, que eclodem com o advento do audiovisual e da
hipermídia, podem, e devem, ser consideradas textuais e literárias.
93
4. Texto, leitura e literatura
“A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí
que a posterior leitura desta não pode prescindir a leitura daquele”
Paulo Freire
(2006)
Tendo observado a trajetória da literatura infantil e dos suportes
desde os seus primórdios até suas configurações atuais, faremos aqui uma
espécie de síntese da teorização dos capítulos 2 e 3. Procuraremos, assim,
verificar de que modo os textos e a leitura se transformam sobre os vários
suportes, estabelecendo relações entre, de um lado, as Letras e a Literatura, e,
de outro, a Comunicação e as práticas sociais como um todo. Então,
mapeadas as principais formas atuais de leitura e tipos de texto, proporemos
uma reconceituação desses termos, de modo a contemplar suas manifestações
contemporâneas.
As perguntas que nos nortearão são:
94
a) um livro é lido da mesma forma que a uma revista? Ou
um outdoor? Ou um site da internet? Que habilidades são
requeridas em cada tipo de leitura?
b) Se existe uma leitura diferente em cada suporte, então os
textos propriamente também variam de mídia para mídia?
c) E, se ler não se resume a decodificar as palavras de um
livro, então o que é ler? E, se textos não se resumem a
frases encadeadas em uma página impressa (podendo
estar também, num site, numa propaganda de revista,
num programa de TV), então o que é texto?
Ler é hoje muito mais do que decodificar textos verbais escritos.
Esse sentido de leitura, de senso comum, é bastante restrito para a imensa
gama de textos a que temos acesso atualmente, por meio de uma grande
variedade de suportes: livros, revistas, jornais, sites da internet, outdoors,
letreiros, muros, painéis... E, como veremos adiante, por que não também
filmes, programas de TV e de rádio, peças de teatro?
Queremos mostrar que os textos hoje se conformam em vários
códigos, verbais e não-verbais (e pela inter-relação destes); e que o modo de
leitura desses textos se dá de forma distinta, dependendo do suporte.
Como decorrência disso, para uma prática da leitura efetiva hoje, o
leitor precisa ler mais do que textos escritos. Precisa relacionar os vários
95
gêneros códigos, verbais e não-verbais, a fim de poder entender, refletir e re-
significar os textos em sua realidade, assumindo uma postura crítica diante
deles.
4.1. A LEITURA
A palavra “ler” vem do latim clássico “lego”, que significa: apanhar,
enrolar, tirar, escolher, captar com os olhos. Pela etimologia, podemos
antever que ler pode ser mais do que decodificar textos verbais, escritos, como
é senso comum.
“Apanhar”, “tirar” e “escolher”, que estão na origem do verbo “ler”,
sugerem um movimento de escolha, de seleção. Com isso, lembramos alguns
princípios sicos da semiótica (de acordo com Saussure, Peirce, Greimas e
outros, apud N
OTH
, 1995 e 1996), que mostram que a leitura dos textos
(signos) está condicionada ao nosso conhecimento de mundo. Assim,
compreendemos um texto a partir do que sabemos sobre aquele universo
expresso. Além disso, o que entendemos de um texto está relacionado com
nossos pensamentos, nossas idéias, nossas dúvidas, inquietações. E é por
isso que, por exemplo, quando relemos um texto passado certo tempo da
primeira leitura, costumamos nos surpreenderemos com sentidos que antes
não tínhamos “apanhado”, “tirado” dele.
96
Assim, se lemos a palavra “casa”, por exemplo, ela nos remete a
todas as casas que já vimos e imaginamos. E também à nossa casa. E
também a outras idéias afetivas que para nós nos lembram casa: família,
carinho, proteção etc. Assim, alguém que tenha experiências traumáticas com
o conceito “casa”, digamos, alguém cuja casa tenha desabado, ou um morador
de rua, ou alguém com conflitos familiares, te uma memória diversa, em
alguns sentidos, dessa palavra, dessa “imagem” de “casa”. O exemplo, apesar
de simplista, é suficiente para o escopo de nossa argumentação.
As idéias de “apanhar”, “escolher” nos remetem também a um tipo de
leitura: aquela em que elegemos trechos de nosso interesse a partir, por
exemplo, dos títulos, links e outras marcas. “Escolhemos” das notícias de um
jornal, da infinidade de textos da internet (ou até de um dicionário, ou das
instruções de um manual) aqueles textos (ou trechos de texto) que nos
interessam naquele momento.
“enrolar”, também da origem de “ler”, sugere outro movimento que
a leitura supõe: o ir e vir dos olhos e do pensamento, que se dobra e desdobra
criando sentido. Sempre que lemos, estabelecemos relações com o que se
acabou de ler, e imaginamos o que virá depois (criamos suposições). Também
relacionamos com nossas experiências vividas e com outros textos lidos.
Assim, os sentidos são gerados da relação do leitor com o texto, e cada leitor,
dependendo das relações que estabelece com o texto, pode gerar sentidos
diferentes a partir de sua leitura.
97
E o “enrolar” nos remete a outra idéia: um dos suportes ancestrais de
leitura, o volumen (ou rolo). Geralmente feito de papiro ou de couro de animal
(ver item 3.3.2), o texto era enrolado, como vemos em imagens sobre a cultura
greco-romana, ou nos volumes da To(textos sagrados judaicos). Assim, ler
consistia em enrolar e desenrolar o texto. Esse movimento também existe (com
características particulares) ao se virar as páginas de um livro, revista, jornal,
ou subir e descer a barra de rolagem (mais uma vez enrolar) de um texto no
computador. Tudo isso mostra que ler é movimento, é ação sobre o texto,
afastando a idéia do leitor passivo que compreende um único sentido do texto.
Por fim, “captar com os olhos” nos convoca a ampliar o conceito de
leitura. Será que só se capta com olhos o que está escrito (texto verbal)? Ou há
algo para ler/captar nos textos para além disso? Nas publicidades, os escritos
aparecem quase sempre ligados a imagens. É possível ler a publicidade em
sua completude, apenas a partir do que está escrito, desconsiderando a
relação disso com a imagem? Em outras palavras, é possível dissociar, nesse
caso (e em muitos outros), imagem e escrita sem perdas ou até distorções
graves de sentido? Nos livros infantis, em reportagens de revistas, em sites etc.
encontramos essa mesma associação de textos e imagens. É possível separá-
los na hora da leitura? É o que procuraremos observar a seguir, a partir da
descrição de quatro tipos de leituras.
98
4.2. AS PRÁXIS DE LEITURA
3
As necessidades de leitura de um letrado na Idade Média eram
muito diferentes daquelas do leitor contemporâneo. Parece evidente que a
leitura tenha mudado através dos séculos, ainda que muitas vezes não
paremos para refletir sobre isso.
Houve uma ampliação e uma popularização do público leitor. Na
Idade Média, os leitores médios se compunham de um grupo restrito formado
principalmente por parte do alto clero. Hoje, mesmo com todos os problemas
de alfabetização, em nossa sociedade um número infinitamente maior de
leitores que naquele tempo. E quem são esses leitores? Na sua maioria
pessoas que vivem na cidade, que trabalham e que tem acesso a textos
variados (notícias, publicidade, letreiros, literatura, cartas, e-mails, sites etc.).
Essas pessoas utilizam a leitura em grande parte para se informar, e também
para estudar e se entreter... Não é razoável pensar que esses dois tipos
“médios” de leitores têm necessidades e interesses de leitura muito diferentes?
E, conseqüentemente, que muitos dos textos produzidos para eles (e lidos por
eles) tendem a buscar satisfazer essas demandas diferentes?
É claro que os diferentes tipos de leitura convivem. Existe, em toda
sociedade, pessoas com interesses e necessidades os mais variados.
Contudo, é claro, também, que as sociedades de cada época e contexto (com
3
Adaptado e ampliado de Santaella (2004). Em vez de “tipos de leitor”, como o utiliza
Santaella, preferimos as formas “práxis de leitura” e “tipos de leitura”, uma vez que acreditamos
que um mesmo indivíduo leitor pode realizar práticas diferentes de leitura dependendo da
situação, de seu interesse, do texto e do suporte.
99
suas tecnologias, necessidades, desejos, cultura) evidenciam, ampliam e
aprofundam certas práticas de leitura, como veremos a seguir.
4.2.1. Leitura contemplativa, meditativa
É a leitura típica do livro, em que o leitor se dedica a uma leitura
aprofundada (vertical) das poucas obras a que tem acesso. Esse leitor se
debruça, contempla, medita sobre o texto no interior de uma biblioteca, de um
mosteiro, ou à sombra de uma árvore. Assim, não costuma ser apelado por
estímulos que o desconcentrem da leitura (F
IGURA
4.1 e 4.2).
Evidencia-se com a difusão do livro proporcionada pelo Iluminismo
(no campo político-cultural), pela Reforma Protestante (no campo religioso) e
pela invenção da prensa por Gutenberg (no campo tecnológico):
Esse tipo de leitura nasce da relação íntima entre o
leitor e o livro, leitura do manuseio, da intimidade, em retiro
voluntário, num espaço retirado e privado, que tem na
biblioteca seu lugar de recolhimento, pois o espaço da leitura
deve ser separado dos lugares de um divertimento mais
mundano. [...] Esse leitor não sofre, não é acossado pelas
urgências do tempo. Um leitor que contempla e medita. [...]
Embora a leitura da escrita de um livro seja seqüencial, a
solidez do objeto livro permite idas e vindas, retornos, re-
significações. Um livro, um quadro exigem do leitor a lentidão
de uma dedicação em que o tempo não conta. (S
ANTAELLA
,
2004: 23-24)
100
Figura 4.1 A leitura contemplativa é solitária, o leitor fica fechado em sua biblioteca
e envolto por livros (Eduard Hildebrandt. Humboldt em sua biblioteca, 1856).
Figura 4.2 A garota está com o livro aberto, marcando a página com as mãos. Ao
redor dela o espaço escuro e a mesa limpa indicam a ausência de apelos externos.
Com o olhar perdido, a leitora reflete, medita sobre o que está lendo (Jean-Baptiste
Greuze. Uma garota estudando, 1757).
101
4.2.2. Leitura movente, fragmentária
Com a Revolução Industrial, com o capitalismo, na era da
reprodutibilidade técnica (de que trata Walter Benjamin (1994)) destaca-se
esse tipo de leitura:
No cenário volátil da cidade, convertida em “arena
para a circulação de corpos e mercadorias”
4
, aquilo que
realmente deu forma às experiências da Modernidade foi a
destituição crescente de todas as coisas de sua aura de valor.
A roupa, o livro, o médico, o advogado e o poeta, tudo foi se
transformando em mercadoria e com ela nascia um novo tipo
de percepção de mundo, cada vez mais voltado para a
proximidade, para o imediato, para a segurança contra os
riscos da cidade grande (S
ANTAELLA
, 2004: 27).
É a leitura típica da cidade, do leitor que é o tempo todo apelado por
estímulos vários: as pessoas que passam na rua, o outdoor, a buzina, o
anúncio do carro de som. É a leitura da industrialização, da produção em série,
de um leitor que descobre que o mundo é muito maior do que ele imaginava, o
qual conhece por meio dos jornais, das revistas, das publicidades, da
fotografia, do rádio, da televisão, do cinema. Esse leitor se fascinado diante
da infinidade de textos aos quais tem acesso e, avidamente, quer lê-los.
4
CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa R.. (orgs.). “Introdução”. O cinema e a invenção da
vida moderna. Trad. Regina Thompson. São Paulo: Cosac e Naify, 2001. p. 22.
102
Na leitura movente, o leitor passa pelos textos (ou os textos passam
por ele). Ele não consegue contemplar, meditar sobre o texto, pois o tempo se
torna questão central, e se impõe sobre ele (F
IGURA
4.3 a 4.5).
É o leitor que foi se ajustando a novos ritmos de
atenção, ritmos que passam com igual velocidade de um
estado fixo para um móvel. É o leitor treinado para as
distrações fugazes e sensações evanescentes cuja percepção
se tornou uma atividade instável, de intensidades desiguais. É,
enfim, o leitor apressado de linguagens efêmeras, híbridas,
misturadas. Aparece, assim, com o jornal, o leitor fugaz,
novidadeiro, de memória curta, mas ágil. Um leitor que precisa
esquecer, pelo excesso de estímulos, e na falta de tempo para
retê-los. Um leitor de fragmentos, leitor de tiras de jornal e
fatias de realidade (S
ANTAELLA
, 2004: 29).
Figura 4.3 — Avenida Paulista (São Paulo/SP), à noite. Na imagem, os carros passam
pelos anúncios publicitários, pelos letreiros e outros apelos das ruas da cidade.
Leituras típicas do leitor movente.
103
Figura 4.4 Entre várias pessoas conversando e exercendo atividades variadas, o
homem sentado, ao centro, seu jornal provavelmente em uma pausa no seu
trabalho. Comparativamente com a Figura 4.1, supra, nota-se um ambiente com muito
mais estímulos. Também a questão do tempo se torna fundamental, o homem dispõe
de um intervalo limitado para a leitura: no caso, o tempo de descanso do trabalho
(Edgar Degas. Retratos em um escritório de algodão em New Orleans, 1873).
Figura 4.5 Criança presta atenção na leitura feita pela professora. A professora
aponta para detalhes da ilustração, esforçando-se para manter a concentração da
menina. Comparativamente com a Figura 4.2, supra, nota-se a grande quantidade de
estímulos que podem desviar a atenção do leitor: brinquedos, outros livros, crianças
ao redor etc.
104
4.2.3. Leitura imersiva, virtual
Com o advento da era digital, da computação, e, posteriormente, da
internet, torna-se evidente este tipo de leitura. É a leitura da multiplicidade de
linguagens, da seleção/inter-relação das infinitas informações veiculadas pelos
meios hipermidiáticos. É a leitura da tela do computador, que “navega entre
nós e conexões alineares pelas arquiteturas líquidas dos espaços virtuais”
(S
ANTAELLA
, 2004: 31).
É uma leitura que exige seletividade, para que o leitor não se perca
nos mares virtuais. O leitor imersivo tem (ou deveria ter) consciência de que o
mundo é muito maior do que ele pode abraçar e escolhe, na infinidade de
textos a sua disposição (todos a distancia de poucos cliques), os textos e
caminhos que lhe interessam, que deseja (F
IGURA
4.6 e 4.7).
Figura 4.6 O internauta, aparentemente solitário, fechado para o mundo ao seu
redor (notem a cabine), está imerso no mundo virtual. Seus instrumentos de
navegação são teclado, mouse, monitor, alto-falantes, câmera de vídeo etc.
105
FIGURA 4.7 Mapa de fluxo da internet. Cada ponto representa um lugar de onde
chegam e partem informações no globo. As linhas são as conexões entre um ponto e
outro. A imagem revela a teia” que os leitores navegadores trilham e o encurtamento
de distâncias (físicas) que a internet possibilita (Disponível em
www.cs.ucsd.edu/~vahdat/papers/sigcomm07.pdf. Acesso em: 10/11/2007).
Conforme Chartier (1998: 12-13), tal leitura guarda algumas
semelhanças com os outros tipos: o texto corre verticalmente (como no rolo, ou
volume), puxando a barra de rolagem com o mouse, ou apertando algum botão
do teclado; o leitor pode se guiar por links e menus, artifícios que lembram a
paginação e os índices dos livros impressos etc.
Por outro lado, diferentemente dos outros tipos de leitura, segundo
Lucia Santaella (2004: 33):
O leitor imersivo é obrigatoriamente mais livre na
medida em que, sem a liberdade de escolha entre nexos e sem
a iniciativa de busca de direções e rotas, a leitura imersiva não
se realiza. [...] [Trata-se de] um leitor em estado de prontidão,
conectando-se entre nós e nexos, num roteiro multilinear,
106
multiseqüencial e labiríntico que ele próprio ajudou a construir
ao interagir com os nós entre palavras, imagens
documentação, músicas, vídeo etc.
Assim, se ele não quiser escutar determinada música, pode,
simplesmente, passar direto para a próxima, bem como repetir uma música que
acabou de ouvir e até mesmo escolher uma música específica. O mesmo vale
para as TVs eletrônicas e sites de vídeo (Youtube, podcasts etc.).
Também no jornal eletrônico, o leitor pode, como na mídia
convencional, acessar o índice e recorrer diretamente a um determinado
caderno. Mas, diferentemente do impresso, pode ter acesso a informações dos
últimos minutos, bem como ler outras matérias que saíram sobre o mesmo
assunto, e, até mesmo, ver um vídeo ou escutar um depoimento relacionado.
Da mesma forma, na leitura navegativa, virtual, o leitor pode ler uma
matéria de um site e, a partir dos links, acessar um vídeo, um áudio, uma
imagem sobre o mesmo assunto, ou matérias relacionadas, dentro ou fora do
site que tinha entrado anteriormente.
4.2.4. Leitura oral, dialógica
Além dos tipos de leitura descritos por Lucia Santaella, podemos
incluir uma quarta classificação, evidenciada anteriormente à leitura
contemplativa. Trata-se da leitura oral.
107
Como a leitura oral prescinde o conhecimento do código escrito, ela
remonta à Antigüidade. Nela, o leitor tem acesso aos textos por meio de
terceiros. Trata-se de uma leitura coletiva, em que alguém narra (a partir de um
registro escrito ou não) aos demais espectadores-leitores.
Nessa leitura, o leitor é de certo modo co-autor. Devido à ausência
de registro (ou à dificuldade de acesso a este) e à proximidade física entre o
autor-enunciador e os leitores-enunciatários, todos interferem no texto, durante
sua enunciação, e também mais tarde o modificam quando o enunciam para
outras platéias.
Trata-se da leitura do texto vivo, do saber vivo de que fala Platão em
“Fedro”, aquele construído por meio do diálogo com toda a audiência (Diálogos
de Platão, apud Z
ILBERMAN
, 2001: 24-25).
É o que se verifica, por exemplo, nas lendas, passadas de geração
em geração, com versões que variam de acordo com a região e o tempo; ou
nos discursos dos filósofos gregos, em que a platéia questiona e argüi os
oradores.
É preciso esclarecer que a sucessão dos tipos de leitura não
consiste em uma evolução/substituição nas práticas de leitura. Elas coexistem.
Convivem na sociedade contemporânea tanto leitores mais habituados à
linguagem televisiva, quanto os que preferem a leitura dos textos impressos,
bem como aqueles acostumados a navegar pela estrutura alinear e
descentralizada da internet. Além disso, um mesmo leitor pode realizar tipos de
leitura diferentes de acordo com o texto, sua necessidade e seu desejo: quanto
108
mais contato o leitor tiver com os vários tipos de texto e as possibilidades de
leitura, mais proficiente a leitura será.
Por fim, o tipo de leitura não está preso estritamente ao suporte que
o evidencia. Dependendo do texto, do interesse do leitor e de sua proficiência,
ele pode aparecer em suportes diferentes. Assim, alguém que, por exemplo, no
início do século XX, procura informações em uma enciclopédia, faz uma leitura
com muitas características do leitor navegador: ele recorre ao índice,
descobre os locais da enciclopédia onde pode encontrar a informação de que
precisa, vai aos verbetes, os trechos que lhe parecem úteis, observa as
possíveis imagens e quadros, recorre a outros verbetes relacionados... enfim,
navega de forma semelhante a um internauta.
4.3. NOVOS CONCEITOS DE LEITURA E TEXTO
Os itens 4.1 e 4.2 (supra) trazem indícios de que ler não se restringe
ao código verbal escrito. O ato de ler está muito mais relacionado a um
processo de significação de textos do que à mera decodificação do código
verbal escrito.
Este pensamento nos remete a Paulo Freire (2006: 11): “a leitura do
mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não pode
prescindir a leitura daquele”. Ora, se existe uma leitura do mundo, anterior
inclusive à leitura da palavra, ler é muito mais que decifrar códigos verbais
109
escritos. Assim, a leitura inclui, para além do verbal, outros códigos, como os
visuais e os sonoros. Como descreve Nicolau Gregorin Filho (2001), a respeito
do livro infantil contemporâneo: “os dois (visual e verbal) constroem um único
texto, apropriado ao fazer interpretativo do enunciatário”.
Lembramos também o que diz Greimás e Courtes (1999) sobre o
conceito de leitor:
[“Leitor”] designa a instância de recepção da
mensagem ou do discurso. Ainda que prático, esse termo não
é suficientemente geral: ele concorre com o de ouvinte e se
presta a metaforizações suscetíveis de desvios (por exemplo:
“leitor de um quadro”) é então preferível recorrer ao conceito de
enunciatário.
Greimás primeiro define leitor como aquele que recebe uma
mensagem ou um discurso. Ora, como viemos estudando, uma mensagem, um
discurso, um texto não se restringe ao código verbal escrito. As mensagens
podem ser visuais, sonoras, híbridas. No trecho, o autor também prefere o
termo “enunciatário” a “leitor”, uma vez que, segundo ele, “leitor” pode causar
desvios. Concordamos com ele que, pelo sentido mais usual, a utilização da
expressão para “leitor de um quadro”, pode levar a confusões. Mas, por que
não, em vez de trocar o termo, repropormos o conceito?
Acreditamos que nossa opção tem vantagens. Primeiro, como
vimos, os vários códigos aparecem, muitas vezes, interligados nos textos. E a
“leitura” do digo verbal escrito é insuficiente para a leitura desses textos em
sua plenitude. Segundo, à medida que se difundir esse novo conceito de
110
leitura, facilitamos a entrada das práticas intercódigos no ensino de leitura,
habilidade fundamental para entendermos melhor os textos que nos cercam.
A associação estrita entre leitura e código verbal escrito se revela
precária, principalmente tendo em vista a variedade de textos a que o leitor tem
acesso hoje:
a) Anúncios publicitários associam textos verbais escritos a
imagens. Isso quando não recorrem a outros códigos:
sons, cheiros, texturas etc. Esses textos exploram
também a visualidade do próprio texto escrito, usando
tipologias variadas, em diversas cores, colocando os
textos na vertical, na diagonal, em ondas etc. de acordo
com o sentido que se quer alcançar.
b) Nos livros infantis atuais também, via de regra,
associação de vários códigos na construção do sentido:
código verbal e imagem, sons, texturas, cheiros,
formatos... Tudo isso é importante para a significação.
c) A poesia concreta igualmente explora a visualidade da
palavra, sua forma, seu movimento.
d) No cinema e na TV, o código escrito é um dos muitos
explorados por esses meios: sons, imagens, animações
andam juntos na construção de sentido.
111
e) Nos sites, novamente temos os vários códigos e uma
postura diferente do leitor diante do texto: o leitor navega.
Acessa os trechos de texto (em múltiplos digos) que
deseja, que lhe interessam, que lhe convêm.
Isso para ficarmos em apenas alguns exemplos, mas que deixam
claro que, se nos limitarmos atualmente à decodificação do código verbal
escrito, a leitura/significação será gravemente comprometida.
Assim, urge reconceituarmos o que é “leitura” e o que é “texto”. A
partir do que viemos elaborando até o momento, propomos as seguintes
definições:
a) Leitura Decodificação, compreensão e interpretação
(re-significação) de textos escritos, visuais, sonoros ou
fruto de hibridizações dessas matrizes.
b) Texto Unidade significativa, passível de leitura, em
qualquer código (escrito, visual, sonoro etc.) ou em
códigos híbridos, verbais ou não.
É a partir desses conceitos que entendemos que as manifestações
interativas, hipertextuais e intercódigos que se evidenciam com a hipermídia
são textuais e sujeitas à leitura.
112
Uma vez restabelecidos os conceitos de “texto” e “leitura”, cabe
processo semelhante sobre o conceito de “literatura”.
4.4. O CONCEITO DE LITERATURA
Antes de detalharmos as características da linguagem hipermidiática
e da literatura infantil por ela influenciada, convém nos determos um pouco
sobre um conceito mais amplo e que abarca a literatura para crianças, nosso
objeto específico. Trata-se de uma reflexão sobre o conceito de literatura, como
um todo.
Esse exercício é importante para que possamos compreender as
práticas hipermidiáticas, hipertextuais artísticas como literárias.
Teóricos da literatura séculos e séculos, desde a Poética de
Aristóteles, tentam dar uma resposta definitiva à questão: “o que é literatura?”.
Contudo até hoje todas as definições estabelecidas logo são questionadas e
postas em xeque. De fato, é muito difícil, talvez impossível, definir por meio de
uma sentença toda a multiplicidade de textos literários: das narrativas
românticas aos poemas concretistas, dos Lusíadas de Camões, passando pelo
Hamlet de Shakespeare, até um Ulisses de James Joyce, ou um Macunaíma
de Mário de Andrade, ou A metamorfose de Franz Kafka, ou ainda A hora da
estrela de Clarice Lispector.
113
Com efeito, a definição de literatura, como a concebemos hoje, é
muito mais recente do que se costuma imaginar. Segundo Foucault (2000), ela
remonta o início do século XIX, ou seja, tem cerca de duzentos anos. Ela surge
com o colapso do valor da palavra como modelo, transmissora de uma verdade
absoluta, inquestionável, em decorrência das revoluções burguesas, do
declínio da força da Igreja e da débâcle da aristocracia. Assim, a literatura
perde suas funções religiosas e morais, a então centrais. Com isso, a
questão “o que é literatura?” vem à tona e essa arte se redescobre como
autônoma, auto-referencial, como uma tessitura de linguagem... Em outras
palavras, ainda que não haja um conceito de literatura definitivo, a maioria das
teorias a respeito concorda que este inclui a elaboração da linguagem, a
palavra escolhida, a frase lapidada.
Partiremos da definição de Ezra Pound (1995) sobre o que é
literatura, uma das mais reconhecidas hoje. Segundo o autor, literatura é
linguagem carregada, grávida de sentido.
De fato, e conforme o pensamento também de Wellek e Warren
(1987) a literatura é “conotativa”, ou seja, procura a complexidade e a
multiplicidade de significados. E, na literatura, a língua se organiza de forma
“sistemática”. Em outras palavras, para possibilitar essa multiplicidade de
significados, o texto é trabalhado e organizado para isso. Essa definição, ainda
que o conta de toda a diversidade de textos a que temos acesso hoje,
serve-nos de ponto de partida.
114
Contudo, tal conceito foi elaborado numa época em que os meios de
comunicação de massa ainda estavam em sua infância. De para outros
teóricos questionaram essas colocações. Com o surgimento do jornalismo
literário, da por art, da literatura em quadrinhos etc. essa definição precisa ser
revista. Tzvetan Todorov (1978: 25) afirma a esse respeito:
[...] se se opta por um ponto de vista estrutural,
cada tipo de discurso qualificado habitualmente como literário
tem “parentes” não-literários, que lhe são mais próximos do
que qualquer outro tipo de discurso “literário”. Por exemplo,
certa poesia lírica e a oração obedecem a mais regras comuns,
do que essa mesma poesia e o romance histórico do tipo
Guerra e paz.
Assim, Todorov percebe muito mais semelhanças “estruturais” de
alguns textos literários com textos não-literários, do que com outros textos
literários. O autor conclui propondo, antes da distinção entre textos literários e
não-literários, o estudo de uma “tipologia dos discursos”: narrativa, poema etc.
De fato, hoje, encontramos textos literários na internet com muito mais
características em comum com textos não-literários sobre o mesmo suporte, do
que com outros textos literários, por exemplo, veiculados no suporte impresso
5
.
Respaldados por esse pensamento, no decorrer deste trabalho recorremos por
vezes a textos não-literários para demonstrar características, recursos de
linguagem encontrados também em textos literários.
5
Ainda que, como iremos mostrar no capítulo 6 desta dissertação, os textos impressos também
sejam influenciados pela linguagem hipermidiática e vice-versa.
115
Em um mundo globalizado, com o contato e o conhecimento de
outras culturas, torna-se cada vez mais difícil conceituar literatura. Conforme
Condillac em De l’art d’écrire (apud Todorov, 1978: 25-26):
Quanto mais as línguas que merecem ser
estudadas se multiplicaram, mais difícil se torna dizer o que se
entende por poesia, porque cada povo tem dela uma idéia
diferente. [...] O natural característico da poesia e de cada
espécie de poema é um natural de convenção que varia
demasiado para poder ser definido. [...] Seria vão tentar
descobrir a essência do estilo poético: não existe.
E ainda segundo Friedrich Schlegel nos “Fragmentos” do
Athenaeum (apud T
ODOROV
, 1978: 26):
Uma definição de poesia pode determinar o que
ela deve ser, não o que foi, ou o que na realidade é; senão
enunciar-se da forma mais breve possível: é poesia aquilo que
assim se chama, não importa quando, nem onde.
Com estes dois últimos trechos, de Condillac e Schlegel, fica-nos a
questão: seque hoje em que o livro divide espaço com outros suportes
para a veiculação da literatura, ao lado dos audiovisuais (usados na vídeo-
poesia) e hoje da hipermídia (e o livro mesmo aceita imagens, sons, texturas)
não podemos incorporar à literatura outros códigos (visuais e sonoros), para
além da linguagem verbal escrita? Como procuramos mostrar, a literatura
infantil os utiliza na prática e, em muitos teóricos da literatura para crianças,
esses outros códigos já são levados em conta.
116
Segundo Wellek e Warren (1987: 37): “A literatura é uma instituição
social que utiliza, como meio de expressão específico, a linguagem que é
criação social”. Assim, enquanto criação social, o que se entende por
linguagem e conseqüentemente por literatura se transformam junto com a
sociedade. Hoje, com a publicidade, a televisão, enfim com a cultura da
imagem e digital que se estabeleceu durante o século XX, quem discordaria de
que, para além da escrita, a linguagem também pode ser visual, sonora e
intercódigos?
Por todos esses motivos, concebemos a literatura, para além de
linear e verbal, também visual, sonora, interativa e hipertextual. E é com esse
pensamento que concebemos uma literatura hipermidiática.
No capítulo seguinte, estabeleceremos os traços dessa linguagem
hipermidiática e mostraremos como ela tem imprimido suas marcas sobre a
literatura para crianças.
117
5. A linguagem hipermidiática
e suas marcas
“Vivemos um desses raros momentos em que, a partir de uma nova
configuração técnica, um novo estilo de humanidade é inventado.”
Pierre Levy (1993)
Como vimos no capítulo 3, o multicast e as várias formas de
armazenamento doméstico em fitas magnéticas (K-7), e mais tarde em CDs,
podem ser vistas como uma tentativa do leitor de conquistar maior autonomia e
liberdade sobre a leitura. Isso acontece como reação à tecnologia de difusão
(broadcast) empregada na TV aberta e no rádio que, ainda que chegue ampla
e facilmente aos espectadores onde quer que estejam, é bastante “autoritária”
com relação aos conteúdos e horários de exibição.
Com a tecnologia digital, a sociedade parece ter encontrado uma
resposta mais eficaz a essa questão. A linguagem digital armazena sob um
mesmo código (o código binário) informações sonoras, visuais e verbais,
permitindo reunir, em um mesmo suporte, gêneros de textos que antes
podiam ser encontrados em lugares distintos, por exemplo: um artigo de jornal
escrito e uma vídeo-
reportagem, ou uma música e um conto. Além disso,
o desenvolvimento da internet, o internauta pode ler textos criados e
armazenados em todo o mundo dentro de sua casa ou em seu escritório. E
esses textos são cada vez mais conectados entre si por meio de
palavras-chaves (tags
ou
pode ter acesso a uma ampla gama de textos, facilmente (quando quiser e
onde estiver), desde que:
a)
tenha acesso à internet: com um computador, um
notebook
b)
domine os “instrumentos”
navegadores (
busca
Figura 5.1 Tags cloud
ligadas a um site, um
blog
mecanismos de busca (Google, Yahoo etc.) encontram e ordenam as páginas
relacionadas às expressões que o internauta digita no formulário. A
forma visual de representar as palavras
quanto maior a expressão e mais próxima da expressão central, mais relevante.
reportagem, ou uma música e um conto. Além disso,
o desenvolvimento da internet, o internauta pode ler textos criados e
armazenados em todo o mundo dentro de sua casa ou em seu escritório. E
esses textos são cada vez mais conectados entre si por meio de
ou
metadatas) (F
IGURA
5.1). Assim, o leitor da hipermídia
pode ter acesso a uma ampla gama de textos, facilmente (quando quiser e
onde estiver), desde que:
tenha acesso à internet: com um computador, um
notebook
, um palmtop, um celular etc.;
domine os “instrumentos”
de navegação na rede:
navegadores (
browsers), portais, links
, mecanismos de
busca
etc.
(nuvem de tags) da Web 2.0. As tags
são palavras
blog
, ou outra parte da web
. É por meio delas que os
mecanismos de busca (Google, Yahoo etc.) encontram e ordenam as páginas
relacionadas às expressões que o internauta digita no formulário. A
tags cloud
forma visual de representar as palavras
-chave mais
relevantes em determinado
quanto maior a expressão e mais próxima da expressão central, mais relevante.
118
reportagem, ou uma música e um conto. Além disso,
com
o desenvolvimento da internet, o internauta pode ler textos criados e
armazenados em todo o mundo dentro de sua casa ou em seu escritório. E
esses textos são cada vez mais conectados entre si por meio de
links e
5.1). Assim, o leitor da hipermídia
pode ter acesso a uma ampla gama de textos, facilmente (quando quiser e
tenha acesso à internet: com um computador, um
de navegação na rede:
, mecanismos de
são palavras
-chave
. É por meio delas que os
mecanismos de busca (Google, Yahoo etc.) encontram e ordenam as páginas
tags cloud
é uma
relevantes em determinado
site:
quanto maior a expressão e mais próxima da expressão central, mais relevante.
119
É importante destacar que o conceito de hipermídia com que
trabalhamos diverge de algum modo do de Pierre Lévy (2000: 254). Para ele:
Desenvolvimento do hipertexto, a hipermídia integra
texto com imagens, vídeo e som, geralmente integrados entre
si de forma interativa. Uma enciclopédia em CD-ROM seria um
exemplo clássico de hipermídia.
Esse conceito não faz sentido no escopo de nossa argumentação,
uma vez que:
a) entendemos por texto o os escritos verbais (o que o
faz Pierre Lévy), mas todo discurso que tenha certa
unidade de sentido, podendo ser também visual, sonoro
ou uma hibridização dessas linguagens (ver mais a
respeito no capítulo 4, supra);
b) na raiz da palavra hipermídia, está a expressão “mídia”,
do inglês “media” (meio de comunicação, suporte).
Assim, o que Pierre Lévy designa “hipermídia” no nosso
entendimento faz parte do conceito de “hipertexto”.
Alinhamo-nos a Pollyana Ferrari (2007: 182) nesse sentido, que
define hipermídia como “todo método de transmissão de informações baseada
em computadores, incluindo texto, imagens, vídeo, animação e som”. Assim,
denominamos hipermídia a todo suporte digital que armazena informações
120
sonoras, visuais e verbais (e hibridizações destas) e cujos textos são
acessados por meio de endereços eletrônicos, mecanismos de busca e links.
A hipermídia também se caracteriza pela possibilidade de o leitor se
tornar co-autor dos textos, por meio de algum tipo de interação com o texto
original: selecionando caminhos (no caso do hipertexto), adicionando
comentários e até modificando a redação original (no caso de conteúdos
colaborativos).
Uma decorrência importante da nossa opção é que o hipertexto (e
sua interação por links) é só uma das características dos textos hipermidiáticos.
Talvez seja a mais evidente, mas não a única, dividindo espaço com a
interação por mecanismos de busca, a modificação de conteúdos
colaborativos, a seleção por filtros etc. (ver tipos de interatividade no item
5.2.2.3).
A seguir, observaremos um pouco da história da hipermídia, nas
suas manifestações mais evidentes (o computador e a internet), a fim de
entendermos melhor as potencialidades de exploração textual desse suporte e
como ele chegou a sua atual configuração.
5.1. HISTÓRICO DA HIPERMÍDIA
No início do século XX, os precursores dos atuais computadores não
eram mais que gigantes máquinas mecânicas de fazer cálculos, que usavam
121
cartões perfurados para entrada de dados. Contudo, teóricos como Vannevar
Bush (1890-1974) previam uma revolução na comunicação, num futuro
próximo, baseada em máquinas como essas, na recente invenção da fotografia
e dos microfilmes, bem como na utilização de substâncias químicas conhecidas
(que eram estáveis em dois estados físicos) e em gravação magnéticas. O que
todas essas técnicas têm em comum? Têm por base um sistema binário (ou
digital): furo/cartão, nos sistemas mecânicos de cartões perfurados;
translúcido/opaco, nos sistemas ópticos, como os microfilmes;
magnetizado/não-magnetizado nos sistemas magnéticos e assim por diante.
Todas as tecnologias digitais que emergem durante o século XX
computadores, TVs digitais, MP3 players, celulares digitais, palmtops,
notebooks etc. têm por princípio gerar processamentos complexos a partir
de um código muito simples, de apenas dois dígitos, o código binário. É
justamente essa base extremamente simples que possibilita que, a partir dele,
se façam infinitas combinações: capturando e gerando imagens, sons,
movimentos, fazendo cálculos... e promovendo a navegação hipertextual.
5.1.1. Vannevar Bush: teorias precursoras
Vannevar Bush nasceu em Massachusetts (EUA), em 1890.
Graduado no Tufts College e doutor em engenharia pela Universidade Harvard
e pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Bush é, no início do
122
século XX, um dos primeiros pensadores a teorizar sobre máquinas
informatizadas baseadas em códigos binários.
A teoria de Bush
6
baseia-se na constatação de que, durante toda a
história, e mais evidentemente durante o culo XIX, o desenvolvimento
científico teria alcançado proporções imensas. Por outro lado, os suportes de
comunicação, bem como as formas de organização do saber, não estariam
dando conta de catalogar e tornar acessível à comunidade científica esse
conhecimento. Para ele, o desenvolvimento da ciência estaria sendo limitado
justamente por isso, pela dificuldade de acesso às pesquisas e pela forma
como os textos eram indexados, hierarquicamente, como em uma biblioteca:
[...] a publicação foi ampliada muito além de nossa
habilidade presente de fazer uso real do registro. A totalidade
da experiência humana está se expandido a uma velocidade
prodigiosa, e os recursos que usamos para esgueirar-se pelo
conseqüente labirinto, em direção ao item que importa naquele
instante, são os mesmos que eram usados nos dias das
embarcações a vela. (Apud S
OIDA
, 2006: 22)
Esse modelo de organização por indexação, segundo Bush, dificulta
o trabalho do cientista, pois, a cada novo item a se pesquisar, é necessário
percorrer toda a hierarquia. Por exemplo, em um estudo sobre a “literatura
angolana do século XV”, o pesquisador de repente se depara com o nome de
um prato típico desconhecido. Para descobrir do que se trata, poderá procurar
a informação em estudos antropológicos. Assim, terá que descer toda a
hierarquia de informações desses estudos (antropologia africana
6
Vannevar Bush. As we may think, 1945 (apud S
OIDA
, 2006: 16-35).
123
angolana século XIX culinária) até encontrar o que precisa. Se, então,
descobrir que esse prato é feito com uma matéria-prima vegetal incomum, e
quiser se aprofundar a respeito, teprovavelmente que procurar a informação
em outra hierarquia, talvez na área de biologia botânica... e assim por
diante.
Nossa falta de aptidão para chegar ao registro é,
em grande medida, causada pela artificialidade dos sistemas
de indexação. Quando dados de qualquer informação são
guardados, são arquivados alfabética ou numericamente, e a
informação é encontrada (quando é) rastreando-a, de cima a
baixo, de subcategoria em subcategoria. Ela pode estar em
apenas um lugar, a não ser que duplicatas sejam usadas; é
necessário que haja regras quanto a qual caminho vai localizá-
la, e as regras são pouco práticas. Além disso, após encontrar
um item, é necessário emergir do sistema e re-entrar em um
novo caminho. (Apud S
OIDA
, 2006: 31)
Bush conclui que essa dificuldade ocorre porque nosso cérebro
funciona por associação e não por indexação. Assim, por exemplo, fazemos a
relação literatura angolana prato típico angolano matéria-prima desse
prato, mas não encontraríamos equivalência nos sistemas de busca de
informações.
Por outro lado, nossa memória é instável, ou seja, se não usamos
determinada associação ou informação por certo tempo, corremos o risco de
nos esquecermos dela:
A mente humana [...] opera por associação. Com
um item em seu alcance, ela salta instantaneamente para o
124
próximo que é sugerido pela associação de pensamentos, de
acordo com alguma intrincada teia de trilhas conduzida pelas
células cerebrais. Ela tem outras características, claro; trilhas
que não são freqüentemente percorridas tendem a
desaparecer, os itens não são plenamente permanentes, a
memória é transitória. Apesar disso, a velocidade de ação, o
entrelaçamento intrincado das trilhas, o detalhe das imagens
mentais são mais inspiradores que quaisquer outras coisas na
natureza. (Apud S
OIDA
, 2006: 31)
Assim, Bush dedica boa parte de seus estudos a projetar uma
máquina que possa estabelecer associações permanentes entre
textos/informações, de modo a facilita o seu acesso e, conseqüentemente o
trabalho do cientista. Como resultado, ele propõe um modelo feito a partir das
máquinas de cartões perfurados e do uso de obras microfilmadas, recursos
disponíveis em sua época. Mais tarde, Bush chega a prever a substituição dos
cartões perfurados por sistemas de gravação magnética:
Todos os registros no cartão podem ser feitos por
pontos magnéticos numa placa de aço, se desejado, ao invés
de pontos a serem lidos opticamente, seguindo o esquema
pelo qual Poulsen há tempos inseriu falas numa fita magnética.
Esse método tem a vantagem da simplicidade e da facilidade
de apagamento. (Apud S
OIDA
, 2006: 30)
Resumidamente, a máquina, a que Bush o nome de Memex,
seria uma escrivaninha com duas telas de ampliação óptica dos microfilmes e
um teclado com códigos para acesso às obras. Dentro da escrivaninha, um
sistema mecânico encontraria a obra (ou duas obras, uma em cada tela) em
microfilme, conforme solicitado pelo teclado, e a exporia para o cientista. Bush
propõe o sistema de microfilme porque era uma tecnologia que permitiria o
armazenamento de muitas obras em um pequeno espaço (
Figura 5.2 —
Representação esquemática do Memex por Vannevar Bush.
A grande inovação de Bush, relativa ao Memex, foi o modo de
associação cruzada entre dois ou mais textos. Assim, no nosso exemplo, o
cientista colocaria a página da obra literária angolana em uma te
sobre o prato típico em outra. Apertando alguns botões, ele criaria um código
para poder acessar novamente essa associação sempre que precisar. E
poderia fazer o mesmo entre o texto de culinária e as informações sobre a
planta utilizada no pre
paro do prato, e assim por diante, estabelecendo quantas
associações quiser. O cientista, com o tempo, teria uma trama de conexões
entre os textos. E sempre que acessasse um deles poderia rapidamente ler
outros relacionados. Bush chega a prever a criação e
propõe o sistema de microfilme porque era uma tecnologia que permitiria o
armazenamento de muitas obras em um pequeno espaço (
F
IGURA
Representação esquemática do Memex por Vannevar Bush.
A grande inovação de Bush, relativa ao Memex, foi o modo de
associação cruzada entre dois ou mais textos. Assim, no nosso exemplo, o
cientista colocaria a página da obra literária angolana em uma te
sobre o prato típico em outra. Apertando alguns botões, ele criaria um código
para poder acessar novamente essa associação sempre que precisar. E
poderia fazer o mesmo entre o texto de culinária e as informações sobre a
paro do prato, e assim por diante, estabelecendo quantas
associações quiser. O cientista, com o tempo, teria uma trama de conexões
entre os textos. E sempre que acessasse um deles poderia rapidamente ler
outros relacionados. Bush chega a prever a criação e
comercialização de
125
propõe o sistema de microfilme porque era uma tecnologia que permitiria o
IGURA
5.2).
Representação esquemática do Memex por Vannevar Bush.
A grande inovação de Bush, relativa ao Memex, foi o modo de
associação cruzada entre dois ou mais textos. Assim, no nosso exemplo, o
cientista colocaria a página da obra literária angolana em uma te
la e o texto
sobre o prato típico em outra. Apertando alguns botões, ele criaria um código
para poder acessar novamente essa associação sempre que precisar. E
poderia fazer o mesmo entre o texto de culinária e as informações sobre a
paro do prato, e assim por diante, estabelecendo quantas
associações quiser. O cientista, com o tempo, teria uma trama de conexões
entre os textos. E sempre que acessasse um deles poderia rapidamente ler
comercialização de
126
“enciclopédias de associações”: cartões perfurados com pacotes prontos de
associações entre textos que poderiam ser inseridos no Memex.
Bush é um dos primeiros pensadores a prever uma máquina que,
para além de calcular, pudesse armazenar textos e associá-los, como fazem os
computadores atuais. No Memex aparecem tecnologias de armazenamento
de informação em espaços reduzidos (cartões perfurados, sistemas
magnéticos e microfilmes), o que nos remete às formas contemporâneas, cada
vez mais miniaturizadas: CDs, DVDs, cartões de memória, pendrives etc. O
operador do Memex fica sentado em uma escrivaninha, insere dados por meio
de um teclado e de cartões perfurados, e lê sobre uma tela, o que lembra muito
a relação atual entre o computador e seu usuário. O leitor de textos no Memex
percorre os textos e acessa informações de modo claramente navegativo,
ainda que Bush não o tenha assim denominado.
5.1.2. Douglas Engelbart: novas tecnologias
Com a Segunda Guerra Mundial e, depois, no decorrer da Guerra
Fria, as ciências da informação se aprimoram enormemente, de modo que
surgem os primeiros computadores modernos, nos quais os cartões perfurados
são substituídos por válvulas e resistores elétricos. O pioneiro entre eles foi o
Eniac (Electrical Numerical Integrator and Calculator). Seu projeto,
desenvolvido pelos cientistas norte-americanos John Eckert e John Mauchly,
127
tinha intuitos militares, mas ficou pronto para uso em 1946, quando a guerra
havia terminado. Com seus 5,5 m de altura, ocupava uma área de 180 m
2
. O
usuário inseria informações nele, conectando cabos elétricos e ativando
seqüências de chaves, e os resultados retornavam ao operador por meio de
seqüências de lâmpadas que se acendiam.
Assim que, quando o norte-americano Douglas Engelbart escreveu o
seu Augmenting man’s intellect: a conceptual framework
7
, em 1962, os
computadores eram uma realidade, ainda que fossem muito maiores, mais
caros e mais limitados que os computadores atuais. O trabalho de Engelbart é
de fundamental importância para a história da computação e da hipermídia,
desenvolvendo tecnologias magnéticas de armazenamento, ferramentas de
interação usuário–máquina (os chamados “periféricos”) e um programa
(software) de edição hipertextual.
O objetivo de Engelbart era a ampliação da inteligência humana na
solução de problemas cada vez mais complexos. Seu trabalho é em grande
parte inspirado pelos textos de Vannevar Bush. Sua proposta era contribuir
para a construção de um saber colaborativo e integrado, deixando para as
máquinas a parte do trabalho científico mais mecânica e menos criativa.
Com esse fim, desenvolve vários periféricos, ferramentas com que
os usuários pudessem manipular informações, entrar dados e selecionar
conteúdos, como: monitores, mouses e o seu chord keyset um teclado de 5
botões (um para cada dedo).
7
Douglas Engelbart. Augmenting man’s intellect: a conceptual framework (1962). Apud S
OIDA
, 2006:
36-54.
128
Ele e sua equipe também o responsáveis pelas primeiras
tentativas de conectar computadores à distância (com patrocínio do governo
norte-americano), via linha telefônica. Dentro desse projeto, desenvolve
inclusive programas de troca de e-mails, e de teleconferências. Contudo, os
resultados de Engelbart nessa área não foram satisfatórios, as conexões entre
computadores eram instáveis, não durando mais que alguns minutos antes de
caírem, e o seu projeto de uma rede de computadores foi arquivado.
Por fim, é de Engelbert uma das primeiras ferramentas de edição
hipertextual: o NLS (1968). O NLS permitia indexar conteúdos, conectar áreas
diferentes do texto por meio de links, e a utilização de palavras-chave para
busca posterior. Também possibilitava a edição de tabelas e listas. É o pioneiro
no uso de janelas simultâneas na mesma tela recurso difundido na década
de 1990, pelo sistema Windows (Microsoft), e tão comum na interação com os
computadores hoje. O NLS é implantado, durante e década de 1960, nos
computadores ligados à Arpanet (a precursora da internet; ver item 5.1.4).
Com o fim da Guerra Fria na década de 1980, os recursos estatais
sofreram drásticas reduções. Assim, a empresa de Engelbart foi seriamente
abalada e passou a direcionar seus esforços à produção de computadores
mais baratos, à comercialização ao grande público e ao desenvolvimento de
interfaces mais amigáveis (facilitando a interação com o público leigo). Essa é
uma das causas da popularização dos computadores, a partir da mesma
década e no período posterior.
129
5.1.3. Ted Nelson e o desenvolvimento conceitual da hipermídia
O filósofo e sociólogo norte-americano Theodor Holm Nelson, mais
conhecido como Ted Nelson, é considerado por muitos o “pai da hipermídia”.
Ele é o primeiro a usar os termos “hipermídia”, “virtualidade” e “hipertexto”
associados às tecnologias digitais
8
.
Nascido em 1937, Ted Nelson é portador de déficit de atenção, uma
síndrome de conduta congênita cujos sintomas são, entre outros, dificuldade de
concentração e devaneios freqüentes. Como conseqüência, os seus portadores
costumam ter uma inaptidão em guardar informações, em ler textos longos e
em manter raciocínios gicos. Segundo o próprio Ted Nelson, foi justamente
por causa dessas dificuldades que ele passou a estudar ferramentas que
pudessem ajudá-lo no registro e no resgate das informações. Assim, no início
da década de 1960, ele chegou às embrionárias tecnologias computacionais
hipermidiáticas:
A idéia era simples: criar um sistema que lhe
permitisse criar, revisar, comparar e descartar versões de um
mesmo documento textual, com praticidade. Além disso,
informações correlatas entre documentos diferentes poderiam
ser marcadas e acessadas, permitindo trânsito e consulta
cruzada, num esquema de leitura não-linear. (S
OIDA
, 2006: 56)
Tendo terminado a graduação em Filosofia, na Faculdade de
Swarthmore, iniciou mestrado em Sociologia, pela Universidade de Harvard,
8
Ted
Nelson. Literary Machines. Mindful Press: Califórnia, 1981 (Apud S
OIDA
, 2006: 55-62).
130
em 1960. Em uma monografia desse curso é que surgiu sua primeira proposta
relacionada à navegação ente textos. Imaginou a criação de um sistema em
que duas páginas de texto que apresentassem conexões entre trechos e
palavras pudessem ser justapostas numa tela. Essas conexões seriam
marcadas por meio de linhas, como que costurando os textos.
O projeto das “zappered lists” (como Ted Nelson chamou o seu
sistema) não foi implantado, pois faltava ao filósofo e sociólogo conhecimento
técnico para isso. Em 1965, Ted Nelson escreve o artigo “Complex information
processing: a file structure for the complex, the changing and the
indeterminate”
9
, no qual amplia a proposta desenvolvida durante o seu
mestrado e introduz o termo “hipertexto” para designar sua proposta de “textos
costurados”.
Em busca de um parceiro que dominasse a técnica de programação
e pudesse tornar suas idéias realidades, em meados da cada de 1960, alia-
se a Andries van Dam. A proposta de Andries era criar a primeira ferramenta
de edição hipertextual, o HES (o NLS de Douglas Engelbart seria finalizado
somente anos mais tarde, em 1967; ver item 5.1.2, supra). Contudo,
conhecendo o projeto do HES mais afundo, Ted Nelson se decepciona e o
abandona, considerando-o limitado, muito aquém de sua concepção de
hipertexto.
9
In: Proceedings of the 1965 20th national conference (p. 84-100). ACM Press: Nova York,
1965 (Apud S
OIDA
, 2006: 55-62).
131
Para o autor, as ferramentas de edição de hipertexto deveriam
possibilitar:
a) controle sobre as conexões, de modo a evitar links
quebrados (que remetem a uma página que não existe
mais, ou cujo endereço foi digitado de forma incorreta);
b) links bidirecionais, ou seja: uma vez que um texto A
remeta a um texto B, se possa ir de A para B (como os
links atuais), mas também de B para A;
c) controle das versões de textos citados, conectando o
texto que faz a citação ao trecho citado, de modo a evitar
versões equivocadas ou desatualizadas, e a assegurar os
créditos ao autor (a essa conexão entre o trecho original e
a citação, Ted Nelson dá o nome de “transclusão”);
d) gerenciamento da autoria dos textos, e um sistema que,
por meio de crédito bancário, pagasse os devidos direitos
autorais por cópia, impressão, uso etc.
As ferramentas que temos hoje, segundo ele, teriam levado a um
conceito muito limitado do que seria o hipertexto:
HTML is precisely what we were trying to
PREVENT— ever-breaking links, links going outward only,
132
quotes you can't follow to their origins, no version management,
no rights management.
10
[...] isso muito, muito claramente levou à Internet
de hoje... eles deixaram de lado a transclusão, deixaram de
lado as múltiplas janelas... essa trivialização tornou-se a noção
de hipertexto das pessoas” (apud S
OIDA
, 2006).
Assim, nasce o Xanadu, o projeto de espaço virtual e de edição
hipertextual ao qual Ted Nelson tem se dedicado desde a década de 1980. Seu
modelo contemplaria todas as características enumeradas acima, entre outras.
Em 1988, Ted Nelson se associa a uma forte empresa, a Autodesk
Inc. (que havia enriquecido por conta do AutoCAD, um software amplamente
usado na área de desenho industrial, engenharia e arquitetura). Com a
parceria, o lançamento do Xanadu foi marcado para 1991. Mas o evento não
aconteceu e, em 1992 (ano que coincide com o nascimento da rede WWW), a
Autodesk se desliga do projeto. Até hoje (2008), o Xanadu não se concretizou.
Acredita-se que uma das causas do projeto de Ted Nelson nunca ter
saído do papel foi a própria obsessão dele por um sistema perfeito: o Xanadu
foi reprojetado inúmeras vezes, e sua programação, em algumas ocasiões,
retomada praticamente do zero. Contudo, ainda que o Xanadu continue inédito,
seus princípios inspiraram muitas das tecnologias digitais que conhecemos
10
“HTML [Hypertext Markup Language, linguagem usada na maioria dos sites para formatação
de texto e marcação de links] é exatamente o que estávamos tentando evitar links sempre
quebrados, links unidirecionais, citações que você não pode seguir até a fonte, falta de
gerenciamento de versões e de direitos autorais” (tradução do autor). In:
http://xanadu.com.au/ted/TN/WRITINGS/TCOMPARADIGM/tedCompOneLiners.html.
(Acesso em 27/7/2008).
133
hoje, como o próprio WWW (ver item 5.1.4, infra), a linguagem HTML e o modo
de navegação hipertextual.
5.1.4. A internet e a WWW
Em 1957, no auge da Guerra Fria, os EUA foram surpreendidos com
o lançamento do primeiro satélite artificial no espaço, o Sputnik 1, pela União
Soviética. Era o início da corrida espacial entre o bloco socialista (liderado pela
União Soviética) e o bloco capitalista (liderado pelos EUA), que tem como
ícone principal a chegada do homem à Lua, em 1969.
Em resposta ao lançamento do Sputnik 1, os EUA decidem criar a
Agência de Projetos de Pesquisa Avançada (Arpa), com dois objetivos: ter
também um satélite no espaço e estabelecer uma rede de comunicações de
abrangência nacional. O primeiro objetivo foi alcançado em dezoito meses,
com o lançamento do Explorer 1.
o segundo necessitaria de mais tempo, dadas as limitações
tecnológicas para o trânsito de informações em rede que havia na época. A
comunicação de dados era baseada nos sistemas telefônicos. Assim, a
conexão entre dois pontos de uma rede tinham que ser permanentes. Em outra
palavras, é como se hoje, a cada site que acessasse, o internauta tivesse que
se conectar à rede e, terminada a leitura, desconectar-se dela, para então
poder se conectar a outro. Além da demora no acesso, da baixa velocidade da
134
conexão, essa tecnologia não permitia o acesso simultâneo a sites diferentes,
nem os links entre sites.
Esses entraves começam a ser resolvidos em 1964, quando o
cientista polonês Paul Baran propõe em sua obra On distributed
communications networks (B
ARAN
, 1964) conexões entre as várias redes com
um sistema de troca de dados por “pacotes” (packet-switching). Dessa forma,
os dados não precisariam trafegar de modo contínuo e permanente entre dois
pontos, mas em pacotes de dados, sendo enviados e recebidos ponto por
ponto na rede. Isso permitiria, mesmo com uma conexão telefônica, o acesso
simultâneo a vários pontos da rede (F
IGURA
5.3).
1. Troca de dados baseada
nos sistemas telefônicos
2. Troca de dados
por packet-switching
Figura 5.3 A, B, C e D representam pontos da rede. Inicialmente, a troca de dados
entre eles se dava pelo modelo 1. Nele, a conexão é permanente entre dois pontos da
rede. Assim, a conexão de A, com os pontos B, C e D da rede, é representada pelas
setas contínuas. no sistema por packet-switching, proposto por Paul Baran (modelo
2), os dados trafegam em pacotes, representados pelas pequenas setas coloridas.
Cada cor representa a origem (B, C ou D) dos dados que chegam até A, ou o destino
dos dados que partem desse ponto. Como estão em pacotes, dados de origens
diferentes ou com destinos distintos podem trafegar por uma mesma via sem se
embaralharem.
B
A
C
D
A
B
D
C
135
Assim que, em 1969, depois de cinco anos de desenvolvimento, a
Arpa inaugura os primeiros quatro pontos conectados em rede pelo sistema de
pacotes: era o lançamento da Arpanet. Em 1971, eram quinze pontos da
Arpanet, e, em 1973, uniram-se a elas os dois primeiros pontos internacionais
(na Noruega e na Inglaterra). Esses pontos eram em agências militares, além
de algumas universidades importantes. Em 1981, uniram-se outros três países
à rede: Canadá, Hong-Kong e Austrália.
No mesmo ano, cria-se uma rede paralela, a Computer Science
Network (CSNet), a fim de cobrir todas as universidades americanas, em
especial aquelas que ficaram de fora da Arpanet.
Em 1983, a fim de conferir maior segurança aos seus pontos
militares, o Pentágono separa seus terminais estratégicos do restante da rede.
Assim, surge a Milnet, usada até hoje pela cúpula militar dos EUA. No mesmo
ano, os pontos das universidades ligados à CSNet são transferidos para a
Arpanet. Em oposição às redes locais limitadas (em geral de empresas)
denominadas intranets, a nova Arpanet passa a ser chamada informalmente de
“internet”.
Na recém-nascida internet, não era permitida a exploração
comercial. Até que, em 1993, uma reinterpretação da regulamentação da
Arpanet libera o seu uso comercial nos EUA.
Simultaneamente, em 1992, surge uma interface mais “amigável”,
acessível ao blico comum, com a rede: a WWW (World Wide Web), criada
pelo jovem físico inglês Tim Berners-Lee.
136
A proposta de Berners-Lee era simples: unir a tecnologia
hipertextual disponível (a partir principalmente do NLS e do Xanadu) à internet.
Em outras palavras, a internet é a rede mundial, física, que permite a troca de
dados entre computadores. a WWW (ou Web) é a trama, virtual, de
conexões entre textos da internet, por meio do sistema de hiperlinks (ou
simplesmente links). É a WWW que possibilita as relações hipertextuais
(hipermidiáticas) e a navegação em rede na internet.
Apesar de ser uma idéia simples, a WWW (junto com a liberação da
exploração comercial da internet) era o empurrão que faltava para a
popularização da internet e sua entrada definitiva no cotidiano das pessoas.
5.2. A HIPERMÍDIA HOJE
Como vimos no histórico estabelecido no item anterior (5.1), ainda
que a hipermídia e o hipertexto extrapolem a internet e o computador, é neles
que têm se manifestado de forma mais patente. Se hoje podemos vislumbrar e
definir uma literatura infantil hipermidiática (e hipertextual) é, em grande parte,
graças à difusão dos computadores pessoais e da internet, que:
a) trouxeram as expressões “hipertexto”, “hipermídia” (e
outras correlatas, como “virtualidade” e “cibercultura”) à
tona;
137
b) evidenciaram a forma de leitura e redação hipertextual,
hipermidiática e intercódigos.
Além disso, como vimos pela proposta de Ted Nelson, existem
outras formas de construir hipertextos. Contudo, o modo como entendemos o
hipertexto hoje está impregnado pelas características pelas quais este tem se
apresentado no computador e na internet. Assim, é essa concepção de
hipertexto que influencia com mais evidência o fazer literário contemporâneo. É
por esse motivo que, privilegiamos neste item as manifestações hipermidiáticas
que floresceram no computador e na internet.
Eles estão cada vez mais presentes nas casas, nos escritórios, em
aparelhos veis (telefones celulares, palmtops), nos caixas eletrônicos dos
bancos e também como ferramenta didática em escolas (lousas digitais, salas
de informática, bibliotecas multimídia).
Segundo pesquisa recente do Comitê Gestor da Internet no Brasil
(CGI.BR, 2008: 12), o percentual de brasileiros que são usuários da internet
(usaram nos últimos três meses) aumentou de 24% para 34%, entre 2005 e
2007. Ainda que em comparação ao total da população seja um número
relativamente baixo, o crescimento é evidente (41,6%). Na classe média o
aumento é ainda maior. Segundo a mesma pesquisa, nas famílias que ganham
entre 2 e 3 salários mínimos, cresceu de 15% para 38% a quantidade de
usuários da internet (aumento de 153,3%), e nas com renda de 3 a 5 salários
mínimos, cresceu de 26% para 51% (aumento de 96,2%).
138
Hoje, o computador e a internet o usados na obtenção de
informações, em transações bancárias, para compra e venda, no
armazenamento e transferência de dados, no processamento de dados, na
redação de textos, na elaboração de projetos arquitetônicos, para pintura, para
modelagem 3D, em comunicação pessoal por escrito (e-mail, instant
messenger), sonora (VoIP voice over internet protocol) e audiovisual
(teleconferências), para socialização (chats, comunidades virtuais), para
entretenimento (assistir filmes, jogar, ouvir música) etc.
Essa multiplicidade de funções das mídias digitais (e a cada dia
surgem novos usos) se deve justamente à plasticidade do código binário,
capaz de captar, armazenar, processar e transmitir linguagens verbais, sonoras
e visuais (bem como hibridizações dessas matrizes de linguagem).
Nelly Novaes Coelho (1991: 261), no início da década de 1990,
chamava atenção para essa novidade:
Talvez a maior novidade, que começa a preocupar
os observadores, seja a “revolução da informática” e suas
conquistas mais recentes: videogames, videocassetes e,
principalmente, os microcomputadores, que começam a fazer
parte do nosso cotidiano e cuja manipulação já é acessível não
aos adultos leigos, mas até às crianças. Isso indica que
entramos na era-do-computador, e que uma revolução da
mente acompanhará a revolução da informática.
A autora alerta para a chamada “cultura de mosaico” que poderia
acompanhar essa nova tecnologia. Nas suas bases estariam a visualidade e o
fragmentarismo que tenderiam a levar à superficialidade e à inércia mental.
139
Contudo, essas novas mídias não são perniciosas por si. Desde que
as conheçamos, evitando suas armadilhas, elas podem ser muito úteis e
interessantes. Além disso, são uma realidade para a qual o adianta virarmos
as costas. Assim, Nelly Novaes Coelho complementa: “Em lugar de lutarmos
contra esse novo instrumento da civilização e do progresso, urge que nos
preparemos para dominá-lo” (C
OELHO
, 1991: 261).
Mesmo porque as novas mídias não são apenas um amontoado de
fragmentos desconexos. Ao contrário, por meio de links é possível interligar os
textos e, por meio do uso experiente das ferramentas de busca, encontrar a
informação desejada. Vale lembrar aqui o histórico do item anterior (5.1), que
mostra como a hipermídia e o hipertexto nasceram com o objetivo de organizar
o conhecimento e facilitar a sua recuperação. Nesse sentido, outras mídias,
como a televisão, são muito mais fragmentadas (conforme item 4.2.2, supra).
O computador e a internet permitem o exercício complementar de
várias linguagens (verbais, visuais, sonoras e suas hibridizações), trazendo
alternativas para o leitor com mais facilidade em uma ou outra linguagem e
possibilitando semioses complexas e múltiplas. Além disso, exige e exercita a
capacidade de selecionar/procurar informações e conteúdos: dentro da infinita
gama de informações oferecidas é preciso saber filtrar/encontrar aquela
desejada. Tal habilidade é fundamental na sociedade contemporânea, em que
nossa audiência é a todo tempo disputada pelas diversas mídias (letreiros, e-
mails, programas de TV e rádio, outdoors, propagandas em revista, carros de
som etc.).
140
5.2.1. Interfaces e modelos do espaço virtual
Uma das formas pelas quais a hipermídia tem marcado a literatura
infantil é pela apropriação de interfaces e de outros modelos do computador e
da internet. A seguir detalharemos algumas dessas principais configurações
atuais do espaço virtual, em especial aquelas mais populares, mais passíveis
de serem apropriadas pelo fazer literário. O objetivo aqui é começar a propor
possíveis modos de influência da hipermídia sobre a literatura para crianças.
5.2.1.1.
B
ATE
-
PAPOS
(
CHATS
)
Os bate-papos são ambientes virtuais de socialização. Geralmente
são organizados por temática ou por público (por idade ou por interesse),
pretendendo assim reunir pessoas com características ou gostos em comum.
As pessoas que os freqüentam geralmente não se conhecem pessoalmente. É
como um bar ou uma festa virtual, que se freqüenta para passar o tempo e
para conhecer outras pessoas. Uma vez que duas pessoas se conheçam e se
identifiquem, em geral, buscam outras formas de se encontrar e se comunicar:
por e-mail, redes de relacionamento ou por instant messengers. As pessoas
que entram nas salas virtuais costumam se identificar por um apelido. Uma vez
dentro delas, podem ler as conversas públicas e visualizar a lista de pessoas
que também estão nesses ambientes. A partir daí podem enviar mensagens
141
para outras pessoas e recebê-las. As mensagens podem ser públicas (todos
lêem) ou particulares (apenas a pessoa a que a mensagem se dirige lê). A
comunicação é feita por escrito e por emoticons
11
e, em menor grau, por troca
de imagens e sons.
Não encontramos nenhuma obra que explore esse ambiente.
Acreditamos que isso ocorre em parte porque o bate-papo é um meio que teve
seu auge na década de 1990, no início da internet no Brasil, e hoje é muito
menos utilizado.
Ainda que atualmente seja uma ferramenta de interesse menor, seu
formato (com a identificação do internauta por um apelido e o predomínio da
comunicação escrita) e a linguagem desenvolvida nesses ambientes
(abreviada e com os emoticons) influenciaram a configuração de outros
ambientes virtuais de socialização, como a comunicação por instant
messengers, as discussões de fóruns e os comentários de blogs.
5.2.1.2.
B
LOGS
(
WEBLOGS
)
Se os bate-papos o pouco utilizados hoje, os blogs, ao contrário,
são a sensação do momento. A palavra blog é uma abreviação de weblog
(diário da Web) Os blogs são sites em que seu autor publica textos
11
Os emoticons, também conhecidos como “carinhas”, são um código que utiliza letras e outros sinais do
teclado para representar sentimentos e expressões. Exemplos: :-) (alegria) , :-( (tristeza), ;-) (piscada), :-#
(boca fechada), :-P (língua para fora), :-O (surpresa); [] (abraço), :-* (beijo).
142
informativos, críticos, opinativos etc. Esses textos incluem imagens, vídeos,
arquivos de som etc. Hoje existem à disposição do internauta modelos
personalizáveis que o ajudam a ter seu próprio blog. Com eles é muito simples
criar as páginas e publicar os textos (conhecidos como posts). É um recurso
muito conhecido e explorado pelo público jovem. Com um blog, qualquer
internauta pode se tornar autor, publicando suas idéias para que outras
pessoas com interesses em comum as leiam.
E os leitores de um blog também podem se tornar seus co-autores.
Eles podem escrever comentários para os textos (posts), que ficarão
disponíveis para outros freqüentadores do blog ler. Esse sistema lembra, de
alguma forma, as notas marginais dos códices medievais, em que os poucos
leitores escreviam comentários nas margens dos livros (ver Figura 3.12, supra).
Os blogs incluem ferramentas de busca em que o leitor consegue
procurar posts sobre um assunto, ou com uma palavra-chave, ou ainda de uma
data específica.
Os blogs também podem ter links de sites relacionados, entre outras
ferramentas que favorecem a leitura navegativa. Os próprios posts costumam
ser curtos e podem conter links, promovendo esse tipo de relação com o texto
(ver mais sobre o leitor navegador e a leitura navegativa no item 4.2.3, supra).
Alguns autores de literatura infantil/juvenil têm aproveitado a
linguagem e a interface dos blogs para criar textos literários: O blog do sapo
Frog (C
ORREIA
, 2007), Todos contra D@nte (D
ILL
, 2008) e O blog da Ritoca
(C
ARRADINI
, 2006) são alguns exemplos.
143
5.2.1.3.
E-
MAIL
(
CORREIO ELETRÔNICO
)
O e-mail é um dos recursos mais antigos da internet e até hoje é
amplamente utilizado. O seu modelo deriva das tradicionais cartas. As pessoas
que se comunicam por meio dele possuem um endereço eletrônico. Assim,
para se enviar uma mensagem para alguém, coloca-se no lugar indicado esse
endereço. A mensagem escrita (e também, de forma bem menos recorrente,
em vídeo ou som) é transmitida e fica disponível para o receptor ler em uma
caixa postal virtual (ou é baixada em um programa de e-mails), acessada
mediante autenticação por senha.
Este recurso é muito explorado na literatura para crianças e
adolescentes. Alguns exemplos na literatura nacional são: Entre e-mails (P
INA
,
2006), PS beijei (Falcão, 2004) e 9 coisas e-mail que eu odeio em você
(K
UPSTAS
, 2001).
5.2.1.4.
I
NSTANT MESSENGER
(
COMUNICADOR INSTANTÂNEO
)
Os instant messengers são uma forma de as pessoas se
comunicarem simultânea e instantaneamente por meio do computador. Entre
os instant messengers mais comuns hoje estão o MSN, o GoogleTalk e o
144
Skype (este último também com recurso VoIP
12
). Para usar esse recurso, os
internautas precisam baixar um programa e criar uma conta (com nome e
senha de acesso). Para conversar com outra pessoa é preciso adicionar o
nome de acesso dela em sua lista de contatos (a outra pessoa também precisa
ter uma conta e o programa em seu computador). Assim, quando ambas
estiverem conectadas ao programa, uma “enxerga”
13
a outra, podendo trocar
mensagens simultâneas, em geral por escrito, mas também sonoras e por
vídeo. Nos messengers é possível também compartilhar arquivos e trocar
endereços de sites.
Em nossa pesquisa não encontramos uma exploração desse recurso
na literatura para crianças, contudo é uma ferramenta muito comum, usada por
adolescentes e jovens, e passível de apropriações literárias.
5.2.1.5.
R
EDES DE RELACIONAMENTO
As redes de relacionamento permitem que os internautas construam
perfis com suas características pessoais e profissionais, interesses e gostos. A
mais conhecida atualmente é o Orkut.
Como nos instant messengers, os usuários cadastram em seu perfil,
os contatos de amigos e colegas, mas, nessas redes, o objetivo principal não é
12
VoIP: sistema que possibilita ao usuário fazer e receber chamadas telefônicas no computador.
13
Enxergar, nesse caso, é um jargão da internet para dizer que uma pessoa é notificada que a outra está
on-line.
145
a comunicação instantânea e simultânea e sim o compartilhamento de gostos,
amigos, fotos, vídeos etc. Dentro delas, é comum haver comunidades virtuais.
Nas comunidades, pessoas com um interesse específico em comum se
cadastram, se conhecem e trocam informações.
O ambiente das comunidades virtuais aparece no livro Todos contra
D@nte, de Luís Dill (2008). O recurso é usado pelo autor, para mostrar a
agressividade dos alunos contra um colega, o Dante. Em uma comunidade
chamada “Eu sacaneio o Dante”, os alunos ofendem levianamente o colega, a
maioria de forma anônima. É a única obra, das que encontramos em nossa
pesquisa, que explora essa ferramenta, muito usada pelos jovens.
É interessante notar que, no exemplo, o ambiente das comunidades
virtuais não é usado como mero recurso formal, estético, mas também para
trazer à tona a questão do anonimato das relações virtuais, e da conseqüente
utilização desses meios para fins violentos e criminosos (ver análise completa
de Todos contra D@nte no item 6.4, infra).
5.2.1.6.
C
ONTEÚDOS COLABORATIVOS
Os conteúdos colaborativos parecem ser a mais recente revolução
da hipermídia. Os sites de conteúdos colaborativos mais conhecidos são os do
grupo Wiki (Wikipedia, Wikiquotes, Wikinews, Wiktionary, Wikisource etc.). São
enciclopédias, dicionários, notícias, relações de fontes bibliográficas etc.
146
construídos de forma colaborativa. Centenas de milhares de autores podem
incluir tópicos novos e modificar tópicos escritos por terceiros. Em tese,
qualquer internauta pode se tornar autor e editor desses conteúdos, de forma
que eles se expandem e se ramificam (interconectam) rapidamente.
Contudo, as informações do tipo Wiki são de baixa confiabilidade.
Assim, existem algumas tentativas de controle maior sobre os autores, por
meio de cadastros de pessoas especializadas nas diversas áreas do saber. No
entanto, o grupo Wiki se mantém hegemônico nesse segmento.
A tendência dos conteúdos colaborativos é o forte, que os sites
que utilizam esse princípio são conhecidos hoje como Web 2.0. Ainda que o
termo seja criticado por muitos teóricos, como Tim Berners Lee
14
(já que não se
trata de uma mudança tecnológica, mas apenas de um novo uso da mesma
tecnologia), ele é cada vez mais comum.
Algumas experiências literárias de conteúdos colaborativos estão no
site Ciber&Poemas, de Sérgio Capparelli
15
(ver análise no item 6.2, infra). Nele,
o leitor-navegador pode completar alguns dos poemas e publicar suas versões
para outros lerem. Saindo do campo da literatura infantil para o da literatura
geral, é também uma mostra dessa tendência O livro de todos: o mistério do
texto roubado
16
, em que 173 co-autores contribuíram para o desenvolvimento
da história. As contribuições eram diariamente moderadas, organizadas e
editadas por uma comissão de escritores, que aproveitava as várias idéias para
14
Scott Laningham. DeveloperWorks Interviews: Tim Berners-Lee. Disponível em
www.ibm.com/developerworks/podcast/dwi/cm-int082206txt.html (Acesso em 15/8/2008).
15
Disponível em www.ciberpoesia.com.br (Acesso em 15/8/2008).
16
Disponível em http://www.livrodetodos.com.br/ (Acesso em 15/08/2008).
147
compor as versões finais de cada trecho. A iniciativa foi promovida pela
organização da 20ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo.
5.2.1.7.
M
ECANISMOS DE BUSCA
Existem sites especializados em buscar informações na Web, sendo
que o mais usado no Brasil é o Google. Com a digitação de algumas palavras-
chave no campo específico e/ou com seleção de opções preestabelecidas (no
caso de uma busca avançada), esses sites filtram os conteúdos que têm maior
probabilidade de responder às necessidades do internauta. Além dos sites
específicos, os mecanismos de busca são usados também em vários
ambientes da rede, como: lojas virtuais, blogs, enciclopédias e dicionários
virtuais, portais de notícia e acervos eletrônicos.
A proficiência no uso dos mecanismos de busca é hoje uma
habilidade fundamental do bom navegador da Web. Os mecanismos de busca
são como instrumentos de navegação. É por meio do uso adequado deles, que
o navegador não se perde no vasto oceano da internet.
Na nossa pesquisa encontramos a apropriação literária dos
mecanismos de busca apenas em textos estrangeiros. Num deles, o Fairy
Tales
17
, pela seleção de algumas opções (de características das personagens,
17
Disponível em http://wetellstories.co.uk/stories/ (acesso em 15/10/2008).
148
de desenrolar das ações etc.), o computador processa um conto de fadas que
responda aos filtros preestabelecidos.
5.2.2. Traços definidores da hipermídia
Ainda que haja sim uma forte influência de manifestações
específicas da hipermídia sobre a literatura infantil (como as que vimos no item
5.2.1), a nosso ver estas relações são mais efêmeras, fruto em grande parte da
onda de moda que as novas tecnológicas da comunicação têm provocado. Em
outras palavras, o interesse editorial em conquistar o leitor pelo visual do
computador e da internet é, a nosso ver, em grande parte decorrente dessa
moda digital. A partir do momento em que a hipermídia deixar de ser
“novidade”, provavelmente esse tipo de influência mais superficial, relativo a
interfaces e modelos específicos, se reduzirá.
Contudo, as novas mídias estão deixando outras marcas sobre a
literatura infantil (e sobre toda a textualidade) que, para nós, são duradouras,
perenes. São marcas advindas das características profundas da linguagem
hipermidiática, das novas relações propiciadas pela hipermídia entre o leitor-
navegador e os textos hipermidiáticos. Relações estas que têm mudado
inclusive as concepções de leitor, leitura, texto e, conseqüentemente, também
de literatura (conforme demonstrado no capítulo 4, supra).
149
Destacamos, a seguir, alguns dos principais traços definidores da
linguagem hipermidiática que acreditamos que permanecerão como marcas
definitivas no fazer textual e nas práxis de leitura, mesmo depois de passada a
efervescência da comunicação digital.
5.2.2.1.
D
IÁLOGO INTERCÓDIGOS
(
MULTIPLICIDADE DE LINGUAGENS
)
O diálogo intercódigos é a inter-relação entre os vários códigos
(visuais, sonoros e visuais) que a hipermídia é capaz de propiciar. Essa
característica da hipermídia decorre da plasticidade do código binário que,
como vimos anteriormente, pode armazenar, processar e reproduzir textos em
vários códigos (verbais, visuais e sonoros). É por esse motivo que nos suportes
computacionais podemos encontrar e ler: textos verbais visuais (escrita), textos
verbais sonoros (fala), textos não-verbais visuais estáticos (imagens), textos
não-verbais visuais dinâmicos (animações), textos não-verbais sonoros
(sonoridade/musicalidade) etc. E também códigos distintos em diálogo:
animações sonorizadas, escritos animados e/ou sonorizados, textos não-
verbais complementados por textos verbais etc.
Desse modo, para uma leitura proficiente na hipermídia é necessária
habilidade do leitor nos vários códigos e em cruzá-los, que a compreensão
mais plena do significado dos textos apresentados nesses novos suportes
muitas vezes se dá pelo produto (pela inter-relação) entre as várias linguagens:
150
[É] a hibridização de linguagens, processos
sígnicos, códigos e mídias que a hipermídia aciona e,
conseqüentemente, a mistura de sentidos receptores, a
sensorialidade global, sinestesia reverberante que ela é capaz
de produzir, na medida mesma em que o receptor ou leitor
imersivo interage com ela, cooperando na sua realização
(S
ANTAELLA
, 2004: 47-48).
Tal conceito converge, de certo modo, com uma das características
fundamentais do “objeto-novo” (ver item 2.2.2): a concentração de linguagens.
Assim, tanto no “objeto-novo”, quanto nos textos intercódigos é essencial o
diálogo o cruzamento de códigos e linguagens.
Contudo, a proposta de Lucia Pimentel Góes, ainda que contemple
as múltiplas linguagens e traga considerações sobre os códigos sonoros,
concentra-se no diálogo verbal escrito e não-verbal visual. Isso porque sua
pesquisa enfoca prioritariamente a literatura das décadas de 1980 e 1990,
quando a influência da hipermídia ainda não era evidente.
Como vimos anteriormente, os livros pós-boom da literatura infantil
são influenciados pelas mídias audiovisuais, daí a preocupação da autora com
o diálogo entre o verbal e o visual não-verbal, que pode ser percebida no
trecho a seguir: “Situamos o livro de literatura infantil e juvenil entre duas
balizas: o texto só-imagem, de um lado, e, de outro, o texto só-verbal. Entre
ambas um rico e variado acervo de obras que concentram várias
linguagens” (G
ÓES
, 2003: 19).
151
em séculos passados, autores exploraram a visualidade dos
textos. No capítulo XXVI das Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado
de Assis, por exemplo, encontramos:
Eu deixava-me estar ao canto da mesa, a escrever
desvairadamente num pedaço de papel, com uma ponta de
lápis; traçava uma palavra, uma frase, um verso, um nariz, um
triângulo, e repetia-os muitas vezes, sem ordem, ao acaso,
assim:
arma virumque cano
A
Arma virumque cano
arma virumque cano
arma virumque
arma virumque cano
virumque
No trecho, o narrador reproduz visualmente o modo como escrevia
despretensiosamente sobre o papel. Contudo, essa exploração visual era
exceção. Foi na metade do século XX, com a poesia concreta, que a
multiplicidade de linguagens entra de fato na literatura. Nela, para além do
verbal, os textos são visual e sonoramente tratados (Figura 5.4).
152
Ver navios
v e m n a v i o
v a i n a v i o
v i r n a v i o
v e r n a v i o
v e r n ã o v e r
v i r n ã o v i r
v i r n ã o v e r
v e r n ã o v i r
v e r n a v i o s
In: P
OESIA CONTEMPORÂNEA
, 1997: 10.
Pluvial
In: P
OESIA CONTEMPORÂNEA
, 1997: 14.
Figura 5.4 Ver navios (Haroldo de Campos, 1958) e Pluvial (Augusto de Campos,
1959) são exemplo da preocupação com a visualidade das poesias concretistas. No
primeiro, os versos desenham o contorno de uma embarcação. No segundo, “pluvial”
aparece na vertical, lembrando a queda da chuva; enquanto “fluvial” está na horizontal,
remetendo à correnteza. Também se nota uma preocupação com a sonoridade, pela
aliteração do “v”, no primeiro, lembrando o som do vento que move o navio; e pela
repetição do “plu" e do “flu”, cujos sons resgatam, respectivamente, o som da chuva
que cai na água e do rio correndo.
E na vídeo-poesia, tipo de poema criado pelo movimento concretista,
os textos ganham animação e sons (F
IGURA
5.5). Conforme explica a poeta e
artista plástica Leonora de Barros, em declaração sobre a exposição “Arte em
Videotexto” (1982-1983), a computação teve papel fundamental nesse
processo: “Lá caiu a ficha de que podíamos realizar todo o sonho da poesia
concreta. Com a multimídia, a fronteira entre poesia e artes plásticas ficou
tênue, criando poetas multifacetados e plurais” (apud A
NDRADE
, 2006).
153
Figura 5.5 Seqüência do vídeo-poema Poema-bomba (Augusto de Campos, 1983-
1997). Nele, as letras b, o, m, a “explodem” do centro da tela, enquanto se escuta a
palavra bomba”, repetidas vezes e de maneira sobreposta. Disponível em:
www2.uol.com.br/augustodecampos (acesso em: 17/8/2008).
Voltando para o campo da literatura para crianças no Brasil, em
Monteiro Lobato encontramos alguma exploração visual (ver item 2.1.2.2).
Contudo, o grande boom da exploração visual das obras infantis no Brasil se
inicia mesmo na década de 1980. Como vimos anteriormente, sob influência
das mídias audiovisuais e em decorrência do aprimoramento das técnicas de
impressão, a literatura infantil ganha cores e ilustrações, as quais assumem
diversas funções literárias (narrativa, descritiva, simbólica, lúdica etc.; ver mais
no item 2.2.1). A obra XXII!!: 22 brincadeiras de linhas e letras, de Leo Cunha
(2003) é exemplo, entre tantos outros, da utilização do aproveitamento literário
do recurso visual (Figura 5.6).
154
Figura 5.6 Nesse poema de XXII!!: 22 brincadeiras de linhas e letras, Leo Cunha
passa a expressão “tem pouco tempo” dentro da ampulheta.
Tendo se firmado sob influência do audiovisual, o diálogo
intercódigos prossegue e se amplia na hipermídia. Isso acontece em
decorrência da plasticidade do sistema digital binário que consegue “traduzir”
múltiplas linguagens sob um mesmo código. Esse, aliás, é o motivo por trás do
que tem sido chamado de “convergência das mídias”: jornal, tevê, telefone,
agenda, vídeo, música, livro etc., num mesmo suporte digital (o computador, o
celular, o palmtop etc.).
Percebe-se, inclusive, uma retomada na hipermídia da escrita, que
nos audiovisuais tinham ficado em segundo plano (Figura 5.7). Esse resgate da
escrita nos suportes digitais se porque, diferentemente da leitura movente
155
(típica dos audiovisuais, em que o texto passa pelo leitor-espectador), na leitura
navegativa o leitor-navegador tem mais controle, pela interação, sobre o ritmo
da leitura. Na leitura movente, o texto passa pelo leitor sem possibilidade deste
interferir no ritmo da exibição. na leitura hipermidiática, para passar de um
a outro, é necessária a intervenção do leitor: clicar ou pressionar a tecla
“enter” (sobre a leitura navegativa, ver item 4.2.3, supra; sobre nós e nexos, ver
item 5.2.2.2, infra).
Figura 5.7 Nas obras televisivas e cinematográficas, o verbal escrito se limita a
chamadas, legendas e outras pequenas participações (imagens superiores). Na
hipermídia, o verbal escrito se reequilibra com o visual (imagem inferior).
156
5.2.2.2.
H
IPERTEXTUALIDADE
(
MULTIPLICIDADE DE CAMINHOS
)
Além de serem intercódigos, os textos hipermidiáticos se
caracterizam por sua descentralização e alinearidade, uma vez que os trechos
de texto (em ltiplos digos) são conectados entre si por meios de nexos
(que promove a leitura não-linear), e o leitor pode principiar a leitura por
qualquer (e, às vezes, por pontos diferentes dentro do nó,
descentralização).
O é um trecho de texto, que pode ou não ter sentido completo, e
cuja significação se amplia (ou se completa) pela navegação, pela correlação
com outros nós (ao qual o anterior está conectado por meio dos nexos). Ele
pode ser um bloco de vídeo, de som, de escrita, uma imagem ou seqüência de
imagens etc. Graficamente poderíamos representar um nó como o ponto que
fica no cruzamento entre os fios de uma rede.
Os nexos (ou conexões), por sua vez, são os trechos de fio entre um
ponto e outro da rede. Eles são ativados pela interação do usuário, geralmente
pelo clique do mouse em uma palavra, expressão, imagem... enfim, em um
hiperlink, um elemento que pode transportar o usuário para outra área da rede
(F
IGURA
5.8).
157
Figura 5.8 — Esquematicamente, os nós podem ser representados como os pontos de
cruzamento entre os fios da Web. Nesse modelo, cada fio que liga um ponto a outro,
seria um nexo ou conexão.
A essa forma de leitura navegativa, de nós conectados por meio de
nexos, característica da hipermídia, dá-se o nome de hipertextualidade.
Os sistemas de remissão (notas de rodapé), os índices, os sumários,
o diálogo verbal-visual e os quadros, tabelas, e gráficos ligados a um texto
principal dos suportes impressos são recursos de algum modo hipertextuais,
que conectam trechos de textos (às vezes em códigos ou gêneros
diferentes) permitindo, assim, uma leitura quase-navegativa. Por meio deles, os
leitores saem por um tempo do texto principal (ou acessam diretamente um
trecho específico do texto principal). Contudo, como a linearidade do texto é em
geral mantida na leitura, e como esses outros textos (notas de rodapé,
quadros, tabelas e gráficos) são dependentes ao texto principal, não se pode
dizer que tais recursos promovam uma leitura navegativa, hipertextual,
propriamente dita. Como dissemos anteriormente, esta se caracteriza pela falta
Ab
Ab
Ab
158
de linearidade da leitura, e também por certo equilíbrio entre os nexos
(ausência de texto principal).
Uma característica interessante do hipertexto na internet é que cada
pode ter um autor diferente. Assim, o autor de uma página pode remeter
(criar um hiperlink) a um lugar da internet elaborado por outrem. Desse modo, a
leitura de textos navegativos na internet tende a fugir ao controle dos autores
individuais. Não é possível prever se sua obra hipertextual será conectada à
outra, de um terceiro, e a qual parte de sua criação esse link remeterá.
Outra característica importante do hipertexto é que cada pode
pertencer a um gênero diferente, assim transita-se entre um deo, um
infográfico, um artigo assinado, uma carta (ou e-mail), uma imagem etc. com
agilidade. Desse modo, o significado se amplia pelo confrontamento entre
esses vários gêneros. É por isso que dizemos que, além de uma leitura
intercódigos, a hipermídia favorece o diálogo intergêneros.
Como se pode perceber, a hipermídia é um espaço de textos
potenciais que se completam (de modo efêmero) pela intervenção do
usuário. Lucia Santaella chama isso de “a capacidade [da hipermídia] de
armazenar informações e, por meio da interação do receptor, transmutar-se em
incontáveis versões virtuais” (2004: 49).
Assim, na hipermídia, a narrativa não segue uma seqüência linear
(estado inicial, ação transformadora e estado final). A leitura muitas vezes pode
começar em diversos pontos da tela, além disso, sempre a possibilidade de
159
se trilhar para um ou outro lado, de acordo com o interesse e se deter mais ou
menos em determinados nós.
O hipertexto pode ser visto também como uma intertextualidade
dentro do próprio texto. Muitas das referências que tradicionalmente deveriam
ser buscadas em outros textos encontram-se dentro da própria obra à distância
de um clique. Ou, como diria Simone Assumpção (2004: 234-235):
A transformação do texto artístico em um ou vários
nós aciona elementos antes extratextuais que, explicitados,
concretizados e colocados ao lado do poema, têm seu status
redimensionado. O extratextual deixa de sê-lo, passando a
compor uma nova estrutura relacional, na qual se encontram
interligados elementos artísticos e não-artísticos.
[...]
A leitura passa a ser acompanhada de um rol de
informações do qual o texto artístico originalmente era
destituído. Com isso, as expectativas do leitor são mediadas
por um conjunto de dados não-artísticos, como é o caso da
digitalização da imagem ou da gravação da locução do poema.
Aqui reside outra aproximação e uma diferenciação com o objeto-
novo proposto por Lúcia Pimentel Góes. Ambos têm como características o
diálogo entre textos: no objeto-novo, a intertextualidade, e, na hipermídia, a
hipertextualidade. A diferença entre ambos é que, enquanto a intertextualidade
é uma referência extratextual (que se encontra fora do texto lido), no hipertexto,
as referências encontram-se dentro da própria mídia, sendo acessadas por
meio dos nexos.
160
Ainda sobre a hipertextualidade das obras hipermidiáticas é
interessante notar que, na navegação, os nexos estabelecem com o leitor uma
relação indicial ou icônica: icônica, quando o leitor tiver segurança do que virá
adiante, quando ele clicar no hiperlink; indicial, quando o leitor tiver que supor,
por meio da palavra-chave ou imagem que lhe é apresentada como link, aonde
aquela conexão o levará.
Existem muitos exemplos de influência da hipertextualidade na
literatura para crianças hoje. Nos impressos temos, por exemplo:
a) obras em que notas marginais e quadros explicativos
Em Que história é essa? 2, de Flávio de Souza (2000),
os textos principais são completados por quadros com
charadas, enigmas e curiosidades para o leitor. Já em
Todos contra D@nte, de Luís Dill (2008), quadros
detalham e explicam trechos específicos da obra (ver
análise de Todos contra D@nte no item 6.2).
b) obras em que há diálogos intercódigos e intergêneros
Em De fora da arca, de Ana Maria Machado (2004), além
da narrativa principal, partitura e letra de música, bem
como eu texto explicativo sobre a história dessa música.
Em 17 é tov, de Tatiana Belinky (2005), a narrativa
ficcional divide espaço com fotografias documentais e
com informações históricas.
161
c) obras com estrutura labiríntica, não-linear,
descentralizada como em Zubair e os labirintos, de
Roger Mello (2007), e em Todos contra D@nte, de Luís
Dill (2008), em que a leitura pode ser feita de diversas
formas, organizando blocos de texto (ver análise de
Todos contra D@nte no item 6.2).
Enfim, em todo texto em que uma quebra evidente da linearidade
da leitura, tornando-a navegativa, há marca de hipertextualidade.
Nas obras para computador, a característica hipertextual costuma
aparecer de forma mais clara, uma vez que foi esse suporte que evidenciou
essa forma de texto e de leitura. Ela existe nos textos em que uma
navegação hipertextual, uma narrativa navegativa entre nós e nexos, como na
Interminável Chapeuzinho
18
, de Angela Lago, e os outros textos do site da
autora.
5.2.2.3.
I
NTERATIVIDADE
(
ESTREITAMENTO DA RELAÇÃO AUTOR
-
LEITOR
)
A interatividade é uma das características fundamentais do texto
hipermidiático. No computador, por meio do teclado, do mouse, de um joystick,
18
Disponível em www.angela-lago.com.br (acesso em 27/8/2008).
162
de uma webcam etc., o leitor-navegador interfere nos caminhos e na forma da
sua leitura e no próprio hipertexto.
A palavra “interação”, contudo, designa de forma ampla a relação
entre dois ou mais elementos. Assim, na área da comunicação costuma-se
usá-la para qualquer troca entre receptor e mídia, entre mídia e emissor, entre
emissor e receptor (mediada ou não), enfim, onde houver comunicação. A
expressão é também comum no campo da Física, quanto à ação conjunta de
duas ou mais forças sobre um ou mais corpos.
É importante, então, esclarecer as características da interação à
qual nos referimos. Francis Kretz (1985, Apud S
ANTAELLA
, 2004: 155) oferece
uma classificação muito útil, na qual distingue seis tipos de interação leitor-
texto:
a) Interatividade zero refere-se a interações entre o texto
e o leitor, às reflexões que os enunciados provocam na
mente do enunciatário. Por isso, preferimos a expressão
“interatividade de imaginário”, uma vez que “interatividade
zero” pode levar ao conceito equivocado que em obras
lineares não há interação. Esse tipo de interação é
característico das obras acompanhadas linearmente, do
começo ao fim, como, em geral, acontece com os livros,
com os filmes, com apresentações musicais e teatrais
163
tradicionais. Nelas, o leitor não interfere diretamente na
obra ou na exibição.
b) Interatividade linear acontece quando existem saltos,
avanços e recuos na leitura, como em um CD ou DVD
(em que se escolhem as faixas), ou mesmo em um livro
em que o leitor volta algumas páginas para compreender
melhor um trecho lido, ou salta capítulos que não lhe
interessam.
c) Interatividade arborescente aparece nos textos em que
escolhas, caminhos a serem selecionados. A leitura
hipertextual se baseia nesse tipo de interação. Por meio
dos links, o leitor navega pelo texto, escolhe se quer
saber mais sobre este ou aquele assunto, se prefere este
ou aquele caminho. Chamamos esse tipo de interação
também de “reticular”, ou “de seleção”. Um exemplo de
texto que prioriza a interatividade arborescente é a
Interminável Chapeuzinho (Angela Lago)
19
. Nessa história
um ponto de saída comum (a cena da Chapeuzinho
conversando com a mãe; ver análise no item 6.2). A partir
daí o leitor opta por caminhos, clicando nas alternativas
que lhe aparecem na tela. Um modelo de interatividade
arborescente, no suporte impresso são os livros-jogos que
ficaram famosos na década de 1990. Inspirados nos role-
19
Disponível em www.angela-lago.com.br (acesso em 27/8/2008).
164
playing games (RPGs), no fim de cada trecho de texto, o
leitor-jogador decidia por um dos caminhos possíveis,
seguindo a leitura na página indicada para aquela opção.
d) Interatividade lingüística ocorre nos textos em que o
leitor seleciona informações ou textos por meio de
formulários ou palavras-chave. É o caso dos sites de
busca (ex.: Google) ou das pesquisas em bibliotecas e
livrarias virtuais. O texto Fairy tales
20
explora
literariamente esse tipo de interação. Nele, pelo
preenchimento de um formulário, o leitor “personaliza” o
conto de fadas que irá ler.
e) Interatividade de criação — nesse tipo de interação o
leitor/usuário pode interferir no conteúdo. É o caso dos
comentários deixados em blogs ou dos conteúdos
colaborativos (ex.: Wikipédia). No site de Sérgio
Capparelli
21
(ver análise no item 6.2, infra), o leitor pode
completar versos e rimas de vários poemas infantis. Esse
é um exemplo característico de interação de criação.
f) Interatividade de comando contínuo caracteriza-se pela
modificação, deslocamento de objetos visuais ou sonoros
mediante manipulação, como acontece nos videogames.
No ciberpoema “Chá”, de Sérgio Capparelli e Anna
20
Disponível em http://wetellstories.co.uk/stories/week3 (acesso em 15/10/2008).
21
www.capparelli.com.br/ (acesso em 25/8/2008).
165
Cláudia Gruszynsk (ver análise no item 6.2, infra), o leitor
pode colocar diversas imagens dentro de uma xícara,
arrastando-a com o mouse. É um uso típico da
interatividade de comando contínuo, na literatura para
crianças.
É importante destacar que essa divisão é apenas teórica, de modo
que é possível encontrar, num mesmo texto, simultaneamente vários dessas
formas de interação entre leitor e texto.
Dos tipos elencados na classificação são característicos da
hipermídia: a interatividade arborescente (típica do hipertexto), a interatividade
lingüística (em especial nos mecanismos de busca), a interatividade de criação
(com destaque para os conteúdos colaborativos) e a interatividade de comando
contínuo (muito usado em movimentos do mouse do tipo arrasta-e-solta e em
games).
166
6. Era uma vez... e mais outra: leitura de
obras hipermidiáticas
“Um mesmo livro é quantos leitores ele tiver. [...]
Um bom livro não tem começo nem fim, é infinito”
Tatiana Belinky (2007)
A fim de aplicar as teorizações expostas neste trabalho, elegemos
quatro produções literárias infantis (duas no suporte digital e duas no suporte
impresso,) em que há claramente influências da linguagem hipermidiática.
Poderíamos ter elegido inúmeras outras que — mais ou menos
evidentemente, de uma forma ou outro — trazem marcas da hipermídia sobre a
literatura para crianças. Algumas delas foram citadas ao longo deste trabalho:
Que história é essa? 2, Flávio de Souza (2000); Blog do sapo Frog, Almir
Correia (2007); De fora da arca, Ana Maria Machado (2004); 17 é tov, Tatiana
Belinky (2005); Zubair e os labirintos, Roger Mello (2007) etc.
Com essas leituras das obras, buscamos exemplificar de forma
prática alguns dos modos pelos quais a linguagem hipermidiática tem
modificado o fazer literário para crianças.
167
É importante destacar ainda, antes de seguirmos para as análises,
que nem todo o texto sobre o suporte digital pode ser considerado
hipermidiático. Assim, por exemplo, a maior parte dos chamados e-books
textos exibidos em softwares que simulam o movimento do folhear de páginas
e outras características do livro não são hipermidiáticos, uma vez que
preservam a linearidade e o predomínio da escrita, típicos dos textos
impressos. Dessa forma, para nosso estudo, escolhemos, na imensa gama de
textos produzidos na internet, aqueles que exploram de forma mais intensa as
potencialidades do suporte hipermidiático, como é o caso de A interminável
Chapeuzinho (item 6.1) e do ciberpoema “Chá” (item 6.2).
Por outro lado, nem todo texto sobre o suporte impresso é linear e
eminentemente escrito. Vimos ao longo deste trabalho, vários exemplos de
textos impressos que trazem consigo características predominantemente
hipertextual, como é o caso de Princesas esquecidas ou desconhecidas...
(analisado no item 6.3, infra) e de Todos contra D@nte (item 6.4, infra).
6.1. A INTERMINÁVEL CHAPEUZINHO
A internet e o computador o suportes por excelência dos textos
hipermidiáticos. Isso acontece porque a forma de leitura navegativa/imersiva é
característica da computação e da rede, e se evidenciaram em decorrência
delas.
168
Assim, para esta primeira leitura, escolhemos A interminável
Chapeuzinho, de Angela Lago, um texto produzido diretamente para o suporte
digital (F
IGURA
6.1). Acreditamos que, com ele, poderemos demonstrar de
forma bastante clara as características que viemos delineando até agora.
Figura 6.1 Abertura do hipertexto A interminável Chapeuzinho (Angela Lago). Nela
já se pode notar o uso de técnicas digitais para os desenhos e para os escritos (uso de
fontes digitais e a assinatura da autora feita com uma mesa digitalizadora ou, talvez,
com o próprio mouse). Sempre que o leitor-navegador chega a um dos “finais” da
história, volta para essa tela (por isso a palavra “again” escrita), podendo recomeçar a
história e fazer outros caminhos. Cabe notar também que o título aparece parte em
francês, parte em espanhol, além da palavra “again”, em inglês. O uso dos três
idiomas, a nosso ver, é uma forma de a autora espelhar esteticamente o alcance
internacional da internet, suporte escolhido para o texto. Talvez esse seja também um
dos motivos que levaram a autora a escolher, como o único recurso verbal da
narrativa, a letra da música La vie en rose, bastante conhecida em todo o mundo.
169
Angela Lago é uma das escritoras e ilustradoras mais reconhecidas
da literatura infantil brasileira contemporânea. Nascida em Belo Horizonte
(1945), formada em Artes Plásticas, Ciências Sociais e Psicopedagogia Infantil,
estreou na literatura infantil em 1980 com a obra Sangue de barata. De pra
publicou muitos livros, como a sua versão do Cântico dos cânticos (1998)
contada só por meio de imagens.
Logo no fim da década de 1990 Angela Lago se interessou pelas
novas mídias e tem experimentado seus recursos tanto como técnica de
pintura, como suporte para suas histórias. Assim, a computação gráfica foi
usada na ilustração de obras como A banguelinha (2002), Muito capeta (2004)
e João Felizardo, o rei dos negócios (2006). Além disso, no site da autora
(www.angela-lago.com.br) encontram-se obras concebidas especialmente para
a internet, como: Oh!, uma narrativa lúdica entre um esqueleto e um cachorro
atrapalhados; O ABCD de Angela Lago, um conjunto de pequenas narrativas
interativas e jogos envolvendo as letras do abecedário e a alfabetização; e A
interminável Chapeuzinho, objeto de nossa leitura.
A interminável Chapeuzinho é contada sem o uso do código verbal
escrito. Para narrar a história, a autora recorre a apelos visuais e sonoros
(eminentemente não-verbais). Na verdade, seria melhor falar de histórias, no
plural, uma vez que se trata de uma narrativa interativa. Nela, o leitor pode
optar por múltiplos caminhos e desfechos. Desse modo, estamos no campo da
interação arborescente, ou de seleção (ver item 5.2.2.3). É importante destacar
que esse tipo de interação, como descrevemos anteriormente, é típico da
170
leitura navegativa e da estrutura hipertextual. Por isso, concebemos A
interminável Chapeuzinho como exemplo característico de hipertexto.
Assim, o leitor pode optar se a Chapeuzinho segue o caminho
indicado pela mãe ou vai pelo tortuoso, se a adeixa o lobo entrar na casa
dela ou não, se a menina pede ajuda aos caçadores ou não etc. numa
estrutura cheia de ramificações. Dessa interação leitor-texto advêm sentidos:
os vários caminhos que o leitor pode percorrer com a Chapeuzinho podem
sugerir as diversas experiências amorosas da juventude, o processo de
amadurecimento típico da adolescência, o aprendizado a partir dos próprios
erros, e a liberdade de escolha (cabendo, é claro, para cada escolha, uma
conseqüência ou sanção).
A leitura faz-se lúdica, uma vez que o leitor-navegador pode explorar
as várias opções de texto, verificando as conseqüências de cada escolha feita
pelas personagens, multiplicando assim as possibilidades de sentido. Para uma
leitura de fruição, o internauta pode escolher os caminhos aleatoriamente, de
acordo com seu interesse, realizando uma leitura navegativa. Contudo, como
nosso intuito é a análise da obra, construímos um diagrama que mapeia todas
as histórias possíveis, a partir desse hipertexto (F
IGURA
6.2).
Trilha segura
Chapeuzinho
Trilha segura
Trilha segura
Trilha perigosa
Figura 6.2
O diagrama de
interminável Chapeuzinho
mostra os
caminhos que o leitor-
navegador pode
percorrer na história. A esse conjunto de
textos possíveis, aqui esquematizado,
denominamos hipertexto. Dentro dos
quadros encontram-
se as descrições do
que ocorre entre um clique e outro (nós).
Sobre as tarja
s azuis estão as
interações possíveis (nexos). Assim, por
exemplo, logo no início, ao clicar em
Chapeuzinho, ocorre o que está descrito
em 2a
. Se, em vez disso, o leitor preferir
clicar na mãe de Chapeuzinho, ocorre o
descrito em 2b
, e assim por diante.
Chapeuzinho
Mãe
Trilha segura
Trilha perigosa
Trilha segura
Trilha perigosa
Chapeuzinho
Trilha segura
Avó Lobo
Caçadores Chapeuzinho
Lobo
Chapeuzinho
Lobo
INÍCIO
Caçadores
O diagrama de
A
mostra os
navegador pode
percorrer na história. A esse conjunto de
textos possíveis, aqui esquematizado,
denominamos hipertexto. Dentro dos
se as descrições do
que ocorre entre um clique e outro (nós).
s azuis estão as
interações possíveis (nexos). Assim, por
exemplo, logo no início, ao clicar em
Chapeuzinho, ocorre o que está descrito
. Se, em vez disso, o leitor preferir
clicar na mãe de Chapeuzinho, ocorre o
, e assim por diante.
171
Mãe
Trilha perigosa
Trilha segura
Trilha perigosa
Chapeuzinho
Caçadores
Caçadores
Lobo
172
Com essa forma de visualização, se tem uma noção geral do
hipertexto, como uma fotografia aérea de um labirinto. É interessante observar
que, muitos dos leitores que navegaram por esse hipertexto e, depois, viram o
diagrama, manifestaram que, durante a navegação, o “labirinto” parecia muito
maior do que de fato é. Assim, o leitor não tem a noção do todo durante a
navegação, desconhece as reais dimensões do hipertexto, percorrendo cada
história, cada texto, como se fosse único.
Quanto aos múltiplos digos, são exploradas as imagens em
movimento (animações) e sons (trechos de música cantarolados pela
Chapeuzinho e onomatopéias), dialogando na construção de sentido.
Por exemplo, enquanto Chapeuzinho caminha pelo bosque (matriz
visual, animação), cantarola La vie en rose, de Edith Piaf (2007), (matriz
sonoro-verbal, música). O eu-lírico da canção de Piaf é uma mulher
apaixonada por seu amante, o qual lhe prometeu amor eterno. Da mesma
forma, no conto tradicional A chapeuzinho vermelho (registrado pelos Irmãos
Grimm e por Charles Perrault), o lobo seduz a menina. inclusive várias
interpretações psicológicas do conto, que o tratam como uma representação do
despertar da sexualidade feminina (cf. B
ETTELHEIM
, 1996). Assim, a autora
propõe um paralelismo entre os dois textos. Cabe ao leitor, estabelecer as
relações entre um e outro.
No caso de a Chapeuzinho cair na cilada do lobo e aproximar-se
dele disfarçado de avó, o tradicional diálogo da Chapeuzinho com o lobo (“que
olhos grandes você tem...”, “que boca grande você tem...”) é resolvido por uma
173
animação em que Chapeuzinho aponta para as partes do rosto do lobo,
cantarolando o seguinte trecho de La vie en rose: “Des yeux qui font baiser les
miens, / Un rire qui se perd sur sa bouche”
22
(F
IGURA
6.3). Faz assim uma
apropriação do trecho de Piaf que se refere aos olhos e à boca do amante, na
fala de Chapeuzinho.
Figura 6.3 Na lateral direita, Chapeuzinho aponta para o rosto do lobo disfarçado,
enquanto cantarola trecho de La vie en rose. É interessante notar os caçadores, com
medo, escondidos atrás das árvores.
Em nenhum dos caminhos possíveis de A interminável
Chapeuzinho, os caçadores conseguem salvar a menina. Eles ficam andando
em círculo, e fogem apavorados do lobo (F
IGURA
6.4). Na versão tradicional, o
caçador representa a figura paterna, masculina, que salva a Chapeuzinho da
22
Tradução do autor: “Olhos que fazem baixar os meus / Um riso que se perde em sua boca”.
174
barriga do lobo. Comparando as duas versões, temos aqui um efeito de
paródia, uma sátira à virilidade masculina e ao cuidado paterno. Essa leitura é
dada pela animação, um código visual.
Figura 6.4 — Caçadores girando em círculos, indecisos quanto ao que fazer, enquanto
a menina está na barriga do lobo. Aqui nota-se um recurso metalingüístico: os
caçadores procuram no livro a solução do conflito.
Da mesma forma, o lobo da história de Angela Lago, quando come a
Chapeuzinho, invariavelmente, em seguida a vomita (visual-sonoro,
onomatopéico). Depois de devolvida, Chapeuzinho canta o seguinte trecho de
La vie en rose: “Voilà le portrait sans retouches / De l'homme auquel
j'appartiens”
23
(sonoro-verbal). A imagem da Chapeuzinho sendo vomitada
seguida do trecho da música transcrito acima também provoca efeito de humor,
23
Tradução do autor: “Eis o retrato sem retoque / Do homem a quem eu pertenço”.
175
sátira, à virilidade masculina (F
IGURA
6.5). É como se a Chapeuzinho dissesse:
me seduziu, me conquistou e, agora, me vomita. É interessante verificar como
esse sentido é reforçado pelo diálogo entre o texto original e o de Angela Lago,
e entre imagem e sonoridade. Se desprezarmos um dos códigos, ou uma das
versões, esse significado seria bastante prejudicado.
Figura 6.5 — Lobo vomita a avó e a menina, enquanto os caçadores continuam
procurando a solução no livro. No fim desta cena, Chapeuzinho cantarola o trecho
“Voilà le portrait sans retouches / De l'homme auquel j'appartiens”.
também um recurso metalingüístico explorado. Em todos os
finais que não correspondem ao desfecho tradicional da história de
Chapeuzinho, o lobo abre um livro (que representa o conto original registrado),
e faz sinal de negativo com o dedo e com a cabeça (código visual), dando a
entender que aquele não era o fim esperado (F
IGURA
6.6).
176
A
B
Figura 6.6 Num dos fins alternativos, Chapeuzinho, determinada, segue pelo
caminho seguro. Para se livrar do lobo, ela bate com a cesta de guloseimas na cabeça
dele (A). Como conseqüência dessa ação, Chapeuzinho chega antes do lobo na casa
da avó e salva a velhinha e a si mesmo (B). Nota-se aqui uma referência
metalingüística: o lobo olha para o livro, inconformado com a nova solução para a
história.
177
Essas são algumas das leituras possíveis de A interminável
Chapeuzinho, permitidas pela hipertextualidade (navegação/interatividade) e do
diálogo intercódigos no processo de significação. Ao longo dessa análise
retomamos muitas das características da linguagem hipermidiática listadas no
item 5.2.2: hipertextualidade, interatividade arborescente, diálogo intercódigos
etc. Ficam claras, assim, as marcas dessa linguagem e a exploração da
potencialidade do suporte digital na obra em questão.
Ainda sobre A interminável Chapeuzinho, destacamos a genialidade
dessa obra de Angela Lago. Aparentemente simples, o texto pode ser lido
inclusive pelos leitores mais novos e menos experientes. Isso acontece graças
à ausência do código escrito (contemplando o leitor em fase de alfabetização) e
pela interatividade intuitiva (por meio de cliques nas personagens). E se torna
atraente para esses leitores, por se referir a uma história bastante conhecida
pelas crianças, pelo colorido das imagens, pelas cenas divertidas e pela
possibilidade lúdica de o leitor percorrer os vários caminhos. Por outro lado,
para o leitor mais proficiente, o texto também oferece atrativos, como o efeito
de paródia, as críticas bem-humoradas à sociedade patriarcal, e as
significações possíveis a partir do diálogo intercódigos.
Antes de passarmos para a próxima análise, gostaríamos de
ressaltar a pertinência do conceito de “texto” e “leitura” com que trabalhamos.
As interpretações realizadas demonstram algumas das várias possibilidades de
leitura dessa obra e a complexidade dessas leituras, trazidas à tona pela
interação texto-leitor e pelo diálogo intercódigos (verbal, visual, sonoro).
178
Desprezando esse diálogo de linguagens e a interação durante a leitura,
perderíamos a maior parte da riqueza de significados sugerida pelo texto.
6.2. CIBER&POEMAS
Outro bom exemplo de aproveitamento do suporte hipermidiático na
literatura para crianças é o site Ciber&Poemas (www.ciberpoesia.com.br) do
autor Sérgio Capparelli. Além de escritor, Capparelli é jornalista e pesquisador.
Publicou alguns estudos sobre os meios de comunicação de massa, como o
ensaio Televisão e capitalismo no Brasil, com o qual ganhou o Prêmio Jabuti
de Ciências Humanas (1983). Daí, seu interesse pela poesia visual e pelas
novas mídias.
No site, encontramos uma série de ciberpoemas textos poéticos
que exploram de várias formas as potencialidades da hipermídia —, além de
atividades lúdicas com alguns seus textos. Analisaremos, a seguir, o seu
poema “Chá”, em versão hipermidiática (o texto foi publicado originalmente, de
forma impressa, no livro Poesia visual (2000)).
Ao acessar o poema, o leitor se depara com algumas instruções
para a leitura. Tal recurso é comum a todos os textos do site, como se fossem
as regras do jogo. Ainda que dispensável para muitos, essas instruções podem
ajudar o leitor menos proficiente a se familiarizar à leitura navegativa (F
IGURA
6.7).
179
Figura 6.7 Instruções para a leitura do poema “Chá”, de Sérgio Capparelli. Nota-se
o uso de palavras típicas da computação (“clique”, “arraste”, inclusive subentendendo
a expressão “com o mouse”), o que pressupõe alguma intimidade do leitor com o
suporte.
Em seguida, aparece a tela inicial do poema (F
IGURA
6.8). Nota-se
aqui a predominância do código visual sobre o verbal: além do título (“Chá”), e
da frase “Pronto!”, aparecem alguns escritos no rótulo do sachê de chá. O
restante da leitura é toda não-verbal: uma típica mesa posta para um chá
(xícara, bule, sachê, toalha, colher de chá), mas com alguns elementos
incomuns (estrelas, corações e um porta-retrato com a foto de um casal) que
causam certo estranhamento. Passando o mouse sobre esses elementos, cada
qual produz um som: porta-retrato som de beijo / corações som de
pulsação / estrelas som de guizos. Os sons são exagerados, provocando um
efeito de humor.
180
Figura 6.8 — Nessa tela inicial do poema, som e imagem se sobrepõem ao verbal.
Aqui o código sonoro, não-verbal, reforça/descreve o visual,
estabelecendo-se uma relação direta entre signo visual e signo sonoro. É
importante notar que se trata de uma relação sonoridade-visualidade diferente
daquela estabelecida em A interminável Chapeuzinho (item 6.1). Ali, sons
(trechos da música La vie en rose) e imagens se complementam, que não
têm uma relação direta/estrita entre si. Assim, como vimos, a aproximação de
ambos promove uma ampliação das possibilidades de significado da obra.
no caso de “Chá”, o código sonoro mais reforça o visual, que o complementa.
Cada um dos ingredientes (corações, porta-retrato, estrelas, sachê)
pode ser arrastado para dentro da xícara (Figura 6.9). O leitor pode optar quais
dos ingredientes deseja incorporar ao “seu chá”. Aqui se percebem dois tipos
de interatividade: a de seleção (escolha e ordem dos ingredientes) e a de
comando contínuo (ao arrastar os ingredientes com o mouse, o leitor tem a
181
sensação de que está de fato colocando-os dentro da xícara; nesse sentido, o
mouse se torna uma extensão da mão do internauta).
Figura 6.9 — Um a um, o leitor opta quais ingredientes quer acrescentar ao “seu chá”.
Por fim, depois de pôr os ingredientes do chá, o leitor despeja o
conteúdo do bule na xícara (Figura 6.10). Dele, em vez de água, saem letras,
de onde se podem depreender significados. Metaforicamente, as letras podem
representar o verbal, dando a entender que as palavras (a língua, a
comunicação) são responsáveis pela infusão, por unir e misturar, todos os
ingredientes: o coração, as estrelas, o casal apaixonado...
182
Figura 6.10 As letras derramadas na xícara são metáfora do verbal, que seria
responsável pela infusão de sentimentos e lembranças.
Com o “chá” pronto, surge a última tela do poema (Figura 6.11),
semelhante à versão impressa deste. Nela se pode ler: “A xícara sobre a mesa
revela a infusão contida” (no rótulo do sachê) e “Deixe a infusão o tempo
necessário até que os nossos aromas e os nossos sabores se misturem”
(acima da xícara, como se fosse o vapor quente da bebida).
Aqui, como acontece no diálogo visual-sonoro desse poema, os
versos (verbal) reforçam o sentido do visual e da interatividade. Ou seja, os
vários ingredientes são metáforas dos sentimentos e pensamentos (corações
carinho, afeto / porta-retrato de um casal memória, amor, lembrança /
estrelas alegria, sonhos). Derramando-se a água-palavra (comunicação,
verbalização) sobre eles, estes se misturam, unem-se. A xícara de chá (e o ato
de tomar chá) conota contemplação, tempo para o pensamento fluir. A dois,
183
sentar à mesa para beber chá expressa atenção com o outro, tempo para
conversar, trocar idéias. Os versos da última tela reforçam isso, com
expressões como “infusão contida”, “tempo”, “se misturem”.
Figura 6.11 Na última cena o código verbal se destaca, reforçando o sentido
expresso pela sonoridade e pela visualidade do poema.
Diferentemente do que acontece em A interminável Chapeuzinho,
em que as opções do leitor encaminham a história para um desfecho diferente,
neste poema, independentemente dos caminhos que o internauta faz o
resultado e o mesmo, mantendo, na essência, a linearidade do texto. Contudo,
a interatividade e o diálogo intercódigos têm aqui função lúdica, de atrair a
atenção do leitor, de diverti-lo e de levá-lo a ler o poema pelo jogo, pela
brincadeira.
184
Em outras partes do site, o autor recorre a outros tipos de
interatividade, como a lingüística. Em alguns poemas, o leitor pode, por
exemplo, preencher o poema com versos ou rimas de sua preferência (Figura
6.12).
Figura 6.12 Nos poemas De muito longe” e “Poema do Frank”, o leitor pode inserir
novas rimas e transformar o sentido do texto original.
De todo modo, de forma geral, a interatividade do site
Ciber&Poemas não leva a caminhos novos, inesperados. Por outro lado,
favorece que o leitor interfira de forma lúdica nos poemas, elaborando versões
185
novas (personalizadas) destes, de modo a brincar com o sentido e a
sonoridade dos versos.
6.3. PRINCESAS ESQUECIDAS OU DESCONHECIDAS...
No suporte digital, os textos hipermidiáticos podem demonstrar todo
seu potencial. no impresso, eles tendem a simular elementos e se apropriar
de marcas da linguagem hipermidiática de forma modificada ou indireta. Isso
acontece dadas as características próprias do livro, como a materialidade do
papel, a sua bidimensionalidade e a linearidade do passar de folhas (ver mais
sobre as características do papel, do livro e do suporte impresso nos itens 3.3 e
3.4). Para verificar como esse processo se dá, vamos tomar como exemplo as
obras Princesas esquecidas ou desconhecidas... (a seguir) e Todos contra
D@nte (item 6.4, infra).
Princesas esquecidas ou desconhecidas... é uma tradução do
original francês Princesses oubliées ou inconnues..., do escritor Philippe
Lechermeier. Apesar de não ser um texto originalmente publicado em
português, o incluímos, em nossas análises, já que se trata de um título
disponível ao leitor brasileiro, traduzido para a língua portuguesa visando o
público nacional e que explora as características do fenômeno estudado.
Nesse sentido, entendemos por literatura infantil no Brasil, não somente as
186
obras escritas por autores nacionais, mas aquelas lidas por crianças de nosso
país e que participam das práticas de leitura de nossa sociedade.
Publicada em 2004 (em francês) e traduzida para o português em
2008, a obra traz muitas das características dos textos hipermidiáticos. No
texto da contracapa do livro, encontramos:
Percebe-se neste trecho uma preocupação com a visualidade e a
sonoridade do texto. Utilizam-se cores e diferentes tipos e tamanhos de letra
187
para dar destaque a uma ou outra expressão; variados espaçamentos entre
linhas, quebras de linha intencionais e recuos diferentes nas linhas, bem como
a repetição das expressões “Em Princesas” e “Mas não é favorecendo uma
determinada cadência/ritmo na leitura. Este tipo de recurso se mantém ao
longo da obra, juntamente com o diálogo escrita-ilustração, favorecendo uma
leitura intercódigos (F
IGURA
6.13).
Figura 6.13 Detalhes das páginas 36-37. Na página da esquerda predomina o
código verbal escrito, onde se o nome de uma princesa (“Amnésia”) e sua
descrição: “Ela falta aos encontros, sempre perde o trem, chega aos espetáculos uma
semana antes ou três dias depois. Sinais particulares, ela esquece tudo: quem ela é,
quem você é, o que fará e por que você está lá. Ela não tem memória, um grande
buraco negro”. Nota-se a preocupação com a visualidade do próprio texto. A imagem
(visual) da página da direita dialoga com os escritos (verbal) da esquerda: uma
princesa com o olhar perdido, com uma touca toda furada. Pelos furos da touca não se
a cabeça da princesa (como seria esperado), mas sim o fundo da cena. Folhas
esvoaçando atravessam a cabeça da princesa, sugerindo de forma divertida que ela
teria uma “cabeça de vento”, idéia associada à amnésia/distração da personagem.
188
A repetição da expressão “Mas não é só...” no texto da contracapa já
bem o tom do livro: um texto que a cada leitura, o leitor irá descobrir mais,
percorrer novos caminhos, como é próprio da leitura navegativa. A obra
apresenta toda uma diversidade de princesas “desconhecidas ou esquecidas”
com qualidades e defeitos diversos: preguiçosas, dançarinas, leitoras, árabes,
africanas, orientais, sisudas, vaidosas... E também seus castelos, vestes,
acessórios, reinos, bandeiras, expressões... Quase como uma enciclopédia,
mas com conceitos e descrições bem-humoradas e inusitadas. Assim, o leitor
pode abrir o livro em uma página qualquer e começar a navegar.
Pela diversidade de princesas que apresenta (com suas qualidades
e defeitos), a obra apresenta em seu sentido profundo a idéia de que todas as
crianças (e todas as pessoas), em sua pluralidade, são princesas, ou seja, são
as “primeiras”, as “principais” (como está na etimologia e no conceito de
“princesa”). Nesse sentido, promove a valorização das individualidades e da
diversidade de culturas e.
Um dos elementos que favorece a leitura hipertextual é a presença
de remissões entre páginas, conectando trechos diferentes do livro. Essas
remissões, recorrentes em toda a obra, convidam o leitor a saltar de uma
página para outra do livro, como é próprio dos links dos sites. Na página 18,
por exemplo, encontramos: “[A princesa de Fatrasia recebeu medalha de
bravura da ordem de Ubladá (ver o Grande Tralalá, página 82-83)”. Indo para a
referida página, lemos:
189
Grande Tralalá (o): A maior distinção que uma
princesa pode desejar. O pequeno Larili é uma medalha que
também agrada, e a Ubladá é destinada às que se distinguiram
no combate (ver princesa Fatrasia, páginas 18-19). A
Papanhassa do Peloponeso usa orgulhosamente o Grande
Tralalá, mas ninguém sabe por que ela o tem (ver a
Papanhassa do Peloponeso (páginas 80-81).
As remissões nesse trecho oferecem três opções para o leitor:
continuar a ler a página em que está, voltar para a página em que estava (da
princesa de Fatrasia), ou ir para uma nova gina (80-81, da Papassanha do
Peloponeso). Cabe ao leitor, nesse caso, escolher, de acordo com seu
interesse, o caminho que quer seguir.
O texto traz também várias referências intertextuais promovendo,
nesse sentido, uma navegação também para fora do livro, para outras leituras,
como no trecho a seguir (p. 8): “Um esquecimento que ficou famoso: os pais da
Bela Adormecida no Bosque se esqueceram de mandar um convite a uma
prima distante que exercia a profissão de fada. Ofendida, ela lançou contra a
princesa a maldição que todos conhecem, Resultado: um sono de mais de um
século.” No exemplo, a referência à história da Bela Adormecida leva o leitor
que já conhece o conto a recordá-lo mentalmente. Para o leitor que não
conhece a história, o trecho pode aguçar a sua curiosidade.
Para além da característica hipertextual (navegativa) da obra, outras
particularidades propiciam uma leitura hipermidiática, como o diálogo
intercódigos (ver F
IGURA
6.13) e intergêneros (F
IGURA
6.14). Dessa forma cabe
ao leitor navegar pela página estabelecendo relações e elaborando sentidos.
190
Figura 6.14 Nas páginas 68-69 aparecem vários gêneros: um trecho explicando
“como uma pessoa se torna rainha”, um vocabulário (madrasta, torre), uma máxima
(“Ser rainha, mas continuar sendo uma princesa”), um infográfico com legenda (de
uma torre) e um desenho esquemático (no centro superior da página dupla,
diferenciando rainha e madrasta). Cabe ao leitor relacionar esses diversos blocos
intergêneros, construindo sentidos.
Assim, Princesas é uma “enciclopédia” literária do universo do conto
de fadas, toda “costurada” por referência hiper e intertextuais. Por sua
hipertextualidade, pelo diálogo intercódigos e intergêneros e pela quebra da
linearidade trata-se propriamente de uma leitura hipermidiática sobre o suporte
impresso.
191
6.4. TODOS CONTRA D@NTE
Luís Dill nasceu em 1965, em Porto Alegre. É formado em jornalismo
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), tendo
trabalhado como jornalista em diversos suportes (jornal, rádio, televisão e
internet). Talvez por isso mesmo, por ter transitado por meios impressos,
audiovisuais e digitais, algumas de suas obras impressas tragam fortes marcas
da linguagem hipermidiática, em especial do hipertexto.
Além da obra que iremos analisar, outra notadamente hipertextual
de Dill é Letras finais (2005). Nela, a seqüência cronológica da narrativa é toda
quebrada, permitindo, além do acompanhamento linear, outras formas de
leitura, sugeridas, por exemplo, pela numeração dos capítulos.
Todos contra D@nte, lançado em 2008, destina-se ao público pré-
adolescente e adolescente. Baseando-se em um caso real (como o autor nos
revela no fim da obra), a história narra um caso de bullying escolar, em que
Dante é vítima de violência física e moral por parte dos colegas.
A narrativa é construída pela intercalação de quatro gêneros:
diálogos, links, posts de blog e fóruns on-line. Como dissemos anteriormente,
além da leitura intercódigos, o diálogo intergêneros é outra característica da
hipermídia. Esse é um dos recursos explorados nessa obra. Em cada página
ímpar (direita) encontramos um bloco de texto de gênero diferente, de forma
alternada, com o seguinte padrão, que se mantém do início ao fim da obra:
192
diálogo fórum diálogo blog
diálogo fórum diálogo blog ...
Nas páginas pares (esquerda), sempre um “link”, que narra ou
ilustra algum trecho do texto da página ímpar. A seguir, detalharemos as
especificidades de cada um desses tipos de bloco de texto.
a) Diálogo inicia-se sempre com uma rápida descrição da
cena que virá. Essa introdução lembra as rubricas teatrais
(que indicam a marcação dos atores e contextualizam a
cena). Depois dessa introdução, de uma ou duas linhas,
segue o diálogo alternado, sem nenhuma outra marcação
(F
IGURA
6.15). Por meio desses diálogos, o leitor vai tendo
pistas do desenrolar da ação.
b) Fórum “Comunidade Eu Sacaneio o Dante” Esses
blocos trazem um projeto visual que lembra os fóruns de
comunidades virtuais. No primeiro bloco, a descrição
da comunidade. Os seguintes começam sempre com uma
pergunta e, na seqüência, vêm os comentários dos
membros da comunidade (F
IGURA
6.16). Por meio deles, o
leitor conhece o clima de agressividade e preconceito
contra Dante (personagem alvo dos ataques).
Nota
confere anonimato aos participantes. Além disso, o código
verbal escrito é marcado pelo uso de linguagem típica dos
ambientes virtuais: falta de iniciais maiúsculas (“dante”),
estrangeirismos (“b movie”), linguagem coloquial
(“vambora”), t
abreviações (“vc”), repetição intensificadora de vogais e
de pontuação (“tuuuuudo”, “monstro!!!”) etc.
Figura 6.15 —
Página dos blocos de diálogo. Percebe
exceto por uma pequena introdução inicial. Pode
na quinta linha, uma espécie de nota de rodapé.
Nota
-se o uso de apelidos no lugar
dos nomes, o que
confere anonimato aos participantes. Além disso, o código
verbal escrito é marcado pelo uso de linguagem típica dos
ambientes virtuais: falta de iniciais maiúsculas (“dante”),
estrangeirismos (“b movie”), linguagem coloquial
(“vambora”), t
rocas propositais de letras (“koisafeia”),
abreviações (“vc”), repetição intensificadora de vogais e
de pontuação (“tuuuuudo”, “monstro!!!”) etc.
Página dos blocos de diálogo. Percebe
-se ne
la a ausência de narração,
exceto por uma pequena introdução inicial. Pode
-
se ver também a chamada de “link”
na quinta linha, uma espécie de nota de rodapé.
193
dos nomes, o que
confere anonimato aos participantes. Além disso, o código
verbal escrito é marcado pelo uso de linguagem típica dos
ambientes virtuais: falta de iniciais maiúsculas (“dante”),
estrangeirismos (“b movie”), linguagem coloquial
rocas propositais de letras (“koisafeia”),
abreviações (“vc”), repetição intensificadora de vogais e
de pontuação (“tuuuuudo”, “monstro!!!”) etc.
la a ausência de narração,
se ver também a chamada de “link”
Figura 6.16
Página dos blocos de fórum
apelidos e as marcas na linguagem típicas dos ambientes virtuais. Nota
programação visual a simulação da interface de uma comunidade virtual.
c)
Blog
me
posts
sente ao ser agredido pelos colegas. Nesses trechos
uma referência intertextual clara com o escritor Dante
Alighieri (
italiano e compara as agressões que sofre ao percurso de
penitência e salvação, descrito pelo autor na sua obra
divina comédia
conhece os sentimentos e as idéias da personagem.
Página dos blocos de fórum
on-line. Percebe-
se nela a utilização de
apelidos e as marcas na linguagem típicas dos ambientes virtuais. Nota
programação visual a simulação da interface de uma comunidade virtual.
Blog
Esses blocos simulam posts do
blog
me
nino que é alvo da violência dos colegas. Nesses
posts
, Dante revela o que aconteceu com ele e o que
sente ao ser agredido pelos colegas. Nesses trechos
uma referência intertextual clara com o escritor Dante
Alighieri (
F
IGURA
6.17
). O menino Dante é
italiano e compara as agressões que sofre ao percurso de
penitência e salvação, descrito pelo autor na sua obra
divina comédia
(1321). Por meio desses blocos, o leitor
conhece os sentimentos e as idéias da personagem.
194
se nela a utilização de
apelidos e as marcas na linguagem típicas dos ambientes virtuais. Nota
-se também na
programação visual a simulação da interface de uma comunidade virtual.
blog
de Dante, o
nino que é alvo da violência dos colegas. Nesses
, Dante revela o que aconteceu com ele e o que
sente ao ser agredido pelos colegas. Nesses trechos
uma referência intertextual clara com o escritor Dante
). O menino Dante é
do poeta
italiano e compara as agressões que sofre ao percurso de
penitência e salvação, descrito pelo autor na sua obra
A
(1321). Por meio desses blocos, o leitor
conhece os sentimentos e as idéias da personagem.
Figura 6.17 Página do
blog
compara a violência que sofre a passagens da
d)
Link
autor chamou de
ponto específico do texto da gina esquerda, podendo
explicar um trecho do diálogo ou algum comentário do
fórum, narrando o acontecido em
apelo visual nessas descrições, como em uma cena de
filme, ainda q
professora Determinou. Pessoal, disse ela, o tema é a
Campanha da Legalidade [...]. Sentiu o olhar de Dante. Que
que é?, perguntou, com hostilidade instantânea. Nada, foi a
res
posta, eu queria saber como é que a gente vai faze, a
gente vai se reunir?, ou... maluco, cara? Sai fora, não
enche. Em seguida pensou: não faço trabalho com esse otário
da zona norte nem amarrado. (
blog
de Dante em que o menino relata seus pensamentos e
compara a violência que sofre a passagens da
Divina Comédia.
Link
Do lado direito de cada página dupla o que o
autor chamou de
link (F
IGURA
6.18
). Ele se refere a um
ponto específico do texto da gina esquerda, podendo
explicar um trecho do diálogo ou algum comentário do
fórum, narrando o acontecido em
flashback
apelo visual nessas descrições, como em uma cena de
filme, ainda q
ue só se use o código verbal:
Ele se viu obrigado a formar dupla com Dante. A
professora Determinou. Pessoal, disse ela, o tema é a
Campanha da Legalidade [...]. Sentiu o olhar de Dante. Que
que é?, perguntou, com hostilidade instantânea. Nada, foi a
posta, eu queria saber como é que a gente vai faze, a
gente vai se reunir?, ou... maluco, cara? Sai fora, não
enche. Em seguida pensou: não faço trabalho com esse otário
da zona norte nem amarrado. (
D
ILL
, 2008: 26)
195
de Dante em que o menino relata seus pensamentos e
Do lado direito de cada página dupla o que o
). Ele se refere a um
ponto específico do texto da gina esquerda, podendo
explicar um trecho do diálogo ou algum comentário do
flashback
. Nota-se forte
apelo visual nessas descrições, como em uma cena de
Ele se viu obrigado a formar dupla com Dante. A
professora Determinou. Pessoal, disse ela, o tema é a
Campanha da Legalidade [...]. Sentiu o olhar de Dante. Que
que é?, perguntou, com hostilidade instantânea. Nada, foi a
posta, eu queria saber como é que a gente vai faze, a
gente vai se reunir?, ou... maluco, cara? Sai fora, não
enche. Em seguida pensou: não faço trabalho com esse otário
Pela ausência de marcação de discurso direto e pela
linearidade cronológica com que a seqüência é narrada,
em tempo contínuo, pode
trecho de leitura movente, típico do audiovisual.
Especificamente os
trecho literal da obra
relaciona com algo que o menino Dante relata.
Figura 6.18
Página par (esquerda)
acontecimento
s. Nas figuras 6.7 a 6.9, nota
Uma vez que os blocos não apresentam uma conexão direta entre
si, nem são apresentados e forma linear e encadeada, o enredo é
Pela ausência de marcação de discurso direto e pela
linearidade cronológica com que a seqüência é narrada,
em tempo contínuo, pode
-
se dizer que se trata de um
trecho de leitura movente, típico do audiovisual.
Especificamente os
links do blog
do Dante tra
trecho literal da obra
A divina comédia
, cuja passagem se
relaciona com algo que o menino Dante relata.
Página par (esquerda)
com detalhes de uma cena e explicações dos
s. Nas figuras 6.7 a 6.9, nota
-
se a remissão “link”, a trechos como este.
Uma vez que os blocos não apresentam uma conexão direta entre
si, nem são apresentados e forma linear e encadeada, o enredo é
196
Pela ausência de marcação de discurso direto e pela
linearidade cronológica com que a seqüência é narrada,
se dizer que se trata de um
trecho de leitura movente, típico do audiovisual.
do Dante tra
zem um
, cuja passagem se
relaciona com algo que o menino Dante relata.
com detalhes de uma cena e explicações dos
se a remissão “link”, a trechos como este.
Uma vez que os blocos não apresentam uma conexão direta entre
si, nem são apresentados e forma linear e encadeada, o enredo é
197
descoberto pelo leitor aos poucos. Pelos diálogos descontextualizados e cheios
de reticências, pela descrição das ações dos colegas de Dante, pelos posts de
Dante em seu blog e pelos comentários no fórum da comunidade virtual “Eu
sacaneio o Dante”, o leitor navegador vai recolhendo pistas para descobrir: o
que está acontecendo, quem são os envolvidos, onde aconteceu, como
aconteceu e por que aconteceu. Entre a leitura de um bloco e outro, cabe ao
leitor estabelecer pontes, cruzar informações, a fim de conferir unidade e
sentido à história.
Além das referências mais evidentes à linguagem hipermidiática, no
nível das simulações de links (notas de rodapé ou notas marginais, com uma
nova roupagem) e da interface de blogs e fóruns on-line, outras influências são
marcantes. Como colocamos, o diálogo intergêneros é uma delas. Outra
característica importante é que a obra pode ser lida de várias maneiras: de
forma linear, lendo ou não os links, ou um gênero por vez (só os diálogos,
os posts do blog, ou só os comentários do fórum), ou de forma aleatória. Todas
essas são formas possíveis de apreender o sentido do texto, de lê-lo. Trata-se,
assim, de um texto que favorece a interatividade de seleção
24
. Desse modo,
cada um dos blocos pode ser considerado um “nó”, na acepção descrita no
item 5.2.2.2.
Essa obra recorre a simulações de interfaces típicas da internet,
atraindo a atenção do leitor jovem, que se identifica com essa linguagem e está
habituado a ela. Além disso, estabelece uma hipertextualidade mais profunda
24
Note-se que, neste caso, a nomenclatura “interatividade de seleção” é mais apropriada do que a
“arborescente”, uma vez que não há trilhas preestabelecidas. Há sim sugestões de caminhos, contudo o
leitor tem a liberdade de escolher a seqüência que preferir.
198
(com as várias possibilidades de leitura e o diálogo intergêneros). Além disso,
trata de forma crítica um tema relevante e atual que é a violência (bullying) na
escola. Indiretamente, também evidencia (nos blocos do fórum) outro
problema: o dos atos agressivos e criminosos cometidos por pessoas que se
aproveitam da impunidade decorrente do anonimato dos ambientes de
socialização da internet.
Por estar em um suporte impresso, talvez a literatura hipermidiática
no papel, provoque certo estranhamento e cause certa dificuldade inicial de
leitura, uma vez que as “regras” tradicionais do livro e da narrativa, nela não se
encaixam bem: linearidade da leitura e da passagem do tempo da narrativa,
encadeamento de capítulos, interatividade zero ou linear (conforme
classificação exposta no item 5.2.2.3). Contudo, trata-se de um aprendizado.
Uma vez entendidas as novas regras, a leitura tende a se tornar prazerosa,
divertida e instigante, que o leitor-navegador precisa preencher as lacunas,
relacionar os nós e interagir com a obra, podendo, por exemplo, escolher a
ordem da leitura e optar em ler ou não um trecho.
As obras trazidas para análise são exemplos de textos tipicamente
navegativos, hipermidiáticos. Assim, com essas leituras, e a partir do que
levantamos na teorização deste trabalho, parece evidente e difundida a
influência da hipermídia na literatura infantil brasileira, cujas características
procuramos delinear.
199
7. Considerações finais
Emília começou uma feia boneca de pano [...]. Mas rapidamente
evoluiu, e evoluiu cabritamente — cabritinho novo — aos pinotes. E
foi adquirindo tanta independência que, não sei em que livro, quando
lhe perguntam: “Mas que você é, afinal de contas, Emília?”, ela
respondeu de queixinho empinado: “Sou a Independência ou Morte”. E
é. Tão independente que nem eu, seu pai, consigo dominá-la.
Monteiro Lobato (1955)
A literatura infantil no Brasil talvez se assemelhe com uma de suas
principais personagens: “Emília começou uma feia boneca de pano”, como
nossos livros para crianças: com nascimento atrelado aos contos populares, e
por muito tempo de cunho essencialmente moralizante, edificante,
conservador, modelar e pedagogizante. Mas “rapidamente evolui”, tornando-se
uma literatura inventiva, lúdica e imaginativa. Hoje, ela continua seu caminho
rumo à “independência ou morte”, constituindo-se verdadeiramente um gênero
literário. É nesse contexto de experimentação, de brincadeira com a palavra, de
diálogo intertextual e intercódigos que surgem as relações entre hipermídia e
literatura infantil
A literatura infantil, da mesma forma como a literatura dita “adulta”,
não é imune às transformações sociais. É claro que ela é fruto, em grande
200
parte, da criatividade individual de seus autores. Contudo, estes, bem como os
leitores, destinatários das obras, fazem parte de uma sociedade, vivem nela e
carregam em seus atos comunicativos (artísticos ou não), voluntária ou
espontaneamente, marcas da sociedade em que vivem. Expressam, por meio
das artes e dos textos que produzem, seu espaço e seu tempo. É por isso que
é possível definirmos e delinearmos as relações entre uma transformação
tecnológica (e conseqüentemente social), como o é a revolução digital, e o
fazer literário, no nosso caso, para crianças.
Para chegarmos a essa afirmação, verificamos historicamente que a
literatura infantil não nasceu impressa, remontando a textos orais tradicionais.
Assim que, ao longo do tempo, a literatura infantil tem refletido as mudanças
sociais e os avanços tecnológicos. Concomitantemente ao boom da
comunicação audiovisual, por exemplo, os livros infantis ganharam cores,
novos formatos e um maior diálogo entre escrita e ilustrações, tornando-se
mais visuais, acompanhando a chamada “cultura da imagem”. E, hoje, com a
chegada da cultura digital, eles sofrem novas transformações.
Da mesma forma, historicamente, o desenvolvimento de novos
suportes vem transformando os textos plasmados nessas mídias e a relação do
leitor com a leitura. Com a Revolução Industrial e a vinda das pessoas para
cidade, por exemplo, a revista e o jornal, e, mais tarde, o rádio e a televisão, se
mostraram suportes mais adequados ao dia-a-dia atribulado, aos vários
estímulos urbanos e à crescente necessidade de informação. Assim, esses
suportes se difundiram e evidenciaram uma leitura ágil, fragmentária, visual.
201
Dessa forma, ao longo de nosso trabalho, demonstramos que:
a) os suportes dos textos foram surgindo ao longo da
história, e, para além da escrita, as sociedades do
passado e de hoje utilizam outras formas (orais, visuais
etc.) de transmissão da cultura e do conhecimento;
b) a cultura escrita nem sempre foi hegemônica e seu
predomínio é bem delimitado no tempo;
c) os suportes imprimem marcas de sua constituição física e
de seu uso social sobre os textos neles plasmados;
d) não existe vínculo estrito entre literatura e livro, podendo-
se encontrar essa forma de arte também em outros
suportes, como o jornal, a revista, o vídeo e a internet.
Com base nesses pressupostos, apresentamos uma revisão da
classificação de Santaella (2004), de modo a verificar quatro tipos de práxis de
leitura oral (dialógica), contemplativa (meditativa), movente (fragmentária) e
imersiva (navegativa) evidenciadas em diferentes momentos cio-
históricos. Dependendo da época e das tecnologias de comunicação
predominantes, uma ou outra práxis se evidenciou, se aprofundou e se
difundiu. Também notamos que cada práxis pode ser mais adequada a um tipo
de leitor ou uma necessidade de leitura específica. Assim, ainda que
202
evidenciadas em certos contextos, esses tipos de leitura sempre conviveram e
co-existem em nossa sociedade.
A partir dessa classificação, procuramos redefinir os conceitos de
texto e leitura, do seguinte modo:
a) Texto Unidade significativa, passível de leitura, em
qualquer código (escrito, visual, sonoro etc.) ou em
códigos híbridos, verbais ou não.
b) Leitura Decodificação, compreensão e interpretação
(re-significação) de textos escritos, visuais, sonoros ou
fruto de hibridizações dessas matrizes.
Como conseqüência desses novos conceitos, recolocamos também
a questão de “o que é literatura?”, concebendo-a a para além de linear e
verbal, também visual, sonora, interativa e hipertextual.
Essa reconceituação se faz necessária para concebermos as
manifestações comunicativas hipermidiáticas dentro da categoria de “textos”,
passíveis de leitura, e dentro do escopo da arte literária.
Como vimos, a hipermídia por ser digital, pela virtualidade de sua
interface e pelo modo como foi historicamente construída favorece, num
leitor proficiente, uma leitura navegativa, intercódigos, intergêneros,
203
hipertextual, associativa e interativa, propondo vários caminhos e formas de
leitura de acordo com o interesse do leitor.
Como viemos demonstrando ao longo de nosso estudo, é
bastante evidente e difundida no Brasil a influência da linguagem hipermidiática
sobre o fazer textual (de forma geral) e sobre a literatura para crianças (de
forma específica). Sua manifestação pode ser classificada, inicialmente, em
dois tipos: de um lado, a literatura produzida para o suporte hipermidiático
(computador, internet) e que explora o potencial dessa mídia; de outro, a
literatura produzida no suporte impresso (livro), mas que se apropria de
características e modelos da hipermídia, e os adapta ao papel e ao livro.
Quanto ao modo como a literatura para crianças pode ser, e vem
sendo, marcada pelas novas mídias, essa influência se dá de duas formas:
a) Por simulação/adaptação de modelos e interfaces comuns
no computador e na internet, como: e-mail, blog,
comunidades virtuais, instant messengers, mecanismos
de busca etc. Essa forma de influência é mais superficial,
uma vez que não costuma modificar a linearidade e o
predomínio do verbal na literatura. Contudo, é mais
evidente, que os textos por ela marcados trazem visual
e explicitamente interfaces e modelos típicos.
b) Por apropriação/exploração dos traços fundamentais da
hipermídia, a saber: hipertextualidade, interatividade,
diálogo intercódigos e diálogo intergêneros. Essa
204
influência tende a ser mais profunda, propondo quebras
na linearidade tradicional dos textos, permitindo uma
interação diferenciada do leitor com o texto e usando uma
multiplicidade de códigos para além da escrita. Contudo, é
menos evidente, pois o traz, necessariamente, as
interfaces, os modelos e o jargão típicos da computação e
da internet.
No decorrer deste trabalho, demos vários exemplos do que
denominamos “literatura infantil hipermidiática”. No capítulo 6, em especial,
quatro análises de obras típicas desse movimento: A interminável
Chapeuzinho, o ciberpoema “Chá”, Princesas esquecidas ou desconhecidas...
e Todos contra D@nte. Os dois primeiros, obras no suporte digital, internet; os
demais, no suporte impresso, livro. Com eles, procuramos aplicar a teorização
apresentada nos capítulos anteriores e mostrar, de forma prática, a evidência e
abrangência do fenômeno.
É preciso deixar claro que, para uma prática de leitura hipertextual
plena, é preciso habilidade e proficiência do leitor nesse tipo de leitura. Um
indivíduo menos habituado ao suporte hipermidiático e a essa forma de leitura
pode se sentir perdido no “labirinto” de hipermídia. Nesse caso, a leitura tende
a se tornar desinteressante e/ou vertiginosa (caracterizada, por exemplo, por
cliques impulsivos sobre os links, pela ausência de consciência nas escolhas e
nos caminhos, e pela perda do foco, dos objetivos da leitura).
205
Contudo, como vimos, não a hipermídia e a leitura imersiva tem
vantagens e limitações. Cada suporte e tipo de leitura, dadas suas
características, serve melhor a determinadas práticas que a outras. Assim,
cabe ao leitor contemporâneo escolher dentro da imensa gama de textos e
suportes que tem à disposição, aquele que, num dado momento e para certo
interesse, mais o satisfaz.
Assim, para que o leitor possa escolher caminhos e usufruir dessa
multiplicidade de alternativas, é necessário que ele tenha habilidade nos vários
tipos de leitura, textos e suportes. Dessa forma, a sua formação plena, deve
contemplar toda essa variedade. Nesse sentido, acreditamos que a
substituição dos conceitos tradicionais de leitura, texto e literatura, por outros
que contemplem, para além do verbal a multiplicidade de códigos, a
interatividade e a hipertextualidade, é um primeiro passo para que a escola
inclua em seus currículos, um ensino de leitura mais adequado às práticas e
demandas contemporâneas.
Dessa forma, a influência das novas mídias não se restringe ao fazer
literário para as crianças. A cultura digital é um fenômeno de amplo alcance,
abrangendo as várias esferas da sociedade e afetando diversas áreas do
conhecimento, como a literatura em geral, as artes como um todo e as práticas
educativas.
O que nos propusemos aqui foi estudar uma amostra desse
fenômeno geral, verificando algumas das principais marcas da hipermídia na
literatura para crianças. Além disso, em decorrência das transformações
206
sociais que as novas mídias têm provocado, evidenciando certos modos de ler
e de escrever, vimos necessidade de redefinir os conceitos de texto e leitura,
nos moldes propostos. Dada a complexidade do problema, temos a
consciência de que algumas relações podem nos ter escapado. Contudo, trata-
se de um panorama fiel e aprofundado do fenômeno.
Esperamos que este trabalho contribua para a pesquisa em
Literatura Infantil, para os Estudos Comparados de Literatura como um todo,
bem como para a Comunicação, as Artes e a Educação, ficando para
pesquisas futuras responder às questões que permanecem em aberto, bem
como verificar de que forma esse processo se transforma daqui em diante.
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