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amante dela, por exemplo. Para nós, atualmente a simples justaposição dessas duas
imagens, naquela ordem, e até na ordem inversa (começando da rua), nos revela,
claramente, sem que precisemos raciocinar, que o homem viu pela janela, a mulher
e o amante na rua. Nós sabemos; nós o vimos no ato de ver. Interpretamos,
corretamente e sem esforço, essas imagens justapostas, essa linguagem. Nem
percebemos mais essa conexão elementar, automática, reflexiva; como uma
espécie de sentido extra, essa capacidade já faz parte do nosso sistema de
percepção. Há oitenta anos, no entanto, isso constituiu uma discreta mas
verdadeira revolução; daí o papel essencial do explicador, apontando os
personagens com o bastão e dizendo: ‘O homem olha pela janela...Vê a mulher
dele com outro homem, na rua...’ E talvez, se a imagem seguinte fosse, por
exemplo, o rosto enraivecido na espreita, desta vez perto da câmera (uma nova
ousadia, nova mudança, novo tamanho da figura, novo uso do espaço) o
explicador continuaria: ‘O homem está furioso. Acabou de reconhecer o amante da
mulher. Está com idéias assassinas... [...] Fiquemos por um momento com o
homem que espreita pela janela a hora da vingança. Agora, a mulher se despede
do amante e se dirige para casa. Olhando para cima, ela vê o marido na janela, e
treme de medo. Quase podemos ouvir seu coração bater. Se, nesse momento, o
marido for filmado do ponto de vista da mulher, diretamente de baixo para cima,
inevitavelmente vai parecer ameaçador, todo poderoso. Apenas a posição da
câmera produzirá esse efeito, independente de nossos próprios sentimentos. Por
outro lado, se virmos a mulher do ponto de vista do marido, de cima para baixo,
ela parecerá amedrontada, vulnerável, culpada. Imaginemos que a cena se passa à
noite. Se o diretor decidir dispor as luzes de modo que o rosto do marido fique
iluminado por baixo, fazendo os dentes brilharem, exagerando os ossos das maçãs
do rosto e as rugas da testa (elemento importante de filmes de horror), o homem
parecerá cruel e aterrador. Por outro lado, uma iluminação suave, impressionista,
pode fazê-lo parecer clemente. [...] tudo faz parte da vida e do amadurecimento de
uma linguagem. [...] Assim, no curto período de alguns anos, empiricamente, em
cima de fracassos e vitórias, elaborou-se a mais surpreendente das gramáticas.
(idem, p.16-17).
A narração de Carrière nos mostra que desde as primeiras seqüências de desenhos até
a sucessão das chapas de projeção da lanterna mágica, “a mão e o olho humanos trabalharam
incansavelmente, e às vezes com surpreendente sucesso, para nos mostra o impossível – para
nos mostrar movimento numa imagem estática”. Portanto, se considerarmos somente este
ponto de vista já podemos dizer que o cinema representou um grande avanço técnico da
humanidade. Mas a verdadeira inovação – complementa Carrière – empolgante, nunca vista e
talvez nunca sonhada – reside na justaposição de duas cenas em movimento, “a segunda
anulando a primeira, ao sucedê-la.”(idem, p.17)
O cinema criou um novo espaço com um simples deslocamento do ponto de vista.
“Por exemplo, os olhos de um homem vagueiam por sobre a multidão e, de súbito, param. Se,
nesse momento, outro personagem for imediatamente focalizado, sabemos que o primeiro
homem está olhando para ele. Se a direção do olhar for bem estabelecida, essa relação fica