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Os policiais são apontados, no romance, não como defensores da justiça, mas a favor
da tortura:
[...] quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa em volta de uma
saleta. Em cada canto estava um com uma borracha comprida. As marcas que ficaram nas
suas costas desapareceram. Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora.
Corria na saleta como um animal perseguido por outros mais fortes. A perna coxa se
recusava a ajudá-lo. E a borracha zunia nas suas costas quando o cansaço o fazia parar.
(AMADO, 2007, p.31)
Engana-se quem imagina haver completa satisfação nessa condição marginal. No
íntimo, sobrepondo-se aos vícios e contravenções, persiste a ingenuidade doce, a inocência
mansa do ser criança. E, no texto, a prova comovente é a alegria natural com que os ―terríveis
delinquentes‖ se reencontram nas brincadeiras do carrossel de Sem-Pernas e Volta Seca:
Certa hora Nhozinho França manda que o Sem-Pernas vá substituir Volta Seca na venda de
bilhetes. E manda que Volta Seca vá andar no carrossel. E o menino toma o cavalo que serviu
a Lampião. E enquanto dura a corrida, vai pulando como se cavalgasse um verdadeiro
cavalo. E faz movimentos com o dedo, como se atirasse nos que vão na sua frente, e na sua
imaginação os vê cair banhados em sangue, sob os tiros da sua repetição. E o cavalo corre e
cada vez corre mais, e ele mata a todos, porque são todos soldados ou fazendeiros ricos.
Depois possui nos bancos a todas as mulheres, saqueia vilas, cidades, trens de ferro, montado
no seu cavalo, armado com seu rifle.
Depois vai o Sem-Pernas. Vai calado, uma estranha comoção o possui. Vai como um crente
para uma missa, um amante para o seio da mulher amada, um suicida para a morte. Vai
pálido e coxeia. Monta um cavalo azul que tem estrelas pintadas no lombo de madeira. Os
lábios estão apertados, seus ouvidos não ouvem a música da pianola. Só vê as luzes que giram
com ele e prende em si a certeza de que está num carrossel, girando num cavalo como todos
aqueles meninos que têm pai e mãe, e uma casa e quem os beije e quem os ame. Pensa que é
um deles e fecha os olhos para guardar melhor esta certeza. Já não vê os soldados que o
surraram, o homem de colete que ria. Volta Seca os matou na sua corrida. O Sem-Pernas vai
teso no seu cavalo. É como se corresse sobre o mar para as estrelas na mais maravilhosa
viagem do mundo. Uma viagem como o Professor nunca leu nem inventou. Seu coração bate
tanto, tanto, que ele o aperta com a mão. (AMADO, 2007, p. 62).
À noite, entretanto, na solidão cansada do trapiche, virão, como sempre, as cicatrizes,
os medos, os vazios. E também os desejos.Todos, certamente, iguais aos sonhos simples do
Sem-Pernas. E o narrador nos convoca, conciliador:
O que o Sem-Pernas queria era felicidade ,era alegria, era fugir de toda aquela miséria, de
toda aquela desgraça que os cercava e os estrangulava. Havia, é verdade, a grande liberdade
das ruas. Mas havia também o abandono de qualquer carinho, a falta de todas as palavras
boas. Ele queria uma coisa imediata, uma coisa que pusesse seu rosto sorridente e alegre.[...]
Que o livrasse também daquela angústia, daquela vontade de chorar que o tomava nas noites
de inverno. Queria alegria, uma mão que o acarinhasse, alguém que com muito amor o fizesse
esquecer o defeito físico e os muitos anos que vivera sozinho nas ruas da cidade, hostilizado