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ANEXO 6
O VELHO REI
Houve, em tempos que já vão longe, um rei poderoso, senhor de muitos povos e de
muitas léguas de terras. Ainda que viajasse sem cessar por muitos e muitos anos a fio, não
conseguiria ele correr todos os seus domínios. E todos os povos o temiam, porque era
conhecida de todo mundo a fama das suas riquezas.
De me em mês, chegavam ao seu palácio os emissários dos súditos, trazendo-lhe, com
as homenagens deles, os presentes riquíssimos: marfim, pérolas, ouro e diamantes sêdas e
rebanhos.
E os seus celeiros estavam tão abundantemente providos de grãos, que ele poderia,
numa época de fome geral, abrindo-os a todos os seus vassalos, que não tinham conta,
alimentá-los fartamente durante todo um ano.
Êsse poder sem limites e essa riqueza sem termo haviam embriagado a alma do velho
rei. Já se não supunha homem, mas Deus. Tanta gente via a seus pés, adorando-o, que o seu
coração se habituara a desprezar a humanidade, imaginando que ela só fora feita para o servir
e temer. Só se lembrava dos súditos para os oprimir. Aumentava os impostos e alargava as
prisões. E a sua mão direita, que tanta gente podia fazer feliz, distribuindo esmolas e bênçãos,
somente servia para assinar sentenças de morte. Condenava à pena última cem homens sem
ler ao menos os seus nomes. E, se os lia, esquecia-os dali a um minuto, para só pensar na
febre de festas e de loucuras, em que empregava as noites e os dias, e em que perdia a saúde e
a alma.
E, sucediam-se as festas. Do escurecer ao alvorecer, seu palácio, imenso como uma
cidade, suntuoso como um templo, resplandecente de luzes como um céu estrelado, ecoava
com o barulho das danças, da música e do tinir dos copos.
Um dia, no esplêndido terraço, em que costumava dormir a sesta, o velho rei tinha
diante de si uma lista de acusados. Não sabia nem queria saber quem eram, se eram inocentes
ou criminosos, se tinha cometido alguma falta, ou se eram apenas homens ricos, cuja fortuna
os seus ministros cobiçavam. E preparava-se para, com indiferença, assinar a lista, quando se
deteve a olhar um momento o filho mais moço, que brincava junto dele. Era um principezinho
louro e banco, de olhos azuis e inoventes como os de um anjo. Ajoelhado sobre o mosaico
precioso, que ladrilhava o terraço, estava inclinado para um aquário, e divertia-se vendo
dentro dele os peixes dourados que nadavam. O velho rei, como o sorriso que lhe iluminava
as barbas, ficou mirando com amor a criança, tão bela e tão casta, filha do seu sangue e da sua
alma. E tinha, esquecida na mão a pena fatal, de cujo bico pendia a vida de tantos homens...
De repente, o principezinho teve uma exclamação aflita. O rei viu-o curvar-se mais
sobre o aquário, e meter na água as mãozinhas ansiosas. E a criança veio para ele, segurando
com as pontas dos dedos alguma cousa que se não via, de tão pequena que era.
_ Olha, Pai! Salvei-a! ia afogar-se... salvei-a!
O velho rei curvou-se para ver o que o filho trazia na mão. Era uma mosca feia, negra,
pequenina, miserável, nojenta. Tinha as asas molhadas e não podia voar. O principezinho
colocou-a na palma da mão microscópica, e virou-a para o lado do sol. Daí a pouco a mosca
reanimou-se e voou. A criança batia palmas:
_ Não fiz bem, Pai? Não é um crime deixar morrer uma criatura qualquer por falta de
piedade, Pai? Disseram-me que há homens que se matam uns aos outros... Pai? Como é que se
pode ter a maldade de matar um homem? _ E o principezinho fixava no velho rei os seus
olhos azuis e inocentes como os de um anjo.
Nessa tarde o velho rei não assinou nenhuma sentença de morte.
Olavo Bilac