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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE LETRAS
REGINA MARIA DE SOUZA
LÉXICO, LÍNGUA e INTERTEXTUALIDADE
BÍBLICA
EM
Memorial do Cristo I e II
DE
DINAH SILVEIRA DE QUEIROZ
Rio de Janeiro
2007
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REGINA MARIA DE SOUZA
LÉXICO, LÍNGUA e INTERTEXTUALIDADE
BÍBLICA
EM
Memorial do Cristo I e II
DE
DINAH SILVEIRA DE QUEIROZ
Tese apresentada por Regina Maria de Souza ao
Departamento de Pós-Graduação de Língua
Portuguesa para a obtenção do grau de Doutor em
Língua Portuguesa.
Orientador: Professor Doutor Cláudio Cezar
Henriques
Rio de Janeiro
2007
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEH/B
Q3 Souza, Regina Maria de.
Léxico, língua e intertextualidade bíblica em Memorial do Cristo I
e II de Dinah Silveira de Queiroz / Regina Maria de Souza. – 2007.
223 f.
Orientador : Cláudio Cezar Henriques.
Tese (doutorado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Instituto de Letras.
1. Queiroz, Dinah Silveira de, 1910-1982 – Crítica e interpretação.
2. Queiroz, Dinah Silveira de, 1910-1982. Memorial do Cristo. 3.
Lexicologia – Teses. 4. Intertextualidade - Teses. I. Henriques,
Cláudio Cezar. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto
de Letras. III. Título.
CDU 869.0(81)-95
REGINA MARIA DE SOUZA
Léxico, língua e intertextualidade bíblica em Memorial do Cristo I e II
de Dinah Silveira de Queiroz.
Tese apresentada como requisito a
obtenção do título de mestre, ao Programa de
Pós-graduação do Instituto de Letras, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Área de concentração: Língua Portuguesa.
Aprovado em ___________________________
Banca Examinadora:
______________________________________________
Claudio Cezar Henriques (UERJ - orientador)
_______________________________________________
José Luiz Jobim de Salles Fonseca (UERJ)
_______________________________________________
Paulo César Costa da Rosa (UERJ)
_______________________________________________
Antônio Martins de Araújo (UFRJ)
_______________________________________________
Lygia Maria Gonçalves Trouche (UFF)
_______________________________________________
André Crim Valente (UERJ - suplente)
_______________________________________________
Maria Teresa Gonçalves da Costa (UERJ - suplente)
_______________________________________________
Rosane Santos Mauro Monnerat (UFF - suplente)
_______________________________________________
Andréa Rodrigues Neylor (UNESA - suplente)
A Deus, pelo Dom da Vida.
À Margarida, minha mãe, que me ensinou a amar a
Deus na beleza das coisas simples da vida.
Aos meus filhos, Patrícia, Bruno, Vinícius, Luiz
Felipe e também Aline, Leandro e Luciana pela
paciência que tiveram comigo e por encherem minha
vida de alegria.
Aos meus irmãos Ana e Claudio, sempre ao meu lado,
me confortam e me incentivam.
À Neva, incansável na labuta do dia-a-dia.
Aos meus amigos especiais, que de perto ou de longe,
são sempre presença amorosa a me dizer que quando
sou fraca é que sou verdadeiramente forte.
Aos meus irmãos de caminhada pelas orações, pelas
partilhas, pela intimidade tão importantes nesse ir-e-
vir da vida.
Aos padres da Congregação do Santíssimo Redentor,
que me acolhem e me educam na fé.
À memória de meu querido pai Carlos e de minha
querida tia-avó Júlia, que me contavam histórias...
À Cristal, Vitória, Eugênia e Happy pela companhia
doce e fiel a qualquer hora do dia ou da noite.
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Professor Doutor Claudio Cezar,
mestre-amigo, por tanto do que aprendi, por tanto do
que conquistei, por sua nobreza de caráter.
A todos os meus mestres do curso de doutorado, pelo
exemplo e pelo saber a mim transmitidos.
E, de modo especial, ao amigo Professor Paulo
Roberto Gonçalves de Melo, coordenador da Cadeira
de Religião do Colégio Sion, pela revisão do conteúdo
de Teologia desta tese.
A medida do amor para que o
possamos dar ao outro será a mesma
medida de convivência que se tenha
em amar o dom da própria vida.
DINAH S. DE QUEIROZ
Resumo
SOUZA, Regina Maria de. Léxico, língua e intertextualidade bíblica em Memorial do
cristo I e II de Dinah Silveira de Queiroz. 2007. 223 f. Tese (Doutorado em Letras) –
Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
Esta pesquisa apresenta a obra Memorial do Cristo, de autoria de Dinah Silveira
de Queiroz, em seus dois volumes: Eu Venho e Eu, Jesus. Esses dois livros juntos
narram uma única história, a autobiografia de Jesus Cristo. Esta tese discute os aspectos
lingüísticos e literários, sendo focalizados principalmente o léxico que caracteriza a
intertextualidade com a Bíblia, o campo semântico e a estrutura sintático-gramatical.
Um capítulo foi dedicado ao estudo de fatos relativos à vida da autora por influenciarem
de forma significativa o seu estilo.
Palavras-chave: lexicologia; interdisciplinaridade; intertextualidade.
Abstract:
This research presents Memorial do Cristo, by Dinah Silveira de Queiroz, in its
two volumes: Eu Venho e Eu, Jesus. These books together present one single story,
Jesus Christ´s autobiography. This thesis discusses the linguistic and literary textual
aspects, focusing mainly on the lexicon that characterizes the intertextuality with the
Bible, the semantic field and the syntactic and grammatical structure. One chapter has
been dedicated to facts of the life of the author because they have significantly
influenced her style.
Keywords: lexicology; interdisciplinarity; intertextuality.
ABREVIATURAS DOS LIVROS BÍBLICOS
Ab – Abdias
Ag – Ageu
Am – Amós
Ap – Apocalipse
At – Atos dos Apóstolos
Br – Baruc
Cl – Epístola aos Colossenses
1Cor – 1ª Epístola aos Coríntios
2Cor – 2ª Epistola aos Coríntios
1Cr – 1º Livro das Crônicas
2Cr – 2º Livro das Crônicas
Ct – Cântico dos Cânticos
Dn – Daniel
Dt – Deuteronômio
Ecl – Eclesiastes
Eclo – Eclesiástico
Ef – Epístola aos Efésios
Es – Esdras
Est – Ester
Ex – Êxodo
Ez – Ezequiel
Fl – Epístola aos Filipenses
Fm – Epístola a Filêmon
Gl – Epístola aos Gálatas
Gn – Gênesis
Hab – Habacuc
Hb – Epístola aos Hebreus
Is – Isaías
Jd – Epístola de Judas
Jl – Joel
Jn – Jonas
Jo – João
1Jo – 1ª Epístola de João
2Jo – 2ª Epístola de João
3Jo – 3ª Epístola de João
Jô – Jó
Jr – Jeremias
Js – Josué
Jt – Judite
Jz – Juízes
Lc – Lucas
Lm – Lamentações
Lv – Levítico
Mc – Marcos
1Mc – 1º Livro dos Macabeus
2Mc – 2º Livro dos Macabeus
Ml – Malaquias
Mq – Miquéias
Mt – Mateus
Na – Naum
Ne – Neemias
Nm – Números
Os – Oséias
1Pd – 1ª Epístola de Pedro
2Pd – 2ª Epístola de Pedro
Pr – Provérbios
Rm – Carta aos Romanos
1Rs – 1º Livro de Reis
2Rs – 2º Livro de Reis
Rt – Rute
Sb – Sabedoria
Sf – Sofonias
Sl – Salmos
1Sm – 1º Livro de Samuel
2Sm – 2º Livro de Samuel
Tb – Tobias
Tg – Epístola de Tiago
1Tm – 1ª Epístola a Timóteo
2Tm – 2ª Epístola a Timóteo
1Ts – 1ª Epístola aos
Tessalonicenses
2Ts – 2ª Epístola aos
Tessalonicenses
Tt – Epístola a Tito
Zc – Zacarias
SUMÁRIO
ABREVIATURA DOS LIVROS BÍBLICOS
1 Introdução...........................................................................................................11
2 Metodologia........................................................................................................15
3 A Mulher, a escritora, a palavra..........................................................................22
4 Dois romances, uma obra....................................................................................36
5 Léxico, língua e intertextualidade bíblica em Eu Venho:Memorial do CristoI..44
6 Léxico,língua e intertextualidade bíblica em Eu,Jesus:Memorial do CristoII 135
6.1 Parábolas..................................................................................................143
6.2 Pregações..................................................................................................148
6.3 Milagres....................................................................................................164
6.4 A caminho com Jesus...............................................................................174
6.5 Encontros e desencontros.........................................................................187
7 Conclusão..........................................................................................................214
8 Referências bibliográficas.................................................................................216
11
1. INTRODUÇÃO
O Memorial do Cristo, escrito por Dinah Silveira de Queiroz, é composto por dois
romances, o primeiro, Eu Venho, e o segundo, Eu, Jesus. Ambos se completam e
integram uma única obra, cujo tema é a biografia de Jesus Cristo. Os romances narram a
vida do protagonista tanto no que se refere a fatos históricos comprovados de sua
existência, bem como a realidade de fé, aquela que se torna verdade sob a experiência
individual que cada pessoa faz com Deus. Importa ressaltar que, além disso, por meio
da permissão poética, Dinah cria na ficção o inusitado e acrescenta no romance fatos
nunca comprovados da vida de Jesus, mas que, tão integrados estão a todo o contexto
literário e histórico, que se tornam realidade no imaginário do leitor, fazendo-o sentir-se
mais íntimo ao homem Jesus de Nazaré, à vida, às tradições e costumes daquela época.
É uma narrativa em primeira pessoa, na qual Jesus, o narrador-personagem, tem voz e
ação para recontar sua própria história. Explica a autora:
Fazendo o Cristo falar na primeira pessoa, eu usava de um “recurso
literário”, não pretendendo entrar no mistério mesmo da Encarnação.
Eu o fazia, como o faço neste livro, para colocar o leitor mais próximo
de Jesus, quando as obras religiosas têm, em geral, um caráter de
distanciamento muito grande entre o ser humano e a divindade. (Eu,
Jesus, p. xiii)
Dinah Silveira de Queiroz produziu extensa obra literária durante os quase 40
anos de sua jornada como escritora, cuja arte foi reconhecida no Brasil e no exterior,
assunto que será estudado mais adiante nesta pesquisa. Muitos e dignos nomes presentes
no meio literário dirigiram palavras elogiosas ao Memorial do Cristo I e II. Dentre
tantas destacamos a opinião de Autregésilo de Athayde:
Dinah Silveira de Queiroz realizou uma obra transcendente, tanto pelo
valor moral, como pela beleza das intenções na ordem religiosa.
Escreveu agora um Memorial do Cristo falando na primeira pessoa e
embora na linha evangélica, ampliando pensamentos e a ação de
Jesus. Há quem critique semelhante ousadia. Eu não. Prefiro aplaudir
a idéia, que envolve uma novidade e mostra como à margem dos fatos
históricos e das palavras incontestavelmente pronunciadas é possível
construir, na mesma linha de responsabilidade, não um novo Cristo,
mas um Cristo oculto que deve ter autenticamente existido. (Eu, Jesus,
orelha)
O subtítulo dado à obra, Memorial, significa mais do que simples lembrança, pois,
12
como vemos no dicionário Houaiss, “memorial” é ‘relato de memórias; obra, relato
concernente a fatos ou indivíduos memoráveis’. Portanto, são memórias e fatos
concernentes à história e à pessoa de Jesus Cristo e dos personagens envolvidos nessa
história, no contexto social, político e religioso, e no drama que se desenvolve. Tendo
escolhido usar como fonte de pesquisa os quatro evangelhos da Igreja Católica, de
acordo com a tradução da Bíblia dos Jesuítas, diz-nos Dinah:
Cerquei-me de teólogos postos nas estantes de minha biblioteca (...)
Essa biblioteca, eu a organizei, livro por livro, durante dois anos em
que mandei vir do Exterior muitos volumes (...) Cabe , pois, ao autor o
infinito campo histórico onde Jesus apareceu — ao mesmo tempo em
que pululavam os falsos profetas — e tomar os evangelistas como
nossos verdadeiros e santos historiadores. (Eu Venho, p. xiii)
A autora teve o cuidado de estudar a História da época, para recompor os
costumes do tempo de Jesus e para citar dados históricos. E afirma com humildade a sua
ousadia em fazer o Cristo falar e em ter vivido uma aventura sagrada. Um dos motivos
de sua inquietação foi ter conhecido muitas divergências entre os estudiosos da
Teologia. O empreendimento de Dinah foi então confirmado pelo pronunciamento do
Monsenhor Bonelli, feito 23 de fevereiro de 1975, em nome de sua Santidade o Papa
Paulo VI, que recebera Eu Venho como presente. Diz o Monsenhor:
Através da Nunciatura Apostólica no Brasil, quis ter o gesto delicado
de oferecer ao Sumo Pontífice um livro de sua autoria, com
significativa dedicatória (...) Tenho o gosto de comunicar-lhe que o
Santo Padre apreciou esse testemunho de veneração; e, agradecido,
invoca sobre a Senhora e sobre os seus entes queridos a abundância
dos favores divinos, em auspício dos quais e como sinal de
benevolência lhe concede a implorada Bênção Apostólica. (Eu Jesus,
contracapa)
Dentre os vários romances por ela escritos, consagrados pelo público e pela
crítica, o Memorial do Cristo I e II, foi por nós lido e experimentado de uma forma bem
pessoal — pois se trata de obra que revelou em Dinah a arte da palavra, o talento, o
lirismo e a experiência do sagrado que completava a busca que definiria a escolha do
material de pesquisa sobre o qual decidimos trabalhar.
Aqui pretendemos apresentar a linguagem usada pela escritora para gerar a obra
literária, a harmonia entre história, fé e ficção, de tal forma que não há limites entre um
e outro conteúdo, porque tudo aquilo que não é real passa a ser no romance.
13
É de particular interesse o léxico utilizado por Dinah na construção do seu texto,
que comprova a intertextualidade com as Sagradas Escrituras, pois a autora, ora
transcrevendo, ora fazendo uma releitura, confirma a Bíblia como linguagem fundadora
da obra. A partir também do léxico, é possível comprovar quando o texto ficcional se
afasta da linguagem fundadora, construindo assim uma nova realidade de acordo com a
análise do discurso, como se lê em Dominique Maingueneau dentre outros. Interessam-
nos as particularidades da língua, os usos gramaticais e as construções sintáticas que
produzem as diferentes conotações que caracterizam o campo semântico estudado em
ambos os romances.
Tendo como ponto de partida palavras-chave que marcam determinado contexto e,
muitas vezes, trabalhando a etimologia dessas palavras, tentaremos explicar suas
significações na obra e apontar os vínculos que pretendemos confirmar com o seu
arquétipo. Pra tal usaremos como principal fonte de consulta o Dicionário Houaiss e
faremos, quando necessário, algumas transcrições da Bíblia e do romance, a fim de
comprovarmos a analogia ou o afastamento entre ambos os textos.
No estudo de Eu Venho, fizemos a releitura do livro a partir da seqüência textual
como se apresenta no romance, incluindo as considerações pertinentes a cada situação.
Esse primeiro volume da obra é apresentado em 42 capítulos, compondo um total de
183 páginas, cuja história narra a vida de Jesus desde a concepção até o início de sua
vida pública. O romance Eu, Jesus completa a história do primeiro, narrando os fatos da
vida pública de Jesus até sua morte e ressurreição. São mais 65 capítulos, narrados em
271 páginas. Nesse livro optamos por trabalhar distribuindo os capítulos entre temas de
acordo com o conteúdo da mensagem e trabalhamos a intertextualidade bíblica e
acrescentamos comentários que esclarecem as situações daquele contexto. Nas citações
atestatórias, adotamos como critério colocar entre parênteses as indicações
bibliográficas, na seguinte ordem: em primeiro lugar as páginas referentes ao romance
estudado; em seguida, quando houver intertextualidade, o livro do Novo Testamento
e/ou do Antigo Testamento. Nos títulos dos capítulos dos romances, mantivemos as
iniciais maiúsculas e nos títulos dos capítulos bíblicos, seguindo o padrão da Bíblia, só a
primeira palavra terá inicial maiúscula, a menos que se trate de nome próprio.
Sempre que ocorrer intertextualidade com a Bíblia, os textos correspondentes do
romance e do Antigo Testamento ou do Novo Testamento serão informados. Para as
nomenclaturas dos livros bíblicos existem abreviaturas determinadas, as quais listamos
em seção à parte no início deste trabalho.
14
Diante dos esclarecimentos, confirmamos nossa proposta em focalizar o Memorial
do Cristo I e II, tendo em vista o léxico, a língua e a intertextualidade com a Bíblia.
Pretendemos estudar a etimologia e algumas acepções de palavras-chave relativas ao
romance que também fazem parte da linguagem bíblica. Além disso, quando for
oportuno, trabalharemos os elementos implícitos do texto, associando aspectos
semânticos, discursivos, gramaticais e estilísticos da língua portuguesa, acusando a
possibilidade das várias leituras, incluindo o fato de suas significações se afastarem da
linguagem fundadora.
Ressaltamos que o corpus utilizado é uma manifestação lingüística que se atualiza
de várias formas no contexto da nossa sociedade, caracterizando uma comunicação
entre aqueles que participam da fé cristã e criando assim uma espécie de familiaridade
por meio da qual os indivíduos se reconhecem. Acrescente-se ainda, à guisa de
esclarecimento, a necessidade de se estudar esse tipo de léxico como mais uma
institucionalização dessa linguagem, tornando-a, como propõe a autora, mais simples e
íntima com a própria História de Jesus Cristo.
Esta pesquisa se apresenta para nós com um sentido especial, porque promove a
oportunidade de trabalharmos com a Língua tornada Arte e com o Sagrado tornado
Literatura. Nela nos envolvemos de mente e espírito, procurando comunicar as nossas
interpretações e descobertas. Que possamos concluir com a voz de Dinah, que diz: “E
que o Grande Sedutor que enfim me arrebatou, através destas páginas, possa para
sempre arrebatá-los” (Eu, Jesus, p. xiv)
15
2. METODOLOGIA
Na pesquisa que apresentamos sobre o Memorial do Cristo, buscamos
fundamentar nosso estudo sobre conceitos teóricos da língua, indispensáveis para a
análise da obra. Citamos como foco de estudo a intertextualidade dos dois romances
com a Bíblia, o gênero a que pertencem, a seleção vocabular, as formações sintático-
semânticas do texto, o estilo da autora ao escrever a prosa ficcional, em especial a
desenvolvida sobre o tema, a autobiografia do Cristo, narrada em primeira pessoa,
motivo da intertextualidade. “Léxico, Língua e Intertextualidade Bíblica em Memorial
do Cristo, de Dinah Silveira de Queiroz”, título do trabalho, sintetiza os assuntos sobre
os quais nos debruçamos.
A metodologia que orientará o percurso que faremos para atingir nosso objetivo
pretende tornar claros os conceitos que atravessarão esta pesquisa e atestá-los segundo
especialistas dos estudos lingüísticos, pois é fato que a multiplicidade da terminologia
veiculada nas diferentes escolas de pensamento pode gerar ambigüidade se não for bem
esclarecida (cf. Marques, 1999, p. 58). Essa metodologia irá nortear nosso estudo em
relação às necessidades de uso das teorias lingüístico-gramatical, léxica e literária, que
serão aplicadas sobre o tema abordado e as escolhas relativas ao fazer literário da
autora.
Maria Helena D. Marques comenta assim o tema da escolha de palavras e uso da
língua como veículos de comunicação:
Desde a mais remota antigüidade, o bom uso da linguagem, os
efeitos expressivos de uma adequada escolha de palavras, a eficácia do
dizer corrente do emprego de recursos da língua apropriados à
veiculação de dados cognitivos, afetivos, estéticos, de acordo com
princípios lógicos e meios retóricos, são elaborados tanto para
elaboração de textos quanto para sua interpretação (...) o exame de
aspectos semântico-estilísticos tem ampla propagação e evolui no
sentido de se tornar um domínio de estudo paralelo ao lingüístico-
gramatical (Marques, 199, p. 37-38)
Considerando ainda a proposta de Marques sobre as questões da linguagem,
entendemos que o seu bom uso determina a veiculação do pensamento de forma
16
inequívoca e a eficácia da comunicação que, dentre outros recursos, depende da escolha
de palavras no processo comunicativo.
Para entendermos melhor esse processo, vamos considerar o conceito de símbolo.
Para Ogden e Richards, “os símbolos dirigem e organizam, registram e comunicam. Ao
estabelecer-se o que eles dirigem e organizam, registram e comunicam, temos que
distinguir entre Pensamento (referência) e Coisa (referente)” (p. 30). Segundo os
autores, o pensamento é o que pode ser dirigido, organizado, registrado e comunicado,
estabelecendo uma relação direta com os símbolos. As palavras não têm significado por
si mesmas, a menos que elaboradas e usadas por algum pensamento, já que o símbolo e
o referente não possuem relação direta e se processam na mente do falante/ouvinte. Daí
o papel dos símbolos na influência do pensamento e da linguagem, tão bem ilustrado no
triângulo semiótico que mostra um conceito triádico que leva em conta as relações entre
o símbolo, o pensamento e a realidade (cf. Ogden e Richards, p. 30-32).
Como destacamos desde início, um de nossos objetivos é trabalhar a escolha de
palavras feita por Dinah, o que ganhará corpo no texto que traduz O Memorial do Cristo
I e II. Assim, apresentamos o significado de léxico, colhido no dicionário Houaiss, no
qual encontramos duas acepções com a rubrica “lingüística”. A primeira propõe ser o
léxico “o repertório total de palavras existentes numa determinada língua”, e a segunda,
a “relação de palavras empregadas com sentido diferente do da língua comum, com as
respectivas explicações, ou relação das palavras usadas por um autor, um grupo social
etc.; vocabulário”. Portanto, em consonância com a segunda acepção, cabe-nos como
tarefa trabalhar os dois romances, compondo um rol de palavras selecionadas, isto é,
aquelas que remetem à intertextualidade entre a obra e a Bíblia. O estudo, ao longo
desta pesquisa, indicará um “vocabulário” próprio de Dinah Silveira de Queiroz,
relativo ao seu Memorial do Cristo I e II. Aplicamos a essa recolha a etimologia de
algumas palavras, o que facilitará a compreensão da denotação e/ou conotação,
considerando a denotação o sentido básico de uma palavra e a conotação, as diversas
combinações associativas de significado dessa palavra, usadas em um determinado
contexto. O papel do contexto seria o de torná-las menos imprecisas “ao definir os
demais elementos que se somam ao sentido básico” (Marques, 1999, p. 62). Entramos
desta forma no campo da polissemia, cuja característica principal é destacar “os matizes
diversos de um mesmo sentido básico de um nome” (Marques, 1999, p. 65), ou, como
diz Orlandi, a constituição do texto pela interação, e isso nos obriga a considerar não
apenas o sentido literal, mas também seus múltiplos sentidos (cf. p. 163). Em nossa
17
análise, levamos em conta a semântica diacrônica e as possíveis alterações de
significado provocadas pela evolução de um nome em decorrência de causas diversas.
Pensemos sobre o sentido de texto com o qual trabalhamos nesta pesquisa e
consideremos o que Ingedore Villaça Koch nos explica diante das idéias de Vigotsky
sobre a atividade verbal, que se realiza a partir de uma necessidade de caráter individual
e psíquico que diz respeito ao falante, mas determinada dentro de um dado contexto
social. Podemos então dizer que existe uma “adaptação ao fenômeno da ‘linguagem’ de
uma teoria da atividade de caráter filosófico, articulada com uma teoria da atividade
(social) humana, que se especifica em uma teoria da atividade (comunicativa) verbal”
(Koch, 12). Para referir-se à articulação lingüística, Koch cita ainda Leont’ev, para
quem essa articulação se faz principalmente mediante signos de uma determinada
língua, que funcionam como ‘estímulo’ a partir dos quais construímos a expressão
comunicativa com objetivo determinado.
Seguindo a proposta de Orlandi, o que define o texto “não é sua extensão, mas o
fato de que ele é uma unidade de significação em relação à situação” (p. 159). Portanto,
não podemos deixar de considerar que esse processo de significação se estrutura no
discurso e se concretiza na interlocução, processo de interação entre falante e ouvinte. O
conceito pressupõe que o discurso seja a linguagem em relação às suas condições de
produção, cuja existência depende do grupo social. O sujeito do discurso produz
linguagem, mas é também reproduzido nela, pois o seu dizer nasce em outros discursos.
Destarte, consideramos texto, discurso e diálogo como noções que se equivalem. Assim,
quando nos referimos aos recortes que fazemos na pesquisa, estamos falando de
“recortes discursivos que o analista isola no interior de um campo discursivo tendo em
vista propósitos específicos de análise” (Brandão, 73). Queremos, através deles, levantar
hipóteses a serem confirmadas ao longo da pesquisa. “Do ponto de vista discursivo, as
palavras, os textos, são parte de formações discursivas que, por sua vez, são partes de
formação ideológica” (Orlandi, p. 158). As variações ideológicas marcam o léxico de
forma diferente (p. 123), já que são seleções feitas por diferentes grupos ideológicos,
fato que importa particularmente à proposta de trabalho neste estudo.
Com relação à ideologia, é necessário levar em conta a especificidade de sentido
que assume esse conceito no Memorial do Cristo I e II, o qual se estrutura sobre o
discurso religioso. Como afirmamos, Dinah é fiel à ideologia cristã, condição que a leva
a aceitar um sistema de idéias, tradições e princípios sustentados pela Igreja Católica,
com a qual assume um compromisso moral e religioso. Diz Brandão que uma ideologia
18
não explicita tudo a fim de não correr o risco de se expor, de revelar contradições,
valendo-se de manobras tais como “lacunas, silêncios, que preservem a coerência de seu
sistema” (Brandão, p. 21).
Não obstante o fato de ser católica fervorosa, enquanto autora Dinah transita pelo
campo da ficção, criando o novo em seu texto com a licença poética própria do fazer
literário. Ao não-dito (cf. Orlandi, p. 137), são explicitamente incorporados novos fatos
que, através da arte, em consonância com a história da época, tradições e costumes,
preenchem de forma coerente essas “lacunas” existentes no texto sagrado. Ou ainda, de
forma implícita, questões veladas, muitas vezes presentes ocultamente no interior do
interlocutor por serem consideradas dogmas, surgem em um discurso retórico; as
respostas às questões virão à luz como metáforas cuja completude do discurso se dará,
ou não, no pensamento do leitor.
Voltando nosso olhar para o Memorial do Cristo e seguindo a proposta de Koch,
afirmamos a “boa composição” do texto de Dinah, cuja coerência das unidades
lingüísticas selecionadas e organizadas garante o plano de composição, qual seja, a
realização da intenção de comunicar ao grupo social — os leitores — a autobiografia de
Jesus. O texto revela, dentre outras, a função referencial da linguagem, por apresentar a
narração de um fato histórico, a vida de Jesus, e alcança sua legitimidade social por ser
o reflexo de traços da própria experiência de vida da autora e, principalmente, por
fundamentar-se no arquétipo institucionalizado, a Bíblia (cf. Koch, 15). Ou, como
explica Orlandi, a institucionalização vai fixar e sedimentar um sentido dominante,
atribuindo-lhe prestígio e legitimidade. É desse saber institucionalizado que Dinah se
apropria para criar sua obra.
Sabemos que a intertextualidade está presente nos dois romances porque se trata
da reescritura da vida de Jesus Cristo, segundo os quatro evangelistas: Mateus, Marcos,
Lucas e João. De acordo com o conceito de Malarmé apresentado por Laurrant Jenny, é
a intertextualidade que define “a própria condição de legibilidade literária” (Jenny, p.5),
já que o texto literário surge como uma linguagem secundária que transforma ou
transgride o seu arquétipo, deixando em alguns casos transparecer a relação explícita
com outros textos no nível do uso do código, como também no nível do conteúdo
formal da obra, como é o caso da imitação, da paródia, da citação, bem como da
paráfrase.
Analisando-se a abordagem feita por Afonso Romano de Sant’Anna sobre o
assunto, é possível classificar o Memorial do Cristo como uma paráfrase do texto
19
bíblico. Vale lembrar que a paráfrase, segundo a sua etimologia, significa a
interpretação ou a tradução livre quanto à forma, ou seja, uma definição oficial desse
vocábulo seria a reafirmação, por meio de palavras diferentes, do mesmo sentido de
uma obra (cf. Sant’Anna, p.17).
Na mesma linha em que vimos estudando, Ingedore V. Koch (p. 46) apresenta, na
tentativa de distinguir entre um e outro conceito, uma reflexão sobre a intertextualidade
e a polifonia e a construção do sentido no texto.
Com relação à polifonia, a autora cita Ducrot para estabelecer os pontos de vista
que podem representar um enunciado. Neste caso, enunciado diz respeito a uma
representação teatral da enunciação, de cuja cena participam as figuras do discurso,
quais sejam “o locutor — responsável pelo enunciado; enunciadores — encenações de
pontos de vista diferentes no interior do enunciado” (Koch, p. 50). Diz ainda que Ducrot
considera que há polifonia quando existe mais de um locutor em um mesmo enunciado.
Orlandi chama a atenção em relação ao problema das vozes do discurso. Há sempre
uma voz por trás da voz, chamada de discurso referidor e referido. Segundo a autora,
“todo discurso é ao mesmo tempo referidor, pois contém uma análise de outros
discursos, responde a outros; referido, porque é sempre produzido no interior de
instituições que possuem regras precisas” (Koch, p. 78).
A noção de polifonia vem da distinção que Bakhtin fazia entre o romance
monológico e polifônico. No primeiro os personagens são veículos de uma única
ideologia, ou uma única visão de mundo; no segundo os personagens funcionam como
seres autônomos, os quais exprimem sua própria mundivivência, que poderá ou não
coincidir com a ideologia da própria obra (Lopes, 2003); para Bakhtin, Tolstoi foi o
representante máximo do romance monológico; e Dostoievsky, do romance polifônico.
Observemos o que diz Meserani para entendermos melhor essa proposta:
Intertextualidade é uma expressão do léxico atual da teoria da
literatura criada pela semioticista Julia Kristeva, para designar o
fenômeno da relação dialógica entre textos. As primeiras formulações
sobre esta relação, em termos de imanência do texto e não de
influências marcadas extratextualmente, vêm de dois ensaios pioneiros
de autores ligados ao formalismo russo. O primeiro, “Dostoivesky e
Gogol: contribuição à teoria da paródia”, de J Tynianov, foi publicado
em 1921. Posteriormente, em 1929, surge “Problemas da poética de
20
Dostoievsky”, de M. Bakhtin, a quem se devem as expressões
dialogismo e polifonia transpostas para o campo da crítica e da poética
literárias. (p. 63-64)
Voltando às considerações de Koch quanto à intertextualidade, a autora cita
Barthes quando afirma que “todo texto é um intertexto”, já que outros textos estão
presentes nele em diversos níveis (Koch, p. 46). Ela distingue a intertextualidade em
sentido amplo, da intertextualidade em sentido restrito, e buscamos em ambos os
conceitos fundamentação para os nossos argumentos.
Considerando a intertextualidade em sentido amplo, Koch apresenta a proposta de
Maingueneau, sob o ponto de vista da Análise do Discurso, afirmando ser o intertexto
decisivo na produção de um discurso, já que este “constrói-se através de um já-dito em
relação ao qual toma posição” (cf. Koch, p. 47), bem como a de Pêcheux, que diz que “o
discurso se estabelece sempre sobre um discurso prévio” (cf. Koch, p.47). São textos já
produzidos, relativamente autônomos, que participam da construção de outros novos,
que podem não aparecer explicitamente no discurso produzido, daí a necessidade do
conhecimento sobre determinada cultura ou gênero, armazenado na memória do usuário
para torná-lo capaz de processar a analogia, fato que nem sempre acontece. É nossa
proposta atuar como agentes desse processo de atualização, despertar a memória desses
conhecimentos, evidenciar a intertextualidade em sentido amplo ou restrito, e apontar a
analogia entre os intertextos, sempre que for relevante no contexto da obra e pertinente
aos nossos objetivos.
Ingedore V. Koch considera como conceito restrito de intertextualidade a relação
de um texto com outros textos previamente existentes. Diz também que a
intertextualidade será implícita ou explícita. No caso da intertextualidade explícita
ocorre a clara citação da fonte, e a retomada do texto original para encadeá-lo no
discurso. A autora considera que esse é o caso da paráfrase.
Abordemos ainda a questão das semelhanças e diferenças na intertextualidade em
seu sentido restrito (cf. Koch, p. 50). No caso das semelhanças o texto reapresenta o
intertexto a fim de confirmar a argumentação original — como apontaremos nos
romances, nos devidos capítulos — já que a autora se apropria do texto bíblico para
reconstruí-lo como paráfrase. Porém, tratando-se da intertextualidade das diferenças,
observaremos também a produção de textos, na voz de Jesus, em que o enunciador se
21
apropriará de enunciações de origem indeterminada, e que são consideradas verdades
legitimadas pela tradição do povo judeu. Num primeiro momento o enunciado as
reconstrói para, a seguir, desconstruí-las e, provocando uma certa ironia sobre o antigo,
criar um novo saber, como é o caso das parábolas e das pregações de Jesus.
Voltamos a afirmar que o Memorial do Cristo é a reescritura dos evangelhos do
Novo Testamento e de trechos de alguns livros do Antigo Testamento, como teremos
oportunidade de comprovar nos capítulos seguintes desta pesquisa. Consideramos a
obra uma paráfrase da Bíblia de acordo com os conceitos expostos que nos dão o
embasamento teórico necessário. Podemos assim também dizer que Dinah é a autora
autorizada a essa reprodução, tendo em vista a afirmação de Maingueneau quando diz
que, “remetendo ao código lingüístico e/ou ao saber que ele presume, a paráfrase coloca
aquele que a ela recorre em posição de enunciador ‘autorizado’, capaz de dominar os
signos” (Maingeneau, p. 97).
22
3. A MULHER, A ESCRITORA, A PALAVRA
Ilustre personagem da literatura brasileira, Dinah Silveira de Queiroz encontra-se
viva e presente no nosso meio através do grande legado da obra imortal que encantou e
sempre encantará crianças, jovens e adultos, não só no Brasil, mas por esse mundo
afora. Deve-se registrar que, além da escritora consagrada pelo público leitor, pela
crítica e por respeitáveis nomes na área das Letras, foi reconhecida pela dignidade e
nobreza da mulher, que tão bem soube revelar durante toda sua vida até o momento
derradeiro.
Senhora de um extraordinário dom para criar personagens, enredos e paixão,
Dinah certamente o fez com a alma repleta de riqueza e sensibilidade, atingindo, através
de inúmeros textos que ilustram páginas no Brasil e no exterior, tantas outras almas
ávidas da magia, respostas a seus próprios anseios e questionamentos, expressas com a
competência de quem tem o domínio de sua arte.
Pretendemos neste capítulo destacar o nome de tão dileta personalidade,
apresentando o estudo que fazemos sobre a obra literária e a vida de Dinah Silveira de
Queiroz. Muitas são as fontes onde buscamos informações, as quais nos ajudam a
revelar a face da mulher e a excelência da escritora, fato que nos permite consolidar a
admiração que por ela sentimos. Fica, no entanto, a certeza de que muito ainda há que
ser dito, já que a obra de arte é extensa e aberta a quem se proponha a fazer novas
descobertas e novas interpretações.
Incansável escritora legou-nos muitos títulos que compõem o acervo de sua
autoria. Ao longo dos 44 anos de brilhante carreira, Dinah Silveira de Queiroz, com
habilidade e competência, com reconhecido zelo pela língua portuguesa e pelo seu dom
de recriar a realidade, transitou por diversos gêneros literários, sobre os quais
dissertaremos mais adiante, afirmando-se definitivamente na literatura moderna
brasileira no campo do romance. Como ela própria narra em sua crônica “O gato que
não sonha mais”, “Talvez sonhe essa cronista de menos. E por isso faça seus romances”,
como sua forma de sonhar acordada, assim como aquele gato “símbolo dos doidos
mansos que passam adiante as suas histórias... ou crônicas” (in Josef, p. 35).
Dinah Silveira de Queiroz nasceu na capital de São Paulo, em 9 de novembro de
1911, numa rua onde hoje se encontra a Estação Sorocabana (Josef, p. xi). Sua casa, a
menina amou, e guardou doces lembranças do tempo em que lá viveu com a família,
com a jovem mãe que tão cedo lhe foi tirada. Em “Rua Piauí, 36”, título de uma de suas
23
crônicas, ela nos diz:
Depois dos anos em que tomei forma, em que cresci, amei, casei, criei
filha e me fiz escritora, eis que volto ao paraíso, aquele céu que é a
infância... Existe uma casa em São Paulo – Rua Piauí, 36... Ninguém
amou aquela casa... tanto quanto eu ... Do fundo desse jardim, hoje de
sonho, foi que nasci para a gravidade das relações humanas... Quando
eu morrer, meu fantasma caminhará radiante por aqueles canteiros, irá
mergulhar na luz verde do jardim de inverno. O que a viva não faz
senão em sonhos, fará a morta em sua liberdade. Será um agrado sem
fim... E tomarei posse do que me pertence por direito de amor. (in:
Josef, p. 5-7)
Dinah pertenceu a um dos troncos da elite paulista, a uma das famílias brasileiras
que mais contribuiu com o mundo literário. Era descendente de bandeirantes por parte
de Carlos Pedroso da Silveira, descobridor das minas de Sabarabuçu, o pioneiro em
cunhar as primeiras moedas de ouro, na época em que o Brasil ainda não tinha direito de
veicular seu ouro (Josef, p. xi). Tinha parentesco com Bárbara Heliodora, heroína nas
lutas revolucionárias das primeiras épocas do Brasil, e com Ebanus, poeta alemão do
século XVI (Perez, p. 111)
1
O pai, Alarico Silveira, advogado, foi secretário da presidência no governo
Washington Luís e ministro do Superior Tribunal Militar, além de autor da Enciclopédia
Brasileira. A irmã, Helena Silveira, escreveu romances e contos; o tio, Valdomiro
Silveira, notável pesquisador da linguagem cabocla brasileira, fundou a moderna
literatura regional brasileira. Agenor Silveira, também seu tio, foi poeta; o primo, Ênio
da Silveira, foi editor; outro primo, Miroel Silveira, conhecido dramaturgo; Isa da
Silveira, sua prima, destacou-se como romancista.
A mãe, Dinorah Ribeiro Silveira, prima de Alarico, era mulher alegre que
encantava parentes e amigos com suas dramatizações artísticas. Ainda muito jovem foi
acometida pela tuberculose, doença que já havia vitimado sua avó materna. A escritora
tinha um ano de idade quando a família teve de residir na Europa por mais de um ano,
primeiramente na Suíça e depois na Itália, para que a mãe pudesse receber o tratamento
de pneumotórax.
De volta ao Brasil, cada uma das irmãs, Helena e Dinah, foi viver na companhia
1
As informações biográficas presentes nesta pesquisa foram, em grande parte, colhidas de Alves,
Dário de Castro. Dinah, Caríssima Dinah. Brasília: Horizonte, 1989, passim 9-187.
24
de um parente próximo, pois Dinorah, ainda muito doente, precisou ir para Campos do
Jordão. A mãe, longe de casa e daqueles a quem amava, percebendo a gravidade de seu
estado, mandou que levassem até ela suas duas filhas para que pudessem se despedir e,
preocupada em evitar o contágio, pediu que lhe entregassem a fita que prendia os
cabelos de Dinah, e ternamente a beijou, enquanto a menina observava à distância. Ela
faleceu em 1914, aos vinte e seis anos.
O sofrimento e a perda da mãe marcaram tão profundamente seu coração de
criança, que muitos de seus textos terão como tema a doença e a morte.
Floradas na Serra, primeiro romance por ela escrito, versa sobre a tuberculose
numa época anterior à descoberta dos antibióticos. Dinah passou um mês em Campos
do Jordão, visitando sanatórios e pensões, a fim de conhecer o ambiente onde
transcorreria a história, e de imprimir desta forma mais realidade à sua obra (Perez, p.
114). O comovente romance revela a oposição entre o mundo de pessoas sadias e
pessoas enfermas, entre a alegria da vida e a dor da morte. Nele, a autora deixa
transparecer sentimentos guardados da própria infância e de sua convivência com a
mãe.
A grande riqueza interior que há na pessoa de Dinah Silveira de Queiroz é
revelada no romance pela ótica positiva que imprime à história, pois – em meio ao
ambiente de enfermidade em que conviviam seus personagens – a autora transmite um
lirismo suave, de encanto e beleza, um chamado à esperança e à alegria de viver.
Editado pela José Olympio em 1939, Floradas na Serra, logo se tornou best-
seller. Foi contemplado em 1940 com o Prêmio Alcântara Machado, da Academia
Paulista de Letras. Encontra-se atualmente disponível ao público em sua 32ª edição,
pela Editora Record. Adaptado ao cinema, foi filmado pela Vera Cruz em 1955, dirigido
por Luciano Salci, e protagonizado por Cacilda Becker. Foi tema de rádio-novela, de
história em quadrinhos e de seriado divulgado em 22 capítulos pela TV Cultura de São
Paulo em 1982. O romance foi também editado em Portugal e na Argentina, tendo sido
publicado pelo Clube del Libro A.L.A., com o título Cuando la Sierra Florece.
Após a morte da mãe, Dinah foi morar com sua tia-avó Zelinda, que influenciou
fortemente a personalidade da menina e a sensibilidade da escritora. Mulher adiante de
seu tempo, guiava automóvel e cuidava da fazenda de sua propriedade, em São José do
Rio Pardo, onde a menina costumava passar temporadas. Dinah amava Zelinda, a quem
chamava de mãe. Deixemos, porém, que a própria escritora nos dê uma breve descrição
de sua tia-avó, através desta crônica, que é também sua expressão de adeus.
25
Começa apenas a noite e uma querida doente está à espera que o dia
amanheça....A janela onde a impossível manhã é esperada devolve
tudo: o casamento de Zelinda, seus primeiros dias numa fazenda que
rompia a mata da Mogiana.... aqueles terríveis colonos...se
revoltavam, ameaçavam, queriam matar... Mas nunca ninguém
esmoreceu; nenhum dos dois – marido e mulher – deixou a fazenda
em mãos alheias... As mãos de Zelinda não faziam outras coisas que
não fossem trabalhos para os mais pobres. Os médicos se revezam.
Cinco filhos cercam o leito da doente... haverá sempre uma palavra de
bem, uma palavra para ser guardada que foi dita por Zelinda. Por
mim, ela era a terra, a pátria. Agora, embora leve saudades, poderei
serenamente fazer as malas porque – ai de mim – não tenho dona.
(“Até o Amanhecer”, in Seleta, p. 39-41)
As visitas freqüentes que seu pai lhe fazia, incentivaram seu gosto pela literatura,
pois ele próprio lia, em voz alta, as narrativas de H.G. Wells, aguçando fortemente a
curiosidade da filha com as passagens da Guerra dos Mundos. E aproveitava a
oportunidade para iniciá-la no conhecimento da Astronomia através dos textos de
Camille Flamarion. A menina, ansiosa pela novidade, deixou-se impressionar por Dom
Segundo Sombra, personagem do livro homônimo, de Ricardo Güiraldes, escritor
argentino, a quem seu pai admirava, e ouvia atenta quando ele lhe falava sobre
literatura, política internacional e ficção científica, ao mesmo tempo em que,
transbordante de jovialidade, transitava fascinada entre matinês e passeios no Parque
Antártica (cf. Josef, p. xii).
Ainda pequenina, iniciou sua vida escolar no Jardim de infância Mary Buarque.
Freqüentou várias escolas, tendo concluído os estudos no Colégio Des Oiseaux, em São
Paulo. Ela e a irmã Helena participaram como colaboradoras principais do “Livro de
Ouro”, que recolhia os melhores trabalhos das alunas. Sua irmã havia adoecido e, por
esse motivo, apenas Dinah recebeu o livro como prêmio no final do curso. Nessa época,
1926, visitou a França e a Itália, em companhia da tia Zelinda.
Em dezembro de 1929, aos 19 anos, casou-se com o advogado Narcélio de
Queiroz, mais tarde juiz e autor de obras jurídicas, além de bibliófilo e grande estudioso
de Montaigne. O casal teve duas filhas, Zelinda e Lea; a primeira, seguindo os passos do
pai, tornou-se também bibliófila. Narcélio orientava as leituras da esposa e incentivou-a
consideravelmente a seguir a carreira literária por reconhecer nela o dom natural para a
arte da escrita. Motivada pelo marido, redigiu então seu primeiro trabalho, o conto
“Pecado” (de 1937), que reúne lembranças da fazenda onde havia passado a infância e a
adolescência. Ao lê-lo, exclamou Alarico: “É Dickens puro!” O conto foi premiado em
26
um concurso latino-americano promovido pela revista Mademoiselle, de Nova York,
que o publicou em agosto 1943. Foi traduzido para o inglês e, mais tarde, incluído na
novela A Sereia Verde, editada pela José Olympio, em 1941.
Dinah caiu em profunda tristeza com perda do pai, falecido em 1943. Acreditou
que não mais voltaria a escrever, tendo, contudo, passado apenas seis meses afastada da
literatura. Apesar disso, só sete anos após voltou a publicar. Em 1950, seu livro
Margarida La Rocque foi editado pela José Olympio. Romance predileto de Dinah, que
no dizer de Renard Perez (p. 115) “representa um abismo de distância num confronto
com seu romance de estréia”. A história transcorre na época dos descobrimentos e
revela o conflito de três personagens: a heroína, que Dinah vai buscar na França, seu
amado e sua ama, para jogá-los numa ilha perdida, onde vivem o terrível conflito ao
qual pode chegar o ser humano, movido pelo ciúme e solidão. Ainda segundo a crítica
de Perez (p. 115), Margarida La Roque é um marco não só dentro da obra de Dinah,
mas representa um grande momento dentro da própria literatura moderna. Foi traduzido
e editado em francês, espanhol, italiano, japonês e coreano.
Seu romance A Muralha é, segundo Marques Gastão (in: Alves, p. 115), a “obra
mestra de Dinah”, pela qual foi louvada e apreciada pelos maiores críticos nacionais e
internacionais. Romance histórico em que a autora reconstrói os costumes e a paisagem
do fim do século XVII revela a força da família paulista, a luta das mulheres que
tomavam conta das fazendas, enquanto os homens participavam das Bandeiras. Os fatos
se desenrolam numa época em que começava a se formar uma consciência nacional
brasileira. Fiel à História, a autora recria, na ficção, personagens cuja existência real é
atestada, mesclando-os com seus próprios ascendentes. O forte caráter da personagem
Mãe Cândida mistura em parte sua avó Maria Cândida e sua tia-avó Zelinda. A voz do
personagem Dom Braz Olinto confirma: “Tudo que acontece eu ponho neste livro. E, se
não acontece, estando no livro, é o mesmo que ter acontecido” (Epígrafe, p. 5). O pai
forneceu-lhe importantes informações que a ajudaram a construir A Muralha, romance
editado pela José Olympio, em 1954, ano comemorativo do IV Centenário da fundação
da cidade de São Paulo. Com esse livro, a autora pretendia homenagear sua terra natal, e
ele, a exemplo do primeiro, tornou-se logo um best-seller. Precedendo sua primeira
edição, o romance foi publicado em folhetins semanais pela revista O Cruzeiro, do Rio
de Janeiro e em formato quadrinizado pela Editora Brasil-América do Rio de Janeiro, na
década de 70. Em 1969 foi levado ao ar, pela TV Excelsior, como novela com mais de
cem capítulos e também teve adaptação para uma minissérie da Rede Globo, com 51
27
capítulos, exibida em 2000, em comemoração aos 500 anos do Descobrimento do
Brasil. A obra foi editada em vários países, dentre os quais, Japão, Coréia do Sul,
Estados Unidos, Paquistão.
Em 1962, um ano depois de enviuvar, casou-se em segundas núpcias, com o
diplomata Dário de Castro Alves que se encontrava na Rússia, como Primeiro
Secretário da Embaixada Brasileira. O casamento realizou-se por procuração, pois
Dinah exercia na Espanha o cargo de Adido Cultural de nossa Embaixada em Madrid,
ao qual renunciaria, a fim de seguir para Moscou, onde residiria com o marido por
quase dois anos, fato que lhe deu a oportunidade de visitar várias repúblicas da URSS,
conhecer bem aquele novo ambiente, seus costumes, suas gentes. A ausência do Brasil
despertou-lhe o desejo de contribuir com a vida brasileira, à qual dedicava crônicas
divulgadas diariamente pela Rádio Nacional, pela Rádio Ministério da Educação, no
Jornal do Commercio e no Jornal A Manhã, que compuseram os livros Quadrante I e
Quadrante II, editados pela Editora do Autor em 1962, e Café da Manhã, editado pela
Olivé em 1969.
2
Em 1974, a Editora José Olympio publica o livro Seleta, que integrava a Coleção
Brasil Moço. Organizado e comentado por Bella Josef, que traça um perfil de Dinah
Silveira de Queiroz, a obra apresenta uma seleção dentre seus vários tipos de textos,
distribuídos em quatro partes: “Crônicas da Terra”, “Crônicas do Mundo”, “Contos”,
“Romances”. Nesse livro encontramos, sob o título “Crônicas da Terra”, sua
manifestação de carinho e atenção às peculiaridades de sua terra e sua gente, como
lemos em “História de Mineiro”, sobre o jovem que, havendo deixado a pobreza do
interior de Minas Gerais, consegue prosperar e manda carta ao pai dizendo, “Meu pai:
com a graça de Deus, posso dizer que já tenho economia suficiente para pretender
realizar qualquer sonho seu. Minha maior felicidade estará em propor: que posso fazer
para alegrá-lo?” (Seleta, p. 3). “Crônicas do Mundo” reúne diversas situações vividas
pela autora em diferentes países. Além de evidenciar seu criador caráter artístico,
revelam a face da mulher acolhedora e solidária, envolvida com o povo, sua cultura, seu
modo de sentir. É ela mesma quem nos adverte “há, em qualquer cidade do mundo,
olhos que possam chorar exatamente como os nossos, pelos mesmos sentimentos, pelas
mesmas Estelas ou estrelas, para sempre perdidas” (A Minha Estela, in: Seleta, p. 67).
2
O livro de Dário de Castro Alves reúne ao todo 27 textos, dentre notas, artigos, testemunhos e
documentos importantes sobre a vida e a obra da escritora.
28
As mudanças que fazia para acompanhar seu marido, Dário de Castro Alves,
vivia-as com intensidade e delas participava ativamente, traduzindo o cotidiano em
palavras, com poesia e arte. Citamos a crônica “Começa Uma Casa”, que reflete
sentimentos vividos por ocasião da ida para Brasília, em 1970.
Andei palmilhando um terreno... No meio daquele marco geográfico,
daquela mera indicação, a metade de um muro surgia falando que a
casa já não estava tão-somente em sonhos e planos... Nossa casa está
vingando no chão de Brasília com a violência daquele pé de feijão da
fábula. (in: Seleta, p. 37-38)
São ainda de sua autoria: As Aventuras do Homem Vegetal, literatura infantil,
Edições Condé, 1951; O Oitavo Dia, teatro com tema bíblico, editado pela José
Olympio; As Noites do Morro do Encanto, contemplado com o prêmio Afonso Arinos,
da Academia Brasileira de Letras e editado pela Civilização Brasileira em 1957,
coletânea de treze contos; Era Uma Vez Uma Princesa, editado pela Record em 1960,
literatura infanto-juvenil, biografia da Princesa Isabel; Eles Herdarão a Terra, editado
pela GRD, também em1960, coletânea de novelas de ficção científica, (gênero de que se
torna precursora no Brasil); Os Invasores, originalmente escrito como peça de teatro,
transformado em romance por Dinah e editado pela Record em 1956. Os Invasores,
romance de caráter histórico, cujo tempo transcorre no Rio de Janeiro no início do
século XVIII, representam uma contribuição ao IV Centenário de fundação dessa
cidade, tendo servido de enredo no desfile de Escolas de Samba no carnaval de 1968.
Em março de 1966, mudou-se novamente para a Europa, acompanhando seu
marido, nomeado Cônsul do Brasil em Roma. Distante de sua terra por um ano e cinco
meses, manteve um programa semanal na Rádio Vaticano, mas continuou escrevendo
crônicas divulgadas no Brasil. Fruto dessa época é seu livro Verão dos Infiéis, editado
pela José Olympio em 1968, romance que narra a história de uma família num contexto
atualizado do Rio de Janeiro, que sofre por três dias o flagelo de violento temporal,
trazendo como questões centrais a religião, a política, o sexo, amplamente debatidos “a
mostrar uma Dinah objetiva, penetrante, sem prejuízo de sua ternura humana e de sua
compreensão” (Perez, p. 117). Em 1969, recebeu por essa obra o Prêmio de Ficção da
Fundação Cultural do Distrito Federal. Dinah completara então 30 anos de atividade
literária e, nessa época, várias de suas obras foram reeditadas, acrescidas porém de um
novo livro, Café da Manhã, (Editora Olivé), reunião de crônicas divulgadas no jornal e
29
no rádio, por cerca de 20 anos.
Durante os anos de 1979 a 1982, a escritora residiu em Lisboa, onde escreveu
Guida, Caríssima Guida, redigido quando já se encontrava afetada pela doença que,
sabia, a vitimaria. Romance forte, seu fio condutor desenrola-se dentro de um contexto
da atualidade em que se divulgam seqüestros, terremotos, eleições, escândalos. Nele
conta-se a dramática história de uma mulher bela e má, cujo próprio filho era alvo de
seu desafeto. Publicado em 1981 no Brasil e em Portugal, recebeu lá o título O Desfrute.
A religiosidade presente na obra de Dinah Silveira de Queiroz é assunto sobre o
qual voltamos nossa atenção neste estudo, por isso desejamos assinalar esse traço que
marca não só seus textos, mas também a sua vida. Retomemos um fato importante
ocorrido em 1941, que influenciou profundamente a escritora. Segundo nos conta
Renard Perez, Dinah acompanhava seu marido, o Dr. Nercélio, à Argentina e ao Chile,
onde ele participaria de um congresso. Nessa viagem, em plena Cordilheira dos Andes,
ao atravessar a fronteira entre os dois países, sofreu um grave acidente de automóvel,
cuja vida lhe foi poupada por milagre, acreditando ter ressuscitado. Para Dinah, mulher
religiosa, católica devota, a partir desse fato “a sua fé tornou-se absoluta” (Perez, p.
115).
Seus textos dão testemunho dessa verdade, pois à medida que conhecemos sua
obra tornamo-nos participantes da intimidade com Deus vivida por Dinah, a qual nos é
comunicada com sabedoria por meio de suas palavras. No entanto, sobrepondo-se às
palavras, experimentamos o sentido mais profundo que a escritora faz transpirar, qual
seja, a atmosfera de amor e fé que impregna sua arte.
Entre crônicas, contos e romances que revelam uma mensagem de moral cristã
que apresente fundamento bíblico – característica que não apenas marca o seu estilo,
mas a sua personalidade –, queremos destacar alguns que nos parecem mais oportunos
pelo fato de podermos fazer uma analogia entre eles e o nosso tema de estudo. Para
tanto, tomemos o recorte da crônica “Uma Fábula”.
O jovem amazonense, que está fazendo suas composições para o Festival da
Canção, no meio da conversa disse simplesmente:
– Pois é. Lá no Amazonas existe passarinho que canta, canta, canta
tanto, que mata cobra só de raiva. Aquele rapaz bem me havia dito
uma coisa maravilhosa... a débil ave, aborrecendo a serpente,
insistindo no seu canto, perseguindo-a talvez com pios que seriam na
sua linguagem uma forma de ataque... A serpente, símbolo de todo
30
mal, estoura de raiva, sim, porque o pássaro canta e a cantiga do Bem
arrasa com o Mal rastejante...Que esta crônica se transforme num
canto... (que) em toada de palavras arrase a peçonha que anda à nossa
volta... cantando sempre, em todos os dias que vão nascendo. (in:
Seleta, p. 3)
Também queremos destacar o livro O Oitavo Dia, título da narrativa sobre a
continuação da obra divina da Criação, depois do sétimo dia, aquele em que Deus
descansou, tendo já formada a primeira família humana. Nele, a autora recria
personagens bíblicos: Adão é Límun, Eva é Hava, Caim é Labor, Abel é Rebel, dentre
outros que irão com estes povoar a Terra, saudosos do bom tempo – o tempo do Paraíso
–, embora presos aos dramas comuns à natureza humana, às relações familiares, à
inveja.
De acordo com a opinião de Dinah, O Oitavo Dia é a “nossa história, história de
todos os dias, e de todas as épocas”. É peça amarga, contudo, é nesse contexto, que a
autora proclama a vocação da Arte, como “bênção atirada aos exilados”, à descendência
de Límun e Hava, “e com ela nós nos aproximamos da essência de tudo que é Deus, de
onde vem a saudade que é a raiz de nossa própria angústia” (p. 12). Romance, diz a
escritora, é o gênero ao qual já se habituara, contudo em O Oitavo Dia, peça teatral, ela
sintetiza todo seu pensamento e seu julgamento. “Se quiserem saber de mim, conheçam
O Oitavo Dia, direi com sinceridade. Aí estarei contida nas breves passagens de uma
peça teatral” (p. 7). Afirma que procurou ser o mais fiel possível, à idéia da Bíblia, “e só
peço perdão por ser quem seja, e mais não poder fazer de tão augusto tema” (p. 12).
Voltamo-nos particularmente a essa marca de religiosidade presente na obra de
Dinah Silveira de Queiroz, porque ela se revela de forma especial no Memorial do
Cristo, obra composta pelos dois romances sobre os quais elaboramos nosso trabalho:
Eu Venho, publicado em 1974, e Eu, Jesus, publicado em 1977, ambos pela José
Olympio. No dizer de Dário de Castro Alves, a escritora se apaixonou intensamente por
essa obra, que representa a autobiografia do Cristo, em narrativa feita em primeira
pessoa. Interessam-nos em especial a linguagem e o léxico escolhidos pela autora que
remetem a uma intertextualidade com a Bíblia. Em um próximo capítulo desta pesquisa,
esses romances serão objeto de estudo. Por ora fiquemos com a declaração de fé da
escritora nas seguintes palavras proferidas em seu discurso de posse na ABL:
Depois de dedicar-me durante cinco anos a escrever um livro sobre
Cristo, em que pretendi que ele por minha pena narrasse sua própria
31
Vida e sua Doutrina, considero que tomei a condição de escritora
católica. Humildemente, eu fecho esta contribuição abrindo os braços
fraternos diante de vós: colegas, irmãos, nova família, novo abrigo.
(Queiroz, ABL on line)
Dinah Silveira de Queiroz foi nomeada Adido Cultural da Embaixada do Brasil
em Madrid em 1962. Eleita em 10 de julho de 1980 para ocupar a Cadeira nº 7 da
Academia Brasileira de Letras, cujo patrono é Castro Alves, em sucessão a Pontes de
Miranda, foi recebida pelo acadêmico Raimundo Magalhães Júnior, em 7 de abril de
1981. Fez parte também da Academia de Ciências de Lisboa, da Academia Brasiliense
de Letras, da Academia Carioca de Letras, da Academia de Letras do Estado do Espírito
Santo, da Academia Paulista de Letras e do Pen Clube do Brasil. Diversos textos de sua
autoria foram incluídos em antologias de contos no Brasil, Portugal, Itália, Peru,
Venezuela, EUA, Japão, Israel, Noruega etc. Suas crônicas foram publicadas em quatro
livros, Café da Manhã, Quadrante I e Quadrante II e Seleta. Seu mérito de grande
escritora foi coroado em 1954, quando recebeu o Prêmio Machado de Assis, da
Academia Brasileira de Letras, para o conjunto de sua obra. Escritora incansável, Dinah
produziu mais de onze mil textos de aproximadamente uma lauda, durante os quase 40
anos de devoção e trabalho diário como cronista, “todos publicados em jornais e
guardados nos arquivos de Dário Moreira de Castro Alves, muitos deles finas jóias de
literatura do gênero” (Alves, p.24-25)
Após longos anos de tratamento de grave doença, Dinah Silveira de Queiroz
faleceu em São Paulo, em 27 de novembro de 1982, deixando saudade em muitos
corações.
O falecimento da escritora foi notícia veiculada no Brasil e em diversos países,
como Canadá, pela E’criture Française (Fisher, in Dário, p.183-187), mas especialmente
em Portugal, pela Revista da Fundação Gulbenkian, Colóquio/Letras – número 71,
janeiro de 1983, Lisboa, e por Antônio Olinto em artigo redigido para Jornal O Dia,
Lisboa, a 30 de dezembro de1982.
Outra homenagem foi prestada pela Câmara Municipal de Lisboa, em reunião
realizada em 11 de julho de 1983, que aprovava por unanimidade a atribuição do nome
de Dinah Silveira de Queiroz a uma rua da cidade, destacando sua dignidade de
Embaixatriz do Brasil, sua qualidade de escritora sempre atenta a divulgar o ambiente
português, demonstrando carinho e amizade à cidade de Lisboa, “divulgando ao mundo
os seus ambientes, as suas paisagens, as suas gentes, trabalhando em prol da
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aproximação dos povos brasileiro e português, das Artes e das Letras, o que justifica,
por si, a atribuição do nome daquela escritora a uma artéria da cidade” (cf. Alves, p.
169).
Em memória aos três anos em que Dinah viveu em Lisboa como esposa do
Embaixador Dário de Castro Alves, a Revista da Fundação Gulbenkian, na edição de
janeiro de 1983, informou com um sentimento de desgosto e saudade o falecimento da
escritora brasileira, em São Paulo, em 27 de novembro de 1982, e apresentou um breve
resumo elogioso à sua obra, à sua sensibilidade e à sua habilidade em alargar os espaços
de comunicação entre os dois países.
Em virtude da união pelos laços de amizade e do reconhecimento à grande
romancista, Almeida Fisher dedicou-lhe a crônica “O Humano e o Literário em Dinah
Silveira de Queiroz” (in: Alves, p.83) e lembra que, durante os anos de 1949 a 1951,
Dinah cedia espaço, uma vez por semana, a jovens escritores de talento, na coluna diária
que mantinha no Jornal A Manhã, que depois se tornou uma página inteira intitulada
Jornal dos Novos.
As crônicas do livro Café da Manhã, publicado em 1969, conforme nos diz a
própria autora, são dedicadas a seus amigos Fausto Cunha, Luiz Canabrava, Samuel
Rawet, Nataniel Dantas, Renard Perez, Terezinha Éboli, Fábio Lucas, Leda Barreto, à
memória de outros escritores, que tiveram sua iniciação nas letras através da coluna
Café da Manhã, havia vinte anos. Aqueles intelectuais faziam parte de uma família
literária e, reunidos pelos mesmos ideais e convicções, no que diz respeito à literatura e
às artes, discutiam Proust e questões sobre espiritualidade, colaboravam para a revista
Branca, editada por Saldanha Coelho, encontrando-se com freqüência na casa de Dinah,
na Taberna da Glória e no Dancing Avenida (Santos, F. V. p. 30).
Seu caráter altruísta é também reconhecido por Antônio Olinto, no artigo Presença
de Dinah, publicado pelo Jornal O Dia, Lisboa, 30 de dezembro de 1982, no qual relata
esses mesmos nomes de jovens escritores, que a consideravam padroeira da nova
geração, reafirmando seu acolhimento e sua participação ativa, sempre estimulando a
vida literária brasileira. Ele se refere à Dinah como embaixatriz no Brasil e em Portugal,
e a compara a Joana D’Arc pelo espírito tranqüilo, mas batalhador, inclusive em relação
ao machismo na sociedade brasileira, cuja vitória na Academia Brasileira de Letras
ergueu o status da mulher brasileira. Olinto lembra a Dinah cujas crônicas diárias eram
transmitidas pela rádio e ouvidas nos lares, por pessoas comuns, motoristas de táxi, em
diferentes cidades do Brasil. Por esse traço tão vivo em Dinah, ele a considerava
33
“escritora do povo, que a entendia e que ela entedia, em perfeita aliança” (in: Alves,
p.167).
Dário de Castro Alves confirma a luta por ela empreendida contra o preconceito
que impedia a admissão de mulheres na Academia Brasileira de Letras, e destaca sua
liderança nessa campanha, que se estendeu de 1970 a 1977, quando, finalmente, os
estatutos foram alterados. Dinah não se candidatou a acadêmica, só o fazendo
honrosamente, em 1980, depois de eleita a grande Rachel de Queiroz em 1977.
O próprio Almeida Fisher testemunha esse sentimento fraterno de Dinah, quando
teria sido impedido por Simões Filho de publicar em “Os Cadernos de Cultura” pelo
Ministério de Educação e Saúde, o livro de sua autoria, A Ilha e Outros Contos, por
considerá-lo imoral. Três importantes escritores encaminharam ao diretor do Serviço de
Comunicação carta elogiosa em favor de sua publicação. Foram eles: Manuel Bandeira,
Eugênio Gomes ... e Dinah! – escolhida por ser uma grande escritora e, além disso,
católica. Escreveu a carta e também uma crônica em defesa de A Ilha e Outros Contos,
publicada no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro.
Os últimos dias de Dinah em Portugal foram acompanhados por Rina Bonadies,
funcionária do Ministério das Relações Exteriores, que participava como secretária e
amiga dessa situação dramática da vida da escritora. Anos após o falecimento de Dinah,
Bonadies contrairia núpcias com Dário de Castro Alves.
Bonadies dedica algumas páginas em homenagem a Dinah, com quem teve o
privilégio de conviver mais intimamente de seus momentos de produção literária.
Redigia, na própria residência da escritora, em Lisboa, os textos das crônicas ditados
por ela, cuja imagem é presente na lembrança.
Bem, Dinah tomava seu café da manhã na cama, trazido pela boa
Madalena, ocasião em lhe levava também os jornais do dia. Enquanto
avidamente folheava as páginas ainda exalando o cheiro da tinta de
impressão dos periódicos, sua imaginação fértil já começava a tecer,
como num trabalho de agulhas, o fio do assunto que daria forma às
suas crônicas. (in: Alves, p. 175)
Envolvida pela emoção, relembra a suavidade com que Dinah caminhava pela
sala, sua voz baixa e pausada ao ditar palavras precisas: mais uma de suas crônicas para
o Café da Manhã: ...mais umas três ou quatro linhas. E ditava, exatamente, três ou
quatro linhas! Apenas! Brincava com seus cãezinhos, amava os pássaros, os gatos e com
prazer contemplava o Tejo da janela de sua mansão. A cada dia uma nova crônica, ao
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todo sete por semana... “Eram sete pensamentos, sete mensagens, sete recados de paz,
de amor, de esperança diários” (in: Alves, p. 176-177).
Bonadies cita os diversos jornais que publicavam suas crônicas: Correio
Brasiliense (de Brasília), Correio do Povo (de Porto Alegre), O Povo (de Fortaleza), A
Tarde (da Bahia), A Província do Pará (de Belém), A Notícia (de Manaus), Gazeta do
Povo (de Curitiba), Jornal de Piracicaba e Jornal de Jundiaí, além das correspondências
para a Rádio Nacional do Rio de Janeiro e para a Rádio Nacional de Brasília. Todas,
mensagens de amor, de fé e de esperança, dirigidas a um público ávido de sua
experiência e sabedoria.
Conta ainda, com pesar e admiração, que esteve junto de Dinah até a partida para
São Paulo, acompanhada por seu marido, Dário, e por seu médico, o Dr.Rosenberg. Não
obstante o corpo enfraquecido e vítima de dores que a doença lhe causava, sofria com a
dignidade e a nobreza de uma verdadeira dama.
Alguns jornais publicaram crônicas inéditas post-mortem. Bonadies considera esta
a mais comovente, publicada dois dias após a sua morte em O Povo, a 29 novembro de
1982:
Sim, meus amigos, estou a recomeçar e procurar entrar em cheio no
trabalho, tudo me chamava a ele. Confesso que cheguei quase a chorar
quando vi que não tinha forças nem cabeça para ditar uma simples
crônica. Entrei e saí de cirurgias nas quais meu médico, Dr Resenberg,
dava mais do que a sua mestria de grande professor e ao mesmo
tempo o carinho de um irmão que compreende o que sente o outro.
Durante esse tempo, recebi inúmeras demonstrações de afeto que me
deixaram cair de perplexidade. Então haveria tanta gente assim
interessada no que se passava comigo? Bem eu já podia falar da dor.
Ela tem linguagem própria ao meu ouvido... – se me permitem –
reganhando meu quase perdido ser, abençôo a luz da manhã de hoje e
das quais virão. Evidentemente que essa espécie de êxtase exclui um
certo bom senso mas prefiro que tenham de mim nesse instante um
verdadeiro depoimento. (Bonadies, in: Alves, p. 180-181)
Lemos em Alves que, embora grave o seu estado de saúde, Dinah continuou a
ditar suas crônicas diárias em São Paulo, tornando verdadeira a afirmação que ela havia
feito de que “só pararia de escrever quando morresse.... E ditou-as até três dias antes de
passar para a eternidade” (p. 25).
Conforme nossa proposta no início deste capítulo, procuramos conhecer e revelar
um pouco mais sobre a vida e a obra de Dinah Silveira de Queiroz, pois sabemos que
muito da beleza de seus textos decorre da riqueza interior presente na sua pessoa. São
35
fatos, detalhes, partes da história que compõem a trajetória de alguém que enveredou
por caminhos que levam ao bem, à paz, à plenitude. Uma escritora que, transcendendo o
literário, suscitou no leitor questões essenciais à vida, próprias do universo humano.
Exercendo o dom de escrever na criação de seus romances, contos e crônicas,
comunicou a sabedoria da mulher que se deixou conduzir por sua fé inabalável,
testemunhando-a até os últimos momentos de sua caminhada terrena.
Aventurando-nos na leitura de alguns dos muitos livros que compõem a obra de
Dinah Silveira de Queiroz, inquietou-nos então a pergunta: Quem é essa que com sua
arte faz despertar a alma humana? E, na resposta a esta indagação, foi possível entender
o sentido mais profundo de seus textos que tanto revelam a sensibilidade da autora e que
deixam transparecer os diversos momentos por ela vividos. Nesse encontro que fazemos
com autora e obra, compreendemos a grandiosidade do Memorial do Cristo, em seus
dois volumes, Eu Venho e Eu, Jesus, e concordamos com a opinião de Marques Gastão,
para quem há “poucas obras de grandes romancistas que hajam escrito dois livros como
esses... São palavras-símbolos que atravessam o espaço e nos tocam e nos iluminam”
(in: Alves, p. 118)
Recordamos, por fim, o capítulo III, do segundo volume do Memorial do Cristo,
em que ouvimos a voz de Jesus pedir à samaritana, “Dá-me de beber” (p. 19). Aquela
mulher estrangeira, presa ao enleio do pedido que Outro estrangeiro lhe fizera, sentia
algo que profanava o respeito que os cercava. Contudo, deixando-se seduzir pela doçura
infinita da Fonte de Amor, é ela então quem pede: “Senhor, dá-me por favor desta água”
(p. 21). E do que mais cada um de nós precisa, senão matar essa sede? Pois, assim
como aquela mulher, somos todos estrangeiros sedentos da Água Viva da palavra santa
que nos leva ao encontro pessoal com o bem e transforma a existência humana. Palavra
em cujo mistério Dinah soube como ninguém penetrar para torná-la arte na literatura,
testemunhando o amor ao próximo e a si mesma, pois é ela quem dá voz a Jesus para
afirmar que “a medida do amor para que o possamos dar ao outro será a mesma medida
de convivência que se tenha em amar a própria vida”. Amor que torna perene a alma
dos verdadeiros adoradores, que o acolhem “em espírito e em verdade” (Jo 4, 23).
Portanto, é com muita admiração e reverência a tão ilustre escritora e mulher tão
digna, mestra na arte de escrever e sábia na arte da vida, que incluímos este capítulo no
nosso trabalho, pois assim como tanto nos encanta falar sobre Dinah e o seu Memorial
do Cristo, desejamos que esse encantamento possa iluminar as mentes e os corações de
quem dele dispuser para conhecer autora e obra um pouco mais.
36
4. DOIS ROMANCES, UMA OBRA
Ao criar o Memorial do Cristo I e II, Dinah Silveira de Queiroz reescreve a vida
de Jesus Cristo, personagem central dessa obra e, ao mesmo tempo, personagem-
símbolo que ocupa um lugar de destaque na cultura ocidental e mesmo em algumas
culturas orientais.
Nos dois romances, Eu Venho e Eu, Jesus, as histórias se completam, compondo,
dessa forma, uma única obra. Dentro da grande diversidade de temas ficcionais
escolhidos por Dinah, observamos o tema histórico presente em vários de seus
romances, dentre eles o Memorial do Cristo I e II. Maria Teresa Martinez desenvolve
um estudo sobre “Os Temas Históricos na Ficção de Dinah Silveira de Queiroz” (In:
Alves, p. 49), incluindo entre eles o Memorial do Cristo, e acrescenta que o “material
histórico” é reconhecido pela História por ter sido submetido à determinada
investigação científica, ou preservado pela tradição. Essa proposta gera um conflito, já
que “o leitor do romance histórico sabe que vai encontrar nele o acontecido – a história
e o inventado – poético” (in: Alves, p. 50). Eu Venho e Eu, Jesus são romances
históricos, cuja narração se desenvolve de acordo com fatos comprovados da vida de
seu protagonista e fatos inspirados pela fé. A doçura e a poesia da autora transformam
esses dois tipos de fatos em arte a fim de despertar no leitor o desejo de mergulhar
profundamente nessa grande obra.
Pretendemos neste capítulo estudar Eu Venho e Eu, Jesus, considerando o gênero
literário a que pertencem, o romance, estudar a etimologia
3
de alguns vocábulos
presentes, cujo conhecimento facilitará a compreensão do contexto em que se
encontram e, ainda, situar os romances segundo a cronologia e sua inserção no seu
arquétipo, a Bíblia.
O primeiro livro narra a vida do protagonista desde os momentos que antecedem
sua concepção, e se conclui com a realização do milagre da Festa das Bodas em Caná da
Galiléia, que é um acontecimento anterior ao início da vida pública de Jesus. Acrescenta
ainda, como último capítulo, a morte de José, pai de Jesus segundo a lei, e a
conseqüente solidão em que Maria deveria seguir dali em diante, já que seu filho em
breve também partiria para cumprir a missão para a qual fora enviado. Nesse volume
3
O Dicionário Houaiss Eletrônico será a principal fonte de atestação das referências
etimológicas e de algumas acepções de palavras-chave que se encontram nesta pesquisa.
37
Dinah cria, pela liberdade do fazer literário, a história dos anos obscuros da vida de
Jesus, aqueles que não são encontrados na Bíblia, ou em qualquer outra fonte aceita
como legítima pela Igreja.
No segundo volume, Jesus é apresentado ao leitor no contexto de sua vida pública,
peregrino que foi, juntamente com seus discípulos, na Palestina, onde anunciou o
evangelho, curou os doentes, libertou os cativos. O primeiro capítulo nos conta a festa
da Páscoa, quando Jesus expulsa os vendilhões do templo. O último capítulo narra sua
crucifixão, morte e ressurreição e conseqüente envio em missão da discípula a quem
apareceu em primeiro lugar, Maria da Magdala.
Dinah declara sua fé cristã e assume a religião católica de forma fervorosa, a
ponto de afirmar no seu discurso de posse na ABL, ser “uma escritora católica”. São
suas as palavras que lemos na Introdução de Eu Venho:
Embora, durante toda minha vida, tenha lido os textos sagrados,
depois de quase dois anos de intimidade com a História da época e a
recomposição dos costumes dos tempos de Jesus, quis fazer, em
Literatura, o que tantos fizeram com o mesmo direito que toca ao
artista, na arte da Pintura, ou na Escultura. (p. xi)
Em seu trabalho de criação literária a autora teve o cuidado de muito investigar e,
finalmente, escolher como fonte as informações contidas na Bíblia que lhe fora “dada
por um padre jesuíta, usada em seu curso de Teologia (...) (e nela) há, praticamente,
todas as mais famosas interpretações dos doutores da Igreja” (Introdução, p. xiii).
Defrontava-se ela com dois grandes problemas. Primeiro, as opiniões divergentes
que ora apoiavam, ora reprovavam sua decisão. Segundo, porque embora, no que se
refere a textos bíblicos, a obra se apoiasse no resultado comprovado de pesquisas
exegéticas sobre o Novo Testamento, “esses escritos não constituem relatos históricos
como a ciência moderna os entende” por serem interpretações teológicas a respeito da
vida, mensagem, morte e ressurreição de Jesus Cristo, “bem como do significado
salvífico dessas realidades”, como explica Alfonso Garcia Rubio (2002), que
acrescenta:
Trata-se, na verdade, de interpretações crentes, mas enraizadas na
história. Essas interpretações são pós-pascais, mas se relacionam
intimamente com palavras, atitudes e acontecimentos vividos por
Jesus de Nazaré (material de origem pré-pascal) (...) A inspiração
divina, que faz desses escritos a Palavra de Deus, refere-se,
igualmente, ao material de origem pré-pascal e às interpretações pós-
38
pascais. Todo o Novo Testamento é a Palavra de Deus. (p. 14)
Há que considerar a hesitação da autora, a sua sã ousadia de, com o respeito e a
veneração que cercam a obra, estar ciente da impossibilidade de que alguém, sem errar,
possa fazer falar o Cristo. Ela não se propôs a fazer uma exegese teológica, mas a criar,
no campo da ficção, o que podemos considerar uma autobiografia do Cristo, situação
que a leva a inquietar-se e dirigir a palavra àqueles que não compreenderam a sua
intenção de escrever a narrativa em primeira pessoa, já que “esta primeira pessoa é o
próprio Deus Encarnado. E acrescenta: “Acho importantíssimo encontrar o Jesus
histórico, tanta vez desprezado pelo fato de que os historiadores de seu tempo
praticamente o desconheceram” (Queiroz, 1974, p. xiii).
Mas qual o significado da expressão “Jesus histórico” usada com tal naturalidade
por Dinah? Em nível teológico a questão se refere à distinção entre o “Jesus histórico”
e o “Cristo da fé”.
“Jesus histórico” é o Jesus que pode ser reconstituído pela
investigação histórica, aquele homem que viveu e morreu na Palestina
do século I, ocupada na época pelos romanos. Já o “Cristo da fé” é
aquele anunciado pela Igreja depois da Páscoa, o Cristo dos símbolos
da fé e das declarações dogmáticas. (Rubio, 2002, p. 11-12)
Comparemos a afirmação de Rubio com aquela feita pela autora na Introdução de
Eu, Jesus:
Os Evangelhos – sendo o de Marcos o mais próximo de sua vida, foi
escrito quarenta anos depois de sua morte – são obras de convicção
religiosa e em nenhum episódio existe a frieza da análise, pois ao
mesmo tempo que são históricos, são documentos de fé. (p. xiii)
Utilizando-se de uma expressão pessoal, Dinah entende e traduz a constatação
teológica. Segundo Rubio, essa distinção não é própria do Novo Testamento, nem da
tradição eclesial posterior. Ela surge, de maneira polêmica, da necessidade do mundo
moderno, que tenta responder às exigências da cientificidade. Numa primeira etapa do
processo, o objetivo era descobrir quem teria sido propriamente Jesus de Nazaré, o
“Jesus histórico”. Contudo, diante da dificuldade de reconstruir toda a biografia de
Jesus, muitos pesquisadores passaram a acentuar o “Cristo da fé”, aquele proclamado
pelos discípulos após sua morte e ressurreição, o que constituiu uma segunda etapa.
Atualmente, de forma mais equilibrada, a investigação exegética aponta para uma
39
posição menos rígida, pois, na verdade, o “Cristo da fé” e o “Jesus histórico” se
articulam de maneira satisfatória por serem uma única realidade (Rubio, p. 12-13).
A partir do Jesus histórico que durante sua vida terrena revela toda sua
simplicidade, sabedoria e força, Dinah vai desvelando o Jesus divino, o Deus
Encarnado, fiel à vontade do Pai e, principalmente, capaz de amar e servir a ponto de
doar a própria vida, cumprindo até o fim a missão que lhe fora confiada. Personagem
com o qual a autora se une em comunhão, sentimento que transborda em suas palavras
quando escreve:
Leiam o livro, principalmente com o coração. E aceitem o que fiz com
humildade, fé sincera e o pensamento posto na mocidade tanta vez à
procura do Cristo. Procuro trazê-lo através de minhas letras, chamando-
o. Aí vem ele. Traz uma túnica branca, sandálias rústicas, tem um cinto
tecido por Maria e atrás de sua orelha esquerda está uma talisca branca,
de madeira, sinal de sua profissão, como usavam todos os carpinteiros
de sua terra. Ele atravessa, parece, a sala onde estou escrevendo.
Guardo a graça de sua intimidade, a doçura de seu dom, que é no
homem a simpatia, no Deus a graça. (Eu Venho, p. xv)
Abordemos ainda um ponto central para o nosso estudo: a intertextualidade.
Laurrant Jenny (p. 5) defende que uma obra literária só poderá ser compreendida se
dentro da intertextualidade, se relacionada com seus arquétipos que acabarão por
decodificar as formas de uso dessa “linguagem literária”. A obra entra sempre numa
relação de realização, de transformação ou de transgressão, com seu arquétipo e é essa
relação que a define. Não obstante que ao receptor o texto possa parecer inédito, a obra
literária reescreve as lembranças do texto original, que deverá despertar a memória do
receptor mais informado, fazendo-se todavia necessário “um repertório ou memória
cultural e literária para decodificar os textos superpostos” (Sant’Anna, p. 26).
De acordo com o que vimos elegendo como recortes dos autores selecionados, e
do Memorial do Cristo I e II, podemos afirmar que se trata de uma obra cuja linguagem
fundadora é a Bíblia, mais precisamente o Novo Testamento. Por esse motivo, a
intertextualidade com a Bíblia está permanentemente presente em ambos os romances
estudados.
Afirmamos, pois, que a autora se apropria do texto bíblico fazendo uma
transcrição de forma articulada, em estilo literário, tornando-se uma “co-autora”,
semelhante a como um “músico se apropria da obra alheia e introduz maneiras pessoais
de interpretar o texto musical original” (Sant’Anna, p. 18). Seguindo essa linha de
40
pensamento, podemos considerar os romances Eu Venho e Eu, Jesus uma paráfrase,
porque dão continuidade ao texto original, entendendo-se aqui o termo “paráfrase”
como:
a reafirmação, em palavras diferentes, do mesmo sentido de uma obra
escrita. Uma paráfrase pode ser uma afirmação geral da idéia de uma
obra como esclarecimento de uma passagem difícil. Em geral ela se
aproxima do original em extensão. (Beckson e Gangz, p. 17)
Para que nossa pesquisa seja mais completa, é preciso estender em nosso estudo
também à fonte onde Dinah vai buscar conteúdo para sua obra, qual seja o texto bíblico,
e tratarmo-lo de acordo com os pressupostos teóricos que vimos trabalhando, para que
possamos entendê-lo e classificá-lo. Afirma Sant’Anna que a ciência, a arte e a religião
se utilizam da paráfrase como instrumento de divulgação, e completa dizendo que há
traduções da Bíblia, mesmo em português, cujo texto sagrado é parafraseado para uma
linguagem mais atual (p. 22). Explica-se dessa forma a hesitação vivida por Dinah na
busca de informação que pudesse ser considerada a mais fidedigna às origens.
Mais curioso ainda se torna pensar sobre como os textos bíblicos surgiram, ou
melhor, quando, por que e por quem foram escritos?
A Bíblia foi escrita, aproximadamente, entre o ano 1250 antes de Cristo e o ano
100 depois de Cristo, portanto levou mais de mil anos para ficar pronta. Ela está
dividida em Antigo e Novo Testamento. O Antigo Testamento começa com o livro de
Gênesis e termina com o livro de Malaquias, e o Novo Testamento vai do Evangelho de
São Mateus até o livro do Apocalipse de São João. A Bíblia foi escrita por homens e
mulheres, mas sob a inspiração de Deus. São muitos os autores humanos da Bíblia, não
sabemos quantos, mas sabemos seus textos foram escritos em diferentes lugares e
diferentes situações de vida do povo.
O Antigo Testamento se divide em três grandes partes: 21 livros Históricos, de
Gênesis a Macabeus; sete livros Sapienciais, de Jó a Eclesiático; 18 livros Proféticos, de
Isaías a Malaquias. O Novo Testamento apresenta os quatro Evangelhos, Mateus,
Marcos, Lucas e João; o livro dos Atos dos Apóstolos; as Cartas Paulinas e as Cartas
Católicas, 21 cartas, de Romanos a Judas; o Apocalipse é o último livro da Bíblia. São
ao todo 73 livros.
Sabemos que a Bíblia não é apenas um livro, mas uma biblioteca que contém
diversos gêneros literários. Em sua etimologia, “bíblia”, do grego biblíon,ou 'pequeno
41
livro, livrinho', diminutivo de bíblos 'papiro, papel, livro', usada no grau normal forma o
neutro plural biblía 'livros'; adaptada ao latim eclesial ocorre no século IX como
feminino singular bíblia ‘conjunto de livros sagrados’. A palavra “testamento”, que
provém do latim, testaméntum,i significa ‘atestação, testamento, a sagrada escritura’; a
aliança de Deus com os homens. Para o povo judeu, essa aliança se realizou por Moisés.
Para os cristãos, a antiga aliança foi renovada por Jesus Cristo, a nova aliança, o Filho
de Deus feito Homem, centro de toda a Bíblia.
No que toca à intertextualidade, Tynianov abre um novo caminho quando sugere a
hipótese de que toda obra literária se constrói como uma “rede dupla de relações
diferenciais: 1º com textos literários pré-existentes; 2º com sistemas de significação não
literários, como as linguagens orais” (apud Jenny, p. 13). É o que constatamos com a
formação do texto bíblico, no Antigo e no Novo Testamento, constituídos inicialmente
pela transmissão oral de origens diversas.
A respeito do estudo sobre a composição literária da Bíblia, com referência ao
Antigo Testamento, sabemos que os textos mais antigos se originaram da tradição oral,
pois só mais tarde surgiram os primeiros documentos escritos.
Já antes de Moisés, os “filhos de Israel”, nas estepes da Síria e da
Palestina, e os “hebreus”, no Egito, tinham seus textos não-escritos:
fórmulas rituais para expressar sua relação com a divindade, mitos e
narrações para estruturar o universo cultural e social, sagas, lendas,
poesias etc. Podemos imaginar que todo esse “saber” se transmitia ao
anoitecer, em volta da fogueira do acampamento, ou por ocasião das
festas ou da iniciação de jovens. (Konings, p. 79)
Remontam a tempos antigos as várias mudanças por que passou a língua do livro
sagrado. Os livros do Antigo Testamento foram originariamente escritos em hebraico e
em aramaico, línguas irmãs. Entre os séculos I a III aC., os judeus de Alexandria
traduziram as Sagradas Escrituras para a língua grega, que incluía sete livros a mais do
que a Bíblia hebraica. Portanto, já no tempo de Jesus havia duas versões da Bíblia, a
original, em hebraico, e a tradução grega (Konings, p. 13-14).
Convém esclarecer que, quando os cristãos foram definitivamente expulsos das
sinagogas, no fim do século I dC, os judeus permaneceram usando o texto hebraico, o
qual incluía apenas o “cânon restrito”, “cânon”, do latim canón,ònis 'lei, regra, medida
(...) conjunto de livros sagrados reconhecidos pela Igreja como de inspiração divina'; do
grego kanôn,ónos 'haste de junco (...) modelo, princípio’. Os cristãos adotaram o “cânon
amplo”, de acordo com a tradução grega.
42
Dinah Silveira de Queiroz, como já foi dito, usa a Bíblia como linguagem
fundadora de sua obra, incluindo referências ao Antigo Testamento, mas situa o
romance no contexto revelado pelos quatro evangelhos que fazem parte do Novo
Testamento, que tiveram início na tradição oral das comunidades cristãs, após a
ressurreição, pois o próprio Jesus nada deixou escrito. Segundo a maioria dos teólogos,
o primeiro evangelho a surgir foi o de Marcos, que começou a ser escrito entre os anos
65-70 dC.
4
As comunidades de Mateus e Lucas redigiram os seus evangelhos entre os
anos 80-90 dC. Esses três evangelhos são chamados “sinóticos”, porque pelo seu
conteúdo e forma podem ser comparados entre si, sob uma mesma ótica. O evangelho
de João foi escrito mais tarde, por volta dos anos 90-100 dC. É estudado separadamente
por ser considerado especial, pois possui características próprias de linguagem e estilo.
O objetivo principal dos autores não era fazer uma biografia de Jesus, mas sim, anunciar
o “evangelho”, a Boa Nova, que consistia principalmente em proclamar que “o Reino de
Deus já está no meio de vós” (Lc 17, 21).
Segundo Konings (p. 19), no século IV o cristianismo foi declarado religião
oficial do Império Romano, tornando-se a religião das massas populares. S. Jerônimo
fez uma tradução integral da Bíblia para o latim, a língua do povo comum. Essa
tradução ficou conhecida como “Vulgata”, do latim vulgata, feminino do latim
vulgátus,a,um 'espalhado, propagado, que é de uso público, prostituído, divulgado,
publicado'. Vulgata, por sua vez, tem sua origem no vocábulo “vulgo”, do latim vúlgus
ou vólgus,i 'o vulgo, o povo, a multidão'.
Lemos em Afonso Romano, quando cita John Dryden, que a metáfrase converte
um autor literalmente, “palavra por palavra” de uma língua para outra, enquanto a
tradução, “não segue as palavras tão estritamente, senão o sentido”, alcançando uma
maior amplitude “quando o autor continua aos olhos do tradutor para que este não se
perca” (cf. Sant’Anna, p. 18). Segundo se sabe, o texto bíblico passou por várias
traduções, desde sua formação até os dias atuais. As traduções completas da Bíblia em
língua moderna só começaram a aparecer no século XVIII. A partir do século XX a
Bíblia católica tem reaproximado judeus, católicos e protestantes, especialmente a
Bíblia de Jerusalém, “graças ao caráter científico de suas notas e recursos e a fidelidade
aos textos originais”. Atualmente existem traduções ecumênicas da Bíblia, cuja sigla é
4
Encontramos divergências não só em relação à precisão dos anos em que os evangelhos foram
escritos, como também às datas mencionadas na Bíblia em geral.
43
“TEB”, com comentários preparados por especialistas de diversas confissões, inclusive
traduzidas para o Português (cf. Konings, p. 20-21). A Bíblia já foi traduzida para
aproximadamente dois mil idiomas. As cópias mais antigas estão na Biblioteca do
Vaticano, no Museu Britânico e no Museu de Jerusalém.
Presume-se que Jesus tenha nascido há cerca de 2000. Quem é esse protagonista
que ocupa o papel de herói sagrado nos textos de Dinah? Personagem-símbolo que se
mantém vivo e presente, assumindo um lugar de honra na vida de tantos homens e
mulheres, em culturas tão diversas?
Para entendermos o contexto literário, precisamos de algumas informações sobre a
história da formação do povo do qual Jesus se originou, o povo judeu. Vários foram os
patriarcas e matriarcas que deram origem aos judeus. Segundo o livro do Gênesis,
Abraão foi o primeiro a quem Deus escolheu (cerca de 2000 aC). Mais adiante na
história, o livro do Êxodo narra a fuga conduzida por Moisés, para libertar os hebreus
cativos no Egito, que chegaram a Canaã, a Terra Prometida, lugar onde se
estabeleceram no século XI aC, constituindo as “doze tribos de Israel” (Konings, p. 30),
que deram origem à Palestina do tempo de Jesus.
Jesus era judeu por tradição familiar e, conforme se encontra em sua genealogia
no prólogo do livro de Mateus (Mt 1,1-17), era descendente do Rei Davi, o pastor que
foi ungido para ser o chefe de Israel, de cuja linhagem nasceria o Salvador que libertaria
o povo, conforme Deus prometera (2 Sm 7, 25). E os primeiros homens a ver Jesus
recém-nascido numa gruta foram rústicos pastores e, na pobreza daquele lugar afastado
da cidade, se cumpriu a profecia, porque de “Belém sairá para mim aquele que é
chamado a governar Israel” (Mq 5, 1). Na gruta em Belém, anjos e pastores deram
glórias, porque havia nascido o Pastor dos pastores, O Rei dos reis, Jesus Cristo.
Muitas e divergentes opiniões eram divulgadas, e ainda o são hoje, a respeito de
Jesus Cristo. Não obstante tê-las conhecido e questionado, a autora não teve dúvida em
escolher como fonte de estudo os quatro evangelhos da Igreja Católica, sendo
“confortada pela mensagem de Paulo VI” a ela enviada, pelo Monsenhor Bonelli (cf. Eu
Jesus, Introd., p. xiii).
Torna-se evidente para nós por que Dinah confessa a árdua tarefa a que se propôs,
já que para escrever a segunda parte do Memorial do Cristo: Eu, Jesus, sentiu muita
dificuldade, pois desde o importante historiador judeu do século I, “Flavius Josefo, aos
quatro evangelistas, eu iria tirar, com humildade e fé, o que depois de concluído se me
afigurou como ‘A mais sagrada aventura’” (Inrod., p. xii).
44
5. LÉXICO, LÍNGUA E INTERTEXTUALIDADE BÍBLICA
EM
EU VENHO: MEMORIAL DO CRISTO I
O título desse volume, Eu Venho, abre também a narrativa do primeiro capítulo:
Eu venho do existir, mas não ainda da esperança, eu agora sou esperança(p. 3), que
encontra fundamentação bíblica nas seguintes passagens do Novo Testamento
(doravante NT): “Ele existe antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem nele...”
(Cl 1, 17; 19-20); “Esperança esta que seguramos tal âncora de nossa alma, firme e
sólida, e que penetra além do véu, no santuário onde Jesus entrou por nós como
precursor...” (Hb 6, 19-20); “Sim! Eu venho depressa! Vem Senhor Jesus! (Ap 22, 20).
Um outro aspecto que devemos levar em conta é qual o conceito de texto que
adotamos nesta pesquisa. A respeito das muitas discussões que poderiam ser feitas em
relação a esse assunto, preferimos aqui — por razões metodológicas — entender texto
como:
Um texto é um “jogo de linguagem, em que os parceiros de uma
atividade comunicativa global, diante de uma manifestação
lingüística, pela atuação conjunta de uma complexa rede de fatores de
ordem situacional, cognitiva, sociocultural e interacional, são capazes
de construir, para ela, determinado sentido. (Koch, p. 25)
É certo, como lembra a mesma autora que sob uma estrutura superficial do texto
existe um sentido subjacente mais profundo, que é percebido a partir da leitura dos
implícitos, fazendo com que seja necessária a ativação de um processo cognitivo e
interacional.
Para explicitar melhor, retomemos o texto citado, dando-lhe continuidade: “Eu
venho do existir, mas não ainda da esperança, e agora eu sou esperança. Do infinito
painel da eternidade, do ontem, do hoje, do amanhã, eis que amanheço como uma planta
na intimidade de minha mãe....” (p. 3)
O sujeito gramatical dessa narrativa, “eu” (primeira pessoa do singular), é
expresso claramente na oração, mas não é claro de imediato a quem esse sujeito
corresponde no espaço da enunciação. O verbo vir, embora flexionado concordando
com o sujeito, no presente do indicativo “venho”, revela uma ação que denota
atemporalidade, que é marcada pelo complemento adverbial da oração, o verbo
substantivado “existir” e confirmada pelas palavras do período seguinte: “infinito”,
45
“eternidade”, “ontem”, “hoje”, “amanhã”. Nesse contexto, passado, presente e futuro se
misturam num existir sem um quando, e sem um onde, pois o espaço geográfico é o
“infinito” e o espaço temporal é a “eternidade”. As marcas apontadas evocam o mistério
e trazem implícito um sujeito capaz de viver esse mistério, pois o enunciador afirma que
ele amanhece para a vida, mesmo que no ainda do tempo conhecido, como um simples
vegetal. De acordo com esse sentido apontemos no texto bíblico as passagens: “Eu sou
o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Começo e o Fim” (Ap 22, 13); “Ele existe
antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem nele...” (Cl 1, 17).
O interlocutor somente terá a possibilidade de perceber que o sujeito gramatical
“eu” refere-se a Jesus, sujeito no espaço da enunciação, pela ativação de processos e
estratégias cognitivas e interacionais, conforme aponta Ingedore Koch (p. 25), ou como
diz Sant’Anna (p. 26), ativando “um repertório ou memória cultural e literária para
decodificar os textos superpostos”.
Ressalte-se a presença do substantivo “esperança”, também como marca implícita
importante, cuja possibilidade de leitura aponta para Jesus, aquele revelado pelas
Sagradas Escrituras como portador da verdadeira esperança, anunciado 700 anos antes
de sua vinda, no Antigo Testamento (doravante AT):
Eis meu servo que eu amparo, meu eleito, ao qual dou minha afeição /
faço repousar sobre ele meu espírito / para que leve às nações a
verdadeira religião... / eu te formei e designei para ser a aliança com
os povos, / a luz das nações; para abrir os olhos aos cegos, para tirar
do cárcere os prisioneiros. (Is 42, 1. 6-7)
Com autoridade de apóstolo e profeta, São Paulo confirma o Cristo, no NT, como
a esperança para os que crêem:
Nele é que fomos escolhidos, predestinados segundo o desígnio
daquele que tudo realiza por um ato deliberado de sua vontade, para
servirmos à celebração de sua própria glória, nós que desde o começo
voltamos nossas esperanças para o Cristo. (Ef 1, 11)
Nesse mesmo sentido, consideramos a intertextualidade sob a ótica das
semelhanças e diferenças, conforme afirma Ingedore Koch que “o texto incorpora o
intertexto para seguir-lhe a orientação argumentativa e, freqüentemente para apoiar nele
a argumentação” (p. 49).
Merece atenção especial a forma elaborada da estrutura gramatical que revela a
46
“esperança” como ponto convergente do período. Apontemos a presença da conjunção
adversativa “mas”, do advérbio “ainda” — precedido de uma negativa — do advérbio
“agora”, e do verbo “ser” no presente do indicativo, que ocorrem no contexto acima
citado: “Eu venho do existir, mas não ainda da esperança, e agora eu sou esperança” (p.
3).
A segunda oração, iniciada por um “mas” argumentativo que liga dois atos
distintos, constrói a situação enunciativa pela qual o interlocutor seria levado a concluir
um determinado fato, que está inscrito fora do contexto, a priori, numa oposição que é
instituída pelo próprio movimento do texto, ou seja, a conclusão é implícita. (cf.
Maingueneau, p. 165-166). O advérbioainda”, nesta passagem, traz o sentido de
futuro, aquilo que será um dia. Precedido do “não”, antecede a palavra “esperança”, o
que forma o sintagmanão ainda” em oposição a “agora”, que ocorre na terceira oração.
De que “esperança” fala o texto? Retomando-se o período, nota-se que há dois
encaminhamentos de leitura para o substantivo esperança; a conjunção “mas” remete à
oposição entre a esperança sem data marcada, do existir atemporal, que no passado foi
promessa, ou seja, expectativa, “mas não ainda da esperança”. No presente, o eu do
discurso é realização da esperança no concreto da vida, confirmada pelo advérbio
“agora” e pelo verbo “ser” no presente do indicativo: “e agora eu sou esperança”.
Confirma-se, portanto, aquela esperança apresentada no espaço da enunciação quando o
enunciador remete para a linguagem fundadora a possibilidade de interpretação do
discurso, ou seja, a leitura implícita de que Jesus é o “Servo de Yahweh” revelado no
AT, “a aliança com os povos, a luz para as nações” (Is 42, 6). É o anúncio de que ele
ainda viria a ser a salvação para os justos. A conclusão se insere no texto do NT: “Nele
é que fomos escolhidos, nós que desde o começo voltamos nossa esperança para o
Cristo” (Ef 1, 11).
Observando sob um outro ângulo a noção de intertextualidade, Ingedore Koch diz
que todo texto é um intertexto, na medida em que reconstrói ou permuta textos que já
existem ao seu redor, ou dentro dele mesmo. No entanto, a autora adverte que a noção
de intertextualidade também pode se manifestar na forma e no conteúdo. E explica:
Tem-se intertextualidade de forma/conteúdo, por exemplo, quando o
autor imita ou parodia, tendo em vista efeitos específicos, estilos,
registros ou variedades de língua, como é o caso de textos que
reproduzem a linguagem bíblica.... (Koch, p. 49)
47
O título do capítulo I, “Em Alegria”, remete ao primeiro dos quatro mistérios
rezados no Rosário, os “Mistérios Gozosos”. Tomemos a etimologia dos vocábulos
“alegria” e “gozoso”; “alegria”: alegre + -ia; do latim vulgar
5
alìcer,
alàcer,alàcris,álacre, cujo significado aponta 'vivo, animado, feliz, bem-disposto'.
Acrescentemos a etimologia de “gozoso”: gozo + -oso; 'prazer, contentamento', do latim
gaudìum,ìi 'satisfação, alegria, gáudio'. Os quatro evangelhos narram, nos primeiros
capítulos, alguns fatos alegres, gozosos, dos anos da infância do menino Jesus. Desse
modo a autora se apropria do sentido de “gozo”, substituindo esse vocábulo por um
outro se de acepção semelhante. O primeiro mistério incluído nos Mistérios Gozosos é a
“A Anunciação”, revelação da concepção virginal de Maria, feita pelo anjo Gabriel.
A transcrição do romance, que apresentamos a seguir, confirma o sentido que
evoca no contexto a palavra “alegria”, para nós sinonímia de “gozo”, ou seja: prazer,
contentamento, júbilo.
Antes de que uma vaga e dispersa forma principiasse no corpo de
minha mãe, antes de que meu coração batesse, houve um momento de
amor e de alegrias tão grandes, tão estremecedoras, que sendo eu
apenas promessa, fui aquecido pelo calor do instante em que o
Espírito vivificou meus começos em Maria. (Eu Venho, p. 3)
Destacamos a importância da palavra “promessa”, que se repete várias vezes no
romance, assim como no texto das Sagradas Escrituras, como lemos a seguir:
E agora,
Senhor Deus, cumpri para sempre a promessa que fizestes a respeito do vosso servo
(Davi) e para sua casa, e
fazei como prometestes” (2 Sm 7, 25).
Na encarnação de Jesus se concretizou a promessa divina de salvação e libertação,
não só para os judeus, como eles esperavam, mas para todos que cressem na sua palavra
e dessem testemunho do amor.
E a autora usa de poesia e criatividade para gerar esse contexto na cena da
visitação do anjo Gabriel a Maria, e conseqüente encarnação de Jesus. Comparemos,
para essa cena, os recortes de Eu Venho e da Bíblia, no evangelho segundo Lucas,
buscando uma analogia entre ambos a fim de fundamentar nosso ponto de vista. Nas
transcrições a seguir, as letras entre parênteses indicam os vínculos a que nos
referiremos logo adiante.
5
Optamos por não utilizar os sinais breve e longo nas transcrições das palavras latinas. As
informações etimológicas foram colhidas no Dicionário Houaiss.
48
(1) BÍBLIA:
(a) No sexto mês, (b) o anjo Gabriel foi enviado por Deus (c) a uma
cidade da Galiléia, chamada Nazaré, (d) a uma virgem desposada com
um homem que se chamava José, da casa de Davi; e o nome da
virgem era Maria. (e) Entrando o anjo disse-lhe: ‘Ave, cheia de graça.
O Senhor é contigo’. (f) Perturbou-se ela com estas palavras e pôs-se a
pensar no que significaria semelhante saudação (...) O anjo disse-lhe:
Não temas, Maria, pois encontraste graça diante do Senhor (g) Então
disse Maria: ‘Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a
tua palavra’. (h) E o anjo afastou-se dela. (Lc 1, 26-29.38)
(2)
EU VENHO:
(d) Ninguém poderia julgar estranho que uma quase menina como
Maria fosse a prometida de José (...) (c) Nazaré era um simples lugar
de casas brancas e modestas (...) (i) De trás da pequena casa havia
flores no jardim de minha mãe e a terra respirava em delícia, (a)ainda
na estação da chuva, (e) quando Gabriel saudou Maria. (b) (g) Ao
responder ao Anjo, que se fizesse a vontade do Senhor, (f) a menina
estremeceu de humildade ferida; em espanto desmedido e antes que
consentisse, (i) lá fora, os bois ofegavam parados, o arado não se
movia, só o cheiro da terra embebida de chuva subiu ao ar, como
respiração contida de um mundo ansioso por libertar-se da longa
espera (...) (h) Quando Gabriel deixou a pequena casa, baixando
totalmente o manto sobre a face e desaparecendo nos vinhedos
próximos, (g) eu já podia sentir a vida. (p. 4)
No texto bíblico, assim como no romance, a promessa se cumpre: “E o Verbo se
fez carne e habitou entre nós, e nós vimos sua glória; a glória que o Filho único recebe
de seu Pai, cheio de graça e verdade” (Jo 1, 14).
Os vínculos que identificamos confirmam o paralelo entre a linguagem bíblica e a
narrativa em linguagem poética no texto de Dinah. São eles:
(a) localização temporal do fato;
(b) Gabriel é o anjo enviado por Deus;
(c) localização espacial do fato;
(d) compromisso entre Maria e José;
(e) saudação do anjo;
(f) assombro da menina;
(g) consentimento de Maria;
(h) partida do anjo.
O recorte do romance acrescenta informações que não encontram paralelo no
texto do evangelho. Referimo-nos aos trechos marcados com a letra (i), aqueles que
descrevem o contexto externo que também se deixava impregnar pelo mistério do
49
momento, como vemos nas seguintes expressões: “flores”, “jardim de minha mãe”, “a
terra respirava em delícia”. Esse contexto prepara, no espaço da enunciação, a chegada
de Gabriel, e a sinestesia aponta para o colorido, para o perfume e para a satisfação.
Após o consentimento de Maria, as marcas presentes no contexto são: “bois ofegavam
parados”, “o arado não se movia”, tudo era estático, em oposição ao “cheiro da terra
embebida em chuva”, que gera o campo semântico do movimento, cujas marcas são
“subir”, “respiração”, “libertar-se da longa espera” (Eu Venho, p. 4). Água e terra são
metáfora da vida: elementos da natureza que se completam para tornar possível a vida
desde a criação do mundo (cf. Gn 1, 27. 6-7).
Conforme afirmamos, é a reescritura que transforma o arquétipo que caracteriza e
define a relação intertextual entre ambos os textos. Segundo Jenny (p. 6), não se trata de
uma citação literal, mas nada há de incompatível no fato intertextual, já que a obra
literária possui uma forte marca da metalinguagem.
Sobre Maria e José são escassas as informações biográficas, pois sabemos que os
evangelhos, principal fonte de conhecimento, não são biografias. Nas palavras de
Dinah, porém, encontraremos a descrição de ambos. Vejamos o que Jesus-narrador
informa a respeito de Maria:
Não se saberá dizer dela a verdadeira imagem (...) no tempo em que se
passou minha vida contada, a imagem era proibida (...) Não, nenhuma
face de Maria daquela época (...) Homens e mulheres eram mais
morenos do que hoje o são nos lugares em que vivi. E Maria também
era bem morena. (Eu Venho, p. 3)
Na verdade, “toda atenção dos estudiosos volta-se para o significado da Virgem
de Nazaré na História da Salvação, testemunhada na e pela Bíblia” (Autran, p. 8). A
participação de José nessa História se faz pelo vínculo que assume com Maria, pois,
instruído pelo Anjo do Senhor, “recebe e cumpre a misteriosa missão de ‘acolher Maria’
como esposa, apesar de seu temor frente ao mistério da concepção virginal, e de ‘impor
o nome de Jesus ao filho de Maria’ (paternidade jurídica)” (Autran, p. 65). Interessa-nos
em especial o mistério presente na citação do romance paralela ao evangelho de Lucas
1, 26-29.38. Observemos a seqüência da cena no evangelho segundo Mateus e em Eu
Venho. Nas transcrições a seguir, as letras entre parênteses indicam os vínculos a que
nos referimos logo adiante.
(1)
BÍBLIA
50
(a) Enquanto assim pensava, eis que um anjo do Senhor lhe apareceu
em sonhos e (b) lhe disse: José, filho de Davi, não temas receber
Maria por esposa, (c) pois o que nela foi concebido vem do Espírito
Santo. (d) Ela dará à luz um filho a quem porás o nome de Jesus, (c)
porque ele salvará seu povo de seus pecados. (Mt 1, 20-21)(2)
(2)
EU VENHO
(a) Ainda o sol não nascera e ele ouviu: — José! (...) Ele estava no
sonho, mas sabia que aquela era a voz de um anjo, um anjo que acudia
a sua noite de aflições. (b) — José, filho de Davi, não temas receber
contigo tua esposa Maria (...) — sacudiu-se o corpo de pai José no
sono em que estava mergulhado. (c) — ...porque a concepção que
nela se cumpriu é obra do Espírito Santo! (d) Darás o nome de Jesus à
criança, (e) Ele salvará o mundo de seus pecados. Quando pai José
abriu os olhos estava no dia de suas bodas. (p. 10)
Os vínculos que identificamos confirmam o paralelo entre a linguagem bíblica e a
narrativa em linguagem poética no texto de Dinah. São eles:
(a) José ouve a voz do anjo em sonho;
(b) o anjo encoraja José a receber Maria por esposa;
(c) o anjo garante a José a concepção pelo poder do Espírito Santo;
(d) José recebe a ordem de dar nome à criança;
(e) O anjo informa José de que Jesus salvará o mundo dos pecados.
Os contextos análogos, o bíblico e literário, denotam o mistério presente no poder
de Deus e na realização de sua obra. Diz Rudolf Otto que “o conceito de mistério
designa unicamente o que está escondido, a saber, o que não é manifesto, aquilo que não
é concebido, nem compreendido” (p. 22), porque transcende o natural, é extraordinário,
além do comum da vida. Otto esclarece a respeito do “terror místico”, que por analogia
pode ser confundido com o medo, sentimento natural, “mas na realidade é outra coisa
completamente diferente de ter medo” (p. 23).
A voz do anjo na Anunciação nos diz: “Não temas, Maria” (Lc 1, 30). Esse
contexto é reescrito em Eu Venho: “a menina estremeceu de humildade ferida; em
espanto desmedido” (p. 4) Comparemo-lo à voz do anjo que fala a José: “José, filho de
Davi, não temas receber Maria por esposa” (Mt 1, 20), e que se repete em Eu Venho:
“José, filho de Davi, não temas” (p. 10). O verbo “temer”, do latim tremo,is,mui,ère
'tremer, estar agitado; palpitar; abalar-se; tremer de medo, recear', é usado no contexto
bíblico, para revelar o poder indizível de Deus que se apodera da criatura humana,
causando-lhe arrebatamento. É o sentimento diante do numinoso, que contribui para sua
51
grandeza (cf. Otto, p. 26-27).
É José quem garante legalmente a ascendência davídica a Jesus, confirmada pelo
NT:
Conforme haviaprometido”, Deus fez surgir da descendência de Davi um
Salvador para Israel, que é Jesus”(At 13, 23). A autora remete à genealogia de Jesus
pela expressão “José, filho de Davi”, ou seja, José pertence à casa de Davi, e ele lhe
dará por nome Jesus e um nome perante a lei. Vejamos: “nome”, do latim nomen,ìnis;
‘palavra que se agrega ao prenome para indicar sua origem (quem é seu pai, seu clã,
seus antepassados, sua aldeia ou cidade, a profissão tradicional da sua família etc.)’.
Embora sejam raras na Bíblia as informações sobre Maria e José, destacamos do
romance, um traço comum a ambos, o “silêncio”, cuja conotação corresponde ao “fiat”,
o sim dado por cada um deles à anunciação que lhes é feita por intermédio do anjo. Em
Maria está intimamente unido à sua “virgindade”, e em José, à sua qualidade de ser
“justo”. Vejamos o que nos diz Dinah em Eu Venho:
(Maria) Foi a escolhida do Senhor porque era pureza num riso; um
riso ainda de criança e, além dele, nos silêncios, a graça dos olhos
redondos, graves, que denunciavam sua força (...) Pai José a seguia
silencioso, homem já mais amadurecido, afeiçoado aos trabalhos de
madeira. (p. 3)
Os homens justos temiam o vento do deserto (...) Pai José não tivera o
cuidado de fechar todas as janelas para que o vento corresse livre lá
fora (...) (Rezava) “dirigi nossos pensamentos e nossos atos no sentido
da vida e do Bem. Louvado sejais, Senhor. (p.8)
Observemos a etimologia dos vocábulos em destaque: “silêncio”, do latim
silentìum,ìi 'silêncio', derivado do verbo silére 'calar-se, não dizer palavra'; “pureza”, do
latim puritìa,ae 'pureza, clareza, limpidez', cujo significado pode ser entendido por
“candura”, mas a leitura implícita do vocábulo remete ao contexto bíblico e evoca o
sentido conotativo, ‘estado ou qualidade de quem, especialmente no comportamento
sexual, tem conduta imaculada’; “virgindade”, do latim virginìtas,átis 'virgindade; idade
casadoura', cujo sentido conotativo é ‘conduta imaculada; candura, castidade, pureza’;
portanto a autora usa em seu texto a palavra “pureza” como sinonímia de “virgindade”;
“justo”, do latim justus,a,um 'que observa o direito, justo, legítimo, que convém', cujo
sentido aponta para a atitude assumida por José diante da vida, como veremos a seguir.
Antes de coabitar com Maria, José percebeu a sua gravidez, como mostra o
recorte:
52
Desde que vira Maria, após sua chegada, sentiu que ela era outra; mas
jamais teria idéia de que ela pudesse vir a ser uma noiva infiel,
merecedora do castigo maior da Lei. E no entanto, embora os outros
não soubessem, ele, agora, sabia. Maria estava grávida. (Eu Venho,
p.9)
Por ser um homem bom, “resolveu rejeitá-la secretamente” (Mt 1, 19), para que
ela não tivesse de ser submetida à lei que determinava, em caso de adultério, que a
mulher fosse apedrejada até a morte. Portanto, em José, justiça significa benevolência.
Ele também “é justo por não querer apropriar-se de um filho que vinha só de Deus e não
era seu. É justo por respeito a Deus e a seu plano que ele guarda sem divulgá-lo”
(Autran, p. 53) e, dessa forma, protegeu também a honra de Maria: O silêncio de José; o
silêncio de Maria: “Sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração” (Lc 2, 51).
Em Eu Venho, o enunciado é uma transcrição da profecia de Isaías: “Eis que a
Virgem concebeu e que ela terá um filho” (p. 4). Encontramos a etimologia do verbo
“conceber” no substantivo “conceição” do latim conceptìo,ónis. “O sinal dessa
misteriosa origem divina é a conceição virginal no seio de Maria” (Autran, p. 67), que
permaneceu velada, oculta, no silêncio para seus contemporâneos.
De acordo com a leitura que fazemos do texto, silêncio sinaliza naquele contexto o
ato de fé vivido por José e por Maria. Sinaliza também em nossos dias a atitude
daqueles que crêem no dogma de fé, fato tido como verdade a qual se espera que as
pessoas aceitem sem questionar, por ser atribuída a uma autoridade acima de qualquer
dúvida.
Foi um “anjo” que levou a mensagem da concepção a Maria. A José, o anjo levou
em sonho a certeza de que poderia desposá-la. Continuando nossa leitura, a palavra
“mensageiro” se coloca como outro termo-chave:
(...) quase tanto quanto a dos mensageiros que deveriam baixar os
mantos sobre a testa, para que o brilho dos olhos não dissesse de
pronto quem eram eles. (Eu Venho, p. 3)
Quem são os “mensageiros” de que nos fala o texto? Em sua etimologia
encontramos: mensage(m) + -eiro, adaptado do francês messager, cujo sentido é ‘que
ou o que leva e/ou traz mensagem escrita ou oral; portador que ou o que anuncia ou
pressagia; anunciador’. Aos seres espirituais, que servem a Deus como mensageiros
entre ele e os homens, chamamos “anjo”; a palavra se originou do latim tardio angèlus,i
'mensageiro de Deus', derivado do grego ággelos,ou 'o que leva uma mensagem,
53
mensageiro'.
O romance aponta uma tradição judaica comum entre as jovens que estavam às
vésperas do casamento: a noite em que os esposos chegariam para as núpcias.
Na tarde que se seguiria a esta noite, ele (José) deveria ir à casa de
Joaquim e Ana. Lá estaria a noiva (Maria), cercada de suas amigas, a
lâmpada para alumiar a noite dos esposos, o azeite guardado pelas
companheiras para que a demora do noivo não fizesse apagar a luz de
suas bodas. (Eu Venho, p. 8)
Essa mesma tradição será retomada por Jesus na narrativa da “Parábola das Dez
Virgens” (Mt 25, 1-13), que exorta à prudência e à vigilância. As virgens prudentes
tinham azeite bastante para vigiar durante a madrugada e ir ao encontro dos esposos,
enquanto as tolas tiveram de ir comprar mais azeite e ficaram do lado de fora da sala das
bodas, cuja porta já se havia fechado quando lá chegaram. A leitura implícita aponta
essas qualidades em Maria, “prudência” e “vigilância”. Vejamos a etimologia e o
significado dessas palavras: “prudência”, do latim. prudentìa,ae 'previdência, previsão,
sabedoria, inteligência; “vigilância”, do latim vigilantìa,ae 'hábito de velar, de estar
acordado', cujo sentido no contexto indica ‘quem age com precaução para não correr
risco; cuidado’.
A narrativa caracteriza o contexto social, humano e geográfico da antiga Palestina,
onde transitavam esses personagens que fariam parte da vida cotidiana de Jesus,
marcariam seus costumes e seriam, mais tarde, tamm personagens de suas parábolas,
como veremos em Eu, Jesus. Eram pessoas rudes, “camponeses que tangiam bois,
cheiravam a vinho, a mel e falavam tão grosseiramente que constituíam caçoada quase
geral quando iam levar oferendas ao Templo, em Jerusalém” (Eu Venho, p .4), porque
falavam o aramaico com sotaque de judeus da Galiléia, região na qual se situava
Nazaré, cidade onde Jesus passaria sua infância e juventude, descrita pela autora como
um “simples lugar de casas brancas e modestas, com uma sinagoga onde cabia uma
centena de pessoas”. Sob o olhar do enunciador, a Galiléia era uma “região doce e
tranqüila”, e do alto de seus montes poderiam ser vistos “os jardins, os lírios, os campos
de trigo” (Eu Venho, p. 5). Esses aspectos agrestes e característicos do povo constituirão
grande parte da simbologia usada por Jesus em seu anúncio do Reino.
Destacamos os vocábulos “templo”, “sinagoga” e “oferendas”, que denotam o
contexto religioso. “Templo”, do latim templum,i 'lugar consagrado e reservado aos
deuses, templo'; considerando-se o sentido figurado temos: ‘lugar digno de respeito’;
54
“sinagoga”, do latim eclesial synagóga 'sinagoga (de judeus)', este do grego
sunagógê,ês 'ação de reunir', donde 'reunião, lugar de reunião, assembléia'; “oferendas”,
do latim medieval offerenda,órum 'coisas que devem ser oferecidas, aquilo que se deve
oferecer', cuja acepção no contexto é ‘oferta feita a Deus ou aos santos; oblata, oblação’.
Em seqüência à analogia que fazemos ao Rosário, o segundo mistério incluído nos
“Mistérios Gozosos” é a “Visitação”. A transcrição da Bíblia e a transcrição do romance,
apresentadas a seguir, referem-se à seqüência no contexto da “Anunciação”. Ouçamos a
palavra do anjo no evangelho:
(1) BÍBLIA
Olhe a sua parenta Isabel: apesar da sua velhice, ela concebeu um
filho. Aquela que era considerada estéril, faz seis meses que está
grávida. Para Deus nada é impossível. (Lc 1, 36-37)
Comparemo-la à narrativa no romance:
(2) EU VENHO
Aconteceu a visita de Isabel quando eu era muito mais Maria do que
eu mesmo. Ela era também uma menina curiosa e Gabriel atiçara a
doce curiosidade de minha mãe. Isabel já velha iria ter um filho? (...)
Durante o tempo de sua juventude, ela fora estéril e muito sofrera com
isto. Mas agora o anjo dizia que ela estava no sexto mês: “Pois nada é
impossível para Deus”. (p. 4-5)
A visita que Maria fez a Isabel é descrita como um tempo de alegria para ambas
as mulheres grávidas, a jovem e a idosa. A frase bíblica “para Deus nada é impossível”
é reescrita por Dinah com a inversão dos termos da oração, apresentando a seguinte
forma, “nada é impossível para Deus”. Nas duas construções sintáticas, o verbo “ser”,
no presente do indicativo faz a ligação entre o sujeito, “nada”, e o predicativo,
“impossível”. O sintagma “para Deus” exerce a função sintática de complemento
nominal do adjetivo “impossível”, predicativo do sujeito “nada”, atribuindo-lhe
significação oposta. No romance, “impossível” é seguido do sintagma “para Deus”,
colocado no final da oração, cuja função sintática se mantém como complemento
nominal. Vejamos o que diz Marques sobre o assunto: “Em contexto apropriado, o
deslocamento para o início do enunciado do termo focal, serve para topicalizá-lo” (p.
140). Entendemos que o deslocamento de “para Deus” para o início da oração, como
ocorre na Bíblia, acrescenta um valor semântico de destaque ao termo, por deixar
explícito logo no início, quem é o agente na oração. Portanto, a sintaxe garante que
55
Deus age no sentido de modificar o “nada” e o “impossível”.
Interpretemos agora a opção pelo pronome indefinido “nada”. Segundo atesta o
Dicionário Houaiss, o uso constante da locução homines nati, empregada em frases
negativas tomou o valor pronominal e indefinido que é próprio de nada, coisa nenhuma.
Ao lado de “nada”, seu atributo “impossível”, que contém o prefixo “im-” é equivalente
a in-, 'privativo'. Deste modo, “nada” e “im” expressam o valor semântico negativo da
oração construída com esses elementos. A Deus é atribuído o poder de transformar o
negativo em positivo. Supondo-se uma reescritura com a inversão dos elementos
negativos teremos: “tudo é possível para Deus”, ou “para Deus tudo é possível”.
A mensagem do anjo deixa clara a onipotência do Deus de Israel, Yahweh,
aquele que tem poder para realizar todas as coisas, para o qual não existem obstáculos e
cuja realização de sua obra independe de condições externas favoráveis.
Podemos fazer a leitura intertextual dos textos que descrevem a cena da
“Visitação”, comparando o evangelho segundo São Lucas 1, 39-56, ao romance Eu
Venho, narrada em 21 parágrafos. Identificamos as analogias que confirmam o paralelo
entre a linguagem bíblica e a narrativa em linguagem poética no texto de Dinah. São
elas: a viagem de Maria, às pressas, para as montanhas; a saudação de Maria a Isabel;
Maria é portadora do Espírito; o Espírito toca a criança no ventre de Isabel; a saudação
de Isabel que proclama a bem-aventurança de Maria; a profecia de Isabel; a
confirmação da ação do Espírito na criança de Isabel; a confirmação da bem-
aventurança de Maria; a proclamação da fé de Maria.
Relembremos que a autora transcreve o texto bíblico de forma poética ou, como
diz Sant’Anna, apropriando-se do texto alheio para criar, pela intertextualidade, uma
nova leitura em estilo literário (Sant’Anna, p.46).
É importante observarmos dois sintagmas oracionais transcritos para o romance. O
primeiro de forma idêntica ao do texto bíblico: “Bendito é o fruto do teu ventre”. Essa
confissão de fé proclamada por Isabel foi incluída na Ave-Maria, ainda hoje proclamada
por todos os cristãos que rezam essa oração tão rica em significação e que faz parte da
História do cristianismo.
São relevantes as significações dos nomes que compõem a oração. “Bendito”, do
latim benedíctus,a,um 'louvado, abençoado, consagrado'; “fruto”, do latim frúctus,us
‘produto(s) da terra, das árvores, dos animais'; por metáfora: ‘filho, rebento, cria’;
“ventre”, do latim venter,tris 'ventre, barriga (das pessoas e dos animais); por
metonímia: ‘útero’. O anúncio profético de Isabel revela que o filho guardado no útero
56
de Maria, Jesus, é abençoado, consagrado. O segundo sintagma: “Feliz aquele que
acreditou” é semelhante ao texto bíblico: “Bem-aventurada aquela que acreditou”.
Observamos a palavra “feliz”, do latim félix,ícis 'feliz, venturoso, rico, opulento,
próspero, fecundo'; cujo sentido no contexto é “venturoso”, ou seja, Maria é aquela
proclamada “bem-aventurada”, cuja substituição é feita por “feliz” no texto de Dinah. O
verbo “acreditar”: ‘a- + crédito + -ar, donde o substantivo “crédito”: ‘confiança, crença
alimentada pelas qualidades de uma pessoa ou coisa’, ou “confiança”: ‘crédito, fé’,
apontam para Maria como a bem-aventurada porque teve confiança, teve fé mesmo sem
entender, porque, conforme diz Isidoro Mazzarolo, “tudo estava acontecendo fora da
lógica; logo era obra da graça de Deus” (p. 43). A bondade de Maria a leva a ter
confiança, a aceitar o plano de Deus e a sair do seu lugar para visitar sua prima nas
montanhas.
O capítulo termina com o “Cântico de Maria” (Lc 1, 46-55), um hino de louvor e
gratidão a Deus, que também pode ser chamado de “As Bem-aventuranças de Maria”
ou, como é mais conhecido, o Magnificat. No momento do canto o sentimento
transborda da alma nobre e humilde da mulher que é a magnífica, porque se tornará a
mãe daquele que será chamado “Filho do Altíssimo” (Lc 1, 35). Nesse cântico há uma
inversão de paradigma, pois o poder político-religioso de imperadores e sacerdotes
favorecia os ricos, porém o canto proclama que no Reino de Deus os poderosos serão
humilhados e os pobres serão exaltados, alcançarão a misericórdia de Deus, que sempre
se lembra de seu povo: “Conforme prometera a nossos pais, em favor de Abraão e sua
posteridade para sempre” (Lc 1, 55).
Podemos dizer que Maria é a metáfora da própria Igreja em seu surgimento
original e o Magnificat é sua experiência profunda da misericórdia do Deus da Aliança,
cantado e contado por Maria. Diz-nos Autran que:
Para Lucas, Maria não é apenas uma mulher judia; é a personificação
do povo de Deus, filha exclusiva de Sião. Sua virgindade é o sinal de
uma pertença exclusiva ao Senhor. Sua grandeza e o cerne de sua
maternidade residem na sua fé-fidelidade à palavra de Deus. (p. 14)
Na Bíblia esse salmo é proclamado apenas por Maria. No romance, a autora se
apropria do texto bíblico, e o transforma num diálogo entre Maria e Isabel, inserindo
enunciados próprios da ficção, que esclarecem o início do discurso direto que reproduz
a voz alternada de cada uma das mulheres durante o canto (cf. Eu Venho, p. 6-7). No
57
segundo volume do Memorial do Cristo, há uma nota de rodapé em que a autora explica
que “o ‘Magnífica’ é atribuído com mais freqüência a Maria Santíssima, mas há muitos
teólogos que pretendem ser ele da autoria de Isabel, mãe de João Batista” (Eu, Jesus, p.
102).
O título do capítulo II é “O Vento do Deserto” (Eu Venho, p.9). “Vento”, do latim
ventus,i 'vento', cujo sentido denotativo é ‘o ar atmosférico em movimento natural’,
contudo no contexto bíblico que destacamos é índice da dificuldade, como mostra o
recorte: “um vento virá do Oriente, um vento de Javé subirá do deserto, para secar sua
mina de água e esgotar sua fonte” (Os13, 15). “Deserto”, do latim desertus,a,um,
particípio passsado de deserère 'abandonar, desprender-se, isolar-se', é o lugar da
provação: o povo hebreu guiado por Moisés, caminhou durante quarenta anos pelo
deserto até chegar à terra prometida (cf. Js 5, 6). É também o lugar da solidão e da
tentação pelo demônio, aquele que inspira e provoca o mal: Jesus, sozinho, será
conduzido ao deserto para ser tentado pelo demônio, cuja intenção era fazer com que
Jesus abandonasse sua missão em troca de tudo que ele lhe daria (cf. Mt 4, 1-10; Mc1,
12s; Lc4, 1-13). Deserto não é obrigatoriamente um lugar no espaço físico, mas sua
aridez representa um lugar no espaço interior, como metáfora da provação e da tentação
pela qual passa a alma humana, seus momentos de aflição e dor, de angústia por alguma
decisão difícil de ser tomada. Essa é a leitura subjetiva de deserto nesse capítulo em que
José descobre a gravidez de Maria, de um filho que ele não gerara.
E quando foi buscar o vinho para servir a José, seu corpo falou por
ela, pelo movimento que fez. Anunciava, sem pretender, o que tinha
dentro de si. Então pai José disse que deveria voltar e não podia mais
esperar, pois tantas e tantas coisas deveriam ser feitas. (Eu Venho, p.
9)
Começava a crise de José. Para ele “Maria seria como o sol”. Ela nunca seria,
como já vimos, “uma noiva infiel, merecedora do castigo maior da Lei” (Eu Venho, p.
9).
A metáfora de “sol”, do latim sol,sólis 'sol, astro, deus', remete ao contexto
bíblico, no qual encontramos: “Quem é essa que surge como aurora,/bela como a lua,/
brilhante como o sol,/ temível como um exército em ordem de batalha” (Ct 6, 10).
Maria é o sol a que se refere o AT, a quem José amava “com seu amor de homem” (Eu
Venho, p. 14)
A referência ao castigo da “lei”, do latim lex,légis 'rito, lei, obrigação civil escrita
58
e promulgada', diz respeito ao AT, onde se lê que Yahweh disse a Moisés: “Suba até
junto de mim na montanha, pois eu estarei aí para lhe dar as tábuas de pedra com a lei e
os mandamentos que escrevi, para você os instruir” (Ex 24, 12). No NT os escribas e
fariseus põem Jesus à prova em relação à lei de Moisés: “Mestre, essa mulher foi pega
em flagrante cometendo adultério.
A Lei de Moisés manda que mulheres desse tipo
devem ser apedrejadas. E tu, o que dizes?” (Jo 8, 5).
Maria seria sujeita à lei de Moisés? Maria seria repudiada por José? E José
perturbou-se, o que faria ele diante daquela situação?
Havia no canto de sua morada uma pequena criatura (...) A pequena
pessoa, tanto mais José avançava em seus pensamentos, quanto mais
abria a boca esfomeada, como um pássaro recém-nascido esperando
alimento. Por sobre a testa de pai José, esvoaçavam visões que o vento
desenrolava com a força e a maldade de que era capaz sua vertigem
destruidora (Eu Venho, p. 9).
O contexto deixa implícito que a pequena criatura, que tem a forma de um pássaro
recém-nascido, é a personificação do demônio, presente “num canto da morada” de
José. As marcas que remetem a essa leitura são: “boca esfomeada”, “maldade” e
“vertigem destruidora”. Prisioneiro das visões que esvoaçavam, os maus pensamentos
levaram José a se lembrar de momentos angustiantes quando “chorou de medo e
sofrimento” (Eu Venho, p. 10), provocando um conflito maior em José, que já não sabia
como agir diante desse quadro.
O “vento”, veículo do mal, atiçava a ira injusta e durante “dois dias e duas noites
o vento soprou (....) inquietando as rezes que mugiam” (p. 8). É clara a marca do “mal”,
do latim màlum,i 'desgraça, crime, enfermidade', neutro substantivo do adjetivo
màlus,a,um 'mau, nocivo, ruim, maligno': em teologia a ‘presença da malignidade:
Diabo, Satanás’.
Em oposição ao contexto da maldade, segue-se a narrativa que revela a
misericórdia de Deus sobre José:
Pela madrugada o vento parou. Então José encontrou afinal, num
recanto em que encostava a cabeça, o breve repouso. Tudo ficou
tranqüilo e lá fora os bois deixaram de mugir e de inquietar-se. A
bandeira da paz do Senhor protegeu o sono de José. (Eu Venho, p. 10)
O recorte revela a resposta ao pedido que José elevara a Deus em oração. Ele
rezava: “(...) Dirigi os nossos pensamentos e nossos atos no sentido da vida e do Bem”
59
(p. 8). Os vocábulos “repouso”, “tranqüilo”, “paz” são marcas que apontam para o
campo semântico da “vida” e do “bem”, cuja origem é o advérbio latino bene 'bem’,
depois bonus,a,um 'bom': em teologia, a ‘presença do próprio Deus’, origem de toda
vida.
Foi durante esse sono benfazejo que um anjo levou a mensagem do Senhor a José,
dizendo-lhe que não temesse em receber Maria por esposa, e José teve motivos para crer
que a voz era verdadeira “porque todo mal que nele habitava fora expulso, e ele bem se
sentia pacificado e disposto, como se houvera dormido toda a noite livre de aflições”
(Eu Venho, p. 10).
De acordo com o que vimos argumentando, o recorte acima confirma o sentido da
antítese entre o “bem” e o “mal”. Em resposta à voz do anjo, José decidiu pelo “bem” e
foi buscar sua prometida na casa de seus pais, para levá-la com ele, pois ele “estava
certo de que Maria a ele nada revelara, porque era jovem e humilde, também. Tão
humilde, tão menina!” (Eu Venho, p. 11).
O adjetivo “humilde” caracteriza um traço na personalidade de Maria apresentado
desde o capítulo I, quando a menina recebeu a visita do anjo e, assustada, estremeceu
em sua “humildade”, do latim humilìtas,átis, em sentido figurado ‘sentimentos
humildes, modéstia'; virtude própria de quem tem consciência das próprias limitações.
Em Maria, além da modéstia, é a reverência ou respeito ao próprio Deus que a faz
submissa. Podemos afirmar a “humildade” também como traço na personalidade de
José, porque conforme lemos ele acreditou na mensagem e, humildemente, fez a
vontade do Senhor, cumprindo seu compromisso com Maria.
Lemos no início do Capítulo III:
Pela tarde ainda clara começaram a chegar à casa de pai José muitos
amigos. Alguns já vinham com um leve cheiro de vinho e diziam: —
onde não há vinho não há alegria. (Eu Venho, p. 12)
Trata-se do dia das bodas de José e Maria. Nesse capítulo, o enunciado descreverá
a festa de casamento como acontecia naquela época entre os judeus, com detalhes como
os de um quadro para ser apreciado. Contudo, essa narrativa é realidade no romance,
não constituindo o texto bíblico. Sabemos que José, à luz da História, desposou Maria,
segundo a lei: “Despertando, José fez como o anjo do Senhor lhe havia mandado e
recebeu em sua casa sua esposa” (Mt 1, 24).
O dia das bodas era comemorado com a comunidade, parentes e amigos, todos
60
eram convidados. Descrevendo essa comemoração, a narrativa começa por relevar a
importância do vinho, sinal de festa e alegria, e que também será o primeiro sinal da
divindade de Jesus, no milagre das bodas de Caná narrada em João 2,1-12 e em Eu
Venho, XLI. Havia entre os judeus a tradição da festa da colheita das uvas — a festa dos
Tabernáculos — “alegrar-vos-ei durante sete dias diante do Senhor vosso Deus” (Lv 23,
40). Portanto, uma festa judaica de casamento não poderia deixar de ter vinho e, caso
isso acontecesse, seria grave a falta cometida pelos donos da casa. Lemos no recorte de
Eu Venho que “onde não há vinho, não há alegria” (p. 12), cuja leitura afirmativa é:
onde há vinho, há alegria. Segundo o enunciado, nas bodas de José e Maria não faltou
vinho, logo, não faltou “alegria”.
O romance continua a mostrar os costumes da tradição judaica: a participação dos
convidados que traziam ofertas, tais como tâmaras, confeitos, pães; o amigo que levava
uma bacia d’água com ervas cheirosas para que o noivo lavasse as mãos e o rosto; a
música da flauta, o tambor, a agitação dos convidados. Pelo que vemos, havia muita
“alegria” entre aqueles que participavam da cerimônia, como comprova em Eu Venho o
trecho a seguir:
A porta se abriu e Maria apareceu (...) José bem a imaginara como
aparecia agora (...) Acesa a lâmpada, aqueles olhos de criança
aumentaram numa beleza quase terrível (...) Joaquim e Ana beijaram
Maria na fronte: era o sinal (...) Água perfumada era atirada sobre os
noivos. (...) Na piedosa Nazaré as festas eram poucas. Por isso em tais
ocasiões, todos queriam participar (...) Mais e mais pessoas se
juntavam com archotes acesos. (...) Ele (José) deu alguns passos
sozinho, abriu a porta para Maria. Com isto terminava a cerimônia
pela qual se tornavam esposos. Ela deu seu passo. (...) e então foi
aquele alegre perpassar de um breve rebanho humano que se apertava
pela embocadura da casa. (...) (p.13)
Contudo, voltando o olhar sobre os noivos, que sentido expressa a palavra
“alegria”, considerando-se a gravidez inesperada de Maria? Podemos afirmar o que não
expressa a palavra referindo-se a José e a Maria: ‘divertimento, contentamento’.
Comprova essa afirmação a antítese que decorre da palavra “terrível” adjetivando o
substantivo “beleza” em relação aos olhos iluminados de Maria. No espaço da
enunciação, essa antítese “beleza x terrível” remete ao sentimento de José porque como
homem desejava Maria e não podia possuí-la. Porém, nas acepções de “alegria”,
encontramos: acontecimento “feliz”, do latim félix,ícis 'feliz, venturoso, próspero,
fecundo'; e também o sentido de ‘abençoado’. Entendemos que há um sentimento
61
sublime de alegria que se derrama como bênção sobre a mulher e o homem de fé. A
felicidade que supera a dor, como acontece no nascimento de um filho, porque
transcende o humano e desperta o divino, graça que só pode ser recebida por aqueles
que fazem a vontade de Deus. Maria e José são abençoados, venturosos. É dessa alegria
que os dois participam.
A narrativa continua a mostrar o transcorrer da festa:
(1) EU VENHO
(c) Os últimos a passarem pela porta foram dois cegos (...) O homem
avinhado, quando eles passaram (...) teve um dito simbólico: (a) (c)
Depois das trevas (a) que se fechem as portas para o banquete (b) dos
filhos da luz! (...) (a) os retardatários vinham logo bater à madeira.
Mas a porta não foi aberta até que o banquete terminou. (Eu Venho, p.
13-14)
Na transcrição do romance que apresentamos, um “dito simbólico” reconhecido
pelo enunciador como tal, produz a seguinte mensagem: “Depois das trevas que se
fechem as portas para o banquete dos filhos da luz” (Eu Venho, p. 14). Identificamos o
emissor como o homem avinhado e os destinatários, todos os presentes à festa. Aqui
entendemos que o “dito simbólico” se trata de um símbolo lingüístico que se refere a uma
circunstância específica (cf. Marques, p. 132-133). Levando-se em conta o contexto
social-religioso imediato, somos levados a fazer a leitura denotativa da mensagem, porém
em um espaço enunciativo mais amplo os implícitos do texto produzem um sentido
conotativo, como estudaremos a seguir. Antes, consideremos algumas passagens da Bíblia
para buscar uma analogia entre o romance e o texto sagrado, a fim comprovar o dito como
um símbolo e também apontar outros símbolos presentes nos recortes do romance.
Novamente, as letras entre parênteses indicam os vínculos a que nos referiremos logo
adiante e que remetem ao trecho transcrito há pouco:
(2)
BÍBLIA: (a)
Uma
vez que o dono da casa se levantar e fechar a porta, vocês vão
ficar do lado de fora. E começarão a bater na porta, dizendo: ‘Senhor,
abre a porta para nós!’ E ele responderá: ‘Não sei de onde são vocês’.
E vocês começarão a dizer: ‘Nós comíamos e bebíamos diante de ti, e
tu ensinavas em
nossas praças!’
Mas ele responderá: ‘Não sei de onde
são vocês. Afastem-se de mim, todos vocês que praticam injustiça!’
Então haveráchoro e ranger de dentes, quando vocês virem Abraão,
Isaac e Jacó junto com todos os profetas no Reino de Deus, e vocês
jogados fora.
Muita gente virá do oriente e do ocidente, do norte e do
sul, e tomarão lugar à mesa no Reino de Deus.
(Lc 13, 25-30)
62
(3) BIBLIA: (b)
A
multidão disse a Jesus: A Lei nos diz que o Messias vai permanecer
aqui para
sempre. Como podes dizer que é preciso que o Filho do
Homem seja levantado? Quem é esse Filho do Homem?
Jesus
respondeu: A luz ainda estará no meio de vocês por um pouco de
tempo. Procurem caminhar enquanto vocês têm a luz, para que as
trevas não alcancem vocês. Quem caminha nas trevas não sabe para
onde está indo.
Enquanto vocês têm a luz, acreditem na luz, para que
vocês se tornem filhos da luz. Depois de dizer isso, Jesus foi embora e
se
escondeu deles. (Jo 12, 30-36)
(4)
BÍBLIA: (c)
Partindo Jesus dali, dois
cegos o seguiram, gritando: Filho de Davi,
tem piedade de nós! Jesus entrou numa casa e os
cegos aproximaram-
se dele. Disse-lhes: Credes que eu posso fazer isso? Sim, Senhor,
responderam eles. Então ele tocou-lhes nos olhos, dizendo: Seja-vos
feito segundo vossa fé. No mesmo instante, os seus olhos se abriram.
Recomendou-lhes Jesus em tom severo: Vede que ninguém o saiba.
Mas apenas haviam saído, espalharam a sua fama por toda a região.
(Mt 9, 27-31)
Fizemos quatro recortes diferentes. Como podemos ver, o que se refere ao número
(1) é o texto do romance. Os três seguintes são passagens da Bíblia, intertextuais ao
texto do romance, que explicam os símbolos presentes no contexto ficcional. Vimos
adotando como padrão a transcrição do texto bíblico em primeiro lugar, seguido do
texto do romance, o qual freqüentemente é o prolongamento da obra arquetípica
(Laurent, p. 8). Todavia, nesse modelo que comentamos agora, invertemos a ordem dos
textos, já que percebemos uma inversão também no que se refere ao padrão de
intertextualidade. Como esclarece Lucien Dällenbach, o texto literário, no processo
intertextual, assimila e transforma seu arquétipo simplificando o original e subverte a
sucessividade, convertendo o tempo e o espaço, transformando-a em
contemporaneidade (p. 51).
Os vínculos que identificamos entre a linguagem bíblica e a narrativa do romance
confirmam a intertextualidade entre os dois textos. São eles:
(a) depois de fechada a porta pelo dono da casa, não adianta mais bater, pois
a porta não será aberta. O lado de dentro da casa representa o Reino do
Céu; o lado de fora representa o inferno, onde há choro e ranger de
dentes; são as trevas exteriores.
(b) quem merece entrar na casa para participar do banquete são os filhos da
luz. A luz representa Jesus que liberta a humanidade das trevas, para que
todo aquele que crer e caminhar na luz, se torne filho da luz, e participe
63
da casa do Pai.
(c) os últimos a entrar na casa foram dois cegos, aqueles que não conhecem
a luz, portanto eles representam as trevas, confirmadas pelo homem
avinhado que proclama que depois das trevas as portas sejam fechadas.
Naquele tempo os cegos eram excluídos do convívio social porque, de
acordo com a lei, estavam sob o jugo do pecado. José os recebeu em sua
casa, que representa o Reino de Deus. Jesus acolhe os cegos que o
seguiam e que nele criam e os reintegra à comunidade curando-os, para
que também eles se tornem filhos da luz e participem do Reino de Deus.
Finalizando o capítulo, a seqüência da narrativa revela como transcorreu a
intimidade dos noivos depois que os convidados se retiraram. O texto bíblico confirma a
não consumação do casamento de Maria e José, pelo uso do verbo “conhecer”, do latim
cognósco,is,óvi,ìtum,cognoscère aprender a conhecer’, cujo diacronismo é ‘ter relações
sexuais com; copular’, o que se comprova no evangelho de Mateus 1, 25: “E sem que
ele (José) a tivesse conhecido, ela deu à luz o seu filho, que recebeu o nome de Jesus”.
Em Eu Venho, a descrição desse encontro entre os esposos traz aos sentidos do leitor a
sinestesia, através da associação de sensações, como um perfume adocicado, o cheiro do
azeite e de lírios, a luz das lâmpadas penduradas. Tudo era como de costume em outras
bodas. “Mas eles, não” (p. 14). Esse período adversativo iniciado por um “mas” traz o
sentido oposto à seqüência paradigmática do enunciado que a antecede, ou seja, se tudo
acontecia como de costume, os esposos não agiam como de costume.
A autora retoma o texto bíblico, reafirmando a não consumação do casamento,
mas cria um prolongamento no texto do romance, através da linguagem metafórica que
se centraliza na dicotomia do sentimento vivido por Maria “amor/compaixão”, em
relação a José, e na dicotomia do sentimento vivido por José “amor/renúncia”, em
relação a Maria. Ele a amava “com seu amor de homem”, mas dedicou-lhe devoção,
semelhante à que se dedica aos santos: “Eis teu leito, Maria (...) ajoelhou-se, beijou-lhe
a barra dourada do vestido (...) Eu sei — disse José”. O verbo “ajoelhar”: ‘pôr-se de
joelhos’, conota uma ação obediente de alguém que age de forma submissa. Além disso,
ele não a toca, apenas beija-lhe “a barra do vestido”. Maria entende e, “pelo amor
trocado de José, ela viveu seu momento de compaixão” (Eu Venho, p. 14).
Outra transcrição que fazemos do evangelho de Mateus 1, 25 se encontra na
Bíblia do Peregrino, a qual informa que “José fez o que o anjo do Senhor havia
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ordenado, e acolheu sua esposa. Porém não teve relações com ela até que deu à luz um
filho, a quem chamou Jesus”. A inclusão da palavra “até”, modifica o aspecto semântico
do enunciado, por ser um dêitico que acrescenta ao verbo um valor durativo, ou seja,
deixa implícita a possibilidade de que sua virgindade poderia não mais ter sido mantida,
depois que ela deu à luz. Como diz Autran, “Em si mesmo, o texto de Mateus não
afirma a virgindade ‘perpétua’ de Maria. Afirma tão somente sua virgindade na
conceição de Jesus” (p. 61). Acrescenta que a intenção do evangelista era mostrar que
Jesus não tem pai humano, mas é filho de Davi.
Sobre José, o texto bíblico deixa claro que exerce a profissão de carpinteiro, como
lemos no evangelho segundo Mateus 13, 55 e em Marcos 6, 3: “Não é este (Jesus) o
filho do carpinteiro? Não é Maria sua mãe? Não são seus irmãos Tiago, José, Simão e
Judas?” Assim como na Bíblia, também no romance José é reconhecido como
“carpinteiro”, palavra proveniente do latim carpentarìus,ìi 'construtor, carpinteiro', cuja
etimologia confirma que naquele tempo sua profissão semelhava-se a de um engenheiro.
Mas o que não se encontra narrado nas Sagradas Escrituras, nos é dado pelo texto
literário, que descreve sua aparência física e vai delineando aos poucos sua
personalidade. O personagem tinha pele muito morena, “quase da cor da madeira em
que trabalhava desde que o sol nascesse; os cabelos claros e crespos encimavam-lhe a
testa alta e um pouco avançada acima dos olhos que ele cerrava freqüentemente, quando
ia iniciar uma frase” (Eu Venho, p. 12).
O capítulo IV descreve a arte da carpintaria de José, porém agora “já não eram
mais os simples e retos trabalhos (...) que pai José fazia à perfeição (Eu Venho, p. 15),
índice de mais um traço importante em José: o “trabalho”, cuja palavra “perfeição”
aponta o seu grande zelo. Porém, essa peça em que trabalhava de forma especial, ele
dedicava a Maria e a seu filho que iria nascer. José construía o berço para receber o
menino Jesus. Trabalhava com perfeição nessa peça rara, diferente dos simples arados e
mesas que costumava fazer. Duas vozes diferentes chamam atenção, a fala de um de
seus aprendizes: “— É um berço! (...) É um berço de rei” (Eu Venho, p. 15), e a voz de
Jesus-narrador, declarando que José “sepultava sua dor fazendo-me agora a oferenda de
seu ativo trabalho” (Eu Venho, p. 18). A palavra “berço” evoca nascimento, portanto
não faz parte do campo semântico do verbo “sepultar”, que evoca morte. “Berço de rei”
e “sepultar” são índices da missão do menino que estava para nascer e que ocuparia
aquele berço, mas que só seria proclamado Rei depois de morto e sepultado.
Ressuscitado, enfim, para uma vida gloriosa.
65
Podemos afirmar que esse capítulo é marcadamente mariano, ou seja, centrado na
santidade de Maria, que vem sendo anunciada no romance desde a concepção de Jesus.
A autora assume a tradição da fé cristã e dogmática da Igreja como verdade absoluta, o
que legitima o texto do romance. No entanto, se afasta da realidade histórica, pois o
enunciado antecipa o reconhecimento da santidade de Maria, fato que só será assimilado
alguns anos mais tarde pela Igreja. Diz-nos também Autran (p. 10-11) que os
testemunhos marianos foram evoluindo nas comunidades após a morte-ressurreição de
Jesus, ponto de partida para a fé neotestamentária, e acrescenta que a imagem de Maria
foi aparecendo no horizonte teológico da Igreja primitiva somente à luz de Jesus e por
razões nitidamente cristológicas. Em momento algum o NT fala-nos de Maria por si
mesma”.
Nesse capítulo de Eu Venho, qualidades importantes de Maria são mostradas,
como a força e a coragem da mulher na luta contra o demônio, que a ela se torna
submisso, que é por ela derrotado. Maria é chamada pela primeira vez no romance de
“Senhora”, ‘forma de tratamento cortês dispensado à mulher casada’, ou que ‘designa a
mulher nobre, distinta’. Observemos o recorte: “Isiel veio aflito, pois era o único que
pressentia (o mal): — Senhora, penso que ouvi coisas estranhas!” (p. 16-17). Dentre os
muitos títulos que lhe serão atribuídos, um deles é o de Nossa Senhora, quando mais
tarde ela for reconhecida como a Mãe do Salvador, conforme atesta Lumen Gentium
sobre “O Culto da Santíssima Virgem” (cf. Concílio, p. 131).
É Isiel, aprendiz de José, quem assustado invoca a ela, em busca de proteção,
porque “só Isiel suspeitava, pois numa tarde ele empalidecera, deixando cair uns
pedaços de madeira: — Aí no canto há um mal. Eu não sei, mas me assombra! Esbarro
nele e sinto arrepios...” (Eu Venho, p. 16).
Retomemos neste ponto a significação de “mal” como referência ao “maligno”, do
latim malignus,a,um 'que tem má índole'; freqüentemente usado para designar o diabo,
personificado no texto por uma ave, “uma breve pessoinha (...) a boca sempre aberta,
um jeito de pássaro faminto para minha mãe” (p.16), o mesmo que queria sugar “a
aflição de pai José” à véspera das bodas. Na voz de Maria ele é o pequeno
“inominável”, do latim innominabìlis,e 'que não pode ser nomeado'; cujo sentido no
contexto indica ‘demasiadamente abjeto, vil para ser nomeado; horroroso, péssimo’
No texto ficcional o que provoca toda força e coragem de Maria contra o diabo é
“descobrir-lhe o sentido do interesse: era a criança que ia nascer que chamava aquela
feia aparição” (Eu Venho, p. 16), que Maria enfrentava “cheia de cólera”.
66
Vários são os índices relativos a Maria no romance. A Mulher-mãe e a Mulher-
santa são a mesma pessoa: “mãe”, porque gera um filho ao qual em breve dará à luz;
“santa”, porque traz em si humildade, pureza e bondade incomuns e, especialmente,
porque foi a escolhida do Senhor para gerar seu Filho Único, conforme vimos no
capítulo I. A maternidade a santifica, e a santidade a torna mãe de Jesus, virtudes que,
diante do mal, lhe conferem autoridade para enfrentá-lo. O que motiva Maria é o
sentimento de amor materno e de proteção ao filho que trazia no ventre, impulsionando-
a a exteriorizar a força e a cólera necessárias para dominar aquela situação ameaçadora.
Esse contexto que se apresenta no romance remete ao dogma católico da
Imaculada Conceição. Reza esse dogma que Maria, desde o primeiro instante de sua
concepção no seio de sua mãe, foi preservada do pecado original. O dogma da
Imaculada Conceição foi proclamado pelo Papa Pio IX, no dia 8 de dezembro de 1854.
O que caracteriza principalmente a imagem de Nossa Senhora da Conceição é ter sob
seus pés a serpente, símbolo do diabo, por ela dominado.
Lemos no livro do Gênesis que depois de Adão e Eva estarem sujeitos ao pecado
original, Deus disse à serpente: “(...) Porei ódio entre ti e a mulher, entre tua
descendência e a dela. Ela te esmagará a cabeça (...)” (Gn 3, 15). Em Gênesis Eva é a
mulher que peca, instigada pela serpente, símbolo do mal. No NT e em Eu Venho, a
Santíssima Virgem é a nova Eva, que pisa a cabeça da serpente, mãe do novo Adão,
Jesus Cristo, porque “assim como em Adão todos morrem, assim em Cristo todos
reviverão” (1Cor 15, 22). Lemos nas Sagradas Escrituras que existe uma luta, um
antagonismo entre a mulher e o diabo. Vejamos como essa luta é apresentada em Eu
Venho:
Então minha mãe que sempre foi muito forte, correu até ele cheia de
cólera e disse: — Se não nos deixa em paz, ao menos ajuda no
trabalho! Ele já queria escapar. Com muita ligeireza ela avançou o pé
e o comprimiu contra o muro. (Eu Venho p. 26)
A palavra “ódio”, do latim odìum,ìi 'ódio, aversão’, usada no texto bíblico, é
substituída no romance por “cólera”, do latim Cholèra; ‘intensa raiva, ira’, que nos dois
contextos revelam o forte sentimento da mulher em relação ao “diabo”, do latim
eclesiástico diabòlus,i, do grego diábolos,on 'o que dá temor, o que desune. Para a
teologia, ‘o anjo rebelde (Satanás) que foi expulso do céu e precipitado no abismo
(inferno); espírito das trevas’. Lemos ainda outra qualidade importante de Maria em
destaque, é a “força”. Maria tem consciência de que pode dominar esse pequeno e
67
malévolo ser.
Uma das virtudes já apontada em Maria e em José é o silêncio que guardavam,
silêncio partilhado no amor sublimado e na entrega à vontade de Deus, o “bem” que
gera a vida, com poder de expulsar a presença do “mal”, confirmado no seguinte trecho
de Eu Venho: “Quando em silêncio os esposos se olharam, uma presença indesejada
bem se dissipou” (p. 17).
Outra marca que caracteriza a figura de Nossa Senhora como é conhecida hoje é o
“manto”, tantas vezes mencionado nas orações dos fiéis e nas canções a ela dedicadas.
Vejamos essa marca em Eu Venho: “Maria cobria a face, mas muitos a reconheciam,
não suspeitando de seu estado, pois largo manto a envolvia” (p. 18).
Maria e José estavam no mercado quando tiveram a notícia de que deveriam se
apresentar em Belém. Isiel lia: “Herodes
6
rei anuncia: para que todos sejam contados,
ordeno a quantos que por qualquer motivo estejam fora de suas casas que regressem a
seus distritos, a fim de que lá se inscrevam” (Eu Venho, p. 18). Essa transcrição do
romance se refere à publicação do recenseamento e é paralela ao evangelho de Lucas 2,
1-5, que informa o decreto em que César Augusto
7
mandava que toda população se
registrasse em sua terra natal. José era descendente de Davi e por esse motivo deveria
registrar-se em Belém, cidade de Davi. A viagem seria pelos montes e planícies que
separam Nazaré, na Galiléia, de Belém, na Judéia.
A maior parte do texto do romance que se inicia a partir da divulgação do
recenseamento e, em seqüência, todo transcorrer da viagem, até os momentos que
antecedem o nascimento de Jesus, fazem parte da ficção criada em Eu Venho. As
passagens que destacaremos, remetem principalmente à história do povo judeu, narrada
no AT, algumas delas relevantes para a contextualização do romance e de seus
personagens, tornando-os mais íntimos ao leitor, pela compreensão de suas lutas, seus
sofrimentos, suas tradições, que determinam o modo de ser comum àquele povo.
Maria encontrava-se em estado avançado de gravidez e viajar seria penoso para
ela. Ana tentava demover a filha: “Fica em casa com teus pais, aqui não faltará nada,
minha filha. Por que perder tempo se não é necessário que as mulheres se inscrevam
também?” E seu pai, Joaquim, também tentava dissuadi-la, pois bem sabia “que não se
deve separar os esposos, mas é por pouco tempo” (Eu Venho, p. 19).
6
Herodes Magno governou a Palestina durante 34 anos, de 37 a 4 a.C.
7
César Augusto foi declarado imperador de Roma, governando de 30 a.C. a 14 d.C.
68
Apesar de tudo, Maria foi para Belém e foi lá que Jesus nasceu segundo a História
bíblica. Em Eu Venho, o índice de que esse fato se realizará é a revelação do
pensamento de Maria feita por Jesus-narrador, pois ninguém sabia ainda “que minha
mãe pensava no profeta Miquéias, que ela estudara com outras jovens na sinagoga”
(p.19). Comparemos os dois recortes:
(1)
BIBLIA
Mas tu, Belém-Efrata, / tão pequena entre os clãs de Judá, / é de ti que
sairá para mim / aquele que é chamado a governar Israel. / Suas
origens remontam aos tempos antigos, / aos dias do longínquo
passado. (Mq 5, 1)
(2)
EU VENHO
— E tu, Belém a fértil, pequena no meio de milhares de clãs da
Judéia. Tu não és a menor, porque será de ti que sairá o chefe para
conduzir o meu povo de Israel, esse cuja origem vem dos tempos
antigos, dos dias da eternidade. (Eu Venho, p. 19)
A autora faz a reescritura intertextual da passagem bíblica que anuncia o
nascimento em Belém daquele que é chamado a governar todo o Israel, cuja origem
vem de tempos antigos. Observemos a expressão no texto de Miquéias, “dias
longínquos do passado”, paralela à do romance, “dias da eternidade”, cujo enunciado
remete ao capítulo I de Eu Venho, “do infinito painel da eternidade” (p. 3). Portanto,
podemos falar de uma intertextualidade interna, distinção feita por Ricardou (apud
Dällenbach, p.52), referindo-se à relação de um “texto consigo mesmo”.
O Messias esperado por todo o Israel deveria vir da linhagem do Rei Davi. José,
conforme comprovamos anteriormente, é da casa de Davi. Além de José, o texto
literário deixa explícito que Maria é também da mesma linhagem que José, assim sendo,
tanto pelo nome, quanto pelo sangue, Jesus é descendente de Davi, como comprovamos
este fato, no recorte que se refere ao pensamento de Joaquim e Ana: “Os velhos esposos
se entreolharam, porque também descendiam da mesma casa, mas não dispunham de
igual força para fazer tão longa caminhada; quatro dias, ou cinco, às vezes, até chegar à
pequena Belém” (Eu Venho, p. 20).
O nome próprio para os judeus era considerado como marca característica da
personalidade de quem o recebia. A escolha de um nome para uma criança não era feita
por estética, mas por tradição familiar. Ana entregou Maria a José na hora da partida
para Belém, dizendo as seguintes palavras: “Eis Maria (...) está toda em seu nome: ‘a
amada de Yaveh, a boa senhora’, seu chamado, dela diz tudo, e se quer seguir seu
69
esposo, não mais a retenho, embora meu coração se feche” (Eu Venho, p. 20). Vejamos
o que diz Claudio Cezar Henriques sobre esse tema.
O nome é a palavra com que as coisas se dão a conhecer. E as pessoas.
E os bichos. Nome vem do latim nomen, do grego gnaman, do
sânscrito ñaman. Sua raiz constitui a origem de cognoscere, palavra
da qual se formou o nosso verbo conhecer. De sua família faz parte
noumenon, numene ou nume, influxo divino, experiência do sagrado,
alguma coisa que parece carregada de energia viva. (2005, p.16)
A informação que Henriques apresenta, confirma as palavras da personagem Ana,
que deixa claro que o significado do nome dá personalidade à Maria, “a escolhida do
Senhor”, mais uma vez reconhecida como “Senhora” (Eu Venho, p. 20).
Durante a narrativa da viagem para Belém, José e Maria reviveram a lembrança
de tantas histórias que há mil anos se contavam naquelas planícies. Tempo em que o
povo de Israel lutava contra povos inimigos para defender sua terra e o nome de
Yahweh. Débora é trazida à memória no contexto de Eu Venho: “Bendita serás mais do
que as mulheres nômades (...) Andavam viajantes por atalhos desviados / Cessaram as
aldeias de Israel, cessaram / Até que eu me levantei por mãe de Israel (Eu Venho, p. 22).
A transcrição que fazemos do romance diz respeito ao “Cântico de Débora” (Jz 5, 1-32),
juíza que habitava a montanha de Efraim. Importam principalmente duas marcas no
texto do romance, que são parte desse Cântico. Destacamos: “Bendita serás mais do que
as mulheres nômades” e “Até que eu me levantei por mãe de Israel”. Apontamos
Débora como metáfora de Maria, a Débora no NT, aquela que é proclamada por Isabel:
“Bendita és tu entre as mulheres” (Lc 1, 42) e anunciada a José pela voz do anjo: “Ela
dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo de
seus pecados” (Mt 1, 21). Maria será, pois, elevada à condição de mãe do Salvador de
Israel.
Segundo lemos no romance, a caravana viajou durante três dias até chegar ao
poço de Jacó: “Maria (dormia) ao lado das companheiras e José perto dos homens,
como se fazia, até encontrarem o túmulo de José, filho de Jacó e Raquel. Visitaram o
poço de Jacó” (Eu Venho, p. 22). Acusamos mais uma marca da tradição presente nesse
trecho, a forma como organizavam a caravana, separando homens e mulheres. O texto
faz referência a Jacó, um dos patriarcas, filho de Isaac e Rebeca, cuja memória é
reverenciada pelo povo. Foi junto do poço que ele encontrou Raquel, a mulher a quem
amava e com quem se casou depois de muitas provações. O Senhor Deus dá a Jacó a
70
herança da terra e lhe promete que sua “posteridade será tão numerosa quanto os grãos
de poeira no solo” (Gn 28, 13-14). Deus lhe dá também um novo nome: “Teu nome não
será mais Jacó, tornou ele, mas Israel, porque lutaste com Deus e com os homens, e
venceste” (Gn 32, 24-30). Esse nome se perpetuará no povo “israelita”, antropônimo e
topônimo: Israel + -ita; em cuja acepção lemos: ‘relativo a ou descendente do patriarca
bíblico Jacó (Israel)’.
A narrativa mostra Maria sobre o lombo do burrinho, cansada da viagem, pedindo
mais uma vez para descansar. As mulheres, solícitas, cercavam Maria e a ela
perguntavam: “— Sentes as dores? — Não — disse Maria e dentro dela, juntamente
com o bater do meu coração, o alvoroço começava desordenado: “— E tu, Belém
Efrata? Tão longe, ainda!” (Eu Venho, p.23).
O momento do parto estava próximo, conforme indica a pergunta “sentes as
dores?” O uso informal dessa expressão refere-se aos sofrimentos provenientes do
trabalho de parto. Maria negava essa possibilidade, contudo as marcas que destacamos
do texto revelam o oposto: “dentro dela”, “bater do meu coração”, “alvoroço”, que são
confirmadas pelo seguinte enunciado: “E tu, Belém Efrata? Tão longe ainda!” A cidade
onde ela deveria dar à luz, “Belém”, estava “tão longe, ainda”; a expressão deixa
implícita na enunciação, pela presença do advérbio “ainda”, que a angústia provocada
pela necessidade de chegar, torna maior a distância.
No capítulo VI, “E tu, Belém Efrata?”, o enunciado descreve o espaço onde se
encontravam os personagens. Maria e José estavam na Judéia, lugar antigo que
guardava muitas lembranças. Naqueles dias, uma multidão invadia a cidade de
Jerusalém, e José mostrou o templo a Maria, “toda sua grandeza, dominando a cidade, o
templo reconstruído por Herodes, sobre um outro bem menor que se seguira ao
primeiro, vindo dos tempos do Rei Salomão” (Eu Venho, p. 24). Esse templo construído
por Salomão foi destruído pelos oficiais de Nabucodonosor
8
, rei da Babilônia, que
levou cativo o povo judeu (2Rs 24, 10).
Outra marca de que Maria estava entrando em trabalho de parto é a sua própria
fala: “— Temos pressa!” (Eu Venho, p. 25), pois já não queria descansar, mas chegar
logo ao seu destino, Belém. Há uma referência a Raquel (Jr 31, 15), “mãe de todas
8
Nabucodonosor viveu entre os anos 632 aC.- 562 aC, e governou o Império Neobabilônico entre 604
aC. a 562 aC. Foi responsável pela destruição de Jerusalém e do Templo, e pela deportação do povo judeu
para o exílio na Babilônia em
586 aC (cf 2 Re 24—25).
71
elas”, mulheres judias, “em amor, infortúnio e dor” (Eu Venho, p. 25). A dor de Raquel
é, também, a metáfora da grande dor que traspassará Maria ao ver seu próprio filho
injustamente crucificado.
Continuando a narrativa, diz o texto que Maria “estremecia em seu riso” e
também estava “contendo o ventre com a mão esquerda”, as expressões são marcas do
parto iminente A pergunta retórica, “Os olhos de minha mãe sorriam também?”,
encontra resposta na própria narrativa: “Não, eles estavam cada vez mais inquietos” E
acrescenta: “— José, nós temos que encontrar um lugar...” (Eu Venho, p. 26).
O nascimento de Jesus é narrado na seguinte passagem bíblica: “Estando eles ali,
completaram-se os dias dela. E deu à luz seu filho primogênito, e, envolvendo-o em
faixas, reclinou-o num presépio; porque não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,
6-7). Esses dois versículos correspondem em Eu Venho aos nove últimos parágrafos do
capítulo VI, “E Tu Belém Efrata?” (p. 25-26), e aos 21 parágrafos do capítulo VII,
“Hospedaria das Estrelas” (p. 27-30). O pronome demonstrativo “ali”, presente no
enunciado do evangelho, é um dêitico que mostra a cidade de Belém, descrita em
detalhes e de forma lírica no texto do romance, como neste trecho que destacamos: “Ah,
Belém, que belos os teus campos, tuas oliveiras prateadas: a vila que queria dizer
também a casa do pão, a Efrata, a rica em frutos” (Eu Venho, p. 26). Confirmamos no
Dicionário Bíblico, que “Efrata” significa “fertilidade” (www.bibliacatolica.com.br).
Confirmamos também a intertextualidade apontando no texto bíblico a palavra
“presépio”, do latim praesepìum,ìi, 'cerca, tapada para animais; curral, estrebaria',
confirmada pelo texto do romance: “abrigo para pastores”, “lugar para as ovelhas”,
“palhas” e “manjedoura”, do italiano Mangiatoia, cujo significado é um ‘tabuleiro em
que se deposita comida para vacas, cavalos etc. em estábulos’. A semântica diacrônica,
diz André Valente (1997, p. 187), é “aquela que aborda as alterações de sentido das
palavras no decorrer do tempo”. Lemos na acepção atual de “presépio”, ‘pequena
construção e figuras de materiais diversos (barro, madeira, louça, papelão etc.), que
representam o estábulo em Belém e as cenas que se seguiram ao nascimento de Jesus’.
Por metonímia houve ampliação do sentido; no passado, apenas estrebaria, no presente,
a cena completa do nascimento de Jesus, incluindo todos os participantes dentro e fora
da estrebaria, alguns dos quais ainda farão parte da narrativa literária.
Ainda de acordo com Valente (p. 32), o “presépio” torna-se um símbolo do
cristianismo, entendendo-se que “o símbolo tem caráter convencional, entretanto não é
gratuito. Existe uma ligação entre o significante e o significado”. Todos os elementos
72
que formam o “presépio” são signos não-verbais, que decorrem de um contexto
histórico-religioso, e trazem à mente o significado da “encarnação”.
O sintagma “dar à luz”, refere-se ao verbo “parir”, do latim parìo,is,pepèri,
pártum, parère, 'parir, dar à luz’, que se confirma no romance pela voz de Jesus-
narrador: “Então eu gritei à vida. Eu me havia separado da doçura e da bondade do seio
de minha mãe e gritava e chorava, uma criança ferida pela aspereza de viver”. Maria
dava à luz Jesus, seu filho “primogênito”, do latim primogenìtus,a,um 'o mais velho; o
primeiro homem'. “O verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos sua glória, a glória
que o Filho único recebe do seu Pai” (Jo 1, 14). Apontamos ainda a palavra “luz” como
a metáfora do próprio Jesus, o Deus encarnado, como mostra o seguinte versículo: “O
Verbo era a verdadeira luz que vindo ao mundo ilumina todo homem” (Jo 1, 9).
A seguir nos deparamos em Eu Venho com toda a perplexidade e o susto de José
ao ter consciência do acontecimento, porque ele dormia profundamente e acreditava
estar sonhando, e mal conseguia identificar o choro do recém-nascido. A transcrição
revela o desapontamento de José:
— Vê o que fizemos? (...) Ah! O Senhor nos vai castigar, porque seu
humilde guarda não encontrou morada melhor. Como poderemos
pagar tão grande pecado? (...) E ele se ajoelhava junto, rezava alto,
pedindo sempre perdão ao Senhor por não ter tido seu juízo maior
sabedoria, ter-me deixado nascer assim, naquele lugar tão ermo e
pobre. (Eu Venho, p. 31)
Reiteramos que há poucas referências a José na Bíblia, porém esse personagem é
incluído com participação efetiva em muitas das situações significativas no romance,
sempre com atitude de entrega e responsabilidade em relação a Jesus e a Maria. O
romance traz de volta o “sono” e o “sonho” de José. Todavia dessa vez, ao despertar,
depara-se com a realidade do menino recém-nascido, colocado na “manjedoura”. A
humildade de José e seu temor a Deus são confirmados pelos sintagmas: “tombou
humildemente”, “O Senhor nos vai castigar”, “tão grande pecado”, “ajoelhava”, “rezava
alto”, “pedindo perdão”. Importa também notar que José tinha consciência do seu dever
para com a criança: era “seu humilde guarda” (Eu Venho, p. 31). E Maria lhe dirigiu a
palavra: “— Serás tu que lhe imporás um nome”. E assim como o anjo lhe havia dito em
sonho, José confirmou: “Será Jesus”. José sabia que “Ele tinha duas responsabilidades.
Uma que lhe dava o Senhor (...) Outra que lhe dariam os homens” (Eu Venho, p. 32),
pois diante da lei e dos homens ele era pai de Jesus. A voz de Jesus-narrador reconhece
73
essa paternidade conferida a José, nomeando-o “pai José” (Eu Venho, p. 31).
Um cenário exterior cerca a gruta e dele participam pastores e ovelhas naturais
àquela região. Estavam reunidos para passar a noite, atentos à possível presença de
algum estranho entre eles. Um velho pastor avisou aos companheiros do mesmo redil:
“Aquele que ali está, não é dos nossos!” (Eu Venho, p.33). Ele se referia ao mensageiro
do Senhor, o anjo que lhes trazia a boa notícia de que havia nascido o Salvador. Os
pastores ficaram muito assustados, pois a luz que dele resplandecia não era deste
mundo, era manifestação da glória de Deus. Esse anjo e muitos outros anjos celestes
foram surgindo e uniram suas vozes para louvar a Deus. Encontramos a narrativa dessa
passagem no evangelho de Lucas 2, 8-14. O enunciado do capítulo VIII reescreve a
cena em seis parágrafos, com o título “No reino dos Pastores”. Todos os versículos do
texto bíblico correspondem ao texto do romance, contudo este se prolonga e é acrescido
do lirismo que faz parte do estilo da autora. Destacamos a figura do velho pastor,
metáfora da sabedoria, presente no homem pobre, mas sensível. Era o único entre eles
que já não tremia diante dos anjos. Destacamos também a cena em que a multidão de
anjos, os pastores celestiais, se formava “na grande região que se estendia para o alto,
desvendando um trato atrás do qual as potências se resguardavam. E eles cantavam, sim.
Cantavam para eles, os pastores, a quem os homens olhavam com desconfiança” (Eu
Venho, p. 33).
Ambos os textos, o bíblico e o ficcional, descrevem o contexto exterior ao
estábulo, do qual destacamos: o surgimento misterioso do anjo; o aviso do anjo para que
não temessem; o anúncio da feliz novidade; o sinal; a grande multidão de anjos; o
louvor a Deus. Conclui essa cena a expressão de louvor dos anjos a Deus, cujo
enunciado no romance é a transcrição da Bíblia: “
— Glória a Deus nas alturas e paz na
Terra aos homens de boa vontade!” (Eu Venho, p. 33-34; Lc 2, 14).
Esse contexto exterior à gruta e os personagens que dele participam, com o passar
do tempo, irão se agregar à cena do nascimento de Jesus, como acusamos anteriormente
no nosso estudo. São eles: os anjos, os pastores, os animais e, como veremos adiante, os
Magos.
Chama a atenção a repetição do sintagma “Não temais”, expresso pela voz do anjo
em diferentes contextos, a saber: na Anunciação, evangelho de Lucas 1, 30, cujo sentido
é reescrito em Eu Venho, p. 4; no sonho de José, evangelho de Mateus 1, 20, paralelo ao
romance, p. 10, e no anúncio do nascimento de Jesus, evangelho de Lucas 2, 10, cujo
texto paralelo está em Eu Venho, p. 33.
74
Relembramos o que diz Otto, quando explica o sentimento de arrebatamento
diante do elemento transcendental, do divino:
Em contraste com o poder que pressentimos fora de nós, concretiza-se
enquanto sentimento do nosso próprio apagamento, do nosso
aniquilamento, consciência de ser apenas pó e cinza, de ser somente
nada. Este sentimento numinoso, forma por assim dizer, a matéria da
humildade religiosa. (p. 30)
Nos contextos aos quais nos referimos, os anjos, mensageiros entre Deus e os
homens, mostram sua consciência sobre esse sentimento humano de ser tão pouco
diante da grandeza da divindade, e preparam imediatamente o ânimo daqueles a quem
se dirigiram: “Não temais” (Eu Venho, p. 33; Lc 2, 10).
Na cena relativa aos pastores, o fato que provoca temor é o anúncio do nascimento
de Jesus que se realiza através da presença e da palavra do anjo. De acordo com as
nossas transcrições, a Bíblia e Eu Venho narram esse fato, porém no romance a
expressão usada pelo anjo é “Evangelizo-vos uma grande alegria”, no lugar de “eis que
vos anuncio uma boa nova”, como ocorre na Bíblia. Entendemos que o verbo
“evangelizar”, do latim eclesiástico evangelízo,as,ávi,átum,are, tem o mesmo sentido do
sintagma oracional “anuncio uma boa nova”, cuja etimologia encontramos em
“evangelho”, do latim eclesiástico evangelìum,ìi, do grego euaggélion,ou 'boa notícia',
ou “boa nova”, ou seja, o sintagma oracional “anunciar a boa nova” é usado no lugar do
verbo “evangelizar”.
Aos pastores em primeiro lugar é levada a notícia de que nasceu o Salvador. No
século I, os pastores eram excluídos da sociedade, fato que se comprova no romance:
“Os olhos do velho pastor viram muito em seus tempos de pastoreio. Sentira o coração
maltratado, durante toda longa vida, pois embora o Rei Davi fosse um pastor, a eles,
pastores, ninguém dava seu respeito” (Eu Venho, p. 34). Mas o Senhor escolheu os
pastores como os primeiros convidados a conhecer Jesus e receberam o sinal que lhes
deu o anjo: “Isto vos servirá de sinal: achareis um recém-nascido envolto em faixas e
posto numa manjedoura” (Lc 2,12), que apresenta esta forma no enunciado do romance:
E eu vos darei o sinal: encontrareis uma criança envolvida em panos e reclinada num
presépio”. Destacamos a palavra “sinal”, do latim signális,e 'que serve de signo, de
sinal'. Sem abordar a discussão teórica acerca desse vocábulo, entendemos signo de
acordo com a definição dada por Santo Agostinho, a primeira da civilização ocidental,
75
que diz: “O signo é alguma coisa que, além e acima da impressão que causa nos
sentidos, traz à mente outra coisa como conseqüência (...) Por exemplo a fumaça indica
fogo” (apud Epstein p. 30). Para os pastores, um recém-nascido envolto em faixas
indica o Cristo.
Os pastores sabiam que ninguém acreditaria neles se relatassem tal maravilha, e a
locução desses próprios personagens confirma o fato, pois eles diziam que “nos
tribunais, o testemunho dos pastores valia tanto quanto o dos ladrões” (p. 34). Eles
aceitaram o convite para ir ao encontro de Jesus e, “depois que os anjos os deixaram e
voltaram para o céu, falaram os pastores uns com os outros: Vamos até Belém e
vejamos o que se realizou e o que o Senhor nos manifestou” (Lc 2, 15). Lemos a
reescritura em Eu Venho: “Vamos procurar nosso Salvador! (...) E para onde vamos
nós? (...) Como o Rei-pastor Davi, aqui me diz o coração, será em qualquer sítio perto
da campina. Quem sabe numa caverna? Onde nós nos encontramos?” (p. 34). Na
reescritura intertextual, as várias interrogações presentes indicam a dúvida natural que
teriam vivido os pastores para encontrar aquele lugar misterioso e tão sagrado, a ponto
de anjos terem ido anunciar-lhes. No vocábulo composto “Rei-pastor” está presente a
contradição entre o prestígio social e a exclusão, representada na enunciação pelo
sentimento do pastor que se expressa na oração “aqui me diz o coração”. A narrativa em
Eu Venho (p. 35) descreve o presépio como se fosse um quadro, tal qual o conhecemos
pela tradição natalina e essa descrição é intertextual à Bíblia (Lc 2, 16-20).
Reconsiderando a definição de Koch quando afirma que na intertextualidade “o
texto incorpora o intertexto para seguir-lhe a orientação argumentativa e,
freqüentemente, para apoiar nele a argumentação” (p. 49), observamos sob esse aspecto
a visita dos pastores ao menino Jesus. Ao fazermos a leitura dos textos paralelos, o do
evangelho de Lucas, capítulo 2, 16-20, e o do romance, narrado em dois parágrafos, na
página 35, acusamos uma divergência entre o romance e o texto bíblico, pois numa
primeira leitura percebemos que o texto não segue a orientação argumentativa do
intertexto. A Bíblia diz que, quando os pastores encontraram José, Maria e Jesus
“contaram o que se lhes havia dito a respeito deste menino” (Lc 2, 17). Comparemos
com o que é dito sobre os pastores em Eu Venho: “Não eram pessoas de saber falar com
outras que não lhes fossem da mesma tarefa; não tiveram palavras especiais para minha
mãe (...) nem para pai José (...) de repente, todos abriram suas vozes juntos: Glória,
glória, glória!” (p. 35).
Investiguemos neste passo a noção de desvio, segundo Sant’Anna, o qual explica
76
a estilização como um desvio tolerável que “seria o máximo de inovação que um texto
poderia admitir sem que lhe subverta, perverta ou inverta o sentido. Seria a quantidade
de transformações que o texto pode tolerar mantendo-se fiel ao paradigma” (p. 39). No
caso de uma leitura mais objetiva, a informação dada pelo romance é diferente da que
fornece o texto bíblico, quando nega que os pastores informaram sobre a aparição do
anjo porque foram incapazes de usar um registro de língua compatível com o de Maria e
José, porém afirma que todos juntaram suas vozes para dar “glória, glória, glória!”.
Também lemos que, quando viram o recém-nascido, “ajoelhando-se, o adoraram”. Com
apenas uma palavra repetida, “glória”, e com gestos, usaram uma linguagem capaz de
transmitir seu sentimento, ou seja, sabiam quem era o menino e por esse motivo
louvaram a Deus. Portanto nos dois contextos o paradigma é o mesmo: reconhecer o
menino como o Salvador, o Ungido de Deus e adorá-lo. A comunicação, porém, é feita
de formas diferentes. Lembramos que “linguagem é qualquer sistema de signos
simbólicos empregados na intercomunicação social para expressar e comunicar idéias e
sentimentos, isto é, conteúdos da consciência” (Bechara, p. 28), podemos afirmar que a
autora usa uma outra forma de linguagem para comunicar a situação, criando o novo no
romance, sem contudo, quebrar o paradigma.
Nesse mesmo trecho do romance há elementos relevantes, que queremos deixar
registrados. A voz de Jesus-narrador refere-se a José como “pai José”. A partir do
nascimento de Jesus existe uma outra referência feita a pai, que é “meu Pai”. Lemos na
etimologia de “pai”, palavra provavelmente objeto da evolução do latim vulgar patre- >
padre > pade > pai, cujo sentido é ‘homem que deu origem a outro; genitor,
progenitor’. Analisemos as duas expressões usadas no romance. Em “pai José”, o
sintagma é composto por dois substantivos, “pai” é sujeito, e José é seu aposto
denominativo. Do mesmo sintagma é possível fazer a leitura “o pai que se chama José”,
afirmando que “José” é o nome do “pai”, mas sem deixar claro de quem José é “pai”.
Em “meu Pai”, o sintagma é composto pelo pronome possessivo de primeira pessoa
“meu”, elemento determinante, seguido do substantivo “Pai”, elemento determinado.
Nesse caso fica claro que quem tem a voz no discurso, Jesus, é filho daquele a quem
nomeia “meu Pai”. Durante todo o transcorrer da história em Eu Venho, desde o
primeiro parágrafo do primeiro capítulo, Jesus já o nomeia “pai José” (p. 3). A leitura
subjetiva revela a aceitação da paternidade adotiva de José por Jesus, conotando a
gratidão e o respeito que ele dedica a José, pela missão que do Senhor havia recebido,
mas revela também a total consciência que tem, enquanto narrador, de que seu Pai é
77
outra pessoa.
Nesse mesmo recorte que vimos analisando, destacam-se três substantivos
comuns, escritos com letra maiúscula: Pai, Filho, Verdade. Por esse motivo, tornam-se
substantivos próprios, quais sejam aqueles que se aplicam “a um objeto ou a um
conjunto de objetos, mas sempre individualmente, considerando cada indivíduo
inconfundível para as demais pessoas” (Bechara, p. 113). Pai, Filho e Verdade são seres
individuais, pessoas inconfundíveis, cujo campo semântico em que se apresentam
remete ao sagrado, entendido como o princípio vivo em todas as religiões, a sua parte
mais íntima, que existe num grau mais elevado nas religiões bíblicas, o Qadoch, em
hebraico, que implica a idéia do bem absoluto (Otto, p. 14). Jesus, o Filho, confirma que
ele é a revelação do Pai, “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai
senão por mim. Se me conhecêsseis, também certamente conheceríeis a meu Pai; desde
agora já o conheceis, pois o tendes visto” (Jo 14, 6-7).
No final do último parágrafo é feita uma pergunta retórica: “Haveria entre eles
quem acreditasse?” Não obstante a Verdade fosse proclamada, ela era transmitida pela
boca dos pastores, homens rejeitados que não tinham crédito para eles. E quem são
“eles”? No espaço da enunciação, “eles” refere-se a todo o povo da cidade de Belém,
que por metonímia indica um povo mais poderoso que está ainda por fazer parte dessa
história e que muito há de questionar a Verdade do Filho de Deus.
Segundo a lei de Moisés toda mulher que deu à luz um filho ou filha era
considerada impura, por causa de seu fluxo de sangue. Todas as prescrições a respeito
do rito de purificação estão escritas no Levítico 12, 1-8. Assim Maria foi considerada
impura durante quarenta dias, tempo em que as mulheres se obrigavam a ficar reclusas
em suas casas, num cômodo escuro. José fez a sua inscrição como descendente de Davi,
cumprindo a ordem do decreto. Diz o texto do romance que Jesus foi levado para ser
circuncidado, e confirma o texto bíblico, “completados que foram os oito dias para ser
circuncidado o menino, foi-lhe posto o nome de Jesus” (Lc 2, 21), porém o romance nos
diz por acréscimo, que foi José quem o levou. Tamm é acréscimo da narrativa
ficcional terem sido abrigados na casa de Gessel: “entrando na casa, acharam o menino
com Maria, sua mãe” (Mt 2, 11), lugar onde Maria aguardou que se passassem seus
dias, até que pudesse ir ao Templo fazer a oferta. Ela também teve de passar esse tempo
dentro de casa, “No Escuro”, sintagma que corresponde ao título do capítulo IX.
E durante esses quarenta dias ela amamentava seu filho e lhe tecia uma bela
manta, mas havia uma contradição que lhe inquietava o coração. Ela não duvidava das
78
promessas do anjo e, além disso, ela bem sabia que a saudação que ele lhe fizera, e que
lhe causara espanto, a nenhuma jovem era dirigida. Muitas eram as indagações no
coração de Maria:
Mas então era assim que vivia um rei? O futuro rei dos judeus
salvador de seu povo? Na concha de seu ouvido ressoava o canto de
glória dos pastores (...) aquela não era uma corte verdadeira a entoar
seu Glória; nem era como pai José pensava, a morada de rei a gruta
em que estiveram. Mas se em seu coração guardava todas estas
passagens (...) Guardava em seu coração também querer acompanhar
o marido em seu estado, por uma obstinação que lhe vinha juntamente
com as palavras do profeta. Ela quisera que eu nascesse ali (...) Mas
tudo isso era fala de escuro, pensamento que ia e vinha devolvido das
paredes mas nunca trocado com pai José. (Eu Venho, p. 38)
Diz o evangelho que “Maria conservava todas estas palavras, meditando-as no seu
coração” (Lc 2, 19). Na Bíblia, todas as palavras que Maria conservava e meditava
remetem à fala dos pastores, pois essa passagem faz parte do anúncio dos anjos sobre o
nascimento do Salvador e a conseqüente visita dos pastores à gruta. Esse fato, a visita
dos pastores, é narrado no capítulo VIII de Eu Venho (p.35), porém a correspondência à
expressão referente à Maria só acontecerá no capítulo XIX, “No Escuro”, que diz: “Mas
se em seu coração guardava todas estas passagens” (Eu Venho, p. 38). No romance,
todas essas passagens que Maria guardava e meditava no seu coração eram “fala de
escuro”, pois não eram trazidas à luz, não eram reveladas a ninguém. Portanto, o recorte do
romance, remete a todo esse mistério que provocava dúvidas no coração de Maria, toda
contradição sobre as quais ela se questionava; dúvidas que Maria tinha sobre a realeza de seu
filho, sobre si mesma, sobre sua sabedoria. Dúvidas guardadas entre as paredes, no escuro:
índice do silêncio, índice do segredo.
Depois de passados os quarenta dias, Maria deveria ir ao Templo para a sua
purificação. A narrativa do romance descreve a cena e o encantamento de Maria.
Personagens importantes desse fato são mantidos no romance com a mesma conotação
com que são apresentados na Bíblia: o primeiro, o velho Simeão, e a segunda, a
profetisa Ana. O encontro de Simeão e Ana com a família de Nazaré é narrado no
capítulo X do romance, “Purificação”, em 16 parágrafos. Na Bíblia, encontramos essa
passagem apenas no evangelho de Lucas 2, 22-38.
Há um paralelismo entre a narrativa bíblica e a narrativa do romance que se
confirmam nas seguintes passagens: o encontro de Simeão com o menino Jesus; o
louvor que Simeão fez a Deus; a bênção de Simeão à família; a profecia de Simeão
79
sobre o menino; a profecia de Simeão sobre Maria.
O texto bíblico deixa explícitas as virtudes de Simeão: “Este homem, justo e
piedoso, esperava a consolação de Israel” (Lc 2, 25). Por outro lado, o romance
descreve sua estranha aparência física, capaz de assustar Maria, em contraste à sua boa
natureza subentendida através de atitudes e palavras de Simeão, e também através do
enunciado que revela o pensamento de José, pois “sabia que era Simeão, aquele homem
que passava os dias à espera da chegada do Salvador, vivendo dessa espera, desse
alento” (Eu Venho, p. 40). O texto bíblico diz que “o Espírito Santo estava nele” (Lc 2,
25). Já o romance apresenta a presença do Espírito em Simeão pela metáfora do vento:
Simeão se voltou e a voz assobiou com o vento, como se o vento também falasse com
ele”. O evangelho de João confirma a analogia entre o vento e o Espírito: “O vento
sopra onde quer; ouves-lhe o ruído, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai.
Assim acontece com aquele que nasceu do Espírito” (Jo 3, 8). Assim como nascera do
Espírito o velho Simeão.
Destacamos dessa passagem a profecia de Simeão sobre Jesus:Este está
predestinado para a ruína e ressurreição de muitos em Israel. Para signo de
contradição...” (Eu Venho, p. 41; Lc 2, 33). E também sobre Maria: “Uma espada
atravessará tua própria alma, para que se descubram os pensamentos de muitos
corações” (Eu Venho, p.41; Lc 2, 35).
Ainda com referência à visita ao templo, a voz de Jesus-narrador informa que José
conhecia a profetisa Ana, apresentada como uma mulher viúva que vivera sete anos de
casada, e que “não abandonava o Templo, servindo ali dia e noite e praticando o jejum,
apesar de seus oitenta e quatro anos. Merecia o respeito de todos, porque guardara sua
viuvez e dedicara a vida à religião” (Eu Venho, p. 42). O significado de “profetisa” é
‘mulher que faz profecia’. Em sua origem a palavra “profecia” deriva do latim cristão
prophetía,ae, do grego prophétéia 'predição, profecia, dom da profecia, explicação dos
livros sagrados pela inspiração do Espírito Santo'
Dentro da cidade de Belém, são três as confirmações sobre o nascimento do
Salvador: os pastores, símbolo dos pobres marginalizados; Simeão, símbolo da espera e
da sabedoria do povo; Ana, símbolo da sabedoria e da santidade. Mas a Feliz Novidade
ultrapassou os limites de Israel, mais além, no Oriente, chegou aos magos que
observavam o céu dia e noite, porque uma esperança aquecia seus corações. Há várias
gerações esperavam “— eles também — o Messias” (Eu Venho, p. 43).
O título “Adoração dos Magos” refere-se ao evangelho de Mateus 2, 1-12. No
80
romance, essa mesma narrativa é apresentada no capítulo XI, “Estrela”, em 34
parágrafos. Os paralelos entre os dois textos apresentam as seguintes analogias: os
magos vêem a estrela no oriente e a seguem até Jerusalém; os magos encontram-se com
o rei Herodes; Herodes perturba-se com a notícia do nascimento de Jesus; sacerdotes e
escribas confirmam a profecia de Miquéias; Herodes envia os magos a Belém; a estrela
que havia precedido os magos pára sobre a casa onde se encontrava o recém-nascido; a
adoração; presentes são oferecidos pelos magos a Jesus; o aviso sobre Herodes; os
magos voltam a sua terra por outro caminho.
O título desse capítulo, “Estrela”, refere-se ao sinal que deu aos magos as
indicações sobre “O Esperado”, pois “A luz da Estrela do Rei, juntamente com a da
Estrela dos judeus, ou da Morte, incidia no signo de Peixes; para eles a indicação era
clara” (Eu Venho, p. 43). Portanto, foram em direção ao ocidente, à Palestina, terra dos
judeus, e “vestiram-se como seus antepassados”. O texto deixa subentendido que eram
astrólogos, pois “alguns tinham, de uma ponta a outra da cobertura, os doze signos
correspondentes às fases do tempo que estudavam” (Eu Venho, p. 44). “Estrela” é
também a metáfora da alegria sentida pelos magos, quando chegaram à casa onde se
encontrava o recém-nascido, como lemos em Eu Venho: “A estrelinha os convidava (...)
pai José que os viu, senhores de tanta alegria, trajando roupas bem diferentes, cobertos
de sinais, todos eles, velhos e moços, alegres e ruidosos” (p. 47).
O evangelho não afirma em versículo algum terem sido três magos, mas afirma,
assim como o romance, terem sido três presentes: “ouro”, “incenso” e “mirra” (cf. Eu
Venho, p. 48; cf. Mt 2, 11). O romance acrescenta que eram doze magos e, divididos em
grupos de três, entravam na casa, para adorar Jesus. Cada presente ofertado é símbolo
de um dom do menino, como afirmaram os magos: “—Ouro para o Rei do Futuro. —
Incenso para aquele que nos vai libertar. — Mirra para perfumar a câmara de um
homem-Deus” (Eu Venho, p. 48). A leitura conotativa dos três presentes ofertados
indica o “ouro” como bem material, a realeza temporal; o “incenso” como uma
manifestação de louvor a Deus, pois quando queimado, desprende fumaça aromática,
que sobe ao céu como a oração; a “mirra”, o bálsamo para as feridas, pois sua resina
perfumada era usada naquele tempo por suas propriedades curativas. Esse termo é
índice do sofrimento físico pelo qual Jesus iria passar. De acordo com leitura metafórica
da frase proferida pelos magos “Mirra para perfumar a câmara de um homem-Deus”,
“câmara” remete ao próprio corpo de Jesus, flagelado e depois morto na cruz. O mesmo
óleo de mirra oferecido pelos magos ao menino Jesus, foi-lhe oferecido no Calvário,
81
sendo por ele recusado (Mc 15, 23), e fez parte da mistura que serviu para ungir seu
corpo depois de morto (Jo 19, 39).
O povo de Jerusalém estranhava aquele cortejo e fechava a porta à passagem dos
magos “com seus signos cabalísticos, suas roupas de várias cores, os cavalos
impacientes e perigosamente bravios”. Eles perguntaram a vendedores de tâmaras “—
Mas onde está o Rei dos Judeus que acaba de nascer?! Onde está? (...) — Nós sabemos
que ele nasceu. Pois vimos sua estrela e vimos adorá-lo”. E a resposta que receberam foi
“— O Rei dos Judeus já está bem idoso e doente. Não tem mais filhos pequenos” (Eu
Venho, p. 44-45). Para os vendedores, a pergunta dos magos se referia ao rei Herodes.
Algumas marcas são importantes nessas transcrições, dentre as quais citamos “signos
cabalísticos”. “Signo”, do latim signum,i ‘sinal’, e “cabalístico”, que é relativo à
“cabala”, cuja derivação por metonímia significa ‘tratado dessa filosofia ou doutrina
religiosa; exegese, interpretação ou método interpretativo das escrituras bíblicas (Antigo
Testamento), a atribuição de valores numéricos às letras do alfabeto hebraico e de
significado aos números, e que é característico da cabala judaica’. Embora a cabala seja
parte da doutrina religiosa judaica, ela não é apresentada no romance como tradição dos
judeus. O veículo de apresentação da “cabala” ao leitor foram os magos que vieram do
oriente e não os judeus.
Outro personagem importante desse recorte, o rei Herodes, antagônico ao Rei dos
Judeus, quer matar Jesus com medo de que ele viesse a tirar-lhe o trono. Por esse
motivo indicou aos magos onde o menino teria nascido, em Belém, para que no retorno
eles lhe revelassem o lugar exato — como afirmamos anteriormente, essa passagem é
intertextual à Bíblia. No evangelho, o sonho revela a vontade de Deus aos magos que,
“avisados em sonhos de não tornarem a Herodes, voltaram para sua terra por outro
caminho” (Mt 2, 12). O romance apresenta uma outra solução para o problema e,
afastando-se da linguagem fundadora, diz que, enquanto passavam a noite no “Pouso
das Caravanas, um entre os magos, aquele que era cego, não conseguia dormir”, e
meditava “Se não ouvi esta voz, ouvi a voz irmã desta mesma”. Essa expressão remete à
lembrança de Herodes e, finalmente, o cego acordou seus companheiros:
— Não devemos voltar ao Rei Herodes. O Inefável não quer que isso
aconteça. Houve um súbito apalpar de mão em mão, um sacudir de
ombros adormentados. Como um breve incêndio, àqueles homens
piedosos, atentos aos mistério, a palavra do cego vinha acender em
advertência impossível de ser ignorada. Sabendo que ali despertavam
muita atenção, concertaram a volta em voz baixa. Não mais seria o
82
caminho Jerusalém-Jericó. Eles não voltariam a Herodes. Sim , eles
sabiam de outro que os levaria a seu monte e à sua aldeia (...) Dentro
de seus corações, também já não havia mais alguma estrela, pois o
cego a eles todos comunicara um sentimento de cuidado como se até o
vento que soprava, trazendo-lhes o cheiro apodrecido da câmara do
Rei Herodes, habitasse um sinal maléfico. (Eu Venho, p. 48-49)
As marcas que apontam para o Rei Herodes são “cheiro apodrecido” e “sinal
maléfico”, que conotam o campo semântico da maldade. São marcas da mudança do
contexto “não havia mais estrela”, e “sentimento de cuidado”, que conotam o temor
vivido então pelos magos, em lugar da alegria anterior. É importante relevar a ironia
existente nesse recorte: “a palavra do cego vinha acender”, pois àquele a quem faltava a
luz exterior, não faltava a luz interior “impossível de ser ignorada”, e que acendia em
“homens piedosos e atentos ao mistério” a vontade daquele a quem chamavam de O
Inefável, que é para eles “Eu sou tudo que é, tudo que foi, tudo que será e ninguém
jamais poderá descerrar meu véu” (Eu Venho, p. 43). O mesmo a quem os judeus
chamavam de Yahweh, que se revelou a Moisés como “Eu sou” (Ex 3, 14), o Deus todo
poderoso que diz: “Eu sou o Alfa e o Ômega, aquele que é, que era, e que vem, o
Dominador” (Ap 1, 8). Esse capítulo reafirma que a salvação não era apenas para os
judeus, mas também para os gentios, para todas as pessoas de boa vontade. O poder de
Deus se manifesta em Cristo, o único capaz de rasgar o véu do templo “em duas partes
de alto a baixo” (Mt 27, 51) (Mc 15, 38) (Lc 32, 45), através de quem “manifestou-se,
com efeito, a graça de Deus, fonte de salvação para todos os homens” (Tt 2, 11).
Confirma a salvação de que se fala, o recorte feito de Lumen Gentium:
Os que crêem em Cristo, renascidos duma semente não corruptível,
mas incorruptível pela palavra do Deus vivo (cf. 1 Pd 1, 23), não da
carne, mas da água e do Espírito Santo (cf. Jo 3, 5-6), vêm a constituir
‘a estirpe eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo conquistado
(...) que em tempos não o era, mas agora é o povo de Deus’. (1Pd 2, 9-
10) (cf. Concílio, p. 20)
O capítulo XII de Eu Venho, composto por 23 parágrafos, cujo título é “O Ouro
dos Homens Santos”, narra a “Fuga para o Egito”, título do evangelho de Mateus 2, 13-
15, paralelo ao romance.
O título do romance remete à visita dos magos a Jesus, cuja referência é feita no
diálogo entre José e Maria. Diz José:
83
— Estaremos amanhã em Pelúsio
9
, na entrada para o Egito. Minha
mãe tirou-me o seio da boca: — O ouro dos homens santos! Ele será a
nossa salvação. Novamente deu-me o seio: — Assim um rei
principiará a usar seu tesouro...” (Eu Venho, p. 51).
Fazendo a releitura desse trecho que explica o título, o “ouro” é aquele ofertado
pelos magos, os “homens santos”, ao menino Jesus, em Belém. Com o direito de “rei”,
esse “tesouro” seria usado para a “salvação”, o sustento da família, que chegava ao
Egito. O sentido desse enunciado só se completará em Eu Venho no capítulo XIV,
quando lemos: “Em Pelúsio, com o dinheiro dos homens magos, compramos um outro
burrinho (...) pai José tomou casa para nós” (p. 58-59).
Apontemos os paralelos entre a Bíblia e o romance presentes nesse capítulo: José
sonhou com o anjo; a urgência da fuga revelada no sonho; partida da família para o
Egito durante a noite.
Ainda como parte do texto sobre a “Fuga para o Egito”, o evangelho de Mateus 2,
15, informa que José, Maria e Jesus “ali permaneceram até a morte de Herodes”. No
romance, o anúncio sobre a morte de Herodes e o retorno para Israel só acontecerá no
capítulo XVII.
Dois elementos são novamente apresentados como relevantes nesse contexto, o
“anjo” e o “sonho”. No espaço da enunciação, o anjo que se revela, “não era o Anjo de
Boa-Nova, Gabriel”, mas José o reconheceu como um anjo do Senhor, e o “fogo de seus
olhos despachava também a mensagem: — Levanta-te! Toma o menino e sua mãe e
foge para o Egito. Fica ali até que eu te diga. Porque Herodes vai buscar o menino para
acabar com ele” (Eu Venho, p. 50). A mensagem do anjo apresentada no recorte do
romance é a transcrição do evangelho de Mateus 2, 13. Lembremos, porém, Sant’Anna
quando esclarece sobre a apropriação parafrásica que “prolonga o texto anterior no texto
atual” (p. 56), pois toda a seqüência do capítulo faz parte da criação ficcional de
situações que não se encontram nas Sagradas Escrituras. A narrativa descreve com
lirismo o decorrer da viagem, trazendo à imaginação do leitor os antepassados, os sustos
provocados por outros viajantes ou por animais mortos pelo caminho. O clima árido da
Iduméia
10
tornava a caminhada difícil, “o sol era queimante. À noite o frio vinha tão
9
Pelúsio (Ez 30, 15) é porto da extremidade oriental do Egito, fronteira fortificada, conforme
atesta a Bíblia do Peregrino (p. 2090).
10
Iduméia era o nome usado pelos gregos e pelos romanos para se referirem a Edom (1Mc 4, 15).
Nos períodos intertestamentais e do NT, o nome Iduméia designava a área a oeste e a noroeste da
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súbito e tão áspero que pai José e minha mãe me faziam dormir junto ao nosso burrinho,
cuja respiração comunicava um calor quase de carinho e de pena inconsciente” (Eu
Venho, p. 51). A poesia também se revela através da seleção léxica que constitui a
antítese presente no recorte a seguir. Vejamos:
Uma noite (...) o céu se fazia tão baixo que as estrelas pareciam limpar
o deserto de sua maldade e violência, enquanto Maria me entregava
em seu leite, bondade, consolo, cantando e gemendo ao mesmo tempo
para mim. (Eu Venho, p. 51)
A metáfora do leite que Maria entregava a seu filho gera o campo semântico de
“bondade” e “consolo”, e fazem parte do campo semântico de deserto a “maldade” e a
“violência”. A metáfora das estrelas do céu produz o sentido de tornar limpo o que é
corrompido.
Importa destacar o grupo de viajantes, dois homens e um menino, que se dirigiram
à família de Nazaré, saudando-os e oferecendo-lhes alimentos. Eles também viajavam
fora da rota das caravanas e José desconfiou de que fossem ladrões fugitivos. Maria não
duvidou, mas os acolheu e teve pena do menino Dimas. A tradição guardou esse nome
desde o século II, referindo-se ao bom ladrão, aquele que morreu na cruz ao lado de
Jesus. Os evangelhos pouco falam a respeito. Eram dois ladrões também crucificados,
um à direita, outro à esquerda de Jesus; sabemos que um deles blasfemava, enquanto o
outro, Dimas, repreendia o primeiro por saber que recebiam o castigo merecido em
conseqüência de seus atos criminosos e, voltando-se para Jesus, disse: “Jesus, lembra-te
de mim, quando tiveres entrado no teu Reino. Jesus respondeu-lhe: Em verdade eu te
digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 42-43) (Eu Jesus, p. 267). Este foi
perdoado e justificado por Jesus.
No romance, as indagações de Maria remetem ao encontro de Jesus com Dimas
no Calvário: “Que belo nome! Quem sabe se um dia não nos encontraremos? Que
destino terá, pobre criança, ao lado desses homens vivendo à margem das estradas. Se
forem ladrões, que caminho será o seu?” (Eu Venho, p. 53). O “caminho” vivido por
Dimas, o “caminho” vivido por Jesus — não obstante terem sido tão diferentes, os dois
caminhos os levaram à cruz.
O sonho revelava a José que o menino Jesus corria grande perigo. Por isso foi
antiga Edom, ao sul de Judá.
85
dado o aviso para que deixassem Belém em proteção à sua vida. Seus pais não sabiam
por quê, apenas saíram como fugitivos, à noite, para que ninguém os visse abandonando
Belém, para que ninguém soubesse em que direção iriam.
O capítulo XIII, “Inocentes”, narra a grande crueldade de Herodes. Sentindo-se
traído pelos magos, que a ele não voltaram com a informação sobre o recém-nascido,
mandou reunir “os chefes das 24 congregações sacerdotais; a seu lado os escribas, os
doutores da Lei, capazes de explicar minuciosamente o sentido da Torah.
11
Estavam
também os anciãos” (Eu Venho, p. 55). Todos eles judeus. Mais uma vez repetiram a
profecia de Miquéias (Mq 5, 1). Contudo, dessa vez, estavam trêmulos de medo ao
“sentir um presságio” que, “apesar de sua sabedoria”, não conseguiam traduzir: “Era
com justa razão que esses homens sentiam os velhos corações encolhidos, à espreita de
um castigo qualquer. Eles viveram bastante para testemunhar sobre casos tenebrosos”
(Eu Venho, p. 55). A Bíblia narra o “Massacre dos inocentes” no evangelho de Mateus
2, 16-18. O romance narra o mesmo fato em 16 parágrafos. São situações intertextuais:
o ódio de Herodes ao descobrir que fora enganado; a ordem de Herodes para matar em
Belém todos os meninos menores de 2 anos; o suplício vivido por Israel.
O texto bíblico cita Raquel (Jr 31, 15), matriarca do AT, como metáfora do povo
de Israel, da dor da perda vivida por pais e por mães, de cujo seio os filhos pequeninos
foram brutalmente arrancados por soldados. O texto do romance narra toda a trama
malévola de Herodes e descreve Belém antes e depois da chegada dos guardas; a paz em
oposição ao desespero. Tomemos um recorte de Eu Venho como exemplo:
Algumas crianças pequeninas sugavam o leite materno, outras
sentadas no chão, bem se entretinham no jogo das contas ou atiravam
tâmaras secas e riam gostosamente. Nas pequenas casas de Belém, nas
cavernas enfiadas nos montes, tudo era vida e paz. (...) Então eles
vieram (...) Agora os soldados estavam postos em fúria com o clamor
do povo que imprecava contra eles, amaldiçoando-os em altas vozes.
Foram trinta as crianças arrebatadas, pois só os meninos com menos
de dois anos foram retirados de lá. Dizem — e minha mãe afirmou ter
sido assim — que do alto da escadaria, Herodes assistiu à degola dos
pequeninos mártires que cumpriram o sacrifício em razão da minha
vinda ao mundo. (p. 56-57)
Algumas expressões são marcas do campo semântico de paz, citamos: “sugavam o
11
A Torah, o livro da Lei dos judeus, é composto pelos cinco primeiros livros da Bíblia: Gênesis,
Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Esse conjunto é também chamado de Pentateuco.
86
leite materno”, “se entretinham”, “vida e paz”. O período simples “Então eles vieram”,
inserido de forma inesperada no parágrafo, quebra a seqüência discursiva e
paradigmática; o pronome reto “eles”, no espaço da enunciação refere-se aos soldados,
introduzindo no contexto o campo semântico do desespero. São marcas desse contexto:
“clamor do povo”, “imprecava contra eles”, “crianças arrebatadas”, “degola”,
“pequeninos mártires”, “sacrifício”.
A palavra “Inocentes” é título do capítulo XIII. O título do mesmo episódio na
Bíblia é “Massacre dos inocentes”, caso em que a palavra “inocentes” é complemento
nominal de “massacre”. Em relação ao campo semântico do título bíblico, observamos
que o sintagma que o compõe revela em si mesmo uma antítese, pois em sua etimologia
vemos “inocente”, do latim innocens,entis 'inofensivo', cujo significado é ‘criança de
tenra idade; que não faz mal’, e “massacre”, do francês Massacre, apresenta o sentido
de ‘morte provocada com crueldade, especialmente em grande número, em massa;
chacina’. Por que ser submetido à crueldade aquele que é inofensivo? Por que sofreram
uma chacina crianças de tenra idade?
Mesmo que esses inocentes não tivessem o uso da razão, foram brutalmente
arrancados de suas mães e assassinados a mando do Rei Herodes (cf. Mt 2, 16-18) e
deram suas vidas por causa de Jesus Cristo. Por isso no dia 28 de dezembro a Igreja os
honra com o título de Santos Inocentes Mártires (cf. Congregação do Santíssimo
Redentor).
Apesar de todo esse contexto de crueldade, o capítulo termina com uma
mensagem em primeira pessoa que transmite esperança: “No tempo sem tempo, esses
pequeninos mortos sacrificados, antes mesmo de que pai José e minha mãe houvessem
chegado ao Egito, são apelos de amor, sempre postos para mim em cada criancinha” (Eu
Venho, p. 57). Pela voz de Jesus-narrador, fazemos a leitura desse discurso remetendo
ao futuro, quando Jesus vivendo a História, já adulto, irá proclamar: “Deixai vir a mim
as criancinhas e não as impeçais, porque o Reino de Deus é daqueles que se parecem
com elas” (Lc 18, 15).
Os fatos narrados no capítulo XIII, que descrevem o aprisionamento das
criancinhas, não são paralelos ao texto narrado pela Bíblia. A narrativa que segue até o
capítulo XVII também faz parte da criação literária, portanto, o texto do romance se
afasta do seu arquétipo, construindo uma realidade ficcional. Os primeiros parágrafos
do capítulo XVIII voltam a recuperar a intertextualidade.
Continuando a leitura, ficamos sabendo que a família de Nazaré chegara ao Egito.
87
Pelúsio foi a porta de entrada, contudo eles se dirigiam à cidade chamada On
12
por seus
habitantes. Nela se erguia o grande templo de Rê, em homenagem ao deus-sol, a que o
título do Capítulo XIV se refere, “A cidade do Sol”. A narrativa apresenta a mudança de
cenário — antes, a secura da planície, agora, cidades situadas no litoral, com vegetação
e água abundantes.
O choque cultural é apresentado pelas atitudes de José diante da expressão
religiosa do povo. O texto mostra “um ídolo com cabeça de ave”, que José temia e, por
isso, apresentava a sua justificativa, dizendo: “Do Egito arrancou Moisés, nosso
primeiro profeta, com quatrocentos mil dos nossos” (Eu Venho, p. 58). A
intertextualidade remete ao AT, quando Moisés partiu com os hebreus cativos (cf. Ex
12, 35-42) e os conduziu “a pé enxuto”, através do Mar Vermelho, para fora do Egito
(cf. Ex, 14, 1-31). Como marca desse choque, vemos também que José “puxou o manto
sobre os olhos diante da idolatria desse povo” (Eu Venho, p. 59), ou seja, diante do
templo Rê. A etimologia confirma o sentido que se constrói no texto, ou seja,
“idolatria”, do grego eidólolatreía,as 'culto a ídolos', pelo latim ídólolatría,ae 'id.'.
Em On, já instalados numa casa, José recordava o passado e contava a Jesus sobre
a sarça ardente, quando Deus se revelou a Moisés (cf. Ex 3, 1-13). O texto permite que
se perceba a voz de Jesus-narrador, consciente da sua missão, índice das significações
que Jesus-personagem faria no futuro sobre esse episódio, como vemos em Eu Venho:
“e em minha cabeça a sarça ardente das recordações dos outros abriria um dia o meu
coração” (p. 60).
A notícia do morticínio das criancinhas chegou por intermédio dos caravaneiros.
O texto do romance traz a passagem de Raquel (Jr 31, 15), citada pelo evangelho de
Mateus, conforme acusamos anteriormente, como metáfora das mães que choravam
desesperadas a perda de seus filhos pequeninos. Essa idéia de “sacrifício” será relatada
no último parágrafo, remetendo ao futuro, quando Jesus ajudará José no serviço de
carpintaria, como metáfora da preparação de Jesus para a missão sagrada que o levaria à
morte na cruz. E diz Jesus-narrador: “O serrote cortando o lenho do trabalho de José
parecia repetir, rangente, aquele pranto que caía sobre mim mesmo, ecoava dentro do
coração, acumulando a idéia do sacrifício” (Eu Venho, p. 60).
12
On”, cidade para onde se dirigia a família de José, provavelmente corresponde a “Abu Gurab”, uma
região no
Egito situada a cerca de quinze quilômetros da moderna cidade do Cairo, na margem ocidental
do
rio Nilo, escolhida pelos reis da V dinastia egípcia para construírem os seus templos solares.
88
Nesse capítulo nos deparamos com uma roseira cultivada por Maria. Lemos no
romance que, depois de instalados na casa, meninos curiosos foram até lá e deram uma
muda de roseira à Maria, que dedicou à planta cuidado especial. É ela quem narra: “com
os primeiros raios de sol, dava-lhe meia taça de água (...) E quando o sol se punha (...)
dava-lhe de beber mais meia taça de água. E com isto progrediu e prosperou” (p. 59-60).
O enunciado deixa claro que Maria se identificou com a planta: “com muita pena
daquela roseira vinda de tão longe — mais longe ainda do que tínhamos vindo nós
mesmos” (Eu Venho, p. 60). Supõe-se que a roseira produzirá flores, rosas. A palavra
“rosa” dá origem a “rosário”, e “rosa”, por metonímia, traz à mente a figura de Maria.
Na etimologia de “rosário” vemos: do latim rosarìus,a,um 'de rosas', para os católicos,
coroa de rosas oferecida à Maria. Podemos então dizer que “rosa” é símbolo de Maria,
entendendo-se por símbolo um tipo de signo que designa o objeto que representa
independente da semelhança ou das relações causais com o objeto (cf. Pierce, p. 34).
O romance destaca com freqüência a santidade de Maria. Consideramos, pois,
importante, apresentar em nosso estudo, os mistérios do Rosário por ser uma forma
especial de devoção a Jesus que se faz por intercessão de Nossa Senhora. Confirmamos
a sua importância através das palavras do Pe. Antônio Vieira, no Sermão XXI, cujo
título é “Maria Rosa Mística”.
Assim é terrível e formidável ao mundo, carne e demônio o exército
do Rosário, e assim distinguiu e ordenou a Soberana autora dele todos
os mistérios da divindade e humanidade de seu Filho. E porque esta
repartição e ordem, como tenho dito, não cabia em um só mistério,
qual foi o da Encarnação, por isso, a juízo dos mesmos anjos, foi mais
admirável o parto do Rosário, concebido na mente da Virgem, que o
do mesmo Verbo Eterno, concebido em seu sacratíssimo ventre:
Beatus venter qui te portavit. (Vieira, Sermão XXI)
Atualizando a História para um tempo mais próximo, século XIX e XX, sabe-se
que a Virgem Maria revelou a muitas pessoas que cada vez que rezam uma Ave Maria
lhe é entregue uma rosa e, por cada Rosário completo, lhe é entregue uma “coroa de
rosas”. A rosa, rainha das flores, é símbolo de Maria, Rainha dos Céus, pelos anjos
coroada.
O capítulo XV, “Deuses em Moedas”, mostra José se estabelecendo
profissionalmente na cidade de On; mostra também a grande aversão que José sentia
pelos ídolos pagãos. O enunciado revela sobre ele: “Doce e reservado pai José! Como
feriram teus olhos os ídolos que se semelhavam grandes animais postos em alamedas,
89
até que chegasse à casa do rico homem” (Eu Venho, p. 61). Ele havia sido chamado por
um rico e exigente comerciante judeu, que soube ser José um belemita, pois desejava
um berço para seu primogênito.
Por que “Deuses em Moedas”? Porque o judeu exercia a função de cambista,
possuindo vários ídolos pagãos feitos de ouro, os quais venderia pelo seu peso. Para o
comerciante, o valor era apenas monetário, mas os ídolos feriam a integridade religiosa
de José, que queria ser pago em moedas, como ele mesmo afirmou: “Não gostaria de
ver retribuído meu trabalho por um desses objetos, senhor” (Eu Venho, p. 63).
A figura indesejada do inominável volta a incomodar. Maria já não pode contê-lo
sob os pés, mais bravamente ainda o enfrentava: “Vai-te — disse — Eu te ordeno!”. Ele
estava ali espreitando o menino Jesus, que deveria estar com 1 ano de idade, pois diz o
texto que “eu resvalara para o chão, dera meu primeiro passo, sentava-me” (Eu Venho,
p. 63). Como a casa ficara empestada pelo mal, Maria queimou incenso ofertado pelos
magos. Podemos entender o significado desse ato pela etimologia de “incenso” que
deriva do latim tardio incensum,í 'qualquer matéria ou substância queimada em
sacrifício, ato de acender, de produzir luz’, ou seja, o sacrifício e a luz têm poder contra
as forças do mal.
O título do capítulo XVI, “Com que se parece o amanhecer”, remete à canção que
cantava a mulher de Josias, o comerciante. José indignou-se diante da última frase:
“Diferentes são as palavras dos homens, daquelas que dizem os deuses”. (Eu Venho, p.
65). Pela voz de Josias ficamos sabendo que os costumes do povo judeu já não eram tão
puros, mesclados estavam aos costumes da terra.
Pai José trabalhava o pau-cetim, madeira da qual afirmava ter sido revestida a
Arca da Aliança e dele é reforçada a imagem de homem bom, justo e humilde, que
trabalhava com dignidade com seus auxiliares e “antes de iniciar seu trabalho, reuniam-
se e oravam juntos”. Os auxiliares o tratavam por “meu senhor”, mas ele não aceitava
essa honra, “julgando-se um simples carpinteiro, sabendo fazer com justeza seus
objetos, mas não tendo sabedoria bastante para receber tratamento assim” (Eu Venho, p.
66). O que falta à narrativa bíblica sobre a pessoa de José, palavras que não foram ditas
por ele, gestos que não foram revelados, a narrativa ficcional inclui com tamanha
harmonia que se torna real no José do romance.
No capítulo XVII, “A Terra e a Sombra”, apontamos duas significações
metafóricas para “sombra”: Israel e o próprio Deus. Diz o texto que, surpreso, José
encontrou Gessel em On — o mesmo parente que abrigara a família em Belém — e
90
levou-o até sua casa. Gessel sugeriu a José que ficasse no Egito e não retornasse a
Israel. Com tristeza no olhar José respondeu:
— Vê tua sombra. Não é Israel que está contigo? Também temos a
nossa. Tu vieste e tu voltarás. Nós também voltaremos e não vai ser
porque aqui temos mais trabalho e confiança que renunciaremos a
nossa sombra. Somos bem pequenos e ela é bem grande, como Israel.
(Eu Venho, p. 69)
A sombra é metáfora do povo judeu, no sentido de “individualidade”, ‘caráter do
que é individual’, e de “unidade”, ‘resultado de tornar algo antes desunido em um’,
porque da união de um com todos nasce a própria nação e Israel se forma, a terra
conquistada com a luta de tantas gerações. No sentido de “renunciar à sombra” está
implícita a renúncia à pátria, à identidade de sua origem, aos costumes, à religião. A
“individualidade” conota a pequenez, a “comunidade” conota a grandiosidade, como
vemos no recorte. Em muitas passagens a Bíblia apresenta a “sombra” como metáfora
da presença de Deus, tanto no AT como no NT. Como exemplo dessa afirmação,
citamos: “Habite eu sempre em vosso tabernáculo, e me abrigue à sombra de vossas
asas!” (Sl 60, 5); citamos tamm a cena da “Anunciação”: “a força do Altíssimo te
envolverá com sua sombra” (Lc 1, 35). Confirma a analogia ao texto bíblico o recorte
de Eu Venho: “Gessel lhe via a sombra a subir pela parede e como que atrás dessa
sombra, outras milhares de sombras de pessoas que formavam uma única, a da Terra do
Senhor, coberta pela sombra do Senhor” (p. 69).
Eis uma outra informação importante nesse capítulo, a “solidariedade”,
característica do perfil bíblico de Maria, que revela a mulher que age em favor dos
necessitados (Autran, p. 13). Faltava o trigo para o alimento dos soldados e ela,
cobrindo a cabeça com o véu, ofereceu do seu trigo e “maravilhado ficou o capitão dos
romanos”, que afirmou: “a esposa do carpinteiro pagou a Roma um tributo maior do que
tantos senhores de grandes mansões” (Eu Venho, p. 71). Essa locução constitui Maria
Senhora acima de tantos senhores. Independente dos méritos daquele que recebe ajuda,
pois eram romanos e não judeus, a “mulher do carpinteiro” foi capaz de agir em favor
do outro. Apontamos nesse mesmo recorte outra característica de Maria, a
“simplicidade”, marcada pela expressão “mulher do carpinteiro”, ou seja, alguém do
povo comum, não pertencente à elite.
91
O texto do romance conta ainda que Gessel levara a informação de que
Arquelau
13
reinaria após a morte iminente de Herodes. José teme voltar a Israel por
conhecer a fama de crueldade de Arquelau. Mas, deitando-se na praia, José vê na luz do
farol, o anjo que “lhe comandava o viver” e que a ele avisava: “Levanta-te, toma a
criança e sua mãe e volta à terra de Israel, porque morreram os que atentavam contra a
vida do menino” (Eu Venho, p. 72). O texto transcrito do romance é paralelo ao do
evangelho de Mateus 2, 19-20. A narrativa ficcional retoma, nesse trecho, a
intertextualidade com a Bíblia, porém o evangelho afirma que o anjo apareceu a José
em sonho.
De acordo com o romance, José desejava voltar a Israel, sua terra, a terra “coberta
pela sombra do Senhor” (Eu Venho, p. 69). Seu desejo é confirmado através de sua
alegria e humildade, manifestadas em suas palavras, e de seu gesto, descrito pela voz de
Jesus-narrador, que diz: “tomou-me nos braços, atirou-me no ar e disse: — Teu servidor
te levará e volta. Teu servidor te levará de volta” (Eu Venho, p. 73).
O capítulo XVIII, “Nezer”, dá seqüência ao evangelho de Mateus, capítulo 2, 21-
23, e narra a volta para Nazaré. O capítulo todo é constituído de 35 parágrafos, pom
apenas os nove primeiros são intertextuais à Bíblia, os 26 seguintes são acréscimos
feitos pela criação literária.
A respeito de todo esse acréscimo feito ao romance, diz Eni Orlandi:
A paráfrase convive em tensão constante com outro produto: a
polissemia. A polissemia desloca o “mesmo” e aponta para a ruptura,
para a criatividade: presença da relação homem-mundo, intromissão
da prática na/da linguagem, conflito entre o produto e o
institucionalizado, e o que tem de se instituir. (p. 137)
Para o leitor, o não dito na Bíblia, linguagem instituída, é dito no discurso
literário, linguagem que se tem de instituir, pois o omitido textualmente nos evangelhos,
a adolescência e a juventude de Jesus, aconteceu no concreto da vida, como processo
natural, parte da dimensão temporal para qual Jesus nasceu como verdadeiro homem.
A narrativa descreve a volta para a Palestina, a alegria da chegada à Judéia.
Próximo a Belém, José recebeu a notícia de que o rei Arquelau ordenara “o massacre de
13
Arquelau sucedeu seu pai, Herodes Magno, governando a Judéia, a Samaria e a Iduméia de 4 aC
a 6 dC. Foi deposto por César Augusto, em razão das queixas de judeus influentes. Seu domínio passou a
ser governado diretamente por procuradores romanos.
92
três mil judeus”. Por isso, “toda aquela alegria da volta à terra que lhe fazia a sombra
por onde andasse, sucumbiu dentro do coração de pai José” (Eu Venho, p. 75). Há uma
remissão do discurso ao diálogo entre José e Gessel, no capítulo XVII, em que a sombra
é metáfora de tantos que formavam o povo judeu, mais uma vez brutalmente
massacrado.
A decisão de voltar a Nazaré tomada por José faz parte da intertextualidade com a
Bíblia. O retorno inevitável confirma a profecia sobre o Messias, de acordo com o que
lemos no evangelho de Mateus 2, 23, que diz: “e veio habitar na cidade de Nazaré para
que se cumprisse o que foi dito pelos profetas: Será chamado
Nazareno”. No texto do
romance, José repetia a frase: “Ele será chamado ‘o Nazareno’” (Eu Venho, p. 75).
O enunciado do romance revela os motivos pelos quais Maria decidiu voltar, fato
que não é relatado nas Sagradas Escrituras. São eles: a conformidade de Maria à palavra
do profeta e a obediência à decisão de José. Maria se lembrava das leituras na sinagoga
e “procurava algum consolo na predição de Isaías que chamava o Esperado de ‘o
Rebento’: Nezer” (Eu Venho, p. 75). “Nezer” é o título do capítulo XVII. O texto alude
à profecia de Isaías 11, 1: “Um renovo sairá do tronco de Jessé, e um rebento brotará de
suas raízes”. No capítulo V, “Canção de Débora” (Eu Venho, p. 19-20), ficou atestado
que Jesus era descendente de Davi, o qual era chamado filho de Jessé, conforme lemos:
“Fez também Deus aliança com o rei Davi, filho de Jessé, da tribo de Judá” (Eclo 45,
31). Conotativamente a palavra “rebento” significa ‘filho, descendente’, e para a palavra
“tronco” a conotação aponta o significado de ‘estirpe, linhagem ou origem de família’.
Portanto, dessa família ou “tronco” de Jessé nascerá um filho ou um “rebento”, que é
palavra sinônima a “vergôntea”, proveniente de ‘verga, que corresponde ao latim
virgúlta,órum 'moita de varas, vergôntea; rebento'. Segundo Celso Prado “vergôntea”
em hebreu significa “Nezer, e Nazaré deriva, etimologicamente do mesmo radical
“Nezer”, “vergôntea”, que é um evidente símbolo messiânico. O nome hebreu para
Jesus é Yeishu, e “Yeishu ha-Notzri" é o original hebreu para "Jesus, o Nazareno” (cf.
Prado). É Maria quem fala: “— Nezer, Nazaré, Nezer, Nazaré...” (Eu Venho, p. 75),
criando desta forma, uma alternância entre “rebento”, “Nezer”, e a cidade, “Nazaré”,
cujo significado só poderá ser entendido em sua origem etimológica hebraica, que irá
reafirmar o texto bíblico, indicando Jesus, o Nazareno, como esse rebento que já brotou
da família de Jessé. “Nazareno”, na Bíblia, é um epíteto de Jesus Cristo, conforme cita o
evangelho de Mateus 2, 23, embora o termo “nazareno” já figurasse em livros do AT,
como Juízes, Macabeus e Amós: “A navalha não tocará a sua cabeça, porque esse
93
menino será nazareno de Deus desde o seio de sua mãe, e será ele quem livrará Israel da
mão dos filisteus” (Jz 13, 5).
No décimo parágrafo a narrativa se refere ao pensamento de Maria, que nomeia
José “seu esposo bem-amado”. A ocorrência do substantivo “esposo”, homem unido a
uma mulher pelo casamento, já foi observada no capítulo III, “As Bodas” (Eu Venho, p.
14), cuja conotação indica “amor compaixão”, “ágape”, palavra que tem sua origem no
latim tardio agape 'amor, amizade, caridade’. No sintagma “esposo bem-amado”, o
substantivo “esposo” se articula com “bem-amado” que qualifica o substantivo. Na
Bíblia existem 21 ocorrências para “bem-amado”, 14 dentre elas estão no Cântico dos
Cânticos, livro que apresenta uma coleção de poemas, originariamente destinados às
solenidades nupciais, cujo tema é o “amor humano”, “erótico”, palavra que se origina
do grego érós,érótos 'amor, paixão, desejo ardente'. Algumas transcrições confirmam
esse tema: “Meu bem-amado é para mim e eu para ele; ele apascenta entre os lírios” (Ct
2, 16), “Teus beijos são como um vinho delicioso que corre para o bem-amado,
umedecendo-lhe os lábios na hora do sono” (Ct 7, 10). O contexto do romance deixa
implícita uma nova leitura para o “amor trocado” (Eu Venho, p. 14) de José e de Maria,
não mais o amor/compaixão, ou amor/renúncia, mas a possibilidade da leitura implícita
do amor conjugal.
Os parágrafos seguintes narram a chegada da família a Nazaré, a acolhida de
Cleofas, irmão de José, a Maria e a proteção que ele dedicava a Ana, depois da morte de
Joaquim, pai de Maria. Narra também a emoção do reencontro de Maria com Ana, sua
mãe, que ainda não conhecia o menino Jesus, e a emoção de Ana ao afagá-lo. No
parágrafo trinta e um, a “força” de Maria torna-se novamente explícita. Ela havia
acabado de receber com grande amargura a notícia da morte de Joaquim, que se deixou
consumir depois da ausência prolongada de Maria. Sua “força” é comprovada na
narrativa de Eu Venho: “Mas minha mãe era muito mais forte do que seu próprio amor.
Secou as lágrimas, tirou-me dos braços de Cleofas e lhe disse, ainda tendo o olhar
pisado: “— Com o menino vou compensar minha mãe de tanto segredo e distância” (p.
77). Conforme vimos apresentando e ainda viremos a apresentar, o conjunto de traços
que formam a personalidade de Maria e perpassam toda a História a sustentará na difícil
missão de ser mãe do Salvador.
A infância de Jesus é narrada no capítulo XIX, “Os Irmãos” (Eu Venho, p. 79),
cujo título diz respeito aos filhos de Cleofas, Abigail, Jamina, Tiago, Judas e Simão,
primos de Jesus. Nesse contexto eles são a metáfora do povo de Deus, que —
94
merecedor ou não — sempre pede e recebe de Maria, de acordo com suas necessidades,
evidenciando em Maria, mais uma vez, a solidariedade em Maria, e em José o senso de
“justiça”. Confirma o senso de justiça o recorte em Eu Venho: “as irmãs que vinham
buscar, chegadas da casa de Cleofas, tantas coisas que lhes faltavam, quando em nossa
morada tão pequena, pai José velava para que não devêssemos à família” (p. 79).
Convém esclarecer que a palavra “irmão” nas Sagradas Escrituras possui diversos
sentidos, dentre eles, o de “primo”, como deixa claro o texto acima, a respeito dos filhos
de Cleofas em relação a Jesus. Com esse mesmo sentido, lemos a seguinte passagem
bíblica: “Não é este o filho do carpinteiro? Não é Maria sua mãe? Não são seus irmãos
Tiago, José, Simão e Judas? E suas irmãs, não vivem todas entre nós?” (Mt 13, 55-56).
Contudo, para o próprio Jesus a palavra “irmão” terá um sentido mais amplo ainda, cuja
conotação remete àqueles que aceitam o Reino de Deus. Vejamos: “Foi-lhe avisado:
Tua mãe e teus irmãos estão lá fora e desejam ver-te. Ele lhes disse: Minha mãe e meus
irmãos são estes, que ouvem a palavra de Deus e a observam” (Lc 8, 20-21) (Eu, Jesus,
78-79).
Situações daquele tempo são descritas, tais como os primeiros contatos com os
filhos de Cleofas, com a Torah, com o sentido do bem e do mal. Ana falava-lhe do bem:
as figueiras, as videiras, as oliveiras e os campos de trigo, índices das futuras pregações
de Jesus, das parábolas que irá contar. Isiel falava-lhe dos perigos da vida: as víboras, as
serpentes, índices dos homens de coração duro a quem Jesus terá de enfrentar. As
recordações são trazidas à narrativa pela voz de Jesus-narrador, dentre as quais citamos
a tradição das festas judaicas e, em contraste, a presença dos “ímpios”, que residiam nas
redondezas. A palavra tem origem no latim impìus,a,um 'que não tem fé ou caridade', e
conforme diz São Lucas, Jesus foi entregue de acordo com o desígnio e a sabedoria de
Deus, e foi crucificado e morto “por mãos de ímpios” (cf. At 2, 23).
A importância da lei na tradição mosaica é trazida ao leitor no capítulo XX, “Os
Filhos da Lei”, referindo-se aos meninos que aos treze anos já poderiam transpor o Bar
Mitzwa, cerimônia que marcava o seu ingresso na vida adulta. Para passar por essa fase
teriam que saber de cor a Torah e conhecer o Talmud
14
.
A narrativa revela um personagem especial, um menino que já era considerado um
Filho da Lei, o qual não é nomeado, e que agia de forma diferente dos outros pela
14
O Talmud é uma compilação de leis e tradições judaicas, que data de 499 dC, e que consiste em
63 tratados sobre assuntos legais, éticos e históricos.
95
proteção que dedicava aos meninos menores, ensinando-lhes versículos. Ele morou com
os “essênios”, homens que se vestiam de branco e viviam em comunidade no deserto e
que buscavam a santidade. A novidade por ele contada causou muita admiração a todos.
João, filho de Zacarias, ainda menino, passou a fazer parte desse grupo. Esse
capítulo fala do encontro que Jesus teria com João, fazendo uma remissão ao passado,
descrito no capítulo I do romance, “Em Alegria” (Eu Venho, p. 4-7), narrativa do
encontro de Maria, grávida de Jesus, com Isabel, grávida de João (Lc 1, 39-56). Mas faz
também remissão ao futuro, quando novamente os dois se encontrarão, no batismo de
Jesus por João (cf. Eu, Venho, p. 149-153; cf. Mt 3, 13-17; Mc 1, 9-11; Lc 3, 21-22; Jo
1, 31-34).
A seqüência do capítulo narra os primeiros sinais da vocação de Jesus,
sentimentos ainda confusos vividos no silêncio de sua infância, porque eram
manifestados de forma sutil por aqueles que com ele conviviam: a predileção de Ana,
que lhe beijava as mãos, a insistência de José e de Maria em negar que Jesus seria
carpinteiro, o desvelo que o primo Tiago tinha por ele. Em Jesus, o sinal se manifestava
através de um sentimento tão forte que ele “pensava às vezes que estava doente” (Eu
Venho, p. 86). Era a dor da compaixão pelos que sofriam; eram os sonhos repetidos, nos
quais transitavam cegos, doentes e prisioneiros que clamavam por misericórdia. Tudo
era obscuro, como confirma a voz do narrador: “o tempo não havia chegado para que eu
entendesse todas essas coisas (...) principiava em mim, marcando-me à parte, o sinal. Só
dois anos mais tarde é que minha meninice seria ferida pela revelação” (Eu Venho, p.
86).
No capítulo XXI são narradas cenas cotidianas que faziam parte daquele contexto
e a sensibilidade com que Jesus as recebia em seu íntimo, transformando-as em
aprendizado. Com elas ia formando sua personalidade, pois “tinha avidez pelo
conhecimento da natureza”, como o próprio Jesus-narrador explica:
O Bem e o Mal se desenhavam para mim de forma distinta: com
infinita ternura considerava o modo maternal, imitando a doçura das
mães humanas (...) A própria natureza dava o sim, das tardes doces, e
dizia o não, na fúria da tempestade (...) Vi serpentes (...) escorpiões
que nos amedrontavam (...) prestava atenção a tudo”. (Eu Venho, p.87)
No recorte acima, os advérbios “Bem” e “Mal” são substantivados pela presença
do artigo definido que os antecede como determinante. São também escritos com letra
maiúscula, característica do substantivo próprio, do qual já falamos antes neste estudo.
96
Importa notar que o contexto aponta o “Bem” como a personificação de Deus, presente
nas seguintes marcas: “a doçura das mães humanas” e o “sim da natureza”. O “Mal” é
metáfora do próprio Demônio, cujas marcas são: “serpentes” e “escorpiões” e o “não da
natureza”.
O menino Jesus, já mais crescido em estatura e sabedoria, tinha um coração
acolhedor às circunstâncias da vida de sua gente. Tinha também “Os Olhos Abertos”,
título do capítulo que vimos estudando, pois já observara o amor humano nas
experiências furtivas de Isiel e Abigail, que mais tarde se casarão, e de cujas bodas
Jesus participará juntamente com outros meninos. Mas a síntese de seu crescimento está
no seu enunciado: “Conheci as mortes e conheci a Vida” (Eu Venho, p. 88).
A experiência partilhada com José sobre a importância de uma dracma
15
perdida é
índice da parábola que fará parte da pregação de Jesus (Lc 15, 8-10). O enunciado deixa
implícita uma crítica sobre a opinião dos que afirmavam que Jesus pudesse ter feito
parte da comunidade dos essênios. Esse fato é negado pela voz de Jesus-narrador
quando afirma que o filho de Zacarias morava no deserto com os homens santos “e se
alimentava de gafanhotos e de mel selvagem, com eles. Mas a mim não me tocava essa
vida de penitências” (Eu Venho, p.88). E afirma ainda que ele seguia José e Maria.
Do sexto parágrafo, destacamos a seguinte frase: “O vinho que tomávamos em
casa, para mim era misturado à água da fonte” (Eu Venho, p. 89). O vinho para os
cristãos, durante a liturgia eucarística, após a consagração, se torna o sangue derramado
de Cristo em sua dolorosa paixão. A água é o símbolo da própria Igreja nascente que
brota do peito aberto de Jesus na cruz. Completam o sentido desses símbolos, as
palavras do Cardeal Dom Eusébio:
Jesus derrama todo o seu sangue por amor aos homens. As últimas
gotas de seu sangue já estão misturadas com líquido pleural quando
“um soldado lhe transpassou o lado com a lança e, imediatamente,
saiu sangue e água” (Jo 19, 33). Fecha-se assim o grande horizonte da
total doação de seu preciosíssimo sangue: em Caná, Jesus transforma
a água em vinho; na ceia, o vinho em sangue e na cruz, de seu
Coração aberto, emana sangue e água, “rios de água viva” (Jo 7, 38).
(cf. Scheid)
Ainda nesse parágrafo o enunciado revela a profissão de Jesus: carpinteiro como
15
Dracma ou Denário: moeda de prata que pesava entre 5 a 3,5 gramas; salário médio de um dia
de trabalho de operário não especializado (cf. Mt 20, 2).
97
pai José, “que vendo meu crescimento, o conhecimento das coisas (...) aceitou
realmente que substituísse Isiel” (Eu Venho, p. 89). No entanto, é José quem diz: “Serás
mais livre (...) e mestre de ti mesmo (...) Então poderás...” (Eu Venho, p.89). As
reticências são índice de um saber que José possuía sobre a missão de Jesus, mas que
guardava no silêncio.
Pelo tempo da Páscoa os judeus peregrinavam até Jerusalém para as celebrações
no templo. O capítulo XXII, “Os Peregrinos”, narra a viagem dos habitantes de Nazaré
até Jerusalém, da qual as crianças não participavam. Contudo, em paralelo à Bíblia,
como comprovaremos adiante, o romance revela a participação de Jesus aos 12 anos
nessa viagem. O enunciado mostra como Jesus vai se deixando envolver por aquela
situação, os cânticos, as luzes das tochas que pontilhavam o caminho à noite, o pão
ázimo, as mulheres que ali estavam sem obrigação, mas por vontade de caminhar junto
com seu povo. Pela primeira vez, tudo levava Jesus ao encontro consciente com sua
vocação e, na clareza dos pensamentos que amadureciam, “tudo aquilo desatara dentro
de mim como que um chamado misterioso, que a princípio não sabia ouvir. E por fim
clamou alto em meu coração, sem que meus pais suspeitassem” (Eu Venho, p. 91). O
texto marca o início da “revelação”, que se torna explícita no capítulo XXIII, “A
Morada de meu Pai”.
O capítulo XXII é constituído de cinco parágrafos, e o capítulo XXIII, de 23
parágrafos. Esses dois capítulos do romance são intertextuais à narrativa bíblica cujo
título é “Jesus aos doze anos”, evangelho de Lucas 2, 41-52. Tomemos as analogias
presentes entre esses capítulos e o evangelho. São elas: a viagem como um fato repetido
em toda Páscoa por José e Maria; Jesus pôde ir com eles por estar com 12 anos;
acabados os dias da festa, todos voltaram, mas Jesus ficou em Jerusalém; seus pais
voltaram para procurar Jesus; eles o encontraram entre os doutores no templo; Maria
repreendeu Jesus; a resposta de Jesus aos seus pais; José e Maria não compreenderam o
que ele lhes disse; Jesus voltou com seus pais a Nazaré.
O texto destacado de Eu Venho mostra que Jesus viveu uma “revelação” naquele
templo: “Bem me vinha um chamado, que me abrasava, diferente, agudo, que me punha
tremores no corpo. Ali era a morada de meu Pai. Deixei-me cair em êxtase, solto de
mim mesmo” (p. 92). A etimologia de “revelação”, do latim revelatìo,ónis 'ação de
descobrir, de desvendar, aponta para a descoberta feita por Jesus da sua filiação divina.
Desperto de seu êxtase, ele se fez atento ao discurso dos doutores da lei que
questionavam impiedosamente um outro jovem. Jesus adiantou-se em responder às
98
questões, porque sentia o poder de Deus em si mesmo, como narra o texto em Eu
Venho: “aquele menino guiado pelo Espírito, que já crescera dentro de mim, bem me
impulsionou” (p. 93) e citava os profetas com autoridade quase furiosa. À medida que
falava, sentia “o sangue no rosto quando observava face a face aqueles homens sem
misericórdia” (p. 93-94).
A cena da “revelação no templo” pode ser vista em analogia à cena da
“apresentação no templo” (cf. Eu Venho, p. 40-42; cf. Lc 2, 22-39). Segundo Autran (p.
232), na “apresentação Jesus é manifestado por terceiros”: trata-se da surpresa e da
confirmação do messianismo pelas testemunhas, Samuel e Ana. Já na “revelação”, é
“ele próprio que manifesta seu messianismo”: trata-se do espanto e da admiração das
testemunhas, os doutores da lei, que pouco a pouco “ficaram à minha volta. Eu estava
enrodilhado a seus pés, fitava-os sem medo algum e vi que eram incansáveis no
perguntar. Pareciam até talvez um pouco assustados comigo” (Eu Venho, p. 94). Esse
texto, embora acrescido da criação literária, é paralelo ao do evangelho de Lucas 2, 46-
47.
Completa Autran dizendo que, na “apresentação”, “o Messias criança é objeto da
graça de Deus; no segundo caso, a graça aparece como uma qualidade do próprio Jesus,
como um dom espiritual que age de dentro e do qual Deus e os homens sentem o poder
de atração” (p. 232), conforme confirmamos com o trecho destacado de Eu Venho:
As palavras do profeta jorravam de minha boca de criança: —
Caminharei diante de ti e aplainarei as montanhas (...) — Em lugar do
perfume haverá podridão (...) — Em lugar da beleza a vergonha (..)
Aquilo dizia alguma coisa de mim mesmo. Eu dava recado para os
homens do Templo, e o dava ao meu próprio coração. (Eu Venho, p.
94)
O trecho do romance que narra a repreensão feita por Maria a Jesus, quando o
encontra, é transcrição da Bíblia: “Teu pai e eu te buscávamos angustiados” (Eu Venho,
p. 94; Lc 2, 48). A angústia, predita por Simeão na “apresentação”, anuncia um
sofrimento atual no coração de Maria, que precede um sofrimento maior, a angústia de
unir-se ao sofrimento de seu filho em sua morte na cruz. Também é uma transcrição
bíblica a resposta dada por Jesus a Maria e a José: “Por que me buscais? Não sabíeis
que eu devo estar em casa de meu Pai?” (Eu Venho, p. 94; Lc 2, 49). No evangelho de
Lucas, lemos “ocupar-me das coisas de meu Pai”, que, de acordo com Autran, é a
tradução mais exata para essa locução. O romance prolonga o discurso bíblico,
99
acrescentando: “A força do Espírito lhes falou por minha boca” (Eu Venho, p. 94). Diz
ainda Autran (p. 233) que “de fato, essa é a primeira vez que é relatada uma afirmação
do Messias, que fala por si mesmo, do Pai junto ao qual ‘deve estar’”. Jesus reconhece a
sua verdadeira identidade: não é da paternidade de José que ele se origina, sua filiação é
divina e “recorda aos pais o limite misterioso que os separa, apesar dos laços de
família”. José e Maria, contudo, entendiam esse discurso de forma literal, aquele que no
espaço da enunciação faz parte do contexto imediato em que foi produzido. A
dificuldade existe em função da não possibilidade de os pais entenderem o sentido
polifônico presente na locução de Jesus-personagem, limitada para José e Maria por não
terem o conhecimento dos outros sentidos produzidos no discurso por trás da voz de
Jesus (cf. Orlandi, p. 163).
Voltando o olhar para a polifonia presente no recorte, essa afirmação marca,
também o encontro entre Jesus-narrador e Jesus-personagem; o primeiro, onisciente,
tem plena clareza de sua comunhão com o Pai, de seu messianismo, da entrega e
sacrifício que fará para anunciar o Reino de Deus; o segundo, vivendo a sua
humanidade, não tem essa clareza, só aos poucos vai se abrindo ao chamado que lhe é
revelado. É na “revelação” que Jesus-personagem se apresenta pela primeira vez com a
consciência da filiação divina que tem Jesus-narrador.
É também um fato intertextual a volta de Jesus a Nazaré, acompanhando
docilmente seus pais. Contudo a narrativa bíblica acrescenta a informação de que “Jesus
crescia em estatura, sabedoria e graça, diante de Deus e dos homens” (Lc 2, 52), sendo
esse o último relato histórico sobre sua vida. A Bíblia só retomará a narrativa histórica
no “Batismo de Jesus” quando ele estiver com 30 anos, e João o batizar no Rio Jordão
(cf. Mt 3, 13-17; Mc 1, 9-11; Lc 3, 21-23; Jo 1, 31-34). No romance, o batismo de Jesus
corresponde ao capítulo XXXVII. A lacuna na história bíblica será preenchida pelo
fazer literário da autora que, criando os anos obscuros da vida de Jesus, conta com
harmonia entre a arte e o mistério, como Jesus cresceu entre os seus, na sua terra, as
suas impressões sobre a natureza, o seu relacionamento com as pessoas e com sua
religião, o seu amadurecimento intelectual, a sua sensibilidade, que despertavam, aos
poucos, a sua vocação. Enfim, com ousadia, sem contudo ferir a doutrina da Igreja,
Dinah traduz no seu Memorial do Cristo I, como “Jesus crescia em estatura, sabedoria e
graça diante de Deus e dos homens”.
Em suma a partir do capítulo XXIV, “O Intruso”, até o capítulo XXXVI, “Eis o
Profeta”, o texto do romance não é intertextual à Bíblia, afastando-se portanto da
100
linguagem fundadora. Porém, mesmo nesses capítulos, o enunciado do romance dialoga
com fatos, pessoas e situações que farão parte da História de Jesus, tornando-se
fundamental que esses casos sejam apontados e esclarecidos nesta pesquisa.
O título do capítulo XXIV, “O Intruso”, diz respeito a um menino desconhecido
que trouxe notícias de Magdala a Jesus e a Tiago, provocando nos dois primos
sentimentos de mal-estar e rejeição. As marcas que apontam para esses sentimentos em
relação ao intruso são: “cheiro peculiar de besta”, “frio repentino”, “boca cansada de um
cão”. A palavra “intruso” tem sua origem no latim medieval. intrúsus,a,um, particípio
passado de intrudère ‘introduzir à força’, cujo significado é ‘aquele que pratica uma
intrusão’, ou seja, quem se introduz em um local, ou uma sociedade, sem ter direito a
essa ação. Confirma esse sentido o diálogo entre Tiago e o menino. Tiago quis saber:
“— Tu não és de Nazaré, de onde és tu?” E o menino confirmou a suspeita: “— Dizem
que sou destas bandas e além destas bandas”. A ambigüidade da resposta deixa implícita
a não pertença a um espaço definido. O desconhecido disse: “— Vou a Magdala” (Eu
Venho, p. 96).
Magdala é o nome de uma vila próxima a Nazaré, sobre a qual o estranho falava.
A idéia de ir lá assustava Tiago, que “não queria conhecer a menina endemoninhada que
assim fica em tempo de lua” (Eu Venho, p. 96). O enunciado aponta para a figura de
Maria de Magdala
16
. Encontramos para a palavra “endemonhiada” o sentido de
‘possuído pelo demônio’, e para “lua”, no uso informal, o sentido de “cio”, cuja
etimologia é o grego zêlos,ou 'ardor; objeto de desejo'. Portanto, as marcas em relação a
Maria, apontam o “demônio” e o “sexo”. Tiago recusou-se a dar mais informações
sobre ela, mas deixou implícito um mal que a envolvia, pela expressão que ele repetia
em pânico: “Eu não digo. Eu não digo nem hoje, nem amanhã!” (Eu Venho, p. 96).
Continuando a leitura, vemos Maria, mãe de Jesus, descrever a figura de João,
ainda menino, com as características fortes que definirão sua personalidade quando se
tornar adulto. Ela falava sobre “João, filho de Zacarias” (Eu Venho, p. 98), marcando
explicitamente que Maria pertence ao povo judeu, pois faz parte da tradição do AT a
identificação de alguém pela família, indicando a paternidade. Ela diz também que João
falava muito, referência feita a ele no título do capítulo XXV, “O Menino que Falava
Demais”. Nesse capítulo são mencionadas algumas classes ou partidos aos quais
16
O antropônimo bíblico Maria Madalena, refere-se Magdalena e tem origem no topônimo Magdala.
101
poderiam pertencer os homens judeus. Vejamos: “sacerdotes”, aqueles que se
dedicavam ao trabalho no templo; “fariseus”, aqueles que se preocupavam com a prática
dos ritos, considerando-se puros segundo a prática da lei, por isso separados dos demais;
“saduceus”, políticos interessados em manter sua riqueza, e desse grupo provinham os
“anciãos”, que controlavam a justiça e compunham o tribunal supremo, chamado
Sinédrio, e também os “sacerdotes”, responsáveis pelo serviço no templo; “zelotas”,
integrantes de um partido revolucionário que não aceitava a submissão a Roma. O texto
também fala dos “samaritanos”, povo misto que não foi aceito pelos judeus na volta do
exílio, tornando-se, assim, seus inimigos; “herodianos”, gente da corte de Herodes
Antipas
17
, adversários de Jesus, ao lado dos fariseus (cf. Cavalcanti et alii, p. 13-14).
Essas classes são descritas pelo jovem João em Eu Venho com certo tom
agressivo, e o discurso deixa transparecer sua fúria porque ele “sabia dessas tantas
coisas, lidava com elas e, porque lidava e sabia, dava-lhe vontade de viver no deserto
com os homens santos da Comunidade” (p. 99). Esses homens, como já foi dito, eram
os essênios, grupo formado por sacerdotes que se haviam desligado do templo, ou de
sinagogas, e acolhiam crianças e adultos em suas comunidades. Sua casa mais
importante, segundo o romance, “ficava próxima do Mar Salgado, à embocadura do Rio
Jordão (...) com lugares especialmente criados para banhos de imersão (...) (eram)
homens que esperavam ardentemente a pronta visita do Messias” (Eu Venho, p. 99).
Eram, por esse motivo, odiados pelos sacerdotes do templo. Contudo, diz o romance
“que foi ali que João, o menino que falava demais, conheceu da boca de seus novos
mentores os borbotões da fé inspirada” (Eu Venho, p. 100). A palavra essênio não é
usada na Bíblia, contudo João é descrito com as características de alguém formado
naquele grupo, como podemos ler nos evangelhos que narram a “Pregação de João
Batista” (cf. Mt 3, 1-12; Mc 1, 1-8; Lc 3, 1-9.15-18; Jo 1, 19-28). Como já foi
mencionado nesta pesquisa, João será aquele que batizará Jesus.
No oitavo parágrafo destacamos o seguinte enunciado:
Era assim João, que um pouco antes de mim fora ouvido no Templo e
que tinha, pelo fato de que seu pai fosse sacerdote da classe de
Abdias, como deveis saber, uma das oito famílias sacerdotais,
intimidade muito franca com os textos sagrados (Eu Venho, p. 98).
17
Herodes Antipas sucedeu seu pai, Herodes Magno, como tetrarca da Galiléia e da Peréia,
governando de 4 a.C. a 39 d. C.
102
A oração conformativa “como deveis saber” reproduz a voz do locutor, que se
dirige ao seu interlocutor presumindo que ele já tenha conhecimento do fato de ser João
descendente da classe sacerdotal. O sintagma verbal “deveis saber” indica um sujeito
desinencial, “vós”, que não se inclui na narrativa, qual seja o leitor, que é interpelado
pela voz do locutor, Jesus, que a ele se dirige, na segunda pessoa do plural, “vós”, usada
no registro formal da língua, muito freqüente no texto bíblico, tratamento que se repetirá
na obra em próximas interlocuções entre locutor e leitor.
Como já comentamos nesta pesquisa, José é um personagem do qual a Bíblia
pouco fala. Em Eu Venho, ao contrário, cada vez mais o personagem é revelado. No
capítulo XXVI, “O Cio das Almas”, José, já cansado, mostra sinais de doença, que se
torna explícita na pergunta retórica do narrador: “Quando pai José ficou doente? Ele ia
perdendo as forças aos poucos, mas seu desejo de trabalhar era muito” (Eu Venho, p.
101). Duas são as marcas que apontam a personalidade de José: a “força”, que agora ia
perdendo, e o “serviço”, que tanto demonstrava no zelo pelo seu trabalho. Importa saber
o que levava José à doença. Diz a narrativa que “o peso das coisas não ditas morava nos
corações”. A referência é feita aos “corações” de José, de Maria e também ao de Jesus e
confirma que “pai José sofria e talvez viesse a morrer porque esperava de mim as
glórias ainda impenetráveis que procurava nos céus obscuros”. A marca em José é o
“sofrimento” gerado pela “espera”. Quanto à Maria, o texto mostra que esperava com
outra disposição, “talvez porque, na sua natureza, ela houvera repartido para si mesma
um quinhão maior de alegria natural. E também porque mãe Maria se afeiçoava aos
irmãos e irmãs, servindo-os quanto podia, até mesmo aos menos merecedores”.
Apontamos mais um traço do perfil de Maria que perpassa toda a História, que é a
“alegria messiânica” (Autran, p. 13).
Em Eu Venho mostra-se como característica de José o grande “amor” que tinha
por Jesus, como apontamos no enunciado que manifesta o pensamento de Jesus: “O
amor que tens por mim pede que eu me apresse em grandes feitos. Mas o céu está
parado e nada posso fazer” (p. 102). José dava-lhe o exemplo. Diz Jesus: “Não sabes o
quanto meu coração tem guardado da bondade que sempre me deste” (Eu Venho, p.
102). Nesse discurso evidencia-se o não-dito na Bíblia, que é apontado no romance:
José foi o modelo de homem e de pai humano que Jesus conheceu em sua educação.
No romance a palavra “cio” aponta para o tempo da seca em que “até os animais
sofrem e se desesperam” (Eu Venho, p. 102), conforme informa a voz de José. Como
103
estudamos anteriormente, a palavra “cio” tem origem no grego zêlos 'ardor; objeto de
desejo', que comparamos à etimologia de “estio”, do latim aestívus,a,um (sânscrito
aestivum tempus) ‘tempo de grande calor, do verão’ e concluímos que nesse contexto,
“cio” é um sinônimo de “estio”, cujos significados se cruzam em suas etimologias,
produzindo nesse contexto o sentido de “grande calor” que leva à secura, à ausência de
água. Deste modo, secura aponta para morte, em oposição a vida, gerada no meio
líquido. As marcas do romance que apontam para a morte são: “tempo da seca”,
“animais sofrem”, “se desesperam”. O sintagma que compõe o título é “cio das almas”.
Entendendo-se a “alma” como a parte imortal do homem, pode-se concluir que se o
corpo mortal nasce da água, o corpo imortal passa pela “seca”, o “sofrimento”
provocado pela morte, para que possa nascer em outra dimensão, a da vida eterna. Tudo
aponta para a morte iminente de José.
A continuação da leitura mostra a visita à casa de Isiel e Abigail. Cleofas levou
seus filhos e também Jesus à morada dos recém-casados em Magdala. Nesse tempo
Jesus estava mais crescido, e afirma: “Isiel passou-me o braço pelo ombro, viu-me de
sua altura” (Eu Venho, p. 105). No capítulo XXVII, intitulado “As Irmãs”, Jesus
encontrou pela primeira vez com Maria de Magdala, a personagem de que fala o
capítulo XXIV. Enquanto Jesus a ela se dirigia, Tiago assustado fugia. O medo de Tiago
é justificado pela atmosfera sobrenatural que cercava a menina. Destacamos: “Vendo
um grande cão que se aproximava dela (...) Tiago sussurrava trêmulo: — Este cão é o
demônio! (...) Se a menina recebe sete demônios... (...) Teus irmãos vêm de Nazaré e me
visitam” (Eu Venho, p. 105-106). Novamente as marcas apontam para o “demônio”,
para o “sexo” e para o “mal”.
Porém algo novo ocorreu com a presença de Jesus. Ele observava: “Eram sombras
seus olhos, mas sombras fulgurantes, refletindo como rios obscuros da noite escondidos
de nós (Eu Venho, p.105). Apontamos a metáfora em relação aos seus olhos que
transitam da sombra para a luz: “sombras fulgurantes”, refletindo com rios”, “rios
obscuros”, porque escondiam o que ainda não havia sido revelado: o “bem” presente
naquela em que muitos acusavam o “mal”. Ela pedia a cura, conforme mostra o texto:
“Ela falava alto para si mesma ou para mim, decerto para mim (...) Ah, se eu me curasse
dessa força da Lua” (Eu Venho, p. 105). Jesus tem piedade dela e quer ajudá-la e, mais
do que isso, quer o bem para ela. É ele quem lhe diz: “O Senhor nos visita a todos,
como este luar que não faz mal algum. Seria bom que rezasses, então te sentirias em paz
(...) Percebi que minha emoção crescia, mais forte do que minha voz ainda de criança:
104
— Maria, Maria de Magdala!” (Eu Venho, 105-106). A palavra que Jesus dirige a ela é
um convite à vida nova e à paz, um convite à oração que eleva a alma a Deus, fonte de
todo bem. Repetindo o nome de Maria, Jesus afirma que a “emoção crescia” nele. A que
emoção refere o discurso? Maria será, mais tarde, a discípula que seguirá Jesus até o
Calvário, e será ela quem primeiro verá o Mestre na ressurreição. A voz do personagem
chamando “Maria” remete a esse momento (cf. Mt 27, 55-56. 28, 1-15; Mc 15, 40-41.
16, 9-11; Lc 23, 49. 24, 1-12; Jo 19, 25. 20, 1-18; cf. Eu, Jesus, capítulo LXIV, LXV).
Além do encontro com Maria, Jesus encontrou-se também com outras meninas
que tocavam harpa, címbalos, flauta e tambores, executando músicas que atraíam a
atenção do povo, pois também não era comum às mulheres saber tocar. Durante suas
execuções havia aqueles que profetizavam. Ao final, elas se dirigiram a Jesus: “És um
pequeno profeta. Por que não te revelaste? As coisas queriam sair de tua boca” Mas, diz
a narrativa, que não era bom o riso que lhes vinha à face, “parecia, pelo contrário, muito
mal desafio” (Eu Venho, p. 108). Elas se apresentaram a Jesus como suas irmãs, “por
parte de Jacó, pai do carpinteiro” (Eu Venho, p. 108).
No capítulo XXVIII, “Um Deus a Mais”, três referências são relevantes: a face de
César Augusto cunhada na moeda, a revolta de Simão, que toma a atitude de um zelota,
e a bebida ácida oferecida a Jesus.
Para os romanos, Yahweh era um deus a mais. Tiago havia recebido uma moeda
dos romanos por ter prestado serviço a eles, que estavam próximos dali. Simão se
revoltou e atirou para longe a moeda, com gesto de nojo. Não obstante tudo isso, Jesus
foi com Tiago até os romanos e a eles a devolveu, já que percebia a ofensa a Yahweh.
Durante esse encontro, os romanos lhes ofereceram “um bom gole de posca” (Eu
Venho, p. 110). A Jesus, aquela bebida sabia ao sofrimento, conforme diz a narrativa:
“Aquele bebida ácida bem me dava um sabor que dizia também pesada mensagem a
meu coração. Um dia, muito mais tarde eu a absorveria” (Eu Venho, p. 110). Esse
enunciado refere-se ao momento da crucifixão, quando na agonia final, Jesus disse:
“Tenho sede”. E os soldados que ali estavam “encheram de vinagre uma esponja e,
fixando-a numa vara de hissopo, chegaram-lhe à boca” (Jo 19, 28-29). É possível que o
líquido oferecido a Jesus no Calvário tivesse sido a “posca”, uma bebida à base de
vinagre com água, comum entre os soldados romanos (Eu, Jesus, p. 269). A autora usou
a palavra original em italiano, para qual não se encontra correspondente no português. O
AT confirma o vinagre — ou bebida semelhante a ele — como hábito também entre os
judeus. Dizem as Sagradas Escrituras: “À hora de comer, Booz disse-lhe: Vem, come
105
tua parte do pão, e molha o teu bocado no vinagre” (Rt 2, 14).
Na volta da viagem que Jesus e Tiago fizeram a Magdala, o romance narra a
chegada de Jesus à sua casa em Nazaré. Pela primeira vez, no capítulo XXIX, José
revelava a Jesus a grande esperança que guardava em seu coração, o desejo de ver
cumpridas as promessas. José confessa: “Não sei bem o que deves fazer, mas antes que
meus olhos se fechem para sempre, queria que acudisse às promessas que nos foram
feitas” (Eu Venho, p. 113). “Esperança” e “promessa” remetem ao capítulo I de Eu
Venho, no qual o narrador declara que “agora eu sou esperança” e também “sendo eu
apenas promessa” (Eu Venho, p. 3).
O título desse capítulo, “Seu Tempo não é o Teu”, refere-se à fala de Maria
dirigida a Jesus, explicando que José “tem pressa”. A locução é feita por Maria,
primeira pessoa do discurso, o pronome possessivo “seu” aponta para José, terceira
pessoa do discurso, e o pronome possessivo “teu” aponta para Jesus, segunda pessoa, a
quem Maria se dirige. Remetendo ao espaço da enunciação fica claro que o despontar
de Jesus para a missão não acontecerá no tempo de José.
Importa destacar a fala de José: “Não sei bem o que deves fazer”. Essa afirmação
confirma que o plano divino não havia sido revelado plenamente a José e nem mesmo a
Jesus, conforme o ouvimos dizer: “Externamente já podia passar como um homem, mas
nada saberia fazer, para que o tempo medido bem se ativasse e eu me apresentasse a pai
José, rico no devolver seu amor por grandeza” (Eu Venho, p. 114).
Maria possuía as virtudes necessárias para suportar a espera, mas seu pai José
“tinha pressa”, não estava pronto para esperar com paciência e sofrer as demoras de
Deus (cf. Eclo 2, 3).
O capítulo XXX narra o envolvimento de Simão, filho de Cleofas, que assumia a
condição de um justiceiro, um vingador de seu povo contra Roma. O texto mostra que
ele e o grupo de jovens do qual fazia parte haviam roubado armas dos romanos que
estavam embriagados, porque choravam a morte de César Otaviano Augusto
18
e
estavam de partida.
Na seqüência do romance aproximava-se a hora em que Jesus deveria rever João.
O texto mostra como Maria serviu de inspiração para que Jesus viajasse até a casa de
Zacarias, pois, sob o pretexto de levar um cinto a Isabel, incentivava Jesus a ir ao
encontro de João. A Mãe mostra o caminho ao Filho. É ela quem chama o filho a sair do
18
O sucessor de César Augusto foi Tibério, que e se tornou Imperador Romano de 14 a 37 d.C.
106
seu lugar e partir rumo à sua missão, à sua “Chamada”, título do capítulo XXXI.
Note-se também o importante testemunho de religiosidade e fé que José deu a
Jesus durante seu crescimento. O candelabro de sete braços usado na sinagoga é a
metáfora para a fé ardente de José. O número sete na Bíblia significa a perfeição. A
pergunta retórica é feita pela voz de Jesus-narrador: “Que significava para mim pai
José? A fé mais completa que eu conhecia (...) José impregnou meu pensamento, dia e
noite, pelo respeito a esse único Senhor. Nada deveria ser feito sem a bênção inicial”
(Eu Venho, p. 121). Diz também que pai José enquadrou a mezuza
19
em metal dourado,
onde está escrita a oração, o shema, que corresponde ao Deuteronômio 6, 4-9.
Destacamos algumas passagens que marcam a importância de José na vida religiosa de
Jesus, intertextuais à Bíblia: sua presença na apresentação de Jesus no templo (Lc 2, 22-
39) (Eu Venho, p. 40-42); juntamente com Maria, José foi buscá-lo no templo na
revelação (Lc 2, 41-52) (Eu Venho, p. 92-94). Não obstante a Bíblia não mencionar o
nome de José, Jesus foi certamente levado por ele para ser circuncidado, (Lc 2, 21) (Eu
Venho, p.38), como também não é fato relatado na Bíblia, mas certamente foram as
mãos de José que conduziram Jesus pequenino à sinagoga (Eu Venho, p. 79).
A passagem selecionada e os fatos citados confirmam o silêncio que há na Bíblia
sobre a pessoa de José. Consideremos o que diz Orlandi a respeito dessa característica
textual:
Levando-se em conta que a linguagem é basicamente dialógica,
podemos dizer que ao silenciar sobre algo, o locutor prende o
interlocutor no quadro discursivo limitado por esse silêncio. Esse
compromisso instituído pelo enunciador poderá, ou não, ser cumprido
pelo interlocutor. (p. 264)
Na seqüência do capítulo ficamos sabendo que, por amor a José, o poder de cura
que Jesus possuía foi manifestado, conforme lemos em Eu Venho:
Tive coragem de elevar minha mão à sua testa dizendo: — Meu pai
José, teus males já estão aliviados, eu sei. Por este motivo, deverei
viajar, visitando Isabel, para fazer gosto à minha mãe — dizia isso
impondo-lhe a mão sobre a testa. Eu vi que acordava de sua doença.
19
A mezuza deve ser colocada no batente da porta de entrada e tem como função principal
proteger a casa do mal. No shema, a oração inscrita na mezuza, está o conceito mais fundamental do
judaísmo, a unidade do Criador.
107
Ele a despira, pelo menos por enquanto. (p. 121)
Depois da prece, José abençoou com amor a partida de Jesus. Apontamos o
lirismo da antítese presente na mensagem de José: “Vai em paz, meu Jesus. Eu já estou
melhor, acho que estou quase bom, porque de esperar ninguém morre. De esperar é que
se vive. Vai em paz, meu Jesus!”
Durante a viagem Jesus-narrador mencionou a hipocrisia e a idolatria, que
despertaram em Jesus-personagem um sentimento negativo. Ele perguntou: “Quando
começou em mim a brotar a ironia? Sem dúvida nessa viagem” (Eu Venho, p. 123). A
hipocrisia dos caravaneiros estava no roubo consentido do ouro que os soldados
romanos lhes tiravam e que deveria ser ofertado ao templo; eles se calavam, como se
pagassem um tributo a Roma. Idolatria de homens e mulheres muito pobres que
glorificavam esse mesmo ouro, sem contudo cuidarem da verdadeira devoção que
deveriam ter a Yahweh. A ironia que Jesus diz ter nascido nessa viagem, marcará várias
de suas pregações e exortações durante sua vida pública (cf. Mt 12, 1-8. 9-14. 46-49).
A palavra caminho aparece duas vezes nesse capítulo. A primeira, na voz de
Jesus-narrador, dizendo: “Ao entregar o cinto a Isabel, eu refazia o caminho antigo de
minha mãe” (Eu Venho, p. 124). A segunda, na voz envelhecida de Isabel, que disse
com dificuldade: “— Se tu queres encontrar João, ensinarei o caminho” (Eu Venho, p.
125).
Podemos observar um paralelo entre o sentido conotativo do caminho percorrido
por Maria para encontrar Isabel e o mesmo caminho percorrido, após, por Jesus. O
encontro das duas mulheres é ao mesmo tempo o encontro das duas crianças que elas
geravam. Jesus era levado por Maria em seu ventre a esse encontro profético com João,
também no ventre de Isabel. Mais tarde o mesmo caminho foi percorrido por Jesus,
também por intermédio de sua mãe, mas dessa vez ele foi sozinho a Isabel, que lhe
mostraria outro caminho para o encontro de fato: Jesus e João, ambos adultos, se
preparando cada um para sua missão, tão intimamente unidas. O sentido é o da profecia
messiânica proclamada sobre Jesus.
Para chegar a João, Jesus precisou atravessar o deserto, tendo sido conduzido por
Pesac, aquele que nomeava a si próprio de “ponte viva”, pois era ele que levava a
Jerusalém recados da comunidade dos chamados homens santos, comprava-lhes
mantimento, recebia doações e arrebanhava novos discípulos. A palavra “páscoa” tem
sua origem no hebreu “pasac” ou “pesah”, passando ao grego como “páskha”, e ao
108
latim “pascha”, cujo sentido é de “passagem”, “páscoa”; para os judeus, é
comemoração do êxodo. Conduzidos por Moisés os judeus atravessaram o Mar
Vermelho e caminharam do cativeiro para a libertação, pelo deserto, para chegar a
Canaã. O deserto é o lugar das provações e tentações, mas também é o lugar da
possibilidade da conquista do Bem sobre o Mal. Conduzido por “Pesac”, Jesus fazia sua
primeira “passagem” pelo deserto, que o levaria ao encontro de João, o profeta que
abriria o caminho para o Messias, porque em breve “João deveria buscar o Deserto e
deixar os falsos intermediários” (Eu Venho, p. 133). Como falsos intermediários o texto
indica os chamados homens santos que esperavam o Messias, “mas enganados pela falta
de comedimento e errados em sua devoção desumana à lei de meu Pai” (Eu Venho, p.
135).
O texto também acusa o encontro de Jesus com o demônio no deserto, que o
tentava em relação ao sexo, dizendo-lhe coisas obscenas. Destacamos de Eu Venho,
marcas que apontam para o “sexo” e para o “obsceno”: “baixos da criatura”, “se agitam
no cio”, “bestas enfurecidas” (p. 134). Importa ressaltar o seguinte recorte: “em voz
muito fina, convidava-me a repousar ali naquelas sombras e perguntava por que sendo
eu um verdadeiro homem, não conhecia mulher” (Eu Venho, p. 134). O enunciado se
insere na doutrina da Igreja que reza ter Jesus optado por uma vida celibatária, quando
afirma que apesar de ser “um verdadeiro homem, não conhecia mulher”.
Esse encontro com o diabo é índice de um encontro futuro, também no deserto,
em que Jesus será por ele tentado a abandonar sua missão, em troca de favores
temporais que o diabo lhe daria (cf. Mt 4, 1-11; Mc 1, 12s; Lc 4, 1-13) (cf. Eu Venho,
p.154-161). Ganha voz no discurso o diabo que ameaça Jesus, dizendo: “O tempo vem
em que serás a mim submetido” (Eu Venho, p. 134).
Os capítulos XXXII e XXXIII, que acabamos de estudar, têm como título,
respectivamente, “Pesac” e “A Porta do meu Caminho”.
O capítulo XXXIV, “Um Manto para o Senhor”, aponta vários índices do
messianismo de Jesus e de sua breve partida de Nazaré. O primeiro parágrafo abre o
capítulo dizendo: “Haviam corrido os tempos e talvez ninguém soubesse que eu mudara
tanto” (Eu Venho, p. 136). A mudanças referem-se a Jesus, voz do discurso narrativo.
Acompanhemos as marcas dessa mudança, presentes em Eu Venho, nas páginas
136-137:
— a forma como Jesus se dirigiu a Maria, que chorava a morte de Ana, sua mãe.
Ele lhe disse: “— Não chores tua mãe, pois seu tempo findou” (Eu Venho, p. 136). Essa
109
não é a forma comum de acolher pessoas queridas diante de uma situação trágica. Essa
fala de Jesus remete também às Escrituras, como completa a própria narrativa: “Os
mortos enterrem seus mortos” (Mt 8, 22; Lc 9, 60).
— o desapego às coisas íntimas de sua infância. Jesus disse: “Compreendi que
haviam tirado a Ana suas coisas mais preciosas, como antecipando a morte (...) Haviam
empobrecido ainda mais o lar que fora a delícia de minha infância (...) E agora aquilo já
não me fazia mal algum.
— o rompimento dos laços afetivos. Jesus lembrava: “Ana me ensinara, na
misericórdia por minha fraqueza de criança, mestra que fora da vida (...) Nenhuma
sensação de fim atingia meu ânimo. Guardei em meu coração”.
— o índice de que mais laços deveriam ser rompidos para que pudesse seguir
adiante. Jesus afirmou: “Ana passou. Marcava um tempo, tinha a significação de um
laço que eu deveria romper, como outros”.
Poder seguir com liberdade o chamado para a missão que Deus lhe confiara,
implicava que Jesus superasse os apegos, as paixões, o egoísmo. Viver esse
desprendimento é colocar o amor a Deus em primeiro lugar na sua vida, livre enfim para
fazer plenamente a sua vontade. Santo Afonso traduzia essa experiência pela palavra
italiana distacco (cf. Lowery, p. 21-22).
No entanto é a Mãe quem vai indicar a proximidade da hora de o Filho assumir a
missão, providenciando “toda uma nova vestimenta de viagem”: a túnica de lã, tecida de
cima a baixo, sem costuras, o grande manto, a cobertura para a cabeça e o cinto são
índices da crucifixão de Jesus, pois todas as suas vestes foram repartidas entre os
soldados, mas sobre a túnica deitaram a sorte para ver de quem seria (cf. Eu Jesus, cap.
XXX; cf. Jo 19, 23-24).
Sua mãe tudo fizera em silêncio, num trabalho discreto e invisível aos que a
cercavam e, dessa forma, “Maria associava-se à nova vida que se abriria para mim. Ao
entregar-me peça por peça, disse simplesmente: — Serás um senhor, o Senhor” (Eu
Venho, p. 139). Essa fala indica o messianismo de Jesus, reafirmado pelas palavras de
José que, ao vê-lo com o manto, exclamou: “— Meu Senhor!”. Em várias passagens as
Sagradas Escrituras confirmam que Jesus é o Senhor. Destacamos: “Assim vos será
aberta largamente a entrada no Reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo”
(2 Pd, 1, 11).
A continuação da narrativa, no capítulo XXXV, “O Zelota”, faz referência a
Simão, que voltou para casa muito doente, ferido pelos soldados romanos. Maria se
110
compadeceu por Simão. É a voz do narrador que diz: “Pela primeira vez minha mãe
pediu alguma coisa além do que se pede a um filho: “— Cura Simão. Ele morre por nós
todos” (Eu Venho, p. 141-142). Manifestando o poder do Pai, Jesus o curou e sentiu em
Simão o seu grande amor a Deus. Nesse trecho, Maria é a Mãe que, com cuidado
amoroso, intercede pelo irmão de seu filho, como continua intercedendo por cada um de
nós, seus filhos adotivos. “Por isso, a Santíssima Virgem é invocada, na Igreja, como
Advogada, Auxiliadora, Amparo e Medianeira. Mas isso deve entender-se de modo que
nada tire nem acrescente à dignidade e eficácia de Cristo, Mediador único” (Concílio,
p.127).
A fala de Jesus deixa implícito o fato de que Simão virá a ser um dos discípulos
que seguirão Jesus e aceitará a boa nova do Reino de Deus: “Farás parte de um grupo de
amigos, mas não usarás as armas e sim a oração e a penitência (...) Não será hoje, mas
seguirás teu irmão quando for preciso” (Eu Venho, p. 143).
Considerando a leitura, vemos Jesus seguir ao encontro de João. “Eis o Profeta” é
o título do capítulo XXXVI, que descreve em detalhes o lugar onde João se encontrava
pregando e batizando o povo. Atentemos para a seqüência narrativa.
O “cantar dos galos” (Eu Venho, p. 144) é referência à hora em que Simão deixou
a casa de José, e também à hora em que Maria de Cleofas esperava por Jesus para dele
se despedir e entregar-lhe algumas moedas: “desde que os galos cantaram” (Eu Venho,
p. 145). O “cantar do galo”, mencionado como medida de tempo, remete a um contexto
futuro em que Jesus usará essa mesma forma de marcar o tempo, mas dirigindo sua a
fala a Simão Pedro, discípulo que o haveria de negar três vezes antes do cantar do galo
(cf. Eu, Jesus, cap. LXI; cf. Lc 22, 33-34). Na fala do narrador, Maria de Cleofas é a
metáfora de Nazaré “ora mesquinha, ora capaz de fazer sacrifícios” (Eu Venho, p. 145).
Essa mesma mulher, que tanto levou da casa de Jesus e da casa de Ana, estará
piedosamente aos pés da cruz de Jesus, junto com outras mulheres, dentre elas Maria,
mãe de Jesus e Maria de Magdala (cf. Mt 27, 56; Mc 15, 40; Jo 19, 25).
Nesse capítulo Jesus encontrou pela primeira vez com Simão, que será chamado
Pedro, e seu irmão André, às margens do Jordão, entusiasmados com a pregação de
João e solidários à multidão ali acampada. Distribuíam ao povo ao redor peixes cozidos
no mel, que “eram dados por amor a João, de quem se tornaram discípulos” (Eu Venho,
147). Mais tarde eles estarão entre os discípulos que farão a distribuição à multidão dos
pães e dos peixes que serão multiplicados por Jesus (cf. Mt 14, 17).
Foi Jesus quem deles se aproximou e ficou sabendo que eram pescadores que
111
vinham do Mar da Galiléia. Diz o texto que, ao ver Simão dormindo abraçado
vigorosamente a uma pedra, em seu íntimo Jesus chamou-o “Cefas”
20
, cujo significado
bíblico é “pedra, rocha”, referência ao nome que lhe dará quando se tornar o primeiro
dentre os apóstolos (Jo 1, 42). Jesus comunicou o nome “Cefas” a Simão que lhe
respondeu: “Não sou tão duro assim com uma pedra” (Eu Venho, p 149). A resposta
confirma o significado da palavra. A afirmação de Jesus aponta para o implícito do
texto: “Saberás um dia por que te chamei Cefas” (Eu Venho, p 149). E remete para um
contexto futuro, quando Jesus irá constituir Pedro o chefe de sua Igreja (cf. Eu, Jesus,
cap. XXXVIII; cf. Mt 16, 18).
O diálogo a que nos referimos acima encontra-se no capítulo XXXVII, que na
Bíblia corresponde à “Pregação de João Batista” e ao “Batismo de Jesus” (cf. Mt 3, 1-
17, Mc 1, 4-11, Lc 3, 1-22 e João 1, 19-34). Portanto, a narrativa literária retoma nesse
ponto a intertextualidade bíblica.
Destacamos as analogias encontradas nesse capítulo entre a Bíblia e o romance: a
proclamação da profecia de Isaías por João; a forma rústica como João se vestia; sua
alimentação silvestre; o tom agressivo usado por João; João precedia o Messias; a
formação de um novo povo de Deus; o batismo de João; João anunciava o Cristo; o
encontro de Jesus com João; os papéis trocados; João batizou Jesus; o cumprimento da
justiça; o sinal de Deus.
A narrativa dá voz aos discípulos que confirmam João como aquele anunciado
pelo profeta Isaías, cujo recorte é a transcrição dos evangelhos: “Eu sou a voz que clama
no deserto. Preparai o caminho do Senhor, acertai suas veredas...” (Mt 3, 3; Lc 3,4; Jo 1,
23) (Eu Venho, p. 150). Sob o ponto de vista bíblico, o NT vai buscar a legitimidade do
seu discurso no AT, pela reapresentação da profecia de Isaías “O Aviso da Libertação”
(Is 40, 3-4), o que garante que João é aquele a quem o Senhor enviou para preparar o
caminho para o Cristo.
Lemos em Eu Venho que “João vestia-se com uma túnica feita com os pêlos
ásperos do camelo. Cingia-se com um largo cinto de couro cru” (p. 150). “Pêlos
ásperos” e “couro cru” explicam a vestimenta rústica de João. Encontramos a
confirmação da intertextualidade nos evangelhos (cf. Mt 3, 4; Mc 1,6). Porém, tanto o
texto de Mateus como o de Marcos se completam com a oração “alimentava-se de
20
A autora inclui ao final da página 148 uma nota que informa o significado de “Cefas” —
“pedra ou rochedo”
112
gafanhotos e mel silvestre”, informando o alimento habitual de João, informação que no
romance se estende a dois parágrafos, compostos de nove linhas, acrescentando ao
arquétipo a criação ficcional.
Surge nesse contexto um personagem, um “jovem”, que recolhia o alimento para
João, os insetos e o mel que tirava dos ocos das árvores. O personagem despertou o
interesse de Jesus, que se confirma em Eu Venho (p. 149-150), pelo diálogo entre
ambos, o “quase menino” e Jesus. O texto acrescenta que o “rapazinho” corria rápido à
frente “para levar a oferenda da comida ao profeta”. As marcas do texto: “jovem,
“quase menino”, “rapazinho” denotam a faixa etária dessa pessoa do sexo masculino.
Contudo, a insistência em descrevê-lo relevando essa característica deixa implícita a
importância sobre ele, que também se alimentava como João ou, segundo sua
explicação, conforme os nômades do deserto, “não por santidade mas por seu costume”.
Quem é esse que leva a “oferenda” a João?
A voz de Jesus-narrador mostra a sua curiosidade, pois “queria saber como João
fazia para atrair tantas e tantas pessoas”. Diz a narrativa:
Subi a uma escarpa e me sentei só, atrás de onde João pregava
ao povo. O sol nascia, as águas do Jordão avermelhavam e eu o
tinha sob o domínio dos meus olhos como uma cruz viva que
falasse, os braços abertos clamando: — o Reino dos Céus está
próximo, já não é mais tempo de aparência da Justiça, só
importa o fundo do coração do homem. (Eu Venho, p. 150)
A sinestesia se revela pela aproximação da luz do sol que nascia, das águas que se
avermelhavam, pela imagem da cruz viva e pela voz de João que clamava, produzindo
um efeito poético na descrição da cena e, nela, João “como uma cruz viva”, é a metáfora
que reafirma o sentido de que João é o profeta que precede o Cristo, pois a cruz não
aponta para a morte de João e, sim, para a de Jesus.
João dirigia sua pregação à multidão que o seguia, clamando a verdadeira
conversão. O recorte apresenta a antítese entre “aparência de Justiça” e “o fundo do
coração”. O enunciado já deixa prefigurar que o Reino dos Céus implica a Justiça, a
mudança interna da pessoa, não o exterior, que é só aparência, e não corresponde à
verdade.
“— Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera que vem?”. Com essa
fala, João exorta um grupo definido, como indica o texto bíblico, “muitos dos fariseus e
dos saduceus que vinham ao seu batismo” (Mt 3, 7). O texto do romance refere-se a esse
113
grupo dizendo que João falava “menos dos pecados do que das próprias superstições e
legendas com que se cercava o povo” (Eu Venho, p. 150). O sentido de “legendas”,
como o entendemos no texto, é o de ‘fantasia produzida pela imaginação e pela devoção
populares, lenda’; o de “superstição” é a ‘crença cega, arraigada e exagerada em alguma
coisa, alguma regra ou algum princípio, que se adora ou se segue sem questionar’. O
texto do romance deixa subentendido que aqueles a quem João falava com tanto ímpeto,
são os mesmos fariseus e saduceus de que fala o texto de Mateus, os quais viviam
cegamente presos à lei, praticando ritos apenas por tradição, sem se preocuparem com
valores internos. A eles também Jesus exortará, chamando-os de escribas e fariseus
hipócritas em suas pregações (cf. Eu, Jesus, cap. LI; cf. Mt 23, 23).
“Eu compreendia” (Eu Venho, p. 151). A curta oração marca, mais uma vez, o
encontro das vozes do Jesus-narrador e do Jesus-personagem, em que fica clara a
consciência que ambos têm de sua missão, de ser ele o Pastor de um novo e grande
rebanho.
Aquele turbilhão humano, clamando e pedindo o batismo, os cânticos que aludiam
ao povo que se preparava para receber o seu Rei, os discípulos de João, o rito do
batismo, tudo agora fazia sentido: “estava para ser formado um novo povo, nascia o
legítimo povo de Deus. O tempo de Espera havia terminado” (Eu Venho, p. 151).
Confirmam esse recorte os evangelhos de Mateus 3, 5-6, de Marcos 1, 5 e de Lc 3, 18.
“Novo povo" refere-se “às multidões de raças diferentes, de trabalhos diversos” em
oposição aos “penitentes do deserto”, aqueles que se consideravam “puros” e
escolhidos. Buscamos o enunciado do capítulo XXXIX de Eu Venho, em que Jesus-
narrador fazia referência a milhares de peregrinos que buscavam a conversão. Ele
afirmava: “Uma nova santidade estava nascendo” (p. 165). A palavra santidade rompe
com o paradigma da antiga aliança, que era viver de acordo com a lei, e cria um novo
paradigma, qual seja a santidade que é para todos, porque Deus quer que todos sejam
santos (1Ts 4,3). Segundo Santo Afonso, santificar-se consiste em amar a Deus, e este
amor consiste em viver em conformidade com a vontade divina (cf. Ligório, 1982,
p.166). Jesus Cristo vem revelar plenamente esse novo paradigma.
“O novo povo” é a Igreja nascente de Jesus Cristo, mas nesse contexto o que torna
legítimo o “novo povo” é a “verdadeira conversão”, o “arrependimento” e a “remissão
dos pecados” que iam buscar no batismo de João, “o batismo único da penitência” (cf.
Lc 3, 3) (cf. Eu Venho, p. 151). De acordo com a etimologia, “penitência” deriva do
latim poenitentìa,ae e apresenta como um dos seus significados, “arrependimento”.
114
“Pecado” tem sua origem no latim peccátum,i 'falta, culpa, delito, crime'; e “remissão”,
do latim remissìo,ónis 'ação de pôr a caminho de novo’. Sob esse ponto de vista, uma
leitura possível para o recorte é que através do batismo de João, batismo de
arrependimento, os penitentes alcançavam a graça da remissão dos pecados e se
colocavam a caminho de novo. O novo caminho da Justiça vivida na Verdade presente
no fundo do coração da pessoa que aceita a proposta do Reino de Deus.
Acompanhando a leitura de Eu Venho, ficamos sabendo que Jesus pede a João:
“Batiza-me” (p. 151). A voz do personagem provoca uma “quebra de ordem”, porque o
povo não entendia o que ouvia João dizer: “— Sou eu que devo ser batizado por ti e tu
vens a mim?” (Eu Venho, p. 151; Mt 3, 14). Nesse contexto podemos considerar dois
paradigmas antagônicos: aquele construído pelo povo, e outro construído por João. Para
o povo, João é o profeta que anuncia a proximidade do Reino de Deus, perdoa os
pecados — João seria, então, o Messias (cf. Jo 1, 19-21). Para João, Jesus é aquele a
quem ele anunciava em suas pregações, para quem ele preparava o caminho — Jesus é,
portanto, o Messias. Por isso “havia um escândalo mudo nos poucos que puderam
captar, levadas pelo vento, as palavras de João” (Eu Venho, p. 151). E questionavam
“quem era aquele a quem o profeta desatava as sandálias” e “se dobrava (diante de) um
homem desconhecido de todos” (Eu Venho, p. 150-151). “Desatar as sandálias” e
“dobrar-se diante de” são índices da humildade de João. Para o povo houve uma
inversão no paradigma, já que era diante de João que os peregrinos se dobravam e
diante de quem Jesus deveria dobrar-se também. Apontamos a oposição de sentidos
presente no sintagma “escândalo mudo”, respectivamente substantivo e adjetivo que se
articulam no objeto direto, complemento do verbo haver, impessoal. “Escândalo” é
núcleo do objeto direto, e “mudo”, qualifica “escândalo”, funcionando como seu
adjunto adnominal. Um dos significados para “escândalo” é ‘ato que envolve desordem,
tumulto’, cuja possibilidade de leitura é uma agitação barulhenta. Por outro lado, um
dos significados da palavra “mudo” é ‘que não emite som’. Atesta a oposição a leitura
de acordo com os significados apresentados, qual seja “escândalo mudo”: desordem, ou
agitação barulhenta que não emite som.
Apontamos ainda o sentido implícito gerado por essa oposição. A palavra
“escândalo” remete à “quebra de ordem” que surpreendeu o povo, a qual eles não
entendiam e, porque não entendiam, não aceitavam. A palavra “mudo” remete ao
respeito, à reverência do povo em relação a João, para eles o profeta que perdoava seus
pecados. Por mais que se escandalizassem com o fato, não poderiam expressá-lo em alta
115
voz, por reverência. Além desse dado, vemos o verbo “batizar” no modo imperativo,
seguido do pronome oblíquo “me”, objeto direto da oração. No espaço da enunciação, o
objeto direto refere-se a Jesus-personagem, que ganha voz e se dirige a João: “Batiza-
me” (Eu Venho, p.151). A autoridade de Jesus sobre João é confirmada pelo modo
imperativo do verbo “batizar”. Essa frase dita por Jesus em Eu Venho é apresentada nos
evangelhos pela voz do narrador (cf. Mc 1, 9; Lc 3, 21).
“Que se Cumpra toda Justiça”, é o título do capítulo XXXVII, e esse mesmo
enunciado se repete na narrativa, pela voz de Jesus que se dirigia a João, que se negava
a batizá-lo.
Esclarece o romance que, para os homens piedosos, “cumprir a justiça” significa
fazer a vontade de Deus. Porque João vivia a piedade, não opôs resistência e,
humildemente, batizou Jesus nas águas do Rio Jordão (cf. Eu Venho, p. 152; cf. Mt 3,
15-17; Mc 1, 10-11; Lc 3, 21-22; Jo 1, 32-34). A etimologia de “piedade” confirma o
sentido da palavra como é usada no texto: provém do latim piètas,átis 'cumprimento do
dever, virtude, justiça, fidelidade; piedade (para com os deuses e familiares), culto,
devoção'.
Importa destacar a reescritura que o texto do romance apresenta da cena bíblica do
Batismo de Jesus, do qual fazemos o seguinte recorte:
Deslizei em seguida para a água, levado pelas mãos dos discípulos.
João veio a mim com uma grande concha posta em sua mão direita.
Então cobriu-me o rosto e os ombros d’água (...) De súbito as nuvens
se separaram e um meio relâmpago perpassou, seguido de um trovejar
cadenciado, que João interpretou para todo povo: “Este é meu filho
muito querido no qual tenho posto a minha complacência. André e
Simão apontavam trêmulos para o alto. Um havia, visto a própria mão
do Senhor, flutuando sobre minha testa. Outro dizia que não era a
palma do Senhor, era uma pomba de luz que resplandecia sobre meus
cabelos. (Eu Venho, p. 152)
O batismo de Jesus apresentado no NT deve ser lido de acordo com o contexto do
AT, porque se trata da confirmação e da proclamação da vocação messiânica de Jesus.
A voz que teria sido ouvida faz alusão a um salmo messiânico (Sl 2, 7), que deixa claro
ser um messianismo de serviço, pois menciona também o “Servo de Yahweh” (Is 42, 1).
Jesus foi batizado junto com o povo na condição de “um homem desconhecido de
todos” (Eu Venho, p.151), porque como servo é solidário ao povo pecador. O Espírito
que repousa sobre Jesus é representado nos evangelhos em forma de “pomba”, símbolo
116
da paz e da reconciliação. Indica também o Espírito que guiará Jesus por toda sua
missão. No contexto histórico da vida de Jesus, essa é a primeira vez que sua divindade
é manifestada publicamente. Os “céus abertos” (Mc 1, 10) é uma expressão usada no
AT, cujo significado é Yahweh se comunica, “e revela que esse Jesus, perdido na
multidão, é o Esperado, o Messias, mas o Messias servidor” (cf. Rubio, 2002, p. 28-29).
Os penitentes, assustados, ainda ouviram João exclamar sobre Jesus: “Eis o cordeiro de
Deus que tira os pecados do mundo” (Eu Venho, p. 152; Jo 1, 29).
O nome do profeta precursor do Messias era “João”. Entretanto, ele se revelou
publicamente através do batismo de conversão que levava ao povo e, portanto, ficou
conhecido já em seu tempo como João, chamado o Batista (Eu Venho, p. 162). Em
seguida, João, o Batista (Eu Venho, p. 169). O substantivo comum “batista”, do latim
eclesiástico baptista,ae ‘o que imerge, o que batiza’, é um aposto explicativo de “João”,
substantivo próprio. “Batista” acabou sendo agregado ao nome próprio e perdendo a
função de aposto ao longo do tempo. No final do capítulo XXXVII, ele é designado por
“João Batista” (Eu Venho, p. 153). Mais adiante a voz do narrador refere-se a ele apenas
por “Batista” (Eu Venho, p. 165) que por metonímia passou a designar João, aquele cuja
função era batizar, ou seja, “Batista”. Os evangelhos tamm o reconhecem como João
Batista (cf. Lc 7, 20).
A narrativa bíblica e a narrativa ficcional apresentam Jesus cheio do Espírito
Santo, sendo conduzido ao deserto, após o batismo, para ser tentado pelo demônio.
Assim declara a Bíblia: “E logo o Espírito o impeliu para o deserto” (Mc 1, 12). No
entanto, em Eu Venho, a ação do Espírito sobre Jesus e o caminho por ele percorrido até
o deserto são descritos em dois parágrafos distribuídos em vinte e sete linhas. A palavra
“Deserto”, escrita com letra maiúscula, indica a personificação desse espaço geográfico,
o que se justifica pela existência de cada ser que ali vivia e ali morria, porque aquele
lugar estava cheio de vida e cheio de morte; lugar do encontro com o “bem”, com o
“mal”, e do encontro de cada pessoa com seu próprio interior. Destacamos de Eu Venho
(p. 153) esses dois campos semânticos para “deserto”. Para o “bem”, apontamos:
“tempo de iluminados”, “Moisés”, “Davi”, “Elias”, “revelações”, “coração abrasado”,
“sopro do nosso Pai”. No campo semântico de “mal” apontamos: “desolação”,
“espíritos malignos”, “precipícios”, “canto lúgubre”, “frio de morte”, “vento castigando
as pedras”, “prova das almas”.
Vejamos agora como podemos entender o encontro de Jesus consigo mesmo. A
palavra “solidão”, repetida três vezes no último parágrafo (cf. Eu Venho, p. 153),
117
transita nos dois campos semânticos, o do “bem” e o do “mal”. A “solidão” em si traz
sentimentos dolorosos, porém é um estado necessário para chegar-se ao encontro
verdadeiro e mais íntimo consigo mesmo e com Deus. Diz Eva Pierrakos:
Não podemos alcançar esse estágio sem a capacidade de aquietar
nossa mente exterior. Este é outro passo em direção ao desconhecido,
ao encontro de uma sensação temporária de vazio interior. A
recompensa por tomar essa decisão é (...) entrar em contato com a voz
de Deus dentro de nós. (p. 232)
Esse caminho de solidão que leva ao vazio, ao encontro consigo mesmo e com
Deus, o Messias então viveria, porque o tempo da espera havia acabado.
O capítulo XXXVIII, “Em Qualquer Caverna Solitária”, narra em 32 parágrafos a
“Tentação no Deserto”, encontrada no evangelho de Mateus 4, 1-11, e no de Lucas 4, 1-
13. Essa passagem não se encontra no evangelho de João. O texto em Marcos afirma
que houve a tentação, mas não descreve a cena, e tampouco o conteúdo da tentação. O
romance é a reescritura dos fatos narrados nos evangelhos, dos quais destacamos: Jesus
foi levado ao deserto pelo Espírito Santo; Jesus foi tentado pelo demônio; por quarenta
dias ele jejuou; o demônio tentou Jesus para que ele transformasse as pedras em pão;
Jesus foi tentado a lançar-se do topo do templo para alcançar a glória; Jesus foi tentado
a adorar o demônio, para que recebesse em troca, todos os bens materiais; Jesus esteve
na companhia dos animais selvagens; Jesus venceu a tentação e os anjos o serviram.
O tema desse evangelho no NT é legitimado pelo AT, “mais precisamente as
tentações experimentadas no deserto pelo povo de Israel” (Rubio, p. 30). Com fome e
com sede, o povo lamentou e acabou pondo Yahweh à prova, caindo na idolatria.
Provação semelhante Jesus iria viver, mas será vitorioso contra o poder do mal. Aqui
entendemos o demônio como a personificação do mal.
A narrativa do primeiro parágrafo desse capítulo afirma que, após o batismo, a
força do Espírito levara Jesus ao deserto onde se encontraria com o demônio. A voz do
narrador revela a presença do Espírito Santo pela metáfora do vento: “a palavra santa do
Espírito através das vozes do vento” (p. 154), cujo sentido é confirmado na Bíblia (cf,
At 2, 1-4). Nesse recorte os nomes que se referem ao demônio são: “Inominável”, “anjo
perverso”, “tombado”, “infiel”.
Conforme afirmamos anteriormente, a continuação da leitura mostra o encontro
profundo que Jesus fez com Deus, pois ele se “entregava ao Pai numa comunhão tão
grande como ainda não havia experimentado” (Eu Venho, p. 154). Destacamos a palavra
118
“comunhão”, do latim communio,ónis 'comunidade, associação, sociedade’. Trata-se de
algo além de uma simples união, ou seja, uma identificação, uma sintonia de
sentimentos, de modo de pensar, agir ou sentir. Essa perfeita comunhão entre o Pai e o
Filho — e também o Espírito Santo — forma uma “comunidade” da qual participam
três pessoas que são apenas uma. Estamos falando sobre o mistério da Santíssima
Trindade. O significado litúrgico de “comunhão” é o mistério da sagrada eucaristia. A
esses dois mistérios dedicaremos mais atenção e estudo no Memorial do Cristo II.
Jesus-narrador revela ainda sobre sua comunhão com o Pai: “Mais dias rolaram em que
me entregava por inteiro à mão direita de meu Pai”, cujo sentido do enunciado encontra
legitimidade no AT, onde lemos: “Minha alma está unida a vós, sustenta-me a vossa
destra” (Sl 62, 9).
Segundo os evangelhos, Jesus permaneceu no deserto por quarenta dias (cf. Mt 4,
2). O mesmo tempo é objetivamente afirmado em Eu Venho: “Era o dia quarenta” (p.
161). Observamos, porém, implícitos do texto em relação ao tempo que não determinam
o período exato em que Jesus esteve no deserto. Citemos alguns deles: “habitaria o
tempo necessário” (p. 154); “mais dias rolaram” (p. 156); “chegou a penúltima entre as
noites repetidas que passei no deserto” (p. 159). Por fim, fazemos o recorte de um
trecho cuja prosa lírica aponta não só a subjetividade em relação ao tempo, mas também
aponta Jesus como verdadeiro homem, vivendo na história: Vejamos: “E o tempo
andava; aquele tempo bem humano a que meu corpo se afeiçoara durante anos e anos e
pelas vezes tantas em que via a luz descair, cuidei que já eram passados muitos e muitos
dias, muitas e muitas noites” (p. 155).
Durante o tempo em que esteve no deserto, Jesus jejuou, e teve fome (cf. Mt 4, 2),
situação assim narrada no romance: “E pela madrugada, deitado estava em meu sítio,
ela (a fome) veio gritando sua insistência, exigindo do meu corpo que a saciasse (...) a
sede e a fome me consumiam” (Eu Venho, p. 155). Foi durante esse estado de fraqueza
corporal que o demônio se aproximou dele (cf. Mt 4, 3). O texto paralelo em Eu Venho
narra que o demônio vinha da direção do “Mar Salgado”, como uma “bola de fogo”,
“antes do raiar do sol”. Pela presença desses três elementos que se referem ao demônio
produz-se um campo semântico que remete àquilo que consome, à “morte”, ou seja, o
fogo que devasta, a ausência de luz e, alia-se a essa significação, a referência ao “Mar
Salgado”, chamado “Mar Morto”, devido à elevada quantidade de sal que contém,
tornando impossível qualquer forma de vida em suas águas.
Os evangelhos narram as três tentações pelas quais passou Jesus. Segundo Rubio,
119
“os textos não se referem propriamente a três tentações, como em geral se diz, mas
apresentam o desdobramento de uma única tentação fundamental: que Jesus deixe de
lado o messianismo de serviço e assuma outro mais eficaz” (Rubio, 2002, p. 30-31). O
texto do romance narra as “três tentações” de forma intertextual à Bíblia, porém
acrescido de situações e fatos relativos ao fazer literário. Acrescenta também, de forma
objetiva, a intenção do demônio em fazer Jesus trocar seu messianismo de amor-serviço,
pelo caminho do poder e da glória, para reinar sobre o mundo, abandonando dessa
forma o projeto do Pai, de salvar a humanidade através do amor, da justiça e da paz. A
locução das tentações nos evangelhos é feita por Lúcifer que se dirige a Jesus, seu
interlocutor. A linguagem bíblica apresenta um discurso autoritário do demônio em
relação a Jesus (cf. Mt 4, 3. 6. 9), ao passo que o romance, embora mantenha Lúcifer
como enunciador, revela no discurso a astúcia do demônio que tentava seduzir Jesus
pela sutileza da persuasão, como será exposto a seguir.
A figura do “inominável” ganha forma, como mostra a voz do narrador no
segundo parágrafo de Eu Venho: “E fixando-o, ao mesmo Inominável, vi que tinha
tomado minha própria aparência (...) Mas era minha figura antes daqueles dias de sede e
fome, repousada e nova” (p. 155). Tomar a própria aparência de Jesus é metáfora do
encontro que ele terá de fazer consigo mesmo, com a revelação da natureza intrínseca
ao homem sujeito ao pecado. Mas não Jesus. O Filho de Deus feito homem é igual a nós
em tudo, menos no pecado (cf. 2 Cor 5, 21). Jesus é metáfora da vitória do homem
espiritual, filho de Deus, sobre o homem carnal, sujeito ao pecado (cf. Rm 8, 9-14).
Os nomes atribuídos ao demônio nesse parágrafo são: “Burlador”, “Inominável”.
O demônio tentava confunfir Jesus, apresentando “razões muito próprias de
pessoas bondosas”, como esta: “Se és filho do Senhor, se és o verdadeiro Messias,
poupa tua saúde para a missão que te foi confiada”. E acrescenta a narrativa que o
demônio “sorria de forma piedosa, como os adultos fazem com os pequeninos” (Eu
Venho, p. 155). Esses recortes referem-se à primeira prova, aquela em que Jesus foi
tentado a saciar sua fome transformando as pedras em pão, cujo conteúdo subentendido
no evangelho é revelado no romance, qual seja provar ser verdadeiramente o Filho de
Deus. Assim é narrado em Eu Venho: “(O) anjo perverso, tombado e infiel, cioso de
saber, na fome que o invadia, se eu era aquele a quem no momento do batismo baixou a
mensagem: ‘Este é meu filho muito querido no qual tenho posto a minha
complacência’” (Eu Venho, p. 152; Mt 3, 17). A resposta de Jesus dirigida a Satanás
foi: “Nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt
120
4, 4; Lc 4, 4) (Eu Venho, p. 156). Essa afirmação encontra sua fundamentação no AT,
no Deuteronômio 8, 3.
Agindo ainda com muita astúcia, o demônio é apresentado no capítulo com a
aparência do Mestre dos penitentes, tentando seduzir Jesus a revestir-se de honra e
glória: “O Messias deve ser mostrado em toda sua glória. Os penitentes saíram de sua
casa, pela primeira vez, para honrar a visão do Messias, pois eles também ficaram
sabendo que serás o Rei de Israel” (Eu Venho, p. 156-157). Esse recorte corresponde à
segunda prova, aquela em que Jesus foi tentado a lançar-se do alto do templo para que
os anjos o socorressem (cf. Mt 4, 6-7). Jesus respondeu a Satanás: “Não tentarás o
Senhor teu Deus” (Eu Venho, p. 158; Mt 4, 7; Lc 4, 12). O conteúdo subentendido no
texto dos evangelhos, qual seja testar o poder de Deus, é claro no romance, e sua
fundamentação encontra-se no AT, no Deuteronômio 6, 16. No romance revela-se o
conteúdo subentendido no texto bíblico:
Não fora o trevoso um anjo decaído, sabendo tentar através dos livros
de meu Pai, e o que lhe dissera não faria algum efeito; o que desejava
de mim era vão orgulho e ostentação, a falta de confiança em Deus,
em seu amor, invocando-o a meu proveito. Se o Esperado
manifestasse poder repentino e daquele lugar sua palavra trovejasse
anunciando a libertaçãode Israel, para depois atirar-se do pináculo do
Templo, o Senhor não seria premido pela oração. Não viria acudir a
um perigo de vida, mas temerariamente seria eu, falto de toda razão,
posto a tentar sua providência. (Eu Jesus, p. 158)
Nesse contexto da segunda tentação são epítetos do maligno: “anjo separado de
Deus”, “Tentador”, “Inominável”, “Trevoso”, “anjo decaído”, “Demônio”.
Acrescente-se ainda que, ao olhar do alto do templo, Jesus via Tiago sangrando à
beira-rio, despencado de cima, e não ele mesmo (Eu Venho, p. 157). Uma nota da autora
esclarece que “muitos anos depois Tiago seria atirado desse mesmo lugar” (Eu Venho,
p. 157).
Continuando a leitura vemos que Jesus ordenou ao demônio que o levasse de
volta à caverna e, entrando depois em uma furna, deixou-se estar em proximidade a
vários animais. Outra nota da autora propõe haver “uma analogia entre esse versículo de
Marcos e a expressão de São Francisco e seus irmãos menores” (p. 158). Diz o
evangelho: “(...) e (Jesus) esteve em companhia dos animais selvagens (...)” (Mc 1, 13).
Esse trecho é reescrito no romance em três parágrafos, distribuídos em setenta e três
linhas.
No texto literário é feita a crítica aos evangelhos pela voz de Jesus-narrador,
121
quando afirma que essa passagem de sua vida “foi escrita de maneira muito breve” (Eu
Venho, p. 160). O recorte a seguir narra a sensibilidade de Jesus em relação a essas
criaturas de Deus, porque “as feras tiveram a mesma nascença do pó do qual veio o
homem” (Eu Venho, p. 158). A elas Jesus deu nomes próprios e justificou essa atitude
dizendo que muitos de sua terra punham em seus filhos nomes de animais. Assim, ele
ali poderia encontrar a Lia, o antílope, Raquel, a ovelha, Débora, a abelha, Laís, o leão,
Shu’al, a raposa, Afã, o falcão do deserto (cf. Eu Venho, p. 159). Esses nomes são a
tradução do hebraico, já que “Débora” significa “abelha”, “Raquel” é “ovelha”, “Lia”,
“de olhos tristes”. Em grego, Laís significa “democrático”.
No décimo quarto parágrafo, Jesus-narrador faz uma advertência ao seu
interlocutor, o leitor, que muitas vezes considera “fantasia” a verdade de suas palavras.
Interessa apontar a pergunta retórica que o enunciado apresenta: “Seriam verdadeiros
esses animais?” (Eu Venho, p. 158). A resposta encontra-se logo adiante, quando o
narrador declara que “suas presenças não seriam tomadas como delírio de uma fome”
porque Jesus vencera a fome “através da prática do jejum constante” (Eu Venho, p 158).
O quadro mostrado na narrativa é uma representação simbólica do salmo de Isaías 65,
25, cujo título é “A Nova Criação”, que fala sobre o ideal da paz no mundo.
Acrescenta a narrativa que, “num tempo muito longínquo, homens viveriam como
eu, entre animais, e os abençoariam, dando-lhes nomes que lhes seriam gratos a seus
instintos que os reconhecem os amigos” (Eu Venho, p. 159). O recorte é uma reescritura
do salmo de Isaías, “Paz messiânica”, que canta a paz universal e definitiva, um novo
paraíso que há de ser conquistado por Jesus, como lemos no recorte: “Então o lobo será
hóspede do cordeiro (...) o touro e o leão comerão juntos (...) A criança de peito brincará
junto à toca da víbora (...) Não se fará mal nem dano em todo o meu santo monte,
porque a terra estará cheia de ciência do Senhor (...)” (Is 11).
Acrescenta a narrativa que Jesus vivia um sentimento de aconchego e amor entre
aqueles companheiros, os animais. Ele diz: “O primeiro passo que tive, quase
desconhecido de vós, nas veredas do grande amor que eu deveria abrir em nome de meu
Pai” (Eu Venho, p. 159). Sobre o amor, tantas vezes vivido e pregado por Jesus,
ouviremos a sua voz que mais tarde proclamará ao povo: “Como o Pai me ama, assim
também eu vos amo. Perseverai no meu amor” (Jo 15, 9).
Em meio a esse clima de harmonia e paz, contrasta a presença do Tentador que
voltava para provar Jesus pela terceira vez. Tinha novamente a aparência de Jesus,
porém coberto de todas as “magnificências”. A palavra “magnificência” tem origem no
122
latim magnificentia,ae 'magnificência, esplendor, grandeza', cujo significado implica
‘ser imponente pela sua grandiosidade, pelo seu esplendor e beleza’. Acrescenta a
narrativa que “trazia um luzeiro na mão, pois que era chamado Lúcifer”. O significado
explica a similaridade entre as palavras “Lúcifer” e “luzeiro”. “Lúcifer”, do latim
lucìfer,èri 'o chefe dos demônios', é aquele que carrega a luz; portador de luz, e
“luzeiro”, é o que irradia luz. O demônio veio oferecer a Jesus os reinos do mundo com
todo seu esplendor, se em troca Jesus o adorasse (cf. Mt 4, 8-9). Como podemos ver, o
texto bíblico narra a tentação em dois versículos. Essa narrativa no romance se estende
do final do vigésimo quinto parágrafo até o trigésimo sexto.
Entre os apelos materiais criados pelo demônio para tentar Jesus está o sexo
experimentado como pecado. O enunciado apresenta em discurso indireto a proposta do
demônio através da voz de Jesus-narrador, o qual repete o que demônio dizia “que eu
deveria pecar para conhecer o valor do pecado, que se era verdadeiramente um homem
teria de saber provar como são as mulheres” (Eu Venho, p. 160). Esclarecemos que este
recorte não é intertextual à Bíblia, embora através dele o enunciado reafirme a santidade
de Jesus vivida na castidade. Acrescentamos a significação dessa palavra, confirmada
pela sua etimologia. Assim, teremos “castidade”, do latim castìtas,átis 'castidade,
pureza de costumes, integridade'. Jesus rejeitou as prescrições de seu tempo sobre o
puro e o impuro em relação ao sexo (cf. Rubio, 2001, 481) e acrescentou que o que
torna um homem puro ou impuro é o que brota de seu coração (cf. Mc 7, 20-23). Diante
da tentação vivida por Jesus naquele momento, ele dá o testemunho de que o homem é
capaz de viver a pureza e a integridade segundo o amor-fidelidade a Deus.
Os evangelhos deixam subentendido o sentido dessa tentação, qual seja a de que
Jesus abandonasse seu messianismo de serviço e assumisse um poder dominador,
supostamente um instrumento mais eficaz do que o vivido no serviço. Esse sentido é
claro em Eu Venho pelas marcas; “dominarás todos os povos”, “os gentios te
reconhecerão”, “teu reino será alargado”, “Imporás (...) a tua religião”, se em troca, de
joelhos, Jesus o adorasse (p. 160). E Jesus respondeu; “Para trás, Satanás! (...) Está
escrito que ao Senhor teu Deus adorarás e só a Ele servirás!” (Eu Venho, p. 161). O
texto do romance é intertextual à Bíblia, como podemos ver em Mateus 4, 19. O NT
torna legítimo esse discurso, buscando fundamentação no AT, no Deuteronômio 6, 13.
Finaliza o capítulo a informação de que “era o dia quarenta” e que, tendo o
demônio deixado Jesus, os anjos cuidaram de suas feridas. O texto bíblico narra essa
passagem em um versículo (cf, Mt 4, 11). O trigésimo sexto parágrafo do romance
123
estende a narrativa a 15 linhas, finalizando o capítulo. A imagem dos anjos servindo
Jesus e dos animais selvagens convivendo em harmonia são metáforas que deixam ver
que Jesus, sendo verdadeiramente homem, superou a provação à qual foi submetido (Hb
2,18) e continuou vivendo em comunhão com o Pai (cf. Rubio, 2002, p.30).
O título do capítulo XXXIX, “Que ele cresça e eu desapareça”, é constituído por
um período optativo composto por duas orações. Na primeira oração, o pronome pessoal
“ele”, sujeito do verbo “crescer”, refere-se a Jesus no espaço a enunciação. Na segunda
oração, o pronome pessoal “eu”, sujeito do verbo desaparecer, refere-se a João Batista.
Lembramos que o verbo “desaparecer”, quando intransitivo, pode ser usado como
sinônimo de morrer, sentido implícito que traz o título desse capítulo, que diz respeito à
morte de João e à revelação de Jesus como verdadeiro Messias.
Destacamos passagens da narrativa intertextuais ao texto bíblico. São elas: João
deu testemunho de Jesus; os primeiros discípulos de Jesus; dissensão entre os discípulos
de João; Jesus falou de suas obras; Jesus apresentou João; Herodes Antipas ouvia as
pregações de João; Herodes mandou prender João; o ódio de Herodíades por João; a
promessa a Salomé; Herodes mandou decapitar João por interferência de Herodíades.
O enunciado repete no romance a proclamação de João sobre Jesus: “Eis aí o
cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo” (Eu Venho, p. 163; Jo, 1, 29), e João
dava ao povo o testemunho de que Jesus é o Filho de Deus (cf. Jo 1, 30-34). João
proclamou esse anúncio no contexto do batismo de Jesus.
No décimo quinto parágrafo, o “Cordeiro de Deus” é apresentado como
metonímia dos “cordeiros” imolados a cada dia no “Templo de Jerusalém” (Eu Venho,
p. 163), e como índice do sacrifício da paixão e morte de Jesus, anunciado no AT por
Isaías. Lemos em Eu Venho: “Cordeiro que se leva à morte pelos crimes dos outros” (cf.
Is 53, 4-7) (p. 163).
Embora Jesus fosse anunciado por João como o Filho de Deus, seus discípulos “já
haviam aprendido a muito amar João Batista” (Eu Venho, p. 163). Apenas três seguiram
Jesus por obediência a João: André, Simão e “um jovem ainda imberbe” (Eu Venho, p.
163).
O enunciado faz referência aos discípulos que seriam chamados por Jesus, “pois
eram os primeiros a chegar entre aqueles que um dia a meu lado representariam as doze
tribos de Israel” (Eu Venho, p. 164). Lemos no AT que os israelitas foram divididos em
doze tribos de acordo com as suas famílias (Gn 49, 1-28). Esse número é simbólico na
Bíblia, assim como outros também o são, dentre eles os números três, sete e quarenta,
124
várias vezes mencionados nos textos bíblicos.
A pergunta feita pelos discípulos ao encontrarem Jesus, “rabi, dize-nos onde é tua
morada?” (Eu Venho, p. 164), é intertextual à Bíblia (Jo 1, 38). Porém, no texto do
evangelho, a resposta de Jesus é: “Vinde e vede” (Jo 1, 39). No romance a resposta é
dada através de um desenrolar da história que descreve em quatro parágrafos a morada
do Mestre e o encontro de que podem partilhar aqueles que são verdadeiros amigos,
pois “foram aonde ele morava e ficaram com ele aquele dia” (Jo 1, 39). Destacamos um
recorte que confirma a presença de João, o evangelista, entre eles:
Uma luz a chamar também um outro João, muito mais jovem que o
profeta, tão reservado, que ouvia e calava, registrando ávido, palavras
de memória. Mais tarde seriam postas diante de vós, que conheceis
um tanto de minha vida. (Eu Venho, p. 164)
As marcas de sua presença são: “muito mais jovem”, “ouvia e calava”,
“registrando (...) palavras” (...) “de minha vida”. João, o evangelista, presente entre os
discípulos de Jesus, o mais jovem dentre todos.
No capítulo XXXVII, vemos a participação entre os discípulos de João Batista,
de um personagem sobre o qual Jesus mostrou interesse e sobre quem coube a seguinte
pergunta: “Quem é esse que leva a oferenda a João?” O recorte que fazemos nesse
capítulo responde à indagação sobre a identidade do jovem: João, o evangelista, “um
jovem ainda imberbe” (Eu Venho, p. 163) junto com Simão e André. Essa narrativa,
como está no romance, é acréscimo feito pelo texto literário, embora o encontro de João
com Jesus esteja relatado no evangelho de João — e apenas neste (cf. Jo 1, 40).
Naquela época, Jesus começava suas pregações, e os discípulos de João não
entendiam ainda a proposta de Jesus. Por isso havia dissensão entre eles, pois desejavam
continuar seguindo uma conduta de penitências semelhante à de João. Estavam confusos
e eram mandados por João a Jesus, para que esclarecesse suas dúvidas. Perguntaram-
lhe: “Como pode ser isto? Se nós jejuamos à sombra dos ensinamentos de João, e os
teus não jejuam?” (Eu Venho, p. 165; Mt 9, 14). O enunciado repete a locução dirigida
aos discípulos de João: “Aquele que tem a esposa é o esposo” (Eu Venho, p. 165; Jo 3,
29). No romance, essa é uma locução feita por Jesus e, na Bíblia, por João, transferência
que transgride a intertextualidade, sem contudo quebrar o paradigma. Vejamos: na
seqüência do evangelho, João diz as últimas palavras desse evangelho, que são: “Que
ele cresça e eu desapareça” (Jo 3, 30). Essas palavras não são reproduzidas nesse recorte
125
do romance, porém o sentido metafórico é de que Jesus assumirá a missão, ele como o
esposo, ela como a esposa. Quem tem a missão é Jesus, porque é ele o Messias, e não
João, como ele mesmo afirmou aos discípulos (cf. Jo 3, 27-29). Da mesma forma em Eu
Venho, Jesus é colocado no lugar do noivo e a missão no lugar da noiva, como explica o
recorte: “João observava minha missão como verbo de Deus (...) e (a) representava para
seus seguidores ‘ornada como uma esposa para seu esposo’” (p. 165). A relação nupcial
é símbolo da aliança de Deus com seu povo. É a união íntima de Cristo com o novo
povo que nascia, a Igreja de Cristo (Rubio, 2001, p. 482; cf. Ef 5, 21-33).
A narrativa quebra a seqüência cronológica do romance e avança no tempo,
situando o discurso na época em que João foi posto no cárcere. O enunciado que
introduz essa quebra é o seguinte: “O amor é forte como a morte” (Ct 8, 6), mais um
índice da morte de João. A antítese apresentada no recorte aponta para a força que
tornava João capaz de enfrentar a morte, vinha do seu grande amor a Jesus que também
“amava João desde os confins da infância e desde antes dela” (Eu Venho, p. 164). Da
prisão, João enviou alguns dos seus seguidores para perguntarem a Jesus: “Sois vós
aquele que deve vir, ou devemos esperar por outro?” (Mt 11, 3). A pergunta transcrita
do evangelho não está formulada explicitamente no romance. O enunciador pressupõe
um conhecimento do leitor em relação ao arquétipo, incorporando a pergunta à narrativa
do romance, para que o leitor conclua o que está sendo posto diante dele. A resposta no
romance é a transcrição do evangelho de Mateus 11, 2-6, e de Lucas 7, 18-23, em que o
personagem não diz quem era, mas fala das obras que realizava. Jesus dá testemunho de
si mesmo “— Contareis a João o que ouvis e vedes —“ (Eu Venho, p. 165; Mt 11, 4; Lc
7, 22).
A seqüência do romance, bem como a seqüência dos evangelhos, narra a
apresentação que Jesus faz de João (cf. Eu Venho, p. 165-166; cf. Mt 11, 7-11; Lc 7, 24-
28). Pela voz do enunciador sabemos também como foi difícil o início de suas
pregações, tendo de provar o “amargor dos que provinham de João Batista” (Eu Venho,
p 164). João era um grande líder religioso entre os judeus, que respeitavam sua
autoridade de profeta e chegavam mesmo a pensar que ele seria o Esperado, aquele que
ocuparia o trono de Davi, mas João sabia que sua missão era abrir o caminho para o
Messias. E o texto do romance repete o título, entre aspas, completando a frase bíblica,
que confirma a certeza de João: “É preciso que ele cresça e eu desapareça” (Jo 3, 30)
(Eu Venho, p. 166). Como dissemos anteriormente, esse enunciado diz respeito à morte
de João e à revelação de Jesus. Diz o texto que “Ele corria para seu final com a mesma
126
impetuosidade de sempre” (Eu Venho, p. 166).
Caminhando na História para o final da vida de João Batista, Herodes Antipas
manda prenderem-no porque João anunciava publicamente seu casamento ilegítimo
com Herodíades (cf. Mt 14, 4). A narrativa da morte de João encontra-se no evangelho
de Mateus 14, 1-12, em Marcos 6, 14-29, em Lucas 3, 19-20; 9, 7-9. No romance o fato
é narrado em sete parágrafos.
Consideremos as marcas que revelam o sentimento de Herodes em relação a João:
“sentimento muito misterioso”, “ele o temia”, “no segredo de sua alma o protegia”, “tão
obsessiva a figura de João (Eu Venho, p. 166). São as seguintes marcas que apontam
para a figura de Herodíades, mulher de Herodes: “ambiciosa”, “adúltera”, “cobiça”,
“fera” (Eu Venho, p. 166). Diz o texto que Herodes era inseguro, “dividido entre aquilo
que admira e tudo que pretende”. Embora admirasse João, sua pretensão de poder era
insuflada por Herodíades. Ela instigou a filha a pedir a cabeça de João Batista a Herodes
que, empolgado com sua dança, a ela prometera qualquer coisa que quisesse, e lhe
disse: “darei, ainda que seja a metade de meu reino” (Mc 6, 23) (Eu Venho, p. 166). E
João foi degolado no cárcere.
Conta ainda o romance, pela voz de Jesus-narrador, que João o precedeu na vida e
no sacrifício da morte, cujo índice está presente, no capítulo XXXVII, página 150, na
metáfora por nós já estudada, que mostra “(João) como uma cruz viva que falasse, os
braços abertos clamando: — o Reino dos Céus está próximo” (Eu Venho, p.150). O
mesmo Reino que ele já conquistara e no qual acabava de entrar.
A seguir lemos que Jesus voltava à Galiléia com seus novos discípulos. O tempo é
contado no romance pela passagem dos meses conforme os conhecia o povo judeu:
“Sebat”, que corresponde a janeiro-fevereiro, e “Adar”, a fevereiro-março, meses de
inverno frio e úmido; “Nisan”, corresponde a março-abril, mês em que principiava a
primavera, quando celebravam a Páscoa e Iyyar, a abril-maio, época em que eles
iniciaram a viagem. A respeito dos nomes dos meses, a autora inclui uma nota
explicativa ao final da página 168. Esses são os nomes babilônios dos meses, adotados
por influência de mais de quarenta anos passados no exílio na Macedônia (cf. Bíblia Ave
Maria, p. 1591).
Antes de narrar a viagem de volta, o início do segundo parágrafo recupera a
seqüência cronológica do romance interrompida no capítulo anterior, através das
lembranças do narrador que voltava ao ponto em que Jesus-personagem se encontrava
com André e Simão, junto ao Jordão, logo após o seu batismo. André, discípulo de
127
João, exclamava: “Encontramos o Messias” (Eu Venho, p. 168; Jo 1, 41). Acusamos
que, segundo a Bíblia do Peregrino, Simão não foi discípulo de João Batista; crer em
Jesus e apresentá-lo como Messias foi uma conquista de seu irmão André (cf. rodapé, p.
2549). Contudo, a narrativa ficcional apresentada é intertextual à Bíblia, mais
precisamente ao evangelho de João, capítulo 1, 35-51, cujo título é “Encontro com os
primeiros discípulos”. Dentre eles se encontram: André, Simão, Filipe e Natanael. No
romance, o título do capítulo XL se repete no enunciado, porque corresponde à pergunta
que Natanael fez a Filipe sobre Jesus, que diz: “De Nazaré Pode Sair Algo de Bom?”
(Jo 1, 46) (Eu Venho, p. 171).
Nesse contexto vemos que Jesus, sensível à presença dos novos discípulos,
descreve características de cada um. “Os irmãos pescadores”: André e Simão Bar-Jonas
a quem Jesus chamou de “Pedro, a minha pedra” (Eu Venho, p. 168), e no evangelho
Jesus diz: “Tu és Simão, filho de João; serás chamado Cefas (que quer dizer pedra)” (Jo
1, 42). Em sua etimologia “pedra” é uma palavra que tem origem no latim pètra,ae
'rocha, rochedo, penhasco, penedo; pedra', cujo masculino é “Pedro”. A expressão “Bar-
Jonas”, em aramaico, significa “filho de Jonas”, e não filho de João, portanto os
testemunhos são divergentes (cf. Schökel, rodapé, p. 2549). As marcas que apontam
para Pedro são: “iniciativa”, “ponderação”, “saúde”, “acostumado a ver longe”, “capaz”
e “simples” (Eu Venho, p. 168). André é descrito como aquele que “bem se punha em
longas cismas” (Eu Venho, p. 168). Acrescenta também a narrativa que ele cuidava de
Jesus “como não havia feito com o Batista” (Eu Venho, p. 169). João, filho de Zebedeu,
homem rico, tratava de fazer rolos de peles de carneiro, material usado para as
escrituras, “pequeno (...) não tinha barba ainda” (Eu Venho, p. 168). As características
de cada um manifestavam a missão que haveriam de ter no futuro.
Ainda no oitavo parágrafo a narrativa intertextual à Bíblia é interrompida, sendo
retomada no décimo sétimo parágrafo. O trecho que se afasta da linguagem fundadora,
tem como tema a família de Jesus em Nazaré. José ainda doente, vivendo da esperança
de rever Jesus; Maria, porque cuidava de José, quase desistiu de ir às bodas de Gamaliel
em Caná, mas José a reanimou, dizendo que lá encontraria Jesus (cf. Eu Venho, p. 169-
170). Apontamos a antítese presente no enunciado que narra a morte de João que
chegava a Nazaré como uma notícia terrível. Diz a voz do narrador que “as lendas que
dele se contavam eram tantas que os caminheiros ainda falavam do Batista, embora a
Voz do Deserto para sempre houvesse se calado” (Eu Venho, p. 170). Por metonímia a
“Voz do Deserto” ocupa o lugar de João, que em vida tanto clamava, mas porque morto,
128
havia se calado para sempre.
O texto do romance recupera a intertextualidade, quando Jesus e os discípulos já
estão em Betsaida, na Galiléia (Jo 1, 44). Há uma citação da frase bíblica relativa ao
chamado que Jesus fez a Filipe: “Acompanha-me” (Eu Venho, p. 170; Jo 1, 43). A
Bíblia não faz referência a algum conhecimento prévio entre Filipe e Jesus, mas a
narrativa em Eu Venho acrescenta: “Filipe que deveria ter ouvido de André e Pedro
muitas coisas sobre mim, deixou o trabalho que fazia (...) e, lesto, foi por onde eu
andasse”. (Eu Venho, p. 170).
Foi nesse contexto que Filipe comunicou a Natanael sobre o Messias. A fala de
Natanael, no vigésimo parágrafo, repete o título desse capítulo, que corresponde ao
evangelho de João 1, 46. Os quatorze parágrafos seguintes são intertextuais aos
versículos 47 a 51 desse mesmo capítulo do evangelho e relatam o encontro entre Jesus
e Natanael. Conforme afirmação de Jesus, Natanael é o verdadeiro Israel, em quem não
há falsidade (cf. Jo 1, 47). Natanael, tomado pela admiração, abriu os braços para Jesus
e exclamou: “Rabi, sois o filho de Deus, sois o Rei de Israel” (Eu Venho, p. 172; Jo 1,
49). O texto do NT busca legitimidade no AT, pois está implícita nesse recorte a
falsidade de “Jacó-Israel”, que traiu seu Irmão Isaú, para receber o direito à
primogenitura e a bênção de seu pai, Isaac (Gn 27, 36-37). Natanael então, recupera
esse verdadeiro Israel, e é Jesus mesmo lhe atribui essa virtude.
O romance deixa clara a revelação de que Jesus é o verdadeiro mediador, aquele
que abre definitivamente as portas do céu e o torna acessível a todas as pessoas (Eu
Venho, p. 172; cf. Jo 1, 51).
Por acréscimo, o enunciado refere-se aos discípulos como “testemunhas,
verdadeiros israelitas vindos com o sangue de Jacó” (Eu Venho, p. 172), pois eles
conheciam a história de Jacó, a quem Deus abençoou e mudou seu nome para Israel,
depois de ter com ele lutado, conforme estudamos no capítulo IV (cf. Gn 24-30).
Encerra o capítulo um parágrafo de duas linhas, destacado do texto, que traz a
informação de que três dias depois eles se encontravam em Caná “para as bodas
anunciadas por Maria” (Eu Venho, p. 172). Essa construção passiva tem como agente
“Maria” e emprega o adjetivo participial “anunciadas”, que denota ‘promover o
conhecimento ou a divulgação de algo’. Fazendo porém uma leitura implícita desse
enunciado de acordo com a situação do contexto, “anunciar” traz a conotação de
‘propiciar conhecimento do futuro, profetizar’. Deste modo, podemos dizer que “Maria
profetizou o acontecimento futuro das bodas em Caná”, ou como veremos no capítulo
129
XLI, abriu o caminho para o primeiro milagre de Jesus.
O capítulo XLI, “Quem Tem a Esposa é o Esposo”, narra as “Bodas de Caná”. O
romance apresenta essa passagem em 46 parágrafos intertextuais ao texto bíblico,
relatado apenas no evangelho de João 2, 1-12.
Destacamos os fatos apresentados no romance paralelos ao evangelho. São eles:
Jesus chegou à festa três dias depois; Maria já estava presente; os discípulos foram com
Jesus; Maria avisou a Jesus que faltou vinho; Maria alertou os servos; Jesus ordenou aos
servos que enchessem as talhas com água; Jesus transformou a água em vinho; a
surpresa causada pelo vinho bom; a confirmação desse primeiro milagre.
A frase bíblica “quem tem a esposa é o esposo” (Eu Venho, p. 173) é apresentada
nesse contexto em seu sentido denotativo, como pode ser comprovado pela pergunta
retórica feita pela voz do narrador: “Seria o jovem esposo já o senhor da bela
desposada?” (Eu Venho, p. 173). Em relação ao significado da palavra “senhor” temos
‘aquele que possui algo’, ou, como diacronismo antigo, ‘o marido em relação à esposa’.
Portanto, “senhor” nesse recorte revela a possibilidade da relação conjugal consumada
entre os esposos.
Importa destacar que, do segundo ao sexto parágrafo, o texto descreve o cuidado
que as amigas tinham com a noiva. São expressões que apontam para esse contexto:
“cobri-la com panos preciosos”, “gotas que os (os olhos) tornariam mais brilhantes”,
“nas pálpebras e sobrancelhas (...) pó muito preto”, “cor para avivar a face”,
“braceletes” , “colares”, “as unhas de cores muito vivas” (Eu Venho, p. 174-175),
cuidados que a tornariam mais bonita e atraente, reafirmando a conotação erótica.
No sexto parágrafo, o pedido de auxílio da jovem noiva deixa implícita a
santidade de Maria. Vejamos: “Maria, (...) ajuda-me, já não suporto mais o peso de
tantas coisas” (Eu Venho, p. 174). A produção desse discurso refere-se a um contexto
imediato, ligado ao momento da interlocução (cf. Orlandi, p. 161), no qual a “noiva”
ocupa o lugar do locutor, e “Maria”, do interlocutor; neste caso, “coisas” diz respeito a
todos os adornos que foram colocados sobre a personagem, que provocaram “peso”.
Tendo-se em vista o contexto mais amplo, aquele ligado à ideologia da fé cristã,
podemos considerar como sentido de “noiva”, o povo de Deus, e de “coisas” como as
dores e aflições das pessoas que pedem auxílio à “Maria”, Nossa Senhora, intercessora
capaz de aliviar o “peso”, muitas vezes insuportável, da “cruz” de cada um.
Em seguida, a narrativa faz referência a um vinho especial, pois “ninguém poderá
tocar no vinho que espera os noivos. Só no dia das bodas serão abertas estas jarras. É
130
bebida de muito respeitar” (Eu Venho, p. 174). Faz referência também à música trazida
à festa pelas “irmãs”, apresentadas no capítulo XXVII, que vinham de Magdala. A elas
prende-se um campo semântico do amor erótico, como mostra o recorte: “Ó desposado,
entrega-te à tua esposa, cujos olhos de amor desfalecem por ti (...) Ela se semelha à lua
que junto aos mirtos nupciais deixou suas vestes” (Eu Venho, p. 175). Traduzem
erotismo semelhante aos poemas do Cântico dos Cânticos (cf. Ct 4, 9). Esse contexto
reafirma o sentido denotativo de “esposa” e “esposo”, como estão sendo tratados nesse
capítulo. De Magdala vinha também Maria, apresentada nos parágrafos finais do
capítulo. O cão preto sob os pés de Jesus é o índice que aponta sua chegada. São
também marcas textuais que apontam para Maria de Magdala: “o ar (...) palpitou”, “bem
quente”, “a hora de maior calor”, “menina agressiva”, “Mal”, “formosa”, “força de sua
beleza” (Eu Venho, p. 178-179).
O texto do romance faz, a seguir, a revelação do senhorio de Jesus. Ele é revelado
como Senhor através do gesto e da palavra de Natanael, que o convidou para sentar-se
no centro da mesa — lugar de destaque — e o nomeou “Rabi” — em hebreu, rabbi
significa 'meu senhor, meu mestre'. Assim, Maria presenciou a confirmação do que há
tantos anos esperava no silêncio do segredo. Maria é simbolicamente a mãe do noivo,
que é Jesus, aquele que se assenta no lugar principal, e é chamado de “meu senhor” (cf.
Bíblia do Peregrino, rodapé, p. 2550). Confirma-se esse sentido quando ela coroa a
jovem desposada, símbolo do novo povo que nascia; em relação a Jesus, a Igreja, sua
esposa (Eu Venho, p. 151), cuja origem indica o latim ecclésìa,ae 'assembléia, reunião,
ajuntamento dos primeiros cristãos’. Nesse contexto acontece o primeiro milagre de
Jesus, que é transformar a água em vinho. Maria é um personagem que fala aos criados
com autoridade e será ela a intermediária desse milagre, como estudaremos a seguir.
Pelo significado presente na etimologia desse vocábulo, já podemos prever que Jesus
será senhor do mistério, pois “milagre” tem origem no latim miracùlum,i 'prodígio,
maravilha, coisa extraordinária'.
Ter acabado o vinho é um fato intertextual à Bíblia. A leitura do evangelho narra
que Jesus e seus discípulos também foram convidados, faltou vinho e Maria comunicou-
lhe o fato (cf. Jo 2, 3-4). Em Eu Venho ficamos sabendo que Jesus foi convidado por
Maria e, depois, por Natanael, e não pelos donos da casa (p. 172-173). O texto do
romance narra esses dois versículos bíblicos em quatro parágrafos, compostos por trinta
e oito linhas e, além disso, a interlocução entre Jesus-narrador e o leitor comunica uma
confidencia alheia ao evangelho. Diz Jesus: “Aconteceu, nesta tarde em Caná, algo que
131
jamais soubestes. Muitas pessoas desconhecidas e curiosas se haviam agregado a nós”.
E acrescenta: “O precioso vinho das núpcias, daquelas grandes jarras fechadas e
guardadas nos barrancos, logo foi consumido; não pelos convidados, que já estavam
bastante saciados no beber, mas por todos aqueles que vinham por mim” (Eu Venho, p.
175). Esse fato diz respeito ao contexto ficcional, sem correspondência aos textos
sagrados, o que invalida a legitimidade do enunciado, segundo a História, pois não se
vincula à linguagem fundadora, aquela que é institucionalizada (cf. Orlandi, p.162).
Lemos no evangelho a interferência de Maria, que disse a Jesus: “Eles já não têm
vinho” (Jo 2, 3). Vejamos esse mesmo enunciado reescrito em Eu Venho: “Filho, não há
mais vinho” (p. 176). O texto literário traz à cena a presença materna de Maria,
confirmada pelo vocativo “filho”, antecedendo a oração “não há mais vinho”, que é uma
oração sem sujeito, em que o verbo haver, no presente do indicativo, é impessoal,
portanto a palavra “filho”, que é Jesus, fica em evidência na oração, deixando implícito
o laço que une os dois personagens. A frase correspondente no evangelho apresenta o
pronome pessoal “eles”, sujeito do verbo “ter”, tamm no presente do indicativo,
portanto o foco do enunciado aponta para o sujeito “eles”, que no espaço da enunciação,
são os donos da festa. Essa divergência conotativa é confirmada pela resposta dada por
Jesus a Maria: “Mulher, isso compete a nós?” (Jo 2, 4). Esse enunciado dado pelo
evangelho corresponde no romance à seguinte frase: “Mas que tem isto comigo e
contigo” (Eu Venho, p. 176). O vocativo “mulher”, presente no enunciado do
evangelho, tira o foco da maternidade, e da cumplicidade entre mãe e filho, recuperados
pelo texto do romance que exclui esse vocativo.
Mais uma vez o enunciador reafirma que Maria acolhe maternalmente os
necessitados, o que se manifesta no discurso pela voz de Jesus-narrador que diz saber
desde menino que sua mãe se afligia por outros e “que tinha gosto em auxiliar até
mesmo os que não merecessem seu precioso auxílio” (Eu Venho, p. 176). Nesse
evangelho são subentendidas virtudes de Maria tais como a solidariedade, a
disponibilidade para com o plano divino e a confiança nas promessas de Deus, as quais
são explicitadas no romance. Maria, que nesse contexto, é uma personagem de destaque,
por ter sido ela a responsável pela presença de Jesus na festa conforme lemos no
capítulo XL: “(Eu) sabia das grandes bodas que estavam para acontecer em Caná e o
quanto minha mãe desejava que eu lá estivesse” (Eu Venho, p. 169). Além disso, em
relação ao milagre Maria agiu com confiança e autoridade, pois mesmo que Jesus
dissesse “Minha hora ainda não chegou” (Eu Venho, p. 176; Jo 2, 4), ela deu a ordem
132
aos criados: “Fazei tudo de acordo com o que (ele) vos ensinar” (Eu Venho, p. 177; Jo 2,
5).
A seqüência do capítulo narra o milagre de forma intertextual à Bíblia. O
parágrafo vinte e um tem como foco da narrativa a impaciência dos convidados, a
aflição dos noivos e o temor dos criados por não entenderem a ordem de Jesus, que lhes
disse: “Pois enchei as talhas com água” (Jo 2, 7) (Eu Venho, p. 177). E o melhor vinho
foi servido no final da festa (cf. Jo 2, 10). A confiança de Maria no plano de Deus se
confirma por seu pensamento, expresso no enunciado: “Está feito” (Eu Venho, p. 178).
Essa é uma confirmação do messianismo de Jesus atestada também pela presença dos
discípulos a esse sinal de Jesus, que eles acreditaram tratar-se de um verdadeiro milagre.
Jesus-narrador assume o discurso e confirma: “Poderia alguém julgar aquilo um
verdadeiro milagre? Para ela (Maria) sim, e para os novos discípulos tamm” (Eu
Venho, p. 180; cf. Jo 2, 11).
Destacamos no parágrafo vinte e nove, a seguinte afirmação: “O noivo sorveu
esse vinho, tão doce e puro como o beijo de sua jovem desposada” (Eu Venho, p. 178).
O enunciado se legitima no AT, onde lemos: “Ah! Beija-me com os beijos de tua boca!
Porque os teus amores são mais deliciosos que o vinho” (Ct 1, 2). O vinho é a metáfora
do amor conjugal que se concretiza entre os noivos. Envolvido pela emoção, o pai do
noivo deu “as bênçãos de sempre”, erguendo a taça de vinho. Completa a seqüência
desse enunciado a repetição da frase bíblica “Quem tem a esposa é o esposo” (Jo 3, 29),
que no texto do romance é apresentada como um pensamento de Jesus. Esse versículo
confirma a metáfora do casamento de Jesus com a missão que teria em relação à sua
Igreja: anunciar a boa nova de Deus, o projeto de amor e redenção para todos os seus
filhos, missão à qual se entregou até o fim. O vinho, dom do amor, aponta para a bênção
dos noivos. Jesus, o noivo, a Igreja, a noiva, recebiam as bênçãos nupciais dadas pelo
Pai.
Sabemos que a cumplicidade de Jesus e Maria existe desde a concepção virginal
(cf. Concílio, p. 122). Esse traço, presente na mãe e no filho, torna-se claramente
evidente na ação de Maria diante de Jesus no momento do milagre e, de forma mais
sutil, na comunicação entre os dois a respeito de Maria de Magdala, pois eles se
entendiam, sem que mais ninguém os entendesse. Vejamos: “— Está bêbada! — (...)
Então, fiz sinal para minha mãe e, silenciosos, deslizamos da mesa, quando todos os
olhares se dirigiam para a alegre dança (...) Ao alcançarmos o muro, Maria de Magdala
já não estava mais lá” (Eu Venho, p. 179).
133
Nesse capítulo o tema é a transformação da “água” em “vinho”. Observando a
contextualização semântica dessas palavras, “água” está em oposição a “vinho”, pois
vinho remete ao campo semântico de “sabor”, “alegria” e “prazer”. “Água” remete ao
campo semântico de “sem sabor” “sem alegria” e “sem prazer”. A metáfora presente na
oposição “vinho x água” representa o “triunfo” ou a “desdita” das bodas. Corações
desanimados e frios não celebram a festa da vida, precisam da mudança. Jesus tem
poder para reavivar a chama do amor no coração daqueles que o aceitam e se tornam
dóceis ao seu agir e, assim como a água, se deixam por ele transformar no bom vinho.
Lemos ainda a fala de Jesus que se dirigia a Maria: “Pai José carece de ti” (Eu
Venho, p. 180), índice de que José havia piorado de sua doença. Aponta também para o
último capítulo do romance: “A Solidão de Maria”.
O capítulo XLII tem dois focos principais, a morte de José e a solidão de Maria.
O dia 19 de março é dedicado pela Igreja a São José. A data da sua morte, porém,
não é conhecida, pois a última notícia que se tem dele na Bíblia é na festa da Páscoa,
quando Jesus tinha 12 anos, e José voltou com Maria para procurá-lo, porque Jesus
havia permanecido em Jerusalém sem que seus pais soubessem (cf. Lc 2, 41-52).
Atualmente, São José é reconhecido como o patrono da Igreja Universal, dos
carpinteiros, tesoureiros, engenheiros, dos pais, de pessoas à procura de casa e da justiça
social, além do que, é também o patrono da “boa morte”. Esses títulos são atribuídos a
José em decorrência de atributos pessoais, legitimados pela tradição cristã, e todos são
resgatados pelo romance. Lembramos que a palavra carpinteiro, em sua etimologia,
abrange também o significado de construtor em geral, onde incluímos engenheiro.
Sobre a morte de José, o romance narra que ao seu lado estava apenas Maria, já
que havia voltado sozinha de Caná para Nazaré. O texto bíblico narra que todos
desceram de Caná a Cafarnaum: Jesus, sua mãe, seus discípulos e seus irmãos, mas
ficaram ali poucos dias (cf. Jo 2, 12). Não há informação de quando ou quem voltou
para Nazaré.
Sabemos que os aprendizes que ficaram em sua casa cuidaram dele com carinho e
afeição, preparando-o para o encontro, pois José tinha certeza de que Jesus em breve
chegaria, por esse motivo disse a Maria: “Estás vendo por que vesti meu melhor vestido
e por que mandei que limpassem e adornassem toda a casa? Ele virá hoje mesmo,
Maria” (Eu Venho, p. 183). Esse encontro com Jesus é a metáfora da morte de José, e
reproduz o contexto de sua festa de bodas com Maria, para a qual também lavou-se em
“ervas cheirosas”, usou o “melhor vestido”, e também teve a casa “limpa” e “adornada”.
134
Além disso, o texto do romance cria o impossível — “pois nada é impossível para
Deus” (Eu Venho, p. 5; Lc 1, 37) — e Jesus foi visitar José em seu momento derradeiro.
José pediu a Jesus que viesse a ele, clamando “— Jesus (...) vem depressa!”. Essa
locução reescreve o texto do livro do Apocalipse que diz: “Sim! Eu venho depressa!
Amém. Vem, Senhor Jesus!” (Eu Venho, p. 183; Ap 22, 20). Retoma também o título do
romance, “Eu Venho”, cuja legitimidade se encontra no mesmo texto bíblico, conforme
estudamos no início desta pesquisa. Jesus atende ao chamado e, em espírito, vai ter com
José, que encontrou o seu “Rabi”. Narra a voz de Jesus: “(José) Ficou olhando para
mim. Eu estava nele, já era ele próprio, quando falou à minha mãe” (Eu Venho, p. 183).
E as palavras de despedida de José foram também um pedido de desculpas a Maria por
deixá-la sozinha. José sussurrou: “— Maria, perdoa, pois também... eu... vou seguir.
Muito debilmente findou: — ... Jesus” (Eu Venho, p. 183).
O final do romance narra a solidão de Maria pela voz de Jesus que, distante de
casa, mas sensível a tudo, presencia em espírito aos acontecimentos passados em
Nazaré, e confessa:
Quando a música atingiu seu ponto mais alto, vindo para mim numa
golfada estridente, chorei a morte de pai José e chorando fazia cair
minhas lágrimas sobre minha mãe. De agora em diante, sozinha,
caminharia sempre só, como eu a vira partir no rumo de Nazaré. (Eu
Venho, p. 183).
135
6. LÉXICO, LÍNGUA E INTERTEXTUALIDADE BÍBLICA
EM
EU, JESUS: MEMORIAL DO CRISTO II
Neste capítulo optamos por focalizar como os assuntos bíblicos são tratados no
romance, organizando-os a partir de conjuntos temáticos, os quais denominamos:
“parábolas”, “pregações”, “milagres”, “encontros e desencontros” e “a caminho com
Jesus”.
Todos os capítulos do romance Eu, Jesus foram distribuídos entre os temas, de
acordo com os seguintes critérios: o assunto da mensagem, a intenção predominante na
enunciação e o contexto. Convém lembrar que ao reescrever o texto bíblico, a autora faz
recortes de diferentes evangelhos, reconstruindo-os dentro de um só capítulo, tornando-
se possível dessa forma, incluir um mesmo capítulo em mais de um tema, em
conseqüência da diversidade textual que todos apresentam.
Para definir a inclusão de cada parte do livro em determinado tema,
procuramos observar o principal fio condutor que se destaca no enunciado, não obstante
sabermos que todas essas situações narradas no romance, intertextuais aos evangelhos,
independente de estilo ou título que recebem, estão intimamente relacionadas entre si.
Portanto, a distribuição que fazemos é meramente didática, já que a proposta dos
evangelhos é dar a conhecer Jesus, o Filho de Deus (Jo 11, 27), a nova Aliança (Lc 22,
20). Como lemos em Eu, Jesus e nas as Sagradas Escrituras, Jesus veio ao mundo para
fazer a vontade do Pai, e o Pai dá testemunho do Filho (cf. Eu, Jesus
21
, p. 121-122; Jo 5,
30.37); ele revelou o sentido pleno do Projeto de Deus, comunicou o seu Amor a todos
os homens e mulheres, por meio de palavras e gestos.
Fazendo uma analogia da história que se lê em Eu, Jesus, com os temas
propostos, Jesus se pôs “a caminho” pelas terras da Palestina e, durante suas idas e
vindas pelos lugares por onde andava, ele “contava histórias”, “pregava a Boa Nova”,
“curava” aqueles a quem “encontrava”, sempre com um propósito maior, qual seja o de
revelar aos homens a presença libertadora de Deus para que acontecesse a verdadeira
21
Todos as referências ao romance feitas nesse capítulo, dizem respeito a Eu, Jesus - Memorial do
Cristo II, cujo título doravante não constará nas citações.
136
conversão do coração de todos aqueles que aceitassem o caminho que apontava. Mas
que caminho é esse? A resposta é dada no diálogo entre Tomé e Jesus. Tomé pergunta:
“Senhor, não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho?” E a cada
interlocutor que queira, como Tomé, fazer-lhe a mesma pergunta, Jesus responde: “Eu
sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (cf. Jo 14, 5-6).
Portanto, tudo o que Jesus dizia ou fazia tinha o propósito de ensinar àquelas
pessoas, de tirá-las da obscuridade, da ignorância na qual eram mantidas por leis que as
aprisionavam a costumes e tradições que na maioria das vezes as tornavam cegas para o
amor, a fraternidade, a solidariedade. Eram leis que segregavam em função de religiões
e classes sociais. Segundo Loyola (vol.5, p. 65), Jesus pregou uma nova interpretação
das leis divulgadas pelos Dez Mandamentos. Ele dizia: “Antigamente foi dito, mas eu
lhes digo” (cf. Mt 5, 21.27.31.33.38.43). Podemos afirmar, portanto, que parábolas e
pregações são mensagens verbais de conteúdo doutrinal-pedagógico do anúncio da boa
nova, cujo emissor era Jesus, dirigindo-se a seus destinatários, isto é, todo povo que o
seguia, judeus ou pagãos, ricos ou pobres, poderosos ou excluídos.
Neste trabalho o termo “parábola” está tomado como o recorte do romance,
nomeado como tal no texto fundador, muito embora outros recortes do romance, que
traduzem pregações de Jesus, também incluam parábolas, já que “os evangelhos
testemunham que Jesus falava ‘tudo em parábolas’ (cf. Mt 15, 13-15). Entre parábolas e
frases soltas de cunho sapiencial-pedagógico, poderíamos contar mais de 100 parábolas
atribuídas a Jesus” (Loyola, vol. 5, p.97).
Mas, então, de que tipo de texto estamos falando quando nos referimos a uma
“parábola”? Como ponto de partida, vejamos o significado dessa palavra proposto em
uma das acepções apresentadas pelo dicionário Houaiss: “narrativa alegórica que
encerra um preceito religioso ou moral, especialmente as encontradas nos Evangelhos”.
Lemos em sua etimologia: do grego parabolê,ês ‘comparação, aproximação;
semelhança; discurso alegórico.
Diz Massaud Moisés que a parábola é:
uma narrativa curta, não raro identificada com o apólogo e a fábula,
em razão da moral, explícita ou implícita, que encerra, e de sua
estrutura dramática. Todavia, distingue-se das duas outras formas
literárias pelo fato de ser protagonizada por seres humanos (...)
Conquanto se possam arrolar exemplos profanos, a parábola semelha
exclusiva da Bíblia, onde se encontra em abundância. (p.385)
137
Contudo, mais do que uma alegoria ou lição de moral, a parábola traduz uma
sentença sapiencial, nascida do povo, na qual é estabelecida uma comparação como um
recurso de linguagem capaz de facilitar o entendimento da mensagem. É uma narrativa
em que o locutor retrata determinada atividade ou fato familiar ao seu interlocutor,
envolvendo-o no clima da situação narrada. Ela será colocada diante do ouvinte como
um espelho, para que se sinta provocado a questionar, podendo chegar à compreensão
através de um “estalo”. (cf. Loyola, p. 96).
Tomemos um recorte de Eu, Jesus como exemplo:
E vendo toda aquela multidão, recordei Isaías: – E disse Yaveh:
Vai e falarás a este povo: Ouvireis com os ouvidos, e não entendereis.
E vereis com os olhos e não vereis. Minhas palavras se abriam sob a
abóbada daquele céu róseo, doce, mandando suas primeiras alegrias.
(p.80; cf. Mt 13, 14; Mc 4, 1-20; Lc 8, 4-15)
Jesus não explicava o sentido de suas proposições. Ao contrário,
problematizava uma situação e deixava, sim, que seus ouvintes resolvessem, eles
mesmos, os questionamentos, ampliando as possibilidades de soluções para o mesmo
problema, pois dependia da disponibilidade de cada um para compreender o subjetivo
contido no texto metafórico. Os temas relativos às parábolas se originaram no contexto
de um povo que vivia da agricultura, da pesca e do pastoreio. Por isso, muitas falam da
terra, de sementes, de peixes e de ovelhas, embora por seu caráter metafórico, não
estejam circunscritas a um espaço/tempo determinados, podendo ser atualizadas e se
inscrever nas mais diversas situações da vida cotidiana, ajudando ouvintes/leitores, do
passado ou do presente a descobrir o rosto de Deus escondido na simplicidade do dia-a-
dia (cf. Loyola, vol 5, p.100).
Por pregação entendemos o discurso de caráter doutrinal e instrutivo de Jesus,
cujo propósito está na mudança de vida, na transformação das atitudes e sentimentos,
cujo tema e desenvolvimento não se apóiam sobre a comparação alegórica. No
dicionário Houaiss encontramos como significado de pregação “o discurso religioso,
sermão, e por extensão de sentido, repreensão, reprimenda”. No “Sermão da Montanha”
(Eu, Jesus, p. 58-67; Mt 5—7) temos a ilustração completa da estrutura textual de uma
pregação de Jesus, porque transita por vários gêneros textuais, cuja locução assume
vários tons, desde o mais terno (cf. p. 60; cf. Mt 5, 8-9) quando a intenção do
138
enunciador é acolher, até o mais autoritário, quando a intenção do locutor é exortar, (cf.
p. 64; cf. Mt 5, 23-24). Essas diferenças no tom que Jesus imprimia aos seus discursos
justificam-se principalmente pelos destinatários a quem era dirigida a mensagem, pois
havia os que acolhiam e os que rejeitavam a Boa Nova. Outro aspecto que se destaca no
“Sermão da Montanha” é a amplitude de discursos que alcança essa composição, na
qual podem ser distinguidas unidades menores. Segundo Schökel, podemos destacar:
As bem-aventuranças, com o contraste da lei antiga e nova (5,
1-16.17-48); três obras de justiça ou fidelidade: esmola, oração e
jejum (6, 1-4.5-15.16-18). Seguem-se outros temas, como a confiança
em Deus e a misericórdia com o próximo (6, 19-7, 12) e um
esclarecimento sobre os dois caminhos e os falsos profetas. Encerra o
discurso a comparação das duas construções (7, 24-29). (p. 2325)
Com o “Sermão da Montanha” o evangelista apresenta várias óticas da
pregação, articulando felicidade e exigências extraordinárias decorrentes do bem maior.
Informa ainda o evangelho que, “quando Jesus terminou o discurso, a multidão ficou
impressionada com a sua doutrina. Com efeito, ele ensinava como quem tinha
autoridade e não como os seus escribas” (Mt 7, 28-29).
O termo pregação é popularmente conhecido como o anúncio da palavra de
Deus, do Evangelho de Jesus. Esse novo sentido dado à palavra difundiu-se a partir da
ordem dada por Jesus aos seus apóstolos: “Ide por todo mundo e pregai o Evangelho a
toda criatura” (Mc 16,15).
Observemos ainda que a palavra “pregação”, pregar + -ção, por extensão de
sentido, está relacionada ao fato de Jesus ter sido “pregado” no madeiro da cruz. Não
obstante o significado do verbo “pregar” que participa da formação dessa palavra,
referir-se a “ato de pregar ('fazer sermão')”, o seu significado primeiro é “fixar ou
prender com pregos”, de onde decorre a analogia com a morte por crucifixão sofrida por
Jesus. O substantivo “pregação”, no entanto, só ocorre formalmente no texto bíblico e
no romance como “ato de pregar ('fazer sermão')”.
O terceiro tema diz respeito aos milagres que Jesus realizou. Ele curou homens
e mulheres, velhos e crianças, pobres e ricos, judeus e pagãos. Curou leprosos (Eu,
Jesus, p. 38-41; Mc 1, 40-55), cegos (Eu, Jesus, p. 183-185; Mt 9, 27-31), paralíticos
(Eu, Jesus, 41-46 ; Mc 2, 1-12), surdos-mudos (Eu,Jesus, p. 128-129; Mc 7, 31-37),
139
epiléticos (Eu, Jesus, p. 144; Mc Mc 9, 14-29), uma mulher com hemorragia (Eu, Jesus,
102-102; Mc 5, 25-34), ressuscitou mortos (Eu, Jesus, p.102; Lc, 8, 52-55), fez
exorcismos (eu, Jesus, 93-95; Mt 8, 28-34), e até interferiu na dinâmica da natureza (Eu,
Jesus, 36-37; Lc 5, 1-11). Porém o contrário também aconteceu, conterrâneos de Jesus
não lhe deram crédito e ele não pôde realizar nenhum milagre em Nazaré (Eu, Jesus,
27-33).
Mas, então, o que entendemos por milagre?
De acordo com a etimologia da palavra, “milagre” se origina do latim
miracùlum,i 'prodígio, maravilha, coisa prodigiosa, extraordinária'. E o senso comum
considera o milagre com o sentido apresentado no dicionário, ou seja, um fenômeno
sem explicação lógica, que contraria as leis da natureza. Perguntamos, então, se tal
fenômeno admitir uma explicação científica, não será mais considerado um milagre?
Lemos em Loyola (vol. 5, p. 106-108) que “os evangelhos querem apresentar
os milagres de Jesus como sinais da presença do Reino de Deus. Com os milagres Jesus
realiza tudo que foi prometido na Lei e nos Profetas a respeito do Reino — cf. Is 29, 18-
19; 35, 5-7” (vol.5, p. 107). Ou seja, o sentido de “milagre” é o sinal da presença
libertadora de Deus no meio do povo. Aquele que tivesse fé veria o milagre acontecer,
porque o milagre é fruto da fé, e a fé é fruto do acolhimento da Palavra e da mudança de
vida. Tanto no romance quanto na Bíblia, aceitar os milagres significa aceitar Jesus
como enviado do Pai, cujos sinais e prodígios “têm por objetivo apontar para o milagre
maior: a ressurreição de Cristo” (cf. p. 269-271; cf. Mt 28).
Desta forma, independente de milagres serem aceitos como fenômenos
extraordinários, ou como fatos passíveis de serem comprovados, incluímos nesse tema
todas as palavras e gestos de Jesus que provocaram portentos, gerando mudança na
dimensão concreta da vida e na dimensão espiritual. Esses fatos são assim designados
como milagres no romance e na Bíblia.
No quarto tema, “a caminho com Jesus”, abordamos a trajetória que ele
realizou pelas terras da Palestina e vizinhanças. Nascido em Belém, na Judéia (Eu
Venho, cap. VIII; Mt 2,1), foi criado em Nazaré, cidade no interior da Galiléia (Eu
Venho, cap. XVII em diante ; Lc 4, 16) e morreu fora dos muros de Jerusalém, na Judéia
(Eu, Jesus, p. 262-269; cf. Mt 27, 32-56). Eis o motivo por que Jesus caminhava,
mudando de lugar muitas vezes durante sua vida pública: anunciar ao povo a Boa Nova:
“O Reino de Deus chegou. Mudem de vida e acreditem nesta Boa Notícia” (Mc 1, 16).
Para tal, fazemos recortes do romance que situam onde Jesus se encontrava ou para
140
onde se dirigia e os comprovamos indicando o texto bíblico correspondente. Sabemos
que, embora Jesus tenha sido o peregrino da Boa Nova durante toda sua vida pública, o
espaço geográfico por onde ele caminhou foi muito restrito, mas em contrapartida a vida
itinerante de Jesus e seus discípulos foi tão significativa que as comunidades de cristãos
dos primeiros séculos eram chamadas “caminho” (At 9,2), por não terem ainda nome
próprio e estarem todos em movimento, numa caminhada, a fim de levar ao mundo a
Boa Nova de Jesus (cf. Loyola, vol. 5, p. 55).
Durante sua peregrinação Jesus não caminhou sozinho. Muitos o seguiram
porque aquele povo era como ovelhas sem pastor (cf. Eu, Jesus, p. 104-106; cf. Mc 6,
34) e precisavam de um líder. Jesus se fez ele próprio o Bom Pastor, a “Porta” do
aprisco (cf. Eu, Jesus, p. 179; cf. Jo 10, 1-16), dando um novo sentido à vida das
pessoas que acolheram a sua palavra, chamando-as à verdadeira santidade (2 Tm 1, 9),
alimentando a esperança e levando cada um a experimentar o amor gratuito de Deus.
Neste último tema estudado, “encontros e desencontros”, trataremos sobre a
oposição entre aceitar Jesus, vivendo o encontro com ele, e negar Jesus, vivendo o
desencontro.
Seguiram o caminho de Jesus muitas pessoas simples do povo (At 4, 13),
alguns mais ricos como Joana (Lc 8, 3) e Nicodemos (Jo 3, 1-2). Todos que caminharam
com Jesus, homens e mulheres, pobres ou ricos, deixaram para trás o que tinham para
segui-lo (Mt 19, 27). Jesus os atraía para si e os chamava a segui-lo. Contudo, aceitar a
Boa Nova e seguir Jesus implicava assumir as contradições por ele vividas e as
conseqüências dessa atitude. Por isso muitos que com ele encontravam não conseguiam
compreender seu amor-serviço, pois alguns esperavam um Messias glorioso, ao mesmo
tempo um rei temporal e divino (cf. Eu, Jesus, p. 98); outros tantos sentiam-se
ofendidos com as denúncias que ele fazia contra um sistema político-religioso, injusto e
opressor, contrário à lei de amor. Portanto, Jesus despertava a rejeição de muitos que se
sentiam acomodados, apegados às suas tradições, ou aos seus bens, ou mesmo às suas
posições de poder. Estes viviam com Jesus o desencontro, porque muito embora
cruzassem freqüentemente o seu caminho distanciavam-se da sua verdade, e do seu
amor, dentre eles fariseus, saduceus e doutores da lei, que não estavam abertos à
mudança proposta por Jesus (cf. Eu, Jesus, p. 29; cf. Lc 4, 16-21).
Inclui-se nessa situação o desencontro e ao mesmo tempo a tentativa de
encontro vividos por Pilatos diante de Jesus no momento de seu julgamento. De um
lado a fúria dos judeus que o condenavam; de outro, o novo sentido que Jesus
141
sustentava sobre o Reino de Deus, a Vida e a Verdade. Mesmo diante da pena de morte
prestes a ser sentenciada contra ele, Jesus gerou um paradoxo tal que levou Pilatos a
“lavar as mãos” e retirar-se sem condições de entender a Verdade. Vejamos: “Nasci e
vim ao mundo para isto: dar testemunho da Verdade. Todo aquele que pertence à
Verdade escuta minha voz e se faz um meu”. Pilatos perguntou-lhe curioso: “Que é a
verdade?” (cf. Eu, Jesus, p. 253; Jo, 18, 37-38).
Outro tópico a destacar neste tema diz respeito às mulheres, marginalizadas
por uma sociedade que as excluía legalmente, firmada na lei da pureza (Lv 15, 19-24)
que, dentre outras determinações, considerava-as impuras durante seu período de
menstruação. Durante esses dias nenhum homem poderia tocá-la, ou em qualquer objeto
tocado por ela, porque ele seria igualmente impuro. Elas viviam submissas aos homens
e ficavam separadas até mesmo no templo, onde lhes era reservado um lugar à parte,
como comprova o texto do romance, que diz: “Achamo-nos no Templo (...) Ele (João) a
(Maria) faria entrar lá pelo Pátio das Mulheres, sempre ali fechadas em suas gelosias”
(p. 5).
Mas não foi assim para Jesus. Dentro desse tema apontamos o encontro de
Jesus com várias mulheres, que acolheram a Boa Nova e por Jesus foram acolhidas.
Algumas discípulas, como Susana, outras apóstolas, como Maria de Magdala, que
seguiu Jesus durante toda sua vida e, juntamente com outras mulheres, foi testemunha
da ressurreição, anunciando a Boa Nova (p. 103; cf. Lc 8, 3; Jo 20, 2).
Lemos em Loyola, que “as mulheres de fato exerciam função de liderança
assumindo ministérios iguais aos homens (cf. Rm 16, 1-3.7) (...) Nas funções
missionárias elas também são enviadas conforme o preceito de irem dois a dois” (cf.
1Cor 16, 19), e que eram responsáveis pelas Igrejas domésticas (cf. Cl 4, 15).
Importa ainda neste estudo considerar a questão da autoridade exercida por
Jesus sobre os diferentes grupos sociais existentes com os quais convivia. Os pobres, os
doentes, as mulheres e as crianças o respeitavam e amavam: seguiam-no. Eram
marginalizados pela sociedade, mas se sabiam por ele amados e acolhidos. Os
detentores do poder, os chefes políticos e religiosos rejeitavam a doutrina pregada por
Jesus: perseguiam-no. Porém, diante de sua autoridade e sabedoria, tantas vezes
calaram-se impotentes. Citemos como exemplo a parábola “O bom samaritano”, em
cuja conclusão do discurso, Jesus ordena àqueles que o desafiavam “desde os tempos de
Esdras os doutores da Lei eram temidos e respeitados”. Refere-se Jesus a um deles: “Eu
o açulei com minhas palavras, convidando-o a um amor por ele desconhecido: — Pois
142
vai e faze o mesmo. O homem saiu carregando a Lei, seus fantasmas e suas teorias”
(Eu, Jesus, p. 163; cf. Lc 10, 25-37).
Como entender a autoridade exercida por Jesus diante da situação narrada?
Consideraremos o conceito de prestígio lingüístico, de acordo com o que nos apresenta
Dulcelina Silva Santos: “ligadas ao fator prestígio estão as classes sociais dirigentes ou
opressoras, as culturas mais desenvolvidas... vitórias guerreiras. Isto é, o prestígio
aparece sempre em resultado de ações de caráter social” (Santos, 1998, p.34). Segundo
a autora, o prestígio lingüístico traduz um juízo de valor coletivo de acordo com o
desempenho lingüístico do falante, atribuindo-lhe uma posição e um valor social.
Conforme lemos em Loyola, Jesus falava o aramaico com sotaque de judeu da
Galiléia, foi criado no interior e não teve oportunidade de estudar, sua família não era
sacerdotal, tendo sido vítima do sistema mesmo antes de nascer, por isso nasceu fora de
sua casa, perseguido pela tirania de Herodes. Portanto, havia vários fatores contrários a
um possível prestígio social e mesmo lingüístico de Jesus (cf. vol. 5, p. 15). Mas,
sobrepondo-se à hipótese de não fazer um bom uso da língua padrão dominante, ou de
não pertencer à elite social, podemos afirmar que Jesus apropriava-se da linguagem
como bem simbólico, tornando-se detentor de um poder capaz de exercer um domínio
até sobre os mais poderosos. Dulcelina Santos também comenta que, ao lado de outros
bens simbólicos, a linguagem funciona como um capital dentro de uma estrutura social:
(...) o falante, ao apropriar-se desse bem simbólico que é a
linguagem, é detentor de um poder que pode gerir a seu modo. Assim
se explica que determinados falantes exerçam poder e domínio sobre
outros na interação verbal e determinados produtos lingüísticos
recebam mais valor do que outros... o poder da língua só se concretiza
no uso, confundindo-se com o próprio poder do falante. (Santos, 1998,
p.78)
Contudo, muito acima da linguagem humana, havia em Jesus o poder que lhe
foi dado pelo próprio Deus e sobre o qual nenhum outro é capaz de resistir. Isso pode
ser confirmado com o seguinte exemplo:
Silêncio. Serenai, águas revoltas (...) E a natureza em rebelião
das águas, de súbito amansou. Eu falava com elas, mas me lembrava
143
dos meus em Nazaré. Se acaso me vissem, ali, diriam: — Yaveh lhe
retirou todo o juízo. Docemente eu falava agora, pois não era preciso
mais bradar; o vento amainara: — Silêncio. Desça a calma sobre vós,
aquietai-vos, águas minhas do mar da Galiléia. Aquietai-vos (...)
Quem é este homem a quem até o vento e o mar obedecem?
(p.92; cf. Mt 8, 23-27; Mc 4, 35-41; Lc 8, 22-25)
No levantamento efetuado neste capítulo da pesquisa foram adotadas as
seguintes estratégias: destacamos os capítulos que compõem Eu, Jesus: Memorial do
Cristo II em relação ao tema proposto; fazemos a analogia com os textos bíblicos, a fim
de comprovarmos a intertextualidade com a obra fundadora; incluímos um comentário
no qual serão inseridas as considerações a respeito do léxico e da língua e também
algumas transcrições do romance que comprovam a vida itinerante do personagem.
Junto com Jesus caminhavam homens e mulheres de boa vontade levando a Novidade
do Reino, a mensagem de amor e solidariedade, curando, confortando, acolhendo os
pobres e injustiçados, perdoando os pecadores. Propomos que, acompanhando o
transcorrer da história, possamos viver o encontro com Jesus Cristo e seguir junto com
ele pelas terras férteis da nossa Palestina interior, fazendo brotar Vida Nova por onde
quer que passemos.
6.1 Parábolas
— Capítulo VI: “Chamou-me Cafarnaum” (p. 34-37)
— Intertextualidade bíblica: “Pesca milagrosa” (p. 36-37; cf. Lc 5, 1-11).
— Comentário: o capítulo VI reescreve a “Pesca milagrosa”, narrada no
evangelho de Lucas 5, fazendo a inclusão de um recorte da parábola “A rede”, presente
no evangelho de Mateus 13, sem que haja quebra na coerência textual, porque um
enunciado completa o sentido do outro, pois ambos os evangelhos têm em comum as
marcas textuais “rede” e “pesca”. O recorte diz respeito à locução feita por Jesus: “O
Reino dos Céus é semelhante a uma rede de pesca” (p. 36; cf. Mt 13, 47). Essa parábola
será desenvolvida no capítulo XXII, “De atar e separar” (p.87-90).
— Capítulo XIX: “Não seja dado que vejam com seus olhos... e que ouvindo,
144
ouçam e não entendam” (p. 80-83).
— Intertextualidade bíblica: “O semeador” (p. 80-81; cf. Mt 13, 1-23; Mc 4, 1-
20; Lc 8, 4-15).
— Comentário: a função metalingüística está presente na locução de Jesus-
narrador, que explica o que era para os judeus uma parábola. Ele diz que era o costume
entre aquele povo contar sobre as coisas que conheciam em tom misterioso. Ele
acrescenta que as pessoas “estavam acostumadas com ‘mashals’, passagem de símbolos
que às vezes divertiam e faziam sorrir, outras intrigavam e eram sinais de que suas
mentes deveriam trabalhar sobre o que lhes teria sido dito” (p.80).
A palavra hebraica mashal foi traduzida para o grego como parabolê,ês e para
o latim como parabòla,ae. Na sua origem, o mashal era a sentença sapiencial, o
provérbio, o alicerce da Sabedoria em Israel (cf. Loyola, p. 96).
O título do capítulo, que se repete no 4º parágrafo, é intertextual ao AT (cf. Is
6, 9-10) e reapresentado no NT, legitimando a voz do narrador (p.80; Mt 13, 14; Mc 4,
1-20; Lc 8, 4-15).
O texto do romance reescreve a parábola “O semeador”, na qual Jesus fala a
respeito do poder intrínseco à semente: germinar e produzir frutos. A partir desse tema é
criada a oposição entre os paradigmas ‘gerar vida’ x ‘gerar morte’, pois não obstante
contenha em si a possibilidade de vida a semente depende do solo para fazer cumprir a
sua natureza. Fazem parte do paradigma “morte”: a semente lançada a esmo e roubada
pela maldade, antes de fecundar a terra; a terra seca, pedregosa, em que falta a umidade,
onde a semente será queimada; os espinhos que sufocam a semente que insiste em
germinar. Por fim, a situação dentro do paradigma ‘vida’: a terra boa, o solo fecundo
que acolhe propício a semente. É lá que ela produzirá bons frutos.
A proposta é a mudança de comportamento, é a passagem da ‘morte’ para a
‘vida’. Torna-se capaz quem compreende o ensinamento. Desse modo, as experiências
da vida terão um novo sentido para quem recebe a palavra de Deus na terra boa de seu
coração, produzindo frutos de vida nova, e vida em abundância. Só entende quem
acolhe o mistério do Reino de Deus, cuja chave da compreensão é Jesus Cristo em si
mesmo (cf. Vieira, Sermão da sexagésima).
— Capítulo XX: “O invisível grão” (p.83-85).
— Intertextualidade bíblica: “O grão de mostarda” (p. 83-85; cf. Mt 13, 31-32;
145
Mc 4, 30-34; Lc 13, 18-19).
— Comentário: o “grão” apresentado é a semente de mostarda, metáfora do
Reino de Deus. Uma semente miúda, cujo crescimento independe da vontade humana,
mas, sim, de uma força misteriosa capaz de torná-la uma árvore frondosa e acolhedora,
como é o Reino de Deus.
— Capítulo XXII: “De atar e separar” (p.87-90).
— Intertextualidade bíblica: “O joio” (p. 88; cf. Mt 13, 24-30); “Explicação da
parábola do joio” (p.88-89; cf. Mt 13, 36-43); “O tesouro. A pérola. A rede” (p.89- 90;
cf. Mt 13, 44-52).
— Comentário: as duas parábolas transmitem sentido escatológico: a
separação dos “bons” e dos “maus” no final dos tempos.
A oposição entre “trigo” e “joio” faz parte da linguagem popular e tornou-se
comum ouvir “separar o trigo do joio”, de tal modo que o sentido da parábola é
transparente. Devemos levar em consideração alguns aspectos semânticos: o “trigo” e o
“Filho do Homem”, paradigma do bem, o ”joio” e o “Maligno”, paradigmas do mal. A
parábola chama a atenção para a paciência e a espera pelo tempo certo, pois o joio só
poderá ser separado do trigo depois de crescido o vegetal, porque antes ambos se
semelham.
Na parábola “A rede”, metáfora do juízo final, os peixes também serão
separados. O “bom peixe” em oposição ao “mau peixe”; o primeiro será guardado e o
segundo será devorado pelas aves. No último parágrafo é clara a metalinguagem,
quando o locutor se dirige ao seu interlocutor, dizendo: “Se a tudo haveis entendido
(...)” (p. 90).
As duas outras parábolas, “O tesouro” e “A pérola”, são resumidas num breve
enunciado feito por Jesus, “o tesouro que devereis retirar e repartir”. Entendemos como
tesouro ‘o conjunto de riquezas a ser partilhado’, que o contexto remete às verdades e os
mistérios, e o narrador ensina “em linguagem clara ou usando símbolos” (cf. p. 90).
— Capítulo XXVI: “A desigualdade na colheita” (p. 97-100).
— Intertextualidade bíblica: “Parábola do fariseu e do publicano” (p.98; cf. Lc
18, 9-14); “Parábola dos operários da vinha” (p. 98-100; cf. Mt 20, 1-16).
— Comentário: a “Parábola do fariseu e do publicano” é retomada nesse
capítulo pela voz do narrador num tempo presente, referindo-se ao que ele havia dito
146
num passado recente. O destinatário de seu discurso é o leitor, a quem Jesus-narrador se
dirige dizendo que havia retomado “a última estória que lhes contara, a que era do
publicano e do fariseu e termina, como deveis saber” (p. 98). A terceira pessoa do
discurso, a quem Jesus se refere, era “aquela gente tão diferente”, entre eles, fariseus,
pescadores, senhores de terras ou viandantes, que dele se acercavam para ouvi-lo. No
contexto em que se insere o discurso, Jesus ofendeu alguns ouvintes, com a mensagem
enviada: “Porque todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será
exaltado” (p. 98; cf. Lc 18, 14).
A “Parábola dos operários da vinha” é reescrita no romance, de acordo com o
texto fundador, cuja conclusão aponta para a relação entre os judeus, que se julgavam
superiores, e os pagãos, desprezados. O locutor conclui: “Os últimos serão os primeiros
e os primeiros serão os últimos” (p. 99; cf. Mt 20, 16).
— Capítulo XLII: “O convite” (p.150, 155).
— Intertextualidade bíblica: “Quantas vezes perdoar” (Mt 18, 21-22); “O
evangelho revelado aos pequeninos” (p. 150; cf. Lc 10, 21-24); “O servo cruel” (p. 150-
151; cf. Mt 18, 23-35).
— Comentário: o início do capítulo é intertextual a Mateus 18, 21-22, cujo
tema é o perdão, e aponta para o tema da parábola “O servo cruel”, cujo tema também é
o perdão. Essa parábola é narrada em prosa na Bíblia e reescrita no romance em forma
lírica. O enunciado acrescenta um personagem que não faz parte do contexto dessa
parábola, uma criança a quem Jesus chama para junto de si e acaricia seus cabelos. Esse
fato gera um discurso intertextual ao evangelho de Lucas 10, 21-24. Os versos são
intercalados por discursos em prosa, quando Jesus assume o lugar do narrador
onisciente, que a todos observa, e quando volta o foco narrativo para a criança. É parte
do discurso do narrador: “Então mirei a todos, porque a soma era enorme (...) Aquietei o
menino, que se afligia com a história” (p. 150).
— Capítulo XLIV: “De encontro à aurora eles vinham” (159-165).
— Intertextualidade bíblica: “O bom samaritano” (p.161-163; cf. Lc 10, 25-
37).
— Comentário: os “doutores da lei”, chamados de “rabi”, em hebraico rabbi,
147
que quer dizer senhor, mestre, eram respeitados e temidos desde os tempos de Esdras,
tempo da volta do cativeiro da Babilônia
22
. Os samaritanos
23
, ao contrário, eram
menosprezados e odiados pelos judeus, também desde aquele tempo (Es 7, 6). O
discurso de Jesus é circular e conduz o doutor da lei a admitir a misericórdia do
samaritano diante do moribundo, o qual havia sido desprezado pelo sacerdote e pelo
levita, todos personagens da parábola. O samaritano, considerado gentio, serve de
exemplo de bom comportamento. O texto revela a autoridade de Jesus, que finda o
discurso mandando o doutor da lei agir como o samaritano.
— Capítulo LI: “A lâmpada do teu corpo é o teu olho” (p. 192-196)
— Intertextualidade bíblica: “O grão de mostarda. O fermento” (p.194; cf. Mt
13, 31-35; cf. Mc 4, 30-34; Lc 13, 18-21); “Parábola da moeda perdida” (p. 195; cf. Lc
15, 8-10).
— Comentário: as parábolas “O grão de mostarda” e “O fermento” são
resumidas a dois períodos que fazem parte do discurso do narrador (p. 194). A parábola
“O grão de mostarda” já havia sido mencionada no capítulo XX, porém no contexto do
capítulo LI é narrada em paralelo à parábola “O fermento”, por analogia entre os temas,
já que ambas revelam a proporção grandiosa que pode atingir o Reino de Deus, mesmo
a partir de elementos pequenos e simples.
A voz do narrador menciona a “história da dracma perdida, que as mulheres
entendiam tão bem” (p. 195; Lc 15, 8). O fato de o narrador referir-se às mulheres é
índice da personagem do evangelho, uma mulher que vasculhou toda casa até encontrar
a moeda, e que depois celebrou com as amigas. A metáfora aponta na moeda encontrada
o valor do pecador que alcança a conversão, levando alegria ao céu.
— Capítulo LV: “O vento e as palavras” (p. 214-217).
— Intertextualidade bíblica: “Os dois filhos” (p.215; cf. Mt 21, 28-32);
“Vinhateiros homicidas” (p.215; cf. Mt 21, 33-45; Mc 11, 1-12; Lc 20, 1-8); “Festa das
bodas” (p.215-216; cf. Mt 22, 1-14; Lc 14, 15-24).
22
Os judeus passaram quase 50 anos exilados na Babilônia. Foram deportados em 586 aC e
somente regressaram à sua pátria em 539 aC.
23
Os samaritanos eram o povo que habitava a Samaria, terra localizada entre a Galiléia e a Judéia
na antiga Palestina.
148
— Comentário: a parábola “Os dois filhos” é narrada em três parágrafos
(p.215). A narrativa apresenta o tema de forma breve, que se conclui com a pergunta
que aponta para a moral da parábola. É Jesus-personagem quem se dirige aos seus
ouvintes: “Qual dos dois cumpriu a vontade do Pai?” A resposta traz a surpresa, pois o
último filho, aquele que dera o seu não, foi o único que a pôs em prática a vontade do
Pai, porque o primeiro, que dera seu sim, desistiu no meio do caminho. A parábola traz
um sentido aberto à interpretação. Muitos podem estar no lugar de cada um dos filhos:
todo povo de Israel ou cada um dos ouvintes.
Repete-se a estrutura anterior, e a parábola “Vinhateiros homicidas” é narrada
em três parágrafos. No primeiro parágrafo o narrador retoma o discurso bíblico
apresentando o tema da parábola. No segundo é apresentada a locução feita Jesus que
pergunta ao povo que o seguia: “Que faz o dono dos vinhedos?”. A resposta é dada por
Jesus, que conclui a parábola explicando que o dono virá vingar a morte do filho e
confiar os vinhedos a outros arrendatários. A metáfora aponta a própria morte de Jesus e
o juízo final, exortando o povo à vigilância.
A “Parábola da festa das bodas”, a última no romance, não é a última em
Mateus e Lucas, evangelhos onde é encontrada. É narrada em sete parágrafos em Eu,
Jesus, e em 14 versículos na Bíblia. Assim como nas antecedentes apresenta caráter
escatológico. O banquete é a metáfora da alegria do povo escolhido por Deus para
participar de seu Reino.
6.2 Pregações
— Capítulo I: “A cólera” (p. 3-10).
— Intertextualidade bíblica: “Jesus expulsa os vendilhões do templo” (p. 5-9;
cf. Mt 21, 12-17; Mc 11, 15-19; Lc 19, 45-47; Jo 2, 13-25); “A oferta da viúva” (p. 5;
cf. Mc 12,41-44; Lc 21, 1-4).
— Comentário: o texto dos evangelhos é reescrito no romance em 14
parágrafos, que intercalam texto em prosa e textos em versos — estes são salmos
cantados pelos peregrinos (p. 6). O evangelho revela a cólera de Jesus diante dos
mercadores que vendiam na parte sagrada do templo; revela também sua autoridade
diante dos judeus indignados com seus milagres e com os louvores proclamados. A ação
do personagem aponta para a oposição entre o “profano” e “sagrado”, que não está
149
sendo respeitado.
O terceiro parágrafo narra a “Oferta da viúva”, cujo sentido é revelado pela
“caridade” que Jesus havia pregado. Em sua origem latina, carìtas,átis , amor, afeição,
que comporta o sentido do ato de doação da viúva, mulher pobre que entregou do pouco
que possuía em oblação.
O texto retoma a narrativa sobre os vendilhões, a fim de concluir o tema. O
romance reescreve a perícope do evangelho de João, o único que narra o desafio feito
por Jesus aos judeus: “Destruí este Templo, e em três dias eu o levantarei” (p. 7; cf. Jo
2, 19). Mais tarde essas palavras serão testemunhadas como uma ameaça e, dentre
outros fatos, determinarão sua sentença de morte (p. 243).
— Capítulo II: “Um homem na sombra” (p. 10-16).
— Intertextualidade bíblica: “Conversa de Jesus com Nicodemos” (p. 12-16;
cf. Jo 3).
— Comentário: o romance narra o evangelho em 25 parágrafos. Nicodemos é
apresentado em Eu, Jesus, como o homem rico que cedera sua casa para que Jesus e os
discípulos passassem a Páscoa; cedera também o jardim onde armaram suas tendas
nessa mesma época (p. 12). Esse fato não encontra correspondência no texto fundador,
ams toda a perícope do evangelho é reescrita pelo romance mantendo as analogias à
Bíblia.
O título “Um homem na sombra” é uma referência a Nicodemos, príncipe dos
judeus, que fazia parte do Sinédrio. Ele seguia Jesus desde o acontecimento no templo e
desejava encontrá-lo pessoalmente, mas sem se deixar ver pelos da sua classe, e por isso
foi procurá-lo à noite. A “sombra”, do latim úmbra,ae, donde, por extensão, temos
'asilo, proteção'; nesse contexto tem o sentido do que deve ser oculto, ou seja
Nicodemos precisava de proteção. A ele Jesus ensinou que para entrar no Reino de
Deus é preciso nascer pela segunda vez, gerando um paradoxo para Nicodemos.
Explicou-lhe que o que nasceu da carne é carne, e o que nasceu do espírito é espírito,
argumento que opõe “carne” a “espírito”, ou seja, a natureza humana, em oposição à
natureza divina. Para surpresa de Nicodemos, Jesus conclui: “Em verdade, em verdade,
te digo: não entrará no reino de Deus, senão aquele que nascer da água e do Espírito
Santo. Pois assim como o que nasce da carne é carne, assim o que nasceu do espírito é
espírito” (p. 14; cf.Jo 3, 5-6).
A voz de Jesus se faz ouvir, dizendo: “A luz veio ao mundo, e os homens
150
amaram mais as trevas do que a luz, porque suas obras eram más” (p. 15; cf. Jo 3, 19).
Estão dentro do paradigma de “sombra”: secretas, obscuridade, Sinédrio,
acusadores, fariseus, mal. Estão dentro do paradigma de “luz”: nascer, Reino de Deus,
espírito, verdade, Filho do Homem, vida eterna.
— Capítulo V: “Ninguém é profeta” (p. 27-33).
— Intertextualidade bíblica: “Jesus ensina em Nazaré” (p.28-32; cf. Mt 13, 53-
58; Mc 6, 1-6; Lc 4, 14-30).
— Comentário: Jesus assume o lugar do enunciador do salmo de Isaías 61,
atribuindo a si mesmo o conteúdo da mensagem, qual seja o de proclamar a vocação e
missão de mensageiro ungido do Senhor, que anuncia a Boa Nova, que cura e liberta,
embora não fosse aceito em sua própria terra e ali não tivesse feito milagres. E Jesus
afirma: “Em verdade vos digo, que ninguém é profeta em sua terra” (p. 30; Lc 4, 24). É
comum a sabedoria popular confirmar o sentido dessa mensagem com o dito “santo de
casa não faz milagre”.
Todos os sinóticos narram essa mesma passagem, mas os textos não são
idênticos. O texto do romance transcreve o evangelho de Lucas.
Na conclusão do capítulo o discurso retoma o tema da introdução, reafirmando
a presença do Espírito a guiar os passos de Jesus (p. 32).
— Capítulo IX: “Alegres dias e chamados de amor” (p. 46-50).
— Intertextualidade bíblica: “Junto com os pecadores”. “Discussão sobre o
jejum” (p. 47-50; cf. Mt 9, 10-17; Mc 2, 15-22; Lc 5, 29-39).
— Comentário: “alegres dias” refere-se ao tempo passado em Cafarnaum, cuja
metáfora traz a comparação com o “ventre da terra: farto e doce no abrigar seus filhos”.
O capítulo refere-se aos fariseus como os “separados” (p.47). A palavra “fariseu” entrou
para o latim como pharisaeus,a,um ‘id’; no hebraico parushim significa “separados” (cf
Stern). Na Bíblia, não encontramos registro da palavra “separado” usada em lugar de
“fariseu”. A classe dos fariseus era separada, não só dos gentios, mas das demais classes
dentro do judaísmo, pois se julgavam puros e superiores aos outros por serem os únicos
a seguir rigorosamente a lei.
— Capítulo X: “O sabor do dom da vida” (p. 50-52).
— Intertextualidade bíblica: “As espigas colhidas em dia de sábado” (p. 50-52;
151
cf. Mt 12, 1-8; Mc 2, 23-28; Lc 6, 1-5).
— Comentário: Jesus e os discípulos sentiam fome. O título do capítulo aponta
para a novidade trazida pela atitude de Jesus e de seus discípulos, contrária à lei de
Moisés que proibia qualquer trabalho no dia de sábado, como por exemplo colher
espigas, mesmo para se alimentar. A atitude dos fariseus era defender a lei, cujo sentido
nesse contexto aponta para o paradigma do “sacrifício”, cujos índices são: “obscuros”,
“falsos juízes”, “proibidas”, “abominações”, “fome”, castigo (p. 51-52). Em oposição
aos fariseus e à lei está a proposta de Jesus, que faz parte do paradigma da
“misericórdia”, cujos índices são: “dom da própria vida”, “gratidão ao dom”, “andar
livres”, “espigas fartas”, “comendo o grão”, “medida do amor”, “promessa de farturas”
(p. 51-52). Completa esse sentido a locução feita por Jesus: “Ah, se soubésseis quem é o
Filho do Homem! E ele quer a misericórdia e não o sacrifício” (p. 52; cf. Mt, 7).
A intertextualidade aponta no AT o sonho de José (cf. Gn 41, 22-36), cujas
espigas cheias são devoradas pelas espigas murchas. Atualizado para o contexto do NT,
a metáfora representa os fariseus, representantes do poder, espigas murchas, que tentam
devorar Jesus e os discípulo, presença do Reino de Deus, espigas cheias.
É interessante destacar que o romance revela um aspecto lingüístico curioso. O
capítulo mostra um recorte do AT em que a identidade à nação é revelada pela língua,
mais particularmente pela fonética da palavra “Sibolé”, pronunciada “Chibolé” pelos
efraimitas. Por esse fato eram identificados pelos gileaditas, que os matavam para que
não viessem a ocupar o território de Gileade (p. 51; cf. Jz 12, 5-6). Desse modo a
pronúncia da língua é fator de definição da identidade étnica (cf. May, in Signore, p. 70-
71).
— Capítulo XIII: “A promessa” (p. 58-61).
— Intertextualidade bíblica: “As bem-aventuranças” (p. 58-61; cf. Mt 5, 1-12;
Lc 6, 20-23).
— Comentário: o texto é escrito em forma de salmos, a estrutura se mantém
em todos os versos: há uma tese, a oração principal, seguida de sua defesa, uma oração
subordinada explicativa. A tese apresenta uma proposição que gera um paradoxo, pois
aparentemente não tem lógica dizer “bem-aventurados os que choram”, porém a
seqüência explica: “porque serão consolados” (p. 59; Mt 5, 4). No evangelho os versos
são apresentados sem interrupção; no romance a autora acrescenta comentários.
152
— Capítulo XIV: “Daquilo que foi exigido” (p. 61-67).
— Intertextualidade bíblica: “Sal da terra e luz do mundo” (p. 61-62; cf. Mt 5,
13-16; Mc 9,50; 4, 21; Lc 14, 34-35); “A nova lei comparada à antiga” (p. 63-67; cf. Mt
5, 17-48).
— Comentário: no recorte “Sal da terra e luz do mundo” são apresentadas duas
proposições metafóricas: “Vós sois o sal da terra” (p. 62; cf. Mt 5, 13) e “Vós sois a luz
do mundo” (p. 62; cf. Mt 5, 14).
De acordo com o sentido no contexto, o sal é o que dá o sabor, e senão tiver
sabor “de nada mais serve, será posto fora ou pisado pelos homens” (p. 62; cf. Mt 5,
13). A etimologia confirma o sentido dado à palavra no texto, ou seja, “sal” do latim
sapìo,is,ùi,ívi 'ter sabor, ter bom paladar, ter cheiro, sentir por meio do gosto, ter
inteligência, saber'. Em sentido figurado, ter ‘bom humor; graça, jovialidade’.
A luz tem a conotação do “brilho”, do latim lúx,lúcis 'luz, claridade; ‘luz que
um corpo irradia’, no contexto é sinônimo da glória de Deus que se irradia ao mundo.
O pronome “vós” ocupa o lugar no discurso dos destinatários da mensagem,
todo povo que ouvia, cujo emissor é Jesus. O pronome está na função de sujeito da
oração e o verbo “ser” faz a ligação do sujeito ao seu predicativo, qual seja a qualidade
de ser “sal”, na primeira oração, e de ser “luz”, na segunda. A mensagem de Jesus,
comprovada pela estrutura sintática, é para que todos sejam “sal” e “luz”, e irradiem ao
mundo, não a si mesmos, mas a glória de Deus, praticando boas obras com entusiasmo e
sabedoria.
No recorte seguinte “A nova lei comparada à antiga”, o paradigma aponta a
oposição entre a “lei de Moisés” e a “lei de Jesus”, o antigo em oposição ao novo,
porém o novo não exclui o antigo, mas o leva à perfeição (p. 63; Mt 5, 17), confirmado
pela estrutura semântico-sintática se repete em toda a perícope. Jesus afirma com
autoridade: “Ouviste o que foi dito aos antigos (...) Mas eu vos digo (...)”. Confirma
Schökel que o texto é composto por antíteses, cuja proposta é exortar todo povo a uma
conduta melhor do que a dos seus antepassados (p. 2327-2328), “pois se vossa justiça
não for maior do que a dos escribas e fariseus, podeis estar certos: não entrareis no
Reino dos Céus” (p. 63; Mt 5, 20) e faz um convite à santidade “sede perfeitos, assim
como vosso Pai celeste é perfeito” (p. 67; Mt 5, 48).
Apontemos ainda a referência do discurso à letra hebraica yod, que
corresponde ao “i” no nosso alfabeto, ou ao “til”, marcas mínimas em uma palavra,
aparentemente sem importância, mas cujo valor no discurso consiste exatamente em sua
153
pequenez, por não ser desprezada por Deus (p. 63, Mt 5, 18).
— Capítulo XXXII: “Ficastes fartos” (p. 112-115)
— Intertextualidade bíblica: “Discurso de Jesus sobre o pão da vida” (p. 112-
115; Jo 6, 22-59)
— Comentário: o título “Ficaste fartos” é uma oração dentro do período que
compõe o versículo 26 dessa perícope do evangelho, no qual Jesus exorta o povo a
trabalhar mais pelo bem eterno do que pelo alimento material que perece, dizendo: “Eu
sou o pão da vida. Quem crê em mim não terá fome, jamais terá sede” (p. 114; Jo 6, 35).
E usando uma imagem que não corresponde ao texto do evangelho a autora descreve a
cena: “Minha mão direita bateu várias vezes à altura do meu coração”, e acrescenta o
texto bíblico: “Mas eu sou o pão da vida. O que vos darei é minha carne para a vida
eterna. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, fica em mim e eu nele” (p. 115;
cf. Jo 6, 51.56).
Jesus falava por comparações, usava metáforas para dar àquela multidão que o
seguia, para lhes revelar sua morte e ressurreição em favor de muitos, todavia seus
interlocutores não tinham condição de entender a mensagem. Após o discurso de Jesus
sobre o pão da vida, muitos discípulos afastaram-se dele. E conclui o capítulo: “Mais do
que sofrido por não lhes ter conquistado com minhas palavras, alanceou-me o coração a
forma com que rejeitavam o amor que só então lhes revelei” (p. 115).
— Capítulo XXXIV: “Aquela a quem chamei mulher” (p. 119-122).
— Intertextualidade bíblica: “Jesus se justifica” (p 121-122; cf. Jo 5, 19-47).
— Comentário: o título do capítulo faz uma remissão à perícope “As bodas em
Caná” (Eu Venho, p. 173-180; Jo 2, 1-11). Acusamos que no texto de Eu Venho, o
vocativo “mulher” não é usado na locução do personagem, contudo é usado no texto do
evangelho (Jo 2, 4), retomado pelo narrador em Eu, Jesus, numa metalinguagem que
explica o sentido do uso dessa palavra: “hábito de respeito, banindo a familiaridade (p.
119).
O capítulo resume em onze parágrafos a perícope “Jesus se justifica”, narrados
na Bíblia em vinte e oito versículos. O texto do romance está assim estruturado: os oito
primeiros parágrafos correspondem aos versículos 19-23; ainda dentro do oitavo
parágrafo estão reescritos os versículos 33-38; o décimo parágrafo reescreve os
versículos 45-46; o décimo primeiro parágrafo, em linguagem figurada, aponta a
154
oposição entre “barreira” x “libertação”. Jesus-narrador diz que ainda queria transmitir-
lhes muito amor, mas não conseguiriam entender, porque havia a barreira das almas e
ele “só conseguiria abri-las quando o dia, enfim, chegasse” (p. 122). Esse “dia” aponta a
para sua morte e ressurreição, meio pelo qual as “barreiras” seriam rompidas e as almas
poderiam alcançar a “libertação”.
— Capítulo XXXV: “Em meu encalço” (p. 122-126)
— Intertextualidade bíblica: “Discussão com os fariseus” (p. 122-123; Mt 15,
1-20; Mc 7, 1-23).
— Comentário: o texto do romance narra a perícope dos evangelhos em nove
parágrafos. O AT (Is 29,13) é lembrado pela voz do narrador, legitimando seu discurso
diante dos fariseus. O tema diz respeito à purificação, hábito dos judeus de lavar as
mãos antes das refeições, o qual Jesus e os discípulos contrariavam. Jesus os exorta a
cumprir o mandamento (Ex 20, 12; 21, 17) e não a tradição. Em Eu, Jesus, a afirmação
de que os fariseus “são falsos servidores de Yaveh” faz parte da voz do narrador, o que
torna o discurso menos agressivo do que na Bíblia, onde a locução é feita por Jesus-
personagem que se dirige diretamente aos seus ouvintes, os fariseus, por ele acusados de
“hipócritas” (Mt 15, 7). A etimologia comprova a sinonímia entre “falso” e “hipócrita”.
Vejamos: “falso” do latim fálsus,a,um 'enganado, iludido, que não é verdadeiro';
“hipócrita” gr. hupokritês,ou ‘fingido, falso, simulado’.
— Capítulo XXXVII: “O fermento” (p. 130-133).
— Intertextualidade bíblica: “A oração” (p. 131; Mt 6, 9-13; Lc 11, 2-4);
“Sinal do céu”. “Fermento dos fariseus” (p. 130-133; cf. Mt 16, 1-12; Mc 8, 11-21; Lc
11, 29-36).
— Comentário: “signo”, como se lê no romance, ou “sinal”, como se lê na
Bíblia (p. 131; cf. Mt 14, 4), significam nos dois contextos o índice de algo que pode
acontecer. A metalinguagem apresentada pela voz do narrador no romance a respeito
dos sinais é intertextual à Bíblia, e diz: nuvens da tarde — bom tempo para o dia
seguinte; céu sombrio da manhã — chuva certa para o dia seguinte (p. 132; Mt 16, 2-3).
Jesus os acusava: “Sois falsos, sabeis dos sinais do céu, e não quereis reconhecer os
sinais do tempo em que estais vivendo?” (p. 132; Mt 16, 3). No discurso, “sinais do
céu” aponta para as mudanças meteorológicas, “sinais do tempo” aponta para a vinda do
Messias-redentor; decodificar esses sinais é aceitar Jesus como o Messias, portanto, o
155
argumento de Jesus prova a hipocrisia dos fariseus e saduceus, que fingem não entender
os sinais de Cristo, para não legitimá-lo (cf. p. 133; cf. Mt 16, 4). A eles não lhes “será
dado outro sinal, senão o de Jonas!”. A afirmação remete ao AT, em que Jonas não quer
aceitar a ordem de Deus e em conseqüência passa pela a “morte” e a “ressurreição” no
ventre da baleia (cf. Jn 1—4).
Os ouvintes no contexto da locução sobre o “Fermento dos fariseus” são os
discípulos; a eles a advertência de Jesus expressa dois sentidos diferentes para a palavra
“fermento”: o que é usado para fazer crescer a massa do “pão”, alimento material que o
Pai não deixa faltar aos que têm fé, e o “orgulho” que faz crescer a “maldade” nos
fariseus e saduceus, de quem os discípulos devem se resguardar (p. 131; cf. Mt 16, 12).
A perícope do evangelho de Mateus e Lucas apresentada no segundo
parágrafo, reescreve nesse capítulo a “petição” do Pai Nosso. O enunciado aponta o
hábito de orarem em comunidade, e Jesus ensinava a seus discípulos a rezar sem
“multiplicar palavras” de forma “breve” (p. 131; cf. Mt 6, 7). O romance apresenta de
forma resumida a oração do Pai Nosso (p. 131; Mt 6, 9-13; Lc 11, 2-4). Por “petição”
entendemos lat. petitìo,ónis 'pedido', cuja coesão se faz com a seqüência do evangelho
de Lucas, em que Jesus afirma que tudo que for “pedido”, Deus providenciará (cf. Lc
11, 9).
— Capítulo XXXIX: “A aura da paixão” (p. 137-139).
— Intertextualidade bíblica: “Primeira predição da Paixão” (p. 137-138; cf. Mt
16, 21-23; Mc 8, 31-33; Lc 9, 22) ; “Renúncia” (p. 138-139; Mt 16, 24-28; Mc 8, 34 —
9,1; Lc 9, 23-27; Jo 12, 25)
— Comentário: a cena do primeiro anúncio da paixão é narrada em analogia à
tentação de Jesus no deserto (cf. Eu Venho, cap. XXXVIII; cf. Mt 4, 1-11). Pedro ocupa
o lugar de “satanás”, porque tanto um quanto o outro agem no sentido de afastar Jesus
da sua missão, que se cumpriria através do amor-serviço, por isso Jesus lhe diz: “para
trás, Satanás! Teus pensamentos não vêm de Deus, mas dos homens” (p. 138; cf. Mt 16,
23).
Na mensagem dirigida aos discípulos e a alguns camponeses, Jesus exorta à
“abnegação”, cuja etimologia aponta para o latim abnegatìo,ónis 'recusa, negação',
sinônimo de renúncia (p. 138; Mt 16, 24-28).
— Capítulo XLI: “Galiléia, últimos dias” (p.146-149).
156
— Intertextualidade bíblica: “Jesus paga o imposto” (p. 148-149; cf. Mt 17,
23-26); “Humildade. Inveja. Escândalo” (p. 148-149; cf. Mt 18, 1-11; Mc 9, 33-48; Lc
9, 46-50); “Quantas vezes perdoar” (p. 149; cf. Mt18, 21a).
— Comentário: o título do capítulo do romance é claro quanto à permanência
de Jesus na Galiléia, em breve ele partiria de Cafarnaum para a Judéia com seus amigos.
O “imposto” a que faz referência o título do evangelho era o tributo que todo
judeu deveria pagar ao templo, assim como mandava a lei de Moisés. Jesus argumenta o
engano de Pedro por pensar que ele estaria sujeito a essa lei. Jesus abstém-se desse
tributo por ser “filho de Yaveh”.
Quanto à “humildade”, o romance reescreve duas máximas presentes nos
evangelhos: “Se alguém quiser ser o primeiro que se faça o último e o servidor de
todos”; e também: “o que se fizer humilde como esta criança (...) será o primeiro no
Reino dos Céus” (p. 149; cf. Mt 18, 3-4; Mc 9, 35.37; Lc 48). Ambas se articulam sobre
antíteses que apontam o caminho para participar da glória do Reino, em contradição aos
valores do mundo.
— Capítulo XLII: “O convite” (p. 150-155).
— Intertextualidade bíblica: “Quantas vezes perdoar” (p. 150; cf. Mt 18, 21-
22); “O evangelho revelado aos pequeninos” (p. 150-151; Lc 10, 21-24) “Parábola do
servo fiel” (p. 150-151; Mt 18, 23-35); “Lição de humildade e tolerância” (p. 153; cf. Lc
9, 49); “Censura às cidades impenitentes” (p. 153-155; cf. Mt 11, 20-24; Lc 10, 13-15).
— Comentário: no evangelho de Mateus a perícope “Quantas vezes perdoar” é
narrada em dois versículos; no romance é reescrita em cinco breves parágrafos, que se
mantêm fiéis ao texto fundador.
Em seguida é narrada a “Parábola do servo fiel”, em paralelo à perícope de
Lucas “O evangelho revelado aos pequeninos”, da seguinte forma: em texto lírico, a
“Parábola do servo fiel”, pela voz de Jesus-personagem, e em prosa, “O evangelho
revelado aos pequeninos”, pela voz de Jesus-narrador, onisciente de tudo que se passa
no contexto, de modo que os dois evangelhos, distintos na Bíblia, têm seus enunciados
entrelaçados no romance. Ao final da narrativa o enunciado da parábola retoma o texto
em prosa (cf. p. 150-151). O tema é o “perdão” e Jesus conclui com a sentença: “Desta
maneira, sereis tratados por meu Pai, se não perdoardes vossos devedores” (p. 151; cf.
Mt 18, 35).
157
— Capítulo XLIII: “O lavrador não olha para trás” (p. 155-159).
— Intertextualidade bíblica: “Três casos de vocação” (p. 155-156; Lc 9, 57-62;
Mt 8, 18-22); “Obstinação dos judeus” (p.157; cf. Jo 12, 47).
— Comentário: os temas das perícopes dos evangelhos de Mateus e Lucas
apresentam três homens que se dirigem a Jesus dizendo querer segui-lo, onde quer que
fosse. Ao primeiro Jesus responde: “(...) O Filho do Homem (...) não tem sua toca nem
lugar que lhe pertença para pousar a cabeça fatigada” (p. 156; Mt 8, 20); ao segundo
Jesus lhe dirige a palavra dizendo: “Deixa que os mortos enterrem seus mortos” (p. 156;
Mt 8, 22); o terceiro caso é tratado apenas no evangelho de Lucas e, a esse homem,
Jesus propõe: “Não olha nunca para trás o homem que move o arado” (p. 156; Lc 9, 62).
De acordo com o contexto do romance, que remete ao contexto do evangelho, todas as
respostas dadas por Jesus trazem uma mensagem implícita. Na primeira, segui-lo não
significa livrar-se de problemas, porque ele próprio tem problemas e dificuldades a
enfrentar. A segunda resposta aponta para a falta de esperança no coração dos homens,
dos que, embora vivos, estão mortos no coração. A terceira resposta remete ao AT, à
mulher de Lot, que olhou para trás e se tornou pedra (Gn 19, 26), ou seja, está implícito
no seguimento a Jesus o caminhar sempre para frente. Em oposição à desesperança,
Jesus propõe a alegria de anunciar a Boa Nova. E o enunciado completa: “Saímos
depressa e os três se puseram de acordo em acompanhar-nos. E vivos e mortos ficaram
para trás, e morta estava Cafarnaum, onde eu tivera o pouso de Pedro” (p. 156). É a
mensagem de vida nova, o olhar voltado para as obras do Reino.
O período “Não vim destruir, mas salvar” é o único trecho do capítulo que faz
referência ao evangelho (p. 157; Jo 12, 47), cuja perícope “Obstinação dos judeus”,
compreende os versículos 37 a 50. O período é composto por coordenação, a oração
principal é iniciada pela negativa “não”; o sujeito desinencial “eu” refere-se a Jesus no
espaço da enunciação; a oração coordenada adversativa “mas salvar” deixa implícito o
auxiliar “vir”, que semanticamente compõe a locução verbal “vim salvar”, de sentido
oposto à locução verbal “vim destruir”, ou seja: “Eu vim salvar, eu não vim destruir”.
Capítulo XLVII: “Um luzeiro” (p. 175-180).
— Intertextualidade bíblica: “Discussão entre Jesus e os fariseus” (p.175-178;
cf. Jo 8, 12-44); “O bom pastor” (p. 179; cf. Jo 10, 1-21).
— Comentário: o título do capítulo refere-se ao recorte do AT, sobre um
“luzeiro”, “uma grande luz” que brilhou “nas regiões sombrias” (p. 175; Is 9,1) e remete
158
ao NT, à voz de Jesus que diz: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue tem a luz da
vida”, o texto do evangelho completa: “não andará nas trevas” (p. 175; cf. Jo 8, 12).
Conforme lemos em Schökel, “toda a discussão gira em torno da identidade e missão de
Jesus, definidas por sua origem, o Pai, e seu destino, a vida eterna, frente à origem e
destino dos chefes incrédulos” (cf. p. 2575).
A perícope sobre “O bom pastor” é narrada no evangelho de João em 21
versículos (Jo 10, 1-21). O recorte intertextual no romance é narrado em cinco
parágrafos (p. 179). O discurso de Jesus desenvolve três metáforas: o pastor e os ladrões
(vv. 1-10); o dono e o assalariado (vv. 11-13). A terceira metáfora é mais sutil e revela a
relação de Jesus com suas ovelhas (vv. 14-16), qual seja ele as conhece pelo nome e elas
conhecem sua voz. Este trecho busca legitimidade no AT: Chamei-te por teu nome, tu
és meu (Is 43, 1). A descrição (significante) evoca a imagem do pastor, símbolo dos reis
desde o rei-pastor, Davi (significado). Jesus assume o título real, colocando-se no lugar
do pastor.
— Capítulo XLVIII: “Se tu és o Cristo” (p. 180-183).
— Intertextualidade bíblica: “Festa da Dedicação” (p. 181-182; cf. Jo 10, 22-
30); “Os judeus querem apedrejar Jesus” (p. 182; cf. Jo 10, 31-39).
— Comentário: importa notar o ruído na comunicação: Jesus, o emissor, fala
aos judeus, destinatários, e eles não compreendem a mensagem. Vejamos: Se tu és o
Cristo, dize-o francamente! (...) Já vos declarei, mas não me crestes. Minhas obras
assim o demonstraram. Não sois minhas ovelhas; elas, sim, ouvem minha voz...” (p.
181; Jo 10, 25-26).
Jesus declara: “Eu e o Pai somos um”. Por essa afirmação os judeus querem
apedrejá-lo sob a acusação de blasfêmia (p. 182; Jo 10, 31), mais uma razão que
determinará sua sentença de morte (p. 244).
— Capítulo XLIX: “A concha do Batista” (p. 183-187).
— Intertextualidade bíblica: “Discussão a respeito de um milagre” (p. 185-
187; cf. Mt 12, 22-30; Mc 3, 20-30; Lc 11, 14-28); “Pecado contra o Espírito Santo” (p.
187; Mt 12, 31-37; Mc 3, 20-28).
— Comentário: nas perícopes a que nos referimos acima os sinóticos
apresentam uma seqüência textual semelhante, porém somente em Lucas há uma
ocorrência sobre Maria, mãe de Jesus, que confirma a voz de Isabel na Visitação (Eu
159
Venho, cap. I; cf. Lc 1, 45. Uma mulher pobre do povo gritou: “Bem-aventurada foi tua
mãe!” (p. 187; cf. Lc 1, 45).
A metalinguagem presente nesse capítulo explica a palavra “‘Belzebu’,
derivado de “Zabal” — estercoso — que também pode ser “senhor do esterco” (p. 187).
Encontramos no dicionário Houaiss, a etimologia de “belzebu”, do latim eclesiástico
beelzebùb,bùl, adaptado do grego beelzeboúl, por sua vez tomado ao hebraico
ba'alzebúl 'satanás', literalmente ba'al 'senhor' + zebuub 'mosca'. Entendemos o
significado de Zabal como uma derivação por metonímia.
— Capítulo L: “Porque Moisés vos permitiu repudiar vossas esposas” (p. 187-
192).
— Intertextualidade bíblica: “Debates sobre o matrimônio” (p. 188-189; cf. Mt
19, 3-12; Mc 10, 1-12); “O jovem rico” (p. 191-192; cf. Mt 19, 16-29; Mc 10, 17-39; Lc
18, 18-30); “Jesus abençoa as crianças” (p. 190; cf. Mt 19, 13-14; Mc 10, 13-16; Lc 18,
15-17).
— Comentário: o discurso de Jesus aponta para duas possibilidades de relação
entre o homem e a mulher: ela pode ser “esposa” ou “concubina”. No discurso do
romance “esposa” está em oposição a “concubina”, e Mateus se refere a “matrimônio
falso”. Porém, nem o romance, nem o evangelho deixam claro o sentido de “matrimônio
falso”. Fala também sobre “eunucos” ‘indivíduos impotentes’ que assim se faziam para
servir ao Senhor, portanto aqueles que não se unirão em matrimônio à mulher alguma
(p. 189).
Nesse capítulo Jesus é apresentado quebrando mais um preconceito: acolheu
as crianças, sobretudo amou-as e abençoou-as. Diz o relato do romance: “Impus-lhes
minhas mãos no alto de suas frontes quentes do sol” (p. 190; Mc 10, 16).
— Capítulo LI: “A lâmpada do teu corpo é o teu olho” (p.192-196).
— Intertextualidade bíblica: “Jesus recusa um prodígio” (p. 192; Lc 11, 34-
36); “Ameaças a Herodes” (p. 195-196; cf. Mt 23, 37-39; Lc 13, 31-35); “Acusações
contra os escribas e os fariseus” (p. 193-194; cf. Mt 23, 13-39; Mc 12, 35-37; Lc 11, 37-
54).
— Comentário: o título do capítulo refere-se ao evangelho de Lucas, 10, 34-
36, transcrito da perícope “Jesus recusa um prodígio” a qual é narrada no capítulo
apenas em um período no primeiro parágrafo.
160
O trecho bíblico “Ameaças a Herodes” só é relatado no evangelho de Lucas
13, 31-33. A voz de Jesus dirigida aos soldados acusa Herodes de raposa velha,
metáfora muito bem entendida pelos seus destinatários (p. 195).
No texto “Acusações contra os escribas e os fariseus”, o discurso de Jesus
retoma o sentido da ironia, ao qual se refere como “ironia do bem que já havia proposto
a meus discípulos” (p. 193). Ele diz: “Ai de vós, fariseus!” E exorta-os quanto à
vaidade, pois desejavam ocupar os primeiros lugares nas sinagogas, para serem
reverenciados. E continua: “Ai de vós! Sois como sepulcros caiados (...)”, e mais uma
vez exorta-os sobre a falsidade, uma bela aparência exterior e por dentro a podridão. O
discurso mostra a verdadeira pureza, aquela que está “na profundeza do coração”. Jesus
ainda os acusa pela morte dos profetas, “de Abel até Zacarias” (p. 194; Mt 23, 31-36).
No texto de Mateus 23, 1-37, os “ais” são repetidos por sete vezes, gênero que reproduz
textos proféticos, dentre eles citamos Is 5, 8-23. E os fariseus e escribas sentiram-se
ameaçados, “dali por diante o ódio desses homens não teria mais pausa” (p. 194).
A narrativa expressa a lamentação “Jerusalém, Jerusalém!” e termina com
remissões ao AT: a Isaías 31, 5, que diz: “quis reunir teus filhos como a ave que cobre o
ninho com as asas”; a Jeremias 7, 14-15: “vossa casa vos é deixada deserta”; a uma
invocação ao Salmo 117, 26: “Bendito o que veio em nome do Senhor”, cuja referência
é escatológica (p.196).
— Capítulo LII: “Eu vou para acordá-lo” (p. 196-204).
— Intertextualidade bíblica: “A ruína de Jerusalém e o fim dos tempos” (p.
197; cf. Mt 24, 17-18; Mc 13, 15-16; Lc 21, 21-22); “Vinda do reino de Deus” (p. 197;
cf. Lc 17, 32-33);
— Comentário: o discurso intertextual relatado no romance sobre “A ruína de
Jerusalém e o fim dos tempos” e a “Vinda do Reino de Deus” ocupa apenas dois
parágrafos compostos de três curtos períodos. É possível que a simbologia da linguagem
apocalíptica deixe antever o final dos tempos, embora não possa ser interpretada
objetivamente por ser considerada metafórica. Contudo, é clara a mensagem de uma
grande ameaça para a qual é aconselhada a fuga rápida “quem estiver no campo não
volte para pegar o manto” (p.197; Mt 24, 18), e nem mesmo olhe para trás, referência
feita à mulher de Lot (p. 197; Lc 17, 32; Gn 19, 26).
— Capítulo LIII — “Era quase a lua da Páscoa” (p. 204-208).
161
— Intertextualidade bíblica: “Jantar em Betânia” (p. 205; cf. Mt 26, 6-13; Mc
14, 1-9; Jo 12, 1-8).
— Comentário: esse capítulo confirma a purificação de Jesus antes da Páscoa.
Maria, irmã de Lázaro, ungiu Jesus com perfume de nardo puro que trazia em ânfora de
alabastro. Untou-lhe os cabelos e também seus pés “a casa recendeu, toda ela, ao nardo
mais caro” (cf. p. 205; cf. Mt 26, 7; Jo 12, 3). Há dois olhares sobre o episódio: o
discurso do narrador que aceitava a unção de Maria como o bálsamo em seu corpo
preparando-o para o sepultamento; o segundo olhar, o de Judas Iscariotes, que
reprovava, considerando um desperdício, porque a soma do valor do nardo deveria ser
doada aos pobres. Destacamos dois sentimentos antagônicos: a “gratidão” de Maria e a
“decepção” de Judas, que o levou a entregar Jesus aos seus perseguidores.
— Capítulo LIV: “Rejubila-te, filha de Sião” (p. 208-214).
— Intertextualidade bíblica: “A figueira amaldiçoada” (p. 212; Mt 21, 18-19;
Mc 11, 12-14); “Fé em Deus e poder da oração” (p. 212-213; cf. Mt 21, 20-22; Mc 11,
20-23).
— Comentário: Jesus amaldiçoa a figueira. Destacamos algumas marcas que
apontam para a árvore: “solitária”, “robusta”, “verde”, “viço”, “improdutiva”. O
seguinte recorte justifica a maldição lançada sobre ela: “gozava da vida por ela mesma,
mas não a oferecia a ninguém”. O enunciado seguinte é incongruente em relação ao
anterior: “a figueira, que só duas luas mais tarde (...) poderia apresentar seus frutos”.
Essa perícope representa ações misteriosas características dos profetas, as quais só mais
tarde poderão ser entendidas.
A perícope seguinte “Fé em Deus e poder da oração” é resumida a um
parágrafo de quatro linhas. Nela Jesus revela com autoridade a relação direta entre fé e
oração, com o poder que vem de Deus.
— Capítulo LV: “O vento e as palavras” (p. 214-217).
— Intertextualidade bíblica: “Autoridade de Jesus” (p. 214-215; Mt 21, 23-27;
Mc 11, 27-33; Lc 20, 1-8); “Imposto do imperador” (p. 216-217; Mt 22, 15-22; Mc 12,
13-17; Lc 20, 20-26).
— Comentário: o título do capítulo (significante) traz à mente o sentido do
dito popular (significado): “palavras com o vento se vão”. A leitura do enunciado
mostra a intenção de opor “quaisquer palavras” às “palavras do Senhor”, as primeiras se
162
perdem com o vento, as outras não se perdem, porque “as palavras do Senhor não
passariam”, pois são legitimadas pelas Sagradas Escrituras (p. 214; cf. Mt 24, 35).
Os homens do Sinédrio se adiantavam em argüir Jesus, que pregava no templo,
onde só pessoas autorizadas podiam pregar. A pergunta que lhe fazem traz um ar de
ironia: “Dize-me tu... Com que autoridade te comportas assim no Templo? Quem te
haverá dado esse poder?” (p. 214; Mt 21, 23). A resposta de Jesus segue o estilo
rabínico, pois ele responde perguntando-lhes: “Com a autoridade que possuía João em
conferir o batismo; agora, bem, dizei-me, esse batismo era ou não do céu?” (p. 214; Mt
21, 25). Destarte gerava controvérsia com a pergunta, pois referia-se ao batismo de
João, sobre quem não se atreveriam a dizer má palavra, portanto, qualquer que fosse a
resposta os deixaria comprometidos com seu ouvintes. Saíram os doutores da lei sem
dar nem receber resposta alguma.
— Capítulo LVI: “Esta glória será sangrenta” (p. 217-221).
— Intertextualidade bíblica: “Oferta da viúva” (p. 220; cf. Mc 12, 41-44; Lc
21, 1-4); “Discurso escatológico: Destruição do Templo” (p. 221; cf. Mt 24, 1-14; Mc
13, 1-13; Lc 21, 5-19).
— Comentário: o texto “Oferta da viúva” é narrado em dois parágrafos no
romance e em quatro versículos na Bíblia. Essa viúva representa tantas outras viúvas
indefesas exploradas pelo sistema dominante. Ela põe em contraste a pureza do culto,
vivido como amor e sacrifício, diante da cobiça de “todos os outros” a quem Jesus
denunciava (p. 220; cf. Mc 12, 42-43). “Todos os outros” aponta para os ricos que
faziam grandes ofertas apenas por tradição e interesse pessoal (p. 220; cf. Mc 12, 44).
A perícope sobre a “Destruição do Templo” é apresentada na Bíblia como um
“discurso escatológico” e o romance se fundamenta na intertextualidade. De acordo com
a etimologia da palavra, temos: escato- (grego éskhatos,é,on 'extremo, último') + -logia,
cujo significado no contexto diz respeito à doutrina que trata do destino final do homem
e do mundo; apresenta-se em discurso profético, que aponta um contexto
“apocalíptico”, do grego apokaluptikós,ê,ón 'que revela, que descobre', em sentido
figurado ‘difícil de entender; ‘que evoca o fim do mundo, o fim dos tempos;
catastrófico’.
— Capítulo LVII: “A abominação da desolação” (p. 222-227).
— Intertextualidade bíblica: “Discurso escatológico: A grande tribulação” (p.
163
222; cf. Mt 24, 15-28; Mc 13, 14-23; Lc 21, 20-24); “Discurso escatológico: A parusia”
(p. 222-223; cf. Mt 24, 29-31; Mc 13, 24-27; Lc 21, 25-28); “Discurso escatológico: O
dia e a hora” (p. 223; cf. Mt 24, 32-44; Mc 13, 32-37; Lc 17, 26-30.34-36); “Obstinação
dos judeus” (p. 227; cf. Jo 12, 40.44); “Discussão entre Jesus e os fariseus” (p. 227; cf.
Jo 8, 12).
— Comentário: a perícope “A grande tribulação” é continuação do texto
narrado no capítulo LVI. O sintagma “A abominação da desolação”, título desse
capítulo, corresponde à tradução do sintagma presente em King James Bible, “the
abomination of desolation (Mateus 24, 15), e refere-se à entronização do ídolo
abominável no altar sagrado, caracterizando o total domínio romano (cf. Eu, Jesus, p.
222; cf. Schökel, p. 2375). Daí decorrem as “tribulações”; vemos que “tribulação” tem
origem no latim tribulatìo,ónis 'tormento'. Jesus dá conselhos aos que viverem esses
dias de grande tormento e exorta à vigilância.
Em seguida, a perícope “A parusia” é resumida no romance a dois parágrafos,
os quais anunciam sinais na mudança da natureza, no sol, na lua e nas estrelas, que
apontam para a volta do Filho do Homem.
São imprevisíveis “o dia e a hora” em que todos esses fatos ocorrerão. As
interpretações dizem respeito à ressurreição de Jesus, que inaugura uma nova era, ou
uma explicação diacrônica que corresponde à vinda do Messias e queda de Jerusalém,
ou ainda à expectativa da parusia para tempos futuros (cf. Bíblia do Peregrino, p. 2376).
Como “parusia” entendemos a segunda vinda de Cristo, palavra grega que significa:
vinda, chegada (cf. Bíblia católica on line).
Ao final do capítulo a autora faz recortes do evangelho de João, dando-lhes
uma nova forma no romance. O texto remete também a Isaías 6, 10, que resume o
sentido do discurso: aqueles que ouviam Jesus pregar no templo, já não o
compreendiam, na certeza de que ele estava perdido, “e é difícil amar aos que se
perdem, ainda que seja pelo amor de Yaveh” (p. 227).
— Capítulo LX: “O espírito da verdade” (p.239-243).
— Intertextualidade bíblica: “Oração em nome de Jesus” (p. 239; cf. Jo, 16,
23-28).
— Comentário: o primeiro parágrafo apresenta a metalinguagem através do
discurso do narrador, que explica: “Falei-lhes antes em parábolas, mas a hora chegou
em que claramente anunciarei o segredo de meu Pai”. Jesus continua ensinado aos
164
discípulos a se dirigirem a Deus em seu nome, em oração.
A oração, segundo Jesus, é um instrumento autêntico de encontro íntimo da
pessoa com Deus, Aquele que tudo pode. A palavra “intercessão” traduz esse vínculo
criado, cujo sentido designa a ação de “interceder”, que se origina do latim
intercédo,is,céssi,céssum,cedère 'interpor-se, mediar', ou seja, através da oração é criado
um elo mediador entre o ser e o Senhor, que por misericórdia concede a graça, em nome
de Jesus (p. 239; cf. Jo 16, 23).
6.3 Milagres
— Capítulo IV: “Bem vos digo diferente” (p. 24-27)
— Intertextualidade bíblica: “Cura do filho de um oficial” (Jo 4, 43-54).
— Comentário: o romance reescreve a “Cura do filho do oficial” mantendo a
seqüência textual e a mensagem como se encontram no texto fundador. O evangelho
afirma que o oficial insistiu para que Jesus fosse ver seu filho em sua casa e se
surpreende em saber que Jesus poderia curá-lo sem vê-lo.
Fato que determina o milagre: a grande fé desse personagem na cura que Jesus
poderá realizar.
— Capítulo VI: “Chamou-me Cafarnaum” (p. 34-37)
— Intertextualidade bíblica: “Pesca Milagrosa” (p. 36-37; cf. Lc 5, 1-11).
— Comentário: a ordem de Jesus foi precisa: “Guia teu barco até ficares a
meio das águas, onde são mais profundas. E ali, com André, lançarás a rede”. Simão
Pedro dá a palavra de fé: “E só para agradar (a Jesus) nós lançaremos de novo as redes”
(p. 36; Lc 5, 4-5). São personagens nesse recorte do capítulo: Simão Pedro, André, seus
companheiros, remeiros — todos pescadores — e Jesus. O sintagma “interior vazio de
seus barcos” aponta para o tipo de milagre esperado, como propõe o título do capítulo
de Lucas.
O título “Chamou-me Cafarnaum diz respeito à atração das águas do mar
sobre Jesus, expressa na pergunta retórica feita pelo enunciador: “(...) mas por acaso as
águas não me haviam chamado?” O desejo pelo encontro de Jesus com o mar é claro
também no seguinte recorte: “A minha mão direita tremia do desejo de acariciar o cimo
das águas de Genezaré, como o esposo deseja tocar o ventre da mulher amada (...)
165
promessas de abundância” (p.35). A metáfora contida em “mar como ventre da mulher
amada”, revela a explosão de vida que deveria ocorrer.
A pesca em abundância simboliza a generosidade do amor Deus, e o ato
“pescar” é símbolo da missão apostólica. A grande quantidade de peixes que entraram
na rede é metáfora de um grande povo que viria formar a igreja de Cristo.
— Capítulo VII: “A noite de Simão Pedro” (p. 38-41).
— Intertextualidade bíblica: “Cura de um leproso” (p.38-41; cf. Mt 8, 1-4; Mc
1, 40-45; Lc 5, 12-16).
— Comentário: é notável a fé do leproso. Em todos os evangelistas o relato é
semelhante: “Bastará querer, e tu poderás curar-me” (p. 40; cf. Mt 8, 2; Mc 1, 40; Lc 4,
12). A resposta no texto bíblico é dada pela voz de Jesus-personagem: “Eu quero, sê
curado”. No romance o desejo de curar o leproso é expresso pela voz de Jesus-narrador:
“Sim, eu bem queria. Espalmei minha mão sobre sua testa” (p. 40; cf. Mt 8, 3; Mc 1, 41;
Lc 5, 13). A palavra tami é usada duas vezes pelo leproso ao gritar por Jesus. Essa
palavra em hebraico significa “perfeito”.
— Capítulo VIII: “O que veio do teto” (p. 41-46).
— Intertextualidade bíblica: “Cura de um paralítico” (p. 41-46; cf. Mt 9, 1-8;
Mc 2, 1-12; Lc 5, 17-26).
— Comentário: “Levanta-te. Toma teu leito e vai para tua casa” (p. 45; Mt 9,
6; Mc 2, 9; Lc 5, 24). Nesse enunciado há três verbos no imperativo: levantar, tomar e
ir. A voz da locução, primeira pessoa do discurso é de Jesus; a segunda pessoa é o
paralítico, que recebe a palavra e a cura. O sentido dos verbos evolui no discurso na
ordem da resposta esperada daquele que seria curado: “levanta”, “toma”, “vai”. O
paralítico havia chegado a Jesus em uma cama descida do teto por uma corda, porque a
casa de Pedro, lugar onde se encontravam, estava cheia de gente, inclusive fariseus e
doutores da lei que investigavam Jesus, para dele discordarem. O motivo maior da
discórdia foi o fato de Jesus ter perdoado os pecados ao paralítico, pois “só o Senhor
podia perdoar os pecados” (p. 45).
Nem a narrativa bíblica, nem a ficcional relatam que o paralítico tenha pedido
perdão. Não obstante esse silêncio, Jesus se dirige ao homem, dizendo-lhe: “Teus
pecados estão perdoados” (p. 45; Mt 9, 2). O texto do romance informa que Jesus
adivinhou-lhe o balbucio e a “firme vontade de manifestar a mesma palavra” (p. 44).
166
— Capítulo IX: “A mão que se abre” (p. 52-55).
— Intertextualidade bíblica: “Cura operada no sábado” (p. 52-55; cf. Mt 12, 9-
21; Mc 3, 1-12; Lc 6, 6-11.17-19).
— Comentário: o milagre abre a mão seca do homem, além disso, abre os
olhos àqueles que presenciaram a cura, por haver Jesus realizado uma ação considerada
um trabalho no sábado pela lei que proibia “trinta e nove ocupações no dia de sábado”,
até mesmo curar (cf. p. 54). Seu discurso leva os fariseus a silenciarem diante de sua
proposição. Ele perguntou: “Uma ovelha valerá mais que um homem? Abre tua mão!”
— Capítulo XV: “Música para um morto” (p. 67-69).
— Intertextualidade bíblica: “O filho da viúva de Naim” (p. 68-69; cf. Lc 7,
11-17).
— Comentário: trata-se de uma mulher viúva, cujo filho havia morrido.
Durante a narrativa desse capítulo, Jesus toma a palavra duas vezes. São duas locuções
imperativas. Ele diz, bem de leve, “ao ouvido da mulher, toda embebida em pranto: Não
chores mais”. E ao seu jovem filho morto, ele ordena: “Levanta-te” (p. 69; cf. Lc 7, 14).
O enunciado do último parágrafo afasta-se do texto fundador, já que no
evangelho todos “glorificavam a Deus” (cf. Lc 7, 16), contudo o romance revela a fala
dos que presenciaram o fato que traz implícita a dúvida: “Mas ele então sofria de
desmaios?”. A resposta da mãe revela a verdadeira fé, pois ela dizia “que não, que
aquilo fora um milagre” (p. 69).
O enunciado apresenta ainda em metalinguagem o nome da cidade “Naim”,
“apelidada ‘A Bela’” (p. 68).
— Capítulo XVII: “O encontro, enfim” (p. 73-77).
— Intertextualidade bíblica: “Piedosas mulheres acompanham Jesus” (p. 73-
77; cf. Lc 8, 1-3).
— Comentário: a palavra “enfim integra o sintagma que forma o título que é
composto pelo artigo masculino “o”, o qual determina o nome “encontro”, a palavra
“enfim” aponta para o fato — o encontro — modificando-lhe o sentido, pois não é
qualquer encontro, é o encontro esperado, que “enfim” aconteceu. No romance esse
encontro diz respeito a Maria de Magdala que vai até Jesus, que há muito desejava curá-
la, desde a adolescência de ambos quando se encontraram à beira de um poço (cf. Eu
167
Venho, p. 104-108). Como já foi estudado, na Bíblia “poço” traz em si a conotação do
encontro.
A cada movimento de Jesus durante a cura apontamos a libertação
correspondente. Vejamos: “pressionei minha mão na sua cabeça (...) “A memória de
Maria de Magdala estava alcançada, vencida, pacificada; “Desci minha mão por seu
nariz belo e perfeito” (...) “numa fácil respiração depois do sono”; “Escorregaram os
dedos pela boca e lhe mediram o contorno” (...) “hálito morno e já dizendo do seu
saudável humor”; “alarguei minha mão em seu ventre” (...) “já não era mais prenhe dos
tão maléficos que a habitavam”. E Jesus sussurrou a Maria de Magdala: “Levanta-te,
estás curada!”. O grande cão negro, marca da sua doença, distanciou-se dela “para
sempre. E ela não o chamou” (p. 75).
Esse encontro de Jesus com Maria de Magdala não é intertextual à Bíblia,
porém o último parágrafo relata um trecho intertextual, que diz que Maria, curada,
juntar-se-ia às mulheres piedosas que viviam na companhia de Jesus e dos discípulos
(Lc 8, 1-3).
Importa ainda ressaltar que Jesus se ajoelhou junto ao corpo desfalecido de
Maria para curá-la, sinal de humildade do Senhor diante da pecadora (p.75).
— Capítulo XXIII: “Mar — Escuta” (p.90-93).
— Intertextualidade bíblica: “Tempestade acalmada” (p. 90-93; Mt 8, 23-27;
Mc 4, 35-41; Lc 8, 22-25).
— Comentário: a perícope “Tempestade acalmada” é narrada em poucos
versículos na Bíblia, a saber: cinco em Mateus, sete em Marcos e quatro em Lucas. No
romance, esse mesmo texto é reescrito em vinte parágrafos, que acrescentam ao texto
fundador descrições detalhadas da cena, os pensamentos revelados dos personagens, as
memórias ligadas ao fato, que pertencem ao campo da ficção.
Em discurso direto, a voz de Jesus se faz ouvir por três vezes durante toda a
narrativa. Ele se dirige a palavra às águas revoltas do mar, ordenando-lhes calma e
quietude, do mesmo modo que usava sua palavra “para ensinar e acalmar, curar e
serenar” (p. 92). São verbos usados no imperativo pelo personagem: “acalmai-vos”,
“serenai”, “desça a calma”, “aquietai-vos”.
Em Eu, Jesus, há uma citação transcrita do AT, que confirma Jesus como o
Senhor, capaz de pacificar as ondas do mar (cf. p. 92; Sl 88, 10). Essa transcrição não
existe nos evangelhos intertextuais ao capítulo.
168
Nos evangelhos e no romance a falta de fé dos discípulos é censurada por
Jesus. Nos evangelhos ele exorta os discípulos, dirigindo-lhes sua fala, como citamos:
“Por que este medo, gente de pouca fé?” No romance, o relato é feito pelo pensamento
do narrador: “Por detrás da minha cabeça o salmo se extinguia, como que em vergonha
pela falta de fé que em mim tiveram, mostrada no chamamento de Mestre” (p. 92; Mt 8,
26). Em hebraico, a palavra para “mestre” teria sido “rabi”, cujo significado distingue
aquele que ensina, aquele que tem a autoridade dos doutores da Torá, portanto, para os
discípulos, essa palavra identificava o lugar social de Jesus e marcava a distância entre
eles.
— Capítulo XXIV: “Meu nome é legião” (p. 93-95).
— Intertextualidade bíblica: “O possesso e os porcos” (p. 93-95; cf. Mt 8, 28-
34; Mc 5, 1-20; Lc 8, 26-39)
— Comentário: o romance é intertextual à Bíblia, mais precisamente ao
evangelho de Marcos, e relata um caso de exorcismo. Dois homens possessos por
demônios foram libertos por Jesus.
O título diz respeito à resposta dada pelo demônio, quando Jesus indagou seu
nome; o demônio lhe disse: “Meu nome é legião”, porque na verdade eram muitos (p.
94; Mc 5, 9). Lemos na etimologia de “legião”, do latim legìo,ónis 'corpo de tropa,
agrupar e arrumar para combate'. Eles não estavam dispostos a combater Jesus, por isso
rosnavam: “Eu te esconjuro! Não me persigas!...” Ao que Jesus ordenava: “Imundo, sai
desse corpo” (p. 94; cf. Mc 5, 7-8).
No último parágrafo há um índice da vinda do Espírito Santo, não intertextual
ao evangelho. A voz do narrador anunciou que o Espírito viria como um acontecimento
muito poderoso para abrir aos discípulos “o juízo ainda pequeno” (...) “porque afinal eu
os queria grandes e fortes, mas eram rudes pescadores do mar da Galiléia, e
trabalhadores dos campos de Nazaré” (p. 95).
— Capítulo XXV: “A floresta do acontecido” (p.95-97).
— Intertextualidade bíblica: “Cura da sogra de Pedro e diversos milagres” (p.
95-97; Mt 8, 14-17; Mc 1, 29-34; Lc 4, 38-41).
— Comentário: os 21 parágrafos desse capítulo reescrevem a cura de Ester,
sogra de Pedro, que faz parte da perícope “Cura da sogra de Pedro e diversos milagres”,
narrada apenas em dois versículos em Mateus, três em Marcos e em um versículo em
169
Lucas. O capítulo do romance e os três evangelhos seguem a mesma seqüência textual,
a saber: Jesus foi à casa de Pedro; a sogra de Pedro sofria de febre alta; Jesus curou-a;
ela se pôs a servi-los. Dentre outros acréscimos, no romance, a sogra de Pedro ganha um
nome: Ester; pela voz do narrador Jesus afirma que “de todas as curas, aquela seria uma
inesquecida (...) porque Ester como que recobrava seu tempo perdido” (p. 97).
— Capítulo XXVII: “Da mulher impura e da menina que dormia” (p. 100-
102).
— Intertextualidade bíblica: “A filha de Jairo” “A mulher doente” (p. 101-102;
cf. Mt 9, 18-26, Mc 5, 21-43; Lc 8, 40-56).
— Comentário: o capítulo XXVII, intertextual ao evangelho, narra dois
milagres realizados por Jesus, cujos relatos se cruzam: a cura da menina à beira da
morte, filha de Jairo, chefe da sinagoga, e a cura de uma mulher que sangrava
continuamente havia muitos anos. Jesus surpreende a todos porque, diante de Jairo que
suplicava por sua filha, ele fez a seguinte pergunta: “Quem me tocou?” (p. 101; Lc 8,
45). Sua fala era incoerente com a situação; à Jairo ele decepcionou, já que ele esperava
a resposta afirmativa de Jesus, em relação à menina; aos discípulos ele surpreendeu,
porque havia uma multidão ao seu redor e todos tocavam nele. Mas pergunta
aparentemente deslocada, fazia sentido para Jesus e para a “hemorroíssa” — ‘mulher
que padece de hemorragia’ — que o “havia tocado com fé muito doce” e ficou curada
de seu sofrimento e do preconceito que sofria (p. 101; cf. Mt 9, 22).
Quanto à filha de Jairo, Jesus ressuscitou a menina. Ao chegar à casa de Jairo
ele exclamou mostrando alegria: “Mas ela está dormindo! (...) Acorda menina! E ela
acordou” (p. 102; cf. Lc 8, 52-55).
— Capítulo XXIX: “Apartados de nós estávamos” (p. 104-106).
— Intertextualidade bíblica: “Primeira multiplicação dos pães” (cf. Mt 14, 13-
21, Mc 6, 30-44; Lc 9, 10-17; Jo 6, 1-16).
— Comentário: o primeiro e o segundo parágrafos desse capítulo apresentam a
proposta do registro da comunidade, porque “bastam dez para fundar uma comunidade”
(p. 104). O enunciado deixa subentendido que estavam unidos, porém não havia um
reconhecimento formal de seu grupo. Essa afirmação feita no romance não é intertextual
à Bíblia.
As palvras-chave do tema desse capítulo, intertextual ao evangelho, são
170
“ironia do Bem” (cf. Eu Venho, p. 123) e “um reino maior” (p. 106). As cinco mil
pessoas foram alimentadas a partir de cinco pães e dois peixes. A ironia do bem está
presente na ordem dada por Jesus aos discípulos para que distribuíssem entre aquela
multidão, os pães e os peixes, depois os ter abençoado. Os discípulos não entenderam e
Jesus também não explicou. O último período do capítulo revela, pela voz do narrador,
o verdadeiro milagre que Jesus oferecia àquele povo sofrido, além do amor que tinha
por eles, “um reino maior que o do Rei Herodes” (p. 106).
— Capítulo XXXI: “O Fantasma” (p. 110-111).
— Intertextualidade bíblica: “Jesus caminha sobre as águas” (p. = ; Mt 14, 22-
36; Mc 6, 45-56; Jo 6, 16-21).
— Comentário: o capítulo do romance apresenta duas opiniões opostas sobre
Jesus: “o fantasma” e o “Filho de Deus”. O “fantasma” é Jesus que caminha sobre as
águas, antes de ser reconhecido pelos discípulos; o “Filho de Deus” é o mesmo Jesus
reconhecido, que resgata Pedro que afundava no mar. A narrativa revela a polifonia
presente em “contradição”, que remete à voz de Simeão recebendo Jesus no templo (cf.
Eu Venho, cap. X; Lc 2, 34;). Observando a etimologia, é mais claro o sentido da fala de
Jesus ao referir-se a “contradição”, qual seja do latim contradictìo,ónis 'objeção,
réplica'; ‘oposição às opiniões’, desde muito cedo presente em sua vida.
— Capítulo XXXV: “Em meu encalço” (p. 123-126).
— Intertextualidade bíblica: “A cananéia” (p. 123-cf. Mt 15, 21-28; Mc 7, 1-
23).
— Comentário: a mulher cananéia dá prova de “fé” e “humildade”. O
enunciado afirma que Jesus endureceu a fala, dirigindo-se a ela que suplicava pela filha,
e lhe disse “É preciso saciar antes os filhos, pois não se deve tirar o pão dos filhos para
atirá-los aos cachorrinhos”, ao que a mulher respondeu: “É verdade, profeta, mas os
cachorrinhos ficam debaixo da mesa esperando que as crianças lhes atirem as migalhas”
(p. 125; cf. Mt 15, 26-27). Compreende-se no lugar dos filhos, os amigos de Jesus; a
mulher não se envergonhou de se colocar no lugar dos cachorrinhos, e recebeu a cura de
sua filha. Jesus afirmou: “a mulher encontrara o caminho do meu socorro — Vai, vai
depressa para casa mulher! Lá encontrarás tua filha pacificada” (p. 126; cf. Mt15, 28).
O romance dá nome à mulher: Justa, e também à sua filha, Berenice. Em nota
de rodapé, a autora esclarece que seus nomes não estão nas Escrituras, mas “em
171
antiqüíssimas tradições cristãs” (p. 124).
— Capítulo XXXVI: “O peregrino” (p. 126-130).
— Intertextualidade bíblica: “A cura do surdo-mudo” (p. 128-129; cf. Mt 15,
29-31; Mc 7, 31-37); “Segunda multiplicação dos pães” (p. 129-130; cf. Mt 15, 32-39;
Mc 8, 1-10).
— Comentário: o texto em Marcos inclui a palavra “abre-te”, em aramaico,
que apresenta várias grafias: “Éfeta”, na Bíblia Ave Maria; Effatha, na Bíblia do
Peregrino; “Ephphatha”, em King James Bible; “Ephpheta”, no romance (p. 128; cf.
Mc 7, 34).
Jesus afastou-se com o surdo-mudo da multidão, pôs os dedos nos ouvidos do
homem e, em resposta à sua voz dizendo “Éfeta”, imediatamente seus ouvidos se
abriram. Jesus curou sua mudez, tocando-lhe a língua com a própria saliva. São dois
sinais: o gesto de Jesus feito com o dedo que remete ao AT: “Isso é o dedo de Deus”
(Ex 8, 19); e o gesto feito com a saliva, pois segundo a tradição a saliva tem
propriedades medicinais; a de Jesus é milagrosa. (cf. Fundação Joaquim Nabuco).
— Capítulo XXXVII: “O fermento” (p. 130-133).
— Intertextualidade bíblica: “Cura de um cego” (p. 133; cf. Mc 8, 22-26).
— Comentário: a perícope segue a mesma seqüência textual que a “cura do
surdo-mudo”. A cura acontece por imposição das mãos de Jesus. Há índices de que o
homem enxergara antes, pois sabia o que eram vultos de árvores e de homens (p. 133;
Mc 8, 24).
— Capítulo XL: “Parusia” (p. 139-145).
— Intertextualidade bíblica: “O jovem epilético” (p. 144; cf. Mt 17, 14-20; Mc
9, 14-29; Lc 9, 37-43).
— Comentário: há duas expressões que marcam a força da fé. A primeira, de
forma negativa, diz respeito aos discípulos que não puderam curar o jovem. A segunda,
de forma positiva, diz respeito a Jesus, que ameaçou o demônio e logo o curou (p. 144;
cf. Mt 17, 18). No evangelho Jesus faz severa exortação: “Ó geração incrédula, até
quando estarei convosco? Até quando vos hei de aturar?” (Mc 9, 19). No romance Jesus
se dirige aos discípulos através de um recorte do evangelho de Marcos: “Se não fordes
iguais a essa criança, não entrareis no Reino dos Céus” (p. 144; Mc 10, 15).
172
O capítulo acrescenta ao final que a criança curada “chorou como um recém-
nascido, pois era um novo ser. E com o menino chorou o pai” (p. 144).
— Capítulo XLVII: “Um luzeiro” (p. 175-180).
— Intertextualidade bíblica: “O cego de nascença” (p. 178-179; cf. Jo 9, 1-41).
— Comentário: o romance inclui a perícope sobre “o cego de nascença” em
uma narrativa que não é intertextual à Bíblia, o encontro de Jesus com Cláudia, mulher
de Pôncio Pilatos. Cláudia não é mencionada nos textos canônicos do NT.
O texto do romance reescreve a narrativa bíblica, cuja mensagem aponta para
os cegos de espírito. E Jesus cria um paradoxo quando afirma: “Vim a esse mundo para
fazer a mudança. Que claramente conheçam a verdade os que não a conhecem e não a
vejam mais, como cegos, os que a conhecendo a recusam com porfia”. Esse recorte do
romance é a tradução do recorte do evangelho, que diz: “Vim a esse mundo para fazer
uma discriminação: os que não vêem vejam, e os que vêem se tornem cegos” (p. 179; Jo
9, 39). O campo semântico é gerado entre “conhecer a verdade” — cegos curados em
espírito porque aceitam a palavra — em oposição a “não conhecer a verdade” — os que
enxergam, mas recusam a palavra e portanto se tornam cegos da alma.
— Capítulo XLIX: “A concha do Batista” (p. 183-187).
— Intertextualidade bíblica: “Diversas curas” (p. 183-185; cf. Mt 9, 27-34).
— Comentário: a referência sobre os dois cegos, personagens da perícope
“Diversas curas”, gera a intertextualidade do romance Eu, Jesus, com o romance Eu
Venho, no qual os cegos são personagens da festa das bodas de José e Maria. Confirma
essa intertextualidade o décimo quinto parágrafo, cujas marcas textuais são: “dois
cegos”, “avinhados”, “irmanados”, “sempre juntos”, “cantavam salmos antigos” (Eu,
Jesus, p. 185; cf. Eu Venho, cap. III; Mt 9, 27-34).
Em Eu Venho, eles representavam as trevas; em Eu, Jesus, o milagre libertou-
os para a luz, pois havia chegado o “fim da sua escuridão” (p. 185).
— Capítulo LII: “Eu vou para acordá-lo” (p. 196-204).
— Intertextualidade bíblica: “Ressurreição de Lázaro” (p. 198-204; cf. Jo 11,
1-44).
— Comentário: nesse capítulo Jesus manifestou em relação a Lázaro a
grandiosidade do amor “filia”, do grego phílos,é,on 'amigo, querido, que agrada',
173
quando chorou comovido diante de seu túmulo. A notícia da doença de Lázaro chegou a
Jesus: “Senhor, vem depressa socorrer aquele a quem amas!”. A resposta de Jesus
indica o verdadeiro motivo do milagre que aconteceria: “Sua enfermidade não é de
morte, mas sim para a glória de Deus! O Filho do Homem deve ser glorificado por ela”
(p. 198; cf. Jo 11, 4-5). A glória a que se refere Jesus é a vitória contra o último inimigo:
a morte.
A narrativa emprega o suspense, pois Jesus retarda a viagem propositalmente.
Ele diz: “Fiquemos aqui” (...) “Ali ficamos mais dois dias inteiros”. Depois desse tempo
ele fala claramente: “Lázaro morreu” (p. 198-199; cf. Jo 11, 6.14). A palavra de fé é
dada por Marta ao encontrar Jesus: “Ah, se estivesses aqui meu irmão não estaria
morto”. Jesus afirma: “Eu sou a Ressurreição e a Vida”. Jesus tem o dom da vida
porque o que nele crer jamais morrerá (p. 202; cf. Jo 11, 25). E Marta confirma sua fé:
“Oh, Senhor, eu creio, eu creio que tu és o Cristo, o filho de Deus vivo que veio a esse
mundo” (p. 202; Jo 11, 27). Jesus ora ao Pai; essa oração é marcada pela “gratidão”,
‘qualidade de quem é grato’. Ele rende graças dizendo: “Graças te dou, meu Pai, porque
ouviste meus rogos” (p.203; Jo 11, 41); antecipadamente ele agradeceu, não obstante o
milagre ainda não estivesse concretizado. Com autoridade Jesus gritou: “Lázaro, vem
para fora!”. E Lázaro voltou à vida (cf. p. 203; cf. Jo 11, 43-44).
Lemos no evangelho que aquele que estivera morto saiu do sepulcro atado e
envolto no sudário e, em discurso direto, Jesus ordenou: “Desligai-o e deixai-o ir” No
romance essa locução é transcrita para a voz do narrador, que diz: “Então ordenei aos
meus que lhe desvelassem os lençóis que o cobriam. E eles o desvestiram e de dentro
dos panos que se desfolhavam surgiu outro Lázaro, tão saudável e limpo de suas
enfermidades, como se nascesse pronto” (p. 204; cf. Jo 11, 44). Comparemos as
seguintes palavras: “desvestir”, des- + vestir, ‘tirar a roupa’; “desligar”, des-+ligar,
‘desfazer a ligação de’; “desvelar”, des-+velar, ‘pôr à vista, retirando o véu que
recobria’; “desfolhar”, des- + folha + -ar, ‘despojar(-se) das folhas’. O prefixo latino
“des” se agrega a todas essas palavras sempre acrescentando a idéia de separação,
afastamento, e nesse contexto apontam para a separação, a libertação da morte
alcançada por Lázaro
24.
A morte e ressurreição de Lázaro são índices da própria morte e ressurreição
24
A ressurreição de Lázaro é a uma volta à vida na terra. Ele não ressuscitou glorioso para viver
para sempre.
174
de Jesus. Mais uma vez o “Eu sou” afirmado por Jesus, remete à revelação de Deus a
Moisés (p. 202; cf. Ex 3, 14), cujo implícito do texto confirma em Jesus o poder de
Deus, e também a unidade entre o Filho e o Pai. Paradoxalmente, por haver devolvido a
vida a Lázaro, Jesus mereceu a morte, porque depois desse fato os judeus, sentindo-se
mais ameaçados, decidiram que a solução seria matar Jesus.
A ressurreição de Lázaro foi o último dos sinais realizados por Jesus, que
começaram em Caná da Galiléia (Eu Venho, cap. XLI; Jo 2).
6.4 A caminho com Jesus
— Capítulo I: “A cólera” (p. 3-10).
— Intertextualidade bíblica: “Jesus expulsa os vendilhões do templo” (p. 3-9;
cf. Mt 21, 12-17; Mc 11, 15-19; Lc 19, 45-47; Jo 2, 13-25).
— Comentário: o capítulo narra a chegada de Jesus e seus discípulos a
Jerusalém durante as festas da Páscoa. Ele próprio descreve seu grupo, dizendo:
“Éramos aquela gente vinda da Galiléia (...) Sabia-me bem a canção dos peregrinos” (p.
3; cf. Mc 11, 15).
Jesus refere-se também ao envolvimento íntimo que sentiram naquele
contexto, e ele assim se expressa: “Desde que havíamos transposto a Porta dos Jardins
(do Templo), a segunda entrada, numa Jerusalém transbordante de peregrinos,
respiramos o fervor de um povo inteiro” (p. 4; cf. Mc 11, 15).
— Capítulo II: “Um homem na sombra” (p. 10-17).
— Intertextualidade bíblica: “Jesus expulsa os vendilhões do templo” (p. 10-
17; Mt 21, 12-17; Mc 11, 15-19; Lc 19, 45-47; Jo 2, 13-25).
— Comentário: Jesus e seus discípulos deixavam a Judéia após a Páscoa,
dirigindo-se ao Norte, como explica o narrador: “Saímos de Jerusalém depois do oitavo
dia, pela madrugada ainda coberta de friagem. Peregrinamos por dias e dias em regiões
ao norte da Judéia e ao poente do mar Salgado” (p. 17; cf. Mc 11, 19).
— Capítulo III: “Dá-me de beber” (p. 17-24).
— Intertextualidade bíblica: “A samaritana” (p. 17-24; Jo 4).
— Comentário: para chegar à Galiléia, Jesus e seus discípulos tiveram de
175
atravessar a Samaria localizada ao norte da Judéia. Mais do que seguir um trajeto
geográfico, Jesus seguiu a voz do Espírito que o chamou para longe, pois “deveria
retornar à Galiléia, atravessando com meus companheiros, passo a passo, a Samaria”.
Ele recebera uma missão: o encontro com uma mulher samaritana, junto ao
poço do patriarca Jacó que, tempos atrás, ali também vivera e morrera, “destinando a
José, seu filho bem-amado, o poço que ele mesmo cavou, venerado para sempre” (...)
“O dia já ia alto, quando, perto do poço (...) eu me sentei” (p. 18-19; cf. Jo 4, 3-6).
— Capítulo IV: “Bem vos digo diferente” (p. 24-27).
— Intertextualidade bíblica: “Cura do filho de um oficial” (p. 24-27; Jo 4, 43-
54)
— Comentário: a caminhada continuava no rumo da Galiléia. Ouçamos a voz
de Jesus-narrador: “Depois da acolhida tão fervorosa dos samaritanos, embora
quisessem fazer-nos um deles, e eu lhes reconhecesse a fé no Senhor, voltamos à
Galiléia” (p. 24; Jo 4, 43.46). Ele chegava à casa onde realizara seu primeiro sinal,
“pois já estava em Caná e visitava Rachel (...) “em sua casa, segundo corria no lugar,
havia feito a água tornar-se no melhor vinho já provado na região” (p. 25; Jo 4, 43.46).
— Capítulo V: “Ninguém é profeta...” (p.27-33)
— Intertextualidade bíblica: “Em Nazaré” (p. 27-33)
— Comentário: Caná era então o destino de Jesus, pois ficava “tão perto de
Nazaré e tudo de lá me chamava”, pois era a terra onde Jesus crescera. E para lá se
dirigiu com os discípulos, como ele mesmo afirma: “Eis-nos, pois, a caminho de
Nazaré, a reter em seu nome — vindo de Nezer, “pequeno ramo” (p. 27; Lc 4, 14.16).
Esse recorte é intertextual ao Memorial do Cristo I, em que há a explicação da origem
da palavra “Nazaré” (cf. Eu Venho, cap. XVIII).
— Capítulo VI: “Chamou-me Cafarnaum” (p. 34-37)
— Intertextualidade bíblica: “Cura de um possesso” (p. 34; cf. Lc 4, 31);
“Pesca milagrosa” (p. 35-37; cf. Lc 5, 11)
— Comentário: Simão Pedro morava em Cafarnaum e em sua casa tantas
vezes Jesus encontraria pousada. Ao deixar Nazaré, dirigiram-se a Cafarnaum e para “lá
aprofundaríamos mais de seiscentos passos, ficando Nazaré muito no alto e agora bem
deixada das vistas” (...) “em meu coração vestiam campos e paisagens enquanto
176
descíamos sempre em demanda de Cafarnaum” (p. 34; cf. Lc 4, 31). Em casa de Simão,
na região de Cafarnaum, muitas obras do Reino seriam realizadas. O índice dessas obras
são as “frutas” a serem colhidas, como mostra o texto: “Já pisávamos o solo que de tão
rico podia oferecer tantas frutas” (...) Muitas coisas deveriam ser feitas em Cafarnaum”
(p. 35; cf. Lc 5, 1).
— Capítulo XV: “Música para um morto” (p. 67-72)
— Intertextualidade bíblica: “O filho da viúva de Naim” (p. 67-72; Lc 7, 11-
17)
— Comentário: a importância do “mar” é destacada no enunciado quando se
refere à Galiléia, como observamos no recorte: “Naqueles dias da Galiléia
caminhávamos juntos com ardor especial (...) Eu me encontro sentado à proa da barca
de Pedro (...) margeando o mar da Galiléia até a cidade de Tiberíades” (p.67; cf. Lc 7,
11). As marcas que destacamos são: “ardor”, “proa da barca”, “margeando o mar”.
Continuando o trajeto “em direção sudeste”, ao redor do “Tabor”
25
, e subindo
uma encosta do “Hermon”
26
, diz Jesus que chegaram enfim à “vila de Naim que me
chamava, e era apelidada de ‘A Bela’” (p.68; cf. Lc 7, 11).
— Capítulo XVI: “Óleo sobre o pó dos caminhos” (p. 70-73)
— Intertextualidade bíblica: “A pecadora perdoada” (p. 70-73; Lc 7, 36-50)
— Comentário: ao sair de Naim, Jesus e seus discípulos faziam “o caminho de
volta a Cafarnaum e as primeiras aragens mais frescas podiam ser usufruídas”. Jesus
recebera o convite para ir à “casa de Simão, das mais ricas de Cafarnaum”, que teria
então as portas abertas para que participassem juntos da ceia (p. 70; cf. Lc 7, 36).
— Capítulo XVIII: “Porque eu era diferente” (p. 77-79)
— Intertextualidade bíblica: “Pregação e milagres em Cafarnaum” (p.77; Mc
21-39)
— Comentário: sempre que Jesus voltava de uma viagem, “a casa de Pedro em
Cafarnaum já estava possuída” por aqueles que o esperavam (p. 77; cf. Mc 1, 29.33). As
25
O Monte Tabor localiza-se ao sul do Mar da Galiléia.
26
O Monte Hermon localiza-se na região montanhosa ao norte da Galiléia e ao sul da Síria. Por
sua altitude de 2814m, o seu cume encontra-se quase sempre coberto de neve, enquanto ao seu redor a
terra arde de tanto calor.
177
opiniões eram divididas sobre o prestígio de Jesus, pois em Cafarnaum voltavam antigas
lembranças daquele dia em que quiseram atirá-lo do monte em Nazaré, por tudo que
dissera na sinagoga.
— Capítulo XIX: “Não seja dado que vejam com seus olhos... e que ouvindo,
ouçam e não entendam” (p.80-83).
— Intertextualidade bíblica: XXXXX
— Comentário: há que destacar dois aspectos do primeiro parágrafo desse
capítulo, “lugares” e “pessoas”. A narrativa aponta os muitos lugares por onde Jesus
afirmou ter passado e que ainda passaria naquele tempo que corria solto à mão do Pai,
“viajando de um lugar para outro”, e as pessoas com quem encontrara, pois “pregava a
povos de diferentes lugares” (p. 80)
Por onde andara Jesus? Havia cruzado Jerusalém em suas festas; caminhara de
Nazaré a Cafarnaum; andara às ribanceiras do rio Jordão; estivera junto às colinas do
Líbano; na Judéia; na Galiléia; ainda estaria com os gentios da Sírio-Fenícia (cf. p. 80).
Com quem falara o Senhor? Pregara a tantos peregrinos; falara com doutores;
sabia dizer as palavras roladas na garganta, ásperas, entendidas pelas gentes; estivera em
trocas de falar com samaritanos e a mulher do poço de Jacó (cf. p. 80).
Acrescenta a narrativa: “e todos esses povos vindos da terra como o primeiro
dos homens, para mim eram terra, chão, onde a minha palavra cairia bem, mal, ou seria
levada pelo vento” (p. 80). A metáfora remete ao primeiro homem criado por Deus da
terra, símbolo do ser corruptível. Deus lhe deu o sopro vida, o ser espiritual, imortal. È
de livre escolha do homem ser solo fecundo a essa palavra para encontrar em Jesus sua
redenção e perdão dos pecados (cf. Gn 2, 7; 1Cor 15, 54-57).
Estavam em terras da Galiléia, pois lemos que “Simão foi à feira de
Tiberíades, já que em casa de Pedro (Cafarnaum), com o acúmulo de gente, muitas
coisas faltavam” (p. 82).
— Capítulo XXIII: “Mar — escuta” (p. 90-93)
— Intertextualidade bíblica: “Tempestade acalmada” (p. 91-93; Mc 4, 35-40;
Lc 8, 22-25)
— Comentário: Jesus e os discípulos deixaram Cafarnaum “depois de um dia
inteiro de doutrinação” e dali partiram para “a outra margem do mar da Galiléia”. No
lugar aonde chegaram, a mudança climática é destacada no contexto opondo ao sentido
178
de “calor do mar”, que os mantinha “aquecidos o dia inteiro”, a “friagem do Hermon”
(...) “descida das alturas da neve” (p.90; cf. Mc 4, 35; Lc 8, 22).
— Capítulo XXIV: “Meu nome é legião” (p. 93-95).
— Intertextualidade bíblica: “O possesso e os porcos” (p. 93-95; cf. Mt 8, 28-
34; Mc 5, 1-20; Lc 8, 26-39)
— Comentário: em direção ao ocidente “iam eles desafogados em sua barca e
eu à proa sentia agora a doçura da manhã após a tormenta”. Jesus-narrador explica que
eles estavam então na Decápolis
27
, região dos gadarenos” (p. 93; cf. Mt 8, 28; Mc 5,
20).
— Capítulo XXV: “A floresta do acontecido” (p. 95-97).
— Intertextualidade bíblica: “Cura da sogra de Pedro e diversos milagres” (p.
95-97; Mt 8, 14-17; Mc 1, 29-34; Lc 4, 38-41). (cf. Mt 9, 1).
— Comentário: antes de chegar a Cafarnaum Jesus diz que “à popa da barca
de Pedro” vareja por “visões das cidadezinhas acumuladas pelas pequenas praias”.
Quando chegaram a Cafarnaum “as mulheres lá estavam à beira do leito de Ester”, a
sogra de Pedro que estava doente e se encontrava na casa dele (p. 96; Mt 8, 14; Mc 1,
29; Lc 4, 31).
— Capítulo XXXV: “Em meu encalço” (p. 122-126)
— Intertextualidade bíblica: “Discussão com os fariseus” (p. 122-123; Mt 15,
1-20; Mc 7, 1-23); “A cananéia” (p. 123-126; cf. Mt 15, 21-28; Mc 7, 24-30)
— Comentário: Jesus e seus discípulos mais chegados voltaram “a
Cafarnaum” (p. 122; cf. Mt 15, 1; Mc 7,1). Ele diz que recordava “as visões das casas
de grandes pedras, de colunas romanas marcando o poder sobre Tiro e Sidon para onde
esperávamos buscar refúgio” (p. 124; Mt 15, 21; Mc 7, 24).
— Capítulo XXXVI: “O peregrino” (p. 126-130).
27
A Decápolis é o território das dez cidades da Transjordânia de população quase
exclusivamente pagã, dentre as quais está Gádara.
179
— Intertextualidade bíblica: “Milagre do surdo-mudo” (p. 128-129; cf. Mc 7,
31-37).
— Comentário: fazemos alguns recortes que apontam a peregrinação de Jesus
e seus discípulos, quais sejam: “Peregrinamos então por muito lugares (...)
Atravessamos a cidade de Sarepta (...) Poucas horas depois estávamos em Sidon” (p.
126).
A narrativa esclarece que se dirigiram a Sarepta, cidade portuária da antiga
Fenícia ao sul de Sidon. Dali partiram e “mais um dia e já estávamos no Líbano, ‘O
Branco’, nome que lhe vinha por ter seus cumes de neve embranquecidos durante quase
todo ano” (p. 127). Eles caminhavam “ao sul, pelo vale de Lita” e seguiam “até as águas
do Meron” (p.128)
Tanto andaram em sua peregrinação que a voz do narrador nos revela que
quando chegaram “a Decápolis, Pedro tinha os pés feridos” (p. 128; cf. Mc 7, 31).
— Capítulo XXXVII: “O fermento” (p. 130-133)
— Intertextualidade bíblica: “Segunda multiplicação dos pães” (cf. Mt 15, 29-
39; Mc 8, 1-10)
— Comentário: Jesus confirma a alegria dos discípulos ao viajarem juntos: “O
tropel, os risos, e ainda o entusiasmo de meus discípulos a descer no pequeno porto de
Magadã” (p. 130; cf. Mt 15, 39; Mc 8, 10). O lugar onde se encontravam ficava “ao sul
das águas do mar da Galiléia, nas cercanias da pequena cidade de Dalmanuta” (p.131;
cf. Mt 15, 39; Mc 8, 10).
— Capítulo XXXVIII: “Não foi a carne nem o sangue” (p. 134-136)
— Intertextualidade bíblica: “Pedro proclama sua fé em Jesus” (cf. Mt 16, 13-
20; Mc 8, 27-30; Lc 9, 18-21).
— Comentário: é Jesus-narrador quem fala: “Depois de Betsaida-Júlias
28
(como agora se chamava) tornávamos a caminhar até o norte, pela senda oriental do
Jordão: as águas do Meron ficavam atrás de nós. Aproximávamos de Cesaréia de
Felipe” (p. 134; cf. Mt 16, 13; Mc 8, 27).
28
A respeito de Betsiada, o historiador Flávio Josefo afirma que o Rei Herodes Felipe mudou o
nome da cidade no século I para Júlias em homenagem a Júlia Lívia, esposa do imperador romano César
Augusto.
180
— Capítulo XL: “Parusia” (139-145)
— Intertextualidade bíblica: “Transfiguração” (p. 139-145; cf. Mt 17, 1-13;
Mc 9, 2-13; Lc 9, 28-36)
— Comentário: “Chamávamos o monte Hermon e para lá partíamos” (p. 139;
cf. Mt 17, 1; Mc 9, 2; Lc 9, 28). A leitura da cena da “Transfiguração” nos leva a
considerar o texto do capítulo intertextual à Bíblia, contudo há divergência entre as
informações geográficas relatadas nas Escrituras e no Memorial do Cristo II. Em nota
de rodapé a autora justifica sua escolha pelo Monte Hermon, enquanto Schökel (cf. p.
2419) apresenta o Monte Tabor como aquele considerado pela tradição, porém
considera um novo sentido, cujo símbolo é o Monte Sinai, local da “transformação”.
Entendemos o monte como metonímia, apontando teologicamente que Deus se
transforma, se transfigura: ser espiritual, acima de “forma”, revela aparência humana,
primeiro a Moisés através da sarça ardente (cf. Ex 3) e depois a Pedro, Tiago e João
através da pessoa de Jesus Cristo.
— Capítulo XLI: “Galiléia, últimos dias” (p. 145-149).
— Intertextualidade bíblica: “Humildade. Inveja. Escândalo” (p. 145-149; Mt
18, 1-10; Mc 9, 33-40; Lc 9, 46-50)
— Comentário: o enunciado informa que Jesus e seus discípulos voltavam a
Cafarnaum, e a voz de Jesus-narrador acrescenta que o tempo corria em suas “veias
como se fora sangue, também”. A comparação entre o “tempo que corria” e o “sangue
nas veias” é índice da premência que tinham em anunciar o Reino de Deus. (p. 145; cf.
Mc 9, 30).
— Capítulo XLIII: “O lavrador não olha para trás” (p. 155-159)
— Intertextualidade bíblica: (p. 155-159; Mt 8, 18-22; Lc 9, 57-62)
— Comentário: o recorte confirma que Jesus se hospedava na casa de Pedro,
enquanto permanecia em Cafarnaum. Além disso, a metáfora presente na aproximação
entre os vocábulos “vivos” e “mortos” aponta que dali partiam, com o olhar voltado
para o futuro. Vejamos: “E vivos e mortos ficaram para trás, e morta estava Cafarnaum,
onde eu tivera o pouso de Pedro” (p. 156; Mt 8, 18).
Eles cruzavam a Samaria (p.156), dirigindo-se a Jerusalém, conforme atesta o
recorte: “Os que chegavam à nossa frente a Jerusalém (...) (Era) a Festa dos
181
Tabernáculos” (p. 157; cf. Mc 11, 15).
— Capítulo XLIV: “De encontro à aurora, eles vinham” (p. 159-165).
— Intertextualidade bíblica: “Missão dos 72 discípulos” (p.159-163; Lc 10, 1-
15); “Marta e Maria” (p. 163-165; Lc 10, 38-42)
— Comentário: o destino do grupo era Jerusalém, segundo narra a voz de
Jesus: “Ao quarto dia em Betânia estávamos, depois de ter varejado da Galiléia à
Samaria, até o sul da Judéia (...) Próximos estávamos de Jerusalém” (p.163; cf. Lc 10,
38-39; Jo 11, 1).
— Capítulo XLV: “Por que me quereis matar?” (p. 165-170)
— Intertextualidade bíblica: “Festa dos Tabernáculos” (p. 165-170; Jo 7, 1-24)
— Comentário: era o tempo da Festa dos Tabernáculos e, finalmente, Jesus e
seus discípulos estavam de volta a Jerusalém, conforme comprova o texto a seguir: “À
margem das oliveiras levantaram nossa breve morada de folhas numa Jerusalém que
reverdecia no alto e abaixo das suas muralhas, nos cantos de suas vielas” (p. 165; cf. Jo
7, 1).
— Capítulo XLVI: “O sedutor” (p. 170-175).
— Intertextualidade bíblica: “Opinião dos judeus acerca de Jesus” (p. 170-
172; cf. Jo 7, 25-53); “A mulher adúltera” (p. 172-175; cf. Jo 8, 1-11)
— Comentário: lemos no capítulo que o grupo se encontrava ainda
caminhando pelas vizinhanças de Jerusalém, pois Jesus diz: “Deixei o Templo com os
derradeiros peregrinos daquele dia e fui ao monte das Oliveiras onde meus discípulos se
reuniam com os que vinham da Galiléia” (p. 172; cf. Jo 8,1).
— Capítulo XLVII: “Um Luzeiro” (p. 175-180)
— Intertextualidade bíblica: “A oração” (p.179-180; Lc 11, 1-13)
— Comentário: Jesus possuía amigos íntimos que moravam em Betânia, na
Judéia, e informa quem eram, dizendo que “muita vez tomei de mim para descansar à
casa de Lázaro, de Marta e de Maria” (p. 179; cf. Lc 10, 38-39; Jo 11, 1).
— Capítulo XLVIII: “Se tu és o Cristo” (p. 180-183)
— Intertextualidade bíblica: “Festa da Dedicação” (p. 180-181; cf. Jo 10, 22-
182
30)
— Comentário: e continua a narrativa dizendo que “foi da casa de Betânia que
voltei para a Festa da Dedicação do Templo” (p. 180; cf.Jo 10, 22-23), em Jerusalém,
como atesta o recorte: “Um mar de luzes estendia-se por Jerusalém (...) Não era
obrigatório estar no Templo nesses dias em que o frio só vinha suportado porque se
acendiam fogueiras” (p.181; cf.Jo 10, 22-23).
— Capítulo XLIX: “A concha do Batista” (183-187).
— Intertextualidade bíblica: “Diversas curas” (p.183-186; Mt 9, 27-34)
— Comentário: a lembrança do Batista desperta em Jesus o desejo de ir além
do Jordão, conforme lemos: “Chamou-me a lembrança do Batista (...) e eu estive,
deixando Jerusalém, a viajar pelo este até o Jordão; atravessei-o em lugar propício com
meus discípulos” (p. 183; cf. Jo 10, 40).
— Capítulo L: “Porque Moisés vos permitiu repudiar vossas esposas” (p. 187-
192).
— Intertextualidade bíblica: “O casamento é indissolúvel” (p. 187-189; cf. Mc
10, 1-12)
— Comentário: Jesus e os discípulos embrenharam-se por difíceis caminhos
depois da Festa da Dedicação, conforme atesta a narrativa: “Seguíamos até o mar
Salgado, pelas terras da Peréia e retornávamos, passávamos e repassávamos à margem
ocidental do Jordão, diante da doce cidade de Jericó” (p. 187; cf. Mc 10, 1).
Jesus anunciava aos discípulos “como deveriam pregar sem descanso nem
lugar certo para semear a palavra”. Em seguida voltavam a Betaraba (p.188; cf. Mc 10,
1).
— Capítulo LI: “A lâmpada do teu corpo é o teu olho” (p. 192-196)
— Intertextualidade bíblica: XXXXX
— Comentário: Jesus tinha consciência de que “(...) eles, os fariseus daquela
região da Peréia, bem me julgavam um gentio” (p. 192). Ele sabia que deveria voltar a
Jerusalém, por isso dizia: “Hoje, amanhã e no dia seguinte devo caminhar, porque não
convém que um profeta pereça fora de Jerusalém”. Esse era um dos motivos que os
levavam a caminhar dia e noite. Vejamos: “A noite tinha fresca rajada e estrelas
apareciam marcando a caminhada que em breve encetaria para subir a Jerusalém” (p.
183
195).
— Capítulo LII: “Eu vou para acordá-lo” (p. 196-204)
— Intertextualidade bíblica: “Ressurreição de Lázaro” (p.196-204; Jo 11, 1-
44))
— Comentário: ficamos sabendo que Jesus e seus discípulos tinham o hábito
de andar a pé, conforme atesta o recorte “Seguíamos sempre a pé pela estrada de pó e de
hálito frio que nos vinha das alturas” (p. 197).
Nessa viagem dirigia-se a Betânia, pois Lázaro, seu amigo, havia morrido. Diz
o narrador: “A duzentos passos da sepultura de Lázaro, na tarde em que se seguiu ao
fechamento do túmulo, cheguei com meus discípulos e me postei sob uma árvore ainda
fora de Betânia” (p.201; cf. Jo 11, 30).
— Capítulo LIII: “Era quase lua da Páscoa” (p. 204-208).
— Intertextualidade bíblica: “Jantar em Betânia” (p. 204-206; cf. Mt 26, 6-13;
Mc 14, 1-9; Jo 12, 1-11)
— Comentário: depois do milagre da ressurreição de Lázaro, eles passariam a
ceia na casa de Simão, e iriam por caminhos que os “levariam à casa de um amigo de
Lázaro, chamado Simão, o leproso” (p. 204; cf. Mt 26, 6; Mc 14, 3; Jo 12, 1-2).
— Capítulo LIV: “Rejubila-te, filha de Sião...” (208-214).
— Intertextualidade bíblica: “Entrada de Jesus em Jerusalém” (p. 208-211; Mt
21, 1-11; Mc 11, 1-10; Lc 19, 29-44; Jo 12, 12-36); “Purificação do Templo” (p. 211-
212; cf. Mt 21, 12-17; Mc 11, 15-19; Lc 19, 45)
— Comentário: nesse contexto a passagem do tempo tem como referência a
mudança da lua, conforme diz Jesus: “Muito caminhamos e a lua se arredondou e já
dava sobre todos nós seu testemunho da Páscoa” (p. 208). A lua da Páscoa indica que
era tempo de lua cheia, conforme estudaremos no próximo bloco temático dessa
pesquisa.
O percurso por eles realizado é descrito nos seguintes recortes: “Quando
volvemos a Betânia, o sábado, nós o passamos lá. E, pela madrugada, fizemos caminho
e subimos a encosta do monte das Oliveiras” (p. 208-209; cf. Mt 21, 1). Logo a seguir
eles já avistavam “a aldeia de Betfagé” (p. 208-209; cf. Mt 21, 1). E o narrador
acrescenta que “na noite que se seguiu a esse dia milhares de novos peregrinos” foram
184
saudar Jesus no Templo” (p. 211; cf. Mt 21, 12). E, por fim, Jesus afirma: “Assim voltei
a Betânia, sentindo ainda livres os movimentos” (p. 213; cf. Mc 11, 11).
— Capítulo LV: “O vento e as palavras” (p. 214-217).
— Intertextualidade bíblica: “Autoridade de Jesus” (p. 214; cf. Mt 21, 23-27;
Mc 11, 27-33; Lc 20, 1-8)
— Comentário: Volta ao enunciado o sentido de “palavras ditas ao vento”,
cujo tratamento dado nesse tema enfoca o contexto onde são ditas essas palavras, qual
seja o “Templo” em Jerusalém, como comprova a narrativa: “Tanta vez desci as escadas
do Templo a perguntar-me se as palavras ditas naquele dia entrariam pelos corações ou
se naquela ocasião diria ao vento minhas últimas mensagens” (p. 214; cf. Mt 21, 23).
— Capítulo LIX: “Aquele que põe a mão no prato” (p. 234-238).
— Intertextualidade bíblica: “A ceia” (p. 234-238; cf. Mt 26, 21-25; Mc 14,
18-21; Lc 22, 21-23; Jo 13, 21-30)
— Comentário: mais uma vez a lua é a marca do contexto e a descrição
imprime um caráter pictórico que revela a ausência da luz em conformidade ao tom de
luto presente no enunciado, pois aponta para a proximidade da morte de Jesus. Lemos
no recorte: “A caminho do Getsêmani nós seguíamos, e agora preta era a noite e a lua da
Páscoa se escondera de nós” (p. 238; cf. Mt 26, 36; Mc 14, 32, Lc 22, 39).
— Capítulo LX: “O Espírito da verdade” (p. 239-243).
— Intertextualidade bíblica: “Angústia suprema” (p. 239-241; Mt 26, 36-46;
Mc 14, 32-42; Lc 22, 39-46)
— Comentário: o recorte destacado revela o lugar para onde Jesus se dirigiu
para rezar, no momento que antecedeu a sua prisão por soldados romanos e por judeus.
Vejamos: “Isto lhes disse eu ao chegar ao horto de Getsêmani, ao pé do monte das
Oliveiras, junto ao caminho de Betfagé e Betânia, e quase em frente à Porta Dourada”
(p. 239; cf. Mt 26, 30.36; Mc 14, 26.32; Lc 22, 39). Nos “Mistérios Dolorosos”, os
últimos rezados no Rosário, a “angústia suprema” é invocada na primeira dezena,
marcando o início da peregrinação de Jesus rumo à cruz.
— Capítulo LXI: “As testemunhas” (p. 243-249).
— Intertextualidade bíblica: “Jesus diante de Caifás” (p. 243-244; cf. Mt 26,
185
57-68; Mc 14, 53-65; Lc 22, 63-71; Jo 18, 13-27)
— Comentário: depois da prisão Jesus é levado à casa do Sumo Sacerdote.
Vejamos os caminhos que percorreu: “Os que me haviam feito prisioneiro levaram-me à
casa de Anás, sogro do Sumo Sacerdote (...) depois à presença de Caifás (...) Refizemos,
agora em minha humilhação, o caminho que à hora da ceia tomara com meus apóstolos”
(p. 243; cf. Mt 26, 57; Mc !4, 53; Lc 22, 63).
— Capítulo LXII: “O procurador da Judéia” (p. 249-255).
— Intertextualidade bíblica: “Jesus diante de Pilatos” (p. 249-255; cf. Mt 27,
11-14; Mc 15, 1-5; Lc 23, 1-11; Jo 18, 28-38)
— Comentário: É Jesus quem continua narrando seu trajeto marcado pela
humilhação. Ele diz: “Eu caminhava aos empurrões para ter à presença de Pilatos,
Procurador da Judéia” (p. 249; cf. Mt 27, 11; Mc 15, 1; Lc 23, 1; Jo18, 28). Jesus-
narrador afirma que quando foi levado da casa de Caifás à Fortaleza Antônia, deu “perto
de mil passos” (p. 250). A narrativa acrescenta que da casa de Caifás, Jesus caminhava
com seus “inimigos para a Fortaleza Antônia” (p. 251, Mt 27, 11; Mc 15, 1; Lc 23, 1; Jo
18, 28). Em seguida, acrescenta que “mais de quinhentos passos eram contados da
Fortaleza Antônia ao palácio de Herodes (...) E o vozerio do povo atingia meu ouvidos
(...) enquanto caminhávamos em direção ao palácio de Herodes” (p. 254).
— Capítulo LVIII: “O sublevador” (p. 255-262).
— Intertextualidade bíblica: “Jesus diante de Pilatos e diante de Herodes” (p.
255-258; Mt 27, 11-26; Mc 15, 1-15; Lc 23, 1-24; Jo 18, 28 — 19, 16); “Cena de
ultrajes” (p. 258-262; cf. Mt 27, 27-31, Mc 15, 16-20; Jo 19, 1-16);
— Comentário: Jesus sai finalmente da mansão de Herodes e, nesse tempo, já
se havia “engrossado o rio de povo”. Ele diz que “vinha marcado com a indignidade de
um manto bufo” (p. 255; cf. Lc 23, 11), índice da ironia, pois “bufo”, significa a
caricatura de um “rei” que pretendiam dar a ele, tornando cômico o que deveria ser
honroso. Foi novamente levado à presença de Pilatos, que o mandou flagelar, como
vemos no recorte: “Terminada a flagelação, levaram-me os soldados, arrastado,
próximo ao pretório” (p. 259; cf. Mt 27, 27).
— Capítulo LXIV: “As correntes rompidas de Barrabás” (p. 262-269).
— Intertextualidade bíblica: “Caminho da cruz” (p. 262-269; cf. Mt 27, 32-56;
186
Mc 15, 21-41; Lc 23, 26-49; Jo 19, 17-30).
— Comentário: esse foi então o último caminho feito por Jesus nessa vida
humana, de acordo com o título do evangelho o “caminho da cruz”. Lemos que à sua
frente, rapidamente se “pôs a caminho a comitiva (...) E nós seguíamos carregando cada
qual o seu madeiro” (p. 263-264)
Dirigiram-se para “fora das portas da cidade” onde ainda havia uma multidão
de povo. Continuando o trajeto e a narrativa, Jesus diz: “E fomos a subir pela encosta de
um monte chamado Gólgota, que em nossa língua, o aramaico, quer dizer crânio” (p.
264; cf. Jo 19, 17).
A metalinguagem explica o uso da palavra “Gólgota”, do latim golgòtha
'topônimo de Gólgota, ‘local de suplício’; “Calvário”, do lat. Calvarium, em cuja
formação temos o latim calva,ae 'crânio'; foi aproximado de calvus,a,um 'calvo' por
etimologia popular entre os romanos.
A metonímia presente na narrativa expressa o grande sofrimento vivido por
Jesus ao ser crucificado no Gólgota, ou Monte Cavário “E minha cabeça parecia ser tão
grande, crescia e seu peso era como o do Calvário” (p. 265).
Esse foi o fim do caminho. Jesus em sua vida humana, tão humano quanto
cada homem e mulher que nasce, vive e morre neste mundo, também chegou ao seu
momento derradeiro. Lembremos que Santo Afonso de Ligório, vivendo seu grande
amor por Jesus, aponta a Cruz como o segundo pilar da espiritualidade que ele desejava
comunicar ao mundo. De todos os mistérios cristãos, A Paixão e a Morte de Jesus
geram um paradoxo difícil de ser compreendido, porque ao primeiro olhar vemos o Pai,
que enviou seu Filho amado, para morrer pelos nossos pecados. E sob esse ponto de
vista é natural nos perguntarmos: Que Amor é esse? E Santo Afonso mesmo escreveu:
“Deus deve estar com problemas, louco de amor, perdeu a cabeça de tanto amor”
(Ligório, 1995; p. 14). Acrescenta que o mais importante não é ficar parado aos pés da
cruz, mas seguir adiante, provocar mudanças, porque, se a cruz foi o final de um
caminho, foi principalmente o início de outro, porque seu lenho vazio aponta para a
Ressurreição. Importa, sim, pensar no significado existencial da cruz: “presente,
passado e futuro, na parcimônia da vontade de Deus” (Ligório, 1995, p. 15).
A cruz é símbolo. Antes de Jesus, símbolo da desonra, da humilhação, do
escárnio. Depois de Jesus, é símbolo da redenção, símbolo da fé de um povo que forma
o corpo místico de Cristo, a sua Igreja, presente no mundo inteiro. E quanto mais ela
pode evocar como símbolo, tanto mais depende do acolhimento no coração de quem a
187
olha.
6.5 Encontros e desencontros
— Capítulo I: “A cólera” (p. 3-10).
— Intertextualidade bíblica: XXX
— Comentário: Simão, filho de Cleofas, ainda fugidio por causa de seu
passado vivido com os zelotas (cf. Eu Venho, p. 140-143), reencontra Jesus em sua vida
pública pela primeira, como vemos: “Alguém nos surpreendeu, a mim, a Tiago e a
Pedro, com furtiva saudação (...) era Simão Pedro, sim, o filho de Cleofas (...) Na pressa
da passagem de Simão, no lampejo daquele saudar, tocara seu lábio minha face” (p. 9)
Fazemos um recorte cuja marca é a “esperança”. Jesus ainda esperava o
encontro com Maria de Magdala. Jesus conversava com sua mãe que se referia ao grito
“que ficou entre voz humana e uma ave do deserto”. Ela perguntou: “Ouviste? Foi ela, a
mulher de Magdala (...) Vai dormir — disse à minha mãe — Ela virá a mim (...) E então
nela eu veria muito mais a dor do que o pecado” (p. 10).
— Capítulo III: “Dá-me de beber” (p. 17-24).
— Intertextualidade bíblica: “A samaritana” (p. 19-24; cf. Jo 4, 1-42).
— Comentário: o romance reescreve o texto completo da perícope do
evangelho de João que narra o encontro de Jesus com a mulher samaritana, acrescido
pelo fazer literário. A palavra “samaritano” é proveniente do latim samarítáni,órum,
‘que ou o que é da Samaria, cidade e região da Palestina’ a qual Jesus estava
atravessando, dirigindo-se à Judéia. Os samaritanos eram vistos com desprezo pelos
judeus, desde a nova colonização de Israel pela Assíria, e a eles correspondiam com
hostilidade (cf. Schökel, p. 2556). É marca dessa hostilidade a palavra “raça”, incluída
na locução de Jesus-narrador quando disse que sabia ser a samaritana “tão intransigente
com os da minha raça” (p. 20). A palavra “raça” significa ‘divisão tradicional e
arbitrária dos grupos humanos’, ‘grupo étnico em relação com a nação, a região'.
Portanto, o texto deixa implícito que a samaritana era separada de Jesus, por serem de
grupos ou nações diferentes. Ele era considerado um estrangeiro na Samaria, como
revela o narrador, lendo o pensamento que a mulher dirigia a ele: “Volta, estrangeiro.
Os teus iguais são nossos inimigos” (p. 20)
A identidade judaica de Jesus foi reconhecida pela samaritana na primeira
188
comunicação entre ambos. É Jesus quem fala: “Dá-me de beber (...) A palavra beber,
pronunciada por mim de forma bem diversa, qualificou-me por inteiro” (p. 19). Porém o
diálogo conduzido pelo personagem transforma a qualidade da comunicação entres os
interlocutores. Jesus atrai e seduz a samaritana, converte o seu coração e a envia em
missão, como apóstola que anuncia a Boa Nova a todos a quem conhecia. As expressões
usadas por ela para designar Jesus vão crescendo em valor. Ela disse: um “homem”, o
“Cristo”, o “Ungido” (p. 22; cf. Jo 4, 29-30).
Se acompanharmos no contexto o desenrolar de sentimentos que representa a
transformação da samaritana, veremos as seguintes marcas: “desconfiança”, “rosto
altivo”, “hesitação”, “perdeu o rancor”, “leve sorriso”, “dócil”, “junto a mim”, “jeito de
segredo”.
Importa notar a mudança de sentido em relação a “água potável” e “água
viva”, devida à articulação da palavra “água”, do latim aqua,ae 'água', repetida dos dois
sintagmas, com o adjetivo “potável”, do latim potabìlis,e 'que pode ser bebido', e com o
adjetivo “viva(o)”, do latim vívus,a,um 'que tem vida, animado’. A mulher foi buscar
“água potável” no poço, e encontrou Jesus, a “água viva”. Dentro do paradigma da
“água potável”, está a “sede repetida”, no paradigma de “água viva”, está a “fonte de
vida eterna”. Jesus interpreta o sentido simbólico dessa expressão, de acordo com a
tradição bíblica, que diz: “em ti está a fonte de água viva” (Sl 35, 10). O NT é
legitimado pelo AT.
O “poço” na Bíblia é símbolo do lugar do encontro. Foi onde Jacó se
apaixonou por Raquel (cf. Gn 29, 1-14), onde Moisés se encontrou com Séfora, com
quem se casou (cf. Bertolini, p 49; cf. Ex 2, 16-22). O poço é o lugar do encontro de
Jesus com a samaritana, deixados a sós pelos discípulos (p. 19; cf. Jo 4, 8), ela era a
esposa que Jesus procurava (Bertolini, p. 50). A samaritana não tem nome, metáfora de
um povo marginalizado, que é acolhido e amado por Jesus, “a quem no momento certo,
prendi a mim, no outro jogo de amor a que se dera” (p. 24).
— Capítulo V: “Ninguém é profeta...” (p. 27-33).
— Intertextualidade bíblica: “Em Nazaré” (p. 27-33; cf. Lc 4, 16-21)
— Comentário: depois que Jesus proclamou o salmo de Isaías 61, na sinagoga
em Nazaré, conforme estudamos no tema “pregações”, houve grave choque provocado
pela a novidade que ele trazia e a tradição em que viviam seus conterrâneos. A voz de
Jesus-personagem dirigida ao povo comprova o pensamento que tinham sobre ele: “Se
189
és médico, cura-te a ti mesmo. Faze aqui os milagres que fizeste em Cafarnaum (p. 30;
Lc 23). Também lemos: “Queriam lançar-me de lá (da colina) porque não me fizera
sócio de suas empreitadas” (p. 31; cf. Lc 29). A seguir a voz do narrador afirma: “Nezer
já não era o pequeno e delicado ramo; era um galho crestado de ódio (...) (Maria)
Chorou silenciosa e silenciosa ajeitou o que eu deveria levar para Cafarnaum” (p. 33;
sem intertextualidade bíblica).
— Capítulo VI: “Chamou-me Cafarnaum” (p.34-37).
— Intertextualidade bíblica: “Inicio da pregação de Jesus” (p. 34-35; Mt 4, 12-
25)
— Comentário: Jesus deixou a situação de desencontro em Nazaré, rumo ao
encontro em Cafarnaum “Chamavam-me as águas de Cafarnaum (...) Eram essas águas
que me pediam encontro” (p. 35; cf. Mt 4, 12-13).
Importa ressaltar o seguinte comentário dirigido a Jesus e a seus discípulos:
“Passava por nós um grupo de caravaneiros (...) — Então sois vós nazarenos!” (p. 34;
sem intertextualidade bíblica). A locução aponta a identidade daquele grupo:
“nazarenos”. A resposta à pergunta presente na voz de Jesus-narrador “Como sabia o
rico homem que nós vínhamos de Nazaré?” é subentendida no enunciado que explica
que “entre tantos grupos que se excediam em prática de religião, cada qual invocando
sua maneira de agir como a certa, nó seríamos ‘os nazarenos’” (p. 34-35), cuja
identidade era reconhecida pelas novas maneiras, os gestos e a atitude diferente que
neles notavam (p. 30); pelo novo modo de interpretar a Lei, pois Jesus disse: “Sim, isto
foi dito pelos antigos, mas eu bem vos digo diferente” (p. 24) e, principalmente pelo
amor e alegria que partilhavam no convívio diário (p. 46).
— Capítulo IX: “Alegres dias e chamados de amor” (p.46-47).
— Intertextualidade bíblica: “Vocação de Mateus” (p. 46-47; cf. Mt 9,9; Mc 2,
13-14; Lc 5, 27-28).
— Comentário: nesse tempo de muitas alegrias, uma delas foi o encontro de
Jesus com Mateus, o “chamado de amor” feito ao cobrador de impostos, rejeitado pelo
povo, mas ávido pela Boa Nova. Jesus que lhe disse: “Segue-me” (p. 47; cf. Mt 9, 9). O
verbo no imperativo, seguido do pronome oblíquo, transcreve o texto bíblico. Não há
uma resposta verbal de Mateus; há uma ação: ele o seguiu imediatamente, fato que
denota a atração de Jesus sobre Mateus. O texto do romance revela que Jesus já o
190
marcara também, com a avidez de Mateus por sua palavra (p. 46) e que antes mesmo
que o chamado se tornasse palavra, Jesus “o via e chamava, sim, mas, por enquanto, só
em meu coração” (p. 47).
— Capítulo XII: “Os Mensageiros” (p. 56-58).
— Intertextualidade bíblica: “Eleição dos Apóstolos” (p. 56-57; cf. Mt 10, 1-4;
Mc 3, 13-19; Lc 6, 12-16).
— Comentário: o capítulo narra a escolha dos homens que seriam os primeiros
líderes instituídos pelo próprio Cristo. Três palavras se destacam nesse contexto, cujas
etimologias apresentamos: “missão”, do latim missìo,ónis 'ação de enviar’; “discípulo”,
lat. discipùlus,i 'discípulo, estudante'; “apóstolo”, do latim eclesiástico apostòlus,i 'id.',
do grego eclesiástico apóstolos,ou 'id., 'que é enviado a serviço de, em missão,
missionário'.
Vários discípulos já viviam próximos a Jesus, mas doze foram por ele
escolhidos, chamado cada um por seu nome, e enviados em “missão” (p. 57-58; cf. Mt
10, 2-4). O “chamado” encontra legitimidade no AT, desde a formão do povo de
Israel. Dentre vários chamados significativos, citamos: “E agora, eis o que diz o Senhor,
aquele que te criou, Jacó, e te formou, Israel: nada temas, pois eu te resgato, eu te
chamo pelo nome, és meu”. No NT, Jesus é o Senhor daqueles a quem chama e envia
em missão e, partir desse envio, os discípulos passaram a ser apóstolos, portadores da
Boa Nova. Seriam eles a anunciar a mensagem de Jesus, a pregar a sua doutrina e a agir
em seu nome.
— Capítulo XVI: “Óleo sobre o pó dos caminhos” (p. 70-73).
— Intertextualidade bíblica: “A pecadora perdoada”
29
(p. 70-73; cf. Lc 7, 36-
50).
— Comentário: a narrativa bíblica e o romance narram a entrada de uma
29
Há uma nota ao final da p. 70 do romance, informando que a mulher, personagem do capítulo
XVI e do evangelho de Lucas 7, foi confundida com Maria de Magdala ou Maria de Betânia. Os
evangelhos de Mateus 26, Marcos 14 e João 12, narram outro jantar, em que também uma mulher ungiu
Jesus, e João a identificou como sendo Maria, irmã de Lázaro, e assim o fez Dinah. Porém no evangelho
de Lucas, a personagem é anônima, e Dinah afirma ser aquela uma serva de Maria de Magdala (cf. Eu
Jesus, p. 71).
191
mulher pecadora na casa de Simão onde Jesus participava da ceia. Por ser pecadora foi
discriminada, no entanto Jesus a acolheu e perdoou, pela grande fé por ela demonstrada.
O discurso põe em contraste a atitude de Simão, fariseu, e a atitude da mulher,
pecadora. Ele, homem cumpridor das tradições, não havia recebido Jesus em sua casa
com as honras merecidas por um convidado, como havia feito com os outros. Ela, “tão
conhecida e desprezada pecadora” (p. 72; cf. Lc 7, 39), lavou os pés de Jesus com suas
lágrimas, beijou-os e ungiu-os, então, Jesus se dirige a ela, dizendo: “estão perdoados
seus muitos pecados, porque muito amou; porque, ao que se perdoa pouco, ama-se
pouco” (p. 73; cf. Lc 7, 47).
O jogo de palavras da frase tem a intenção de provocar os fariseus, porque a
leitura implícita os aponta como aqueles que se consideram sem pecado, portanto, não
precisam de perdão, logo, pouco são amados.
— Capítulo XVIII: “Porque eu era diferente” (p. 77-79).
— Intertextualidade bíblica: “A mãe e os irmãos de Jesus” (p. 77-79; cf. Mt
12, 46-50; Mc 3, 31-35; Lc 8, 19-21).
— Comentário: A narrativa traz de volta a cena em Nazaré quando Jesus teria
sido atirado do monte (p. 31). A imagem do personagem a partir daquela data provocou
uma divisão radical entre o “fervor” e “descrença”: de um lado, aqueles que se uniam a
Jesus como Tiago; de outro, aqueles que o desprezavam como Cleofas e Josefo,
separados de Jesus. A afirmação feita por Jesus vem dar o movimento seguinte ao
enunciado, qual seja a confirmação de sua loucura, do ponto de vista de seus parentes,
diante da sua fala: “Quem são minha mãe e meus irmãos?” (p. 79; cf. Mt 12, 48). O
discurso do personagem muda o foco do parentesco, o laço consangüíneo não importa
diante do laço criado entre pessoas que se irmanam em conformidade com a vontade de
Deus.
Observando gramaticalmente o título do capítulo “Porque eu era diferente”,
encontramos uma estrutura causal, cujo sujeito é o pronome “eu”, que no espaço da
enunciação se refere a Jesus, o “diferente” segundo o predicativo do sujeito. A
conjunção “porque” tem a função de articular essa oração a outra que mostra a
conseqüência dessa diferença — que não está expressa no título, mas que está incluída
no texto do capítulo, quando se lê a pergunta feita por Jesus: “Quem são minha mãe e
meus irmãos?” (p 79). O aparente desconhecimento de quem são seus parentes é
causado pelo fato de Jesus ser “diferente”. Portanto, podemos fazer a seguinte leitura:
192
“Eu não reconheci minha mãe e meus irmãos porque eu era diferente”. Desta forma
teríamos um período composto com estrutura completa. O silêncio do título é revelado
pelo contexto.
— Capítulo XX: “O invisível grão” (p. 83-85).
— Intertextualidade bíblica: XXXXX
— Comentário: o capítulo XX retoma o anterior, para explicar a distância que
Maria mantinha de Jesus. Vejamos: “Dobrado estava o vestido de linho, bem composto
e renovado. Nele senti as mãos de minha mãe, que cada vez se punha mais distante de
mim” (p. 85). O enunciado deixa implícito que ela cuidava de seu filho, embora pouco
se aproximassem fisicamente, apesar de participarem da mesma comunidade, bem como
outras mulheres que assumiam tarefas na comunidade: “Naquele momento, minha mãe
estava de partida para com outras mulheres levar a condenados dos tribunais de Herodes
o chamado vinho da paz (...)”(p. 85).
— Capítulo XXI: “Orai por nosso Jesus” (p. 86-87).
— Intertextualidade bíblica: XXXXX
— Comentário: o capítulo XXI se afasta da intertextualidade bíblica, para
completar o capítulo XVIII, o não-dito na Bíblia, explicando a posição da família diante
da atitude de Jesus, dos que estavam com eles e dos que estavam separados. Cleofas, e
seus filhos, Jamina e Josefo, repetem: “Ele está louco!” (p. 85). O discurso desses
personagens apresenta argumentos que justificam a loucura de Jesus, os quais citamos:
“cercou-se de pecadores e de prostitutas”, “expulsou sua mãe”, “não quis receber a nós,
seu sangue”, “pretende ser mais que os profetas”, “saber mais do que os doutores da
Lei”, “suas mãos acariciam os mortos e tocam a testa dos leprosos” (p. 86-87). Os
argumentos apresentados parecem justos, pois de acordo com o ponto de vista desses
personagens, contrariavam a lei de Moisés (Eclo 9, 6; Tb 4, 18; Ex 20, 12; Lv 11, 31;
13, 47). Tiago e Simão, seus primos, seguiam Jesus; juntou-se a eles Maria, estes eram
os filhos e a esposa de Cleofas. Maria disse: “Pois eu me vou a Jesus” (...) “Jesus, tu me
recebes?” (p. 87).
O contra-argumento de Jesus só pode ser aceito por pessoas de “boa vontade”
(2Cr 15, 15), conforme ele próprio afirma: “Os são não precisam de médico, mas os
enfermos; não vim chamar os justos, mas os pecadores” (Mc 2, 17).
O capítulo apresenta a voz do narrador em prosa e as vozes dos personagens
193
em estilo lírico, semelhando-se aos salmos, fazendo remissões ao AT (Eclo 21, 21; Pr
12, 19). A fala de Abigail “Quem tem a esposa é o esposo”, é intertextual ao capítulo
XLI de Eu Jesus, e a João 3, 29. O discurso deixa implícito que o lugar que ela ocupava
era ao lado de seu marido, excluindo-se desse confronto (p. 86-87)
A cena é descrita através do pensamento de Jesus que diz: “Como qualquer um
eu sonhava muito. E tudo via de perto como de longe” (p. 86). O discurso deixa um
espaço para a dúvida: Jesus “sonhava” e “via”, ou “via” e “enxergava” de uma forma
especial?
— Capítulo XXII: “De atar e separar” (p. 87-90).
— Intertextualidade bíblica: XXXXX
— Comentário: Maria de Cleofas integrou o grupo de mulheres discípulas de
Jesus, “uma fiel presença em minha pregação” (p. 87).
Embora o romance apresente a personagem como uma das mulheres atuantes
na comunidade formada pelos discípulos, sua presença só é citada nos evangelhos na
cena da morte e ressurreição de Jesus (Mt, 27, 56.61; Mc 15, 40.47; Lc 23, 55; 24, 10).
— Capítulo XXVI: “A desigualdade na colheita” (p. 97-98).
— Intertextualidade bíblica: XXXXX
— Comentário: não obstante o romance apresente as mulheres a serviço de
Jesus como discípulas e apóstolas, percebemos um discurso polifônico que atravessa a
leitura que temos feito sobre esse tema. Vejamos o que relata o recorte: “Por esse
tempo, já as multidões vinham acercar-me tão insistentemente que mulheres e
discípulos estavam de pé antes de nascer o sol” (p. 97). As palavras “mulheres” e
“discípulos” são usadas para designar aqueles que serviam na comunidade. O feminino
de “discípulo” é “discípula”, porém a referência às personagens como “mulheres”, não
necessariamente as inclui no grupo dos discípulos. Embora todo o contexto dos
evangelhos e do romance evoque a presença feminina como verdadeiras discípulas e
apóstolas, essa designação não faz parte dos textos bíblicos como nos são apresentados
hoje, portanto no espaço da enunciação, há dois discursos que se cruzam, o do
preconceito e o da abertura. O primeiro marca o que é velho; o segundo marca o novo,
trazido por Jesus.
Capítulo XXVII: “Da mulher impura e da menina que dormia” (p. 100-102)
194
— Intertextualidade bíblica: XXXXX
— Comentário: a narrativa mostra os grupos em que se dividiam as pessoas
em relação à opinião que tinham sobre Jesus: alguns criam nele, outros duvidavam,
outros o assediavam por causa da curiosidade que sentiam.
— Capítulo XXVIII: “E quem de nós vinha atrás” (p. 102-104).
— Intertextualidade bíblica: XXXXX
— Comentário: o capítulo XXVIII complementa a narrativa dos capítulos
XXII e XXVI que apresentam mulheres no seguimento a Jesus. A voz do narrador
nomeia algumas mulheres que acompanhavam Jesus e os discípulos, “prontas para
executar qualquer trabalho” (p.102) e, em metalinguagem, acrescenta características a
cada uma, marcando suas diferentes personalidades: Maria, a mãe de Jesus “que muito
jovem profetizara”; Maria de Magdala, pecadora curada e “redimida em humildade e
coragem”; Joana, rica e generosa, “mulher de Cusa, intendente de Herodes”; Susana,
delicada e graciosa (cf. Lc 8, 3), “cujo nome significava lírio ou qualquer flor”.
O título do capítulo deixa implícita uma crítica à posição social e religiosa das
mulheres naquele contexto, cuja marca é o advérbio “atrás”, lugar que elas ocupavam
em relação aos homens. Jesus-narrador acusa a ignorância em que eram mantidas,
“aprendiam alguns salmos e eram postas no Templo em lugar apartado, não tendo
obrigação de acudir às festas sagradas”. Pela narrativa podemos entender que Jesus não
participava desse preconceito e, por essa razão, ele mesmo era criticado por quem
acreditasse que ele as tirava de seus lares para segui-lo. A narrativa aponta o reverso do
preconceito, porque essas mulheres, “que vinham pelo apelo de seus corações” e os
seguiam silenciosas e vigilantes, “principiariam a mostrar em público uma outra figura
humana” (p. 104)
— Capítulo XXX: Os obscuros mensageiros (p. 106-109).
— Intertextualidade bíblica: “Missão dos apóstolos” (cf. Mt 10, 5-21; Mc 6, 7-
12; Lc 9, 1-6)
— Comentário: embora todo o contexto do capítulo XII deixe claro o sentido
de “apóstolo”, a palavra só é usada pela primeira vez no capítulo XXX (p. 108). A
narrativa continua a seqüência do capítulo XII, em que Jesus escolhe os doze apóstolos
(p. 57-58; cf. Mt 10, 1-4), a seguir os envia em missão (p. 108-109; cf. Mt 10, 5-8), e
lhes dá a orientação necessária (p. 109; Mt 10, 9-10).
195
A metáfora presente no enunciado revela a contradição entre encontros e
desencontros, como marca do discurso. Podemos entender essa situação pela explicação
dada pelo narrador: “Assim como duas margens de um rio, o amor e o temor estavam à
esquerda e à direita de minha pessoa” (p. 108). O temor que alguns sentiam dele é
estendido também aos apóstolos, como lemos nessa pergunta retórica: “como recear
meus primeiros apóstolos (...)?”, mesmo sendo pessoas de condição tão simples (cf.
108).
— Capítulo XXXIII: “Os doze do círculo” (p. 115-119).
— Intertextualidade bíblica: “Discurso de Jesus sobre o pão da vida” (cf. Jo 6,
60-71).
— Comentário: existe um silêncio no capítulo XXXIII, relativo ao envio dos
apóstolos, que pode gerar uma aparente incoerência textual. Os primeiros enviados
foram doze (cf. Lc 9, 1-6). Depois, Jesus enviou mais 72 discípulos, também dois a dois
em missão, que só serão mencionados no capítulo XLII (p. 152- 153; cf. Lc 10, 1). Há
duas locuções no primeiro parágrafo que remetem aos apóstolos, a saber: “Aqueles que
me acompanharam se foram” e “todos me queriam renegado, menos os doze (...) Fiquei
sozinho com eles” (p. 115). “Aqueles” diz respeito aos 72, que ainda estavam distantes,
e “eles” diz respeito aos doze, que estavam próximos. Acrescentemos ainda: “fiquei
sozinho”, voz de Jesus-narrador, completa o sentido do “Discurso sobre o Pão da Vida”
(p. 112-115; cf. Jo 6, 22-71), que gerou separação entre Jesus de muitos que o seguiam e
não compreenderam suas palavras. Daí decorre a pergunta de Jesus dirigida aos doze:
“E vós?!... Também vós quereis partir? Também quereis deixar-me?”. O enunciado
mostra a firmeza da fé de Pedro ao responder: “Senhor, e a quem iremos se te
deixarmos? Só tu tens palavras de vida eterna. Acreditamos que tu és o Cristo, filho de
Deus” (p. 116; cf. Jo 6, 66-69).
— Capítulo XXIV: “Aquela a quem chamei mulher” (p. 119-122).
— Intertextualidade bíblica: XXXXX
— Comentário: o capítulo apresenta virtudes de Maria, narradas pela voz de
seu filho. Jesus afirma: “ia aos enfermos”, “fazer de tudo que levasse a mim e ao Pai”,
“tão grande misericórdia, tão infinito amor”, “estendia (a misericórdia) peculiarmente
aos menos dignos desse amor”. Porém, o narrador revela a contradição, dizendo:
“Deveria amá-la quase à distância, quando tão intimamente nós nos amávamos” (p.119).
196
E acrescenta: “Eis aí o ponto mais doloroso de nossas relações” (119).
No diálogo entre Jesus e sua mãe — “houve um tão grande desejo de sua
aproximação, que então eu a chamei e nós nos distanciamos” — um dos índices de sua
crucifixão é o “vinho e a mirra” citados por Maria no diálogo entre ambos (p. 119).
— Capítulo XXXVIII: “Não foi a carne nem o sangue” (p. 134-136).
— Intertextualidade bíblica: “Pedro proclama sua fé em Jesus” (p. 134-136; cf.
Mt 16, 13-20; Mc 8, 27-30; Lc 9, 18-21).
— Comentário: apontamos a etimologia da palavra “igreja”, qual seja grego
ekklésía,as 'assembléia por convocação, assembléia de fiéis, lugar de reunião ou de uma
assembléia, igreja', pelo latim ecclésìa,ae 'assembléia, reunião, ajuntamento dos
primeiros cristãos”. Em sentido geral qualquer assembléia, contudo o contexto evoca a
reunião dos primeiros cristãos.
A confissão de fé de Pedro revela sua abertura à ação de Deus, e por
determinação de Jesus ele passa a ocupar o primeiro lugar dentre os apóstolos, sobre
quem seria edificada a Igreja de Cristo. Pedro recebeu de Jesus as chaves do Reino dos
Céus. (p. 134-135; cf. Mt 16, 15-19). Importa notar que o texto explica que em aramaico
não havia diferença entre as palavras “Pedro” e “pedra, rocha”, portanto lemos no texto
do romance: “Tu és rocha, e sobre essa rocha edificarei minha assembléia”; no
evangelho lemos “Pedro” em lugar de “rocha”. Pedro recebia de Jesus “as chaves do
Reino dos Céus” (p. 136; cf. Mt 16, 18-19). A palavra “chaves” aponta para o poder
transmitido a Pedro de “atar” e “desatar” na terra e no céu, cujo enunciado em
metalinguagem explica que “para os doutores da Lei desatar era o mesmo que liberar
alguém de uma obrigação” (p. 136); poder anunciado no discurso como num flash,
deixando ver que ao longo dos séculos esse poder se estabeleceria por ele em outros
“Pedros” (cf. p. 136).
— Capítulo XXXIX: “A aura da paixão” (p. 137-139).
— Intertextualidade bíblica: “Primeira predição da Paixão” (p. 137-138; cf. Mt
16, 21-23; Mc 8, 31-33; Lc 9, 22)
— Comentário: a narrativa mostra a mudança de paradigma em relação ao que
“sempre se falava do Messias”. Dentro do antigo paradigma ele resgataria as glórias de
Israel, seria um rei temporal, com poderes extraordinários, e cada grupo ou classe
atribuía a si a dignidade de revelá-lo. No novo paradigma, o Messias é senhor de um
197
Reino que não é deste mundo; ele resgataria os pecados do povo, passando pela
humilhação e pela morte e, para aqueles que amavam Jesus seria “a mais dolorida prova
pela qual deveriam passar” (p. 137). Portanto, três discursos predizem a Paixão de
Jesus, que começa a preparar o coração dos discípulos (cf. Mt 16, 21). No primeiro, pela
voz de Pedro é mostrado o absurdo do fato. Ele exclama: “Que Yaveh não permita,
Senhor!”, pois ele ainda se mantinha no antigo paradigma. Sob a ótica do novo, Pedro é
contrário ao projeto de salvação, por isso Jesus o exorta, dizendo: “Para trás Satanás!
Teus pensamentos não vêm de Deus” (p. 137-138; cf. Mt 16, 22-23). Esse diálogo é
intertextual ao Memorial do Cristo I, quando Jesus é tentado pelo demônio a abandona
sua missão (Eu Venho, cap. XXXVIII).
— Capítulo XL: “Parusia” (p. 139-145).
— Intertextualidade bíblica: “Transfiguração” (p. 139-143; cf. Mt 17, 1-13;
Mc 9, 2-13; Lc 9, 28-36); “Segunda predição da Paixão” (p. 145; cf. Mt 21-22; Mc 9,
30-32; Lc 9, 43-45)
— Comentário: em grego “parusia” ou “epifania” significa ‘aparecimento ou
manifestação reveladora de Deus ou de uma divindade. No contexto do NT, Jesus revela
a face gloriosa de Deus em sua “transfiguração”, do latim transfiguratìo,ónis
'transformação’. Moisés e Elias, personagens dessa perícope, trazem de volta a antiga
aliança, que se concretiza em Jesus, a Nova Aliança.
— Capítulo XLII: “O convite” (p. 150-155).
— Intertextualidade bíblica: “Missão dos 72 discípulos” (p. 152-153; Lc 10, 1-
11).
— Comentário: o discurso do romance, intertextual à Bíblia, narra o envio dos
“setenta e dois fiéis discípulos”, também dois a dois, como já haviam sido enviados os
doze apóstolos, “os mais íntimos (...) companheiros, nomeados como primeiros entre
todos” (p. 152-153). Há um sentido de destaque dado aos doze, cuja marca é a palavra
“apóstolos”, já que os “setenta e dois” são marcados pela palavra “discípulos”, embora
também tivessem sido enviados em missão.
A orientação dada por Jesus aos discípulos é intertextual ao evangelho. Ele
lhes disse “que se unissem dois a dois; que não gastassem seu tempo em saudações (...)
e que se não fossem acolhidos, batessem às portas fechadas o pó de suas sandálias” (p.
153; cf. Lc 10, 5), contudo a seqüência do evangelho, ou seja, Lucas 10, 6 e 7, é
198
substituída no texto do romance por Lucas 9, 49, mantendo a intratextualidade das duas
perícopes de Lucas, cujo sentido é do acolhimento a Jesus, na pessoa dos mais humildes
(p. 153; cf. Lc 9, 49; Lc 10, 6-7).
— Capítulo XLIV: “De encontro à aurora, eles vinham” (p. 159-165).
— Intertextualidade bíblica: “Missão dos 72 discípulos” (p.160-161; cf. Lc 10,
17b-20); “Marta e Maria” (Lc 10, 38-42).
— Comentário: o título do capítulo refere-se aos 72 discípulos que voltavam a
reencontrar de Jesus, no momento da aurora, cuja luz difusa tornava “sombrios seus
rostos, cabelos eriçados e negros”. E o narrador afirma: “Eram os setenta e dois
discípulos que vinham ter comigo (...) aquele era o dia marcado para o encontro (...)
voltavam juntos bem ligados em triunfo, cantando em vigor de galos novos, ao anúncio
do dia” (p. 159; cf. Lc 10, 17). Acusamos que a narrativa é intertextual ao texto do AT
“O dia do Senhor” (Jl 2, 1-11), e citamos as marcas que geram a analogia entre os dois
textos. São elas: “encontro”, “aurora”, “triunfo”, “vigor”, “anúncio”.
O encontro de Jesus com “Marta e Maria” é narrado apenas no evangelho de
Lucas. A passagem bíblica completa é composta de cinco versículos; o capítulo de Eu,
Jesus narra a mesma passagem em dez parágrafos, acrescentando ao texto fundador
diálogos e descrições que fazem parte do texto ficcional.
— Capítulo XLV: “Por que me quereis matar?” (p. 165-170).
— Intertextualidade bíblica: “Festa dos Tabernáculos” (p. 167-168; Jo 7, 10-
18); “Opinião dos judeus acerca de Jesus” (p. 168-170; cf. Jo 7, 26-36).
— Comentário: o texto apresenta índices da morte de Jesus, tais como: Josefo
empurrando Cleofas para não encontrar Jesus, como se adivinhasse “a desgraça que
sabia estar para chegar”; o arauto clamando o nome “Jesus” anunciava a sentença de
morte para, só depois de um breve silêncio, completar o nome “Jesus Barrabás”; José de
Arimatéia — o fariseu que cederá o túmulo onde Jesus será sepultado — procurando
por Jesus; o silêncio guardado por Jesus sobre o dinheiro que Judas queria receber de
José de Arimatéia (p. 166-167).
— Capítulo XLVI: “O sedutor” (170-175).
— Intertextualidade bíblica: “Opinião dos judeus acerca de Jesus” (p. 170-172;
cf. Jo 7, 37-53).
199
— Comentário: a palavra de Jesus era muito forte e atraente, por que eram
palavras de verdade e esperança, das quais dava testemunho com a própria vida. Ele
dizia: “Venha a mim quem tiver sede! (...) As fontes brotarão no íntimo daquele que
acreditar em mim” (p. 170; cf. Jo 7, 38). Esse discurso tinha um sentido profundo para
aquele povo que sabia que “Yaveh era chamado de ‘fonte de água viva’” (cf. Sl 77, 20).
Muitos queriam estar com ele, e por ele se deixavam seduzir; a outros, pontífices e
sacerdotes, causava indignação e esses o queriam preso. A voz de um soldado
representa a voz daqueles que estavam junto com Jesus: “Ninguém nunca falou como
este homem”. A resposta do sacerdote representa a voz dos que estavam separados.
“Também vós vos deixastes seduzir (...) só crêem neste homem os que não conhecem a
Lei! Por isso são malditos, não verão a Yaveh!” (p. 171; cf. Jo 7, 37).
— Capítulo XLVII: “Um luzeiro” (p. 175-180).
— Intertextualidade bíblica: XXXXX
— Comentário: o capítulo narra o encontro de Jesus com Cláudia Pocla
30
. É
Jesus quem narra: “Eu a vi por três vezes (...) Era a mulher de Pôncio Pilatos,
procurador da Judéia. Diziam que se chamava Cláudia (...) eu vi Cláudia e nela fiquei, e
me demorei nela como em muitos dos meus demoraria” (p.178)
Jesus cita o hábito da oração que o levava ao encontro como Pai e fazia-o
sentir a “alma em gozo e liberdade” (p. 179) A oração citada no capítulo é o Pai Nosso
(p.179-180; cf. Mt 6, 9-13; Lc 11, 1-4).
— Capítulo XLVIII: “Se tu és o Cristo” (p. 180-183).
— Intertextualidade bíblica: XXXXX
— Comentário: o encontro íntimo e o amor-amizade entre Jesus e seus
discípulos apontam uma relação direta com o conhecimento que tinham uns dos outros.
Eles se amam porque se conhecem. Jesus-narrador revela: “Meus discípulos, entretanto,
estavam comigo e eu neles estava pois não deixavam de conhecer-me, quando outros de
mim se perdiam e se confundiam com o povo (p. 182)
A narrativa revela Cláudia, mulher de Pilatos, entre os judeus, oculta sob trajes
comuns, para encontrar Jesus, sem que fosse reconhecida. Vejamos: “Cláudia despiu
30
Em nota ao final da página 183, a autora informa que Cláudia Pocla é considerada
santa pela Igreja Grega.
200
seu manto de mulher de nosso povo (...) E ela me achou e me viu, mas não os romanos
que com ela estavam” (p. 183).
— Capítulo L: “Porque Moisés vos permitiu repudiar vossas esposas” (p.187-
192).
— Intertextualidade bíblica: XXXXX
— Comentário: citamos nesse capítulo a dualidade no encontro/desencontro,
duas faces da mesma moeda, pois para encontrar Jesus, seus discípulos deixaram suas
famílias, como mostra a narrativa: “Pedro pensava em sua filha (...) João e Tiago
recordavam a casa de seu pai (...) Mães, companheiras, esposas, filhas perpassavam com
suas figuras doces ou imprudentes, severas ou plenas de sorrisos, pelas cabeças de meus
homens” (p. 189).
Jesus não tinha uma família para lembrar; ele se entregava ao prazer do
encontro com o próximo. E disse: “Lá fora (...) estavam muitas crianças (...) Momento
prazenteiro foi-me dado. Apequenei-me, abracei cada um deles e estive em seus
corações, sentindo o infinito prazer da paternidade humana” (p. 190; cf. Mt 19, 13-15;
Mc 10, 13-16; Lc 18, 15-17).
— Capítulo LI: “A lâmpada do teu corpo é o teu olho” (p. 192-196);
— Intertextualidade bíblica: “Segundo anúncio da Paixão” (p. 195; cf. Mt 17,
21-22; Mc 9, 30-32; Lc 9, 43-45); “Terceiro anúncio da paixão” (p.196; cf. Mt 20, 17-
19; Mc 10, 32-34; Lc 18, 31-34).
— Comentário: Jesus já não falava por metáforas, mas abertamente sobre sua
morte. Os três dias da morte e ressurreição são reescritos no romance da seguinte forma:
“hoje e amanhã e ao terceiro dia tudo termino” (p. 195; cf. Mt 17, 21-22).
Depois do terceiro anúncio da Paixão os discípulos “principiavam a ter medo”,
porque começavam a entender que o Messias, rei triunfador, não fazia parte do projeto
que Jesus transmitia a eles. Mas não Judas. Ele ainda esperava a glória do Messias para
breve (p. 196).
— Capítulo LII: “Era quase a lua da Páscoa” (p. 204-208).
— Intertextualidade bíblica: “Traição de Judas” (p. 206; cf. Mt 26, 14-16; Mc
14, 10-11; Lc 22, 3-6); “Conspiração contra Jesus” (p. 206-208; cf. Jo 11, 45-57).
— Comentário: a “lua da Páscoa” acontece no primeiro domingo após a lua
201
cheia seguinte à entrada do equinócio de outono no hemisfério sul ou o equinócio de
primavera no hemisfério norte. Acusamos que “equinócio” é o momento em que o Sol,
aparenta cortar o equador celeste, fazendo com que o dia e a noite tenham igual
duração, apontando para o ponto de harmonia da natureza. O discurso diz respeito à
orientação do calendário judaico baseado na Lua. A “lua da Páscoa” nesse contexto não
se refere apenas à tradição judaica que comemorava a libertação do seu povo, mas
aponta a morte e ressurreição de Jesus, a nova Páscoa, harmonia em toda a terra.
O capítulo narra a decepção de Judas e a decisão tomada de trair Jesus (p. 206;
cf. Mt 26, 14-16; Mc 14, 10-11, Lc 22, 3-6) . Narra também uma outra decisão, a de
Caifás e dos homens do Sinédro sobre o “perigo que representava ‘Jesus de Nazaré’” (p.
208; cf. Jo 11, 45-57).
— Capítulo LIV: “Rejubila-te, filha de Sião” (p. 208-214).
— Intertextualidade bíblica: “Purificação do Templo” (p. 211-212; cf. Mt 21,
12-17; Mc11, 15-19; Lc 19, 45-48).
— Comentário: como já foi estudado neste trabalho, o milagre realizado em
Lázaro representava a grandiosidade de Jesus em comunhão com o Pai, fato que
assustava os judeus que decidiram matar Lazáro. Marta aflita, falava a Jesus: “Querem
matar meu irmão, para que não vejam nele o milagre que obteve” (p. 212; cf. Jo 12, 10-
11). Diz o texto do romance que “Marta, chorosa, ocultamente, juntava fardos com lãs e
linho e fazia provisões para uma viagem, pretendiam mudar-se de Betânia”
31
(p. 212).
— Capítulo LVI: “Esta glória será sangrenta” (p.217-221).
— Intertextualidade bíblica: “Entrada de Jesus em Jerusalém” (p. 217-219; cf.
Mt 21, 1-11; Mc 11, 1-10; Lc 19, 29-49; Jo 12, 12-36); “Conspiração dos sacerdotes”
(p. 219; Mt 26, 1-5; Mc 14, 1-2; Lc 22, 1-6)
— Comentário: a narrativa retoma a figueira amaldiçoada sobre o monte das
Oliveiras como metáfora de Jerusalém: embora fosse primavera, a figueira
31
Existem algumas versões para a história de Lázaro. Dentre elas, uma que parece bem
razoável, é a que conta que, depois da morte e ressurreição de Jesus, Lázaro fugiu de Betânia,
perseguido de morte pelos judeus que o consideravam uma testemunha viva dos prodígios de
Jesus e da sua ressurreição. Logo depois, Marta e Maria venderam as suas terras da Betânia e
juntaram-se ao seu irmão na Peréia.
202
permaneceria seca; embora Jerusalém respirasse ao sagrado, não daria frutos, porque
como a figueira, era só aparência, não dava de si (cf. p.217).
O capítulo apresenta vários símbolos messiânicos que fazem parte do AT,
referentes à perícope “Entrada de Jesus em Jerusalém”, a saber: as aclamações são
dignas de um rei — o rei Salomão foi aclamado (cf. 1Rs 1, 38-40); a humildade do
Messias que entra montado num jumentinho (cf. Zc 9,9); o grito de hosana, súplica e
aclamação (cf. Sl 117, 25-26); o jumento com a conotação da montaria pacífica elimina
a conotação bélica (Jz 5, 10). O romance acrescenta enunciados intertextuais ao AT,
mas que não fazem parte da perícope do evangelho. Dentre eles, citamos: a voz do povo
que proclama um Messias que viria como rei, sacerdote, vencedor (p. 219; cf. Sl 109)
(cf. Bíblia do Peregrino, p. 2365). O povo gritava: “Está na Lei que o Messias viverá
sempre” (p. 219). Contudo, o que o povo ainda não entendia, é que a vitória e a glória
de Jesus Cristo seriam conquistadas pelo preço do seu próprio sangue.
A “Conspiração dos sacerdotes” narrada no romance em dois parágrafos,
segue a orientação do evangelho de Lucas, que se desenvolve em seis versículos. São
sinônimos de “conspiração”: ‘conluio, maquinação, trama’, cujo sentido é 'cumplicidade
para prejudicar terceiro(s)’. A narrativa retoma a reunião na casa de Caifás, Sumo
Sacerdote (capítulo LII), quando em cumplicidade tramou-se a morte de Jesus (p. 219-
220; cf. Mt 26, 1-5; Mc 14, 1-2; Lc 22, 1-6).
— Capítulo LVII: “A abominação da desolação” (222-227).
— Intertextualidade Bíblica: “Traição de Judas” (p. 224-227; cf. Mt 26, 14-16;
Mc 14, 10-11; Lc 22, 3-6).
— Comentário: a pergunta feita por Judas ao Sumo Sacerdote é reescrita no
romance da seguinte forma: “Se o entregar, o que quereis dar-me?” (p. 226; cf. Mt 26,
15). Embora os textos dos evangelhos, entre si e em relação ao romance, não
apresentem exatamente as mesmas palavras para essa locução, em todos é mantido o
verbo “entregar”, cuja origem etimológica é o latim intègro,as,ávi,átum,áre
'restabelecer, restaurar; renovar, recomeçar'. Observamos o momento de “entrega”,
marcado pela antítese “infidelidade” x “fidelidade”. O primeiro momento refere-se à
entrega de Jesus por Judas aos judeus, à traição, rompendo a fidelidade, imprimindo
assim uma conotação negativa. Em sentido oposto, a entrega feita por Jesus, de si
mesmo, ao Pai, através da qual cumpre a sua vontade e se mantém fiel a ele até a morte.
Voltando ao sentido etimológico de “entregar”, fazemos a leitura da entrega de Jesus na
203
cruz, qual seja, o restabelecimento aliança com Deus, o recomeço da vida que é
renovada, a restauração de um povo pecador redimido pela sua morte e ressurreição.
— Capítulo LVIII: “Junto à porta da fonte...” (p. 228-234).
— Intertextualidade bíblica: “A ceia” (p. 228-231; cf. Mt 26, 17-20; Mc 14,
12-17; Lc 22, 7-14); “Discussão entre os discípulos” (p. 231-232; cf. Lc 22, 24-30); “A
ceia” (p. 232; cf. Lc 22, 15); “A ceia” (p. 232-233; cf. Mt 26, 26-29; Mc 14, 22-25; Lc
22, 16-20); “Jesus lava os pés de seus discípulos” (p. 233-234; cf. Jo, 13, 1-20).
— Comentário: a celebração da Páscoa ou Pessach, em hebraico, ocorria
sempre na primavera, no primeiro mês, Nisan, para nós, março-abril. Na tradição
judaica, une-se à figura de Moisés. Na tradição cristã, une-se à figura de Cristo.
Portanto, os símbolos da ceia pascal ganham nova conotação, relativa à sua morte e
ressurreição. Dentre eles citamos o “pão ázimo” (do latim tardio azmon,i 'pão sem
fermento'), o “vinho” e o “cordeiro pascal”, cujo sangue era derramado no altar dos
holocaustos, sem que nenhum osso lhe fosse quebrado (p. 231), que seria servido com
um molho especial, o haroset, palavra em hebraico que não encontra tradução na língua
vernácula (cf. p. 228- 230; Ex 12, 1-27). Voltaremos a falar sobre esses símbolos ao
estudarmos o Capítulo LIX do romance.
Cabe no entanto a seguinte pergunta: como teria de ser o cordeiro pascal? Um
animal sem defeito, macho de um ano que seria comido com ervas amargas e frutas.
Jesus é o Cordeiro de Deus, aquele que tira os pecados do mundo, conforme João
Batista anunciou (Jo 1, 29; cf.Eu Venho, cap. XXXVII).
O enunciado acrescenta que “Junto à porta da fonte” se encontrava o homem
que os conduziria à mansão onde Jesus e seus amigos se reuniriam para comer a ceia da
Páscoa (p. 228; cf. Mt 18-19). A refeição era feita no “Cenáculo”, na origem latina da
palavra encontramos, coenacùlum ou cenacùlum,i 'sala de jantar'.
A narrativa do capítulo apresenta várias interrupções na seqüência dos
evangelhos para retomá-las mais adiante, mudando assim a ordem dos versículos e
cruzando os textos dos evangelistas. Passamos a descrever a organização do texto do
capítulo sob a ótica da intertextualidade. Vejamos: p. 228-231; cf. Mt 26, 17-20; Mc 14,
12-17; Lc 22, 7-14; p. 232, parágrafos 2 e 3; cf. Lc 22, 24-30; p. 232, parágrafos 4 e 5;
p. 232, parágrafo 6, até p. 233, parágrafos 2 a 5; Mt 26, 26-29; Mc 14, 22-25; Lc, 22,
16-20; p. 233-234; cf. Jo 13, 1-20. A narrativa da “Ceia” continua no capítulo LIX,
como veremos a seguir.
204
Em relação aos acréscimos literários apresentamos: o recolhimento de Judas
(p. 229), o encontro de Jesus com o Pai em oração (p. 229-230), a descrição detalhada
dos preparativos da refeição pascal (p. 230-231), a presença da família que acolheu em
sua casa Jesus e seus amigos (p. 231), a descrição do lugar e das posições de todos os
amigos à mesa (p. 232).
A cena do “lava-pés” narrada nesse capítulo, presente apenas no evangelho de
João, é a expressão da humildade e do amor-serviço testemunhados por Jesus (p. 233-
234; cf. Jo 13, 1-20).
A figura de Judas traz a conotação do mal através das expressões: “olhar-nos
com um olho só”; “aves que sondam o que comer”; “olho de galo posto quase a bicar”;
“olho vermelho”; “arredado ficou” (p. 228-229)
— Capítulo LIX — “Aquele que põe a mão no prato” (p. 234-238).
— Intertextualidade bíblica: “A ceia” (p.234; cf. Mt 26, 21-25; Mc 14, 18-21;
Lc 22, 21-23; Jo 13, 21-30 ); “A ceia” (p. 237-238; cf. Mt 26, 26-29; Mc 14, 22-25);
“Jesus prediz a negação de Pedro” (p. 238; cf. Mt 26, 30-35; Mc 14, 26-31; Lc 22, 31-
34; Jo 13, 36-38).
— Comentário: o contexto revela o ato de traição aos companheiros, cujas
marcas textuais apontam para Judas. Destacamos: “o que come meu pão levantou contra
mim seu calcanhar”; “um de vós me entregará”; “Tu o disseste. És tu”; “Aquele que põe
a mão no prato, juntamente comigo, este me trairá” (p. 235; cf. Mt 21-23).
A tradição revela vários símbolos pascais, os quais receberam um novo
significado depois da morte e ressurreição de Jesus. Na antiga aliança, o “pão” era o
ázimo, segundo determinação de Moisés; na Nova Aliança, o “pão” remete ao corpo de
Jesus repartido e entregue como alimento. Na antiga aliança, o sangue do cordeiro foi
derramado para marcar as portas dos hebreus e livrar da morte os primogênitos; na
Nova Aliança, o sangue de Jesus, cordeiro de Deus, é “derramado por muitos, para
remissão dos pecados” (p. 237; cf. Mt 26, 26-28). Nesse contexto pascal, Jesus instituiu
a “eucaristia”. Vemos a origem dessa palavra no grego eclesiástico eukharistía
'sacrifício de ação de graças'. A eucaristia é o terceiro pilar no qual Santo Afonso
fundamenta sua espiritualidade. O primeiro, o “presépio”, é símbolo da encarnação de
Jesus; o segundo, a “cruz”, é símbolo da entrega de Jesus Cristo em favor de muitos; o
terceiro, a “eucaristia”, verdadeiro mistério de amor, no qual pão e vinho são Corpo,
Sangue, alma e divindade de Jesus Cristo, é o sustento para a fraqueza humana (cf. Jo 6,
205
55). A Igreja acredita na presença real do Corpo e do Sangue de Cristo nas espécies do
pão e do vinho (cf. Papa, 2004, p. 37).
Fazemos um recorte que remete à vida pública de Jesus, quando aqueles que o
seguiam ainda não entendiam do alimento de que ele lhes falava, e que só se torna claro
após sua entrega na cruz. Vejamos:
– Dá-nos sempre desse pão, Senhor! – Eu sou o pão da vida.
Quem crê em mim não terá fome, jamais terá sede (...) – Porque eu
vim do céu, não para satisfazer meu desejo, mas a vontade daquele
que me fez descer (...) Pois o desejo de meu Pai é o de que todo aquele
que vier a seu Filho e nele tiver fé obtenha a vida eterna (...) No
último dia eu o ressuscitarei.”. (Eu, Jesus, p.114; cf. Jo 6, 35-40)
O enunciado explica em metalinguagem o sentido das “plantas amargas”, qual
seja o tempo de tribulação vivido no Egito; o haroset, molho vermelho para a carne,
remete à argila trabalhada no cativeiro.
Em seguida a narrativa relata a negação de Pedro de forma intertextual à
Bíblia. O canto dos galos, índice da mudança de comportamento, foi apresentado de
forma positiva em Eu Venho (p. 145), quando Maria de Cleofas, por gratidão, assumia
sua fidelidade a Jesus. Em Eu, Jesus se confirma a mudança de forma negativa, quando
Pedro, cheio de pavor, assumiu sua infidelidade a Jesus, negando conhecê-lo, antes que
o galo cantasse três vezes. (p. 238; cf. Mt 26, 30-35).
— Capítulo LX: “O Espírito da verdade” (p. 239-243).
— Intertextualidade bíblica: “Angústia suprema” (p. 239-241; cf. Mt 26, 36-
46; Mc 14, 32-42; Lc 22, 39-46); “Prisão de Jesus” (p. 241-242) “Diante de Anás e
Caifás” (p. 243; cf. Mt 26, 7; Mc 14, 53; cf. Jo 18, 13).
— Comentário: o discurso de Jesus-personagem, intertextual ao evangelho de
João, é dirigido aos seus apóstolos, com a intenção de lhes dizer que a hora de sua morte
havia chegado. Ele disse: “mas a hora chegou em que claramente anunciarei o segredo
de meu Pai”. E continuou, afirmando que lhes falava claramente, não mais em
parábolas, revelando-lhes a verdade sobre o amor do Pai (cf. p. 239; cf. Jo 16, 23-28).
No contexto do Getsêmani, Jesus expressa sua condição humana de desespero e
dor diante da humilhação e morte cruel pela qual logo teria de passar. São marcas
206
textuais desse sofrimento: “Dentro de mim angústias mortais”, “chagas em minha
alma”, “luta interior”, “horror de minhas entranhas” (p. 239).
Em sua humanidade, como o primeiro dos mortais nascido da terra, Jesus à
terra se entrega em seu sofrimento. São marcas dessa entrega: “meu corpo pendeu e eu
me colei à terra, em toda extensão de meu corpo”, “minha entrega ao solo, “minhas
lágrimas se misturaram à terra e por ela descera parte de mim que ia adiante de minha
pessoa”, “um apelo jorrou de minha boca a sentir o gosto da terra”, “o suor vinha de
meu corpo como se fosse terra e sangue” (p. 239-240). E em seu desespero, Jesus dirige
ao Pai sua súplica, em dois momentos (cf. p. 240; cf. Mt 26, 39.42). Ouçamos a voz de
Jesus que suplica ao Pai: “Pai, se é possível, de mim afasta esse cálice. Meu Pai, se este
cálice não pode passar sem que eu o beba , cumpra-se a tua vontade” (p. 240; cf. Mt 26,
42). Esse recorte no romance não corresponde a uma transcrição da Bíblia, embora
mantenha uma proximidade textual com a segunda súplica no evangelho.
Finalmente a divindade de Jesus se revela pela entrega total que faz de si
mesmo ao Pai, deixando consolar, fortalecer e pacificar seu espírito. Essa transformação
do “medo” para a “confiança” está presente na metáfora que mostra a “luz da lua” e o
“anjo” que se materializam. Vejamos:
Uma luz que me envolveu como um manto. Era uma luz
corporificada e de onde estavam meus discípulos por ela viram descer,
como se a pisasse em segurança, um jovem que souberam ser um
anjo; um compassivo visitante chegado da parte de meu Pai (...) Meu
corpo estava pronto para todas as lutas humanas: ele deveria morrer.
(p. 240)
Acompanhando a seqüência do texto percebemos a completude do humano no
divino, porque “corpo” sem “espírito” é “terra”. É no “espírito” que a “luz” de Deus
transparece e vivifica o “corpo”.
Importa notar que Jesus se dirigiu aos discípulos, chamando-os a participarem
desse momento. São estes os verbos que compõem as expressões de Jesus dirigidas a
eles: “Sentai-vos aqui”, “Aguardai aqui a velar comigo”, “Orai”. Contudo, conforme o
texto do romance e dos evangelhos (p. 240; cf. Mt 26, 43), os discípulos dormiram. A
seguir a narrativa apresenta um paradoxo. A voz do narrador acrescenta: “Despertei-os”.
Em seguida Jesus lhes diz: “Agora podeis dormir”. O verbo “despertar” remete ao
207
contexto da agonia de Jesus, em que sentiu solidão e precisava dos discípulos
acordados. A locução “podeis dormir” aponta para a ação de Deus, para o
fortalecimento de Jesus, ele já não precisava dos discípulos, podia lutar sozinho,
portanto, dava-lhes a notícia de que podiam dormir.
A prisão de Jesus segue a intertextualidade. São personagens dessa cena Judas,
sacerdotes, anciãos do povo, guardas romanos e um tribuno, representante de Roma (cf.
p. 241; Mc 14, 43). Sua entrega se fez de forma pacífica, embora os soldados viessem
armados de “espadas e varapaus”, portanto o uso da arma por Pedro contra Malco
mereceu a censura de Jesus (cf. p. 242; cf Jo 18, 10-11), pois relatam os evangelhos que
Pedro sacou da “espada’. Conforme se lê na Bíblia do Peregrino, em grego a palavra
spathé,es pode designar um punhal ou navalha de uso pessoal pacífico (cf. p. 2383). A
autora acrescenta uma nota ao final da p. 242, em que explica sua escolha pelo uso da
palavra “punhal” em vez de “espada”, como se lê nos evangelhos.
Registra-se também a dispersão dos discípulos diante da prisão de Jesus. Segundo
o romance e os evangelhos, “Pedro (...) fugiu com meus discípulos pelas escuridões das
oliveiras” (p. 242; cf. Mt 26, 56).
— Capítulo LXI: “As testemunhas” (p. 243-249).
— Intertextualidade bíblica: “Jesus diante de Caifás” (p. 243-244; cf. Mt 26,
57-68; Mc 14, 53-65; Lc 22, 63-71); “Negação de Pedro” (p. 244-246; cf. Mt 26, 47-56;
Mc 14, 66-72; Lc 22, 55-62; Jo 18, 15-27); “Suicídio de Judas” (p. 246-249; cf. Mt 27,
1-10).
— Comentário: O julgamento de Jesus ocorreu no “Sinédrio”, em hebraico
Sanhedrim, Corte Suprema da lei judaica, com a missão de administrar a justiça,
interpretando e aplicando a Lei de Moisés e exercer, simultaneamente, a representação
do povo judeu perante a autoridade romana (cf. p. 249-250; cf. Bíblia católica).
Porém, para que fosse decretada a sentença, precisavam de testemunhas, o
título ressalta a importância da existência desses personagens em um julgamento entre
os judeus, porque, segundo a lei de Moisés, “seria necessário pelo menos o testemunho
dado em pleno acordo de duas pessoas para que um homem fosse condenado à morte”
(p. 243; cf. Mt 26, 59-60). E a acusação sustentada pelas testemunhas contra Jesus foi a
de ele quereria destruir o templo de Yaveh (p. 243; cf. Mt 26, 61) e também a de
blasfêmia, pois afirmava ser o “Cristo Filho de Deus” (p. 244; cf. Mt 26, 61-63), por
essas razões, foi injustamente condenado à morte (p. 244; cf. Mt 26, 66).
208
Conforme os índices apontados sobre Pedro (p. 238; cf. Mt 26, 30-35), antes
do cantar do galo, ele negou conhecer Jesus por três vezes durante seu julgamento, ao
qual assistia de longe, (p. 246; cf. Mt 26, 75). Segundo o romance, apenas João e Pedro,
à distância, estiveram presentes ao julgamento, embora o evangelho refira-se a Pedro e a
“outro discípulo”, que se acredita ser João (p. 243; cf. Jo 18, 15).
No relato do romance sobre a morte de Judas a voz do narrador afirma: “eu o
escolhera, eu o chamara, era um igual” (p. 249). A narrativa de seu enforcamento,
intertextual aos evangelhos, deixa claro o suicídio (cf. p. 249; Mt 27, 5), mas o romance
evidencia a angústia que o levou a arrepender-se, certo da inocência de Jesus, em
narrativa de dez parágrafos, enquanto o texto paralelo nos evangelhos é narrado em um
versículo (cf. p. 246-248; cf. Mt 27, 4). Lemos na Bíblia do Peregrino que existe muita
fantasia em torno desse assunto, e enfoca o testemunho de Judas sobre a inocência de
Jesus, a confissão de seu pecado e a desesperança do perdão; acrescenta ainda que o AT
só registra um caso de suicídio (2 Sm 17, 23).
— Capítulo LXII: “O procurador da Judéia” (p. 249-255).
— Intertextualidade bíblica: “Jesus diante de Pilatos e diante de Herodes” (p.
249-255; cf. Mt 27, 11-14; Mc 15, 1-5; Lc 23, 1-4; Jo, 18, 28-38).
— Comentário: Pilatos era o procurador da Judéia e tinha de zelar pelos
interesses de Roma. Portanto, o processo de Jesus continua diante de Pilatos que não
queria condená-lo à morte. Pressionado pelos judeus, ele o interrogou, transitando entre
a inocência de Jesus e os interesses políticos (cf. p. 251; cf. Jo 18, 29-32). Fazem parte
do interrogatório de Pilatos perguntas sobre a realeza de Jesus, questão política que
poderia levar a uma acusação concreta. Destacamos perguntas feitas por ele: “Então és
tu, deveras, o Rei dos Judeus?”; “De qualquer maneira, tu te estimas como rei?”. Eis
uma resposta de Jesus: “Falas em teu próprio nome ou fazes como tua a acusação de
outros vinda?” (p. 252-253; cf. Jo 18, 33-37). Jesus responde perguntando, e nessa
pergunta há um julgamento sobre a atitude de Herodes, porque “outros” remete aos
“judeus”, que pretendiam matá-lo por uma questão religiosa: Jesus ter-se revelado o
Messias.
Jesus continua a afirmar: “Meu reino não é deste mundo”; “Tal como tu o
dizes, eu sou rei. Nasci e vim ao mundo para isto: dar testemunho da Verdade. Todo
aquele que pertence à Verdade escuta a minha voz e se faz um meu”. Jesus toma o
controle do discurso deixando claro que ele não é uma ameaça a Roma, pois sua realeza
209
e seus súditos pertencem à Verdade. Muitos podem ser os caminhos para estudarmos a
“verdade”; escolhemos o campo semântico dessa palavra, no qual “verdade” é sinônimo
de “veras”, ou seja ‘coisas de verdade, reais’. O sentido implícito do discurso reafirma a
verdade presente no que é real, apontando para a realeza de Jesus, cujo poder está acima
de qualquer poder terreno, porque seu reino não é deste mundo. Na Bíblia, a verdade
está relacionada com a Lei, a revelação e a palavra de Deus. Verdade identifica-se por
isso com fidelidade (cf. Biblia católica on line).
Pilatos afirma: “Não encontrei nele culpa alguma” (p. 253; cf. Jo 18, 38),
como primeira tentativa de livrar Jesus da sentença morte. E envia Jesus a Herodes, que
o devolve a Pilatos sem encontrar-lhe culpa.
— Capítulo LVIII: “O sublevador” (p. 255-262).
— Intertextualidade bíblica: “Jesus diante de Pilatos e diante de Herodes” (p.
255-262; Mt 27, 11-25; Mc 15, 1-14;Lc 23, 1-23; Jo 18, 28-40); “Cena de ultrajes” (p.
258-259; cf. Mt 27, 27-31; Mc 15, 16-20; Jo 19, 1-15).
— Comentário: Jesus foi acusado de “sublevação”, ‘rebelião individual ou em
massa; levante, revolta’.
A segunda tentativa de Pilatos para evitar a morte de Jesus diz respeito ao
direito de libertar um prisioneiro em dias de festa. E Pilatos perguntou ao povo: “A
quem quereis que solte: a Barrabás ou a Jesus, que se diz o Messias?”. Pilatos insiste e o
povo decide aos gritos que Barrabás fosse liberto e Jesus crucificado (cf. p. 257-258; Jo
18, 39-40).
A terceira tentativa foi a esperança de satisfazer os ânimos exaltados dos
judeus com a “flagelação”, do latim flagelatìo,ónis ‘ação de açoitar, ação de bater’. E
Jesus padeceu a desgraça , a humilhação e dor, sob açoites e insultos desfigurou-se (cf.
p. 258-260; cf. Jo 19, 1-3). O AT, para os cristãos, é lido sob a ótica de Jesus, o Cristo,
servo amoroso e fiel, entregue à expiação pela salvação de muitos. O padecimento e o
contexto humilhante de sua morte foram profetizados por Isaías, por volta de 750 anos
antes do nascimento de Jesus (cf. Is 53).
Observamos a presença da ironia nos símbolos reais que nele foram colocados
pelos soldados: o “manto vermelho”, o “cetro” feito com um caniço, a “coroa” feita de
espinhos. O texto bíblico acrescenta que diante de Jesus os soldados se ajoelharam,
saudando-o: “Salve, rei dos judeus!”, cuspindo, batendo e blasfemando contra ele. (cf.
p. 259; cf. Mt 27, 27-30).
210
A ação de Pilatos é “lavar as mãos”, gesto que sinalizava protesto. Diante desse
contexto, podemos fazer uma analogia entre “inocência” e “justiça”, e
“responsabilidade” e “injustiça”. Inocente era Jesus, inocente era Pilatos, que queria
justiça; responsáveis eram os judeus e o povo que ali estavam, que injustamente
proclamaram uma sentença de morte (cf. p. 261; cf. Mt 27, 24-26).
— Capítulo LXIV: “As correntes rompidas de Barrabás” (p. 262-269).
— Intertextualidade bíblica: “Jesus diante de Pilatos e diante de Herodes” (p.
262; cf. Mt 27, 26; Mc 15, 15; Lc 23, 24-25; Jo 19, 16).
— Comentário: o relato literário não corresponde integralmente ao relato
bíblico, porque faz acréscimos à obra fundadora. A narrativa do romance expõe a
sentença de morte de Jesus, proclamada pela voz do arauto que ia à sua frente: “Jesus de
Nazaré, incitador do povo! Conspirador contra César! Falso messias! Será conduzido
através da cidade, até o lugar da execução. Ali será pregado em sua nudez sobre a cruz.
E nela ficará até a morte” (p. 262).
O enunciado do romance acompanha o desenvolvimento dramático da cena
como é relatada nos evangelhos. O letreiro sobre a cabeça de Jesus, que dizia: “Rei dos
Judeus”, traz de volta a ironia por ser motivo de zombaria entre os soldados romanos e
de indignação entre os judeus (cf. p. 266; cf. Mt 27, 37).
Diante da certeza da morte, Jesus faz a entrega de Maria e de João, dizendo à
mãe: “Mulher, tens aí teu filho”, e dizendo ao filho: “Tens aí tua mãe”. Esse discurso
traz a conotação da nova família de Jesus, pois seu irmão poderá lhe dar muitos
herdeiros (cf. p. 268; Jo 26-27).
Ressaltamos a crucifixão de Jesus entre dois malfeitores, um deles a tradição
cristã identifica como São Dimas, perdoado por Jesus na hora da morte. Esse fato
resgata a intertextualidade do romance Eu, Jesus com o romance Eu Venho, que narra o
encontro de Jesus, Maria e José com Dimas ainda menino, quando estavam a caminho
do Egito (cf. Eu, Jesus, p. 267; cf. Eu Venho, cap. XII; cf. Lc 23, 39-43). As perguntas
feitas por Maria em Eu Venho: “Quem sabe se um dia o encontraremos? e “Que destino
terá, pobre criança?”, são respondidas ao pé da cruz, no Calvário, quando se completa a
profecia de Simeão. Apoiada em João, com Maria de Magdala e Maria de Cleofas, a
espada atravessava o coração de sua mãe (cf. Eu, Jesus, p. 263; cf. Lc 2, 35).
O AT mais uma vez confirma o texto do NT, no grande grito de Jesus ao Pai.
O discurso mostra que Jesus parecia querer recitar o Salmo 21, 2: “Meu Deus, meu
211
Deus, por que me abandonaste?” (p. 268; cf. Mt 27, 46). Os soldados romanos
responderam a essa súplica estendendo-lhe um galho com uma espoja embebida em
“vinagre”. Essa bebida oferecida a Jesus em sua sede remete ao Memorial do Cristo I, a
posca, que o faz recordar-se de sua infância (cf. p. 269; cf. Mt 27, 48; cf. Eu Venho,
cap. XXVIII). É comum esse ato ser apresentado como uma última crueldade no
momento derradeiro, porém o romance narra que um dos soldados agiu dessa forma
movido pela “compaixão” e, conforme estudamos nesta pesquisa, os soldados romanos
tinham o hábito de tomar a posca para se refrescar, portanto esse dois argumentos
apontam para a “compaixão” e não para a “crueldade”.
Nos momentos que precederam sua morte, Jesus dá prova grandiosa de seu
amor, dizendo: “Perdoai-lhes porque não sabem o que fazem” (p. 266; cf. Lc 23, 34).
Ele se dirigia ao Pai, em favor dos seus algozes. Vamos atestar o sentido desse
enunciado pela etimologia de “perdoar”: verbo proveniente do latim ‘perdonáre’,
composto de ‘per- + donáre’. O prefixo latino ‘prae-‘, implica a noção de
'anterioridade’, e o verbo latino dóno,áre, implica 'dar, sacrificar’. A leitura feita sob
essa ótica indica que, antes mesmo de receber algo em troca, ou seja, gratuitamente,
Jesus entregava sua vida em sacrifício pelo bem de muitos, com amor incondicional.
E no seu grito final, Jesus invocou a Deus, clamando: “Pai, em tuas mãos
entrego meu espírito”, citação do Salmo 30, 6, prova da confiança total que tinha em
Deus. (cf. p. 269; cf. Lc 23, 46; cf. Sl 30, 6). Eram três horas da tarde de sexta-feira,
quando sua morte foi consumada. Jesus “tornou-se obediente até a morte, morte de
cruz” (Fl 2, 8).
A linguagem da cruz é loucura ao olhar humano: Jesus sofreu tanta
humilhação, tanta dor, tanta injustiça... Resignado, bebeu até a última gota do cálice a
ele reservado pela ignorância humana, entregando-se fiel às mãos do Pai. “Já que o
mundo, com sua sabedoria, não reconheceu a Deus na sabedoria divina, aprouve a Deus
salvar os que crêem pela loucura da sua mensagem” (1Cor 1, 21)
—Capítulo LXV — “Agora sou esperança” (p. 269-271).
— Intertextualidade bíblica: “Sepultura” (p. 270; cf. Mt 27, 57-66; Mc 15, 42-
47; Lc 23, 50-56; Jo 19, 38-42); “Ressurreição” (p. 270-271; cf. Mt 28, 1-15; Mc 16, 1-
8; Lc 24, 1-12; Jo 20, 1-18).
— Comentário: “Eu venho do existir mas não ainda da Esperança, e agora eu
sou Esperança. Do infinito painel da Eternidade, do ontem, do hoje, do amanhã, eis que
212
amanheço” (p. 269). O recorte que fizemos é o início do último capítulo do volume II
do Memorial do Cristo II, e o início do primeiro capítulo do volume I. A citação do
primeiro romance no segundo é idêntica até a palavra “amanheço”. Em Eu Venho, a
seqüência acrescenta: “amanheço como uma planta na intimidade de minha mãe” (p. 3).
Em Eu, Jesus, o período termina em “amanheço” e recomeça um outro: “Há quantos
séculos, há quantos milhares de anos me esperavam aqueles seres nas regiões a que
chegavam, depois da morte?” (p, 269). Comparemos as duas seqüências. “Planta”
remete ao estado vegetativo; a semente que ainda virá a ser, terá de passar por todo o
processo natural da vida: nascimento, desenvolvimento e morte. No segundo livro o
complemento relata o momento posterior a todo esse processo, posterior à morte. É o
encontro de Jesus com as almas na região dos mortos. Em hebraico, cheol é o nome
dado à “morada dos mortos” (Gn 37, 35), lugar onde habitavam as almas, no estado em
que se encontravam no momento da morte. Julgava-se que esse lugar ficasse debaixo da
terra (cf. Bíblia Ave Maria, rodapé, p. 86). A atemporalidade é marcada pela expressão
“num plano em que se entrelaçavam todas as gerações” (p. 269).
A libertação dessas almas é trazida ao romance pela gradação pictórica da
mudança de cor: do negro e do cinzento para o amarelo, o vermelho e o branco
refulgente. A voz de Jesus-narrador acrescenta: “Eu lhes trazia a cor, a Esperança”. A
cor remete à vida, oposto ao estado de obscuridade em que se encontravam. A
Esperança remete ao encontro com o Pai, ao qual chegariam por Jesus, pois eles
“sofriam da fome e da sede da vida eterna” (cf. p. 269).
A narrativa é interrompida e volta o foco para o sepulcro de José de Arimatéia,
lugar onde Jesus fora colocado, pois ele deveria voltar e cumprir a “promessa”: “Eis a
promessa que ele nos fez: a vida eterna” (1Jo 2, 25).
Há uma outra interrupção na narrativa, e a cena segue no domingo de Páscoa, no
jardim onde Jesus havia sido sepultado. O “túmulo vazio” e a “pedra rolada” são sinais
ainda não entendidos. O romance cita Maria de Magdala a ver primeiro e a dar a notícia
às companheiras: “Levaram o Senhor! Levaram o Senhor” (p. 270; cf. Jo 20, 2). As
companheiras são identificadas no evangelho de Lucas como sendo Joana e Maria, mãe
de Tiago (cf. Lc 24, 10). Pedro e João também foram ao sepulcro e “acreditaram, então,
firmemente na ressurreição” (p. 270; cf. Jo 20, 8).
Como se houvesse um encontro marcado, Maria de Magdala ficara sozinha no
jardim chorando, e Jesus a ela apareceu antes de aparecer a qualquer outra pessoa. A
palavra dirigida por Jesus a Maria faz com que ela o identifique, pelo tom de voz que
213
ela conhecia e ele a chamou por seu nome, “Maria”. Nos evangelhos a resposta de
Maria a Jesus corresponde à palavra hebraica raboni, reescrita no romance pelo seu
significado: “Meu Senhor! Meu Senhor!” (p. 271; cf. Jo 20, 16).
Há nova interrupção na narrativa após o quinto parágrafo. Ficamos sabendo
pela voz do narrador uma questão que ocorreria no futuro aos discípulos: “Por que, por
que, o Senhor, a Maria de Magdala apareceu primeiro?” (p. 271). Maria foi a primeira
testemunha da Ressurreição, e dá a Jesus o título de “Senhor”, o qual confirma a fé no
Ressuscitado.
Após uma outra interrupção, a narrativa retoma a seqüência textual inconclusa
do sexto parágrafo, relativa à dúvida dos discípulos. O enunciado indica como resposta
o “ciúme dos homens”. A voz de Jesus-narrador é dirigida ao leitor, cujas marcas da
interlocução apontamos: “se a seu lado”, “eu estivesse”, “na carne em que vesti”, “agora
vos digo em meu Memorial”. E Jesus dirige sua resposta a todos os que se fazem
discípulos porque com ele se encontram em sua Vida Nova transcrita nesse Memorial:
“Porque no jogo infinito do amor eterno, existe a mesma natureza do amor humano, que
perdoa, e tanto mais ama quanto mais perdoa” (p. 271).
Sentindo-nos presentes nas palavras de São Paulo, queremos dizer junto com
ele que “por ora subsistem a fé, a esperança e o amor — as três. Porém a maior dentre
elas é o amor”. (1Cor 13, 13).
214
7. CONCLUSÃO
Entendemos que, ao estudar a obra Memorial do Cristo I e II, entramos em
contato mais íntimo com a linguagem literária criada pela autora, que reescreve em sua
narrativa, a história da vida de Jesus Cristo, em parte confirmada pela Bíblia, pois o
texto ficcional se insere paralelamente ao que é considerado como canônico e teológico,
compondo, desta forma, os romances sobre os quais elaboramos nossa pesquisa. Nossa
proposta foi a de apresentar o léxico, a língua, e a intertextualidade bíblica na obra
citada, composta pelos dois romances, Eu Venho e Eu Jesus.
Os textos que fazem parte do acervo literário de autoria de Dinah revelam seu
verdadeiro dom para escrever, criando o novo através de suas palavras. Os fatos
marcantes de sua vida pessoal e profissional dão-nos a conhecer a dignidade da mulher,
inteligente e sensível, capaz de transformar a palavra em arte literária, cujo caráter
exemplar e talento incomparável foram reconhecidos no Brasil e no exterior. Tomamos
conhecimento desses fatos por depoimentos veiculados ao público como revistas e
jornais, pelo testemunho de homens e mulheres que com ela conviveram no meio
profissional e, principalmente, por amigos que participaram da intimidade da vida
pessoal e familiar, dentre estes seu segundo marido, Dário de Castro Alves. Muitos
deles expressaram sua dor profunda por ocasião da morte de Dinah. Por isso justifica-se
a apreciação de uma coletânea de títulos de autoria de Dinah e situamos entre eles o
Memorial do Cristo I e II, obra especial e ousada, conforme afirma a própria autora.
Após traçarmos os limites dos romances, apontando onde começa e termina cada
um deles, esclarecendo como os dois textos fazem parte da mesma história, ou seja, a
vida de Jesus de Nazaré, situamos a História e o contexto da Palestina do tempo de
Jesus. Dentre os vários livros por ela encomendados e aos quais recorria para buscar
informações, Dinah deixou claro que sua principal fonte de consulta foram os textos
sagrados dos quatro evangelistas, Mateus, Marcos, Lucas e João. A Bíblia, linguagem
fundadora do Memorial do Cristo, foi tema sobre o qual traçamos alguns comentários e
esclarecimentos, tais como, autores, épocas e lugares onde foi escrita, para que a
intertextualidade com os romances pudesse ser melhor situada. Nesse sentido,
pretendemos elucidar um pouco a respeito do contexto bíblico e de seus personagens,
cultura, tradição e formação do povo judeu para entendermos as origens de Jesus,
protagonista desses romances.
215
Além disso, atestamos por meio de recortes e estudos feitos sobre o texto do
primeiro romance, o paralelismo com o texto bíblico, pois além da intertextualidade o
romance acompanha os fatos de acordo com o tempo cronológico apresentado nos
evangelhos. Porém, a partir do capítulo XXIV, “O Intruso”, a autora cria a história dos
anos obscuros de Jesus, aqueles que sucederam o seu Bar Mitzwa, que se estendem até o
capítulo XXVII, “Que se Cumpra toda a Justiça”, que relata o batismo de Jesus, quando
a narrativa recupera a seqüência bíblica.
Para o estudo do segundo romance, adotamos uma solução textual diferente,
apresentando análises de forma mais objetiva. Em Eu, Jesus, o protagonista já é
apresentado em sua vida pública, cujo primeiro capítulo “A Cólera” conta como Jesus
expulsou os vendilhões do Templo. O último capítulo narra a aparição de Jesus
ressuscitado a Maria de Magdala, no jardim onde ficara seu túmulo.
Pudemos observar em meio às referências lingüísticas propriamente ditas, que a
narrativa dos dois romances é uma história de amor, narrada com competência e arte
pela escritora, mas cuja verdadeira autoria ultrapassa qualquer condição humana, porque
revela o Santo dos Santos, Jesus Cristo, a maior história de Amor que o mundo já teve
oportunidade de conhecer, cujo autor é o Deus da Vida. Uma obra escrita a duas mãos,
pois inspirada por Ele, Dinah Silveira de Queiroz abriu sua mente e seu coração com
humildade e entrega, para se permitir ser co-autora de tão grandioso trabalho religioso-
literário, pois o que se faz silêncio na Bíblia se torna palavra no romance em total
harmonia com a História.
Encontramos como significado da palavra “memorial”, 'aquilo que faz lembrar'.
Nesse Memorial do Cristo I e II, Dinah Silveira de Queiroz nos faz lembrar da história
de Jesus, homem-divino, que nos convida a sermos seus amigos e com ele comermos do
banquete sagrado (cf. Lc 22, 15; Eu Jesus, p. 232), para que enfim participemos da
alegria de tornar à casa do Pai, pois “Haverá maior felicidade do que voltar à casa de
onde viemos com amor?” (cf. Eu, Jesus, p. 270).
216
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