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JOSÉ J. VEIGA:
OS PECADOS DA TRIBO
REALISMO MARAVILHOSO À BRASILEIRA
Discente: Josué Marcilio
Orientação: Prof. Mário Cezar S. Leite
Cuiabá MT
2010
Introdução
Embora o autor tenha negado, não nos parece haver melhor classificação da obra de
José J. Veiga senão como um representante brasileiro da tendência geral que na
América Latina se chamou realismo Mágico, Fantástico ou Maravilhoso. Em Os
Pecados da Tribo, objeto deste trabalho, encontramos algumas características que
foram apontadas pela crítica como próprias dessa estética. Nesta obra em particular,
Veiga oferece uma alternativa frente à tendência anterior, do realismo socialista. Ao
invés de mostrar a vida como fechada e desprovida de perspectivas, aqui, apesar das
dificuldades do momento, há uma esperança, há luzes no fim do túnel.
Procuramos fazer uma definição do realismo maravilhoso, e passamos a uma
apresentação da obra de José J. Veiga. Examinamos as características do realismo
maravilhoso, e onde se fazem presentes no livro Os Pecados da Tribo. Em seguida, o
que a crítica tem dito sobre este autor, e como o próprio autor fala de sua obra.
Inicialmente, a delimitação entre o que é Realismo Mágico, Realismo Fantástico e
Realismo Maravilhoso ainda é objeto de controvérsia. Alguns estudiosos colocam tudo
num saco só, como se fossem nomes diferentes para uma mesma coisa, ou sinônimos.
Outros se aprofundaram mais no assunto, e em que pese não ter sido dada a última
palavra sobre o assunto, e talvez dificilmente o se dada a complexidade do tema e a
despreocupação dos autores quanto a tais classificações foi possivelmente Irlemar
Chiampi quem se estendeu mais sobre ele. Podemos discordar dela quando inclui no
realismo maravilhoso tendências tão díspares como as de Alejo Carpentier e Jorge Luis
Borges, mas seu estudo O Realismo Maravilhoso (Ed. Perspectiva, 2008) nos servirá de
base no sentido de nortear a linha de análise.
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1. O que é fantástico
Na busca de definir o que é o fantástico, recorremos a Todorov (1982: 14), que assim
conceitua o termo:
O fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhece mais que as
leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural. O conceito de
fantástico se define, pois, com relação aos de real e imaginário, e estes últimos merecem
algo mais que uma simples menção.
Prosseguindo, Todorov faz distinções entre o fantástico-estranho, o estranho puro, o
fantástico-maravilhoso e o maravilhoso puro, com suas subdivisões: o maravilhoso
hiperbólico, o exótico, o instrumental e científico. O “estranho” seria o sobrenatural
explicado, e o sobrenatural aceito seria o “maravilhoso”. Essas duas tendências,
presentes na literatura policial, segundo Todorov, parecem delimitar o gênero autônomo
que é o fantástico (1982: 24).
O maravilhoso hiperbólico e o exótico aparecem, por exemplo, nas histórias das Mil
e Uma Noites, e o instrumental, principalmente nas obras de ficção científica (1982: 31-
32).
“A todas estas variedades de maravilhoso ‘escusado’, justificado, imperfeito, se opõe
o maravilhoso puro, que não se explica de maneira alguma” (1982: 32). Aqui, Todorov
toca no que é mais propriamente objeto do nosso estudo: o gênero que se desenvolveu
principalmente a partir de meados do século XX na América Latina.
2. O que é Realismo Mágico
O conceito de realismo mágico não se afasta muito do que nos é fornecido pelo sítio
www.mipunto.com:
La aparición del término Realismo Mágico se ubica entre los años 1920-1930 cuando la
crítica intentaba definir los trabajos de los pintores germanos de la postguerra. La
temática y los elementos de las obras de estos artistas, sucesores al Postexpresionismo,
se caracterizaban por ser imaginarios, fantásticos e irreales. Paulatinamente, la nueva
corriente se extendió a otros países de Europa: Holanda, Italia y Francia, cruzando
finalmente el Atlántico y arribando a los Estados Unidos. Hacia los años 40, el Museo
de Arte Moderno de Nueva York (MOMA) ofreció la exposición Realistas americanos
y realistas mágicos. Es en esa misma década cuando los críticos de literatura recurren al
nombre de Realismo Mágico para definir el estilo narrativo de algunos autores.
Segundo Alejo Carpentier, em Los Pasos Recobrados (2003:81), o realismo mágico
não tinha conotações políticas:
El término de realismo mágico fue acuñado en los alrededores del año 1924 o 1925 por
un crítico de arte alemán llamado Franz Roth en un libro publicado por la Revista de
Occidente, que se titula El realismo mágico. En realidad, lo que Franz Roth llama
realismo mágico es sencillamente una pintura expresionista, pero escogiendo aquellas
manifestaciones de la pintura expresionista ajenas a una intención política concreta.
3. O que é Realismo Fantástico
Quem possivelmente usou pela primeira vez o termo Realismo Fantástico foram os
franceses Jacques Bergier e Louis Pauwels, em O Despertar dos Mágicos. A melhor
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definição dessa tendência, que inclui tanto a literatura de Borges e alguns modernos
quanto processos tais como a alquimia e estudos de ciências humanas e matemáticas,
talvez seja: “um caldeirão em que fervem, mesclados, os métodos dos teólogos, dos
sábios, dos magos e das crianças” (El Retorno de los Brujos, 1994: 232).
4. Realismo Maravilhoso
Quem criou a expressão foi, segundo Irlemar Chiampi (1987:142), Carpentier, que
viu o Realismo Maravilhoso incorporado à história da América Latina.
Acontece que, pela virgindade da paisagem, pela formação, pela ontologia, pela
presença fáustica do índio e do negro, pela revelação que constituiu sua recente
descoberta, pelas fecundas mestiçagens que propiciou, a América está longe de ter
esgotado seu caudal de mitologias. Mas que é a história da América inteira senão uma
crônica do real maravilhoso?
Com efeito, Carpentier (1976: 89-90) faz uma enumeração das ocorrências que
corroboram sua afirmação:
Arrastra el latinoamericano una herencia de treinta siglos, pero, a pesar de una
contemplación de hechos absurdos, a pesar de muchos pecados cometidos, debe
reconocerse que su estilo se va afirmando a través de su historia, aunque a veces ese
estilo puede engendrar verdaderos monstruos. Pero las compensaciones están presentes:
puede un Melgarejo, tirano de Bolivia, hacer beber cubos de cerveza a su caballo
Holofernes; del Mediterráneo Caribe, en la misma época, surge un José Martí capaz de
escribir uno de los mejores ensayos que, acerca de los pintores impresionistas franceses,
hayan aparecido en cualquier idioma. Una América Central, poblada de analfabetos,
produce un poeta Rubén Darío que transforma toda la poesía de expresión
castellana. Hay también ahí quien, hace un siglo y medio, explicó los postulados
filosóficos de la alienación a esclavos que llevaban tres semanas de manumisos. Hay ahí
(no puede olvidarse a Simón Rodríguez) quien creó sistemas de educación inspirados en
el Emilio, donde sólo se esperaba que los alumnos aprendieran a leer para ascender
socialmente por virtud del entendimiento de los libros que era como decir: de los
códigos. Hay quien quiso desarrollar estrategias de guerra napoleónica con lanceros
montados, sin monturas ni estribos, en el lomo de sus jamelgos. Hay la prometida
soledad de Bolívar en Santa Marta, las batallas libradas al arma blanca durante nueve
horas en el paisaje lunar de los Andes, las torre de Tikal, los frescos rescatados a la
selva de Bonanpak, el vigente enigma de Tihuanacu, la majestad del acrópolis de Monte
Albán, la belleza abstracta absolutamente abstracta del Templo de Mitla, con sus
variaciones sobre temas plásticos ajenos a todo empeño figurativo. La enumeración
podría ser inacabable.
Segundo Chiampi (2008: 32), fazendo referência ao romance El Reino de este
Mundo, de Carpentier, o realismo maravilhoso pode ser assim conceituado, em linhas
gerais:
A união de elementos díspares, procedentes de culturas heterogêneas, configura uma
nova realidade histórica, que subverte os padrões convencionais da racionalidade
ocidental. Essa expressão [realismo maravilhoso], associada amiúde ao realismo mágico
pela crítica hispano-americana, foi cunhada pelo escritor cubano para designar, não as
fantasias ou invenções do narrador, mas o conjunto de objetos e eventos reais que
singularizam a América no contexto ocidental.
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5. Por uma definição geral
Parece que a principal distinção entre a definição todoroviana do fantástico e as
características que marcam a tendência estética do século XX, em particular na América
Hispânica, com alguns ecos em outras plagas, é que o fantástico europeu surge como
um estranhamento, uma violação das normas na ficção, enquanto que na nova tendência
o fantástico está incorporado e aparece naturalmente em meio a uma situação dita
normal. Ou por outra, os ficcionistas do século XX vêem a vida de uma maneira mais
ampla, em que os elementos “extraordinários”, ou “sobrenaturais”, fazem parte do
cotidiano. Assim, por exemplo, quando na família dos Buendía alguns varões nascem
com caudas suínas (Cien Años de Soledad, Gabriel García Márquez), ou quando quatro
velhas encerradas num chalé, com seus relatos, conseguem criar uma quinta, “como
num vaso alquímico” (Avalovara, Osman Lins), ou quando um país inteiro sai flutuando
pelo oceano, como se fosse uma nave (Uma Jangada de Pedra, José Saramago), ou
quando um animal de estimação assume a chefia da tribo (Os Pecados da Tribo, José J.
Veiga), essas situações são vistas com naturalidade. Podemos denominar a esta
tendência, seguindo o exemplo de Irlemar Chiampi, de realismo maravilhoso.
6. Características
Segundo Chiampi (2008: 157 ss.), são as seguintes as características do realismo
maravilhoso: ao nível das relações pragmáticas (emissor signo receptor): 1. pela
produção de um efeito de encantamento que visa estabelecer uma relação metonímica
entre as lógicas empírica e metaempírica do sistema referencial do leitor; 2. pela
enunciação problematizada, através da função metadiegética da voz, engendrando o
diálogo entre o narrador e o narratário.
Ao nível das relações semânticas (signo referente extralingüístico), o realismo
maravilhoso se caracteriza: 1. pela remissão a um referente-discurso o “real
maravilhoso” unidade cultural integrada a um sistema de ideologemas do
americanismo, cujo significado básico é a não disjunção; 2. pela re-modelização desse
significado na sua forma discursiva, através da articulação sêmica, não contraditória,
das isotopias natural e sobrenatural, e 3. pela manifestação da combinatória sêmica em
duas modalidades: a desnaturalização do real e a naturalização do maravilhoso.
Apesar da linguagem técnica um tanto hermética, veremos, no decorrer da análise,
como ficam claras essas características no romance em estudo.
Ainda segundo Chiampi, uma inclinação unânime do discurso crítico hispano-
americano é o de justapor dois critérios a fim de avaliar o processo de renovação
ficcional dos últimos quarenta anos. Um é o da representatividade, de ordem temática;
o outro é o da experimentação, na prática de técnicas que se contrapõem ao envelhecido
instrumental do realismo-naturalismo.
7. O realismo maravilhoso no Brasil
No Brasil, o realismo maravilhoso não criou raízes, tendo alguns representantes
esporádicos, como José J. Veiga e Murilo Rubião. Também são citados nomes como
Ignácio de Loyola Brandão, Victor Giudice, Moacyr Sclyar, Osman Lins, entre outros.
Embora alguns desses autores não sejam vistos como filiados a essa tendência, suas
características têm muito em comum com a da literatura que representou o boom
hispano-americano.
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Os mesmos fatores que facultaram o surgimento dessa tendência na América
Hispânica tiveram lugar no Brasil. Revoluções culturais e políticas, um amplo apego à
superstição, regimes autoritários e outros processos locais se combinaram com as
vanguardas européias, a psicanálise e as principais inquietudes do mundo inteiro sobre
os problemas humanos e existenciais, oferecendo um cenário ideal para impulsionar o
realismo maravilhoso na literatura, onde despontaram nomes como Alejo Carpentier,
Jorge Luis Borges, Miguel Angel Asturias e Juan Rulfo, além de Gabriel García
Márquez, Mario Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Octavio Paz, entre outros.
8. Situação Política
Em 1964, um golpe de Estado com o apoio da CIA instituiu o regime militar no
Brasil. Foi o primeiro de uma série de golpes que instauraram regimes direitistas
pendendo ao extremismo em quase todos os países latino-americanos. No Chile, por
exemplo, depois do “suicídio” de Allende, o general Pinochet assumiu o poder,
chegando a declarar: Nesse país nem as folhas das árvores se movem sem o meu
consentimento”. Regimes semelhantes foram impostos na Argentina, no Paraguai e em
outros países.
O clima nesses países era de insegurança pública, em nome de uma pretensa
“segurança nacional” que interessava a um grupo muito restrito: prisões, torturas,
desaparecimentos, proibição de atividades de grupos, sindicalismo e ativismo
universitário interditos, extinção dos partidos políticos (com o funcionamento de apenas
duas agremiações, a Arena e o MDB), desconfiança e delações.
Este é o clima retratado em Os Pecados da Tribo, de J. J. Veiga.
9. O Autor
José Jacinto Pereira Veiga, conhecido como José J. Veiga (Corumbá de Goiás, 1915
Rio de Janeiro, 1999), estreou na literatura aos 44 anos, com o livro Os Cavalinhos de
Platiplanto, ganhador do prêmio Fábio Prado em 1959.
Teve seus livros publicados nos Estados Unidos, Inglaterra, xico, Espanha,
Dinamarca, Suécia, Noruega e Portugal. Ganhou, pelo conjunto de sua obra, a versão
1997 do prêmio Machado de Assis, outorgado pela Academia Brasileira de Letras.
Faleceu de câncer no pâncreas e complicações causadas por uma anemia.
10. A Obra
“Um clima de tensão constante percorre a obra de José J. Veiga escreve Samira
Youssef Campedelli (1982: 100). E mais: “Nos contos de J. J. Veiga e, sobretudo, nas
novelas, o mundo organizado de repente se desorganiza: sobrevém o desequilíbrio e os
personagens passam a viver o clima do absurdo” (1982: 101).
Após passar uns anos como repórter na BBC de Londres, Veiga retorna ao Brasil, e,
nas décadas de 1950-60, exerce o cargo de tradutor e editor da revista Seleções do
Readers Digest como se sabe, uma revista norte-americana traduzida em quase todo o
mundo que, de certa forma, substituiu os antigos almanaques de textos curtos,
curiosidades literárias e culturais. No Centro de Documentação da Fundação Getulio
Vargas, foi o editor do Informativo FGV durante mais de uma década. Tal boletim, no
fundo, era também um almanaque especializado em economia & administração com
algumas pitadas culturais. Com essa experiência nesse tipo de literatura ligeira”, Veiga
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resolveu, no fim dos anos 1980, editar um almanaque no estilo daqueles antigos,
semelhante aos distribuídos pelo Biotônico Fontoura em meados do século passado. Daí
surge o Almanach de Piumhy, editado pela Editora Record em 1988.
Segundo Leopoldo Comitti, em Objetos Turbulentos, contos turbulentos: J. J. Veiga
retorna ao conto (www.kplus.com.br), a partir de 1964 sua obra esteve sempre marcada
pela reflexão política, mesmo quando tentava incursões pouco produtivas pela literatura
paradidática. Veiga praticamente inaugurou uma nova vertente da nossa literatura, a do
“novo romance histórico”, que teria em Ana Miranda o principal expoente: “A retomada
que faz de Os Sertões de Euclides da Cunha, em A Casca da Serpente, de 1989, nos
uma boa noção de que o autor não se limita a modismos. Antes mesmo de Vargas Llosa,
Veiga já havia percebido o potencial do episódio de Canudos.”
Os livros de José J. Veiga:
Os Cavalinhos de Platiplanto (1959);
A hora dos Ruminantes (1966);
A Estranha Máquina Extraviada (1967);
Sombras de Reis Barbudos (1972);
Os Pecados da Tribo (1976);
O Professor Burim e as Quatro Calamidades (1978);
De Jogos e Festas (1980);
Aquele Mundo de Vasabarros (1982);
Torvelinho Dia e Noite (1985);
Almanach de Piumhy (1988);
A Casca da Serpente (1989);
Os melhores contos de J. J. Veiga (1989);
O Risonho Cavalo do Príncipe (1993);
O Relógio Belizário (1995);
Tajá e Sua Gente (1997);
Objetos Turbulentos (1997).
11. ‘Os Pecados da Tribo’
O romance de J. J. Veiga conta, numa linguagem de conversa de compadres, como a
vida da tribo foi se deteriorando, o clima policialesco que se instaura, valores antigos
que são abandonados e elementos culturais substituídos ou compulsoriamente
abandonados, sucessivos golpes e novos umahlas (chefes) tomando as rédeas do
comando. No final, o animal de estimação do umahla acaba por se tornar o umahla. O
irmão do personagem-narrador cujo nome não aparece é Rudêncio, que com suas
manobras, está sempre por cima. A vida dos habitantes é vigiada, constrangida,
submetida a uma vigilância paranóica.
Os pecados da tribo poderiam ser: a falta de solidariedade dos dominados; a
complacência ou omissão com relação a um controle crescente da vida (o povo, como o
boi, desconhece a força que tem); o comodismo, a falta de um posicionamento firme
perante o autoritarismo, certa idolatria ao desconhecido. Mas os pecados são
irrelevantes, o que conta é o clima de punição criado. Os poderosos estão obcecados em
punir, pouco lhes importando se a punição é justa ou injusta.
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O “efeito de encantamento”
O efeito de encantamento referido por Chiampi (2008:157) é produzido em Os
Pecados da Tribu na medida em que nos envolve num colóquio que combina elementos
do nosso dia-a-dia com situações inusitadas. Nisso, podemos dizer que o se afasta de
qualquer outra obra de ficção, que projeta um mundo imaginário a partir dos dados
familiares ao leitor. Assim, por exemplo, ao entrar no assunto do clima de
descontentamento, de constrangimento que é vivido pela “tribo”, o narrador nos diz:
As ocorrências que observei enquanto meus companheiros falavam me levam a concluir
que vamos entrar numa fase de retrocesso semelhante àquela que precedeu o fim da Era
dos Inventos. (1976: 1)
A diferença, aqui, é que o autor vai utilizando termos que nos reportam tanto a uma
realidade anterior a das tribos como à dos nossos dias, e vai criando um clima
alegórico onde é possível ver a correspondência com a nossa vida por analogia. Assim,
as evaporações praticadas pelo umahla a fim de desimpedir seu caminho, as
fumigações, as determinações e proibições, tudo concorre a criar uma situação que
lembra aquela vivida num período específico da história.
O que se nota é que, nessa relação oprimidos-opressores, tudo o que “vem de cima” é
impessoal, em momento algum os “chefes” aparecem, seus agentes se apresentam
“cumprindo ordens”. As pessoas visíveis são os oprimidos ou aqueles que fazem um
jogo duplo, como Rudêncio e sua atitude perante a situação fica muito clara em um
dos capítulos centrais, intitulado significativamente “Fazemos o que nos mandam”
(1976: 53 ss.)
Este capítulo começa declarando que, apesar das aparências em contrário, acontecem
coisas na tribo, e às vezes “coisas incompreensíveis”. Pela manhã aparecem “os
homens” tocando o berrante e, depois de pôr todos em forma, determinam a abertura de
um buraco circular na dimensão marcada por estacas. As tentativas de escape são
frustradas, e todos são obrigados a trabalhar duro, sob a ameaça das “ordens de cima” e
dos chicotes. O buraco é aberto, ninguém sabe por quê nem para quê, e além dos corpos
doloridos e mãos inchadas, a população fica com a sensação de que aquilo não passara
de “um divertimento de segundos escalões desocupados”. No entanto, ninguém tinha
coragem de resistir. “Mandaram, cavamos.”
A opressão vivida pela tribo, porém, aos poucos, vai deixando alguns pontos fracos,
e começa uma conspiração e uma esperança de dias melhores. Mas o efeito de
encantamento, aqui, segue o conceito de maravilhoso conceituado por Carpentier (1987:
121-122): embora hoje em dia a tendência seja considerar “maravilhoso” como belo,
encantador, agradável, etc., seu significado original é o de extraordinário:
... na verdade, a única coisa que se deveria lembrar da definição dos dicionários é o que
se refere ao extraordinário. O extraordinário não é necessariamente belo ou bonito. Não
é bonito nem feio: é acima de tudo assombroso por aquilo que tem de insólito. Tudo o
que é insólito, tudo o que é assombroso, tudo o que escapa às normas estabelecidas é
maravilhoso.
Enunciação problematizada”
A relação “narrador-narratário”, na obra, pode ser colocada nos seguintes termos:
aqui, o narratário é participante da história, portanto, vai aos poucos tomando da
situação, procurando se equilibrar dentro de um clima desanimador. Ao invés daquele
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narrador “onisciente”, temos o narratário, o personagem-narrador, que descreve uma
situação tal como a e sente, tal como a vive, e que nem mesmo procura mudar, mas
que começa, quase por casualidade, a descobrir que é possível uma saída, um alívio para
si e para todos.
Depois que a Consulesa comunica ao personagem central o “plano”, ou seja, a
idealização e concretização do navio, eles passam a se reunir uma vez por semana na
grota.
Normalmente nos reunimos na grota uma vez por semana para conversar sobre o navio,
que aos poucos vai tomando corpo, se não ainda no terreno pelo menos no nosso
espírito. Desses encontros informais têm surgido algumas idéias realmente
revolucionárias, que são imediatamente estudadas e às vezes incluídas no plano geral
(1976: 109).
Mas não é preciso caminhar até a grota para conversar sobre o navio: eles o trazem
dentro de si.
Temos o símbolo secreto que nos identifica e nos revela a quem pertença à nossa
confraria, isso é necessário porque somos tantos e não nos conhecemos todos
(1976:109).
Assim, embora o narrador tenha uma visão de conjunto, o narratário vai se situando
pouco a pouco na história. Temos nesse intercâmbio a função metadigética da voz, no
diálogo entre o narrador e o narratário.
Os ideologemas do americanismo
Todo o romance de Veiga está recheado de termos que nos remetem à vida tribal da
América pré-colombiana: turunxas, umahlas, Caincaras, Aruguas, uxala, entre outros. A
narrativa vai se desenrolando e vão se mesclando essas palavras com expressões como
Armazéns Proibidos, Quatrocentos Princípios, Casa de Couro, as brigadas as quais
remetem ao momento específico vivido no país.
Temos portanto a “unidade cultural integrada a um sistema de ideologemas do
americanismo, cujo significado básico é a não disjunção”, de que fala Chiampi, onde a
realidade da civilização imposta à América se mescla e confunde, incorporando os
elementos alienígenas aos locais, sem que se perceba disjunção.
Articulação não contraditória
Os exemplos se multiplicam, mas tomemos, entre tantos, o caso do “estranho povo
da várzea” para demonstrar a articulação entre o natural e o sobrenatural:
Fiquei intrigado. Por que um bando de estranhos ia se esconder na mata para comer
estrume de cavalo? Comentei o caso com mamãe, ela se lembrou de uma conversa de
meu pai muitos anos, quando ele contou que em uma de suas viagens a Altamata
conheceu uma tribo que comia estrume de cavalo não para matar a fome, mas como
meio de entrar em comunicação com o mundo invisível. Então era coisa de religião?
(1976: 24.)
No final, aparece a informação de que aquele povo tinha brotado de repente, “do
estrume dos cavalos que pastam na várzea”. Essa informação é passada como se fosse
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uma coisa natural, assim como as “evaporações”, a vinda das “naus celestes”, e assim
por diante, não como uma cisão, um elemento estranho ao contexto.
Potenciano de Souza (1990: 33) faz a seguinte observação:
Um dos modos veigueanos mais singulares é o das passagens de um plano para outro,
do “corriqueiro” para “o campo do insólito”. É nessa translação que J. Veiga tem seu
jeito próprio de instaurar o curso do fantástico que “nos remete à mesma lógica
narrativa, apresentando cada elemento como o inverso exato de um outro”, convergindo
os diversos planos do real, por meio de um deslocamento que “não é troca ou fuga, e
sim desenvolvimento, retomada”, conforme analisou a professora Lanna Figueiredo.
Tomo um trecho de Cien Años de Soledad (1967: 10), onde o fantástico aparece
como se fosse natural:
Una noche en que no podía dormir, Úrsula salió a tomar agua en el patio y vio a
Prudencio Aguilar junto a la tinaja. Estaba lívido, con una expresión muy triste, tratando
de cegar con un tapón de esparto el hueco de su garganta. No le produjo miedo, sino
lástima. Volvió al cuarto a contarle a su esposo lo que había visto, pero él no le hizo
caso. «Los muertos no salen dijo . Lo que pasa es que no podemos con el peso de la
conciencia.» Dos noches después, Úrsula volvió a ver a Prudencio Aguilar en el baño,
lavándose con el tapón de esparto la sangre cristalizada del cuello. Otra noche lo vio
paseándose bajo la lluvia. José Arcadio Buendía, fastidiado por las alucinaciones de su
mujer, salió al patio armado con la lanza. Allí estaba el muerto con su expresión triste.
Desnaturalização e renaturalização
No capítulo “Cai Umahla, Sobe Umahla”, vemos a desnaturalização do natural,
quando atos aparentemente inofensivos como o de pescar se tornam uma ameaça aos
negócios de Estado, por conta da situação de exceção que se instaurou. Assim, o
personagem-narrador, acompanhado de seu irmão Rudêncio, ao voltar de uma pescaria,
é barrado por um bando de turunxas. Depois de uma troca de palavras ligeiramente
alteradas, o milagre acontece: Rudêncio agora é uma “autoridade”, pois seu sogro é o
novo Umahla, tendo “evaporado” o antigo.
Um exemplo de “naturalização do maravilhoso” ocorre, entre outras passagens, no
capítulo “Um bicho estranho no palácio”. O bicho é descrito como “uma mistura de
quadrúpede com bípede, tem rabo e pêlo mas não é macaco”. E mais:
Tem orelhas grandes e unhas pontudas, mas a cara é bem de gente. Não fala mas escuta,
e parece entender as pessoas. É brincalhão e muito manso, e tem sido o ai-jesus do
pessoal do palácio. (1976: 57)
Posteriormente (p. 64), ocorre o seguinte diálogo entre o narrador e o velho
Obelardo:
Dizem que o uiua já está falando. Será verdade?
Eu não sabia.
Me garantiram que fala. Como pode um bicho de rabo falar? Preciso ver esse bicho.
No decorrer da narrativa, o uiua não fala, mas manda o chefe calar a boca (p. 87),
e afinal (p. 93), dá um golpe de Estado.
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Representatividade e experimentação
O ‘tema’ de Os Pecados da Tribo é a opressão: como se instaura, como se mantém,
as facilidades e dificuldades que encontra, e a reação dos oprimidos frente a ela. Mas a
maneira em que isso se apresenta, ou seja, sua representação, é feita utilizando uma
“tribo” imaginária assim como em A Máquina Extraviada (1982: 59-61) os
protagonistas são a população de uma cidade do interior, desinformados e deslumbrados
com a novidade da máquina, cujo mistério querem manter a todo custo.
Essa representatividade da realidade obedece a duas necessidades básicas: uma
ficcional e outra política. A ficcional é a de contar uma história em que o real, o comum,
cotidiano é transfigurado, dando lugar a uma fantasia em que, apesar das dificuldades,
existem perspectivas, possibilidades a serem exploradas.
A necessidade política é de disfarçar uma mensagem, até certo ponto libertária,
portanto revolucionária, de modo que passasse “sem censura” pelos poderosos de
plantão. Tudo ocorre numa “tribo” imaginária, com pessoas estranhas, envoltas em
brigas entre si, quizilas com tribos vizinhas, entre celebrações, alegrias e tristezas, mas
como se fosse em outro planeta.
A experimentação se tanto no referente à linguagem quanto na técnica de
combinar elementos naturais e sobrenaturais, como numa história para crianças. O
romance já começa de uma maneira muito “íntima”, coloquial, natural:
Não gostei da reunião de ontem na Casa do Couro. A reunião em si foi excelente, a
melhor desde muito tempo. Todo o mundo estava inspirado e tinindo, quem quis falar
falou o que quis sem medo de desagradar; e quem achou que devia discordar discordou,
também sem pensar em conseqüências. Foi uma reunião civilizada, se posso usar essa
palavra que lembra tão comprometedoramente o tempo antigo. Não gostei foi de certas
ocorrências marginais que observei durante os trabalhos, e que me deixaram com a
pulga na virilha, como dizemos aqui. (1976:1)
Conjunção de “eventos”
No decorrer do romance, podemos observar, basicamente, quatro tipos de eventos
se assim os podemos chamar:
Em primeiro lugar, temos quase a cada página trechos que nada têm de fantástico,
mas são simples retratos de uma realidade concreta vivida pelo país.
Temos, por exemplo (1976: 73):
Vivemos apreensivos e assustados, e não sabemos como proceder. Se falamos, nos
comprometemos. Os homens estão atentos, juntando dois e dois para formar o quatro
deles. Mas ficar calado também não é garantia de sossego. Na lógica trazida pelos
últimos acontecimentos, quem passa o ferrolho na boca pode estar querendo esconder
alguma coisa. O resultado é que vivemos correndo da sala para a cozinha, sem saber
onde ficar. Ora falamos, para não chamar atenção pelo silêncio, ora ficamos calados
para não nos comprometer, porque não sabemos quem é espião nem quem é espiado.
Outro exemplo (1976: 31):
Ouvi um Couraca dizer uma vez que não nada garantido neste mundo. Uma ponte
está ninguém sabe desde quando; pai, filho, neto, bisneto, tetraneto passam por ela,
parece que ela nasceu naquele lugar quando o mundo foi feito, e vai continuar por
toda a vida. De repente, uma noite, vem uma enchente e carrega ponte, contrafortes,
tudo.
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E ainda, no capítulo “Tem alguém passando mal” (1976: 114):
Se ele morrer, os médicos ainda vão dizer que a culpa foi nossa, que não comparecemos
em massa para lhe dar ânimo num momento de crise, que nós o matamos de desgosto
com a nossa indiferença. Como se este território fosse habitado de ponta a ponta por
parricidas, excetuando eles, é claro.
Esses trechos representam o que não é realismo maravilhoso, no romance.
Em segundo lugar, podemos detectar elementos que claramente indicam uma
miscigenação cultural, preconceitos e atitudes com que nos deparamos em nosso dia-a-
dia, situações de enfrentamento às convenções sociais (“Na ponte com a Consulesa”,
pp. 11-18, por exemplo).
Já no primeiro capítulo, ficamos sabendo: das complexas relações entre a “tribo” e os
Aruguas (“eles eram peludos, comiam sopa de formiga e soltavam gases com estrondo”,
p. 4); da situação de instabilidade política da tribo, com um umahla novo, que tomou o
poder depois de “evaporar” o antigo, e pelo qual a maioria do povo “es como que
enfeitiçada”; de “Quatrocentos Princípios” que regem a vida da comunidade, e de
alguns usos e costumes tribais:
Quando soube do casamento o Caincara foi se amansando, de vez em quando mandava
pacotes de velas de almíscar e cabaças de mel de borá para o casal, que foi morar numa
palafita na curva do rio (1976: 5).
Essas situações, ainda que demonstrem “a união de elementos díspares, provenientes
de culturas heterogêneas”, e que “configuram uma nova realidade histórica”, de que fala
Chiampi (2008: 32), não chegam a situar a obra no contexto do realismo maravilhoso.
Em terceiro lugar, podemos verificar ocorrências como a seguinte:
De repente me lembrei do sujeito que eu era antes e me achei tão ridículo que disparei a
rir, ri a ponto de me doerem os músculos do rosto, e acabei rolando no chão pela
simples impossibilidade de ficar em ou mesmo sentado. Sentada no cepo, a
Consulesa nem parecia notar as minhas gargalhadas (p. 44).
Este trecho, em que o narrador descreve a sensação provocada pelo de semente
de jatobá, e também quando fala da sensação provocada pelo cigarro de mentastro
(“Cigarro de mentastro desmancha o azedume de qualquer pessoa” p. 84) nos
remetem a um tipo de literatura em voga nos anos 50, e que ganhou força nos anos
60/70.
Em quarto lugar, o romance nos apresenta inúmeras situações que se situam, no
mínimo, no terreno do inusitado, ou do extraordinário: no capítulo “As Naus Celestes”
(pp. 15-18), por exemplo, “Mamãe” pede para não ser “evaporada”. Por ficamos
sabendo do costume, possivelmente imposto pelo regime discricionário imposto pelos
umahlas, de evaporar as pessoas, o que quer que isso signifique. Seria uma forma de
cremação? Conforme fica claro desde o primeiro capítulo (p. 2), são “evaporadas” tanto
pessoas vivas como mortas. Esse tipo de situações, que não nos ficam claras, mas
apenas sugeridas, constituem o quarto tipo de eventos. Também se incluem a história
do “estranho povo da várzea”, do uiua que se torna umahla, e assim por diante.
Esses quatro tipos de eventos constituem a trama do romance: primeiro, os
corriqueiros, ou de conotação política; segundo, os que indicam miscigenação cultural;
terceiro, aqueles que fizeram parte de uma cultura marginal: o dos estados alterados de
12
consciência; quarto, aqueles que se situam definitivamente no terreno do inusitado, do
insólito, ou do fantástico.
É o tecido resultante desses quatro tipos de eventos que configura uma realidade
mais complexa, com mais dimensões que a realidade tal como apreendida pelos cinco
sentidos ordinários, da qual se ocupa a ficção naturalista. Talvez possamos conceituar
assim o realismo maravilhoso: transpondo o conceito de personagens bidimensionais ou
planas pelo conceito de Foster, apud Massaud Moisés (1999: 110-114) e
personagens tridimensionais, ou redondas, ao terreno da ficção, poderíamos dizer que a
prosa naturalista era tridimensional comprimento-largura-espessura na busca de
captar só a superfície da “realidade”, enquanto que a nova tendência mais dimensões
nessa realidade: é, no mínimo, tetradimensional.
As coisas têm comprimento, largura e espessura, mas têm também uma dimensão
interna. O olhar do escritor que vai além da superficialidade oferece uma perspectiva
mais ampla, mais rica vê o que os outros não vêem.
A ficção de Veiga, ainda que trate da realidade, o faz de uma maneira que transcende
o olhar naturalista, e o se limita ao alegórico. Podemos perceber características que
inserem claramente o romance de Veiga na linha do realismo maravilhoso, com suas
dimensões de “obra aberta e plural”.
Mas vejamos o que diz a crítica.
12. A crítica sobre J. J. Veiga
A crítica parece um tanto perplexa ao tentar “enquadrar” a obra de Veiga,
procurando evitar, a todo custo, sua inclusão no realismo maravilhoso.
Flora Sussekind (1990: 60-61), por exemplo, não vendo muito mais que alegoria na
obra de Veiga, a interpreta com azedume: a significação do texto é determinada
autoritariamente, para ela, e tanto nas “parábolas” de Érico Veríssimo e de J. J. Veiga
como nos romances jornalísticos de Aguinaldo Silva e José Louzeiro o alvo político é
previsível.
A mesma chave mestra político-referencial abre todas as portas. E une naturalismo e
fantástico num idêntico projeto estético: o de uma literatura cujo eixo é a referência e
não o trabalho com a linguagem, a consciência da própria materialidade verbal, é o
recalque da ficcionalidade em prol de um texto predominantemente documental.
Mário da Silva Brito (apud SOUZA: 1990, 25) algo mais que parecem querer
dizer as palavras simples e quase casuais das histórias de José J. Veiga:
Provocativo, instigante, José J. Veiga impõe, suave e mansamente, esse exercício
mental [de descobrir o significado, compreender a mensagem e desvendar os símbolos],
por onde principia a fruição de raro prazer estético.
Gilberto Mendonça Teles, também citado por Souza (1990: 27), não vendo muito
mais que os caracteres regionalistas na obra de Veiga, pensa que ele antecede Bernardo
Élis na “renovação do conto goiano”. E percebe traços surrealistas e “kafkanianos” em
Os Cavalinhos de Platiplanto:
... focalizando de longe a paisagem goiana, que ali reponta esteticamente transmudada,
com outras dimensões de tempo e movimento e num processo surrealístico, mais ou
menos kafkaniano, poetizante.
13
“O fantástico tem muitas faces”, afirma Souza (1990: 32), acrescentando que
Temístocles Linhares aponta Veiga como “o primeiro entre nós a extrair toda a beleza”
de um certo tipo de fantástico inglês (fantasmas, casas mal-assombradas: ghost-stories)
e do fantástico alemão (magias, elfos, feiticeiros). Lembrando que Murilo Rubião (O
Ex-gico, 1947) inaugura o conto fantástico no Brasil, Linhares alinhava algumas
diferenças entre os dois: em Veiga, os elementos do fantástico “são fornecidos pelo real,
pelo folclore nacional, pelas crenças populares, já que suas personagens são constituídas
de gente simples e humilde do nosso hinterland diferentes dos elementos de M.
Rubião, mais feéricos e citadinos. Para ele, Veiga pretenderia demonstrar um certo
vínculo ou conexão entre o sentimento humano e os espíritos elementares, e que “a
terra, a água, o ar, os animais sobretudo são personalidades tão ativas como o eram para
os filósofos pré-socráticos”.
Assis Brasil, segundo Souza (1990: 33), acredita que Veiga “em sua criação joga
com dois elementos essenciais: o fantástico e uma linguagem de expressões bem
brasileiras. Assim temos um ‘maravilhoso’ nosso e não importado”.
Hélio Pólvora, no capítulo “As Vozes Críticas sobre a Ficção de José J. Veiga”
(Souza, 1990: 48), aparece incluindo Veiga entre os que se desviam da literatura
“marcada por uma preocupação exclusiva do real o real que se limita ao aspecto
lógico, cioso de explicar o como e o porquê dos acontecimentos”, na medida em que
absorve “uma dicotomia que está presente na obra literária amadurecida”, onde o real se
subdivide nos aspectos lógico e poético, coexistentes e complementares.
A nota dissonante é Wilson Martins, citado por Souza (1990: 48), que aventurou,
em 1960, que sua arte se poderia definir como a do “realismo mágico”, querendo dizer:
“a do conto fantástico em que todos os elementos são os da vida cotidiana, em que o
mistério sem haver (a não ser em raras exceções) o arbitrário”.
Também Gravina (2009: 44-58) propõe uma releitura de Veiga, que leve em
consideração as instâncias da mimesis, ou seja, da representação ou imitação da
realidade.
Agostinho Potenciano de Souza (1990: 35) vislumbra um determinismo comum a
Veiga e Kafka:
Para eles, o homem está perpetuamente condenado a uma vida malogrante, da qual não
pode sair: ele, de certo modo, está na prisão.
A população vive sob um sistema de vigilância: a Companhia em Sombras de Reis
Barbudos, o Umahla em Os Pecados da Tribo, o Simpatia em Aquele Mundo de
Vasabarros. Assim, para Souza, Veiga procuraria retratar o mundo como uma “cidade
punitiva”, tal como caracterizada por Michel Foucault. (1990: )
Segundo Souza (1990:31), a brasilidade da obra veigueana lhe diferenças da linha
do realismo mágico latino-americano,
Porém não rejeita a possibilidade de serem encontrados traços comuns a Veiga,
Cortázar, Borges, Arreola e Vargas Llosa. Todos eles têm raízes de criação de uma arte
nascida num espaço de resistência a formas de opressão, de invasões, como exemplo, a
Casa Tomada de Cortázar.
Portanto, sempre na interpretação de Souza (1990: ), “Se a voga de Borges e
Cortázar fez surgir o ‘boom’ latino-americano dos anos 60, nela não se inscrevem José
J. Veiga nem o inventor de O ex-Mágico (1947), Murilo Rubião, porque essa onda não
foi aproveitada pelos brasileiros”.
14
Brasilidade, folclore nacional, meras “parábolas” ou “alegorias”, surrealismo,
“situações de estranheza”: a crítica tem feito ginásticas a fim de excluir Veiga da onda
do realismo maravilhoso.
E o próprio autor, como se posiciona com relação a isso?
Vítima de sua invenção
Em José J. Veiga, da série Literatura Comentada (1982: 100), no capítulo referente
às características do autor, intitulado significativamenteUma Estranha Realidade”,
lemos esse trecho de uma fala de Veiga:
Fui vítima de uma invenção minha. Na época em que resolvi levar a coisa a sério,
pensei: para ser escritor, preciso fazer alguma coisa mais ou menos diferente do que se
faz. Então me veio a idéia de fazer isso que chamam fantástico. Mas depois dos
Cavalinhos vi que não era fantástico. Era uma maneira de ver a realidade talvez mais a
fundo. São camadas da realidade que estão à mostra. E continuei por aí. E muito o
que fazer em cima.
Também numa entrevista à revista Escrita, em 1975, citada por Potenciano de Souza
(1990: ), Veiga nega seu parentesco com a literatura do boom latino-americano: eu
mesmo tenho dúvida se somos ‘latino-americanos’ no sentido que norte-americanos,
ingleses, franceses, atribuem à expressão. Somos brasileiros e não é pouco (ou não
é fácil)”.
Em entrevista concedida ao próprio Souza (1990: 154-155), incluída no final do
volume, Veiga diz que sua intenção era “desassossegar”. Depois de observar que as
populações no Brasil têm sido sempre submissas, faz esses comentários sobre sua obra:
Esses livros foram escritos para desassossegar, e achei que se mostrasse os oprimidos
derrubando bastilhas, o leitor fecharia o livro aliviado, e não desassossegado. Um livro
pouco pode fazer para corrigir injustiças: se conseguir causar desassossego,
conseguiu alguma coisa. Não acredito que a massa humana esteja condenada à
submissão eterna. Ela será submissa só enquanto não decidir mudar a situação.
13. Voltando aos Pecados
No volume da Literatura Comentada sobre Veiga, encontramos uma visão que nos
parece muito pertinente de sua obra:
Veiga lida com a realidade como se estivesse fazendo variações sobre o mesmo tema e
seus textos atuam como se fossem fábulas, mas não no sentido das de antigamente (de
Esopo ou Ésquilo), que contêm ensinamentos morais. Suas fábulas são sempre abertas a
várias interpretações, inserindo seus textos no âmbito da “obra aberta e plural”,
conforme a classifica Leo Gilson Ribeiro, “a ser armada conforme a sensibilidade e a
perspicácia de cada um”. (1982: 101.)
Assim, os fatos insólitos ocorridos em seus livros tanto podem ser “a representação
simbólica de qualquer ditadura” como pode ser tudo fruto da imaginação, da
“alucinação coletiva”.
15
Em Os Pecados da Tribo, também podemos ver uma situação irresolúvel, tristeza
e desânimo, ou podemos ver algo mais. Eis que surge uma esperança: “O Navio na
Floresta”. A princípio, quando o personagem é convidado a uma reunião com a
Consulesa e ouve falar do projeto, lhe parece uma brincadeira de mau gosto. Como seria
possível construir um navio grande, completo em partes e instrumentos, como se fosse
enfrentar o mar, vivendo em plena floresta?
E ainda por cima construir em segredo, pela dificuldade senão impossibilidade de
convencer as autoridades de que se trata de um passatempo inofensivo? Mas depois que
me acalmei, e meditei demoradamente sobre o assunto, fui percebendo que a idéia era
boa; mais do que isso, era uma idéia salvadora. Estamos trabalhando nela não é de hoje,
e cada dia ela me parece melhor. (1976: 108)
O U que representa o casco é o de união, a união representando a força que vem de
baixo para cima, capaz de derrubar a opressão. E o corte do mastro é a bandeira da
resistência. Assim começa a conspiração.
E no final, com o “recado do lago”, os rumos dos acontecimentos se alteram
totalmente, ainda que como projeção: o personagem-narrador participa de um
acontecimento que talvez mude sua opinião sobre o futuro do território e da vida em
geral. “Mas não quero me entusiasmar por enquanto, estou cansado de acolher falsas
esperanças” (1976: 119). E então o lago se transformou num clarão só, “formigando
com o clarão daquelas luzinhas que calculei em muitos milhares”, e todo o povo
cantando. O desfecho:
Entendo que o encantamento que baixou ontem sobre o território, espontaneamente e
sem aviso, foi uma amostra do que poderemos ter sempre quando merecermos. (1976:
122)
Assim, podemos ver os livros de Veiga como fábulas, alegorias, como um
determinismo asfixiante, ou como a representação de uma realidade mais rica, mais
funda, com camadas ou dimensões que não são observadas na visão ordinário do
nosso cotidiano; mas tais dimensões não extrapolam os domínios do real. Não é isso o
realismo maravilhoso?
Bibliografia
BERGIER, Jacques, e PAUWELS, Louis. El Retorno de los Brujos. México: Biblioteca
Fundamental Año Cero: 1994 [www.telefonica.net] Em português: O Despertar dos
Mágicos: Introdução ao Realismo Fantástico. 14. ed. SP: Difel, 1978
CARPENTIER, Alejo. A Literatura do Maravilhoso. Trad. Rubia Prates Goldoni e
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_________________. De lo real maravilloso americano. Originalmente publicado en
Tientos y diferencias. Montevideo: Arca, 1967. Tomado da edição Calicanto: Buenos
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__________________. Los Advertidos. Fonte: cinosargo.bligoo.com
_____________________. Los Pasos Recobrados, Biblioteca Ayacucho, 2003:
Caracas, Venezuela, 81
16
CHIAMPI, Irlemar. O Realismo Maravilhoso. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.
GRAVINA, Paulo Otávio Barreiros. Leituras do Fantástico: Um estudo de caso José
J. Veiga. Dissertação (Mestrado em Letras); orientadora: Pina Maria Arnoldi Coco. Rio
de Janeiro: PUC, 2009.
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MÁRQUEZ, Gabriel García. Cien Años de Soledad. Buenos Aires: Sudamericana, 1967
MOISÉS, Massaud. A Análise Literária. 14.ª ed. São Paulo: Cultrix, 1999
puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0710518_0_cap_02.pdf
SOUZA, Agostinho Potenciano de. Um Olhar Crítico sobre o Nosso Tempo: Um Olhar
Crítico sobre a Obra de José J. Veiga. Campinas: Editora Unicamp, 1990.
SÜSSEKIND, Flora. Literatura e Vida Literária: Polêmicas, Diários e Retratos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
TODOROV, Tzvetan. Introducción a la Literatura Fantástica, México DF: Premia,
1982. Em português: Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992.
VEIGA, José J. A Máquina Extraviada. In: Biografia por Moacir Amâncio; seleção de
textos, notas, estudos histórico e crítico e exercícios por Samira Youssef Campedelli.
(Literatura Comentada.) São Paulo: Abril Educação, 1982, pp. 59-61
______________. Biografia por Moacir Amâncio; seleção de textos, notas, estudos
histórico e crítico e exercícios por Samira Youssef Campedelli. (Literatura Comentada.)
São Paulo: Abril Educação, 1982.
______________. Os Pecados da Tribo. Rio: Civilização Brasileira, 1976.
www.kplus.com.br
Resumo: Como e porque a obra de José J. Veiga pode ser enquadrada na tendência do
Realismo Maravilhoso, em particular o romance Os Pecados da Tribo. Conceitos e
distinções entre o realismo mágico, o realismo fantástico e o realismo maravilhoso.
Quem foi José J. Veiga, sua vida e obra. Uma apresentação de seu romance e as
características pelas quais se enquadra na tendência latino-americana do século passado.
Palavras-chave: realismo, maravilhoso, opressão, conspiração, esperança, luzes.
17
Resumen:
Cómo y por qué se pude enmarcar la obra de José J. Veiga en la tendencia
del realismo maravilloso, en particular, la novela Los pecados de la tribu. Conceptos y
distinciones entre el realismo mágico, el realismo fantástico y el realismo maravilloso.
Quién fue José J. Veiga, su vida y obra. Una presentación de su novela y las
características que se encuentran dentro de la tendencia latinoamericana del siglo
pasado.
Palabras claves:
el realismo, maravilloso, la opresión, la conspiración, la esperanza, la
luz.
<a rel="license" href="http://creativecommons.org/licenses/by-nd/3.0/br/"><img
alt="Licença Creative Commons" style="border-width:0"
src="http://i.creativecommons.org/l/by-nd/3.0/br/88x31.png" /></a><br />A obra <span
xmlns:dct="http://purl.org/dc/terms/" href="http://purl.org/dc/dcmitype/Text"
property="dct:title" rel="dct:type">José J. Veiga: &#34;Os Pecados da Tribo&#34; -
Realismo Maravilhoso à Brasileira</span> de <a
xmlns:cc="http://creativecommons.org/ns#" href="josuema[email protected]"
property="cc:attributionName" rel="cc:attributionURL">Josué Marcilio</a> foi
licenciada com uma Licença <a rel="license"
href="http://creativecommons.org/licenses/by-nd/3.0/br/">Creative Commons -
Atribuição - Obras Derivadas Proibidas 3.0 Brasil</a>.<br />Com base na obra
disponível em <a xmlns:dct="http://purl.org/dc/terms/" href="&#34;Os Pecados da
Tribo&#34;, de José J. Veiga" rel="dct:source">&#34;Os Pecados da Tribo&#34;, de
José J. Veiga</a>.
A obra José J. Veiga: "Os Pecados da Tribo" - Realismo Maravilhoso à Brasileira de Josué
Marcilio foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição - Obras Derivadas
Proibidas 3.0 Brasil.
Com base na obra disponível em "Os Pecados da Tribo", de José J. Veiga.
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