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RODRIGO BARBOSA RIBEIRO
Krahô, Cupen, Turkren:
O uso de bebidas alcoólicas e as máquinas sociais
primitivas
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SÃO PAULO
2001
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RODRIGO BARBOSA RIBEIRO
Krahô, Cupen, Turkren:
O uso de bebidas alcoólicas e as máquinas sociais
primitivas
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial
para a obtenção do título de
Mestre em Ciências Sociais
(Antropologia), sob a orientação
da Profª Drª LÚCIA HELENA
VITALLI RANGEL.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SÃO PAULO
2001
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Ficha catalográfica elaborada pela Bib. Nadir Gouvêa Kfouri - PUCSP
DM
300 Ribeiro, Rodrigo Barbosa
R Krah€, cupen, turkren: o uso de bebidas alco•licas e as
m‚quinas sociais primitivas. - Sƒo Paulo: s.n., 2001.
Disserta„ƒo (Mestrado) - PUCSP
Programa: Ci…ncias Sociais
Orientador: Rangel, Lucia Helena Vitalli
1. †ndios Krah€ - Alcoolismo. 2. Bebidas alco•licas - †ndios
Krah€.
Palavra-Chave: Alcoolismo Etnologia indˆgena Sociedade Krah€
Comissão Julgadora
_______________________
_______________________
_______________________
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação/tese por processos fotocopiadores ou eletrônicos
_______________________________________ São Paulo, 24 de julho de 2001
Dedico esta dissertação:
À Santi, pelo Amor, Carinho e Sonhos
compartilhados;
À minha mãe, Cilene, e à minha irmã, Geysa,
para quem não palavras ou gestos capazes de
demonstrar a extensão de minha gratidão e do
meu amor;
Aos amigos Sérgio e Marcelo, por todo o apoio e
trocas de experiência ao longo do caminho;
Aos Krahô, pelo aprendizado e amizade
oferecidos
Agradecimentos
Jamais existiria um espa€o vasto o suficiente para agradecer a todos que
contribu•ram para a realiza€‚o deste trabalho. Por conta disso, pe€o para que ƒqueles
n‚o est‚o citados nominalmente nessa nota que n‚o se sintam frustrados e/ou tra•dos,
mas que possam se sentir homenageados por extens‚o. Feito esse alerta, agrade€o:
Aos Krah„, que com sua profunda hospitalidade e sabedoria puderam me ensinar
um pouco sobre a vida;
A S…rgio Domingues e fam•lia, a quem devo a abertura das portas da antropologia,
dos Krah„ e da tentativa da constru€‚o de um outro fazer te†rico-pol•tico, mediante
um conv•vio amigo e aberto;
Lˆcia Helena Vitalli Rangel, que teve paci‰ncia e aten€‚o para realizar uma
cuidadosa revis‚o deste texto, bem como pelo aux•lio para repensar algumas id…ias
sobre a antropologia;
Ao Rinaldo S…rgio Vieira Arruda, por aceitar o convite para tomar parte da
discuss‚o de minha disserta€‚o, tanto na qualifica€‚o, como na defesa;
Ao Edson Passetti, pela abertura de um diŠlogo criador, bem como por aceitar
participar de minha banca de defesa;
Santi por seu amor, carinho e sonhos em comum, dando um sentido a minha vida.
Sem voc‰ n‚o haveria muito a comemorar, nem tampouco o que criar;
minha m‚e, Cilene, e minha irm‚, Geysa, pelo apoio e compreens‚o diante de
todas as dificuldades que temos passado. Espero poder estar junto com voc‰s no
momento da reden€‚o;
Aos meus amigos ‹mariliensesŒ a quem saˆdo nas figuras do Marcelo, da Pan e da
Malu. Sem eles seria dif•cil tentar dar um novo impulso ƒ vida;
CNPq, por fornecer a bolsa que permitiu a realiza€‚o dessa pesquisa;
Ao Programa de Estudos P†s-Graduados em Ci‰ncias Sociais da PUC-SP, por
propiciar um espa€o de discuss‚o aberto e criativo em meio ao ‹marasmoŒ geral que
o ambiente universitŠrio brasileiro.
Resumo
A utiliza€‚o de bebidas alco†licas n‚o uma ocorr‰ncia isolada na humanidade. Ao
contrŠrio, inˆmeras sociedades, com os mais diferentes tipos de organiza€‚o social, usufruem
dos efeitos decorrentes do consumo desta subst•ncia. Entretanto, vivemos um momento no qual
o uso drogadicto Ž caracterizado pelo estabelecimento da depend‰ncia para com essas
subst•ncias Ž vem propalando-se nos mais variados grupos sociais. Por conseguinte, cresce a
preocupa€‚o em se estipular as causas de tal fen„meno, no intuito de expurga-lo do seio da vida
humana.
em decorr‰ncia desse ambiente que crescem os estudos sobre o uso de psicotr†picos
nas sociedades ind•genas, esbo€ando uma forma de anŠlise que auxilie no combate a esse mal.
O presente estudo uma tentativa de esbo€ar uma anŠlise mais compreensiva dos fatores que
interv…m no uso de bebidas alco†licas entre os Krah„, que vivem ao norte do Estado de
Tocantins. Nesta sociedade os contornos associados ƒ drogadic€‚o n‚o se fazem presentes,
embora existam efeitos problemŠticos em decorr‰ncia do fen„meno abordado. Neste contexto
cultural as bebidas alco†licas n‚o est‚o associadas ƒ drogadic€‚o tal como ela se manifesta nas
sociedades ocidentais Ž isto …, atuando como uma forma de fuga individualizada em rela€‚o aos
c†digos sociais vigentes, recaindo na reterritorializa€‚o abjeta conhecida como depend‰ncia.
Em verdade, constatei a exist‰ncia de um uso ligado a uma mŠquina social que procura codificar
todas as formas de desejo que correm o corpo social. Nesse esteio, podemos ver que o Šlcool
uma subst•ncia ligada ao xamanismo desses Timbira, criando uma forma de devir no qual
um investimento de desejo em dire€‚o a um vir-a-ser n‚o-Timbira, a um ser cupen (homem
branco). Assim, os problemas decorrentes da utiliza€‚o das bebidas alco†licas ligam-se antes ƒ
exist‰ncia de um padr‚o de uso no qual o carŠter descomedido do consumo propicia uma
desfuncionalidade, evidenciando uma situa€‚o paradoxal na qual ser e n‚o ser Krah„ estŠ
associado ƒ experimenta€‚o alc†olica.
Sumário
1. INTRODUÇÃO...................................................................................................................1
2. KRAHÔ...............................................................................................................................4
2.1. DEVIR E HIST€RIA.................................................................................................. 5
2.2. A ESCRITURA TIMBIRA ......................................................................................12
2.3. OS GRUPOS CLASSIFICAT€RIOS ..............................................................................21
2.4. OS GRUPOS DE PARENTESCO (MEIKWYA).............................................................. 29
2.5. O DEVIR PELO PARENTESCO ................................................................................ 33
3. CUPEN .............................................................................................................................52
3.1. O MITO DE AUKƒ.................................................................................................. 53
3.2. O CUPEN E SEU LUGAR NO PENSAMENTO KRAH„................................................ 57
3.3. A TUTELA ............................................................................................................. 68
3.3.1. A CIRCULAÇÃO DOS BENS..............................................................................................74
3.4. K…PEY ................................................................................................................ 79
3.5. SER… POSS†VEL DEVIR-CUPEN?............................................................................. 83
4. TURKREN........................................................................................................................93
4.1. ALCOOLISMO IND†GENA? ..................................................................................... 94
4.2. O …LCOOL E SEU SIGNIFICADO ............................................................................. 98
4.3. (DES)FUNDANDO UM USO DE PSICOTR€PICOS ....................................................108
4.3.1. INDIVIDUALIZAÇÃO E PERDA DE PERSPECTIVAS: BUKOWSKI ........................................114
4.4. COMPREENDER A NOOSFERA..............................................................................119
4.5. O KAR‡ (ALMA) DA CACHAˆA: CUPEN/TURKREN................................................125
5. BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................139
6. ANEXO FOTOGRÁFICO..............................................................................................144
1
1. Introdução
A literatura etnol†gica apresenta poucos estudos espec•ficos referentes ao uso de
subst•ncias psicotr†picas em seus diversos contextos culturais, mas, o tema tem sido
abordado em muitas monografias que tratam de sociedades onde esse tipo de prŠtica se
faz presente. Por…m, a despeito desse vasto material, uma lacuna no tocante a uma
abordagem mais sistemŠtica a esse respeito.
Nos ˆltimos anos esse tema ganha import•ncia, devido ao crescimento da
utiliza€‚o drogadicta das subst•ncias conhecidas genericamente como ‹drogasŒ nas
mais variadas sociedades. Com isso, presenciamos o crescimento da preocupa€‚o em
refletir sobre esse fen„meno e estudar os casos nos quais possa haver o estabelecimento
da depend‰ncia para com essas subst•ncias, nos mais diferentes campos de pesquisa.
Em meio a essa atmosfera crescem, em nˆmero, os estudos sobre o uso de
subst•ncias psicoativas entre as popula€•es ind•genas. Por…m, chama a aten€‚o o fato
desses estudos constitu•rem mais por ser uma forma de alerta sobre os problema
advindos do uso de subst•ncias psicoativas, do que por serem uma tentativa de
compreender o alcance dessa ocorr‰ncia. Com base nos estudos consagrados ao uso
drogadicto de psicotr†picos podemos elencar alguns postulados explicativos,
normalmente evocados na tentativa de encontrar quais os fatores que conduzem ao
estabelecimento dessa forma de mal. Em geral, encontramos tr‰s tipos de bases
explicativas:
1. As de cunho m…dico, que relacionam essa ocorr‰ncia a algum problema no
funcionamento do corpo dos dependentes;
2. As psicol†gicas, nas quais se considera que uma forma de patologia na
personalidade das pessoas acometidas de adic€‚o;
3. As de cunho sociol†gico, nas quais se enfocam as condi€•es s†cio-culturais que
levam as pessoas a terem uma maior vulnerabilidade ao estabelecimento das
depend‰ncias.
Entretanto, os resultados desses estudos, implementados normalmente em um
contexto cultural espec•fico, foram estendidos prontamente a todo tipo de forma€‚o
social, sem levar em conta as particularidades que o uso das subst•ncias psicoativas
podem assumir em contextos culturais diversos das sociedades capitalistas. O presente
2
trabalho uma tentativa de lidar com esse fato, mediante a discuss‚o sobre como se
o uso das bebidas alco†licas entre os membros da sociedade Krah„.
Os Krah„ residem no norte de Tocantins, entre os rios Manuel Alves Pequeno,
Manuel Alves Grande e Vermelho, todos afluentes da margem direita do rio Tocantins.
Falam uma dialeto pertencente ao tronco ling‘•stico J‰, fazendo parte do complexo
cultural dos Timbira Oriental, juntamente com os Ramkokamekra-Canela, os
Apanyekra-Canela, os Pikobye e os Krikat•. S‚o conhecidos pela sociedade brasileira
quase dois s…culos, devido ao contato com uma frente de coloniza€‚o formada por
pecuaristas oriundos do Piau•, que buscavam novas terras para seu empreendimento.
Este trabalho foi elaborado a partir de uma pesquisa de campo realizada na ’rea
“nd•gena Krahol•ndia, entre os anos de 1996 a 2001, em tr‰s viagens realizadas em
diferentes …pocas do ano. O material bŠsico foi coletado a partir da observa€‚o
participante e de entrevistas e conversas informais que aconteceram nas aldeias de Pedra
Branca e Pedra Furada, assim como em outras oportunidades quando os Krah„ foram a
Mar•lia em suas inˆmeras excurs•es ao mundo urbano. Al…m disso, baseia este trabalho
a bibliografia etnol†gica sobre o povo Krah„, al…m da bibliografia te†rica e referente ao
fen„meno do alcoolismo.
A presente disserta€‚o estŠ divida em tr‰s cap•tulos. No primeiro enfoco as
rela€•es sociais pr†prias aos Timbira, procurando demonstrar como se d‚o as intera€•es
entre as pessoas que tomam parte da sociedade Krah„. Mais do que expressar um
quadro geral da organiza€‚o social, meu esfor€o estŠ centrado em demonstrar como as
rela€•es Timbira inscrevem um padr‚o que leva ƒ aproxima€‚o entre os indiv•duos,
sempre mediada pela classifica€‚o das pessoas em grupos que mant…m uma certa
rivalidade entre si, levando-os ƒ expans‚o.
No segundo, enfoco as rela€•es entre os Krah„ e a sociedade nacional brasileira,
buscando demonstrar como a prote€‚o oficial criou a uma s…rie de dificuldades para a
reprodu€‚o do sistema de subsist‰ncia dessa sociedade, a qual teve de buscar
alternativas na constru€‚o de alian€as com setores da sociedade brasileira que est‚o ao
redor do territ†rio Krah„. Procuro salientar que esse processo levou ƒ constru€‚o de um
pensamento sobre o ‹homem brancoŒ, o cupen, sintetizado no mito de Auk… e expresso
em um filosofia pol•tica que leva a possibilidade de construir a autonomia desse povo
mediante a alian€a com o cupen.
No ˆltimo cap•tulo procuro discutir a aplica€‚o do conceito de alcoolismo ao uso
de Šlcool entre os Krah„, demonstrando que esse conceito estŠ associado a uma s…rie de
3
práticas sociais forjadas pelas sociedades ocidentais ao longo de seu contato com as
substâncias psicoativas. Assim, concluo o texto mediante a constatação de que o uso de
bebidas alcoólicas respeita os ditames das relações sociais próprias a essa sociedade,
apresentando uma faceta paradoxal: ao mesmo tempo em que expressa uma atualização
da forma de interação Timbira, o uso de álcool leva a um distanciamento em relação a
essa forma de vivência, expressando uma forma de mal.
2. Krahô
5
2. Krahô
2.1. Devir e história
Muitos trabalhos foram escritos sobre os Krah„. Afinal, quase duzentos
anos esse povo foi localizado e engolfado pelo processo de instala€‚o da sociedade
brasileira na regi‚o. Na verdade, este primeiro movimento n‚o encontrou propriamente
os Krah„, mas sim os Timbira, uma sociedade que fala uma l•ngua pertencente ao
tronco ling‘•stico g‰ e habitava o sul do Maranh‚o na passagem entre os s…culos XVIII
e XIX. Essa descoberta n‚o foi agradŠvel aos colonos pecuaristas, oriundos do sul de
Piau•e em busca por novas paragens para suas atividades pecuaristas, pois representava
mais um obstŠculo ƒ realiza€‚o desse empreendimento. Como se n‚o bastasse a
exist‰ncia dos Akuen (Xerente e Xavante), ainda havia os Timbira, como o maior
obstŠculo ƒ expans‚o nessas terras. Segundo os relatos de …poca, os Timbira e suas
vŠrias ramifica€•es era o agrupamento humano mais numeroso e o que possu•a o maior
territ†rio a ser conquistado.
Desse processo, a primeira ‹descobertaŒ, resulta a classifica€‚o desse povo em
um esquema conceitual, hoje largamente conhecido e utilizado. Trata-se de distinguir
entre dois grupos: os ‹bravosŒ, hostis ƒs rela€•es com a sociedade nacional; e os
‹mansosŒ, tidos com ‹amigosŒ da sociedade nacional Ž n‚o sem antes sofrerem uma
derrota militar. Segundo esse modelo, os Timbira foram considerados como ‹bravosŒ,
avessos que eram ao contato com os membros da sociedade nacional. Sendo assim,
precisavam ser derrotados, ‹amansadosŒ, em uma palavra ‹pacificadosŒ para que os
colonos pudessem se apossar das terras. Essa foi a t„nica n‚o s† do discurso referente
aos Timbira, mas especialmente da prŠtica implementada. Na disputa que se instaurou
pela conquista de espa€o, a guerra surgiu como conseq‘‰ncia ‹naturalŒ, e um lento
avan€o rumo ƒs terras ind•genas coincidia com a derrota que os Timbira foram
lentamente conhecendo. Primeiro houve uma derrota militar em 1809, quando sessenta
Timbira foram aprisionados em uma grande ofensiva que desmantelou duas aldeias.
Outra veio em 1815, e muitas outras mais surgiram ao longo do s…culo XIX, at… o
momento em que a conquista do territ†rio e a ‹pacifica€‚oŒ dos ind•genas torna-se um
projeto realizado, na segunda metade do s…culo. T‚o logo sofrem as primeiras
6
derrotas, os grupos ‹pacificadosŒ s‚o deslocados para o sul, na conflu‰ncia entre os rios
Tocantins e do Sono.
Cumpre aqui assinalar que a conquista n‚o se fez s† pela guerra, mas tamb…m
por acordos. O primeiro deles foi firmado na d…cada de 1810, envolvendo grupos
derrotados dos Timbira e Francisco de Magalh‚es, comerciante que planejou a
constitui€‚o do povoamento de S‚o Pedro de Alc•ntara, que originou a cidade de
Carolina. Esse comerciante encontrou uma solu€‚o para os conflitos envolvendo os
ind•genas e os criadores de gado: firmou uma alian€a com grupos Timbira que fossem
‹d†ceisŒ e servissem de entreposto avan€ado frente aos demais ind•genas ainda
‹braviosŒ. Assim, ambos os envolvidos teriam seus interesses salvaguardados. Primeiro
porque os Timbira ‹pacificadosŒ tinham sido derrotados militarmente, estando ƒ procura
de novas terras. Para tanto, precisavam desalojar outros povos rivais de seus respectivos
territ†rios. Ora, pelo acordo firmado os Timbira poderiam ficar nas fronteiras das novas
Šreas anexadas e auxiliariam nas investidas contra os demais povos da regi‚o. Os
colonos, por sua vez, viam com bons olhos a alian€a, pois os Timbira serviam de uma
esp…cie de sentinela avan€ada contra os ataques aos contingentes colonizadores que
tentavam se fixar na regi‚o.
‹Desde sua pacifica€‚o at… sua transfer‰ncia para Pedro Afonso, os Krah„ serviram
de tropa de choque dos fazendeiros de gado contra os demais •ndios, Timbira ou Akuen.
Por isso os civilizados os toleravam, embora sua presen€a, do mesmo modo que a dos
outros ind•genas, fosse indesejada pelos criadores de gado, pois ocupavam as terras que
os fazendeiros cobi€avam para a expans‚o de seus estabelecimentos pecuŠrios e
praticavam furto de gado.Π(Melatti, 1978: 25)
Temos de apontar, ainda, outra caracter•stica desse processo. A expans‚o
territorial representa o avan€o de um tipo novo de rela€•es pol•ticas que passa a
envolver esse ind•genas. Em outras palavras, o primeiro feito da conquista nessa regi‚o,
o avan€o de formas de rela€•es humanas capitalistas sobre Šreas consideradas por
‹inexploradasŒ, ou seja n‚o integradas a esse sistema de produ€‚o. Para tanto, criou-se
uma verdadeira mŠquina de guerra, entendida no sentido amplo desse termo: n‚o se
7
trata exclusivamente de uma mŠquina social
1
que objetive uma conquista militar, mas
a cria€‚o de uma forma de intera€‚o entre as pessoas. Mais exatamente, o meio de
referendar a exist‰ncia n‚o atribu•do exclusivamente a partir de formas de produ€‚o
ligadas ƒ terra, ao corpo pleno da terra manifesto como uma mŠquina territorial
primitiva
2
. Passa a haver tamb…m uma outra forma de codifica€‚o da vida, dos
processos sociais, da viv‰ncia entre os homens, enfim, intermediado pela mŠquina
abstrata capitalista. Nos termos de Gilles Deleuze e F…lix Guatari, o avan€o do socius
capitalista
3
traz consigo a necessidade de fazer rebater sobre si todos os feitos sociais,
como se v‰ abaixo:
‹Codificar o desejo Ž e o medo, a angˆstia dos fluxos descodificados Ž o objetivo
do socius. O capitalismo Ž como veremos Ž a ˆnica mŠquina social que se construiu
sobre fluxos descodificados, substituindo os c†digos intr•nsecos por uma axiomŠtica das
quantidades abstratas em forma de moeda. Portanto o capitalismo liberta os fluxos do
desejo, mas nas condiۥes sociais que definem o seu limite e a possibilidade de sua
pr†pria dissolu€‚o, de modo que contraria constantemente com todas as suas
desesperadas for€as o movimento que o impele para o este limite.Œ (Deleuze e Guattari,
s/d: 143)
Assim compreende-se como essa mŠquina social tamb…m funciona como uma de
efetuar trocas. Mesmo antes de Marx descobrir, o processo capitalista apresenta um
sentido, mesmo no Brasil, uma Šrea perif…rica do sistema capitalista mundial integrado,
em plena passagem do s…culo XVIII para o XIX. Ordenar as rela€•es sociais a partir da
1
‹A mŠquina social literalmente uma mŠquina, independentemente de qualquer metŠfora, porque tem
um motor im†vel e faz diversos tipos de cortes: extra€‚o de fluxo, destrancamento de cadeia, reparti€‚o
de partes. Codificar os fluxos Ž o que implica todas essas opera€•es Ž a mais importante tarefa da
mŠquina social, na medida em que as extra€•es de produ€‚o correspondem a destacamentos de cadeias, e
que daqui resulta a parte residual de cada membro, num sistema global do desejo e do destino que
organiza as produ€•es de produ€‚o, as produ€•es de registro, as produ€•es de consumo.Œ (Deleuze e
Guattari, s/d: 145)
2
‹A unidade primitiva. Selvagem do desejo e da produ€‚o, a terra. Porque a terra n‚o apenas o objeto
ltiplo e dividido do trabalho, mas tamb…m a entidade ˆnica e indivis•vel, o corpo pleno que se rebate
sobre as for€as produtivas e se apropria delas como se fosse o seu pressuposto natural ou divino.Œ (idem,
ibidem: 144)
3
‹Foi dele que Marx disse: n‚o o produto do trabalho, mas aparece como o seu pressuposto natural ou
divino. Ele n‚o se contenta, com efeito, em se opor ƒs for€as produtivas em si mesmas. Rebate-se sobre
toda a produ€‚o, constitui uma superf•cie onde se distribuem as for€as e os agentes de produ€‚o, de modo
que se apropria do sobreproduto e se atribui a si pr†prio o conjunto e as partes do processo, que parecem
ent‚o emanar dele como de uma quase-causa.Œ (idem, ibidem: 15)
8
possibilidade de permutar objetos por dinheiro e dinheiro por objetos diferentes dos
originais. Nas fazendas pecuaristas cria-se gado n‚o s† para abastecer o grupo de
colonos que tentava alojar-se nesse territ†rio, mas tamb…m para criar-se um excedente
de produ€‚o, o qual serŠ vendido e consumido em outras regi•es. Cidades s‚o
constru•das para servirem de entrepostos comerciais, intentando-se completar a
opera€‚o: s† se ‹transformaŒ gado em dinheiro quando se pode obter o reverso da
moeda: a ‹transforma€‚oŒ de dinheiro em mercadorias que n‚o sejam gado. Um
opera€‚o de quase-mŠgica Ž e que por ser quse-mŠgica Ž realmente capaz de criar um
mundo com uma funcionalidade
4
pr†prias a ele.
Enfim, liberta-se o fluxo dos c†digos imanentes ƒ terra, como ocorre nas
sociedade tribais
5
e se pode falar em uma primeira manifesta€‚o de rela€•es sociais
capitalistas, ainda que isso n‚o signifique a convers‚o dos ind•genas a esses ditames, e
nem mesmo que o capitalismo que se faz presente seja uma forma ‹avan€adaŒ de
manifesta€‚o do mesmo. Antes, estamos diante da expans‚o desse tipo de rela€‚o social
por interm…dio do ‹alastramentoŒ da sociedade nacional. Ainda n‚o se trata de uma
mŠquina social que se reproduz exclusivamente a partir da produ€‚o de mercadorias -
com rela€•es sociais pautadas pela apropria€‚o por poucos de um valor-trabalho
excedente incorporado ƒs mercadorias, produzido por um trabalho humano fetichizado.
Mas o pressuposto principal dessa rela€‚o: a apropria€‚o tir•nica das rela€•es
entre os homens. AliŠs, as pr†prias sociedades tribais apercebem-se do fato, ainda que
em n•vel inconsciente e n‚o plenamente manifesto, pela recusa constante em criar
4
‹Somos puramente funcionalistas: o que nos interessa como alguma coisa anda, funciona, qual
mŠquina.Œ (”) ‹O que explica o fracasso do funcionalismo que tentaram instaurŠ-lo em dom•nios que
n‚o s‚o os seus - grandes conjuntos estruturados: estes n‚o podem formar-se, n‚o podem ser formados da
mesma maneira que funcionam. Em compensa€‚o, o funcionalismo impera no mundo das
micromultiplicidades, das micromŠquinas, das mŠquinas desejantes, das forma€•es moleculares.Œ
(Guattari apud Deleuze, 1992: 33)
5
‹A mŠquina territorial primitiva codifica os fluxos, investe os †rg‚os, marca os corpos. A circula€‚o e a
troca s‚o atividades secundŠrias em rela€‚o a esta, que resume todas as outras: marcar os corpos, que s‚o
da terra. A ess‰ncia do socius que registra e inscreve, enquanto se atribui a si pr†prio as for€as produtivas
e distribui os agentes de produ€‚o, consiste em tatuar, incisar, cortar, escarificar, mutilar, cercar, iniciar.
(”) Porque isto um ato de funda€‚o, por meio do qual o homem deixa de ser um organismo biol†gico e
se torna um corpo pleno, uma terra, na qual se engatam os seus †rg‚os, atra•dos, repelidos, miraculados
segundo as exig‰ncias do socius. Os †rg‚os s‚o talhados no socius, por onde correm os fluxos.Œ (idem,
ibidem: 148). Vemos esse processo, tamb…m, no texto de Pierre Clastres ‹Da tortura nas sociedades
primitivasŒ, um artigo do livro A sociedade contra o Estado (1990:123-131). Nele vemos que uma
esp…cie de escritura nas sociedade tribais, ou antes de ‹inscrituraŒ: a pr†pria ‹leiŒ das rela€•es e das
diferen€as marcada, inscrita na superf•cie dos corpos dos membros das sociedades tribais.
9
rela€•es baseadas na domina€‚o
6
. Ao inv…s disso, fundam a institui€‚o da chefia
ind•gena, para a todo instante recusar que o poder se instale nela. Ora, talvez seja bom
lembrar que dentro do pensamento ind•gena as acep€•es baseadas na unicidade s‚o
quase sempre objeto de repulsa, como Pierre Clastres irŠ nos mostrar sobre os Guarani:
‹Uma toda coisa corrupt•vel. O modo de exist‰ncia do Um o transit†rio, o
passageiro, o ef‰mero. Aquilo que nasce e se desenvolve somente para perecer, isso serŠ
dito Um.Œ (Clastres, 1990: 120). Assim, as formas de intera€‚o das sociedades tribais
sempre ir‚o salvaguardar a exist‰ncia do mˆltiplo, mesmo quando criam um princ•pio
comum. Mais adiante veremos como os Timbira n‚o fogem a esse princ•pio geral:
procuram sempre criar rela€•es entre termos que se op•em e se complementam.
Ora, nada pode parecer mais ƒ moda da unicidade do que o discurso e as prŠticas
da sociedade nacional: sempre um modo de atua€‚o, por mais que passe o tempo, ou se
mude de agente. Em minha estadia no campo no ano passado, o chefe (pahi-ti) de Pedra
Furada, cujo nome Tadeu, me dizia que estava em tempo de haver uma virada, uma
verdadeira mudan€a, pois o ano de 2000 exigia isso: n‚o era poss•vel que o cupen
(homem branco) sempre continuasse a proceder da mesma maneira, depois de tanto
tempo em contato com os Krah„! Mas tudo indica que esse apelo ainda irŠ ter de espera
mais um pouco”
Quanto aos Timbira, desde o primeiro contato permanecem ligados ƒ mŠquina
territorial primitiva, mantendo seus processos pr†prios de codifica€‚o dos fluxos
desejantes. A conquista pura e simples n‚o os predispuseram a alterar a sua din•mica
particular, que n‚o consiste na reverbera€‚o ƒ univocidade, mas sim a marcar as
diferen€as, sem expulsŠ-las dos seio da sociedade, tal como vemos na passagem abaixo
d•O anti-Édipo:
‹• que a mŠquina primitiva subdivide a popula€‚o, mas -lo numa terra
indivis•vel onde se inscrevem as rela€•es conectivas, disjuntivas e conjuctivas de cada
segmento com os outros (por exemplo, a coexist‰ncia ou complementariedade do chefe
de segmento com o protetor da terra). Quando a divis‚o se refere ƒ pr†pria terra devido
6
Basta conferi a obra A sociedade contra o Estado de Pierre Clastres, na qual o autor assevera
continuamente que o socius tribal procura evitar a as formas transcendentes de rela€‚o entre os homens,
instaurando a chefia ind•gena Ž que para n†s sempre se apresenta como uma inst‚ncia pol•tica pautada
pela distin€‚o transcendente entre dominadores e dominados Ž para retirar dela todo o seu poder de
mando.
10
a uma organiza€‚o administrativa fundiŠria e residencial, n‚o podemos ver nisso uma
promo€‚o da territorialidade mas, pelo contrŠrio, o efeito do primeiro grande
movimento de desterritorializa€‚o nas comunidades primitivas. A unidade imanente da
terra como motor m†vel substitu•da por uma unidade transcendente de natureza muito
diferente que a unidade do Estado; o corpo pleno n‚o o da terra, mas o do
D…spota, o Inegendrado, que se ocupa tanto da fertilidade do solo como da chuva do c…u
e da apropria€‚o em geral das for€as produtivas. O socius primitivo selvagem era
portanto a ˆnica mŠquina territorial em sentido restrito. E o seu funcionamento consiste
em declinar a alian€a e a filia€‚o, declinar as linhagens sobre o corpo da terra, antes que
a• apare€a um Estado.Œ (Deleuze e Guattari, s/d: 150)
Deleuze e Guattari falam do aparecimento de fluxos desterritorializados a partir
do interior das sociedades ocidentais. Todavia, os Timbira conhecem esse processo a
partir de fora, pela expans‚o do socius capitalista at… o seu territ†rio. N‚o de se
estranhar que possam vivenciar a tentativa que os membros da socieade envolvente
p•em em marcha de convert‰-los a essa axiomŠtica. medida em que a expans‚o da
sociedade nacional consolida-se, a regi‚o vai perdendo seus habitantes originais, pela
guerra, pela conquista, pelas doen€as, ou pela fuga, n‚o importa como, mas sim o
resultado: as sociedades tribais s‚o empurradas para as fronteiras da mŠquina social
capitalista. O ˆnico grupo tribal que permanece por mais tempo o Timbira, composto
por homens de •ndole ‹pac•ficaŒ, aliados no projeto de conquista desses territ†rios.
Mas isso n‚o dura para sempre, pois com o tempo os Timbira passam a ser
indesejados pelos seus ‹aliadosŒ. Deste modo, um grupo de aproximadamente 500
Timbira deslocado novamente, rumo ao sul, sob a tutela do frei capuchinho Rafael de
Taggia. S‚o alojados nos arredores da futura cidade de Pedro Afonso, que atualmente
estŠ localizada no estado de Tocantins. Recebem do cl…rigo a designa€‚o de Krahô, de
origem e significado incerto, at… mesmo para pr†prios ind•genas. Posteriormente,
Taggia retira-os das margens do Tocantins, levando-os para o leste, na regi‚o
compreendida entre os rios Manuel Alves Grande e Manuel Alves Pequeno.
Em que difere a conduta de Taggia? Simples: ele busca a convers‚o dos Timbira
ao cristianismo. Assim o frade tenta de todos os modos fazer com que os Timbira
abandonem suas institui€•es tradicionais, inicialmente buscando batizar o maior nˆmero
de pessoas e alterar seu funeral para os moldes crist‚os. O problema estŠ na promessa
11
do cl…rigo: se viessem a fazer o que ele prescrevia, os Krah„ ganhariam o C…u, o Para•so
dos crist‚os. Entretanto, para os Krah„ tamb…m existe um c…u, onde uma aldeia como
a deles, mas um pouco diferente: nessa aldeia residem os menkarõ, a alma de seus
antepassados. Ora, nessa aldeia n‚o vida ritual, nem festa, nem comida, nem sexo e …
por isso que vŠrios menkarõ v‰m ƒ aldeia buscar seus parentes e conhecidos: por
saudade deles, bem como por sentirem falta da ˆnica forma boa de se viver, a do krim
(aldeia), com toda a ‹anima€‚oŒ que falta ƒ morada dos mortos.
Esse somente um dos vŠrios descompassos entre a vis‚o de mundo do cl…rigo e
dos Krah„. O mais importante a ser assinalado que sempre uma diverg‰ncia
fundamental no modo pelo qual os agentes envolvidos se referenciam frente ao mundo.
Os Krah„ sempre a reivindicam c†digos imanentes ƒ terra, ou no mŠximo em co-
extens‚o a ela; enquanto o frade tentava converter esses Timbira a um c†digo calcado
em uma axiomŠtica baseada na transcend‰ncia: viver o agora com vistas a alcan€ar as
gra€as de um Deus que eles simplesmente desconheciam. Assim, o empreendimento do
frade malogra e at… hoje os aspectos do catolicismo que estes ind•genas conhecem
resumem-se ƒs manifesta€•es ‹folcl†ricasŒ dos sertanejos da regi‚o.
na d…cada de 20 do s…culo XX outro grupo missionŠrio, agora de batistas,
empenha-se na convers‚o desses Timbira. Mais uma vez a tentativa a de alterar o
modo de vida desses Timbira. Neste caso, mais do que o batismo, eles invocam a
necessidade de se alterar o formato de suas aldeias, ao que os ind•genas se recusam
veementemente. Havia uma intui€‚o presente entre os missionŠrios de que o formato
das aldeias teria uma import•ncia na reprodu€‚o de suas prŠticas socais. Entretanto, o
sucesso obtido mesmo que os do frade cat†lico. Surge, desse modo, uma distin€‚o no
imaginŠrio dos Krah„. Trata-se das diferen€as comportamentais do homem branco: os
‹cat†licosŒ, n‚o praticantes de uma ascese r•gida, permitindo-se beber, brincar e at…
mesmo trair no matrim„nio; e os ‹crentesŒ, que n‚o se permitem uma conduta t‚o livre,
n‚o bebendo, nem traindo e mesmo sendo menos dados a gracejos.
Ap†s as tentativas de convers‚o fracassarem, os Krah„ come€am um novo
movimento migrat†rio, rumo a nordeste, indo em dire€‚o ao seu territ†rio original.
Todavia, seu percurso interrompido, pois sofrem um violento massacre em 1940,
tendo duas aldeias atacadas ap†s uma emboscada armada por criadores de gado da
regi‚o. Os missionŠrios batistas ficam sabendo do ocorrido e divulgam a informa€‚o na
12
imprensa do sul do pa•s, tornando o ataque conhecido em escala nacional. Ap†s isso, o
Governo Federal concede o territ†rio no qual estavam alojados e onde at… hoje estŠ
demarcada sua reserva de aproximadamente 320.000 hectares.
2.2. A “escritura” Timbira
Ap†s caracterizar alguns aspectos sobre processo de domina€‚o efetuado sobre a
sociedade Timbira, cabe agora me reportar ƒs fei€•es assumidas pela vida desses
Timbira. VŠrios aspectos foram estudados por outros pesquisadores, sendo que o
primeiro deles foi Curt Numuendajˆ, na d…cada de trinta do s…culo XX . Numuendajˆ
percebeu de imediato a import•ncia da organiza€‚o espacial das aldeias para a
replica€‚o das intera€•es pr†prias aos Timbira. Mantendo os termos assinalados acima,
toda vez que vemos uma aldeia Timbira estamos diante de uma escritura espacial de
suas rela€•es sociais. Todas as aldeias Timbira seguem um padr‚o de constru€‚o
comum: uma rua de formato circular (krinkapé), ao redor da qual se assentam as casas,
tendo um pŠtio () ao centro e caminhos que saem defronte das moradias ligando a rua
circular ao pŠtio, como se v‰ na representa€‚o de uma aldeia feita na figura 1. AliŠs,
Numuendajˆ n‚o deixa passar desapercebido esse aspecto, afirmando com as seguintes
palavras a import•ncia do formato das aldeias para o grupo:
‹Os pr†prios Timb•ra consideram como um dos mais caracter•sticos elementos da
sua cultura a forma circular das suas aldeias. Enquanto os Timb•ra ainda possu•rem a
sua consci‰ncia …tnica, n‚o se deixar‚o persuadir a abandonar esta forma de habitar em
conjunto, intimamente ligada a sua organiza€‚o social e cerimonial.Œ (Nimuendajˆ,
1976: 44)
13
Figura 1
A aldeia Timbira
Entretanto, uma aldeia não se restringe ao formato de suas ruas, mas é marcada,
também, pelo tipo de construção das residências. As casas Krahô são construídas no
exterior da grande rua circular da aldeia, segundo um padrão que foi possivelmente
adotado dos sertanejos pobres. A estrutura da casa é composta por uma armação
retangular de madeira (vide foto 1), recoberta com palhas de buriti, sempre com os
folículos voltados para a mesma direção, sem que haja divisões internas. O teto é de
duas águas e as paredes normalmente o feitas a partir do entrelaçamento das palmas
do mesmo buriti. A maior parede fica voltada para a rua externa da aldeia, possuindo
uma abertura que serve de porta, não havendo janelas ou outros orifícios nas paredes.
Cumpre assinalar que cada um acaba construindo a casa com os materiais que achar
mais apropriado, fazendo com que algumas residências possuam paredes de adobe, ou
mesmo de tijolos.
14
Um ˆltimo detalhe merece nossa aten€‚o, pois a maior parte das casas sempre
aparenta um inacabamento constante: de tempos em tempos necessŠrio trocar as
palhas que recobrem a resid‰ncia, ocasi‚o na qual nem sempre se cobre a totalidade das
paredes, ou mesmo do teto (vide foto 2). Disso decorre uma apar‰ncia constante de
‹faltaŒ nas casas Krah„: ora uma parede incompleta, ora uma parte do teto e assim por
diante. Cabe ressaltar que n‚o nenhuma obrigatoriedade quanto ƒ disposi€‚o das
casas na grande rua circular. Somente em caso de mudan€a para um novo aldeamento as
pessoas procuram manter a mesma posi€‚o que ocupavam na aldeia anterior, medida
pelos pontos cardeais.
Mas a casa em si mesma n‚o pode dizer nada do socius Krah„. Por conta disso,
cumpre assinalar que em cada uma sempre residem vŠrias fam•lias elementares (marido,
esposa e filhos do casal
7
), embora cada fam•lia elementar ocupe um canto reservado da
moradia para si. Segundo a regra de resid‰ncia p†s-marital, o marido deve mudar-se
para a resid‰ncia de sua esposa, fazendo com que exista uma separa€‚o entre os grupo
de parentes dos filhos, como veremos logo mais. Neste ponto do texto, cabe salientar
como o casamento imputa ao marido uma grande d•vida para com os parentes de sua
esposa
8
, a qual deve ser paga indefinidamente, mediante um fluxo constante de dŠdivas,
variando conforme a proximidade referencial em rela€‚o ƒ sua esposa: quanto maior f„r
a liga€‚o parental Ž segundo os preceitos que irei descrever ƒ frente Ž mais valiosos
devem ser os presentes dirigidos aos parentes afins. Por conta do acima exposto,
estabelece-se uma rela€‚o bem particular envolvendo o sogro e o genro. Este ˆltimo fica
obrigado a cumprir uma s…rie de trabalhos compuls†rios e rituais para seu sogro, al…m
da prescri€‚o de dŠdivas acima referida, de tal modo que o sogro exerce uma forte
autoridade frente aos seus genros e suas filhas, constituindo-se no l•der do grupo de
parentes ligados pelos la€os de resid‰ncia conjunta.
7
Os filhos residem na casa de sua m‚e, s† ap†s o casamento mudam-se para a casa de sua esposa. No
caso de haver a separa€‚o do casal, os filhos moram na casa materna, o mesmo podendo ocorrer com o
genitor das crian€as, pois mesmo que este n‚o mantenha mais o casamento com a m‚e, ele terŠ
responsabilidades para com o sogro, bem como para com as crian€as.
8
‹HŠ que distinguir preliminarmente a d•vida de um homem que casa com mo€a virgem da do esposo de
mulher deflorada. A diferen€a considerŠvel, pois aquele tomou por mulher uma virgem de certa
forma um eterno devedor: espera-se dele presta€•es infindas, ƒ medida que as puder fornecer. N‚o existe
uma presta€‚o inicial estipulada, mas o que se considera o –total• da d•vida imediatamente exig•vel
somente em caso de ruptura do casamento e, no caso de morte de um dos c„njugues, no fim do luto do
viˆvo.Œ (Cunha, 1978: 42-3).
15
Quando o marido de uma das fam•lias elementares resolve construir para si uma
nova casa - quer seja pelo crescimento da fam•lia, devido ao nascimento de filhos, quer
seja por uma decis‚o de outra natureza qualquer Ž, esta nova resid‰ncia constru•da
imediatamente ao lado da casa em que residiam. Na falta de espa€o para o fazer, por
existir alguma resid‰ncia que respeite a liga€‚o com o grupo de parentesco chefiado
pelo sogro, a nova moradia serŠ constru•da imediatamente ao lado da ˆltima casa em
que os habitantes mant‰m algum la€o parental com o chefe desse grupo de parentes.
Aqui vemos um primeiro resultado da escritura espacial Timbira, pois, como
todas casas t‰m a mesma dist•ncia do pŠtio, a express‚o de uma igualdade de todas
entre si. Mesmo quando o c•rculo da aldeia n‚o comporta mais a constru€‚o de novas
casas, elas s‚o constru•das espa€adamente nos fundos da casa do sogro
9
. Isto nos
uma modelo de expans‚o sem expressar uma hierarquia entre as gera€•es, pois com a
constru€‚o de um novo c•rculo atrŠs das casas, quando houver a morte da gera€‚o mais
velha simplesmente pode-se proceder ao prolongamento do krinkapé at… onde
existem as resid‰ncias da gera€‚o mais nova, mantendo o princ•pio de eq‘idist•ncia
(Ladeira, 1983: 28).
Disso resulta que a aldeia Timbira composta por vŠrios grupos de casas
cont•guas, ligadas entre si por la€os parentais em linha materna. Vale destacar que n‚o
nenhum ind•cio externo indicando a extens‚o exata desse grupo de casas, entretanto
todos da aldeia conhecem a extens‚o exata dos conjuntos de casas ocupadas por pessoas
ligadas entre si pelo parentesco. Podemos identificar neste fen„meno uma forma de
unidade social mais ampla do que a fam•lia elementar, sendo conhecida na literatura
etnol†gica como segmento residencial. Decerto estamos defronte a grupos que n‚o
podem ser simplesmente reduzidos ƒ liga€‚o entre parentes consang‘•neos. Como
vimos, a regra de resid‰ncia p†s-marital leva essas unidades a disporem de pessoas
ligadas entre si por parentesco consang‘•neo (as filhas e os filhos ainda n‚o casados) e
por afinidade (os homens casados com as filhas do casal mais velho). Todavia, n‚o s‚o
simplesmente os la€os parentais que unem essas pessoas, mas uma s…rie de rela€•es
9
A aldeia de Pedra Branca uma exce€‚o a esse princ•pio. A atual aldeia estŠ a alguns metros da antiga.
Quando a aldeia mudou de local, algumas pessoas recusaram-se a sair da aldeia antiga, permanecendo no
mesmo local, juntamente com seus familiares. Como o grande c•rculo no qual assentam-se as casas n‚o
disp•e mais de espa€o para assentar a nova gera€‚o, esta vem construindo suas novas moradas no c•rculo
antigo e mantendo sua posi€‚o frente aos demais como pertencentes ƒ casa principal do segmento
residencial ao qual estavam vinculados antes da constru€‚o da nova casa.
16
cotidianas que aproximam todos os habitantes dessa unidade Ž desde a constru€‚o de
ro€as pr†ximas entre si, at… uma s…rie de interesses pol•ticos que os distinga das demais
unidades. da intera€‚o interna e externa entre as pessoas dessas unidades sociais que
se pode apontar uma primeira esfera de atua€‚o micropol•tica entre os Timbira. Maria
Elisa Ladeira escreveu um artigo no qual aborda as interaۥes entre esses grupos,
segundo a autora:
‹Na periferia s‚o as mulheres as grandes responsŠveis pela tomada de decis•es e
n•tido o peso pol•tico do segmento residencial na vida social da aldeia. Estes grupos de
irm‚s (que se visitam por detrŠs das casas, que sentam juntas no pŠtio, que se banham
ou v‚o para a ro€a juntas) t‰m, perante o resto da sociedade, as mesmas obriga€•es, s‚o
as mesmas: todas chamam de irm‚os ou maridos aos mesmos homens. Quanto mais
casas e mulheres tiver um segmento residencial, mais for€a terŠ, pois s‚o as alian€as
estabelecidas entre os vŠrios segmentos que garantem a estabilidade pol•tica da aldeia.Œ
(Ladeira, 1983: 24)
A intera€‚o entre esses grupos pautada pela igualdade entre as casas que
comp•em o c•rculo, pois todas est‚o dispostas a uma mesma dist•ncia do pŠtio (). Ora
essa equival‰ncia deixa aberta a possibilidade de surgirem diverg‰ncias entre essas
unidades sociais, de tal modo esse espa€o marcado por rela€•es de proximidade e
dist•ncia referenciais entre as pessoas, sempre mediadas pelas rela€•es de parentesco.
Antes de prosseguir necessŠrio fazer um reparo, pois existem alguns problemas
com a designa€‚o aplicada a essas unidades sociais. Como disse acima, n‚o
nenhum sinal vis•vel a destacar um ‹segmento residencialŒ dos demais, a n‚o ser o la€o
de parentesco direto entre as esposas de cada fam•lia elementar. N‚o sequer um tipo
de nome que diferencie um grupo familiar para outro, ou mesmo um ancestral m•tico
tido como comum, de tal modo que s‚o as prescri€•es comportamentais decorrentes dos
la€os de parentesco que d‚o a essa unidade sua conforma€‚o. No caso da morte do
sogro, a tend‰ncia natural a dissolu€‚o da liga€‚o que unia todos em uma ˆnica
resid‰ncia ou grupo de resid‰ncias cont•guas, por acabarem as prescri€•es que uniam
socialmente os maridos. Por certo ainda persistirŠ uma grande proximidade entre as
pessoas que compunham essa unidade, mas a n‚o haverŠ o imbricamento nos destinos
dos membros da unidade anteriormente formada. Al…m disso, cada homem que ocupa a
17
posi€‚o de genro, pode mudar de status, passando a ser sogro, no caso de possuir filhas
em condi€‚o de contrair matrim„nio, podendo dar origem a novas unidades sociais
dessa natureza. Disso resulta que n‚o poss•vel aplicar o termo ‹segmentoŒ ao grupos
de parentes com resid‰ncias cont•guas, pois as caracter•sticas pr†prias a essa institui€‚o
social est‚o ausentes entre os Krah„. N‚o um indicativo objetivo a explanar os
contornos dessa unidade social (um ancestral m•tico), sendo pr†prio a essa unidade a
replica€‚o pela cria€‚o de novas unidades.
Temos que a casa revela a presen€a de dois agrupamentos significativos na vida
social Krah„ o grupo agnŠtico, constitu•do pelo sogro e seus genros e o grupo feminino,
a, a m‚e e suas filhas. Cada grupo terŠ funcionalidade e atua€‚o marcante na vida social
e pol•tica. Em conjunto, formam um primeiro grupo social, o qual denominarei de
unidade parental matrilocal. A aplica€‚o de tal termo visa assinalar, de um lado, a
exist‰ncia de uma unidade social, expressa pelas rela€•es existentes entre as pessoas
desses grupos, sempre demarcadas pelo parentesco. E a aplica€‚o do termo ‹matrilocal•
visa demarcar a import•ncia da regra de resid‰ncia (matrilocalidade) para o
estabelecimento do contorno espacial dessa unidade.
De outro lado, o pŠtio () constitui-se em outra inst•ncia de intera€‚o pessoal.
Nessa esfera os homens t‰m papel preponderante, sendo que as diferen€as quanto ao
pertencimento segmentos residenciais devem ser postas de lado. LŠ, a ˆnica
manifesta€‚o de grupos aquela pr†pria ƒs metades cerimoniais, encarregados da
condu€‚o da vida ritual, e as classes de idade, responsŠveis pela vida pol•tica da aldeia.
O o espa€o da pacifica€‚o, e como nos diz o indigenista e etn†logo Gilberto
Azanha ‹O pŠtio chama para si toda a diversidade geradora de conflitos, reduzindo-os a
uma ordem que ultrapassa os interesses meramente individuais.Π(Azanha apud Ladeira,
1983: 26).
A aldeia o espa€o de conviv‰ncia das unidades parentais matrilocais. Segundo
Ladeira, cada aldeia disp•e de 9 a 12 desses grupos. Assim, a popula€‚o total de uma
aldeia irŠ variar de acordo com a composi€‚o num…rica interna a cada uma dessas
unidades: nas aldeias maiores, as unidades parentais matrilocais possuem mais pessoas
(Ladeira, 1983: 27). Como disse acima, a igualdade a norma no que tange as relaۥes
entre as unidades parentais matrilocais, permitindo o surgimento de rivalidades, ou
mesmo de um ponto de vista discordante entre as pessoas de grupos distintos. Em minha
18
ˆltima visita a aldeia Pedra Branca, por exemplo, presenciei a exist‰ncia de vŠrias
pessoas descontes com a vida naquele local, quer seja por conta das recorrentes
bebedeiras entre as pessoas que voltam da cidade, provocando barulho e aborrecimentos
a boa parte dos habitantes locais quer seja pelas discord•ncias manifestas acerca de
algum assunto referente ao conv•vio entre as unidades parentais, ou mesmo pelo fim das
facilidades em encontrar os recursos de onde tirar seu sustento
10
. Por conta disso, havia
um movimento envolvendo vŠrios membros da aldeia com vista a mudan€a para outra
aldeia, ou mesmo intentando a constru€‚o de outra em local in…dito. No entanto, n‚o
posso afirmar se esse ensejo tornar-se-Š realidade, haja vista a extrema fluidez com que
esses desentendimentos apresentam.
De fato, s† poderemos ter certeza se esses lit•gios ser‚o capazes de resultar na
cis‚o da aldeia, mediante a instaura€‚o deles no (Ladeira, 1983: 26), saindo de sua
esfera de atua€‚o e instalando-se no ‹cora€‚oŒ da aldeia Timbira. Neste caso, n‚o
mais volta poss•vel para a pacifica€‚o, pois o local onde deve-se esquecer as diferen€as
foi contaminado pelas mesmas. Na periferia um outro jogo a reger as rivalidades,
havendo inst•ncias pacificadoras capazes de atenuar as discord•ncias. Como exemplo
disso tomemos a rela€‚o entre uma classe especial de sujeitos sem que haja
necessariamente parentesco entre si: os ikritxwyy, tamb…m conhecida como ‹amizade
formalŒ. Esse tipo de rela€‚o expressa pela aplica€‚o da designa€‚o rec•proca entre as
pessoas dos termos hõpin, para os homens e a pinxyyjê, para as mulheres. A marca
distintiva entre os envolvidos o respeito extremo, como nos mostra Azanha:
‹Seu nome n‚o pode ser pronunciado pelo parceiro, ele n‚o pode ser encarado e
nem ultrapassado numa corrida de toras; um pedido qualquer feito pelo amigo formal Ž
necessariamente feito por terceiros Ž n‚o pode ser recusado e, principalmente, com o
qual vedada as relaۥes sexuaisΠ(Azanha, 1984: 31)
10
Vale lembrar que a aldeia de Pedra Branca estŠ situada na mesma redondeza por volta de quarenta
anos. Se tomarmos somente sua localiza€‚o atual, trinta anos se passaram. Isso decorr‰ncia dos
servi€os instalados pelo SPI e depois pela FUNAI para assistir esse grupo social. Na falta de melhores
condi€•es naturais, eles se servem dos benef•cios que o †rg‚o tutelar proporciona, tais como: sementes,
transporte para a cidade, aposentadoria como trabalhador rural, etc.
19
Com efeito, em um aldeamento cada pessoa disp•e de vŠrias outras que podem
ser consideradas ikritxwyy. Segundo Manuela Carneiro da Cunha o estabelecimento de
um tipo concreto de conduta que induza a uma rela€‚o extremamente marcada pelo
respeito e pela cerim„nia extrema entre os envolvidos que instaura essa rela€‚o
11
. Disso
resulta que as intera€•es de tipo ikritxwyy, envolvendo as pessoas com uma liga€‚o
parental distante
12
ou ausente, apresenta-se como uma forma de estabelecer um
par•metro para a pacifica€‚o das rela€•es cotidianas, fornecendo uma liga€‚o mais
pr†xima entre as pessoas envolvidas.
Na aldeia (krim) vive-se necessariamente entre pessoas n‚o aparentadas entre
si
13
, havendo possibilidade de ocorrerem diverg‰ncias entre eles. Ora, caso isso
realmente possa ocorrer, alguns envolvidos podem ser ikritxwyy, e com isso, um freio
social para a explos‚o de diverg‰ncias francas, pois a quebra do comportamento
prescrito faria com que o agente desse ato se mostrasse sem paham, um conceito
complexo que denota, segundo Carneiro da Cunha: ‹timidez, reserva, autocontrole,
observ•ncia da etiqueta, dist•ncia social, desempenho dos pap…is sociais e op•es-se
nestes sentidos a hobrê que significa bravo, aguerrido, zangado;Œ (Cunha, 1978: 123).
Ora, n‚o respeitar o paham e ser pahamnõ ‹… viver desregradamente, n‚o ter regras
sociaisΠ(Cunha, 1978: 123).
Caso esse mecanismo, entre outros existentes, falhe e a discord•ncia manifeste-
se no espa€o pol•tico do anulamento das diverg‰ncias, que o pŠtio, ent‚o n‚o se tem
mais o par•metro para a pacifica€‚o das rela€•es. S† havendo a cis‚o entre o cominho
dos envolvidos e aldeia pode desfazer-se, ou ao menos algumas unidades parentais
11
‹A liga€‚o entre certos nomes, embora seja condi€‚o necessŠria para a amizade formal, n‚o no
entanto suficiente. Fornece na realidade o conjunto das amizades formais possíveis para cada indiv•duo.
N‚o que, como entre os Ramkokamekra-Canela, haja a sele€‚o de um amigo formal por excel‰ncia (C.
Nimuendaju, 1946: 100), ou que, como entre os Kr•kati, haja prefer‰ncia por amizade formal entre sexos
opostos (J. C. Lave 1967: 187), mas simplesmente porque somente é amigo formal aquele que é tratado
como tal
*
, n‚o se tolerando qualquer quebra de etiqueta (”). Assim, um informante observou que s†
eram amigos formais de sua filha aqueles ele lhe ensinara a respeitar. Com efeito, a simples inobserv•ncia
da regra de evita€‚o pode desfazer a rela€‚o.Œ (Cunha, 1978: 78)
12
‹Manuela Carneiro da Cunha irŠ afirmar que : ‹hŠ a preced‰ncia do termo hõpin (respectivamente
pintxwoi) sobre os termos de parentesco, quando os parentes s‚o mais long•nquos ou quando se trata de
afins. Quando o parentesco mais pr†ximo, n‚o parece haver preced‰ncia de nenhum.Œ (Cunha, 1978:
78).
13
Nas palavras de Azanha: ‹(”) Um Timbira s† tal frente a outro Timbira - que lhe devolve a sua
pr†pria imagem pelo confronto e pela guerra: um cahkrit. Os menkritxwyy, os amigos formais, s‚o uma
–classe especial• de mencahkrit Ž com os quais n‚o se –guerreia• e que deste modo fornece um parâmetro
ƒ –pacifica€‚o•, necessŠria ƒ conviv‰ncia numa aldeia Timbira, que o lugar onde se convive com os
mencahkrit(Azanha, 1984: 33)
20
matrilocais virem a se retirar da vida em comum na localidade envolvida. Vale destacar
que essas diverg‰ncias ocorrem com certa freq‘‰ncia e n‚o raro culminar na
separa€‚o.
Em suma, a constitui€‚o de novas aldeias pela cis‚o de unidades parentais
matrilocais faz parte da din•mica desse povo, o qual n‚o tinha a fixidez como seu modo
de vida. Como ca€adores e coletores
14
, a busca por novos territ†rios sempre fez parte do
seu repert†rio econ„mico e social, sempre com vistas a encontrar paragens onde haja
fartura de v•veres. Al…m disso, as aldeias t‰m um tempo m…dio de vida, em torno de dez
anos Ž tempo no qual as reservas de ca€a ainda est‚o abundantes e o solo ainda n‚o estŠ
esgotado pela lavoura ƒ base de coivara que eles praticam. Findo esse prazo, a tend‰ncia
natural a mudan€a em busca de novos territ†rios. Podem manter-se unidos, sob a
lideran€a de um mesmo chefe - responsŠvel pela escolha do local e do assentamento das
pessoas em sua nova morada - ou dispersar-se, formando aldeamentos distintos, ou
ainda habitando em ‹acampamentosŒ esparsos ao longo da reserva, onde exista somente
uma ou duas unidades parentais, sem completar o c•rculo de uma aldeia.
Temos de fazer uma ressalva na afirma€‚o acima. Atualmente percebe-se uma
altera€‚o nesse quadro, pois a atua€‚o protecionista efetuada pela FUNAI vem fazendo
com que algumas aldeias mantenham-se alojadas por vŠrias d…cadas em uma mesma
localidade. Isso se deve ƒ exist‰ncia de uma s…rie de servi€os implantados de maneira
definitiva, como a sede dos postos ind•genas da FUNAI, as farmŠcias e mesmo as
escolas ind•genas. As aldeias nessa situa€‚o apresentam uma s…ria dificuldade para
garantir a subsist‰ncia da totalidade de seus membros, pois o esgotamento do solo e a
falta de ca€a fazem com que problemas de cunho econ„mico manifestem-se
constantemente. A alternativa vem sendo a obten€‚o de alimentos atrav…s da compra de
v•veres na cidade mais pr†xima, ou a tentativa da constru€‚o de projetos de incremento
ƒ alimenta€‚o tradicional
15
.
14
O repert†rio econ„mico completado pela agricultura. Deste modo, a din•mica de deslocamentos n‚o
t‚o abrupta e livre, tampouco pode ser caracterizada como estritamente sedentŠria. Por…m, antes do
confinamento ƒs reservas os deslocamentos eram mais constantes. Da• decorre que durante parte do ano
uma perman‰ncia estrita nas aldeias, rompida somente pelas expedi€•es de ca€a. Durante o restante do
ano, em especial durante a realiza€‚o dos trabalhos na ro€a, as expedi€•es que visam a coleta de frutos
silvestres e as ca€adas propiciam a exist‰ncia de maiores deslocamentos por parte dos Krah„. Como estas
atividades n‚o podem ser implementadas por um per•odo de tempo demasiado longo, as mudan€as das
aldeias acaba sendo bastante comum.
15
Como disse acima, a aldeia de Pedra Branca encontra-se em uma situa€‚o econ„mica delicada. A
solu€‚o buscada pelos habitantes dessa aldeia se deu pela tentativa de construir uma barragem que
21
Esse fato, por…m, n‚o invalida o teor da afirma€‚o feita acima, pois as aldeias
que se mant…m vŠrios anos em uma mesma localidade acabam originando outras,
mediante a mudan€a de unidades parentais matrilocais para outras paragens. Al…m
disso, os membros de uma aldeia, cujo nome era Galheiro, que tinha todos os servi€os
instalados, optou pela dissolu€‚o do aldeamento no in•cio da d…cada de 90, com seus
habitantes indo residir em basicamente em outras tr‰s aldeias que tinham sido
originadas por cis•es anteriores. Assim, mesmo as aldeias que permanecem instaladas
em uma mesma localidade refor€am o argumento acima expresso, qual seja: os novos
aldeamentos surgem a partir da instaura€‚o de contendas no espa€o consagrado ƒ
conc†rdia: o .
2.3. Os grupos classificatórios
Esse processo de cis‚o mediante a instaura€‚o de rivalidades entre as unidades
parentais matrilocais irŠ compor um estilo de intera€‚o entre as pessoas. Para explicitŠ-
lo, podemos partir do modo pelo qual irŠ se compor a designa€‚o das aldeias. Cada uma
recebe um nome por parte dos Krah„ referente a algum acidente geogrŠfico, um curso
d•Šgua, ou algo que chame a aten€‚o nas imedia€•es, acrescido de um sufixo. Acontece
que o sufixo, e mesmo a refer‰ncia natural tomada, variŠvel, dependendo da origem da
pessoa, ou do local de onde se expressa para se reportar ƒ aldeia considerada.
Quando tomamos as aldeias que t‰m origem pela cis‚o a partir de um
aldeamento tido como comum, a designa€‚o rec•proca respeita um padr‚o espec•fico.
Por exemplo, os membros da aldeia de Pedra Branca (Kenpocamecra, isto …, ‹os filhos
da pedraŒ) referem-se ƒ aldeia de Cachoeira como sendo Codnicatêyê (onde codni
expressa um tipo de espinho). Ora, ambas tiveram sua origem pela separa€‚o de uma
aldeia anteriormente comum. E importante salientar que toda aldeia que separa-se de
outra mant…m la€os estreitos com a mesma. Os habitantes da nova aldeia visitam a
antiga constantemente, pois mant…m vŠrios parentes residindo por lŠ. Participam,
tamb…m, das grandes festas de sua ex-aldeia, marcando uma rela€‚o de pertencimento ƒ
permitisse a piscicultura. O projeto foi encaminhado pela associa€‚o K‡P•Y, tendo tido o
acompanhamento de um indigenista conhecido como M…ca. Ele obteve o financiamento da embaixada da
Holanda, mas o projeto malogrou, pois a barragem, feita a partir do empilhamento de sacos de areia, n‚o
22
esfera de influ‰ncia da mesma. E em caso de dificuldades de qualquer natureza, serŠ ƒ
antiga morada que eles ir‚o recorrer. Assim, existem aldeias com maior import•ncia
pol•tica do quadro de rela€•es interno dos Krah„, devido ao fato de originar vŠrios
aldeamentos a partir dela. Uma aldeia que originou vŠrias outras terŠ uma grande Šrea
de influ‰ncia. SerŠ uma esp…cie de ‹aldeia-m‚eŒ em face de suas ‹aldeias-filhasŒ.
Esse processo marca a constru€‚o de grupos de influ‰ncia comum a vŠrias
aldeias e unidades parentais entre os Timbira. Isso expresso pelo desdobramento de
uma aldeia em vŠrias outras, com todas guardando grande proximidade entre si. pelo
uso do sufixo /cate/ que o processo de cis‚o e de pertencimento expresso no n•vel
sem•ntico. Com ele, denota-se, outrossim, a co-extens‚o que a aldeia designada guarda
em rela€‚o ƒ do interlocutor.
Gilberto Azanha, em sua disserta€‚o de mestrado intitulada A forma Timbira
(1984), foi o primeiro estudioso de interaۥes entre os grupos formados a partir dessa
din•mica cismog‰nica. Por falta de termo mais apropriado, designou esses grupos
formados pela influ‰ncia rec•proca entre as aldeias como de tipo ‹tot‰micosŒ. Decerto
hŠ a reivindica€‚o de um passado comum entre todas as pessoas que pertencem a um
desses grupos de influ‰ncia, normalmente evocado pela exist‰ncia de uma aldeia
originŠria, e isso em um passado n‚o muito recente. Al…m disso, a inclus‚o de uma
pessoa no interior desses grupos n‚o voluntŠria. Ela firmada pelo nascimento
16
da
pessoa em um aldeamento que esteja incluso dentro da Šrea de influ‰ncia de algum
desses grupos. Entretanto, cumpre assinalar que essa ancestralidade comum n‚o
expressa pela constitui€‚o de um totem propriamente dito, mas t‚o somente pela
constitui€‚o de um tipo de tratamento nominal entre esse grupo de aldeias ligadas pela
cis‚o a partir de um aldeamento comum. Assim, creio ser mais apropriado o abandono
do termo ‹totemismoŒ em rela€‚o a esses grupos. Antes, trata-se de uma din•mica de
constitui€‚o de grupos classificatórios, mediada pelo estabelecimento de rela€•es
propriamente pol•ticas, instaurando t‚o somente rela€•es de proximidade e de dist•ncia
referencial entre aldeias.
suportou a press‚o da Šgua e cedeu poucos dias ap†s sua constru€‚o quando estava com cerca mil peixes,
os quais vieram a descer rio abaixo.
16
Mais adiante veremos que outros mecanismos que permitem a qualquer pessoa n‚o pertencente a um
grupo de influ‰ncia vir a tomar parte do conv•vio no mesmo. Essa inser€‚o condicionada ƒ nomina€‚o e
a conseq‘ente constru€‚o de rela€•es sociais no interior de uma aldeia.
23
Em dadas circunst•ncias essas cis•es podem criar outros centro de influ‰ncia,
ocasionando a constitui€‚o de um novo grupo classificat†rio. Pelo que pude depreender
de meu trabalho de campo e de alguns trabalhos sobre os Timbira, um novo grupo
classificat†rio pode aflorar mediante a constitui€‚o de uma aldeia que assuma uma
autodetermina€‚o distinta em rela€‚o ƒ sua ‹aldeia-m‚eŒ. Ou ainda pelo surgimento de
vŠrias aldeias que mantenham fortes nexos entre si, apartando-se do grupo de influ‰ncia
que a originou. Esse fato estarŠ marcado no campo ling‘•stico tamb…m. Quando um
interlocutor refere-se a uma aldeia pertencente a um grupo classificat†rio que n‚o seja o
seu pr†prio, n‚o irŠ denominar a aldeia do mesmo modo que o acima expresso. A
designa€‚o da referida aldeia serŠ composta pelo nome de um animal - ou mesmo de um
acidente geogrŠfico pr†ximo ƒ Šrea onde se encontra instalada a aldeia - acrescido do
sufixo /camecra/. Assim os Canela do sul do ParŠ, por exemplo, s‚o conhecidos na
aldeia Pedra Branca como Cukoicamecra (‹filhos do macacoŒ, literalmente), marcando
o afastamento referencial em rela€‚o a eles. A caracter•stica marcante desse processo a
constitui€‚o de uma igualdade formal de todos entre estes grupos entre si, expressa do
seguinte modo por Azanha:
‹Estar•amos pois, frente a um processo –schismogen…tico• de tipo sim…trico
(Batenson, op. Cit. Cap II e III): um processo de cissiparidade que redunda em uma
diferencia€‚o de grupos sem mudan€a da forma original. A conseq‘‰ncia deste processo
que ele coloca os grupos assim diferenciados frente a frente como –iguais•,
estabelecendo uma rivalidade entre eles na medida em que cada um interpreta a –forma
comum• à sua maneira(Azanha, 1984: 14)
A rela€‚o entre os grupos classificat†rios serviria t‚o somente para marcar
apropria€•es distintivas de um mesmo modelo social. Disso resultaria a constitui€‚o de
uma rivalidade latente entre esses grupos. Rivalidade esta que em tempos anteriores ƒ
‹pacifica€‚oŒ poderia descambar para a guerra franca entre os vŠrios grupos
classificat†rios Timbira, como ocorria durante o s…culo XIX. Al…m disso, havia a
tend‰ncia desses grupos buscarem a expans‚o de seus territ†rios de influ‰ncia. Isso se
dava pela conquista de novas Šreas e a conseq‘ente instala€‚o de aldeamentos pelo
processo cismog‰nico acima expresso. Nas palavras de Azanha:
24
‹• nesse sentido que podemos falar em expans‚o dos grupos Timbira: ela aparece
como resultado do processo de cisão, que por sua vez n‚o nada mais que um processo
de diferenciação em que um grupo se distingue do outro (na dupla acep€‚o desse termo:
se separa e se destaca como singularidade no separar-se) para reproduzir, ƒ sua maneira,
a Forma –Timbira• como as designa€•es mˆtuas entre os grupos parece indicar. Este
processo de diferencia€‚o teria como resultado, ainda, o estabelecimento de uma
rivalidade crescente entre os grupos que disputariam n‚o mulheres ou prote•nas, mas,
por assim dizer, a –raz‚o• da Forma –Timbira•.Œ (Azanha, 1984: 18-19)
Podemos dizer que uma din•mica referente ƒ proximidade ou dist•ncia
relativa a cada aldeia e grupo classificat†rio Timbira. E n‚o motivos para supor que
esse mecanismo seja estanque. Em outras palavras, sempre como formar ou suprimir
outros grupos classificat†rios entre os Timbira, bastando variar o tipo de rela€‚o que
eles mant…m entre si. Caso o tratamento em rela€‚o ƒ ‹aldeia-m‚eŒ varie e marque um
maior distanciamento em rela€‚o ƒ mesma, poderŠ surgir um novo grupo Timbira,
expresso no modo sem•ntico acima expresso. Assim, n‚o mais se utilizaria o sufixo
/cateyê/ para referir-se ƒ antiga ‹aldeia-m‚eŒ, mas sim o /camekra/. Os grupos
classificat†rios n‚o s‚o estŠticos e predefinidos, mas variam conforme os arranjos
hist†ricos e pol•ticos entre as aldeias ao longo do tempo e do modo pelo qual uma irŠ se
portar frente ƒs demais. E do surgimento de um novo epicentro podem aglutinar-se
outras aldeias, tanto pela reivindica€‚o de um passado comum em rela€‚o ao grupo
considerado, como pela proximidade efetiva existente entre as aldeias que venham a
formar esse novo grupo Timbira.
Assim, percebemos que a termina€‚o /catêjê/, diz respeito a grupos vizinhos
e/ou dissidentes de um mesmo grupo classificat†rio Timbira, com uma origem tida
como comum. O sufixo /camecra/ expressa uma maior dist•ncia em rela€‚o ƒ aldeia, ou
grupo classificat†rio designado. Uma dist•ncia que remete a uma origem distinta (Cf
Azanha, 1984: 14).
Os Krah„ n‚o s‚o compostos exclusivamente por um ˆnico grupo de
pertencimento. Existem dois grupos classificat†rios entre os Krah„: o
Pãrencamecrá/Kempocatêyê e o Mãnkraré. S…rgio Augusto Domingues, em sua
disserta€‚o de mestrado intitulada Sendas Krahô (1993) afirma que essa jun€‚o
produto direto da ‹pacifica€‚oŒ imposta a esses ind•genas, como se segue:
25
‹Os Mankraré chegaram no Tocantins fugindo de um ataque, e ali encontraram um
outro subgrupo Timbira, os Parecamekrá. Os padres capuchinhos juntaram estes dois
subgrupos e formaram no Krah„. Mas o fato que internamente a distin€‚o continua.
Dentro da Šrea todo mundo sabe quem quem.Œ (Domingues, 1993: 11)
Essa distin€‚o opera na prŠtica cotidiana entre os pertencentes a cada grupo
classificat†rio. Embora haja efetivamente intera€‚o entre os grupos existentes entre no
atual territ†rio Krah„, cada um deles reivindica para si um modo particular de
apropria€‚o da forma Timbira e de replicar essa forma frente a situa€‚o imposta pelo
contato com a sociedade nacional. Ainda segundo Domingues:
‹Nessa oposi€‚o entre Mankraré e Panrencamekrá fica claro uma coisa: para a
filosofia pol•tica Panrencamekrá a soberania o inverso da identidade. O mesmo n‚o
acontece com a filosofia Mankraré: para estes, n‚o existe identidade sem autonomia da
tutela. Assim para os Panrencamekrá a tutela quem garante a tradi€‚o.Œ (Domingues,
1993: 80)
Os casos de fus‚o de outros grupos Timbira v‰m refor€ar a din•mica de
instaura€‚o de distanciamento e rivalidade entre os grupos classificat†rios, pois entre os
Krah„ existem alguns indiv•duos com ascend‰ncia em grupos classificat†rios extintos,
quer seja pela mortandade instalada ap†s a ‹pacifica€‚oŒ, quer seja pela dissolu€‚o dos
aldeamentos que compunham esses grupos Ž Melatti indica a exist‰ncia de indiv•duos
de pelo menos dois os Pïkobye e os Põrenkamekra
17
Ž que sem dispor das condi€•es
para replicar a forma Timbira e opor-se aos demais grupos classificat†rios, eles tiveram
de abrir m‚o de uma ascend‰ncia pr†pria e passaram a somar esfor€os juntamente com
os Pãrencamecrá/Kenpocateyê e os Mãkraré. E vale acrescentar que os Timbira s‚o
extremamente orgulhosos de sua ascend‰ncia e de seus feitos particulares. Quando
estava com os Pãrencamecrá/Kenpocateyê, por exemplo, eu lhes perguntava sobre a
17
Se bem que essa designa€‚o permite pensar que esse grupo nada mais que o
Pãrencamecrá/Kenpocateyê, pois esse termo foi aplicado por civilizados que mantinham contato com os
Timbira em meados do s…culo passado, podendo existir algum confus‚o na grafia do termo.
26
extens‚o de seu grupo. Os informantes me citavam as aldeias que tomava parte de seu
grupo e asseveravam: aqui tudo •ndio, em uma refer‰ncia velada ƒ falta de
‹indianidadeŒ dos Mãkraré, pois parte de suas aldeias composta pela miscigena€‚o
com cupen, em especial a aldeia do Morro do Boi. Assim, o processo que leva um grupo
classificat†rio a abrir m‚o de sua designa€‚o e seu caminho Timbira pr†prio s† pode
ser caracterizado como uma extrema impossibilidade de manter-se de modo aut„nomo
frente aos demais.
De tudo o que se falou at… o momento, fica a n•tida impress‚o de que um todo
organizado estŠ ausente entre os Krah„. No caso desses Timbira, a t„nica geral para a
constitui€‚o de centros de influ‰ncia pol•tica ocorre mediante a reprodu€‚o destacada
dos grupos classificat†rios. Como se v‰ nas palavras de Azanha, o todo Timbira:
‹Seria uma esp…cie de –totemismo mal sucedido•, posto que n‚o funda nenhum
–sistema•: o todo –Timbira• n‚o seria, nesse sentido org•nico.
A totalidade impl•cita na unidade –Timbira• seria melhor definida (nos parece) pela
id…ia de –totalidade expressiva• (Altusser e Balibar, 1979: 105) onde cada parte (cada
grupo) encerra em si pr†pria a totalidade e que s† se reproduz através da reprodução
autônoma das suas partes. Esse modo de reprodu€‚o do todo - pela dispers‚o e
autonomia das partes Ž leva necessariamente ƒ sua expansão. E de ato parece ser isto
mesmo o que ocorre entre os Timbira: cada nova unidade resultante do processo de
cis‚o que se imp•e como tal - cada novo grupo que alcan€a a sua autonomia Ž imp•e
ao mesmo tempo essa forma –Timbira• nos limites do territ†rio, a exp•e perante o
cupen, e deste modo a Forma –Timbira• se alastra(Azanha, 1984: 18)
Mais do que simplesmente endossar o veredicto de Azanha, pretendo assinalar
como os Timbira instauram um tipo de relacionamento calcado na instaura€‚o de
distinۥes e de rivalidades entre os grupos. Outra vez, vemos operar um sistema de
marca€‚o: o socius Timbira n‚o forma uma totalidade, mas sim estabelece distin€•es,
marca as pessoas com origens diversas para que elas possam entrar em contato. Quer
tomemos o conv•vio no interior de uma aldeia, quer foquemos a rela€‚o entre elas, o
pertencimento a alguma esfera de influ‰ncia n‚o dado de modo estanque. Os
27
contornos assumidos pelas unidades Timbira
18
s‚o din•micos e somente podem ser
definidos a partir de referenciais adotados em cada momento hist†rico particular, e das
rela€•es de oposi€‚o e de pertencimento m†veis entre as aleias
19
. Ao inv…s de seguir um
modelo, os Timbira seguem um devir que lhes particular, tal como Gilles Deleuze e
F…lix Guattari procuram delimitar a extens‚o de um corpo em devir no livro Mil Platôs:
‹Um corpo n‚o se define pela forma que o determina, nem como uma subst•ncia
ou sujeito determinados, nem pelos †rg‚os que possui ou pelas fun€•es que exerce. No
plano de consist‰ncia, um corpo se define somente por uma longitude e uma latitude:
isto …, pelo conjunto dos elementos materiais que lhe pertencem sob tais rela€•es de
movimento e de repouso, de velocidade e de lentid‚o (longitude); pelo conjunto de
afetos intensivos de que capaz sob tal poder ou grau de pot‰ncia (latitude).Œ (Deleuze
e Guattari, 1997: 47)
Assim, podemos pensar que em circunst•ncia espec•ficas os Krah„ possam ter
constru•do para si uma totalidade, ainda que esta somente possa ser definida frente ao
exterior da forma Timbira (o cupen). Entretanto, n‚o pr†prio dos Timbira em geral
que essa no€‚o de pertencimento indiferenciado adquira uma perman‰ncia ao longo do
tempo. Os Timbira efetivamente comp•em agenciamentos em muitas dire€•es distintas
e a viv‰ncia de uma totalidade ‹Krah„Œ fruto de um movimento que s† pode ser fazer
a partir da manuten€‚o da autonomia de muitos agentes sociais (unidades parentais
18
Ao me referir ƒs unidades sociais, quero marcar como todas as institui€•es Timbira operam um tipo de
‹classifica€‚oŒ, criando classes destacadas de pessoas com os limites sendo definidos pelas refer‰ncias
rec•procas dessas unidades. Em decorr‰ncia dessa defini€‚o, as unidades parentais matrilocais se
apresentam como as unidades sociais basilares da viv‰ncia Timbira, por comporem a classifica€‚o dos
indiv•duos, ao mesmo tempo que estabelecem uma unidade de produ€‚o, de consumo e um germe onde
irŠ se desenvolver um grupo pol•tico apartado dos demais. Por…m, tenho de acrescentar que isso n‚o
absoluto, uma vez que uma unidade parental matrilocal s† existe frente a outra Ž vide a defini€‚o de
cahkrit (adversŠrio equivalente, e que por isso mesmo me define). Os grupos classificat†rios n‚o chegam
a formar propriamente uma unidades social. A despeito do mecanismo de forma€‚o seguir a l†gica
pr†pria ƒ intera€‚o entre as unidades parentais matrilocais, seu limite de atua€‚o fica mais restrito ƒ Šrea
pol•tica. Mas que se assinalar que ao menos entre os Krah„ essa forma de ‹unidade pol•ticaŒ bastante
presente no cotidiano, ao delimitar modos distintos de apropria€‚o da forma Timbira, como procura
salientar Domingues ao longo de seu trabalho junto aos Krah„.
19
Vide o caso da aldeia Pedra Furada. Oriunda da cis‚o de algumas unidades parentais matrilocais da
aldeia Pedra Branca e sempre foi tida como presente ƒ sua Šrea de influ‰ncia (o grupo classificat†rio
Pãrencamekrá/Kepocatêyê). Entretanto, com a dissolu€‚o da aldeia Galheiro, do grupo Mãkraré, algumas
unidades parentais mudarem-se para exata aldeia e outras oriundas da Pedra Furada foram para a aldeia
de ’gua Branca, tornando ao menos uma parcela de sua popula€‚o Mãkraré e fazendo com que eles
pudessem interferir na condu€‚o dos neg†cios pol•ticos da aldeia.
28
matrilocais, grupos classificat†rios, etc.). A pr†pria cosmogonia refor€a esse aspecto,
pois tudo tem origem em pelo menos dois elementos. Dois irm‚os g‰meos P‘t (Sol) e
Pudler… (Lua), despontam no mundo e cada qual tem caracter•sticas diferenciadas: P‘t
esperto, generoso e possu• o dom de criar; Pudler…, por sua vez, desajeitado, invejoso
e copia continuamente as cria€•es de P‘t, e da aventura desses dois her†is m•ticos que
emergirŠ a origem dos Krah„.
Para o pensamento desses Timbira, a unidade somente pode aflorar a partir do
mˆltiplo. Domingues havia percebido esse fato quando contesta a vers‚o da
exist‰ncia de uma ‹totalidade expressivaŒ, operadora de uma s•ntese dos grupos
classificat†rios que ultrapasse cada qual:
‹Azanha tamb…m diz, na sua disserta€‚o, que atualmente os Krah„ n‚o d‚o muita
import•ncia para essas subdivis•es: –todos se consideram Krah••. No entato, ap†s ter
escrito isto em 1984 e mais especificadamente em 1986, os Mankrar… desencadearam
uma pol•tica de distin€‚o. Insistem em ser chamados de Mankrar…, e n‚o de Krah„. Os
velhos Mankrar… entrevistados por n†s, em 1987, afirmavam que n‚o sabem o que quer
dizer a palavra Krah„. Afirmam que Krah„ s‚o os outros, os das outras aldeias.
Com essas palavras procuram ligar-se ƒ tradi€‚o Timbira reivindicando um nome
mais originŠrio e anterior ƒ pacifica€‚o fabricada pelos capuchinhos e pelo SPI.Œ
(Domingues, 1993: 78)
Deste modo, temos de nos reportar a uma dinâmica Timbira, n‚o a estritamente
a uma forma. A apropriação da forma o modo pelo qual um padr‚o de relacionamento
continuamente atualizado, e por vezes recriado, de acordo com a emerg‰ncia dos
acontecimentos. Com isso pretendo demarcar uma mudan€a no foco de anŠlise: tentar
pensar os processos Timbira, n‚o as paradas do mesmo. Assim, as bordas, as fronteiras
entre esses grupos classificat†rios s‚o m†veis, permanecendo fixo o modo pelo qual as
condutas v‚o ser efetivadas pelos Krah„, com cada grupo classificat†rio tentando, ƒ sua
maneira, replicar a forma Timbira de modo aut„nomo. Torno a dizer: em dadas
situa€•es hist†ricas, ou frente a situa€•es lim•trofes, os grupos classificat†rios podem se
portar como uma unidade. Mas em sua din•mica pr†pria, essa unidade, s† pode ser
referendada pelas rela€•es de proximidade e de dist•ncia referencial que cada grupo
classificat†rio mentem entre si.
29
Assim, vemos algo em comum entre a intera€‚o envolvendo as unidades
parentais matrilocais, bem como entre os grupos classificat†rios. Em ambas as esferas
uma din•mica de constitui€‚o de p†los mˆltiplos que se equivalem e por isso mesmo
entram constantemente em conflito. Disso resulta uma propens‚o ƒ expans‚o, pelo
alastramento dos membros que constituem cada uma dessas unidades. Antes da
‹pacifica€‚oŒ isso seria expresso em termos de adi€‚o de novos territ†rios. com a
conquista essa expans‚o tem de adquirir outra roupagem. Para saber qual o atual modo
de expans‚o que o devir-Krah„ instaura, temos de analisar em pormenor outra
institui€‚o extremamente importante para as rela€•es Krah„, qual seja; o parentesco.
2.4. Os grupos de parentesco (meikwya)
Um dos aspectos que sempre chamou a aten€‚o de todos que estiveram entre os
Krah„, a exist‰ncia de uma intricada rede de parentesco a orientar e dar forma ƒs
rela€•es cotidianas entre as pessoas dessa sociedade. Por…m, toda tentativa de dar um
contorno a essa rede sempre tem sido improf•cua, em especial devido a uma dificuldade
pr†pria ao carŠter assumido pelo parentesco entre os Timbira, no qual inexiste um
sistema aparente e auto-evidente de ordena€•es. Sabemos existirem vŠrias metades
rituais, as quais n‚o se prestam ƒ ordena€‚o dos casamentos, mas t‚o somente a uma
orienta€‚o dos ritos e dos trabalhos cotidianos das aldeias.
Antes de prosseguir, por…m, devo ressaltar quais s‚o as minhas reais inten€•es
ao tocar em um tema t‚o caro ƒ antropologia. N‚o hŠ, neste trabalho, um estudo
aprofundado do sistema de parentesco Krah„, nem tampouco sobre as ordena€•es
presentes nessa sociedade e a vasta bibliografia consagrada sobre o tema. Meu objetivo
neste texto mais modesta. Trata-se de tentar relacionar como as alian€as matrimoniais
entre os Timbira d‚o ƒs rela€•es cotidianas um carŠter peculiar. Assim, pretendo tomar
as relaۥes de parentesco a partir de suas imbricaۥes com as relaۥes cotidianas no seio
da vida social Timbira, definindo suas fei€•es gerais e quais os fatores que interv…m na
sua conforma€‚o atual.
Em primeiro lugar, faz-se necessŠrio explicitar qual a no€‚o imperante no que
tange a concep€‚o das pessoas. Os Krah„ acreditam que o feto humano o resultado de
um acˆmulo de esperma no ventre feminino, de tal modo que todo aquele que mantiver
30
rela€•es sexuais com uma mulher no in•cio de sua gravidez serŠ considerado pai da
futura crian€a, por ter contribu•do para a forma€‚o do feto. Quanto ƒ genitora, esta n‚o
contribui com nenhuma subst•ncia para a constitui€‚o de um novo ser, mas t‚o somente
com a fertiliza€‚o da ‹sementeŒ plantada pelo homem Ž ou pelos homens - no seu
interior. Decorre da• que ambos (homem e mulher) s‚o tidos como ligados diretamente ƒ
nova criatura humana, ainda que de modos distintos: o homem a subst•ncia ao futuro
filho, enquanto a mulher matura o novo ente no seu interior. Assim, o rec…m-nascido
considerado ligado biologicamente ao pai e ƒ m‚e, tendo, por conseguinte, uma liga€‚o
com os parentes de ambos os genitores. Quanto mais pr†xima for a rela€‚o de
parentesco com um dos seus genitores, maior serŠ a liga€‚o. Prova deste fato estŠ no
resguardo que vŠrios parentes, em especial os pais, mantinham visando salvaguardar a
saˆde do rec…m-nascido, bem como evitar infortˆnios nas atividades diŠrias. Quanto
maior a proximidade com a crian€a, maiores devem ser os cuidados. Hoje, por…m, esses
hŠbitos n‚o t‰m mais observ•ncia estrita, em especial devido ao contato com parcelas da
sociedade nacional e a constata€‚o de que entre os cupen
20
a falta de resguardo por parte
de outros parentes afora a m‚e da crian€a n‚o implicava em maiores problemas, tanto
para os rec…m-nascidos, como para as pessoas ligadas a eles por la€os parentais. a
descend‰ncia tida como bilateral para as pessoas dessa sociedade.
Considerando apenas os la€os imediatamente ‹biol†gicosŒ, podemos empregar
vŠrios termos de parentesco. Tomando um membro qualquer da sociedade Krah„, serŠ
considerado ‹paiŒ (itxun) todo aquele que puder manter intercurso sexual com sua
‹m‚eŒ (itxe) e estenderŠ o termo de ‹m‚eŒ (itxe) a toda mulher que seu genitor puder
manter rela€•es sexuais. Al…m disso, quaisquer indiv•duos reconhecidos por ele como
‹irm‚oŒ (itõ) e ‹irm‚Œ (itõi), s‚o os ‹filhosŒ dos genitores dele, al…m dos ‹filhosŒ dos
‹irm‚osŒ de mesmo sexo que o de seus ‹paisŒ. Os que ele chama de ‹filhoŒ, ou ‹filhaŒ
(ikhra), englobam, al…m dos seus descendentes biol†gicos diretos, os filhos dos
‹irm‚osŒ do mesmo sexo. Os filhos(as) dos ‹irm‚osŒ de sexo oposto ele chamarŠ de
‹sobrinhoŒ (ibantu) e aplicarŠ o termo itamtxua aos filhos dos ‹irm‚osŒ de seus
genitores cujo sexo seja oposto ao mesmo (sobrinho cruzados), bem como aos ‹filhosŒ
de seus ‹filho(s)Œ. As mulheres que seus ‹paisŒ chamam de ‹irm‚sŒ Ž mesmo que sejam
as ‹m‚esŒ de suas ‹m‚esŒ Ž e as que ele chama de ‹m‚esŒ de seus ‹paisŒ, ser‚o
20
Utilizarei o termo Krah„ para denominar a popula€‚o oriunda da sociedade nacional brasileira.
31
designadas de tïi. E por ˆltimo, serŠ designado de keti todo indiv•duo que a m‚e chama
de ‹irm‚oŒ, recebendo o mesmo tratamento nominal que os ‹paisŒ de seus ‹paisŒ e que
os ‹paisŒ de suas ‹m‚esŒ.
Complementando as informa€•es expressas acima, uma pessoa irŠ empregar o
mesmo termo classificat†rio a todos os ‹irm‚osŒ do mesmo sexo de um indiv•duo
qualquer. Al…m disso, irŠ se designar de ‹esposaŒ (ypron) a todas as mulheres casadas
com os homens ligados por relaۥes de parentesco em linha materna, bem como a todas
as mulheres com as quais puder manter relaۥes sexuais. Mediante as informaۥes
supracitadas, podemos organizar um organograma da designa€‚o parental entre os
Krah„, como se v‰ na figura abaixo:
Figura 2
Organograma dos termos de parentesco
Ego
Yprõ
Itõ
Itam-
txuá
Ikhra
Itam-
txuá
Ibantu
Itam-
txuá
Itõi
Itxe
Itxun
Keti
Tüi
Keti
Tüi
Keti
Tüi
Itxun
Itxe
Mas n‚o somente pelos la€os biol†gicos que um indiv•duo qualquer adquire
um grupo de parentesco. tamb…m aqueles advindos do recebimento do nome pessoal.
Sabe-se que existe uma trama que envolve a nomina€‚o dos indiv•duos. O nome
recebido por uma pessoa qualquer o mesmo que o do pr†prio nominador. Pela
nomina€‚o o indiv•duo recebe toda a trama de parentesco acima expressa. Assim, n‚o
s† os presentes em seu nˆcleo familiar s‚o tidos como parentes, como tamb…m todas as
pessoas que o seu nominador aplicar algum termo de parentesco. Al…m disso, toda uma
32
s…rie de pap…is rituais referendada em rela€‚o ao nome pessoal. Em geral, a
seguinte norma de nomina€‚o:
No caso de prole do sexo masculino, o nome preferencialmente atribu•do pelo
‹irm‚oŒ da ‹m‚eŒ, pelo ‹paiŒ da ‹m‚eŒ, pelo ‹paiŒ do ‹paiŒ, ou pelos primos
paralelos (os quais ele designa como ‹irm‚osŒ);
No caso de prole do sexo feminino, o nome preferencialmente atribu•do pela
‹irm‚Œ do ‹paiŒ, pela ‹filhaŒ da ‹irm‚Œ do ‹paiŒ (‹prima cruzadaŒ), pela ‹m‚eŒ do
‹paiŒ, pela ‹m‚eŒ da ‹m‚eŒ, ou pelas primas paralelas (as quais ela designaria pelo
termo de ‹irm‚sŒ).
disse que com o casamento o homem quem deve mudar-se para a casa da
esposa; disso decorre uma separa€‚o entre o grupo de parentes. Assim, tanto a filha
como o filho, travam contato direto com os parentes maternos, dando ƒ descend‰ncia
bilateral um carŠter mais restrito. Entretanto a nomina€‚o condiciona um
relacionamento indireto com o grupo de parentes paternos, em especial no caso das
filhas, mediante a pr†pria nomina€‚o. Vale acrescentar que a tüi e o ketí, ou seja o
parente nominador, quem explicita os par•metros comportamentais a serem seguidos
pelo jovem nominado, bem como os pap…is rituais que ele poderŠ desempenhar. Se a tüi
de uma garota do grupo de parentes paternos, isso irŠ significar que sua refer‰ncia
comportamental estarŠ centrada nesse grupo de pessoas, mesmo que seus primeiros anos
de vida tenham-se passado relativamente afastados deles. no caso de um filho, do
sexo masculino, a nomina€‚o ocorre preferencialmente dentro do grupo materno. Ora,
sabendo que com o casamento o homem que irŠ se mudar, evidencia-se um sentido
nesse processo: o homem muda-se, passando a travar contato com um grupo de
parentesco ligado a ele por la€os de afinidade, mas sempre recebe a marca de seu grupo
familiar, estando seus parentes maternos inscritos na sua pr†pria hist†ria pessoal.
Todavia, a grande dificuldade estipular qual a regra que rege a uni‚o entre as
pessoas, em especial porque a aplica€‚o estrita dos termos de parentesco praticamente
inviabiliza a exist‰ncia de pessoas aptas para contrair matrim„nio no interior de uma
aldeia. Melatti havia sentindo essa dificuldade, limitando-se a delinear alguns
indicativos gen…ricos sobre o tema:
33
‹Como os pr†prios dizem que n‚o se casam com parentes consang‘•neos, o
matrim„nio de qualquer indiv•duo seria imposs•vel se considerassem como parentes a
todos nos indiv•duos a que aplicam esses termos. Mas tal n‚o o caso. Um Krah† s†
evita rela€•es sexuais com as parentas mais pr†ximas, entre as quais inclui todas as
mulheres nascidas no seu segmento residencial original. Assim, cada indiv•duo tra€a
mais ou menos arbitrariamente
os limites do seu grupo de parentes consang‘•neos,
dentro do qual est‚o necessariamente os indiv•duos nascidos no mesmo segmento
residencial em que ele tamb…m nasceu. Cada homem chama de –esposa• todas as
mulheres com quem acha que pode ter relaۥes sexuaisΠ(Melatti, 1978: 53-4).
Certamente encontraremos uma grande dificuldade caso queiramos encontrar um
modelo fechado, completamente definido e evidente acerca do grupo de pessoas que
qualquer pessoa considera como parentes. Sendo assim, o primeiro passo para estudar a
opera€‚o prŠtica do parentesco na vida cotidiana dos Krah„ consiste em tentar dar um
contorno ƒs pessoas que podem ser tomadas enquanto tal por algum membro dessa
sociedade. Para tanto, auspicioso aprofundar as consideraۥes acerca dos
acontecimentos os quais vieram a dar a atual conforma€‚o ƒ viv‰ncia dos Krah„.
2.5. O devir pelo parentesco
Um dado que n‚o mereceu muita aten€‚o por parte dos estudiosos do parentesco
Krah„ o fato de vŠrios subgrupos comporem a dita sociedade. Atualmente existem
indiv•duos de diversos grupos Timbira, e mesmo alguns oriundos em outras sociedades,
quer se trate de povos vizinhos aos Timbira (como os Xerente, ou mesmo os
Tenetehara-Guajajara), quer seja de cupen, como nos mostra Melatti:
‹Nas aldeias Krah†, contam-se indiv•duos ApaniekrŠ, Apinay…, Xerente.
tamb…m representantes dos Kenkateye (Canelas), tribo Timbira cuja aldeia, no
Maranh‚o, foi massacrada pelos civilizados em 1913. Indiv•duos desses grupos tribais e
ainda representantes dos P—kobye ou de uma outra tribo Timbira extinta, os
P•rekamekra, miscigenaram-se com os Krah†, deixando descendentes em suas aldeias.
imposs•vel calcular a exata propor€‚o em que essas tribos contribu•ram para a
34
constitui€‚o da popula€‚o Krah†. Deve-se acrescentar que, entre os Krah†, contam-se
indiv•duos que t‰m ascendentes civilizados, sobretudo de cor negra. Sejam quais forem
seus descendentes, entretanto, todo indiv•duo que nasce numa aldeia Krah†
considerado como pertencente a essa tribo.Π(Melatti, 1972: 4)
De fato, o mais exato seria referir-se a essa popula€‚o sob a designa€‚o de
Timbira, visto que a estrutura social dessa popula€‚o respeita os padr•es gerais dessas
sociedades. Atentemos para o fato de que todos os grupos Timbira guardam entre si
grande proximidade. As l•nguas dos vŠrios subgrupos variam pouco entre si,
possibilitando a comunica€‚o sem maiores problemas. Al…m disso, vŠrios mitos e ritos
s‚o compartilhados, havendo suas varia€•es locais, de sorte que determinar a extens‚o
ou a origem de um aspecto particular de conduta, de um rito, ou mesmo da complexa
organiza€‚o social Timbira uma tarefa gigantesca e pouco proveitosa. um ‹corpo
culturalΠcomum entre esses grupos e o melhor a fazer atentar-se para o modo de
intera€‚o rec•proca que eles formularam para si e para com os demais grupos.
Como foi assinalado acima, todo aquele que vem a tomar parte do conv•vio entre
os Krah„, independentemente de sua proced‰ncia, insere-se no seio da sociedade
existente. Isso ocorre mediante a nomina€‚o e a conseq‘ente inser€‚o no universo
parental desses Timbira. As origens diversas s‚o postas de lado Ž embora n‚o sejam
esquecidas, nem mesmo pelos pr†prios interessados Ž e todos interagem segundo os
preceitos pr†prios a esse grupo Timbira.
assinalei a exist‰ncia de dois grupos classificat†rios Timbira entre os Krah„.
S‚o eles os Mãkraré e os Pãrencamecrá/Kempocateyê. Cada um deles composto,
atualmente, por vŠrios aldeamentos. Entretanto, s‚o duas aldeias existentes no in•cio do
s…culo que ir‚o originŠ-los. Estas formaram, por cissiparidade, os atuais aldeamentos
presentes na reserva, n‚o sendo usual haver uma aldeia composta por indiv•duos
oriundos desses dois grupamentos, embora esses fatos n‚o tenham cumprimento estrito.
Sempre existiram contendas envolvendo os vŠrios grupos Timbira, tanto
englobando os vŠrios grupos classificat†rios entre si, quanto as referentes aos subgrupos
Timbira com outras sociedades rivais, como os Akuen (os Xerente e os Xavante), e
alguns grupos Tupi pr†ximos aos seu territ†rio original (os Tenetehara-Guajajara, por
Grifo meu.
35
exemplo). Em verdade, uma grande rivalidade entre os grupos classificat†rios, a
despeito de sua grande proximidade cultural. Isso explica, em parte, a alian€a com
segmentos da sociedade nacional desde sua ‹pacifica€‚oŒ, mas n‚o conta de tudo.
Temos, ainda, de considerar que havia grupos Timbira inteiros sendo
desalojados de seus territ†rios originais, tendo de disputar com os Akuen, os Tupi e os
demais Timbira os espa€os ocupados, para se estabelecerem novamente. Eles
precisavam de aliados para conseguir esse intento. Como nem sempre eles poderiam
contar com a ‹solidariedadeŒ dos seus vizinhos pr†ximos, constitu•ram um la€o social
entre todos os grupos Timbira ‹desgarradosŒ, independentemente de sua ascend‰ncia
original. Isso s† foi poss•vel em decorr‰ncia do momento no qual cada grupo particular
estava passando, pois a perene amea€a de dissolu€‚o provocou a aproxima€‚o e o
contato amistoso entre grupos beligerantes at… bem pouco tempo atrŠs. E como n‚o
podiam, ou n‚o queriam, desalojar seus oponentes tradicionais sozinhos, lan€aram m‚o
do que dispunham para conseguir o seus novos territ†rios, firmando uma alian€a militar
com o ex-inimigo: o cupen. Isso lhes permitiu sobreviver at… o presente momento e
manter-se enquanto grupos distintos frente aos demais Timbira.
Podemos perceber que esse processo causou uma aproxima€‚o entre grupos que
guardavam certa dist•ncia entre si at… ent‚o. Em poucas palavras, a origem do povo
Krah„ fruto de um esfor€o de reorganiza€‚o constante que reformulou as categorias de
pertencimento de todos os envolvidos. E como o pr†prio inventŠrio sobre a origem da
popula€‚o local permite averiguar, esse processo n‚o se restringiu somente aos Timbira.
As mais variadas origens estar‚o presentes para formar a atual popula€‚o da reserva
Krah„.
Como vimos, a exist‰ncia de grupos classificat†rios Timbira n‚o outra coisa
que n‚o um ‹sistemaŒ de refer‰ncias que distingue as pessoas em grupos referenciais e
imp•e uma din•mica de rivalidades que leva ƒ expans‚o. Assim os grupos
classificat†rios n‚o formam um sistema fechado
21
, mas sim um aberto ƒs refer‰ncias
21
Gilles Deleuze ao se referir ƒ fal‰ncia dos sistemas filos†ficos nos mostra a possibilidade de exist‰ncia
de sistemas abertos. Diz ele: ‹Hoje em dia tornou-se corriqueiro observar a fal‰ncia dos sistemas, a
impossibilidade de fazer sistema, em virtude da diversidade dos saberes (–n‚o se estŠ mais no s…culo
XIX”•). (”) O que Guattari e eu chamamos de Rizoma precisamente um caso de sistema aberto. Volto
ƒ quest‚o: o que filosofia? Porque a resposta a essa pergunta deveria ser muito simples. Todo mundo
sabe que a filosofia se ocupa de conceitos. Um sistema um conjunto de conceitos. Um sistema aberto
quando os conceitos s‚o relacionados a circunst•ncias, e n‚o mais a ess‰ncias. Mas, por um lado, os
conceitos n‚o s‚o dados prontos, eles n‚o preexistem: preciso inventar, criar conceitos, e nisso tanta
36
externas, n‚o sendo dado de forma pura no pensamento. Assim, a determina€‚o dos
contornos de um grupo classificat†rio irŠ depender muito mais da rela€‚o das aldeias
entre si do que uma refer‰ncia a um ancestral anterior qualquer, como pr†prio aos
sistemas tot‰micos.
Foi mostrado, tamb…m, como a atual sociedade Krah„ o produto direto da
conquista colonial, pondo em contato grupos classificat†rios beligerantes e pessoas com
origens em sociedades diversas, formando unidades sociais compostas de pessoas
oriundas de sociedades e grupos Timbira distintos. Ora, acima procurou-se mostrar
como a din•mica de apropria€‚o da forma Timbira constitui-se em um sistema aberto,
caracterizado pela busca de pacificar as relaۥes cotidianas delimitando grupos
referenciais. Com a conquista colonial esse mecanismo precisa ordenar as relaۥes
sociais envolvendo pessoas com origens diversas. Deste modo, a intera€‚o entre essa
popula€‚o com vŠrias origens irŠ se dar pela subordina€‚o a um denominar comum,
qual seja, a inser€‚o no interior da din•mica de rela€•es parentais, mediante a
nomina€‚o. Com isso estipula-se o par•metro necessŠrio para o estabelecimento das
rela€•es pr†prias aos Krah„: a constru€‚o de um grupo de parentesco e sua unidade
parental matrilocal conseq‘ente, al…m da inser€‚o no interior de um grupo
classificat†rio.
De tudo o que se disse decorre que n‚o uma sistema de parentesco baseado na
simetria entre grupos parentais pertencentes a metades definidas. a tend‰ncia ƒ
manuten€‚o de um grupos de nomes no interior de uma unidade parental matrilocal e a
perpetua€‚o dele como pertencente a uma metade ritual
22
dos Krah„. Contudo, essa
cria€‚o e inven€‚o na arte ou na ci‰ncia.Œ (Deleuze, 1992: 45) parte o fato de n‚o estarmos nos
ocupando do que tradicionalmente tratado como filosofia ou ci‰ncia (embora L…vi-Strauss refira-se ao
pensamento ‹selvagemŒ como uma modalidade de ci‰ncia concreta), poucas s‚o as pessoas que negam a
propens‚o art•stica das constru€•es oriundas das sociedades tribais, mesmo as de cunho mais social, como
esse o caso. Assim, pondo de lado os poss•veis problemas dessa coloca€‚o, creio ser poss•vel
estabelecer um paralelo com a no€‚o de sistema aberto acima proposta, no intuito de entender a natureza
das institui€•es Timbira que ora me ocupo. Se seus conceitos n‚o se coadunam como seria apetec•vel ƒs
nossas inclina€•es mais corriqueiras, seria o caso de revermos as pr†prias no€•es de que nos servimos,
encetando em seu lugar uma vis‚o que permita postular os vŠrios conceitos aqui tratados tamb…m como
uma cria€‚o aberta, ligada ƒs circunst•ncias que a pr†pria hist†ria lhe p„s ƒ m‚o e n‚o a uma ‹ess‰ncia
TimbiraΠexterna e anterior aos acontecimentos.
22
‹Os •ndios Krah† se dividem em vŠrios pares de metades. Alguns desses pares se subdivem, por sua
vez, em unidades menores. Algumas dessas metades t‰m rela€‚o com o sistema de parentesco, porque s‚o
atribu•das ao indiv•duo juntamente com o nome pessoal e este sempre dado por algu…m que chamado
por algum termo de parentesco. Mas sua rela€‚o com o parentesco se limita a isso. Nenhum desses pares
de metades t‰m qualquer liga€‚o com a regulamenta€‚o do matrim„nio.Œ (Melatti, 1979: 80)
37
ocorr‰ncia n‚o ordena a constitui€‚o do grupo de parentes: a mera refer‰ncia ao nome
pessoal n‚o permite precisar os contornos do grupo de pessoas que um indiv•duo irŠ
considerar como parente consang‘•neo.
Disso decorre que, ƒ moda de outras institui€•es Krah„, a inclus‚o de uma
pessoa dentro de seu grupo de parentesco (ijukjê/ikwy) irŠ se determinar n‚o
estritamente pela posi€‚o de um ego qualquer dentro de um sistema fechado. Na
verdade, dependerŠ do tratamento recíproco que as pessoas dispensam entre si. Nas
palavras de Azanha:
‹Os termos ijukjê/ikwy implicam, por outro lado, n•veis de abrang‰ncia diferentes
tanto quanto o termo cahkrit: na minha aldeia chamo meikwya (onde /a/ superlativo)
apenas parte dela (o resto meicahkrit; frente a uma outra aldeia, chamo de meikwy
todos os habitantes da minha pr†pria aldeia. Portanto, os termos cahkrit e ijukjê/ikwy
s‚o categorias que se aplicam a um campo contextual. Seus valores s‚o de posi€‚o e
determinam n‚o um –n†s/eles• ƒ maneira dos Xavante descritos por M.-Lewis, mas
fronteiras entre os indiv•duos, posto que especificam rela€•es de vizinhança entre
eles, rela€•es de proximidade e dist•ncia: a toda hora pode-se transformar um cahkrit
num ikwy e vice-versa dependendo do afastamento relativo do primeiro em relação a
um ego qualquer [Grifo meu]. (”) Os termos cahkrit/ikwy possuem uma elasticidade
tal que podem ser –distendidos• sem anular as correspond‰ncia biun•vocas entre os
indiv•duos Ž o que fixo o comportamento e as atitudes especificados pela
polaridade: entre os meus ikwy(a) sinto-me –em casa•, o comportamento –familiar• e
livre; frente meus icahkrit devo observar –respeito• (o termo hüüpa que associa neste
mesmo vocŠbulo –medo• e –respeito•, como quando se diz que se –respeita um
adversŠrio•, porque ele equivalente a voc‰) Creio que n‚o se for€a muito a l•ngua J‰
dos Timbira se traduzirmos /cahkrit/ por adversŠrio equivalente•.Œ
Sem pretender deformar a posi€‚o acima expressa por Azanha, podemos
compreender a dificuldade em determinar a posi€‚o das pessoas nesse sistema de
parentesco. Ela referencial, variando de acordo com o tratamento dispensado
reciprocamente pelas pessoas. Decorre da• a dificuldade em estabelecer-se o sistema de
parentesco, pois se tomarmos os termos estritos todos podem ter um grau de parentesco
entre si. interessante notar que essa ocorr‰ncia havia sido notada por Melatti, sem
que ele se aprofundasse nas conseq‘‰ncias para o estabelecimento da normatiza€‚o das
uni•es entre esses Timbira, quando ele diz que ‹(”) poss•vel a uma pessoa
transformar um parente consang‘•neo num afim pela modifica€‚o da maneira de se
comportar para com ele.Π(Melatti, 1972: 08).
38
Com isso, creio ter explicado a aparente ambig‘idade na aplica€‚o dos termos de
parentesco. Ela estŠ ligada ƒ exist‰ncia de um campo contextual que complementa a
aplica€‚o estrita dos termos, vinculando-os ao modo rec•proco de tratamento e de
intera€‚o empreendidos na aldeia. Tal como os ikritxwyy, e o grupo classificat†rio, o
grupo de parentes consangüíneos somente pode ser precisado pela refer‰ncia aos
comportamentos efetivamente implementados pelos interessados diretos. Logicamente
que isso n‚o pode ser generalizado, pois existem os parentes pertencentes ƒ unidade
parental matrilocal de seu nascimento, os quais s‚o imediatamente tidos como
consang‘•neos. Mas os parentes mais distantes, entre os quais est‚o inclusos os
oriundos da unidade parental matrilocal do pai de uma pessoa qualquer, podem vir a n‚o
ser tidos como propriamente parentes consang‘•neos, ou mesmo ikritxwyy, bastando,
para tanto, que a conduta entre os envolvidos n‚o seja marcada pelos comportamentos
exigidos por essas relaۥes.
Posso reiterar essas informa€•es com base na minha viv‰ncia entre os Krah„.
Ap†s minha apresenta€‚o a qualquer pessoa um instante de sil‰ncio seguia-se: era a
ocasi‚o onde o meu companheiro (icodnõ) buscava em sua mem†ria se havia algum
la€o parental a nos unir. Isso tanto em decorr‰ncia de la€os dele para com meu
nominador, quer seja pelo meu nome pessoal Ž pois pode ser que outro Craté fosse
aparentado de meu interlocutor. Se ele descobrisse algum v•nculo, poderia aplica-lo a
mim, ou n‚o, dependendo do modo que ele quisesse estabelecer nossa rela€‚o. Ao
replicar o tratamento, eu entrava nesse ‹jogoŒ. Caso contrŠrio, bastaria fazer refer‰ncia
ao meu interlocutor pelo seu nome pessoal, mantendo uma dist•ncia um pouco maior.
Creio que n‚o ser necessŠrio mais nenhum argumento para validar a exist‰ncia
desse campo contextual e de sua import•ncia para o estabelecimento das rela€•es de
parentesco. Em poucas palavras, esse mecanismo dirige uma reordena€‚o do modelo de
parentesco ap†s o contato que os grupos Timbira travaram com a sociedade nacional.
Vimos que eles estavam ƒs voltas com uma imensa dificuldade em reproduzir seu
mecanismo particular de filia€‚o, por conta do desterro, dos inˆmeros deslocamentos e
dos conflitos experimentados ao longo desses quase duzentos anos de ‹pacifica€‚oŒ. Por
conseguinte, utilizam-se desse modelo flex•vel para tra€ar cont•nuas alian€as e uni•es
com pessoas de ou grupos classificat†rios e de sociedades com as mais variadas origens.
Deste modo, tiveram de estipular rela€•es que estivessem conformes ƒ constante
39
necessidade de recria€‚o das modalidades de parentesco, facilitando, assim, a inser€‚o
de novos elementos no mecanismo de filia€‚o que lhes particular. E neste caso, pouco
importa a proced‰ncia da pessoa, mas sim a perman‰ncia dos padr•es de intera€‚o que
eles conheciam. Disso decorre a ‹f†rmulaŒ: o parentesco é referencial, o
comportamento para com os parentes não.
Entretanto, temos de lidar com uma conseq‘‰ncia concreta dessas prescri€•es.
Vimos que o casamento preferencial -se entre mencahkrit (grupo daqueles n‚o
aparentados consang‘ineamente a uma pessoa qualquer) e a intera€‚o as pessoas
oriundas de outros grupos classificat†rios ou de outras sociedades se enquadrar nessa
categoria. Em meu trabalho de campo, n‚o fiz um levantamento extenso das uni•es
existentes. Pude, entretanto, realizar alguns apontamentos que permitem esbo€ar
algumas conclus•es acerca do parentesco entre os Krah„.
1. O estabelecimento do campo contextual para defini€‚o do grupo de parentes, mais
acentuado nas aldeias menores, onde a defini€‚o da consang‘inidade praticamente
inviabilizaria a ocorr‰ncia de uni•es Ž uma vez que entre as unidades parentais de
uma aldeia qualquer haveria um nˆmero reduzido de pessoas aptos a contrair
matrim„nio. Nesses casos, alguns informantes me disseram que comum acontecer
o casamento envolvendo primos, e entre irm‚os classificat†rios. Esses dados s†
indicam a maleabilidade na designa€‚o parental, permitindo, em situa€•es pouco
prop•cias, a revers‚o de rela€•es que seriam de parentesco, caso houvesse a
aplica€‚o pura das regras de filia€‚o.
2. uma prescri€‚o para a realiza€‚o do casamento preferencial Ž mas n‚o
exclusivamente Ž no interior do grupo classificat†rio ao qual se afiliado;
3. Al…m disso, existem vŠrias uni•es envolvendo pessoas de grupos classificat†rios
distintos e mesmo pessoas de outras sociedades.
Vimos acima que o casamento ideal -se entre mencahkrit, isto entre pessoas
que pertencem a grupos de ‹adversŠrios equivalentesŒ. Ora, esse grupo n‚o facilmente
isolŠvel. Remete sempre a uma refer‰ncia externa, ao inv…s de uma simples demarca€‚o
de grupos preexistentes e objetivamente demarcados. Por conseguinte, os mencahkrit de
40
algu…m somente podem ser delimitados quando se remete ƒ implementa€‚o de
um tipo de conduta entre pessoas sem liga€•es parentais pr†ximas Ž o que afasta a
exist‰ncia desse tipo de rela€‚o entre as pessoas oriundas da mesma unidade parental
matrilocal de seus genitores. Pelos dados trabalhados at… o presente momento, a conduta
entre os envolvidos nesse tipo de rela€‚o deve ser marcada pela equival‰ncia, sem se
manifestar nem a familiaridade que marca a rela€‚o entre os consang‘•neos, nem o
estremo formalismo e respeito da amizade formal.
Assim, a exata determina€‚o do que cada qual considera mencahkrit s† seria
vŠlida se tivesse um rigoroso recorte no tempo e n‚o pudesse ser generalizada para
momentos posteriores. do cruzamento dessa rede, onde cada pessoa e cada unidade
parental matrilinear tra€a os contornos de seu grupo de mencahkrit pr†prios para si, que
poder•amos obter os diversos grupos aptos para filia€‚o.
Disso decorre uma impossibilidade de construir um modelo com validade geral
para toda uma aldeia. S† poss•vel tra€ar os arranjos contingenciais em cada momento.
Da• que a existam enlaces envolvendo uma gama variada de casos e se descubra uma
dificuldade em isolar os limites objetivos dos grupos de parentesco tido como
consang‘•neos para a constitui€‚o de alian€as pelo casamento. Em suma, uma quest‚o
paira no ar e ela refere-se aos limites decorrentes dessa modalidade de filia€‚o. Em
outras palavras, temos de saber at… onde estende-se a exogamia entre os Krah„. Farei
isso ƒs avessas, explicitando como L…vi-Strauss define os contornos que devem assumir
a endogamia ‹verdadeiraŒ. Vejamos se ela estŠ conforme ƒs no€•es praticadas por esse
‹ramoŒ dos Timbira:
‹De maneira geral, a endogamia –verdadeira• manifesta simplesmente a exclus‚o
do casamento praticado fora dos limites da cultura, cujo conceito estŠ sujeito a toda
esp…cie de contra€•es e dilata€•es. A f†rmula, positiva na apar‰ncia, da obriga€‚o de
casar-se no interior de um grupo definido por certos caracteres concretos (nome, l•ngua,
ra€a, religi‚o, etc.), pois a express‚o de um simples limite, socialmente condicionado,
do poder de generaliza€‚o.Œ (L…vi-Strauss, 1976: 87)
Como L…vi-Strauss nos mostra, mais importante do que assinalar uma regra para
estipular-se com exatid‚o a extens‚o dos grupos endog•micos, entender a din•mica
que prescreve a exist‰ncia de classes de indiv•duos aptos para o matrim„nio. E vimos
41
que entre os Krah„ n‚o uma extens‚o exata para ela. Assim, bem mais proveitoso
para os fins que n†s nos propomos agora, tomar os grupos de parentes e de n‚o-parentes
de cada qual como um dado contingencial e focar nosso esfor€o de anŠlise nos padr•es
de intera€‚o que eles manter‚o entre si.
Ora, mesmo quando tomamos os enlaces efetuados com pessoas oriundas da
sociedade nacional, a din•mica de apropria€‚o da forma Timbira encetada como
condi€‚o fundamental. A nomina€‚o e a conseq‘ente inser€‚o no universo de
refer‰ncias desse grupo; a resid‰ncia na casa da esposa; o fluxo de dŠdivas do esposo
aos parentes de sua ypron; a consitui€‚o de rivalidades em vŠrias escalas (entre
unidades parentais, ou entre grupos classificat†rios). Disso decorre um ideal pautado na
realiza€‚o de uni•es entre pessoas que respeitem a forma Timbira Ž caso contrŠrio n‚o
ter•amos uma predile€‚o pelo casamento envolvendo os mencahkrit, mas sim entre os
cupen Ž, mas que n‚o estejam ligados diretamente ao grupo de parentes da pessoa que
deverŠ casar-se.
Em muitos casos pode-se estender essa no€‚o de filia€‚o comum para al…m das
‹fronteirasŒ do pr†prio segmento residencial e enlevŠ-la at… os limites do pr†prio grupo
Timbira que se filiado. Deste modo, a pacifica€‚o dos inimigos em potencial presentes
em outras aldeias Timbira pode ocorrer pelo casamento e os limites endog•micos desse
‹sistemaŒ expande-se aos que s‚o capazes de reconhecer e corroborar o funcionamento
esse mecanismo.
Resta ainda fazer a men€‚o ao modo pelo qual se realizam as uni•es
matrimoniais entre os Krah„. Em meu levantamento de dados, pude encontrar troca
direta entre alguns segmentos residenciais pr†ximos entre si. Assim, os homens de uma
unidade parental matrilocal casavam-se com as mulheres de outro unidade e vice-versa.
Melatti havia feito a mesma considera€‚o, mas tamb…m n‚o p„de constatar a extens‚o
dessa ocorr‰ncia. Desse modo, n‚o seria prudente aqui estender esse tipo de uni‚o como
o modelo ideal entre os Krah„. Tendo em vista a falta de dados a esse respeito, prefiro
buscar um outro tipo de explica€‚o, com base nos dados que tenho ƒ m‚o. Se n‚o irei
perfazer a constru€‚o de um modelo de intera€‚o parental, ao menos acentuarei algumas
caracter•sticas do sistema aberto pelo qual os Krah„ v‰m a produzir suas alian€as
matrimoniais.
42
Existem algumas condutas recorrentes em boa parte dos matrim„nios. Em
primeiro lugar, todo casamento tem que ser combinado entre os ‹paisŒ dos futuros
esposos, ou entre o chefe do segmento residencial de cada qual. Em geral, o casamento
combinado quando os ‹noivosŒ ainda s‚o crian€as. interessante notar que o
casamento n‚o celebrado por nenhum rito pˆblico. Via de regra, o esposo s† muda-se
para a casa de sua esposa, trazendo consigo seus pertences pessoais. a possibilidade
dos futuros c„njuges n‚o desejarem manter a combina€‚o efetuada pelos pais. Ainda
assim, tentam viver juntos e caso isso se mostre inviŠvel, procuram novos parceiros. O
matrim„nio tamb…m pode acabar por conta da exist‰ncia de adult…rio. Como ele tem
carŠter monog•mico Ž embora em vŠrios ritos a licenciosidade seja a norma Ž em caso
de descoberta de algum adult…rio grande alarde e discuss‚o entre os c„njuges, com
casos esporŠdicos de manifesta€‚o de viol‰ncia. Cabe aos parentes (pais e chefes da
unidade parental, em especial) e aos amigos de ambos tentar acalmŠ-los e conduzi-los ƒ
viv‰ncia conjunta novamente. Entretanto, nem sempre isso poss•vel.
Portanto, boa parte das pessoas acaba tendo mais de um enlace ao longo da vida.
Em geral, o primeiro casamento n‚o mantido por muito tempo. O enlace s† vem a
ganhar solidez quando nasce o primeiro filho do casal, ocasi‚o na qual o esposo tem de
realizar uma ca€ada, ou adquirir algum animal de porte para o abate e oferecer um bolo
cerimonial, conhecido pelos sertanejos como paparuto, ƒ aldeia. Esse rito sim poderia
ser considerado o anˆncio pˆblico de que o casal estŠ com uma uni‚o estŠvel perante
todos.
Como disse, o casamento a ocasi‚o na qual a determina€‚o de uma s…rie
de prescri€•es por parte do esposo para com os parentes da esposa. VŠrios trabalhos s‚o
realizados pelo genro como cumprimento de obrigaۥes para com o sogro e caso este
ˆltimo Ž ou o chefe da unidade parental matrilocal da esposa, na falta do pai da esposa Ž
se desgoste do esposo de sua filha, pode tomŠ-la de volta. Isso pode acontecer se o
esposo n‚o tratar com devido respeito sua esposa, ou se ele n‚o fizer os trabalhos como
o seu sogro achar que conv…m.
Isso faz com que o pai da esposa, normalmente o chefe do segmento residencial
no qual reside o casal, tenha um grande poder sobre seus genros, bem como sobre os
rumos adotados pelos enlaces entre os Krah„. Assim, uma inger‰ncia do chefe da
unidade parental matrilocal nos enlaces a serem efetuados. por seu interm…dio que o
43
acerto realizado e como a alian€a se faz primordialmente entre as pessoas pr†ximas
entre si, isso explica como e porqu‰ casos de troca direta de segmentos residenciais
que tenham intenۥes de apaziguarem definitivamente suas relaۥes. Isso explica
tamb…m a prefer‰ncia pela realiza€‚o dentro do grupo classificat†rio ao qual se filiado,
pois a alian€a celebra-se, primeiramente, entre aqueles que est‚o pr†ximos, para depois
estend‰-la.
Vale destacar que ficar sem esposa n‚o uma quest‚o estrita de gosto pessoal,
mas tem uma dimens‚o econ„mica e social importante. tamb…m um impacto no
plano econômico, considerando-se que a uni‚o matrimonial n‚o representa uma simples
op€‚o individual, uma vez que a sociedade Krah„ observa a divis‚o sexual do trabalho.
Assim, a plena auto-sustenta€‚o da pessoa estarŠ diretamente ligada ƒ necessidade de
casar-se, pois uma parte significativa das t…cnicas necessŠrias ƒ subsist‰ncia n‚o est‚o
sob o dom•nio de uma s† pessoa, mas est‚o na figura de seu futuro c„njuge.
Esse padr‚o de intera€‚o traz consigo alguns aspectos largamente acentuados
pelos estudiosos do parentesco. Um de cunho sociológico, pois reitera a necessidade de
n‚o deixar a uni‚o matrimonial largada ao ‹acasoŒ, mas deve-se encetar uma regra para
regular os interc•mbios maritais
23
. Uma regra que restringe o acesso dos homens ƒs
mulheres de seu pr†prio grupo parental e enceta a necessidade da intera€‚o, das trocas
entre os grupos
24
como condi€‚o para a perpetua€‚o do grupo enquanto tal.
Entretanto, al…m dos fatores acima explicitados, um de carŠter político pouco
notado. Lancemos um olhar sobre a obra de Pierre Clastres. Esse antrop†logo franc‰s
sempre visou entender a din•mica pr†pria ƒs popula€•es n‚o estatais da Am…rica do sul.
Segundo os dados por ele analisados no texto ‹Exogamia e independ‰nciaŒ (Clastres,
1990), a exogamia entre os grupos de filia€‚o sempre foi uma ocorr‰ncia preponderante,
no que tange ao parentesco, ao menos entre as sociedades do tronco ling‘•stico Tupi-
23
Assim, faz-se coro ƒ no€‚o estruturalista de que a regra sempre irŠ estar presente, mesmo que ela n‚o
seja auto-evidente. Nas palavras de Claude L…vi-Strauss: ‹O fato da regra, considerado de maneira
inteiramente independente de suas modalidades, constitui, com efeito, a pr†pria ess‰ncia da proibi€‚o do
incesto. Porque se a natureza abandona a alian€a ao acaso e ao arbitrŠrio, imposs•vel ƒ cultura n‚o
introduzir uma ordem, de qualquer esp…cie que seja, onde n‚o existe nenhuma. O papel primordial da
cultura estŠ em garantir a exist‰ncia do grupo como grupo, e portanto em substituir, neste dom•nio como
em todos os outros, a organiza€‚o ao acaso. A proibi€‚o do incesto constitui uma certa forma Ž e mesmo
formas muito diversas Ž de interven€‚o. Mas, antes de tudo interven€‚o, ou, mais exatamente ainda, a
Interven€‚o.Œ (L…vi-Strauss, 1976: 72)
24
Ainda segundo L…vi-Strauss, ‹(”) as trocas matrimoniais e as trocas econ„micas formam no esp•rito
do ind•gena parte integrante de um sistema fundamental de reciprocidade.Œ (L…vi-Strauss, 1976: 73)
44
Guarani
25
. Assim, embora a unidade pol•tico-organizacional bŠsica da maioria das
sociedades sul-americanas n‚o possa ser expressa sucintamente, podemos ao menos
afigurar o tipo de organiza€‚o preponderante, em escala continental. Com efeito, n‚o
podemos ater-nos ƒs fam•lias extensas, pois em meios ƒs grandes malocas comunais -
tipo de moradia preponderante - haveria sempre mais de um desses grupos sociais a
habitar uma mesma morada. Nem tampouco podemos falar de linhagens, uma vez que a
preponder•ncia da bilateralidade da descend‰ncia desmente essa hip†tese. Estamos
diante de qual unidade sociol†gica, ent‚o? Seria o que o autor chamou de demos
exogâmicos. Sobre suas caracter•sticas, Clastres nos diz que:
‹Elas reˆnem em m…dia cem a duzentas pessoas; o seu sistema de descend‰ncia
geralmente bilateral; praticam a exogamia local, e a resid‰ncia p†s-marital patri ou
matrilocal, de forma que se manifesta uma certa –taxa• de unilateralidade. Trata-se de
verdadeiros demos exog•micos, no sentido de Murdock, isto …, de unidades
principalmente residenciais, mas cuja exogamia e unilocalidade e resid‰ncia
desmentem, em certa medida, a bilateralidade de descend‰ncia, conferindo-lhes, assim,
a apar‰ncia de linhagens ou mesmo de cl‚sŒ (Clastres, 1990: 41).
Outra caracter•stica dessas unidades sociais deduz-se da exist‰ncia de um chefe
comum a todo agrupamento, ao lado dos l•deres das fam•lias extensas. Se, por um lado,
cada fam•lia conserva seu princ•pios de autonomia frente ƒs demais, por outro, n‚o
existe o risco de implos‚o do grupo. Com efeito, estamos diante de sociedades nas quais
uma das principais atribui€•es da chefia consiste, em grande parte, na pacifica€‚o das
diferen€as. E considerando que sempre novos grupos familiares podem vir a travar
contato com os grupos existentes, por conta da exogamia em rela€‚o aos demos,
podemos ter um quadro geral da organiza€‚o social preponderante nos grupos:
‹Em resumo, a comunidade de resid‰ncia em uma grande casa e a filia€‚o
culturalmente reconhecida a um mesmo conjunto de parentes colocam os grupos da
Floresta Tropical como unidades sociol†gicas entre as quais se operam as trocas e se
concluem as alian€as: a exogamia, que ao mesmo tempo condi€‚o e meio, essencial
45
ƒ estrutura dessas unidades e ƒ sua perman‰ncia como tais. E, de fato, o carŠter local
dessa exogamia apenas contingente, pois que uma conseq‘‰ncia do distanciamento
geogrŠfico das diversas comunidades, quando estas se aproximam e se justap•em at…
formar uma aldeia, como nas populaۥes tupis, a exogamia, deixando de ser local, nem
por isso, desaparece: converte-se em exogamia de linhagemΠ(Clastres, 1990: 45).
[Assim,] ‹o interc•mbio das mulheres de maloca a maloca, estabelecendo estreitos
la€os de parentesco entre fam•lias extensas e demos, institui por isso mesmo rela€•es
pol•ticas, mais ou menos expl•citas e codificadas, verdade, mas que impedem grupos
vizinhos e aliados pelo casamento de se considerarem reciprocamente como puros
estrangeiros, e at… mesmo como inimigos ferrenhos. (Clastres, 1990: 45-6)
Disso, se conclui que ‹a fun€‚o da exogamia local n‚o pois negativa: assegurar
a proibi€‚o do incesto, mas positiva: obrigar a contrair casamento fora da comunidade
de origem. Ou, em outras palavras, a exogamia local encontra seu sentido em sua
fun€‚o; ela o meio de alian€a pol•tica!Œ (Clastres, 2000, 46-7).
Assim, introduzindo o aspecto hist†rico na anŠlise das institui€•es aut†ctones
sul-americanas, verificamos que ‹as popula€•es tupi nos oferecem assim a ilustra€‚o da
uma passagem de uma estrutura polidêmica a uma estrutura de múltipla linhagemŒ
(Clastres, 1990: 51). Verificamos, tamb…m que as institui€•es aut†ctones n‚o se prestam
ao fechamento r•gido de suas fronteiras. Mas, fazendo uso da express‚o de Jacques
Ruffi…, est‚o inventando constantemente um meio de ‹fazer amorŒ ao inv…s da ‹guerra
constanteŒ
26
, contrariamente a uma certa imagem sobre essas populaۥes deixa entrever.
Ora, o caso dos Krah„ parece ser fundamentalmente o mesmo. Primeiro, pela
simples possibilidade de inser€‚o sempre renovada de pessoas no interior da
comunidade, bastando para tanto a nomina€‚o e o cumprimento das prescri€•es pr†prias
a esse grupo Ž no caso, a resid‰ncia na casa da esposa, o fluxo de dŠdivas do esposo
para os parentes maternos e o respeito ƒs ordena€•es gerais da vida na aldeia Timbira.
Al…m disso, a pr†pria no€‚o de mencahkrit faz com que haja uma grande possibilidade
25
Vale destacar que os grupamentos g‰ n‚o foram analisados em seu curto artigo sobre o tema. Segundo
o autor, esses grupamentos merecem um estudo ƒ parte, devido ƒ imensa complexidade de suas
instituiۥes parentais.
26
Ao tratar da reprodu€‚o sexuada, Jacques Rufi… afirma que : ‹(”) a base de toda socializa€‚o e que
n‚o existe sociedade nos grupos assexuados. Simplesmente porque ela obriga ao encontro, ƒ execu€‚o das
dan€as nupciais, a estabelecer as hierarquias, ao entendimento. N‚o podemos fazer o amor e a guerra ao
46
de uni‚o entre pessoas de fora do grupo classificat†rio. Bastando, para tanto, se
enquadrar no cumprimento das determinaۥes advindas com o casamento. Assim faz-se
coro ƒs conclus•es de Ladeira sobre o casamento entre os Timbira, pois ela nos indica
que essa forma de uni‚o delimita a exist‰ncia de uma media€‚o entre as unidades
parentais matrilocais envolvidas:
‹As pessoas atravessam o pŠtio para irem de uma casa a outra, quando suas casas
est‚o ligadas pelo pŠtio. Esta passagem pelo pŠtio indica que a rela€‚o estabelecida
entre estas casas mediada por ele: s‚o rela€•es que devem ser pˆblicas (alian€as
matrimoniais, amizade formal, nomina€‚o). Neste sentido, as casas onde residem os
afins de um indiv•duo est‚o numa mesma dist•ncia para com ele, podem ser as mesmas.
PerguntŠvamos com freq‘‰ncia aos Ramkokamekra e aos Ap•niekra onde se devia
–buscar marido•. E a resposta era sempre a mesma: do outro lado da aldeia, afirma€‚o
acompanhada do gesto que apontava o lado oposto da aldeia. Mas esta afirma€‚o n‚o
era comprovada por meus dados de campo, que n‚o me indicavam que os casamentos
eram estabelecidos entre casas diametralmente opostas uma ƒ outras. Mas esta
afirma€‚o era categ†rica porque todas as casas onde se pode buscar marido est‚o, pelo
trajeto que deve ser percorrido (equivalente ao di•metro da aldeia), numa mesma
dist•ncia, est‚o todas do outro lado da aldeia.Œ (Ladeira, 1983: 22)
Assim, o casamento deve propiciar, dentro das margens que lhe s‚o peculiares, a
possibilidade de efetiva€‚o de alian€as entre pessoas que n‚o comp•em o grupo tido
como o meu. Em uma primeira inst•ncia, vemos que uma orienta€‚o com vistas a
pacifica€‚o das unidades parentais que travam contato direto entre si, da• adv…m a
predile€‚o pelo enlace no interior do grupo classificat†rio ao qual se afilado. Mas a
produ€‚o de paz que se faz mediante o matrim„nio n‚o se restringe a esse plano e as
alian€as s‚o estendidas a todos que possam reconhecer e respeitar a forma Timbira. Em
outras palavras, as pr†prias normas de realiza€‚o dos casamentos concorrem para a
pacifica€‚o e expans‚o dos grupos Timbira.
Assim, as necessidades de pacificar e de estender os limites dos espa€os de
conviv‰ncia tiveram influ‰ncia decisiva na fei€‚o que o casamento assume entre os
mesmo tempo! A sexualidade n‚o implica, no entanto, apenas nos relacionamentos sociais, ela impregna
todas as rela€•es humanasŒ (Ruffi…, 2000: 3)
47
Krah„. Mas a efetiva€‚o dessa pacifica€‚o s† ocorreu porque as pr†prias institui€•es
Timbira t‰m esse carŠter. Se existe, ou existiu, o dissenso, ele s† indica que a
pacifica€‚o tem de ser continuamente conquistada e ampliada. Disso decorre a abertura
sempre renovada para a inser€‚o de novas variŠveis entre as pessoas que vivem sob a
…gide da forma Timbira.
O mais correto seria delimitar a extens‚o para esse tipo de expans‚o dos espa€os
pacificados pelo exterior. Em outras palavras, as fronteiras para esse sistema aberto n‚o
se encontram, em princ•pio, fundamentadas pelo funcionamento desse mecanismo
considerado em si mesmo, mas sim pelas rela€•es que a forma Timbira encontrarŠ com
o exterior da mesma. Ora, o grande limite estŠ, segundo a experi‰ncia desses grupos
Timbira considerados, na exist‰ncia do cupen. S‚o as rela€•es de subalternidade perante
os segmentos da sociedade nacional que impedem a expans‚o desse mecanismo de
filia€‚o e de alian€as.
Mas o que realmente limita, a partir de fora, a possibilidade de se estender o
mecanismo de pacifica€‚o Timbira? Talvez seja a pr†pria no€‚o de paz presente e
implementada pelo cupen. Marshal Sahlins faz uma compara€‚o entre as condi€•es de
civiliza€‚o e o tribalismo e conclui que:
‹Na condi€‚o social da Guerra, a for€a um recurso legitimamente dispon•vel para
todos os homens. N‚o precisa haver necessariamente viol‰ncia, mas tampouco
seguran€a do contrŠrio. AliŠs, brigar pode ser mal visto dentro da tribo: uma
comunidade Hopi extremamente n‚o-beligerante. Por outro lado, a viol‰ncia interna
cotidiana dos Estados Unidos da Am…rica tem poucos paralelos na Hist†ria ou
Etnografia. Mas, politicamente, a cidadania americana difere da Hopi nisto: ‰les t‰m
–um Poder comum para mant‰-los todos amedrontados•, um Governo, onde ningu…m
pode fazer a lei com suas pr†prias m‚os, mant…m a Paz. Tribos como a Hopi n‚o t‰m
uma autoridade pol•tica e moral soberana; o direito de usar a for€a e –batalhar•, se n‚o
uma inclina€‚o, apesar disso observado por todo o povo separadamente. Tecnicamente
isso uma condi€‚o social interna da Guerra.Œ (Sahlins, 1970: 15)
Ora, a constitui€‚o de uma reserva e a limita€‚o da intera€‚o dos grupos,
marcadamente litigiosa, fruto do contato dos Timbira com a ‹pacifica€‚oŒ imposta
pelo cupen. Constitui, com efeito, um limite social e pol•tico da expans‚o da forma
48
Timbira no que ela tem de mais aut‰ntico, isto …, a constitui€‚o e a equival‰ncia de
grupos classificat†rios entre os Timbira. Outrossim, Azanha nos mostra que:
‹A guerra seria, portanto, a condi€‚o e o resultado do processo –schismogen…tico•
Timbira, tal como o descrevemos. Seria a condi€‚o da expans‚o e, como tal, n‚o
passaria de um modo de um grupo local Timbira querer ser mais –Timbira• do que outro
(como as indica€•es de Nimuendajˆ e Melatti Ž 1974 Ž deixam de fato entrever)Œ
(Azanha, 1984: 21)
Em vista de tudo que se disse at… aqui, vemos que sempre haveria a
possibilidade desse ‹sistema de parentescoŒ abrir-se ao exterior. Mas o contato com
segmentos da sociedade ocidental limitam, a partir de fora, a possibilidade de expans‚o
desse sistema. O carŠter ‹endog•micoŒ seria, pois, fruto da ‹pacifica€‚oŒ imposta a
esses Timbira e n‚o uma fei€‚o tŠcita dos mesmos.
Como a ‹pacifica€‚oŒ inibe a possibilidade expans‚o dos grupos classificat†rios
mediante a conquista de territ†rios, houve um deslocamento desse processo para a
constitui€‚o de alian€as matrimonias envolvendo grupos sociais distintos: isso explica a
facilidade presente da regra filiativa dos Krah„ em perpetrar-se uni•es envolvendo os
mecahkrit. Assim, entende-se como se celebra essa alian€a com as pessoas que n‚o
tomam parte de um mesmo grupo classificat†rio. E a pr†pria norma acima expressa
facilita a efetua€‚o desses casamentos, pelas condi€•es postas de unicamente se
respeitar a conduta ordinŠria aos Krah„, n‚o importando a origem da pessoa. Em outras
palavras, cahkrit aquele ‹inimigo equivalenteŒ com o qual possuo par•metros para me
relacionar, pois ele adota a din•mica de apropria€‚o da forma Timbira. Disso
depreende-se que a nomina€‚o pode transformar um cupen, o exterior da forma
Timbira, em mencahkrit, aquele que me afirma negando-me, implantando o jogo de
oposi€•es at… agora abordado e instaurando a possibilidade de efetiva€‚o das alian€as.
Assim, as uni•es matrimoniais expressariam antes um processo que visa o
estabelecimento de alian€as do que privilegiar um mecanismo de filia€‚o. Estamos, pois
defronte um processo que visa antes expandir os limites estritos dos grupos, mediante a
constitui€‚o de alian€as, do que um que vise o fechamento das fronteiras ƒs pessoas
originariamente n‚o pertencentes ao pr†prio grupo. Ora, Gilles Deleuze e F…lix Guattari
49
consideram que esse tipo de mecanismo de expans‚o, pelo englobamento de fatores
heterog‰neos pode se constituir em um mecanismo de reprodu€‚o, pelo contágio.
Dizem eles:
‹Opomos a epidemia ƒ filia€‚o, o contŠgio ƒ hereditariedade, o povoamento por
contŠgio ƒ reprodu€‚o sexuada, ƒ produ€‚o sexual. Os bandos, humanos e animais,
proliferam com os contŠgios, as epidemias, os campos de batalha e as catŠstrofes.
como os h•bridos, eles pr†prios est…reis, nascidos de uma uni‚o sexual que n‚o se
reproduzirŠ, mas que sempre recome€a ganhando terreno a cada vez. As participa€•es,
as nˆpcias anti-natureza, s‚o a verdadeira Natureza que atravessa os reinos. A
propaga€‚o por epidemia, por contŠgio, n‚o tem nada a ver com a filia€‚o por
hereditariedade, mesmo que os dois temas se misturem e precisem um do outro. O
vampiro n‚o filiaciona, ele contagia. A diferen€a que o contŠgio, a epidemia coloca
em jogo termos inteiramente heter„geneos: por exemplo um homem, um animal e uma
bact…ria, um v•rus, uma mol…cula, um microorganismo. Ou como para a trufa, uma
Šrvore, uma mosca e um porco. Combina€•es que n‚o s‚o gen…ticas nem estruturais,
inter-reinos, participa€•es contra a natureza, mas a Natureza s† procede assim, contra si
mesma. Estamos longe da produ€‚o filiativa, da reprodu€‚o hereditŠria, que s† ret…m
como diferen€as uma simples dualidade dos sexos no seio de uma mesma esp…cie, e
pequenas modifica€•es ao longo das gera€•es. Para n†s, ao contrŠrio, tentos sexos
quanto termos em simbiose, tantas diferen€as quanto elementos intervindo num
processo de contŠgio: Sabemos que entre um homem e uma mulher passam muitos
seres, que v‰m de outros mundos, trazidos pelo vento, que fazem rizoma em torno das
ra•zes, e n‚o se deixam compreender em termos de produ€‚o, mas apenas de devir.Œ
(Deleuze e Guattari, 1997: 23)
Assim, entre os Krah„ o campo privilegiado para a perpetua€‚o da guerra Ž
aquele jogo de instaura€‚o de distin€•es e de rivalidades acima expresso Ž parece ter
sido deslocado pela inser€‚o de inimigos no seio do grupo tribal. Pela nomina€‚o de
pessoas oriundas de outros grupos Timbira, ou mesmo de outras sociedades, a din•mica
de apropria€‚o da forma Timbira atualiza-se e se expande. Uma contamina€‚o que visa
inserir novas pessoas no interior do jogo, mesmo que por esse mecanismo tomado
isoladamente n†s n‚o tenhamos a cria€‚o de novos grupos, ou mesmo a expans‚o
50
espacial, da• sua ‹esterilidadeŒ. Por…m, ela possibilita a expans‚o da forma, por garantir
que novas pessoas possam vir a tomar parte nessa din•mica.
Assim vemos a implementa€‚o de pol•tica Krah„: todo cupen que v‰m at…
alguma de suas aldeias terŠ o convite para ser nominado. SerŠ tamb…m, em caso de
aceitar esse convite, considerado pahi, uma chefe honorŠrio, um representante dos
interesses Krah„, uma esp…cie de ‹embaixadorŒ. Essa institui€‚o existia antes da
‹pacifica€‚oŒ, pois cada aldeia escolhia uma crian€a no interior de uma outra aldeia,
batizava-o na sua pr†pria e o proclamava seu pahi: um intercessor retirado do interior de
outra aldeia. Em outras palavras, o defensor dos interesses de minha aldeia um
cahkrit, um inimigo equivalente. Mas antes de se tomar contato com a aldeia que terŠ de
ser pacificada por essa institui€‚o, todos que moram ali podem muito bem ser
considerados cupen: externos ao jogo de diferencia€‚o e de oposi€•es que ora
expressamos. Entende-se, assim, que a expans‚o possa se dar a partir da inser€‚o dos
par•metros Krah„: eles condicionam que a aldeia rival participe desse jogo e o respeite.
Por certo n‚o serŠ o fim da rivalidade, mas sim o in•cio de uma rivalidade regida pelos
princ•pios Timbira.De todos os chefes se exige generosidade
27
, inclusive do pahi. Com
isso, espera-se que ele possa interceder sempre em favor da aldeia que o distinguiu com
essa honraria. Ou seja, o pahi deve sempre estar, em assuntos referentes ƒ aldeia que o
proclamou, em desacordo com o seu pr†prio grupo Ž frente outra aldeia, minha pr†pria
aldeia inteira meikwya, como no interior desta, s† os meus parentes o s‚o.
Ora, atualmente a nomina€‚o e a inser€‚o no jogo de parentesco antes um
modo de ‹aliciarŒ o exterior da forma Timbira para o respeito de suas determina€•es, do
que uma forma de pacificar as rela€•es entre as aldeias Ž a guerra franca estŠ
praticamente descartada muito tempo, al…m de n‚o ter um sentido social para os
envolvidos (n‚o permite a expans‚o, como fazia outrora). Percebe-se, assim, que a
nomina€‚o no exterior das rela€•es Timbira visa garantir uma outra forma de expans‚o:
pela constitui€‚o de um mecanismo que insira sempre novas pessoas no interior da
din•mica de relacionamentos Timbira.
27
‹Ser hõtxén, generoso, compete em particular aos chefes e aos governadores, pois a generosidade
fonte de prest•gio entre os Krah„ como em tantas outras sociedades, como sobejamente conhecido
desde Mauss. Seu ant„nimo, hõtxë ou hõtxëkti significa ao mesmo tempo ser avaro e –ruim• e um termo
injurioso.Π(Cunha, 1978: 44)
51
Assim, percebe-se um sentido nas intera€•es entre os Krah„: sempre o
estabelecimento de rela€•es referenciais, com par•metros gerais que n‚o podem ser
infligidos. Tem-se que sempre recorrer ao tipo de conduta efetivamente implementada
entre as pessoas envolvidas para saber qual a posi€‚o rec•proca que eles mant…m entre
si. Atualmente esse grande ‹trunfoŒ dos Krah„: possibilita que a expans‚o se d‰
continuamente. Sen‚o em termos espaciais, ao menos em termos de expans‚o das
rela€•es Timbira, conquistando aliados entre toda sorte de ‹inimigosŒ.
3. Cupen
53
3. Cupen
3.1. O mito de Auké
No cap•tulo anterior procurei demonstrar como uma din•mica de apropria€‚o
da forma Timbira, cuja caracter•stica fundamental operar a demarca€‚o de grupos
diferenciados e por vezes rivais, levando-os ƒ expans‚o. Em outras palavras, o devir-
Timbira inscreve no corpo pleno da terra um tipo de mŠquina social definida pelo
pr†prio formato das aldeias Ž nas quais as unidades parentais matrilocais delimitam seu
espa€o na periferia do krim (aldeia), marcando uma igualdade entre esses grupos Ž
abrindo a possibilidade de surgirem rivalidades entre essas unidades sociais; o centro
(o pŠtio, ) uma Šrea apaziguada, onde esses antagonismos n‚o podem se fazer
presentes. Caso esse ˆltimo preceito n‚o seja seguido, a cis‚o da aldeia o caminho
posto para os envolvidos, com a forma€‚o de centros pol•ticos mais abrangentes, aqui
designados de grupos classificat†rios, constitu•dos tanto por vŠrias aldeias distintas,
quanto por unidades parentais matrilocais que tenham se destacado de uma aldeia
comum. Os grupos classificat†rios assim formados tamb…m possuem uma grande
rivalidade entre si, apresentando uma tend‰ncia ƒ expans‚o.
Essa din•mica irŠ se deparar com uma frente colonialista aproximadamente
dois s…culos, levando os Timbira a operarem uma reodena€‚o do processo acima
referido. A derrota militar e o confinamento a um territ†rio rigidamente delimitado
impedem-nos de perpetuar essa din•mica em sua plenitude, uma vez que sem a
intera€‚o entre vŠrios grupos inviabiliza-se a manuten€‚o do princ•pio expansionista de
cada grupo em particular. Assim abre-se espa€o para que a vida desse sistema seja
recriada, pela instaura€‚o de alian€as entre pessoas de fora de cada grupo classificat†rio,
mediante a nomina€‚o e o casamento.
Deste modo, vemos que os Timbira possuem um sistema social com ditames
semelhantes aos estipulados por Edgar Morin. Se existe reprodu€‚o de suas institui€•es,
isso se deve ƒ sua faculdade de lidar com caracter•sticas exter•nsecas ƒs mesmas,
mantendo o preceito de que‹(”) todas as entidades nool†gicas durŠveis s‚o auto-eco-
organizadoras (”)Œ (Morin, 1998: 149). Em outras palavras, a pr†pria independ‰ncia e
autonomia da vida entre os Timbira estŠ balisada pela reelabora€‚o de vŠrios aspectos
de seu sistema de refer‰ncias em rela€‚o ao mundo como um todo. Assim, vemos que a
54
pr†pria ordem social estipulada pela crise de elementos que a constituem, os quais
incorrem em reordena€‚o, permitindo a manuten€‚o dos princ•pios que orientam a
intera€‚o dos membros dessa sociedade.
Deste modo, o pensamento m•tico tamb…m terŠ de se ver diante da exist‰ncia
real e concreta do ‹homem brancoŒ, do cupen, entendido como o exterior das rela€•es
implementadas pelos Timbira. Entretanto, mais do que um simples veredicto acerca das
pessoas inseridas no exterior do conjunto das relaۥes Timbira, um mito que procura
sintetizar o pensamento desses povos sobre o cupen, qual seja o mito de Auk…. Logo
abaixo segue uma transcri€‚o desse mito. Optei por expor uma vers‚o mais sucinta
utilizada por Roberto Da Matta no artigo Mito e antimito entre os Timbira, como se v‰
abaixo:
I. 1. Uma rapariga de pŠtio de nome Amcukw…i estava grŠvida. 2. Certa vez quando
ela, em companhia de muitas outras, estava tomando banho, ouviu de repente o
grito do preŠ. 3. Admirada, ela olhou para todos os lados sem descobrir de onde o
grito partira. Logo depois ouve-o novamente. 4. Voltando para casa com as outras,
ela se deitou na sua cama de varas quando o grito se fez ouvir pela terceira vez,
reconhecendo ela agora que partira do interior do seu pr†prio corpo. 5. Depois ela
ouviu a crian€a falar: ‹minha m‚e, tu estŠs cansada de me carregar?Œ ‹Sim, meu
filho!Œ, respondeu ela. ‹SaiaŒ. ‹BomŒ, disse a crian€a: ‹em tal dia eu saireiŒ.
II. 6. Quando Amcukwei come€ou a sentir as dores do parto, ela foi s† ao mato.
Deitando folhas de pati no ch‚o disse: ‹se fores menino, eu te matarei, se fores
menina, eu te criareiŒ. 7. Ent‚o nasceu um menino. 8. Ela cavou um buraco,
sepultou-o vivo e voltou para casa. 9. Sua m‚e, vendo-a voltar, ralhou com ela: que
tivesse trazido o menino porque ela, a av†, o criaria; e quando ela foi lŠ,
desenterrou o menino e depois de lavŠ-lo o trouxe para casa. 10. Amcukw…i n‚o lhe
quis dar de mamar, mas a av† o amamentou. 11. Mas o pequeno Auk… se levantou
e disse para sua m‚e: ‹Ent‚o n‚o me queres criar?Œ Amcukw…i, muito assustada,
respondeu: ‹Sim, eu te criarei.Œ 12 Auk… cresceu muito rapidamente. 12. Ele
possu•a o Dom de transformar-se em qualquer animal. 14. Quando tomava banho
ele se transformava em peixe e na ro€a assustava seus parentes em forma de on€a.
III. 15. Ent‚o o irm‚o de Amcukw…i resolveu matŠ-lo. 16. Estando o menino sentado
no ch‚o comendo bolo de carne, ele bateu por trŠs com o cacete, enterrando-o
depois atrŠs da casa. 17. Pela manh‚ seguinte, por…m, o menino cheio de terra
voltou para casa: ‹Av†, disse ele, por que me mataste?Œ ‹Foi teu tio que te matou,
porque andas assustando a genteŒ. ‹N‚o, prometeu Auk…, eu n‚o farei mal a
55
ningu…m.Œ 18. Mas, logo depois, brincando com outras as crian€as, ele se
transformou novamente em on€a. 19. Seu tio, ent‚o, resolveu desfazer-se dele de
outra maneira: chamou-o para ir com ele buscar mel. Eles passaram duas serras.
Chegando ao cume da terceira, ele agarrou o menino, atirando-o do abismo. 20.
Mas Auk… transformou-se em folha seca, desceu vagarosamente em aspirais para o
ch‚o. 21. Ali ele cuspiu e de repente se ergueram em redor do tio dele rochedos
•ngremes dos quais debalde procurou escapar. 22. Auk… voltou para casa dizendo
que seu tio vinha atrŠs dele. Como depois de cinco dias ele ainda n‚o tivesse
voltado, Auk… fez desaparecer outra vez os reochedos, e ent‚o, finalmente o tio
conseguiu voltar; ele estava quase morto de fome.
IV. 23. Logo depois, concebeu outro plano para matar Auk…: sentando-o numa esteira,
deu-lhe comida, 24. Mas Auk… disse que bem sabia o que ia fazer com ele. 25.
Depois o tio derrubou pelas costas com o cacete e 26. Queimou-lhe o corpo. 27.
Todos abandonaram em seguida a aldeia, mudando-se para um lugar bem longe.
28. Amcukw…i estava chorando; mas sua m‚e disse: ‹Por que estŠs chorando
agora? Tu mesmo n‚o quiseste matŠ-lo?Œ
V. 29. Algum tempo depois Amcukw…i pediu aos chefes e conselheiros que
mandassem buscar a cinza de Auk… e estes mandaram dois homens ƒ aldeia
abandonada para ver se ainda o encontravam. 30. Quando chegaram no lugar,
descobriram que Auk… tinha se transformado no homem branco: tinha feito uma
casa grande e criados negros do •mago preto de certa Šrvore, cavalos de madeira de
bacuri e pois do piquiŠ. 31. Ele chamou os dois enviados e mostrou-lhes a sua
fazenda. Depois mandou chamar Amcukw…i para que morasse com ele. 32. Auk…
o imperador D. Pedro II. (Matta, 1970: 83-85)
Existem vŠrias outras vers•es desse mito. Para os fins desse texto auspicioso a
transcri€‚o de uma narrativa que cont…m algumas informa€•es adicionais no trecho final
do mito. Sendo assim, reporto-me ƒ vers‚o coletada por Harald Schulz (1950) que foi
reduzida a seus aspectos essenciais por Roberto Da Matta e transcrita por Jˆlio Cezar
Melatti (1972), como se v‰ abaixo:
‹Depois de tr‰s dias, a m‚e de Auk… falou para o seu marido: –Vamos na cinza
de nosso filho, para ver se ainda ficou alguma coisa para n†s queimarmos direito•.
Sa•ram para onde estava a cinza do menino, mas, quando estavam pr†ximos do local,
come€aram a ouvir barulho de gado, peru e angolista (galinha d•Angola). Pararam e
ficaram ouvindo. O marido disse: –VŠ ver que ele n‚o morreu. Vamos voltar daqui,
56
porque nosso filho estŠ fazendo barulho•. Chegando ƒ aldeia, os pais de Auk… contaram
a hist†ria para os outros •ndios e finalmente eles foram at… o local e verificaram que a
hist†ria era verdadeira. Voltaram e contaram para todos. O av„
1
resolveu ser o ˆltimo a
ir. Quando chegaram, viram no lugar das cinzas uma casa grande com telha. Auk… viu o
seu av„ e chorou com muita saudade e com pena do povo e da aldeia. Abriu a porta da
casa e deitou na rede chorando. Depois de algum tempo, saiu e chorou de novo. Ele n‚o
podia ver seu av„. Depois mandou todos entrarem dizendo que havia mandado sua
mulher preparar comida para todos. Mas o av„ ficou com medo de entrar na casa. Como
recusasse, Auk… mandou que os •ndio ficassem no terreiro. E foi falar com eles. Disse:
–Olhe, meu av„. Eu vou lhe avisar. Quando n†s formos comer, quando se puser as
coisas fora, arco, arma de fogo, cuit…, prato, voc‰ apanha primeiro as armas de fogo e o
prato, que camarada da espingarda•. Ent‚o, a mulher do Auk… botou a comida, mas os
•ndios recusaram a comer dentro de casa. Tinham medo de entrar na casa e Auk˜ fechar
a porta. Quando os •ndios come€aram a comer do lado de fora, Auk… entrou e chorou
muito.
Quando terminaram, Auk… chamou seu av„ para passar com ele o dia. O av„ ainda
recusou dizendo que n‚o podiam dormir ali, tinham de dormir do lado de fora. Foram
ent‚o embora para a aldeia e Auk… pediu que no dia seguinte viessem trazendo o povo
todo, inclusive seu pai e sua m‚e. Quando os •ndios sa•ram, Auk… ainda chorou com
pena de povo todo.
Depois de tr‰s dias, os •ndios chegaram outra vez ƒ casa de Auk…. Ele falou com
sua m‚e dizendo que n‚o tinha morrido e mandou preparar comida para o povo todo.
Quando a comida estava pronta, Auk… convidou os •ndios para comerem dentro de casa,
mas os pais e o av„ recusaram. Quando acabaram de comer, Auk… foi buscar o arco, o
cuit… e o prato. Colocou a espingarda e o prato bem perto um do outro. E o arco e o
cuit… mais afastados. Chamou todo o povo e disse: –Agora, meu av„, voc‰ apanha estes
dois• e ofereceu a espingarda e o prato. Mas o av„ apanhou o arco e o cuit…, porque
ficou com medo de apanhar a espingarda. O av„ recusou. Auk… insistiu dizendo: –Eu
quero que voc‰ fique com este. Para crist‚o n‚o quero entregar, porque estou com pena
de voc‰s todos. Eu quero que voc‰ fa€a como eu, que ando vestido. Por isso n‚o posso
entregar a arma para os crist‚os. Eu quero que voc‰s foquem crist‚os como eu•.
Mas, mesmo assim, o av„ se recusou a atirar. Auk… ent‚o saiu levando a espingarda
e chorando: –Eu bem que queria que voc‰s ficassem com a espingarda, eu queria que
1
Vale relembrar que entre os Krah„ ao ‹av„Œ pode ser aplicado o mesmo termo parental que ao ‹tio
maternoŒ, qual seja ketiŒ. Nessa altura do texto desnecessŠrio acentuar a import•ncia desse
personagem para o desenrolar das prescri€•es rec•procas entre os Kah„.
57
voc‰ ficassem como eu, n‚o ficassem nus•. E depois, Auk… encostou na parede e
chorou, chorou.
Depois de algum tempo, Auk… saiu de casa com um arco e perguntou: –• este que
voc‰s querem?Œ e os •ndios ficaram alegres, respondendo: –•, n†s ficamos com o arco e
a flecha•. Vendo isso, Auk… chorou outra vez.
Depois de algum tempo, saiu de novo e, chamando um homem negro, falou para
seu av„: –Voc‰ quer ver, ele atira certo•. E, quando entregou a espingarda para o negro,
ele atirou longe e logo disse: –Isto bom. Agora vou ficar com arma de fogo•. Quando
Auk… ouviu isto, chorou de novo. –Oh! Ž disse Ž voc‰s vem podiam ter ficado com a
arrma de fogo, eu tenho pena de voc‰s•.
Depois Auk… saiu e falou para o povo todo: –Pois a• estŠ. A espingarda o negro
atirou. Ele tamb…m vai ficar com o prato; voc‰s que atiraram com o arco e flecha ficam
com o cuit…•. Os •ndios ent‚o pegaram a cuia, sendo o primeiro o pai de Auk…. Em
seguida, Auk… levou os •ndios para a beira do rio dizendo que, quando eles morressem,
iriam afundar como uma pedra. A alma n‚o subiria para o C…u. Depois, jogando uma
coisa embrulhada em folhas e que boiava, disse: –Est‚o vendo, nossa alma, quando
morre, faz assim, sobe para o c…u•.
Fez uma Santa e deu para sua m‚e, remendando que ela n‚o mostrasse para
ningu…m. E mostrou muita coisa para os •ndios. Depois disse para seu av„: –Se voc‰s
tomassem conta de mim, eu virava todas as coisas•. Deu ainda um caldeir‚o para sua
m‚e e presentes para os outros. E, na despedida, abra€ou a todos chorando muito. Disse:
–Eu fico com muita pena de voc‰s, mas voc‰s n‚o querem acompanhar. Agora, eu sou o
pai de voc‰s todos. Voc‰s agora me chamam de pai. Podem me chamar onde quiserem.
E, quando algu…m quiser vir, vem, porque eu dou alguma coisa e n‚o esque€o de voc‰s,
porque voc‰s s‚o filhos de todos n†s•. Os •ndios voltaram para a aldeia.
Se os •ndios n‚o tivessem queimado Auk…, hoje seriam iguais aos crist‚os.Œ
(Melatti, 1972: 121-123)
3.2. O cupen e seu lugar no pensamento Krahô
VŠrios pesquisadores se ocuparam da anŠlise desse mito, nas suas mais variadas
vers•es. Todos, por…m, s‚o un•nimes ao assinalar um aspecto vis•vel de imediato no
58
mito: Auk… desorganiza as institui€•es tribais dos Krah„. Isso se dŠ pela pr†pria
ambival‰ncia do personagem, percept•vel ao longo de toda a narrativa. De uma gravidez
excepcional, na qual o feto comunica-se com m‚e, sai do ventre dela e at… anuncia a
data de seu nascimento, emerge uma crian€a que cresce muito rapidamente e tem o dom
de transformar-se em vŠrios animais. Desse polimorfismo de Auk… surge uma total
impossibilidade de se estabelecer um crit…rio para determinar-lhe uma posi€‚o na
sociedade Timbira
2
. Como procurei mostrar no cap•tulo anterior, a constitui€‚o de uma
posi€‚o dentro do jogo de diferencia€‚o e oposi€•es o crit…rio fundamental para a
realiza€‚o das intera€•es no interior dos grupos Timbira Ž quer se trate dos grupos
parentais (que no mito s‚o os primeiros a se insurgirem contra Auk…, na figura do seu
tio materno, ou seu av„, conforme a vers‚o). Isso traz uma conseq‘‰ncia imediata para
o her†i Auk…, pois com ele n‚o se pode estabelecer uma comunica€‚o satisfat†ria.
Fazendo coro ƒs palavras de Roberto Da Matta, no artigo Mito e antimito entre os
Timbira: ‹Assim, n‚o poss•vel aos •ndios utilizar o potencial do menino em seu
pr†prio benef•cio, o que poderia ocorrer caso houvesse um diŠlogo entre Auk… e sua
sociedadeΠ(Da Matta, 1970: 96).
Cabe ressaltar que em todos os mitos Timbira a desorganiza€‚o dos padr•es de
intera€‚o fundamental para a aquisi€‚o dos bens culturais. Entretanto, Auk… n‚o deixa
espa€o para a defini€‚o de um poss•vel crit…rio para aproveitar seus enigmŠticos
poderes. Disso decorre que Auk… aquele cuja interven€‚o na conduta cotidiana das
pessoas desorganiza as relaۥes Timbira.
Ora, para os Timbira Auk… o primeiro ‹homem brancoŒ, encarnando as
principais caracter•sticas que o cupen traz consigo. Disso decorre que o mito a
tentativa Timbira de incluir esse personagem no seu esquema de pensamento e de
interaۥes. Por conta disso, Da Matta acredita que os Timbira tiveram de criar uma nova
categoria de pensamento para lidar com o ‹homem brancoŒ. Ainda segundo o autor,
essa opera€‚o inverte as prescri€•es m•ticas pr†prias a esses ind•genas, fundando uma
nova modalidade, qual seja a de antimito, conforme suas palavras:
‹Se nossa argumenta€‚o for correta, o mito Timbira deve encerrar somente
oposi€•es entre planos que se complementam, ao passo que o mito de Auk…, ou
antimito, possu• um carŠter mais din•mico, possibilitando a cria€‚o de novas categorias
2
‹Assim, Auk… n‚o pode ser classificado nem como homem, nem como animal, nem como ser vivo, nem
como morto. preciso encontrar uma nova classe para ele, o que finalmente ocorre quando queimado.Œ
59
e permitindo uma passagem para uma ordem mais complexa, aquela da ideologia
pol•tica. Mas, deve-se enfatizar, o antimito ainda n‚o alcan€a o plano da
conscientiza€‚o dos fatores concretos que atrelam a sociedade tribal na ordem nacional.
Isto porque o antimito ele pr†prio contradit†rio como narrativa. Se de um lado ele abre
as possibilidades para a entrada da hist†ria no plano da consci‰ncia tribal, de outro ele
procura tolher a diacronia, colocando os eventos que pretende entender e explicar num
arcabou€o feito segundo um modelo preexistente.Œ (Da Matta, 1970: 104)
Segundo a interpreta€‚o de Da Matta o antimito de Auk… encerra a invers‚o da
narrativa tradicional aos Timbira. Essa considera€‚o estŠ calcada no estabelecimento de
uma r•gida separa€‚o entre os elementos estruturais presentes no mito: de um lado
temos a natureza, de outro a cultura; uma expressa a dDesordem, a outra, a ordem
propriamente humana. Segundo essa l†gica, toda narrativa m•tica Timbira percorreria
um caminho cultura-natureza-cultura•, tendo por resultado um acr…scimo no repert†rio
cultural e um incremento da ordem humana. Por…m, Auk… perfaz outra rota, qual seja:
natureza-cultura-natureza, n‚o havendo nenhum bem cultural agregado em decorr‰ncia
das perip…cias do (anti?)her†i mitol†gico. Ao contrŠrio, ter•amos apenas a instaura€‚o
de uma nova rela€‚o pol•tica frente a sociedade nacional: o estabelecimento de uma
subalternidade, onde os Timbira come€ariam a perceber os fatores hist†rico-pol•ticos
que os conduzem a essa rela€‚o, mas n‚o os remeteria aos verdadeiros fatores que
interv‰m nessa situa€‚o pol•tica, ao explicitar essa condi€‚o sob a uma forma
mitol†gica.
que se fazer algumas ressalvas na abordagem de Da Matta, a come€ar do fato
de se tomar o personagem cupen/Auk… como uma categoria nova no pensamento
Timbira. Gilberto Azanha (1984) chama a aten€‚o para o fato de existirem vŠrios tipos
de cupen no pensamento Timbira, havendo, inclusive alguns com uma designa€‚o
espec•fica
3
. Assim, s† o ‹homem brancoŒ o cupen sem nenhum outro qualificativo.
Isso leva a considerar a categoria cupenŒ como anterior ƒ presen€a do ‹homem
(Dz Matta, 1970: 97)
3
Ampo cupen, vimos, o que se diz de qualquer forma –irreconhec•vel•, –inclassificŠvel• no universo
Timbira. Mas todos os grupos n‚o-Timbira que vivem, ou viviam, nos limites do territ†rio Timbira s‚o
designados por um termo descritivo: os Xerente s‚o os pyxêre (–os que usam fios de urucˆ•); os Guajajara
s‚o os pryj—— (–os fezes de ca€a•) etc”: tais grupos s‚o cupen, mas um cupen –descritivo•. Do mesmo
modo os cupenjatêêre, os cupenkroi, os cupenrop etc” s‚o os –farejadores•, os –carecas• etc” Somente
o –civilizado• o cupen sem mais.Œ Azanha, 1984: 47)
60
brancoŒ, embora n‚o se possa dizer o mesmo do mito de Auk…. Isso parece indicar que
hŠ, na verdade, uma reelabora€‚o dessa categoria atrav…s dessa narrativa m•tica. Uma
constru€‚o que tem, por certo, um objetivo: a tentativa de classifica€‚o de um ser que …,
por sua pr†pria natureza, inclassificŠvel
4
, por nunca situar-se em uma posi€‚o definida,
dado seu poder transformador.
Desta forma, parece ser mais plaus•vel a vers‚o de Claude L…vi-Strauss para
quem o mito de Auk… a ado€‚o de um mito de origem Tupi, coletado por Thevet por
volta de 1550-5 e publicado em 1575 (Sobre o mito Tupi, cf. Strauss, 1993: 49-57).
Ambos os mitos procuram lidar com a origem do ‹homem brancoŒ, embora existam
vŠrias altera€•es entre as duas vers•es. Segundo L…vi-Strauss, a mudan€a no mito se
deve a dois fatores: primeiro ƒ altera€‚o no perfil da sociedade ocidental que contata os
Tupi no s…culo XVI Ž quando ainda tinha de se fazer aceitar pelos ind•genas Ž e a que
perpetra a conquista dos Timbira na passagem entre os s…culos XVIII e XIX Ž a qual
desfrutava de uma ampla ocupa€‚o na costa e de mecanismos mais brutais de press‚o
sobre os ind•genas. Por ˆltimo, segundo compreens‚o de L…vi-Strauss, quando uma
migra€‚o de um mito para al…m de sua fronteira cultural e ling‘•stica original,
sempre uma invers‚o nos termos m•ticos: ‹(”) o fim torna-se o come€o, o come€o vira
fim e o teor da mensagem se inverte.Π(Strauss, 1993: 60).
Assim, L…vi-Strauss procura explicitar como Auk… nada mais do que uma
‹apropria€‚oŒ pelos Timbira de um mito Tupi. Mas o autor vai al…m, assinalando um
poss•vel motivo dessa ocorr‰ncia. Tomando as vŠrias vers•es do mito de Auk…, vemos
que vŠrias delas cont…m o que L…vi-Strauss chama de ‹senten€a fat•dicaŒ pronunciada
no nascimento de Auk…. Trata-se da indaga€‚o de sua m‚e: se for menina eu crio, se
for menino eu matoŒ. Isso viria assinalar, segundo a perspectiva estrutural por ele
criada, a exist‰ncia de vŠrios mitos que versam sobre um mesmo tema, variando
somente a forma de express‚o desse conteˆdo comum. Assim, a compara€‚o do mito de
Auk… com vŠrios outros conduz a uma conclus‚o, qual seja, a de que essa narrativa
mitol†gica seria uma tentativa de classifica€‚o do ‹homem brancoŒ. Nas suas palavras
todos os mitos da mesma natureza de Auk…:
4
‹(”) o mito, n‚o engendra uma nova categoria (cupen) mas utiliza os atributos de uma categoria
definida de antem‚o (cupen) Ž que s‚o (jŠ vimos) de ser –eventual•, –imprevis•vel•, –inclassificŠvel• (que
baralha as classifica€•es), etc” Ž Para justamente –classificar• o personagem, para especificŠ-lo como
cupen(Azanha, 1984: 67)
61
‹(”) Representam a organiza€‚o progressiva do mundo e da sociedade na forma
de uma s…rie de biparti€•es, mas sem que entre as partes resultantes em cada etapa surja
jamais uma verdadeira igualdade. De algum modo, uma sempre superior ƒ outra.
Desse desequil•brio din•mico depende o bom funcionamento do sistema, que, sem isso,
estaria constantemente amea€ado de cair num estado de in…rcia. O que tais mitos
proclamam implicitamente que os p†los entre os quais se organizam os fen„menos
naturais e a vida em sociedade Ž c…u e terra, fogo e Šgua, alto e baixo, perto e longe,
•ndios e n‚o-•ndios, conterr•neos e estrangeiros etc. Ž nunca poder‚o ser g‰meos. O
esp•rito se empenha em juntŠ-los em pares, sem conseguir estabelecer uma paridade
entre eles. Pois s‚o essas dist•ncias diferenciais em s…rie, tais como concebidas pelo
pensamento m•tico, que colocam em movimento a mŠquina do universo.
(”) Ora, nenhum desequil•brio podia parecer mais profundo aos •ndios do que
aquele entre eles e os brancos. Mas eles dispunham de um modelo dicot„mico que
permitia transpor em bloco essa oposi€‚o e suas seq‘elas para um sistema de
pensamento no qual seu lugar estava, de certo modo, reservado. De modo que, assim
que era introduzida, a oposi€‚o se punha a funcionar.Œ (Strauss, 1993: 65-6)
Aprofundando a anŠlise de L…vi-Strauss, poss•vel compreender melhor outra
faceta presente no mito de Auk…. explicitei que nas narrativas m•ticas dos Timbira
uma esp…cie de equil•brio entre natureza e cultura, manifesto pela reciprocidade nas
condutas dos animais para com os membros da sociedade Timbira e redundando sempre
em um acr…scimo cultural. No mito de Auk…, ao contrŠrio, haveria um novo arranjo de
for€as, onde o menino se mostra avesso a qualquer disposi€‚o em uma posi€‚o
espec•fica nas ordena€•es tradicionais, fazendo-as inverterem-se. Nas palavras de Da
Matta: ‹(”) quando a sociedade decide pela elimina€‚o de Auk…, a divis‚o deixa de ser
de metades para ser de todos contra um, ou para usarmos uma linguagem do pr†prio
mito, da ordem para a desordem.Œ (Da Matta, 1970: 103). Ora, L…vi-Strauss assinala que
a tentativa de classificar Auk… levada a cabo considerando o desequil•brio constante
nas rela€•es entre Auk… e a sociedade Timbira. Deste modo, como em todo mito
Timbira, as rela€•es complementares se baseiam em um princ•pio de desequil•brio entre
os termos envolvidos, como pode ser visto na pr†pria narrativa dos irm‚o P‘t e Pudler….
A novidade aqui reside na dimens‚o assumida por essa desigualdade, que reivindica a
a€‚o de todos contra um! Em suma, ao inv…s de considerar o mito de Auk… como uma
invers‚o da forma de codifica€‚o do pensamento m•tico dos Timbira, seria mais
62
adequado tomar-lhe tal como ele se apresenta: uma readequa€‚o da categoria cupen, a
partir de uma apropria€‚o de uma narrativa Tupi, tentando operar uma classifica€‚o das
pessoas oriunda do exterior, no caso a sociedade invasora, de onde provem o ‹homem
brancoŒ.
Esse fato, por…m, n‚o invalida o carŠter in…dito assumido pela dimens‚o desse
jogo de oposi€•es (o todos contra um, ao inv…s de metades). Segundo Azanha, essa
invers‚o formal expressa uma dupla impossibilidade advinda do contato hist†rico com a
sociedade nacional: primeiro, n‚o se pode conviver com o cupen, pois ele a pr†pria
quebra dos princ•pios evocados pelas intera€•es Timbira; de outro lado, n‚o se
consegue expulsŠ-lo Ž note-se que o mito faz refer‰ncia ao retorno sempre mais forte do
cupen ap†s as investidas Timbira contra Auk…, coincidindo com sua experi‰ncia
hist†rica a esse respeito. Disso decorre uma necessidade, ainda que ‹intelectualŒ
5
(Cf
Azanha, 1984: 71), em controlar os fatos advindos do contato efetivo com o cupen,
mediante a opera€‚o classificat†ria assinalada por L…vi-Strauss. Assim, Azanha
complementa o significado dessa invers‚o formal presente na narrativa de Auk…, pois
mais do que classificar um personagem avesso ƒs categorias Timbira, haveria a
express‚o e a orienta€‚o do contato com esse personagem controverso, como se v‰
abaixo:
‹Por isso, talvez, o mito de Auk… faz o movimento inverso da maioria dos outros
mitos her†icos Timbira (onde os personagens saem da aldeia e voltam a ela trazendo um
novo item): como o cupen, Auk… estŠ ali, na fronteira imediata, mais separado pela
inacessibilidade dos seus –bens•: Auké n‚o causa a dispers‚o (como seria de se esperar
sendo cupen), ent‚o a sociedade n‚o precisa ser –refeita• (como ocorre nos mitos
her†icos com a introdu€‚o do –novo• item cultural que regenera a Forma –Timbira•). Ao
compreender e definir o carŠter da rela€‚o com este cupen –sem mais•, os timbira
acabam por dominŠ-lo (e ainda que este dom•nio seja –ideol†gico•, como quer Roberto
da Matta, nem por isso deixa de ter a sua eficácia).Œ (Azanha, 1984: 70-1)
interessante relacionar essa interpreta€‚o com um fato marcante na vers‚o do
mito de Auk… coletada por Schultz. Uma constata€‚o expressa poucos anos ap†s o
5
‹Portanto (”), o mito de Auk… apareceria como a tentativa (intelectual) feita pelos Timbira de justificar
uma conviv‰ncia concebida como imposs•vel. N‚o seria, neste sentido, um mito p†s-contato: o mito
que, do ponto de vista Timbira, funda o contato, que estabelece as normas de conviv‰ncia com o cupen
63
massacre e a demarca€‚o do atual territ†rio para os Krah„, quando Auk… despede-se dos
Timbira, asseverando:
‹Eu fico com muita pena de voc‰s, mas voc‰s n‚o querem acompanhar. Agora, eu
sou o pai de voc‰s todos. Voc‰s agora me chamam de pai. Podem me chamar onde
quiserem. E, quando algu…m quiser vir, vem, porque eu dou alguma coisa e n‚o esque€o
de voc‰s, porque voc‰s s‚o filhos de todos n†sŒ (Melatti, 1972: 123)
Neste trecho do mito uma reiterada refer‰ncia ƒ pena de Auk… ao ‹povo todoŒ
dos Krah„. Schutz esteve com eles em 1947, portanto sete anos ap†s sofrerem o
massacre que veio a originar a delimita€‚o de seu atual territ†rio. bom lembrar que os
Krah„ mant…m rela€•es com o cupen desde o in•cio do s…culo XIX, estabelecidas de
forma amb•gua, como assinalei no cap•tulo anterior: eram necessŠrios, para servir de
tropa de choque frente aos demais ind•genas, ao mesmo tempo em que eram indesejados
pelos seus ‹aliadosŒ, pois estavam alojados nas terras que os mesmos cobi€avam para a
expans‚o. Ap†s a expuls‚o das outras popula€•es ind•genas no in•cio do s…culo XX,
esse sentimento aflora com todo o vigor no massacre de 1940. Assim, eles t‰m a exata
medida do †dio que despertavam em seus vizinhos.
Ap†s esse acontecimento, por…m, conhecem uma forma de generosidade advinda
do cupen habitante de cidades distantes Ž tais como Goi•nia, Rio de Janeiro e S‚o Paulo
Ž responsŠvel direta pela delimita€‚o de sua reserva e o in•cio de sua ‹prote€‚oŒ pelo
Estado nacional brasileiro (Cf Melatti, 1972: 31). Tal generosidade, e os projetos postos
em prŠtica pelo SPI, s‚o assinaladas na vers‚o do mito coletada por Schultz, sob a
roupagem de uma extrema compaix‚o de Auk… para com os Krah„.
Assim, vemos que os Krah„ consideram que uma generosidade do cupen
dirigida aos Krah„. A decorr‰ncia direta dessa postura seria a aceita€‚o das dŠdivas
oriundas do cupen. Esse fato estŠ expresso na postura presente entre os Krah„ mediante
o estabelecimento de uma alian€a com os †rg‚os de prote€‚o da sociedade nacional.
Entretanto, Azanha demonstra
6
como cada grupo classificat†rio mant…m uma postura
diferente no que tange a aceita€‚o dessa tutela.
dentro de um novo quadro: ele estŠ agora ali; dele n‚o podemos mais fugir e imposs•vel tentar expulsŠ-
lo (e n‚o se deve provocŠ-lo, pois ele sempre volta mais poderoso.Œ (Azanha, 1984: 71-2)
6
O no ˆltimo cap•tulo de sua disserta€‚o de mestrado (Opus, cit).
64
Nos diz o autor que os Mãkraré teriam sidos os primeiros a serem contatados
por Francisco de Magalh‚es para se firmar uma alian€a, vindo depois o grupo
Pãrencamecrá/Kempocatêyê. Disso decorre uma postura diferente frente o contato, pois
os primeiros manteriam rela€•es amb•guas para com os agentes da sociedade brasileira
com os quais mantinham esta alian€a Ž caracterizada pela disponibilidade em tomar
parte das expedi€•es contra os grupos ind•genas beligerantes em rela€‚o ƒ popula€‚o
brasileira, mas sempre se valendo de sua situa€‚o para efetuar pequenos furtos de gado
e imputŠ-los aos grupos rivais (Cf Azanha, 1984: 77). os
Pãrencamecrá/Kempocatêyê, seriam sempre tidos como ‹•ndios d†ceisŒ ap†s a violenta
expedi€‚o de conquista implementada contra os mesmos em 1815 (Cf Azanha, 1984:
78).
Da• decorre que Pãrencamecrá/Kempocatêyê procuraram manter uma grande
dist•ncia do cupen. Mas essa estrat…gia se mostrou invŠlida, pela derrota militar que
vieram a sofrer, e ent‚o passaram a ter rela€•es cordiais para com o cupen, se valendo
da tutela oferecida para reproduzir a forma Timbira. os Mãkraré sempre mantiveram
uma rela€‚o amb•gua para com o cupen: firmaram uma alian€a, mas subterraneamente a
quebraram, procurando manter uma maior dist•ncia de qualquer mecanismo tutelar.
Dessa atitude distinta dos grupos classificat†rios decorre uma apropria€‚o
peculiar da forma Timbira. Pois vejamos, todos os observadores que estiveram entre os
Krah„, desde Curt Nimuendajˆ na d…cada de 1930, at… atualmente, presenciaram uma
maior dificuldade dos Mãkraré em reproduzir a forma Timbira, enquanto os
Pãrencamecrá/Kempocatêyê mant…m o firme prop†sito de reproduzir a viv‰ncia
tradicional dos Timbira. at… mesmo a acusa€‚o por parte dos
Pãrencamecrá/Kempocatêyê de que os Mãkraré n‚o seriam mais •ndios. Em termos
vis•veis essa asser€‚o tem apoio na exist‰ncia da aldeia do Morro do Boi, que formada
a partir da miscigena€‚o entre pessoas com ascend‰ncia Mãkraré e ‹civilizadaŒ. No
c•rculo que comp•e essa aldeia n‚o uma vida ritual a caracterizar a din•mica de
apropria€‚o da forma Timbira. S‚o, no dizer dos Krah„: ‹–cupenhàcre•: s‚o falsos
cupen, nem mehì
7
e nem cupen (Azanha, 1984: 92). A despeito de todo esse jogo
acusat†rio, os Mãnkraré sempre encontraram mecanismos para reproduzir a forma
Timbira e sabem como a experi‰ncia concreta de tentar converter-se em cupen n‚o irŠ
7
Podemos traduzir esse termo como ‹•ndioŒ.
65
solucionar seus problemas, como o pr†prio exemplo do Morro do Boi atesta (Azanha,
1984: 89).
Por seu lado, o lugar da tradi€‚o sempre esteve entre os
Pãrencamecrá/Kempocatêyê; a aldeia mais tradicionalista entre os Krah„ a de
Cachoeira que pertence a esse grupo. Al…m disso, todas os trabalhos de campo
realizados (inclusive o meu) t‰m passagem obrigat†ria nas aldeias desse grupo: Pedra
Branca, Pedra Furada, a pr†pria Cachoeira, etc. Mas um outro aspecto hist†rico a ser
assinalado, pois sempre a tutela, estatal ou n‚o, penetrou entre os Krah„ por interm…dio
desse grupo.
Existe uma pol•tica implementada por parte dos Pãrencamecrá/Kempocatêyê
calcada na necessidade de conviver com o cupen. As negocia€•es para a constitui€‚o da
reserva ind•gena foram feitas por pessoas desse grupo e ainda hoje a principal queixa de
Pedro Pe™o Ž um dos mais velhos anci‚os e uma das principais lideran€as pol•ticas de
todo o territ†rio Krah„ Ž em todas as vezes que estive em campo refere-se ao fato de
que sua aldeia encontra-se sem a devida assist‰ncia por parte dos †rg‚os
governamentais do Estado brasileiro. Por conta disso, exige a instala€‚o de um Posto
Ind•gena por parte da FUNAI na sua aldeia (Pedra Branca) e queixa-se de que a
FUNASA n‚o conta de todos os problemas por eles enfrentados, lidando
exclusivamente com os doentes. Essa postura t‚o arraigada entre as pessoas desse
grupo que a simples instala€‚o de uma roda d•Šgua na aldeia de Pedra Branca n‚o se faz
sem a presen€a de cupen a acompanhar o servi€o, mesmo com todas as pe€as ƒ sua
disposi€‚o e com alguns indiv•duos daquela aldeia tendo as habilidades necessŠrias para
instalar esse mecanismo. Assim, compreende-se que para eles essa atividade precisa ser
orientada por um cupen, o qual deveria ser o encarregado de levar o assunto ao e
fazer o acompanhamento desse trabalho.
Quanto ao modo como essa distin€‚o pol•tica manifesta por parte dos
Mãnkraré, posso tomar um exemplo de meu pr†prio trabalho de campo. Isto fica mais
claro pelas palavras de um pahi-ti Krah„, chamado Tadeu nascido na aldeia Galheiro
(dos Mãkraré) e atualmente residindo na aldeia de Pedra Furada. Antes de diz‰-las,
por…m, necessŠrio explicar o contexto no qual elas foram proferidas. Conheci-o na
minha viagem de 1996 e tive a oportunidade de encontrŠ-lo algumas vezes em Mar•lia,
no estado de S‚o Paulo. Desde minha chegada ƒ ItacajŠ em 1999 e nas conversas
subseq‘entes com os Krah„ no interior de seu territ†rio, eu manifestei meu interesses de
estar com ele e outros parentes seus. Acontece que irrompeu um problema pol•tico com
66
a administra€‚o regional da FUNAI em Aragua•na
8
, e ele, na companhia de outras
lideran€as ind•genas foram at… Bras•lia justamente nos dias em que me dirigia at… o
territ†rio Krah„ e o complicador estŠ no fato de que meus contatos para adentrar na Šrea
foram realizados com ele e seu irm‚o Ant•nio Jo‚o Conc.
Ora, na minha chegada tive de ir para a aldeia Pedra Branca e intentava aguardar
a chegada do grupo que fora at… Bras•lia, para ir estar junto com Tadeu e Ant„nio Jo‚o
Conc. Em uma de minhas visitas at… ItacajŠ, fiquei sabendo da chegada do grupo e
consegui ir at… o encontro deles. Como n‚o havia nenhum ve•culo se dirigindo para sua
aldeia, tive de ir a p…, guiado pelo meu nominador e queria retornar no mesmo dia, ou
no mŠximo pernoitar na aldeia e retornar no outro dia de manh‚. Minha preocupa€‚o
tinha seus motivos: n‚o havia feito os preparativos necessŠrios para ir a duas aldeias e
n‚o tinha nem sequer como realizar ou mesmo transportar uma compra de mantimentos
para minha chegada. Ora, t‚o logo eu cheguei na aldeia de Pedra Furada, onde ele
reside, e explicitei meu intento de retornar, sem expor a raz‚o econ„mica que estava por
detrŠs disso. Ele, por…m, assegurou-me que eu n‚o retornaria naquele dia. Ap†s minha
insist‰ncia ele buscou me tranq‘ilizar dizendo: ‹Voc‰ n‚o vai n‚o, pode ficar tranq‘ilo
aqui n‚o a Pedra Branca, aqui a Pedra Furada. Voc‰ passou uma fronteira, aqui
outro territ†rio. Aqui diferente!Œ.
Estava claro para n†s dois que ele se referia ao modo sui generis que os
visitantes brancos s‚o tratados na Pedra Branca, a aldeia na qual fui batizado e havia
aportado. as discuss•es pol•ticas com os aliados brancos, referentes aos rumos
futuros dos Krah„ enquanto sociedade, n‚o est‚o ausentes, mas n‚o ganham a mesma
import•ncia que entre os Mancraré. Na Pedra Branca uma enorme puls‚o pelo
dinheiro, bem como pelos bens oriundos dos cupen, em especial os cortes de pano,
mi€angas e a cacha€a. Continuamente o visitante serŠ indagado sobre suas disposi€•es
materiais e serŠ continuamente induzido, pelos mais variados argumentos, para comprar
algum bem para seu interlocutor. Um verdadeiro teste para sua disposi€‚o em dizer n‚o,
a menos que a pessoa disponha de uma grande soma de dinheiro (que serŠ prontamente
gasto pelos krah„).
8
No in•cio de janeiro de 1999, a administradora regional da FUNAI demitiu alguns funcionŠrios e
juntamente com eles estavam inclusos dois chefes de posto ind•genas. Como forma de protesto, vŠrios
ind•genas ocuparam a sede da administra€‚o regional por dez dias reivindicando o afastamento da
administradora regional. Foi aberta uma sindic•ncia, a qual n‚o ia de encontro com o ponto de vista de
um grupo pol•tico dos krah„, que foi a Bras•lia tentar dialogar sobre esse assunto junto ao presidente da
FUNAI, Carlos Mar…s, justamente na ocasi‚o na qual n†s •amos nos dirigindo para a Šrea ind•gena.
67
Para sintetizar essa distin€‚o, podemos nos fiar nas palavras de Azanha a esse
respeito, na sua longa cita€‚o abaixo:
‹Os –pac•ficos• Pãrecamekrá que n‚o enfrentaram o cupen, apenas procuraram
mant‰-lo ƒ dist•ncia, como podemos concluir dos relatos de Nimuendajˆ e Ribeiro Ž
parece que prosseguiram procurando a prote€‚o, assegurada por Auk…, do cupen –rico•
ou de –longe• (o Frei Rafael, os batistas, os SPI, a FUNAI), porque esta prote€‚o que
lhes a garantia de continuidade de sua ordem social sobre as amea€as que pairam
sobre elas. Seria portanto no jogo possibilitado pela distin€‚o, fundada no mito de Auk…
Ž entre o cupen de perto• (que amea€a) e o cupen de longe• (que protege) Ž Cf.
Melatti, 1967 Ž que os Kênpocatêyê puderam continuar mantendo a identidade da forma
–Timbira•, mesmo sabendo Ž como parecem saber Ž que esta prote€‚o sempre acarreta a
depend‰ncia e que tem um pre€o: a transforma€‚o da Forma –Timbira• e da sua
identidade (o frei lhes pedia para modificar o funeral; os batistas seus rituais; o SPI que
vivessem como camponeses, etc”).
(”) Do outro lado, os Mãkraré Ž que n‚o procuraram com Magalh‚es
aparentemente nenhuma prote€‚o, mas fizeram com ele uma alian€a sob a capa da qual,
como diz Ribeiro, continuaram atacando os fazendeiros do leste Ž sempre viveram ƒ
margem da prote€‚o procurada pelos Kenpocatêyê, s† se beneficiando indiretamente:
n‚o tiveram os batistas, o posto do SPI e da FUNAI e mesmo, segundo o velho
Ambrosinho, o –padre• (frei Rafael). Talvez porque n‚o estivessem dispostos a aceitar a
contrapartida desta prote€‚o, a depend‰ncia. Se este f„r realmente o caso, a• ent‚o o
pre€o da soberania se revelaria o inverso da prote€‚o: pois se a prote€‚o o que garante
a preserva€‚o da identidade, ent‚o sem ela esta identidade pode ser contestada. Assim
fazendo, os Mãkraré deixaram o campo aberto para que o –rumo do cupenemergisse
como alternativaΠ(Azanha, 1984: 93, 94-5)
Por conseguinte, podemos pensar que o mito de Auk… n‚o fica a meio termo de
uma ideologia pol•tica: ele funda uma filosofia pol•tica que orienta o contato dos
Pãrencamecrá/Kempocatêyê frente ao cupen. O resultado direto dessa postura o
estabelecimento da tutela, estatal ou n‚o. Quanto aos Mãkraré, estes procuraram uma
via alternativa, tanto ƒ replica€‚o pura e simples da ‹tradi€‚oŒ, como a tentativa de
adotar o caminho proposto pelo cupen Ž o Morro do Boi lhes demonstra que a
convers‚o ao ser-cupen n‚o poss•vel, mas t‚o somente a implanta€‚o de um caminho
intermediŠrio altamente improdutivo.
68
3.3. A tutela
A despeito das diferen€as de postura pol•tica, a subalternidade frente a sociedade
nacional imp•e algumas condi€•es comuns a todos habitantes do territ†rio Krah„. me
reportei aos efeitos do confinamento a um territ†rio rigidamente delimitado para o
mecanismo de expans‚o dos Timbira. Al…m dessa conseq‘‰ncia, o estabelecimento de
rela€•es com a sociedade brasileira traz para o pensamento Krah„ a figura do cupen,
sintetizado no mito de Auk…. Mas n‚o posso me restringir a isso, pois existe outro
aspecto do problema, manifesto inclusive na narrativa mitol†gica acima analisada, qual
seja a desarticula€‚o da viv‰ncia Timbira, posta em marcha pelo cupen. A desordem
implica num desarranjo dos mecanismos tradicionais de subsist‰ncia dos Krah„ desde o
momento no qual eles contraem a rela€‚o de subalternidade frente a sociedade
capitalista. Passemos a esse ponto.
Entre os Krah„ todas t‰m acesso aos mesmos meios de produ€‚o, operando
apenas a divis‚o do trabalho entre os sexos, isto …, os homens se encarregam do
provimento de ca€a e as mulheres do cultivo da ro€a, de propriedade da fam•lia nuclear.
Mas ambas s‚o atividades complementares e concorrem para o abastecimento da
unidade bŠsica de produ€‚o e consumo, que a pr†pria fam•lia elementar, embora
quando as refei€•es s‚o servidas todos os presentes podem tomar parte na refei€‚o
livremente. Por…m, uma predile€‚o pelo consumo no seio de sua pr†pria fam•lia
elementar, cuja alimenta€‚o feita em conjunto, em um canto em separado da casa.
Deste modo, a atividade agr•cola tomada como atividade feminina, ao passo que a
ca€a tida como masculina. Isso n‚o significa que n‚o haja interven€‚o do homem nas
tarefas agr•colas, mas sim que a mulher sempre associada ƒ fertilidade, e n‚o nada
que apare€a como mais ligado a isso do que a terra.
A ro€as Krah„ s‚o instaladas em pequenas Šreas, nas vŠrzeas dos riachos que
cortam seu territ†rio. Isso se deve ao fato de que s‚o somente essas regi•es que disp•em
de um solo mais f…rtil. Embora tenha passado muito tempo desde a realiza€‚o do
trabalho de Melatti, n‚o uma altera€‚o significativa no desenvolvimento das tarefas
agr•colas, como se v‰ abaixo:
‹Quanto ƒ divis‚o do trabalho nas lides agr•colas, deve-se dizer que a derrubada
tarefa masculina; parece que a mulher tamb…m participa da etapa anterior, a da broca.
69
Da coivara as mulheres tamb…m participam, juntamente com os homens. Quanto ao
plantio, a mulher participa ativamente desta fase, mas dif•cil dizer que esp…cies
vegetais devem ser plantadas exclusivamente pelos indiv•duos de cada sexo. Na
colheita, tamb…m a distin€‚o de sexos n‚o acentuada. Como a ro€a depois de plantada
fica aos cuidados da mulher, aqueles vegetais que podem ficar guardados no ch‚o, sem
uma data de colheita rigorosamente fixada, como a mandioca, s‚o geralmente colhidos
por ela. Na ro€a geralmente se constr†i um pequeno abrigo onde se guarda a colheita de
cereais, como o arroz, o andu. O arroz pode ser guardado em paneiros. A fava, em
caba€as.
Os Krah† costumam utilizar o trabalho coletivo nas diversas fases das tarefas
agr•colas: tanto na derrubada, como no plantio e na colheita. (”) Nessas ocasi•es, a
fam•lia elementar proprietŠria da ro€a oferece uma refei€‚o, na pr†pria ro€a, aos
trabalhadores, na qual a carne deve sempre estar presente.Π(Melatt, 1978: 51-52)
Como a ca€a cada vez mais rara, devido ƒ concorr‰ncia com os sertanejos
pobres da regi‚o, vemos um quadro bastante grave. Schultz, na d…cada de 40,
identificou o resultado do processo de confinamento a um territ†rio e da parcializa€‚o
da produ€‚o:
‹Havia, antigamente, grande abund•ncia de ca€a. Com a invas‚o dos neo-
brasileiros esta tem diminu•do consideravelmente, tendendo a desaparecer
completamente. O exterm•nio da ca€a ligado ƒ restri€‚o do territ†rio que os •ndios
possuem, os tem induzido a aumentar suas lavouras, impossibilitando todavia a
mudan€a das aldeias, como outrora se fazia. Os •ndios Krah„ passam fome.Œ (Schultz,
1950: 50)
Devo acrescentar que o confinamento ao territ†rio e a concorr‰ncia com os
habitantes das cercanias n‚o o ˆnico fator de desarticula€‚o da economia Krah„. A
pr†pria interven€‚o protecionista tem sua parcela de responsabilidade pela atual
situa€‚o. Pois o SPI, e atualmente a FUNAI, sempre procurou transformar as
popula€•es aut†ctones em agricultoras. Para tanto, substituiu esp…cies nativas por
outras, procurando fazer grandes lavouras, movidas a t…cnicas mais ‹modernasŒ de
produ€‚o. Como exemplo disso podemos citar o caso do milho tradicional dos Krah„,
de menor produtividade, por…m mais resistente ƒs condi€•es climŠticas da regi‚o. Ele
70
foi substitu•do por esp…cies h•bridas, geneticamente modificadas, cuja produtividade
maior, mas com perda da qualidade de produ€‚o dos gr‚os guardados como sementes.
Como as sementes precisam ser repostas de tempos em tempos, a produtividade
alcan€ada em m…dio prazo nunca foi a esperada e a depend‰ncia para com os †rg‚os de
prote€‚o s† aumentou, pois s† por seu interm…dio os Krah„ podem adquirir mais
sementes e reiniciar o ciclo de cultivo dessa esp…cie. Al…m disso, outras culturas foram
introduzidas em larga escala, como o caso do arroz, diminuindo as Šreas destinadas a
outras esp…cies tradicionais. O resultado desse processo a amea€a perene de fome
pairando sobre os Krah„.
Disso decorre que a transforma€‚o dos Krah„ em agricultores malogrou, pois a
produtividade esperada nunca foi alcan€ada. Al…m disso, a ca€a como fonte de
provimento de carne sempre foi a grande atividade desses Timbira, e essa tentativa de
alterar seu sistema de subsist‰ncia n‚o fez decair a import•ncia dessa atividade. Na
verdade, sempre se tentou substitu•-la pela cria€‚o de gado, sem o sucesso esperado. O
rebanho doado sempre fica sob a guarda de algum ind•gena, que o deixa pastar
livremente nos arredores de suas aldeias, sendo que em ocasi•es festivas o rebanho
tende a ficar menor, quando conseguem convencer o dono do gado a abater ao menos
uma r…s, utilizando-se, para tanto de todos os recurso que t‰m ƒ m‚o (rela€•es parentais,
proposta de dŠdivas, enfim, muita negocia€‚o).
Desde 1968 este quadro vem sofrendo algumas alteraۥes. Cito esta data, pois
foi neste momento que alguns homens come€aram a tomar parte da Guarda Rural
Ind•gena. Foram recrutados 28 homens que recebiam um salŠrio m•nimo pelo seu
servi€o. Como n‚o dispunham de tempo livre para cuidar de sua subsist‰ncia, a FUNAI
teve de criar uma cantina para suprir suas necessidades. A conseq‘‰ncia foi um aumento
do uso de g‰neros industrializados por parte dos Krah„, como nos mostra Melatti: ‹A
presen€a de dinheiro e da cantina levou ao uso do sab‚o para lavar roupas, ao uso de
f†sforos e de cal€•es. Come€aram a ser mais utilizadas espingardas de bala calibre 22,
ao inv…s das espingardas pica-pau. Os Krah† se tornaram mais dependentes do Posto.Œ
(Melatti, 1978: 27). Muitas pessoas recorreriam ƒ cantina, retirando v•veres diversos por
conta de possu•rem algum parentesco com os guardas e vŠrias mercadorias (sal, a€ucar,
caf…, etc.) foram introduzidas no cotidiano ind•gena.
Atualmente esse processo prossegue seu curso, pois vŠrias pessoas recebem
salŠrio de †rg‚os, estatais ou n‚o, que atuam no interior da reserva. Por conta da
situa€‚o econ„mica precŠria da maioria da popula€‚o, em especial das aldeias mais
7
1
antigas, as casas que disp•em de alguma pessoa com fonte estŠvel de pagamento s‚o
tidas como ‹ricasŒ, por poderem recorrer continuamente ao apoio do com…rcio com o
cupen.
Passemos ao assalariamento nos dias atuais. um primeiro caso que merece
nota, por se tratar de pequenos trabalhos assalariados para os cupen da regi‚o (hŠ
mesmo um comerciante e fazendeiro que contrata esporadicamente alguns homens que
se interessam por cuidar de seu gado, pagando R$ 10,00 por dia de trabalho). Vale
destacar que esses trabalho s‚o esporŠdicos e n‚o possuem uma ades‚o significativa por
parte dos Krah„.
Pelos dados que pude colar, existem 21 monitores ind•genas de saˆde,
distribu•dos entre 8 aldeias. Eles recebem um salŠrio m•nimo da FUNASA (Funda€‚o
Nacional da Saˆde) para monitorar e acompanhar a ocorr‰ncia doen€as no interior da
aldeia na qual residem e mesmo alguma que esteja nos arredores. Por conta dessa
atividade, n‚o disp•em de tempo integral para cuidar de suas atividades de subsist‰ncia,
resultando na contrata€‚o de trabalhadores de uma cidade vizinha para fazer a derrubada
e o plantio de suas ro€as, utilizando recursos modernos (como a moto-serra, por
exemplo), ou mesmo simplesmente adquirindo todos os v•veres dos quais precisa no
com…rcio da cidade vizinha ItacajŠ.
Outros trabalham para a FUNAI, como o chefe do Posto Administrativo sediado
na cidade de ItacajŠ, cujo nome Pedrinho. Ele recebe um salŠrio para administrar os
assuntos de interesse desse †rg‚o estatal, tendo de dedicar praticamente a totalidade do
seu tempo a essa atividade e incorrendo na mesma situa€‚o que os monitores de saˆde.
ainda vŠrias pessoas que recebem pens‚o do INSS (Instituto Nacional de
Seguridade Social) como aposentados rurais, recebendo por isso um salŠrio m•nimo.
Embora possam ficar a maior parte do tempo nas suas respectivas aldeias, n‚o
conseguem realizar plenamente as atividades de ca€a e de plantio, por serem idosos.
Todos os assalariados Krah„ costumam possuir contas em estabelecimentos
comerciais em ItacajŠ e v‚o comprando livremente tudo que necessitam ao longo do
m‰s. No dia do pagamento costumam deixar todo o seu salŠrio de posse dos
comerciantes Ž alguns deixam at… seus cart•es do banco, para que os comerciantes
providenciem o saque do dinheiro na cidade de Colina, a ˆnica a possuir uma ag‰ncia
bancŠria na regi‚o Ž, n‚o sem lan€ar um s…rie de acusa€•es veladas contra seus algozes:
como a maioria dos Krah„ n‚o domina muito bem a nossa matemŠtica, s‚o incapazes de
conferir o valor atribu•do ƒ sua conta.
72
Cumpre assinalar um outro aspecto desse fen„meno, pois ao menos uma vez por
m‰s uma ‹excurs‚oŒ dos Krah„ ƒ cidade. Normalmente tanto os aposentados, como
os assalariados t‰m lugar certo nessa viagem, quase sempre uma apertada carona nos
ve•culos destinados ao transporte de enfermos em tratamento na cidade. Esse comboio
n‚o composto exclusivamente de adoentados e pessoas indo receber os salŠrios, mas
tamb…m de acompanhantes dessas pessoas e mesmo de indiv•duos que tenham algum
assunto para resolver na cidade, ou mesmo de simples ‹curiososŒ. Seria muito
interessante poder transmitir ao leitor o aspecto desse transporte: quase sempre uma
superlota€‚o nas camionetes que fazem o trajeto pelas acidentadas estradas responsŠveis
pela liga€‚o das aldeias ƒ cidade de ItacajŠ, de tal modo que sempre se tem a impress‚o
que o ve•culo irŠ transbordar de gente, ou mesmo deixar algum passageiro pelo
caminho, impelido pelos vŠrios solavancos provocados pelos inˆmeros buracos e
desn•veis das estradas que cortam a regi‚o. Entretanto, como que se fosse uma opera€‚o
mŠgica Ž e n‚o exagero em minhas palavras, pois em minha ˆltima estadia, tive a
oportunidade de dividir a carroceria de um trator com mais de vinte pessoas! Ž, todos
conseguem atingir o objetivo que chegar ƒ cidade.
Temos, pois, de assinalar o significado dessas excurs•es ƒ terra do cupen:
sempre se trata de uma ocasi‚o para se adquirir alimento, e/ou outros bens
industrializados, visando p„r em marcha um complexo jogo de trocas na aldeia Krah„.
Nessas ocasi•es comum ver a cidade repleta de Krah„, em quase todos os
estabelecimentos comercias, nas ruas e pra€as. Procura-se de tudo um pouco: desde os
alimentos cada vez mais escassos nas atividades de subsist‰ncia (carne de gado ou de
porco, peixe, arroz, feij‚o, fava, etc.), e outros g‰neros que atualmente s‚o corriqueiros
no dia-a-dia Krah„ (como querosene, panelas, sal, a€ˆcar, farinha de mandioca, †leo de
soja, muni€‚o para as espingardas, anzol Ž o fio utilizado por alguns para a confec€‚o
de artesanato Ž cortes de pano, cal€•es, fac‚o, cacha€a, etc.). Tendo por principal
objetivo suprir o quanto for poss•vel das defici‰ncias no atual sistema de subsist‰ncia,
promovendo n‚o s† a substitui€‚o de g‰neros escassos, mas criando constantemente
novas necessidades.
A decorr‰ncia desse processo a introdu€‚o de diversas mercadorias no dia-a-
dia dos Krah„, como por exemplo, uma s…rie de objetos de uso dom…stico. Em minha
primeira visita todos os potes para a Šgua eram confeccionados de barro, sendo,
posteriormente substitu•dos por baldes e recipientes plŠsticos, adquiridos a pre€os
73
modestos no com…rcio de ItacajŠ (lembremos que no pa•s todo houve uma ‹febreŒ
desses artigos, nas lojas de pre€o ˆnico e acess•vel a todos).
Quando a pessoa assalariada, tem mais facilidade para adquirir os bens que
procura na cidade, pois pode pagŠ-lo ƒ vista, em especial nos dias em que recebe seu
provento mensal, ou marcar em alguma conta em seu nome no com…rcio local. Caso n‚o
tenha uma fonte permanente de poré (dinheiro), ainda assim existem estratagemas que
permitem a compra: pode tentar abrir uma conta e utilizar-se das relaۥes de troca no
interior da aldeia para conseguir o dinheiro de algum assalariado, ou mesmo solicitar a
algum cupen de longe que envie o dinheiro (como vimos acima, esse tipo de cupen
conhecido pela sua generosidade, bem como pela grande capacidade de ofertar bens), ou
ainda, caso saiba de algum parente que disponha de alguma conta, tenta pegar algo em
seu nome Ž embora haja caso nos quais a pessoa realmente estŠ incumbida pelo parente;
nesses casos comum que o portador traga consigo algum bilhete explicitando quais os
g‰neros devem ser entregues.
Al…m disso, as idas ƒ cidade s‚o as ocasi•es privilegiadas para se utilizar as
bebidas alco†licas, normalmente a cacha€a. Neste cap•tulo irei me ater ƒ como os Krah„
obt‰m as bebidas alco†licas e a sua forma de consumo, deixando as asser€•es sobre a
significa€‚o desse uso no pr†ximo cap•tulo. Por ora cabe assinalar que cada qual
procura comprar uma garrafa, que furtivamente bebido por um pequeno grupos de
pessoas que se forma nas ruas menos movimentadas de ItacajŠ. O litro passa de m‚o em
m‚o e esgotado rapidamente, devido aos grandes goles ingeridos pelos ind•genas,
sendo que o recipiente vazio prontamente jogado fora. Aquele que s† adquire uma
garrafa procura levŠ-la para a aldeia e tomar algumas doses de seus convivas na cidade.
Por…m, durante o retorno, no ve•culo onde s‚o transportados, o dono da garrafa
convencido pelos demais a abri-lo e todos tomam o conteˆdo antes de atingir a aldeia.
Caso haja mais de uma garrafa, ela serŠ consumida no mesmo ritmo, pois os Krah„
dizem que na aldeia n‚o lhes poss•vel beber quase nada. Vale destacar que se houver
algum ‹prefeitoŒ
9
(designado de ipipenkate, kãpenreyõtxuõ ou këkate na l•ngua Krah„)
no ve•culo ele quem irŠ distribuir as doses uniformemente entre todos, seguindo os
preceitos vŠlidos no pŠtio da aldeia.
9
‹Esses –prefeitos• presidem as reuni•es matinais, na pra€a, onde se decide que tarefas ser‚o realizadas
durante o dia e de que lugar sairŠ a corrida de toras. Outra de suas atribui€•es a divis‚o dos animais
abatidos nas ca€adas coletivas, de paparutos rituais e de presentes oferecidos aos habitantes da aldeia.Œ
(Mellati, 1978: 76)
74
HŠ, tamb…m, a utiliza€‚o de Šlcool de limpeza dilu•do na Šgua. Essa prŠtica tem
por base duas prescriۥes:
1. A venda de bebidas alco†licas proibida aos ind•genas, for€ando-os a buscar um
‹substitutoŒ ƒ altura;
2. Al…m disso, algumas pessoas manifestam predile€‚o pelo Šlcool de limpeza, pois
al…m de ser mais barato, mais forte e ‹rende mais•, devido ƒ alta gradua€‚o
alco†lica, mesmo depois de dilu•do na Šgua.
3.3.1. A circulação dos bens
Vemos, pois, que as idas ƒ cidade configuram-se como uma ocasi‚o para
adquirir os bens do cupen. N‚o qualquer item, mas somente os apreciados pelos Krah„,
havendo inclusive uma escala de predile€‚o entre eles. O valor dessas mercadorias irŠ
sofrer variaۥes conforme a facilidade de acesso e preciso assinalar de imediato que o
valor de algum item n‚o pode ser resumidos a uma poss•vel ‹utilidade que ele
desempenhar no interior das rela€•es Krah„. Seria mais exato afirmar que todos os bens
s‚o considerados igualmente valiosos e desejados, sendo que a facilidade de acesso a
alguns itens faz com que seu valor diminua, ou ao menos que sejam trataos como sendo
de menor valor.
Antigamente a escassez estava unicamente associada ƒ dist•ncia que as cidades
da regi‚o estavam dos grandes centros; n‚o havia um abastecimento constante de
diversas mercadorias, que embora desejadas, s† podiam ser obtidas pelos Krah„ nas
viagens que faziam ƒs grandes cidades. Atualmente, embora ainda existam bens que
dificilmente ser‚o encontrados no com…rcio local, esse problema reduziu-se
consideravelmente, estando a dificuldade de acesso a esses bens reduzida ao alto valor
monetŠrio nominal que eles possuem no com…rcio local. Assim, a espingarda e as
panelas grandes s‚o bens valiosos, pois seu alto pre€o inibe o acesso a eles. Quanto aos
demais, tamb…m s‚o apreciados, mas podem ser adquiridos mais facilmente, sendo,
portanto, menos valiosos. A cacha€a um caso ƒ parte e paradoxal, pois a facilidade de
acesso ƒ ela, aliado ao alto apre€o que ela possu• entre os Krah„ a tornam um bem
valioso. Decerto seria mais exato referir-se unicamente ao alto apre€o que os Krah„
mant…m para com esse bem Ž novamente torno a dizer que voltarei a esse assunto no
cap•tulo seguinte, por merecer um tratamento mais extenso.
75
Por conseguinte, pode-se fazer uma escala do valor dos bens industrializados
para esses Timbira, como se v‰ na tabela abaixo, sem descuidar que existe a
possibilidade de haver varia€•es entre os indiv•duos e mesmo dependo de necessidades
imediatas de cada um
10
.
Tabela 2
11
Valor das mercadorias industrializadas para os Krahô
Valor Mercadorias masculinas Mercadorias Femininas Mercadorias sem gênero
Espingarda
Muni€‚o e fac‚o
Cal€‚o e tabaco
Panela grande
Tecidos, Mi€angas e
medalhas de santos
Tesoura, linha de pesca
Panelas pequenas
Mochilas e recipientes
plŠsticos
Alimentos
Cacha€a
SandŠlias, querosene.
Pode-se obter os bens mais acess•veis por interm…dio de presentes dos cupen que
mantenham contato com os Krah„. O mais comum, por…m, obt‰-los atrav…s da
compra, como se viu acima. Os bens mais cobi€ados s‚o obtidos, normalmente, nas
viagens que os Krah„ fazem ƒs cidades mais distantes. Nessas ocasi•es os viajantes
nunca podem retornar para as aldeias de m‚os vazias, pois deixam de realizar seus
trabalhos cotidianos e podem ficar sem fonte de proventos. Al…m disso, toda vigem
vista pelos Krah„ como a oportunidade de obten€‚o da generosidade dos cupen
distantes.
Pois bem, se existem indiv•duos que v‚o ƒ cidade para adquirir bens, de qualquer
tipo que eles sejam, isso n‚o significa que a apropria€‚o dos mesmo pessoal. Em
outras palavras, todo aquele que vai ƒ cidade um emissŠrio dos interesses vigentes na
10
Caso haja a prescri€‚o para a realiza€‚o de algum ritual o ‹dono da festaŒ, isto …, o responsŠvel pela
realiza€‚o do amekine poderŠ manifestar uma maior desejo em obter bens menos valiosos em uma
situa€‚o normal.
11
Vale fazer um alerta, pois o pertencimento ao universo masculino ou feminino n‚o feito
considerando-se o uso estrito do objeto por parte do Krah„. Em outras palavras, bens femininos podem
ser utilizados pelos homens, e vice-versa. Por conseguinte, um bem serŠ tomado por um g‰nero particular
devido ƒs fun€•es que ele irŠ desempenhar no interior da aldeia: a mochila feminina pois a cestaria
Timbira normalmente confeccionada e manejada pelas mulheres. Como este item vem ‹substituirŒ os
cestos, tomado como pertencente ao universo feminino.
76
aldeia, quer se trate do simples provimento de sua fam•lia elementar, quer seja por conta
de alguma d•vida adquirida para com os parentes afins. Disto decorre a instaura€‚o de
um mecanismo de circula€‚o dessas mercadorias no interior da aldeia. Toda a nossa
exposi€‚o dos sistema de parentesco ganha grande import•ncia para entendermos esse
processo, pois a divis‚o das pessoas no interior da aldeia entre os dois grandes grupos
de parentes e de n‚o-parentes que vai informar a circula€‚o desses bens. Como disse,
entre as pessoas consideradas parentes n‚o obrigatoriedade na retribui€‚o dos
objetos, ao contrŠrio do que ocorre com as pessoas sem rela€‚o de parentesco, havendo
uma r•gida contabilidade dos bens doados e da espera por retribui€‚o da d•vida. Vale
destacar que o pagamento da d•vida se quando o credor se der por satisfeito com a
paga obtida.
Os g‰neros aliment•cios Ž tais como a€ˆcar, caf…, sal, feij‚o, fava, farinha de
mandioca, †leo de soja, e a carne para consumo familiar Ž e outros para uso comum nas
unidades parentais matrilocais Ž como a querosene, linha de pesca, vasilhames plŠsticos
para guardar a Šgua Ž s‚o ordinariamente utilizados pela pr†pria fam•lia elementar, n‚o
entrando, normalmente, no circuito de trocas no interior da aldeia.
Cumpre fazer uma nota sobre o carŠter do consumo desses bens, que poderŠ
facilmente ser estendida aos demais. A literatura etnol†gica sobre esse grupo social
demarca muito que o preparo dos alimentos fica a cargo da esposa, que tem no
interior das casas tr‰s pedras dispostas de tal modo que se pode equilibrar uma panela
sobre o fogareiro um aceso. costume deixar esse fogareiro acesso ininterruptamente,
mesmo quando n‚o o est‚o utilizando. Entretanto, como os Krah„ n‚o t‰m hora
marcada para suas refei€•es, o fog‚o Timbira utilizado vŠrias vezes ao longo do dia,
segundo o apetite das pessoas que n‚o tem um limite tŠcito: come-se enquanto houver
comida, aliŠs um tra€o largamente assinalado entre as popula€•es tribais. Disso decorre
que o limite para a utiliza€‚o dos alimentos n‚o dado por um tipo de autocontrole
interiorizado, mas sim devido ƒ oferta desses bens: enquanto houver comida (ou mesmo
qualquer outro g‰nero, como se verŠ mais adiante no caso da cacha€a), haverŠ utiliza€‚o
deles por parte dos Krah„. Em uma palavra, n‚o estamos defronte uma sociedade afeita
ƒ prŠtica da constru€‚o de estoques, ou mesmo de trocas, mas sim a despesa assume o
papel principal nas inst•ncias econ„micas dessas sociedades, como mostrado
tempos por Georges Bataille:
77
‹O carŠter suntuŠrio da produ€‚o e da aquisi€‚o em rela€‚o ƒ despesa aparece do
modo mais claro nas institui€•es econ„micas primitivas, pois a troca ainda tratada
como uma perda suntuŠria dos objetos cedidos: apresenta-se assim, basicamente, como
um processo de despesa sobre o qual se desenvolveu um processo de aquisi€‚o.Œ
(Bataille, 1975: 33)
Sem aprofundarmo-nos nessa asser€‚o, podemos nos acercar de como os bens
industrializados circulam no interior da sociedade Krah„. No •mbito das trocas uma
s…rie de bens que s‚o apropriados individualmente Ž tais como a muni€‚o para as
espingardas utilizadas nas ca€adas, as sandŠlias, os tecidos, as mi€angas, o fumo, a
cacha€a. S‚o justamente esses bens que ir‚o circular a aldeia, por interm…dio das duas
esferas pol•ticas abordadas no cap•tulo anterior: o pŠtio e o krinkapé, o centro e a
periferia. Esses bens ir‚o para o pŠtio quando chegam ƒs m‚os dos Krah„ em grande
quantidade, normalmente por conta de alguma doa€‚o externa, ou de algum rito pˆblico.
Nesses casos, o ‹prefeitoŒ da esta€‚o que estiver governando a aldeia procede ƒ
reparti€‚o igualitŠria entre todas as pessoas. Aqui cumpre assinalar que n‚o uma
divis‚o aleat†ria, pois existem g‰neros destinados a cada sexo em particular (vide a
tabela 1), sendo entregue cada objeto diretamente ƒs pessoas.
T‚o logo os bens s‚o adquiridos pelas pessoas, come€a o jogo pr†prio ƒ periferia
da aldeia. demarquei a import•ncia das rela€•es de parentesco nessa esfera de
atua€‚o pol•tica. Pois bem, na circula€‚o dos bens n†s a vemos operar com todo o vigor.
Pessoas que tratam-se reciprocamente por algum termo de parentesco poder‚o
presentear-se livremente. Assim, n‚o de se estranhar que existam casos de homens em
busca de bens femininos: estes ser‚o doados ƒs mulheres com as quais ele trava contato
direto Ž a esposa ou alguma menkreké
12
que ele esteja cortejando.
Por…m, esse processo n‚o se restringe ƒs pessoas com rela€•es de parentesco,
pois, como disse, a aldeia Timbira o espa€o de conviv‰ncia dos mencahkrit. Entre
essas pessoas com esse tipo de liga€‚o a reciprocidade obrigat†ria: todo presente, a€‚o
cotidiana e ritual deve ser retribu•da. Assim, se uma mulher cahkrit efetuar uma pintura
corporal em algu…m, essa pessoa terŠ obrigatoriedade em devolver essa dŠdiva, com um
corte de pano, uma tesoura, ou mi€angas (kenré), ou qualquer outro bem que circule no
interior da aldeia. Isso n‚o significa que a dŠdiva tem de ser paga imediatamente, pois
12
Termo aplicado ƒs mulheres pˆblicas: solteiras que n‚o querem se casar, fazendo sexo livremente.
78
se pode protelar a dívida até que possa cumpri-la. Porém, a contrapartida tem de ser
efetuada, caso contrário uma grande indisposição é criada entre os envolvidos.
Uma desavença nunca fica restrita as duas pessoas envolvidas diretamente, mas
irá abranger os parentes de cada qual. É próprio das pessoas com ligações parentais
buscar defender-se frente aos demais. -se, deste modo, como os atritos entre pessoas
de unidades parentais distintas podem originar-se da interação cotidiana entre unidades
parentais matrilocais distintas, pois as relações envolvendo cahkrit devem se pautar pela
reciprocidade contínua: caso algum dos envolvidos nessa relação não se por satisfeito
com prestação recebida em troca de algum bem ou serviço, sentindo-se enganado, por
exemplo, está dado o mote que pode originar uma desavença entre as unidades
parentais.
Vale destacar que esse mecanismo tem de se mostrar efetivo sempre. Assim, a
dívida sempre irá ser refeita, pois sem ela os mencahkrit não têm motivos reais e
concretos para buscar o contato entre si. Compreende-se, pois como uma assimetria na
relação credor-devedor estabelece um princípio comum: ambos têm de buscar se
entender, inclusive não havendo nada na relação que impeça a inversão das posições:
hoje se é credor, amanhã se pode tornar devedor, e vice-versa. E como a demanda por
bens entre os Krahô pode ser tida como infinita, podemos considerar o circuito das
relações, trocas e serviços entre mencahkrit como uma fonte inesgotável de dívidas.
Ora, o contato com o cupen alçou esse tipo de relação a outro nível, pois agora
uma parcela significativa dos bens que irão circular no interior da aldeia é proveniente
do exterior. Assim, quer seja pela substituição de gêneros escassos, quer seja pela
introdução de um novo, várias mercadorias irão circular, gerando um novo desequilíbrio
nas relações entre os Krahô e os comerciantes e vizinhos, ampliando a dependência dos
primeiros para com os últimos. O maior problema para os Krahô reside no fato de que
suas atividades de subsistência não dão conta de abastecer a todos durante o ano todo,
devido aos fatores como elencados acima. Sendo assim é inverossímil falar na
construção de um excedente de produção que possa ser trocado pelas mercadorias cada
vez mais necessárias à vivência ordinária. Assim urge a busca de uma solução para esse
problema e é o que está ocorrendo, mediante a Associação da aldeia Krahô KÁPEY.
79
3.4. KÁPEY
Nos ˆltimos anos pude identificar outra altera€‚o significativa, no tocante ao
contato com a sociedade nacional. Trata-se do surgimento de uma associa€‚o formada
pelas aldeias Krah„, de nome K‡PEY. Idealizada pelo indigenista Fernando Schiavinni,
seu intento primeiro dar alternativas para o desenvolvimento sustentŠvel da
comunidade como um todo. Ap†s grande luta, como relatam os pr†prios ind•genas,
conseguiram adquirir uma casa no munic•pio de ItacajŠ, local que serve de sede para o
desenvolvimento das suas principais atividades. A casa bastante simples, contando
com tr‰s quartos, uma sala (onde funciona o escrit†rio), uma ante-sala, uma cozinha e
um banheiro. Disp•e, tamb…m, de uma varanda, com tanque para lavar roupas e um
amplo quintal. O escrit†rio composto por uma escrivaninha, algumas cadeiras, uma
linha telef„nica e materiais de consumo para escrit†rio. no escrit†rio onde a pessoas
s‚o recebidas no ‹territ†rio ind•genaŒ de ItacajŠ.
Em um dos quartos, estŠ instalado um microcomputador, servindo de escrit†rio
financeiro. Em um outro, funciona um dep†sito para o artesanato a ser vendido em
Goi•nia Ž trabalho este realizado pelo filho de Fernando, Roberto Schiavinni -, bem
como todos os apetrechos destinados aos projetos ainda n‚o concretizados. O terceiro
quarto serve de dormit†rio para aqueles que precisem pernoitar na cidade, bem como a
alguns adolescentes que estudam na cidade. ainda alguns c„modos alugados para
servir a esse mesmo fim, na mesma rua onde estŠ situada a sede.
A principal fonte de proventos dessa institui€‚o a venda de artigos produzidos
pelos dos Krah„, ou que tenham a marca deste povo, como o artesanato, algumas
camisetas e at… mesmo um CD que foi gravado, contendo cantigas originais desse
grupo social. O artesanato obtido atrav…s de uma troca efetuada com Ulisses, um
indigenista que trabalha na K‡PEY: ele avalia o valor do material produzido por
qualquer pessoa que queira levar o artesanato at… ele e em troca do mesmo um vale
de compra vŠlido para alguns dos estabelecimentos comerciais de ItacajŠ, onde a
K‡PEY tenha uma conta. T‚o logo o dinheiro da venda entre no caixa da K‡PEY, as
contas nos estabelecimentos comerciais s‚o pagas. O dinheiro excedente das atividades
comerciais dessa associa€‚o, quando obtido, dividido entre as aldeias, respeitando-se a
import•ncia pol•tica e num…rica de cada uma. Assim, as aldeias maiores e mais antigas
80
recebem um percentual maior da renda total, sendo o dinheiro entregue em m‚os para o
cacique (pahí-ti) de cada aldeamento.
Vale destacar que um projeto em tramita€‚o no BNDS (Banco Nacional de
Desenvolvimento SustentŠvel) visando financiar uma escola agro-ambiental, com o
intuito de promover a uma reformula€‚o geral das t…cnicas de produ€‚o agr•cola, em um
prazo total de 20 anos. Este projeto conta com a parceria da FUNAI e da EMBRAPA,
dando suporte t…cnico e treinamento adequado, visando habilitar os Krah„ a
desenvolverem essas atividades de modo aut„nomo ao final do projeto. Entretanto, at… o
presente momento n‚o houve nenhum repasse de dinheiro a essa iniciativa.
Al…m da sede na cidade de ItacajŠ, a K’PEY possu• uma horta experimental em
uma aldeia de mesmo nome. Esta aldeia n‚o habitada durante o ano todo, mas o
local para as reuni•es pol•ticas dos Krah„. Este aldeamento ficava a um quil„metro da
aldeia ’gua Branca, tendo sido, recentemente deslocada para uma outra regi‚o, entre a
aldeia de Santa Cruz e Manuel Alves. Ela estŠ aos cuidados de um homem Krah„
13
remunerado para se ocupar de tal of•cio. As mudas cultivadas s‚o distribu•das para todas
as aldeias, em especial quando se realiza a Feira de Sementes que acontece na aldeia
K’PEY. Nessa ocasi‚o, cada aldeia ocupa uma casa no c•rculo montado especialmente
para essas ocasi•es. Essa feira serve n‚o s† para a troca de sementes, ou a recupera€‚o
de esp…cimes que est‚o se tornando raros
14
, mas o momento de uma grande reuni‚o
pol•tica, envolvendo representantes de todas as aldeias, de setores da FUNAI, da
EMBRAPA de outros grupos interessados na causa ind•gena.
Na sede do K’PEY, um homem encarregado de dar encaminhamento prŠtico
aos trabalhos ordinŠrios da associa€‚o. Ele designado de ‹prefeitoŒ, sendo que o atual
responsŠvel por esse cargo filho do coordenador geral da K’PEY, o pahí-ti da aldeia
de Manoel Alves, Getˆlio. Na primeira conversa com o prefeito em quest‚o, ele
procurou dar a entender que ele era, em verdade, uma esp…cie de chefe geral dos
13
‹CabecinhaŒ residiu durante boa parte de sua vida na cidade. Foi convencido a retornar visando
trabalhar exclusivamente com esse projeto. N‚o se trata de uma personagem orgulhosa das prŠticas
ind•genas. Ao contrŠrio, continuamente alegava que os •ndios ‹n‚o prestam para servi€o de lavouraŒ.
Sendo ele, segundo o pr†prio, o ˆnico qualificado para realizar tal intento. Gostaria de ser o capataz de
alguns outros ind•genas assalariados para ‹tocar a ro€aŒ da K’PEY, segundo os moldes do cupen. Seu
portugu‰s arrasado, lembrando a linguagem cabocla. Entretanto, como as dificuldades em implementar
o projeto atestam, seu projeto pessoal possivelmente nunca chegarŠ a ser posto em prŠtica.
14
Como o caso do milho nativo dos krah„, que foi substitu•do pelo h•brido, por a€‚o da FUNAI; o que
levou a perda das sementes do milho nativo. Felizmente, a EMBRAPA guardou algumas sementes desse
esp…cime, fato que foi descoberto pelos Krah„, que puderam ter de volta seu milho nativo, menos
produtivo que o h•brido , mas mais resistente ƒs condi€•es climŠticas da regi‚o, e mais adaptado ƒs
81
trabalhos da K’PEY. Dois fatos devem se juntar para dar sustentŠculo a uma
interpreta€‚o correta dessa personagem. Primeiro: em todas as aldeias existe a figura do
‹prefeitoŒ: ele quem faz as divis•es dos bens coletivos da aldeia, entre outras
atribui€•es rituais e prŠticas; cada aldeia tem dois prefeitos, sendo que cada qual
distribui os bens de cada metade ritual a qual ele estŠ ligado pelo seu nome. Assim,
podemos supor que o prefeito da K’PEY uma esp…cie de administrador dos assuntos
prŠticos da associa€‚o. Em segundo lugar, sua atitude de tentar fazer-se um grande
chefe perante nossos olhos estŠ em conformidade com a atitude comum de qualquer
indiv•duo Krah„: cada qual intitula-se ‹o melhorŒ, ‹o mais bonitoŒ, ‹o maiorŒ em
qualquer coisa que fa€a.
Quanto ƒ demarca€‚o do papel do coordenador, algumas outras indaga€•es t‰m
de ser levantadas. Sabe-se que Getˆlio tem um importante papel pol•tico na vida
ordinŠria dos Krah„. foi pahi-ti na ladeia da Cachoeira, uma das maiores, mais
antigas e com maior prest•gio pol•tico entre os Krah„. Alem disso, a K’PEY
desempenha atividades em quase toda a reserva ind•gena e o coordenador da associa€‚o
quem designa os rumos que essas atividades ir‚o tomar
15
. Sem dˆvida, Getˆlio exerce
autoridade entre os Krah„, mas ela de outra natureza: diz respeito aos
encaminhamentos da K’PEY e n‚o sobre assuntos internos a cada comunidade, ou
ainda, sobre como cada indiv•duo deverŠ pautar sua conduta no dia-a-dia. At… mesmo
na associa€‚o sua autoridade n‚o absoluta: at… bem pouco tempo atrŠs a coordena€‚o
era divida entre ele e outro pahi-ti, Oscar, atualmente residente na aldeia de ’gua
Branca. Al…m disso, necessŠrio sempre um acordo, ou mesmo um consenso entre
vŠrios setores pol•ticos, acerca das atividades e caminhos que a K’PEY deverŠ
percorrer. E isso sem nunca se descuidar da etiqueta pol•tica dos Krah„. Assim,
encontros com os caciques e demais lideran€as, bem como diversos acertos quando da
passagem desses pela sede da associa€‚o d‚o a t„nica geral da fei€‚o pol•tica dessa
institui€‚o.
condi€•es econ„micas dos Krah„, pois o milho h•brido precisa ser comprado, enquanto o outro pode ser
plantado a partir dos gr‚os de sua pr†pria espiga.
15
Como exemplo, podemos tomar a excurs‚o do time de futebol da Pedra Branca para a disputa de um
amistoso com uma cidade vizinha. Cabia a Getˆlio a libera€‚o da camionete para transportar os jogadores
at… o local do jogo. Como a ‹ToyotaŒ, como mais conhecida a referida camionete, presta servi€os a toda
as aldeias, o acesso a ela nem sempre fŠcil, tendo de concorrer com as inˆmeras demandas dos krah„
(transporte de doentes para o atendimento no posto de saˆde de ItacajŠ, condu€‚o dos beneficiŠrios do
INSS para o recebimento de seus proventos, etc...). Cabe aos coordenador zelar pela efetiva€‚o desses
servi€os, sem preju•zo de ningu…m. Sendo assim, a libera€‚o do transporte para o jogo era meio incerta
at… o dia anterior ƒ data do mesmo.
82
Tamb…m necessŠrio lembrar que a remunera€‚o salarial n‚o um fato
consumado para todos aqueles que trabalham diretamente com os neg†cios da
associa€‚o. N‚o s† o coordenador, mas tamb…m todos os demais ‹administradoresŒ n‚o
s‚o funcionŠrios contratados regularmente e t‰m de buscar seu sustento na economia
tradicional do grupo (ca€a, coleta e agricultura), nas aldeias onde cada qual residem.
Seu trabalho recompensado somente quando o apertado or€amento da entidade
permite. E o dinheiro proveniente desse trabalho gasto tal como o dos aposentados:
n‚o tem uma apropria€‚o individual, mas presta-se para o sustento da fam•lia nuclear,
em primeiro lugar, e tamb…m da fam•lia ampliada e toda uma gama de parentes bastante
extensa. Pol•tica n‚o profiss‚o entre os Krah„, ao menos por enquanto”
Por conseguinte, inegŠvel que a K’PEY significa uma mudan€a no quadro das
rela€•es sociais, mas minha impress‚o que esta institui€‚o, ao menos nos moldes em
que a conheci, n‚o representa um modo distinto do fazer político pr†prio a esses
ind•genas, mas talvez uma alternativa necessŠria para eliminar o estado de penˆria
econ„mica ao qual est‚o submetidos desde o confinamento na Šrea demarcada.
O grande dilema se essa institui€‚o representativa dos interesses Krah„ irŠ
conseguir uma maior efetividade ao longo do tempo, promovendo transformaۥes
significativas. A aposta agora que a auto-representa€‚o dos Krah„ poderŠ permitirŠ a
implementa€‚o de mecanismos pol•ticos capazes de for€ar o cupen a criar mecanismos
que os conduzam ƒ abund•ncia perdida. Em outras palavras, se existem recursos
financeiros destinados aos ind•genas, por quais raz•es esses recursos n‚o chegam ao seu
destinatŠrio por excel‰ncia e o s Krah„ sabem que esse fato real, pois sua principal
queixa refere-se ao fato de que tanto SPI, quanto FUNAI, e as ONGs em geral sempre
t‰m muito dinheiro, mas este nunca chega na m‚o deles! Em outras palavras, cada vez
mais forte o anseio segundo o qual se o contato instaura essa situa€‚o de penˆria,
atrav…s dele que eles poder‚o sair desse estado. claro que essa posi€‚o n‚o un•mine,
mas ganha for€a dia-a-dia: os Mãnkraré haviam postulado a possibilidade de uma via
aut„noma frente ao cupen, mas que se reportasse a ele. Parece que agora essa alternativa
ganha for€a entre todos, pois a busca de um caminho original a t„nica cada vez mais
presente, frente ƒ reprodu€‚o da tradi€‚o tutelada, ou ƒ convers‚o pura e simples aos
ditames externos aos Krah„.
83
3.5. Será possível devir-cupen?
Como pudemos constatar, o mito de Auk… n‚o s† um conteˆdo apropriado pela
forma m•tica tradicional, mas sim expressa como o cupen desarticula as rela€•es Krah„
a partir de seu interior, pela tentativa constante de altera€‚o da forma Timbira. Pois
vejamos, o confinamento a um territ†rio demarcado tem como resultado a
desarticula€‚o do sistema de expans‚o, mas tamb…m p•e em dificuldade a reprodu€‚o
do sistema econ„mico, como atestam os resultados dos esfor€os do SPI/FUNAI de
transformar esses ind•genas em agricultores, levando a uma desarticula€‚o parcial das
atividades tradicionais de subsist‰ncia. Esse processo percebido pelos Krah„ como o
causador de sua dificuldade em reproduzir a forma Timbira na sua plenitude. Por…m,
como podemos ver pela tentativa constante de associa€‚o com o cupen, isso n‚o
significa necessariamente que os Krah„ ensejem afastar-se do ‹homem brancoŒ. Ao
contrŠrio, mesmo uma reivindica€‚o, ao menos por parte dos
Pãrencamecrá/Kempocatêyê, para que o cupen possa atuar na vida cotidiana dos Krah„
de modo a ‹remediarŒ os estragos por ele produzidos.
Vimos como o cupen apropriado pelo pensamento Timbira como um ser de
outra natureza, polimorfo e terr•vel. Ele se apresentava como uma impossibilidade de
conv•vio, antes do contato com a sociedade nacional. Ap†s esse fato, t‚o somente a
instaura€‚o de dois p†los poss•veis para se pautar o comportamento, que os Krah„
poderiam inverter caso assim o desejassem. AliŠs, como nos mostra Domingues, a sua
pr†pria filosofia da hist†ria que abre a possibilidade para uma aproxima€‚o com o
cupen, como se v‰ a seguir: ‹Gilberto Azanha diz que existe uma Interpreta€‚o timbira
da hist†ria porque ele acredita em uma filosofia da hist†ria timbira: que se desdobra,
como procurou mostrar, a partir de uma aldeia m‚e at… ao ponto do irreconhec•vel. Que
o cupenŒ (Domingues, 1998: 68). Da• que seja poss•vel, de um lado negar o cupen
como possibilidade de conviv‰ncia; e de outro, que se possa reproduzir a forma Timbira
aliando-se a ele.
Somemos esse aspecto ƒ oferta de Auk… aos Krah„, qual seja a de tornarem-se
cupen, participando de sua superioridade t…cnica e do seu dom transformador e criador,
mediante a escolha entre objetos colocada no mito: entre a espingarda e o prato e o arco,
a flecha e a caba€a. Como os Krah„ escolheram os objetos que lhes eram familiares,
84
permaneceram em sua situa€‚o tradicional. Vimos no cap•tulo anterior como essa recusa
se expressa na cont•nua nega€‚o n‚o s† dos bens oriundos da sociedade nacional, mas
tamb…m no modo pelo qual os Krah„ se recusam a organizar seu pensamento segundo
os preceitos hist†ricos tal como n†s os percebemos Ž acreditar na eficŠcia de um porvir,
de um futuro transcendente, em detrimento dos c†digos imanentes ƒ terra. N‚o se trata
simplesmente de tentar perpetuar ad infinitum um modo de exist‰ncia id‰ntico a si
mesmo, mas de formar um tipo de sociedade baseada no devir, mantendo as
caracter•sticas expressas por Deleuze e Guattari:
‹As sociedades ditas sem hist†ria colocam-se fora da hist†ria, n‚o porque se
contentariam em reproduzir modelos imutŠveis ou porque seriam regidas por uma
estrutura fixa, mas sim porque s‚o sociedades do devir (sociedade de guerra, sociedades
secretas, etc.). S† hist†ria de maioria, ou de minorias definidas em rela€‚o ƒ
maioria.• (Deleuze e Guattari, 1997: 89)
Esta recusa estŠ presente entre os Timbira, uma recusa em se reportar aos
modelos do cupen, em ordenar as instituiۥes, a temporalidade, o pensamento, enfim,
pela forma pr†pria ao ‹homem brancoŒ. Todavia esse processo n‚o t‚o simples assim.
Lembremos a vers‚o do mito coletada por Schultz, na qual Auk… se entristece pela
decis‚o dos Krah„ e ao dispensar o povo assevera: ‹voltem quando quiserem e pe€am o
que lhes for necessŠrioŒ. A quest‚o a ser posta …: serŠ que Auk… n‚o continua fazendo
essa oferta aos Krah„
16
?
Sabemos que houve um momento em que os Krah„ tentaram inverter a decis‚o
de reproduzir a forma Timbira, abrindo m‚o de suas institui€•es e tentando transformar-
se no cupen. Isso ocorreu em 1951 mediante a irrup€‚o de um movimento pol•tico-
religioso, desencadeado por um homem de nome Jos… Nogueira Tx†rtx† Crat… Ropkur.
Esse movimento foi estudado por Melatti (1972) e por Domingues (1998). Jos…
Nogueira fumou um cigarro de maconha e entrou em contato com Tati, uma entidade
16
Melatti afirma que os Krah„ consideram que Auk… continua vivo, como se v‰ a seguir: ‹as tradi€•es
Krah† n‚o registram qualquer promessa de Auke de voltar para o seio da tribo. Acreditam os ndios,
entretanto, que o her†i n‚o morreu. Jos… Nogueira assegurou que Auke deveria estar vivendo atualmente
na Europa. Numa outra ocasi‚o, afirmou que estava no Rio de Janeiro, acrescentando em seguida que
poderia estar tamb…m nos Estados Unidos ou na Europa. Certa vez, o chefe Ambrosinho nos perguntou
onde se encontrava Auke. E ele mesmo respondeu, dizendo que estava entre os civilizados, em alguma
cidade, mas os •ndios nunca o encontraram nas longas viagens que costumam fazer; acrescentou que Auke
n‚o morre: quando come€a a ficar velho, amanhece menino outra vez.Œ (Melatti, 1972: 48). Disso decorre
85
relacionada com a chuva Ž entendida n‚o s† como a precipita€‚o pluviom…trica, mas
tamb…m como os raios e o vento. Tati uma s…rie de ordens a Jos… Nogueira, que as
repassa aos demais, como se v‰ abaixo:
‹Assim, Jos… Nogueira ordenou aos •ndios que constru•ssem uma grande casa para
ele, para que tivessem um lugar onde estocar as mercadorias que iriam receber; e os
ind•genas a edificaram. Ordenou tamb…m a constru€‚o de um grande curral, que, em
determinado dia, deveria encher-se espontaneamente de gado; e os •ndios o fizeram. Na
sua grande casa, Jos… Nogueira dava bailes em certos dias da semana, quando os •ndios
dan€avam aos pares, como os civilizados; os homens casados tinham o cuidado de s†
dan€arem com suas esposas. Jos… Nogueira transmitiu ordens para que deixassem de
comer determinados alimentos, sobretudo carne, durante certos dias da semana, numa
evidente imita€‚o da abstin‰ncia dos cat†licos. Ordenou que se fizessem paredes de
barro nas casas para que elas se transformassem em habita€•es semelhantes ƒs dos
civilizados. Incentivou o abandono da pintura de corpo, dos c•nticos acompanhados por
maracŠ, das corridas de toras. Mandou que atirassem fora todos os tipos de cestos que
tinham dentro de casa, pois seriam substitu•dos por malas como as dos civilizados.
Aconselhou o consumo dos animais dom…sticos e das sementes destinadas ao plantio,
pois quando se transformassem em –crist‚os•, tudo isso seria recuperado e multiplicado.
Jos… Nogueira ainda prometeu aos •ndios que, em determinada noite, chegaria um
–motor•, isto …, uma lancha pelo riacho da aldeia (que n‚o era navegŠvel), trazendo
artigos industrializados para os Krah„.Œ (Melatti, 1972: 25-6)
Al…m dos artigos industrializados, Jos… Nogueira ganharia o poder de Tati (raio)
e eliminaria todos os cupen dos arredores do territ†rio Krah„. Segundo Melatti, essa
prescri€‚o decorre do †dio alimentado por Jos… Nogueira, em decorr‰ncia do massacre
que havia ocorrido pouco mais de dez anos. O sentido dessas prescriۥes parece
claro: ‹Os oferecimentos de –Chuva• a Jos… Nogueira tinham dois objetivos: ao mesmo
tempo que punha ƒ sua disposi€‚o poderes para castigar os –crist‚os•, queria tamb…m
transformar os •ndios em civilizados.Œ (Melatti, 1972: 24). Assim, n‚o s† o †dio que
move esse processo, existe tamb…m uma tentativa de se apropriar do ser-cupen por parte
de Jos… Nogueira e dos Krah„ que embarcam em seu del•rio. Um esfor€o que tenta
que a oferta original estŠ feita, mas ela pode ser recolocada pelo cupen continuamente: arco e flechas, ou
espingarda, eis a quest‚o dos Krah„.
86
estabelecer o diŠlogo ‹imposs•velŒ e apropriar-se das dŠdivas oferecidas pelo cupen
17
.
bastante significativo o fato desse movimento ter surgido no interior do grupo
Pãrencamecrá/Kempocatêyê, pois isso s† vem expressar que hŠ, ao mesmo tempo, uma
atualiza€‚o e um deslocamento do mito de Auk…, sempre evocado na explica€‚o do
movimento por parte dos envolvidos. Assim, reafirma-se a no€‚o de que o cupen esse
ser polimorfo, inclassificŠvel, sem posi€‚o fixa. Entretanto, o movimento pol•tico-
religioso assinala uma possibilidade de se estabelecer com ele uma comunica€‚o e
aproveitar sua oferta.
Contudo, as promessas de Tati n‚o se concretizaram: os Krah„ n‚o se
transformaram em cupen no dia determinado, nem houve uma chova de mercadorias e
os Krah„ retornaram ƒ forma Timbira, tendo o movimento passado. O que n‚o passou
foi a pergunta posta por Jos… Nogueira: ‹serŠ poss•vel vir a ser tal como o cupen
Durante alguns meses os Krah„ tentaram realmente seguir o caminho do cupen, tal
como eles o apreendem do mito de Auk… e de sua experi‰ncia junto ƒ sociedade
nacional. Desejaram entrar na hist†ria e abandonar seu modo particular de apreender o
tempo e de relacionar consigo e com o mundo.
Entretanto, o modo pelo qual Tx†rtx† colocara o problema indica algo mais.
Melatti encontra um messianismo na manifesta€‚o pol•tico-religiosa iniciada por Jos…
Nogueira. Domingues, por suas vez, encontra a reitera€‚o do xamanismo Krah„ e isso
traz algumas implica€•es consigo. Nas palavras deste ˆltimo:
‹Tx†rtx† usou uma forma de expressão tipicamente krahô para interpretar as
for€as que vem atuando nas configura€‚o do mundo atual. E o que vemos nesta
interpreta€‚o a Hist†ria apreendida e representada como maldade por uma lado, e por
outro, como promessa.Œ (Domingues, 1998: 6) [Disso resulta que] ‹(”) o pensamento
de Tx†rx† complexo. Porque ele pode ser somente aparente. No seu fundamento ele
estaria dizendo o inverso. Que a passagem para o in-comum, para o mundo do cupen, s†
xam•nica, ritual, s† pode ser apropriada nestas condi€•es, porque assim, nestas
condi€•es, poss•vel o retorno.Œ (Domingues, 1998: 69)
O del•rio xam•nico de Jos… Nogueira possibilitou aos Krah„ experimentarem a
hist†ria. Vemos pelas prescri€•es de Tx†rtx† que o movimento xam•nico n‚o se
17
‹–Chuva• iria por um fim ao estado de penˆria e de subordina€‚o dos Krah†, impondo uma nova
ordem, que seria sua equipara€‚o aos civilizados, tanto cultural (e talvez racial) como hierarquicamente,
87
reduziu a uma tentativa de se apropriar de alguns mecanismos do cupen, mas de inverter
a ordem que havia sido inaugura com o mito de Auk…: dizer n‚o ƒ recusa dos bens que
distinguem o cupen (a espingarda e o prato) do mehí, instaurando uma igualdade entre
ambos, ainda que estivesse manifesto um desejo de vingan€a contra os habitantes das
cercanias, que haviam desferido o massacre pouco mais de uma d…cada antes da
irrup€‚o do movimento.
EstŠ manifesta uma aproxima€‚o do cupen, mas n‚o em termos absolutos.
Melatti mesmo irŠ demonstrar que a promessa de Tati busca aproximar duas
caracter•sticas dos cupen: ‹Civilizado de longe e civilizado de perto se fundem na
imagem de Deus: os •ndios querem a generosidade dos civilizados distantes; mas os
presentes que desejam devem ser constitu•dos pelas mesmas esp…cies de bens de que
disp•em os civilizados pr†ximosŒ (Melatti, 1972: 31). Da• podemos inferir que as duas
prescriۥes confluem para a posse dos bens que distinguem os membros da sociedade
nacional. A transforma€‚o n‚o acess†ria, mas ela, em ˆltima inst•ncia, tem um
objetivo claro: adquirir as mercadorias e as t…cnicas do ‹homem brancoŒ, que os tornam
‹superioresŒ. Ora, na vers‚o do mito de Auk… narrada por Jos… Nogueira a Melatti, em 4
de mar€o de 1963, esse desejo estŠ mais n•tido ainda. Na vers‚o de Jos… Nogueira, o av„
e/ou tio materno n‚o tem participa€‚o nas tentativas de assassinato de Auk… e estŠ no
mato no momento em que ele atirado na fogueira. Quando fica sabendo do ocorrido,
resolve ir juntar as cinzas do neto, e encontrando Auk… transformado em civilizado,
como se v‰ abaixo:
‹(”) Foi chegando, espiando e viu casa grande, mesmo cidade. Muita
espingarda, panela, fac‚o, gado, galinha, muito cupen (civilizado) sendo soldado. O
tio
18
foi espiando, caminhando devagar, dizendo: –De onde vem essa gente?•. Ent‚o, o
neto saiu para fora e falou com os cupen: –Olhem, voc‰s n‚o mexam com o velho;
meu tio•. O tio chegou Š casa e os cupen se puseram em torno dele. –compadre, entre,
sente na cadeira. Ele sentou. A casa estava cheia de toda coisa. O tio estava sentado
olhando. S† branco, s† crist‚o estava. O neto recomendou que na• mexessem com ele:
–Eu vou lhe dar de comer; se quiser ir embora, eu despacho•. O soldado estava com a
espingarda, de cara feia. O velho estava sentado. O neto lhe deu de comer e ele estava
comendo bem. Estava-lhe ensinando os nomes do que ele via: –Isso galinha, bode,
entregando-lhes o equipamento e riquezas dos brancos.Π(Melatti, 1972: 35)
88
animal (de montaria), isso fac‚o, faquinha, cintur‚o, mercadoria (tecidos).• Mostrou-
lhe o espelho. O tio estava olhando menkarõ (alma, imagem) a• dentro. O neto lhe disse:
–Voc‰s podem ficar com ele•. Deu-lhe faca, fac‚o, dois metros de pano e o enganou:
–Agora eu estou dando essas coisas para voc‰, muita coisa, voc‰ pode mostrŠ-las para
o povo, deixe o povo vir para cŠ, cada um vai receber umas coisinhas•. De tarde,
despachou o velho para a aldeia. O chamador (•ndio que costuma fazer recomenda€•es
aos habitantes da aldeia gritando-lhes do pŠtio) convidou-o a vir ao pŠtio para contar o
que tinha visto. A• o velho ficou zangado com a gente: –Meu neto estŠ l… esperando
todos voc‰s, para receberem as coisas. muita coisa. mercadoria (tecidos), fac‚o,
panela, espingarda, eu mesmo vi. Casa grande, muita gente. Voc‰s v‚o todinhos•. Era s†
para os enganar, porque o tinham queimado. Quando o povo chegou ƒ casa, rodearam-
na, entraram e lhes mostraram pano. –Que pano voc‰ quer?•. Todos foram convidados a
entrar. A rapaziada entrou, um bocado dela, num quarto. As mocinhas no outro quarto.
Os velhos ficaram fora. A• as portas foram fechadas. –Pronto, d‰em fogo!•. Atiraram,
mas n‚o mataram nenhum. Os •ndios velhos correram. Os •ndios velhos corriam muito,
eram bestas, pois s† estavam atirando para cima. A rapaziada estava presa. Os
viraram cupen (civilizados). Isso o que os •ndios velhos contavam primeiro.Œ (Melatti,
1972: 130-1)
Disso decorre que Auk… oferece continuamente seu aparato t…cnico superior aos
Krah„ e isso que lhes deixam tentados a inverter as prescri€•es tradicionais. As
mercadorias s‚o as ‹iscasŒ para atrair os Krah„ para junto de Auk…, que disfar€a suas
reais inten€•es at… o ˆltimo instante. Os velhos recusam participar dessa empreitada,
como sempre se recusaram a se transformar durante o movimento xam•nico
19
. Mas na
vers‚o do mito de Auk… eles s‚o enganados justamente mediante a promessa de
possu•rem os bens industrializados e v‚o ƒ emboscada montada por Auk…. Por…m, eles
n‚o cedem totalmente aos encantos de seu anfitri‚o e n‚o adentram no interior da casa,
ao contrŠrio dos jovens.
18
Novamente aparece uma ambig‘idade na aplica€‚o do termo ‹tioŒ e ‹av„Œ. Isso parece indicar, mais
uma vez, que tratam-se de termos aplicŠveis aos dois personagens, ou mesmo da possibilidade desses dois
personagens virem a se nominadores.
19
‹Se os jovens, e os homens e mulheres maduras eram adeptos de Jos… Nogueira, deveria haver tamb…m
um certo nˆmero de c…pticos, indiferentes, e mesmo de pessoas que se opunham ao movimento. Gabriel,
Chico Velho, Patr•cio, Alfredo Velho, Marquinho, Justino, Ant„nio pereira, Pedro Noleto, Esteves n‚o
queriam se transformar; na ladeia chefiada por Ambrozinho eram de mesma opini‚o a m‚e do chefe, uma
v† de Martim, Bertoldo Velho, TomŠs Velho, Margarida; eram, na maioria, velhos. Estes velhos
simplesmente mostravam seu desagrado ante a possibilidade de sofrerem uma metamorfose em
civilizados.Π(Melatti, 1972: 38)
89
Assim, vemos nessa vers‚o como os jovens cedem mais facilmente aos encantos
colocados pelo cupen, como, aliŠs, a pr†pria instaura€‚o do assalariamento pode nos
mostrar, os jovens abrem-se ƒ mudan€a. Por conta disso descobrimos outra oposi€‚o
complementar entre os Krah„, qual seja, aquela que envolve os jovens e os velhos: os
primeiros s‚o mais afeitos ƒ inova€‚o, enquanto os ˆltimos procurariam manter os
preceitos tradicionais. HŠ, tamb…m, um desequil•brio nesse aspecto, pois os Krah„
dizem que cabe aos velhos dar o prù, o rumo que a vida deve tomar. Assim, estes
acabam por ‹neutralizarŒ as a€•es implementadas pelos jovens.
Quanto ao cupen, sua grande arma estŠ no ocultamento dos seus reais objetivos e
na oferta de bens que, por assim dizer, encantam os Krah„, deixamdo-os tentados. Da•
decorre que:
‹Auk… n‚o s† um anti-mito, ele tamb…m um fantasma, feiticeiro, e no ensaio de
Melatti sobre o xamanismo (Cf. Melatti, 1970) ele chega a sugerir que haveria uma
rela€‚o bastante estreita de Auk… (menino m•tico que se transformou no homem branco)
com Turkren (personagem complexo, tamb…m m•tico, usado como modelo para a
inicia€‚o xam•mica nos krah„), porque justamente estes dois personagens possuem a
capacidade da metamorfose, para melhor dizer, do disfarce assim como o C‚o, que o
povo costuma dizer, tem o hŠbito de aparecer de variadas formas. Pode aparecer como
uma mo€a muito bonita e atrair um homem. O C‚o tem muitos disfarces, insistia Pedro
Pe™o quando conversamos com ele em julho de 1996. Um fantasma que atormenta,
tanto quer no pr†prio mito os timbira tratam de matŠ-lo. E ele n‚o morre, se
transforma.Π(Domingues, 1998: 15-6)
Sabemos que as mercadorias prestam-se a esse encanto, a esse jogo de sedu€‚o,
constru•do na pr†pria cria€‚o desses bens. Desde Karl Marx (O capital, 1974)
considera-se que as mercadorias s‚o objetos feitos pelo homem para a satisfa€‚o de suas
necessidades, a partir de suas propriedades materiais intr•nsecas. Segundo os termos do
autor, as mercadorias possuem um valor de uso: trata-se de sua utilidade, estipulada
socialmente. Mas ela tamb…m a forma social da riqueza e feita para ser vendida,
realizando uma quantidade abstrata de valor-trabalho humano agregado nas
mercadorias, emancipando o valor de troca que lhe inerente. Em outras palavras, para
o capitalista pouco importa o uso que se fazer de seus bens, conquanto que circulem
no mercado.
90
Esta necessidade de realiza€‚o do valor de troca vai fazer com que o capitalista
precise imputar nas pessoas o desejo de adquirir sua mercadoria
20
. Wolfgang Fritz
Haug, no livro intitulado Crítica da estética da mercadoria, irŠ mostrar como a
produ€‚o em massa de mercadorias exige que estas exer€am uma sedu€‚o sobre todas
as pessoas, visando que eles emancipem o valor de troca latente na mesma. Para tanto,
cada vez mais a aparência irŠ ter import•ncia: ela, por si mesma, executa uma parcela
importante da sedu€‚o. Assim, cada vez menos a utilidade da mercadoria irŠ importar,
mas sim o que ela aparenta satisfazer. ‹Neste contexto, prossegue Haug, o aspecto
sens•vel torna-se portador de uma fun€‚o econ„mica: o sujeito e o objeto da fascina€‚o
economicamente funcional. Quem domina a manifesta€‚o, domina as pessoas
fascinadas mediante os sentidos.Π(Haug, 1997: 27)
Ora, vimos como a inser€‚o de mercadorias se fez acompanhar do crescimento
da depend‰ncia dos Krah„ para com a sociedade capitalista. Assim, a ‹generosidadeŒ de
Auk… pode ser entendida como uma forma de ludibriar os ind•genas, pois a inser€‚o de
mercadorias no circuito interno das aldeias perfaz uma altera€‚o na forma Timbira a
partir de seu interior: perda de autonomia das atividades de subsist‰ncia tradicionais,
resultando nas rela€•es assalariadas e sua conseq‘ente depend‰ncia para com o
mercado.
mais a ser dito, pois n‚o s‚o todas as mercadorias que s‚o inseridas na vida
dos Krah„, mas aquelas capazes de exercer algum fasc•nio devido ƒs suas
caracter•sticas. me referi quais s‚o na tabela 1. Cumpre agora mostrar que isso
respeita um mecanismo comum ƒ expans‚o do capitalismo, pois existem algumas
mercadorias que servem de abre-alas para os novos mercados de compradores, ainda
sem contato com a forma de valoriza€‚o capitalista. Nas palavras de Haug:
‹Comprar para vender com lucro sua atividade [do comerciante burgu‰s]. Por
isso, ele …, a princ•pio, supra-regional, at… mesmo transcultural, e tem o seu ponto forte
no com…rcio exterior. O especial e o novo exercem fun€‚o de mercadorias-chave na
abertura de mercados para o com…rcio capitalista. A fim de penetrar nos mercados locais
ou de conquistar comercialmente regi•es que at… ent‚o desconheciam a produ€‚o de
mercadorias, o capital mercantil necessita de mercadorias especiais. Nesse sentido tr‰s
grupos de mercadorias causaram furor e abriram caminho para a mudan€a nas rela€•es
mundiais: primeiro, os bens militares; segundo, os produtos t‰xteis; e, terceiro,
20
‹[Pois] a amea€a de um encalhe significa a morte econ„mica do capital fixado em forma de
91
estimulantes e guloseimas. Nada mais que armas de fogo, e aguardente Ž os fortes
est•mulos da sociedade europ…ia Ž invadem o –Novo Mundo• como instrumentos de
interesse do capitalismo mercantil.Π(Haug, 1997: 28-9)
Ora, vemos que entre os Krah„ esse ‹canto das sereiasŒ se faz ouvir. Primeiro
atrav…s das mercadorias acima referidas (tecido, armas de fogo e cacha€a). Por…m, cada
vez mais novos g‰neros passam a existir no interior das aldeias. Como disse acima, a
realiza€‚o de atividades remuneradas por uma parcela de pessoas permite o acesso cada
vez maior aos bens industrializados, havendo, inclusive, um grande desejo em obter os
bens industrializados.
Mas ao inv…s de assinalar simplesmente como a sedu€‚o capitalista aumenta a
submiss‚o dos Krah„, faz-se necessŠrio assinalar como todos os seus esfor€os centram-
se na tentativa de expulsar as formas de pensamento ‹alien•genasŒ: ‹submeter o cupen e
seus encantos por interm…dio das institui€•es TimbiraŒ, tal a f†rmula continuamente
assinaladas n‚o por uma l†gica abstrata Krah„, mas fundamentalmente por sua prŠtica.
Vimos que se a aceita€‚o das mercadorias, aumentando a disparidade nas rela€•es
envolvendo os Krah„ e o cupen, de outro lado as prŠticas Timbira tentam a todo instante
submeter essa ocorr‰ncia a seus ditames. ‹Expulsar a hist†ria!Œ o brando que se ouve
nas suas prŠticas cotidianas, mesmo quando entram no jogo capitalista, mediante o
assalariamento e a compra de bens industrializados. Esse mecanismo irŠ se expressar,
secundariamente, na circula€‚o das mercadorias no interior das aldeias, seguindo os
preceitos pr†prios a esses Timbira, mas principalmente pela recusa constante em
declinar o c†digo Krah„ e come€arem a subordinar a despesa suntuŠria ƒ troca e ƒ
apropria€‚o desses bens. Em suma, o descomedimento no uso dos bens a resposta
dada pelos Krah„ para qualquer tentativa de submiss‚o aos ditames capitalistas: aceitam
t‰-los consigo, desde que possam utilizŠ-los segundo seus preceitos.
Assim, ao inv…s de reca•rem em uma altera€‚o de suas prŠticas ordinŠrias, os
krah„ procuram instaurar sua din•mica contra-hist†rica por interm…dio do cupen. A
velha quest‚o ‹at… quando isso vai perdurar?Œ s† pode ser respondida pelos
acontecimentos: enquanto puderem manter o cupen em sua atual posi€‚o no seu
pensamento e principalmente em suas prŠticas eles poder‚o instaurar seu mecanismo de
devir n‚o s† apesar do cupen, mas tamb…m com ele. Com isso quero s† assinalar um
mercadoria.Π(Haug, 1997: 35)
92
fato: os Krahô mostram que é possível devir-cupen! Mesmo a nova formulação do
contato, com o assalariamento e a inserção contínua de novas mercadorias, não inibe o
mesmo mecanismo que sempre arrastou os Krahô para fora da história, formando uma
sociedade de devir.
Essa asserção pode ser posta à prova por intermédio de uma mercadoria em
especial: a bebida alcoólica. Devido à sua característica especial, de induzir o transe,
essa mercadoria pode fazer que o contato com o cupen penetre ainda mais no interior
das relações sociais desses Timbira. Porém, não posso prosseguir essa discussão nesse
ponto do texto, pois esse dilema será o objeto do próximo capítulo.
4. Turkren
94
4. Turkren
4.1. Alcoolismo indígena?
Abordei no cap•tulo precedente a exist‰ncia de um devir Krah„ que passa pelo
cupen, ou melhor, pelas mercadorias do cupen. Trata-se de um processo que n‚o impede
a realiza€‚o das rela€•es sociais Timbira, mas, ao contrŠrio, desloca a a€‚o para um
novo campo de atua€‚o. Se o contato funda preceitos sociais baseados na necessidade
de conviver com a sociedade nacional, o atual processo leva os Krah„ a terem de
equilibrar suas rela€•es n‚o s† entre diversos grupos referenciais que comp•em uma
aldeia e mesmo o territ†rio tribal, mas tamb…m na posse, circula€‚o e consumo
suntuŠrio dos bens industrializados que adentram no circuito Krah„. Dito de outro
modo, as for€as centr•fugas criadas pelo contato com as mercadorias do cupen, bem
como peas rela€•es sociais as quais esses ind•genas t‰m de se submeter para adquirirem
esses g‰neros, levam os Krah„ a resolverem esse novo desequil•brio por interm…dio da
apropria€‚o, circula€‚o e uso descomedido dos bens industrializados no interior da
aldeia.
Essa afirma€‚o pode parecer insustentŠvel, uma vez que o mero ‹desperd•cioŒ
dos recursos n‚o altera o quadro pol•tico dos Krah„ frente a sociedade nacional. Mas
temos de considerar que esse processo opera a atualiza€‚o da din•mica Timbira
abordada no primeiro cap•tulo dessa disserta€‚o. Uma atualiza€‚o e um deslocamento,
por certo, mas uma atualiza€‚o, pois por interm…dio dessa din•mica que os Krah„
conseguem manter ativas as interaۥes entre as unidades parentais matrilocais: sem a
inser€‚o de mercadorias, a prŠtica ritual encontraria s…rios problemas para se perpetuar,
inibindo a demarca€‚o dos diversos grupos referenciais Ž que, como vimos, t‰m
contornos variŠveis para cada indiv•duo e unidade parental matrilocal considerada, s†
podendo ter os contornos definidos em momentos precisos ao longo do tempo e do
espa€o, existindo, inclusive, diversos rituais que visam delimitar esses grupos de
maneira pˆblica em momentos precisos (Cf Melatti, 178: 129-154); e mesmo as
intera€•es cotidianas entre esses grupos s‚o refor€adas, atrav…s do estabelecimento da
rela€‚o credor-devedor abordada no cap•tulo anterior.
Entre todos os bens industrializados que penetram no territ†rio Krah„, as
bebidas alco†licas ocupam um lugar especial, causando inˆmeros problemas para o
95
conv•vio social, dado que seu uso implica em altera€•es no estado de consci‰ncia.
Brigas, discuss•es e os mais diversos desrespeitos a conduta ordinŠria s‚o produzidos
em fun€‚o da utiliza€‚o de Šlcool, de tal sorte que essa quest‚o encarada como
problema pelos pr†prios membros da comunidade. comum haver acusa€•es entre as
geraۥes, uma responsabilizando a outra pelos problemas advindos com o uso de
bebidas alco†licas. Na Pedra Branca, por exemplo, pude escutar mais de uma vez os
jovens referindo-se aos mais velhos
1
da seguinte forma: ‹os velhos n‚o querem saber de
trabalhar, s† de beber cacha€aŒ. Por sua vez os mais velhos replicavam dizendo que ‹os
jovens n‚o querem saber de nada: n‚o dan€am, n‚o cantam, n‚o correm de tora; s†
querem saber de beber cacha€a e jogar bola (futebol)Œ.
Assim, al…m de todas as quest•es anteriormente abordadas, uma aparece como
crucial para a perpetua€‚o da sociedade Krah„, pois o uso dessas subst•ncias constitui
em uma forma de altera€‚o na realiza€‚o da din•mica Timbira. Esse uso ataca o ponto
crucial da prŠtica social, pois todo aquele que utiliza as bebidas alco†licas um
transgressor em potencial dos princ•pios que orientam a vida no interior de uma aldeia
Krah„. Nas palavras dos pr†prios Krah„, a pessoa alcoolizada fica baipã (louca) e n‚o
age segundo os par•metros pr†prios a esse grupo social: o filho pode desrespeitar seu o
pai, os ikritxwy (hõpin e pinxyyjê) n‚o mant‰m toda a cerim„nia e o respeito que
caracteriza essa rela€‚o, de modo que os preceitos que orientam as intera€•es
interpessoais passam a ser desconsiderados.
Essa quest‚o tem sido notada n‚o s† entre os Krah„, mas entre vŠrios grupos
tribais, de tal modo que atualmente um dos problemas mais preocupantes para os
estudiosos dessas popula€•es o alcoolismo indígena. Embora os estudos ainda n‚o
sejam numerosos, existem algumas abordagens realizadas. O primeiro pesquisador
nessa Šrea de estudo norte-americano Donald Horton, em artigo escrito em 1954 e
traduzido em 1965. Neste texto o autor esmera-se em criar uma abordagem do
fen„meno vŠlida para todas as culturas, de modo a se poder descobrir os fatores que
conduzem ao alcoolismo. Seu pressuposto consiste na considera€‚o de que o uso do
Šlcool perfaz uma fun€‚o social, qual seja a de diminuir a ansiedade no interior da
1
Vale destacar um fato curioso nesta aldeia: a gera€‚o dos velhos praticamente faleceu toda nos ˆltimos
cinco anos. As pessoas que ainda n‚o haviam atingido o status de velhos tiveram que se adiantar e tomar
essa posi€‚o, mesmo n‚o possuindo, stricto senso, a idade para tal. Seria at… desnecessŠrio frisar a
import•ncia dos velhos para os povos tribais: s‚o eles os responsŠveis pela condu€‚o da vida na aldeia.
No dizer dos Krah„, eles que d‚o o prü, o rumo, orientando quais os caminhos ser‚o seguidos pela vida
tribal.
96
sociedade. Em decorr‰ncia do acima exposto, este autor construirŠ algumas hip†teses
para explicar o problema, como se v‰ abaixo:
‹1. O beber Šlcool tende a se fazer acompanhar da liberta€‚o de impulsos sexuais e
agressivos. 2. A for€a da resposta alco†lica, em qualquer sociedade, tende a variar
diretamente segundo o n•vel de ansiedade nela existente. 3. A for€a da resposta
alco†lica tende a variar inversamente segundo a for€a da contra-ansiedade provocada
por experi‰ncia penosa durante e depois da bebida.Œ (Hostona, 1965: 412)
Em seu trabalho classifica as sociedades segundo seu poss•vel grau de
ansiedade, com base nas caracter•sticas gerais das mesmas. Alguns fatores causais s‚o
considerados, como a economia da sociedade, a presen€a e a intensidade da feiti€aria
(considerada como uma forma patente de manifesta€‚o da viol‰ncia), a exalta€‚o
sexual, bem como as poss•veis censuras contra as pessoas que cometessem abusos na
utiliza€‚o de bebidas alco†licas. Assim, ele constatarŠ que uma sociedade com a
economia baseada na ca€a e na coleta de alimentos portaria um grau elevado de
ansiedade para seus membros, tudo por conta da suposta dificuldade e incerteza quanto
ƒ subsist‰ncia a que eles estariam submetidos. Caso essa economia viesse acompanhada
da exist‰ncia da feiti€aria, de grande liberdade sexual e n‚o existissem mecanismos de
censura contra aqueles que se utilizassem dessas subst•ncias, haveria uma alta
propens‚o ao alcoolismo entre essa popula€‚o. Deste modo, para Horton as sociedades
tribais estariam praticamente fadadas a conviver com esse tipo de problema.
Todavia, em nenhum momento o autor enfoca como o contato das sociedades
tribais com a civiliza€‚o ocidental poderia influir no grau de ansiedade nestes contextos
sociais. Tudo se passa como se cada sociedade fosse uma totalidade em si mesma e
apartada das demais, a despeito da conviv‰ncia forjada ap†s a empreitada colonial na
Am…rica. Assim, Horton n‚o averigua os efeitos que a conquista colonial pode ter no
•ndice m…dio de ansiedade social.
L•gia Simonian, uma outra estudiosa do fen„meno ora abordado, n‚o ignora
essa ocorr‰ncia. Ao contrŠrio, ela considera que ‹a presen€a da SDA Ž S•ndrome da
Depend‰ncia Alco†lica Ž entre as popula€•es ind•genas se situa no •mbito das rela€•es
inter…tnicas e hist†ricas produzidas no contexto da expans‚o capitalistaŒ (Simonian,
1994: 1). A abordagem de Simonian n‚o invalida a pesquisa de Horton, mas a amplia,
pois visa considerar outros fatores que podem levar a instabilidade socio-emocional ƒs
97
popula€•es ind•genas. A falta ou a precariedade da posse de terras, a explora€‚o
trabalhista e dos recursos naturais, bem como a falta de assist‰ncia estatal s‚o alguns
dos fen„menos levantados pela autora. De posse de um quadro mais global pode-se
compreender que as sociedades ind•genas encontram-se em uma situa€‚o delicada,
envoltas em vŠrios problemas. O impasse no qual as mesmas se encontram levam-nas a
encontrar uma ‹solu€‚oŒ: o uso descomedido de bebidas alco†licas. Em vista disso, a
autora constata que ‹de fato, mais do que uma aquisi€‚o a DAS deveria ser considerada
como imposta aos ind•genas, conforme atestam tanto a iconografia, poesia e a mem†ria
social dos ind•genas.Œ (Idem, ibidem: 5-6).
Uma forma de fuga doentia imposta, nos diz Simonian, e ela n‚o estŠ s† neste
veredicto. Manuel InŠcio Quiles, um estudioso do alcoolismo Bororo, tamb…m tra€a o
mesmo quadro. Quiles nos mostra como o uso do Šlcool vai sendo estrategicamente
introduzido durante e pelo processo de ‹pacifica€‚oŒ desse povo. N‚o que as bebidas
alco†licas fossem estranhas a eles, pois mesmo antes do contato com a sociedade
nacional esse grupo tribal utilizava um fermentado alco†lico. Ele era produzido a
partir da fermenta€‚o do palmito acur• e conhecido como ixóro, com seu uso restrito aos
rituais.
A despeito desse fato, Quiles nos mostra como as pessoas envolvidas na
conquista colonial introduzem o consumo alcoolista, no intuito de minar a autonomia
desse povo. Tudo se passa por conta de um ‹acordoŒ, parecido com o que se passou
com os Krah„ (vide a ‹generosidadeŒ do cupen): os Bororo s‚o convencidos a abrir m‚o
das armas e em troca a sociedade nacional teria de suprir as necessidades dos membros
desse povo ad infinitun. Como se sabe, a tutela oferecida tem limites e a abund•ncia de
v•veres n‚o mais uma constante no interior do conv•vio tribal. Por conseguinte, a
pauperiza€‚o experimentada ap†s essa ‹ciladaŒ levou os Bororo a forjarem uma linha de
fuga, o alcoolismo.
Existem outras abordagens sobre o fen„meno, em especial por parte das a€‚o
indigenista das ONGs (Organiza€•es N‚o Governamentais) e dos †rg‚os estatais que
atuam entre os povos ind•genas. Em geral as posturas dessas organiza€•es s‚o expressas
na grande imprensa, associando a exist‰ncia do alcoolismo ind•gena ao contato com a
sociedade nacional e suas conseq‘‰ncias mal…ficas para esses povos Ž tais como as
dificuldades de obten€‚o da subsist‰ncia Ž levando-os ao alcoolismo ap†s a conquista
colonial.
98
Vimos que as dificuldades em reproduzir a abund•ncia tamb…m manifestam-se
entre os Krah„. Pode ser que o n•vel de ansiedade no seio dessa sociedade torne-se
bastante elevado, entretanto, n‚o creio ser poss•vel reduzir a exist‰ncia do uso
descomedido de bebidas alco†licas a esses fatores. Como se pode entrever, a
dificuldades p†s-contato est‚o presentes em boa parte das sociedades ind•genas nas
quais esse a dessas subst•ncias se faz presente. Por…m, um dado tomado como um
pressuposto quase ‹naturalŒ, qual seja, a ˆnica solu€‚o encontrada pelos ind•genas seria
cair no v•cio abjeto do alcoolismo.
Crio que a quest‚o deveria ser colocada de outro modo, isto …, n‚o mais
considerar a simples asser€‚o ‹os •ndios est‚o viciados por culpa do contatoŒ. preciso
refletir sobre como e porqu‰ efetivamente a aceita€‚o do Šlcool, bem como nas
formas peculiares de apropria€‚o dessa mercadoria. Por certo estamos defronte uma
forma de desordem, mas serŠ que o termo ‹alcoolismoŒ o que melhor explica essa
condi€‚o? Afinal, como Quiles adverte, ‹todos os observadores consultados concordam
em afirmar que o hŠbito de beber Šlcool entre os Bororo n‚o seguem os mesmos
padr•es da popula€‚o em geralŒ (Quiles, 1999: 7). Assim, realizarei alguns
apontamentos n‚o sobre o alcoolismo, mas sim sobre o Šlcool e os psicotr†picos em
geral, visando aprofundar a reflex‚o sobre o tema.
4.2. O álcool e seu significado
algum tempo temos negligenciado um aspecto peculiar ao uso de bebidas
alco†licas e dos psicotr†picos em geral, qual seja sua vincula€‚o a uma vontade de
potência. Trata-se daquela concep€‚o presente em Friedrich Nietzsche, para quem o
sentido da exist‰ncia n‚o deve ser buscado em universos ‹espirituaisŒ transcendentes, os
quais remeteriam para uma esfera metaf•sica a saciedade dos impulsos humanos. Ao
contrŠrio, ter•amos que nos reportar ƒs pr†prias ocorr‰ncias presentes no mundo no qual
vivemos. Nas palavras de Nietzsche, ‹(”) a pr†pria vida […] um instinto para o
crescimento, para a dura€‚o, para o acˆmulo de for€as, para o poder (”). Um agir, para
99
o qual o instinto da vida tende, tem no prazer
*
sua pr†pria forma de agir corretoŒ.
(Nietzsche, 1996: 29-30 e 34).
Ora, todo o discurso sobre as subst•ncias psicotr†picas ignora esse aspecto da
quest‚o. Neles a ˆnica faceta dos usuŠrios dessas subst•ncias justamente a da nega€‚o
dessa pot‰ncia. Tudo se passa como se todo uso de subst•ncias psicoativas fosse
imediatamente uma busca da morte, um empreendimento mort•fero. um discurso
triste, que visa propagar uma alerta, qual seja a de que a busca para alcan€ar a vitalidade
atrav…s da experimenta€‚o de subst•ncia psicoativas s† pode reverberar em uma face:
desola€‚o, v•cio, depend‰ncia e consequentemente, a morte do usuŠrio. isso, por
exemplo, o que afirmam os irm‚os Emanuel e Ricardo Vespucci. O primeiro um
m…dico com muitos anos de experi‰ncia no tratamento de dependentes qu•micos. O
segundo um jornalista e ajuda o irm‚o a escrever um livro divulgando os riscos
decorrentes da utiliza€‚o das subst•ncias conhecidas genericamente como ‹drogasŒ. O
alerta baseia-se em uma descoberta cient•fica, qual seja:
‹Existe, de fato, uma parcela de seres humanos Ž entre 12% e 15% da popula€‚o
mundial Ž fisicamente predisposta ƒ depend‰ncia qu•mica da quase totalidade das
drogas. gente que n‚o processa as subst•ncias t†xicas como a maioria. Costuma-se
dizer que t‰m um defeito org•nico anŠlogo ao dos diab…ticos, s† que, enquanto estes n‚o
conseguem trabalhar adequadamente o a€ˆcar, os alco†latras e os drogadictos n‚o
sabem lidar com o Šlcool e as outras drogas, expondo-se sem defesa a seus efeitos
t†xicos. Com o tempo, o organismo defeituoso (na verdade, doente) vai-se habituando a
funcionar sob intoxica€‚o e chegarŠ a um ponto em que perderŠ inteiramente a
capacidade de a€‚o, se n‚o receber mais droga. EstarŠ, ent‚o, em estado de depend‰ncia
qu•mica.Œ (Vespucci & Vespucci, 1999 (b): 20)
Vemos que a preocupa€‚o fundamental para esses especialistas alertar sobre os
riscos decorrentes do uso continuado de subst•ncias psicoativas. Entretanto, atualmente
boa parte da popula€‚o conhece esses riscos, e ainda assim mant…m seu padr‚o de
conduta em rela€‚o a essas subst•ncias. O que leva as pessoas a procederem dessa
maneira? A abordagem m…dica sobre o assunto nos se ocupa desse fato, contentando-se
em observar um tipo de uso patol†gico: quer se trate de um distˆrbio psicol†gico, ou de
uma causalidade associada a uma desfun€‚o org•nica de qualquer natureza, o problema
*
Grifo meu.
100
seria que o contato do homem (ou ao menos de uma parcela dos homens) com as drogas
os levaria inevitavelmente ao v•cio.
Um fato nunca acentuado nesses estudos, isto …, a depend‰ncia f•sica s† pode
se estabelecer pelo uso continuado e em quantidades crescentes por um largo per•odo de
tempo. preciso considerar n‚o s† os fatores que levam os indiv•duos a contra•rem esse
tipo de utiliza€‚o, mas tamb…m aqueles mais primordiais que levam os homens a
manterem contato com as subst•ncias psicoativas desde tempos imemoriais. Com isso
n‚o quero negar o fato de que um parcela cada vez maior da popula€‚o mundial vem
tomando contato com os psicotr†picos, havendo um percentual dessa popula€‚o
efetivamente caindo no v•cio, quer se trate de subst•ncias l•citas, como as bebidas
alco†licas e o tabaco, quer seja de il•citas, como a maconha ou a coca•na. De nada
adianta tentar encontrar um culpado de modo manique•sta, o trŠfico internacional de
drogas, ou a propaganda ostensiva nos meios de comunica€‚o de massa, ou as culturas
marginais que se formam. O fato que os psicotr†picos foram e s‚o utilizados pelo
homem desde tempos imemoriais, deste modo, seria auspicioso aqui buscar qual a for€a
que liga o homem a essas subst•ncias.
Pessoalmente, prefiro atribuir a exist‰ncia desse costume ƒ pot‰ncia identificada
por Charles Baudelaire em seu livro Paraísos artificiais (1999). Diz-nos o cr•tico e
literato franc‰s que existem alguns dias nos quais um estado de esp•rito que pode ser
sintetizado pela palavra felicidade aflora no homem, sem pedir licen€a, ou mesmo
enviar um aviso pr…vio. Da• decorre que:
‹Esta acuidade de pensamento, este entusiasmo dos sentidos e do esp•rito devem
ter, em todos os tempos, aparecido ao homem como o primeiro dos bens; eis por que,
considerando apenas a volˆpia imediata, sem se preocupar em violar as leis de sua
constitui€‚o, buscou na ci‰ncia f•sica, na farmac‰utica, no mais grosseiros l•quidos, nos
perfumes mais sutis, em todos os climas e em todos os tempos, os meios de escapar,
mesmo que por algumas horas, ƒ sua morada de lobo e, como disse o autor de Lazare:
–Tomar o para•so de um s† golpe•. (”) Este senhor vis•vel da natureza (falo do homem)
quis, portanto, criar o para•so pelas drogas, pelas bebidas fermentadas, semelhante a um
man•aco que substituiria os m†veis s†lidos e os jardins verdadeiros por cenŠrios
pintados sobre tela e emolduradosŒ. (Baudelaire, 1999: 11, 12)
101
Al…m de mais bela, e mesmo trŠgica, a vers‚o de Baudelaire me parece mais
pr†xima da experi‰ncia humana. A busca pela felicidade, pela constitui€‚o de rela€•es
fora dos padr•es constitu•dos no dia-a-dia, impele o homem a meios e instrumentos de
‰xtase, construindo castelos e pa•ses plenos de sabor e de prazer, inating•veis pela
simples reprodu€‚o da vida cotidiana. A busca pela exaspera€‚o dos sentidos um
tratado de inaceita€‚o da vida como tal ela …. Um caminho de fuga, constru•do a partir
das dores e dos descaminhos que se interp•em ƒqueles que intentam trilhar por
incertezas criadas ativamente pela pr†pria a€‚o humana. Mas escute o apelo de quem
vive e entenda como e porqu‰ procede-se por meios artificias: de nada vale a vida sem
que nela exista um duplo colorido!
Imbu•do dessa perspectiva, Baudelaire voz ao clamor contido no vinho,
mostrando a magia que se processa no homem que dele se apropria. Ou€a a voz do
vinho dirigida ao homem, sempre a dizer:
‹(”) N‚o sou ingrato; sei que lhe devo a vida. Sei que lhe custei de trabalho e de
sol sobre os ombros. Voc‰ me deu a vida, e eu o recompensarei por isso. Pagarei minha
d•vida com generosidade; porque sinto uma alegria extraordinŠria quando caio no fundo
de uma garganta alterada pelo trabalho. O peito de um homem honesto uma morada
que me agrada muito mais que as adegas melanc†licas e insens•veis. uma tumba
alegre onde eu cumpro meu destino com entusiasmo. Fa€o no est„mago do trabalhador
um grande rebuli€o e da•, em escadas invis•veis, subo ao seu c…rebro onde executo
minha dan€a suprema.
Ouve agitar-se em mim e ressoar os poderosos refr‚os dos tempos passados, os
cantos de amor e de gl†ria? Sou a alma da pŠtria, sou metade galante, metade militar.
Sou a esperan€a dos domingos. O trabalho torna prósperos os dias, o vinho torna
felizes os domingos. Os cotovelos sobre a mesa da casa e as mangas arrega€adas, assim
voc‰ me glorificarŠ e ficarŠ verdadeiramente contente. (”)
Cairei no fundo de seu peito como uma ambrosia vegetal. Serei o gr‚o que fertiliza
o solo dolorosamente escavado. Nossa •ntima reuni‚o criarŠ a poesia. Para n†s dois
faremos um Deus e flutuaremos ao infinito, como os pŠssaros, as borboletas, os filhos
da Virgem, os perfumes e todas as coisas aladas•.Œ (Baudelaire, 1999: 216-7)
evidente que o uso de psicotr†picos constitui-se em uma fuga dos padr•es
ordinŠrios. Mas o carŠter dessa fuga n‚o imediatamente mort•fero, pode ser o ˆnico
102
consolo dos aflitos, a tŠbua de salva€‚o para almas desesperadas, ou mesmo o quinh‚o
de for€a necessŠrio para a viv‰ncia cotidiana. Ademais, ‹hŠ sobre o globo terrestre uma
vasta multid‚o sem nome, cujo sono n‚o basta para adormecer os sofrimentos. O vinho
torna-se para ela contos e poemasŒ. (1999: 219). De tal sorte que para Baudelaire a
•ndole adquirida pelo vinho correlata ƒ do homem que resolve-se por trilhar seus
caminhos exasperados: ‹HŠ b‰bados perversos; s‚o pessoas naturalmente perversas. O
homem mau torna-se execrŠvel, assim como o bom torna-se excelente.Œ (Baudelaire,
1999: 228)
A partir dessa asser€‚o, compreende-se o motivo pelo qual a maioria dos estudos
aborda a depend‰ncia ƒs subst•ncias psicoativas como uma forma de problema
individual. que se ressaltar, por…m, o veio coletivo contido no uso dessas
subst•ncias. Baudelaire mesmo irŠ nos mostrar que o vinho pode aproximar as pessoas,
pois ‹um homem que s† bebe Šgua tem um segredo a esconder de seus semelhantes.Œ
(1999: 220). Por conseguinte, evidencia-se um primeiro efeito social decorrente do uso
de psicotr†picos. Detenhamos nosso olhar sobre esse aspecto.
HŠ muito tempo o homem forjou para si o ‹artif•cioŒ das subst•ncias psicoativas,
n‚o arredando o p… ao largo delas. Tomemos o testemunho dos gregos antigos e
encontraremos a figura sagrada de Dioniso, o Deus sempre lembrado por sua associa€‚o
ao vinho, ao qual eram dedicados rituais, com dan€as e oferendas dirigidas a esse nume.
Eur•pedes nos narra a saga de seu ingresso entre os gregos na trag…dia Bacas. Dioniso
apresentado como o filho da mortal S‰mele, assassinada no momento da concep€‚o do
Deus das vinhas e dos sacros bacanais pelo trov‚o fertilizador de seu pai, Zeus. Se
Dioniso nos apresentado como filho de terras tebanas, fez circuito por todo o mundo
oriental antigo, antes de reivindicar seu lugar no pante‚o ol•mpico
2
, indicando a
exist‰ncia dessa entidade em outras paragens antes de se apossar dos cora€•es gregos.
Ao apresentar-se aos gregos, Dioniso assume a forma humana e conclama todos
a participarem de seus des•gnios. Exige que lhe dirijam o devido respeito e a obla€‚o, na
forma dos sacros bacanais onde os cultores venham devidamente paramentados,
oferecendo sacrif•cios a ele, dan€ando em sua honra e possu•dos em vivo transe pelo
2
Como nos diz Jaa Torrano, tradutor da obra que nos apresenta um estudo introdut†rio sobre o tema, ‹As
Bacas conclamam-se a trazer Dioniso das montanhas fr•gias para as amplas ruas da Gr…cia, a
incorporarem esse culto selvŠtico praticado em lugares ermos na vida e no contexto pol•tico da cidade.Œ
(Torrano, 1995: 20)
103
Deus mesmo
3
. A recompensa para aqueles que se entregam a essas prŠticas, entre outras
coisas, uma s…rie de efeitos benfazejos. Por essas prŠticas Dioniso retira a fatiga dos
que dan€am nos rituais de tirso em punho, com a cabe€a coroada de heras e possu•dos
da santa embriagues propiciada aos seus cultores; acaba com a dist•ncia entre deuses e
homens, adentrando em vivas cores no peito daqueles que o honram e dotando-os de
poderes excepcionais, como podemos ver pela vers‚o po…tica de Eur•pedes, mediante o
relato de um pastor que viu as bacas no raiar do dia:
‹Nos bra€os tinham cabritos e bravios
filhotes de lobo e dava-lhes alvo leite:
as rec…m-paridas com o seio ainda cheio
deixam seus filhos e coroam-se de hera,
de carvalho e de videira florida.
Com o tirso algu…m bateu na pedra
Donde orvalhado jorrou d•Šgua manou,
Outra lan€ou a hŠstea no ch‚o da terra
E a• o Deus ergueu fonte de vinho;
Quem tinha anseio da alva bebida
Com as pontas dos dedos cavando a terra
Tinha jactos de leite; dos tirsos
Hederosos doce fluxo de mel pingava.Œ (Eur•pedes, 1995: 87)
Em uma s† palavra, as prŠtica dionis•acas conduzem o homem ao reencontro,
tanto para com seus semelhantes, quanto para com as pot‰ncias da vida. A licen€a
po…tica de Eur•pedes nos permite pensar que o dionis•aco traz ƒ tona toda uma s…rie de
‹poderesŒ adormecidos pelas conven€•es ordinŠrias. Nas palavras de Friedrich
Nietzsche:
3
Prossegue Torrano: ‹A revela€‚o misteriosa de Dioniso e a compreens‚o destes mist…rios dionis•acos
exigem que se d‰ ƒ pr†pria exist‰ncia a forma que se revela nestes mist…rios: s† assim, com a condi€‚o de
que se realize na pr†pria exist‰ncia a verdade revelada, pode-se compreender esta revela€‚o, pois
104
‹(”) Ser-nos-Š dado lan€ar um olhar ƒ ess‰ncia do dionisíaco, que trazido a n†s,
o mais de perto poss•vel, pela analogia da embriaguez. Seja por influ‰ncia da
beberragem narc†tica, da qual todos os povos e homens primitivos falam em seus hinos,
ou com a poderosa aproxima€‚o da primavera a impregnar toda a natureza de alegria,
despertam aqueles transportes dionis•acos, por cuja intensifica€‚o o sujeito se esvanece
em completo auto-esquecimento. (”) Agora o escravo homem livre, agora se rompem
todas as r•gidas e hostis delimita€•es que a necessidade, a arbitrariedade ou a –moda
impudente• estabeleceram entre os homens. Agora, gra€as ao evangelho da harmonia
universal, cada qual se sente s† unificado, conciliado, fundido com seu pr†ximo, mas
um s†, como se o v…u de Maia tivesse sido rasgado e, reduzido a tiras, esvoa€asse diante
do misterioso Uno-primordial. Cantando e dan€ando, manifesta-se o homem como
membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a falar, e estŠ a ponto
de, dan€ando, sair voando pelos ares. De seus gestos fala o encantamento. Assim, como
agora os animais falam e a terra leite e mel, do interior do homem tamb…m soa algo
de sobrenatural: ele se sente como um deus, ele pr†prio caminha agora t‚o extasiado e
enlevado, como vira em sonho os deuses caminharem. O homem n‚o mais artista,
tornou-se obra de arte: a for€a art•stica de toda a natureza, para a deliciosa satisfa€‚o do
Uno-primordial, revela-se aqui sob o fr‰mito da embriaguez.Œ (Nietzsche, 1992: 30 e
31)
A despeito desses sinais, o mito narra como os santos baqueumas n‚o s‚o aceitos
imediatamente pelos conterr•neos do Deus. Seu lugar no pante‚o grego negado na
figura de Penteu, governante e senhor de Tebas, cujos esfor€os centram-se em uma
violenta persegui€‚o ao Deus, tido por ele como um feiticeiro l•dio. Advogando em
nome da ‹raz‚oŒ, Penteu condena os tebanos, como alertam Tir…sias, o m•tico advinho,
e Cadmo, o fundador da cidade, ao serem impedidos de se conduzirem livremente ƒ
sacra bacanal dirigida ao Deus:
‹eu, pois, e Cadmo, de quem tu escarneces,
de heras nos coroaremos e dan€aremos em coro,
grisalha parelha, todavia dan€ar preciso,
e n‚o combaterei Deus por ti persuadido.
realmente s† se pode compreend‰-la na forma da vida divina presente no ser que somos n†s, homens
mortaisŒ (Torrano, In Eur•pedes, 1995: 26)
105
Enlouqueces como d†i mais: nem com drogas
Terias rem…dios nem sem elas te adoeces.Œ (Eur•pedes, 1995: 65 e 67)
Em decorr‰ncia desses fatos, Dioniso agrilhoa as mulheres da cidade Ž
expressas na narrativa pelas filhas de Cadmo (inclusa a• a m‚e de Penteu, ’gave) Ž com
uma forma de loucura e as arrasta da cidade para as montanhas ao redor, onde elas, ƒ
for€a dessa possess‚o, ir‚o erguer seu culto a ele. O desenrolar da trama largamente
conhecido: os esfor€os de Penteu em prender e executar o Deus em figura humana
malogram, at… o momento em que o pr†prio governante tebano dissuadido por Dioniso
Ž que o possui com a forma h•brica de embriagues Ž a se transvestir de baca e ir
espionar furtivamente os rituais bŠquicos das mulheres nos arredores da cidade.
Descoberto, Penteu cruelmente assassinado pela pr†pria m‚e, ’gave, a qual possu•da
pela loucura dionis•aca n‚o reconhece o pr†prio filho, confundindo-o com uma ‹ca€aŒ
(um filhote de le‚o) e despeda€ando-o completamente com suas pr†prias m‚os.
Eis assim expresso um dos sentidos do culto a Dioniso: a n‚o aceita€‚o de seus
ditames e de seus dons traz a trag…dia ƒ Tebas, o pre€o da imposi€‚o do Nume ƒ cidade
a expuls‚o daqueles contrŠrios ao mesmo
4
, que aparecem atrav…s da morte de Penteu e
o desterro daqueles que lhe eram ligados pelo sangue (incluindo sua m‚e, tias e av„).
Os elementos expressos na trag…dia nos levam a crer na exist‰ncia de duas
manifesta€•es do Deus nos homens: uma espont•nea e outra for€ada. Em outras
palavras, a recusa em aceitar a exist‰ncia dos sacros des•gnios n‚o os fazem deixar de
existir. Ao contrŠrio, conduzem a uma forma de loucura nada apreciŠvel, como se v‰
nas palavras de Jaa Torrano, o tradutor da obra teatral de Eur•pedes e estudioso do tema
em voga:
‹As filhas de Cadmo aguilhoadas pelas –cadelas de Fˆria• (Lýssas kýnes) e o
–furioso espi‚o• (lyssóde katáskopon) identificam-se na possess‚o pela Fˆria (Lýssa), a
loucura raivosa e destrutiva com que Dioniso lhes pune a recusa da divindade do Deus;
as mulheres do coro l•dias s‚o tamb…m –Loucas• (Mainádes), mas a loucura destas
b‰n€‚o do Deus que assim as privilegia com seus dons salutares e beat•ficos, porque o
reconheceram e cultuam.Œ (Torrano, In Eur•pedes, 1995: 37)
4
‹Esta execu€‚o visa fazer o condenado (re-)conhecer o filho de Zeus Dioniso manifesto com perfei€‚o
Deus Ž o mais cruel para os homens e o mais doce. Porque Penteu recusou-se de modo irrefutŠvel a
aceitar a mais doce face do Deus, sem poder evitar contemplŠ-la.Œ (Torrano, In Eur•pedes, 1995: 32).
106
Vemos, pois, um sentido expresso no mito grego: em si os estados extŠticos n‚o
trazem um significado absoluto, apresentam-se como uma forma sagrada frente ao
homem. Mas este ˆltimo que irŠ atribuir um sentido a essa realidade, isto …, a recusa
desses dons beat•ficos leva ao descomedimento, ƒ loucura abjeta. A aceita€‚o, por sua
vez, conduz o homem aos mais altos des•gnios, ƒ constru€‚o de um elo entre todos,
como bem nos mostrou Nietzsche.
mais a ser dito, pois n‚o simplesmente uma coes‚o indiferenciada entre
todos aqueles que se utilizam de subst•ncias psicoativas. Como nos mostra N…stor
Perlongher, em seu belo artigo intitulado Droga e êxtase, o estudo comparativo entre os
usos de psicotr†picos em culturas distintas, aponta para um quadro de conseq‘‰ncias
particulares a cada caso, como se abaixo:
‹Os •ndios, que tomam peiote no contexto institucional de um rito tradicional,
experimentam sentimentos de tipo extŠtico, continuam respeitando suas regras de vida
social e reafirmam, a partir dos conteˆdos da vis‚o, sua f… religiosa. Contrariamente, os
brancos apresentam uma grande instabilidade de humor que oscila entre a euforia e a
depress‚o, tendem a manifestar condutas desinibidas de ruptura com as regras sociais e
n‚o superam o n•vel puramente alucinat†rio da experi‰ncia.Œ (Perlongher, 1991a: 79)
Mas n‚o apressemos nossas conclus•es e vejamos outro caso de uso de
psicotr†picos nos povos da antig‘idade clŠssica. Na Roma anterior ƒ heleniza€‚o
haviam ritos nos quais se utilizava o vinho, estando essa manifesta€‚o associada ƒ deusa
V‰nus. MŠrio Perniola, no livro Pensando o ritual (2000), irŠ tecer algumas
consideraۥes a esse respeito. Nos diz o autor que os ritos romanos buscavam agradar
aos deuses, mas de uma maneira distinta do que estamos acostumados a pensar. Se na
Gr…cia o sentido dos rituais bŠquicos era o de imolar um mal originŠrio por interm…dio
do sacrif•cio oferecido ao Deus
5
, na Roma antiga, ao contrŠrio, parece haver uma
opera€‚o simuladora na qual n‚o um mal originŠrio a ser expiado pelo ritual, mas t‚o
somente o oferecimento de uma gra€a ao Deus que aceita livremente a venera€‚o que
5
‹Ren… Girard v‰ em tal costume uma manifesta€‚o do sacrif•cio, cuja ess‰ncia, na sua opini‚o, consiste
exatamente no exerc•cio de uma viol‰ncia ritualizada que purifica e protege a comunidade do
desencadeamento de uma viol‰ncia ilimitada e total; na raiz dessa teoria estŠ o pressuposto de que s† a
repeti€‚o ritual da viol‰ncia, ao provocar um efeito catŠrgico e ben…fico, afasta e preserva a sociedade da
barbŠrie.Œ (Perniola, 2000: 55).
107
lhe dirigida. Pelo ritual expressa-se, outrossim, o deslocamento sem maiores traumas
dos instintos sacros a serem consagrados; assim, as oferendas n‚o precisam ser feitas
pelo sangue que pode ser ‹substitu•doŒ pelo vinho. Por conseguinte:
Castus definido como aquele que se at…m aos ritos, que segue escrupulosamente
as cerim„nias; o rito sem mito romano abandona os conteˆdos fixo, que t‰m uma
identidade precisa. A purifica€‚o parece tornar-se exatamente o contrŠrio daquilo que
era na Gr…cia: n‚o a localiza€‚o e a expuls‚o de alguma coisa que se considera impura
mas o esvaziamento ritual de todos os aspectos da vida.Π(Perniola, 2000: 59)
Por interm…dio dessa din•mica, n‚o se afirma uma busca pela perfei€‚o
estabelecida em moldes m•ticos, dados pela fala dos deuses
6
. Ao contrŠrio, pr†prio da
religiosidade romana a afirma€‚o da prŠtica como a inst•ncia principal, esvaziando da
fala divina a dire€‚o da condu€‚o da vida humana. Ao cultor, cumpre estar em acordo
com as situaۥes que surgirem em seu caminho, afinal:
Veneratio dizer sim ao mundo, e, portanto, abandono de toda atitude de
ressentimento, de cr•tica preconcebida ou de nega€‚o sistemŠtica do presente.
imposs•vel ser charmoso se n‚o se estiver em paz com o mundo, com o esp•rito do
pr†prio tempo, com aquilo que estŠ ƒ volta.Œ (Idem, ibidem: 43)
Assim, pelos rituais romanos conhecemos uma outra faceta poss•vel do uso de
subst•ncias psicoativas que n‚o se constr†i unicamente atrav…s do efeito de coes‚o
social (o Uno-primordial de Schopenhauer apropriado por Nietzsche), mas tamb…m
existe a possibilidade de se construir um consentimento com a vida tal como ela se
manifesta. Por certo uma opera€‚o de deslocamento necessŠria (no caso romano, os
rituais a executam e recebem a anu‰ncia do Nume). Mas essa forma de ‹pragmatismoŒ
pode se processar tamb…m a partir dos estados alterados de consci‰ncia e n‚o s† pelos
ditames racionalistas constru•dos posteriormente pela civiliza€‚o ocidental
contempor•nea.
6
‹Parece que os romanos, no mesmo momento em que introduzem a venera€‚o, tiram a palavra dos
deuses, privando-nos do mito, da narra€‚o de suas empresas.Œ (Perniola, 200: 43)
108
Foi mostrado como um tipo de experi‰ncia criadora pode estar associada ao uso
de subst•ncias psicotr†picas e, em todos os casos apresentados, o rito aparece como
condi€‚o fundamental. de se inquirir o motivo pelo qual o mesmo n‚o se processa na
utiliza€‚o feita nas sociedades capitalistas. Vemos claramente que n‚o se trata de uma
fei€‚o tŠcita dessas subst•ncias, que podem muito bem vir a criar uma inst•ncia social
plena de sentido e realiza€‚o. Assim, temos de nos acercar um pouco melhor sobre o
contexto s†cio-cultural gerado pela utiliza€‚o nas sociedades modernas.
4.3. (Des)fundando um uso de psicotrópicos
muito tempo que as sociedades do ocidente europeu travam contato com os
psicotr†picos, como o pr†prio relato dos gregos e romanos clŠssicos nos deixa entrever.
Entretanto, um novo tipo de rela€‚o com essas subst•ncias criado no alvorecer da
modernidade. Temos vŠrios ind•cios de como essa din•mica vai sendo criada a partir
daqueles que usam as mais diversas drogas, provenientes dos mais remotos recantos da
terra. Um ar de exotismo e de descentramento em rela€‚o ƒ pr†pria sociedade mais
ampla sempre acompanhou esses experimentos. Sem medo de incorrer em erro, pode-se
dizer, inclusive, que a utiliza€‚o se instaura como uma forma de panac…ia beat•fica para
todos os males, ignorando-se os poss•veis efeitos fisiol†gicos e morais adversos do uso
dessas subst•ncias. Ao menos o que nos afirma, ou melhor, nos confessa Thomas de
Quincey (1982), um aristocrata ingl‰s que viveu na passagem entre os s…culos XVIII e
XIX. Tomarei seu texto como uma porta de entrada para a cria€‚o do padr‚o ocidental
de uso de subst•ncias psicoativas.
Seu texto uma tentativa de explanar aos seus pares as del•cias e os perigos
contidos no †pio. N‚o estamos diante de um estudo ‹cient•ficoŒ, ou mesmo ‹m…dico-
filos†ficoŒ, como seria pr†prio ƒ …poca em que viveu, mas sim, de um relato escrito em
primeira pessoa e com um objetivo expresso: ‹a moral deste relato dirigida ao
comedor de ópio e, por conseguinte, sua aplica€‚o limitada. Se ele aprender a temer e
a tremer, terei conseguido o bastanteΠ(Quincey, 1982: 79). A despeito desse intento
manifesto, sua obra obteve grande sucesso entre os n‚o versados nas artes do †pio
quando de sua publica€‚o, no final de agosto de 1921. Talvez pelo tom de diŠlogo
109
aberto e franco para com seus os pares socais, ou mesmo pela possibilidade de lan€ar
luz sobre um tema que ganhava corpo ƒ …poca. Mas o fato que a confiss‚o de Quincey
enceta uma promessa de reden€‚o contida nas subst•ncias psicoativas, expressa na sua
pr†pria experi‰ncia pessoal em rela€‚o ao †pio. Muitos s‚o os caminhos que podem
conduzir um homem ƒ essa experimenta€‚o Ž no caso de Quincey, foi a busca por
aliviar uma doen€a aguda no est„mago, a qual causava-lhe uma grande dor f•sica.
Todavia, o resultado sempre propriciava ao ne†fito uma grande e grata surpresa, como
se v‰ abaixo:
‹Nenhuma de minhas lembran€as mortais superior ƒquela, com a hora, o lugar, e
a pessoa que me p„s em contato pela primeira vez com a droga celestial.
Chegando ƒs minhas acomoda€•es, pode-se imaginar que n‚o perdi tempo algum
em tomar a quantidade prescrita. Eu era evidentemente um ignorante na arte e nos
mist…rios do †pio, e o que tomei, tomei sob todas as desvantagens. Mas tomei, e dentro
de uma hora, oh c…us, que revolu€‚o! Que ascens‚o dos mais profundos abismos de
meus esp•rito! Um apocalipse dentro de mim! O ter me aliviado das minhas dores era
agora insignificante diante de meus olhos: todo aspectos negativo foi tragado pela
imensidade daqueles efeitos positivos que se abriram diante de mim, no abismo da
alegria ent‚o repentinamente revelada. Havia encontrado uma panac…ia para todos os
males humanos: aqui estava o segredo da felicidade, sobre a qual os fil†sofos haviam
discutido durante tantos anos. A felicidade podia ser comprada com uma moeda e
carregada no bolso do casaco: ‰xtases portŠteis poderiam ser engarrafados e a paz de
esp•rito poderia agora ser remetida em gal•es pela dilig‰ncia do correio. Mas, falando
desse modo, o leitor poderŠ pensar que estou brincando. Posso assegurar, entretanto,
que ningu…m brincarŠ muito tempo quando estiver mexendo com o †pio.Œ (Quincey,
1982: 48-9)
Eis a promessa: reden€‚o! Al•vio imaculado para todos os males, embora n‚o
destitu•da de riscos. Quincey mesmo utiliza-se do †pio por vŠrios anos sem vivenciar
nenhum problema em decorr‰ncia do uso, tudo por conta de uma f†rmula aplicada em
sua experi‰ncia pessoal
7
. Seguindo-se esses ditames, n‚o se cai na letargia e a condu€‚o
7
‹(”) bem melhor consultar o Dr. Buchan, como fiz, pois jamais esqueci a excelente sugest‚o desse
digno homem e sempre –tive o cuidado de evitar mais de vinte e cinco on€as de lŠudano•. Por essa
modera€‚o e temperan€a no uso do artigo, devo receitŠ-lo, suponho, pois at… agora, pelo menos, sou
ignorante e inocente dos terrores que o †pio deve guardar para aqueles que abusam dele.Œ (Quincey,
1982: 58)
110
da vida ordinŠria n‚o imposs•vel, como o autor assevera em seu relato
8
. que se
acentuar, por…m, que a melhor maneira de se utilizar dessa subst•ncia isolando-se dos
demais, na solid‚o e no sil‰ncio. De tal sorte que a beatitude adquire contornos de uma
‹(”) doutrina da verdadeira igreja na quest‚o do †pio, uma igreja na qual suponho ser o
ˆnico membro: alfa e „mega.Œ (Quincey, 1082: 51). Por…m, os praticante dessa seita n‚o
est‚o fora de perigo. Fugindo da f†rmula de uso mŠximo acima prescrita, tudo se p•e a
perder:
‹Assim sendo, repito: no momento em que comecei a tomar †pio diariamente, n‚o
pude fazer outra coisa. (”) O comedor de ópio encontrarŠ, no final algo mais opressivo
e atormentador: a sensa€‚o de incapacidade e debilidade, as perturba€•es provocadas
pelo descuido ou adiamento dos trabalhos de cada dia, e o remorso que freq‘entemente
deve exasperar o ferr‚o desses males para uma mente reflexiva e consciente. O comedor
de †pio n‚o perde nenhuma de suas sensibilidades morais ou aspira€•es: ele deseja e
espera, t‚o seriamente como nunca, realizar tudo o que considera poss•vel, e sente-se
levado pelo dever. Mas sua percep€‚o intelectual do poss•vel foge infinitamente ao seu
poder, n‚o apenas na execu€‚o, mas at… no seu poder de planejarŒ (Quincey, 1982: 59;
69-70)
E assim, v‰-se que em seu pr†prio nascedouro a tentativa de criar para•sos
mostra-se improf•cua. O plano de uma dosagem ideal se perde, e com ele toda a
din•mica que ligava o usuŠrio aos seus semelhantes. Mas n‚o nos apressemos em
detalhar um padr‚o de uso e ou€amos outra voz antes de proferir tal veredicto vexat†rio
sobre a experi‰ncia com os psicotr†picos entre os modernos ocidentais. Voltemos a
Charles Baudelaire e seus Paraísos artificiais. No seu estudo sobre os comedores de
haxixe ele procura dar ao leitor todas as informa€•es bŠsicas que n‚o faltariam ƒs mais
modernas monografias cient•ficas: origem da subst•ncia (incluindo sua classifica€‚o
bot•nica), suas vŠrias designa€•es, seu modo de preparo e de utiliza€‚o. Mas a grande
oferta de seu texto estŠ nos relatos sobre os efeitos advindos do uso desta subst•ncia.
8
‹Os comedores de †pio turcos s‚o capazes de permanecer sentados, como muitas estŠtuas eq‘estre,
sobre troncos de Šrvores t‚o estˆpidos como eles mesmos. Mas, para que o leitor possa Ter uma id…ia de
como o †pio afeta a mente de um cavaleiro ingl‰s, irei (por estar tratando do assunto ilustrativamente
mais do que por argumenta€‚o) descrever a maneira como eu passei uma noite em Londres, durante o
per•odo entre 1804 e 1812. SerŠ visto que, pelo menos, o †pio n‚o me levou ƒ total solid‚o, e muito
menos ƒ inani€‚o, nem ao estado de torpor dos turcos.Œ (Quincey, 1982: 52)
111
O autor nos alerta que aqueles que esperam o contato com mundos mirabolantes
n‚o encontrar‚o seu s•tio no uso do haxixe. A despeito da variedade poss•vel de rea€•es
individuais, o mais comum existir uma esp…cie de potencia€‚o do homem
9
que se no
dia-a-dia, de tal sorte que, ‹existem (”) fen„menos que se reproduzem com bastante
regularidade, sobretudo nas pessoas de temperamento e educa€‚o anŠlogos (”).Œ
(Baudelaire, 1999: 19). Mas tal como Quincey, Baudelaire n‚o recomenda que se fa€a
uso dessas subst•ncias caso haja alguma circunst•ncia a reivindicar a a€‚o casual e
ordenada do comedor, como o haxixe provoca uma exaspera€‚o dos sentidos, ele n‚o
irŠ coadunar com as prŠticas cotidianas, embora possa ser utilizado nessas
circunst•ncias.
De posse dessas informaۥes, ingressemos nos universos oferecidos pelos
recursos farmacol†gicos. Baudelaire evoca tr‰s fases sucessivas no esp•rito do comedor:
a primeira marcada por uma propens‚o irresist•vel ƒ hilaridade, acompanhada pela
dissus‚o quase que total de sua faculdade de concentra€‚o; na segunda, um
abrandamento das manifesta€•es precedentes, seguida da tomada de consci‰ncia dos
efeitos psico-fisiol†gicos, na qual pouco a pouco o comedor vai perdendo o fio condutor
que ata sua individualidade de modo coerente
10
ao mundo tal com ele estŠ afeito a
perceber; ao t…rmino desta fase, sobrevem a terceira, que ‹principalŒ, na qual os
efeitos dissuativos manifestam-se com toda a for€a. No intuito de dar o justo tom do
teor dessa fase da experi‰ncia psicotr†pica, Baudelaire compila vŠrios relatos dos
devaneios de comedores. N‚o muita coisa em comum nas situa€•es, a n‚o ser um
fato, nenhuma ‹viagem alucinat†riaŒ prende-se a algum aspecto do mundo concreto. E
no ˆnico relato em que isso se faz presente, o desconforto e a agonia do comedor s‚o
incomensurŠveis. Deste modo, n‚o de se admirar sobre o teor moral que as subst•ncias
psicoativas adquirem em nossa sociedade, sendo pois:
‹(”) NecessŠrio acrescentar que o haxixe, como todos os prazeres solitŠrios, torna
o indiv•duo inˆtil aos homens e a sociedade sup…rflua para o indiv•duo, levando-o a se
9
‹O c…rebro e o organismo sobre os quais opera o haxixe oferecer‚o apenas seus fen„menos comuns,
individuais, aumentados, verdade, quanto ao nˆmero e ƒ energia, mas sempre fi…is as suas origens. O
homem n‚o escaparŠ ƒ fatalidade de seu temperamento f•sico e moral: o haxixe serŠ, para as impress•es e
os pensamentos familiares do homem, um espelho que aumenta, mas um simples espelho.Π9Baudelaire,
1999: 23).
10
‹Ap†s alguns minutos, a harmonia das id…ias torna-se totalmente vaga, os fios que ligam seus conceitos
s‚o t‚o finos que apenas os seus cˆmplices e os seus correligionŠrios podem compreend‰-loŒ (Idem,
ibidem: 233)
112
admirar a si pr†prio sem cessar e empurrando-o, dia-a-dia, ao abismo luminoso onde ele
admira a face de Narciso?Π(Idem, ibidem: 75)
Talvez tenhamos encontrado desde o in•cio a chave para compreender de qual
maneira o empreendimento da civiliza€‚o ocidental falha com os psicotr†picos: na
propens‚o ao uso narcisista dessa forma de pot‰ncia! N‚o abertura para o exterior e
todo aquele que consumir essas subst•ncias tem de fazer o exerc•cio solitŠrio de buscar
as refer‰ncias de suas experi‰ncias de modo individualizado, levando ƒ quase total
impossibilidade de se construir um saber coletivo a partir da pr†pria experi‰ncia. Em
outras palavras, estamos defronte um uso hedonista dessas subst•ncias, cujos contornos
n‚o se prendem aos c†digos presentes na sociedade em geral, mas antes (des)fundam
um uso laicizado e individual, sem que haja um termo capaz de comunicar o teor dessa
experimenta€‚o aos demais.
Ora, tal fen„meno havia sido percebido em 1857, mas o caminho preferido foi
expurgar esse tipo de conhecimento do seio social. O livro Paraísos artificias foi
apreendido ainda no ano de sua publica€‚o, s† sendo liberado em 1924. Sabemos que a
utiliza€‚o de subst•ncias psicoativas prosseguiu o curso indicado por Baudelaire: cada
qual buscando isoladamente fundar uma experi‰ncia vital, mas deixando a oportunidade
escorrer por entre os dedos. A tentativa de criar um mundo cheio de cores acaba
produzindo um universo delirante, encerrado na mente do usuŠrio e incomunicŠvel para
com os demais: falta um modo de compartilhar as experi‰ncias, tanto entre os usuŠrios,
como entre esses e os n‚o-drogados.
S† recentemente se percebeu que esse projeto pode ser poss•vel. A ‹gera€‚o
beatŒ, os movimentos de contra-cultura, ou mesmo as manifesta€•es de misticismo em
geral puseram-se em marcha para tentar ‹dominarŒ essas experi‰ncias. Mas, eis a pura
realidade, todos esses intentos mostrarem-se parcial ou plenamente infrut•feros. Como o
pr†prio Nietzsche havia dito sobre a arte grega e Perlongher reafirmado no seu texto,
essas experimenta€•es padecem de uma falta, de uma forma de expressão que lhes d‰
sustenta€‚o e permitam a comunica€‚o das experi‰ncias para al…m dos universos
individuais criando um plano de expressão comum. Nietzsche procurou mostrar como
os gregos antigos fizeram a jun€‚o da embriagues dionis•aca com o princ•pio
individualizante de Apolo. Em outras palavras, na Gr…cia … a forma apol•nea que inibe a
dispers‚o do potencial extŠtico presente nas subst•ncias psicoativas, permitindo que elas
aflorassem com toda a for€a nos festivais consagrados ƒ Dioniso, em especial pela
113
cria€‚o de uma arte trŠgica, marcada como um conglomerado de for€as vitais em
processo.
Quanto ao ocidente contempor•neo, n‚o haveria nenhuma tentativa de
formalizar a experi‰ncia dionis•aca. Ao contrŠrio, s† ter•amos a tentativa de expulsar
Dioniso de nosso conv•vio, o que levou Perlongher a dizer que a ˆnica forma de
apropria€‚o dessas experimenta€•es, at… hoje, se deu pela prŠtica religiosa
11
.
N‚o vida de que a droga pode ser o espa€o de constru€‚o de um devir, uma
desterritorializa€‚o dos modos de ser-estar-sentir no mundo. Ela capaz de fazer alterar
a percep€‚o do mundo de modo decisivo, abrindo cr•ticas e caminhos velados ƒ primeira
vista
12
. VŠrios o disseram anteriormente: a experimenta€‚o da droga permite ao
usuŠrio a possibilidade de tomar contato com quest•es, sentimentos, conceitos, etc. que
n‚o est‚o presentes no modo racional/cotidiano de vida. Elas representam uma abertura,
tal como pudemos perceber pela experi‰ncia hist†rica dos Gregos e dos Romanos.
Todavia, nas sociedades capitalistas uma entropia, como Quincey e Baudelaire
anteviram, que se apresenta com um turbilh‚o frente ao indiv•duo isolado que toma
parte desses experimentos, n‚o a constru€‚o de um plano que d‰ sustenta€‚o ƒ
experi‰ncia. Nas palavras de Gilles Deleuze e F…lix Guattari:
‹Seria o erro dos drogados o de partir do zero a cada vez, seja para tomar a droga,
seja para abandonŠ-la, quando se precisaria partir para outra coisa, partir –no meio•,
bifurcar no meio? Conseguir embriagar-se, mas com Šgua pura (Henry Miller).
Conseguir drogar-se, mas por absten€‚o, –tomar e abster-se, sobretudo abster-se•, eu sou
um bebedor de Šgua (Michaux). Chegar ao ponto onde a quest‚o n‚o mais –drogar-se
ou n‚o•, mas que a droga tenha mudado suficientemente as condi€•es gerais da
percep€‚o do espa€o e do tempo, de modo que os n‚o-drogados consigam passar pelos
buracos do mundo e sobre as linhas de fuga, exatamente no lugar onde preciso outros
meios que n‚o a droga. N‚o … a droga que assegura a iman‰ncia, … a iman‰ncia da droga
que permite ficar sem ela.Π(Deleuze e Guattari, 1997: 810
Talvez a maior dificuldade para a plena realiza€‚o das experi‰ncias psicoativas
esteja encrustada no contexto cultural pr†prio ao ocidente, caracterizado pela exist‰ncia
11
‹S† estamos em condi€•es de intuir que essa forma divinaŒ (Perlonguer, 1991: 87)
12
‹Todas as drogas concernem primeiro as velocidades, e as modifica€•es de velocidade. O que permite
descrever um agenciamento Droga, sejam quais forem as diferen€as, uma linha de causalidade
114
de um tipo de produ€‚o parcializada de mercadorias e de subjetividade, inibindo o
aproveitamento dessas experimenta€•es. Explico: n‚o lidamos com experimenta€•es em
rela€‚o ƒs subst•ncias consideradas, mas com quantidades. A velha f†rmula: a troca de
dinheiro por mercadoria n‚o se prende a nenhuma quantidade dada, mas deixa aberta a
possibilidade do descomedimento pelo uso individualizado. AliŠs, os gregos haviam
percebido que a media€‚o do dinheiro nas rela€•es sociais enceta a falta de par•metros
para a constru€‚o de uma experi‰ncia positiva. Nas palavras de Jean Perre Vernant
sobre o s…culo VIII a.C.:
‹A riqueza substitui todos os valores aristocrŠticos: casamento, honras, privil…gios,
reputa€‚o, poder, tudo pode obter. Doravante, o dinheiro que conta, o dinheiro que faz
o homem. Ora, contrariamente a todos os outros –poderes•, a riqueza n‚o comporta
nenhum limite: nada nela que possa marcar seu termo, limitŠ-la, realizŠ-la
totalmente. A ess‰ncia da riqueza o descomedimento; ela a pr†pria figura que a
hybris toma no mundo. Tal o tema que volta, de maneira obsediante, no pensamento
moral do s…culo VI. ‡s f†rmulas de S†lon, passadas a prov…rbios: –N‚o termo para a
riqueza. Koros, a saciedade engendra hybris•, fazem eco nas palavras de Te†hnis: ‹Os
que hoje t‰m mais ambicionam o dobro. A riqueza, ta chrémata, torna-se no homem
loucura, aphorsyneŒ. (Vernant, 1972: 59)
4.3.1. Individualização e perda de perspectivas: Bukowski
S‚o conhecidos os efeitos da falta de par•metros para se compartilhar as
experi‰ncias psicotr†picas, somados ao descomedimento propiciado pela abstra€‚o
quantitativa do dinheiro: a drogadic€‚o. Mais do que um efeito acess†rio do padr‚o de
utiliza€‚o criado pelas sociedades ocidentais contempor•neas, temos a cria€‚o de uma
extrapola€‚o do uso ordinŠrio dessas subst•ncias. A cria€‚o de uma axiomŠtica
13
calcada em uma f†rmula racional quanto ao uso n‚o basta para refrear a drogadic€‚o,
como Quincey demonstrou. Em verdade, esse mecanismo a condi€‚o fundamental
para a eclos‚o das depend‰ncias.
perceptiva que faz com que: 1) o impercept•vel seja percebido, 2) a percep€‚o seja molecular, 3) o desejo
invista diretamente a percep€‚o e o percebido.Œ (Deleuze e Guattari, 1997: 76).
13
Trata-se da constru€‚o de uma ‹f†rmulaŒ, calcada no estabelecimento de par•metros quantitativos, para
se utilizar as subst•ncias psicoativas, sem recair na depend‰ncia.
115
Resta ainda assinalar um ˆltimo ponto, pois nas sociedades ocidentais
contempor•neas n‚o s† nas experi‰ncias psicotr†picas que a falta de um princ•pio
comum a ligar as pessoas, mas isso ocorre em quase todas as inst•ncias sociais. Em
outras palavras, ƒ medida em que indiv•duo passa a constituir a ‹unidadeŒ perante os
demais, o fen„meno de integra€‚o a um princ•pio que una os destinos individuais cada
vez mais t‰nue.
Isso pode ser visto, mais do que nas palavras, na experi‰ncia do escritor norte-
americano Charles Henry Bukowski. No seu livro Crônicas de um amor louco, ele
aborda vŠrios temas e situa€•es que marcaram o hist†ria ocidental durante o s…culo XX.
Em poucas palavras, podemos dizer que ele enfoca a grande fŠbrica de perdedores que
se tornou a civiliza€‚o ocidental, mesmo que sua anŠlise aborde o caso espec•fico dos
Estados Unidos. O instigante em Bukowski como suas cr„nicas remetem ƒ falta de
perspectivas que o welfare state engendrou, pol•tica, amizade, religi‚o, em suma, as
grandes causas perderam a capacidade de comunicar qualquer coisa ao sujeito. Em suas
palavras:
‹Os dois tipos de mais nauseabundos de gente que existem s‚o os freq‘entadores
de hip†dromos e de bares, e me refiro sobretudo ao lado masculino da coisa. Aos
perdedores, aos que perdem sempre e sem parar e n‚o s‚o capazes de oferecer
resist‰ncia e se recuperar. O que n‚o me exclu•a dessa classifica€‚o: estava eu, bem
no meio do grupo.ΠBukowski, 1984: 238-9)
Um mundo diferente do oficial, onde n‚o o que ser feito, s† lutar por alguns
trocados que permitam sustentar (pequenos) prazeres enquanto a morte n‚o vem. N‚o
nada de profundo a se desvelar na leitura de seu livro. Ele mesmo assevera, ao tratar
da pol•tica:
‹Portanto, caros leitores, se me deram licen€a, vou voltar pras putas, pros cavalos e
pra garrafa enquanto tempo. Se isso contribui pra gente morrer, ent‚o, pra mim,
parece bem menos repugnante ser responsŠvel pela nossa pr†pria morte morte do que
qualquer outra modalidade que anda por a•, disfar€ada com r†tulos sobre Liberdade,
Democrcia, Humanidade e/ou qualquer outra esp…cie de Papo furado.
Primeira largada, 12 e 30. Primeiro trago, jŠ. E as putas sempre est‚o por a•. Claro,
Penny, Alice, Jo”
116
Uni, duni, t‰, salam‰”Œ (Bukowski, 1984: 191-2)
Seria um simples fluxo desterritorializante? Penso que n‚o. Como Perlongher
(1991b) nos diz, toda desterritorializa€‚o corre o risco de se reterritorializar,
construindo para si outros c†digos, c†digos marginais. Sai-se dos funcionamentos
desejantes molares/oficiais, para outros, de tipo diferenciado. Como o mundo oficial
simplesmente insuportŠvel, prefer•vel outro, mesmo este sendo vagabundo, miserŠvel,
alucinante e tamb…m impiedoso. Um universo cheio de restos e aparas, onde o sujeito
reintegrado simplesmente impensŠvel. Para alguns s† pode haver a busca pelo ‰xtase
moment•neo a tirar da exist‰ncia cotidiana todo o peso que ela imp•e ao indiv•duo, em
qualquer funcionamento desejante que se escolha. Pois n‚o nos enganemos
‹(”) Numa sociedade altamente dessacralisada como a nossa (”) o consumo de
subst•ncias denominadas genericamente de drogas (”) constitui tamb…m, em certo
modo, uma tentativa (freq‘entemente, mas n‚o necessariamente, cega, desesperada,
malfada) de deixar de ser aquilo que se no circuito convencional.Π(Perlongher, 1991a:
78)
Tomemos Bukowski: ele tamb…m foi casado, teve uma filha e foi funcionŠrio
dos correios por dez anos, integrando o funcionamento molar/oficial. Sem aviso, resolve
criar um fluxo desterritorializante e a posterior reterritorializa€‚o marginal, s† sendo
descoberto dez anos ap†s tra€ar sua linha de fuga, ao entrar em uma enfermaria de
indigentes ƒ beira da morte, com uma hemorragia estomacal.
Vemos, pois, que a constru€‚o cotidiana desse campo marginal, pelas suas
pr†prias m‚os. Podemos ver essa opera€‚o no j†kei clube (‹marinheiro de primeira
viagemŒ, pŠginas 215-9), nas interminŠveis bebedeiras em seu ‹tempo livreŒ, onde
tamb…m exercitava seu of•cio de escritor (‹Nascimento, vida e morte de um †rg‚o de
imprensa alternativaŒ, pŠginas 120-41), ou mesmo na compra de servi€os sexuais
extraconjugais (‹Defeito na bateriaŒ, pŠginas 175-80). A marca recorrente a falta de
perspectivas deixada ao indiv•duo moderno, como ele mesmo escreveu:
‹Olha, filhinha, n‚o estou nada interessado em voltar pra aquela enfermaria de
indigentes. Tenho que encontrar alguma coisa que me tire a vontade de beber. Veja s†
hoje, por exemplo. N‚o nada pra fazer a n‚o ser tomar porre. N‚o gosto de cinema. E
117
jardim zool†gico um p… no saco. N‚o se pode passar o dia todo fodendo. Que
problema.Π(Bukowski, 1984: 215)
Expressa-se, outrossim, o fim de uma moral que d‰ contornos ƒs prŠticas das
pessoas. O indiv•duo n‚o tem par•metros gerais para orientar sua vida. Dir-se-ia o
imp…rio do t…dio” nada se fixa, as personagens, imaginŠrias ou n‚o, desfilam e mudam
a cada cr„nica, nada as liga diretamente. S†, talvez, a busca comum por exasperar os
sentidos e ir al…m da sobreviv‰ncia cotidiana. E, para tanto, pode-se la€ar m‚o do sexo,
dos psicotr†picos, do jogo, ou de qualquer outra coisa, existente ou n‚o, cada qual
individualmente, mesmo quando justapostos, lado a lado. Basta ver o encontro de
Bukowski com uma de suas inˆmeras parceiras sexuais:
‹ah, que droga. Ent‚o sentei e abri a garrafa de u•sque. Enchi dois copos comuns
at… a borda, tirei os sapatos, as meias, as cal€as, a camisa e peguei um dos cigarros dela.
Fiquei sentado s† de cueca. Sempre fa€o assim, logo de sa•da. Gosto de me sentir ƒ
vontade. Se a fulana achar ruim, foda-se. Porta da rua, serventia da casa. Mas elas nunca
v‚o embora. Deve ser por causa do meu jeito. Tem umas que dizem que eu podia ser rei.
Outras falam coisas bem diferentes. Fodam-se.Π(Idem, ibidem: 81)
Nada une as pessoas, a n‚o ser a auto-busca por alterar a consci‰ncia. Nenhum
efeito serŠ compartilhado e sempre haverŠ algo a romper o precŠrio elo entre as pessoas.
N‚o que se queira reformar e/ou revolucionar a sociedade, para Bukowski n‚o nada
o que p„r no lugar do(s) mundo(s) que estŠ(‚o) por a•. Nem o oficial, nem o marginal.
Basta viver para morrer um pouco a cada dia. Ent‚o que se morra com gosto no que se
faz, indiferente ƒs angˆstias e pesadelos que os outros carregam. Sem sonhos em
comum, sem ilus•es em comum” A ˆnica escolha o modo pelo qual cada um se
coloca frente a vida e/ou as linhas de fuga. Sempre retornando amanh‚, de ressaca, ao
velho dilema: como escapar do t…dio?
Pode-se, claro, for€ar um retorno aos c†digos vigentes. Lutar com todas as
for€as para estar ‹enquadradoŒ. mesmo toda um t…cnica para se (re)formar o sujeito
para o interior das normas oficias. Basta, como nos diz Bukowski, passar o indiv•duo no
118
espremedor de culhões
14
! Ap†s a pessoas sentarem na mŠquina e dar algumas voltas na
mesma, o mundo n‚o poderŠ ser melhor e a sujei€‚o a qualquer coisa tamb…m:
Ž voc‰ gosta de fazer ser‚o?
Ž a, claro que sim, chefe! Gostaria de trabalhar 7 dias por semana, se poss•vel. E de
ter 2 empregos, se pudesse.
Ž Por qu‰?
Ž Por causa do dinheiro, chefe. Comprar tev‰ a cores, carro novo, dar entrada pra
casa pr†pria, pijama de seda, 2 cachorros, barbeador el…trico, seguro de vida, assist‰ncia
m…dica, ah, tudo quanto tipo de seguro, educa€‚o escolar pros meus filhos, se eu tiver,
porta automŠtica na garagem, roupas finas, sapatos de 45 d†lares, c•meras, rel†gios de
pulso, an…is, lavadoura automŠtica, geladeira, poltronas e camas novas, forra€‚o de
carpete em todas as pe€as, donativos pra igreja, aquecimento central e”Œ (Idem,
Ibidem: 58-9)
Enfim, para Bukowski sempre podemos escolher como dispor de nosso corpo.
Elevando o fluxo territorial at… o limite, ou tra€ando linhas de fugas Ž que fatalmente
ir‚o se reterritorializar em outra forma de mis…ria. Ele, por…m, fez sua escolha, como
a maioria dos drogadictos contempor•neos, mesmo que eles n‚o tenham consci‰ncia
desse fato: recair em uma forma hedonista de utiliza€‚o dessas subst•ncias, criando um
c†digo marginal que escapa aos padr•es mais amplos da sociedade em geral.
14
Esse o t•tulo de uma das cr„nicas.
119
4.4. Compreender a noosfera
Vemos como o alcoolismo encontra-se ligado a toda uma formula€‚o social. O
uso drogadicto impera onde temos a oferta ilimitada
15
das subst•ncias psicotr†picas,
limitadas t‚o somente pela disponibilidade de dinheiro para se obter essas mercadorias,
associado ƒ utiliza€‚o sem a constru€‚o de uma forma de comunicar os resultados dessa
experimenta€‚o com os demais.
Por mais que queiramos, n‚o podemos encontrar esse quadro nos Krah„.
procurei demonstrar como o princ•pio dessa sociedade estŠ calcado sobre devires
imanentes ao corpo da terra. Trata-se de uma forma de mŠquina social territorial
primitiva que inscreve no corpo da terra e no corpo de seus membros os c†digos que
regem as intera€•es entre as pessoas, construindo um plano de express‚o que vise
orientar a intera€‚o entre as pessoas. Uma decorr‰ncia desse processo, como assinalei
anteriormente, consiste na avers‚o que todos os socius primitivos t‰m pela constru€‚o
de fluxos desterritorializados, estabelecidos em uma axiomŠtica de quantidades
abstratas, caracterizada, em uma s† palavra, pelo uso do dinheiro. A esse respeito
importante o significado da palavra dinheiro na l•ngua Krah„: trata-se do poré, ou seja
do couro de boi apodrecido.
Com isso n‚o quero abrandar o teor problemŠtico que o uso das bebidas
alco†licas assume entre os Krah„. Pretendo t‚o somente remeter essa quest‚o ƒ sua
verdadeira determina€‚o, qual seja, o problema do Šlcool envolve o estudo de como a
din•mica Timbira apropria-se de um bem ex†geno a sua forma peculiar de intera€‚o e
como dessa apropria€‚o resulta um novo problema. Sabendo que essa apropria€‚o n‚o
pode ser confundida com uma simples ‹difus‚oŒ e conseq‘ente ado€‚o de um tra€o
cultural oriundo das sociedades ocidentais, tamb…m n‚o podemos simplesmente
estender um modelo conceitual criado para compreender a ocorr‰ncia da drogadic€‚o.
Dito de outro modo, n‚o poss•vel proceder ƒ anŠlise do uso do Šlcool entre os Krah„
recorrendo a um modelo te†rico destinado a lidar com o fen„meno da depend‰ncia nas
sociedades ocidentais, cuja caracter•stica primordial estabelecer uma intera€‚o com
15
Lembremos como no mundo das mercadorias n‚o mais uma quantidade predefinida a reger a oferta
dos bens, mas sim um processo pelo qual enceta-se nas pessoas uma propens‚o a um consumo sempre
ampliado, o qual reclama a exist‰ncia de uma oferta dos bens que acompanhe essa din•mica.
Inversamente, a pr†pria produ€‚o determina tamb…m o consumo, por ser este processo que determina a
cria€‚o de uma necessidade subjetiva dos bens que se irŠ desejar possuir. Em outras palavras, deve-se
considerar a liga€‚o umbilical entre produ€‚o, circula€‚o e consumo de mercadorias (Cf. Marx, 1974).
120
base em c†digos que buscam desterritotializar-se em rela€‚o ƒs prŠticas ordinŠrias ao
socius capitalista, mas que podem recair em uma outra codifica€‚o mais fantasmŠtica
ainda. Caso assim procedamos, corremos o risco de batalhar com os conceitos visando
enquadrar a realidade estudada em uma sistema te†rico que n‚o se coaduna com os
fen„menos estudados. Quiles demonstrou essa dificuldade ante os Bororo:
simplesmente a situa€‚o dessa sociedade n‚o se enquadra nesse esquema conceitual,
deixando ao pesquisador um imenso trabalho de preencher lacunas e fazer reparos a
todo instante, ao inv…s de buscar as determina€•es internas que regem o fen„meno.
Isso, por…m, n‚o implica que devamos simplesmente lan€ar ao limbo toda gama
de conhecimento criado para lidar com o fen„meno. O mais correto buscar apoio em
outras abordagens que permitam analisar o uso do Šlcool entre os Krah„ a partir do
modo pelo qual ele se manifesta. Nesse sentido, penso que a obra de Carlos Casta™eda
permite trilhar caminhos mais instigantes. Por certo estamos defronte uma obra que n‚o
teve a devida aten€‚o por parte dos estudiosos brasileiros. Em verdade, o sil‰ncio a
respeito do trabalho realizado pelo referido antrop†logo chega a ser estranho, pois, trata-
se de uma das primeiras tentativas mais exaustivas em lidar com um sistema de
refer‰ncias das mŠquinas territoriais primitivas a partir de seu interior.
Sabemos que o referido autor realizou um trabalho em n•vel de mestrado na
universidade da Calif†rnia, traduzido em portugu‰s pelo t•tulo A erva do diabo: as
experi‰ncias ind•genas com plantas alucin†genas reveladas por Dom Juan (Casta™eda,
s/d). Como todo bom estudante de antropologia, ele recorreu aos procedimentos usuais:
travou contato com Dom Juan, um sonora, do norte do M…xico, conhecido entre seus
pares como brujo/feiticeiro. O foco de interesse de Casta™eda o profundo
conhecimento que Dom Juan det…m do uso das plantas de poder
16
, bem como de todo o
aparato pr†prio ƒ prŠtica da magia em meio a esse ambiente cultural. De in•cio,
Casta™eda procurou p„r em prŠtica as t…cnicas de coleta de dados tradicionais: por
interm…dio da observa€‚o participante e de entrevistas com Dom Juan, Casta™eda
esperava apreender o sentido que essas prŠticas tinham para a referida popula€‚o, por
mais que houvesse um certo descr…dito quanto ƒ exist‰ncia e atua€‚o dessa din•mica
16
Nome pelo qual s‚o conhecidas as plantas com propriedades psicoativas, isso entre os atuais
descendentes de algumas popula€•es tribais das plan•cies da Am…rica do Norte. Nas palavras de
Casta™eda: ‹Para Dom Juan, a import•ncia dessas plantas residia em sua capacidade de provocar estados
de uma percep€‚o especial num ser humano. Assim, ele me levou a experimentar uma s…rie desses
estados com o objetivo de expor e dar validez a seu conhecimento. Eu os denominei –estados de realidade
incomum•, ao contrŠrio da realidade da vida de todo dia. A distin€‚o baseia-se no significado inerente dos
121
na popula€‚o local
17
, era certo que havia homens que ainda dominavam as t…cnicas
ancestrais sobre como se adquirir essa forma de poder, que era mediada pelos Estados
de Realidade Incomum (ERI), ou simplesmente transe.
O que faz todo o estudo de Casta™eda adquirir outro rumo justamente o que
Dom Juan entende sobre o estudo dessas plantas de poder: para este, n‚o se tratava de
uma compila€‚o de conhecimentos alheios transmitidos por via oral, estudar as plantas
de poder era antes de mais nada adentrar no caminho que conduzia um ser humano
comum a se tornar um homem de conhecimento
18
, criando uma rela€‚o com os seres de
esp•rito
19
que Dom Juan chamava de aliado. Para tanto, era imprescind•vel que o
estudioso vivenciasse
20
as experi‰ncias advindas com o contato com essa noosfera
21
. E
estados de realidade n‚o comum. No contexto do conhecimento de Dom Juan eram considerados reais,
embora sua realidade fosse diferenciada da realidade comum.Œ (Casta™eda, s/d: 24)
17
Todos os informantes preliminares de Casta™eda manifestavam certa descren€a quanto ƒ exist‰ncia dos
brujos/diableros (xam‚s) em tempos recentes. Entretanto, esse descr…dito n‚o era absoluto, como o
pr†prio Casta™eda facilmente p„de perceber, como lhe diz Dona Luz, uma informante do referido
antrop†logo: ‹Dizem que n‚o mais diableros, mas eu duvido, pois um membro da fam•lia de um
diablero tem de aprender o que o diablero sabe. Os diableros t‰m suas pr†prias leis, e uma delas que o
diablero tem de ensinar seus segredos a um membro de sua fam•lia.Œ (Casta™eda, s/d: 21)
18
Termo pelo qual Dom Juan referia-se aos xam‚s. Vale acrescentar que ao contrŠrio do que uma certa
tradi€‚o no interior da antropologia deixa entrever, tornar-se um homem de conhecimento n‚o consiste
em dominar uma s…rie de t…cnicas medicinais, ou mesmo como lidar com amuletos e objetos que
operariam nas pessoas. Na verdade, o homem de conhecimento aquele que segue uma s…rie de passos
rumo ao contato com os aliados, isto …, os seres de esp•rito que est‚o associados a determinadas formas de
poder, como se v‰ nas seguintes palavras de Dom Juan: ‹Ma•z-pinto, cristais e penas s‚o simples
brinquedos, comparados com um aliado Ž disse ele. Ž Esses objetos de poder s† s‚o necessŠrios quando o
homem n‚o tem um aliado. uma perda de tempo procurŠ-los, especialmente no seu caso.Œ (Casta™eda,
s/d: 27)
19
Entendo esse termo no sentido aplicado por Edgar Morin, como se v‰ a seguir: ‹Assim, produtos dos
esp•ritos/c…rebros dentro de uma cultura, retroagem de maneira dominadora sobre esses esp•ritos/c…rebros
e essa cultura. Produzidos por mortais, tornam-se imortais e regem o destino dos homens, capazes mesmo
de oferecer-lhes a imortalidade em troca de obedi‰ncia e de amor. Certamente os deuses n‚o s‚o
realmente imortais: a vida deles depende da vida da comunidade dos fi…is. Se os homens morrem, os
deuses tamb…m morrem.Œ (Morin, 1998: 152).
20
‹[Dom Juan] disse que aprender por conversas era n‚o s† uma perda de tempo, como ainda uma
estupidez, pois aprender era a tarefa mais dif•cil que o homem poderia empreenderŒ (Casta™eda, s/d: 54)
21
Aplico esse termo no sentido de Morin, para quem vida no mundo das id…ias. Vida que brota a partir
dos c…rebros individuais, a partir de condi€•es socioculturais dadas, instaurando-se como produto e
instrumento do conhecimento (Morin, 1998: 137). Esses seres assim gestados - e n‚o pensemos em um
tipo ‹fantasmag†ricoŒ de exist‰ncia Ž ir‚o relacionar-se entre si e com os homens. Formam um
verdadeiro reino vivo ƒ parte: nas palavras de Morin, comp•em uma noosfera. E para aqueles que
duvidam disso, Morin irŠ aclarar a natureza dessa exist‰ncia: ‹A noosfera povoada de seres
materialmente enraizados, mas de natureza espiritual. Lembremos que a pr†pria mat…ria muito pouco
material, pois um Štomo tem 99% de vazio, e as part•culas que o constituem tem uma materialidade
amb•gua.) do mesmo modo que a informa€‚o tem sempre um suporte f•sico/energ…tico, embora
permanecendo imaterial, o mito, o deus, a id…ia, t‰m um suporte f•sico/energ…tico nos c…rebros humanos e
concretizam-se a partir da materialidade das trocas qu•mico-el…tricas do c…rebro, dos sons das palavras,
das inscri€•es. Disp•em, sobretudo, de um suporte biol†gico constitu•do por esses mesmos c…rebros e
isso que lhes insuflarŠ uma vida pr†pria.Œ (Morin, 1998: 147).
122
assim aconteceu com Casta™eda, que ele teve de tomar parte do sistema iniciat†rio de
Dom Juan, no qual o ne†fito tem de seguir um Šrduo caminho para conquistar os
preceitos. Sendo assim, compreende-se que a primeira condi€‚o para aprender era
dispor de um r•gido controle de si:
‹Ele [Dom Juan] disse que havia muitas coisas que podiam enlouquecer uma
pessoa, especialmente se ela n‚o tivesse a resolu€‚o e o prop†sito necessŠrios para
aprender; mas que quando um homem tinha um esp•rito claro e inflex•vel, os
sentimentos n‚o eram em absoluto um obstŠculo, pois ele era capaz de contro-los.Œ
(Casta™eda, s/d: 108)
Sem essa prerrogativa seria imposs•vel adentrar no universo dos ERI. Entretanto,
isso s† n‚o basta, pois o autocontrole visa antes de mais nada servir de mecanismos para
exercitar a lembrança pessoal
22
da experimenta€‚o psicotr†pica e construir um plano
capaz de comunicar o teor da experi‰ncia entre aqueles que compartilhem da mesmo
noosfera. Embora cada planta tenha efeitos e usos distintos, t‚o somente atrav…s da
reconstitui€‚o minuciosa e precisa dos ‹acontecimentosŒ advindos nos ERI que
estabelecem-se os princ•pios de ordena€‚o e dom•nio sobre os efeitos psicotr†picos. Em
outras palavras, o aprendiz levado, em cada estŠgio do aprendizado, a identificar e
controlar manifesta€•es comuns do seu aliado, at… tornar-se familiarizado com ele. A
domestifica€‚o do aliado consiste em estabelecer crit…rios para tornar a viagem
psicotr†pica consciente, num certo sentido, a partir da experi‰ncia pessoal do aprendiz
guiada pela interpreta€‚o dos sinais a serem identificados, feita pelo seu
benfeitor/mentor. Quando o iniciado dominar todos esses sinais, estarŠ automaticamente
apto para prosseguir sozinho na busca pelo conhecimento, sendo, a partir de ent‚o,
auxiliado t‚o somente por seu aliado.
De posse dessas caracter•sticas, qualquer pessoa pode vir a percorrer o caminho
reservado aos homens de conhecimento e come€ar a aprender. Vendo e fazendo-se
mediante os prod•gios mais fantŠsticos e inacreditŠveis. Como no feiti€o com os dois
lagartos, por exemplo, onde seguindo os passos prescritos, a pessoa pode obter respostas
a quest•es insolˆveis, at… ent‚o. Ou mesmo voar, alcan€ando lugares e dist•ncias
22
‹Contar uma experi‰ncia a Dom Juan sempre me obrigava a relembrŠ-la passo a passo, o melhor que eu
pudesse. Parecia ser este o ˆnico meio de me lembrar de tudo.Œ (Casta™eda, s/d: 144)
123
extremas. E n‚o duvide sozinho desses ins†litos acontecimentos, pois o pr†prio
Casta™eda n‚o confiou plenamente nos seus sentidos:
‹- Voei de verdade, Dom Juan?
- Foi o que me disse. N‚o voou?
- Sei, Dom Juan. Quero dizer, meu corpo voou? Levantei v„o como um
passarinho?
- Sempre me faz perguntas que n‚o posso responder. Voou. para isso que serve a
Segunda por€‚o da erva-do-diabo. Quando tomar mais dela, vai aprender a voar
perfeitamente. N‚o uma coisa simples. Um homem voa com o aux•lio da Segunda
por€‚o da erva-do-diabo. s† isso que lhe posso dizer. O que quer saber n‚o faz
sentido. Os pŠssaros voam como pŠssaros e um homem que tomou erva-do-diabo voa
como tal (el enverbado vuela así).
- Assim como os pŠssaros? Así como los pájaros?)
- N‚o, voa como um homem que tomou a erva (No, así como los enverbados) (”).
- Vamos dizer a coisa em outras palavras, Dom Juan. O que quero dizer que, se
estivesse amarrado a uma pedra, com uma corrente pesada, ainda assim eu teria voado,
pois meu corpo nada tinha a ver com meu v„o.
Dom Juan olhou para mim, incr…dulo.
- Se voc‰ se amarrar a uma pedra Ž disse ele Ž acho que terŠ de voar segurando a
pedra com sua corrente pesada.Œ (Casta™eda, s/d: 125 e 126)
Qualquer brujo experimentado, como o caso de Dom Juan, saberŠ identificar o
que se passa com Casta™eda Ž e o que deixaria perplexa qualquer pessoa razoŠvel, seja
ela ocidental ou n‚o. Estamos defronte a manifesta€‚o do primeiro inimigo do homem
de conhecimento. Mas ele n‚o vem sozinho, pois sabemos, por interm…dio do benfeitor
de nosso autor, existirem um total de quatro inimigos, como v‰ abaixo:
1. O Medo: esse o primeiro inimigo a ser vencido. Ocorre quando, no homem que
busca o conhecimento, o medo manifesta-se por todos os lados. Para venc‰-lo, n‚o
se deve ignorar os pr†prios temores, e a despeito deles, deve-se continuar a
aprendizagem sempre. Quando o medo for vencido, n‚o torna mais a assolar.
Embora em seu lugar surja o segundo inimigo do homem de conhecimento”
12
4
2. A Clareza: consiste na cren€a nos pr†prios poderes, pois vencido o medo, o homem
de conhecimento sente que n‚o desafios capazes de venc‰-lo. Ele incorre na
possibilidade, nada benfazeja por sinal, de ficar cego ante sua vit†ria sobre o
primeiro inimigo e estagnar no desenvolvimento de suas faculdades. Vencer o
segundo inimigo …, antes de mais nada, precaver-se e saber dar os pr†ximos passos
na aprendizagem, desafiando sempre sua clareza e, no entanto, usando-a para
auxiliŠ-lo nos pr†ximos passos da aprendizagem. Uma vez vencida, a clareza
tamb…m n‚o incomoda mais o homem que busca o conhecimento, mas sim o terceiro
inimigo”
3. O Poder: quando vencida a clareza o homem domina o poder e capaz dos maiores
prod•gios. Entretanto, pode-se tornar caprichoso e cruel no uso dele, caracterizando
o terceiro inimigo. Ora venc‰-lo lembrar sempre do prop†sito que o levou a
percorrer esse longo caminho e s† usar o poder com cora€‚o! Quando essa
temperan€a tornar a fazer-se presente no cora€‚o do homem de conhecimento,
sobrevem o ˆnico inimigo, de fato, invenc•vel”
4. A Velhice: o homem tem o poder pleno e sabe aplicŠ-lo, mas para chegar a esse
estŠgio muito tempo se passou e seu vigor e disposi€‚o n‚o s‚o os mesmos. Tem
uma enorme vontade de sucumbir” mas n‚o deve, em absoluto, faz‰-lo! E as
palavras de Dom Juan nos d‚o a exata medida disso:
‹Mas se o homem sacode sua fadiga, e vive seu destino completamente, ent‚o
poderŠ ser chamado de um homem de conhecimento, nem que seja no breve momento
em que ele consegue lutar contra o ˆltimo inimigo invenc•vel. Esse momento de clareza,
poder e conhecimento o suficiente.Œ (Casta™eda, s/d: 86)
Essas prerrogativas e aۥes conduzem a pessoa a conquistar um aliado,
avan€ando mais e mais no caminho do conhecimento. N‚o uma tarefa fŠcil! N‚o
para qualquer um” mas estŠ ao alcance de todos aqueles que puderem persistir e lutar Ž
decorre da• a insist‰ncia de Dom Juan para a exist‰ncia de um propósito a guiar os
passos do ne†fito. Ser um brujo exige dedica€‚o absoluta e n‚o pode ser confundido
com uma tarefa que procura eximir-se do mundo. Em verdade, quem ingressa nesse
caminho tem de estar atento a tudo que o rodeia, ainda que seja para reaprender a ver o
mundo.
125
Assim, podemos ver como Casta™eda veio a construir uma vis‚o interna do uso
de psicotr†picos em meio a um universo cultural diverso do ocidental. Embora
tenhamos uma grande diferen€a em rela€‚o ao caso Krah„, creio ser poss•vel proceder
pelo mesmo caminho. Em outra palavras, o estudo do uso do Šlcool nessa sociedade n‚o
deve passar por uma cria€‚o conceitual externa a sua realidade, mas antes deve primar
pela tentativa de etnografar o universo nool†gico pelo qual os membros dessa sociedade
se reportam ƒs bebidas alco†licas. No cap•tulo precedente n†s vimos que existe toda
uma din•mica pr†pria a esses Timbira que permanece ligada ao contato com as
mercadorias em geral. Agora tempo de aprofundar como o Šlcool insere-se nos
mecanismos criados por essa sociedade.
4.5. O karõ (alma) da cachaça: cupen/Turkren
disse que os Krah„ t‰m acesso ƒs bebidas alco†licas no com…rcio de ItacajŠ.
Entretanto, isso n‚o implica necessariamente na ado€‚o do uso hedonista, pr†prio ƒ
sociedade capitalista. O teor da utiliza€‚o completamente diverso, mesmo que essas
experimenta€•es visem o mesmo objetivo que no uso hedonista Ž isto …, em ambos os
casos uma busca para de obter Estados Alterados de Consci‰ncia, um desejo para
obter o transe. A despeito desse ‹objetivoŒ comum entre os dois tipos de sociedade,
vimos que a forma de express‚o criada no capitalismo para orientar essas experi‰ncias
constr†em uma forma de fuga individualizada em rela€‚o aos c†digos sociais. Toda a
experimenta€‚o ativa se perde, pois essa busca para sair dos c†digos s† opera uma linha
que sempre acaba por se reterritorializar em um uso marginal Ž com c†digos mais
delirantes do que os criados pelo socius do qual se queria escapar.
Em verdade, entre os Krah„ o uso de bebidas alco†licas sempre coletivo, at
mesmo o sentido do agenciamento que se cria. A qualquer observador dado verificar
esse fato, pois pode-se ver uma prescri€‚o dionis•aca, tal como Nietzsche a entende; se a
apropria€‚o de uma garrafa de cacha€a individual Ž diga-se de passagem, n‚o por uma
exig‰ncia tŠcita ƒs ordena€•es Timbira, mas sim pelo fato de que s† se adquire o
precioso l•quido no com…rcio de ItacajŠ
23
Ž, a utiliza€‚o sempre em grupo e chama a
23
Vale acrescentar que rela€‚o de compra e venda uma forma de contrato envolvendo dois sujeitos: um
que vende a mercadoria e outro que a compra, de posse de dinheiro (ou de outro equivalente geral),
caracterizando uma forma de posse individualizada
126
aten€‚o o descomedimento no uso dessa subst•ncia. Tal como acontece com os demais
bens que caem no circuito de consumo nessa sociedade (Cf. o item ‹A circula€‚o dos
bensŒ, no cap•tulo 2), n‚o uma medida para se utilizar as bebidas alco†licas Ž o
limite do uso estŠ dado pela quantidade que estiver ƒ disposi€‚o. O recipiente passado
de m‚o em m‚o e em largos goles os Krah„ d‚o conta rapidamente de uma garrafa, ou
de vinte, caso as tenham.
Isso se repete onde quer que esse fato aconte€a, mesmo nas cidades, onde o
c†digo Timbira n‚o estŠ inscrito sobre o corpo da terra. Sempre em grupos, os Krah„ se
reˆnem em um canto isolado da cidade e bebem toda a bebida que circular entre eles.
Na viagem de retorno essa f†rmula se repete. Em suma, n‚o pr†prio aos membros
dessa sociedade o uso individualizado e isolado, sempre havendo uma prescri€‚o para o
uso coletivo. Lembrando que isso n‚o acontece unicamente no caso isolado do uso de
Šlcool, pois as sociedades constru•das ƒ base de devir, tal como o caso dos Krah„,
sempre apresentam a caracter•stica de utilizarem seus bens de forma usurŠria (Cf
Bataille, 1984).
Em uma s† palavra, podemos dizer que literalmente as bebidas circulam entre os
Krah„. N‚o quero assinalar a exist‰ncia de um modelo mec•nico de como uma
disposi€‚o espacial Ž o c•rculo Ž interferiria no carŠter assumido por essas intera€•es
pessoais, pois as pessoas podem muito bem estar dispersas enquanto utilizam essa
subst•ncia, podendo n‚o tomar a mesma quantidade, ou mesmo se furtar ao uso. Mas o
grupo de pessoas que vem a beber conjuntamente, definido pelo tipo de rela€‚o de
proximidade e dist•ncia que eles guardam entre si, toma parte igualitariamente dessa
atividade. Tanto assim que caso o ‹prefeitoŒ
24
esteja participando do grupo de
bebedores, ele poderŠ dividir a bebida entre todos, tal como acontece no , por ocasi‚o
de algum ritual.
Deste modo, compreende-se o sentido da forma circular; todos participam das
mesmas condiۥes de acesso ao circuito dos bens, podendo tomar parte das atividades
devido ao tipo de relaۥes que os leva a se aproximarem, mesmo tendo origens distintas
e posi€•es particulares na disposi€‚o interna da vida Timbira. Disso pode-se concluir
que essa igualdade n‚o simplesmente formal, como acontece nas sociedades
ocidentais. Ao contrŠrio, atrav…s do c•rculo estabelecem-se os par•metros pelos quais
todos podem ter acesso aos elementos sociais, inclusive durante o uso das bebidas
24
Lembrando que esse personagem um administrador dos assuntos cotidianos da aldeia, tais como a
divis‚o dos presentes na pra€a pˆblica.
127
alco†licas. Assim, pode-se inferir que o uso de Šlcool entre os Krah„ n‚o se manifesta
como uma forma de fuga individual em rela€‚o aos c†digos do socius. Ao inv…s disso,
revela-se um uso social, gerando uma codifica€‚o das a€•es humanas segundo um
preceito que vise aproximar os indiv•duos, levar ao encontro, ƒ intera€‚o entre as
pessoas.
A despeito desse fato, temos um resultado que n‚o expressa uma bonan€a.
Pessoas se embriagam, por vezes agindo em franco desacordo com as prŠticas
ordinŠrias ao modo de intera€‚o Timbira. Nessas ocasi•es comum acontecerem brigas,
discuss•es e desencontros das mais variadas ordens. As mulheres brigam com seus
maridos, pois n‚o gostam que eles fiquem baipã (literalmente ‹loucosŒ). Os jovens
(mentúaiê) perdem todo o respeito pelos mais velhos e a din•mica Timbira, que visa
pacificar as rela€•es entre as pessoas, perde toda sua eficŠcia.
Assim, compreende-se que o verdadeiro problema posto pela utiliza€‚o das
bebidas alco†licas entre os Krah„ a exist‰ncia de uma fuga coletiva dos padr•es
ordinŠrios de intera€‚o pessoal. Sabemos que o conceito ‹alcoolismoŒ marca o
estabelecimento da drogadic€‚o em indiv•duos isolados de uma sociedade. Deste modo,
ou se considera todo o socius Krah„ como drogadicto, ou se abandona esse conceito
para explicar o que se passa nessa sociedade. Diante de todas as consideraۥes feitas
neste texto, creio que a segunda op€‚o seja a mais adequada, pois estamos defronte uma
sociedade que (re)cria sempre um modo de se relacionar no qual n‚o ind•cios de um
uso drogadicto, tal como o vemos nas sociedades capitalistas. Por conseguinte,
imprescind•vel entender como a utiliza€‚o dessa subst•ncia opera no interior da vida
Krah„, pois s† assim compreenderemos o mote que regulamenta esse funcionamento
desejante. Pude constatar a exist‰ncia de dois tipos de uso nas aldeias: um que podemos
dizer privado, marcado pelo tipo de rela€‚o social que impera na periferia da aldeia; e
um pˆblico, feito nos rituais e condicionado pelas prescri€•es pol•ticas pr†prias ao
pŠtio.
A primeira forma de utiliza€‚o marcada pela posse individual das bebidas
alco†licas, devido a alguma pessoa ter ido ƒ cidade e feito o l•quido sobreviver ƒs
prova€•es do caminho (aos pedidos dos companheiros de viagem e mesmos ƒ pr†pria
volˆpia), trazendo uma garrafa para a aldeia, quer seja de cacha€a (algo raro, haja visto
128
a proibição à venda dessas substâncias aos indígenas nos estabelecimentos comerciais
de Itacajá), quer seja de álcool a 96º, feito para a limpeza, mas que é utilizado como
uma bebida, após ser diluído em água. Aliás, até aqueles que prefiram este último,
pois além de ser mais barato, tem efeito mais potente e é facilmente adquirido por
qualquer pessoa.
Pois bem, é notório para todos da aldeia que este indivíduo possuí um bem
cobiçado: o álcool. Todavia, aqueles que tenham alguma proximidade com o detentor
da bebida alcóolica irão desfrutar desse gênero. Será posta em marcha toda a complexa
série de interações de proximidade e distância referenciais, mediadas pelo parentesco e
por toda a série de relações políticas próprias à periferia da aldeia.
Aqui vemos a recriação ativa de todas as relações sociais. Para ilustrar o que
digo, criemos um exemplo hipotético. Digamos que alguém traga uma garrafa para a
aldeia e que nesta localidade haja uma pessoa interessada em beber o precioso bem, mas
não seja muito próximo daquele que possuí a bebida alcóolica. Digamos também que
sua posição no sistema classificatório lhe permita poder designar o dono das bebidas de
hõpin, mas que até então suas relações não tenham sido marcadas pelo extremo respeito
que caracteriza essa forma de interação social. Esse nosso hipotético Krahô poderá ir
acompanhado de um terceiro, o qualdeverá interceder por ele, pedindo cerimonialmente
que o dono das bebidas lhe um pouco do gênero desejado, como exige o protocolo.
Três situações podem ocorrer em decorrência do acima exposto:
1. O dono da bebida pode simplesmente negar o pedido secamente, marcando entre
eles uma relação de tipo cahkrit: lembremos que esse termo é aplicado aos inimigos
de perto, dando às relações posteriores entre eles um teor litigioso;
2. O dono da bebida pode consentir no pedido, mas não manter a cerimônia,
atualizando um vínculo de tipo icodnõ (companheiro): os dois continuam sendo
reciprocamente cahkrit, isto é, não possuem laços consangüíneos a ligá-los, mas irão
desfrutar de uma relação social pacificada, marcada pela amistosidade entre ambos;
3. E por último, o dono da bebida pode ceder ao pedido de seu interlocutor, mantendo
toda uma cerimônia: neste caso, se estabelece uma relação de tipo ikritxyy (amizade
formal), descrita no primeiro capítulo.
O mais provável, porém, seria a atualização dos vínculos estabelecidos entre
ambos. Considerando que a inimizade franca é contrária ao tipo de comportamento mais
comum no interior do grupo, o mais provável seria que os dois últimos tipos de relação
se fizessem presentes. Além disso, até mesmo um tipo de relação interesseira pode
129
orientar nossos hipot…ticos interlocutores, pois como a generosidade uma marca de
prest•gio entre os Krah„, ambos podem se beneficiar com o estabelecimento de um
v•nculo; bem poss•vel que as posi€•es nesse jogo se invertam em algum momento e a
prescri€‚o para a efetua€‚o de uma contra-dŠdiva em carŠter usurŠrio impeliria ambos
ao entendimento.
Tomemos o caso da pessoa que tenha conseguido trazer o Šlcool para a aldeia
esteja completamente distante em rela€‚o ao interessado em obter esse item. Ainda
assim a din•mica Timbira encontraria um modo de aproximar os dois envolvidos, de tal
modo que sempre haveria um terceiro que pudesse estar em condi€‚o de aproximar os
dois envolvidos, mantendo algum tipo de v•nculo entre ambos e servindo de
intermediŠrio para a execu€‚o do pedido.
Deste modo, podemos perceber que as relaۥes institucionalizadas entre os
Krah„ Ž tanto as rela€•es de parentesco, como a amizade formal (ikritxwyy) e as
intera€•es entre amigos informais (icodnõ) Žlevam ao encontro, ao estabelecimento de
uma forma de liga€‚o entre as pessoas, de tal sorte que sempre serŠ poss•vel ocorrer o
entendimento entre os envolvidos em qualquer atividade.
Vale destacar que esse tipo de uso particularizado n‚o precisa necessariamente
se desenrolar na aldeia. Na verdade, quando lidamos com o uso de Šlcool nas cidades,
estamos diante dessa mesma ocorr‰ncia, com um agravante: na aldeia n‚o existem
comerciantes dispondo de uma oferta cont•nua de bebidas. Logo, o uso das bebidas
alco†licas no territ†rio do cupen tenderŠ sempre a ter sua faceta descomedida bem mais
elevada do que ocorre no krim.
Passemos ao uso que designei de pˆblico, e como foi assinalado, se
desenvolve durante os ritos. S‚o nas aldeias que os ritos ocorrem, com as corridas de
tora de buriti sendo realizadas no krinkapé e as demais atividades no pŠtio. N‚o culto
dirigido a alguma entidade mitol†gica em particular, nem tampouco a um pante‚o delas.
Mas sim, uma atualiza€‚o da complexa s…rie de oposi€•es e alian€as entre as unidades
parentais matrilocais, tratadas no primeiro cap•tulo deste texto, sempre mediada por
toda uma prerrogativa referente ao trato com os menkarõ (esp•ritos)
25
. Atrav…s da vida
25
Como nos diz Mellati: ‹Ao inv…s de culto, ao inv…s de rela€•es com divindades ou her†is m•ticos, os
ritos Krah† se ocupam diretamente das rela€•es entre pessoas e grupos, mediante a utiliza€‚o de um
esquema simb†lico. Participam dos ritos Krah† vŠrios pares de metades. Tais metades n‚o regulamentam
o matrim„nio e nem existem como divis•es pol•ticas; est‚o ligadas, antes de tudo, aos ritos. Alguns
desses pares de metades dividem-se em grupos menores. Entretanto, n‚o s‚o apenas as metades e suas
divis•es que participam dos ritos; neles se podem notar outras oposi€•es, como aquela entre parentes
consangԥneos e parentes afins e aquela entre homens e mulheres.Π(Melatti, 1972: 12)
130
ritual os Krah„ buscam continuamente equilibrar a vida interna da aldeia, em fun€‚o da
necessidade de regular o contato entre os vivos e os mortos, aos quais s‚o atribu•das
diversas a€•es (Cf. Cunha, 1979). S‚o eles que podem causar as doen€as, pois como
sentem saudades da vida no krim tentam trazer para junto de si todos aqueles com os
quais mantiveram contato em vida. Os Krah„ dizem que para equilibrar essa equa€‚o,
seus antepassados puseram em prŠtica toda uma vida ritual, no intuito de agradar aos
menkarõ, rendendo-lhes gra€as e evitando assim suas a€•es intempestivas para com os
vivos.
Al…m disso, os mortos tamb…m s‚o uma fonte de sabedoria, pois sendo as
pessoas mais antigas, t‰m muito a ensinar ƒquele que travar contato com eles. Por…m,
preciso que a pessoa que assim processa seja forte, do contrŠrio os menkarõ ir‚o levŠ-lo
consigo para sua morada. Ora, s† os xam‚s possuem as t…cnicas que permitem lidar com
essas ocorr‰ncias: ir ao mundo dos mortos e retornar ao conv•vio dos vivos, trazendo
um acr…scimo de conhecimento para a sociedade como um todo. Como s‚o pessoas
destemidas por excel‰ncia, enfrentam os riscos que sua atividade pode trazer. Al…m
disso, possuem m…todos individuais que lhes permitam sobreviver a toda sorte de
perip…cias de modo adequado.
Tornaremos a falar do xam‚ logo mais, por ora nos ocuparemos de descrever o
uso das bebidas alco†licas nos rituais. Todos que possam ser considerados adultos, isto
…, todos que tenham passado pelo rito de inicia€‚o ƒ vida adulta, estando aptos para
contrair matrim„nio, a usam. Uma pessoa encarregada de distribuir as doses do
cacotxuré (cacha€a) entre as pessoas que tomam parte das festividades, geralmente um
dos ‹prefeitosŒ da esta€‚o que estiver governando a aldeia.
Enquanto isso, os c•nticos e as dan€as desenvolvem-se. Cada aldeia possu• pelo
menos um cantador, figura central nos ritos, e quem dita o ritmo pelo qual as atividades
rituais ir‚o se desenrolar no (pŠtio), relembrando aos presentes os acontecimentos
m•ticos narrados atrav…s dos c•nticos entoados. Todos os cantadores consultados s‚o
un•nimes ao afirmar que as bebidas alco†licas auxiliam nos ritos, pois com elas fica
mais fŠcil lembrar as cantigas mais antigas e tamb…m ajudam a suportar o cansa€o
advindo com a festa. Para se ter uma dimens‚o mais exata do que isso significa, recorro
ƒs palavras de Domingues:
131
‹Os cantadores cantam seguidamente no per•odo da manh‚, no per•odo da tarde, ƒ
noite. Cantam sem parar. E os adolescentes que tamb…m bebem muito, os mentúaiê,
acompanham estes cantadores toda a noite, at… o dia amanhecer. Dan€ando e
acompanhando o cantador passam o tempo desenvolvendo movimentos r•tmicos
encantadores. A festa prosseguia sem parar. No meio dela n†s n‚o ag‘entŠvamos
mais. Todo mundo em ‰xtase alc†olico. Brigas acontecendo, sedu€•es, as regras se
quebrando, e os cantadores, alucinadamente, cantando sem parar.Π(Domingues, 1998:
100)
Dan€as e cantos, em uma atmosfera na qual trava-se contato com os menkarõ e
em meio a isso tudo, o ‰xtase alc†olico. disse que os ritos operam uma esp…cie
atualiza€‚o constante da din•mica Timbira. Por…m, n‚o t‚o somente a consecu€‚o de
ditames calcados nos mitos Timbira, pois a vida ritual entre os Krah„ adquire contornos
semelhantes aos que aconteciam entre os romanos antigos: a prŠtica tem uma l†gica que
se ocupa de lidar com todas as situa€•es, subordinando os conteˆdos postos ƒ forma de
intera€‚o pr†pria a essa sociedade. Mantendo os termos de Perniola, pode-se dizer que a
vida ritual dos Krah„ antes de tudo marcada por ter ritos sem mitos, isto …, as prŠticas
s‚o assumidas pela replica€‚o da a€‚o e n‚o por interm…dio de um modelo te†rico que
continuamente atualizado e repassado nos ritos, como se v‰ nas palavras de Perniola:
‹A ritualidade consiste no fato de que todos os gestos provenham do exterior, de
fora, sejam aqueles que pertencem ƒ nossa heran€a cultural, ƒ nossa classe social, ƒ
nossa hist†ria pessoal, sejam aqueles que pertenceram a outros povos, a outras classes e
a outras pessoas. Assim parece que, na aus‰ncia de qualquer crit…rio e de qualquer
possibilidade de escolha racional, toda a€‚o imotivada; cai o fundamento metaf•sico
das aۥes, que eram fixadas, imobilizadas pela identidade coletiva dos costumes ou pela
identidade pessoal da moralidade. A transmiss‚o ritual dos usos tende a caracterizar a
cotidianidade: todos os gestos e todos os comportamentos est‚o implicados numa
circula€‚o que os subtrai ƒ identidade e ƒ origem.Œ (Perniola, 2000: 27-8).
Assim compreende-se como as bebidas alco†licas passam a fazer parte da
din•mica ritual, criando um novo conteˆdo para uma forma de prescri€‚o que se
mant…m relativamente inalterada. Por conseguinte, vemos como o Šlcool possa adentrar
em uma esfera antes consagrada a outros conteˆdos sociais. Todavia, mais do que um
aparecimento nos ritos, o transe produzido pelas bebidas alco†licas assunto para os
132
xam‚s, os waiakás (curandeiros). Esses s‚o os encarregados de curar, atrav…s do
dom•nio de poderes mŠgicos, retirando, ou fazendo alguma entidade sobrenatural
retirar, objetos prejudiciais inseridos no corpo do doente. As t…rcnicas utilizadas variam
entre suc€•es, manipula€•es manuais, coloca€‚o de emplastos ou l•quidos, e mesmo
lutas com menkarõ durante o transe. Geralmente algum esp•rito mal…fico, ou um kái
(feiticeiro) culpabilizado pela inser€‚o do mal causador da doen€a no indiv•duo que
dela vier a estar acometido. Melatti havia nos dito que uma liga€‚o entre a
atividade do waiaká e as bebidas alco†licas. Elas auxiliam a inicia€‚o a essa atividade,
como se v‰ abaixo:
‹N‚o s‚o apenas os animais que, segundo os Krah„, transmitem poderes mŠgicos
aos seres humanos. Vegetais como a mandioca ou o abacaxi, her†is m•ticos como Sol e
Lua, e outros elementos como a cachaça
*
podem fazer um indiv•duo a se transformar
num xam‚.Œ (Melatti, 1970: 75)
Uma crise provocada durante, ou ap†s a experi‰ncia de estados alterados atrav…s
do uso de bebidas alco†licas pode ser o primeiro ind•cio que conduz uma pessoa a se
tornar waiaká
26
. Ademais, o caminho para se tornar um xam‚ n‚o se encerra a•, pois o
controle sobre as manifesta€•es do mundo dos menkarõ envolve todo um aprendizado
das t…cnicas para lidar com o extraordinŠrio. Ao analisar a rela€‚o entre o mito
individual de alguns xam‚s com o mito coletivo, Melatti aponta ter encontrado o
seguinte esquema iniciat†rio entre os Krah„:
‹1) um homem adoece;
2) o homem estŠ sozinho;
3) um animal aparece ao homem;
4) o animal cura a enfermidade do homem;
5) o animal alimenta o homem;
*
Grifo meu.
26
Como, aliŠs, Mircea Eliade havia visto entro os Tungues siberianos, como se v‰ a seguir: ‹Parece
que siempre se trata de una crisis hist…rica o histeroide, seguida de un per•odo de instrucci†n, durante el
cual el ne†fito es iniciado por el chamŠn titular (Shirokogorov, p. 246 ss). En la mayoria de los casos
estas crisis se presentan en la madurez. Pero nadie puede convertirse en chamŠn, sino muchos a™os
despu…s de la primera experiencia (ibid., p. 149), y para serlo es necesario que lo reconozca com tal toda
la comunidad y despu…s de haberse sometido a la pruebla inicial. Sin ella nigˆn chamŠn puede ejercer su
funci†n.Œ (Eliade, 1992: 32)
133
6) o animal poderes mŠgicos ao homem;
7) o homem experimenta os poderes recebidos;
8) o homem sobe aos c…us;
9) o homem perde os poderes recebidos.Π(MELATTI, 1970: 69)
Muitas pessoas que manifestam a voca€‚o xam•nica n‚o chegam a desenvolv‰-
la de fato, pois desistem ao longo do dif•cil caminho. Entretanto, todos os xam‚s
passaram individualmente por esse percurso. Tal como nos mostrou Casta™eda, dominar
as manifesta€•es advindas do transe n‚o um trabalho fŠcil, mas envolve um r•gido e
Šrduo aprendizado, que n‚o pode ser repassado sen‚o atrav…s da experi‰ncia direta.
Assim, compreende-se que esse tipo de saber n‚o seja difundido entre todas as pessoas,
mas constitui-se em uma forma de dote pessoal. Em verdade, toda interven€‚o do xam‚
deve ser retribu•da com dŠdivas, pois somente ele det‰m as t…cnicas reconhecidas
socialmente
27
que podem conduzir ƒ cura, ou mesmo ƒ forma€‚o da doen€a.
Ora, esse fato desempenha um papel capital no problema que ora nos ocupamos,
pois as bebidas alco†licas s‚o um instrumento de uso do xam‚. Elas mesmas podem
induzir uma pessoa a entrar no transe, bem como em todos os conhecimentos advindos
da prŠtica xam•nica. Dizem os Krah que isso s† poss•vel por que o cacotxuré
(cacha€a) possu• um karõ (alma), dotado dessas faculdades especiais. Segundo os
Krah„, toda pessoa que consome algum bem vem a possuir as caracter•sticas desse
g‰nero, literalmente possu•da pelo karõ da subst•ncia. Ora, todo aquele que toma
cacotxuré vem a se tornar baipã (louco, extasiado): sob o efeito do Šlcool a pessoa n‚o
respeita os ditames que ordenam a vida cotidiana. Algumas pessoas me disseram que
esse processo se estende inclusive nos momentos do sono, ap†s tomar cacotxuré durante
o dia, a pessoa manifesta a mesma loucura da qual estava acometido durante o dia, s†
que agora durante o sonho. Ora, isso se processa por conta da pr†pria caracter•stica do
karõ da cacha€a, como se v‰ nas palavras de Aleixo Porri, um fil†sofo Krah„ de acordo
com S…rgio Domingues:
27
AliŠs, essa cren€a desempenha uma parcela importante da eficŠcia das prŠticas mŠgicas, como se sabe
desde o trabalho de L…vi-Strauss a esse respeito, como se v‰ a seguir: ‹N‚o hŠ, pois, raz‚o de duvidar da
eficŠcia de certas prŠticas mŠgicas. Mas, v‰-se, ao mesmo tempo, que a eficŠcia da magia implica na
cren€a da magia, e que esta se apresenta sob tr‰s aspectos complementares: existe, inicialmente, a cren€a
do feiticeiro na eficŠcia de suas t…cnicas; em seguida, a cren€a do doente que ele cura, ou da v•tima que
ele persegue, no poder pr†prio do feiticeiro; finalmente, a confian€a e as exig‰ncias da opini‚o coletiva,
134
‹A pinga. Passando pinga, que tem o nome de cacha€a. Fabricada de guarapa de
cana. A cana? Tamb…m nativo, porque nasceu da Terra. Deus dex„ a cana feita.
Guarapa de cana docinho, mais quando bota azedŠ, ela fica az‰da e quando estila
no alambique pega aquele vapor de guarapa az‰da e fais pinga. Isso o branco n‚o proibi.
Podia proibi a pinga tamb…m. O branco podia proibi a pinga tamb…m. O branco podia
proibi a pinga de outro branco, mais o branco acha que pode proibi a pinga s† pro •ndio.
Tudo bem, o branco pode tomŠ a pinga dele, porque fŠbrica dele.
O •ndio n‚o fuma porho-karhoc
28
direto. N‚o fuma porque n‚o ixisti. N‚o ixisti em
toda na€‚o de •ndio. S† existe a hist†ria. Toda a na€‚o de •ndio tem a hist†ria do porho-
karhoc.
Na pinga o branco mata outro branco. tiro noutro branco. Bate noutro branco,
surra, roba. Porque? Porque bebe pinga. Fica com o ju•zo variado. Essa que deixa a
pessoa loca.Œ
(”) Bebida alc†olica que pinga, feita de guarapa az‰da, misturada com toda a
freq‘encia” mistura de muita coisa, como tenho visto. S… d‰xa a pesoa loca. S† fais
maldade. Porhô-Karhoc n‚o faiz maldade. Porho-Karhoc s† fais o bem.Œ (Domingues,
1993: 71-2; 72-3)
Segundo Aleixo Porri o karõ da cacha€a deixa as pessoas loucas, sem conseguir
lidar com os ditames da vida cotidiana. Isso decorre das caracter•sticas peculiares ƒs
bebidas alco†licas, em virtude de seu processo de fabrica€‚o. Sempre se considera o
cacotxuré ligado ao cupen, em sua fei€‚o mais tenebrosa a de ser, tal como Turkren
29
(o
C‚o, diabo), propiciadora de uma mudan€a mal…fica na conduta da pessoa. Ora,
Domingues nos mostra que isso produto de uma fun€‚o tŠcita ao pensamento Timbira:
o produto da terra positivo, enquanto a produ€‚o artificial cria dons negativos, como
se v‰ nas suas palavras:
‹De acordo com Porri, o Porho-Karhoc uma erva nativa, com propriedades tanto
xam•nicas como farmacol†gicas. E como tudo o que nativo, bom. Nativo tudo
que formam ƒ cada instante uma esp…cie de campo de gravita€‚o no seio do qual se definem e se situam
as rela€•es entre o feiticeiro e aqueles que ele enfeiti€a.Œ (L…vi-Strauss, 1970: 184-5).
28
Designa€‚o dos krah„ para a maconha, psicotr†pico extra•do das folhas da planta canábilis sativa.
29
‹Penon disse para n†s que se os •ndios n‚o se derem conta do perigo que a cacha€a, a maconha,
porque por interm…dio dessas coisas que o C‚o surge, eles v‚o se acabar. E o C‚o quer o fim dos •ndios.
Isso ele deixou claro para o ˆltimo suicida que o viu, mas n‚o morreu.Œ (Domingues, 1998: 97)
135
aquilo que imanente ƒ terra, ao contrŠrio, por exemplo, do fabricado, que uma coisa
inventada. A cana-de-a€ucar uma coisa boa, por ser nativa. A cacha€a, que os Krah„
chamam de kakot, maligna, porque ela foi inventada, fabricada.
importante que se entenda aqui que a no€‚o de fabrica€‚o estŠ relacionada com o
aparato tecnol†gico do homem branco. Porri n‚o se refere aos utens•lios ind•genas.
De um modo geral, os Krah„ dizem que o cupen ganhou de Pƒƒp‚ o poder de
fabricar as coisas, mas s† por alguns tempos, e no entanto o cupen nunca devolveu este
poder. Trata-se de poder usurpado pelo cupen.Π(Domingues, 1993: 84)
Ora, o cacotxuré uma forma de mal, devido ao processo antinatural pelo qual o
cupen produz essa subst•ncia. Entretanto, isso n‚o faz com que ele seja abandonado
pelos Krah„, havendo todo um circuito das rela€•es Krah„ a reger essa utiliza€‚o.
Vimos pelo movimento pol•tico-religioso iniciado por Jos… Nogueira que poss•vel
tentar vir a ser tal como o cupen, ainda que de maneira delirante/xam•nica. Assim, n‚o
de se estranhar que a pr†pria utiliza€‚o dessas subst•ncias esteja associada a um devir-
cupen, a uma tentativa de vir a ser tal como cupen. Isso, por…m, n‚o significa que todos
os devires instaurem a bonan€a. Todo devir produz fluxos, agenciamentos ativos aos
quais estŠ conectado: neste caso, como o pr†prio karõ da cacha€a nos deixa entrever, s†
poss•vel reproduzir um conteˆdo mal…fico, um distanciamento da forma Timbira,
como se v‰ nas palavras de Domingues:
‹Se o alcoolismo simboliza o Cupen e seu mundo, cremos que a rela€‚o entre
cupen e alcoolismo revela uma forma de tornar-se Cupen. Enlouquecer no Šlcool viver
um devir n‚o krah„. O alcoolismo um esquecimento do modelo krah„. a fissura.
(”) A fissura n‚o transmite sen‚o fissura. O que ela transmite n‚o se deixa determinar
com isto e ou aquilo, mas for€osamente vago e difuso. N‚o transmitindo sen‚o a si
mesma, ela n‚o reproduz nada, contentando-se em avan€ar em sil‰ncio, em seguir as
linhas de menor resist‰ncia. O que a fissura designa ou antes o que ela …, este vazio, a
Morte, o Instinto da Morte. (Domingues, 1998: 103; 105)
Esse parece ser o paradoxo Krah„. Tal como o uso do Šlcool ocorre atualmente
s† poss•vel instaurar uma forma mort•fera. Conversando com os Krah„ em meu
trabalho de campo, lhes perguntava se era poss•vel mudar a rela€‚o que eles mant…m
com a cacha€a. Todos eram un•nimes em afirmar: ‹… claro que isso poss•vel! Basta
136
controlar a cacha€aŒ. Como exemplo disso, alguns deles me citavam os waiakás: eles
eram capazes de controlar a cacha€a. Por interm…dio dela podiam obter o transe e ver no
interior dos corpos doentes a causa dos males que acometiam as pessoas. Mas isso s†
poss•vel devido pois os waiakás n‚o temem o extraordinŠrio e atrav…s de suas incurs•es
nos mundos dos menkarõ, conseguem dominar todos os tipos de manifesta€•es,
inclusive o karõ da cacha€a. Com isso, o cacotxuré torna-se um bem a ser utilizado por
eles, e n‚o o inverso.
Por…m, como assinalei acima, essa dŠdiva individual. Cada waiaká emprega
muitos anos de sua vida no intento de dominar essas manifestaۥes. Pode-se objetar que
basta aos waiaká ensinarem aos demais como isso feito. Por…m, esse saber
individualizado necessita de sinais para ser repassado ao ne†fito (a crise inicial) e toda
uma disciplina ao longo de muito tempo. Em outras palavras, n‚o poss•vel imaginar
uma sociedade formada exclusivamente de waiakás. Com isso, os Krah„ entregam-se as
suas prŠticas comuns ao uso descomedido de todos os bens, como forma de utiliza€‚o
do cacotxuré, levando esse processo ao limite.
Isso n‚o significa que os Krah„ estejam ‹condenadosŒ, como uma imagem sobre
o uso do Šlcool deixa entrever. O descomedimento a marca dessa prŠtica social em
dire€‚o ao cupen como foi dito ao longo deste trabalho. Deste modo, um fato central
na vida Timbira acaba passando desapercebido, se o ˆnico modo de se utilizar as
bebidas alco†licas atrav…s do descomedimento, isso n‚o significa que esse
empreendimento seja a€‚o destrutiva, em dire€‚o a um poss•vel ‹suic•dioŒ. Os cupen da
cidade s† v‰em os Krah„ quando os ve•culos desembarcam trazendo doentes,
pensionistas, trabalhadores assalariados, curiosos e toda sorte de pessoas em busca de
viver um pouco o ser-cupen, da• que a pecha de beberr•es caia prontamente sobre os
Krah„, revelando o racismo e toda sorte de preconceitos. Esses observadores n‚o v‰em
que durante a maior parte do tempo os Krah„ est‚o se incumbindo de suas tarefas
cotidianas na aldeia, sem ter sequer como obter as bebidas alco†licas.
Se considerarmos as ocasi•es nas quais os Krah„ v‚o ƒ cidade, teremos uma
imagem diferente, pois o acesso ƒ mesma n‚o ininterrupto ao longo do ano.. Em
verdade, para saber a periodicidade que regula os deslocamentos ƒ cidade, temos de
considerar a exist‰ncia das metades katamiê e wakmeiê, pois s‚o elas as que regulam os
per•odos de tempo entre esse povo. Elas s‚o associadas ao nome pessoa, bem como para
a classifica€‚o dos seres e objetos entre essas duas classes. Ao katamiê estŠ associado o
inverno, a chuva, a noite, o frio, o escuro, ƒ floresta, etc.; ao wakmeiê liga-se o ver‚o,
137
o sol, o dia, o calor, a claridade , o campo, etc, de modo que todos os animais e objetos
ser‚o enquadrados no pensamento Krah„ de acordo com essas categorias. Com isso,
denota-se n‚o s† a tentativa de ordenar o mundo, mas tamb…m opera uma busca por
relacionar-se com os animais e objetos nos per•odos mais prop•cios para tanto; por
exemplo, existe o per•odo de plantar a fava, de colh‰-la e de consumi-la Ž de nada
adianta tentar obter essa planta fora do seu per•odo de fertilidade.
Ora, essa opera€‚o ocorre com todos os bens, inclusive com as bebidas
alco†licas. No pensamento e nas prŠticas Krah„ existe o tempo e o lugar no qual
cacotxuré, fora da ‹esta€‚oŒ dessa subst•ncia, o natural abster-se dela. Pode-se objetar
que a oferta das mercadorias cont•nua nos mercados capitalistas. Entretanto, existem
per•odos nos quais as pessoas v‚o mais ƒ cidade e outros que v‚o menos. Como o
katamiê a esta€‚o das chuvas, nesse per•odo as pessoas est‚o ocupadas mais com
alguns cuidados da ro€a, indo bem menos ƒ cidade. Assim, o cacotxuré estŠ associado
ao wakmeiê, ocasi‚o na qual as estradas est‚o em melhores condi€•es para o trŠfego, e
quando as pessoas est‚o livres para sa•rem de sua aldeia e relacionarem-se com as
coisas do cupen.
Em decorr‰ncia do acima exposto, penso que o pr†prio processo farmaco-
delirante em dire€‚o ao cupen tem seus limites dados pelas pr†prias conforma€•es das
intera€•es Timbira. Em outras palavras, como todo agenciamento Krah„ estŠ ligado aos
c†digos imanentes da terra, o devir-cacotxuré tem seus limites dados n‚o por uma
axiomŠtica quantitativa, segundo pela qual cada um deve se sujeitar, mas sim em
decorr‰ncia dos c†digos imanentes ƒ terra, o corpo da terra diz que existem per•odos
para tudo, inclusive para se deixar levar pelo cupen.
N‚o podemos ignorar que as modalidades de assalariamento come€am a marcar
o calendŠrio como um ordenador das rela€•es. Entretanto, tal como transcorre a vida
Krah„ atualmente, esse mecanismo n‚o o que dita os rumos das atividades diŠrias.
Pode ser que no futuro o calendŠrio do cupen seja a medida para o tempo, e assim as
pessoas n‚o ordenariam mais o tempo de acordo com os ditames imanentes ƒ terra. De
minha parte, sei que hoje os Krah„ declinam sobre o corpo da terra todos os c†digos que
ordenam as intera€•es entre as pessoas dessa sociedade. Sei tamb…m que eles gostam
disso e expressam uma vontade de manter o conjunto dos c†digos que d‚o sentido ao
mundo, ainda que ele n‚o seja a express‚o da bonan€a em todos os campos da vida. E
enquanto o futuro n‚o vem para resolver essas ‹pend‰nciasŒ, os Krah„ v‚o mantendo os
138
paradoxos e dilemas sobre os caminhos a serem seguidos, inclusive tomando alguns
gole de cacotxuré para sonhar a esse respeito.
139
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6. Anexo fotográfico
<a rel="license" href="http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/3.0/br/"><img
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nd/3.0/br/">Creative Commons Atribui&#231;&#227;o-Uso n&#227;o-comercial-No
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