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inclusive eu, que já estava observando-a, deslocamos-nos até o centro de convivência para
prestarmos solidariedade à educadora. Acalmados os ânimos, a mulher foi-se embora,
porém, os insultos continuavam dirigidos a ninguém. Assim, de observação, acredito se
tratar de um caso de alucinação por cocaína, não sei se necessariamente decorrente do uso
de cocaína injetável, pois, em nenhum momento presenciei-a saindo da sala de injeção, já
tendo chegado da rua naquele estado (...)
(EC - Sala Baluard: 29/11/2005 – 15h): Nesse dia, testemunhei o acontecimento de
paranóia decorrente do uso de cloridrato de cocaína por via endovenosa. Pela primeira vez,
tive o consentimento, pelo médico da sala Baluard, a entrar na sala de injeção. Ao entrar,
observei que o ambiente era muito pequeno, havendo 6 pequenas mesas, de uso individual,
destinadas aos usuários e separadas entre si por um pequeno corredor (4 mesas de um lado
e 2 do outro) (Figura 8). Ao lado da entrada da sala de injeção havia uma pequena mesa,
em frente às demais, correspondente ao lugar da enfermeira, de onde poderia monitorar a
higiene da sala, das mesas e controlar a entrada e saída dos usuários. No canto oposto
havia uma pequena pia, destinada à higienização dos usuários antes de iniciada a injeção.
Entrei no recinto bastante interessado, porém, receava sofrer algum tipo de reação, já que
era o único desconhecido e estava invadindo o momento de privacidade e, acima de tudo,
de fraqueza dos usuários, pois ali se dedicavam a satisfazer sua dependência, por mais
problemas que pudesse gerar em suas vidas. A situação, de princípio ameaçante, passou a
ser angustiante. Ao entrar, deitado no corredor, havia um rapaz sob overdose de heroína.
Sobre ele, 2 educadores sociais e o enfermeiro que tentavam a reanimação. Para piorar a
situação, abaixo de uma das mesas e sentado no chão, havia outro rapaz que procurava por
algo. Parecia empenhado na tarefa, pois de um momento a outro, introduzia sua cabeça e
corpo abaixo da mesa vizinha, de tal forma que o colega, sob overdose, não lhe servia
como empecilho. Os funcionários, sabendo que se tratava de paranóia cocaínica, pediam
que o usuário abandonasse a sala, mas a situação era muito difícil, pois era como se não
ouvisse. Naquele momento, os funcionários (médico, enfermeiro e educadores sociais) não
poderiam fazer muita coisa, pois estavam ocupados socorrendo o usuário de heroína em
overdose. Depois de muitos pedidos, o rapaz em paranóia levantou-se e caminhou até a
porta. Já estava de saída quando se deu conta da existência do cesto de lixo. Ainda com a
sensação de que havia perdido algo e ainda empenhado em sua procura, enfiou as duas
mãos no cesto que estava repleto de papéis ensangüentados, utilizados na limpeza das
mesas e dos demais usuários. Tal foi a minha surpresa quando o vi apanhando cada um dos
papéis, desdobrando-os e desamassando-os pacientemente em busca da droga. Eu, sentado
na cadeira do enfermeiro, ao lado da porta, observava fixamente o usuário que estava ao
meu lado. O enfermeiro, que estava saindo da sala para preparar uma dose de naloxona ao
rapaz em overdose, com rigor, mas, de forma cautelosa e delicada, retirou-o da sala,
levando-o ao centro comunitário. Porém, o usuário de cocaína continuava em paranóia e
tentou entrar na sala novamente, tentativas frustradas. Seu estado não era animador, já que
não havia higienizado a si (o braço estava ensangüentado) e tampouco a mesa. Resolvi sair
da sala de injeção, pois como o ambiente era muito pequeno e eu nada podia fazer para
aliviar aquela situação caótica em que todos estavam com os ânimos alterados. Ao sair,
percebi que o outro rapaz, sob overdose, recobrava os sentidos e as forças, sob constante
auxílio dos funcionários (...)