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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE POS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
LER[SE] NAS ENTRELINHAS. SOCIABILIDADES E
SUBJETIVIDADES ENTENDIDAS, LÉSBICAS E AFINS
Andrea Lacombe
Tese de doutorado submetida ao Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social,
Museu Nacional, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
Orientadora: Profa. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna.
Rio de Janeiro
Fevereiro 2010
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LER[SE] NAS ENTRELINHAS. Sociabilidades e subjetividades
entendidas, lésbicas e afins
Andrea Lacombe
Tese submetida ao corpo docente do Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu
Nacional, da Universidade Federal de Rio de Janeiro
-UFRJ, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutora em Antropologia
Social.
Aprovada por:
________________________________________________________
Presidente, Profa. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna (MN/UFRJ)
_____________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte (MN/UFRJ)
________________________________________________________
Prof. Dr. Fernando Rabossi (IFICS/UFRJ)
________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Luiza Heilborn (IMS/UERJ)
________________________________________________________
Prof. Dr. Gustavo Blázquez (CIFyH/UNC)
Rio de Janeiro
2010
II
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Lacombe, Andrea.
Ler [se] nas entrelinhas. Sociabilidades e subjetividades entendidas, lésbicas
e afins/ Andrea Lacombe. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, 2010
X, 192 p.
Tese - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, PPGAS.
1. Gênero. 2. Sociabilidade. 3. Lesbianismo. 4. Sexualidade. 5. Teoria
Queer. 6. Performance. I. Vianna, Adriana. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. III. Título.
III
Agradecimentos
Uma tese é um solilóquio que se da o luxo de sair à luz dos olhos dos outros.
Entretanto, para poder darmos esse luxo, contamos com o apoio infinito de
pessoas e instituições que colaboram durante o processo.
A minha orientadora, Adriana Vianna, pela atenção em me mostrar as pedras no
caminho e ter a delicadeza de não tirar nenhuma por mim. Nessa relação tão
singular que significa a orientação de um trabalho de escrita acadêmica,
agradeço-lhe a leitura inteligente e cuidadosa de cada uma dessas páginas.
Aos membr@s da banca examinadora, por terem me honrado em aceitar
participar do processo de avaliação desta tese.
Mais uma vez, ao CNPq, entidade financiadora dos meus estudos que continua
outorgando bolsas de pós-graduação e contribuindo assim à liberdade temática na
pesquisa acadêmica.
As professoras e professores PPGAS, especialmente a Moacir Palmeiras, Otávio
Velho, Giralda Seyferth, Olivia Da Cunha, Antonádia Borges, Marcio Goldman e
Aparecida Vilaça; suas aulas contribuíram tanto a realização e inspiração desta
tese, como a minha formação antropológica.
A Tânia Ferreira e o pessoal da Secretaria administrativa do PPGAS, pela
dedicação atenciosa perante o desafio que significa entender a burocracia que,
sem eles, nos engoliria.
Em nome de Carla Freitas, às funcionárias da biblioteca Francisca Keller, do
PPGAS. Pela paciência a eficiência e o carinho com que realizam seu trabalho,
fazendo sempre mais ameno o trabalho de imbuirmos à procura de algum livro
nos meandros das gavetas de consulta.
A Roberta Ceva por tornar compreensível o português das páginas seguintes,
porque estas eu fiz questão de conservar em portunhol.
IV
A Maria Elvira Díaz Benítez, colega, amiga e confidente das primeiras horas no
PPGAS até a última revisão dessas páginas. Obrigada pelo labor de sparring,
pelas discussões sobre meu campo e as contenções etílicas com aroma de boteco
nas horas de desvario e desabafo. Com ela todo agradecimento é pouco.
Andrea Roca tem sido nesses anos uma amiga “de fierro”. Na hermandad
medular, no entendimento e na cumplicidade que mantém nossa amizade
inalterada além dos oceanos.
A Natacha Nicaise, mais uma vez, pela amizade e generosidade em me receber
no seu lar na hora agá desse ano de final da tese.
Igualmente a Deborah Bronz que me abriu as portas da sua casa nos últimos
meses da escrita. Sua hospitalidade, amizade e contenção assim como nossas
conversas nos intervalos da escrita foram uma alegria nesses tempos de
solilóquio final.
A Lu, Jac e Angélica, que tiveram o “olho clínico” de me indicar os lugares que
logo se converteram nos espaços da pesquisa de campo desta tese.
Em nome da Mary, a todas as mulheres que transitam os bailes no Clube
Olímpico, a Plural e a Arena que deram vida e carne as páginas que seguem.
A meus pais e irm@s que continuam apoiando minhas escolhas com confiança e
contenção. Sem el@s teria sido difícil conseguir a liberdade e a autoconfiança
que corre pelas minhas veias.
Mais uma vez, a Daniela, Fernando, Felipe, Antonia, Rafael e María Elvira, nada
mais e nada menos do que minha família carioca.
A Antonia Walford, pela boemia.
V
Regina Facchini e Isadora Lins França foram duas interlocutoras com as quais
tive o privilégio de discutir uma e outra vez as disquisições que apareciam ao
longo da escrita. Nossos diálogos cara a cara e virtuais forma fundamentais em
muitos dos processos argumentais. Sua generosidade com seu tempo,
conhecimento e dicas bibliográficas é incomensuravelmente valioso para mim.
Nesse mesmo sentido, Mauro Cabral, Gustavo Blázquez, María Mercedes
Gómez, Fernando Rabossi, Graciela Barbero e Paula Viturro têm sido
interlocutores de luxo. Agradeço a tod@s el@s pelas conversas que deram luz
nas horas em que a névoa no me permitia enxergar os caminhos.
Aos “tripulantes” da sala 6019. Eles fizeram dos meus dias no Centro Latino-
Americano em Sexualidade e Direitos Humanos, CLAM, momentos de
camaradagem, amenizando nossas jornadas e labores. Agradeço também a
Washington Castilhos e Horacio Sívori pela compreensão e apoio nos momentos
em que a escrita destas páginas tomava o resto da minha humanidade.
A Paula Lacerda, Caroline Ausserer, Luciana Costa França, Claudia Mura, Paula
Siqueira, Laura Zapata, Silvia Aguião, Juliano D Ângelo, Samantha Renó,
Walquiria, Bruno Gomes, Jaina Alcântara, Livi Faro, tod@s el@s parte
fundamental da afetividade dessa vida tão feliz na cidade maravilhosa.
Há quase sete anos deixei Córdoba, minha cidade natal, para vir morar no Rio.
Ali ficaram afetos entranháveis que sempre me encorajaram a seguir meus
caminhos, mesmo que isso significasse o sabor amargo da saudade. Andrea
Orgnero, Gabriela Roberto, Beatriz Palacios, Griselda Sandrone, Vivi Pozzebón,
Karol Zingali, Puchi Storani, Pablo Natta, Sarita Monsalve, Paula Nieto, Silvia y
Tely Manzur, tía Elba, Gabriela Robledo, Candelaria De la Sota, Mariela Serra,
Silvia Villegas, Ade Litwin, Analía Lorenzo, Leandro Cisneros, Nina Meniccetti,
continuaram sendo um apoio afetivo imprescindível nesses anos todos, sorteando
as impossibilidades da distância com afeto e amor.
A Marie Bardet, pour l´affection et la réjouissance.
VI
Resumo
A presente tese tem a intenção de apresentar um conjunto de representações
sociais referentes às sociabilidades de mulheres que mantêm relações afetivo-
sexuais com outras mulheres no intuito de descrever processos de subjetivação a
partir dos quais se viabilizam determinados repertórios e não outros de
constituição dos sujeitos.
Nesse sentido, o investimento da pesquisa de campo teve dois eixos de análise.
Por um lado, o foco recaiu sobre os processos de apropriação espaço-temporal de
três estabelecimentos de divertimento noturno frequentados pelo denominado
público GLS, no Rio de Janeiro, como variável de socialização destas mulheres.
Por outro lado, a análise traz à tona categorias morais de autodefinição e
identificação através das quais analisar diferentes modelos e concepções de
sexualidade, feminilidade, família e ethos das parcerias eróticas, desenhando um
universo de significação moral que dá coesão e sentido às diferentes malhas de
sociabilidade presentes no campo.
VII
Resumen
Esta tesis tiene la intensión de presentar un conjunto de representaciones sociales
referentes a las sociabilidades de mujeres que mantienen relaciones afectivo-
sexuales con otras mujeres con el fin de describir procesos de subjetivación a
través de los cuales se viabilizan determinados repertorios de constitución de
sujetos en detrimento de otros.
En este sentido, la inversión del trabajo de campo tuvo dos ejes de análisis. Por
un lado se centró en los procesos de apropiación espacio-temporal de tres
establecimientos de diversión nocturna frecuentados por el denominado público
GLS en Rio de Janeiro, como una variable de socialización de estas mujeres. Por
el otro, trae a la discusión categorías morales de auto-definición e identificación
mediante las cuales es posible analizar diferentes modelos y concepciones de
sexualidad, femineidad, familia y ethos de pareja, delineando así un universo de
significación moral que da cohesión y sentido a las diferentes tramas de
sociabilidad presentes en el campo.
VIII
Abstract
This thesis presents a set of social representations regarding the sociabilities of
women who maintain sexual or affective relationships with other women, in
order to describe the processes of subjectification which enable
certain repertoires of subject-constitution to be employed, and not others. To this
end, the research had two axes of analysis. On the one hand, as a variable of the
socialization of these women, it focusses on the processes of spatio-temporal
appropriation of three night-time establishments frequented by the GLS public of
Rio de Janeiro. On the other hand, it brings into relief moral categories of self-
definition and identification through which to analyse different models and
conceptions of sexuality, femininity, family and ethos of erotic partners. It thus
traces a universe of moral significance which gives meaning and coherence to
the different modes of sociability encountered in the field.
IX
Consideraçõesiniciais.............................................................................................................1
Antropologia,gêneroefeminismo:relaçõesparadoxais ........................................................................ 7
Algumasreflexõesmetodológicas ......................................................................................................... 14
Planodetese.......................................................................................................................................... 17
Primeiraparte:Espaçoseespacialidades..............................................................................21
CapítuloI:Aarquiteturadodesejo....................................................................................... 22
Osonde.................................................................................................................................................. 25
Amultiplicidade ..................................................................................................................................... 43
Reservandoasmesas............................................................................................................................. 49
Oovoouagalinha:redesdesocialização ............................................................................................. 55
CapítuloII:Ostimmingsdasedução .....................................................................................59
nahora? ............................................................................................................................................ 60
Euvouprobaile:osshowseapista ...................................................................................................... 66
Diásporas ............................................................................................................................................... 81
CapítuloIII:Rabodesaiaecoturno ......................................................................................88
@s“quem”............................................................................................................................................. 88
Sobresaias,calçasebonés .................................................................................................................... 92
“Velha?,nemavovozinha”:códigosdevestimenta,idadeesedução................................................. 99
Nãodarpinta:aartedainvisibilidade ................................................................................................. 105
Estéticaesedução ............................................................................................................................... 107
Arelevânciadeumamesaeduascadeiras ......................................................................................... 111
Segundaparte:Trajetóriasmorais...................................................................................... 114
CapítuloIV:Osimperativosdafeminilidade ....................................................................... 115
Necessidadedepai? ............................................................................................................................ 118
VoltaHerodes! ..................................................................................................................................... 126
Diztuaverdadee...quebrate? ........................................................................................................... 130
CapítuloV:Aspoéticasdodesejo ....................................................................................... 144
Detesourinhaseesmaltes................................................................................................................... 145
Naturalouporopção? ......................................................................................................................... 150
napista...pronegócio?:aséticasdasedução................................................................................ 160
Paraconcluir ...................................................................................................................... 170
Referênciasbibliográficas................................................................................................... 180
X
Considerações iniciais
Afrontémoslo. Nos deshacemos unos a otros.
Y si no, nos estamos perdiendo de algo.
J. Butler, Deshacer el género.
O que constitui um mundo como habitável? Em alguma parte da resposta a essa
pergunta, diz Judith Butler, comprometemo-nos não somente com certo ponto de
vista sobre o que a vida é e deveria ser, mas igualmente com uma ideia do que
significa ser humano e o que não o é.
Durante vários meses do ano de 2004, o bar Flôr do André, localizado no
centro do Rio de Janeiro, foi meu segundo lar. Na ocasião, eu realizava o
trabalho de campo que deu origem à minha dissertação de mestrado em
antropologia nesta mesma casa, que pretendia dar conta dos modos como certas
mulheres se apropriam de espaços ditos “de homem” como o próprio Flôr do
André — um boteco pé sujo
1
cooptado por mulheres autodenominadas entendidas
que haviam despejado seus habitantes naturais, os homens, encurralados num
canto do recinto. Tratava-se, a princípio, de um lugar de fascinante leitura da
pergunta de Butler à qual eu agregaria ainda: para quem esse mundo é habitável?
Pensar nas estratégias de apropriação do espaço implicava entender os modos
como essas mulheres organizavam seu mundo social a partir do pertencimento a
uma rede de amizades que tinha nesse bar um ponto de aglutinamento.
A primeira vez em que entrei no salão do Clube Olímpico à procura dos
bailes da Mary – um dos espaços pesquisados na presente tese – tive a mesma
sensação de curiosidade e estranhamento: que lugar era aquele cheio de mulheres
de meia idade, senhoras, por assim dizer, dançando juntas, conversando de mãos
dadas, se beijando, dentro de um salão de um clube tradicional do bairro de
Copacabana? Eu havia encontrado ali um lugar de encontro que guardava
1
Denominação antiga utilizada no Rio de Janeiro para referir-se a este tipo de estabelecimento
por causa da ação que a sujeira causa nos pés ao se caminhar, grudando-os ao chão. Esta versão
estendeu-se em nossos dias para aqueles bares onde a limpeza, desde Gilberto Freyre tão
aclamada como característica dos brasileiros, parece coisa do outro mundo.
1
similaridades com o Flôr do André, não exatamente no tipo de público que o
frequentava, mas nos processos de apropriação de um espaço para si, de modo a
desenvolver sociabilidades particulares que dão conta de processos de
subjetivação nos quais se viabilizam determinados repertórios (e não outros) de
constituição de sujeitos.
Decidi, então, continuar meu investimento na pesquisa do mestrado em
espaços de divertimento frequentados por mulheres que “gostam de mulher”, por
considerá-los lugares de aglutinamento de pessoas com o intuito de
relacionarem-se com outras ou, ao menos, olharem e/ou se exporem umas às
outras.
Quando comecei o trabalho de campo que deu origem à dissertação de
mestrado, surgiu uma pergunta que acabou funcionando como disparador: “Cadê
as lésbicas do Rio de Janeiro?” Pensando retrospectivamente, esta questão
poderia muito bem ser respondida a partir de uma análise social dos espaços;
entretanto, essa “sacada” – que somente surgiu no momento da redação das
Conclusões – permaneceu como um interrogante aberto. Esse mesmo
interrogante inconcluso voltou no doutorado com a força de um ponto de partida,
e foi esse um dos disparadores que articularam esta nova investigação.
Entretanto, havia ainda outro interrogante a me perseguir: um fenômeno
que também chamou minha atenção no que diz respeito à constituição do
imaginário sociocultural do Rio de Janeiro: a existência de uma divisão não
somente geográfica, mas aparentemente cultural e social entre as Zonas Norte e
Sul da cidade. A ideia de enxergar o Maciço da Tijuca como um grande divisor
sociocultural levou-me a pensar se essa diferença também estaria presente nos
âmbitos e processos homo-erótico-afetivos de sociabilidade. Para tentar
responder a esta questão, procurei encontrar dois estabelecimentos noturnos
orientados para o denominado público GLS
2
, um de cada lado da montanha, nos
quais o público estivesse formado por um número significativo de mulheres que,
dado o fato de estarem frequentando um lugar com essas características,
presumivelmente manteriam ou estariam interessadas em manter intercursos
2
Sigla utilizada no Brasil para identificar lugares específicos de socialização de gays e lésbicas; a
letra S corresponde a "simpatizantes", como um modo de expressar a abertura a pessoas que,
mesmo não praticando atividades homoeróticas, podem frequentar aqueles espaços. Esta sigla
também é utilizada pelos gays e lésbicas em sua autodefinição.
2
afetivo-sexuais com outras mulheres. De todo modo, uma coisa que era clara
para mim, naquela época, era que a orientação sexual não devia ser tomada como
unidade coesiva a partir da qual delinear sujeitos possíveis, mas como uma
variável de constituição nos processos de subjetivação e sociabilidade. Por tal
motivo, as problemáticas que figuravam como centrais a se trabalhar eram as
seguintes: o que acontece quando a orientação sexual se constitui como variável
desses processos e quais as marcas internas que aparecem na conformação dos
diversos grupos sociais que estruturam os públicos desses estabelecimentos
noturnos?
Seguindo a sugestão de algumas amigas, em agosto de 2006, comecei a
frequentar os bailes da Mary, o que tornava complicada a escolha de outro lugar
similar que estivesse fora do circuito integrado por esta festa. Os bailes da Mary
constituem uma oferta dentre várias outras festas ou encontros organizados por
diferentes mulheres que fazem parte de um circuito semiprivado de acesso
restrito e condicionado ao conhecimento de alguma das pessoas que o integram.
Como a própria Mary explica, não existe publicidade de rua ou indicação alguma
no lugar que convide a participar do baile porque não lhe interessa a participação
de pessoas que não sejam convidadas por alguém que conheça o lugar por
pertencimento à rede ou por manter algum tipo de relação com um integrante da
mesma. Assim, em busca de algum estabelecimento noturno com características
similares, passei por Madureira onde, segundo os dados com os quais eu contava,
toda quarta-feira um grupo crescente de mulheres se reunia para beber e comer
em barraquinhas no quarteirão onde está localizada a boate GLS Papa G,
apelidada de rua da Lama. Entretanto, quando comecei a frequentar o lugar, esse
grupo já estava começando a rarear porque, segundo me explicaram, os homens
tinham começado a “invadir a área” e, desse modo, a cartografia do lugar já não
era a mesma. A primeira coisa em que pensei foi pesquisar a própria Papa G,
entretanto, naquele local, o público de mulheres não era significativo em relação
à quantidade de homens, sendo este também um dos motivos pelos quais as
mulheres tinham começado, já há alguns anos, a utilizar a própria rua como
espaço de sociabilidade. Aliás, meu intuito inicial era o de encontrar igualmente
algum espaço de divertimento noturno cujo público contasse com grupos de uma
faixa etária similar às dos bailes da Mary. Foi assim que algumas amigas que
sabiam da minha busca me falaram sobre uma boate em Nova Iguaçu na qual, aos
3
sábados, “dava muita mulher”. Finalmente, deparei-me com a boate Plural, que
atendia plenamente a esta expectativa.
Contudo, durante o período do trabalho de campo – realizado entre agosto
de 2006 e maio de 2008 – a Plural fechou suas portas. A concorrência de uma
nova casa noturna, a Arena, aberta em setembro de 2007 e localizada na mesma
rua da primeira, porém numa área mais movimentada da região, levou à falência
de uma das boates mais conhecidas e antigas da região metropolitana do Rio de
Janeiro e, com isso, o sumiço, ao menos aparentemente, de alguns núcleos de
sociabilidade de mulheres mais velhas que a frequentavam. Diante desta
situação, e após ter procurado por esses núcleos em bares e espaços abertos da
região que me foram indicados por algumas das mulheres que se transferiram da
Plural para a Arena, optei por continuar meu trabalho na nova boate, tentando
refazer os percursos de agregação e desagregação do público em relação às
preferências e às particularidades das ofertas de entretenimento de cada casa.
Desse modo, o que começou como uma inquietude por pesquisar as
características de sociabilidade de mulheres lésbicas que concorrem a lugares de
divertimento noturno na Zona Sul, comparando-as com aquelas verificadas na
Zona Norte do Rio de Janeiro foi mudando seu rumo e se complexificando.
A comparação entre as duas áreas da cidade foi perdendo centralidade para
a análise dos repertórios de sujeitos possíveis nos espaços pesquisados, cujas
características diferem, não tanto pela localização geográfica que deveria supor
variações relacionadas à condição socioeconômica, mas pelo fato de se
constituírem diferentemente como espaços públicos ou semiprivados de
divertimento. Desse modo, os investimentos diferenciados na hora da escrita
etnográfica, que talvez possam parecer um desequilíbrio na análise, dizem
respeito às singularidades dos espaços enquanto públicos e constituídos a priori,
como as boates denominadas GLS ou num âmbito sem este tipo de demarcações,
como o clube Olímpico, onde acontecem os bailes da Mary. Estas
singularidades, por sua vez, acarretam outras diretamente relacionadas ao caráter
público ou privado dos espaços pesquisados: nos bailes da Mary, o clube
Olímpico abriga encontros de uma rede semiprivada, o que comporta tramas de
sociabilidade com malhas mais estreitas, ao passo que as boates, com tramas
mais abertas, têm uma maior rotatividade. Uma das consequências destas
4
diferenças é que, nestas últimas, é mais difícil traçar trajetórias grupais,
existindo, porém, maior diversificação de público.
Outrossim, não irei me centrar somente nas situações que acontecem em
cada um destes espaços. Seguindo o pensamento de Luis Mello (2005), pretendo
analisar um conjunto de representações sociais relativas às sociabilidades
lésbicas, considerando que a orientação sexual não supõe uma categoria genérica
por si só que englobe todas as mulheres que fazem sexo com mulheres. Ela
constitui-se, antes, como uma marca de diferenciação e autodefinição no
conjunto das representações de si de determinados sujeitos.
Quando Simmel define os processos de sociabilidade, descreve indivíduos
em situação de interação social que se desenham a partir de relações de
sociabilidade, isto é, relações entre diferentes instituições de socialização
(família, amizade, casal) em determinados espaços (trabalho, divertimento). É
neste cruzamento entre instituições e espaços que os sujeitos desenvolvem suas
performances de representação de si: “to satisfy such urges and to attain such
purposes, arise the innumerable forms of social life, all the with-one-another,
for- one-another, in- one-another, against- one-another, in state and commune, in
church and economic associations, in family and clubs” (Simmel, 1949: 254).
Assim, para o sociólogo alemão, a sociabilidade é concebida como uma das
formas básicas de interação social, possuindo certos mecanismos próprios e
destituída de outras direcionalidades que não as referidas ao convívio social.
Nesse convívio, enfrentamo-nos a nós mesmos e aos outros em diferentes
âmbitos, nos quais a relação entre a construção do nós e do outro não é nem
linear nem estática, nos quais a alteridade ganha diferentes contornos, como um
caleidoscópio, dependendo de quem seja colocado como espelho do nós e do
outro. Deste modo, não é um sujeito coerente e estável que estou tentando
delinear, e sim, muito ao contrário, quais os arranjos que se estabelecem nas
diferentes apresentações de si, quais aquelas que, nos espaços pesquisados,
ganham centralidade e quais que permanecem na opacidade, ou seja, esse
desfazermos @s
3
uns aos outr@s do qual nos fala Butler: “No siempre nos
3
O uso da arroba, quando a palavra se refere a sujeitos tanto masculinos quanto femininos, é uma
estratégia discursiva utilizada nas línguas que têm o masculino como neutro ou coletivo, no intuito
de dar voz ao feminino. Por sua vez, constitui igualmente uma maneira de evidenciar o efeito da
linguagem na construção de percepções binárias tais como masculino e feminino, que deixam de
fora outros arranjos de gênero que não se encaixam nessas duas possibilidades.
5
quedamos intactos. Puede ser que lo queramos, o que lo estemos, pero también
puede ser que, a pesar de nuestros mejores esfuerzos, seamos deshechos frente al
otro, por el tacto, por el olor, por el sentir, por la esperanza de contacto, por el
recuerdo del sentir” (2006:38).
A pergunta pelo sujeito só interessa na medida em que se constitui como
um processo revelador de dinâmicas de identificação e desidentificação cujo
sentido se torna palpável através das diferentes sociabilidades. Como em um
caleidoscópio, as interações entre processos de subjetivação, representações e
apresentações de si e sociabilidades abrem uma série inumerável de repertórios
possíveis para se habitar o mundo.
Nos espaços pesquisados para este trabalho, não são identidades
particulares que distinguem as mulheres lésbicas, e sim estratégias particulares
de vivenciar sua sexualidade que podem ter traços comuns em relação à idade e à
apresentação de gênero com que encaram o mundo em que habitam. Tais
estratégias, como veremos ao longo da segunda parte desta tese, têm como pano
de fundo a tentativa de se encontrar as condições para a consecução do desejo.
Este último não está circunscrito ao significado de “amar [ou desejar] outra
mulher”, mas também o que fazer com os outros âmbitos da vida no convívio
social, para além da vivência da sexualidade, quando o desejo por outra pessoa
do mesmo sexo representa uma marca no universo das representações de si.
De modo análogo, essas pessoas com as quais trabalho no campo têm uma
designação de sexo feminino, o que deve ser considerado na hora de analisarmos
os modos de apropriação e de vivência da feminilidade como imperativos sociais
constituintes do significado de se “ser mulher”. Na prática feminista
contemporânea, o paradoxo da “mulher” tem sido essencial. O feminismo,
explica Rossi Braidotti, está baseado na noção de identidade feminina, a mesma
historicamente destinada à crítica:
El pensamiento feminista se apoya en un concepto que pide ser
desconstruido y desencializado en todos sus aspectos. Más
específicamente creo que durante los últimos diez años la cuestión
central de la teoría feminista ha llegado a ser la siguiente: cómo
redefinir la subjetividad femenina después de la caída del dualismo
de género y privilegiar concepciones del sujeto entendido como
proceso, como complejidad, como interrelación, como
simultaneidades poscoloniales de opresión y como técnica
multiestratificada del sujeto. En suma, lo que está en juego aquí es
6
el destino social y simbólico de las polarizaciones sexuales
(Braidotti, 2000:184).
Antropologia, gênero e feminismo: relações paradoxais
As reflexões que esta tese traz à tona podem ser enquadradas dentro das
discussões do que se denomina antropologia de gênero, cujo campo foi
legitimado como tal há relativamente pouco tempo. Como disse anteriormente,
pensar em sociabilidades e subjetividades lésbicas supõe levar em conta o fato de
se estar analisando relações sociais entre mulheres, um conceito que não é
inocente e que traz consigo uma historicidade social a ser desconstruída na
pesquisa de campo e outra, epistemológica, como categoria de análise. Nesse
sentido, o feminismo teve um papel fundamental, com instigantes arguições de
pesquisadoras que foram construindo um campo de pesquisa e, durante a década
de 1970, colocaram a necessidade de incorporar uma representação diferente da
mulher em relação ao sustentado pela antropologia até então, tornando-a
analiticamente visível a partir de uma perspectiva própria que escapasse aos
padrões utilizados, considerados androcêntricos. Esta corrente denominada
“antropologia da mulher” (Henrietta Moore, 1991) coloca em discussão uma
estrutura teórico-analítica particular de se fazer ciência, centrada no homem
branco e ocidental – o androcentrismo – que, argumentam, carrega a pesquisa
com “una serie de suposiciones y expectativas acerca de las relaciones entre
hombres y mujeres y acerca de la importancia de dichas relaciones”
(Moore,1991: 14) tanto da sociedade da qual o pesquisador faz parte, como
daquela que se comporta como seu campo de estudo, gerando e controlando os
modos de expressão imperantes e impedindo que os grupos silenciados, tal como
denominado por Edwin Ardener,
4
falem através de seus próprios esquemas
conceituais.
4
Segundo Ardener, o silenciamento desses grupos é fruto das relações de poder estabelecidas
entre grupos sociais hegemônicos e contra-hegemônicos, o que os obriga a recorrer a modos de
expressão e a ideologias dominantes para estruturar sua cosmovisão. Nesta linha de pensamento,
as mulheres seriam um exemplo desses grupos, e o androcentrismo, uma característica da
estrutura dominante através da qual antropólogos e antropólogas explicam os modelos masculinos
presentes nas culturas, gerando uma impossibilidade de ouvir o que as mulheres falam por si
próprias.
7
Desse modo, os estudos sobre as mulheres procuraram explicar a suposta
incoerência conceitual e analítica da teoria antropológica, na tentativa de criar
novos marcos teóricos não hegemônicos que levassem em conta as necessidades
de expressão da mulher como um desses grupos silenciados. Essa ideia, que
partia da experiência compartilhada entre iguais (mulheres, nesse caso) como o
lugar de construção do conhecimento, pressupunha uma distância epistemológica
com o Outro como forâneo e um distanciamento ético que estabelecesse uma
brecha com a teoria antropológica, na qual o Outro e sua experiência são
justamente o lugar e o objeto da construção do saber teórico: “the Other is not
under attack. On the contrary, the effort is to create a relation with the Other”
(Strathern,1987: 289).
O resultado foi problemático. Levantou-se a ideia de que somente as
antropólogas poderiam fazer etnografia das mulheres, hipótese que,
reversamente, também faria supor que as antropólogas não poderiam etnografar
os homens, o que reduziria a antropologia a uma estrutura de guetos de gênero,
etnia ou nacionalidade, por exemplo. Contudo, a intenção desses estudos era a de
enfatizar a possibilidade de um olhar diferente, tanto sobre o objeto de estudo
quanto sobre o lugar a partir do qual a antropologia enxergava seu objeto. Por
exemplo, as relações levistraussianas do parentesco foram repensadas por Gayle
Rubin como formas observáveis do sistema sexo-gênero. Em “The Traffick in
women” (1975), Rubin faz um levantamento sobre o modo como as relações
sociais constroem a domesticação da mulher: “através do conceito de sistema
sexo-gênero, ela destaca o indicador anatômico e a elaboração cultural como dois
elementos distintos presentes naquilo que outrora se designava como papéis
sexuais, e agora é referido como gênero” (Heilborn, 1992: 99). Nesse sentido, o
trabalho de Gayle Rubin pode ser considerado uma dobradiça entre a
antropologia da mulher e a de gênero, na qual o foco de análise sofreu uma
modificação que, mesmo parecendo pequena, é substancial: da mulher como
objeto de pesquisa para as relações com o homem como constitutivos
socioculturais, ou seja, a maneira através da qual o gênero constitui relações de
poder e dominação nas sociedades, diluindo a ideia de uma dependência natural
entre homem e mulher atuante em boa parte do chamado feminismo radical.
Henrietta Moore explica que a antropologia feminista baseia suas questões
teóricas no modo como “se manifiesta y se estructura la economía, la familia y
8
los rituales a través de la noción de género, en lugar de examinar cómo se
manifiesta y se estructura la noción de género a través de la cultura” (1991:22),
numa tentativa de superar o reducionismo que implicava trabalhar somente com
o conceito de diferença cultural entre sociedades e, dessa forma, passar a utilizar
a noção de gênero como mais uma marca diferenciadora a complexificar a
análise e modificar seu ponto de vista.
Nesse ponto, Marilyn Strathern introduz uma perspectiva distinta. Em “A
Place in the Feminist Debate”, a autora traz à tona quais os pontos
desconstruídos e quais os tomados como “dados” pelas teorias feministas e como
entrariam em conflito com a antropologia. Segundo Strathern, o feminismo parte
de uma estrutura social dada, lócus da ideologia masculina – e, por tanto, de seu
poder – a partir da qual se desenham conceitualizações interpretativas e críticas
sobre como ela estaria confeccionada para dar vantagens ao homem em relação à
mulher. Vistas assim, as teorias feministas elucubram suas teorizações sobre um
sistema que denominam patriarcado, presente em todas as sociedades, através do
qual os homens naturalizam seu exercício de poder sobre as mulheres. Partindo
desse ponto de vista, a noção de diferença cultural dilui-se sob a arrasadora
universalização de um tipo particular de relação entre gêneros que, na verdade,
constitui o modelo que se poderia utilizar para pesquisar as relações que se
estabelecem entre homens e mulheres nas sociedades ocidentais, desconhecendo
o caráter plural de outros universos de análise.
Por outro lado, e em controvérsia com Michelle Rosaldo (1974), Strathern
dissente sobre a suposição de um possível diálogo entre todas as mulheres do
mundo pelo fato de viverem sob a estrutura de dominação masculina e compara
essa ideia à do diálogo entre culturas que, partindo da presunção de uma natureza
humana universal, cogita a possibilidade de equivalência entre organizações
sociais: “In universalizing questions about women’s subordination, then,
feminist scholarship share with classical anthropology the idea that the myriad
form of social organization to be found across the world are comparable to one
another. Their comparability is an explicit Western device for the organization of
experience and knowledge” (Strathern, 1992:31).
Deste modo, tanto a noção de sociedade quanto a suposta vantagem que os
homens detêm homens em relação a ela são convenções; portanto, a afirmação de
que as mulheres têm o mesmo problema em todas as sociedades,é reformulada
9
com a seguinte indagação: a qual sociedade se está fazendo referência e como
são as relações que nela se estabelecem entre homens e mulheres num dado
momento sócio-histórico. Esta reformulação levanta a questão da vigilância que
deve ser feita para se evitar as naturalizações das relações de gênero e explicita a
posição da antropóloga inglesa que briga pela desconstrução da categoria de
gênero como uma concepção que somente pode ser lida à luz das sociedades
ocidentais. Strathern traz para o debate o modelo melanesiano de gênero no
intuito de alterar o escopo da discussão, passando de uma relação naturalmente
opressiva entre homem e mulher para a forma como são concebidas as noções de
homem e mulher em cada caso, base da relação que posteriormente se
estabelecerá entre eles, deixando manifesto o caráter universalizante que tanto o
discurso científico quanto as teorias feministas conferem ao gênero.
A abertura possibilitada pela introdução do pensamento feminista
foi, por sua vez, fundamental para que os estudos sobre homossexualidade
tivessem lugar como campo de estudo viável nas ciências sociais. Mais uma vez,
Gayle Rubin (1984), com suas notas para uma teoria radical das políticas da
sexualidade, redefine seu próprio argumento, explicando que “as relações
sexuais não podem ser reduzidas às posições de gênero. A inter-relação
sexualidade-gênero não pode ser tomada pelo prisma da causalidade, nem ser
fixada como necessária em todos os casos” (Gregori, 2003:104). De modo
análogo, é preciso lembrar que os movimentos políticos de luta pelos direitos
civis colocaram na agenda pública a população LGBT,
5
contribuindo para a
visibilidade de pautas culturais, espaços de encontro ou demandas políticas
particulares que logo foram objeto de pesquisa das ciências sociais.
Just as gay liberation had its roots in the homophile movement and
bar culture of preceding decades, so lesbian/gay studies owes its
emergence to a series of intellectual developments that prepared the
ground for its current expansion. Before ethnographer could set out
to remap the globe along the contours of transgendered practice and
same-sex sexuality, homosexuality had to become a legitimate
object of anthropological inquiry. One prerequisite was the
5
Em relação aos grupos de ativismo político, a sigla atualmente utilizada no Brasil é LGBT
(lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros), “politicamente correta”, já que inclui outras minorias
além dos gays e lésbicas, consideradas pelo ativismo internacional como parte da causa em
defesa do reconhecimento dos direitos das diferenças sexuais. Na I Conferência Nacional LGBT,
realizada em Brasília, em junho de 2008, a antiga sigla foi reconfigurada, mudando de GLBT para
LGBT, para atender a uma antiga demanda das agrupações de lésbicas no intuito de visibilizar
sua luta.
10
redefinition of homosexuality from a matter of individual pathology
(the medical model) to a cultural construct (Weston, 1993: 341).
Este artigo de Kate Weston põe o escopo em uma nova safra de trabalhos
que introduzem na discussão antropológica os debates teóricos sobre os
inicialmente chamados estudos gays/lésbicos, que passaram a se chamar, estudos
queer. Este termo, que em inglês significa torcido ou oblíquo (e que, em
português, teria em esquisit@ a tradução mais contextual), era usado nos Estados
Unidos e na Inglaterra em tom de rejeição e degradação para fazer referência aos
gays, lésbicas e transgêneros. Entretanto, no final dos anos 1980, o termo foi
apropriado por pesquisadores que trabalhavam as temáticas gays e lésbicas e
pelas próprias pessoas que eram alvo da estigmatização, que o ressignificaram e
dele se apropriaram de modo afirmativo para fazer referência a todos os
indivíduos cujas práticas sexuais extrapolam os limites da heterossexualidade
binária. O termo queer constitui-se em um espaço de significação aberta e
volúvel que incorpora práticas e identidades que habitam o “exterior
constitutivo” da esfera dos sujeitos.
Já no que diz respeito ao campo brasileiro, a relação entre antropologia e
feminismo tem sido objeto de vários artigos que dão conta dessa discussão no
país. Em “Fazendo gênero? A antropologia da mulher no Brasil”, Maria Luiza
Heilborn (1992) retoma a antinomia entre as categorias gênero e mulher para se
referir aos trabalhos que, em nossa disciplina, analisam o papel da mulher na
interação social. Heilborn que, nesse texto, reivindica o uso do termo mulher em
detrimento do de gênero,
6
deixa claro que a definição do campo “nitidamente se
define por uma discussão com as formulações feministas” (1992: 93),
evidenciando o que mais tarde tanto ela (Heilborn e Sorj, 1999) quanto Gregori
(1999) definirão como uma “relação capilar” entre a academia e o ativismo,
situação que caracterizaria a constituição deste campo no país, de modo distinto
ao que acontece, por exemplo, nos Estados Unidos.
Ainda nesse primeiro artigo, Heilborn chama a atenção para o “mimetismo
com o discurso militante” no qual uma parte da produção da época parecia cair,
sem deixar de reconhecer os “méritos incontestáveis” do ativismo, mas
6
Explicando que “o genitivo mulher retrata melhor a preocupação fundante deste corpo de
estudos” o que será trazido à tona para análise no texto, e porque “permite um duplo sentido, uma
vez que o núcleo de trabalhos também é feito majoritariamente por mulheres” (Heilborn, 1992: 93
e n1).
11
convidando à reflexão sobre os modos como os discursos políticos são
trasladados para a discussão científica.
Muitas vezes, tratou-se simplesmente de reduplicar o ativismo sem
pensar em consequência do que se estava fazendo. Passou-se a
estudar mulher em tudo quanto é lugar e sob os mais diferentes
ângulos. Depois de examinar a presença feminina, passou-se agora a
falar em gênero. Do sexo passou-se ao gênero, mas a categoria tem
sido usada sem a percepção do alcance que deve ter como imbricada
a um sistema relacional, ou de que, se mantém algum vínculo com a
base anatômica, sua principal utilidade está em apontar e explorar a
dimensão social que, em última instância, é o que importa quando
se faz Antropologia (1992: 94).
Posteriormente, no texto que constitui um marco no desenvolvimento dos
estudos de gênero no Brasil (1999), Heilborn e Sorj voltam a analisar a relação
entre academia e ativismo ao se referirem aos modos como esses estudos têm se
consolidado na academia brasileira: “a maneira pela qual as ciências sociais irão
incorporar e elaborar discursos originados fora dela dependerá simultaneamente
da organização interna da comunidade de cientistas sociais, mais ou menos
permeável a inovações, e da capacidade desses discursos ganharem
reconhecimento no meio acadêmico” (1999:185). Nesta altura, é importante
enfatizar o que as autoras salientam sobre a relação desde o início existente entre
a academia e o ativismo na constituição do feminismo brasileiro “a tal ponto que
algumas versões consideram que o feminismo apareceu primeiro na academia e,
só mais tarde, teria se disseminado entre mulheres com outras inserções sociais”
(ibid, 186). Esta afirmação explica a capilaridade anteriormente referida entre a
academia e o desenvolvimento do feminismo como movimento social no país, já
que as discussões foram desenvolvidas quase que exclusivamente no interior das
instituições de ensino em busca do reconhecimento dessas produções por parte
dos pares acadêmicos. De modo análogo, o fato de se contar com duas
importantes publicações ligadas a programas de pós-graduação em ciências
humanas — Cadernos Pagu
7
e Estudos Feministas
8
— cujos artigos dão conta
das discussões relativas ao feminismo geradas tanto no Brasil, quanto no
exterior, é outro forte indicador da situação.
7
Revista do Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp, desde 1993.
8
Criada em 1992, na Escola de Comunicação da UFRJ, logo passou a ser produzida pelo IFCS
/UFR, em convênio com o Programa de Ciências Sociais da UERJ, atualmente integrando o
Centro de Filosofia e Ciências Humanas e o Centro de Comunicação e Expressão da UFSC.
12
Esta relação de proximidade entre academia e ativismo também está
presente nas produções acadêmicas. No comentário crítico de Gregori (1999) ao
texto anteriormente referido, a pesquisadora resgata o artigo “Paixão e
compaixão: militância e objetividade na pesquisa antropológica”, de Heloísa
Pontes (1994) no qual retrata as experiências de ter sido doublê de militante e
pesquisadora, o que a levou a “uma situação de liminaridade” em virtude da
resistência dos grupos feministas, por um lado, e da academia, por outro, o que,
argumenta Gregori, “levou as estudiosas do campo a uma situação de
liminaridade que explica, em parte, a incorporação moderada dessa área de
estudos pelas ciências sociais: sem a aliança do movimento e sem o total
reconhecimento pela academia” (1999: 228).
De todo modo, falar em feminismo, como vimos anteriormente, no que
diz respeito à análise de Weston sobre a antropologia norte-americana, também
significa levar em conta as análises do chamado feminismo pós-estruturalista ou,
diretamente, pós-feminismo, no qual a discussão se desloca do conceito de
gênero para o caráter biológico ou social da categoria de sexo. Neste âmbito,
localizam-se os estudos sobre as populações LGBT, e o movimento político não
escapa à analise das ciências sociais. No Brasil, o trabalho pioneiro de Peter Fry,
Para inglês ver (1982), descreve os sistemas igualitários e hierárquicos de
relação, o primeiro deles relacionado às correntes iniciais do ativismo LGBT
brasileiro dos anos 1980. De modo análogo, o trabalho de Regina Facchini, Sopa
de letrinhas? (2005), que examina os processos de constituição das identidades
coletivas em sua relação com o movimento, constitui um marco fundamental para
se pensar o desenvolvimento do ativismo LGBT a partir dos anos 1990. Nessa
mesma direção, James Green (2000) realizou uma ampla pesquisa, “abrangendo
desde o início do século XX até a trajetória do grupo Somos, além de também ter
explorado, em perspectiva panorâmica, o desenvolvimento do movimento
homossexual brasileiro até a década de 1990” (França, 2006: 10). Por sua vez,
Cercas e pontes, a dissertação de mestrado de Isadora Lins França (2006) dá
conta da relação entre o movimento LGBT com um mercado segmentado
destinado a homossexuais, o denominado mercado GLS, com o intuito de
entender as dinâmicas e as situações de conflito e colaboração entre ambos os
segmentos.
13
Finalmente, os trabalhos especificamente referentes a temáticas lésbicas
são escassos. As dissertações de Jaqueline Muniz (que aborda a
homossexualidade feminina a partir do modo como ela se coloca na linguagem,
no Rio de Janeiro), de Luis Otávio Rodrigues Aquino (sobre os processos de
construção, manutenção e manipulação de identidades lésbicas entre mulheres
migrantes em Porto Alegre) – ambas de 1992 – e a de Tâmara Teixeira de
Carvalho (uma pesquisa de campo realizada em Belo Horizonte com mulheres
que mantêm relações com mulheres, mas que já tiveram histórias amorosas e
conjugais com homens), de 1995, bem como o artigo “Ser ou estar
homossexual”, de Maria Luiza Heilborn (1996) (que analisa a elaboração de
identidades sexuais de mulheres homossexuais pertencentes às camadas médias
do Rio de Janeiro) são pioneiros no tratamento desta temática. Já neste século,
houve um incremento significativo de pesquisas, não somente em relação à
quantidade, como também no que diz respeito à diversificação do escopo,
atrelando a temática da homossexualidade feminina a estudos sobre sexualidade,
política e saúde (Almeida, 2005; Facchini, 2005; Facchini e Barbosa, 2006),
análises históricos (Nogueira, 2005) e socialidades e conjugalidades (Meinerz,
2005; Souza, 2005, Lacombe, 2006; Medeiros, 2006). De modo análogo, algumas
pesquisas sobre sexualidade e gênero incluem o tratamento da homossexualidade
feminina no seu universo de análise. Entre os principais, cito Aguião (2007);
Fígari (2007); Fry e Mac Rae (1985) e Heilborn (2004).
Algumas reflexões metodológicas
Colocar o corpo. Essa talvez pudesse ser uma definição fenomenológica
do que significa para um pesquisad@r “fazer trabalho de campo”. Esta técnica,
fundante e tão cara à nossa disciplina, supõe um forte engajamento tanto com o
espaço de trabalho, quanto com os indivíduos que o compõem. Dependendo do
contexto escolhido, esse engajamento coloca-se em jogo em menor ou maior
escala com consequências mais ou menos diretas no desenvolvimento da
pesquisa etnográfica. Particularmente, o fato de etnografar em contextos de
sedução pode significar um jogo permanente entre o “fazer campo” e o “fazer
14
sedução”, no qual administrar o olhar e a palavra entre estes fazeres surge como
um forte desafio tanto prático quanto teórico-metodológico.
9
Como trabalhar, então, nesses contextos? Como montar-se como
pesquisad@r nesse fazer dialético? O que significa “estar no campo”, quando
esse colocar o corpo necessário e básico da pesquisa etnográfica, pode implicar
certos desentendimentos ou confusões, uma vez que o olhar no espaço
pesquisado tem a particularidade de estar investido de uma carga performática,
como a do erotismo, definindo muitas das relações que se estabelecem nos dois
lugares?
Erotismo e sedução constituem o modo primordial, ou seja, os motivos
essenciais para se chegar perto da outra pessoa em espaços onde a economia de
socialização está fadada pela intenção do flerte. Essa aproximação que se inicia
com o olhar e, logo em seguida, uma vez correspondido, dá lugar à palavra, não
dista muito de um pesquisador tentando estabelecer um diálogo no campo. Por
este motivo, tentar evitar que essa aproximação não fosse interpretada como uma
atitude de flerte constituía um empecilho metodológico.
O que dizer para elas? Como chegar perto? Qual o motivo para eu
querer conversar? As estratégias de aproximação que posso utilizar
em um lugar onde o som não permite o diálogo são equívocas em
relação àquelas que possuem intenções de flerte: iniciam-se através
do olhar e logo passam para a palavra dita no ouvido, perto, com
perguntas pessoais. Assim, quando a aproximação é interpretada
como flerte, fica complicado lidar com a explicação de se tratar “só
de trabalho”, o que também acarreta desconfiança ou implica
situações de aperto diante da reclamação sobre o porquê de eu estar
olhando ou conversando. Ensaio respostas: “Sou antropóloga, estou
fazendo trabalho de campo”; “Desculpe, mas estou casada”; “Olha,
não me leve a mal, mas não estou a fim de beijar hoje”. Todas elas
têm respostas evasivas que me colocam na posição de histérica:
“Está trabalhando, então, não pode beijar? Me engana que eu
gosto!”; “Se está casada, cadê a tua mulher? Se ela não está aqui,
ela não vê nem sabe, qual é o problema?”; “Se não quer me beijar,
por que está aqui dançando comigo e me enrolando no papo”?
(Lacombe, 2009: 388).
9
Em relação a trabalho de campo em contextos de sedução, os artigos que compõem a coletânea
organizada por Don Kulick e Margareth Wilson (1995) trazem uma importante reflexão sobre a
relação entre a subjetividade do pesquisad@r e a d@s sujeit@s com quem está trabalhando. No
contexto brasileiro, os trabalhos de Díaz-Benítez (2009), Facchini (2008), Lacombe (2009) e
Menierz (2007) exploram o próprio lugar das antropólogas que realizam trabalho de campo em
diferentes espaços nos quais a sedução tem um importante papel na economia da socialização.
15
Como administrar a temporalidade que implica conhecer e “pegar” alguém
em uma boate em face do imperativo de conhecer e se relacionar com os sujeitos
no campo? Perante as respostas supracitadas, recebidas basicamente durante as
noites nas boates, mas também em alguns momentos nos bailes da Mary, a
histeria (ou em termos simmelianos, bem mais amáveis, o coquetismo) de “olho,
mas não entrego” pode ser considerada ironicamente uma “técnica de pesquisa de
campo” na qual a construção da intimidade das relações entre antropólog@s e
sujeitos no campo caminha sobre uma tênue linha com ares de corda bamba,
entre nossa necessidade de aproximação e aquisição de confiança por parte das
pessoas e seu intuito de fazerem o que acham que queremos fazer em um lugar
onde o que elas acreditam se aproxima significativamente mais do que nós
juramos que não estamos fazendo.
Segundo Sherry Ortner, a etnografia implica ao menos um modo de
entender o mundo do outro fazendo uso de si mesma como instrumento de
conhecimento. “Classicamente, este tipo de entendimento tem estado
intimamente ligado ao trabalho de campo, no qual a totalidade do ser –
fisicamente ou de todos os modos possíveis – entra no espaço do mundo que o
investigador procura entender” (Ortner, 1995, p. 173). Voltando à premissa
inicial sobre as implicações do ato de se colocar o corpo em campo, este “estar”
também implica fazer parte da economia — neste caso da sedução — que
perpassa as relações sociais dos lugares pesquisados. Colocamos o corpo para
construir intimidades ou, em outras palavras, para estabelecer relações. “Fazer
campo” não significa simplesmente estar ali, colocar o corpo, mas colocá-lo para
se relacionar. Nas palavras de Don Kulick, a situacionalidade das relações entre
o etnógrafo e as pessoas que habitam um campo atravessado pelo erotismo
“coloca o etnógrafo na encruzilhada de usar de maneira egoísta [esta situação de
confusão] ou de construir uma antropologia capaz de usar o self de modo
epistemologicamente produtivo” (1995, p. 20).
A relação entre pesquisad@r e pesquisad@ tem igualmente seus “poréns”
na hora da realização de entrevistas no campo. Tentar saber o que se deve fazer
ao iniciar uma relação de entrevista, explica Bourdieu, “é, em primeiro lugar,
tentar esclarecer os efeitos que se podem produzir sem o saber por esta espécie
de intrusão sempre um pouco arbitrária que está no princípio da troca (...) é
tentar esclarecer o sentido que o pesquisado se faz da situação, da pesquisa em
16
geral, da relação particular na qual ela se estabelece, dos fins que ela busca e
explicar as razões que o levam a aceitar participar da troca” (1997: 695).
No meu caso, em particular, as pessoas que eu entrevistei não eram alheias
nem desconhecidas. A situação que se cria no decorrer do campo gera certa
intimidade que permite outro tipo de contato na hora de se concretizar uma
entrevista fora do contexto habitual. Além dessa familiaridade, o fato de
compartilhar o gosto por mulheres constrói uma cumplicidade que descontrai
uma situação que, de outro modo, poderia ser mais tensa. Desse modo, a
entrevista insere-se dentro da dinâmica do campo em lugar de constituir uma
dinâmica per se. Por outro lado, a escolha metodológica de abrir minha biografia
e trajetória sexual, tentando não recusar perguntas de tom íntimo que me
colocariam num patamar de maior estranhamento, colabora para equilibrar o que
Bourdieu chama de dissimetria oriunda, sobretudo, da diferença no manejo dos
bens linguísticos e simbólicos. Expor a subjetividade d@ pesquisad@r implica
igualmente a responsabilidade de explicitar esse fato na hora da escrita
etnográfica. Se usado como recurso, deve, a meu ver, constar no decorrer da
etnografia, como um modo de explicitar a posição a partir da qual se escreve.
Nesse sentido, nas páginas que se seguem, sobretudo na segunda parte da tese, o
leitor se deparará com algumas passagens que têm como ponto de reflexão
situações originadas do fato de eu expor minha biografia.
Plano de tese
A tese está dividida em cinco capítulos, os três primeiros correspondendo
à primeira parte e os dois últimos à segunda. A primeira parte, Espaços e
espacialidades, tem como finalidade analisar a espacialidade e a arquitetura dos
lugares nos quais se desenvolve a etnografia, relacionando-as à noção de
“construção do espaço” em um movimento dialético com as gramáticas de
socialização, ou seja, os quem e os como também dependem dos onde. Os onde,
por sua vez, atrelam-se aos quando e estruturam fluxos espaço-temporais,
formando um público que carrega com determinados sentidos os espaços a partir
dos usos que deles são feitos.
17
No Capítulo I, A arquitetura do desejo: construção social e apropriação
dos espaços, descreverei a estrutura espacial de cada um dos lugares onde foi
realizado o trabalho de campo, isto é, o modo como estão distribuídos e
conformados os recintos, com a intenção de costurar as características físicas às
especificidades de sociabilidade das frequentadoras. O espaço será concebido
como uma dimensão analítica que contém e colabora na constituição das relações
sociais que nele se desenvolvem. Com isto pretendo dizer que será analisado por
intermédio do valor simbólico atribuído pelas pessoas que frequentam estes
estabelecimentos dançantes de divertimento noturno: o que faz o espaço com as
pessoas e o que fazem as pessoas com o espaço? Os usos do espaço como
variável de socialização conformam marcas para se enxergar particularismos que
estruturam a trama do que chamo sociabilidades lésbicas.
A intenção do segundo capítulo, Os timmings da sedução, é, por sua vez,
mostrar os tempos nos quais as pessoas se apropriam dos lugares, isto é, quando
os quem fazem o que fazem, motivo pelo qual serão considerados a frequência
aos espaços (habitués, ocasionais) e os horários de movimentação interna (quem
faz o quê e a que hora) das pessoas que a eles concorrem. Levarei em conta os
horários que os próprios lugares estipulam para abrir e fechar suas portas, os
horários em que o público frequenta cada casa e quem chega e sai a que hora,
quer dizer, as intensidades e fluxos temporais em relação aos espaços internos,
as tipificações do público e as atividades oferecidas (shows e música). Nesse
capítulo, efetuarei igualmente uma apresentação destas opções, os horários em
que se realizam os shows, o público que participa e o tipo de participação
verificada. Estes eventos não somente ganham relevância para se pensar a
variabilidade e o fluxo do público dentro de cada lugar, mas também permitem
construir conjecturas sobre os percursos de desintegração e de agregação entre as
boates pesquisadas.
O público, uma das principais variáveis da constituição e do caráter
particular de um determinado lugar, é o foco do terceiro capítulo, Rabo de saia e
coturno. Como disse anteriormente, falar em “construção espacial” supõe
analisar os modos como as pessoas se apropriam de um espaço específico, nele
constituindo um universo de sentido cuja carga semântica particular ganha força
18
de interpretação e de significado a partir desses modos particulares de habitá-lo.
Partindo desta categorização, este capítulo analisará as diferentes variáveis que
compõem o público dos estabelecimentos pesquisados: estéticas, faixa etária,
redes de amizade/inimizade, modos de sedução, lógica de constituição dos
grupos em relação às categorias morais que permeiam as sociabilidades dos
grupos que se constituem no interior de cada recinto.
Já na segunda parte, Trajetórias morais, serão explicitadas as diferentes
categorias morais que constituem os critérios de autodefinição e identificação em
relação ao eu e au outro, visando estabelecer quais os critérios que costuram os
processos de subjetivação das frequentadoras dos espaços pesquisados. Ao falar
em trajetórias, refiro-me a linhas geracionais (traçadas inter e intrageração) que
permitem analisar diferentes modelos e concepções de sexualidade, feminilidade,
família e ethos das parcerias eróticas presentes no campo.
O quarto capítulo, Os imperativos da feminilidade: das vocações às
estratégias, analisará o que esses imperativos dizem a respeito do lugar e do
comportamento que aqueles sujeitos denominados mulher devem investir,
performar em suas relações sociais.
Tais imperativos, enquanto controladores da manutenção de determinadas
ordens sociais, contribuem para fixar ou cristalizar determinados sujeitos com
determinadas características como passíveis de representar certos papéis, habitar
certos corpos e conduzir certas práticas em situações espaço-temporais
específicas. Os significados de ser mulher estão atrelados a determinadas pautas
sociais e morais que sinonimizam mulher com feminino, homem com masculino e
ambos no contexto de um padrão heterossexual. As noções de feminino e de
masculino estão, por sua vez, estereotipicamente associadas a diversas
características que costuram os significados do que se considera como
comportamento “próprio” de cada uma delas. Estas características são o que eu
chamo de imperativos da feminilidade, dentre os quais a heterossexualidade e a
maternidade aparecem como fundacionais, já que garantem simbólica e
biologicamente a reprodução de um regime social. Contudo, a convivência com
os imperativos, enquanto ordens de sujeição a determinado regime social e
moral, desenha, como já assinalado anteriormente, repertórios de sujeitos
19
socialmente viáveis, marcando as fronteiras dessas subjetividades habitáveis e,
com isso, o terreno das abjeções.
Finalmente, o capítulo V, As poéticas do desejo, constitui-se na tentativa
de desenhar os discursos sobre as autoidentificações e referencialidades
presentes em relação à construção de si e da outra como sujeito desejante ou não
desejante. Com “não desejante”, refiro-me a todas aquelas que estão fora do
alvo, tanto por não investirem nas características que comportam o gosto
preferencial, quanto por serem consideradas eticamente “intocáveis”. A partir
desse diagrama, tentarei delinear esferas de amizade, família e desejo já que
nelas se evidenciam as regras de convivência que tecem as sociabilidades nos
espaços pesquisados.
O sentido deste delineamento é o de rastrear a lógica que as mulheres
imprimem nos relacionamentos sexuais, o espaço dado ao erotismo e ao sexo em
suas vidas, bem como o de explicitar as poéticas do desejo, ou seja, os modos
como as categorias morais presentes no campo tecem uma trama discursiva
relativa aos diferentes sentidos em que o desejo é referenciado e, portanto,
colocado no mundo.
20
Primeira parte: Espaços e espacialidades
21
Capítulo I: A arquitetura do desejo
Es verdad que no salgo de mi casa,
Pero también es verdad
que sus puertas están abiertas día y noche
a los hombres y también a los animales.
Que entre el que quiera.
No hallará pompas mujeriles aquí
en el bizarro aparato de los palacios
pero sí la quietud y la soledad.
Hallará una casa
como no hay otra en la faz de la tierra.
J. L. Borges, La casa de Asterión
Este capítulo descreverá a estrutura espacial de cada um dos lugares onde foi
realizado o trabalho de campo isto é, o modo como são distribuídos e
conformados os recintos com a intenção de costurar as características físicas às
especificidades de socialização de suas frequentadoras. O espaço será concebido
como uma dimensão analítica que contém e colabora na constituição das relações
sociais nele desenvolvidas. Ou seja, tal categoria será analisada através do valor
simbólico atribuído pelas pessoas que frequentam estes estabelecimentos
dançantes de divertimento noturno: o que faz o espaço com as pessoas e que
fazem as pessoas com o espaço? A importância de analisar a espacialidade e a
arquitetura dos lugares onde se desenvolve a etnografia se relaciona à noção de
“construção do espaço”, em um movimento dialético com as gramáticas de
socialização: os quem e os como também dependem dos onde. Os onde, por sua
vez, estruturam-se em fluxos espaço-temporais, abrigando um público que
carrega os espaços com determinados sentidos, a partir dos usos que deles faz.
Os usos do espaço
10
como variável de socialização conformam marcas para se
10
Para Blázquez, os usos que os participantes dos bailes de Cuarteto fazem do espaço “cumprem
funções discursivas fundamentais quando: indicam o tipo de relação social, a experiência genérica
dos participantes e o nível de intimidade dos sujeitos; oferecem pistas significativas acerca da
atitude pessoal e da intenção comunicativa dos participantes; indicam a posição do sujeito na
hierarquia social” (2004: 299).
22
enxergar particularismos que estruturam a trama do que chamo de socializações
lésbicas. A organização espacial dos lugares guarda relação com os usos que
culturalmente se faz deles. Eles não são meros reservatórios inertes; são
politizados, culturalmente relativizados, historicamente construídos e percebidos
a partir de diferentes lugares em relação ao agenciamento feito pelos atores, ou
seja, o agenciamento que seu uso supõe. Em outras palavras, “lo que tiene
importancia social no es el espacio, sino el eslabonamiento y conexión de las
partes del espacio producidos por factores espirituales” (Simmel, 1986: 644).
O espaço possui uma polifonia de vozes que, por sua vez, respondem a
uma espacialidade determinada que, na antropologia, tem sido representada e
questionada por ocasião da escrita etnográfica, como explica Appadurai (1988),
em seu artigo “Place and voice in anthropological theory”: “The problem of
voice (‘speaking for’ and ‘speaking to’) intersects with the problem of place
(speaking ‘from’ and speaking ‘of’).” Neste sentido, os lugares, além de habitar
as narrativas dos nativos e dos antropólogos, são narrativos per se, quer dizer,
falam a respeito das culturas que os habitam. Rodman (1992) utiliza as
ferramentas da geografia de Vidalian que conceitualizam as tensões existentes
entre a influência exercida pelo ser humano sobre o meio ambiente e,
reciprocamente, o impacto que o meio tem sobre os indivíduos, sugerindo que
essa tensão é compatível com a relação entre os indivíduos e as experiências que
têm no espaço por eles habitado. Rodmam propõe um estudo multilocalizado no
qual o lugar teria um duplo sentido: “as an anthropological construct for ‘setting’
or the localization of concepts and as socially constructed, spatialized
experience” (1992: 642).
Falar em espaço e em lugar supõe, por sua vez, lidar com duas concepções
distintas no que diz respeito ao locus social.
11
O estudo de topografias sexuais
11
Essa divisão foi primordial na cosmovisão do classicismo grego, uma vez que constituía a
diferenciação entre cosmogenesis – a geração do mundo – contenção relacionada com o espaço
e topogenesis, a produção de lugares particulares a partir dos quais o mundo é povoado. “Place
punctuate a Word and serve to specify it. On the other hand, the proliferation of places requires a
world, a coherent and capacious cosmos, in which and in order to occur” (Cassey, 1998:76). Por
sua vez, o apeiron de Anaximandro e o chõra de Platão representam a vastidão e a
especificidade. Este conjunto sugere que “if the cosmos indeed has a place, it is a place in space:
space at once endlessly voluminous and boundaryless. Moreover, the world not only has a place, it
is in place: it is in the very place of infinite space occupying particular stations in the regions that
make up the spatial universe” (op cit: 102). Já na Idade Média, época em que o pensamento
cristão é dominante, a discussão da cosmogenesis sacraliza-se e o espaço constitui-se como “un
ensemble hierarchisé de lieux: lieux sacrés e lieux profanes, lieux protegés et lieux au contraire
23
significa, especificamente, a análise dos espaços nos quais se desenvolvem
rotinas sexuais ou de sedução, servindo-se da distinção relativa entre “local”
(place), localização, “cujo potencial significativo ainda tem que ser totalmente
desenvolvido” e “espaço” (space), que “emerge quando sobre o local são
impostas práticas, quando formas de atividade humana impõem significados a
uma localização dada e transformam o terreno ‘neutral’ em paisagem
(landscape), isto é, em um particular ‘modo de ver’” (Leap, 1999:7). Essa
distribuição não responde, é claro, a um arranjo estático, sendo “continuamente
construída, negociada e contestada” (op.cit.: 6). A multiplicidade de espaços dá
lugar à multiplicidade de vozes (Massey, 1999, p. 28), mas também a diferentes
ópticas sobre o espaço (Amster, 2008: 177). Sua demarcação supõe uma
“reconceituação histórica, demográfica, geográfica e poética dos lugares sob a
lupa de uma mudança do que significa centro e margem nas urbanizações”
(Chisolm, 2005: 10). Nas palavras de Rooke, “This is a call for imagining the
city in a way that encompasses the lived, perceived, and conceived urban spaces
and spatiality of queer lives (Rooke, 233).”
Por outro lado, nas ciências sociais, o estudo das interações sociais que
leva em conta a importância do espaço interpessoal tem como marco referencial
os trabalhos das chamadas Escola de Chicago e Escola de Palo Alto ou
“Universidade Invisível”. Neste contexto, a relação entre indivíduo e contexto é
pensada como um processo dinâmico e não estático. O primeiro adquire,
portanto, agência, transformando-se em ator das situações sociais. Neste sentido,
o trabalho de Goffman é crucial, ao considerar o mundo social como um teatro
no qual os indivíduos desempenham diferentes papéis, dependendo da situação
social em questão. O espaço adquire aqui relevância e carga simbólica,
comportando-se como parte constitutiva da ação, da performance. A Escola de
ouverts (...) lieux supra-célestes opposés au lieux célestes (...) C´était tout hiérarchie (Foucault,
1984, 752). Posteriormente, com a imposição da ideia de perspectiva nas artes e, definitivamente,
com o modelo da física newtoniana, a ideia de espaço perde a sacralidade cristã e ganha a
secularidade que a noção de “mensurabilidade” lhe outorga. O espaço aparece, então, como uma
representação universal homogênea e mensurável da realidade. “Even as dedivinized and thus as
coextensive with the physical universe, the generality and openness of infinite space – in contrast
with the enclosedness and particularity of finite place – have become virtually irresistible by the
time we reach the threshold of early modern era” (Cassey, 1998: 129). No século XX, o desfecho
do modelo newtoniano na física e da perspectiva com um ponto fixo de fuga desarticula uma
concepção ordenada, única e universal do espaço, possibilitando novamente a aparição do lugar
que, desta vez, traz consigo um novo elemento: a reivindicação política do local em relação ao
universal como um modo de se dar voz aos grupos subalternos ou minoritários e de se construir
ciência (Haraway 1995).
24
Palo Alto, por intermédio do texto fundante de Bateson e Ruesch, propõe o
“modelo orquestral” de comunicação que a compreende como um processo
multidimensional em que elementos tais como o contexto de situação e os sinais
não verbais são fundamentais, percebendo-a simultaneamente como um
fenômeno social e uma mise en scène. Assim, o principal aporte destas Escolas
centra-se na importância do contexto de situação espacial em que os indivíduos
desenvolvem suas práticas. Os principais representantes desta linha são Bateson,
Waslawick, Hall, e Birdwhistell (1970), sendo que os dois últimos descrevem os
significados dos comportamentos não verbais inclusive as distâncias espaciais
presentes entre os indivíduos como parte de uma matriz cultural. Hall,
sobretudo, desenvolve o conceito de proxémica, entendida como “the study of
how man unconsciously structures microspace - the distance between men in the
conduct of daily transactions, the organization of space in his houses and
buildings, and ultimately the layout of his towns” (1963: 1003). Por meio da
proxémica, Hall analisa os comportamentos não verbais como parte da
linguagem, não como uma linguagem em si mesma, mas como parte dela, ou
seja, como traços paralinguísticos, “sistemas de percepción del mundo, la
experiencia del yo y la organización de la vida”(1990: 8) que vão além das
palavras e, por sua vez, significam junto com elas.
Os onde
Night Face, Face to face ou “os bailes da Mary” - Clube Olímpico, Rua
Pompeu Loureiro 116, Copacabana, posto 4, Rio de Janeiro.
- Andrea, você que está procurando lugares pra fazer seu campo, conhece
os bailes no Olímpico?, pergunta-me uma amiga, em uma festa.
- No Olímpico? Aquele clube em Copa, perto do Corte [de Cantagalo]?,
pergunto, curiosa.
- Sim, aquele clube. Cê conhece? Lá tem uns bailes de sapata velha, uma
vez por mês, primeira sexta do mês, acho. Vai lá, talvez seja interessante retratar
as “velinhas cocoon”.
- Você já foi?
- Não, mas umas amigas da Angélica [amiga dela] já foram.
25
Figura 1: área de localização do clube Olímpico - Copacabana
Já morei na Pompeu Loureiro, a dois quarteirões do Olímpico. Esta foi, aliás,
minha primeira moradia carioca, aquela que me abrigou durante o primeiro ano
do mestrado no Museu Nacional. O Clube Olímpico era o referencial do ponto de
ônibus que me trasladava para o outro lado do maciço da Tijuca, rumo à Quinta
da Boa Vista. Passei inúmeras vezes por ali; acompanhei Dom Ferreira, o velho
português, dono do apartamento onde eu morava, em suas aulas de hidroginástica
no clube; cheguei mesmo a pensar em fazer natação nesse ambiente tranquilo,
cheio de velhinhos e velhinhas, aposentad@s que passam aprazivelmente seus
dias a jogar cartas no bar ao lado da piscina exterior. O Olímpico é um pequeno
clube de bairro daqueles com piscina, sinuca, vários salões, sala de jogos, espaço
com brinquedos para crianças; tudo distribuído em três andares e mais a área
aberta onde, além da piscina e do playground para crianças, há também
churrasqueiras e outro bar onde ocasionalmente pode haver música ao vivo. Está
rodeado de prédios de apartamentos, dos lados e na calçada da frente, em uma
das chamadas áreas nobres de Copacabana. Sinceramente, nunca pensei que este
lugar pudesse abrigar, uma vez por mês e já há cinco anos, quer dizer, com
regularidade e periodicidade, uma festa na qual centenas de mulheres vão à
procura de parceria, namoro ou diversão com outras amigas que, assim como
26
elas, também gostam de mulher. Mea culpa, reconheço meu preconceito.
Copacabana, por sua vez, está localizada na Zona Sul do Rio de Janeiro e tem
aproximadamente 160 mil habitantes,
12
sendo o bairro com maior densidade
populacional da cidade. Este bairro que, no início do século XX era uma estação
de veraneio, experimentou um significativo crescimento a partir dos anos 1920,
após a abertura do túnel do Leme logo conhecido como túnel Novo a
inauguração do hotel Copacabana Palace e a proliferação de edifícios luxuosos
na Avenida Atlântica. Sua explosão demográfica, no entanto, só viria a ocorrer a
partir dos anos 1930, “com o surgimento do vigoroso processo de
industrialização durante a era Vargas, quando ocorreu a profunda mudança
qualitativa na demanda por bens e serviços das classes média e alta. Para essas
classes, Copacabana surgiu como símbolo da modernidade e da funcionalidade à
altura dos valores burgueses e da prosperidade deste segmento da sociedade”
(Lemos, 2008: 54). Ainda assim, nas décadas subsequentes o bairro foi
adquirindo uma dupla face que ainda o caracteriza nos dias de hoje: esta busca
pela modernidade democratiza o bairro que experimenta uma mudança em seu
visual senhorial com a construção de edifícios de apartamentos – novidade no
Rio de Janeiro – que vêm abrigar uma população de baixa renda atraída pela
busca de status e de um estilo de vida moderno, pessoas “que sacrificam o
espaço residencial para poderem viver no bairro que tem transporte, atende ao
consumo e produz, de acordo com as representações dominantes, prestígio
social” (Velho, 2006: 243). Entre ambos os extremos, há uma classe média
formada por comerciantes, funcionários públicos e profissionais: “O crescimento
do consumo e a mobilidade social geram novas aspirações e expectativas de
estilos de vida. De início, são principalmente famílias de camadas médias que
têm como projeto mudar-se para Copacabana. Vêm de outras partes da cidade, da
própria Zona Sul, do Centro, da Zona Norte e depois mesmo dos subúrbios. Boa
parte dos novos moradores origina-se de outros estados, além dos estrangeiros
que, desde o princípio, viam em Copacabana um bairro de sua predileção (...)
Acrescente-se a estes o pessoal do corpo diplomático e os representantes de
grandes empresas internacionais. A famosa ‘princesinha do mar’ tornou-se um
lugar feérico, com uma vida noturna intensa que apresentava várias opções e
12
Segundo dados do censo de 2000 do IBGE, a população de Copacabana e Leme é de 161.168
habitantes.
27
alternativas para gostos os mais variados” (Velho, 2006: 242). Na década de
1970, o auge do bairro já havia passado e sua população também diminui: os
250.000 habitantes, recenseados nos anos 1970, caem para 214.000 no censo de
1980 e chegam aos 160.000 no registro do ano 2000 (Velho, 1999: 15).
Entretanto, dois dados que aparecem no artigo de Velho (2006) são relevantes
para a presente pesquisa. Copacabana constituiu um importante centro de
socialização gay, abrigando boates como as da galeria Alaska, Encontrus, Blue
Angel ou os encontros marcados nos restaurantes da Avenida Atlântica,
principalmente entre os postos 5 e 6 – como relatam Guimarães (1977) e
Nogueira (2005). Além disso, é hoje em dia o bairro carioca com a maior
proporção de idosos do Brasil. Estas duas características serão levadas em conta
na hora de analisarmos os Bailes da Mary. Atualmente, existem no bairro
algumas boates como a La Girl a e Le Boy, no posto 6, e a Fosfobox, na rua
Siqueira Campos, mas ele tem perdido espaço para Ipanema, onde se situa a área
denominada baixo gay, compreendendo o ponto GLS da praia, na altura da rua
Farme de Amoedo, e a extensão da mesma, que se configura em um grupo de
bares situados na mesma rua, na Teixeira de Melo ou na Barão da Torre. O único
bar da Zona Sul explicitamente destinado às mulheres é o Casa da Lua, na rua
Barão da Torre e a única boate, a La Girl. Também existem casas que reservam
uma noite ao público de mulheres lésbicas. O bar Atlântico, na Avenida
Atlântica, em Copacabana, reserva a noite dos domingos para as mulheres, mas
sem impedir de forma alguma o ingresso aos homens.
No entanto, a restrição que realmente aparece é a econômica devido ao
preço do ingresso (R$ 30 a noite toda e sem direito a qualquer consumação) e
das bebidas (cerveja long neck por R$ 6 e drinks a partir de R$ 15), o que
justifica a denominação da festa como “Noite de lesbian-chicks”, um claro apelo
ao público alvo. Uma vez por mês, a Pista3, em Botafogo, recebe as Hey!
Ladies, festas destinadas a mulheres jovens descoladas que preferem estilos de
música ligados ao rock e não tanto à batida eletrônica reinante nas demais casas.
Esta é a única festa que eu conheço com um valor diferenciado para mulheres
(R$ 10 com flyer e R$ 15 sem flyer) e para homens (R$ 40, a noite toda). Não
incluo os Bailes da Mary nestas categorias porque não têm publicidade midiática
alguma e, portanto, ficam fora do circuito da oferta pública.
28
Cheguei nos Bailes da Mary seguindo a dica de umas amigas cariocas que
conhecem outras que já tinham ouvido falar deles. Fiz uma pesquisa rápida em
websites para o público LGBT e no guia GLS do Rio e não consegui referência
alguma sobre o baile. Parti, então, uma sexta-feira
13
rumo ao tal do baile, no
Clube Olímpico, à procura do que minhas amigas tinham chamado de “o baile do
Cocoon”, expressão que alude ao filme americano Cocoon, no qual um grupo de
idosos moradores de um asilo descobre que, na piscina de uma casa das
redondezas, existem uns casulos extraterrestres com propriedades revigorantes.
A partir das visitas na piscina, eles voltam a dançar como se fossem jovens de 20
anos. Como a média de idade das pessoas que frequentam os bailes da Mary é de
45 a 60 anos, a pessoa que me falou sobre este lugar usou a expressão para fazer
referência a este fato que, de todo modo, jamais foi mencionado pelas
frequentadoras como autorreferencial, nem tampouco como uma maneira
depreciativa de se referir a algum grupo do lugar.
Na porta do clube, não existe um cartaz ou qualquer tipo de sinalização
que indique a existência de um baile, menos ainda destinado a um público GLS.
“O baile GLS? Ah! É o baile da Mary, é no salão; pode ir, já começou”, me diz o
porteiro do clube e me convida a passar. Um corredor de aproximadamente 50
metros com um toldo de acrílico nos conduz da porta de grades pretas até o
edifício. Subo umas escadinhas e entro no prédio que conta com um grande salão
no térreo, à esquerda, logo depois da entrada, alugado na ocasião para uma igreja
pentecostal, mas que já sediou os bailes da Mary, logo que começaram. À direita,
um hall de paredes laranjas conduz ao elevador e às escadas de mármore branco.
Subo de elevador até o terceiro andar, onde só há o salão no qual os bailes
são realizados na primeira sexta-feira de cada mês. Assim que desço, à minha
direita, está o caixa: um box, construído em cimento e vidro, com um suporte de
madeira, onde uma mulher extremamente gentil me dá as boas-vindas, cobra o
ingresso e me entrega a cartela de consumação. O preço da entrada variou ao
longo do período da pesquisa de campo. Assim que comecei a freqüentar o baile
era de R$ 18 na bilheteria e de R$ 15, se comprada com antecedência.
14
13
Os bailes só acontecem na primeira sexta-feira de cada mês. Se houver alguma mudança de
data, Mary avisa no final da festa e também por e-mail.
14
É importante observar que, para se adquirir o ingresso antecipadamente, é preciso fazer parte
da rede de contatos da Mary que envia um e-mail convidando para a festa no qual constam os
dados bancários para se fazer o depósito do valor da entrada conhecer pessoas que já façam
29
Na parede oposta à da entrada, um grande espelho retangular de dois
metros de largura por um metro de altura serve para retocar o penteado e dar uma
última olhada no visual antes de se adentrar o salão. À esquerda do caixa, duas
grandes portas de madeira com maçanetas de bronze, onde está postado um
segurança que abre a porta e entrega a filipeta que promove a festa seguinte, dão
lugar ao salão e, portanto, ao baile. Entrar naquele salão me pareceu uma volta
ao passado: a pista de dança retangular ocupa o centro do espaço e está
circundada por três filas de mesas à direita, uma à esquerda e um espaço mais
amplo na frente e atrás, também com mesas, mas situadas em um nível superior.
As mesas são quadradas, de madeira, com lugar para quatro cadeiras cada uma e
estão colocadas em pares, de forma perpendicular à pista. Só a fileira que está
contra a parede direita fica paralela à pista, já que nesta parede há um banco
atrelado, tão longo quanto a pista, que substitui as cadeiras. Algumas das mesas
– basicamente aquelas que estão à direita e à esquerda do salão contra a pista –
exibem um papelzinho colado com um nome feminino, indicando a reserva feita
por alguma freguesa. As paredes possuem um revestimento de vidro preto com
desenhos de palmeiras, samambaias e pássaros que lhes outorgam um ar
selvagem apesar da baixa temperatura do lugar que, mesmo no inverno, conta
com um ar condicionado fortíssimo que congela até os tutanos. A iluminação é
coroada por uma bola de espelhos de proporção considerável, banhando o lugar
com uma luz oriunda de um laser verde e spots vermelhos, azuis e verdes que se
movimentam no compasso da música. A luz negra, por sua vez, confere um
efeito particular com seu característico tom violáceo e, nos momentos de maior
agito, o flash desmancha os corpos em movimento. Algumas vezes, a decoração
se completa com balões de diferentes cores, indicando algum aniversário que se
comemora no lugar. Os garçons e as garçonetes circulam sem parar entre as
mesas, dando conta dos pedidos de bebida e comida feitos pelo público. No lado
oposto à porta de entrada do salão, há uma porta de vaivém que conduz aos
banheiros e à cozinha. Essa área tem uma iluminação diferente, branca, clara,
não possui ar condicionado e é inundada pelo cheiro de óleo de soja usado na
cozinha para fritar os petiscos oferecidos no cardápio. A palavra “MULHER”
parte desta rede e passem as dicas ou ter ido pelo menos uma vez ao baile e escutar quando o DJ
anuncia a data da próxima festa e os preços ou, por último, receber o convite da festa seguinte no
qual figura o telefone da Mary.
30
impressa em um papel A4 branco horizontal com uma seta para a esquerda,
colado na parede entre o banheiro destinado aos homens e aquele destinado às
mulheres, indica a divisão genérica dos banheiros que é mantida sem
controvérsias pelas pessoas que frequentam o lugar. Os banheiros estão sempre
limpos, com papel higiênico em cada cubículo e papel toalha e sabonete nas pias,
que são periodicamente secas pelo pessoal da limpeza; a luz branca e forte
permanente talvez colabore para “manter a ordem” em sua utilização. “Manter a
ordem” não faz referência somente ao fato de não figurar como um espaço de
encontro ou pegação,
15
mas ao que Beatriz Preciado denomina “cabines de
vigilância de gênero”: “Au XX siècle, les toilettes deviennent de véritables
céllules publiques d’inspection dans lesquelles on évalue l’adéquation de chaque
corps avec les codes de la masculinité et de la féminité en vigueur. Sur la porte
de chaque cabine, en tant que signe unique de l’interpelation du genre: masculin
ou féminin, H ou F, Monsieur ou Madame, mocassin ou escarpin, moustache ou
petite fleur... Aller aux toilettes pour se refaire le genre plutôt que se défaire de
l’urine et de la merde. Les signes d’interpellation sur la porte ne demandent pas
si l’on va chier ou pisser, ils ne s’intéressent ni à la couleur ni à la taille de la
merde. Seul le genre compte” (Preciado, 2004:67).
O público é formado basicamente por mulheres na faixa dos 35 aos 70
anos, alguns homens
16
e algumas mulheres mais jovens. Imaginando um
“clássico” baile GLS, eu esperava encontrar (como quase sempre acontece) muito
“G” e nada de “L”. Pois é, mais uma vez, intuição errada: nas festas com maior
afluência de público, contabilizei umas 300 mulheres e escassos quatro ou cinco
homens. Geralmente, não há pessoas sentadas sozinhas. A conformação das
mesas pode variar de um casal ou duas amigas a grupos de seis ou oito pessoas,
juntando-se duas mesas. As estéticas também são variadas e estruturam um leque
que vai do feminino ao masculino, com várias nuances intermediárias.
17
15
“Pegar” é um termo utilizado na gíria carioca para se fazer referência à ação de aproximação de
uma pessoa à outra com intenções sexuais. A “pegação”, quer dizer a mise en scène, faz alusão
direta à procura de um/a parceir@ sexual e a consumação do ato em si.
16
A presença de homens não é fixa e, quando aparecem no baile, não passam de uns quatro ou
cinco. Geralmente, trata-se de casais que fazem parte de algum grupo de mulheres. Todos os que
vi durante meu trabalho de campo eram aparentemente gays. Voltarei sobre este assunto no
capítulo III, que se refere especificamente ao público que frequenta os lugares pesquisados.
17
Tanto as estéticas quanto a idade das pessoas que frequentam esses lugares serão
desenvolvidas no capítulo III. Aqui, só faço referência a isto para descrever visualmente o lugar e
analisar, nas páginas seguintes, a geometria dos espaços que tem relação direta com as marcas
estéticas e as performances de gênero desenvolvidas pelas mulheres que conformam seu público.
31
A música executada costuma dividir-se em blocos: a noite começa com
boleros e música melódica, passando por pagode, forró, samba, música das
décadas de 70 e 80 tanto nacional quanto internacional música pop dos anos
90, MPB e, para encerrar, volta-se ao forró e ao bolero. A sequência musical é
praticamente igual em cada baile, com pouquíssimas variações dentro de cada um
desses blocos, embora sempre conservando a mesma ordem, sobretudo no
momento do bloco central, formado por músicas remix dos anos 70 (tais como
“YACM”, “I will survive”, “I am what I am”, “Aleluhia” e “Macho man”). Esse
é o momento clímax da noite.
18
Variações sobre o espaço: o bar do Luiz
Quando o público que frequentava os bailes no salão começou a escassear, Mary
decidiu arriscar uma mudança de estratégia mais radical nos eventos,
transferindo-os de sexta para sábado e do salão para o bar do segundo andar,
onde ela tocava violão aos domingos. As festas de maio, setembro e outubro
foram nesse bar. Houve justificativas para essa mudança: a primeira festa no
novo espaço ocorreu no dia do seu aniversário, em fins de maio. É importante
lembrar que as festas tiveram início há cinco anos, a partir de uma comemoração
semelhante. Nesta ocasião, as amigas entusiasmaram-se com a ideia de poder
contar com uma festa desse tipo periodicamente. Sendo assim, uma mudança
ocasionada por seu aniversário não precisou de maiores explicações. As outras
duas alterações, no entanto, foram acompanhadas de explicações econômicas: o
ingresso para o bar custava R$10, em lugar dos R$15 ou R$18 do salão, além do
que, neste local, a cerveja era de garrafa e tinha quase o mesmo preço da lata, no
salão (entre R$3 e R$4). As festas no bar, por sua vez, tinham um ingrediente
diferente: música ao vivo, já que se intercalavam o DJ com a própria Mary, que
toca violão e canta sambas e algumas músicas da MPB.
19
A primeira festa, no
aniversário da Mary, foi um sucesso de público, mas já nas seguintes, este voltou
a minguar com ausências notáveis de pessoas que sempre iam às festas do salão,
motivo que levou Mary a mudar de opinião e retornar ao recinto anterior. A
quantidade de público aumentou novamente, caiu no final do ano e, na primeira
18
As temporalidades e a música dos shows que animam as casas de divertimento onde fiz meu
trabalho de campo são o foco do capítulo II.
19
As particularidades referentes aos shows e à música reproduzida mecanicamente serão
desenvolvidas no capítulo II.
32
festa de 2008, com as repetidas lamúrias de Mary em relação à “infidelidade” da
freguesia, voltando a crescer nas festas seguintes de 2008.
20
Na verdade, eu conheci o bar por acaso. A primeira vez em que fui aos
bailes da Mary, errei o andar e, ao invés de subir até o salão, entrei no bar onde,
naquele momento, estava acontecendo o karaokê. Como o público do bar era
formado por mulheres com uma média de 45 anos, durante um bom tempo
continuei pensando que esse era, de fato, o lugar do baile. Passei quase uma hora
ouvindo as freguesas cantar e comecei a desconfiar se aquela era realmente a
festa que estava procurando porque, na verdade, a quantidade de gente presente
era bem menor da que as minhas amigas haviam dito. Perguntei ao garçom se
aquele era o baile da Mary. Ele riu e me disse que eu tinha errado o andar e que a
causa da minha confusão poderia se dever ao fato de que o público do bar era o
mesmo do salão, já que, aos domingos, a Mary costumava tocar violão naquele
lugar.
21
O “bar do Luiz”, nome do seu administrador, tem uma estrutura retangular
que, se descontado o espaço que ocupa o balcão, parece um L invertido: na parte
mais curta – porém mais larga – está a venda de ingressos, uma área vazia e um
pequeno palco onde a Mary canta, o DJ executa sua música e, nos demais dias,
tem lugar um karaokê. As dimensões do lugar são reduzidas. Se comparadas com
as do salão, diria que a proporção deve ser de 4x1. Diferentemente do que se
verifica neste último, a iluminação é forte e, mesmo com umas luzes
improvisadas na parte que atua como pista, a exposição das pessoas (dançando
ou não) ali situadas é maior. O resto do ambiente está cheio de mesas de madeira
quadradas e de cadeiras e, se digo cheio, é porque a quantidade é tanta que, às
vezes, fica difícil se movimentar entre elas.
22
As mesas que têm mais espaço
entre si são as que estão no braço curto do “L”, em frente à pista, e as
localizadas no vértice do salão. Estas, aliás, dão de cara para a pista e são as
mais próximas do palco onde Mary canta e, portanto, as mais solicitadas e
disputadas pelas freguesas. Voltarei sobre este assunto mais adiante, na seção
“Reservando as mesas” deste capítulo. Do mesmo modo que no salão, os
20
A este tema, voltarei no capítulo III.
21
Quando comecei a frequentar os bailes, Mary me convidou para ir vê-la algum domingo, mas
nunca fui e, algum tempo depois, ela parou de tocar nesses dias.
22
Contabilizei umas 90 mulheres em média, quantidade inferior à do salão, mas suficiente para
lotar o bar, devido à diferença nas dimensões de ambos os espaços.
33
banheiros ficam fora do recinto mas, desta vez, antes da porta de entrada, e
contam com as mesmas características de iluminação, limpeza e “ordem” que as
observadas no salão.
Plural e Arena boate, Nova Iguaçu
Nova Iguaçu está localizada na área metropolitana do Rio de Janeiro
conhecida como “Baixada Fluminense” e tem uma população de
aproximadamente 800 mil habitantes.
23
Com três milhões de habitantes, a
Baixada, como é popularmente denominada, é a segunda zona mais populosa do
estado, após a capital, e tem como núcleo os municípios de Duque de Caxias,
São João de Meriti, Belford Roxo, Nilópolis e Nova Iguaçu — este último, tendo
sido historicamente desmembrado em quase todos os demais que hoje compõem a
região, por meio das emancipações iniciadas na década de 1940 (Duque de
Caxias, São João de Meriti e Nilópolis); as últimas tendo ocorrido na década de
1990 (Belford Roxo, Queimados, Japeri e Mesquita) (Barreto, 2006: 3). O
primeiro movimento importante de povoamento da Baixada começou em finais
do século XIX com a ampliação da Estrada de Ferro até Queimados, o que
estabeleceu um padrão de ocupação ainda hoje marcante na quase totalidade das
cidades que compõem a região: a população deslocou-se para as margens da
linha do trem e, tomando-a como referência, espalhou-se em seus arredores
(Barreto, 2006: 27). Entretanto, o maior crescimento populacional da região
aconteceu nas décadas de 1950 e 60 com a chegada de migrantes de várias
regiões do país, predominantemente do Nordeste, em busca de novas
oportunidades de vida. O processo de ocupação da Baixada esteve marcado pela
violência privada dos empregados a mando dos grandes proprietários de terra e
pelo abandono do poder público, permitindo que loteamentos, muitos deles
ilegais fossem levados adiante, dando origem a problemas estruturais como a
falta de acesso aos equipamentos urbanos básicos como luz, água e esgoto – além
do calçamento das ruas e da coleta de lixo que ainda constituem graves
problemas na região (Barreto, 2006: 37).
As boates Plural e Arena, analisadas nesta pesquisa, estão localizadas na
mesma rua (Avenida Francisco Soares), no bairro Califórnia, próximo ao centro
23
Segundo os dados registrados no censo demográfico do IBGE, no ano 2000, a região contava
com 830.672 habitantes.
34
de Nova Iguaçu. Esta área é a de maior agitação noturna da cidade,
principalmente na quadra onde se encontra a boate Arena, na região apelidada de
“rua da lama
24
”, atraindo público não somente de Nova Iguaçu, mas também das
áreas vizinhas como Mesquita, Belford Roxo, Queimados e até mesmo da Zona
Norte do Rio de Janeiro como Pavuna ou Madureira, já que, como disse
anteriormente, Nova Iguaçu atua como um dos núcleos da Baixada Fluminense.
Pizzarias e churrascarias com karaokê e música ao vivo são a principal atração
da região, que se completa com os bares alguns também com karaokê e outros
só para se beber e, às vezes, beliscar. Durante o final de semana, sobretudo aos
sábados, a movimentação por esta região é caótica: as casas de comida espalham
suas mesas pelas calçadas, uma colada à outra, impedindo o trânsito dos
pedestres que, por sua vez, optam por caminhar parcimoniosamente pela rua,
desafiando a paciência daqueles que tomaram a decisão de ali chegar de carro
o que, invariavelmente, origina um enorme engarrafamento. Acho necessário
explicitar que a “rua da lama” onde se localiza a boate Arena, constitui
basicamente um espaço heteronormado:
25
o público das churrascarias é
conformado, majoritariamente, por famílias e casais heterossexuais, e os bares e
pizzarias, por grupos de jovens entre 20 e 25 anos e casais heterossexuais de
diversas idades. Este dado adquire relevância na hora de se pensar a localização
de ambas as boates e a relação que isso guarda com o público que as frequenta.
A boate Plural, no entanto, localizada a umas cinco quadras da rua da Lama
permanece às margens deste point noturno da região.
24
A denominação rua da Lama aparece igualmente em outras áreas da cidade. A quadra onde
está localizada a boate Papa G, em Madureira, recebe esse mesmo nome, e a região onde se
encontrava o já extinto bar Tamino, em Botafogo, também era referida desse modo. Essas duas
últimas áreas da cidade caracterizavam-se por ser espaços considerados GLS, diferentemente do
que acontece em Nova Iguaçu. Infelizmente, não consegui achar referências bibliográficas, nem
explicações dos sujeitos ao longo do trabalho de campo, que permitissem esclarecer tal
denominação.
25
Utilizo a expressão heteronormado ou heteronormatividade em lugar de heterossexual para
referir-me a espaços ou situações em que a norma é estabelecida pela divisão binária entre
masculino e feminino, termo cunhado por Michael Warner, em 1991, na introdução ao livro Fear of
a Queer Planet. De todo modo, as origens do termo podem remontar tanto à conferência “A mente
hetero” (1978) de, Monique Wittig, quanto ao artigo “A heterossexualidade compulsória e a
existência lésbica” (1980), de Adrianne Rich, que analisam a heterossexualidade como uma
categoria construída politicamente e naturalizada pelo discurso científico como “dado” e
normalmente aceito. Essa categoria está presente em todas as instituições sociais que, desse
modo, a reproduzem: escola, trabalho, religião, legislação, família etc. Sendo assim, a
heterossexualidade constitui-se como norma ou molde dos comportamentos socioculturais dos
indivíduos, dividindo de forma binária as socializações em relação ao que se deva considerar
como masculino e feminino.
35
Figura 2: localização das boates Plural e Arena – Nova Iguaçu
Boate Plural
Avenida Francisco Soares 772, Califórnia, Nova Iguaçu.
Segundo @s frequentador@s, esta boate GLS é a mais conhecida e concorrida da
Baixada Fluminense. Funciona há mais de dez anos e é uma das mais famosas do
circuito da Zona Norte. A primeira vez em que eu estive por lá, acompanharam-
me Angélica (amiga da Lucimar, a mesma que falou dos bailes da Mary para as
minhas amigas), a sua namorada e a minha. Diferentemente dos bailes da Mary
que acontecem em Copacabana (bairro onde eu moro), a Plural situa-se em um
“terreno inexplorado”. Eu nunca havia ido a Nova Iguaçu e não queria me
arriscar a conhecer a região sozinha, no meio da noite, sem ter referências de
condução para ir e voltar até a minha casa. Por esse motivo, decidi aceitar o
convite de Angélica para dormir na casa dela e, assim, familiarizar-me tanto com
o lugar quanto com o caminho e os meios de transporte para locomover-se até lá.
Na ida: metrô até a Pavuna, em seguida, combinação via light, ou seja, o ônibus
do metrô que vai da Pavuna até Nova Iguaçu pela estrada onde estão situadas as
torres dos cabos de alta tensão que fazem o mesmo percurso do ônibus.
Chegando em Nova Iguaçu, é preciso saltar na esquina da Via Light e da Av.
Coronel Soares, a duas quadras da Plural. Para voltar, é só esperar na boate até
às 4h30, quando passa o primeiro Evanil, companhia que vai de Nova Iguaçu até
a Central e, dali, é só pegar algum dos vários ônibus que vão para Copacabana.
Mesmo assim, não foi somente o percurso, mas também os horários e caminhos
36
para me movimentar que tive de aprender acompanhando os horários e fluxos
de público (da Plural, primeiro e da Arena, em seguida), assunto que será
trabalhando no capítulo II, centrado nas temporalidades da noite em cada um dos
espaços de pesquisa.
A Plural abre de terça a domingo, mas os dias “fortes” – quer dizer,
anunciados e promovidos – são quarta, sexta e sábado. Os dias de promoção têm
preços diferenciados, tanto na entrada quanto nas bebidas e comidas oferecidas:
as noites de quarta e sexta são chamadas de real. Nesses dias, a cerveja e os
lanches custam R$1,50 e a entrada, R$ 3, com flyer (a qualquer hora), e R$7,
sem flyer (também a qualquer hora). Nos sábados, por sua vez, não há oferta nos
comes e bebes, mas a entrada tem três preços diferentes: com flyer, R$3 até às
23h da noite e, após isto, R$5; sem flyer, R$7 a noite toda. Tal qual uma árvore
frutífera, o sábado é o dia que “dá mais mulher” na boate, me conta minha
informante que me leva essa noite para eu conhecê-la. Logo confirmei esta
informação com outras pessoas, frequentadoras da boate, e ali assistindo em
algumas sextas para saber o que acontecia.
A casa está localizada em uma área residencial do bairro Califórnia. Além
dela, o único estabelecimento comercial da quadra é uma pizzaria situada na
esquina; o restante são casas residenciais e um depósito do lado direito da boate.
Do lado de fora, o prédio está pintado de verde e laranja, e um cartaz pendurado
na fachada, que ocupa toda a extensão da frente e mede aproximadamente 1m50
de altura, indica o nome da boate, incluindo a legenda “o diferencial que
acontece”. Subo uma pequena escada e me defronto com a bilheteria de
madeira com um vidro que me separa do atendente, mas permite que nos
vejamos; o passo seguinte é entregar o ingresso aos seguranças que fazem uma
revista das bolsas e dos corpos das pessoas que entram. Em seguida, há uma
porta vai e vem, e já estou dentro.
A boate está dividida em dois andares. O primeiro deles é fechado; lá há a
bilheteria
26
e uma pequena área (onde os seguranças fazem a revista das pessoas
antes da entrada) que funciona como corredor de entrada e antessala, com lugar
para se sentar (à esquerda) e um balcão de venda de bebidas e comidas (à
26
O preço do ingresso varia, dependendo do dia. Às quartas e sextas-feiras, custa R$ 3 com flyer
(a qualquer hora) e R$ 7 sem flyer (também a qualquer hora). Sábados, com flyer, sai a R$ 3 até
às 23 horas e após essa hora, R$5; sem flyer, o preço é de R$ 7 a noite toda.
37
direita). Este espaço fica antes da porta que dá acesso à pista de dança, em
formato retangular. À sua esquerda, situam-se os banheiros, separados por uma
parede que limita por meio de um corredor paralelo à parede da pista o dos
homens, à direita, e o das mulheres, à esquerda. No meio da sala de dança, há
dois patamares cilíndricos de aproximadamente um metro de altura com um
corrimão de metal tubular. Nesses patamares dançam @s strippers, ou go-go
boys e go-go girls, tal como são apresentad@s nos flyers da boate. Junto à
parede contrária à entrada há um palco destinado aos shows das drag queens.
À esquerda, há uma arquibancada de concreto em três níveis, único lugar
para sentar-se nesse recinto. Junto à parede oposta à entrada, há um palco
destinado aos shows das drag queens e mais uma porta vai e vem que conduz a
um espaço intermediário onde há um banco de concreto junto à parede esquerda,
mais dois banheiros individuais –sem sinalização genérica –a porta dos
bastidores do palco, à direita e, finalmente, na parede oposta à porta, a escada
que leva para o segundo andar.
O segundo andar é aberto. Lá há um pátio e um terraço com uma estrutura
semifechada. Um teto de telha cobre a metade da superfície onde está montado o
bar. Nele há um balcão onde se pode pedir todo o tipo de bebida e também
alguns petiscos que são feitos na cozinha que funciona no primeiro andar. Na
parte coberta, além do balcão, existe um pequeno palco e algumas poucas mesas,
já que a maioria fica ao ar livre, fora dessa proteção. No total, há umas doze ou
quinze mesas de metal com cadeiras do mesmo material, que podem ser fechadas
pelo próprio público, caso não haja espaço suficiente para dançar. Naquele
terraço, apresentam-se diversas cantoras: Thais Mattos, às quartas; Simone Lyns,
às sextas e Claudia Duque, aos sábados. Desse modo, a casa está dividida em um
espaço para se dançar e ver go-go girls e go-go boys e outro para se escutar
música ao vivo. Este último é o preferido das clientes. Desde cedo – por volta
das 23h – elas ocupam as mesas do terraço (nome dado pela casa àquele espaço,
nos flyers de promoção) e ficam bebendo basicamente cerveja, enquanto
aguardam que a cantora ocupe o local definido como palco. As mesas que estão
perto do cenário são reservadas a ela e a seu grupo de amig@s. Ela faz uma
apresentação dividida em duas partes, com um intervalo de mais ou menos meia
hora entre uma e outra – o show começa entre 23h30 e meia-noite e finaliza por
38
volta das duas horas da manhã.
27
Depois disso, o público se dispersa. Muitas
pessoas optam por descer para dançar, outras, simplesmente, deixam o lugar.
Entretanto, o terraço continua aberto abrigando casais e grupos que preferem
continuar conversando e também as pessoas que, depois de “pegarem”
28
alguém
na pista, resolvem continuar o flerte conversando nas mesas.
A divisão dos andares na Plural também obedece a uma classificação por
gênero e idade: em cima, há basicamente mulheres mais velhas (de 30 a 60 anos),
geralmente casais ou grupos de amigas. Mesmo nos intervalos da cantora –
momento da apresentação d@s gogos na pista – muitas mulheres ficam sentadas
conversando, namorando ou flertando. Para muitas, a pista configura somente um
lugar de passagem até o terraço. “Eu não venho pra dançar pancadão;
29
prefiro
ficar aqui conversando com a minha namorada, com as colegas; não venho pra
aquela baixaria do funk também não. Quem gosta, tudo bem, tem a opção. Eu
fico aqui e depois vou pra casa”, me conta uma freguesa. Este depoimento é
representativo de uma faixa etária que começa aos 35 anos, aproximadamente,
predominante nas mulheres que vão para a boate, mas optam por ficar no terraço
ou descem para ver as gogo-girls e sobem novamente para continuar conversando
e assistindo à cantora. Embaixo, na área da pista, agregam-se homens de todas as
idades (sendo que a média de idade deles é menor do que entre as mulheres) e
também mulheres jovens (entre 18 e 30 anos), que raramente sobem para
presenciar o show e ficam dançando nessa área da boate. A música da pista,
executada por um DJ, é basicamente eletrônica, com intervalos nos momentos
d@s gogos e dos shows das drag queens (quando ocorrem). No final da noite,
depois de todos os shows, inclusive da cantora do terraço, começa o funk
carioca.
30
Como mencionei anteriormente, nesta área da pista, só existe um lugar
para se sentar: uma arquibancada de concreto localizada contra a parede
esquerda. Entre os banheiros e a porta que divide o salão seguinte, está a escada
27
O show das drag queens desenvolvido do térreo acontece simultaneamente ao segundo bloco
das cantoras.
28
Ver a nota 15.
29
Modo de nomear a música eletrônica devido aos beats rítmicos das sequências de baterias
“sampleadas” que parecem uma pancada no peito e também ao alto volume da pista. Esta
expressão, ou seu sinônimo, bate estaca, também aparece entre as frequentadoras mais velhas
dos Bailes da Mary.
30
Tanto os shows quanto o tipo de música mecânica e as temporalidades e divisões genéricas e
etárias que eles implicam serão analisados no capítulo II.
39
que leva ao segundo andar. A pista não é um lugar para conversar. As pessoas
que preferem um pouco mais de sossego ficam no terraço e descem,
ocasionalmente, para dançar ou para assistir @s gogos. A pista, aliás, não é um
lugar que eu chamaria de aconchegante: o chão está “atapetado” de latas de
cerveja vazias (ou com conteúdo de temperatura duvidosa), que as pessoas
simplesmente despejam quando acabam de bebê-la, originando pequenos
montículos nos cantos ou contra a parede. A consistência do chão tem relação
direta com este hábito e, à medida que a noite avança, a lei da gravidade se faz
cumprir ao pé da letra, já que fica difícil deslizar os pés levemente. Esta
grudenta característica também imprime sua nota no chão dos banheiros que
estão geralmente, assim como a pia e os vasos sanitários. Entretanto, o papel
higiênico felizmente é quase onipresente, sendo renovado durante a noite nos
banheiros da pista (no de mulheres, pelo menos), mas não nos outros dois do
outro recinto. Acredito que isto se deva ao fato de ali não haver um segurança
como na pista, uma pessoa que se encarregue de evitar que duas pessoas entrem
juntas na mesma cabine e de trocar o papel, quando alguém reclame sua falta.
Estes dois espaços com lógicas particulares constituem, por sua vez, um
espaço maior, com uma lógica singular, resultado do entrecruzamento de ambas.
“Eu não gosto muito de boate”, me conta uma frequentadora,
31
“não dá pra
conversar direito e, assim, não dá pra conhecer a pessoa. Eu ia mais pra Plural;
lá, pelo menos, tinha aquele terraço, né? Aí, tu senta com os amigos, rola um
papo, escuta uma música e come alguma coisa... Agora, prefiro uma
churrascaria, um barzinho com música ao vivo que um lugar desses” [referindo-
se à Arena, onde estamos conversando].
Boate Arena.
Av. Francisco Soares 1473, Califórnia, Nova Iguaçu
Localizado no meio do burburinho da noite de Nova Iguaçu, este estabelecimento
funciona em um antigo casarão reformado, com jardim e grades que o separam
da rua. No jardim, um cubículo de concreto, pequeno e retangular é o lugar onde
se compram os ingressos. Umas aberturas que eu não me arriscaria a chamar de
janelas – pequenas, com 40cm de largura e 20cm de altura, que só permitem que
se entregue o dinheiro e se receba o comprovante – permitem realizar a transação
31
Ela tem 50 anos e há um ano mora com sua parceira de 25.
40
de compra, mas não falar com @ atendente ou ver seu rosto. Cada abertura
implica uma fila e um ingresso diferente: esquerda, pista (R$10); direita, VIP
(R$20). Comprar VIP supõe o acesso ao “open bar”, quer dizer, bebida liberada
até às 5 horas da manhã (cerveja, gummy, vinho, cuba, hi-fi, menta, ice, Martini,
refrigerante e água, segundo os flyers promocionais), contudo, a bebida só pode
ser consumida no segundo andar da boate, vedado para as pessoas que compram
ingresso para a pista. Devido a esta diferenciação, as pessoas com ingresso VIP
recebem uma pulseira de plástico, colocada pel@s seguranças antes de se entrar
na boate, que serve de “passaporte” ao segundo andar e verificada pelos
guardiões da ordem, postados na escada, a cada nova vez que as pessoas
desejarem ali ingressar. Assim, quem não tiver a pulseira, não pode circular pelo
segundo andar, à diferença dos VIPs que têm a possibilidade de circular pela
boate toda.
Geralmente, quem dá as boas-vindas na porta é uma drag queen que tem o
papel de anfitriã. O passo seguinte é dar a entrada (ou mostrar a pulseira) para
um funcionário parado na porta, do lado de dentro. O último obstáculo antes de
ingressar na pista é a revista de bolsas e corpos feita pel@s seguranças do lugar
(no meu caso, uma mulher, porque sou considerada mulher) que, finalmente,
liberam o acesso ao interior do recinto. Esta prática de controle dos objetos
pessoais e apalpamento dos corpos por parte de estranhos (@s seguranças),
presente em ambas as boates, “coisifica” o indivíduo que passivamente aceita o
fato, estabelecendo certa cumplicidade com o vigilante.
Uma vez superadas estas etapas, entra-se diretamente na pista: uma
estrutura semicircular inserida em um espaço retangular dividido em dois
andares. A pista está cercada por sofás localizados embaixo de uma espécie de
varanda interna onde funciona a área VIP. Com esta configuração, as pessoas do
segundo andar conseguem ver a pista como se estivessem no balcão nobre de um
coliseu romano, mas não a área dos sofás, que permanece fora do campo de
visão, ao que se soma, igualmente, uma iluminação mais tênue que a do setor da
pista. À esquerda e ao final desta última está o balcão de venda de bebidas, que
constitui parte do setor destinado aos shows separado da pista por uma porta
vai e vem com um isolamento acústico suficiente para permitir a simultaneidade
dos shows e dos djs, quase sem interferências. Esta boate não possui um terraço
ao ar livre e é completamente fechada. Há, contudo, divisões que aparecem
41
claramente: a pista, a área VIP e a área de shows; cada um desses setores tem,
por sua vez, uma lógica particular de distribuição em relação aos usos que deles
fazem @s frequentadores e às atividades desenvolvidas. A pista possui um palco
alto, com dois metros, aproximadamente, onde as drag queens apresentam seus
shows por volta das três horas da manhã, sendo ocupado, o resto da noite, por
pessoas do público que mostram seus “dotes” de dança e, às vezes, por um gogo-
boy. Na área da pista, são basicamente homens jovens – de 20 a 30 anos,
aproximadamente – e mulheres na média dos 25 anos que ficam dançando,
alternando sua presença com os shows ao vivo. Nos sofás laterais, o público é
mais variado: homens e mulheres de uma faixa etária mais heterogênea, porém,
basicamente casais ou bêbados “estacionados” pelos amigos até melhorarem um
pouco.
O setor dos shows é retangular, tendo o palco na extremidade, contra a
parede oposta à porta vai e vem que se comunica com a pista. Na entrada, à
esquerda, fazendo as vezes de “parede” divisória com a pista, está o caixa para
se comprar as bebidas e comidas; a seu lado, a dois ou três metros de distância,
encontra-se o balcão de atendimento e, logo em seguida, os banheiros. Do lado
direito, há mesas redondas de fórmica e metal que se estendem até o final do
salão. Do lado esquerdo, depois dos banheiros, em diagonal ao palco, um espaço
quadrado, ocupado por mesas e cadeiras. Dos lados do palco e à sua frente, o
espaço está vazio, sendo utilizado como pista de dança.
O único lugar da Arena onde é possível conversar mais tranquilamente,
quer dizer, sem ter que gritar no ouvido da outra pessoa, é uma parte da área VIP
que fica acima do salão dos shows. Esse setor está separado da pista por duas
portas que isolam um pouco o som e possui uma parede de tecido de arame, o
que também ajuda na dispersão sonora. Entretanto, esse é um setor de trânsito,
para comprar bebidas ou descansar um pouco, e não um espaço utilizado pelo
público para a permanência, já que não possui mesas nem cadeiras que
colaborem para tanto, tornando-o aconchegante, receptivo. Para pedir bebidas,
por exemplo, é necessário entrar na fila que se forma do lado do balcão, a partir
da entrada até o final, onde estão os atendentes. Uma fita preta similar àquelas
utilizadas em bancos, aeroportos ou dependências públicas para direcionar os
grupos de pessoas que esperam é a fronteira entre a fila e o restante do salão. Um
segurança agiliza o passo das pessoas com um toque no ombro ou pedindo
42
verbalmente que avancem, de modo a evitar congestionamentos e demoras que
poderiam ser ocasionadas por uma conversa interessante que distraia os
“fileiros” do timming. “Vai logo, fala o que quer beber”, compele o atendente,
com uma lata de cerveja na mão apontada para o cliente, do outro lado do balcão,
que a recebe com certo automatismo. Esse não é lugar para vacilar, para ficar
pensando no drink. É bebida liberada, porém, dentro de um universo restrito:
pode-se beber quanto quiser, não o que quiser. A fila de bebida comporta-se
como uma seriação fordirsta, como uma fita sem fim, mecanizada, na qual as
bebidas são as engrenagens colocadas nas pessoas que passam. É a lógica da
quantidade e não a da escolha que impera. Para escolher há o balcão do térreo,
para escolher é necessário “pagar para ver”. Com a bebida na mão, as pessoas
ficam paradas no que resta do espaço, conversando em grupos e olhando para os
outros grupos, ou se dirigem para a “pista privada” da área VIP, quer dizer, o
balcão que fica em cima da pista central do térreo, onde dançam e observam o
que acontece lá embaixo. Quando a bebida acaba, voltam para a fila ou descem
para assistir os shows ou dançar funk. As mulheres, em geral, não optam pela
área VIP, esse parece ser mais um terreno dos homens. “Eu gosto de beber
assistindo ao show. Se vai pro VIP, tem que ficar bebendo lá em cima, não tem
graça!”; “não vou pagar 25 pratas pra ficar lá, fazendo o que? Prefiro pagar um
pouco mais e pegar uma mesa do lado do palco”; “venho com as minhas colegas,
aí, pedimos um balde [com 10 latas de cerveja] que fica aqui na mesa, com a
cerveja geladona; aí dançamos e temos a bebida conosco. No VIP, não dá pra
fazer isso”; “é tudo homem, não tem mesas, só da pra ouvir o pancadão da
pista”, são algumas das respostas que aparecem quando indago os motivos para
não subirem. Nas palavras de Hall (1977: 100), para as mulheres, a área VIP
parece funcionar como um espaço sociofugidio, já que sua tendência é a de
dispersar as pessoas.
A multiplicidade
Uma das particularidades fundamentais das casas de divertimento noturno
analisadas é o fato de albergarem em seu seio pessoas de diferentes camadas
43
sociais, idades, cores e estéticas, cuja característica de comunhão inicial baseia-
se na orientação sexual, o denominado público GLS. Em um mesmo recinto,
convergem corpos que imprimem diferentes performances de gênero. Esta
heterogeneidade reflete-se também na arquitetura dos lugares e se explicita nas
apropriações territoriais que @s frequentador@s fazem deles.
Na conferência “Des espaces autres” (1994), Michel Foucault considera
que vivenciamos uma época na qual o espaço se apresenta sob a forma de
relações de emplacements:
32
“Nous vivons à l’intérieur d’un ensemble de relations
qui définissent des emplacements irréductibles les uns aux autres et absolument
non superposables (...) On pourrait, sans doute, entreprende la description de ces
differentes emplacements, en cherchant quel est l’ensemble de relations par
lequel on peut definir cet emplacement” (1994: 755). Dentre estes espaços, o
autor distingue um modelo que tem a propriedade de “être en rapport avec tous
les autres emplacements, mais sur un mode tel qu’ils suspendent, neutralisent ou
inversent l’ensemble des rapports que se trouvent, par eux, désignés, réfletés ou
réfléchis” (ibid). Esta modelização, por sua vez, divide-se em três tipos: utopias,
heterotopias e espelhos. As utopias são espaços essencialmente irreais, ou seja,
emplacements sem um lugar real, mas que mantêm uma relação de analogia
inversa ou direta com os espaços reais da sociedade. As heterotopias, por sua
vez, são emplacements reais e efetivamente localizáveis, mas que cumprem uma
função de contre-emplacements, algo como utopias efetivamente realizadas que
representam, contestam e invertem os lugares comuns da sociedade (ibid).
Finalmente, entre as utopias e as heterotopias configuram-se os espelhos, uma
espécie de experiência mista: utopia – já que é um lugar sem lugar que permite
enxergar os espaços de ausência e de invisibilidade – e heterotopia – na medida
em que o espelho é real e me devolve a imagem do lugar que ocupo e também
aquela do lugar que não ocupo, mostrando a ausência do meu reflexo (ibid: 756).
Por que, então, pensar as casas de divertimento noturno pesquisadas como
heterotopias?
32
Decidi usar a palavra no original. Segundo o dicionário Trésor de língua francesa, ela significa
um lugar especialmente escolhido para se construir ou fazer alguma coisa em particular (“endroit
choisi spécialement pour y construire ou plus généralement pour y faire quelque chose”). Por
extensão, lugar efetivamente ocupado por uma construção, uma coisa ou um conjunto de coisas
(“place effectivement occupée par une construction, une chose, dans un ensemble”)
(http://www.cnrtl.fr/definition/emplacement).
44
Os espaços heterotópicos, nos diz Foucault, estão presentes em todas as
sociedades, de modos particulares, como uma espécie de contestação mítica e
real do espaço que habitamos (ibid). Assim, as heterotopias têm entre suas
características o poder de justapor em um só lugar vários espaços que, a
princípio, poderiam ser pensados como incompatíveis entre si. Estes, por sua
vez, são lugares que reúnem e acumulam gostos, temporalidades, épocas
diferentes, adquirindo algo como uma atemporalidade per se que os mantêm
“hors du temps”. As heterotopias supõem igualmente um sistema de abertura e de
encerramento que as isola e, simultaneamente, as torna permeáveis.
Aparentemente, são abertas para qualquer um, mas guardam, escondem e
excluem. Finalmente, elas constroem um diferencial dos outros espaços que
desestabiliza as relações espaciais em torno das práticas sociais e discursivas.
Como disse anteriormente, pensar em uma boate GLS é pensar em um
universo de entrecruzamentos múltiplos de pessoas que, aparentemente, só têm
como característica comum o fato de gostarem de pessoas do mesmo sexo.
33
Essa
característica faz com que outras marcas como a classe e a cor fiquem
subsumidas na hora de interagirem dentro destes espaços e percam o destaque
que podem ter fora, sendo deslocadas pelas marcas de idade e estética que se
constituem à luz do jogo do binário masculino-feminino. O meio termo do
binário é o foco, a hiperfeminidade ou a hipermasculinidade, as pontas do leque
ou as fronteiras da abjeção cujo centro é a moderação, tanto do masculino quanto
do feminino: nem machão nem mulherzinha, mas cavalheiro e dama. Não estou
dizendo, no entanto, que as variáveis clássicas antes mencionadas não tenham
ingerência nas gramáticas das relações internas dos lugares, e sim que passam a
um segundo plano porque é a naturalização dos usos o que prevalece. A
desconstrução desses usos é, portanto, tarefa a se enfrentar para desvendar os
pontos comuns entre @s frequentador@s desses lugares, já que, nas palavras de
Halberstam (2005: 8), é preciso desnaturalizar os usos do espaço e do tempo que
escurecem as construções das práticas espaciais. Esses usos, por sua vez, jogarão
luz sobre as práticas que compõem a trama de relações das socializações
lésbicas.
33
Não estou incluindo nesta categoria as travestis ou transgêneros.
45
Na descrição que Almeida e Tracy (2003) fazem da noite como um espaço
nômade, as autoras contrapõem os chamados espaços lisos (abertos e marcados
pela imprevisibilidade e pelo acaso, nos quais a “criação e a performance são não
só possíveis, mas necessárias” (2003, 44) aos espaços estriados (“unificados e
constituídos por formas definidas previamente dadas, dizendo respeito às
estruturas hegemônicas de ordem e controle” cujas trajetórias “estão
predeterminadas pelas características, a um só tempo materiais e sociais do
próprio espaço” (ibid). Os usos do espaço e, portanto, as estratégias de
apropriação do público que frequenta os lugares pesquisados parecem estar
localizados em um meio termo entre estas duas variáveis, o que remete, mais
uma vez, ao caráter heterotópico foucaultiano dos espaços como factível para
definir esta hibridez. Mesmo sendo espaços fixos, o que as pessoas fazem ao
transitarem de um recinto para o outro, dependendo dos momentos da noite,
34
desconstrói e reconfigura sua semântica topográfica. Exemplo disso é o terraço
da Plural. Esta parte de boate é a preferida das mulheres de mais de 30 anos, que
ficam praticamente o tempo todo por ali e não descem para dançar nos intervalos
da cantora, momento em que a maioria do público se encontra na pista. Assim, o
terraço fica bastante deserto e sem uma atividade aparente para se fazer.
Entretanto, este momento que, a princípio, poderia parecer um buraco na
programação, significa para as frequentadoras da Plural um momento
fundamental para a sedução e a construção dos relacionamentos porque é a partir
da fala, do bate-papo que se constrói a aproximação e a cumplicidade. Nesses
momentos, o terraço constitui um regime de significação e de inteligibilidade
diferenciada. A paquera
35
pode começar na pista, mas continua nas mesas do
terraço. “Ahh, nossa Plural!... Aqui [na Arena] não dá pra conversar, rola um
climinha com alguém, e fica mais difícil sabe... tem que ir direto pro assunto, e
isso não é legal... gosto de um papo com a menina, me aproximar devagar, na
Plural tinha essa possibilidade”; “aqui, as meninas querem é beijar e pronto; eu
quero outra coisa, mas pra isso tem que conhecer um pouco a pessoa, saber se
temos coisas em comum”, são algumas das explicações que recebo quando
34
No segundo capítulo, farei uma análise mais apurada sobre o significado dos tempos das
boates.
35
Paquera e “pegação” são termos usados na gíria carioca para se referir à aproximação de uma
pessoa de outra com intenções amorosas ou sexuais. A paquera está mais próxima do flerte,
enquanto a “pegação” faz alusão direta à procura de um/a parceir@ sexual.
46
pergunto o motivo da preferência pela Plural ou o incômodo causado pela
Arena.
36
Apesar da divisão entre pista e música ao vivo, o fato de o palco desta
última também abrigar as gogo-girls e de que, na hora de sua apresentação, as
demais pessoas também tenham essa atividade para fazer, elimina o a lacuna
existente na Plural no momento do intervalo da cantora. Essa lacuna permite o
diálogo. Mesmo com o som do DVD de plantão, a atenção se desvia e deixa de
estar em uma figura (na cantora, na Plural e na gogo-girl, na Arena), mudando o
foco para a fala, o diálogo. Diferentemente das cantoras da Plural, o grupo que
se apresenta ao vivo na Arena não costuma tocar MPB e, quando toca, o faz em
um compasso mais rápido, acelerado diria. O som está sempre muito alto, e o
ritmo da música é muito rápido. Pareceria que a intenção, nesse caso, não é a
contemplação e escuta atenta do grupo, mas fazer com que o público dance.
Trata-se de outra pista com música ao vivo. Aliás, a própria distribuição espacial
evidencia esse objetivo. É difícil achar um lugar para conversar na boate por
causa do volume do som. Caso desejem fazê-lo, as pessoas ficam no setor
destinado para shows perto do balcão e da porta que leva à pista, uma espécie de
“não lugar” liminar entre os dois grandes espaços da boate, onde o som não é tão
forte e o sentido arquitetônico não é tão óbvio, dando lugar a uma polissemia de
usos.
O único lugar da Arena onde é possível conversar mais tranquilamente é
uma parte da área VIP situada acima do salão dos shows. Esse setor está
separado da pista por duas portas que isolam um pouco o som e possui uma
parede de tecido de arame, o que também ajuda na dispersão sonora. Como
expliquei anteriormente, este setor da boate é de trânsito, comportando-se,
portanto, como sociofugidio,
37
motivo pelo qual cabe conjeturar que esta procura
por um espaço diferente no interior da boate é mais uma característica da
hibridez das casas de entretenimento noturno frequentadas pelo chamado público
GLS.
Em seu artigo “Above and below: toward a social geometry of gender”
(1996), Guilmore salienta a existência de uma geometria social de gênero na qual
36
Faço esta distinção porque algumas mulheres me explicaram que frequentam a Arena porque
está situada mais próxima às suas casas, mas preferem a Papa G, em Madureira ou a 1140, em
Jacarepaguá, ambas com uma divisão de espaços similar à Plural: com uma cantora
apresentando-se ao vivo longe da pista e com intervalos “vazios” entre um bloco e outro, o que
possibilita a conversa.
37
Ver página 43.
47
a topografia simbólica do “acima” e do “abaixo” se comporta como metáfora da
estrutura de poder e da hierarquia entre homens e mulheres. Em termos desta
análise, a diferença entre a área VIP e o resto do espaço na Arena pode ser
pensada como um “acima” e “abaixo”, relacionada a um diferencial econômico e
etário e, entre o terraço e a pista na Plural, a um diferencial etário e genérico.
Em ambas as boates, a divisão de espaços tem um correlato com a configuração
do público, cujas variáveis principais são a faixa etária e o gênero. De modo
distinto aos bailes da Mary, o espaço nestas duas casas é compartilhado com
homens. Entretanto, a conformação do mapa genérico espacial não se constitui a
partir da divisão homem-mulher como correlato hierárquico, mas antes daquela
entre jovem-velha/o. As relações não se estabelecem entre sexos, mas
intrassexos.
38
Estar na área VIP significa um desembolso de uma quantia significativa –
R$ 20 no início da pesquisa e R$ 30, no final, contra R$ 10 para se entrar na
pista – que deve ser paga à vista. Pagando esta soma, a pessoa acede ao consumo
liberado de bebidas em uma área restrita da casa, localizada no primeiro andar.
Para garantir esta dinâmica existem, como já dito anteriormente, dois
mecanismos de controle implementados pela gerência da casa: uma pulseira de
cores visíveis que só sai se rasgada e a presença de seguranças nas escadas que a
verificam, restringindo o acesso das pessoas que não as exibam e a descida dos
que esteja com bebidas na mão ou na bolsa. O uso da pulseira, que fica visível
para todos, se comporta como um dispositivo diferenciador de circulação dos
corpos no recinto e uma marca da capacidade econômica de quem a ostenta.
Ficar na área VIP significa estar literalmente acima das pessoas que estão na
pista. Como um verdadeiro circo romano, quem está no balcão observa a situação
da pista, a arena, ocupada por corpos que dançam iluminados pelas luzes rítmicas
e os lasers. Esse balcão é espaço de voyeurismo e de escolha. Mulheres jovens e
homens optam pela área VIP e descem intermitentemente para dançar no setor
dos shows, subindo novamente para consumir bebidas alcoólicas.
Assim, esta divisão da boate estabelece um diferencial aparentemente
econômico, mas que, na realidade, tem outra variável, a idade. Paradoxalmente,
são as mulheres mais novas que preferem subir, quando supostamente deveriam
38
Esta variável será analisada no capítulo III.
48
ser as mais velhas que poderiam contar com uma capacidade econômica que
permita bancar esse ingresso. Estas últimas, no entanto, não estão interessadas
no consumo indiscriminado de bebidas, e sim na possibilidade de se
estabelecerem e depositarem seus pertences quando dançam, preferindo o balde à
linha fordista, a mesa à possibilidade de se deslocar, os shows ao vivo à música
mecânica pancadão ou bate-estaca. Esta divisão de gostos e interesses espelha-
se na Plural, onde as mais velhas situam-se no terraço e as mais jovens circulam
entre os diferentes ambientes do lugar. Posso dizer que as mulheres mais velhas
conservam uma lógica de bar, que lhes permite conversar, beber, comer e dançar,
enquanto as mais novas preferem a possibilidade do nomadismo, marcado pelas
diferentes opções de divertimento oferecidas por ambas as casas.
Reservando as mesas
Quando telefono à Mary para lhe avisar que já fiz o depósito do valor do
ingresso, ela me pergunta se quero que reserve uma mesa para mim ou se prefiro
estar em alguma com as frequentadoras com as quais costumo me sentar.
Pergunto a ela se as pessoas pedem uma mesa em particular ou se ela vai
reservando qualquer uma. Mary me conta que as freguesas mais antigas “já têm
suas mesas”, então ela respeita essas preferências.
As mesas da primeira fila à direita são as mais solicitadas pelas freguesas
mais antigas, aquelas que começaram a frequentar os bailes por serem amigas da
Mary.
49
Figura 3
Esquema da distribuição do público no salão do clube Olímpico durante os Bailes da Mary
É nessa fila do meio e em frente à pista que se localiza a mesa da Mary,
fácil de distinguir pela onipresente garrafa de whisky Johnny Walker Red Label.
Nessa mesa, sentam-se suas sobrinhas quando vão ao baile, algumas amigas mais
íntimas e Nora (a caixa), depois que termina seus afazeres ou em alguns
momentos em que sai para dançar, deixando o caixa nas mãos de alguém de
confiança. Às vezes, Mary fica sem mesa. Nessas ocasiões, guarda o whisky ao
lado do DJ.
A distribuição das mesas marca um diferencial relacionado à idade, a
antiguidade no lugar e a estética, compondo a geografia do lugar. Podemos
contabilizar seis grandes grupos em relação a estas variáveis. O “grupo A” é
constituído por mulheres mais velhas (de uma faixa etária que vai de 45 a 70
anos), com uma estética que poderia ser considerada feminina saia até o joelho
ou calça formal, blusa, meias de nylon, sapatos de salto (embora não muito alto),
agasalho de lã com botões nacarados, unhas curtas, porém cuidadosamente feitas
e pintadas, óculos de grau, cabelo curto pintado e maquiagem e casais cuja
expressão de gênero reproduz a estética feminina que acabo de descrever. O
“grupo B” também é composto por mulheres da mesma faixa etária mas, neste
50
caso, com uma estética que poderia ser chamada de masculina calça social de
homem preta, cinto de couro com fivela de metal estilo “rodeio”, colete ou
paletó no mesmo tom, camisa branca e sapatos de homem, acompanhadas de
cabelo curto grisalho, unhas curtas sem esmalte e a ausência completa de
maquiagem e por casais cuja expressão de gênero reproduz o par masculino-
feminino. O grupo “C”, por sua vez, é conformado por mulheres mais jovens
(entre 30 e 45 anos), que adotam uma estética que poderíamos denominar de
“unissex”: calça jeans, camisas ou camisetas “baby-look” com inscrições, pouco
ou quase nada de maquiagem e cabelos às vezes curtos, às vezes compridos. O
“grupo E” é formado por clientes mais novas de diferentes idades e estéticas que
ainda não pertencem a nenhum grupo dos mais antigos. Existem duas
conformações espaço-grupais, mais o “grupo D”, dos homens, e o que denominei
de “X” por ser um espaço coringa ocupado em distintas ocasiões pelos diferentes
grupos. Essas duas formações são ecléticas e, portanto, não guardam um
correlato tão forte com as demais na hora da análise.
Como é possível observar na figura 3, o grupo que denominei de “A” fica
no extremo contrário do grupo “E”, em frente ao grupo “B” e em frente e ao lado
do “grupo C”. Esta configuração explicita certas hierarquias e divisões entre os
grupos que, algumas vezes, podem ser hostis ou segregacionistas e, em outras,
acarretar uma divisão de interesses que supõe uma invisibilidade dos grupos
entre si ou, ao contrário, a visibilidade da diferença que continua na pista.
Utilizando a divisão de Elias e Scotson (2000) entre estabelecidos e outsiders,
posso dizer que o “grupo A” comporta-se como o núcleo, sendo o “E” e o “B”,
alternadamente, os outsiders. O “grupo A” estabelece critérios estéticos e define
aspectos morais dominantes no lugar, tais como fidelidade, feminilidade,
cortesia, educação e moderação: no consumo de bebidas, nos modos de se
dançar, na paquera (“ficar dando em cima de todo mundo”, que é contrário a
“dançar com todo mundo, mas não se meter com ninguém”) e nas vestimentas
(decorosas ou indecorosas). Longe da pista e mais perto da porta da entrada
funciona algo como uma espécie de margem; perto da pista e longe da porta da
entrada, o centro, em uma metáfora espacial da rede de mulheres que frequenta
os bailes.
As posições dentro do lugar, por sua vez, também têm relação com a
economia de sedução que se desenha no salão. Sentar perto da pista permite
51
olhar e ser olhada; é o lugar de maior exposição, não requerendo maior
distanciamento das mesas na hora de dançar e tendo a vantagem de possibilitar a
manutenção dos pertences por perto basicamente a bebida, que não é levada para
a pista, mas consumida nas mesas. Sentar contra a parede é ficar fora de foco,
mantendo, porém, a possibilidade de observar a ação a partir de um terreno
tangencial sem ser olhada o tempo todo, com as costas sob controle, poderíamos
dizer. As pessoas que estão nesta posição precisam se deslocar para chegar à
pista, o que traz a vantagem de se poder analisar a situação ao longo do caminho
e de cruzar olhares com quem está sentada à frente e que pode ser seu objeto de
interesse.
Na economia da sedução que se constrói nos bailes, o “grupo A” está no
centro, contudo, com uma atitude mais passiva, enquanto os grupos “B” e “E”
estão nas margens, com uma atitude mais ativa, mais proposital, que parte do
fato de se ter de ir para onde as outras já estão. Entre estes grupos existe, então,
uma relação complementar que, de maneira gestáltica, compõe a trama espacial,
agindo como figura e fundo, pontos de luz e de opacidade no lugar.
No entanto, o “grupo C” acopla-se aos critérios do “grupo A” e guarda
uma atitude semelhante quanto aos usos e formas de apropriação do espaço,
sendo em alguma medida um par do “A”. Contudo, no que diz respeito à
economia da sedução, estruturando-se para dentro e não para fora do grupo, estas
mulheres dirigem seus olhares entre si ou, esporadicamente, para o “grupo “E”,
ou seja, para aquelas novas participantes que permanecem na liminar tanto do
salão, quanto do jogo de sedução, estando sujeitas à análise das demais
participantes do baile.
Neste sentido, é necessário deixar claro que, devido à sua liminaridade, o
espaço que estas pessoas ocupam vai mudando na medida em que elas se
aproximam dos grupos mais antigos já conformados, mudando também seu status
no interior da rede. Deste modo, o “grupo E” não possui características
específicas no que diz respeito à idade, estilo de vestimenta ou expressão de
gênero, já que o que une seus integrantes é simplesmente o fato de serem novos
no lugar. Ele é composto por vozes múltiplas, mas sua participação no espaço é
hierárquica, representando as desigualdades relativas às moralidades
hegemônicas do lugar. Segundo as palavras de Butler (2002: 39), os corpos que
materializam a norma são aqueles que atingem a categoria de “corpos que
52
importam”, precisando, contudo, daqueles outros que não conseguem
materializar a norma como apoio exterior ou “fronteira”, marca do excluído e
não legitimado, corpos que não importam ou não “pesam”.
39
Assim, a localização
dos diferentes corpos dentro do recinto define pautas a respeito daqueles que são
centrais e daqueles que são periféricos em relação aos critérios de subjetivação
que imperam e importam no lugar.
Esta distribuição e classificação continuam no bar do Luiz, onde a lógica
permanece a mesma, mas por conta das características físicas do lugar, inverte-se
a ordem em relação à porta de entrada. Como relatei anteriormente, a estrutura
do bar em forma de “L” obriga a se improvisar a pista na entrada do recinto e a
se colocar um excesso de mesas no espaço restante. Aliás, o palco que fica no
vértice do “L”, perto da pista, configura o espaço central, uma vez que as mesas
mais próximas a ele são as mais solicitadas. Sendo assim, os grupos “A” e “C”
costumam ocupar estas mesas em frente à pista e aquelas ao lado do palco. Os
grupos “B” e “E” ficam com as mesas restantes. Esta distribuição faz com que as
pessoas que não reservaram mesa tenham que atravessar o recinto para se sentar
no extremo oposto, de onde não conseguem ver o que acontece na pista e vice-
versa, o que provoca certa exclusão. Esta distribuição igualmente dificulta a
circulação e, com isso, a possibilidade do intercâmbio de olhares e o
reconhecimento do “material”, ou seja, das possíveis paqueras. Outra situação
gerada por esta espacialidade é o isolamento dos grupos; mesmo estando a uma
distância muito próxima - ou talvez justamente pelo fato de ela ser muito
pequena - os grupos formados por mais de uma mesa interagem entre si e não
com os demais, coisa que se evidencia com o tipo de iluminação existente no
lugar. Nas palavras de Hall
40
(1977), se poderia dizer que a diminuição da
39
O título original do livro em inglês é Bodies that matter, construindo um trocadilho entre “corpos
que importam” e “corpos que pesam”, isto é, corpos que adquirem sua materialidade incorporando
as normas que os substancializam e subjetivam em detrimento daqueles que permanecem nas
bordas da subjetivação e, enquanto abjetos, não conseguem essa tal materialização que importa
na hora de se construírem como sujeitos. Infelizmente, este jogo de palavras perde-se nas
traduções.
40
Em A dimensão oculta (1977), Edward T. Hall distingue quatro tipos ou zonas de distância entre
as pessoas que se localizam no que ele chama de “espaço informal”: 1. distância íntima: a
presença da outra pessoa é inconfundível; a visão, o olfato, o calor do corpo, o som da voz, o
cheiro e a respiração da outra pessoa dão sinais claros, os corpos podem estar em contato físico
ou quase, sussurrando-se ao ouvido. Neste caso, o sistema visual se distorce e perde o valor
semântico que tem nas outras distâncias.
2. distância pessoal: pode ser pensada como uma espécie de bolha que protege e separa os
corpos, permitindo uma distinção que os individue. Nesta distância, as pessoas contam com a
53
distância entre os grupos pode ser considerada a passagem não intencionada da
“distância social” para uma outra esfera mais íntima, o que implica a perda de
certa liberdade na interação entre grupos, prevalecendo a preferência por se agir
internamente. Quando as pessoas são impelidas a ficar a uma distância pouco
confortável ou indesejada, a tendência, segundo Hall, é a de se afastarem para
reacomodarem o corpo dentro do próprio espaço. Se o deslocamento não for
possível se deslocar, existem outros modos de se estabelecer essa distância.
No caso do Bar do Luiz, esse ato implica que as pessoas não cruzem
olhares, deem as costas e se fechem no interior do próprio grupo, construindo-se
uma espécie de “carapaça” com os corpos das integrantes, como se estivessem
criando, por intermédio das “bolhas” pessoais, uma “bolha” grupal, fronteira e
limite com as demais pessoas do lugar. Por um lado, esta situação reforça a
desigualdade, já que as pessoas novas ficam no fundo do salão e, como já
mencionado, nas margens da rede de socialização. Por outro, dificulta a
ampliação da rede devido à tendência das pessoas em ficarem restritas à seu
próprio grupo. Ambas as situações desestimularam os frequentadores, que
começaram a minguar rapidamente, motivando Mary a voltar para o salão. A
respeito disso, devo acrescentar que nos três bailes realizados no bar, houve
ausências significativas — basicamente das freguesas mais antigas e com uma
performance de gênero mais masculinizada, aquelas caracterizadas como
integrantes do “grupo B”, que propositadamente decidiram não comparecer (nem
sequer no aniversário da Mary, da qual se consideram “grandes e velhas
amigas”), justamente devido à distribuição das mesas e ao tamanho do lugar.
Estas mulheres normalmente têm suas mesas reservadas no salão e, portanto,
poderiam ter solicitado alguma em especial para a Mary, mas, ainda assim,
possibilidade de se tocar ou não, a visão adquirindo novamente sua força. A posição em que as
pessoas se situam uma em relação à outra indica sua relação e como sentem-se entre si.
3. distância social: a diferença em relação à pessoal é a de que os indivíduos ficam fora do
alcance da mão, quer dizer, fora da possibilidade de dominação física. O contato físico não é
esperado, nem procurado, sendo a visão a encarregada de estabelecer o contato inicial, seguida
da voz. Trata-se da distância da negociação e do isolamento em espaços nos quais convivem
vários indivíduos, como um escritório de trabalho, por exemplo.
4. distância pública: situada fora do círculo de envolvimento social; perdem-se os matizes de
significação transmitidos pela voz normal; os detalhes da expressão facial e do movimento, quer
dizer, parte da comunicação não verbal se desmancha, dificultando uma compreensão mais cabal
— basicamente dos gestos do rosto que precisam do corpo todo para exprimir as ideias.
A importância de se analisar estas distâncias reside no fato de que as mudanças espaciais
comportam nuances na comunicação interpessoal que, por sua vez, são reveladoras das
intenções mútuas dos indivíduos.
54
desistiram de comparecer. Uma explicação possível para este fato talvez seja a
de que esta mudança na distribuição espacial do baile origina uma tensão entre
os indivíduos e as experiências que estes têm do espaço que habitam (Rodman,
1992). Mudar de espaço (do salão para o bar) implica redefinir os modos de se
estar no baile, reconfigurar a demarcação espacial e, com isso, a estrutura
gestáltica na qual figura e fundo equivalem a centro e margem; implica,
finalmente, reconceitualizar as posições hierárquicas dos usos do espaço.
O ovo ou a galinha: redes de socialização
Uma diferença a ser considerada na análise é a especificidade dos espaços
descritos. Tanto a Plural quanto a Arena são espaços apresentados publicamente
como estando destinados a reuniões dançantes para o denominado público GLS.
São espaços públicos que, por sua vez, contêm e resguardam a privacidade da
alteridade, espaços onde as manifestações de afeto entre duas pessoas do mesmo
sexo estão resguardadas dos olhares dos outros, os heteros; espaços
homonormados onde a heterosexualidade perde seu lugar normativo, pelo menos
no que diz respeito à escolha d@ parceir@. Os bailes da Mary, entretanto, são
realizados no salão de um clube de bairro que se autodefine como “familiar”.
Sendo assim, o salão do clube ou o bar do Luiz somente ganham esse rótulo de
GLS uma vez por mês, momento em que os espaços são remodelados para tal
fim. A distribuição das mesas e cadeiras é redefinida para os bailes, fazendo com
que partes que poderiam ser consideras “fixas” adquiram mobilidade em função
dos requerimentos das festas e dos usos que delas fazem as pessoas.
Estes lugares são um híbrido em relação à divisão entre público e
privado.
41
Mesmo se pensados como públicos, resguardam a privacidade de
certas práticas que, fora desse contexto, adquirem um caráter abjeto, mas que,
em seu interior, são centrais em sua dinâmica social. Em cada uma das pontas do
leque dessa dicotomia encontram-se a Arena e o Olímpico. A Arena “visibiliza”
41
Não entrarei na descrição sobre as características sociogenéricas e morais que, na literatura
sociológica, distinguem as vivências do público e do privado como um diferencial na construção de
um ethos de gênero e de classe, discussão que será desenvolvida na segunda parte da presente
tese – Trajetórias morais – em relação aos graus de exposição pública vs. segredo, às
concepções de família presentes nas mulheres objeto do trabalho de campo.
55
a sua particularidade (cartazes com a bandeira do arco-íris, símbolo LGBT, uma
travesti como hostess, distribuidores de flyers das boates Papa G e 1140, da
Zona Norte e Oeste, respectivamente) no meio noturno heteronormado por
excelência que caracteriza Nova Iguaçu; no outro extremo, os bailes da Mary se
apagam como tal para qualquer pessoa que não esteja “por dentro” da situação,
que não pertença à rede através da qual se pode acessar os bailes. Quando falo
em “acesso”, essa palavra adquire um duplo significado, espacial e simbólico.
Para poder aceder ao salão do Clube Olímpico, é necessário ter acesso a uma
rede que informe sobre as coordenadas do baile e, desse modo, permita que se
entre no circuito das festas que propagandeiam, além delas próprias, outros
encontros tais como “arraiás GLS em Saquarema”, “uma festa de Halloween”,
churrascos no Méier e tudo “com total privacidade”. O meio termo é
representado pela Plural. Trata-se de uma boate, mas que está afastada da área
central de divertimento. Encontra-se literalmente nas margens dessa região, a
poucas quadras, mas não inserida, preservando assim a privacidade na hora se de
entrar no lugar, resguardada pelo contexto “outro”. Deste modo, volto a uma das
características das heterotopias foucaultianas: supõem um sistema de abertura e
encerramento que as isola e as faz permeáveis, ao mesmo tempo. Elas constroem
um diferencial em relação aos outros espaços que desestabiliza as relações
espaciais em torno das práticas sociais e discursivas que se sucedem no interior
do recinto, quando comparadas àquelas que os mesmo sujeitos estabelecem em
seu exterior.
“Que saco a fila! Todos esses heteros olhando pra gente... Tô me sentindo
um bicho”, escuto em meio à fila que se forma para ingressar na Arena. Como
expliquei anteriormente, esta casa de divertimento está localizada no coração da
rua da Lama, o que às vezes pode significar um problema para algumas pessoas
que não explicitaram sua orientação sexual à família ou no trabalho. “Eu fico
aqui na fila e, quando estiver chegando na entrada, dou um toque no celular das
minhas amigas que não podem ficar aqui, porque ninguém sabe que gostam de
mulher. Elas estão num bar aqui perto esperando, porque se alguém vê elas, pode
dar problema”, me conta uma jovem de vinte e poucos anos que frequenta a
boate. Estar na fila implica uma exposição prolongada da alteridade em um
espaço liminar no qual não se termina de sair nem de entrar.
56
O geógrafo Denis Cosgrove (1989) considera que os espaços geográficos
contêm um significado simbólico que é produto da apropriação que deles fazem
os sujeitos. A partir desta noção, propõe dois tipos de paisagens geográficas –
dominantes e alternativas – que podem contribuir para a presente análise. A
paisagem dominante projeta e comunica uma imagem de seu mundo consoante
com sua própria experiência, que aparece como “reflexo verdadeiro da realidade
de todos” (1989: 128). A paisagem alternativa é menos visível, às vezes até
mesmo imperceptível, mas carregada de signos para os grupos que a constituem.
Sendo assim, a rua da Lama aparece como paisagem dominante
42
que contém a
Arena em seu seio e a Plural em suas margens, cada uma com indicadores e
marcas que fazem sentido para as pessoas que as frequentam, sendo visíveis para
o resto, mas vazios de sentido. Os bailes da Mary se apagam por completo às
ruas de Copacabana e, aliás, até mesmo ao clube e só fazem sentido para as
pessoas que chegam até a porta do salão e se reconhecem nas marcas estéticas
das pessoas que ali estão, comprando seus ingressos.
O outro social transforma-se em “nós” no interior dos lugares,
transmitindo a alteridade para os heterossexuais que às vezes aparecem. Poderia
dizer que as boates GLS são reservatórios da alteridade, espaços onde se
vivenciar a diferença como centro e não como margem. Contudo, não são lugares
“democráticos”. A construção do outro desloca-se para o interior do grupo total e
também constitui fronteiras entre os grupos que conformam o público.
Justamente essa alteridade, que se comporta como um nós dentro de
determinados âmbitos, pode ser lida socialmente como a metáfora de Asterión: a
monstruosidade se normaliza em espaços particulares, mas não deixa de fazer
parte da abjeção e da alteridade em seu exterior. No sentido inverso, constitui-se
em normalidade para dentro das fronteiras físicas desses âmbitos públicos, ao
mesmo tempo que privados, heterotopicamente outros.
Entretanto, as noites nas boates e no Olímpico podem ser consideradas, tal
como a ponte na Zululândia, uma situação social, isto é um evento no qual o
encontro é o fator central a unir um grupo com um interesse comum, que se
constitui como fonte de satisfação para todas as pessoas presentes (Gluckman,
1987: 260): o divertimento e a sedução. Esta noção permite dessencializar as
42
Falo em dominante em relação à ideia de espaço heteronormado, explicitada no início do
presente capítulo.
57
identidades, ao analisar os sujeitos com base nas tomadas de decisões e nos
interesses e estratégias que colocam em jogo em circunstâncias concretas, ou
seja, permite situar, particularizar as normas e valores que aparecem nessas
decisões, ao invés de cristalizá-las como permanentes. Acredito que existem
traços comuns aos âmbitos noturnos de divertimento GLS que ultrapassam as
fronteiras da divisão social. São essas semelhanças que estou tentando costurar
através da análise do que considero ser uma situação social particular. Para
completar a análise desta situação social, nos dois próximos capítulos
descreverei os públicos que frequentam as casas de divertimento do trabalho de
campo e as atividades que realizam, bem como o ritual que as temporalidades de
cada casa lhes impõem.
58
Capítulo II: Os timmings da sedução
A intenção neste capítulo é a de mostrar os tempos nos quais as pessoas se
apropriam dos lugares, ou seja, as regularidades que estruturam temporalmente os
diferentes tipos de públicos presentes. Mesmo com um horário definido de
abertura e, algumas vezes, de encerramento, as casas de divertimento são ocupadas
pelo público em fluxos particulares que remetem aos motivos pelos quais essas
pessoas frequentam cada lugar, algo que se relaciona basicamente com a idade, o
estado civil e, no caso das boates, o sexo. Sendo assim, levarei em conta os
horários que os lugares estipulam para abrir e fechar as portas, os horários em que
o público frequenta cada casa e quem chega e quem sai a que hora, ou seja, as
intensidades e fluxos temporais em relação aos espaços internos, as tipificações do
público e as atividades oferecidas (shows e música).
Assim como no Capítulo I falei em usos do espaço, no presente capítulo,
falarei em usos do tempo, na mesma direção: como variável de sociabilidade por
meio da qual enxergar os modos como os sujeitos se apropriam das diferentes
ofertas de divertimento oferecidas pelas casas noturnas pesquisadas. A noção de
tempo apresentada por Evans-Pritchard, em sua análise sobre os Nuer, tem
relevância no sentido de pensar esses usos como interrelações estruturais, reflexo
da interação de grupos sociais (1978:118).
43
Estes usos dirão respeito às
preferências do público sobre o que se pode fazer, os horários pautados para
determinadas atividades e as atribuições que os assistentes outorgam às mesmas, o
que, costurado aos usos do espaço, explicitará os fluxos espaço-temporais d@s
quem, estabelecendo marcas de diferenciação interna que darão pistas para se
entender a trama das sociabilidades lésbicas.
Cada lugar pesquisado possui temporalidades específicas de funcionamento,
isto é, os dias em que cada casa abre suas portas, a movimentação dada pelo
horário de abertura e encerramento do lugar e pela oferta de entretenimento,
comportando-se como um referente importante na hora de se analisar a
variabilidade e o fluxo dos frequentadores. Estas ofertas supõem música ao vivo,
43
O tempo constitui, para os Nuer, uma ordem de acontecimentos de significação importante para
um grupo, cada um deles possuindo suas próprias pontes de referência. Em conseqüência, o
tempo é algo relativo ao espaço estrutural, considerado em termos de localidade (1978, 118).
59
go-go girls, drag queens e música mecânica para se dançar, cada um com timmings
particulares e preferências do público por uns ou outros, quer dizer, modos como
os diferentes públicos movimentam-se por essa oferta de entretenimento,
originando uma lógica temporal de ocupação do espaço. Por este motivo, será
realizada neste capítulo uma apresentação destas opções, os horários em que têm
lugar, o público que participa de cada uma deles e o tipo de participação que
exibe.
Tais eventos, por sua vez, permitem construir conjecturas sobre os
movimentos de agregação e de desagregação, tanto das pessoas que frequentam as
casas como das casas em relação aos circuitos de divertimento orientados para o
chamado público GLS. “Apropriar-se de um lugar” supõe certa regularidade na
frequentação do espaço, bem como certa longevidade da casa para que essa
apropriação possa vir a ser construída. Esta assistência continuada invoca uma
repetição que leva à familiarização com os timmings locais e com a oferta de
divertimento existente e à materialização tanto de grupos afins quanto o
reconhecimento da alteridade. Esta apropriação precisa igualmente de certa
estabilidade por parte da estrutura tempo-espacial, quer dizer, uma estabilidade na
dinâmica do divertimento oferecido, um delicado equilíbrio entre o abandono à
estrutura que dá certo e a mudança permanente, decorrente do medo de não se cair
na mesmice (mas que não permite a criação de uma determinada rotina) e da
concorrência com novas casas que aparecem na área. Este fluxo é ocasionado pela
relação entre a apropriação e o equilíbrio na oferta e o que eu chamo de movimento
de agregação e desagregação do público.
44
Tá na hora?
A boate Plural abria suas portas de quarta-feira a domingo, por volta das
23h, com distintos horários de encerramento, dependendo do dia da semana. A
44
Em Performance.Teorias y prácticas interculturales (2000), referindo-se à composição do tempo
de um espetáculo artístico, Richard Schechner identifica um modelo básico na estrutura
performática, formado por três momentos: reunião (tanto dos atores como do público),
representação (do espetáculo) e dispersão (tanto dos assistentes que deixam o recinto como dos
atores que abandonam a personagem, todos entrando, em seguida, em uma etapa de
“esfriamento”). Schechner explica que, no acordo tácito de se reunir em um determinado momento
e lugar com a finalidade de atuar ou se fazer alguma atividade específica e, em seguida,
dispersar-se, a base é a solidariedade e não o conflito, o que é discrepante da visão de Victor
Turner.
60
cantora que comandava o show no terraço o iniciava ainda antes que a pista fosse
aberta. Entretanto, como disse anteriormente, o horário de início marcava um
diferencial em relação à boate Arena: às 23h, já existia uma oferta de
entretenimento no recinto. Nesse horário, a pista tinha muito pouco movimento,
sendo o terraço o espaço que reunia o público que chegava para escutar a cantora.
A pista começava a encher meia hora mais tarde e seu momento auge era por volta
da 1h . De todo modo, o público que permanecia no terraço – mulheres e alguns
homens na faixa etária a partir dos 35 anos, aproximadamente – não era o mesmo
que preferia ficar na pista, esta diferença refletindo-se também nos horários e na
lógica de permanência no lugar.
Podemos falar em uma lógica temporal de ocupação do espaço que se
constrói ao redor da mesa e que tem como referência horária o show da cantora
que ocorre no terraço. Assim, as pessoas que optam por esse recinto e por essa
oferta escolhem uma mesa na qual permanecem até o horário de saída da boate.
Geralmente, os tempos de chegada de e saída de quem opta pelo terraço diferem
daqueles de quem prefere a pista como espaço primordial; isto é, respondem à
temporalidade imposta pelo show e não pela música mecânica da pista que
continua por aproximadamente mais uma hora depois de terminado o show. A
atividade básica neste local é o show da cantora e a conversa entre as pessoas que
integram as mesas; isso tudo acompanhado por bebida (cerveja, na maioria dos
casos) e comida. A dança é uma atividade secundária que, no entanto, também
ocorre no terraço, sobretudo no segundo set, no qual a música é um pouco mais
animada ou, em alguns casos na própria pista para onde as pessoas descem para
assistir à apresentação da gogo-girl, dançam um pouco e sobem novamente para
escutar a segunda parte do show. Esta composição, que pode ser descrita
sinteticamente com o roteiro “chegada-mesa-pista-mesa” e estrutura a
temporalidade específica de um grupo etário particular presente na Plural, nos
Bailes da Mary se comporta como a principal lógica temporal. Logo voltarei a este
assunto.
A movimentação entre pista e terraço marca, por sua vez, diferenças entre
mulheres solteiras e aquelas que vão acompanhadas por suas parceiras,
constituindo a configuração espaço-temporal correspondente ao cruzamento entre
idade e estado civil. Esta característica também é visível na Arena, de tal modo
que as mulheres que estão sozinhas circulam mais entre os diferentes ambientes
61
das boates, enquanto os casais têm a tendência a se manter em um único lugar: o
terraço da Plural e o salão da Arena. Contudo, isso não significa que os casais
permaneçam o tempo todo sentados; como disse no início do capítulo, minha
intenção é a de iluminar as regularidades que estruturam temporalmente os
diferentes tipos de público presentes. Por sua vez, o esquema de consumo montado
para as pessoas que optam pela área VIP
45
as obriga a se deslocar de cima para
baixo, no caso de quererem participar do que acontece no salão, exigindo-lhes uma
maior rotatividade dentro da casa que independe das variáveis já mencionadas.
Este fator é citado por algumas mulheres mais velhas como determinante para não
optarem pelo ingresso VIP, já que “pagar mais pra ficar ali, sem ver o show, não
vale a pena”, por mais que essa seja a única área da casa onde o som não é tão
alto, o que facilita o diálogo.
As temporalidades específicas de cada lugar moldam-se a partir da
“justaposição” dos timmings que identificam cada grupo conformador do público.
Assim, a simultaneidade de ofertas em um só lugar permite a convivência de
grupos com interesses e anseios diferentes, denotando a forte heterogeneidade
que marca estes estabelecimentos noturnos. Pensando no significado que os Nuer
dão ao tempo como sistema estrutural,
46
posso considerar os timmigs que
estruturam as temporalidades específicas da Arena e da Plural como essenciais na
constituição da história comum aos grupos etários que conformam o público de
cada boate. As referências temporais — tais como hora de chegada e saída e tempo
de permanência — são estruturantes e necessárias à constituição dos grupos. Elas
colaboram na confecção de marcas de pertencimento que tornam visíveis as linhas
de demarcação dos grupos, estabelecendo os múltiplos estratos fundacionais das
diversidades de um público claramente heterogêneo. Os conjuntos etários
sucedem-se uns aos outros e as posições relativas por eles ocupadas são pontos
estruturais fixos através dos quais transitam conjuntos reais de pessoas em eterna
sucessão.
Reunião, representação e dispersão poderiam ser usadas para descrever o
movimento tanto das temporalidades específicas quanto dos fluxos de agregação e
45
Veja-se a página 41 do Capítulo I.
46
O sistema estrutural de contagem de tempo nuer, explica Evans-Pritchard, consiste em parte na
seleção de pontos de referência que sejam significativos a grupos locais, lhes fornecendo uma
história comum e distinta; em parte na distância entre conjuntos específicos no sistema de
conjuntos etários e, finalmente, nas distâncias de uma ordem de parentesco e linhagem (1978:
119).
62
desagregação. Este modelo teatral, apresentado por Richard Schechner (2000)
como “básico da performance”, e utilizado para explicar os fluxos em que se
desenvolvem os cenários urbanos, centra-se em um evento aglutinante que produz
um “centro de calor” ao qual os indivíduos dirigem sua atenção. Uma vez findo tal
evento, os indivíduos dispersam-se e têm início os “procedimentos de
esfriamento”, nas palavras de Schechner (2000: 88). No caso das temporalidades
específicas, podemos marcar as diferentes ofertas de entretenimento como esses
centros de calor que, entretanto, produzem espaços e momentos “frios” e
“quentes” para diferentes grupos, simultaneamente, fato que complexifica a
estrutura e explicita as diversidades que conformam @s quem dos espaços
pesquisados. Um lugar pode ser quente e frio ao mesmo tempo, frio para alguns e
quente para outros. O cruzamento entre tempo, espaço e idade é o que permite
enxergar tais momentos e carregá-los de sentido. Neste aspecto, a idade das
pessoas é a variável que, de fato, diferencia estes momentos.
Assim sendo, o momento de intervalo dos sets da cantora na Arena — à
primeira vista, um momento que poderia ser qualificado como “frio” para a
maioria dos presentes que descem para apreciar @s gogos que fazem sua
performance na pista — é fundamental para aquele grupo de mulheres mais velhas,
que permanecem no terraço conversando e flertando, tecendo relações que
encontram na palavra o meio viável para se desenvolver, necessitando de um
pouco de calma, de uma mesa e duas cadeiras como contexto de situação e
possibilidade. Este cenário aparece, então, como ponto nodal de uma rede que faz
fazer modos de sedução particulares que fazem sentido para essa faixa etária do
público de mulheres que frequentavam a Plural, e adotando o terraço como palco
para desenvolver e gerar relações de amizade e erotismo. O funk, última oferta da
noite, tem uma função parecida, colocando-se como índice de flerte, porém, não
para o mesmo grupo que se acomoda no terraço, e sim para as mulheres mais
jovens e para os homens. A partir das duas horas da manhã, aproximadamente, a
atividade programada no terraço acaba e o público se reúne na pista, primeiro com
música eletrônica e, em seguida, com funk. Neste horário, a idade do público se
homogeneíza, já que as pessoas mais velhas se retiram pouco depois de finalizado
o show da cantora. O terraço fica quase vazio – insisto no quase porque costuma
ser utilizado como espaço de paquera por muitas mulheres da faixa etária
intermediária que optam por dançar um pouco e logo subir, levando a situação de
63
flerte ao plano da conversa.
47
Deste modo, a ocupação temporal da boate está
regida pela idade do público. Os horários de chegada e de permanência – assim
como a preferência por ficar parado ou se movimentar – colocam as mais velhas
no extremo oposto do leque em relação às mais novas, e a faixa intermediária
numa posição de dobradiça ou “meio termo”, optando por um arranjo híbrido entre
as duas lógicas.
Esta posição de dobradiça ocupada pela faixa etária intermediária tem outro
desdobramento na análise da formação dos públicos de ambas a boates. Essa
hibridação presente nas lógicas de ocupação temporal outorga a este grupo uma
espécie de posicionamento coringa que ajuda em sua passagem de uma boate para
a outra. A facilidade de habitar ambas as lógicas faz com que este grupo seja o
intermediário na transformação do público e, por sua vez, situe-se
involuntariamente na mainstream das socializações de ambos os espaços. Em
outras palavras, estas mulheres que se deslocam no interior do recinto e que
compõem seus timmings de permanência e de sedução em concordância com o
timming oferecido pelas casas de entretenimento, aparecem como sujeitos
possíveis nas duas casas. O poder de subjetivação atrela-se ao de adaptação, sendo
igualmente visível nas vestimentas unissex que as colocam em uma posição de
“poder passar por” [hetero], se for o caso, e de investir em uma apresentação de
gênero que as identifique como mulheres que gostam de mulher nos espaços
específicos de socialização.
Essa situação denota a impossibilidade de se falar em um tempo lésbico,
mas em temporalidades, isto é, timmings diferentes e próprios de cada grupo que,
de novo, são demarcados em relação às estéticas e às idades. Este grupo marca,
assim, os timmings centrais das casas e, desse modo, constrói a norma que
“sacrifica” aqueles das mais velhas, na Arena, e os das mais novas, na Plural. Se o
sujeito, como explica Butler, “is produced in ritualized and stylistic ways, as a
practice that takes shape and changes through time, it is also that which is at risk
of not being produced or, indeed, of being undone or destroyed” (Butler, 2000:
34).
O grupo de mulheres que optava pelo terraço da Plural construía sua
escolha com base em critérios que estão ausentes na Arena, respondendo ao que,
47
Ver a seção “A relevância de uma mesa e duas cadeiras” no capítulo III desta tese.
64
no capítulo III, descrevo como a lógica do bar em detrimento da lógica da boate.
Sem referenciais, este grupo se desmancha como tal, optando por sacrificar a
possibilidade de visibilizar os atos de carinho homoeróticos em prol do diálogo.
Em consonância com esta opção, estabelecem um roteiro que mistura outras casas
de divertimento noturno orientadas ao público GLS, em outras áreas da cidade —
como as boates PapaG e 1140 — com espaços heteronormados que lhes oferecem
uma lógica similar à do terraço da Plural. Esta característica parece ser a
estratégia adotada na reconstituição de uma subjetividade habitável, uma
constituição do self que precisa tanto do diálogo quanto da visibilidade, embora
estes nem sempre possam estar juntos.
Os bailes da Mary, por sua vez, estão baseados na lógica de ocupação
temporal “chegada-mesa-pista-mesa” que caracteriza o terraço da Plural. Os
bailes da Mary, entretanto, começam bem mais cedo que as boates pesquisadas.
Por volta das 21h30 já há várias mesas ocupadas pelos grupos mais antigos de
mulheres mais velhas, tanto do “A” como do “B”,
48
que preferem jantar e
conversar mais relaxadamente aproveitando o som ambiente. Poder-se-ia
conjeturar que o horário de chegada responderia a uma estratégia de ocupação
espacial, mas se lembrarmos que a compra do ingresso antecipado viabiliza a
reserva de uma mesa — e são justamente estas pessoas com mesa reservada que
chegam mais cedo — se faz necessário contemplar outras explicações relacionadas
aos usos do tempo, em que a sequência “chegada-mesa-pista-mesa” adquira
sentido como lógica fundacional, tanto da temporalidade específica das festas no
Olímpico quanto dos timmings de apropriação temporal dos grupos que conformam
o público dos bailes. Assim, o horário de chegada também está marcado pela
idade, já que as mulheres mais jovens, aquelas que conformam o “grupo C”,
chegam por volta das 23h e raramente consomem alimentos, limitando-se a
comprar bebidas alcoólicas, geralmente cerveja. Esta divergência nos hábitos
denota diferentes modos de se viver a noite, associados à lógica da boate ou do
bar, que se alterou nas poucas festas que foram realizadas no Bar do Luiz. Parece-
me que as mais jovens dissociam ambas as lógicas, associando o salão somente à
boate e as mais velhas conseguem misturar as duas além do espaço, o que marca
48
Ver a seção “Reservando as mesas” do Capítulo I.
65
uma residualidade
49
por parte destas últimas, similar à socialização imperante no
terraço da Plural — o que corresponde a comportamentos noturnos semelhantes
aos dos anos 1970 e 1980.
Às 23 h, aproximadamente, o salão do Olímpico já contém a grande maioria
do público que comparecerá essa noite, o som está mais alto e as músicas são mais
animadas. Nos bailes realizados no salão, só há música reproduzida
mecanicamente o que configura uma estrutura muito parecida a cada sexta-feira,
lembrando aquela das boates das décadas de 1970-1980 (bem antes da aparição dos
DJs, que tocam música eletrônica ao vivo, como acontece nas boates atualmente),
ou das sequências organizadas, típicas das festas de casamento. Durante a noite
toda, é possível escutar diferentes tipos de ritmos e estilos musicais, ordenados em
sets de maneira tal que o baile comece devagarzinho, ganhando corpo até alcançar
um momento de apogeu rítmico (samba, música disco, ritmos mais latinos) e, ao
final, música melódica ou romântica (tipo bolero). Esta estrutura circular que
começa com música mais lenta para se dançar a dois e termina do mesmo modo,
responde à sequência “chegada-mesa-pista-mesa” e conforma os timmings de
sedução do lugar. Assim mesmo, acredito que tal estrutura tem semelhanças com a
da Plural, se levarmos em conta o que acontece nos dois andares como continuação
da lógica oferecida pela casa, isto é: começar mais cedo com música ao vivo em
um espaço ocupado basicamente por casais ou pessoas mais velhas e finalizar com
o funk na pista, uma dança a dois na qual impera o flerte — algo inexistente na
Arena cuja temporalidade não é circular, ao menos no que diz respeito à lógica de
sedução.
Eu vou pro baile: os shows e a pista
A boate Plural conta com três atrações simultâneas a cada noite de quarta,
sexta e sábado. Duas delas acontecem na pista do primeiro andar – os shows das
drag queens e @s gogos – e a outra, no terraço do segundo. Neste último espaço, a
oferta de divertimento da casa é a música ao vivo interpretada por três mulheres:
49
No sentido conferido por Raimond Williams em relação àqueles traços culturais ou sociais do
passado que são mantidos como um elemento efetivo do presente. A este respeito, ver a análise
realizada na página 96 do capítulo III.
66
às quartas, Thais Mattos; às sextas, Simone Lyns e aos sábados, Claudia Duque –
segundo as freguesas com as quais falei, a cantora principal.
Cláudia Duque toca na Plural há seis anos, “graças ao meu caso [e assinala
uma mulher que está sentada na mesa], que conhece o dono que me convidou”. É o
único lugar “assim, GLS” onde ela toca; os outros dois – uma churrascaria e o
shopping de Nova Iguaçu – “não são” [ambientes explicitamente destinados a um
público GLS].
O repertório de músicas selecionado por Cláudia percorre basicamente a
denominada “MPB” (música popular brasileira) e o samba. Entretanto, a escolha
dentro deste leque tem seus particularismos: músicas da autoria de Adriana
Calcanhoto, Marina Lima, Zélia Duncan, Ana Carolina, ou que tenham sido
interpretadas por Cássia Eller ou Maria Bethânia – todas, cantoras sabidamente
lésbicas – são o miolo de sua apresentação e a parte mais animada da noite,
acompanhada pelo coro da maioria dos presentes. Cláudia sabe para quem canta e,
conhecendo “o diferencial que acontece”,
50
é a ele que se dirige. O público do
terraço é formado principalmente por mulheres que gostam de mulher, na faixa dos
25 aos 60 anos, aproximadamente. Durante sua atuação, Claudia faz piadas sobre o
seriado Xena:
51
“Eu era menina e assistia Xena, procurando alguma coisa que não
sabia muito bem o que era.” “Uma namorada”!, gritam de uma mesa. “É isso, aí”!,
responde ela. “Foi assistindo a Xena tentando comer a Gabrielle que aprendi a
paquerar mulher, e depois falam por aí que televisão não educa...” Também fala
sobre “a morena enrustida das Panteras”, explicando que “hoje, os roteiristas a
tirariam do armário porque dá Ibope”, ou refere-se ao fato de precisar manter as
unhas compridas para tocar o violão, “mas não necessariamente todas”
52
,
esclarece.
50
Essa frase está escrita no cartaz branco que se estende ao longo da fachada da boate: “Plural.
O diferencial que acontece”. A isso se somam duas bandeirinhas de arco-íris nas extremidades do
cartaz.
51
Seriado americano, exibido no Brasil entre 2001 e 2006, protagonizado por Xena, uma guerreira
grega (uma espécie de versão feminina de Hércules) e Gabrielle, uma jovem aprendiz de
amazona. A relação entre ambas é mostrada de modo ambíguo, algo que se situa entre a amizade
e o namoro, como as relações entre os guerreiros hoplitas de Esparta. Xena tem sido cultuado
como um programa “lésbico” e faz parte das marcas referenciais entre mulheres lésbicas de 30 a
40 anos aqui no Brasil. De acordo com a idade da cantora (na casa dos 35 anos) e com a época
em que o seriado foi exibido no país, fica evidenciada que a referência à sua infância é
simplesmente um recurso estilístico para relacionar o flerte do casal da televisão com a
descoberta do desejo e os modos de aproximação amoroso de uma mulher em relação a outra.
52
Ver a seção “Sobre tesourinhas e esmaltes”, Capítulo V.
67
Estes tipos de referências são permanentes. O diálogo cúmplice desenha a
relação com o público, “meu público”, como ela gosta dizer. Esse emaranhado de
conhecimentos e códigos compartilhados é percebido e concebido como próprio,
por intermédio da construção de uma percepção de si e da outra que se torna
semelhante a partir de marcas a princípio invisíveis para um olhar externo, porém
claras e explícitas para um olhar entendido. Este olhar constitui um
reconhecimento que parte de um experiencial compartilhado, quer dizer, um
conhecimento que ocorre através da vivência (Lacombe, 2005, 43). Neste registro
de percepção, configura-se a cumplicidade que a cantora da Plural tem com o
público, no momento em que dá por certo que quem está ali faz parte desse mesmo
experiencial, desse mesmo mundo. Aprendemos a ver, educamos a atenção e
treinamos nossos sentidos para perceber, compreender e processar o mundo em
que habitamos, para adaptar nosso corpo à procura dos nossos interesses nesse
mundo, já que, nas palavras de Tim Ingold, “perception involves the whole person,
in an active engagement with his or her environment (...) perception is a mode of
engagement with the world, not a mode of construction of it” (Ingold, 1996: 105).
Neste mesmo sentido, Gill Valentine salienta a dupla face das celebridades
como experiencial compartilhado para dentro da comunidade que outorga o sentido
de pertencimento e como maneira de positivar a imagem para a sociedade, a partir
do momento em que estas figuras alcançam relevância e aceitação no mainstream
social: “these ‘idols’ are symbolically important because they are accepted by
mainstream culture, project a positive image of gay sexualities and affirm or
justify lesbian’s sense of otherness” (Valentin, 1995: 107).
Nos Bailes da Mary, um fenômeno similar ocorre com o set de música dos
anos 70 que causa delírio no público, na hora em que músicas como “I will
survive” ou “I am what I am”, “We are family”, “YMCM”, consideradas ícones
pelas comunidades LGBT, começam a tocar. As coreografias montadas em cima
das letras explicitam sinais de autoafirmação e de reconhecimento do significado
das palavras, tais como bater no peito ao som da frase I am what I am ou assinalar
com o dedo amigas e, sobretudo, ex-parceiras, atualmente amigas, cantando We
are family, num apelo às nuances que se constroem sobre a noção de família —
incluindo aquelas pessoas com as quais se tenha forjado laços duradouros que
ganham essa carga semântica. A situação repete-se perante músicas interpretadas
por Cássia Eller e Ana Carolina. Estes momentos congregam na pista quase todas
68
as frequentadoras, sem distinção de idade ou apresentação de gênero, as duas
principais variáveis de constituição e segmentaridade do público. Aliás, no tempo
em que as festas da Mary se deslocaram para o bar do Luiz, as referências
apelativas de pertencimento aumentaram, seja nas piadas da Mary ou nas pessoas
convidadas para tocar com ela, como um grupo de samba formado só por mulheres
que se apresentam no quiosque da Barra, um espaço de divertimento GLS montado
no estacionamento do supermercado Pão de Açúcar, na Barra da Tijuca, durante os
finais de semana.
Em contrapartida, na Arena, o grupo Sambaguelê limita-se a tocar uma
música depois da outra, numa reprodução quase mecânica e seriada que o distancia
do público. Diferentemente do que acontece nas apresentações de Claudia Duque,
o Sambaguelê não constrói apelações diretas nem referências cúmplices,
desfazendo esses elos semânticos sobre a vivência da sexualidade anteriormente
descritos e que pareciam configurar uma característica de reconhecimento e
contenção requerida pelas frequentadoras, ao menos as mais velhas.
53
Em Fazendo
a luta (1999), John Comerford analisa as diferentes etapas que compõem as
reuniões das organizações sindicais por ele pesquisadas, dividindo-as em relação
ao grau de engajamento do público entre si e com os oradores. O autor explica que
o fato de se cantar orações ou cantos conhecidos, com alguma carga emotiva para
os presentes, sacraliza o momento e cria o que ele chama de engajamento
coletivo. Nessa etapa, as canções provocam cumplicidade e sentimento de união
entre os participantes, do mesmo modo como o público se identifica com a cantora
Cláudia Duque, reconhecendo-se como parte de uma mesma comunidade
imaginária.
Aos sábados, o grupo Sambaguelê é a atração principal. Conformado por
duas mulheres (pandeiro e atabaque e coros) e dois homens (bandolim e voz e
percussão), este grupo toca basicamente pagode, sambas-enredo, axé e tchan,
dividindo o show em dois blocos de aproximadamente uma hora e meia cada um.
Diferentemente das cantoras da Plural e dos Bailes da Mary, quando ocorriam no
bar do Luiz, eles não tocam MPB e quando tocam samba de raiz é num compasso
acelerado, eu diria. O som está sempre muito alto, e o ritmo da música é muito
rápido. Tal situação poderia sugerir que a intenção, neste caso, não é a da
53
Lembro aqui o caso da cantora Cássia Eller, que tinha o hábito de gritar palavras como sapatão,
no meio dos shows, assinalando-se que tal gesto causava delírio entre o público presente.
69
contemplação e escuta do grupo, mas fazer com que o público dance; trata-se de
outra pista com música ao vivo. A distribuição espacial evidencia esse objetivo. É
difícil achar em qualquer parte da boate um lugar para conversar por causa do
volume do som; para tal fim, as pessoas ficam no setor destinado aos shows, perto
do balcão e da porta que leva à pista, uma espécie de “não lugar” liminar entre os
dois grandes espaços da boate.
O tempo entre os blocos é destinado às go-go girls, que fazem suas
performances no palco onde também acontecem os shows, em lugar daquele que
está na pista. A hora de sua entrada é anunciada pelo apresentador com um “a
partir de agora, ninguém é de ninguém, a partir de agora, putaria liberada!”,
preâmbulo não só das go-gos, mas da música que as acompanha: funk com alto
conteúdo erótico. Há duas go-gos fixas, que se alternam nos dois sets da noite ou
dançam em duplas.
54
O roteiro, em geral, é o seguinte: são anunciadas, sobem no
palco vestidas com um roupão de cetim vermelho ou preto com capuz — similar ao
usado pelos boxeadores — que tiram assim que ali chegam, evidenciando o resto
da indumentária: sutiã, calcinha, coturnos e boné. As performances montadas pelas
dançarinas acompanham as letras dos funks que são executados: Bota o dedinho na
boca e faz cara de tarada. Vai descendo, rebolando, balança, mas nunca para;
55
quando
dançam entre si ou com as convidadas do público, representam poses de coito:
Você quer o meu cu, cê quer minha buceta ou você prefere que eu te toque uma
punheta? Eu vou te chupar até você gozar. Eu vou gemer até te enlouquecer.
56
Quando a performance é individual, o olhar e as poses estão dirigidas para
as mulheres presentes no lugar. Nesse momento, elas rebolam a bunda, às vezes,
paradas na beira do palco, subindo e descendo o corpo, ao ritmo da música ,diante
de alguma “escolhida” da plateia, chamada para subir no palco; outras, com um pé
sobre o retorno,
57
tomam entre as mãos a cabeça de alguma que esteja por ali,
colada no palco, para colocá-la quase que tocando sua virilha com o rosto. As
danças são sempre homoeróticas. Aliás, assim que a boate abriu, elas costumavam
convidar mulheres do público para subir no palco, as quais eram despidas pelas
54
Ao longo dos meses em que realizei trabalho de campo, esta estrutura teve alterações que eram
apoiadas ou vaiadas pelo público. Quando encerrei meu trabalho de pesquisa, havia uma go-go
girl por noite, geralmente alternando um sábado, cada uma.
55
“Balança, mas não para” – Mc Buiú.
56
“Solta Essa Porra” - Gaiola Das Popozudas.
57
Caixas de som colocadas no palco, de frente para os músicos, através das quais eles escutam o
som que está sendo tocado.
70
go-gos no intercurso da dança (geralmente retirando-se a saia ou calça e a camisa)
até ficarem com uma indumentária mais próxima à delas; algumas até ficavam com
o tronco nu, provocando o fervor da plateia feminina e, ocasionalmente os ciúmes
das mulheres que as acompanhavam. Um fator importante é a escolha das
convidadas: de aspecto feminino, preferencialmente usando saia e dispostas a
dançar desse jeito com as go-gos, o que ficou explicitado certa vez em que subiu
ao palco uma garota de calça jeans e uma calcinha estilo cueca, que foi vedada
pelo apresentador: “Gente, só meninas com tanguinha. Cuecão não dá, cuecão não
fica sexy!”, estabelecendo um critério estético claro de sensualidade feminina ou,
ao menos, daquele esperado como factível para ser exibido no palco. Esse critério
parece seguir um modelo estético heterossexual em relação aos estilos de
vestimenta que devem usar aquelas que se mostram, diferentes daquelas que só
olham. Isso não significa que as mulheres com uma apresentação de gênero mais
feminino não sejam alvo ou passíveis de aproveitar ou gostar do show que as go-
go girls oferecem. A questão não é tanto que tipo de mulher faz parte da plateia,
mas o tipo que está “habilitado” para subir no palco. Esta “habilitação”,
explicitada pelo apresentador no exemplo supracitado, ressitua no palco as
fronteiras entre o masculino, como observador, e o feminino, como expositor,
fronteiras que não se sustentam necessariamente na plateia ou na pista, em meio às
quais, em caso de flerte, o masculino pode ser o expositor e o feminino, o
observador que analisa e escolhe.
A exposição das dançarinas é maior na Arena em comparação à Plural. Por
um lado, quando dançam na frente do palco, muitas pessoas tiram fotos de suas
bundas com as câmeras do celular. Por outro, existe a permissão tácita para serem
tocadas nas pernas, quadril e bunda, porém só por mulheres, já que os homens são
explicitamente proibidos de fazê-lo por elas, que utilizam a distância imposta pelo
palco para controlar os toques, ou pelos seguranças que se encarregam de desiludir
os moços com “intenções erradas”. Assim, quando um homem insiste em tocá-las,
elas retiram a mão dele e fazem um gesto de “não” com a mão (movendo o dedo
indicador para os lados). Tira a mão daí, vai, tira a mão daí, se a mina disse que
não quer, então.
58
Se insistirem, elas retrocedem para o centro do palco, fora do
alcance de qualquer um, ou se deslocam para outro lado, na extremidade do palco,
58
“Tira a mão daí” – Gaiola das popozudas.
71
se aproximando de outras pessoas. Natalia, uma das go-gos, me conta que gosta do
público dessa boate, mas prefere a segurança e a organização da Plural, onde não é
permitido “passar a mão” nem tirar fotos, “trabalhava melhor lá, mais tranquila”,
acrescenta.
Na Plural, o show d@s go-gos acontece no intervalo da cantora do terraço,
com nítidas diferenças em relação ao show oferecido na Arena. De modo distinto
ao que ocorre nesta última, as performances são realizadas em dois patamares na
pista e incluem um homem e uma mulher. Outras divergências importantes são a
música, a roupa e a duração da performance. A música varia de acordo com a
coreografia realizada e jamais é funk, o que dissocia estas duas atividades – o
momento “funk” do público e a dança da go-go – que na Arena são uma só. Por
outro lado, na Plural, o show é um strip-tease, o erotismo e a sensualidade sendo
situados nesse ato, e nem tanto na dança, que aparece mais como um complemento
ou artifício para que @ go-go se dispa. Finalmente, a performance tem uma
duração de 15min, aproximadamente, o que difere bastante dos 40min da Arena.
Cada stripper tem seu guarda-costas — homem para homem e mulher para
mulher. A guarda-costas da go-go girl é também a segurança do lugar, fazendo a
revista das mulheres que entram na boate. Gláucia já foi segurança em outras
boates. É alta (mais ou menos 1m75), corpulenta, de cabelo trançado e comprido.
Quando fica perto da go-go girl, impõe distância através do olhar e de uma atitude
rude. No entanto, fora desse papel e na hora da conversa comigo, ela muda e
muito: o olhar se adoça e um sorriso se desenha em seu rosto. Conta-me que é
realmente necessário colocar uma pessoa que resguarde “a integridade” da
dançarina, já que, algumas vezes, as frequentadoras do lugar tocam as suas pernas,
ou tentam subir no patamar; segundo ela, isso “pode ser perigoso, porque ela tá lá
em cima dançando, e pode cair... ou se machucar”. Achei interessante que fosse a
possibilidade de atrapalhar o trabalho da dançarina – e não um possível assédio – o
modo de justificar sua presença como guardiã nesse cenário. O consumo de álcool
também conta, aparecendo como uma desculpa do (provável) comportamento
indesejado do público. A guarda-costas também desempenha a função de
assistente, tomando conta das roupas que a stripper vai tirando e lhe ajudando a
subir ou descer desse estrado.
Quando o show tem início, produz-se uma divisão genérica do espaço: do
lado do go-go boy, os homens; rodeando a go-go girl, as mulheres. Se, durante o
72
resto da noite, existe uma divisão que responde à estrutura dos grupos (de
amizades, de novos fregueses etc.), ela se desmancha e redesenha no momento da
aparição d@s dançarin@s. Um aspecto que pude observar é que a relação que se
estabelece entre amb@s @s strippers e seus públicos é diferente. O go-go boy não
é tocado como a go-go girl. Perante ele, existe uma atitude de contemplação, mas
diante dela, a atitude é de conquista e de contato físico: as pessoas lhe oferecem
bebidas, tentam se aproximar e procuram chamar a atenção em busca do seu olhar.
De todo modo, e para além da justificativa da segurança, a distância colocada
entre @s go-gos e o público no Plural é maior do que na Arena. Parece que essa
diferença se coloca como uma norma de respeito e cuidado que, como mencionado
por uma das go-go girls que trabalhou em ambas as boates, oferece certo conforto
para as performers. Pode-se pensar a partir dessa estrutura que @s go-gos
constituem-se como o atrativo central do lugar porque são seguidos por todo
público presente, enquanto os outros dois shows responderiam a um público
particular. De fato, na hora d@s go-gos, o terraço conta com um número
consideravelmente menor de pessoas, que para ali retornam após o término do
show, quando a cantora reassume sua função.
Além da interação palco-plateia (gogos-público), já comentada, na hora do
funk, @s quem desenrolam suas próprias performances funkeiras com
particularidades próprias que as diferenciam daquelas observadas na Plural. Nos
três estabelecimentos pesquisados, o baile tem uma estrutura que se desenha
repetitivamente à cada noite, construindo e conferindo sentido às performances
d@s atores e à ritualidade
59
da noite. Sendo assim, e enquanto processo
performático, as diferentes coreografias que se desenvolvem noite após noite nos
estabelecimentos pesquisados podem ser compreendidas a partir de uma marcação
temporal, isto é, de “uma ação que comporta ao mesmo tempo ritmos sincrônicos e
diacrônicos”, definindo uma lógica igualmente temporal de ocupação do espaço.
Estas performances, aliás, podem ser lidas como a face de representação do
59
Na introdução ao livro “Antropologia da Performance”, de Victor Turner, Richard Schechner
distingue cinco diferentes modos de ver o ritual: como parte do desenvolvimento evolutivo dos
organismos, incluído o desenvolvimento do cérebro; como uma estrutura com qualidades formais
e relações; como um processo performático, um sistema dinâmico ou uma ação que comporta
simultaneamente ritmos sincrônicos e diacrônicos e/ou cenários; como experiência tanto de uma
pessoa individualmente quanto como integrante de uma coletividade; como um leque de
operações na vida humana, social e religiosa. Neste caso em particular, explorarei basicamente o
segundo e o terceiro modos para analisar as performances e temporalidades da noite nos âmbitos
pesquisados.
73
modelo da performance ritual apresentado por Schechner. As representações são o
ponto nodal dos timmings que, como já o definimos, constituem marcas de
pertencimento dos diferentes grupos que conformam o público das casas
pesquisadas.
“Pode me chamar de puta… só hoje”, sai das caixas de som e invade o
espectro sonoro do salão. É o momento que, na boate Arena, marca a aparição da
gogo-girl que, incansável, dança os funks proibidões
60
um depois do outro,
sozinha, com algum par ou acompanhada por alguma mulher do público.
61
A
disposição geral do público é a de audiência do show. Sendo assim, os corpos
estão dispostos em fileiras paralelas ao palco e de frente para este último, em
camadas que se desmancham na medida em que dele se afastam. Nesse processo de
afastamento, as individuações da dança vão se convertendo em figuras de baile
compostas por mais de um corpo.
A primeira fila é ocupada basicamente por mulheres que, coladas ao palco,
observam atentamente o desenrolar da atuação das go-gos. Esta posição é cuidada
com zelo e dificilmente cedida. De todo modo, isso não impede que, em alguns
casos, haja dança. Sem se desgrudarem do tablado, as mulheres são receptivas
para dançar com outras; assim, podem dar as costas para elas ou ficar de frente
para a companheira de dança. Se a dança for de costas, “dão a bunda”, ou seja,
com as mãos apoiadas no palco, o corpo bastante rígido, as costas um pouco
inclinadas para a frente e os quadris empinados para trás, a bunda levantada e as
pernas abertas recebem outro corpo que cola a virilha contra a bunda, as pernas
entre as da primeira e as mãos nos ombros ou rodeando a cintura, mexendo para
trás e para frente, Tira, bota, bota, e tira – devagarinho, devagarinho — bota,
tira, tira, bota.
62
Se a dança for de frente: sentada na beira do palco, com a bunda
apenas apoiada e uma ou ambas as mãos também apoiadas, ajudando a sustentar o
60
A origem da denominação “proibidão” reside no tipo de letra que estes funks exibem, algumas
com conteúdo erótico — como o caso das tocadas nestas boates — outras retratando a violência
das gangues nas favelas e tomando partido de determinadas facções, o que incorre em apologia
do delito. Por esse motivo, estas músicas geralmente têm duas versões: a original que se toca nos
bailes (e nas casas pesquisadas durante o trabalho de campo) e outra modificada, com um
conteúdo mais suave para ser tocada nas rádios. Por sua vez, ter acesso a um cd de funk proibido
também implica ilegalidade, já que sua venda não é permitida em lojas de venda de discos, sendo
o modo mais corriqueiro de consegui-los nos camelôs de rua. Sobre esta temática, ver a
dissertação de Rodrigo Russano (2006), “Bota o fusil pra cantar!”. O funk proibido no Rio de
Janeiro.
61
Ver página 70 deste capítulo.
62
“Tira & bota” – Mc Cris.
74
corpo, as pernas abertas recebem o outro corpo. Abre as pernas e relax; vem por
cima e senta, senta.
63
Virilha e tronco são os pontos de contato, principalmente as
virilhas que, desse modo, ancoram os corpos um de encontro ao outro e guiam os
movimentos para frente e para trás, para cima e para baixo, acompanhados pelo
braço que enlaça as costas e pela mão que, apoiada na cintura, sustenta a posição e
serve de leme para direcionar a dança.
Em geral, este tipo de intercurso é levado a cabo por duas pessoas que
mantêm algum tipo de relação homoafetiva (casal, caso, ficantes, namoradas,
paqueras) ou que fazem uma brincadeirinha entre amigas, quer dizer, pessoas que
se conhecem e têm um determinado grau de confiança ou cumplicidade que
permite desenvolver este tipo de performances sem criar constrangimentos. A
diferença é observável nos modos como se dá o olhar e na proximidade dos rostos.
No caso de duas amigas, há o riso e também o olhar cúmplice da piada, os rostos
permanecendo distantes, sem se tocarem. No caso de estar ocorrendo algum tipo
de flerte, o semblante é sério — os olhares fixados um no outro — e o contato
físico entre os rostos fugaz, no começo, mas avançando junto com o desenrolar da
dança. As bochechas se roçam; uma das mulheres desliza a cabeça lateralmente até
o pescoço da outra, mantendo sempre um toque sutil, mas permanente e cola seu
dorso entre o pescoço e o ombro da companheira, assim permanecendo por alguns
instantes. Em seguida, levanta a cabeça e sustenta o olhar da partenaire.
Ocasionalmente, beijam-se na boca ou continuam no roçar de rostos.
As fileiras seguintes da plateia comportam o miolo no qual é possível
apreciar diversos tipos de coreografias que, por sua vez, trazem à tona diferentes
arranjos estéticos e de gênero. Como numa aula de aeróbica, os corpos dispõem-se
um ao lado do outro, de frente para o palco, seguindo as go-gos e os passos
propostos pela música: Comece a rebolar, comece a rebolar, depois quebra de
ladinho, mexendo pra lá e pra cá. E vai descendo, e vai descendo, vai descendo,
vai descendo, vai descendo. Agora para. E vai subindo, e vai subindo, vai subindo,
vai subindo, vai subindo.
64
Tanto homens quanto mulheres executam suas performances de dança,
rebolando do modo como a par feminina do funk, representada modelarmente
pelas go-gos, o faz: quebrando os quadris para os lados com movimentos
63
“Abre e relaxa” – Pé de pano.
64
“Comece a Rebolar” - Gaiola Das Popozudas.
75
circulares, jogando os quadris para trás, rebolando a bunda para cima e para baixo,
os joelhos flexionados e o tronco inclinado para frente; as mãos estão pousadas em
cada joelho ou passam simultaneamente de um para o outro, dependendo da
música: E quando eu mandar, mulher, bota a mão no joelhinho, essa é a nova do
Buiú, é hora da novinha balançar o bumbum...
65
Também quebram os quadris para
frente e para trás com movimentos que imitam o intercurso sexual de penetração
vaginal ou anal. Por outro lado, também é possível observar homens e mulheres
dançando do modo como o par masculino costuma se movimentar: o corpo mais
rígido, com movimentos de pernas e braços e requebrando os quadris para frente e
para trás, tudo isso em movimentos retos, não circulares como o rebolado. Esta
divisão genérica das figuras coreográficas também é descrita por Mylene Mizrahi
na análise dos bailes funk do Clube do Boqueirão (na ladeira dos Tabajaras,
Copacabana), na qual explica que “o que predomina na dança dos rapazes são
movimentos vigorosos e retos, realizados com seus braços e pernas, opostos à
sinuosidade dos corpos femininos em dança” (2006: 51). A diferença reside no
fato de que, na Arena, as divisões marcadas por estas figuras coreográficas dão
conta de uma apresentação de gênero que ultrapassa a designação social de sexo
do corpo em que é performada. Assim, no momento de se dançar a sós, mulheres e
homens com uma apresentação de gênero masculina ou mais unissex
66
executarão
figuras coreográficas tidas como “de homens”, e mulheres e homens que, por sua
vez tenham uma performance de gênero feminina desenvolverão coreografias que
se aproximam daquelas tidas como “de mulheres”.
O gênero, explica Butler (2000:102), não é uma atuação que um sujeito
anterior escolha, ele é performativo, já que constitui, como um efeito, o sujeito
que parece exprimi-lo. Desse modo, esta suposta inversão reconstitui o binário do
funk situando a normalidade novamente em uma díade masculino/ feminino, mas
dessa vez em corpos opostos. Em outras palavras, a exibição coreográfica
supracitada preserva a divisão genérica, mas destitui o primado da divisão
[hetero]sexual no sentido do atrelamento entre masculino-homem; feminino-
mulher: “que la heterosexualidad esté siempre en acto de elaborarse a sí misma
pone en evidencia su riesgo perpetuo, esto es, que ella ‘sepa’ de la posibilidad de
65
“Balança Mas Não Para” - Mc Buiu.
66
A respeito das estéticas nas casas pesquisadas, ver a seção “Sobre saias, calças e bonés”, no
capítulo III.
76
quedar inacabada: por lo tanto, su compulsión a repetir es a la vez una exclusión
de lo que amenaza su coherencia” (ibid, 101).
Entretanto, o que acontece se a repetição do binário heterossexual é
utilizada com um propósito performativo diferente? Na medida em que nos
afastamos do palco, a individuação dá lugar aos pares de dança, e os intercursos
mudam. Nessa área do recinto, os pares são [hetero]sexuais, geralmente formados
por amig@s. Nesses intercursos da dança, os homens, além da sua expressão de
gênero, colocam-se no lugar de homens e as mulheres, no lugar de mulheres, em
relação à divisão genérica supracitada das coreografias do funk em contextos
heteronormados. Neste contexto, pude observar algumas figuras como as que
seguem: uma mulher de uns 20 anos, com cabelo curto liso, boné, camiseta sem
mangas — não muito solta, nem colada ao corpo como as baby look — calça jeans
larga e tênis esportivos, sem maquiagem, com um ritcus corporal bastante duro e
movimentos retos, dançando com um jovem da mesma idade, aproximadamente,
com camiseta baby look, calça jeans apertada marcando as coxas e a bunda, cabelo
curto penteado com gel e tênis de rua. Ele por trás dela, os corpos colados, a
virilha dele roçando sua bunda com movimentos lentos de sobe e desce e vira e
mexe, para frente e para trás; ele circundando-a com um bro pela cintura e
segurando-a pela barriga para guiar os movimentos. Ela, apoiada nas pernas e na
virilha dele, deixa-se levar no sobe-desce, para-frente-para-trás, rebolando os
quadris e inclinando o tronco para frente, descolando-se do seu, mas sem perder o
contando da bunda com a virilha dele, que também rebola, seguindo o compasso
da moça; com uma mão ainda a segura pela barriga e com a outra sobre seu ombro
para conservar a posição que marca um ângulo reto entre seu tronco e as costas
dela, marcando movimentos para frente e para trás. Em seguida, descendo quase
até o chão, ela sentada na virilha dele, com os braços para frente, as duas mãos
entrelaçadas formando uma seta; ele com uma mão que se apoia no chão e a outra
livre, com o braço levantado, paralelo aos dela, mexendo os quadris para frente e
para trás. Eu sento e rebolo, quico de montão, parece que tem uma piroca no
chão.
67
Três pessoas: dois homens de uns 25 anos, de calça jeans apertada nos
quadris, marcando a bunda e cabelo curto, um cacheado o outro liso, com camiseta
67
“Parece que tem uma piroca no chão” – Mc Mel.
77
regata colada ao corpo, um com sapatos de camurça marrom claro e o outro com
tênis de rua. Em meio a eles, uma mulher de mais ou menos 20 anos, com calça
jeans colada no corpo, blusa amarela solta de lycra, sem mangas e decotada nas
costas, salto alto preto cabelo comprido e alisado com chapinha. Ela está maquiada
e usa bastante bijuteria (pulseiras de metal tipo escravas, anéis, e colar dourado).
Eles dançam com os corpos colados pelos quadris, rebolando os três, no compasso
do ritmo, para frente e para trás. Em alguns momentos, ela vai descendo sozinha
entre eles – buscando com as mãos as laterais do corpo do que está na sua frente, o
corpo colado no que está atrás, rebolando a bunda e nele se esfregando – até ficar
com o rosto em frente à virilha do que está na sua frente, assim permanecendo por
um momento e subindo novamente para logo descerem os três juntos.
Quando os sujeitos dançam, explica Blázquez, “constroem uma imagem
corporal genericamente diferenciada” (2004, 357) a partir dos gestos, movimentos
e experiências sensoriais que o autor chama de coreografias de gênero. Assim, os
diversos modos e espaços dentro de cada recinto escolhidos para se dançar
“aparecem como propriedades dos estereótipos a partir dos quais funciona o
discurso discriminatório e se (re)instaura uma certa ordem social” (ibid). Uma vez
que os modos de se dançar não estão formados por movimentos e atos espontâneos
e idiossincráticos, mas ao contrário, constituem-se como práticas discursivas e
cada figura coreográfica como um enunciado performativo, os sujeitos – por meio
dos movimentos corporais ordenados conforme os roteiros normativos que
organizam as coreografias – representam ou dizem de modo iterativo uma série de
propriedades morais, estéticas, raciais, etárias e genéricas. A partir destas
performances, os corpos dos dançarinos materializam-se de acordo com
estereótipos que ordenam os tipos de sujeitos possíveis dentro do universo
discursivo no qual a prática é significativa (ibid, 357).
Na Arena, o funk frisa os binarismos, mas não necessariamente do mesmo
modo como se constroem no resto da noite: os decompõe e reestrutura. Desse
modo, na coreografia da dança, um gay mais feminino ocupa o lugar do “homem”
em relação a uma mulher lésbica, sem que esta seja necessariamente feminina,
decompondo o sentido erótico que perde para o da demonstração de habilidades e
para uma dimensão lúdica. O funk, aliás, constitui lugares de individualidade, pela
disposição das pessoas em relação ao palco onde estão as gogos. O palco organiza
o espaço da dança. Entretanto, na Plural, o funk tem lugar na pista e só no final da
78
noite, com a finalidade explícita de pegação, configurando outro tipo de relações e
gerando expectativas distintas.
Aos lados do espaço utilizado como pista, nas mesas, localizam-se as
mulheres mais velhas que não participam desta dança, limitando-se a observar,
tanto as go-gos girls quanto @s dançarin@s amadores@s da plateia. Este esquema
repete-se nas mesas que estão no final do salão, paralelas ao balcão, entre a porta
que leva à pista e a área destinada à dança. Este setor do público manifesta seu
desconforto perante o funk, considerado “uma baixaria”, “brega”, “vulgar” ou “de
mau gosto”, ou seja, fora dos padrões de consumo cultural que “na Plural, não
devíamos aturar porque era lá na pista e já no final”.
Os diferentes papéis do funk nas boates Plural e Arena, anteriormente
descritos, outorgam à temporalidade uma importância preponderante, já que o
timing da noite transcorre de dois modos distintos: por um lado, a sedução e o
flerte e, por outro, a individuação, a vitrine. Os corpos, diz Judith Butler “não só
tendem a indicar um mundo que está além deles mesmos, esse movimento supera
seus próprios limites, um movimento fronteiriço em si mesmo, parece ser
imprescindível para estabelecer o que os corpos ‘são’” (2002: 11). Por outro lado,
o fato de se compartilhar tempo e espaço com a go-go e espaço com o grupo ao
vivo diz algo sobre a idade alvo do público que frequenta cada casa; uma dialética
entre a constituição da oferta de cada uma delas, que evidencia as expectativas dos
proprietários, e a aceitação à proposta, que denota as expectativas do público.
Nos Bailes da Mary, o funk está fora de cogitação. “Você tá doida?! Quer
que isso aqui fique vazio pra sempre? Seria um suicídio! Aqui, tem gente fina,
essa música não é do gosto delas”, foi a resposta que Mary me deu quando
perguntei sobre a ausência do funk no repertório executado nas festas. Igualmente,
estão fora de questão os beats da música eletrônica, pejorativamente referida pelas
frequentadoras como bate-estaca ou pancadão. “Tem lugares que são super legais,
como esse novo que abriu lá nos cais do porto,
68
mas a música é tão ruim que você
não consegue acompanhar nem uma música só. Aí, não me dá tesão de dançar”,
explica Fátima – de 60 e poucos anos, alta executiva de uma empresa estatal e
assídua frequentadora das festas da Mary – que, certa vez, já regressou antes do
previsto das férias em Nova York para chegar a tempo de ir à festa. “É uma vez
68
Referindo-se a The Week, boate badalada de São Paulo, que abriu uma subsidiária no Rio de
Janeiro, em 2007.
79
por mês, não dá pra desperdiçar”, argumenta. “É um dos poucos lugares onde dá
pra dançar legal, com gente do bem e assim entre entendidas, sabe?”
Com seus sets de música, sua distribuição espacial e o tipo de público ali
presente, uma sexta-feira por mês o salão do Olímpico configura, em certo sentido,
um reservatório do passado em relação à mainstream lésbica.
69
Em Cuerpos que
importan (2002), falando dos modos como o sexo pode ser concebido como
materialidade, Judith Butler define a construção como um processo temporal per
se que opera através da reiteração de normas, intercurso durante o qual o sexo se
produz ao mesmo tempo em que se desestabiliza e, como um efeito sedimentado de
uma prática reiterativa e ritual, adquire seu efeito naturalizado. Entretanto, “en
virtud de esta misma reiteración se abren brechas y fisuras que representan
inestabilidades constitutivas de tales construcciones, como aquello que escapa a la
norma (…) Esta inestabilidad es la posibilidad reconstituyente del proceso mismo
de repetición” (Butler, 2002: 29). Nesse processo que supõe a reiteração, é
importante se levar em conta o efeito de sedimentação, ou seja, aquilo que se
constitui como passado. Mas em sua análise, o passado não se baseia unicamente
na acumulação e congelamento de momentos, mas naquilo negado na construção
situada nas esferas do reprimido, do esquecido e do irrecuperavelmente
foracluído:
70
“aquello que no está incluido – que ha sido dejado en el exterior por
la frontera – como fenómeno constitutivo del efecto sedimentado llamado
‘construcción’ que será tan esencial para su definición como lo que ha sido
incluido” (ibid, 30, nota 8).
Nesta lógica, os bailes da Mary que, a partir de uma análise relacional com
a mainstream, poderiam ser pensados como aquilo que parece estar
irrecuperavelmente foracluído, na realidade, montam-se na brecha deixada por
essa mainstream e, a partir da fronteira, recuperam um espaço aglutinante para os
sujeitos que a eles assistem, o que não ocorre com aqueles sujeitos que, com o
encerramento da Plural, se dispersaram na busca por outras casas de divertimento
que possam suprir o que esse lugar lhes oferecia.
69
Ver nota 88 do capítulo III.
70
A forclusão ou foraclusão é um conceito lacaniano que explica um mecanismo específico da
psicose, através do qual se produz a rejeição de um significante fundamental para fora do universo
simbólico do sujeito. Quando essa rejeição se produz, o significante é foracluído. Não é integrado
no inconsciente, como no recalque, e retorna sob forma alucinatória no real do sujeito. Butler, por
sua vez, faz um uso particular deste conceito para explicar o valor do que fica fora da construção,
nessa brecha, e que, como exterior constituinte, ganha força para se entender as abjeções.
80
Diásporas
Entre agosto e setembro de 2007, a quantidade de público presente na Plural
começou a minguar. Perguntei para diversas pessoas a possível razão para tanto e
obtive respostas vagas, tais como: “amanhã, tem a parada gay [de Nova Iguaçu],
então as pessoas não saem hoje”; “é final do mês, e o dinheiro é pouco”; “quando
chove, as pessoas não saem”, que não me satisfizeram muito, mas não dei tanta
importância ao fato, já que o público que continuava presente era o das mulheres
mais velhas que ocupavam basicamente o terraço do primeiro andar e as mulheres
da faixa intermediária, que circulam entre os dois espaços da boate. Contudo,
achei estranha a ausência de Vitória, mesmo após tê-la chamado para combinarmos
de nos encontrar para conversar e tendo-se em conta que ela era uma fiel habituée,
frequentando o lugar até três vezes na semana. Liguei de novo para ela e
marcamos um encontro na Plural às 23.30 horas de um sábado de setembro, mas
ela não apareceu. Eu tinha reparado também que durante esse mês outra boate
abrira suas portas nas redondezas já que entre os flyers de propaganda de outras
boates que habitualmente eram entregues na calçada, do lado da porta de entrada
ou da nova boate começou a aparecer. Perguntei então para o dono sobre a
possível concorrência do novo lugar e ele desdenhou a importância: “é só a
novidade, daqui e pouco a febre passa e o público se equilibra, é sempre assim,
tem um período em que a coisa decai, lógico, mas temos uma clientela fiel que
com certeza volta”.
Entretanto, o tempo passava e a quantidade de público não aumentava. Falei
mais uma vez com Vitória e desta vez marcamos na porta da nova boate. Como já
expliquei anteriormente, ambas as boates ficam na mesma rua, portanto o caminho
que devia percorrer do ponto de ônibus que está na Via Light até a rua da lama
para chegar na Arena, levava-me a passar pela porta da Plural onde o panorama
não era nada alentador: pouquíssimas pessoas na entrada e quase nenhum carro
estacionado eram indicadores do que estava acontecendo dentro. Desde a calçada
era possível escutar a voz da Cláudia Duque que já estaria na metade do primeiro
set da noite. Chegando na Arena a imagem foi a contrária: o jardim da entrada
estava infestado de pessoas já com seu ingresso conversando em grupo que,
entretanto, não entravam no recinto e pareciam em parte estar esperando @s
amigos chegar, em parte se exibindo. Eu tinha comparecido um pouco antes da
81
hora marcada para observar a movimentação do lugar e reconhecer a rua da lama
71
onde tinha estado uma vez só acompanhando uma moça freqüentadora da Plural
que me convidou para um bar de karaokê depois de sair da boate. Esperei um
pouco por Vitória e por volta da meia noite, logo depois de pagar ingresso de
pista, entramos deixando bastante gente fora na mesma situação de espera antes
descrita.
Dentro na verdade não estava tão cheio quanto imaginei, a julgar pela
quantidade de pessoas do lado de fora. “É cedo ainda”, me explicou Vitória,
“daqui a pouco enche, tu vai ver”. Fomos direto para o balcão do salão onde nos
encontramos com outros amigos dela que eu já conhecia da Plural. No salão o
grupo Sambaguelé que, segundo os que já estavam dentro tinha acabado de
começar, estava tocando pagode com um som muito alto que dificultava as
possibilidades de conversa. Também não tinha muita gente dançando no salão,
basicamente mesas aos lados do espaço que estava ao frente do palco ocupadas por
mulheres de uns 30 anos e outras poucas dentre 40 e 50 anos, algumas sentadas
conversando e outras dançando nas proximidades das mesas. Perto do balcão havia
mais homens da mesma idade e também mais jovens bebendo cerveja e
conversando, mas quase sem dançar. Na pista da boate a situação não diferia muito
dessa. A julgar pela música que estava tocando, o DJ ainda não tinha aberto a
pista, quer dizer, o momento em que ele começa a tocar seu set, geralmente
iniciado por uma forte explosão sonora onde predominam os sons graves e
percussivos, acompanhada pelo jogo de luzes que invade a pista com toda sua
artilharia. Antes desse momento a música é incidental, e as luzes são tênues e
quase sem movimento; essa era a situação que se apresentava quando entrei no
recinto. Quase não havia pessoas na pista e as que estavam não dançavam,
simplesmente conversavam em grupo ou se expunham sozinhas, com a companhia
de um copo de alguma bebida ou uma lata de cerveja servindo de escudo ou
estandarte.
Meia hora depois disso, por volta de meia noite e meia, o lugar estava quase
cheio. As pessoas que estavam “fazendo uma hora” no jardim entraram em massa e
logo depois o DJ finalmente abriu a pista povoada de mulheres muito novas, na
faixa dos 18 a 25 anos e homens de idades mais variadas. No salão, entretanto, o
71
Ver descrição na pagina 35 do Capítulo I
82
grupo Sambaguelé continuava tocando para um público formado em sua maioria
por mulheres de um amplo espectro etário com predomínio daquelas da faixa
intermediaria (25-35). Por volta da uma da manhã duas go-go girls
72
fizeram sua
aparição no mesmo palco da música ao vivo e não no da pista como eu pensei que
seria. Também não houve show de go-go boy em momento nem lugar algum. Elas
dançaram ao ritmo do funk carioca entre quarenta e cinqüenta minutos,
aproximadamente, dando lugar mais uma vez ao grupo de música ao vivo que
tocou uma hora mais, e cedeu novamente o palco para as go-go girls. Enquanto
isso, na pista não existiam tantas variações: só um show de drag-queens no horário
do segundo set do grupo ao vivo que toca no salão. Essas rotinas temporais da
Arena se mantiveram em estrutura, mas foram começando cada vez mais tarde até
estabilizar-se marcando o começo à 1 da manhã, aproximadamente e o
encerramento entre as 5 e as 6 horas da manhã, quer dizer, duas horas de diferença
com os horários da Plural onde a partir das 23 horas o público já era considerável
(um 70% do momento de apogeu que se dava entra a 1 e as 2 horas da manhã).
No final de semana seguinte voltei para a Plural. A pista era a única área
habilitada e nela havia mesas. Quando cheguei, por volta das 23.30 horas, Cláudia
Duque estava cantando no palco onde normalmente aconteciam os shows das drag-
queens e o mínimo público presente estava conformado quase exclusivamente por
mulheres de uma faixa etária de 45 anos de média escutando o show. A cantora
explicou para as pessoas presentes que a casa encerraria as portas por um mês para
reformas e fez um apelo de “fidelidade” com o lugar, não deixar que fechasse por
causa da abertura da nova casa e convidando às presentes para “defender nosso
cantinho”. O dia de reinauguração, em novembro, foi o último da Plural. Quase
vazia, mesmo depois das reformas, encerrou suas portas e já não voltou a
funcionar.
Regressei então para a Arena, mas o grupo que freqüentara o terraço da
Plural não fazia parte do público da nova boate. Perguntei para Vitória e ela me
disse que muitas das colegas dela tinham começado a freqüentar agora um bar
chamado One, na mesma rua, mas do outro lado dos trilhos, quer dizer no outro
extremo da Avenida. Fui algumas vezes sem achar esse núcleo e sem conseguir
maiores informações. Optei por continuar freqüentando a nova boate para ver
72
A referência detalhada dos shows das go-go girls está na sessão “Eu vou pro baile” deste
capítulo.
83
como ia se conformando o público com o passar do tempo. O que aconteceu com
esse grupo de mulheres mais velhas depois do encerramento da Plural? Porque elas
não se deslocaram como o resto do público, para a Arena? Qual é esse diferencial
que acontece em uma que não está contemplado na outra?
Incorporar uma temporalidade supõe se “familiarizar” com um ritmo
particular, colocar em ação esse tempo, quer dizer, um timming que se desenvolve
dialeticamente nas interações dos sujeitos com as ofertas de entretenimento das
casas pesquisadas. Estas ofertas, miolo das temporalidades específicas, estruturam
a configuração social dos lugares que comporta um espaço e um tempo específicos
no seu seio, atrelados estes a uma camada de sentido mais literal ou externa que
seria o tipo de oferta em si mesma: música, dança, bebida, comida. Por sua vez,
incorporar um timming implica arcar com toda uma série de implícitos e aceitá-los
com uma opção válida e desejante, como um “gosto” construído na repetição de
uma prática. Assistir sábado após sábado no mesmo lugar uma cantora cujo
repertório é praticamente o mesmo em todas as vezes pareceria, a princípio, o que
o dono da Arena chama de “cair na mesmice” se referindo ao motivo pelo qual,
segundo seu ver, a Plural acabou por fechar suas portas. Contudo, esta repetição
não dista muito do ato de ficar na pista dançando ao som de música mecânica
tocada pelo DJ residente porque cantora, DJ, go-gos são marcos eventuais de
referência para os sujeitos que acham nas boates espaços de diversão, flerte e
encontro, quer dizer de socialização com pares. A fixidez desses marcos é
fundamental para dar segurança aos sujeitos de modo a poderem assim desenrolar
suas estratégias de sedução. Quando esses marcos mudam, os sujeitos perdem a
referência tornando-se necessário reaprender um processo baseado mais uma vez
na repetição de práticas, fato que nem sempre chega a uma realização completa e
afortunada.
Outrossim, o problema da mudança é a ruptura do rito que funciona como
um mecanismo regulatório em um sistema ou conjunto de sistemas
interconectados. Quando a relação espaço-temporal ritualizada, internalizada, se
modifica, é necessário reconstruir o lugar, quer dizer se apropriar do espaço até
convertê-lo em um lugar conhecido. A performance da sedução depende do
conhecimento e a internalização do timming. A idéia do tempo, explica Elias,
“permite transmitir de um ser humano para outros imagens mnêmicas que dão
lugar a uma experiência, mas que não podem ser percebidas pelos sentidos não
84
perceptivos” (1988, 13). Essa experiência compartilhada com outros dentro de uma
configuração particular, como é o caso dos estabelecimentos pesquisados, constitui
estas temporalidades específicas que fazem sentido para aqueles que as vivenciam.
Tais vivências estão moldadas pela relação entre os sujeitos que freqüentam as
boates, o espaço, o tempo e as atividades oferecidas tanto pelas casas quanto pelas
mesmas pessoas que se apropriam dos lugares, gerando dialeticamente essa oferta.
“Não são o ‘homem e a natureza’, no sentido de dois dados separados, que
constituem a representação cardinal exigida para compreendermos o tempo, mas
sim ‘os homens no âmago da natureza’” (op. cit., 12). O tempo ordena porque
exige centros de perspectiva marcadas pelo “aprendizagem e pela experiência
previa tanto dos indivíduos quanto a acumulada pelo longo suceder das gerações”
(op. cit., 33)
“Parece que eles abriram só pra perturbar a Plural, ironiza Vitória, pena que
se fecha [Arena] a gente não vai se ver mais, isso aqui (assinalando o grupo de
pessoas, fazendo um círculo imaginário que nos envolve com a mão) vai
desaparecer porque o elo vai quebrar, vamos ficar todos espalhados.” “Afinal, a
gente parou de ir na Plural e agora isso aqui também não dá certo”, diz Marcelo.
Este medo está presente em outras pessoas que freqüentam a Arena e aparece
como resignação nas falas de algumas mulheres mais velhas que depois de fechar a
Plural sentem que “ficamos sem lugar”. A diáspora supõe também a luta por
redescobrir as rotas das configurações culturais (Hall, 2003: 29), quer dizer, tentar
reconstruir a origem e, na suspeita nostálgica de nunca poder fazê-lo, conceber
novas configurações que, entretanto sempre arcaram sobre suas costas o peso do
que pude ser e não foi. Nas pessoas mais velhas que freqüentam a Arena sempre
estará o sem-sabor e o incômodo de, junto com a Arena ter perdido um espaço de
pertencimento. Igualmente, o Gaivotas ecoava como aquele lugar entre as
freqüentadoras do terraço da Plural do mesmo modo saudosista em que agora se
descreve o terraço perdido A estrutura performática descrita por Schechner, e
utilizada para analisar as temporalidades específicas das casas pesquisadas dá luz,
por sua vez, nos movimentos de agregação e desagregação nos ciclos mais amplos
que abrangem os roteiros GLS que podem marcar tanto um movimento diaspórico
de dispersão no qual todo passado parece melhor o que tem uma função de
‘passado aglutinante’: era ali onde todas nos encontrávamos e era ali onde as
coisas aconteciam o que apaga a possibilidade de um futuro onde as coisas possam
85
acontecer de um modo semelhante. Um modo de se aferrar a um passado perante a
situação de um presente árido. Se tod@s estam@s sujeit@s a certas melancolias
ligadas à geração, aqui a posição minoritária em termos da disponibilidade de
espaços que permitam jogos de sedução e convivência não heterossexuais, dá
outros contornos a tal melancolia. É uma dupla perda, pela idade e pela posição
minoritária.
Entre as habituées dos Bailes da Mary, o Gaivotas também se configura
como um espaço ícone, junto com o bar Tamino em Botafogo, do qual a própria
Mary foi dona e cantora; por sua vez edições anteriores do próprio baile são
lembradas com nostalgia do que já foram essas festas. Em seu livro The girls in
the back room(2002)
73
, Kelly Hankin explicita o caráter efêmero dos bares
lésbicos
74
o que lhes outorga uma carga de sentido de perda não porque se
caracterizem pela durabilidade no tempo senão pelo contrario porque “the lesbian
bar, in all its various incarnations, is historically marked by its own ephemerality
(155). Para a autora, esta situação faz com que o sentimento de perda seja menos
uma nostalgia do que houve senão um desejo utópico “for a place we hope to have,
a place that ‘can and perhaps will be’ (ibid). Talvez este anseio represente a
necessidade de lugares aglutinantes com maior diversidade além do rótulo GLS
que [homo]geneiza sujeitos com preferências [hetero]géneas além do interesse
erótico por pessoas do seu próprio sexo. Por sua vez, há um paradoxo nessa
dinâmica segundo o qual a “comemoração” dos lugares onde se pode ser
plenamente quem se “é”, ou seja, beijar, agarrar, seduzir sem certos
constrangimentos é, ao mesmo tempo, a experiência dura de viver essa mesma
limitação, a consciência de seu avesso dominante e pungente. Cada vez que se
freqüenta esses espaços, vivencia-se a impossibilidade virtual de vivenciar os
demais espaços sem constrangimento.
Na análise das temporalidades específicas e os timmings é possível compor
o fluxo dos ciclos de auge e dispersão dos espaços que descreve os processos
estacionais das casas de entretenimento noturno com base na relação entre tipo de
público e oferta de divertimento. Em estes ciclos inscreve-se a falência da Plural
73
Uma análise sobre a representação icônica que o cinema norte-americano ficcional e
documentário tem feito dos bares lésbicos para tentar desvendar o papel que estes têm
na conformação de uma socialização lésbica pública.
74
Regina Facchini faz referência a este característica a este mesmo fenômeno em São Paulo e
cita, por sua vez, a similaridade no contexto norte-americano analisado por Nancy Achilles, já na
década de 1960 (Facchini, 2008: 110).
86
coincidente com a aparição a Arena como nova casa de divertimento noturno
orientada para um público GLS na mesma região. Estes processos estacionais das
boates conformam o que poderíamos chamar de fluxo diaspórico do público,
processos de reunião e dispersão das pessoas conforme seus interesses e gostos
estejam representados ou levados em conta nas ofertas das casas de
entretenimento. Muitas preferem freqüentar espaços heteronormados como
churrascarias ou bares com música ao vive por mais que não se permitam a elas
mesmas ter demonstrações de carinho com a parceira, porque ali conseguem
conversar e comer ao mesmo tempo em que escutar música da sua preferência e
não funk, pancadão ou bate-estaca. Desse modo, talvez seja possível delinear uma
explicação da dispersão das mulheres mais velhas que reunidas na Plural deveram
emigrar para outros espaços na procura do que a Arena não proporciona. Nas
palavras de Butler,
A subject does not simply come upon a scene in wich it recognizes
another as itself and then worries the line of non-differentiation that
besets that encounter. For the subject to ‘come upon a scene’ and to be
capable of recognizing something as similar to itself implies that its self
and its other already conform to some pre-established norms of
reconginzability. Such subjects have been entered into the norm of the
human prior to any recognition, and recognition consist precisely in the
reflective awareness that each has already been constituted as ‘human’.
Accordingly, the failure of recongnition in such a scene indicts the
norms of inetelligibility that govern the constitution and exclusion of
subjects from the variable sphere of the human. (2000: 34)
Se os teatros são mapas das culturas as que pertencem, como analogia à
frase de Schechner, posso dizer que as boates são mapas dos grupos que as
freqüentam. Os modos de aglutinamento e conformação dos grupos, quem está
possibilitado de integrá-los e no sentido contrário, quem é banid@ ou rejeitad@
traz uma luz sobre que tipo de sujeitos são possíveis e desejáveis.
87
Capítulo III: Rabo de saia e coturno
O público é uma das principais variáveis da constituição e do caráter particular
de um lugar. Falar em “construção espacial” supõe analisar os modos como as
pessoas se apropriam de um espaço determinado constituindo nele um universo
de sentido cuja carga semântica particular ganha sua força de interpretação e
significado a partir desses modos particulares de habitá-lo. Partindo desta
categorização, este capítulo analisará as diferentes variáveis que compõem o
público
75
dos estabelecimentos pesquisados: estéticas, faixa etária, modos de
sedução e lógica de constituição dos grupos.
@s “quem”
@s quem, o público que freqüenta os lugares, está desenhado nas estéticas. As
estéticas, por sua vez, estão desenhadas a partir de concepções morais e etárias.
Assim, explicitam a diversidade etária, de expressão de gênero e de procedência
social das pessoas, conforma os grupos e constituem as marcas visíveis das
fronteiras que os contornam.
Cada grupo que conforma o público reúne uma serie de características na
apresentação de gênero
76
, o lugar de preferência para ficar, a constituição dos
casais, os horários de chegada e saída e as preferências musicais. Essas marcas
permitiram enxergar os modos em que determinadas características da vida social
se manifestam nos lugares pesquisados e quais os traços da vivencia da
sexualidade que se tecem nessa trama. Nesses espaços convergem estilos que
pressupõem diferentes subjetividades em diálogo com apresentações de gênero,
procedência social e idade, pressupondo também diferentes corporalidades. A
vestimenta particularmente funciona como uma interface, um duplo vínculo entre
o pertencimento e a diferenciação tanto para dentro quanto para fora dos grupos
75
Devido ao escopo deste trabalho centrarei a análise nas mulheres que freqüentam os lugares
sem desconhecer a presença dos homens que será levada em conta, mas não trabalhada no
mesmo nível.
76
Em seu artigo sobre a estética em comunidades de lésbicas negras de Estados Unidos Mignon
Moore (2006) utiliza as denominações gender presentation, ou physical presentation of gender
para se referir a “certain kind of genderesd norm through dress, cosmetics, adornments, and
permanent and reversible body marks” (2006, 114) quer dizer, marcadores físicos presentes tanto
na vestimenta quanto na linguagem corporal e os rictus que comporta a apresentação de si.
88
que constituem o público, quer dizer quem vai ou não a cada lugar. O jogo entre
as diferentes apresentações de gênero percorre o caminho da imitação e da
diferença; a imitação que em palavras de Simmel (1969) concede uma
salvaguarda contra a eventualidade de se encontrar abandonado nos próprios
atos, consolidando a sua firmeza em anteriores resultados da mesma ação o que
permite eliminar a suspeita de um novo ato ser um malogro. A diferença que
consolida as individualidades ao mesmo tempo que espelha a diversidade
presente nos lugares pesquisados. No anseio entre ambas desenham-se critérios
de normalidade relacionados com as noções de bom senso e sobriedade
construídas ao redor da tríade vestimenta-idade-apresentação de gênero.
Podem-se estabelecer três grupos que são uma constante tanto na Arena
como na Plural e que respondem a três faixas etárias diferenciadas: de 18 a 25
anos, de 25 a 35 e a partir 35, aproximadamente. Todavia, entre ambas as boates
a média de idade é um diferencial importante. Na Plural a média de idade, tanto
para homens como para mulheres é de 35 anos com uma presença importante de
pessoas com mais de 40 anos, sendo que na Arena é dos 20 aos 25 anos de idade.
Entre os homens a media é mais alta (30 anos), mas entre as mulheres desce. A
proporção de homens aumentou na Arena, basicamente na faixa dos mais jovens,
sendo que aqueles mais velhos que freqüentavam a Plural continuaram assistindo
e formando um grupo de forte presença. Entre as mulheres, aquele grupo de 50
anos de média que freqüentava o terraço da Plural deixou de existir como tal. De
todo modo, sempre tem algumas ‘amostras’ isoladas e não chegam nunca a
constituir esse grupo de forte presença que existia na Plural
77
. Qual será o motivo
desta mudança? Segundo Vitória “as colegas não gostam de vir pra cá porque são
muito caretas”, referindo-se àquelas mulheres da mesma faixa etária dela que não
gostam da exposição que supõe ir para a Arena, localizada no coração do agito
noturno da cidade, a chamada ‘rua da lama’, um espaço heteronormado e de forte
exposição pública. A Plural, localizada na mesma rua, mas a uma distancia de
cinco quadras desse centro, pareceria garantir uma privacidade maior ou um grau
de exposição menor
78
. Por sua vez, existe outra diferença na constituição do
público de ambas as casas: a presença de heterossexuais. Durante o tempo que
77
Como expliquei nos capítulos I e II, uma hipótese da mudança na constituição do público é a
diferença da oferta de musical e a distribuição e localização de ambas as boates.
78
Ao respeito deste análise veja-se a sessão O ovo ou a galinha: redes de socialização do
capítulo I desta tese.
89
freqüentei a boate Plural pude observar pouquíssimas vezes casais heterossexuais
que sempre estavam em grupo com outras pessoas, geralmente freqüentadoras do
local, ficando no terraço e descendo pouco para a pista. Os casais que presenciei
estavam na faixa dos 30-35 anos e não se deslocavam pela casa. Assistiam ao
show da cantora, comiam alguma coisa e partiam logo depois do segundo bloco.
Este comportamento é comparável ao dos casais de mulheres mais velhas, na
faixa dos 40-60, habituées do terraço da Plural que tampouco participavam muito
das atividades oferecidas no térreo.
Na Arena pude observar a presença tanto de casais como de grupos de
rapazes que iam ‘para conhecer como é um lugar de bicha’ ou celebrar uma
despedida de solteiros, por exemplo, perambulando em bando pela casa, às vezes
à espreita de mulheres o que ocasionava alguns constrangimentos para os moços
pelo trato recebido por parte das moças que, inclusive, não vacilavam em chamar
os seguranças se fosse o caso. Geralmente este tipo de grupos aparecia mais
tarde, na metade da noitada, permanecendo pouco tempo e sem se relacionar com
o resto do público. Por sua vez, fui advertida duas vezes (uma na bilheteria
quando estava comprando o ingresso e a outra no balcão do salão comprando
bebida) por freqüentadores do lugar para tomar cuidado com meu dinheiro
porque “esses aí só podem estar aqui pra roubar” o que conota o preconceito e a
segregação frente ao esse outro, o heterossexual, visto como alheio e perigoso.
Nos Bailes da Mary a média de idade é mais elevada, já que quase não
existem freqüentadoras de menos de 30 - 35 anos, e as particularidades da
divisão etária são diferentes devido à homogeneidade na faixa, pesando mais as
diferenças da apresentação de gênero para dentro das faixas. Por outra parte, a
presença de homens é insignificante, sendo que ás vezes não há nenhum,
sobretudo no tempo em que as festas se realizaram no bar do Luiz em lugar do
salão. Uma hipótese possível a respeito é o modo pelo qual os lugares
pesquisados se constroem. Enquanto Plural e Arena funcionam periodicamente
em um espaço particular, pensado e reconhecido especificamente com a
significação de uma casa de baile para pessoas que procuram parceir@s do
mesmo sexo ou um lugar de recreação para casais homossexuais, os bailes da
Mary têm outra origem e ocorrem em outro contexto.
Como já expliquei anteriormente, estes bailes surgiram há cinco anos, a
partir de um aniversário da organizadora. O lugar onde estes acontecem, o
90
Olímpico, é um clube privado que aluga seu salão principal de festas para esse
fim em particular, uma vez por mês. Conseqüentemente, o público da primeira
época está formado pelas amigas da Mary e, imediatamente depois, pelas amigas
delas. A diferença da Plural e a Arena, onde o local preexiste às relações que
nele se desencadeiam, aquilo que constitui o Olímpico é uma rede privada – e
sempre crescente – de relacionamentos. Os bailes da Mary pertencem a uma rede
de festas e encontros
79
de circulação restrita, semi-privada à qual só é possível
acessar através de conhecidas. Esses eventos são pontos nodais e, em certo
sentido, tangenciais, cujo referencial maior é a pessoa que os organiza quem
sempre pertence à rede e geralmente é membro antigo o que lhe outorga certa
autoridade, legitimando a proposta. Esta modalidade cria uma trama de contatos
que tem uma característica importante: a referencialidade. As pessoas entram na
rede por indicação de alguém que as introduz e serve de aval e referencia para o
grupo, constituindo assim o que Elizabeth Bott (1976) descreve como uma
“malha estreita de relações” onde os papéis das integrantes estão bastante bem
definidos, delineados o que gera certos tabus e regras sobre a composição dessa
trama ao respeito dos possíveis intercursos amorosos entre as integrantes
80
.
“O barato dos bailes da Mary é que você aqui tem a boa e velha guarda
sapatona do Rio de Janeiro”, me explica Tatiana, uma freqüentadora não muito
antiga, mas muito bem integrada no grupo de Neyla. Tatiana, de uns 38 anos e
analista de sistemas, chegou até o Olímpico pela dica de uma amiga que já foi
outras vezes e rapidamente fez amizade com Neyla com quem compartilha, aliás
o interesse pelos cultos espírita. Ela gosta do lugar pelo “clima ameno, a música,
o ambiente descontraído e o respeito” já que “ninguém mexe com ninguém, são
pessoas sérias, quer dizer não têm meninas fazendo intrigas
81
”. Gosta também
achar “mulheres e não meninas” e ver que “ainda nessa idade a gente se diverte,
dança, paquera, namora... eu quero poder ser assim de velha, me dá esperanças”,
ironiza.
79
Tais como ‘arraiás GLS em Saquarema’, ‘festa de halloween’ em sítios da zona oeste da cidade
e os churrascos em Méier um domingo ou sábado no mês.
80
Ver apartado “Tou na pista... pro negócio?” do capítulo V.
81
O que não é tão simples assim já que o fato dos bailes estarem insertos em uma rede faz com
que as brigas, intrigas e velhas renzilhas sejam acarretadas de um lugar para o outro
independente do espaço onde tenham começado. Voltarei neste assunto no capítulo V.
91
Sobre saias, calças e bonés
Como já foi mencionado, entre a Plural e a Arena a idade das
freqüentadoras constitui um diferencial, entretanto, os critérios estéticos
imperantes são similares. Tanto na boate Plural quanto na Arena existe um amplo
leque de estéticas e estruturas de casais. Esta variável apresenta marcas
diferentes e visíveis que terá seu correlato no momento de procurar uma
parceira, portanto, no olhar na hora da sedução. O grupo etário que vai dos 25
aos 35 anos é a dobradiça entre ambos os lugares, já que são elas as que
freqüentavam a Plural e agora vão para a Arena. Calça jeans, camisetas de
algodão estilo “baby look
82
e tênis tipo all-star ou esportivos que podem ser
substituídos por sandálias estilo treaking no verão, conformam a estética
predominante nesta faixa. Em relação ao cabelo, não há um parâmetro definido
nem forma uma marca preponderante na definição de papeis de gênero. O uso de
acessórios é caracterizado pela sobriedade: poucos ou nenhum anel, geralmente
grande e de metal com um e sem pedras ou adereços; correntes finas de metal
sem pendente ou com algum pequeno; se tiver, relógio grande tipo esportivo;
pulseiras variadas, mas sempre ‘descoladas’ (nunca do estilo escravas, por
exemplo); unhas curtas e sem pintar e ausência de maquiagem ou, quando
houver, rímel. A expressão de gênero tem a ver também com a massa corporal.
Assim, mulheres mais gordas da mesma faixa etária, em lugar de usar camiseta
baby look usam camisetas largas de manga curta ou camisas. O calçado e o uso
de calça jeans uniformizam os estilos, assim como o tipo de acessórios e o modo
de usar o cabelo, similares aos descritos para as mais magras. Entretanto, a
diferença está no tipo de calça jeans, mais larga, menos apertada e com o cós
mais alto que, junto ao tipo de camiseta diferenciam ambas as estéticas.
É importante marcar que este modo de vestimenta mais unissex tem
correlato na constituição de casais que poderíamos denominar de mais
“igualitários”, pelo menos na aparência estética. Em texto sobre uma pesquisa
exploratória junto a sex-shops em São Francisco e Berkeley sobre preferências e
demandas homoeróticas, Gregori descreve um tipo de casal homoerótico
masculino denominado pela cultura local como clones onde a semelhança na
82
Denominação dada às camisetas de malha de algodão, manga curta, apertada de tal modo que
marque o torço, diferente das outras camisetas mais largas que escondem as formas do corpo.
92
apresentação de gênero “parece indicar a eliminação de qualquer referente que
implique o enfrentamento da diferença seja ela estabelecida em termos de
gênero, seja em termos de outras variáveis como cor da pele, estatura anatômica,
etnia, estilo pessoal ou ainda gosto ao vestir” (Gregori, 2005: 7). Segundo a
autora, este par “é uma alternativa simbólica para o casal que não só é
constituído por parceiros do mesmo sexo, como por um duplo que extrapola ao
limite os conceitos de simetria e de igualdade” (ibid: 9). A configuração estética
de casal que descrevi anteriormente como predominante na faixa etária
intermediária nas boates pesquisadas não pode ser considerado como um clone,
porém, a procura pela simetria e a igualdade guarda sim relação com esta dupla
americana já que não é na complementaridade nem na reunião de opostos, mas na
semelhança e na simetria estética que este tipo de casal se constrói como tal.
Esta descrição feita para a faixa etária de 25-35 anos estende-se também
para algumas da faixa etária seguinte que chega até os 60 anos,
aproximadamente. Esta faixa é a que maior variedade estilística apresenta.
Talvez pareça uma faixa demasiado extensa se comparada com as outras duas,
bem mais demarcadas, mas existe uma divisão bastante clara a partir dessa idade
que guarda relação com os modos de estar nas boates já que é esta faixa a que
permanece no terraço da Plural ouvindo a cantora e, das poucas que migraram,
no salão da Arena escutando o grupo de música ao vivo e assistindo o show da
gogo-girl. Pode-se dizer que a característica distintiva deste grupo é seguir a
lógica do bar e não a da boate, permanecendo em um lugar só, sem se deslocar a
procura das ofertas que a casa propõe
83
o que permite estabelecer pontes com as
freqüentadoras dos Bailes da Mary. Desse modo nesta faixa encontramos
apresentações de gênero masculinas, unissex e femininas com correlatos na
constituição dos casais: o par masculino-feminino é mais comum entre as mais
velhas e o estilo unissex está mais presente entre as mais novas dessa faixa.
Regina Facchini descreve uma divisão similar na apresentação de gênero
das boates do centro de São Paulo: “O modo como diferenciações em torno de
gênero e sexualidade aparecem na área do centro velho remete a recortes de
classe e geração. Entre as mais velhas a distinção entre ‘masculinas’ e
‘femininas’ parece mais rígida, aderindo a padrões mais ‘tradicionais’ (Facchini,
83
Este assunto foi desenvolvido no capítulo II sobre as lógicas temporais da ocupação espacial e
no apartado “A relevância de uma mesa e duas cadeiras” do presente capítulo
93
2008: 119). Entretanto, é notável a ausência do par masculino-masculino tanto na
pesquisa de Facchini como nos três lugares por mim pesquisados no Rio de
Janeiro o que também é levantado por Moore (2006) no seu trabalho de campo
sobre estética em comunidades de lésbicas negras em Nova York. Já o par
feminino-feminino é mais freqüente entre as mais jovens das boates Plural e
Arena, sem deixar de ser excepcional.
Por sua vez, uma diferença a ser considerada é segmentação do público
entre as casas de entretenimento em São Paulo com respeito às boates por mim
pesquisadas onde a diferenciação se constrói ad-portas. A explicação mais
plausível pode ser a grande oferta que há em São Paulo em diferentes áreas
socio-econômicas da cidade, sendo que no Rio as casas exclusivas para mulheres
praticamente não inexistem
84
, salvo alguma noite na semana reservada em
algumas boates e bares ou festas mensais
85
nas quais a presença de homens está
vedada explicitamente ou restringida sutilmente no preço do ingresso e que,
particularmente na área metropolitana ou Baixada, inclusive a oferta para o
denominado público GLS é mínima. Provavelmente a divisão espacial e temática
das boates da baixada e das Zonas Norte e Oeste da cidade
86
sejam um modo
bastante eficaz de salvar esta falta.
Entre as mais novas, a estética heteronormativa reproduz o binário que se
observa nos bares da região, na denominada “rua da lama”, marcada por um
diferencial na expressão de gênero o que se continua na constituição dos casais
onde o par masculino-feminino impera. O visual daquelas mais femininas está
composto por vestido ou saia curtos, sempre acima do joelho com ampla gama de
cores; blusa com decote amplo e às vezes com as costas descobertas; maquiagem;
84
Como foi explicitado na página 28 do Capítulo I, a Casa da Lua e La Girl são os únicos
estabelecimentos da Zona Sul destinados explicitamente às mulheres. De todo modo, nenhuma
das duas casas proíbe o ingresso aos homens. Estes dois estabelecimentos, por sua parte são os
únicos que aparecem nas guias gays e na oferta cultural dos jornais locais como “destinado ao
público feminino” ou “lésbico”. Não tenho conhecimento de bares deste tipo em outras áreas da
cidade e nas conversas com as freqüentadoras das casas pesquisadas também não surgiu outro
lugar. Aliás, perante a minha pergunta ao respeito algumas vezes recebi a resposta de “se você
não sabe que pesquisa o assunto imagina a gente” ou “fala você, estava esperando que tivesse a
boa [dica de lugares novos], não tem nada pra gente”. O que si existe em diversas boates é a
noite da semana que “da mais mulher” em referência ao dia em que o público está composto
maiormente por mulheres e se institui como o de preferência, como já expliquei no Capítulo II
referente ao fluxo do público
85
Ver página 28 do Capítulo I.
86
As boates Papa G em Madureira e 1140 em Jacarepaguá (opção de muitas das freqüentadoras
mais velhas da Plural frente ao desconforto que sentem na Arena) também contam com vários
espaços e ofertas diferentes que cobrem os gostos de um amplo leque de público.
94
abundante bijuteria geralmente de metal que inclui anéis, pulseiras douradas ou
prateadas, dependendo do resto da indumentária, correntes combinando com as
pulseiras e brincos de argola grande, vistosos; cabelo comprido liso de chapinha;
saltos altos variados com predominância de sandálias de salto agulha (pretos,
dourados ou prateados) e plataformas.Calça tipo “cargo” ou jeans escuros,
preferentemente azul, largos que não marquem as curvas das pernas e a bunda,
tênis tipo all star, bermudas e sandálias estilo treaking quando o tempo está
muito quente, camisetas mais largas de manga curta ou sem mangas estilo regata
nem solta nem muito apertada e às vezes boné ou um tipo de chapéu de tecido de
algodão com uma trama quadriculada colocados de lado e às vezes cordões de
metal de elos prateados estilo hip hop, constituem a estética das mais
masculinas.
Este visual mais masculino que acabo de descrever, incluído o chapéu,
assemelha-se fortemente com o dos homens mais femininos da mesma faixa
etária que freqüentam o lugar. Este continum androgininza os limites da díade
homem-mulher e reafirma os da díade masculino-feminino. A apresentação de
gênero descrita materializa o binário para dentro de cada sexo e não entre eles.
Todavia, a androginia se articula na inversão: nas pontas e não no miolo do
leque. O estilo adotado pelas meninas mais masculinas também guarda
semelhanças com as vestes usadas pelos homens mais jovens que freqüentam os
bailes funks descritas por Mylene Mizrahi (2006) o que pode supor a apropriação
de um estilo masculino popular presente em contextos de forte diferenciação
sexual como são este tipo de bailes onde masculino e feminino está claramente
definido na vestimenta, o tipo de movimentos e o estado de espírito (Mizrhahi,
2006: 53). Entretanto outra possível explicação a este tipo de vestimenta e estilo
pode ser o deslocamento que esta faixa etária faz na cidade. Vira e mexe, as e os
mais jovens “descem para a cidade”, quer dizer, para as boates da Zona Sul tais
como La Girl e Le Boy, em Copacabana ou do centro, como o Cine Ideal, não são
as boates mais badaladas da região. La Girl, particularmente, é a menos
conceituada das três, considerada pelas mulheres que freqüentam a Galeria Café,
Dama de Ferro, Fosfobox, 00 ou Pista3
87
como um lugar de baixo nível e até de
prostituição. Entre este público da Zona Sul circula a idéia de que La Girl é
87
Fosfobox, 00 e Pista3 destinam uma ou duas noites da semana ao chamado público GLS, mas
não são consideras GLS, senão da balada eletrônica, especificamente.
95
freqüentada por casais heterossexuais que procuram uma mulher para uma
experiência de ménage à trois e que, por esse motivo, começaram a aparecer
prostitutas oferecendo esse serviço. Também a boate tem o estigma de ser
freqüentada por “mulher feia” entendendo por feia uma estética mais masculina –
porém não andrógina – corpos mais gordos que não denotam cuidado de
academia, longe da estética das moderninhas composta geralmente por calça
jeans largas meio caídas, deixando ver um pouco o elástico da calcinha, que não
marquem muito a bunda ou as coxas, cintos estilo anos 70 de tela e fivela
prateada quadrada (quase nunca de couro), camiseta sem mangas em tons escuros
não muito largas, mas tampouco tão apertadas, cabelos geralmente curtos e
cuidadosamente desgrenhados dando um aspecto informal e tênis de rua isso
tudo em corpos magros onde as curvas não são um valor, quer dizer onde a
androginia é o resultado procurado. Tatuagens e percings costumam completar o
visual. O Cine Ideal, entretanto, faz parte de um circuito mais “descolado” e pelo
fato de se localizar no centro da cidade – essa espécie de zona franca onde é
possível encontrar diferentes tipos de estilos culturais e consumidores variados –
mais misturado que os da Zona Sul caracterizada por uma territorialidade mais
forte.
Uma explicação possível é que este deslocamento produza uma
residualidade em relação ao estilo da vestimenta da mainstream
88
lésbica dessa
faixa etária. Em Marxismo e literatura, Williams explica que “a complexidade de
uma cultura se encontra não apenas em seus processos variáveis e suas
definições sociais – tradições, instituições e formações – mas também nas
interrelações dinâmicas de elementos historicamente variados e variáveis”
(1979:124), lançando mão do que denomina análise de época. Nesta operação, os
88
Na minha dissertação de mestrado usei esta expressão para falar dos “critérios estéticos que
imperam nos pontos de encontro GLS da Zona Sul da cidade, principalmente na chamada baixa
gay em Ipanema que compreende o ponto GLS da praia, à altura da rua Farme de Amoedo e a
extensão da mesma que se configura em um grupo de bares situados na mesma Farme de
Amoedo, na rua Teixeira de Melo ou na rua Barão da Torre. Este setor se constitui como uma
passarela da estética GLS tornando-se hegemônica e de avant-garde.” (Lacombe, 2005: 58). A
comparação da estética das lésbicas que freqüentam esse setor da zona sul com aquelas das
freguesas do Flôr do André (boteco do centro da cidade onde fiz a pesquisa de campo para o
mestrado) é feita como espelho de posicionamentos centrais e periféricos dado que as primeiras
rejeitam como “bregas” e “machonas” o tipo de estética e comportamentos vivenciados pelas
segundas. Este espelhamento pode ser pensado também entre as freqüentadoras balzaquianas e
as mais velhas dos Bailes da Mary, cujo estranhamento deriva da idade e da vestimenta de
“senhoras” que não se condiz com a tipologia de vestimenta que estas mais jovens consideram
“adequada” para uma boate.
96
processos culturais são tomados como sistemas culturais, com determinadas
características dominantes a partir das quais reconhecer movimentos e tendências
entrelaçadas entre si, que ajudam a evidenciar fases ou variações internas,
contemporâneas entre si e históricas. Deste modo, centrando-se no dominante, o
autor apresenta aqueles outros traços que escapam dessa hegemonia
distinguindo-os entre emergentes e residuais. Os elementos residuais foram
efetivamente formados no passado, mas ainda permanecem ativos no pressente, o
que os diferencia dos elementos arcaicos totalmente reconhecidos como do
passado “a ser observado, examinado, ou mesmo, ocasionalmente a ser ‘revivido’
de maneira consciente, de uma forma deliberadamente de uma forma
especializante (...). O residual permanece ativo no processo cultural, como um
elemento efetivo do presente” (ibid,125) e pode ter uma relação alternativa ou
mesmo oposta com a cultura dominante. Por emergente Williams entende aqueles
significados, práticas e valores, relações e tipos de relação que estão sendo
continuamente criados, distinguindo-se de novos elementos da cultura
dominantes por serem “substancialmente alternativos ou opostos: emergentes no
sentido rigoroso e não simplesmente novo” (ibid,126). A identificação destes
elementos supõe uma contextualização temporal nos processos culturais, isto é,
dominante, residual e emergente são momentos nesses processos a serem
preenchidos por diferentes elementos que adquirem esse significado particular
em um contexto histórico particular. Assim, elementos emergentes em um
momento do processo podem mudar para dominantes e logo ser tomados
residualmente por outros grupos diferentes àqueles que os criaram. A moda é um
bom exemplo da forma em que este processo opera. Artefatos culturais,
comportamentos e usos do espaço que aparecem como emergentes e funcionam
como diferenciadores de estilo, uma vez engolidos pela maquinaria da indústria
cultural se colocam como dominantes perdendo a aura da singularidade ou são
absorvidos posteriormente por outros grupos para os quais conserva ainda a
carga semântica que lhe outorga essa efetividade que perdera no grupo de
origem. Concorrer a La Girl e considerá-la como um point de mulheres na Zona
Sul é um elemento residual do comportamento destas jovens da Baixada que tem
no presente a efetividade tida há uns anos atrás para as moradoras da Zona Sul
que atualmente a descartam justamente pelo tipo de público que assiste.
97
A moda, explica Simmel, se coloca na interferência entre dois anseios: a
igualdade e a diferenciação representados respectivamente no movimento de
reunião e dissolução que confirma seu caráter social (1969,120). Por sua vez, a
tragédia da moda é que nela participa apenas uma parte da sociedade, vivendo a
outra o drama de perseguir sem jamais lograr alcançá-la. No processo da
massificação perde sua propriedade; quanto mais se expande, mais próxima se
encontra da sua própria decadência dado que assim se anula gradualmente seu
poder diferenciador. Falando do mercado GLS paulista, Isadora Lins França
(2007) explicita a diferença que aparece entre os ‘modernos’ e ‘descolados’ que
transitam o centro de São Paulo e os ‘quase-modernos’ que mesmo
compartilhando referenciais estéticos “o modo de combiná-los, sempre um pouco
acima da nota, com acessórios ou roupas ‘fora do lugar’ ou obtidas em lojas de
produção altamente massificada” (2007: 246) constitui o diferencial, o ‘quase’
que explicita o limite e a segmentariedade dos espaços e públicos da cena GLS
(2007:247). Os ‘modernos’, “ao mesmo tempo em que valorizam um
conhecimento reproduzido em pequena escala e restrito aos seus detentores
considerados legítimos, também atraem a atenção da mídia e contribuem para a
massificação de tendências que atuariam justamente como marcadores da sua
diferencia em relação ao mainstream e que também são assimiladas por grupos
sociais que não pertencem a essa categoria como forma de distinção em relação a
outros grupos (2007: 244)
Salto alto, sandália de couro, tênis de corrida, tênis de rua, sandália de
treaking, coturnos, tamancos, sandálias de salto alto, mocassim, sapato de couro,
sapatilha... a variedade de calçados que pode-se encontrar olhando para o chão é
uma metáfora que ajuda a entender a diversidade de estilos presentes nas casas
de divertimento pesquisadas. Neste sentido, uma questão interessante de ser
relatada é a diferenciação de papéis que o calçado denota, às vezes, na
constituição dos casais que freqüentam tanto a Arena como a Plural. Alguns
exemplos: um casal de mulheres na faixa dos trinta anos: calça jeans azul escura,
camiseta baby look (de diferentes cores, uma branca e a outra verde seco) e
decote redondo na base, ambas de cabelo comprido escuro (uma, cacheado e a
outra, escovado), sem maquiagem e com pouca bijuteria; uma veste tênis de
corrida e a outra sandália de salto alto preta com detalhes em prata. Outro casal,
um pouco mais jovem, na casa dos 25 anos, trajadas com saia curta (um pouco
98
mais comprida do que mini-saia, quer dizer na metade da coxa), blusa sem
mangas colada no corpo com decote amplo e costas descobertas, abundante
bijuteria (pulseiras e anéis de metal prateado, brincos e correntes douradas com
elos pequenos e pingentes), maquiadas; uma veste sandálias tipo treaking pretas
e a outra sandálias de couro com plataforma de cortiça. Geralmente a
diferenciação do calçado vai acompanhada de comportamentos mais corteses ou
mais receptivos dessa cortesia, respectivamente, como abrir a porta, fazer a fila
para comprar bebidas, servir bebida no copo ou dar a mão para subir a escada.
De todo modo, também pude observar que esses mesmos casais podem mudar a
estética para pontos mais extremos do leque estético da expressão de gênero no
tocante à tipificação entre o masculino e o feminino, sempre respeitando os
papéis que se evidenciavam nos sapatos.
“Velha ?, nem a vovozinha”
89
: códigos de vestimenta, idade e sedução
Um dos particularismos dos espaços de socialização lésbica pesquisados, e
me atreveria a dizer também gay, é a heterogeneidade etária do público que os
freqüenta, o que traz consigo a convivência, nem sempre feliz, de lógicas e
visões diferentes sobre o que uma idade e outra podem ou devem fazer ou deixar
de fazer em relação à estética, papeis sexuais e comportamentos na noite. Estas
diferentes visões funcionam como estratégias de legitimação e deslegitimação no
que respeita à constituição de grupos e ordenamento moral dentro dos recintos.
Como já foi explicado no primeiro capítulo, nos bailes da Mary foi justamente o
público o que mais estranheza me causou. A casa fervia de mulheres numa faixa
etária predominante de quarenta a setenta anos, sentadas em grupos dentre quatro
e oito pessoas por mesa, havendo também mulheres sozinhas e casais. A estética
é tão variada quanto a constituição dos casais. Algumas das mulheres são
velhinhas de saia até o joelho, blusa, meias de nylon, sapatos de salto (embora
não muito alto), agasalho de lã com botões nacarados, unhas curtas – porém,
cuidadosamente feitas e pintadas –, óculos de correção, cabelo curto pintado e
maquiadas. Pela descrição, “não dão pinta”, quer dizer, o tipo de vestimenta, o
89
Inspirada no título do livro Velha é a vovozinha. Identidade feminina na velhice, de Flávia de
Mattos Motta, depois de observar as intra-festas organizadas dentro dos Bailes da Mary para
comemorar o nascimento de netos de varias habituées.
99
rictus corporal, o penteado, o olhar e a maquiagem não são percebidos pelas
outras mulheres como sinais visíveis delas serem lésbicas ou gostarem de
mulheres.
Entretanto, aquelas mulheres aparecem com suas parceiras no Olímpico e
têm expressões explícitas de carinho entre elas como estar de mãos dadas, se
beijar apaixonadamente ou dançar juntas se sentindo “como adolescentes”,
segundo as palavras que elas mesmas usam, ou “parecendo adolescentes”
segundo algumas freqüentadoras novas que olham com certo estranhamento o
quadro. Elas conformam o grupo “A” que, todas as vezes que eu fui naquele
lugar, estavam sentadas com as mesmas companheiras, nas mesmas mesas em
frente da pista
90
. Elas são também as mais velhas do baile. Parecem responder a
uma conjugalidade igualitária: não há critérios estéticos diferenciados dentro dos
casais. Nessa mesma faixa etária (entre cinqüenta e setenta anos), também estão
aquelas outras que integram o grupo “B”, com uma apresentação de gênero
masculina: calça comprida preta, cinto de couro com fivela de metal, colete ou
paletó no mesmo tom, camisa branca, gravata também estilo rodeio e botas de
cano alto tipo texano ou sapatos de vestir de homem, acompanhadas de cabelo
curto grisalho, unhas curtas sem pintar e a ausência completa de maquiagem.
Dentro deste estilo, encontrei várias vezes uma das freguesas com duas amigas –
que costumavam compartilhar a mesa – e que, vira e mexe, estavam
acompanhadas por diferentes mulheres, quase sempre mais novas do que elas.
Essas parceiras ocasionais mais jovens portavam uma estética bem mais
feminina: mini-saia ou calça apertada, salto alto, blusas com decote amplo,
cabelo comprido, maquiagem e unhas compridas e pintadas. Geralmente,
enquanto o trio das freguesas dialogava entre si, as outras ficavam caladas ou,
mais raramente, conversavam entre elas.
Esses dois estilos até aqui apresentados aparecem como antagônicos, mas
abrangem no meio um leque bastante mais amplo de outras possibilidades,
aparentemente relacionadas com a idade e o estado de “à procura”, “procurada”
ou “acompanhada”. As manifestações de carinho – tais como ficar de mãos
dadas, se beijar na boca ou dançar juntas ao som da música melódica – são
freqüentes e abertas ao longo de toda a faixa estética e etária.
90
Ver análise da distribuição das mesas na sessão Reservando as mesas no Capítulo I desta
tese.
100
Deste modo, entrar nos bailes da Mary pode ser uma experiência radical
que espelha nas mais jovens vivências da velhice distantes da imagem social
sobre a terceira idade. “A primeira vez que entrei na Mary foi um impacto! a
idade das mulheres, as roupas, era como ver a minha vovó na pista, isso mexeu
comigo, será que estarei procurando alguém nessa idade? Tenho medo de estar
solteira aos sessenta e ter que procurar alguém nesses lugares...” me explica
Paula, uma cliente ocasional de uns 40 e poucos anos, freqüentadora de boates de
música eletrônica da Zona Sul carioca como a Galeria Café onde conheceu a sua
atual namorada, uma médica tijucana de 34 anos. “O declínio do desejo, a perda
de atratividade física e o virtual apagamento como pessoa sexuada estão entre as
principais marcas e condições do envelhecimento que sustentam, em grande
parte, o repudio e o medo generalizado do corpo em degeneração e, em
contrapartida, a avaliação positiva que se faz da juventude”, explica Julio
Simões (2004: 147)
A idade também pode ser um marcador estigmático de invisibilidade que
coloca as mulheres mais velhas nas margens do mainstream lésbico que tem
entre seus ideais à juventude. O choque de Paula e a dissonância cognitiva que
lhe provocou a idade do público nos bailes da Mary vai nesse caminho. As
classificações por idade como aquelas por sexo ou por classe, explica Bourdieu,
“acabam sempre por impor limites e produzir uma ordem
91
onde cada um deve se
manter, em relação à qual cada um deve se manter em seu lugar” (1983: 112).
Para Paula as freqüentadoras dos Bailes da Mary e os modos de se comportar no
recinto desordenam sua percepção da velhice como um estágio de apaziguamento
e sobriedade nas práticas de socialização; as atitudes do público fogem dos
padrões estipulados socialmente para senhoras da terceira idade que, na sua
cabeça, poderiam ser a sua avó. Não é por acaso que uma amiga de Paula (da
mesma faixa etária, professora universitária e moradora do posto 6, em
Copacabana) que foi algumas poucas vezes no Olímpico me perguntou “o que
você faz neste zoo?” Eu, com 35 e 36 anos no período do trabalho de campo,
fazia parte da mesma faixa etária delas. Esta situação produzia certo
estranhamento e curiosidade em relação a minha presença festa trás festa que era
91
Grifos no original
101
compreendido e até justificado por elas quando explicava que o motivo era estar
fazendo pesquisa.
Passaram duas festas e Milene (funcionaria de uma empresa privada,
moradora de Niterói e perto dos 40 anos) não aparecia. Ela agora tem namorada,
me disse uma amiga, e o que tem isso a ver? perguntei, ué, me respondeu, não
vai trazer a garota pra cá onde tem várias paqueras dela né?foi a resposta. Na
festa seguinte ela apareceu, sozinha. Ela tinha brigado com a namorada e voltava
para “dançar um pouco com as amigas, se divertir”
92
. Mais uma vez tinha voltado
para o mercado. “Não gosto deste espelho; não quero chegar a velha assim,
desesperada, quero chegar a velha já do lado de alguém com quem percorri o
caminho, com quem tenho uma historia”, agrega Paula. Para as mulheres do
grupo “C”
93
a relação de “à procura”/velhice escapa ao bom senso e se coloca nas
antípodas das expectativas de futuro
94
, aparecendo como um indicador de
fracasso na carreira moral amorosa que tem como horizonte uma parceira
estável.
Por sua vez, o reconhecimento e a legitimidade de quem ‘pode gostar de
mulher’, quer dizer, que é lida como mulher que gosta de mulher, estão marcados
pelo correlato entre estética e idade. Quando a Gabriela fala para Paula, ‘meu
amor, elas poderiam ser a tua vovó, o que acha que elas vão vestir?’ ela está
localizando a namorada no contexto de situação: são mulheres de certa idade que
para os olhos de Paula estão ‘fora de lugar’ deslocalizadas, desde estarem em
uma situação de conquista até as roupas que para ela são as de “uma vovozinha”.
Por sua vez, as próprias mulheres dessa idade acham fora de lugar vestes
“exageradas” como decotes muito amplos, saias muito curtas ou calças muito
apertadas o que faz de ‘palhaça’ a mulher que as usa. O que Bourdieu (1988)
denomina princípio de pertinência opera marcando os lindes da correção, desta
vez com a relação idade-estética como variável de ajuste para delimitar os
critérios de normalidade. O vestuário, para Bourdieu, é uma extensão dos outros
92
Sobre os significados de “se divertir” ver capitulo V sessão “Tou na pista... pro negócio?” desta
tese.
93
Ver o apartado “Reservando as mesas” do capítulo I
94
De todo modo, as integrantes do grupo “A” têm suas regras com respeito aos modos de
exercitar esse flerte que guardam relação direta com as categorias morais de bom senso e
discrição analisadas no capítulo V.
102
bens de consumo cultural, e um dos tipos de consumo que melhor realizam a
função de associação e dissociação.
Um fato interessante é que mesmo que a estética esteja marcando uma
reprodução de modelos heteronormados, muitas das mulheres mais jovens que
freqüentam as boates de Nova Iguaçu às vezes trocam de estética passando, de
um final de semana para outro, de um modelo mais masculino a outro
hiperfeminilizado, compondo uma fluidez no seu comportamento. Poder-se-ia
falar de um estar feminina ou masculina que se constrói entre as nuances
estéticas presentes no lugar e não em base a parâmetros externos. A diferença
não tem que estar colocada necessariamente na novidade, mas na mudança dentro
do leque de possibilidades existentes. A que responde esta mudança? A
economia da sedução pode ser uma explicação: a quem querer agradar compõe
um quadro específico de vestes, movimentos e espacialidade. Se voltarmos à
apropriação espacial analisada no Capítulo I, em relação à conformação de
grupos e ao fluxo do público no recinto, no que respeita aos timmings, descrito
no Capítulo II, este passar de uma estética para outra supõe um transitar entre
diferentes lógicas dento dos nodos que compõem a trama das boates. Permear as
lógicas implica uma camaleonização na apresentação de si para se adaptar a um
estilo em particular e constituir parte de alvos diferentes dentro da economia do
desejo. Posso conjeturar que esta camaleonização na apresentação de gênero é
uma estratégia de adaptação dentro mesmo princípio de pertinência, quer dizer
“estruturar um estilo como modo de representação que, por sua vez, expressa o
modo de percepção e de pensamento próprio de um grupo particular” (Bourdieu,
1988: 48).
Fernanda tem 30 anos e é uma assídua freqüentadora da Plural.
Geralmente sua apresentação de gênero está entre um estilo unissex e um mais
masculino (calça jeans larga, camisa social de homem também larga, sapatos de
camurça com meias brancas esportivas, ausência de maquiagem, unhas curtas e
sem pintura) marcado sobre tudo pelo rictus corporal de movimentos duros de
braços e mãos e modos de sentar-se com as pernas abertas e o torço inclinado
para a frente, os cotovelos apoiados sobre as coxas e os braços para a frente
formando uma seta que fecha nas mãos entrecruzadas que sustentam o cigarro
ou, pelo contrario, com o torço jogado para atrás apoiado contra a cadeira, o
quadril na ponta do assento da cadeira e as pernas abertas deixando o corpo todo
103
com um tom de displicência. Ela vai sempre sozinha porque a menina com quem
namora há um ano “só agora fez 18 e não podia entrar na boate” o que,
aparentemente, não a preocupa demasiado porque paquera abertamente outras
mulheres no lugar, entre as quais eu. Depois de um par de noites flertando
comigo sem sucesso ela se apresentou na boate com um visual completamente
diferente: saia um pouco acima do joelho, salto alto, camisa feminina colada no
corpo, o cabelo encaracolado penteado com gel e jogado para trás e maquiada.
Ela mudou até o rictus corporal, incorporando os estereótipos da mulher
decorosa: sentar de pernas cruzadas, caminhar com passos curtos, o movimento
das mãos mais solto e, estando emficar com uma perna levemente dobrada e
virada para frente, como se quisesse esconder ou tapar a zona da virilha.
Surpresa, eu lhe perguntei o motivo de uma mudança tão radical ao qual me
respondeu que talvez vestida desse jeito ela conseguisse me convencer a
namorar essa noite
95
. Fernanda achava que a minha rejeição em noites anteriores
devia-se ao fato dela ser mais masculina o que, a seu ver, não era o estilo de
mulheres que eu olharia e menos ainda namoraria. “Eu acho que você não gosta
de menina assim... mais bofinha, mais masculina; tu prefere mais menininha né?
mais mulherzinha. Tu não olha pra sapatona então mudei o visual porque eu
também posso ser mulherzinha, posso ser tua mulherzinha se quiser, e eu quero
ficar com você. Pra minha mulher eu sou homem porque ela me vê como seu
homem, mais se você quer que eu seja mulher eu posso ser muito mulherzinha”
argumenta.
O acionar de Fernanda deixa em evidência que reconhecer ou decodificar
um estilo não é suficiente, é necessário investi-lo, embodificando
96
as marcas que
esse código “significa”. Quer dizer, não estar investida dessas marcas tem como
95
O termo namorar tem uma polissemia contextual: namorar alguém não é a mesma coisa que
namorar uma noite na boate ou ir namorar depois da boate. Neste caso o oferecimento era para
ficarmos juntas essa noite dentro da boate e depois, talvez, se a coisa fluir continuar em algum
lugar onde fosse possível o intercurso sexual.
96
Utilizo este neologismo derivado do termo inglês embodiment – em contrapartida à palavra
equivalente em português “encarnar” – pela carga de significado que possui em relação à
importância do corpo como lugar através do qual habitamos o mundo. Devo também esclarecer
que, reconhecendo a autoridade de Csordas (2002) sobre o paradigma do embodiment, minha
interpretação do termo aproxima-se da visão de Ingold (2000), que não prioriza uma noção cultural
sobre outra natural do corpo, mas reconhece seu caráter biológico. Assim, e seguindo Bateson
(1972), Ingold supõe o embodiment como um modo relacional de pensar o corpo, no qual o sujeito
adquire (embodifica) as habilidades que utilizará para socializar (habitar o mundo). A partir deste
ponto de vista, o embodiment permite continuar uma lógica de pensamento que perpassa o
grande divisor entre Natureza e Cultura, atuando como uma ponte entre ambos.
104
correlato a invisibilidade: “tu não olha pra sapatona”. Em palavras de Rooke, “a
visibilidade de certos tipos de identidades lésbicas contemporâneas sedimenta a
maneira pela qual elas se fazem óbvias. [...] O efeito disso naquelas que não
podem, ou não querem, ser ordenadas significa que estão presas nas diferenças e
sutilmente excluídas da produção da embodificação da identidade lésbica” (2007:
264). Do mesmo jeito que Fernanda, outras mulheres dessa faixa etária e mais
jovens que freqüentam tanto a Plural como a Arena mudam o visual de acordo
com tipo de mulher que querem procurar ou o tipo de mulher que pretendem que
as procure. Se for necessário, esta estratégia vai acompanhada com mudanças do
espaço em que elas se movimentam o que significará ficar mais tempo na pista
ou na área de música ao vivo. Uma vez mais, a diversidade de grupos presentes
nas casas pesquisadas coloca na estética uma marca fundamental na tipificação e
divisão dos grupos construindo bordas ou pontes entre eles. Talvez seja o mais
próximo a tal de fluidez sexual das moderninhas mas representada só na estética
e não na escolha de parceria sexual que é fixa (sempre mulher).
Não dar pinta: a arte da invisibilidade
A apresentação de gênero também contribui para a visibilidade ou
invisibilidade das mulheres enquanto lésbicas, seja em relação a outras lésbicas,
ou no que diz respeito ao grupo social. De todo modo, essa invisibilidade joga
um duplo papel de estigma acusatório e orgulho, um jogo entre ser enrustida e
parecer nada a ver, mas ser ou não dar pinta que marca modos particulares de
vivenciar a orientação sexual.
97
Justamente estas mulheres que ‘não parecem’ ou ‘não dão pinta’ habitam
as fronteiras entre ser ou não ser, em relação à construção social do imaginário
do que uma lésbica deve ser, imaginário que já não compreende só as mais
masculinas – sapatonas, fanchas – mas aquelas com um visual mais andrógino ou
unissex característico das balzaquianas que freqüentam as casas de divertimento
analisadas na presente pesquisa. “Within the constructs of a given identity that
invests certain signifiers with political value, figures that do not present those
97
A questão da tensão entre a escolha da visibilidade ou invisibilidade da orientação sexual é
desenvolvida na seção Diz a tua verdade... e quebra-te? do capítulo IV da presente tese.
105
signifiers are often neglected. Because subjects who can ‘pass’ exceed the
categories of visibility that establish identity, they tend to be regarded as
peripheral to the understanding of marginalization.(Walker, 1993: 868)” Assim,
esse passar por [heterossexual] coloca em questão as fronteiras para dentro e
para fora do que pode significar ser lésbica. Este jogo estético não
necessariamente supõe uma fluidez nos comportamentos ou nos gostos sexuais;
ser mulher não tem um correlato direto com passar pro outro bando [se
heterossexualizar], ou ir e voltar [ser bissexual], como explica Maria
98
,
freqüentadora da boate Plural e logo da Arena:
“eu gosto de me vestir assim, como mulher, usar maquiagem, fazer
unha; isso não quer dizer que eu goste de homem, tou nem aí pra
homem ou pra mulher-macho. Gosto é de mulher assim mais
feminina, não tão machão, não tão sapatão... nada contra!, você
conhece a minha colega [em referencia a uma amiga com quem ela
estava o dia em que a conheci cuja apresentação de gênero pode ser
identificada como masculina], mas eu não gosto de macho não”.
Investir uma apresentação de gênero associada à mulher heterossexual não
acompanha per se preferências sexuais por homem, por mulher com uma
apresentação de gênero masculina ou por mulheres e homens indistintamente. É
por esse motivo que as mulherzinhas ou bonecas trazem o perigo escrito nas suas
saias, saltos altos e unhas compridas
99
, por um lado desmanchando o imaginário
social da lésbica e por outro desconstruindo e desestabilizando a diferenciação
entre hetero e homo-normatividade. A sapatona não é, a priori, objeto de desejo
do homem; em todo caso pode ser a cúmplice no gosto ou uma concorrência. Ela
está fora do mercado heterossexual. A masculinidade da sapatona coloca a
lésbica nas antípodas da heterossexualidade, o que pode gerar rejeição, mas por
sua vez dá sentido ao binário, estabiliza a diferença e a alteridade: se afasta do
tipo ideal de mulher e a tira da economia do desejo heterossexual. A sapatona é
legível na representação social como lésbica a despeito da mulherzinha que
ocupa um lugar ambíguo, de difícil definição o que, por sua vez, a silencia como
lésbica. A mulherzinha pode ocupar o nicho contrário da sapatona, quer dizer, o
mesmo que ocupa a mulher heterossexual. Entretanto, esse silêncio em relação
98
Sobre a biografia de Maria ver página 139 do capítulo IV desta tese.
99
Sobre a importância das unhas na construção da percepção do ‘ser lésbica’ veja-se a seção
“Sobre tesourinhas e esmaltes” no capítulo V desta tese.
106
ao imaginário social se traduz em rejeição no discurso ativista, por considerá-lo
como estereótipo da reprodução da imagem de um tipo de mulher heterossexual e
da expressão do feminino: “the rejection of the femme produced limits for
lesbian feminine expression and grounded middle-class white femininsm within
an androgynous aesthetic. (Halberstam, 1995:121).
A androginia estética citada por Halberstam é visível no campo na faixa
intermediária de idade, quer dizer, mulheres entre 30 e 45 anos
aproximadamente, com uma extensão para os 25 na Plural e Arena. Por exemplo,
o fato de eu ser estrangeira supõe uma invisibilidade a partir do momento em que
o caráter de estrangeira tem o sentido de "estranha", isto é, traz com ele um
estranhamento que não tem a carga positiva que poderia ser colocada na
curiosidade ou no exotismo, mas sim uma carga negativa relativa à falta de
pertença, o que implica o desconhecimento das marcas estéticas e corporais de
subjetivação particulares a cada grupo. Este lado "negativo" redunda na
invisibilidade daquela que não investe essas marcas estéticas que dizem respeito
aos diferentes grupos que compõem aquilo que Rooke chama de habitus lésbico.
Para a autora, este conceito “ajuda a pensar os momentos em que os sujeitos
experimentam, ou não, o sentido de pertencimento, momentos estes em que a
embodificação, a visibilidade e a aparência estão em funcionamento” (Rooke,
2007: 232). Entretanto as mais velhas com uma apresentação de gênero que pode
ser considerada mais feminina, aquelas do grupo “A” dos bailes da Mary,
também rejeitam o binômio butch-femme, colocando o peso estigmático maior na
mais feminina por ser considerada indecorosa nos seus decotes, exagerada na
maquiagem e problemática no modo em que se comporta no salão. Neste caso
acho que o ethos de geração joga um papel essencial na vestimenta, e portanto, o
fato de usar saia e maquiagem diz mais sobre as concepções morais sobre a
relação entre vestimenta e idade do que das práticas do desejo.
Estética e sedução
A idade das freqüentadoras, a música, os intervalos da cantora no primeiro
andar e dos shows no térreo e a divisão em dois andares conformam na Plural
uma correlação de instâncias para a aproximação entre as pessoas, na maioria das
107
vezes com intenções de flerte. Na Arena, entretanto, essa correlação não aparece
tão claramente definida, uma vez que a idade do público e as divisões espaço-
temporais da boate tampouco o são, o que poderia supor maior fluidez nas
instâncias que constituem a noite. De todo modo, uma variável a ser considerada
neste ponto é o tempo que cada uma das boates tem funcionando. A Arena abriu
suas portas em setembro de 2007 e a Plural já estava em atividade há sete anos
como casa de divertimento para o público GLBT, o que supõe certa clientela com
determinados modos de estar no lugar. Mais uma vez, os usos do espaço
determinam a sua significação e o transformam em um lugar específico cujas
características estão escritas ou inscritas nos timmings, isto é nos modos de
apropriação que o público faz dele. Como já foi analisado no capítulo II, tais
apropriações precisam da repetição para se constituir e tal repetição, portanto,
deve reconfigurar-se quando a relação espaço-temporal internalizada se
modifica. A sedução presume o conhecimento, a internalização e a mecanização
dessas variáveis que devem ser claras e estáveis, servindo assim de colchão (vale
a metáfora) ou de base para o desenrolar do leque do flerte.
Uma diferença palpável entre os homens e as mulheres que freqüentam a
Arena e freqüentavam a Plural é o fato de as mulheres raramente chegarem
sozinhas. Em geral, chegam com alguma outra mulher – presumivelmente
namorada – alguma amiga ou em grupo. Assim que entram, sobem para o terraço,
na Plural, ou dirigem-se ao salão de shows, onde se unem às amigas e aos amigos
que já estejam lá, ficando no grupo que vai se formando ao longo da noite. Esses
grupos aos quais estou me referindo parecem se movimentar através de certa
“solidariedade mecânica”. O grupo, como um todo, observa aqueles que o
observam e, através do olhar dos seus integrantes, ele ganha corporeidade e
coesão, alargando, assim, a abrangência do “radar” que lhe permite interceptar os
olhares externos para logo informar à pessoa do grupo que é objeto desse olhar.
Quando uma pessoa está interessada em outra, existe uma estratégia
reiterada entre os grupos, a qual consiste em mandar um mensageiro ou uma
mensageira que explicite a intenção de flerte ao sujeito sobre o qual recai o foco,
a fim de averiguar as possibilidades de uma aproximação maior. Às vezes, a
pessoa interessada está visível no grupo – olhando de perto a troca de palavras
entre a pessoa de seu desejo e @ mensageir@, indicando de algum modo quem é
a pretendente, mas na maioria das vezes é necessário aproximar-se do grupo para
108
vê-la, já que ela fica apagada no meio d@s demais integrantes. Uma vez lá, é
mais difícil dizer não sem pelo menos dançar uns momentos ou iniciar uma troca
básica de palavras de reconhecimento da outra.
Este modo indireto de aproximação tem outra variante, desta vez fixada no
intercâmbio de olhares e não na troca verbal: uma pessoa, que não faz parte de
determinado grupo, cruza o olhar com outra que pertence a ele, mas que não é
aquela de seu interesse; explicita então, sempre através da troca de olhares ou de
gestos, o gosto por determinad@ integrante do grupo, de tal modo que o
interlocutor informe a situação para ela, deixando a “palavra” final no
cruzamento de olhares entre @s interessad@s. Se for aceita, a pessoa aproxima-
se do grupo, ou @ integrante sai do seu grupo e vai até a outra, começando o
flerte. Entretanto, a rejeição se explicita com o afastamento do olhar de todo o
grupo, indicando assim a imposição da exclusão.
Por sua vez, existe também um modo de flerte direto que acontece quando
duas pessoas cruzam os olhares e começam um diálogo através deles, o que
normalmente implica a aproximação de uma das duas que convida para beber
alguma coisa ou simplesmente pega a outra para dançar. Este modo direto de
flerte é mais generalizado na pista na hora de dançar, já que os grupos se
desmancham dando lugar a espaços de maior individuação. Em ambos os tipos de
estratégia o olhar adquire carga performativa ou, nas palavras de Austin, o olhar
possui uma força particular que traz com ele o valor da ação. Entretanto, para
que este ato ganhe a força do significado que supõe tal carga performática, as
circunstâncias da sua emissão devem ser apropriadas, pois é o contexto que
define o valor dessa emissão (Austin, 2003: 144). Essa força performática gera
efeitos no receptor. Tomando um dos tipos de estratégia indireta antes
mencionada, se o integrante do grupo que recebe a intenção de flerte – o receptor
– não a aceita e afasta o seu olhar da pessoa externa ao grupo e que a está
seduzindo – o emissor – o ato de afastar o olhar produz um efeito particular
sobre este último: a rejeição. No entanto, toda esta situação só adquire sentido
para aqueles que aceitam, entendem e compartilham as regras deste ritual
comunicacional. Compartilhar essas regras significa compreender o contexto de
determinada situação e concordar com as condições da economia particular a ele
referente. Todavia, acho importante remarcar que estas práticas de aglutinamento
e sedução, sobre tudo as indiretas, respondem a um recorte etário, sendo
109
características das mais jovens já que as da faixa etária de idade mais avançada
desenvolvem uma estratégia diferente.
No que diz respeito à cor, esta parece não ter um papel preponderante na
hora da constituição de grupos nem do flerte. As categorias que claramente
estruturam tanto a formação de grupos, quanto a procura de parceria são os
critérios estéticos constituídos por marcadores sociais e os etários relativos aos
ethos morais marcados pela geração. Pude observar casais heterocrômicos
integrados em grupos com casais monocrômicos de brancas ou negras nos três
lugares pesquisados e em todas as faixas etárias. Aliás, durante as conversas com
as freqüentadoras, a cor ou a raça não apareceram como marcadores de
preferências, nem como carga pejorativa ou de rejeição na hora de depositar o
olhar na procura de uma possível parceira. Perante minha pergunta sobre se já
tiveram sexo casual ou companheiras de uma cor diferente à delas, muitas
responderam que sim e estranharam a minha pergunta. “Branca, preta, azul ou
vermelha, basta com que haja química”, “agora que você pergunta... eu não acho
tão importante esse assunto”, foram algumas das respostas que recebi.
Entretanto, dentre aquelas que nunca tiveram a experiência, a ‘falta de
oportunidade’ apareceu como a explicação junto com a aclaração de não ser por
preconceito: “ainda não fiquei com nenhuma [branca], mas não é por
preconceito, só não se deu ainda a situação”. Ao respeito Facchini (2008) faz
referência á pesquisa quantitativa realizada na Parada do Orgulho GLBT do Rio
de Janeiro (Carrara, Ramos, 2005) onde “as mulheres que se identificaram a
partir de categorias que remetem à homossexualidade, são muito mais flexíveis
que os homens que se identificam de modo semelhante no que diz respeito a
características esperadas de possíveis parceiros/as do mesmo sexo. Perguntadas
sobre a preferência por parceiras a partir de idade, instrução, nível econômico,
cor e atributos de gênero, a maior indiferença diz respeito a cor – 75,2% se
disseram indiferentes”. (2008: 236). Neste mesmo sentido apontam os resultados
da sua pesquisa de campo realizada na cidade de São Paulo onde “tamm foi
evidente um silêncio em torno à questão racial” (2008: 236).
110
A relevância de uma mesa e duas cadeiras
A socialização pública das mais velhas, os modos de paquera, os modos de
manter relações de amizade constroem-se em torno de uma mesa: a palavra não é
só uma ferramenta importante na sedução, mas um tipo de aproximação que gera
confiança, intimidade e cumplicidade. No que podemos denominar como a lógica
do bar, a mesa é primordial. Usada para depositar pertences, copos, bebida ou
comida é o centro da territorialidade, a ‘base de operações’ a partir da qual ser
organiza o estar no lugar. Na lógica do bar se situar é uma premissa importante.
Só depois de ‘acomodadas’ acontece a movimentação pelo espaço. A lógica da
boate, por sua parte está regida pela circulação. As pessoas percorrem os
diferentes âmbitos do recinto, geralmente em grupo de modo tal que a
territorialidade perde o valor que possui na lógica do bar.
Assim o “quer sentar e beber alguma coisa? Vamos nos conhecer melhor”
caracteriza a lógica do bar e responde à necessidade de reconhecimento que vai
da mão da perda de anonimato. Deste modo se compõem roteiros de sedução
centrados em uma estrutura temporo-espacial que responde à lógica de chegada-
mesa-dança-mesa expostos no capítulo II
100
, misturando-se a lógica do bar e a da
boate para formar à da sedução. Isto acontece tanto nos bailes da Mary como na
Plural e na Arena. Entretanto, nas duas boates existe uma divisão etária já que as
mais jovens (basicamente a faixa que vai dos 18 aos 25) instituem uma lógica
diferente centrada na pista e na dança, contrariamente à supracitada centrada na
mesa que foi analisada no apartado anterior. Num sentido posso dizer que vão à
contra-fluxo das mulheres mais velhas. Elas transitam muito mais entre os
diferentes espaços dos recintos, permanecendo a maior parte do tempo em pé em
grupos, dançando na pista, que se constitui como lugar dileto, e na Arena, se
deslocando para o salão na hora do funk. Até o balde de cerveja ofertado na
Arena se movimenta com elas funcionando como centro do grupo: colocam o
balde no chão da pista e dançam ao redor.
Por outra parte, o uso da mesa também estabelece um diferencial enquanto
à performance de gênero. Em casais “mulherzinha-sapatona”
101
, a mulherzinha
100
Esta roteirazação deve ser lida à luz dos momentos frios e quentes que foram expostos no
capítulo II desta tese.
101
Por uma mulher cuja apresentação de gênero está constituída por saia ou vestido, camisetas
coladas no corpo, sandálias (geralmente de salto alto), maquiagem, bijuteria, unhas pintadas e
111
pode ficar parada ou querer dançar com mais assiduidade que a sapatona que
fica sentada bebendo, olhando o que acontece no lugar ou conversando com
outras que estão na mesa. O uso da mesa aparece como uma divisão entre as
performances de gênero masculinas e as femininas. “Vai, dança com ela um
pouco, ela quer dançar o tempo todo” me diz uma freqüentadora dos bailes da
Mary, pegando a minha mão para juntá-la com a da namorada. “Ela é chata! não
sei para que vem, quase não dança, fica sentada no canto conversando com as
outras!”, queixa-se aquela com quem estou dançando. Na boate Plural, a
dinâmica é similar: as mais masculinas têm o controle e o poder, tanto da fala
(exterior ao casal) quanto do dinheiro e, portanto, do consumo. Segundo as
minhas notas de campo: “Sábado 18-11-06, boate Plural. Casal na minha frente:
mulata de mini-short, camisa branca decotada e salto alto, cabelo comprido
cacheado, colares, maquiada e unhas pintadas e compridas; acompanhada de uma
mulher aparentemente mais velha de cabelo curto, camiseta de tear (tipo
mexicana) de cor natural, calça jeans e tênis, sentada e olhando como a outra
mulher dança para ela. Toma-a pela cintura e a leva para perto, toca-lhe as
pernas e a bunda (a pedido da outra)”.
A economia da sedução dos lugares pesquisados constrói-se ao redor da
idade e das estéticas que definem apresentações de gênero relacionadas à díade
masculino-feminino. Entre as mais velhas, a comunicação não se estabelece
somente através da dança ou do olhar, sendo necessária a conversa como modo
de tateio inicial. A idade como marcador ergue-se como variável de explicação
das diferenças nos modos de sedução. Assim, a busca por uma mesa na qual se
instalar a noite toda e o apelo à conversa como estratégia de aproximação que
impera tanto nos bailes da Mary como entre as mulheres mais velhas das boates
Plural e Arena desenham uma ponte que parece responder a uma trajetória etária
mais de que a uma procedência social.
Como temos visto, nos três espaços pesquisados, o leque de estéticas e as
estruturas de casais são bastante amplos. Esta pluralidade dá conta de uma
heteronomia que joga por terra a homogeneização de um único grupo, se
algumas vezes compridas e uma outra vestida com calça (jeans, cargo, bermuda larga de
homem), camisas soltas ou camisetas largas, tênis ou sapatos fechados de homem ou sandálias
estilo treaking.
112
considerarmos a variável da orientação sexual para defini-lo. A tríade
vestimenta-idade-apresentação de gênero que define a estética imperante nos
lugares também desenha critérios de normalidade diretamente atrelados às
noções de bom senso e sobriedade que ganham a força de categorias morais. Por
sua vez, estas categorias respondem a ethos geracionais que demarcam os
critérios de normalidade, a partir do momento em que desenham imaginários
sobre as diferentes atuações que devem ser investidas pelos sujeitos presentes no
campo. Desse modo, a divisão etária imperante nos estabelecimentos pesquisados
reconstitui uma hierarquia interna na qual a diversidade é uma constante que, no
entanto, não deixa de fora a diferenciação e a estratificação. Não existe uma
única feminilidade ou uma única masculinidade com a qual se identificar, e sim,
ao contrário, e segundo as apresentações de gênero descritas, uma variedade de
sítios identificatórios que dão conta da complexidade de negociação que tem na
habitação da prática seu maior poder e eficácia.
113
Segunda parte: Trajetórias morais
114
Capítulo IV: Os imperativos da feminilidade
Reconhecer o outro é o processo que se inicia quando o sujeito e o outro
entendem que estão refletindo a si mesmos mutuamente, sem ser este reflexo o
resultado da fusão de um no outro, tampouco uma projeção que aniquila a
alteridade. Nesse processo, ambos entregam-se à construção de uma relação que,
na realidade, se constitui como a própria base de existência do eu e do outro.
Tais relações, por sua vez, trazem à tona diferentes estratégias de negociação que
tornam possível a evidenciação de determinados repertórios de sujeitos – isto é,
um leque de subjetividades possíveis de se habitar – em detrimento de outros.
Reconhecer um repertório sobre outros, compromete-nos não só com
determinado ponto de vista sobre o que a vida é e deveria ser, mas também com
uma ideia do que significa ser humano e o que não o é. Estes repertórios estão
condicionados por visões de mundo do indivíduo, constituídas por valores
sociais e morais e anseios individuais.
Nessa articulação entre o social e o individual, produz-se uma tensão que
eu chamo de imperativo,
102
uma mise en scène da relação entre papéis social e
culturalmente atribuídos aos indivíduos em relação ao lugar na família e na
sociedade e a visão de si mesmos quanto a essas atribuições. Tais imperativos,
enquanto controladores da manutenção de determinadas ordens sociais,
contribuem para fixar ou cristalizar determinados sujeitos com determinadas
características como passíveis de representar certos papéis, habitar certos corpos
e conduzir certas práticas em situações espaço-temporais específicas. Por meio
da repetição destas convenções socialmente impostas que contêm a força
semântica da normalidade, os sujeitos são enclausurados na aconchegante
moldura da norma a partir de um duplo movimento: a partir de uma
autoimposição de valores que se constituem como a consciência moral do sujeito
e a partir da imposição externa, uma espécie de legado vindo da família e dos
102 Como explica Laplanche, em seu Diccionario del Psicanálisis, em 1921, em “Psicología de las
masas e análise del yo”, Freud define o ideal do eu como uma instância que tem as funções de
auto-observação, de consciência moral, de censura onírica e de exercício da influência essencial
na repressão. Esta atribuição do eu, noção primigênia do que mais tarde seria desenvolvido como
supereu, me ajuda a definir a noção de imperativo, já que explicita o espaço inconsciente e
individual do conceito.
115
grupos sociais nos quais se insere. Por sua vez, o cumprimento de tais
imperativos – esse aconchego a que fiz menção – supõe uma adaptação a essa
ordem, e seu descumprimento, uma frustração enquanto desvio da norma. Assim,
e no que interessa para a presente análise, tais imperativos dizem respeito ao
lugar e ao comportamento que os sujeitos denominados “mulher” devem investir,
performar em suas relações sociais. Enquanto atávicos, estão relacionados com
visões mais tradicionais dos papéis atribuídos aos indivíduos em diferentes
ordens do mundo social no qual se inserem.
Os significados de se ser mulher estão atrelados a determinadas pautas
sociais e morais que sinonimizam mulher com feminino, homem com masculino e
inserem ambos no interior de um padrão heterossexual. As noções de feminino e
masculino, por sua vez, estão estereotipicamente associadas a diversas
características que costuram os significados do que se considera um
comportamento “próprio” de cada uma delas. Tais características são o que eu
chamo de imperativos da feminilidade, dentre os quais, a heterossexualidade e a
maternidade aparecem como fundacionais já que garantem simbólica e
materialmente a reprodução dos regimes sociais.
Contudo, enquanto ordens de sujeição a determinado regime social e
moral, os imperativos desenham, como já assinalado anteriormente, repertórios
de sujeitos socialmente viáveis, marcando as fronteiras dessas subjetividades
habitáveis e, com isso, o terreno das abjeções. Sendo assim, como as mulheres
analisadas na pesquisa encaram esses imperativos como ponto de partida? Quais
as estratégias de negociação usadas para habitar tais imperativos como lésbicas
e/ou desmontar as implicações de se viver fora deles?
Luiz Fernando Dias Duarte explica que “a maior parte das afirmações do
senso comum relativas à família no mundo ocidental moderno referem-se às suas
características dentro do universo das camadas médias” (1995: 33). Seu eixo está
centrado na família nuclear que funciona como um todo indivisível, um
“indivíduo (indiviso coletivo)” (ibid: 32), célula mínima à qual se pode reduzir a
categoria família. Tal redução obscurece outros arranjos, que ficam solapados
por trás dessa noção que se erige em modelo. Segundo o autor, outra
característica que surge da tendência à redução da ideia de família àquela
nuclear, paulatinamente imposta às classes médias e aos trabalhadores da
116
indústria no final do século XIX e inícios do XX, é a residência monofamiliar,
“uma das estratégias de ‘higienização’ da nova família que incidia exatamente
sobre todas as aderências consideradas perversas, perturbadoras da ‘paz
doméstica’” (ibid: 32).
Esse modelo de família nuclear incorpora, por sua vez, determinados
valores referentes à monogamia, à heterossexualidade e à reprodução que, a meu
ver, se comportam não como eixos explícitos, mas como imperativos atávicos
sobre as noções atuais de família, para além da diferenciação social. No mesmo
artigo, Dias Duarte afirma que, apesar do espaço que a mulher vem ganhando na
assunção do projeto individualizante, a reprodução, especificamente a gestação,
continua sendo a “tarefa” por excelência da mulher, já que, biologicamente, o
homem não está capacitado para tal fim. Entretanto, reprodução é, de fato,
sinônimo de maternidade? E, por outro lado, a maternidade está necessariamente
associada à constituição de uma família nuclear triádica de dois adultos e uma
criança?
103
É justamente nos modos de se lidar com tais imperativos por parte
dos sujeitos descritos no trabalho de campo, enquanto mulheres que mantêm
relações afetivas e/ou sexuais com outras mulheres, que se centrará o presente
capítulo.
Todavia, pensar essas estratégias desenvolvidas para conjugar esses
imperativos com a constituição das sociabilidades lésbicas permitirá alinhavar
alguns arranjos de parentesco que acompanham tais conjugações. Na noção de
família moderna, argumenta Fonseca, “o primado do afeto tornou a separação
conjugal algo natural: quando termina o amor, termina a relação. O mesmo
primado, expresso em teorias de psicologia infantil, decretou a irrevogabilidade
da relação filial. Nesse caso, vemos como os ‘novos arranjos familiares’
introduzem uma certa virada no antigo debate sobre consangüíneos versus afins
na antropologia do parentesco” (Fonseca, 2008: 772). Para além disso, a
103
Nesse sentido, Yanagisako argumenta que ainda que existam diferenças nos modos de se
conceber as relações mãe-filho/a, ela é considerada a forma primigênia da organização
doméstica, derivada de fatos biológicos determinantes da procriação e da alimentação da criança.
“While there may be differences in the manner in which the mother-child unit is linked to larger
organizational structures, the bond itself is perceived as essentially the same everywhere and
derived from the biological facts of procreation and nurturance (…) there is the belief that
reproduction - that is, the provision of properly enculturated personnel to fill social positions
necessary for the perpetuation of the social order - is the primary activity of the domestic domain.”
(1979: 189). O que se colocará em questão aqui será tanto a generalização da relação mãe-filho,
quanto a funcionalidade da maternidade. Ao pensarmos a reprodução como um imperativo, as
estratégias desenvolvidas serão as que redimensionam sua importância e funcionalidade.
117
separação conjugal não significa necessariamente o fim do afeto, mas a
redefinição do mesmo e a conservação da categoria família para o vínculo ou
para o afeto a ser construído e mantido fora da conjugalidade. Seguindo Salem
(2006), quero trazer à tona alguns casos observados no percurso do trabalho de
campo que podem servir como forma expressiva
104
(2006, 428) para se entender
os diferentes modos com que os imperativos da feminilidade convivem com as
sociabilidades lésbicas, sem cair na noção de transgressão. Trata-se de
estratégias forjadas perante as condições de possibilidade para se constituírem
como sujeitos possíveis e visíveis, ou seja, estratégias para vivenciarem ou, ao
contrário, evitarem o imperativo da reprodução.
Necessidade de pai?
Vitória tem por volta de cinquenta anos, mora na Pavuna com o pai e a
filha, e é professora aposentada já há alguns anos. “Tive minha filha por
produção independente.
105
Eu sabia que queria ser mãe, mas mesmo tendo ficado
algumas vezes, nunca gostei de homem, nem queria um pra sempre na minha
vida”, me conta. Quando a filha era pequena, Vitória começou um
relacionamento com Raquel, que culminaria em sete anos de coabitação. Nesse
contexto, Raquel, a namorada, cuidava da filha de Vitória: “Eu trabalhava o dia
todo, voltava às dez horas da noite, então, ela ficava com a minha filha e cuidava
da casa, mas eu pagava um salário de babá porque, pra mim, cuidar filho dos
104
Em “Tensões entre gêneros na classe popular”, Salem fala em “formas expressivas”
como estratégia de análise de determinado comportamento – nesse caso, a circulação
dos homens entre a casa e o exterior como resposta ao binômio dentro (feminino) x fora
(masculino) – por considerar ser este um modo de se evitar “o divórcio entre Fato e
Valor”, quer dizer, um descompasso entre as informações etnográficas e o modelo como
justificativa das disparidades que possam aparecer no interior do próprio modelo. No
caso da presente tese, essas formas expressivas dão conta de situações nas quais as
temáticas analisadas no capítulo apareceram durante o trabalho de campo e os modos
em que as mesmas foram descritas pelas pessoas, um modo também de se descreverem
a si mesmas, quer dizer, modos de apresentação de si.
105
Denominação que remete à decisão de uma mulher de criar filh@s sozinha. Desse
modo, a gravidez faz parte de um projeto individual, e não em conjunto com o homem
como parceiro. Durante o trabalho de campo feito no Flôr do André, esta categoria
também surgiu na figura da Detinha (Lacombe, 2005: 67). Mesmo sendo a criança
concebida no interior de uma relação em que o homem estava ciente da paternidade, ela
falava do filho como “de produção independente” porque “já que estava ficando com
homem e eu queria ter filho, aproveitei o cara como pai”.
118
outros é um trabalho, mesmo sendo a minha mulher. Depois que a gente se
separou, elas continuaram se frequentando. Imagina que passavam mais tempo
entre elas do que comigo! Pra minha filha, a Raquel é a dinda, é família, e agora
que já passou o tempo, temos uma relação, assim, sabe... de família”. Vianna
(2002: 102) aponta as diferentes representações de parentesco que se desenham
nos processos de guarda de menores, formando “o universo de referência de
todas as outras representações produzidas como ser ou não ser ‘boa mãe’; ser a
‘verdadeira mãe’; ser ‘realmente parente’; ser ‘como alguém da família’”. Tais
representações, explica, iluminam a configuração social na qual estão inseridas.
O fato de Vitória e, sobretudo, sua filha considerarem Raquel como família
explicita um modo de se encaixar este laço duradouro sem denominação
específica para um afeto que ultrapassa as barreiras da amizade, mas fica fora do
universo dos arranjos de parentesco tradicionais.
O conceito de “maternagem”, com origem na psicanálise, explica Erica
Souza, “refere-se às atribuições sociais ao ‘papel’ de mãe. Dessa forma, o
exercício da maternagem estaria tradicionalmente reservado às mulheres, e
centrado na noção de cuidado” (Souza, 2005: 60). Segundo Nelson (apud Souza,
2005), nas famílias compostas por casais lésbicos, não existe um nome ou um
papel reservado para as companheiras das mães biológicas, ainda que exerçam a
maternagem ou a maternidade. Podemos dizer, inclusive, que ainda não há um
código de conduta socialmente estruturado no qual essas mulheres possam
simplesmente se encaixar. “Enquanto a introdução de um padrasto pode requerer
alguma negociação dos detalhes de seu papel e de sua autoridade, sua presença
não requer que a maternagem, tanto o conceito quanto o papel atuado na família,
seja completamente renegociada. Mas é exatamente essa renegociação da
maternidade que a introdução de uma segunda mulher na família requer”
(Nelson, op.cit, p.35, apud Souza, op cit. 123). É nessa negociação que
poderíamos inscrever a relação contratual que Vitória estabeleceu com sua
parceira.
Como negociar o imperativo da maternidade? Por um lado, Vitória não
abre mão da individualidade que atribui à ideia de produção independente. Ao
mesmo tempo, ressignifica a noção de cuidado, ao aportar os recursos
econômicos suficientes para sua filha, dentre os quais, a atenção diária que sua
parceira proporciona à menina.
119
Se colocado como um trabalho remunerado, o cuidado exercido por
Raquel perde a força da possível disputa no terreno do simbólico e ganha lugar
naquele do afetivo. A filha de Vitória nunca considerou Raquel como sua mãe ou
mãezinha,
106
mas como a dinda, a madrinha. Mesmo sabendo explicitamente da
relação homoafetiva existente entre sua mãe e Raquel, segundo o relato de
Vitória, a filha nunca semantizou a relação entre elas como de maternidade.
A combinação entre relação, transação e meio é essencial na hora de se
definir o que está em jogo; por sua vez, e as temporalidades da relação estipulam
os limites perante os quais é possível entender determinados intercâmbios
econômico-morais. O fato de Vitória pagar para que a parceira cuidasse de filha
reforça um fato importante: a ideia da produção independente. A concepção da
menina é cabalmente um projeto individual, do qual a pessoa que ela escolheu
como parceira não participou, marcando uma separação da reprodução da noção
de casal, de conjugalidade.
107
De todo modo, o vínculo é impreterivelmente
criado na convivência, mais ainda se a pessoa se ocupa dos cuidados com a
criança enquanto a mãe trabalha fora.
Entretanto, o que acontece quando a reprodução é concebida como uma
estratégia de emancipação e libertação do imperativo da heterossexualidade, no
qual os termos mãe e filha perdem a carga semântica da relação “mãe-filha”?
Morena, magra e musculosa, baixinha, cabelo encaracolado na altura dos
ombros, Graziela bebe uma cerveja na área VIP da Arena, enquanto observa o
público que dança a seus pés, na pista. Vestida com calça jeans e tênis de rua,
exibe uma camiseta cujo desenho chama a minha atenção: um signo de
“diferente”. Mora em Petrópolis, e como “lá a noite GLS é meio caída, sabe,
então, com alguns amigos alugamos uma van e, de 15 em 15 dias, vimos pro Rio,
106
Este é o caso da disputa entre Maria Eugênia Martins, conhecida como Eugênia –
parceira de Cássia Eller durante 14 anos – e o pai da cantora pela guarda de Chicão,
filho de Cássia. O apelativo utilizado pelo garoto para se dirigir a Eugênia – que dele se
ocupou no dia a dia é o de mãezinha. Em dezembro de 2001, Cássia Eller morreu de
uma parada cardíaca. Nesse momento, ela morava com seu filho e Eugênia, que se
ocupava da atenção diária ao garoto, já que a carreira da cantora supunha ausências
reiteradas para tournées. Ela havia expressado publicamente, em diversas ocasiões, o
desejo de que seu filho permanecesse com Eugênia, caso alguma coisa viesse a
acontecer com ela. O pai de Cássia Eller entrou com um pedido na justiça para obter a
guarda do menino, pedido este que foi negado, abrindo um precedente como um caso
jurisprudencial no país. A este respeito, ver Souza (2005).
107
Se, parafraseando Marilyn Strathern (1995), não existe necessidade de pai, por que
tem de haver necessidade de duas mães? Ou, de outro modo, a conjugalidade situada
fora da reprodução desatrela-se da ideia de permanência que, supostamente,
acompanha a relação mãe-filha/o.
120
pra diferentes boates”. Ela tem 30 anos e namora mulheres desde os dezoito “que
uma mulher me agarrou, e eu pensei: ‘caraca!, que é isso tudo que tô sentido!’ aí,
foi uma loucura, fiquei um... dois anos indo em festinhas, saindo o tempo todo”.
Graziela é cabeleireira e mora sozinha há três anos. “Antes, morava com meus
pais e minha filha, mas como eu trabalho o dia todo, ela se criou com eles”.
Pergunto-lhe então porque foi morar sozinha e deixou a filha morando com os
avôs, ao que, assinalando com as mãos o desenho da camiseta, me responde,
“porque sou diferente”. Pergunto, então, “você acha que, por ser diferente, sua
filha deve morar com eles?”, e Graziela desenvolve a seguinte argumentação:
“Naquela época em que comecei a ficar com mulheres, a coisa estava meio
complicada em casa com esse assunto. Aí, eu vi que meus pais queriam netos;
nós somos três irmãs [ela é a do meio], eles queriam netos porque somos
mulheres, então, eu pensei, ‘quem lhes der o primeiro neto, tá em paz!’, aí eu
vim pro Rio, peguei um carinha e pronto, engravidei, e minha filha foi a primeira
neta. Agora, eu faço o que eu quiser da minha vida. Meus pais sabem de mim, e
está tudo bem. A minha filha é como uma filha a mais deles e, pra mim, quase
como uma irmã caçula”, e ri da própria piada.
Poderia argumentar que esse exemplo que acabo de apresentar responde a
uma lógica bastante corriqueira no Brasil, onde é comum os avós criarem os
netos para que as filhas trabalhem e até mudem de cidade em busca de novos e
melhores empregos e horizontes; ou ainda, perante uma prole muito numerosa,
“dividir” os filhos entre tios, avôs ou familiares com melhores recursos para a
criação, o que Fonseca chama de “circulação das crianças” (2002).
108
Entretanto, a diferença enraíza-se na ação volitiva e premeditada de
procurar a liberação de certas barreiras através do cumprimento de determinados
imperativos sociais. Paradoxalmente, gerar um filho converte-se no modo de
construir o reconhecimento de uma orientação sexual fora da norma. Cumprir a
norma para poder subvertê-la: ser mãe para poder ser independente, ser
108
“Aponto para a possibilidade de dinâmicas familiares ‘alternativas’ que, apesar de não
se encaixarem no modelo dominante de família, gozam de popularidade e até de
legitimidade entre determinados setores da sociedade. Nesse caso, a compreensão da
vida familiar no Brasil contemporâneo exigiria do observador um esforço para
considerar, além da norma hegemônica, essas dinâmicas alternativas, sendo a
circulação das crianças em grupos populares apenas um exemplo. (...) Nem mero
resquício do passado, nem necessariamente augúrio do futuro, a circulação de crianças,
tal como a descrevo, seria apenas uma entre várias normalidades possíveis entre as
práticas familiares na sociedade complexa atual” (Fonseca, 2002).
121
independente para poder ser lésbica, colocando a maternidade como uma
estratégia de emancipação da heterossexualidade. Verifica-se uma torção no
termo maternidade enquanto imperativo da feminilidade: por um lado, ele é
deslocado do sentido de cuidado e abrigo, por outro, adquire uma polissemia
conferida pelo mesmo vazio provocado por tal deslocamento. À luz da norma,
existe um vínculo claro de parentalidade entre Graziela e sua filha, mas no plano
da negociação da primeira com seus pais sobre sua sexualidade e suas
obrigações, essa criança pode ser pensada como uma dádiva na troca simbólica
entre emancipação [da vivência da sexualidade] e imperativo [da progênie]. O
presente como tal cria uma obrigatoriedade dupla. É, como nos diz Mauss,
obrigatória e voluntariamente dado e recebido. Este sistema supõe, assim, a
obrigação de dar, receber e de retribuir. Neste caso, o presente dado por Graziela
é a filha, e a retribuição da mãe, a libertação ou permissão moral para que
vivencie sua sexualidade.
Graziela presenteia os pais com a primeira neta, fundando a linha de
sucessão e, no mesmo ato, desvincula-se da obrigação da heterossexualidade
como retribuição. Sua filha não foi acolhida pelos avós por maltrato, nem por
falta de recursos da mãe, tampouco foi dada até eu poder me sustentar.
109
De
acordo com sua narrativa, ela foi gerada com o propósito da troca. Não por
acidente, mas por decisão e vontade própria, com um progenitor desconhecido,
fora do seu âmbito de circulação cotidiana. Desse modo, a lógica de dom e
contra-dom que deveria imperar entre mãe e filha, seguindo a ordem do
parentesco, inverte-se e posiciona, como já mencionado anteriormente, a mãe-
avó na situação de contra-dom, de obrigação. A criança enquanto “coisa”
recebida como dom compromete doador e donatário em uma liga moral (Mauss,
2005: 365). Sendo assim, tal liga origina uma obrigação – neste caso, moral – do
donatário que, se quebrada, implica uma sanção, uma punição, no mesmo sentido
que o presente – quer dizer, moral – o que Mauss define como o duplo
significado da palavra presente: dom e veneno.
109
Como todos os casos observados por Cláudia Fonseca ao longo de quase dez anos
de pesquisa de campo entre famílias de camadas baixas de Porto Alegre, relatados no
seu artigo “Mãe é uma só? Reflexões em torno de alguns casos brasileiros”. Entretanto,
acho necessário fazer a ressalva de que nenhum dos casos apresentados nesse texto
fazem referência a uma mãe biológica lésbica.
122
Diante desta situação, o tom jocoso utilizado por Graziela para dizer que
se sente mais irmã do que mãe da sua filha, em lugar do constrangimento moral,
é mais um dado se para entender o que chamo de estratégia de emancipação por
imperativo. Pareceria, talvez, de uma perspectiva comum, uma tarefa mais
simples enfrentar os pais sobre sua orientação sexual ou, ao contrário, calar-se
sobre esse fato. A opção escolhida por Graziela, no entanto, não a desloca da
família como completamente desviante, o que a obrigaria, provavelmente, a um
afastamento por rejeição – no caso do enfrentamento – nem a obriga a ficar em
segredo, o que, segundo seu relato, a levaria ao terreno do incômodo. Neste caso,
a estratégia adotada pode ser pensada no interior de uma lógica segundo a qual a
circulação de crianças é uma prática corriqueira, como já explicado
anteriormente. De todo modo, diferentemente do enunciado por Fonseca sobre tal
prática: “um conceito analítico que, embora evidente na razão prática de muitas
famílias, não aparece como valor consciente, nem mesmo como prática
reconhecida, pela grande maioria de sujeitos envolvidos” (2002), aqui parece
haver um maior nível de consciência, ao menos no que diz respeito à
possibilidade legitimada de deixar os netos sob cuidados dos avós. É justamente
nessa brecha, nesse interstício que Graziela coloca a possibilidade de vivenciar
sua sexualidade e obter sua independência, evitando o conflito. Esta prática não
somente dispensa a figura do reprodutor como pai
110
– fui lá no Rio, peguei um
carinha e engravidei – como também desapega a própria gestante da figura de
mãe – mas do que filha, eu a vejo como a minha irmã caçula – realocando ambos
os papéis nos avós.
Paula e Gabriela
111
estão juntas há dois anos. Mesmo sem morar na mesma
casa, cogitam a possibilidade de ter filhos. Paula gostaria de gerar, mas com a
sua idade (44 anos), acha um pouco arriscado. Gabriela, com quase dez anos a
menos, não vê com muita felicidade o fato de ter de ser ela a “colocar o corpo”;
não sabe se está disposta a ver seu corpo mudar. De todo modo, caso optem por
110
Marilyn Sthratern chama a atenção para a análise de Malinowski sobre a suposta
“exclusão” do papel do pai nas Trobiands, assinalando que, na verdade, essa exclusão
só existe como tal a partir da visão de parentesco euroamericano, já que esse papel
existe, mas não é representado pelo progenitor da criança e sim pelo irmão da mãe. “O
material das Trobiands apresenta uma constelação de elementos que faz um corte nas
noções euroamericanas sobre a perfeita continuidade entre relações sexuais, gravidez e
reprodução humana” (1995: 318).
111
Para uma maior referência sobre elas, consultar a pág. 101 do capítulo III.
123
um filho biológico, terá de ser por inseminação artificial – nunca fiquei com
homem porque não gosto, não vai ser pra ter um filho que vou ficar, né? – e o
doador do esperma, algum amigo gay para que “a criança tenha uma referência
paterna”. Para elas, a produção independente se coloca no registro do
individualismo e do egoísmo: “isso de trazer uma criança no mundo sem pai, só
porque a mulher quer ser mãe, é injusto para o filho; não conhecer o pai, não dar
um pai, é muito egoísmo dessas pessoas”. Entretanto, perante a hipótese da
adoção, a necessidade de um pai não se coloca como um imperativo porque “essa
criança, de não ter nada, coitada, teria uma ou duas mães”. Por que estabelecer
diferença entre as necessidades de um filho adotado e de um outro, biológico?
Por que qualificar de egoísta a prática da reprodução biológica que não considera
a presença do pai como uma necessidade? Será que, como explica Uziel
(2007:14), no caso das novas tecnologias reprodutivas, “dá-se um filho a uma
família” e, no caso da adoção, “dá-se uma família a uma criança”? Note-se que a
palavra filho acompanha a reprodução assistida e a palavra criança, a adoção.
Desse modo, a filiação só responderia a laços sanguíneos?
Posso conjeturar sobre uma correspondência constituída pelo viés
biológico, que vincula a necessidade de pai – a figura do homem – a uma
concepção tradicional de família, e a adoção, que o faz em relação a uma noção
não tradicional de família. O que destaco aqui é a negociação existente entre
Paula e Gabriela, tanto entre si quanto em relação à sociedade, perante o anseio
de serem mães e lésbicas ao mesmo tempo. Biologizar a nova família traz
consigo considerações morais heteronormativas, a adoção, por sua vez, aparece
como correlato do novo arranjo familiar que não precisa de pai para prosperar.
Nessa biologização, conserva-se em parte a heteroparentalidade carregando o
doador com o sentido de paternidade e dissociando a maternidade em biológica e
social. Pode-se pensar numa tríade que, baseada na homoconjugalidade das mães
e na heterossociabilidade com o pai, conserva na escolha da maternidade
biológica o atrelamento à construção de uma linhagem com uma matriz
heteronormada.
A escolha se desdobra em adoção ou inseminação e, nesse último caso,
com ou sem pai. Segundo Souza, a “preferência entre lésbicas por pais ou
doadores gays, visando a reprodução é comum” nos depoimentos obtidos em sua
pesquisa realizada no Brasil e no Canadá, com o “intuito de evitar problemas
124
futuros de homofobia, por parte da família e/ou dos amigos do pai/doador”
(2005: 122) Um argumento similar está presente no artigo de Miriam Grossi
sobre gênero e parentesco gay no Brasil. “Uma das fantasias mais recorrentes
entre jovens lésbicas é a inseminação artificial com o esperma do cunhado (ou
seja, do irmão da parceira) como forma de garantir a consanguinidade da criança
(com os traços físicos e emocionais da família) e, sobretudo, um lugar
socialmente garantido no parentesco através da nominação dentro de ambas as
famílias, uma vez que avós, tios e primos são consanguíneos” (2003: 273). No
entanto, a escolha de um homem gay também tira do imaginário a possibilidade
de intromissão do futuro pai biológico na estrutura do casal, preservando com
isso a conjugalidade das mulheres da “predação” do homem.
De todo modo, a diferenciação é colocada pelas entrevistadas na
necessidade da criança em relação ao que elas acham que deveriam ser dado a
um filho. Caso fosse adotada, a criança deveria estar disposta a receber o que lhe
fosse dado no novo lar: de não ter nada na vida passa a ter duas mães. Ou será
que o desamparo moral da criança a ser adotada equipara-se ao desamparo legal
do casal homoparental? Isto é, mesmo com o imperativo da reprodução como
fundacional da feminilidade, o fato de se ser lésbica recoloca tal imperativo fora
das prerrogativas de se ser mulher.
112
Por sua vez, enquanto casal, não se está
legalmente contemplado para adotar - delicada situação para aquela que não for a
requerente da adoção. Pareceria que um estatuto diferenciado conferido à criança
adotada é transmitido ao casal ou, dito de outro modo, duas mães não são
suficientes para uma criança que integra a família através de laços biológicos e
não de aliança.
113
O que está em jogo aqui não é o estatuto da criança per se
adotada ou biológica – mas o valor que ela tem para o casal na conformação da
futura família. Dito de outro modo, o estatuto da criança definirá o estatuto da
família nuclear, seja ela formada por duas mães em coabitação ou por duas mães
mais um pai sem coabitação que, no entanto, a integre.
112
E aqui o argumento de Monique Wittig de que as lésbicas não são mulheres perde
seu espírito de revolta para um menos feliz de exterioridade pejorativa ou de expulsão.
113
Lembre-se que, entre os casos de eugenia, a homossexualidade era considerada um
caso de eugenia positiva, já que seres incapacitados para constituir uma família nuclear
optavam voluntariamente por não fazê-lo. Me pergunto aqui se ainda não sobreviveria no
imaginário algum resquício dessas normativas.
125
Volta Herodes!
Ser mãe é algo que pode ser pensado como um desarranjo do modelo de
mulher lésbica, já que supõe o retorno a uma visão tradicional de mulher, dona
de casa, próxima ao modelo heteronormado, em busca de descendência e
alocando na procriação o atributo de feminilidade. Não ser mãe, ao contrário,
aparece como uma distinção de liberdade e individualidade presente no ideal de
mulher moderna apresentado por Heilborn (1992, 1996), no qual a independência
e a realização profissional se constituem como valores de superação,
acompanhados do abandono da coabitação como regra. Filhos fora do projeto de
vida ou projetos de vida fora dos filhos? Várias das mulheres com quem
conversei durante meu trabalho de campo manifestaram o fato de não terem
filhos como uma decisão ou escolha de vida. No entanto, as interpretações dessas
escolhas divergiam bastante quanto aos significados da relação entre não se ter
filhos e serem lésbicas.
Durante o festival de cinema do Rio de Janeiro de 2007, fui convidada por
Vanessa, Isabel e Tatiana
114
– respectivamente uma professora universitária de
história, uma psicóloga que atua numa conhecida instituição estatal e uma
analista de sistemas, as três na casa dos 40 anos – para assistir a Lírios d´água,
filme lésbico francês que fazia parte da mostra gay. Este grupo de amigas
frequentava os bailes da Mary e costumavam se encontrar para assistir a peças de
teatro, filmes ou jogar sinuca. Saímos do cinema no bairro carioca do Flamengo
e fomos beber um chopp em um bar das redondezas. Transcorrido um tempo de
conversa, duas crianças sentadas com seus pais em uma mesa perto da nossa
começaram uma briga que foi subindo de volume até dificultar o diálogo, sem
que os adultos manifestassem interesse aparente em intervir. Vanessa,
notoriamente aborrecida, olhou para a presumível mãe dos párvulos e, em voz
alta, e clara lançou um “Volta Herodes!”, secundado pelo riso cúmplice das
amigas. Perguntei, então, se alguma delas em algum momento tinha pensado em
ter filhos: “Eu comprei um cachorro para ver se conseguia me responsabilizar
por alguma coisa, mas acho que dessa não passa”, obtive como resposta de
114
No momento do trabalho de campo, Vanessa morava em Madureira com a mãe,
Isabel, sozinha em Copacabana e Tatiana na Lapa, também sozinha logo após ter
finalizado um complicado namoro. As três militaram juntas no Partido dos Trabalhadores
(PT) que as vinculou tanto na política como na amizade.
126
Tatiana. “Filho é um grilhão que nunca corta, você fica algemada a ele até que a
morte os separe; eu não quero nada que me ate desse jeito, não”; “se depender de
mim, a espécie humana se extingue” soltaram as outras duas.
As três consideram que ter filhos é uma profissão para a qual não estão
preparadas, nem têm o “desejo ou o intuito de disto se aproximar”. Elas
reivindicam a liberdade que supõe não se ter filhos: “livre, leve e solta pela
vida” é o lema que professam, discordando igualmente das reivindicações de
união civil ou matrimônio para pessoas do mesmo sexo, “por ser uma caretice
que até os hetero[sexuais] estão rejeitando”. Nem mães, nem conjugalmente
monogâmicas, a demanda destas três mulheres coloca-se nas antípodas do sujeito
que a agenda do ativismo LGBT reivindica como possível e legítimo. Seguindo
Vianna (2009: 8), que indaga em relação à localização das homossexualidades na
linguagem/plataforma dos direitos sexuais se esta “não se terá transformado em
elemento secundário frente a outros vetores sociais e morais (os bons casais
gays, estáveis, monógamos etc.), dividindo-se na complexidade dos ‘sujeitos que
enunciam’ (o pedem, como pedem) e dos ‘enunciados que sujeitam’ (porque
podem pedir o que pedem, como merecem pedir o que pedem etc.)”, o que,
seguindo esta lógica, alocaria as reivindicações não normativas e os sujeitos que
as enunciam na categoria de “abjetos silenciados” (porque pedem o que não pode
ser pedido e declinam do que aparece como social e moralmente legítimo de se
demandar).
Por sua vez, tanto Mary como Fátima fazem a mesma referência ao fato de
já terem muitos sobrinhos e disso já ser o bastante para saciar a cota de crianças
por perto. “Já tem muita criança no mundo para trazer mais uma, não é?”, ironiza
Fátima.
O modelo de família nuclear
115
não ocupa necessariamente o horizonte de
expectativas das mulheres entrevistadas, relacionando-se ao tipo de vínculo
existente com a família de origem e a existência ou não de filhos. Por sua vez, o
desejo explícito do espaço próprio também se faz presente como uma conquista
adquirida sobre a noção de casal co-habitacional, de resguardo da
individualidade, por um lado, ou de invisibilidade, por outro. Qual seria então a
fronteira entre amizade e família?
115
Refiro-me à noção de família nuclear anteriormente mencionada, em referência à análise de
Dias Duarte, que se configura como um horizonte enquanto imperativo social.
127
Gullestad e Segalen definem a noção de parentes como o “conjunto de
pessoas ligadas pelo sangue, pela aliança ou pela pseudo-aliança que se
reconhecem não em função de ancestrais, nem de mitos ou de territórios em
comum, mas sim em função de direitos e deveres mútuos que surgem
essencialmente da presença de crianças nascidas ou socializadas entre elas”
(1995 apud Fonseca, 1997:207). Mesmo tirando o foco do sangue e da aliança, a
definição das autoras francesas continua estabelecendo a progênie como eixo
central para se definir laços familiares.
A análise de Kate Weston ilumina outra série de arranjos que costuram a
noção de família na horizontalidade, ou seja, na qual a amizade, substituindo as
conexões biogenéticas ou as associações culturais, coloca-se como a mais
confiável e duradoura das relações de parentesco. “If heterosexual intercourse
can bring people into enduring association via the creation of kinship ties,
lesbian and gay sexuality in these depictions isolates individuals from one
another rather than weaving them into a social fabric. To assert that straight
people ‘naturally’ have access to family, while gay people are destinated to
move toward a future of solitude and loneliness, is not only to tie kinship closely
to procreation, but also to treat gay men and lesbians as members of a
nonprocreative species set apart from the rest of humanity” (Weston, 1997:
22,23).
A discussão trazida por Weston levanta a questão da divisão entre hetero/
reprodutivo vs. homo/ não-reprodutivo como espaços abismais de compreensão
da subjetividade sexual. Por um lado, o parentesco não necessariamente tem de
ser lido à luz da procriação ou da prole – e aí situa-se o ponto de divergência
com a definição bastante aberta de Gullestad e Segalen. Além da orientação
sexual, o foco pode ser colocado na noção de familial, construída através de
laços nos quais a procriação não está em jogo e a ressignificação do vínculo que
alguma vez foi parental ganha o estatuto de família.
Este é o caso de Cristina e Julia que, após terem morado juntas por mais
de dez anos, se separaram, refizeram suas vidas e, dez anos mais tarde, ambas já
com mais de sessenta anos, moram novamente sob o mesmo teto “como família”.
Cristina, funcionária pública aposentada, instituiu Julia como depositária da sua
pensão, no caso de sua morte e a incluiu em seu seguro social. “A gente é
família; já fomos casadas, já brigamos, já fomos amigas... isso que temos agora é
128
família. Eu quero que ela tenha um ingresso, se eu morrer antes do que ela; se
tenho essa possibilidade, então vou aproveitá-la”. Quem pode ser chorado? Quer
dizer, quem é reconhecido com portador desse direito pelas instituições
família, Estado, amigos, pergunta Butler (2006). Nesse sentido, quais são os bens
do afeto a serem negociados e entre quem? Cristina vale-se do reconhecimento
legal de uma união homossexual perante a variável da herança e reconhece em
Julia a pessoa a quem outorgar esse benefício. Por mais que já não se considerem
um casal, negociam a existência deste vínculo de difícil definição na brecha de
sentido que a falta de léxico específico proporciona, quando nos colocamos fora
do imperativo da heterossexualidade.
Sendo assim, sem situar o foco na sexualidade, o parentesco pode ser
recolocado em função de outro tipo de laços igualmente duradouros como as
amizades,
116
eixo da análise tanto de Weston (1997), quanto de Butler (2006).
Nesse sentido, Fonseca, ao falar sobre a homoparentalidade, argumenta que,
mesmo sem ser muito diferente de outros arranjos familiares, “ajuda a ressaltar
certos elementos, temas que exigem debate, e cujas repercussões se estendem
bem além da família gay ou lésbica. Afinal, ajuda a revelar as atuais formas
familiares como “co-produções” que envolvem, além de valores culturais, lei,
tecnologia e dinheiro. Dessa forma, o parentesco torna-se uma questão política
tanto quanto cultural, nos obrigando a repensar “quais famílias que escolhemos
(ou se, de fato, queremos escolher)” (Fonseca, 2008:781). As famílias eletivas
(as famílias que escolhemos) podem ter um reconhecimento social, mas no plano
legal estão apagadas como tais. Assim, a visibilidade social não implica nem tem
como correlato o reconhecimento legal.
Até agora, neste capítulo, situei o imperativo da reprodução no eixo
central da análise. Nesse sentido, o imperativo feminino da maternidade foi
colocado como anseio, estratégia para se escapar à heterossexualidade,
realização pessoal ou impedimento para se experimentar uma vida plena. Nestas
análises, a díade segredo-visibilidade aparecia como pano de fundo. Tentarei
agora outra torção e, mais uma vez, jogando com a metáfora de figura e fundo,
trarei para primeiro plano e como escopo as diferentes nuances com que é tecida
116
A sociabilidade presente no bar Flôr do André, foco da análise de minha dissertação
de mestrado, é um exemplo do modo como o apelo à família é utilizado para denominar
vínculos de difícil definição “nos quais a intimidade, solidariedade e afeto constroem
laços tão fortes e duradouros como os consanguíneos” (Lacombe, 2005, 76).
129
a trama das visibilidades e invisibilidades, desta vez, como resposta ao
imperativo da heterossexualidade, quer dizer, estratégias para contornar
socialmente o fato de não se desejar compartilhar a vida afetivo-sexual com um
homem.
Diz tua verdade e... quebra-te?
Un secreto dentro de un secreto,
un secreto que sólo se explica con otro secreto
es un secreto sobre algún secreto que se satisface con otro secreto
Liliana Felipe
Falar a verdade. Sair do armário. Contar para o mundo quem eu sou.
O que significa exibir para os outros os modos particulares de se vivenciar
a sexualidade? Quais as implicações desse ato de desaforo? Perante quem fazê-
lo?
Stonewall-Inn. Bar nova-iorquino, localizado no agora mítico bairro de
Greenwich Village, foi o cenário, em 28 de junho de 1969, da revolta de seus
frequentadores, gays, lésbicas e travestis que, cansados das batidas policiais,
enfrentaram as forças da lei em defesa do seu direito de reunião. Este evento
marca o início do denominado orgulho gay,
117
sendo considerado pelo
movimento LGBT mundial como um ícone das lutas pelos direitos civis dessa
população e pela reivindicação de vivenciar publicamente sua sexualidade.
Entretanto, esta saída política do armário configura-se em parte como o
horizonte a ser alcançado por qualquer pessoa deste coletivo, tornando-se, de
certo modo, um imperativo social. A divisão visibilidade vs. invisibilidade não
pode ser pensada monoliticamente, e sim como uma gestão singular e específica
dos indivíduos entre a exposição e o ocultamento.
Situacionalmente, a invisibilidade desenhada em diferentes cenários
constrói diferentes capas de sentido para as pessoas que a vivenciam e para
117
A primeira parada LGBT foi realizada no ano seguinte, em Nova York, para comemorar
o aniversário da revolta. A partir de então, o dia 28 de junho forma parte das efemérides
das agendas mundiais do movimento como o “dia do orgulho LGBT”.
130
aquelas que com elas convivem, mas também para as que optam por viver aberta
ou publicamente sua orientação sexual. Nesta mesma direção, a escolha pela
visibilidade está nuançada em diferentes níveis correlatos aos graus de
intimidade entre os sujeitos. O armário gay, argumenta Kosofsky Sedgwick, “não
é uma característica apenas das vidas de pessoas gays. Para muitas delas, ainda é
a característica fundamental da vida social” (2007: 22). De todo modo, o armário
não se constitui como uma estrutura monolítica e binária e sim, muito pelo
contrario, como camadas de sentido, níveis nos quais as pessoas entram e saem,
já que as “geografias pessoais e políticas são, antes, imponderáveis e convulsivas
do segredo aberto” (ibid, 39).
Quando Vitória me conta, por exemplo, que sua filha sabe sobre seus
relacionamentos com mulheres (o que ela chama de casos), mas seu pai – que
após a morte da mãe de Vitória foi morar com as duas – “sabe, mesmo que eu
nunca tenha contado” ou me explica que frequenta boates gays, mas não gosta de
beijar nas áreas mais iluminadas, surgem diferentes níveis na concepção da
intimidade/exposição e do segredo. Durante o tempo em que Vitória morou junto
com a filha e sua parceira, elas tinham como hábito, nos finais de semana, deixar
a menina com os avós e compartilhar algum tempo juntas. Todavia, ela nunca
explicitou para os pais a relação de casal. “Minha mãe nunca perguntou, mas
também não criticou, e eu nunca disse nada; tínhamos uma cama de casal e o
quarto da minha filha; tem coisas que são óbvias, você não precisa falar tudo,
jogar assim na cara, é só viver a sua vida. Minha filha sempre soube. Com ela, eu
fui sincera. Também, quando começou a perguntar sobre seu pai, eu expliquei
pra ela que não havia, que eu escolhi criar ela sem pai, que têm crianças sem pai
e isso não faz delas pessoas infelizes. Sei lá... tem momentos, lugares e pessoas
pra contar a vida íntima da gente, né? Meu pai agora mora comigo e a minha
filha, e ele não pergunta nada, e você acha que ele não saca tudo?”.
Viver no armário e num certo momento sair dele nunca são questões
puramente herméticas, explica Sedwick (2007: 39). Na verdade, o jogo das
visibilidades e invisibilidades desenha-se como uma trama de camadas
superpostas nas quais sempre existe a opacidade e a transparência,
simultaneamente; esse “armário de vidro” (ibid, 38) do não dito, mas vivenciado,
que confronta as noções de privacidade e publicidade do foro íntimo aos
diferentes sujeitos e relações.
131
Entretanto, e como salienta Heilborn, este modo de pensar o armário “tem
suscitado uma viva discussão por parte dos atores engajados com o movimento
de afirmação homossexual. A afirmativa de que a declaração explícita da
orientação homoerótica não é considerada necessária e, sobretudo, é entendida
como limitadora das potencialidades dos indivíduos, desperta suspeitas
frequentemente atribuídas ao medo do estigma, à covardia diante das convenções
sociais, a uma estratégia calculista de anonimato, ou ainda à falta de
solidariedade para com seus ‘iguais’” (1996: 4). No cotidiano, a saída do armário
não é necessariamente um valor. Em muitos casos, a invisibilidade aparece como
uma agência, uma estratégia consciente e optativa (contrariamente da
obrigatória), na qual os níveis de construção da identidade guardam relação com
as noções de moral. De acordo com essa perspectiva, a visibilidade pode ser
considerada contrariamente aos atributos colocados pelos “atores engajados”
como uma publicização de atos referidos ao domínio do íntimo, portanto, da
esfera do privado. A diferença não precisa ser visível ou explícita, depende,
entretanto, das trajetórias familiares (famílias tradicionais, pessoas do interior) e
da idade.
Mary chegou do Nordeste com os irmãos quando tinha dez anos e por aqui
foi ficando. Trabalhou muito tempo como funcionária pública, até se decidir por
sua vocação para a música. Há sete anos, organizou uma festa de aniversário no
clube Olímpico que gerou os atuais “bailes da Mary”. Mary me conta que jamais
ocultou sua orientação sexual para a família.
A minha mãe sabe, desde o início, e nunca tive problemas. Só deu
problema com meu irmão, que pegou no meu pé. Mas como eu já
tinha conversado com a minha mãe, então, aí se estabeleceu a
moralidade. A minha família é bem matriarcal, então, palavra de
mãe vale tudo. A minha mãe disse que “tava tudo bem”, então o
resto não falou mais nada. A família se acomodou e começaram a
ver tudo com normalidade. Hoje em dia, eu converso naturalmente
sobre minha vida e minha sexualidade, sem problema nenhum.
O apoio conferido pela mãe como figura central da família aparece, na fala de
Mary, como legitimador da sua sexualidade e, em suas próprias palavras, como
uma moralidade que confere a seu gosto pelas mulheres o estatuto de
normalidade. Todavia, o que significa conversar naturalmente com a família
sobre sua sexualidade? Esta naturalidade ou normalidade parece estar limitada à
132
explicitação discursiva e vedada, através da autocontenção, aos atos e
manifestações públicas de afeto:
Mesmo que todo mundo saiba, eu não ando beijando na boca em
público. Na frente dos meus amigos, tudo bem, mas fora disso, eu
não acho legal. Tem crianças, tem idosos, não vale a pena chegar e
criar uma situação, pra que? Tem a casa pra namorar, né? Eu saio
normalmente, como todo mundo faz, mas não fico me beijando, me
agarrando. Quem faz isso, quem fica se agarrando e beijando o
tempo todo são os jovens ou também quem está começando o
namoro, porque quem tá casado, que tem namoro longo, não faz
isso. E como se leva uma vida normal, a vida normal é essa, né?
Você não vê casal hetero se agarrando no restaurante. Isso de se
agarrar e se beijar se faz na intimidade, não num restaurante. Se
você vê, por exemplo, os casais que vão na minha festa, não têm
nem preocupação de se beijar, porque elas estão juntas há tanto
tempo, que não têm essa coisa de andar se beijando, vão aproveitar
pra dançar.
118
Dão um selinho ou coisa tal de carinho e amor, mas
não é aquele beijo passional.
Mesmo sendo um lugar onde as demonstrações de carinho estão
permitidas, Mary ressalta a diferença entre casais já constituídos e casais novos,
entre o público que comparece às suas festas. Mais uma vez, o bom senso e a
sobriedade
119
configuram-se como noções de normalidade. A paixão e as mostras
de carinho voluptuosas são sinônimo de juventude ou permissões outorgadas aos
novos namoros, que irão “se amaciando”, à medida em que o casal amadureça,
ou seja, se torne sóbrio e tenha o bom senso de conservar suas manifestações de
carinho intramuros, no resguardo do lar. Deve-se ressaltar que, no discurso de
Mary, o decoro e o cuidado não passam pelo fato de serem duas mulheres a
explicitar demonstrações de carinho, mas por uma questão da intimidade como
valor em si Entretanto, acredito que o cuidado com crianças, este sim, passa por
uma autocensura montada sobre a inconveniência de os menores assistirem a
duas pessoas do mesmo sexo se comportando de um modo que, mais uma vez,
fora do discurso, se apresenta como inviável, dessexualizando a
homossexualidade perante os outros: “criança não tem que ver esse tipo de
coisas, duas pessoas se agarrando... é por isso que eu não gosto de mulher com
118
Nesse sentido, é interessante pensar também que, algumas vezes, as demonstrações
de carinho não são necessárias para se explicitar um vínculo amoroso entre duas
pessoas. Concordo com Heilborn quando diz que “a intimidade assinala uma
compressão da distância estrutural entre os indivíduos estabelecida pelas regras de
etiqueta, e que se torna altamente reveladora da existência de casais mesmo quando
seus integrantes pretendem esconder o fato do vínculo conjugal” (1996: 4).
119
Página 89, capítulo III da presente tese.
133
filhos, acho que as crianças não batem com o tipo de vida que gente, assim,
como nós leva, mais solta... criança atrapalha pra viver isso. Eu com mulher com
filho, nem pensar!”.
120
Seria o que Paiva denomina ética da reserva e da
invisibilidade, “caracterizada por uma recusa de evidências plenas, mediante
uma rarefação dos regimes de visibilidade do relacionamento e pelo uso de
estratégias de restrição da expressividade, que garantem uma ‘margem’ de
reserva/distância psicológica, que protegem os relacionamentos de uma
visibilidade ostensiva e que impõem um regime de enunciabilidade bastante
variável, conforme as situações e os agentes envolvidos” (Paiva, 2007: 24 n1).
Em uma linha semelhante situaria-se a explicação de Fátima sobre os
motivos para somente explicitar sua orientação dentro de um círculo reduzido de
amigos e não contar para a família ou abrir o jogo no trabalho. “Eles fingem que
não sabem, e eu finjo que acredito”, me responde quando lhe pergunto sobre a
relação com a família de origem.
Não tem nada explícito. Eles não têm coragem de perguntar, porque
não sabem o que vão ouvir, o que me dá uma margem de silêncio.
Mineiro é muito preconceituoso, tudo é muito família. “Tradicional
família mineira” é uma coisa difícil ainda hoje. A TFM é
preconceituosa, não admite determinados comportamentos, não usa
determinadas palavras, não frequenta determinados lugares. É
tradicional pelo comportamento. Não vejo necessidade de partilhar
a minha vida íntima com eles. A diferença é só essa: eu não me
casei. Mesmo no trabalho, eu prefiro não me identificar. Aliás, o
ambiente de trabalho é um espaço onde você tem que estar mais
contido, é diferente do que estar com seus amigos. O amor é uma
coisa muito irracional, você não escolhe isso. Eu conto a minha
preferência para alguns amigos. BH [Belo Horizonte] é uma cidade
conservadora, e aqui [Rio de Janeiro] também; eu não sei se em
determinados âmbitos, em determinados lugares não seria
discriminada. Minhas amigas e meus amigos queridos sabem de
mim. São poucos os que não sabem, muito poucos.
Assim, para Fátima, sair de sua cidade natal significou a possibilidade de
vivenciar uma concepção de família diferente daquela em que foi criada.
Contudo, tal ruptura implica no seu ethos práticas em relação à intimidade e ao
segredo que legitimam seu silêncio: “eles fingem que não sabem, e eu finjo que
acredito”. À moral como uma forma de organizar certo conjunto de percepções e
120
A respeito dessa visão que algumas mulheres têm sobre mulheres com filhos,
consultar a seção “Volta Herodes!” deste capítulo.
134
atitudes, corresponderiam moralidades,
121
nunca totalmente fechadas de antemão
e dependentes das experiências concretas nas quais são invocadas e explicitadas
(Vianna, 2002: 194). Fátima reconhece em seu modo de agir traços dessa moral
da tradicional família mineira, da qual de certo modo se esquiva, mas por outro
lado conserva para se preservar com seus próprios mecanismos, as ferramentas
que ela outorga a si própria. Amparada na presunção da heterossexualidade, ela
joga em um lugar pré-existente e legível na dinâmica familiar: a tia solteira que
optou uma vida profissional. É a partir desse lugar que se relaciona e se situa na
estrutura da tradicional família mineira:
The longer I pursued my research, the more I became convinced
that gay families could not be understood apart from the families in
wich lesbians and gay men had grown up. After looking at the
entire universe of relations they considered kin, it became evident
that discourse on gay kinship defines gay families vis-à-vis another
type of family known as “straight”, “biological” or “blood” – terms
that many gay people applied to their families of origin (Weston
1997: 3).
A casa, argumenta Nogueira (2005, 20), “emerge como espaço lesbiano,
de alívio para a tensão presente em uma relação proibida socialmente. Um lugar
onde seus habitantes criaram suas normas e inventaram seu cotidiano liberto das
regras impostas pelo mundo vulgar, propício às relações com o outro, no qual os
objetos são também um registro da existência íntima conservados pela imagem
ou pela escrita”.
122
Entretanto, privado não é necessariamente sinônimo de casa,
já que esta, enquanto unidade doméstica de convivência (com pessoas que são
propositadamente mantidas na margem da intimidade, por exemplo), também
pode ser o lugar onde o segredo deve ser mantido em vez de um espaço de
relaxamento. Os diferentes níveis de público e privado constroem-se em camadas
misturadas de sentido, acompanhando os diferentes níveis de segredo e
121
Seguindo Howell (1997), Adriana Vianna defende o uso do termo moralidades, no
plural, por permitir contemplar tanto discursos como práticas, inclusive em suas
contradições. Sendo assim, as moralidades são por ela pensadas como “um campo de
enunciados sobre intenções, atos e condições nos quais esses atos foram realizados –
campo capaz de ser descrito a partir das falas dos atores, do contexto em que tais falas
foram produzidas e de seu poder enquanto argumentos, isto é, falas destinadas a
determinado fim (...) elas só podem ser apreendidas se descritas, ou seja, que são, da
forma como as compreendo, tão prisioneiras das condições de seu enunciado que só
fazem sentido quando recuperadas em sua dimensão de ação social (Vianna, 2002:
197).
122
Grifos no original.
135
visibilidade. Na hora de se vivenciar a sexualidade, a casa pode ser tanto refúgio
quanto estranhamento. Os modos de se evidenciar a sexualidade marcam
diferenças sobre o valor atribuído à casa e ao espaço privado. Existe uma
tendência ao uso da primeira como espaço de recato e resguardo da intimidade,
que se afinca nas gerações mais velhas com uma tendência ao afrouxamento
naquelas mais novas. A noção de casa ganha, assim, diferentes sentidos como
refúgio contra os supostos olhares estigmatizantes da rua. Não se trata somente
de manter no terreno do privado as expressões de carinho, mas de se evitar o
constrangimento de ser observada no espaço público. Ou, ao contrário, a casa
como espaço que conserva a heterossexualidade, lugar da invisibilidade e do
ocultamento, de atrelamento à tradição familiar, espaço de materialização dos
imperativos da feminilidade.
Todavia, em outros níveis de invisibilidade, a casa pode se comportar
como espaço tabu ou de comportamento velado. “Eu nunca contei pra minha
família, eles nunca desconfiaram, mesmo quando eu namorei a Flávia, que foram
sete anos”, explica Laura. “Nem para meus filhos, também não, por isso eu
nunca levava minhas namoradas pra casa, só assim, quando eles não estavam ou
alguma vezes como amigas, mas nunca dormindo juntas, nem nada disso. Mesmo
quando eu estava com algumas amigas na minha casa e queríamos falar das
nossas namoradas, falávamos no masculino. Então, se alguém dizia, ‘lembra do
Fernando’, já sabíamos que era da Fernanda. Eu continuo falando assim com a
minha família. Também, tinha amigos que também eram [gays] e não podiam
falar pra família, então, nos apresentávamos como namorados, assim, pra festas
familiares e coisa e tal”.
Laura teve sua primeira experiência com mulheres há mais de 20 anos.
Eu tinha saído de um trabalho e estava esperando um táxi no meio
de um temporal daqueles de verão, na Barata Ribeiro, e tinha uma
moça perto. Ainda prestei atenção, como não tinha quase ninguém
na rua. Estávamos as duas esperando, e os táxis não paravam.
Então, ela chegou e me disse: “olha, está difícil de conseguir táxi,
vamos combinar? Podemos dividir o primeiro que passar”, e eu
concordei. Já no táxi, ela me disse que ia para casa do namorad
o
[marca o “o”], e quando eu ia descer, ela me disse: “você foi tão
gentil comigo, posso pegar seu telefone?”. E eu dei porque vi que
era uma pessoa de bem. Aí, no dia seguinte, ela me ligou e foi me
visitar e me contou que teve um problema com o namorado...
namorado nada, ela tinha ido encontrar com a namorad
a, mas ela
tinha medo de me dizer e que eu não quisesse me encontrar com
136
ela. Aí, começou a frequentar a minha casa e nos fizemos amigas.
Depois de um tempo, passados uns três meses, ela chegou pra mim
e me disse: “eu vou falar uma coisa que vai te assustar muito. Eu
tenho certeza que você nunca mais vai querer olhar pra minha cara,
pelo seu jeito, porque você não tem nada a ver com isso”. E aí ela
me disse aquilo e me perguntou se eu tinha me assustado muito. Eu
disse que não, que já gostava dela como amiga, então, não me
assustava. Mas aquilo ficou na minha cabeça, então, pedi pra ela
me contar como era viver isso. Então, ela começou a ir pra casa
quase todo dia, até que um dia, eu estava me vestindo pra gente
sair, e estávamos conversando na maior intimidade. Aí, ela chegou
e me falou que isto, que aquilo... e foi bem ousada, e eu que já
estava querendo saber como era que o negócio funcionava... fomos
pro chão fomos pra cama ... aaai minha filha! Dali pra frente... um
caminho sem volta! Mas com ela, foi pouco tempo, e voltamos a ser
amigas. Ela fez uma festa de aniversário, e entrou uma moça amiga
dela, e eu fiquei: “gente! que que é isso??!!! Não acredito que
esteja gostando tão rápido assim de mulher” e me interessei pela
figura. Daí, nunca mais voltei pros homens. Namorar com mulher e
disfarçar é fácil, argumenta. Mulher sempre anda com mulher, tem
amiga mulher, então, não é estranho que você esteja acompanhada
por mulher. Agora, mulher que tem amigo homem, que anda com
homem, pra sociedade não presta, né? Então, pra mim, e as
namoradas que eu tive, era fácil porque a gente não dava pinta, eu
não dou pinta.
O sigilo, segundo apontado por Miller, pode funcionar como “a prática
subjetiva na qual as oposições privado/público, dentro/fora sujeito/objeto, são
estabelecidas, e a santidade do primeiro termo permanece inviolada. O fenômeno
do ‘segredo aberto’ não produz, como se poderia pensar, o colapso desses
binarismos e de seus efeitos ideológicos, mas, ao contrário, atesta sua
recuperação fantasmática” (Miller, 1988 apud Sedgwick, 2007: 21). Este tipo de
vivência da sexualidade estabelece uma experiência dual, me atreveria a dizer,
uma divisória de mundos na qual a pessoa que a experimenta se decompõe em
um nós permanente constituído situacionalmente. A invisibilidade constitui-se
como um agenciamento dos sujeitos que encontram no sigilo a possibilidade de
existência.
Assim, existem gradações, mas igualmente um salto qualitativo no qual a
divisão já não se faz por camadas, mas de um modo mais radical que compõe
uma fronteira semântica explicitada pela própria pessoa para determinadas
relações nas quais é radicalmente outra. Esta lógica na qual se enquadram Laura
e Fátima constitui uma incomensurabilidade entre mundos que centra nas
137
relações mantidas com os outros a possibilidade de existência de realidades
paralelas.
Em sua análise sobre a pessoa melanésia, Maurice Leenhardt situa o
sujeito como um espaço vazio que só é preenchido pelos diversos tipos de
relações sociais. Desse modo, a pessoa dissocia-se em vários indivíduos que
assumem diferentes personagens por ocasião da interação social.
123
Este sujeito,
que não responde à lógica cartesiana de individuo, é retomado por Marilyn
Strathern em O gênero da dádiva, sujeito este que ela denomina dividuo: “Longe
de serem vistas como entidades singulares, as pessoas melanésias são concebidas
tanto dividual como individualmente. Elas contêm dentro de si uma socialidade
generalizada. Com efeito, as pessoas são frequentemente construídas como o
lócus plural e compósito das relações que as produzem. A pessoa singular pode
ser imaginada como um microcosmo social” (2009: 40-41). Assim sendo,
acredito que esta categorização possa servir para explicar um tipo de vivência da
sexualidade no qual a invisibilidade, repito, é um valor e um agenciamento frente
a determinadas relações que se desmancha frente a outras, sem que esse trânsito
seja necessariamente traumático.
Ainda assim, pode haver um anseio de que as coisas pudessem ter
acontecido de outro modo. “Eu sabia que ficando em Minas não poderia viver
minha preferência sexual”, relata Fátima. “Escolhi morar no Rio porque, desse
modo, poderia começar do zero, porque aqui teria maior liberdade para viver do
jeito que eu queria. A sociedade em BH é muito conservadora, mais ainda
quando eu era jovem. Eu não teria conseguido ficar lá. O Rio, por muitos
motivos, é meu lar”. Começar do zero. Partir para as capitais onde,
supostamente, os hábitos são mais relaxados e a moral mais frouxa aparece como
um anseio no universo de expectativas de várias mulheres pesquisadas. Em seu
trabalho pioneiro no Brasil sobre sociabilidades gays, Carmen Dora Guimarães
(2004) já traz à tona esta diáspora para as capitais, para longe da família, em
procura de anonimato. Um melhor estudo ou emprego são os motivos explícitos,
123
La structure même de la personne mélanésienne se dégage du spectacle de sa
désagrégation et de la dislocation des domaines sociaux mythiques. Cette structure ne
se confond pas avec le fait de l´individuation. Elle est composée de deux éléments :
l´élément qui peut être isolé par l´individuation et l´élément qui ne peut être isolé par
l´individuation, qui continue d´être l´autre, et qui comprend toute la réalité humaine, faite
de participations, de socialité, de communion et d´autres valeurs, toutes personelles et
impalpables
(Leenhardt, 1947: 269).
138
livrar-se do modelo mulher-casamento-casa-filhos desenha a trama mais
profunda que dá sustento individual à mudança de ethos que, de todo modo, não
escapa completamente a um habitus adquirido.
Há 20, 30 anos em BH, você não podia falar estas coisas ou
namorar assim descaradamente. Era tudo muito velado, tudo muito
guardado! E velado, quero dizer, que a relação era um poema, um
passear, um olhar, um abraço sem querer. E não é que eu, aqui,
ande descaradamente. Eu trago comigo essa resistência. Eu tenho
uma vida muito em casa, não ando na rua de mão dada. Acho que
tem certos momentos pra fazer certas coisas, e tamm eu tenho um
cargo que me requer certo lugar. Quando as pessoas me perguntam,
eu falo que estava namorando... não sei, Paulo, mas o
relacionamento terminou. Existe uma proximidade do nome: se for
Andréia vira Adriano. De todo modo, acho que tem que cuidar da
parceira. Eu não sei se ela vai querer ser dita; eu sou uma pessoa
que não anda espalhando sua vida sentimental por aí, existe certa
preservação. Eu sou uma pessoa reservada e também acho que as
mulheres são mais contidas, não são como os homens, como esses
que a gente fala de veados que andam, assim, se mostrando nas
ruas, dando pinta. A mulher é mais reservada. Talvez seja uma
questão geracional porque, agora, as meninas chegam pras mães e
não discutem com elas; colocam suas preferências e falam: “mãe, a
fulanita é minha namorada”, “meu gosto é esse, então não me
aborrece”. Não usam esse subterfúgio de “vou sair com Pedro, com
João”, falam “vou sair com a Vanessa”. Eu acho mais saudável. Na
minha época e na minha cidade, era diferente.
Talvez este afastamento da família seja necessário para a constituição de
si num tipo de arranjo familiar que parece responder ao modelo de malha estreita
analisado por Bott (1976), no qual a família de origem tem uma presença forte,
funcionando como marco de referência e controle de hábitos e papéis sociais, o
que converte a saída do armário nesse âmbito uma tarefa hercúlea e, aos olhos de
quem a vivencia, desnecessária.
“Todo mundo sabe de mim”, me explica Maria. Com 30 anos, trabalha
como prestadora de serviços na Prefeitura do Rio de Janeiro e mora em Belford
Roxo com a filha de 12 anos.
Quando eu deixei meu marido pra ficar com uma mulher, sentei
minha filha e expliquei pra ela que, na vida, a gente se apaixona de
modos diferentes e que é precioso aceitar o amor como ele é. Ela
era pequena, quase dois aninhos, mas foi crescendo com a verdade
e sabendo quem era essa mulher na cama da mãe que chamava a
139
mãe de “meu amor”. Criança tem que entender que amar é de
muitos jeitos e que a sua mãe é muito, muito feliz desse jeito. Não
tem nada que ocultar, né? Eu não estou fazendo nada de ruim; o que
pode ter de ruim em se apaixonar? Minha filha agora tá com 12
anos, e ela fala na escola que a sua mãe gosta é de mulher; aí tive
que ir pra escola dar explicações. Cheguei quebrando barraco,
imagina eu ter que dar explicação! São eles que têm que dar
explicação sobre homofobia, sobre preconceito, sobre a liberdade
de amar a quem quiser. Por que temos que nos envergonhar? O que
há de errado em gostar de mulher?. Eu fico toda orgulhosa dela,
sabe? Fico feliz da criação que dei pra minha filha, assim, sem
preconceitos, livre de entender os outros. E já tive que brigar com
meu ex por causa disso, me ameaçando com a justiça o burro, acha
que vou ficar com medo. Ninguém tira minha filha, não. Aí, meus
irmãos foram explicar direitinho pra ele que ninguém me ameaça.
Eu não gosto de segredos, na minha família todo mundo sabe; eu
ralei muito pra ganhar o respeito da minha família, de todo mundo,
ralei muito, sim senhor, mas ganhei o cuidado deles, viu?
Para Sedgwick, “a imagem do assumir-se confronta regularmente
com a imagem do armário, e a sua posição pública sem ambivalência pode ser
contraposta a uma certeza epistemológica salvadora contra a privacidade
equívoca oferecida pelo armário” (2007: 27). Maria defende sua visibilidade
como um modo de habitar o mundo, mas também como um valor ético e moral
em contraposição às acusações e que coloca em xeque a virtude daqueles que
ousam acusá-la: “Eu sou decente, não roubo, trabalho para levar comida pra
minha casa, cuido sozinha da minha filha; só porque quero ficar com mulher não
vou ser uma boa mãe? Pior essas que ficam com maridinho e pegam mulher sem
que ninguém saiba. Eu sou sincera, não minto pra ninguém como essas piranhas
que traem todo mundo, mas dão pinta de mulherzinha comportadinha, dona de
casa como a minha vizinha, que me despreza como “sapatona”, fala mal de mim
e tem esse amante, que todo mundo sabe”. Trabalho e sacrifício em ter de cuidar
sozinha da filha aparecem como legitimadores em contraposição à mentira como
desonra. A complexidade da vida moral, argumenta Durkheim, abriga inclusive
os contrários: “L´idéal qu´elle nous trace est un singulier mélange de dépendance
et de grandeur, de soumission et d´autonomie. Quand nous essayons de nous
rebeller contre elle, elle nous rappelle durement à la nécessité de la règle; quand
nous nous y conformons, elle nous affrachit de cette dépendance, en permettant à
la raison de se soumettre la règle même qui nous contraint” (1963: 105).
140
Entretanto, como se negociam as categorias identitárias e os espaços do
amor? Que tipo de vínculos são possíveis? Uma vez mais cabe seguir a pergunta
de Judith Butler sobre “que vidas podem ser choradas?”, quer dizer, qual é o
espaço do luto na sociedade?
“Marisa foi o grande amor da minha vida”, me diz Neyla, enquanto me
mostra a foto que leva na carteira, lhe dá um beijo e a acaricia docemente. Neyla
está na casa dos 65 anos e é assistente social aposentada. Mora na Zona Oeste do
Rio em um apartamento que herdou da mulher com a qual viveu durante 16 anos.
Durante muito tempo, não moraram na mesma casa, mas no mesmo prédio, em
Copacabana: “A gente morava juntas, mas cada uma tinha seu canto. Dois
apartamentinhos pequenos no mesmo andar, e íamos de um pro outro”.
Finalmente, foram morar em uma casa na Região dos Lagos por quatro anos, até
que sua mulher faleceu, há sete. “Tínhamos voltado de uma festa no Rio e
estávamos dormindo. ‘Acorda, meu bem, que estou morrendo’, me disse,
tomando a minha mão. Ela morreu de uma parada cardíaca, morreu na minha
mão”, relata com o olhar perdido no horizonte, à espreita de reviver a lembrança
do passado em comum. “Antes de ela morrer, me disse: ‘refaz a tua vida, procura
alguém pra namorar, não fica sozinha’. Ela queria que eu fosse feliz e sabia que
eu gosto de namorar, eu gosto de casar... eu não sirvo pra viver sozinha”. Neyla
tem quatro filhos e vários netos. Antes de começar a se relacionar sexualmente
com mulheres, esteve casada com o pai dos seus filhos.
A gente se dava muito bem, mas um dia, eu conheci a Sílvia e me
dei conta de que já não podia me fazer de desentendida. Não pensei
duas vezes. Falei com meu marido, que não aceitou muito bem. Ele
não queria se separar de mim e começou a beber. Por isso,
concordamos com meus filhos [adolescentes, nesse momento] deles
ficarem morando com o pai, para ele não sofrer mais. Eu não queria
tirar os filhos dele também. Eles concordaram. Eu fui morar muito
perto. Mantive um relacionamento à distância com uma mulher
durante alguns anos e depois vim morar no Rio. Meus filhos
ficaram em Brasília e têm sua vida lá. Para mim, foi uma escolha
vir morar aqui, perto da minha mulher, longe dos meus filhos,
porque eu não ia renunciar à felicidade, ao amor junto à Marisa.
Eles pouco a pouco entenderam, e agora a gente se dá bem, apesar
de nossas distâncias.
Escolhas inviáveis. Vivenciar a própria sexualidade, “procurar a
felicidade” pode significar o deslocamento de papéis aparentemente não
141
negociáveis. Quem deve cuidar dos filhos? Uma vez mais, como no caso dos
devaneios entre adoção e fecundação de Gabriela e Paula, as crianças são parte
da negociação acerca de responsabilidades mais complexas. Poderia parecer que
a decisão de Neyla a desloca do imperativo da heterossexualidade e a situa no
âmbito do egoísmo e, moralmente, do abandono, afastando-se do espaço do
cuidado, já analisado na noção de maternagem. Entretanto, e voltando ao
enunciado que introduz o capítulo, reconhecer o outro sem ser o reflexo uma
projeção que aniquila a alteridade desse outro, talvez demande um
estranhamento da posição, um deslocamento para se recolocar em outro foco a
partir do qual ser olhado e reconhecido enquanto outro. Neyla construiu um
lugar que talvez seja de alteridade total em relação à posição que ela mesma
ocupava no âmbito familiar: sair da casa para viver uma relação com outra
mulher, dizer a sua verdade e quebrar-se para, a partir dos despojos se
reinventar. É desse lugar de reinvenção que Neyla pode chorar Marisa e manter,
por sua vez, os laços que a consanguinidade forja com seus filhos e netos.
No se trata tan sólo de que se pueda decir que “mantenemos”
relaciones con ciertas personas o que podamos detenernos y
observarlas desde la distancia, enumerarlas, explicar cuál es el
significado de la amistad, o qué significa o significó tal amante
para nosotros. Por el contrario, el duelo muestra que no siempre
podemos examinar o explicar la forma en que estamos sujetos a
nuestras relaciones con otros, lo cual a menudo interrumpe la
narración consciente de nosotros mismos que podríamos tratar de
procurarnos de formas que retan nuestra propia noción como seres
autónomos y autocontrolados. Podríamos intentar contar una
historia sobre cuáles son nuestros sentimientos, pero tendría que ser
una historia en la cual el mismo “yo” que trata de contarla es
interrumpido a mitad de la narración. El propio “yo” puesto en
cuestión por su relación con aquel o aquella al que se dirige
(Butler, 2006: 37).
Responder como lésbicas aos imperativos da reprodução e da
heterossexualidade supõe, como temos visto até agora, a elaboração de
estratégias de constituição de si que lhes permitam obter um reflexo que devolva
para si a imagem de sujeito. Por sua vez, na análise dessas estratégias, surgem à
tona arranjos familiares que escapam ao modelo da família nuclear, permitindo
que se vivencie a reprodução como um desejo e não como obrigação. Nesse
sentido, não me atreveria a falar em uma linha mestra que, amparada na
142
homossexualidade feminina, costuraria as visões sobre a moral familiar.
Acredito, no entanto, que um recorte geracional compassado com uma vivência
da sexualidade, mais uma vez constrói uma malha de significados comuns, além
– e isso sim, é de suma importância – das trajetórias de classe. Assim, as
diferentes estratégias montadas em relação ao espelhamento com a família de
origem e nuclear estabelecem diferenças palpáveis entre aquelas que passaram
por relacionamentos heterossexuais reprodutivos duradouros e as que
construíram suas trajetórias erótico-afetivas a partir de uma vivência
basicamente homossexual. O valor dado à intimidade, por exemplo, cruza
transversalmente sujeitos que, em uma leitura da divisão social, operariam em
diferentes segmentos de significado.
As estratégias desenvolvidas pelos sujeitos analisados colocam os
diferentes significados de ser mulher contra seus próprios estereótipos e
mecanismos de reprodução. Assim, os imperativos da feminilidade são superados
e habitados de diferentes formas por esses sujeitos, cujas vidas se afastam da
norma. Por outro lado, o imperativo da heterossexualidade é o guarda-chuva que
ainda ampara e resguarda o da reprodução e o da monogamia; esta tríade
constituindo uma heteronormatividade difícil de ser rompida como imperativo de
subjetivação.
143
Capítulo V: As poéticas do desejo
Neste capítulo, tentarei desenhar os discursos sobre as autoidentificações e
referencialidades
124
presentes em relação à construção de si e do outro como
sujeito desejante ou não desejante. Com “não desejante”, refiro-me a todas
aquelas que estão fora da mira, tanto por não investirem as características que
comportam o gosto preferencial, como por serem consideradas eticamente
“intocáveis”.
A partir desse diagrama, podemos delinear esferas de amizade, família, e
desejo, já que nele são evidenciadas as regras de convivência que tecem as
sociabilidades nos espaços pesquisados. Estas regras, seus usos e abusos, dizem
respeito aos tipos de subjetividades possíveis que transitam no campo e, de modo
especular, aquelas que são moduladas no apagamento do jogo hierárquico que
supõe a produção social de determinadas subjetividades e não de outras em
certos contextos.
O sentido deste delineamento é rastrear a lógica que as mulheres
imprimem aos relacionamentos sexuais (ativa-passiva; masculino-feminino;
parceria), o espaço dado ao erotismo e ao sexo em suas vidas e explicitar as
poéticas do desejo, quer dizer, os modos segundo os quais as categorias morais
de bom senso, sobriedade e discrição tecem uma trama discursiva relativa aos
diferentes sentidos em que o desejo é referenciado e, portanto, colocado no
mundo. Para tanto, são formuladas as seguintes perguntas: quem é sujeito de
desejo para quem, qual a finalidade dessa procura, qual sua intenção? Qual o
sentido atribuído à sexualidade? Qual a dimensão que lhe outorgam?
Por sua vez, também aparecem no nível discursivo diferentes capas de
sentido na concepção da intimidade/exposição e do segredo em relação ao que
pode ou não pode ser feito e onde. Estes níveis dependem da idade das pessoas?
Quais as regras morais que perpassam e desenham tais permissões e interdições?
124
Referencialidade como substantivação do referencial, quer dizer, aquilo que o referente
explicita nos modos discursivos de se construir um universo de significação.
144
De tesourinhas e esmaltes
Alice – todas temos gaydar. Por exemplo, essa mulher que acabou de entrar [no
bar], ela é o que?
Dana – uma clienta?
Shane – Dana, olha para as unhas, são curtas ou compridas?
Alice – estão pintadas ou não?
Dana – compridas e pintadas; então ela é...
Shane – tirando para hetero mas precisamos de mais informação
Alice – olha para os sapatos.
Dana – sandálias de salto alto
Alice – com calça jeans apertada
Dana – e daí?
Alice – você vestiria calça jeans apertada com sandália de salto alto? De jeito
nenhum! ela não é
The L Word, temporada 1, capítulo 2
Unhas curtas e limpas, bem lixadas, sem esmalte e com a cutícula bem
cuidada; curtas e esmaltadas; compridas e esmaltadas, também limpas e
cuidadas, enfim, unhas.
Entre mulheres que fazem sexo com mulheres, esse “enfim” não é tão
simples assim. Aliás, é só o princípio da questão: “Algumas acham que eu não
sou [lésbica] por causa das minhas unhas, ou que eu sou passiva na cama, mas
uma vez que provam... ah menina!, elas não fazem mais piadinha sobre o
assunto”. “Meu bem, com carinho e paciência tudo é possível. Eu posso te dar o
maior prazer, mesmo com as unhas desse jeito, é só questão de prática”. Estes
depoimentos de uma frequentadora dos Bailes da Mary e outra da boate Arena, a
primeira na casa dos 50, e a segunda com 30 anos, contêm duas questões
constitutivas para a análise das poéticas do desejo entre mulheres lésbicas: os
modos de reconhecimento da outra e as autorreferencialidades, estas últimas
enquanto representação discursiva de si, ou seja, a constituição do universo
discursivo que outorga uma imagem de si e dos outros a partir da qual habitar o
mundo.
As unhas são mais um indício na hora de uma mulher tentar descobrir se a
outra na qual tem depositado seu olhar, seja por sedução ou por simples
reconhecimento, é de fato lésbica, e, nesse caso, que tipo de lésbica. A superfície
do corpo, diz Terence Turner,
145
becomes the symbolic stage upon wich the drama of socialisation is
enacted, and bodily adornment becomes the language through which
it is expressed (...) Dress and bodily adornment constitute one such
cultural medium, perhaps the one most specialised in the shaping
and communication of personal identity (1984: 112, 114).
Deste modo, o corpo pode ser pensado como um espaço no qual explicitar
as marcas do self social. As unhas
125
possuem uma força semântica no que diz
respeito à apresentação de gênero e, portanto, das práticas sexuais. Elas falam
sobre modos de ser ou não lésbica, integrando a linguagem corporal e
acompanhando determinado estilo que se completa com a vestimenta, o cabelo, a
maquiagem e o calçado que, como conjunto, supõe determinadas práxis sociais.
As unhas são dispositivos performáticos que fazem lésbicas,
126
feminilidades e
masculinidades, ativas e passivas ou, voltando a Turner, embodificam a esfera do
social, imprimindo no próprio corpo biológico marcas culturais que denotam
modos de se expressar e vivenciar a sexualidade. Do mesmo modo que uma
pochete colocada no lugar certo (Lacombe, 2005), as unhas apagam a fronteira
entre corpo biológico e social, cyborguizando-o.
Entretanto, nem sempre se observa um correlato direto entre estas
categorias. A princípio, existe a construção de um estereótipo diretamente
relacionado às práticas sexuais segundo o qual unha curta é sinônimo de mulher
ativa, e comprida, de mulher passiva, ou seja, quem penetra com os dedos e
quem é penetrada. Deste modo, penetrar supõe um cuidado permanente com as
mãos: as unhas devem estar limpas, com as cutículas fechadas para evitar o
contato de algum ferimento com o fluido vaginal ou o sangue da menstruação, e
bem lixadas para não ferir a vagina ou o ânus da virtual companheira do jogo
sexual.
127
As unhas compridas, por sua vez, também são bem cuidadas,
125
Entre os xamãs Shipibo-Conibo da Amazônia peruana, por exemplo, as unhas dos homens são
o lugar por onde “menstruam” “Chez les Shipibo-Conibo, les parties corporelles et les sécrétions
humaines ne semblent pas être identifiées comme naturellement féminines ou masculines, leur
genre dépendand plutôt de leur position dans un système de rélations” (Colpron, 2006: 225).
126
Não é minha intenção aqui apresentar as unhas como um distintivo único das mulheres
lésbicas. Podem ser, por exemplo, um marcador de profissão ou, inclusive, de preferências
sexuais entre mulheres heterossexuais. Entretanto, o modo como o tema aparece no campo
supõe um traço de definição interna explícito, um dispositivo de reconhecimento que, acredito, as
investe com outra carga simbólica.
127
Durante o tempo que passei no Flôr do André realizando trabalho de campo para a minha
dissertação de mestrado, ouvi várias conversas em relação às unhas. Havia um casal de mulheres
paulistas em que a mais velha e mais feminina das duas trabalhava como manicure nas
redondezas. Luciane, sua namorada, mais nova e mais masculina, costumava fazer piadas sobre
146
entretanto, não como uma questão de assepsia e sim de estética: esmaltadas,
esculpidas. Assim, e como afirmado anteriormente, as unhas fazem parte dos
códigos de identificação, tanto quanto a vestimenta, o cabelo ou a maquiagem.
“Como eu sei se essa é entendida? Pela roupa, o jeito como olha, se olha outras
mulheres... e as unhas, claro! Olha as unhas dessa aí! Mesmo com esse salto alto
e essa saia... unha curta desse jeito, provavelmente é... quer dizer, eu arriscaria”
me explica uma frequentadora do baile da Mary. A mulher observada deve ter
uns 55 anos, aproximadamente, e faz parte do que denominei como “grupo A” no
capítulo I. Tem cabelo curto, mais ou menos na altura da nuca, cacheado e
pintado de loiro-escuro, saia até o joelho e blusa de manga comprida negra,
meias finas e salto alto. Está maquiada, tem brincos de aro grande, anéis (talvez
de ouro), pulseiras de metal (várias, finas, tipo escravas) em um braço e as unhas
pintadas, porém, curtas. A que fala comigo é mais nova – uns 45 anos – e veste
calça jeans azul escura, cinto de couro preto, camiseta baby look preta com
debruns brancos e tênis urbano preto. Tem cabelo louro liso cortado carré,
ausência de maquiagem e ostenta um anel de metal prateado liso e unhas
curtas,sem esmalte. Faz parte do denominado “grupo C”.
Por si só, as vestimentas da mulher observada não dizem nada a respeito
de seu gosto por mulheres, muito ao contrário e, pensando a partir de um
estereótipo do que é “ser lésbica”, ela está fora do padrão. Entretanto, Laura, a
moça com quem estou falando, faz referência a outras marcas tais como o jeito
de olhar outras mulheres e as unhas. Diante de minha interrogação sobre o
porquê de reparar nas unhas, ela mostra a sua mão, pega a minha e me diz: “Por
que você tem as suas curtas? Você sabe que assim não dói, todo mundo sabe
disso, é tipo... uma questão de respeito para com a outra [parceira de sexo]”.
Pergunto-lhe, então, se ela nunca fez sexo com uma mulher de unhas compridas,
e não é sua boca, mas seu corpo inteiro que responde: leva as mãos na virilha,
fecha as pernas, flexiona um pouco os joelhos, joga o quadril para trás e o torso
para frente e me olha com uma inflexão de dor, franzindo o cenho, lançando um
teatral “aaaaiiiii”. Perante meu olhar impávido e ainda inquisidor, volta à
as bondades que o ofício de sua mulher trazia ao casal. “Não preciso me preocupar com as
minhas unhas. Tenho a manicure em casa, e ela as faz do jeito que ela gosta mais. Total, é com
ela que uso os dedos depois. Ela sempre as deixa lisinhas e bem redondinhas”. Também vi
alguém dar de presente em um aniversário um daqueles estojos com tesoura, lixa e corta-cutícula,
considerado pela homenageada um “presente que as meninas vão agradecer”, referindo-se a
possíveis pegações ou namoros.
147
posição ereta e me diz que tem medo de ser machucada, que “nem louca transo
com mulher de unha cumprida” porque ela gosta de prazer sem dor, não é
masoquista. A expressão de dor de Laura perante a visualização da ideia de ser
penetrada por dedos com unhas compridas traz à tona algumas questões: quem
penetra também gosta de ser penetrada, “penetrar” pressupõe unhas curtas e
mulher que gosta de mulher deve ter unhas curtas. Ou, ao contrário, unhas
compridas não denotam que a portadora goste de mulher, nem permitem que se
dê prazer a outra mulher ou, no último dos casos, só possibilitam recebê-lo.
O gosto por se ter as próprias unhas de determinado jeito e, de modo
análogo, procurar parceiras com as unhas de determinado tipo guarda uma
relação com tipos ideais de casal. Assim, aquele em que ambas tiverem as unhas
curtas aparecerá, a princípio, como simétrico
128
no tocante às práticas sexuais, já
que, supostamente, ambas seriam receptivas a dar prazer à sua parceira através
da penetração com os dedos na vagina ou no ânus e da estimulação
clitoridiana, e receber, em contrapartida, a mesma coisa por parte da outra.
“‘Você tem uma técnica oriental’, me disse um caso que tive uma vez.
Estávamos num motel, e quando ela viu minhas unhas, me olhou assim... com
medo. Aí, eu falei para não se preocupar e me deixar fazer as minhas coisas...
Depois, eu tinha que tapar a boca dela para que não contasse para nossas amigas.
Ela queria explicar, mas eu não deixava. ‘Ela tem uma técnica oriental, é
japonesa’, dizia, me zoando. ‘Eu posso dar testemunho de que não dói’, falava
pra as outras no restaurante. Olha, eu nunca recebi queixas. As que se deixaram,
se permitiram, gostaram. Eu posso fazer muita coisa, sou hábil com minhas
mãos”. Este depoimento, ao mesmo tempo em que contrasta com o diálogo com
Laura, corrobora a carga pejorativa que existe em relação às unhas compridas
como inibidoras do prazer e passivisantes da mulher que as ostenta. Se
pensarmos o estigma como uma linguagem de relações entre atributos e não dos
atributos per se (Goffman, 1975: 13), o desprezo pela unhas compridas
128
Em consonância com a descrição de Heilborn (1996: 5, 6): “observa-se a disseminação de
estilos de vida que apostam em um modelo simétrico, cuja expressão é o embaralhamento dos
atributos de gênero. Existe, nesses segmentos, um enorme apelo à diferenciação frente às outras
mulheres homossexuais, e onde a postura corporal e a indumentária expressam um diálogo com
essas imagens veiculadas sobre o par lésbico. Trata-se de um fenômeno, assinalado pela
imprensa brasileira (Palomino, 1995), que foi cunhado como lesbian chics e que, para além da
aposta feminina na escolha de roupas e gestos das duas parceiras, almeja dissipar qualquer
possibilidade identificatória da performance sexual das envolvidas”.
148
estigmatiza as mulheres que as portam; isto é, funciona como atributo negativo,
como mácula, entre aquelas mulheres cujo imaginário sobre práticas sexuais
situam as unhas curtas e limpas como condição para um sexo seguro e, de algum
modo, asséptico. Este discurso está em consonância com o que Judith Halberstam
ressalta na reação de alguns grupos feministas perante parcerias de mulheres que
respondem a uma dinâmica masculino-feminino, no que diz respeito à
cristalização do casal simétrico como aquele politicamente correto, por deixar de
lado justamente o espelhamento com o binômio heterossexual: “Much of the
lesbian feminist reaction to butch-femme took the form of disbelief, and women
expressed bewilderment about what looked to them like slavish copying of
heterosexual roles” (Halberstam, 1998:122). Entretanto, tal colocação supõe uma
redução da diversidade que opera na relação entre apresentação de gênero,
práticas sexuais e divisão de papéis genéricos nestes casais: “To restore the
complexity to butch-femme systems of sex and gender, it is important to note the
wide range of activities and identifications that each label – butch and femme –
contained” (ibidem).
Assim, nem sempre existe correlato entre prática e estética: “Eu gosto de
dar prazer à minha parceira, o sexo se faz em dois, sabe? Nunca, nem com
homem fui assim... passiva. Gosto de dar e de receber, de uma coisa mais igual,
mais entre pares. Que eu seja assim, mais boneca, não quer dizer que seja boneca
na cama, né? Que eu não dê pinta, não significa que não seja”. Mais uma vez, a
frase “male on the streets, female on the sheets” (Halberstam, 1998:125) adquire
relevância para analisar as nuances que perpassam o leque das subjetividades
lésbicas. A expressão de gênero imprime um papel preponderante na definição da
pessoa mas, dessa vez, há um suposto desarranjo entre estética e prática, quer
dizer, entre boneca e passividade. De todo modo, o correlato entre umas e outras
e o valor atribuído às unhas, a carga semântica nelas presente funciona como
marca de reconhecimento da orientação sexual na hora de se “perceber” a outra
como par. “Interconnected by a network of customs (clothing styles, for
example), social institutions (such as bars and AIDS organizations), and even
language (the word ‘gay’ is used in many languages), the globalization of gay
subculture has resulted in an international family of friends who provide
travellers with places to stay, eat and socialize (Nardi, 1992:112 apud Valentine,
1995: 108).
149
Todavia, observa-se, algumas vezes, a reivindicação de um correlato
estético com uma determinada prática na qual a exacerbação da feminilidade se
transforma em hipérbole de heterossexualidade e, portanto, na reprodução do
binário masculino-feminino que igualmente se estereotipa na relação ativo-
passivo. Sueli é habituée das sextas no Olímpico. Psicóloga, com quase 40 anos,
mora na Zona Oeste do Rio de Janeiro com os pais. Há mais de dois anos namora
Milene, com pouco mais de 40 anos, fisioterapeuta e moradora do mesmo bairro
(também com os pais). De cabelo cacheado louro e maquiagem abundante, gosta
de exibir suas exuberantes curvas em vestidos mínimos e montada em saltos
altos. Usa sempre as unhas compridas e vermelhíssimas: “Gosto das minhas
unhas assim, gosto do estilo mulher, mulher, sabe? Unha comprida, maquiagem,
salto alto... e a Milene também gosta assim de mim”. Quando indago sobre a
possibilidade de as unhas representarem um incômodo para algumas práticas
sexuais, me responde com tom decidido:
Tanto faz, eu não faço nada! Quietinha na cama... Se a outra quer
alguma coisa, pode se sarrar
129
em mim pra ter prazer, mas eu não vou
fazer esforço nenhum. Gosto que a minha mulher me dê prazer. Sou
passivona, passivona. Me perguntam porque fico com mulher, se não
gosto de fazer nada, e eu respondo que é porque gosto do toque de
mulher. Aliás, mulher se importa com a outra na cama, se preocupa em
dar gozo. Homem só se importa com ele mesmo...
Natural ou por opção?
Assim como as unhas podem ser expressivas de determinadas poéticas do
desejo que explicitam modos de reconhecimento e autorreferencialidades entre
mulheres lésbicas, o leque que se abre em relação a se ser lésbica “exclusiva,
autêntica, sempre ter sido, ter optado ou ser bissexual, ecoflex”
130
comporta
diferentes significados e valores, tanto de autoatribuição quanto de
129
Roçar um corpo sobre o outro com o fim de chegar ao orgasmo. Prática sexual conhecida
como tribadismo. Segundo o Aurélio: 1. Homossexualismo feminino, consistente no atrito
recíproco dos órgãos genitais.
130
Ecoflex é o nome dado, no mercado automotor brasileiro, a um tipo de veículo que funciona
com gasolina, álcool ou a mistura de ambos, dando ao usuário a opção de abastecer seu carro
com o combustível mais adequado em cada momento. Em analogia a essa definição, observei o
uso dessa denominação em referência às mulheres bissexuais.
150
taxonomização da outra, definindo modos diversos de vivenciar a
homossexualidade.
“Eu não sou paraguaia,
131
não”, me explica Patrícia
132
, “sou autêntica,
original”. Olho pra ela, sem conseguir entender direito a expressão desta
nordestina de uns 40 anos, “ex-crente”, agora kardecista, carioca por adoção há
20 anos e frequentadora tanto da Plural quanto da Arena. “Eu sempre fui assim.
Desde pequena olhava pra mulher e não pra homem, mas como era crente,
133
e
eles têm hábitos muito rígidos sobre essa questão da sexualidade, então não fazia
nada, não ficava com ninguém. Foi por isso também que vim pro Rio, aí parei de
ser crente”. Qual é a autenticidade sobre a qual Patrícia nos fala? Ou melhor, ela
é autêntica em contraponto a quem? Qual é o sujeito que se constitui como falso?
Vamos por partes.
O fato de nunca ter tido intercursos sexuais com homens ou de haver feito
uma escolha precoce, ou ainda, de não ter no currículo uma história de
conjugalidade heterossexual configuram-se como signos de diferenciação e,
algumas vezes, de deferência e status no interior do campo.
134
Nesse sentido, a
autenticidade colocada no registro de “ter nascido desse jeito” adquire uma força
de verdade e de veracidade irrefutável que outorga certa autoridade sobre
aquelas mulheres que, em algum momento de sua trajetória sexual, abandonaram
os intercursos heterossexuais em prol dos homossexuais. Assim sendo, se poderia
pensar que a autenticidade está atrelada à noção de natural, não como resignação
de “não se poder ser outra coisa”, como justificativa de um lugar de fraqueza
mas, ao contrário, como legitimação e valor. O apelo à biologia é utilizado como
arguição de autoridade em consonância com o primado da heterossexualidade, ou
seja, se vale da biologia como critério de verdade do mesmo modo como a
heterossexualidade se coloca no trono da normalidade, amparada no caráter
131
Denominação dada aos produtos piratas de marcas reconhecidas (basicamente de eletrônica
ou indumentária) vendidos como verdadeiros, pelo estereótipo de serem feitos no Paraguai.
132
Dentre todas as pessoas com as quais conversei em ambas as boates de Nova Iguaçu,
Patrícia, juntamente com um grupo de duas amigas e um amigo, foram as únicas pessoas que,
segundo pude constatar, se deslocavam do centro do Rio de Janeiro (especificamente da Lapa,
onde moravam) para estas boates da Baixada. O fluxo contrário é um pouco mais frequente,
principalmente entre os mais jovens, como apresentado no Capítulo III.
133
Evangélica praticante.
134
Num capítulo do seriado americano “The L Word”, as protagonistas fazem referência ao que
denominam golden star, estrela dourada, quer dizer, mulheres que nunca tiveram práticas sexuais
com homens, a elas atribuindo um patamar diferenciado, uma virtude sobre aquelas que
incursionaram pelo terreno da heterossexualidade.
151
biológico do binômio homem-mulher como a única união possível. De todo
modo, uma diferença a ser levada em conta é que esse viés natural, atrelado à
autenticidade, não se constrói com base no caráter biológico do sexo, mas do
desejo. A categoria mulher não é colocada em questão, tampouco o são as de
masculinidade ou feminilidade, e sim o modo como se constitui o desejo sexual,
desde a descoberta na infância até o estranhamento de “nunca pensar que poderia
gostar disso”. Sintetizando: o que há em comum entre ambos é o uso da biologia
como axioma de verdade e, portanto, de normalidade, em detrimento da ideia de
escolha consciente, na qual sempre existe a possibilidade de se mudar de
opinião, desestabilizando a brecha entre hetero e homossexualidade. Assim, a
autenticidade ou originalidade servem como parâmetros morais do que significa
ser lésbica.
Segunda questão: autenticidade em relação a que?
“Você nasceu assim ou optou?”, me pergunta Isabel, divorciada, mãe de
dois filhos com mais de 20 anos, moradora do Leme. “Acho que as mulheres que
foram casadas são as melhores porque elas já conhecem o outro lado e optam. Eu
fiz a minha escolha. No processo de divórcio, uma amiga me acompanhou muito,
aí virou amor, e eu fiquei com ela por dez anos”. Por sua vez, Laura me explica
que
Toda mulher que já teve homem é melhor na cama do que aquela
que nunca teve, porque a mulher que esteve com homem e depois
parte pra mulher, faz uma opção bem conscientizada. É uma
escolha, então eu acho que são melhores, mas aquelas que vão e
voltam, eu não gosto, não. Pra mim, é um caminho sem volta! Como
é que pode ficar com homem depois de ter provado mulher, hein?
Como é que pode?!
Como estes dois depoimentos nos mostram, entre as mulheres que mantêm
relacionamentos ou intercursos sexuais exclusivamente com mulheres estão
aquelas que fizeram esta opção após uma longa trajetória heterossexual. Para
algumas, o fato de terem optado conscientemente coloca um valor justamente no
poder da escolha. A respeito do tema, Gagnon (2004) explica que as mudanças
de preferência sexual, em uma fase mais tardia da vida, não são raras. “As
decepções nas relações com o gênero oposto (por exemplo, com a violência
perpetrada pelos homens, com a indiferença afetiva e a incompetência erótica),
152
assim como os atrativos da companhia afetiva e interpessoal das mulheres,
sempre foram a base para as mudanças de compromisso de gênero entre as
mulheres” (204). “Nunca passou pela minha cabeça que eu fosse gostar de
mulher, mas quando aconteceu, fui em frente. Nunca me arrependi, é tão lindo
sentir o toque suave da pele de outra mulher, bem diferente do que homem; as
mulheres que escolhem sabem do que estão abrindo mão e o que preferem”.
Poderíamos pensar nestes relatos da incorporação da vivência da sexualidade em
intercursos homossexuais como um mecanismo semelhante à constituição dos
usos do tempo ou timmings, desenvolvidos no capítulo II. Do mesmo modo como
incorporar uma temporalidade supõe “familiarizar-se” com um timming, quer
dizer, arcar com toda uma série de implícitos e aceitá-los com uma opção válida
e desejante, como um “gosto” construído na repetição de uma prática, começar a
vivenciar intercursos sexuais com outra mulher implica a prossecução de um
aprendizado, a incorporação de pautas de flerte particulares que conferem a esse
desejo a força semântica da escolha.
Escolha versus autenticidade. Decisão própria frente à naturalidade. Estes
caminhos marcam dois modos bastante comuns de se relatar o desejo que, em
definitivo, é o pano de fundo de uma construção da orientação sexual que se
afirma em um modo de se colocar a identidade de forma contrastiva, ou seja,
“uma identidade que surge ‘no jogo dialético entre semelhança e diferença’,
implicando a afirmação de nós diante dos outros, jamais se afirmando
isoladamente” (Guimarães, 2004: 21).
135
Assim, a oposição é criada em camadas
de contraste. A primeira delas, que tem como extremos “natural ou por opção”,
baseia-se na origem diversa do desejo, mas não coloca em questão a univocidade
do mesmo e sim, talvez, o valor dado à perícia. A segunda camada marca uma
linha divisória entre a rigidez do ser e a fluidez do estar. Neste ponto, a
135
O conceito de identidade contrastiva foi cunhado por Barth (1969) na introdução a uma
coletânea de artigos sobre etnicidade, organização social e diferença cultural, e introduzido no
Brasil por Roberto Cardoso de Oliveira, também com o intuito de analisar construções identitárias
em relação a etnicidade e raça. Carmen Dora Guimarães, por sua vez, toma o conceito a partir
dos usos de Oliveira (1971 e 1974) para pensar a sexualidade: “A utilização da argumentação de
Oliveira, apesar de seu foco ser a identidade étnica, justifica-se na medida em que a identidade
sexual é uma dimensão analítica da identidade social” (Guimarães, 2004: 20). Nesse sentido,
utilizarei a noção de identidade contrastiva para pensar os diferentes jogos que se sucedem entre
as maneiras de encarar a homossexualidade feminina e legitimar o desejo entre os grupos que
conformam meu campo de pesquisa.
153
importância da origem do gosto dilui-se, dando lugar à fixação do desejo em um
único corpo: o da mulher.
Para Joan Scott (2000), a experiência é o modo por intermédio do qual os
indivíduos se constituem como sujeitos. Assim considerada, ela abandona seu
estatuto de explicação para se erguer naquilo com base em que o conhecimento é
produzido. Tomando a definição de Teresa de Laurentis,
136
Scott atribui a essa
operação de constituição de sujeitos autônomos o poder da autoridade da
experiência, que opera por meio da diferenciação. Se pensarmos no valor
atribuído por estas mulheres à vivência da sexualidade, talvez achemos um modo
de explicação para a autenticidade como a experiência constitutiva que produz
um agenciamento e, sobretudo, a bissexualidade como alteridade não empática.
A bissexualidade
137
como possibilidade carrega, paradoxalmente, o
estigma da incapacidade de decisão. O devir entre a hetero e a
homossexualidade, em lugar de ser considerado libertário, é ponderado como
desvalor: a atribuição de um caráter fixo à orientação sexual em relação ao
desejo por um determinado sexo (quer dizer, macho ou fêmea) pode ser pensado
na tríade “gosto-corpo-desejo”, sendo gosto [por um determinado] corpo
[sexuado, dito de “mulher” ou de “homem”] [que se comporta como o único a
produzir] desejo. A bissexualidade desarticula essa tríade, acrescentando um “s”
à palavra corpo, no sentido de [mulher E homem]. Nas palavras da Mary, “Se
você teve esse acidente de percurso de se apaixonar por um cara, assim, de ficar
e casar, achando que é pra vida toda, e não dá certo, então, eu acho que tem que
136
Processo por intermédio do qual a pessoa se situa ou é situada em uma realidade social,
percebendo e compreendendo como subjetivas tais relações – materiais, econômicas e
interpessoais – que, de fato, são sociais e, de certo modo, também históricas (de Laurentis, 1984:
159 apud Scott, 2000: 90).
137
Fernanda Eugênio, discorrendo sobre a fluidez na vivência da sexualidade entre os chamados
moderninhos, explica que “ainda quando é possível observar, acompanhando a trajetória de
envolvimentos de um sujeito, que ele se engaja em um relacionamento com um sexo e depois
com outro, nos mais variados arranjos, combinações e ordenações, o que se sente e o que se vive
é uma experiência de sincronicidade - e não de diacronicidade. O atravessamento pelo registro de
intensidade - que acontece no encontro com este ‘primeiro’ – transporta aquele que o
experimenta, abre uma frente perceptiva na qual o relacionar-se fisicamente e emocionalmente
com um ou com outro sexo passa a diferenciar-se por gradação e por contingência, mas não mais
caracteriza de modo estanque espécies distintas de engajamento, entre as quais se considera que
seja preciso alternar, tal e qual se acionasse uma chave para uma direção ou para outra. Entram
os artigos indefinidos; saem os definidos. A escolha local de um parceiro não “desescolhe” a
potência de todos os demais, potência que comparece e modula o engajamento do sujeito em
cada situação singular. As duas direções (homo ou hetero) estão ali em simultâneo,
sincronicamente, pois que contaminadas umas pelas outras, elas não vêm a gerar uma terceira
igualmente discreta e classificável (também não é uma coisa do tipo ‘sou bi’, o ‘fácil número dois’),
mas antes vêm a configurar algo de outra natureza: a multiplicidade” (2006 : 253).
154
ficar lá; fica lá e não volta! Se realmente consegue se apaixonar por homem é
porque você não é isso, é aquilo”. Essa desarticulação age contra a produção
unívoca do sujeito baseada num discurso da verdade sobre si mesmo, já que, nas
palavras de Foucault “es por el sexo, punto imaginario fijado por el dispositivo
de la sexualidad, por lo que cada cual debe pasar para acceder a su propia
inteligibilidad (puesto que es a la vez el elemento encubierto y el principio
productor de sentido), a la totalidad de su cuerpo (puesto que es una parte real y
amenazada de ese cuerpo), a su identidad (puesto que une a la fuerza de una
pulsión la singularidad de una historia)” (2002: 189).
“Essas pessoas bi não conseguem se apaixonar por ninguém; elas não são
capazes de adquirir um compromisso sério porque elas não se comprometem com
a vida delas”, argumenta Patrícia. A mulher bissexual não apresenta signos de
confiança para estabelecer relacionamentos longos ou o que muitas se referem
como sério: com possibilidades de coabitação ou, pelo menos, de um
relacionamento monogâmico exclusivo com compromisso de fidelidade. Regina
Facchini apresenta uma visão similar em relação à análise feita no seu campo, na
cidade de São Paulo. “A bissexualidade nega a inevitabilidade da fronteira que
separa os ‘homossexuais’ dos heterossexuais, [colocando] em questão a própria
noção de uma identidade homossexual que, para muitas pessoas, representa um
modo de dar ordem às suas vidas, cheio de possibilidades de gratificação e
muitas vezes ‘assumido’ a duras penas” (Facchini, 2008: 229). A bissexualidade,
na medida em que não cumpre as expectativas de retribuição – isto é, o
compromisso de levar adiante um relacionamento estável e monogâmico – é tida
como um comportamento histérico, sem uma escolha concreta, sem uma opção;
uma espécie de coquetismo “consistente em suscitar o agrado e o desejo, pondo
em jogo uma antítese e sínteses típicas, oferecendo-se e recusando-se
simultaneamente, dizendo sim e não ‘como se de muito longe’, por símbolos e
insinuações, entregando-se sem se entregar ou, se nos exprimirmos em termos
platônicos, mantendo contrapostas a possessão e a não possessão, muito embora
aglutinando-as em um único ato” (Simmel, 1969: 77).
Desse modo, a orientação sexual atrela-se à constituição de uma
subjetividade e a um reconhecimento de si e do outro. Essa situação de double
bind acarretada pela bissexualidade coloca em jogo a sedimentação necessária
para o assentamento da subjetivação. De certo modo, a bissexualidade habita os
155
mesmos interstícios fantasmáticos dos timmings que, com o encerramento da
boate Plural, não têm lugar na Arena, agindo especularmente na formação das
bordas entre abjeção e subjetivação; esse espaço do foracluído necessário para a
instauração de uma subjetividade mainstream que, nesse caso, comporta a
homossexualidade exclusiva como feixe de luz. Ou talvez opere, neste universo,
o mesmo estranhamento que a velhice para as balzaquianas dos bailes da Mary:
essa alteridade provável, mas indesejada.
Note-se que o espaço do medo que origina esta histeria ou, para usar o
termo simmeliano, este coquetismo, está colocado na paixão e na possibilidade
de uma relação conjugal (no romantismo do amor): “Com essa mania de gostar
de iniciar [mulheres nas práticas homossexuais], sempre fico com as que não são
[lésbicas]. Me apaixono e depois acabo decepcionada, porque não são. ‘Ah! Eu
achava que dava, mas me dei conta que não sou’ (debochando com voz fina e
gesticulando exageradamente); aí, aparece o medo, o armário. Querem voltar
para a vida hetero e a coitada da Fabíola, mais uma vez, magoada. Minhas
amigas me falam que não dá, que é melhor pegar macaca velha, experiente, que
esteja a fim mesmo de namorar mulher”.
138
Neste sentido, ficar com mulheres heterossexuais ou bissexuais aparece
como um empecilho para algumas, já que elas ficam no meio caminho (em
oposição à ideia de uma única via) e podem querer “voltar”...
Pra mim, num relacionamento, tem que ter níveis de maturidade
similares, senão não funciona. Tem que ser alguém com quem você
possa compartilhar vivências e, nisso tudo, o fato da parceira ser ou
não ser [lésbica] é importante, porque tem um conhecimento similar
das coisas. É parecido com o assunto da idade. Existe uma idade
cronológica e uma idade real, então, se deve procurar alguém com
uma cabeça muito boa ou na mesma faixa etária. Com mulher que é
ou não é, mas tá experimentando, acontece a mesma coisa. Pode ser
que tenha a cabeça boa ou não..., me explica Fátima.
Gagnon critica a percepção de que traços comuns entre integrantes de
comunidades homossexuais guardem relação com perfis psicológicos similares:
“As homogeneidades que existem são consequência da inserção na comunidade,
e não de traços psicológicos, históricos ou contemporâneos comuns” (2004: 205).
138
Fabíola é professora no ensino médio e moradora da Tijuca. Está na casa dos 60 anos e tem
uma trajetória basicamente homoerótica.
156
Seguindo este raciocínio, parece lógico pensar que estas mulheres procurem o
que consideram pares, não em relação às estéticas, mas a certas vivências
compartilhadas do que significa socialmente levar adiante uma sociabilidade
lésbica.
O problema aparece na hora de se pensar em relacionamentos de casal ou
de longo prazo, colocando-se na perspectiva de compartilhar um relacionamento,
não uma simples conquista, na qual há sempre um quê de cavalheirismo, entre o
desafio, a conquista do cavalheiro e o dissabor do abandono. No terreno da
conquista, a conversão de uma heterossexual em lésbica tem outro significado.
Nesse momento, entra em jogo a vaidade em deslocar a mulher do terreno da
heterossexualidade ao da homossexualidade, utilizando-se da capacidade de dar
prazer em concorrência direta com os homens, considerados inaptos neste
quesito ou desatenciosos com o desejo feminino. “Estou com uma mulher porque
ela se importa com o que eu sinto, se importa em me dar prazer”. Esta
capacidade de “dar prazer” não passa somente pelo conhecimento do corpo da
outra, mas também pelo cuidado, pela atenção e empatia.
Por outro lado, dentro do contexto das mulheres que afirmam sempre ter
gostado de mulher, estão incluídas aquelas que, no início da vida sexual, tiveram
alguma aproximação com homens, sem contudo enquadrar tais histórias como
relacionamentos substantivos, ainda que constitutivos na hora de se delinear uma
trajetória sexual.
139
Geralmente, este tipo de depoimento aparece em mulheres de
uma faixa etária entre 50 e 60 anos, que mencionam um primeiro namorado na
adolescência do qual foram noivas, sem que esse fato significasse o intercurso
sexual.
Quando eu morava em BH [Belo Horizonte], antes de vir morar no
Rio, eu não ficava com ninguém. Tive um namoradinho muito
jovem de quem quase fiquei noiva, mas nessa época eu comecei
com pesadelos toda noite. Acordava sufocada, sem entender por
que. Foi aí que pensei: “é isso o que eu quero para minha vida?
Não! Eu não quero ficar com homem”. Por isso tive que vir pra cá
[Rio de Janeiro].
139
O relato de vida, explica Heilborn, coloca em relevo determinados eventos, dentre eles a
iniciação amorosa/sexual. O privilégio conferido às circunstâncias e datas funciona como um
catalisador de reminiscências que promove a rememoração da trajetória de vida nesse âmbito.
157
No depoimento de Fátima, a heterossexualidade surge como um
imperativo do contexto social original – família mineira de setores médios-altos
– do qual precisava se afastar para poder desenvolver sua vida sexual. O passado
como concepção mítica tem a característica, diz Cassirer (1972), de não indagar-
se a si mesmo, mas de se constituir como o porquê das coisas.
140
Nesse sentido, o
relato sobre os noivados pode ser pensado como uma estratégia de fabricação
social da coerência sobre o momento da mudança e de aceitação do próprio
desejo. Os noivados imaculados parecem agir como rituais de
passagem, mas não da afirmação da heterossexualidade, e sim, muito ao
contrário, do que não deve acontecer na vida de cada uma delas. O noivado
funciona como a passagem à idade adulta e, para além disso, ergue-se como mito
fundacional para a aceitação e a escolha perante a descoberta do desejo por uma
pessoa do mesmo sexo. Essa escolha não se faz por escolha e sim por omissão no
espelhamento do que não se deseja vivenciar: uma vida afetivo-sexual tendo um
homem como parceiro.
Eu até tive anel nessa mão [a direita]. Fui noiva, assim, do jeito que
era nessa época, virgem até o casamento, mas depois de um tempo,
isso me deu um nervoso... Eu não ia casar, não tinha jeito. Olhava
pra ele e não era disso que eu gostava. Quando me dei conta que a
questão do nervoso era pensar em transar com meu namorado,
saquei que eu não tinha nascido para isso, quer dizer, para ficar
com homem, né? Então, fui sincera comigo mesma e comecei a
ficar com mulher.
explicou-me Milene, funcionária pública, na casa dos 50 anos, moradora de São
João de Meriti e frequentadora do terraço da Plural. A palavra “até” utilizada em
muitas falas, na hora de narrarem a trajetória, parece indicar o ponto de inflexão.
O noivado,
141
enquanto ritual social de compromisso e aliança, também colabora
para amortecer as pressões do entorno em relação ao imperativo do casamento e
140
Le passé quant à lui n´a plus de ‘pourquoi’: il est le pourquoi des choses. Ce qui distingue la
conception mysthique de la temporalité de la conception historique est que pour elle il y a un passé
absolu qui, en tant que tel, n´a pas besoin d´une explication plus profonde, et qui ne peut pas en
recevoir
(Cassirer, 1972:134).
141
Acho necessário deixar claro aqui que a caracterização que faço do noivado não está pensada
a partir do lugar atual desse rito, mas da época em que as entrevistadas contraíram tal
compromisso, em média 30 ou 40 anos atrás. Seguramente, o peso social do noivado e, mais
ainda, a obrigação de manter a virgindade até o casamento perderam o poder moral que já
tiveram e seu descumprimento não possui a mesma carga estigmatizante outrora verificada.
158
para dissipar possíveis rumores sobre a orientação sexual da pessoa em questão.
Por sua vez, possui um valor de verdade a partir da obrigação adquirida de que,
chegada a hora, a verdade deve ser esclarecida para não macular a honra d@s
envolvid@s. Talvez por este motivo, muitas decidam deixar suas cidades ou
bairros de origem e migrar para outros lugares onde o anonimato garante, pelo
menos de início, a possibilidade de se passar para o plano do factível a
concreção de seus desejos por uma pessoa do mesmo sexo.
Peristiany, em seu estudo sobre as noções de honra e vergonha nas
sociedades mediterrâneas, explicita a diferença entre o modo como os
mecanismos de honra e vergonha são trabalhados por um indivíduo encapsulado
no grupo social e outro no qual “emerge com uma personalidade social própria”
(1971: 5). No primeiro caso, a acusação recebida por um indivíduo recai sobre
todo o grupo, já que a conduta deste último reflete a do coletivo, já que cada
integrante se constitui “como protagonista ou representante do seu grupo” (ibid).
No segundo caso, só a ele diz respeito a defesa de sua honra. Sair do âmbito
social de origem é um modo de proteger a honra da família e a sua própria por
meio de diferentes estratégias: no caso de Fátima,
142
procedente de uma
tradicional família mineira, desfazer o noivado e permanecer solteira constitui
uma opção que pode ser lida sem demasiadas fissuras na malha da matriz
heterossexual como a opção pela profissão em detrimento do casamento; no caso
de Neyla,
143
perante a declaração explícita do seu gosto por mulheres, abrir mão
da proximidade dos filhos, que continuaram morando com o pai, num espaço de
heteronormatividade. Honra e vergonha, explica Peristiany, são dois aspectos de
uma valorização. Essa valorização implica, por sua vez, “a possibilidade de
escolha dentro de uma hierarquia aceite de valores controlados por ideais que os
classificam. Um ideal, possuído em comum por dois agentes, fornece uma base
para valorização, comunicação e predição” (1971: 141). Esta malha de valores
está em constante negociação no que se refere à relação entre o indivíduo e os
grupos nos quais se movimenta. Assim, o ideal da discrição e o respeito pela
intimidade, no caso de Fátima, por exemplo, pode servir como ponto estratégico
de convergência entre ela e sua família de origem para mitigar os desarranjos
que poderiam surgir, caso os anseios sobre o casamento, por um lado, e a
142
Ver Capítulo IV, página 134.
143
Ver Capítulo IV, página 141.
159
vivência de relacionamentos homoafetivos, por outro, ficassem em foco. Desse
modo, a honra do grupo e a da pessoa permanecem intocadas. Entretanto, não
devemos esquecer que para que isso ocorra, o indivíduo deve permanecer
afastado do grupo de origem, com ele mantendo somente contatos esporádicos
que garantam a preservação dos laços sociais.
Esses ideais que respondem às relações com o grupo social de origem são
igualmente transplantados para a relação com os grupos de pares e podem ser
rastreados nas valorações que forjam os tipos ideais de mulher, e
consequentemente, da parceira, presentes nos espaços pesquisados. Esta
hierarquia de valores também compõe, por sua vez, a trama de normalidades e
abjeções, na medida em que delineia os gostos e preferências fundados nesses
preceitos morais.
Tô na pista... pro negócio?: as éticas da sedução
Como a cada primeira sexta-feira de cada mês, cheguei ao clube Olímpico
para mais uma rodada dos Bailes da Mary. Assim que entrei, notei que todas as
assistentes dessa noite exibiam umas pulseiras de plástico fluorescente que
ressaltavam significativamente em combinação com a tênue iluminação do
lugar.
144
Elas eram de três cores: verdes, azuis e vermelhas. Sentei-me à mesa
com Neyla e Laura, como quase todas as vezes e, logo em seguida, Mary
apareceu com três caixinhas, cada uma delas contendo pulseiras das cores que eu
havia visto ao entrar. Perguntei curiosa do que se tratava, e Mary, ao mesmo
tempo em que me entregava uma vermelha, me explicou que era a festa da
paquera, então, para “não confundir as bolas”, ela distribuía essas pulseiras:
vermelha para as casadas, verde para as solteiras e azul para os meio-termos. Eu
discordei sobre a minha cor e, pedindo uma azul, obtive como resposta um “não,
garota, você está casada!”, proferido em coro por Mary, Nely e Laura. Tentei
explicar meus arranjos matrimoniais do momento, mas não houve poder de
argumentação que mudasse a opinião delas: casada é casada. Pouco importava
144
Até que a pista abra para a dança (ver capítulo II), as luzes do lugar são muito sutis. Em
seguida, aumenta consideravelmente ao redor da pista e fica mais tênue à medida em que dela
nos afastamos.
160
que a minha mulher estivesse morando em outra cidade, país, continente. Eu
devia usar pulseira vermelha porque isso marcava a minha indisponibilidade.
Comecei a rodar um pouco entre as mesas e a arrecadar as opiniões a respeito: a
grande maioria tinha a mesma opinião. A maioria das que discordavam do resto
ou não tinham uma opinião fechada (me perguntando como eram os acordos que
eu tinha com minha parceira, por exemplo) fazia parte do grupo de mulheres
mais novas aquelas poucas balzaquianas ou na casa dos 40 argumentando,
para situações particulares, em favor do direito de “me divertir” (eufemismo da
traição), porque “o que os olhos não vêem, o coração não sente”.
Mais uma vez, bom senso, discrição e sobriedade aparecem como critérios
morais que guiam o comportamento das mulheres mais velhas. É de bom senso
manter a fidelidade à parceira, o que se atrela à sobriedade de se manter certa
investidura de “mulher casada”. Nas palavras de Goffman, este modo de agir
enquadra-se no que ele define como a “compatibilidade entre aparência e
maneira
145
” (2003:32) nos modos de constituir a fachada da representação de si.
Comportar-se sobriamente, ou seja, não infringir as regras que, explícita ou
implicitamente, estruturam as relações sociais nos bailes da Mary e, por sua
vez, as da rede na qual estas festas estão inscritas é uma demonstração de bom
senso. Essa compatibilidade, por sua vez, é contextual, isto é, guarda relação
com um ambiente particular. Assim pensadas, as regras de bom senso e
sobriedade fazem sentido para as frequentadoras das festas do Olímpico,
integrantes, aliás, de uma rede de amizade que supõe um circuito de encontros no
qual esse tipo de normas também impera e se erige como pano de fundo de uma
determinada moralidade.
Entretanto, para as mais novas, divertir-se pode suportar um significado
dúbio, tanto de entretenimento quanto de se ignorar a etiqueta da fidelidade. Se a
diversão implica o flerte fora da relação de casal, também supõe o cuidado de se
evitar ser vista pela parceira, isto é, demanda discrição. Desse modo, o termo
discrição constitui-se numa polissemia que estabelece marcadores morais
diferenciados neste caso, pela idade. Para as mais jovens, a discrição denota
145
“Pode-se chamar de ‘aparência’ aqueles estímulos que funcionam no momento para nos
revelar o status social do ator (...) chamaremos de ‘maneira’ os estímulos que funcionam no
momento para nos informar sobre o papel de interação que o ator espera desempenhar na
situação que se aproxima” (Goffman, 2003: 31).
161
um comportamento considerado impróprio pelas mais velhas, já que diverge do
bom senso de se manter a fidelidade, mais valorizada do que a “diversão”.
Nos bailes da Mary, a princípio e segundo suas próprias palavras, “se
divertir” parece ser a consigna principal:
As pessoas criam uma identificação com esse ambiente [o dos
bailes]: rola um clima de festa, de segurança, não rola droga. Como
eu não faço divulgação de rua, então, as pessoas sabem da minha
festa pelo boca a boca, por alguém que já foi; aí, convidam mais
alguém, assim como você fez, trazendo suas amigas e, desse modo,
as pessoas que vão, se conhecem e se cria um ambiente familiar.
Então, você chega e já conhece pelo menos de vista e, assim, se
sente mais segura. Quando você divulga na rua, pode levar uma
pessoa drogada que não sabe que problema vai lhe arranjar ali
dentro. Pode levar até bandido! A mulher também é bandido, hoje
em dia.
A preocupação de Mary em proporcionar um ambiente de segurança e
aconchego, no qual os rostos sejam conhecidos, está em consonância com a ideia
de se manter a respeitabilidade, num local onde as pessoas se conheçam pelo
menos de vista. Por sua vez, o fato de não se fazer divulgação de rua implica
dividir com as frequentadoras a responsabilidade por esse ambiente, revelando
uma confiança mútua sobre o compartilhamento de códigos comuns [o bom
senso] em relação aos modos sociais que devem investir as pessoas convidadas a
participar das festas. Desse modo, e também em relação a este critério, posso
sugerir que não é somente confiança, mas também maior controle social interno
o que este tipo de conformação social oferece.
Martina
146
perdeu sua “parceira de muitos e muitos anos”, algo que ela
define como uma desgraça.
147
“Nunca mais vou me apaixonar daquele jeito! Ela
146
Martina é psicóloga, aposentada do exército, mas ainda exerce a profissão particularmente. Ela
está na casa dos 70 anos e faz parte do que denominei “grupo B”. De cabelo grisalho e curto,
veste-se sempre com calça e sapatos sociais de homem. Autodenomina-se fancha ou fanchona e
tem em seu “currículo” algumas intrigas com outras frequentadoras, como o fato de, há mais de 20
anos, ter flertado com a namorada de outra cliente dos bailes do Olímpico. “Ela me perseguiu com
uma arma querendo me matar. Tive que sair pelos fundos do bar, pela cozinha, onde uma amiga
estava me esperando no carro, e fugi. Eu não tive culpa se ela não deixava feliz a sua mulher, e
veio buscar outra coisa em mim. Eu ainda tenho medo dela!”, me diz, rindo, e assinalando a outra
mulher, amiga da Neyla. Passados tantos anos, a situação foi aparentemente resolvida, mas a
mácula de roubar mulheres casadas ainda permanece e faz parte da épica da rede. Esta história
me foi narrada por diferentes pessoas quando eu assim solicitei.
147
Aparentemente, em um acidente, mas ela nunca quis falar muito sobre o assunto. Mesmo na
entrevista, manteve o eufemismo da “desgraça”.
162
era minha vida, meu amor. Ela foi a única mulher com quem morei, e não quero
morar com mais ninguém. Eu tenho a minha casa, minhas sobrinhas, sobrinhas
netas e dinheiro suficiente para estar bem, assim, sozinha. Não quero sofrer de
novo, não quero essa dor no coração, a casa vazia”, me explica. Martina é uma
antiga frequentadora e amiga da Mary. Mora no Grajaú, no mesmo prédio da
irmã, que também comparece quase todas as vezes ao Olímpico.
Nós somos tijucanas, sempre moramos na área, e tijucano é sempre
tijucano, não sai do bairro! Já morei fora: Espanha, Argentina, mas
no Rio sempre fiquei lá, mesmo (...) A Glaúcia [a irmã] e eu
gostamos muito desse lugar. Vimos sempre para dançar e prestigiar
a Mary, que faz o esforço para manter estas festas que são das
poucas assim pra gente, assim, entendida, da nossa idade. Aqui tem
gente finíssima, e isso não dá em qualquer lugar. Muitas nos
conhecemos de muitos anos, então, rola um clima legal,
descontraído. Você sai pra dançar sem medo de deixar suas coisas
na mesa porque, aqui, todas temos confiança uma na outra.
Neyla, como muitas outras mulheres que comparecem sexta após sexta aos
Baile da Mary, vislumbra em seu universo de expectativas conhecer uma parceira
com quem passar o resto da vida. Outras, contudo, têm pretensões menos
audaciosas, como conhecer alguém para namorar por um tempo, porque não
acreditam “nessa coisa do amor eterno” ou simplesmente por não estarem
interessadas na vida conjugal. No bar do Luiz, numa noite em que a Mary tocava
violão, Neyla conheceu uma mulher um pouco mais jovem do que ela. Na festa
seguinte, ela me contou o fato e levou umas fotos de uma festa de Halloween, em
um sítio da Região dos Lagos, para que eu visse seu novo caso. “Ah..., lembro do
sexo com ela e a minha pele fica toda arrepiada”, conta, me mostrando o braço
como prova. “A gente fica horas fazendo amor. Ela é tão gostosa! Tão cheirosa!
Eu estou me apaixonando... A Mônica está saindo
148
de um relacionamento de 15
anos, está separada há um ano. Elas não moram juntas, mas sim na mesma
quadra, então, é difícil porque a outra é muito ciumenta e possessiva”. Neyla me
explica que, por esse motivo, os encontros acontecem esporadicamente (em
média, a cada 15 dias) e em sua casa para evitar o conflito com a ex, que não
aceita a separação, cerceando as possibilidades de encontro de Mônica com
148
“Sair” de um relacionamento converte-se muitas vezes em um momento liminar, uma
passagem do estado de casal ao de amizade que pode ser longo, complicado, pouco claro e com
muitas idas e voltas em meio às quais entram e saem outras pessoas.
163
outras mulheres. A própria Mary advertiu que a situação é complicada,
aconselhando Neyla a não se envolver mais, nem apostar nessa relação porque “é
uma roubada. A outra tá doida, é violenta, não sei o que pode acontecer”, me
explica com certo receio.
Como já sublinhado no capítulo III, as festas no Olímpico comportam um
funcionamento de malha estreita, segundo termo cunhado por Elizabeth Bott.
149
A disseminação das normas de convivência e de comportamento no local é de
responsabilidade tácita das frequentadoras que apresentam novas integrantes. De
modo análogo, as punições pelas transgressões dos códigos serão individuais, no
caso de se tratar de uma frequentadora antiga, ou grupais, em se tratando de uma
nova, as responsáveis serão também aquelas que a incluíram na rede. Por
exemplo, se naquele dia da festa da paquera, eu, portando a pulseira vermelha,
tivesse flertado abertamente com alguma mulher do lugar,
150
teria ultrapassado a
barreira do bom senso e a pessoa que tivesse aceito o flerte teria violado a regra
sobre não se aproximar de alguém que já esteja envolvida com outra pessoa.
Obviamente, naquela ocasião, as pulseiras funcionaram como dispositivos de
explicitação dos códigos tácitos relativos às normas morais, sendo a lógica do
casal e da fidelidade de corpo parte da moral de sociabilidade do lugar. Um elo
tácito e invisível paira no ar, indisponibilizando a pessoa comprometida em
algum relacionamento, tornando-a, de certa forma, intocável. Do mesmo modo, a
amizade desenha outra barreira infranqueável: o tabu do flerte.
Certa noite, já quase no final do baile, estava dançando com a Neyla,
como muitas outras vezes, e notei que sua atitude comigo estava um tanto
esquisita. A música da ocasião era um forró. Estávamos, portanto, dançando em
par, ela me levando para não perder o hábito
151
quando, se aproximando
muito da minha boca e, em seguida, sussurrando em meu ouvido, me fez a
proposição de sairmos do lugar e irmos para um motel “namorar”. Recusei,
gentilmente, mas ela continuou insistindo: “Ah como sua pele é macia, e você
149
Página 91 do capítulo III.
150
Com flertar abertamente quero dizer, ao menos, dançar a noite toda com a pessoa, beijar na
boca e, eventualmente, ir embora da festa com ela.
151
O fato de ser estrangeira faz com que as frequentadoras que me conhecem sempre me
conduzam para me ensinar, mesmo que este não seja seu hábito com outras parceiras de baile,
com as quais o intercurso da dança pode se dar de maneira oposta. Todavia, quando se trata de
boleros, minha “latinidade” me outorga autoridade automática para conduzir, agência que perco,
imediatamente, logo após começar a dançar, caindo por terra o mito da latinidade, que é
substituído pelo da idade (sou menina, e bolero não é coisa da minha época).
164
cheira tão bem... vamos prum motel; a gente namora, eu quero tocar mais na sua
pele”, insistia, enquanto acariciava meus braços que, pelo tipo de vestimenta que
eu usava, era a única parte do meu corpo que ela podia tocar.
152
Quando a música
acabou, parei de dançar com ela e deslizei até o outro canto da pista para
conversar com Irina,
153
que observava a situação. “Hoje, a Neyla tá a fim de todo
mundo”, me disse, rindo; “quis me pegar também, e eu falei que estou brocha,
que com amiga, eu sempre tô brocha. Acontece que ela pediu no culto para
arrumar uma namorada e ficou nervosa, no final da festa, querendo ver em várias
a “namorada prometida”; aliás, tá meio bebinha”, espetou com certa ironia.
Dias mais tarde, Neyla me ligou pedindo desculpas. Disse que tinha
bebido demais e, por isso, ultrapassado um pouco os limites. Desculpas aceitas,
perguntei quais limites eram esses, e ela me explicou que, entre amigas, tem de
haver respeito, que “não dá para namorar amigas porque se viola uma confiança,
uma intimidade diferente”. Esse caso, mesmo se repetindo, é considerado uma
exceção, amparado no excesso da bebida, como justificou Irina, ou em algum
tipo de desequilíbrio, como um momento de separação, por exemplo, mas sempre
como desviante da norma e seguido de um pedido de desculpas e da inculcação
da vergonha.
Em definitivo, aqueles comportamentos que extrapolem a sobriedade,
estabelecendo-se no registro do que se considera um excesso tanto nos
comportamentos de flerte, na vestimenta, no consumo de bebida ou, até mesmo,
nos modos de se dançar permanecerão no terreno da abjeção. Esses modos
aparecem como desviantes ao desatrelarem os termos da relação entre aparência
e maneira, anteriormente analisada, já que o flerte com amigas é um
comportamento desmedido e ainda agravado pela ingestão excessiva de álcool,
que leva a pessoa a perder o controle de si. A esse lugar de desvio pertencem
aquelas que, a cada noite, flertam com uma mulher diferente: “essa aí fica
beijando uma diferente a cada noite”, aquelas cujas vestes exibem decotes muito
pronunciados e saias “demasiado curtas” ou as que, diante do consumo excessivo
de álcool, “dão vexame” e não conseguem manter uma conduta apropriada.
152
Calça comprida, camiseta de manga curta preta e tênis é a vestimenta que usava
habitualmente para fazer trabalho de campo. Uma espécie de “roupa de faxina”.
153
Irina mora no Leme. É amiga de Neyla e está na mesma faixa etária dela (na casa dos 60). É
aposentada por invalidez por problemas no coração, motivo alegado para não dançar muito.
Apesar de sua apresentação de gênero concordar com as do chamado “grupo B”, ela geralmente
permanece sentada na mesa de Neyla.
165
O tipo de música e os modos de dançar também estão incluídos nessa
esfera. É comum a formação de rodas de amigas na pista, mais ou menos
flexíveis à participação de pessoas externas a ela. Essa flexibilidade está
relacionada ao conceito que a pessoa tenha diante do grupo. No caso de ser
alguma conhecida, passará justamente pelos modos como se comporta de acordo
com critérios anteriormente apresentados. Se tratar-se de uma desconhecida
serão aplicados dois princípios de escolha: o interesse particular de alguma das
integrantes ou o modo como se comporta durante a dança. Fátima foi
rapidamente aceita na roda. Ela frequenta o Olímpico porque adora dançar.
“Tento não perder nenhuma festa, a música é ótima”. Ela dança a noite toda com
várias mulheres, parceiras de baile, dentre as quais me incluo. “O único que
procuro é diversão; eu não vou pra procurar ninguém. Se acontecer, acontecerá,
mas eu vou pra dançar. Tem gente que tem outros objetivos... né? Não é fácil
achar um lugar assim, pra gente, e que a música não seja pancadão.
154
Tem
lugares que são super legais, mas a música é tão ruim que você não consegue
acompanhar nem uma música só. Aí não me dá tesão de dançar. E dançar em
lugar careta, onde você não se sente à vontade de dançar com quem quiser, às
vezes, aborrece. Por isso, acho bom ter a liberdade de estar com os iguais.”
Fátima dança com várias mulheres na mesma noite, sem incomodar ninguém,
nem tentar aproximações que vão além da dança. Diferente é o caso de Sueli,
155
considerada vulgar tanto no que diz respeito aos movimentos efetuados durante a
dança, quanto em relação à sua roupa. Nas vezes em que ela dançou comigo, o
grupo nos isolou, ou quando tentou se aproximar para dançar na roda, foi
rejeitada. Nestes casos, o grupo fecha-se em si mesmo e se movimenta
lentamente para o lado contrário da pessoa, provocando um claro e constrangedor
vazio.
Para além disso, os possíveis “descontroles” de uma festa são assunto da
seguinte, integrando o que Elias e Scotson (2000) chamam de fofoca
depreciativa. Para estes autores, a fofoca funciona como meio de controle social,
transformando-se em elemento de rejeição e humilhação (no caso da fofoca
154
Ver nota 29 do Capítulo I.
155
“Cuidado com ela! É bagunceira, só dança com outras para dar ciúme na namorada, que é
tranqüila, fica na boa, mas essa aí... um conselho de amiga”, me disseram ao ouvido na pista de
dança, certa vez. Isso sem saberem que, como já comentei anteriormente, a própria namorada
pede para que eu dance com Sueli porque “não aguenta o tranco da mulher”.
166
depreciativa) ou de admissão e reconhecimento (no caso da fofoca elogiosa). Os
grupos que conformam a configuração social do salão vão se historicizando
também em função das narrativas que festa após festa costuram a malha de
socialização deste local.
Uma coisa que deve ficar clara é que o flerte não está, de modo algum,
banido do lugar. Pelo contrário, muitas das mulheres que assistem aos bailes têm
o mesmo anseio de Neyla de achar uma parceira. O que tento explicar é que, por
um lado, no discurso dominante do lugar, a diversão e o encontro com as amigas
são seu leitmotiv; por outro, o flerte deve estar regido pelo bom senso, o que
deixa implícito o cuidado em “não se desejar mulher alheia” ou não penetrar no
terreno do tabu da amizade. Entretanto, devo ressaltar que esta moral se
desmancha no discurso das mais jovens, para quem o critério dominante é a
liberdade individual que, por sua vez, supõe a responsabilidade dos sujeitos
pelos próprios atos, fora da punição grupal. Por outro lado, a ética da sedução
nas boates pesquisadas evidencia-se de modos bastante diversos.
“Puxa, Andrea! O que você faz aí sentada com esse caderninho na mão?
Eu pensei que tava beijando na boca e, por isso, tinha sumido!”, me interpela
Vitória. “Tu é ruim de transa, mesmo!” Esta conversa quase cotidiana com
Vitória, que não aceitava a desculpa do trabalho de campo para não querer beijar
ninguém nas boates, é paradigmática dos comportamentos esperáveis ou
desejáveis nas boates pesquisadas. Tanto na Arena quanto na Plural, o flerte é o
motivo básico de aproximação das pessoas e a pegação, a consequência
esperada. Se voltarmos à análise da música e das coreografias da dança
apresentadas no capítulo II, esta diferença ganha sentido. As boates parecem
estar a serviço do flerte, e os timmings que ali se configuram apontam nessa
direção. Aliás, a maior rotatividade verificada nesses locais não possibilita a
formação de uma malha estreita de socialização, como nos bailes da Mary. De
todo modo, não pertencer a uma rede semiprivada de festas permite maior
anonimato e, portanto, um comportamento individual para o qual não existem
regras morais grupais que, como acabo de explicar, se verificam nos bailes da
Mary. Assim, os critérios morais nas boates guardam semelhanças com aqueles
das mulheres mais novas que frequentam o Olímpico.
A ética subjacente no Olímpico parece estar construída sobre valores
tradicionais de respeito à estrutura do casal, à monogamia e uma constituição
167
relacional que submete a individualidade aos critérios moralmente
conformadores da rede. Na Arena e na Plural, por sua vez, a ética imperante
valoriza os critérios individuais, realçando o flerte como economia do lugar e
conferindo um relevo significativo à atividade sexual com a pegação rápida
direcionada ao intercurso sexual amparado no anonimato, sem que haja punições
sociais e até mesmo incitando condutas mais próximas à lubricidade
156
do que à
sobriedade. Estes traços aparecem assentados aqui em uma divisão mais
geracional do que social. Se pensarmos na discrição como sinal da sociabilidade
de Copacabana dos anos 1960, traçada pelas entrevistadas de Nadia Nogueira
(2005: 55,56) ou da Homossexualidade vista por entendidos, de Carmen Dora
Guimarães (2004), reconhecemos os critérios que regem a sociabilidade nos
bailes da Mary. Assim, as boates constituem-se sob os timmings (que, neste caso,
desenham as condições de possibilidade para a constituição de determinadas
subjetividades em detrimento de outras, características das gerações mais novas),
ao passo que as festas no Olímpico respondem às regras das gerações mais
velhas. Nas boates, o imperativo da juventude e o valor dado à paquera
constituem um diferencial que as aproxima das casas de divertimento noturno
GLS da Zona Sul, descritas por Fernanda Eugênio (2006), e as afasta da lógica
do recato e da sobriedade dos bailes do Olímpico.
Se, como explica Vianna (2002: 197), as moralidades podem ser pensadas como
“um campo de enunciados sobre intenções, atos e condições nos quais esses atos
foram realizados” e “só podem ser apreendidas se descritas, ou seja, que são tão
prisioneiras das condições de seu enunciado que só fazem sentido quando
recuperadas em sua dimensão de ação social”, a partir desse enunciado, podemos
inferir que as poéticas do desejo presentes no campo devem ser lidas à luz desses
sujeitos que as elaboram. Em seus relatos, as pessoas revelam regras inscritas em
suas trajetórias de vida e certas variáveis de atuação que permitem que essas
mesmas regras se mantenham vivas. Este é o lugar onde que a moral habita. Tais
distensões da atuação aparecem justamente no campo argumentativo através do
qual as pessoas relatam a si mesmas e, ato contínuo, as noções éticas e morais
que regem o mundo onde habitam. Os modos segundo os quais esse relato é feito
156
O alto consumo de álcool, o funk como encerramento da noite na Plural e o “agora ninguém é
de ninguém; agora, é putaria liberada” são exemplos dessa lubricidade que enuncio.
168
nos dizem sobre as expectativas e anseios tanto sobre si quanto sobre as pessoas
com as quais socializam o que eu chamo de poéticas do desejo inscritas num
primado normativo moral, nas quais noções como sobriedade, bom senso,
discrição e paquera ganham cargas semânticas cuja força de sentido existe
nesses espaços e não necessariamente em outros.
O uso e o respeito a estas categorias constituem estratégias de positivação
das práticas através das quais os sujeitos se inserem nas redes de sociabilidade.
Tais estratégias, visíveis nas estéticas, nas referências aos modos de se vivenciar
as práticas sexuais e nos critérios para se estar nos estabelecimentos pesquisados
ecoam diferentes valores que definem modos diversos de se ser lésbica.
169
Para concluir
Ler[se] nas entrelinhas. Reconhecer-se e reconhecer n@ outr@ esses traços que
desvendam certos modos de habitar o mundo e não outros. Ao longo das páginas
que constituem esta tese, tentei puxar os diferentes fios que funcionam como
[entre]linhas de sentido dos processos de subjetivação encarados pelas pessoas
que integraram o campo. Esses fios são os como, mais do que os porquês, já que
as sociabilidades lésbicas se desenvolvem nos contextos pesquisados e são eles
que atrelam ambas as partes da tese. Esses como dizem respeito às estratégias
montadas nos processos de habitação e apropriação dos espaços que alinhavam
as redes nas quais se tecem os processos de subjetivação e as dinâmicas de
sociabilidade.
Sendo assim, como habitar os espaços pesquisados? A conformação dos
grupos que compõe o público foi uma das chaves para desvendar essa pergunta.
Em que lugar do recinto as pessoas preferem estar? Quem integra estes grupos?
E quais as variáveis internas que os constituem?
Quando a boate Arena apareceu na cena noturna GLS de Nova Iguaçu, as
condições de possibilidade de divertimento se modificaram e, com elas, a
conformação do público, que se redistribuiu entre ambas as boates. Em seguida,
com a falência da boate Plural, produziu-se uma reconfiguração que mitigou a
presença de alguns dos grupos integrantes do público da boate mais antiga. Esta
situação me ajudou na corroboração de uma hipótese que eu já estava levantando
por ocasião das incursões feitas até esse momento na Plural e nos Bailes da
Mary: a idade revelou-se um marcador constitutivo, instaurando-se como prisma
de análise em dois sentidos. Por um lado, evidenciou-se que as diferentes etapas
de vida estruturam os grupos que conformam as casas pesquisadas e, por outro,
que os diferentes ethos geracionais desenham determinadas moralidades que
ganham força em detrimento de outras. Estas moralidades, por sua vez,
comportam modos de se habitar o espaço, vivências do tempo, imposição de
estilos de vestimenta e lógicas de constituição de amizades e namoros.
Em relação às lógicas de ocupação espacial, dois critérios se
descortinaram: as nuances entre o caráter público e privado dos recintos e a
semântica topográfica dos espaços. Enquanto a Plural e a Arena funcionam
170
periodicamente em um espaço particular, pensado e reconhecido especificamente
como uma casa de baile para pessoas que procuram parceir@s do mesmo sexo ou
como um lugar de recreação para casais homossexuais, os bailes da Mary têm
outra origem, ocorrendo em outro contexto. O lugar onde acontecem, o
Olímpico, é um clube privado que aluga seu salão principal com essa finalidade,
uma vez por mês. De modo distinto à Plural e à Arena, nas quais o local
preexiste às relações que nele se desencadeiam, o público integrante destas festas
faz parte de uma rede semiprivada – e sempre crescente – de relacionamentos. Os
bailes da Mary pertencem a uma rede de festas e encontros de circulação restrita,
à qual só é possível se ter acesso por intermédio de pessoas conhecidas.
Contudo, os três lugares resguardam a privacidade de certas práticas que,
fora desse contexto, adquirem um caráter abjeto, mas que em seu interior são
centrais na dinâmica social, supondo um sistema de abertura e encerramento que
as isola e as torna permeáveis ao mesmo tempo. Eles constroem um diferencial
em relação aos outros espaços que desestabiliza as relações espaciais em torno
das práticas sociais e discursivas que se sucedem dentro do recinto, quando
comparadas àquelas que os mesmo sujeitos estabelecem fora dali.
O segundo critério, a semântica topográfica, desenha regimes de
significação e inteligibilidade diferenciados, outorgados pelo público aos
diversos recintos que compõem os lugares frequentados. Posso dizer que a
distribuição do público marca um diferencial relacionado com a idade, a
antiguidade no lugar e a estética que compõem a geografia dos lugares. Esta
configuração explicita certas hierarquias e divisões entre os grupos que, algumas
vezes, podem ser hostis ou segregacionistas e, em outras, acarretar uma divisão
de interesses que supõe uma invisibilidade dos grupos entre si ou, ao contrário, a
visibilidade da diferença que continua na pista.
Assim, a localização dos diferentes corpos dentro do recinto estabelece
pautas sobre aqueles que são centrais e aqueles que são periféricos em relação
aos critérios de subjetivação que imperam e importam nos recintos.
Com respeito às vivências do tempo, o fato de “se apropriar de um lugar”
supõe igualmente certa frequência na assistência e o prolongamento do tempo de
existência da casa, ou seja, uma estabilidade na dinâmica do divertimento
oferecido. Estas ofertas de entretenimento produzem espaços e momentos que
171
são, simultaneamente, “frios” e “quentes” (frio para alguns e quente para outros),
dependendo do grupo, fato que complexifica a estrutura e explicita as
diversidades que conformam @s quem dos espaços pesquisados.
O cruzamento entre tempo, espaço e idade é o que permite enxergar estes
momentos e carregá-los de sentido. Assim, existe uma lógica de ocupação
temporal que responde ao roteiro de “chegada-mesa-pista-mesa”, característica
compartilhada por certos grupos etários das boates e pelo público dos bailes da
Mary. Esta divergência nos hábitos denota diferentes modos de se vivenciar a
noite, associados ao que chamo de lógica do bar ou lógica da boate. Na lógica do
bar, os modos de flerte e de manter relações de amizade constroem-se em torno
de uma mesa: a palavra não é só uma ferramenta importante na sedução, mas um
tipo de aproximação que gera confiança, intimidade e cumplicidade. Na lógica
do bar, a mesa é primordial.
A lógica da boate, por sua vez, é regida pela circulação. As pessoas
percorrem os diferentes âmbitos do recinto, geralmente em grupo, de modo tal
que a territorialidade perde para a circulação o valor que esta possui na lógica do
bar.
Nas boates, estas duas lógicas são palpáveis e marcadas basicamente pela
faixa etária. Quando a Arena abriu as suas portas, a lógica da boate foi
claramente a que imperou. Mesmo com recintos separados e ofertas
aparentemente diferenciadas de divertimento — isto é, um lugar com mesas e
música ao vivo separado da pista, o que permitiria configurar roteiros de sedução
baseados na lógica do bar — houve uma questão que, não sendo contemplada,
dispersou o grupo de público integrado por mulheres mais velhas.
Diferentemente da boate Plural, a Arena não tem intervalos entre as ofertas de
entretenimento possíveis. Ao contrário, há uma justaposição permanente de
eventos, o que dificulta a existência de momentos de sossego, aplanando-se com
isso a semântica topográfica e as referências temporais cruzadas que colaboram
na confecção de marcas de pertencimento temporal particulares a cada grupo.
A economia da sedução dos lugares pesquisados também constroi-se em
torno das estéticas que definem apresentações de gênero relacionadas à díade
masculino-feminino. Entre as mais velhas, a comunicação não se estabelece
somente através da dança ou do olhar, fazendo-se necessária a conversa como
modo de tateio inicial. A idade como marcador ergue-se como variável de
172
explicação das diferenças nos modos de sedução. Assim, a procura por uma mesa
na qual se instalar a noite toda e o apelo à conversa como estratégia de
aproximação — que impera tanto nos bailes da Mary quanto entre as mulheres
mais velhas das boates Plural e Arena — desenham uma ponte que parece
responder a uma trajetória etária, quer dizer, a ethos geracionais similares, mais
do que a uma procedência social.
Por esse motivo, estas casas de diversão podem ser pensadas como mapas
dos grupos que as frequentam. O lugar de preferência para se ficar, os horários
de chegada e de saída e as preferências musicais, bem como as diferentes
apresentações de gênero, funcionam como marcas para se enxergar os modos
como determinadas características da vida social manifestam-se nos lugares
pesquisados. A vestimenta também ocupa um lugar privilegiado de interface
entre o pertencimento e a diferenciação dos grupos que constituem o público.
Sendo assim, a estética é outro marcador fundamental na hora de se analisar que
tipo de sujeitos são possíveis e desejáveis e, por sua vez, os critérios de
normalidade imperantes. O cruzamento entre a heterogeneidade etária (tanto de
etapas da vida quanto de ethos) e as estéticas traz consigo a convivência de
lógicas e visões diferentes sobre o que pessoas de uma determinada idade ou de
outra podem ou devem fazer ou deixar de fazer em relação à moda, a papéis
sexuais e a comportamentos na noite. Estas diferentes visões funcionam como
estratégias de legitimação e deslegitimação no que diz respeito à constituição de
grupos e ao ordenamento moral no interior dos recintos. Nesse sentido, o
princípio de pertinência opera marcando os lindes da correção, tendo a relação
idade-estética como variável de ajuste para delimitar os critérios de normalidade.
Critérios como sobriedade, bom senso, discrição, mas também paquera e
pegação, comportam-se como categorias morais de autodefinição e identificação
através das quais é factível enxergar diferentes modelos e concepções de
sexualidade, feminilidade, família e ethos das parcerias eróticas. Por sua vez, os
diferentes modelos e concepções que acabo de enumerar são o resultado da
negociação entre valores sociais e morais e anseios individuais dos sujeitos, uma
tensão entre o social e o individual que denomino imperativos sociais: uma mise
en scène da relação entre papéis social e culturalmente atribuídos aos indivíduos
com respeito ao lugar na família e na sociedade e a visão de si mesmos em
relação a essas atribuições.
173
Estes imperativos, enquanto controladores da manutenção de determinadas
ordens sociais, contribuem para fixar ou cristalizar determinados repertórios de
sujeitos com determinadas características como passíveis de representar certos
papéis, habitar certos corpos e conduzir certas práticas em situações espaço-
temporais específicas. As noções de feminino e masculino também estão
estereotipicamente associadas a diversas características que costuram os
significados do que se considera um comportamento “próprio” de cada uma
delas. Estas características são o que eu chamo de imperativos da feminilidade,
dentre os quais, a heterossexualidade e a reprodução aparecem como
fundacionais, já que garantem simbólica e materialmente a reprodução dos
regimes sociais. Neste sentido, responder como lésbicas a tais imperativos supõe
a elaboração de estratégias de constituição de si que possibilitem a estas
mulheres a obtenção de um reflexo que devolva para elas a imagem de um
sujeito. Assim sendo, existem diversos modos de se conviver com imperativos
femininos tais como o da reprodução, que pode ser vivenciada como anseio,
como estratégia para escapar à heterossexualidade, como realização pessoal ou
mesmo um impedimento para se vivenciar uma vida plena. O imperativo da
heterossexualidade, por sua vez, traz consigo estratégias para contornar
socialmente o fato de não se desejar compartilhar a vida afetivo-sexual com um
homem, estratégias estas que guardam relação com os modos de se vivenciar
socialmente o desejo por outras pessoas do mesmo sexo.
Visibilidade e invisibilidade disputam e explicitam éticas diferenciadas
sobre o valor da intimidade, montadas sobre as diversas formas de se conceber o
público e o privado. Mais uma vez, a idade aparece como variável fundamental
para o entendimento de uma moral da intimidade que também explicita o espaço
dado ao erotismo. Aqui, as categorias morais de bom senso, sobriedade e
discrição tecem uma trama que se reflete nos diferentes sentidos através dos
quais o desejo é referenciado e vivenciado nos espaços pesquisados. O uso e a
observância destas categorias redundam em estratégias de positivação das
práticas por intermédio das quais os sujeitos se inserem nas redes de
sociabilidade. As boates parecem estar a serviço do flerte, algo evidenciado
pelas temporalidades que ali se configuram. Aliás, a maior rotatividade não
permite a formação de uma malha estreita de socialização, como nos bailes da
Mary. Por outro lado, não pertencer a uma rede semiprivada de festas permite
174
maior anonimato e, portanto, um comportamento individual para o qual não
existem regras morais grupais como aquelas que podem ser observadas nos
bailes da Mary.
Quando falo em anonimato, refiro-me, porém, ao desconhecimento das
trajetórias individuais no interior dos estabelecimentos pesquisados. Existe,
entretanto, outro anonimato que, algumas vezes, pede para ser resguardado,
dessa vez, porta-fora dos recintos: a intimidade em relação à orientação sexual
ou à invisibilidade social. A constituição do espaço como privado ou público,
analisada no primeiro capítulo, parece ser inversamente proporcional à
visibilização da orientação sexual e diretamente proporcional ao critério moral
de discrição que opera nos bailes da Mary.
Neste ponto, o modo como se constroem os lugares ganha importância. O
caráter heterotópico que possuem os investe de um diferencial que desestabiliza
as relações espaciais em torno das práticas sociais e discursivas que ocorrem no
interior dos recintos, em comparação àquelas que os mesmos sujeitos
estabelecem em seu exterior.
Idade e apresentação de gênero cruzando-se com as ofertas de
entretenimento das casas pesquisadas são, assim, as variáveis que compõem o
ordenamento ritual da noite. Quando esta conjunção sofre uma disrupção —
como ocorrido por ocasião da transição entre a Plural e a Arena — o público se
reconstrói, contudo, nesse processo, alguns critérios se perdem, deixando alguns
grupos sem referenciais. Estes últimos desmancham-se como tais no que
denominei fluxos diaspóricos do público, ou seja, processos de reunião e
dispersão das pessoas conforme seus interesses e gostos estejam sendo
representados ou levados em conta nas ofertas das casas de entretenimento, uma
estratégia adotada na reconstituição de uma subjetividade habitável.
Resulta desta análise que a questão de habitar as subjetividades não se
restringe ao problema de se localizar dentro ou fora — de um espaço, do
armário, de um grupo ou de uma categoria de identificação. Ao contrário, sua
força reside nas diferentes articulações e modulações que esse habitar torna
possíveis, desestabilizando os compartimentos estanques de se ser mulher e de se
ser lésbica. Nesse sentido, as diferentes apresentações de gênero descritas, que
configuram um amplo leque de estéticas nos espaços pesquisados, aparecem
como uma explicitação para essa desestabilização.
175
Estas regularidades que tenho marcado até agora se comportam como
lógicas primordiais de sociabilidade. Entretanto, existem também aquelas que se
constroem nas brechas, na contramão ou no trânsito entre essas lógicas.
Aquelas mulheres chamadas de bonecas ou mulherzinhas, por exemplo,
que podem passar por [heterossexuais], reconfiguram a imagem social mais
antiga da lésbica como uma mulher masculinizada ou mais moderna, ficando no
meio termo entre ambas, ao adotar certa androginia. Esta recuperação de um
physique du rôle hiperfeminilizado, algumas vezes, pode significar o custo da
rejeição de determinados grupos que consideram esta escolha um estereótipo da
reprodução da imagem de um tipo de mulher heterossexual e da expressão do
imperativo social do feminino. De modo análogo, o correlato ou não entre
apresentação de gênero e práticas sexuais ou a prática de variar a apresentação
de gênero — de um modelo mais masculino a outro hiperfeminilizado — como
estratégia de sedução exprimem modos de se embodificar a tríade “gosto-corpo-
desejo”. No entanto, o desejo exclusivo por mulheres constrói-se de modo oposto
ao desejo por homens e mulheres, que é estigmatizado como “indefinição”. A
bissexualidade representa um desequilíbrio nos parâmetros morais do que
significa ser lésbica, compondo a trama de normalidades e abjeções enquanto
delineadores de gostos e preferências fundados nesses preceitos morais.
Tais preferências habitam em interstícios fantasmáticos nas bordas entre
abjeção e subjetivação, esse espaço necessário para a instauração de uma
subjetividade mainstream, essa alteridade provável, mas indesejada.
Se na introdução deste trabalho, a reflexão sobre o que significa ser
mulher teve relevância para explicitar os espaços teóricos e epistemológicos a
partir dos quais eu tentava desenhar minha tese, o processo de produção das
páginas que compuseram a escrita etnográfica me levou à indagação sobre o ser
lésbica como um espaço de habitação tanto social quanto discursivo. A partir da
análise dos imperativos, esta questão adquiriu um novo sentido. A análise das
estratégias para se conviver com os imperativos da feminilidade esclarece
processos de subjetivação subjacentes em face da repetição persistente de
modelos que se semantizam como os únicos possíveis e, portanto, os critérios
axiomáticos do real. De modo análogo, descrever os jogos de figura e fundo que
se configuram a partir da habitação das categorias morais e de
autorreferencialidade imperantes no campo supõe a enunciação de uma variedade
176
de sítios identificatórios que dão conta da complexidade da negociação que tem
na habitação da prática seu maior poder e eficácia. Tais estratégias ecoam
diferentes valores que definem modos diversos de devir mulher e devir lésbica.
Todavia, de que estamos falando quando dizemos lésbica? Qual é o
referencial possível nessa palavra?
De modo análogo, o que estamos definindo com mulheres com práticas
homoafetivas, mulheres que gostam de mulher ou entendidas? Retomando
Marilyn Frye, Teresa de Laurentis argumenta que tentar definir o termo a partir
do dicionário, é “una especie de flirteo sin sentido, que se apoya en una región
de brechas cognoscitivas y espacios semánticos negativos” (de Laurentis, 1993,
113). Assim, e seguindo a mesma lógica com a qual analisei o conceito de
mulher na introdução, repensar a noção de lésbica implica duas reflexões
anteriores. Por um lado, uma epistemológica, sobre como se constroem
categorias e conceitos no discurso científico, por outro, qual seria a relação, ou
não, entre ser mulher e ser lésbica. É nesse sentido que a análise das estratégias
para se conviver com os imperativos da feminilidade ganha força no sentido de
possibilitar processos de subjetivação subjacentes adiante da repetição
persistente de modelos que se semantizam como os únicos possíveis e, portanto,
os critérios axiomáticos do real.
“Ser mulher”, pergunta Butler, “constituiria um ‘fato natural’ ou uma
performance cultural, ou seria a ‘naturalidade’ constituída mediante fatos
performativos discursivamente compelidos, que produzem o corpo no interior
das categorias de sexo e por meio delas?” (2003: 9).
Em 1990, a filósofa questionava-se a respeito da naturalização, feita pelo
feminismo, da categoria mulher como uma identidade definida e a priori, sobre a
qual constituir o sujeito de representação e, consequentemente, de
reconhecimento: “qual o sentido de estender a representação a sujeitos cuja
constituição se dá mediante a exclusão daqueles que não se conformam às
exigências normativas não explicitadas do sujeito? Que relações de dominação e
exclusão se afirmam inintencionalmente quando a representação se torna o único
foco da política?” (2003:23). Quase vinte anos mais tarde, seria difícil achar este
tipo de cristalização em relação à categoria mulher,
157
mas o que acontece com o
157
Contudo, talvez ainda seja factível nas discussões sobre a decisão de se permitir ou não a
participação de mulheres trans e travestis nos congressos feministas...
177
termo lésbica? De quem estamos falando quando usamos essa palavra? E, por
outro lado, quem se sente compreendida sob essa denominação?
De um ponto de vista político, a palavra lésbica pode ser utilizada como
um termo guarda-chuva por meio do qual se pode encarar uma agenda de
demandas de determinados sujeitos com certas características comuns que
possibilitam seu aglutinamento. Contudo, a questão continua a ser: o que
entendemos quando utilizamos esse termo? Politicamente, ele é útil se
permanece instável ou requer certa cristalização identitária que estabilize os
sujeitos a serem contemplados? Qual é o nós que se revela no interior desse
coletivo? Ou, como se pergunta Haraway em relação à constituição de uma
categoria política de “mulher”, “¿qué identidades están disponibles para poner
las bases de ese poderoso mito político llamado “nosotras”? (1995: 264).
Entretanto, como antropóloga, defronto-me com certos termos que, no
campo, fazem sentido em detrimento de outros. Entendida, mulherzinha,
sapatão, fancha, boneca, menininha ou bofinho ganham força de referencialidade
e autoidentificação, desmanchando a carga semântica de lésbica. Se pensarmos
esta situação como um prisma, esses termos são os que permanecem do lado
onde a luz, como um arco-íris, se decompõe em diversos espectros; o termo
lésbica enquanto categoria política e científica é, por sua vez, o feixe branco que
recompõe em um só os demais, mecanismo óptico da representação. O que
continua me preocupando em relação aos usos da categoria lésbica seria evitar
cair novamente em usos instrumentais do termo que cristalizam determinados
parâmetros, convertendo-os em “imperativos de regulação” (Butler, 2000b: 91).
Essa preocupação aplica-se tanto à política quanto à academia. Por que lésbica
deveria ter maior estatuto epistemológico do que entendida, sendo que a primeira
perde significado no campo? Qual é sua força e sentido?
Em outras palavras, não estou desconhecendo o valor que o termo lésbica
tem como referencialidade política ou categoria científica; entretanto, chamo a
atenção para o significado contingente que, acho eu, ele deve representar. Nesse
sentido, estou apelando para a necessidade de uma vigilância sobre os
significados atribuíveis ao termo em questão para não se cair em fixações
identitárias que deixem de fora sujeitos que talvez também desejem ser
compreendidos por ele. Quiçá este seja um desafio para um ativismo que coloque
a possibilidade de qualquer prática sexual fora da norma como reivindicação na
178
arena política, para além das formas identitárias que essas possam revestir.
Quiçá na construção de categorias científicas possamos recuperar a carga
positiva do movimento antropofágico, isso que Suely Rolnik (2007) denomina o
self-nómada, uma subjetividade flexível capaz de desenvolver uma liberdade
para se deslocar para além dos territórios aos quais está habituada, negociando
entre conjuntos de referências, fazendo outras articulações e estabelecendo
outros territórios. Tal subjetividade incorpora a vulnerabilidade e a instabilidade
que possibilitam essas negociações, numa reconceitualização do sujeito que se
multiplica ao longo de diversos eixos de diferenças, “un sujeto excéntrico,
constituido en un proceso de lucha y de interpretación, de reescritura del propio
yo, en relación a una nueva comprensión de la comunidad, de la historia y de la
cultura” (de Laurentis, 1993: 113).
“Cadê as lésbicas do Rio de Janeiro?”
Mais uma vez, a pergunta coringa volta à minha mente, mas dessa vez
com a força do erro. A dificuldade em conseguir saber onde elas, de fato, estão
talvez resida em uma falta de delicadeza para saber ler nas entrelinhas, onde a
palavra lésbica desmancha-se em entendidas, sapatonas, mulherzinhas, bonecas,
fanchas e afins.
179
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