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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
P
ROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Isaías 24,1-6 na perspectiva da profecia apocalipsista
resultante de um complexo processo sócio-teológico em
transição
por
Renato Gimenes Fialho
São Bernardo do Campo
2009
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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
P
ROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Isaías 24,1-6 na perspectiva da profecia apocalipsista
resultante de um complexo processo sócio-teológico em
transição
por
Renato Gimenes Fialho
Orientador: Dr. Archibald Mulford Woodruff
Dissertação apresentada em
cumprimento parcial às exigências do
Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião, para obtenção do
grau de Mestre.
São Bernardo do Campo
2009
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3
FICHA CATALOGRÁFICA
4
BANCA EXAMINADORA
Presidente
1º Examinador
2º Examinador
5
À minha família, amigos e amigas e
a todos apaixonados pela exegese
bíblica como eu.
6
MEUS AGRADECIMENTOS
A Deus
pela oportunidade, força e proteção.
Ao professor Dr. Archibald Mulford Woodruff,
pela orientação, atenção, paciência, compreensão, incentivo e conhecimentos
transmitidos em aulas e conversas.
Aos professores do programa de Pós-Graduação,
Dr. Milton Schwantes, Dr. Paulo Roberto Garcia, Dr. Tércio Machado Siqueira,
Dr. Jung Mo Sung e Dr. Paulo A. S. Nogueira,
por terem sido de extrema importância em meu desenvolvimento acadêmico e
teológico, possibilitando a realização deste trabalho.
À Igreja Presbiteriana Independente do Brasil,
pelo carinho e apoio.
Ao Seminário Teológico de São Paulo da IPIB
representado por sua diretoria, Reverendos Gérson Correia de Lacerda, Paulo
Sérgio de Proença, Marcos Paulo M. da C. Bailão e aos demais colegas,
pelo carinho e amizade, e por acreditarem em nossa trajetória acadêmica e
teológica.
À minha família, Ruthe Ventura (esposa), Rosa Gimenes (mãe), Paulo Ricardo
(irmão), Keli Cristina (cunhada), Juan Victor e Arthur Gimenes (sobrinhos),
pelo afeto, carinho, sorrisos e lágrimas nos momentos mais importantes da
minha vida.
Aos preciosos amigos
Ricardo de Oliveira, Leandro Vieira, Leandro Proença, E. B. Roberto, Cláudia
Roberto e Rogério Ramalho, pelas conversas e silêncios em momentos
importantes.
Aos colegas do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
em especial a Regina Célia Tamura (diretora de departamento) pela
compreensão, incentivo e concessão de licença.
7
Este trabalho só foi possível graças às
Instituições de fomento com a concessão de
bolsa de estudo:
IEPG com 50% no custeio da mensalidade de
02/2007 a 06/2007 e 75% de 07/2007 a
12/2007;
CNPQ com bolsa integral a partir de 01/2008
até o término do curso.
8
FIALHO, Renato Gimenes, Isaías 24,1-6 na perspectiva da profecia
apocalipsista resultante de um complexo processo sócio-
teológico em transição, Universidade Metodista de São Paulo,
São Bernardo do Campo, janeiro de 2009, 171 p.
SINOPSE
A dissertação objetiva estudar o papel que o apocalipsismo,
desempenhou na história e no contexto da redação do oráculo isaiano em
Isaías 24,1-6. A proposta é de que sua função foi de grande importância
no processo de formação do judaísmo pós-exílico, fomentando uma nova
reidentificação e reetnização dos israelitas-judaítas num contexto de
frustração nacionalista e religiosa que gerou uma grande heterogeneidade
teológica. Identificamos este contexto como sendo o ambiente em que se
deu um complexo processo de transição sócio-teológica na história dos
judaitas no período de dominação persa.
O apocalipsismo, enquanto fenômeno religioso e sócio-histórico,
se mostrou como resultado de uma realidade hostil e desumanizadora na
qual a identidade teológico-cultural e os relacionamentos sócio-
econômicos das pessoas foram extremamente ameaçados e violentados
gerando uma contraposição aos desígnios de Yahweh expressos na
aliança firmada por ele para com seu povo.
Através da pesquisa e análise exegética de Isaías 24,1-6, a
presente dissertação propõe que, a partir dessa realidade conflituosa, a
profecia apocalipsista isaiana se manifesta contra as estruturas e suas
articulações geradoras de segregação e desumanidade, lançando uma
esperança no ato transformador por intermédio de Yahweh, o senhor da
história, que possibilita um reverso histórico, a partir do qual será possível
reconstruir relacionamentos favoráveis no âmbito social e espiritual.
9
FIALHO, Renato Gimenes, Isaiah 24,1-6 under the apocalypsist
perspective of prophecy resulting from a complex socio-
theological process in transition, Methodist University of São
Paulo, São Bernardo do Campo, January 2009, 171 p.
ABSTRACT
This dissertation hás as its object to study the role played by
apocalylpicism in the history and the social context of the redaction of the
Isaian oracle in Isaiah 24,1-6. The proposal is that its function was of great
importance in the formation of post-exilic Judaism, fomenting a re-
identification and re-ethnicising of the Isrealites-Judeans in a context of
nationalistic and religious frustration which generated a great deal of
theological heterogeneity. We identify this context as the environment in
which there took place a complex process of socio-theological transition in
the history of the Judeans during the period of Persian domination.
Apocalypticism as a religious and sócio-historical phenomenon
shows itself as the result of a hostile and dehumanizing reality in which a
theological-cultural identity and the socio-economic relations of persons
were under extreme threat and were being violated, creating a
contraposition to the plans of Yahweh expressed in the covenant
established by him for his people.
By way of research and an exegtetical analysis of Isaiah 14,1-6, the
present dissertation proposes that, based on this conflictual reality, the
Isaian apocalypcistic prophecy manifests itself against the structures
which generate segregation and inhumanity, and their articulations,
throwing up hope, in the transforming act through the mediation of
Yahweh, the Lord of History, which makes possible an historical
turnaround, beginning with which it will be possible to reconstruct
relationships which will be favorable in the social and spiritual ambit.
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 13
1º CAPÍTULO
A PROFECIA APOCALIPSISTA ISAIANA COMO RESULTADO DE UM
COMPLEXO PROCESSO SÓCIO-TEOLÓGICO EM TRANSIÇÃO
1.1. A profecia apocalipsista isaiana 21
1.1.1. Movimento profético em Israel 23
1.1.2. Profecia e monarquia 25
1.1.3. A profecia do 8º século a.C. 27
1.1.4. Do 7º século a.C. ao final do movimento profético 29
1.2. A obra literária Isaiana 31
1.2.1. Formação do livro de Isaías 36
1.2.2. Capítulos 24-27 de Isaías 41
1.3. Período histórico 49
1.3.1. Sistema administrativo e econômico
50
1.3.2. Religiosa
52
1.3.3. Domínio persa em Israel
53
2º CAPÍTULO
ESCATOLOGIA E A ORIGEM DA APOCALÍPTICA: FENÔMENOS
SÓCIO-HISTÓRICO-TEOLÓGICOS
2.1. Escatologia
61
2.1.1. Elementos da escatologia israelita 65
2.1.2. A dinâmica da escatologia profética e apocalipsista 70
11
2.2. A origem da apocalíptica 74
2.2.1. A teoria germânica 75
2.2.2. A teoria de Gerhard von Rad 77
2.2.3. A teoria de Harold Henry Rowley 79
2.2.4. A teoria de Paul D. Hanson 81
2.2.5. Conclusão 86
3º CAPÍTULO
ESTUDO EXEGÉTICO DE ISAÍAS 24,1-6
3.1. Tradução e análise gramatical 88
3.1.1. Primeiro verso 89
3.1.2. Segundo verso 93
3.1.3. Terceiro verso 99
3.1.4. Quarto verso 100
3.1.5. Quinto verso 102
3.1.6. Sexto verso 105
3.2. Análise geral de Isaías 24.1-6 107
3.2.1. Crítica textual 107
3.2.2. Delimitação da perícope 111
3.2.3. Contexto menor
113
3.2.4. Contexto maior
115
3.2.5. Estruturação da perícope
118
3.2.6. Gênero literário e Sitz im Leben
121
3.3. Análise literária e filológica 125
3.3.1. Grupos 1 e 7 126
3.3.2. Grupos 2 e 6 130
3.3.3. Grupos 3 e 5
134
3.3.4. Grupo 4
138
12
4º CAPÍTULO
AS MARCAS DO APOCALIPSISMO ISAIANO
4.1. Isaías 24,1-6 na dinâmica apocalipsista 140
4.1.1. O apocalipsismo na dinâmica sócio-histórica 141
4.1.2. As diferenças básicas entre profecia e apocalíptica 143
4.1.3. Elementos ausentes no apocalipsismo isaiano 146
4.2. Características do apocalipsismo isaiano 148
4.2.1. O dia de Yahweh 148
4.2.2. A universalidade da ação de Deus 150
4.3. Elementos proféticos em Isaías 24,1-6 152
4.3.1. Tradições proféticas 152
CONCLUSÃO 156
BIBLIOGRAFIA 162
13
Introdução
“Não existimos para dizer o que é, mas para fazer o que não é.”
Corneluis Castoriadis
1
Este trabalho discute a questão acadêmica sobre apocalíptica e
profecia, especificamente no texto de Isaías 24,1-6. A Discussão
qualitativa permeia a classificação deste texto através de seus elementos
constitutivos como: visão de mundo, expectativas e perspectivas
específicas, linguagem mítica e gênero literário.
Os textos que apresentam os elementos considerados
apocalípticos têm-se relacionado ao escatón, entendido como o fim da era
mundana como totalmente corrompida e má, e o início de uma nova era
cósmica extramundana restaurada e boa, com perspectiva dualista
herdada da visão de mundo persa.
Neste contexto a escola germânica faz um contraste entre profecia
e apocalíptica, considerando a última um movimento sócio-teológico
importado da cultura persa, e por isso, totalmente diverso da primeira por
se darem em ambientes diferentes. Essa abordagem instaura um
antagonismo que impossibilita um elo de continuidade entre profecia e
apocalíptica.
Para Von Rad, contrário à abordagem germânica, a apocalíptica
nasce do movimento sapiencial que se formou a partir do exílio, tendo se
desenvolvido plenamente no pós-exílio.
Utilizando o método histórico traditivo, von Rad se apropria da obra
enoquiana como material básico para sua análise. No âmbito da análise
1
Corneluis Castoriadis, A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986, p. 416.
14
crítica a teoria de von Rad tem sido considerada frágil em virtude da
escolha do material base para análise, uma vez que o método adotado é
o histórico traditivo.
A partir da escolha do referido método, outros materiais têm sido
priorizados em virtude da datação, como por exemplo: o livro de Daniel.
A utilização do referido método adotado com a apropriação de
outros materiais tem possibilitado perceber uma incompatibilidade entre
sabedoria e apocalíptica acerca de expectativas e visões de mundo.
Ambas hipóteses não concebem nenhuma continuidade ou ligação
entre profecia e apocalíptica. Porém não são as únicas propostas no
âmbito da pesquisa crítica.
Harold Rowley, embora considere de extrema importância o
período persa por se dar neste a formação do judaísmo, da qual a
apocalíptica é uma expressão, diverge substancialmente da escola
germânica acerca de ser a apocalíptica um fenômeno totalmente
estrangeiro sem nenhum elo de ligação com a profecia. Para ele a
apocalíptica é filha da profecia cujo fio condutor é o conceito de fidelidade
a Yahweh com os binômios obediência/desobediência - bênção/castigo.
Para Paul D. Hanson a apocalíptica é o resultado de uma
abordagem sincrética das literaturas profética, escatológica das mais
diversas tradições teológicas, e sapiencial. Considera a profecia do 6º
século a.C. o ambiente no qual se dá o início da perspectiva apocalíptica.
Divide a apocalíptica em fases, as quais classifica como: proto-
apocalíptica, apocalíptica intermediária e apocalíptica plenamente
desenvolvida.
Nessa classificação Isaías 24,1-6 se enquadra na fase
intermediária. Para Hanson a apocalíptica seria a forma assumida da
escatologia profética num ambiente alterado do pós-exílio.
15
A partir dessas concepções e ainda alguns outros
desdobramentos, estudos acadêmicos têm distinguido os textos entre
profético e apocalíptico a partir de seus elementos internos
independentemente de uma continuidade ou de um antagonismo entre os
respectivos movimentos.
A idéia de trabalhar de forma desvencilhada destas concepções
hermenêuticas contribui para a discussão acadêmica em propor um novo
caminho para a compreensão de Isaías 24.1-6.
O texto, por surgir de um momento único, traz impresso a
expressão teológica coletiva de seu momento vivencial que, ao ser
interpretada como sendo produto puro de uma das duas concepções
(profecia e apocalíptica), oferece uma leitura inadequada por não
abranger as matizes históricas geradoras da visão de mundo e
expectativas que constituem a mensagem do texto.
A exegese de Isaías 24,1-6 aponta para uma linguagem
apocalíptica, mas não regida por uma idéia de mundo apocalíptica, uma
vez que o oráculo é articulado de maneira que apresenta uma
abrangência territorial e não étnica do agir de Yahweh na história,
deixando claro ser uma mensagem para o povo judaíta e não aos
estrangeiros.
O texto analisado atribui entonação diferenciada, deslocando seu
centro do atemporal para as relações sociais concretas, da vontade
deliberativa de Yahweh, para uma relação ética e consecutiva da ação do
povo.
Assim sendo, a leitura natural de um texto considerado apocalíptico
o remeteria para um contexto histórico helenístico e com seus
desdobramentos próprios, que não contemplam a angústia expressa no
texto e o momento onde as concepções que dão a unidade ao povo estão
sendo questionadas e sua identidade fragmentada como nos apresenta o
16
período persa, o qual sugerimos como contexto histórico-social
propiciador da visão de mundo e expectativa “apocalipsista”.
Nos aproximamos de Isaías 24,1-6 com essas questões em mente
a partir do que podemos perceber no mundo em que vivemos, e com o
desejo de perceber de que forma o texto contemplava e se inseria em seu
mundo, em seu ambiente, o qual nos parece um ambiente de
transformações.
Sabemos que nas sociedades antigas e tradicionais, contudo, as
transformações aconteciam numa velocidade bem menor do que
atualmente. A percepção das mudanças era diferente das atuais,
especialmente porque situações muito concretas estavam acontecendo:
como a dominação persa, o restabelecimento de Jerusalém e do Templo,
por exemplo.
Vivemos num mundo em constante transição; modas, idéias e até
mesmo comportamentos surgem e “deixam de ser” numa velocidade não
antes vista, dando-nos a sensação de que estamos, sempre a dever.
Essa sensação nos obriga a uma urgente adaptação contínua, caso
contrário, tornamo-nos obsoletos e dispensáveis.
Nesse permanente processo, torna-se cada vez mais complexo
saber quem somos de fato e manter nossa identidade. Afinal, existirá
realmente alguma coisa, em nós, nas idéias, na religião, nos sentimentos,
no mundo, que valha a pena ser preservado, que deva permanecer, que
deva ser lembrado e cultivado, mantido e espalhado, enquanto tudo
muda? E o que fazer com a cobrança constante de transformação, e com
a sensação e percepção de que precisamos “ser outros”, porque o que
somos não é mais suficiente?
Sabemos que, de fato, as mudanças são necessárias. Mas é
possível transformar-se, ser melhor, evoluir, sem entrar nesse
17
desenfreado ciclo de descontentamento atual, sem perder a identidade e
os valores, sem deixar para trás aquilo que é essencial?
Pensamos se as mesmas perguntas que nos atingem não seriam,
também, desafios à comunidade para a qual o texto foi dirigido, se não
estariam na mente de seu autor, de forma mais ou menos consciente. Os
desafios apresentados pelas mudanças, a crise de identidade produzida
por elas, e a percepção de que era preciso saber o que preservar, e
como, no meio das transformações de sua época, que exigiam
certamente um novo posicionamento e comportamento, tornam a tarefa
do autor do texto um grande desafio: qual o caminho a percorrer, se é que
existe um caminho, para posicionar-se de forma eficaz no mundo e nas
situações atuais sem “deixar de ser”, sem perder a identidade, como
indivíduos e, especialmente, como grupo?
Certamente, tais transformações não aconteciam de forma abrupta,
mas eram graduais: iam acontecendo no dia a dia, como tentativas de
responder às novas realidades, como produto das relações humanas e da
relação dos seres humanos com a divindade. Contudo, haviam momentos
em que as circunstâncias faziam com que tais mudanças fossem mais
patentes, como ainda acontece, momentos de ruptura ou transformação
mais abrupta da realidade, que faziam com que fossem necessárias
respostas também rápidas.
Esses momentos de ruptura, que Isaías 24,1-6 parece refletir,
aumentam a crise de identidade presente em momentos de transição,
pois mostram ao grupo que aquilo que “é” não dá mais conta da
realidade, mas saber o que se “deve ser”, que é algo que ainda não
existe, também gera insegurança.
No caso de Israel, essa crise de transformação fica ainda mais
acentuada pelo confronto entre a história do povo e seus antigos ideais, e
a realidade, tão diferente.
18
Não era apenas o mundo que sofria transformações, mas a visão
de mundo e a teologia, tão importantes para a história do povo de Israel,
também a sofriam. Não poderia ser diferente, uma vez que a teologia e a
fé não eram separadas da vida cotidiana, mas abarcavam toda a
realidade social, política e econômica. Em outras palavras, eram
essenciais para a compreensão e definição da identidade do grupo.
As transformações teológicas, e a forma de compreender e viver a
fé tornam-se, assim, essenciais num momento de transição como o que
sugerimos para o texto, e podem indicar o caminho para a reconstrução
da identidade do grupo atingido e abalado pela nova realidade.
O que o texto estudado teria a dizer diante de tudo isso? Como seu
autor se posiciona diante das transformações teológicas e das transições
e desafios reais de seu mundo? Que caminho aponta ao seu grupo, a fim
de preservá-lo e ao mesmo tempo prepará-lo para o presente e para o
futuro?
Para adentrarmos na mensagem do texto a fim de captar o acima
exposto, faz-se necessário respeitá-lo na forma em que se encontra com
seus elementos constitutivos que podem nos revelar sua visão de mundo
e seu interesse.
Percebemos em Isaías 24,1-6 elementos que mais tarde estiveram
presentes e foram plenamente desenvolvidos na apocalíptica posterior,
como também perspectivas intimamente comprometidas com a tradição
profética anterior.
Diante disso, pretendemos demonstrar Isaias 24,1-6 como um texto
de transição sócio-teológica que apresenta elementos de ambos
movimentos (profecia e apocalíptica) que se articulam de maneira
particular. Por isso a idéia de uma profecia apocalipsista isaiana.
Diferentemente da abordagem de Paul D. Hanson, consideramos
Isaías 24,1-6 não como representante de uma fase fixa ou estável, mas
19
como representante de um momento de transição de visão de mundo à
luz de eventos histórico-sociais de extrema importância na história do
povo judaíta.
Ao analisarmos Isaías 24,1-6 a partir de eventos históricos sociais
para demonstrarmos que o texto tem uma visão de mundo apocalipsista,
utilizamos a abordagem estruturalista e métodos histórico-criticos através
da análise exegética e pesquisa bibliográfica.
Procuramos com isso demonstrar qual foi o objetivo da teologia
com a perspectiva apocalipsista inserida no contexto histórico persa,
desenvolvendo nossa pesquisa em quatro momentos distintos que
originaram, metodologicamente, os quatro capítulos de nossa dissertação.
O primeiro capítulo trata do desenvolvimento do profetismo israelita
desde suas origens até o que podemos chamar de seu fim; trata da
complexidade e divergências entre pesquisadores acerca da obra isaiana
inteira, e sobre, especificamente, o bloco literário Isaías capítulos 24-27 e
sobre o período histórico que gerou o referido texto como o temos
atualmente.
O segundo capítulo trata do fenômeno escatológico com suas
expectativas e elementos específicos à luz das diferentes tradições
teológicas e como tais elementos foram articulados no decorrer da história
do javismo; realiza um levantamento das principais teorias acerca da
origem da apocalíptica como ponto de partida para a proposta da
dissertação.
No terceiro capítulo temos o diálogo exegético acerca de Isaías
24,1-6 à luz de métodos histórico-críticos com os seguintes passos:
tradução, análise gramatical, crítica textual, delimitação da perícope,
contextos menor e maior, estruturação, gênero literário e Sitz im Leben.
Por fim, uma análise literária e filológica com abordagem estruturalista a
partir da estruturação proposta.
20
No quarto capítulo demonstramos as marcas do apocalipsismo
isaiano na perícope 24,1-6, sem perder de vista todo o bloco ao qual
pertence: capítulos 24-27. Neste capítulo expomos as diferenças e
características básicas de cada movimento ou períodos sócio-histórico-
teológicos: profético, apocalipsista e apocalíptico.
Essa, então, é a proposta de pesquisa e análises de nossa
dissertação.
21
Capítulo 1
A profecia apocalipsista isaiana como resultado de um complexo
processo sócio-teológico em transição
1.1. A PROFECIA APOCALIPSISTA DE ISAÍAS
O texto escolhido de Isaías 24,1-6 como objeto de análise e estudo
exegéticos faz parte do material que compõe o bloco literário capítulos 24-
27 conhecido como o apocalipse
2
ou escatologia de Isaías
3
. O referido
bloco encontra-se na primeira parte da obra profética isaiana conhecida
2
Conforme Peter W. Van de Kamp em O profeta Isaías: comentário a Isaías 1-39, São
Leopoldo: Sinodal, 1987. E ainda conforme algumas traduções do texto bíblico na
língua portuguesa, por exemplo: Bíblia de Jerusalém, que apresenta “Apocalipse”
como título do referido bloco literário.
3
Luis Alonso Schökel e José Luis Sicre Diaz, Profetas I: Isaías, Jeremias. São Paulo:
Paulinas, 1988, p. 208.
22
como primeiro Isaías, considerada, por alguns estudiosos
4
, corresponder
ao período pré-exílico – 8º século a.C.
Outros estudiosos
5
, em relação ao referido bloco (capítulos 24-27),
têm percebido e considerado que o mesmo possui características que não
se enquadram no período pré-exílico, e sim no pós-exílico.
Optar por trabalhar com esse material nos entusiasma e desafia a
tomar certos cuidados, pois nos coloca diante de inúmeros
desdobramentos e peculiaridades que ao longo do tempo têm sido
questões de debates geradores de inúmeras hipóteses divergentes. Por
isso faz-se necessário, antes de mergulharmos na mensagem
propriamente dita do texto, nos aproximarmos de elementos que nos
possibilitarão respeitá-lo melhor acerca de seus limites, tais como:
linguagem específica, gênero literário, o lugar vivencial, período histórico,
contexto sócio-político-religioso, perspectivas específicas e visão de
mundo. Tais elementos são de extrema importância para entrarmos no
universo do texto e de sua mensagem.
Isaías 24,1-6, como todo o bloco (capítulos 24-27), apresenta
elementos da escatologia presentes na profecia e na apocalíptica
6
,
demonstrando com isso uma provável fase de transição muito importante
na história da teologia israelita. Para percebermos o quanto e como tais
elementos se articulam e formam o texto e sua mensagem, faz-se
necessário um estudo acerca da escatologia e seus desdobramentos em
ambos os movimentos (profético e apocalíptico), com uma atenção
especial aos estudos já realizados acerca de conceitos e termos
4
Como por exemplo: Peter W. Van de Kamp em O profeta Isaías: comentário a Isaías
1-39, São Leopoldo: Sinodal, 1987; e J. Ridderbos, Isaías: introdução e comentário,
série Cultura Bíblica, São Paulo: Vida Nova, 1995.
5
José Severino Croatto; Luis Alonso Schökel; José Luís Sicre Diaz; D. S. Russell; Paul
D. Hanson, William R. Millar e ainda outros, dos quais alguns serão citados no
decorrer deste capítulo.
6
São duas perspectivas diferentes, embora relacionadas à escatologia. A escatologia
apocalíptica se distingue da profética por sua ênfase na consumação mais do que no
curso da história como o lugar das últimas coisas, conforme D. S. Russel em
Desvelamento Divino, São Paulo: Paulus, 1997, p. 33. Trataremos melhor dessa
questão posteriormente.
23
específicos que nos ajudarão numa melhor compreensão do assunto, pois
os referidos movimentos marcam não apenas diferentes períodos
históricos como também diferentes modos de compreender o mundo e de
se inserir no mesmo a partir de suas experiências sociais e de
relacionamento com a divindade, isso conseqüentemente influencia e
transforma a expectativa escatológica.
Analisar tais desdobramentos que se dão no âmbito sócio-teológico
(que se originam da interação social marcada por fatores econômicos,
políticos, culturais, ideológicos, mitológico-religiosos e muitos outros
nesse sentido), exige um senso crítico que possibilite perceber a
complexidade na qual a escatologia profética apocalipsista isaiana está
imersa.
Para penetrarmos esse universo complexo iniciaremos com um
breve histórico do movimento profético como um fenômeno sócio
teológico em Israel com seus desdobramentos e peculiaridades ao longo
do tempo.
1.1.1. Movimento profético em Israel
O grande esforço da pesquisa acerca da origem do profetismo
bíblico trouxe benefícios limitados em virtude do material da história das
religiões ser fragmentário e não explicar o fenômeno profético em sua
totalidade de maneira a dar conta de toda sua complexidade.
Por isso, consideramos a concepção de José Luís Sicre
7
e Alonso
Schökel
8
, que consideram sensato admitir que a profecia de Israel, nas
suas remotas origens tenha oferecido pontos de contato com Mari e
7
José Luis Sicre Diaz, Profetismo em Israel, o profeta, os profetas, a mensagem,
Petrópolis: Vozes, 1996, p. 229.
8
Luis Alonso Schökel e José Luis Sicre Diaz, Isaías, Jeremias, profetas I, grande
comentário bíblico, São Paulo: Paulinas, 1988, p. 27-29.
24
Canaã, sendo provável até o seu ponto de partida
9
. Contudo, há um
distanciamento dos profetas hebreus deste universo ao longo do tempo.
Tal distanciamento será ainda maior a partir do século 8º quando a
profecia israelita alcança um patamar inigualável em relação aos povos
vizinhos.
O fator decisivo para entendermos a profecia israelita não se
restringe à busca pela sua origem com elementos externos oriundos do
Antigo Oriente, mas implica conhecer como essa realidade profética em
Israel se aplica na vida e história do povo (o que foi esse movimento e
quais foram seus resultados numa dinâmica interna). A profecia israelita
sofreu significativas transformações em comparação com os primeiros
profetas e seus continuadores.
Um elemento marcante do fenômeno profético é sua forma
oracular. A diferença essencial que se introduz na profecia de Israel é que
de um oráculo solicitado por pessoas, passa-se para um oráculo dado
espontaneamente por Deus, sendo uma palavra que abrange as mais
diversas esferas da vida cotidiana. Este aspecto essencial da profecia
israelita encontra-se num patamar singular em relação a outros povos.
Essa característica seria então, uma das marcas da origem do profetismo
israelita que muito se distanciou dos movimentos estrangeiros
considerados proféticos.
Nosso objetivo é analisar o papel que o profetismo assumiu na
história do povo israelita a partir de sua dinâmica interna, na qual produziu
e utilizou elementos próprios ao longo de seu desenvolvimento.
Para essa análise contamos principalmente com os relatos bíblicos
acerca dos profetas israelitas.
9
Na busca pelas origens do profetismo israelita houve muitas hipóteses conflitantes a
partir de descobertas de documentos escritos considerados proféticos entre povos
vizinhos de Israel. Alguns estudiosos defendem não haver influência estrangeira na
profecia israelita, outros defendem que sei berço teria sido na Mesopotâmia em Mari
e também Canaã, assim, o movimento profético em Israel não teria nada de novo.
25
Faz-se necessária uma análise crítica de textos bíblicos que
possibilite perceber que o profetismo, enquanto fenômeno sócio-teológico,
deva ser entendido como todo e qualquer fenômeno social: como produto
sócio-cultural que se origina a partir da interação, da qual nasce, cresce, e
se transforma ao logo da história.
O senso crítico consiste no esforço por uma compreensão para
além da leitura ingênua que costuma entender a profecia como algo que
sempre teria existido na história israelita de maneira acabada e estática. A
leitura crítica possibilita perceber que algumas referências bíblicas acerca
da profecia estejam, talvez, mais próximas de serem projeções
imaginárias da mentalidade posterior sobre aspectos proféticos do que
refletirem uma realidade histórica dos primeiros profetas.
Diante dessa realidade, nos ateremos a analisar elementos da
profecia a partir de relatos que nos aproximam mais de fatos históricos do
que de meras projeções de um imaginário posterior.
Temos o período monárquico como sendo o chão concreto no qual
temos um reflexo histórico da relação entre profetismo e monarquia
israelitas. Este chão nos permitirá captar elementos originários do
movimento profético em Israel a partir da dinâmica interna, os quais se
desenvolvem e se modificam ao longo do tempo.
1.1.2. Profecia e monarquia
A relação entre monarquia e profetismo israelitas pode ser
percebida em três etapas distintas, segundo J. L. Sicre
10
, como segue:
10
José Luis Sicre Diaz, Profetismo em Israel, o profeta, os profetas, a mensagem,
Petrópolis: Vozes, 1996, p. 236-241; e José Luis Sicre Diaz, Introdução ao Antigo
Testamento, Petrópolis, Vozes, 1999, p. 221-232.
26
1ª “proximidade física (do profeta à corte) e distanciamento crítico
em relação ao monarca” – nessa etapa os profetas desempenham
diferentes funções: de conselheiro militar, judiciais e cultuais. Nunca se
dirigem ao povo, mas sempre em relação direta ao rei
11
.
Natã pode ser
citado como modelo dessa etapa. Nesse modelo, percebemos que,
embora o profeta estivesse próximo fisicamente à corte, não pôde ser
acusado de estar a serviço dos interesses do rei;
2ª “distanciamento físico” - como representante dessa etapa
podemos mencionar Aías de Silo (cf 1Reis 11,29-39 e 14,1-8), o qual se
apresenta diante da monarquia duas vezes (ele não vive na corte), a
primeira para prometer a Jeroboão I de Israel o trono (sai ao encontro do
monarca no caminho), a segunda para condená-lo por má conduta (é
procurado pela esposa do monarca). Isso demonstra seu
comprometimento para com a palavra divina, e não para com os
interesses do monarca. Citamos também Miquéias (cf 1Reis 22) como
profeta de Yahweh que não está com o rei, é preciso procurá-lo;
3ª “distanciamento progressivo da corte e aproximação cada vez
maior ao povo” - como representante dessa etapa temos Elias. Este
profeta não é encontrado facilmente pela corte como nas etapas
anteriores. É profeta itinerante, sem vinculação nenhuma com o santuário.
Quando se coloca diante do rei é pela vontade de Deus (cf 1Reis
18,10ss), por outro lado, aproxima-se do povo, como demonstra o
episódio da viúva em 1Reis 17, 9-24. Teremos a continuidade e
desenvolvimento dessa aproximação ao povo com Eliseu.
O dado que nos parece importar é o fato da crescente proximidade
do profeta com o povo tendo como pano de fundo o cenário sócio-político-
econômico-religioso do qual os profetas fazem parte e sofrem seus efeitos
na vida juntamente com o povo.
11
José Luis Sicre Diaz, Profetismo em Israel, o profeta, os profetas, a mensagem,
Petrópolis: Vozes, 1996, p. 225.
27
Assim o movimento profético continua em pleno vapor no decorrer
da vida e da história israelita com novas fases e peculiaridades.
1.1.3. A profecia do 8º século a.C.
No século 8º a.C. a profecia israelita passa por uma nova fase com
os profetas que deixam suas obras por escrito. Uma marca dessa profecia
escrita que merece especial atenção é a novidade que apresenta. Seus
anúncios e visão de mundo são totalmente diferentes do que se conhecia
anteriormente no profetismo.
Nessa nova fase temos com o profeta Amós um divisor de águas
no profetismo israelita. Antes dele a profecia tinha o caráter de pequenas
reformas no interior das estruturas; legitimava a estrutura vigente
anunciando um apelo para corrigir apenas algumas falhas da estrutura. A
partir de Amós a mensagem profética era de grande impacto por
denunciar a realidade apresentando toda a estrutura vigente como
apodrecida, tendo como única solução a catástrofe (por vontade de
Deus), da qual emergiria uma semente santa, conforme analisou José L.
Sicre
12
.
Essa nova perspectiva da profecia desenvolve sua visão de mundo
tendo como horizonte a escatologia profética para interpretar e interagir
na realidade, perpassando todo o movimento profético posterior
suscitando novos desdobramentos na teologia. Nessa etapa a profecia se
mostrou contundente em três esferas da vida, a saber:
1ª social – com denúncia à situação dos marginalizados
socialmente; denúncia da opressão dos camponeses da Sefelá por parte
dos proprietários de terra; e denúncia à corrupção dos ricos;
12
José Luis Sicre Diaz, Introdução ao Antigo Testamento, Petrópolis: Vozes, 1999, p.
233-235.
28
2ª religiosa – se apresenta em duas vertentes: primeira ao culto
aos deuses estrangeiros, como a Baal para garantir a fertilidade; a
segunda, sendo a mais grave, trata-se da falsa idéia de Deus fomentada
por um culto esvaziado de princípios éticos, no qual manipula-se a
vontade divina eliminando sua exigência ética e apresentando em seu
lugar uma relação utilitária com sacrifícios e oferendas;
3ª política – de extrema importância em virtude das circunstâncias
de ameaças nacionais e internacionais. De forma geral, a política
imperialista (a partir de 745 a.C. – com Taglat-Falasar III no trono Assírio)
transforma o Antigo Oriente em um campo de batalha no qual a Assíria
procura impor a sua hegemonia sobre povos dispersos, fomentando com
isso um cenário político tenso e ao mesmo tempo opressor, no qual o
Egito representaria a única força capaz de opor-se ao poder assírio,
gerando com isso dois partidos: o da política assíria e o da política
egípcia. A profecia, nesse contexto, se propaga não apenas neutra em
relação a uma posição partidária, mas contundente em condenar a idéia
de resolução dos problemas da realidade ser depositada em alianças
políticas, seja ela qual fosse, por acreditar que nenhum dos interesses
políticos seria capaz de salvar o povo, mas apenas o interesse pelo
cumprimento da vontade de Deus poderia fazê-lo (volta à aliança com
Deus).
Nesse contexto ou fase, encontramos o profeta Isaías com sua
atividade durante aproximadamente quarenta anos (740 – 701 a.C.).
Período composto por tempos de tranqüilidade e tempos de turbulências;
momentos de independência política e momentos de submissão ao poder
assírio num ambiente internacional bem conflituoso que acabou
interferindo em questões não apenas políticas, como também sociais e
religiosas com grandes proporções.
29
1.1.4. Do 7º século a.C. ao final do movimento profético
O século 7º é marcado por um silêncio profético em comparação à
época anterior; apenas em seu final surgem grandes figuras proféticas
como: Sofonias, Jeremias, Habacuque e Naum
13
.
Cada um emerge diante de problemáticas diferentes, mas todos
comprometidos com o anúncio do comportamento ético e com a denúncia
das injustiças sociais e da opressão estrangeira, suscitando com isso uma
mudança de atitude e visão de mundo.
O exílio babilônico marca um novo período na história israelita
resultando em transformações também no movimento profético, por ser
este, um fenômeno sócio-teológico.
Esse novo período da história israelita tem seu início já no ano 597
a.C. com o primeiro cerco babilônico a Jerusalém e com deportação de
um grupo importante para a Babilônia. Momento no qual Sedecias,
nomeado por Nabucodonosor, permanece durante nove anos com seu
reinado de relativa tranqüilidade, pagando tributos e impostos ao
imperador até 588, quando se rebela.
Isso ocasiona o novo cerco a Jerusalém que durou um ano e meio,
que levou à rendição dos judaítas por causa da fome em julho de 586. Um
mês mais tarde houve a destruição do templo, palácio real e inúmeras
casas, saque aos tesouros, destruição dos muros e deportação de um
novo grupo à Babilônia cf. 2Reis 25.
14
Esse grupo, somado ao de 597, é composto por pessoas que
vivem a realidade e todo o efeito emocional e religioso de quem perde
tudo; a terra prometida, a cidade santa, o templo, a independência. Tal
13
Sobre Naum não há um consenso entre os comentaristas, alguns defendem ter
exercido sua profecia durante o reinado de Manassés, período do “silêncio” da
profecia israelita.
14
José Luís Sicre Diaz, Introdução ao Antigo Testamento, Petrópolis: Vozes, p. 256-
257.
30
realidade insere todo o povo numa situação de frustração religiosa e
nacionalista, na qual não havia esperanças de restauração ou reverso
histórico.
A partir desse cenário é que a profecia emerge com um novo
caráter criativo que marcou profundamente a história de Israel. A profecia
anuncia uma nova esperança com o desenvolvimento da escatologia, a
qual visualiza um reverso na história do povo, não mais baseado no poder
político ou militar, mas agora num reverso que se encontra nas mãos de
Yahweh, o único que pode mudar a realidade oferecendo e realizando
uma outra, na qual ele mesmo é quem castiga o ímpio e abençoa o justo.
Nessa fase da profecia encontramos o tema “O dia de Yahweh”
referindo-se ao grande dia no qual viria o julgamento e que Yahweh seria
revelado visivelmente convocando Israel e também todas as nações para
seu julgamento. Esse tema no Antigo Testamento recebe outros nomes
como: “dia da vingança”, “dia do desastre”, “dia da calamidade”, “dia da
punição” ou ainda simplesmente “o dia”.
15
Um aspecto que “o dia de Yahweh” apresenta é de ser parecido
com um contexto de guerra
16
. Mas essa guerra não teria como inimigo
outros povos, e sim o próprio Yahweh como o realizador da destruição.
Há descrição de uma destruição da cidade ou nação de maneira
completa, pois o dia de Yahweh, ao aniquilar a realidade presente,
instauraria ao mesmo tempo, uma nova realidade, com conotação
positiva. Essa então seria a expectativa escatológica.
Para percebermos como a obra isaiana trabalha com essa
expectação escatológica a partir do tema dia de Yahweh, faz-se
necessário entrar no universo do livro profético de Isaías para captar os
15
Trataremos melhor do tema “o dia de Yahweh” na análise acerca da dinâmica da
escatologia profética e apocalipsista.
16
J. Ridderbos, Isaías, introdução e comentário, série cultura bíblica, São Paulo: Vida
Nova, 1.995, p. 198-199; e Gerhard von Rad, Teologia do Antigo Testamento,
volume 2, São Paulo: ASTE, 1.974, p. 119-120.
31
elementos e as circunstâncias que constituem a referida expectativa, a
partir da dinâmica histórica e interna da obra.
Lidando com a obra profética isaiana entramos em contato com
tensões ao longo da mesma e com teorias que tentam harmonizá-las.
Essa análise acerca do livro de Isaías, conforme o temos atualmente, e
seu processo de formação, será de extrema importância para
percebermos o complexo trabalho redacional no qual toda a obra está
imersa, pois tal trabalho surte efeitos em seu conteúdo com alterações na
visão de mundo e na teologia.
1.2. A OBRA LITERÁRIA ISAIANA
Desde o início dos estudos exegéticos à luz dos métodos histórico-
críticos, o livro de Isaías tem apresentado grande dificuldade para ser
enquadrado nas teorias e hipóteses que foram propostas ao longo do
tempo.
Sabemos que não há um consenso por parte dos pesquisadores e
especialistas a respeito de toda a obra de Isaías. Muitos tentam
harmonizar as tenções que o livro todo apresenta, mas inúmeros fatores
têm levado a várias teorias divergentes na tentativa de resolução da
questão. Percebemos um arsenal metodológico e hermenêutico sendo
experimentado em todo o livro profético na tentativa de solucionar as
tensões presentes no mesmo, mas muitas vezes, tais métodos e
hermenêuticas têm suscitado muito mais divergências do que
convergências acerca da composição da obra isaiana dentro da
complexidade histórica e redacional do livro.
32
Segundo José Severino Croatto
17
o livro do profeta Isaías é uma
obra extensa, que reúne tradições proféticas de quase quatro séculos,
com início aproximado em 740 a.C. até a redação final do complexo
literário atual por volta do ano 400 da mesma era.
18
Sabemos não ser a
única proposta acerca do livro entre os estudiosos, mas de grande
aceitação e muito respeitada no âmbito da pesquisa crítica
19
.
Diante desse dado que nos aponta uma longa caminhada no
processo de formação do livro, partiremos com uma análise sobre as
tensões e sobre as diferentes hipóteses propostas ao longo do estudo
acerca de toda obra isaiana.
A obra apresenta em seu título o período dos reinados de Ozias,
Joatão, Acaz e Ezequias, situando-nos no contexto histórico aproximado
aos anos 767 – 698 a.C. No capítulo seis nos deparamos com o episódio
da vocação do profeta tendo ocorrido no ano da morte do rei Ozias 740,
reduzindo 27 anos do contexto apresentado inicialmente (740-698).
Após o capítulo 40 o contexto histórico concreto dos fatos torna-se
bem diverso, como segue:
apresenta diversas menções a Ciro (rei persa) de meados
do 6º século a.C.;
17
José Severino Croatto, Isaías 1-39, o profeta da justiça e da fidelidade, volume 1,
comentário bíblico, São Paulo: Vozes, Imprensa Metodista e Sinodal, 1989, p. 11.
18
Para José Luis Sicre Diaz em O profetismo em Israel, o profeta, os profetas, a
mensagem, Petrópolis: Vozes, p. 189; e Luis Alonso Schökel em Isaías e Jeremias,
Profetas I – grande comentário bíblico, São Paulo: Paulinas, p. 97-101, a finalização
da obra como a temos atualmente se dá um pouco mais tarde, por volta do 3º
século a.C. Segundo ambos, em 400 a.C. teríamos a obra sem os relatos dos
capítulos 36-39 e os capítulos 40-66, os quais não faziam parte da obra isaiana. D.
S. Russell em Desvelamento Divino, São Paulo: Paulus, 1997, p. 131, considera o
bloco capítulos 24-27 como sendo também do 3º século.
19
William R. Millar, Isaiah 24-27 and the origin of Apocalyptic, Montana: Scholars
Press, 1976, p. 3, menciona haver datações que estendem o processo de formação
da obra até o período após a revolta dos Macabeus, por volta de 129 a.C. Duhm
seria um dos que sugeriu a referida datação ao estudar o bloco 24-27. Seus estudos
não contavam com os achados de Qumrã e outras descobertas no campo da
pesquisa crítica e arqueológica.
33
a partir do capítulo 48 aparecem relatos do povo israelita em
pleno exílio sendo chamado a sair da Babilônia e retornar a
Jerusalém (período de um século e meio depois da morte de
Isaías);
a partir do capítulo 56 o contexto e o ambiente são do
período pós-exílico em Jerusalém (com perspectivas
teológicas diferentes).
Essa complexa pluralidade temporal e contextual são refletidas em
dois importantes e perceptíveis aspectos: 1º formal (estilo literário e
vocabulário) e 2º teológico (com mudanças de perspectivas e visão de
mundo). Essa realidade complexa e heterogênea refletida na escrituração
de toda a obra isaiana tem sido encarada, muitas vezes, como geradora
de grandes problemas no processo de compreensão e estudos do livro
profético.
Na tentativa de solucionar os problemas da obra, foram, ao longo
do tempo, propostas inúmeras hipóteses com diferentes visões de mundo
por parte dos estudiosos; desde as mais conservadoras
20
(com
compreensões simplistas) até as consideradas progressistas.
As compreensões simplistas foram por muito tempo bem aceitas
por se situarem num período de pouca crítica à leitura bíblica. Após o
desenvolvimento do senso crítico na pesquisa, tais hipóteses já não mais
satisfaziam estudiosos críticos. Os estudos críticos chegaram a uma
proposta considerada progressista que dividia a obra isaiana em duas
partes, das quais a primeira parte (capítulos 1-39) seria atribuída ao
profeta Isaías do século 8º a.C. e a segunda (capítulos 40-66) atribuída à
época pós-exílica.
20
Como por exemplo, adotar a idéia de apenas um autor para toda a obra isaiana, no
caso o profeta Isaías do 8º século, explicando a pluralidade de datas como sendo o
profeta dotado de poder sobrenatural conferido por Deus para conhecer o futuro.
34
Segundo nos conta José Luís Sicre Diaz e Luis Alonso Schökel, na
história da investigação crítica da obra isaiana temos dois momentos de
extrema importância: 1º Döderlein em 1775 ou 1788
21
e Eichhorn em
1782 falam de um profeta anônimo no período exílico para os relatos de
40-66, chamando-o de Dêutero-Isaías; 2º Duhm em 1892 publica um
comentário ao livro de Isaías rompendo a suposta unidade dos capítulos
40-66, atribuindo-os a dois autores diferentes, 40-55 – Dêutero-Isaías e
56-66 – Trito-Isaías.
Tais publicações e hipóteses não eliminaram, no campo da
pesquisa, a antiga idéia sobre um único autor para o livro profético de
Isaías, sendo o próprio profeta do 8º século.
Esse entendimento que privilegia o profeta Isaías como autor de
toda a obra, deixando assim, sua mensagem em segundo plano, foi
responsável por, muitas vezes, sugerir características irrealistas ao
profeta e à profecia, sendo as mesmas, mais um fruto do imaginário do
que de eventos ou fatos históricos.
As divergências não se limitam entre conservadores e
progressistas. A partir desses dois “troncos” percebemos muitas
ramificações.
Limitaremos-nos a apresentar algumas ramificações em relação às
concepções consideradas progressistas por optarem por uma análise
crítica dos eventos históricos.
Entre os estudiosos que preferem uma análise crítica a partir de
eventos históricos com seus resultados de novas perspectivas sócio-
teológicas, temos os que defendem uma unidade entre os capítulos 40-
66, com exceção de alguns acréscimos provenientes do profeta do exílio,
21
Há uma divergência em relação ao ano da publicação da proposta de Döderlein.
Conforme José Luis Sicre Diaz em Profetismo em Israel, o profeta, os profetas, a
mensagem, Petrópolis, Vozes, 1996, p. 183, teria sido no ano de 1788. Segundo
John L. Mackenzie, Dicionário Bíblico, 2ª edição, São Paulo: Paulinas, 1984, verbete
Isaías, p. 452 (b), seria do ano de 1775.
35
harmonizando as tensões de datas e ambientes após o capítulo 50 com a
justificativa de que o profeta teria voltado da Babilônia para Jerusalém
(período persa, com a permissão de retorno com Ciro), compreendendo a
obra isaiana na perspectiva de dois autores, sendo o primeiro o próprio
profeta Isaías, considerado como Proto-Isaías e o segundo como um
profeta anônimo que recebe o nome de Dêutero-Isaías. Como partidários
atuais dessa corrente citamos Peter W. Van de Kamp
22
e J. Ridderbos
23
.
Outro grupo entre os críticos entende ser impossível a unidade dos
capítulos 40-66. Apoiado na teoria de Duhm
24
o referido grupo defende a
existência de um terceiro profeta anônimo que recebe o nome de Trito-
Isaías - um profeta posterior ao exílio, o qual seria responsável pelos
capítulos 56-66. Como seguidores atuais da hipótese de Duhm citamos
Alonso Schökel, José Severino Croatto, Willian Millar, José Luis Sicre
dentro outros
25
.
Para muitos seguidores de Duhm, o Trito-Isaías teria sido um
discípulo (ou vários) do Dêutero-Isaías. Existem ainda outros grupos
considerados progressistas que articulam suas hipóteses com
desdobramentos diferentes, mas nos ateremos apenas a esses dois
citados.
Atualmente, a compreensão crítica que nos parece mais coerente e
que conta com a aceitação de um número considerável de estudiosos
entende a obra na seguinte perspectiva: O livro sendo composto por três
grandes partes (1-39; 40-55; 56-66), a primeira sendo atribuída ao profeta
Isaías do 8º século a.C. (com pequena participação de profetas anônimos
desse período); a segunda ao Dêutero-Isaías do exílio (também com
22
Peter W. Van de Kamp, O profeta Isaías: comentário a Isaías 1-39, São Leopoldo:
Sinodal, 1987, p. 87.
23
J. Ridderbos, Isaías, introdução e comentário, série cultura bíblica, São Paulo: Vida
Nova, 1995, p. 196-198.
24
José L. Sicre, Profetismo em Israel, o profeta, os profetas, a mensagem, Petrópolis:
Vozes, 1996, p. 184 – teoria do Trito-Isaías.
25
Esses são partidários da divisão tríplice nomeada (proto, dêutero e trito), mas
divergem em detalhes e peculiaridades em virtude do contínuo processo de
desenvolvimento no âmbito da pesquisa teológica crítica.
36
pequena participação de anônimos do período correspondente); e a
terceira ao Trito-Isaías, atribuída a um grupo de profetas anônimos do
período pós-exílico.
A partir da divisão tríplice proposta e aceita por grande parte dos
estudiosos, desde fins do século 18 de nossa era, a análise crítica têm
pesquisado o que uniria essas diferentes partes dando a toda obra um
caráter coerente.
Essa pesquisa possibilita perceber que as seções do livro de Isaías
não são compartimentos isolados que foram sendo acrescentados a um
núcleo originário de forma casual. Diversas imagens e temas atravessam
o livro inteiro, estabelecendo uma relação profunda entre as partes.
Essa abordagem, longe de ser um retorno à compreensão anterior
de apenas um único autor, demonstra um esforço dos redatores, os quais,
na maioria das vezes, têm passado desapercebidos por alguns
estudiosos. Esses redatores foram responsáveis por agrupar diferentes
coleções de oráculos temáticos de extrema importância na história
israelita. Essa ordem temática muitas vezes causa confusões por não
deixar clara uma cronologia ou data histórica precisa.
A partir da conscientização do papel dos redatores com suas
diferentes coleções temáticas, entramos, inevitavelmente, na discussão
acerca do processo de formação da obra isaiana como um todo.
1.2.1. Formação do livro de Isaías
Em relação à história da formação do livro de Isaías, deparamo-nos
com uma outra longa discussão acerca da difícil tarefa diante de tamanha
complexidade e do longo processo temporal de formação de toda obra,
conforme nos alerta H. Wildberger, apud (José Luis Sicre, Profetismo em
Israel, p. 185-186).
37
Limitaremos-nos a apresentar apenas duas hipóteses a respeito da
formação do livro de Isaías por adotarem princípios metodológicos
diferentes acerca de importantes questões sobre o processo de formação
da obra: a de Vermeylen
26
que privilegia os temas teológicos
independentemente de eventos históricos cronologicamente ocorridos, e a
de Wildberger
27
que privilegia acontecimentos cronologicamente
ocorridos, dos quais provêm novos temas e visões de mundo alteradas
dentro do pensamento simbólico-teológico.
Vermeylen formula o processo de formação de toda obra em sete
etapas a partir de temas principais. Para ele os referidos temas estão
presentes em toda a obra de maneira fragmentária como resultado de
sucessivas etapas de releituras, conforme segue:
1ª refere-se à pregação do profeta e à formação das cinco
primeiras coleções, com os seguintes temas:
sobre a guerra siro-efraimita;
sobre a humilhação dos orgulhosos e exaltação de Yahweh;
sobre o orgulho e a injustiça social dos poderosos de
Jerusalém;
uma coleção sobre a falta de confiança em Yahweh na
política exterior de Judá.
2ª Corresponderia ao período que vai desde o reinado de
Manasses até o exílio. Estrutura-se da seguinte forma:
o enriquecimento das coleções anteriores;
as primeiras fusões das coleções;
26
José Luis Sicre Diaz, Profetismo em Israel, o profeta, os profetas, a mensagem, p.
185-186.
27
Ibid, p. 187-189.
38
a primeira releitura que expressa a idéia da inviolabilidade
de Jerusalém;
a segunda releitura (reforma), ligada ao reinado de Josias.
3ª Seria reflexo da releitura da época do exílio. Nessa etapa
teríamos os textos célebres como a denúncia de Jerusalém (1,21-26) e a
canção da vinha (5,1-7).
4ª A releitura escatológica da primeira metade do 5º século que se
reflete em novos textos. Essa releitura acaba por estruturar toda a obra
em três partes que correspondem às grandes etapas do drama
escatológico:
castigo de Israel (1-11);
castigo dos pagãos (13-26);
triunfo de Israel (28-33) com a conclusão em 33,17-24a.
5ª Temática da conversão dos infiéis. Nela aparece uma
comunidade centrada em Sião, que se identifica como o verdadeiro Israel.
Comunidade pouco numerosa, formada por resgatados e animada por
grande esperança.
6ª Introduz uma perspectiva diferente com ênfase na compreensão
a partir da dualidade (justo X ímpio), na qual se entende a esperança não
mais na conversão, mas na destruição da realidade. Destruição que
implica a salvação do justo.
7ª Seria a dos últimos retoques a toda a obra. Destaca-se nessa
etapa as seguintes questões:
preocupação missionária com o tema da conversão dos
pagãos;
a polêmica anti-samaritana;
o tema da reunião dos judeus dispersos;
39
o drama apocalíptico.
Esse seria então o esforço de Vermeylen na tentativa de visualizar
as etapas de formação da obra isaiana a partir dos temas.
Wildberger, em concordância com Vermeylen apenas em relação
ao longo e complexo processo de formação, formula sua hipótese da
seguinte forma:
1º Ainda durante o período de vida do profeta Isaías teriam se
formado duas coleções organizadas sob o critério cronológico:
a primeira composta por capítulos 2,6 – 11,9, que recolhem
a atividade do profeta desde seus primeiros anos até a
guerra siro-efraimita e alguns outros textos procedentes dos
anos 717 a 711;
a segunda refere-se à época da rebelião de Ezequias que se
encontra atualmente nos capítulos 28-31.
2º Os desdobramentos em torno do núcleo acima citado que
crescem em diversas etapas:
desde fins da monarquia até finais do exílio vai-se formando
uma coleção de oráculos contra países estrangeiros,
centrada na queda da Babilônia, e que originariamente não
continha nenhum texto isaiano; mais tarde, o redator
incluiria alguns oráculos de Isaías para legitimar a referida
coleção com a autoridade do grande profeta, ou com vistas
a ampliar as tradições isaianas já conhecidas.
Antes do exílio, o material isaiano sofre certos retoques,
mas não são de grande monta (não admite uma redação da
época de Josias como Vermeylen). É possível que o
capítulo 23 seja pré-exílico, mas isto não significa que na
época fizesse parte do livro de Isaías.
40
A época exílica e os primeiros anos do pós-exílio supõem
uma grande releitura do material anterior. Distingue dois
nascimentos: 1º da perspectiva condenatória (notada nos
capítulos 13-23); 2º da perspectiva salvífica durante os
primeiros anos do pós-exílio sob a influência de Ezequiel e
do Dêutero-Isaías.
Ampliações pós-exílicas; a maioria em torno da salvação de
Israel, não como livramento de problemas circunstanciais,
mas na perspectiva escatológica, com o fim da realidade
vigente e o início de um novo tempo. As passagens são
bem diferentes em sua temática, linguagem, vocabulário e
importância, deixando perceptível a precária situação da
comunidade, como: ameaçada pelos infiéis internos, pelo
domínio estrangeiro (externo), pela escassez de bens
materiais e pelo abuso de tiranos sem escrúpulos.
Redação final por volta do ano 400 a.C., com o acréscimo
dos capítulos 11,11 – 12,6; os 33-35; 19,16-25; o
“apocalipse de Isaías” capítulos 24-27 - com um novo
horizonte aos oráculos contra as nações dos capítulos 13-
23.
Por volta do ano 400 a.C. esse seria o livro de Isaías, já bem
parecido à forma atual. Logo após, inserem-se os relatos sobre Ezequias
e Isaías, capítulos 36-39 e 40-66, chegando ao período do 3º século.
28
Embora sejam diferentes entre si as referidas hipóteses (uma
privilegia temas independentemente da cronologia de eventos históricos
ocorridos; e a outro privilegia acontecimentos cronologicamente ocorridos,
dos quais provêm novos temas e visões de mundo), ambas reconhecem
um longo e complexo processo de formação que se estende até o 3º
28
José Luis Sicre Diaz, Profetismo em Israel, o profeta, os profetas, a mensagem, p.
189.
41
século, contando com uma série de releituras, retoques e acréscimos
posteriores, que chegam a tomar a forma de novos oráculos. Para ambos,
o desenvolvimento se dá no decorrer da história, pois é nela que ocorrem
fatos que suscitam novos temas e ou re-leituras de antigos temas.
Essa compreensão nos possibilita perceber que a mensagem
profética está intimamente ligada à dinâmica histórica, e por isso,
necessita de explicações e complementações ao longo do tempo.
Tais questões acerca da obra e seu processo de formação
surpreendem e provocam divergências entre os leitores do livro de Isaías.
É a partir dessa realidade do livro, que somos convidados a desenvolver
um senso crítico que possibilite captar sua mensagem a partir de sua
complexidade literária imersa na dinâmica histórico-social.
Dispostos a captar a mensagem de Isaías 24,1-6 nessa
perspectiva, mergulharemos no universo da pesquisa crítica acerca do
bloco literário capítulos 24-27 de Isaías.
1.2.2. Capítulos 24-27 de Isaías
No âmbito da pesquisa e estudos referentes ao bloco, os capítulos
24-27 adquiriram uma vasta gama de hipóteses acerca de seu contexto
histórico, tipo de literatura e datação. No âmbito da análise crítica o
contexto histórico estaria num limite temporal muito extenso entre o 8º e o
3º séculos a.C.
29
29
Conforme menções de J. Ridderbos em Isaías, introdução e comentário, 2ª edição,
série Cultura Bíblica, p. 197-198 e de José Severino Croatto em Isaías 1-39: o
profeta da justiça e da fidelidade, volume 1, comentário bíblico, p. 147; num
primeiro momento da pesquisa crítica acerca da datação dos capítulos 24-27, século
19, foi proposto o período do 2º século a.C. da dominação grega com o Selêucida
Antíoco IV Epifanes (abrangendo o período dos Macabeus). Após algumas
descobertas e desenvolvimentos no âmbito da pesquisa (como os achados de
Qumrã) instauram-se certos limites temporais, e essa sugestão de data fica bem
questionável.
42
A busca pelo chão histórico do qual brotou o texto bíblico tem sido
de extrema importância no campo da pesquisa exegética por possibilitar
uma melhor compreensão dos significados e sentido da mensagem e
seus possíveis efeitos na história dos primeiros receptores da mesma,
além de possibilitar também, uma atualização da mensagem de maneira
comprometida com a realidade atual.
Embora o bloco literário (capítulos 24-27), não apresente
explicitamente nenhuma menção acerca de seu período histórico concreto
(partindo da concordância entre a grande maioria dos pesquisadores
críticos que a menção a Moabe é tipológica), seu estilo e gêneros
literários; tradições e perspectivas específicas; e outros elementos
presentes no escrito, têm sido considerados como possibilitadores de uma
proximidade histórica.
Nessa tentativa, por não haver também um consenso acerca das
características desses elementos apontados acima, continuam havendo
inúmeras possibilidades de datação e classificação do tipo de literatura.
O referido bloco de Isaías tem sido considerado por alguns
estudiosos como “O apocalipse
30
de Isaías”. Esse título tem mais
atrapalhado do que ajudado na maioria das vezes, por estar carregado de
sentidos e conceitos complexos e divergentes. Esse fato tem propiciado
uma confusão em muitos aspectos durante o processo de compreensão
do texto, inclusive em relação ao período histórico.
A busca pelo chão concreto que teria gerado o texto tem se
tornado um problema em virtude do bloco possuir elementos e
perspectivas que fizeram dele um apocalipse propriamente dito como
30
O termo “apocalipse” será utilizado neste trabalho tendo dois sentidos: 1º
etimológico sendo junção de dois termos gregos a preposição apó (
avpo), que
expressa a idéia de procedência, podendo ser traduzida por “de, da parte de”, mais
o verbo kalúpto (
kalu,ptw), podendo ser traduzido por “cobrir, esconder, ocultar”,
formando então, a idéia de revelar ou descortinar o que estava oculto ou escondido;
2º) significando gênero literário específico que será tratado adiante. O contexto
deixará claro em que sentido estará sendo empregado quando for utilizado.
43
temos na literatura apocalíptica posterior em virtude de elementos como:
o tema da ressurreição em Isaías 26.19; a perspectiva escatológica (de
um fim); o estilo literário e vocabulário do acervo mítico e demais
perspectivas teológicas em comum.
Tais aspectos acima citados não podem ser analisados como
independentes entre si, como algo departamentalizado que possa ser
tratado ou resolvido abstraído de todo o complexo ao qual faz parte.
Os questionamentos acerca dos diferentes aspectos e
desdobramentos do bloco ressurgem ao longo do progresso da pesquisa
exegética. A cada descoberta faz-se necessário voltar a questões que se
consideravam “resolvidas”.
Durante algum tempo, o bloco foi considerado pacificamente como
apocalipse. Na atualidade, tal questão volta a ser discutida,
especialmente devido à época de desenvolvimento da literatura
apocalíptica extracanônica a partir do 3º século a.C
31
.
A discussão acerca do gênero literário tem surtido efeitos não
apenas em questões formais, mas também em relação à interpretação do
conteúdo do escrito.
Alguns estudiosos consideram que o bloco pertença ao apocalipse
(tipo de literatura), introduzindo-o no que é chamado de “universo da
apocalíptica”, confundindo, muitas vezes, gênero literário, expectativa
escatológica e movimento apocalíptico; como sendo tudo uma única
coisa.
A grande problemática acerca da apocalíptica tem sido: 1 - as
diferentes concepções em relação ao que seria ou não considerado
pertencente ao universo apocalíptico quando tratamos da perspectiva
31
André Baggio em Apocalíptica Cadernos de pós-graduação em Ciências da Religião
- IMS, 1983, p. 25.
44
escatológica; 2 - a falta de consenso entre os estudiosos em relação aos
conceitos dos elementos presentes nesse universo.
Para Peter W. Van de Kamp o bloco seria do gênero apocalíptico
por revelar um fim escatológico em que a forma de mundo presente se
desfaz enquanto um novo momento se instaura pela ação de Deus.
Van de Kamp entende que o escrito apocalíptico é literatura
profética com toda sua linguagem simbólica. Não considera o acervo da
literatura apocalíptica extracanônica (a qual mencionamos estar ligada ao
período do 3º século a.C. até o 2º século d.C.). Para ele, este acervo (o
qual, na maioria das vezes é considerado como elemento importante do
universo apocalíptico) não corresponderia ao verdadeiro apocalíptico
(revelação) da vontade de Deus, por ser literatura pseudo–apocalíptica
32
.
J. Ridderbos entende que a profecia de Isaías nos capítulos 24-27
assume muitos aspectos da apocalíptica, mas não chega a ser um bom
exemplo de literatura desse movimento
33
. Aponta como exemplos
legítimos da literatura apocalíptica os livros de Daniel (no Antigo
Testamento) e o do Apocalipse de João (no Novo Testamento).
34
Para Alonso Schökel, o referido bloco é uma composição de
diversos gêneros literários com temas comuns e estruturas semelhantes
que, juntos, compõem uma grande escatologia
35
. Para ele, esse estilo
literário indica composição tardia
36
, e não deve ser confundido com um
apocalipse enquanto tipo de literatura e gênero literário.
32
Peter W. Van de Kamp, O profeta Isaías, São Paulo: Sinodal, 1.987, p. 87. O autor
restringe a compreensão do termo “apocalipse” ao significado etimológico:
revelação, no sentido de descobrir algo que estava encoberto. Não considera o
conceito acerca do gênero literário, embora sua percepção esteja relacionada com o
tipo de literatura.
33
Temos aqui um novo aspecto: o de movimento sócio-teológico, do qual trataremos
adiante, que está relacionado também com o tipo de literatura.
34
J. Ridderbos, Isaías, introdução e comentário, série cultura bíblica, São Paulo: Vida
Nova, 1.995, p. 197.
35
Temos o aspecto escatológico como uma perspectiva. Trataremos melhor
posteriormente.
36
Alonso Schökel, e José Luis Sicre Diaz, Isaías Jeremias, Profetas I – Grande
Comentário Bíblico, São Paulo: Paulinas, 1.988, p. 208.
45
Para José Severino Croatto o referido bloco, juntamente com os
capítulos 34-35, apresenta apenas elementos do gênero literário
apocalíptico, mas não chega ao nível apocalíptico propriamente dito. Para
ele, os blocos citados inspiraram o que mais tarde se desenvolveu como
literatura apocalíptica.
Segundo George W. E. Nickelsburg
37
, o bloco não seria de fato um
apocalipse, mas uma coleção de materiais proféticos que trata do
julgamento da terra por Yahweh. A descrição do julgamento com a
desintegração cósmica excede a linguagem mítica dos capítulos 34-35.
Para ele a finalidade deste julgamento com a salvação indicada pela
ressurreição do justo (cf ao capítulo 26,19 – embora pudesse ser metáfora
para a restauração nacional) é por uma escatologia diferenciada.
Para Paul D. Hanson, os capítulos 24-27 de Isaías
corresponderiam ao que ele classifica como apocalíptica intermediária,
numa linha de evolução e desenvolvimento teológico no qual os escritos
do Dêutero-Isaías são proto-apocalípticos e o livro de Daniel, juntamente
com um determinado acervo extracanônico, seriam apocalípticos no
sentido próprio do termo.
Tais posições e considerações nos permitem perceber ter havido, e
continuar havendo na maioria das vezes, divergências entre os
estudiosos acerca do entendimento do que é literatura apocalíptica,
escatologia apocalíptica e apocalipsismo, sendo que muitas vezes são
considerados a mesma coisa; e também por não haver um consenso
entre os pesquisadores acerca do entendimento de cada um desses
elementos conforme aponta Harold Henry Rowley
38
. Para captar a
diferença entre eles, faz-se necessário uma análise que parta do
conteúdo da mensagem para além de aspectos externos uma vez que o
assunto escatológico não se limita a um único tipo de literatura.
37
The Anchor Bible Dictionary, volume 2, p. 582.
38
Harold Henry Rowley, A importância da literatura apocalíptica; estudo da literatura
apocalíptica judaica, nova coleção bíblica, São Paulo: Paulinas, p. 25.
46
Para Rowley em Isaías capítulos 24-27 há uma expectativa da
catástrofe mundial na qual toda terra é abalada com o julgamento divino
por Yahweh habitando novamente em Sião para reinar sobre seu povo
reunido que estava espalhado, possibilitando gozar uma paz verdadeira e
duradoura.
Segundo ele, tal expectativa, sem dúvida nenhuma, é comum à
escatologia dos escritos apocalípticos, mas confundi-la com literatura
39
apocalíptica tem sido um equívoco grosseiro.
Segundo Paul Hanson
40
, José Severino Croatto
41
, Martinus de
Bôer
42
e John Collins
43
, o gênero literário apocalipse apresenta
características formais específicas, conforme segue:
Transmitir uma revelação dada por Deus através de: uma visão;
uma audição; uma viagem a outro mundo; ou recepção de uma
escritura (cf a Enoque etíope capítulos 93,2 e 81,1-2 – tabuas
celestiais);
Há um mediador transcendente (anjo, Cristo, etc);
Há um receptor (o visionário), geralmente pseudônimo com a
intenção de criar uma continuidade e segurança no desenrolar
histórico;
A respeito de eventos futuros (escatológico);
39
Rowley utiliza categorias de Lindblom e Skinner para demonstrar características da
literatura apocalíptica que não estão presentes no referido bloco, p. 25-29.
Adotaremos categorias de outros estudiosos para demonstrar a mesma coisa.
40
Paul D. Hanson, The Dawn of Apocalyptic, the historical and sociological roots of
jewish apocalyptic eschatology, Philadelphia: Fortress Press, 1979, p. 11.
41
José Severino Croatto, Apocalíptica e esperança dos oprimidos (contexto sócio-
político e cultural do gênero apocalíptico) Ribla nº 7, 1990, p. 16-18.
42
Martinus de Boer, A influência da apocalíptica judaica sobre as origens cristãs:
gênero, cosmovisão e movimento social em Apocalíptica e as origens cristãs;
Estudos de Religião nº 19, Apocalíptica e as Origens Cristãs, São Bernardo do
Campo, UMESP, 2000, p. 12.
43
Ibid, p. 12.
47
A maioria se origina de momento de crise em que vive o leitor,
mas a revelação é projetada num momento arquetípico (origens,
exílio, etc.);
Há uma recapitulação da história do mundo como síntese da de
Israel, mas depois virá a história do fim do mundo, na qual o
tempo de confusão e sofrimento se faz presente. Este momento
marcará o fim da corrupção e o começo de um novo momento.
Diante do acima exposto, concluímos que o bloco capítulos 24-27
de Isaías deve ser compreendido na perspectiva apocalipsista enquanto
expressão de um movimento sócio-religioso com expectativa escatológica
específica em transição que não se caracteriza definitivamente pelo
gênero literário apocalipse.
44
Não há dúvidas de que o referido bloco expresse uma perspectiva
escatológica, mas há que se perguntar que expectação é revelada e
acreditada como válida e verdadeira no texto. Na tentativa de captar esse
elemento, nos conectamos, inevitavelmente, ao período concreto que
originou a sua escrituração.
Faz-se necessário lembrar que, ao longo do tempo, a pesquisa
crítica se desenvolveu realizando novas descobertas que proporcionaram
novos rumos às pesquisas com a instauração de novos pressupostos.
Em relação ao bloco, antes de algumas descobertas arqueológicas,
como os achados de Qumrã, houve inúmeras propostas de datação. Após
tais descobertas foram instaurados novos limites no campo da pesquisa.
Com isso, consideramos o pressuposto de que o livro de Isaías já
existia na época de Ben Sirach (Eclesiástico) 180 a.C. na forma atual
44
Trataremos detalhadamente da conceituação do apocalipsismo na análise da
escatologia e seu desenvolvimento. Definiremos o gênero literário da perícope
analisada no capítulo da análise exegética por estarmos tratando aqui do bloco todo.
Será realizada uma análise acerca das características do apocalipsismo isaiano no
quarto capítulo desse trabalho.
48
(Eclo 48, 24s); e o manuscrito de Qumrã do século II a.C. já possuía
provavelmente o mesmo conteúdo em relação a Isaías.
45
José Severino Croatto
46
propõe como datação do bloco o primeiro
período persa entre 500 e 400 a.C., em virtude de considerar o
vocabulário e características lingüísticas como sendo referente a tal
período.
Levando em consideração os estudos referentes às fases de
formação da obra isaiana como um todo e sobre os capítulos 24-27 como
um bloco literário coeso, segundo J. Severino Croatto, Alonso Schökel,
Harold H. Rowley, D.S. Russell, George Nickelsburg e ainda outros;
optamos por considerar como período histórico que teria suscitado a
redação dos capítulos 24-27 o período persa entre 500 - 338 a.C.,
aumentando em 62 anos do período proposto por Croatto, por levar em
consideração os temas teológicos apontados por Rudolph Smend
47
,
conforme indica William Millar, que se encontram em transição como
resultado do longo processo de formação do judaísmo a partir da época
de reconstrução de templo, muros, cidade e status nacional.
Estes temas com suas visões de mundo em transformações estão
intimamente ligados ao referido período.
45
John L. Mackenzie, Dicionário Bíblico, São Paulo, Paulinas, 1984, p. 449-455.
46
José Severino Croatto, Isaías 1-39: o profeta da justiça e da fidelidade, volume 1,
comentário bíblico, São Paulo: Vozes, Imprensa Metodista e Sinodal, 1989, p. 147.
47
William R. Millar em Isaiah 24-27 and the origin of Apocalptic, Montana: Scholars
Press, 1976, p. 2 nos informa que Rudolph Smend, já em 1884 sugere a datação
entre 500-300 a. C. por considerar os temas presentes corresponderem às
expectativas teológicas deste período, tais como; descrição da destruição da terra
(aspecto universal); a refeição no monte Sião; a idéia de ressurreição; o toque da
trombeta; as três bestas em 27.1; o conceito de julgamento universal e a era
messiânica como um evento futuro.
49
1.3. PERÍODO HISTÓRICO
Essa datação nos coloca no contexto de dominação persa com
toda sua política administrativa e aparelho de Estado que foi eficiente
para conquistar e dominar toda a região da Ásia Ocidental.
O império persa constituiu-se graças às conquistas de Ciro II (559-
530), rei dos medos e persas. Durante seu reinado o poder persa cresceu
rapidamente tomando dimensões assustadoras e parecendo invencível.
48
Quando Ciro II morre durante uma campanha contra povos
nômades, seu filho mais velho, Cambises (530-522), torna-se seu
sucessor, o qual já tinha sido seu representante alguns anos na Babilônia.
Dentre suas tentativas de expansão do império destacam-se como
maiores feitos, a conquista do Egito em 525 com a anexação do mesmo
ao império persa e a submissão dos gregos da Líbia, Cirene e Barca.
49
Com Dario I (522-486), sucessor de Cambises, o império persa
passou por uma reforma que visou reestruturá-lo por completo com o
intuito de superar crises enfrentadas por Cambises, como por exemplo: as
frustrações em campanhas contra Etiópia e Cartago para expansão do
império.
Essa reestruturação implicou a divisão do império em unidades
administrativas chamadas satrapias, obrigadas a pagar tributos regulares.
Foi introduzida a moeda imperial cunhada em ouro, o dareikos, com o
intuito de solucionar problemas econômicos baseados na troca de
produtos naturais.
Xerxes (486-464) foi seu sucessor e morreu assassinado em meio
a disputas pelo trono, das quais sai vitorioso Artaxerxes I.
48
John Bright em História de Israel, São Paulo, Paulus, 1980, p. 493-505.
49
Ibid, p. 493.
50
Artaxerxes I (464-425) conseguiu manter a integralidade territorial
do império contra os levantes do Egito e Grécia.
Com Dario II (424-404) e Artaxerxes II (404 – 358) o império persa
é marcado pelas guerras que levaram à perda de parte do território como
o Egito, chegando a um estágio de baixo poder; momento em que as
guerras dos sátrapas da Ásia Menor abalaram a estrutura do império.
Com Artaxerxes III (358-338) o império é restaurado com o Egito
sendo reconquistado.
O império persa continua até o governo de Dario III (337-331),
quando é vencido por Alexandre, o grande.
50
1.3.1. Sistema administrativo e econômico
A administração do império persa foi muito mais eficiente e
coerente do que a dos babilônios. A estrutura era hierárquica, na qual,
nas províncias o governo era exercido por persas ou nativos, que eram
responsáveis diante dos chefes das satrapias. Estes chefes prestavam
conta diretamente ao grande rei.
Nas questões da vida intelectual e religiosa dos povos subjugados,
mostrava-se tolerante, procurando não interferir na regulação e
uniformização do que provinha da cultura e da religião deles. Havia um
respeito também pela língua dos povos. Apenas a administração imperial
demandava de uma língua única, o aramaico, com o status de língua
oficial com o intuito de garantir a unidade do Oriente Antigo.
51
50
Herbert Donner, História de Israel e dos povos vizinhos, volume 1, dos primórdios
até a formação do estado, São Leopoldo, Sinodal, 2004, p. 449-451.
51
Ibid, p. 446-447.
51
Em relação à economia não houve uma única maneira uniforme de
administrá-la durante o reinado de Ciro II e Cambises. Nesse período o
sistema econômico de cobrança de impostos era heterogêneo.
A elaboração de um sistema único de cobrança de tributos deu-se
com a reforma de Dario I, em que todas as satrapias eram obrigadas a
pagar o imposto em prata (siclos). O cálculo era baseado na área de terra
cultivável e em sua fertilidade. Além disso, o imposto foi mantido o antigo
sistema de doações, as quais eram estritamente determinadas e pagas
em mercadoria, com taxas fixas de cereal, cavalos, mulas, ovelhas,
armas, eunucos, moças, meninos e alimentação para as tropas da
satrapia local.
52
Os persas introduziram o sistema de arrendamento de suas terras
a altos funcionários e dignatários em troca da prestação de serviços,
especialmente o serviço militar. O arrendamento das “terras do rei” era
administrado pelas chamadas casas de negócio. Com o término da
prestação de serviço dos funcionários e dignatários, as terras eram
novamente arrendadas através de transações altamente lucrativas com
taxações destinadas aos detentores das terras.
A cunhagem da moeda imperial em ouro, juntamente com o siclo a
moeda grega de prata, viabilizavam o desenvolvimento do comércio e a
arrecadação dos tributos. Isso provocou uma acumulação desses metais
nos cofres imperiais. Tais metais tornaram-se escassos no cotidiano
aumentando ainda mais seus valores.
Os impostos eram pagos basicamente com prata pura. A falta de
pagamento do imposto, devido à falta da moeda em circulação, levou a
uma dependência financeira. Segundo Rudi Tünnermann
53
essa realidade
52
Rudi Tünnermann, As reformas de Neemias: a reconstrução de Jerusalém e a
reorganização de Judá no período persa, São Leopoldo: Sinodal, 2001, p. 21-24.
53
Ibid, p.24-27.
52
de endividamento fomentou o aumento do comércio de escravos no
mediterrâneo nesse período.
1.3.2. Religião
As origens da religião persa são obscuras, mas o dualismo tem
sido considerado por alguns estudiosos como característica marcante
dessa religião. Segundo Rudi Tünnermann
54
, Ahura Mazda, o Senhor
Sábio, considerado o pai de todas as entidades que governam o mundo é
a única origem de toda a ordem moral que sustenta todas as coisas. Não
seria o criador de todas as coisas, pois seu poder de criar é limitado pelo
poder de Anra Mainyu, o criador de uma parte da criação hostil. Eles
encontram-se em luta permanente sem perspectiva de resultado final.
55
Temos a partir dessa concepção religiosa a luta permanente entre
o bem e o mal. Primar pela justiça implica tomar partido pelo bem. A
justiça está regulada por dois princípios: a verdade e o respeito aos
contratos, constitutivos da vida moral da qual Ahura Mazda é o pai. Os
interesses religiosos coincidiam com os da autoridade, pois as leis
religiosas dominavam todas as esferas.
56
Os persas desenvolveram uma criteriosa e atenta supervisão do
funcionamento dos templos. Desde o reinado de Cambises são
mencionados os “escribas do rei”, responsáveis pelo controle da
movimentação financeira do templo. Os templos eram responsáveis pelos
trabalhos de corvéia
57
para o Estado.
54
Rudi Tünnermann, As reformas de Neemias: a reconstrução de Jerusalém e a
reorganização de Judá no período persa, São Leopoldo: Sinodal, 2001, p. 27-28.
55
Para um aprofundamento no assunto indicamos a leitura do primeiro capitulo do
livro de Norman Cohn, Cosmos, Caos e o mundo que virá – as origens das crenças
no apocalipse, com atenção especial ao tema Zoroastrismo, p. 109-144.
56
Rudi Tünnermann, As reformas de Neemias: a reconstrução de Jerusalém e a
reorganização de Judá no período persa, São Leopoldo: Sinodal, 2001, p. 27-28.
57
Trabalho forçado sem remuneração que o camponês presta ao Estado.
53
A fim de que os templos cumprissem com suas obrigações, foram
introduzidos comissários reais e agentes fiscais na administração dos
mesmos.
58
1.3.3. Domínio persa em Israel
Não há muitos documentos acerca da situação da Palestina sob o
domínio persa. O pouco que temos permite-nos perceber que com Ciro II
a Palestina e a Mesopotâmia foram tratadas como uma única grande
satrapia “Babilônia e Transeufrates”. Mas no tempo de Dario I a
Transeufrates foi separada e considerada como a quinta satrapia do
império persa, subdividida em províncias, das quais estão documentadas
as seguintes: Samaria, Amom, Judá, e talvez Iduméia com a metrópole de
Laquis
59
.
Contamos ainda com as narrativas bíblicas para obter maiores
informações sobre a situação. Mas precisamos ter em mente que tais
narrativas não podem assumir status de documento histórico (no sentido
próprio do termo), por, muitas vezes, fornecer dados diferenciados sobre
vários aspectos e não privilegiar uma datação cronológica.
As narrativas bíblicas não primam pela historicidade dos fatos com
uma visão imparcial, mas sim por uma teologia que se serve dos fatos. É
exatamente essa realidade teológica que examinaremos nas fontes do
Antigo Testamento acerca desse período.
Como já mencionamos, o império persa tinha como característica
administrativa estabelecer um programa de considerável autonomia local
e respeito pela vida cultural e religiosa de determinados povos, restituindo
58
Rudi Tünnermann, As reformas de Neemias: a reconstrução de Jerusalém e a
reorganização de Judá no período persa, São Leopoldo: Sinodal, 2001, p. 29.
59
Herbert Donner, História de Israel e dos povos vizinhos, volume 1, dos primórdios
até a formação do estado, São Leopoldo: Sinodal, p. 455.
54
de maneira seletiva os cativos à sua terra natal, e restaurando seus cultos
religiosos.
No caso de Judá, havia a necessidade especial de se estabelecer,
naquela região, uma comunidade que fosse “fiel” ao império, e que
pudesse ser um referencial militar e político do mesmo, uma vez que se
tratava de região estratégica, especialmente devido à proximidade com o
Egito, região em que freqüentemente ocorriam rebeliões, causando
transtornos ao império.
Por volta de 450 a.C., houve instabilidade no centro do império. O
rei Xerxes (486-464) foi assassinado. Para garantir o trono, seu filho
Artaxerxes I (464-424) eliminou seus irmãos. Portanto, em meados do
século 5º a.C., o império persa passava por um período de turbulência
política. Em 465, o sátrapa do Egito, apoiado pelos gregos, aproveitou
essa instabilidade para rebelar-se contra o poder central. Somente em
455 a.C. o Egito foi novamente subjugado pelos persas. Por isso, era
interesse dos persas fortificar Jerusalém, para servir de fortaleza militar
em caso de novas tentativas de rebelião. Era estratégico ter um forte
militar na região para barrar qualquer ameaça não somente dos egípcios,
mas especialmente dos gregos.
As missões de reconstrução, portanto, fazem parte de uma política
ampla dos persas. A indicação de Neemias, pessoa de confiança do rei,
para a reconstrução de Jerusalém teve motivações políticas.
60
O investimento que o império faz na reconstrução de Jerusalém e
do Templo, e no restabelecimento da Judéia podem ser compreendidos
como administração com o objetivo de manutenção do poder imperial.
Dessa forma, alguns líderes foram escolhidos para conduzir
grupos de repatriados para a Judéia, e para estabelecer a ordem na
60
Rainer Albertz, A History of Israelite Religion in the Old Testament Period, volume
II: from the exile to the maccabees. Westminster John Knox Press Louisville,
Dentucky. First American Edition 1.994.
55
região: Sassabassar por volta de 538 a.C; Zorobabel e Josué por volta de
520 a.C. (cf Esdras 2,1-67; Neemias 7,5-6); Neemias com sua missão de
reconstrução dos muros e da vida religiosa entre grupos heterogêneos e
conflitantes (com tradições teológicas diferentes: deuteronomista
61
e
sacerdotal
62
); Esdras como continuador da reconstrução num período
provavelmente posterior ao de Neemias.
O regresso dos exilados para Jerusalém e Judá envolvia inúmeros
problemas. Sabemos que a terra da Judéia não ficou vazia durante o
período do exílio, ao contrário, o grupo dos exilados era composto
basicamente pela “elite” (minoria) de Judá e, durante o exílio, a terra
continuou habitada pela população mais simples (maioria), que continuou
sua vida, desenvolvendo sua religiosidade, sua identidade, e sua Lei,
baseada especialmente na teologia deuteronomista do período pré-
exílico, mas assumindo características bastante sincréticas, uma vez que
não havia como evitar contato com outros povos.
Ao mesmo tempo, no exílio, o povo exilado desenvolve sua fé.
Ambos os grupos o fazem de forma não oficial, sem um referencial único
e sem um líder único. Em outras palavras, não existe mais Religião Oficial
de Yahweh. Isso faz com que, tanto entre o povo que permanece em
Judá como entre os exilados se desenvolvam várias visões de mundo,
várias correntes teológicas muitas vezes rivais e conflitantes, todas com a
intenção de ser a “verdadeira religião de Yahweh”.
61
Chamamos de “deuteronomismo” a corrente de tradição teológica que tem na ética
comunitária, nos princípios de manutenção de liberdade e solidariedade as bases da
aliança com Yahweh e da religiosidade. Não poderemos aprofundar em questões
cronológicas e literárias, mas podemos entender que tal tradição esteve presente na
vida de Israel pelo menos desde o tempo de “definição” da fé Javista, no período
monárquico. Para um aprofundamento sobre o assunto consultar A Torá – Teologia e
história social da lei do Antigo Testamento – p. 283-382 de Frank Crüsemann.
62
Código sacerdotal – tradição teológica posterior ao deuteronomismo, provavelmente
um desenvolvimento teológico da época do exílio e posterior a este, que buscava
responder às questões teológicas dessa época: não mais a queixa pelo que se
perdeu ou a culpa, mas as conseqüências e o novo começo – um planejamento de
vida depois do exílio. Para um aprofundamento sobre o assunto consultar A Torá –
Teologia e história social da lei do Antigo Testamento – p. 392 de Frank Crüsemann.
56
Certamente, as raízes desses diversos pensamentos teológicos
estavam presentes desde antes do exílio, porém, sob a égide de um
reino, especialmente após ter-se decretado a fé em Yahweh como religião
oficial, a identidade do grupo era mantida. A nova situação desenvolveu a
necessidade de nova compreensão acerca da identificação de quem é o
“verdadeiro Israel”, uma vez que não havia, nem haveria mais, o Reino de
Israel ou Judá. Os vários grupos conflitantes estabelecem a seu modo,
portanto, a resposta a essa importante questão, a fim de preservar a
própria identidade religiosa e nacionalista.
Entre os exilados, esse movimento de “resignificação teológica”
parece ter sido mais evidente, mas é com o retorno e confronto com o
povo da Judéia que percebemos mais claramente as diferenças.
De forma especial, percebemos que os grupos sociais
apresentados nos livros de Esdras e Neemias representam, de certa
maneira, as “correntes teológicas” em questão.
Camponeses livres e pobres – princípios deuteronomistas de
religião ética, com ênfase nas questões sociais e estilo de governo
pré-estatal, que Neemias, de certa forma, tenta restabelecer
através da divisão em “famílias / clãs”, mas sem sucesso.
Certamente trata-se de um deuteronomismo antigo, do período pré-
exílico, que convivia em sincretismo com outras correntes
religiosas. Inicialmente, pode ser entendido como o grupo “anti-
templo”, que não fazia questão em sua restauração. (A religião de
Yahweh é ética comunitária);
Aristocracia local – sabedoria de cunho moral: Composta talvez por
representantes dos repatriados, uma vez que se compreende que a
“teologia moral da Sabedoria” nasce no exílio como fruto do
desenvolvimento da “devoção pessoal” desenvolvida nesse
contexto. Tem caráter anti-escatológico. Representada pelos
líderes que têm dificuldade em cumprir a determinação de Neemias
57
de reforma social, mas que acabam aceitando que a religião de
Yahweh é moral / individual;
Rebeldes anti-império – profecia escatológica: grupo que não
aceita a dominação persa, nem a posição dos outros grupos diante
da mesma
63
; deseja a restauração de Israel / Judá como reino
independente, incitados pelas profecias de restauração do reino
(como Ageu e Zacarias, por exemplo). Pode ter sido atuante na
reconstrução do templo, sob Zorobabel e Josué, e aparecem
novamente no livro de Neemias querendo torná-lo rei. Esse grupo
certamente decepcionou-se com o fracasso de suas expectativas,
o que fez com que essas expectativas fossem transferidas para um
“futuro distante”, dimensão escatológica;
Repatriados – teologia sacerdotal: dois grupos distintos e rivais: 1º
da tradição zadoquita, sacerdócio desde o período de Davi /
Salomão, representando o grupo que retorna do exílio e segue a
Lei, porém não mais a “lei” deuteronomista, mas a lei sacerdotal
desenvolvida no exílio, com suas ênfases no culto, no templo, na
restauração da concepção do país como morada de Yahweh, e
proeminente em sua prática de devoção pessoal, para este grupo a
religião de Yahweh é ritual; 2º da tradição de Ebiatar
64
de origens
israelitas mais antigas. Sua origem se dá com os levitas, símbolo
do sacerdócio marginal, e com os seguidores da perspectiva
escatológica do Dêutero-Isaías, cuja esperança era a intervenção
63
Segundo Ágabo Borges de Sousa em seu artigo “Datação e Situação sócio-cultural
do profeta Joel, Epistêmê, Feira de Santana, ano 3, nº 2 p. 21-29; no qual considera
o período persa como contexto concreto da obra, indica que, a possibilidade de re-
estruturação da comunidade em solo judaico com a reconstrução do templo
propiciou uma fidelidade e boas relações com Susa, a capital da Pérsia, criando uma
série de conflitos internos com províncias vizinhas que procuravam a independência
do poder imperial.
64
José Severino Croatto, Apocalíptica e esperança dos oprimidos – contexto sócio-
político e cultural do gênero apocalíptico em Apocalíptica esperança dos pobres,
RIBLA nº 7, p. 10.
58
de Yahweh no curso da história derrotando seus inimigos,
enfatizando o juízo.
65
Havemos de compreender, entretanto, que essas correntes
teológicas não se desenvolvem individualmente / separadamente. Ao
contrário, as correntes se cruzam, se misturam, e interferem uma na
outra, dando sempre origem a novas leituras. Dessa forma,
“deuteronomismo”, “teologia sacerdotal”, “profetismo escatológico”,
“sabedoria”, para citar apenas algumas das correntes existentes no
período, não podem ser vistas como realidades independentes uma da
outra, especialmente porque, cada uma a seu modo, pretendia
corresponder à “verdadeira religião”.
Teologicamente, pois, a situação do povo já era confusa tanto entre
os exilados como entre o “povo da terra”, e já existia certamente a
preocupação com a manutenção da identidade, talvez a causa maior do
sentimento segregário dos exilados, por exemplo. A proposta de Ciro
representa, nesse contexto, um enorme desafio: este dá a oportunidade
para que se reconstrua uma identidade, para que se reconstrua uma
“nova comunidade”. Mas como falar em “identidade” diante de grupos tão
diferentes, em que cada um se define como “verdadeiro Israel”?
Havia necessidade de estabelecer um “padrão” que determinasse
quem seria o verdadeiro Israel, uma vez que não haveria
restabelecimento do reino, pois estavam submetidos ao poder do império
persa. Nesse ponto, podemos pensar nas obras de Esdras e Neemias
como a “solução” para a definição da identidade do povo – solução que
atenderia ao mesmo tempo às necessidades do império persa, que
desejava uma comunidade leal: desenvolver o sentimento de identificação
do grupo através de uma base comum que se responsabilizaria pelo
65
Interessante perceber que a teologia sacerdotal ganha destaque no exílio, num
período sem templo! Segundo Frank Crüsemann em A Torá (p. 390ss), isso ressalta
a função “utópica” da Teologia; a construção de um “ideal” de relacionamento com
Yahweh que, mesmo não sendo possível, deveria ser perseguido como possibilidade.
59
resgate do status “nacionalista”. Essa base comum seria a autoridade da
Torá recém compilada.
Era preciso que os diversos estratos do povo voltassem (ou
começassem) a considerar-se um “povo”, uma comunidade. Para isso,
era preciso ter laços fortes.
A Lei de Esdras e Neemias apresenta-se, nesse contexto, como a
solução para a definição da identidade do grupo!
Segundo Albertz
66
a Lei apresentada no livro de Esdras e Neemias
seria um “acordo” entre a anterior lei deuteronômica (defendida pelo “povo
da terra”) e o desenvolvimento do pensamento sacerdotal adquirido no
exílio levado pelos repatriados. Sua proposta é, que a partir da
necessidade de identificação dos grupos e com o apoio do império persa,
houve um trabalho consciente de releitura e revisão, em que os grupos
“rivais” entrariam num acordo em que ambas as visões teológicas seriam
contempladas, a fim de servir de base para o estabelecimento de uma
“religião oficial na província de Judá”. Essa união entre a teologia
deuteronomistica e a sacerdotal teria, como resultado, uma versão da
Torá – a lei de Moisés, e seria o elo capaz de unir os diversos grupos do
povo, uma vez que apresenta tradições dos grupos principais, e une todos
os grupos em um início comum!
Certamente, esse “acordo” não agradou a todos os grupos
teológicos existentes, mas conseguiu estabelecer um padrão / paradigma
diante do qual todas as propostas teológicas (profetismo, a sabedoria,
apocalíptica...) seriam medidas, daí por diante.
Nos livros de Esdras e Neemias, a união dessas tradições pode ser
percebida na forma como a identificação do povo se processa, na
66
Rainer Albertz, A History of Israelite Religion in the Old Testament Period, volume
II: from the exile to the maccabees. Westminster John Knox Press Louisville,
Dentucky. First American Edition 1.994, p. 437-480.
60
resposta que se dá à questão “quem é o verdadeiro Israel?” a partir da
centralidade da Lei de Moisés!
Esse então seria o contexto sócio-teológico heterogêneo em que
se encontra o povo de Israel durante o domínio persa, e no qual temos o
desenvolvimento de novas perspectivas escatológicas.
É preciso perceber que, além do contexto externo (estar sob o
domínio persa); o contexto interno de tensão teológica entre os mais
diversos grupos com suas tradições é de extrema importância na
captação de transformações teológicas com temas específicos durante o
processo de formação do judaísmo.
A nova perspectiva escatológica apocalipsista aparece nesse
contexto interno como uma das expressões do ambiente heterogêneo.
Para percebermos suas peculiaridades e seu desenvolvimento em
transição, faz-se necessário uma aproximação ao tema considerando a
dinâmica histórica israelita.
61
Capítulo 2
ESCATOLOGIA E A ORIGEM DA APOCALÍPTICA: FENÔMENOS
SÓCIO-HISTÓRICO-TEOLÓGICOS ISRAELITAS
2.1. ESCATOLOGIA
Etimologicamente a palavra escatologia vem da junção de dois
termos gregos e;scatoj
67
que significa “as últimas coisas” e logi/a
68
que
significa “busca de resposta, conhecer”. Seria a busca por conhecer e
compreender o fim da história ou dos tempos.
A escatologia tem se mostrado como um esforço humano que se
faz presente em todos os tempos, sob diversas crenças e expectativas.
67
F. Wilbur Gingrich e Frederick W. Danker, Léxico do Novo Testamento
grego/portuguê, São Paulo: Vida Nova, 1984, p. 86b.
68
Carlos Rusconi, Dicionário do Grego do Novo Testamento, São Paulo, Paulus, 2003,
p. 288. Logia – plural de lógion – derivado do verbo légo – logos.
62
Escatologia implica o envolvimento do humano com a expectativa
do fim da vida, da finitude da existência, do fim da história. É o resultado
da busca que é suscitada por essa expectação sobre o tempo futuro que
consideramos um fenômeno que se estrutura e se desenvolve no âmbito
sócio-cultural-religioso que se imprime em seu contexto histórico através
da linguagem e visão de mundo.
Como fenômeno religioso, as expressões escatológicas dependem
da visão de mundo e de aspectos sócio-culturais. Por esse motivo,
escatologia não é um fato, não é fixa, estável, coerente, unificada ou
permanente. Mas antes uma construção, um efeito, um processo, uma
relação. Por ser um processo, é instável, fragmentária e inacabada.
Por se situar no âmbito sócio-político e da linguagem, é um
fenômeno que não se restringe ao nível individual, mas ganha exata
expressão na coletividade (sempre com caráter plural, social e coletivo). A
expectativa escatológica se torna perceptível por intermédio da
elaboração de um sistema simbólico desenvolvido por um grupo
específico.
Quando nos referimos à escatologia judaica, abrangemos muitas
concepções divergentes de expectação do fim da história dentro do
universo judaico - todo universo simbólico acerca da escatologia existente
na história do povo judaico é levado em consideração, por exemplo:
podemos citar duas expectativas “escatológicas” no período do Novo
Testamento por ser de fácil identificação; uma dos fariseus
69
, a outra dos
saduceus
70
.
69
Grupo religioso judaico que segue rigorosamente a lei mosaica, as tradições e os
costumes dos antepassados. Acreditava na ressurreição das pessoas e na existência
de seres celestiais (anjos, etc).
70
Grupo religioso judaico formado por sacerdotes e pessoas abastadas e influentes em
Jerusalém. Seu ensinamento baseava-se fundamentalmente na lei mosaica. Não
acreditava na ressurreição, no juízo final e na existência de anjos e espíritos (cf At
23.8).
63
Temos diferentes expectações escatológicas dentro do universo
judaico, por ser o mesmo composto por vários grupos com visões de
mundo e expectativas teológicas diferentes, gerando assim um cenário
heterogêneo ao longo do tempo.
Ao nos referirmos à escatologia profética, restringimos um pouco
os desdobramentos referentes a esse fenômeno, embora estejamos ainda
diante de uma realidade heterogênea e inacabada.
Essa restrição faz-se necessária na captação de certas
características e elementos que estão presentes na visão de mundo dos
profetas e da profecia ao longo de seu desenvolvimento sócio-religioso.
Por ser a escatologia um fenômeno sempre em construção, como
processo resultante da interação social, ela sofre transformações à luz de
eventos históricos.
Por isso, a escatologia do profetismo no período do exílio
babilônico é bem diferente da escatologia profética mais antiga. Na
maioria das vezes não fica muito claro o que provocou mudanças, mas
podemos apenas percebê-las.
Dentro da história da escatologia israelita, a esperança de salvação
ampliou-se partindo de uma série de pequenos dados e eventos que se
desenvolveram até uma escatologia mais elaborada.
Desse desenvolvimento um aspecto importante tem sido perceber
a forma como os autores bíblicos ligam a salvação à história do povo.
Essa salvação ou destino final não era nunca individual, mas sempre
coletiva.
A elaboração da escatologia em relação ao futuro da nação conta
muito com a apropriação da linguagem simbólica mitológica do Antigo
Oriente, em especial, sob a influência persa com a formulação de temas
que traduzem essa salvação ou destino final pela interferência ou atuação
da divindade na história, que se apresentou nas fórmulas típicas como: “o
64
dia de Yahweh”, “os últimos dias”, ou ainda “o dia”, com todos os
elementos cósmicos.
O mito se configura como elemento constituinte da escatologia.
Segundo Pablo Richard
71
, nesse sentido, o mito deve ser entendido como
esforço por expressar sempre realidades e processos históricos e não
como elemento alienador.
Com sua simbologia cósmica, o mito busca dar identidade a um
grupo concreto e mobilizá-lo a agir como sujeito de sua história para
garantir sua existência e identidade, principalmente em circunstâncias de
extrema opressão e perseguição. A narrativa mítica busca reconstruir a
consciência do grupo em desintegração para que o mesmo se identifique
e tome consciência de sua identificação, e se reconstrua como tal.
Esse acervo mitológico utilizado na confecção da escatologia
israelita não é exclusivo a Israel. Foi considerado como material da mais
vasta mentalidade do Antigo Oriente, conforme Hanson
72
, Norman Cohn
73
e a escola germânica
74
acerca da origem da apocalíptica.
Não há como negar a influência de mitos persas na escatologia
profética pós-exílica e também sobre os escrito apocalípticos com
bastante semelhança ao Zoroastrismo muito difundido no império persa.
75
O mito não é o único elemento constituinte de uma escatologia
israelita. Há ainda outros elementos, como visão de mundo, eventos
históricos e expectativas teológicas específicas que compõem a realidade
complexa da escatologia dentro do javismo.
71
Pablo Richard, Apocalipse, reconstrução da esperança, Petrópolis: Vozes, 1999, p.
59-62.
72
Paul D. Hanson, Apocalíptica no Antigo Testamento: Um reexame em Apocalipsismo,
São Leopoldo: Sinodal, p. 35-60.
73
Norman Cohn, Cosmos, Caos e o mundo que virá, as origens das crenças no
apocalipse, São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
74
Origem da Apocalíptica em APOCALÍPTICA, ciências da religião, cadernos de pós-
graduação, Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do Campo, 1.983,
p. 17.
75
Norman Cohn, Cosmos, Caos e o mundo que virá, as origens das crenças no
apocalipse, São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.109-144 e 188-231.
65
2.1.1. Elementos da escatologia israelita
O desenvolvimento da escatologia deu-se em virtude do
crescimento da capacidade intelectual do humano e de suas percepções
morais. Esse crescimento se dá num ambiente no qual há uma interação
com outros povos num contexto de fronteiras fluidas. Como resultado
dessa interação sócio-cultural, encontramos elementos externos sendo
apropriados e sendo utilizados na dinâmica interna do mundo israelita.
Para tratarmos da escatologia judaica devemos ter em mente
essas considerações, pois não há dúvidas por parte dos estudiosos, que
exista um crescente desenvolvimento na teologia do Antigo Testamento,
através do qual percebemos idéias diferentes acerca da condição do
humano após a morte, do destino de Israel e do futuro do mundo. Temos,
por exemplo, os grandes profetas do período assírio levantando-se em
contraste notável com os seus antecessores e sucessores.
Um aspecto interessante de apropriação do mito nessa dinâmica
pode ser percebido nos grandes profetas que o aplicaram na elaboração
escatológica da religião javista com a conotação da catástrofe cósmica,
mas por causa da visão de mundo e intenção da profecia uma nova
realidade a partir do cumprimento dos preceitos de Yahweh pelo povo, na
qual a seriedade moral e ética era de extrema importância, suprimem o
mito adicional da restauração cósmica, a não ser em algumas concessões
para a escatologia popular heterogênea (reajustes posteriores talvez).
É em outro período, no greco–romano, que este material mítico
antigo da restauração cósmica é apropriado pelos visionários
apocalípticos com maior evidência e significado.
Diante disso, faz-se necessário considerar que a escatologia como
um sistema de pensamento não pode ser analisada exclusivamente pelos
elementos que a constitui. É preciso perceber como esses elementos se
66
articulam na estruturação do pensamento e quais são os resultados dessa
articulação. Essa articulação e resultados são movidos por um objetivo e
intenção.
Os elementos constituintes da escatologia estão sempre a serviço
da sua intenção. Por isso a captação dos elementos não são suficientes
quando se objetiva entender sua intenção.
Considerando a heterogeneidade teológica, conforme já
mencionamos na análise do período histórico, o universo teológico judaico
conta com diferentes tradições que transitam na mentalidade das pessoas
com o objetivo de orientar uma visão de mundo específica. Essas
tradições com suas expectações teológicas são o que chamamos de
elementos internos de Israel que se juntam aos elementos externos, como
os mitos cósmicos com uma estrutura dualista, etc.
Essas tradições são fontes originárias de expressões escatológicas
que se relacionam entre si de maneira intercambiável na formulação da
teologia israelita. Apresentaremos algumas tradições conforme a
elaboração de David L. Petersen
76
.
Tradição da promessa da terra e progênie – intimamente ligada
às promessas aos patriarcas. A noção de progênie está definida
em termos de "uma grande nação". Essa concepção sugere
expectativas nacionais que se instauraram como limites para a
identidade nacionalista, cf Gênesis 15,18-20;
Naquele dia Yahweh estabeleceu uma aliança com
Abrão nestes termos: “À tua posteridade darei esta
terra, do Rio do Egito até o Grande Rio, o rio Eufrates,
os quenitas, os cenezeus, os cadmoneus, os heteus,
os ferezeus, os rafaim, os amorreus...”.
77
76
The Anchor Bible Dictionary, volume 2, p. 579.
77
Bíblia de Jerusalém.
67
Tradição davídica e de Sião - tradição importante para o
desenvolvimento da perspectiva escatológica que possui o
modelo davídico como estrutura. Composta pela figura do
davidida, isto é, da linhagem de Davi, com destaque à cidade de
Davi e morada da divindade (Jerusalém e Sião). Essa tradição
consistiu em: 1º na expectativa da promessa da linhagem de Davi
reinando, cf. 2º Samuel 7;
...a palavra de Yahweh veio a Natã nestes termos... eis
o que dirás ao meu servo Davi: ... é Yahweh que te
fará uma casa. E quando os teus dias estiverem
completos e vieres a dormir com teus pais, farei
permanecer a tua linhagem após ti, aquele que terá
saído das tuas entranhas...
2º em apropriação de elementos do Antigo Oriente em relação à
monarquia como sistema governamental com a idéia de que o rei
justo (representante da divindade) é aquele que trará fertilidade,
paz, retidão e justiça, cf Isaías 11,1-9;
Um ramo sairá do tronco de Jessé, um rebento brotará
de suas raízes. Sobre ele pousará o espírito de
Yahweh...ele não julgará segundo a aparência, ele não
dará sentença apenas por ouvir dizer. Antes julgará os
fracos com justiça, com equidade pronunciará
sentença em favor dos pobres da terra... a justiça será
o cinto dos seus lombos e a fidelidade, o cinto dos
seus rins.
3º a expectativa em torno da cidade de Davi e Sião, a qual
consiste da idéia da morada da divindade na montanha cósmica,
da qual rege o herdeiro davídico, cf Salmo 132.
...Porque Yahweh escolheu Sião, desejou-a como
residência própria: “Ela é meu repouso para sempre, aí
habitarei, pois eu a desejei. Abençoarei suas provisões
com largueza e saciarei de pão seus indigentes, de
68
salvação vestirei seus sacerdotes, e seus fiéis gritarão
de alegria. Ali farei brotar uma linhagem a Davi...”.
Há nessa perspectiva a idéia teológica da inviolabilidade da
morada divina e da cidade do rei (Sião e Jerusalém). Nessa
perspectiva temos o tema do “dia de Deus” como pertencente ao
complexo de tradição monarca do Antigo Oriente com suas
manifestações míticas que representa os motivos dualistas do
combate, o qual é estruturado com características de guerra que
resulta na vitória com a entronização de Yahweh como rei,
resultando no “Dia de Yahweh”. Em Israel o “Dia de Yahweh” se
torna em dia da agressão de Yahweh contra seus inimigos,
dentro e fora de Israel, cf a Amós 5,18-20 e Joel 2,1-2;
Ai daqueles que desejam o dia de Yahweh! Para que
vos servirá esse dia? Ele será trevas e não luz...Sim,
ele é escuridão sem claridade!
Tocai a trombeta em Sião. Daí alarme em minha
montanha santa! Tremam todos os habitantes da terra,
porque está chegando o dia de Yahweh! Sim, está
próximo! Um dia de trevas e de escuridão, um dia de
nuvens e de obscuridade!
Essa perspectiva acerca do Dia de Yahweh no pós-exílio implica
em conseqüências positivas em relação aos justos (aqueles que
mantém a aliança com Yahweh em obediência aos seus
preceitos); e negativas em relação aos ímpios (aqueles que se
tornaram inimigos de Yahweh por quebrarem a aliança eterna).
Tradição do Sinai – também de grande importância na
formulação da perspectiva escatológica do Antigo Testamento.
Implica na aliança que Israel faz com Yahweh, a qual se constitui
numa série de estipulações (leis) a serem cumpridas e
69
obedecidas. A partir dessa dinâmica temos a idéia das bênçãos e
maldições. As bênçãos são conseqüência do cumprimento da
aliança; as maldições, conseqüência da quebra da aliança,
conforme Deuteronômio 28,1-45;
Portanto, se obedeceres de fato à voz de Yahweh teu
Deus, cuidando de pôr em prática todos os seus
mandamentos que eu hoje te ordeno, Yahweh teu
Deus te fará superior a todas as nações da terra. Estas
são as bênçãos que virão sobre ti e te atingirão, se
obedeceres à voz de Yahweh...
Todavia, se não obedeceres à voz de Yahweh teu
Deus, cuidando de pôr em prática todos os seus
mandamentos e estatutos que hoje te ordeno, todas
estas maldições virão sobre ti e te atingirão...
Essas tradições israelitas, formadas e desenvolvidas ao longo do
tempo, consistem no resultado da interação social numa dinâmica interna
e externa do povo israelita no processo de desenvolvimento histórico. É
dessa dinâmica complexa que podemos entendê-las como elementos
originários das mais diversas expectativas escatológicas.
Esses elementos originários não se apresentam separadamente
numa escatologia por serem exatamente apenas elementos. Uma
escatologia pode utilizar partes de todas essas tradições para formalizar
sua expectação específica.
Diante dessa realidade complexa trataremos da dinâmica da
escatologia no profetismo e na apocalíptica no decorrer do tempo.
70
2.1.2. A dinâmica da escatologia profética e apocalíptica
Um elemento fundamental na profecia foi a questão da obediência
e do cumprimento da aliança feita com Yahweh, tendo em pauta sempre a
perspectiva da bênção e maldição como resultado da conduta do povo de
obediência ou desobediência.
Os profetas do 8º século a.C. assumiram a posição de críticos em
relação ao comportamento da sociedade acerca da desobediência aos
preceitos de Yahweh não cumprindo a aliança, com a descrição dos
efeitos de maldição no futuro. Nessa dinâmica profética havia a
possibilidade de construir o futuro a partir da realidade, na qual poderia
haver arrependimento e novo comprometimento com a aliança eterna.
A perspectiva profética em relação ao futuro compromete o povo
em um relacionamento ético e obediente para com Yahweh. É dessa
relação ou falta dela que advém bênçãos ou maldição.
Dentro dessa dinâmica temos a idéia do juízo de Yahweh com o
tema do Dia de Yahweh, com toda sua simbologia de guerra e
entronização dele como rei, ligado à idéia do castigo e da purificação
(contexto em que os inimigos serão aniquilados – pessoas e estruturas
sociais pecaminosas), através do qual Israel pode experimentar uma nova
realidade.
Essa expectação sofre alterações na medida em que o povo é
confrontado com eventos históricos que comprometem o futuro da nação,
gerando com isso reajustes em relação à compreensão e aplicabilidade
dessa expectativa futura.
Diante da realidade do exílio babilônico o povo israelita enfrenta o
fato da destruição da nação, da derrota de Sião, da destruição do templo,
e da quebra de esperança monárquica. Essa realidade provoca um
sentimento de fim da história, gerando a expectativa de um escatón. Esse
71
fim está carregado de negatividade, pois todos os elementos que faziam
parte do aspecto positivo da escatologia como responsáveis por uma
nova realidade foram eliminados, como: a figura do rei (tradição davídica),
a idéia da presença de Deus em Sião regendo o monarca, juntamente
com a idéia da inviolabilidade da cidade e templo por serem moradas da
deidade e do seu representante na terra, o rei.
A escatologia sustentada ou articulada pelas tradições acima é
frustrada, causando alterações no modo de ver o mundo.
A partir dessa realidade novas expectativas escatológicas brotam.
Da tradição davídica nasce a esperança messiânica com forte expectativa
depositada na figura de Zorobabel no primeiro período pós-exílico, e que
ao longo do tempo, acaba ficando em segundo plano em virtude da
liberdade religiosa ser garantida pelas autoridades persas conferindo ao
sumo sacerdote o poder de guia religioso da cidade com interesse mais
no uso dessa liberdade do que numa esperança que só seria alcançada
em conflito com essas autoridades; no exílio há também um retorno à
expectativa da tradição do Sinai, com um novo modo de cumprir a lei com
objetivo de resgate da perspectiva de bênçãos novamente; após a
conquista dos persas houve a possibilidade de um retorno à expectativa
da tradição de promessas aos patriarcas com a perspectiva do retorno à
terra e a possibilidade de novos limites para uma identidade nacional,
agora sob o domínio do império estrangeiro.
O período pós-exílico recente, dentro da dinâmica histórica, exigiu
um novo e decisivo modo de desenvolvimento da escatologia israelita na
reconstrução da nova identidade nacional.
O período da reconstrução e rededicação do novo templo foi
propício para a escatologia da prosperidade e bênçãos conforme
proclama o Deutero-Isaías, como sendo o tempo da nova Jerusalém
conforme Isaías 54,11 – 55,13. Não sendo possível essa realidade, a
72
referida expectativa passa novamente por perspectiva negativa de um
escatón, e se transforma no apocalipsismo recente.
O apocalipsismo recente lança luz não apenas para um fim, mas
também para um novo começo, tendo como perspectiva a atuação de
Yahweh. Essa atuação está num futuro e é marcada por uma aniquilação
da realidade vigente e a instauração de uma nova realidade.
O grande contraste que se instaura com o apocalipsismo é que, na
escatologia anterior, a expectativa era da independência nacional no
modelo davídico monárquico e na perspectiva da nova Jerusalém. Por
não ser possível a realização de tal expectativa, a sensação do fim da
nação é o marco dessa escatologia. Com o apocalipsismo a ênfase está
na dinâmica do fim e novo início. A aniquilação dessa realidade e o
começo de uma nova realidade fazem parte do plano de Yahweh, por isso
é irrevogável e não depende mais do comprometimento do humano. O
futuro da nação não dependeria mais da sua conduta ética para se
realizar, mas sim da atuação de Yahweh, julgando o justo e o ímpio.
Essa expectação continua se desenvolvendo no decorrer do tempo
ganhando novos desdobramentos até chegar ao nível da literatura
apocalíptica.
A escatologia apocalipsista marca o fim da escatologia anterior
com um novo modo de ver o mundo. Não mais com os elementos de
aparelho de estado, com o sistema monárquico, por não ser mais possível
a realização do mesmo.
Com isso podemos perceber que a escatologia, como um modo de
perceber a realidade, não deve ser analisada abstraída de sua dinâmica
social e histórica.
O contexto social de Israel com perspectivas teológicas diferentes,
compondo assim um quadro heterogêneo, mostra-nos que nem todos os
grupos compartilhavam das expectativas escatológicas. Como já
73
mencionamos, havia o círculo da sabedoria com idéias teológicas
diferentes da escatologia; havia o círculo envolvido com as reformas de
Esdras e Neemias sem nenhuma perspectiva escatológica (de fim da
história); e o círculo sacerdotal.
Dentro da dinâmica histórica podemos perceber que a escatologia
desempenhou um papel importante de aglutinadora de diferentes
tradições israelitas, com o objetivo de viabilizar novos horizontes para
uma nova formação da identidade da nação em meio a ameaças de
desintegração.
No período de dominação persa o povo israelita experimenta uma
nova realidade na qual é “possível” se restabelecer como nação com certa
independência, porém sob o domínio e as alterações da administração
imperial. Nesse contexto a ameaça à identidade nacional não estava
apenas numa esfera externa de domínio persa, mas também na relação
interna. Um elemento forte que poderia ser o elo de identidade seria a
religião javista. Mas neste período muitas maneiras diferentes de javismo
estavam disputando entre si o status de verdadeira religião e de liderança.
Nessa dinâmica de conflitos e desafios internos acerca da identidade do
povo enquanto “nação” e verdadeiro Israel de Deus, a nova escatologia
possibilita uma tentativa de desenvolver e manter uma identidade
nacional em certos grupos.
Concluímos que a intenção da escatologia foi sempre manter uma
identidade nacional e teológica do povo israelita diante das ameaças
internas e externas (opressão, perseguição, segregação e
marginalização).
Durante o período profético a possibilidade dessa identidade se via
na vivência ética com o cumprimento dos preceitos de Yahweh
estabelecidos com a aliança.
74
Após o exílio babilônico, embora houvesse uma grande frustração
teológica, a religião ainda continuou viva como uma das poucas coisas
que restava como identidade nacional. Durante o domínio persa, seu
interesse foi refazer a identidade do povo constituindo na fase da
formação do judaísmo uma escatologia de grande importância que
nortearia a nação israelita daí por diante dentro da dinâmica histórica,
embora ainda houvesse novos desdobramentos, como houve durante o
decorrer da história com novos eventos.
Diante disso, chegamos à discussão acerca da origem da
apocalíptica como movimento sócio-teológico em Israel. Sendo um
desenvolvimento da teologia israelita dentro da dinâmica de eventos
históricos com elementos externos e internos como temos tratado até
aqui.
2.2. A ORIGEM DA APOCALÍPTICA
Em relação à apocalíptica enquanto movimento sócio-religioso, há
consenso entre os pesquisadores que o período pós-exílico foi o marco
histórico do povo israelita para o desenvolvimento do judaísmo,
especialmente sob a dominação persa.
Este contexto de formação da identidade judaica, conforme
demonstramos anteriormente, se dá num ambiente em que há diversas
posições e correntes teológicas divergentes que se intitulam a verdadeira
religião de Yahweh.
A partir dessa realidade, não há consenso por parte dos estudiosos
sobre qual teria sido a origem da apocalíptica. Na tentativa dessa busca
encontramos-nos novamente diante de muitos desdobramentos e
perspectivas divergentes entre os pesquisadores.
75
Trabalharemos com quatro correntes básicas acerca da origem do
movimento apocalíptico a partir do método histórico-traditivo: a hipótese
da escola germânica, a hipótese de Gerhard Von Rad, a hipótese de
Harold Henry Rowley e a hipótese de Paul D. Hanson.
2.2.1. A teoria germânica
Com a escola germânica
78
temos a idéia da origem da apocalíptica
num ambiente extrabíblico, no contexto do parsismo – religião ou cultura
persa. Parse tem como significado, além da própria língua que se falou na
Pérsia, o seguidor sectário de Zoroastro.
Essa escola parte da idéia de que a apocalíptica foi um movimento
antagônico ao profetismo que, com o acervo mitológico do Irã e o contato
com a cultura persa na Babilônia no período do exílio, o teria influenciado,
transformando-o radicalmente.
Segundo essa teoria a perspectiva escatológica do profetismo se
comprometia em envolver as pessoas no processo de transformação ou
salvação dos israelitas através do cumprimento da vontade de Yahweh e
do arrependimento de seus pecados. A expectação em relação a Yahweh
seria a de um Deus presente, como na história de libertação do Egito, ou
como na figura do Emanuel. A nova realidade (nova terra e novo céu), se
realizaria neste tempo (na presente era) com a morada de Yahweh no
meio de seu povo (com a simbologia de Sião).
Na perspectiva escatológica apocalíptica, a salvação não mais
dependeria do comprometimento humano, mas se realizaria por ação do
próprio Yahweh independente de arrependimento ou não. Essa
intervenção de Yahweh se concretizaria através da catástrofe cósmica
78
Origem da apocalíptica em APOCALÍPTICA, Ciências da Religião, cadernos de pós-
graduação, Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do Campo, 1983,
p. 17.
76
(com todo o acervo mitológico) na qual a realidade presente se desfaria
dando lugar à uma nova realidade. Essas realidades não seriam distintas
por temporalidades diferentes, mas por serem realidades cósmicas
diferentes. Nessa expectação Yahweh torna-se um Deus mais distante, o
Deus do céu (com nítida influência persa). A relação com esse Deus é
representada por um sistema simbólico (com influências persas) de seres
celestiais e outros elementos.
Essa corrente esboça as diferenças básicas entre apocalíptica e
profecia como segue:
Apocalíptica
Produto do parsismo (Irã e Pérsia)
dualista
É através da destruição cósmica do
mundo que se origina o novo
mundo
O juízo de condenação é evento
irrevogável
A história é universal e Israel
reflete esta história
Os apocalípticos só escrevem
Profecia
Produto do judaísmo
Monista
O humano é o sujeito da
transformação do mundo quando
ele próprio parte para o
cumprimento
O juízo de condenação não é
irrevogável, pode haver
arrependimento
A história centraliza-se em Israel
Os profetas atuam na história
além de escrever sobre ela.
Segundo esse entendimento, a visão de mundo estrangeira persa
teria influenciado a teologia israelita a ponto de suscitar o
desenvolvimento do movimento apocalíptico posterior. Adotando como
concepção a idéia de uma estruturação do pensamento teológico com
visão de mundo e elementos totalmente estrangeiros a Israel.
77
2.2.2. A teoria de Gerhard von Rad
Com Gerhard von Rad temos que a origem da apocalíptica se
encontra no movimento sapiencial. Ele considera que alguns pontos da
pregação profética tornaram-se elementos permanentes da esperança
das gerações futuras, como a expectativa de uma nova Jerusalém, mas a
forma como se dá o entendimento e a aplicabilidade dessa escatologia é
diferente entre a apocalíptica e a visão de mundo profética.
Von Rad baseia-se nas designações que os escritores
apocalípticos dão a si mesmos para fundamentar sua hipótese. Conforme
tais descrições Daniel, Enoque e Esdras (Daniel 1,3ss e 2,48; Enoque
etíope 12,3s, 15,1, 37,4 e 92,1; IV Esdras 14,50) seriam sábios no sentido
estrito do termo, por se ocuparem com os problemas cosmológicos e
questões históricas.
Segundo ele, muitos temas da apocalíptica tiveram origem na
sabedoria, como: o tema do desenvolvimento da civilização (cf. I Enoque
8); dos corpos celestes (Enoque 72-79); do calendário e da geografia.
A apocalíptica tem interesse no conhecimento e na ciência como a
cosmologia, a astrologia, a demonologia, a botânica, a zoologia, etc.
Considera como um dos livros mais importantes da literatura
apocalíptica Enoque 37–71, que se define como um “discurso de
sabedora” em 37,2, que se divide em duas partes sob o título de Mâshâl.
Segundo von Rad Mâshâl designa um antigo termo técnico de
ensino sapiencial, devendo ser traduzido como “discurso de ensino”.
Considera que, do ponto de vista da história das tradições, não há
nenhuma ligação da profecia com a apocalíptica em relação aos grandes
nomes dos profetas. Pelo contrário, os grandes nomes apocalípticos
estão ligados aos antepassados da sabedoria.
78
As razões que levam von Rad a defender sua hipótese não se
resume nestes aspectos, mas os têm como ponto de partida. Há um
crescente em sua análise que se aprofunda em relação à visão de mundo
e expectativas teológicas que se desenvolvem na apocalíptica. Ele parte
da história das tradições com ênfase na obra enoquiana.
Sua teoria é fortemente contestada no âmbito da pesquisa, em
especial por Harold Henry Rowley
79
, Paul D. Hanson
80
e Peter von der
Osten-Sacken
81
.
As críticas mais contundentes à teoria de von Rad estão acerca de
como se apropria do método histórico-traditivo.
Partindo desse método von Rad elege como principal escrito
apocalíptico a ser analisado Enoque 37-71 e caracteriza o apocalipsismo
a partir da totalidade das obras apocalípticas, sendo que, por adotar o
método histórico-traditivo, deveria buscar pela origem do apocalipsismo
partindo do documento mais antigo preservado da tradição apocalíptica, o
qual seria o livro de Daniel, pois todos os documentos posteriores seriam
de importância secundária, uma vez que podem conter material que
originalmente não esteve presente sendo assimilado posteriormente.
A utilização desse método por outros estudiosos como Ph.
Vielhauer
82
possibilitou perceber que dentro do movimento sapiencial e
dos seus escritos, não há nenhum traço de qualquer expectação
escatológica que seja. Esse elemento seria totalmente estranho para a
sabedoria.
79
Harold Henry Rowley, A Importância da Literatura Apocalíptica: Estudo da literatura
apocalíptica judaica, Nova coleção bíblica, São Paulo: Paulinas, 1980, p. 18.
80
Paul D. Hanson, The Dawn of Apocalyptic, the historical and sociological roots of
jewish apocaluptic eschatology, Philadelphia: Fortress Press, 1.979, p. 8-12.
81
O apocalipsismo em sua relação com o profetismo e a sabedoria em Apocalipsismo,
São Leopoldo, Sinodal, 1983, p. 122-123.
82
Ibid, p. 122.
79
2.2.3. A teoria de Harold Henry Rowley
Para Rowley
83
, a origem da apocalíptica não estaria num âmbito
antagônico à profecia, mas antes, tendo-a como berço.
Rowley concorda com a teoria germânica em relação ao fato do
período persa ter sido de grande importância para tratar do assunto em
questão. Considera que por muito tempo foi dada pouca importância à
significação do que foi o período persa para o povo de Israel, o qual
deveria ser mais respeitado por ter sido o período responsável pela
formação do judaísmo em toda sua complexidade. Esta dominação
propiciou algo inusitado na história de Israel em relação à escatologia
anteriormente conhecida.
Considera que desde seu início com a monarquia o profetismo teria
se apresentado proeminente na história israelita tendo caráter político e
religioso. Sempre em prol da unidade política e identidade nacional (com
conotação à lealdade ao Deus nacional) para expulsar o opressor
estrangeiro, seja qual fosse.
Para Rowley, os grandes profetas dos séculos 8º e 7º a.C. no
contexto de dominação Assíria, se interessaram por uma reforma religiosa
que não suscitasse repúdio à dominação estrangeira, por declararem que
a essência da religião se apoiava no entendimento do caráter de Yahweh
e em refletir esse caráter na vida da nação. Para estes profetas a ordem
do dia era buscar a justiça de Yahweh. Essa busca era mais que um ato
de culto, era um ato de revitalização da vida do povo pela abolição da
injustiça, da opressão, da perseguição. Sem essa relação com Yahweh
não haveria nenhuma possibilidade de revolta; com ela nenhuma revolta
seria necessária, por estarem seguramente guardados por Yahweh.
83
Harold Henry Rowley, A Importância da Literatura Apocalíptica: Estudo da literatura
apocalíptica judaica, Nova coleção bíblica, São Paulo: Paulinas, 1980, p. 18.
Representante da escola inglesa.
80
Nesse contexto o sofrimento abrange todos os israelitas como
sendo conseqüência da desobediência e quebra dos preceitos da aliança
eterna.
A partir desse caráter do profetismo, Rowley faz uma comparação
com o livro de Daniel (por ser considerado o primeiro escrito apocalíptico
conservado), o qual é datado no período dos Macabeus. Período este de
perseguição por causa da obediência aos preceitos de Yahweh. Sendo,
portanto, um contexto oposto dos profetas do 8º e 7º séculos.
No período dos Macabeus e do escrito de Daniel, o sofrimento era
em virtude da lealdade a Yahweh. Os mártires sofriam por escolher os
preceitos de Deus como diretrizes.
Quando Daniel promete livramento dos sofrimentos e aflições
provenientes dos opressores estrangeiros, o faz dentro da sucessão dos
grandes profetas, embora com uma mensagem diferente (por ser um
contexto diferente), com base substancial nos mesmos princípios.
Para ele o autor de Daniel limita sua mensagem aos justos,
àqueles que primaram pela lealdade, os quais não comeriam dos
manjares reais e nem se curvariam diante de imagens. Nesse contexto há
a proclamação do Dia de Yahweh, o qual traria uma nova realidade. Essa
proclamação encontra sua correspondente no profetismo.
Após o exílio babilônico essa proximidade fica cada vez mais
notória, segundo Rowley.
Esse é o caminho que Rowley percorre na busca da origem da
apocalíptica dentro da dinâmica interna embora considere as grandes
influências persas.
81
2.2.4. A teoria de Paul D. Hanson
Hanson considera que a origem da apocalíptica esteja no
sincretismo das literaturas profética, escatológica das mais diversas
tradições teológicas e sapiencial.
Enquadra o gênero literário apocalíptico na mentalidade mais vasta
e complexa do Antigo Oriente, na qual a história humana refletia o reino
mítico dos deuses.
Hanson busca na profecia tardia do 6º século a.C. em diante
elementos que teriam se transformado de escatologia profética em
apocalíptica. Nessa busca ele considera o Dêutero-Isaías como o
protótipo da apocalíptica; Isaías capítulos 24-27, 34-35, 60-62 e Zacarias
12-13 como apocalíptica intermediária por volta da primeira metade do 5º
século a.C., e a estrutura do Trito-Isaías e Zacarias 11 como apocalíptica
plenamente desenvolvida por volta de 475-425 a.C.
84
Partindo da mesma argumentação temos ainda outros estudiosos
que apontam outros textos nessa lista de diferentes estágios como
Croatto que indica Joel 3-4 como sendo da fase anterior à apocalíptica
propriamente dita.
85
Há também uma divergência entre os estudiosos em
relação à datação sugerida aos referidos blocos.
Para estabelecer essa progressão Hanson recorreu não apenas à
escatologia, mas também aos vários gêneros de literatura utilizados neste
contexto. Considerou que a apocalíptica é a forma assumida da
escatologia profética num ambiente radicalmente alterado do pós-exílio.
84
D. S. Russell, Desvelamento Divino, São Paulo: Paulus, 1997, p. 41-42.
85
José Severino Croatto, Apocalíptica e esperança dos oprimidos – contexto sócio-
político e cultural do gênero apocalíptico em Apocalíptica esperança dos pobres,
RIBLA nº 7, p. 8.
82
Durante o período pós-exílico a visão de mundo escatológica
esteve em contato com muitos outros elementos dentro da dinâmica
sócio-política de dominação estrangeira (persa e helenística).
Partindo de uma metáfora biológica, Hanson entende que a
escatologia apocalíptica é filha da escatologia profética, e que a
apocalíptica teria, mais tarde, por intermédio do escribismo
86
babilônico
helenístico do 3º e 2º séculos, casado com a sabedoria.
Embora tenha havido entre os estudiosos uma compreensão de
que com essa fase, com atuação dos escribas do período helenístico,
houve a instauração de um contraste entre as formas gregas e judaicas
de pensamento e visão de mundo, Hanson considera que mesmo a
apocalíptica judaica sofrendo influências do pensamento helenístico
durante o período intertestamentário, não pode ser considerada como
implantação estrangeira em solo judaico.
Para ele a escatologia apocalíptica está ligada à escatologia
profética por um grau de parentesco que pretende continuar sua linhagem
(contexto judaico), embora tenha assimilado alguns elementos do
ambiente e cultura no qual se construiu a partir do 3º século a.C.
Partindo de métodos críticos de análise sociológica e
antropológica, Hanson considerou de extrema importância a busca pelo
contexto sócio-cultural que pode ter dado origem à escatologia
apocalíptica.
Nessa busca considerou o período histórico do domínio persa
como chão concreto no qual o pensamento teológico era heterogêneo,
conforme já tratado anteriormente, e, que neste contexto, a apropriação
dos mitos pelos profetas se deu diferentemente dos profetas pré-exílicos.
No pré-exílio a apropriação dos mitos se dava numa dinâmica na
qual os mesmos estavam ligados a eventos históricos. Podemos dizer que
86
D. S. Russell, Desvelamento Divino, São Paulo: Paulus, 1997, p. 44-46.
83
“historicizaram” e contextualizaram a narrativa mítica. Mas no pós-exílio a
impossibilidade de contextualização histórica por estarem vivendo um
momento sócio-cultural bem diferente, no qual eventos cósmicos e
história, visão e realidade se encontram sempre em mútua tensão, houve
a necessidade de uma mudança na perspectiva.
Dessa mudança de perspectiva histórico-social nasce a
apocalíptica. Para ele a escatologia profética se transforma em
escatologia apocalíptica na medida em que não foi mais viável a tarefa de
traduzir a visão cósmica em categorias da realidade mundana.
Este desdobramento possibilita a visão cósmica dualista e da
crença em grandes épocas do mundo. Aqui estão os traços originários da
apocalíptica para Hanson. Essa origem, segundo ele, deve ser entendida
como uma “remitologização” de uma religião que havia se
“demitologizado” a muito tempo embora utilizasse ainda o mito em sua
elaboração escatológica. Pois a diferença está no como são articulados
esses elementos míticos resultando em objetivos e intenções
completamente diferentes.
Hanson vê essa transformação escatológica advinda de dois
possíveis grupos de tradições sacerdotais que estão presentes no período
persa de reconstrução da identidade nacional: 1º grupo zadoquita –
tradição ligada a Davi / Salomão, cujas esperanças baseavam-se no
programa estabelecido em Ezequiel capítulos 40-48 de restabelecimento
do culto no templo restaurando o país como o lugar de morada de
Yahweh; 2º um grupo misto de seguidores do Dêutero-Isaías e levitas
dissidentes da tradição sacerdotal de Ebiatar de origens mais antigas –
símbolo do sacerdócio marginal em Israel, que mantinha as esperanças
visionárias expressas pelo profeta do exílio na qual adotam a intervenção
de Yahweh para trazer a derrota de seus inimigos. Logo este grupo adota
a perspectiva do Trito-Isaías, cuja intenção é contrária ao que será a
84
reforma proposta por Esdras e Neemias. Ambos se originam entre 538-
500 a.C. como facções rivais.
Para Hanson, a tentativa do segundo grupo foi deixar de considerar
a esfera mundana como campo de evidência da salvação, passando
assim da realidade histórica para uma concepção da visão mítica.
Diante disso, Hanson conclui que os movimentos apocalípticos
podem apresentar-se de duas formas: um grupo marginal oprimido numa
sociedade; ou uma sociedade ou nação inteira sob o jugo de um poder
estrangeiro. A matriz do apocalipsismo é a exclusão e opressão, e a
resposta a esta situação é a adoção da perspectiva da escatologia
apocalíptica. Para ele, a escatologia apocalíptica não está limitada aos
apocalipses (enquanto gênero literário específico), mas acha também
expressão em outros gêneros de literatura.
Esse contexto de marginalização e opressão se encontra na
história do profetismo e no contexto do movimento apocalíptico.
Dentro de sua teoria Hanson propõe uma conceituação de termos
específicos gerando uma divisão tríplice na qual temos separadamente:
“apocalipse”, “escatologia apocalíptica” e “apocalipsismo”.
87
O apocalipse seria um gênero literário que se pode encontrar ao
lado de outros gêneros, tais como o testamento, o oráculo de julgamento
e de salvação, e a parábola (usada por escritores apocalípticos). Hanson
considera que esse gênero parece originar-se em contextos de opressão
e perseguição, a partir dos quais pretende revelar um revés na história por
meio de um evento “escatológico”.
A escatologia apocalíptica, segundo Hanson, estreitamente conexa
com a escatologia profética, seria uma perspectiva religiosa de ver os
planos divinos em relação à realidade terrena, não sendo propriedade
87
Paulo D. Hanson, The Dawn of Apocalyptic, the historical and sociological roots of
jewish apocalyptic eschatology, Philadelphia: Fortress Press, 1.979, p. 8-12.
85
particular de nenhuma religião ou grupo específico, mas podendo ser
adotada por diferentes grupos ou indivíduos em diferentes tempos e com
diferentes intensidades. Nessa perspectiva, a ação salvífica de Deus é
concebida como realização para fora da realidade presente, para uma
nova e transformada ordem. Essa nova realidade não seria uma
reabilitação da realidade atual, mas sua aniquilação. A realidade é
dividida em dois níveis: 1º realidade presente – má, deformada e
corrompida; 2º realidade que há de vir – justa, reta e de paz. As duas não
representam épocas temporais distintas, mas duas ordens cósmicas
totalmente diferentes. Essa perspectiva não nasce a partir da expectativa
do porvir, mas da realidade presente angustiante, frustrante e opressora.
Após seu nascimento, desenvolve-se na perspectiva escatológica (futura)
na qual encontra esperança e força para enfrentar o presente.
O apocalipsismo seria um movimento sócio-religioso que adota a
perspectiva da escatologia apocalíptica, com um universo simbólico
elaborado no qual um movimento apocalíptico codifica sua identidade e
sua interpretação da realidade. Esse universo simbólico se fossiliza em
torno da perspectiva apocalíptica que foi adotada. Assim, o contexto
social-político-religioso do apocalipsismo é sempre a experiência de um
grupo frente às estruturas dominantes que ameaçam seus princípios e
valores, e é fruto da decorrente sensação de impotência em relação à
mesma.
Em um movimento apocalíptico o grupo refugia-se na escatologia
apocalíptica para construir este universo simbólico alternativo que permite
manter um senso de identidade diante de estruturas sociais e de eventos
históricos que negam, ao mesmo tempo, a sua identidade e a sua visão
de mundo. Acredita-se que o universo simbólico é mais “real” que o
vivenciado no dia a dia.
Diante das teorias expostas, faz-se necessário salientar que cada
uma dessas teorias gerou, e continua gerando no âmbito da pesquisa
86
crítica, inúmeros desdobramentos e conflitos entre os estudiosos do
assunto.
2.2.5. Conclusão
Diante de toda discussão acerca das origens e características da
apocalíptica, em linhas gerais partilhamos da idéia da apocalíptica se
originar no interior dos acontecimentos histórico-sociais de Israel, por isso,
numa dinâmica de continuidade da escatologia profética que sofreu sim
transformações no decorrer dos tempos.
Transformações de visão de mundo e de perspectivas teológicas
que não podem ser analisadas abstraídas desse ambiente histórico-
social, por ser este exatamente o elemento propiciador das referidas
mudanças que, para nós, por constituir um pensamento escatológico,
objetivou sempre, a busca por uma identidade para Israel.
Identidade que muitas vezes e por diversas circunstâncias
parecidas, porém distintas, foi desconfigurada, sendo de necessidade
urgente nova reconfiguração da mesma num processo contínuo. Essa
reconfiguração sempre na proporção da desconfiguração anterior, por
isso nunca da mesma forma.
Nessa dinâmica viva a escatologia é marcada por um crescente
desenvolvimento em sua articulação em virtude do processo complexo no
qual novos elementos e novos sentidos para antigos elementos compõem
juntos uma continuidade da lógica escatológica no decorrer da história.
Esse crescente processo evolutivo é marcado por diferentes fases,
nas quais adquire características únicas em relação à sua articulação
(seus resultados concretos por estar regido por visão de mundo e
interesses específicos).
87
Muitas vezes características posteriores ganham proporções
gigantescas a ponto de se tornarem paradigmas para analisar a
escatologia tendo como perspectiva uma única das muitas fases,
violentando assim as realidades divergentes que estão por trás da
expectação.
Diante disso, entendemos que a profecia apocalipsista isaiana do
bloco capítulos 24-27 é resultado de uma escatologia viva que sofre
transformações por estar em fase de transição histórico-social. Sendo
necessários para captar suas peculiaridades, certa sensibilidade e
desprendimento de certos paradigmas.
Em relação às características da escatologia apocalíptica não há
uma maneira unívoca de entendimento por parte dos estudiosos. Embora
expressem visões e perspectivas semelhantes, nunca são idênticas.
No caso de Rowley e Hanson, ambos partilham da idéia de ser a
apocalíptica oriunda da profecia, mas a estruturação dessa idéia e os
elementos e interpretações acerca do assunto são bem peculiares em
cada um deles. Apesar de chegarem a um mesmo resultado, a origem na
profecia, o caminho que percorrem, o que enxergam, como o enxergam, e
o que provoca em cada um é muito diferente.
Diante dessa realidade concorde e discorde consideramos não ser
possível adotar um modelo único e pronto para tratar das características
da escatologia apocalipsista.
Esperamos identificar algumas das características a partir do
estudo exegético da perícope tendo como horizonte de análise o contexto
histórico-social sugerido.
88
Capítulo 3
ESTUDO EXEGÉTICO DE ISAÍAS 24,1-6
Esse capítulo tem por objetivo realizar uma análise do texto que
não se limitará em apenas acerca do sentido de palavras de maneira
isolada, mas em perceber como tais palavras são articuladas na
construção de idéias no interior das frases, e a partir dessa articulação,
quais são os efeitos concretos das idéias presentes no texto para a
reflexão e prática religiosas.
A análise exegética estará sendo aplicada com o intuito de
perceber o que o escrito está denunciando, e qual é sua proposta de
esperança para o ouvinte / leitor à luz do contexto sócio-histórico que está
por trás do escrito.
Metodologicamente adotaremos alguns passos exegéticos à luz do
método histórico crítico e aplicaremos também técnicas e conceitos da
análise estruturalista.
89
3.1. TRADUÇÃO E ANÁLISE GRAMATICAL DE ISAÍAS 24,1-6
Na tradução não nos ateremos em analisar palavra por palavra,
antes, priorizaremos os sentidos que as palavras ganham no interior das
frases.
Nossa análise priorizará a importância dos sentidos das frases à
luz de seu campo semântico articulado no texto. Essa proposta de análise
se faz necessária para uma melhor captação do sentido das frases.
A descoberta dos campos semânticos articulados no texto nos
permitirá a percepção de significados apropriados, possibilitando então, o
entendimento de sua mensagem.
A tradução do texto estará sendo justificada através da análise
gramatical segundo os critérios já apresentados acima.
3.1.1. Primeiro verso
#r<a'Þh' qqEïAB hw"±hy> hNEôhi
h'yn<ëp' hW"å[iw> Hq"+l.Ab)W
`h'yb,(v.yO #ypiÞhew>
O primeiro verso começa com a interjeição que traduzimos por eis
que, chamando a atenção do ouvinte / leitor para o que segue, a saber,
para os feitos de Yahweh sobre a terra e seus habitantes.
Para o particípio qqEïAB no qal masculino singular absoluto, existem
duas raízes com as mesmas consoantes
qqb facilmente confundíveis.
Uma é glossada como assolar, arrasar, devastar, esvaziar (fazer vazio),
1. Eis que Yahweh assolará e devastará
a terra; porá em confusão sua
superfície e dispersará seus
habitantes.
90
tornar inútil; (qqb I em Clines
88
e Kirst
89
; qqb II em Brown-Driver-Briggs
90
e Harris
91
; com um único registro em Alonso Schökel
92
). A outra é
glossada como florescer, adornar, vicejar, ser exuberante, ser profuso ou
abundante; (qqb I em Brown-Driver-Briggs e Harris; qqb II em Clines e
Kirst; ausente em Alonso Schökel). Nenhuma das raízes é muito
freqüente na Bíblia Hebraica
93
. Sintaticamente o sentido assolar, etc. cabe
melhor que o sentido vicejar, etc. Se fosse o caso de vicejar, só seria
possível no sentido causativo (fazer vicejar) cabendo apenas antes do
objeto direto “a terra”. Outro fato é que, do total de nove ocorrências com
a raiz qqb na Bíblia Hebraica, quatro ocorrem no livro do profeta Isaías,
sendo que, em todas as vezes, o sentido é o de assolar, etc. e não o de
vicejar, etc.
Por ser particípio ativo em hebraico podemos traduzir de duas
formas: 1ª) Eis que Yahweh assolará a terra; 2ª) Eis que Yahweh é
assolador da terra. Considerando que as ações de Yahweh continuam
descritas nas próximas palavras, condiz ler este particípio como
informando uma ação e não como um atributo de Yahweh.
Temos a terra como objeto da ação de Yahweh, pois
Hq"+l.Ab)W com
a conjunção e o particípio no qal masculino singular construto, raiz
qlb
com sufixo pronominal de 3ª pessoa feminina no singular, demonstra que
a terra é quem sofrerá a ação de Yahweh. A razão que nos leva optar por
88
David J. A. Clines, The Dictionary of Classical Hebrew, volume 2, Sheffield: Sheffield
Academic Press, 1995, p. 250.
89
Nelson Kirst (et alii), Dicionário Hebraico – Português e Aramaico – Português, São
Leopoldo: Petrópolis, 2000, p. 32.
90
The new Brown – Driver – Briggs, Gesenius Hebrew-English Lexicon, Massachusetts:
Hendricson, 1979, p. 132b nº 1238.
91
Laird R. Harris (et alii), Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento,
São Paulo: Vida Nova, 2001, p. 207.
92
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo: Paulus,
1.997, p. 114.
93
Em relação ao sentido de assolar, etc ocorre oito vezes no Antigo Testamento: Is
19,3; 24,1; 24,3 (duas vezes); Jr 19,7; 51,2; e Na 2,3 (duas vezes). Com sentido de
vicejar, etc. ocorrendo apenas uma única vez em Os 10,1.
91
traduzir o particípio ativo no futuro como uma ação é a mesma
apresentada anteriormente.
A raiz qlb é apontada como sinônima de qqb por Alonso
Schökel
94
e Clines
95
, tendo como sentido: devastar, desperdiçar, tornar
em deserto (como uma cidade devastada).
A palavra
hW"å[iw> - vav consecutivo e verbo no piel completo, 3ª
pessoa masculina singular, raiz hw[ é apontada por Jastrow
96
podendo
significar:, tornar inútil (com o sentido de realizar o desperdício de algo,
como por exemplo: tornar a casa desabitada), e como subverter (por
exemplo: encurvar o ego da pessoa). Encontramos outros sentidos como
perturbar, pôr em confusão segundo Kirst
97
; dobrar, torcer; como torcer a
superfície de algo; alterar, deformar, revolver; com o sentido de tornar
irregular uma superfície plana segundo Brown-Driver-Briggs
98
e Alonso
Schökel
99
.
A palavra h'yn<ëp' aparece sempre no plural no Antigo Testamento
com mais de 2100 ocorrências
100
, podendo ser traduzida por: face,
semblante, superfície, rosto, etc. Em nosso texto, com sufixo pronominal
de 3ª pessoa feminina no singular refere-se à terra, com sentido de pôr
em confusão sua superfície / face.
94
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo: Paulus,
1.997, p. 114.
95
David J. A. Clines, The Dictionary of Classical Hebrew, volume 2, Sheffield: Sheffield
Academic Press, 1995, p. 250.
96
Marcus Jastrow, A Dictionary of the targumim, the talmud bibli and yerushalmi, and
the midrashic literature, volume 1, New York: The judaica press, inc., 1992, p. 1049.
97
Nelson Kirst (et alii), Dicionário Hebraico – Português e Aramaico – Português, São
Leopoldo: Petrópolis, 2000, p. 174-175.
98
The new Brown – Driver – Briggs, Gesenius Hebrew-English Lexicon, Massachusetts:
Hendricson, 1979, p. 730b e 731b nº. 5753.
99
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo: Paulus,
1.997, p. 482.
100
Claus Westermann, Diccionario Teológico Manual Del Antiguo Testamento, volume
2, Ediciones Cristiandad: Huesca, 1985, p. 548 – 582.
92
O verbo no hifil completo na 3ª pessoa masculina singular raiz #wP,
apresenta duas possibilidades de tradução, pois, segundo Brown-Driver-
Briggs
101
existem duas raízes com as mesmas consoantes. De acordo
com o nosso texto trata-se da raiz do verbete I, que segundo ele, pertence
ao campo semântico militar, expressando a idéia de “dispersão de tropas
que torna o exército vulnerável a ataques”, (quebra de formação,
dispersão). Para Jastrow
102
, Kirst
103
e Alonso Schökel
104
, há apenas uma
raiz, que pode significar: dispersar, espalhar, perseguir, esparramar,
desbaratar, difundir; também podendo ser aplicada para o campo
semântico militar.
O particípio ativo no qal masculino plural construto raiz bvy
(habitantes) com sufixo pronominal de 3ª pessoa feminina singular se liga
ao objeto da ação de Yahweh, no caso a terra. Segundo Alonso
Schökel
105
esse verbo possui sentidos diversos, como: 1º sentido próprio
ingressivo ou durativo, podendo ser em relação a pessoas, animais ou
objetos; 2º próprio com valor de gesto social; 3º sentido lato. No dicionário
de Nelson Kirst
106
encontramos como possibilidades de tradução: sentar-
se, agachar, habitar, viver, ser habitado. Dentre estas possibilidades,
considerando as duas concepções acerca dos sentidos do verbo, o
contexto de nosso texto nos indica ser adequado traduzir por “aqueles
que habitam”, “que se estabelecem na terra, com o sentido de seus
habitantes por ser um particípio ativo com sufixo pronominal na 3ª pessoa
do singular.
101
The new Brown – Driver – Briggs, Gesenius Hebrew-English Lexicon, Massachusetts:
Hendricson, 1979, p. 806b e 807a e 822b nº 6327.
102
Marcus Jastrow, A Dictionary of the targumim, the talmud bibli and yerushalmi, and
the midrashic literature, volume 1, New York: The judaica press, inc., 1992, p. 1145.
103
Nelson Kirst (et alii), Dicionário Hebraico – Português e Aramaico – Português, São
Leopoldo: Petrópolis, 2000, p. 192.
104
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo: Paulus,
1.997, p. 532.
105
Ibid, p. 298-299.
106
Nelson Kirst (et alii), Dicionário Hebraico – Português e Aramaico – Português, São
Leopoldo: Petrópolis, 2000, p. 95-96.
93
3.1.2. Segundo verso
‘db,[,K; !heêKoK; ‘~['k' hy"Üh'w>
HT'_r>biG>K; hx'Þp.ViK; wyn"ëdoaK;(
hA<êLK; ‘hw<l.M;K; rkeêAMK; ‘hn<AQK;
`Ab* av,înO rv<ßa]K; hv,§NOK;
O verbo completo com vav consecutivo no qal 3ª pessoa masculina
singular raiz
hyh é muito freqüente no Antigo Testamento com diversos
usos, significados e funções, nem sempre fáceis de serem distinguidos.
Segundo Claus Westermann
107
ocorre 3540 vezes no qal, e dessas,
211
108
em Isaías. Essas ocorrências em Isaías estão no campo semântico
teológico explícito (o qual abrange oráculos proféticos e prescrições legais
na fórmula de aliança). Nos oráculos essa ocorrência é usada para
descrever os acontecimentos que contém a intervenção de Yahweh com o
juízo e a graça, com a conotação de que o evento anunciado acontecerá
indubitavelmente.
109
Segundo Alonso Schökel
110
em nosso texto a palavra
tem o aspecto de dar início a algo significando: começar a existir, surgir,
acontecer, sobrevir; com perspectiva de sucessão desenvolvendo um uso
narrativo, muitas vezes explicativo.
A palavra
~[' expressa a idéia de um grupo social, conforme nos
apontam Alonso Schökel
111
, Baumgartner
112
e Brown-Driver-Briggs
113
.
107
Claus Westermann, Diccionario Teológico Manual Del Antiguo Testamento, volume
2, Ediciones Cristiandad: Huesca, 1985, p. 672.
108
Ibid,p. 673.
109
Ibid, p. 676-677.
110
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo: Paulus,
1.997, p. 170.
111
Ibid, p. 500.
2. E acontecerá o mesmo ao povo e ao
sacerdote, ao servo e ao seu senhor, à
serva e à sua senhora, ao comprador e
ao vendedor, ao emprestador e ao
emprestatário, ao credor e ao devedor.
94
Dentre os vários campos semânticos apontados por Alonso Schökel
114
,
para o nosso texto é apropriado o campo social, no qual sempre há
relação qualificativa em polaridade (senhor / servo), com a idéia de
representação de classes sociais opostas em uma estrutura hierárquica
com conotação valorativa e depreciativa na relação de ambas. Optamos
traduzir por povo, indicando a classe social em contraposição à classe
sacerdotal.
Seguindo a lógica acima, !heêK com artigo e preposição, a idéia é de
classe sacerdotal. Conforme Clines
115
, Baumgartner
116
e Brown-Driver-
Briggs
117
, refere-se à classe de sacerdotes ou ao sumo sacerdote (o chefe
dessa classe, como sendo a posição mais alta da mesma, independente
da linhagem). Botterweck
118
situa essa palavra no âmbito estrangeiro. Faz
um vasto estudo no qual aponta correspondentes do termo nos mais
variados idiomas semitas. Jastrow
119
faz menção ao período do segundo
templo, no qual essa palavra designa os sacerdotes que eram
distinguidos pelas suas vestes; conotação que estaremos tratando melhor
na análise literária e filológica.
112
Walter Koehler e Johan Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the old
testamente, translated and edited under the supervision of M.E.J. Richardson, E. J.
Brill, Leiden, New York: Köln, 1994, p. 837-839.
113
The new Brown – Driver – Briggs, Gesenius Hebrew-English Lexicon, Massachusetts:
Hendricson, 1979, p. 1107a, nº 5972.
114
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo: Paulus,
1.997, p. 501.
115
David J. A. Clines, The Dictionary of Classical Hebrew, volume 2, Sheffield: Sheffield
Academic Press, 1995, p. 364-368.
116
Walter Koehler e Johan Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the old
testamente, translated and edited under the supervision of M.E.J. Richardson, E. J.
Brill, Leiden, New York: Köln, 1994, p. 462.
117
The new Brown – Driver – Briggs, Gesenius Hebrew-English Lexicon, Massachusetts:
Hendricson, 1979, p. 463a -464b, nº 3548.
118
G. Johannes Botterweck e Helmer Ringgren, volume 4, William B. Eerdmans
Publishing Company, Grand Rapids: Michigan, 1999, p. 60-75.
119
Marcus Jastrow, A Dictionary of the targumim, the talmud bibli and yerushalmi, and
the midrashic literature, volume 1, New York: The judaica press, inc., 1992, p. 60-
75.
120
Claus Westermann, Diccionario Teológico Manual Del Antiguo Testamento, volume
2, Ediciones Cristiandad: Huesca, 1985, p. 615.
121
Walter Koehler e Johan Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the old
testamente, translated and edited under the supervision of M.E.J. Richardson, E. J.
Brill, Leiden, New York: Köln, 1994, p. 240a.
95
db,[, com artigo e preposição, Westermann
120
aponta ser um termo
comum em idiomas semitas. Em hebraico significa servo, escravo.
Baumgartner I
121
faz menção à Septuaginta (LXX) na qual a referida
palavra é traduzida por pai/j 340 vezes; dou/loj 310 vezes e qera,pwn
42 vezes; com conotação de servo. Brown-Driver-Briggs
122
e Jastrow
123
apontam como significado o servo da casa dos servos, sendo o servo dos
servos, o mais humilde, o menor numa escala hierárquica em oposição a
!Ada' que aparece no plural com sufixo pronominal de 3ª pessoa no
singular com o significado de seu senhor. Westermann
124
indica ser de
origem cananéia, sendo que as demais línguas semitas possuem outras
expressões para senhor. Tem conotação de senhor de escravos, em
oposição à classe de servos anteriormente mencionada. Assim também
encontramos em Clines
125
, Baumgartner
126
e Brown-Driver-Briggs
127
.
hx'p.vi no singular, com preposição e artigo significa serva.
Conforme Baumgartner
128
e Brown-Driver-Briggs
129
seria serva em
sentido restrito em relação ao mais baixo grau de criada, à qual é exigido
até verter a água sobre as mãos de seu senhor. Sendo também referente
à empregada de criados pertencentes à rainha ou até mesmo serva dos
122
The new Brown – Driver – Briggs, Gesenius Hebrew-English Lexicon, Massachusetts:
Hendricson, 1979, p. 713b, nº 5650.
123
Marcus Jastrow, A Dictionary of the targumim, the talmud bibli and yerushalmi, and
the midrashic literature, volume 1, New York: The judaica press, inc., 1992, p. 615.
124
Claus Westermann, Diccionario Teológico Manual Del Antiguo Testamento, volume
2, Ediciones Cristiandad: Huesca, 1985, p. 76-85.
125
David J. A. Clines, The Dictionary of Classical Hebrew, volume 2, Sheffield: Sheffield
Academic Press, 1995, p. 135.
126
Walter Koehler e Johan Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the old
testamente, translated and edited under the supervision of M.E.J. Richardson, E. J.
Brill, Leiden, New York: Köln, 1994, p. 13.
127
The new Brown – Driver – Briggs, Gesenius Hebrew-English Lexicon, Massachusetts:
Hendricson, 1979, p. 10b, nº nº 113.
128
Walter Koehler e Johan Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the old
testamente, translated and edited under the supervision of M.E.J. Richardson, E. J.
Brill, Leiden, New York: Köln, 1994, p. 1620-1622.
129
The new Brown – Driver – Briggs, Gesenius Hebrew-English Lexicon, Massachusetts:
Hendricson, 1979, p. 1046b, nº 8198.
96
empregados da concubina. Em Jastrow
130
significaria a empregada
confinada na casa como escrava. A idéia é de posição mais baixa no
interior dessa classe social em contraposição a hr'ybiG que aparece com
preposição, artigo e sufixo pronominal de 3ª pessoa no singular, com o
significado de sua senhora. Em Clines
131
, Baumgartner
132
, Brown-Driver-
Briggs
133
e Jastrow
134
, designaria o posto mais alto de senhora como:
rainha, primeira dama. Transmitindo a idéia do posto feminino mais alto
da estrutura social em contraste ao posto anteriormente mencionado.
Hnq particípio ativo masculino singular no qal com preposição e
artigo. Conforme Alonso Schökel
135
, Baumgartner
136
, Brown-Driver-
Briggs
137
e Jastrow
138
a raiz verbal significa: comprar, adquirir, possuir
(por intermédio de compra). Neste caso optamos traduzir o particípio ativo
como um atributo (o de comprador) por estar num contexto de posição
social, e não como uma descrição de feitos como no caso do primeiro
versículo.
Rkm particípio ativo masculino singular no qal com preposição e
artigo significa vendedor, conforme Clines
139
, Brown-Driver-Briggs
140
,
130
Marcus Jastrow, A Dictionary of the targumim, the talmud bibli and yerushalmi, and
the midrashic literature, volume 1, New York: The judaica press, inc., 1992, p. 1614.
131
David J. A. Clines, The Dictionary of Classical Hebrew, volume 2, Sheffield: Sheffield
Academic Press, 1995, p. 308.
132
Walter Koehler e Johan Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the old
testamente, translated and edited under the supervision of M.E.J. Richardson, E. J.
Brill, Leiden, New York: Köln, 1994, p. 173.
133
The new Brown – Driver – Briggs, Gesenius Hebrew-English Lexicon, Massachusetts:
Hendricson, 1979, p. 150b, nº 1377.
134
Marcus Jastrow, A Dictionary of the targumim, the talmud bibli and yerushalmi, and
the midrashic literature, volume 1, New York: The judaica press, inc., 1992, p. 207.
135
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo: Paulus,
1.997, p. 583.
136
Walter Koehler e Johan Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the old
testamente, translated and edited under the supervision of M.E.J. Richardson, E. J.
Brill, Leiden, New York: Köln, 1994, p. 111.
137
The new Brown – Driver – Briggs, Gesenius Hebrew-English Lexicon, Massachusetts:
Hendricson, 1979, p. 888b, nº 7069.
138
Marcus Jastrow, A Dictionary of the targumim, the talmud bibli and yerushalmi, and
the midrashic literature, volume 1, New York: The judaica press, inc., 1992, p. 1391.
139
David J. A. Clines, The Dictionary of Classical Hebrew, volume 2, Sheffield: Sheffield
Academic Press, 1995, p. 271-273.
97
Nelson Kirst
141
e Baumgartner I
142
, sendo aquele que vende todo tipo de
material, como: móveis, imóveis, alimentos, etc. Aquele que está pronto a
negociar até mesmo com trocas, com conotação de ser aquele que
entrega ou abandona algo. Optamos traduzir por vendedor.
hwl particípio ativo masculino singular no hifil com preposição e
artigo. Segundo Alonso Schökel
143
, Clines I
144
, Baumgartner II
145
e Brown-
Driver-Briggs
146
, em Isaías 24,2, significa aquele que empresta algo a
alguém (o emprestador), podendo ter a conotação de tornar em escravo
aquele que lhe toma algo por empréstimo. A mesma raiz no qal tem o
significado oposto, de quem pede emprestado (o emprestatário). Optamos
traduzir por: ao emprestador e ao emprestatário
147
, conforme a orientação
acima e a tradução de José Severino Croatto
148
.
Alonso Schökel verbete I
149
, indica para o significado da raiz hvn,
ver avn I, podendo ser o credor ou o devedor, dependendo do contexto.
Segundo Baumgartner II
150
seria aquele em oposição ao credor
profissional (agiota) significando o devedor. Para o significado de credor
140
The new Brown – Driver – Briggs, Gesenius Hebrew-English Lexicon, Massachusetts:
Hendricson, 1979, p. 569a, nº 4376.
141
Nelson Kirst (et alii), Dicionário Hebraico – Português e Aramaico – Português, São
Leopoldo: Petrópolis, 2000, p. 126.
142
Walter Koehler e Johan Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the old
testamente, translated and edited under the supervision of M.E.J. Richardson, E. J.
Brill, Leiden, New York: Köln, 1994, p. 581-582.
143
Ibid, p. 340.
144
David J. A. Clines, The Dictionary of Classical Hebrew, volume 2, Sheffield: Sheffield
Academic Press, 1995, p. 523
145
Walter Koehler e Johan Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the old
testamente, translated and edited under the supervision of M.E.J. Richardson, E. J.
Brill, Leiden, New York: Köln, 1994, p. 522
146
The new Brown – Driver – Briggs, Gesenius Hebrew-English Lexicon, Massachusetts:
Hendricson, 1979, p. 531a, nº 3867.
147
Embora em seu dicionário Alonso Schökel partilhe dessa mesma opinião e análise
(em relação aos significados de acordo com os graus hifil e qal), em sua tradução de
Isaías 24,2 em Isaías Jeremias, profetas I, Grande Comentário Bíblico, p. 210, ele
inverte a ordem como segue: “mutuário que emprestamista”.
148
José Severino Croatto, Isaías, o profeta da justiça e da fidelidade, p. 150.
149
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo: Paulus,
1.997, p. 454.
150
Walter Koehler e Johan Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the old
testamente, translated and edited under the supervision of M.E.J. Richardson, E. J.
Brill, Leiden, New York: Köln, 1994, p. 728-729.
98
indica ver hV,m; (conforme Deuteronômio 15,2). Segundo Nelson Kirst
151
,
verbete II, indica ver avn I, podendo significar: dar em empréstimo; tomar
um empréstimo. No caso de particípio ativo aponta como significado
credor ou agiota. Em Clines temos quatro raízes com as mesmas
consoantes, sendo que o verbete I
152
tem o significado de devedor -
aquele que pede emprestado; no verbete IV
153
como credor, sendo aquele
que empresta para alguém. Em Brown-Driver-Briggs
154
com menção a
Isaías 24,2 temos como significado aquele que está em oposição ao
credor, sendo o devedor, no contexto de quem pede emprestado e está
devendo. Diante disso, percebemos que o contexto é importante para
definir o significado dessa palavra, por isso optamos por traduzir credor e
devedor conforme a tradução de Alonso Schökel e José Luis Sicre
Diaz
155
. Opção que será comentada na análise literária e filológica.
O termo rv<ßa]K; que expressa a idéia de o mesmo / a mesma coisa,
que se encontra no final do versículo, dá a idéia de que os feitos de
Yahweh descritos no verso anterior terão efeito sobre todos os habitantes
da terra, desde os mais baixos até os mais altos da sociedade e vice
versa. Optamos colocar no início do versículo por causa da estrutura
gramatical da língua portuguesa.
151
Nelson Kirst (et alii), Dicionário Hebraico – Português e Aramaico – Português, São
Leopoldo: Petrópolis, 2000, p. 162.
152
David J. A. Clines, The Dictionary of Classical Hebrew, volume 2, Sheffield: Sheffield
Academic Press, 1995, p. 775-776.
153
Ibid, p. 776-777.
154
The new Brown – Driver – Briggs, Gesenius Hebrew-English Lexicon, Massachusetts:
Hendricson, 1979, p. 673b, nº 5378.
155
Isaías Jeremias, profetas I, Grande Comentário Bíblico, p. 210.
99
3.1.3. Terceiro verso
#r<a'Þh' qAB±Ti ŸqABôhi
hw"ëhy> yKiä zAB+Ti ŸzABåhiw>
`hZ<)h; rb"ïD"h;-ta, rB<ßDI
O versículo inicia com a estrutura gramatical na qual temos um
verbo infinitivo absoluto e a conjugação da mesma raiz. Esse recurso
gramatical reforça e intensifica a idéia verbal
156
; se dá duas vezes neste
versículo: 1ª com a raiz qqb; 2ª com a raiz zzb. Por isso traduzimos como
advérbio “certamente” uma única vez, mas com a idéia sobre o significado
das duas raízes.
Em relação a qqb traduzimos com o mesmo significado do
primeiro versículo (assolar); em relação a zzb, conforme Baumgartner
157
e
Harris
158
, o termo está sempre associado a contexto de guerra e violência,
indicando tomar posse de bens e pessoas em ocasião de vitória militar
(guerra), podendo ser traduzido como despojar, pilhar, saquear. Alonso
Schökel
159
sugere traduzir em nosso versículo como ser pilhada ou
saqueada por estar no nifal, por isso optamos traduzir por pilhada.
Mudamos a ordem das palavras em virtude da estrutura gramatical
da língua portuguesa, por isso colocamos o sujeito da frase em primeiro
lugar (a terra) em relação aos acontecimentos (verbos).
156
Page H. Kelley, Hebraico bíblico – uma gramática introdutória, p, 221.
157
Walter Koehler e Johan Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the old
testamente, translated and edited under the supervision of M.E.J. Richardson, E. J.
Brill, Leiden, New York: Köln, 1994, p. 117-118
158
Laird R. Harris (et alii), Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento,
São Paulo: Vida Nova, 2001, p. 164.
159
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo: Paulus,
1.997, p. 96.
3. Certamente a terra será assolada e
pilhada; pois Yahweh disse esta
palavra.
100
3.1.4. Quarto verso
#r<a'êh' ‘hl'b.n") hl'Ûb.a'
lbe_Te hl'Þb.n" hl'îl.m.au
`#r<a'(h'-~[; ~Arïm. Wll'Þm.au
Começamos novamente com a terra como sujeito da frase. A raiz
lba, conforme Baumbartner II
160
, Kirst II
161
, Clines
162
, Brown-Driver-
Briggs
163
e Alonso Schökel
164
, pode ser traduzida como: lamento, luto,
cobrir-se de luto, observar ritos fúnebres, enlutar-se, estar de luto,
murchar, secar e desfalecer (por causa da calamidade). Por ser verbo no
qal completo 3ª pessoa feminina singular, optamos traduzir por cobre-se
de luto.
Segundo Alonso Schökel
165
a raiz Lbn no completo de qal 3ª
pessoa feminina singular, em relação ao nosso versículo, expressa idéia
no sentido figurado e pode ser traduzida como languescer, desfalecer. Em
Kirst I
166
como: murchar, mirrar, cair em ruína, desfazer-se. Optamos
traduzir por “se desfaz nas duas vezes (1ª em relação à terra e a 2ª em
relação ao mundo).
160
Walter Koehler e Johan Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the old
testamente, translated and edited under the supervision of M.E.J. Richardson, E. J.
Brill, Leiden, New York: Köln, 1994, p. 7.
161
Nelson Kirst (et alii), Dicionário Hebraico – Português e Aramaico – Português, São
Leopoldo: Petrópolis, 2000, p. 2.
162
David J. A. Clines, The Dictionary of Classical Hebrew, volume 2, Sheffield: Sheffield
Academic Press, 1995, p. 107.
163
The new Brown – Driver – Briggs, Gesenius Hebrew-English Lexicon, Massachusetts:
Hendricson, 1979, p. 5a-b, nº 56.
164
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo: Paulus,
1.997, p. 23.
165
Ibid, p. 416.
166
Nelson Kirst (et alii), Dicionário Hebraico – Português e Aramaico – Português, São
Leopoldo: Petrópolis, 2000, p. 149.
4. A terra cobre-se de luto e se desfaz;
o mundo desfalece e se desfaz; a
nata do povo da terra desfalece.
101
A raiz Lma no pual 3ª pessoa feminina singular, segundo
Baumgartner
167
, Kirst
168
e Alonso Schökel
169
significa secar com idéia de
se encolher; perder o vigor, desfalecer, enlanguescer, estar abandonado.
Em Clines
170
e Brown-Driver-Briggs
171
, significando adoecer, ficar fraco e
languescer. Harris
172
aponta que o verbo tem a mesma raiz da palavra
que significa cadáver. Optamos traduzir por desfalece em ambas
ocorrências (1ª em relação ao mundo e a 2ª em relação à nata do povo da
terra – a elite).
Para Clines
173
e Alonso Schökel
174
a palavra ~Arm' significa altura
em geral. Em Isaías 24,4 expressa a idéia de ser o oposto de terra (talvez
dentro da dinâmica da polaridade), podendo ser traduzida por céu.
Segundo Baumgartner
175
, Brown-Driver-Briggs
176
, Jastrow
177
e Kirst
178
,
além do sentido geral de altura, indica em nosso texto posição social
elevada, com o significado de elite (com a idéia do grupo que ocupa cargo
ou posição elevada, e que por isso está seguro). Diante das duas
hipóteses, optamos traduzir em nosso versículo como a nata do povo da
167
Walter Koehler e Johan Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the old
testamente, translated and edited under the supervision of M.E.J. Richardson, E. J.
Brill, Leiden, New York: Köln, 1994, p. 63.
168
Nelson Kirst (et alii), Dicionário Hebraico – Português e Aramaico – Português, São
Leopoldo: Petrópolis, 2000, p. 13.
169
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo: Paulus,
1.997, p. 62.
170
David J. A. Clines, The Dictionary of Classical Hebrew, volume 1, Sheffield: Sheffield
Academic Press, 1995, p. 314.
171
The new Brown – Driver – Briggs, Gesenius Hebrew-English Lexicon, Massachusetts:
Hendricson, 1979, p. 51a, nº 535.
172
Laird R. Harris (et alii), Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento,
São Paulo: Vida Nova, 2001, p. 911-912.
173
David J. A. Clines, The Dictionary of Classical Hebrew, volume 4, Sheffield: Sheffield
Academic Press, 1995, p. 483.
174
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo: Paulus,
1.997, p. 402.
175
Walter Koehler e Johan Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the old
testamente, translated and edited under the supervision of M.E.J. Richardson, E. J.
Brill, Leiden, volume 3, New York: Köln, 1994, p. 633.
176
The new Brown – Driver – Briggs, Gesenius Hebrew-English Lexicon, Massachusetts:
Hendricson, 1979, p. 928a, nº 4791.
177
Marcus Jastrow, A Dictionary of the targumim, the talmud bibli and yerushalmi, and
the midrashic literature, volume 1, New York: The judaica press, inc., 1992, p. 839b.
178
Nelson Kirst (et alii), Dicionário Hebraico – Português e Aramaico – Português, São
Leopoldo: Petrópolis, 2000, p. 141.
102
terra, com a idéia de ser a elite “inabalada”, considerada da mais alta
posição social, como encontramos na tradução por José Severino
Croatto
179
.
3.1.5. Quinto verso
h'yb,_v.yO tx;T;ä hp'Þn>x' #r<a'îh'w>
qxoê Wpl.x'ä ‘troAt WrÜb.['-yKi(
`~l'(A[ tyrIïB. WrpEßhe
O verbo completo no qal 3ª pessoa feminina singular raiz @n;x' é
glossado em Kirst I
180
com significado de estar contaminado, estar sem
Deus, estar profanado. Com Alonso Schökel
181
, Harris
182
e
Westermann
183
, a raiz é @nex', tendo o mesmo significado do verbete I de
Kirst. Os três últimos mencionam Isaías 24,5 como exemplo do referido
significado. Westermann, analisando sua abrangência nos mais diversos
idiomas semitas do ocidente, atribuiu ainda a conotação de perversidade,
a qual leva à profanação. Alonso Schökel atribui a profanação ao fato da
quebra do acordo ou pacto com Yahweh por exercer o oposto de
misericórdia (no caso a perversidade). Entendemos que, conforme Alonso
Schökel e Claus Westermann, o exercício do oposto dos preceitos de
Yahweh, acaba sendo o resultado de quem vive em profanação (longe /
179
Isaías o profeta da justiça e da fidelidade, vol. I, p. 150.
180
Nelson Kirst (et alii), Dicionário Hebraico – Português e Aramaico – Português, São
Leopoldo: Petrópolis, 2000, p. 73.
181
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo: Paulus,
1.997, p. 234.
182
Laird R. Harris (et alii), Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento,
São Paulo: Vida Nova, 2001, p. 498.
183
Claus Westermann, Diccionario Teológico Manual Del Antiguo Testamento, volume
1, Ediciones Cristiandad: Huesca, 1985, p. 830-832.
5. E a terra está profanada sob seus
habitantes, pois transgrediram as
leis; trocaram o estatuto, romperam a
aliança eterna.
103
afastado de Deus). Harris indica ainda a conotação de hipocrisia; quando
a atitude de perversidade é exercida de maneira hipócrita como se não
estivesse sendo realizada.
O verbo WrÜb.[' no qal 3ª pessoa comum no plural raiz rb[
conforme Claus Westermann
184
e Alonso Schökel
185
pode ter vários
sentidos por transitar por muitos campos semânticos. Em nosso contexto
cabe o uso figurado, o qual se aplica ao campo ético ou legal,
significando, transgredir, violar, quebrar (um mandato, uma ordem, um
preceito, uma lei, pacto, ou qualquer outra coisa que o valha neste
sentido). Em nosso caso, refere-se às leis (troAt). Optamos traduzir por
transgrediram.
Segundo Alonso Schökel
186
o verbo no qal 3ª pessoa comum plural
raiz @lx em Isaías 24,5 pode ser traduzido como violar. Em Nelson Kirst
I
187
e Harris
188
o sentido é de trocar, atravessar, desaparecer, alternar. É
importante perceber a diferença de sentido dessa palavra para com a
anterior. Lá a idéia é de transgressão (desobediência ou não
cumprimento); aqui é a idéia de ter sido alterada a lei (manipulada ou
mudada). Por isso optamos traduzir por trocaram.
Segundo Alonso Schökel
189
e Harris
190
qxo é sinônimo de lei,
podendo ser traduzido por: decreto, estatuto, limite, fronteira, lei, regra,
184
Ibid, p, 262-267.
185
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo: Paulus,
1.997, p. 476-477.
186
Ibid, p. 225-226.
187
Nelson Kirst (et alii), Dicionário Hebraico – Português e Aramaico – Português, São
Leopoldo: Petrópolis, 2000, p. 69.
188
Laird R. Harris (et alii), Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento,
São Paulo: Vida Nova, 2001, p. 474-475.
189
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo: Paulus,
1.997, p. 241.
190
Laird R. Harris, Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São
Paulo: Vida Nova, 2001, p. 520.
104
norma, prescrição, etc. Kirst
191
ainda acrescenta outros significados como:
alvo, porção, tarefa, obrigação, reivindicação, costume, determinação, etc.
Harris indica que na Septuaginta (LXX) este termo foi traduzido por três
palavras: dikai,wma (regra), nomimwn (mandamento) e prosta,gma
(ordem). Optamos traduzir por estatuto.
Em relação ao verbo no hifil 3ª pessoa comum plural raiz rrp,
Alonso Schökel I
192
e Claus Westermann
193
indicam que a raiz, quando
acompanhada de tyrIïB. tem a conotação de romper a aliança, rescindir,
desobedecer, cancelar, frustrar, fazer fracassar, desvirtuar. Kirst I
194
indica
ainda outras possibilidades de tradução, como: anular, invalidar, romper,
quebrar, destruir. Traduzimos como romperam com a idéia de não
honrarem mais o pacto ou aliança feitos com Yahweh.
~l'A[ segundo Alonso Schökel
195
esse termo pode significar um
tempo ou duração de tempo indefinidos, tanto no passado como no futuro,
ou ainda como o definitivo de uma ação ou estado. Para ele, em nosso
contexto caberia duas categorias: a adjetival em relação à aliança, e a
categoria do definitivo, com relação à eternidade (eterna ou para sempre).
Nelson Kirst
196
aponta como equivalente à categoria do definitivo de
Alonso Schökel a forma adverbial com a conotação de eternamente, para
todos os tempos, para sempre, etc, conforme também Harris
197
. Optamos
traduzir por eterna conforme a categoria adjetival de Alonso Schökel, que
191
Nelson Kirst (et alii), Dicionário Hebraico – Português e Aramaico – Português, São
Leopoldo: Petrópolis, 2000, p. 75.
192
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo: Paulus,
1.997, p. 549.
193
Claus Westermann, Diccionario Teológico Manual Del Antiguo Testamento, volume
2, Ediciones Cristiandad: Huesca, 1985, p. 613-615.
194
Nelson Kirst (et alii), Dicionário Hebraico – Português e Aramaico – Português, São
Leopoldo: Petrópolis, 2000, p. 199.
195
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo: Paulus,
1.997, p. 483-484.
196
Nelson Kirst (et alii), Dicionário Hebraico – Português e Aramaico – Português, São
Leopoldo: Petrópolis, 2000, p. 175.
197
Laird R. Harris (et alii), Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento,
São Paulo: Vida Nova, 2001, p. 1126-1127.
105
na realidade é a mesma de Nelson Kirst e Harris em seu sentido (na
forma adverbial), pois a diferença encontra apenas na grafia (sintaxe).
3.1.6. Sexto verso
#r<a,ê hl'k.a'ä ‘hl'a' !Keª-l[;
Hb'_ ybev.yOæ Wmßv.a.Y<w:)
#r<a,ê ybev.yOæ ‘Wrx' !Keª-l[;
`r[")z>mi vAnàa/ ra:ïv.nIw>
O versículo inicia com preposição e advérbio que traduzimos “por
isso”. A palavra hl'a' é traduzida por maldição condicionada ao não
cumprimento de um compromisso conforme Alonso Schökel
198
, Harris
199
,
Kirst
200
, Westermann
201
e Baumgartner
202
.
O verbo qal 3ª pessoa feminina singular raiz lka, segundo Kirst
203
,
Harris
204
, Baumgartner
205
, Brown-Driver-Briggs
206
, tem como sentido
198
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo: Paulus,
1.997, p. 56.
199
Laird R. Harris (et alii), Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento,
São Paulo: Vida Nova, 2001, p. 74.
200
Nelson Kirst (et alii), Dicionário Hebraico – Português e Aramaico – Português, São
Leopoldo: Petrópolis, 2000, p. 10.
201
Claus Westermann, Diccionario Teológico Manual Del Antiguo Testamento, volume
2, Ediciones Cristiandad: Huesca, 1985, p. 238-242.
202
Walter Koehler e Johan Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the old
testamente, translated and edited under the supervision of M.E.J. Richardson, E. J.
Brill, Leiden, volume 1, New York: Köln, 1994, p. 51.
203
Nelson Kirst (et alii), Dicionário Hebraico – Português e Aramaico – Português, São
Leopoldo: Petrópolis, 2000, p. 10.
204
Laird R. Harris (et alii), Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento,
São Paulo: Vida Nova, 2001, p. 64-66.
205
Walter Koehler e Johan Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the old
testamente, translated and edited under the supervision of M.E.J. Richardson, E. J.
Brill, Leiden, volume 1, New York: Köln, 1994, p. 46.
6. Por isso maldição devorou a terra,
tornaram-se culpados os seus
habitantes; por isso, se consomem os
habitantes da terra e restam poucos
indivíduos.
106
geral, comer, alimentar-se, engolir, ingerir, tragar, consumir, devorar. Para
Alonso Schökel
207
, Westermann
208
e Clines
209
, além do sentido geral, a
raiz, em nosso texto, tem sentido figurativo, como se a maldição tivesse
comido, engolido, devorado a terra, com a idéia de destruí-la.
O verbo qal 3ª pessoa comum plural raiz Rrx segundo Alonso
Schökel I
210
, Kirst I
211
e Brown-Driver-Briggs
212
tem a conotação de
consumir-se em fogo ou calor, com a idéia de derreter-se, arder, queimar-
se. Optamos traduzir por se consomem, com sentido diferente de Lka,
sobre o qual trataremos na análise literária e filológica.
O verbo no nifal 3ª pessoa masculina singular raiz rav, segundo
Alonso Schökel
213
e Nelson Kirst
214
, pode ser traduzido por: restar,
sobreviver, ficar. Com a conotação de que não sobrou muita coisa. Em
nosso caso, com a idéia de que poucos sobrevivem (não são
consumidos). Optamos traduzir por restam no plural por se referir ao
coletivo de indivíduo, com a idéia de alguns indivíduos.
r['z>mi substantivo singular que, segundo Alonso Schökel
215
e
Nelson Kirst
216
significa pouco, escasso, algum, contado. Traduzimos por
206
The new Brown – Driver – Briggs, Gesenius Hebrew-English Lexicon, Massachusetts:
Hendricson, 1979, p. 37a, nº 398.
207
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo: Paulus,
1.997, p. 51-53.
208
Claus Westermann, Diccionario Teológico Manual Del Antiguo Testamento, volume
1, Ediciones Cristiandad: Huesca, 1985, p. 222-227.
209
David J. A. Clines, The Dictionary of Classical Hebrew, volume 1, Sheffield: Sheffield
Academic Press, 1995, p. 247.
210
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo: Paulus,
1.997, p. 247-248.
211
Nelson Kirst (et alii), Dicionário Hebraico – Português e Aramaico – Português, São
Leopoldo: Petrópolis, 2000, p. 78.
212
The new Brown – Driver – Briggs, Gesenius Hebrew-English Lexicon, Massachusetts:
Hendricson, 1979, p. 359a, nº 2787.
213
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo: Paulus,
1.997, p. 653.
214
Nelson Kirst (et alii), Dicionário Hebraico – Português e Aramaico – Português, São
Leopoldo: Petrópolis, 2000, p. 241-242.
215
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo: Paulus,
1.997, p. 365.
107
poucos no plural por assumir caráter de advérbio da raiz rav, que
também traduzimos no plural, embora esteja no singular, por se ligar à
palavra vAna/ (singular) que se refere ao coletivo, com sentido plural.
A última palavra vAna/ no singular, segundo Baumgartner
217
, Clines
I
218
, Botterweck
219
e Brown-Driver-Briggs
220
em Isaías 24,6 deve ser
traduzida como coletivo de indivíduo, com a idéia de humanidade. Por
isso traduzimos como indivíduos.
3.2. ANÁLISE GERAL DE ISAÍAS 24.1-6
3.2.1 Crítica Textual
Essa etapa da exegese visa uma aproximação ao texto que possa
ser considerado como tendo a maior probabilidade de estar próximo à
realidade que o gerou.
Realizaremos essa tarefa partindo do aparato crítico de D. Winton
Thomas realizado em 1968
221
.
Aparato crítico:
216
Nelson Kirst (et alii), Dicionário Hebraico – Português e Aramaico – Português, São
Leopoldo: Petrópolis, 2000, p. 121.
217
Walter Koehler e Johan Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the old
testamente, translated and edited under the supervision of M.E.J. Richardson, E. J.
Brill, Leiden, volume 1, New York: Köln, 1994, p. 70.
218
David J. A. Clines, The Dictionary of Classical Hebrew, volume 1, Sheffield: Sheffield
Academic Press, 1995, p. 334.
219
G. Johannes Botterweck e Helmer Ringgren, volume 1, William B. Eerdmans
Publishing Company, Grand Rapids: Michigan, 1999, p. 345-348.
220
The new Brown – Driver – Briggs, Gesenius Hebrew-English Lexicon, Massachusetts:
Hendricson, 1979, p. 60b, nº 582.
221
Bíblia Hebraica Stuttgartensia
108
Cp 24, 2
a-a
prb add ll 3
a-a
add, dl ll 4
a
> , dl ll
b
l c
a
ll;ma ll
c-c
prp ~[I ‘M'h; ll 5
a-a
prb add ll 6
a
a
wrwx = Wrw>x' ll
Análise do aparato crítico:
Verso 2: E acontecerá o mesmo ao povo e ao sacerdote, ao
servo e ao seu senhor, à serva e à sua senhora, ao
comprador e ao vendedor, ao emprestador e ao
emprestatário, ao credor e ao devedor.
Winton Thomas considera terem sido provavelmente adicionados
os termos hA<êLK; ‘hw<l.M;K; (ao emprestador e ao emprestatário). Ele não
aponta nenhum manuscrito como testemunha para embasar sua hipótese.
Embora haja uma alteração na ordem (do menor para o maior), conforme
podemos analisar a partir do contexto histórico, consideramos que a
alteração indicada pelo crítico não compromete a mensagem, em virtude
da ênfase estar no relacionamento entre as duas esferas, aspecto que
aprofundaremos nas análises posteriores. Por isso manteremos o texto
como está.
Verso 3: Certamente a terra será assolada e pilhada; pois
Yahweh disse essa palavra.
Ele considera que as palavras hZ<)h; rb"ïD"h;-ta, (essa palavra / a
palavra esta) teriam sido adicionadas posteriormente e podem ser
deletadas. Também não aponta nenhum manuscrito que possa servir de
testemunha para sua hipótese. A expressão parece cumprir o papel de
enfatizar a credibilidade do oráculo por ter sido o mesmo proferido pelo
próprio Yahweh. Este é um recurso muito comum nos oráculos.
a-a
a-a
b
a
c-c
a-a
109
Lembramos que a forma gramatical hebraica com que começa o versículo
três, com o verbo infinitivo absoluto e a conjugação da mesma raiz já
enfatiza a veracidade do anúncio (outro recurso habitual no oráculo).
Mesmo avaliando não ser uma alteração que comprometa a mensagem,
não a adotaremos. Manteremos o texto em sua forma original.
Verso 4: A terra cobre-se de luto e se desfaz; o mundo
desfalece e se desfaz
; a nata do povo da terra
desfalece.
Winton Thomas apresenta três alterações: 1ª - que os verbos com
a raiz
lbn (desfazer-se, cair em ruína) e lma (desfalecer, enlanguecer)
estão ausentes na versão grega da LXX, e considera que os mesmos
sejam deletados; 2ª - que o termo Wll'Þm.au deve ser lido como ll;ma
conforme se encontra em 1QIs
a
(primeiro achado de Isaías da primeira
gruta de Hirbet Qumran, século II a.C.), na versão siríaca (Peshitta do
século II) e conforme a Vulgata (século IV-V d.C.); 3ª - propõe no lugar de
~[; ~Arïm. (a nata do povo da) ler a expressão ~[I ‘M'h; (com a altura dela).
Não apresenta nenhuma testemunha para a última proposta.
Em relação à 1ª alteração, considera que seja mantida a idéia da
LXX, ficando assim: a terra cobre-se de luto e se desfaz o mundo, a nata
do povo da terra cobre-se de luto. Consideramos uma modificação que
não compromete a mensagem, uma vez que mantém a idéia dos feitos e
efeitos serem universais.
A 2ª e 3ª parecem tratar de aspectos estilísticos e poéticos. Não
consideramos necessário alterar o texto como propõe Winton Thomas,
uma vez que, em relação à 2ª alteração, o significado da palavra continua
o mesmo. Em relação à 3ª alteração, a proposta do crítico é substituir a
expressão “nata do povo” por “com a altura dela” (da terra). Ficando então
como segue: a terra cobre-se de luto e se desfaz o mundo com a altura
110
dela (podendo ser entendida como o céu, conforme apontou Alonso
Schökel em sua tradução). Percebemos que na forma como o texto se
encontra, a alteração proposta não coaduna com a idéia já apresentada
no verso dois com a exposição das camadas sociais. Consideramos a
melhor opção mantê-lo como está por enfatizar que os acontecimentos
anunciados afetarão todos os habitantes da terra sem nenhuma diferença
nas mais diversas camadas sociais. Essa idéia é de extrema importância
para a teologia desse oráculo e está em plena harmonia com o verso dois.
Lembrando também que não há nenhuma testemunha que ateste a
alteração proposta pelo crítico em relação à terceira alteração.
Verso 5: E a terra está profanada sob seus habitantes, pois
transgrediram as leis; alteraram o estatuto,
romperam a aliança eterna.
O aparato crítico considera que a expressão qxoê Wpl.x'ä ‘troAt WrÜb.['
(transgrediram as leis, alteraram o estatuto) teria sido provavelmente
adicionada. Ele não aponta nenhuma testemunha. Por isso não
consideramos viável essa alteração, uma vez que, teologicamente,
considerando a datação do texto e seu contexto, não há nenhuma razão
para desacreditar da originalidade dessa expressão. Se caso tenha sido
acrescentada, torna-se importante sua conservação por expressar uma
nova perspectiva na época da elaboração desse bloco, uma vez que
trata-se de uma coletânea de oráculos reformulados. Diante disso,
mantemos o texto como está.
Verso 6: Por isso maldição devorou a terra, os seus habitantes
tornaram-se culpados; por isso, os habitantes da terra
se consomem e restam poucos indivíduos.
Winton Thomas aponta ter havido em 1QIs
a
uma retroversão (ato
de verter para o idioma original um trecho já traduzido) da palavra wrwx
111
para a palavra Wrw>x'. Essa alteração nos informa que em dado momento
foi necessário e importante atualizar uma palavra (que talvez possa ter
ficado obsoleta), para que a mensagem continuasse a ser transmitida e
entendida; ou talvez tenha ganhado abrangência em um novo campo
semântico. Isso demonstra a importância que foi dada ao texto, tendo sido
o mesmo conservado por muito tempo. Essa alteração não demonstra
modificação da mensagem, mas antes, uma alteração da palavra para
que a mensagem fosse preservada. Diante disso, consideramos o texto
como está.
3.2.2. Delimitação da perícope
A perícope Isaías 24,1-6
222
encontra-se limitada inicialmente por
alguns fatores: 1º a porção textual que a antecede (capítulo 23, 17-18)
está em prosa (provável acréscimo posterior), marcando assim o final de
uma perícope escrita em forma poética. Isaías 24,1-6 encontra-se na
forma poética; 2º a porção textual anterior tem como assunto a
condenação das cidades vizinhas de Israel, com ênfase na cidade de
Tiro. Nossa perícope não está no contexto de condenação de cidades
específicas, mas diante do anúncio dos feitos de Yahweh que
acontecerão sobre a terra (com conotação mundial) na perspectiva do Dia
de Yahweh; 3º O capítulo 24 inicia com a interjeição “Eis que” chamando
a atenção para um novo fato. Por ser um oráculo, temos um novo
assunto, o qual mencionamos no item anterior.
Em relação ao assunto de nossa perícope, consideramos neste
momento a terra como elemento em destaque por ser a arena na qual os
222
Essa divisão é adotada por Alonso Schökel e José Luis Sicre Diaz em Isaías
Jeremias, profetas I, grande comentário bíblico p, 210; e pelas traduções da Bíblia
de Jerusalém edição de 1996; TEB (tradução ecumênica da Bíblia) edição de 1996 e
da Bíblia edição Pastoral de 1999.
112
atos de Yahweh (no Dia de Yahweh) se manifestarão, surtindo efeitos
sobre ela e seus habitantes. A estrutura gramatical do texto, com o uso de
infinitivos absolutos e conjugação da mesma raiz, é comum nos oráculos
sobre os feitos de Yahweh e seus efeitos.
Até o versículo seis temos a mesma idéia transmitida de forma
cadenciada, na qual há o anúncio dos feitos de Yahweh, a descrição dos
que receberão os efeitos de suas ações (os habitantes da terra e não
apenas povos estrangeiros) e o tema oracular da quebra da aliança
eterna com a consequente maldição que devora e consome a terra e seus
habitantes, dando ao texto um caráter autônomo e coeso.
Assim temos o fechamento da perícope, pois a partir do versículo
sete o cântico sobre a cidade destruída ganha foco. Embora haja menção
à terra nos versículos onze e treze, a ênfase está na cidade, na qual a
ausência de alegria e presença da desolação são marcantes (com
menção a casas, portas, ruas, etc).
Esse cântico, embora um poema, está marcado sintática e
semanticamente de forma diferente da perícope anterior. Há uma quebra
da estrutura dos particípios ativos e verbos no infinitivo absoluto, que
demonstram claramente, em Isaías 24,1-6, a dinâmica de quem age e o
significado de cada agir no texto. A perícope 24,7-16a é uma descrição da
cidade destruída e não mais o anúncio dos feitos de Yahweh com caráter
mundial em relação às ações dos habitantes da terra.
A partir dessa articulação de elementos sintáticos e semânticos,
podemos delimitar nossa porção textual como uma perícope autônoma e
coesa.
Salientamos que, apesar da delimitação da perícope, não nos
esqueceremos do bloco todo ao qual ela pertence. Trabalharemos
conscientes de que serão consideradas questões que se encontram fora
da delimitação, em especial nos versículos 16b até o 23 do mesmo
113
capítulo, por tratar de atitudes e efeitos que continuam sendo descritos
em relação ao Dia de Yahweh que nos possibilitam perceber a
complexidade da expectativa depositada neste evento anunciado em
nossa perícope.
3.2.3. Contexto menor
A perícope em análise, como já mencionamos no tópico anterior,
encontra-se logo após o oráculo referente à cidade de Tiro (capítulo 23,1-
18). Essa cidade foi construída numa ilha próxima à costa tendo sido
sitiada algumas vezes por diferentes conquistadores e destruída em 322
a.C. por Alexandre Magno.
Segundo José Severino Croatto
223
este oráculo tem como pano de
fundo o fim do comércio fenício mediterrâneo já ocorrido, porém com
acréscimos tardios (versículos 15-18) com conotação de futuro. Esses
acréscimos pós-exílicos teriam, segundo Croatto, como seu melhor
contexto o período final do império assírio, por volta de 680-669 a.C. pelo
poder exercido por Asaradon subjugando reis de Sidon, Tiro, fenícios,
filisteus e transjordânios.
224
Nesta perícope temos claramente a relação entre o poder político-
militar e o poder comercial-econômico, os quais se articulam no interior da
estrutura sócio-política com interesses de expansão e manutenção do
status quo, conforme dado no versículo 8, com menção à expressão
“distribuidora de coroas”, que segundo Croatto, seria indício de que o
poder comercial possibilitou o estabelecimento de colônias sob o governo
de Tiro.
223
José Severino Croatto, Isaías 1-39: o profeta da justiça e da fidelidade, vol I,
comentário bíblico, São Paulo: Vozes, Imprensa Metodista e Sinodal, 1989, p. 140.
224
Ibid, p. 140.
114
Nessa linha hermenêutica, o oráculo trata exatamente da
destruição dessa cidade com todo seu aparelho político-comercial e
ideológico, por ser o veículo da implantação de uma estrutura injusta e
opressora.
Essa destruição narrada no oráculo é por iniciativa de Yahweh com
o intuito de destruir o orgulho de Tiro (sua estrutura de poder). Esse tema
(contra o orgulho da nação estrangeira) está presente não apenas em
relação à cidade de Tiro, mas em relação às nações vizinhas de Israel,
atravessando todo o bloco literário capítulos 13-23, como ponto central da
teologia profética.
Essa maldição ou julgamento contra o orgulho de Tiro se constitui
na forma do Dia de Yahweh tendo dois aspectos: um em relação ao poder
explorador divinizado e outro em relação ao poder comercial a serviço do
poder político.
O texto de Isaías capítulo 24,7 em diante, que sucede nossa
perícope em análise, é controverso entre os pesquisadores acerca de sua
delimitação enquanto uma única perícope
225
. Conforme Alonso Schökel
226
temos o tema da cidade desolada nos versículos 7-12; o tema do resto
santo nos versículo 13-16a; e o tema da destruição e do juízo de Yahweh
nos versículos 16b-23, sendo que cada tema seria uma perícope.
Segundo José Severino Croatto, não se trata de três ou mais perícopes,
mas de apenas uma, com momentos e temas diferentes, como uma
liturgia. Para Croatto, tais temas se articulam na narrativa movidos por
uma única intenção e propósito.
227
225
Essa divergência entre os estudiosos é resultado de uma discussão acerca do que
seria esse bloco, como por exemplo: uma peça teatral (jogral) ou uma liturgia
cúltica, ou ainda outras possibilidades muito debatidas.
226
Luis Alonso Schökel e José Luis Sicrre Diaz, profetas I: Isaías, Jeremias, grande
comentário bíblico, São Paulo: Paulinas, 1988, p. 211-213.
227
A tradução da Bíblia de Jerusalém considera duas perícopes: 7-16a o cântico sobre a
cidade destruída uma, 16b-23 os últimos combates outra, a qual seria uma
retomada do tema de Isaías 24,1-6 que fora interrompido pelo cântico da cidade.
115
Em ambas as formas de entender o texto percebemos um tema
central (como intenção do escrito), a perspectiva do Dia de Yahweh no
qual o próprio estará atuando e seus feitos causando a destruição da terra
com suas estruturas (política, militar, econômica, ideológica) injustas e
opressoras que geram iniqüidade.
O motivo dessa destruição está em Isaías capítulo 24,5, perícope
que narra os feitos de Yahweh sobre a terra e seus habitantes na
perspectiva mundial, mesmo que simbólica. Apesar do tom
aparentemente universal, o oráculo é dirigido ao povo de Israel e não a
todo o mundo. Esse aspecto é também a novidade temática presente em
nossa perícope na dinâmica do escrito isaiano, que perpassa não apenas
a perícope em questão, como também todo o bloco capítulos 24-27.
3.2.4. Contexto maior
As três perícopes tratadas acima (anterior, a em questão e a
posterior) fazem parte de blocos literários maiores do livro de Isaías.
Isaías 24,1-6, e 7 em diante fazem parte do bloco capítulos 24-27,
como já tratamos até aqui, tendo como tema principal os feitos de Yahweh
e seus efeitos.
Porém aqui, o tema Dia de Yahweh ganha novos elementos. Não é
apenas a descrição de um castigo contra povos estrangeiros, sendo estes
o símbolo do poder imperialista e opressor. Uma nova perspectiva se faz
presente, agora com conotação interna, na qual os ímpios encontram-se
no meio do povo israelita e não apenas fora. O castigo não será contra o
estrangeiro, e sim contra aquele que se afasta dos desígnios de Yahweh
colocando-se na contramão da aliança eterna que prima por equidade e
justiça.
116
Este dia é carregado de linguagem de guerra, mas outra novidade
é que Yahweh não utilizará nenhum exército estrangeiro ou qualquer
outra coisa que o valha neste sentido, mas ele próprio é quem atuará
causando destruição.
O motivo da destruição está no descompasso das ações humanas
no interior das estruturas sócio-político-econômicas do povo de Israel em
contraposição aos desígnios do próprio Yahweh.
O bloco que antecede os capítulos 24-27 é formado pelos capítulos
13-23 sobre os povos vizinhos de Israel, no qual temos o agir de Yahweh
no decorrer da história primando pela justiça e resgate dos desprezados e
marginalizados, levantando-se contra seus inimigos. A ênfase é na
salvação do povo israelita e na condenação dos estrangeiros.
Quanto ao bloco posterior (capítulos 28-35), por ser divergente
entre os pesquisadores em relação ao seu limite e interpretação,
adotaremos a classificação e a hermenêutica de José Severino Croatto
228
.
(Croatto considera como bloco os capítulos 28-35; Alonso Schökel
229
considera que os capítulos 28-33 seriam um bloco, e capítulos 34-35
outro bloco, ao qual ele dá o nome de “Escatologia de Isaías II”, no
horizonte de interpretação dos capítulos 24-27 – “Escatologia de Isaías I”,
Ezequiel 38-39, Joel 3-4 e Zacarias 14).
Para Croatto este bloco (capítulos 28-35), apesar de olhar para o
futuro, não seria uma mensagem apocalíptica propriamente dita e nem
proto-apocalíptica. A escatologia aqui revelada é encontrada no Dêutero-
Isaías e em outras leituras de oráculos isaianos
230
. A perspectiva
escatológica está na reconstrução de todo o aparelho de estado que
228
José Severino Croatto, Isaías 1-39: o profeta da justiça e da fidelidade, vol I,
comentário bíblico, São Paulo: Vozes, Imprensa Metodista e Sinodal, 1989, p. 167-
211.
229
Luis Alonso Schökel e José Luis Sicrre Diaz, profetas I: Isaías, Jeremias, grande
comentário bíblico, São Paulo: Paulinas, 1988, p. 222.
230
Ressaltamos que a concepção classificatória de José Severino Croatto é diferente da
de Paul D. Hanson. Hanson, por exemplo, considera o Dêutero-Isaías como protótipo
da apocalíptica.
117
encontramos nas tradições davididas, com a reestruturação da cidade
santa, Sião, etc.
O horizonte de interpretação da escatologia dos capítulos 28-35
seria o período final do exílio, pois o oráculo parece ter por objetivo
encorajar e estimular os judeus exilados retornarem a Jerusalém, com o
tema teológico da salvação em Sião, na cidade de Yahweh.
Embora tenha sofrido grande destruição, Sião ainda existia como
lugar e com grande sentido teológico da volta de Yahweh para reger a
história, como o fez outrora.
Essa expectação escatológica, mesmo tendo elementos comuns
(Sião), é sutilmente diferente da que encontramos nos capítulos 24-27.
Embora Sião ainda seja símbolo de morada de Yahweh, em 24-27 esse
sentido teológico é articulado de forma diferente no imaginário das
pessoas, surtindo novos efeitos.
Interessante de notar é que essa novidade teológica está inserida
na obra isaiana como um recheio entre os blocos 13-23 e 28-35, dando
aos mesmos um novo sabor.
Esse recheio dá um novo horizonte de interpretação não apenas
aos dois blocos citados, como também a toda primeira parte da obra
isaiana, (capítulos 1-39).
A expectativa escatológica presente nos capítulos 24-27 não está
sozinha no movimento profético; a encontramos em outros oráculos como
em Joel 3-4, Ezequiel 30-39 e Zacarias 14, e também em textos mais
tardios. Essa escatologia ganha novos desdobramentos ao longo do
tempo. Podemos percebê-la em textos do Novo Testamento como Marcos
13.
231
231
Entendendo que a expectação escatológica, embora oriunda de uma mesma raiz ou
linha traditiva, sofre transformações ao longo dos acontecimentos históricos.
118
3.2.5. Estruturação da perícope
Iniciaremos a análise da estruturação da perícope com a
apresentação da segmentação no quadro abaixo em três colunas; a 1ª
indicando o grupo; a 2ª indicando a divisão dos membros com o início de
cada versículo marcado pela letra A; 3ª os versículos segmentados.
1
A
B
C
D
Eis Yahweh assolará
e devastará
a terra;
porá
em confusão sua superfície
dispersará
seus habitantes.
2
A
B
C
D
E acontecerá o mesmo
ao povo e ao sacerdote,
ao servo e ao seu senhor,
à serva e à sua senhora,
3
E
F
G
ao comprador e ao vendedor,
ao emprestador e ao emprestatário,
ao credor e ao devedor.
4
A
B
C
Certamente a terra será assolada
e pilhada
;
pois Yahweh disse
essa palavra.
5
A
B
C
A terra cobre-se de luto e se desfaz;
o mundo desfalece
e se desfaz;
a nata do povo da terra desfalece
.
6
A
B
C
D
E a terra está
profanada sob seus habitantes,
pois transgrediram
as leis;
trocaram
o estatuto,
romperam
a aliança eterna.
7
A
B
C
D
Por isso maldição devorou a terra,
tornaram
-se culpados os seus habitantes;
por isso se consomem
os habitantes da terra
e restam
poucos indivíduos.
No 1º grupo temos ações de Yahweh contra a terra e seus
habitantes; no 2º temos uma descrição das camadas sociais em três
esferas de relacionamento, sobre as quais os efeitos das ações acima
cairão; no 3º grupo temos a continuidade da idéia do grupo anterior, mas
agora com três esferas da relação econômica no interior da estrutura
social; no 4º grupo temos a ênfase na veracidade do oráculo com a
119
realidade da maldição, tendo sido a mesma pronunciada pelo próprio
Yahweh; o 5º grupo mostra a realidade fúnebre diante da calamidade; no
6º temos o motivo da maldição; o 7º grupo mostra a real condição do
modo de viver dos habitantes nessa realidade de culpados.
Conforme a segmentação proposta, notamos um esquema no qual
temos quatro formas quaternárias (grupos 1,2,6 e 7); e três ternárias (3,4
e 5), das quais o grupo 4 se destaca das demais por estar no centro –
aspecto que trataremos adiante.
Nas quaternárias externas (das pontas) temos as ações de
Yahweh e seus efeitos contra a terra e seus habitantes de forma
quaternária = assolará, devastará, porá em confusão e dispersará /
devorada, culpados, se consomem e restam poucos.
Nas quaternárias internas temos os efeitos sobre os habitantes
independente de suas classes sociais. As classes sociais são
apresentadas por três esferas de relacionamento gerando com isso seis
grupos de classes. Mas a ênfase não está em cada grupo, e sim nas
relações, e essas são três. Cada uma das relações está disposta em
polaridade binária, na qual temos as classes baixa e alta. A maldição
acontecerá por causa da profanação da terra pelo fato da transgressão
das leis, troca do estatuto e rompimento da aliança eterna com Yahweh.
Indicando três esferas de relacionamento negativo dos habitantes da terra
para com Yahweh que reflete no como as pessoas vivem suas relações
sociais.
Nas ternárias temos que os efeitos da maldição ou agir de Yahweh
atingirão os habitantes independente da condição econômica; relação que
se dá no interior da estrutura social apresentada com três esferas de
relacionamento, como na anterior. A perspectiva concreta é de luto e
lamento, pois toda a estrutura desfalece e se desfaz, mantendo a forma
tríplice; a terra, o mundo e a nata do povo da terra.
120
No 4º grupo (ternário) temos a expectação do oráculo na
perspectiva do Dia de Yahweh, numa linguagem simbólica de contexto de
guerra. Neste dia haverá devastação e despojo contra a terra e seus
habitantes.
O motivo de guerra está em função da realidade denunciada, que é
de injustiças e subjugação no interior da organização sócio-econômica a
serviço da política imperial, e seu alvo de destruição são as ações
interpessoais articuladas na vida social.
Entendemos a perícope disposta numa estrutura concêntrica ou
quiástica
232
na qual temos no centro (com o 4º grupo) a expectação da
intervenção da divindade na história para pôr fim às estruturas vigentes,
na perspectiva da indubitável ação e realização por Yahweh, que é o que
valida todo o oráculo, conforme a tradição profética
233
.
Nessa estrutura concêntrica temos ainda outros elementos que se
articulam demonstrando o assunto e o seu interesse, tais como alguns
paralelismos
234
e repetições de palavras.
Paralelismos sinonímicos
235
nos grupos de 1 a 3; paralelismos
sintéticos
236
nos grupos 4 e 7 com membros intercalados: a-c / b-d;
paralelismo culminativo
237
no grupo 6 b-c-d.
232
Conforme Cássio Murilo Dias da Silva em Metodologia de Exegese Bíblica, São
Paulo: Paulinas, 2000, p. 75, essa estrutura, em nosso caso, apresenta vários
elementos eqüidistantes de um centro comum. No centro do texto há um elemento
sem correspondência. Esse recurso lingüístico pode servir para evidenciar a
importância do elemento que está no centro.
233
Segundo a tradição profética o verdadeiro profeta era distinguido do falso profeta
pelo cumprimento do oráculo.
234
Conforme classificação de Teodorico Ballarini e Venanzio Reali em A poética
Hebraica e os Salmos, Petrópolis: Vozes, 1985, p. 20-26, sobre o paralelismo temos
que: “a composição poética das frases, em sua maior parte, consta de uma
igualdade e semelhança, ou seja, paralelismo, dos membros de cada oração, de tal
sorte que geralmente em dois membros correspondem coisas a coisas, palavras a
palavras, como se fossem medidos e pares. Este fenômeno tem muitos graus e
muita variedade, de tal forma que às vezes é mais acurado e evidente, outras vezes
mais difuso e obscuro”. O paralelismo revela um modo de pensar e de exprimir a
realidade e que na poesia atinge seus pontos mais altos, por ser ela (a poesia) a
forma de expressar o que se sente de maneira mais viva e completa.
235
Apresenta a mesma idéia em seus membros utilizando palavras diferentes.
121
Temos também a repetição de algumas palavras com função de
continuidade e amarras entre as partes do texto, tornando-o coeso; nos
versículos 1,3,4,5 e 6 temos sete vezes a palavra terra, sendo que no 4º
versículo aparece duas vezes, uma como substantivo outra como adjetivo
(povo da terra); no 6º também duas vezes, ambas como substantivo; nos
versículos 1,5 e 6 temos quatro vezes a palavra habitantes com sufixo
pronominal de terceira pessoa todas as vezes. No 6º aparecendo duas
vezes; ocorrendo duas vezes cada, de forma intercalada nos versículos 1-
3 / 2-4, temos o verbo assolar com a raiz qqb e a palavra povo.
A partir da estruturação podemos ter uma idéia geral do assunto de
nossa perícope (os feitos e efeitos do agir de Yahweh sobre a terra e seus
habitantes e o motivo desse agir). Os recursos lingüísticos e estilístico, na
forma em que estão articulados, nos ajudam na captação da mensagem
do escrito.
Elementos outros de extrema importância que auxiliam na
captação da mensagem são o gênero literário e o Sitz im Leben / lugar
vivencial.
3.2.6. Gênero Literário e Sitz im Leben
Uma grande contribuição de Hermann Gunkel acerca do gênero
literário foi perceber que a identificação do mesmo nos permite respeitar o
escrito em sua intenção. A partir desta contribuição, a identificação do
gênero literário tem sido de extrema valia na pesquisa exegética de textos
bíblicos. Conforme José Severino Croatto
238
a distinção do gênero é
236
Apresenta em seu segundo membro a continuação da idéia do primeiro membro,
acrescentando-lhe novos aspectos ou explicações.
237
Sendo uma variante do paralelismo sintético, desenvolve um pensamento de
maneira gradual, em linhas sucessivas, até chegar a um clímax.
238
Apocalíptica e esperança dos oprimidos, contexto sócio-político e cultural do gênero
apocalíptico, em Apocalíptica esperança dos pobres, Ribla nº 7, p. 15-21.
122
importante, pelo fato do mesmo (seja qual for), acrescentar algo ao
sentido do texto, uma vez que orienta sua leitura como um canal
transmissor da comunicação entre o escrito e o leitor.
Ao tratarmos de textos com perspectivas escatológicas nos
encontramos diante de uma pluralidade de gêneros literários, uma vez
que o tema escatológico não se limita a um único e específico gênero de
literatura. Ao contrário, essa perspectiva (como tema teológico) se
encontra imersa em tipos variados de gêneros literários.
Isaías 24,1-6 apresenta uma escatologia marcada por um
apocalipsismo (conforme já tratamos) que não chegou ou alcançou
patamar de um apocalipse propriamente dito enquanto gênero literário.
Conforme aponta Norman Gottwald
239
, diante de textos “proto-
apocalípticos” ou “apocalipsistas”, como Isaías 24,1-6, nos deparamos
com pelo menos duas matrizes, ambas no interior do profetismo pós-
exílico, que mostram o crescimento de temas fundamentais na
apocalíptica posterior; a 1ª está carregada do crescente conflito entre o
bem e o mal; do julgamento numa dimensão universal e da transformação
do cosmos e da história. Sua contribuição é acerca da perspectiva do
oráculo dado por Deus; a 2ª emprega traços específicos, como:
simbolismo, visões e um mediador (anjo) que as interpreta. Sua
contribuição é acerca da perspectiva visionária, relativa à revelação direta
de mistérios divinos por meio de visões.
Nossa perícope coaduna melhor com a primeira matriz, com
característica oracular e não visionária. Por isso classificamos o gênero
literário como “oráculo profético de julgamento ou admoestação
240
.
239
Norman Gottwald, Introdução Socioliterária à Bíblia Hebraica, São Paulo: Paulus,
1988, p. 542-544. Para a 1ª matriz aponta os textos: Isaías 56-66; 24-27 e Zacarias
9-14. Para a 2ª aponta Ezequiel e Zacarias 1-8.
240
Ibid, p. 492.
123
Esse nome utilizado na classificação do gênero é dado por
Gunkel
241
em sua análise de gêneros em Salmos, como um sub grupo de
gêneros de representação em rituais cúlticos.
No estudo sobre os Salmos, Mowinckel considerou os oráculos de
julgamento como liturgias, por entender que no culto encontra-se a matriz
para a experiência da presença imediata de Yahweh. Para ele a
celebração da realeza de Yahweh sobre a natureza e a história situa-se
por trás dos hinos celebrativos da realeza de Yahweh e de ainda outros
hinos, inclusive acerca de Sião.
242
Porém, ao tratarmos do lugar vivencial desse oráculo isaiano,
fazem-se necessários alguns outros elementos que transcendam os
utilizados na discussão acerca dos Salmos.
Conforme a datação adotada neste trabalho e o ambiente histórico
ao qual a mesma remete, que é o pano de fundo da redação de Isaías
24,1-6, consideramos de extrema importância alguns aspectos das
experiências sócio-históricas vividas naquele contexto.
Lembramos da realidade fragmentária e conflitante dos judaítas no
período da dominação persa como momento de frustração teológica e
nacionalista, além da pluralidade de formas de se restabelecer como
nação a partir dessa realidade de muitos conflitos internos e de grande
diáspora
243
.
241
Norman Gottwald, Introdução Socioliterária à Bíblia Hebraica, São Paulo: Paulus,
1988, p. 492.
242
Ibid, p. 495.
243
Devemos entender a questão da diáspora num sentido de espalhamento que se deu
por meios ou naturezas diferentes. Podemos considerar pelo menos duas: por
escolha própria e por imposição sócio-político-econômica. No primeiro caso temos a
situação de quem preferiu se instalar em outras regiões no período do pós-exílio; no
segundo caso, aqueles que se tornaram escravos de estrangeiros por endividamento
e foram obrigados a se retirarem de Israel (Judá) na condição de escravos.
124
Neste contexto, em particular com relação a Isaías 24,1-6,
podemos considerar como produtores dessa perspectiva escatológica,
profetas
244
descontentes e desafeiçoados com a realidade de seu tempo.
As condições sócio-políticas extremas dessa época provocaram a
necessidade de um realinhamento em linhas tradicionais para favorecer
aos interesses étnicos e identitários do povo israelita, com o objetivo de
salvaguardar um espaço judaico intacto dentro dessa situação, espaço
este que se mostrou corrompido e em risco de extinção. Esse fim do
espaço judaico tem sido considerado por muitos estudiosos como sendo,
no imaginário dos grupos que adotam a perspectiva escatológica
apocalíptica, o “fim da história” (como ponto final), por ser notória a
distância entre a expectação e a realidade concreta, gerando com isso,
uma real situação de privação, mesmo que relativa.
Entretanto, a perspectiva apocalipsista não se reduz à sensação ou
expectação do fim da era como um todo, conforme entendem muitos
estudiosos, na perspectiva de um escatón
245
; se assim fosse, estaríamos
reduzindo-a a escapismo ou alienação por não surtir nenhum efeito
concreto na realidade. Antes, tal perspectiva deve ser entendida como
uma expectativa do fim das estruturas maléficas, com conotação de
comprometimento com um novo início, talvez início de um tempo em que
se faça necessário romper com tais idéias das estruturas vigentes que já
estão interiorizadas no imaginário das pessoas, e não de acomodação ou
validação dessas idéias e modo de viver. O fim é específico e não de
tudo. Por isso a expectativa escatológica deve ser analisada sempre à luz
da realidade sócio-histórica e nunca abstraída dela.
Diante disso, não é tarefa fácil perceber qual seria o momento
vivencial em que esse escrito era provavelmente lido e ouvido, se em
momentos de atos cúlticos ou ainda outros momentos específicos, mas
244
A profecia brotando literariamente do coletivo como discípulos.
245
Perspectiva da aniquilação da realidade mundana juntamente com a implantação de
uma nova realidade cósmica.
125
consideramos como elemento importante não apenas o momento na
forma institucionalizada de transmissão da mensagem, mas também o
ambiente que suscitou e possibilitou sua elaboração.
Sabemos que o momento vivencial tem o caráter de
institucionalizar a transmissão da mensagem tendo como horizonte
sempre o aspecto coletivo. Mesmo não sendo possível apontar com
exatidão um único momento institucionalizado para a transmissão dessa
escatologia, a mesma não deixou de ter seu aspecto coletivo que
abrangeu grupo ou grupos de pessoas ao longo do tempo.
Por ser uma expectação marcada por ameaça e opressão, talvez
sua transmissão tenha se dado de forma totalmente diferente das
habituais, por serem essas modelos institucionais dominados pelas
estruturas do poder vigente.
Arriscamos apontar como elemento importante acerca do momento
vivencial de transmissão desse oráculo, os espaços religiosos no interior
de agrupamentos de pessoas que vivem a realidade de privação e de
ameaça à sua existência enquanto grupo em relação à sua identidade,
sendo estes os porta-vozes e produtores dessa expectativa escatológica.
3.3. ANÁLISE LITERÁRIA E FILOLÓGICA
Pretendemos nessa etapa cruzar dados da estruturação proposta
com uma abordagem maior acerca do significado das idéias articuladas
no texto, a fim de alcançar entendimento de sua mensagem.
Analisaremos filologicamente a perícope a partir da estruturação
proposta dividida em grupos, tendo como esquema a estrutura
concêntrica.
126
3.3.1. Grupos 1 e 7
Esses grupos envolvem membros dos primeiro e sexto versículos,
marcados pelas letras a,b,c,d de cada um. Estes se articulam de forma
binária (ab/a’b’) e (cd/c’d’) formando estruturas quaternárias dentro da
estrutura concêntrica.
No primeiro par de membros do grupo 1 (ab) temos duas ações de
Yahweh contra a terra expressas pelas raízes sinônimas qqb e qlb, que
articuladas em conjunto têm o significado de tornar algo vazio ou inútil,
com o sentido de assolação e devastação, segundo Alonso Schökel
246
.
No grupo 7, com o primeiro par de membros (a’b’), temos os
resultados dessas ações apresentadas no grupo anterior numa dinâmica
binária interna marcada pelo paralelismo sintético, demonstrando o
resultado da assolação e devastação pelo próprio Yahweh como
realidade de maldição que devora a terra. Maldição que tem como
culpados os próprios habitantes da terra que a profanaram com seus atos
(ab/a’b’).
Da mesma maneira, temos no segundo par de cada grupo, na
forma binária, as ações de confusão da superfície da terra e dispersão de
seus habitantes, que têm como resultado a realidade na qual os
habitantes são consumidos de tal maneira que restam apenas poucos
indivíduos (cd/c’d’).
Aqui a menção ao “resto” ressalta o poderio da intervenção de
Yahweh. Esse aspecto do texto nos reforça a idéia de que o alvo da
destruição não é toda a criação na perspectiva de um escatón, isto é, a
aniquilação por completo da esfera mundana e a implantação de uma
246
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo, Paulus,
1.997, p. 106 e 114.
127
nova realidade cósmica, pois se assim fosse, não teria sobra ou resquício
da antiga realidade cósmica.
Temos a ação de Yahweh confundindo a superfície da terra e
dispersando seus moradores de modo a nos lembrar o episódio em
Gênesis 11,7-8 (torre de Babel). Segundo Alonso Schökel
247
a palavra
hn<P' (utilizada nos dois episódios) que pode ter vários usos, em ambos os
textos expressa a idéia de substantivo com conotação física de face ou
superfície em relação à terra. O sentido dessa palavra está relacionado
com as diferentes feições ou semblantes que se constituem a partir de
emoções e sentimentos que refletem o caráter da pessoa. Diante disso
temos a idéia, em sentido figurado, de que será confundido o semblante,
a fisionomia ou caráter da terra; com conotação à mudança de
sentimentos. A idéia antropomórfica da terra tendo caráter é muito
interessante para demonstrar a mudança de significados da realidade
concreta.
Em relação aos habitantes que são dispersos, faz-se necessário
destacar que o texto não remete a “povos” ou “nações” específicos, mas
tem conotação abrangente (mundial) em relação ao aspecto geográfico e
não étnico: o mundo é a arena da ação de Yahweh, mas os dispersos são
de Israel. Embora tenha essa visão abrangente (mundial), o oráculo está
sendo para o povo de Israel e não para todo o mundo. A grande mudança
acontece na visão de mundo de dentro para fora e não de fora para
dentro. A abrangência revelada neste oráculo nos parece restrita,
conforme trataremos adiante.
A raiz #wP atua no campo semântico militar, conforme indicam
Marcus Jastrow, Brown-Driver-Briggs, Nelson Kirst e Alonso Schökel
248
,
com o sentido de dispersão de tropas que causa o enfraquecimento do
247
Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico – Português, São Paulo, Paulus,
1.997, p. 538-442.
248
Conforme notas indicativas na tradução e análise gramatical.
128
exército levando-o à derrota, demonstrando a idéia do contexto de guerra
em que o próprio Yahweh investe contra a injustiça.
A palavra hl'a' segundo Harris
249
refere-se à maldição por quebra
de uma promessa / pacto, e a temos como resultado dessa quebra de
promessa, que devora a terra com a idéia de estar sendo comida,
engolida e consumida conforme indica Harris
250
.
Em nosso texto a maldição tem a idéia de sofrimento causado pelo
julgamento de Yahweh em forma de guerra. É o castigo de Yahweh que
produz a consumação, não contra inocentes, mas contra o modo de vida
que é articulado na sociedade e que desumaniza as pessoas.
Num sentido semelhante, encontramos Rrx (se consomem no 6º
versículo)
251
em contextos em que períodos de seca, de fome e de pestes
aparecem como devoradores que consomem tudo. Esse sentido básico
de consumir é usado de diferentes modos em relação a contextos de
sofrimento (merecido ou não), por seca, fogo, guerra ou pragas que
devoram inocentes e culpados, por opressores, nações estrangeiras e
pecadores israelitas que devoram (consomem) a justiça e o inocente.
Essa palavra está carregada de sentidos diferentes, mas que se
complementam. Apontamos primeiramente para o sentido próprio que
expressa a idéia de ser consumido pelo fogo, por calor, seca (estar
queimado ou ser queimado); em segundo, a idéia de ressecamento da
garganta por causa de choro excessivo (uma agressão à nefesh)
conforme Salmo 69,3-4; e em terceiro o sentido simbólico e teológico de
estar sendo purificado pelo fogo de Yahweh conforme encontramos em
Malaquias 3,1-5. Todos os sentidos denotam o contexto dos moradores
da terra como objeto do juízo de Yahweh que se apresenta com artefatos
249
Laird R. Harris (et alli), Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento,
São Paulo, Vida Nova, 2001, p. 74 palavra 94a.
250
Ibid, p. 64-65.
251
Não é muito freqüente no Antigo Testamento, ocorrendo apenas doze vezes.
129
de guerra (causando destruição por fogo) causando sofrimento e choro
diante da calamidade.
252
Embora caibam os três sentidos em nosso texto,
adotaremos esse último sentido por ser o mais adequado ao nosso
contexto.
A palavra rav, conforme já mencionamos, expressa a idéia do
“resto” com sentido de sobra. A maldição / juízo é eficaz no sentido de,
através do fogo, consumir o que não seria ouro ou prata puros – em
sentido figurado. Isto é, o que estaria na contramão dos desígnios de
Yahweh, o que contamina o que em essência é bom! A situação é tão
calamitosa que o fogo de Yahweh, sendo eficiente, teria tantas impurezas
a queimar que restaria pouco ouro e prata puros (em sentido figurado em
menção aos habitantes da terra).
Por ser um oráculo da indubitável e grandiosa ação de Yahweh,
conforme é descrita, não podemos interpretar o resto como algo que teria
escapado da condenação do juízo (por ser santo e não ter impurezas),
isso estaria distorcendo a lógica do oráculo.
A idéia do resto reforça exatamente a eficiência dos atos de
Yahweh na história. Seu fogo julgador purificaria todos os grupos que
representavam (ou desejavam representar) Israel, de maneira
contundente, com resultado duro e verdadeiro de grande consumação e
purificação.
O sentido e abrangência dessa palavra com suas diferentes
conotações, não abarcam a idéia de que alguém ou algum grupo
escaparia de tal evento. Nisso temos o sentido da abrangência do texto,
como veremos adiante, e é nessa idéia que encontramos fundamento
para a criação / origem do novo Israel: os que restam de todos os grupos
e lugares. Aqui a conotação envolve transformação e um novo início e
252
Laird R. Harris (et alli), Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento,
São Paulo, Vida Nova, 2001, p. 538.
130
não ineficiência ou opção “partidária” por parte de Yahweh acerca de um
grupo específico
253
.
Assim temos a abertura da perícope numa estrutura concêntrica
que exige uma leitura não linear, mas na perspectiva cíclica com evolução
de pensamento. A linguagem é de julgamento na perspectiva do Dia de
Yahweh com toda sua simbologia e elementos míticos de contexto de
guerra, combate e restauração.
3.3.2. Grupos 2 e 6
No grupo 2 temos um extrato da estrutura social em polaridade
binária, demonstrando seis tipos de classes sociais em interação. A
ênfase se dá na relação entre as diferentes classes com conotação
valorativa e depreciativa, entre o posto mais baixo e o mais alto de cada
esfera da interação social, com ênfase em três vias de relacionamento.
A idéia de que os efeitos das ações de Yahweh atingirão a todos
da mesma forma, tanto os de classe baixa como os de classe alta, traz
um elemento curioso. A guerra de Yahweh não segue os moldes das
guerras entre as nações. Não há privilégios nem manobras políticas com
poder de isenção em relação ao combate de Yahweh contra a injustiça.
Status social elevado não dá segurança nessa situação, pois o alvo da
destruição de Yahweh é exatamente a injustiça que se instaura no interior
da trama sócio-política, isto é, a injustiça e iniqüidade articuladas na
interação das classes sociais.
Além de oferecer um extrato da estrutura social, o grupo 2
demonstra como as relações interpessoais são articuladas dentro dessa
estrutura (povo e sacerdote, servo e seu senhor e serva e sua senhora).
253
Podemos traçar um paralelo com a história de Noé, episódio em que Yahweh não
aniquila a raça humana. Mas a ênfase está no sentimento e atitudes de Yahweh na
história que primam por reconstrução e transformação.
131
A palavra !heêK (sacerdote ou classe sacerdotal) conforme pudemos
perceber na tradução e análise gramatical, é apresentada tendo
significativa conotação às vestes sacerdotais no período do segundo
templo. Interessante pensar que a classe sacerdotal ser mencionada
indica o pleno funcionamento do templo, mas não há nenhuma menção
clara ao templo e sim à classe de sacerdotes, que além de desempenhar
importante papel religioso, representa o poder político e é colocada de
maneira valorativa e depreciativa em relação ao povo. A classe sacerdotal
possui aqui conotações político-sociais claras que transcendem funções
estritamente cúlticas e rituais, embora as contenha.
Em relação ao texto e sua estrutura, o uso dessa palavra parece
indicar o grande contraste entre os sacerdotes e o povo comum –
contraste que é evidenciado nas vestes dos sacerdotes, que visivelmente
o separam do povo. Não há como esconder a crítica social e o conflito
expressos no texto.
A ênfase dada no oráculo não parece estar superficialmente sobre
uma ou outra classe social, mas encontra-se no relacionamento que os
indivíduos experimentam e exercem uns para com os outros na interação
interpessoal dentro da estrutura apresentada.
Diante dessa realidade, no grupo 6 temos a idéia da contaminação
ou profanação num contexto em que as relações estão sendo praticadas
de maneira inadequada em relação aos propósitos e desejos de Yahweh.
E que maneira inadequada seria essa?
A raiz @nex' segundo Claus Westermann e Alonso Schökel
254
tem
em si a idéia de viver de maneira perversa impossibilitando a prática da
misericórdia. Esse modo de viver coloca-se distante dos desígnios de
Yahweh expressos no interior da aliança eterna. Harris
255
indica que a raiz
254
Conforme referências na análise gramatical e tradução.
255
Conforme referências na análise gramatical e tradução.
132
transmite também a idéia de praticar a perversidade de maneira hipócrita,
como se a conduta perversa não estivesse sendo realizada. A hipocrisia
servindo de disfarce da realidade.
A situação verdadeira da realidade é de profanação (ausência de
Deus), dando-nos a clara idéia de que “Deus não está nesse negócio
(nesse modo de viver).
Mas essa realidade é criada, mantida e desenvolvida pelos
próprios habitantes da terra, como morada / habitação que criaram para
si. A terra que outrora fora símbolo da presença de Yahweh encontra-se
como símbolo de sua ausência, não porque Yahweh fora destruído ou
exilado pelos opressores estrangeiros, mas porque os próprios habitantes
da terra transformaram a bênção em maldição ao terem transgredido as
leis, trocado o estatuto e rompido a aliança com Yahweh, e isso tudo é
manifesto nas relações sociais estabelecidas entre os humanos, que
afetam as formas de relacionamento dos habitantes da terra para com o
próprio Yahweh.
Nos moldes do grupo 2 (com três formas de relacionamento entre
os habitantes da terra) temos no grupo 6 três formas desse
relacionamento da humanidade com Deus.
Os três verbos (transgrediram, trocaram e romperam) não
expressam a mesma idéia como palavras sinônimas, mas antes uma
intensificação das ações consideradas perversas, conforme
mencionamos.
Transgredir as leis significa ato de desobediência a uma norma,
conduta ou diretriz. O transgressor valida a norma que ele mesmo
desobedeceu, uma vez que seus atos não alteram a estrutura normativa
(ele se encontra debaixo do poder da lei como contraventor sofrendo as
punições devidas). O transgressor não elimina ou muda a lei com seus
atos contrários às normas. Seus atos contrários à lei o configuram como
133
contraventor, assumindo um papel social previsto dentro da lógica
estabelecida.
Por outro lado, trocar o estatuto tem a idéia de manipular ou alterar
elementos constitutivos da lei / lógica. Implica em alteração da lógica e da
intenção da lei, norma ou diretriz.
Na transgressão o agente ainda está submetido à realidade
normativa que o rege, embora sendo um transgressor da mesma. Com o
ato de trocar o estatuto há uma alteração no interior da lógica estatutária
que desconfigura o ato transgressor. O erro deixa de ser erro e, com isso,
quem o comete não fez nada de mal!
Essa realidade leva à quebra ou rompimento da aliança que
deveria ser eterna, e indica um desenvolvimento da prática de injustiça
num nível tal que já não é considerada injustiça.
Importante perceber que a quebra ou rompimento da aliança não
está em apenas desobedecê-la, mas na tentativa de eliminá-la de uma
vez por todas, pois só a desobediência não anula a lei, mas a
manipulação da lei desconfigura seu espírito / intenção.
Não podemos perder de vista o contexto histórico de dominação
persa que permitiu a reconstrução de Jerusalém e templo por intermédio
dos projetos de Neemias e Esdras, projetos que contaram com um
programa de reedição da teologia em virtude da realidade plural e
competitiva entre os diferentes grupos na disputa pelo status de
verdadeira religião javista.
Essa reedição da lei pode nos oferecer o horizonte de interpretação
de nossa perícope. Lembrando que esses novos comportamentos a partir
do período de dominação persa foram responsáveis por nortear a conduta
religiosa daí por diante por ser o ambiente no qual se deu o processo de
formação do judaísmo.
134
Notamos também que, toda e qualquer opção de conduta que
alterou o espírito ou intenção dos desígnios de Yahweh podem ser
entendidos na linha de ter havido uma troca do estatuto, com conotação
de manipulação da lei
256
, que não se deu de uma hora para outra, ou por
imposição, mas como reflexo de atitudes já presentes na vida e visão de
mundo das pessoas.
Diante disso, observando o ambiente sócio-histórico do texto,
percebemos que o afastamento das leis de Yahweh parece ter acontecido
como que uma espécie de troca de modelo de vida. As relações sociais
apresentadas denotam a maneira hierárquica, com conotação injusta, do
modo de vida da política persa sendo adotada pelos judaítas. Esse
modelo parece ter atraído muitos dos habitantes da terra, entendo como
os habitantes os judaítas que pertencem à terra de Israel – Judá, os
quais, iludidos pelo status social, reproduzem o modelo opressor do
império em suas relações com seus páreas. Modelo esse que já não mais
observa, por exemplo, o cuidado para com os enfraquecidos (órfão,
viúvas, etc.).
3.3.3. Grupos 3 e 5
No grupo 3 temos três formas de relação econômica no interior da
estrutura social. Gramaticalmente esse grupo está marcado pelos
particípios ativos com conotação de status sobre aqueles ou aquelas que
vivem neste contexto sócio-econômico específico.
Como no grupo anterior, além de apresentar um extrato da
estrutura econômica, esse grupo mostra como as relações são articuladas
256
Para exemplificar essa realidade presente na história do povo israelita, lembramos
dos muitos atos de Jesus, narrados nos evangelhos, de ter resgatado o espírito e
intenção dos preceitos de Yahweh, que já haviam se perdido mesmo com a prática
da lei.
135
no interior dessa estrutura, mantendo a polaridade binária valorativa e
depreciativa com apresentação do maior e do menor na relação
econômica (quem vale mais e quem vale menos).
Nessa dinâmica temos seis status econômicos apresentados em
forma binária, mas diferentemente do modo anterior em relação ao
convívio social, aqui, aparece primeiro o maior e em segundo o menor.
Metodologicamente, podemos observar a análise abaixo considerando
que os status ímpares são referentes aos superiores economicamente e
os pares são em relação aos inferiores.
comprador – aquele que adquire bens por compra; e 2º
vendedor – aquele que vende seus bens;emprestador – aquele que
empresta algo a alguém, com a idéia de possuidor de algo que oferece
em empréstimo, tornando-se senhor de seu devedor; 4º emprestatário
aquele que pede algo emprestado a alguém, tornando-se devedor – servo
do emprestador; 5º credor – o agiota, aquele que empresta com usura =
juros ou taxas altas; 6º devedor – aquele que deve ao credor profissional,
ao “agiota”.
Faz-se necessário lembrar que, no período de dominação persa,
havia uma forte relação hegemônica do poder econômico, que
influenciava as relações sociais.
Essa realidade político-econômica fazia com que muitos se
tornassem vítimas, submetendo-se ao comércio de pessoas, as quais
eram vendidas para o estrangeiro. Há neste contexto o sistema de
escravização por dívida (Neemias 5,4-8), conforme mencionamos na
análise histórica e de acordo com o significado das palavras analisadas
neste capítulo.
Podemos entender esse complexo processo econômico da
seguinte maneira: alguém, por necessidades financeiras, alimentares ou
ainda de outra natureza, submete-se a empréstimo. Para isso é
136
necessário penhorar algo ou alguém (cf. Jó 24,9; 24,3; Dt 24,13.17). Caso
não tenha algo a penhorar, apresentaria um fiador, o qual disponibilizaria
um penhor.
Nesta relação econômica o credor poderia tomar o devedor ou um
membro de sua família por escravo, caso não recebesse seu pagamento.
Esse sistema de empréstimo oferece riscos e perigos catastróficos ao
devedor: como por exemplo, não receber seu penhor de volta após o
pagamento; se tornar escravo por dívida; ser levado como escravo ao
estrangeiro.
Em relação ao credor, seu empréstimo era investimento. Enquanto
obtinha seu investimento de volta, provavelmente com alto lucro, o
escravizado saía da jurisdição de Israel (Judá), perdendo seu direito de
liberdade.
Num contexto em que a economia está em torno da produção
agrícola, a prática de endividamento e dependência era facilitada, pois a
dependência da chuva era muito grande e não havia nenhuma garantia
de êxito.
Outra questão de extrema importância, é que, com o
endividamento no contexto agrícola, há a prática da venda da terra pelos
empobrecidos, e conseqüentemente a compra pelos bem sucedidos
economicamente.
Diante disso temos uma realidade sócio-econômica complexa, com
grande sofrimento e instabilidade para a maioria da população.
Analisando as raízes dos particípios ativos presentes no texto,
percebemos esse tipo de agir e visão de mundo suscitados e articulados
na estrutura econômica.
Na história de Israel, essa prática é extremamente ofensiva, pois a
terra pertencia a Yahweh. É Yahweh que estipula certas condições para
os israelitas a ocupares. Umas das condições era que a terra não deveria
137
ser comercializada (Levíticos 25,23-24). No caso de empobrecimento que
forçasse alguém a vender sua propriedade, havia maneiras de como
proceder (a lei do jubileu – Levíticos 25.25-28).
No período de dominação persa essa concepção é totalmente
ignorada pelo poder imperial. Período em que a terra era comercializada
sim, com conotação de pertencem (se submeter às regras
administrativas) ao império.
Notamos que a classificação sócio-econômica narrada parece
oferecer as únicas condições possíveis de existência em seu tempo. Se
assim for, concluímos não haver como escapar das referidas condições
apresentadas. Essa estrutura era sustentada pelos detentores do poder
econômico a ponto de propiciar sua continuidade e manutenção, que
gerava opressão e injustiças.
A realidade econômica é de opressão, na qual, quem vende, quem
toma emprestado e quem deve, são explorados por seus irmãos (judaítas)
que reproduzem a estrutura de dominação imperial, conforme
mencionamos.
O grupo 5 nos revela quais são as conseqüências dessa realidade
produzida no interior das estruturas vigentes.
A perspectiva é de luto, morte. As estruturas produzem para si a
morte. O sentimento que se manifesta no semblante da terra é de luto, de
rituais fúnebres, pois as estruturas sócio-econômicas estão doentes e
enfraquecidas por mais que neguem essa realidade, por isso faz-se
necessária a morte, uma vez que o ideal de Yahweh foi traído: a terra
(que é dele) foi vendida. Sua venda propiciou a escravidão de seu povo (o
qual libertou para que não mais fosse escravo de ninguém); a justiça não
foi mantida (não deveria haver cobrança de juros entre judeus).
Esse sentimento e seus efeitos são abrangentes de modo a atingir
esse tipo de estrutura onde quer que esteja sendo aplicada / vivida. Essa
138
estrutura tem conotação de abrangência mundial por fazer parte do poder
imperial que objetiva a expansão do império.
A abrangência é geográfica marcada por três esferas, mantendo a
estrutura concêntrica: a terra, o mundo e as classes elevadas do povo da
terra. A forma concêntrica destacando o mundo indica a extensão dos
efeitos do agir de Yahweh na história, na proporção da expansão do
poder imperial.
A perspectiva desse oráculo é de não haver neutralidade. Em
virtude disso, temos que a resposta da humanidade diante da aliança com
Yahweh não foi o suficiente para cumprir o plano do próprio Yahweh, por
isso sua expectação é no agir de Yahweh para restabelecer seus
desígnios (sua aliança). A idéia dessa expectação é que só Yahweh, o
senhor da história, pode mudar a realidade. Somente ele tem as
condições plenas de não ser regido e subjugado pelas lógicas das
estruturas injustas estabelecidas e desenvolvidas pela humanidade.
Nessa perspectiva caminhamos para o centro de nossa perícope.
3.3.4. Grupo 4
A esperança na idéia de que essa realidade opressora e
desumanizadora chegará ao fim pela ação de Yahweh é marcante na
perspectiva apocalipsista. Não é, como muitas vezes tem sido
considerada, um fim total com perspectiva de um escatón, com todo
aquele aparato apocalíptico do fim da história enquanto realidade cósmica
e o início de uma outra realidade cósmica.
Essa perspectiva do escatón, muito bem desenvolvida em literatura
apocalíptica posterior, não pode ofuscar nosso olhar quando diante de um
texto apocalipsista (ou proto-apocalíptico) como Isaías 24,1-6.
139
Analisando e respeitando a expectativa escatológica apocalipsista
dentro da sua dinâmica sócio-histórica, podemos captar as diferenças e
novidades sutis entre uma realidade e outra.
Em virtude da expectação escatológica ser acerca do fim, faz-se
necessário investigar ou captar o como é entendido esse fim: que fim é
esse? Fim do quê? Ou fim de quem?
É de extrema importância perceber que tipo específico de fim é
esse expresso em nossa escatologia em análise.
Para nós o “fim” no oráculo apocalipsista isaiano na perspectiva do
dia de Yahweh, é específico: seria o fim da realidade que desumaniza,
oprime e explora outros seres humanos por ser regida e articulada de
maneira profanada, longe do que Deus tem como proposta de vida à
humanidade.
Não seria o fim da história como um todo, mas fim dessa história
de vivência profanada, pois a esperança está em Yahweh renovando
novamente sua aliança com a humanidade, na perspectiva do Deus
presente na história mundana.
A esperança no agir de Yahweh é o clímax desse oráculo e se
encontra em seu centro na estrutura concêntrica.
Essa esperança aponta um novo modo de viver em relacionamento
uns com os outros e com o próprio Yahweh. Essa possibilidade de
reverso histórico encontra-se nas mãos de Yahweh, como sendo o senhor
da história, mas com uma implicação mútua, na qual a humanidade se
compromete com um modo de relacionamento favorável em sociedade e
com a deidade.
Diante disso caminhamos para o próximo capítulo deste trabalho,
no qual trataremos de algumas características de Isaías 24,1-6 enquanto
oráculo apocalipsista, levando em consideração todo o referencial teórico
que utilizamos até aqui.
140
Capítulo 4
As marcas do apocalipsismo isaiano
4.1. ISAÍAS 24,1-6 NA DINÂMICA APOCALIPSISTA
Partindo da perspectiva de que Isaías 24,1-6 reflete expectativa e
visão de mundo apocalipsistas, mas trabalha esses conteúdos de forma
singular, teremos como objetivo neste capítulo captar elementos que
constituem suas características em comparação com o profetismo e com
a apocalíptica propriamente dita, por considerar os três movimentos como
fenômenos sócio-teológicos distintos.
257
Nosso esforço não se limitará em apenas identificar elementos ou
temas em comum, mas tentaremos captar as intenções e resultados que
tais elementos e temas, articulados na lógica do oráculo isaiano,
257
Embora esse entendimento seja divergente entre os especialistas, especialmente
em relação ao apocalipsismo e à apocalíptica. Na grande maioria das vezes são
termos que se articulam como sinônimos nas hipóteses propostas.
141
produzem efetivamente acerca da escatologia, quando aplicados na
realidade histórica específica do texto.
Nossa análise considera de extrema importância a dinâmica sócio-
histórica na qual nascem e se desenvolvem os referidos movimentos
israelitas. Acreditamos que é no interior dessa dinâmica que se constitui a
visão de mundo das pessoas no decorrer de sua história, por ser esta
formada a partir de elementos sócio-históricos que acabam surtindo
efeitos em todas as esferas da vida humana, em especial, em nosso caso,
no pensamento teológico.
4.1.1. O apocalipsismo na dinâmica sócio-hitórica
Consideramos o apocalipsismo como fenômeno sócio-teológico
desenvolvido em plena fase de transição sócio-histórica. Como fenômeno
ou movimento sócio-teológico possui características próprias, embora
tenha elementos comuns com outros movimentos desenvolvidos no
decorrer da história (tanto anteriores como posteriores). Esse fato
demonstra a dinâmica de tais pensamentos, pois os mesmo surgem e se
desenvolvem sempre em relação com outros pensamentos.
Nossa atenção, por isso, não está apenas na nomenclatura
apresentada pelos estudiosos para definir os escritos
258
, mas nas
características de cada fase do desenvolvimento dessas idéias, que
demonstram diferenças e semelhanças, muitas vezes sutis, entre os
períodos anterior e posterior.
258
Paul D. Hanson, em sua concepção sobre as características da apocalíptica,
considera os escritos do Dêutero-Isaías como protótipo da apocalíptica; escritos
como Isaías capítulos 24-27 como apocalíptica intermediária; escritos, como por
exemplo: Daniel, Ezequiel e literatura extracanônica, como apocalíptica
propriamente dita. Sua classificação, por diferentes nomes, constitui-se a partir de
características próprias entre as expectativas e perspectivas escatológicas
articuladas em cada grupo de escritos mencionados.
142
Uma das dificuldades na captação de diferenças entre o
apocalipsismo isaiano e a apocalíptica propriamente dita é causada pelo
fato de o primeiro fenômeno refletir uma realidade sócio-teológica em
transição.
Nessa realidade de mutação sócio-teológica, elementos comuns
entre os dois movimentos nos levam a entendê-los como desempenhando
as mesmas funções e tendo as mesmas intenções sempre que aparecem
no cenário teológico, fazendo-nos deixar de lado a particularidade de tais
elementos e seus significados em cada período ou contexto específico.
Essa tendência pode nos fazer “nivelar” os textos e tira dos mesmos muito
de seu significado.
Especialmente quando tratamos de momentos de transição, temos
dificuldade de perceber e compreender os elementos e seus significados,
pois conseguimos identificar nitidamente o que era antes e o que se
tornou depois, mas raramente conseguimos acompanhar a transformação
com a mesma desenvoltura perceptiva.
Diante dessa realidade, muitas vezes mantemos a mesma
compreensão, congelada, acerca de determinado elemento do texto, por
ser concepção formulada a partir da análise oriunda de momentos mais
bem definidos e relativamente fixos, e a partir dessa análise, transferimos
a compreensão obtida para todos os outros momentos que nos parecem
ter os mesmos elementos.
No âmbito da análise crítica essa questão tem sido muitas vezes
um fato que impossibilita a captação de nuanças e desdobramentos sutis
que se produzem como resultado da visão de mundo responsável por
articular tais elementos. Essas maneiras de articulação nem sempre são
idênticas entre os períodos históricos e os movimentos suscitados no
contexto social.
143
Embora não concordemos plenamente com as categorias e com o
entendimento de Paul D. Hanson
259
, sua proposta é de grande
importância por objetivar exatamente a captação das diferenças entre as
expectações escatológicas.
Diante disso, analisaremos algumas características do
apocalipsismo em comparação com os movimentos profético e
apocalíptico. Para isso, faz-se necessário um breve esboço das
características de ambos os movimentos judaicos (profecia e
apocalíptica).
Salientamos que nossa proposta não é departamentalizar os três
movimentos a ponto de serem independentes entre si, ao contrário, são
resultados de uma continuidade sócio-histórica na qual estão bem
amarrados e são intercambiáveis. Ao mesmo tempo, não pretendemos
abordar com profundidade as características desses movimentos, mas
salientá-las na medida em que aparecem e tornam-se relevantes em
nosso texto.
4.1.2. As diferenças básicas entre profecia e apocalíptica
As diferenças básicas que têm sido grandemente apontadas pelos
estudiosos em relação à profecia e à apocalíptica tem sido as seguintes:
Entre visão e inserção histórica. No profetismo, as visões são
inseridas nos acontecimentos históricos, sendo transferidas do
nível cósmico para o nível político-histórico de seu tempo;
enquanto que na apocalíptica as visões permanecem no domínio
visionário atemporal independente e indiferente do momento
histórico concreto;
259
Consideramos que Hanson muitas vezes faz uma análise simplista, na qual reduz a
complexidade da questão. Sua proposta serviu e continua servindo como um início à
reflexão e análise investigativa sobre o assunto em questão e suas dimensões.
144
Acerca do reino de Deus. Para a profecia, o reino de Deus
acontecerá neste mundo, com a perspectiva de um Deus
presente, junto ao povo. Na apocalíptica o reino de Deus está no
além, em outra realidade cósmica, com a perspectiva de um
Deus distante, acima dos céus, sentado no trono, totalmente fora
da realidade mundana que está a seus pés;
Em relação à salvação. Na profecia, a salvação é para Israel e
está na obediência aos preceitos de Deus que, como resultado,
propicia uma nova realidade histórica, enquanto que na
apocalíptica, embora a salvação esteja pautada pela obediência
aos preceitos de Deus, na dinâmica dualista justo X ímpio, há
uma abrangência que transcende os limites israelitas e a nova
realidade encontra-se no ato de Deus aniquilando toda a
realidade histórica vigente e instaurando ao mesmo tempo um
mundo totalmente novo (não mundado, mas uma outra realidade
cósmica).
No modo de transmissão da mensagem. Na profecia, embora
haja visões
260
, a mensagem é transmitida na forma de oráculo – o
que Deus diz. Na apocalíptica a ênfase não está na palavra e sim
na visão, por isso é o visionário que ganha importância por
anunciar e transmitir a mensagem desejada por Deus
261
.
Acerca de elementos externos apropriados. Na profecia há
apropriação de elementos externos provenientes de povos
vizinhos, tais como atos simbólicos, êxtase, etc. Tais elementos
passam a pertencer ao ambiente histórico do movimento profético
260
As visões são articuladas de maneiras bem diferentes com significados e intenções
distintas em cada um dos movimentos (profético e apocalíptico). Faz-se necessária
essa distinção, pois o fato de haver visões não pode significar a mesma coisa. O
elemento visão é comum, mas seus efeitos e funções são bem diferentes em ambos
os movimentos citados, conforme temos destacado até aqui.
261
Aspectos já trabalhados no terceiro capítulo na análise do gênero literário e Sitz im
Leben.
145
israelita. Na apocalíptica há apropriação de elementos externos
com uma maior abrangência, não limitando-se a atos, mas a
idéias, tais como o acervo mitológico vasto do Antigo Oriente e
influências da visão de mundo religiosa persa.
Essas considerações gerais têm sido utilizadas no âmbito da
pesquisa crítica como um paradigma para ajudar na classificação de
escritos que possuem elementos que os aproximam dos referidos
movimentos sócio-teológicos, com a finalidade de definir a que grupo o
escrito específico faz parte.
Tais elementos, entretanto, não são suficientes em si mesmos para
captar a intenção e peculiaridades da expectação articulada em cada
texto, havendo a necessidade de perceber, como veremos, a forma como
os elementos do texto se apresentam e são articulados. Servem, todavia,
como auxílio na identificação das linhas gerais de identificação do tipo de
literatura ou movimento a que o texto corresponde, fornecendo muitas
vezes uma “linha hermenêutica” para a interpretação do mesmo. Ocorre
que essa “linha hermenêutica” leva os estudiosos a forçarem o
enquadramento dos textos e a deixar de perceber que os elementos dos
textos são relacionais, e que os textos não se apresentam de forma
“pura”, ou seja, não representam, em grande parte das vezes, um único
tipo de característica, não se enquadram em uma única definição
paradigmática, mas são complexos e apresentam características
peculiares.
Esse fato, no âmbito da pesquisa crítica, nos faz pensar se
realmente os escritos escatológicos, com suas características próprias
desenvolvidas em cada realidade sócio-histórica, estão sendo
devidamente contemplados pelo tipo de paradigmas adotados.
Diante dessa inquietação, entendendo o apocalipsismo com suas
próprias características, indagamos sobre: como fazer sua análise sem
146
depender totalmente, ou sem nos aprisionar ou aprisionar o texto ao
referencial paradigmático que mencionamos acima?
Na tentativa de nos libertar de antigos e costumeiros paradigmas,
analisaremos o texto de Isaías 24,1-6 com a intenção de captar algumas
de suas características, tentando compreender essas características à luz
de seu contexto.
4.1.3. Elementos ausentes no apocalpsismo isaiano
Olhando o texto de Isaías 24,1-6, considerando sempre todo o
bloco do qual faz parte (capítulos 24-27), podemos observar não apenas
a presença de algumas imagens, figuras e elementos comuns em relação
à apocalíptica, mas também o que está ausente, conforme apontaremos.
De forma didática estaremos num primeiro momento objetivando
captar elementos ausentes. Num segundo momento focalizaremos nossa
atenção na percepção dos elementos presentes e em como esses
elementos são articulados na literatura apocalíptica propriamente dita e
em nosso texto, mais especificamente.
Destacamos a ausência dos seguintes elementos, considerados
fundamentais ao apocalipsismo:
A figura ou perspectiva do Deus distante – em nosso texto,
Deus está presente na Terra e age na história;
A perspectiva do escatón enquanto aniquilação total da
realidade mundana e a realização da nova realidade
cósmica (com conotação universal); em nosso texto, não há
o fim da história, como veremos;
147
A forma visionária, com todo seu aparato (anjos, céus,
elementos míticos, etc). Em nosso texto, a ênfase é no
oráculo, na palavra de Yahweh.
Tais elementos são característicos nos escritos apocalípticos
posteriores, mas ausentes na perspectiva apocalipsista isaiana, como
destacamos.
Nos escritos apocalípticos os elementos citados se articulam, em
linhas gerais, com a intenção de fomentar a expectação da intervenção da
deidade na história de maneira a aniquilar por completo a realidade
histórica, com ênfase na perspectiva da dualidade bom / mau, na qual tal
realidade é má / pecadora e a nova realidade será boa / justa.
Os efeitos dessa ação são transcendentes, fogem aos limites da
nação de Israel. São cósmicos, em seu sentido mais amplo. Há uma
abrangência espacial e étnica dos feitos de Yahweh e seus efeitos
(salvação e condenação).
Além disso, esse agir é irrevogável, por fazer parte do plano de
salvação de Yahweh, o qual salvará os justos e condenará os ímpios. Os
justos serão eternamente recompensados pela obediência aos desígnios
de Deus, enquanto que os ímpios receberão o castigo eterno pela
desobediência. Nesse contexto, não há mais espaço para
arrependimento, nem há nenhuma ação humana nesse processo.
Toda essa idéia desenvolve-se e ganha novos coloridos ao longo
do tempo, mas em linhas gerais essa é a lógica presente nos textos e na
visão de mundo escatológica apocalíptica.
148
4.2. CARACTERÍSTICAS DO APOCALIPSISMO ISAIANO
O apocalipsismo de Isaías 24,1-6 tem como elementos marcantes
o tema teológico “O Dia de Yahweh”, e o tema da abrangência dos efeitos
do agir de Yahweh sobre a terra.
O primeiro tema traz a idéia de guerra, com a figura do Deus
guerreiro, que vencerá e dizimará seus inimigos (tudo aquilo que se
coloca contra seus desígnios e proposta para a história da humanidade –
idéias e estruturas). Esse evento é a entronização de Yahweh como rei,
numa perspectiva de realização, no futuro, de um período de justiça e paz
na realidade histórica.
O segundo tema trata da abrangência dos efeitos deste dia sobre
toda a terra (aspecto mundial ou universal), que no texto estudado tem
uma conotação bastante diferente da visão “universal” apocalíptica, como
vimos no capítulo anterior. Nesse texto, os efeitos da ação de Yahweh
alcançam toda a Terra no sentido geográfico, mas com um fim específico
que não é universal, mas destinado ao povo de Israel, especialmente.
A partir desses elementos analisaremos suas características,
intenções e efeitos concretos na história da teologia israelita.
4.2.1. O Dia de Yahweh
Embora Isaías 24.1-6 não esteja entre os textos que mencionam
claramente a expressão Dia de Yahweh ou outros termos relacionados ao
tema
262
, conforme já mencionamos no primeiro capítulo deste trabalho, o
262
Esse tema no Antigo Testamento recebe outros nomes como: “dia da vingança”,
“dia do desastre”, “dia da calamidade”, “dia da punição”, dia da ira de Yahweh, ou
ainda simplesmente “o dia”.
149
conteúdo dos capítulos 24-27 nos faz considerar a perspectiva do dia de
Yahweh, conforme demonstraremos.
Segundo a pesquisa crítica são poucos os textos do Antigo
Testamento que mencionam claramente tratar desse tema, tais como:
Isaías 2,12; 13,6-9; 22,5: 34,8; Jeremias 46,10; Ezequiel 7,19; 13,5; 30,3;
Joel 1,15; 2,1 e 11; 3,4; 4,14; Amós 5,18-20; Obdias 15; Sofonias 1,7-8 e
14-18; Zacarias 14,1; Malaquias 3,23.
263
Em Isaías 24-27 temos a menção a ele na expressão “naquele dia”
que, em comparação aos textos acima citados, demonstra claramente
tratar-se do dia de Yahweh. Essa expressão “naquele dia”, além de estar
presente em alguns dos textos acima citados, se encontra em muitos
outros textos do Antigo Testamento.
A partir disso, através da comparação com os textos citados,
destacaremos alguns elementos comuns que caracterizam o tema Dia de
Yahweh, tentando captar sua intenção em Isaías 24,1-6.
As investigações acerca desse tema concentraram-se em
esclarecer a origem da expressão mais que o seu significado textual.
Segundo Pablo R. Andiñach
264
existe consenso entre os pesquisadores
no sentido de que a expressão remonta ao período pré-exílico, sendo
que, a partir do período da restauração (539 a.C.), foi absorvendo novo
significado teológico, indicando um ato poderoso de Yahweh que num
único dia poria fim a todos os inimigos de seu povo.
Em linhas gerais o Dia de Yahweh reflete um contexto de guerra,
com palavras que denotam claramente esse campo semântico, como
exército, guerra, guerreiros, dispersão, devastação, despojo, destruição,
dentre outras.
263
Pablo R. Andiñach, Uma linguagem da resistência diante do poder imperial – O dia
de Javé em Joel em RIBLA Nº 48, 2004, p. 70; e Gerhard Von Rad, Teologia do
Antigo Testamento, volume II, ASTE, 1986, p. 435 nota 170, acerca da p. 116.
Todos datados no pós-exílio, conforme a análise crítica.
264
Pablo R. Andiñach, Uma linguagem da resistência diante do poder imperial – O dia
de Javé em Joel em RIBLA Nº 48, 2004, p. 69.
150
Uma dimensão interessante de perceber é que o governo de
Yahweh neste dia, não segue o modelo tirânico dos poderes imperialistas
estrangeiros que simplesmente dizima a outra nação. Seu governo é
justo, tendo por interesse instaurar a justiça. Por ser justo, seu agir dizima
a injustiça onde quer que esteja sendo realizada. A injustiça é o alvo da
destruição e não o estrangeiro propriamente dito (como temos no modelo
de guerra). Nesse ato destruidor (purificador) de Yahweh não há como se
isentar por questões étnicas, culturais, ideológicas ou posições sociais.
Dessa forma, as injustiças cometidas pelo povo de Israel é também alvo
do agir purificador do Dia de Yahweh. E o texto estudado, conforme
verificamos no capítulo anterior, o demonstra claramente, ao apontar
como motivo para o agir de Deus as injustiças cometidas entre o seu
povo. Essa constatação nos leva a outra característica apocalipsista
presente em nosso texto.
4.2.2. A Universalidade da Ação de Deus
Destacamos como característica apocalipsista isaiana,
desenvolvida no decorrer desse movimento, o caráter universal e cósmico
do agir de Yahweh, tanto no que diz respeito à destruição como na
reconstrução. Dessa forma, de maneira gradativa, percebemos que de
condenação das “nações” passa-se para condenação de “indivíduos”,
ainda numa perspectiva coletiva, mas diferente da nacionalista anterior,
pois não é mais fator principal aquele antigo referencial de etnicidade.
O grupo passa a ser identificado como justo X ímpio, não sendo
mais preponderante a etnia anteriormente adotada.
Não é dessa forma, contudo, que a idéia de Salvação e a
universalidade do agir de Yahweh se apresenta no texto estudado.
Interessantemente, não há menção da ira de Deus por causa do pecado
151
de outras nações, nem tampouco condenação ou salvação de outras
nações. Tanto a culpa, como a maldição e a salvação são relacionadas a
Israel.
A universalidade apresentada, se é que podemos chamar dessa
forma, é geográfica: refere-se ao poder de Yahweh de comandar e
interferir em toda a Terra, recolhendo aqueles de seu povo que haviam
sido espalhados, por vontade própria ou contra sua vontade. A
universalidade do texto reflete o poder de Yahweh de agir na história, mas
o texto não apresenta elementos para pensarmos em termos de “salvação
universal”.
Além disso, não há no texto referência à destruição da Terra e da
ordem presente, não é apresentado um “cataclisma universal” com o
estabelecimento de uma nova realidade cósmica. O texto não apresenta
elementos que nos levem a pensar numa ruptura histórica, como
acontece de forma clara nos textos apocalípticos. Apresenta contudo, em
concordância com a idéia apocalipsista e apocalíptica posterior, a noção
de que é Deus que age para sanar as injustiças, mas aqui, com a idéia de
que o faz aparentemente na história, e não fora dela ou destruindo-a.
O texto de Isaías 24,1-6 não menciona, mas seu contexto
demonstra que, apesar de ser Yahweh quem vai agir (e isso é claro), a
participação humana não é de todo anulada, o que diferencia o texto do
movimento apocalíptico posterior, mais uma vez, pelo fato de que,
segundo a concepção desse movimento, não haverá mais espaço para
ação humana, quando Yahweh agir.
Cabe ressaltar, ainda, outro fator importante. O universalismo
apocalíptico, por pretender abarcar toda a Terra, apresenta-se de forma a-
histórica, não indica normalmente nenhum contexto específico. O texto
estudado, por outro lado, indica uma situação real e concreta de
opressão, e seu autor, inclusive, usa palavras (como vimos anteriormente)
que demonstram as situações a que se refere. A ênfase no sacerdote, no
152
“senhor de escravos”, nos “escravos” e “escravas”, as relações
econômicas injustas desmascaradas, demonstram uma concretude não
presente em textos apocalípticos posteriores.
As observações acima levantam questões acerca do texto que não
podem ser ignoradas, e que certamente estiveram presentes na mente de
muitos estudiosos do texto, causando a “confusão” acerca de sua
classificação, como mencionamos anteriormente.
Se, por um lado, o texto apresenta características que
consideramos apocalipsistas, que o fizeram ser classificado como
“Apocalipse de Isaías” ou como “proto-apocalíptico”, por outro lado, não
há como negar a presença de elementos que o caracterizam como um
texto de tradição oracular – um texto proveniente do movimento profético.
É o que veremos a seguir.
4.3 ELEMENTOS PROFÉTICOS EM ISAÍAS 24,1-6
Destacaremos alguns elementos presentes no texto estudado que
demonstram sua raiz profética, e seu comprometimento com a tradição
mais antiga de Israel, apesar do novo contexto sócio-histórico e das
influências teológicas “novas”, também presentes no texto, como vimos.
4.3.1. Tradições proféticas
Percebemos em Isaías 24,1-6 que, apesar da apropriação de
elementos extra-judaicos, tais elementos na lógica do oráculo isaiano, são
articulados de acordo com as concepções e perspectivas israelitas bem
mais antigas.
153
Um elemento que nos chama a atenção é a forma como o oráculo
olha para o futuro.
A construção do futuro lança um olhar para o passado: com
resgate de tradições, como por exemplo: tradições do êxodo, na qual
temos uma diretriz acerca da prática da justiça, da igualdade, da
solidariedade e da liberdade.
O futuro encontra-se no restabelecimento da aliança com Yahweh
como um resgate de um tempo em que se vivia a expectativa da
liberdade, solidariedade, etc, citadas acima.
Esse modo de pensar o futuro da nação que está presente no
oráculo isaiano, não segue o modelo de visão de mundo suscitado pela
cultura ou poder imperial dos persas.
Embora, como já dissemos muito, haja elementos de outras
culturas, por causa do inevitável relacionamento com povos que têm
diferentes visões de mundo, numa dinâmica de fronteiras fluidas, a
esperança judaica suscitada num momento de crise, está arraigada em
sua experiência, enquanto povo, com Yahweh durante sua história.
Eventos como a libertação da casa de servidão e o
estabelecimento da lei deuteronomista, com especial enfoque a legislação
social
265
, são elementos que norteiam a visão de mundo do pensamento
do nosso oráculo.
Este traço de resgate dos direitos humanitários em Israel é bem
forte no movimento profético durante toda a sua história.
Desde o período da monarquia o movimento profético tem se
mostrado como propiciador do resgate humanitário diante de momentos
265
Segundo Frank Crüsemann em A Torá, teologia e história social da lei do antigo
testamento, p.314 e seguintes, esse código legal de determinações sociais, foi
costumeiramente chamado de “leis humanitárias”. Esse dato nos possibilita perceber
que, ao ser este referencial um elemento norteador do pensamento teológico, o
contexto concreto e prático do tempo do escrito, provavelmente é de negação dos
direitos humanitários.
154
de crise que gera a desumanização das pessoas, criando uma realidade
de exclusão e miséria.
O anúncio profético, durante toda a sua história, comprometeu-se
em denunciar exatamente as estruturas e idéias que geravam essa
realidade em que os empobrecidos (órfãos, viúvas, escravos por dívida,
etc) são abandonados sem nenhuma perspectiva de reverso acerca de
sua condição.
Outro elemento de grande importância em nosso texto é a
centralidade da palavra de Yahweh. A força do oráculo, expressão do
profetismo, está em ser a palavra da deidade. Essa é a base da profecia
israelita.
Dentro da história do profetismo quando há conflitos acerca dos
falsos profetas, uma das atitudes para distinguí-los dos verdadeiros, era
atentar para o conteúdo do oráculo e verificar se o mesmo refletia
verdadeiramente a palavra de Yahweh. A veracidade do oráculo está na
concretização da profecia, caso contrário, o anúncio e o profeta seria
considerado como falsos.
Esse elemento encontra-se exatamente no centro de nossa
perícope numa estrutura concêntrica, significando ser o ponto alto do
oráculo.
Seu papel na transmissão da mensagem é suscitar credibilidade
por ser algo realmente dito pelo próprio Deus, e sendo assim, acontecerá
indubitavelmente.
Essa credibilidade, de uma certa forma, compromete o ouvinte /
leitor com a esperança suscitada na mensagem.
Essas características do profetismo em Isaías 24,1-6 denotam o
interesse do oráculo, que se apropria de novos elementos culturais de seu
tempo, e os articula com o intuito de, por intermédio de tais elementos
155
atuais, atualizar antigos princípios da aliança já experimentados na
história do povo.
Essa realidade de novidades no contexto sócio-histórico do povo
israelita na qual temos esse traço forte do movimento profético, com uma
linguagem nova que reflete o referido contexto, propiciou o movimento
apocalíptico posterior.
Encerramos nossa pesquisa e estudo com a nítida impressão de
que o oráculo profético de Isaías 24,1-6 reflete uma realidade complexa
que não é estática. Este oráculo não está abstraído de seu tempo como
elemento alienado, antes totalmente inserido em seu contexto com todo o
aparato de seu tempo, e sendo influenciado por esse aparato que
suscitou alterações na visão de mundo.
Essas alterações foram responsáveis por nortear, a partir de então,
o desenvolvimento de todo o fazer teológico posterior do povo judaico.
156
CONCLUSÃO
Chegamos ao final da dissertação com um sentimento ambíguo.
Por um lado, com a sensação de “dever cumprido”, mas por outro, ergue-
se a percepção de que haveria muito ainda por fazer e por compreender.
Diante dessa ambigüidade temos a consciência de que a tarefa de
pesquisa, e a tarefa hermenêutica mais especificamente, nunca será
concluída, sempre será um desafio aberto.
Essa realidade ambígua e paradoxal que experimentamos parece
permear o conteúdo do oráculo profético de Isaías 24,1-6 por transitar
entre situações conflitantes e procurar apresentar um modo de produzir
esperança em momento de dúvida, de instabilidade e de crise de
identidade.
O profetismo, diante de circunstâncias e momentos de crise,
apesar de suas várias fases, caracterizou-se pelo comprometimento com
a vontade de Yahweh, não se corrompendo com os interesses políticos
das grandes potências da sua época e nem aos interesses da monarquia.
Ao contrário, denunciou tais interesses por não vislumbrarem cuidados
para com os necessitados. O profetismo se coloca ao lado dos
necessitados por suscitar a prática da justiça e da equidade, denunciando
as ações desumanizadoras a partir dos princípios éticos do javismo
expressos nas leis. Essa é a característica do movimento profético que
atravessou, como fio condutor, todas as suas diversas fases e momentos
histórico-teológicos.
Apesar desta característica e perfil do profetismo, os diferentes
momentos históricos, com seus eventos, conseqüências e significados
específicos, foram responsáveis por nuanças que diferenciaram o
profetismo pré-exilico, exílico e pós-exilico em sua linguagem, teologia e
certas expectativas escatilógicas.
157
A discussão acerca da obra isaiana como um todo existe por
exatamente refletir a pluralidade da realidade temporal acima
apresentada, demonstrando nuanças bem definidas em relação aos fatos
históricos e reflexão teológica sobre os mesmos.
Essa realidade plural suscitou nos pesquisadores a necessidade de
visualizar o processo de formação de toda a obra isaiana suscitando com
isso inúmeras propostas com o intuito de harmonizar as tensões de toda a
obra.
Embora de maneiras diferentes, todas as teorias e hipóteses
concordam com o fato do processo de formação do livro de Isaías ter sido
longo, abrangendo o período temporal desde o 8º até o 3º séculos a.C.,
deixando claro que o profetismo se dá á luz de eventos históricos e
precisa ser entendido e explicado também à luz de novos e contínuos
eventos no decorrer da história.
Em razão de ser o profetismo um fenômeno sócio histórico, sua
cosmovisão e expectativa escatológica transformou-se ao longo da obra
isaiana em virtude de eventos históricos interferirem na teologia.
Os capítulos 24-27 de Isaías denotam um dos momentos em que
está havendo certas mudanças acima mencionadas.
Apesar do referido bloco compor a primeira parte da obra isaiana,
capítulos 1-39, a qual, inicialmente no âmbito da pesquisa crítica foi
considerada corresponder ao pré-exílio, é expressão sócio-histórica do
pós-exílio por ter elementos deste período, como: vocabulário e temas
teológicos acerca da descrição da destruição da terra, o tema “dia de
Yahweh” com a perspectiva do julgamento universal, refeição no monte
Sião, ressurreição, toque da trombeta, as três bestas e era messiânica.
Tais temas teológicos são elaborados e articulados com materiais míticos
vastos do antigo oriente no pós-exílio.
158
A partir do estudo desses elementos chegamos ao período persa
como sendo o contexto que propiciara a reflexão e a redação dos
capítulos 24-27 de Isaías.
Através da análise do período histórico sugerido, pudemos ter uma
idéia do contexto e sua interferência na teologia. Os judaítas, por
precisarem se posicionar diante da necessidade de estabelecer um
“padrão” que determinasse quem seria o verdadeiro Israel, uma vez que o
estabelecimento do reino não mais seria possível, a perspectiva
escatológica emerge nesse contexto desempenhando importante papel
no desenvolvimento do judaísmo fomentando uma nova identidade e
etnicidade.
Como todo e qualquer fenômeno sócio-religioso, as expressões
escatológicas dependem da visão de mundo e de aspectos sócio-
culturais. Por isso, cada expressão escatológica traz uma visão de mundo
coletiva específica.
O texto de Isaias 24,1-6 apresenta uma escatologia com linguagem
mítica com o tema “o dia de Yahweh” importado dos povos vizinhos, que
seria o dia em que a divindade seria entronizada como rei da nação. Além
de elementos externos, estrangeiros, a escatologia é formada por
elementos internos, que também não são homogêneos, como as diversas
tradições javistas, que juntos constituem a perspectiva escatológica.
A perspectiva escatológica não é um resultado da simples
presença dos elementos, mas será definida a partir da relação dinâmica
que ocorre entre seus elementos à luz dos eventos histórico-sociais.
Numa relação de continuidade de uma escatologia profética e
apocalíptica, percebemos uma alteração da esperança profética de
restauração estatal monarca para a esperança apocalipsista do dia de
Yahweh, Deus como rei da nação.
159
Não sendo mais a atuação do rei humano que dá o reverso
histórico e mantém a identidade nacional, e sim o próprio Deus.
A questão da crise de identidade, e da crise social causada por
novas situações e desafios, que abriu nossa discussão e que, em nossa
opinião, era presente no contexto da escrituração do texto estudado,
encontra assim um caminho. Não exatamente uma resposta, mas um
caminho: é possível preparar-se para as novas realidades, estar pronto
para responder a elas, sem perder a identidade.
Para isso, é preciso aprender a lembrar, valorizar e desejar os
valores de justiça, solidariedade, fraternidade pretendidos por Yahweh,
ainda que a sociedade nos induza a desejar a exploração, o egoísmo e a
mesquinharia. É possível e é preciso aprender a ser quem somos
independentemente das pressões sociais, econômicas, culturais ou
mesmo teológicas, a fim de que possamos viver de forma plena. Isso é o
que o texto parece querer indicar.
Interessante perceber que, de acordo com o texto, a adequação à
nova realidade sem preservação da identidade não é solução. O fato do
povo ter “aprendido a viver” como os persas, reproduzindo seus valores e
sua visão de mundo não ajudou, apenas atrapalhou o povo, gerou
maldição e morte.
Mais do que o estudo dos elementos do texto, da definição de suas
características, do estudo acerca das palavras e do contexto histórico em
que o texto nasceu, a produção desta dissertação revelou a importância
da relação entre os elementos, palavras, idéias, realidades e visão de
mundo para formar o “todo” que compõe o texto.
O texto, como evento, como realidade, é muito mais complexo e
abrangente do que a soma de suas partes, por isso, embora tenhamos
percorrido didaticamente um caminho de estudo um tanto
departamentalizado, temos que ressaltar, nessa parte da dissertação, que
160
apenas relacionando tais elementos é possível perceber sua
grandiosidade e significado.
Não podemos afirmar que o autor do texto tinha consciência de
tamanha complexidade, mas também não podemos duvidar disso.
Podemos apenas propor uma interpretação baseada em nossa pesquisa
e em nossa própria percepção acerca do texto, admirando-o e
considerando-o como uma forma genial de decodificação da realidade e
gerador de esperança, não num sentido ilusório, mas concreto, que
objetivava, de acordo com nossa percepção, produzir uma nova conduta,
um novo modo de agir.
Como vimos, o autor do texto faz isso coadunando elementos de
tradições diferentes, elementos novos, provindos de sua realidade e dos
desafios que esta apresenta, e elementos tradicionais, provindos do
passado e da história do povo, elementos constituintes de sua identidade,
que precisavam ser revistos e relembrados a fim de que o povo lembrasse
quem era e percebesse quem deveria ser – ainda que o novo momento
oferecesse outra opção de vida, e que as pressões do cotidiano o
impulsionasse a ser e agir de outra forma. Para ser o “povo de Yahweh”
era preciso aprender a viver no presente com os valores do passado, com
os valores de igualdade, solidariedade e justiça que marcaram a
libertação do povo de Israel e que deveria ser a sua marca. Os novos
padrões de vida não deveriam substituir esses valores, e o povo precisava
aprender a não reproduzir nem desejar o modo de vida do Império que o
dominava.
Dessa forma, o povo reaprenderia a ser “povo de Yahweh” e
estaria pronto para viver no presente, construindo sua história, tendo o
próprio Yahweh como rei e modelo.
A forma do texto e suas características teológicas podem também
nos fazer pensar. Ao trabalhar com elementos novos, apocalipsistas, em
união com elementos tradicionais proféticos, o autor do texto faz da
161
ambigüidade de seu momento um campo fértil para a construção.
Percebemos com isso, de forma bastante clara, que não é a simples
presença de elementos simbólicos ou reais que determinam o significado
de um texto, ou da vida, mas a forma como esses elementos são
colocados, a forma como são articulados dentro do texto, a forma como
são relacionados para produzir um significado.
Nosso texto apresenta, assim, diversas características
apocalipsistas, como vimos. Mas as usa para construir um oráculo
profético. Além do argumento de que trata-se de um texto de transição,
em que as características de cada movimento estão se fundindo, e de que
não há modelos “puros” de uma só tradição, o texto pode nos fazer
pensar simbolicamente em uma dimensão muito maior: os elementos, os
pensamentos, estão presentes no mundo, mas não temos que aceitá-los
como imposição. Podemos usá-los, e vivenciar as novas situações, sem
esquecer o que passou, sem abandonar aquilo que para nós é essencial
e que nos formou.
Dessa forma concluímos nossa pesquisa convencidos de que
realmente Isaías 24,1-6 está imerso num contexto de transição bem
complexa. Esse momento provocou mudanças e transformações em
diversas esferas e vertentes da vida humana e fez parte da construção do
que chamamos de formação do judaísmo, que não se deu de uma única
maneira e de uma vez só.
162
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